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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

FERNANDA MANZO CERETTA

O design de som de monstros do cinema:

uma cartografia dos processos de criação de identidades sonoras na


construção de personagens.

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

2018
FERNANDA MANZO CERETTA

O design de som de monstros do cinema:

uma cartografia dos processos de criação de identidades sonoras na


construção de personagens.

Doutorado em Comunicação e Semiótica

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência para obtenção do título de Doutora
em Comunicação e Semiótica sob a orientação da
Profa. Dra. Lucia Isaltina Clemente Leão.

São Paulo

2018
Banca Examinadora

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__________________________________________________
Agradecemos o apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – o qual viabilizou esta pesquisa.
Agradecimentos

Lucia Leão, a sempre sorridente desatadora de nós da pesquisa, orientadora maravilhosa e


inspiradora. O exemplo de brilhante pesquisadora, leve e generosa, no qual tento me espelhar
sempre.

Cecília Salles, Christine Greiner, Amálio Pinheiro, Eduardo Vicente, Rogério de Almeida,
Ane Shyrlei Araújo e Bernardo Queiroz pelas valiosas leituras, aulas, contribuições e
presenças em bancas. Cida, por responder tantas vezes as mesmas perguntas que eu te fiz e
ter tanta paciência e carinho.

Irmãos de pesquisa do CCM/PUC: brilhantes, acessíveis, transparentes, generosos. Menções


honrosas para Thiago Silva, pelas leituras, pelos resgates em conflito e pelos organogramas
maravilhosos que estão na tese! / Patrícia Assuf Nechar, Alessandra Marassi, Mirian Meliani,
Rafael Montassier pelas valiosas sugestões e pelo incentivo bem humorado. / Guilherme
Espíndula, pelos presentes do Chewbacca ao longo do percurso. / Silvio Anaz, por me ensinar
tanto sobre metodologia científica, escrevendo comigo em mais de uma oportunidade durante o
doutorado./ Letícia Capanema, pela ajuda com os modelos de memorial e projeto./ Flávia Gasi
pela inspiração para a epígrafe da pesquisa.

Colegas da Universidade Anhembi Morumbi, especialmente Renato Tavares, pela


compreensão com a minha agenda durante o percurso do doutorado e por me conceder uma
das oportunidades mais maravilhosas que tive na vida – dar aula! E por toda a ajuda e
acolhimento no começo da jornada: Daniel Gambaro, Thais Saraiva, Cláudio Yutaka, Ricardo
Matsuzawa, Joviniano Borges, Catito, André Salata, Cláudia Dalla Verde.

Amigos maravilhosos dos grupos Alanos, VBS, Panquecas, Gremistas (e alguns Colorados) e
SF. / Alexandre Morgado, por sempre saber o que dizer pra me botar nos eixos de novo e
seguir com a pesquisa. / Robson Kumode, pelos tantos telefonemas desesperados de
hoooooras que sempre revelavam o projeto com maior clareza.

TFG, pelos colegas queridos e pela oportunidade incrível de fazer tanto barulho durante esses
anos, em todos os sentidos! / Caco Teixeira, por ter me ensinado tanto da prática do sound
design nos últimos anos na TFG e por ter me apresentado o Izotope / Rafão Oli, por emprestar a
voz pros meus espectrogramas, mesmo que eu tenha usado sem nem te perguntar se podia
(posso?).

Meu amor João Victor, por ter cuidado da Thundera, do Robocop e de mim durante esse
percurso. E que - ah, socorro! - defende no mesmo dia que eu!

Minha família, especialmente Maninho, Cris, Mariana (doidinha), Brunico e Cris (sogrinha).

E aos melhores pais do mundo (quiçá das galáxias): Carlos Alberto (meu revisor e inspiração
acadêmica maior) e (Queen) Elizabeth (a total responsável pelo meu gosto por monstros e
ficção científica). Amo vocês!

PS. Maitê e Elise: tô chegando!


RESUMO

Este trabalho analisa o sound design de monstros do cinema, sobretudo suas vozes.
Chewbacca (Star Wars, 1977), Godzilla (1954) e Predador (1987) constituem o corpus
da presente pesquisa. Estes monstros possuem vozes compostas por designers que
experimentaram diferentes processos de criação, utilizando sons na natureza, do corpo
e de objetos manipulados para criar a identidade sonora destas personagens.
investigamos os contextos destes processos de criação e os sons criados, em suas
particularidades, para compor uma proposta de método de composição de som de
monstros, o qual abarca as potenciais fontes dos sons de base e demais características
sonoras, como frequências, timbres e intensidade. A pesquisa foi feita a partir da
observação dos materiais audiovisuais selecionados e do resgate da documentação
disponível sobre os bastidores da criação dos mesmos (bastante vasta dada a
popularidade dos monstros selecionados). A tese se baseia sobretudo em articulações
com obras de Rick Altman, Michel Chion, William Whittington acerca do som
cinematográfico e em Theo Van Leeuwen em sua proposição de análise sonora.

Palavras-chave: sound design, estudos do som, monstros, ficção científica

ABSTRACT

This research analyzes the sound design of movie monsters, especially their voices.
Chewbacca (Star Wars, 1977), Godzilla (1954) and Predator (1987) constitute our
corpus. These monsters have voices composed by designers who have experimented
different creation processes, using sounds generated by nature, body and manipulated
objects, in order to create the sound identity of these characters. We investigate the
contexts of these creation processes and the resulting sounds in their particularities to
make a proposition of a method for creating the sound of monsters. Our method covers
the potential sources of base sounds and other sonic characteristics such as
frequencies, timbre and intensity. The research was based in the observation of the
selected audio-visual materials and in the documentation available regarding the making
ofs (which is vast, given the popularity of the selected monsters). The thesis is based
mainly on articulations with the works of Rick Altman, Michel Chion and William
Whittington, on the cinematographic sound, and of Theo Van Leeuwen in his proposition
of sonorous analysis.

Keywords: sound design, sound studies, monsters, science fiction


SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................ 9

1. O som e o monstro........................................................................................ 16
1.1 Os desafios da pesquisa acadêmica sobre som........................................ 16
1.2 Som, ruído, vococentrismo.......................................................................... 25
1.3 Os tipos de vozes de monstro..................................................................... 30
1.4 O sound designer (ou desenhista de som)................................................. 35
1.5 O audiovisual, o imaginário e o monstro.................................................... 42
1.6 Os sons do monstro em seu tempo e espaço............................................ 49

2 Uma breve arqueologia do som do monstro.............................................. 51


2.1 Teatro, literatura, mitologia e o som que arrepia...................................... 51
2.2 O som do cinema mudo................................................................................ 63
2.3 A sugestão sonora presente no cinema mudo.......................................... 75
2.4 O início do cinema sonoro, as camadas sonoras e a voz......................... 79
2.5 A ficção científica e o desenvolvimento do som cinematográfico........... 91
2.6 A voz do monstro no cinema: levantamento até 1987............................... 97

3 Processos de criação: Chewbacca e os sons da natureza..................... 108


3.1 Star Wars e o som de cinema.................................................................... 108
3.2 Quem é o Wookie?...................................................................................... 112
3.3 Burtt e Lucas em redes de criação............................................................ 117
3.4 A voz do Chewbacca................................................................................... 125

4 Processos de criação: Predador e os sons do corpo............................. 129


4.1 O caçador do espaço.................................................................................. 129
4.2 O design do monstro.................................................................................. 132
4.3 A presença pelo som.................................................................................. 136
4.4 Os cliques do monstro............................................................................... 139

5 Godzilla e os sons de materiais manipulados.......................................... 144


5.1 O monstro mais famoso do Japão............................................................ 144
5.2 Godzilla, um hibakusha.............................................................................. 149
5.3 O rugido do gigante, ontem e hoje............................................................ 154

6 A criação do som do monstro: uma proposta de método...................... 159

6.1 Evitando a ruptura no som do monstro.................................................... 159

6.2 O criador e a memória do monstro........................................................... 165

6.3 Memória e resgate do repertório do som do monstro............................. 171

6.3.1 Avanço sonoro.............................................................................................. 172

6.3.2 Hermenêutica Sonora................................................................................... 176

6.3.3 Escala Sonora e Correspondência de Escala............................................... 181

6.4 Uma análise da Modalidade dos sons....................................................... 187

6.5 A criação do som de monstro: um método possível............................... 204

Considerações finais.................................................................................. 207

Bibliografia.................................................................................................. 212
“Se tivéssemos que fazer uma fenomenologia do grito
respeitando a hierarquia do imaginário, deveríamos partir de
uma fenomenologia da tempestade. Em seguida, tentaríamos
aproximá-la de uma fenomenologia do grito animal. Aliás,
muito nos surpreenderia o caráter inerte das vozes animais. A
imaginação das vozes não escuta senão as grandes vozes
naturais. Teremos então, no detalhe mesmo, a prova de que o
vento gritante está no primeiro plano da fenomenologia do
grito. O vento de certo modo grita antes do animal, as matilhas
do vento uivam antes dos cães, o trovão rosna antes do urso.”

(Gaston Bachelard)
Introdução

No contexto do imaginário midiático, a figura do monstro é uma


constante em filmes, games e literatura, de ficção científica, fantasia, horror e
gêneros afins. Assim como sua aparência particular, o som que estes monstros
emitem também é um aspecto importante da construção destas personagens.
Este trabalho parte da curiosidade acerca dos processos de criação das
emissões sonoras que ajudam a contar as histórias dos monstros, bem como
da vontade de discutir estes caminhos criativos de forma a serem agentes de
fomento para novas criações.
Há mais de seis anos trabalho como sound designer, ou desenhista de
som, a mesma função dos profissionais mais mencionados nesta pesquisa.
Trabalho principalmente com videogames, criando o som de universos
ficcionais diversos.
Durante a minha trajetória profissional nesta área, sempre tive vontade
de conciliar o conhecimento técnico obtido com a pesquisa acadêmica.
Inicialmente, a proposta da pesquisa tinha um viés mais teórico e apontava
para uma profunda análise semiótica dos sons dos monstros. No entanto,
quando comecei a dar aulas de disciplinas de som na graduação, a partir do
segundo semestre, o desejo de falar sobre o fazer destes processos
prevaleceu.
Há mais de três anos sou professora na Universidade Anhembi Morumbi.
Entre as minhas disciplinas, constam Captação e Edição de Áudio, na
graduação em Rádio e TV, e Linguagem Cinematográfica, na pós-graduação
em Cinema e Multimeios. Durante estas aulas, percebi o quanto a criação de
sons é um ponto de especial curiosidade dos alunos e como é um aspecto da
produção ainda um pouco nebuloso. Esta distância para com as práticas
específicas do campo sonoro no que tange a criação de sons novos faz com
que, nos trabalhos discentes, muitas vezes, o som seja visto como uma
reiteração da imagem, sem ser abordado em todo seu potencial expressivo.

9
Durante o meu percurso profissional externo à academia, percebi o
quanto os documentos de processos de criação são um material fundamental
para a reflexão e o aprimoramento das práticas nos estúdios. Estudar as
técnicas e soluções destes profissionais é uma valiosa pista para encontrarmos
o caminho que cada desafio criativo demanda.
Desta forma, a pergunta que norteou a presente pesquisa foi: como
alguns dos sons de monstro mais memoráveis do cinema foram criados e o que
estes processos tem em comum? O que poderiam revelar para os profissionais
da área sobre caminhos possíveis para atingir resultados com qualidade
expressiva equivalente?
Em suma, esta pesquisa propõe um olhar sobre os processos de criação
do sound design de monstros do cinema, especialmente a voz.
Durante o processo de pesquisa do doutorado, viajei a York, Reino
Unido, para apresentar um trabalho no congresso Transnational Monstrosities,
realizado na York St. John University. A experiência foi muito positiva e reiterou
a importância dos sons dos monstros para a construção destas personagens.
Godzilla, por exemplo, tinha uma mesa exclusiva para a discussão de suas
narrativas. Apresentei, nesta mesma mesa, um artigo realizado em parceria
com minha orientadora Lucia Leão comparando os filmes Godzilla de 1954 e de
2014. Frequentemente, o som do Godzilla era relembrado nas discussões. Este
aspecto também foi ressaltado na menção a outros monstros, desde Pokemons
até o Chewbacca. A participação neste evento reforçou a escolha do corpus da
presente pesquisa.
Após decidir que documentos do processo de criação seriam o ponto de
partida, fiz uma seleção de três monstros cujas vozes eram facilmente
identificáveis, por terem um importante papel no repertório de sons de monstro
do cinema. Estes monstros deveriam emitir um som diferente dos demais e
reconhecível, além da voz nestes casos ser uma parte importante da
construção das personagens.
Ao selecionar os monstros, além das características acima, outro fator
determinante foram os processos de criação. Os três monstros do corpus, além

10
de atenderem ao reconhecimento de suas vozes, possuem processos
interessantes e distintos.
O corpus da presente pesquisa é construído pelos seguintes monstros,
em suas primeiras aparições no cinema: o wookie Chewbacca, de Star Wars
(1977), o alienígena de Predador (1987) e o monstro gigante Godzilla (1954).
Chewbacca, cujo som foi criado pelo sound designer Ben Burtt, é um ser
de um planeta fictício do universo narrativo de Star Wars. Aparenta ser uma
mistura de cachorro, urso e humano, interagindo com as demais personagens
da saga por meio do complexo idioma de seu planeta: o Wookie.

11
Figura 1. Fotos promocionais do Chewbacca. Fonte: LucasFilm.

O Predador é um monstro de uma raça de alienígenas violentos que


caçam outras espécies por esporte e reconhecimento. Detentores de uma
tecnologia muito avançada, os Predadores utilizam uma máscara através da

12
qual é possível ouvir alguns cliques/estalos feitos pela criatura, os quais foram
vocalizados pelo dublador Peter Cullen. Predadores lembram aracnídeos em
corpos antropomórficos.

Figura 2. Fotogramas de Predador (1987).

Godzilla é um dos monstros gigantes mais famosos do cinema. Com


características que lembram um réptil, Godzilla emite um poderoso rugido. A
voz do monstro foi criada pelo músico Akira Ifukube.

13
Figura 3. Fotogramas do filme Godzilla (1954).

A presente pesquisa adota uma abordagem fenomenológica, que


consiste em partir da observação do fenômeno para então esboçar relações
com conceitos e teorias. Compreendemos o processo de criação das
sonoridades dos monstros no cinema como um fenômeno complexo (composto
por várias dimensões de sentido) e em rede (conectado com a narrativa fílmica,
com as pulsões do imaginário social e as imagens visuais que constituem a

14
linguagem cinematográfica). Assim, nossa tese parte de uma observação critica
e analítica das sonoridades e dos documentos de criação dos autores e
equipes. Consideramos que a base da pesquisa deveria advir, em um primeiro
momento, de exercícios de escuta dos sons e observação das personagens e
seus contextos de produção. A segunda etapa foi realizada a partir da pesquisa
de documentos e processos de criação. Por fim, foram propostas relações com
conceitos e teorias, em torno do tema do audiovisual e do imaginário.
Com essas bases estabelecidas, iniciamos um processo de análise da
composição de sons de monstros no cinema. Com esses dados,
compreendemos um repertório sonoro para criação em meios audiovisuais.
A tese inicia apresentando os fundamentos conceituais que permeiam a
pesquisa. Foram discutidos: noções de som, ruído e vocalidade e seus desafios
para a pesquisa e sound designer; a ideia de monstro e suas relações com o
imaginário social e cultural.
No segundo capítulo, apresentamos uma breve arqueologia do som do
monstro nas artes e no cinema. Uma das nossas hipóteses iniciais, que se
confirma com o levantamento desta trajetória, é que o repertório sonoro ligado
ao monstro desde a literatura até o cinema possui profunda influência nos
trabalhos analisados. Além disso, no levantamento dos sons que colhemos,
percebemos as especificidades das criações que fazem parte do corpus.
Os capítulos 3 ao 5 se dedicam a trazer informações encontradas em
documentos de processos de criação referentes aos nossos três monstros. Na
sequência Chewbacca, Predador e Godzilla. Para encontrar estas informações,
buscamos livros sobre os bastidores das franquias, entrevistas disponíveis na
web e material de fã clubes diversos.
No último capítulo, o sexto, analisamos os processos de criação
levantados em suas diferenças e similaridades. Nos apoiamos especialmente
em Rick Altman, Michel Chion, William Whittington e Theo Van Leeuwen. A
partir destas articulações, por fim, apresentamos a nossa proposta de método,
que esperamos irá contribuir para novas possibilidades e caminhos para a
criação de outros processos criativos, que resultam em sons de monstros.

15
Capítulo 1. O som e o monstro

1.1. Os desafios da pesquisa acadêmica sobre som

Para iniciarmos nossa discussão acerca dos processos de criação de


som e sobre o entendimento de sound design de monstros, é imprescindível
que alguns conceitos fundamentais sejam apresentados. Este capítulo traz as
premissas que permeiam todo o trabalho realizado. Inicialmente, falamos um
pouco sobre as particularidades do estudo acerca de sonoridades no
audiovisual.
Uma pesquisa como esta, sobre som no âmbito do audiovisual,
independente do meio de comunicação, começa comumente com uma
lamentação. Já dizia Walter Murch, um dos profissionais de som
cinematográfico mais celebrados: “O som é o afluente menos glamoroso a
desaguar no rio do cinema” (LOBRUTTO, 1994, p.85).
Christian Metz, autor com extensa bibliografia sobre o cinema, em seu
artigo Aural World (Mundo Auricular), aponta a importância de compreendermos
como percebemos o mundo sonoro sobretudo no tocante ao cinema, à
televisão e às mídias audiovisuais. No entanto, o autor menciona que “a não ser
que seja sobre a língua falada, o sonoro foi estudado muito menos do que o
visual, com nossa civilização privilegiando muito o último. Preso entre os dois, o
‘som’ é constantemente deixado de lado” (METZ in WEIS; BELTON, 1985,
p.154). Língua falada, neste contexto, certamente está mais relacionada ao
roteiro, a interpretação, ao componente verbal do que a voz, às características,
digamos, puramente sonoras.
Sobre considerar o som um aspecto de menor importância no cinema,
Metz argumenta que a própria evolução do meio esclarece suas prioridades e
relegam à cor e ao som o posto de predicativos inferiores.

Existe um motivo pelo qual o filme sem cores, em preto


e branco, foi algo possível (culturalmente, em relação à
demanda) por tantos anos e ainda o é em grande medida; que

16
o filme com odores não tenha desenvolvimento passado ou
futuro; que o “talkie sonoro” (hoje o cinema tradicional) seja
quase sempre mais fala do que som, com os ruídos tão
empobrecidos e estereotipados. Na verdade, os únicos
aspectos cinematográficos que interessam a todos, e não
apenas alguns especialistas, são a imagem e a fala (METZ,
1980, p.27).

Desta forma, o som no cinema é vitimado por uma visão crítica que,
predominantemente, o relega a um papel/função secundário. Outro autor que
comenta esta circunstância é Michel Chion, um dos mais influentes
pesquisadores de som no cinema. Chion considera que a língua falada esteja,
de fato, no topo de hierarquia dos elementos sonoros do cinema (CHION, 2009,
p.73). “Existem vozes e então existe todo o resto” (CHION, 1999, p.5).
Mesmo assim, trabalhar a trilha sonora de um produto audiovisual,
enquanto diálogos, música e ruídos, é uma tarefa potencialmente tão complexa
quanto o trabalho com imagens, como explicam David Bordwell e Kristin
Thompson, da Universidade de Wisconsin-Madison, casal de pesquisadores
com extensa produção bibliográfica sobre cinema:

A criação da trilha sonora se assemelha a edição da imagem.


Assim como o cineasta pode selecionar dentre diversas
tomadas a melhor imagem, ele ou ela podem escolher qual
exato pedaço de som desta ou daquela fonte servem melhor
ao propósito. E, assim como o cineasta pode conectar ou
sobrepor imagens, também ele ou ela podem juntar quaisquer
dois sons de ponta a ponta ou um “em cima” do outro (como
quando temos comentários “em cima” de uma música).
Mesmo que não estejamos normalmente tão cientes da
manipulação da trilha sonora, esta demanda tanta seleção e
controle quanto a imagem (BORDWELL; THOMPSON in
WEIS, BELTON, 1985, p.186).

Arrisco dizer que o som, à exceção da fala (mesmo que apenas


fonemas), é tão vitimado pela aparente função coadjuvante quanto em razão
dos desafios que representa em um trabalho acadêmico.
É particularmente difícil escrever sobre sons, em comparação com o
âmbito visual das obras audiovisuais. Descreve-los é complicado. O

17
pesquisador, no caso, precisa transpor códigos sonoros de um dado
audiovisual para códigos linguísticos. São necessárias “palavras para descrever
um som ou os elementos de uma peça musical” (CARREIRO, ALVIM, 2015,
p.178), como afirmam os pesquisadores Rodrigo Carreiro e Luíza Alvim em
ensaio de proposta metodológica de análise de som e música no cinema.
Nesta pesquisa falamos de sons específicos. E não temos uma forma
amplamente padronizada, codificada, para falar de sons quando estes não são
fala ou música. A linguagem musical, por exemplo, possui a própria escrita, em
partitura. Quando falamos de imagens, como pinturas e retratos, estas podem
ser reproduzidas em papel para auxiliar o texto. Até mesmo imagens em
movimento podem ser exemplificadas mais claramente com sequências de
planos em fotogramas, estratégia que esta pesquisa utiliza.
No evento Transnational Monstrosities, ocorrido na York St. John
University em Junho de 2017, precisei apenas de um slide que mostrava dois
fotogramas do filme Godzilla (2014) para explicar precisamente o que eu quis
dizer quando afirmo que o filme constrói uma relação do monstro com o
exército americano. Apesar do movimento, inerente à cinematografia, ao
mostrar as duas imagens estáticas e explicar que se trata de uma sequência, já
dei conta de ilustrar suficientemente o argumento.

18
Figura 4. Slide apresentado no evento Transnational Monstrosities com
fotogramas do filme Godzilla (2014). O primeiro fotograma mostra o soldado
americano caído, após a batalha. Pelo ponto de vista dele, em seguida, no
filme, vemos o Godzilla tombar após a batalha contra os MUTOs, outros dois
monstros gigantes.

O som, por outro lado, não possui uma imagem, objetivamente, passível
de leitura como um fotograma de uma sequência cinematográfica, ou uma
partitura, ou um texto. O francês Édouard-Léon Scott de Martinville é
considerado a primeira pessoa a fazer uma gravação de áudio, em 1860. Na
época, sendo impossível reproduzir o que havia gravado, Martinville pensava
que as pessoas leriam os seus registros sonoros e imaginariam o som em suas
mentes1.
Há tempos, somos capazes de colher informações que permitem uma
perfeita reprodução da informação sonora em sistemas de som e, mais
recentemente, em softwares. No entanto, estas informações continuam
insuficientes para que façamos uma leitura de seus registros sem a ajuda de
decodificadores. Somos capazes de colher algumas informações, mas não
conseguimos ouvir os sons nas nossas cabeças, como Martinville imaginava.

1
A brief history of the Waveform. Disponível em < https://soundcloud.com/stylusradio/a-brief-history-
of-the-1 >. Acesso em 25/02/2018.
2
A brief history of the Waveform. Disponível em < https://soundcloud.com/stylusradio/a-brief-history-

19
O som em softwares, gera imagens que trazem informações de algumas
de suas qualidades. Quando o som, a partir de um transdutor (como um
microfone), torna-se áudio, um sinal eletrônico, a sua representação mais
comumente encontrada é a waveform, ou forma de onda. Jonathan Sterne,
historiador do som, diz que “As pessoas pensaram o som como uma onda
provavelmente desde sempre”2.

Figura 5. Waveforms presentes nos softwares de áudio mais utilizados por


profissionais atualmente, como o Pro Tools (esquerda) e a waveform no
sistema analógico como som ótico impresso em uma película de um desenho
animado (direita, com destaque em vermelho).

Além da waveform, alguns softwares mais completos permitem outras


formas de visualização da informação sonora, com espectrogramas, como é o


2
A brief history of the Waveform. Disponível em < https://soundcloud.com/stylusradio/a-brief-history-
of-the-1 >. Acesso em 25/02/2018.

20
caso do software Izotope, muito utilizado entre os profissionais como um editor
de áudio, o qual utilizaremos para o exemplo a seguir.

Figura 6. Demonstração gráfica de uma explosão em arquivo de áudio


estereofônico (dois canais- esquerdo e direito) coletadas no software Izotope
RX3.

Na figura acima, temos a representação do áudio estereofônico (gravado


em dois canais) de uma explosão. A informação em azul claro é a waveform. A
waveform, ou desenho de onda, é uma forma de representação das
compressões e descompressões no deslocamento de matéria que o som
provoca no ambiente, com os diferentes níveis de intensidade e amplitude
(“volume” - eixo Y) do som no decorrer do tempo em que ocorre (eixo X). Trata-
se da representação gráfica de áudio mais tradicionalmente encontrada. Já o
espectrograma (granulado, ao fundo da waveform) faz referência à intensidade
sonora presente por região de frequências: na base estão os graves (a partir
20Hz) e no topo os agudos (até 20kHz), e as cores representam do mais
intenso (amarelo>laranja) ao menos intenso (azul>preto). Por fim, vemos duas

21
representações, uma acima da outra, pois cada uma corresponde a um dos
canais de um áudio estereofônico (esquerdo e direito).
Podemos concluir, ao olhar para a figura, que o som inicia
repentinamente, com forte intensidade (“volume”), e que progressivamente
perde intensidade até cessar. Sabemos que as frequências mais graves são
mais presentes do que as mais agudas. Mas não somos capazes de ouvir o
áudio representado em nossas mentes.
Esta dificuldade de descrição deste tipo de objeto é um desafio relevante
na hora de considerar a pesquisa sobre o som. A dificuldade aparece até
mesmo nas aulas de Captação e Edição de Áudio que ministro na Universidade
Anhembi Morumbi: é difícil explicar verbalmente o que é um som grave para os
alunos apenas mostrando um desenho de onda. Faz-se necessário encher as
bochechas e reproduzir com a voz o som mais grave que eu sou capaz de
emitir. Pois é através da experiência, na percepção dos sentidos e do próprio
corpo, que o entendimento do som inicia. Mas e no texto científico, que não
possui boca? (Talvez ÔÔÔÔ [grave] e ÍÍÍÍÍ [agudo]?).
Frequências ao menos possuem uma escala em Hertz (ciclos por
segundo). Mas timbres, por exemplo, por mais importantes que sejam para a
singularidade de um som, são de difícil descrição. Em geral, faz-se necessária
a menção ao emissor destes sons. Sobre esta condição do som, Fernando
Iazzetta, pesquisador de música da USP, em artigo intitulado A Imagem que se
ouve, afirma que
Os sons são, antes de tudo, signos que remetem a
algo: a uma fonte sonora, a ambiente sonoro, a um evento
sonoro, mas também a todas as coisas, contextos e situações
que podem estar associadas a esses sons. Um mecânico é
capaz de perceber o mal funcionamento de um carro
simplesmente ouvindo sutis flutuações sonoras produzidas
pelo motor, as quais podem ser imperceptíveis para o
motorista. E o médico realiza um claro exercício semiótico ao
dar seu diagnostico a partir da auscultação pelo estetoscópio
(IAZZETTA, 2016, p.378).

Assim, levando em consideração o que afirma Iazzetta, pelo fato dos


sons remeterem a algo – no sentido da semiótica, nos processos de criação de

22
sons, busca-se utilizar estas redes associativas entre som e significado que são
constituídas culturalmente. Quando não identificamos um emissor para
mencioná-lo e fazer entender um som, é comum encontrar analogias entre
fenômenos sonoros e tipos de vocalizações humanas. Michel Chion, em sua
obra Sound (2016), cita um poema de Paul Verlaine chamado Chanson
d’automne (Canções de Outono). Ao citar estas estrofes, Chion comenta como
adjetivos comumente associados a voz são emprestados às manifestações
sonoras não próprias do ser humano. Um dos trechos é este:

Les sanglots longs


Des violons
De l’automne

Ao procurar a tradução, no entanto, foram descobertas pelo menos duas


3
versões. Nas versões de dois autores diferentes para o português,
encontramos:

Estes lamentos
Dos violões lentos
De outono

Ou

Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono

Abaixo também a sugestão de tradução de Lucia Leão, orientadora deste


trabalho:

Os longos soluços
De violinos
Do outono


3
Disponível em < http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet024.htm >. Acesso em 24/1/2017.

23
Trata-se de um exemplo no qual uma manifestação artística, no caso
uma poesia, faz referência às expressões vocais como vindas de um objeto, na
construção de uma analogia entre a sonoridade do instrumento e a atmosfera
do outono. Isto também ocorre comumente com elementos da natureza.
Pensamos em outro exemplo possível, no caso a música Tempestade, de
Marina Lima.

A tempestade me assusta
Como sua ausência
Você, raio humano, despencou
Na minha cabeça

E desde então
Grita esse trovão
No meu peito4

O exemplo da música citada corrobora com a ideia de Chion, que


considera estes fenômenos uma demonstração de que a que voz não é algo
exclusivo ao homem. Exemplifica, portanto, uma das tantas analogias possíveis
que encontramos em manifestações artísticas e em expressões do dia-a-dia,
recorrendo à voz para evocar uma ideia.

A época ou disposição mental que dá vozes,


sentimentos e reclamações para os elementos, da perspectiva
destas épocas e disposição mental, não implicam em
referências que sugerem um retorno ao homem. Ao contrário,
o privilégio da voz é tirado do homem (CHION, 2016, p.50-51).

Para nós, evidencia a centralização do vocabulário sonoro em torno da


voz, principalmente da fala. Ou seja: de um lado temos a notação musical para
indicar um som. Do outro, temos constantes referências, em analogias poéticas,
às vocalizações. Neste segundo caso, o uso de imagens poéticas, embora
propicie uma aproximação pouco técnica do som, estimula o poder da
imaginação nos processos cognitivos para se entender o som.


4
Disponível em < https://www.letras.mus.br/marina-lima/88245/ >. Acesso em 24/1/2017.

24
A presente pesquisa tem a necessidade de ir além da menção ao
emissor de um som para descreve-lo e projetá-lo na mente do leitor. Por isso,
falaremos sobre qualidades sonoras e diferenças entre sons que serão
mencionados no decorrer da pesquisa. Ao mesmo tempo, faz-se necessário
também compreender as implicações da importância da voz no campo sonoro,
sendo o nosso objeto as vozes de monstros.

1.2. Som, ruído, vococentrismo

Inicialmente, consideramos importante diferenciar algumas das


principais palavras utilizadas para fazer referência a sons e suas
particularidades. Nos próximos parágrafos, apresentaremos este primeiro
vocabulário. Lembramos que estas definições não são unanimamente
reconhecidas. No universo da produção bibliográfica sobre sons, é possível
encontrar outras definições. Como base de nossa referência, utilizamos a obra
de Murray Schaffer O ouvido pensante (1992), que não exatamente define este
vocabulário, mas que guiou para a nossa própria definição através de suas
reflexões.
Quando a presente pesquisa fala sobre som, estamos nos referindo aos
fenômenos sônicos que somos capazes de ouvir, convencionalmente aqueles
que operam entre 20Hz e 20kHz. Na esfera do audiovisual, portanto, som é
tudo aquilo que podemos ouvir em uma obra. Nos processos de criação de
sound design, também mencionaremos sons que operam em frequências não
audíveis por nós, no caso os ultrassons (mais agudos, acima de 20kHz) e os
infrassons (mais graves, abaixo de 20Hz). Estes, passíveis de captação por
transdutores, são por vezes manipulados para trazer suas características para
regiões de frequências audíveis. Explicaremos mais adiante quando
mencionarmos, por exemplo, o processo de criação do rugido do King Kong
(por mais que não façam parte do corpus principal, alguns outros processos
serão mencionados em menor profundidade no decorrer da pesquisa).

25
Ao mencionarmos áudio, estamos nos referindo à denominação dada ao
som capturado eletronicamente. Quando a pressão sonora do ambiente vira um
sinal elétrico através de um transdutor (microfone), temos um som em
condução de áudio.
Um conceito muito importante para esta pesquisa é o de ruído. Ruído
costuma fazer referência a um som indesejável, a ser evitado. Mesmo fora do
campo dos estudos acústicos, ruído é uma palavra que costuma ter a
conotação de algo que atrapalha, perturba, dificulta. Como explica Schaffer
(1992, p. 138), o termo ruído já foi concebido como o oposto de um “som
musical”, o que é controverso dado o fato de que músicos utilizam ruídos há
bastante tempo em composições, como na música eletroacústica. Sobre isso,
Iazzetta (2016) faz uma reflexão muito interessante sobre como a música e o
conceito de nota musical representam uma tentativa de restringir os sons. O
autor também discorre sobre as dificuldades de categorizar e controlar os
ruídos:

A nota é um recorte estreito dentro do largo espectro


dos sons audíveis. Sua existência reduziu o conceito
de som ao conceito muito mais estrito de som musical,
eliminando tudo que pudesse ser considerado ruído para a
música. Por outro lado, foi essa regulação sonora que permitiu
que se constituísse a maior parte do repertório musical que
conhecemos no Ocidente. Permitiu ainda que se criasse um
sistema eficiente de notação, o qual por sua vez legitimou o
papel da nota enquanto representação suficiente do som
musical. Em certa medida, a música do século XX se propôs a
alargar esse espectro, incorporando o que anteriormente seria
considerado ruído e, mais do que isso, implicando uma
atenção para aspectos qualitativos do som que transcendiam
a noção de nota musical. Com isso surge uma estética da
sonoridade, a possibilidade de se estruturar um pensamento
musical, não mais a partir da abstração sonora, mas da
concretude dos sons em sua diversidade. O ápice desse
processo se apresenta com o projeto da música eletroacústica
a partir do início dos anos de 1950. Na eletroacústica a
matéria composicional é o som e as noções de nota e de
notação praticamente perdem o sentido. Esse processo
estende-se de certa forma até hoje. A ideia de tomar o som
em si, expressa mais uma reação à abstração imposta pela
nota, do que uma visão reducionista do fenômeno sonoro
(IAZZETTA, 2016, p.379).

26
Ruído, portanto, é um som em geral desorganizado, acidental, sem
relação direta com um código, como são a música e a fala, que quando
mencionada nesse texto faz alusão ao uso de palavras como expressão. Um
ruído é um som confuso, de difícil descrição. A nossa compreensão de um
ruído se assemelha a que temos ao ouvir um idioma que não falamos, o qual
não sabemos estruturar e decifrar (CHION, 2016, p.61). E, para esta pesquisa,
o ruído, sendo base de tantas criações mencionadas, não tem nenhuma das
conotações negativas comumente empregadas. Pelo contrário, o ruído é a
matéria-prima por excelência do sound design aqui estudado.
No nosso recorte, falamos de vozes de monstros. Diferentemente da fala
que, como mencionamos, possui uma relação direta com um código, o aparelho
fonador dos monstros costuma apresentar a voz mais como ruído, primitivo e
desgovernado, do que algo codificado. Isso, é claro, no caso do nosso corpus.
Como veremos, existem várias formas de expressão vocal monstruosa.
O repertório das artes faz perceber a importância do aparelho fonador
dos monstros para a construção da personagem. Argumentaremos, com base
na obra de Chion, que o cinema sonoro é uma arte vococêntrica, ou seja, a voz
costuma estar acima, hierarquicamente, dos demais sons.
Voz, neste caso, compreendendo os sons emitidos pelo aparelho
fonador dos atores, apresentadores, narradores, etc. Voz é uma palavra com
vários sentidos. Seu uso faz referência à palavra, às expressões (como em “a
voz do povo”), até mesmo às partes de uma composição musical. Na nossa
pesquisa, falamos da voz sobretudo enquanto vocalização. Enquanto som
produzido por aparelho fonador humano ou animal. Ou até, é claro,
monstruoso. Independentemente de ser codificado ou não.
Dando continuidade, falamos sobre a hierarquia dos sons no cinema,
que frequentemente estabelece a voz como protagonista. Esta transparece
desde o roteiro, que tende a descrever mais os diálogos do que as paisagens
sonoras, até a captação de som direto (microfones como o shotgun [boom] e o
lapela são especialmente projetados para captar a voz no set de filmagem) até

27
a mixagem, processo no qual os volumes e efeitos são ajustados. Sobre esta
importância, Chion afirma que “A voz não é um som qualquer, “da mesma
forma que a imagem de um rosto não é como qualquer outra imagem” (CHION,
1999, p.6).
Desta forma, se na hierarquia dos sons do cinema, a voz é o som
principal, o maior potencial de comunicação do monstro também costuma estar
nas vocalizações que ele emite, por mais que não sejam decodificáveis como a
fala.
A voz enquanto “som principal” é compreensível, dado o fato do som ser
um privilegiado mecanismo de comunicação entre seres humanos e animais,
especialmente o som enquanto voz/vocalização. Os ruídos também
comunicam, é claro, mas é interessante perceber como, dentre as
possibilidades de tradução, a voz é consideravelmente mais objetivamente
mencionável, desde as onomatopeias até, principalmente, a fala.
A escolha da voz, por exemplo, e consequentemente do som, como uma
das formas primordiais de comunicação do homem, está provavelmente
relacionada à algumas características sonoras. O som não é tão direcional5 e
não é dependente da luz, como a imagem. Isso o torna mais apropriado. Como
menciona Metz, “a conexão relativamente fraca (do som) com o espaço provém
múltiplas vantagens das quais a raça humana não teria se beneficiado caso
uma linguagem visual tivesse sido escolhida” (METZ, 1980).
“Às vezes som e voz tornam-se unos” (CHION, 2016, p.51), é só
perceber como a voz aparece em destaque nas próprias nomenclaturas de
tecnologias sonoras. Em Grego, a palavra phoné significa voz. E esta é a
origem de todas aquelas palavras que fazem referência à áudio e gravação de
som, como por exemplo microphone/microfone, gramophone/gramofone e
Vitaphone (nome da [convencionada] primeira tecnologia de cinema sonoro).
Vale lembrar também que os primeiros filmes sonoros eram conhecidos e

5
A propagação das ondas sonoras e fenômenos físicos envolvidos, como a difração e a reflexão, fazem
com que o som consiga contornar obstáculos e “ricochetear” em ambientes, fazendo com que chegue
aos ouvidos de alguém por mais que esta pessoa não esteja “voltada” para a direção do emissor. O
mesmo não acontece com a imagem. Portanto, o nosso campo visual tem uma restrição em termos de
direcionalidade maior do que a nossa escuta.

28
divulgados como Talkies, ou “falantes”. Isso tudo transparece o lugar da voz na
hierarquia dos sons, os quais estas tecnologias foram pensadas para captar e
reproduzir.
O cinema é verbocêntrico e vococêntrico. Verbocêntrico, pois o código
trazido pela voz deve ser inteligível e costuma evitar-se possíveis camuflagens,
conforme afirma Chion (1994). O autor explica que a característica
Vococêntrica está na semelhança com o que acontece na natureza, onde a voz
se destaca de outros elementos sonoros enquanto os estamos captando no
ambiente.

Se o ser humano ouvir vozes no meio de outros sons


que o rodeiam (sopro do vento, música, veículos), são essas
vozes que captam e concentram logo a sua atenção. Depois,
em rigor, se as conhecer e souber quem está a falar e o que
dizem, poderá então interessar-se pelo resto. Se essas vozes
falarem numa língua que lhe seja acessível, vai começar por
procurar o sentido das palavras, e só passará à interpretação
dos outros elementos quando o seu interesse sobre o sentido
estiver saturado. (CHION, 1994, p.6).

O mesmo vale para a escolha de mixagem no cinema. Não é incomum


todos os outros sons de uma trilha sonora, como ambiências e música, terem a
intensidade reduzida para dar espaço e clareza às vozes.
A partir desta tradição, as vocalizações dos monstros, por mais que nem
sempre utilizem códigos perfeitamente decifráveis, são um aspecto de primeira
importância na sua composição das personagens. Mesmo que não falem um
idioma reconhecível, ou até mesmo nenhum idioma, as vozes dos monstros
ficam em primeiro plano na mixagem. E estão repletas de significado.
Paul Zumthor, historiador da literatura e linguista, faz uma distinção entre
vocalidade e oralidade. Oralidade estaria ligada a transmissão: “significa
simplesmente que uma mensagem é transmitida por intermédio da voz e do
ouvido” (ZUMTHOR, 1990, p.117). Vocalidade, por outro lado, seria uma “noção
antropológica, não histórica, relativa aos valores que estão ligados à voz como
voz e, portanto, encontram-se integrados ao texto que ela transmite” (ibidem).

29
A voz emana de um corpo, não somente no sentido psico-
fisiológico do termo, mas igualmente no sentido (que, para mim,
não é metafórico) em que falamos do “corpo social”. Na voz
estão presentes de modo real pulsões psíquicas, energias
fisiológicas, modulações da existência pessoal. Gostaria de
dizer que a voz reflete de maneira imediata uma certa atitude do
homem para com ele mesmo, para com os outros, para com
sua consciência e sua palavra: atitude percebida pelos ouvintes
de modo empírico, global, a maior parte do tempo sem o menor
começo (nem mesmo possibilidade) de análise (ibidem).

Podemos relacionar os apontamentos de Zumthor acerca da vocalidade


com a importância da composição da voz de dada personagem para transmitir
estas características sensíveis aos espectadores, por mais que não
perfeitamente codificadas. Chewbacca, por exemplo, possui inflexões vocais
que comunicam o seu “estado de espírito”: tristeza, alegria, sofrimento, alerta,
etc. Veremos que Predador e Godzilla também são capazes de contar histórias
em suas vocalizações, compondo os personagens.

