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[...] o que tornou tão tenaz o “economiscismo” da classe operária é que ele
corresponde às realidades do capitalismo, às formas pelas quais a apropriação
e a exploração capitalista realmente dividem as arenas de ação política e
econômica, e transformam certas questões políticas essenciais – as lutas pela
dominação e exploração que no passado sempre estiveram umbilicalmente
unidas ao poder político – em questões claramente “econômicas”. Na
verdade, essa separação “estrutural” talvez seja o mecanismo mais eficiente
de defesa do capital.
Por mais que se enfatize a interação entre “fatores”, essas práticas teóricas
são enganosas porque obscurecem não apenas os processos históricos pelos
quais os modos de produção são constituídos, mas também a definição de
sistemas produtivos como fenômenos sociais vivos. (WOOD, [1995] 2006, p.
32)
A autora ressalta que, a partir dessa definição, esses instrumentos de coerção podem ou
não servir diretamente como meios para a opressão de uma classe específica sobre
outra, mas implica em uma série de funções sociais comuns que não podem ser
desenvolvidas por outras instituições menos abrangestes (famílias, clãs, etc). Segundo
essa hipótese, implicando ou não em um instrumento de dominação de classe, o Estado
necessita de uma apropriação de excedentes sendo esta sua determinação histórica
primária:
E faz uma ressalva que distancia essa interpretação das interpretações comuns ao
marxismo:
O que talvez seja possível afirmar é que, não importa qual tenha chegado
primeiro, a existência do Estado sempre implicou a existência de classes –
embora essa proposição exija uma definição de classe capaz de abranger
todas as divisões entre os produtores diretos e os apropriadores de sua mais-
valia, mesmo nos casos em que o poder econômico mal se diferencia do
político, em que a propriedade privada seja ainda pouco desenvolvida e em
que classe e Estado sejam efetivamente uma só entidade. O ponto
fundamental é o reconhecimento de que algumas das principais divergências
entre os vários padrões históricos se relacionam com a natureza e a sequência
das relações entre poder público e apropriação privada. (WOOD, [1995]
2006, p. 37-38)
O longo processo histórico que resultou no capitalismo pode ser visto como
uma diferenciação crescente – e incomparavelmente bem desenvolvida – do
poder de classe como algo diferente do poder de Estado, um poder de
extração de excedentes que não se baseia no aparata coercitivo do Estado.
Seria também um processo em que a apropriação privada se separa cada vez
mais do desempenho de funções comunitárias. Portanto, se quisermos
entender o desenvolvimento sem precedentes do capitalismo, teremos de
entender como as relações de propriedade e de classe, bem como as funções
de apropriação e de distribuição de excedentes, separam-se – apesar de
continuarem a se servir delas – das instituições coercitivas que constituem o
Estado, e continuam a se desenvolver autonomamente. (WOOD, [1995]
2006, p. 38)
Wood parte então dos escritos de Marx, em especial os Grundisse e O capital volume
III. Comecemos pelo modelo, extremamente problemático, desenvolvido teoricamente
por Marx denominado de “modelo asiático”: nesse caso o Estado seria o responsável
por toda apropriação e distribuição do excedente, existindo uma identificação direta
entre o poder econômico e o poder político. O “caso asiático” seria o extremo oposto do
capitalismo e a autora alerta:
Mesmo que não haja um representante perfeito desse tipo social – por
exemplo, que nunca tenha havido um Estado apropriador e redistributivo bem
desenvolvido na completa ausência de propriedade privada da terra – esse
conceito deve ser respeitado. (WOOD, [1995] 2006, p. 39)
Para os fins aqui pretendidos – a separação histórica entre economia e política típica do
capitalismo – e procurando fugir de uma polêmica nos escritos do próprio Marx, a
autora argumenta que “[...] não é tanto a “hipertrofia” do Estado “asiático” que precisa
ser explicada. O que exige explicação é o desenvolvimento anormal, excepcionalmente
“autônomo” da esfera econômica que resultou afinal no capitalismo” (WOOD, [1995]
2006, p. 40).
