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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE TEOLOGIA
Mestrado Integrado em Teologia
Semestre de Inverno 2018/2019

EVANGELHOS SINÓTICOS1
Núcleos Programáticos2

Introdução:
Metodologias de trabalho, bibliografia, participação dos alunos e sistema
de avaliação.
1. O tempo do Novo Testamento
A situação política, os ‘movimentos’ ou ‘grupos’ judaicos. O sentido da
palavra ‘Evangelho’. Da Historicidade de Jesus às narrativas evangélicas
acerca de Jesus. Redação do Evangelho e os géneros literários.

2. A “Questão Sinótica”: enigmas e iluminações


Unidade e pluralidade dos Evangelhos; A origem dos Evangelhos
Sinóticos e a construção das primeiras comunidades cristãs. Os
dispositivos redaccionais e a questão sinótica (o ‘Facto Sinóptico’). O
Documento Q e outras teorias acerca da história da interpretação (da
tradição oral acerca de Jesus às tradições ‘escritas’ sobre Jesus; Os
Evangelhos Sinóticos e a cultura judaica do tempo.

3. As ‘tradições à volta de Jesus’


Jesus e a comunidade dos discípulos: da experiência vivida com os
discípulos ao testemunho dado e narrado pelos discípulos. Os ‘ditos’ de
Jesus e a 1ª ‘traditio’ acerca de Jesus; da comunidade pré-pascal à
comunidade pós-pascal. ‘Unidade e pluralidade’; leitura horizontal dos
Evangelhos entre si (sinopse) e leitura vertical (seguida) de cada
evangelho.

4. Os Sinóticos e a Escritura

1
O Programa aqui apresentado visa apenas deixar algumas linhas mestras acerca do estudo a desenvolver.
A complexidade e extensão da temática levar-nos–á, forçosamente, a ter de fazer opções, valorizando
umas e deixando outras mais na penumbra.
2
Estes Núcleos Programáticos aqui formulados nem sempre vão ser assim apresentados ao longo do
nosso estudo. A razão é simples: aqui trata-se de um elenco de questões fundamentais. Ao longo do nosso
estudo, várias destas questões podem estar relacionadas com outras, formando com elas uma unidade que
importa tratar em conjunto. Por isso, aqui deixo esta chamada de atenção.

1
Os Evangelhos Sinóticos e o Antigo Testamento; a leitura da Escritura na
Comunidade das origens; do Jesus vivido ao Jesus ‘interpretado’. As
tradições veterotestamentárias e a nova ‘traditio’ à volta de Jesus, o
Mestre.

5. As questões literárias e redaccionais dos Evangelhos Sinóticos


Os géneros literários: a narrativa sinótica; a redação dos textos, da tradição
recebida à mensagem redigida e transmitida. A história da interpretação
nos seus momentos críticos.

6. Projeto evangélico de Marcos


O género literário “Evangelho”. Dimensão histórico-literária do relato. A
identidade teológica da obra de Marcos (Jesus e o Evangelho; a natureza,
a ética e os sinais do Reino de Deus; discipulado e eclesiologia…). O
‘Segredo Messiânico’. Exegese de textos escolhidos.

7. Projeto evangélico de Mateus


Dimensão histórico-literária. Estratégia teológica e catequética (Jesus
Cristo; a recusa de Israel e a Igreja cristã; teologia da história; o caráter
doutrinal de Mateus (os Discursos; as obras e a Lei; escatologia…).
Exegese de textos selecionados.

8. Projeto evangélico de Lucas


Dimensão histórico-literária. O programa narrativo ao serviço de uma
estratégia teológica: Origem e finalidade da obra de Lucas. A salvação:
agentes e destinatários; o universalismo da salvação; o evangelho da
misericórdia e da alegria. Exegese de textos selecionados.

9. As grandes coordenadas teológicas dos Sinóticos


Síntese teológica da ‘trilogia sinótica: da pluralidade das narrativas à
unidade da fé. Alguns temas dos Sinóticos:
.O Reino;
.A misericórdia;
.O discipulado e a Eclesiologia dos Sinóticos;
.Os Evangelhos da Infância;
.A paixão (o acontecimento pascal).

BIBLIOGRAFIA
1. Fontes:
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Synopsis Quattuor Evangeliorum: Locis parallelis evangeliorum apocryphorum et
patrum adhibitis, ed. K. ALLEN, Deutsche Bibelstiftung Stuttgart.
Bíblia Sagrada, ed. Difusora Bíblica, Lisboa, 1998.
Novo Testamento Interlinear Grego-Português, Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

2
2. Texto de apoio:
J.C. NEVES, Evangelhos Sinóticos, UCEditora, Lisboa, 2004 (em reimpressão).
3. Bibliografia geral sobre o ‘acontecimento sinótico’:
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J. FOKKELMAN, Comment lire le récit biblique. Une introduction pratique,
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P. GRELOT, Los Evangelios y la historía, Herder, Barcelona, 1987.
J. NONINGS, Jesus nos Evangelhos Sinóticos, Vozes, Petrópolis, 1977.
J.D. LOURENÇO, O mundo judaico em que Jesus viveu. Cultura judaica do Novo
Testamento, UCEditora, Lisboa, 2005.
D. MARGUERAT (ed.), Introduction au Nouveau Testament : Son histoire, son
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D. MARGUERAT – Y. BOURQUIN, Pour lire les récits bibliques, Paris, 1998.
R. A. MONASTERIO – A. R. CARMONA, Introducción al estudio de la Biblia.
VI : Evangelios Sinóticos y Hechos de los Apóstoles, Estella (Navarra), 1992, 15-98.
P. RICOEUR, L’herméneutique Biblique, Paris, 2001.
B. MALINA, El Mundo del Nuevo Testamento, Estella (Navarra), 1995.
B. MALINA, O evangelho social de Jesus. O Reino de Deus em perspetiva
mediterrânea, S.Paulo, 2004.
M. SACHOT, Quand le christianisme a changé le monde, Paris, 2007.
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L. M. WHITE, De Jesus al cristianismo. El Nuevo Testamento y la fe Cristiana: un
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J.M. ROBINSON – P. HOFFMANN – J.S. KLOPPENBORG, El Documento Q,
Salamanca, 2004.
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Estella, 2002.
J. DELORME (ed), Les paraboles évangéliques. Perspectives nouvelles, Paris,
1989.
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V. FUSCO, Oltre la parabola. Introduzione alle parabole di Gesù, Roma, 1983.
X. LÉON-DUFOUR, Les miracles de Jésus selon le Nouveau Testament, Paris,
1977.
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3
P. ROLLAND, Les premiers Évangiles. Un nouveau regard sur le problème
Synoptique, Paris, 1984.

4. Bibliografia orientada para os 3 Evangelhos:


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G. BONNEAU, Stratégies rédactionnelles et fonctions communautaires de
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Y. BOURQUIN, Marc, une théologie de la fragilité. Obscure clarté d’une
narration, Paris, 2005.
J. O. CARVALHO, Caminho de morte, destino de vida. O projeto do Filho do
Homem e dos seus discípulos à luz de Mc 8,27-9,1, Lisboa, 1998.
J. ERNEST, Il vangelo secondo Marco, 2vols, Brescia, 1991.
C. FOCANT, L’incompréhension des disciples dans le deuxième évangile, RB
82(1985) 161-185.
V. FUSCO, Nascondimento e Rivelazione. Studo sul Vangelo di Marco, Brescia,
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G. MINETTE DE TILESSE, Le secret messaïnique dans l’Évangile de Marc, Paris,
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M. SABBE (ed), L’Évangile selon Marc. Tradition et Rédation, Leuven, 1988.
E. SALVATORE, ‘E vedeva a distanza ogni cosa’. Il racconto della guarigione del
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R. SCHNACKENBURG, L’Évangile selon Marc, 2vols, Paris, 1966.
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2003.
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4
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R. TANNEHILL, The Narrative Unity of Luke-Acts. A Literary Interpretation, I,
Philadelphia, 1986.

Metodologia:
A lecionação seguirá um sistema misto de exposição e de trabalho individual dos
Alunos. Procuraremos motivar os alunos para uma participação ativa, de forma a
complementarem pelo seu estudo as lacunas da exposição e dos temas tratados,
servindo-se dos recursos bibliográficos disponíveis. Esta participação resultará do
estudo pessoal que é feito na sequência dos trabalhos requeridos. Desta forma, para
além da avaliação contínua que procurarei implementar (5%), podem também os Alunos
preparar trabalhos pessoais que devem apresentar ao longo do curso e que serão
valorizados em 25% da classificação final.
Avaliação:
A avaliação comporta duas componentes:
Avaliação contínua e Exame final.
Avaliação contínua incorpora os seguintes fatores:
.Participação, motivação e exposição em sala de aula): 5%;
.Trabalhos apresentados pelo Aluno (com a anuência do Docente), com um tema
de escolha pessoal ou um dos aqui elencados: 25%.
Exame final: 70%, podendo o aluno escolher a forma escrita ou oral para a
prestação do exame.

5
EVANGELHOS SINÓTICOS
Temas para Trabalhos3
1. A pluralidade dos Evangelhos Sinóticos
2. Uma mesma fé em três narrativas evangélicas
3. Da Comunidade à narrativa evangélica
4. Os principais fatores históricos e culturais do tempo de Jesus
5. O ‘Evangelho Jesus’ e as narrativas sinóticas
6. Os Sinóticos e o Antigo Testamento
7. Os Sinóticos e o IV Evangelho
8. Os milagres como sinais do Reino
9. Os ‘Evangelhos da Infância’
10.A consciência de Jesus (filiação divina e humanidade)
11.O ‘Discipulado’ nos Sinóticos
12.Os ‘Grupos’ judaicos do tempo de Jesus
13.A Eclesiologia de Mateus
14.O ‘Segredo Messiânico’ em Marcos
15.As Narrativas da Paixão: diversidade e complementaridade
16.O ‘Filho do Homem’ em Marcos
17.Os Evangelhos e o ‘Judaísmo’ do tempo
18.As ‘parábolas da misericórdia’ em Lucas.
19.A ‘construção’ do Reino nos Evangelhos.
20.A ‘Traditio’ do AT nos Evangelhos.

Cada aluno poderá eleger outros temas.

Lisboa, setembro de 2018

João Lourenço

3
Os temas aqui propostos são apenas indicativos. Darei sempre precedência aos temas que sejam
escolhidos pelos alunos.

6
INTRODUÇÃO
Estudamos os Evangelhos Sinóticos, parte significativa e
fundamental do Novo Testamento, composta de três textos – Mateus,
Marcos e Lucas – que guardam a tradição escrita sobre a vida de Jesus, não
de forma exaustiva, mas numa versão muito próxima, seguindo um padrão
presente nos 3 textos, embora mantendo alguns traços de autonomia e de
singularidade. É aqui que nasce o qualificativo dos três textos: Sinopse
quer dizer que têm um plano comum, facilmente identificável na sua
essência, com fontes próximas e dependências estreitas. Uma das
discussões que percorre os séculos sobre a ‘tradição sinótica’ tem a ver
com a questão da ‘fonte’, ou seja, quem depende de quem e o que há de
singular em cada um dos três autores.
O termo ‘evangelho’ aparece muito cedo na tradição cristã para
significar a mensagem se Jesus e sobre Jesus. É Paulo quem mais recorre
ao termo, umas 60 vezes de um total de 76 que encontramos no NT como
substantivo e 21 vezes das 28 em que é usado como verbo4. Paulo fala do
‘evangelho de Deus’ (Rm 1,1; 15,16), do ‘evangelho de Cristo’ (Rm 15,19;
1 Cor 9,12; 2 Cor 2,12; 9,13) e outras designações, querendo sempre com
isso designar a origem da mensagem que ele anuncia e a pessoa que está no
centro dessa mensagem. Não de trata apenas de ‘falar acerca de…’, mas da
própria pessoa que é anunciada e que está no centro do que se anuncia. Nos
textos dos três evangelistas, o uso é escasso e apenas Marcos o usa com
alguma frequência: 7 vezes no seu conjunto (1.15; 8,35; 10,19; 13,10; 14,9;
cf. 1.1.14).
Na sua génese, o termo de origem grega significa ‘boa notícia’, ‘bom
anúncio’, utilizado já na Tradução dos LXX, como verbo na sua forma de
particípio: o mensageiro que leva boas notícias5. Pode-se perguntar, tendo
em conta que o texto de Isaías era bem conhecido no período do Novo
Testamento e que Isaías é o profeta mais presente e mais citado nos textos
neotestamentários, qual a dependência do termo ‘evangelho’ da tradição de
Isaías? Importa, no entanto, referir que o substantivo ‘evangelho’ não
assume qualquer importância nos LXX nem no judaísmo do tempo, apesar
de ser de uso comum no culto imperial de Roma, já que o imperador era
aquele que dispensava boas notícias aos seus súbditos. E, por isso, muitas

4
Cf. R. A. MONASTERIO – A. R. CARMONA, Evangelios sinóticos y Hechos de los Apóstoles, Estella
(Navarra), 1992, 19.
5
Presente em Isaías 52,7, com ressonâncias em outros textos (40,9; 60,6; 61,1).

7
das aclamações imperiais tinham um certo conteúdo messianista que a
tradição judaica combatia, embora esperasse a realização do evento
messiânico, mas apenas e só na estrita fidelidade a Yahwé, tal como o
defendiam os diversos movimentos judaicos do tempo de Jesus.

8
I - O MUNDO DO TEMPO DE JESUS E O
ACONTECIMENTO SINÓTICO
1. O mundo do tempo de Jesus
O período intertestamentário tem sido objeto de longos e inúmeros
estudos, feitos a partir de diferentes perspetivas e valorizando diferentes
componentes. Esse estudo é fundamental não apenas para compreender o
judaísmo da época, mas sobretudo para podermos situar o cristianismo e a
singularidade da mensagem neotestamentária.
Ao abordarmos esta questão pretendemos, antes de mais, pôr em
evidência as coordenadas sociais, culturais e religiosas que se fazem sentir
nos últimos três séculos que precederam a nossa era, especialmente após a
conquista de Alexandre Magno, em 332, com a introdução do helenismo e
o seu impacto no confronto com o judaísmo. É este o principal objetivo do
primeiro capítulo deste nosso trabalho.
1.1 O contexto cultural do período intertestamentário
Antes de mais, vamos debruçar-nos sobre o problema das fontes
históricas. Não se trata apenas de fontes em sentido literário; a questão é
mais ampla e alarga-se a outros domínios que têm uma forte incidência no
que diz respeito ao estudo e compreensão deste período histórico que
abarca um espaço de cerca de 8 a 9 séculos, ou seja, desde o séc. III (a.C.)
até ao V ou VI séc. (d.C.). Trata-se de um período difícil e muito agitado
para o judaísmo, tanto no que respeita à situação interna da ‘nação judaica’
como naquilo a que se refere a realidade política internacional. Muitas das
obras literárias que chegaram até nós são fruto dos conflitos existentes
dentro do judaísmo da época, da luta pela sua sobrevivência e pela sua
identidade nacional e religiosa. Nisto reside muito da sua singularidade.
a) Fontes históricas para o estudo do período intertestamentário
Um dos aspetos mais importantes para o estudo e compreensão
desta época tem a ver com as fontes disponíveis e a avaliação dos dados
que essas mesmas fontes nos facultam. Muitos desses dados estão
condicionados por objetivos bem específicos, uma vez que chegaram até
nós por motivos apologéticos ou obedecendo a critérios de natureza
religiosa que presidiram à sua redação. Outros, por seu lado, estão
condicionados por opções de natureza política ou religioso-partidária.
Entre os primeiros, temos naturalmente os textos neotestamentários,
verdadeiros mananciais de informação, bem como os textos judaicos que
nos descrevem a vida na Judeia no período intertestamentário, sendo de
destacar, pela sua importância e novidade, os textos de Qumran, bem como
os textos apócrifos e pseudo epigráficos dessa época. No entanto, importa
ter sempre presente que estes textos não são neutros, pelo que se impõe

9
uma avaliação rigorosa dos seus dados em função dos objetivos que
presidiram à sua redação.
No que ao segundo grupo diz respeito, não se podem hoje ignorar as
obras do escritor judeu Flávio Josefo, nem os textos de Filão de
Alexandria, bem como outros historiadores romanos que nos deixaram
alguns informes sobre o tempo de Jesus.
Ao longo dos tempos, as obras de Flávio Josefo constituíram como
que o ponto de referência para o conhecimento histórico do séc. I da nossa
era, mormente em tudo aquilo que tem a ver com a presença romana na
Palestina e a subsequente reação da parte dos judeus. Hoje, e sabendo-se da
empatia que este historiador nutria pelos Romanos, tem havido um esforço
para complementar as informações de Flávio Josefo com outros dados,
mormente com aqueles que nos vêm das fontes judaicas, incluindo os livros
bíblicos do período intertestamentário. É que muitas das situações que
vamos encontrar neste período têm as suas causas e motivações na época
anterior, ou seja, ao tempo da reação macabaica e asmoneia contra o
domínio dos Selêucidas da Síria a que aqueles puseram fim já na segunda
metade do séc. II (a.C.).
Para bem conhecer esse período e as tensões que a partir dele se
foram desenhando, temos os informes dos textos dos Macabeus (tanto dos
2 livros canónicos) como dos outros dois que não tiveram aceitação no
Cânon. Esta diversificada literatura pode ainda ser complementada por
outras informações de tipo arqueológico ou numismático, o que constitui
um manancial notável para os estudos do tempo do Novo Testamento e da
pessoa de Jesus enquanto tal, embora nem sempre sejam tidas em conta
quando nos debruçamos sobre esse período e acabamos, muitas vezes, por
criar uma espécie de tempo angélico que em nada contribui para um
verdadeiro conhecimento da pessoa de Jesus e da sua missão salvadora e
libertadora6.
b) Coordenadas sociais e políticas do período intertestamentário
Creio que podemos fazer remontar aos meados do séc. II (a.C.) as
principais causas daquela que será a situação que se prolonga no séc. I e
que se vai estender até ao fim do séc. I da nossa era. Na sequência do
desmantelamento do império de Alexandre, a Judeia passou por dias
conturbados, ora dependente da dinastia dos Lágides do Egito, onde os
judeus de forma geral tiveram bom acolhimento e alcançaram notáveis
sucessos tanto em termos políticos como económicos7, ora subjugados ao
6
Para uma boa informação histórica, científica e criteriosamente elaborada, sugiro o estudo em 2 volumes
de E. SCHÜRER, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ, new edition by G. Vermes,
F. Miller and M. Black. Edimbourg, 1973-1979. Esta obra é considerada por muitos autores como o
melhor estudo sobre a época em causa.
7
A presença de judeus no Egito é antiga e está bem documentada, remontando essa presença à época da
conquista dos Assírios (722). Por sua vez, os papiros d’Elefantina aludem à existência de uma colónia

10
poder dos Selêucidas da Síria que sempre exerceram uma política hostil
para com o judeus, mormente pela imposição forçada da cultura helenística
e a supressão dos privilégios que gozavam já desde a época do império
persa.
É este estado de coisas que leva a família dos Macabeus, chefiada
por Matatias, em meados do séc. II (a.C.), a desencadear o grito de revolta
e a mover uma luta de guerrilhas contra a presença dos ‘Gregos’, luta esta
que se fundamentava essencialmente na rejeição da cultura helenística e na
salvaguarda das tradições pátrias e que veio a ser coroada de sucesso ao
tempo de Jonatas e Simão Macabeu, filhos de Matatias, já no início da
segunda metade do séc. II (a.C.).
A partir daqui, estamos a um passo da restauração do estado judaico
que tinha desaparecido em 587 às mãos dos babilónios, por altura das
invasões de Nabucodonosor e que não mais tinha sido restaurado, apesar do
estatuto especial de que a Judeia gozou durante o império persa e, em parte,
durante algum tempo do império helenístico. Beneficiando de uma aliança
estratégica com Roma e com Esparta, Simão Macabeu vê-se finalmente
proclamado chefe em 140 (a.C.)8, congregando em si os títulos de ‘Sumo
Sacerdote’, ‘Comandante’ e ‘Etnarca’ dos Judeus, dando assim origem a
uma dinastia reinante que veio a ser conhecida como a ‘dinastia dos
asmoneus’. Esta conheceu o seu apogeu ao tempo do rei João Hircano
(134-105) que não só deu continuidade à obra do pai (Simão Macabeu) na
luta pela autonomia total face aos Selêucidas da Síria, como também levou
a cabo uma bem-sucedida política de expansão territorial e domínio das
mais importantes cidades da região. É particularmente significativa a
tomada da Samaria em 128 (a.C.) e a consequente destruição do templo
samaritano do Garizim que, segundo algumas fontes, teria sido
reconstruído após a conquista de Alexandre Magno (332) como
reconhecimento pela ajuda recebida da parte dos habitantes da Samaria na
altura da tomada de Tiro, na Fenícia. Mais tarde, o mesmo João Hircano
fará o mesmo à cidade de Siquém (em 109)9. Esta investida do rei asmoneu
em território samaritano marcará para sempre as relações entre samaritanos
e judeus, tal como nós as conhecemos ao tempo de Jesus e nos são

militar de judeus no Egito no séc. V, embora os indícios dessa presença remontem à época que antecedeu
a conquista persiana, levada a cabo por Cambises, que ocupou o Egito em 525 (cf. J. A. SOGGIN,
Introduzione all’Antico Testamento, Paideia, Brescia 1987, 4ª ed., 581s). A presença desta colónia militar
teria como missão fundamental ajudar na defesa das fronteiras, devido à constante ameaça dos Núbios na
parte sul do Egito. Mais recentemente, o caso de maior sucesso é o da comunidade de Alexandria e tudo o
que representa a sua presença aí em termos culturais e económicos, para além do Templo autónomo de
Leontópolis, onde pontificava tanto em termos religiosos como políticos, numa espécie de autonomia
favorecida pelos Ptolomeus, o sacerdote Onias IV, cf. Flávio Josefo, Antiquitates Judaicae 13, 284-287;
Carta de Aristeia 12-14.
8
Cf. 1 Mac 14, 16-24
9
Cf. J. LOURENÇO, “Os Samaritanos: um enigma na história bíblica”, Didaskalia XV (1985) 49-72.

11
apresentadas nas fontes judaicas. Estas conquistas e a resistência às
investidas das tropas do império selêucida só se tornaram possíveis devido
ao apoio dado por Roma, mediante a renovação da antiga aliança feita
pelos seus antecessores, o que levou os romanos, desejosos de se
apossarem da região, a interditarem ao exército selêucida de se apossar dos
territórios dos seus ‘amigos e aliados’ judeus10.
Ao mesmo tempo que procedia à expansão do reino, Hircano
procedeu igualmente a uma política de consolidação da cultura helenística
de que, mais tarde, os seus sucessores, especialmente Alexandre Janeu
(103-76) se tornaria o mais lídimo representante. Ora, foi em virtude desta
orientação política levada a cabo pela realeza, que a sociedade judaica, até
então bastante solidária com as opções dos seus governantes, começou a
dividir-se e a fracionar-se em grupos de natureza religiosa e política que
vão marcar para sempre o futuro do judaísmo e também condicionar o
ambiente cultural e social em que Jesus viveu. É na sequência da divisão
que se seguiu à morte de Alexandre Janeu e da sua esposa, a rainha
Alexandra Salomé (76-63), uma vez que os seus filhos Hircano e
Aristóbulo não foram capazes de se entenderem, que as legiões romanas
comandadas por Pompeu aproveitaram a ocasião e entraram na Palestina
com o objetivo de restabelecer a paz na região, já que consideravam que a
instabilidade aí reinante contribuía para colocar em perigo o seu controle da
Síria. Estamos em 63 (a.C.), data esta que marcará para sempre o futuro da
Judeia e condicionará, como nenhuma outra, a situação social e política ao
tempo de Jesus.
c) Situação social e política do período intertestamentário
Tendo como cenário este quadro de fundo, vejamos como a
sociedade judaica se comporta e reage face ao evoluir da situação. Antes de
mais, deparamos com um judaísmo que não é já aquele que perdurou nos
séculos posteriores ao regresso da Babilónia, subordinado à autoridade
suprema do Sumo-sacerdote, orientado pelas determinações do Sinédrio e
uniformizado no empenho pela sua sobrevivência face à força da cultura
helénica que lhe contrapunha toda uma outra ordem de valores e de
princípios, já não centralizados em Deus nem no Templo, mas no homem e
na polis, com seus próprios espaços de lazer. A ‘liturgia’ do mundo judaico
deste período já não se realiza exclusivamente no Templo nem se confina à
sinagoga; pelo contrário, é o ginásio, o hipódromo, o teatro ou as atividades
da cultura estética que começam a sobrepor-se, provocando assim uma
autêntica crise de identidade como nunca havia sucedido, uma vez que a
luta agora não era imposta de fora nem pela força das armas, mas partia de

10
FLÁVIO JOSEFO, Antiquitates Judaicae 13, 259-266.

12
dentro e cabia a cada judeu fazer a sua própria escolha11 face aos preceitos
da Lei. Começam então a emergir os diversos movimentos ou seitas dentro
do judaísmo que vão conhecer o seu apogeu durante o último século da era
que nos precedeu e no primeiro da nossa, pondo fim a um judaísmo
unitário e uniforme como por vezes se pretende fazer crer, mesmo à revelia
das formas que até nós chegaram. Remontam certamente a este período,
para além de outros, os movimentos judaicos dos Saduceus e dos Fariseus,
tendo estes grupos, de acordo com circunstâncias históricas concretas,
tomado partido e alternado o seu apoio a alguns dos monarcas asmoneus12.
Com a entrada em cena dos Romanos, emerge neste conturbado
mundo da Judeia um novo clã político que tem como figura central
Antípatro. E, deste clã, vai assumir papel preponderante um dos seus filhos:
Herodes, o Grande. De ascendência idumeia, Herodes fora educado em
Roma e aí estabelecera contacto com alguns daqueles que viriam a ser os
chefes do império, acabando por seu proclamado ‘rei dos judeus’, vassalo e
amigo, em 37 (até 4 a.C.), com a missão explícita de restabelecer a paz
entre os judeus e pôr cobro às lutas internas entre os diversos grupos que
continuavam em cena e que traziam a instabilidade ao império,
enfraquecendo-o numa das suas fronteiras mais vulneráveis. Para além
disso, Herodes procurou igualmente desempenhar um papel determinante
na região, como no-lo mostra a sua aliança com Marco António e Cleópatra
na luta dos dois contra Octávio (na batalha de Accium, em 31 a.C.).
Fiel a este compromisso e desejoso de ganhar a benevolência dos
seus protetores, Herodes desenvolveu toda a sua política assente em 3
grandes pilares:
.Procurar ganhar a simpatia dos judeus através de um notável
programa de grandes obras e construções, mormente no templo, valendo-se
dos recursos económicos da tribo dos idumeus que eram ricos
comerciantes;
.Perseguição sangrenta e implacável contra todos os inimigos
internos, não apenas contra aqueles que dificultavam o seu governo, mas
também contra os que se opunham à ocupação romana, a fim de ganhar as
boas graças dos que lhe tinham outorgado o governo da região;
.Redução e esvaziamento dos poderes das autoridades tradicionais da
região, mormente dos grupos religiosos e sacerdotais, do Sinédrio e do
Sumo-sacerdote, concedendo o estatuto de ‘cidade autónoma’ a muitas
localidades que assim ficavam isentas dos preceitos normativos do
judaísmo.

