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Narrar Deus numa

sociedade pós-metafísica.
Possibilidades e impossibilidades
Benilton Bezerra Júnior
Só os sujeitos de linguagem podem crer
em Deus E mais:

Mary Hunt:
>>
William Stoeger Os novos nomes de Deus e o
As ciências naturais não podem dizer o que empoderamento feminino
Deus é ou não é
Andres Kalikoske:
308
>>

Luigi Perissinotto Comunicação e transdisci-


Ano IX O silêncio e a experiência do inefável em plinaridade: interconexões a
14.09.2009 Wittgenstein partir da telenovela
ISSN 1981-8469

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Narrar Deus numa
sociedade pós-metafísica

Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, tema central do


X Simpósio Internacional IHU, que se realiza nesta semana na Unisinos, numa promoção do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, é o núcleo ao redor do qual se concentram as contribuições de pesquisa-
dores e pesquisadoras, das mais diferentes áreas do conhecimento e de diversas parte do mundo,
desta edição da IHU On-Line.

Assim, o cosmo-físico norte-americano William Stoeger, os filósofos Marcelo Fernandes de Aqui-


no, Ernildo Stein, brasileiros, e o italiano Luigi Perissinotto, o ensaísta francês da revista Esprit
Jean-Louis Schlegel, os teólogos Christoph Theobald, alemão, autor da obra Le Christianisme com-
me style. Une manière de faire de la théologie em postmodernité, Felix Wilfred, indiano, Mary
Hunt, norte-americana, os brasileiros Geraldo De Mori, Faustino Teixeira, Luís Carlos Susin e o
psicanalista Benilton Bezerra Júnior debatem o tema central do Simpósio.

Completa a edição o artigo Comunicação e transdisciplinaridade: interconexões a partir da te-


lenovela de Andres Kalikoske, pesquisador do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política
e Sociedade (CEPOS).

Saudamos a todos e todas que, vindos e vindas de várias partes do Brasil e do mundo, para par-
ticiparem do X Simpósio Internacional, desejando que se sintam bem na nossa terra e no meio da
nossa gente.

Uma ótima semana e uma excelente leitura!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
Expediente

Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi-
nos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão: Vanessa
Alves (vanessaam@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Traba-
lhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling,
Greyce Vargas (greyceellen@unisinos.br) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos.
br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Concei-
ção. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br).
Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: ihuonline@unisinos.br. Fone: 51 3591.1122 – ramal 4128. E-mail
do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.

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Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 05 | William Stoeger: As ciências naturais não podem dizer o que Deus é ou não é
PÁGINA 07 | Marcelo Fernandes de Aquino: A pós-metafísica e a narrativa de Deus
PÁGINA 10 | Ernildo Stein: Narrativas de Deus são fragmentárias como era pós-metafísica
PÁGINA 14 | Jean-Louis Schlegel: Todos os discursos sobre Deus são possíveis e imagináveis em nossa sociedade
PÁGINA 18 | Felix Wilfred: Fluidez e abertura nas narrativas de Deus na sociedade pós-metafísica
PÁGINA 20 | Geraldo De Mori: Literatura: lugar de narrar Deus
PÁGINA 22 | Luigi Perissinotto: O silêncio e a experiência do inefável em Wittgenstein
PÁGINA 26 | Benilton Bezerra Júnior: “Só os sujeitos de linguagem podem crer em Deus”
PÁGINA 29 | Mary Hunt: Os novos nomes de Deus e o empoderamento feminino
PÁGINA 31 | Clóvis Cabral: Deus é maior do que os discursos sobre ele
PÁGINA 32 | Luís Carlos Susin: “É narrando que se diz o mistério”
PÁGINA 35 | Faustino Teixeira: O budismo e o “silêncio sobre Deus”
PÁGINA 39 | Christoph Theobald: O cristianismo como estilo

B. Destaques da semana

» Coluna Cepos
PÁGINA 47 | Andres Kalikoske: Comunicação e transdisciplinaridade: interconexões a partir da telenovelas
» Destaques On-Line
PÁGINA 49 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
769.
nisi-
essa
aba-
» Eventos
ing,
nos. » IHU Repórter
cei-
PÁGINA 53| Vera Schmitz
br).
mail
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As ciências naturais não podem dizer o que Deus é ou não é
Não existe um conceito que consiga explicar Deus, o que não quer dizer que Ele
não exista, provoca o cientista jesuíta William Stoeger - o fato é que não podemos
compreendê-lo. Métodos da cosmologia ou das outras ciências não são competentes
para lidar com essa questão

Por Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

O
fato de que não existe um conceito adequado para explicar Deus, não pressupõe que Ele
não exista, mas apenas que não podemos compreendê-lo. O raciocínio é desenvolvido na
entrevista a seguir, exclusiva, concedida pelo cientista jesuíta William Stoeger à IHU On-
Line. “Nossa experiência manifesta Deus, mas não nos permite descrever Deus. Entre-
tanto, podemos – com grande humildade e trabalho – separar gradativamente as afirma-
ções menos inadequadas sobre Deus dos conceitos mais inadequados ou completamente inadequados
de Deus”, complementa. Não existem provas cosmológicas da existência divina, “isto simplesmente
porque as ciências naturais não têm condições de argumentar a favor ou contra a existência de Deus
ou mesmo de dizer o que ‘Deus’ é ou não é. Os métodos da cosmologia ou das outras ciências não são
competentes para lidar com essa questão. Entretanto, de um ponto de vista filosófico, o próprio fato
de que existe algo, e não nada, e de que há ordem no que existe, aponta para a existência de um Cria-
dor – isto é, de algo que proporciona ser, atividade e ordem”. Stoeger aponta a transdisciplinaridade
como fundamental na busca pela verdade, o que não deve ser feito apenas pela teologia, religião ou
filosofia. Outro aspecto discutido é a compatibilidade entre criação divina e teoria do Big Bang.
Stoeger é cientista do Grupo de Pesquisas do Observatório do Vaticano (VORG) e especialista em
Cosmologia Teórica, Astrofísica de altas energias e estudos interdisciplinares relacionados com a ciên-
cia, a filosofia e a teologia. É doutor em Astrofísica pela Universidade de Cambridge desde 1979. Entre
1976 e 1979, foi pesquisador associado ao grupo de física gravitacional teórica da Universidade de
Maryland, em College Park, Maryland. É membro da Sociedade Americana de Física, de Astronomia e
da Sociedade Internacional de Relatividade Geral e Gravitação. Atualmente, leciona na Universidade
do Arizona e na Universidade de São Francisco. É também membro do Conselho do Centro de Teolo-
gia e Ciências Naturais (CTNS). Entre outros, publicou As Leis da Natureza - Conhecimento humano
e ação divina (São Paulo: Paulinas, 2002). Em 15 de setembro, Stoeger proferirá a conferência Deus,
algo a ver ainda hoje? Reflexões teológicas de um cosmólogo, dentro da programação do X Simpósio
Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. Em
11 de setembro, o cientista falou sobre Da evolução cósmica à evolução biológica. Emergência, rela-
cionalidade e finalidade, no IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin. Para acessar o post sobre
sua conferência, acesse http://unisinos.br/blog/ihu/. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as evidên- mologia ou das outras ciências não são IHU On-Line - De que forma a trans-
cias cosmológicas que apontam para competentes para lidar com essa ques- disciplinaridade de suas pesquisas
a existência de Deus? tão. Entretanto, de um ponto de vista em física, astronomia e cosmologia
William Stoeger - De um ponto de vis- filosófico, o próprio fato de que existe se aliam à sua fé como sacerdote je-
ta estritamente científico, não há evi- algo, e não nada, e de que há ordem no suíta?
dências cosmológicas da existência de que existe, aponta para a existência de William Stoeger - A multidisciplinari-
Deus – isto simplesmente porque as ci- um Criador – isto é, de algo que propor- dade de meus interesses e de minha
ências naturais não têm condições de ciona ser, atividade e ordem. Nada do pesquisa combina muito estreitamente
argumentar a favor ou contra a existên- que a física ou a cosmologia investiga com minha fé católica e minha vocação
cia de Deus ou mesmo de dizer o que proporciona a fonte última da existên- como jesuíta. Em primeiro lugar, é fun-
“Deus” é ou não é. Os métodos da cos- cia, criatividade e ordem. damental para o ponto de vista católi-

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co – embora isto não seja reconhecido “A criação divina não naturais e humanas. E muitas pessoas
com frequência – que a verdade deve dizem que a metafísica está morta ou
ser encontrada e determinada através tem a ver com um não é possível. Certamente, formas
de todas as disciplinas, e não apenas antigas e estáticas de metafísica não
através da teologia, religião ou da filo- acontecimento ou com são mais aplicáveis ou dignas de crédi-
sofia. As descobertas das ciências, da to. Entretanto, tudo o que as pessoas
psicologia e sociologia, das artes e ci- uma origem temporal, e fazem – inclusive o que os cientistas
ências humanas complementam o que fazem – baseia-se em certas pressupo-
aprendemos da teologia e filosofia – se sim simplesmente com sições, muitas das quais são metafísi-
são entendidas adequadamente. Este cas. Assim, há sempre uma metafísica
é o problema principal! Muitas vezes, a relação básica entre o subjacente à ciência, à psicologia, à
os achados das ciências e as verdades sociologia, à religião e a qualquer con-
da filosofia e teologia são interpretados Criador e tudo que junto humano de políticas ou padrões
erroneamente ou transformados em de comportamento. Com efeito, nas
afirmações que vão além de suas com- existe, com o que dá próprias ciências – especialmente nas
petências. Além disso, uma ideia-chave ciências físicas, mas também nas bio-
da espiritualidade jesuíta é “encontrar existência, ordem, lógicas – há uma sensibilidade renova-
Deus em todas as coisas”. da para com questões metafísicas – e
dinamismo e criatividade até um novo apreço por percepções
IHU On-Line - Quais são os principais metafísicas tradicionais e mais mo-
avanços desse diálogo entre fé e ci- a tudo que existe, dernas e dinâmicas (como, p. ex., as
ência ultimamente? da filosofia do processo). Assim, há um
William Stoeger - Os principais avanços inclusive o que levou tremendo conjunto novo de possibili-
no diálogo entre a teologia e a ciência dades para falar de Deus nesse contex-
no passado recente são os seguintes: ao Big Bang, seja lá o to – mas agora usando conceitos que
1) uma compreensão muito melhor de estejam muito mais em sintonia com o
como a ação de Deus na natureza como que for” que sabemos a partir das ciências, por
Criador e na história como Redentor exemplo, Deus como criatividade. Ja-
está em consonância com a formação e mais haverá um conceito adequado de
Criador e tudo que existe, com o que dá
a autonomia funcional da natureza no Deus, mas isso não significa que Deus
existência, ordem, dinamismo e criati-
nível das ciências; e 2) a percepção de não exista – e sim que nós não pode-
vidade a tudo que existe, inclusive o
que as operações primárias da raciona- mos compreender Deus. Nossa expe-
que levou ao Big Bang, seja lá o que for.
lidade humana (imaginação bem infor- riência manifesta Deus, mas não nos
O Criador simplesmente possibilita ou
mada, formação e teste de hipóteses, permite descrever Deus. Entretanto,
capacita tudo que existe a ser o que é.
julgamento do sucesso e da fecundi- podemos – com grande humildade e
Ele não o substitui, controla ou micro-
dade dessas hipóteses no longo prazo) trabalho – separar gradativamente as
gerencia. Além disso, o Big Bang descri-
que se evidenciam nas ciências natu- afirmações menos inadequadas sobre
to pela física e cosmologia não nos diz
rais também funcionam como base da Deus dos conceitos mais inadequados
como se chega de absolutamente nada
racionalidade humana ao se transcen- ou completamente inadequados de
a algo. Do ponto de vista da cosmologia
der as questões científicas para refletir Deus.
e da física, o Big Bang é resultado de
sobre assuntos filosóficos e teológicos.
um processo físico – a partir de algum
potencial de vácuo, que tem energia e
IHU On-Line - Em outra entrevista à Leia mais...
obedece a certas leis da natureza. Esse
nossa publicação, o senhor menciona
potencial de vácuo, essa energia e es- William Stoeger já concedeu outras en-
que não existe incompatibilidade en-
sas leis exigem – filosoficamente – algo trevistas à IHU On-Line. O material está dispo-
tre o Big Bang e a criação divina “ex nível na nossa página eletrônica do IHU.
que lhes dê existência última.
nihilo”. Como compreender correta-
Entrevistas:
mente essas explicações e harmoni-
IHU On-Line - Concorda que vivemos - Astrofísica, cosmologia e a busca de Deus no
zá-las? universo. Publicada nas Notícias do Dia 26-06-
em uma sociedade pós-metafísica?
William Stoeger - Não há incompatibi- 2006, disponível para download em
Qual é a possibilidade de se narrar h t t p : / / w w w. i h u . u n i s i n o s . b r / i n d e x .
lidade entre a criação divina e a teo-
Deus nessa realidade? php?option=com_noticias&Itemid=18&task=deta
ria do Big Bang simplesmente porque a lhe&id=3029
William Stoeger - Depende do signifi-
criação divina (ex nihilo) de modo al- - “Sem a evolução cósmica não haveria evolução
cado que você atribui ao termo “era biológica”. Publicada na Revista IHU On-Line, edi-
gum substitui o que o Big Bang é ou o
pós-metafísica”! Certamente há fal- ção 306, de 31-08-2009, disponível para download
que o causou. A criação divina não tem em
ta de atenção a questões metafísicas
a ver com um acontecimento ou com http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
– e uma dependência mais explícita do php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
uma origem temporal, e sim simples-
que conhecemos a partir das ciências etalhe&id=1773
mente com a relação básica entre o
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A pós-metafísica e a narrativa de Deus
Marcelo Fernandes de Aquino, reitor da Unisinos, explica o que caracteriza a
pós-metafísica, qual a importância da compreensão de Deus e como o debate
inter-religioso auxilia esse processo

Por Greyce Vargas

A
tualmente, rodeiam vários questionamentos sobre as possibilidades, o significado e a re-
levância do discurso teológico na sociedade. A explicação do que é a caracterização pós-
metafísica, qual a importância da compreensão de Deus e como o debate inter-religioso
auxilia esse processo pode ser conferida na entrevista dada pelo Prof. Dr. Pe. Marcelo de
Aquino, Reitor da Unisinos, à IHU On-Line. O debate vai ao encontro do tema do X Simpó-
sio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e Impossibilidades,
que acontece de 14 a 17 de setembro.
O Prof. Dr. Pe. Marcelo de Aquino é pós-doutor em Filosofia pelo Boston College, Estados Unidos.
Especialista em Hegel, fez doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde também obteve
dois títulos de mestre, em Teologia e em Filosofia. Realizou graduação em Filosofia na Pontifícia
Faculdade Aloisianum, Itália, e especialização em Filosofia na Hoschschule für Philosophie, em Mu-
nique, Alemanha. Foi vice-reitor da universidade desde 2002, e também reitor do Centro de Estudos
Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, MG. Atualmente, é reitor da Unisinos. Confira
a entrevista.

IHU On-Line – De que forma podemos


entender o que é a sociedade pós-
“O tema ‘pós-metafísica’ está associado ao
metafísica?
Marcelo Fernandes de Aquino - O
tema ‘pós-cristianismo’, ambos presentes na
tema “pós-metafísica” está associado
ao tema “pós-cristianismo”, ambos
cultura contemporânea”
presentes na cultura contemporânea.
A metafísica começou na manhã gre-
e Aristóteles pensaram os três grandes mano, sob a regência da contempla-
ga da filosofia, a invenção grega do
campos da experiência metafísica, o ção do ser. A reflexão platônica aponta
logos demonstrativo. Significa a estru-
conhecimento, o agir e o esperar hu- para a inteligibilidade suprassensível
tura primária de nossa relação com a
das ideias separadas. A crítica de Aris-
realidade. Esta estrutura primária, de www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/
tóteles a Platão traz a inteligibilidade
uma ou de outra maneira, está subja- 1158342983.13pdf.pdf. Leia, também, a edi-
ção 294 da IHU On-Line, de 25-05-2009, dis- para a imanência do mundo sensível.
cente ao nosso ser-com-os-outros-no- ponível em http://www.ihuonline.unisinos. Aí temos as duas grandes orientações
mundo. Os gregos a pensaram como br/uploads/edicoes/1243280653.711pdf.pdf.
filosóficas que vigem até hoje: o pla-
contemplação do ser. O verbo ser, em (Nota da IHU On-Line)
 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. tonismo, a ontologia das ideias separa-
grego einai, é algo muito específico e C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira, um das, e o aristotelismo, a ontologia da
próprio da língua grega, graças ao qual dos maiores pensadores de todos os tempos.
forma substancial em que a inteligibili-
eclodiu experiência metafísica. Platão Suas reflexões filosóficas — por um lado ori-
ginais e por outro reformuladoras da tradição dade está inerente a matéria. Plotino
 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. grega — acabaram por configurar um modo de  Plotino (205-270): filósofo egípcio, discípu-
Criador de sistemas filosóficos influentes até pensar que se estenderia por séculos. Prestou lo de Amônio Sacas e mestre de Porfírio, que
hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética. inigualáveis contribuições para o pensamento nos legou seus ensinamentos em seis livros de
Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de humano, destacando-se nos campos da ética, nove capítulos cada, chamados de As Enéadas.
Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A política, física, metafísica, lógica, psicologia, Acompanhou uma expedição à Pérsia, onde to-
República e o Fédon. Sobre Platão, confira e poesia, retórica, zoologia, biologia, história mou contato com a filosofia persa e indiana.
entrevista As implicações éticas da cosmolo- natural e outras áreas de conhecimento. É Regressou à Alexandria e, aos 40 anos, estabe-
gia de Platão, concedida pelo filósofo Prof. Dr. considerado, por muitos, o filósofo que mais leceu-se em Roma. Desenvolveu as doutrinas
Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU On- influenciou o pensamento ocidental. (Nota da aprendidas de Amônio numa escola de filosofia
Line, de 04-09-2006, disponível em http:// IHU On-Line) com seleto gupo de alunos. Pretendia fundar

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representa uma inflexão na metafísica aristotelismo e o neoplatonismo, e co- Tem início o tema da ontoteologia,
grega, quando a Ontologia clássica gre- loca a questão da metafísica em torno que, mais tarde, foi criticada por
ga torna-se henologia, ou seja, teoria do ato de existir em sua radical con- Martin Heidegger.10 O filósofo jesuíta
do Uno. Esta virada introduz in nuce o traposição ao nada. Suarez11 é um nome importante na
tema do existir e, respectivamente, o Entretanto, nesse mesmo perí- questão da pós-metafísica. Ele reto-
da Liberdade absoluta. odo, fins do século XIII d.C., já se ma a operação intelectual de migra-
Um fato importante da tradição manifestam os primeiros sinais de ção do ser à representação. Funda a
metafísica foi o encontro do logos de- uma outra vertente filosófica, o no- concepção moderna da ideia de um
monstrativo grego com a palavra da re- minalismo, iniciada por Duns Scotos sistema fechado sobre si mesmo que
velação bíblica judaico-cristã. Filo de e Guilherme de Occam, que é uma encontrará em Hegel sua expressão
Alexandria, que viveu um pouco antes reviravolta na maneira do pensar fi- mais famosa. Creio que o tema da
do nascimento de Jesus Cristo, é um losófico. O foco não é tanto mais o pós-metafísica é um repensamento
nome importante desse encontro. Ain- ser, mas a representação. Com isso, da fundação do discurso racional e
da na cidade de Alexandria, Justino tem início um processo de descons- filosófico, tanto em sua matriz grega
e Orígenes promoveram o encontro trução dessa orientação da meta- como em sua matriz bíblico-judaico-
do anúncio cristão com a filosofia pla- física grega na sua aliança com a
10 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
tônica. Deram início a essa operação experiência bíblica judaico-cristã. alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem-
intelectual de grande importância que de questões filosóficas e teológicas. Seus in- po (1927). A problemática heideggeriana é
foi a assimilação da metafísica grega teresses não se restringiam à religião e filoso- ampliada em Que é Metafísica? (1929), Car-
fia, mas também à alquimia, tendo publica- tas sobre o humanismo (1947), Introdução à
na sua vertente teológica pelo cris- do uma importante obra alquímica chamada metafísica (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-
tianismo. Basta pensar nas teologias Aurora Consurgens. Sua obra mais famosa e Line publicou na edição 139, de 2-05-2005, o
aristotélica e estóica e assim teremos importante é a Suma Teológica. (Nota da IHU artigo O pensamento jurídico-político de Hei-
On-Line) degger e Carl Schmitt. A fascinação por no-
o amplo cenário desse belo hibridismo  John Duns Scot (ou Escoto Eriúgena - 1265- ções fundadoras do nazismo, disponível para
cultural que resultou da miscigenação 1308): frade franciscano escocês, filósofo e download em http://www.ihuonline.unisi-
entre metafísica e história, ou ainda teólogo da tradição escolástica, chamado de nos.br/uploads/edicoes/1158268163.69pdf.
“Doutor Sutil”, em razão de ser um autor de pdf. Sobre Heidegger, confira as edições
logos demonstrativo e esperança esca- acesso difícil, que lhe valeu essa reputação 185, de 19-06-2006, intitulada O século de
tológica. Este paradigma, o paradigma de sutileza. Estudou nas Universidades de Heidegger, disponível para download em
de uma inteligibilidade transcenden- Oxford e Paris. Foi mestre em teologia nes- http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
sas duas universidades, assim como em Cam- edicoes/1158344730.57pdf.pdf, e 187, de
te, teve um florescimento magnífico bridge e Colônia. Foi mentor de outro gran- 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
nos séculos XII e XIII, do ocidente lati- de nome da filosofia medieval, William de trução da metafísica, que pode ser acessado
no-cristão. Basta pensar em Tomás de Ockham. Foi beatificado em 20 de Março de em http://www.ihuonline.unisinos.br/uploa-
1993, durante o pontificado de João Paulo II. ds/edicoes/1158344314.18pdf.pdf. Confira,
Aquino que remodela o platonismo, o Formado no ambiente acadêmico da Universi- ainda, o nº 12 do Cadernos IHU Em Forma-
uma cidade chamada Platonópolis, baseada dade de Oxford, posicionou-se contrário a São ção intitulado Martin Heidegger. A descons-
nos ensinamentos da República de Platão. Plo- Tomás de Aquino no enfoque da relação entre trução da metafísica, que pode ser acessado
tino dividia o universo em três hipóstases: o a razão e a fé. Suas principais obras são a em http://www.ihu.unisinos.br/uploads/pu-
Uno, o Nous (ou mente) e a alma. (Nota da Opus parisiensis (Obra de Paris) e a Opus oxo- blicacoes/edicoes/1175210604.13pdf.pdf.
IHU On-Line) niensis (Obra de Oxford), também conhecida (Nota da IHU On-Line)
 Fílon de Alexandria (25 a.C. - c. 50): filóso- como Ordinatio, ambas provavelmente com- 11 Francisco Suarez (1548-1619): teólogo je-
fo judeo-helenista que viveu durante o perí- pilações, por seus discípulos, de seus cursos. suíta espanhol nascido em Granada. Estudou
odo do helenismo. Tentou uma interpretação (Nota da IHU On-Line) latim, direito, filosofia e teologia em Sala-
do antigo testamento à luz das categorias  William de Ockham (1285-1350): filósofo manca. É um dos fundadores do direito inter-
elaboradas pela filosofia grega e da alegoria. lógico, teólogo escolástico inglês, frade fran- nacional e criador da doutrina do suarismo. A
Foi autor de numerosas obras filosóficas e ciscano e criador da teoria conhecida como partir de 1570, trabalhou como instrutor de
históricas, onde expôs a sua visão platônica Navalha de Ockham (em inglês, Ockham’s teologia em vários centros dos jesuítas, na
do judaísmo. (Nota da IHU On-Line) Razor), que dizia que as “pluralidades não Espanha e em Roma, até se estabelecer como
 Justino (aproximadamente 105-165): filóso- devem ser postas sem necessidade”. Conside- professor de teologia na Universidade de
fo cristão, tentou colocar a filosofia platônica rado um dos fundadores do nominalismo, teo- Coimbra (1597), Portugal, pertencente então
e algumas doutrinas estóicas a serviço dos dog- ria que afirmava a inexistência dos universais, à coroa espanhola, por indicação do rei Filipe
mas do cristianismo. (Nota da IHU On-Line) que seriam apenas nomes dados às coisas, e II. Ali firmou sua conduta erudita e tornou-se
 Orígenes (aproximadamente 185-254): mes- portanto produto de nossa mente sem uma o principal representante da nova escolás-
tre catequista na Alexandria e discípulo de São existência prática assegurada. Por causa de tica do século XVI. Sua obra mais influente
Clemente. Criador de um sistema filosófico-te- suas ideias, foi excomungado pela Igreja. O foi Disputationes Metaphysicae (1597), um
ológico no qual o cristianismo se apresentava conceito, bastante revolucionário para a épo- amplo tratado que articulava todo o saber
como a culminância da filosofia grega. (Nota ca, defende a intuição como ponto de partida metafísico, concebido como teologia natu-
da IHU On-Line) para o conhecimento do universo. Ockham foi ral. Escreveu várias obras por encomenda do
 Tomás de Aquino (1227-1274): frade domi- discípulo do filósofo Duns Scotus e precursor papa Paulo V e de outras autoridades religio-
nicano e teólogo italiano, considerado santo do empirismo inglês, do cartesianismo, do sas, como De legibus (1612) e Defensio fidei
pela Igreja. Um de seus maiores méritos foi criticismo kantiano e da ciência moderna. So-��� catholicae (1613), destinadas a elaborar uma
introduzir o aristotelismo na escolástica an- bre Ockham, algumas boas fontes de pesquisa teoria jurídica e política baseada nos princí-
terior. A partir de São Tomás, a Igreja tem são A compendium of ockham’s teachings pios católicos. Negou o direito divino dos reis
uma teologia (fundada na revelação) e uma (New York: The Franciscan Institute, 1998); e pregou o direito do povo derrubar qualquer
filosofia (baseada no exercício da razão hu- Ockham’s theory of terms (South Bend: St. monarca que atuasse contra o interesse so-
mana) que se fundem numa síntese definiti- Augustine’s, 1998); DUNS SCOTUS, John. Sco- cial. Também criticou muitas das práticas da
va: fé e razão. Nascido numa família nobre, tus vs. Ockham: a medieval dispute over uni- colonização espanhola nas Índias. Lecionou
estudou filosofia em Nápoles e depois foi para versals (Lewiston: Edwin Mellen, 1999). ������
(Nota filosofia em Segóvia e teologia em Valladolid.
Paris, onde se dedicou ao ensino e ao estudo da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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cristã, e introduz a questão mais Deus naqueles estratos de sociedade
delicada da forma de um ceticismo, humana não mais organizados do pon-
bastante forte hoje em nossa cultu-
“Hoje, amplos to de vista da experiência religiosa?
ra, e o tema do niilismo.12 Uma so- Como fazer? Com se dá a experiência
ciedade pós-metafísica é aquela no
segmentos da nossa do Absoluto num contexto a-religio-
qual o ceticismo e o niilismo levan- so? É possível o encontro da teologia
tam a pretensão de ser a matriz da
humanidade perderam cristã com uma cultura cuja dinâmi-
identidade cultural da humanidade e ca expressivista é fundamentalmente
da sociedade.
a dimensão da niilista e cética?”.

IHU On-Line - Na sociedade de


experiência religiosa. O IHU On-Line - O debate inter-religio-
hoje, quando vivemos diversas cri- so pode nos ajudar a se aproximar
ses, pensada como pós-metafísica,
desafio são as questões mais de Deus? Como ele entra neste
porque é tão importante pensar, debate?
compreender e falar sobre Deus?
seguintes: ‘É possível Marcelo Fernandes de Aquino - A
Marcelo Fernandes de Aquino - O desconstrução da metafísica, pelo
pensamento grego era fundamental-
a experiência de Deus pensamento pós-metafísico, deu
mente um pensamento religioso e, grande destaque ao tema da diferen-
por isso, foi possível a assimilação
naqueles estratos de ça e do pluralismo, e isso impacta o
das teologias platônica, aristotélica cristianismo na sua pretensão de ser
e estóica pelo cristianismo. As raízes
sociedade humana a tradução da revelação e da salva-
desse pensamento eram religiosas. Os ção de Deus num evento irrepetível
gregos tinham feito crítica à religião,
não mais organizados que é a existência histórica de Jesus
não no sentido de uma desconstrução de Nazaré. O cristianismo, nos pri-
12 Niilismo: termo e conceito filosófico que
do ponto de vista da meiros séculos, assimilou muito da
afeta as mais diferentes esferas do mundo teologia platônica. Sob a influência
contemporâneo (literatura, arte, ciências experiência religiosa? da ontologia platônica das ideias se-
humanas, teorias sociais, ética e moral). É a
paradas, elaborou a teologia cristã
desvalorização e a morte do sentido, a au-
sência de finalidade e de resposta ao “por- Como fazer? Com se dá do Verbo. A fé cristã confessa Jesus
quê”. Os valores tradicionais se depreciam e
de Nazaré como o Filho amado. É
os “princípios e critérios absolutos dissolvem-
se”. “Tudo é sacudido, posto radicalmente
a experiência do radicalmente trinitária. Nos dias de
em discussão. A superfície, antes congelada, hoje, como dar conta dessa preten-
das verdades e dos valores tradicionais está Absoluto num contexto são que a fé cristã faz com o valor
despedaçada e torna-se difícil prosseguir no
da diferença e a não absolutidade de
caminho, avistar um ancoradouro”. O niilismo
pode ser considerado como “um movimento a-religioso? É possível uma experiência particular? Penso
positivo” – quando pela crítica e pelo desmas-
que um dos grandes imperativos da
caramento nos revela a abissal ausência de
cada fundamento, verdade, critério absoluto
o encontro da teologia teologia cristã é refazer a Teologia
e universal e, portanto, convoca-nos diante do Verbo. Como a Teologia cristã do
da nossa própria liberdade e responsabilida- cristã com uma cultura Verbo é por um lado fiel a isso que
de, agora não mais garantidas, nem sufocadas
é normativo na fé cristã, Jesus de
ou controladas por nada”. Mas também pode
ser considerado como “um movimento nega- cuja dinâmica Nazaré é o Filho amado, nele con-
tivo” – quando nesta dinâmica prevalecem os
templamos o Verbo eterno, e as vá-
traços destruidores e iconoclastas, como os
do declínio, do ressentimento, da incapaci-
expressivista é rias experiências que humanos con-
dade de avançar, da paralisia, do “tudo-vale” cretos em culturas diferenciadas vão
e do perigoso silogismo ilustrado pela frase fundamentalmente fazendo do mistério absoluto que
do personagem de Dostoiévski: “Se Deus está
nós adoramos como Deus. Esses são
morto, então tudo é permitido”. Entende-
se por Deus neste ponto como a verdade e niilista e cética?’” os grandes desafios que temos pela
o princípio. Sobre o tema, confira a edição
197 da revista IHU On-Line, de 25-069-2006, frente. Confio que vamos nos deixar
intitulada A política em tempos de niilismo levar pelo espírito de Deus e saber
ético, disponível para download em http:// traduzir, na cultura pós-metafísica,
www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/ religiosa, mas no sentido de
1159208389.38pdf.pdf. Leia, também, a en- uma elevação do religioso ao plano de a nossa experiência. Pessoalmente,
trevista concedida pelo filósofo jesuíta Paul uma teologia racional. Hoje, amplos creio que chegaremos a dar o pas-
Valadier, à edição 303 da IHU On-Line, de 10- so de volta à metafísica, no sentido
08-2009, intitulada Narrar Deus no horizonte segmentos da nossa humanidade per-
do niilismo: a reviviscência do divino, dispo- deram a dimensão da experiência re- de uma metafísica que dê conta do
nível para download em http://www.ihuonli- ligiosa. O desafio são as questões se- próprio momento de desconstrução
ne.unisinos.br/index.php?option=com_event desta idade pós-metafísica.
os&Itemid=26&task=evento&id=265. (Nota da guintes: “É possível a experiência de
IHU On-Line)

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Narrativas de Deus são fragmentárias como era pós-metafísica
Ernildo Stein localiza origem do termo “era pós-metafísica” na crítica de Heidegger
à metafísica e religião, apontado a mediação pelos filósofos franceses. Entretanto,
a pós-modernidade não é consequência direta dessa era