1.3. Os tipos de vozes de monstros.

Buscamos compreender os pormenores dos caminhos criativos da


construção do som dos monstros no cinema, mais precisamente suas
vocalizações.
Sabemos que pensar as vozes dos monstros como única forma de
comunicação destes é uma versão reduzida de suas potencialidades. O som do
monstro se faz perceber não apenas pelo seu aparelho fonador, mas por seu
corpo, e este corpo soa. Desde uma pegada forte e grave que denuncia a
massa deste corpo até a viscosidade de uma pele pegajosa, todos estes sons
comunicam características do monstro. Enfatizamos, pelo recorte da pesquisa,
as vocalizações, mas invariavelmente trata-se de parte de um todo que compõe
a personagem do monstro em sua perspectiva sonora.
Neste recorte, enfatizamos o processo de criação destas vozes, o que se
justifica pela complexidade das vocalizações. Estas possuem variações
consideráveis, exigindo maior e menor sofisticação na decodificação dos

30
códigos emitidos. Podemos listar ao menos três tipos de comunicação vocal
dentre os monstros do cinema: idioma humano, idioma próprio e os que se
comunicam de maneira pré-formal.
Existem monstros do cinema que se comunicam utilizando idiomas
humanos, comumente aqueles do país de origem da produção em que se
encontram, e que são recorrentemente dublados para outros idiomas, quando
da versão para outros países. Outros monstros se comunicam por idioma
próprio, ou seja, são de região ou planeta fictícios com sua própria forma de
comunicação verbal. Já os monstros com comunicação vocal pré-formal não
demonstram conhecimento de nenhum esquema de códigos de comunicação
verbal e se comunicam com interjeições vocalizadas de toda sorte: rugidos,
grunhidos, estalos, gritos, etc.
A tabela a seguir traz vários exemplos de monstros do cinema em cada
uma destas “categorias” de comunicação vocal.

IDIOMA HUMANO IDIOMA PRÓPRIO PRÉ-FORMAL

Shyriiwook, falado por Jason Vorhees (Sexta-feira


Drácula 13)
Chewbacca (Star Wars)

Poleepkwa, falado pelos


A criatura (Frankenstein) King Kong
Prawns (Distrito 9).

31
Freddy Krueger (A Hora do Yautja, falado pelo Predador Godzilla
Pesadelo) (Predador).

Chucky (Brinquedo
Huttese, falado por Jabba Xenomorph (Alien)
Assassino)
The Hutt (Star Wars).

Na’vi, falado pelos Na’vi Hombre Pálido (O Labirinto


(Avatar). do Fauno)
Sulley (Monstros S.A.)

Regan McNeil possuída pelo Heptapod A, falado pelos Zumbis (Guerra Mundial Z)
diabo (O Exorcista) Heptapods (A Chegada).

32
Stay Puft Marshmallow Man
(Os caça fantasmas)
Pinhead (Hellraiser) Klingon, falado pelos
Klingons (Star Trek).


Tabela 1. Comparação de formas de comunicação vocal de famosos monstros
do cinema.

Eventualmente, em aparições dos monstros representados na tabela
acima, é possível encontrá-los apresentando um comportamento vocal
diferenciado, que os reclassificaria quanto as formas de comunicação. No
entanto, costumam ser acontecimentos isolados, muitos específicos, que não
alteram a percepção geral de como esses monstros se comunicam. Temos um
exemplo destes eventos em Jason vai para o Inferno (Jason Goes to Hell,
1993), em sequência na qual Jason Vorhees invade o corpo de um policial e
fala uma frase. Este acontecimento é motivo de revolta entre os fãs, como
escreve Jeremy Dick no artigo “Sexta-feira 13: o estranho momento em que
Jason falou”, no site de fãs da franquia de terror 1428 Elm 6: “(…) o fato de
Jason ser um monstro absolutamente calado é uma de suas características
mais marcantes. Fazê-lo falar de repente é provavelmente a pior coisa que
você poderia fazer com o ícone da cultura pop” (DICK, 2016).
De qualquer forma, o processo de criação destas vozes difere de acordo
com o tipo de comunicação do monstro. Caso o monstro utilize um idioma
humano para se comunicar, é comum termos composições interessantes de
vozes de atores que trabalham na interpretação do monstro.
Em O Exorcista (1973), no qual uma menina é possuída pelo demônio, a
atriz Mercedes McCambridge foi responsável pela dublagem. Para conseguir

6
Disponível em < https://1428elm.com/2016/06/12/friday-the-13th-that-awkward-moment-when-
jason-talked/ >. Acesso em 13/10/2017.

33
uma voz com timbre naturalmente demoníaco, a atriz engolia ovos crus, bebia
uísque e fumava em grandes quantidades 7 . Para fazer a voz do Freddy
Krueger, o monstro da franquia A hora do pesadelo (A Nightmare on Elm Street,
cinco filmes, de 1984 a 1989) o ator Robert Englund conta que os técnicos de
som faziam uma manipulação da altura de frequências de sua voz, a deixando
mais grave. Como Englund não queria que a voz soasse artificial depois da
manipulação, ele fazia as falas no set bem rapidamente, para que a
desaceleração do efeito de pitch shift 8 de frequências não prejudicasse o
resultado9. Impossível não mencionar também Vincent Price que, por mais que
não tenha ficado famoso pela voz de monstros em si, foi um dos narradores de
filmes de terror mais consagrados pelos fãs do gênero. Com um timbre intenso
e horripilante, participou inclusive da Thriller, de Michael Jackson, narrando a
história de terror e dando a risada que encerra a música.
Mas a voz dos monstros do corpus não está nesta categoria, não possui
decodificação precisa. Trata-se de um desafio diferente.
O profissional responsável por criar estes sons atualmente é conhecido
no mercado audiovisual como sound designer. Trata-se de um cargo
relativamente novo e sem uma única definição. Veremos a seguir quem é este
profissional.

1.4. O sound designer (ou desenhista de som)

No nosso corpus, no qual constam Chewbacca (Star Wars), Predador e


Godzilla, os monstros não falam um idioma humano, mas se comunicam com
idiomas próprios ou em maneira pré-formal. O profissional responsável por criar
estes sons é comumente chamado de sound designer, ou Desenhista de Som.
Desenho de som, ou sound design, é a arte de potencializar a
expressividade e o poder dos sons. Muito além da sincronia com os eventos em

7
Mais informações em PLATE, Brent. Religion and film: cinema and the re-creation of the world. New
York: Columbia University Press, 2017.
8
Pitch Shift é um efeito de manipulação do som, em que a altura (frequências) é manipulada para um
determinado som soar mais grave ou mais agudo.
9
Entrevista disponível em < https://youtu.be/QbUg-HH3RpI >. Acesso em 24/03/2018.

34
quadro, quando o som ajuda a contar uma história reiterando a presença dos
elementos da diegese, o sound designer é capaz de criar atmosferas, fazer uma
crescente dramática e pensar/criar ruídos que nunca antes ouvimos, apenas
para citar algumas das possibilidades criativas desta função.
Dado o viés da pesquisa de análise de processos de criação, sobre os
profissionais que compuseram as vozes das criaturas mencionadas, é
importante também apontar que sound designer é uma designação proveniente
das novas funções assumidas pelos profissionais de som no cinema a partir
dos anos 1970. Este termo, portanto, está carregado das subjetividades do
trabalho de som das obras cinematográficas, sendo um termo distante de ter
um significado fixo. Como afirma William Whittington, autor do livro Sound
Design and Science Fiction, o termo sound designer “continua a crescer
enquanto novas influências são introduzidas e é aplicado em diferentes
contextos desde a produção até a academia” (WHITTINGTON, 2007, p.26-27).
Outro importante pesquisador que discute o som cinematográfico,
abordando-o desde o tempo do cinema mudo, é Rick Altman. O autor, que
constantemente criticou a visão do som como algo inferior a imagem, diz que o
“louvor” aos sound designers que surgiram na década de 1970 tem um lado
controverso. No caso, esta adoração faria desmerecer o trabalho de som feito
anteriormente no cinema. É como se, antes dos sound designers, quem
trabalhasse com som no cinema fosse apenas um técnico que “gira botões em
suas máquinas” (ALTMAN, 2004, p.6).
Don Rogers, diretor de som da Warner Bros entre os anos 1970 e 1990,
explica que a função de Diretor de Som, profissional que organiza e fiscaliza as
etapas de produção sonora de um filme, está presente desde o princípio do
cinema sonoro. George Groves já era denominado o diretor de som no pioneiro
The Jazz Singer, convencionado como a estreia do filme sonoro. “Diretor de
som era o título da pessoa que liderava o departamento de som” (LOBRUTTO,
1994, p.21).
Interessantes experimentações sonoras estão presentes desde os
primeiros anos do cinema sonoro, em obras que trabalhavam seu potencial

35
para a construção de sentido de diferentes formas não-reiterativas à imagem.
Particularmente, gostaria de mencionar o belíssimo trabalho de Fritz Lang e sua
equipe em M (1931), traduzido no Brasil como O Vampiro de Dusseldorf. O som
de M foi exaustivamente explorado em artigos acadêmicos, despertando grande
atenção dos pesquisadores que se interessam por som. Já nos primeiros
minutos de filme, Lang utiliza, por exemplo, uma música assoviada por um
assassino como uma de suas características de identificação para o
espectador, em um recurso sonoro conhecido como leitmotif. Ressaltamos que
isso foi em 1931, apenas quatro anos após a “inauguração” do cinema sonoro.
Godzilla (1954), parte do corpus da presente pesquisa, é também um
ótimo exemplo de uso criativo do som antes da década de 1970.
No entanto, o termo Sound Design e suas respectivas funções vem
acompanhadas de mudanças determinantes no cinema que acrescentaram
muito às possibilidades criativas do som. Diretores do movimento iniciado nos
anos 1960 e conhecido como Nova Hollywood, entre eles Martin Scorcese,
Francis Ford Coppola e George Lucas, estavam ansiosos para testar as
possibilidades expressivas das novas tecnologias cinematográficas. Para
estes diretores, o som também era um importante campo de experimentação a
contribuir para os filmes. Houve, portanto, a promoção de uma atualização dos
métodos Hollywoodianos de usar o som no cinema.
O Nagra III, lançado em 1957, fez parte da primeira geração de
gravadores de som portáteis a disposição dos profissionais do cinema. Torna-
se muito mais simples ir a campo para gravar sons e promover
experimentações, não sendo mais necessário o uso dos grandes e pesados
equipamentos antigos. Além disso, o Nagra III utilizava fita magnética, a qual
facilitava a edição em múltiplas camadas, possibilitando simultaneidade de
reproduções. William Whittington explica que:

O gravador de fita Nagra substituiu os enormes caminhões da


era dos estúdios e permitiu a gravação criativa de efeitos
sonoros em qualquer locação. E os reprodutores de fitas em
várias faixas (multitrack) permitiram facilidade na manipulação
de efeitos crus. A regravação era vigorosamente encorajada e

36
solicitada por produtores e diretores ‘sonoro-conscientes’,
como Coppola e Lucas (WHITTINGTON, 2007, p.72).

Esta miniaturização de componentes e consequente portabilidade dos


equipamentos, permitiu uma maior versatilidade nas gravações de sons. Ao
invés de levar os materiais para o estúdio para serem gravados, agora era
possível explorar o mundo com os novos gravadores. “(...) gravadores de som
portáteis encorajaram a coleção de todo tipo de ‘material cru’ usado para
produzir efeitos sonoros inovadores, desde o rugido de dinossauros até o
choque de sabres de luz” (WHITTINGTON, 2007, p.1).
Além dos novos gravadores, também foi importante a modernização dos
periféricos analógicos de manipulação de áudio. Estes permitiram uma riqueza
inédita em termos de criação de sons. A multiplicação de camadas, por
exemplo, é considerada por Whittington um divisor de águas. “A possibilidade
de pensar o som em camadas é uma das principais diferenças entre o som da
“Velha Hollywood” e o sound design da Nova Hollywood” (WHITTINGTON,
2007, p.70)10
Na Nova Hollywood, além dos diretores, destacam-se profissionais como
Walter Murch. É possível afirmar que Murch está entre os mais notáveis e
consagrados profissionais de som da história do cinema. A importância de
Murch, bem como a de Ben Burtt (cujo processo de criação será analisado em
maior profundidade no capítulo sobre o Chewbacca), é tal que são tidos como
fomentadores do interesse pelo som no âmbito acadêmico, como menciona
Suzana Reck Miranda, pesquisadora de Imagem e Som da UFSCAR:
De um modo geral, o interesse acadêmico em
som/música no cinema aumentou após a viabilidade técnica de
maior integração entre os elementos sonoros, no final dos anos
1970, cujo marco é o conceito de sound design cunhado por
editores de som norte-americanos como Walter Murch e Ben

10
Posteriormente, estações de trabalho digitais (como o software de edição de áudio Pro Tools da Avid
Technology) facilitaram a sobreposição de sons em várias camadas de diálogos, ruídos e música. Estes
permitem, sem perda de qualidade (por possíveis desgastes do material físico que armazenou o áudio,
em tecnologias predecessoras), edições não-lineares, com maior liberdade e facilidade de uma prévia-
escuta dos resultados. Todas estas tecnologias surgem como forma de facilitar o trabalho criativo e,
portanto, auxiliar em uma produção de som para as artes com maiores possibilidades. Mesmo que este
avanço tecnológico seja importante para o trabalho de som cinematográfico, o corpus da presente é
produto de variados procedimentos analógicos.

37
Burtt (MIRANDA, 2011, p.161)

Em parceria com alguns dos principais diretores do movimento Nova


Hollywood, antes de cunhar o termo Sound Design, Murch havia sido creditado
como o autor da Sound Montage do filme THX 1138 (1971), sob a direção de
George Lucas. “Como editor de som e mixador, Murch construiu camadas
densas de diálogos, música e efeitos (...) para criar uma sensação de imersão
para os espectadores” (WHITTINGTON, 2007, p.22).
Além disso, o próprio Murch explica que este termo era uma forma de
escapar de possíveis penalizações da época por parte das unions, ou
sindicatos: “(...) no começo da minha carreira eu trabalhava non-union (sem
filiação à sindicatos) e o título de Sound Montage parecia vago o suficiente para
não disparar nenhum alarme” (LOBRUTTO, 1994, p.84). Desta forma, sua
participação nos filmes não seria problematizada por nenhum sindicato.
O termo Sound Design surgiu atribuído à Murch nos créditos de
Apocalypse Now (1979), de Francis For Coppola. Seu uso teve um início
controverso, pois outros profissionais de captação e edição de som também se
apropriaram deste ou foram designados como tal pela imprensa popular. Alguns
preferiam manter as funções tradicionais, que aliás são as únicas até hoje
reconhecidas pela Academia de Artes e Cinematográficas em sua premiação
Oscar11. De qualquer forma, era como se “o star system Hollywoodiano tivesse
finalmente descoberto o mundo do som” (WHITTINGTON, 2007, p.24). Para
Whittington, fica claro, principalmente a partir do trabalho de Ben Burtt em Star
Wars, que o papel do profissional de som no cinema havia mudado.
A designação Sound Designer tornou-se necessária quando o
profissional de som no cinema passou a abarcar funções que não seriam mais
facilmente categorizáveis entre as tradicionalmente reconhecidas: profissional
de captação de som direto, editor e mixador.
O profissional de captação de som direto é quem grava os sons do filme,
nas locações. O editor manipula áudio, efeitos sonoros e trabalha na


11
As categorias, no caso, são: Melhor Trilha Sonora, Melhor Canção Original, Melhor Edição de Som e
Melhor Mixagem de Som.

38
sincronização. O mixador, por sua vez, controla os volumes de todos os
elementos, posiciona os sons de acordo com a imagem e o ponto de escuta da
cena, bem como organiza a reprodução de cada som dentro dos sistemas de
exibição das salas de cinema.
O departamento de som de uma obra do cinema é mais extensa do que
estas funções. É fundamental, por exemplo, o trabalho do artista de Foley (que
refaz sons que ajudam a dar concretude à imagem: passos, portas, tecidos, etc)
e a equipe de ADR (automated dialogue replacement) que, em uma prática
bastante comum, refaz falas dos atores em cena no estúdio em um processo
como o da dublagem.
Quanto ao sound designer, esta função ainda é um termo sem uma
definição fechada. É possível encontrá-lo citado em referência a diferentes
funções de uma obra cinematográfica. William Whittington (2007, p.2-3) cita três
funções diferentes atribuídas ao sound designer no processo de criação
cinematográfico:

Função Descrição
1- Criador de efeitos sonoros Comumente relacionado a profissionais como Ben
Burtt, em seu trabalho para Star Wars, por
exemplo. O sound designer nesta definição é o
criador de efeitos sonoros específicos. Por meios
das novas tecnologias, designers como Ben Burtt
contemplaram pela primeira vez as tarefas de
profissionais de som direto, editores e mixadores
para fazer uma experimentação sonora que se
baseia em códigos da linguagem cinematográfica
para criar sons que possuem múltiplas camadas
em sua forma de construir sentido. Exemplo: som
do Chewbacca em Star Wars.
2- Designer da trilha sonora Nesta definição, o sound designer é visto como
como um todo alguém que constrói o conceito de uma trilha
sonora (diálogo, ruídos e música) por completo. É
feito um mapeamento de todas as necessidades
sonoras cena a cena de um filme, com a intenção
da construção de sentido e direcionamento do
olhar. Exemplo: em Terminator 2 (O Exterminador
do futuro 2), o som é pensado para chamar a
atenção dos espectadores para ações específicas
da diegese.
3- Mixador dos sons do filme Walter Murch utiliza o termo sound designer

39
para as salas de cinema também para se referir ao profissional que distribui
os sons em uma sala de cinema, especificamente
para sistemas mais complexos que surgiram a
partir dos anos 1970, como o Surround, que
compreende 6 canais de áudio: centro, direita,
direita surround, esquerda, esquerda surround e
subwoofer. Esta mixagem é importante pois é uma
das características que fortalecem o apelo
comercial das salas de cinema, como veremos no
próximo capítulo.
Tabela 2. Diferentes entendimentos possíveis de um sound designer, com base
em WHITTINGTON (2007, p.2-3).

Figura 7. Esquema de instalação residencial do sistema Surround 5.1,


mencionado no Item 3 da tabela. Fonte:
http://www.tomshardware.com/reviews/5,941.html

Em síntese, para Whittington, o Sound Design “representa o


planejamento e os padrões da trilha sonora do filme e os significados que
resultam do seu desenvolvimento dentro do espaço de exibição
(WHITTINGTON, 2007, p.3).

O Sound Design de qualquer filme é um produto da mixagem


de vários elementos – ambiência, música, diálogo, Foley e
efeitos sonoros – bem como um amálgama de considerações
e expectativas do gênero. Como uma composição musical,
trata-se de um processo de planejamento cuidadoso,

40
orquestração e condução pelo diretor e pelo supervisor de
som ou designer, bem como pelos inúmeros indivíduos que
editam, gravam e regravam os elementos sonoros. Através
deste processo, o sound design geral acrescenta uma camada
adicional de enunciação narrativa para um filme, permitindo
que o cineasta aponte para ações ou eventos específicos
através da ênfase ou do isolamento do som. Neste contexto
final, a complexidade e o potencial do sound design são
ilustrados em todas as suas formas, da criação de efeitos
específicos ao planejamento e padronização da trilha sonora
final (WHITTINGTON, 2007, p.220).

É importante ressaltar que a presente pesquisa trabalha primordialmente


com o primeiro significado apresentado na tabela, ou seja, aquele que descreve
sound designer como o profissional (ou equipe de profissionais) que atua no
processo da criação de sons específicos. Como apontado na tabela, Ben Burtt
foi o profissional de som que precisamente, com seu trabalho, designou o termo
sound design para a criação de efeitos sonoros específicos.

Por exemplo, durante a sequência da cantina em Star Wars, as


várias imagens dos space jockeys bêbados são justapostos
com grunhidos, latidos e guinchos combinados de todo tipo de
animais, de cachorros a ursos. Estes efeitos foram
processados, colocados em camadas, remixados e editados
para estabelecer a atmosfera grosseira deste movimentado
lugar espacial. Para espectadores, estes tipos de criações
sonoras singulares alimentariam novas expectativas para
gêneros contemporâneos do cinema, particularmente ficção
científica. Burtt criou um novo conjunto de critérios. Sons
específicos se tornaram algo como personagens animados,
vivos, com suas próprias personalidades, histórias, aplicações e
funções (WHITTINGTON, 2007, p.25).

Isso não significa, no entanto, que este papel eventualmente não possa
ser desempenhado por profissionais de outras áreas em um filme. Ben Burtt era
designado como o sound designer de Star Wars, mas Peter Cullen, em
Predador, era o dublador da criatura e Akira Ifukube, em Godzilla, o músico que
compunha as trilhas orquestradas.
Mesmo em outras funções ou não originalmente designados para
cumprir tal papel, pelo acaso dos processos de criação, estes profissionais
foram os responsáveis pela composição das vozes dos monstros do corpus. Os

41
detalhes destas composições serão analisados nos capítulos seguintes. São
experiências de criação de vozes de monstro muito criativas e que significam,
cada uma em seu tempo, acréscimos de repertório importantes às expectativas
quanto ao som do monstro na linguagem audiovisual.

1.5. O audiovisual, o imaginário e o monstro.

A escolha de monstros do cinema como corpus não significa que este


trabalho não dialogue com possíveis criações para outros meios, como rádio,
televisão e videogames. Como diria Richard Portman, ganhador do Oscar pela
mixagem de som em O Franco atirador (The Deer Hunter, 1978), “O pai e a
mãe de todos os usos do som e de todos os equipamentos da indústria musical,
televisão e publicidade é o som do cinema” (LOBRUTTO, 1994, p.48).
No entanto cada meio possui especificidades em termos de linguagem.
Em A dimensão sonora da linguagem audiovisual, Àngel Rodriguez Bravo,
professor da Universidad Autónoma de Barcelona, reflete sobre a linguagem
audiovisual e conclui que estas especificidades se dão principalmente em
relação a emissão. O produtor de conteúdo busca trabalhar para levar um
produto mais adequado aos consumidores. Na recepção, no entanto, o
espectador/jogador/interator se depara com os códigos audiovisuais, elementos
narrativos, por vezes universais, que perpassam todos os meios que utilizam
esta linguagem (BRAVO, 2006, p.25). Isso significa que estas particularidades
são exploradas principalmente na produção, por interesses ou limitações
técnicas, mas quem consome ainda o faz com base no repertório construído
por meio das mídias diversas que fazem uso da linguagem audiovisual. Por
exemplo, quem pensou a decupagem dos primeiros programas de TV, dada a
baixa definição e a tela pequena, explorou as possibilidades narrativas de
enquadramentos mais fechados. O espectador, no entanto, para compreender
as narrativas, utiliza seu repertório de códigos abrangentes da linguagem
audiovisual, que são os mesmos que usa para entender o cinema, por exemplo.
Um diálogo em campo e contra-campo, com enquadramento mais fechado ou

42
mais aberto, utiliza os mesmos códigos para ser compreendido por quem
assiste como uma ação que ocorre no mesmo espaço.
Para o presente trabalho, iremos adotar a noção de linguagem
audiovisual conforme proposta por Bravo:
linguagem audiovisual entendida como os modos
artificiais de organização da imagem e do som que utilizamos
para transmitir ideias ou sensações, ajustando-nos à
capacidade do ser humano para percebê-las e compreendê-
las (BRAVO, 2006, p.27).

Também utilizamos a noção de audiovisual como soma de diversas


linguagens, como verbais, imagéticas e sonoras.
Segundo esta perspectiva, as reflexões aqui presentes acerca dos
processos culturais, de criação e do imaginário do corpus escolhido não
significam um diálogo particular com as práticas do cinema, e sim com qualquer
produto audiovisual.
Outra definição importante para o presente trabalho é a de imaginário.
Por imaginário, compreendemos o conjunto das atitudes imaginativas
produzidas pelo homem (DURAND, 1996), ou seja, imagens, narrativas, mitos,
etc. Vemos imaginário também como “cimento social”, “aura” que permeia a
cultura e que traz os indivíduos para a noção do coletivo (MAFFESOLI, 2001).
Cultura, por sua vez, no “sentido amplo, antropológico, os fatos da vida
cotidiana, as formas de organização de uma sociedade, os costumes, as
maneiras de vestir-se, de produzir, etc” (MAFFESOLI, 2001, p.75). Desta forma,
nestas menções, nos guiamos pelas definições de Gilbert Durand e Michel
Maffesoli.
Segundo esta perspectiva de estudos do imaginário, monstros diversos
são figuras presentes em várias narrativas míticas.
Segundo pesquisas de Stephen Asma, professor de filosofia da
Columbia College Chicago, monstro deriva da palavra latina monstrum, que por
sua vez deriva da raiz monere, que significa avisar/aviso (ASMA, 2009, p.13).
As histórias de monstros muitas vezes estão ligadas aos medos pré-históricos
do homem. Criaturas aquáticas monstruosas, por exemplo, frequentemente são

43
retratadas na cultura pop. O perigo que vem de baixo das águas de rios, lagos e
oceanos está presente em muitas narrativas, desde Jason12 (Sexta-feira 13) até
o próprio Godzilla. Stephen Asma atribui este imaginário de águas profundas e
ameaça às desventuras do homem nas águas desde épocas pré-históricas.
Além dos predadores naturais das águas, como tubarões e jacarés, a grandeza
das ondas e casos de afogamento, até hoje comuns, podem ser a origem
destas histórias (ASMA, 2009, p.3).
Mas por que o monstro, calcado em experiências desagradáveis e de
medo, é motivo de tantas histórias famosas, consumidas através das gerações?
Uma hipótese é que os monstros representam tudo aquilo que é desconhecido,
portanto assustador. Asma relata uma experiência feita com macacos por
Charles Darwin, biólogo e autor da teoria da Evolução das Espécies. Sabendo
que os macacos tinham um medo instintivo de cobras, Darwin colocou uma
cobra empalhada na “casa” dos macacos. Eventualmente, estes perceberam
que tratava-se de um animal morto e não tiveram problemas em mexer nela.
Posteriormente, no mesmo lugar, Darwin colocou uma cobra viva dentro de um
saco.

Um dos macacos imediatamente se aproximou,


cuidadosamente abriu o saco, espiou e rapidamente se
afastou. Mas então, em uma atitude de curiosidade típica dos
homens, um macaco após o outro, nenhum resistiu a dar uma
espiada momentânea no saco, para ver o objeto terrível
repousando calmamente no fundo (ASMA, 2009, p.3).

Esta experiência demonstrou para Darwin que os macacos eram


repelidos e, simultaneamente, atraídos pelo objeto que os causava medo.
Para Asma, somos iguais a eles. “Não conseguimos resistir a dar uma espiada
momentânea no objeto terrível repousando calmamente no fundo” (ASMA,
2009, p.5).


12
Jason é uma personagem famosa dos filmes de terror. Era uma criança com deformidades que morreu
afogada em um lago (Crystal Lake), durante uma colônia de férias. Jason, desde então, volta das
profundezas do lago com uma máscara, para matar turistas que vem visitar a região.

44
A curiosidade e o interesse pela figura do monstro dá pistas sobre sua
constante aparição no cinema. Mas ele nem sempre é o mesmo. Culturalmente,
a depender do contexto, o monstro assume diferentes formas e surge em
narrativas distintas. O cinema explora várias facetas do monstruoso, desde
criaturas fantásticas até personagens com atitudes consideradas
desumanizadas. O monstro pode ser fisicamente incomum e de boa índole ou
até mesmo um ser humano com atitudes consideradas eticamente
“monstruosas”.
Aquilo que era pra assustar e desagradar, agora virou
campeão de audiência e modelo de identificação.
Frankenstein, o proletário mecânico; Drácula, o paradigma do
elitismo e do parasitismo social; a Múmia, a realização de
desejos pendentes ao longo de milênios; o Lobisomem, um
cidadão animal e pulsional, contrário à civilização nas luas
cheias; todos eles, marginais e deletérios; fascinantes, porém
perigosos, nítida e notadamente antissociais (CESAROTTO in
MESSIAS, 2017, p. 2).

Como apresenta Óscar Angel Cesarotto, pesquisador da PUC-SP, na


citação acima, uma característica interessante sobre o monstro é a sua
capacidade de dialogar com narrativas presentes na sociedade em dados
momentos históricos. De acordo com as vivências e os anseios das pessoas,
com a retomada de determinadas narrativas, os monstros são pensados nas
mídias para oferecer um modo de reflexão. E esta reflexão muda suas formas
e, com elas, suas sonoridades. É o que explica Rogério de Almeida,
pesquisador da USP, em artigo sobre Frankenstein:

Outra possibilidade seria identificar as variações do


mitema da criação da vida. As revoluções epistemológicas
pelas quais passou o século XX fizeram a questão das
máquinas, da eletricidade e do eletromagnetismo derivarem
para a das redes neuronais, das tecnologias de informação e
da manipulação genética. Sai o monstro feito de pedaços
humanos e trazido à luz pela fúria elétrica e entra em cena o
ciborgue e as derivações da clonagem, das cirurgias plásticas,
a proliferação de sensores, microcomputadores e inteligência
artificial que ameaçam o humano tal qual o conhecemos
(ALMEIDA, 2014, p.156).

45
Frequentemente representando os anseios e criando identificações com
visões catastróficas, distópicas, é comum que o monstro tenha uma conotação
negativa. As narrativas do monstro fantástico no imaginário fazem com que
seja uma quebra de expectativas interessante ver personagens bondosos,
como por exemplo o Chewbacca, sendo definidos como monstros, a mesma
“categoria” de criaturas feias, gigantescas ou perigosas. Mas, depois de
provocar o choro desesperador da minha sobrinha de dois anos usando a
máscara do simpático Chewie13, pude perceber o quanto até mesmo o mais
bem intencionado dos monstros carrega em sua imagem um engrama ligado às
representações mais tradicionais do monstro no cinema e nas artes.
Para Durand (2004, em publicação original de 1996), estamos
culturalmente, cada vez mais, ressonantes com o tema do retorno do mito,
resgatando as visões de mundo e problemáticas simbólicas. A civilização
ocidental entrou, há algum tempo, no que Durand chama de uma “zona de alta
pressão imaginária”, e um dos fatores determinantes para esta crescente é o
cinema.
Isto começou no século passado, diante do estrondo
triunfante da revolução industrial, com o florescimento
romântico e em seguida simbolista, isso foi progressivamente
tomando grandes proporções para se lançar – como diz don
Basile – a partir do início do nosso século com a explosão dos
meios técnicos audiovisuais (DURAND, 2004, p.7).

Desta forma, os diversos monstros participam de narrativas que os


audiovisuais resgatam. Veremos no capítulo seguinte que o monstro é
recorrente nas artes, mas que meios de comunicação como o cinema foram
importantes para atualizar as expectativas e o repertório acerca do monstruoso,
em todos os seus aspectos.
O monstro participa de narrativas diversas há tanto tempo que imaginá-
lo parece algo inerente à própria natureza da mente humana. Mas é preciso
compreender o diferencial que o audiovisual, a partir do cinema, representa


13
Apelido de Chewbacca.

46
neste processo. Edgar Morin, sociólogo, antropólogo e filósofo francês, explica
que
É certo que desde seu aparecimento na Terra, o homem
alienou suas imagens, fixando-as em osso, marfim ou na
parede das cavernas. É certo que o cinema é da mesma
família dos desenhos rupestres da Eyzies, de Altamira e de
Lascaux, dos rabiscos de crianças, dos afrescos de
Michelangelo, das representações sagradas e profanas, dos
mitos, das lendas, da literatura... Mas nunca a tal ponto
encarnadas no próprio mundo, nunca a tal ponto atracadas à
realidade natural. Por isso foi preciso o advento do cinema para
que os processos imaginários fossem exteriorizados de forma
tão total e original. Podemos finalmente “visualizar nossos
sonhos” porque eles se lançaram na matéria real. Finalmente,
pela primeira vez, através da máquina e à sua semelhança,
nossos sonhos são projetados e objetivados. São fabricados
industrialmente e compartilhados coletivamente (MORIN, 2014,
p.257).

Como afirma Morin, o cinema possui capacidade até então única de


aproximar mitos de uma representação tão palpável, crível. Isto, faz acréscimos
definitivos em torno das imagens e narrativas do monstro no imaginário. E
estes acréscimos seguem durante todo o percurso da linguagem audiovisual,
nos diferentes meios em que se manifesta, em um processo ininterrupto de
atualizações.
Para ilustrar como o monstro está presente desde os primórdios do
cinema, relembramos O Monstro (1903), de George Meliès, famoso cineasta
dos primeiros anos do cinema, especialmente conhecido pelas trucagens. O
monstro de Meliès neste filme é uma criatura que, a partir de um esqueleto,
ganha vida e torna-se um ser envolto em tecido branco esvoaçante, que
aparece e desaparece enquanto faz movimentos estranhos com seu corpo.

47
Figura 8. fotograma de O Monstro, de George Meliès (1903). O monstro é o ser
de branco, à esquerda no enquadramento.

Nos princípios do advento do cinema, a imagem previamente gravada


quando projetada nas telas, por mais que interessante o suficiente para
fomentar esta indústria de forma surpreendente, tinha algo de fantasmagórico.
Robert Spadoni, professor da Case Western Reserve University, em Uncanny
Bodies: the coming of sound film and the origins of the horror genre, lembra que
a invenção da câmera e do projetor são “a maravilha mecânica que
surpreendeu e perturbou espectadores no início da história do cinema”
(SPADONI, 2007, p.6). Havia algo de inumano nas pessoas à frente das
câmeras nas primeiras projeções. Com o advento do som, esta sensação
pareceu retornar às telas do cinema, e este estranhamento na recepção de
imagens humanas com som sincronizado foram aproveitadas por produtores de
filmes como Drácula e Frankenstein, logo no início do cinema sonoro.
Falaremos mais sobre esta passagem no próximo capítulo.

48
1.6. Os sons do monstro em seu tempo e espaço

Argumentamos que o som é importante para a construção das


personagens monstruosas do cinema. Enfatizamos, para provar esta
importância, a produção de significados possível a partir de processos de
criação cuja matéria prima são diferentes ruídos.
A proposta é faze-lo, no entanto, sem a exclusão de todo um contexto
cultural que envolve estas criações. A análise não se limita ao som em si, mas
percorre todo um ambiente que dialoga com estas criações. Leva em conta um
mundo em suas três dimensões (ALTMAN, 1992, p.1).
O monstro, em suas convenções e expectativas, emerge das mídias e
também desta relação com as narrativas e o ambiente cultural próprio de uma
época. Desta forma, é importante compreender o mostro, e o som do monstro,
enquanto uma construção que envolve diversos fatores, evitando o erro de
isolá-la de seu contexto.
Rick Altman, em sua obra Sound Theory Sound Practice, sugere que o
cinema seja encarado não como texto, mas como evento. A abordagem do
cinema como texto, muito comum nos anos 1980 segundo Altman, costumava
resultar em análises que observavam as peças cinematográficas isoladamente,
sem levar em conta aspectos importantes como cultura, produção e a
diversidade da recepção (ALTMAN, 1992, p.4). É preciso encarar o cinema e
suas obras, bem como o seu processo criativo, como um evento, que é produto
de uma contaminação constante que reverbera em um fenômeno muito maior
do que os filmes em si.
Dada a importância do contexto da monstruosidade nas mídias e nas
narrativas do imaginário, o repertório que precede o som destes monstros é
determinante para a construção de uma relação factível. Factível não no
sentido de trucar a audiência a crer no monstro para além das telas, mas na
construção de uma relação que evite o afastamento, que consiga maquiar seus
processos, ocultando-os para auxiliar nas formas clássicas de despertar o
fenômeno imersivo. A imersão também é possível fora do dispositivo

49
cinematográfico e das regras da decupagem clássica, acreditamos, mas os
filmes presentes no corpus da pesquisa transparecem intenções de esquivar-se
da opacidade. Opacidade no sentido de, entre outros fatores, revelar o aparato
técnico que torna os monstros possíveis.
Nos filmes em que aparecem os monstros do corpus da presente
pesquisa, transparece, por parte da produção, uma busca do que podemos
chamar de coerência sônico-imagética, com efeitos de realidade. O que
queremos dizer com esta afirmação é que os sons dos monstros foram feitos
para parecerem críveis, compatíveis, possíveis. Nesta busca de coerência, é
importante ressaltar que os processos culturais, tanto ou mais que a natureza
dos sons e seus emissores, são importantes para este efeito. O repertório do
som do monstro, construído na história do cinema e de outros meios, determina
as noções mais imersivas dessa realidade particular. É a representação do
monstro, e não a física, química ou biologia aproximada dos efeitos em cena,
que traz este efeito, já que

O real nunca pode ser representado; a representação em


si pode ser representada. Para ser representado, o real precisa
ser conhecido e o conhecimento é sempre uma forma de
representação (ALTMAN, 1984).

Desta forma, a criação do monstro, tanto imagética quanto sonoramente,


muitas vezes procura corresponder à tradição de representações de monstro,
em um feedback narrativo e midiático.
Para compreender este repertório de design de som e de sons
monstruosos, no capítulo seguinte traremos um breve resgate das menções às
vozes de monstros nas artes e de técnicas de criação de sons diversos, que
abrem espaço para esta execução.

50
Capítulo 2. Uma breve arqueologia do som do monstro

2.1. Teatro, literatura, mitologia e o som que arrepia

O som é fundamental na construção e ambientalização de


determinadas personagens presentes no audiovisual. Chewbacca, Godzilla e
Predador, corpus da presente pesquisa, são exemplos da importância do som.
O som é uma característica constantemente relembrada como uma das mais
marcantes destas criaturas e auxilia na leitura e na imersão dos espectadores.
Para compreender o repertório histórico que influencia no processo de
criação das personagens acima mencionadas, a seguir, apresento uma breve
retomada de sons importantes em formas de arte predecessoras ao cinema, a
partir de relatos históricos que puderam elucidar a relação destas
manifestações artísticas com o som.
No capítulo 1 falamos da dificuldade histórica para descrever os sons.
Em sua obra Silent Film Sound, Rick Altman, professor emérito da Univesity of
Iowa e pesquisador de sonoridades e gêneros cinematográficos, afirma que,
enquanto a imagem apresenta terminologias concretas para descrevê-la, o
som parece recorrer a referências mais abstratas, baseando-se por vezes
mais em mitos e no sagrado do que no mundo tridimensional (ALTMAN, 2004,
p.5)

Enquanto Pitágoras estava mapeando a harmonia das


esferas, outros desenvolveram um mito para explicar o
fenômeno do eco, transformaram o ventriloquismo em uma
fonte sagrada de profecias e tornaram o processo de falar com
muitas vozes algo para uso oracular. Na Idade Média, sons
continuaram a ter um papel religioso importante. Para exprimir
as intenções diabólicas de guerreiros infiéis, poetas épicos
regularmente os descreviam como produtores de uma
cacofonia de sons não-cristãos. A presença divina era
indicada pelas harmonias calmas da banda angelical
(ALTMAN, 2004, p.5).

51
Esta forma predominante, pouco científica, de se relacionar com
fenômenos sonoros, ao perpassar tantos povos, parece ter refletido na relativa
ausência de registros objetivos dos sons presentes em diversas
manifestações artísticas, incluindo aquelas que contribuem para a formação
de uma linha do tempo das representações pré-cinematográficas de monstros
e criaturas fantásticas.
Antes do cinema sonoro, criaturas fantásticas de toda sorte foram
retratadas nas artes performáticas, literárias e plásticas, por vezes
acompanhadas de efeitos, descrições e sugestões sonoras.
Segundo o estudo de Thanos Vovolis, designer de máscaras teatrais e
pesquisador de artes da American College of Greece, na Antiga Grécia,
especialmente em Atenas, a oralidade no teatro tinha fundamental importância.
Os atores, além de possuírem uma voz com forte presença, precisavam saber
cantar. Esta ênfase nas qualidades vocais dos atores, aliada a tradição do uso
de máscaras, originária nos cultos à Dionísio, Artemis e outros deuses, fez com
que estes acessórios passassem a ser projetados como câmaras acústicas
vestíveis.
Este efeito faz uso do fenômeno físico que conhecemos como
ressonância. Nos estudos de acústica, este se apresenta como a propagação
vibratória da onda sonora. Saber trabalhar um ressonador significa amplificar o
som resultante, tanto que a maioria das caixas amplificadoras possuem
estruturas ressonantes em seu projeto. Além disso, o corpo humano como um
todo é capaz de funcionar como um ressonador. Os mais importantes são o
peito, a faringe, o nariz, a boca e a cabeça, sendo a última a mais trabalhada
por profissionais da voz.
Vovolis explica que um fenômeno acústico chamado consonância
ocorria no espaço entre a boca do ator e a máscara que ele veste,
amplificando os ressonadores naturais dos atores.

“O efeito foi descrito pelo arquiteto romano Vitruvius


em seu livro On Architecture, como o único fenômeno acústico
positivo que ocorria em teatros gregos, chamado consonância.

52
Em suas próprias palavras: ‘Consonância é o processo em
que, em razão de duas superfícies reflexivas bem
posicionadas, a voz é fortalecida por duas ondas sonoras
idênticas chegando ao mesmo ponto, ao mesmo tempo,
combinadas para produzir a soma de seus efeitos.’ A máscara
cria consonância e amplifica ainda mais o ressonador da
cabeça (VOVOLIS, 2000, p.76).

A máscara, portanto, era trabalhada para auxiliar como um amplificador


de potência da voz, além de permitir uma consonância através de sua
engenharia, ou seja: as ondas sonoras iguais vibram em harmonia, com um
som auditivamente agradável e “afinado”.

Figura 9. Máscaras do dramaturgo grego Aeschylus (525 a.c.), reproduzidas


pelo pesquisador da American College of Greece, Thanos Vovolis. Fonte:
https://www.didaskalia.net/issues/vol7no1/vovolis_zamboulakis.html

As máscaras do teatro grego eram uma tradição que explicava


rapidamente ao espectador o arquétipo da personagem em cena. Portanto,
com os rostos cobertos, era possível representar uma personagem com várias
qualidades diferentes.
Interessante como, após séculos desta tradição, é possível relacioná-las
esteticamente às máscaras utilizadas em diversos filmes de terror do século
XX. Com o auxílio do cinema e da TV, o fator do desconhecido e ameaçador da
máscara se proliferou. Igualmente às máscaras gregas, estas também
possuem expressão constante e total cobertura da face.

53
Figura 10. Fotogramas que mostram máscaras presentes nos filmes de terror,
na sequência, Uma noite de crime (2013), Sexta-feira 13 (1980), Halloween
(1980), Pânico (1997), Os Estranhos (2008), O Massacre da Serra Elétrica
(1974).