Feudalismo e propriedade privada
{Acredito haver um grave problema com a interpretação de Ellen Wood nesse ponto,
especialmente no que se refere às duas últimas citações. Tudo se passa como se o
capitalismo fosse um aperfeiçoamento das relações feudais e parece ignorar a ruptura
histórica entre feudalismo e capitalismo, ou seja, a expropriação máxima dos
produtores, a qual a autora se refere, não foi levada a cabo pelos senhores feudais, e sim
também contra eles pela burguesia. Isso não significa criar uma interpretação que ignore
o fato de que as condições feudais específicas de partes da Europa foram as necessárias
(embora não determinísticas) para o surgimento do capitalismo, mas acredito que não
podemos perder de vista o momento revolucionário burguês nesse processo histórico,
ou seja, a ruptura burguesa.}
Capitalismo como privatização do poder político
À primeira vista, pode parecer que a caracterização do capitalismo como a privatização
última do poder político contradiz a afirmação de que no capitalismo temos a separação
entre o econômico e o político. Mas a autora adverte: “A intenção dessa descrição é,
entre outras coisas, estabelecer o contraste entre o capitalismo e a “parcelização” do
poder do Estado que une os poderes político e econômico privados nas mãos do senhor
feudal” (WOOD, [1995] 2006, p. 43).
E destaca ainda:
Em uma nota a autora faz uma observação importante: dizendo que mesmo em modos
de produção em que o apropriador tinha um controle direto sobre o produtor (como no
caso da escravidão) existe um limite à extensão da dominação: “[...] a natureza da
produção escravista tornava impossível sua generalização; que um dos obstáculos à sua
expansão foi a dependência da coerção direta e do poder militar; e que, pelo contrário, o
caráter universal exclusivo da produção capitalista e sua capacidade de subordinar
virtualmente toda a produção às exigências da exploração estão intimamente ligados à
diferenciação entre o econômico e o político” (WOOD, [1995] 2006, p. 46).
A verdade é que, embora diversas formas de trabalho livre tenham sido uma
característica comum em muitos lugares na maioria dos tempos, a condição
desfrutada pelo trabalho livre na democracia de Atenas não teve precedentes
e, sob muitos aspectos, permaneceu inigualável desde então. [...] A clareza da
escravidão como categoria de trabalho não-livre, diferente de outras, como a
dívida ou servidão, destaca-se nitidamente porque a liberdade do agricultor
apagou todo um espectro de dependência que caracterizou a vida produtiva
da maioria das sociedades ao longo da histórica conhecida. Não é tanto o fato
de a existência da escravidão ter definido de forma tão nítida a liberdade do
cidadão, mas, pelo contrário, o fato de o cidadão trabalhador, tanto na teoria
quanto na prática, ter definido o cativeiro dos escravos. (WOOD, [1995]
2006, p. 160-161)
Governantes e produtores
Pode-se mesmo afirmar que a pólis (numa definição bem geral para incluir a
cidade-Estado romana) representou a emergência de uma nova dinâmica
social na forma das relações de classe. Isso não quer dizer que a pólis tenha
sido a primeira forma de Estado em que as relações de produção entre
apropriadores e produtores tenha tido papel central. A questão é, pelo
contrário, que essas relações assumiram uma forma radicalmente nova. A
comunidade cívica representou uma relação direta, dotada de lógica própria
de processo, entre proprietários e camponeses como indivíduos e como
classe, separada da velha relação entre governantes e súditos.
Falando sobre esse conflito dentro da própria construção filosófica grega, Ellen Wood
destaca que da mesma forma em que podemos encontrar ataques à democracia nas
escritos gregos clássicos podemos também encontrar sua defesa e exaltação, mesmo nas
palavras de seus opositores, como Platão. A seguinte passagem não só exemplifica essa
possibilidade como também elucida de forma contundente a relação entre democracia e
trabalho:
Sócrates (seguido por Platão), por outro lado, invocaria o princípio de que a virtude é
conhecimento filosófico que a uma simples assimilação dos costumes e dos valores da
comunidade, mas um acesso privilegiado a verdades mais universais, mais altas.
Sócrates parte do ponto de vista da divisão social do trabalho e, no seu respectivo efeito,
a especialização.
