Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
PUC-SP
São Paulo
2018
FERNANDA MANZO CERETTA
São Paulo
2018
Banca Examinadora
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
__________________________________________________
Agradecemos o apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – o qual viabilizou esta pesquisa.
Agradecimentos
Cecília Salles, Christine Greiner, Amálio Pinheiro, Eduardo Vicente, Rogério de Almeida,
Ane Shyrlei Araújo e Bernardo Queiroz pelas valiosas leituras, aulas, contribuições e
presenças em bancas. Cida, por responder tantas vezes as mesmas perguntas que eu te fiz e
ter tanta paciência e carinho.
Amigos maravilhosos dos grupos Alanos, VBS, Panquecas, Gremistas (e alguns Colorados) e
SF. / Alexandre Morgado, por sempre saber o que dizer pra me botar nos eixos de novo e
seguir com a pesquisa. / Robson Kumode, pelos tantos telefonemas desesperados de
hoooooras que sempre revelavam o projeto com maior clareza.
TFG, pelos colegas queridos e pela oportunidade incrível de fazer tanto barulho durante esses
anos, em todos os sentidos! / Caco Teixeira, por ter me ensinado tanto da prática do sound
design nos últimos anos na TFG e por ter me apresentado o Izotope / Rafão Oli, por emprestar a
voz pros meus espectrogramas, mesmo que eu tenha usado sem nem te perguntar se podia
(posso?).
Meu amor João Victor, por ter cuidado da Thundera, do Robocop e de mim durante esse
percurso. E que - ah, socorro! - defende no mesmo dia que eu!
Minha família, especialmente Maninho, Cris, Mariana (doidinha), Brunico e Cris (sogrinha).
E aos melhores pais do mundo (quiçá das galáxias): Carlos Alberto (meu revisor e inspiração
acadêmica maior) e (Queen) Elizabeth (a total responsável pelo meu gosto por monstros e
ficção científica). Amo vocês!
Este trabalho analisa o sound design de monstros do cinema, sobretudo suas vozes.
Chewbacca (Star Wars, 1977), Godzilla (1954) e Predador (1987) constituem o corpus
da presente pesquisa. Estes monstros possuem vozes compostas por designers que
experimentaram diferentes processos de criação, utilizando sons na natureza, do corpo
e de objetos manipulados para criar a identidade sonora destas personagens.
investigamos os contextos destes processos de criação e os sons criados, em suas
particularidades, para compor uma proposta de método de composição de som de
monstros, o qual abarca as potenciais fontes dos sons de base e demais características
sonoras, como frequências, timbres e intensidade. A pesquisa foi feita a partir da
observação dos materiais audiovisuais selecionados e do resgate da documentação
disponível sobre os bastidores da criação dos mesmos (bastante vasta dada a
popularidade dos monstros selecionados). A tese se baseia sobretudo em articulações
com obras de Rick Altman, Michel Chion, William Whittington acerca do som
cinematográfico e em Theo Van Leeuwen em sua proposição de análise sonora.
ABSTRACT
This research analyzes the sound design of movie monsters, especially their voices.
Chewbacca (Star Wars, 1977), Godzilla (1954) and Predator (1987) constitute our
corpus. These monsters have voices composed by designers who have experimented
different creation processes, using sounds generated by nature, body and manipulated
objects, in order to create the sound identity of these characters. We investigate the
contexts of these creation processes and the resulting sounds in their particularities to
make a proposition of a method for creating the sound of monsters. Our method covers
the potential sources of base sounds and other sonic characteristics such as
frequencies, timbre and intensity. The research was based in the observation of the
selected audio-visual materials and in the documentation available regarding the making
ofs (which is vast, given the popularity of the selected monsters). The thesis is based
mainly on articulations with the works of Rick Altman, Michel Chion and William
Whittington, on the cinematographic sound, and of Theo Van Leeuwen in his proposition
of sonorous analysis.
Introdução........................................................................................................ 9
1. O som e o monstro........................................................................................ 16
1.1 Os desafios da pesquisa acadêmica sobre som........................................ 16
1.2 Som, ruído, vococentrismo.......................................................................... 25
1.3 Os tipos de vozes de monstro..................................................................... 30
1.4 O sound designer (ou desenhista de som)................................................. 35
1.5 O audiovisual, o imaginário e o monstro.................................................... 42
1.6 Os sons do monstro em seu tempo e espaço............................................ 49
Bibliografia.................................................................................................. 212
“Se tivéssemos que fazer uma fenomenologia do grito
respeitando a hierarquia do imaginário, deveríamos partir de
uma fenomenologia da tempestade. Em seguida, tentaríamos
aproximá-la de uma fenomenologia do grito animal. Aliás,
muito nos surpreenderia o caráter inerte das vozes animais. A
imaginação das vozes não escuta senão as grandes vozes
naturais. Teremos então, no detalhe mesmo, a prova de que o
vento gritante está no primeiro plano da fenomenologia do
grito. O vento de certo modo grita antes do animal, as matilhas
do vento uivam antes dos cães, o trovão rosna antes do urso.”
(Gaston Bachelard)
Introdução
9
Durante o meu percurso profissional externo à academia, percebi o
quanto os documentos de processos de criação são um material fundamental
para a reflexão e o aprimoramento das práticas nos estúdios. Estudar as
técnicas e soluções destes profissionais é uma valiosa pista para encontrarmos
o caminho que cada desafio criativo demanda.
Desta forma, a pergunta que norteou a presente pesquisa foi: como
alguns dos sons de monstro mais memoráveis do cinema foram criados e o que
estes processos tem em comum? O que poderiam revelar para os profissionais
da área sobre caminhos possíveis para atingir resultados com qualidade
expressiva equivalente?
Em suma, esta pesquisa propõe um olhar sobre os processos de criação
do sound design de monstros do cinema, especialmente a voz.
Durante o processo de pesquisa do doutorado, viajei a York, Reino
Unido, para apresentar um trabalho no congresso Transnational Monstrosities,
realizado na York St. John University. A experiência foi muito positiva e reiterou
a importância dos sons dos monstros para a construção destas personagens.
Godzilla, por exemplo, tinha uma mesa exclusiva para a discussão de suas
narrativas. Apresentei, nesta mesma mesa, um artigo realizado em parceria
com minha orientadora Lucia Leão comparando os filmes Godzilla de 1954 e de
2014. Frequentemente, o som do Godzilla era relembrado nas discussões. Este
aspecto também foi ressaltado na menção a outros monstros, desde Pokemons
até o Chewbacca. A participação neste evento reforçou a escolha do corpus da
presente pesquisa.
Após decidir que documentos do processo de criação seriam o ponto de
partida, fiz uma seleção de três monstros cujas vozes eram facilmente
identificáveis, por terem um importante papel no repertório de sons de monstro
do cinema. Estes monstros deveriam emitir um som diferente dos demais e
reconhecível, além da voz nestes casos ser uma parte importante da
construção das personagens.
Ao selecionar os monstros, além das características acima, outro fator
determinante foram os processos de criação. Os três monstros do corpus, além
10
de atenderem ao reconhecimento de suas vozes, possuem processos
interessantes e distintos.
O corpus da presente pesquisa é construído pelos seguintes monstros,
em suas primeiras aparições no cinema: o wookie Chewbacca, de Star Wars
(1977), o alienígena de Predador (1987) e o monstro gigante Godzilla (1954).
Chewbacca, cujo som foi criado pelo sound designer Ben Burtt, é um ser
de um planeta fictício do universo narrativo de Star Wars. Aparenta ser uma
mistura de cachorro, urso e humano, interagindo com as demais personagens
da saga por meio do complexo idioma de seu planeta: o Wookie.
11
Figura 1. Fotos promocionais do Chewbacca. Fonte: LucasFilm.
12
qual é possível ouvir alguns cliques/estalos feitos pela criatura, os quais foram
vocalizados pelo dublador Peter Cullen. Predadores lembram aracnídeos em
corpos antropomórficos.
13
Figura 3. Fotogramas do filme Godzilla (1954).
14
linguagem cinematográfica). Assim, nossa tese parte de uma observação critica
e analítica das sonoridades e dos documentos de criação dos autores e
equipes. Consideramos que a base da pesquisa deveria advir, em um primeiro
momento, de exercícios de escuta dos sons e observação das personagens e
seus contextos de produção. A segunda etapa foi realizada a partir da pesquisa
de documentos e processos de criação. Por fim, foram propostas relações com
conceitos e teorias, em torno do tema do audiovisual e do imaginário.
Com essas bases estabelecidas, iniciamos um processo de análise da
composição de sons de monstros no cinema. Com esses dados,
compreendemos um repertório sonoro para criação em meios audiovisuais.
A tese inicia apresentando os fundamentos conceituais que permeiam a
pesquisa. Foram discutidos: noções de som, ruído e vocalidade e seus desafios
para a pesquisa e sound designer; a ideia de monstro e suas relações com o
imaginário social e cultural.
No segundo capítulo, apresentamos uma breve arqueologia do som do
monstro nas artes e no cinema. Uma das nossas hipóteses iniciais, que se
confirma com o levantamento desta trajetória, é que o repertório sonoro ligado
ao monstro desde a literatura até o cinema possui profunda influência nos
trabalhos analisados. Além disso, no levantamento dos sons que colhemos,
percebemos as especificidades das criações que fazem parte do corpus.
Os capítulos 3 ao 5 se dedicam a trazer informações encontradas em
documentos de processos de criação referentes aos nossos três monstros. Na
sequência Chewbacca, Predador e Godzilla. Para encontrar estas informações,
buscamos livros sobre os bastidores das franquias, entrevistas disponíveis na
web e material de fã clubes diversos.
No último capítulo, o sexto, analisamos os processos de criação
levantados em suas diferenças e similaridades. Nos apoiamos especialmente
em Rick Altman, Michel Chion, William Whittington e Theo Van Leeuwen. A
partir destas articulações, por fim, apresentamos a nossa proposta de método,
que esperamos irá contribuir para novas possibilidades e caminhos para a
criação de outros processos criativos, que resultam em sons de monstros.
15
Capítulo 1. O som e o monstro
16
o filme com odores não tenha desenvolvimento passado ou
futuro; que o “talkie sonoro” (hoje o cinema tradicional) seja
quase sempre mais fala do que som, com os ruídos tão
empobrecidos e estereotipados. Na verdade, os únicos
aspectos cinematográficos que interessam a todos, e não
apenas alguns especialistas, são a imagem e a fala (METZ,
1980, p.27).
Desta forma, o som no cinema é vitimado por uma visão crítica que,
predominantemente, o relega a um papel/função secundário. Outro autor que
comenta esta circunstância é Michel Chion, um dos mais influentes
pesquisadores de som no cinema. Chion considera que a língua falada esteja,
de fato, no topo de hierarquia dos elementos sonoros do cinema (CHION, 2009,
p.73). “Existem vozes e então existe todo o resto” (CHION, 1999, p.5).
Mesmo assim, trabalhar a trilha sonora de um produto audiovisual,
enquanto diálogos, música e ruídos, é uma tarefa potencialmente tão complexa
quanto o trabalho com imagens, como explicam David Bordwell e Kristin
Thompson, da Universidade de Wisconsin-Madison, casal de pesquisadores
com extensa produção bibliográfica sobre cinema:
17
pesquisador, no caso, precisa transpor códigos sonoros de um dado
audiovisual para códigos linguísticos. São necessárias “palavras para descrever
um som ou os elementos de uma peça musical” (CARREIRO, ALVIM, 2015,
p.178), como afirmam os pesquisadores Rodrigo Carreiro e Luíza Alvim em
ensaio de proposta metodológica de análise de som e música no cinema.
Nesta pesquisa falamos de sons específicos. E não temos uma forma
amplamente padronizada, codificada, para falar de sons quando estes não são
fala ou música. A linguagem musical, por exemplo, possui a própria escrita, em
partitura. Quando falamos de imagens, como pinturas e retratos, estas podem
ser reproduzidas em papel para auxiliar o texto. Até mesmo imagens em
movimento podem ser exemplificadas mais claramente com sequências de
planos em fotogramas, estratégia que esta pesquisa utiliza.
No evento Transnational Monstrosities, ocorrido na York St. John
University em Junho de 2017, precisei apenas de um slide que mostrava dois
fotogramas do filme Godzilla (2014) para explicar precisamente o que eu quis
dizer quando afirmo que o filme constrói uma relação do monstro com o
exército americano. Apesar do movimento, inerente à cinematografia, ao
mostrar as duas imagens estáticas e explicar que se trata de uma sequência, já
dei conta de ilustrar suficientemente o argumento.
18
Figura 4. Slide apresentado no evento Transnational Monstrosities com
fotogramas do filme Godzilla (2014). O primeiro fotograma mostra o soldado
americano caído, após a batalha. Pelo ponto de vista dele, em seguida, no
filme, vemos o Godzilla tombar após a batalha contra os MUTOs, outros dois
monstros gigantes.
O som, por outro lado, não possui uma imagem, objetivamente, passível
de leitura como um fotograma de uma sequência cinematográfica, ou uma
partitura, ou um texto. O francês Édouard-Léon Scott de Martinville é
considerado a primeira pessoa a fazer uma gravação de áudio, em 1860. Na
época, sendo impossível reproduzir o que havia gravado, Martinville pensava
que as pessoas leriam os seus registros sonoros e imaginariam o som em suas
mentes1.
Há tempos, somos capazes de colher informações que permitem uma
perfeita reprodução da informação sonora em sistemas de som e, mais
recentemente, em softwares. No entanto, estas informações continuam
insuficientes para que façamos uma leitura de seus registros sem a ajuda de
decodificadores. Somos capazes de colher algumas informações, mas não
conseguimos ouvir os sons nas nossas cabeças, como Martinville imaginava.
1
A brief history of the Waveform. Disponível em < https://soundcloud.com/stylusradio/a-brief-history-
of-the-1 >. Acesso em 25/02/2018.
2
A brief history of the Waveform. Disponível em < https://soundcloud.com/stylusradio/a-brief-history-
19
O som em softwares, gera imagens que trazem informações de algumas
de suas qualidades. Quando o som, a partir de um transdutor (como um
microfone), torna-se áudio, um sinal eletrônico, a sua representação mais
comumente encontrada é a waveform, ou forma de onda. Jonathan Sterne,
historiador do som, diz que “As pessoas pensaram o som como uma onda
provavelmente desde sempre”2.
2
A brief history of the Waveform. Disponível em < https://soundcloud.com/stylusradio/a-brief-history-
of-the-1 >. Acesso em 25/02/2018.
20
caso do software Izotope, muito utilizado entre os profissionais como um editor
de áudio, o qual utilizaremos para o exemplo a seguir.
21
representações, uma acima da outra, pois cada uma corresponde a um dos
canais de um áudio estereofônico (esquerdo e direito).
Podemos concluir, ao olhar para a figura, que o som inicia
repentinamente, com forte intensidade (“volume”), e que progressivamente
perde intensidade até cessar. Sabemos que as frequências mais graves são
mais presentes do que as mais agudas. Mas não somos capazes de ouvir o
áudio representado em nossas mentes.
Esta dificuldade de descrição deste tipo de objeto é um desafio relevante
na hora de considerar a pesquisa sobre o som. A dificuldade aparece até
mesmo nas aulas de Captação e Edição de Áudio que ministro na Universidade
Anhembi Morumbi: é difícil explicar verbalmente o que é um som grave para os
alunos apenas mostrando um desenho de onda. Faz-se necessário encher as
bochechas e reproduzir com a voz o som mais grave que eu sou capaz de
emitir. Pois é através da experiência, na percepção dos sentidos e do próprio
corpo, que o entendimento do som inicia. Mas e no texto científico, que não
possui boca? (Talvez ÔÔÔÔ [grave] e ÍÍÍÍÍ [agudo]?).
Frequências ao menos possuem uma escala em Hertz (ciclos por
segundo). Mas timbres, por exemplo, por mais importantes que sejam para a
singularidade de um som, são de difícil descrição. Em geral, faz-se necessária
a menção ao emissor destes sons. Sobre esta condição do som, Fernando
Iazzetta, pesquisador de música da USP, em artigo intitulado A Imagem que se
ouve, afirma que
Os sons são, antes de tudo, signos que remetem a
algo: a uma fonte sonora, a ambiente sonoro, a um evento
sonoro, mas também a todas as coisas, contextos e situações
que podem estar associadas a esses sons. Um mecânico é
capaz de perceber o mal funcionamento de um carro
simplesmente ouvindo sutis flutuações sonoras produzidas
pelo motor, as quais podem ser imperceptíveis para o
motorista. E o médico realiza um claro exercício semiótico ao
dar seu diagnostico a partir da auscultação pelo estetoscópio
(IAZZETTA, 2016, p.378).
22
sons, busca-se utilizar estas redes associativas entre som e significado que são
constituídas culturalmente. Quando não identificamos um emissor para
mencioná-lo e fazer entender um som, é comum encontrar analogias entre
fenômenos sonoros e tipos de vocalizações humanas. Michel Chion, em sua
obra Sound (2016), cita um poema de Paul Verlaine chamado Chanson
d’automne (Canções de Outono). Ao citar estas estrofes, Chion comenta como
adjetivos comumente associados a voz são emprestados às manifestações
sonoras não próprias do ser humano. Um dos trechos é este:
Estes lamentos
Dos violões lentos
De outono
Ou
Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Os longos soluços
De violinos
Do outono
3
Disponível em < http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet024.htm >. Acesso em 24/1/2017.
23
Trata-se de um exemplo no qual uma manifestação artística, no caso
uma poesia, faz referência às expressões vocais como vindas de um objeto, na
construção de uma analogia entre a sonoridade do instrumento e a atmosfera
do outono. Isto também ocorre comumente com elementos da natureza.
Pensamos em outro exemplo possível, no caso a música Tempestade, de
Marina Lima.
A tempestade me assusta
Como sua ausência
Você, raio humano, despencou
Na minha cabeça
E desde então
Grita esse trovão
No meu peito4
4
Disponível em < https://www.letras.mus.br/marina-lima/88245/ >. Acesso em 24/1/2017.
24
A presente pesquisa tem a necessidade de ir além da menção ao
emissor de um som para descreve-lo e projetá-lo na mente do leitor. Por isso,
falaremos sobre qualidades sonoras e diferenças entre sons que serão
mencionados no decorrer da pesquisa. Ao mesmo tempo, faz-se necessário
também compreender as implicações da importância da voz no campo sonoro,
sendo o nosso objeto as vozes de monstros.
25
Ao mencionarmos áudio, estamos nos referindo à denominação dada ao
som capturado eletronicamente. Quando a pressão sonora do ambiente vira um
sinal elétrico através de um transdutor (microfone), temos um som em
condução de áudio.
Um conceito muito importante para esta pesquisa é o de ruído. Ruído
costuma fazer referência a um som indesejável, a ser evitado. Mesmo fora do
campo dos estudos acústicos, ruído é uma palavra que costuma ter a
conotação de algo que atrapalha, perturba, dificulta. Como explica Schaffer
(1992, p. 138), o termo ruído já foi concebido como o oposto de um “som
musical”, o que é controverso dado o fato de que músicos utilizam ruídos há
bastante tempo em composições, como na música eletroacústica. Sobre isso,
Iazzetta (2016) faz uma reflexão muito interessante sobre como a música e o
conceito de nota musical representam uma tentativa de restringir os sons. O
autor também discorre sobre as dificuldades de categorizar e controlar os
ruídos:
26
Ruído, portanto, é um som em geral desorganizado, acidental, sem
relação direta com um código, como são a música e a fala, que quando
mencionada nesse texto faz alusão ao uso de palavras como expressão. Um
ruído é um som confuso, de difícil descrição. A nossa compreensão de um
ruído se assemelha a que temos ao ouvir um idioma que não falamos, o qual
não sabemos estruturar e decifrar (CHION, 2016, p.61). E, para esta pesquisa,
o ruído, sendo base de tantas criações mencionadas, não tem nenhuma das
conotações negativas comumente empregadas. Pelo contrário, o ruído é a
matéria-prima por excelência do sound design aqui estudado.
No nosso recorte, falamos de vozes de monstros. Diferentemente da fala
que, como mencionamos, possui uma relação direta com um código, o aparelho
fonador dos monstros costuma apresentar a voz mais como ruído, primitivo e
desgovernado, do que algo codificado. Isso, é claro, no caso do nosso corpus.
Como veremos, existem várias formas de expressão vocal monstruosa.