Por Márcia Junges

É
inegável que a crítica de Martin Heidegger à metafísica é a fonte da qual brota a expressão
“era pós-metafísica”, mediada em grande parte pelos filósofos franceses. A explicação é
do filósofo Ernildo Stein em entrevista concedida, por e-mail, com exclusividade, à IHU
On-Line. Contudo, matiza, “não podemos simplesmente dizer que a pós-modernidade seja
uma consequência da era pós-metafísica. Ambas têm uma ligação de mútua determinação.
Entretanto, gostaria de dizer que esta sociedade pós-metafísica da qual se fala estende-se a um
campo muito mais amplo do que as possíveis influências heideggerianas”. Stein lembra, também, a
fragmentação inerente à pós-modernidade, quando não há mais uma unidade nas ciências, religião e
arte, “principalmente pela mudança de inserção da filosofia na cultura atual”. A respeito das narrati-
vas de Deus, continua, “se procura apontar para essa fragmentação, tendo seus efeitos no universo da
teologia, ou melhor, das diversas tradições em que Deus representa um tema central. Virá, num tem-
po não muito distante, como consequência dessa fragmentação e relativização, uma era em que irão
predominar os discursos ateísticos sobre Deus por parte daqueles que Dele nada sabem”. A respeito
da crítica de Heidegger à religião e à metafísica, tema que Stein abordará no minicurso Heidegger.
Uma crítica à metafísica e à religião, talvez possamos compreender, de modo mais claro, a posição
“crítica” do filósofo em “suas constantes referências a seu empenho de pensar o não pensado no
pensamento, de dizer o não dito, e de ler o não escrito, entre as linhas do que estava nos textos dos
filósofos”. A atividade faz parte da programação do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa
sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, que acontece de 14 a 17 de setembro,
no campus da Unisinos.
Stein é graduado em Filosofia e Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
Cursou doutorado, na mesma universidade, em Filosofia, e pós-doutorado na Universität Erlangen
- Nürnberg. Atualmente, é docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-
RS e membro do corpo editorial das publicações Reflexão, Problemata, Natureza Humana e Ágora.
Publicou dezenas de livros, entre eles Seminário sobre a verdade: lições introdutórias para a leitura
do parágrafo 44 de Ser e Tempo (Petrópolis: Vozes, 1993); A caminho de uma fundamentação pós-
metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997), Diferença e metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000);
Compreensão e finitude (Ijuí: Unijuí, 2001); Introdução ao pensamento de Martin Heidegger (Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2002); Mundo Vivido: Das vicissitudes e dos usos de um conceito da fenomenologia
(Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004) e Seis estudos sobre Ser e Tempo (3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005).
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a principal críti- de do senso comum. Na história da fi-


partida para Hegel. Kant estabeleceu uma
ca de Heidegger à metafísica e à reli- losofia, existem muitos momentos em distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si
gião? O que ela significa? que o conceito de crítica foi utiliza- (que chamou noumenon), isto é, entre o que
Ernildo Stein - Para iniciarmos a res- do. Talvez o mais lembrado seja o uso nos aparece e o que existiria em si mesmo. A
coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser ob-
posta a essa primeira questão, convém da palavra nas três Críticas de Kant. jeto de conhecimento científico, como até en-
fazer uma observação esclarecedora.  Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia- tão pretendera a metafísica clássica. A ciência
Talvez convenha chamar a atenção no, considerado como o último grande filósofo se restringiria, assim, ao mundo dos fenôme-
dos princípios da era moderna, representante nos, e seria constituída pelas formas a priori
para o conceito de crítica. Entre os do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas ca-
muitos sentidos que esta palavra pode pensadores mais influentes da Filosofia. Kant tegorias do entendimento. A IHU On-Line nú-
ter, há alguns que são banais e que po- teve um grande impacto no Romantismo ale- mero 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria
mão e nas filosofias idealistas do século XIX, de capa à vida e à obra do pensador com o tí-
dem ser pressupostos como proprieda- tendo esta faceta idealista sido um ponto de tulo Kant: razão, liberdade e ética, disponível

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É nele que é feito um uso particular- to de ser desenvolvido a partir de sua
mente amplo e central quando, além
“Portanto, a pergunta fenomenologia, na interpretação das
de uma revisão, a crítica significa uma principais obras filosóficas do pensa-
fundamentação e uma justificação. É
pela crítica à metafísica mento ocidental. É esse novo conceito
preferível partir de um uso semelhan- de ser, o qual o filósofo irá ligar à com-
te ao que faz Kant quando se quer efe-
e à religião realizada por preensão do ser, que será a base da fe-
tivamente levar a sério o conceito de nomenologia hermenêutica e vai con-
crítica. Caso contrário qualquer crítica
Heidegger deve ser duzir à elaboração de Ser e tempo. É
a um autor, a um modo de tratamento nesse livro mesmo que ele planeja uma
de uma questão na filosofia permanece
recebida numa dimensão “destruição” ou uma “desconstrução”
exterior. Portanto, também na questão das ontologias clássicas de Descartes,
que vamos examinar não se trata de
propriamente filosófica, Kant e Aristóteles. Sem podermos am-
uma crítica exterior nem de uma recu- pliar nossa análise, diremos que sua
sa e muito menos de uma refutação.
que consiste em mostrar obra foi mais ou menos a implemen-
O que está em jogo é uma convocação tação desse projeto que permaneceu
para repensar algumas questões cen-
o que não se viu ou, inconcluso em seu livro principal (des-
trais da filosofia. sa obra projetada em 102 volumes já
então, o que se passou foram publicados 80. Que diálogo com
Desconstrução da metafísica a metafísica ocidental!) É claro que
por alto nos debates da essa desconstrução da metafísica exi-
Heidegger deve ser visto como um gia a revisão de conceitos importantes
dos grandes autores da filosofia do
metafísica e da religião” da filosofia da tradição como, além do
século XX. E, por isso, ele aprendeu, conceito de ser, o conceito de tempo,
desde muito cedo, a levar a sério as Talvez a sua pretensão de usar um existência, verdade, sujeito, objeto,
questões centrais da filosofia, mas não novo método para fazer filosofia atra- substância, e muitas outras categorias
se via obrigado a concordar com cer- vés da fenomenologia o tenha condu- centrais utilizadas pelos diversos gran-
tos modos de resposta dados por au- zido na problematização das questões des metafísicos.
tores ou escolas filosóficas. Nos anos que aqui estão sendo analisadas. A
trinta, o filósofo relativiza, em diver- fenomenologia justamente consiste Crítica à religião
sos momentos de sua obra, as próprias em mostrar o que se oculta e num ver
respostas que encontrava. Pode-se ob- particular, em que tanto insistia Hus- Com relação à crítica da religião,
servar uma espécie de provisoriedade serl. É assim que Heidegger analisa a o autor não pode ser incluído entre
que ele mesmo atribuía a seu modo metafísica ocidental como um conjun- os grandes críticos das religiões, quer
de perguntar. O filósofo não esperava to de respostas que foram apresenta- venham da filosofia, quer se situem
corrigir de maneira definitiva os esfor- das pelos grandes pensadores. É com em outros campos do conhecimento e
ços de responder a questões centrais eles mesmos que o filósofo aprende a da cultura. A religião sempre foi uma
da tradição filosófica. Talvez possamos conhecer os grandes problemas e ao questão central para o filósofo. Isso
compreender mais claramente a sua mesmo tempo as respostas por eles não o impediu de mostrar em primei-
posição “crítica” em suas constantes encontradas. ro lugar como a religião cristã herdara
referências a seu empenho de pensar Ao criticar a metafísica, o filósofo da metafísica, no desenvolvimento de
o não pensado no pensamento, de di- não se retira da fileira dos pensadores, seus conceitos fundamentais, um modo
zer o não dito, e de ler o não escrito, mas realiza com eles um exercício de de pensar que o filósofo criticava. Não
entre as linhas do que estava nos tex- mergulho para um nível mais profundo. podemos aceitar que o seu método
tos dos filósofos. A metafísica não pensou propriamente fenomenológico seja propriamente
Portanto, a pergunta pela crítica à aquilo que é considerado o seu obje- adequado para as pretensões de sua
metafísica e à religião realizada por to principal, a questão do ser, de um desconstrução de questões centrais do
Heidegger deve ser recebida numa di- modo adequado, porque, na expressão cristianismo. No entanto, a fenomeno-
mensão propriamente filosófica, que do filósofo, ela confundiu o ser com o logia lhe permitiu um outro olhar para
consiste em mostrar o que não se viu ente. Isso exigia de Heidegger, então, a questão de Deus e do sagrado. Certa-
ou, então, o que se passou por alto nos que ele apresentasse um novo concei- mente, não iremos encontrar no filóso-
debates da metafísica e da religião.  Edmund Husserl (1859-1938): filósofo ale- fo um conjunto de conceitos filosóficos
mão, principal representante do movimento
para download em http://www.ihuonline.uni- fenomenológico. Marx e Nietzsche, até então que satisfaçam as exigências de um
sinos.br/uploads/edicoes/1161093369.8pdf. ignorados, influenciaram profundamente Hus- pensamento que a teologia cristã pro-
pdf. Também sobre Kant foi publicado este serl, que era um crítico do idealismo kantiano. cura para a sua inteligência dos misté-
ano o Cadernos IHU em formação número 2, Husserl apresenta como idéia fundamental de
intitulado Emmanuel Kant - Razão, liberda- seu antipsicologismo a “intencionalidade da rios da fé. Se o filósofo não consegue
de, lógica e ética, que pode ser acessado em consciência”, desenvolvendo conceitos como satisfazer esta expectativa - como,
http://www.ihu.unisinos.br/uploads/publica- o da intuição eidética e epoché. Pragmático, por exemplo, mostrou o Pe. Lima Vaz
coes/edicoes/1158328261.83pdf.pdf. (Nota Husserl teve como discípulos Martin Heidegger,
da IHU On-Line) Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)

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-, ele, no entanto, despertou de um dela certos elementos que entram em von Balthasar. Aliás, tenho em mão uma
certo tipo de sono dogmático os teólo- colisão com a essência da religião. carta manuscrita de Heidegger a um par-
gos e filósofos cristãos que se achavam ticular amigo meu, antigo professor de
muito seguros com os seus conceitos IHU On-Line - Como essa crítica in- Erlangen, Hermann Zeltner, em que o
metafísicos. Poderíamos ainda acres- fluencia nas narrativas de Deus na filósofo pede que os que queiram saber
centar que talvez a crítica do filósofo à pós-modernidade? de sua vida acadêmica no começo do na-
religião vise mais o modo como ela se Ernildo Stein - Da análise que fizemos zismo se dirijam a Karl Rahner, que fora
insere na cultura ocidental, recebendo até agora, já se pode concluir a impor- seu aluno por vários semestres. Lembro
 Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz tância dada ao pensamento de Heidegger essa carta inédita apenas de passagem,
(1921 – 2002): filósofo e padre jesuíta, autor por muitos filósofos e teólogos cristãos para se compreender o quanto o filósofo
de importante obra filosófica. A IHU On-Line nas tentativas de repensar a teologia e o estava ligado a teólogos. Um dia ainda
número 19, de 27-05-2002, disponível em
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ fenômeno religioso. Existem mesmo cor- saberemos das longas conversas de Max
edicoes/1161372631.57pdf.pdf , dedicou sua rentes muito ativas no pensamento te- Müller, junto com L.B. Puntel, na Hüt-
matéria de capa à vida e à obra de Lima Vaz, ológico atual que conseguiram produzir te do filósofo, sobre problemas centrais
com o título Sábio, humanista e cristão. So-
bre ele também pode ser consultado na IHU obras notáveis. Lembro particularmen- nascidos da ligação entre o pensamento
On-Line nº 140, de 09-05-2005, um artigo em te toda a grande tradição dos filósofos de Heidegger e a religião. No último con-
que comenta a obra de Teilhard de Chardin, jesuítas da Alemanha e, sobretudo, de gresso internacional das universidades
disponível em http://www.ihuonline.unisinos.
br/uploads/edicoes/1158268345.05pdf.pdf. A dois teólogos, Karl Rahner e Hans Urs católicas, em Manila, o professor Puntel
revista Síntese. Revista de Filosofia, n. 102, foi um dos principais conferencistas con-
jan.-ab. 2005, p. 5-24, publica o artigo Um De-  Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo vidados para mostrar os grandes conflitos
poimento sobre o Padre Vaz, de Paulo Eduardo católico do século XX, ingressou na Companhia
Arantes, professor do Departamento de Filo- de Jesus em 1922. Doutorou-se em Filosofia e suscitados por um certo tipo de interpre-
sofia da USP, que merece ser lido e consultado em Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II tação de Heidegger no que se refere ao
com atenção. Celebrando a memória do Padre e professor na Universidade de Münster. A sua problema de Deus e da transcendência,
Vaz, a edição 142, de 23-05-2005, publicou a obra teológica compõe-se de mais de 4 mil tí-
editoria Memória, disponível para download tulos. Suas obras principias são: Geist in Welt em dois filósofos franceses, Emanuel
em http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo- (O Espírito no mundo), 1939, Hörer des Wor- Lévinas e Jean-Luc Marion. Também o
ads/edicoes/1158266847.13pdf.pdf. Confira, tes (Ouvinte da Palavra), 1941, Schrifften zur
ainda, os seguintes materiais, publicados pela Theologie (Escritos de Teologia), 16 volumes  Hans Urs Von Balthasar (1905-1988): teólo-
IHU On-Line: a Entrevista da Semana intitula- escritos entre 1954 e 1984, e Grundkurs des go católico suíço. Estudou Filosofia em Viena,
da Vaz e a filosofia da natureza, com Armando Glaubens (Curso Fundamental da Fé), 1976. Berlim e Zurique, onde doutorou-se em 1929,
Lopes de Oliveira, na edição 187, de 03-07-06, Em 2004, celebramos seu centenário de nas- e em Teologia em Munique e Lyon. Destacou-se
disponível em http://www.ihuonline.unisinos. cimento. A Unisinos dedicou à sua memória como investigador dos santos padres e da Fi-
br/uploads/edicoes/1158344314.18pdf.pdf; a o Simpósio Internacional O Lugar da Teologia losofia e Literatura modernas, especialmente
entrevista Vaz: intérprete de uma civilização na Universidade do século XXI, realizado de a franco-germana. Criou sua própria Teologia,
arreligiosa, com Marcelo Fernandes de Aqui- 24 a 27 de maio daquele ano. A IHU On-Line síntese original do pensamento patrístico e
no, na edição 186, de 26-06-06, disponível em nº. 90, de 1º-03-2004, publicou um artigo de contemporâneo. Entre suas obras destacam-se
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ Rosino Gibellini sobre Rahner, disponível em O cristianismo e a angústia (1951), O mistério
edicoes/1158344480.87pdf.pdf; os Artigos da http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ das origens (1957), O problema de Deus no ho-
Semana intitulados O comunitarismo cristão e edicoes/1161093842.09pdf.pdf, e a edição mem atual (1958) e Teologia da história (1959).
a refundação de uma ética transcendental, na 94, de 2-03-2004, publicou uma entrevista A edição 193 da IHU On-Line, de 28-08-2006,
edição 185, de 19-06-06, disponível em http:// de J. Moltmann, analisando o pensamento de Jorge Luis Borges. A virtude da ironia na sala
www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/ Rahner, disponível para download em http:// de espera do mistério publicou uma entrevis-
1158344730.57pdf.pdf, e Um diálogo cristão www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/ ta com Ignácio J. Navarro, intitulada Borges
com o marxismo crítico. A contribuição de Hen- 1161093143.69pdf.pdf. No dia 28-04-2004, no e Von Balthasar. Uma leitura teológica. Leia
rique de Lima Vaz, na edição 189, de 31-07-06, evento Abrindo o Livro, Érico Hammes, teólo- o material no link http://www.ihuonline.uni-
disponível em http://www.ihuonline.unisinos. go e professor da PUCRS, apresentou o livro sinos.br/uploads/edicoes/1158343116.57pdf.
br/uploads/edicoes/1159985817.84pdf.pdf, Curso Fundamental da Fé, uma das principais pdf . (Nota da IHU On-Line)
ambos de autoria do Prof. Dr. Juarez Guima- obras de Karl Rahner. A entrevista com o prof.  Friedrich Max Müller (1823-1900): linguis-
rães. Inspirada no pensamento de Lima Vaz, a Érico Hammes pode ser conferida na IHU On- ta, orientalista e mitólogo alemão. Aluno de
IHU On-Line edição 197, de 25-09-2006 trouxe Line n.º 98, de 26-04-2004, disponível para Franz Bopp e de E. Burnouf, retomou o estudo
como tema de capa A política em tempos de download em http://www.ihuonline.unisinos. da Avesta e a publicação do Rigveda-Samhita,
niilismo ético, disponível para download em br/uploads/edicoes/1158260659.15pdf.pdf. que manteve de 1849 a 1874 (6 volumes). Sua
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ Ainda sobre Rahner, publicamos uma entrevis- obra principal é a coleção The sacred books of
edicoes/1159208389.38pdf.pdf. Nessa edição, ta com H. Vorgrimler no IHU On-Line n.º 97, the East (51 vols, publicada de 1879 a 1910),
confira especialmente as entrevistas com Jua- de 19-04-2004, sob o título Karl Rahner: teó- fonte essencial da história das religiões e da
rez Guimarães, intitulada Crise de fundamen- logo do Concílio Vaticano nascido há 100 anos, mitologia comparada. É considerado o criador
tos éticos do espaço público, e a entrevista disponível em http://www.ihuonline.unisinos. da disciplina religião comparada. (Nota da IHU
com Marcelo Perine, Padre Vaz e o diálogo br/uploads/edicoes/1158260371.36pdf.pdf. A On-Line)
com a modernidade. Esse tema, em específi- edição número 102, da IHU On-Line, de 24-05-  Lorenz Bruno Puntel: filósofo brasileiro ra-
co, foi abordado por Perine em uma conferên- 2004, dedicou a matéria de capa à memória dicado na Alemanha, professor em Munique.
cia em 22-05-2007, no Simpósio Internacional do centenário de nascimento de Karl Rahner. (Nota da IHU On-Line)
O futuro da Autonomia. Uma sociedade de Os Cadernos Teologia Pública publicaram o  Emmanuel Lévinas (1906-1995): filósofo e
indivíduos? Na edição 186 da IHU On-Line, de artigo Conceito e Missão da Teologia em Karl comentador talmúdico lituano, naturaliza-
26-06-2006, o reitor da Unisinos, Prof. Dr. Mar- Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico João do francês. Foi aluno de Husserl e conheceu
celo Aquino, SJ, concedeu a entrevista Vaz, Hammes. Confira esse material em http:// Heidegger, cuja obra Ser e tempo o influen-
intérprete de uma civilização arreligiosa. Con- www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/ ciou muito. “A ética precede a ontologia” é
fira no link http://www.ihuonline.unisinos. 1158261608.85pdf.pdf. A edição 297, de 15- uma frase que caracteriza seu pensamento.
br/uploads/edicoes/1158344143.77pdf.pdf. 06-2009, intitula-se Karl Rahner e a ruptura do Escreveu, entre outros, Totalidade e Infinito
(Nota da IHU On-Line) Vaticano II. (Nota da IHU On-Line) (Lisboa: Edições 70, 2000). Sobre o filósofo,

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Pe. Vaz enumera, num de seus últimos que Dele nada sabem. Digo isso com um “uma religião verdadeira”.
artigos, umas cinco correntes teológicas certo tom de ironia, porque da diluição
mundiais que representariam equívocos do pensamento num tipo de pós-moder- IHU On-Line - No contexto dessa críti-
importantes no modo de receber Heide- nidade mal compreendida, surgirão cada ca de Heidegger, como podemos com-
gger na teologia. Entro nesses detalhes vez mais os defensores das mais parado- preender sua afirmação “Chegamos
para que se veja como é viva a presença xais formas de falar de tudo o que repre- muito tarde para os deuses e muito
de Heidegger na teologia. sentava um mundo orientado por uma cedo para o ser cujo poema apenas
certa estabilidade e confiabilidade. Isso iniciado é o homem?”
IHU On-Line - A pós-modernidade para não falarmos da questão da verda- Ernildo Stein - A frase de Heidegger pode
tem um parentesco com a sociedade de. ser brevemente desdobrada da seguinte
pós-metafísica? Por quê? forma: “Chegamos muito tarde para os
Ernildo Stein - Foi Habermas, em seu IHU On-Line - Que consequências fi- deuses” talvez signifique primeiramente
livro, O discurso filosófico da moderni- losóficas e religiosas surgiriam a par- que deveríamos ter aprendido há muito
dade, que melhor situou os principais tir dessa transmutação? tempo que nessa questão não se trata
filósofos da pós-modernidade, sobre- Ernildo Stein - Estamos certamente de julgar os povos pelos deuses que ve-
tudo os neo-estruturalistas franceses, diante de fenômenos mundiais de trans- neram, pois, segundo Heidegger, “cada
analisando também Heidegger como um formação que nos lembram a frase de deus é o último deus”. Pelos textos que
filósofo pós-moderno. Não há como ne- Marx “tudo o que é sólido se desman- conhecemos, o filósofo diz que “o últi-
gar que a crítica do filósofo à metafísica cha no ar”. Mas não devemos desesperar, mo deus é sempre o Deus em advento”.
é a fonte de onde nasceu a expressão porque tanto a filosofia quanto a religião Talvez com isto ele queira dizer que não
“era pós-metafísica”, naturalmente me- sempre representaram, em momentos se decide o problema de Deus como uma
diada, em grande parte, pelos filósofos de grandes crises e mutações, universos partida de xadrez. “Muito cedo para o
franceses. Não podemos simplesmente de referência e de orientação. Diante das ser” quer certamente significar que ainda
dizer que a pós-modernidade seja uma duas matrizes de inteligibilidade, a natu- não meditamos de maneira serena sobre
consequência da era pós-metafísica. reza e a cultura, em aparente colapso, a o enigma da existência, que está expres-
Ambas têm uma ligação de mútua de- humanidade irá encontrar novas formas so na pergunta pelo ser. O homem como
terminação. Entretanto, gostaria de di- de manter a sua memória. Por mais que poema apenas iniciado do ser pode ser
zer que esta sociedade pós-metafísica sejamos confundidos pelas transforma- compreendido como sendo o lugar em
da qual se fala, estende-se a um campo ções - no universo da natureza, pela re- que se decide “o destino do ser”.
muito mais amplo do que as possíveis volução genética, e na cultura, pelas ino-
influências heideggerianas. Não é aqui vações do mundo virtual -, a humanidade IHU On-Line - Em que sentido a dis-
o momento de aprofundarmos a análise irá encontrar uma referência ética para cussão metafísica promovida por
dessa profusão de fenômenos que ligam responder à pergunta de “como iremos este filósofo é uma “espécie de con-
sociedade pós-moderna e sociedade pós- viver” e “qual é o sentido da vida?” No vite para o ecumenismo filosófico”?
metafísica. Para isso, temos os vários que se refere às mudanças no mundo da Ernildo Stein - Quando criei a expressão
campos das ciências sociais e da cultu- religião, estamos certamente confronta- “ecumenismo filosófico”, queria descre-
ra. Em todo caso, convém lembrar que dos por uma busca insistente de um ecu- ver um convite para que se reconheça
a pós-modernidade representa uma era menismo, mas, por outro lado, perplexos a pluralidade do pensamento filosófico
de fragmentação, em que perdem sua com relação ao que deve ser considerado numa era de dispersão. Mas espero que,
unidade as ciências, a religião e a arte, verdadeiro na religião. Não é por menos ao mesmo tempo, se continue pergun-
principalmente pela mudança de inser- que Bento XVI tem enfrentado um de- tando, com a esperança de que o ser hu-
ção da filosofia na cultura atual. Quan- bate internacional sobre sua defesa de mano não pergunte em vão pelo sentido
do se fala em “narrativas de Deus”, por da vida.
exemplo, se procura apontar para essa  Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo,
cientista social, economista, historiador e re-
fragmentação, tendo seus efeitos no volucionário alemão, um dos pensadores que Leia mais...
universo da teologia, ou melhor, das di- exerceram maior influência sobre o pensamen-
to social e sobre os destinos da humanidade Confira outras entrevistas concedidas por
versas tradições em que Deus representa Ernildo Stein à IHU On-Line.
no século XX. Marx foi estudado no Ciclo de
um tema central. Virá, num tempo não Estudos Repensando os Clássicos da Economia.
muito distante, como consequência des- A edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, - Depois de Hegel: “o mais original diálogo
de autoria de Leda Maria Paulani tem como entre Filosofia analítica e dialética”. IHU On-
sa fragmentação e relativização, uma Line número 261, de 08-06-2008, disponível no
título A (anti)filosofia de Karl Marx, disponí-
era em que irão predominar os discursos vel em http://www.unisinos.br/ihu/uploads/ link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
ateísticos sobre Deus por parte daqueles publicacoes/edicoes/1158330314.12pdf.pdf. php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
Também sobre o autor, confira a edição núme- etalhe&id=1095
conferir a edição número 277 da IHU On-Line, ro 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitu- - O abismo entre a ética da psicanálise e o dis-
de 14-10-2008, intitulada Lévinas e a majes- lada A financeirização do mundo e sua crise. curso ético universal. IHU On-Line número 303,
tade do Outro, disponível para download em Uma leitura a partir de Marx, disponível para de 10-08-2009, disponível no link http://www.
http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/ download em http://www.unisinos.br/ihuon- ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_
edicoes/1224014804.3462pdf.pdf. (Nota da line/uploads/edicoes/1224527244.6963pdf. tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1735
IHU On-Line) pdf. (Nota da IHU On-Line)

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Todos os discursos sobre Deus são possíveis e
imagináveis em nossa sociedade
Religiões também estão sob a égide da mundialização liberal, analisa Jean-Louis
Schlegel. Para o sociólogo, sociedade midiática permite pluralidade nas narrativas
sobre Deus, e há plenitude de religião, e não um vazio ou deserto religioso

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

V
ivemos numa sociedade pluralista e midiática, na qual “todos os discursos sobre Deus e
todas as condutas religiosas são possíveis e imagináveis”, constata o sociólogo das religiões
Jean-Louis Schlegel, em entrevista exclusiva, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. De
acordo com seu ponto de vista, “mesmo nos países de tradição predominantemente laica,
como a França, ninguém está hoje impedido de falar de Deus, e de fazê-lo como quiser.
Pode-se, pois, dizer que as religiões (ou “a” religião) se inscrevem também elas no mercado da glo-
balização liberal, e que elas fazem concorrência”. Sobre a pretensa secularização que estaríamos vi-
vendo, ele afirma: “Contrariamente a uma visão compartilhada pelos responsáveis religiosos situados
ante os efeitos da secularização, não se está, portanto, diante de uma situação de ‘vazio’ religioso,
mas de ‘muito pleno’, não num deserto religioso, mas na multiplicidade dos deuses, ou, mais em
geral, como dizia Max Weber, se está diante de um ‘politeísmo dos valores’”.
Schlegel é um dos conferencistas do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade
pós-metafísica – Possibilidades e Impossibilidades. Em 14 de setembro falará sobre A narrativa de
Deus, hoje. Possibilidades e limites. Desde 2006 é conselheiro da Editora Seuil, particularmente no
campo das ciências humanas e trabalha na edição há mais de vinte anos. É membro da Comissão Di-
retiva da revista Esprit, de Paris, desde 1988. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é uma sociedade Os pensamentos modernos e “pós-mo- principalmente, Heidegger, Derrida,
pós-metafísica? dernos” passaram por aí: Nietzsche, colapso nervoso que nunca o abandonou, até
Jean–Louis Schlegel - Segundo seus teo- de Aquino, tentou desenvolver um sistema fi- o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado
losófico no qual estivessem integradas todas o tema de capa da edição número 127 da IHU
rizadores, uma “sociedade pós-metafísi- as contribuições de seus principais predeces- On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche:
ca” não poderia raciocinar ou pensar em sores. Sua primeira obra, A fenomenologia do filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível
termos de essência, de princípio ou de espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos para download em http://www.ihuonline.uni-
da Europa continental no séc. XX. Sobre Hegel, sinos.br/uploads/edicoes/1158266308.88pdf.
fundamento (a Natureza, a Liberdade, confira a edição especial nº 217 de 30-04-2007, pdf . Sobre o filósofo alemão, conferir ainda
o Belo, o Bem, o Transcendente, o pró- intitulada Fenomenologia do espírito, de Ge- a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-
prio Sujeito...) – como tem sido o caso org Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007), em Line edição 175, de 10-04-2006, com o jesuíta
comemoração aos 200 anos de lançamento cubano Emilio Brito, docente na Universidade
no pensamento ocidental desde o pen- dessa obra. O material está disponível em de Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzsche e
samento grego até (quase) nossos dias. http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/ Paulo, disponível para download em http://
A “metafísica”, como pensamento do edicoes/1177963119.41pdf.pdf. Sobre Hegel, www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/
confira, ainda, a edição 261 da IHU On-Line, 1158346362.52pdf.pdf. A edição 15 dos Cader-
Uno, como adequação do pensamento de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho Cirne- nos IHU em formação é intitulada O pensamen-
e do real, como liberdade substancial, Lima. Um novo modo de ler Hegel, disponível to de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada
como “sentido” presente, malgrado os em http://www.unisinos.br/ihuonline/uploa- em http://www.ihu.unisinos.br/uploads/pu-
ds/edicoes/1213054489.296pdf.pdf. (Nota da blicacoes/edicoes/1184009658.17pdf.pdf.
acidentes e as aberrações, como Sujeito IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)
etc. é ressentida como violência contra  Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo  Jacques Derrida (1930-2004): filósofo fran-
a natureza e contra o homem: a natu- alemão, conhecido por seus conceitos além- cês, criador do método chamado desconstrução.
do-homem, transvaloração dos valores, niilis- Seu trabalho é associado, com freqüência, ao
reza e o homem, ou seja, a realidade, mo, vontade de poder e eterno retorno. Entre pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre
são irredutivelmente múltiplos, diver- suas obras figuram como as mais importantes as principais influências de Derrida encontram-
sos, impossíveis de retomar ou subsumir Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janei- se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua
ro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo extensa produção, figuram os livros Gramato-
(Hegel) sob os conceitos da metafísica. (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da logia (São Paulo: Perspectiva, 1973), A farmá-
 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo ale- moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Es- cia de Platão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O
mão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás creveu até 1888, quando foi acometido por um animal que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002),