Ellen Wood conclui essa seção fazendo uma observação muitíssimo importante e que
reverbera mais tarde nos meus próprios estudos sobre Marx:
[...] por mais que as classes dominantes da Europa e dos Estados Unidos
tivessem temido a extensão dos direitos políticos para a multidão
trabalhadora, no final, os direitos políticos na sociedade capitalista já não
tinham a importância que tinha a cidadania na antiga democracia. [...] Já não
era mais necessário corporificar a divisão entre privilégio e trabalho numa
divisão política entre os governantes apropriadores e os súditos trabalhadores,
uma vez que a democracia poderia ser confinada a uma esfera “política”
formalmente separada, enquanto a “economia” seguia regras próprias. Se já
não era possível restringir o tamanho do corpo de cidadãos, o alcance da
cidadania podia então ser fortemente limitado, mesmo sem a imposição de
limites constitucionais. (WOOD, [1995] 2006, p. 175)
Nos Estados Unidos, assim como em Roma, a cidadania talvez seja mais
expansiva e inclusiva do que a cidadania democrática de Atenas, mas pode
também ser mais abstrata e mais passiva. (WOOD, [1995] 2006, p. 188)
Para os federalistas, “o povo” era, assim como para os gregos, uma categoria
política inclusiva; mas aqui a questão da definição política não era acentua a
igualdade política dos não-iguais sociais. A relação se dava mais com a
ênfase do poder do governo federal; e, caso o critério de classe social não
fosse politicamente relevante, não seria apenas no sentido de que pobreza ou
indefinição de classe não fosse obstáculo ao acesso à função pública, mas no
sentido especial de o equilíbrio de poder de classe não representar um critério
de democracia. Não deveria haver incompatibilidade entre democracia e
governo pelos ricos. (WOOD, [1995] 2006, p. 192)
Aos americanos pós-revolucionários não estava aberta a possibilidade de definição da
comunidade política como algo exclusivo, mas, no entanto, havia outra maneira de
manter a identificação entre democracia e governo pelos ricos:
Mas ainda existia outra possibilidade para os americanos que não havia
existido para os gregos: deslocar a democracia para uma esfera puramente
política, distinta e separada da “sociedade civil”, ou seja, a “economia”.
(WOOD, [1995] 2006, p. 193)
Da democracia ao liberalismo
A redefinição [do termo democracia] americana foi decisiva; mas não foi o
fim do processo, e seria necessário mais de um século para completa-lo. Na
“democracia representativa”, o governo pelo povo continuou a ser o principal
critério de democracia, ainda que o governo fosse filtrado pela representação
controlada pela oligarquia, e povo foi esvaziado de conteúdo social. No
século seguinte, o conceito de democracia iria se distancia ainda mais de seu
significado antigo e literal. (WOOD, [1995] 2006, p. 194)
Ellen Wood defende que o liberalismo tem sua origem na luta saudosista por antigos
direitos feudais frente o crescente poder do Estado absolutista, ou seja, pretendia
reafirmar os antigos poderes senhoriais sobre a terra e os servos, mas foi apropriado,
mais tarde, por forças progressistas e modernizantes. Mas destaca que, seguindo seus
princípios originários:
Para exemplificar seu ponto a autora retorna a dois momentos históricos do embate
entre democracia e constitucionalismo. Primeiramente na Guerra Civil Inglesa, quando
Oliver Cromwell teve de responder aos mais radicais de seu exército porque não
adotaria medidas tidas como democráticas, tais como o direito amplo ao voto para
escolherem seus governantes, dizendo que o seus subordinados “haviam conquistado
direito de ser governados por um governo constitucional parlamentarista, e não pelo
comando arbitrário de um único homem” (WOOD, [1995] 2006, p. 198). E que isso já
era muito:
São todas qualidades admiráveis.[...] Mas elas pouco têm a ver com
democracia. Conspicuamente ausente dessa relação de características
democráticas, está exatamente a qualidade que dá à democracia o seu
significado específico e literal: governo pelo demos. Coube à ala esquerda do
Partido Trabalhista, na pessoa de Tony Benn, demonstrar em sua resposta a
essas festividades parlamentaristas que houve pouca democracia numa
“revolução” que nada fez para promover o poder popular, enquanto
consolidava firmemente o governo da classe dominante – de fato,
estabelecendo um regime ainda menos democrático no sentido literal que
aqueles que o havia precedido. (WOOD, [1995] 2006, p.199)
De um lado uma esfera política cujas determinações não têm implicações diretas no
poder econômico (de apropriação, exploração e distribuição), de outro uma esfera
econômica com suas próprias relações de poder que independem do privilégio político
ou jurídico. São essas as condições criadas pelo capitalismo que possibilitaram a
existência da democracia liberal.
O mercado passa a se apresentar não somente como elemento a ser considerado pela
democracia, mas também passa a ser elemento essencial da própria definição de
democracia liberal.