11
1 Mac 1, 11-15. 41-51.
12
É conhecida a forma dura e punitiva como os fariseus foram tratados por Alexandre Janeu e a simpatia
que vieram a encontrar junto da rainha Alexandra Salomé que, por sua vez, se mostrou hostil aos
saduceus que tinham sido os preferidos de seu marido e antecessor.

13
Se é verdade que Herodes obteve notáveis êxitos na execução deste
ambicioso programa, também não deixa de o ser o facto de que isso lhe
trouxe custos muito elevados, uma vez que, para o pôr em marcha, se viu
forçado a sobrecarregar os habitantes do país com pesados impostos,
criando assim entre a população uma vaga de descontentamento e
hostilidade sem precedentes. Da grandeza do seu reinado falam as
construções que nos legou e que ainda hoje se podem admirar, mormente
aquelas que embelezavam Jerusalém e a zona do templo, bem como as
cidades de Jericó, da Samaria, de Cesareia Marítima e ainda as fortalezas
de Massada, de Machronte13 e de Herodion, entre outras14.
Morto pelo ano 4º (antes da nossa era), sucederam-lhe os filhos
(Arquelau, Herodes Antipas e Herodes Filipe)15, já não com o estatuto de
reis, como habilmente ele mesmo tinha tentado obter reconhecimento por
parte das autoridades do império, mas agora como meros governadores e
administradores das províncias que tinham constituído o reino do pai,
remetidos assim para figuras de segundo plano no xadrez político da
região. Logo no ano 6 (d.C.), Arquelau, que tinha sido nomeado
governador da Judeia, Samaria e Idumeia, foi deposto e deportado para a
Gália, uma vez que a sua atuação violenta contra os nacionalistas judeus
tinha desagradado aos Romanos. No entanto, a presença da família
herodiana marcará o cenário político e administrativo da Palestina até aos
finais do 1º século da nossa era, dando origem a um novo movimento
político que conhecemos tanto dos evangelhos como da literatura judaica: o
grupo dos herodianos ou partidários de Herodes.
Na continuação da política de ocupação levada a cabo por Roma,
mormente através dos chamados ‘Procuradores’ (de 6 a 67 da nossa era)16,
quase sempre recrutados da função militar e cujo objetivo era a manutenção
da paz, a gestão dos assuntos internos da região e a cobrança dos impostos
para o tesouro do império, foi crescendo um novo movimento de
resistência a essa ocupação, os chamados Zelotas (e sicários) que se opõem
abertamente e através da luta armada à presença romana, incluindo também

13
FLÁVIO JOSEFO, Bellum Judaicum, 7,171-209.
14
A grandeza e a notável perfeição destas obras é ainda hoje objeto do nosso espanto e têm constituído
alguns dos melhores espólios que a arqueologia palestinense nos tem legado. Ao contrário de outros
períodos históricos, quase sem testemunhos de valor em termos arqueológicos, em parte devido ao facto
do judaísmo não construir outros templos nem grandes palácios, o tempo de Herodes é de grande riqueza
e esplendor, mostrando quanto ele foi grande na arte de construir e déspota na forma de governar.
15
Após a morte de Herodes, o governo da província da Palestina (o antigo reino de Herodes) ficou assim
organizado: ano 4 a 6 - Arquelau é Etnarca da Judeia; ano 6 a 41 - Procuradores (Província
Procuratoriana, com capital em Cesareia); ano 41 a 44 - Agripa (neto de Herodes) é nomeado rei (tal
como Herodes); ano 44 a 66 - Procuradores; em 66 os rebeldes apossam-se da cidade e instauram um
governo próprio; no 70 temos a revolta declarada e o cerco, com a tomada de Jerusalém por Tito, sendo a
Judeia declarada Província imperial.
16
A nomenclatura não é uniforme e encontramos uma grande diversidade de designações, indo desde
‘prefeito’, ‘tutor’, ‘chefe’ até ‘curador’ e outras, tratando-se sempre de uma função administrativa.

14
todos aqueles que eram considerados cúmplices ou colaboradores nessa
ocupação.
Dentro deste quadro, temos então os grandes movimentos e grupos
em que a sociedade judaica se encontra dividida ao tempo de Jesus e que
assumem importante papel nas narrativas dos evangelhos: Saduceus,
Fariseus, Herodianos, Zelotas. Para completar a lista, falta-nos aludir a um
quinto grupo que não parece desempenhar papel de relevo nos textos
neotestamentários, mas que hoje, após as descobertas de Qumran e o
conhecimento da sua literatura, mormente o Documento de Damasco e a
Regra da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, sabemos
que é de capital importância: os Essénios. Trata-se de um grupo cujos elos
comuns têm mais a ver com uma identidade própria e uma espiritualidade
tipicamente messiânica que os leva a rejeitar o judaísmo oficial tal como
ele era vivido pelas altas classes da sociedade e celebrado na liturgia do
templo, levando-os a afastar-se dos ambientes oficiais e a procurar uma
estadia recatada no deserto. São estes cinco movimentos que acabam por
emprestar à época de Jesus uma diversidade muito complexa, com os quais
Jesus se enfrenta tanto nas práticas judaicas por eles levadas a cabo como
na ordem dos princípios que norteiam o comportamento dos seus membros
e simpatizantes.
Como sabemos, não foram pacíficos os contactos entre estes grupos
e o movimento de Jesus, embora ele mesmo estivesse a aberto à adesão de
todos e encontremos referências elogiosas a alguns deles nas palavras do
Mestre. Temos também a presença de ex-membros de outros grupos entre
os seus, tal como é o caso de Simão, o Zelota. Mas é sobretudo contra a
ética farisaica e a forma como os saduceus se ‘colavam’ ao poder político
dominante na Judeia que Jesus reage, reagindo a partir de uma perspetiva
de fé e na busca de uma verdadeira motivação que valorizasse os valores de
Deus e não os interesses dos homens. Apesar de sabermos hoje todo o
drama da sua vida e a forma como ele se desenrolou, a grande preocupação
de Jesus foi sempre a de pautar o seu projeto de vida numa atitude de
grande liberdade interior, procurando obedecer mais a Deus do que aos
homens (At 5,29).
1.2. A Diáspora judaica
Um dos elementos fundamentais e imprescindíveis para a
compreensão deste período intertestamentário tem a ver com o pluralismo
dos grupos e dos movimentos judaicos existentes, tanto na Palestina como
nas comunidades da diáspora. No que diz respeito à diáspora, temos
situações de diáspora forçada, em que grupos de israelitas foram
deportados ou forçados a emigrar e outros casos em que essas migrações
aconteceram de forma voluntária. Trata-se de um fenómeno antigo que teve
grande repercussão na vida interna da Palestina e que perdurou ao longo de

15
séculos, com grandes repercussões na vida cultural do judaísmo. Estas
comunidades da diáspora vieram a constituir um fator muito determinante
na difusão do cristianismo, um pouco por toda a parte do império. O livro
dos Atos dos Apóstolos apresenta-nos inúmeras situações, mormente
ligadas às missões de Paulo, onde a presença de Judeus nas maiores
metrópoles permitiu o primeiro contacto dos mensageiros do cristianismo
com as populações locais.
a) A diáspora oriental
Um dos primeiros movimentos dessa diáspora (que ruma em
direção ao Oriente) remonta ao séc. VIII (a.C.), após a queda do reino do
Norte (Samaria) às mãos dos imperadores da Assíria Tiglat-Pileser III
(733) e Sargão II (721), de acordo com os dados de 2 Re 17.
A esta primeira etapa da diáspora forçada segue-se uma outra, em
587, com a destruição de Jerusalém (fim do reino de Judá) e a deportação
dos judeus para Babilónia. Tanto num caso como no outro, esta diáspora é
a consequência direta dos condicionalismos políticos e das mudanças de
xadrez político dos diversos impérios que se sucedem no Médio Oriente
durante o 1º milénio que precede a nossa era (Assírio, Babilónio, Persa,
Helenístico, etc).
Temos, assim, que muitos dos grupos de deportados dão início
nessas paragens a uma nova fase da sua caminhada histórica, reorganizando
aí a sua vida, de modo que na altura do regresso (em 538) nem todos
voltaram. Muitos preferiram continuar em Babilónia ou em outras cidades
do império persa e aí começaram a desenvolver as suas atividades. Dessa
forma nasceu uma grande comunidade judaica que desempenhará um
importante papel ao longo dos séculos de que são testemunho o Talmud de
Babilónia com todas as suas ricas tradições, bem como muitos comentários
midráshicos e targúmicos que tiveram grande repercussão, inclusive na
própria Palestina. As escolas rabínicas de Babilónia e de Sura
desempenharam um papel determinante na fixação das tradições judaicas e
grandes mestres exerceram nelas o seu ministério.
Os judeus de Babilónia, bem como de outras comunidades da região,
embora se tenham deixado assimilar, nunca perderam a sua identidade;
nomes hebraicos, crenças e tradições judaicas testemunham bem essa
realidade que perdurou ao longo dos séculos, desde o período do exílio
(587 a 538 aC). Os livros de Tobias, de Ester e mesmo o de Jonas, todos
eles mostram bem como havia intensos contactos entre essas comunidades
da diáspora e a pátria-mãe.
b) A diáspora egípcia
Segundo a Carta de Aristeia, “foram mandados judeus na
qualidade de tropas auxiliares a combater ao serviço de Psammético, contra

16
o rei da Etiópia”17. Trata-se do faraó Psammético I que fundou a 26ª
dinastia (por volta de 664 a.C.) e que procurou reforçar a defesa do Egito
depois da invasão de Senaquerib (os oráculos de Jr 42-43 podem ser uma
alusão a esta ida de Judeus para o Egito). Para concretizar as suas opções,
Psammético chamou operários gregos, marinheiros fenícios e mercenários
hebreus para defender a fronteira sul contra a Núbia (Etiópia). A este
grupo, um outro ter-se-á juntado ao tempo de Psammético II (594-589), ou
seja, por altura das invasões de Nabucodonosor e da deportação para a
Babilónia. Pode tratar-se inclusive de judeus que fugiram da Palestina
nessa altura com medo das consequências da tomada de Jerusalém. Mais do
que uma guarnição no sentido moderno do termo, A. Paul diz que se trata
de uma colónia militar: “Os fundadores da colónia, chegados a Elefantina
como mercenários, não demoraram a tornar-se colonos e a viver em parte
dos produtos das terras que lhes tinham sido atribuídas”18. No entanto, é
sobretudo ao tempo dos Prolomeus, já na época helenística (como veremos
mais adiante), a emigração judia para o Egito se tornou mais forte.
Assim, estabeleceu-se uma grande colónia judaica em Elefantina, à
beira da 1ª catarata do Nilo, junto à cidade de Sun (em Ez 29,10 temos
Syene), hoje Assuão, tal como nos recordam os papiros d’Elefantina
(escritos em aramaico). Tais papiros foram encontrados no início do séc.
XX e deram-nos a possibilidade de conhecer melhor esta comunidade, bem
como as suas relações com os judeus da Palestina. Por eles sabemos que a
comunidade tinha um grande templo dedicado a Yahwé, onde se procedia
ao culto sacrificial, imolando cordeiros à semelhança do que sucedia em
Jerusalém, o que motivou uma grande disputa com um grupo egípcio cujo
seu deus – o deus Knub – tinha a forma de cordeiro. Sabemos também que
já na altura do domínio persa no Egito19, os sacerdotes egípcios do deus
Knub queimaram e destruíram o templo dos judeus, tudo isto com a ajuda
do governador persa Waidrang20. Este templo nunca mais fora
reconstruído, apesar da comunidade judaica se manter aí e continuar a
celebrar o seu culto, mesmo sem templo.
Um outro papiro21 dá-nos uma lista de dons oferecidos ao templo e,
para além de Yahwé, fala-nos de outras divindades que aí seriam veneradas
também: Ashambethel e Anathbethel. Terá isto a ver com o sincretismo
samaritano de que nos fala 2 Re 17? O papiro 21, por sua vez, alude à
celebração da Páscoa; é a única festa que aí vem mencionada.

17
Carta de Aristeia 13.
18
Cf. Dictionnaire de la Bible Supplément, II, 983.
19
Cambises, sucessor de Ciro, conquista o Egito em 523, incorporando-o no império persa.
20
Temos aqui alusão ao templo que já existiria em Elefantina, na célebre colónia judaica do sul do Egito,
de acordo com o Papiro 40 da edição de COWLEY. Estaríamos em 411 (a.C.)..
21
Trata-se do papiro 22 da ed. de COWLEY).

17
A maior parte dos documentos d’Elefantina estão datados; o mais
antigo, remonta ao ano 27 do império de Dário I, ou seja, a 495, enquanto o
mais recente seria de 399. Trata-se, portanto, de documentos de um século
de história e com dados preciosos. O conteúdo da maior parte destes
documentos é de caráter privado: contratos matrimoniais, transmissões de
propriedade, libertação de escravos, etc. Por estes textos facilmente se pode
constatar como os contactos desta comunidade com Jerusalém eram
intensos, pois aí é pedida ajuda nas disputas com os sacerdotes egípcios do
deus Knub. Temos também referências e alusões aos governadores da
província da Samaria (como é o caso de Sanballat que é igualmente
referido no livro de Neemias: 2,10.19; 3,33). Trata-se de um personagem
amonita que, juntamente com o governador da Samaria de então, se opunha
à reconstrução de Jerusalém, procurando induzir o governo da 5ª Satrapia
(do império persa, a ‘Abar-Nahara’ ou ‘Além do Rio’, no caso, o Eufrates)
a não autorizar que as muralhas e o Templo fossem reconstruídos.
c) A diáspora no período helenístico22
A conquista de Alexandre (em 332) alterou profundamente a
estrutura política, social e cultural de todo o Médio Oriente. Pela primeira
vez, um grande império vindo do ocidente marchava para oriente, alterando
a tradição que até então tinha sido inversa. Iniciava-se assim a primeira
marcha da cultura ocidental em direção ao oriente, deixando marcas
profundas e inovadoras.
Uma das motivações da conquista de Alexandre, depois continuada
pelos seus sucessores, foi a difusão da cultura grega (helénica) nas terras
conquistadas. Dessa difusão cultural nasceu uma nova forma de vida e um
novo “modus vivendi” cultural e social nas terras que foram incorporadas
no novo império. É o Helenismo: trata-se de um sistema cultural que coloca
o homem no centro (antropocêntrico) e tem como expressão máxima a
harmonia das formas e a estética. O próprio Alexandre fundou no delta do
Nilo uma nova cidade que fosse o reflexo da sua própria grandeza e da
nova forma de estar no mundo: Alexandria. Aos judeus foi então
consignada uma zona da nova cidade junto ao mar 23 com todos os direitos
civis e religiosos. A crer na Carta de Aristeia, a comunidade judaica tinha a
sua organização própria, com grande autonomia e conheceu um período de
grande progresso e poder político. Possuía uma grande sinagoga (com 71
cadeiras de ouro – tantos quantos os membros do seu Conselho

22
Abordar a questão da ‘diáspora judaica’ é fundamental para perceber a abrangência das narrativas
sinóticas, tendo em conta que um dos Evangelhos. O de Lucas, foi determinante para a consolidação do
cristianismo. Mas, para além disso, é na diáspora judaica que vão surgir alguns dos textos que mais
contribuíram para o conhecimento do Antigo Testamento e assim prepararam a compreensão da vida De
Jesus e as referências das Escrituras à Sua vida.
23
Contra Apionem, II, 36.

18
‘Sinédrio’)24. Sabemos que havia gente rica e que existiam fortes ligações
com a comunidade de Jerusalém. Um tal Nicanor de Alexandria tinha
oferecido uma porta de bronze para o templo25 e em Jerusalém vamos
encontrar ao tempo do Novo Testamento uma sinagoga de judeus
alexandrinos (Act 6,9). Segundo Flávio Josefo, esta comunidade de
Alexandria ajuda a comunidade de Jerusalém26.
Esta comunidade de Alexandria recebeu grandes benefícios e
privilégios dos sucessores de Alexandre: os Prolomeus. A Carta de
Aristeia, embora possamos dizer que se trata de uma forma narrativa algo
fantasiosa, fala-nos da Tradução grega dos LXX (ao tempo de Ptolomeu II,
Filadelfo), mostrando como os judeus gozavam de grande simpatia junto do
poder central. Para além desta tradução que é a grande fonte de inspiração e
de referência para a comunidade cristã e para o Novo Testamento, a
comunidade judaica de Alexandria legou outras obras importantes, tais
como o livro da Sabedoria, alguns textos apócrifos (4 Macabeus, Joseph e
Aséneth), bem como a grande obra literária de Filão de Alexandria. Um dos
objetivos desta literatura era o de mostrar que o judaísmo era compatível e
podia dialogar com os valores de outras culturas, designadamente com o
helenismo reinante em Alexandria, embora esse diálogo nem sempre se
tenha manifestado fácil.
Ao tempo de Ptolomeu VI (181-145), e como consequência da
política hostil da parte dos Selêucidas da Síria na Palestina, todo o Egito foi
aberto aos judeus. Aí é acolhido Onias IV, provavelmente filho de Onias III
(filho de Simão II: Ecl 50,127) que se refugiou no Egito e para quem o
imperador construiu um templo, em Leontópolis, perto de Memphis28,
fazendo-o também comandante de uma unidade militar autónoma. Onias
pertencia a uma notável família que desde longa data exercia o sumo-
sacerdócio e que, devido à luta entre os diversos grupos judaicos, fora
deposto pelos partidários da helenização da Palestina que estava sendo
promovida pelos Selêucidas, designadamente por Antíoco Epífanes.
Com a morte de Ptolomeu VI (145), Onias e o seu exército
envolveram-se nas lutas pela sucessão, tomando o partido de Cleópatra II,
viúva de Ptolomeu, contra a do cunhado Evergetes II, depois Ptolomeu VII.
Com a vitória deste, iniciou-se aquela que poderemos designar como a
primeira perseguição aos judeus de Alexandria no período helenístico29. No
entanto, com o casamento de Ptolomeu VII com a sua ex-cunhada a
24
Cf. T. Sukkah 4,6; Suk 51b.
25
Mid 1,4; 2,3; Yoma 3,10.
26
Antiquitates Judaicae 18,4,3.
27
De acordo com o livro de Neemias, Simão I (?) teria afastado do poder os Tobíades, inimigos dos
judeus junto do poder central.
28
AJ 13,6; BJ 7,422-432.
29
Temos ecos destas perseguições no 3º livro dos Macabeus e também em FLÁVIO JOSEFO, Contra
Apionem, II, 53-55.

19
situação voltou à normalidade e a comunidade judaica pôde retomar a sua
vida normal. O templo de Leontópolis manteve a sua atividade até ao ano
73, altura em que foi encerrada por ordem dos romanos.
Para além da situação de privilégio que viviam em Alexandria,
também a comunidade judaica de Leontópolis manteve por muito tempo
uma autonomia assinalável, constituindo uma espécie de pequeno estado
dentro de outro estado, o Egito. Os próprios filhos de Onias IV mantiveram
não apenas o comando das forças militares do seu exército, mas também
dos exércitos de Cleópatra III (116-110), exercendo uma forte influência
junto do poder central. A história da comunidade de Leontópolis não
termina aqui, pois vamos encontrar, mais tarde, os judeus aliados aos
romanos na conquista do Egito (com Pompeu em 55 a.C.) e também ao
lado de Antípatro (pai de Herodes, o Grande) que se coloca ao lado de
César para manter o domínio romano (48-47)30. Isso mostra de forma clara
como a política oriental do Império conduzida por César foi nitidamente
favorável aos judeus. O mesmo será feito pelos seus sucessores Marco
António e César Augusto.
Um pouco ao contrário da diáspora oriental que manteve uma relação
bastante discreta com a Palestina, mormente em questões de natureza
política e cultural, só sentidas mais tarde já na época rabínica, com a
literatura midráshica e talmúdica, a diáspora do Egito manteve
constantemente uma forte ligação a Jerusalém e um grande envolvimento
na política regional. As influências em Jerusalém são sentidas
permanentemente e o envolvimento dos judeus com a terra dos faraós é
constante. Na época helenística esse envolvimento vai ser ainda mais
acentuado, culminando com o esforço comum dos judeus em todo o
império para se revoltarem, dando assim origem à política hostil de Roma
na segunda metade do séc. I.
1. 3. As consequências da helenização da Palestina
Com a conquista de Alexandre inicia-se, como já referimos,
uma nova página na história de todo o Médio Oriente e, consequentemente,
também na do povo judeu, alterando profundamente os hábitos e tradições
ancestrais da comunidade de Jerusalém do pós-exílio. Numa primeira fase,
esta alteração da situação não teve a ver com o estatuto político da
comunidade judaica, já que esta continuará como antes numa relação de
dependência direta do império (ora dos Ptolomeus, do Egito, ora dos
Selêucidas, da Síria) até à conquista levada a cabo pelos Macabeus
(iniciada em 167) e à formação do reino asmoneu (em 141).

30
Temos diversas referências a esta guerra que é conduzida por César com o apoio dos judeus em
Antiquitates Judaicae 14, 127-136. Ver também A. PAUL, Le monde des juifs à l’heure de Jésus:
Histoire politique, Paris, 1981, 41-43.

20
Após a morte de Alexandre, a Palestina ficou integrada no império
dos Ptolomeus do Egito até 200 (a.C.), altura em que, após a batalha de
Banias (ou Panias, junto às nascentes do Jordão, no Hermón), o controle
efetivo da zona passou para os Selêucidas da Síria que, ao contrário do que
sucedera anteriormente, forçaram a helenização do judaísmo através da
imposição de medidas que restringiam a autonomia da Judeia. Para além do
uso da força e da ocupação militar, os gregos recorreram a outros
instrumentos para impor o Helenismo:
.Criação de cidades livres – independentes do poder religioso e com
um estatuto autónomo. Gozando de diversos privilégios, num regime
democrático de tipo grego, com senado próprio, podiam cunhar moeda e os
seus governadores respondiam diretamente perante o poder central do
império ou da respetiva província. Este modelo teve grande êxito na
Palestina, com as chamadas cidades da Decápole (Betshean, Abilla,
Gadara, Pella, Hippos, Jerasah, etc);
.Imposição de uma cultura de tipo humanista – centrada no homem e
na beleza artística, que tinha por centro a ‘polis’ (a Ágora) e já não o
templo. Temos as festas pagãs às divindades locais, os teatros, o
hipódromo, os jogos, os ginásios. Desenvolve-se a beleza física e a estética
do corpo, com seus ginásios, hipódromo e demais recintos para o desporto
e o exercício físico, em detrimento do cuidado que devia ser consagrado ao
culto e ao templo.
.Combate ativo às tradições religiosas locais – procura-se suprimir e
retirar os privilégios legais que determinadas comunidades ou grupos
detinham no âmbito império. Temos aqui o caso de Jerusalém, tal como
também os Samaritanos (tinham obtido idêntico estatuto). No caso do
Judaísmo é-lhe negada a autonomia para fazer do Pentateuco (da Torah) a
lei civil; os judeus, tal como os demais povos, tinham de aceitar e viver de
acordo com as leis do império. A nomeação de sumos-sacerdotes de cultura
grega, afetos ao poder imperial, traduz bem a forma como esse combate era
realizado.
Promovida durante o tempo dos Ptolomeus e nos primeiros anos do
império selêucida, a helenização foi imposta de forma violenta a partir de
167, com a tentativa de impor um maior controle sobre a Palestina por
parte de Antíoco Epifânio31. Já antes, alguns sumos-sacerdotes do partido
helenista tinham forçado uma certa helenização de Jerusalém32. Porém, a
hostilidade encontrada junto das camadas populares e de diversos grupos
levou à intervenção ativa do poder central, determinando penas graves, até
a própria morte, para todos aqueles que não aceitassem os decretos reais. A

31
O próprio nome do imperador ‘Epifánio’ (manifestação da divindade, divino) era já uma afronta para o
judaísmo, fazendo assim crescer ainda mais a oposição ao império selêucida.
32
Temos o caso de Jasão: 175-172.