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Lyotard, Vattimo, Rorty, Habermas
Papel-máquina (São Paulo: Estação Liberdade,
“Os fundamentalismos são o pêndulo exato da
2004) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida a editoria globalização liberal. É preciso pensar sempre os
Memória da IHU On-Line edição 119, de 18-10-
2004. (Nota da IHU On-Line)
 Jean-François Lyotard (1924-1998): filóso-
dois conjuntamente”
fo francês, autor de uma filosofia do desejo e
significado representante do pós-modernismo.
Escreveu, entre outros, A fenomenologia (Lis-
boa: Edições 70, 1954), O inumano: considera-
(que emprega correntemente a expres- esta tendência de fundo. No entanto,
ções sobre o tempo (Lisboa: Estampa, 1990), são “época pós-metafísica”)... Não obs- é preciso admitir que atualmente esta
Heidegger e ‘os judeus’ (Lisboa: Instituto Pia- tante, à parte seu acordo sobre o fato constatação e este diagnóstico po-
get, 1999) e A condição pós-moderna (8ª ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2004). (Nota da
de que vivemos na “era pós-metafísica”, deriam também parecer muito etno-
IHU On-Line) estes pensadores diferem bastante entre cêntricos, muito ocidentais... Assim,
 Gianni Vattimo (1936): filósofo italiano, eles, em seu método e em sua base, a como francês marcado pela “laicida-
internacionalmente conhecido pelo conceito
de “pensamento fraco”. Concedeu diversas
propósito da noção de ”pós-metafísica”. de” francesa, como europeu marcado
entrevistas à IHU On-Line. A primeira delas Seu diagnóstico sobre o conteúdo e so- pela descristianização, eu só posso fi-
foi publicada na 88ª edição, de 15-12-2003, bre o futuro desta sociedade pós-meta- car surpreso pela “resistência” religio-
disponível em http://www.ihuonline.unisinos.
br/uploads/edicoes/1161200490.17pdf.pdf, a
física é também muito divergente. Eles sa existente em toda parte no mundo.
segunda na 128ª edição, de 20-12-2004, dis- se acusam, por vezes, mutuamente de A Europa e sua secularização anti-reli-
ponível em http://www.ihuonline.unisinos. ainda permanecerem presos na meta- giosa ou a-religiosa a partir das Luzes
br/uploads/edicoes/1158266406.14pdf.pdf,
a terceira saiu na edição 161, de 24-10-2005,
física (por exemplo, a ideia de um en- são em grande parte uma exceção.
quando conversou pessoalmente com a IHU On- tendimento comunicacional possível,
Line, no Hotel Intercity, em Porto Alegre, no defendido por Habermas, é por outros IHU On-Line - Quais são as narrações
dia 18 de outubro daquele ano, às vésperas de
proferir sua conferência no evento Metamor-
criticada como ideia ao mesmo tempo de Deus hoje em dia?
foses da cultura contemporânea. Esse material idealista e metafísica). O julgamento de Jean–Louis Schlegel - Você me coloca
esta disponível em http://www.ihuonline.uni- valor sobre a metafísica ou a “pós-me- muito diretamente uma questão para
sinos.br/uploads/edicoes/1158347724.5pdf.
pdf. Também contribuiu na IHU On-Line nº
tafísica” também é muito divergente: o a qual não tenho resposta. É evidente
187, de 03-07-2006, com a entrevista O na- que significa “viver na era pós-metafísi- que o Deus cristão, mas também o Deus
zismo e o “erro” filosófico de Heidegger, dis- ca”? A saída da metafísica é um valor ou judeu e o Deus muçulmano, em outros
ponível em http://www.ihuonline.unisinos.
br/uploads/edicoes/1158344314.18pdf.pdf.
uma catástrofe? Seria, aliás, possível sair termos o monoteísmo, foi bastante
Concedeu, também, a entrevista Liberdade. da mesma? pensado com as categorias e os concei-
Uma herança do cristianismo, publicada na tos da metafísica grega, aristotélica e
edição número 287, de 30 de março de 2009,
disponível em http://www.ihuonline.unisinos.
Constatação muito ocidental platônica, helenística, estóica... (mas
br/uploads/edicoes/1238442393.0578pdf. não estou certo que as sabedorias da
pdf. Dele também publicamos uma entrevis- Talvez seja preciso acrescentar que Ásia sejam menos metafísicas). Como
ta na 121ª edição, de 1º-11-2004, disponível
em http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo-
a ideia de sociedade pós-metafísica lembrou Bento XVI, quase desde o iní-
ads/edicoes/1158265679.78pdf.pdf, um ar- decorra de uma constatação antropo- cio (no final do primeiro século), isto
tigo na edição 53, de 31-03-2003, disponível lógica e sociológica, afinal muito oci- é, desde o relato evangélico do Novo
em http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo-
ads/edicoes/1161289549.27pdf.pdf, e outro
dental, da secularização das socieda- Testamento, no prólogo do evangelho
no número 80, de 20-10-2003, disponível em des modernas e pós-modernas, de seu segundo João, o Cristo é designado
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ estouro e de seu pluralismo, do desta- pelo nome de Logos. O “logocentris-
edicoes/1161201820.79pdf.pdf. A editoria Li-
vro da Semana, na edição 149, de 1º-08-2005,
que moderno da alteridade, da dife- mo” desempenhou a seguir um papel
abordou a obra The future of religion, escrita rença, da novidade, como também da eminente – e, sem dúvida, excessivo
por Vattimo, Richard Rorty e Santiago Zabala, invasão da técnica (devida, em última – quando se tratou de definir um Deus
disponível em http://www.ihuonline.unisinos.
br/uploads/edicoes/1158344558.62pdf.pdf.
instância, à primazia da metafísica que tomou carne, que se encarnou.
De sua produção intelectual, destacamos Más como supremacia do Ser). A mundiali- Mas, mesmo a metafísica ocidental
allá de la interpretación. (Barcelona: Paidós, zação ou globalização em curso não fa- foi, desde o início, segundo as críticas
1995); O fim da modernidade: niilismo e her-
menêutica na cultura pós-moderna (São Paulo:
zem mais que acelerar e universalizar pós-modernas e pós-metafísicas, uma
Martins Fontes, 1996); Introdução a Heidegger bre a dominação burguesa (razão instrumen- “onto-teologia”!
(Lisboa: Instituto Piaget, 1998) e Diálogo con tal). Para ele, o logos deve contruir-se pela Sem dúvida, o judaísmo manteve
Nietzsche: Ensayos 1961-2000 (Barcelona: Pai- troca de idéias, opiniões e informações entre
dós, 2002). (Nota da IHU On-Line) os sujeitos históricos estabelecendo o diálogo.
melhor que o cristianismo o papel do
 Richard Rorty: filósofo pragmatista estadu- Seus estudos voltam-se para o conhecimento e relato, ou a reflexão a partir da própria
nidense. Sua principal obra é Filosofia e o Es- a ética. Confira no site do IHU, www.unisinos. linguagem do relato (o da Torá, através
pelho da Natureza. (Nota da IHU On-Line) br/ihu, editoria Notícias do dia, o debate en-
 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, tre Habermas e Joseph Ratzinger, o Papa Bento
do comentário do Talmude), ou ainda
principal estudioso da segunda geração da Es- XVI. Habermas, filósofo ateu, invoca uma nova a partir da linguagem do relato (o he-
cola de Frankfurt. Herdando as discussões da aliança entre fé e razão, mas de maneira di- braico, escrito com as consoantes sem
Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação versa como Bento XVI propôs na conferência
comunicativa como superação da razão ilumi- que realizou em 12-09-2006 na Universidade
vogais). Mas, o judaísmo não tem o pro-
nista transformada num novo mito que enco- de Regensburg. (Nota da IHU On-Line) blema do cristianismo com a história: a
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Torá pode ser interpretada ao infinito, “Estamos antes diante dominantes num território um num
“esquecendo” a história do povo judeu dado país). Contrariamente a uma vi-
ou remetendo-a sem mais ao mito. A de uma situação de são compartilhada pelos responsáveis
historicidade do Antigo Testamento le- religiosos situados ante os efeitos da
vanta, finalmente, mais problemas aos pluralização, de secularização, não se está, portanto,
cristãos do que aos judeus. A equação diante de uma situação de “vazio”
é diferente no islã, pelo fato de que esfarelamento, de religioso, mas de “muito pleno”, não
o Livro revelado, o Corão, é a fonte num deserto religioso, mas na multipli-
tanto da fé como da compreensão (da disseminação, de cidade dos deuses, ou, mais em geral,
razão hermenêutica). Além disso, o re- como dizia Max Weber, se está diante
lato não está ausente do Livro revela- recomposição, onde de um “politeísmo dos valores”.
do, mas seu lugar na economia da Re- Para responder à sua pergunta:
velação corânica é diferente. E, talvez o ‘sagrado’ e as religiões na nossa sociedade pluralista e midi-
e sobretudo, os aspectos narrativos ática, todos os discursos sobre Deus
bem como os outros gêneros literários desempenham importante (e em Deus) e todas as condutas re-
foram, em seguida, amplamente domi- ligiosas são possíveis e imagináveis;
nados, na tradição muçulmana, pela papel – pois não se pode mesmo nos países de tradição predo-
interpretação jurídica. minantemente laica, como a França,
dizer que se vai chegar ninguém está hoje impedido de falar
Os limites do relato de Deus, e de fazê-lo como quiser...
à situação anterior!” Pode-se, pois, dizer que as religiões
Um relato tem por virtude ser par- (ou “a” religião) se inscrevem também
ticular. Sem dúvida se pode interpre- no mercado da globalização liberal, e
tá-lo conceitualmente, mas há nele do relatos de bruxos pós-modernos e que elas fazem concorrência. Esta é,
algo irredutível, singular, que resis- simpáticos como Harry Potter), os re- evidentemente, uma situação particu-
te ao conceito, ou que não pode ser latos cristãos são esquecidos e saem da larmente difícil para a Igreja católica
reduzido ao conceito. Por exemplo, memória comum. Não obstante, é pre- e as grandes Igrejas e religiões históri-
pode-se dizer que a noção de “reden- ciso dizer que o relato também tem os cas, na medida em que essas Igrejas se
ção” interprete no sentido metafísico seus limites: a utilização do relato no inscreviam também num contexto cul-
o relato da paixão de Jesus, mas, de discurso teórico, político, publicitário tural e político dominante, ou no con-
uma parte, a redenção como interpre- etc., pode substituir prejudicialmente texto de uma cultura política e social
tação e tradução teológica da Paixão os argumentos e as pretensões à vali- de longa duração, na qual, de certa
é insuficiente, e talvez seja mesmo dade da razão. forma, não havia necessidade de ser
em parte falsa ou insuficiente (assim, “missionário” para se manter e cres-
o aspecto de “libertação”, por exem- IHU On-Line - Quais são as possibili- cer. Compreende-se muito bem que
plo, parece minorado em relação à dades e impossibilidades de (se) falar a “missão” – o sentido e os meios das
ideia de “resgate”); de outra parte, o sobre (ou em) Deus numa sociedade comunidades – se tenha tornado pro-
relato teológico da Paixão não pode de como a sociedade ocidental, onde o blemática neste contexto. Com ajuda
nenhum modo substituir o relato nar- divino e o profano parecem mistu- da experiência histórica colocam-se,
rativo da Paixão, que traz a memória rar-se? em todo o caso, numerosos problemas
concreta do que foi Jesus e do que ele Jean–Louis Schlegel - Eu me ocupo às “velhas” religiões, uma vez que as
viveu, e que estimula nosso desejo de inicialmente com a última parte de sua novas se situam sem hesitar no terreno
segui-lo e de agir como ele em memó- questão. Ela faz alusão ao fato (que da concorrência do mercado das reli-
ria dele. Na Igreja católica, o relato não posso desenvolver aqui) de que giões – o que levanta certas questões
foi, afinal, mantido principalmente na a secularização não pode realmente a uma consciência religiosa marcada
liturgia, em teoria, de maneira cen- ser compreendida como um recuo ou pela razão e pela história a partir das
tral, mas, na realidade, de maneira um fim da religião, mas antes de tudo Luzes.
finalmente muito marginal. Tanto que como uma recomposição do religioso,
a cultura permanecia cristã ou mesmo uma nova forma para a religião: as re- IHU On-Line - Como compreender a
católica em sentido amplo, enquanto a ligiões implantadas na antiguidade se secularização e o retorno ao sagrado
memória dos relatos se mantinha mais transformam e são submetidas a novos ao qual assistimos?
ou menos bem. Mas, quando a cultura desafios, enquanto novas religiões, ou Jean–Louis Schlegel - Trata-se de um
se seculariza, quando a cultura cristã novos movimentos religiosos não ces- retorno ao sagrado (ou do sagrado,
(veiculada na família ou na catequese) sam de aparecer, numa situação de como diz a mídia daqui)? Poder-se-ia
é, como hoje, cada vez mais marginal pluralismo e de fim dos antigos mono- discutir longamente sobre isso! Es-
e submersa em inumeráveis relatos le- pólios (os quais faziam que uma reli- tamos antes diante de uma situação
vados por inumeráveis mídias (incluin- gião, ou duas, fossem absolutamente de pluralização, de esfarelamento,

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de disseminação, de recomposição, que não é aquela de um “puro espí-
onde o “sagrado” e as religiões de- “Como dizia Michel rito”. A lei deve estar acompanhada
sempenham importante papel – pois de sabedoria (ou seja, de espírito, de
não se pode dizer que se vai chegar de Certeau: ‘quando o interpretação) e de loucura espiritu-
à situação anterior! Naturalmente, al (a fé na “loucura da Cruz”). Esta
após todos os debates sociológicos, político cede, o religioso síntese em cada um de nós é difícil
por exemplo, para saber se fenômenos porque nossa condição humana, nos-
“profanos” (exemplifiquemos: o fute- retorna’” so “pecado” faz antes que a maioria
bol) não correspondem a condutas de entre nós seja entregue ao desequilí-
natureza “sacral”... O “sagrado” já creveu o dilema fundamental: há uma brio interior e ao sofrimento interior,
era obscuro antes e ele o é ainda mais lei de Deus (e uma compreensão da a esse desequilíbrio entre a carne e
na sociedade moderna! Há também o lei em geral) que liberta, e outra que o espírito. Estamos em dificuldade
debate teológico: será que a fé cristã escraviza. Como o contexto destas para dar seu justo lugar à Lei e ao
e bíblica deverá evacuar o sagrado das cartas era a polêmica em relação à Espírito. Mas, este “discernimento”
religiões, ou, ao contrário, será que lei judaica, ou em relação ao sentido é nossa dificuldade e nossa honra de
ela deve integrá-lo, reciclá-lo, acultu- desta lei para os convertidos do pa- humanos livres. O cristão se recorda
rá-lo ou inculturá-lo? ganismo, os cristãos contrapuseram sempre, além disso, que ele é salvo
Globalmente, em nossos dias, as muitas vezes, a seguir, de maneira “por graça”.
instituições, tudo o que é “instituído” caricatural, o “legalismo” judeu se-
recua em favor da subjetivação, da gundo a Lei, e a “liberdade” cristã IHU On-Line - Como compreender os
individualização, da personalização... segundo o Espírito, a prática segundo fundamentalismos religiosos?
Após Jean-François Lyotard, se disse a carne, e a prática segundo o espí- Jean–Louis Schlegel - Em relação à
que os “grandes relatos” (as grandes rito etc. Este é um argumento que, Lei de Deus, os fundamentalistas reli-
ideologias) recuam ou recuaram – não infelizmente, serviu no antisemitismo giosos são evidentemente extremistas
somente o “grande relato” cristão da cristão. Mas, não é disto que se tra- ou radicais. Será que eles têm medo
salvação, mas também os outros -, e ta: estamos aqui diante do problema da interpretação? Pois interpretar
que, ao contrário, os “pequenos rela- antropológico, universal, da relação significa, automaticamente, duvidar,
tos” da salvação individual estão oni- com a Lei. Não há “vida” (em todos levantar questionamentos... Os funda-
presentes. O sagrado se torna, então, os sentidos da palavra) sem lei. Mas mentalistas reprimem, sem dúvida, a
difuso, e a fronteira entre o profano e – é o que Paulo recorda – a lei pode angústia diante da situação difícil ou
o sagrado, que fez fortuna por causa contribuir para a vida ou para a mor- “apocalíptica” do religioso em nossas
de Durkheim, desaparece ou se torna te, ela pode fazer viver ou matar. Ela sociedades secularizadas. A meu ver,
muito fluido. mata (literalmente: basta olhar nossa eles ressentem muito fortemente algo
atualidade) quando ela é observada que nossas sociedades do bem-estar li-
IHU On-Line - Que relação o senhor como pura obediência a uma instân- beral reprimem: o julgamento de Deus
estabelece entre a lei de Deus e a li- cia exterior, quando toda interpreta- sobre este mundo, que é, segundo eles,
berdade dos homens? Como agir eti- ção é julgada inútil, interdita e até um julgamento de condenação, evi-
camente a partir desta dualidade? escandaliza. Ao contrário, a lei faz vi- dentemente. A imagem de Deus “juiz”
Jean–Louis Schlegel - Há, sem dúvi- ver quando ela estrutura uma vida na é neles muito forte; é mesmo a única
da, numerosas maneiras de compre- carne, que necessita de “freadas”, de imagem que muitas vezes têm dele. O
ender a “lei de Deus”. Entretanto, “advertências”, de direção, uma vida componente apocalíptico está, pois,
em sua carta aos Romanos e também muito presente. Os fundamentalistas
quentou uma escola em Jerusalém, fez carrei-
na carta aos Gálatas, São Paulo des- ra no Tempo (era fariseu), onde foi sacerdote. cristãos, em todo o caso, só mantêm
 David Émile Durkheim (1858-1917): conhe- Educado em duas culturas (grega e judaica), as palavras de julgamento de Jesus;
cido como um dos fundadores da Sociologia Paulo fez muito pela difusão do Cristianismo eles esquecem sua compaixão pelas
moderna. Foi também, em 1895, o fundador entre os gentios e é considerado uma das prin-
do primeiro departamento de sociologia de cipais fontes da doutrina da Igreja. As suas multidões, e, mais em geral, que em
uma universidade européia e, em 1896, o fun- Epístolas formam uma seção fundamental do Jesus “o amor ultrapassa o temor”.
dador de um dos primeiros jornais dedicados Novo Testamento. Afirma-se que ele foi quem Haveria ainda outras coisas a di-
à ciência social, intitulado L’Année Sociologi- verdadeiramente transformou o cristianismo
que. (Nota da IHU On-Line) numa nova religião, e não mais numa seita do zer. Psicologicamente e sociologica-
 Paulo de Tarso (3 – 66 d. C.): nascido em Judaísmo. Sobre Paulo de Tarso a IHU On-Line mente falando, o desejo poderoso
Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era originaria- 175, de 10-04-2006, dedicou o tema de capa de comunidade em sociedades muito
mente chamado de Saulo. Entretanto, é mais Paulo de Tarso e a contemporaneidade. A ver-
conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É con- são encontra-se disponível para download no desintegradas pela crise social, o de-
siderado por muitos cristãos como o mais im- sítio do IHU, http://www.ihuonline.unisinos. sejo de certezas num mundo liberal
portante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, br/uploads/edicoes/1158346362.52pdf.pdf. de ceticismo otimista e sorridente,
a figura mais importante no desenvolvimento A IHU On-Line 286, de 22-12-2008, é intitu-
do Cristianismo nascente. Paulo de Tarso é um lada Paulo de Tarso: a sua relevância atual, o desejo de valores fortes e firmes
apóstolo diferente dos demais. Primeiro porque disponível em http://www.ihuonline.unisinos. num mundo de “fluxo” generalizado
ao contrário dos outros, Paulo não conheceu br/uploads/edicoes/1229976062.1402pdf.pdf. e permanente, o desejo de parada
Jesus pessoalmente. Era um homem culto, fre- (Nota da IHU On-Line)

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e de balizas em nossas “sociedades
líquidas” (Zygmunt Bauman),10 o de-
sejo de limitar a democracia “que Fluidez e abertura nas narrativas de
permite tudo” – tudo isso e muitas
outras coisas se compreendem mui-
to bem. Os fundamentalismos são o
Deus na sociedade pós-metafísica
pêndulo exato da globalização libe-
ral. É preciso pensar sempre os dois Desconstrução de concepções rígidas de Deus e diálogo in-
conjuntamente. ter-religoso são pontos positivos da nova configuração social,
Como dizia Michel de Certeau:11
“quando o político cede, o religioso
aponta teólogo indiano Felix Wilfred. Religiões unidas chegarão
retorna”. Quando a democracia se mais perto do mistério divino do que cada uma delas sozinha
comporta mal (como em muitos pa-
íses ocidentais ou países em vias de
Por Por Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander
ocidentalização liberal) ou quando a
democracia está ausente (como nos

A
países muçulmanos), o fundamen-
narrativa de Deus a partir do diálogo inter-religioso é o tema da confe-
talismo religioso retorna – de fato,
rência de Felix Wilfred, no encerramento do X Simpósio Internacional
normalmente!
IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e im-
possibilidades. Na opinião do teólogo indiano, professor na Universida-
de de Madras, Índia, é através do diálogo inter-religioso que as pessoas
podem “se dar conta das inumeráveis formas pelas quais é possível aproximar-se
do mistério de Deus”. De acordo com ele, a partir desse diálogo “surgiu a percep-
ção do caráter fragmentário presente na abordagem e narração de Deus hoje”.
10 Zygmunt Bauman: sociólogo polonês, pro- Contudo, Wilfred adverte que não é o objetivo chegar a uma ideia e narração
fessor emérito nas Universidades de Varsóvia, abrangente de Deus. O que o diálogo inter-religioso verdadeiramente promove é
na Polônia e de Leeds, na Inglaterra. Publica-
mos uma resenha do seu livro Amor Líquido uma provocação, uma busca constante com outras pessoas, por “caminhos novos
(São Paulo: Jorge Zahar Editores, 2004), na e diferentes”. Chegaremos mais perto do mistério de Deus se o buscarmos jun-
113ª edição do IHU On-Line, de 30 de agosto
de 2004. Publicamos um entrevista exclusiva
to de outras pessoas. “Em outras palavras, todas as religiões juntas conseguem
com Bauman na revista IHU On-Line edição 181 dizer um pouco mais a respeito do mistério de Deus do que qualquer uma delas
de 22 de maio de 2006, disponível para downlo- sozinha”, completa. Se por um lado a característica fragmentária da sociedade
ad em http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo-
ads/edicoes/1158345309.26pdf.pdf. (Nota da pós-metafísica pode colocar a fé em terreno arenoso, por outro, apresenta “flui-
IHU On-Line) dez e abertura” para a busca e narrativas de Deus: “A sociedade pós-metafísica
11 Michel de Certeau (1925-1986): intelectu-
al jesuíta francês. Foi ordenado na Companhia contribuiu para desconstruir concepções e imagens rígidas de Deus e possibilitou
de Jesus em 1956. Em 1954 tornou-se um dos uma abordagem mais dinâmica para sua narração”.
fundadores da revista Christus, na qual esteve
envolvido durante boa parte de sua vida. Le- Felix Wilfred é professor no Departamento de Cristianismo da Universidade
cionou em várias universidades, entre as quais de Madras, em Chenai, na Índia. Escreve frequentemente artigos para presti-
Genebra, San Diego e Paris. Escreveu diver-
sas obras, dentre as quais La Fable mystique:
giosos jornais de âmbito nacional e internacional, entre os quais citamos Pro
XVIème et XVIIème siècle (Paris: Gallimard, Mundi Vita (da Bélgica), Pro Dialogo (da Itália), Selecciones de Teología (da
1982); Histoire et psychanalyse entre science Espanha), Communio e Concilium (da Holanda). Também contribui com seus
et fiction (Paris: Gallimard, 1987); La prise de
parole. Et autres écrits politiques (Paris: Seu- artigos para a New Catholic Encyclopedia, para Lexikon fuer Theologie und
il, 1994). Em português, citamos A escrita da Kirche e para o Cambridge Dictionary of Theology. Confira a entrevista.
história (Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982) e A invenção do cotidiano (3ª ed. Petró-
polis: Vozes, 1998). Sobre De Certeau, confira
as entrevistas Michel de Certeau ou a erotiza-
ção da história, concedida por Elisabeth Roudi- IHU On-Line - Como o diálogo inter- jo de vivenciar o mistério divino para
nesco, e As heterologias de Michel de Certeau, religioso tem contribuído para nar- além da própria tradição. A tentativa
concedida por Dain Borges, ambas à edição rar Deus hoje? de participar da experiência de Deus
186 da IHU On-Line, de 26-06-2006, disponí-
veis para download na página do IHU, http:// Felix Wilfred - O diálogo inter-religioso de outra tradição religiosa também fez
www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/ ampliou os horizontes da compreensão aflorar uma percepção da pluralidade.
1158344480.87pdf.pdf. As mesmas entrevistas da busca por Deus. Em primeiro lugar, O diálogo inter-religioso levou seus
podem ser conferidas na edição 14 dos Cader-
nos IHU em Formação, intitulado Jesuítas. Sua ele levou a um questionamento críti- participantes a se dar conta das inu-
identidade e sua contribuição para o mundo co, por parte das pessoas que creem, a meráveis formas pelas quais é possível
moderno, disponível para download em respeito da concepção e compreensão aproximar-se do mistério de Deus. Sur-
http://www.ihu.unisinos.br/uploads/publicaco-
convencional de Deus em suas próprias giu a percepção do caráter fragmentá-
es/edicoes/1184009586.45pdf.pdf. (Nota da IHU
On-Line) tradições religiosas. Evocou um dese- rio presente na abordagem e narração
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de Deus hoje. Não se pretende que o ção nova de Deus. A sociedade pós-me- uma categoria central na conceitualiza-
diálogo inter-religioso nos dê qualquer tafísica contribuiu para desconstruir ção ocidental do Divino. Por outro lado,
ideia e narração abrangente de Deus. concepções e imagens rígidas de Deus a tradição indiana e outras tradições
Este não é o objetivo do diálogo inter- e possibilitou uma abordagem mais di- orientais têm concepções de Deus que
religioso. O que ele faz é nos provocar nâmica para sua narração. Com efeito, não estão centradas unicamente na pes-
a buscar, junto com outras pessoas, ca- diferentemente da tradição ocidental e soa. Elas terão de superar os limites des-
minhos novos e diferentes. Além disso, o semítica, a tradição indiana, especial- sa abordagem, adotando uma aborda-
diálogo inter-religioso ajudou a darmo- mente a do budismo, sempre enfatizou gem transpessoal na narração de Deus.
nos conta de que chegamos mais perto a fluidez ou transitoriedade da realida-
do mistério de Deus quando o buscamos de, em contraposição à sua solidificação Quebra-cabeça de Deus
junto com outras pessoas, do que quando num molde metafísico. Neste sentido,
o fazemos dentro de nossa própria tradi- grande parte da tradição indiana é pós- Os colecionadores de selos conse-
ção. Em outras palavras, todas as reli- metafísica há mais de 3 mil anos! guem conversar uns com os outros de
giões juntas conseguem dizer um pouco maneira extremamente entusiástica
mais a respeito do mistério de Deus do IHU On-Line - O antropocentrismo e quando cada um compartilha o que tem
que qualquer uma delas sozinha. Para o eurocentrismo seriam os principais com os outros e tenta se informar melhor
as pessoas que não estão familiarizadas entraves para que se estabeleça ver- sobre os selos colecionados pelos outros
com o diálogo inter-religioso, a narração dadeiramente um diálogo inter-reli- colegas. Esta é uma forma interessante
de Deus poderia criar uma sensação de gioso? Por quê? de intercâmbio e é melhor compreendi-
insegurança, pois cada religião projeta Felix Wilfred - O antropocentrismo da pela tribo dos colecionadores de se-
sua narração de Deus como um ponto de não precisa ser um obstáculo para Deus los, e talvez não empolgue outras pesso-
referência definitivo. Sair do lar religioso se os seres humanos podem se aproxi- as. Quando falamos de Deus em termos
com o qual a pessoa está familiarizada mar do mistério divino a partir de suas inter-religiosos, isso não deveria acabar
poderia causar desorientação. próprias experiências. É natural que os sendo como o intercâmbio dos colecio-
seres humanos usem imagens e sím- nadores de selos. As religiões não são
IHU On-Line - De que forma o adven- bolos que os refletem quando falam a colecionadoras de deuses. Isto me lem-
to da globalização influencia nas nar- respeito de Deus. Neste sentido, um bra Tales de Mileto, que disse: “O mundo
rativas de Deus e no aprofundamento dos filósofos gregos disse: está repleto de deuses!” Precisamos ir
do diálogo inter-religioso? Quais são além e perguntar por que é necessário
os limites e as possibilidades de se “Mas se mãos tivessem os bois, os ca- buscar a face de Deus em conjunto de
narrar Deus dentro desse contexto? valos e os leões forma inter-religiosa.
Felix Wilfred - A globalização ajudou E pudessem com as mãos desenhar e Não pode ser simplesmente para sa-
a comunicação de crenças, símbolos e criar obras como os homens, tisfazer nossa curiosidade intelectual,
práticas religiosas entre tradições reli- Os cavalos semelhantes aos cavalos, os juntando as peças do quebra-cabeça
giosas, e fez com que o encontro das reli- bois semelhantes aos bois, de Deus com a ajuda de outras pesso-
giões seja mais fácil. Ela também tornou Desenhariam as formas dos deuses e os as. Deus sempre maior – Deus sempre
disponíveis não só narrações de Deus em corpos fariam continua sendo mais e acima de todos os
tradições religiosas clássicas, mas tam- Tais quais eles próprios têm”. nossos esforços, tanto individuais quanto
bém em tradições religiosas marginais (Xenófanes de Cólofon, Fragmentos) coletivos. Nossa busca comum do Divino
e populares. Além disso, a globalização, iria adquirir sentido se a própria busca
com sua ampla rede de comunicação, Há espaço para o antropocentrismo, de um mistério, que está além de todos
tornou possível que indivíduos de várias mas o importante é que se esteja cons- os nomes, guiar nosso relacionamento
tradições religiosas compartilhem suas ciente dessa limitação humana básica uns com os outros no mundo e com toda
experiências e encontros pessoais com em qualquer linguagem humana que fale a natureza, que, como eu disse, é um
Deus. Ela ampliou o quadro de pessoas de Deus. É por isso que deveria haver um espelho de Deus não menos revelatório,
que buscam a Deus, tornando disponí- esforço consciente hoje em dia para nar- ainda que de forma obscurecida, do que
veis as experiências de pessoas em dife- rar Deus a partir do relacionamento dos os seres humanos.
rentes estágios da vida e em diferentes seres humanos com a natureza. De certa
partes do mundo. maneira, a natureza espelha a realidade
última não menos do que os seres huma-
IHU On-Line - Como o fato de viver- nos o fazem. Por conseguinte, a lingua- Leia mais...
mos em uma sociedade pós-metafísi- gem humana precisa incorporar também
Confira outra entrevista concedida por
ca influencia na crença em Deus? a linguagem da natureza ao narrar Deus Felix Wilfred à IHU On-Line.
Felix Wilfred - Nossa crença em Deus, e a realidade última.
na sociedade pós-metafísica, está se O eurocentrismo, infelizmente, res- - Jesus pertence ao conjunto da humanidade. No-
tícias do Dia 16-12-2007, disponível no link http://
tornando rica por causa da fluidez e tringe a abordagem de Deus à narração www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noti
abertura que a sociedade pós-metafí- de Deus dentro da experiência ocidental cias&Itemid=18&task=detalhe&id=11371
sica oferece para uma busca e narra- limitada. Por exemplo, pessoa tem sido
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Literatura: lugar de narrar Deus
Campo profícuo para falar de Deus, a literatura inventa formas de expressão e
habitação da realidade. “Por isso ela é lugar do sentido”, frisa Geraldo De Mori,
que analisa Viva o povo brasileiro, obra de João Ubaldo Ribeiro sobre o papel das
divindades dos povos oprimidos na formação da brasilidade

Por Márcia Junges

“A
literatura é um campo profícuo para falar de Deus porque tem a liberdade criativa
e criadora, não se contentando em traduzir a realidade tal qual ela é dada, mas
inventando novas formas de expressá-la e habitá-la. Por isso ela é lugar do senti-
do”. A opinião é do teólogo jesuíta Geraldo De Mori, na entrevista a seguir, conce-
dida, por e-mail, à IHU On-Line. Analisando a obra Viva o povo brasileiro, escrita
por João Ubaldo Ribeiro, ele localiza a formação da brasilidade na narração, apontando o papel “das
divindades dos povos oprimidos, especialmente as das populações africanas, tornando ausente ou
contranarrando o Deus cristão, associado à elite e à dominação”. Sobre a ausência ou silêncio do Deus
cristão nessa narrativa, De Mori diz que ela pode ser compreendida “como uma opção do autor em
escutar aqueles cujas vozes sempre foram caladas nos relatos oficiais da história de nosso país e em
boa parte de nossa literatura”.
Graduado em Filosofia e Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, é mestre e
doutor em Teologia pelo Centre Sèvres, em Paris, França, com a tese Le temps: énigme des hommes,
mystère de Dieu. Une poétique eucharistique du temps en contexte brésilien (Paris: Les Editions Du
Cerf, ,2006). É um dos autores de Lavadeiras. Mulheres construindo um movimento (Salvador: Cen-
tro de Estudos e Ação Social, 1989). Em 16 de setembro ministrará o mini-curso Provocações para se
“narrar Deus” a partir de Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, dentro da programação do
X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossi-
bilidades. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as principais mensageiros prestam culto. No caso advento da República. Contrapostas
formas como Deus é narrado em Viva da elite, por exemplo, o Deus cristão a esse Deus intervêm as divindades
o Povo Brasileiro (VPB), de João aparece pela primeira vez na prega- às quais prestam cultos os escravos e
Ubaldo Ribeiro? ção e ação dos jesuítas junto aos po- seus descendentes. A elas é associado
Geraldo De Mori - Em VPB, os ecos da vos indígenas. Era um Deus que que- um poder de salvação e de vida, au-
“passagem” de Deus ou do divino na brava o ciclo vital ao qual estavam sente no Deus no qual crê a elite. Es-
narração são perceptíveis através dos habituados esses povos, pois realizava sas divindades se expressam de muitas
dois macropersonagens que encarnam prodígios e milagres até então desco- maneiras no fio da narração, além de
o Brasil: os que buscam impor a lógica nhecidos por eles. Além disso, era um darem a seus fieis alegria e coragem
ocidental aos destinos do país, figu- Deus de conceitos (doutrina) e normas de viver e enfrentar os desafios.
rados pelos que encarnam a elite na- (moral), ao qual se devia temer, um Como se pode ver, a narração res-
cional; os que realmente constroem Deus ao qual estava associada a no- gata positivamente, na formação da
a história do país, pelo aprendizado ção de pecado, até então estrangeira brasilidade, o papel das divindades dos
com a terra, seus habitantes e sabe- a elas. A essa primeira “aparição” de povos oprimidos, especialmente as das
res, protagonizados pelos que histo- Deus se acrescentam as das devoções populações africanas, tornando ausen-
ricamente estiveram ausentes nos aos santos, própria ao catolicismo po- te ou contranarrando o Deus cristão,
relatos da história oficial: os negros pular, feitas de superstições e presen- associado à elite e à dominação.
e seus descendentes, o povo pobre e tes nos representantes da elite, bem
anônimo. como a associação do Deus pregado IHU On-Line - Por que razão do lado
Mais que teorizado, Deus ou o di- pela Igreja oficial com a obra colonial dos personagens que encarnam a eli-
vino é narrado pela experiência que e sua ausência da vida do povo após te européia e cristã Deus é ausente?
provoca naqueles que a Ele ou a seus a proclamação da Independência e o Como compreender esse silêncio so-