O efeito de ressonância é encontrado também em registros de guerra,


como no barditus, grito de guerra dos germânicos, amplificado pelo exército
quando os guerreiros usavam os escudos em frente à boca. O escudo, neste
caso, funcionava como uma caixa de ressonância. Segundo Jean Chevalier em
seu dicionário de símbolos, o grito de guerra para estes povos é “imitar os
ruídos do trovão, do furacão e dos cataclismas, é provocar a tempestade e
direcioná-la para o inimigo” (CHEVALIER, 1986, p.542).
Além de objetos ressonadores, na obra Theatre Sound, John Leonard,
sound designer de teatro, afirma que o som no teatro de drama clássico
envolveu a reprodução de sons naturais através de meios artificiais.
Efeitos sonoros já estavam presentes para o público do teatro na época
das peças de Ésquilo, Eurípedes e Sófocles, na antiga Grécia. Além de
indicações para as vozes dos atores, algumas particularidades das qualidades
dos sons eram enfatizadas pelos dramaturgos, como forma de auxiliar a
compor os ambientes e a contar as histórias.

Assim que os raios solares se apagaram abrindo lugar às trevas, todos, remadores e soldados,
dirigem-se a seus postos; e os navios se colocam segundo a ordem recebida. Durante toda a
noite, a frota, disposta pelos chefes, guarda cuidadosamente a passagem. Escoa-se o tempo,
nenhum dos gregos tenta fugir. Mas apenas a aurora, no seu carro luminoso, seus clarões
sobre a terra espalha, ouvem-se tons moduladosos de festivo toque e um canto de guerra

54
repetido pelo eco dos penhascos. Os persas, ludibriados em sua expectativa, horripilam-se:
o hino entoado pelos gregos não era de retirada, porém de estímulo ao combate. O som da
trombeta inflamava-lhes a coragem. Ressoa um grito; os rápidos remos cortam
simultaneamente a onda salgada, que estremece: em breve, surgem todos à nossa vista.
Ouve-se uma vibrante voz: “Filhos dos gregos, ide, salvai nossa pátria, vossas mulheres e
filhos, os tempos de vossos deuses e os túmulos de vossos ancestrais; é por todos eles que
hoje deveis combater”. Surpreendidos, os persas responderam num murmúrio (trecho de Os
Persas, de Ésquilo).

Uma das criadas antigas, crendo que vinham aí as iras de Pan ou de algum dos deuses,
soltou um grito, antes mesmo de ver pela boca golfar alva espuma, as meninas dos olhos
reviradas e o corpo exangue. Então um grande lamento em contrário respondeu àquele
grito. Logo uma se precipitou para a casa do pai, outra para o esposo de há pouco, a contar a
fatalidade da noiva. E toda a casa ressoava com o ruído das correrias apressadas (trecho de
Medéia, de Eurípedes).

Imóveis nos lugares predeterminados,


os carros aguardavam prestes o sinal;
ao toque nítido do estrídulo clarim
partiram todos incitando seus corcéis.
Na pista cheia avolumava-se o estrépito
dos carros ruidosos em competição;
nuvens de denso pó pairavam pelos ares;
brandiam aguilhões os hábeis condutores
tentando cada um ultrapassar os outros;
em suas costas, cavalos resfolegavam
e relinchavam nos seus flancos (trecho de Electra, de Sófocles.)

Frequentemente, informações importantes para a peça, inclusive as


sonoras, eram escritas e mostradas para a plateia. Em William Shakespeare,
era comum ambientalizar a plateia com afirmações sobre o clima, os entornos
e a hora do acontecimento na peça (LEONARD, 2001, p.5).
Autores de peças teatrais do século XIX como Anton Chekov, Henrik
Ibsen e George Bernard Shaw, antes de possuírem recursos para a reprodução
ideal de sons gravados, como as caixas amplificadas valvuladas, tinham nos
roteiros de suas peças a descrição de efeitos sonoros bastante complexos,
como podemos observar no trecho abaixo do roteiro da peça “Ceasar and
Cleopatra” de Bernard Shaw. Há uma notada importância da descrição das
características do som. No trecho abaixo, é possível compreender como o som
era projetado com objetivo de contribuir na geração de tensão da cena:

CLEÓPATRA. Você quer que me matem!

CÉSAR (mais seriamente). Minha pobre criança: sua vida não importa nem um pouco para
ninguém aqui a não ser você. (Ela cai em prantos. De repente, um grande tumulto é ouvido a

55
distância. Bucinas e trompetes soam através de uma tempestade de gritos. Britannus corre
para o parapeito e olha ao longo do porto. César e Rufio trocam olhares com rápida
14
inteligência.)

Existem registros de práticas de reprodução de alguns destes efeitos


sonoros dentro dos teatros. Como exemplo, segundo apontamentos de Ray
Brunelle, designer de som americano, o som do trovão costumava ser gerado a
partir de bolas de chumbo quicando em couro esticado. Já na época do teatro
Shakespeariano, rolava-se uma bola de canhão por baixo de uma calha de
madeira até esta cair sobre uma grande pele de tambor (BRUNELLE, 1999,
p.1).
Posteriormente, profissionais responsáveis pelo som no teatro usaram
uma diversidade de equipamentos que reproduziam ruídos semelhantes aos
dos presentes no roteiro. Os equipamentos mais comuns eram as máquinas de
vento, caixas de chuva e folhas de trovão, para a reprodução de sons da
natureza. Atualmente, a prática mais comum no teatro é a da reprodução
eletrônica de bibliotecas de som.


Figura 11. Uma antiga “máquina de vento” ainda em uso na Drottningholm
house (Suécia) e as “folhas de trovão” do departamento de teatro da
Universidade de Missouri. Fonte:
http://facweb.cs.depaul.edu/sgrais/guide_to_sound_effects.htm


14
Disponível em < http://www.gutenberg.org/files/3329/3329-h/3329-h.htm >. Acesso em 27 de
Fevereiro de 2016.

56
O som do trovão, além de ser muito mencionado, está comumente
relacionado às práticas de reprodução de timbres similares artificialmente por
tecnologias como as folhas de trovão acima, por exemplo. A importância deste
som deve-se, entre outras potências de geração de sentido, à relação com
deuses e monstros em contos e mitos.
Luigi Russolo, compositor considerado um dos primeiros teóricos da
música eletrônica, em “The art of Noises” (A arte dos ruídos), de 1913, discute
o poder expressivo dos sons estranhos e dissonantes (ou ruídos) na música,
como por exemplo os sons das tempestades, e a relação das pessoas com os
novos sons que surgiram no cotidiano principalmente a partir da
industrialização da sociedade.

Por diversos séculos, a vida aconteceu silenciosamente ou


muda. Os ruídos mais altos não eram intensos ou muito
variados. Na verdade, a natureza é normalmente silenciosa,
com a exceção de tempestades, furacões, cachoeiras e alguns
movimentos telúricos excepcionais (RUSSOLO in KELLY, p.22,
2011).

Chamando a vida anterior a industrialização de silenciosa ou muda,


Russolo exponencializa, de forma um pouco exagerada, a comparação entre
as diversidades e intensidades sonoras das duas épocas, no cotidiano das
pessoas. Algumas ocasiões produzidas pelas sociedades pré-industriais, no
entanto, certamente mostravam-se tão ruidosas quanto fábricas ou grandes
cidades com carros e aviões: as guerras, sobretudo após a invenção da
pólvora, e os rituais religiosos com música e canto, por exemplo.
Entretanto, é possível afirmar que, com a industrialização, o repertório
de ruídos aumenta exponencialmente. Navios, aviões, trens, automóveis,
fábricas, todos tornam o ambiente mais ruidoso e competitivo em termos de
paisagem sonora. Até então, um trovão ou um fenômeno natural de maiores
proporções funcionava como a melhor alusão a um ruído de grande volume.
Em How Early America Sounded, Richard Cullen Rath discorre sobre os
sons da América há pouco descoberta, no século XVII. Os sons da natureza,
nesta época, eram escutados com bastante atenção.

57
Terremotos, vento, água e especialmente o trovão: cada um
era poderoso a sua maneira. (...) muitos europeus do século
XVII consideravam que estes sons tinham fontes inteligentes
com intenções e poder, mesmo que estas fontes fossem
invisíveis. (...) Além disso, davam aos sons um poder o qual
não acreditamos mais. Sons faziam coisas com o mundo.
Moviam as pessoas, as atingiam e, no caso do trovão, de fato
as matavam. (...) Os ingleses do século XVII tratavam o
trovão como um discurso por parte de Deus ou talvez
demônios (RATH, 2003, p.11-14).

Como mostrado na citação de Rick Altman no começo deste capítulo, o


som era muitas vezes explicado com base em crenças diversas, no mítico e no
sagrado. O som do trovão é um exemplo recorrente desta relação. Existia uma
relação encontrada em muitas civilizações: a dos trovões e de seres míticos
poderosos. Veremos exemplos mais detalhados da associação entre sons
estrondosos e figuras míticas.
Djakomba, deus mitológico da região da República Democrática do
Congo, falava através do trovão e atingia humanos com seus raios. Na África
do Sul, o “pássaro do paraíso” Impundulu representa os raios, provocando o
barulho do trovão quando bate as asas. O pássaro é considerado um
mensageiro da morte (LYNCH; ROBERTS, 2010, p.123).
Zeus, o Deus do Trovão e da Chuva, Deus maior da mitologia grega (e
da mitologia romana, nesta com o nome de Júpiter), é frequentemente visto em
representações imagéticas “empunhando” raios como uma arma. Na imagem
abaixo, do acervo do museu de Louvre, vê-se uma representação de Zeus em
um vaso das décadas de 470 a.c. – 460 a.c. prestes a acertar um gigante (não
presente na imagem) com um de seus raios. Ao mesmo tempo em que o trovão
e o raio de Zeus eram motivo de medo, as chuvas que acompanhavam o
fenômeno eram uma benção para as colheitas.

58
Figura 12. Imagem de Zeus catalogada no portal Theoi Greek Mythology.
Fonte: http://www.theoi.com/Gallery/K1.1.html

Martin Hart, curador do Widescreen Museum em Houston, nos Estados


Unidos, compara a representação gráfica do registro de onda sonora do cantor
Allan Jones com um raio. “Parecendo um pouco com um raio jogado pelos
dedos de Zeus, esta é a forma de onda que representa 1/1000 de segundo de
Allan Jones cantando Donkey Serenade para a RCA Victor nos anos 1930”
(HART, 2000, p.3).

Figura 13. Representação gráfica em waveform das vibrações de 1/1000 de


segundo da canção Donkey Serenade, gravada pela RCA Victor nos anos
1930. Fonte: http://www.widescreenmuseum.com/sound/sound03.htm

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O som do trovão também aparece na mitologia bizantina. Registrada em
manuscritos dos séculos XIV e XV, a figura heroica de Basil Digenis Akritis, um
herói com descendência bizantina e grega, enfrenta desafios diversos. Em uma
de suas histórias, um monstro se disfarça como um belo rapaz para flertar com
a noiva de Basil. Não tendo sucesso nas investidas, o monstro se revela e
tenta atacá-la. A criatura é descrita como uma

(...) enorme serpente de três cabeças, com chamas que


pareciam trovões saindo de cada uma delas. Quando a
serpente se movia, a terra e todas as árvores sacudiam e o
monstro emitia um som como o de um trovão (FEE, 2011,
p.89).

Uma das cabeças seria a de um jovem rapaz, outra de um homem idoso


e a última seria a verdadeira face da criatura, a da Serpente de Gehenna. Basil,
que estava descansando, acorda com o chamado da noiva e rapidamente saca
sua espada. Então, corta as três cabeças do monstro de uma vez só. Tendo
vencido esta batalha, Basil se recolhe para continuar descansando. A noiva de
Basil ri efusivamente pela vitória contra o monstro e decide se afastar do local
onde ele dorme para não incomodá-lo. Mas o som emitido pela morte da
serpente e pelas risadas da mulher chama a atenção de um enorme leão, que
a ataca. Basil consegue ouví-la e novamente acorda para salvá-la (FEE, 2011,
p.89).
Além da mitologia, nas obras literárias, por vezes encontram-se
descritos com palavras os ruídos de personagens incomuns, trazendo
referências a sons cotidianos para transferir a sensação das paisagens sonoras
da história aos leitores. O trovão é um dos mais recorrentes, mas também
encontramos outros exemplos que conseguem transmitir a ideia da potência de
sons.
Em Os Cantos de Maldoror, obra de 1869, o autor Conde de
Lautréamont (pseudônimo do poeta franco-uruguaio Isidore-Lucien Ducasse)
explora o terror em uma literatura de fantasia citada por artistas surrealistas
como uma importante inspiração. Um dos contos da obra descreve “o

60
nascimento da audição” (KAHN, 2001, p.5). O narrador, que se diz surdo, conta
que passou a ouvir após encontrar-se com “O criador”, um monstro sentado em
um trono de fezes e ouro com os pés em um lago de sangue, onde surgiam
cabeças de seres humanos que este monstro havia criado. O criador
eventualmente recolhia uma das cabeças com os pés e executava seu dono,
pelo prazer de assistir sua criação sendo destruída. O narrador, ao se deparar
com esta cena, gritou tão alto que conseguiu, finalmente, ouvir. Ele ouviu, no
caso, o próprio grito, cuja intensidade foi capaz de “destampar” seus ouvidos e
dar-lhe um novo sentido.

Finalmente, meu peito oprimido não podendo expulsar


com suficiente rapidez o ar que dá a vida, os lábios da minha
boca se entreabriram, e eu soltei um grito... um grito tão
lancinante... que eu o ouvi! Os entraves da minha orelha se
desataram de uma maneira brusca, o tímpano rangeu sob o
choque dessa massa de ar sonoro empurrada para longe de
mim com energia, e aconteceu um fenômeno novo no órgão
condenado pela natureza. Eu acabava de ouvir um som! Um
quinto sentido se revelava em mim! (WILLER, 1970, p.126).

O grito, neste caso produto de um pavor suficiente para despertar um


novo sentido na personagem, ilustra a vocalização produzida por aquele que se
esforça para ser ouvido ou que perde o controle de sua voz por um motivo
emocional, gerando grande pressão sonora. Este tipo de manifestação vocal, o
grito, que também está presente em animais da natureza, frequentemente é
uma forma de construir nas histórias a noção de poder e ameaça de homens,
animais e monstros. Se assemelha ao grito de guerra barditus, mencionado
anteriormente, que inspira as vocalizações intimidatórias feitas pelo exército
espartano do filme 300 (2007), por exemplo.
Ainda na literatura, Howard Philips (H.P.) Lovecraft é historicamente um
dos principais escritores de contos de terror e suspense dos Estados Unidos.
Ao descrever para seus leitores os cenários e acontecimentos fantásticos de
suas histórias, H.P. Lovecraft escreve passagens com detalhes bastante
minuciosos acerca dos ruídos presentes nos contos. O exemplo abaixo é de O
Horror em Red Hook, de 1927.

61
Ó amigo e companheiro da noite, tu que exultas com o
ladrar dos cães (nesse instante irrompeu um uivo medonho) e o
sangue derramado (aqui sons indizíveis rivalizaram com
guinchos mórbidos), que vagas em meio à sombra das tumbas
(então ouviu-se um suspiro sibilante) e desejas ardentemente o
sangue, levando o terror aos mortais (gritos curtos e nítidos de
uma miríade de gargantas), Gorgo (repetido como resposta),
Mormo (repetido com êxtase), lua de mil faces (suspiros e
notas de flautas), olha com carinho os nossos sacrifícios!
Quando o salmodiar terminou, ergueu-se uma exclamação
geral e sons sibilantes quase abafaram o lamento do órgão
baixo desafinado. Então um grito abafado como se de muitas
gargantas e uma babel de palavras vociferadas e berradas –
Lillith, Grande Lillith, veja o noivo! – Mais gritos, um alarido de
tumulto e os passos ritmados e nítidos de uma figura correndo
(LOVECRAFT, 2013, p.29).

Outro exemplo de conto no qual o som é importante é Um som de trovão


(A Sound of Thunder, 1952) de Ray Bradbury, escritor de ficção-científica e
fantasia. Neste conto, caçadores norte-americanos contratam uma empresa de
Máquinas do Tempo para ter como alvo os dinossauros. Durante a viagem, os
caçadores são avisados de que não podem sair de uma passarela flutuante,
cujo objetivo é evitar qualquer contato com o passado que possa mudar algo
no futuro. Afinal, os animais que serão mortos pelos caçadores já estariam
prestes a morrer de causas naturais. As complicações da viagem começam
quando os caçadores ouvem o som do trovão e a posterior chegada do enorme
Tiranossauro Rex. Eckels entra em pânico.
Eckels pisa fora da plataforma permitida e é ameaçado pelos outros
viajantes, que se enfurecem com sua atitude. Após os outros dois caçadores
matarem o Tiranossauro, o qual cai fazendo um som de trovão, todos retornam
para o tempo presente e percebem mudanças. Eleições que haviam acontecido
agora tem outro vencedor e o idioma (no caso o inglês), havia sofrido algumas
alterações. Eckels, ao examinar a lama que restou em seus sapatos após pisar
em local proibido, encontra uma borboleta morta. Um dos outros caçadores
levanta a arma para Eckels e “ouve-se o som do trovão”.
Esta presença do som do trovão na mitologia e na literatura faz parte do
repertório ligado a este ruído, que vai posteriormente influenciar outras formas

62
de arte. É um exemplo interessante, pois a sua recorrência está em diversos
momentos, como em Frankenstein (1931). O trovão, repleto de significado,
aparece em um dos primeiros filmes do cinema sonoro a explorar a história de
um monstro. Enquanto o monstro passa pelo processo de tornar-se um ser
vivo, ouvimos muitos trovões e raios. Estes sons se confundem também com
os ruídos de eletricidade gerados pelos equipamentos do Dr. Victor
Frankenstein. Uma composição de sons da natureza e industriais para ilustrar o
processo que dá vida ao monstro.
A partir destes exemplos, nota-se a importância da referência a sons,
como o do trovão, para trazer a ideia de qualidades de monstros e de
acontecimentos fantásticos. Posteriormente, no cinema sonoro, com a
possibilidade de registro e reprodução de sons, percebe-se o quanto estas
tecnologias expandem o repertório de sons relacionados a monstros e ao
fantástico. Não por acaso, Noel Carroll, filósofo de artes norte-americano, em
sua obra Philosophy of Horror, afirma: “Nenhum destes gêneros (terror e
suspense) é um dos gêneros principais do cinema mudo” (CARROLL, 2003,
p.232).
Mas o cinema mudo tinha acompanhamentos sonoros. A seguir sobre a
sonoridade do cinema mudo e outras tecnologias precedentes ao cinema
sonoro.

2.2. O som do cinema mudo

Para Douglas Kahn, professor de Media and Innovation no National


Institute of Experimental Arts da South Wales University, nenhuma arte é
completamente silenciosa (KAHN, 2001, p.2). Caleb Kelly, curador e professor
de Fine Arts na University of New South Wales, nos lembra que mesmo nos
casos em que não existe uma preocupação específica com o som das obras
por parte dos artistas, à exceção daqueles que não conseguem ouvir, sempre
consumimos obras de arte com os olhos e os ouvidos. O sentido auditivo segue
processando informações. “Tem sido frequentemente lembrado que não

63
conseguimos fechar nossas orelhas” (KELLY, 2011, p.14), pelo menos não
com a facilidade com que nos privamos da visão ao fechar os olhos.
O som, em maior saturação no século XX, principalmente através do
cinema, mostra sua importância quando pensamos na “visualidade muda” da
arte através da história. Segundo as pesquisas de Kahn, a maioria dos
registros anteriores ao cinema sonoro contempla apenas a música, que exclui
referências do mundo, e a voz, que é a própria fonte de existência de muitas
destas artes KAHN, 2001, p.2).
Para estes pesquisadores, a escassez de registros do som das artes em
épocas anteriores aos gravadores, tecnologia que começa a ser desenvolvida
concretamente na metade do século XIX, está ligada a efemeridade do som. “O
som habita o seu próprio tempo e se dissipa rapidamente” (KAHN, 2001, p.5).
Com a invenção do fonógrafo, datado de 1877 e registrado por Thomas
Edison, há uma maior estabilidade e qualidade na tecnologia de gravação de
sons, além da capacidade de reproduzí-los, característica que o diferencia dos
aparelhos anteriores. A partir do fonógrafo, o som assume outro status e passa
a aparecer em bibliotecas e laboratórios, bem como na literatura e na filosofia.
Os registros dos diversos usos do áudio se multiplicam.

“Narciso possuía uma melhor tecnologia do que Eco.


Humanos sempre puderam ver seus próprios rostos, ver como
eram vistos – desde o momento de consciência das espécies
quando algum parente muito distante se viu no reflexo da água.
Mas foi só a partir do final do século XIX, com o fonógrafo, que
pessoas conseguiram ouvir suas próprias vozes (KAHN, 2001,
p.8-9).

64
Figura 14. O fonógrafo de Edison (1877). Este equipamento permitia, pela
primeira vez, tanto gravar quanto reproduzir sons. Até então, as invenções só
conseguiam fazer o registro. Fonte: http://www.icollector.com/

Alison Griffiths, professora da Baruch College e autora de Shivers Down


Your Spine, escreveu sobre as experiências de imersão no decorrer da história.
Griffiths afirma que os primeiros registros do uso do fonógrafo em museus
datam da primeira década do século XX, quando alguns curadores já
conseguiam ver seu potencial como conferencista eletrônico das exposições.
Em 1908, o Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, ofereceu
uma exposição sobre Tuberculose, considerada até hoje uma das mais
populares da história do museu, com público de aproximadamente 800.000
visitantes. O diferencial da atração eram vários gramofones que comentavam
fotografias expostas, dando conselhos e alertas. Para Griffiths, os gramofones
tornaram a informação acessível para analfabetos, facilitaram o acesso das
pessoas em dias de muito público presente (quando fica difícil de se aproximar
de cartazes e fazer uma leitura), entre outras vantagens estruturais
(GRIFFITHS, 2008, p.236).

65
Outra invenção importante para a reprodução do som para grandes
audiências foi a válvula eletrônica, aprimorada por cientistas a partir da patente
de J. Ambrose Fleming em 1904. Possibilitando a amplificação do sinal elétrico,
a válvula posteriormente permitiu que sons fossem reproduzidos via alto
falantes com maior volume, o que torna a reprodução de sons gravados em
grandes cinemas e teatros viável. Conforme observa Arlindo Machado,
pesquisador da ECA-USP, os primeiros aparatos não tinham a potência
necessária para os novos espaços, o que pode ter operado como um dos
fatores a atrasar o cinema sonoro:

Infelizmente, nos primeiros trinta anos de história do


cinematógrafo, não havia recursos de amplificação suficientes
para preencher de som uma sala pública de espetáculos, nem
alto-falantes capazes de suportar tal amplificação sem
distorções exageradas. O som reproduzido pelo fonógrafo era
fraco demais para a escala de exibição do filme. (...) a verdade
é que só em 1925 aparecem os primeiros fonógrafos com
amplificação eletrônica (produzidos em escala industrial pela
Bell Telephone) e só então o cinema está em condições de
incorporar definitivamente o som (MACHADO, 1997, p.156).

Para Suzanne Delehanty, diretora de museus de arte, “o


desenvolvimento do telefone, do rádio e das gravadoras permitiu que o som
fosse estendido e armazenado para manter o momento passado no presente,
como fazem pinturas e esculturas” (KELLY, 2011, p.60).
Enquanto estas tecnologias, pontualmente mencionadas no presente
trabalho, faziam evoluir as possibilidades de registro sonoro, o cinema se
manteve mudo até o final dos anos 1920. No entanto, desenvolveu uma
linguagem capaz de abarcar narrativas complexas mesmo com esta limitação.
Apesar do filme em si não abarcar a reprodução de sons, as salas de
cinema possuíam estruturas para acompanhamento sonoro para os filmes
exibidos. Arlindo Machado, em sua obra Pré-cinemas e Pós-cinemas, afirma
que:

Falamos em cinema sonoro (...) mas o termo é


indevido. O cinema já era sonoro durante esse tempo todo,
aliás nunca deixou de sê-lo desde a sua invenção ou mesmo

66
na sua pré-história. A diferença era que o som, em vez de ser
gravado para posterior reprodução, era produzido ao vivo por
pianistas, organistas, cantores e até mesmo orquestras
completas (MACHADO, 1997, p.158).

Segundo Rick Altman, infelizmente, performances inteiras e até mesmo


os traços de muitas de suas peculiaridades foram perdidos nos registros
históricos. A começar pelas críticas de filmes na época do cinema mudo, que
eram feitas em sua maioria com base em exibições totalmente silenciosas dos
filmes, antes de sua estreia oficial (ALTMAN, 2004, p.8). Afinal, exibidores não
teriam justificados os gastos com músicos, por exemplo, para uma pequena
plateia de críticos. Em outras ocasiões, quando a imprensa estava nas salas de
cinema junto ao público, para acompanhar as exibições com os devidos
acompanhamentos, as reações da plateia pareciam receber maior atenção do
que as demais fontes sonoras. Rick Altman exemplifica, com trechos de textos
publicados pela imprensa durante o período do cinema mudo (ALTMAN, 2004,
p.88):

• “Houve um pandemônio por cinco minutos” [New York Mail and


Express, 13 Out, 1896]
• “Os aplausos eram incessantes...” [New York Tribune, 13 Out,
1896]
• “Ele foi recebido com muitos aplausos e ouvia-se um chamado
alto por um discurso.” [New York Herald, 1 Nov. 1896]

Além da imprensa, Altman critica dois pontos sobre a forma como


estudiosos do cinema mencionam os acompanhamentos sonoros do cinema
mudo. Primeiramente, a recorrência com que se encontra, sobretudo em
trabalhos acadêmicos, a designação “cinema mudo”15 para todos os 30 anos do
cinema pré-sonoro, que se mostra heterogêneo e que evolui em termos de


15
Vale lembrar que a designação “cinema mudo” é algo particular do Brasil e de algumas outras culturas.
Os americanos, por exemplo, chamam o período de “cinema silencioso” (silent film). Chion faz uma
interessante análise desta terminologia em Film, a Sound Art (2009).

67
linguagem “os curtas do começo do cinema (bem como suas particularidades
de exibição e consumo) não podem ser tratados da mesma forma que os filmes
posteriores” (ALTMAN, 2004, p.9). Além disso, ao comentar a presença das
performances de acompanhamento sonoro das produções, muitos
desconsideram as particularidades culturais das diferentes regiões e países nas
quais os filmes eram exibidos.

Presentes em teatros de vaudeville nos Estados


Unidos, os curtas do início do cinema eram frequentemente
projetados em pistas de patinação no Reino Unido, carnavais
itinerantes na França e salas de música na Itália, com efeitos
evidentes nas práticas de acompanhamento do cinema mudo
(ALTMAN, 2004, p.11).

Existem também registros de projeções em total silêncio logo no início do


cinema, e elas parecem ter sido recebidas com estranheza. Em 1896, o crítico
de cinema Maxim Gorky, ao assistir um filme dos irmãos Lumière na feira de
Nizhni-Novgorod, na Rússia, o descreve com um “Estranho silêncio em que (...)
não há som de passos ou fala. Nada. Nenhuma nota da sinfonia intricada que
sempre acompanha os movimentos das pessoas” (ALTMAN, 2004, p.89). Da
mesma forma, O. Winter, após a exibição em Londres de um filme também dos
irmãos Lumière, provavelmente Enfants au bord de la mer (Crianças à beira-
mar) escreveu para a revista New Review:

O filme varia, mas o efeito é sempre o mesmo- o


terrível efeito da vida, mas da vida com uma diferença. É vida
sem cor e som. Apesar de termos consciência dos raios do
sol, o filme é subjugado a um uniforme e desconcertante
cinza. Mesmo que as ondas quebrem em um litoral imaginado,
elas quebram em um silêncio que duplica sua distância da
realidade. Os meninos riem com os olhos e a boca- que
vemos de relance. Mas eles riem em uma quietude na qual a
falta de ondulações perturba (ALTMAN, 2004, p.88).

Desta forma, os acompanhamentos sonoros aprimoravam as


possibilidades imersivas do dispositivo cinematográfico, também ao desviarem
a atenção do silêncio incômodo das primeiras projeções.

68
Desde o começo, o objetivo do acompanhamento
musical sempre foi o de “melhorar” o filme, de aperfeiçoá-lo.
Como anunciavam as produções da época, ‘o filme será
acompanhado de sons impressionantes, assustadores ou às
vezes suaves (...)’ (MANZANO, 2010, p.27).

Estes músicos se apresentavam durante os filmes para auxiliar na leitura


das cenas e na imersão dos espectadores, dado que ajudavam a mascarar o
som incômodo dos projetores da época e a “humanizar” o fluxo desequilibrado
de movimentos, de aspecto assustador, que a inconstância da projeção dava
aos atores. É o que descreve Anatol Rosenfeld, teórico de teatro e cinema, em
sua obra Cinema: arte e indústria:

O ruído mecânico do projetor ressaltava o efeito


fantasmagórico da imagem de duas dimensões, a agitação de
sombras irreais na tela que imitavam a vida de seres
humanos, tridimensionais. A agitação de espectros imitando
seres vivos numa tela – tal fenômeno não podia deixar de
chocar e mesmo aterrorizar a audiência. Segundo Hanns
Eisler, a música, pela magia que lhe é própria, conseguiu
exorcizar a angústia dos espectadores, ajudando-os a
amortecer o choque que sentiam ao se depararem com
sombras em movimento. (...) Mas a música não só exorcizava
a angústia dos espectadores, ela também proporcionava aos
espectros a vida que lhes parecia faltar (ROSENFELD, 2009,
p.124).

O ruído do projetor era um problema bastante relevante na estrutura do


dispositivo cinematográfico. Sobre as tecnologias de projeção, Rick Altman cita
muitos relatos da época sobre os altos ruídos provocados pelo Vitascope, a
celebração da atenuação destes ruídos no Cinematographe e a redução dos
ruídos como principal chamariz publicitário do Optigraph, considerado um
“ponto de superioridade” tecnológica (ALTMAN, 2004, p.89).
Para Rick Altman, o acompanhamento sonoro não estava presente nas
exibições apenas para acobertar o ruído dos projetores. Tratava-se de uma
prática criativa bastante diversa.

Porque atribuem a presença do som no cinema mudo


como necessidades universais humanas (para acobertar
ruídos indesejáveis, para evitar os efeitos estranhos dos filmes
sem som, para completar a totalidade “natural” do

69
audiovisual), os autores de livros sobre música de cinema se
sentiram totalmente justificados em tratar o som de todo o
cinema mudo como uma “coisa” só (ALTMAN, 2004, p.9).

Como sumariza Arlindo Machado, as possibilidades de acompanhamento


eram muito diversas e tinham particularidades regionais tal qual mencionou
Altman:

Sabemos que o cinema dito “mudo” acumulou, nos seus


trinta anos de história, toda uma sabedoria particular sobre o
tratamento da matéria sonora no filme, em que se incluem
partituras musicais que acompanhavam os rolos de filmes,
dispositivos de sonoplastia montados dentro da sala de
exibição, auditórios com acústica e dotados de órgãos de tubos
ou fotoplayers (pianos especialmente desenhados para salas
de cinema e capazes de produzir não apenas música, mas
também ruídos e efeitos sonoros diversos), dublagem das
vozes dos atores por locutores que ficavam atrás das telas, a
incrível tradição do benshi (ator que acompanhava ao vivo a
exibição do filme e imitava as vozes dos personagens) no
cinema japonês e até mesmo uma razoável produção editorial
de coletâneas de partituras com trechos de músicas
especialmente compostas para acompanhar quaisquer
situações ou atmosferas cinematográficas (MACHADO, 1997,
p.158).

Com base nos registros levantados por Rick Altman acerca do início do
cinema nos Estados Unidos, as lógicas dos acompanhamentos sonoros dos
primeiros filmes vêm de tradições de entretenimento anteriores ao cinema.
Quando uma determinada projeção mostrava um número musical, era natural
que se pensasse em música para acompanhá-la. Já a presença de narradores
vinha de outra forma de entretenimento: a projeção de slides com fotografias de
outros lugares do mundo, sempre acompanhadas de um narrador que contava
para os presentes a história e os costumes do local representado. Esta forma
de entretenimento era bastante popular na segunda metade do século XIX. É
compreensível, portanto, que este narrador fazendo parte do repertório do
público norte-americano, esteja presente para contar as histórias dos filmes
projetados no início do cinema. Existem registros massivos da presença destes

70
profissionais nos primeiros vinte anos do cinema nos Estados Unidos
(ALTMAN, 2004, p.55). E, finalmente, filmes que continham efeitos como
trovões e balas de canhão, tradicionalmente acompanhadas destes efeitos
sonoros, emulados em apresentações teatrais, por exemplo, pareciam
incompletos sem estes efeitos.
Nesta época, no que podemos considerar parte das artes precursoras da
edição de som e do sound design do audiovisual, profissionais eram
designados para acompanhar as projeções com sons correspondentes. Este
acompanhamento sonoro, como vamos ver, já foi feito com materiais de toda
espécie, ao vivo, e também com o uso de fonógrafos e imitadores.
Em teatros e nos vaudevilles norte-americanos, os sons de
acompanhamento eram por vezes feitos por profissionais escondidos, atrás dos
palcos e das telas com projeções.

Figura 15. Ilustração de homens reproduzindo sons atrás da tela de projeção


cinematográfica. Fonte: ALTMAN, 2004.

Dentre os músicos que faziam o acompanhamento das projeções, por


vezes o baterista ou o pianista eram responsáveis por fazer determinados
efeitos sonoros.

71
Figura 16. Instrumento que possibilita simular diversos efeitos sonoros, como
portas batendo, trovões, passos, maçanetas girando, trens, etc. Fonte:
ALTMAN, 2004.

72
Estes músicos utilizavam os próprios instrumentos musicais e,
dependendo da disposição nas salas de exibição, também instrumentos
improvisados com diversos tipos de mecanismos: maçanetas, sinos, chocalhos,
manivelas, martelos, etc. Com estas ferramentas, conhecendo o filme, era
possível produzir efeitos sonoros síncronos em relação aos acontecimentos do
filme. Nesta época, era comum que a mesma equipe nas salas de cinema
tivesse que cuidar da iluminação, da projeção e dos efeitos sonoros, todos
considerados os “efeitos mecânicos” (ALTMAN, 2004, p. 152).
Além dos músicos e da equipe técnica generalista, que assumia diversas
funções simultaneamente, algumas exibições contavam com o trabalho de som
de profissionais denominados imitadores. Notoriamente, LeRoy Carleton,
famoso imitador que trabalhou com Lyman H. Howe, importante figura para a
história do som no cinema sobre o qual falaremos a seguir. Carleton, segundo
relatos, era capaz de, em uma única exibição, mudar a voz até 115 vezes para
faze-la corresponder ao filme assistido (ALTMAN, 2004, p.144).
Uma experiência interessante do começo do cinema foi a apropriação de
Lyman H. Howe das possibilidades do fonógrafo para agregar sonoridade às
imagens projetadas, cujos modelos são considerados importantes para o
desenvolvimento do cinema sonoro. Os shows promovidos por Howe nos
Estados Unidos no começo dos anos 1890 mostravam gravações de sons de
fenômenos da natureza, demonstrações de timbres de instrumentos musicais e
bandas tocando as músicas do momento. A partir da metade dos anos 1890, o
fonógrafo barateou e ficou mais acessível para o público em geral, o que
enfraqueceu o apelo dos shows de Howe. Este, para incrementar seus shows,
contratou um projecionista, Edwin J. Hadley, para acompanhá-lo. Para
corresponder às expectativas de seu público, Howe passou a anunciar filmes
com efeitos sonoros realistas como acompanhamento, gerados a partir de um
fonógrafo que acompanhava a projeção (ALTMAN, 2004, p.145).
Em 1896, Thomas Edison lançou um filme chamado Black Diamond
Express. Coincidentemente, a cidade natal de Howe, Wilkes-Barres, era
conhecida como a Black Diamond City, ou cidade do Diamante Negro, em

73
referência ao polo industrial de carvão que representava. Quando Howe
adquiriu uma cópia do filme de Thomas Edison, ele gravou um trem chegando a
uma das estações da cidade e reproduziu este som junto com a projeção.
Segundo os registros de Altman, os ruídos do vapor, dos sinos e das rodas
“tornaram a cena espantosamente real. O efeito era esmagador” (ALTMAN,
2004, p.146).
O sucesso da reprodução conjunta de projetores e fonógrafos fez com
que vários concorrentes de Howe copiassem a ideia e passassem a juntar as
duas máquinas para seus espetáculos itinerantes. Howe comenta a importância
do som para o cinema em entrevista de 1913 citada na obra de Rick Altman:

Acreditamos que o apelo aos ouvidos é tão vital para o


sucesso de um filme quanto o valor artístico de uma boa
fotografia. Para conseguir os melhores resultados em filmes
os sons naturais devem acompanhá-los – sons produzidos por
vozes humanas e efeitos mecânicos trabalhados em
unissonância por trás da tela. Quando eu vejo um filme é
necessário providenciar um acompanhamento sonoro ou este
estará “morto” (...). Quando mostramos um filme do desfile de
inauguração, nós temos o número necessário de pessoas
para produzir os aplausos e vozes, os quais são
cuidadosamente nivelados para sincronizar com o desfile
chegando na tela (ALTMAN, 2004, p.148).

Howe trabalhou também com imitadores e outros tipos de reprodução de


efeitos sonoros produzidos durante as projeções. Entretanto, o sucesso de seus
mecanismos estava atrelado a sua condição de espetáculo itinerante. Ao
passar de cidade em cidade, Howe e sua equipe podiam ficar meses mostrando
os mesmos filmes e aperfeiçoando suas técnicas de sincronização de sons.
Quando o cinema se reestrutura e se consolida nos Nickelodeons, pequenas
salas com exibições variadas, e, posteriormente, nas Salas de Cinema, maiores
e mais confortáveis, dada a maior rotatividade de atrações, o modelo de Howe
não contaria mais com o tempo e dedicação necessários para preparar os
acompanhamentos sonoros (ALTMAN, 2004, p.152).
No entanto, Howe estava certo quanto a importância do som. Este,
fazendo parte da natureza que o cinema representava, sempre fez parte da
linguagem cinematográfica, mesmo que apenas em sugestão.

74
2.3. A sugestão sonora presente no cinema mudo

Considerando a estranheza provocada pelo silêncio e o desagradável


ruído dos projetores, podemos afirmar que o espetáculo cinematográfico,
portanto, sempre foi potencializado pelos acompanhamentos sonoros, mesmo
antes que estes se tornassem parte das exibições eletronicamente.
No entanto, mesmo levando em consideração apenas o filme, por este
propor uma representação da natureza dos espectadores, portanto sonora,
havia frequentemente uma clara sugestão aos sons da diegese. Pensando
nisso, Michel Chion, sugere que chamemos o cinema pré-sonoro de cinema
“surdo” e não “mudo”: “havia palavras e ruídos, mas estes não podiam ser
ouvidos” (CHION, 2009, p.3).
Para Luiz Adelmo Manzano, professor da Unicamp, como mencionado
em sua obra “Som-Imagem no Cinema”, o cinema mudo havia encontrado
formas de compensar a ausência do som.

Fazia o som parte do cinema desde sua gestação,


desde sua origem? Se tomarmos aquela que é tida como a
primeira projeção pública, A Chegada do Trem, dos irmãos
Lumière, encontraremos ali elementos que são inerentes a
uma reflexão sobre som e música. Um trem a vapor em
movimento, vindo em direção à câmera, traz em si movimento
e, embutida, a noção de ritmo. Os elementos visuais,
plásticos, o movimento em direção à plateia, são ali
acrescidos (sob um aspecto memorial) da lembrança do som
do trem, do ritmo de suas rodas, com o intuito de provocar a
sensação até então inédita da iminência da colisão
(MANZANO, 2010, p.32).

A partir dos primeiros filmes, a linguagem cinematográfica encontrou


formas de sugestão sonora que vão além desta inerência de memória sonora
de elementos do cotidiano das pessoas, como o exemplo do trem. Atores
visivelmente se expressavam por palavras e gesticulações, fumaça saía das
armas para anunciar o tiro, objetos apareciam em primeiro plano vibrando e
ferramentas de montagem eram utilizadas para representar a existência de um
som contínuo na diegese. Como afirma Chion:

75
O paradoxo e charme do cinema surdo reside na
importância que este conferiu desde o início ao fenômeno
auricular. O cinema poderia apresentar um som contínuo
(como um alarme insistente, um sino de igreja ou uma
máquina operando) por meio de um curto plano-refrão que
seria repetido a cada quinze ou vinte segundos, alternados
com a imagem daqueles que o ouvem (CHION, 2009, p.5).

O exemplo que trazemos para discutir esta sugestão é Metrópolis, filme


de 1927 do diretor Fritz Lang, por vezes mencionado como a inauguração do
gênero de ficção científica no cinema. É sempre arriscado assumir que uma
dada obra seja de fato a primeira de determinado gênero. No caso, filmes de
George Meliès, sobretudo La voyage dans la lune (Viagem à lua), poderiam
contestar o marco inicial da ficção científica no cinema. Entretanto, Metrópolis é
indubitavelmente uma obra-prima e, tendo sido lançado pouco antes do cinema
sonoro, mostra a maturidade das potencialidades da linguagem do cinema
mudo, sobretudo na forma como sugere o som com suas imagens.
Metrópolis explora, em uma sociedade fictícia, o abismo entre ricos,
vivendo uma vida luxuosa, e pobres, trabalhando incessantemente em
péssimas condições para o benefício das classes superiores. Quando o filho da
autoridade máxima da cidade (Freder) segue uma mulher pobre (Maria) até a
área subterrânea dos trabalhadores, este se depara com trabalhadores
exaustos operando partes de máquinas enormes. A sequência que mostra o
trabalho destes, por seus movimentos ritmados (como se fossem pistões da
própria máquina) e jatos de fumaça, possui grande poder de sugestão sonora.
Manzano afirma que “A eventual sugestionabilidade sonora permeia a
sequência, estando presente já no movimento ritmado dos funcionários
trabalhando” (MANZANO, 2010, p.133).

76
Figura 17. Quatro fotogramas de Metrópolis (1927), de planos abertos da
principal máquina da área subterrânea onde ficam os trabalhadores. Estes se
movem bruscamente de um lado para o outro, atendendo a um ritmo. No
mesmo tempo, os pistões centrais giram e a fumaça sai da máquina por vários
dutos. Esta composição gera no espectador uma forte sugestão sonora.

