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Sobre a estrutura narrativa

Rosemeri Passos Baltazar MACHADO (Docente – FACCAR)

Pensando nas transformações que, geralmente, ocorrem dentro de


uma narrativa, deve-se atentar para o fato de que, conforme já sabido, não
existe uma estrutura fixa a ser seguida. Todavia existe uma estrutura e para
compreendê-la é preciso saber identificar os participantes da história e quais
são seus papéis, ou seja, qual é e como é seu fazer transformador. Partindo
para o âmbito pedagógico, pode-se dizer que este é um dos pontos que
merece muita atenção, principalmente nos trabalhos que envolvem a leitura
e a produção de textos. Este trabalho pretende demonstrar por meio da
localização de determinados elementos do percurso narrativo as diferentes
relações entre o sujeito e o chamado objeto, em fragmentos de crônicas
jornalísticas.
Palavras-chave: estrutura narrativa – sujeito – objeto

INTRODUÇÃO

A compreensão da organização narrativa está ligada a uma série de


fatores, como por exemplo saber identificar o espaço, os participantes e o
que cada um representa dentro dessa estrutura. Entretanto, isso não quer
dizer que deva haver uma estrutura fixa ou pré-determinada a toda e
qualquer estrutura. A narrativa pode ser pensada a partir das mudanças
que o indivíduo pode provocar no mundo ou a partir da comunicação entre
enunciador e enunciatário. Importante observar que é em meio a esse
processo de transformação que a relação com o objeto-valor pode ser
compreendida, mas para tanto se deve atentar, também, para o fato de que
entre o sujeito e seu objeto-valor existem os chamados estados de tensão.
Lembrando BARROS (2002, pág. 17) no que diz respeito ao enunciado
elementar da sintaxe narrativa: “A relação define os actantes; a relação
transitiva entre sujeito e objeto dá-lhes existência, ou seja, o sujeito é o
actante que se relaciona transitivamente com o objeto, o objeto aquele que
mantém laços com o sujeito.”
Com base em tais aspectos e no trabalho pedagógico, principalmente
no que se refere à leitura e produção de texto, como pontos que devem ser
pensados e devidamente refletidos, o presente artigo se propõe a apresentar
alguns comentários referentes à organização da sintaxe narrativa dentro do
gênero crônica jornalística.
Para tanto, serão apresentados fragmentos de uma crônica
jornalística escrita por Arnaldo Jabor, retirada do site do Jornal da Globo
(ver anexo - 1), intitulada “É para sentar e chorar.”

2 – A organização da estrutura narrativa

Ao se falar em texto e em efeitos de sentido, segundo a perspectiva


semiótica é importante entender que tais sentidos vão sendo construídos,
Por isso é que se diz percurso gerativo de sentido e durante o processo, o
percurso que os sentidos vão sendo construídos e, conseqüentemente,
apreendidos.
O texto é autônomo pois é o único responsável pela construção dos
sentidos, é ele que aponta para o contexto, não quer dizer que os
conhecimentos prévios não sejam importantes, afinal, são esses
conhecimentos que vão revelar o sócio-histórico. Ao analisar uma fotografia,
por exemplo, percebe-se a presença de um esquilo em meio à neve, existem
dados que apontam para a interpretação de que a foto não foi tirada no
Brasil, uma vez que se sabe que este animal não é típico da fauna brasileira
e que a neve não característica do clima tropical desse país.
Como se pode notar, a linguagem não é transparente, há sempre
informações implícitas, além das explícitas. A significação do texto vai além
do que o produtor prevê, por isso é importante que haja competência tanto
por parte do enunciador quanto do enunciatário (sujeitos imprescindíveis
nesse jogo de significação discursiva). De acordo com FIORIN (1996, pág. 33)
o sujeito necessita de competências pertencentes a várias ordens para
conseguir entender e se fazer entendido, dentre elas pode-se citar:
a) a competência lingüística que é aquela em que o falante
demonstra conhecer a gramática para poder produzir enunciados
gramaticais e não-gramaticais;
b) a competência discursiva que envolve a competência narrativa
(referente às transformações de estado) e a competência discursiva
propriamente dita (que diz respeito aos aspectos figurativos e temáticos, aos
atores, ao espaço, ao tempo e aos recursos argumentativos, aos discursos
citados, etc.) No que se refere à argumentatividade, pode-se dizer que o fazer
crer é de suma importância no processo comunicativo. Segundo FIORIN
(Revista Organo, no 23, pág. 163 – 173): “Argumentação é qualquer
mecanismo pelo qual o enunciador busca persuadir o enunciatário a aceitar
seu discurso, a acolher o simulacro de si mesmo que cria no ato de
comunicação;”
c) a competência textual que se refere ao saber empregar os
termos de forma adequada ao veículo em que o discurso se fará presente;
d) a competência interdiscursiva que diz respeito à “heterogeneidade
constitutiva do discurso”, ou seja, sabe empregar ou entender as marcas que
existem dentro de um discurso (podendo ser mostradas ou não). Conforme
MAINGUENEAU (1996, pág. 50):

“‘Narrativa’ e ‘discurso’ são conceitos lingüísticos que permitem


analisar enunciados; não são conjuntos de textos. Nada impede que um
texto misture esse dois planos enunciativos. Aliás, é a regra geral no que diz
respeito aos textos de ‘narrativa’, que poucas vezes são inteiramente
homogêneos e que dificilmente apagam todas as marcas de subjetividade
enunciativa.”