O repertório das artes faz perceber a importância do aparelho fonador
dos monstros para a construção da personagem. Argumentaremos, com base
na obra de Chion, que o cinema sonoro é uma arte vococêntrica, ou seja, a voz
costuma estar acima, hierarquicamente, dos demais sons.
Voz, neste caso, compreendendo os sons emitidos pelo aparelho
fonador dos atores, apresentadores, narradores, etc. Voz é uma palavra com
vários sentidos. Seu uso faz referência à palavra, às expressões (como em “a
voz do povo”), até mesmo às partes de uma composição musical. Na nossa
pesquisa, falamos da voz sobretudo enquanto vocalização. Enquanto som
produzido por aparelho fonador humano ou animal. Ou até, é claro,
monstruoso. Independentemente de ser codificado ou não.
Dando continuidade, falamos sobre a hierarquia dos sons no cinema,
que frequentemente estabelece a voz como protagonista. Esta transparece
desde o roteiro, que tende a descrever mais os diálogos do que as paisagens
sonoras, até a captação de som direto (microfones como o shotgun [boom] e o
lapela são especialmente projetados para captar a voz no set de filmagem) até
27
a mixagem, processo no qual os volumes e efeitos são ajustados. Sobre esta
importância, Chion afirma que “A voz não é um som qualquer, “da mesma
forma que a imagem de um rosto não é como qualquer outra imagem” (CHION,
1999, p.6).
Desta forma, se na hierarquia dos sons do cinema, a voz é o som
principal, o maior potencial de comunicação do monstro também costuma estar
nas vocalizações que ele emite, por mais que não sejam decodificáveis como a
fala.
A voz enquanto “som principal” é compreensível, dado o fato do som ser
um privilegiado mecanismo de comunicação entre seres humanos e animais,
especialmente o som enquanto voz/vocalização. Os ruídos também
comunicam, é claro, mas é interessante perceber como, dentre as
possibilidades de tradução, a voz é consideravelmente mais objetivamente
mencionável, desde as onomatopeias até, principalmente, a fala.
A escolha da voz, por exemplo, e consequentemente do som, como uma
das formas primordiais de comunicação do homem, está provavelmente
relacionada à algumas características sonoras. O som não é tão direcional5 e
não é dependente da luz, como a imagem. Isso o torna mais apropriado. Como
menciona Metz, “a conexão relativamente fraca (do som) com o espaço provém
múltiplas vantagens das quais a raça humana não teria se beneficiado caso
uma linguagem visual tivesse sido escolhida” (METZ, 1980).
“Às vezes som e voz tornam-se unos” (CHION, 2016, p.51), é só
perceber como a voz aparece em destaque nas próprias nomenclaturas de
tecnologias sonoras. Em Grego, a palavra phoné significa voz. E esta é a
origem de todas aquelas palavras que fazem referência à áudio e gravação de
som, como por exemplo microphone/microfone, gramophone/gramofone e
Vitaphone (nome da [convencionada] primeira tecnologia de cinema sonoro).
Vale lembrar também que os primeiros filmes sonoros eram conhecidos e
5
A propagação das ondas sonoras e fenômenos físicos envolvidos, como a difração e a reflexão, fazem
com que o som consiga contornar obstáculos e “ricochetear” em ambientes, fazendo com que chegue
aos ouvidos de alguém por mais que esta pessoa não esteja “voltada” para a direção do emissor. O
mesmo não acontece com a imagem. Portanto, o nosso campo visual tem uma restrição em termos de
direcionalidade maior do que a nossa escuta.
28
divulgados como Talkies, ou “falantes”. Isso tudo transparece o lugar da voz na
hierarquia dos sons, os quais estas tecnologias foram pensadas para captar e
reproduzir.
O cinema é verbocêntrico e vococêntrico. Verbocêntrico, pois o código
trazido pela voz deve ser inteligível e costuma evitar-se possíveis camuflagens,
conforme afirma Chion (1994). O autor explica que a característica
Vococêntrica está na semelhança com o que acontece na natureza, onde a voz
se destaca de outros elementos sonoros enquanto os estamos captando no
ambiente.
29
A voz emana de um corpo, não somente no sentido psico-
fisiológico do termo, mas igualmente no sentido (que, para mim,
não é metafórico) em que falamos do “corpo social”. Na voz
estão presentes de modo real pulsões psíquicas, energias
fisiológicas, modulações da existência pessoal. Gostaria de
dizer que a voz reflete de maneira imediata uma certa atitude do
homem para com ele mesmo, para com os outros, para com
sua consciência e sua palavra: atitude percebida pelos ouvintes
de modo empírico, global, a maior parte do tempo sem o menor
começo (nem mesmo possibilidade) de análise (ibidem).
30
códigos emitidos. Podemos listar ao menos três tipos de comunicação vocal
dentre os monstros do cinema: idioma humano, idioma próprio e os que se
comunicam de maneira pré-formal.
Existem monstros do cinema que se comunicam utilizando idiomas
humanos, comumente aqueles do país de origem da produção em que se
encontram, e que são recorrentemente dublados para outros idiomas, quando
da versão para outros países. Outros monstros se comunicam por idioma
próprio, ou seja, são de região ou planeta fictícios com sua própria forma de
comunicação verbal. Já os monstros com comunicação vocal pré-formal não
demonstram conhecimento de nenhum esquema de códigos de comunicação
verbal e se comunicam com interjeições vocalizadas de toda sorte: rugidos,
grunhidos, estalos, gritos, etc.
A tabela a seguir traz vários exemplos de monstros do cinema em cada
uma destas “categorias” de comunicação vocal.
31
Freddy Krueger (A Hora do Yautja, falado pelo Predador Godzilla
Pesadelo) (Predador).
Chucky (Brinquedo
Huttese, falado por Jabba Xenomorph (Alien)
Assassino)
The Hutt (Star Wars).
Regan McNeil possuída pelo Heptapod A, falado pelos Zumbis (Guerra Mundial Z)
diabo (O Exorcista) Heptapods (A Chegada).
32
Stay Puft Marshmallow Man
(Os caça fantasmas)
Pinhead (Hellraiser) Klingon, falado pelos
Klingons (Star Trek).
Tabela 1. Comparação de formas de comunicação vocal de famosos monstros
do cinema.
Eventualmente, em aparições dos monstros representados na tabela
acima, é possível encontrá-los apresentando um comportamento vocal
diferenciado, que os reclassificaria quanto as formas de comunicação. No
entanto, costumam ser acontecimentos isolados, muitos específicos, que não
alteram a percepção geral de como esses monstros se comunicam. Temos um
exemplo destes eventos em Jason vai para o Inferno (Jason Goes to Hell,
1993), em sequência na qual Jason Vorhees invade o corpo de um policial e
fala uma frase. Este acontecimento é motivo de revolta entre os fãs, como
escreve Jeremy Dick no artigo “Sexta-feira 13: o estranho momento em que
Jason falou”, no site de fãs da franquia de terror 1428 Elm 6: “(…) o fato de
Jason ser um monstro absolutamente calado é uma de suas características
mais marcantes. Fazê-lo falar de repente é provavelmente a pior coisa que
você poderia fazer com o ícone da cultura pop” (DICK, 2016).
De qualquer forma, o processo de criação destas vozes difere de acordo
com o tipo de comunicação do monstro. Caso o monstro utilize um idioma
humano para se comunicar, é comum termos composições interessantes de
vozes de atores que trabalham na interpretação do monstro.
Em O Exorcista (1973), no qual uma menina é possuída pelo demônio, a
atriz Mercedes McCambridge foi responsável pela dublagem. Para conseguir
6
Disponível em < https://1428elm.com/2016/06/12/friday-the-13th-that-awkward-moment-when-
jason-talked/ >. Acesso em 13/10/2017.
33
uma voz com timbre naturalmente demoníaco, a atriz engolia ovos crus, bebia
uísque e fumava em grandes quantidades 7 . Para fazer a voz do Freddy
Krueger, o monstro da franquia A hora do pesadelo (A Nightmare on Elm Street,
cinco filmes, de 1984 a 1989) o ator Robert Englund conta que os técnicos de
som faziam uma manipulação da altura de frequências de sua voz, a deixando
mais grave. Como Englund não queria que a voz soasse artificial depois da
manipulação, ele fazia as falas no set bem rapidamente, para que a
desaceleração do efeito de pitch shift 8 de frequências não prejudicasse o
resultado9. Impossível não mencionar também Vincent Price que, por mais que
não tenha ficado famoso pela voz de monstros em si, foi um dos narradores de
filmes de terror mais consagrados pelos fãs do gênero. Com um timbre intenso
e horripilante, participou inclusive da Thriller, de Michael Jackson, narrando a
história de terror e dando a risada que encerra a música.
Mas a voz dos monstros do corpus não está nesta categoria, não possui
decodificação precisa. Trata-se de um desafio diferente.
O profissional responsável por criar estes sons atualmente é conhecido
no mercado audiovisual como sound designer. Trata-se de um cargo
relativamente novo e sem uma única definição. Veremos a seguir quem é este
profissional.
34
quadro, quando o som ajuda a contar uma história reiterando a presença dos
elementos da diegese, o sound designer é capaz de criar atmosferas, fazer uma
crescente dramática e pensar/criar ruídos que nunca antes ouvimos, apenas
para citar algumas das possibilidades criativas desta função.
Dado o viés da pesquisa de análise de processos de criação, sobre os
profissionais que compuseram as vozes das criaturas mencionadas, é
importante também apontar que sound designer é uma designação proveniente
das novas funções assumidas pelos profissionais de som no cinema a partir
dos anos 1970. Este termo, portanto, está carregado das subjetividades do
trabalho de som das obras cinematográficas, sendo um termo distante de ter
um significado fixo. Como afirma William Whittington, autor do livro Sound
Design and Science Fiction, o termo sound designer “continua a crescer
enquanto novas influências são introduzidas e é aplicado em diferentes
contextos desde a produção até a academia” (WHITTINGTON, 2007, p.26-27).
Outro importante pesquisador que discute o som cinematográfico,
abordando-o desde o tempo do cinema mudo, é Rick Altman. O autor, que
constantemente criticou a visão do som como algo inferior a imagem, diz que o
“louvor” aos sound designers que surgiram na década de 1970 tem um lado
controverso. No caso, esta adoração faria desmerecer o trabalho de som feito
anteriormente no cinema. É como se, antes dos sound designers, quem
trabalhasse com som no cinema fosse apenas um técnico que “gira botões em
suas máquinas” (ALTMAN, 2004, p.6).
Don Rogers, diretor de som da Warner Bros entre os anos 1970 e 1990,
explica que a função de Diretor de Som, profissional que organiza e fiscaliza as
etapas de produção sonora de um filme, está presente desde o princípio do
cinema sonoro. George Groves já era denominado o diretor de som no pioneiro
The Jazz Singer, convencionado como a estreia do filme sonoro. “Diretor de
som era o título da pessoa que liderava o departamento de som” (LOBRUTTO,
1994, p.21).
Interessantes experimentações sonoras estão presentes desde os
primeiros anos do cinema sonoro, em obras que trabalhavam seu potencial
35
para a construção de sentido de diferentes formas não-reiterativas à imagem.
Particularmente, gostaria de mencionar o belíssimo trabalho de Fritz Lang e sua
equipe em M (1931), traduzido no Brasil como O Vampiro de Dusseldorf. O som
de M foi exaustivamente explorado em artigos acadêmicos, despertando grande
atenção dos pesquisadores que se interessam por som. Já nos primeiros
minutos de filme, Lang utiliza, por exemplo, uma música assoviada por um
assassino como uma de suas características de identificação para o
espectador, em um recurso sonoro conhecido como leitmotif. Ressaltamos que
isso foi em 1931, apenas quatro anos após a “inauguração” do cinema sonoro.
Godzilla (1954), parte do corpus da presente pesquisa, é também um
ótimo exemplo de uso criativo do som antes da década de 1970.
No entanto, o termo Sound Design e suas respectivas funções vem
acompanhadas de mudanças determinantes no cinema que acrescentaram
muito às possibilidades criativas do som. Diretores do movimento iniciado nos
anos 1960 e conhecido como Nova Hollywood, entre eles Martin Scorcese,
Francis Ford Coppola e George Lucas, estavam ansiosos para testar as
possibilidades expressivas das novas tecnologias cinematográficas. Para
estes diretores, o som também era um importante campo de experimentação a
contribuir para os filmes. Houve, portanto, a promoção de uma atualização dos
métodos Hollywoodianos de usar o som no cinema.
O Nagra III, lançado em 1957, fez parte da primeira geração de
gravadores de som portáteis a disposição dos profissionais do cinema. Torna-
se muito mais simples ir a campo para gravar sons e promover
experimentações, não sendo mais necessário o uso dos grandes e pesados
equipamentos antigos. Além disso, o Nagra III utilizava fita magnética, a qual
facilitava a edição em múltiplas camadas, possibilitando simultaneidade de
reproduções. William Whittington explica que:
36
solicitada por produtores e diretores ‘sonoro-conscientes’,
como Coppola e Lucas (WHITTINGTON, 2007, p.72).
37
Burtt (MIRANDA, 2011, p.161)
11
As categorias, no caso, são: Melhor Trilha Sonora, Melhor Canção Original, Melhor Edição de Som e
Melhor Mixagem de Som.
38
sincronização. O mixador, por sua vez, controla os volumes de todos os
elementos, posiciona os sons de acordo com a imagem e o ponto de escuta da
cena, bem como organiza a reprodução de cada som dentro dos sistemas de
exibição das salas de cinema.
O departamento de som de uma obra do cinema é mais extensa do que
estas funções. É fundamental, por exemplo, o trabalho do artista de Foley (que
refaz sons que ajudam a dar concretude à imagem: passos, portas, tecidos, etc)
e a equipe de ADR (automated dialogue replacement) que, em uma prática
bastante comum, refaz falas dos atores em cena no estúdio em um processo
como o da dublagem.
Quanto ao sound designer, esta função ainda é um termo sem uma
definição fechada. É possível encontrá-lo citado em referência a diferentes
funções de uma obra cinematográfica. William Whittington (2007, p.2-3) cita três
funções diferentes atribuídas ao sound designer no processo de criação
cinematográfico:
Função Descrição
1- Criador de efeitos sonoros Comumente relacionado a profissionais como Ben
Burtt, em seu trabalho para Star Wars, por
exemplo. O sound designer nesta definição é o
criador de efeitos sonoros específicos. Por meios
das novas tecnologias, designers como Ben Burtt
contemplaram pela primeira vez as tarefas de
profissionais de som direto, editores e mixadores
para fazer uma experimentação sonora que se
baseia em códigos da linguagem cinematográfica
para criar sons que possuem múltiplas camadas
em sua forma de construir sentido. Exemplo: som
do Chewbacca em Star Wars.
2- Designer da trilha sonora Nesta definição, o sound designer é visto como
como um todo alguém que constrói o conceito de uma trilha
sonora (diálogo, ruídos e música) por completo. É
feito um mapeamento de todas as necessidades
sonoras cena a cena de um filme, com a intenção
da construção de sentido e direcionamento do
olhar. Exemplo: em Terminator 2 (O Exterminador
do futuro 2), o som é pensado para chamar a
atenção dos espectadores para ações específicas
da diegese.
3- Mixador dos sons do filme Walter Murch utiliza o termo sound designer
39
para as salas de cinema também para se referir ao profissional que distribui
os sons em uma sala de cinema, especificamente
para sistemas mais complexos que surgiram a
partir dos anos 1970, como o Surround, que
compreende 6 canais de áudio: centro, direita,
direita surround, esquerda, esquerda surround e
subwoofer. Esta mixagem é importante pois é uma
das características que fortalecem o apelo
comercial das salas de cinema, como veremos no
próximo capítulo.
Tabela 2. Diferentes entendimentos possíveis de um sound designer, com base
em WHITTINGTON (2007, p.2-3).
40
orquestração e condução pelo diretor e pelo supervisor de
som ou designer, bem como pelos inúmeros indivíduos que
editam, gravam e regravam os elementos sonoros. Através
deste processo, o sound design geral acrescenta uma camada
adicional de enunciação narrativa para um filme, permitindo
que o cineasta aponte para ações ou eventos específicos
através da ênfase ou do isolamento do som. Neste contexto
final, a complexidade e o potencial do sound design são
ilustrados em todas as suas formas, da criação de efeitos
específicos ao planejamento e padronização da trilha sonora
final (WHITTINGTON, 2007, p.220).
Isso não significa, no entanto, que este papel eventualmente não possa
ser desempenhado por profissionais de outras áreas em um filme. Ben Burtt era
designado como o sound designer de Star Wars, mas Peter Cullen, em
Predador, era o dublador da criatura e Akira Ifukube, em Godzilla, o músico que
compunha as trilhas orquestradas.
Mesmo em outras funções ou não originalmente designados para
cumprir tal papel, pelo acaso dos processos de criação, estes profissionais
foram os responsáveis pela composição das vozes dos monstros do corpus. Os
41
detalhes destas composições serão analisados nos capítulos seguintes. São
experiências de criação de vozes de monstro muito criativas e que significam,
cada uma em seu tempo, acréscimos de repertório importantes às expectativas
quanto ao som do monstro na linguagem audiovisual.
42
mais aberto, utiliza os mesmos códigos para ser compreendido por quem
assiste como uma ação que ocorre no mesmo espaço.
Para o presente trabalho, iremos adotar a noção de linguagem
audiovisual conforme proposta por Bravo:
linguagem audiovisual entendida como os modos
artificiais de organização da imagem e do som que utilizamos
para transmitir ideias ou sensações, ajustando-nos à
capacidade do ser humano para percebê-las e compreendê-
las (BRAVO, 2006, p.27).
43
retratadas na cultura pop. O perigo que vem de baixo das águas de rios, lagos e
oceanos está presente em muitas narrativas, desde Jason12 (Sexta-feira 13) até
o próprio Godzilla. Stephen Asma atribui este imaginário de águas profundas e
ameaça às desventuras do homem nas águas desde épocas pré-históricas.
Além dos predadores naturais das águas, como tubarões e jacarés, a grandeza
das ondas e casos de afogamento, até hoje comuns, podem ser a origem
destas histórias (ASMA, 2009, p.3).
Mas por que o monstro, calcado em experiências desagradáveis e de
medo, é motivo de tantas histórias famosas, consumidas através das gerações?
Uma hipótese é que os monstros representam tudo aquilo que é desconhecido,
portanto assustador. Asma relata uma experiência feita com macacos por
Charles Darwin, biólogo e autor da teoria da Evolução das Espécies. Sabendo
que os macacos tinham um medo instintivo de cobras, Darwin colocou uma
cobra empalhada na “casa” dos macacos. Eventualmente, estes perceberam
que tratava-se de um animal morto e não tiveram problemas em mexer nela.
Posteriormente, no mesmo lugar, Darwin colocou uma cobra viva dentro de um
saco.
12
Jason é uma personagem famosa dos filmes de terror. Era uma criança com deformidades que morreu
afogada em um lago (Crystal Lake), durante uma colônia de férias. Jason, desde então, volta das
profundezas do lago com uma máscara, para matar turistas que vem visitar a região.
44
A curiosidade e o interesse pela figura do monstro dá pistas sobre sua
constante aparição no cinema. Mas ele nem sempre é o mesmo. Culturalmente,
a depender do contexto, o monstro assume diferentes formas e surge em
narrativas distintas. O cinema explora várias facetas do monstruoso, desde
criaturas fantásticas até personagens com atitudes consideradas
desumanizadas. O monstro pode ser fisicamente incomum e de boa índole ou
até mesmo um ser humano com atitudes consideradas eticamente
“monstruosas”.
Aquilo que era pra assustar e desagradar, agora virou
campeão de audiência e modelo de identificação.
Frankenstein, o proletário mecânico; Drácula, o paradigma do
elitismo e do parasitismo social; a Múmia, a realização de
desejos pendentes ao longo de milênios; o Lobisomem, um
cidadão animal e pulsional, contrário à civilização nas luas
cheias; todos eles, marginais e deletérios; fascinantes, porém
perigosos, nítida e notadamente antissociais (CESAROTTO in
MESSIAS, 2017, p. 2).
45
Frequentemente representando os anseios e criando identificações com
visões catastróficas, distópicas, é comum que o monstro tenha uma conotação
negativa. As narrativas do monstro fantástico no imaginário fazem com que
seja uma quebra de expectativas interessante ver personagens bondosos,
como por exemplo o Chewbacca, sendo definidos como monstros, a mesma
“categoria” de criaturas feias, gigantescas ou perigosas. Mas, depois de
provocar o choro desesperador da minha sobrinha de dois anos usando a
máscara do simpático Chewie13, pude perceber o quanto até mesmo o mais
bem intencionado dos monstros carrega em sua imagem um engrama ligado às
representações mais tradicionais do monstro no cinema e nas artes.