21
reação a tais medidas não se fez esperar e dela se fazem eco os livros dos
Macabeus: 1 Mac 1,10-15.21-28.41-64. 1 Mac 2 é um capítulo que se faz
eco da reação do grupo mais hostil a essa helenização que foi o grupo
designado por Hasidim (os justos que cumprem a Lei, face ao grupo dos
helenistas que são designados por ímpios).
Chefiados por Matatias Macabeu, o grupo nacionalista dos Hasidim
terminará por vencer e conquistar não apenas a liberdade religiosa que lhe é
reconhecida em 163 por Antíoco V, o que lhes permite regerem-se pela sua
própria Lei (Torah)33. Na sequência desta conquista é-lhes também
concedida autonomia política ao tempo de Simão Macabeu que se vê
confirmado como rei dos judeus em 142-141. Para o conseguir, Simão
aproveitou não apenas o período de decadência do império, mas beneficiou
também das alianças com Roma e Esparta34, tomando para si o título de
‘príncipe e etnarca dos judeus’. Para consolidar o seu poder, Simão, apesar
de não ser de família sacerdotal, faz-se proclamar também sumo-
sacerdócio, o que veio a causar grande descontentamento entre o próprio
movimento dos Hasidim. Esta auto proclamação de Simão como sumo-
sacerdote, feita em parte à revelia do povo, assenta no que poderemos
chamar de ‘um direito tradicional’ que lhe é conferido pela comunidade dos
judeus (1 Mac 14,47), embora se aguarde a “chegada de um profeta
acreditado” que possa então confirmar esta designação.
Com Simão consolida-se e concentra-se o poder político e religioso
na mesma pessoa, dado que ao reconhecimento político por parte do
império e das potências aliadas se junta agora o poder religioso que lhe é
conferido pelo povo judeu. Nasce aqui o que se tornará numa caraterística
do estado Asmoneu e que nunca antes tinha existido em Israel: A junção do
poder político e religioso numa única pessoa. João Hircano e Alexandre
Janeu serão as duas figuras que representam o apogeu desta união dos dois
poderes na mesma figura. Este estatuto manteve-se até ao ano 76, altura em
que morre Alexandre Janeu e lhe sucede a sua esposa Alexandra Salomé
que, pelo facto de ser mulher, teve de delegar o poder religioso num dos
seus filhos. Será em 64, com a conquista de Pompeu que se põe fim a esta
união dos dois poderes.
Durante este período, para além das lutas e guerras internas, tiveram
lugar outros acontecimentos importantes que vão marcar definitivamente o
judaísmo do período intertestamentário e que tiveram uma influência
determinante no que concerne à cultura hebraica que nós conhecemos.
Dentre esses acontecimentos destaca-se, por meados do séc. II (a.C.), a
formação da Comunidade Essénia de que conhecemos melhor o grupo de

33
1Mac 6,31s; 2 Mac 11, 22-26; 2 Mac 13.
34
1Mac 14,16s; 15,15s.

22
Qumran35. Trata-se de um grupo, provavelmente de Hasidim que se
desvinculam do judaísmo oficial para viverem de forma mais intensa de
acordo com as suas tradições. As razões para este corte com o judaísmo
oficial não são ainda hoje totalmente conhecidas, mas é de crer que entre
estas esteja o facto de se oporem à usurpação do sacerdócio pelos
descendestes de Matatias Macabeu, o que a seus olhos sempre foi
considerado como uma impiedade. Daí que os escritos de Qumran
abordem, quase todos eles, o tema do ‘sacerdote ímpio’ que combate o
‘mestre de justiça’ (o mestre justo) e procura dar-lhe a morte. Estamos em
152, altura em que a nomeação de Jonatas Macabeu como sumo-sacerdote
por Alexandre Balas (1 Mac 10,15-21) motivou a fuga de Onias III (para
Leontópolis) e também a cessação dos Essénios que se opõem a essa
designação, apesar dos Macabeus terem ainda uma ascendência sacerdotal,
de Yehoyarib, chefe de uma família sacerdotal (1 Mac 2,1.54). Todavia,
esta atribuição do sumo-sacerdócio aos Macabeus e seus descendentes fora
aceite com uma ressalva: “Até que aparecesse um profeta digno de fé” (1
Mac 14,41). Assim, o judaísmo aspirava pelo regresso da profecia para
poder decidir sobre o sacerdócio e outros assuntos importantes que
careciam de ser iluminados nesta nova fase de vida da comunidade judaica
(1 Mac 4, 46).
Um outro acontecimento que vai marcar o judaísmo desta época foi a
destruição do templo samaritano do monte Garizim, levada a cabo por João
Hircano (sucessor de Simão), no ano 127 (a.C.). Este facto contribuiu de
forma decisiva para acentuar ainda mais o fosso que separava judeus e
samaritanos que se viria a consumar em 109 quando o mesmo Hircano
destrói a cidade da Samaria (Sicar), símbolo da identidade samaritana.
Estes acontecimentos mostram bem o clima de tensão que existia entre as
duas comunidades ao tempo de Jesus: Jo 4,5s; 8,48; Lc 9,52-55.
Apesar da dinastia dos Asmoneus (com Hircano e especialmente
com Alexandre Janeu: 103-76) ter conquistado de novo a autonomia
política face aos dois impérios rivais (Selêucidas a norte, na Síria, e
Ptolomeus a sul, no Egito) e alargado o império até limites nunca antes
alcançados36, salvo o período de David e Salomão, nem por isso a
sociedade judaica ficou mais pacificada e reconciliada com a monarquia
reinante. A forma e os costumes helenísticos adotados pelos soberanos bem
como a usurpação do sumo-sacerdócio nunca foram bem aceites entre os
judeus pelos grupos mais populares. Esta oposição foi conduzida
particularmente de forma ativa pelo grupo dos Fariseus (o partido dos

35
Cf. Antiquitates Judaicae 13,171s
36
Tanto Hircano como Alexandre Janeu chegaram mesmo a anexar partes significativas da Transjordânia
e a destruir diversas cidades gregas autónomas como represália por viverem segundo um ‘status’ que
contrariava as tradições judaicas.

23
Hasidim) que não suportavam a junção do sacerdócio e da realeza na
mesma pessoa, uma vez que os Asmoneus não eram de ascendência
sadoquita (de Sadoc).
Neste contexto, para além da instabilidade do poder político que se
vai acentuar durante a primeira metade do séc. I (a.C.) até à conquista
romana, em 64, por Pompeu, assistimos também a uma deterioração da
situação interna no que diz respeito ao poder religioso e à convivência entre
os diversos grupos dentro do judaísmo. Para além do sumo-sacerdote, o
poder religioso era exercido pelo Sinédrio, composto por Saduceus
(oriundos das famílias nobres e sacerdotais) e Fariseus (ligado ao povo e às
classes sociais mais desfavorecidas). A convivência entre estes e outros
grupos não será pacífica e criará muitas tensões ao poder constituído. O
poder civil apoia-se ora num ora noutro grupo, tal como sucede com
Alexandre Janeu que favoreceu os Saduceus e a sua sucessora (e esposa)
apostou nos Fariseus37. Esta luta vai continuar durante a dominação romana
até ao fim da revolta judaica de 70 (d.C.).
É nesta complexa situação social e política que emerge uma figura
que ocupará a cena política da Palestina na parte final do séc. I (a.C.) e
cujos descendentes deixaram uma marca muito forte ao tempo do Novo
Testamento. Trata-se de Herodes, o Grande, e de seus familiares. Herodes
era filho de um ministro de Hircano (filho de Alexandre Janeu que
sucedera a sua mãe, Alexandra Salomé), de nome Antípatro, que era
idumeu38. Por isso, Herodes não era judeu e nunca foi uma figura grada aos
judeus, apesar de inúmeras e grandiosas obras que fez em Jerusalém e em
outras cidades da Palestina. Estudou em Roma e aí ganhou a simpatia dos
Romanos que se serviram dele para controlar a situação política e social na
Palestina. Começa por ser governador da Galileia (strategos), alia-se a
Marco António e a Cleópatra, o que lhe vai valer a desconfiança de
Augusto, embora depois tenha sabido refazer-se do sucedido, recebendo
dele o título de rei-vassalo dos Romanos (em 37 a.C.), com o governo da
Galileia, da Judeia, da Samaria e das outras regiões da Província. A época
de Herodes e dos seus descendentes marcará de forma decisiva o judaísmo
do tempo de Jesus e deixará consequências que se prolongarão durante todo
o séc. 1º da nossa era. Com a morte de Herodes e a divisão do seu reino
pelos seus 3 filhos (Arquelau, etnarca da Judeia; Herodes Antipas, tetrarca
da Galileia e Pereia; Herodes Filipe, tetrarca da Gaulanitide, Bataneia e
37
Segundo FLÁVIO JOSEFO (AJ 13,401), o testamento deixado por Alexandre Janeu à sua esposa,
Alexandra Salomé, apelava a uma reconciliação com o grupo dos Fariseus, o que terá acontecido.
38
Trata-se de uma tribo do sul da Palestina, que eram grandes comerciantes e que exerceram alguma
importância política na zona nos finais do séc. I (a.C.). É particularmente devido ao comércio vindo da
zona arábica que era transportado até ao Mar Mediterrâneo, nos portos da costa sul, como era Gaza, que
esta tribo vem a desempenhar um papel notável na região, tal como depois vai suceder com os Nabateus,
também eles aliados dos Romanos para a defesa a sul dos limites do Império. O desenvolvimento do
Neguev (a zona sul de Israel) no período romano e bizantino colhe aqui a sua razão de ser.

24
regiões adjacentes do norte), os romanos não conferiram aos filhos o
estatuto de rei atribuído ao pai nem estes disfrutaram da autonomia que
àquele tinha sido concedida, o que vai contribuir para que a Judeia seja
declarada Província Procuratorial com a capital em Cesareia marítima (no
ano 6 d.C., após a destituição de Arquelau e que se manteve até ao ano 41),
governada por um Procurador, tal como é o caso, por nós bem conhecido,
de Pilatos. Esta situação colocou a Judeia sob controle militar do império, o
que virá, em grande parte, a agravar as tensões com Roma.
No ano 41, Roma concede de novo o título de rei a Herodes Agripa39,
com poder sobre a Judeia e a Samaria, tendo este desencadeado uma das
primeiras e mais violentas perseguições contra os cristãos de Jerusalém,
com a decapitação de S. Tiago, irmão de S. João, e mandado prender Pedro
(At 12). A expansão do cristianismo para além das fronteiras da Judeia
deve-se, sem dúvida, a este clima de perseguições e à conversão de S.
Paulo que realiza a sua primeira missão ‘ad gentes’ de 46 a 48, levando a fé
cristã para o mundo grego.
O permanente clima de revolta na Judeia e nas comunidades judaicas
do império (por exemplo, em Alexandria, em 66), bem como a
incapacidade do poder romano em lidar com os ‘assuntos internos’ do
judaísmo conduziu ao eclodir da 1ª revolta judaica em 66 que se espalhou
rapidamente por todo o país, tendo os sicários e os zelotas desempenhado aí
um importante papel que os levou à reconquista de Jerusalém e à expulsão
dos oficiais do império. Esta revolta terá um fim trágico para o judaísmo
com a destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70, às mãos de Tito,
filho de Vespasiano que, entretanto, tinha sido feito imperador em Roma. A
aclamação de Tito em Roma, no ano 71, como o conquistador dos romanos
significa o fim da Judeia e de uma importante etapa do judaísmo. A
importância que esta vitória de Tito teve para o império está bem
documentada no Arco de triunfo de Tito, em Roma, onde se podem ver
gravadas as insígnias do judaísmo, mormente o Candelabro da Menorah e
outros despojos do Templo.
Alguns escritos apócrifos (4 Esdras, 2 Baruc) fazem-se eco desta
catástrofe que determinará não apenas o fim do judaísmo como o
conhecemos dos escritos bíblicos, centrado no Templo e com toda a sua
estrutura sacerdotal, mas também determinará de forma definitiva o futuro
do cristianismo, uma vez que a comunidade cristã se tinha dissociado da
revolta judaica e partiu em diáspora, tendo uma parte dessa comunidade
encontrado refúgio em Pella, na Transjordânia, uma das cidades
helenísticas da Decápole.

39
Agripa era neto de Herodes, filho de Aristóbulo que fora morto por Herodes o Grande, como um
daqueles que conspiravam contra si, mas que fora educado em Roma e se tornara amigo de Calígula,
contribuindo para que este ascendesse à chefia do império.

25
No entanto, a derrota dos judeus em 70 às mãos de Tito e a
declaração da Judeia como província imperial não trouxeram consigo a paz
para a Palestina (Judeia e Jerusalém). Em 132, chefiados por Bar Kokba, os
judeus insurgem-se de novo contra Roma e conseguem ocupar Jerusalém e
aí restaurar um regime autónomo. Serão apenas vencidos em 135, por
Adriano, que impõe o desterro da cidade para todos os judeus e transforma
Jerusalém numa cidade romana, com o nome pagão: “Aelia Capitolina”40.
Era então o fim do judaísmo e da nação judaica como identidade nacional.
Inicia-se a grande dispersão que vai levar os judeus aos mais recônditos
cantos da terra. Esta diáspora perdurou séculos e conheceu períodos
terríveis para a sua sobrevivência: a invasão árabe do séc. VII; as cruzadas
dos séculos XII e XIII; a expulsão dos judeus de Espanha e Portugal nos
séculos XV e XVI e, por último, a perseguição nazi ao tempo do 3º Reich
de Hitler.
1. 4. O contexto religioso do judaísmo intertestamentário
Como já antes referimos, durante um período de cerca de 300
anos (os dois últimos séculos do AT e o primeiro século da nossa era) não
se pode falar de ‘um judaísmo’ uniforme e singular, nem de uma
comunidade judaica ‘monocolor’ na forma e na vivência das suas tradições
religiosas e culturais. Pelo contrário, estamos em presença de comunidades
e grupos muito diversificados tanto na sua expressão cultural como na
vivência da sua fé. Temos um judaísmo pluralista nos seus grupos, nas suas
conceções religiosas, nas suas tradições e formas de interpretar os preceitos
da Torah e nas suas expressões culturais e literárias. Um olhar sobre a
literatura judaica, mesmo que seja de relance, permite-nos constatar
imediatamente que no interior do judaísmo existia uma grande agitação e
um fervilhar de grupos e movimentos em busca de um espaço e de uma
identidade própria. Nas comunidades da diáspora assiste-se então a uma
fase de grande proselitismo, procurando apresentar a religião judaica como
algo compatível com as formas de vida e os valores de outras culturas e
religiões41. Dentre estas tentativas sobressai a Tradução Grega dos LXX
que representa, ao mesmo tempo, uma forma de diálogo com a cultura
helenística não apenas em Alexandria, mas aberta a todo o império.
Antes de se transformar na religião da Torah, consequência da
destruição do Templo e da diáspora forçada dos finais do 1º séc. da nossa
era, o judaísmo palestinense era composto por uma grande diversidade de

40
Este nome pode traduzir-se por ‘Cidade do deus-sol do Capitólio’, significando assim a sua subjugação
ao poder imperial de Roma (do Capitólio). A cidade funcionará agora de acordo com o estatuto de uma
cidade pagã.
41
O exemplo mais perfeito deste proselitismo encontramo-lo na Carta de Aristeia e na forma como
apresenta os valores da cultura judaica, consignados na Lei, superando todos os costumes e tradições
mitológicas dos demais povos (167-171).

26
grupos e de movimentos, com suas tradições e formas de expressão
religiosa. Temos uma pluralidade de seitas: Fariseus, Saduceus, Essénios,
Zelotas, Samaritanos, grupos batistas, movimentos apocalíticos e místicos.
As mais diversas doutrinas cresciam e coabitavam lado a lado no interior
do judaísmo e todas elas tinham as suas referências bíblicas, mormente
ligadas à interpretação da Torah.
No entanto, para além desta pluralidade e no que diz respeito à
interpretação da Lei e à moral quotidiana, duas ‘escolas’ se impuseram na
sociedade judaica: a escola de Shammai (de caraterísticas mais rigoristas) e
a de Hillel (mais humanista). Destas duas ‘escolas’ que deram continuidade
à tradição judaica manter-se-á apenas a tradição farisaica da ‘escola’ de
Hillel que foi capaz de superar as consequências da revolta judaica do ano
70, já que os Saduceus e a ‘escola’ de Shammai tinham assumido fortes
posições contra a ocupação romana. No entanto, com o acentuar da crise no
confronto com Roma todos estes movimentos que emprestavam ao
judaísmo uma coloração pluralista e polifacetada entraram em profunda
crise, restando apenas o movimento farisaico da ‘escola’ de Hillel e
pequenos grupos de tipo apocalítico que pouco a pouco se diluíram sem
deixar grande representatividade.
a) Consequências da revolta do ano 70
Após a derrota do ano 70 às mãos de Tito e a consequente
destruição do Templo, o fim do culto judaico e a eliminação dos sacerdotes
do movimento dos saduceus que eram os pilares da tradição judaica de
então, o judaísmo teve de repensar a sua sobrevivência. Agora já não havia
templo, nem culto, nem sacrifícios, nem sacerdócio e até o solo pátrio em
breve não seria mais do que uma saudade ou uma esperança num regresso
desejado.
Face a este cenário, foi Rabbi Yohanán Ben Zakkai que procurou
reorganizar o judaísmo para a sua sobrevivência. Para tal, fez reunir os
‘Mestres’ em Yabné (no célebre concílio dos finais do séc. I) para poder
unificar o que restava e estabelecer as novas formas de vida. Aí prevaleceu
a corrente farisaica da ‘escola’ de Hillel que impôs as suas perspetivas em
detrimento de outras tendências. Assim, foram eliminados os saduceus, os
fariseus da ‘escola’ de Shammai, os zelotas (responsabilizados pela
catástrofe nacional que tinha acontecido), bem como os essénios e os
grupos de tendências apocalípticas, uma vez que a sobrevivência exigia a
unificação de todas as forças. Subsistirão com a sua autonomia apenas os
samaritanos que já se tinham afastado há muito do judaísmo como tal.
Embora haja razões circunstanciais que decorrem da derrota de 70,
também é verdade que muitas das razões que estão na génese das lutas no
interior do judaísmo que agora tiveram o seu epílogo em Yabné remontam
a meados do séc. II (aC), especialmente ao conflito entre simpatizantes do
helenismo e os Hasidim que desencadearam a revolta dos Macabeus. A
27
helenização forçada por Antíoco Epífanes e apoiada pelo grupo dos
helenistas (1 Mac 2,27) deixou profundas marcas na sociedade judaica. A
designação de sumos-sacerdotes que não eram de ascendência sacerdotal
(sadoquitas) teve como consequência o ‘cisma’ da comunidade essénia que
está na origem dos nossos bem conhecidos manuscritos de Qumran. Aí está
bem-patente o conflito entre o ‘Mestre de Justiça’ (o chefe da Comunidade
dos essénios) e o movimento dos Macabeus, sendo o ‘sacerdote ímpio’
(designação aplicada ao sumo-sacerdote) a expressão desse cisma. No
entanto, o conflito existente não se limitou apenas a esta separação. Ele é
mais profundo e atinge igualmente outros grupos e movimentos. De acordo
com Flávio Josefo, remontaria a este período a divisão entre fariseus,
saduceus e essénios42.
b) Os ecos da literatura da época
De todos estes movimentos e grupos chegou até nós uma
abundante literatura que não só complementa e interpreta os textos bíblicos,
mas também nos ajuda a compreender a história de então. Grande parte
dessa literatura dita apócrifa43, especialmente a de caráter apocalítico,
reflete bem as tensões que ao longo do período intertestamentário se foram
acumulando no interior do judaísmo, mormente por parte dos Hasidim que
romperam com os asmoneus por estes se terem apossado, indevidamente,
do sacerdócio.
Todavia, convém realçar que nem toda a literatura apócrifa ou de
tendências apocalípticas surgiu nos grupos pietistas (Hasidim), opositores
violentos ao exercício do poder por parte dos descendentes dos Macabeus
(asmoneus). Importa referir que alguns destes grupos eram marginais, de
pouca ou nula influência dentro do judaísmo. Além disso, até finais do séc.
I da nossa era (concílio de Yabné que fixou e organizou a ortodoxia
judaica) não se pode falar de um judaísmo oficial ou duma ortodoxia
judaica, mas apenas de uma ‘ortopraxis’ que consistia em cumprir a Lei de
Moisés.
Neste aspeto, os apócrifos, tanto de tendência apocalíptica como
escritos narrativos, manifestam, sem exceção, uma grande estima e
devoção à Torah. A apocalíptica não é um fenómeno marginal ou
secundário dentro do judaísmo, reservado apenas a grupos esotéricos. Ela
floresceu um pouco em todos os grupos e movimentos, expressão e forma
de manifestar as esperanças e anseios que tais grupos acalentavam. Por
exemplo, nos escritos de Qumran temos fortes indícios de tendências
apocalípticas, já que o seu conteúdo alimentava a vivência da comunidade,

42
Antiquitates Judaicae 13,5,171.
43
O adjetivo ‘apócrifo’ não quer dizer falso ou sem valor; significa sim que esta literatura não é canónica,
não faz parte do Cânon, embora contenha notáveis informações e constitui para nós hoje a melhor fonte
de informação sobre estes 3 agitados séculos de judaísmo.

28
dando estímulo e motivação aos seus membros. O pensamento apocalítico
conheceu uma grande difusão neste período intertestamentário e não se
limita a este ou àquele grupo. Como que percorre de forma transversal toda
a sociedade judaica de então que se vê confrontada quer com a domínio
grego dos Selêucidas primeiro, com a tirania dos asmoneus depois e,
finalmente, com a opressão romana. Isto explica a grande difusão das
doutrinas apocalípticas e a empatia que estes movimentos conhecem junto
da população em geral.
No entanto, e apesar desta difusão, não é fácil distinguir quais as
camadas da população que mais se identificavam com os movimentos
apocalíticos, estando um pouco presente em todos os grupos que se
manifestavam contra a situação social e política deste período. Por
exemplo, a crer nos ecos e testemunhos que até nós chegaram, os Livros de
Henoc, 4 Esdras, 2 Baruc, entre outros, encontraram uma grande audiência
e difusão na população em geral. O cristianismo conservou, nos seus
primeiros tempos e no seio das primeiras comunidades, ecos destes escritos
e dos respetivos movimentos enquanto que o judaísmo pós Yabné foi
excluindo progressivamente todas as seitas e movimentos que não
seguissem rigidamente a ortodoxia fixada no concílio.
c) As instituições judaicas
Dentre as diversas instituições judaicas há três que assumem
papel predominante e de grande interesse para o conhecimento do ambiente
religioso deste período. São elas: o Templo, o Sinédrio e o Sacerdócio.
Impõe-se, por isso, uma breve descrição de cada uma delas, já que a sua
centralidade na vida judaica é determinante para a própria história do
judaísmo como tal.
No que diz respeito ao Templo, trata-se do lugar central e do coração
do judaísmo como tal. O Templo existente ao tempo de Jesus é, em geral,
chamado de 2º Templo, pelo facto do 1º, construído por Salomão, ter sido
destruído na altura da tomada de Jerusalém por Nabucodonosor (em 587/6).
Foi este 2º Templo, reconstruído por Esdras e Neemias, que Herodes
mandou alargar e engrandecer nos seus diversos aposentos. São abundantes
as referências ao Templo e às funções que nele eram exercidas. Para além
dos textos da Torah e daqueles alusivos à sua construção (do tempo de
David e Salomão), temos o livro de Esdras, 2 Mac e Flávio Josefo44.
Desde o tempo de Salomão que o Templo de Jerusalém era o
santuário oficial do reino. Os livros de Samuel e dos Reis, escritos na
perspetiva do Deuteronomista, sublinham como prioridade absoluta do
culto a unicidade do Templo, unicidade esta que apenas conheceu
momentos muito breves, uma vez que o politeísmo cultual foi uma

44
Antiquitates Judaicae 11,121; 297-298; 12,43-44; 20,261.

29
constante ao tempo da realeza. O quadro ideal descrito em 1Cr 23-26 é
reflexo da situação do período pós-exílio e não do tempo da monarquia,
uma vez que a divisão do reino após a morte de Salomão teve como
consequência a existência de outros templos, especialmente o de Bethel45.
Reconstruído no regresso do exílio (Esd 3,3; 7,10), a dedicação do
Templo teve lugar em 515, tendo Ciro procedido à devolução dos objetos
sagrados que tinham sido levados para Babilónia (Esd 1,9-10)46. A essas
riquezas, outras se foram ajuntando, de forma que o Templo era depositário
de um notável tesouro (1 Mac 1,21-23), constituindo por isso objeto de
cobiça por parte dos conquistadores. É essa uma das razões que está na
génese da crise de 167 (a.C.), ao tempo de Antíoco Epífanes e que deu
origem à revolta macabaica.
Formado por diversos compartimentos e átrios, são de destacar o
‘Santo dos Santos’, onde apenas uma vez ao ano entrava o Sumo-sacerdote,
no dia do Yom-Kippur (Expiação) para oferecer o incenso, o átrio dos
sacerdotes, o das mulheres e o recinto dos gentios47, para além do qual
estes não podiam entrar. Para além disso, existiam inúmeras salas dos
serviços do Templo. Um episódio pitoresco, narrado por F. Josefo 48, diz-
nos que Alexandre Janeu, que além de rei era também Sumo-sacerdote,
mandou isolar o pátio dos sacerdotes, pois tinha sido atacado com limões
(citrinos) na altura da festa das Tendas pelos seus opositores, uma vez que
derramara sobre os seus pés, e não sobre o altar, a água que tinha sido
trazida em procissão da piscina de Siloé e que se destinava a implorar as
chuvas de Outono.
Como Templo oficial, aí decorriam as grandes festas, os sacrifícios,
as ofertas, as peregrinações dos crentes judaicos que deviam subir a
Jerusalém uma vez ao ano, por ocasião de uma das três festas de
peregrinação (Hag haregalîm): Páscoa (Pesah), Pentecostes (Shabbuôt ou
festa das semanas) e Tendas (Sukkôt ou Tabernáculos). Além disso, o
Templo era também o espaço do exercício do poder sacerdotal que se
alargava em muito para além dos muros que limitavam o recinto sagrado. A

45
Um dos textos que melhor ilustra esta divisão cultual entre os dois santuários reais é o texto de Am
7,10-17 (Jerusalém e Bethel), suportados pelas duas casas reais (Jerusalém e Samaria). Este texto de
Amós ilustra igualmente o conflito latente no judaísmo entre o sacerdócio e a profecia.
46
Embora Esdras aponte a data de 515 como sendo a da dedicação do Templo, tudo parece indicar que se
trata apenas de uma primeira cerimónia para o início do culto, já que os dados referidos apontam para
uma data muito posterior: Ne 2,1, seria o ano de 446; Ne 2,19, estaríamos em 410 (e ainda estava em
construção); Ne 13,6, seria o ano 433.
47
1 Mac 9,54-56 alude ao facto do sumo-sacerdote Alcimo ter sido aí ferido por ter ordenado a demolição
de um muro interior de separação (provavelmente de separação do átrio dos gentios, uma vez que se trata
de um Sumo-sacerdote profundamente helenista).
48
Antiquitates Judaicae 13,372-373.