e) a competência intertextual que se refere à capacidade de


relacionar um determinado texto com outros (reconhecer ou fazer reconhecer
outros textos);
f) a competência pragmática que diz respeito aos atos elocutórios,
ou seja, está mais relacionada ao fazer-fazer.
3- Relações entre sujeito e objeto no texto
O gênero a ser analisado é uma crônica de Arnaldo Jabor
(www.globo.com/jornaldaglobo), de 08 de julho de 2006. Nesta crônica, o
jornalista faz uma crítica àqueles que estão sempre acreditando que a
situação vai melhorar, que as coisas, um dia, darão certo, enfim, segundo
ele, os resultados acabam por demonstrar que esta ideologia sempre revela o
fracasso daquilo em que se acredita e, por isso, essas pessoas acabam se
tornando descrentes, principalmente no que se refere ao sistema.
Logo no início, percebe-se que este texto não demonstra um sujeito
que transforma, ou seja, os otimistas são colocados como sujeitos que não
estão em conjunção com “o mundo bom” e mesma idéia persegue até o final:
Os idiotas sempre esperam a chegada de um mundo bom. Eu sou um
deles. (...)
Um dos únicos momentos, dentro da situação enunciativa, em que
se poderia pensar em transformação seria quando o enunciador enumera
alguns aspectos referentes ao sistema político:
(...) Primeiro acreditamos no socialismo, na justiça e igualdade. Mas
tudo acabou numa mistura de falência e corrupção.
Neste caso, se o socialismo tivesse dado certo, o sujeito de estado
(“idiotas da esperança”) entrariam em conjunção com o objeto “mundo bom”
(ou dinheiro no bolso, ou ainda, estabilidade econômica) e, por conseqüência
sofreria uma transformação, ou seja, seria visto como um objeto de
transformação, entretanto, como ambos só levam à “falência e corrupção” a
conjunção com o objeto-valor não se concretizou e o que predominou foi a
situação disfórica.
Importante salientar que toda essa tentativa de mudança é feita de
maneira irônica. Existe um enunciador que faz uso de certos elementos
sintáticos proporcionando assim, um certo tom de deboche e até de
descomprometimento por parte do próprio enunciador. Um dos elementos
mais empregados, sem dúvidas, foram as aspas. Primeiramente, as aspas
são empregadas para demarcar um pensamento pertencente ao sistema
capitalista, ou seja, destacam uma ideologia:
A globalização e o mercado vão resolver a vida dos subdesenvolvidos.
Já num outro momento, as aspas identificam uma idéia do povo
brasileiro que ainda acredita e espera que tudo vai melhorar:
“É”, pensamos nós, os idiotas, “mas os EUA são um país ético e
confiável!!!” (...)
(...) “ahhh, mas amanhã o Bush vai à TV fazer um discurso indignado
contra esses crimes!!!”
Nos dois últimos casos, citados acima, as aspas apontam para um
tipo de discurso, o discurso direto. O enunciador dá voz a um outro, o
locutor, e este , por sua vez, profere determinadas idéias, mas não se
compromete, não assume qualquer responsabilidade pelo enunciador (afinal,
são os pensamentos do capitalismo e idéias do povo, respectivamente, não
do locutor). Sobre as aspas MAINGUENEAU (1997 pág. 90) comenta:
“... as aspas designam a linha de demarcação que uma formação
discursiva estabelece entre ela e seu ‘exterior’; um discurso efetivamente só
pode manter à distância aquilo que ele coloca fora de seu próprio espaço.
Uma formação discursiva se estabelece entre estes dois limites, a saber, um
discurso totalmente entre aspas, do qual nada é assumido, e um discurso
sem aspas que pretende um discurso sem aspas que pretenderia não
estabelecer relação com seu exterior.”
Retomando a idéia de transformação na narrativa, ao falar dos
resultados proporcionados pelo capitalismo pode-se dizer que ocorre uma
alteração na maneira pela qual o sujeito se relaciona com o objeto-valor
(pobreza), isto é, houve uma alteração na tensividade entre o sujeito e o
objeto-valor. Não houve mudanças, mas sim apenas uma transformação
originada por tal tensividade:
Deu zebra: os pobres pioraram e não teve colher de chá para país
pobre, emergente.
Entretanto, se se pensar nos estados de conjunção e disjunção com o
objeto valor dinheiro/situação econômica estável; não se pode dizer que
antes havia uma conjunção num estado inicial e passou para uma disjunção
num estado final. Sendo assim, não se pode descrever tal narrativa mínima
como sendo de privação (o sujeito inicia em conjunção com algo e termina
em disjunção com este algo). Desde o início, o sujeito se encontra em
disjunção com o objeto valor (o sistema socialista era ruim, já não havia
igualdade, justiça, dinheiro; no capitalismo continua não havendo). Enfim, o
fato da situação ter piorado para o pobre implica uma transformação que
não foi mediada por uma performance, pois o sujeito continua em disjunção
com o objeto-valor (riqueza). E mais uma vez, o tom irônico é revelado, agora
por meio do clichê “colher de chá”, expressão esta que enfatiza o deboche
pretendido pelo enunciador.
Percebe-se que há uma narração na qual o discurso relata a situação
de um personagem individualizado (primeiramente o povo pobre e depois
países emergentes), no entanto a situação descrita é sempre a mesma. No
que se refere à sintaxe narrativa, pode-se dizer que os enunciados de estados
são os que se destacam.
A partir do estado de disjunção do povo, outros sujeitos enunciativos
vão entrando em conjunção e, por conseqüência, se transformando, como no
caso de Bush.
...mostrou que o Bush também enriqueceu assim. Ele e o vice dele, o
Dick Cheney. Os dois ficaram ricos com informações privilegiadas em suas
empresas, a Harken a Halliburton, na década de 80.
O verbo “enriqueceu”, transmite a idéia de processo, de mudança de
um estado (pobre) para outro (rico). Lembrando BARROS (2002, pág. 23) os
programas narrativos sempre apresentam estados de conjunção e de
disjunção, afinal existem, sempre, sujeitos e objetos de valor: “É fácil
perceber que os programas narrativos projetam sempre um programa
correlato, isto é, se um sujeito adquire um valor é porque outro sujeito foi
dele privado ou dele se privou.”
Com referência às competências descritas anteriormente o
enunciador revelou grande domínio, principalmente no que diz respeito à
argumentação, pois houve a preocupação em enriquecer a narrativa
utilizando idéias e definições ideológicas pertencentes a cada sistema político
sempre entre aspas. Daí a facilidade em perceber o desdobramento do
enunciador na figura de um locutor. Nota-se aí a chamada debreagem
enunciativa, pois há a projeção de um “eu”, num tempo “agora” e num
“espaço” (aqui, no Brasil) revelando assim, a subjetividade desse enunciador
em se colocar no mesmo patamar de quem ele chama de “idiotas”.
4 – Considerações finais
Um primeiro ponto a ser observado no presente artigo é a
importância de se pensar a linguagem como um todo significativo, ou seja,
não há como produzir ou captar efeitos de sentidos se não pensar num
sujeito competente. Assim sendo, é necessário o sujeito tenha domínios
diversos, ou seja, conhecimentos que vão da gramática ao conhecimento
textual-discursivo.
Outro aspecto, embora não tenha sido comentado de forma direta
neste artigo, mas que está estritamente ligado ao primeiro, é com relação à
importância do trabalho com os mais diversos tipos de gêneros. Pensando no
âmbito pedagógico, pode-se afirmar que o trabalho com diversos gêneros
acaba por fornecer maiores subsídios no que ser refere de compreensão e de
se fazer compreendido, enfim, propicia o desenvolvimento e o aprimoramento
das competências do sujeito.
A crônica jornalística selecionada para este trabalho, como se pôde
verificar, se trata de um gênero rico, agradável e, ao mesmo tempo, divertido,
uma vez que a crítica é colocada de forma irônica. Pode-se dizer que esse
mecanismo auxiliou na verificação, não apenas dos elementos presentes na
narrativa, mas principalmente, dos meios pelos quais os programas
narrativos se constituem. Provando, mais uma vez, que o programa
narratológico existe, mas a organização de tal programa não deve ser
entendida como uma estrutura fixa. O estudo da narrativa não se prende
mais só às ações, o importante é estar atento às projeções dentro do
enunciado para a compreensão dos efeitos de sentido.
5 - Bibliografia
BARROS, Diana Pessoa. Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo:
Ática, 2002.
FIORIN, José Luiz. Elementos da análise do discurso. São Paulo:
Contexto, 1996
_____________. A noção de texto na Semiótica. Revista Organon no 23.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto
literário. Trad. Maria Augusta Bastos de Matos. São Paulo: Martins Fontes,
1996
_____________. Novas tendências em análise do discurso. Trad. Freda
Indursky. 3 ed. São Paulo: Pontes,1997.
JABOR, Arnaldo. É para sentar e chorar.
http://jg.globo.com/JGlobo/0,19125,VTJ0-2742-20031112-13016,00.html,
8 de julho de 2002.
6 – ANEXO - 1
Arnaldo Jabor critica os que sempre vêem na ideologia mais em voga
a cura para todas mazelas do mundo. A realidade acaba sempre os
desautorizando.
Os idiotas sempre esperam a chegada de um mundo bom. Eu sou um
deles. Primeiro acreditamos no socialismo, na justiça e igualdade. Mas tudo
acabou numa mistura de falência e corrupção.
Aí os idiotas acreditaram no capitalismo salvador. “A globalização e o
mercado vão resolver a vida dos subdesenvolvidos.”
Deu zebra: os pobres só pioraram e não teve colher de chá para país
pobre, emergente.
"É”, pensamos nós, os idiotas, “mas os EUA são um país ético e
confiável!!!" Outro bode: a Enron roubou, a World Com roubou, outras
roubaram e agora a Merck meteu a mão grande.
Mas, ainda com esperança, os idiotas pensam: “ahhh, mas amanhã o
Bush vai à TV fazer um discurso indignado contra esses crimes!!!”
Outra zebra: a imprensa norte-americana mostrou que o Bush
também enriqueceu assim. Ele e o vice dele, o Dick Cheney. Os dois ficaram
ricos com informações privilegiadas em suas empresas, a Harken e a
Halliburton, na década de 80.
Quer dizer, o capitalismo onipotente faz o que quer no mundo e no
plano ético os EUA estão virando a Nigéria.
Aí, nós, os idiotas da esperança, sentamos no meio fio e choramos
lágrimas de esguicho.
Introdução
A narração é um relato centrado num facto ou acontecimento; há
personagens a actuar e um narrador que relata a acção. O tempo e o
ambiente (ou cenário) são outros elementos importantes na estrutura da
narração.
O Enredo
O enredo, ou trama, ou intriga, é, podemos dizer, o esqueleto da
narrativa, aquilo que dá sustentação à história, ou seja, é o desenrolar dos
acontecimentos. Geralmente, o enredo está centrado num conflito,
responsável pelo nível de tensão da narrativa; podemos ter um conflito entre
o homem e o meio natural (como ocorre em alguns romances modernistas),
entre o homem e o meio social, até chegarmos a narrativas que colocam o
homem contra si próprio (como ocorre em romances introspectivos).
Em O Ateneu o enredo desenvolve-se a partir da entrada do menino
Sérgio, aos onze anos de idade, no colégio interno. Colocado diante de um
mundo diferente, sem estar preparado para isso, o menino vivência uma
série de experiências e acontecimentos que culminam com o incêndio e a
consequente destruição do colégio.
O Ambiente
O ambiente é o espaço por onde circulam personagens e se desenrola
o enredo. Em alguns casos, é de importância tão fundamental que se
transforma em personagem, como no caso do colégio interno em O Ateneu,
de Raul Pompéia, e da habitação colectiva em O cortiço, de Aluísio Azevedo.
O Tempo
Observe, no fragmento de O Ateneu, como o tempo é um elemento
importante: "Eu tinha onze anos", afirma o personagem-narrador (perceba
a expressividade do pronome pessoal e do verbo no pretérito). Fica
caracterizada, assim, uma narrativa de carácter memorialista, ou seja, o
tempo da acção é anterior ao tempo da narração. O personagem-narrador na
sua vida adulta narra factos acontecidos durante a sua pré-adolescência.
As Personagens
Os seres que actuam, isto é, que vivem o enredo, são as personagens.
Em geral a personagem bem construída representa uma individualidade,
apresentando, inclusive, traços psicológicos distintos. Há personagens que
não representam individualidades, mas sim tipos humanos, identificados
antes pela profissão, pelo comportamento, pela classe social, enfim, por
algum traço distintivo comum a todos os indivíduos dessa categoria. E há
também personagens cujos traços de personalidade ou padrões de
comportamento são extremamente acentuados (às vezes tocando o ridículo);
nesses casos, muito comuns em novelas de televisão, por exemplo, temos
personagens caricaturais.
A personagem Sérgio, do romance O Ateneu, constitui-se numa
individualidade, ou seja, numa figura humana complexa que vive conflitos
com o mundo exterior e consigo mesmo. Já o director do colégio, o Dr.
Aristarco, embora não seja uma caricatura, apresenta alguns traços de
personagem caricatura.
O Nome das Personagens
É interessante observar como os bons escritores se preocupam com a
relação personagem/nome próprio. Veja Graciliano Ramos, em Vida secas:
Vitória é o nome de uma nordestina que alimenta pequenos sonhos, nunca
concretizados; Baleia é o nome de uma cachorra que morre em
consequência da seca, em pleno sertão nordestino.
Machado de Assis é outro exemplo brilhante; em Dom Casmurro, o
personagem-narrador chama-se Bento e tem sua vida em grande parte
determinada pela carolice da mãe, que queria torná-lo padre.
Lima Barreto também trabalha muito bem o nome dos seus
personagens: Clara do Anjos é uma rapariga negra que é engravidada e
abandonada por um rapaz branco; Isaías Caminha é um escrivão (lembra-se
do Pero Vaz ?); Quaresma é um ingénuo nacionalista que morre às mãos de
um ditador.
No romance O Ateneu, o diretor autocrático e majestático,
responsável por um ensino conservador e ultrapassado, é significativamente
baptizado de Aristarco (de áristos, "óptimo" + arqué, "governo", ou seja, o
bom governo, com toda ironia possível). Conclusão: ao ler bons autores ou
mesmo ao criar personagens, preste atenção aos nomes.
Em Quincas Borba temos um narrador omnisciente. Veja como o
narrador "lê" os sentimentos, os desejos e mesmo o jogo de cena da
personagem; sabemos, por exemplo, que Rubião mirava disfarçadamente a
bandeja, que amava de coração os metais nobres. O narrador conhece as
prováveis opções de Rubião: a preferência pela bandeja de prata aos bustos
de bronze.
Narração na 3ª Pessoa e narrador omnisciente e omnipresente
O narrador omnisciente ou omnipresente é uma espécie de
testemunha invisível de tudo o que acontece, em todos os lugares e em todos
os momentos; ele não só se preocupa em dizer o que as personagens fazem
ou falam, mas também traduz o que pensam e sentem. Portanto, ele tenta
passar para o leitor as emoções, os pensamentos e os sentimentos das
personagens.
Nas narrações em terceira pessoa, o narrador está fora dos
acontecimentos; podemos dizer que ele paira acima de tudo e de todos. Esta
situação permite ao narrador saber de tudo, do passado e do futuro, das
emoções e pensamentos dos personagens. Daí dizer-se omnisciente.
O presente trabalho constitui-se em uma revisão das principais
teorias responsáveis pela elaboração do conceito de estrutura narrativa a
partir dos anos sessenta e de sua crítica, em estudos publicados nos anos
oitenta. Inicia apresentando a gênese do conceito de narrativa e seu
desenvolvimento, na lingíística e, paralelamente, na psicologia. Neste
trabalho, mostramos que os estudos da narrativa sofreram uma mudança de
enfoque, desde o estudo do modo como representamos nossas estórias, atæ
o estudo de como construímos uma representação da experiência do tempo e
do mundo.
ESTRUTURA DA NARRATIVA:
Para construir uma narração, é fundamental utilizarmos quatro
elementos básicos:
Ação / Tempo / Espaço / Personagens
 Ação: o ponto de partida para a análise de uma obra de ficção
pode ser a ação, a soma de gestos e atos que compõem o enredo ou a
história.
 Tempo: o tempo em que se desenvolve a ação pode ser material
(cronológico) ou imaterial (psicológico). O tempo material _ mais utilizado no
conto e na novela _ é objetivo, pode ser marcado pelo relógio. O tempo
imaterial _ que encontra seu lugar ideal no romance, especialmente o
introspectivo _ é psicológico, não pode ser medido materialmente.
 Espaço: por espaço da narrativa, compreende-se o lugar, o
espaço físico onde a ação dramática se desenvolve.
 Personagens: quanto à função que desempenham na narrativa,
as personagens podem ser classificadas em:
Protagonista (personagem central), Antagonista (criador do clima de
tensão ou opositora da protagonista), Secundário (personagem sem grande
importância no decorrer da narrativa) e narrador (que é quem conta a
história e dela participa).
Ponto de vista do narrador (ou foco narrativo):
Toda a história é narrada sob um ponto de vista, o que chamamos de
foco narrativo que pode ser:
a) Interno, quando o narrador é personagem da história,
conduzindo a narrativa na primeira pessoa (eu),
b) Externo, quando o narrador dá o testemunho da história
utilizando-se da terceira pessoa (ele).
Em A HORA DA ESTRELA, Clarice Lispector mescla com
maestria estes dois tempos de narração criando um personagem que
conta a história de Macabéa.
Ele pode assumir dois tons para desenvolver a narrativa e é o
primeiro dele que mais no interessa no sentido de investigarmos essa
impessoalidade ao darmos voz a uma história:
Impessoal, quando apenas transmite os fatos, sem analisá-los e
pessoal, quando comenta os fatos, analisando-os à medida que vai contando
a história.
No entanto, não devemos confundir essa impessoalidade com uma
narração fria e sem nuances.
Estrutura do enredo: O conjunto de ações e acontecimentos de uma
narrativa constitui o enredo. Ela se constrói obedecendo às leis da
casualidade e temporalidade (isto é, um fato anterior causa o que vem
depois), que determinam a seqüência princípio / meio / fim nas
narrativas lineares, mas que pode ser alterada segundo as intenções do
narrador.
Por exemplo: narrativas que partem do fim e vão contando a história de
trás para frente.
No enredo tradicional (e nos contos populares podemos identificá-los
com muita clareza), encontramos cinco elementos que constroem a espinha
dorsal do enredo. Na “contação” eles são imutáveis a não ser que você crie
uma variante livremente inspirada no conto popular que estiver dando voz.
1- Introdução: situa o leitor/ouvinte no tempo, espaço e desfila os
personagens envolvidos na trama. Vamos pegar na carona no conto AS
FADAS (Charles Perrault/Contos da Mamãe Gansa) para entendermos os
elementos:
Era uma vez, uma viúva que tinha duas filhas ...A mais velha em tudo
se parecia com a mãe, tanto no mau gênio como no semblante pesado. Já a
filha caçula havia herdado do pai não só a generosidade como também as
feições suaves e a bondade. Neste breve preâmbulo somos informados que a
história aconteceu num tempo indefinido e que a ação vai se dar a partir dos
três personagens identificados. Também elaboramos os atributos das três
personagens e descobrimos que vai ser uma narrativa que fala do embate
entre o bem e o mal (questão reincidente na maioria dos contos de fada)
2- Enredo: cria a estrutura para o conflito que vai se desdobrar
mais à frente.
Acontecia o seguinte: a mãe tinha verdadeira adoração pela filha mais
velha, mas não gostava nem um pouco da filha caçula. Obrigava a menina aos
serviços mais pesados: a jovem tinha que lavar, passar, capinar o terreno,
rachar a lenha, mas de todas as tarefas a mais pesada era ir duas vezes a
uma fonte quilômetros de distância da casa e trazer de lá um balde de ferro
batido cheio de água.
Nesta etapa, o leitor/ouvinte começa a ter pontos de vista muito
claros quanto aos personagens e suas atitudes.
3- Desenvolvimento: é o que o próprio nome já diz, a trama se
desdobra conduzindo ao ápice das divergências e/ou questões tratadas na
história.
Estava certo dia a menina à fonte quando viu sair do bosque uma
velha com trajes muito humildes...
Sabemos, então, que a partir da sua gentileza com a velha senhora
(na verdade, uma fada disfarçada em mendiga), a bondosa menina recebe o
dom de ao falar saírem de sua boca todas as riquezas do mundo e flores.
Ela volta para casa e, ao ser perguntada pela mãe sobre o motivo da demora,
responde e saem de sua boca pedras preciosas e rosas brancas. A mãe,
surpresa, pergunta como tal se sucede e ela lhe conta o episódio da fonte.
Imediatamente, a mulher chama a filha mais velha e ordena que ela vá ao
mesmo lugar e de beber à primeira mendiga que aparecer. A outra escolhe
um balde de prata finamente ornamentado e vai.
4- Clímax: culminância dos conflitos já apresentados.
Quando lá chegou, a fada havia resolvido se disfarçar em dama e
apareceu finamente vestida para a jovem, parecia pronta para um baile. Pede
água e a outra responde com altivez e arrogância:_ Trouxe esse balde de prata
pra dar de beber a uma mendiga, se quer água vá você mesma buscar.
Sem se alterar, a fada dá o encantamento à moça de, ao falar, cuspir
bichos peçonhentos e todas as impurezas do mundo.
A filha mais velha volta para casa e, ao ser perguntada pela mãe
sobre o que tinha acontecido, responde e de sua boca saltam lacraias,
escorpiões, serpentes (e em algumas variantes excrementos); enfim, todas as
podridões possíveis. As duas acham que foi uma peça pregada pela filha
mais velha e tanto a surram que ela foge para o bosque.
5- Desfecho: solução ou não dos acontecimentos descritos nas
outras etapas.
Ficou horas a fio chorando, quando um belo príncipe que voltava da
caçada a encontrou.
Ele pergunta porque ela chora tanto, ela lhe conta que fugiu de casa
e ao falar saltam riquezas infindáveis de sua boca e o príncipe (percebam a
fina ironia de Charles Perrault nesta passagem) levando em consideração
que aquele encantamento valia mais do que qualquer dote,a levou para
o castelo onde se casaram e foram felizes para sempre.
Quanto à filha mais velha, esta se tornou tão odiosa que nem a mãe
conseguiu conviver com ela e, depois de bater de casa em casa não sendo
aceita em lugar nenhum, foi morrer no canto mais escuro da floresta.
Uma das características de Charles Perault é sempre colocar a
moralidade como um texto à parte, optando o leitor em lê-la ou não.
No século XVII, os contos que originam o livro CONTOS DA MAMÃE
GANSA não eram direcionados especialmente para as crianças e não tinham
a intenção direta de se tornarem um manual de bom procedimento e
virtudes. Para entendermos melhor essa nova modalidade de expressão
literária que surgia, pesquisem a Querela dos Antigos e Modernos.