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bre o Deus de Jesus Cristo e que pro-
vocações faz à teologia?
“Só a narração, a campo religioso do país, são os que de
fato se expressam no fio da narração.
Geraldo De Mori - A ausência ou o si-
lêncio do Deus cristão em VPB pode
profecia, a lei, a poesia, IHU On-Line - Como compreender a
ser vista como uma opção do autor
em escutar aqueles cujas vozes sem-
o apocalipse, as antropofagia praticada por Capiroba
ao padre que o persegue? De que
pre foram caladas nos relatos oficiais
da história de nosso país e em boa
parábolas, no caso dos forma esse ato pode explicar a ten-
tativa de afirmar a religião originária
parte de nossa literatura. Se a voz do
Deus cristão, através da religião ofi-
textos judaico-cristãos, dos indígenas sobre aquela que foi
trazida pelos jesuítas?
cial durante o período colonial e im-
perial, era a única que tinha direito
não são suficientes para Geraldo De Mori - João Ubaldo Ri-
beiro dá forma narrativa à metáfo-
de cidadania, as das demais divinda-
des não podiam se expressar. Não se
a teologia” ra escolhida por Oswald de Andrade
para falar de nossa especificidade
trata propriamente de uma revanche cultural. Por isso evoca o ato antro-
dos deuses africanos contra o Deus experiência forte entre os pratican- pofágico de Capiroba e torna esse
cristão, mas de uma fala e de uma es- tes das religiões de origem africana, personagem o ancestral do verdadei-
cuta que nos levam a pensar. No fun- que essa memória é transmitida por ro povo brasileiro. Não se trata, po-
do, o calar-se do Deus de Jesus Cris- Dadinha, descendente daquele que rém, do ato ritual dos Tupinambás,
to pode ser uma interrogação sobre encarna o ancestral do Brasil: Capi- onde o inimigo mais corajoso e va-
aquilo que dEle realmente foi anun- roba, mestiço de negro e índio, duas lente era morto e depois devorado,
ciado por aqueles que o identificaram das grandes fontes de nossa formação porque os que participavam desse ri-
com os que encarnaram o poder entre cultural. Outro lugar forte de presen- tual acreditavam estar se aproprian-
nós. Por sua vez, a escuta dos deuses ça dessas divindades são os rituais nos do da força e das qualidades do que
das culturas oprimidas pode ser fonte quais os negros invocam seus deuses. era canibalizado. O autor de VPB
de descoberta daquilo que as fizeram Em vários momentos esses rituais são “carnavaliza” a antropofagia ritual,
capazes de suportar o sofrimento e evocados, em parte ou em detalhes. guardando, porém, seu significado e
contribuir na formação de nossa iden- Há todo um capítulo (14), no qual são conferindo-lhe novas significações.
tidade. narradas cenas da Guerra do Paraguai, Nesse sentido, mais que reafirmar a
Esse silêncio do Deus cristão e essa onde são os Orixás que lutam no lugar religião e os deuses dos indígenas,
escuta das divindades dos outros po- de seus fiéis e onde suas histórias são o ato de Capiroba, que é caboclo,
vos que constituíram a brasilidade são também narradas com as deles. ou seja, mistura de índio com ne-
provocações para o fazer teológico gro, é um recurso metafórico para
em nosso país, não porque nos colo- IHU On-Line - Poderia explicar qual é dizer que o verdadeiro antropófago,
cam como juízes da evangelização no o sentido da “oposição entre o Deus herdeiro dos Tupinambás, não é uma
passado, mas porque nos leva hoje a ausente de uma religião presente e etnia, mas o ancestral mestiço do
fazer de novo teologia. E uma teolo- os deuses presentes de uma religiosi- Brasil. E a antropofagia, no roman-
gia que busca descobrir aspectos do dade condenada à ausência, à resis- ce, além de extrapolar a questão
Deus anunciado no passado que talvez tência e ao escondimento”, ao qual étnica, também possui aspectos cul-
ainda não foram apreendidos ou ex- o senhor fará menção em sua confe- turais e religiosos.
perimentados em sua plenitude. Essa rência?
descoberta pode ser mais respeito- Geraldo De Mori - Como disse acima, IHU On-Line - Em que aspectos a li-
sa das crenças dos que não crêem no até o advento da República, no final do teratura é um campo profícuo para
Deus cristão e mais significativa para séc. XIX, a religião oficial do Brasil era se narrar Deus? Quais são os limites
os que têm nEle sua razão de ser, agir o catolicismo. Outras formas de reli- e possibilidades para narrar o divino
e existir. giosidade não eram admitidas, embo- que surgem nesse campo do saber?
ra, segundo alguns estudiosos, tenha Geraldo De Mori - A literatura é um
IHU On-Line - E como se dá a presen- havido certas brechas que tornaram campo profícuo para falar de Deus
ça dos deuses do panteão africano na possíveis amálgamas entre as devo- porque tem a liberdade criativa e
trama de João Ubaldo Ribeiro? ções aos santos, próprias ao catolicis- criadora, não se contentando em
Geraldo De Mori - Boa parte da nar- mo popular, e a crença nos Orixás. Os traduzir a realidade tal qual ela é
rativa se dá na Bahia, onde chegou santos católicos escondiam devoções dada, mas inventando novas formas
grande parte dos escravos ao Bra- de divindades africanas. Nesse senti- de expressá-la e habitá-la. Por isso
sil. O primeiro lugar da aparição do do, em VPB o Deus cristão está ausen- ela é lugar do sentido. A Sagrada Es-
imaginário religioso africano tem a te, escondido ou em silêncio, contra- critura, acolhida entre os cristãos
ver com a questão da transmissão riamente aos africanos que, apesar de como Palavra de Deus, é feita de
da memória coletiva. É num transe, terem que se esconder para poderem vários gêneros literários: narrativos,
ter direito de presença ou de voz no
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legislativos, proféticos, hínicos,
sapienciais, parabólicos, apocalíp-
ticos etc. A narração nos situa no O silêncio e a experiência do
tempo: o passado do evento fun-
dador, recordado e celebrado no
presente e abrindo significado no
inefável em Wittgenstein
futuro; a lei indica como existir e
agir nessa temporalidade instaura- Luigi Perissinotto analisa a relação entre narrativas de Deus e
da pela narração; a profecia abre o linguagem tomando a obra de Ludwig Wittgenstein como ponto
presente para as surpresas da his-
de partida
tória e suas vicissitudes; os salmos
conduzem ao louvor e à relação pes-
soal de confiança com Aquele que Por Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger
é experimentado como o Doador

A
do sentido; os textos sapienciais,
indicam que é possível descobrir s narrativas de Deus e as questões de linguagem a partir de
novas formas de viver a existência Wittgenstein é o tema que o Prof. Dr. Luigi Perissinotto, da
em conformidade com a exigência Università Ca’Foscari di Venezia, Itália, tratará em sua confe-
divina; as parábolas propõem, por rência em 15 de setembro, no X Simpósio Internacional IHU:
sua excentricidade e exagero, uma Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e
nova maneira de existir no tempo;
impossibilidades. Questionado sobre a propriedade da afirmação da existência
os apocalipses indicam que é possí-
de um “primeiro” e “segundo” Wittgenstein, ele definiu que seria “amplamente
vel esperar contra toda esperança,
apesar do mal e da morte. favorável à hipótese da continuidade, sobretudo quando se considera que Witt-
Como se pode ver, é através de genstein, na substância, jamais modificou sua concepção da filosofia, insistindo
uma biblioteca literária que a te- que esta é “crítica da linguagem” e é, em princípio, diversa da ciência. Em par-
ologia cristã busca compreender ticular, parece-me que duas atitudes tenham caracterizado, do início ao fim, seu
o que foi revelado sobre Deus em filosofar: o antidogmatismo e o anti-reducionismo”. Sobre a questão de Deus e o
Jesus Cristo. Obras literárias não silêncio na obra desse autor, Perissinotto aponta: “O que Wittgenstein gostaria de
religiosas, como VPB, propõem fazer-se reconhecer não é que haja algo que não se pode dizer, algo que excede
um mundo que nos leva a pensar. e ultrapassa infinitamente a expressividade de qualquer língua (entendê-lo equi-
Questiona o que foi o anúncio e a valeria a deificá-lo: o inefável seria então uma supercoisa, mas em suma sempre
presença cristã em nosso meio e uma coisa), quanto, ao contrário, que no final, uma vez que se disse tudo o que
abre novas perspectivas para o sen-
se pode dizer, não há propriamente mais nada a dizer”.
tido. Enquanto tal, essas obras não
Perissinotto é graduado em Filosofia pela Universidade Cá Foscari de Ve-
são teologia, mas abrem questões
pertinentes à mesma. O mesmo se neza. Doutor de Pesquisa em Filosofia, foi primeiro pesquisador de Filosofia
pode dizer de obras literárias reli- Teorética e depois professor associado, sempre no setor científico-disciplinar
giosas, como os textos sagrados das de Filosofia Teorética junto ao Departamento de Filosofia e Teoria das Ciências
religiões. Eles exigem interpreta- da Universidade Cá Foscari de Veneza. Atualmente é professor ordinário de
ção. Nesse ato já entra a razão con- Filosofia da Linguagem e Filosofia da Comunicação. É membro da Sociedade Fi-
ceitual, que busca a inteligência do losófica Italiana, da Sociedade Italiana de Filosofia Analítica e da Wittgenstein
que é dito sob tantos gêneros lite- Gesellschaft (Áustria). É redator da revista “Filosofia e Teologia” e diretor da
rários. Só a narração, a profecia, a Máster de II nível em Consulta Filosófica. Sua atividade de pesquisa se concen-
lei, a poesia, o apocalipse, as pará- trou sobre dois temas fundamentais, os quais têm como ponto de referência
bolas, no caso dos textos judaico- comum a questão filosófica da linguagem e o problema do nexo linguagem-in-
cristãos, não são suficientes para a
terpretação. Confira a entrevista.
teologia. Não porque não sejam a
fonte e a alma do fazer teológico,
como bem o disse a Dei Verbum, no
Concílio Vaticano II, mas porque o IHU On-Line - Como as questões de campos. A maior parte de seus escritos foi
sentido que trazem exigem de novo linguagem se relacionam com as publicada postumamente, mas seu primeiro
sua atualização no presente, tan- narrações de Deus a partir de Witt- livro foi publicado em vida: Tractatus Lo-
gico-Philosophicus, em 1921. Os primeiros
to da proclamação, da oração e da genstein? Quais os limites e as pos- trabalhos de Wittgenstein foram marcados
prática, quanto da inteligência que  Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo
��������� pelas ideias de Arthur Schopenhauer, assim
austríaco, considerado um dos maiores do como pelos novos sistemas de lógica ideali-
busca compreender aquilo que crê, século XX, tendo contribuido com diversas zados por Bertrand Russel e Gottllob Frege.
ama e espera. inovações nos campos da lógica, filosofia Quando o Tractatus foi publicado, influen-
da linguagem, epistemologia, dentre outros ciou profundamente o Círculo de Viena e

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sibilidades da linguagem natural e da
lógica na narração do inefável?
“Perguntar-se o que religiosa” é algo variado e múltiplo
que não pode ser reduzido a um único
Luigi Perissinoto - A pergunta que
você coloca é muito complexa. Pode-
significa para alguém traço ou aspecto; 2) a desconfiança ra-
dical, no confronto com toda filosofia
rei sair-me dela observando que, pelo
menos no que se refere ao Tractatus
crer em Deus ou no ou teologia, do que faça de Deus e de
sua existência, ou, mais em geral, das
logico-philosophicus, aquilo que pode-
mos chamar de “inefável” – no Trac-
Juízo Final significa crenças religiosas (um dos exemplos
preferidos por Wittgenstein é a crença
tatus, Wittgenstein usa a expressão
“Unaussprechliches” [inexprimível]– é
perguntar como estas num Juízo Final) uma questão de hi-
póteses, provas, probabilidades; uma
precisamente o que não pode ser nar-
rado (no sentido geral de dito, expres-
suas crenças são questão, em suma, de conhecimento.
Segundo Wittgenstein, num discurso
so ou descrito). Ao menos uma coisa
seja, todavia, acrescentada, para não
‘incorporadas na vida religioso, uma expressão como “Eu
creio...” sempre é usada “de modo di-
deixar de todo ignorada sua pergunta
e sua referência ao tema da narração.
humana, em todas as verso do que na ciência” e, se não é
assim, ou seja, se é usada como na ci-
No Tractatus, o inefável é, como se
sabe, o místico, e o místico não se re-
situações e reações das ência, a religião se torna uma forma de
superstição. Mas, como Wittgenstein
fere a “como o mundo é, mas que isso
é”; neste sentido, ele diz respeito ao
quais é constituída a contesta, “fé e superstição são coisas
de todo diversas. Esta última brota do
que o Tractatus numa passagem chama
“Deus”: “Como o mundo é, é de todo
vida humana’” temor e é uma forma de falsa ciência.
A outra é um confiar”; 3) o sublinhar
indiferente para aquilo que é mais da dimensão prático-vital das crenças
alto. Deus não se revela no mundo”. Três eremitas, ou de Gottfried Keller, religiosas. Perguntar-se o que significa
Mais do que em outras passagens, aqui como, por exemplo, em Julieta e Ro- para alguém crer em Deus ou no Juí-
Wittgenstein parece falar, segundo meu na aldeia, do que num texto filo- zo Final significa perguntar como es-
uma expressão que ele usará na sub- sófico ou teológico. tas suas crenças são “incorporadas na
sequente Conferência sobre a ética de vida humana, em todas as situações e
1929, “em primeira pessoa”. Dito de IHU On-Line - Tomando em conside- reações das quais é constituída a vida
maneira diversa: de proposições como ração o legado deste filósofo, quais humana”; examinar “qual a diferença
estas não somos impelidos a questio- são os limites que as narrações de [...] que fazem em lugares diferentes
nar-nos, como talvez pudesse fazer Deus e da filosofia continuam encon- da vida”. Quem afirma “Haverá um
um teólogo, se Deus verdadeiramente trando em função da linguagem? Juízo Final” não faz uma conjetura ou
não se revela no mundo, quanto, ao Luigi Perissinoto - Muitos filósofos que uma previsão análoga àquelas que se
invés disso, de que vida se trata, ou se referem ao pensamento de Witt- fazem na ciência, mas exprime uma
seja, que aspecto pode ter a vida de genstein mostraram grande interesse, crença cuja indestrutibilidade se ma-
alguém que vive tudo o que lhe acon- tanto pessoal quanto filosófico, pela nifesta não “no raciocínio ou no apelo
tece sabendo-o “de todo indiferente experiência religiosa e pela linguagem a motivos normais de credibilidade,
para o que é mais alto”. É antes a si da religião. Parece-me que sejam pelo mas antes em orientar a ela toda a sua
mesmo que Wittgenstein dirige, acima menos três os aspectos mais relevan- vida”.
de tudo, a pergunta: é minha vida ver- tes do legado wittgensteiniano neste
dadeiramente livre de toda idolatria, campo: 1) o reconhecimento, - para IHU On-Line - Quais são as principais
ou seja, de qualquer pretensão de dizê-lo com um filósofo que Wittgens- diferenças que apontaria entre o
encontrar Deus em qualquer parte do tein admirava, William James, - de “Primeiro” e o “Segundo” Wittgens-
mundo ou de minha vida? Da preten- que o que chamamos de “experiência tein? Há uma unidade de pensamen-
são de considerar qualquer parte do desenvolvimento do pensamento anarquista to que perpassa as suas obras?
mundo mais próxima de Deus do que e, concretamente, considera-se que era um Luigi Perissinoto - A pergunta que você
cristão libertário. Suas obras mais famosas
qualquer outra? É somente neste sen- são Gruerra e Paz, de 1865, onde ele descreve coloca remete a um ponto que sempre
tido que, na perspectiva do Tractatus, dezenas de diferentes personagens durante a esteve no centro do debate crítico so-
o inefável pode mostrar-se, ou seja, invasão napoleônica de 1812; e Anna Kareni- bre Wittgenstein: entre o Wittgenstein
na, de 1875, que traz a hitória de uma mulher
ser narrado. De resto, Wittgenstein presa nas convenções sociais e um proprietá- do Tractatus e aquele subsequente há
talvez pareça considerar que o ine- rio de terras (reflexo do próprio Tolstoi), que uma clara ruptura ou prevalecem ele-
fável se mostre melhor num conto de tenta melhorar a vida de seus servos. (Nota da mentos de continuidade mais ou me-
IHU On-Line)
Leon Tolstoi, como, por exemplo, nos  William James Durant (1885-1981): filóso- nos fortes e evidentes? Como se sabe,
seu positivismo lógico (ou empirismo lógico). fo, historiador e escritor estadunidense. Mais durante anos dominou quase incontes-
(Nota da IHU On-Line) conhecido por sua autoria e co-autoria junto tada a primeira alternativa. Que hou-
 Liev Tolstoi (1928-1910): escritor russo de a sua mulher Ariel Durant na série historio-
grande influência na literatura e na política do gráfica História da Civilização. (Nota da IHU vesse “dois” Wittgenstein, diversos
seu país. Teve
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uma importante influência no On-Line)

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senão opostos por estilo, conteúdos e sua concepção da filosofia, insistindo – ou impossibilidade – de prová-la. Como
interesses filosóficos, é a ideia que do- que esta é “crítica da linguagem” e é, se sabe, nos textos mais explicitamente
minou, por exemplo, quase incontes- em princípio, diversa da ciência. Em filosóficos e teológicos de Wittgenstein,
tada a literatura sobre Wittgenstein particular, parece-me que duas atitu- subsequentes ao Tractatus, os temas e
dos anos 1960 e 1970 do século pas- des tenham caracterizado, do início ao as questões habitualmente atribuídos
sado. Desde então, muitas coisas mu- fim, seu filosofar: o antidogmatismo à filosofia da religião são praticamen-
daram, até radicalmente. Após 1953, e o anti-reducionismo. Wittgenstein te ausentes. As referências a Deus no
ano da edição póstuma das Investiga- sempre manteve a convicção que duas Tractatus e nos Cadernos preparatórios
ções filosóficas, muitos outros textos das tentações mais fortes da filosofia não são, além disso, tais que produzam
wittgensteinianos foram progressiva- sejam, de um lado, a tendência de in- algo que se possa com qualquer plau-
mente publicados e atualmente quase tercambiar as imagens e os modelos sibilidade chamar “a concepção witt-
todos os manuscritos e datiloescritos que servem para representar-nos e dar gensteiniana de Deus”. Reconhecendo
que formam o seu legado literário es- forma à realidade pela própria reali- tudo isto, é possível, em todo caso, in-
tão à disposição do estudioso. Tudo dade (é isto que ele chama “dogmatis- dicar alguns pontos a respeito dos quais
isto teve um forte, embora não uní- mo”); e, de outro lado, “o desejo de o posicionamento de Wittgenstein não
voco, impacto sobre a interpretação generalidade” que a impele a adotar conhece, quanto ao que se pode julgar,
da filosofia de Wittgenstein e sobre o um método afim daquele que segue significativas mudanças. Já encontramos
sentido das suas transformações inter- a ciência, quando se propõe “reduzir o primeiro ponto: trata-se da oposição
nas. Hoje, toda reconstrução crítica a explicação dos fenômenos ao me- entre religião e superstição e da convic-
da filosofia wittgensteiniana tende a ção de que, quem procura uma prova da
organizar-se pelo menos em torno de existência de Deus, não seja um homem
quatro grandes fases: (1) o Tractatus “Ser um homem de fé, mas um supersticioso que troca
e os escritos que precedem e acom- por fé uma forma de falsa ciência. Nes-
panham sua redação (1912-1922); (2) religioso não é algo te sentido – é este o segundo ponto – a
uma fase intermediária entre o fim relação com Deus é sempre uma relação
dos anos 1920 e os primeiros anos de que se possa querer ou radicalmente pessoal: um confiar Nele,
1930; (3) os anos centrais das Investi- um confiar-se a Ele. Ora, Wittgenstein
gações filosóficas, entre a metade dos projetar; talvez se reconhece que ele não é, neste sentido,
anos 1930 e 1945; (4) a última fase, um homem de fé; um homem religioso.
após 1945, em relação à qual se falou possa, num certo Por exemplo, citando São Paulo, que ob-
recentemente de um “terceiro Witt- serva que para ele (Wittgenstein) é im-
genstein”. Obviamente, isto não bas- sentido, desejar, como possível chamar Jesus de “Senhor”: “Po-
ta para resolver a questão que você derei chamá-lo ‘o exemplo’, até mesmo
levantou. Para alguns, Wittgenstein algumas vezes parece ‘Deus” [...], mas não posso pronunciar
continua sendo ainda hoje um filóso- sensatamente a palavra ‘Senhor’. Por-
fo das rupturas e das viradas radicais. fazer Wittgenstein” que eu não creio que ele virá julgar-me,
O que muda é o número dessas rup- porque isto não me diz nada. E só pode-
turas e o momento dessas viradas: os ria dizer-me algo se eu vivesse de manei-
Wittgenstein’s não são somente dois, nor número possível de leis naturais ra de todo diversa”. “Não me diz nada”
e sim três ou até mesmo quatro, ou primitivas” (o que podemos chamar aqui quer dizer: não encontra lugar na
talvez, olhando bem, ainda mais. Para de “reducionismo”). Repito: trata-se minha vida; não a perpassa e orienta,
outros, ao contrário, a continuidade de duas posições já fortemente pre- como acontece a quem pode chamar Je-
prevalece na filosofia de Wittgenstein sentes no Tractatus, mesmo se nesta sus de “Senhor”. Em todo caso, ser um
e há somente um só e único Wittgens- obra Wittgenstein descole em seguida homem religioso não é algo que se possa
tein, do início ao fim. Esta é uma po- algumas cedências dogmáticas e certa querer ou projetar; talvez se possa, num
sição defendida hoje radicalmente por propensão ao reducionismo. certo sentido, desejar, como algumas
intérpretes como Cora Diamond e Ja- vezes parece fazer Wittgenstein. Mas,
mes Conant. De minha parte, sempre IHU On-Line - Mudam suas concep- se a religião é sempre algo radicalmen-
considerei que o problema não teria ções sobre Deus de uma à outra obra? te pessoal (como escreve Wittgenstein
em si grande relevância. É, em todo Em que sentido? numa passagem pouco conhecida: “Não
caso, bastante óbvio que a resposta Luigi Perissinoto - É difícil atribuir a podes sentir Deus que fala com um ou-
depende, de fato, dos critérios e das Wittgenstein determinada concepção de tro, podes senti-lo somente quando é a
perspectivas que se adotem. Mas, se Deus, se com esta expressão se entende ti que fala”), nem por isso ele retém que
eu realmente devesse emitir um vere- a elaboração explicita de uma resposta sua dimensão ritual ou cerimonial seja
dicto, este seria amplamente favorável àquelas perguntas que filósofos e teólo- subvalorizada ou acantonada. E é este o
à hipótese da continuidade, sobretudo gos se puseram há tempos imemoráveis, nosso terceiro ponto: mesmo no caso da
quando se considera que Wittgens- a iniciar pela pergunta sobre a existência religião, Wittgenstein parece desconfiar
tein, na substância, jamais modificou de Deus e sobre a eventual possibilidade da pretensão de que aquilo que é real-

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mente importante para nós seja fechado mesmo que dizer qualquer outra coisa.
e, por assim dizer, sigilado no nosso su- Diz aquele que diz. Porque deverias estar
perprivado interno. em condições de substituir-lhe qualquer
outra coisa”. “Diz aquele que diz”: creio
IHU On-Line - De que forma filosofia que aqui esteja uma das chaves para en-
e religião dialogam na obra deste fi- tender o modo com que Wittgenstein se
lósofo? relacionava com a experiência religiosa
Luigi Perissinoto - Seja imediatamente e com sua linguagem.
realçado que filosofia e religião não es-
tão, segundo Wittgenstein, no mesmo IHU On-Line - Como podemos com-
plano. Neste sentido, elas não compe- preender o “silêncio” e a palavra em
tem entre si (como poderiam competir Wittgenstein? Seria o silêncio a expe-

Confira o Cadernos Teologia Pública


duas teorias) nem convergem (como po- riência do inefável? Por quê?
deriam convergir duas teorias). Isso por- Luigi Perissinoto - O tema do silêncio

Acesse as edições no sítio do ihu (www.ihu.unisinos.br)


que nem uma e nem a outra são teorias. aparece na proposição final do Tracta-
Talvez se pudesse dizer que, segundo tus (a famosíssima sentença: “Daquilo
Wittgenstein, a religião é acima de tudo que não se pode falar, se deve calar”),
uma experiência, e a filosofia, um méto- mas está presente também em outros
do. De resto, Wittgenstein é claro sobre lugares, por exemplo, onde se observa
um ponto: se fosse um homem religioso, que o método correto da filosofia con-
não o seria enquanto filósofo; ao mes- sideraria em “nada dizer senão aquilo
mo tempo, não é enquanto filósofo que que se pode dizer”. A coisa que ime-
ele não é religioso, embora em alguma diatamente viria a ser perguntada é de
anotação pareça sugerir que a filosofia que coisa se deve calar, ou seja, que
pode ser obstáculo àquele pleno confiar coisa diríamos propriamente se quisés-
no qual consiste, para ele, a fé. Gosta- semos falar daquilo de que não se pode
ria aqui de limitar-me a contestar uma falar. Ora, eu concordo com os intér-
forma de caráter reducionista em que pretes que tendem a sublinhar que es-
talvez seja entendida, numa ótica erra- tas perguntas subentendem o silêncio
damente considerada wittgensteiniana, final do Tractatus. O que Wittgenstein
a relação da filosofia com a religião. Wit- gostaria de fazer-se reconhecer não é
tgenstein indica, em diversos lugares, que haja algo que não se pode dizer,
algumas atitudes e experiências que algo que excede e ultrapassa infinita-
ele considera afins ou análogas a certas mente a expressividade de qualquer
atitudes e experiências a que parecem língua (entendê-lo equivaleria a deifi-
apelar os homens religiosos. Pois bem, cá-lo: o inefável seria então uma super-
sobre esta base se concluiu que a reli- coisa, mas em suma sempre uma coisa),
gião não seria para Wittgenstein senão a quanto, ao contrário, que no final, uma
expressão figurada, ou em imagens, des- vez que se disse tudo o que se pode di-
sas diversas experiências e atitudes. Até zer, não há propriamente mais nada a
se falou, a este respeito, de concepção dizer. Diversas proposições do Tracta-
“expressivista” da religião. Nada justifi- tus confirmam esta leitura. Por exem-
ca, no entanto, esta conclusão, a qual plo, aquela em que se observa que “a
está, entre outros aspectos, em con- solução do problema da vida se capta
tradição com o anti-reducionismo que, no desaparecimento da mesma”. Que
como eu já disse, caracteriza o seu in- ele (o problema) desapareça não signi-
teiro filosofar. Há uma passagem das Li- fica que ele seja confiado ao inefável,
ções sobre a crença religiosa, hoje muito mas precisamente que a vida cessa de
citadas e estudadas, que confirma nossa ser vista e vivida como um problema.
ideia. A um aluno seu que observava que É aquela condição na qual nada mudou
a frase “Poderemos ver-nos novamente nos fatos do mundo, e, não obstante,
após a morte”, dita a um amigo por al- tudo mudou: “O mundo do feliz é um
guém que temesse não retornar de sua mundo diverso daquele do infeliz”,
longa viagem, podia ser entendida como embora os fatos do mundo continuem
a expressão figurada de certo comporta- sendo exatamente os mesmos. É esta
mento, Wittgenstein replicava que falar felicidade, que quase poderíamos cha-
assim não é o mesmo que dizer: “Me mar de “transcendental”, que é, para o
agradas muito”, “e poderia não ser o Tractatus, inefável.

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“Só os sujeitos de linguagem podem crer em Deus”
Benilton Bezerra Júnior frisa que palavras são mediações para a experiência do ine-
fável, do indizível, do incomensurável, do mistério. Sujeito vive a crise de legitimi-
dade de uma autoridade transcendente

Por Márcia Junges

“S
ó o poder das palavras torna possível experimentar o inefável, o indizível, o inco-
mensurável, o mistério. Só sujeitos de linguagem podem crer em Deus”. As afir-
mações são de Benilton Bezerra Júnior na entrevista que concedeu, por e-mail,
à IHU On-Line, adiantando aspectos sobre sua conferência Narrativas de Deus e
a transcendência hoje: uma abordagem a partir da psicanálise, que apresentará
em 15 de setembro, no X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica.
Possibilidades e impossibilidades. De acordo com ele, “recusar a existência de Deus não implica
recusar o lugar que ele ocupa”. Outro tema em discussão é a crise do sujeito atual, que vive a situ-
ação inédita da perda de legitimidade de uma autoridade transcendente. “Como consequência de
uma exacerbação da lógica do individualismo moderno, estaríamos presenciando o surgimento, pela
primeira vez, de gerações sem compromisso com a tradição, incapazes de reconhecer autoridade e
poder normativo em alguma instância para além de sua decisão individual. Num mundo impulsionado
pela lógica do mercado, pela explosão de biotecnologias e pelo declínio do simbólico, tudo parece
ter se transformado em matéria de escolha pessoal. Falar de transcendência ficou vagamente careta,
démodé, old-fashioned”.
Benilton é graduado em Direito e em Medicina, mestre em Medicina Social e doutor em Saúde
Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Atualmente, é membro do Instituto
Franco Basaglia, atua como docente adjunto do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, e é
pesquisador do PEPAS (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito) da UERJ. Escreveu o
artigo Retraimento da autonomia e patologia da ação: a distimia como sintoma social, publicado no
livro Inácio Neutzling (org.), O Futuro da Autonomia: Uma Sociedade de Indivíduos? (São Leopoldo
- Rio de Janeiro: Editora Unisinos - Editora PUC-Rio, 2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como você pretende mente, em Atos obsessivos e práticas ção, e Moisés e o monoteísmo. Esta in-
abordar a interpretação psicanalítica religiosas, Totem e tabu, Psicologia terpretação fez a fama de Freud como
do fenômeno religioso? das massas e análise do eu, O futuro um anti-religioso radical, um “judeu
Benilton Bezerra Júnior - Existem, na de uma ilusão, Mal-estar na civiliza- sem Deus nenhum” – como ele mesmo
história do pensamento psicanalítico, se denominou. Foi por conta dela que
duas perspectivas básicas de interpre- alizou, assim como Darwin e Copérnico, uma a psicanálise se tornou, no imaginário
revolução no âmbito humano: a idéia de que
tação do fenômeno religioso e, como somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas social e mesmo no espírito predomi-
consequência, duas maneiras distintas teorias e o tratamento com seus pacientes nante da maioria de seus praticantes,
de compreender sua função na vida foram controversos na Viena do século XIX, e uma teoria avessa à religião, feroz-
continuam muito debatidos hoje. A edição 179
subjetiva. da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o mente crítica do seu papel na vida in-
A primeira, e mais conhecida, se tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mes- dividual e coletiva.
encontra exposta e desenvolvida em tre da suspeita, disponível para consulta no Em que consiste basicamente esta in-
link http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo-
vários escritos de Freud, principal- ads/edicoes/1158345628.45pdf.pdf. A edição terpretação? Para o Freud desses escritos,
 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e 207, de 04-12-2006, tem como tema de capa a religião é, no fundo, nada mais que um
fundador da Psicanálise. Interessou-se, inicial- Freud e a religião, disponível para download mecanismo de defesa contra angústias
mente, pela histeria e, tendo como método a em http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo-
hipnose, estudava pessoas que apresentavam ads/edicoes/1165256946.3pdf.pdf. A edição que ameaçam a integridade narcísica do
esse quadro. Mais tarde, interessado pelo in- 16 dos Cadernos IHU em formação tem como Eu. Freud via nas crenças e práticas re-
consciente e pelas pulsões, foi influenciado título Quer entender a modernidade? Freud ligiosas um correlato dos pensamentos e
por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose explica, disponível para download em http://
em favor da associação livre. Estes elementos www.ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/ atos obsessivos. Em ambos os casos, um
tornaram-se bases da Psicanálise. Freud, além edicoes/1184009791.53pdf.pdf. (Nota da IHU conjunto de ideias, rituais e exercícios,
de ter sido um grande cientista e escritor, re- On-Line)

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cujo sentido último permanece incons- ilusão e uma fonte de intolerância, a ser teressante desenvolvimento tenha sido
ciente, que norteiam a vida dos sujeitos, superada com a ajuda da psicanálise e feito por Donald W. Winnicott, psicana-
mas ao preço de os distanciarem de sua da ciência, em prol de uma vida mais li- lista inglês para quem a experiência do
própria verdade subjetiva. vre, mais tolerante e mais criativa. sagrado está relacionada ao anseio de
potência, à capacidade de encantamen-
Religião como defesa IHU On-Line - Qual é a outra matriz to e ao agir criativo. Em sua perspectiva,
de interpretação? a religião aparece não como um sinto-
Qual seria o sentido essencial da Benilton Bezerra Júnior - Curiosa- ma, uma defesa frente ao infortúnio,
religião nesta perspectiva? Freud res- mente, nesta outra interpretação psi- mas como uma maneira criativa de dar
ponde: uma defesa contra o medo da canalítica da religião, é justamente a sentido à existência. É esta abordagem
morte, uma resposta à angústia diante liberdade e a potência criativa que se que pretendo privilegiar na exposição.
do desamparo essencial da condição expressam no fenômeno religioso, na
humana. De início, o desamparo se ex- relação com o sagrado. O anticlerica- IHU On-Line - Qual é a importância
pressa na experiência de impotência lismo e o cientificismo de Freud o im- das narrativas de Deus e do debate
e dependência absoluta do bebê em pediram de tirar as consequências de sobre transcendência para o sujeito
relação a um outro humano. O ser hu- algo que ele mesmo diz em Moisés e o pós-moderno?
mano nasce prematuro, incapaz de en- monoteísmo (seu último grande escri- Benilton Bezerra Júnior - Ninguém
frentar, sozinho, as exigências da vida. to). Neste texto, Freud afirma que a nasce sujeito. Para que a criança atinja
O outro, que detém sobre o recém crença num poder onipotente vincula- este ponto de sua trajetória existencial
nascido um poder de vida ou morte, do ao sagrado teria sua origem no fato (que pode não ser alcançado, ou pode
é percebido como onipotente - amado de que os humanos, por serem dotados ser perdido) ela precisa ser inserida no
(quando acolhe e alivia a angústia) e de linguagem, usam as palavras para campo da linguagem. Neste momento se
odiado (quando se ausenta e a acen- criar e destruir: modificam a realida- produz sobre a criança um duplo efeito:
tua). Nesta experiência primordial é de material, inventam novas formas ao mesmo tempo se assujeita ao Outro,
que estariam as razões inconscientes às leis que ordenam a operação do cam-
para a criação do Deus antropomórfico po simbólico e, ao fazê-lo, emerge como
da religião – todo-poderoso, protetor “Recusar a existência de um sujeito que se constitui ao responder,
e perseguidor, amado e temido. Mais de um singular, às interpelações e dita-
tarde, o adulto reencontra o desam- Deus não implica recusar mes a ele dirigidos por este Outro. Em
paro ao se deparar com consciência da outras palavras, a constituição do sujei-
finitude, a inelutável decrepitude do o lugar que ele ocupa” to e a instituição da sociedade têm como
corpo, a fragilidade diante das forças fundamento comum o reconhecimento
esmagadoras da natureza, e o inevi- da existência de uma ordem normativa
tável sofrimento que decorre das re- de vida, constroem novas imagens do que transcende o plano imediato de cada
lações com os semelhantes, nas quais que é ser um humano, ampliam o ho- indivíduo. Como dizem os psicanalistas,
amor e ódio se alternam. Criando um rizonte da experiência. Só o poder das a ordem social só opera na medida em
Deus que os protege e vigia, os seres palavras torna possível experimentar que os sujeitos reconheçam sua filiação
humanos teriam encontrado um modo o inefável, o indizível, o incomensurá- à Lei, a um conjunto de normas e regras
de lidar com as duas faces angustian- vel, o mistério. Só sujeitos de lingua- que instituem prescrições e proscrições,
tes da morte: o medo de morrer e a gem podem crer em Deus. limites entre bem e mal etc.
culpa diante da vontade de matar. Nesta perspectiva, as narrativas sobre Ao longo da história variaram as ins-
o divino se apresentam como criações tituições que ocuparam o lugar de refe-
Precariedade ontológica humanas que, junto com outras, visam rência da Lei, instituições que se apre-
à superação de sua condição natural, sentavam no imaginário social como seus
Freud percebia que a precariedade apontam para uma exploração de suas representantes legítimos, exibindo força
ontológica do ser humano era o impulso potencialidades. Dois pontos fundamen- normativa. Até a modernidade, este lu-
para as realizações do espírito. Mas ele tais diferenciam esta interpretação da gar foi hegemonicamente ocupado pela
estabelecia uma diferença fundamental primeira: em primeiro lugar, na origem religião. A partir do século XVIII, as nar-
entre aquelas que permitiram ao ser hu- da ideia do sagrado está não a impotên- rativas de Deus foram deslocadas de seu
mano enfrentar sua incompletude sem cia ou o desamparo, mas a afirmação de lugar hegemônico. A religião deixa de ser
negá-la ou escondê-la (como a arte e a uma potência criadora do humano; em o modo pelo qual se organiza a socieda-
ciência), sustentando assim uma afirma- segundo lugar, a ideia do divino, ao in- de para ser um conjunto de crenças às
ção e ampliação do universo humano, e vés de obstáculo à emancipação, passa quais uns aderem, outros não. Surgem
aquelas que apelando a fantasias e ilu- a ser instrumento de progresso do espíri- outras instâncias responsáveis pela sus-
sões (o caso das neuroses e da religião) to e expressão da criatividade humana. tentação e transmissão da Lei: as utopias
ofereceriam apenas consolo e escape da Freud não explorou esta via de análise,
 Donald Woods Winnicott (1896-1971): pe-
realidade. Para Freud, a religião era uma mas outros o fizeram. Talvez o mais in- diatra e psicanalista inglês. (Nota da IHU On-
Line)