30
Mishná dá-nos49 informações preciosas sobre a vida no Templo e sobre o
exercício do serviço sacerdotal, com suas classes e funções.
Quanto ao Sinédrio, toma este nome a partir da época dos Asmoneus,
pois tratava-se da ‘Assembleia dos Anciãos’50. A sua composição incluía os
representantes das grandes famílias sacerdotais, fariseus e mestres da Lei.
Os sacerdotes estariam também presentes através dos saduceus. No início,
os sacerdotes constituiriam a maioria, mas pouco a pouco a composição foi
sendo alterada, conforme o poder político que sempre teve a tendência em
condicionar o seu funcionamento. Durante o tempo da realeza asmoneia, a
presidência era exercida pelo rei que era simultaneamente sumo-sacerdote e
o Sinédrio funcionava como uma espécie de conselho para os assuntos
públicos51. De acordo com o texto de T. Sanh 3,4, a nomeação do rei e do
sumo-sacerdote devia ser aprovada pelo Sinédrio, o que nos parece de
difícil execução, uma vez que os Asmoneus exerciam as duas funções em
simultâneo. No entanto, quando os fariseus, em luta contra Alexandre
Janeu, conseguiram a supremacia procederam à alteração da lei, tal como
diz a Mishná: “O rei não pode tomar assento como juiz e não deve ser
submetido à justiça. Ele não pode testemunhar em justiça e não se pode
testemunhar contra ele”52. Sob o reino de Alexandra Salomé (76-67), altura
em que os fariseus assumiram maior importância, os sacerdotes saduceus
foram excluídos do Sinédrio, o que motivou uma nova interpretação da sua
composição53, passando este a ocupar-se apenas dos assuntos do culto e do
Templo. Com Herodes, o Sinédrio perdeu toda a importância, já que este
destituía e nomeava a seu bel-prazer os seus membros. A partir de Hillel a
presidência do Sinédrio tornou-se hereditária. Pelo que sabemos, ao tempo
de Jesus o Sinédrio era composto de 71 membros (fariseus e saduceus, At
23,6), cabendo a sua presidência ao Sumo-sacerdote que era, em geral, do
grupo dos saduceus.
Competia ao Sinédrio não apenas determinar e interpretar as leis
judaicas e julgar as questões de direito decorrente das tradições normativas
(halakah), mas também intervir na fixação do calendário das festas e dar
orientações para as comunidades da diáspora. Isso explica, pelo menos em
parte, os fortes contactos que existiam entre Jerusalém e diversas dessas
49
Em diversos tratados, mormente nos tratados Middot (medidas), Tamid (sacrifício quotidiano), Yoma
(dia de expiação) e Pesahim (Páscoa). Para conhecer o que era a atividade dos sacerdotes no Templo e
como era a ‘jornada’ de um sacerdote ver: F. MANNS, Le judaïsme: Milieu et Mémoire du Nouveau
Testament, Jerusalem, 1992, 59-69.
50
A Mishná legou-nos um tratado que aborda as normas de composição e funcionamento, Sanhédrin. É a
melhor fonte de que dispomos para conhecer a forma como funcionava e quais as suas atribuições.
51
Sanh 1,5: “Não se toma uma decisão sobre uma guerra ofensiva senão depois de ouvir o ‘tribunal de 71
membros’. Não se aumenta a superfície da cidade e as dependências do Templo senão depois de ouvir o
‘tribunal de 71 membros’”.
52
Sanh 2,2.
53
O texto da Mishná (Sanh 4,2) que define a composição dos diversos tribunais foi reinterpretado pelo
texto do Sifré Dt 17,9 para justificar esta nova composição.

31
comunidades54, uma vez que estas se viam confrontadas com muitos outros
problemas decorrentes da sua inserção noutras culturas. Estamos, portanto,
perante o supremo tribunal judaico, o que levou muitas vezes os
governantes estrangeiros a interferir no seu funcionamento, retirando-lhe
poder de intervenção55 ou designando diretamente o seu presidente através
da nomeação de um sumo-sacerdote da sua confiança. Portanto, é no
domínio da halakah (normas de conduta e comportamentos) que o Sinédrio
tinha autoridade sobre todo Israel: “É daí que os sábios difundem a Lei para
todo Israel” (Sanh 11,4). Para além do exercício da jurisprudência
quotidiana, cabia ao Sinédrio proceder à sua difusão junto da população.
No que concerne à prática da justiça criminal, nem sempre as
interpretações das duas tendências predominantes no Sinédrio (Fariseus e
Saduceus) era coincidente, embora pareça que a interpretação (a halakah)
dos saduceus fosse a mais seguida. Todavia, a praxis nem sempre era
conciliável entre os dois grupos, o que originava cenas estranhas como a
que nos é narrada pela T. Parah 3,6, em que o sumo-sacerdote (por alturas
do ano 60) teve de imolar duas vacas no dia da expiação (na festa de Yom
Kippur), uma para contentar os fariseus e outra de acordo com a halakah
dos saduceus, uma vez que os dois grupos tinham interpretações
divergentes da lei.
Quanto ao Sacerdócio, diz-nos o Cronista que David tinha instituído
24 classes de sacerdotes, os cantores e os porteiros (1 Cr 24-26). No
entanto, com o exílio, a maioria do clero sadoquita foi deportada, embora
uma parte da tribo de Levi tenha permanecido na Judeia, permitindo assim
que estes continuassem a oficiar nos santuários. No regresso do exílio,
tanto Esdras (2,36-40) como Neemias (7,39-42) apresentam o número dos
sacerdotes regressados e oferecem-nos inúmeros textos alusivos à
reorganização do culto e do sacerdócio. O texto de Esd 7,12 diz que Esdras
era sacerdote e em 7,16-17 são-lhe atribuídas funções sacerdotais através
da expressão ‘hakohen’ (sumo-sacerdote) o que faz supor que tenha
exercido essa missão. Depois da morte de Esdras, a família de Josué retoma
o controle do Templo e do sacerdócio (Ne 12).
Após Esdras e Neemias, teremos de esperar mais de um século para
obter novos dados sobre o estado do clero em Jerusalém. Em 1 Cr 1-9 e 23-
27 temos uma longa narrativa sobre a importância do sacerdócio e dos
levitas no culto do Templo. Idêntico testemunho pode ser encontrado em
muitos dos textos apócrifos.
Quanto à lista das 24 classes de sacerdotes que é apresentada em 1 Cr
24,7-18, esta remonta sem dúvida ao tempo dos Macabeus, já que a

54
J. Sanh 6,9,23c.
55
Temos o caso de diversas cidades gregas da Palestina, por exemplo da Decápole, que estavam isentas
do poder do Sinédrio de Jerusalém não tendo que obedecer às leis determinadas pelo tribunal judaico.

32
primeira classe, a de Yehoyarib, é o antepassado dos Macabeus (1 Mac
2,1), razão pela qual eles não só se apossaram do sumo-sacerdócio, mas
também foram aceites nessa função.
Missão dos sacerdotes era a de oficiar no culto em Jerusalém, cabendo a
cada classe 2 semanas ao ano. A eles competia orientar toda a organização
do Templo e do culto (‘abodah). O tratado Tamid descreve-nos os diversos
serviços que os sacerdotes tinham de exercer no Templo56, a maioria dos
quais tinham a ver com os sacrifícios, as festas e as oferendas. Não
competia aos sacerdotes o serviço da Sinagoga, o ensino ou a interpretação
da Lei. Essas funções eram da competência dos Rabbis e Doutores da Lei
(e do Sinédrio). A sua missão restringia-se ao culto oficial do Templo.

2. A ‘questão sinótica’
Começamos a abordar a ‘questão sinótica’ destacando alguns pontos
fundamentais que importa ter presente. Elencamos aqui, de forma sumária,
alguns desses elementos, apesar de já nos termos referido a alguns deles no
ponto anterior do nosso estudo. No entanto, para que tudo tenha sentido e
coerência, sumarizo aqui algumas dessas temáticas. Assim:
1. O contexto cultural na época:
O período do NT - de 64 (aC) a 70 (dC), enquadra-se num conjunto
de grandes acontecimentos históricos que têm como limite dois marcos
históricos de grande impacto: conquista romana e destruição do Templo de
Jerusalém. Há autores que estendem este período a datas mais largas,
fazendo-o remontar à conquista de Alexandre, ou seja, ao início do
helenismo na Palestina e estendendo-o até ao tempo de Adriano, com a
destruição de Jerusalém, em 135 (dC). Em forma de síntese, destacamos:
.A presença da cultura helenística e a sua influência na sociedade
judaica, mormente a partir do governo dos Asmoneus (132 aC),
continuada depois pelo poder romano;
.As ‘cidades livres’ e autónomas, de onde emergiu uma realidade
bem conhecida nos Evangelhos: Decápole; redução dos poderes
tradicionais e religiosos e uma forma nova de governo;
.Herodes e o domínio romano – a presença da família herodiana no
controle da Palestina;

56
Ver L. GINZBERG, “Tamid. The Oldest Treatise of the Mishnah”, Journal of Jewish Lore and
Philosophy, 1 (1919) 42-44; F. MANNS, Pour lire la Mishna, Jerusalem, 1984, 204-210. Para além dos
elementos que nos faculta o tratado Tamid, há outros textos importantes que nos podem oferecer uma
preciosa ajuda para a compreensão de algumas passagens do NT, especialmente a Carta aos Hebreus, no
que diz respeito ao culto e à interpretação de Jesus como novo Sumo-sacerdote dos bens eternos. Temos,
neste caso, o tratado Middot (medidas do Templo) que nos apresenta uma descrição do Templo e dos seus
espaços, constituindo uma das nossas melhores fontes de informação de que ainda hoje dispomos sobre o
Templo e as suas diversas estruturas.

33
.O tempo dos Procuradores (de 6 a 41 dC).
A fonte principal para o estudo desta época é a obra de Flávio Josefo,
De bello judaico. Temos, para este período uma notável obra de
análise das fontes e que pode servir de base ao estudo deste contexto:
Le monde des Juïfs à l’heure de Jésus, de André Paul.
2. O ambiente cultural dos Evangelhos:
.A geografia histórica dos Sinóticos – é um traço caraterístico da
Traditio sinótica – uma geografia bem contextualizada no tempo,
tendo em conta a geografia política do império e a tradição judaica.
Mateus apresenta apenas um itinerário de Jesus, falando das regiões
que formam a Palestina do tempo (Belém, Egito, Nazaré, Galileia,
Jerusalém). Algo semelhante em Marcos. Em Lucas temos mais
detalhes, um melhor enquadramento: Lc 3,1. A ‘geografia’ lucana
tem já uma marca de alguém que está mais dentro da geografia
política do próprio Império;
.O enquadramento histórico; nos Sinóticos é importante perceber a
relação Palestina-Roma, nem sempre clara, mas determinante para o
estudos dos textos da paixão: Lc 2,1-4.
3. O Ambiente cultural e religioso (interno) do Judaísmo:
.Confronto entre o mundo judaico e a cultura grega. O confronto
nasce com a conquista levada a cabo por Alexandre Magno (332 aC).
Alguns elementos fundamentais da cultura hebraica do tempo:
.A tradição oral (bem presente nas citações e na forma de
fundamentar os Evangelhos e a vida de Jesus no Antigo Testamento.
Quem veicula essa Traditio oral? Quem são as ‘vozes dessa
Traditio’? Quais as instâncias que a transmitem e a propõem? Neste
contexto, importa ter presente o papel da Sinagoga e das ‘Escolas’
Rabínicas’, zelosas para manterem a identidade judaica que corria o
risco de se diluir e dissolver na cultura greco-romana. A ‘Tradição’
que chegou até nós é tipicamente farisaica. Mas não era a única ao
tempo de Jesus (Essénios, Zelotas, Saduceus… e outras minorias:
Literatura apocalítica, grupos batistas). Neste enquadramento judaico
importa ainda destacar alguns outros fatores:
.O pluralismo de grupos e de movimentos no interior do
Judaísmo;
.O centralismo do Culto e da Torah – importante para
compreender a reação contra Jesus e a reação de Jesus;
.A Diáspora Judaica e a influência que esta exercia na Palestina e
que podemos constatar no próprio livro dos Atos (o anúncio junto das
Comunidades da Diáspora e também o texto do discurso de Pedro no dia do
Pentecostes: At 2,5-13).

34
.A guerra contra Roma de 66 até à destruição de Jerusalém (ano 70) e
suas consequências para a comunidade cristã; A importância da destruição
de Jerusalém na organização da ‘traditio cristã’ e na contribuição desta
para a redação dos Evangelhos.
.A Instituição sacerdotal e os Órgãos representativos dos Judeus:
Sinédrio, Sumo sacerdócio, Sinagoga. Cada uma destas instituições é
fundamental no contexto dos Evangelhos, pois são elas as grandes
opositoras à expansão do cristianismo nascente. Mais do que a oposição a
Jesus, é a perseguição levada a cabo na Judeia nos anos seguintes, quando a
Comunidade cristã teve de se dispersar e procurar refúgio fora,
designadamente em Antioquia.
4. As Fontes para o estudo dos Sinóticos:
São várias as fontes disponíveis para o estudo dos Evangelhos,
designadamente os Sinóticos, cujo contributo é determinante para a
compreensão do ambiente em que foram redigidos os Evangelhos:
.Literatura judaica do tempo: Flávio Josefo, os livros dos Macabeus,
os escritos de Qumran, a literatura apócrifa e pseudo-epigráfica, a
literatura rabínica e aqui a importância da Mishná, já que é o texto
que veicula e guarda a tradição do tempo de Jesus .
.O Antigo Testamento no Novo Testamento – sua releitura e
compreensão da vida de Jesus a partir da Tradição e a sua respetiva
hermenêutica. As fontes veterotestamentárias são determinantes, pois
é à luz dos textos proféticos e dos salmos que se faz a leitura e a
compreensão da vida de Jesus.
5. A natureza dos Evangelhos:
.As origens de uma tradição à volta de Jesus – a experiência com o
Mestre nos caminhos da Palestina; desta experiência nasce a ‘narrativa’
acerca de Jesus, uma narrativa que vai assumir dois momentos,
complementares, mas diferentes: primeiramente, a narrativa pré pascal
(feita à volta dos ‘Logía e dos Semeia’ que tem por base a experiência com
o Mestre e a tradição sobre o Mestre, ou seja, a experiência pré-pascal que
é referida: ‘Nós comemos e estivemos com Ele’. Por outro lado, temos a
narrativa pascal que implica já a fé pascal no Senhor, um ‘credo’ que
assume os momentos pascais e que se faz agora confissão na sua Senhoria:
‘Deus O ressuscitou e está sentado à direita do Pai’.
.Os primeiros ecos de uma tradição acerca de Jesus: ‘O Profeta’ (Mc
6,15 par; 8,28 par; Mt 21,11.46; Lc 7,16.39; 24,19). Ele mesmo se
apresenta como ‘Profeta’ (Mc 6,4 par; Lc 13,33).
.‘Mestre’ e ‘Profeta’ são dois traços em que convergem as
esperanças messiânicas do tempo, que não se contrapõem, mas
mostram como o judaísmo evoluiu da concepção da palavra profética
para a centralidade da ‘tradição da Torah’. Sabemos que os ‘Mestres’
35
da Torah também tinham traços proféticos, assim sendo entendidos;
tanto profetas como os Rabbis, todos eles tinham discípulos e
formavam ‘Escolas’. Conhecemos, pelos textos de Paulo e da
Mishná a existência de ‘escolas’ no período intertestamentário.
.Assim, passa-se da Comunidade com os Discípulos (pré-pascal) à
Comunidade dos Discípulos (experiência pascal e fé pascal). Temos um
conjunto de núcleos que poderíamos escalonar em três fases: ‘pré
formativos, formativos e formuladores’ da Traditio sobre Jesus: Os
LOGIA, os Semeia, as Narrativas da Paixão, a fé e a confissão do nome.
.A Comunidade cultiva a ‘tradição das palavras do Mestre’, dando
assim origem à chamada Fonte Quelle, ou seja, a Fonte dos Logia, dos
ensinamentos e das parábolas (discursos) do Mestre.
.A cultura da ‘memória e da tradição’ – é própria da cultura bíblica,
prolongando-se no NT o que já sucedia no AT. O ‘Pai de Família’ em casa,
tal como o Mestre na ‘Escola’, prolonga a traditio recebida, fazendo dela
um elemento fundamental da herança bíblica. Alguém novo – como sucede
com Jesus – não apenas prolonga e dá continuidade à tradição recebida (o
AT, à luz do qual a sua vida é compreendida), mas também inaugura uma
forma de transmitir e dar continuidade a essa tradição, acrescentando uma
nova forma de Traditio. Com a Traditio, Ele ensina e à volta d’Ele forma-
se uma nova Traditio.
6. A tradição pré-pascal à volta de Jesus
O traço mais caraterístico de todos os livros do Novo Testamento,
designadamente nos Evangelhos, é a tarefa primordial que é atribuída à
pessoa de Jesus; ele está no centro de todas as narrativas evangélicas
(incluindo o IV Evangelho). Efetivamente, os textos evangélicos são
escritos para apresentar Jesus, já que todos os demais participantes nas
narrativas são sempre figuras secundárias.
Para a compreensão da traditio que se forma à volta de Jesus é
necessário ter presente alguns elementos que são caraterísticos dessa
tradição. Antes de mais, trata-se de uma experiência feita e vivida na
companhia do Mestre. Jesus é um Mestre diferente:
.é itinerante – os discípulos acompanham-no e fazem a experiência
não apenas do seu ensino, mas também do seu ‘modus vivendi’.
.Ele ensina a partir de si mesmo, não a partir de uma ‘escola’
precedente, ou seja, ele não dá continuidade a outros Mestres, mas
apenas à Palavra (que n’Ele é muitas vezes designada como ‘a
vontade do Pai’);
.Ele não segue ninguém, apenas segue a vontade do Pai e vem para
anunciar a Boa Nova;
.A sua mensagem não tem por centro a Torah, mas o anúncio do
Reino, um tempo novo de conversão e salvação.

36
.Há no NT um conjunto de alusões a uma ‘Traditio’ à volta da Tora:
At 22,3s (Paulo faz-se eco dessa Tradição: a Lei de nossos Pais); At
28,17 (em vez de nomos fala de tois  dos Pais); o mesmo temos
em Gal 1,14;
.Os Evangelhos Sinóticos fazem menção da mesma tradição; Mc 7 e
Mt 15 aludem à ‘Tradição dos Antepassados – he paradosis ton
presbiteron; O verbo que aparece é o mesmo que se usa no
Judaísmo: paradidonai (Mc 7,13: transmitir; alusão ao tratado Aboth
da Mishná);
5.1 Esta será também a forma de dizer e de retomar aquilo que significa
a fé em Jesus. Os textos paulinos aludem constantemente a essa
forma de expressão, o conteúdo daquilo que se acredita acerca de
Jesus57. Neste sentido, embora crítico para com o Judaísmo, o
cristianismo das origens tem consciência de que possui também
uma ‘mensagem – uma traditio a transmitir e que esta traditio é,
essencialmente, a pessoa de Jesus, centrada na sua ‘morte e
ressurreição’.
5.2 À semelhança do Judaísmo, trata-se também, nas primeiras décadas,
de uma ‘Tradição Oral’. De facto, por vezes, Paulo fala da tradição
judaica para lhe contrapor a ‘tradição de Jesus’, ou seja, ‘aquela
forma de vida que decorre da fé e do acreditar em Jesus’. A forma
do credo é a mesma, mas a ‘substância’ do que se acredita é
diferente. A Traditio do Judaísmo está centrada na Torah; a Traditio
cristã está fixada totalmente em Jesus e é proposta mais numa
perspetiva de relação com Jesus do que numa forma ética de vida.
Por isso, se diz: ‘viu e acreditou’ (Jo 20,8); ‘se lhes abriram os olhos
e reconheceram’ (Lc 24, 31); ‘a manifestação a Tomé’, toda ela
feita da experiência sensível (Jo 20,27-29).
Podemos dizer que esta Traditio não contém fórmulas ou
afirmações; ela consubstancia-se na experiência com o Mestre; a
sua transmissão não é apenas ‘verbal’, não é normativa, não incide
sobre o fazer; o seu centro está exatamente na Pessoa do Mestre; é o
contacto, a proximidade ao Mestre que dá fidelidade a essa Traditio.
Esta Traditio tem um tempo para se consubstanciar; é
particularmente João, no IV Evangelho, que nos fala desta diferença
de tempo entre a vivência e a afirmação da fé; são diversas as
formas de acentuar essa distância cronológica entre a experiência
com Jesus e o ‘acto de acreditar’. Vejamos: ‘o Espírito ainda não
tinha sido dado…’; ‘Jesus ainda não tinha sido glorificado’; Jesus
ainda não ‘tinha sido elevado da terra’; ainda não podia ‘atrair a si

57
Cf. B. GERHARDSSON, Prehistoria de los Eangelios, col. Lire la Bible/48, Paris, 1978, 27-28.

37
todos os homens’; ‘os discípulos ainda não tinham compreendido’,
etc. (Jo 7,39; 12,16.32; 16,13).
.Esta mesma perceção entre o ‘tempo da experiência com o Mestre’
e o tempo do acreditar ‘e testemunhar esse acreditar’ está também
presente nos Sinóticos. Neste aspeto, importa ter presente a missão
dos discípulos: eles são as testemunhas de tudo o que ‘aconteceu na
Judeia a começar pela Galileia’. A presença dos discípulos na Igreja
das origens é bem elucidativa disso mesmo: Pedro, Tiago, João, os
‘Doze’ são bem conhecidos, são uma espécie de Heróis das origens
e é sobre eles que recai a certeza da fé que é professada.
6. Da traditio afirmada e testemunhada à traditio escrita:
A primeira questão que devemos colocar e perguntar: Qual o
primeiro núcleo desta ‘traditio’ à volta de Jesus? Como nos
certificarmos dela? Em que consistia? Há formas narrativas (escritas)
que possam documentar essa traditio original e ‘originante’ acerca
de Jesus?
Aqui, temos de conjugar os dados dos Evangelhos com os
Escritos que antecedem a redação sinótica. Para além de Paulo, os
textos mais antigos que remontam às origens da Igreja (Atos…)
parecem mostrar que essa Traditio começa por se agregar:
a) À volta das narrativas da paixão – ressurreição; temos em conta
que o ‘credo’ original e originante centrava-se aí;
b) À volta dos Logia de Jesus;
c) À volta dos semeia – sinais dados pelo Mestre que confirmam as
suas palavras, tal como os sinais dos discípulos confirmam a sua
fé no Mestre.
Há aqui uma relação intrínseca entre estes três elementos; é
difícil demonstrar (e as opções dos AA variam) qual deles é
primeiro, a não ser pelo desenvolvimento que cada um deles assume
na narrativa evangélica, mostrando assim que uns já estavam mais
consolidados que os demais. Quase sempre a opção vai para os textos
da paixão, ou seja, uma espécie de catequese sobre a Paixão do
Mestre. Teríamos desta forma uma espécie de ‘Catecismo’ para o
anúncio, tal como, por exemplo, podemos verificar em At 2, 22-23.
O ‘acontecimento’ pascal era anunciado e por isso, pode-se então
dizer que ele era conhecido e acreditado.
É importante salientar que esta traditio à volta do Mestre
estava já documentada pelos textos do AT, mormente pelos Profetas
e pelos Salmos (a não alusão à Lei – Torah pode ter aqui a sua
justificação: A Lei era a traditio dos Judeus; Jesus é, agora, a traditio
anunciada e testemunhada pela Igreja nascente).