CARACTERIZAÇÃO DOS PERSONAGENS:


As personagens dos contos populares têm uma expressão caricatural,
apresentadas com desenvolvimento exagerado de traços da sua
personalidade: avarenta, ridícula, cômica, interesseira, bondosa. Mais que
uma personagem com individualidade, elas simbolizam as distorções e
atributos em si, como se fossem a personificação dos mesmos. A partir do
contato com esses contos, criança cria seu próprio inventário moral
auxiliando no seu próprio processo de individuação.
Outros temas como homossexualidade, incesto, abuso infantil,
também são tratados nos contos
populares, mas não alcançaram a mesma repercussão por
questões morais.
Machado de Assis
Esse livro é uma antologia dos contos machadianos. Reúne
alguns dos mais conhecidos e comentados desse autor. Apresentam de
forma geral características da escola realista: personagens com bastante
densidade psicológica que se deparam com a realidade e filosofam para
conseguir resolver os problemas; presença das correntes, niilista e
pessimista bem como todo a filosofia nietzschana; negação da visão
maniqueísta de mundo; temas que são de interesse universais;
complexidades narrativas.
Na maioria dos contos vemos a vida que escapa ao controle das
personagens e com muito humor e ironia o autor ri das mazelas humanas e
das lutas que travamos pelas “batatas”.
CONTOS:
“A Cartomante” – Conto que surpreende pela excelente estrutura
narrativa, dividida em três partes. Na primeira, introdutória, fica-se sabendo
que Rita, dotada de espírito ingênuo, havia consultado uma cartomante,
achando que seu amante, Camilo, deixara de amá-la, já que não visitava
mais sua casa. Camilo ri da crença de Rita, pois é completamente cético.
Desfeito o mal-entendido, faz-se um flashback que vai explicar como se
montou tal relação. Camilo era amigo, desde longínqua data, de Vilela.
Tempos depois, este se casa com Rita. A amizade estreita a intimidade entre
Camilo e Rita, ainda mais depois da morte da mãe dele. Quando sente sua
atração pela esposa do amigo, tenta evitar, mas, enfim, cai seduzido. Até que
recebe uma carta anônima, que deixava clara a relativa notoriedade da sua
união com a esposa do seu amigo. Temeroso, resolve, pois, evitar contato
com a casa de Vilela, o que deixa Rita preocupada. Terminada essa
recapitulação, vai-se para a parte crucial do conto. Camilo recebe um
bilhete de Vilela apenas com a seguinte mensagem: “Vem já, já”. Seu
raciocínio lógico já faz desconfiar que o amigo havia descoberto tudo. Parte
de imediato, mas seu tílburi fica preso no tráfego por causa de um acidente.
Nota uma estranha coincidência: está parado justamente ao lado da casa da
cartomante. Depois de um intenso conflito interior, decide consultá-la. Seu
veredicto é dos mais animadores, prometendo felicidade no relacionamento e
um futuro maravilhoso. Aliviado, assim como o tráfego, parte para a casa de
Vilela. Assim que foi recebido, pôde ver, pela porta que lhe é aberta, além do
rosto desfigurado de raiva de Vilela, o corpo de Rita sobre o sofá. Seria,
portanto, a próxima vítima do marido traído.
Comentário:

Note neste conto sua estrutura em anticlímax, pois tudo nele


(já a partir da citação inicial da famosa frase de Hamlet: “há mais cousas no
céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”) nos prepara para um final em
que o misticismo, o mistério imperaria. No entanto, seu final é o mais
realista e lógico, já engendrado no próprio bojo do conto, o que mostra o tom
irônico do autor que brinca com as crenças metafísicas e com as angústias
humanas. Reforça esse aspecto o ritmo da narrativa, que é lento em sua
maioria, contrastando com seu desfecho, por demais abrupto. Há a presença
da filosofia nietzscheana no que diz respeito ao niilismo, na crença do nada.
Nietzsche mata o mundo metafísico e concentra toda a sua filosofia no
mundo humano, para ele tudo é Humano, demasiado humano”, nome de um
de seus livros. A brincadeira que Machado faz com as previsões futuras, que
confortam os amantes, mas que não se concretizam, provam a descrença do
narrador na metafísica.
“A Desejada da Gente” – Conto em que o protagonista rememora a
um interlocutor a história de Quintília, cobiçada dama da sociedade que
costumava desenganar todos que tentavam estabelecer uma relação com ela.
O narrador lembra que chegou a fazer uma aposta com seu grande amigo,
sócio de uma banca de advocacia, para ver quem angariaria o coração da
mulher. A primeira conseqüência é o final da amizade tão forte e o auto-
exílio do companheiro em um grotão do país, onde acabara morrendo cedo. A
outra conseqüência é o narrador perder o controle de seus sentimentos. No
entanto, apesar da maneira diferente com que o tratava, destacando-o dos
demais pretendentes, deseja deste apenas amizade. Houve um momento em
que o quadro parecia ter mudado. Primeiro, o narrador havia ficado abatido
com a morte de seu pai. Quintília conforta-o, o que os aproxima. Pouco
depois, era o tio dela, praticamente um tutor, quem falece. Com a
equivalência garantida pela dor, o apaixonado imagina ter caminho aberto
para o casamento. Mas seu pedido é recusado. Some por alguns dias, um
pouco por despeito, um pouco porque mergulhado em compromissos
burocráticos referentes à morte do seu parente. Quando volta, encontra uma
carta de Quintília, instando que a amizade se reatasse. Promete, em troca,
não se casar com ninguém. E tudo fica nesse pé, até que a dama adoece,
definhando aos poucos. Dois dias antes de morrer, casa-se com o narrador.
O único abraço que se dão foi durante o último suspiro dela, como se
quisesse não o aspecto corporal da união, mas algo próximo do espiritual.
Comentário:
Há nesse conto a presença de dois aspectos: o primeiro é figura
feminina dotada de sensualidade e sedução, aliás, uma constante em toda a
obra machadiana. Quintília é uma linda mulher desejada por todos e num
primeiro momento o narrador e seu amigo Nobrega fazem uma aposta para
conquistá-la levando tudo na brincadeira, inclusive interessados também na
fortuna da dama. Entretanto o feitiço vira contra o feiticeiro quando ambos
apaixonam-se por ela. Isso acontece pelo ar sedutor que envolve a mulher,
que além de ser bela e rica ainda mantém um ar misterioso em torno de si.
Outro ponto da narrativa é a possível patologia psicológica da
moça. Ela só aceitou casar-se quando viu a beira da morte, pois dessa forma
não precisaria concretizar o matrimônio no plano carnal. Isso mostra uma
das esquisitices humanas, comportamentos tidos como anormais que são
recorrentes em outros contos do autor como por exemplo “ A causa secreta”.
“O Enfermeiro”– Um homem à beira da morte conta um caso de seu
passado. Ele foi enfermeiro de um coronel velho e mau. O narrador nos
relata a história de uma vez em que tinha ido trabalhar como enfermeiro
para um riquíssimo coronel. Era tão rico quanto ranheta, o que havia
motivado os inúmeros pedidos de demissão de enfermeiros anteriores. Por
causa disso, o narrador, Procópio, é tratado pelo padre da pequena cidade
interior em que estão com toda a atenção, já que é quase a última
esperança. Corre a seu favor o fato de o senhor estar muito doente e,
portanto, à beira da morte. Por sorte, o protagonista se mostra como o mais
paciente que já havia sido contratado, o que angaria alguma simpatia do
velho. Mas a lua-de-mel dura pouco tempo: logo o doente mostra o seu gênio
e começa a tratar rispidamente o enfermeiro. De primeira, agüenta, até que
atinge seu limite e pede demissão. Surpreendentemente, o oponente amansa,
pedindo desculpa e confessando que espera do enfermeiro tolerância para o
seu gênio de rabugento. As pazes voltam, mas por pouco tempo. A tortura
retorna, até o momento em que o idoso atira uma vasilha d’água que acerta
a cabeça do enfermeiro. Este, cego com a dor, voa sobre o velho, terminando
por matá-lo esganado. Começa então o processo mais interessante do conto.
O narrador remói-se de remorso, mas começa a arranjar desculpas em sua
mente para arejar sua consciência (trata-se de uma temática muito comum
em Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas ela já havia
aparecido, num capítulo em que o narrador a metaforizava. Quando fazemos
coisas erradas, é como se nossa consciência ficasse numa casa sufocada,
com todas as portas e janelas fechadas. Então inventamos desculpas,
muitas vezes nos enganamos mesmo, lembramos de outros fatos, como se
fosse possível, por meio de uma boa ação, real ou inventada, compensarmos
falhas, ou seja, abrir a janela da casa e arejar a consciência): o velho tinha
um aneurisma em estágio terminal que iria estourar a qualquer hora
mesmo. No entanto, para complicar sua situação, quase que como uma
ironia, o testamento do velho declara que o enfermeiro era o único herdeiro.
O protagonista mergulha num conflito interior, que pensa eliminar doando a
fortuna. É mais uma maneira de tentar arejar a consciência. Quando as
pessoas vêm elogiar sua paciência com um velho tão insuportável, resolve
elogiá-lo o máximo possível em público, como maneira de ocultar para a
opinião alheia todo vestígio do crime. O pior é que acaba até se iludindo,
eliminando de toda a sua consciência qualquer resto de crise. Nem sequer se
livra, pois, da herança. Chega a fazer doações, como recurso de, digamos,
“arejamento de consciência”.
Comentário:
Fica, portanto, a idéia de que muitas vezes o universo de valores
internos (o enfermeiro foi criminoso ao assassinar o coronel) não
corresponde ao de valores externos (uma cidade inteira o elogia pela
paciência e dedicação a um velho rabugento). E o mais incrível é que, mesmo
sabendo do seu próprio universo interno e, portanto, da verdade, o narrador
ilude a si mesmo. A literatura machadiana encara esse processo como
comum no ser humano.
Outra leitura possível é do ponto mais textual. A narrativa é em
primeira pessoa o que pode representar para o leitor uma tentativa de
argumentação por parte de Procópio para levar o leitor a perdoá-lo. É preciso
ficar atento aos fatos que ele narra, pois esses podem não ter acontecido
exatamente como são narrados. O narrador tem o poder de passar para o
leitor apenas a sua versão dos acontecimentos, o que torna a história
parcial.
“Conto de Escola” – Conto que segue a tradição do estilo delicioso
com que Machado de Assis se apresenta como memorialista. O narrador-
protagonista, Pilar, é um garoto de inteligência superior à dos seus
companheiros de sala. O problema é que o seu comportamento não é nada
recomendável, principalmente pelo fato de estar acostumado a cabular aula.
No momento tratado pela narrativa, só não tinha ido cabular porque havia
apanhado do pai, que descobrira essa falha. Na sala de aula, entediado por
já ter terminado a lição muito antes dos outros, recebe uma proposta de
Raimundo, filho do professor Policarpo: em troca de umas explicações de
sintaxe, daria uma moedinha de prata. Tudo às escondidas, já que o
professor era extremamente severo, muito mais com o seu próprio filho, que,
para piorar, tinha inteligência tarda. O problema é que outro aluno, Curvelo,
flagrou a transação e a denunciou ao professor. O castigo foi severo, sem
contar a humilhação e o fato de o mestre, indignado, ter atirado a moedinha
pela janela, não esquecendo que Curvelo conseguira se safar, sumindo na
hora da saída, impossibilitando o narrador de surrá-lo. No dia seguinte,
ainda preocupado com a moedinha (tinha esperança de encontrá-la), acaba
por cabular aula, seduzido que foi por um pelotão que marchava de forma
animada.
Comentários:
Interessante é notar neste conto que a escola, apresentada como
prisão, algo sufocante, acaba preparando de fato a personagem para a vida,
mesmo que de forma torta, pois a fez entrar em contato com a delação e a
corrupção (é curiosa a mudança dos valores de certos costumes. Tirar
dúvidas em troca de dinheiro fora visto como corrupção naquela época. Hoje,
poderia ser considerado um procedimento normal. No entanto, a delação
ainda é tema bastante polêmico em nossa sociedade), duas terríveis
realidades da convivência humana. O personagem vê-se apresentado à
sedução mercadológica. O que importa para a sociedade burguesa é o
dinheiro. Pilar poderia ajudar o colega Raimundo pelo valor humano, mas
não, o jogo de interesses da sociedade leva-o a aceitar o pagamento do filho
do professor.
O conto não deixa de ser uma crítica à sociedade que é
interesseira, que põe os interesses econômicos acima dos humanos e
culturais.
“Um Apólogo” – Famoso conto que narra o desentendimento entre a
agulha e a linha. A primeira vangloriava-se por ser responsável pela abertura
do caminho para a segunda. Tudo isso ocorre enquanto a costureira ia
preparando o vestido de uma baronesa. No final, com a ida da nobre para a
festa, a linha joga na cara que, se a agulha abrira caminho, agora iria voltar
para a caixa de costura, enquanto o fio iria no vestido freqüentar os salões
da alta sociedade. A frase final do conto, de alguém que ouvira essa história
(um professor de melancolia) é “Também tenho servido de agulha a muita
linha ordinária”.
Comentários:
Apólogo é uma forma do gênero narrativo em prosa. É uma
narrativa inverossímel, com fundo didático e os personagens são objetos
inanimados. Há sempre um fundo moral como nas parábolas e nas fábulas.
A última frase do texto é a moral da história que nos remete a
um aspecto muito comum na obra machadiana que é, na busca por status,
as pessoas acabarem sendo usadas e depois descartadas. É o que ocorre,
por exemplo, em Quincas Borba, na relação entre o casal Palha (linha) e
Rubião (agulha).
“Noite de almirante” - Conta a história de Deolindo, um jovem
marinheiro que fez uma viagem longa, na qual manteve-se fiel à namorada
devido a uma promessa feita por ambos antes de seu embarque. Deolindo e
sua amada Genoveva prometeram fidelidade um ao outro por oito ou dez
meses, o tempo que durasse a viagem do marinheiro. Na noite em que
retornou, Deolindo não pensava em outra coisa senão o reencontro com sua
amada. Os companheiros de viagem não falavam em outra coisa que não
fosse a noite de almirante que esperava o rapaz. Porém a felicidade dele
durou pouco pois soube que Genoveva estava com um novo homem, um
mascate, José Diogo, com quem amigara. Mesmo assim o marinheiro foi ao
seu encontro, conversou com ela, deu -lhe um presente e cobrou a
promessa não cumprida declarando sua fidelidade. Ela admitiu ter feito o
juramento de coração, mas tempos depois apaixonou-se por outro homem.
Deolindo chegou a pensar que ainda tinha alguma chance com a moça,
mas logo percebeu que isso não seria possível. Saiu desesperado, dizendo
que iria se suicidar, mas acabou não cometendo o desatino. Ficou então
com vergonha de admitir aos amigos a verdade e mentiu dizendo que havia
passado uma noite de almirante nos braços de Genoveva.
Comentários:
Nota-se nesse conto a necessidade humana de fixação das coisas,
em especial o sentimento, o que Nietzsche chama de Apolíneo, de Apolo,
deus da mitologia grega que representava a beleza, perfeição das formas e a
fixação pressupõe a perfeição. Por outro lado a vida é mutável, cada
momento vivido é um instante de mutação do tempo de vidas. Segundo o
filósofo Heraclito: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos”, isso porque todas vezes que entramos em um mesmo rio, esse
deixou de ser o que entramos anteriormente, pois as águas já não são as
mesmas e nem nós somos os mesmos, a cada segundo tornamo-nos uma
nova pessoa. A esse mundo que está em constante mutação Nietzsche
chama de Dionisíaco, deus da mitologia grega do vinho, das orgias, dos
prazeres da carne. No momento em que Deolindo e Genoveva fazem a
promessa de fidelidade e amor, estão pressupondo que esse amor será
eterno, acreditam na apolinização do sentimento. Entretanto o que acontece
é o contrário, Genoveva apaixona-se por outro homem, deixando clara as
contradições da alma humana, o lado dionisíaco da vida.
Há também presente no conto a manifestação do orgulho
humano. Primeiramente Deolindo acredita ser possível reconquistar a amada
e tirá-la de seu oponente, que a roubou dele. Seu orgulho ferido fez com que
ele investisse nessa esperança que acabou sendo em vão. Em um segundo
momento o marinheiro mente para os amigos, pois não tem coragem de dizer
a verdade, vencer seu orgulho. Vemos um sentimento de fracasso por parte
do personagem que não conseguiu concretizar sua noite maravilhosa.
“Cantiga de esponsais “ - Romão Pires, mestre Romão , 66 anos,
era um músico conceituado regente da orquestra da igreja do Carmo.
Homem calado, que vivia com Pai José, e que guardava na alma uma grande
tristeza, a de não conseguir compor uma música que fosse a expressão de
seus sentimentos, mesmo sendo um ótimo músico respeitado por todos.
A frustação de Romão era antiga. Desde que casou-se foi
acometido por um desejo de compor uma sinfonia que traduzisse sua
felicidade conjugal. Entretanto todos os esforços do músico foram em vão,
pois as notas que cantavam na alma do mestre não conseguiam ganhar
forma em um papel, nem tão pouco nas teclas do cravo que ele tocava tão
bem. Quando a mulher morreu sua tristeza aumentou por não ter podido
transformar em música a sensação de felicidade que jamais voltaria.
Um dia sentiu-se mal, tomou alguns remédios, mas não
adiantou, estava com sérios problemas cardíacos e foi piorando a medida
que o tempo ia passando. Crente de que a morte estava perto, Romão
resolveu que finalmente deveria rematar a obra iniciada há tempos atrás.
Sentou-se ao cravo e tentou deixar que as notas fluíssem pelos dedos, mas a
inspiração não chegou. Lembrava-se da mulher e da felicidade dos tempos
de casado, porém a música não saia. Olhava pela janela e via um casal em
plena “lua de mel” e tentava inspirar-se no amor juvenil. Depois de várias
tentativas, irritado consigo mesmo e já cansado por causa de sua doença,
abandonou o cravo e rasgou o papel com alguns poucas notas escritas.
Nesse instante Romão surpreendeu a moça enamorada cantarolando sua
música. Ela conseguira o que o mestre havia tentado, expressar através da
música os sentimentos da alma.
Comentários:
O sentimento de Romão não é muito diferente do sentimento de
Deolindo. Há também por parte do personagem um desejo de apolinizar o
momento de felicidade que passou ao lado de sua amada esposa, assim
como o personagem Deolindo tinha o desejo de apolinizar os momentos
passados com Genoveva.
Romão representa também a frustração humana, pois ele, músico
respeitado, não é capaz de compor uma sinfonia, o seu talento é de fora para
dentro e não o contrário. Ele tem habilidade para ler as notas musicais,
tocá-las, regê-las, mas não compô-las. Sua frustração é ainda maior quando
vê que a mocinha da casa em frente traz o dom que ele tanto desejava ter, a
música da alma e não somente dos olhos, dos ouvidos e das mão.
“As academias de Sião”- O conto é dividido em quatro partes. A
primeira fala das quatro academias de Sião. Dois desses grupos de
acadêmicos reúnem-se para discutir o porquê de alguns homens terem jeito
feminino e algumas mulheres terem jeito masculino. Uma das academias
acredita que o que conta é alma e que o exterior não conta, portanto almas
femininas que nascem em corpos masculinos e vice-versa é um erro. A outra
acredita que a alma é neutra, portanto o que conta é o corpo.
Durante um tempo houve grande discussão sobre o assunto até
que a questão partiu para o ataque físico e a primeira academia, liderada
por U-Tong massacrou, literalmente, a outra. A cidade ficou indignada com
o acontecimento, porém, Kinnara, a concubina favorita do rei aprovou o