Para Durand (2004, em publicação original de 1996), estamos
culturalmente, cada vez mais, ressonantes com o tema do retorno do mito,
resgatando as visões de mundo e problemáticas simbólicas. A civilização
ocidental entrou, há algum tempo, no que Durand chama de uma “zona de alta
pressão imaginária”, e um dos fatores determinantes para esta crescente é o
cinema.
Isto começou no século passado, diante do estrondo
triunfante da revolução industrial, com o florescimento
romântico e em seguida simbolista, isso foi progressivamente
tomando grandes proporções para se lançar – como diz don
Basile – a partir do início do nosso século com a explosão dos
meios técnicos audiovisuais (DURAND, 2004, p.7).
13
Apelido de Chewbacca.
46
neste processo. Edgar Morin, sociólogo, antropólogo e filósofo francês, explica
que
É certo que desde seu aparecimento na Terra, o homem
alienou suas imagens, fixando-as em osso, marfim ou na
parede das cavernas. É certo que o cinema é da mesma
família dos desenhos rupestres da Eyzies, de Altamira e de
Lascaux, dos rabiscos de crianças, dos afrescos de
Michelangelo, das representações sagradas e profanas, dos
mitos, das lendas, da literatura... Mas nunca a tal ponto
encarnadas no próprio mundo, nunca a tal ponto atracadas à
realidade natural. Por isso foi preciso o advento do cinema para
que os processos imaginários fossem exteriorizados de forma
tão total e original. Podemos finalmente “visualizar nossos
sonhos” porque eles se lançaram na matéria real. Finalmente,
pela primeira vez, através da máquina e à sua semelhança,
nossos sonhos são projetados e objetivados. São fabricados
industrialmente e compartilhados coletivamente (MORIN, 2014,
p.257).
47
Figura 8. fotograma de O Monstro, de George Meliès (1903). O monstro é o ser
de branco, à esquerda no enquadramento.
48
1.6. Os sons do monstro em seu tempo e espaço
49
cinematográfico e das regras da decupagem clássica, acreditamos, mas os
filmes presentes no corpus da pesquisa transparecem intenções de esquivar-se
da opacidade. Opacidade no sentido de, entre outros fatores, revelar o aparato
técnico que torna os monstros possíveis.
Nos filmes em que aparecem os monstros do corpus da presente
pesquisa, transparece, por parte da produção, uma busca do que podemos
chamar de coerência sônico-imagética, com efeitos de realidade. O que
queremos dizer com esta afirmação é que os sons dos monstros foram feitos
para parecerem críveis, compatíveis, possíveis. Nesta busca de coerência, é
importante ressaltar que os processos culturais, tanto ou mais que a natureza
dos sons e seus emissores, são importantes para este efeito. O repertório do
som do monstro, construído na história do cinema e de outros meios, determina
as noções mais imersivas dessa realidade particular. É a representação do
monstro, e não a física, química ou biologia aproximada dos efeitos em cena,
que traz este efeito, já que
50
Capítulo 2. Uma breve arqueologia do som do monstro
51
Esta forma predominante, pouco científica, de se relacionar com
fenômenos sonoros, ao perpassar tantos povos, parece ter refletido na relativa
ausência de registros objetivos dos sons presentes em diversas
manifestações artísticas, incluindo aquelas que contribuem para a formação
de uma linha do tempo das representações pré-cinematográficas de monstros
e criaturas fantásticas.
Antes do cinema sonoro, criaturas fantásticas de toda sorte foram
retratadas nas artes performáticas, literárias e plásticas, por vezes
acompanhadas de efeitos, descrições e sugestões sonoras.
Segundo o estudo de Thanos Vovolis, designer de máscaras teatrais e
pesquisador de artes da American College of Greece, na Antiga Grécia,
especialmente em Atenas, a oralidade no teatro tinha fundamental importância.
Os atores, além de possuírem uma voz com forte presença, precisavam saber
cantar. Esta ênfase nas qualidades vocais dos atores, aliada a tradição do uso
de máscaras, originária nos cultos à Dionísio, Artemis e outros deuses, fez com
que estes acessórios passassem a ser projetados como câmaras acústicas
vestíveis.
Este efeito faz uso do fenômeno físico que conhecemos como
ressonância. Nos estudos de acústica, este se apresenta como a propagação
vibratória da onda sonora. Saber trabalhar um ressonador significa amplificar o
som resultante, tanto que a maioria das caixas amplificadoras possuem
estruturas ressonantes em seu projeto. Além disso, o corpo humano como um
todo é capaz de funcionar como um ressonador. Os mais importantes são o
peito, a faringe, o nariz, a boca e a cabeça, sendo a última a mais trabalhada
por profissionais da voz.
Vovolis explica que um fenômeno acústico chamado consonância
ocorria no espaço entre a boca do ator e a máscara que ele veste,
amplificando os ressonadores naturais dos atores.
52
Em suas próprias palavras: ‘Consonância é o processo em
que, em razão de duas superfícies reflexivas bem
posicionadas, a voz é fortalecida por duas ondas sonoras
idênticas chegando ao mesmo ponto, ao mesmo tempo,
combinadas para produzir a soma de seus efeitos.’ A máscara
cria consonância e amplifica ainda mais o ressonador da
cabeça (VOVOLIS, 2000, p.76).
53
Figura 10. Fotogramas que mostram máscaras presentes nos filmes de terror,
na sequência, Uma noite de crime (2013), Sexta-feira 13 (1980), Halloween
(1980), Pânico (1997), Os Estranhos (2008), O Massacre da Serra Elétrica
(1974).
Assim que os raios solares se apagaram abrindo lugar às trevas, todos, remadores e soldados,
dirigem-se a seus postos; e os navios se colocam segundo a ordem recebida. Durante toda a
noite, a frota, disposta pelos chefes, guarda cuidadosamente a passagem. Escoa-se o tempo,
nenhum dos gregos tenta fugir. Mas apenas a aurora, no seu carro luminoso, seus clarões
sobre a terra espalha, ouvem-se tons moduladosos de festivo toque e um canto de guerra
54
repetido pelo eco dos penhascos. Os persas, ludibriados em sua expectativa, horripilam-se:
o hino entoado pelos gregos não era de retirada, porém de estímulo ao combate. O som da
trombeta inflamava-lhes a coragem. Ressoa um grito; os rápidos remos cortam
simultaneamente a onda salgada, que estremece: em breve, surgem todos à nossa vista.
Ouve-se uma vibrante voz: “Filhos dos gregos, ide, salvai nossa pátria, vossas mulheres e
filhos, os tempos de vossos deuses e os túmulos de vossos ancestrais; é por todos eles que
hoje deveis combater”. Surpreendidos, os persas responderam num murmúrio (trecho de Os
Persas, de Ésquilo).
Uma das criadas antigas, crendo que vinham aí as iras de Pan ou de algum dos deuses,
soltou um grito, antes mesmo de ver pela boca golfar alva espuma, as meninas dos olhos
reviradas e o corpo exangue. Então um grande lamento em contrário respondeu àquele
grito. Logo uma se precipitou para a casa do pai, outra para o esposo de há pouco, a contar a
fatalidade da noiva. E toda a casa ressoava com o ruído das correrias apressadas (trecho de
Medéia, de Eurípedes).
CÉSAR (mais seriamente). Minha pobre criança: sua vida não importa nem um pouco para
ninguém aqui a não ser você. (Ela cai em prantos. De repente, um grande tumulto é ouvido a
55
distância. Bucinas e trompetes soam através de uma tempestade de gritos. Britannus corre
para o parapeito e olha ao longo do porto. César e Rufio trocam olhares com rápida
14
inteligência.)
Figura 11. Uma antiga “máquina de vento” ainda em uso na Drottningholm
house (Suécia) e as “folhas de trovão” do departamento de teatro da
Universidade de Missouri. Fonte:
http://facweb.cs.depaul.edu/sgrais/guide_to_sound_effects.htm
14
Disponível em < http://www.gutenberg.org/files/3329/3329-h/3329-h.htm >. Acesso em 27 de
Fevereiro de 2016.
56
O som do trovão, além de ser muito mencionado, está comumente
relacionado às práticas de reprodução de timbres similares artificialmente por
tecnologias como as folhas de trovão acima, por exemplo. A importância deste
som deve-se, entre outras potências de geração de sentido, à relação com
deuses e monstros em contos e mitos.
Luigi Russolo, compositor considerado um dos primeiros teóricos da
música eletrônica, em “The art of Noises” (A arte dos ruídos), de 1913, discute
o poder expressivo dos sons estranhos e dissonantes (ou ruídos) na música,
como por exemplo os sons das tempestades, e a relação das pessoas com os
novos sons que surgiram no cotidiano principalmente a partir da
industrialização da sociedade.
57
Terremotos, vento, água e especialmente o trovão: cada um
era poderoso a sua maneira. (...) muitos europeus do século
XVII consideravam que estes sons tinham fontes inteligentes
com intenções e poder, mesmo que estas fontes fossem
invisíveis. (...) Além disso, davam aos sons um poder o qual
não acreditamos mais. Sons faziam coisas com o mundo.
Moviam as pessoas, as atingiam e, no caso do trovão, de fato
as matavam. (...) Os ingleses do século XVII tratavam o
trovão como um discurso por parte de Deus ou talvez
demônios (RATH, 2003, p.11-14).
58
Figura 12. Imagem de Zeus catalogada no portal Theoi Greek Mythology.
Fonte: http://www.theoi.com/Gallery/K1.1.html
59
O som do trovão também aparece na mitologia bizantina. Registrada em
manuscritos dos séculos XIV e XV, a figura heroica de Basil Digenis Akritis, um
herói com descendência bizantina e grega, enfrenta desafios diversos. Em uma
de suas histórias, um monstro se disfarça como um belo rapaz para flertar com
a noiva de Basil. Não tendo sucesso nas investidas, o monstro se revela e
tenta atacá-la. A criatura é descrita como uma
60
nascimento da audição” (KAHN, 2001, p.5). O narrador, que se diz surdo, conta
que passou a ouvir após encontrar-se com “O criador”, um monstro sentado em
um trono de fezes e ouro com os pés em um lago de sangue, onde surgiam
cabeças de seres humanos que este monstro havia criado. O criador
eventualmente recolhia uma das cabeças com os pés e executava seu dono,
pelo prazer de assistir sua criação sendo destruída. O narrador, ao se deparar
com esta cena, gritou tão alto que conseguiu, finalmente, ouvir. Ele ouviu, no
caso, o próprio grito, cuja intensidade foi capaz de “destampar” seus ouvidos e
dar-lhe um novo sentido.
61
Ó amigo e companheiro da noite, tu que exultas com o
ladrar dos cães (nesse instante irrompeu um uivo medonho) e o
sangue derramado (aqui sons indizíveis rivalizaram com
guinchos mórbidos), que vagas em meio à sombra das tumbas
(então ouviu-se um suspiro sibilante) e desejas ardentemente o
sangue, levando o terror aos mortais (gritos curtos e nítidos de
uma miríade de gargantas), Gorgo (repetido como resposta),
Mormo (repetido com êxtase), lua de mil faces (suspiros e
notas de flautas), olha com carinho os nossos sacrifícios!
Quando o salmodiar terminou, ergueu-se uma exclamação
geral e sons sibilantes quase abafaram o lamento do órgão
baixo desafinado. Então um grito abafado como se de muitas
gargantas e uma babel de palavras vociferadas e berradas –
Lillith, Grande Lillith, veja o noivo! – Mais gritos, um alarido de
tumulto e os passos ritmados e nítidos de uma figura correndo
(LOVECRAFT, 2013, p.29).
62
de arte. É um exemplo interessante, pois a sua recorrência está em diversos
momentos, como em Frankenstein (1931). O trovão, repleto de significado,
aparece em um dos primeiros filmes do cinema sonoro a explorar a história de
um monstro. Enquanto o monstro passa pelo processo de tornar-se um ser
vivo, ouvimos muitos trovões e raios. Estes sons se confundem também com
os ruídos de eletricidade gerados pelos equipamentos do Dr. Victor
Frankenstein. Uma composição de sons da natureza e industriais para ilustrar o
processo que dá vida ao monstro.
A partir destes exemplos, nota-se a importância da referência a sons,
como o do trovão, para trazer a ideia de qualidades de monstros e de
acontecimentos fantásticos. Posteriormente, no cinema sonoro, com a
possibilidade de registro e reprodução de sons, percebe-se o quanto estas
tecnologias expandem o repertório de sons relacionados a monstros e ao
fantástico. Não por acaso, Noel Carroll, filósofo de artes norte-americano, em
sua obra Philosophy of Horror, afirma: “Nenhum destes gêneros (terror e
suspense) é um dos gêneros principais do cinema mudo” (CARROLL, 2003,
p.232).
Mas o cinema mudo tinha acompanhamentos sonoros. A seguir sobre a
sonoridade do cinema mudo e outras tecnologias precedentes ao cinema
sonoro.
63
conseguimos fechar nossas orelhas” (KELLY, 2011, p.14), pelo menos não
com a facilidade com que nos privamos da visão ao fechar os olhos.
O som, em maior saturação no século XX, principalmente através do
cinema, mostra sua importância quando pensamos na “visualidade muda” da
arte através da história. Segundo as pesquisas de Kahn, a maioria dos
registros anteriores ao cinema sonoro contempla apenas a música, que exclui
referências do mundo, e a voz, que é a própria fonte de existência de muitas
destas artes KAHN, 2001, p.2).
Para estes pesquisadores, a escassez de registros do som das artes em
épocas anteriores aos gravadores, tecnologia que começa a ser desenvolvida
concretamente na metade do século XIX, está ligada a efemeridade do som. “O
som habita o seu próprio tempo e se dissipa rapidamente” (KAHN, 2001, p.5).
Com a invenção do fonógrafo, datado de 1877 e registrado por Thomas
Edison, há uma maior estabilidade e qualidade na tecnologia de gravação de
sons, além da capacidade de reproduzí-los, característica que o diferencia dos
aparelhos anteriores. A partir do fonógrafo, o som assume outro status e passa
a aparecer em bibliotecas e laboratórios, bem como na literatura e na filosofia.
Os registros dos diversos usos do áudio se multiplicam.
64
Figura 14. O fonógrafo de Edison (1877). Este equipamento permitia, pela
primeira vez, tanto gravar quanto reproduzir sons. Até então, as invenções só
conseguiam fazer o registro. Fonte: http://www.icollector.com/
65
Outra invenção importante para a reprodução do som para grandes
audiências foi a válvula eletrônica, aprimorada por cientistas a partir da patente
de J. Ambrose Fleming em 1904. Possibilitando a amplificação do sinal elétrico,
a válvula posteriormente permitiu que sons fossem reproduzidos via alto
falantes com maior volume, o que torna a reprodução de sons gravados em
grandes cinemas e teatros viável. Conforme observa Arlindo Machado,
pesquisador da ECA-USP, os primeiros aparatos não tinham a potência
necessária para os novos espaços, o que pode ter operado como um dos
fatores a atrasar o cinema sonoro:
66
na sua pré-história. A diferença era que o som, em vez de ser
gravado para posterior reprodução, era produzido ao vivo por
pianistas, organistas, cantores e até mesmo orquestras
completas (MACHADO, 1997, p.158).
15
Vale lembrar que a designação “cinema mudo” é algo particular do Brasil e de algumas outras culturas.
Os americanos, por exemplo, chamam o período de “cinema silencioso” (silent film). Chion faz uma
interessante análise desta terminologia em Film, a Sound Art (2009).
67
linguagem “os curtas do começo do cinema (bem como suas particularidades
de exibição e consumo) não podem ser tratados da mesma forma que os filmes
posteriores” (ALTMAN, 2004, p.9). Além disso, ao comentar a presença das
performances de acompanhamento sonoro das produções, muitos
desconsideram as particularidades culturais das diferentes regiões e países nas
quais os filmes eram exibidos.
68
Desde o começo, o objetivo do acompanhamento
musical sempre foi o de “melhorar” o filme, de aperfeiçoá-lo.
Como anunciavam as produções da época, ‘o filme será
acompanhado de sons impressionantes, assustadores ou às
vezes suaves (...)’ (MANZANO, 2010, p.27).
69
audiovisual), os autores de livros sobre música de cinema se
sentiram totalmente justificados em tratar o som de todo o
cinema mudo como uma “coisa” só (ALTMAN, 2004, p.9).
Com base nos registros levantados por Rick Altman acerca do início do
cinema nos Estados Unidos, as lógicas dos acompanhamentos sonoros dos
primeiros filmes vêm de tradições de entretenimento anteriores ao cinema.
Quando uma determinada projeção mostrava um número musical, era natural
que se pensasse em música para acompanhá-la. Já a presença de narradores
vinha de outra forma de entretenimento: a projeção de slides com fotografias de
outros lugares do mundo, sempre acompanhadas de um narrador que contava
para os presentes a história e os costumes do local representado. Esta forma
de entretenimento era bastante popular na segunda metade do século XIX. É
compreensível, portanto, que este narrador fazendo parte do repertório do
público norte-americano, esteja presente para contar as histórias dos filmes
projetados no início do cinema. Existem registros massivos da presença destes
70
profissionais nos primeiros vinte anos do cinema nos Estados Unidos
(ALTMAN, 2004, p.55). E, finalmente, filmes que continham efeitos como
trovões e balas de canhão, tradicionalmente acompanhadas destes efeitos
sonoros, emulados em apresentações teatrais, por exemplo, pareciam
incompletos sem estes efeitos.
Nesta época, no que podemos considerar parte das artes precursoras da
edição de som e do sound design do audiovisual, profissionais eram
designados para acompanhar as projeções com sons correspondentes. Este
acompanhamento sonoro, como vamos ver, já foi feito com materiais de toda
espécie, ao vivo, e também com o uso de fonógrafos e imitadores.
Em teatros e nos vaudevilles norte-americanos, os sons de
acompanhamento eram por vezes feitos por profissionais escondidos, atrás dos
palcos e das telas com projeções.
71
Figura 16. Instrumento que possibilita simular diversos efeitos sonoros, como
portas batendo, trovões, passos, maçanetas girando, trens, etc. Fonte:
ALTMAN, 2004.
72
Estes músicos utilizavam os próprios instrumentos musicais e,
dependendo da disposição nas salas de exibição, também instrumentos
improvisados com diversos tipos de mecanismos: maçanetas, sinos, chocalhos,
manivelas, martelos, etc. Com estas ferramentas, conhecendo o filme, era
possível produzir efeitos sonoros síncronos em relação aos acontecimentos do
filme. Nesta época, era comum que a mesma equipe nas salas de cinema
tivesse que cuidar da iluminação, da projeção e dos efeitos sonoros, todos
considerados os “efeitos mecânicos” (ALTMAN, 2004, p. 152).
Além dos músicos e da equipe técnica generalista, que assumia diversas
funções simultaneamente, algumas exibições contavam com o trabalho de som
de profissionais denominados imitadores. Notoriamente, LeRoy Carleton,
famoso imitador que trabalhou com Lyman H. Howe, importante figura para a
história do som no cinema sobre o qual falaremos a seguir. Carleton, segundo
relatos, era capaz de, em uma única exibição, mudar a voz até 115 vezes para
faze-la corresponder ao filme assistido (ALTMAN, 2004, p.144).
Uma experiência interessante do começo do cinema foi a apropriação de
Lyman H. Howe das possibilidades do fonógrafo para agregar sonoridade às
imagens projetadas, cujos modelos são considerados importantes para o
desenvolvimento do cinema sonoro. Os shows promovidos por Howe nos
Estados Unidos no começo dos anos 1890 mostravam gravações de sons de
fenômenos da natureza, demonstrações de timbres de instrumentos musicais e
bandas tocando as músicas do momento. A partir da metade dos anos 1890, o
fonógrafo barateou e ficou mais acessível para o público em geral, o que
enfraqueceu o apelo dos shows de Howe. Este, para incrementar seus shows,
contratou um projecionista, Edwin J. Hadley, para acompanhá-lo. Para
corresponder às expectativas de seu público, Howe passou a anunciar filmes
com efeitos sonoros realistas como acompanhamento, gerados a partir de um
fonógrafo que acompanhava a projeção (ALTMAN, 2004, p.145).