Enquanto Freder observa os trabalhadores pela primeira vez em sua


vida, com uma expressão de surpresa e pavor, um dos trabalhadores, beirando
a exaustão, falha no comando de uma das partes da máquina. Esta
superaquece, sofre explosões e é coberta por uma densa fumaça.
Trabalhadores são arremessados para longe e outros correm em pânico. Aos
poucos, a fumaça que cobria a máquina vai desaparecendo e somos
apresentados a Moloch, uma versão monstruosa da máquina anterior, que
devora trabalhadores como uma forma de punição. É importante observar que
Moloch de Metrópolis possui o mesmo nome de um deus/demônio bíblico.
David Jeffrey, pesquisador de mitologia cristã, diz que os rituais de adoração à
Moloch, praticados pelo povo de Canaã, envolviam sacrifícios de crianças, que
eram jogadas ao fogo (JEFFREY, 1992, p.516). Assim como neste exemplo, o
cinema frequentemente se vale de narrativas já presentes no imaginário dos
espectadores, pois este repertório muitas vezes também é o dos próprios
autores, o que auxilia na produção de sentido desejada. No caso, o pavor de
uma criatura relacionada a sacrifícios de inocentes.

77
Na continuação da sequência acima mencionada, ao final da execução
dos trabalhadores, devorados por Moloch, a imagem ondula e retorna ao
ambiente anterior à explosão, com os trabalhadores caídos e a máquina em
sua forma normal. O espectador compreende que Moloch era fruto de um
delírio de Freder. Sobre a sonoridade da sequência descrita, Manzano afirma
que

Figura 18. Quatro fotogramas de Metrópolis (1927) que mostram a


apresentação de Moloch e a sequência de eventos relacionados. A
transformação da máquina em monstro, o intertítulo que apresenta Moloch e a
execução de trabalhadores, devorados.

A sonoridade da sequência é por vezes sutil, sendo ela


especialmente construída sobre o conceito de ritmo. A tensão
criada – o retardamento do tempo, a iminência da explosão,
planos plasticamente elaborados – , todos esses elementos
nos traçam um paralelo com uma ideia sonora, musical que
seja. A recorrência do plano geral da fábrica em
funcionamento, intercalada com planos da temperatura subindo

78
e atingindo o ápice, faz com que tenhamos a sensação de ritmo
acelerando, mesmo que o plano seja o mesmo anterior.
Chegamos àquilo que Eisentein ilustra como recorrência para
transmissão da ideia sonora, bem como à construção toda feita
sobre a montagem. Ao final, o Moloch, atemporal, composto
por jogos de luz, por chicotadas levando os trabalhadores às
chamas; eles serão engolidos pelos pistões em constante
movimento, fumaça, névoa, também elementos sonoros
acompanhando o delírio de Freder (MANZANO, 2010, p.134-
136).

Desta forma, mesmo em filmes que não possuem som sincronizado,


somos capazes de “ouvir” muitos dos elementos em cena. Como vimos, o
cinema apresenta momentos interessantes deste tipo de sugestão. Após a
chegada do cinema sonoro, este segmento fantasioso do cinema, com
tecnologias futuristas, distopias, monstros e toda sorte de criaturas fantásticas,
fomentou fundamentalmente as experimentações de relação entre imagem e
som.

2.4. O início do cinema sonoro, as camadas sonoras e a voz.

Além das experimentações do cinema, o contexto social que levou parte


expressiva da população da zona rural para as cidades ajudou na construção
do repertório dos espectadores para que pudessem fazer a leitura de
ambiências sonoras complexas do meio, mesmo antes da dimensão proposta
pelos sound designers. O cinema é uma forma de arte e entretenimento
intrinsecamente ligada à reconfiguração da sociedade, com a volumosa
migração das zonas rurais para as zonas urbanas, o que ocorreu
principalmente após a Segunda Revolução Industrial. Com grandes fábricas,
que pela primeira vez produziam bens de consumo em larga escala,
trabalhadores saíram do campo em busca de melhores oportunidades na
cidade. Com salários garantidos e tempo livre disponível após os turnos de
trabalho, havia um mercado potencial para uma diversão mais barata, em
contraste com o teatro ou a ópera. O cinema veio preencher esta lacuna
rentável do mercado de entretenimento. Não fosse a massa de novos

79
assalariados para consumir o cinema, possivelmente este “não teria
ultrapassado o estágio de mera curiosidade ou instrumento científico”
(ROSENFELD, 2009, p.63).
A progressiva migração das pessoas do campo para as cidades e os
avanços tecnológicos são relacionados com a mudança de paisagem sonora,
como lembra Altman:

Se a primeira metade do século (XIX) continuava sendo


caracterizada pelas ocupações rurais e por materiais
orgânicos, os últimos cinquenta anos do século
crescentemente apresentavam processos industriais e
produtos de aço. Com cavalos “de carne” (como diria o autor
de O Mágico de Oz, L. Frank Baum) dando lugar a cavalos “de
ferro” e bondes, e com o esforço humano sendo cada vez
mais substituído por motores a vapor e elétricos, os residentes
dos Estados Unidos no final do século dezenove viveram em
um período de constante mudança auditiva (ALTMAN, 2004,
p.27).

Além da mudança industrial e de organização da sociedade, em


ambientes predominantemente urbanos, dentro dos lares também havia
mudanças de paisagem sonora, dadas as novas tecnologias disponíveis. O
telefone de Alexander Graham Bell, mostrado ao público pela primeira vez em
1876, permite que pessoas se comuniquem através de distâncias, ocupando
em parte o lugar das cartas, silenciosas. O fonógrafo de Thomas Edison traz a
ideia de armazenamento de sons, podendo ser distribuídos como outros bens
de consumo (ALTMAN, 2004, p.28). As primeiras vitrolas, também atribuídas a
Thomas Edison, ganhavam os lares americanos no final do século XIX. Aqui no
Brasil, a primeira loja de vitrolas (Casa Edison), no Rio de Janeiro, inaugurou
em 1901.
Para compreender melhor esta mudança de paisagens sonoras da
época, trazemos algumas considerações de Murray Schafer, músico e
compositor canadense, presentes em A afinação do mundo. Schafer utiliza dois
termos para diferenciar paisagens sonoras: hi-fi e low-fi. Um ambiente hi-fi é
aquele no qual é possível ouvir com distinção os sons, que se sobrepõem
menos, forma mais vantajosa para a compreensão de cada som singularmente.

80
Em um ambiente low-fi, há uma grande densidade sonora e uma dificuldade de
compreensão dos sons, tamanha a quantidade de ruídos diversos (SCHAFER,
2012, p.71).
E o som do cinema, arte urbana, apresenta-se em várias camadas. Além
das três principais divisões (efeitos sonoros, músicas e diálogos), cada uma
destas costuma trazer diversas camadas. Além disso, um dado efeito sonoro,
assim como uma composição musical com múltiplos instrumentos, costuma
abarcar uma quantidade razoável de sons que o compõem. Para compor o som
de Chewbacca, por exemplo, Ben Burtt somou as qualidades dos sons de
vários animais, como veremos em detalhe nos próximos capítulos. O somatório
destes ruídos trouxe um som único, relacionado a personagem. É o cinema
trabalhando a nossa possibilidade de ouvir diversos sons e criar um significado
a partir de sua soma, como quando ouvimos a paisagem sonora low-fi de um
bairro específico, com seus veículos, pessoas, animais, construções, e
conseguimos dimensionar muitas de suas qualidades apenas escutando esta
massa sonora pela janela: densidade populacional, características comerciais
ou residenciais, trânsito, horário do dia, etc.
A mudança da paisagem sonora das cidades veio acompanhada com
uma mudança imagética. Os emissores dos sons da paisagem low-fi estão por
todos os lados nas grandes cidades e isto reforça a natureza da nossa
associação entre imagens e sons. Assim, quando o cinema “nasce”, existe um
questionamento sobre seu silêncio. Bem como, na criação de tecnologias de
gravação e reprodução de áudio, para seus criadores este parece incompleto
sem uma imagem correspondente.
Desta forma, o cinema sonoro, em seu início, tem a seu favor um
momento da sociedade e das cidades em que seus espectadores já teriam
repertório suficiente para compreender auditivamente suas várias camadas
sonoras.
Mesmo antes do advento do cinema sonoro, inventores já vislumbravam
a possibilidade de captar e exibir imagem e som simultaneamente. Thomas
Edison, após registrar o fonógrafo, fez diversas tentativas para alcançar este

81
objetivo desde o final do século XIX. Arlindo Machado sugere que o momento
inaugural do cinema seja a partir do fonógrafo e não da projeção dos irmãos
Lumière em 1895:

Uma outra maneira de contar a nossa história é a partir


não daquele momento em que Lumière mostra as supostas
primeiras imagens animadas no Grand Café em Paris, mas de
um tempo um pouco anterior, mais exatamente 1877, data em
que Thomas Edison patenteia o primeiro fonógrafo de folha de
estanho, construído por seu funcionário suíço John Kruesi.
Imediatamente após a invenção do fonógrafo, Edison se deu
conta de uma “limitação” de seu aparelho: a falta de imagem.
Estamos tão acostumados a ouvir rádio e discos que resulta
difícil para nós imaginar como deveria ser estranho, no século
XIX, ouvir uma música que brotava de uma máquina sem a
correspondente representação do corpo que a produzia. (...)
Não é normal, em meados do século XIX, experimentar a
música como um fenômeno exclusivamente acústico, sem a
localização visual de sua fonte produtora (MACHADO, 1997,
p.153-154).

A busca pela imagem e som síncronos levou as Indústrias Edson às


outras experimentações. Estas resultaram em invenções como o Kinetophone,
de 1895, que juntava as tecnologias do Kinetoscópio (imagem) com o
Fonógrafo (som). No entanto, tratava-se de uma máquina ainda muito distante
das intenções do seu inventor. Ao lançar o Kinetophone que, sem precisão,
sincronizava algumas imagens com sons, Edison falava de suas aspirações e
vislumbrava, além do cinema sonoro, a própria televisão:

A minha intenção é ter uma combinação feliz de eletricidade e


fotografia que um homem possa sentar em sua sala de estar e
ver reproduzido em uma tela as formas dos atores de uma
ópera produzida em um palco distante e, ao ver seus
movimentos, ouvir os sons de suas vozes enquanto eles falam,
cantam ou riem (...). Brevemente será possível aplicar este
sistema para lutas e exibições de boxe. A cena em sua
integridade, com comentários dos espectadores, a contagem
dos segundos, o ruídos dos socos, entre outros, serão
fielmente transferidas (ALTMAN, 2004, p.78).

82
Como vimos anteriormente, o som já emanava das imagens
cinematográficas e era natural, para alguns, que se buscasse as condições
para reproduzir som e imagem simultaneamente.
Assim como a fotografia, um som gravado é uma representação, uma
leitura. Independente da tecnologia utilizada na gravação, o som é fundamental
para o avanço das possibilidades expressivas do cinema em suas
representações diversas do mundo.
Este avanço de possibilidades expressivas pareceu encantar a
audiência, sobretudo a partir do lançamento de O Cantor de Jazz (The Jazz
Singer) pela Warner em 1927, um filme que transparece a experimentação de
linguagem da época dada a mistura de sequências de cinema mudo e cinema
sonoro para contar sua história. Nos primeiros anos do cinema sonoro, a
tecnologia utilizada era a do som em disco, o Vitaphone. Separado do rolo de
filme cinematográfico, era sincronizado por meio de um projetor que reproduzia
o disco e o filme simultaneamente. Dados os problemas de sincronia
frequentes, em pouco tempo o som passou a ser impresso diretamente no filme
cinematográfico, que durante muitos anos comportou apenas uma faixa de
áudio, sendo monofônico.

83
Figura 19. Uma máquina de projeção da época do Vitaphone, que reproduzia
um disco com o som do filme simultaneamente ao rolo cinematográfico no
projetor. Fonte: http://www.henryhadley.com/HwdGallery.html
Figura 20. Um rolo de filme com a impressão de uma faixa (monofônico) à
esquerda da imagem, na atualização de sistema de som sincronizado do
cinema que se tornaria padrão após o Vitaphone. Fonte:
https://br.pinterest.com/pin/459015386991467853/

Para alguns dos importantes críticos de cinema que acompanharam a


transição do cinema mudo para o cinema sonoro, esta era uma novidade
desastrosa para a linguagem cinematográfica, prejudicando montagem e ritmo
próprios da imagem. Robert Brasillach e Maurice Bardèche, novelistas e
críticos franceses, autores de Histoire du Cinèma (1935), por exemplo,
afirmaram que “o filme sonoro matou a arte cinematográfica” (ROSENFELD,
2009, p.130).
Entretanto, a partir da cultura sonora crescente que se desenvolveu em
paralelo com o cinema, além da mudança das paisagens sonoras das cidades,
é possível argumentar que o público e o mercado já estavam conceitualmente
preparados para esta transição. Assim afirmam Thomas Elsaesser e Malte
Hagener, autores da obra Film Theory: an introduction through the senses:

O típico desta transição era que, graças ao radio, a


popularidade crescente do gramofone e das músicas de
sucesso, em complemento ao rosto e corpo do ator, a presença
acústica e performance dele/dela se tornou parte da máquina
de marketing da indústria (ELSAESSER; HAGENER, 2010,
p./129).

No entanto, no princípio do cinema sonoro, o som tinha limitações


técnicas e estéticas. Oitenta a noventa por cento do que era ouvido pelos
espectadores eram os sons gravados no set, em sincronia com a captura de
imagens. Para trabalhar os sons na pós-produção, era necessário fazer
regravações e, a partir disso, usar mais filme, o qual não poderia ser
reaproveitado. Isso significava um aumento de custos.
A dificuldade também era presente nos aparatos necessários para
realizar as gravações. “(...) estúdios de filmagem tiveram que ser radicalmente

84
modificados para isolamento de ruídos externos e para comportar microfones e
gravadores que no princípio eram gigantescos” (MANZANO, 2010, p.87).
Dada a limitação tecnológica e o encanto dos espectadores acerca da
voz sincronizada, o início do cinema sonoro viu uma disseminação de musicais
e de talkies, denominação de filmes que contavam a história principalmente a
partir do diálogo dos atores. Um exemplo é Lights of New York, lançado pela
Warner em 1928, que se valeu dos diálogos sincronizados como chamada
principal de divulgação.

Figura 21. Dois cartazes do filme Lights of New York (1928) que enfatizam a
presença da fala na trilha sonora do filme. Fonte:
https://johnlinkmovies.com/2015/01/08/johnlink-ranks-lights-of-new-york-1928/

Este filme foi mencionado em uma aula do Prof. Eduardo Santos


Mendes na USP, em uma disciplina de Sound Design Hollywoodiano
ministrada em 2011. Apesar de ser considerável do ponto de vista histórico, o
filme é bastante difícil de encontrar. Só foi possível encontrá-lo, na época, em
um site que vende cópias de filmes muito raros e antigos, do acervo particular
de um colecionador. Após a encomenda, ao receber o DVD, foi entediante
assisti-lo. Para se ter uma ideia, ao utilizar um software de reprodução de
arquivos de vídeo, pulando de um ponto ao outro do filme, é difícil encontrar um
momento em que um personagem não esteja falando. Uma verborragia! Os

85
diálogos são longos e desnecessários, o roteiro é fraco e os enquadramentos,
assim como em outros filmes da época, estão restritos por limitações
tecnológicas dos processos de captação de som do início do cinema sonoro.
Encontramos, por exemplo, um quadro como o da figura abaixo, no qual três
personagens se “espremem” para que, no caso, um único microfone consiga
captar todas as vozes.

Figura 22. Em Lights of New York (1928), fotograma mostra como atores
enfrentam restrição de espaço no enquadramento para que o microfone
consiga captar todas as vozes.

Apesar da denominação talkies ser referente aos filmes produzidos


apenas nesta época, no princípio do cinema sonoro, a característica
vococêntrica/verbocêntrica do cinema é algo comum até hoje. Relembrando
Chion: “Uso o termo verbocêntrico para designar a forma clássica de som
cinematográfico estabelecida nos anos 1930 e comum até hoje (...). É um tipo
de cinema em que o diálogo é o centro das atenções (...)” (CHION, 2009, p.73).
Isto se dá, entre outros, porque em termos cognitivos, é assim que percebemos
o mundo ao nosso redor. A voz e as palavras são hierarquicamente os

86
primeiros sons que prestamos a atenção e tentamos identificar no dia-a-dia
(CHION, 1994, p.6).
Em uma correspondência a este fenômeno, a tecnologia do cinema
sempre esteve focada para otimizar a captação da voz. Como firma
Whittington:

Em geral, representações da voz sempre mantiveram um


status privilegiado na hierarquia do filme sonoro, superando
tanto música quanto efeitos sonoros. Esta ênfase é em parte
dado ao fato de que, institucionalmente, a voz tenha se
alinhado muito próxima à tecnologia e às práticas de produção
do cinema sonoro (...) No processo de gravação, microfones
são especificamente projetados para otimizar as qualidades da
voz, garantindo fidelidade e inteligibilidade do diálogo, o qual
no processo de mixagem também fica em primeiro plano. (...) o
diálogo reside primordialmente nos falantes centrais, dando
maiores privilégios para tal dentro do espaço de exibição
(WHITTINGTON, 2007, p.174).

As escolhas de mixagem e enquadramentos em Lights of New York


estavam ligadas também ao repertório de códigos cinematográficos do início do
cinema sonoro. A linguagem predominante em Hollywood na época
considerava um som de qualidade aquele que, com clareza, correspondesse
“naturalmente” ao que era visto na imagem. No entanto, o “parecer real” se
torna suficiente, mesmo que utilize técnicas de manipulação e fontes sonoras
não correspondentes às da imagem para atingir este objetivo (WHITTINGTON,
2007, p.199). Esta questão será discutida com maior profundidade no decorrer
do presente trabalho.
As possibilidades expressivas do cinema sonoro que fossem além da
reiteração da imagem foram aos poucos sendo exploradas e conceitualizadas.
Diretores como Fritz Lang e Alfred Hitchcock, nas obras M: o vampiro de
Dusseldorf e Chantagem e Confissão, respectivamente, já experimentaram
outras facetas e potencialidades sonoras. Por exemplo, em M: o vampiro de
Dusseldorf (M, 1931), o assassino assobia constantemente uma música de
Edvard Grieg, característica essencial para o roteiro, dado que o assobio
permite a um vendedor cego de balões reconhece-lo.

87
Já em Chantagem e Confissão (Blackmail, 1929), a personagem Alice
senta à mesa com outras personagens. Uma delas, mais falante, está
conversando normalmente. Alice está calada e atormentada por um
assassinato. Hitchcock nos transporta para o ponto de escuta de Alice e
passamos a ouvir a fala da outra personagem com um volume bem baixo, com
exceção dos momentos em que ela diz “faca”. Nessas horas, somente nesta
palavra, o volume fica bem alto e as repetidas incidências vão deixando Alice
nervosa.

(...) um passo adiante da discussão inicial em torno dos filmes


falados que meramente reproduziam todos os sons possíveis a
fim de satisfazer a curiosidade quanto ao novo advento. Agora,
o som já se torna uma potencialidade, abre novas
possibilidades gramaticais e traz uma série de implicações para
a linguagem fílmica. No cinema sonoro, a imagem torna-se
mais relativa, precisa de uma complementação do universo
sonoro para uma leitura mais “correta”, para sua legitimação. O
som passa a interferir na leitura, senão a determiná-la
(MANZANO, 2010, p. 108).

Os ruídos utilizados em filmes são produzidos e posteriormente


arquivados no que chamamos até hoje de Bibliotecas de Som. Atualmente,
estas consistem em várias pastas com arquivos de áudio divididos por
temática: animais, ambiências, máquinas, etc. Segundo Anatol Rosenfeld, no
início do cinema, os sons que posteriormente seriam sincronizados com os
filmes eram produzidos de forma artificial dentro dos estúdios.

A maior parte dos ruídos, hoje, costuma ser natural, isto é,


ouve-se o ruído real, embora posteriormente sincronizado. Um
tiro de pistola já não costuma ser imitado pela pancada duma
bengala sobre um pedaço de couro; os cocos já foram
aposentados, em geral, e não imitam mais o ruído das patas de
cavalo. Mesmo um trovão – o inimigo número um do microfone
– já não é plagiado por barras de aço e a economia de batatas
é extraordinária, já que não se costuma mais usá-las rolando
sobre um plano inclinado para produzir o som marcial do rufar
dos tambores (ROSENFELD, 2009, p.138).

Atualmente, com microfones e gravadores mais sofisticados, a gravação


de ruídos diretamente da sua fonte é mais comum, por mais que esse sofra

88
todo tipo de manipulação para corresponder às expectativas construídas pelo
repertório do cinema. Para dar um exemplo, o tiro de uma determinada arma
muitas vezes é sonorizado pelo som real desta ação, com o exato modelo da
arma. No entanto, não é incomum manipular o timbre do tiro, deixando-o com
um estouro mais acentuado e uma “cauda” que desaparece mais
vagarosamente. Outras camadas podem ser utilizadas também, com explosões
complementares e alguns outros truques que “engordam” o tiro verdadeiro.
As práticas mencionadas por Rosenfeld remetem aos ruídos produzidos
no teatro. Também existem relatos deste tipo de procedimento em produções
feitas para o rádio. De fato, parece estranho o uso de batatas para remeter a
tambores que poderiam estar no estúdio para a devida captação de seus
timbres, mas esta época obedece a outras lógicas, ligadas tanto a convenções
e expectativas de como essas ações devem soar, quanto a limitações de
captação dos microfones da época. A pressão sonora de um tambor é muito
alta e os equipamentos tinham muito a evoluir para a devida captação deste e
de outros tipos de som. A emulação dos sons em estúdio para as primeiras
bibliotecas acontecia possivelmente pela baixa portabilidade dos equipamentos
da época. Posteriormente, como veremos ao acompanhar as práticas de Ben
Burtt em Star Wars, os gravadores compactos, mas com grande qualidade,
representaram um passo muito importante da diversidade de ruídos do cinema.
John Cage, músico e compositor americano famoso pelo uso de
instrumentos não convencionais e pioneiro da música eletroacústica, em seu
artigo The future of music, de 1937, comenta a vontade de captura e controle
dos sons do ambiente, além das possibilidades criativas das tecnologias do
cinema sonoro há pouco criadas. Estas permitiam a manipulação dos sons e
uma consequente riqueza de experiências.

Todo estúdio de cinema possui uma biblioteca de ‘efeitos


sonoros’ gravados em filme. Com o fonógrafo de filme, agora é
possível controlar a amplitude e a frequência de qualquer um
destes sons e dar a estes ritmos dentro e além dos limites da
imaginação. Com quatro fonógrafos de filme, podemos compor
e apresentar um quarteto de sons de explosões de motores,

89
vento, batimentos cardíacos e desmoronamentos (CAGE in
KELLY, 2011, p.23).

Alguns gêneros, sobretudo Ficção Científica, eram encorajados a buscar


ruídos e manipulações sonoras mais experimentais. Logo no início do cinema
sonoro, Walter Elliot, responsável pelo som do King Kong (1933) pôde utilizar
técnicas de regravação e manipulação dos sons para trabalhar com rugidos de
leões e gritos de gorilas. Estes sons foram sobrepostos e reproduzidos ao
contrário para gerar a vocalização de Kong. Mas fazer o que chamamos de
sound design nesta tese era uma tarefa muito mais difícil nesta época, sendo
que os equipamentos de gravação eram grandes e representavam um desafio
de locomoção, como mencionamos anteriormente. “Tipicamente, o
equipamento necessário para gravação de som era substancial, incluindo
caminhões, baterias, geradores e gravadores ópticos” (WHITTINGTON, 2007,
p.71).

Figura 23. King Kong (1933). Walter Elliot usou leões e gorilas para compor o
rugido de um dos primeiros monstros do cinema sonoro Hollywoodiano.

O filme King Kong, lançado em 1933, é considerado uma obra-prima em


termos de construção da pista sonora, desde os efeitos sonoros até a trilha
musical, composta por Max Steiner. Corrobora com a visão de que Ficção

90
Científica/Fantasia era um gênero privilegiado para experimentações desta
natureza no início do cinema sonoro.

2.5. A ficção científica e o desenvolvimento do som cinematográfico

No exemplo de King Kong, o gênero Ficção Científica constituiu uma


temática de grande fomento para desenvolver o uso do som no cinema. “Ficção
científica permite que produtores e consumidores de cinema possam se
desafiar de maneiras nunca antes esperadas” (WHITTINGTON, 2007, p.5).
Geoff King e Tanya Krzywinska, autores de Science Fiction Cinema: from
Outerspace to Cyberspace, consideram que duas dimensões chave para
compreender o gênero Ficção Científica são o espetáculo e a especulação.
“Filmes de ficção científica podem ser vistos em alguma extensão como
medidas de esperanças e medos das culturas nas quais os filmes são
produzidos e consumidos” (KING; KRZYWINSKA, 2000, p.7).
A definição exata do gênero Ficção Científica, no entanto, não é algo
facilmente determinável. Desde a escrita do projeto de pesquisa, esteve
presente a dúvida entre “ficção científica” ou “fantasia” para a referência
adequada ao corpus. Afinal, muitas fontes citam que a diferença primordial nas
narrativas dos dois gêneros seria a possibilidade (Ficção Científica) e a
impossibilidade (Fantasia) de algo acontecer. Uma distopia na qual robôs
desafiam seres humanos é possível, portanto o filme Eu, Robô (Alex Proyas,
2004), por exemplo, seria uma Ficção Científica. Já Harry Potter e a Pedra
Filosofal (Chris Columbus, 2001), com bruxos, fantasmas e passagens
dimensionais em estações de trem da Inglaterra, seria do gênero Fantasia,
sendo que o que é descrito é teoricamente impossível no nosso contexto. Como
diz o autor de um artigo sobre a diferença entre os dois gêneros, Mark Wilson,
“A ficção científica expande o nosso mundo. A fantasia transcende”16.


16
WILSON, Mark. What’s the difference between science fiction and fantasy. Disponível em <
http://scifi.about.com/od/scififantasyfaqs/f/faq_difference.htm >. Acesso em 21/7/2016.

91
Entretanto, esta classificação não abarca algumas singularidades e faz
transparecer a hibridização do cinema que transborda as definições. Predador
(1987), filme com a invasão de um alienígena, é comumente reconhecido como
um filme de Ficção Científica e Horror. No IMDb (Internet Movie Database)17,
importante catálogo online de cinema, o filme também está categorizado como
pertencente ao gênero Ação. Godzilla, em sua versão de 2014, que é filme com
um monstro gigante relacionado a radiação nuclear, consta como Ficção
Científica, Ação e Aventura. Star Wars (1977), Ação, Aventura e Fantasia, já
que possui fantasmas e “a força”, um poder sobrenatural dos cavaleiros Jedi.
Mas é muito comum encontrarmos Star Wars denominado como Ficção
científica. O filme inclusive é amplamente citado no livro Sound Design e
Science Fiction de William Whittington, importante autor para a fundamentação
teórica da presente pesquisa.
Amelia Hill (2016), repórter do jornal inglês The Guardian, escreveu um
artigo chamado Star Wars FAQ: is Star Wars Sci-Fi or Fantasy? 18 . Para a
autora, as naves, as viagens espaciais e as armas aproximam Star Wars da
Ficção Científica, enquanto que a Força está mais próximo ao gênero Fantasia.
Para defender a presença de Star Wars no gênero Ficção Científica, Hill
apresenta brevemente alguns de seus subgêneros, como podemos ver na
tabela abaixo:

Subgênero de Descrição
Ficção Científica

Hard Sci-Fi Todas as tecnologias presentes no filme precisam ser


fidedignas em relação aos conhecimentos científicos da
época do filme. Exemplos: Interestelar (Interestellar, 2014),
Blade Runner (1982), Impacto Profundo (Deep Impact,
1998)
Soft Sci-Fi Estes filmes possuem liberdades poéticas em relação a


17
IMDb. Disponível em < www.imdb.com > . Acesso em 21/7/2016.
18
HILL, Amelia. Star Wars FAQ: is Star Wars Sci-Fi or Fantasy?. Disponível em: <
http://scifi.about.com/od/starwarsglossaryandfaq/a/Star-Wars-Faq-Is-Star-Wars-Sci-Fi-Or-Fantasy.htm
>. Acesso em 21/7/2016.

92
questões científicas afins, como por exemplo os cânones da
física. A ciência não fica em primeiro plano. Exemplos:
Exterminador do Futuro (Terminator, 1984), Planeta dos
Macacos (Planet of the Apes, 1968), Predador (1987),
Godzilla (2014), Star Trek (1979-2016)
Space Opera Com a ciência como pano de fundo, este subgênero
apresenta batalhas épicas, romance e acontecimentos de
grandes proporções, sendo próximo do gênero Aventura.
Exemplos: Star Wars (1977-2015), Star Trek (1979-2016).
Science Fantasy Mistura elementos da Ficção Científica com Fantasia.
Exemplos: Star Wars (1977-2015), O Quarteto Fantástico
(Fantastic Four, 2007), O Incrível Hulk (The incredible Hulk,
2008), Homem-Aranha (Spider Man, 2002).
Tabela 3. Distinção entre vários subgêneros de ficção-científica/fantasia como
definido por Amelia Hill (2016).

Dada a complexidade e a pouca serventia de chegar a uma conclusão


sobre isto, encontrar uma resposta precisa (se é que isso é possível) para esta
questão não vem ao caso na presente pesquisa. Compreende-se que Ficção
Científica dê conta de abarcar o corpus da pesquisa e que também seja o
gênero que traz um importante repertório para a discussão do som
cinematográfico.
“O que todos estes filmes tem em comum é que eles fazem uso dos
efeitos especiais de sua época para criar um sentimento de desconhecimento e
espetáculo” (KING; KRZYWINSKA, 2000, p.4). É precisamente esta questão da
Ficção Científica que ajuda a compreender os impactos do gênero no som
cinematográfico e que, portanto, é importante para o presente trabalho.
Os sons, naturalmente, eram importantes para construir a imagem do
monstro e aterrorizar as audiências. Em livro de autoria de Mark Hankin sobre
Ray Harryhausen, famoso animador que utilizava a técnica conhecida como
Stop Motion para fazer os monstros do cinema nos anos 1950, encontra-se
um trecho do roteiro de O Monstro do Mar Revolto (It came beneath the sea,
1955). Neste pequeno pedaço do roteiro, é possível ler a descrição da
sonoridade solicitada aos sound designers do projeto. Consta na página
quarenta e quatro do roteiro original:

EXT. NAVIO A VAPOR

93
PLANO MÉDIO – LATERAL DO NAVIO

O convém está inclinado. Os marinheiros olham com horror e seguidamente fogem


quando um tentáculo aparece, arrastando-se para cima do navio. Um som suave e
curiosamente suculento é feito pelos tentáculos do polvo quando este usa suas
ventosas para se agarrar a qualquer superfície, como faz nesta cena. O ruído deve ser
suficientemente distante e distinto para identificar a aproximação do polvo em cenas
posteriores, quando não conseguiremos vê-lo (HANKIN, 2008, p.121).

Na mesma obra sobre Ray Harryhausen, constam os documentos que


foram enviados para a Academy of Motion Pictures Arts and Science,
responsável por premiar destaques da indústria na cerimônia do Oscar. Estes
documentos propunham justificar a relevância dos trabalhos de Harryhausen e
sua equipe. O trecho abaixo é da justificativa de The Animal World,
documentário sobre o mundo animal produzido em 1956.

Como nunca ninguém ouviu um dinossauro, foi


necessário criar sons que pareceriam razoáveis e críveis, como
os rugidos e grunhidos do Triceratops, os silvos e gritos do
Tiranossauro, etc. Isto foi conquistado pré-mixando o som de
vários animais e variando a velocidade de gravação de outros
sons para obter os efeitos estranhos e incomuns que você
ouvirá nas cenas pré-históricas. Posteriormente, o próximo
problema foi editar e sincronizar estes sons corretamente com
a ação das bocas dos animais, assim trazendo-os à vida
(HANKIN, 2008, p. 338).

Nos anos 1960 e 1970, o som dos filmes de ficção científica muito
comumente enfatizava elementos “eletrônicos, mecânicos e etéreos”
(WHITTINGTON, 2007, p.100). Veremos, no decorrer do trabalho, como estes
elementos foram trabalhados ou tensionados pelos sound designers.
A partir dos anos 1970, novas tecnologias de reprodução de som foram
apresentadas, como o som estereofônico. O Dolby Stereo utilizava a mesma
tecnologia de impressão da trilha sonora diretamente nos rolos de filmes, mas
graças a uma tecnologia de redução de ruídos e codificação, conseguia inserir
quatro faixas de som onde antes só constava uma. Além disso, o novo sistema
era compatível com os projetores monofônicos, não causando prejuízos para
os exibidores que não atualizassem o sistema. Apesar da mixagem e da

94
captação de áudio se tornarem procedimentos mais complexos, e
consequentemente mais caros, com a chegada do Dolby Stereo, filmes da
época forçaram esta mudança, como mostra Mark Kerins autor de Beyond
Dolby (Stereo):

A gravação e mixagem para o novo sistema de quatro canais


era mais caro do que produzir filmes monofônicos e
provavelmente não teria se sustentado – afinal de contas,
possui maiores custos - se não fosse pelo bando de filmes
sonoramente intensivos que rapidamente seguiram a
introdução do Dolby Stereo. De fato, é difícil falar do Dolby
Stereo sem pelo menos mencionar Star Wars de 1977. A cena
de abertura, na qual uma espaçonave gigantesca viaja
audivelmente dos fundos da sala de cinema para a frente,
apresentou as capacidades poderosas do novo formato de
áudio e catapultou o Dolby Stereo para dentro da consciência
do público. O incrível sucesso de filmes com Dolby Stereo
como Star Wars mostrou aos exibidores que as audiências
percebem um som de qualidade e estes correram para instalar
sistemas Dolby em suas salas. Em menos de três anos a partir
da estreia de Star Wars, o formato Dolby Stereo já havia sido
utilizado em 85 filmes e o equipamento de decodificação já
havia sido instalado em mais de 1.200 cinemas (KERINS,
2011, p.32).

Sobretudo graças a estreia de Star Wars, portanto, mais salas de


cinema passaram a melhorar o sistema de som, percebendo que este também
era um aspecto importante na experiência cinematográfica, o qual diferenciava
salas de cinema e ajudava na conquista de espectadores.

Todas as inovações, difundidas e consolidadas principalmente


por filmes de ação e aventura, têm em comum o fato de
procurar obter uma resposta ideal na cópia final de um filme e
garantir que a mesma resposta será obtida na sala de cinema,
quando de sua exibição (MANZANO, 2010, p.161).

As melhoras nos sistemas de som das salas de cinema prosseguiram.


Outros marcos importantes são o THX (padrão de qualidade dos
equipamentos), este criado por Tomlinson Holman especialmente para a
Lucasfilm e as exibições de Star Wars: Episódio VI (1983) e o uso de áudio
completamente digital pela primeira vez em Batman Returns, de 1991. Sendo
assim, os pesquisadores Helen Macallan e Andrew Plain, autores do artigo

95
Filmic Voices, afirmam que as inovações no âmbito sonoro comumente estão
presentes no gênero ficção científica/fantasia (MACALLAN; PLAIN, 2010,
p.256).
Não a toa, a partir destas melhorias nos sistemas de som, as salas de
cinema contemporâneas “foram criadas para hospedar sons de grande volume
e dramáticos. O cinema é amortecido com carpete, poltronas macias e é
desenvolvido para manter o som dentro de seus limites” (KELLY, 2011, p.18).
De acordo com a Lucasfilm, empresa de George Lucas, os cinemas
com sistema THX costumam ter lucro até 25% maior do que as salas que não
possuem o sistema (WHITTINGTON, 2007, p.29).

(...) o som “incorpora” a imagem – ver é sempre algo direcional,


porque apenas olhamos para uma direção, enquanto que ouvir
é sempre uma percepção tridimensional, espacial. O som cria
um espaço acústico, porque ouvimos em todas as direções.
Isto é verdade não apenas para o espaço do cinema, onde
tecnologias de som como os sistemas Dolby, THX e Surround
deram aos blockbusters o tipo de presença espacial que as
imagens não conseguem criar, mas se aplica ao espaço
diegético do filme, onde som – especialmente se pensarmos
em personagens se surpreendendo ou aterrorizando por algo
que ouviram, espiando outros ou reagindo aos ruídos em uma
variedade de formas – contribui significativamente para a
criação da topografia do imaginário cinematográfico
(ELSAESSER; HAGENER, 2010, p.129-130).

A partir do momento em que as salas de cinema investem em um


melhor sistema de som e podem observar um retorno financeiro deste
investimento, o papel daqueles que produzem o som para um filme adquire
ainda mais importância na indústria. Entre eles, o papel do profissional que
recebe a alcunha de sound designer, uma denominação relativamente nova
que foi necessária para abarcar a complexidade dos profissionais que
passariam a tomar conta da criação do som em grandes produções do cinema,
como mencionado no primeiro capítulo.
Certamente, nem todas as salas de cinema possuíam ou possuem um
sistema de áudio extraordinário, assim como, atualmente, temos que levar em
consideração o frequente consumo de filmes e programas de televisão em

96
suportes distantes do ideal. Smartphones, televisores LCD e laptops são
suportes que dificilmente trazem a experiência ideal do som cinematográfico.
No entanto, seria preciosismo dizer que um bom trabalho não fica evidente e
não pode ser apreciado mesmo nestas condições. É o mesmo que dizer que
um belo enquadramento ou fotografia não podem ser percebidos em uma tela
de 4, 5 polegadas.
Desta forma, o trabalho do sound designer, assim como de demais
profissionais do cinema, se mantém importante independentemente do suporte.

2.6. A voz do monstro no cinema: levantamento até 1987

Para compreender o panorama do som do monstro no cinema, como


contexto de influência para os processos estudados no corpus, fizemos um
levantamento de alguns dos mais influentes monstros do cinema até 1987.
Consideramos apenas os monstros que tiveram um trabalho de sound design
envolvido na composição da personagem. As criaturas citadas são de filmes
até a data estipulada, pois é o ano de lançamento do filme Predador, o mais
recente do corpus. 19
Muitos sons de monstro interessantes surgiram após esta data, tanto no
cinema quanto na televisão e nos games. No entanto, este limite foi necessário
tanto pelo objetivo da pesquisa quanto para respeitar o recorte da presente
pesquisa, sem estende-la demasiadamente.


19
Para ouvir o som dos monstros, acesse o site: https://monstersound562864699.wordpress.com/ . É
possível também utilizar o QR code abaixo:

97
As legendas das fotos nas próximas páginas trazem uma descrição
bastante simplificada da voz dos monstros ou principal ruído emitido. As fotos
são fotogramas, completos ou recortados, dos respectivos filmes.

Figura 24. O monstro do mar (The beast of 20.000 fathoms, 1953) –


o Rhedosaurus emite um rugido como o de um mamífero grande e
um grunhido como o de um cachorro de grande porte.

98
Figura 25. O mundo em perigo (Them!, 1954) – As formigas
gigantes emitem um pulso agudo, semelhante a um alarme ou
sirene, com rápido batimento.

Figura 26. O monstro da Lagoa Negra (Creature of the Black


Lagoon, 1954) - Gill-man, o monstro, emite um som grave
semelhante a um rugido de um grande mamífero.

99
Figura 27. The trollenberg terror (1958) - O Crawling Eye (olho
rastejante) emite um pulso grave, que remete a uma respiração
distorcida com uma oscilação grave, sintetizada.

Figura 28. Simbad e a Princesa (The 7th voyage of sinbad, 1958) -


O ciclope emite um som como o barrir de um elefante, bem grave e
abafado.

100
Figura 29. O terror veio do espaço (The Days of the Triffids, 1962) –
Triffids emitem um som percussivo com leve mudança de pitch, em
estalos que parecem feitos com a boca, em loop.

Figura 30. A noite dos coelhos (Night of the Lepus, 1973) - os


coelhos gigantes, além dos guinchos em maior intensidade, por
vezes semelhantes a relinchos de cavalos, possuem também um
poderoso rugido grave como de grande mamífero.

101
Figura 31. Eraserhead (1977) - o bebê deformado emite sons de
bebê manipulados e distorcidos. Tem uma constante dificuldade de
respirar, com pequenos engasgos e ruídos da tentativa de emissão
de fala, sufocantes.

Figura 32. Piranha (1978) - As piranhas emitem um som que parece


um bater de asas molhado misturado com arrulhos de pombo.

102
Figura 33. Alien (1979) - O Xenomorph emite um guincho de grande
intensidade.

Figura 34. O dragão e o feiticeiro (Dragonslayer, 1981) - O dragão


tem um rugido grave. Quando ferido, emite um som que fica entre
um guincho e um relincho.

103
Figura 35. Q: the winged serpent (1982) - Quetzacoatl emite um som
que parece um guizo de cobra, com uma base de um rugido de
grande mamífero. A ênfase na mixagem é para o som de suas
mordidas.

Figura 36. O monstro do pântano (Swamp thing, 1982) - O monstro


emite rugidos graves.

104
Figura 37. Arrepio do medo (Creepshow, 1982) - O som do monstro
conhecido como The Crate é como um rugido de um grande
mamífero, bem grave.

Figura 38. Basket Case (1982) - O monstro emite um grito humano


com distorções

105
Figura 39. O enigma de outro mundo (The thing, 1982) - A coisa
emite um som como o de borracha sendo tensionada. Quando
assume os rostos de seus hospedeiros, esses emitem rugidos como
de grandes mamíferos.

Figura 40. Gremlins (1984) – As vozes dos gremlins foram feitas por
atores diversos, inclusive Peter Cullen (Predador). Às vezes soa

106
como pequenos engasgos, ou como uma risadinha com pitch shift
para ficar mais aguda. É bastante variado e cômico.

Figura 41. Os caça fantasmas (Ghostbusters, 1984) – o Dog Demon


(cachorro demônio) emite sons como rugidos de um grandes
mamíferos, em várias camadas.