acontecimento.
A segunda parte mostra Kinnara, que tem uma alma masculina
em corpo feminino tentando convencer o rei, Kalaphangko, que tem uma
alma feminina em corpo masculino, a decretar uma lei que corrobore as
idéias da academia de U-Tong, de que a alma sexual é que é legítima. O rei,
cedendo aos encantos da bela amada acaba por assinar o decreto.
Na terceira parte Kinnara propõe ao rei que eles, através de um
ritual Mukunda, Hindu, troquem de corpo. O rei aceita e passa a habitar o
corpo de Kinnara e ela o do rei.
Na última parte a alma de Kinnara, no corpo, mostra-se
autoritária, egoísta e cruel e com medo de perder o poder, depois que
voltasse ao seu corpo natural, resolve que irá matar Kalaphangko, que
habitava o seu corpo. Porém seu medo era destruir o corpo que era seu,
então resolve chamar os membros da academia de U-Tong para pedir a eles
ajuda. Entretanto descobre que todos eram falsos, hipócritas, pois
trabalhavam juntos, mas falavam mal uns dos outros sem o menor pudor,
chamando uns aos outros, pelas costas, de camelos.
Quando Kinnara resolve matar Kalaphangko, ele diz a ela que
está grávida. Ela fica sensibilizada e resolve não cometer o assassinato. Eles
destrocam os corpos, voltando cada alma ao seu corpo de origem. O conto se
encerra com ambos em um barco ouvindo os acadêmicos cantarem “Glória a
nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”. Kinnara fica
assobrada, pois não compreende como eles reunidos podem ser a luz do
mundo e separados um bando de camelos.
Comentário:
Sião é uma referência bíblica, um monte onde os seguidores de
Deus reuniam-se para adorá-lo e oferecer sacrifícios a Ele.
O conto reúne várias análises da essência humana que são
bastante recorrentes nos textos machadianos. O egoísmo, que mostra-se
quase em todo o conto, especialmente na figura do rei Kinnara, que só pensa
em si mesma quando resolve matar a Kalaphangko, mas que tem alguns
momentos de indecisão, não pesando na alma dele, mas no seu próprio
corpo. A vaidade, que aparece representada na figura dos acadêmicos que se
vangloriam de ter assassinados os outros em defesa de suas crenças. O
abuso de poder do rei Kinnara, que não se compadece de seus súditos e faz
valer as suas ordens. A hipocrisia e a falsidade é evidente nos acadêmicos
que se reúnem e trocam idéias e por trás falam mal uns dos outros.
As quatro academias das quais fala o narrador são a academia de
U-Tong, a outra, massacrada por ela, Kinnara e Kalaphangko, pois cada um
deles têm as suas verdades, acreditam nela e são capazes de tudo para
defendê-las.
Fica aqui uma pergunta: qual a relação do título com o texto? O
que tem a ver Sião, metaforicamente “ a cidade de Deus”, com o reino de
Kalaphanngko?
“A igreja do Diabo” – O conto é dividido em quatro capítulos.
O primeiro, “De uma idéia mirífica”, conta a idéia do diabo de fundar uma
igreja, pois estava cansado de viver sem regras, sem organização. Ele não
tinha dúvidas de que sua crença haveria de crescer muito mais do que as
outras, que vivem em combate eterno, afinal “há muitos modos de afirmar;
há só um de negar tudo”. Resolvido isso voou até o céu para comunicar sua
decisão a Deus.
O segundo capítulo, “Entre Deus e Diabo”, narra a conversa entre
os dois a respeito da nova igreja. “Não venho pelo vosso Fausto, respondeu o
Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos” disse o
Diabo, e argumentou com o Senhor dizendo que as virtudes humanas são
como uma rainha, cujo manto de veludo possui franjas de algodão, as quais
o demônio se propunha puxar para trazer à tona as de seda pura. Deus
acaba por concordar com o Diabo e dá a ele permissão para fundar sua
igreja.
No terceiro capítulo, “A boa nova aos homens”, Satanás funda
finalmente sua igreja e começa a arrebanhar os seus seguidores. A
doutrina diabólica baseava-se na total falta de caráter humano, no deleite
total das coisas da vida, na prática da maldade sem culpa, na busca
desordenada pelo dinheiro, na falta de solidariedade pelo próximo e no
egoísmo como ponto máximo.
No quarto e último capítulo, “Franjas e franjas”, o Diabo
comemora sua vitória, pois, como havia previsto, sua igreja era um sucesso,
a capa de veludo havia se acabado em franjas de algodão. Entretanto com o
tempo Satanás começou a descobrir que as pessoas nem sempre eram
totalmente fieis aos seus dogmas. Elas tinham, muitas vezes, atitudes de
bondade, e praticavam atos de solidariedade e humanidade as escondidas.
Pasmo com essas atitudes o Diabo voou até o céu e, morrendo de
raiva, contou tudo ao Senhor que disse-lhe:
“- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que
queres tu? é a eterna contradição humana”.
Comentários:
Basicamente esse conto fala das várias fases do ser humano,
destruindo a visão maniqueísta de bem e mal. O Diabo, crente de que a
capa de veludo, metáfora usada para a bondade humana, é somente uma
máscara que esconde a verdadeira essência do homem, que são as franjas de
algodão, que metaforiza a maldade, propõe-se a mostrar toda a essência do
ser humano, trazendo a tona a maldade. Entretanto ele acaba por descobrir
que o veludo não é uma máscara, assim como as franjas de algodão não são
a essência. O homem na verdade é feito das duas coisas, da maldade e da
bondade, a verdadeira essência humana e a contradição, a mutabilidade, o
homem é uma grande “metamorfose ambulante” (Raul Seixas). De uma certa
forma esse conto e “Noite de almirante” se interpenetram, pois ambos tratam
da dificuldade humana de fidelidade e da porção dionisíca que constitui o
homem.
“Missa do galo”- Um dos mais famosos e discutidos contos de
Machado de Assis. O Sr. Nogueira narra um fato de sua adolescência, uma
conversa que tivera na noite de Natal com Dona Conceição, casada com o Sr.
Meneses. O narrador tinha na época do acontecimento dezessete anos e
morava na casa do Sr. Meneses por causa dos estudos.
O Sr. Meneses mantinha uma amante com quem sempre se
encontrava, fato que todos sabiam, inclusive a própria esposa. Na noite de
Natal o marido saiu para encontra-se com a “outra”. O Sr. Nogueira
combinou de ir a Missa do Galo com um vizinho, para isso precisava manter-
se acordado até meia-noite. Ficou então na sala lendo Os Três Mosqueteiros e
esperando o tempo passar. Por volta de onze horas Dona Conceição
levantou-se e foi até a sala. Começou então a conversar com o garoto que
ficou fascinado pela senhora, que sentou-se ao seu lado e sussurrou nos
seus ouvidos para não acordar a mãe que dormia. O momento foi
interrompido pelo vizinho que bateu na janela para chamá-lo para a Missa
do Galo.
Durante a missa o garoto não conseguiu pensar em outra coisa
que não fosse em Dona Conceição e na manhã seguinte, quando a
encontrou, ela comportou-se normalmente, como todas as manhãs.
Comentários:
Um dos contos mais conhecidos e também mais comentados da
obra machadiana. Há, assim como em “As desejadas das gentes”, a
construção da mulher do ponto de vista da sedução. O garoto Nogueira fica
inebriado pelas atitudes de Conceição, uma mulher íntegra, de um caráter
irrefutável, mas que guarda dentro de si todas as armas da sedução
feminina que são sufocadas pela sociedade, uma sociedade absoluta
machista.
O garoto por sua vez deixa fluir o seu complexo de édipo, pois D.
Conceição era para ele a representação de uma mãe.
No final do conto vê-se claro que os prazeres da carne são
superiores aos preceitos espirituais e cristãos. Nogueira fica pensando na
mulher ao invés de preocupar-se com os sermões do padre, o que evidencia
um dos pontos mais marcantes dos textos realistas.
Se narrar é contar algo, é preciso levar em consideração que o
homem sempre quis contar histórias.
Tanto nas novelas televisivas quanto numa parede de pedra em
Altarnira existem fatos que o narrador quis legar para a futuridade. Num
quadro, nas histórias em quadrinhos, numa fotografia familiar antiga, na
letra de uma música, em urna simples piada, nas páginas policiais, lá está o
legado humano: a história, uma história; a recriação de toda a realidade.
O ensaísta inglês Edmund Forster, teórico da literatura, em seu
"Aspectos do Romance", garante que narrar é uma atividade atávica, que
todo homem é um guardador de histórias, um criador de narrativas.
Quem nunca ouviu falar em Sherazade que conseguiu safar-se da
morte por degolamento porque sabia contar lindas histórias e, assim, fez
com que o sultão a livrasse da sentença que aplicava às outras mulheres do
harém e, admirando-a, fez dela sua esposa? Quem nunca ouviu falar do
Decameron, de Bocaccio, histórias contadas entre si por um grupo de jovens
que se protegiam da peste, isolados num castelo, esperando que a praga
passasse e pudessem voltar para seus pais?
Narrar é reinventar o mundo, é recriar a vida, é tentar ser uma
espécie de Deus criador de destinos. Toda narrativa pressupõe quatro
elementos básicos: personagem, tempo, ação e espaço. Não existe narrativa
sem esses quatro componentes. Observe agora de que se compõe a estrutura
narrativa.
A estrutura narrativa
Se tomarmos em consideração o romance, a novela ou o conto, o
enredo terá de desenvolver-se da seguinte forma:
Seqüência inicial (ou Exposição)
Dá-se quando são apresentados ao leitor personagens, cenários,
tempo.
É quando há uma multiplicidade de situações ainda não delineadas,
criaturas que são vistas individualmente, ambientes que formam apenas um
pano de fundo. Geralmente, as narrativas iniciam-se por um conflito (lance
inicial), um problema, uma dúvida. Tome como exemplo Memórias Póstumas
de Brás Cubas: um narrador defunto contará a sua história; ou como em D.
Casmurro: o narrador quer "atar as duas pontas da vida"; ou como em
Senhora: o relato de Aurélia Camargo que "compra" um marido de pouco
estofo moral por cem contos de réis.
Desenvolvimento narrativo
Decorre do encadeamento de feitos, ações. Os "destinos" das
personagens se entrelaçam, aproximando-as, distanciando-as: as
complicações narrativas encadeiam- se lentamente, o leitor é levado a
conhecer o que propõe o texto. Histórias de personagens secundários e
protagonistas se misturam seqüencialmente até que, finalmente, atinjam o
clímax, ponto mais alto da narrativa, ocasião em que tudo se esclarece:
vilões são punidos, amores são refeitos, criaturas se aproximam, tragédias
ocorrem. Tomemos o exemplo da descoberta, por parte de Riobaldo, no livro
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, de que Diadorim é uma
mulher.
Desfecho ou desenlace
É a conclusão, o "arremate" do texto.
Suponha uma novela de TV. Mocinho e mocinha felizes e casados,
vilão preso, tudo em paz. Você já pode até adivinhar o que vai acontecer no
"arremate", acabamento: as personagens menores se acomodam em seus
destinos, nasce uma criança, um casamento se faz. Todos serão felizes ou
prosseguirão de qualquer modo suas vidas. É o fim da narrativa.
De uma olhadinha
É preciso entender que a tripartição acima pode ser alterada de
acordo com a disposição que o narrador dá à temporalidade. Em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, a narrativa começa no ponto mais
alto: o enterro do narrador, ponto de partida para que ele, "do outro lado da
existência", inicie a narração, voltando à seqüência inicial através de
flashbacks.
Observe o texto abaixo, e tente, em cada um deles, demarcar
seqüência inicial, desenvolvimento narrativo, clímax e desfecho:
O Cajueiro
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas
recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás da
casa. Agora, vem uma carta dizendo que ele caiu.
Eu me lembro do outro cajueiro que era menor; e morreu há muito
mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande
touceira de espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente "tala")
e da alta saboneteira que era nossa alegria e cobiça de toda a meninada do
bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude.
Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-
me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores
humildes, "beijos", violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao
lado de casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas
protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de
seu tronco, a cica* de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo
cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além,
sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos
amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de
que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um
amigo de outras terras um parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de
ventania, num fragol; tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se
não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia
abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já
morreram.
Diz que seus filhos pequenos se assustaram, mas: depois foram
brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em setembro. Estava carregado de Flores.
(Rubem Braga, Os melhores contos, Global Editora: pp 137 a 138)
Nascer
O filho já tinha nome, enxoval, brinquedo e destino traçado. Era
João, como o pai, e como aconselhavam a devoção e a pobreza. Enxoval e
brinquedo de pobre, comprados com a antecedência que caracteriza não os
previdentes, mas os sonhadores. E destino, para não dizer profissão, era o
de pedreiro, curial ambição do pai, que, embora na casa dos 30, trabalhava
ainda de servente.
Tudo isso o menino tinha, mas não havia nascido. Eles nascem
antes, nascem no momento em que se anunciam, quando há realmente
desejo de que venham ao mundo. O parto apenas dá forma a uma realidade
que já funcionava. Para João mais velho, João mais moço era uma
companhia tão patente quanto os colegas da obra, e muito mais ainda, pois
quando se separavam ao toque da sineta, os colegas deixavam por assim
dizer de existi1; cada um se afundava na sua insignificância, ao passo que o
menino ia escondido naquele trem do Realengo, e eram longas conversas
entre João e João, e João miúdo adquiria ainda maior consistência ao
chegarem em casa, quando a mãe, trazendo-o no ventre, contudo o esperava
e recebia das mãos do pai, que de madrugada o levara para a obra.
Estas imaginações, ditas assim, parecem sutis; não havia sutileza
alguma em João e sua mulher: Nem o casal percebia bem que o garoto
rodava entre os dois como um ser vivo; pensavam simplesmente nele, muito,
e confiados, e de tanto ser pensado João existiu, sorriu, brincou na
simplicidade de ambos. Como alguém que, na certeza de um grande negócio,
vai pedindo emprestado e gastando tranqüilamente, João e a mulher
sacavam alegrias futuras. João sentia-se forte, responsável. Escolhera o sexo
e a profissão do filho; a mulher escolhera a CD 1; um moreno claro, cabelo
bem liso, olhos sinceros. Não havia nada de extraordinário no menino, era
apenas a soma dos dois passada a limpo, com capricho.
Esperar tantos meses foi fácil. O menino já tomava muita parte na
vida deles, nascer era mais uma formalidade. Chegou março, com um tempo
feio à noite, que ameaçava carregar o barraco. A mulher de João acordou
assustada, sentindo dores. Pela madrugada, correram à estação; a chuva
passara, mas o trem de Campo Grande não chegava, e João sem poder
mexer-se. As dores continuavam, João levou tempo para pegar uma carona
de caminhão.
Na maternidade não havia médico nem enfermeira que o temporal
tinha retido longe. João perdera o dia de serviço e esperou, determinado.
Afinal, levaram a mulher para uma sala onde cinco outras gemiam e faziam
força. João não viu mais nada, ficou banzando no corredor. Entardecia,
quando a porta se abriu e a enfermeira lhe disse que o parto fora complicado
mas agora tudo estava em ordem, a criança na incubadora. "Posso ver?"
"Depois o senhor vê. Amanhã." Amanhã era dia de pagamento, não podia
faltar à obra. Voltaria domingo. Mas no dia seguinte, à hora do almoço,
telefonou, uma complicação, não se ouvia nada, alguém da secretaria foi
indaga!; respondeu que tudo ia bem, ficasse descansado.
Domingo pela manhã, João se preparava para sai!; quando a
ambulância silvou à porta, e dela desceu, amparada, a mulher de João. "O
menino?" "Diz que morreu na incubadora, João." "E era mesmo como a gente
pensava, moreninho, engraçado?" Ela baixou a cabeça. "Não sei, João. Não
vi. Eu estava passando mal, eles não me mostraram".
E o menino, que tinha sido tanto tempo, deixou de repente de ser.
(Carlos Drummond de Androde, Seleto em Proso e Verso, Liv. José
Olímpio, J 978, pp 65 o 66)