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políticas, a pátria, o pai de família, o “Qual seria o sentido qualquer lugar) não se pode deixar de
trabalho. Embora laicas, estas instâncias notar a afinidade eletiva deste tipo de
herdaram da religião seu maior legado: a essencial da religião discurso religioso com o privilégio da
própria ideia de Lei. Mesmo o ateu, esta lógica econômica na cultura atual.
figura moderna, é um herdeiro desta tra- nesta perspectiva? Freud Vale lembrar que este problema não
dição. Recusar a existência de Deus não é privilégio do cristianismo. Também
implica recusar o lugar que ele ocupa. responde: uma defesa as tradições espirituais orientais têm
sofrido, em sua expansão no ociden-
Crise do sujeito atual contra o medo da morte, te, os efeitos desta lógica. Não apenas
na transformação de ideias, imagens
O que para muitos caracteriza a cri- uma resposta à angústia e práticas espirituais milenares em
se do sujeito atual é o surgimento de itens de consumo chique. Há também
uma situação social inédita, na qual é diante do desamparo a apropriação de muitas de suas no-
justamente a ideia de legitimidade de ções axiais (impermanência, karma,
uma autoridade transcendente que essencial da condição dukkha/sofrimento sunyata/vazio)
parece estar posta em questão. Como para a justificação de uma atitude de
consequência de uma exacerbação da humana” alheamento ou indiferença em relação
lógica do individualismo moderno, es- ao mundo, e da busca individual de
taríamos presenciando o surgimento, uma “paz interior” - cujo efeito é tor-
pela primeira vez, de gerações sem nar possível participar plenamente da
na pós-modernidade, nas mais varia-
compromisso com a tradição, incapa- agitação frenética da dinâmica capita-
das religiões? Por quê?
zes de reconhecer autoridade e poder lista, guardando ao mesmo tempo um
Benilton Bezerra Júnior - Não estou se-
normativo em alguma instância para sentimento apaziguador (e alienante)
guro de que normal e patológico sejam
além de sua decisão individual. Num de distância em relação a ela. Não é
os melhores adjetivos para qualificar
mundo impulsionado pela lógica do sem alguma razão que Slavoj Zizek,
as vicissitudes das narrativas religiosas
mercado, pela explosão de biotecnolo- ao criticar a apropriação das tradi-
hoje. Mas há certamente fenômenos a
gias e pelo declínio do simbólico, tudo ções orientais pela cultura midiática
serem analisados no cenário atual. Já
parece ter se transformado em maté- ocidental, chega a dizer que Max We-
se disse que o capitalismo global atual
ria de escolha pessoal. Falar de trans- ber, se estivesse vivo, seria impelido
conseguiu colocar até o inconsciente
cendência ficou vagamente careta, a escrever “A ética taoísta e o espírito
a serviço do capital. Numa socieda-
démodé, old-fashioned. Não que a Lei do capitalismo global”, como com-
de em que a repressão foi substituída
tenha efetivamente sumido do cená- plemento à sua análise sobre a ética
pela incitação ao gozo, este funciona
rio. Mas suas referências se tornaram protestante. Para os que defendem o
como um elemento crucial, uma fonte
tão frágeis e pulverizadas que parece lugar do religioso e da espiritualidade
de alimentação contínua, do processo
já não haver “um valor mais alto que na sociedade atual, abordar estes fe-
de produção, circulação e consumo de
a levante” que organize o conjunto de nômenos de uma maneira crítica é cla-
bens. A preocupação com o Bem deu
valores com os quais ordenar a exis- ramente um desafio a ser enfrentado.
lugar à ocupação com os bens. Não se-
tência. O sujeito atual se sente mais
ria exagero dizer que hoje a lógica do
“livre” do que nunca, mas na falta de IHU On-Line - Qual é a pertinência do
mercado invadiu até mesmo o campo
referências sólidas que transcendam à discurso cristão hoje?
das religiões institucionalizadas. Não
opinião de cada um, esta “liberdade”  Slavoj Zizek (1949): sociólogo, filósofo e crí-
diria o campo do sagrado, porque este
resulta em pouco mais do que deso- tico cultural esloveno. (Nota da IHU On-Line)
é, por definição, inassimilável a insti-  Maximillion Weber (1864-1920): sociólogo
rientação, sentimento de insuficiên-
tuições, interesses sociais, crenças e alemão, considerado um dos fundadores da
cia, e adesão às imagens idealizadas Sociologia. Ética protestante e o espírito do
práticas particulares. Mas a explosão
de sucesso à disposição no imaginário. capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das
das chamadas religiões da prosperida- Letras, 2004) é uma das suas mais conheci-
Este não é um quadro homogêneo e
de é um fato. Nelas, a relação com o das e importantes obras. Cem anos depois,
totalizante, claro. Há resistências, li- a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição,
divino é mediada pelo valor dos bens
nhas de fuga. Mas este pano de fun- de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ética
numa relação de troca: demonstre sua protestante e o espírito do capitalismo 100
do geral incide sobre os processos de
fé com sua oferta (financeira) e Deus anos depois, disponível para download em
constituição subjetiva, os padrões de http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/
lhe retribuirá com sucesso material. O
sofrimento, a regulação da vida social. edicoes/1158261116pdf.pdf. De Max Weber o
dízimo vira investimento, e Deus uma IHU publicou o Cadernos IHU em Formação nº
Por isso esta é uma questão que inte-
espécie de grande corretor. Há algu- 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do
ressa a todos. capitalismo. Em 10-11-2005, o professor Antô-
mas décadas seria impensável associar
nio Flávio Pierucci ministrou a conferência de
o adjetivo evangélico a este tipo de encerramento do I Ciclo de Estudos Repen-
IHU On-Line - Normal e patológico
prática. A despeito do que possa ocor- sando os Clássicos da Economia, promovido
são categorias que podem ser aplica- pelo IHU, intitulada Relações e implicações da
rer na experiência dos fieis (os cami-
das às diferentes narrativas de Deus ética protestante para o capitalismo. (Nota da
nhos para o divino podem surgir em IHU On-Line)

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Benilton Bezerra Júnior - Creio que
esta pergunta pode ser respondida de
várias maneiras, dependendo da posi-
ção em que se esteja com relação ao
cristianismo. Mas a resposta que mais
me atrai é uma que poderia ser elabo-
Os novos nomes de Deus e o
rada por qualquer um: cristão, judeu,
muçulmano, budista, agnóstico ou empoderamento feminino
ateu. Ela parte da ideia de que a essên-
cia última do cristianismo é partilhada O Concílio Vaticano II foi deixado para trás e a “era de poder
por outras religiões e pela tradição laica
surgida no século XVII e que fez da li-
hierárquico passou a vigorar”, dispara Mary Hunt. Mais impor-
berdade, da igualdade e da fraternida- tante do que os novos nomes de Deus é o poder conferido às
de nossos ideais sagrados (aqueles dos suas nomeadoras
quais não concebemos abrir mão, sob
o risco de perdermos o sentido funda-
mental da existência humana). Qual é Por Por Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander
esta essência? Ela se encontra figurada,

D
por exemplo, na passagem de 1a Corín-
tios, 13: a lei do amor. Como disse certa e acordo com a teóloga feminista Mary Hunt, “a teologia femi-
vez Richard Rorty, a diferença essencial nista muda tanto a linguagem a respeito do divino quanto a di-
entre o religioso e o ateu está em que, nâmica de poder da nomeação”. Contudo, “mais importante do
para o primeiro, o sagrado se radica em que quaisquer nomes novos é o empoderamento de muitas novas
um passado fundacional, enquanto para nomeadoras”, pondera. Sobre as proibições de que mulheres le-
o segundo, ele reside somente em um cionem em seminários católicos e sejam ordenadas sacerdotes, entre outras,
futuro ideal. Tanto um quanto o outro Hunt alfineta que essas são demonstrações de que o Concílio Vaticano II “foi
encontra lugar e sentido para aquilo deixado de lado e uma nova era de poder hierárquico passou a vigorar. A atu-
que transcende nossa condição pre-
al investigação das religiosas católicas americanas é o mais recente exemplo
sente. Para o primeiro, ele se encontra
dessa tendência”.
na dependência em relação a uma re-
alidade maior que nos ultrapassa. Para Mary Hunt é teóloga feminista, co-fundadora e co-diretora de Women’s
o segundo, ele consiste na esperança Alliance for Theology, Ethics and Ritual (WATER) em Silver Spring, Maryland, USA.
por um futuro humano no qual a lei do Católica ativa no movimento feminino da Igreja, ela faz palestras e escreve sobre
amor prevaleça. Em ambos, porém, a teologia e ética com atenção especial para questões da libertação. Graduada em
lei fundamental do amor pode ser to- Filosofia pela Universidade de Maquette, fez mestrado na Jesuit School of The-
mada como centro do sagrado. Nesta ology at Berkeley. Recebeu o título de Doutora em Teologia pela União Teológica
perspectiva, a pertinência do discurso em Berkeley, Califórnia. E, em 16 de setembro, profere a conferência Narrar
cristão hoje estará relacionada à sua Deus hoje: uma reflexão a partir da teologia feminista, parte integrante do X
capacidade de contribuir, em articula- Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibi-
ção com outros discursos do sagrado, lidades e impossibilidades. Confira a entrevista.
para trazer novamente à cena principal
o valor da transcendência.
IHU On-Line - Quais são as contri- que nossas concepções são parciais,
Leia mais... buições da teologia feminista para limitadas e contextuais, e não a úni-
narrar Deus hoje? ca palavra verdadeira, como têm rei-
Benilton Bezerra Jr. já concedeu outras Mary Hunt - A teologia feminista vindicado as abordagens patriarcais.
entrevistas à revista IHU On-Line e ao site do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU. muda tanto a linguagem a respeito Mais importante do que quaisquer
do divino quanto a dinâmica de po- nomes novos é o empoderamento de
* A subjetividade humana na sociedade de indiví- der da nomeação. Tendo recebido a muitas novas nomeadoras. As femi-
duos. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, em
25-05-2007, disponível para download em http:// linguagem que fala de “Pai, Senhor, nistas constataram que as dimensões
www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noti Rei, Soberano” de uma tradição pa- teopolíticas do trabalho são tão cla-
cias&Itemid=18&task=detalhe&id=7366 triarcal, as teólogas feministas têm ras – a maneira como as ideias teoló-
* 1968: a passagem de um direito conquistado
a uma norma instituída. Entrevista concedida à trabalhado com Sofia ou Sabedoria, gicas moldam o fórum público – que
IHU On-Line nº 250, de 10-03-2008, disponível Amigo/a, Fonte e Companheiro/a, precisamos incluir muitas e variadas
para download em http://www.ihuonline.unisi- entre muitas outras formulações, vozes na reflexão teológica. Esta é
nos.br/index.php?option=com_tema_capa&Item
id=23&task=detalhe&id=914 para designar o divino. Em cada um deslocamento na autoridade e
caso, temos tido o cuidado de dizer no poder teológicos que, em última
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análise, é mais eficaz do que qualquer para as mulheres após o Concílio Va-
nome novo.
“É necessário fazer ticano II? Em que sentido esse evento
arejou a forma como Deus era com-
IHU On-Line - Como a teologia fe-
frente a alguns desses preendido e sentido pelas mulheres?
Mary Hunt - Nos Estados Unidos, e
minista ajuda a escrever uma outra
compreensão de Deus?
textos em seus penso que num grau diferente na Amé-
rica Latina, o Vaticano II representou o
Mary Hunt - Através de novas inter-
pretações da escritura e um novo pen-
contextos históricos e apogeu do número de mulheres em co-
munidades religiosas. Mas os documen-
samento sistemático sobre o divino, o
trabalho feminista se caracteriza por
teológicos e propor tos do Concílio sobre as pessoas leigas
e a família, bem como os movimentos
uma opção preferencial pelo bem-es-
tar das mulheres e crianças depen-
interpretações de mulheres em ascensão e as mudan-
ças deles resultantes deram às mulhe-
dentes como parte de uma abordagem
multivalente da criação de um mundo
alternativas que evitem res muito mais opções em termos de
crença e estilo de vida. Assim, os nú-
justo. Assim, nossa nomeação do divi-
no reflete esse objetivo ao atentarmos
o pensamento meros de irmãs diminuíram, mas surgi-
ram movimentos como Women-Church
para o racismo, colonialismo, discrimi-
nação de pessoas portadoras de defici-
opressor” [Igreja de Mulheres] e outros esforços
ência, heterossexismo e sexismo. Fa- para ser Igreja liderados por pessoas
zemos isso em conjunto com pessoas leigas. Na medida em que a versão de
provenientes de várias tradições de Deus do tipo “Pai, Senhor, Rei, Sobera-
o clamor contra teólogas feministas no” começou a desaparecer em face
fé, aprendendo a escutar, talvez, mais
como Ivone Gebara, NÃOs enfáticos do trabalho feminista, algumas mulhe-
do que simplesmente falar sobre Deus.
para a ordenação de mulheres, para res se sentiram empoderadas para ser
Somos realistas em relação à forma
o uso do controle da natalidade e do e fazer tudo que pudessem imaginar.
como esses métodos funcionam: eles
aborto, e o ensinamento negativo so- Isto incluiu as mulheres com boa edu-
são inter-religiosos; expressam-se em
bre o amor entre pessoas do mesmo cação e relativamente ricas, mas de
muitas mídias, como dança, arte, pre-
sexo mostram que o Vaticano II foi modo algum a maioria das mulheres
gação e discurso teológico; e necessi-
deixado de lado, e uma nova era de do mundo. É por isto que é imperativo
tam ser constantemente repensados à
poder hierárquico passou a vigorar. A que a teologia feminista leve a sério
luz das mudanças que trazem.
atual investigação das religiosas ca- sua tarefa de moldar tanto as estru-
tólicas americanas é o mais recente turas quanto as pessoas. Do contrário,
IHU On-Line - Nesse contexto, qual
exemplo dessa tendência. ela corre o risco de ser uma força que
é a importância do Concílio Vaticano
II como fonte de novos nichos para a aumente a distância entre pessoas ri-
IHU On-Line - Podemos falar em uma cas e pobres, mulheres brancas e mu-
inserção da mulher na Igreja?
redescoberta de vocações religiosas lheres de cor etc., na medida em que
Mary Hunt - O Vaticano II, como di-
zem muitos/as observadores/as,  Ivone Gebara (1944): doutora em filosofia algumas mulheres são empoderadas,
com uma tese sobre Paul Ricouer. Ingressou na mas a maioria é deixada de lado.
abriu as portas e janelas da Igreja Ca- Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, em
tólica Romana. As mulheres e os lei- 1967. Estudou teologia. Em 1973 se transfere
gos faziam parte do chamado povo de para Recife. Durante 17 anos foi professora IHU On-Line - Como podemos com-
de teologia e filosofia no Instituto Teológico preender as narrativas de Deus que
Deus ao qual o Concílio dirigiu grande de Recife, fechado em 1989 pelo Vaticano.
parte de sua atenção. As religiosas, Assessora de grupos populares, especialmente ainda não contemplam o papel fun-
particularmente, levaram a sério os de mulheres. Professora visitante em diferen- damental da mulher?
tes universidades e centros de aprendizado no Mary Hunt - As biblistas feministas
mandatos para mudanças e modifica- Brasil e no exterior. Escritora de livros e artigos
ram grande parte de sua vida. As te- de filosofia e teologia na perspectiva feminis- sugeriram que deixemos de lado
ólogas começaram a falar e escrever ta da liberação, dentro os quais destacamos: muitos desses textos bíblicos. Con-
Teologia Ecofeminista (São Paulo:Ed. Olho ����� sidero isso uma estratégia útil. Mas
com mais autoridade. Entretanto, du- dÀgua, 1988) e Longing for Running Waters
rante o pontificado de João Paulo II, (Minneapolis: Fortress Press,1999). ����������
Confira a ela não enfrenta o fato de que esses
as portas e janelas se fecharam gra- entrevista concedida por Gebara à edição 219 textos são usados constantemente
da revista IHU On-Line, de 14-05-2007, intitu- pela direita religiosa para manter as
dativa, mas, sistematicamente, e as lada Em defesa da legalização e da descrimi-
mulheres foram marginalizadas mais nalização do aborto, disponível para download mulheres subordinadas. Assim, é ne-
uma vez. As proibições de que mulhe- em http://www.ihuonline.unisinos.br/index. cessário fazer frente a alguns desses
php?option=com_tema_capa&Itemid=23. Na textos em seus contextos históricos
res lecionem em seminários católicos, edição 210, de 05-03-2007, concedeu a entre-
vista “A crise do masculino se situa na falta de e teológicos e propor interpretações
sua nova identidade”, disponível para down- alternativas que evitem o pensamen-
load em http://www.ihuonline.unisinos.br/in- to opressor.
dex.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&
task=detalhe&id=237. (Nota da IHU On-Line)

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Deus é maior do que os discursos sobre ele
As religiões afro-brasileiras estão presentes na vida de Clóvis Cabral desde que nas-
ceu, ainda assim preferiu tornar-se um padre jesuíta que luta, hoje, pelo diálogo
entre as diferentes religiões e por respeito, principalmente, à cultura negra

Por Márcia Junges

P
or e-mail, o Prof. Dr. Clóvis Cabral, SJ, do Centro Cultural Atabaque de Cultura Negra,
da Universidade Estadual de São Paulo, conversou com a IHU On-Line e falou sobre suas
experiências com diferentes religiões, mas, principalmente, sobre sua ligação com as de
matrizes africanas. Segundo ele, essa vivência só fez aumentar o mistério que é Deus. “Essa
minha experiência de diálogo com o povo de religiões de matriz africana só me faz crescer
como ser humano, só tem me feito abrir mais a minha inteligência para captar o mistério de Deus
para além dos limites da fé cristã da religião católica”, disse. Cabral ministraria nesta segunda-feira,
14 de setembro, a oficina Narrativas do mistério, dentro da programação do X Simpósio Internacional
IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. Entretanto, por
motivos de saúde, não pôde comparecer ao evento.Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você tem uma vivên- aqui toda a programação, há um cli- Depois disso mostrei como esses prin-
cia muito intensa no candomblé, mas ma assim de desencanto com relação cípios que formam a unidade básica das
quando adulto preferiu tornar-se um a uma insistência, por exemplo, no si- culturas africanas são plurais e, ao mes-
padre jesuíta. Como é pensar nas lêncio de Deus, é possível ainda falar mo tempo, foram criadas aqui a partir
narrativas do mistério a partir dessa de Deus hoje? Então, a impressão que de diversas formas de narrar Deus. Aí
relação que o senhor tem com dife- tenho é que há um clima de tristeza, quero apresentar o que chamo de sete
rentes religiões? de beco sem saída das teologias que características que estão presentes nas
Clóvis Cabral – Para mim, só aumenta vêm da Europa ou de setores teológi- religiões de matriz africanas no Brasil
mais o mistério. Essa minha experiência cos do Brasil. Eu tenho uma perspec- todo, e vou mostrar como há uma unida-
de diálogo com o povo de religiões de tiva que, para o povo, Deus é muito de básica entre elas no Brasil. Também
matriz africana só me faz crescer como importante, Deus não está calado, pretendo mostrar sete características da
ser humano, só tem me feito abrir mais Deus não silenciou. Eu vou contribuir espiritualidade afro-brasileira e que pos-
a minha inteligência para captar o mis- para responder a pergunta “É possível sibilitam, portanto, narrar sobre Deus
tério de Deus para além dos limites da narrar Deus numa sociedade pós-me- para esse povo que vive hoje dentro de
fé cristã da religião católica. Essa minha tafísica?” a partir de uma perspectiva uma sociedade contraditória e perplexa
experiência de troca, de partilha com de religiões que são muito físicas para como essa que a gente vive.
membro de comunidades de terreiros as quais o corpo, a saúde, a dança, a Num outro momento, apresentei a
me fez aprender mais sobre Deus, me vida, a comida são importantes. Entre linguagem do mito como uma lingua-
abriu novos horizontes, me fez crescer o povo de santo das comunidades de gem que possibilita essas diversas nar-
como sacerdote católico. E só me faz religiões de matriz africana eu não rativas do mistério que é Deus.
afirmar que Deus é misterioso mesmo e sinto esse clima de ausência de Deus,
que nenhuma religião é dona dele, tem se Deus tem ou não sentido ainda. IHU On-Line – Este simpósio tem como
a plenitude de Deus em si. Deus é maior Depois trabalhei um conceito de his- tema principal narrar Deus numa so-
dos que as religiões, do que os discursos tória que recupera, portanto, as cosmo- ciedade pós-metafísica. Qual é o es-
sobre ele. visões africanas que foram recriadas aqui paço do negro nessa sociedade?
no Brasil. É um conceito que diz que não Clóvis Cabral – Hoje, na África, se fala
IHU On-Line – Quais são os principais é tabu voltar e recuperar aquilo que foi de um renascimento africano. Isso tem
pontos que o senhor abordou na ofi- perdido. Pretendo mostrar que tem todo a ver com o fenômeno do renascimen-
cina Narrativas do Mistério? um conjunto de reflexões em torno da to que reconstruiu o projeto civilizató-
Clóvis Cabral – O primeiro aspecto anterioridade das civilizações africanas rio que tem como lugar a Europa, mas
que falei foi a partir do ponto de vista e de um conjunto de princípios que uni- que depois repercutiu no mundo todo.
desse meu relacionamento com as re- ficam as diversas visões de mundo que Então, esse conceito de renascimento,
ligiões de matrizes africanas. Olhando foram elaboradas aqui. que se fala na África, é uma redesco-
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berta das fontes matriciais das culturas,
das civilizações, das filosofias, das teolo-
gias africanas tradicionais. Além disso, falei
como elas possibilitam hoje os africanos a
encontrar um lugar nesse século novo. Esse
mesmo fenômeno acontece aqui no Brasil,
há, por assim dizer, uma redescoberta da
“É narrando que se diz o mistério”
juventude que milita no espaço da política
das religiões de matriz africana como um Linguagem científica é limitada e não pode dizer tudo sobre
lugar de reconstrução da humanidade e de a verdade. A literatura das grandes narrativas da criação,
um projeto de humanidade. Esse é o ponto
central do fenômeno das religiões de matriz
seja sob ponto de vista ético ou estético, “leva a posturas
africana que voltam a ter uma importância éticas que se tornaram urgentes em tempos de crise ecoló-
na medida em que elas reúnem novamente gica, tão ou mais necessárias do que as ciências”, acentua
o conjunto das populações afro-brasileiras
que vivem ainda as desigualdades raciais e
Luís Carlos Susin
sociais no país.
Por Márcia Junges
IHU On-Line – Em sua opinião, qual a con-

P
tribuição da cultura pós-metafísica para
uma possível narrativa do mistério? ara o teólogo Luís Carlos Susin, é ilusória a pretensão da lingua-
Clóvis Cabral – Temos que pensar que todas gem científica de “dizer tudo o que se pode narrar a respeito
as tentativas nossas de falar sobre Deus, de da verdade. Ciência não é sinônimo de verdade, é parte dela”.
fazer ciência sobre o mistério que é Deus são
Ele evoca o filósofo Paul Ricoeur como exemplo do quanto a
finitas, são pequenas, são um segundo mo-
linguagem narrativa, com suas características míticas, tem uma
mento, elas não tem uma antecedência. A
primeira experiência fundamental que faze- densidade de verdade que a ciência não alcança. “É narrando que se diz o
mos numa sociedade que se pergunta “qual mistério”, comentou na entrevista exclusiva concedida, por e-mail, à IHU
será o futuro?”, “Deus tem algo ainda a dizer On-Line. Questionado sobre os limites e possibilidades de se narrar Deus
para nós?”, é recuperar que essa situação é num tempo em que o sagrado e a secularização convivem lado a lado, Susin
possível porque não podemos mais pensar mencionou que “a reação ou volta ‘vingativa’ do sagrado em tempos de
em narrar Deus a partir de uma única pers- cientificismo pode ser compreendida por causa da pretensão das ciências,
pectiva ou tentando inserir todas as narrati- que devem também conhecer seus limites, mas não justificam, por exem-
vas dentro de uma só. Temos que repensar plo, a forma fundamentalista com que alguns grupos querem ensinar o
que a saída é pensar de maneira plural. Te- criacionismo no lugar ou ao lado da teoria da evolução em aulas de ciência.
mos que falar em narrativas e não narrativa A criação pode ser entendida com mais justeza nas aulas de literatura, que
sobre Deus. Além disso, as diversas narrati-
também é uma poderosa forma de dizer a verdade. Aliás, do ponto de vista
vas têm que dialogar entre si, trocarem seus
ético e estético, ao lado do religioso, a literatura das grandes narrativas
saberes.
de criação leva a posturas éticas que se tornaram urgentes em tempos de
IHU On-Line – Como é a narrativa de Deus crise ecológica, tão ou mais necessárias do que as ciências”.
nas religiões afro-brasileiras? Susin é graduado em Teologia pela Universidade de Ijuí – Unijuí, e pela
Clóvis Cabral – É uma narrativa em que Deus Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Cursou mes-
está presente na vida. Deus é o Deus do aqui, trado e doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma
do agora, do já. É uma narrativa que não se -PUG, Itália. Sua dissertação intitulou-se A subjetividade e alteridade em
coloca somente a esperança num Deus que Emmanuel Lévinas, e a tese O homem messiânico em Emmanuel Lévinas. Le-
vai vir, mas num Deus que se faz presente ciona na PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana
aqui. Por isso, se parte de uma crença em - ESTEF, em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, entre as quais citamos
Deus como energia, como força vital. Por- O homem messiânico no pensamento de Emmanuel Lévinas (Porto Alegre:
tanto, temos que viver a vida em abundân-
EST/Vozes, 1984) e Teologia para outro mundo possível (São Paulo: Paulinas,
cia. São narrativas que celebram a presença
2006). É um dos organizadores de Éticas em diálogo: Lévinas e o pensamento
do mistério naquilo que a vida tem, ou seja,
no corpo, no sexo, na dança, na comida, na contemporâneo: questões e interfaces (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003).
bebida, nas relações entre as pessoas, no Em 15 de setembro, Susin ministrará o minicurso Narrar Deus criador,
modo de interferir na sociedade. Não é um hoje, dentro da programação do X Simpósio Internacional IHU: Narrar
Deus que vem, mas é um Deus que já está Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades.
presente. Confira a entrevista.