Após realizar este levantamento, ouvindo alguns dos mais famosos sons
de monstros até 1987, fica claro o quanto os três monstros do corpus trazem
novos timbres e possibilidades para o repertório do som do monstro no cinema.
Veremos nos próximos capítulos como foi o processo de criação destes sons.

107
Capítulo 3. Processos de criação: Chewbacca e os sons da
natureza

3.1. Star Wars e o som de cinema




A década de 1960 foi uma época de quebra de paradigmas culturais nos
Estados Unidos, com o festival de música Woodstock, a Guerra do Vietnã e
nomes como John F. Kennedy e Martin Luther King. O cinema também surgia
com novos processos. Diretores jovens eram responsáveis por experiências
cinematográficas diferentes das tradicionalmente produzidas em Hollywood.
Neste movimento histórico do cinema americano denominado Nova Hollywood,
sob influência de obras cinematográficas de outros lugares, como França e
Japão, as relações entre imagem e som pareciam “desafiar os modos de
representação ‘realísticos’ ou o ‘naturalismo’, com uma estética que tendia para
o artifício, a experimentação formal e a autorreflexão” (WHITTINGTON, 2007,
p.57). É neste contexto que surge Star Wars (Guerra nas Estrelas), um marco
do cinema de fantasia/ficção científica. Trata-se de uma das mais famosas
obras de George Lucas, um dos principais nomes do movimento acima
mencionado.
A franquia, que estreia nos cinemas em 1977, conquistou muitos fãs e se
desdobrou em narrativas que permearam várias mídias. Além dos filmes que a
compõem (e da perspectiva de futuros lançamentos), a saga já esteve presente
na televisão, em desenhos animados e animações 3D, quadrinhos, livros,
experiências imersivas e videogames.
Mesmo excluindo todos os desdobramentos transmidiáticos, se
considerássemos apenas filmes lançados até a presente pesquisa, seria difícil
resumir a história de toda a saga. Afinal, muito acontece em:

• Star Wars Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999)


• Star Wars Episódio II: Ataque dos Clones (2002)

108
• Star Wars Episódio III: A Vingança dos Sith (2005)
• Star Wars ou Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977)
• Star Wars Episódio V: O Império Contra Ataca (1980)
• Star Wars Episódio VI: O Retorno de Jedi (1983)
• Star Wars Episódio VII: O Despertar da Força (2015)
• Rogue One: Uma História Star Wars (2016)
• Star Wars Episódio VIII: O Último Jedi (2017)
• Han Solo: uma história Star Wars (2018)

Chewbacca, inclusive, participa de quase todos os filmes. Para atender


ao nosso recorte e compreender o processo de criação de sua voz, focaremos
na primeira aparição do monstro, no filme Star Wars Episode IV: a new hope
(Episódio IV: uma nova esperança).
Em A new hope, a Princesa Leia, líder da Aliança Rebelde, é mantida
como refém do Império Galático, liderado por Darth Vader. Han Solo e
Chewbacca, dois caçadores de recompensas, ao lado de Luke Skywalker, um
jovem Jedi20, vão ao seu resgate. Juntos, pretendem derrubar o império de
Vader e restaurar a liberdade e a justiça na galáxia.
Esta proposta de George Lucas revelou-se como o maior sucesso de
rentabilidade do cinema até então, batendo Gone With the Wind (E o Vento
levou, 1939) e The Sound of Music (A Noviça Rebelde, 1965), sendo superado
apenas em 1982 por ET: The Extra-terrestrial (ET, o Extraterreste).
Desta forma, George Lucas conseguiu o que queria com Star Wars: criar
um universo futurista diferente de qualquer outro apresentado anteriormente no
cinema, feito com os melhores recursos da época, capazes de impressionar a
audiência indefinidamente, permeando inclusive o imaginário de gerações
futuras.
Em Star Wars, George Lucas criou um universo ficcional que engloba
diferentes planetas, tecnologias, magias e criaturas fantásticas. Claro que, para


20
Os Cavaleiros Jedi são personagens sensíveis a Força, uma forma de energia mágica. Esta confere aos
Jedi poderes. Usam o sabre de luz para combate.

109
estimular a imersão neste universo narrativo tão diferenciado, a imagem destes
componentes é fundamental. Mas, além disso, a identidade e as
particularidades desse universo também estão em como ele soa.
Uma famosa frase de George Lucas é “O som é 50% do filme”. Em artigo
publicado pelo UOL, Lucas complementa: “O som é 50% do filme, mas não os
diálogos. Os diálogos são só uma parte da trilha sonora”21. Esta declaração
transparece a preocupação de Lucas com o som do filme como um todo, em
suas três dimensões: diálogos, ruídos e música. Walter Murch, que trabalhou
com George Lucas em sua primeira obra THX1138 (1971), argumenta que
“apenas um punhado de diretores... realmente compreendem o uso do som
como um modulador na ação dramática” (WHITTINGTON, 2007, p.58). Lucas
seria um destes.
A importância do som no universo de Star Wars vai além da produção
dos filmes. Trata-se de uma saga pioneira em muitos aspectos, estimulando
mudanças importantes no aparato cinematográfico no que se refere ao som. O
amplo uso da tecnologia Dolby Stereo em salas de cinema, com dois canais de
áudio, é creditado à equipe de Star Wars, que produziu cópias do primeiro filme
com o áudio impresso dessa forma, sendo incompatível com sistemas antigos.
Assim, se o exibidor quisesse disponibilizar sessões de Star Wars para os seus
frequentadores, precisaria atualizar o sistema de som. Além disso, para o
terceiro filme, em 1983, George Lucas fundou a THX (Tomlinson Holman
Experience), um selo de qualidade de áudio dado a salas específicas de
cinema. Trata-se de um sistema de áudio projetado pelo engenheiro Tomlinson
Holman, funcionário da Lucasfilm (produtora fundada por Lucas em 1971), para
que as salas de cinema tivessem uma estrutura de reprodução sonora
compatível com a experiência de assistir aos filmes Star Wars22.
Além da tecnologia, a parte criativa do desenvolvimento dos sons da
saga é um diferencial. Recortaremos no primeiro filme, de 1977, mas é
importante mencionar que se trata de uma característica que acompanha todos

21 Disponível em < http://cinema.uol.com.br/noticias/efe/2015/04/17/george-lucas-diz-que-sempre-
quis-ver-star-wars-sem-saber-o-final.htm >. Acesso em 03/01/2017.
22
The THX Story. Disponível em http://www.thx.com/about-us/the-thx-story/. Acesso em 14/04/2014.

110
os produtos futuros que retratam este universo. “Muitos destes sons se
tornaram alguns dos efeitos mais reconhecidos na cultura popular”
(WHITTINGTON, 2007, p.24). A parceria entre George Lucas e Ben Burtt é um
exemplo interessante de processos de criação coletivos no cinema, como
apontam Josh Beggs e Dylan Thede, dois pesquisadores de som para novas
mídias.

“(...) filmes dirigidos por George Lucas e Steven


Spielberg não teriam tanto impacto sem as impressionantes
trilhas feitas por compositores como John Williams e designers
de som como Ben Burtt (...) e Walter Murch” (BEGGS; THEDE,
2001, p. XI).

Vários eventos poderiam ilustrar o argumento acima. Em relação ao


Chewbacca, ao menos dois exemplos recentes dão uma ideia da magnitude do
fenômeno e de como o imaginário do filme está impregnado na cultural atual.
Um deles foi o vídeo popularmente conhecido como Chewbacca Mask Lady (A
moça com a máscara do Chewbacca), postado no Facebook em Maio de 2016
pela norte-americana Candace Payne. No vídeo, ela mostra aos colegas da
rede social a máscara do Chewbacca que adquiriu, a qual reproduz sons da
personagem ao abrir a boca. O vídeo de Candace, que se diverte às
gargalhadas enquanto os sons do Chewbacca saem da máscara, foi o mais
visto da história do Facebook até então, com 140 milhões de visualizações e 3
milhões de compartilhamentos. Como consequência, os estoques da máscara
em todas as lojas online dos Estados Unidos esgotaram.
Outro exemplo, do final de 2016, foi a imitação do Chewbacca feita pelo
jornalista Jorge Pontual, ao vivo no canal Globo News, ao comentar a morte da
atriz Carrie Fisher, a Princesa Leia na saga Star Wars. Jorge Pontual, para
fazer um comentário engraçado, “parafraseou” o Chewbacca em sua suposta
declaração pela morte da atriz. Para faze-lo, ele imitou o som da personagem.
Este acontecimento viralizou nas redes sociais e Jorge Pontual inclusive teve
que pedir desculpas pela imitação, considerada desrespeitosa por ter sido
exposta fora de contexto.

111
Desta forma, Chewbacca é o emissor de um dos sons mais
reverberantes culturalmente dentre os produzidos para a franquia, bem como o
do sabre-de-luz e da respiração de Darth Vader.
A seguir, iremos desenvolver uma leitura à respeito do percurso da sua
criação, sobretudo a partir da obra de Jonathan W. Rinzler, autor e editor das
produções bibliográficas da própria Lucasfilm.

3.2. Quem é o Wookie?

Chewbacca é uma personagem da raça Wookie, criação pertencente ao


universo de Star Wars. Companheiro de Han Solo, um mercenário, é também
co-piloto da nave Millenium Falcon, na qual eventualmente faz reparos de
ordem mecânica.

Figura 42. Foto promocional Chewbacca e Han Solo, personagens de Star


Wars. Fonte: arquivo Lucasfilm.

Stuart Freeborn, criador da fantasia do Chewbacca, diz que gostou de


trabalhar com esta personagem, porque ele era diferente de todos os outros
monstros com os quais havia trabalhado no decorrer de sua carreira.

112
“Chewbacca era fascinante porque ele tinha que parecer
bonzinho, apesar de ser muito feroz quando quisesse. Era
divertido fazer um monstro que parecesse amigável e bonzinho
para variar, ao invés de ser ameaçador” (RINZLER, 2013).

Quanto a pré-produção do filme e a criação da personagem, Freeborn


acrescenta: “estávamos tentando fazer uma combinação de macaco, cachorro e
gato. Queria muito que fosse parecido com um gato, mas estávamos tentando
adaptar para esta combinação” (RINZLER, 2013).
Ao analisar as ilustrações de Ralph McQuarrie, artista plástico
responsável por desenhar os primeiros conceitos para o filme a partir das ideias
de George Lucas, percebe-se uma semelhança de Chewbacca com criaturas
mitológicas ameaçadoras que habitam o imaginário popular de determinadas
regiões há mais tempo, como o Pé Grande (ou Sasquatch- no Canadá e EUA) e
o Iéti (Himalaia).


Figura 43. os esboços das vestimentas de Han Solo e Chewbacca em 1975,
feitos pelo artista Ralph McQuarrie. Fonte:
https://kitbashed.com/blog/chewbacca

113
A semelhança é tanta que livros sobre o Pé Grande (um gênero
surpreendentemente volumoso em lançamentos, sobretudo nos EUA)
frequentemente mencionam o Chewbacca. Estes costumam dedicar pequenos
textos à personagem na construção de hipóteses da relação entre os dois.
No item “Sasquatch, um cachorro ou um cara em um terno?” do livro
Sasquatch seeker’s field manual de David George Gordon, o autor diz que
Chewbacca provavelmente não foi inspirado no Pé Grande, por se tratar de um
personagem inspirado em Indiana, um cachorro. “Os pesquisadores de Star
Wars chamam a atenção para a similaridade suspeita do nome Chewbacca e a
palavra russa собака (sobaka), que quer dizer ‘pequeno cachorro’” (GORDON,
2015). De fato, George Lucas via na relação de companheirismo de Chewbacca
e Han Solo uma semelhança de sua relação com seu malamute (ou Husky
Siberiano), Indiana. Indiana, aliás, foi uma inspiração tanto para Chewbacca
quanto para Indiana Jones. (DAVIS, 2014). Mas a semelhança com o tal Pé
Grande está em outros relatos, como no livro Bigfoot and I, de Darin
Richardson.

Quando vi o Chewbacca na tela (de cinema) entrei em


choque. Eis aqui o Pé Grande em um filme novamente, mas
dessa vez como um bom moço. De novo. E ele parecia
diferente. De novo. Depois de ver o filme, meus pais me deram
um boneco do Chewbacca. Apesar da bandoleira que ele
vestia, para mim ele se parecia como algo que eu percebia ser
o Pé Grande na época. Ao invés de brincar de Star Wars com o
meu Chewbacca, eu brincava do que chamava de “busca pelo
Pé Grande” (RICHARDSON, 2008, p.10)

Sendo o Pé Grande uma criatura fantástica presente no imaginário norte-


americano (bem como vários “primos” do Pé Grande em outras culturas,
majoritariamente em regiões frias), um filme que traz uma releitura dessa
criatura, apesar dos registros do processo de criação não deixarem esta
intenção clara, já traria uma ideia pré-concebida ligada a estas características:
um ser razoavelmente antropomórfico, bípede, coberto de pelos (como que em

114
um índice de primitividade), alto e grande. No imaginário popular, uma figura
amedrontadora, misteriosa.
Apesar destas características imageticamente ligadas a este tipo de
figura no contexto cultural norte-americano, Chewbacca é uma personagem
que, além do grande carisma, desperta comumente o riso em suas aparições,
considerada popularmente uma figura em si cômica, adorável. Esta comicidade
pode estar vinculada à quebra de expectativas da figura, que ao invés de ser
assustadora, na maioria das cenas trava diálogos ininteligíveis, mas de
aparente articulação razoável, sabe pilotar naves e tem demonstrações
afetivas, como quando corre para abraçar Han Solo ao reencontrá-lo no
Episódio VI, depois deste último passar um período congelado.
Ivo Cláudio Bender, doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, analisa o teatro cômico em sua obra Comédia e riso. Bender,
baseado em Aristóteles, cita ações que geram riso segundo os estudos do
filósofo grego. Entre elas o engano, a assimilação para pior ou vice-versa, o
impossível, o inconsequente e as coisas ou eventos contrários às expectativas
do espectador (BENDER, 2006, p.32).
Sobre os eventos contrários às expectativas, vejamos o que diz Vladimir
Propp, acadêmico russo cuja trajetória foi dedicada ao estudo da narrativa. Para
Propp, a paródia consiste na imitação das características exteriores de um
fenômeno qualquer da vida de modo a ocultar ou negar o sentido interior
daquilo que é submetido à parodização e serve para desvendar a inconsistência
interior do que é parodiado (PROPP, 1992, p. 84). Pensando na comicidade da
quebra de expectativas e na definição de paródia, podemos ver o Chewbacca
como uma paródia da referência imagética de monstro na cultura norte-
americana. A paródia nem sempre é cômica. Entretanto, se esse for o objetivo,
o efeito de comicidade depende de um conhecimento prévio por parte do
espectador, pois as piadas estarão ligadas às convenções do meio ou gênero
parodiado.
A personagem arquetípica, facilmente identificável, passa a representar
um desvio das expectativas relacionadas ao monstro. É, na verdade, uma

115
criatura complexa, cujas qualidades de Pé Grande e cachorro, entre outras
referências, estão misturadas e indissociáveis.
Desta forma, os pormenores dos processos de criação em ambientes de
complexidade cultural, como é o caso do (bom) cinema de fantasia, ocultam
relações que vão além das misturas mais imediatamente distinguíveis (Pé
Grande e cachorro). Como exemplo de complexidade, uma mistura também
está em outro fator importante para a construção da identidade de Chewbacca:
como mencionado anteriormente, a sua voz.
Chewbacca se comunica verbalmente, mas não fala um idioma que
possa ser compreendido pelos espectadores. Personagens próximas, no
entanto, compreendem o idioma Wookie. Isto fica claro no diálogo entre
Chewbacca e Han Solo no Episódio VI: o Retorno de Jedi, logo após Han Solo
ser acordado de uma hibernação por congelamento e abraçado pelo monstro,
no mesmo momento há pouco mencionado no texto.

Han Solo: Ch-Chewie! Eu não consigo ver! O que está acontecendo?

[voz do Chewbacca]

Han Solo: Luke? O Luke é maluco! Ele não consegue nem tomar conta dele
mesmo, muito menos resgatar alguém!

[voz do Chewbacca]

Han Solo: Um cavaleiro Jedi? Nossa! (...)

Por mais que não possamos compreender exatamente o que diz em


seus grunhidos e rugidos, é possível entender, no entanto, o tom do que é dito
por Chewbacca.

116
Figura 44. Em um desdobramento transmidiático, nos quadrinhos do
Chewbacca, um exemplo de como os desenhistas expressam o idioma Wookie
na forma escrita. Edição Chewbacca #5 (2015), por Gerry Duggan e Phil Noto.
Fonte: moviepilot.com

Este efeito é conquistado graças ao trabalho de Ben Burtt e George


Lucas, que juntos definiram a identidade sonora do monstro.

3.3. – Burtt e Lucas em redes de criação

George Lucas é reconhecidamente um diretor de grande preciosismo.


Desta forma, em A New Hope, enquanto diretor, Lucas fez questão de
acompanhar cada etapa do processo de criação dos filmes, interferindo no
trabalho de todos os profissionais envolvidos. O supervisor da edição de som,
Sam Shaw, revela em entrevista que

George é muito exigente porque ele quer que tudo seja


especial (...). Ele não queria ouvir ou ver nada do que já foi feito
antes. Ele queria que tudo fosse novo, em todos os sentidos.
Ele queria que fosse algo que ninguém conseguisse facilmente
replicar” (RINZLER, 2010, p.36).

Na busca por algo nunca antes feito, tanto em termos de imagem quanto
de som, George Lucas sabia que precisaria contar com profissionais que não
estivessem engessados na forma Hollywoodiana de fazer cinema (RINZLER,
2010, p.39). Ele foi atrás de jovens profissionais com potencial para novas
ideias.

117
Tendo trabalhado com o designer de som Walter Murch em seus dois
filmes anteriores, THX 1138 (1971) e American Grafitti (1973), George Lucas
pretendia que a parceria se mantivesse. Murch, no entanto, estava indisponível
na época, trabalhando em outros projetos. Lucas teve que procurar outro sound
designer para criar a identidade sonora de sua obra.
Nos registros de Rinzler, consta que Lucas telefonou para a Escola de
Cinema da Universidade de São Francisco e perguntou se eles tinham “outro
Walter Murch”. O professor Ken Miura teria respondido: “não temos outro Walter
Murch, mas temos um Ben Burtt” (RINZLER, 2010, p.24). E assim Burtt teve
como primeira experiência profissional uma obra da complexidade sonora de
Star Wars.
Ben Burtt é neto de Harold Ernest Burtt, professor doutor especialista em
pássaros e autor do livro The Psychology of birds (1967). Ben Burtt costumava
acompanhar o avô e o pai em caminhadas pela natureza. Por vezes eles eram
acompanhados por Arthur Allen e Peter Paul Kellog, ambos da Cornell
University, pioneiros na gravação de sons de pássaros como material para
estudos acadêmicos23.


23
Studying a Vanishing Bird. Disponível em <
http://www.birds.cornell.edu/ivory/aboutibwo/studying_vanishing_html > Acesso em 25/11/2014.

118
Figura 45. Gravador portátil de som produzido em 1951 e utilizado pelos
professores Paul Kellog e Arthur Allen na captura de sons de pássaros. Fonte:
http://museumofmagneticsoundrecording.org/ManufacturersAmpCorp.html

Após a aposentadoria, Harold Burtt dedicou seu tempo a um estúdio de


rádio que possuía em casa, permitindo um primeiro contato do jovem Ben com
diversos equipamentos que reproduziam sons e possibilitavam efeitos. Era
evidente o interesse pelo som desde a infância, atestado pelo próprio Ben
Burtt:

Existia (no estúdio) todo tipo de fascinantes efeitos


sonoros, telemetria, bips de código Morse ao apertar os botões
pelas diferentes bandas (de rádio) neste conjunto de aparelhos
antigos. Estes sons fizeram minha imaginação voar. (RINZLER,
2010, p. 11)

Quando cursava a primeira série, Ben Burtt ficou doente e precisou


passar algumas semanas em casa. Para entretê-lo, seu pai o presenteou com
um gravador Pentron. Desta forma, Burtt pôde gravar ele mesmo fazendo sons
e contando histórias e também seus programas e filmes favoritos pela
televisão, os quais ele ouviria diversas vezes. Posteriormente, até mesmo
quando ia ao drive-in assistir um filme com outras crianças, Burtt fazia
gravações (RINZLER, 2010, p.11-12).
Os produtos audiovisuais favoritos de Burtt, os quais eram gravados e
reproduzidos, contribuíram para o seu repertório enquanto o profissional de
som que viria a ser. Treg Brown, sonoplasta da Warner Bros em desenhos
como Pernalonga e Patolino, filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, com
suas explosões e armas, tudo isso, que Burtt chama de “som do tipo histórias
em quadrinhos” (RINZLER, 2010, p.12), influenciou seus trabalhos futuros,
incluindo o realizado em Star Wars.
O desafio sonoro em Star Wars era bastante particular. George Lucas
pretendia mostrar um universo futurista diferente daquele visto em obras sci-fi
anteriores. Na contramão das vestes prateadas, dos cenários monocromáticos
e da tecnologia infalível apresentada em 2001: A Space Odissey (2001: Uma

119
Odisseia no Espaço, 1968) e Forbidden Planet (O Planeta Proibido, 1956),
entre outros, Lucas imaginava “um futuro mais antropologicamente correto, no
qual muitas coisas seriam como as da Terra (...), na qual você pudesse ter um
carro futurista legal, mas que ainda tivesse problemas mecânicos, rodas
dentadas e marcas de óleo” (RINZLER, 2010, p.23).

Figura 46. Fotogramas de 2011: Uma Odisseia no Espaço (superior), de Stanley


Kubrick, e de Star Wars (inferior), mostrando o interior das espaçonaves presentes
nos filmes.

Além das naves frequentemente sofrendo de problemas como


superaquecimento e falhas gerais, outros detalhes do projeto poético 24 de
George Lucas transparecem a intenção de um futuro mais orgânico, como a
vontade de que sons da natureza compusessem os ruídos do filme. Podemos

24
Cecília Almeida Salles, em sua obra Gesto Inacabado, explica que “O projeto poético está também
ligado a princípios éticos de seu criador: seu plano de valores e sua forma de representar o mundo.
(SALLES, 2011, p.38)

120
compreender esta vontade como uma característica da obra de George Lucas.
Murch afirma que, mesmo em THX 1138, um filme que dialoga muito mais com
a estética futurista presente em 2001 e outros títulos, Lucas queria evitar sons
eletrônicos. Nas palavras de Murch:

Nós (Lucas e Murch) planejamos manter os sons


eletrônicos em um mínimo no filme. Tentamos utilizar sons
naturalistas sempre que possível, mesmo quando algo parecia
chamar por eletrônicos – principalmente para manter o conceito
de “futuro usado” de George (LOBRUTTO, 1994, p.85).

Este desejo, também foi apresentado como uma imposição a Ben Burtt.
Tais imposições no processo são importantes no resultado final, pois passam a
ser uma tendência complexa e um limite criativo que dá possibilidade à criação.
“É somente pelos limites que se chega ao ilimitado, o ilimitado é que exige
limites” (SALLES, 2011, p.72). Salles complementa sobre os processos de
criação e as limitações que

(...) liberdade absoluta é desvinculada de uma intenção e,


por consequência, não leva à ação. A existência de um
propósito, mesmo que de caráter geral e vago, é o primeiro
orientador desta liberdade ilimitada” (SALLES, 2011, p.69).

Portanto, seguindo o projeto poético de maior organicidade, Burtt foi


direcionado a buscar sons na natureza para os alienígenas, as naves e os
robôs, evitando ao máximo os sintetizadores (RINZLER, 2010, p.31).
Posteriormente, Burtt parece ter absorvido a linha de pensamento de Lucas,
quando em entrevista ao site oficial de Star Wars:

Eu prefiro gravar sons naturais como a base do áudio do


universo de Star Wars. Sons reais e “orgânicos” trazem
credibilidade com eles. Eu tento criar algo que soe “familiar”
porém irreconhecível. Isso traz às personagens, aos veículos e
aos objetos a ilusão de realidade (Ask the Lucasfilm Jedi
Council, 2000).

121
O primeiro desafio de Ben Burtt foi criar o som de Chewbacca. Ao
direcionar Burtt quanto a fonte dos sons do Wookie, Lucas acreditava que o
ruído ideal da personagem Chewbacca poderia estar em ursos, pela
semelhança, e em cachorros, pois a relação de companheirismo de
Chewbacca e Han Solo o lembrava de sua relação com seu malamute Indiana.

Figura 47. Ben Burtt e o cachorro de George Lucas, Indiana. Fonte:


http://rollingstone.uol.com.br/galeria/por-dentro-dos-bastidores-de-istar-warsi-atraves-
do-instagram

Após os primeiros direcionamentos, Lucas partiu com a equipe para as


gravações na Europa e na Tunísia. Ben Burtt ficou nos Estados Unidos apenas
reunindo sons. Foram meses organizando e compondo uma biblioteca sonora,
tendo em mãos apenas algumas imagens conceituais e esboços de ideias para
o filme.
Burtt passou meses coletando os sons para compor as vocalizações de
Chewbacca. Era importante também levar em consideração, por exemplo, a
falta de articulação da fantasia, o que impossibilitava movimentos mandibulares
mais complexos e só permitia que ele abrisse e fechasse a boca. Esta limitação
o fez buscar o som de animais que soariam coerentes com a personagem,

122
como os próprios ursos, que usam a região próxima a garganta para emitir
sons.
Durante as gravações sonoras, Burtt foi atrás de um urso chamado Pooh
que, ao ter sua refeição atrasada, emitiu diferentes tipos de rugidos. Outro
animal gravado foi uma morsa chamada Petúlia, incomodada durante a troca
de água da piscina onde vivia (RINZLER, 2010, p.25).
Burtt acreditava que assim que Walter Murch ficasse disponível, ele
entraria para o projeto como principal designer de som e faria uso destes
ruídos capturados. Posteriormente, ao saber que Murch não trabalharia no
filme, Burtt começou a compor os sons assim que teve acesso às primeiras
imagens, no retorno de George Lucas e da equipe aos Estados Unidos para a
pós-produção (RINZLER, 2010, p.26).
O som de Chewbacca, apesar de ser o suposto teste de Ben Burtt, foi
um dos últimos a ficarem prontos, sobretudo pelo perfeccionismo de George
Lucas. Em um jogo de colaboração e competição, Lucas solicitava a Burtt
muitas alterações e correções. Esse tipo de jogo relaciona-se ao que Cecília
Salles, em Gesto Inacabado, nomeia como caminho tensivo: “Polos opostos de
naturezas diversas agem dialeticamente um sobre o outro, mantendo o
processo em ação” (SALLES, 2011, p.67). Segundo Burtt:

“George dizia: ‘Sim, não, odeio isso ou até que tá bom,


mas trabalhe mais nisso’. Ele me pressionava muito e muitas
vezes eu achava que tinha parado de tentar cedo demais. Eu
estava satisfeito e Lucas não. E ele dizia: ‘Não, não, não’. Eu
trabalhava muito tempo em cima de algo que considerava estar
perfeito mas ele dizia que não estava nada bom. E eu ficava
arrasado, chateado e ofendido. Ele apenas dizia: ‘isto não tem
o feeling certo’. Então eu voltava atrás e trabalhava no som
novamente. Eu me acostumei com isso. Obviamente me
incomodava no início, pois sentia que estava falhando. Mas eu
era inexperiente e nunca havia trabalhado com alguém assim
antes. Eu queria muito agradá-lo. (…) Ele não era grosseiro.
Ele apenas dizia: ‘não, isto não é o que eu quero’. Ele era
assim em todas as áreas, muito meticuloso. Nada passava sem
a aprovação dele. Se eu mudasse um pequeno detalhe em
uma mixagem ele notaria e me perguntaria sobre isso. (…) ele
era um filtro criativo” (RINZLER, 2010, p.32).

123
Esta relação de criação coletiva entre os dois e as constantes alterações
reforçam a ideia de que “O trabalho criador mostra-se como um complexo
percurso de transformações múltiplas por meio do qual algo passa a existir”
(SALLES, 2011, p.34).
A dimensão sonora da obra Star Wars era de tamanha complexidade
que, em 1976, faltando um ano para a estreia do filme, muitos sons ainda não
estavam prontos, ou devidamente aprovados. Cada nova edição do filme
demandava todo um retrabalho de sincronia na trilha de áudio. George Lucas
chamou Sam Shaw, um reconhecido editor de som Hollywoodiano, para ajudar
Burtt nesta parte mais operacional do trabalho, enquanto ele teria mais tempo
para focar exclusivamente na composição dos sons do filme.
Sam Shaw foi chamado para coordenar o ADR (Automated Dialogue
Replacement)25, a mixagem e o foley. No entanto, dado o seu prestígio em
Hollywood, pensou que ele e sua equipe ficariam responsáveis pelos efeitos
mais elaborados, como o som do R2D2 e do Chewbacca. Isto provocou um
conflito de autoridade entre Shaw e Burtt. George Lucas, no entanto, reiterou
que os sons das personagens, das naves e das armas ficariam a cargo de
Burtt.
Sam Shaw trabalhou muito com sua equipe para entregar as mixagens
do áudio do filme nos prazos. “Há mais som naquele filme somente (Episódio
IV) do que em dez filmes medianos juntos” (RINZLER, 2013). Entretanto, pela
diferença de projeto poético entre Lucas e Shaw, foi necessário refazer muitos
momentos. Burtt substituiu diversas explosões, por exemplo, por acreditar que
eram sons já muito utilizados no cinema previamente.

Apesar de Sam e seu pessoal (outros nove editores)


terem trabalhado duro, por muitas horas, o maior problema
deles era o aspecto criativo do trabalho. Eles nem sempre
escolhiam o melhor efeito para o melhor lugar no filme. (...) é
como escalar um ator diferente para o papel. Eu via todos os
efeitos sonoros dessa forma (RINZLER, 2010, p.38)


25
Processo no qual os atores vão posteriormente para estúdios para dublarem eles mesmos em cenas já
gravadas.

124
3.4. – A voz do Chewbacca

Um dos últimos sons acordados entre Burtt e Lucas, portanto, foi o de


Chewbacca. A escolha final, presente nos filmes, consiste, grosso modo, na
soma dos sons dos seguintes animais: urso, morsa, leão, foca, texugo e
cachorro.

Figura 48. A combinação de sons que resultaram em Chewbacca: uma soma de


vocalizações de ursos, morsas, texugos, leões, focas e cachorros. Fonte:
Google Imagens.

125
A combinação destes sons, bem como a manipulação destes através de
equipamentos de áudio, permitiram um resultado que difere de todos
singularmente, mas que deixa um rastro de suas características timbrais no
resultado final.
Todos estes animais possuem uma semelhança fundamental com o
Chewbacca: a limitação de movimentos mandibulares. Estas escolhas são
importantes, pois fica clara a intenção de Lucas e Burtt em criar um filme com
criaturas e situações críveis dentro do possível. “Mesmo que ele (Lucas)
estivesse criando um mundo imaginário, ele queria que este soasse real (...).
Desta forma, a trilha sonora também deveria refletir a ideia de que tudo é tão
real” (LOBRUTTO, 1994, p.143).
Para dialogar com o projeto poético de Lucas, Burtt buscou este realismo
nas fontes sonoras para suas criações, o que naturalmente inclui o Chewbacca.
Sobre esta preocupação, o sound designer afirma:

Eu me pergunto: ‘Se este objeto que produz esse som


existisse, como iria soar?’. (...) porque, fundamentalmente, você
está tentando convencer a audiência de uma certa verdade.
Você está tentando fazê-los acreditar, através do som, que este
objeto, este veículo, esta arma, este lugar são reais dentro do
universo do filme (LOBRUTTO, 1994, p.142).

Burtt comenta que “Basicamente, para a maioria das personagens, como


o R2D2 e o Wookie (Chewbacca), eu inventei vários pedacinhos de sons –
quase como listas. Havia dúzias de sons, e eles eram todos curtos”
(LOBRUTTO, 1994, p. 145).
A soma destes sons é uma espécie de quimera sonora, ou seja, uma
combinação de espécies diversas da natureza para compor um novo animal
que relaciona tais características.

126
Figura 49. O grifo, a quimera e o centauro – figuras mitológicas que reúnem
características físicas de vários animais ao mesmo tempo. Fonte: Google
Imagens.

Este estado de relação entre as fontes, além de uma soma, carrega


significado, como explica Salles:

Quando a perspectiva é o acompanhamento do


movimento criativo, o interesse vai além da determinação
dessas fontes (...). É aqui que nos deparamos com diferentes
modos de ação transformadora, que envolve um amplo e
diversificado trabalho de edição. (…) O resultado da
justaposição é qualitativamente distinto de cada elemento
olhado separadamente. O todo é algo diferente do que a soma
das partes porque a soma é um procedimento sem significado,
enquanto a relação todo ó parte carrega significado (SALLES,
2011, p.115).

Nesta integração de materiais heterogêneos, ao mesclarmos 1 e 2, por


exemplo, 1 não é mais 1 e 2 não é mais 2. Temos uma mistura indissociável
das vocalizações dos animais no som de Chewbacca, mais difíceis de separar
do que nas próprias quimeras. Esta forma de pensar as composições, que se
valem de diferentes fontes e estabelecem uma relação entre elas, está ligada a
noção de complexidade explorada por Edgar Morin: “o todo está na parte, que
está no todo” (MORIN, 2015, p.75).
Ao ouvir o Chewbacca, percebemos que esta combinação ajuda na
composição de inflexões e que determinados timbres sobressaem dependendo
do momento da personagem. Por exemplo, quando Chewbacca está com raiva,
os graves, possivelmente provenientes do urso e do leão, são ouvidos com
maior ênfase em sua voz. Esta combinação permitiu inclusive a ilusão do
monstro falar um idioma codificado.

127
Ben Burtt sugere uma metodologia que leva em conta o repertório
referente aos sons.

Muitas das decisões criativas foram feitas buscando os


sons que tivessem conexão com certas coisas familiares,
emocionais do dia-a-dia. Eu queria criar o som de uma nave
espacial poderosa. Bem, quais são os sons poderosos que
encontramos no dia-a-dia? Trovão, um rugido de um animal
grande, um jato. Tornou-se muito importante encontrar sons
que eu sentisse que a audiência iria associar com certas
dimensões emocionais. Se eu quisesse que algo soasse
poderoso, eu iria na minha lista do que eu considero que sejam
sons que nós associamos com poder. Um compositor (musical)
precisa pensar da mesma forma. Quando você compõe uma
música, você diz: “Eu quero um determinado sentimento”. As
pessoas foram expostas a músicas e portanto possuem
associações com determinados agrupamentos de instrumentos,
para desempenhar certas funções emocionais, e um tempo que
cria um ritmo, que por sua vez tem uma associação emocional.
Eu penso que as nossas experiências cotidianas com som no
mundo real produzem o mesmo tipo de situação de aprendizado
em uma pessoa média. Eles não sabem, mas possuem todo
tipo de pequenos botões que podem ser pressionados. Se você
aperta os botões certos, vai faze-los sentir de determinada
maneira. Isso é o básico da música e é o básico da seleção de
efeitos sonoros para um filme (LOBRUTTO, 1994, p.143).

Sobre estas afirmações de Burtt e o repertório do som do cinema e sua


influência, falaremos mais no Capítulo 6. No próximo capítulo continuaremos
vendo outros processos de criação do corpus. Veremos que, além da captação
de sons da natureza, o corpo pode ser a fonte de sons para compor a base da
voz do monstro.

128
Capítulo 4. Processos de criação: Predador e os sons do
corpo

4.1. O caçador do espaço




Predador (Predator, 1987), filme de ficção científica dirigido por John
McTiernan, é uma obra que conta a história do encontro de Dutch e sua equipe
com um perigoso alienígena conhecido popularmente como Predador (nome
dado ao monstro, mas não mencionado no filme). “Era divertido. Um filme
inocente de monstro. Bom para comer pipoca”, diz McTiernan sobre suas
intenções ao fazer o filme nos anos 1980 (TAYLOR, 2017).
Predador teve várias sequências e inclusive um filme no qual compartilha
do universo narrativo de outra influente franquia de ficção científica, Alien.
Todas estas reaparições do monstro nas telas do cinema aprofundaram as
origens da raça alienígena dos predadores. Por se tratar de várias narrativas,
que às vezes assumem características transmidiáticas, a pesquisa opta pelo
contexto de produção do primeiro filme apenas, de 1987.
No primeiro filme da franquia, o governo americano, na esperança de
resgatar políticos na Guatemala, chama Dutch e sua equipe para levá-los de
volta aos EUA. Eles são homens musculosos e fortemente armados,
preparados para enfrentar a floresta e os perigos da missão designada. O
exagero de ambas as características, no caso músculos e armas, faz inclusive
com que as personagens pareçam uma caricatura do imaginário do exército
americano. No entanto, ao chegarem na região onde supostamente
encontrariam os políticos, se deparam com cadáveres e sinais de violência. Não
demora até que percebam que uma estranha criatura é a responsável pela
carnificina.

129
Figura 50. Foto promocional do filme Predador, com Dutch e sua equipe de
super machos musculosos e armados com bazucas, miniguns e afins. Fonte:
arquivo 20th Century Fox.

O espectador compreende as características do monstro que está na


floresta aos poucos, junto com a equipe de Dutch (no caso, seus
sobreviventes). Primeiramente, o Predador se apresenta como um ser
translúcido que anda pela floresta e que atinge suas vítimas com uma poderosa
arma com uma mira de três pontos vermelhos. Além disso, em alguns planos,
vemos a equipe de Dutch sob o ponto de vista do monstro. Trata-se de uma
imagem em tons predominantemente vermelhos e verdes. A criatura consegue
ver os seres humanos na floresta por uma espécie de “visão térmica”.

130
Figura 51. Sequência de fotogramas do filme Predador, na qual vemos o
Sargento Michael Elliot na floresta. Inicialmente, como surge na maior parte do
filme e, em seguida, pelo ponto de vista do monstro (Predavision).

Ao assistir o filme, o espectador tem uma longa e agoniante espera até


poder ver o monstro sem que sejam apenas partes de seu corpo, sua silhueta
sombreada ou com o efeito de invisibilidade. Após exterminar quase toda a
equipe de Dutch, apenas quando este vai confrontar o Predador diretamente é
que podemos ver o alienígena por completo. E este momento acontece apenas
próximo ao final do filme.
Há ainda uma segunda revelação, que é a do Predador sem a máscara.
Este momento no filme é acompanhado de um alívio cômico nos diálogos:
Dutch, ao ver o Predador desmascarado, comenta: “You’re one ugly
motherfucker!” (“Nossa, você é muito feio!”, na tradução comportada da versão
dublada brasileira).

131
Figura 52. Fotograma de um dos primeiros momentos em que o espectador
consegue ver o Predador mais claramente.

Figura 53. Fotograma da segunda revelação do Predador, quando este tira a


máscara.

4.2. O design do monstro

A criatura passou por duas versões, dois processos de composição de


design. Apenas a segunda versão foi aceita pelo diretor John McTiernan. A
primeira versão, feita pela Boss Films, é famosa entre os fãs da franquia
sobretudo pelas circunstâncias de produção. Um aspirante à fama na época,
Jean Claude Van Damme foi contratado para ser o Predador. Empolgado por
ter a chance de lutar contra o já então famoso Arnold Schwarzenegger em um
filme, Van Damme aceitou a proposta. Ele, aos poucos, desanimou com o

132
papel, sobretudo porque teria que entrar em um traje em que não era
reconhecido e que não possibilitava que demonstrasse seus famosos
movimentos, conquistados em toda uma trajetória de artes marciais e balé
(visto que a sua cabeça ficava no pescoço do traje e as pernas tinham pouca
mobilidade). Além disso, Van Damme acreditava que o tosco traje vermelho já
fosse o design final do monstro do filme. Mas o plano dos produtores era ainda
pior para as aspirações do ator: o traje era apenas uma referência para chroma
keyin’, tecnologia de substituição de cores por imagens, o que faria com que a
criatura sequer pudesse ser vista durante a maior parte do filme26.

Figura 54. Fotogramas do traje vermelho de chroma keyin’ que Van Damme
deveria usar (a esquerda), para o primeiro Predador (a direita), com design
rejeitado pelo diretor e pelos produtores. Para Schwarzenegger, “parecia um

26
Esta história é confirmada por McTiernan no making of do filme, mas é possível ler mais sobre a
frustração de Van Damme com o Predador em <
http://www.denofgeek.com/movies/predator/32595/when-jean-claude-van-damme-played-predator >.
Acesso em 02/01/2018.

133
cara numa fantasia de lagarto com uma cabeça de pato” (depoimento do
documentário If it bleeds we can kill it- making of de Predador, origem dos
fotogramas acima).

Stan Winston, o criador do design definitivo do Predador, também foi


responsável pelas personagens fantásticas de Exterminador do Futuro
(Terminator, 1984), Alien: o oitavo passageiro (Alien, 1979), Edward Mãos de
Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), Batman: o retorno (Batman Returns,
1992), Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993) entre outros, trajetória
que o conferiu quatro Oscars, entre prêmios de Melhor Maquiagem e Melhores
Efeitos Visuais.
No site da Stan Winston School of Character Arts, existe um relato sobre
o processo de criação do monstro em Predador. O design de Predador, feito em
apenas seis semanas (quando geralmente um monstro pode levar até um ano
para ficar pronto), foi um favor de Winston para Schwarzenegger, com quem
havia trabalhado em Terminator. O ponto de partida foi uma pintura de um
guerreiro Rastafari no escritório de Joel Silver, produtor do filme. Relembrando
a pintura de Silver, Winston estava fazendo esboços do monstro durante um
voo em companhia de James Cameron. Ambos viajavam para um evento sobre
Alien (1986, dirigido por Cameron) que aconteceria no Japão. Ao ver Winston
desenhando rascunhos do que seria o Predador, Cameron disse: “Sabe, eu
sempre quis ver algo com mandíbulas”. Assim, Winston chegou ao design final
do monstro (DUNCAN, 2006).
O Predador, em sua versão definitiva, é parecido com um grande inseto.
Inclusive, esta característica visual do monstro fez com que Peter Cullen, o
dublador do monstro, tivesse a inspiração para o som dos cliques, como
veremos a seguir. Adriano Messias, em sua obra Todos os monstros da Terra,
fala sobre a recorrência da característica insetoide em monstros do cinema.

