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E não me parece ser sem motivo, dado que os relacionamentos humanos são
fonte (e também cura) de muitos sofrimentos. Além disso, a explicitação dos
diversos encadeamentos causais desconhecidos presentes na vida humana
recupera algo daquele sentimento da tragédia clássica de que o futuro dos
homens depende de fatores muito além de sua vontade e compreensão, o que
suscita questões acerca do destino, do acaso e do livre arbítrio. Filmes como 21
gramas, por exemplo, ao burlar a ordem cronológica, reforçam ainda mais esse
sentido de inevitabilidade (que, nesse caso, acaba sendo negada). A cena inicial
já mostra o clímax da história, uma execução a sangue frio, que fica marcada
como o destino para o qual, por caminhos ainda desconhecidos, as diversas
histórias convergirão inexoravelmente. Algo similar se dá no seriado Lost:
sabemos que todos os personagens se encontrarão numa ilha misteriosa, e a
história pregressa de cada um, recheada de coincidências, números que se
repetem e laços de parentesco desconhecidos, nos leva a crer que não é mero
acidente que todos tenham ido parar lá.
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Alguns filmes, como Pecados íntimos (Todd Field, 2006), apesar de,
aparentemente, seguirem a mesma linha, surpreendem o espectador: o filme
inteiro esboça a idéia batida de que a vida comum da classe média é, mesmo
quando não aparenta, um poço de solidão, tristeza e hipocrisia, e que a
felicidade ou não é possível ou o é apenas violando todas as normas sociais
vigentes, o que sempre acaba em tragédia. Mas, quando tudo parece se
encaminhar a esse desfecho, a história dá uma virada de 180 graus e os
personagens centrais acordam para o fato de que vinham perseguindo sonhos
infantis, e que a felicidade é possível sim no mundo real. Um certo toque de
humor e ironia que perpassa o filme todo contribui para que ele nunca resvale
para a autopiedade e o transforma, no fim das contas, numa afirmação jubilosa
do livre arbítrio.
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Para melhor ilustrar meu ponto, quero comparar três filmes que, na minha
opinião, são ótimos exemplares do multi-plot. Todos mantêm esse
distanciamento entre espectador e personagens, seja por meio da edição, da
trilha sonora, do humor ou por cenas nas quais predomina a fala. Tal
distanciamento permite o desenvolvimento de uma mensagem mais profunda e
ponderada do que meras platitudes ou do que sentimentos vagos de culpa e
pena. Contudo, noto que eles partem de filosofias bem diferentes entre si. E
como podem, então, serem todos bons?
Repito aqui o que disse no início: todo filme tem uma filosofia. E agora me
justifico. É impossível colocar na tela a totalidade de tudo o que acontece ou
poderia acontecer. Apenas uma parte será mostrada. Por isso, a criação da obra
passa necessariamente pela seleção dos elementos que serão retratados, e nos
quais, portanto, o espectador deverá prestar atenção. Dou um exemplo: mortes
acidentais acontecem a toda hora no mundo real, e isso não quer dizer nada.
Mas se o protagonista de um filme morre por acaso num acidente banal, isso
tem muito significado. Dentre tudo que poderia ocupar um lugar central, o criador
do filme escolheu o acidente. Isso nos indica que o sucesso ou o fracasso das
empreitadas humanas é definido pela sorte; o universo é hostil, e reage de
formas inesperadas e ininteligíveis. Dessa maneira, o artista é como Deus, e a
obra de arte é o universo por ele criado, baseado na metafísica com a qual ele
interpreta o mundo real.
O valor artístico de uma obra está mais no talento dessa recriação do universo
do ponto de vista do autor do que na verdade ou falsidade de sua mensagem,
mesmo porque dificilmente qualquer uma terá a verdade completa. Obras com
filosofias opostas podem retratar legitimamente aspectos diversos da realidade.