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IHU On-Line - Como é possível narrar quanto a linguagem narrativa, com suas No outro extremo estaria o que, nos
o Deus Criador hoje? características míticas, tem densidade tempos de Averróis e de Santo Tomás,
Luís Carlos Susin - Depois do Hubble, o de verdade que a ciência não alcança. É chamou-se de “verdades paralelas”,
telescópio fantástico que funciona como narrando que se diz o mistério. admitidas pelo primeiro e contestadas
nosso grande olho sobre o espaço imenso pelo segundo: o que é verdade num âm-
do universo, com suas fotografias que pa- IHU On-Line - Quais são os limites e as bito da realidade não poderia não ser
recem telas de arte contemporânea (ou possibilidades dessa narrativa conside- verdade em outro. Mas isso não impede
a arte se inspira no que aí vemos deslum- rando a secularização, por um lado, e o diferentes enfoques ou, se quisermos,
brados?), narrar a história do universo se retorno ao sagrado, por outro? regiões, da verdade. A doutrina religiosa
tornou simplesmente fascinante. Mas Luís Carlos Susin - Depois de Galileu, e a teologia, de modo específico a teo-
isso não significa ainda narrar que o uni- mas, antes ainda, com Leonardo Da Vin- logia da natureza, buscam o significado
verso é criação divina, que há um Deus ci e os perspectivistas que conseguiram religioso, a presença (ou ausência, pois
Criador com sua mão invisível por trás expressar em diferentes linguagens – na ateus também fazem teologia nesse
ou por dentro do universo. As ciências pintura, na matemática – o espaço físi- sentido), sem pretender explicar como
não desenvolveram e nem lhes compe- co, é necessário manter a distinção de funcionam ou qual a essência das coi-
te desenvolver métodos que provem ou linguagens e de conhecimentos. No sé- sas. Assim, de certa maneira, as mesmas
se deparem com um Deus. Um cientista culo XX, o conhecimento científico do realidades podem ser lidas e compreen-
pode ser agnóstico ou crente, mas isso universo, tanto no macro como no mi- didas em sua condição “secularizada”,
é uma decisão de fé, não uma consta- cro, obrigou ainda mais a perder qual- como objetos disponíveis ao estudo e
tação científica. Para quem crê na ação quer ingenuidade a respeito da mistura ao conhecimento científico, e em sua
criadora de Deus, a narrativa da criação que criou tantos problemas e, inclusive, condição “sagrada”, por sua graça de
ganha sentido dentro das grandes tradi- injustiças. Portanto, a narrativa da cria- existir e o significado que se pode expe-
ções religiosas e literárias, portanto da ção, como o conhecimento científico, rimentar a partir desta graça.
cultura que expressou o sentido da fé, e deve saber o seu lugar, o seu estatuto A reação ou volta “vingativa” do sa-
não propriamente da ciência. de verdade, sem se pretender conheci- grado em tempos de cientificismo pode
Umberto Eco parafraseou Wittgens- mento científico e sem ansiar por buscar ser compreendida por causa da preten-
tein afirmando que “aquilo de que não para si a comprovação das ciências, o são das ciências, que devem também co-
se pode falar, deve-se narrar”. Para falar que continuaria a gerar confusões. nhecer seus limites, mas não justificam,
sobre algo com sensatez, segundo Wit- por exemplo, a forma fundamentalista
pdf (Nota da IHU On-Line)
tgenstein, é necessário ter o controle  Galileu Galilei (1564-1642) físico, matemáti- com que alguns grupos querem ensinar
analítico das palavras, dos juízos, da lin- co, astrónomo e filósofo italiano que teve um o criacionismo no lugar ou ao lado da
guagem. Mas ao lado de suas exigências papel preponderante na chamada revolução teoria da evolução em aulas de ciência.
científica. Desenvolveu os primeiros estudos
epistemológicas, o próprio Wittgenstein sistemáticos do movimento uniformemente A criação pode ser entendida com mais
teve suas aventuras místicas, suas “fu- acelerado e do movimento do pêndulo. Des- justeza nas aulas de literatura, que tam-
gas” do controle analítico. A linguagem cobriu a lei dos corpos e enunciou o princípio bém é uma poderosa forma de dizer a
da inércia e o conceito de referencial inercial,
científica não consegue dizer tudo o que idéias precursoras da mecânica newtoniana. verdade. Aliás, do ponto de vista ético e
se pode narrar a respeito da verdade. Ci- Galileu melhorou significativamente o telescó- estético, ao lado do religioso, a literatura
ência não é sinônimo de verdade, é parte pio refrator e terá sido o primeiro a utilizá-lo das grandes narrativas de criação levam
para fazer observações astronómicas. Com ele
dela. Paul Ricoeur é um bom exemplo do descobriu as manchas solares, as montanhas a posturas éticas que se tornaram urgen-
 Umberto Eco (1932): autor italiano mundial- da Lua, as fases de Vênus, quatro dos satéli- tes em tempos de crise ecológica, tão ou
mente reputado por diversos ensaios univer- tes de Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas mais necessárias do que as ciências.
sitários sobre semiótica, estética medieval, da Via Láctea. Estas descobertas contribuíram
comunicação de massa, linguística e filosofia, decisivamente na defesa do heliocentrismo.
dentre os quais destacam-se Apocalípticos e Contudo a principal contribuição de Galileu IHU On-Line - Que conexões são pos-
Integrados, A estrutura ausente e Kant e o foi para o método científico, pois a ciência síveis de se traçar ligando essa narra-
ornitorrinco. Tornou-se famoso pelos seus ro- se assentava numa metodologia aristotélica
mances, sobretudo O nome da rosa, adaptado de cunho mais abstrato. Por essa mudança de tiva “Deus”, a alteridade e a preser-
para o cinema. A ilha do dia anterior; Baudo- perspectiva é considerado o pai da ciência mo- vação do meio ambiente?
lino e A misteriosa chama da Rainha Loana são (Nota da IHU On-Line)
derna. ��������� Luís Carlos Susin - As ciências avan-
outras de suas obras. (Nota da IHU On-Line)  Leonardo da Vinci (1452–1519) foi um po-
 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês. límata italiano, uma das figuras mais impor- çaram muito em tempos de afirmação
Sobre ele, conferir um artigo intitulado Ima- tantes do Renascimento naquele país, que se da autonomia humana, e contribuíram
ginar a paz ou sonhá-la?, publicado na IHU destacou como cientista, matemático, enge- para ampliar os espaços da autonomia.
On-Line 49ª edição, de 24-02-2003, disponível nheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor,
para download em http://www.ihuonline.uni- arquiteto, botânico, poeta e músico. É ainda  Averróes (1126-1198): filósofo e físico ára-
sinos.br/uploads/edicoes/1161289883.57pdf. conhecido como o precursor da aviação e da be, também conhecido pelo nome de Averróis,
pdf e uma entrevista na 50ª edição, de 10-03- balística. Leonardo frequentemente foi des- um dos maiores conhecedores e comentaristas
2003, disponível para download em http:// crito como o arquétipo do homem do Renasci- de Aristóteles. Aliás, o próprio Aristóteles foi
www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/ mento, alguém cuja curiosidade insaciável era redescoberto na Europa graças aos árabes e os
1161289805.13pdf.pdf. A edição 142, de 23- igualada apenas pela sua capacidade de inven- comentários de Averróis muito contribuíram
05-2005, publicou a editoria Memória sobre ção. É considerado um dos maiores pintores para a recepção do pensamento aristotélico.
Ricoeur, em função de seu falecimento. Con- de todos os tempos, e como possivelmente a Averróis também se ocupou com astronomia,
fira o material em http://www.ihuonline.uni- pessoa dotada de talentos mais diversos a ter medicina e direito canônico muçulmano. (Nota
sinos.br/uploads/edicoes/1158266847.13pdf. vivido. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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Mas a fé é uma postura existencial he- o reconhecimento ético de um criador homenagear Deus e de reconhecê-lo é
terônoma. Evidentemente, explica-se divino no mistério da criação. Dizendo o seu mandamento, mas o mandamento
a exacerbação da autonomia dos su- em termos escolásticos: ninguém nem está dirigido à relação de justiça, por-
jeitos em reação ao excesso anterior nada é “por si mesmo”, ainda que a li- tanto de reconhecimento e de socorro
de heteronomia ou de submissão às berdade seja o momento em que se é aos outros que não tem pão, que estão
autoridades das diversas instituições “por si mesmo”, mas paradoxalmente com a fome corroendo seus estômagos,
“totais”, como a família, a escola, a isso só é possível diante de outros, na e que não tem uma capa para defender
Igreja, o Estado. Por seu caráter de to- relação positiva com outros. Portanto, sua pele do frio – o pobre, o órfão, o mi-
talidade, essas instituições se confun- uma liberdade e uma autonomia só são grante. Deus “vem à ideia” na prática do
diram com o sagrado. E a autonomia possíveis como “responsabilidade”, e a socorro e da justiça, é assim que Lévinas
moderna foi iconoclasta com este tipo responsabilidade é o “ser por si mes- se expressa.
de sagrado e de heteronomia. Ninguém mo” que precisa responder por si dian- Interpretando a importância que
que tenha passado pela experiência do te dos outros: o que faço aos outros, Lévinas deu à sensibilidade antes das
autoritarismo sagrado das instituições antes mesmo de perguntar o que faço ideias, podemos afirmar que Deus bate
está disposto a abdicar da conquista da de mim mesmo, e o que faço de mim na pele antes de vir à ideia, fere o ouvi-
autonomia que a cultura ocidental nos mesmo como resposta aos outros: a do e os olhos, porque sua alteridade está
conquistou arduamente em tempos de responsabilidade é a palavra-chave. no fundo da alteridade de todo outro
modernidade, onde as ciências foram Isso nos leva ao drama do meio am- deslocado e sem casa ou pão, antes de
a “primogênita” e uma das ferramen- biente, que só pode ser bem respondi- estar no fundo da subjetividade. Esta, a
tas mais poderosas de emancipação. do quando se aprende a tratá-lo junto subjetividade, se constitui solidamente
Mas a criança foi junto com a água do ao drama social. É impossível separar só quando se faz casa e pão para outro
banho lançada fora: com essas institui- como duas realidades diferentes e dois – essa maravilha por excelência que ini-
ções dessacralizadas estremece também tratamentos diferentes. Quando São cia toda estética que coincide com éti-
a imagem do divino, e agora Deus só Francisco chamou o sol e o vento, a ca, onde Deus canta o seu salmo – em
pode ser reconhecido a partir de outro água e o ar de “irmãos”, intuiu, poeti- nós, o Criador nas criaturas. Isso se pode
lugar. Acontece que também os outros camente, conforme os salmos, que as narrar, é maravilha do universo.
humanos, as outras culturas e comuni- criaturas e os humanos formam uma
dades humanas acabam se tornando ir- comunidade indissociável. Leia mais...
reconhecíveis quando há uma exacerba- Luiz Carlos Susin já concedeu outras en-
ção do sujeito autônomo. E, ainda mais IHU On-Line - Nesse sentido, como a trevistas e depoimentos à revista IHU On-Line e
difícil, as outras criaturas perdem seu ética de Lévinas se firma na possibi- ao site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
* Uma visão idealista e uma afirmação muito
estatuto de gratuidade e de existência lidade de tornar a narrativa de Deus identitária. Entrevista publicada nas Notícias
própria. Por isso os tempos modernos um “a priori de carne e osso”, para do Dia, em 11-07-2007, disponível para down-
produziram as guerras mais cruéis e a recuperar uma ideia que o senhor load em http://www.ihu.unisinos.br/index.
php?option=com_noticias&Itemid=18&task=deta
maior crise ecológica possível na relação discute em outra entrevista concedi- lhe&id=8278
desigual entre alta tecnologia graças ao da à nossa publicação? * II Fórum Mundial de Teologia e Libertação. En-
desenvolvimento das ciências e baixíssi- Luís Carlos Susin - A afirmação dos “a trevista publicada nas Notícias do Dia, em 09-02-
2007, disponível para download em http://www.
mo reconhecimento ético dos outros, de priori’s” é de tradição kantiana, que já ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&
todo outro. Hegel criticava em um aspecto: eram Itemid=18&task=detalhe&id=4672
universais abstratos, faltava-lhes a den- * Depoimento sobre a notificação do Vaticano a
Jon Sobrino, publicado nas Notícias do Dia, em
Responsabilidade: palavra-chave sidade da realidade concreta. Ele foi 15-03-2007, disponível para download em http://
buscar um exemplo máximo de “univer- www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_not
A reação e a recuperação também sal concreto” no centro da tradição cris- icias&Itemid=18&task=detalhe&id=5783
* A vivacidade das experiências de chegada e en-
podem ser felizmente constatáveis. tã, ou seja, Jesus, que é – na confissão contro com Cristo na história gaúcha. Entrevista
Não é um bom sinal onde isso come- cristã – Deus em carne e osso, portanto o publicada na IHU On-Line nº 238, de 01-10-2007,
ça pela religião, quando se apela em mais singular e o mais universal. Lévinas disponível para download em http://www.ihuon-
line.unisinos.br/index.php?option=com_desta-
primeiro lugar para Deus. Certamente era um pensador judeu, e sua filosofia ques_semana&Itemid=24&task=detalhes&idnot=7
ele é o “primeiro outro”, aquele do pri- bebe da tradição bíblica: a forma de 30&idedit=10
meiro mandamento de amor, portanto * Teologia da Libertação e Aparecida: realmente
 São Francisco de Assis (1181-1226): frade uma volta ao fundamento?. Entrevista concedi-
de reconhecimento, mas na prática é o católico, fundador da “Ordem dos Frades Me- da por Erico Hammes e Luís Susin à IHU On-Line
segundo que torna o primeiro verdadei- nores”, mais conhecidos como Franciscanos. nº 261, de 09-07-2008, disponível para downlo-
Foi canonizado em 1228 pela Igreja Católica. ad em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
ro: o reconhecimento social dos outros Por seu apreço à natureza, é mundialmente php?option=com_destaques_semana&Itemid=24&ta
e o reconhecimento da necessidade conhecido como o santo patrono dos animais sk=detalhes&idnot=1105&idedit=10
de relações de reciprocidade e até de e do meio ambiente. Sobre Francisco de Assis * Alteridade: um a priori de carne e osso. Entrevis-
confira a edição 238 da IHU On-Line, de 01-10-
������� ta concedida à IHU On-Line nº 277, de 14-10-2008,
dom de si de forma “irrecíproca” – mais 2007, intitulada Francisco. O santo, disponível disponível para download em http://www.ihuonline.
amando do que se importando em ser para download em http://www.ihuonline.uni- unisinos.br/index.php?option=com_destaques_semana
amado -, que abre espaço também para sinos.br/uploads/edicoes/1191270143.68pdf. &Itemid=24&task=detalhes&idnot=1105&idedit=10
pdf. (Nota da IHU On-Line)

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O budismo e o “silêncio sobre Deus”
Erroneamente definido como tradição ateia e niilista, budismo se cala sobre Deus e
questiona as “tentativas ilusórias e problemáticas que acompanham as tradicionais
perguntas sobre Deus”, escreve Faustino Teixeira

Por Márcia Junges

N
em ateu, nem niilista. Esses adjetivos são incorretos para se entender o budismo, que
advoga o “silêncio sobre Deus” como uma maneira de questionar as “tentativas ilusórias e
problemáticas que acompanham as tradicionais perguntas sobre Deus: muitas vezes são per-
guntas incorretas, indevidas e lesivas da “‘transcendência da realidade à qual se referem’”,
sinaliza o teólogo Faustino Teixeira na entrevista que concedeu, com exclusividade, por
e-mail, à IHU On-Line. Analisando a Escola de Kyoto e suas relações com o pensamento existencialista
e a mística cristã do Mestre Eckhart, Faustino diz que na tradição zen budista “a noção de vazio ganha
centralidade. Pode-se afirmar que a presença do Mistério firma-se mais claramente no ser humano
à medida que se amplia o seu vazio: nada querer, nada saber e nada ter”. Ele continua: “A tradição
oriental enfatiza mais o apofatismo teológico, excluindo assim a possibilidade de se alcançar o Mistério
mediante conceitos. A mediação para esse encontro se dá pela experiência. Uma conhecida sentença
zen afirma: ‘melhor ver a face do que ouvir o nome’. Encontramos uma expressão desse apofatismo na
experiência budista do sunyata (vazio). Esse conceito vem empregado como expressão da inefabilidade
e indizibilidade da realidade do Mistério. Não indica niilismo ou relatividade, mas a radical diversidade
que separa esse Mistério de todo e qualquer atributo possível de ser concretizado ou simbolizado”.
Graduado em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, Minas Gerais,
Faustino é teólogo, pesquisador do ISER-Assessoria do Rio de Janeiro e consultor da Capes. É pós-
doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana - PUG, Itália, doutor em Teologia pela mesma univer-
sidade, com tese intitulada A fé na vida: um estudo teológico-pastoral sobre a experiência das CEBs
no Brasil, mestre em Teologia pela PUC-Rio, com a dissertação A gênese das comunidades eclesiais
de base no Brasil e graduado em Filosofia e em Ciências da Religião pela UFJF. Entre suas obras pu-
blicadas, destacamos: A fé na vida: um estudo teológico-pastoral sobre a experiência das CEBs no
Brasil (São Paulo: Loyola, 1987); A gênese das CEBs no Brasil (São Paulo: Paulinas, 1988); Teologia da
Libertação: Novos desafios (São Paulo: Paulinas, 1991). Ele é organizador de No limiar do mistério.
Mística e Religião (São Paulo: Paulinas, 2004) e Nas teias da delicadeza. Itinerários místicos (São
Paulo: Paulinas, 2006). Em breve será lançado seu mais novo livro, pela Editora Vozes, que organizou
junto com Renata Menezes, cujo tema é o catolicismo plural.
Em 16 de setembro, Faustino falará sobre A narrativa de Deus nas religiões não monoteístas, mi-
nicurso que faz parte da programação do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade
pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, marcado para 14 a 17 de setembro, no campus da
Unisinos. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as narrativas separação rígida, que excluiria qual- da descoberta do Mistério maior acon-
de Deus nas religiões não monoteís- quer significado profético nas religi- tece no “íntimo do Si substancial”. A
tas? ões orientais ou dimensão mística nas tradição oriental enfatiza mais o apo-
Faustino Teixeira - Alguns autores religiões proféticas. O caminho para fatismo teológico, excluindo assim a
tendem a indicar essas tradições não se atingir a “Realidade” nas religiões possibilidade de se alcançar o Mistério
monoteístas como religiões místicas, orientais é encontrado na interiorida- mediante conceitos. A mediação para
distinguindo-as das religiões mono- de. Trata-se de uma busca do Mistério esse encontro se dá pela experiência.
teístas, identificadas como proféti- desconhecido na “gruta do coração”. Uma conhecida sentença zen afirma:
cas. Esta distinção, porém, não nos A ênfase recai no caminho do “êntase” “melhor ver a face do que ouvir o
autoriza a concluir em favor de uma e não do “êxtase”, ou seja, o caminho nome”. Encontramos uma expressão
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desse apofatismo na experiência bu- tual do mundo com uma perspectiva
dista do sunyata (vazio). Esse conceito “A religião da Índia japonesa renovada e reacenderam a
vem empregado como expressão da questão da dimensão espiritual da fi-
inefabilidade e indizibilidade da rea- caracteriza-se por fazer losofia”. Uma contundente crítica ao
lidade do Mistério. Não indica niilismo conceito egocêntrico do ego, firmado
ou relatividade, mas a radical diversi- da experiência mística na racionalidade filosófica ocidental,
dade que separa esse Mistério de todo vem tecida por Keiji Nishitani, em sua
e qualquer atributo possível de ser a verdadeira base da obra A religião e o nada (1960). A cen-
concretizado ou simbolizado. Na místi- tralidade do ego cogito, a partir de
ca advaita hindu, a dinâmica religiosa religião’. É no âmbito Descartes, resultou numa tal dinâmica
vem concebida como uma experiência ego-centrada que confinou o sujeito
kenótica, de radical esvaziamento do da mística que acontece numa limitada perspectiva de autoi-
sujeito humano e seu potenciamen- manência. Como consequência ine-
to para perceber a transparência do a contribuição decisiva vitável, firmou-se um modo narcísico
Mistério transcendente/imanente no de ser. Com base no aporte da tradi-
mundo dos fenômenos. O sujeito esva- dessas tradições ção budista e da mística eckhartiana,
ziado de sua densidade ontológica re- Nishitani propõe um conceito peculiar
encontra sua identidade com o Brah- religiosas: são ‘escolas’ de subjetividade, que se contrapõe à
man, que pode ser reconhecido como subjetividade do ego: trata-se de uma
“a unidade última da realidade. É o singulares do cultivo da subjetividade que se afirma em razão
centro profundo da nossa existência, da morte absoluta do ego. É curioso
isto é, a consciência (cit), e também mística” constatar a sintonia dessa reflexão de
a alegria e a bem aventurança (anan- Nishitani com os questionamentos fei-
da)”. tos por Henrique Cláudio de Lima Vaz
É nesse âmbito de profundidade que à modernidade moderna. Em sua obra
IHU On-Line - O que os monoteísmos podem acontecer, substantivamente, sobre a experiência mística e filosófi-
podem aprender com essas religiões, o “enriquecimento recíproco e coo- ca na tradição occidental, Vaz sinaliza
sobretudo no que diz respeito ao di- peração fecunda” entre as distintas que a revolução antropocêntrica da
álogo inter-religioso? tradições religiosas, no sentido da afir- filosofia moderna acabou resultando
Faustino Teixeira - Um traço pecu- mação e preservação dos valores e dos na “dissolução da inteligência espiri-
liar que envolve as tradições religio- ideais espirituais mais sublimes do ser tual”. Na inflexão noética da moderni-
sas não monoteístas, em particular as humano. dade moderna, marcada pela primazia
tradições do Oriente, é a ênfase dada gnosiológica e ontológica do sujeito,
no caminho místico. O estudioso das IHU On-Line - O que é a Escola de a dimensão transcendente do ser vem
religiões, R.C. Zaehner, apontou, com Kyoto e como a sua visão de mundo absorvida na imanência do sujeito.
acerto, que “a religião da Índia carac- provoca uma quebra da hegemonia
teriza-se por fazer da experiência mís- da racionalidade grega e ocidental? IHU On-Line - Em que aspectos existe
tica a verdadeira base da religião”. É Faustino Teixeira - A Escola de Kyo- uma afinidade entre a Escola de Kyo-
no âmbito da mística que acontece a to, ou Kyoto-ha, envolve um grupo to, o pensamento existencialista e a
contribuição decisiva dessas tradições de pensadores japoneses que contri- mística cristã do Mestre Eckhart?
religiosas: são “escolas” singulares do buíram de forma singular, e em pers- Faustino Teixeira - Os pensadores da
cultivo da mística. Podemos sublinhar pectiva oriental, para a articulação Escola de Kyoto dedicaram-se intensa-
traços importantes como a atenção criativa da filosofia ocidental. Entre mente ao estudo da filosofia ocidental.
dada à experiência, o incentivo ao esses pensadores podem ser elenca- Nishitani chegou a seguir, em 1938, os
desapego, o cultivo da interioridade, dos: Nishida Kitaro (1870-1945), Tana- seminários de Heidegger sobre Nietzs-
a ruptura da arrogância e da hybris be Hajime (1885-1962), Nishitani Keiji che em Friburg. Também Ueda Shizu-
totalitária, a abertura ao Mistério do (1900-1990) e Ueda Shizutero (1926). teru teve uma formação alemã, pas-
Real. Vale ressaltar, seguindo a tri- Segundo James Heisig, a investigação sando três anos na Universidade de
lha do clássico documento Diálogo e filosófica levada a cabo por esses pen- Marburg, sob a orientação de Friede-
Missão (1984), do Secretariado para  James W. HEISIG. Filosofia como espiritu-
sadores “nunca se separou do cultivo alidade: o caminho da Escola de Quioto. In:
os não-cristãos, que é no âmbito do da consciência humana como partici- Takeuchi YOSHINORI (Org.) A espiritualidade
diálogo das experiências de oração e pação no real. Inspirando-se na filoso- budista. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 377
contemplação – dos caminhos de busca (v.2). ����������������������
(Nota do entrevistado)
fia antiga e moderna ocidental, bem Keiji NISHITANI. La religione e il nulla.
������������������
do Mistério -, que se dá o nível mais como em sua própria herança budista, Roma: Città Nuova, 2004, pp. 107s. (Nota
���������
do
profundo do diálogo inter-religioso. e aliando as exigências do pensamento entrevistado)
 Henrique C. de LIMA VAZ. Experiência místi-
Raimon PANIKKAR. Iniziazione ai Veda. ���
������������������ Mi-
crítico à busca da sabedoria religiosa, ca e filosofia na tradição ocidental. São Paulo:
lano: Servitium, 2003, p. 92. (Nota do entre- eles enriqueceram a história intelec- Loyola, 2000, pp. 19 e 42. (Nota do entrevis-
vistado) tado)

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rich Heiler e Ernst Benz. Ali concluiu mente o grande pensador Daisetz Tei- da Cruz (1542-1591) assinala em seu
sua tese doutoral sobre a antropologia taro Suzuki, que também manteve um Cântico Espiritual que Deus é uma
mística de Meister Eckhart em con- rico relacionamento com Nishida Kita- “ilha estranha”: estranha aos homens,
fronto com o zen budismo (tese publi- ro. Há um capítulo específico em sua aos santos e aos anjos (CB 14,8), e que
cada em 1965). Fixo-me aqui em dois Introdução ao zen-budismo (1969) so- nenhum intermediário consegue dar a
aspectos de sintonia entre a Escola de bre esta questão. Há também uma lar- notícia de seu significado: “não sabem
Kyoto e a mística de Meister Eckhart. ga reflexão a propósito no terceiro vo- dizer-me o que desejo” (CB 6). Assim
Com base no pensamento de Nishita- lume de seus ensaios sobre o budismo é na mística cristã, mas também nas
ni, há que sublinhar a centralidade da zen (1940). É captar de forma superfi- outras tradições místicas. A linguagem
ideia de Abgeschiedenheit (despren- cial ou equivocada a noção central de mística “enuncia a ausência como pre-
dimento), tomada do pensamento de sunyata ou vacuidade nessa tradição sença e a presença como ausência”,
Eckhart. Esse conceito é empregado espiritual. O que o budismo zen ensina sempre recusando qualquer palavra
por Nishitani para falar da subjetivi- sobre o vazio é bem diferente: não se supérflua sobre o Mistério sempre
dade elemental, ou seja, da subjeti- trata de negar a existência ou o seu maior. Com respeito ao budismo, não
vidade que emerge da morte absoluta valor, mas de apontar para além de se pode defini-lo como uma tradição
do ego, e que faculta a experiência da sua realidade, ou melhor ainda, para ateia, como alguns defendem de forma
unidade com Deus. Assim como na tra- a “outra orelha da realidade” e cap- equivocada. O que ocorre é um “silên-
dição zen budista, também no pensa- tar o fato central da vida. Não se trata cio sobre Deus”. A esse respeito gosto
mento de Eckhart a noção de vazio ga- de negação em sentido lógico, mas de sempre de citar uma passagem pre-
nha centralidade. Pode-se afirmar que extremo cuidado em “preservar a con- ciosa do livro de Juan Martin Velasco10
a presença do Mistério firma-se mais dição misteriosa do último”. Trata-se sobre o Fenômeno místico (1999)11.
claramente no ser humano à medida da “negação como cifra da transcen- Para ele, “o silêncio de Deus que o
que se amplia o seu vazio: nada que- dência”. Como mostra Suzuki, “Buda Buda tão consequentemente pratica
rer, nada saber e nada ter. Trata-se de revela-se a si mesmo quando não é é a forma mais radical de preservar a
um desprendimento que é bem distin- mais afirmado. Para encontrar o Buda condição misteriosa do último, o su-
to da ataraxia. Na verdade, o ser des- temos que renunciar ao Buda. Este é premo, a que toda religião aponta”.
prendido é alguém que se abre de for- o único caminho para obter a verdade Ao se calar sobre Deus, essa tradição
ma distinta para a realidade, pois para do Zen”. está questionando as tentativas ilusó-
ele “toda realidade reencontra sua rias e problemáticas que acompanham
densidade verdadeira”. O outro traço IHU On-Line - A recusa de uma “pa- as tradicionais perguntas sobre Deus:
de sintonia pode ser encontrado na lavra supérflua sobre Deus”, que muitas vezes são perguntas incorretas,
noção transpessoal de Deus. Nishitani explica o fato de se calar sobre Ele, indevidas e lesivas da “transcendência
sublinha como um dos aspectos de ori- aproxima o budismo da filosofia de da realidade à qual se referem”.
ginalidade do pensamento de Eckhart, Wittgenstein, com as categorias do
a noção de Deidade: situar a essência silêncio e do inefável?  João de Yepes ou São João da Cruz (1542-
de Deus numa região para além do Faustino Teixeira - Num de seus clássi- 1591): ingressou na Ordem dos Carmelitas aos
Deus pessoal, ou o Deus das criaturas. cos dísticos do Peregrino Querubínico, 21 anos de idade, em 1563, quando recebe o
nome de Frei João de São Matias, em Medina
Também nessa linha da transpersonali- o místico Angelus Silesius (1624-1677) del Campo. Em setembro de 1567 encontra-se
dade de Deus vai a reflexão da Escola dizia que “nenhuma criatura sonda a com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala sobre
de Kyoto. Enfatiza-se a ideia de um Divindade” (PQ V,339). Também João o projeto de estender a Reforma da Ordem
Carmelita também aos padres. Aceitou o desa-
Deus transcendente e imanente: de fio e trocou o nome para João da Cruz. No dia
Deus como realidade onipresente em  Daisetz Teitaro Suzuki (1870-1966) foi um 28 de novembro de 1568, juntamente com Frei
todas as coisas do mundo e, simulta- famoso autor japonês de livros sobre Budismo, Antônio de Jesús Heredia, inicia a Reforma.
Zen e Jodo Shinshu responsável em grande No dia 25 de janeiro de 1675 foi beatificado
neamente, um mistério que escapa a parte pela introdução destas filosofias no oci- por Clemente X. Foi canonizado em 27 de de-
qualquer tentativa de determinação. dente. Suzuki também foi um prolífico tradu- zembro de 1726 e declarado Doutor da Igreja
tor de literatura chinesa, japonesa e sânscri- em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi proclamado
ta. Passou vários períodos longos ensinando ou “Patrono dos Poetas Espanhóis”. Sua festa é
IHU On-Line - Como compreende a dando palestras em universidades do ocidente comemorada no dia 14 de dezembro. (Nota da
acusação de que o budismo é niilista e devotou vários anos a seu professorado numa IHU On-Line)
ao projetar um além nunca alcançá- universidade budista japonesa, Otani. (Nota 10 Juan Martín Velasco, filósofo e sacerdote
da IHU On-Line) diocesano de Madri, é profesor de Fenomeno-
vel ao homem?  Daisetz Teitaro SUZUKI. Introdução ao zen logía da Religião na sede madrilenha da Uni-
Faustino Teixeira - Contra essa ab- budismo. São Paulo: Pensamento, p. 76. (Nota versidad Pontificia de Salamanca, é especialis-
surda acusação, posicionou-se critica- do entrevistado) ta em temas relacionados com a mística. Entre
 Angelus Silesius: pseudônimo de Johannes outros trabalhos, publicou Hacia una filosofía
 Mestre Echardo (Meister Eckhart — 1260- Scheffler (1624-1667), poeta germânico, místi- de la religión cristiana (1970), El encuentro
1327), originário dos Echardos de Hackheim, co cristão, filósofo, médico, poeta, jurista. Es- con Dios, una interpretación personalista de
foi membro da ordem dominicana, estudou em tudou em Estrasburgo, Leyden e Padova. Autor la religión (1997) e La transmisión de la fe en
Paris, veio a ser mestre em Teologia, ocupou de O Peregrino Querubínico, livro que reúne la sociedad contemporánea (2003). (Nota da
mais tarde uma posição de relevância na sua dísticos alexandrinos rimados. Silesius foi tam- IHU On-Line)
ordem visitando, por isso, vários conventos. bém um grande expoente da poesia barroca 11 Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico.
(Nota da IHU On-Line) alemã. (Nota da IHU On-Line) Madrid: Trotta, 1999. (Nota do entrevistado)

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IHU On-Line - O que o Ocidente pode “Com base no aporte da bre o Zen e as aves de rapina (1968),
aprender com a compreensão budis- há um capítulo dedicado ao pensamen-
ta do caminho que “vai do eu ao si tradição budista to de Nishida. Para o místico trapista,
mesmo”? Como essa passagem pode Nishida revela-se como um autêntico
tornar o sujeito pós-moderno menos e da mística filósofo zen. Merton indica que essa
orgulhoso e arrogante, menos preso inversão do cartesianismo, provocada
ao desejo e, por conseguinte, ao so- eckhartiana, Nishitani pela Escola de Kyoto, traduz uma nova
frimento? atenção ao real. O caminho essencial
Faustino Teixeira - Ao escrever o pre- propõe um conceito vai do ser ao pensar e não o contrário.
fácio à obra de Suzuki, A grande li- Nishida vai conferir uma importância
bertação, Carl Gustav Jung12 aborda a
distinção entre o eu e o si mesmo. O si
peculiar de central à ideia de “consciência pura”,
que é ponto de partida para qualquer
mesmo traduz uma compreensão mais
elevada do eu, agora despojado de seu
subjetividade, que se despertar filosófico. Trata-se de uma
atenção particular ao caráter trivial
apego a si e às coisas. Daí ser necessá-
rio trabalhar a ideia de si mesmo como
contrapõe à da experiência, que antecede qual-
quer distinção entre sujeito e objeto.
um não eu. Essa passagem de nível vem
observada na experiência da ilumina-
subjetividade do ego: O que ocorre com a consciência pura
é um refinado fenômeno de consciên-
ção (satori). Trata-se “de uma rup-
tura e uma passagem da consciência
trata-se de uma cia, que confere prioridade ontológica
ao mundo. É evidente que essa pers-
limitada na forma do eu para a forma
do si-mesmo que não tem um eu. Essa
subjetividade que se pectiva inspira um posicionamento
que é novo e problematizador. Há que
concepção corresponde ao zen, bem
como à mística do mestre Eckhart”13.
afirma em razão da lidar com o mundo e com a natureza
de outra forma; há que conceder uma
Essa mudança de perspectiva vem
também trabalhada por Nishitani, ao
morte absoluta do ego. atenção particular ao que é vivido e
experimentado.
abordar o significado da subjetividade
elemental, ou seja, a subjetividade
É curioso constatar a
que emerge da morte do ego. A chave
de compreensão dessa passagem do eu
sintonia dessa Leia mais...

ao si mesmo pode ser encontrada no


clássico sermão de Benares,14 ocorrido
reflexão de Nishitani Confira outras entrevistas concedidas por
Faustino Teixeira à IHU On-Line.

logo após a iluminação de Buda, onde


se fala das quatro nobres verdades. Ali
com os - Mística comparada: semelhanças na diferença.
IHU On-Line número 133, de 21-03-2005, dispo-
nível no link http://www.ihuonline.unisinos.br/
se diz que na raiz de todo sofrimento
está o “anseio compulsivo pelas coi-
questionamentos feitos uploads/edicoes/1158267172.22pdf.pdf
- John Hick, teologia cristã e pluralismo religio-
sas da vida”, o apego desestabilizador
(tanha). Só mediante a superação des-
por Henrique Cláudio de so: o arco-íris das religiões. IHU On-Line número
162, de 31-10-2005, disponível no link
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
se apego, mediante o nobre caminho
óctuplo, é que se abrem as veredas da
Lima Vaz à modernidade edicoes/1158347849.66pdf.pdf

iluminação. moderna” Confira outros artigos de Faustino Teixeira publi-


cados pela IHU On-Line.
IHU On-Line - De que forma a inver- - O temor do reconhecimento da alteridade. IHU
são do cartesianismo promovida por como lida com sua espiritualidade e On-Line número 131, de 07-03-2005, disponível
no link http://www.ihuonline.unisinos.br/uploa-
Thomas Merton (existo, logo penso) racionalidade? ds/edicoes/1158266859.61pdf.pdf
pode inspirar um novo posiciona- Faustino Teixeira - É sabido o influ- - O desafio de acessar a dimensão de profundida-
mento do sujeito em relação à forma xo da perspectiva zen budista sobre o de do cristianismo. IHU On-Line número 209, de
18-12-2006, disponível no link
12 Carl Gustav Jung (1875-1961): psiquiatra pensamento de Thomas Merton. Mas http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
suíço. Colega de Freud, Jung estudou medici- há também que sublinhar a presença php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
na e elaborou estudos no campo da psicologia,
discutindo os conceitos de introversão e extro-
de Nishida Kitaro em sua reflexão. Na etalhe&id=218

versão. (Nota da IHU On-Line) clássica obra de Thomas Merton15 so-


13 Carl Gustav JUNG. Psicologia e religião 15 Thomas Merton (1915-1968): monge cató-
oriental. São Paulo: Círculo do Livro, p. 78. lico cisterciense trapista, pioneiro no ecume- sementes de contemplação (Rio de Janeiro:
(Nota do entrevistado) nismo no diálogo com o budismo e tradições Fisus, 1999). O livro foi editado por Patrick
14 Benares é uma cidade do estado de Uttar do Oriente. O livro Merton na intimidade - Sua Hart, também monge e colaborador de Mer-
Pradesh, na Índia. Localiza-se nas margens do Vida em Seus Diários (Rio de Janeiro: Fisus, ton. Na matéria de capa da edição 133 da IHU
Ganges. Tem cerca de dois milhões de habitan- 2001), é uma seleção extraída dos vários vo- On-Line, de 21-03-2005, publicamos um artigo
tes. É uma das mais antigas cidades do mun- lumes do diário de Thomas Merton, autor de de Ernesto Cardenal, discípulo de Merton, que
do e a mais sagrada cidade da religião hindu. livros famosos como A Montanha dos Sete Pa- fala sobre sua relação com o monge. (Nota da
(Nota da IHU On-Line) tamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas IHU On-Line)

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O cristianismo como estilo
Teólogo alemão Christoph Theobald reflete sobre o cristianismo em entrevista pu-
blicada pela revista francesa Lumière & Vie

C
hristoph Theobald nasceu em 1946, em Köln (Colônia), e começou seus estudos em Bonn
antes de ir ao Instituto Católico de Paris e ingressar na Companhia de Jesus. Após uma tese
sobre Maurice Blondel e o problema da modernidade, ele se torna professor de teologia
fundamental e dogmática nas faculdades jesuítas do Centre Sèvres, em Paris. Ele é redator-
chefe da revista Recherches de science religieuse e colabora na revista Études. Entre suas
obras, assinalamos A revelação (La Révélation col. Tout simplement, Atelier, 2001) e Transmitir um
Evangelho de liberdade (Transmettre un Évangile de liberte, Bayard, 2007). Ele é autor também de Le
Christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie em postmodernité (Cerf: Paris, 2007:
Volumes I e II). Em português, durante o X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade
pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, lançará o livro Transmitir um Evangelho de liberdade
(São Paulo: Loyola, 2009) nesta quarta-feira, 16 de setembro, das 18h às 19h30min. De acordo com
Theobald, quando fé e palavra se juntam de modo que se demonstrem verdadeiras, a transmissão deste
Evangelho de liberdade torna-se possível. Nessa mesma data, apresenta a conferência O cristianismo
como estilo e a narrativa de Deus numa sociedade pós-metafísica, dentro da programação do X Simpósio
Internacional IHU.
A entrevista a seguir foi concedida originalmente à revista Lumière & Vie, da França, e nos foi
enviada pelo entrevistado. Reproduzimos a entrevista, traduzida, mantendo a estrutura e notas de
rodapé. Os subtítulos são nossos. Confira a entrevista.