(...) a presença de traços e aspectos insetoides em diversos monstros


do cinema, sobretudo em robôs híbridos (...). pode-se afirmar que
boa parte da invencionice em torno de alienígenas, de monstros
mutantes e figuras do mundo biotecnogenético se inspira na
arquitetura exoesquelética de insetos e na conformação ameaçadora

134
e estranha de diversos invertebrados. Não é a toa que seres
diabolizados tendem a assumir o mimetismo espantoso dos insetos –
seres que conseguem, como o diabo, se disfarçar (MESSIAS, 2017,
p.48).

Esta característica não está apenas em Predador, mas em Alien e outras


criaturas feitas por Stan Winston.
Kevin Peter Hall, um ator de dois metros e vinte centímetros, vestiria a
fantasia do monstro. Hall recém havia feito outro monstro famoso do cinema, o
Pé Grande Harry em Um hóspede do barulho (Harry and the Hendersons,
1987).

Figura 55. Kevin Peter Hall ao lado de Arnold Schwarzenegger (esquerda) e


vestindo a roupa do Predador (direita). “Um ator que traria uma performance
para o monstro. E que é gigantesco. Ao lado do Arnold, ele o faria parecer um
amendoim” (WINSTON no documentário If It bleeds we can kill it – making of do
Predador). Fonte: http://www.moon-city-garbage.agency/predator/index.htm

A indumentária do Predador era composta por uma roupa de látex e uma


cabeça robótica. Para o monstro movimentar o rosto, era necessário operar um
aparato bastante complexo. Jovens da equipe de Winston utilizavam controles
remotos. McTiernan relata que

Trabalhamos nele (o monstro) por alguns meses em Los


Angeles, praticando e pensando em como a cabeça de
caranguejo funcionaria. Foi divertido assistir porque eram como
controles de um avião, as várias coisas no rosto dele. Então
tínhamos cinco jovens por trás das câmeras que controlavam
uma porção do rosto dele com um controle por rádio. Tinha um

135
jovem com as sobrancelhas e outro com as garras. E eles
precisavam praticar. Era como uma marionete – mas uma
marionete bem complexa. Eram necessários cinco pessoas para
faze-lo funcionar (TAYLOR, 2017).

4.3. A presença pelo som

Dando continuidade a composição do monstro, posteriormente, a


“cabeça de caranguejo” emitiria um som bem específico. São como cliques, que
ouvimos no decorrer do filme, sobretudo quando assumimos o ponto de vista do
monstro.
Na segunda revelação da criatura no filme, mencionada há pouco, é
possível compreender que os sons de cliques provém da boca e dos dentes da
criatura, que soavam diferentes anteriormente por causa da máscara e de
possíveis filtros que esta contém.
O recurso de ocultar a criatura no decorrer do filme é recorrente no
cinema e muitas vezes é uma forma de baratear a produção ou resolver
problemas técnicos. Entretanto, esta estratégia também possui um resultado
interessante do ponto de vista narrativo. Em Predador, se vemos pouco a
criatura, a ouvimos com frequência no filme. Os cliques e a audição subjetiva
mantém o monstro presente constantemente. Whittington comenta este efeito:

Se efeitos sonoros conseguem criar corpos, eles também


podem ser utilizados para escondê-los. Efeitos sonoros em filmes
de terror tem sido usados continuamente para esconder
referências visuais como forma de gerar suspense, ansiedade e
medo (WHITTINGTON, 2007, p. 144).

Dado o fator enigmático da invisibilidade e da Predavision, que nos


apresenta a ação pelo olhar subjetivo da criatura, é sonoramente que o monstro
se faz presente. Os cliques são a característica mais recorrente para indicar a
presença do Predador.
Norval Baitello, pesquisador da PUC-SP, cita a visão e a audição como
sentidos de alerta e prontidão. E que, como tais, são movidos pelo medo
(BAITELLO, 2012, p.48). O homem vivia em árvores. No topo das árvores, este
tinha uma visão privilegiada, conseguindo observar o ambiente em todas as

136
direções e com grande distância. “(...) nossa percepção cobria todas as
direções espaciais, para todos os lados, para cima e para baixo, construindo
um entorno perceptivo esférico (...). A visão não conhecia horizonte (...)”
(BAITELLO, 2012, p.32). Ao abandonar as árvores e passar a viver no chão, a
visão do homem passa a ser limitada por obstáculos, consequentemente
menos abrangente, e com essa reconfiguração do modo de vida é necessário
também reconfigurar a função dos sentidos. A audição, neste novo contexto,
“torna-se mais importante como sentido prospectivo, pois na vegetação densa
deve-se escutar o que ainda não pode ser visto” (BAITELLO, 2012, p.33).
E, precisamente, antes de vermos o Predador, no mistério de sua figura,
a sua monstruosidade é composta sobretudo pelo som. O Predador é uma
criatura de diversas sonoridades que transitam de acordo com o momento da
personagem na cena. Além dos sons tecnológicos que acompanham a
vestimenta do alienígena, o espectador em determinados momentos
compartilha do ponto de escuta da criatura. Neste ponto de visão e escuta,
conhecido como Predavision, a imagem aparece com um efeito de câmera
térmica e na mão, enquanto que o som é ouvido e reproduzido com distorções,
acompanhado de batimentos cardíacos.
Além disso, com a máscara, o Predador frequentemente emite cliques,
enquanto que sem a máscara ele emite um rugido como um animal de grande
porte. Ele também imita sons, com máscara e sem. Durante o filme temos a
impressão de que a reprodução das frases dos humanos possa ser decorrente
da avançada tecnologia da criatura. Ouvimos as personagens do filme falando
e a imitação das frases reproduzida de forma bastante modulada, sobretudo
pela perspectiva do monstro. Mas quando Dutch, após derrotar a criatura, a
olha perplexo e diz “Who the hell are you?” (Quem diabos é você?), a frase é
repetida também pelo Predador sem a máscara.
O som dos cliques do Predador é como se fosse uma emissão
constante. Por mais que pareça, por vezes, involuntária, trata-se da
característica vocal mais presente do monstro no decorrer do filme. Na tabela
abaixo organizamos as manifestações sonoras do alienígena:

137
Situação Características sonoras
Predavision – ponto de vista e escuta
Os sons da diegese são equalizados
(mudanças nas frequências originais)
do Predador.
e acompanhados de um ruído
eletrônico constante. Ouve-se também
os batimentos cardíacos do Predador
que, embora soem semelhantes aos
de seres humanos, possuem um ritmo
estranho.
Vocalização- Predador com máscara Com a máscara ouvimos os cliques do
Predador.
Vocalização – Predador sem máscara Sem a máscara, o Predador emite
rugidos processados que remetem à
grandes mamíferos.
Imitação/ reprodução O Predador também reproduz falas
que ouve durante o filme,
pontualmente. Ao usar a máscara,
esta voz é replicada com efeitos. No
final do filme, antes de acionar a auto-
destruição, ele dá uma risada intensa
como se fosse a de um ser humano
maligno. Anteriormente no filme,
percebe-se que a risada na verdade é
uma imitação que o monstro faz da
risada de um dos colegas de Dutch, no
caso a personagem Billy.
Tabela 4. Todas as manifestações sonoras do monstro em Predador (1987).

Um dos supervisores de som de Predador é David Stone, atualmente


professor na Savannah College of Art and Design, nos Estados Unidos. Stone
concedeu uma entrevista ao site Designing Sound27 em 2010, na qual relata
parte dos processos de criação do som da personagem. Durante o ponto de
escuta da criatura, no Predavision, para o diretor McTiernan era importante
compreender que o Predador era um organismo vivo com partes eletrônicas
acopladas, como um ciborgue. Stone comenta que “Esta ambiguidade deixaria
tudo mais assustador” (RIEHLE, 2010).


27
Disponível em < http://designingsound.org/2010/08/predator-1987-exclusive-interview-with-david-
stone/ >. Acesso em 9/1/2017.

138
Stone também era um dos responsáveis por selecionar efeitos sonoros,
a disposição em bibliotecas de áudio armazenadas em fitas ¼ reel-to-reel.
Stone relata detalhadamente os processos técnicos envolvidos na criação das
ambiências sonoras e do foley em Predador. Relata, por exemplo, que as
gravações feitas de sons na floresta estão entre as primeiras com som digital
utilizadas para o cinema, as quais foram feitas por Andy Wiskes. Wiskes
licenciou a biblioteca de sons da floresta para Predador e nela estavam
variações completas desta ambiência sonora, desde momentos com maior
manifestação de animais durante o dia até gravações noturnas, mais
silenciosas e com ruídos específicos. Segundo Stone, Kevin Cleary, o mixador
da trilha musical do filme, ficou feliz em não encontrar, nas ambiências da
floresta, o som do kookaburra, uma ave específica da Austrália.

“Ele só existe na Austrália mas aparece em todos os filmes


de floresta. África, América do Sul, Índia. As pessoas tem
colocado o som do kookaburra em todos estes filmes desde os
anos 1930. Obrigado por não fazer isso!” (RIEHLE, 2010).

4.4. Os cliques do monstro

Sobre as vocalizações com cliques do Predador, o entrevistador faz três


perguntas: “como foram as experimentações? Do que deriva o som dos
cliques? Fazia ideia de que estes seriam tão icônicos décadas depois?”. Stone
então revela que não sabe ao certo, mas fala sobre suas impressões:

Não tinha ideia de que se tornaria tão icônico mas


entendo o porquê. E não posso levar crédito pelos cliques. Já
estavam na “sopa” quando eu cheguei. Se não me falha a
memória, e geralmente falha, os cliques vieram de Steve Flick
(editor de som que trabalhou em Predador 228) nos primeiros dias
da produção, antes de começarmos nosso trabalho. Foi para as
pistas do editor e lá permaneceu. Todos amaram (o som), então
este passou apenas por pequenas mudanças de sincronia e
equalização durante o trabalho todo. Isto significa que este som
foi para a mixagem em uma pista especial que não era nem a de


28
O nome de Flick não aparece nos créditos do primeiro filme do Predador. A memória, de fato, parece
ter falhado. No entanto, veremos que Cullen também não teve o trabalho creditado.

139
diálogos, nem a de efeitos sonoros. Notei que, no IMDB, Peter
Cullen, um ator que fez muitos trabalhos de animação, entre
outras coisas, contribuiu com algum tipo de vocalização para o
Predador e eu não sei exatamente como. (...) O que exatamente
eram os cliques? Não sei. Você precisaria perguntar para Flick.
Eu o conheço bem, mas todos os dias durante vinte e três anos
eu esqueci de perguntá-lo sobre os cliques. Suspeito que tenha
sido uma gravação da sua cigarra favorita do Arizona, bastante
desacelerada (manipulação de áudio). Para mim soa como um
inseto gigante “raspando” e é por isso que soa tão bem como
elemento de design para este alien de carapaça dura. O
engraçado é que ninguém, nenhum grupo de pessoas, nunca
sentou e refletiu artisticamente sobre aquele som. Até onde eu
saiba, por Flick ser um gênio do som, pode ter inventado este
ruído durante cinco minutos indo para o carro e esqueceu que ele
existia até que o ouvisse no filme (RIEHLE, 2010).

A vocalização dos cliques do Predador foi na verdade feita por Peter


Cullen, dublador de voz grave e aveludada que interpretou personagens
famosos em animações, como o Vingador em A Caverna do Dragão (Dungeons
and Dragons, 1983), Optimus Prime em Transformers (1984) e Bisonho (ou Ió)
em Ursinho Puff/ Pooh. Cullen também fez as vocalizações de King Kong
(1976) e, nesta obra, assim como em Predador, não consta nos créditos.

140
Figura 56. Peter Cullen e seus personagens mais famosos, além do Predador.
Na sequência Optimus Prime, Bisonho e Vingador. Fonte:
http://www.behindthevoiceactors.com/Peter-Cullen/

Peter Cullen, em entrevista para o DVD Times, conta que nasceu no


Canadá e que sempre foi apaixonado por rádio. Cullen se formou na National
Theatre School em Montreal e começou a trabalhar em áudio-ficções de
emissoras diversas, entre elas a CBC Radio Canada. Também atuou na
televisão, incluindo The Sonny & Cher Show (1971-1974), um famoso show de
variedades da CBS norte-americana.
Em 1987, já com uma carreira sólida como dublador, Cullen foi chamado
para comparecer à 20th Century Fox e fazer um teste para o filme Predador.
Em entrevista à DVD Times, Cullen relata esta experiência:

É estranho como o Predador sempre volta para me


assombrar. Eu tinha feito a voz do King Kong. Muitas gravações
de grunhidos e lamentos atormentados. Isto fez com que eu
tossisse sangue e portanto escolhi nunca mais fazer sons de
monstro novamente. A 20th Century Fox queria que eu fosse até
lá e fizesse um teste para o som do Predador. Eu estava
cauteloso e resolvi não fazer a garganta sangrar novamente. Mas
Steve, meu agente, garantiu que eu não teria que faze-lo. Depois
de chegar lá e conhecer a equipe, eu pedi para ver a
personagem. Eles disseram que não. Eu disse para eles que, a
não ser que conseguisse ver a “coisa misteriosa”, seria
impossível ter alguma ideia do que fazer. Eles finalmente
cederam e, ao ver o Predador tirar seu capacete, eu lembrei dos
sons de um caranguejo ferradura virado (com as patas para
cima) borbulhando no sol. O som das bolhas estourando me veio
à cabeça. A horrível parte de baixo do caranguejo morrendo e o
rosto do Predador se entrelaçaram. Eles reproduziram a primeira
sequência do vestígio prateado (Predador com invisibilidade
ativada) passando pelos topos da floresta e eu fiz o som no

141
microfone, o qual eu pedi para que trouxessem para bem
próximo do meu rosto. O diretor estava bravo. Ele não ouviu
quase nada. Mas a fala do chefe da sala de som ecoou pelo
intercom no estúdio: “É isso! Fantástico!”. Eu salvei a minha
garganta (GILVEAR, 2006).

Figura 57. Um caranguejo ferradura e o Predador. Fonte:


https://pt.dreamstime.com/

Na TFCon de 2015, convenção de fãs de Transformers, Peter Cullen foi


um dos participantes e respondeu perguntas dos presentes. Um deles filmou a
participação na íntegra e postou no Youtube29. Durante a sessão de perguntas,
uma pessoa da plateia perguntou à Cullen sobre o trabalho feito em Predador e
a sua resposta foi bastante semelhante à dada na entrevista ao DVD Times.
Nesta oportunidade, Cullen também reproduziu o som do Predador brevemente
no microfone.
Também no YouTube, muitos vídeos ensinam a fazer o som do
Predador. Segundo Tyler Harvey, Youtuber que faz uma imitação bastante
precisa dos cliques do monstro, “O jeito de fazer o som é usar a úvula, no
fundo da garganta. Você puxa a língua para o fundo da boca e tenta vibrá-la
(úvula) para que bata na língua. É possível mudar o pitch de acordo com a
abertura da boca”.


29
TFCon 2015 Peter Cullen. Disponível em < https://youtu.be/E-ZS5afOxgo >. Acesso em 10/01/2017.

142
Figura 58. Foto da busca de vídeos no Youtube com tutoriais de como
reproduzir o som do Predador.

Os cliques, de fato, são o som mais característico do Predador, apesar


de, como mencionado, o monstro também reproduzir imitações de vozes
humanas e rugidos.
Diferentemente da captação de sons da natureza feita por Ben Burtt para
alcançar os resultados da voz de Chewbacca, em Predador um dublador usou o
próprio corpo para emitir o som que julgasse condizente com o monstro.
Veremos no próximo capítulo que um outro caminho possível para criar a voz
de um monstro é a partir da manipulação de materiais.

143
Capítulo 5. Godzilla e os sons de materiais manipulados

5.1. O monstro mais famoso do Japão

Godzilla é um monstro gigante, originário do cinema japonês (Gojira,


1954) e uma das personagens orientais mais famosas do mundo. Além de sua
grande força, capaz de destruir cidades ou defendê-las de outros monstros
gigantes, a depender do filme, Godzilla também é capaz de soprar um jato de
radiação azulado conhecido como Atomic Breath (respiro atômico).
Durante os anos 1950, filmes com grandes monstros faziam sucesso no
cinema estadunidense e também nas exibições em salas do Japão. Os mais
famosos eram King Kong, em sua nova versão de 1952, e O Monstro do Mar
(The Beast from 20.000 fathoms), de 1953.

Figura 59. O Monstro do Mar (The beast from 20.000 fathoms, 1953). Fonte:
https://www.avforums.com/review/the-beast-from-20000-fathoms-blu-ray-disc-
review.14677

O primeiro filme, Gojira (1954), foi reeditado com profundas alterações e


transformou-se em Godzilla: the King of Monsters (1956), uma das primeiras
obras que estabelece o contato dos americanos com o audiovisual japonês no
pós-guerra.

144
Como afirma o historiador William Tsutsui, a cultura japonesa de
exportação continuou influenciando vários países no mundo, incluindo os
Estados Unidos, nas décadas seguintes (TSUTSUI, 2004, p.7). Um conhecido
dos brasileiros é a série de super herói National Kid, que só fez sucesso na TV
do Brasil. Com abrangência maior, além do Godzilla, é possível mencionar
Speed Racer, Power Rangers e Hello Kitty.
Membros do Media Psychology Lab em Los Angeles, Estados Unidos,
fizeram uma pesquisa quantitativa entre 2000 e 2001 para compreender as
particularidades dos gostos dos americanos sobre as personagens midiáticas
monstruosas. Em uma amostra de 597 mulheres e 567 homens, todos
americanos, Godzilla foi o terceiro monstro mais mencionado na pesquisa,
perdendo em popularidade apenas para Drácula e Freddy Krueger. O Predador
também consta na lista, em décimo terceiro lugar. No questionário mais
completo, com 700 respostas, os motivos “força sobre-humana”, “mostra que a
junção de ciência e tecnologia podem dar errado” e “age para se proteger ou
por raiva” foram os mais citados para justificar a admiração por Godzilla
(FISCHOFF, DIMOPOULOS, NGUYEN, 2005).

145
Figura 60. Tabela com os monstros mais citados em pesquisa. Presente no
artigo The Psychological Appeal of Movie Monsters, de Stuart Fischoff,
Alexandra Dimopoulos e François Nguyen (2005).

146
Figura 61. Comparativo de tamanhos de monstros gigantes do cinema feita por
fãs na Internet. Fonte: https://hipertextual.com/2009/08/comparando-el-tamano-
de-los-monstruos-mas-famosos-del-cine

O sucesso da versão americana de Godzilla foi tanto que o filme


retornou para os cinemas japoneses após a reedição. A diferença de
rentabilidade entre as duas versões é expressiva: Gojira (1954) rendeu aos
produtores 45 mil dólares enquanto que a versão americana faturou 2 milhões
de dólares apenas nos Estados Unidos, além do fato de ter sido exportada para
mais de 50 países (UMAYAM, 2013). Rentabilidade nesse caso significa
influência pois está diretamente relacionada aos ingressos vendidos.
O Godzilla americano influenciou inclusive a produção japonesa da
franquia, com mais de trinta títulos, tornando esta a série de filmes mais
longeva da história. É possível encontrar o “Rei dos Monstros” também em
games, brinquedos, paródias televisivas e em várias outras plataformas, o que
nos permite considerá-lo um nó transmidiático. Da mesma forma, o sufixo
ZILLA, misturado à outras palavras, é recorrentemente utilizado para designar
algo enorme.

147
Enfim, o Godzilla “americano” tornou-se a principal referência narrativa
do monstro. Não à toa, estamos chamando-o principalmente de Godzilla neste
trabalho e não de Gojira, seu nome original30.

Figura 62. Na sequência: Godzilla no desenho animado televisivo Family Guy,


uma tela do jogo Godzilla Domination (Gameboy advance) e uma das capas
dos quadrinhos Godzilla: King of Monsters lançado pela Marvel.


30
Existe uma ideia amplamente difundida de que Godzilla teria esse nome motivado pelo prefixo GOD
(Deus). No entanto, o nome Godzilla é uma adaptação escrita da fonética de Gojira para facilitar o nome
do monstro para audiências americanas, segundo William Tsutsui (2004).

148
Importante ressaltar, no entanto, que o filme original japonês de 1954
trazia um monstro muito diferente.

5.2. Godzilla, um hibakusha

William Tsutsui, em sua obra Godzilla on My Mind, fala que o Japão


talvez seja o povo com a maior incidência de criaturas, demônios e monstros
gigantescos em sua arte e literatura tradicionais. “Serpentes gigantes,
enquanto entidades, habitavam vales montanhosos remotos, dragões andavam
por água, terra e céu” (TSUTSUI, 2004, p.15). Inclusive, na cultura japonesa,
existe um termo, Yōkai, que designa um tipo especial de monstros, fantasmas,
criaturas fantásticas e experiências sobrenaturais que estão presentes em
narrativas locais, folclóricas e lendárias, passadas por gerações. No entanto,
estes seres gigantescos e monstruosos não eram necessariamente sinônimo
de destruição. Como explica o pesquisador de folclores da University
Bloomington, Michael Dylan Foster, “O Yōkai, como dito sobre o monstro no
ocidente, é uma incorporação de um certo momento cultural – uma imagem de
um tempo, de um sentimento e um lugar” (FOSTER, 2008, p.3). Apesar de ser
um Kaiju (monstros gigantes com base em narrativas comerciais) e não um
Yōkai, podemos relacionar o Godzilla com estas tradições.

No leste da Ásia, o dragão não é o monstro destruidor


encontrado na tradição do Oeste, mas uma besta majestosa e
benevolente cuja associação com o elemento da água faz com
que seja o distribuidor da fertilidade nas comunidades que faz o
plantio de arroz em campos úmidos. O dragão torna-se uma
fonte potencial de desastres, por meio de enchentes e
tempestades, apenas quando tratado de forma errada. Em
Godzilla é possível sentir o eco destas bestas lendárias,
inspiradoras e ameaçadoras, associadas com os oceanos, com
longevidade e, acima de tudo, com destruição e calamidade
(TSUTSUI, 2004, p.16).

No entanto, estas profundas conexões com a história recente do Japão


e suas antigas tradições se perdem na incorporação ocidental do monstro. O
monstro, na versão americana, ao invés de passar as mensagens propostas

149
por Ishiro Honda, o diretor do filme, e sua equipe, agora era feito para
maravilhar as audiências ocidentais. As imagens eram um misto das do filme
original com inserções de uma personagem americana, com dublagem mal
feita e roteiro fraco. Uma breve comparação de roteiro esclarece este ponto. A
seguir estão as últimas frases ditas em ambas as versões, em uma tradução
livre. Na japonesa, é dita pelo cientista japonês Dr. Yamane. Na americana,
pelo jornalista ocidental Martin.

Dr. Yamane - Gojira (1954): “Não posso acreditar que Gojira era
o único sobrevivente de sua espécie. Mas, se continuarmos
conduzindo testes nucleares, é possível que outro Gojira
apareça em algum lugar do mundo novamente”

Martin - Godzilla (1956): “O mundo todo pôde acordar e viver


novamente”

Falemos do original, portanto, que nos faz compreender o contexto real


de criação do monstro e de sua voz pelo músico Akira Ifukube.
O primeiro filme, Gojira, foi lançado no Japão menos de uma década
depois da derrota na Segunda Guerra Mundial e as marcas do conflito,
sobretudo das duas bombas atômicas que destruíram as cidades de Hiroshima
e Nagazaki, eram remanescentes na sociedade japonesa. Gojira, neste
contexto, era um monstro profundamente conectado com os custos da guerra,
o descuido humano com o meio ambiente e os perigos da tecnologia nuclear.
Para os japoneses, Gojira também dialoga com os medos da natureza errática
e devastadora, sobretudo em um país que sofre com uma diversidade de
fenômenos potencialmente destruidores como terremotos, tufões, vulcões,
tsunamis e incêndios, nas cidades em que casas são construídas com
materiais bastante inflamáveis, sobretudo a madeira (TSUTSUI, 2004, p.16).
Os bombardeios de seis e nove de Agosto de 1945, somados à rendição
do imperador japonês Hirohito, colocaram um final à luta do Japão na Segunda
Guerra Mundial e marcam o encerramento deste conflito no mundo. De acordo
com Yoshikuni Igarashi, pesquisador de cultura japonesa, a conjunção destes
dois fatores (a bomba atômica e a rendição do imperador) foi responsável por

150
criar uma narrativa oficial do final da guerra: a Narrativa Fundadora
(IGARASHI, 2011, p.60). Trata-se de uma narrativa melodramática de resgate
e conversão. De acordo com Igarashi:

Nos dois lados, narrativas populares ofereceram vários


artifícios narrativos – a teoria do grande homem, o melodrama
da conversão e da salvação, a imagem contraditória do bom
inimigo – como uma forma de compreender a série de eventos
que ocorreram em agosto de 1945 e em alguns dos meses
seguintes. Todos esses artifícios foram aglutinados pela
Narrativa Fundadora. A Narrativa Fundadora capturou, com
força, o imaginário popular dos dois países e definiu as
discussões das relações mútuas até a década de 1980, quando
o paradigma político da Guerra Fria foi sendo dissolvido
(IGARASHI, 2011, p.60-61).

Igarashi menciona que o período imediatamente posterior à guerra foi


complicado para os japoneses, especialmente em relação à identidade
nacional. O Japão dependia dos EUA, um ex-inimigo, e dos acordos comerciais
entre os dois países para se reerguer economicamente (IGARASHI, 2011,
p.59).
Na visão do pesquisador, Gojira rejeita a Narrativa Fundadora ao
destruir a recuperação pós-guerra (IGARASHI, 2011, p.277). No filme de 1954,
o Japão está sob as ameaças do kaiju (monstro) Gojira, um gigante de
cinquenta metros de altura. Gojira surgiu dos mares após testes com bombas
de hidrogênio, testemunhados por pescadores nas redondezas do impacto,
estes atingidos por radiação.
No original japonês, em sequência excluída na versão americana, esta
passagem dos pescadores, logo no início do filme, é uma alusão à um
incidente com radiação acontecido em 1954 no Japão, meses antes do
lançamento do filme. Daigo Fukuryū Maru, o Lucky Number 5, era um barco
pesqueiro com uma tripulação de vinte e três homens. Durante a operação
Castle Bravo, os Estados Unidos faziam testes com bombas de hidrogênio,
mais poderosas do que as bombas atômicas usadas na Segunda Guerra
Mundial, próximo às Ilhas Marshall, não muito distantes do Japão. A bomba

151
lançada em Março de 1954, envolvida no incidente, foi mais poderosa do que
previam os americanos e barcos foram atingidos mesmos estando em ditas
“zonas seguras”. Os vinte e três homens foram contaminados por radiação e
um deles morreu sete meses após o incidente. O funeral de Aikichi Kuboyama
foi acompanhado por 400.000 pessoas, o que demonstra a comoção do povo
japonês com o episódio. Para Igarashi, este evento representou uma quebra na
censura americana e nas táticas de evitar falar do uso de armamento atômico
(IGARASHI, 2000, p. 278).
No filme, cientistas explicam que Gojira era um habitante jurássico das
partes mais profundas do oceano, um ecossistema destruído pelos testes
nucleares. O original japonês apresenta uma visão obscura e ameaçadora: por
trás do acordo de paz e da Narrativa Fundadora, Gojira revela um país
desconcertado. “O tema do filme, desde o princípio, é o terror da bomba. A
humanidade criou a bomba e agora a natureza iria se vingar da humanidade”
(TSUTSUI, 2004, p.18). Segundo o crítico de cinema Christopher Orr, Gojira
“pode não ser um bom filme31, mas é um filme importante. Uma meditação
surpreendentemente sombria sobre meios e fins, quando o preço pela paz se
torna muito alto” (ORR, 2014).
Ishiro Honda, diretor do filme de 1954 (e posteriormente da maioria dos
filmes do Godzilla enquanto produzidos pela Toho Company), pretendia
alcançar principalmente uma audiência de adultos e, por mais que atualmente
estejam ultrapassados, os efeitos especiais utilizados no filme foram os mais
sofisticados ao alcance dos produtores na época. Honda explica que monstros
são seres ambíguos, vítimas da sua inadequação:

Monstros são seres trágicos. Eles não são maus por


escolha; eles nascem muito altos, muito fortes, muito pesados.
Essa é a tragédia deles. Eles não atacam a humanidade
intencionalmente, mas por causa do tamanho deles, estes
podem causar danos e sofrimento. Desta forma, o homem se
defende, contra eles. Depois de tantas histórias deste tipo, o
público encontra simpatia pelos monstros; na realidade, eles
favorecem os monstros (TSUTSUI, 2004, p.87).

31
Discordamos de Orr quando este diz que Gojira (1954) não é um bom filme.

152
Gojira é uma vítima da radiação, no caso. Despertou por ter sido
bombardeado por uma bomba de hidrogênio. Isso o aproxima dos hibakushas.
Visualmente, para representar este temor do armamento atômico e as aflições
do povo japonês, Gojira apresenta-se em uma pele repleta de queloides. É
semelhante a um réptil, mas suas marcas também se assemelham às
queimaduras provocadas por radiação. Os japoneses vitimados pelas bombas
eram chamados de hibakusha (em tradução: “pessoas afetadas pela
explosão”). E discriminados, já que existia uma forte crença de que a radiação
e seus males fossem contagiosos.

Figura 63. Gojira e um hibakusha, uma vítima da radiação das bombas


atômicas no Japão. Fonte: http://hiroshima.australiandoctor.com.au/

Tanto Ishiro Honda quando Akira Ifukube, músico e compositor do rugido


do monstro, possuem passados bastante interligados com a radiação. Ishiro
Honda, diretor do filme, serviu na Segunda Guerra Mundial e acabou como um
prisioneiro de guerra na China. Em seu resgate, no retorno ao Japão, Honda
sobrevoou Hiroshima após o bombardeio e pôde testemunhar os efeitos da
bomba atômica (TSUTSUI, 2004, p.21). Já Akira Ifukube se considerava um
hibakusha por ter sofrido sangramentos após participar de uma pesquisa

153
envolvendo radiação, na tentativa de fortalecer a madeira das aeronaves da
Guerra. “Por mais que não se possa determinar se sua enfermidade foi
causada pela exposição à radiação, vale lembrar que ele compôs a música (de
Gojira) com um senso de missão a ser cumprida”32.

5.3. O rugido do gigante, ontem e hoje.

Akira Ifukube, além de compor as músicas do filme, foi o criador do


rugido. Na época da produção do filme, a equipe responsável pelos efeitos
sonoros, liderada por Ichiro Minawa, tentou utilizar técnicas bastante
recorrentes no cinema, como por exemplo gravar sons de vários animais e
testá-los com o monstro. No entanto, a equipe não estava feliz com os
resultados. Ifukube então sugeriu que fosse utilizado um instrumento musical. A
equipe, junto à Ifukube, usou uma luva de couro coberta em resina de pinheiro
(para criar fricção) e então passou esta luva nas cordas de um contrabaixo
acústico (RAY, 2014). Este instrumento é muito comumente chamado de
rabecão aqui no Brasil. Em testes com o Rabecão, é possível afirmar que as
cordas do instrumento estavam mais “afrouxadas” em comparação à tensão
que os músicos as mantém para a afinação, o que deixa o som reproduzido
mais grave e errático.


32
Disponível em < https://www.japantimes.co.jp/opinion/2014/07/20/editorials/godzillas-message-still-
relevant/#.WlEMIlQ-eHq >. Acesso em 05/05/2017.

154
Figura 64. O instrumento musical Contrabaixo acústico ou Rabecão. Fonte:
http://amatis.org/cellos-and-basses/basses

A importância do rugido fica clara em Gojira, quando o primeiro contato


que a audiência tem com o monstro é este som, que acompanha os créditos
iniciais do filme. A voz do monstro logo se mistura com uma trilha de tensão,
predominantemente composta por cordas.
O rugido criado por Ifukube é uma característica tão fundamental no
reconhecimento do monstro que, apesar das relevantes atualizações (as quais
ficam claras na figura abaixo), o cerne da sonoridade do rugido precisou ser
mantido por produtores futuros. Para Erik Aadahl, sound designer do filme
Godzilla de 2014, o rugido original “É o som da natureza, o som da raiva, o som
do poder. É um som que faria qualquer pessoa que o ouve se arrepiar. É
incrivelmente visceral” (VAZ, 2014, p.33).
O mesmo som original, com os mesmos meios de produção, foi utilizado
no decorrer de vários filmes do Godzilla produzidos no Japão. Um destaque é a
famosa sequência da “dança da vitória” do Godzilla, em A guerra dos monstros
(Invasion of Astro-Monster) de 1965. Nesta época a franquia já tem como foco o
espetáculo das batalhas entre os monstros gigantes. Após derrotar o arquirrival
King Guidorah, Godzilla dá pulinhos de alegria em uma espécie de dança.
Enquanto ele pula, ouvimos o rugido editado para ficar mais curto em sincronia
com cada movimento.

155
Figura 65. Fotograma do filme A guerra dos Monstros (1965) no momento da
famosa “dança da vitória” de Godzilla.

Em 2014, quando produtores americanos dedicaram uma


superprodução ao Godzilla, surgiu uma dessas ocasiões na qual a atualização
era necessária. Além de refazer o som para tê-lo em melhor qualidade, o
monstro, nesta versão, era três vezes maior do que o original.

Figura 66. Montagem mostra os diferentes tamanhos do Godzilla no decorrer


dos filmes da franquia. Fonte: https://mic.com/articles/76357/the-scary-way-
godzilla-has-evolved-through-the-years-in-one-chart

O desafio de refazer o rugido é comentado por Erik Aadahl, o sound


designer responsável, em matéria da revista Entertainment Weekly. A equipe
tentou refazer o procedimento de Ifukube e até utilizar sons de animais, mas
nada chegava ao resultado desejado para o renovado Godzilla.
Após seis meses de experimentações e mais de cinquenta versões, com
a ajuda de novas tecnologias, como microfones capazes de satisfatória
captação de infrassons e ultrassons, finalmente Aadahl e sua equipe chegaram
a um resultado satisfatório (RAY, 2014). Este comenta, em dois momentos:

“(o rugido original do Godzilla) É um daqueles sons que


em qualquer lugar do mundo, todos sabem o que é. É muita

156
responsabilidade redesenhá-lo. O nosso ponto de partida foi
abraçar o original e homenageá-lo (RAY, 2014).

“Gravamos sons inaudíveis, os trouxemos para o


estúdio e baixamos seu pitch até que operassem nas
frequências audíveis para seres humanos (...). Ao trabalharmos
no rugido, nós o separamos em duas partes: o grito estridente
inicial e a finalização (...). Ambas partes tem reações
emocionais diferentes: a inicial é a fúria da natureza e a final é a
compreensão de que abarca uma alma mais rica e profunda.
Quando você dá a voz para alguma coisa, à está conferindo
alma. Então nos tornamos muito protetores em relação à nossa
fera gigante por causa disso” (RAY, 2014).

Para Aadahl, a forma de manter a relação com o rugido original está


principalmente na cadência musical. Na releitura de 2014, a equipe manteve a
mesma produzida por Ifukube em 1954. Segundo Aadahl: “Se músicos
escutarem, ouvirão que vamos de um DÓ, no piano, para um RÉ,
musicalmente. Esta é uma das iterações que o nosso rugido favorito também
fez” (RAY, 2014).
Nesta mesma entrevista, Aadahl não revela o que a equipe utilizou para
a compor o rugido. Esta informação foi encontrada apenas no livro Art of
Destruction que fala sobre os processos dos bastidores do filme de 2014, e em
um breve artigo para a revista Wired.
“Às vezes, você tem um elemento do acaso, um
acidente feliz, e diz ‘Uau! É isso!”. E eu não senti isto com o
contrabaixo. Eu estava conseguindo algo similar ao original,
que eu poderia manipular para soar como o Godzilla, mas não
possuía a fidelidade, o poder e a riqueza que eu queria. Então
eu continuei brincando e experimentando. Gravei muitas
criaturas do mundo ornitológico. Eventualmente, descobri que o
melhor som seria fricção metálica – ressonância de metal com
gelo seco. Gelo seco congela determinados tipos de metais e
este começa a contrair e vibrar, produzindo “grito e berros”.
Este tornou-se o elemento central do rugido atualizado”
(BAKER, 2014).

“Nós melhoramos este som (o do gelo seco com metal)


com sons graves de pedras sendo trituradas” - Para a segunda
parte do som, tentaram baleias, mas não funcionou –
“Eventualmente arrastamos um baú enorme de madeira em um
piso polido” (BAKER, 2014).

157
Para dar a ideia do tamanho do monstro, Aadahl utilizou uma técnica de
espacialização do som conhecida como Worldizing. Este termo é creditado a
Ben Burtt, que utilizou esta técnica quando, para fazer a voz de Darth Vader,
reproduziu as gravações em estúdio do ator James Earl Jones em alto falantes
dentro de um corredor reverberante, para então gravá-la novamente.
Igualmente, em Godzilla de 2014, a equipe de som reproduziu o rugido do
monstro em um cenário de Nova Iorque nos estúdios da Warner Bros. Aadahl
relata que “Tocamos o rugido em um array33 de 3,6m de altura e 5,5m de
largura, com 100 kilowatts de potência. Recebemos ligações da Universal
Studios perguntando o que estávamos fazendo. Eles estavam a mais de 3km
de distância” (BAKER, 2014).
Após pesquisarmos os processos de criação das três vozes de monstros
do corpus e compreender como os resultados foram alcançados, vamos fazer
uma análise das especificidades destes sons. Esta análise leva em
consideração as características sonoras em si e também seu contexto fílmico e
cultural.


33
O line array é uma composição de alto falantes idênticos em linha, geralmente curva, que ajuda a
projetar os sons. Muito comum em grandes shows de música ao vivo.

158
Capítulo 6. A criação do som do monstro: uma proposta de
método

Vimos que, através de processos de criação diversos, os sound


designers responsáveis pelas vozes de Chewbacca, Predador e Godzilla
alcançaram resultados que não apenas reiteravam os cânones do gênero no
cinema, mas que traziam algo novo para o repertório do som do monstro.
Neste capítulo, discutiremos as especificidades do som do monstro em
relação a outros sons e traremos uma proposta de metodologia para a criação
de novas vozes monstruosas.

6.1. Evitando a ruptura no som do monstro

Na história do cinema, o advento de novas e aprimoradas tecnologias foi


muitas vezes divulgado como um fator a conferir um ‘maior realismo’ aos
filmes. Claro que, assim como o “maior realismo”, aquilo que é potencialmente
espetacular, que surpreende, sempre é um fator importante, sobretudo como
chamariz para o público que frequenta as salas de cinema.
O advento da cor no cinema, por exemplo, esteve relacionado sobretudo
a esta característica espetacular mencionada, que pretende atrair os
espectadores para a sala de cinema. Esta intenção parece ter maior prioridade
do que a proposta de uma experiência mais realista, como descreve John
Belton, historiador de cinema da Rutgers University. Ainda assim, o apelo à
“realidade” pode ser encontrado em muitas abordagens na história do cinema.
Foi assim com os irmãos Lumière, que apresentaram o Cinematógrafo como “a
vida em movimento” (la vie sur le vif) e também com a Vitaphone, a qual
divulgou o cinema sonoro enfatizando que “personagens agem e falam como
pessoas vivas/reais” (a expressão usada foi “living people”) (BELTON, 1992,
p.159).
Novamente, no âmbito dos desenvolvimentos do cinema sonoro,
engenheiros da FOX descreveram o advento do som estereofônico nas salas

159
de cinema como uma tecnologia que conferia “direção, presença, relações
adequadas de fase nas ondas sonoras e todos os outros aspectos do som
captado em sua fonte original (BELTON, 1992, p.161). Desta forma, fica
evidente que este “maior realismo” é visto pelos desenvolvedores como um
atrativo e, portanto, um fator interessante comercialmente.
Como mencionamos anteriormente, Altman (1984) nos diz que o real é
impossível de representar, que apenas representamos as representações,
podemos compreender essas diversas menções ao “mundo real” e à “vida”
como uma sofisticação crescente dos mecanismos de ilusão do cinema. Novas
tecnologias, como o aprimoramento do chroma key (a tecnologia do “fundo
verde/azul”) e das técnicas de CGI (computer generated imagery – imagens
geradas por computador), contribuem para todos os gêneros cinematográficos.
Mas é possível afirmar que a ficção científica está entre os gêneros que
utilizam as capacidades dessas tecnologias ao máximo, dados os recursos da
época.
É a aparente vontade do cinema de contar histórias mais complexas e
com maior potencial imersivo possível. Ocultar o aparato cinematográfico
colabora nos processos de imersão e contribui para aquilo que foi denominado
como suspensão da descrença, pois evita o afastamento do espectador
quando este identifica um problema de produção na obra. Estas novas
tecnologias possibilitam passos largos nessa direção.
O contrato de suspensão da descrença pode ser compreendido como a
forma pela qual os espectadores se permitem esquecer de todo o processo de
produção de um filme para que estes consigam atingir um estado imersivo ao
acessar a obra. No entanto, no cinema de ficção científica e fantasia, pela
realidade própria da diegese por vezes se afastar consideravelmente da do
público, o processo de suspensão da descrença parece precisar de uma
dedicação extra por parte do espectador.
Para William Whittington, o cinema de ficção científica trabalha com a
suspensão da descrença de outra forma, em relação a outros gêneros como
drama e comédia, por exemplo.

160
No gênero de ficção científica, um contrato informal é
estabelecido entre o filme e os espectadores para reforçar a
unidade e autenticidade da representação. Trata-se de um
tênue e não mencionado contrato acerca das expectativas
genéricas e a suspensão da descrença. Paradoxalmente, os
espectadores precisam concordar, com certa “hesitação”, na
crença entre realidade e fantasia para entrar no modo da ficção
científica (WHITTINGTON, 2007, p.98).