NARRAÇÃO
A narração consiste, portanto, na maior parte do poema. Inicia-se "In
Media Res", ou seja, em plena ação. Vasco da Gama e sua frota se dirigem
para o Cabo da Boa Esperança, com o intuito de alcançarem a Índia pelo
mar. Auxiliados pelos deuses Vênus e Marte e perseguidos por Baco e
Netuno, os heróis lusitanos passam por diversas aventuras, sempre
comprovando seu valor e fazendo prevalecer sua fé cristã. Ao pararem em
Melinde, ao atingirem Calicute, ou mesmo durante a viagem, os portugueses
vão contando a história dos feitos heróicos de seu povo. Completada a
viagem, são recompensados por Vênus com um momento de descanso e
prazer na Ilha dos Amores, verdadeiro paraíso natural que em muito lembra
a imagem que então se fazia do recém descoberto Brasil.
ESTRUTURA NARRATIVA
O poema se estrutura através de uma narrativa principal, que apresenta
a viagem da armada de Vasco da Gama. A esse fio narrativo condutor é
incorporada inicialmente a narração feita por Vasco da Gama ao rei de
Melinde, em que conta a história de Portugal até a sua própria viagem. Na
voz do Gama, ouvem-se os feitos dos heróis portugueses anteriores a ele,
como Dom Nuno Álvares Pereira, o caso de amor trágico de Inês de Castro, o
relato de sua própria partida, com o irado e premonitório discurso do Velho
do Restelo e o episódio do Gigante Adamastor, representação mítica do Cabo
da Boa Esperança.
Em seguida são acrescentadas as narrativas feitas aos seus
companheiros pelo marinheiro Veloso, que relata o episódio dos Doze da
Inglaterra. Por fim, já na Índia, Paulo da Gama, irmão de Vasco, conta ainda
outros feitos heróicos portugueses ao Catual de Calicute.
A estrutura narrativa do poema é composta, portanto, por três narrativas
remetendo à história de Portugal, interligadas pela narração da viagem de
Vasco da Gama.

ECLETISMO RELIGIOSO
O poema apresenta um ecletismo religioso bastante curioso. Mescla a
mitologia greco-romana a um catolicismo fervoroso. Protegidos pelos deuses,
os portugueses procuram impor aos infiéis mouros sua fé cristã. O
português é visto por Camões como representante de toda a cultura
ocidental, batendo-se contra o inimigo oriental, o árabe não-cristão. Todo
esse fervor religioso não impede a utilização pelo poeta do erotismo de cunho
pagão, como no episódio da Ilha dos Amores e seus defensores lusitanos são
protegidos, ao longo de todo o poema, por uma deusa pagã, Vênus. É curioso
notar que a imagem clássica do deus romano Baco (o Dioniso dos gregos),
amigo do vinho e do desregramento, inimigo maior dos portugueses, é a de
um ser de chifres e rabo. A mesma que foi utilizada pela igreja católica para
representar o demônio.
Episódios Principais
Diversos são os episódios célebres de Os Lusíadas que merecem
um olhar mais atento. Um deles é o da ilha dos Amores, (Canto IX, estrofes
68 a 95) em que a "Máquina do Mundo", com suas inúmeras profecias, é
apresentada aos portugueses. Nessa passagem do final do poema o plano
mítico – dos deuses – e o histórico – dos homens – encontram-se: os
portugueses são elevados simbolicamente à condição de deuses, pois só aos
últimos é permitido contemplar a “Máquina do Mundo”. Foi o episódio da ilha
dos Amores que inspirou o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade a
compor seu poema "A Máquina do Mundo".
Outro é o do Gigante Adamastor, (Canto V, estrofes 37 a 60),
representação figurada do Cabo da Boa Esperança, que simboliza os perigos
e tormentas enfrentados pelos navegadores lusitanos no caminho da Índia.
Adamastor é o próprio Cabo, que foi transformado em rocha pelo deus Peleu,
como vingança por ter seduzido sua esposa, a ninfa Tétis. Esse episódio foi
recriado por Fernando Pessoa (1888-1935) no poema "O Mostrengo" do livro
Mensagem (1934):

O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.

O rei Afonso voltou a Portugal, depois da vitória contra os mouros,


esperando obter tanta glória na paz quanto obtivera na guerra. Então
aconteceu o triste e memorável caso da desventurada que foi rainha depois
de ser morta, assassinada.

Tu, só tu, puro Amor, com força crua,


Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

O Amor, somente ele, foi quem causou a morte de Inês, como se ela fosse
uma inimiga. Dizem que o Amor feroz, cruel, não se satisfaz com as
lágrimas, com a tristeza, mas exige, como um deus severo e despótico,
banhar seus altares (“aras”) em sangue humano: requer sacrifícios
humanos.
A palavra "pérfido", na obra, geralmente se refere aos Mouros inimigos.
Nesse verso, parece indicar que Inês foi morta com a mesma crueldade que
se usava contra eles.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,


De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Inês estava em Coimbra, sossegada, usufruindo (“colhendo doce fruito”)


da felicidade ilusória (“engano da alma, ledo e cego”) e breve (“Que a Fortuna
não deixa durar muito”) da juventude. Nos campos, com os belos olhos
úmidos de lágrimas de amor, repetia o nome do seu amado aos montes (para
cima, para o alto) e às ervas (para baixo, para o chão).
As formas "fruito" e "enxuito" são variantes de “fruto” e “enxuto”. Durante
muito tempo, enquanto a Língua Portuguesa se solidificava, essas variantes
foram utilizadas simultaneamente. A Língua Portuguesa acabou por definir
"fruto" e "enxuto" como a forma culta. Na época de Camões, palavras como
despois, fruito, enxuito e escuito eram as mais usadas. Ele, então, prefere
estas formas para se adequar à estrutura poética de Os Lusíadas - a oitava
rima -, formada por versos decassílabos (heróicos ou sáficos), e respeitar o
sistema rítmico dos versos - abababcc. Portanto, fruito (verso 2) e enxuito
(verso 6) são as rimas cabíveis a muito (verso 4). Estas formas arcaicas ainda
são utilizadas em muitas regiões.

Do teu Príncipe ali te respondiam


As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

As lembranças do Príncipe respondiam-lhe, em pensamentos e em


sonhos, quando ele estava longe. Isto é, a memória do amado fazia com que
Inês conversasse com ele, quando este estava ausente. Ambos não se
esqueciam um do outro e se “comunicavam” através da memória, em forma
de pensamentos e sonhos. Assim, tudo quanto faziam ou viam os fazia
felizes, porque lembravam dos respectivos amados.
Esta estrofe é bastante ambígua. As lembranças do Príncipe vinham à mente
de Inês como resposta aos seus cuidados amorosos; por outro lado, as
mesmas lembranças, agora de Inês, existiam (moravam) na alma do príncipe
quando estava longe da amada. Os sonhos e os pensamentos dos versos 5 e
6, dois modos de lembranças, pertencem indistintamente ao amado e à
amada. E o sujeito de cuidava e via, no verso 7, tanto pode ser ela quanto o
Príncipe.