38
Existiria já uma traditio acerca de Jesus, testemunhada na
atividade missionária dos Discípulos antes da Páscoa? De facto, os
Evangelhos Sinóticos documentam o envio e essa atividade dos
Discípulos: Mt 10,1-40; Mc 6,7-13; Lc 9,1-6.10; 10,1-20. Este
‘anúncio’ tem traços pré-pascais. Não se trataria, verdadeiramente,
de um anúncio centrado em Jesus – não seria ainda uma traditio
cristológica, como depois o será a da Igreja das origens, em
Jerusalém:
.o seu núcleo fundamental estaria no anúncio do ‘Reino’;
.teria como objetivo uma radicalidade que depois não se
manterá com a mesma intensidade;
.tem apenas ainda como horizonte o povo de Israel e não uma
dimensão universal, alargada para além das fronteiras do povo
de Israel.
Nesta primeira formulação de uma traditio à volta do Mestre, onde
aparecem já os Discípulos como enviados – à semelhança do que fazia o
Mestre, o anúncio ainda não está centrado na pessoa do Mestre, mas sim na
‘imitação’ do Mestre, fazer o que o Mestre fazia e ser enviado por Ele. A
razão do anúncio é porque o Mestre ‘envia’ e não como expressão do
‘acreditar’ no Mestre. Tal como sucedia entre os Rabinos que diziam que
os ‘discípulos deviam responder com as palavras do Mestre para assim
traduzirem a sua pertença à Escola do Mestre’58, os Discípulos de Jesus vão
reproduzir as palavras do Mestre. Embora a tradição rabínica aluda a esta
prática, ela é muito anterior ao período rabínico, pois já os textos egípcios
se referem a ela quando dizem: ‘E bom que um filho (= aluno, discípulo)
saiba responder com os ditos do seu Mestre’ (cf. também Ecl 8,8s). A
tradição rabínica, contemporânea do NT e herdeira dos mestres
‘Sapienciais’ mostra-nos bem como essa herança se continuava.
7. Da traditio à volta do Reino para a traditio acerca do Mestre:
Os primeiros elementos constantes da narrativa evangélica têm como
centro não a pessoa, mas os ‘ditos’ de Jesus. São estes ditos que movem os
discípulos e atraem as multidões que o rodeiam: ‘Nunca ninguém falou
como Ele’. Além disso, são ainda testemunhos disso as constantes
interpelações de que Jesus é alvo quando consultado pelos doutores da Lei
ou pelos Fariseus para se pronunciar sobre a interpretação da Lei. Significa
que a sua palavra é tida em consideração e estava sujeita a ser relida e
interpretada. O Seu ‘dizer’ não era casual nem passava despercebido.
Assim, podemos dizer que antes de uma traditio à volta do Mestre,
temos uma traditio centrada nas Palavras do Mestre e no anúncio do

58
Aboth 1,16; Ber 27b; Suk 28a; Taan 7b.

39
‘Reino’ que o Mestre anunciava. Trata-se do núcleo central do seu
‘ministério de anúncio’. Facilmente se verifica que diversas Parábolas mais
não são do que o desenvolvimento desta traditio à volta do Reino, razão
que aponta para a formulação de um núcleo de textos sobre o tema do
Reino, os Logia. Este anúncio do ‘Reino’ estava intimamente associado e
convidava à conversão e à penitência. Este anúncio devia ser feito ao povo
de Israel, o que suscita a reação hostil, à semelhança do que sucedera com
João Baptista e os seus seguidores59.
Há um conjunto de ditos, de lógia, que se integram bem neste
ambiente do anúncio do Reino e que, ao mesmo tempo, explicitam bem a
condição dos ‘enviados’ em contexto pré-pascal: Lc 6,20-21; 10,23-24;
12,54-55. O mesmo sucede com algumas das parábolas que mais não são
do que ‘desenvolvimentos’ deste anúncio do Reino.
Podemos resumir, de forma muito breve, esta questão da seguinte
forma:
.temos uma traditio pré-pascal acerca das Palavras de Jesus, bem
explícita no envio dos discípulos (Mt 10,5-15; Mc 6,7-11) e na vida
do grupo à volta de Jesus, especialmente no destaque que é dado ao
grupo dos que estão mais perto de Jesus (Mt 17,1; 26,37) e que no
livro dos Atos são apresentados como as ‘colunas’ (Gl 2,6). .
Como diz Schürmann, “os inícios da tradição dos lógia deve procurar-se
no grupo dos discípulos imediatos de Jesus e, por isso mesmo, no próprio
Jesus”60.
Existe uma tradição já formada de ‘palavras’ antes da Páscoa,
embora isso não se possa afirmar acerca da ‘tradição narrativa”.
Ora, o que verificamos é que há uma relação íntima e profunda entre
as ‘Palavras’ do Mestre e a sua pessoa, pelo que se tornava impossível
transmitir as ‘Palavras’ sem haver uma referência, uma relação íntima com
a pessoa de Jesus. Ao anunciar as ‘Palavras’ não podia ficar de fora Aquele
que estava na origem desses mesmos ditos, uma vez que aqueles que
escutam tais anúncios não deixariam de perguntar quem os fez, quem
certifica e testemunha o que se anuncia, quem dá força e constitui a fonte
desses anúncios. Assim, começa a nascer a forma narrativa de tais
‘Palavras’, pois o seu anúncio pressupõe uma fonte de onde nasce a
narrativa (Mc 2,17.27). O anúncio do Reino pressupõe gestos e atitudes de
Jesus, o seu contacto com os pecadores, os doentes, a sua proximidade aos
marginalizados do Judaísmo, pois eram tais gestos que davam verdade e
novidade ao anúncio do Reino que eram para esses. Embora as tradições

59
Cf. Evangelios Sinóticos y Hechos de los Apóstoles, pp. 29-30.
60
H. SCHÜRMANN, “Die vorösterlichen Anfänge der Logientradition”, in Traditiongeschichtlichen
Untersuchungen zu den synoptischen Evangelien, Düsseldorf, 1968, 63.

40
tenham começado, certamente, pelo anúncio das palavras, logo estas
tinham de ser seguidas pela narrativa da vida e da pessoa do Mestre.
8. Da traditio à comunidade pós-pascal:
À semelhança do que sucedia no Judaísmo, a Comunidade que
conserva os ditos e a memória do Mestre tem uma continuidade intrínseca a
si mesma: é formada pelos mesmos membros que vivem e transmitem o
mesmo ‘património’. Assim, da comunidade pré-pascal à comunidade pós-
pascal apenas decorre a experiência da Páscoa com o Mestre e da Páscoa
do Mestre, num clima de fé que tem como fundamento o AT: ‘Ele é aquele
que dá sentido e cumpre as profecias’. Assim, podemos perguntar:
O que sucede com a ‘traditio’ que se tinha iniciado à volta das
palavras do Mestre?
Penso que sucedem duas coisas; por um lado, essa traditio vai ser
transmitida com mais força pois ela confirma a fé dos discípulos; ela é a
herança que testemunha a identidade dos discípulos. Por outro lado, essa
‘traditio’ vai ser reinterpretada, vai readquirir uma nova dimensão que
ultrapassa já a herança recebida, por trata-se da traditio e daquilo que ela
significa e representa para a própria comunidade. É assim que a traditio
evolui do Mestre e do Profeta (que era Jesus) para o Senhor ressuscitado e
presente entre os seus. Já não basta recordar as palavras, mas sim a pessoa
e o que essas Palavras agora significam. Assim, já não se trata de repetir o
passado, mesmo quando se recordam as palavras recebidas; As Palavras
agora têm um novo significado; já não são as Palavras que ele mandou
anunciar, mas é Ele mesmo que se torna anúncio. O passado é agora
atualizado, é-lhe dado um novo significado e assume uma nova dimensão.
De facto, a traditio não nasce na Páscoa, nem no Pentecostes; ela
assume um novo significado à luz da Páscoa e do Pentecostes mas é aquela
que se vincula ao passado e dele recebe sentido.
Conhecemos, nas origens cristãs, Grupos e movimentos que se
fixaram no passado, no Jesus judeu, apenas Mestre itinerante, sem qualquer
dimensão recebida da Páscoa, do Mistério pascal (os Ebionitas e outros
Grupos judeo-cristãos). Essa vinculação ao passado ficou prisioneira do
próprio passado, acabando a tradição por ficar morta, sem sentido e sem
enriquecimento da própria experiência pascal dos discípulos. A traditio à
volta de Jesus não pode ficar retida no passado.
Assim, da experiência vivida com Jesus os discípulos dão
testemunho, mas o seu testemunho é concretizado em situações
determinadas, testemunhado pela vida e pelas palavras. Estas, por sua vez,
são o resultado de uma nova experiência, num novo contexto e até
provavelmente num novo espaço cultural. Assim se explicam diversas
questões que têm a ver com a singularidade da língua, da comunicação,
resultando da passagem de uma cultura semita para a sua real vivência num

41
espaço de cultura helenista. Assim, podemos narrar o percurso da traditio
da seguinte forma:
.a experiência com o Mestre por parte dos discípulos;
,atualização da experiência vivida pelo acontecimento pascal;
.a inserção da Comunidade crente num espaço e numa cultura
concreta;
.redação da traditio na sua forma escrita – Evangelho.
São vários os fatores externos que influenciam também a transmissão
da traditio evangélica e contribuem para a sua expansão:
.a passagem para uma língua diferente (aramaico-grego), com suas
expressões próprias, sua gramática, sua forma de dizer;
.a fundamentação veterotestamentária nos LXX e não na Bíblia
hebraica, com a compreensão do mundo bíblico sob a perspetiva da
cultura grega. Isto torna-se mais evidente nas comunidades da
diáspora judaica. Por exemplo, em Marcos, quando fala do divórcio,
está presente não apenas a tradição judaica de o homem abandonar a
mulher (Mt 5,31-32; 19,9), mas também o costume greco-romano da
mulher abandonar o marido (Mc 10,11-12);
.a formação de comunidades cristãs em grandes metrópoles com seus
problemas específicos, requer uma nova orgânica eclesial, uma nova
estrutura da comunidade;
Neste contexto, podemos sintetizar desta forma:
Temos uma tradição viva (na sua forma de testemunho e oral) que se
fundamenta em testemunhos, que se atualiza e adapta às novas
comunidades. Esta traditio ganha um dinamismo próprio a partir da
comunidade pós-pascal. Esta Comunidade, já organizada a partir
daqueles que são os ‘testemunhos’ escolhidos, que são aqueles que
‘tinham estado com Jesus a partir do Batismo de João até ao dia em
que Ele foi elevado de entre nós’ (Act 1,21-22).
Aqueles que anunciam Jesus fora da Palestina, à semelhança com o
que sucedia no Judaísmo do tempo, têm uma grande preocupação e
prioridade em manter os vínculos, a unidade com aqueles que em
Jerusalém eram as ‘testemunhas de antemão escolhidas’. Assim faz Paulo,
assim fazem os outros Apóstolos. Esta relação com Jerusalém, além de
testemunhar a tradição judaica é também uma forma de dar ‘historicidade’
à tradição recebida e transmitida nas Comunidades. Não se trata de uma
simples visita, mas antes de uma relação de continuidade e historicidade na
traditio. Em Gal 1,18, referindo-se a esta ‘subida a Jerusalém’, Paulo usa o
verbo historêsai que, segundo Bauer61, reforça o sentido desta relação de

61
BAUER, Wörterbuch zum euen Testament, Berlin, 1963, traduz por ‘visitar com o fim de aprender’.

42
continuidade da traditio de que Pedro era o garante. Para além deste verbo,
tal como o fazia a tradição judaica, usa as formas clássicas que condensam
e expressam essa transmissão, como sucede em 1 Cor 15,3, onde se destaca
que o núcleo central da fé está em ‘Cristo que morreu pelos nossos
pecados, segundo as Escrituras … e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as
Escrituras’ (1 Cor 15,3-4). O mesmo processo sucede quando se refere à
Eucaristia (1 Cor 11,23).
9. O uso das Escrituras:
Um dos elementos fundamentais a ter em conta na construção da
Tradição Sinótica é o uso e o recurso ao AT. Trata-se não apenas de ter em
conta o seu uso por parte dos Autores dos Evangelhos Sinóticos, aliás
muito abundante e diversificado, mas também de prestar atenção à forma
como os textos do AT são lidos e enquadrados nos Evangelhos. O recurso
às Escrituras não se faz apenas pelos textos. Há também o enquadramento
‘tipológico’, retomando figuras do AT, cenário, alusões, etc.
Um dos textos mais explícitos, quase paradigmático para todo o
processo do NT, é aquele que nos é apresentado em Lc 24, no episódio dos
Discípulos de Emaús: Lc 24,25-27 (cf. Jo 5,39; At 8,30-35). Por aqui
podemos verificar que o recurso às Escrituras (AT) era o primeiro suporte
da messianidade de Jesus e elas davam sentido à vida e à missão do Mestre.
Como Judeus que eram, a Escritura era o grande suporte da fé dos
discípulos no Mestre. No entanto, é preciso ter presente que o modo como
muitos dos discípulos (talvez exceto Paulo) e dos seguidores de Jesus
tinham acesso à Escritura não era uma forma erudita, uma forma direta e
pessoal de acesso. Conheciam as Escrituras através do serviço sinagogal,
mediante a explicitação dos Mestres e dos ‘tradutores – Meturgeman – que
dirigiam a palavra ao povo e explicitavam o sentido dos textos. O
Conhecimento da Escritura era mediado pela versão sinagogal e pelas
interpretações que aí eram feitas. Em muitas Comunidades cristãs esse
acesso ao AT foi mediado pela versão dos LXX, em língua grega, tendo já
presente as perspetivas teológicas a que essa Tradução obedece.
Assim, nesta leitura das Escritura o acontecimento pascal tem uma
função determinante; é ele que vai iluminar e ‘abrir’ o sentido da Escritura.
‘Abrir o sentido’, ter acesso à Escritura era um processo muito importante
no Judaísmo. É o ‘Espírito Santo’ quem abre a mente e o coração ao
sentido da Escritura. O mesmo se diz no NT: Jesus promete o Espírito
Santo para que Ele abra o coração dos crentes ao sentido da Escritura e
assim possam compreender que elas só têm sentido em Jesus.
Por isso, ao acreditarem em Jesus, os seus seguidores buscam
encontrar no AT o fundamento daquilo que acreditam e compreender a
missão daquele que é ‘acreditado’ à luz da Escritura. Deste acreditar nasce
então o processo de escrever, de testemunhar e transmitirem o seu

43
testemunho. O recurso à Escritura é um processo de historicizar (dar
sentido e dimensão ao testemunho, fazer dele ‘história’, acontecimento)
que antecede o processo de registar na História (escrever) o testemunho
recebido e transmitido. Tudo isto se faz num contexto muito próximo e
muito semelhante ao que sucede no Judaísmo. Assim, todo aquele que
regista e testemunha a sua fé (Evangelhos) tem de ser também um
especialista, um conhecedor do Judaísmo, já que a semelhança dos
processos é profunda. Deste modo, a Comunidade pós-pascal acredita Jesus
tendo como base desse acreditar o AT e também os ‘sinais’ dados pelo
Mestre.
Ao debruçar-se sobre a Escritura para fundamentar a fé no Mestre, a
Comunidade cristã recorre a um processo de derash (buscar, interpretar,
procurar o sentido) no que diz respeito ao AT, seguindo, tal com o fazia o
Judaísmo, 2 princípios básicos:
.a unidade de toda a Escritura (a Escritura é única e nela perdura a
verdade que se explicita nas suas partes;
.há que explicar qualquer texto da Escritura mediante outros textos
da Escritura.
Como facilmente se constata, estes princípios estão pressupostos nos
autores e nos escritos do NT que, sem temores nem receios, recorrem ao
AT e assim fundamentam a fé em Jesus. Todavia, nem sempre essa
fundamentação é feita da mesma forma. Importa ter presente que muitas
vezes o recurso ao AT é apenas feito de forma abrangente, talvez resultante
daquilo que eram os processos de acesso à Escritura através da leitura e do
serviço sinagogal. Os processos hagádikos e halákicos, tão comuns à
exegese judaica do tempo, estão aí bem presentes62, o que significa que os
autores do NT conheciam-nos e recorreram a eles.
O acontecimento de Jesus que mais fundamentação do AT carecia e
apresenta é certamente o ‘mistério pascal’ (morte e ressurreição). Os ecos
disso são inúmeros, tanto nos Evangelhos como também nos Atos dos
Apóstolos, mormente nos chamados ‘Credos’ da Igreja das origens. Aliás,
as alusões ao AT nos relatos da paixão são uma constante, mesmo que nem
sempre sejam citações explícitas. As alusões podem assumir um caráter
genérico ou mesmo uma espécie de pré-figuração tipológica, mormente à
figura de Moisés, Isaac, Jeremias e outros.

62
Pode-se verificar isso no conjunto dos procedimentos a que aludo no meu livro Hermenêuticas
Bíblicas, UCE, Lisboa, 2011.

44
3. A ‘redação dos Sinóticos’
O momento mais importante para a questão Sinótica tem a ver com a
redação dos Evangelhos e com o processo de ‘relação’ entre os textos que
recebemos. A passagem da traditio oral para a sua forma escrita representa
não apenas um processo de maturidade dessa mesma traditio, mas também
um terminus de chegada, uma etapa de fixação que, certamente, continuará
a ser enriquecida com outros elementos complementares, mas que a partir
desse momento assume formas mais estáveis no seu processo de
transmissão.
Assim, podemos dizer que os Evangelistas recolhem e transmitem a
tradição evangélica que existia nas Comunidades acerca de Jesus, sendo
também verdadeiros autores (eles emprestam ao texto muito daquilo que
cada texto é em si mesmo e um pouco da sua própria identidade, pessoal e
cultural). Os Evangelistas não são apenas meros colectores de textos ou dos
lógia que existiam acerca de Jesus. O seu trabalho vai para além de
colecionadores de documentos históricos; a sua missão envolve-os na
própria narrativa que neles é também expressão da sua própria fé e do seu
acreditar em Jesus. Por isso, a Igreja assume estes três momentos ou três
etapas que a investigação atual define e apresentam como tendo sido
aquelas que o processo de redação dos Evangelhos conheceu:
.A experiência com o Mestre (ou com quem testemunha essa
experiência) – a apostolicidade dos Evangelhos;
.A vivência do kerygma nas Comunidades eclesiais que o
testemunham e anunciam – tradição oral – mediante fórmulas de fé,
muito sucintas e expressivas;
.A passagem dessa tradição oral à sua forma escrita, seguindo um
processo sequencial que se vai enriquecendo também através da
vivência e do testemunho (em contexto concreto).
Podemos então perguntar, tendo em conta também o Magistério da
Igreja: Qual a missão e a atividade dos Evangelistas?
São diversas essas tarefas que em nada diminuem ou minimizam a
função dos redatores, considerando estes tanto individualmente como
expressão da fé vivida nas Comunidades. Assim, os Evangelistas:
.selecionam da tradição oral ou os testemunhos escritos (Lc 1,1-4; Jo
20,30-31; 21,25);
.realizam sínteses sobre os dados recebidos, enquadrando-os em
contextos e em momentos específicos: Mt 5-7 (um bom exemplo do
trabalho do redator que organiza um conjunto de temas que o Mestre
ensina aos discípulos, ordenando os materiais recolhidos);
.Adaptam e explicitam a ‘tradição recebida’ às situações das diversas
Igrejas, tomando uma mesma tradição (fonte) e configurando isso à
45
vida das Igrejas que vivem em situações diferentes: Mt 18,12-14 e Lc
15,4-7;
.recolhem a mesma tradição (a parábola da ovelha perdida é um bom
exemplo) mas dão-lhe forma diferente para assim a tornar mais
significativa para as respetivas comunidades. Outro exemplo,
também claro, é o texto das Bem-aventuranças; o texto do Pai-Nosso,
etc;
.Conservam o estilo da proclamação, resultante de muitos fatores
locais, dos destinatários diretos da mensagem. Como não se tratava
de dar informações históricas nem de expor conceções teóricas, mas
antes o testemunho da fé, essa preocupação é notória nos textos
evangélicos, marcando a sua singularidade.

3.1A natureza dos Evangelhos Sinóticos:


A primeira constatação que queremos pôr em evidência é: Os
Evangelhos são textos narrativos que apresentam a vida de Jesus, o seu
ensino e a sua mensagem. Vida e mensagem são aqui indissociáveis. Por
isso, importa ter presente a sua identidade literária; os Evangelhos não são,
na sua origem, textos dogmáticos, não pretendem definir dogmas nem
fechar em si a compreensão à volta de Jesus. Eles pretendem sim
testemunhar uma experiência partilhada com Jesus e acreditada como
sendo Ele o messias, mediante a vivência do Mistério pascal. Neste
contexto, importa ter presente que a Escritura é um texto plural, muito
diversificado; há nela textos argumentativos (Rm 4,1-17), exortativos (Rm
12,1-21), apelativos (Ex 20,1-17), poéticos (muitos dos Salmos), oráculos
de vocação (Is 6,1-9 e outros), intimistas de confissão (as Confissões de
Jeremias), etc. Mas, tanto no AT como no NT, a grande maioria dos textos
são narrativos. Ora, a narrativa toma como núcleo fundamental a vida de
alguém ou um acontecimento, à volta do qual desenvolve uma sequência,
aquilo a que poderíamos chamar de ‘trama’ e com isso tece uma história.
Não a cria, mas descreve-a; não a inventa, mas narra-a; não a forja, mas dá-
lhe vida e dinamismo.
Ora, nos Sinóticos, a ‘trama’ narrativa é semelhante; tem os mesmos
contornos, mesmo que assuma singularidades próprias; os personagens são
os mesmos (Jesus e os discípulos, os habitantes da Galileia e da Judeia, os
fariseus e autoridades judaicas, Pilatos, os soldados, a multidão, alguns
doentes e marginalizados da sociedade). Este ‘trama’ narrativo tem um
começo e um fim, inicia-se na Galileia e termina em Jerusalém (uma
geografia quase idêntica e unitária). Tem um desenvolvimento muito
próximo nos três e com o mesmo ritmo sequencial (o eco popular da
mensagem, a incompreensão, as hostilidades, o confronto com os grupos do
judaísmo, a boa aceitação popular). O desenlace final é o mesmo para os 3

46
Sinóticos: a morte de Jesus na cruz (não há qualquer diferença) e a
ressurreição.
Esta narrativa conhece em Marcos, seguramente, a sua primeira
etapa; trata-se da sua forma mais breve e mais antiga, o que em parte pode
justificar a chamada de atenção, logo no início, para o anúncio do ‘Reino’.
Mt e Lc conheceram direta ou indiretamente esta narrativa de Marcos e
dela se serviram para fazerem também a sua narrativa, mesmo que tenham
recorrido a outras fontes (tal com o refere Lucas) e tendo como
destinatários comunidades diferentes e em contextos diversos. Todos
usaram coleções de ‘ditos’ (Logia) de Jesus que não estavam em Marcos e
que eles distribuíram e enquadraram na narrativa (na ‘trama’) que
receberam de Marcos. Tanto Mt como Lc, mesmo não recebendo de
Marcos, enquadraram esse conjunto com narrativas alusivas às origens e à
infância de Jesus, tendo um, Mateus, como judeu que era, subordinado
essas narrativas da infância à autoridade e presença de José, enquanto
Lucas o faz, mas ligado à pessoa de Maria. Neste sentido, Mt e Lc são mais
discursivos que Marcos, acrescentando ainda os testemunhos da
Ressurreição mais desenvolvidos que Mc, que terminaria o seu texto em
16,8 (Mc 16,9-20 tem um sentido explicativo que não parece enquadrar-se
bem com a lógica do relato até 16,8).
3.2Os Evangelhos são narrativas teológicas:
Os Evangelhos não são narrativas de ficção nem crónicas
históricas do passado, como por vezes e durante muito tempo eram
apresentados. Importa precisar que o ‘género evangelho’ comporta em si
uma especificidade própria. De facto, aquilo que sobressai na sua narrativa
é o destaque que é conferido à vida de Jesus como atuação de Deus e
plenitude do AT. Os Evangelhos são textos religiosos que fundamentam a
sua narrativa na fé no Deus da Bíblia e em Jesus Cristo. Neste aspeto,
podemos dizer que os evangelistas situam-se na tradição historiográfica
judaica que descreve a ação de Deus na História, tal como ao longo do AT
sucede quando os acontecimentos são contextualizados num plano de
salvação e de relação entre Deus e o povo de Israel. Os Evangelhos
apresentam-nos a ‘trama’ de Jesus que desemboca na cruz e que, ao mesmo
tempo, afirmam a fé no ressuscitado. É esta fé que ilumina a ‘trama’ de
toda a narrativa, a luz da Páscoa ilumina todo o relato evangélico e é face a
esta luz que a própria Páscoa de Jesus ganha sentido. Podemos dizer, tal
como Bultmann, que os Evangelhos estão escritos à luz da Páscoa, mas
importa não esquecer que essa Páscoa incorpora a cruz; o Jesus
ressuscitado não é outro que o Jesus crucificado.
A narrativa evangélica incorpora em si dois momentos, fazendo deles
um só: o passado de Jesus que leva ao presente do Ressuscitado e o
presente do Ressuscitado que ilumina o passado de Jesus. No ato da