A imersão na ficção científica seria, portanto, um produto do


questionamento em relação aos fenômenos ficcionais, explicados por motivos
naturais e sobrenaturais. O meio termo entre natural e sobrenatural seria,
portanto, o estado da ficção científica. Isto se aplica a todas as características
estéticas do universo apresentado, inclusive o som.
Whittington leva em consideração as convenções do cinema presentes
no gênero. Para o autor, os sound designers se baseiam no imaginário sonoro
estabelecido pela ficção científica para criar a partir dele. O trabalho destes
profissionais leva em conta uma série de aspectos culturais, como por exemplo
a história dos efeitos sonoros e as convenções de gênero. “É por isso que
fantasmas ainda gemem, tempestades chicoteiam e enrolam ao nosso redor, e
computadores mastigam dados com silvos e assovios audíveis”
(WHITTINGTON, 2007, p.99). Desta forma, há que se levar em consideração o
que já foi estabelecido até então e um nível de abstração.
Mesmo em outros gêneros cinematográficos, com emissores presentes
na natureza, limitações técnicas poderiam complicar as possibilidades de uma
representação mais “naturalista”, com a replicação dos sons correspondentes.
Por exemplo, o suporte no qual é feita a gravação também interfere em
determinadas qualidades sonoras. Ben Burtt comenta sobre como a gravação
em fita (analógico, ótico) afeta a qualidade dos sons. Essa alteração acontece
especialmente com aqueles sons que possuem uma grande gama dinâmica, ou
seja, um som composto por elementos de grande intensidade e de baixa
intensidade, como por exemplo uma explosão ou um tiro. Segundo Burtt:

Sons com um grande transiente, como tiros, explosões


ou socos, seriam alterados por causa da natureza deste

161
sistema de gravação (o analógico) – teriam outro resultado. Os
tipos de distorções que você obtém com estes sistemas
adicionam uma qualidade que não é exatamente aquela que o
som teria em contato com os seus ouvidos na hora da
gravação. É como o microfone, o pré-amplificador e como o
sistema ótico ouviram este som. Isto é verdade, particularmente
no caso de tiros e explosões. Por causa do tipo de distorção
dos sistemas de gravação mais antigos, acontece uma
compressão de todo o som para uma estreita gama dinâmica
no filme ótico. Desta forma, os grandes transientes que você
encontra em uma explosão real eram limitados, comprimidos
para serem gravados neste meio de gravação. O som original
assumiu uma outra característica, a qual nós associamos com
explosões, tiros e socos. É por isso que, quando você ouve
tiros no noticiário, ou alguém atirando em um documentário
sobre o Vietnã, soa como um pequeno estalo ou uma pequena
palma ao invés daquele som de tiro bom, pesado, estendido e
multisilábico que você encontra nas antigas bibliotecas de som.
Parte do motivo é o sistema de gravação e a outra parte é a
locação na qual disparou a arma (LOBRUTTO, 1994, p.141).

A gravação em sistemas óticos, analógicos, foi o suporte de bibliotecas


de som e trabalhos de edição e sound design do corpus da pesquisa. E este
repertório, naturalmente, é influente até hoje. Isso significa que a nossa
memória de sons do cinema é profundamente marcada pelas limitações deste
sistema, que alterou determinadas qualidades sonoras.
Mesmo se a intenção fosse a perfeita reprodução de sons naturais, algo
que fica mais ao alcance tecnicamente dos produtores ao passo de que os
sistemas evoluem, este tipo de som poderia se chocar com as referências
trazidas pelo repertório cinematográfico. No caso de um monstro, por exemplo,
não parece desejável que distingamos as bases da composição da sua voz ou
que as usemos sem as devidas manipulações.
Murray Spivack, supervisor de som de King Kong (1933) explica que a
base dos sons para a vocalização do King Kong veio de ruídos capturados
anteriormente, presentes em bibliotecas de som, sobretudo de leões e gorilas.
Spivack acredita que os sons seriam reconhecíveis se não fossem
manipulados (BOONE, 1933, p.21). Em entrevista para o jornalista Andrew R.
Boone, da edição de Abril de 1933 da revista Popular Science Monthly, Spivack
afirma que, para conquistar um rugido mais intenso do que o de animais

162
presentes na natureza, foram utilizados sons de animais reproduzidos ao
contrário, em velocidades reduzidas, e uma oitava mais baixos, o que
potencializa os graves:

Pegamos o melhor deste material e os colocamos juntos.


Ficamos com um rugido muito curto para caber na boca do
macaco, que permanecia aberta após o rugido terminar. Então
pegamos quatro destes rugidos combinados juntos para dar um
maior período de sustentação e uma ‘cauda’ sonora no final
para que terminasse naturalmente ao invés de interromper o
som abruptamente (BOONE, 1933, p.21).

Questionado por Boone se o som de um animal, sem manipulações,


daria conta de representar King Kong, Spivack explicou que “o problema dos
rugidos de animais existentes é que a audiência reconhece os sons. Mesmo as
notas mais aterrorizantes seriam reconhecidas” (BOONE, 1933, p.21). Além
disso, King Kong fica até trinta segundos rugindo, enquanto que o elefante,
com a vocalização mais longa que Spivack conhecia, a mantém por no máximo
nove segundos (BOONE, 1933, p.22).
Apesar de Spivack ressaltar o problema dos sons serem reconhecíveis,
Burtt, em entrevista sobre o som do extraterreste em ET, sugere que ao mostrar
os sons para o diretor, o profissional evite explicar a origem dos ruídos:

Eu enviava fitas para o Spielberg sem dizer pra ele o que


era (o som) ou como eu tinha chegado naquele resultado para
que ele pudesse avalia-lo de uma forma pura. Este som (do
ET) era uma questão delicada. Era melhor não dizer “Ok, este
é um cachorro, o que você acha do som?”. Eu aprendi no
passado que, ao lidar com seu diretor ou produtor,
normalmente não é muito bom mostrar um som pra eles e
dizer: “Bem, aqui está o gato, ele soa como o monstro pra
você?”. E então eles dizem: “Bem, soa como um gato”. Fora de
contexto é muito difícil julgar estas coisas. Então, inicialmente,
a forma de trabalhar a voz (do ET) foi: “Eu vou fazer versões
dela e te mandar. Você ouve e diz se gostou ou não. Eu não
vou te dizer o que é ou quem é e desta forma você ficará fresco
– e é assim que a audiência ouvirá isso” (LOBRUTTO, 1994,
p.146).

163
Mesmo que o som seja reconhecível, ele tem uma capacidade de
ressignificação, a partir do efeito de sincronia com a imagem, o que veremos
mais adiante.
Independentemente do processo, é importante que o resultado
corresponde ao que vemos na imagem. E esta correspondência está ligada em
parte às expectativas do público, a partir dos códigos da ficção científica.
Caso o profissional consiga conquistar um balanço entre este repertório
e algum nível de abstração, a hesitação e o questionamento entre o natural e o
sobrenatural ocorrem potencialmente no espectador. Um exemplo de quando
este balanço não é atingido é quando acontece o que Whittington chama de
ruptura. Um som relacionado muito diretamente com a imagem, muito literal,
pode provocar este efeito de ruptura. “O som de um carro atual colocado em
sincronia com a imagem de um carro futurista seria imediatamente rejeitado
como sendo contrário às expectativas do gênero (...) ou visto como paródia”
(WHITTINGTON, 2007, p.99).
Vimos no Capítulo 2 que muitos dos monstros predecessores aos do
corpus no cinema soavam como o rugido de um grande mamífero. Além desta
origem poder remeter à sons de animais ameaçadores da natureza, como ursos
e leões, precisamos lembrar que King Kong em 1933, no início do cinema
sonoro, traz um design de som composto nessa linha. Portanto, até mesmo
pela sua tão mencionada influência nos filmes de monstro, podemos dizer que
boa parte dos sons de monstro que antecedem os do corpus são, em alguma
instância, similares a este. Chamemos esta categoria de Rugidos Kong.
Os sons que fazem parte do corpus da presente evitam a ruptura
mencionada por Whittington pois

• Levam em consideração a constituição do monstro (tamanho,


articulação, etc) em sua criação, o que não os faz soar incompatíveis
com as imagens apresentadas. Desta forma, trabalham com a
suspensão da descrença específica da ficção científica, que provoca

164
os questionamentos entre o natural e o sobrenatural.

• Reiteram, em parte, o repertório de vozes de monstro do gênero,


sendo que os três possuem momentos em que identificamos, por
exemplo, Rugidos Kong em sua vocalização.

Estes dois pilares se mantém para evitar a ruptura mencionada por


Whittington. No entanto, no que diz respeito ao repertório do som do monstro, o
corpus traz contribuições distintas. Seja um timbre diferenciado e mais
distinguível dos demais Rugidos Kong, seja outros sons que acompanham
aqueles do repertório do gênero.
Os monstros escolhidos possuem diferenciais e contribuem para ampliar
este repertório no imaginário, por mais que dialoguem com o que foi feito
anteriormente. Veremos a seguir, em maior detalhe, como se dá esta relação
entre o sound designer e o repertório midiático, bem como formas de
exercitarmos alternativas à mimese completa de sons já praticados no cinema,
sem novas proposições.

6.2. O criador e a memória do monstro

São complexos os caminhos para a criação de uma sonoridade,


especialmente daquilo que não encontra na natureza uma correspondência
direta, como é o caso do monstro de ficção científica.
Uma metáfora possível para esta complexidade está em narrativas
mitológicas como as Moiras. Lucia Leão, pesquisadora da PUC-SP, para
explicar a complexidade criativa, a partir das noções de Edgar Morin, sintetiza a
imagem das Moiras, divindades lunares e tecelãs do destino.

As Moiras, também denominadas Parcas na tradição


romana, são extremamente ambíguas. Por um lado, são elas
que criam o fio e os laços, sendo, portanto, a imagem daquelas
que ligam. No seu lado mais sombrio, temos a imagem daquela
que corta, da que possui a tesoura. A fiandeira, senhora dos

165
ritmos e dos movimentos circulares, é descrita por Porfírio
como sendo a senhora da Lua. A importância temporal destas
imagens é bastante forte: “começar” o tecido é dispor os fios
em cadeia para se esboçar uma trama” (LEÃO, 1999, p.62)

Pelo que vimos até aqui, esta noção de complexidade é capaz de


abarcar os movimentos criativos do processo que resulta no som do monstro.
Tanto as circularidades do repertório audiovisual e artístico, quanto o retorno à
memória dos criadores. E ainda, aquele que corta. No caso, as limitações
criativas impostas por ordem comercial, tecnológica ou por diretores envolvidos
no processo.
Sobre a memória dos criadores, em relação aos sons, tudo o que
ouvimos no decorrer das nossas vidas, seja no dia-a-dia ou nas mídias, forma
um repertório que influencia a leitura dos sons que ouviremos dali em diante.
Por isso Chion (2016, p. 28) diz que “percepção é apenas três quartos
percepção” Isso também acontece com outros sentidos. Entretanto, no âmbito
sonoro, o autor também ressalta que este fenômeno ocorre apenas com sons
“fixados”, ou seja, que ouvimos repetidas vezes e que conseguimos memorizar,
como os sons do bairro onde vivemos, do motor do carro que dirigimos ou das
músicas que ouvimos e dos filmes que assistimos mais de uma vez.
Sobre o repertório de sons construído pelo cinema, Ben Burtt fala sobre
o som comumente atribuído a um soco no rosto. Para Burtt, trata-se de um bom
exemplo do tipo de som que experimentamos pela primeira vez no cinema: “A
associação da maioria das pessoas de como isto deve soar não é porque
receberam um soco no rosto, mas porque ouviram isto centenas de vezes em
filmes” (LOBRUTTO, 1994, p.140). Edgar Morin nos lembra em O cinema ou o
Homem imaginário (2014) que o cinema, afinal, é capaz de relacionar
características de um universo ficcional àquelas da vida.

(O cinema) desenvolve um sonho consciente sob vários


pontos de vista, e sob todos os pontos de vista, muito bem
organizado. O filme é representação e ao mesmo tempo
significado. Ele remixa o real, o irreal, o presente, a vivência, a
lembrança e o sonho no mesmo nível mental comum (MORIN,
2014, p.240).

166
Percebemos, ao investigar o som dos monstros no cinema, que este
repertório sonoro das vivências e das mídias é fundamental neste âmbito de
criação. A partir das experiências criativas acerca dos monstros e suas
sonoridades (experiências que incluem os diretores, produtores e sound
designers mencionados neste trabalho até então), determinadas convenções
são pouco a pouco fixadas nos cânones da linguagem cinematográfica.
Além da memória das sonoridades do gênero ficção científica,
percebemos o papel da memória sonora individual nos três processos
analisados. No caso dos monstros do corpus, cada um dos três criadores foi
buscar em suas vivências as memórias sonoras que serviriam de base. Na
miríade de memórias sonoras de três distintos profissionais do som, cada um
recorreu ao seu território de maior conhecimento.
Burtt, com sua experiência com as gravações da natureza, recorreu aos
animais. Cullen, ao ver a criatura que parecia um caranguejo, usou o próprio
aparelho fonador para imitar uma lembrança de infância. Por fim, Ifukube,
músico, contou com o contrabaixo como base para os profundos graves que
precisava para a criatura gigantesca que sonorizou.
Trata-se da memória de um som monstruoso, poderoso, que se conecta
às vivências com a imagem da criatura a ser sonorizada. Morin afirma que

A fonte permanente do imaginário é a participação. Aquilo


que pode parecer o mais irreal nasce do que há de mais real. A
participação é a presença concreta do homem no mundo: sua
vida (MORIN, 2014, p.245).

A composição do resultado final se baseia em ferramentas, no dia-a-dia


dos profissionais de som. Por sua vez, tanto as memórias individuais dos sound
designers quanto os cânones sonoros da ficção científica estão relacionados a
mitos e narrativas, que constituem uma relação com o objeto/criatura a ser
sonorizado, algo que vimos com recorrência no Capítulo 2.

167
Na verdade, não se pode dissociar geneticamente as
participações imaginárias com animais e plantas da
domesticação dos animais e das plantas; nem o fascínio onírico
pelo fogo, da conquista do fogo. Assim também não se podem
dissociar os ritos da caça ou da fertilidade da própria caça ou
da agricultura. O imaginário e a técnica se apoiam
mutualmente, se ajudam mutualmente. Encontram-se sempre
não apenas como seus negativos, mas como seus
fermentadores mútuos. Assim, na vanguarda da prática, a
invenção técnica vem apenas coroar um sonho obsessivo.
Todas as grandes invenções são precedidas pelas aspirações
míticas e, sua novidade parece a tal ponto irreal que se veem
nelas exageros, encantamentos ou loucura... (MORIN, 2014,
p.248).

Para pensarmos nas conexões entre imaginário e técnica, ressaltadas


por Morin, podemos pensar o som como imagem. Esta visão é defendida por
Iazzetta em diversos artigos, sobretudo em A imagem que se ouve:

(...) imagem é tudo aquilo que representa algo, por


analogia ou semelhança, por figuração. Portanto, não seria um
ato irregular, nem mesmo um mero artifício de metáfora, usá-la
na representação de um outro campo que não fosse visual. (...)
o que dizer do som enquanto formador de imagens? Se é o
olho que conduz o entendimento de imagem dentro da arte, o
som se coloca como um outro, criando um contraponto entre o
olho e o ouvido, entre a visão e a escuta. Mas o que são os
sons senão uma representação acústica de algo? Assim como
acontece com aquilo que vemos, o que ouvimos é a impressão
criada pelo nosso aparelho sensório-mental a partir de
estímulos externos: ondas acústicas de natureza mecânica no
caso dos sons e ondas luminosas de natureza eletromagnética
no caso das luzes que compõem o que vemos. Som e luz não
são opostos, mas parentes em suas capacidades de
impressionarem nossos sentidos. Ambos originam-se de uma
fonte e são refletidos nos objetos que fisicamente ocupam o
ambiente. Ao mesmo tempo em que há uma diferença em suas
naturezas - mecânica e eletromagnética -, há também uma
semelhança em seus modos de operação na forma de ondas
que se propagam no ambiente. Assim, não me parece um
problema tomar ambos, o som e a luz, como geradores de
imagem (IAZZETTA, 2016, p.377-378).

Neste contexto, até mesmo para evitar a ruptura, como mencionado


anteriormente, sound designers (bem como demais artistas do fazer midiático)
durante o processo de criação, podem encontrar-se constantemente presos aos

168
códigos vigentes que já demonstraram êxito no processo comunicacional do
audiovisual. Como a maioria das peças audiovisuais encontra-se dentro de um
sistema que depende de vendas, acessos, público, enfim, sucesso comercial
em geral, o profissional de som no cinema muitas vezes acaba por replicar as
imagens.
Ao trabalhar com bibliotecas de som, que são compostas por diversos
arquivos sonoros, por um período considerável de tempo, tendemos a
memorizar alguns destes sons. E é muito comum encontrá-los no audiovisual: o
lobo que vemos em vários filmes usa muitas vezes o mesmo uivo de lobo de
determinada biblioteca, igualmente para sons de bebês chorando, portas e
efeitos sci-fi gerais que, mesmo que não usem o exato mesmo som, fazem
pequenas adaptações de timbres e características já conhecidas. Ou seja:
estes sons estão na memória. O público já tem um referencial de como soariam
armas e naves futuristas tamanha a replicação das mesmas fórmulas, por
exemplo. Desta forma, pelas sucessivas repetições que apresentam um menor
risco, encontramos nas mídias muitas vezes os mesmos sons para monstros
gigantes e monstros com características físicas de répteis, entre outros.
Entretanto, muitos monstros midiáticos possuem características
específicas que poderiam dar outros direcionamentos em um processo criativo.
Sobre isso, podemos trazer reflexões contidas em aulas transcritas de Ivan
Bystrina, estudioso da semiótica da cultura. Bystrina fala sobre textos
complexos e dos códigos que os compõem. Neste contexto, cada objeto
carrega vestígios de textos culturais. Um exemplo são as flores nos túmulos
durante ritos de sepultamento: esta tradição estava presente já entre os
Neandertais (BYSTRINA, 1995, p.4).

Cada objeto conhecido por nós contém em si uma


informação latente, que nós percebemos pelos nossos
sentidos. Neste momento, aquela informação latente modifica-
se e se transforma numa informação atualizada. Por isso. tudo
o que percebemos já é uma informação atualizada do objeto.
Os signos são objetos especiais porque não contêm apenas
informações sobre si próprios, mas também informações sobre
aquilo que está imanente dentro dele (BYSTRINA, 1995, p.4).

169
É possível relacionar esta afirmação de Bystrina com os processos aqui
estudados. Desta forma, tendo os monstros aparências e histórias distintas,
estes tem potencial de imanência de características particulares, ligadas à
memória, que podem fomentar a criação de novas imagens sonoras,
específicas.
Ao analisar os processos de criação do corpus da presente pesquisa,
percebe-se que as imagens sonoras do Godzilla, do Predador e do Chewbacca
dialogam com imagens presentes na memória de seus criadores, que trazem
experiências colaterais para a criação. Talvez por isso estas sejam
especialmente reconhecíveis e lembradas pelo público, como seu uso em
produções de fãs e merchandisings afins transparece.
O Godzilla poderia soar como o King Kong, que é uma referência
bastante consolidada em termos de monstros gigantes, como já vimos. Apesar
de trabalhar a ideia das dimensões do monstro de forma semelhante, trazendo
elementos que dão ideia de grandiosidade (veremos esta questão em breve,
neste capítulo), o som do Godzilla original tem particularidades que o
distinguem de qualquer outro monstro gigantesco. A história da criatura, ligada
às vivências de guerra do Japão e a experiência do músico Akira Ifukube,
conhecendo os ruídos provenientes de instrumentos musicais, mesmo que não
utilizados da forma tradicional, trazem esta particularidade.
Em Predador, Peter Cullen traz uma memória sonora de infância de um
bicho em particular, o caranguejo-ferradura, em uma situação que parece tê-lo
afetado emocionalmente: ver o inseto de barriga para cima agonizando no sol.
Cullen replica este som que faz parte de suas experiências com a natureza e
atribui à criatura uma imagem sonora endógena, pelas conexões imagéticas
que este fez entre o Predador e o caranguejo.
Ao pensar o som do Chewbacca, e de tantos outros efeitos marcantes de
Star Wars, Ben Burtt já começou com um limite criativo imposto por George
Lucas: as referências do filme não deveriam vir de filmes de ficção científica
anteriores. Este direcionamento impôs uma barreira para o simples
espelhamento de imagens exógenas e de códigos de comunicação já

170
utilizados. Em sua infância, Burtt acompanhou o avô em gravações de sons de
pássaros, em um contato com as sonoridades da natureza. Lucas também traz
uma experiência particular para a criação dos sons, em especial do
Chewbacca, quando este se lembra do companheirismo de seu cachorro
Indiana e indica que Chewbacca possui semelhanças com ele.
Esta mistura de memórias e experiências trazem para o processo de
criação, além da articulação com o repertório midiático, o que evita a ruptura, o
diálogo com imagens endógenas. Estas que contribuem com novas
perspectivas para o repertório do cinema. Isto é uma das formas pelas quais
podemos explicar o reconhecimento destes sons como alguns dos mais
marcantes dentre tantos rugidos de monstro que existem na história do cinema.
O método que apresentamos no final deste capítulo pretende, portanto,
fomentar a criação de novos sons de monstro, trazendo um ponto de partida
possível para evitarmos a mera replicação de fórmulas estabelecidas pela
tradição dos filmes de ficção científica, fantasia e terror. No entanto, para
evitarmos a ruptura, podemos nos inspirar em algumas convenções que
dialogam com a suspensão da descrença própria da ficção científica.

6.3. Memória e resgate do repertório do som do monstro

Falaremos agora sobre algumas convenções sonoras do gênero que são


praticadas nos filmes analisados no corpus, já que descobrimos como o ato de
estabelecer estas relações é importante para evitar a ruptura nos filmes de
ficção científica. Para tal, utilizaremos como referência a obra de Rick Altman,
em articulação com outros, sobretudo Chion.
Para enriquecer a discussão acerca do som cinematográfico e de suas
particularidades, saindo das amarras das definições próprias do universo da
música, da voz ou da simples identificação do emissor, Altman sugere diversos
termos. No final da obra Sound Theory Sound Practice, editada por Altman, que
conta com artigos de vários pesquisadores de som cinematográfico, o autor faz
um apanhado de vários termos, cunhados por ele e pelos outros autores, para

171
ajudar na construção de um vocabulário deste campo de pesquisa (ALTMAN,
1992, p.251-252).
A proposição abarca muitos termos. No entanto, é válido destacar alguns
que nos auxiliam na análise do som dos monstros do cinema. Suas
denominação e respectivas descrições constam na tabela abaixo.

Termo Definição
Avanço Sonoro (Sound Advance) A introdução de um som antes da
imagem com o qual está associado.
Hermenêutica Sonora (Sound Do ponto de vista da experiência do
Hermeneutic) espectador, quando este se pergunta
“De onde vem esse som?” e logo a
imagem identifica a sua fonte,
mostrando a sua origem.
Escala Sonora (Sound Scale) O tamanho atribuído a uma imagem,
em razão do som que esta emite.
Correspondência de Escala (Scale A correspondência do tamanho/escala
Matching) do som e do tamanho/escala da
imagem.
Tabela 5. Quatro expressões sugeridas por Rick Altman para serem inseridas
nos vocabulários de estudiosos do som cinematográfico (ALTMAN, 1992,
p.251-252).

A seguir vamos compreender de que forma estes termos ajudam na


identificação de reiterações do repertório do som do monstro praticados pelo
corpus da presente pesquisa. Lembramos que os quatro recursos de linguagem
descritos acima estão fortemente relacionados entre si, não sendo exclusivos.
Cada uma das características dialoga com a outra e auxiliam todas juntas na
construção da imagem sonora do monstro.

6.3.1. Avanço sonoro

172
Quando os filmes trazem monstros dentre as suas personagens,
sobretudo se são filmes do gênero terror/suspense, não é incomum
encontrarmos uma fotografia low key. A fotografia low key confere predileção a
enquadramentos escurecidos, com pouca luminosidade, o que representa,
neste caso, uma aparição não muito explícita dos monstros no decorrer dos
filmes.
A escuridão típica destes filmes constrói uma relação com o mistério que
circunda as criaturas. Existe um esforço para gerar sentimentos de antecipação
e expectativa no público. Sobre uma voz ou um ruído de algo que ainda não foi
visto em um filme, Chion diz que “(...) torna-se investida com poderes mágicos
assim que envolvida, mesmo que levemente, na imagem” (CHION, 1999, p.23).
A interação entre o visível e o invisível, entre a clareza da luz e o mal
que supostamente se esconde na escuridão, é central a muitas obras de terror
do cinema. Filmes como Godzilla e Predador, que se encontram nesse limiar
híbrido de gêneros entre terror, ficção científica e fantasia, fazem uso desta
tradição.
Muitas vezes, nestes filmes, somos apresentados primeiramente ao som
emitido por este, como fator a potencializar a expectativa da revelação da
imagem do monstro.
Em Predador, dentre os três monstros do corpus, vemos o maior uso
deste recurso. Ao assistir o filme de 1987, o espectador passa muito tempo
tendo apenas pistas de como é a imagem do monstro. Até a aproximação do
final do filme, o espectador apenas ouve, constantemente, os cliques que a
criatura emite. A imagem aparece apenas em uma forma camuflada, que oculta
maiores detalhes da ameaça que está na floresta. O filme também apresenta o
ponto de vista do monstro, o Predavision, também impregnado de códigos
sonoros. Quando somos finalmente apresentados à imagem do monstro, temos
também mais surpresas sonoras, como sua voz sem máscara e a perfeita
imitação da voz humana, que emite poucos segundos antes de morrer.

173
Figura 67. Fotograma do filme Predador (1987). O sistema de
camuflagem/invisibilidade do monstro começa a falhar e finalmente somos
apresentados à imagem do monstro, depois de passar a maior parte do filme
apenas ouvindo suas emissões sonoras e vendo sob seu ponto de vista.

A técnica do Avanço Sonora também está em Godzilla (1954). No filme,


o público das salas de cinema tem um primeiro contato com o monstro no
letreiro de abertura (excetuando, é claro, o material promocional [cartazes,
pôsteres] que o revelava). Antes de ver o monstro gigante, o público ouve seu
rugido furioso acompanhado dos ideogramas que revelam o título do filme,
homônimo, como no fotograma abaixo.

174
Figura 68. Fotograma do letreiro de abertura do filme Gojira (1954). Enquanto
lemos o nome do monstro, ouvimos o seu rugido pela primeira vez. Um
exemplo de Avanço sonoro que provoca antecipação.

A tradição se manteve em Godzilla (2014). Neste caso, o filme demora


consideravelmente para revelar a figura do monstro principal e ouvimos o
rugido pela primeira vez apenas neste momento de revelação. A questão aqui é
outra: como o filme apresenta uma releitura do monstro, sendo o rugido do
Godzilla uma característica tão fundamental na construção da personagem, o
diretor trabalha o suspense também desta qualidade. Na mixagem do som, logo
antes da câmera percorrer o corpo do Godzilla de baixo para cima até revelar a
cabeça do monstro, percebemos um trabalho de trilha musical e de ambiência
sonora que antecipa o evento principal, para conferir-lhe uma revelação mais
impactante.
O grito das pessoas na cidade silencia assim que ouvimos o estrondo
feito pela pisada do Godzilla. Na trilha musical, um crescendo dissonante
acompanha a câmera, que lentamente percorre o monstro. As frequências vão
ficando cada vez mais agudas, em uma estratégia de composição recorrente

175
para gerar suspense no cinema34. E então esta música cessa, subitamente,
para logo depois ouvirmos o rugido do Godzilla. Só neste momento a revelação
do monstro no filme está completa.

Figura 69. Fotograma do momento de revelação do Godzilla (2014), no qual


ouvimos pela primeira vez o seu rugido.

6.3.2. Hermenêutica Sonora

Além do Avanço Sonoro, temos também o exemplo do que Rick Altman


chama de Hermenêutica Sonora. Em The voice in cinema, Chion fala sobre
como o som sincronizado é deixado de lado nas análises por ser muitas vezes
considerado “redundante”.

“Os sons sincronizados são frequentemente esquecidos como


tais, engolidos pela ficção. Os sentidos e efeitos gerados pelos
sons sincronizados são normalmente contabilizados à imagem
em si ou ao filme em geral. Somente os criadores do som de
um filme- técnicos de som direto, desenhistas de som,
mixadores, diretores – sabem que se você alterar ou remover
estes sons, a imagem não é mais a mesma (CHION, 1999, p.3-
4).


34
Chion explica que uma nota que é tocada e vai desaparecendo (deixando o rastro sonoro, que
chamamos de sustain e release) “conta a história” de um desaparecimento. Em contrapartida, a nota
invertida, que começa do rastro e termina em seu ponto mais forte (o attack), dá a ideia de surgimento.
Desta forma, o segundo, da nota invertida, nos faz prestar mais a atenção (CHION, 2016, p.36).

176
Por mais que um som específico esteja em sincronia com determinada
imagem, este possui características que serão determinantes para o efeito
desejado, ou seja, o som é fundamental para o entendimento de qual objeto ou
criatura em cena é seu emissor. De acordo com seu timbre, com suas
principais frequências e sua reverberação, por exemplo, o espectador vai
acreditar ou não que o som veio da fonte em cena. A imagem de uma moto ao
ar livre em sincronia com o som de uma moto, gravado em um galpão, pela
total diferença de padrões de reverberação nos sons, causa estranheza no
espectador.
As particularidades dos processos de seleção de sons compatíveis para
o alcance do efeito desejado são comentadas por Virgínia Flores, montadora
de som e imagem no cinema brasileiro, também autora da obra O cinema: uma
arte sonora:

Ou seja, existe escolha nesse trabalho, e esta seleção


leva em consideração justamente as características de cada
som, sua materialidade e sua singularidade, além de todas as
possibilidades imagéticas por ele suscitadas mentalmente
(FLORES, 2013, p.30).

Desta forma, relacionando com o objeto da presente pesquisa, os sons


dos filmes mencionados podem ser considerados parte do repertório de muitas
pessoas. Especialmente os grupos que consomem ficção científica e fantasia,
ouvindo repetidas vezes os sons determinados para armas, naves e monstros.
Sempre que uma nova nave espacial surgir no cinema, para estes que tem
entre os filmes mais assistidos os de ficção científica, o som de várias naves de
produções anteriores vai operar na percepção como um ponto de referência e
será criada uma expectativa sonora.
No universo das produções midiáticas, a Hermenêutica Sonora não
significa que a rápida identificação entre som e imagem seja algo obrigatório. A
aparente incompatibilidade corpo-voz dentro do recorte do monstro no cinema
também produz resultados interessantes, como exemplifica Rodrigo Carreiro e
Suzana Reck Miranda, pesquisadores das Universidades Federais de

177
Pernambuco e de São Carlos, respectivamente, em artigo sobre as
representações sonoras do diabo no cinema. Esta personagem é representada
em O Exorcista (The Exorcist, 1973) por uma menina possuída. “(...) um
monstro sobrenatural – um monstro que preservava algumas características
físicas humanas, mas possuía o poder de transgredir essa humanidade”
(CARREIRO; MIRANDA, 2015, p.124). Quando possuída pelo diabo, a voz da
menina provoca um estranhamento, que deriva da incoerência corpo-voz. Neste
caso, esta elaborada incoerência produz um efeito muito interessante.

Durante as filmagens, Linda Blair foi dublada por uma


atriz mais velha. Mercedes McCambridge não era apenas uma
veterana de prestígio, dona de um Oscar, mas também uma
veterana oriunda do rádio. Para emprestar ao personagem o
tom gutural, rascante e sobre-humano de voz que o diretor
precisava, ela recorreu a truques elaborados por consultores de
fonoaudiologia: comia ovos crus, fumava cigarros e bebia
uísque antes das sessões de gravação. No período de pós-
produção, outros sons foram adicionados às falas do
personagem: sussurros quase inaudíveis, trechos de frases
faladas por outros atores de trás pra frente e/ou com a
velocidade de reprodução reduzida, além de gritos de porcos
sendo abatidos e rugidos de leões (CARREIRO; MIRANDA,
2015, p.124)

Chion, sobre este trabalho de voz em O Exorcista, comenta: “O conjunto


produz um efeito aterrorizante devido a relação de estranheza que o
espectador faz entre o corpo visível e a voz (CHION, 1999, p.132). Este efeito
era a proposta evidente do diretor de O Exorcista, William Friedkin, conquistado
justamente através da aparente incoerência entre imagem e som.
De fato, como afirma Virgínia Flores, “Os filmes sonoros surgem da
tensão criada pela heterogeneidade de suas duas bandas: a imagem e o som.
Essa heterogeneidade favorece o desdobramento de formas diversas de
interpretação“ (FLORES, 2013, p. 28).
Chion fala da importância da sincronia para determinar o valor agregado
entre som e imagem. Segundo Chion, o mesmo som pode ser utilizado em uma
situação cômica ou assustadora e o que determina esta condição não é a
verossimilhança do som com a fonte em si, mas as convenções da linguagem

178
cinematográfica, como a própria sincronia entre imagem e emissor de som. Um
exemplo dado pelo autor é o som de um melão sendo esmagado, ação
bastante usual nos processos de foley. O som de um melão sendo esmagado
em sincronia com a imagem de um melão sendo esmagado não nos causa
apreensão, repulsa. No entanto, se estiver em sincronia com uma cena na qual
temos a sugestão de uma cabeça esmagada, por exemplo, como acontece em
A Pele (La pelle, 1981), teremos estas sensações. No filme, um homem35 é
atropelado por um tanque de guerra e ouve-se o som da sua cabeça sendo
esmagada, feito, muito provavelmente, com o foley de alguma fruta em estúdio
(CHION, 1994, p.22-23).
Chion (1994) comenta também os efeitos do que chama de síncrese
(synchresis). Trata-se do fenômeno pelo qual, a partir de uma dada sincronia
entre imagem e som, acreditamos que aquela imagem seja a fonte do som que
ouvimos. “A síncrese é o que torna a dublagem, a pós-sincronização e a
mixagem de efeitos sonoros possível, e permite a grande possibilidade de
escolhas nestes processos” (CHION, 1994, p.63). Chion, no entanto, afirma que
esta relação de síncrese não é totalmente automática. “Toque uma sequência
de eventos randômicos de áudio e de vídeo e você verá que algumas vão se
juntar pela síncrese e outras não” (CHION, 1994, p.63).
No obra de Jacques Tati, amplamente relembrada pelo uso criativo de
sons, a síncrese é determinante para identificarmos, enquanto espectadores,
qual é a fonte do som que ouvimos em cena. Os sons, que fortalecem as
pantomimas, não parecem com aqueles que os objetos em cena naturalmente
emitiriam.

(...) em um filme de Tati, a presença do som insiste em


ser ouvida. (...) Estes “flatos” – muitos sons em um filme de Tati
soam como flatos – nunca revelam o volume, a massa ou a
força dos corpos que os emitem (CHION, 2003, p.121).


35
Chion, em sua obra, comete um pequeno engano: ele diz que um menino teve a cabeça esmagada,
mas a sequência da cena mostra o menino saindo com vida de baixo do tanque. Quem sofre a morte
terrível na verdade é o homem que o segura no colo.

179
Por mais que exista esta discrepância entre emissor e som nos filmes de
Tati, não temos dificuldade em identificar e aceitar as relações entre som e
imagem propostas pelo diretor.
No dia-a-dia, ao ouvir um ruído e desejar identificar sua fonte, tendemos
a procurar este emissor com os olhos, virando o rosto na direção do som. De
fato, apesar de nossas orelhas ficarem nas laterais da nossa cabeça, os sons
que ouvimos com melhor definição são aqueles que vem no sentido do nosso
rosto, no caso, com os olhos mirando diretamente a fonte de emissão. Ou pelo
menos o que nos parece a fonte emissora: em vários momentos o que vemos
como a provável fonte de um som não é na verdade de onde ele vem. Um bom
exemplo são palestras, onde uma pessoa fala em um microfone. Distantes, na
plateia, tendemos a olhar para o orador e identificá-lo como a fonte do som que
ouvimos, mas muitas vezes os falantes que reproduzem o som capturados pelo
microfone estão dispostos nas laterais do palco ou do auditório, relativamente
distantes do palestrante. O movimento ocular reforça a localização auditiva.
Esta “magnetização” do som com a fonte visível acontece em maior potencial
com sons monofônicos, já que em sons estereofônicos é possível trabalhar a
espacialização diretamente na fonte sonora (CHION, 2016, p.25).
Sendo assim, como vocalizações são monofônicas, já que são emitidas
por apenas um canal, a boca, estas estão ligadas a este fenômeno de
magnetização do olhar e do ouvir.
Muitas vezes, no entanto, um filme não necessariamente responde para
nós onde está o emissor de um determinado ruído. Este uso do som é o que
Altman chama de semi-sincronia (semi-sync): quando nem todos os ruídos tem
um emissor claro na montagem, mas participam de um contexto em que não
causam estranheza e tem uma leitura clara do espectador. Por exemplo, ao
ambientalizar personagens em um parque, é comum que ouçamos pássaros,
mesmo sem que a montagem enfatize a sua presença. Por sabermos que
pássaros são esperados na ambiência sonora de um parque, não temos
questionamentos sobre a sua presença. Existe ainda o fenômeno que Chion
chama de acousmêtre, representado por quando não vemos a fonte de um

180
som, geralmente a voz, mas ainda assim a ouvimos do centro da tela do
cinema, como a maioria dos sons que possuem imagens correspondentes na
diegese. A noção de acousmêtre possui potencialidades interessantes, dentre
elas o Avanço Sonoro, como explicado anteriormente.
No entanto, quando um som específico não faz parte do nosso repertório
com precisão, portanto não reconhecível, e o filme não nos apresenta o
emissor, construímos a imagem mental daquele som, a partir de relações de
proximidade.
Em Godzilla e em Predador, ouvimos o som dos monstros antes de
compreender quem são, utilizando o recurso de antecipação apresentado como
Avanço Sonoro. A Hermenêutica Sonora nos ajuda a compreender como é forte
esta antecipação pois, se o fenômeno compreende a pergunta do espectador e
a resposta do filme para “Quem emitiu esse som?”, deixar o público sem esta
resposta durante boa parte do filme quebra com um dos recursos
cinematográficos mais tradicionais. Nesta incompletude da Hermenêutica
Sonora, o espectador fica um tempo considerável do filme tentando responder a
questão, descobrir o emissor, o que engrandece o momento da revelação do
monstro.
Outra relação com a Hermenêutica Sonora são as características do
aparelho fonador dos monstros e dos sons que emitem. Nos três casos, os
sons correspondem as limitações ou particularidades do corpo do monstro.
Chewbacca tem um movimento mandibular restrito, o que fez com que Burtt
procurasse sons de animais que emitem vozes a partir da garganta. Os cliques
do Predador são justificados pela anatomia de suas quatro mandíbulas
articuladas. E Godzilla também corresponde a restrição de movimento
mandibular. Mas, no caso do último, outras circunstâncias são importantes para
efeito de Hermenêutica Sonora, como a Escala Sonora, que veremos a seguir.

6.3.3. Escala Sonora e Correspondência de Escala

181
Sergei Eisenstein, teórico da montagem e diretor de cinema, fala sobre o
poder da montagem e de como, no cinema, é possível fazer algo menor parecer
maior e mais assustador.

(...) as leis da perspectiva cinematográficas são tais que


uma barata filmada em primeiro plano aparece na tela cem
vezes mais perigosa do que uma centena de elefantes tomados
em plano conjunto (EISEINSTEIN, 1974, p. 112).

Eisenstein, na prática, utilizava uma complexa sucessão de planos e


montagens internas para trabalhar os diferentes tamanhos no enquadramento,
como no exemplo do fotograma abaixo, em Ivan, o Terrível (Иван Грозный,
1944). Para dar a dimensão de Ivan em relação ao seu subalterno, Eisenstein
utilizou as sombras projetadas na parede.

Figura 70. Fotograma do filme Ivan, O terrível (1944). Eisenstein usa as


sombras na parede para mudar a perspectiva de escala das personagens.

Caso fossemos tomar o exemplo hipotético da citação de Eisenstein,


Chion argumenta que, mesmo que o enquadramento mostre algo que é
pequeno em close ou algo que é grande em um plano aberto e afastado, temos
uma ideia da escala de tamanhos. Chion também relaciona esta noção com o
som, dizendo que neste caso ocorre o mesmo fenômeno: “Certos sons, mesmo
quando estão em alto volume e são ouvidos de perto, conjuram fontes

182
emissoras pequenas” (CHION, 2016, p.7). No som, inclusive, não seria
necessário saber o que especificamente o emitiu para termos uma noção de
tamanho da fonte.

Para alguns sons, conseguimos produzir uma


representação da força do emissor em relação à nós sem
precisar identificar a causa, independentemente da intensidade
na qual o som nos alcança. Chamamos isto de “peso-imagem”
do som ou, para explicar de outra forma, a representação
(estável, independente da intensidade do som difuso ou da
distância em relação à fonte) da força da causa do som em
relação a nossa escala (CHION, 2016, P.7-8).

O peso-imagem sonoro, como denomina Chion, é a correspondência de


determinado som a várias qualidades que indicam distância, tamanho da fonte,
movimento e imagens associadas em geral.
Christian Metz argumenta que, pensando na linguagem como um
metacódigo dos sons, a identificação do emissor costuma ser mais importante
do que as qualidades sonoras em si para a comunicação de um determinado
ruído. Por exemplo, em “estrondo de trovão”, por exemplo, o reconhecimento
da informação se dá mais a partir de trovão do que de estrondo, que seria a
palavra que faz menção ao som propriamente dito. Sendo assim, mencionar um
trovão comunica o som melhor do que mencionar um estrondo. O mesmo com
“o som de um jato”. Existe maior clareza ao mencionar o jato, ou seja, na
descrição do emissor, do que nas tentativas de efetivamente dar nome às
características sonoras, que surgem como adjetivos dispensáveis (METZ, 1980,
p.29). No entanto, Metz fala da existência de objetos sonoros (aural objects),
que são reconhecíveis em sua característica, mesmo que não saibamos a fonte
emissora. O exemplo de Metz é lapping, no original em francês clapotis. Para o
português traduz-se como marulho, definido como “agitação ligeira das águas
do mar, de caráter permanente, que produz um barulho particular” 36 . Metz
explica que o termo marulho compacta diversos semas, ou unidades mínimas
de significação:


36 Definição disponível em < https://www.dicio.com.br/marulho/ >. Acesso em 20/7/2017.

183
- Som relativamente fraco (em oposição a “berreiro” ou “grito”)
- É descontínuo (em oposição a “som ambiente” ou “assobio”)
- É duplo acusticamente, ou seja, sua ocorrência está em pelo menos
dois sons sucessivos (em oposição a “detonação” ou “estrondo”)
- O som parece causado por um líquido (em oposição a sons como
“arranhado”, que apresentam o sema de sólidos ou “murmuro” e
“sussurro”, de gasosos) (METZ, 1980, p.24).