Em 1896, Thomas Edison lançou um filme chamado Black Diamond
Express. Coincidentemente, a cidade natal de Howe, Wilkes-Barres, era
conhecida como a Black Diamond City, ou cidade do Diamante Negro, em
73
referência ao polo industrial de carvão que representava. Quando Howe
adquiriu uma cópia do filme de Thomas Edison, ele gravou um trem chegando a
uma das estações da cidade e reproduziu este som junto com a projeção.
Segundo os registros de Altman, os ruídos do vapor, dos sinos e das rodas
“tornaram a cena espantosamente real. O efeito era esmagador” (ALTMAN,
2004, p.146).
O sucesso da reprodução conjunta de projetores e fonógrafos fez com
que vários concorrentes de Howe copiassem a ideia e passassem a juntar as
duas máquinas para seus espetáculos itinerantes. Howe comenta a importância
do som para o cinema em entrevista de 1913 citada na obra de Rick Altman:
74
2.3. A sugestão sonora presente no cinema mudo
75
O paradoxo e charme do cinema surdo reside na
importância que este conferiu desde o início ao fenômeno
auricular. O cinema poderia apresentar um som contínuo
(como um alarme insistente, um sino de igreja ou uma
máquina operando) por meio de um curto plano-refrão que
seria repetido a cada quinze ou vinte segundos, alternados
com a imagem daqueles que o ouvem (CHION, 2009, p.5).
76
Figura 17. Quatro fotogramas de Metrópolis (1927), de planos abertos da
principal máquina da área subterrânea onde ficam os trabalhadores. Estes se
movem bruscamente de um lado para o outro, atendendo a um ritmo. No
mesmo tempo, os pistões centrais giram e a fumaça sai da máquina por vários
dutos. Esta composição gera no espectador uma forte sugestão sonora.
77
Na continuação da sequência acima mencionada, ao final da execução
dos trabalhadores, devorados por Moloch, a imagem ondula e retorna ao
ambiente anterior à explosão, com os trabalhadores caídos e a máquina em
sua forma normal. O espectador compreende que Moloch era fruto de um
delírio de Freder. Sobre a sonoridade da sequência descrita, Manzano afirma
que
78
e atingindo o ápice, faz com que tenhamos a sensação de ritmo
acelerando, mesmo que o plano seja o mesmo anterior.
Chegamos àquilo que Eisentein ilustra como recorrência para
transmissão da ideia sonora, bem como à construção toda feita
sobre a montagem. Ao final, o Moloch, atemporal, composto
por jogos de luz, por chicotadas levando os trabalhadores às
chamas; eles serão engolidos pelos pistões em constante
movimento, fumaça, névoa, também elementos sonoros
acompanhando o delírio de Freder (MANZANO, 2010, p.134-
136).
79
assalariados para consumir o cinema, possivelmente este “não teria
ultrapassado o estágio de mera curiosidade ou instrumento científico”
(ROSENFELD, 2009, p.63).
A progressiva migração das pessoas do campo para as cidades e os
avanços tecnológicos são relacionados com a mudança de paisagem sonora,
como lembra Altman:
80
Em um ambiente low-fi, há uma grande densidade sonora e uma dificuldade de
compreensão dos sons, tamanha a quantidade de ruídos diversos (SCHAFER,
2012, p.71).
E o som do cinema, arte urbana, apresenta-se em várias camadas. Além
das três principais divisões (efeitos sonoros, músicas e diálogos), cada uma
destas costuma trazer diversas camadas. Além disso, um dado efeito sonoro,
assim como uma composição musical com múltiplos instrumentos, costuma
abarcar uma quantidade razoável de sons que o compõem. Para compor o som
de Chewbacca, por exemplo, Ben Burtt somou as qualidades dos sons de
vários animais, como veremos em detalhe nos próximos capítulos. O somatório
destes ruídos trouxe um som único, relacionado a personagem. É o cinema
trabalhando a nossa possibilidade de ouvir diversos sons e criar um significado
a partir de sua soma, como quando ouvimos a paisagem sonora low-fi de um
bairro específico, com seus veículos, pessoas, animais, construções, e
conseguimos dimensionar muitas de suas qualidades apenas escutando esta
massa sonora pela janela: densidade populacional, características comerciais
ou residenciais, trânsito, horário do dia, etc.
A mudança da paisagem sonora das cidades veio acompanhada com
uma mudança imagética. Os emissores dos sons da paisagem low-fi estão por
todos os lados nas grandes cidades e isto reforça a natureza da nossa
associação entre imagens e sons. Assim, quando o cinema “nasce”, existe um
questionamento sobre seu silêncio. Bem como, na criação de tecnologias de
gravação e reprodução de áudio, para seus criadores este parece incompleto
sem uma imagem correspondente.
Desta forma, o cinema sonoro, em seu início, tem a seu favor um
momento da sociedade e das cidades em que seus espectadores já teriam
repertório suficiente para compreender auditivamente suas várias camadas
sonoras.
Mesmo antes do advento do cinema sonoro, inventores já vislumbravam
a possibilidade de captar e exibir imagem e som simultaneamente. Thomas
Edison, após registrar o fonógrafo, fez diversas tentativas para alcançar este
81
objetivo desde o final do século XIX. Arlindo Machado sugere que o momento
inaugural do cinema seja a partir do fonógrafo e não da projeção dos irmãos
Lumière em 1895:
82
Como vimos anteriormente, o som já emanava das imagens
cinematográficas e era natural, para alguns, que se buscasse as condições
para reproduzir som e imagem simultaneamente.
Assim como a fotografia, um som gravado é uma representação, uma
leitura. Independente da tecnologia utilizada na gravação, o som é fundamental
para o avanço das possibilidades expressivas do cinema em suas
representações diversas do mundo.
Este avanço de possibilidades expressivas pareceu encantar a
audiência, sobretudo a partir do lançamento de O Cantor de Jazz (The Jazz
Singer) pela Warner em 1927, um filme que transparece a experimentação de
linguagem da época dada a mistura de sequências de cinema mudo e cinema
sonoro para contar sua história. Nos primeiros anos do cinema sonoro, a
tecnologia utilizada era a do som em disco, o Vitaphone. Separado do rolo de
filme cinematográfico, era sincronizado por meio de um projetor que reproduzia
o disco e o filme simultaneamente. Dados os problemas de sincronia
frequentes, em pouco tempo o som passou a ser impresso diretamente no filme
cinematográfico, que durante muitos anos comportou apenas uma faixa de
áudio, sendo monofônico.
83
Figura 19. Uma máquina de projeção da época do Vitaphone, que reproduzia
um disco com o som do filme simultaneamente ao rolo cinematográfico no
projetor. Fonte: http://www.henryhadley.com/HwdGallery.html
Figura 20. Um rolo de filme com a impressão de uma faixa (monofônico) à
esquerda da imagem, na atualização de sistema de som sincronizado do
cinema que se tornaria padrão após o Vitaphone. Fonte:
https://br.pinterest.com/pin/459015386991467853/
84
modificados para isolamento de ruídos externos e para comportar microfones e
gravadores que no princípio eram gigantescos” (MANZANO, 2010, p.87).
Dada a limitação tecnológica e o encanto dos espectadores acerca da
voz sincronizada, o início do cinema sonoro viu uma disseminação de musicais
e de talkies, denominação de filmes que contavam a história principalmente a
partir do diálogo dos atores. Um exemplo é Lights of New York, lançado pela
Warner em 1928, que se valeu dos diálogos sincronizados como chamada
principal de divulgação.
Figura 21. Dois cartazes do filme Lights of New York (1928) que enfatizam a
presença da fala na trilha sonora do filme. Fonte:
https://johnlinkmovies.com/2015/01/08/johnlink-ranks-lights-of-new-york-1928/
85
diálogos são longos e desnecessários, o roteiro é fraco e os enquadramentos,
assim como em outros filmes da época, estão restritos por limitações
tecnológicas dos processos de captação de som do início do cinema sonoro.
Encontramos, por exemplo, um quadro como o da figura abaixo, no qual três
personagens se “espremem” para que, no caso, um único microfone consiga
captar todas as vozes.
Figura 22. Em Lights of New York (1928), fotograma mostra como atores
enfrentam restrição de espaço no enquadramento para que o microfone
consiga captar todas as vozes.
86
primeiros sons que prestamos a atenção e tentamos identificar no dia-a-dia
(CHION, 1994, p.6).
Em uma correspondência a este fenômeno, a tecnologia do cinema
sempre esteve focada para otimizar a captação da voz. Como firma
Whittington:
87
Já em Chantagem e Confissão (Blackmail, 1929), a personagem Alice
senta à mesa com outras personagens. Uma delas, mais falante, está
conversando normalmente. Alice está calada e atormentada por um
assassinato. Hitchcock nos transporta para o ponto de escuta de Alice e
passamos a ouvir a fala da outra personagem com um volume bem baixo, com
exceção dos momentos em que ela diz “faca”. Nessas horas, somente nesta
palavra, o volume fica bem alto e as repetidas incidências vão deixando Alice
nervosa.
88
todo tipo de manipulação para corresponder às expectativas construídas pelo
repertório do cinema. Para dar um exemplo, o tiro de uma determinada arma
muitas vezes é sonorizado pelo som real desta ação, com o exato modelo da
arma. No entanto, não é incomum manipular o timbre do tiro, deixando-o com
um estouro mais acentuado e uma “cauda” que desaparece mais
vagarosamente. Outras camadas podem ser utilizadas também, com explosões
complementares e alguns outros truques que “engordam” o tiro verdadeiro.
As práticas mencionadas por Rosenfeld remetem aos ruídos produzidos
no teatro. Também existem relatos deste tipo de procedimento em produções
feitas para o rádio. De fato, parece estranho o uso de batatas para remeter a
tambores que poderiam estar no estúdio para a devida captação de seus
timbres, mas esta época obedece a outras lógicas, ligadas tanto a convenções
e expectativas de como essas ações devem soar, quanto a limitações de
captação dos microfones da época. A pressão sonora de um tambor é muito
alta e os equipamentos tinham muito a evoluir para a devida captação deste e
de outros tipos de som. A emulação dos sons em estúdio para as primeiras
bibliotecas acontecia possivelmente pela baixa portabilidade dos equipamentos
da época. Posteriormente, como veremos ao acompanhar as práticas de Ben
Burtt em Star Wars, os gravadores compactos, mas com grande qualidade,
representaram um passo muito importante da diversidade de ruídos do cinema.
John Cage, músico e compositor americano famoso pelo uso de
instrumentos não convencionais e pioneiro da música eletroacústica, em seu
artigo The future of music, de 1937, comenta a vontade de captura e controle
dos sons do ambiente, além das possibilidades criativas das tecnologias do
cinema sonoro há pouco criadas. Estas permitiam a manipulação dos sons e
uma consequente riqueza de experiências.
89
vento, batimentos cardíacos e desmoronamentos (CAGE in
KELLY, 2011, p.23).
Figura 23. King Kong (1933). Walter Elliot usou leões e gorilas para compor o
rugido de um dos primeiros monstros do cinema sonoro Hollywoodiano.
90
Científica/Fantasia era um gênero privilegiado para experimentações desta
natureza no início do cinema sonoro.
16
WILSON, Mark. What’s the difference between science fiction and fantasy. Disponível em <
http://scifi.about.com/od/scififantasyfaqs/f/faq_difference.htm >. Acesso em 21/7/2016.
91
Entretanto, esta classificação não abarca algumas singularidades e faz
transparecer a hibridização do cinema que transborda as definições. Predador
(1987), filme com a invasão de um alienígena, é comumente reconhecido como
um filme de Ficção Científica e Horror. No IMDb (Internet Movie Database)17,
importante catálogo online de cinema, o filme também está categorizado como
pertencente ao gênero Ação. Godzilla, em sua versão de 2014, que é filme com
um monstro gigante relacionado a radiação nuclear, consta como Ficção
Científica, Ação e Aventura. Star Wars (1977), Ação, Aventura e Fantasia, já
que possui fantasmas e “a força”, um poder sobrenatural dos cavaleiros Jedi.
Mas é muito comum encontrarmos Star Wars denominado como Ficção
científica. O filme inclusive é amplamente citado no livro Sound Design e
Science Fiction de William Whittington, importante autor para a fundamentação
teórica da presente pesquisa.
Amelia Hill (2016), repórter do jornal inglês The Guardian, escreveu um
artigo chamado Star Wars FAQ: is Star Wars Sci-Fi or Fantasy? 18 . Para a
autora, as naves, as viagens espaciais e as armas aproximam Star Wars da
Ficção Científica, enquanto que a Força está mais próximo ao gênero Fantasia.
Para defender a presença de Star Wars no gênero Ficção Científica, Hill
apresenta brevemente alguns de seus subgêneros, como podemos ver na
tabela abaixo:
Subgênero de Descrição
Ficção Científica
17
IMDb. Disponível em < www.imdb.com > . Acesso em 21/7/2016.
18
HILL, Amelia. Star Wars FAQ: is Star Wars Sci-Fi or Fantasy?. Disponível em: <
http://scifi.about.com/od/starwarsglossaryandfaq/a/Star-Wars-Faq-Is-Star-Wars-Sci-Fi-Or-Fantasy.htm
>. Acesso em 21/7/2016.
92
questões científicas afins, como por exemplo os cânones da
física. A ciência não fica em primeiro plano. Exemplos:
Exterminador do Futuro (Terminator, 1984), Planeta dos
Macacos (Planet of the Apes, 1968), Predador (1987),
Godzilla (2014), Star Trek (1979-2016)
Space Opera Com a ciência como pano de fundo, este subgênero
apresenta batalhas épicas, romance e acontecimentos de
grandes proporções, sendo próximo do gênero Aventura.
Exemplos: Star Wars (1977-2015), Star Trek (1979-2016).
Science Fantasy Mistura elementos da Ficção Científica com Fantasia.
Exemplos: Star Wars (1977-2015), O Quarteto Fantástico
(Fantastic Four, 2007), O Incrível Hulk (The incredible Hulk,
2008), Homem-Aranha (Spider Man, 2002).
Tabela 3. Distinção entre vários subgêneros de ficção-científica/fantasia como
definido por Amelia Hill (2016).
93
PLANO MÉDIO – LATERAL DO NAVIO
Nos anos 1960 e 1970, o som dos filmes de ficção científica muito
comumente enfatizava elementos “eletrônicos, mecânicos e etéreos”
(WHITTINGTON, 2007, p.100). Veremos, no decorrer do trabalho, como estes
elementos foram trabalhados ou tensionados pelos sound designers.
A partir dos anos 1970, novas tecnologias de reprodução de som foram
apresentadas, como o som estereofônico. O Dolby Stereo utilizava a mesma
tecnologia de impressão da trilha sonora diretamente nos rolos de filmes, mas
graças a uma tecnologia de redução de ruídos e codificação, conseguia inserir
quatro faixas de som onde antes só constava uma. Além disso, o novo sistema
era compatível com os projetores monofônicos, não causando prejuízos para
os exibidores que não atualizassem o sistema. Apesar da mixagem e da
94
captação de áudio se tornarem procedimentos mais complexos, e
consequentemente mais caros, com a chegada do Dolby Stereo, filmes da
época forçaram esta mudança, como mostra Mark Kerins autor de Beyond
Dolby (Stereo):
95
Filmic Voices, afirmam que as inovações no âmbito sonoro comumente estão
presentes no gênero ficção científica/fantasia (MACALLAN; PLAIN, 2010,
p.256).
Não a toa, a partir destas melhorias nos sistemas de som, as salas de
cinema contemporâneas “foram criadas para hospedar sons de grande volume
e dramáticos. O cinema é amortecido com carpete, poltronas macias e é
desenvolvido para manter o som dentro de seus limites” (KELLY, 2011, p.18).
De acordo com a Lucasfilm, empresa de George Lucas, os cinemas
com sistema THX costumam ter lucro até 25% maior do que as salas que não
possuem o sistema (WHITTINGTON, 2007, p.29).
96
suportes distantes do ideal. Smartphones, televisores LCD e laptops são
suportes que dificilmente trazem a experiência ideal do som cinematográfico.
No entanto, seria preciosismo dizer que um bom trabalho não fica evidente e
não pode ser apreciado mesmo nestas condições. É o mesmo que dizer que
um belo enquadramento ou fotografia não podem ser percebidos em uma tela
de 4, 5 polegadas.
Desta forma, o trabalho do sound designer, assim como de demais
profissionais do cinema, se mantém importante independentemente do suporte.
19
Para ouvir o som dos monstros, acesse o site: https://monstersound562864699.wordpress.com/ . É
possível também utilizar o QR code abaixo:
97
As legendas das fotos nas próximas páginas trazem uma descrição
bastante simplificada da voz dos monstros ou principal ruído emitido. As fotos
são fotogramas, completos ou recortados, dos respectivos filmes.
98
Figura 25. O mundo em perigo (Them!, 1954) – As formigas
gigantes emitem um pulso agudo, semelhante a um alarme ou
sirene, com rápido batimento.
99
Figura 27. The trollenberg terror (1958) - O Crawling Eye (olho
rastejante) emite um pulso grave, que remete a uma respiração
distorcida com uma oscilação grave, sintetizada.
100
Figura 29. O terror veio do espaço (The Days of the Triffids, 1962) –
Triffids emitem um som percussivo com leve mudança de pitch, em
estalos que parecem feitos com a boca, em loop.
101
Figura 31. Eraserhead (1977) - o bebê deformado emite sons de
bebê manipulados e distorcidos. Tem uma constante dificuldade de
respirar, com pequenos engasgos e ruídos da tentativa de emissão
de fala, sufocantes.
102
Figura 33. Alien (1979) - O Xenomorph emite um guincho de grande
intensidade.
103
Figura 35. Q: the winged serpent (1982) - Quetzacoatl emite um som
que parece um guizo de cobra, com uma base de um rugido de
grande mamífero. A ênfase na mixagem é para o som de suas
mordidas.
104
Figura 37. Arrepio do medo (Creepshow, 1982) - O som do monstro
conhecido como The Crate é como um rugido de um grande
mamífero, bem grave.
105
Figura 39. O enigma de outro mundo (The thing, 1982) - A coisa
emite um som como o de borracha sendo tensionada. Quando
assume os rostos de seus hospedeiros, esses emitem rugidos como
de grandes mamíferos.
Figura 40. Gremlins (1984) – As vozes dos gremlins foram feitas por
atores diversos, inclusive Peter Cullen (Predador). Às vezes soa
106
como pequenos engasgos, ou como uma risadinha com pitch shift
para ficar mais aguda. É bastante variado e cômico.
Após realizar este levantamento, ouvindo alguns dos mais famosos sons
de monstros até 1987, fica claro o quanto os três monstros do corpus trazem
novos timbres e possibilidades para o repertório do som do monstro no cinema.
Veremos nos próximos capítulos como foi o processo de criação destes sons.
107
Capítulo 3. Processos de criação: Chewbacca e os sons da
natureza
108
• Star Wars Episódio III: A Vingança dos Sith (2005)
• Star Wars ou Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977)
• Star Wars Episódio V: O Império Contra Ataca (1980)
• Star Wars Episódio VI: O Retorno de Jedi (1983)
• Star Wars Episódio VII: O Despertar da Força (2015)
• Rogue One: Uma História Star Wars (2016)
• Star Wars Episódio VIII: O Último Jedi (2017)
• Han Solo: uma história Star Wars (2018)
20
Os Cavaleiros Jedi são personagens sensíveis a Força, uma forma de energia mágica. Esta confere aos
Jedi poderes. Usam o sabre de luz para combate.
109
estimular a imersão neste universo narrativo tão diferenciado, a imagem destes
componentes é fundamental. Mas, além disso, a identidade e as
particularidades desse universo também estão em como ele soa.
Uma famosa frase de George Lucas é “O som é 50% do filme”. Em artigo
publicado pelo UOL, Lucas complementa: “O som é 50% do filme, mas não os
diálogos. Os diálogos são só uma parte da trilha sonora”21. Esta declaração
transparece a preocupação de Lucas com o som do filme como um todo, em
suas três dimensões: diálogos, ruídos e música. Walter Murch, que trabalhou
com George Lucas em sua primeira obra THX1138 (1971), argumenta que
“apenas um punhado de diretores... realmente compreendem o uso do som
como um modulador na ação dramática” (WHITTINGTON, 2007, p.58). Lucas
seria um destes.