De outras belas senhoras e Princesas


Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

O Príncipe se recusa a casar com outras mulheres (tálamo: casamento,


leito conjugal) porque o amor despreza, rejeita tudo que não seja o rosto do
amado (gesto significa rosto, semblante) a quem está sujeito. Ao ver este
estranho amor, este comportamento estranho de não querer se casar, o pai
sisudo (sério, grave) atende ao murmurar do povo e…

Tirar Inês ao mundo determina,


Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo c’o sangue só da morte ladina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra hûa fraca dama delicada?

… decide matar Inês, para que o filho seja libertado do seu amor. O pai
acredita que só o sangue da morte apagará o fogo do amor. Que fúria foi
essa que fez com que a espada cortante que afrontara o poder dos Mouros
fosse levantada contra uma frágil e indefesa mulher?

Traziam-na os horríficos algozes


Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
Quando os horríveis e cruéis carrascos trouxeram Inês perante o rei, este
já estava compadecido (com dó) e arrependido. No entanto, o povo persuadia,
incitava o rei a matá-la. Inês, então, com palavras ou com a voz triste,
sentindo mais pela dor e saudade do príncipe e dos filhos do que pela
própria morte…

Pera o céu cristalino alevantando,


Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:

Levantando os olhos cheios de lágrimas ao céu (somente os olhos,


porque um carrasco prendia-lhe as mãos) e, depois, olhando para as
crianças - que amava tanto e temia que ficassem órfãs -, disse para o avô
cruel (o rei):

Se já nas brutas feras, cuja mente


Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento
Como c’o a mãe de Nino já mostraram,
E c’os irmãos que Roma edificaram:

“Se já vimos que até os animais selvagens, cujos instintos são cruéis, e as
aves de rapina têm piedade com as crianças, como demostraram as histórias
da mãe de Nino e a dos fundadores de Roma…”
Semíramis, rainha da Assíria e mãe de Nino, a abandonara num monte. Nino
foi alimentada por aves de rapina. Rômulo e Remo, fundadores de Roma,
foram abandonados quando infantes e amamentados por uma loba.

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito


(Se de humano é matar hûa donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

Sendo assim, ele, o rei, que tinha o rosto e o coração humanos (se é que é
humano matar uma mulher só porque esta ama um homem que a
conquistou), poderia ao menos ter respeito e consideração às crianças, ainda
que não se importasse com a triste morte da mãe. Inês suplica, então, que o
rei se compadeça dela e das crianças, já que não queria perdoá-la ou
absolvê-la de uma culpa, um crime, que não tinha cometido.

E se, vencendo a Maura resistência,


A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida, com clemência,
A quem peja perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.

E se o rei sabia dar a morte, como o mostrara ao vencer os Mouros,


também saberia dar a vida a quem era inocente. Mas, se apesar da sua
inocência, ainda a quisesse castigar, que a desterrasse, expulsasse, para
uma região gelada ou tórrida, para sempre.

Põe-me onde se use toda a feridade,


Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, c’o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.)

Que ele a colocasse entre as feras, onde poderia encontrar a piedade que
não achara entre os homens. Ali, por amor daquele por quem morria ou
sofria, criaria os filhos, que era recordações do pai e seriam consolação da
mãe.

Queria perdoar-lhe o Rei benino,


Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra hûa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?

O rei bondoso queria perdoar Inês, comovido por suas palavras. Mas o
povo obstinado, persistente e o destino de Inês (que assim o quis) não lhe
perdoaram. Os que proclamavam que ela deveria morrer puxam suas
espadas. Mostram-se valentes atacando uma dama.

Qual contra a linda moça Policena,


Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
C’o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos, com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha),
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:

Assim como Pirro se prepara com a espada (“ferro”) para matar Policena,
por ordem do fantasma de Aquiles, e ela - mansa e serenamente -, movendo
os olhos para a mãe, enlouquecida de dor, oferece-se ao sacrifício…
Aquiles, herói da guerra de Tróia, era invulnerável por ter sido
submergido, logo ao nascer, na água da lagoa Estígia (Lagoa da Morte).
Personagem da Ilíada de Homero, morreu durante a guerra de Tróia, quando
foi atingido por uma seta no calcanhar, o único ponto vulnerável do seu
corpo. Pirro, filho de Aquiles, teria sido aconselhado pelo fantasma
(“sombra”) do pai a matar Policena, noiva do herói morto. Matou-a quando
esta se encontrava sobre o túmulo de Aquiles.

Tais contra Inês os brutos matadores,


No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, fervidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

Do mesmo modo agem os cruéis assassinos de Inês. No pescoço (“colo”)


que sustenta o belo rosto (“as obras”: o sorriso, o olhar, os movimentos do
rosto) pelo qual se apaixonou (o deus Amor, Cupido, fez morrer de paixão) o
príncipe, que depois a fará rainha, eles (os matadores) banham, lavam suas
espadas e também as faces pálidas (“brancas flores”) e molhadas de lágrimas
de Inês; atacavam enraivecidos, sem pensarem no castigo que o futuro lhes
reservava.
Camões supõe que Inês foi degolada, como Policena oferecendo o pescoço
ao golpe, e o sangue escorreu sobre seu rosto.

Bem puderas, ó Sol, da vista destes,


Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes.

Naquele dia, o sol deveria ter-se escondido, como fizera quando Tiestes
comeu os próprios filhos em um banquete servido por Atreu, para não ver o
terrível crime. A última palavra de Inês - o nome de Pedro, o príncipe - ecoou
longa e repetidamente através da região.
Camões iguala a crueldade da morte de Inês à da história de Atreu e
Tiestes. Tiestes era filho de Pélops e irmão de Atreu. Seduziu a esposa do
irmão. Atreu deu a comer a Tiestes os filhos que nasceram daquela união.

Assi como a bonina, que cortada


Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.
Como uma flor colhida precocemente pelas mãos travessas (“lascivas”) de
uma menina para colocá-la numa grinalda (“capela”), assim está Inês, sem
perfume e sem cor. Morta, pálida, com as faces (“do rosto as rosas”) secas,
murchas, sem rubor. O padrão de beleza feminino era uma combinação de
branco na testa, colo, etc. (“branca e viva cor” ) e vermelho (“viva cor”) nas
“rosas” do rosto.

As filhas do Mondego a morte escura


Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.

As ninfas do Mondego (rio de Portugal), durante muito tempo, lembraram


chorando a morte de Inês. E, para sua memória eterna, as lágrimas
transformaram-se numa fonte chamada “dos amores de Inês”, acontecidos
ali. A fonte que rega as flores é refrescante porque é feita de lágrimas e de
amores.
"Qual vai dizendo: —" Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!" —

Uma mãe fala ao filho, lamentando-se de que ele, que iria ampará-la e
cuidar dela na velhice, a está abandonando para servir de alimento aos
peixes. O lamento das mulheres nessa e na estrofe seguinte é plenamente
justificado: a frota de Vasco da Gama deixou o cais do Restelo com 170
homens, dos quais apenas 55 retornariam vivos a Portugal.

"Qual em cabelo: —"Ó doce e amado esposo,


Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?" —

Outra mulher, com o cabelo descoberto (“em cabelo”), pergunta ao


marido, sem o qual não poderá viver, o motivo de ele ir arriscar a vida ao
mar bravio, quando a vida dele pertence a ela, e não a ele; e como ele pode
esquecer ou trocar o sentimento deles pela incerteza dos ventos e do mar.
Será que ele deseja que o vento leve, com as velas da embarcação, o seu
amor? Note-se a aliteração final (Velas leVe o Vento) que imita o som do
Vento.

"Nestas e outras palavras que diziam


De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.

Com estas e outras palavras de amor e de piedade, os velhos e as


crianças, a quem a idade faz mais fracos, os seguiam. E os montes, como se
estivessem comovidos, respondiam a estes lamentos com ecos. As lágrimas
molhavam a areia, e eram tantas que, em quantidade, se igualavam à areia.

"Nós outros sem a vista alevantarmos


Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

Com medo de sofrer ou se arrepender, os nautas (navegantes), não


olhavam para as mães e esposas. Vasco da Gama decidiu que embarcariam
sem a despedida costumeira, porque, ainda que seja um bom costume
porque mostra o amor das pessoas, faz sofrer a quem parte e a quem fica.

"Mas um velho d'aspeito venerando,


Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

Mas um velho de aspecto respeitável (venerável), que estava entre as


pessoas, na praia, olhando para os navegadores e balançando a cabeça
negativamente, levantou um pouco mais alto a voz grave, que foi ouvida
claramente pelo que estavam no mar, e com uma sabedoria feita de
experiências disse algumas palavras sábias, inteligentes, e profundas
(“experto peito” - “experto” = experiente, experimentado, culto, inteligente).

—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça


Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Este prazer dos homens de dominar e a cobiça fútil e sem valor da
fama são tolices ilusórias, passageiras (“vaidade”). Esta satisfação falsa,
enganadora, é estimulada pelas pessoas, que a chamam de honra. Isso
castiga grandemente os homens de coração tolo, vazio (“peito vão”) que
ambicionam o poder e a fama; fazendo com que experimentem muitos
suplícios (“mortes”, “perigos”, “tormentas”) e crueldade.
Note que a expressão “peito vão”, nesta estrofe, se opõe à “experto peito”, na
estrofe anterior.
Essas estrofes remetem ao livro bíblico de Eclesiastes, em que o rei
Salomão afirma e argumenta que “é tudo vaidade” (Eclesiastes 1:2) e que
“Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a canção do
tolo.” (Eclesiastes7:5).

— "Dura inquietação d'alma e da vida,


Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
Esta ambição causa angústia e perturbação (“inquietação d’alma e da
vida”), é origem de abandonos e adultérios e destrói fortunas e Estados.
Chamam-na de nobre e elevada, quando é digna, merecedora, de
desmoralizantes insultos, palavras infamantes. Fama e glória são palavras
para enganar o povo ignorante e tolo.

—"A que novos desastres determinas


De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?

E o velho pergunta que novos desastres serão causados ao reino e ao


povo, em nome de (disfarçados em) alguma palavra enobrecedora. Que
promessas fáceis serão feitas de reinos, de minas de ouro, famas, histórias e
triunfos para enganá-los?

— "Mas ó tu, geração daquele insano,


Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:

Mas o gênero humano, descendente do insensato e demente cujo pecado


provocou não somente sua expulsão e exílio (“desterro e triste ausência”) do
paraíso (“reino soberano”), mas também privou-o do estado de paz e de
inocência da idade de ouro e o colocou, o abateu (“te deitou”) na idade do
ferro e das guerras.

— "Já que nesta gostosa vaidade


Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:

Já que, nessa prazerosa tolice, o homem tanto empenha, arrebata a


imaginação, a criatividade; já que dá o nome de esforço e valentia à violenta
crueldade e perversidade; já que dá tanto valor ao desprezo pela vida, que
deveria ser sempre amada e preservada, pois até quem a deu teve medo de
perdê-la (refere-se a Cristo, que receou a morte, na noite anterior à sua
crucificação).

— "Não tens junto contigo o Ismaelita,


Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

Já que é assim, não estão ali perto os Mouros (“o Ismaelita”), com quem
sempre terá guerras de sobra (muitos combates)? Não seguem eles a lei
maldita dos árabes (refere-se ao Corão – lei islâmica, criada por Maomé,
profeta de Alá), enquanto você guerreia (“pelejas”) pela lei de Cristo? Se luta
para enriquecer (“terras e riqueza mais desejas”), os mouros tem muitas
cidades e terra; eles são guerreiros valentes (“por armas esforçado”), se o que
deseja é ser glorificado, elogiado pelas vitórias na guerra.
Ismaelita é a designação dada aos descendentes de Ismael, filho de
Abraão e da escrava Agar. Os ismaelitas viviam numa confederação de tribos
no deserto da Arábia e deram origem aos árabes.