A própria condição que torna possível definir democracia como se faz nas
sociedades liberais capitalistas modernas é a separação e o isolamento da
esfera econômica e sua invulnerabilidade ao poder democrático. Proteger
essa invulnerabilidade passou a ser critério essencial de democracia. Essa
definição nos permite invocar a democracia contra a oferta de poder ao povo
na esfera econômica. Torna mesmo possível invocar a democracia em defesa
da redução dos direitos democráticos em outras partes da “sociedade civil”
ou no domínio político, se isso for necessário para proteger a propriedade e o
mercado contra o poder democrático. (WOOD, [1995] 2006, p. 202)
[...] se descreve uma pólis livre como aquela em que o domínio da lei permite
justiça igual para rico e pobre, forte e fraco, onde qualquer um que tenha algo
útil a dizer tem o direito de falar ao público – ou seja, onde existe isegoria –,
mas também onde o cidadão livre não é obrigado a trabalhar apenas para
enriquecer um tirano. Algo aqui está completamente ausente de, e até mesmo
antitético ao, conceito europeu posterior de liberdade. É a liberdade do demos
em relação aos senhores, não a liberdade dos próprios senhores. Não é a
eleutheria do oligarca, em que ser livre do trabalho é a qualificação ideal para
a cidadania, mas a eleutheria do demos trabalhador e a liberdade do trabalho.
(WOOD, [1995] 2006, p. 202)
E conclui:
Não basta então afirmar que a democracia pode se expandir pela separação
dos princípios da “democracia formal” de toda associação com o capitalismo.
Também não basta afirmar que a democracia capitalista é incompleta, um
estágio de um desenvolvimento progressivo que deve se aperfeiçoar pelo
socialismo e avançar além das limitações da “democracia formal”. A questão
é antes que a associação do capitalismo com a “democracia formal”
representa uma unidade contraditória de avanço e recuo, tanto um
aperfeiçoamento quanto uma desvalorização da democracia. A “democracia
formal” é com certeza um aperfeiçoamento das formas políticas a que faltam
liberdades civis, o domínio do direito e o princípio da representação. Mas ela
é também, e ao mesmo tempo, uma subtração da substância da ideia
democrática, aquela que se liga histórica e estruturalmente ao capitalismo.
Talvez esta não seja uma hora de otimismo, mas a confrontação crítica com o
capitalismo é, no mínimo, um bom começo. Talvez sejamos então forçados a
distinguir, não menos, mas muito mais radicalmente, entre as muitas espécies
de desigualdade e opressão aceitas até mesmo pelo novo pluralismo. Será
possível, por exemplo, reconhecer que, ainda que todas as opressões tenham
o mesmo peso moral, a exploração de classe tem um status histórico
diferente, uma posição mais estratégica no centro do capitalismo; e a luta de
classes talvez tenha um alcance mais universal, um maior potencial de
progresso não somente da emancipação de classe, mas também de outras
lutas emancipadoras. (WOOD, [1995] 2006, p. 224)
Entre outras coisas, mesmo sem considerar o poder direto brandido pela
riqueza capitalista tanto na economia quanto na esfera política, ele [o
capitalismo] submete toda vida social às exigências abstratas do mercado, por
meio da mercantilização da vida em todos os seus aspectos, determinando a
alocação de trabalho, lazer, recursos, padrões de produção, de consumo, e a
organização do tempo. E assim se tornam ridículas todas as nossas aspirações
à autonomia, à liberdade de escolha e ao autogoverno democrático. (WOOD,
[1995] 2006, p. 224)
Precisamos de um pluralismo que realmente reconheça a diversidade e a
diferença, não apenas a pluralidade e a multiplicidade. (WOOD, [1995] 2006,
p. 224)
Conclusão
[...] o que estamos procurando não são apenas novas formas de propriedade,
mas também um novo mecanismo motor, uma nova racionalidade, uma nova
lógica econômica; e, se, como acredito ser o caso, o local mais promissor
para começar é a organização democrática da produção, o que pressupõe a
reapropriação dos meios de produção pelos produtores, então é também
necessário enfatizar que os benefícios da substituição da racionalidade do
mercado como mecanismo motor não seriam somente dos trabalhadores, mas
de todos aqueles que se sujeitam às consequências dos imperativos do
mercado, desde os seus efeitos sobre os termos e condições de trabalho e
lazer – na verdade, a própria organização do tempo – até as implicações
maiores para a qualidade da vida social, a cultura, o meio ambiente e os bens
“extra-econômicos” em geral. (WOOD, [1995] 2006, p. 249)
A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas atuais condições
econômicas e políticas é que um capitalismo humano, “social” e
verdadeiramente democrático e igualitários é mais irreal e utópico que o
socialismo. (WOOD, [1995] 2006, p. 250)