A importância do som no universo de Star Wars vai além da produção
dos filmes. Trata-se de uma saga pioneira em muitos aspectos, estimulando
mudanças importantes no aparato cinematográfico no que se refere ao som. O
amplo uso da tecnologia Dolby Stereo em salas de cinema, com dois canais de
áudio, é creditado à equipe de Star Wars, que produziu cópias do primeiro filme
com o áudio impresso dessa forma, sendo incompatível com sistemas antigos.
Assim, se o exibidor quisesse disponibilizar sessões de Star Wars para os seus
frequentadores, precisaria atualizar o sistema de som. Além disso, para o
terceiro filme, em 1983, George Lucas fundou a THX (Tomlinson Holman
Experience), um selo de qualidade de áudio dado a salas específicas de
cinema. Trata-se de um sistema de áudio projetado pelo engenheiro Tomlinson
Holman, funcionário da Lucasfilm (produtora fundada por Lucas em 1971), para
que as salas de cinema tivessem uma estrutura de reprodução sonora
compatível com a experiência de assistir aos filmes Star Wars22.
Além da tecnologia, a parte criativa do desenvolvimento dos sons da
saga é um diferencial. Recortaremos no primeiro filme, de 1977, mas é
importante mencionar que se trata de uma característica que acompanha todos
21 Disponível em < http://cinema.uol.com.br/noticias/efe/2015/04/17/george-lucas-diz-que-sempre-
quis-ver-star-wars-sem-saber-o-final.htm >. Acesso em 03/01/2017.
22
The THX Story. Disponível em http://www.thx.com/about-us/the-thx-story/. Acesso em 14/04/2014.
110
os produtos futuros que retratam este universo. “Muitos destes sons se
tornaram alguns dos efeitos mais reconhecidos na cultura popular”
(WHITTINGTON, 2007, p.24). A parceria entre George Lucas e Ben Burtt é um
exemplo interessante de processos de criação coletivos no cinema, como
apontam Josh Beggs e Dylan Thede, dois pesquisadores de som para novas
mídias.
111
Desta forma, Chewbacca é o emissor de um dos sons mais
reverberantes culturalmente dentre os produzidos para a franquia, bem como o
do sabre-de-luz e da respiração de Darth Vader.
A seguir, iremos desenvolver uma leitura à respeito do percurso da sua
criação, sobretudo a partir da obra de Jonathan W. Rinzler, autor e editor das
produções bibliográficas da própria Lucasfilm.
112
“Chewbacca era fascinante porque ele tinha que parecer
bonzinho, apesar de ser muito feroz quando quisesse. Era
divertido fazer um monstro que parecesse amigável e bonzinho
para variar, ao invés de ser ameaçador” (RINZLER, 2013).
Figura 43. os esboços das vestimentas de Han Solo e Chewbacca em 1975,
feitos pelo artista Ralph McQuarrie. Fonte:
https://kitbashed.com/blog/chewbacca
113
A semelhança é tanta que livros sobre o Pé Grande (um gênero
surpreendentemente volumoso em lançamentos, sobretudo nos EUA)
frequentemente mencionam o Chewbacca. Estes costumam dedicar pequenos
textos à personagem na construção de hipóteses da relação entre os dois.
No item “Sasquatch, um cachorro ou um cara em um terno?” do livro
Sasquatch seeker’s field manual de David George Gordon, o autor diz que
Chewbacca provavelmente não foi inspirado no Pé Grande, por se tratar de um
personagem inspirado em Indiana, um cachorro. “Os pesquisadores de Star
Wars chamam a atenção para a similaridade suspeita do nome Chewbacca e a
palavra russa собака (sobaka), que quer dizer ‘pequeno cachorro’” (GORDON,
2015). De fato, George Lucas via na relação de companheirismo de Chewbacca
e Han Solo uma semelhança de sua relação com seu malamute (ou Husky
Siberiano), Indiana. Indiana, aliás, foi uma inspiração tanto para Chewbacca
quanto para Indiana Jones. (DAVIS, 2014). Mas a semelhança com o tal Pé
Grande está em outros relatos, como no livro Bigfoot and I, de Darin
Richardson.
114
um índice de primitividade), alto e grande. No imaginário popular, uma figura
amedrontadora, misteriosa.
Apesar destas características imageticamente ligadas a este tipo de
figura no contexto cultural norte-americano, Chewbacca é uma personagem
que, além do grande carisma, desperta comumente o riso em suas aparições,
considerada popularmente uma figura em si cômica, adorável. Esta comicidade
pode estar vinculada à quebra de expectativas da figura, que ao invés de ser
assustadora, na maioria das cenas trava diálogos ininteligíveis, mas de
aparente articulação razoável, sabe pilotar naves e tem demonstrações
afetivas, como quando corre para abraçar Han Solo ao reencontrá-lo no
Episódio VI, depois deste último passar um período congelado.
Ivo Cláudio Bender, doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, analisa o teatro cômico em sua obra Comédia e riso. Bender,
baseado em Aristóteles, cita ações que geram riso segundo os estudos do
filósofo grego. Entre elas o engano, a assimilação para pior ou vice-versa, o
impossível, o inconsequente e as coisas ou eventos contrários às expectativas
do espectador (BENDER, 2006, p.32).
Sobre os eventos contrários às expectativas, vejamos o que diz Vladimir
Propp, acadêmico russo cuja trajetória foi dedicada ao estudo da narrativa. Para
Propp, a paródia consiste na imitação das características exteriores de um
fenômeno qualquer da vida de modo a ocultar ou negar o sentido interior
daquilo que é submetido à parodização e serve para desvendar a inconsistência
interior do que é parodiado (PROPP, 1992, p. 84). Pensando na comicidade da
quebra de expectativas e na definição de paródia, podemos ver o Chewbacca
como uma paródia da referência imagética de monstro na cultura norte-
americana. A paródia nem sempre é cômica. Entretanto, se esse for o objetivo,
o efeito de comicidade depende de um conhecimento prévio por parte do
espectador, pois as piadas estarão ligadas às convenções do meio ou gênero
parodiado.
A personagem arquetípica, facilmente identificável, passa a representar
um desvio das expectativas relacionadas ao monstro. É, na verdade, uma
115
criatura complexa, cujas qualidades de Pé Grande e cachorro, entre outras
referências, estão misturadas e indissociáveis.
Desta forma, os pormenores dos processos de criação em ambientes de
complexidade cultural, como é o caso do (bom) cinema de fantasia, ocultam
relações que vão além das misturas mais imediatamente distinguíveis (Pé
Grande e cachorro). Como exemplo de complexidade, uma mistura também
está em outro fator importante para a construção da identidade de Chewbacca:
como mencionado anteriormente, a sua voz.
Chewbacca se comunica verbalmente, mas não fala um idioma que
possa ser compreendido pelos espectadores. Personagens próximas, no
entanto, compreendem o idioma Wookie. Isto fica claro no diálogo entre
Chewbacca e Han Solo no Episódio VI: o Retorno de Jedi, logo após Han Solo
ser acordado de uma hibernação por congelamento e abraçado pelo monstro,
no mesmo momento há pouco mencionado no texto.
[voz do Chewbacca]
Han Solo: Luke? O Luke é maluco! Ele não consegue nem tomar conta dele
mesmo, muito menos resgatar alguém!
[voz do Chewbacca]
116
Figura 44. Em um desdobramento transmidiático, nos quadrinhos do
Chewbacca, um exemplo de como os desenhistas expressam o idioma Wookie
na forma escrita. Edição Chewbacca #5 (2015), por Gerry Duggan e Phil Noto.
Fonte: moviepilot.com
Na busca por algo nunca antes feito, tanto em termos de imagem quanto
de som, George Lucas sabia que precisaria contar com profissionais que não
estivessem engessados na forma Hollywoodiana de fazer cinema (RINZLER,
2010, p.39). Ele foi atrás de jovens profissionais com potencial para novas
ideias.
117
Tendo trabalhado com o designer de som Walter Murch em seus dois
filmes anteriores, THX 1138 (1971) e American Grafitti (1973), George Lucas
pretendia que a parceria se mantivesse. Murch, no entanto, estava indisponível
na época, trabalhando em outros projetos. Lucas teve que procurar outro sound
designer para criar a identidade sonora de sua obra.
Nos registros de Rinzler, consta que Lucas telefonou para a Escola de
Cinema da Universidade de São Francisco e perguntou se eles tinham “outro
Walter Murch”. O professor Ken Miura teria respondido: “não temos outro Walter
Murch, mas temos um Ben Burtt” (RINZLER, 2010, p.24). E assim Burtt teve
como primeira experiência profissional uma obra da complexidade sonora de
Star Wars.
Ben Burtt é neto de Harold Ernest Burtt, professor doutor especialista em
pássaros e autor do livro The Psychology of birds (1967). Ben Burtt costumava
acompanhar o avô e o pai em caminhadas pela natureza. Por vezes eles eram
acompanhados por Arthur Allen e Peter Paul Kellog, ambos da Cornell
University, pioneiros na gravação de sons de pássaros como material para
estudos acadêmicos23.
23
Studying a Vanishing Bird. Disponível em <
http://www.birds.cornell.edu/ivory/aboutibwo/studying_vanishing_html > Acesso em 25/11/2014.
118
Figura 45. Gravador portátil de som produzido em 1951 e utilizado pelos
professores Paul Kellog e Arthur Allen na captura de sons de pássaros. Fonte:
http://museumofmagneticsoundrecording.org/ManufacturersAmpCorp.html
119
Odisseia no Espaço, 1968) e Forbidden Planet (O Planeta Proibido, 1956),
entre outros, Lucas imaginava “um futuro mais antropologicamente correto, no
qual muitas coisas seriam como as da Terra (...), na qual você pudesse ter um
carro futurista legal, mas que ainda tivesse problemas mecânicos, rodas
dentadas e marcas de óleo” (RINZLER, 2010, p.23).
120
compreender esta vontade como uma característica da obra de George Lucas.
Murch afirma que, mesmo em THX 1138, um filme que dialoga muito mais com
a estética futurista presente em 2001 e outros títulos, Lucas queria evitar sons
eletrônicos. Nas palavras de Murch:
Este desejo, também foi apresentado como uma imposição a Ben Burtt.
Tais imposições no processo são importantes no resultado final, pois passam a
ser uma tendência complexa e um limite criativo que dá possibilidade à criação.
“É somente pelos limites que se chega ao ilimitado, o ilimitado é que exige
limites” (SALLES, 2011, p.72). Salles complementa sobre os processos de
criação e as limitações que
121
O primeiro desafio de Ben Burtt foi criar o som de Chewbacca. Ao
direcionar Burtt quanto a fonte dos sons do Wookie, Lucas acreditava que o
ruído ideal da personagem Chewbacca poderia estar em ursos, pela
semelhança, e em cachorros, pois a relação de companheirismo de
Chewbacca e Han Solo o lembrava de sua relação com seu malamute Indiana.
122
como os próprios ursos, que usam a região próxima a garganta para emitir
sons.
Durante as gravações sonoras, Burtt foi atrás de um urso chamado Pooh
que, ao ter sua refeição atrasada, emitiu diferentes tipos de rugidos. Outro
animal gravado foi uma morsa chamada Petúlia, incomodada durante a troca
de água da piscina onde vivia (RINZLER, 2010, p.25).
Burtt acreditava que assim que Walter Murch ficasse disponível, ele
entraria para o projeto como principal designer de som e faria uso destes
ruídos capturados. Posteriormente, ao saber que Murch não trabalharia no
filme, Burtt começou a compor os sons assim que teve acesso às primeiras
imagens, no retorno de George Lucas e da equipe aos Estados Unidos para a
pós-produção (RINZLER, 2010, p.26).
O som de Chewbacca, apesar de ser o suposto teste de Ben Burtt, foi
um dos últimos a ficarem prontos, sobretudo pelo perfeccionismo de George
Lucas. Em um jogo de colaboração e competição, Lucas solicitava a Burtt
muitas alterações e correções. Esse tipo de jogo relaciona-se ao que Cecília
Salles, em Gesto Inacabado, nomeia como caminho tensivo: “Polos opostos de
naturezas diversas agem dialeticamente um sobre o outro, mantendo o
processo em ação” (SALLES, 2011, p.67). Segundo Burtt:
123
Esta relação de criação coletiva entre os dois e as constantes alterações
reforçam a ideia de que “O trabalho criador mostra-se como um complexo
percurso de transformações múltiplas por meio do qual algo passa a existir”
(SALLES, 2011, p.34).
A dimensão sonora da obra Star Wars era de tamanha complexidade
que, em 1976, faltando um ano para a estreia do filme, muitos sons ainda não
estavam prontos, ou devidamente aprovados. Cada nova edição do filme
demandava todo um retrabalho de sincronia na trilha de áudio. George Lucas
chamou Sam Shaw, um reconhecido editor de som Hollywoodiano, para ajudar
Burtt nesta parte mais operacional do trabalho, enquanto ele teria mais tempo
para focar exclusivamente na composição dos sons do filme.
Sam Shaw foi chamado para coordenar o ADR (Automated Dialogue
Replacement)25, a mixagem e o foley. No entanto, dado o seu prestígio em
Hollywood, pensou que ele e sua equipe ficariam responsáveis pelos efeitos
mais elaborados, como o som do R2D2 e do Chewbacca. Isto provocou um
conflito de autoridade entre Shaw e Burtt. George Lucas, no entanto, reiterou
que os sons das personagens, das naves e das armas ficariam a cargo de
Burtt.
Sam Shaw trabalhou muito com sua equipe para entregar as mixagens
do áudio do filme nos prazos. “Há mais som naquele filme somente (Episódio
IV) do que em dez filmes medianos juntos” (RINZLER, 2013). Entretanto, pela
diferença de projeto poético entre Lucas e Shaw, foi necessário refazer muitos
momentos. Burtt substituiu diversas explosões, por exemplo, por acreditar que
eram sons já muito utilizados no cinema previamente.
25
Processo no qual os atores vão posteriormente para estúdios para dublarem eles mesmos em cenas já
gravadas.
124
3.4. – A voz do Chewbacca
125
A combinação destes sons, bem como a manipulação destes através de
equipamentos de áudio, permitiram um resultado que difere de todos
singularmente, mas que deixa um rastro de suas características timbrais no
resultado final.
Todos estes animais possuem uma semelhança fundamental com o
Chewbacca: a limitação de movimentos mandibulares. Estas escolhas são
importantes, pois fica clara a intenção de Lucas e Burtt em criar um filme com
criaturas e situações críveis dentro do possível. “Mesmo que ele (Lucas)
estivesse criando um mundo imaginário, ele queria que este soasse real (...).
Desta forma, a trilha sonora também deveria refletir a ideia de que tudo é tão
real” (LOBRUTTO, 1994, p.143).
Para dialogar com o projeto poético de Lucas, Burtt buscou este realismo
nas fontes sonoras para suas criações, o que naturalmente inclui o Chewbacca.
Sobre esta preocupação, o sound designer afirma:
126
Figura 49. O grifo, a quimera e o centauro – figuras mitológicas que reúnem
características físicas de vários animais ao mesmo tempo. Fonte: Google
Imagens.
127
Ben Burtt sugere uma metodologia que leva em conta o repertório
referente aos sons.
128
Capítulo 4. Processos de criação: Predador e os sons do
corpo
129
Figura 50. Foto promocional do filme Predador, com Dutch e sua equipe de
super machos musculosos e armados com bazucas, miniguns e afins. Fonte:
arquivo 20th Century Fox.
130
Figura 51. Sequência de fotogramas do filme Predador, na qual vemos o
Sargento Michael Elliot na floresta. Inicialmente, como surge na maior parte do
filme e, em seguida, pelo ponto de vista do monstro (Predavision).
131
Figura 52. Fotograma de um dos primeiros momentos em que o espectador
consegue ver o Predador mais claramente.
132
papel, sobretudo porque teria que entrar em um traje em que não era
reconhecido e que não possibilitava que demonstrasse seus famosos
movimentos, conquistados em toda uma trajetória de artes marciais e balé
(visto que a sua cabeça ficava no pescoço do traje e as pernas tinham pouca
mobilidade). Além disso, Van Damme acreditava que o tosco traje vermelho já
fosse o design final do monstro do filme. Mas o plano dos produtores era ainda
pior para as aspirações do ator: o traje era apenas uma referência para chroma
keyin’, tecnologia de substituição de cores por imagens, o que faria com que a
criatura sequer pudesse ser vista durante a maior parte do filme26.
Figura 54. Fotogramas do traje vermelho de chroma keyin’ que Van Damme
deveria usar (a esquerda), para o primeiro Predador (a direita), com design
rejeitado pelo diretor e pelos produtores. Para Schwarzenegger, “parecia um
26
Esta história é confirmada por McTiernan no making of do filme, mas é possível ler mais sobre a
frustração de Van Damme com o Predador em <
http://www.denofgeek.com/movies/predator/32595/when-jean-claude-van-damme-played-predator >.
Acesso em 02/01/2018.
133
cara numa fantasia de lagarto com uma cabeça de pato” (depoimento do
documentário If it bleeds we can kill it- making of de Predador, origem dos
fotogramas acima).
134
e estranha de diversos invertebrados. Não é a toa que seres
diabolizados tendem a assumir o mimetismo espantoso dos insetos –
seres que conseguem, como o diabo, se disfarçar (MESSIAS, 2017,
p.48).
135
jovem com as sobrancelhas e outro com as garras. E eles
precisavam praticar. Era como uma marionete – mas uma
marionete bem complexa. Eram necessários cinco pessoas para
faze-lo funcionar (TAYLOR, 2017).
136
direções e com grande distância. “(...) nossa percepção cobria todas as
direções espaciais, para todos os lados, para cima e para baixo, construindo
um entorno perceptivo esférico (...). A visão não conhecia horizonte (...)”
(BAITELLO, 2012, p.32). Ao abandonar as árvores e passar a viver no chão, a
visão do homem passa a ser limitada por obstáculos, consequentemente
menos abrangente, e com essa reconfiguração do modo de vida é necessário
também reconfigurar a função dos sentidos. A audição, neste novo contexto,
“torna-se mais importante como sentido prospectivo, pois na vegetação densa
deve-se escutar o que ainda não pode ser visto” (BAITELLO, 2012, p.33).
E, precisamente, antes de vermos o Predador, no mistério de sua figura,
a sua monstruosidade é composta sobretudo pelo som. O Predador é uma
criatura de diversas sonoridades que transitam de acordo com o momento da
personagem na cena. Além dos sons tecnológicos que acompanham a
vestimenta do alienígena, o espectador em determinados momentos
compartilha do ponto de escuta da criatura. Neste ponto de visão e escuta,
conhecido como Predavision, a imagem aparece com um efeito de câmera
térmica e na mão, enquanto que o som é ouvido e reproduzido com distorções,
acompanhado de batimentos cardíacos.
Além disso, com a máscara, o Predador frequentemente emite cliques,
enquanto que sem a máscara ele emite um rugido como um animal de grande
porte. Ele também imita sons, com máscara e sem. Durante o filme temos a
impressão de que a reprodução das frases dos humanos possa ser decorrente
da avançada tecnologia da criatura. Ouvimos as personagens do filme falando
e a imitação das frases reproduzida de forma bastante modulada, sobretudo
pela perspectiva do monstro. Mas quando Dutch, após derrotar a criatura, a
olha perplexo e diz “Who the hell are you?” (Quem diabos é você?), a frase é
repetida também pelo Predador sem a máscara.
O som dos cliques do Predador é como se fosse uma emissão
constante. Por mais que pareça, por vezes, involuntária, trata-se da
característica vocal mais presente do monstro no decorrer do filme. Na tabela
abaixo organizamos as manifestações sonoras do alienígena:
137
Situação Características sonoras
Predavision – ponto de vista e escuta
Os sons da diegese são equalizados
(mudanças nas frequências originais)
do Predador.
e acompanhados de um ruído
eletrônico constante. Ouve-se também
os batimentos cardíacos do Predador
que, embora soem semelhantes aos
de seres humanos, possuem um ritmo
estranho.
Vocalização- Predador com máscara Com a máscara ouvimos os cliques do
Predador.
Vocalização – Predador sem máscara Sem a máscara, o Predador emite
rugidos processados que remetem à
grandes mamíferos.
Imitação/ reprodução O Predador também reproduz falas
que ouve durante o filme,
pontualmente. Ao usar a máscara,
esta voz é replicada com efeitos. No
final do filme, antes de acionar a auto-
destruição, ele dá uma risada intensa
como se fosse a de um ser humano
maligno. Anteriormente no filme,
percebe-se que a risada na verdade é
uma imitação que o monstro faz da
risada de um dos colegas de Dutch, no
caso a personagem Billy.