47
transmissão das ‘tradições’ à volta de Jesus estes dois momentos iluminam-
se um ao outro. É em função deste dinamismo que os evangelistas
selecionam e transmitem os ‘materiais’ disponíveis e recebidos da tradição,
elaboram-nos e organizam-nos. Neste processo como que entra também o
leitor crente que volta a dar vida e atualiza o ‘kerygma’ recebido. Assim,
neste processo de transmissão estão presentes três preocupações
simultâneas:
.evocar de forma viva a história de Jesus, vinculando as palavras e as
obras nessa evocação;
.atualizar para o presente as tradições recebidas; o Jesus do passado é
recolocado no presente, pois o Jesus do passado é o mesmo que o
Cristo ressuscitado;
.mostrar a relação constante com a Escritura, pois a ‘tradição’
recebida é reinterpretada à luz do AT (seguindo os métodos e
processos da própria exegese judaica).
3.3Os Evangelhos não são crónicas, embora se fundamentem na
História:
Os Evangelhos não são relatos históricos nem crónicas do
passado; também não são biografias como por vezes se pensa: não
descrevem o caráter do personagem central, nem a sua evolução, nem todos
os detalhes da sua vida tendo em conta a sua realidade familiar. Na época
moderna, com o regresso à história antiga e a curiosidade que daí decorre,
muitos estudiosos não foram capazes de compreender a ‘identidade’
específica do género ‘evangelho’ ou, então, sentiam-se frustrados porque
não era possível aceder a todos os dados pessoais que cada um imaginava
dever existir. Ora, muitos desses dados não constam nos Evangelhos: como
decorre a relação de Jesus com seus familiares (Mc 3,21); há rutura entre
Jesus e o clã familiar? Tinha João Baptista dúvidas acerca da identidade
messiânica de Jesus quando lhe envia emissários (Mt 11,2-5)?
Face a estas e muitas outras questões, a investigação atual considera
injustificado algum ceticismo que nos inícios do séc. XX se tinha colocado
acerca do valor histórico dos Evangelhos. Hoje aceita-se que a tradição
teve sempre a preocupação de assegurar a realidade histórica acerca de
Jesus, tendo em conta que não estamos perante obras de história nem de
textos que foram elaborados de acordo com os critérios da crítica histórica
moderna. Os Evangelhos mostram que há uma preocupação constante que é
a de garantir um vínculo permanente à história passada de Jesus. Não há
anacronismo histórico nos Evangelhos, mesmo que a narrativa não obedeça
ou siga os nossos critérios. Há, nos Evangelhos, um fundo histórico muito
consistente: nomes de pessoas do tempo (Caifas, Pilatos, Herodes e
herodianos… os nomes e familiares dos discípulos; os nomes de alguns dos
miraculados); a dominação romana da Palestina; a realidade da Galileia e

48
da Judeia; a tensão com o samaritanismo; a centralidade do templo; os
grupos judaicos de então; as expetativas messiânicas que eram uma
constante e que podemos comprovar por outros escritos, etc. Não sendo
‘vidas de Jesus’ nem crónicas históricas, os Evangelhos têm um fundo
histórico, apesar de não apresentarem o rigor nem obedeceram aos critérios
redacionais das biografias modernas. No entanto, importa ter presente,
apesar disso, que não dispomos de tanta informação histórica acerca de
qualquer judeu da época como dispomos acerca de Jesus. Muitas daquelas
que eram as tensões e conflitos dentro do judaísmo de então estão bem
presentes nos Evangelhos e podemos encontrar aí dados seguros sobre as
grandes questões deste período.
3.4A finalidade dos Evangelhos:
De forma breve e tendo em conta os textos que a ‘tradição’ nos
legou, podemos sintetizar em três os grandes objetivos dos Evangelhos, a
saber:
.Despertar e fortalecer a fé das ‘Comunidades cristãs’63;
.Fazer da vida de Jesus o paradigma para compreender as suas
palavras, a sua mensagem;
.Oferecer uma visão equilibrada, tanto literária como teológica, da
pessoa e obra de Jesus assim como da vinculação dos discípulos com
ele (garantia da fidelidade e apostolicidade do kerygma narrado).
3.5As Fontes para o estudo dos Sinóticos:
Os textos evangélicos, para além do kerygma recebido da
Comunidade, serviram-se de outras fontes e, nós próprios, quando
queremos estudar e compreender os Evangelhos, precisamos de conhecer o
mundo do tempo. Assim, há que ter em conta outros textos que nos ajudam
a compreender este período. Temos:
.A literatura judaica do tempo: Flávio Josefo, os livros dos
Macabeus;
.Os escritos de Qumran;
.A literatura apócrifa e pseudo-epigráfica;
.A literatura rabínica e aqui realço a importância da Mishná, já que é
o texto que veicula e guarda a tradição jurídicas do período de Jesus;
.O Antigo Testamento no Novo Testamento – sua releitura e
compreensão da vida de Jesus a partir da Tradição.
3.6Como se constitui a mensagem dos Evangelhos:
As origens da tradição à volta de Jesus remontam à experiência
dos discípulos com o Mestre nos caminhos da Palestina; da experiência

63
Cf. Cf. Evangelios Sinóticos y Hechos de los Apóstoles, pp. 48-50.

49
com o Mestre nasce a tradição sobre o Mestre, ou seja, da experiência pré-
pascal à fé pascal no Senhor.
.Como primeiros ecos de uma tradição acerca de Jesus temos: ‘O
Profeta’ (Mc 6,15 par; 8,28). Ele mesmo se apresenta como ‘Profeta’
(Mc 6,4).
.‘Mestre’ e ‘Profeta’ são dois traços em que convergem as
esperanças messiânicas do tempo, que não se contrapõem, mas
mostram como o judaísmo evoluiu da conceção da palavra profética
para a centralidade da ‘tradição da Torah’. Sabemos que os ‘Mestres’
da Torah também tinham traços proféticos, assim sendo entendidos;
tanto os profetas (no passado) como agora os Rabbis, todos eles
tinham discípulos e formavam ‘Escolas’. Conhecemos, pelos textos
de Paulo e da Mishná a existência de ‘escolas’ no período
intertestamentário.
.A Comunidade com os Discípulos (pré-pascal) à Comunidade dos
Discípulos (experiência pascal e fé pascal). Os núcleos ‘formativos e
formadores’ da Traditio sobre Jesus: Os LOGIA, os Semeia, as
Narrativas da Paixão.
.A Comunidade cultiva a ‘tradição das palavras do Mestre’, dando
assim origem à chamada Fonte Quelle, ou seja, a Fonte dos Logia,
dos ensinamentos e das parábolas (discursos) do Mestre.
.A cultura da ‘memória e da tradição’ – é própria da cultura bíblica,
prolongando-se no NT o que já sucedia no AT. O ‘Pai de Família’
em casa, tal como o Mestre na ‘Escola’ prolongam e dão forma
continuada à Traditio recebida, fazendo dela um elemento
fundamental da herança bíblica e da identidade de cada grupo.
Alguém novo – como sucede com Jesus – não apenas prolonga e dá
continuidade à tradição recebida (o AT, à luz do qual a sua vida é
compreendida e que Ele mesmo professa), mas também inaugura
uma forma de transmitir e dar continuidade a essa tradição,
acrescentando uma nova forma de Traditio, dando origem a uma
nova mensagem que se forma à volta d’Ele (Marcos não valoriza de
forma especial esta ‘novidade’ da tradição inaugurada por Jesus,
como o faz Mateus 5-7, quando destaca: ‘Ouviste o que foi dito aos
antigos…. Eu, porém, digo-vos).
3.7A tradição pré-pascal à volta de Jesus
Para a compreensão da traditio que se forma à volta de Jesus é
necessário ter presente alguns dos elementos que são caraterísticos dessa
tradição. Antes de mais, trata-se de uma experiência feita a partir da
companhia com o Mestre – é a apostolicidade dos Evangelhos. Isto é
singular em termos do Evangelho, já que Jesus é um Mestre diferente.

50
Marcos realça, de forma clara, essa diferença com algumas caraterísticas
que são comuns à tradição sinótica:
.é itinerante – os discípulos acompanham-no e fazem a experiência
não apenas do seu ensino, mas também do seu ‘modus vivendi’.
.Ele ensina a partir de si mesmo, não a partir de uma ‘escola’
precedente, ou seja, ele não dá continuidade a outros Mestres, mas
apenas à Palavra que é a missão que o Pai lhe confiou;
.Ele não segue ninguém, apenas segue a vontade do Pai e vem para
anunciar a Boa Nova; em Marcos, essa Boa Nova que é anunciada é
apresentada como sendo o ‘Reino de Deus’
.A sua mensagem não tem como centro a Lei, mas o anúncio do
Reino, um tempo novo de salvação. Marcos inicia o seu Evangelho
exatamente por aí: chegou um tempo novo – convertei-vos e
acreditai no Evangelho; chegou o ‘Reino’, um tema importante em
Marcos (1,14-15).
Os Evangelhos Sinóticos fazem menção de uma tradição recebida e à
qual Jesus dá continuidade; Mc 7 e Mt 15 aludem à ‘Tradição dos
Antepassados – he paradosis ton presbiteron; O verbo que aparece é o
mesmo que se usa no Judaísmo: paradidonai (Mc 7,13: transmitir). Na
tradição judaica, bem presente no tratado Aboth da Mishná, temos
exatamente o mesmo verbo, expressando os mesmos procedimentos e os
mesmos objetivos que agora aqui identificamos.

51
II – EVANGELHO DE MARCOS
Introdução:
O Evangelho de Marcos apresenta um conjunto de caraterísticas
muito próprias que fazem dele um texto muito singular; por um lado, é um
evangelho difícil de acompanhar e, por outro, é também um texto que teve,
ao longo da história, um itinerário também complexo, tanto em termos
litúrgicos como texto de análise e de compreensão. A sua inserção na vida
litúrgica é recente e a redescoberta da sua importância na ‘tradição’
evangélica, ou seja, a sua importância nas origens e na transmissão do
kerygma cristão só mais recentemente foi valorizada. Durante muito tempo,
da tradição sinótica (Mt, Mc e Lc), eram Mateus e Lucas que ocupavam a
primazia e as leituras de Marcos na liturgia, antes da reforma litúrgica do
Concílio eram muito poucas. É o Evangelho menos comentado pelos
Padres da Igreja e até ao séc. IX, na Idade Média, apenas encontramos um
comentador que dele se tenha ocupado: S. Beda, o Venerável.
No que diz respeito à estrutura do Evangelho de Marcos, temos,
antes de mais, de considerar o que é específico de um Evangelho; não se
trata de uma história nem de uma biografia de alguém. O Evangelho é
essencialmente um anúncio, tal como o termo o indica: ‘Boa Nova’. Mas,
trata-se de uma ‘Boa Nova’ que resulta de uma experiência vivida com o
Mestre e agora testemunhada. Marcos, foi o 1º Evangelho a ser escrito,
pelo que é de crer que é ao próprio Marcos que somos devedores deste
género literário que não tem paralelo nas literaturas do tempo, nem grega
nem romana, nem na região do Médio Oriente. Vejamos, por isso, alguns
elementos que são fundamentais para compreender Marcos, tal como o são
também para os outros 2 Sinóticos (Mt e Lc). Isto supõe, analisando os 3
Evangelhos, que há um fundo comum que todos eles partilham, embora
cada um empreste ao seu texto uma dimensão específica.
1. A geografia histórica de Marcos (e dos Sinóticos)
Iniciamos o nosso estudo de Marcos por abordar uma questão
que tem a ver com o contexto e o enquadramento do Evangelho. É um
elemento caraterístico da Traditio sinótica: a contextualização de cada um
dos Evangelhos. Cada um deles tem uma geografia própria do seu tempo.
Mateus apresenta apenas um itinerário de Jesus, falando das regiões que
formam a Palestina do tempo (Belém, Egito, Nazaré, Galileia, Jerusalém).
Em Lucas, por sua vez, dá-nos mais detalhes, um melhor enquadramento:
Lc 3,1.
No que a Marcos diz respeito, temos um Evangelho em constante
movimento. Em Marcos, Jesus está sempre em deslocação, sendo difícil
definir uma geografia precisa. O Jesus de Marcos, mais do que em qualquer
um dos outros evangelhos, é um itinerante. Poderíamos definir assim:
.1,1-13 – Preparação do ministério de Jesus, na Judeia;
52
.1,14-7,23 – Ministério de Jesus, na Galileia;
.7,14-10 – Viagens fora da Galileia (Fenícia, Tiro, Sidon, Cesareia de
Filipe;
.11-13 – Ministério de Jesus em Jerusalém;
.14-16 – Paixão e Ressurreição, em Jerusalém.
Em Marcos, facilmente se constata uma forte oposição entre a
Galileia e Jerusalém; Jesus inicia a proclamação da ‘Boa Nova’ pela
Galileia e é da Galileia que o anúncio de Jesus deve ser proclamado, pois
Ele mesmo precede os discípulos na Galileia depois da sua ressurreição
(16,7). Sempre que na Galileia se alude a Jerusalém é em sentido hostil (é
de Jerusalém que vem o ataque mais forte contra Jesus – 3,22), o que
mostra que a Galileia será a pátria onde o Evangelho é acolhido e, em
Jerusalém, rejeitado.
.A Galileia de Marcos é uma terra que não tem fronteiras, terra de
gentios, de misturas populacionais, mas terra de acolhimento do
Evangelho, terra onde há judeus e gentios, tal como a própria
comunidade de Roma (cf. Carta de Paulo aos Romanos).
.No enquadramento histórico dos Sinóticos em geral e também em
Marcos é importante perceber a relação Palestina-Roma que é determinante
na questão da condenação de Jesus (um bom exemplo, temos em Lc 2,1-4),
marcando, no entanto, toda a narrativa evangélica.
Complementando a questão da geografia (contextualização do
Evangelho no espaço) mas intrinsecamente conexa, temos também o
enquadramento estrutural do Evangelho, ou seja, a estrutura de Marcos.
Trata-se de uma sequência narrativa muito simples que podemos estruturar
da seguinte forma:
Introdução:
.1,1 – Título da obra;
.1,2-13 – De João Baptista a Jesus (do anúncio de um tempo
novo ao início desse tempo novo);
I Parte – 1,14 – 8,29: O Ministério de Jesus na Galileia:
.1,14-3,6 – Jesus e a incredulidade dos Judeus (Sinagoga);
.3,7-6,6a – a atuação de Jesus e a resposta do povo;
.6,6b-8,29 – a atuação de Jesus e a resposta dos discípulos.
II Parte – 8,30 – 16,8: O Evangelho é Jesus, Filho de Deus:
.8,30-10,52 – Caminhando pela Galileia e dirige-se a Jerusalém;
.11-13 – a atuação em Jerusalém, antes da paixão;
.14,1-16,8 – paixão, morte e proclamação da ressurreição.
Conclusão: 16,9-20: conclusão e envio.

53
2. O Ambiente religioso (interno) do Judaísmo:
Para além do confronto entre o mundo judaico e a cultura grega,
que se intensifica a partir da conquista levada a cabo por Alexandre Magno,
importa ter presente alguns elementos fundamentais da cultura hebraica do
tempo. Alguns destes elementos já foram antes referidos. Importa, no
entanto, tê-los presente na abordagem que fazemos a cada um dos
Evangelhos, já que eles assumem dimensões próprias em cada um deles.
Assim, destacamos:
.A tradição oral - está presente nas citações e na forma de
fundamentar os Evangelhos e a vida de Jesus no Antigo Testamento. Quem
veicula essa Traditio oral? A que chegou até nós é tipicamente farisaica.
Mas não era a única ao tempo de Jesus. O Pluralismos de grupos e de
movimentos no interior do Judaísmo (Essénios, Zelotas, Saduceus… e
outras minorias: Literatura apocalíptica, grupos baptistas).
.O centralismo do Culto e da Torah – importante para compreender a
reação contra Jesus e a reação de Jesus;
.A Diáspora Judaica e a influência que esta exercia na Palestina e
que podemos constatar no livro dos Actos (o anúncio junto das
Comunidades da Diáspora e também o texto do discurso de Pedro no dia do
Pentecostes: At 2,5-13). A Guerra contra Roma de 66 até à destruição de
Jerusalém (ano 70) e suas consequências para a Comunidade cristã; A
importância da destruição de Jerusalém na organização da Tradição cristã e
na redação dos Evangelhos;
.A Instituição sacerdotal e os órgãos representativos dos Judeus:
Sinédrio, Sumo sacerdócio, Sinagoga.
Importa ter presente que tudo isto está muito vivo e é vivido
intensamente no período em que os Evangelhos, incluindo Marcos, estão
em processo de redação e de desenvolvimento. Mesmo que possamos
considerar que Marcos foi escrito fora da Palestina – em Roma, como
sendo o local mais comummente aceite – a verdade é que a situação na
época é um fator determinante.
3. Data e local da composição:
O Evangelho de Marcos, como já antes referimos e é aceite pela
grande maioria dos estudiosos, foi o primeiro a conhecer a forma escrita.
Os elementos de crítica interna em que possamos sustentar esta afirmação
não são muitos; eles assentam fundamentalmente numa comparação entre o
cap. 13, o chamado ‘discurso escatológico’ e os textos paralelos de Mt 24 e
de Lc 21. Trata-se da questão da tomada de Jerusalém e da destruição do
Templo. O texto de Mc tem um tom genuíno de anúncio, uma espécie de
‘profecia’, mais centrada nas consequências que decorrem para os cristãos
da sua dispersão pelo império do que propriamente sobre a realidade da

54
guerra em Jerusalém. Mateus e Lucas estão mais próximos e oferecem uma
descrição mais detalhada dos acontecimentos.
Significa isto que Marcos escreve antes dos acontecimentos, quando
já se pressentia a tragédia? Uma boa parte dos AA. aponta para os finais da
década de 60 (67-69); uns, pensam que foi ainda antes da morte de Pedro
(Clemente de Alexandria) e outros já depois da sua morte (Ireneu), mas
sempre antes de Mt e Lc. No entanto, creio que o facto de Marcos ser
menos explícito que os outros dois Sinóticos acerca da destruição de
Jerusalém se deve, como já foi referido, ao facto dele estar mais distante
dos acontecimentos, vive-os num contexto diferente, num ambiente de
perseguição (são muitas as alusões: 8,34-38; 10,30.33.45; 13,8.10), já que
se encontrava em Roma.
Quanto ao local, o Evangelho foi seguramente escrito fora da
Palestina, num contexto tipicamente romano, notando-se a necessidade de
explicar costumes judaicos, aludindo ao direito romano, latinismos, etc.
Além disso, o facto de ser um romano, o Centurião, a testemunhar a
identidade de Jesus (15,39) pode ser um indicativo muito importante.
Todavia, não há elementos explícitos de análise interna para sustentar um
local preciso. A tradição patrística aponta para Roma (Ireneu, Papias,
Clemente de Alexandria), sendo esta opinião aceite. Além disso, as mais
antigas citações do Evangelho de Marcos estão também associadas a obras
que têm origem em Roma (1 Clemente, 15,2 e Hermas), para além de
Marcos estar associado a Pedro e Paulo. Eusébio guarda-nos um
testemunho de Papias de Hierápolis, da primeira metade do séc. II que pode
constituir um testemunho notável acerca da composição do Evangelho,
falando da proximidade de Marcos com Pedro64.
4. Quem é Marcos
A figura de Marcos é, à semelhança do Evangelho que trás o seu
nome, também ela algo misteriosa, já que pouco sabemos dele. Da leitura
da obra pouco mais se pode deduzir: trata-se de um cristão helenista que
escreve num grego carregado de semitismos. A obra foi publicada de forma
anónima, sendo um testemunho de fé. Mas já desde finais do séc. I que se
começa a atribuir o texto a um tal Marcos, identificado com João Marcos,
familiar de Barnabé e discípulo de Paulo (At 12,12.25; 15,37; Flm 24; Col
4,10; 2 Tm 4,11). São mais os testemunhos indiretos do que os ecos reais
acerca da sua pessoa. Dos Padres da Igreja recebemos também alguns
indícios; Papias de Hierápolis, da Ásia Menor, por 140, fala-nos de Marcos
como ‘intérprete de Pedro’ que nos legou ‘as narrações acerca de Jesus,
mas aparentemente sem ordem’. Aqui destaca-se a relação de Marcos com

64
Cf. HE, 3,39,14-15.

55
Pedro, o que nos leva a pensar em Roma, comunidade onde poderia ter sido
composto o Evangelho.
Por sua vez, Ireneu de Lião, um pouco mais tarde (por 180), diz-nos
que o Evangelho de Marcos foi escrito em Roma, depois da morte de
Pedro, havendo assim uma relação próxima entre Marcos e Pedro. Santo
Ireneu identifica Marcos com o João Marcos dos Atos (12,12.25). De
acordo com a 1ª Pedro (5,13), o autor desta Carta considera Marcos como
‘filho’ e diz que ele está ‘em Babilónia’, ou seja, em Roma. Ainda de
acordo com os Atos, Marcos fez parte da equipa missionária de Barnabé e
Paulo (At 13,5), tendo-se separado destes e regressado a Jerusalém (13,13).
Em seguida, e ainda nos Atos, diz-se que Barnabé quis integrar Marcos, de
novo, na sua equipa, mas Paulo recusou, afirmando-se que ‘não quis levar
consigo aquele que antes se tinha separado deles’ (At 15,38). Deste
episódio nasceu o desencontro entre Paulo e Barnabé, acabando este por
deixar Paulo e tomar Marcos (15,39).
Assim, importa ter presente que Marcos foi um dos primeiros
missionários entre os Gentios, seguidor de Paulo e, mais tarde, de Barnabé.
A sua experiência de fé é vivida fora da Palestina, o que marca o
Evangelho que nos legou. A sua aproximação a Pedro levou-o a fixar uma
‘traditio’ que testemunha a memória de Pedro, que se faz eco da fé da
Comunidade que está próxima de Pedro, mormente daquela que seria a
Comunidade de Roma, formada por gentio-cristãos, oriundos do
paganismo, a quem era necessário explicar alguns dos costumes judeus em
que se enquadra a mensagem de Jesus (por exemplo, Mc 7, o costume de
lavar as mãos quando voltam do mercado, etc.).
Um outro fator muito significativo em Marcos é o facto de a fé ser
sempre vivida em contexto de forte oposição, em conflito, sujeita a forte
contestação, o que mostra um ambiente de perseguição que era aquele em
que vivia a Comunidade de Roma. Assim, fácil se torna compreender que o
texto de Marcos possa ser datado, pelo menos na sua primeira forma, do
período da morte de Pedro e a sua redação remontar à Comunidade de
Roma.
Para contextualizar este Evangelho é muito comum recorrer aos
paralelos com os outros 2 Sinóticos: Mt e Lc. Estes são, em geral, mais
desenvolvidos, mostrando que a traditio à volta do Mestre se tinha
fortalecido e era já mais consistente nas Comunidades de Mateus e Lucas.
Além disso, socorrendo-nos do cap. 13 de Marcos, podemos verificar que
as alusões a Jerusalém parecem ser feitas antes da sua destruição no ano 70,
já que aqui não temos uma narrativa tão pormenorizada como aquela que
nos é oferecida por Mt e Lc acerca da catástrofe que pôs fim à cidade, ao
Templo e ao culto judaico. É verdade que o ‘ardor’ apocalítico que se
apossou do Judaísmo se intensificou depois do ano 70 e isso poderia

56
ajudar-nos a compreender o ‘segredo messiânico’ e as expetativas
escatológicas que perduram ao longo de Marcos.
5. As interrogações de Marcos
O Evangelho de Marcos é um texto marcado por interrogações,
por segredos que o são, mas que parecem não ser. Eles estão sempre
presentes ao longo do texto, mas parece que esses segredos devem ser
superados pela fé dos discípulos. O texto de Marcos tem em si mesmo um
sentido dramático; este drama que se desenrola à volta de Jesus percorre
todo o Evangelho e vai-se adensando, criando como que um clímax que só
se percebe no Calvário, quando o Centurião romana declara: ‘Este homem
era, na verdade, filho de Deus’ (Mc 15,19). Podemos dizer que ao colocar
na boca de um pagão esta confissão de fé, Marcos está a dar um
testemunho da sua experiência de fé entre os gentios, onde viveu a sua
experiência missionária, e também a abrir os romanos à fé, na pessoa do
Centurião. O sentido do Evangelho é logo anunciado no início, com dois
títulos que caracterizam o anúncio, que definem o texto: ‘Boa Nova de
Jesus, Cristo, Filho de Deus’ (1,1). Cristo e Filho de Deus são dois títulos
atribuídos a Jesus, o que representa já uma confissão de fé em Jesus. Esta
confissão de fé dá sentido e dramaticidade ao texto, já que ao longo do
drama que é narrado, os Homens interrogam-se acerca de Jesus, enquanto
os demónios sabem que ele é, mas calam-se (ou são constrangidos a
calarem-se). Toda a 1ª parte do Evangelho está marcada por esta tensão:
1,14-8,26. Logo em 1,24 temos a afirmação, colocada na boca do demónio:
‘Sei quem tu és, o Santo de Deus’. Logo de seguida, diz-se que Jesus
expulsa vários demónios (1,34) e proíbe-os de falarem ‘porque sabiam
quem ele era’. Temos aqui um segredo que consiste em guardar até ao fim
a verdadeira identidade do Mestre, pois é só pelo mistério pascal, pela cruz,
que esse mistério e a essa identidade se revelam e podem ser reconhecidas,
ou seja, são objeto de fé. Jesus parece não querer criar à sua volta qualquer
questão messiânica, uma vez que este título estava carregado de
ambiguidades na cultura e na religião judaica. No entanto, o evangelista
parece apostado em proclamar desde já que Ele é o messias, mas isso não
deve ser feito por aqueles que fazem parte do seu grupo. Assim, os próprios
títulos messiânicos mais explícitos são colocados na ‘boca’ dos espíritos
impuros que, ao reconhecê-lo, proclamam que Ele é aquele que vem
libertar o mundo do mal e do pecado: 3,11-12; 5,6-9. Os demónios sabem o
nome de Jesus e a sua missão; Jesus, pelo contrário, tem de perguntar ao
demónio qual é o nome dele: ‘Legião’, responde o endemoniado. Que
‘Legião’? A Legião romana que ocupava a Palestina ao tempo de Jesus e
que representava o ‘espírito do mal’ que se tinha apossado do país? Ou
então, as múltiplas seduções do mal em que o Judaísmo tinha caído,
recusando reconhecer Jesus?