Somos capazes de tirar várias conclusões sobre o som do marulho ao


ouvi-lo e também ao ler a palavra marulho. Este, portanto, seria um exemplo de
um objeto sonoro, carregado de significados, a partir da nossa relação sonora
com o mundo.
Outras características também mudam a leitura dos sons. Por exemplo,
sons de emissores próximos tendem a uma ênfase maior nas frequências mais
altos (agudas) e fortes reverberações criam um grande “peso-imagem”, por
sugerirem ambientes e/ou emissores grandes. Portanto, ao ouvirmos, mesmo
que com distância da fonte e consequente volume reduzido, o som de um
canhão ou trovão, teremos a consciência de que é um som que vem de uma
fonte “grande”.
O som do Godzilla, mesmo ouvido de longe, já amedronta os moradores
da cidade. Estes sabem que só algo gigantesco seria capaz de emitir o rugido e
os ruídos provocados pelos seus passos.
A Escala Sonora também está presente no acompanhamento musical.
Sendo a música tradicionalmente uma guia de leitura da imagem bastante
influente na experiência de assistir um filme, podemos percebe-la também
conferindo qualidades de tamanho/volume para o monstro.
Em uma técnica tradicionalmente conhecida como Mickey Mousing, a
composição musical acompanha determinada movimentação em cena. Por
meio do efeito da síncrese relacionamos um movimento ou ação com a música.
Um exemplo de Mickey Mousing é a trilha de Max Steiner em King Kong (1933),

184
no momento em que notas musicais decrescentes acompanham o movimento
do chefe da tribo descendo as escadas.
Altman sugere o uso do termo Som Isomórfico, quando som, música ou
ruído acompanha determinada ação ou ritmo em um filme, ou Som icônico,
quando esse acompanhamento assume o caráter de uma analogia. Ambas
podem descrever o mesmo uso do som em um determinado filme. Altman
sugere estas nomenclaturas por acreditar que o termo Mickey Mousing seja
pejorativo (por fazer referência a desenhos animados) e uma determinação de
que o som seja não-diegético e musical. No caso das denominações de Altman,
há uma liberdade neste sentido e ambas não se excluem (ALTMAN, 1992,
p.202).
Utilizando as sugestões de nomenclatura de Rick Altman, podemos
considerar um Som Isomórfico e Icônico, por exemplo, em O Gordo e o Magro
(Laurel and Hardy, 1926-1951), quando ouvimos um sino se um deles leva uma
pancada na cabeça: além de acompanhar o movimento do gesto, faz referência
à intensidade da batida da mão na cabeça.
Os monstros se valem também de composições isomórficas para dar a
ideia de escala. Quando Godzilla pisa em terra firme e ouvimos grandes
batidas, graves e intensas, sabemos que foi um som provocado por algo
grande, como mencionamos anteriormente. E, sendo a onda sonora um produto
de deslocamento de matéria, “(...) só existem sons, quando algo está em
movimento” (CHION, 2016, p.109). Portanto, a constância do som,
complementarmente, deixa clara a ideia de deslocamento desse emissor
gigantesco. Dependendo das qualidades dos sons dos passos, como
intensidade e região de frequências, também conseguimos deduzir se este se
aproxima ou distancia. São muitas as informações que o som transmite na
perspectiva da análise da Escala Sonora.
A importância destas características aparece também na composição do
aparato cinematográfico. Os Rugidos Kong, tradicionais em filmes de monstro,
podem se aproveitar dos sons graves/baixos para trazer signos de grandeza
para a criatura. Estes estão também alinhados ao potencial de reprodução de

185
baixas frequências (graves) em salas de cinema, principalmente graças a
tecnologias de reprodução como as caixas de som do tipo subwoofer,
populares a partir dos anos 1970. Este alto-falante, geralmente centralizado
abaixo da tela de cinema (dada a característica mais omnidirecional deste tipo
de onda sonora - se propaga para todos os lados igualmente), tem como
função reproduzir frequências bem graves, por volta de 20 e 80Hz37. Sobre o
efeito dos graves nas salas de cinema, Luiz Adelmo Manzano diz que

O efeito da acentuação de tal gama de frequências é


notado claramente em filmes de aventura e ação, à medida que
é enfatizada uma vibração que envolve a sala de cinema e
acaba por envolver também o espectador, provocando um
efeito até psicológico, às vezes subliminar (MANZANO, 2010,
p.21).

Sendo que o cinema se vale das qualidades do dispositivo para atrair o


espectador, em todo seu potencial de imersão, a potência do rugido do
monstro, reproduzido em sistema de som ideal, torna-se um chamariz
importante para as audiências. David Stone, supervisor de som em Predador
(1987), diz que “Sempre sentimos, intuitivamente, que sons de baixas
frequências são mais masculinos ou pelo menos mais ameaçadores para as
audiências (RIEHLE, 2010).
Carreiro, em artigo sobre o som do cinema de horror, menciona a
relação dos sons graves com questões fisiológicas do ser humano.

Não é difícil explicar a preferência por vozes com baixas


frequências reforçadas para os antagonistas do horror. Se os
timbres agudos dos tenores ou sopranos sugerem mansidão,
tranquilidade e doçura, a textura grave dos barítonos possui
certas semelhanças com os urros produzidos pelas cordas
vocais dos animais selvagens, mais perigosos e imprevisíveis.
Por consequência, esse tipo de voz provoca sobressalto e
desconforto, sugerindo que seu dono representa agressividade
e ameaça, gerando dessa forma o sentimento do horror nos
espectadores. A prática de escalar um ator com voz grave para
interpretar um vilão (ou substituir sua voz por outra, mais
gutural) constitui uma convenção que tem origem em um


37
Exemplo correspondente ao subwoofer do sistema THX.

186
processo cognitivo de percepção da espécie humana
(CARREIRO, 2011, p.46).

A escala, portanto, quando refletida nas frequências graves, não se


restringe apenas a imensidão das criaturas, mas ao seu grau de ameaça. Nos
monstros do corpus, está presente sobretudo quando estes demonstram fúria.
Vimos algumas formas de como os monstros do corpus dialogam com o
repertório dos filmes de ficção científica para corresponder às expectativas da
audiência.
Veremos a seguir que, se partirmos para uma análise mais detalhada
das vozes dos monstros, conseguimos compreender, além das já mencionadas,
outras formas mais específicas e particulares pelas quais os monstros do
corpus contam suas histórias através dos sons que emitem.

6.4. Que história conta o som do monstro? Uma análise da Modalidade


dos sons

Em Audiovision (1994), Chion propõe a ideia de um Contrato


Audiovisual, no qual som e imagem acrescentam valores um ao outro (added
value). Entramos em contato com um significado diferente quando apenas
vemos a imagem ou apenas ouvimos o som. A soma dos dois gera um
significado totalmente diverso, que é produto do intercâmbio de signos entre
estes dois unos. O múltiplo é maior e extravasa o significado das partes
separadas.

Por Valor Agregado eu digo o valor expressivo e


informativo com o qual o som enriquece uma dada imagem
para gerar a impressão definitiva, na imediata ou lembrada
experiência que alguém tem de algo, que esta informação ou
expressão “naturalmente” vem do que é visto e está
naturalmente contida na imagem em si (CHION, 1994, p.5).

O conceito de Valor Agregado ilustra o que o sound design busca criar


em relação a imagem no corpus contemplado nesta pesquisa. Por mais que
Chewbacca, Godzilla e Predador não tenham referências imagéticas de

187
similaridade muito aproximadas na natureza, o som criado para cada uma
destas criaturas passa uma ideia de pertencimento. Este sucesso auxilia na
imersão do espectador, pois a identidade sonora é parte fundamental da
construção destas personagens.
No caso do audiovisual, como afirma Chion, a análise do som está em
relação à uma imagem. O autor inclusive critica o termo soundtrack/trilha
sonora, por não acreditar que o som de um filme seja uma unidade com
significação autônoma. Para Chion, a relação mais importante entre som e
imagem é a noção de pertencimento, de um múltiplo onde um está contido no
outro e é naturalmente fundante do outro (CHION, 1994, p.5).
Entretanto, para concentramos na tarefa de analisar o som produzido
pelos monstros que estudamos, precisamente a voz, vamos exercitar nas
próximas páginas uma das metodologias de análise propostas por Chion
chamada de Método das Máscaras. Este método de observação, como aponta
Chion, resume-se em ouvir o som sem ver a imagem e ver a imagem sem ouvir
o som. Isso evitaria que possíveis mascaramentos do som acontecessem por
sua relação com a imagem e vice-versa. Permite “ouvir o som como ele é, e
não o som que a imagem transforma e disfarça” (CHION, 1994, p. 187).
Em um primeiro momento, vamos exercitar, portanto, o isolamento do
som de seu contexto para tentar compreender em maior profundidade quais
signos sonoros estão expressos nas vozes dos monstros estudados. Afinal,
Chion afirma que “o contrato audiovisual nunca cria uma fusão absoluta de
elementos de som e imagem. Este ainda permite que os dois existam
separadamente enquanto em combinação.” (CHION, 1994, p.188).
Muito comumente, para explicar as propriedades dos sons, estudiosos
tendem a se apoiar em nomenclaturas dos estudos da música. Por exemplo,
David Bordwell e Kristin Thompson (in WEIS; BELTON, 1985, p.184-185)
sugerem que as principais características para analisarmos o som
cinematográfico são Amplitude, Altura e Timbre, explicadas com base nos
autores na tabela a seguir.

188
Característica
Sonora Descrição

Amplitude Quanto maior a amplitude das vibrações do som no ar, maior a


nossa sensação de volume. Esta é uma característica muito
(Volume/
manipulada no cinema. Um exemplo é o que Chion chama de
Intensidade) cocktail party effect (efeito coquetel), quando temos uma
grande intensidade sonora ambiente em uma cena e, assim
que duas personagens importantes iniciam um diálogo, a
intensidade é reduzida para que possamos entender as
palavras com clareza. O volume também altera a percepção
de distância: quanto mais volume em um determinado som,
mais próximo ele parece. Também é possível surpreender o
espectador quando uma ambiência com volume fraco
repentinamente apresenta algum volume forte.
Altura Refere-se a característica do som que faz com que o
percebamos como grave ou agudo. É relacionada com as
(Pitch, frequências de um determinado som. Alterar o pitch de um
Frequência) dado som significa mudar a percepção de agudos e graves.
Um exemplo são piadas feitas por crianças, ao tentarem imitar
vozes graves de adultos. Estas podem ser feitas totalmente
baseadas em pitch. É possível também mudar o pitch de um
som gravado, como fez Bernard Hermann em Psicose com o
som dos violinos, manipulados para que soassem mais
agudos, são possibilidades expressivas desta qualidade
sonora. A mudança de pitch é conhecida como pitch shift.
Timbre O timbre é a “cor” do som. É a característica que difere uma
nota lá tocada no piano de uma nota lá tocada na guitarra.
Quando a voz de uma pessoa soa nasalada ou aveludada, isto
também diz respeito ao timbre do som. Esta característica está
em quando diferenciamos os sons das vozes de diferentes
atores ou de diferentes instrumentos musicais.
Tabela 6. Três das principais características acústicas do som e suas
respectivas descrições, com base no artigo de Bordwell e Thompson (in WEIS;
BELTON, 1985, p.184-185).

Para complementar as descrições das qualidades sonoras descritas


acima, segue uma tabela das faixas de frequências e uma imagem que
demonstra o conceito de timbre. Ressaltamos que as faixas de frequência
abaixo são baseadas no livro Practical Mastering de Mark Cousins e Russ

189
Hepworth-Sawyer (2013), e que ocasionalmente podem surgir com outros
valores, mais simplificadas ou detalhadas dependendo da fonte.

Faixa Região
20 a 60Hz Subgraves
60 a 200Hz Graves
200Hz a 500Hz Médio-Graves
500Hz a 2kHz Médios
2 a 6 kHz Médio-Agudos
6 a 20kHz Agudos
Tabela 7. Regiões de frequência (COUSINS; HEPWORTH-SAWYER, 2013).

Figura 71. Tradicional figura que demonstra o conceito de timbre. Todos os


instrumentos acima, no caso, estão reproduzindo a mesma nota musical.
(Fonte: aprendapiano.com)

Utilizando o método de Bordwell e Thompson, podemos analisar o som


da voz dos três monstros escolhidos para o corpus. Primeiramente, vamos
colocar aqui o espectrograma dos sons, como visualizados a partir do software
Izotope RX6. Para compreender melhor o que é o espectrograma gerado a
partir deste software, trazemos abaixo a explicação do site oficial izotope.com.
Lembramos que este software é amplamente considerado a ferramenta mais
sofisticada de tratamento de áudio (remoção de ruídos não desejados,
aprimoramento da qualidade, etc) atualmente disponível no mercado.

190
O espectrograma é uma imagem muito detalhada e precisa do
seu áudio, mostrada em 2 ou 3 dimensões (2D ou 3D). O áudio
é mostrado em um gráfico de acordo com tempo e frequências,
com brilho e altura (3D) indicando amplitude. Enquanto uma
forma de onda (waveform) mostra a amplitude do seu sinal no
decorrer do tempo, o espectrograma mostra esta mudança
para cada frequência que compõe o sinal.38

Para nos ajudar na comparação, além dos espectrogramas dos três


monstros, temos também o gráfico gerado pelo software, a partir de uma voz
humana. No caso, um homem de aproximadamente trinta anos. Primeiramente,
ele vocaliza como se sentisse dor. Depois dá uma gargalhada. Por fim, faz
rápidas saudações (alô, olá, etc).

Figura 72. Espectrograma de diversos momentos de vocalização do


Chewbacca em Star Wars (1977). Imagem gerada a partir do software Izotope
RX6.


38
Disponível em < https://www.izotope.com/en/community/blog/tips-tutorials/2014/09/understanding-
spectrograms.html >. Acesso em 12/02/2018.

191
Figura 73. Espectrograma dos cliques do Predador. Imagem gerada a partir do
software Izotope RX6.

Figura 74. Espectrograma do rugido do Godzilla (1954). Imagem gerada a partir


do software Izotope RX6.

192
Figura 75. Espectrograma da voz de um homem de aproximadamente 30 anos,
na sequência, gemendo de dor, dando uma risada e posteriormente fazendo
pequenas saudações. Imagem gerada a partir do software Izotope RX6.

Os espectrogramas acima nos ajudam a completar a tabela abaixo,


baseada na proposição de Bordwell e Thompson.

Chewbacca Predador Godzilla


Amplitu Intensidade variável. Geralmente pouco Sempre intenso.
A intensidade da intenso. Dado o tamanho do
de manifestação vocal de A intensidade da monstro e o aparelho
Chewbacca alterna conforme vocalização do Predador fonador proporcional,
(Volume/ seu estado de humor, em é mais baixa. Como ele todas as manifestações
uma amplitude bastante passa boa parte do filme vocais do monstro são
Intensid similar a voz humana. camuflado, seus cliques de grande intensidade.
ade) Quando está bravo, a não provocam alarde. Isto também se dá
intensidade aumenta e Sua presença sonora é porque o monstro
quando está se comunicando suave e sorrateira, como geralmente se manifesta
cotidianamente a amplitude é os próprios movimentos vocalmente quando está
equiparável ou levemente do monstro. A enfurecido, prestes a
mais intensa do que a de um intensidade cresce atacar, como um “grito
ser humano. apenas quando este tira de guerra”.
a máscara e desafia
Dutch, como que em um
“grito de guerra”.
Altura Variável. Fica mais grave Maior presença entre Presente em uma
conforme o monstro está os médios, médios- ampla gama de
(Pitch, mais bravo. agudos. Portamento. frequências, com um
pouco mais de força
Frequên Como demonstrado na figura Os cliques do Predador nos médios graves
abaixo, se compararmos dois operam sobretudo em entre 200 e 600Hz.
cia) momentos de vocalizações uma região de
do Chewbacca, sendo o frequências de 1000Hz a Como o rugido do

193
primeiro com o monstro 3000Hz. Trata-se de uma Godzilla é massivo,
bravo e o segundo falando faixa de frequências que “ensurdecedor”, ele
normalmente, notamos que a os nossos ouvidos opera em uma gama
presença de graves é muito captam com particular bastante extensa de
maior no primeiro caso. atenção, na qual está faixas de frequência. O
muito presente também a amarelo do
voz humana. espectrograma fica um
Portamento é a transição pouco mais forte nos
entre uma nota e outra médios-graves.
no piano, por exemplo,
tocando rapidamente
todas as notas que
compreendem o intervalo
entre as extremidades. O
Predador parece
percorrer notas com seus
estalos, ou seja, ele não
reproduz sempre a
mesma frequência, mas
ainda assim são
frequências próximas.
Timbre Som nasalado, proveniente Estalos bem Uma massa sonora
da garganta. separados, quase rouca, desagradável,
percussivos, remete a remetendo à fricção de
algo pequeno e duro metais.
batendo.
Tabela 8. Metodologia de análise do som de Bordwell e Thompson aplicada ao
corpus da pesquisa.

Figura 76. Recorte do espectrograma de Chewbacca. Destaque para dois


momentos de vocalização diferentes. O primeiro mostra um rugido de
Chewbacca em um momento em que a personagem está brava. No segundo, a
personagem está articulando uma fala em tom de voz normal.

194
Por mais que esta análise tenha nos permitido atentar para várias
características do som dos monstros estudados, para Rick Altman, esta
metodologia não é a mais adequada para descrever o som cinematográfico e
nem mesmo uma música, pois seria uma forma de tratar cada som como algo
uniforme e unidimensional (ALTMAN, 1992, p.16). A mesma música tocada em
dois ambientes, como por exemplo ao ar livre e em uma sala de concertos,
possui as mesmas características de amplitude, altura e timbre, mas é, por
exemplo, percebida de forma bastante diferente pelos que ouvem a execução.
Isto nos dá uma pista da importância de levar em conta o contexto para a
análise e da insuficiência de pensar apenas as qualidades acústicas do som,
em si, ao menos da forma proposta por Bordwell e Thompson.
Analisar os sons por si só é uma tarefa complicada sobretudo porque as
características do som são adjetivos dotados de grande abstração, enquanto
que a fonte que o emite é o objeto, passível de categorizar a identificar. Se eu
falo que ouço um zumbido, palavra utilizada desde contextos médicos até para
descrever sons de animais, a informação parece demasiadamente vaga.
Mesmo que eu descreva o zumbido, por exemplo, como um som grave,
oscilante, de média intensidade, ainda assim estas características sonoras
mantém a informação vaga. Se, ao contrário de descrever o zumbido em suas
características sonoras, eu informar a fonte do som como sendo um motor de
um carro, a informação adquire maior clareza. É com um exemplo semelhante
que Christian Metz fala sobre a percepção sonora e a comunicação.

Ideologicamente, a fonte sonora é um objeto, o som em


si mesmo uma característica. Como qualquer outra
característica, está atrelada ao objeto e é por isso que a
identificação do último basta para evocar um som, enquanto
que o contrário não é verdade. “Compreender” um evento
perceptivo não é descreve-lo exaustivamente, mas estar apto a
classificá-lo e categorizá-lo: designar o objeto do qual é um
exemplo. Desta forma, sons são constantemente mais
classificados de acordo com os objetos que os transmitem do
que por suas características próprias (METZ in WEIS,
BELTON, 1985, p.156).

195
De fato, “zumbido” ou “estalo”, dois objetos acústicos exemplificados por
Metz (idem), representam um nível de abstração que traduz o nosso
relacionamento com os adjetivos sonoros. Estes costumam operar numa região
mais abstrata do que os adjetivos próprios de outros tipos de linguagem. Isso
ocorre por mais que, por vezes, nos idiomas, tenhamos belíssimas associações
entre fonemas e sons, como no exemplo da palavra “chiado”, em que o som do
“ch” faz uma alusão direta ao padrão sonoro ao qual se refere.
O som em si, apesar desta abstração, consegue comunicar inflexões
emocionais e características da personagem que o emite. Desta forma,
consegue auxiliar na construção das personagens e a contar suas histórias.
Encontramos resultados interessantes conquistados por sound designers ao
trabalhar essa potencialidade do som, mesmo fora do corpus da presente
pesquisa.
Um exemplo pode ser encontrado nos sons dos dragões de Game of
Thrones (HBO), desenvolvidos por Paula Fairfield, sound designer da série e
responsável pela composição dos sons das criaturas fantásticas. A personagem
Daenerys possui três dragões. O maior deles, Drogon, parece ter uma conexão
especial com Daenerys, algo que transparece para os fãs da série. Não por
acaso, foi nomeado em uma referência ao falecido marido de Daenerys, Khal
Drogo. Para enfatizar esta conexão entre ambas as personagens, dragão e sua
dona, na base da vocalização de Drogon, Fairfield utilizou sons de tartarugas
fazendo sexo (PULLIAM-MOORE, 2017). A sound designer afirma que

O gemido do macho na verdade tornou-se – com algum


trabalho, ajustes, essas coisas – a fonte do “ronronar” de
Drogon com Daenerys. O engraçado deste ronronar de Drogon
foi ver pessoas assistindo a série e rindo quando ouviam este
ruído, sem saber o porquê. Para mim é porque este som possui
esta essência – uma essência sensual, sexual (PULLIAM-
MOORE, 2017).

Se os sons em si possuem altos níveis de abstração, podemos sempre


pensá-los enquanto representação, o que os coloca em relação. Ainda vamos
pensá-los sem ser em relação à imagem visual, para evitar os mascaramentos

196
mencionados por Chion. Ao invés da visualidade, vamos pensá-los em relação
ao que, em si, pretendem representar.
Quando observamos representações, percebemos diferentes graus de
verossimilhança, ou de propostas de aproximação a um dado conjunto de
regras, dado um determinado contexto. Neste caso, a representação de um
universo próprio de uma narrativa ficcional.
Em uma metodologia de descrição dos sons, enquanto representações e
sua aparente verossimilhança, Theo Van Leeuwen, pesquisador de semiótica e
linguística, estende a noção de Modalidade (Modality) para além da linguística e
traz este conceito para a análise de sons e música.
Neste campo do conhecimento, a Modalidade refere-se ao grau com que
um signo ou um texto afirma ser a representação de algo verdadeiro ou real. “A
linguagem em si não pode garantir a verdade. Portanto, análises linguísticas só
podem apresentar o quão verdadeiramente algo foi representado” (VAN
LEUWEEN, 2010, p.9). Este grau de credibilidade das representações impacta
na noção de factível/verdadeiro contra aquela de algo fora da
realidade/ficcional/abstrato. Trata-se da “verdade ou verossimilhança aparente”
(VAN LEEUWEN, 2010, p. 10).
Esta noção de Modalidade sempre está relacionada a um contexto
social, “dependente do que é considerado real (ou verdadeiro, ou sagrado) em
um grupo social para qual a representação é primeiramente voltada” (KRESS,
VAN LEEUWEN, 2006, p.158).
No campo sonoro, Van Leeuwen fala que os graus de verossimilhança
estão nos graus em que certos recursos de expressão auditiva são utilizados.
Estes parâmetros estão resumidos na tabela a seguir.

Recurso de expressão Característica


auditiva

Pitch Range (alcance (...) está relacionado à nossa percepção de grave e agudo. Uma
representação vocal com uma gama limitada de pitch é muitas
do pitch – variação de vezes utilizada para representar o que não é humano “como o
divino ou o mecânico, como em versões estilizadas de cânticos
em rituais ou as monotonizadas vozes de robôs” (VAN

197
frequências). LEUWEEN, 2010, p.10).

Variação dinâmica Trata-se da extensão da gama de intensidades, ou seja, a


diferença possível entre o som de “menor volume” e o som de
(gama de intensidade) “maior volume” em uma dada manifestação sonora.
“Instrumentos que não permitem variação dinâmica são mais
abstratos e menos emotivos” (VAN LEUWEEN, 2010, p.11).
Um exemplo é o órgão.
Níveis de oscilação Vai de sons totalmente contínuos até vibrações profundas e/ou
rápidas. “O vibrato, desde que sua velocidade e intensidade
assemelhem-se às flutuações que a voz humana é capaz de
reproduzir, é uma representação efetiva de expressões
emocionais. Emoções podem fazer a nossa voz vacilar e
tremer” (VAN LEUWEEN, 2010, p.11).
Níveis de fricção Fricção se refere àquilo que ouvimos além do tom/timbre em si.
Fricção, rouquidão, dureza, sibilância, respiração (...). Ao
contrário de instrumentos musicais, o som da voz humana é
afetado por estados emocionais diversos e também por estados
físicos como fadiga, intoxicação, saúde e idade. Diferentes tipos
de fricção vocal podem evocar significados e associações
diferentes. Uma voz dura, rouca, pode significar ter vivido uma
vida difícil. Uma voz ofegante pode significar esforço ou
empolgação e, combinada com um sussurro, possui comumente
um significado de sedução (VAN LEUWEEN, 2010, p.11).

Níveis de absorção Vão do som mais seco, como aquele gravado em um estúdio,
ao que mais faz alusão à presença em um espaço com
(ambiência- determinadas características. “A partir de um certo ponto, a
reverberação pode criar um efeito de temor, como em
reverberação) representações de ambientes extraterrestres” (VAN LEUWEEN,
2010, p.11).
Tabela 9. Parâmetros para análise da verossimilhança de um som, segundo a
metodologia da Modalidade, transposta por Van Leuween da linguística para o
estudo dos sons.

Van Leuween explica como estes parâmetros podem ser combinados de


infinitas formas, levando a resultados ora mais abstratos, ora mais “sensíveis”.

Seria possível, por exemplo, representar a chuva com


um padrão de pequenas batidas rítmicas (pitter patter) em
cordas em pizzicato, com uma gama de frequências de apenas
dois pitches (duas notas, portanto, duas frequências
diferentes). Isto não resultaria em algo muito realista, mas
transmitiria a ideia. Seria uma representação relativamente
abstrata. Você também poderia utilizar um som eletrônico
apropriado, com uma boa quantidade de chiado, com maior
pitch range e incluir variações dinâmicas e glissandos para
sugerir a chuva. Isso não seria apenas mais natural, mas
também teria um efeito emocional maior. Não apenas
transmitiria a ideia, mas passaria mais o “sentimento” da chuva.
E se pitch range, bem como as variações dinâmicas e timbrais,

198
forem estendidos ainda mais, a experiência pode tornar-se
“mais do que real” e emocionalmente avassaladora (VAN
LEUWEEN, 2010, p.10).

Sob uma perspectiva prática, a diferença da proposta de análise de


Bordwell e Thompson e a de Van Leuween está no enfoque desta última para
as variações, os alcances, a riqueza presente em cada propriedade acústica do
som. Portanto, podemos aplicar esta metodologia e compreender os diferentes
resultados encontrados ao ouvir os sons do corpus da pesquisa.

Recurso de Chewbacca Predador Godzilla


expressão auditiva
Pitch Range Grande variação – Pequena variação Pequena variação
semelhante à voz de frequência.
(alcance do pitch – de frequência.
humana.
variação de
frequências).
Variação dinâmica Grande variação Pequena variação – Pequena variação –
sempre com baixa sempre com alta
(gama de
intensidade. intensidade.
intensidade)
Níveis de oscilação De contínuo- nos Sempre oscilante – Pequena variação
rugidos mais mantendo a mesma
raivosos, até o velocidade de
oscilante, quando oscilação.
fala o idioma Wookie.
Níveis de fricção Nasalada, um pouco Relacionada à Muito ríspida,
rouca. respiração. metálica, arranhada.
Níveis de absorção Muda muito de Pouco reverberante, Sobretudo no último
acordo com as bem próxima. terço do rugido,
(ambiência-
características do ouvimos grande
reverberação) ambiente em que se reverberação que
passa a cena do ajuda a dar ideia das
filme. dimensões do
monstro.
Tabela 10. Uso dos parâmetros de verossimilhança de um som, segundo a
metodologia da Modalidade, transposta por Van Leuween, para análise do
corpus da pesquisa.

Interessante perceber como Van Leuween associa a maior


verossimilhança do som, por consequência de maior riqueza dos parâmetros
mencionados, com um maior impacto emocional do resultado.

199
A escalada da verossimilhança não é apenas a escalada
da verossimilhança, mas também uma escalada de
envolvimento emocional. Uma escalada que vai de
representações relativamente “abstratas”, passando por
representações “naturalistas” até o que chamamos de
representação sensorial (VAN LEUWEEN, 2010, p.10).

Para explicar as três formas de representação, Van Leuween utiliza


perguntas específicas para cada um destes estágios, presentes na escala da
abstração até o sentimento.

Formas de representação Pergunta

Representação Abstrata “Em que nível este som representa as


qualidades essenciais, conceituais,
daquilo que representa?

Representação Naturalista “Em que nível este som representa o


que teríamos ouvido se pudéssemos
ouvir o seu real emissor, sob
condições acústicas específicas?

Representação Sensorial Em que nível esta representação


produz os sentimentos que
acompanham a intensa experiência
daquilo que é representado?

Tabela 11. As diferentes formas de representação, que vão do mais abstrato ao


mais sensorial/emotivo, segundo Van Leuween (VAN LEUWEEN, 2010, p.10).

Para ilustrar melhor o quadro com a análise de Modalidade do som


emitido pelos monstros do corpus, percebemos algumas características
interessantes. Sendo o Chewbacca um monstro que fala um idioma próprio, o
pitch range (gama de variações de frequência) de suas vocalizações é muito
mais rico, sendo semelhante a voz humana. Podemos perceber, nos
espectrogramas abaixo, que os desenhos que formam as atuações em regiões

200
de frequência mudam bastante, bem como as regiões em que as frequências
ficam mais fortes (em amarelo).

Figura 77. Espectrograma de diversos momentos de vocalização do


Chewbacca (esquerda), em comparação ao espectrograma de diversos
momentos de vocalizações de um humano (direita).

O argumento do parágrafo anterior fica mais claro quando comparamos


os espectrogramas anteriores com os do Predador e do Godzilla, cuja
representação tem alterações consideravelmente menores no “desenho”. É
possível perceber, por exemplo, que a faixa em amarelo (mais forte) se mantém

201
durante toda a manifestação sonora basicamente na mesma região de
frequências.

Figura 78. Espectrograma dos cliques do Predador e do rugido do Godzilla.

Desta forma, conseguimos compreender como Ben Burtt, na vocalização


de Chewbacca, consegue passar a impressão que este fala um idioma próprio.
A variação de frequências própria da voz humana está presente também na
combinação de sons que forma a voz do monstro.
Além disso, Chewbacca varia a zona de atuação de frequência
sobretudo quando muda seu temperamento. O mesmo se aplica a seres
humanos e animais. Podemos ver no espectrograma da voz humana a
diferença das frequências principais dos gemidos de dor e da risada, que está
bem no centro do gráfico.
Sendo assim, a permanência da região de frequências presente nas
vozes de Predador demonstra uma menor possibilidade de inflexões
emocionais nas manifestações deste monstro. Estas demonstrações,
monotônicas, como o próprio Van Leuween comenta, dão um efeito robótico ou
de divino para o som. Demonstram, no caso do Predador, a frieza e total falta
de empatia do alienígena caçador.
No caso do Godzilla, é possível observar que boa parte do seu rugido se
mantém contínuo, sem grandes mudanças nas principais zonas de frequência.
Isso também transparece o seu estado emocional, que se mantém o mesmo o
filme inteiro: ele é um monstro sempre enfurecido, prestes a destruir tudo que
está a sua frente. No entanto, no momento final do rugido do Godzilla, o último
terço do rugido, temos diferenças do som que impactam na leitura do monstro.

202
Neste último terço, a gama de frequências sofre alguma alteração, o som que
era contínuo passa a ter uma oscilação, o timbre de fricção fica menos metálico
e ríspido. Este momento, por trazer um pouco destas mudanças que, como
vimos nos exemplos acima, trazem inflexões emocionais, parece trazer um
rastro da condição de monstro descrita por Ishiro Honda, como mencionado no
Capítulo 5: o monstro que não tem culpa de ser tão grande e perigoso, que
sofre por não se adaptar, ou seja, a tragédia do monstro.
Não à toa, também pela imagem sonora destes dois monstros, é mais
fácil simpatizar por Godzilla do que Predador. Ambos matam muitas pessoas
nos filmes, mas estas oscilações que fazem “humanizar” o último terço do
rugido de Godzilla faz a diferença na hora de ter empatia pelo monstro. Como
vimos, essa era uma das intenções dos produtores do filme de 1954, vide a
relação da personagem Dr. Yamane com o monstro.
Vimos, portanto, como os parâmetros de Van Leuween nos mostram
formas diferentes pelas quais um som de monstro pode ser uma representação
sensorial. Mas, vimos também que existe uma particularidade na
verossimilhança dos monstros e dos demais sons, como os que constavam nos
exemplos do autor.
O som do monstro, em seu histórico midiático, é uma experiência que
constrói um repertório e que pode trazer uma dada representação sensorial.
Mesmo que não possua a verossimilhança equivalente de pensarmos o som da
chuva, como no exemplo de Van Leuween, esses sons remetem a estas
experiências midiáticas e com isso caracterizam um tipo específico de verdade/
relação.
A verossimilhança que constrói a representação sensorial, no caso do
monstro, se não está ligada à imagem deste, já que a proposta de Van
Leuween é a de pensarmos no som em si enquanto representação, está ligada
ao repertório de sons aterrorizantes do espectador.
Interessante notar, por exemplo, que a restrição de frequências
operantes, o que para o autor estão relacionadas ao divino ou ao mecânico,
podem fazer com que o som adquira características mais verossimilhantes à

203
realidade específica do monstro midiático. Desta forma, no nosso caso, a
verossimilhança levará à representação sensorial, mas esta nem sempre será
produto de maiores alcances e oscilações. O som simplificado, menos “natural”,
pode levar a resultados mais monstruosos, a depender das características da
personagem.
Compreendermos as especificidades da suspensão da descrença na
ficção científica e o impacto no som do monstro, a importância da memória do
criador, bem como as características desse som que transparecem as
intenções da personagem. A seguir articularemos a nossa análise para compor
a proposta de ponto de partida na criação do som do monstro.

6.5. A criação do som de monstro: um método possível

Ao analisar os três sons de monstro descritos nos capítulos anteriores,


encontramos três formas diferentes de processos de criação. Destaca-se a
relação do ofício/repertório dos criadores das vozes dos monstros com sua
obra-prima de trabalho. Em suma, a nossa análise buscou mapear a influência
das referências midiáticas que permeiam estas criações e como as qualidades
dos sons ajudam a contar as histórias destes. Resumidamente, temos:

Chewbacca Predador Godzilla

Base para Sons de animais Voz de dublador Instrumento


criação do musical
som

Vivência Na infância, colecionador Famoso pela voz Compositor de


correlata do de efeitos sonoros da TV, de robôs trilhas para o
criador. ida com o avô captar o gigantes do cinema.
som de pássaros na cinema
natureza. Posteriormente, (Transformers).
estudante de cinema.

204
Influências Monstros do cinema, pé Monstros do Monstros
midiáticas/mi grande. cinema com gigantes do
tológicas características cinema,
insetoides, como presentes
Alien (1979) desde o King
Kong de 1933.

Oscilações Semelhantes a voz Poucas. Poucas


humana. inicialmente,
com oscilações
no final do
rugido.

Tabela 12. Resumo dos processos de criação das vozes monstruosas


analisadas.

A partir das articulações apresentadas neste trabalho, elaboramos um


organograma que resume a nossa proposta para criação de sons de monstros.
Com certeza existem outras formas de atingir um resultado interessante, mas a
nossa proposição pode ser um ponto de partida em potencial para a criação da
voz de uma personagem fantástica.
Sendo assim, propomos uma sequência de características a serem
observadas na criação da voz do monstro, desde as bases de composição até
a manipulação do material.

Bases de composição:

Constituição do aparelho fonador.


Observar:
Vestimenta (máscaras, armaduras)
Escala (tamanho)

Captação de material sonoro.


Fontes possíveis:

205
Natureza Corpo Objetos manipulados

Manipulação do material:

Oscilações (sons contínuos, pulsantes, etc)


Gamas de Frequência (Pitch range)
Dinâmica (variação de intensidade, volume)

+ -
Empatia Frieza
Emoção Dissimulação
Simulação de idioma humano Linguagem pré-formal

Tabela 13. Resumo do método proposto de criação de som de monstro.

Esta tabela resume as descobertas da pesquisa e o método proposto. A


seguir, nas Conclusões Finais, relembramos em maior detalhe cada um dos
procedimentos e trazemos a proposta em formato de organogramas.

206
Considerações Finais

Dificilmente existiu uma época, desde os primórdios do cinema, em que


os monstros não estivessem inflados em nosso imaginário. Independentemente
da forma, das referências, do exercício simbólico da monstruosidade, monstros
em geral são um dos expoentes mais intrigantes da conexão entre o que é
fantasia ou delírio e o que faz parte das nossas vidas. Como firma Morin:

Efetivamente, tudo entre nós se conserva, prevê-se,


comunica-se pelo intermédio de imagens mais infladas ou
menos infladas do imaginário. Esse complexo imaginário, que
ao mesmo tempo garante e perturba as participações, constitui
uma secreção placentária que nos envolve e alimenta. Mesmo
quando desperto e mesmo fora do espetáculo, o homem anda,
solitário, cercado por uma nuvem de imagens, suas “fantasias”.
E não apenas esses sonhos acordados: os amores que ele
acredita de carne e de lágrimas são cartões-postais animados,
representações delirantes. As imagens se introduzem entre sua
percepção e ele mesmo, elas o fazem ver o que ele acredita
ver. A substância imaginária se confunde com a vida da nossa
alma, nossa realidade afetiva (MORIN, 2014, p.245).

Sendo assim, na composição destas personagens do cinema, vimos que


uma importante característica é a sua voz. Os monstros que constituem o
corpus emitem sons que ajudam a contar suas histórias e que, em suas
particularidades, acrescentaram novas perspectivas para os sons de monstro
no cinema e em demais meios de comunicação.
Vimos que Ben Burtt, Peter Cullen e Akira Ifukube, os criadores das
vozes de Chewbacca, Predador e Godzilla respectivamente, partiram de
diferentes processos para conquistar seus resultados. Além do repertório, que
vimos ser uma parte importante para a composição do som do monstro (de
forma a evitar a ruptura, como discutido no Capítulo 6), conseguimos perceber
outros fatores presentes nas três composições. Estes fatores, aqui organizados,
compõem a proposta de método da presente pesquisa.
Para melhor demonstrar nossos resultados, resumiremos o método nos
dois organogramas abaixo.

207
Figura 79. Organograma da primeira parte do método proposto: bases de
composição. Design de Thiago Tadeu Ribeiro da Silva.

208
Figura 80. Organograma da segunda parte do método proposto: manipulação
do material. Design de Thiago Tadeu Ribeiro da Silva.

209
Primeiramente, falaremos das bases de composição. Como
demonstrado no primeiro organograma, o nosso método propõe que a imagem
do monstro seja observada em aspectos fundamentais como escala (tamanho),
vestimentas (se usa máscaras ou algo do tipo) e articulação da mandíbula. A
partir desta primeira observação, o compositor pode experimentar buscar as
bases do som em emissões da natureza (aqueles que acontecem com pouca
ou nenhuma interferência do profissional de captação), do corpo (provocados
pela boca ou partes do corpo) ou de objetos manipulados (materiais específicos
em contato com outros materiais, de forma a produzir o som desejado).
Após a observação e captação dos sons de base, na fase de
manipulação deste material coletado, alguns aspectos são importantes para
contar a história do monstro. Descobrimos que, de acordo com variações,
sobretudo, oscilações (sons contínuos, pulsantes ou, gamas de frequências
(pitch range), e dinâmica (intensidade, volume), determinadas leituras são
sugeridas nas vozes. Os sons que resultarem em vozes com mais variações
como as citadas acima, tenderão a apresentar uma sugestão maior de empatia
e emoção, também soando mais próximas a um idioma humano. Quanto menos
variações encontrarmos nestes aspectos, por outro lado, maior será a leitura de
dissimulação e frieza na voz do monstro, aproximando sua vocalização a uma
linguagem não-formal. Essas são as bases de nossa proposta de método de
criação de som de monstros.
O repertório de sons de monstros tornou-se mais abrangente, com novas
experiências, a partir do período de recorte do nosso levantamento. Com os
monstros da televisão e dos videogames, por exemplo, temos contato com
maiores possibilidades de representação da voz do monstro do que os
criadores investigados no corpus.
No entanto, a longevidade da repercussão das vozes de Chewbacca,
Predador e Godzilla reitera que são exemplos importantes na história das
referências de sons de monstros no cinema. Foram experiências fundamentais
para organizarmos esta proposta de método, o qual certamente pode ser

210
utilizado nos dias atuais, em qualquer meio em que um produto se proponha a
contar a história destas personagens.
Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir para futuros
desdobramentos, em áreas diversas, que se interessem por investigar os
processos de criação de sonoridades nos filmes e em especial no
desenvolvimento de monstros. Acreditamos que o método aqui representado
pode ser adaptado para a composição do som de outros tipos de personagens.
No dia-a-dia, no trabalho como sound designer, a aplicação dos conceitos aqui
estudados norteou a criação da voz também de robôs, por exemplo.
Esperamos também que estes resultados aqui obtidos possam estimular
o pensamento sobre as interconexões entre sons e narrativas fílmicas, a
montagem e a fotografia, tornando o som cada vez mais um fator de grande
expressão da linguagem audiovisual, a ser trabalhado com atenção e
criatividade.
Sabemos que toda pesquisa está conectada com várias outras e dialoga
com uma vasta rede de pensadores e criadores. Ao finalizar a presente tese,
nosso maior desejo é que os resultados aqui alcançados possam avançar por
vários caminhos, estimular a percepção da sonoridade no cinema e gerar
discussões diversas. Sobretudo, contribuir para um fazer audiovisual que pense
em seus elementos sonoros visando ampliar o nosso repertório de sons
fantásticos, assustadores e surpreendentes.

211
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