Tabela 4. Todas as manifestações sonoras do monstro em Predador (1987).
27
Disponível em < http://designingsound.org/2010/08/predator-1987-exclusive-interview-with-david-
stone/ >. Acesso em 9/1/2017.
138
Stone também era um dos responsáveis por selecionar efeitos sonoros,
a disposição em bibliotecas de áudio armazenadas em fitas ¼ reel-to-reel.
Stone relata detalhadamente os processos técnicos envolvidos na criação das
ambiências sonoras e do foley em Predador. Relata, por exemplo, que as
gravações feitas de sons na floresta estão entre as primeiras com som digital
utilizadas para o cinema, as quais foram feitas por Andy Wiskes. Wiskes
licenciou a biblioteca de sons da floresta para Predador e nela estavam
variações completas desta ambiência sonora, desde momentos com maior
manifestação de animais durante o dia até gravações noturnas, mais
silenciosas e com ruídos específicos. Segundo Stone, Kevin Cleary, o mixador
da trilha musical do filme, ficou feliz em não encontrar, nas ambiências da
floresta, o som do kookaburra, uma ave específica da Austrália.
28
O nome de Flick não aparece nos créditos do primeiro filme do Predador. A memória, de fato, parece
ter falhado. No entanto, veremos que Cullen também não teve o trabalho creditado.
139
diálogos, nem a de efeitos sonoros. Notei que, no IMDB, Peter
Cullen, um ator que fez muitos trabalhos de animação, entre
outras coisas, contribuiu com algum tipo de vocalização para o
Predador e eu não sei exatamente como. (...) O que exatamente
eram os cliques? Não sei. Você precisaria perguntar para Flick.
Eu o conheço bem, mas todos os dias durante vinte e três anos
eu esqueci de perguntá-lo sobre os cliques. Suspeito que tenha
sido uma gravação da sua cigarra favorita do Arizona, bastante
desacelerada (manipulação de áudio). Para mim soa como um
inseto gigante “raspando” e é por isso que soa tão bem como
elemento de design para este alien de carapaça dura. O
engraçado é que ninguém, nenhum grupo de pessoas, nunca
sentou e refletiu artisticamente sobre aquele som. Até onde eu
saiba, por Flick ser um gênio do som, pode ter inventado este
ruído durante cinco minutos indo para o carro e esqueceu que ele
existia até que o ouvisse no filme (RIEHLE, 2010).
140
Figura 56. Peter Cullen e seus personagens mais famosos, além do Predador.
Na sequência Optimus Prime, Bisonho e Vingador. Fonte:
http://www.behindthevoiceactors.com/Peter-Cullen/
141
microfone, o qual eu pedi para que trouxessem para bem
próximo do meu rosto. O diretor estava bravo. Ele não ouviu
quase nada. Mas a fala do chefe da sala de som ecoou pelo
intercom no estúdio: “É isso! Fantástico!”. Eu salvei a minha
garganta (GILVEAR, 2006).
29
TFCon 2015 Peter Cullen. Disponível em < https://youtu.be/E-ZS5afOxgo >. Acesso em 10/01/2017.
142
Figura 58. Foto da busca de vídeos no Youtube com tutoriais de como
reproduzir o som do Predador.
143
Capítulo 5. Godzilla e os sons de materiais manipulados
Figura 59. O Monstro do Mar (The beast from 20.000 fathoms, 1953). Fonte:
https://www.avforums.com/review/the-beast-from-20000-fathoms-blu-ray-disc-
review.14677
144
Como afirma o historiador William Tsutsui, a cultura japonesa de
exportação continuou influenciando vários países no mundo, incluindo os
Estados Unidos, nas décadas seguintes (TSUTSUI, 2004, p.7). Um conhecido
dos brasileiros é a série de super herói National Kid, que só fez sucesso na TV
do Brasil. Com abrangência maior, além do Godzilla, é possível mencionar
Speed Racer, Power Rangers e Hello Kitty.
Membros do Media Psychology Lab em Los Angeles, Estados Unidos,
fizeram uma pesquisa quantitativa entre 2000 e 2001 para compreender as
particularidades dos gostos dos americanos sobre as personagens midiáticas
monstruosas. Em uma amostra de 597 mulheres e 567 homens, todos
americanos, Godzilla foi o terceiro monstro mais mencionado na pesquisa,
perdendo em popularidade apenas para Drácula e Freddy Krueger. O Predador
também consta na lista, em décimo terceiro lugar. No questionário mais
completo, com 700 respostas, os motivos “força sobre-humana”, “mostra que a
junção de ciência e tecnologia podem dar errado” e “age para se proteger ou
por raiva” foram os mais citados para justificar a admiração por Godzilla
(FISCHOFF, DIMOPOULOS, NGUYEN, 2005).
145
Figura 60. Tabela com os monstros mais citados em pesquisa. Presente no
artigo The Psychological Appeal of Movie Monsters, de Stuart Fischoff,
Alexandra Dimopoulos e François Nguyen (2005).
146
Figura 61. Comparativo de tamanhos de monstros gigantes do cinema feita por
fãs na Internet. Fonte: https://hipertextual.com/2009/08/comparando-el-tamano-
de-los-monstruos-mas-famosos-del-cine
147
Enfim, o Godzilla “americano” tornou-se a principal referência narrativa
do monstro. Não à toa, estamos chamando-o principalmente de Godzilla neste
trabalho e não de Gojira, seu nome original30.
30
Existe uma ideia amplamente difundida de que Godzilla teria esse nome motivado pelo prefixo GOD
(Deus). No entanto, o nome Godzilla é uma adaptação escrita da fonética de Gojira para facilitar o nome
do monstro para audiências americanas, segundo William Tsutsui (2004).
148
Importante ressaltar, no entanto, que o filme original japonês de 1954
trazia um monstro muito diferente.
149
por Ishiro Honda, o diretor do filme, e sua equipe, agora era feito para
maravilhar as audiências ocidentais. As imagens eram um misto das do filme
original com inserções de uma personagem americana, com dublagem mal
feita e roteiro fraco. Uma breve comparação de roteiro esclarece este ponto. A
seguir estão as últimas frases ditas em ambas as versões, em uma tradução
livre. Na japonesa, é dita pelo cientista japonês Dr. Yamane. Na americana,
pelo jornalista ocidental Martin.
Dr. Yamane - Gojira (1954): “Não posso acreditar que Gojira era
o único sobrevivente de sua espécie. Mas, se continuarmos
conduzindo testes nucleares, é possível que outro Gojira
apareça em algum lugar do mundo novamente”
150
criar uma narrativa oficial do final da guerra: a Narrativa Fundadora
(IGARASHI, 2011, p.60). Trata-se de uma narrativa melodramática de resgate
e conversão. De acordo com Igarashi:
151
lançada em Março de 1954, envolvida no incidente, foi mais poderosa do que
previam os americanos e barcos foram atingidos mesmos estando em ditas
“zonas seguras”. Os vinte e três homens foram contaminados por radiação e
um deles morreu sete meses após o incidente. O funeral de Aikichi Kuboyama
foi acompanhado por 400.000 pessoas, o que demonstra a comoção do povo
japonês com o episódio. Para Igarashi, este evento representou uma quebra na
censura americana e nas táticas de evitar falar do uso de armamento atômico
(IGARASHI, 2000, p. 278).
No filme, cientistas explicam que Gojira era um habitante jurássico das
partes mais profundas do oceano, um ecossistema destruído pelos testes
nucleares. O original japonês apresenta uma visão obscura e ameaçadora: por
trás do acordo de paz e da Narrativa Fundadora, Gojira revela um país
desconcertado. “O tema do filme, desde o princípio, é o terror da bomba. A
humanidade criou a bomba e agora a natureza iria se vingar da humanidade”
(TSUTSUI, 2004, p.18). Segundo o crítico de cinema Christopher Orr, Gojira
“pode não ser um bom filme31, mas é um filme importante. Uma meditação
surpreendentemente sombria sobre meios e fins, quando o preço pela paz se
torna muito alto” (ORR, 2014).
Ishiro Honda, diretor do filme de 1954 (e posteriormente da maioria dos
filmes do Godzilla enquanto produzidos pela Toho Company), pretendia
alcançar principalmente uma audiência de adultos e, por mais que atualmente
estejam ultrapassados, os efeitos especiais utilizados no filme foram os mais
sofisticados ao alcance dos produtores na época. Honda explica que monstros
são seres ambíguos, vítimas da sua inadequação:
152
Gojira é uma vítima da radiação, no caso. Despertou por ter sido
bombardeado por uma bomba de hidrogênio. Isso o aproxima dos hibakushas.
Visualmente, para representar este temor do armamento atômico e as aflições
do povo japonês, Gojira apresenta-se em uma pele repleta de queloides. É
semelhante a um réptil, mas suas marcas também se assemelham às
queimaduras provocadas por radiação. Os japoneses vitimados pelas bombas
eram chamados de hibakusha (em tradução: “pessoas afetadas pela
explosão”). E discriminados, já que existia uma forte crença de que a radiação
e seus males fossem contagiosos.
153
envolvendo radiação, na tentativa de fortalecer a madeira das aeronaves da
Guerra. “Por mais que não se possa determinar se sua enfermidade foi
causada pela exposição à radiação, vale lembrar que ele compôs a música (de
Gojira) com um senso de missão a ser cumprida”32.
32
Disponível em < https://www.japantimes.co.jp/opinion/2014/07/20/editorials/godzillas-message-still-
relevant/#.WlEMIlQ-eHq >. Acesso em 05/05/2017.
154
Figura 64. O instrumento musical Contrabaixo acústico ou Rabecão. Fonte:
http://amatis.org/cellos-and-basses/basses
155
Figura 65. Fotograma do filme A guerra dos Monstros (1965) no momento da
famosa “dança da vitória” de Godzilla.
156
responsabilidade redesenhá-lo. O nosso ponto de partida foi
abraçar o original e homenageá-lo (RAY, 2014).
157
Para dar a ideia do tamanho do monstro, Aadahl utilizou uma técnica de
espacialização do som conhecida como Worldizing. Este termo é creditado a
Ben Burtt, que utilizou esta técnica quando, para fazer a voz de Darth Vader,
reproduziu as gravações em estúdio do ator James Earl Jones em alto falantes
dentro de um corredor reverberante, para então gravá-la novamente.
Igualmente, em Godzilla de 2014, a equipe de som reproduziu o rugido do
monstro em um cenário de Nova Iorque nos estúdios da Warner Bros. Aadahl
relata que “Tocamos o rugido em um array33 de 3,6m de altura e 5,5m de
largura, com 100 kilowatts de potência. Recebemos ligações da Universal
Studios perguntando o que estávamos fazendo. Eles estavam a mais de 3km
de distância” (BAKER, 2014).
Após pesquisarmos os processos de criação das três vozes de monstros
do corpus e compreender como os resultados foram alcançados, vamos fazer
uma análise das especificidades destes sons. Esta análise leva em
consideração as características sonoras em si e também seu contexto fílmico e
cultural.
33
O line array é uma composição de alto falantes idênticos em linha, geralmente curva, que ajuda a
projetar os sons. Muito comum em grandes shows de música ao vivo.
158
Capítulo 6. A criação do som do monstro: uma proposta de
método
159
de cinema como uma tecnologia que conferia “direção, presença, relações
adequadas de fase nas ondas sonoras e todos os outros aspectos do som
captado em sua fonte original (BELTON, 1992, p.161). Desta forma, fica
evidente que este “maior realismo” é visto pelos desenvolvedores como um
atrativo e, portanto, um fator interessante comercialmente.
Como mencionamos anteriormente, Altman (1984) nos diz que o real é
impossível de representar, que apenas representamos as representações,
podemos compreender essas diversas menções ao “mundo real” e à “vida”
como uma sofisticação crescente dos mecanismos de ilusão do cinema. Novas
tecnologias, como o aprimoramento do chroma key (a tecnologia do “fundo
verde/azul”) e das técnicas de CGI (computer generated imagery – imagens
geradas por computador), contribuem para todos os gêneros cinematográficos.
Mas é possível afirmar que a ficção científica está entre os gêneros que
utilizam as capacidades dessas tecnologias ao máximo, dados os recursos da
época.
É a aparente vontade do cinema de contar histórias mais complexas e
com maior potencial imersivo possível. Ocultar o aparato cinematográfico
colabora nos processos de imersão e contribui para aquilo que foi denominado
como suspensão da descrença, pois evita o afastamento do espectador
quando este identifica um problema de produção na obra. Estas novas
tecnologias possibilitam passos largos nessa direção.
O contrato de suspensão da descrença pode ser compreendido como a
forma pela qual os espectadores se permitem esquecer de todo o processo de
produção de um filme para que estes consigam atingir um estado imersivo ao
acessar a obra. No entanto, no cinema de ficção científica e fantasia, pela
realidade própria da diegese por vezes se afastar consideravelmente da do
público, o processo de suspensão da descrença parece precisar de uma
dedicação extra por parte do espectador.
Para William Whittington, o cinema de ficção científica trabalha com a
suspensão da descrença de outra forma, em relação a outros gêneros como
drama e comédia, por exemplo.
160
No gênero de ficção científica, um contrato informal é
estabelecido entre o filme e os espectadores para reforçar a
unidade e autenticidade da representação. Trata-se de um
tênue e não mencionado contrato acerca das expectativas
genéricas e a suspensão da descrença. Paradoxalmente, os
espectadores precisam concordar, com certa “hesitação”, na
crença entre realidade e fantasia para entrar no modo da ficção
científica (WHITTINGTON, 2007, p.98).
161
sistema de gravação (o analógico) – teriam outro resultado. Os
tipos de distorções que você obtém com estes sistemas
adicionam uma qualidade que não é exatamente aquela que o
som teria em contato com os seus ouvidos na hora da
gravação. É como o microfone, o pré-amplificador e como o
sistema ótico ouviram este som. Isto é verdade, particularmente
no caso de tiros e explosões. Por causa do tipo de distorção
dos sistemas de gravação mais antigos, acontece uma
compressão de todo o som para uma estreita gama dinâmica
no filme ótico. Desta forma, os grandes transientes que você
encontra em uma explosão real eram limitados, comprimidos
para serem gravados neste meio de gravação. O som original
assumiu uma outra característica, a qual nós associamos com
explosões, tiros e socos. É por isso que, quando você ouve
tiros no noticiário, ou alguém atirando em um documentário
sobre o Vietnã, soa como um pequeno estalo ou uma pequena
palma ao invés daquele som de tiro bom, pesado, estendido e
multisilábico que você encontra nas antigas bibliotecas de som.
Parte do motivo é o sistema de gravação e a outra parte é a
locação na qual disparou a arma (LOBRUTTO, 1994, p.141).
162
presentes na natureza, foram utilizados sons de animais reproduzidos ao
contrário, em velocidades reduzidas, e uma oitava mais baixos, o que
potencializa os graves:
163
Mesmo que o som seja reconhecível, ele tem uma capacidade de
ressignificação, a partir do efeito de sincronia com a imagem, o que veremos
mais adiante.
Independentemente do processo, é importante que o resultado
corresponde ao que vemos na imagem. E esta correspondência está ligada em
parte às expectativas do público, a partir dos códigos da ficção científica.
Caso o profissional consiga conquistar um balanço entre este repertório
e algum nível de abstração, a hesitação e o questionamento entre o natural e o
sobrenatural ocorrem potencialmente no espectador. Um exemplo de quando
este balanço não é atingido é quando acontece o que Whittington chama de
ruptura. Um som relacionado muito diretamente com a imagem, muito literal,
pode provocar este efeito de ruptura. “O som de um carro atual colocado em
sincronia com a imagem de um carro futurista seria imediatamente rejeitado
como sendo contrário às expectativas do gênero (...) ou visto como paródia”
(WHITTINGTON, 2007, p.99).
Vimos no Capítulo 2 que muitos dos monstros predecessores aos do
corpus no cinema soavam como o rugido de um grande mamífero. Além desta
origem poder remeter à sons de animais ameaçadores da natureza, como ursos
e leões, precisamos lembrar que King Kong em 1933, no início do cinema
sonoro, traz um design de som composto nessa linha. Portanto, até mesmo
pela sua tão mencionada influência nos filmes de monstro, podemos dizer que
boa parte dos sons de monstro que antecedem os do corpus são, em alguma
instância, similares a este. Chamemos esta categoria de Rugidos Kong.
Os sons que fazem parte do corpus da presente evitam a ruptura
mencionada por Whittington pois
164
os questionamentos entre o natural e o sobrenatural.
165
ritmos e dos movimentos circulares, é descrita por Porfírio
como sendo a senhora da Lua. A importância temporal destas
imagens é bastante forte: “começar” o tecido é dispor os fios
em cadeia para se esboçar uma trama” (LEÃO, 1999, p.62)
166
Percebemos, ao investigar o som dos monstros no cinema, que este
repertório sonoro das vivências e das mídias é fundamental neste âmbito de
criação. A partir das experiências criativas acerca dos monstros e suas
sonoridades (experiências que incluem os diretores, produtores e sound
designers mencionados neste trabalho até então), determinadas convenções
são pouco a pouco fixadas nos cânones da linguagem cinematográfica.
Além da memória das sonoridades do gênero ficção científica,
percebemos o papel da memória sonora individual nos três processos
analisados. No caso dos monstros do corpus, cada um dos três criadores foi
buscar em suas vivências as memórias sonoras que serviriam de base. Na
miríade de memórias sonoras de três distintos profissionais do som, cada um
recorreu ao seu território de maior conhecimento.
Burtt, com sua experiência com as gravações da natureza, recorreu aos
animais. Cullen, ao ver a criatura que parecia um caranguejo, usou o próprio
aparelho fonador para imitar uma lembrança de infância. Por fim, Ifukube,
músico, contou com o contrabaixo como base para os profundos graves que
precisava para a criatura gigantesca que sonorizou.
Trata-se da memória de um som monstruoso, poderoso, que se conecta
às vivências com a imagem da criatura a ser sonorizada. Morin afirma que
167
Na verdade, não se pode dissociar geneticamente as
participações imaginárias com animais e plantas da
domesticação dos animais e das plantas; nem o fascínio onírico
pelo fogo, da conquista do fogo. Assim também não se podem
dissociar os ritos da caça ou da fertilidade da própria caça ou
da agricultura. O imaginário e a técnica se apoiam
mutualmente, se ajudam mutualmente. Encontram-se sempre
não apenas como seus negativos, mas como seus
fermentadores mútuos. Assim, na vanguarda da prática, a
invenção técnica vem apenas coroar um sonho obsessivo.
Todas as grandes invenções são precedidas pelas aspirações
míticas e, sua novidade parece a tal ponto irreal que se veem
nelas exageros, encantamentos ou loucura... (MORIN, 2014,
p.248).
168
códigos vigentes que já demonstraram êxito no processo comunicacional do
audiovisual. Como a maioria das peças audiovisuais encontra-se dentro de um
sistema que depende de vendas, acessos, público, enfim, sucesso comercial
em geral, o profissional de som no cinema muitas vezes acaba por replicar as
imagens.
Ao trabalhar com bibliotecas de som, que são compostas por diversos
arquivos sonoros, por um período considerável de tempo, tendemos a
memorizar alguns destes sons. E é muito comum encontrá-los no audiovisual: o
lobo que vemos em vários filmes usa muitas vezes o mesmo uivo de lobo de
determinada biblioteca, igualmente para sons de bebês chorando, portas e
efeitos sci-fi gerais que, mesmo que não usem o exato mesmo som, fazem
pequenas adaptações de timbres e características já conhecidas. Ou seja:
estes sons estão na memória. O público já tem um referencial de como soariam
armas e naves futuristas tamanha a replicação das mesmas fórmulas, por
exemplo. Desta forma, pelas sucessivas repetições que apresentam um menor
risco, encontramos nas mídias muitas vezes os mesmos sons para monstros
gigantes e monstros com características físicas de répteis, entre outros.
Entretanto, muitos monstros midiáticos possuem características
específicas que poderiam dar outros direcionamentos em um processo criativo.
Sobre isso, podemos trazer reflexões contidas em aulas transcritas de Ivan
Bystrina, estudioso da semiótica da cultura. Bystrina fala sobre textos
complexos e dos códigos que os compõem. Neste contexto, cada objeto
carrega vestígios de textos culturais. Um exemplo são as flores nos túmulos
durante ritos de sepultamento: esta tradição estava presente já entre os
Neandertais (BYSTRINA, 1995, p.4).