57
Temos em Marcos um cenário muito intrigante e complexo. Os
demónios sabem quem é Jesus (o Santo de Deus, 1,24; o Filho de Deus,
3,11-12; o Filho do Altíssimo, 5,6). Temos aqui três dos títulos mais
expressivos de Jesus. No entanto, os Homens não sabem quem é Jesus,
apesar de reconhecerem que Ele é alguém diferente: 1,27 (que é isto? Uma
nova doutrina que até manda nos espíritos impuros?); 4,41 (Quem é este
que até o vento e o mar lhe obedecem?); 6,14-15 (os Homens não sabem
quem Ele é, embora saibam que é um profeta); 6,16 (Herodes não sabe
quem é ele).
Tudo é desconcertante e tudo empresta vivacidade à narrativa de
Marcos, de modo que todos à volta de Jesus se deixam envolver numa
espécie de intriga que vai contribuindo para que se adense o ambiente e se
prepare a verdadeira confissão do Centurião. De todos os títulos, há apenas
um que não está proibido, embora seja aquele que mais adensa o mistério:
Filho do Homem. Mas a partir de 8,27, pela voz de Pedro (8,27-33), inicia-
se uma nova fase na confissão e no reconhecimento da identidade do
Mestre. Isso é preparado pelo próprio Jesus que agora já não deixa que os
demónios o confessem, mas é Ele mesmo que interroga os discípulos.
Podemos como que dizer: a fase de experimentação tinha terminado; agora
entra-se na fase da confissão dos discípulos e, é na voz de Pedro, mestre de
Marcos, que essa confissão acontece (8,27-33). Mas ainda aqui Jesus
aponta para o Mistério Pascal, a morte e o sofrimento como caminho para a
realização da sua identidade messiânica (9,11-13). Trata-se da resposta do
Pai, pois é o Pai que deve declarar e testemunhar a verdadeira identidade
do Filho (9,2-13).
Para além das interrogações, o estilo do texto de Marcos, em grego
da koiné, cheio de semitismos (aramaísmos), com um estilo relativamente
pobre, e com um vocabulário igualmente limitado, embora com muitos
latinismos (mormente provenientes da linguagem militar e jurídica) que
denotam o ambiente próprio onde o Evangelho conheceu a sua redação. A
sintaxe é própria da linguagem popular e um estilo pobre, embora vivo,
através do qual o autor mantém o leitor motivado e preso ao texto. A
narrativa decorre de uma forma direta, com cenas relativamente curtas e
que se vão sucedendo umas após outras.
6. Os Destinatários
Pelos elementos de caráter interno que se podem deduzir do texto
de Marcos, este Evangelho tinha como destinatários crentes que provinham
do paganismo, convertidos que não conheciam os costumes judaicos, pois
estes devem ser explicados de forma detalhada (Mc 7, 1-23). Pode suceder
que na Comunidade de Marcos haja também uma pequena parte de judeo-
cristãos, mas na sua maioria provinham do paganismo. Poderíamos ter
aqui, uma hipótese de trabalho, uma comunidade que seria formada de

58
pequenas comunidades domésticas que se reuniam numa casa para a oração
e para a catequese. Isto advém do destaque que é dado ao facto de Jesus se
retirar para casa e aí proceder à instrução dos discípulos (Mc 7,17s). Esta
comunidade teria já uma certa institucionalização, onde se denota já um
certo vocabulário de cariz missionário (1,21-28; 5,1-20; 7,24-30; 14,9).
Será isso reflexo da experiência de Marcos como companheiro de missão
de Paulo e de Pedro, mormente envolvido nas missões levadas a cabo entre
gentios?
7. O ‘Segredo Messiânico’
Se há algo que singulariza o Evangelho de Marcos, isso está no
chamado ‘Segredo messiânico’ que percorre todo o Evangelho e que lhe
empresta uma espécie de clímax que apenas se desvenda diante da cruz.
Temos, como lhe chama um autor65, uma espécie de ‘mola dramática’ que
confere vivacidade e reforça a teologia de Marcos. Jesus é alguém a
descobrir e isso passa pela compreensão do Mistério Pascal e alcançasse
apenas no fim de um percurso – um percurso crente. Toda a confissão que
não resultar desse percurso, que seja tomada como um ponto de partida,
fundada inclusive na tradição do AT, pode acarretar equívocos e o próprio
Jesus quer evitá-los. Estamos perante uma situação que comporta muito
daquilo que Marcos viveu na sua atividade missionária e daquilo que era o
clima da Comunidade de Roma, entalada numa cultura onde uma confissão
precipitada de Jesus como messias poderia acarretar graves consequências,
como aliás viria a suceder em Roma, com a perseguição aos cristãos e a
morte de Pedro e Paulo.
Neste contexto, podemos dizer que Marcos ‘esconde’, através da sua
narrativa, que Jesus é o Filho de Deus, apesar de o ter confessado logo no
início do Evangelho. É que esse anúncio poderia constituir um perigo para
a própria atividade de Jesus; um anúncio antecipado poderia, como diz
Delorme66, ‘fazer descarrilar o processo’. Por isso, quando nos
confrontamos com o texto de Marcos e pretendemos questionar o modo
como se desenvolve esta questão do ‘segredo messiânico’ a pergunta não
deve ser aquela que habitualmente fazemos: ‘Porque quis Jesus esconder a
sua identidade?’; mas antes a seguinte: ‘porque motivo Marcos apresenta
assim a revelação de Jesus?’.
Embora esta questão seja de difícil compreensão e os autores
divirjam muito na tentativa de a explicar, podemos assumir a posição de
António Rodrigues Carmona67 que julga que há uma explicação histórico-
teológica para o ‘segredo messiânico’. Jesus teria pautado a sua vida por
65
J. DELORME, Para ler o Evangelho segundo S. Marcos, Cadernos Bíblicos, 7/8, DB, Lisboa, 1981,
17-18.
66
Idem.
67
Cf. A. RODRÍGUEZ CARMONA, Evangelios Sinóticos, 162-163.

59
esta forma discreta de se apresentar e Marcos mais não faz do que a
transmitir. Assim, teríamos o ‘segredo dos milagres’ em que Jesus não é
obedecido, enquanto em relação ao ‘segredo messiânico’ ele é obedecido,
tanto pelos discípulos como pelos demónios. Por isso, o primeiro não seria
exatamente histórico, enquanto o segundo o seria, correspondendo às
reticências que o próprio Jesus teria no que diz respeito aos títulos de
Messias, Filho de David’, devido à sua ambiguidade. Perante o povo, estes
títulos poderiam impedir o povo, marcado pelo significado que eles tinham
na tradição popular, de acolherem a mensagem genuína que Jesus se
proponha anunciar. Já perante o Sinédrio que o condena, Jesus aceita esse
título (Mc 14,62). Em relação aos demónios, a missão de Jesus era clara;
Ele vira para curar, ou seja, para libertar da possessão do mal, e por isso
eles deviam reconhecer que esse poder era pertença de Jesus e não deles.
Ao confessar a messianidade de Jesus, os demónios como que se auto-
condenam, confessando assim que entrou uma nova força, uma nova
dynamis no mundo – a força do Reino ou a força de Deus. Perante este
segredo, os seguidores de Jesus devem imitar o testemunho dos discípulos
que obedecem, perseveram no seguimento de Jesus e mesmo que não o
compreendam, no fim eles são as testemunhas que acolhem o Senhor na
Galileia (16,7).
8. O ‘discipulado’ e a Eclesiologia de Marcos:
Em Marcos constatamos, de forma nítida e clara, a existência de
dois grupos à volta de Jesus: Os Discípulos e os Doze. Por vezes, as
referências misturam-se. No entanto, os Discípulos são um grupo mais
alargado do qual são escolhidos os Doze. Aos Discípulos pertencem Levi
(2,13s) e ‘muitos que o seguem’ (2,15) que estão à mesa em casa de Levi,
as mulheres que o serviam e seguem com ele até Jerusalém (15,41). Dos
Doze fazem parte aqueles que são mencionados na lista de 3,16-18 (ver
paralelos).
Tanto os Discípulos como os Doze têm em comum esta referência
direta a Jesus e a disponibilidade para o ‘serviço do Reino’. No entanto, no
‘envio’, são especialmente referidos os Doze, mesmo que não tenhamos a
menção explícita dos nomes. A proximidade a Jesus faz deste grupo dos
‘Doze’ uma categoria importante e fundamental para compreender o
projeto de Jesus e a Igreja nascente.
a) Os Discípulos:
Trata-se de um grupo que, na sequência da missão de Jesus,
também se coloca ao ‘serviço do Reino’, acolhendo de forma gratuita o
chamamento que Jesus lhes dirige: 1,16-20; 2,13-14; 3,13-17. O seu
chamamento é para seguir e dar continuidade ao projeto salvador de Jesus,
ou seja, estamos em presença de um chamamento em ordem a seguir uma
pessoa, professar a fé na pessoa de Jesus. O chamamento tem já um cunho
60
específico, pois trata-se do testemunho de fé que é dado na Comunidade.
Vejamos como esta dimensão pessoal é acentuada ao longo de todo o
Evangelho: 1,18 – deixando as redes, seguiram-n’O (; 2,14:
ele levantou-se e seguiu-O (trata-se de Leví); 2,15: …
eram muitos os que O seguiam (; 6,1: os seus discípulos
seguiam-n’O (; 8,34: … siga-me (). As
referências multiplicam-se ao longo do Evangelho (Mc 10,21.28.32.52;
15,41). Para além do seguimento de Jesus, os Discípulos são também
apresentados como sendo os seguidores de Jesus (9,38; 10,32), o que
significa que eles devem identificar-se com o Mestre no serviço e no
anúncio do Reino.
Para além desta relação intrínseca com Jesus, os Discípulos, numa
perspetiva já eclesial, estão também unidos entre si, formando uma nova
‘Fraternidade’, a Comunidade inaugurado com o anúncio do Reino e que é
constituída por aqueles que ‘deixaram tudo e O seguiram’ como proclama
Pedro (10,28-30). Esta renúncia à família e aos haveres temporais é já um
sinal da chegada do Reino e testemunha a capacidade dos discípulos se
converterem, tal como era proposto no início do Evangelho (1,15).
Portanto, aderir a Jesus significa segui-l’O e deixar tudo, tornando-se assim
missionário ao serviço do Reino. Trata-se da Comunidade disponível para a
missão do Reino. Esta Comunidade tem de ser ‘sinal’ que prolonga em si
mesma o testemunho de Jesus e colabora com Ele na sua obra (3,9; 4,35s).
Apesar da incredulidade dos demais, a obra de Jesus realiza-se e a dos
discípulos também se realizará, dando continuidade à do Mestre (4,21-25).
Uma outra dimensão do ‘discipulado’ e da ‘eclesiologia’ de Marcos
está bem patente na forma como o Evangelho faz notar que os Discípulos
devem aprender do Mestre que seguem. Ser ‘Discípulo’ e ser testemunha
das palavras e das obras do Mestre e também da incredulidade da multidão
que escuta e rejeita a mensagem de Jesus. Desta forma, o conhecimento de
Jesus é uma das dimensões fundamentais do ‘ser discípulo’. Conhecer os
mistérios do Reino é conhecer Jesus (4,11), pois é n’Ele que o Reino se
revela (9,1).
Neste sentido, vemos como Marcos, no seu Evangelho, atribui a
todos os Discípulos uma dupla meta, um duplo objetivo: o messianismo e a
divindade de Jesus (1,1). Trata-se não apenas de um título para a sua obra,
que também o é, mas antes de uma dupla confissão de fé da Comunidade
que recebeu o anúncio da parte de Marcos e onde o autor testemunha a sua
fé. No que diz respeito ao messianismo, o Evangelho deixa sempre
transparecer uma grande prudência da parte de Jesus e uma certa
incompreensão da parte dos Discípulos acerca da obra do Mestre (1,36-37;
4,13.40-41; 6,52; 7,18; 8,17-21) que acabam finalmente por reconhecer que
ele é o Messias davídico que é enviado por Deus para salvar Israel (8,29). É

61
esta prudência de Jesus e esta incompreensão dos Discípulos que explica a
questão do ‘segredo messiânico’ ao longo do Evangelho, embora os
demónios e os possessos saibam e não tenham dúvidas acerca disso, já que
eles experimentam a ação libertadora de Jesus e identificam-no nessa
qualidade de Messias.
No que diz respeito à segunda meta – a divindade de Jesus – os
Discípulos não chegam a alcançá-la durante a vida pública do Mestre, já
que eles ainda não têm ‘os valores próprios do pensar de Deus’ (8,33) 68.
Para responder a esta incapacidade, Marcos ‘constrói’ o seu texto a partir
desse momento (na segunda parte do Evangelho: 8,31-10,52) em função
dos anúncios da Páscoa do Mestre. Trata-se de uma catequese de
preparação para que os Discípulos sejam capazes de compreender então a
divindade do Mestre, tal como a vai confessar o Centurião no alto do
Gólgota (15,39). Os três anúncios da Paixão (8,31-33; 9,30-32; 10,32-34)
mais não são do que a catequese da Comunidade para a compreensão do
mistério pascal de Jesus (morte e ressurreição). Só a partir daqui é que os
Discípulos estão capazes de compreender o verdadeiro messianismo do
Mestre e testemunhá-lo. Daqui decorre um conjunto de valores e de
procedimentos éticos que os Discípulos devem exercer e testemunhar no
mundo, o que faz deles a Comunidade do Reino (10,15). Para acolher e
receber o Reino é necessário ter a humildade de ‘criança’ diante da
grandeza de Deus: atitude de serviço e renunciar à ambição na comunidade
(9,34), renunciar aos bens em função do Reino (10,17-31), renunciar à
própria vida para poder disponibilizar-se para o anúncio (8,34s).
b) Os Doze:
Os Doze completam aquilo que se diz dos Discípulos, com
caraterísticas próprias que traduzem a sua proximidade a Jesus e, ao mesmo
tempo, o seu compromisso no testemunho do Reino e do Mestre. Também
aqui o chamamento e a eleição é feita por Jesus (3,14-19) que através desta
eleição renova a eleição do novo Israel e assim dá início ao povo
messiânico da nova Aliança (o número doze dos eleitos é um sinal especial
disso). Os Doze devem ser ‘testemunhas’ especiais, pois eles foram
chamados para estar com o Mestre e é por isso que aparecem
continuamente junto a Jesus, embora também haja momentos em que
aparecem sós, como que formando um grupo por si (6,6-7,37) e também
em Jerusalém até ao momento do abandono (14,50).
Além disso, é-lhes confiada uma missão especial; eles devem
anunciar o Reino (3,14) e isso faz-se expulsando os demónios (6,6b-13) e
deixando-se revestir da força do Espírito que havia revestido também a
Jesus. No fundo, trata-se de colocar em evidência aquilo mesmo que se faz

68
Cf. A. RODRÍGUEZ CARMONA, Evangelios Sinóticos, 146.

62
agora na comunidade de Marcos, proclamando a conversão e ungindo
(6,12s). Desta forma, os Doze são a representatividade de todos os
Discípulos, de forma negativa (o que eles devem evitar) e de forma positiva
(o que eles devem testemunhar) pelo poder que Jesus lhes deu ( -
6,7s).
Embora haja uma distinção, estes dois grupos devem compreender e
assumir o ‘caminho de morte e ressurreição’ do Mestre e, nisto, eles
compartilham a mesma situação que é a de seguimento e de testemunho.
Tanto a uns como aos outros ele se manifestará na Galileia, tornando-se
assim as suas testemunhas na missão. A Comunidade de Marcos reconhece
assim a experiência dos Discípulos e dos Doze com o Mestre, a quem este
se manifestou (Pedro, os Doze e mais de quinhentos discípulos – 1 Cor
15,3-7). Eles partiram para a missão e é dessa missão que o Evangelho
nasceu.
c) A Eclesiologia:
Ao falar-nos dos Discípulos e dos Doze, Marcos deixa-nos a sua
visão e constituição da Igreja que é simultaneamente uma realidade
cristológica, missionária e escatológica. A dimensão escatológica mostra-
nos que a Igreja nasce como sinal do Reino e tende para a plena realização
do Reino. Ela é a nova família escatológica, o novo Israel de Deus, sendo
anúncio do perdão e espaço vivencial da relação filial com Deus. Neste
sentido, por ela e nela realiza-se a comunhão fraternal com aqueles que
compartilham o dom da fraternidade.
Como realidade cristológica, os crentes são congregados em Cristo e
é por Ele que somos chamados a fazer parte dela. Na Igreja nos
constituímos discípulos mediante a conversão e a entrada nesse Reino que
ele mesmo vem anunciar e que, pelo seu mistério pascal, se faz ele mesmo.
Cristo é a plenitude da promessa, ou seja, Ele é a promessa que agora se faz
realidade evangélica, de anúncio e de testemunho, de serviço e de
comunhão.
No que se refere à identidade missionária da Igreja de Marcos, ela
decorre da própria vivência do autor do Evangelho enquanto discípulo de
Paulo e de Pedro. Isso reflete-se na própria atenção com que Marcos
destaca as palavras e os momentos ‘missionários’ dos Discípulos e dos
Doze. Há como que um anúncio da novidade do Reino que se estende pelo
Império, com uma ética diferente, um estar diferente face aos costumes do
tempo e aos imperativos do Império. A fraternidade cristã e o testemunho
serão os grandes sinais desta identidade missionária.

63
III - Evangelho de Mateus
O mundo e o tempo de Mateus
Introdução: Alguns tópicos, em síntese, no estudo de Mateus:
A narrativa do evangelho como expressão de um tempo onde se integra e
enquadra a mensagem. Os 2 “tempos” do texto evangélico: da experiência vivida e
partilhada com Jesus à experiência da comunidade que vive e testemunha a mensagem
recebida de Jesus. A importância de conhecer o tempo e mundo do autor para melhor
compreender o texto. O que nos proporciona o texto acerca do seu autor.?
1. A ‘geografia’ do Evangelho – da Galileia à Galileia:
O contexto cultural e geográfico do Evangelho ajuda-nos a compreender os
objetivos que norteiam o texto de Mateus. A crer nos testemunhos de que dispomos, a
Galileia é a terra de Mateus, onde ele exerce a sua atividade e de onde parte a seguir o
Mestre que o chama. Ele deixa um espaço cosmopolita, de cruzamento de vias de
comunicação e de comércio e será daí que ele vai fazer irradiar a mensagem deixada
pelo Mestre que se alarga para além dos confins da Judeia e de Jerusalém. O mundo de
Mateus não se restringe ao espaço da Judeia, todo ele ocupado pelo legalismo farisaico
que tinha feito da Lei o objeto da sua religião e pelo ritualismo sadoceu e do sinédrio
que se proclamavam como os únicos intérpretes da verdadeira Traditio.
2. O ambiente cultural:
Podemos situar o mundo dos Evangelhos entre dois marcos históricos: a
conquista romana da Palestina (em 63 aC) e a destruição de Jerusalém e do Templo (em
70 dC). Estes dois acontecimentos são marcos que delimitam uma série de
acontecimentos políticos e sociais que vão caraterizar o Evangelho de Jesus, o seu
anúncio e vivência nas diversas paragens do Império. Neste quadro, uma marca
importante é a presença da cultura helenística (grega), difundida por toda a parte. Esta
identidade cultural tinha provocado fortes ruturas no coração do próprio judaísmo, mas
contribuiu, de forma muito determinante, para o anúncio e a difusão da Boa-Nova.
Algumas das suas marcas mais caraterísticas: as cidades livres e autónomas (a
Decápole); o governo de Herodes e dos seus descendentes; o controle romano sobre a
região, exercido pelos procuradores; os diversos grupos judaicos que se foram
constituindo dentro do judaísmo, dando a este uma perspetiva pluralista que contrasta
em tudo com aquilo que tinha sido a vivência judaica em séculos anteriores.
3. O ambiente religioso (interno e externo) do judaísmo:
O confronto entre o judaísmo e a cultura grega gerou um ambiente de grande
tensão no quadro da vivência judaica. A formação de uma forte ‘tradição oral’,
veiculada por diversos grupos, de que sobressai a tradição farisaica, ajuda-nos a
contextualizar as citações e a forma como era lido e interpretado o AT. É exemplo disso
o conjunto de passagens que elencadas em Mt 5-7 (e outros capítulos), dando azo a
Jesus para apresentar uma nova doutrina. O pluralismo judaico da época constitui um
elemento importante para bem conhecer o sentido da mensagem de Jesus que esvazia a
traditio farisaica e anuncia uma nova mensagem, já não centrada na Lei (Torah), mas
sim na Misericórdia, naquilo que constitui o ‘Reino’. Por isso, é importante estudar e
olhar o Evangelho a partir de fontes, quer elas sejam doutrinais (AT e sua traditio) quer
sejam de natureza social e religiosa. Neste contexto, a importância da Mishná como
código de conduta do legalismo farisaico é um elemento importante a ter em conta.