Lumière & Vie - Você nasceu em Co- de teologia fundamental, homem que da estética de Balthasar, ou ainda a
lônia, mas adotou a cultura francesa. sabia nos comunicar sua honestidade teologia da esperança de Moltmann.
Como você exprime hoje a dualida- intelectual: Heinrich Schlier, cujo Não se hesitava em fazer peregrina-
de franco-alemã em teologia? Existe ensino sobre a Epístola aos Romanos ções a Münster, por exemplo, para
uma espiritualidade inaciana france- continua sendo uma fonte inesgotável escutar Rahner e Thüsing discutirem
sa do estudo teológico, um “estilo” para mim; ou ainda o moralista Franz cristologia. Uma espantosa mescla de
próprio? Böckle, cuja coragem nos debates éti- modéstia e de ambição nos era assim
Christoph Theobald - Sou, sem dúvi- cos da sociedade alemã suscitava nos- insuflada. As notas de pé de página de
da, muito marcado por minha forma- sa admiração. Em seus “seminários” ou suas obras são disso uma viva ilustra-
ção teológica, iniciada na universida- “círculos” se aprendia principalmente ção: nada é avançado sem se apoiar
de de Bonn nas vésperas do Concílio a arte do debate, por vezes estimulada nos predecessores ou colegas, nem
Vaticano II (em abril de 1966). Nossos pela presença de amigos da faculdade sem discutir com eles ou trazer algo
professores nos iniciavam numa sóli- protestante na mesma universidade. novo, visando o “todo” da fé de forma
da cultura histórica em teologia e nos Grandes obras emergiam da neces- um pouco diversa.
davam o sentido da continuidade da sária aprendizagem escolar da teolo-
pesquisa, devendo cada geração tra- gia e nos lembravam sua visão espe- (notadamente os Escritos teológicos, 12 vol.
em trad. fr. [e port.], e o Tratado fundamental
zer sua própria pedra ao edifício do culativa, herdada do idealismo alemão da fé, que desenvolve a ideia da autocomu-
intellectus fidei que nos ultrapassava e da escola de Tübingen: Os Escritos nicação de Deus ao homem em Jesus Cristo).
a todos. A distinção facultativa entre (Écrits) de Rahner, o primeiro tomo (Nota da Lumière & Vie)
 Hans Urs von BALTHASAR (1905-1988) é au-
cátedras favorecia a formação de cír-  SCHLIER, Heinrich (1900-1978) ensinou tor de uma obra teológica imensa e, em par-
culos de alunos em torno de determi- exegese e teologia em Marburgo e depois em ticular, de uma trilogia em 17 volumes: A gló-
nado professor (“Schülerkreis”) que se Bonn. Convertido ao catolicismo em 1953, foi ria e a cruz. Aspectos estéticos da Revelação
membro da Comissão bíblica pontifícia. São (1961-1969), A dramática divina (1973-1983),
reuniam regularmente em sua casa. disponíveis em francês alguns Ensaios sobre e Teológica. (Nota da Lumière & Vie)
Lembro-me de alguns de meus mes- o Novo Testamento (Cerf, Lectio divina 46,  MOLTMANN, Jürgen (nascido em 1926) é no-
tres: Heimo Dolch, discípulo de Hei- 1968). (Nota da Lumière & Vie) tadamente o autor de uma Teologia da espe-
 RAHNER, Karl (1904-1984), jesuíta, foi ex- rança (1964), inspirada no Princípio esperança
senberg, convertido ao catolicismo, pert na Comissão teológica do concílio Vati- de Ernst Bloch, bem como do Deus crucifica-
tornado padre e, finalmente, professor cano II e um dos fundadores da revista Con- do (1972), e de A Igreja na força do Espírito
cilium. Ele publicou numerosíssimas obras (1975). (Nota da Lumière & Vie)

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Laboratório vivo da teologia alemã ritualidade inaciana e na Companhia ais, estipulando que, “mesmo suposto
de Jesus francesa: um corpo social e como adequado, o pensamento é he-
Eis o que era o laboratório vivo de indivíduos que procuram se situar terogêneo à ação e não a supre”.
da teologia alemã quando comecei a de maneira apostólica na história e na
aprender meu ofício; e eis o que ela cultura, inventando, dia por dia, seu Lumière & Vie - Sua primeira grande
ainda é, sem dúvida diversamente, futuro com Deus no seio da Igreja, re- obra em alemão apontava justamen-
segundo o testemunho de meu irmão alizando sua história na perspectiva de te para Maurice Blondel e sua contri-
Michael, professor de exegese bíblica uma contínua refundação. buição à teologia fundamental. Mas,
na faculdade de Tübingen. Um texto de Miguel de Certeau se era também uma obra muito crítica
Então, vós direis, por que ter dei- tornou decisivo para minha própria sobre sua relação com a moderni-
xado este mundo? Em 1968, por oca- maneira de fazer teologia: “O livreto dade, e sua dificuldade de integrar
sião de minha primeira estadia no dos Exercícios espirituais é um tex- a pluralidade de convicções axiais.
Instituto Católico de Paris, eu enten- to feito para uma música e diálogos Esta dificuldade vinha do temor do
dera bem que o solo cultural e eclesial que ele não dá. Ele se coordena num modernismo?
sumia sob nossos passos. Uma inquie- “hors-texte” que é, no entanto, es- Christoph Theobald - O modernismo
tude interior em relação ao futuro do sencial. Ele também não toma o lugar (1893-1914) pode ser definido como
cristianismo se apossara de mim, sem deste essencial. Ele não se substitui às a entrada de uma nova prática histó-
que tenha encontrado ressonância em “vozes” 10. Um Maurice Blondel11 teria rica e mais globalmente das ciências
meu universo de origem. Dois aspectos sem dúvida subscrito esta fórmula; ele humanas nascentes no universo cató-
da teologia francesa, novos para mim, que se tornara a referência filosófica lico. A crise que esta entrada provo-
começavam por me fascinar: seu en- da ação social dos cristãos na socie- cou era de uma rara violência porque
raizamento pastoral numa Igreja mar- dade e que muito se interessara pela o catolicismo integral e intransigente
cada pela Ação católica e sua relação prática efetiva dos exercícios espiritu- não podia aceitar um olhar externo so-
com uma tradição espiritual que eu bre ele, olhar que o obrigava a fazer a
 Michel de Certeau (1925-1986): intelectual
descobria lendo Morel sobre são João jesuíta francês. Foi ordenado na Companhia diferença entre o que ele representa
da Cruz, Gaston Fessard sobre santo de Jesus em 1956. Em 1954 tornou-se um dos numa sociedade em via de laicização
Inácio, e Jean-François Six sobre a pe- fundadores da revista Christus, na qual esteve – produção religiosa entre outras -, e
envolvido durante boa parte de sua vida. Le-
quena Teresa. cionou em várias universidades, entre as quais o que ele diz, a partir de sua fé, dele
Por certo estou hoje mais do que Genebra, San Diego e Paris. Escreveu diver- mesmo e do mundo no qual ele vive.
nunca consciente dos limites desta sas obras, dentre as quais La Fable mystique: Sem dúvida, esta diferença era difícil
XVIème et XVIIème siècle (Paris: Gallimard,
dupla tradição, sempre ameaçada por 1982); Histoire et psychanalyse entre science de estabelecer em razão de um “po-
uma desconfiança em face do traba- et fiction (Paris: Gallimard, 1987); La prise sitivismo” latente, tanto do lado da
lho intelectual gratuito, tradição mais de parole. Et autres écrits politiques (Paris: dogmática católica da época como do
Seuil, 1994). Em português, citamos A escrita
eclética e ensaísta, mais preocupada da história (Rio de Janeiro: Forense Universi- lado das sociedades europeias, todas
com uma pesquisa contínua e menos tária, 1982) e A invenção do cotidiano (3ª ed. sob o empreendimento de uma vonta-
propícia ao debate, sobretudo, quan- Petrópolis: Vozes, 1998). Sobre De Certeau, de hegemônica de controle das evolu-
confira as entrevistas Michel de Certeau ou a
do a fragilidade crescente corre o erotização da história, concedida por Elisabe- ções da cultura pela doutrina ou pela
risco de ser coberta por uma intelec- th Roudinesco, e As heterologias de Michel de ciência.
tualidade mundana. Mas, no fundo, o Certeau, concedida por Dain Borges, ambas A corrente da teologia liberal, com
à edição 186 da IHU On-Line, de 26-06-2006,
sonho de Johann Baptist Metz de uma disponíveis para download na página do IHU, a qual o magistério confundia o mo-
teologia como “biografia” individual e http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ dernismo, também sob influência,
coletiva, eu a vejo realizada na espi- edicoes/1158344480.87pdf.pdf. As mesmas situava o essencial da fé no plano da
entrevistas podem ser conferidas na edição
 Cf. MOREL, G., O sentido da existência se- 14 dos Cadernos IHU em Formação, intitula- afetividade e do sentimento religioso,
gundo são João da Cruz, Aubier, 3 vol., 1960- do Jesuítas. Sua identidade e sua contribuição esboçando já o que se chama hoje o
1961. (Nota da Lumière & Vie) para o mundo moderno, disponível para down- “cristianismo emocional”, que se for-
 Cf. FESSARD, Gaston, s.j. (1897-1978), gran- load em http://www.ihu.unisinos.br/uploads/
de leitor de Hegel e autor de A dialética dos publicacoes/edicoes/1184009586.45pdf.pdf. ma em nichos de nossas sociedades se-
Exercícios espirituais de santo Inácio de Loyo- (Nota da IHU On-Line) cularizadas. Temos os assim ditos “mo-
la, em três tomos: Liberdade, Tempo, Gra- 10 “O espaço do desejo ou o ‘fundamento’ nos dernistas”, Alfred Loisy12 por exemplo,
ça: Fundamento, Pecado, Ortodoxia (Aubier, Exercícios espirituais”, Christus 118, janeiro
1956-1966), e Simbolismo e historicidade (Le- de 1973. (Nota da Lumière & Vie) que tinham uma consciência viva da
thielleux, 1978). (Nota da Lumière & Vie) 11 Maurice Blondel (1861-1949): filósofo fran- diferença entre o olhar externo e o
Cf. SIX, Jean-François, Teresa de Lisieux
������������������������� cês. Mestre de conferências na Universidade olhar interno sobre a tradição da Igre-
(Seuil, 19731, 1998).������������������������
(Nota da Lumière & Vie) de Lille, 1895-1896. Professor em 1897 na Uni-
 METZ, Johann Baptist (nascido em 1928) está versidade de Aix-en-Provence, permanecendo ja e tentavam responder a este desafio
no centro da nova teologia política dos anos 80 no posto até sua enfermidade em 1927. Co-
(cf. Por uma teologia do mundo, Cerf, 1971 e nhecido por sua filosofia da ação, que partia 12 Em 1902, Albert Loisy fez aparecer O Evan-
A fé na história e na sociedade, Cerf, 1979). de um intuicionismo inicial, irrompendo para gelho e a Igreja, onde ele pretendia refutar A
(Nota da Lumière & Vie) Dele publicamos uma um espiritualismo metafísico antipositivista, Essência do Cristianismo do teólogo protestan-
entrevista na 13ª edição, de 15-04-2002, dis- com aparência neoplatônica e tomista, eclé- te Adolf von Harnack. Recusando-se subscrever
ponível em http://www.ihuonline.unisinos. tica e misticista, com algumas moderações, e a encíclica Pascendi¸ ele foi excomungado por
br/uploads/edicoes/1161373449.46pdf.pdf. que o aproximam ao existencialismo cristão. Pio X em 1907. (Nota da Lumière & Vie)
(Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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introduzindo na fé um princípio de in- que tem neste certa consistência.
terpretação histórica e contextual.
“A crise modernista Mas, não se vê em Blondel como
A crise modernista terminou? Sim, este novo parceiro suscitaria certa
sem dúvida, quando se toma em consi-
terminou? Sim, sem capacidade de aprendizagem do lado
deração seu enraizamento histórico. Mas da teologia, sempre concebida como
não, quando se é sensível a certos fenô-
dúvida, quando se toma síntese lógica do dogma católico. Vis-
menos de repetição ao longo do século à-vis de Loisy, o filósofo reconhece sua
vinte: reflexos “positivistas” continuam,
em consideração seu cegueira exegética. Interessei-me,
com efeito, a atuar na Igreja e na socie- pois, a partir deste trabalho sobre
dade, com frequência acompanhados de
enraizamento histórico. Blondel, pela história da exegese crí-
uma “emocionalização” ao extremo das tica e do dogma, e pelo ponto crítico
questões de sentido; o que conduz a um
Mas não, quando se é de “contato” no seio da hermenêutica
desacreditar ou demonizar todo esforço teológica, entre as ciências humanas
de reinterpretação global da fé no seio
sensível a certos sob a forma das ciências religiosas, de
da sociedade atual. um lado, e da inteligência da fé, do
Maurice Blondel13 interessou-me
fenômenos de repetição outro15.
neste quadro. Ele que, além de Rhin, Brota dali a ampliação de minha
chamou-se de o Hegel francês, aju-
ao longo do século vinte: reflexão sobre a posição do cristianis-
dou-me a compreender melhor os ca- mo na modernidade, da qual a crise
cifes da crise modernista. Sua análise
reflexos “positivistas” modernista não é senão um episódio,
da interpretação neo-escolástica da já percebendo que dois aspectos mais
doutrina católica, taxada de “extrin-
continuam, com efeito, fundamentais de nosso ethos contem-
secismo”, põe em relevo os dois maio- porâneo e pós-moderno escapam da
res defeitos deste sistema: a exterio-
a atuar na Igreja e na matriz blondeliana: o pluralismo ra-
ridade entre as verdades da fé e nossa dical das convicções axiais da huma-
humanidade, e a utilização abusiva do
sociedade, com nidade e a consciência que esta toma
argumento de autoridade para ultra- de sua precariedade radical e de sua
passar esta exterioridade. O “histo-
frequência “miraculosa” capacidade de resistir ao
ricismo”, que é oposto, preconiza a mal. Foi somente mais tarde que me
historicização radical do cristianismo,
acompanhados de uma interessei pela corrente mais recente
mas corre o risco de fazer desaparecer da filosofia reflexiva, em particular
o sentido do absoluto ou de identificá-
‘emocionalização’ ao pela figura de Jean Nabert e de sua
lo com a totalidade da história. meditação sobre o mal16.
extremo das questões
A imanência de Blondel Lumière & Vie - Como teólogo, você
de sentido” é solicitado em diversas redes, como
Situando-se além destes escolhos, as revistas Concilium e Recherches
o método de imanência de Blondel me são a uma autoridade; é preciso que de Sciences Religieuses, ou a Asso-
marcou muito: ele consiste em subli- ela venha do próprio fundo de nossa ciação Européia de Teólogos Católi-
nhar o essencial da fé cristã, não em humanidade e que ela corresponda a cos (A.E.T.C.). Quais são para você
tal ou tal objeto a crer, mas na forma uma exigência interior; aquilo de que os grandes desafios e os cacifes do
do dom que ele “apresenta”. Ora, da a filosofia garante, sem jamais poder trabalho teológico? Você pensa que
insuficiência em nós que revela este substituir-se à livre opção efetiva do ainda se pode conceber um discurso
dom, é preciso que haja vestígio na homem. Desenvolvi, então, minha pri- teológico transcultural e internacio-
filosofia mais autônoma. Se há adesão meira obra14, uma epistemologia da te- nal, como se tentara no Vaticano II?
à fé, ela não pode ser somente submis- ologia fundamental na matriz do pen- Christoph Theobald - A presença
samento blondeliano, apoiada sobre a nessas redes foi para mim e ainda é
13 Introduziu “A Ação” [L’Action] (1893) e os
primeiros escritos de teologia fundamental: “A maneira de conceber o “vis-à-vis” da uma oportunidade inestimável. Ela
carta sobre a apologética” (1896) e “História e filosofia e da teologia, deixando seu 15 Cf. THEOBALD, Christoph e GIBERT, Pierre,
dogma”; são antes estes escritos que tiveram lugar às ciências em geral e às ciências O caso Jesus Cristo. Exegetas, historiadores e
uma grande posteridade. Maurice BLONDEL teólogos em confrontação (Bayard, 20020) e A
(1861-1949) é autor de uma grande reflexão humanas, terceiro parceiro do debate recepção das Escrituras inspiradas. Exegese,
filosófica sobre o pensamento, a ação e o ser 14 Maurice Blondel und das Problem der Mo- história e teologia. (Bayard-RSR, 2007). (Nota
publicada entre 1934 e 1937 (cf. La Pensée, dernität, Beitrag zu einer epistemologischen da Lumière & Vie)
Tomo l: A gênese do pensamento e os marcos Standortsbestimmung zeitgenössischer Funda- 16 Cf. NABERT, Jean (1881-1960), Ensaio sobre
de sua ascensão espontânea; Tomo 2: As res- mentaltheologie [Maurice Blondel e o proble- o mal (Essai sur le mal, 19561, Cerf 1997). O
ponsabilidades do pensamento e a possibilida- ma da modernidade, contribuição para uma sentimento do injustificável leva o eu a desen-
de de seu acabamento: A Ação. Ensaio de uma localização epistemológica de uma teologia tocar em si mesmo um modo de se fechar às
crítica da vida e de uma ciência da prática: O fundamental contemporânea]. Frankfurter outras consciências. É como um primeiro ato
ser e os entes. Ensaio de uma ontologia con- Theologische Studien 35, Verlag 3. Knecht, em que se alimentam correlativamente nossos
creta e integral). (Nota da Lumière & Vie) Frankfurt/Main. (Nota da Lumière & Vie) atos maus e nosso desejo de justificação.

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me permitiu acima de tudo encontrar munio27, marcaram muito os debates tes que necessita de uma colaboração
pessoas cuja coerência e cujo pensa- dessa época que eu reli por diversas internacional.
mento não cessaram de me estimular: vezes. A teologia corre entrementes o ris-
François Marty17 no Centro Sèvres, Jo- A história da teologia após o Concí- co de confundir sua universalidade ou
seph Moingt18, Michel de Certeau19 e lio Vaticano II se desenrola, com efeito, a da Igreja com os grandes vetores da
Joseph Doré nas RSR, cujo Conselho primeiramente no plano transcultural; mundialização, assim como ela com
de Redação é para mim, desde 1985, mas eu assisti, nos encontros anuais de frequência misturou ingenuamente,
um importante lugar de debate; Chris- Concilium durante a semana de Pen- no passado, missão e colonização. O
tian Duquoc20, Jean-Pierre Jossua21, e tecostes, à emergência cada vez mais último desafio consiste para ela em
Claude Geffré22 na Concilium, onde forte de uma teologia contextual. An- reconsiderar a forma que ela se dá, de
eu frequentei também, durante uma teriormente, 1989 continuava sendo adequá-la à “reconfiguração” evangé-
dezena de anos (1994-2004), João Ba- para minha geração um marco decisi- lica do universal, ao Reino de Deus que
tista Metz23, Elisabeth Schüssler-Fio- vo; retenho dele a curiosa impressão advém improvisamente, aqui e agora,
renza24, Gustavo Gutierrez25 e muitos que “a história” se pôs, enfim, a bulir como “acontecimento”, dando-se suas
outros amigos. Foi na Concilium que e suscita progressivamente uma nova próprias maneiras de difusão. O encon-
eu conheci Giuseppe Alberigo, que criatividade nos múltiplos laboratórios tro decisivo com um amigo e teólogo
me integrou na equipe internacional, locais. jesuíta, o Padre Edouard Pousset, me
formada pelo Instituto per le scien- Mas, longe de invalidar uma pes- permitiu compreender interiormente
ze religiose de Bolonha para redigir quisa teológica internacional, esta este desafio28.
a primeira história do Vaticano II26. A abertura antes a refinou, nestes últi-
historicização progressiva do Concílio mos anos, deixando-nos com alguns Lumière & Vie - Você faz parte da
e as controvérsias sobre sua recepção, grandes desafios. Nomeio alguns: Rede Blaise Pascal, “rede de grupos
o jogo de oposição entre as duas revis- (1) primeiramente, a pesquisa francófonos em torno de ciências,
tas internacionais, Concilium e Com- sobre o Jesus histórico, que põe em culturas e fé cristã”, e você leva aí
relevo a surpreendente criatividade sua reflexão sobre a Criação. Não se
17 Jesuíta, autor de A bênção de Babel. Verda- das comunidades ditas primitivas, nos teria passado do paradigma do sen-
de e comunicação (Cerf, 1990). Cf. L&V 281, p.
33. (Nota da Lumière & Vie) obriga a rediscutir o que consideramos tido ao paradigma da precariedade,
18 Jesuíta, nascido em 1915, redator das RSR como sendo de “direito divino”; de uma vida ameaçada pela técni-
de 1968 a 1997, autor de O homem que vinha (2) este processo de reinterpreta- ca, pela economia e pela política? A
de Deus (L’homme qui venait de Dieu. Cerf,
1993 e de Deus que vem ao homem (Dieu qui ção da identidade cristã é igualmente questão do mistério ou do sacramen-
vient à l’homme, 3 vol., Cerf, 2002-2007) Cf. relançado pelas pesquisas sobre o pe- to não sai daí renovada?
L&V 276, p.5. (Nota da Lumière & Vie) ríodo dos Santos Padres e sobre outras Christoph Theobald - A Associação
19 1925-1986. Conhecido por seus trabalhos
de história da mística (L’écriture de l’histoire. épocas do cristianismo, sendo o cacife “Fé e cultura cientifica” de Gif-sur-
A escritura da história, Gallimard, 1975, e La atuar em favor de uma reconciliação Yvette e a Rede Blaise Pascal que ela
faiblesse de croire. A fragilidade de crer, Seu- de nossas memórias ecumênicas e de contribuiu a criar foram, para mim,
il, 1987). Cf. L&V 280, p. 6. (Nota da Lumière
& Vie) tornar possível o que eu gosto de cha- desde seu início, um lugar importan-
20 Duquoc (1926-2008): Dominicano, autor de mar a “desmediterraneização” da fé te de aprendizagem e de confrontação
diversos livros de cristologia (O homem Jesus, cristã, sendo a inculturação a obra dos com disciplinas intelectuais das quais
o Messias, Jesus homem livre, O único Cristo).
Cf. L&V 276, p. 5. (Nota da Lumière & Vie) que estão a postos; não sou especialista. Nela participar
21 Dominicano, nascido em 1930, autor de (3) disso resulta a necessidade de regularmente é uma maneira de es-
numerosos livros sobre a experiência cristã e reconsiderar a figura da Igreja como cutar outras “vozes” – como terceiro
o problema da teodicéia. (Nota da Lumière &
Vie) “Igreja de Igrejas”, situada entre as parceiro do debate em que se questio-
22 Dominicano, nascido em 1926, autor de forças espirituais e religiosas da huma- nou a propósito de Blondel -, deixar-
Cristianismo no risco da interpretação (Cerf, nidade, e de afastar, sobre estes pon- me interrogar por elas e entrar assim
1983). Cf. L&V 280, p. 5. (Nota da Lumière &
Vie) tos, algumas ambiguidades nos textos concretamente na “reconfiguração”
23 Ver nota 8. (Nota da Lumière & Vie) do Concílio; evangélica da qual acabo de falar.
24 Professora de teologia e de estudos neo- (4) tendo o homem se tornado Essencialmente sobre dois pontos: as
testamentários na universidade Notre-Dame,
nos Estados Unidos; ela escreveu, em alemão e radicalmente incerto sobre si mesmo relações entre ciências e fé que deter-
em inglês, numerosos livros e artigos sobre os e sobre seu futuro no seio da biosfera minam a história da modernidade, e a
estudos neo-testamentários e sobre a teologia e sobre um globo perdido no universo renovação da teologia da criação.
feminina. (Nota da Lumière & Vie)
25 Um dos iniciadores da teologia da liberta- e cada vez mais devastado, trazer os Quanto às relações entre ciência
Cf. L&V 275, p. 5-15. (Nota da Lumière
ção. ���� recursos próprios da tradição cristã na
& Vie) nossa relação com as ciências e técni- 28 Christoph Theobald apresentou uma cole-
26 Cf. História do Concílio Vaticano II (1959- tânea de textos significativos do Padre Edou-
1965), sob a direção de Giuseppe ALBERIGO, cas é uma das tarefas mais importan- ard POUSSET s.j. (1926-1999), autor das rela-
em 3 vol.: O Catolicismo para uma nova época 27 Concilium foi fundada por Rahner, Congar ções entre fé e razão, da dimensão corporal
[Le catholicisme vers une nouvelle époque]; A e Schillebeeckx em 1965, enquanto Balthasar da fé, e da condição experimental do discurso
formação da consciência conciliar; o Concílio fundava Communio em 1972 com Daniélou, de cristão sobre Deus (sob o título O mistério de
adulto, Cerf-Peeters, 1997, 1998 e 2000. (Nota Lubac, Bouyer e Ratzinger. (Nota da Lumière Deus e do homem, editado no Centro Sèvres).
da Lumière & Vie) & Vie) (Nota da Lumière & Vie)

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e fé, nós desenvolvemos um modelo
de articulação crítica que não per-
“As ciências não cessam mem, “ser único como Deus é úni-
co”, jogado no “descomedimento da
manece nem numa simples confron-
tação, nem na ignorância mútua, e
de interrogar a teologia interioridade”, chamado à santida-
de. Como se poderia exprimir um ser
que recusa toda mescla de lingua-
gens ou de concordismo: as ciências
sobre as representações cristão atual?
Christoph Theobald - O cristianismo
não cessam de interrogar a teologia
sobre as representações do mundo,
do mundo, veiculadas como estilo32 é o esboço de uma teolo-
gia “sistemática” que tenta uma rein-
veiculadas pelas Escrituras e pela
tradição, e a obrigam a sair de toda
pelas Escrituras e pela terpretação global da tradição cristã,
após o que se poderia chamar o fim
confusão entre a revelação que Deus
faz de Si mesmo e o que a humanida-
tradição, e a obrigam a do “paradigma dogmático”, a saber, o
amálgama integrista entre a regulação
de pode descobrir e construir; de seu
lado, enquanto a teologia e a filoso-
sair de toda confusão da identidade cristã, sempre necessá-
ria, e uma visão cristã do mundo. In-
fia não cessam de interrogar os cien-
tistas sobre a livre relação que eles
entre a revelação que troduzir a esta altura a noção de estilo
permite designar a fé cristã como um
mantêm com suas disciplinas quando
eles produzem teorias e cenários to-
Deus faz de Si mesmo modo de habitar o mundo, formada
necessariamente por uma pluralidade
talizadores da gênese do universo e
dos viventes (teoria do Big Bang e da
e o que a humanidade de “mundos” culturais e religiosos.
O principal cacife deste “modo”
evolução).
Quanto à teologia da criação, ela
pode descobrir e é o de manter o elo espiritual entre
o Cristo e os tempos messiânicos que
é conduzida neste processo de apren-
dizagem em direção à sua experiência
construir” ele inaugurou na tensão insuperável
entre a Galiléia e a abertura às na-
mais originária, a saber, que o “real” é ções: o Cristo jamais está só, por-
para o crente dom absolutamente gra- que sua presença suscita um jugo fe-
tuito: criado “de nada” e “para” nada. bermas31). Mas, a evolução gigantesca cundo de relações no seio do qual a
Ora, não é próprio do Doador ocultar- das tecnociências não confere somen- Nova de Bondade radical de que ele
Se no que ele dá, para não obrigar ou te à humanidade um poder inimaginá- é o portador acreditável se descobre
endividar o receptor? Essa invisibilida- vel de automanipulação, ela também já em obra naqueles em quem ele
de radical de Deus, as ciências “secu- torna incerto o limite entre o vivo e o suscita a fé; jogo relacional comple-
larizadas” no-la fazem provar; e isso humano e faz pesarem graves ameaças xo e não desprovido de repercussões
também é o que, de um ponto de vista sobre o futuro da vida humana sobre políticas, mortais em seu caso, que
teológico, torna possível a criativida- a Terra. é o surgimento sempre surpreenden-
de cultural e o insuperável pluralismo Esta situação modifica o paradig- te do Reino de Deus.
da doação de sentido que a mesma im- ma do sentido, fazendo, acima de Eu tentei aproximar este “even-
plica. tudo, aparecer que o “sentido” só é to” messiânico a partir da experi-
Permanecemos, por certo, no seio crível se ele está encarnado em pes- ência “universal” de hospitalidade
do paradigma do sentido, inaugurado soas em relação e em minilabora- e perfilar a figura particular que a
por Kant e seguido pela hermenêuti- tórios de socialização discreta e de mesma toma, no Novo Testamento,
ca dos textos (Schleiermacher29) com um tomar cuidado do homem, de seu na santidade que o “Santo de Deus”
sua extensão narrativa e uma filosofia meio ambiente e de seu futuro, com (At 2, 27 e Jo 6, 69) comunica aos
da história cultural e religiosa da hu- competência e bondade. A questão seus e descobre já em obra junto a
manidade (Troeltsch30), seja pela teo- teológica do “sacramento” pode en- muitos seres humanos, pelo menos
ria da comunicação, fundada sobre o contrar aqui um início de renovação de maneira latente. A criação, para
“linguistic turn” [a virada lingUística] na medida em que esta passe neces- retornar a ela em nosso contexto
e uma epistemologia das ciências (Ha- sariamente por um tomar em conta atual, é, com efeito, entregue gra-
a corporeidade do ser humano em tuitamente a uma multidão de ge-
29 Friedrich Schleiermacher (1768-1834) in- relação significativa com o outro em rações, recebendo-a cada uma “em
troduz, em seus Discursos sobre a religião, a seu devir e em seu futuro incertos. herança”, para transmiti-la um dia
ideia de que a doutrina não é uma verdade re- a outros. Ora, a relação falsificada
velada por Deus, mas a formulação feita por
homens segundo a consciência que eles têm Lumière & Vie - Você acaba de pu- que os humanos entretêm com sua
da mesma. O sentimento religioso não é nem blicar um grande afresco sobre O própria mortalidade tem efeitos
saber nem moral, mas consciência intuitiva e destruidores sobre eles enquanto
imediata do infinito. (Nota da Lumière & Vie)
cristianismo como estilo, e aí você
30 Ernst Troeltsch (1865-1923) propõe uma apresenta certo olhar sobre o ho- entes corpóreos e sobre suas rela-
teologia da religião como desenvolvimento da 31 Jürgen Habermas, nascido em 1929, au- 32 THEOBALD, Christoph, O cristianismo como
consciência religiosa. Cf. História das religiões tor de Teoria e Práxis (1963), Teoria do agir estilo. Uma maneira de fazer teologia na pós-
e destino da teologia (Cerf, 1996). (Nota da comunicativo (1966), e Da ética da discussão modernidade, 2 vol., Cogitatio fidei 260-261,
Lumière & Vie) (1991). (Nota da Lumière & Vie) Cerf, 2007. (Nota da Lumière & Vie)