169
É possível relacionar esta afirmação de Bystrina com os processos aqui
estudados. Desta forma, tendo os monstros aparências e histórias distintas,
estes tem potencial de imanência de características particulares, ligadas à
memória, que podem fomentar a criação de novas imagens sonoras,
específicas.
Ao analisar os processos de criação do corpus da presente pesquisa,
percebe-se que as imagens sonoras do Godzilla, do Predador e do Chewbacca
dialogam com imagens presentes na memória de seus criadores, que trazem
experiências colaterais para a criação. Talvez por isso estas sejam
especialmente reconhecíveis e lembradas pelo público, como seu uso em
produções de fãs e merchandisings afins transparece.
O Godzilla poderia soar como o King Kong, que é uma referência
bastante consolidada em termos de monstros gigantes, como já vimos. Apesar
de trabalhar a ideia das dimensões do monstro de forma semelhante, trazendo
elementos que dão ideia de grandiosidade (veremos esta questão em breve,
neste capítulo), o som do Godzilla original tem particularidades que o
distinguem de qualquer outro monstro gigantesco. A história da criatura, ligada
às vivências de guerra do Japão e a experiência do músico Akira Ifukube,
conhecendo os ruídos provenientes de instrumentos musicais, mesmo que não
utilizados da forma tradicional, trazem esta particularidade.
Em Predador, Peter Cullen traz uma memória sonora de infância de um
bicho em particular, o caranguejo-ferradura, em uma situação que parece tê-lo
afetado emocionalmente: ver o inseto de barriga para cima agonizando no sol.
Cullen replica este som que faz parte de suas experiências com a natureza e
atribui à criatura uma imagem sonora endógena, pelas conexões imagéticas
que este fez entre o Predador e o caranguejo.
Ao pensar o som do Chewbacca, e de tantos outros efeitos marcantes de
Star Wars, Ben Burtt já começou com um limite criativo imposto por George
Lucas: as referências do filme não deveriam vir de filmes de ficção científica
anteriores. Este direcionamento impôs uma barreira para o simples
espelhamento de imagens exógenas e de códigos de comunicação já
170
utilizados. Em sua infância, Burtt acompanhou o avô em gravações de sons de
pássaros, em um contato com as sonoridades da natureza. Lucas também traz
uma experiência particular para a criação dos sons, em especial do
Chewbacca, quando este se lembra do companheirismo de seu cachorro
Indiana e indica que Chewbacca possui semelhanças com ele.
Esta mistura de memórias e experiências trazem para o processo de
criação, além da articulação com o repertório midiático, o que evita a ruptura, o
diálogo com imagens endógenas. Estas que contribuem com novas
perspectivas para o repertório do cinema. Isto é uma das formas pelas quais
podemos explicar o reconhecimento destes sons como alguns dos mais
marcantes dentre tantos rugidos de monstro que existem na história do cinema.
O método que apresentamos no final deste capítulo pretende, portanto,
fomentar a criação de novos sons de monstro, trazendo um ponto de partida
possível para evitarmos a mera replicação de fórmulas estabelecidas pela
tradição dos filmes de ficção científica, fantasia e terror. No entanto, para
evitarmos a ruptura, podemos nos inspirar em algumas convenções que
dialogam com a suspensão da descrença própria da ficção científica.
171
ajudar na construção de um vocabulário deste campo de pesquisa (ALTMAN,
1992, p.251-252).
A proposição abarca muitos termos. No entanto, é válido destacar alguns
que nos auxiliam na análise do som dos monstros do cinema. Suas
denominação e respectivas descrições constam na tabela abaixo.
Termo Definição
Avanço Sonoro (Sound Advance) A introdução de um som antes da
imagem com o qual está associado.
Hermenêutica Sonora (Sound Do ponto de vista da experiência do
Hermeneutic) espectador, quando este se pergunta
“De onde vem esse som?” e logo a
imagem identifica a sua fonte,
mostrando a sua origem.
Escala Sonora (Sound Scale) O tamanho atribuído a uma imagem,
em razão do som que esta emite.
Correspondência de Escala (Scale A correspondência do tamanho/escala
Matching) do som e do tamanho/escala da
imagem.
Tabela 5. Quatro expressões sugeridas por Rick Altman para serem inseridas
nos vocabulários de estudiosos do som cinematográfico (ALTMAN, 1992,
p.251-252).
172
Quando os filmes trazem monstros dentre as suas personagens,
sobretudo se são filmes do gênero terror/suspense, não é incomum
encontrarmos uma fotografia low key. A fotografia low key confere predileção a
enquadramentos escurecidos, com pouca luminosidade, o que representa,
neste caso, uma aparição não muito explícita dos monstros no decorrer dos
filmes.
A escuridão típica destes filmes constrói uma relação com o mistério que
circunda as criaturas. Existe um esforço para gerar sentimentos de antecipação
e expectativa no público. Sobre uma voz ou um ruído de algo que ainda não foi
visto em um filme, Chion diz que “(...) torna-se investida com poderes mágicos
assim que envolvida, mesmo que levemente, na imagem” (CHION, 1999, p.23).
A interação entre o visível e o invisível, entre a clareza da luz e o mal
que supostamente se esconde na escuridão, é central a muitas obras de terror
do cinema. Filmes como Godzilla e Predador, que se encontram nesse limiar
híbrido de gêneros entre terror, ficção científica e fantasia, fazem uso desta
tradição.
Muitas vezes, nestes filmes, somos apresentados primeiramente ao som
emitido por este, como fator a potencializar a expectativa da revelação da
imagem do monstro.
Em Predador, dentre os três monstros do corpus, vemos o maior uso
deste recurso. Ao assistir o filme de 1987, o espectador passa muito tempo
tendo apenas pistas de como é a imagem do monstro. Até a aproximação do
final do filme, o espectador apenas ouve, constantemente, os cliques que a
criatura emite. A imagem aparece apenas em uma forma camuflada, que oculta
maiores detalhes da ameaça que está na floresta. O filme também apresenta o
ponto de vista do monstro, o Predavision, também impregnado de códigos
sonoros. Quando somos finalmente apresentados à imagem do monstro, temos
também mais surpresas sonoras, como sua voz sem máscara e a perfeita
imitação da voz humana, que emite poucos segundos antes de morrer.
173
Figura 67. Fotograma do filme Predador (1987). O sistema de
camuflagem/invisibilidade do monstro começa a falhar e finalmente somos
apresentados à imagem do monstro, depois de passar a maior parte do filme
apenas ouvindo suas emissões sonoras e vendo sob seu ponto de vista.
174
Figura 68. Fotograma do letreiro de abertura do filme Gojira (1954). Enquanto
lemos o nome do monstro, ouvimos o seu rugido pela primeira vez. Um
exemplo de Avanço sonoro que provoca antecipação.
175
para gerar suspense no cinema34. E então esta música cessa, subitamente,
para logo depois ouvirmos o rugido do Godzilla. Só neste momento a revelação
do monstro no filme está completa.
34
Chion explica que uma nota que é tocada e vai desaparecendo (deixando o rastro sonoro, que
chamamos de sustain e release) “conta a história” de um desaparecimento. Em contrapartida, a nota
invertida, que começa do rastro e termina em seu ponto mais forte (o attack), dá a ideia de surgimento.
Desta forma, o segundo, da nota invertida, nos faz prestar mais a atenção (CHION, 2016, p.36).
176
Por mais que um som específico esteja em sincronia com determinada
imagem, este possui características que serão determinantes para o efeito
desejado, ou seja, o som é fundamental para o entendimento de qual objeto ou
criatura em cena é seu emissor. De acordo com seu timbre, com suas
principais frequências e sua reverberação, por exemplo, o espectador vai
acreditar ou não que o som veio da fonte em cena. A imagem de uma moto ao
ar livre em sincronia com o som de uma moto, gravado em um galpão, pela
total diferença de padrões de reverberação nos sons, causa estranheza no
espectador.
As particularidades dos processos de seleção de sons compatíveis para
o alcance do efeito desejado são comentadas por Virgínia Flores, montadora
de som e imagem no cinema brasileiro, também autora da obra O cinema: uma
arte sonora:
177
Pernambuco e de São Carlos, respectivamente, em artigo sobre as
representações sonoras do diabo no cinema. Esta personagem é representada
em O Exorcista (The Exorcist, 1973) por uma menina possuída. “(...) um
monstro sobrenatural – um monstro que preservava algumas características
físicas humanas, mas possuía o poder de transgredir essa humanidade”
(CARREIRO; MIRANDA, 2015, p.124). Quando possuída pelo diabo, a voz da
menina provoca um estranhamento, que deriva da incoerência corpo-voz. Neste
caso, esta elaborada incoerência produz um efeito muito interessante.
178
cinematográfica, como a própria sincronia entre imagem e emissor de som. Um
exemplo dado pelo autor é o som de um melão sendo esmagado, ação
bastante usual nos processos de foley. O som de um melão sendo esmagado
em sincronia com a imagem de um melão sendo esmagado não nos causa
apreensão, repulsa. No entanto, se estiver em sincronia com uma cena na qual
temos a sugestão de uma cabeça esmagada, por exemplo, como acontece em
A Pele (La pelle, 1981), teremos estas sensações. No filme, um homem35 é
atropelado por um tanque de guerra e ouve-se o som da sua cabeça sendo
esmagada, feito, muito provavelmente, com o foley de alguma fruta em estúdio
(CHION, 1994, p.22-23).
Chion (1994) comenta também os efeitos do que chama de síncrese
(synchresis). Trata-se do fenômeno pelo qual, a partir de uma dada sincronia
entre imagem e som, acreditamos que aquela imagem seja a fonte do som que
ouvimos. “A síncrese é o que torna a dublagem, a pós-sincronização e a
mixagem de efeitos sonoros possível, e permite a grande possibilidade de
escolhas nestes processos” (CHION, 1994, p.63). Chion, no entanto, afirma que
esta relação de síncrese não é totalmente automática. “Toque uma sequência
de eventos randômicos de áudio e de vídeo e você verá que algumas vão se
juntar pela síncrese e outras não” (CHION, 1994, p.63).
No obra de Jacques Tati, amplamente relembrada pelo uso criativo de
sons, a síncrese é determinante para identificarmos, enquanto espectadores,
qual é a fonte do som que ouvimos em cena. Os sons, que fortalecem as
pantomimas, não parecem com aqueles que os objetos em cena naturalmente
emitiriam.
35
Chion, em sua obra, comete um pequeno engano: ele diz que um menino teve a cabeça esmagada,
mas a sequência da cena mostra o menino saindo com vida de baixo do tanque. Quem sofre a morte
terrível na verdade é o homem que o segura no colo.
179
Por mais que exista esta discrepância entre emissor e som nos filmes de
Tati, não temos dificuldade em identificar e aceitar as relações entre som e
imagem propostas pelo diretor.
No dia-a-dia, ao ouvir um ruído e desejar identificar sua fonte, tendemos
a procurar este emissor com os olhos, virando o rosto na direção do som. De
fato, apesar de nossas orelhas ficarem nas laterais da nossa cabeça, os sons
que ouvimos com melhor definição são aqueles que vem no sentido do nosso
rosto, no caso, com os olhos mirando diretamente a fonte de emissão. Ou pelo
menos o que nos parece a fonte emissora: em vários momentos o que vemos
como a provável fonte de um som não é na verdade de onde ele vem. Um bom
exemplo são palestras, onde uma pessoa fala em um microfone. Distantes, na
plateia, tendemos a olhar para o orador e identificá-lo como a fonte do som que
ouvimos, mas muitas vezes os falantes que reproduzem o som capturados pelo
microfone estão dispostos nas laterais do palco ou do auditório, relativamente
distantes do palestrante. O movimento ocular reforça a localização auditiva.
Esta “magnetização” do som com a fonte visível acontece em maior potencial
com sons monofônicos, já que em sons estereofônicos é possível trabalhar a
espacialização diretamente na fonte sonora (CHION, 2016, p.25).
Sendo assim, como vocalizações são monofônicas, já que são emitidas
por apenas um canal, a boca, estas estão ligadas a este fenômeno de
magnetização do olhar e do ouvir.
Muitas vezes, no entanto, um filme não necessariamente responde para
nós onde está o emissor de um determinado ruído. Este uso do som é o que
Altman chama de semi-sincronia (semi-sync): quando nem todos os ruídos tem
um emissor claro na montagem, mas participam de um contexto em que não
causam estranheza e tem uma leitura clara do espectador. Por exemplo, ao
ambientalizar personagens em um parque, é comum que ouçamos pássaros,
mesmo sem que a montagem enfatize a sua presença. Por sabermos que
pássaros são esperados na ambiência sonora de um parque, não temos
questionamentos sobre a sua presença. Existe ainda o fenômeno que Chion
chama de acousmêtre, representado por quando não vemos a fonte de um
180
som, geralmente a voz, mas ainda assim a ouvimos do centro da tela do
cinema, como a maioria dos sons que possuem imagens correspondentes na
diegese. A noção de acousmêtre possui potencialidades interessantes, dentre
elas o Avanço Sonoro, como explicado anteriormente.
No entanto, quando um som específico não faz parte do nosso repertório
com precisão, portanto não reconhecível, e o filme não nos apresenta o
emissor, construímos a imagem mental daquele som, a partir de relações de
proximidade.
Em Godzilla e em Predador, ouvimos o som dos monstros antes de
compreender quem são, utilizando o recurso de antecipação apresentado como
Avanço Sonoro. A Hermenêutica Sonora nos ajuda a compreender como é forte
esta antecipação pois, se o fenômeno compreende a pergunta do espectador e
a resposta do filme para “Quem emitiu esse som?”, deixar o público sem esta
resposta durante boa parte do filme quebra com um dos recursos
cinematográficos mais tradicionais. Nesta incompletude da Hermenêutica
Sonora, o espectador fica um tempo considerável do filme tentando responder a
questão, descobrir o emissor, o que engrandece o momento da revelação do
monstro.
Outra relação com a Hermenêutica Sonora são as características do
aparelho fonador dos monstros e dos sons que emitem. Nos três casos, os
sons correspondem as limitações ou particularidades do corpo do monstro.
Chewbacca tem um movimento mandibular restrito, o que fez com que Burtt
procurasse sons de animais que emitem vozes a partir da garganta. Os cliques
do Predador são justificados pela anatomia de suas quatro mandíbulas
articuladas. E Godzilla também corresponde a restrição de movimento
mandibular. Mas, no caso do último, outras circunstâncias são importantes para
efeito de Hermenêutica Sonora, como a Escala Sonora, que veremos a seguir.
181
Sergei Eisenstein, teórico da montagem e diretor de cinema, fala sobre o
poder da montagem e de como, no cinema, é possível fazer algo menor parecer
maior e mais assustador.
182
emissoras pequenas” (CHION, 2016, p.7). No som, inclusive, não seria
necessário saber o que especificamente o emitiu para termos uma noção de
tamanho da fonte.
36 Definição disponível em < https://www.dicio.com.br/marulho/ >. Acesso em 20/7/2017.
183
- Som relativamente fraco (em oposição a “berreiro” ou “grito”)
- É descontínuo (em oposição a “som ambiente” ou “assobio”)
- É duplo acusticamente, ou seja, sua ocorrência está em pelo menos
dois sons sucessivos (em oposição a “detonação” ou “estrondo”)
- O som parece causado por um líquido (em oposição a sons como
“arranhado”, que apresentam o sema de sólidos ou “murmuro” e
“sussurro”, de gasosos) (METZ, 1980, p.24).
184
no momento em que notas musicais decrescentes acompanham o movimento
do chefe da tribo descendo as escadas.
Altman sugere o uso do termo Som Isomórfico, quando som, música ou
ruído acompanha determinada ação ou ritmo em um filme, ou Som icônico,
quando esse acompanhamento assume o caráter de uma analogia. Ambas
podem descrever o mesmo uso do som em um determinado filme. Altman
sugere estas nomenclaturas por acreditar que o termo Mickey Mousing seja
pejorativo (por fazer referência a desenhos animados) e uma determinação de
que o som seja não-diegético e musical. No caso das denominações de Altman,
há uma liberdade neste sentido e ambas não se excluem (ALTMAN, 1992,
p.202).
Utilizando as sugestões de nomenclatura de Rick Altman, podemos
considerar um Som Isomórfico e Icônico, por exemplo, em O Gordo e o Magro
(Laurel and Hardy, 1926-1951), quando ouvimos um sino se um deles leva uma
pancada na cabeça: além de acompanhar o movimento do gesto, faz referência
à intensidade da batida da mão na cabeça.
Os monstros se valem também de composições isomórficas para dar a
ideia de escala. Quando Godzilla pisa em terra firme e ouvimos grandes
batidas, graves e intensas, sabemos que foi um som provocado por algo
grande, como mencionamos anteriormente. E, sendo a onda sonora um produto
de deslocamento de matéria, “(...) só existem sons, quando algo está em
movimento” (CHION, 2016, p.109). Portanto, a constância do som,
complementarmente, deixa clara a ideia de deslocamento desse emissor
gigantesco. Dependendo das qualidades dos sons dos passos, como
intensidade e região de frequências, também conseguimos deduzir se este se
aproxima ou distancia. São muitas as informações que o som transmite na
perspectiva da análise da Escala Sonora.
A importância destas características aparece também na composição do
aparato cinematográfico. Os Rugidos Kong, tradicionais em filmes de monstro,
podem se aproveitar dos sons graves/baixos para trazer signos de grandeza
para a criatura. Estes estão também alinhados ao potencial de reprodução de
185
baixas frequências (graves) em salas de cinema, principalmente graças a
tecnologias de reprodução como as caixas de som do tipo subwoofer,
populares a partir dos anos 1970. Este alto-falante, geralmente centralizado
abaixo da tela de cinema (dada a característica mais omnidirecional deste tipo
de onda sonora - se propaga para todos os lados igualmente), tem como
função reproduzir frequências bem graves, por volta de 20 e 80Hz37. Sobre o
efeito dos graves nas salas de cinema, Luiz Adelmo Manzano diz que
37
Exemplo correspondente ao subwoofer do sistema THX.
186
processo cognitivo de percepção da espécie humana
(CARREIRO, 2011, p.46).
187
similaridade muito aproximadas na natureza, o som criado para cada uma
destas criaturas passa uma ideia de pertencimento. Este sucesso auxilia na
imersão do espectador, pois a identidade sonora é parte fundamental da
construção destas personagens.
No caso do audiovisual, como afirma Chion, a análise do som está em
relação à uma imagem. O autor inclusive critica o termo soundtrack/trilha
sonora, por não acreditar que o som de um filme seja uma unidade com
significação autônoma. Para Chion, a relação mais importante entre som e
imagem é a noção de pertencimento, de um múltiplo onde um está contido no
outro e é naturalmente fundante do outro (CHION, 1994, p.5).
Entretanto, para concentramos na tarefa de analisar o som produzido
pelos monstros que estudamos, precisamente a voz, vamos exercitar nas
próximas páginas uma das metodologias de análise propostas por Chion
chamada de Método das Máscaras. Este método de observação, como aponta
Chion, resume-se em ouvir o som sem ver a imagem e ver a imagem sem ouvir
o som. Isso evitaria que possíveis mascaramentos do som acontecessem por
sua relação com a imagem e vice-versa. Permite “ouvir o som como ele é, e
não o som que a imagem transforma e disfarça” (CHION, 1994, p. 187).
Em um primeiro momento, vamos exercitar, portanto, o isolamento do
som de seu contexto para tentar compreender em maior profundidade quais
signos sonoros estão expressos nas vozes dos monstros estudados. Afinal,
Chion afirma que “o contrato audiovisual nunca cria uma fusão absoluta de
elementos de som e imagem. Este ainda permite que os dois existam
separadamente enquanto em combinação.” (CHION, 1994, p.188).
Muito comumente, para explicar as propriedades dos sons, estudiosos
tendem a se apoiar em nomenclaturas dos estudos da música. Por exemplo,
David Bordwell e Kristin Thompson (in WEIS; BELTON, 1985, p.184-185)
sugerem que as principais características para analisarmos o som
cinematográfico são Amplitude, Altura e Timbre, explicadas com base nos
autores na tabela a seguir.
188
Característica
Sonora Descrição
189
Hepworth-Sawyer (2013), e que ocasionalmente podem surgir com outros
valores, mais simplificadas ou detalhadas dependendo da fonte.
Faixa Região
20 a 60Hz Subgraves
60 a 200Hz Graves
200Hz a 500Hz Médio-Graves
500Hz a 2kHz Médios
2 a 6 kHz Médio-Agudos
6 a 20kHz Agudos
Tabela 7. Regiões de frequência (COUSINS; HEPWORTH-SAWYER, 2013).