E mesmo uma obra com uma filosofia da qual discordamos oferece-nos a
oportunidade de experimentar visões de mundo radicalmente diferentes das
nossas, o que tem um valor em si. Não é preciso partilhar do pessimismo
sombrio de Hamlet para reconhecer seu valor magistral. É mais importante que a
recriação tenha profundidade (isto é, que vá além dos meros lugares comuns de
sua época) e seja rica, fiel à observação que o artista faz da realidade, no
enredo e nas caracterizações. Assim, apresento sem receio, como exemplares
do melhor que os multi-plot têm a oferecer, três filmes com filosofias
antagônicas.
Short Cuts
O primeiro deles é Short Cuts (1993), de Robert Altman, que é um mestre dessa
forma narrativa, tendo dirigido vários multi-plot: Nashville, M.A.S.H., Gosford
Park. Os três filmes que escolhi tratam de personagens problemáticos, mas os
de Short Cuts sem dúvida são os mais perturbados. É difícil imaginar um rol
similar de neuróticos, deprimidos, depravados, psicóticos, bêbados, drogados,
ressentidos e inseguros que sobrevivem e se multiplicam em Los Angeles; não
no submundo do crime, nos esgotos da cidade ou no manicômio, mas em
vizinhanças pacatas. Não gosto, a princípio, de filmes que degradam a natureza
humana e mostram a perversão como se fosse a norma; contudo, Short Cuts
consegue – mérito dos atores – transmitir a humanidade dos personagens (que
não são veículos artificiais de mensagens políticas, mas pessoas de carne e
osso, ainda que um tanto desfiguradas) e nos interessar por seus dramas, cuja
variedade é tamanha que todo mundo deve encontrar algo para se identificar.
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O menino Casey anda pela rua; Doreen, pobre garçonete casada com um
bêbado contumaz, guia desatenta e o vê em cima da hora. Freia bruscamente,
evitando um acidente grave, mas ainda assim acerta-lhe de leve. Muito
preocupada, quer levá-lo ao hospital, mas ele se levanta sozinho e assegura-lhe
de que está bem. Ela vai embora aliviada por não ter causado uma tragédia. Mal
sabe ela que Casey sofreu uma concussão e morreu pouco tempo depois no
hospital e que sua mãe, inconsolável, sofre ainda com os trotes telefônicos do
confeiteiro da vizinhança, que encontra nessa brincadeira cruel a maneira de se
vingar dela por não ter ido pegar o bolo que encomendara para o aniversário do
garoto. Eventos fortuitos, minúsculos, ocasionam tragédias de grandes
proporções, sem que ninguém saiba de onde vieram e nem se alguém é o
culpado.
Entrar em cada um dos muitos enredos do filme não vem ao caso; quero é
captar a essência de sua mensagem, a filosofia que o anima: não há ordem
maior e nem justiça por trás dos acontecimentos. Pelo contrário, a moral da
história é que não existe moral da história. O universo é indiferente a seus
habitantes, não faz nenhum tipo de contabilidade, não há retribuição ou
desfecho, e as histórias que nele se passam não são pautadas por nenhum
padrão que o tornaria inteligível, satisfatório, ao observador.
Magnólia
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É muito fácil traçar paralelos entre Magnólia (Paul Thomas Anderson, 1999) e
Short Cuts, e não é para menos: Paul Thomas Anderson obviamente se inspirou
no trabalho de Altman. Mas embora a estrutura e certos elementos da história
sejam os mesmos (até o elenco tem repetições: Julianne Moore vive, em ambos,
uma adúltera), as diferenças filosóficas são profundas.
Numa alusão clara a Short Cuts, o ato final envolve um fenômeno da natureza.
Não um abalo sísmico, produto de forças cegas e insensíveis, mas uma chuva
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Treze Visões
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que valoriza o contexto geral e não o caso particular, ganha muito com um certo
comedimento e distanciamento racional, condições necessárias de um valor
duradouro. Já o dramalhão, o sofrimento brutal e irrestrito que cria uma ilusão de
profundidade, embora cause impacto instantâneo, é rapidamente esquecido. O
bom cinema convida à indagação filosófica; e a filosofia, por sua vez, contribui
para uma maior apreciação do cinema.
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