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ções; ela produz um comportamento pelo Vaticano II, é um modo corajoso
de dominação selvagem e de explo-
“O enfoque de uma e indispensável de ampliar a conver-
ração ante seu meio ambiente. Será são no plano coletivo e institucional.
que a mutação evangélica dessa re-
‘reforma permanente’, Mas, o que fazer quando o catolicismo
lação com a morte pelo Messias – A se encontra “ex-culturado” e a Euro-
Ressurreição – não introduziria outra
característica da pa transformada em “país de missão”?
maneira de habitar no seio da cria- Somos então levados à situação de im-
ção que a isso aspira, segundo Paulo,
cristandade ocidental e plantação, tal como os países ditos de
com gemidos inefáveis? missão a conheceram, como no relato
Fiel à perspectiva central de Blon-
retomada pelo Vaticano dos Atos dos apóstolos; em suma, ao
del, esta obra quer permanecer intei- que a parábola do grão de mostarda
ramente ordenada a um “hors texte”
II, é um modo corajoso e sugere sobre a fecundidade messiâni-
de múltiplas “vozes” que ressoam, ca oculta em grupos, “tão pequenos
ainda hoje, no seio da criação; é o
indispensável de ampliar e pobres que eles, por vezes, possam
que o sub-título, Uma forma de fazer ser, ou dispersos” (LG 26).
teologia na pós-modernidade, sugere.
a conversão no plano Nós o experimentamos em Creuse
O teólogo não pode deixar se fechar e alhures, com Eduard Pousset e com
numa concepção hermenêutica, em-
coletivo e institucional. aqueles e aquelas, sobretudo Philippe
bora essencial após a crise moder- Bacq, com os quais nós elaboramos o
nista; sendo sensível a uma leitura
Mas, o que fazer quando “conceito” de “pastoral de engendra-
estilística das Escrituras à maneira de mento”35, desejando tornar-nos aten-
Erich Auerbach33, ele está dedicado ao
o catolicismo se tos às etapas da misteriosa gênese da
homem ordinário de hoje, esperando fé eclesial: a hospitalidade que consis-
que ele aceda à compreensão da Boa
encontra ‘ex-culturado’ te em ir visitar “qualquer um”, a leitu-
Nova que já cochila nele. ra coletiva das Escrituras nas casas, a
As quatro partes da obra desen-
e a Europa transformada surpresa que provém dos gestos e pa-
volvem esta “maneira de fazer” pro- lavras messiânicas que curam e abrem
pondo um diagnóstico do momento
em ‘país de missão’?” à dimensão corporal e “sacramental”
presente (1), tratando, segundo uma da fé no Cristo e no repasto da Ceia, a
linha francesa, a tradição espiritual do descoberta da responsabilidade apos-
cristianismo como o lugar por excelên- em referência a ela mesma e ela só tólica e da dimensão “universal” da
cia de uma relativização do paradigma existe em sua relação ao Cristo e à so- tradição cristã, a entrada na prece e
hermenêutico (II), refletindo sobre a ciedade, e mesmo à criação; posição a doxologia da comunidade.
relação da teologia com as Escrituras, “instável” que não é fácil de manter. Talvez os desafios históricos da
matriz cultural do Ocidente e livro da Na minha experiência pessoal, a Igre- Igreja, tais como os atravessamos co-
Igreja, de onde esta extrai o Evan- ja é antes de tudo aquela que des- letivamente desde os inícios dos tem-
gelho de Deus (III) e desenvolvendo, pertou minha fé, que me concedeu pos modernos e que o Apocalipse nos
para concluir, o mistério cristão numa o dom do batismo e que, pela orde- faz compreender, devem hoje ser en-
perspectiva estilística, enfocada pela nação, me colocou na linha daqueles frentados mais modestamente no pla-
breve fórmula: “Crer em Deus... na inumeráveis que, em seguimento dos no local e na menor das comunidades
Igreja... situada na abertura messiâni- Doze, de Paulo e de tantos outros cristãs: a pluralidade das religiões e
ca da criação” (IV). anunciaram o Evangelho. A Igreja é, ao mesmo tempo a experiência da não
em seguida, aquela que eu não cessei evidência de Deus, ou de seu silêncio;
Lumière & Vie - Sua reflexão ecle- de encontrar localmente na obra da a violência do Estado, a bestialidade
siológica, notadamente como autor evangelização. Dois lugares foram e e o mal radical e, ao mesmo tempo, a
da história do Vaticano II, encontrou ainda são mais particularmente signi- experiência de uma fraternidade ca-
uma formulação original num comen- ficativos para mim, a Igreja da Algéria paz de resistir; a mundialização com
tário do Apocalipse à luz da situação e a do departamento de Creuse; tal- seus efeitos perversos e também a
dos cristãos da Algéria. Por que você vez porque é lá que eu compreendi consciência que nós temos de um só
prefere apresentar a Igreja em “re- a diferença entre uma Igreja em “re- globo do qual será necessário tomar
nascimento” contínuo, antes do que forma permanente” e uma Igreja “em coletivamente cuidado.
em “reforma” permanente? gênese” ou “nascente”34.
Christoph Theobald - Segundo nossas Por certo, o enfoque de uma “re- Lumière & Vie - Através de seus tra-
Escrituras e o concílio Vaticano II, a forma permanente”, característica
35 Cf. BACQ, Philippe e THEOBALD, Christoph,
Igreja é por essência descentralizada da cristandade ocidental e retomada Uma nova chance para o Evangelho. Por uma
33 Cf. AUERBACH, Erich (1892-1957), Mímesis, 34 Cf. THEOBALD, Christoph. Presenças de pastoral de engendramento, Lúmen Vitae-No-
a representação da realidade na literatura Evangelho. Ler os Evangelhos e o Apocalipse valis-Atelier, 2004, e Passadores de Evangelho.
ocidental (Gallimard, 1968). (Nota da Lumière na Algéria e alhures, Atelier, 2003. (Nota da Em torno de uma pastoral de engendramento,
& Vie) Lumière & Vie) idem, 2008. (Nota da Lumière & Vie)

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balhos sobre os corais de Bach, você neuta, do vulgarizador ou ainda da-
se debruçou sobe a conciliação do quele que se define como iniciador
Verdadeiro e do Belo e pensamos na ou transmissor.
contribuição de grandes precurso- Isto vem particularmente a pro-
res como Balthasar e Rahner: como pósito quando se trata de abrir e de
você se situa face ao influxo atual converter – incluindo o corpo – nossos
da história da arte, notadamente olhos e nossos ouvidos, para tornar
teológica, sobre o pensamento re- possível uma experiência estética a
ligioso e teológico? sentidos anestesiados ou atrofiados
Christoph Theobald - A aventura da pela racionalidade estratégica. A fra-
arte moderna nos afasta definitiva- gilidade desse trabalho provém, com
mente do elo intrínseco entre religião efeito, do fato de que a relação de
e arte no Ocidente e assinala a auto- toda uma sociedade ao belo, à plu-
nomia do Belo. Ora, a estética con- ralidade dos estilos como outras tan-
temporânea continua atravessada por tas maneiras de habitar o mundo, se

Disponível no sítio do IHU - www.ihu.unisinos.br


uma surda inquietude sobre o tema joga aí concretamente, estando ex-

Confira o Caderno IHU Ideias


do sagrado e a teologia cristã corre o posta, de um lado, ao fenômeno das
risco de se apoiar num vago conceito modas e das seduções, à exploração
de “arte sacra” para reavivar a nos- econômica e à manipulação política,
talgia da “bela totalidade” estético- mas sendo também, de outro lado,
teológica da Idade Média, tal como o lugar privilegiado onde se pode
ela se exprime em todos os estilos do formar um ethos comum, um modo
“neo” dos séculos XIX e XX, ou para de se entender no nível do sentir e
estetizar aleatoriamente a proposi- um modo de entender a questão do
ção da fé, sendo o todo carregado por sentido.
uma articulação metafísica dos trans- É esta emergência de uma “gra-
cendentais do Belo e do Verdadeiro. tuidade” no coração da comunica-
Eu penso que esse tipo de concepção, ção humana e na distância da re-
ao mesmo tempo prática e teórica, lação com o mundo religioso que
não honra nem a criatividade da arte permite às artes participarem, a
contemporânea nem a experiência da seu modo, da experiência bíblica
“santidade” que, no cristianismo, não de santidade. Poder-se-ia situá-
pode ser confundida com o “sagrado”. las em direção e em aval de sua
Meus trabalhos com Philippe Charru manifestação. Em direção, primei-
sobre J.-S. Bach36 e minha concepção ramente, porque essas obras de
do cristianismo como estilo tentam arte trabalham nossos sentidos,
propor outra articulação entre o que desencaminhando-os por vezes ao
é “santo” e o que é recebido como deslocar suas balizas, converten-
“belo”. do-os talvez ao conduzi-los para
A atenção à encarnação do “sen- sua “circumincessão” imaginária:
tido” nos torna, de início, sensíveis percepção global, apta para ver
a um tipo de ator – chamado por ve- e entender diversamente os ou-
zes “crítico da arte” ou comentador tros e o mundo. Em aval, a seguir,
– que se situa entre o “mundo da vida porque descobrir um dia a beleza
cotidiana” (Habermas) e “as belas da santidade bíblica pode criar e
artes”, temas também de “especia- afinar uma sensibilidade espiritual
listas” entretendo com o sentido da tornada capaz de perceber – com
visão e do ouvido uma relação que já as artes e além – a superior bele-
não é mais imediatamente acessível za da criação no Espaço Aberto de
às capacidades auditivas e visuais ou um mundo sem templo (AP 21, 22).
à imaginação do “amador”. É preci- Haveria melhor maneira de reagir
samente neste espaço que se situa contra a anestesia de nossos sen-
o trabalho do “crítico” e do herme- tidos ou contra a estetização ale-
36 Cf. em particular CHARRU, Philippe e atória de todas as proposições de
THEOBALD, Christoph, O Espírito criador no sentido em nossas sociedades pós-
pensamento musical de Johann Sebastian modernas?
Bach. Os corais para órgão de “O autógrafo
de Leipzig”, Bruxelas, Mardaga, 2002. (Nota
da Lumière & Vie)

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Comunicação e transdisciplinaridade:
interconexões a partir da telenovela
Por Andres Kalikoske*

A atividade econômica é fundamental para compreen-


der os processos da telenovela contemporânea.

A abordagem de temas da vida pública e privada garantiu


reconhecimento à telenovela. Sua compreensão como produto
artístico-cultural, no entanto, carece de uma análise que
condicione seus processos econômicos.

Quase 50 anos após seu surgimento nos estudos de recepção. No entanto,


na América Latina, a telenovela refor- o caráter singular das abordagens con-
çou a abordagem de temas da vida pú- secutivamente esbarrava na impossi-
blica e privada, conquistou visibilidade bilidade, por parte do pesquisador, de
como produto artístico-cultural e teve contemplar as múltiplas facetas deste
papel fundamental no fortalecimento complexo objeto.
dos oligopólios de comunicação. O ele- No Grupo de Pesquisa Comunicação,
vado número de pesquisas científicas Economia e Sociedade (CEPOS), a aná-
sobre o gênero folhetinesco superou lise midiática ocupa posição central,
discursos conceituais diminutivos na es- quando não é a própria telenovela que
fera acadêmica, transformando a popu- acaba por desencadear os processos
lar narrativa em um objeto atraente aos de produção, distribuição e consumo.
mais diversos campos do conhecimento Posta esta lógica, a Economia Política
científico. Esta trajetória transdiscipli- da Comunicação (EPC), reconhecida
nar se desenvolveu especialmente a epistemologia emergente do campo da
partir de diferentes eixos teórico-me- Comunicação, tem dado conta da ques-
todológicos no âmbito das Ciências da tão global dos meios; e mesmo que sua
Comunicação, mas com forte presença proposta não seja lançar-se em discus-

* Mestrando em Ciências da Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, bolsista
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pesquisador do Grupo de
Pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS), apoiado pela Ford Foundation. E-mail:
<kalikoske@hotmail.com>.

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sões de linguagem e análise de conte- “Com forte presença do setor de marketing também é fun-
údo, por inúmeras vezes incorpora tais damental para que o cliente realize
fatores, considerando-os como estraté- na grade de tanto a produção de chamadas quanto
gias de mercado. Em consonância aos a edição de vinhetas e logotipos. O se-
tópicos abordados pela EPC, e também programação das gundo, venda de roteiro, trata-se da
a partir das contribuições deste pesqui- realização de uma produção nacional
sador, verifica-se que a atividade tele- emissoras, a telenovela a partir de roteiro estrangeiro, carac-
visiva se integraliza através de quatro teriza-se como um dos mais antigos
ações fundamentais: produção de con- sempre se configurou casos de transnacionalização dos pro-
teúdo, que conduz ao preenchimento dutos de teleficção. Este procedimen-
da grade de programação com produtos como um negócio to implica em adaptar ou reescrever
atrativos e comercialmente rentáveis; scripts, ao mesmo tempo em que há
fluxo da programação, através do ge- lucrativo: sua uma adequação do produto quanto ao
renciamento dos horários dos progra- padrão tecno-estético do adquirente.
mas; divisão dos sinais hertzianos, que audiência, além de O terceiro e último modelo identifica-
diz respeito à área de cobertura das re- do venda de projeto trata-se dos casos
des; e comercialização transnacional, movimentar o mercado genuínos de transnacionalização, onde
através da venda de produtos aos pro- a aquisição de um projeto inclui não
gramadores estrangeiros. É importante publicitário, viabiliza somente o script da telenovela, mas
ressaltar que o incremento da televisão tudo o que envolve seus feitos artís-
foi um processo contínuo, impulsiona- novos negócios aos seus ticos. Desta forma, para um melhor
do nos três decênios finais do século desenvolvimento, o comprador passa
XX. Esta expansão deslancha a partir programadores, através a contar com uma consultoria do ven-
de uma ordem tecnológica que remete dedor. O produto final resulta em um
ao advento do videoteipe, desenvolvi- de merchandising ou conjunto de elementos semelhantes
mento da televisão em cores, instaura- (vestuário, trilha sonora, cenografia),
ção do satélite e, mais recentemente, licenciamento de que também pode agregar caracterís-
advento da TV digital. ticas de identificação local da nação
Com forte presença na grade de pro- produtos derivados” adquirente.
gramação das emissoras, a telenovela Observar bens simbólicos televi-
sempre se configurou como um negócio sivos a partir desta lógica reforça o
lucrativo: sua audiência, além de movi- caráter transdisciplinar das Ciências
rentes modelos. O primeiro, chamado
mentar o mercado publicitário, viabiliza Sociais Aplicadas. O estudo da teleno-
de venda integral, caracteriza a tele-
novos negócios aos seus programadores, vela, em específico, ainda carece de
novela vendida a um país estrangeiro
através de merchandising ou licencia- extenso trabalho abstrato, para que
e exibida integralmente pela emissora
mento de produtos derivados. Em um seja possível alcançar uma ótica glo-
adquirente. A veiculação pode ocorrer
segundo momento, seu arranjo híbrido bal de seus complexos processos. Não
em seu idioma original ou dublado, e
possibilita diferentes modos de execu- obstante, tais interconexões, no âm-
a dinâmica da edição pode ser altera-
ção, como co-produção com realizado- bito dos estudos em teledramaturgia,
da, atendendo às necessidades estra-
res independentes, pré-venda a países não se propõem ao antagonismo ou a
tégicas do comprador. O número de
estrangeiros e joint-ventures com pe- promover rupturas epistemológicas,
capítulos precisa ser pré-estabelecido
quenos grupos, que não pertencentes ao pelo contrário, previnem a estagnação
(no mercado latino-americano gira em
rol dos agentes midiáticos notórios. e reforçam a necessidade de aproxi-
torno de 120); a dublagem e a sonori-
No que diz respeito à comerciali- mação aos objetos mutáveis e dinâmi-
zação são recompostas, o que permite
zação da telenovela, parte deste pes- cos, através de diálogo construído em
eliminar a fala dos personagens e man-
quisador a classificação de três dife- diferentes visões teóricas.
ter o som ambiente; uma assistência

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Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- “Marina ocupa, sim, um discurso da utopia, mas da uto-
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisi- pia de uma faixa pequena da população, porque a grande
nos.br) de 09-09-2009 a 11-09-2009. massa do Brasil quer sustentar seu crescimento econômico
e de consumo”, afirma cientista político.
Uma voz dissonante: Do vegetarianismo à Expointer
Entrevista com Rafael Jacobsen, ambientalista “O Brasil pode produzir alimentos para o mundo”
Confira nas Notícias do Dia 09-09-2009 Entrevista com Ladislau Biernaski, presidente da CPT
Para o ambientalista, a manifestação realizada durante a feira Confira nas Notícias do Dia 11-09-2009
agropecuária é uma forma de mostrar a outra faceta da reali- Ainda que seja bastante crítico em relação ao presidente
dade, uma vez que a Expointer é vista como um símbolo do RS. Lula, devido ao fato de ele não ter, em sua gestão, dado
início a um processo de reforma agrária efetivo, o presi-
O PT a reboque do lulismo dente da Comissão Pastoral da Terra parabeniza o governo
Entrevista com Rudá Ricci, cientista político pela assinatura em prol da atualização do índice rural de
Confira nas Notícias do Dia 10-09-2009 produtividade.

Leia as
Notícias do Dia em
www.ihu.unisinos.br

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Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica


www.ihu.unisinos.br

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Agenda da Semana
Confira os eventos dessa semana, realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU
(www.ihu.unisinos.br).

Dia 18-09-2009
Religiões do Mundo
Babalorixá Dejair Haubert (Sociedade Beneficente Ilê dos Orixás);
Ialorixá Dolores Dorneles Senhorinha (Associação Africanista Santo Antônio de Categeró)
Exibição comentada do documentário RELIGIÕES TRIBAIS
Horário: 16h
Local: Sala 1G 119 – Instituto Humanitas Unisinos – IHU
Dia 19-9-2009 e 20-09-2009
Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2009
Prof. Dr. Cesar Sanson – CEPAT
Projetos Políticos para o Brasil e o nivelamento programático dos partidos políticos

Participe dos eventos do IHU

A programação completa está


disponível no endereço eletrônico

www.ihu.unisinos.br

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IHU Repórter
Vera Schmitz
Por Patricia Fachin | Fotos Arquivo Pessoal

N
esta semana, a IHU On-Line conversou com uma das organizadoras do IX Sim-
pósio Internacional IHU: Ecos de Darwin e do X Simpósio Internacional IHU:
Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilida-
des, a professora do curso de Relações Públicas e coordenadora do Programa
Publicações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do Programa Tecnologias
Sociais para Empreendimentos Solidários – Tecnosociais-Unisinos, Vera Schmitz. Natural
de Encantado, no Rio Grande do Sul, ela mudou para São Leopoldo um ano após aprova-
ção no vestibular, e trouxe consigo, além das características herdadas da família italiana
e alemã, o sonho de se formar em Relações Públicas e ser independente. Hoje, doutora
recém-formada, Vera deseja que seu trabalho possa contribuir para a construção de um
mundo melhor. Entre as novas aspirações, almeja o mesmo que todos os seres humanos:
“formas de me sentir inteira na vida”. Na entrevista que segue, ela sintetizou alguns anos
de sua história, revelou o amor pela família e se emocionou ao recordar a trajetória pro-
fissional na universidade. Confira.

Origens – Nasci em Encantando, servaram os costumes e a relação com as bastante grande. Havia sempre muito en-
uma cidade que tem cerca de 20 mil famílias que ficaram em Roca Sales. volvimento com iniciativas da comunida-
habitantes e fica na região do Vale do de e, além disso, era um pouco artista,
Taquari, no Rio Grande do Sul. Família – Tenho três irmãos. A mais pois sempre cantou em corais. Teve uma
A família do meu pai era descenden- velha se chama Ana Maria. Ela traba- época que cantava em três corais, um na
te de alemães, e a da minha mãe, de lha na Receita Federal, em Encantan- cidade de Encantado e dois nos arredo-
italianos. Mesmo tendo um sobrenome do; a Ângela Maria dedica-se mais a res, porém não era de ficar cantarolando
de origem alemã, Schmitz, tenho mui- atividades de artesanato; o irmão mais na rotina do dia-a-dia.
tas características italianas, até por- novo, Daniel, é engenheiro agrônomo,
que fui criada numa região de italianos. tem um escritório de consultoria em Infância – Desse período da infância
O meu ambiente familiar foi marcado Encantado e também é professor na e adolescência, lembro da preservação
pelo estilo italiano de convivência, de Universidade de Caxias do Sul – UCS. da vida familiar. A relação com os meus
gente falando alto. Meu pai faleceu em 2006 e minha mãe avôs era tradicional. Como dito, meus
tem, hoje, 88 anos. Ela é a matriarca da pais são naturais da cidade de Roca Sa-
Descendentes - Meu avô paterno era família, aquela italiana matrona que dese- les e todos os domingos eram reservados
professor, maestro, líder comunitário em ja ter todos os filhos por perto. Ao mesmo para visitar os avôs. Atravessávamos o
Roca Sales (na época pertencente a Es- tempo, é uma pessoa muito interessante, rio Taquari de barca, porque não existia
trela) e se preocupava com a realidade moderna. Ela consegue olhar a vida de ponte que ligasse os municípios. Então,
social e econômica da região. Ele sem- maneira diferente, mesmo conservan- todo final de semana vivenciávamos uma
pre trabalhou muito pelo cooperativismo do seus valores. Sempre digo que Dona mistura de diversão e apreensão. Ao
e ajudou a organizar e a fundar, junta- Aurora é uma vitoriosa, ela foi operária mesmo tempo em que nos divertíamos
mente com várias outras pessoas, a Cai- na década de 40, trabalhando, durante com o passeio, sentíamos medo porque
xa de Crédito Rural e a Cooperativa dos alguns anos, em um frigorífico em Roca enchiam a barca de carros. Chegando
Suinocultores de Encantado Ltda - Co- Sales. Meu pai trabalhou a vida inteira na ao município, primeiro visitávamos a
suel. Nessa época, meu pai, José Odilo, Cosuel, em Encantado. Atuou por muitos família do meu pai, no interior, e, em
que também residia em Roca Sales, mu- anos no setor financeiro e depois também seguida, passávamos à tarde na casa da
dou para a cidade vizinha e iniciou seu participou de alguns projetos de educa- família da minha mãe, na cidade. Nes-
trabalho na cooperativa. Em seguida, ção junto aos associados, na época em sa época, o convívio com os primos era
casou com a minha mãe, Aurora, e pre- que essa cooperativa tinha uma estrutura muito interessante e divertido.
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Estudos - Estudei sempre em En- ria maiores oportunidades, já estava pecialização em cooperativismo e, em
cantando, no Colégio Madre Margarida acostumada com outra realidade, tinha seguida, comecei a ajudar nos cursos
e depois no Ginásio Estadual de Encan- feito novas amizades. Nesse retorno, de especialização, apoiando as coor-
tado, único existente na época. Cursei enfrentei dificuldades porque estava denações. Após, assumi a coordenação
o segundo grau na Escola São Pedro, desempregada e não encontrava nada adjunta e, posteriormente, quando
também no município. na minha área. Fui trabalhar, então, em já tinha mestrado, coordenei, por um
uma empresa calçadista, onde fiquei tempo, estes cursos. Teve tempos que
Sonho de independência x facul- por seis meses. A jornada iniciava às 7h a universidade tinha dificuldades de
dade – Quando fiz o vestibular, não e acabava no final do dia, por volta das entender isso, o meu envolvimento,
sabia muito qual caminho seguiria no 18h30min. Foi uma experiência diferen- até porque eu não era professora e es-
futuro. Durante o período que cursei te. Depois desse emprego, minha meta tava desempenhando essa atividade.
a faculdade, trabalhei no então Ban- era ter a experiência de trabalhar em Em 1992 fiz a seleção para profes-
co Sul Brasileiro, que posteriormente uma multinacional. Consegui, então, sora e num primeiro momento dei au-
transformou-se em Meridional. Em En- um emprego na Oxigênio do Brasil, em las para o curso de secretariado. Tra-
cantado, já trabalhava como bancária Porto Alegre. Fui contratada como assis- balhei um ano e meio nessa área, até
e, meses depois que ingressei na Uni- tente de diretoria, mas na verdade atu- o momento em que surgiu uma vaga
sinos, fui transferida para uma Agên- ava como secretária. O ambiente de tra- para ser professora no curso de Rela-
cia de Canoas. Lembro que vim mo- balho era terrível, com pressão diária, ções Públicas. Lembro que o semestre
rar para São Leopoldo numa situação mas foi um lugar onde aprendi bastan- já tinha iniciado, e eu assumi uma dis-
bastante difícil, com pouca estrutura, te. Depois de um ano, me decepcionei ciplina de Relações Públicas e Recursos
praticamente não conhecia ninguém com as multinacionais e iniciei um novo Humanos. A partir daí comecei a lecio-
na cidade. Talvez, na época, meus trabalho, no Sindicato dos Auxiliares de nar no curso e, algum tempo depois,
pais não compreenderam direito o que Administração Escolar de São Leopoldo, abandonei a área de secretariado. No
significava uma mudança dessas para que atendia inclusive funcionários da ano de 1999, conclui o meu mestrado
uma jovem, em termos de infra-estru- Unisinos e funcionava na antiga sede em Comunicação, na Unisinos, onde
tura necessária. Instalada na cidade, da universidade. A partir daí, comecei a desenvolvi uma dissertação voltada à
fui aos poucos construindo um estilo observar a Unisinos de outro jeito. Eu ia comunicação nas cooperativas. Depois
de vida diferente da que eu estava com frequência no Centro de Documen- do mestrado assumi outras atividades,
acostumada, que envolvia mais res- tação e Pesquisa -CEDOPE, principal- como a Coordenação da Extensão do
ponsabilidades. Foi um período muito mente na biblioteca. Lembro de vários Centro de Ciências Humanas e tam-
bom, de aprendizagens, do surgimento cartazes afixados sobre cooperativismo bém tive a possibilidade de trabalhar,
de novas amizades, das quais até hoje na América Latina e no Caribe. por um ano e meio, como pesquisado-
são mantidas. ra na universidade.
Carreira na Unisinos - Um dia, a
Curso de Relações Públicas - No Bernardete (já falecida), que traba- Transição na universidade – A Uni-
final do curso de Relações Públicas lhava na biblioteca, com quem eu con- sinos passou por várias transformações.
começou a despertar o desejo de de- versava bastante, me avisou que tinha Nessa transição começou a se estrutu-
senvolver trabalhos com cooperativas, uma vaga para secretaria no CEDOPE. rar o IHU, e o CEDOPE foi abarcado nes-
inclusive o tema do meu Trabalho de Participei da seleção e fui contratada. se novo projeto. Quando o Instituto se
Conclusão de Curso – TCC foi volta- Com o tempo, passei a enxergar outras formou, ele trouxe projetos que eram
do para pensar em instrumentos de áreas, ligadas principalmente aos mo- desenvolvidos pelo CEDOPE, Pastoral e
comunicação para um público rural. vimentos sociais, e também a compre- disciplinas do Humanismo Social Cris-
Nesse período, comecei a me enxergar ender a importância do trabalho que tão. Lembro que, nessa passagem, o
trabalhando na mesma cooperativa em o CEDOPE desenvolvia academicamen- padre José Ivo Follmann estava empe-
que meu pai trabalhou, na cooperativa te sobre o cooperativismo. Teve um nhado em montar o regimento interno
de Encantando, no setor de comuni- tempo, quando estava trabalhando no do IHU e solicitou que eu assumisse a
cação e educação. Então, projetando CEDOPE, que a cooperativa de Encan- coordenação adjunta do IHU. Esse foi
esse futuro, dois semestres antes de tando então me convidou para traba- um período difícil no sentido de co-
concluir a graduação, pedi demissão lhar lá. Esse foi um dilema para mim, meçar algo novo na universidade, sem
do banco. Assim, finalizei a faculdade porque fiquei com muita dúvida, mas uma perspectiva definida do que iria
desempregada, com a perspectiva de optei por continuar na Unisinos, apos- acontecer. Muitas das atividades que
voltar para minha cidade natal. Quan- tar nos estudos e buscar alternativas chegaram no IHU começaram a ser re-
do me formei, retornei para o municí- financeiras para poder sobreviver com estruturadas, e o Instituto teve o pa-
pio e não consegui trabalhar lá. Lem- condições mais adequadas. pel de repensar tudo o que assumiu;
bro que foi uma decepção grande. O CEDOPE foi um lugar que me muitos projetos foram sumindo nessa
abriu muitas portas, onde tive mui- reestruturação. Isso demonstra que
Trajetória profissional - Voltei a São tas oportunidades e incentivo. Um também houve um enxugamento de
Leopoldo com a expectativa de que te- ano após ter entrado lá, fiz uma es- projetos e de pessoas.

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tituição séria, organizada, plo, a turma que construí ao longo
que prima pela excelência da faculdade, com os quais tenho
e que mesmo em tempos uma convivência intensa e frater-
de crise exercita com cla- na. Ainda tenho meu ritual de ir
reza a sua missão de ser para Encantando. Enquanto minha
universidade. E é neste mãe estiver viva, penso que tenho
sentido que me sinto com- de abraçá-la ao máximo. Também
prometida. Além disto, é nos falamos por telefone com fre-
onde fiz minha formação e quência e quando acho que preci-
solidifiquei minha carreira so desse afeto, corro para lá.
profissional.
Lazer – Nos últimos tempos,
IHU – É difícil falar do a opção pelo doutorado me tirou
IHU quando se vive o IHU. muito espaço de lazer. Sempre
Historicamente, ele já gostei de cinema, bate-papo com
passou por várias fases, amigos, receber pessoas na mi-
mas em nenhum momento nha casa. Também gosto de ler,
afastou-se do seu propósi- passear, fazer caminhadas. Estou
to e jeito de ser. O Institu- retomando essas atividades, agora
to está sempre em movi- com mais frequência. A vida não é
mento e é nesta ebulição só o estudo, o trabalho; ela tem
que ele busca realizar um outros momentos, necessita de um
de seus grandes desafios, equilíbrio, de um espaço saudá-
que é o de ser fronteira. vel, de distração, de apreciação e
Em suas diferentes inicia- de convivência com o que está ao
>> Vera com a família
tivas, traz subsídios para a nosso redor. Também gosto muito
Algum tempo depois deixei a construção e/ou descons- de viajar. Durante esse período na
coordenação adjunta. Assumi, en- trução de conceitos e provocar universidade, viajei muitas vezes
tão, a coordenação do Programa análises e reflexões sobre temas a trabalho. Conheci muitos luga-
Publicações, as atividades na área que levem a pensar uma socieda- res na Europa, na América Latina,
de RP - talvez de uma forma sim- de mais humana, justa e solidária. no Brasil como um todo. Tenho
plória -, e a organização dos simpó- Neste sentido, complementa os planos de viajar mais nas férias e
sios do IHU, além da coordenação propósitos da Universidade. Além nos finais de semana.
do programa Tecnologias Sociais disto, posso dizer que trabalhar
para Empreendimentos Solidários no IHU é aceitar desafios, é estar Sonho – Gostaria de ver um
– Tecnosociais, uma incubadora alerta e “antenada” o tempo in- mundo melhor, mais justo, mais
de empreendimentos de econo- teiro, é estar disponível para vi- ético. Também tenho minhas me-
mia solidária, programa anterior- venciar a sua dinamicidade. Aliás, tas de vida, de convivência. Não
mente vinculado ao IHU, mas hoje acho que este é o “estilo IHU”! busco coisas materiais, mas for-
diretamente ligado a Diretoria de mas de me sentir inteira na vida.
Ação Social da Universidade. Foi Independência x Família – A fa- Desejo outras realizações além
nesta época que também iniciei o mília é um eixo, nos mostra alguns das que encontro no trabalho que
doutorado em educação. caminhos, nos acolhe nas dificul- faço, ou seja, coisas que são rela-
dades e também nos proporciona tivas ao ser humano.
Doutorado – A conclusão do alegrias. Continuo muito apegada
doutorado foi um momento de à minha família, temos uma rela- Religião – Fui criada em uma
muita alegria, pois, por vários mo- ção de união e companheirismo. família muito religiosa. Meus pais
tivos, em algum momento, achei Isso reflete o jeito de como meus sempre foram católicos pratican-
que não conseguiria, ou até que pais nos educaram. tes e compromissados com a igre-
levaria mais tempo para conseguir Sempre fui independente e o ja. Com o tempo, fui tentando
concluí-lo. O período do doutora- fato de eu sair de casa cedo mostra encontrar meu lado espiritual sem
do foi para mim muito importante, também uma coragem e um filete a necessidade de ter de frequen-
de amadurecimento intelectual e, de querer essa independência. tar a missa todo domingo. Faço a
principalmente, de descobertas. Mas essa não é uma independên- minha reflexão, rezo, agradeço,
O seu término simbolizou o ven- cia solitária, no sentido de querer sem sentir essa obrigatoriedade.
cimento de mais uma etapa, para ser independente de tudo. Eu pos- Acredito que posso fazer isto, vi-
mim, grandiosa. so administrar a minha vida, mas venciar valores ligados à religião
isso inclui outras pessoas. Tenho ou sentir Deus em diferentes es-
Unisinos – A Unisinos é uma ins- muitos amigos, pessoas que con- paços, inclusive no trabalho que
sidero especiais, como, por exem- faço.

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Destaques
Lançamento de livros

Na programação do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Pos-
sibilidades e Impossibilidades, que acontece esta semana na Unisinos, haverá um coquetel com lança-
mento de livros. Será na próxima quarta-feira, dia 16 de setembro, das 18h às 19h30min. Confira as obras
que serão lançadas:

Futuro da autonomia
O livro O futuro da autonomia: uma sociedade de indivíduos? (Rio de Janeiro: Editora
PUC-Rio; São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009) é uma coletânea das ideias de vários
dos conferencistas do simpósio com o mesmo nome realizado na Unisinos em maio de
2007, é organizada pelos pesquisadores Inácio Neutzling (IHU), Maria Clara Bingemer
(PUC-Rio) e Eliana Yunes (PUC-Rio). Uma leitura instigante e que nos convida a refletir
sobre os rumos que tomamos enquanto sociedade.

Possibilidades e Limites das Nanotecnologias


A obra Uma Sociedade Pós Humana? Possibilidades e Limites das Nanotecnologias (São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2009) resulta de um simpósio organizado pelo IHU que reuniu pesquisadores de áreas múltiplas,
como física, química, biologia, medicina, sociologia, antropologia, filosofia e teologia, proporcionando
um debate transdisciplinar sobre os impactoas das nanotecnologias na sociedade humana e no planeta.

Transmitir um Evangelho de liberdade


Já o livro Transmitir um Evangelho de liberdade (São Paulo: Loyola, 2009) tem o
objetivo de descrever o Evangelho de liberdade para todos e mostrar, na trama das
Escrituras, suas dimensões antropológicas e cristãs. De acordo com o autor francês,
Cristoph Theobald, jesuíta e professor de Teologia, quando fé e palavra se juntam de
modo que se demonstrem verdadeiras, a transmissão deste Evangelho de liberdade
torna-se possível.

O Rosto Plural da Fé: da ambiguidade religiosa ao discernimento do crer. (São Paulo:


Loyola, 2008), de Pedro Rubens Ferreira, também será lançado na ocasião.

Apoio:

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