190
O espectrograma é uma imagem muito detalhada e precisa do
seu áudio, mostrada em 2 ou 3 dimensões (2D ou 3D). O áudio
é mostrado em um gráfico de acordo com tempo e frequências,
com brilho e altura (3D) indicando amplitude. Enquanto uma
forma de onda (waveform) mostra a amplitude do seu sinal no
decorrer do tempo, o espectrograma mostra esta mudança
para cada frequência que compõe o sinal.38
38
Disponível em < https://www.izotope.com/en/community/blog/tips-tutorials/2014/09/understanding-
spectrograms.html >. Acesso em 12/02/2018.
191
Figura 73. Espectrograma dos cliques do Predador. Imagem gerada a partir do
software Izotope RX6.
192
Figura 75. Espectrograma da voz de um homem de aproximadamente 30 anos,
na sequência, gemendo de dor, dando uma risada e posteriormente fazendo
pequenas saudações. Imagem gerada a partir do software Izotope RX6.
193
primeiro com o monstro 3000Hz. Trata-se de uma Godzilla é massivo,
bravo e o segundo falando faixa de frequências que “ensurdecedor”, ele
normalmente, notamos que a os nossos ouvidos opera em uma gama
presença de graves é muito captam com particular bastante extensa de
maior no primeiro caso. atenção, na qual está faixas de frequência. O
muito presente também a amarelo do
voz humana. espectrograma fica um
Portamento é a transição pouco mais forte nos
entre uma nota e outra médios-graves.
no piano, por exemplo,
tocando rapidamente
todas as notas que
compreendem o intervalo
entre as extremidades. O
Predador parece
percorrer notas com seus
estalos, ou seja, ele não
reproduz sempre a
mesma frequência, mas
ainda assim são
frequências próximas.
Timbre Som nasalado, proveniente Estalos bem Uma massa sonora
da garganta. separados, quase rouca, desagradável,
percussivos, remete a remetendo à fricção de
algo pequeno e duro metais.
batendo.
Tabela 8. Metodologia de análise do som de Bordwell e Thompson aplicada ao
corpus da pesquisa.
194
Por mais que esta análise tenha nos permitido atentar para várias
características do som dos monstros estudados, para Rick Altman, esta
metodologia não é a mais adequada para descrever o som cinematográfico e
nem mesmo uma música, pois seria uma forma de tratar cada som como algo
uniforme e unidimensional (ALTMAN, 1992, p.16). A mesma música tocada em
dois ambientes, como por exemplo ao ar livre e em uma sala de concertos,
possui as mesmas características de amplitude, altura e timbre, mas é, por
exemplo, percebida de forma bastante diferente pelos que ouvem a execução.
Isto nos dá uma pista da importância de levar em conta o contexto para a
análise e da insuficiência de pensar apenas as qualidades acústicas do som,
em si, ao menos da forma proposta por Bordwell e Thompson.
Analisar os sons por si só é uma tarefa complicada sobretudo porque as
características do som são adjetivos dotados de grande abstração, enquanto
que a fonte que o emite é o objeto, passível de categorizar a identificar. Se eu
falo que ouço um zumbido, palavra utilizada desde contextos médicos até para
descrever sons de animais, a informação parece demasiadamente vaga.
Mesmo que eu descreva o zumbido, por exemplo, como um som grave,
oscilante, de média intensidade, ainda assim estas características sonoras
mantém a informação vaga. Se, ao contrário de descrever o zumbido em suas
características sonoras, eu informar a fonte do som como sendo um motor de
um carro, a informação adquire maior clareza. É com um exemplo semelhante
que Christian Metz fala sobre a percepção sonora e a comunicação.
195
De fato, “zumbido” ou “estalo”, dois objetos acústicos exemplificados por
Metz (idem), representam um nível de abstração que traduz o nosso
relacionamento com os adjetivos sonoros. Estes costumam operar numa região
mais abstrata do que os adjetivos próprios de outros tipos de linguagem. Isso
ocorre por mais que, por vezes, nos idiomas, tenhamos belíssimas associações
entre fonemas e sons, como no exemplo da palavra “chiado”, em que o som do
“ch” faz uma alusão direta ao padrão sonoro ao qual se refere.
O som em si, apesar desta abstração, consegue comunicar inflexões
emocionais e características da personagem que o emite. Desta forma,
consegue auxiliar na construção das personagens e a contar suas histórias.
Encontramos resultados interessantes conquistados por sound designers ao
trabalhar essa potencialidade do som, mesmo fora do corpus da presente
pesquisa.
Um exemplo pode ser encontrado nos sons dos dragões de Game of
Thrones (HBO), desenvolvidos por Paula Fairfield, sound designer da série e
responsável pela composição dos sons das criaturas fantásticas. A personagem
Daenerys possui três dragões. O maior deles, Drogon, parece ter uma conexão
especial com Daenerys, algo que transparece para os fãs da série. Não por
acaso, foi nomeado em uma referência ao falecido marido de Daenerys, Khal
Drogo. Para enfatizar esta conexão entre ambas as personagens, dragão e sua
dona, na base da vocalização de Drogon, Fairfield utilizou sons de tartarugas
fazendo sexo (PULLIAM-MOORE, 2017). A sound designer afirma que
196
mencionados por Chion. Ao invés da visualidade, vamos pensá-los em relação
ao que, em si, pretendem representar.
Quando observamos representações, percebemos diferentes graus de
verossimilhança, ou de propostas de aproximação a um dado conjunto de
regras, dado um determinado contexto. Neste caso, a representação de um
universo próprio de uma narrativa ficcional.
Em uma metodologia de descrição dos sons, enquanto representações e
sua aparente verossimilhança, Theo Van Leeuwen, pesquisador de semiótica e
linguística, estende a noção de Modalidade (Modality) para além da linguística e
traz este conceito para a análise de sons e música.
Neste campo do conhecimento, a Modalidade refere-se ao grau com que
um signo ou um texto afirma ser a representação de algo verdadeiro ou real. “A
linguagem em si não pode garantir a verdade. Portanto, análises linguísticas só
podem apresentar o quão verdadeiramente algo foi representado” (VAN
LEUWEEN, 2010, p.9). Este grau de credibilidade das representações impacta
na noção de factível/verdadeiro contra aquela de algo fora da
realidade/ficcional/abstrato. Trata-se da “verdade ou verossimilhança aparente”
(VAN LEEUWEN, 2010, p. 10).
Esta noção de Modalidade sempre está relacionada a um contexto
social, “dependente do que é considerado real (ou verdadeiro, ou sagrado) em
um grupo social para qual a representação é primeiramente voltada” (KRESS,
VAN LEEUWEN, 2006, p.158).
No campo sonoro, Van Leeuwen fala que os graus de verossimilhança
estão nos graus em que certos recursos de expressão auditiva são utilizados.
Estes parâmetros estão resumidos na tabela a seguir.
Pitch Range (alcance (...) está relacionado à nossa percepção de grave e agudo. Uma
representação vocal com uma gama limitada de pitch é muitas
do pitch – variação de vezes utilizada para representar o que não é humano “como o
divino ou o mecânico, como em versões estilizadas de cânticos
em rituais ou as monotonizadas vozes de robôs” (VAN
197
frequências). LEUWEEN, 2010, p.10).
Níveis de absorção Vão do som mais seco, como aquele gravado em um estúdio,
ao que mais faz alusão à presença em um espaço com
(ambiência- determinadas características. “A partir de um certo ponto, a
reverberação pode criar um efeito de temor, como em
reverberação) representações de ambientes extraterrestres” (VAN LEUWEEN,
2010, p.11).
Tabela 9. Parâmetros para análise da verossimilhança de um som, segundo a
metodologia da Modalidade, transposta por Van Leuween da linguística para o
estudo dos sons.
198
forem estendidos ainda mais, a experiência pode tornar-se
“mais do que real” e emocionalmente avassaladora (VAN
LEUWEEN, 2010, p.10).
199
A escalada da verossimilhança não é apenas a escalada
da verossimilhança, mas também uma escalada de
envolvimento emocional. Uma escalada que vai de
representações relativamente “abstratas”, passando por
representações “naturalistas” até o que chamamos de
representação sensorial (VAN LEUWEEN, 2010, p.10).
200
de frequência mudam bastante, bem como as regiões em que as frequências
ficam mais fortes (em amarelo).
201
durante toda a manifestação sonora basicamente na mesma região de
frequências.
202
Neste último terço, a gama de frequências sofre alguma alteração, o som que
era contínuo passa a ter uma oscilação, o timbre de fricção fica menos metálico
e ríspido. Este momento, por trazer um pouco destas mudanças que, como
vimos nos exemplos acima, trazem inflexões emocionais, parece trazer um
rastro da condição de monstro descrita por Ishiro Honda, como mencionado no
Capítulo 5: o monstro que não tem culpa de ser tão grande e perigoso, que
sofre por não se adaptar, ou seja, a tragédia do monstro.
Não à toa, também pela imagem sonora destes dois monstros, é mais
fácil simpatizar por Godzilla do que Predador. Ambos matam muitas pessoas
nos filmes, mas estas oscilações que fazem “humanizar” o último terço do
rugido de Godzilla faz a diferença na hora de ter empatia pelo monstro. Como
vimos, essa era uma das intenções dos produtores do filme de 1954, vide a
relação da personagem Dr. Yamane com o monstro.
Vimos, portanto, como os parâmetros de Van Leuween nos mostram
formas diferentes pelas quais um som de monstro pode ser uma representação
sensorial. Mas, vimos também que existe uma particularidade na
verossimilhança dos monstros e dos demais sons, como os que constavam nos
exemplos do autor.
O som do monstro, em seu histórico midiático, é uma experiência que
constrói um repertório e que pode trazer uma dada representação sensorial.
Mesmo que não possua a verossimilhança equivalente de pensarmos o som da
chuva, como no exemplo de Van Leuween, esses sons remetem a estas
experiências midiáticas e com isso caracterizam um tipo específico de verdade/
relação.
A verossimilhança que constrói a representação sensorial, no caso do
monstro, se não está ligada à imagem deste, já que a proposta de Van
Leuween é a de pensarmos no som em si enquanto representação, está ligada
ao repertório de sons aterrorizantes do espectador.
Interessante notar, por exemplo, que a restrição de frequências
operantes, o que para o autor estão relacionadas ao divino ou ao mecânico,
podem fazer com que o som adquira características mais verossimilhantes à
203
realidade específica do monstro midiático. Desta forma, no nosso caso, a
verossimilhança levará à representação sensorial, mas esta nem sempre será
produto de maiores alcances e oscilações. O som simplificado, menos “natural”,
pode levar a resultados mais monstruosos, a depender das características da
personagem.
Compreendermos as especificidades da suspensão da descrença na
ficção científica e o impacto no som do monstro, a importância da memória do
criador, bem como as características desse som que transparecem as
intenções da personagem. A seguir articularemos a nossa análise para compor
a proposta de ponto de partida na criação do som do monstro.
204
Influências Monstros do cinema, pé Monstros do Monstros
midiáticas/mi grande. cinema com gigantes do
tológicas características cinema,
insetoides, como presentes
Alien (1979) desde o King
Kong de 1933.
Bases de composição:
205
Natureza Corpo Objetos manipulados
Manipulação do material:
+ -
Empatia Frieza
Emoção Dissimulação
Simulação de idioma humano Linguagem pré-formal
206
Considerações Finais
207
Figura 79. Organograma da primeira parte do método proposto: bases de
composição. Design de Thiago Tadeu Ribeiro da Silva.
208
Figura 80. Organograma da segunda parte do método proposto: manipulação
do material. Design de Thiago Tadeu Ribeiro da Silva.
209
Primeiramente, falaremos das bases de composição. Como
demonstrado no primeiro organograma, o nosso método propõe que a imagem
do monstro seja observada em aspectos fundamentais como escala (tamanho),
vestimentas (se usa máscaras ou algo do tipo) e articulação da mandíbula. A
partir desta primeira observação, o compositor pode experimentar buscar as
bases do som em emissões da natureza (aqueles que acontecem com pouca
ou nenhuma interferência do profissional de captação), do corpo (provocados
pela boca ou partes do corpo) ou de objetos manipulados (materiais específicos
em contato com outros materiais, de forma a produzir o som desejado).
Após a observação e captação dos sons de base, na fase de
manipulação deste material coletado, alguns aspectos são importantes para
contar a história do monstro. Descobrimos que, de acordo com variações,
sobretudo, oscilações (sons contínuos, pulsantes ou, gamas de frequências
(pitch range), e dinâmica (intensidade, volume), determinadas leituras são
sugeridas nas vozes. Os sons que resultarem em vozes com mais variações
como as citadas acima, tenderão a apresentar uma sugestão maior de empatia
e emoção, também soando mais próximas a um idioma humano. Quanto menos
variações encontrarmos nestes aspectos, por outro lado, maior será a leitura de
dissimulação e frieza na voz do monstro, aproximando sua vocalização a uma
linguagem não-formal. Essas são as bases de nossa proposta de método de
criação de som de monstros.
O repertório de sons de monstros tornou-se mais abrangente, com novas
experiências, a partir do período de recorte do nosso levantamento. Com os
monstros da televisão e dos videogames, por exemplo, temos contato com
maiores possibilidades de representação da voz do monstro do que os
criadores investigados no corpus.
No entanto, a longevidade da repercussão das vozes de Chewbacca,
Predador e Godzilla reitera que são exemplos importantes na história das
referências de sons de monstros no cinema. Foram experiências fundamentais
para organizarmos esta proposta de método, o qual certamente pode ser
210
utilizado nos dias atuais, em qualquer meio em que um produto se proponha a
contar a história destas personagens.
Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir para futuros
desdobramentos, em áreas diversas, que se interessem por investigar os
processos de criação de sonoridades nos filmes e em especial no
desenvolvimento de monstros. Acreditamos que o método aqui representado
pode ser adaptado para a composição do som de outros tipos de personagens.
No dia-a-dia, no trabalho como sound designer, a aplicação dos conceitos aqui
estudados norteou a criação da voz também de robôs, por exemplo.
Esperamos também que estes resultados aqui obtidos possam estimular
o pensamento sobre as interconexões entre sons e narrativas fílmicas, a
montagem e a fotografia, tornando o som cada vez mais um fator de grande
expressão da linguagem audiovisual, a ser trabalhado com atenção e
criatividade.
Sabemos que toda pesquisa está conectada com várias outras e dialoga
com uma vasta rede de pensadores e criadores. Ao finalizar a presente tese,
nosso maior desejo é que os resultados aqui alcançados possam avançar por
vários caminhos, estimular a percepção da sonoridade no cinema e gerar
discussões diversas. Sobretudo, contribuir para um fazer audiovisual que pense
em seus elementos sonoros visando ampliar o nosso repertório de sons
fantásticos, assustadores e surpreendentes.
211
Bibliografia
ALTMAN, Rick. Silent Film Sound. New York, USA: Columbia University Press,
2004.
ALTMAN, Rick (ed). Sound theory, sound practice. New York: Routledge, 1992.
BAKER, Chris. How the godzilla team designed the monster’s iconic scream.
2014. Disponível em < https://www.wired.com/2014/05/designing-godzillas-
scream/ >. Acesso em 15/01/2017.
BEGGS, Josh; THEDE, Dylan. Designing Web Audio. EUA: O’Reilly Media,
2001.
BENDER, Ivo C. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre:
Editora Universidade UFRGS/EDPUCRS, 1996.
BOONE, Andrew R. Prehistoric Monsters Roar and Hiss for Sound Film.
Disponível em < http://blog.modernmechanix.com/prehistoric-monsters-roar-
and-hiss-for-sound-film/1/#mmGal >. Acesso em 17/4/2016.
212
BYSTRINA, Ivan. Tópicos da semiótica da cultura: aulas do Prof. Ivan Bystrina.
Maio de 1995- PUC-SP. São Paulo: CISC, 1995.
CAGE, John. The future of music, 1937 in KELLY, Caleb (editor). Sound:
documents of contemporary art. EUA: MIT Press, 2011.
CHION, Michel. Audiovision. New York, USA: Columbia University Press, 1994.
CHION, Michel. The films of Jacques Tati. Canada: Guernica Editions, 2003.
CHION, Michel. Film: a sound art. New York, USA: Columbia University Press,
2009.
CHION, Michel. The voice in cinema. New York, USA: Columbia University
Press, 1999.
CURTIS, Scott. The sound of early Warner Bros. Cartoons. In: ALTMAN, Rick
(ed.). Sound theory/ Sound practice. New York: Routledge, 1992. p. 191-203.
213
DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência. São Paulo: Cia das Letras,
2000.
DAVIS, Erik. Meet George Lucas´ dog Indiana, the inspiration for both
Chewbacca and Indiana Jones. Disponível em < http://www.movies.com/movie-
news/meet-george-lucas39-dog-indiana-inspiration-for-both-chewbacca-indiana-
jones/15395?wssac=164&wssaffid=news >. Acesso em 05/10/2014.
DICK, Jeremy. Friday the 13th: that awkward moment when Jason talked.
Disponível em < https://1428elm.com/2016/06/12/friday-the-13th-that-awkward-
moment-when-jason-talked/>. Acesso em 13/10/2017.
DUNCAN, Jody. The predator is born in The Winston Effect: the art & history of
Stan Winston Studio. EUA: Titan Books, 2006. Disponível em <
https://www.stanwinstonschool.com/blog/predator-movie-making-the-predator >.
Acesso em 15/01/2018.
FLORES, Virginia. O cinema: uma arte sonora. São Paulo: Annablume, 2013.
214
GILLICK, Liam. Some people never forget (the yse of sound in art of the early
nineties), 1994. In KELLY, Caleb (editor). Sound: documents of contemporary
art. EUA: MIT Press, 2011.
GRIFFITHS, Alison. Shivers Down Your Spine: cinema, museums and the
immersive view. New York: Columbia University Press, 2008.
HANKIN, Mike. Ray Harryhausen, Master of the majicks vol. 2: The American
Films. Los Angeles, EUA: Archive Editions, 2008.
HILL, Amelia. Star Wars FAQ: is Star Wars Sci-Fi or Fantasy?. Disponível em: <
http://scifi.about.com/od/starwarsglossaryandfaq/a/Star-Wars-Faq-Is-Star-Wars-
Sci-Fi-Or-Fantasy.htm >. Acesso em 21/7/2016.
KAHN, Douglas. Sound Water Meat: a history of sound in the arts. 2001.
KERINS, Mark. Beyond Dolby (Stereo): cinema in the digital sound age. USA:
Indiana University Press, 2011.
215
KING, Geoff; KRZYWINSKA, Tanya. Science Fiction Cinema: from outerspace
to cyberspace. USA: Wallflower Press, 2000.
216
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
ORR, Christopher. Why you should watch the (actual) original Godzilla. The
Atlantic, May 22, 2014. Dispon in:
<https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2014/05/why-you-should-
watch-the-actual-original-godzilla/371389/>. Access in April, 21, 2017.
RAY, Amber. Godzilla: the secret behind the roar. Disponível em <
http://www.ew.com/article/2014/05/22/godzilla-roar-interview-timeline-video/ >.
Acesso em 10/10/2016.
RINZLER, J. W.. Sounds of Star Wars. UK: Simon & Schuster Ltd, 2010.
RUSSOLO, Luigi. The art of noises, 1913 in KELLY, Caleb (editor). Sound:
documents of contemporary art. EUA: MIT Press, 2011.
217
SPADONI, Robert. Uncanny Bodies: the coming of sound film and the origins of
the horror genre. EUA: University of California Press, 2007.
TSUTSUI, William. Godzilla on my mind: fifty years of the king of monsters. New
York, EUA: St. Martin’s Press, 2004.
UMAYAM, Lovely. Gojira vs. Godzilla: two nuclear narratives in one monster.
Disponível em < https://medium.com/@bombshelltoe/gojira-vs-godzilla-two-
nuclear-narratives-in-one-monster-443a7803219a >. Acesso em 05/5/2017.
VAZ, Mark Cotta. Godzilla: the art of destruction. EUA: Insight Editions, 2014.
VOVOLIS, Thanos. The voice and the mask in ancient greek tragedy. In SIDER,
Larry; SIDER, Jerry; FREEMAN, Diane. Soundscapes: the school of sound
lectures, 1998-2001. Londres: Wallflower Press, 2003.
WEIS, Elisabeth; Belton, John. Film Sound: theory and practice. New York,
USA: Columbia University Press, 1985
218