— "Deixas criar às portas o inimigo,


Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?

Descuida do inimigo próximo para buscar outro distante, por quem o


reino iria se despovoar, se enfraquecer e se perder. Procura o perigo
impreciso e desconhecido, para que a fama o celebre e elogie chamando-o,
em grande quantidade (“larga cópia”), de senhor da Índia, Pérsia, Arábia e
Etiópia.
O objeto a quem se dirige o Velho vai mudando no decorrer do discurso.
Primeiro é um sentimento descrito como “glória de mandar” etc; depois é a
“geração daquele insano”, isto é, o gênero humano; então é alguém que
procura a guerra na Índia (provavelmente Vasco da Gama e os navegantes) e,
finalmente, o título de “senhor da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia” que
identifica o próprio rei de Portugal.

— "Ó maldito o primeiro que no mundo


Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.

O Velho amaldiçoa o homem que fez o primeiro barco (“pôs velas nas
ondas”), como merecedor do inferno (“dino da eterna pena do profundo”), se
houver justiça como a que ele acredita. Que nunca sejam feitos um alto
conceito, nem música (“cítara sonora”) ou poesia (“vivo engenho”) que
eternize sua memória por este feito (“Te dê por isso fama nem memória”),
mas que, com o inventor do primeiro barco, morram sua fama, sua
reputação (“seu nome”) e sua glória.

— "Trouxe o filho de Jápeto do Céu


O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!

Afirma que o fogo que o filho de Jápeto trouxe do céu e deu aos homens,
esse fogo o mundo acendeu em armas, em mortes, em desonras. Foi um
grande erro (“engano”) dar o fogo à humanidade. Teria sido melhor a nós e
causado menos dano (prejuízo) ao mundo se a estátua feita por Prometeu
não tivesse o fogo do desejo que a movera.
O filho de Jápeto era Prometeu, o titã que roubou o fogo aos deuses e o
deu aos homens. Prometeu trouxe o fogo do Olimpo escondido em uma
estátua humana. Foi condenado a ficar preso num rochedo enquanto uma
águia lhe comia as entranhas.

— "Não cometera o moço miserando


O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!" —

Se não fosse esse fogo do desejo, o jovem miserável e digno de pena não
teria ousado guiar o carro do pai, nem o grande arquiteto e seu filho teriam
se arriscado a voar (“cometera o ar vazio”). Um deu nome ao mar e o outro
deu fama ao rio. Camões se refere a Faeton ou Faetonte, filho de Apolo, o
deus Sol, que foi imprudente e caiu com o carro do pai no rio Eridano e
Dédalo, arquiteto do labirinto, que, com cera e penas, construiu asas para si
e para seu filho Ícaro que, descuidado, voou rumo ao sol e acabou caindo no
mar.
Nenhum empreendimento nobre ou perverso, por qualquer modo
realizado (“Por fogo, ferro, água, calma e frio”), o gênero humano (“humana
geração”) não tenta realizar (“deixa intentado”). É um destino miserável e
uma estranha obrigação (ou um estado, um modo de ser esquisito).

O ANTICLÍMAX

O episódio do Velho do Restelo representa um notável contraponto à


glorificação das navegações portuguesas intentada por Camões no
transcorrer de todo o poema. O professor Alfredo Bosi o considera, portanto,
o anticlímax da narrativa. Em seu livro Dialética da Colonização
(Companhia das Letras, 1992) afirma que:

A fala do Velho destrói ponto por ponto e mina por dentro o fim orgânico dos
Lusíadas, que é cantar a façanha do Capitão, o nome de Aviz, a nobreza
guerreira e a máquina mercantil lusitana envolvida no projeto. (…)
A viagem e todo o desígnio que ela enfeixa aparecem como um desastre
para a sociedade portuguesa: o campo despovoado, a pobreza envergonhada
ou mendiga, os homens válidos dispersos ou mortos, e, por toda parte,
adultérios e orfandades. “Ao cheiro desta canela / o reino se despovoa”, já
dissera Sá de Miranda.
A mudança radical de perspectiva (que dos olhos do Capitão passa para os
do Velho do Restelo) dá a medida da força espiritual de um Camões ideológico
e contra-ideológico, contraditório e vivo. (…)
No largar da aventura marítima e colonizadora o seu maior escritor
orgânico se faria uma consciência perplexa: “Mísera sorte! Estranha
condição!”

O poeta admite, portanto, no momento de ápice de sua narrativa, o


instante tão sonhado em que a esquadra de Vasco da Gama inicia sua
viagem, uma voz contrária à aventura que pretende glorificar.

INTERTEXTUALIDADE

Nos últimos quatro séculos Os Lusíadas serviram de fonte de inspiração


para inúmeros poetas e prosadores da língua portuguesa. Os poemas abaixo,
de dois dos maiores escritores portugueses do século XX, apresentam
diferentes visões da fala do Velho do Restelo.
FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA
José Saramago
in Poemas Possíveis (1966)
Aqui na terra a fome continua
A miséria e o luto
A miséria e o luto e outra vez a fome
Acendemos cigarros em fogos de napalm
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejos
De mais alto que nós, de melhor e mais puro.
No jornal soletramos de olhos tensos
Maravilhas de espaço e de vertigem.
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede onde não chove.
Mas a terra, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalm são brinquedos)
Onde come brincando só a fome
Só a fome, astronauta, só a fome.

MAR PORTUGUÊS
Fernando Pessoa
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
O texto de Fernando Pessoa aparenta ser uma resposta à fala do
Velho do Restelo. Admite o sofrimento advindo das grandes navegações, mas
considera que foi necessário para a conquista do mar. A resposta de Pessoa
ao Velho do Restelo é que “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.” Já
o poema de Saramago atualiza a fala camoniana, trazendo-a para o contexto
da exploração espacial. Como o velho, Saramago alerta o astronauta,
moderno navegador, para os problemas que deixa na terra. Assim, Saramago
reitera o discurso da personagem camoniana, agora em contexto universal.
O narrador é elemento fundamental para o sucesso do texto, pois
esse é o dono da voz, o que conta os fatos e seu desenvolvimento. Atua como
intermediário entre a ação narrada e o leitor.
O narrador assume uma posição em relação ao fato narrado (foco narrativo),
o seu ponto de vista constitui a perspectiva a partir da qual o narrador conta
a história.

O foco narrativo em 1ª pessoa

Na narração em 1ª pessoa o narrador é um dos personagens, protagonista


ou secundário. Nesse caso ele apresenta aquilo que presencia ao participar
dos acontecimentos. Dessa forma, nem tudo aquilo que o narrador afirma
refere-se à “verdade”, pois ele tem sua própria visão acerca dos fatos; sendo
assim expressa sua opinião.

Foco narrativo em 3ª pessoa

Na narração em 3ª pessoa o narrador é onisciente. Nos oferece uma visão


distanciada da narrativa; além de dispor de inúmeras informações que o
narrador em 1ª pessoa não oferece.
Nesse tipo de narrativa os sentimentos, as idéias, os pensamentos, as
intenções, os desejos dos personagens são informados graças à onisciência
do narrador que é chamado de narrador observador.

ENREDO
O enredo é a estrutura da narrativa, o desenrolar dos acontecimentos gera
um conflito que por sua vez é o responsável pela tensão da narrativa.
OSPERSONAGENS
Os personagens são aqueles que participam da narrativa, podem ser reais ou
imaginários, ou a personificação de elementos da natureza, idéias, etc.
Dependendo de sua importância na trama os personagens podem ser
principais ou secundários.
Há personagem que apresenta personalidade e/ou comportamento de forma
evidente, comuns em novelas e filmes, tornando-se personagem caricatural.
ESPAÇO
O espaço onde transcorrem as ações, onde os personagens se movimentam
auxilia na caracterização dos personagens, pois pode interagir com eles ou
por eles ser transformado.
TEMPO

A duração das ações apresentadas numa narrativa caracteriza o tempo


(horas, dias, anos, assim como a noção de passado, presente e futuro).
O tempo pode ser cronológico, fatos apresentados na ordem dos
acontecimentos, ou psicológico, tempo pertencente ao mundo interior do
personagem.
Quando lidamos com o tempo psicológico a técnica do flashback é bastante
explorada, uma vez que a narrativa volta no tempo por meio das recordações
do narrador.
Concluindo
Ao produzir uma narração o escritor deve estar atento a todas as etapas.
Dando ênfase ao elemento que se quer destacar. Uma boa dica é: observar os
bons romancistas e contistas, voltando a atenção para seus roteiros, na
forma como trabalham os elementos em suas narrativas.
A Gramática na Narração
A narração pressupõe mudanças, pois há o desenrolar dos fatos e
acontecimentos, dessa forma os verbos de ação predominam nos textos
narrativos.

A disciplina de Estudos Literários: narrativa e drama faz parte do


núcleo comum de conteúdos básicos dirigidos aos alunos ingressantes do
curso de Letras Licenciatura e Bacharelado da UFRGS, sendo introdutória,
juntamente com LET 03361 Estudos Literários: poesia -, ao estudo teórico
da literatura. Nela são tratadas as principais questões que procuram
responder à pergunta o que é literatura?, abordando também a sua
natureza, sua função e sua distinção das demais formas de arte. A outra
parte dos conteúdos refere-se ao problema dos gêneros literários, fixando-se,
no semestre inicial, nos gêneros narrativo e dramático.

Definir literatura não é muito fácil na medida em que a própria


palavra (originada do Latim littera = letra) sofreu uma evolução semântica,
fazendo com que o termo adquirisse diferentes sentidos com o passar do
tempo. Hoje em dia, quando se fala em literatura, admite-se que há uma
literatura lato sensu e uma literatura stricto sensu, e os estudos literários
abordam particularmente a última.

Incluída no ramo das artes, a literatura usa a linguagem como


matéria-prima, assim como a escultura usa o bronze e a pedra, a pintura
usa as cores e as tintas e a música usa os sons; assim sendo, podemos dizer
que a literatura é uma arte verbal que se vale de uma linguagem literária
como meio de expressão. São próprias dessa linguagem a polissemia, a
ficcionalidade e o estranhamento que é capaz de causar no leitor.

As primeiras definições conhecidas de literatura nos vêm de Platão ao


estabelecer o conceito de mímese (ou imitação artística); Aristóteles,
discípulo de Platão, na sua Poética, também admite, embora sob uma outra
ótica, o caráter mimético das artes, reforçando o conceito com a noção de
verossimilhança, discutida até hoje no âmbito da literatura.

O aumento de interesse no estudo da narrativa e seu contexto social


sugere a emergência de outro caminho ao paradigma pós-positivista e um
melhor refinamento da metodologia interpretativa nas ciências humanas. O
problema do entendimento dos padrões dinâmicos do comportamento
humano parece estar mais próximo de uma solução através dos estudos da
narrativa do que até mesmo de abordagens bem conhecidas, como a
utilização do modelo de regras e papéis. Nesse artigo, abordaremos algumas
das qualidades que fizeram do estudo da narrativa uma abordagem
produtiva. Procuramos definir a noção de narrativa e diferenciá-la de outros
padrões de discurso, tendo como base estudos sócio-psicolingüísticos,
filosóficos e literários. Procuramos também identificar algumas dificuldades
teóricas e possíveis riscos dos quais os estudiosos da narrativa deveriam
estar conscientes. Finalmente, esboçamos uma compreensão da narrativa
que objetiva levar em conta sua condição particular de um discurso
contextualizado e seu caráter aberto e transitório.

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