64
4. O Autor, de nome Mateus e publicano de profissão:
O contexto social que está na base do Evangelho de Mateus ajuda-nos a
situar a pessoa do autor e também o conteúdo da própria narrativa, mormente o destaque
dado à região da Galileia no anúncio de Jesus e, mais tarde, na sua manifestação e envio
a partir daí, fazendo da Galileia uma espécie de centro de onde parte o kerygma da Boa-
Nova (Mt 28,16-20). Parece estranho, mas neste traço discordante podemos encontrar a
singularidade deste Evangelho e também a marca do seu autor.
4.1 Mateus, o Publicano:
O conceito de telones; o que significa, o que traduz como atividade e como
se enquadra na realidade social e religiosa da Palestina do tempo. O sistema fiscal no
Império e o processo no espaço palestinense. Que função é esta?
4.2 O que sucedia na Palestina de então:
A prática da venda dos impostos e os ecos que temos dos autores da época,
mormente de Flávio Josefo. O período de Herodes e dos seus descendentes. Como se
relacionavam as autoridades locais (religiosas e políticas) com o governo do Império?
5. Conclusão – Avaliação ética e moral:
Na antiguidade, os cobradores de impostos eram temidos e desprezados
pelas populações. Partindo daqui, podemos dizer que há dois motivos que ajudam a
compreender o desprezo e a desconsideração com que eram tidos os ‘cobradores’, ou
seja, os telones (publicanos), os homens dos postos de cobrança.
.O 1º motivo, tem a ver com o poder com que esses cobradores atuavam, a
coberto do estatuto que as autoridades políticas e militares lhes garantiam. A pax
romana que era imposta acabava por ser paga a peso de ouro e os cobradores dos
impostos eram, no fundo, o rosto visível dessa pesada obrigação.
.O 2º motivo, tem uma dimensão mais pessoal e menos social. Os publicanos, os
telones, procuravam extorquir tudo quanto lhes era possível, muito para além do que a
lei lhes permitia. Os litígios eram frequentes. O judaísmo do tempo associava os
publicanos ao domínio romano e a formas desonestas de ‘fazer dinheiro’. Os códigos
éticos do período rabínico tratam os publicanos como ladrões, bandidos e impuros. Isso,
deve-se às cobranças fiscais e também ao facto deles estarem em contato permanente
com os gentios, os impuros, que não respeitavam a Lei nem cumpriam o sábado. Eram
assim objeto de desprezo e tratados como ‘am ha’aretz (Bek.b. 30b), gente impura, sem
cultura religiosa e sem dignidade perante a Lei. É neste contexto que Mateus é
convidado por Jesus para o seguir.
Algumas indicações bibliográficas:
Bíblia Sagrada, ed. Difusora Bíblica, Lisboa, 1998.
J.C. NEVES, Evangelhos Sinóticos, UCEditora, Lisboa, 2004.
J. NONINGS, Jesus nos Evangelhos Sinóticos, Vozes, Petrópolis, 1977.
J.D. LOURENÇO, O mundo judaico em que Jesus viveu. Cultura judaica do Novo Testamento,
UCEditora, Lisboa, 2005.
R. A. MONASTERIO – A. R. CARMONA, Introducción al estudio de la Biblia. VI : Evangelios
Sinóticos y Hechos de los Apóstoles, Estella (Navarra), 1992, 15-98.
J. O. CARVALHO, Caminho de morte, destino de vida. O projecto do Filho do Homem e dos seus
discípulos à luz de Mc 8,27-9,1, Lisboa, 1998.
R. FABRIS, Matteo. Traduzione e Commento, Roma, 1982.
S. GRASSO, Il vangelo di Matteo, Roma, 1995.
D. HARRINGTON, The Gospel of Matthew, Collegeville, MIN, 1991.
B. MAGGIONI, El relato de Mateo, Madrid, 1981.
V. MORA, La symbolique de Matthieu, Paris, 2001.
J. H. NEYREY, Honor y vergüenza. Lectura cultural del Evangelio de Mateo, Salamanca, 2005.
J.T. MENDONÇA, A construção de Jesus, Lisboa, 2004.
A. PAUL, Le monde des Juïfs à l’heure de Jésus, Desclée, Paris, 1981.

65
Evangelho de Mateus
Introdução:
De acordo com uma referência de Gianfranco Ravasi69, Mateus era
um cobrador de impostos que tinha o seu ofício na região de Cafarnaúm e
foi aí que ele foi tocado pelo Mestre, especialmente pelo Seu olhar, tal
como muito bem o documentou Caravaggio (1573-1610) no seu célebre
quadro ‘O chamamento de Mateus’.
Uma das primeiras perguntas que podemos fazer é esta: porquê em
Cafarnaúm? Por que razão conclui Mateus o texto do seu Evangelho
fazendo regressar os ‘Onze’ à Galileia para a manifestação final do Senhor,
sendo daí enviados a todas a gentes?
Analisar estas questões permite-nos, desde já, entrar no quadro
contextual do Evangelho e também compreender melhor uma das
premissas em que assenta a narrativa de Mateus; trata-se da geografia
histórica do mundo de Mateus e do quadro social e político do tempo de
Jesus. De facto, neste período, por Cafarnaúm passava um dos 3 ‘ramos’ da
‘Via Maris’, que vinda do delta do Egito em direção ao Norte, se dividia ao
chegar à região de Meggido, porta de entrada na Galileia. Partindo daí, esta
estrada dirigia-se para a região da Síria (Damasco e Palmira), percorrendo a
‘Galileia dos Gentios’, uma zona onde tinham florescido as chamadas
‘Cidades livres’, florescentes no comércio e autónomas dos tradicionais
poderes religiosos que condicionavam a vida na Judeia. Estas metrópoles,
tinham o seu ‘modus vivendi’, tipicamente pagão e de feição grega, onde
encontravam espaço e acolhimento todos aqueles que se dedicavam ao
comércio, cultivando um estilo de vida que não era compatível com os
preceitos da halakah (da prática) judaica. Alguns dos achados
arqueológicos encontrados em Cafarnaum confirmam realmente esta
situação privilegiada que a região gozava nesta época, especialmente a
importância comercial da região, por onde passavam as caravanas que,
vindas da Via Maris, se dirigiam para o interior, em direção a Damasco e
outras cidades. Na região do Lago da Galileia floresceram ainda outras
notáveis cidades, algumas delas mencionadas no NT (por exemplo: Gadara,
Jerash) e também em textos das origens cristãs (Pella, etc).
O mundo de Mateus tem uma forte centralidade no espaço da Galileia,
apesar do caráter judaizante que todo o Evangelho apresenta. Trata-se de
um judaísmo com uma marca mais abrangente que resulta da mescla de
povos e de identidades culturais que foram florescendo e difundindo-se na
região Norte da terra de Israel, a chamada ‘Galileia dos Gentios’. Por isso,
para além de uma geografia específica, bem situada neste cruzamento de

69
G. RAVASI, Le pietre di inciampo del Vangelo, Milano, 2015,

66
estradas por onde circulam caravanas comerciais e homens de cultura
grega, esta região tinha também uma identidade que extravasava a
exclusividade judaica, tão caraterística da Judeia.
É neste contexto de intensa atividade social e comercial que vamos
encontrar Mateus, titular de uma espécie de ‘posto aduaneiro’, por onde
passavam muitos comerciantes, tanto judeus como estrangeiros70, que
deviam aí pagar as suas taxas de passagem e outros tributos de caráter
comercial. Esta marca que acompanha o redator do 1º Evangelho, ele
mesmo um judeu que acaba por aderir a Jesus, vem dar um sentido muito
específico ao texto que nos legou. Esta designação de ‘publicano/cobrador
de impostos’, conforme é referido nos 3 Sinóticos: Mt 9,9; Mc 2,13-14; Lc
5,27-28, percorre toda a tradição do NT. Ora, esta unanimidade é
construída pela tradição sinótica a partir do episódio do chamamento de
Mateus. Destaco também a sua inclusão na lista dos ‘Doze’. Estes
elementos não nos deixam qualquer sombra de dúvida sobre a identidade
deste discípulo de Jesus, tal como mais tarde, a tradição das origens cristãs
o irá referir nos testemunhos que nos legou.
1. Contexto Cultural
Falar do Evangelho de Mateus supõe um bom conhecimento do
mundo cultural e do enquadramento histórico deste período (o período do
NT) que vai, em termos históricos mais concretos, de 64 (aC) a 70 (dC), ou
seja, desde a conquista romana por Pompeu até à destruição do Templo e
de Jerusalém, por Tito. São dois factos objetivos que marcam e
condicionam fortemente este período, estando o último (a destruição do
Templo) diretamente ligado ao tempo da publicação dos Evangelho e,
certamente, com muito impacto nas comunidades palestinenses, onde se
situa a comunidade de Mateus, mais em termos culturais que geográficos.
Esta identidade de Mateus e das suas comunidades, ou seja, das
comunidades palestinenses é um elemento fundamental, diria mesmo o
mais importante de todos, para a compreensão da identidade deste
evangelho. Mas há outros elementos também muito significativos. Apesar
de já nos termos referido a eles na introdução geral, voltamos aqui a tratar
deste tema, já que ele deve estar sempre presente quando nos debruçamos
sobre cada um dos textos, Assim, destacamos alguns desses dados:
.A presença da cultura helenística (grega) e a sua influência na
sociedade judaica, mormente a partir do governo dos Asmoneus
(sucessores dos Macabeus, finais do séc. II aC até à chegada dos
romanos, em 63 aC), continuada depois pelo poder romano. O
helenismo tinha provocado grandes ruturas na sociedade judaica,

70
Foram encontradas na sinagoga de Cafarnaum moedas das mais diversas proveniências, mostrando
como a ‘estrada’ que aí passava servia muitas cidades, mormente na região interior e da alta Síria.

67
levando alguns grupos a afastarem-se do culto oficial e a
promoverem uma mais estreita observância da Halakah, ou seja, do
cumprimento da Lei71.
.As cidades livres e autónomas, constituindo autênticos territórios
autónomos no quadro da geografia territorial da Palestina. Tais
cidades, por vezes agrupadas e com objetivos comuns (como é o caso
da chamada Decápole: algumas dessas cidades desempenharam um
importante papel como polos agregadores e difusores de uma cultura
diferente), usufruíam de grandes privilégios, como seja o poder de
cunhar moeda própria, direito de asilo, isenção da alçada dos poderes
religiosos tradicionais (diminuindo desta forma o poder religioso de
então), a cobrança de taxas comerciais nos respetivos territórios, etc.
Tudo isto representa uma estratégia política que procurava
enfraquecer, de forma decisiva, o poder religioso de então, uma das
razões que, a meu ver, está na origem do desprezo com que eram
tratados os cobradores de impostos (os telones, publicanos).
.O exercício do poder pela família de Herodes de quem os Romanos
se serviram para controlar a Palestina durante quase um século. Esta
situação política, e também religiosa, marcará de forma muito
intensa o tempo de Jesus e o da composição do Novo Testamento,
mormente os Evangelhos, deixando sinais muito expressivos no de
Mateus, já que este se dirige a cristãos que têm as suas raízes no
mundo palestinense. Estes traços são bem visíveis nos textos de
caráter apocalítico que Mateus nos oferece (Mt 24: são vários os
sinais de sentido escatológico). Trata-se de um dos fatores que mais
diretamente irá condicionar o judaísmo do tempo e,
consequentemente, também o período das origens cristãs. Não é
possível compreender corretamente o período das origens cristãs sem
ter presente as marcas da dinastia herodiana no território da
Palestina.
.O tempo dos Procuradores (de 6 a 41 dC), em que o poder político e
administrativo era exercido pelos militares que, em nome do
imperador, se mostravam intransigentes no que dizia respeito aos
sinais ou pretensões de autonomia dos judeus. A crueldade deste
período, iniciada já no período de Herodes, continuada pelos seus
filhos e procuradores romanos, criou no espaço da Palestina um
clima social de grande sofrimento e, por isso mesmo, de grande
tensão e expetativa.

71
O Evangelho de Mateus responde a esta premência da Halakah judaica com as novas propostas de
Jesus na doutrinação dos Discípulos, querendo com isso marcar, desde logo, a identidade da comunidade
e até mesmo a relação desta com a ‘tradição’ judaica (Mt 5-7).

68
É deste contexto e ambiente que se fazem eco as obras de Flávio Josefo,
notável historiador do tempo que, apesar da sua simpatia pelos romanos,
não deixa margem para dúvidas no que se refere às informações que nos
faculta acerca da situação social e política da época. São particularmente
significativas as informações que nos legou sobre os grupos e movimentos
que existiam dentro do judaísmo do seu tempo.
2. A Geografia histórica de Mateus:
Tal como já antes dissemos e o referimos na introdução à Traditio
sinótica, Mateus apresenta-nos uma geografia bem contextualizada no tempo,
oferecendo-nos os itinerários de Jesus, os grupos sociais que lhe estão próximos e
isso facilmente se torna percetível nos próprios textos do seu Evangelho.
Olhando para o texto do Evangelho e, se excetuarmos o que se refere aos
itinerários de Jesus, facilmente verificamos que este evangelista é aquele que
menos dados de caráter geográfico nos legou. Por exemplo, e ao contrário de
Lucas, as referências de Mateus, são feitas mais de forma indireta, envolvendo
situações sem uma narrativa explícita acerca dos personagens da história civil.
Há, no entanto, cenas do texto que se enquadram no tempo de Herodes e seus
descendentes, que ligam diretamente à presença romana na Palestina, às
deslocações de grupos e pessoas entre a terra de Israel e o Egito. O mesmo
sucede no que diz respeito aos itinerários internos da Palestina. Para além dos
dados de contextualização, há também muitos elementos de caráter social,
importantes para compreender e objetivar os ensinamentos que o texto pretende
transmitir. Em Mateus, muitos desses dados ajudam-nos a situar as comunidades
onde a mensagem foi vivida e testemunhada. São elementos muito importantes a
ter em conta quando lemos e refletimos o Evangelho:
.Mateus apresenta apenas um itinerário de Jesus, falando das regiões que
formam a Palestina da época (Belém, Egito, Nazaré, Galileia, Jerusalém).
Algo semelhante em Marcos. Em Lucas, temos mais detalhes, um melhor
enquadramento político, uma vez que o texto de Lucas, um homem que
vem do mundo grego, apresenta perspetivas mais abrangentes: Lc 3,1;
.Sem abordar de forma explícita a relação política entre a Palestina e
Roma, Mateus deixa-nos muitas referências contextuais, mesmo que não
de forma explícita, a essa relação política entre a Palestina e Roma;
.Compreende-se, nas entrelinhas que tecem a narrativa textual, que há
.

intervenientes na ação narrada que representam a tensão existente entre


esses dois mundos: o judaico e o romano. É percetível na ‘fuga para o
Egito’, na tradição sobre os Magos, no regresso do Egito, no início do
ministério na Galileia (Mt 4,12-17). A questão é recolocada, tal como nos
outros Evangelhos, na narrativa da paixão.
3. O Ambiente religioso (interno e externo) do Judaísmo:
.Confronto entre o mundo judaico e a cultura grega. O confronto nasce
com a conquista levada a cabo por Alexandre Magno. Alguns elementos
fundamentais da cultura hebraica do tempo:

69
.A tradição oral (bem presente nas citações e na forma de fundamentar os
Evangelhos e a vida de Jesus no Antigo Testamento. Quem veicula essa
Traditio oral? A que chegou até nós é tipicamente farisaica. É verdade que
ela era a predominante no período intertestamentário, ou seja, aquela que
era mais corrente e conhecida ao tempo de Jesus. Isso está bem patente em
várias passagens do texto de Mateus. Deixo aqui apenas algumas
ocorrências:
Mt 5-7 – as referências feitas quando se diz “ouviste o que foi dito aos
antigos…” (5,21.27.38.42), todas têm na base a ‘traditio’ farisaica de ler e
interpretar a Lei;
Mt 12,1-2 – os fariseus querem enquadrar o comportamento dos
discípulos de Jesus no contexto da sua ‘traditio’;
Mt 15,1-20 – Disseram-lhe os fariseus e os doutores da Lei, vindos de
Jerusalém: “Porque transgridem os teus discípulos a ‘traditio’ dos
antepassados”?
Mt 23 – Temos uma longa enumeração de atitudes e de formas de
comportamento ligadas à ‘traditio’ dos fariseus a que Jesus se contrapõe,
apresentando uma nova mensagem e uma nova interpretação sem com
isso, como Ele mesmo afirma, revogar a Lei. O que está em causa não é a
Lei em si mesma, mas sim a tradição e a hermenêutica da mesma.
Tudo isto nos mostra como é importante e fundamental conhecer um
pouco daquilo que constituía a forma de viver e enquadrar os
comportamentos no quadro de uma ‘traditio’ que norteava a vivência
religiosa de então. O mundo do tempo de Mateus é, em termos de tradição
religiosa, o mundo dos fariseus, com um cunho religioso, social e político
marcado pela forma como estes interpretavam e apresentavam a Lei ao
povo, mormente junto dos grupos sociais menos letrados e menos
instruídos.
No entanto, importa ter presente que o movimento farisaico não
esgotava o universo religioso e social do tempo do Novo Testamento. São
nossos conhecidos, mencionados inclusive nos textos evangélicos, outros
grupos sociais e religiosos, também eles portadores de uma ‘traditio’
própria que a propunham no âmbito da sociedade judaica de então. Flávio
Josefo fala-nos de 4 grandes grupos que ele identifica bem dentro do
judaísmo e aos quais dá o nome de ‘filosofias’: Fariseus, Essénios, Zelotas,
Saduceus72. Há ainda outros grupos e movimentos menos representativos

72
Um dos autores da época que mais elementos nos faculta a respeito dos movimentos e grupos
organizados de que se componha o judaísmo intertestamentário é Flávio Josefo. Esses elementos estão
especialmente contidos nas suas obras Ant Jud (13,171-173 e 18,12-22) e no De Bel Jud (2,162-166). Cito
aqui uma passagem tomada desta última obra:
“Das duas primeiras seitas (Fariseus e Saduceus), a dos Fariseus tem a reputação de dispor dos
intérpretes mais rigoristas das leis e eles representam a seita superior; eles atribuem tudo ao
destino e a Deus; eles pensam que depende essencialmente do homem fazer o bem ou o mal, mas

70
que podemos designar de ‘minorias’: grupos de cariz apocalítico, grupos
batistas, partidários de Herodes, etc.).
3.1 O pluralismo dos grupos e movimentos no interior do judaísmo:
São vários os elementos que definem a identidade específica de cada
um destes movimentos que não têm apenas a ver com a interpretação da Lei –
apesar de esse ser o elemento mais determinante - mas também com a prática
cultual, a atitude política no confronto com Roma, as questões dos impostos (a
pagar a Roma e ao templo), o afastamento em relação aos grupos sacerdotais, a
desconfiança face ao Sinédrio, que tinha vindo a ser condicionado pelo poder
político dominante. Ao tempo de Herodes e dos seus descendentes, foi a própria
família herodiana a condicionar o sacerdócio e, posteriormente, também os
‘Procuradores’ romanos que, desta forma, limitavam a própria autonomia
religiosa do judaísmo, uma temática que foi sempre difícil de gerir por parte do
poder romano. Efetivamente, são inúmeros os episódios narrados nos textos da
época que nos deixam um quadro negro sobre a relação de Roma com a
província da Judeia, ocupada pelos seus exércitos.
Dentre os elementos que mais diferenciam os grupos desta época, destaco
alguns que me parecem ser determinantes e que importa ter em conta na
abordagem do Evangelho de Mateus:
.O centralismo do Culto – a forma como estes grupos se colocavam na
relação com o Templo e o culto que aí se praticavam distanciavam estes
movimentos uns dos outros, já que para alguns (zelotas, essénios e
movimentos apocalíticos) o culto era ilegítimo e o sacerdócio não estava
constituído segundo a tradição sadoquita (Sadoc).
.O centralismo e a interpretação da Torah – importante para interpretar
a reação contra Jesus e a reação de Jesus; o absolutismo da Lei e a sua
interpretação à letra e sem misericórdia são traços que definem a
sociedade religiosa do tempo e é bem percetível no Evangelho de Mateus

tanto num como no outro (no bem e no mal) o destino também intervém. Consideram que toda a
alma é imortal, mas apenas a alma dos justos passa para um outro corpo, enquanto as almas dos
ímpios sofrem o castigo eterno. Quanto aos Saduceus, o segundo grupo, eles negam totalmente a
existência de destino e dizem que, quando um homem escolhe fazer o mal ou não, Deus não
entra nisso; que a escolha do bem e do mal depende dos homens e que cada um opta por um ou
por outro por sua própria decisão. Eles negam igualmente a imortalidade da alma, assim como os
castigos ou a recompensa na vida futura. Os Fariseus têm afeição uns pelos outros e vivem em
harmonia em ordem ao bem comum entre eles. Pelo contrário, os Saduceus, têm uma ambição
feroz, mesmo entre eles e o seu relacionamento com os seus compatriotas está desprovido de
qualquer afeição, assim como para com os estrangeiros” (De Bel Jud 2,162).
Os dados aqui referidos por Flávio Josefo deixam-nos já antever um conjunto de diferenças entre
os principais movimentos dentro do judaísmo, não apenas no que diz respeito à interpretação da Lei, mas
também na ordem dos costumes e dos comportamentos sociais e políticos.

71
que isso não é conciliável com a mensagem de Jesus. Em S. Lucas, esta
constatação torna-se ainda mais evidente.
.A Diáspora judaica – teve uma grande influência nos grupos e
movimentos que existiam na Palestina e na forma como estes viviam e
afirmavam a sua identidade judaica, tal como se pode constatar no caso de
Alexandria e em outras paragens. O mesmo vai suceder também com as
Comunidades cristãs que foram surgindo um pouco por toda a parte. Disso
é um bom testemunho o livro dos Atos dos Apóstolos (o anúncio junto das
comunidades da Diáspora e também o texto do discurso de Pedro no dia
do Pentecostes: At 2,5-13).
.A posição política destes grupos face ao poder romano – Embora não
disponhamos de muitos dados acerca de todos estes grupos e movimentos
que constituem o panorama social e político deste período, conhecemos a
hostilidade revolucionária de alguns deles contra Roma e as autoridades
locais que se traduz de duas frentes: a revolta que leva à guerra contra
Roma de 66 até à destruição de Jerusalém (ano 70), de que resultam
gravosas consequências para a comunidade cristã; a destruição do Templo
e o fim do culto judaico e do sacerdócio, o que forçará a própria
comunidade cristã a afastar-se do judaísmo e a consolidar uma ‘traditio’
de que temos bons exemplos de leitura do AT na Carta aos Hebreus, nos
primeiros textos dos Atos (por exemplo, o discurso de Estevão) e em
textos da tradição joanina.
Porventura, Mateus pode ser também enquadrado nesta perspetiva
de interpretação, já que muitos dos membros das comunidades da
Palestina provinham do judaísmo e, tal como sucedeu com os Judeus em
Jâmnia (Yabné), também eles tiveram de constituir e consolidar a sua
própria tradição à volta de Jesus e já não numa linha se sequência ou de
fidelidade ao AT e às instituições judaicas que eles mesmos conheciam ou
até frequentaram, como sejam o Templo e a Sinagoga. Estamos no período
da redação dos Evangelhos, no início dos anos 70, um marco histórico
fundamental para ler o texto do Evangelho e também para compreender
toda a ‘traditio’ de que o mesmo é portador.
.A instituição sacerdotal e os órgãos representativos dos Judeus:
Sinédrio, Sumo sacerdócio, Sinagoga.

3.2 Fontes para o estudo do Evangelho:


.Literatura judaica do tempo: Flávio Josefo, os livros dos
Macabeus, os escritos de Qumran, literatura apócrifa e pseudo-
epigráfica, a literatura rabínica e aqui a importância da Mishná, já
que é o texto que veicula e guarda a tradição do tempo de Jesus.
Muitas das tradições a que Mateus alude, orientadas para os cristãos

72
de origem judaica, são conhecidas pela Mishná, o que faz deste texto
um instrumento importante para o conhecimento do Evangelho. O
recurso ao Antigo Testamento é uma constante do texto de Mateus,
mormente nos primeiros capítulos (1-2: evangelho da Infância) e
depois nos capítulos 5 – 7 (o ensino em que Jesus, a partir do AT
procura deixar uma nova mensagem e uma nova identidade aos seus
discípulos). Nestes últimos capítulos (5 a 7), Mateus usa a Escritura
de acordo com a tradição judaica, ora citando de uma forma muito
próxima ao texto hebraico ora recorrendo à forma da tradição oral
que era escutada na Sinagoga, numa aplicação muito direcionada
para situações da vida concreta, em que o crente se via agora
confrontado com a experiência pascal.
Em Mateus, temos dois tempos na vivência histórica da
Escritura: um ‘antes’ (ouvistes o que era a tradição dos antigos…) e
um ‘presente’ (agora, porém, Eu digo-vos). Aqui nasce uma nova
traditio que se vai consolidar nas Comunidades cristãs onde é vivido
o carisma consignado à volta de Mateus e refletido na obra que ele
nos legou. Por isso, não é possível olhar este Evangelho sem o
enquadrar no contexto dramático do período das sus origens. Sem
perdemos a referência ao kerygma de Jesus, importa ter presente que
o texto tem um contexto redacional que em termos de tempo
histórico é bem diferente daquele em que Jesus tinha vivido e
proclamado a sua mensagem.
.O Antigo Testamento no Novo Testamento – sua releitura e
compreensão da vida de Jesus a partir da Tradição.
4. O Uso das Escrituras:
Um dos elementos fundamentais a ter em conta na construção da
Tradição Sinótica e, especialmente em Mateus, é o uso e o recurso às
Escritura, ou seja, ao AT. Trata-se não apenas de ter em conta o seu uso por
parte dos Autores dos Evangelhos Sinóticos em geral, aliás muito
abundante e diversificado, mas também de prestar atenção à forma como os
textos do AT são lidos e enquadrados no Evangelho de Mateus. O recurso
às Escrituras não se faz apenas pelos textos. Há também o enquadramento
‘tipológico’, retomando figuras do AT, cenários, alusões, etc., e faz-se
ainda pela ‘Traditio’ – a Tradição oral.
Um dos textos mais explícitos, quase paradigmático para todo o
processo do NT, é aquele que nos é apresentado em Lc 24, no episódio dos
Discípulos de Emaús: Lc 24,25-27 (cf. Jo 5,39; At 8,30-35). Por aqui
podemos verificar que o recurso às Escrituras (AT) era o primeiro suporte
da identidade messiânica de Jesus e elas davam sentido à vida e à missão
do Mestre. Como judeus que eram, a Escritura era o grande suporte da fé
dos discípulos no Mestre. No entanto, é preciso ter presente que o modo

73
como muitos dos discípulos (talvez exceto Paulo) e dos seguidores de Jesus
tinham acesso à Escritura não era uma forma erudita, uma forma direta e
pessoal de acesso. Conheciam as Escrituras através do serviço sinagogal,
mediante a explicitação dos Mestres e dos ‘tradutores – Meturgeman – que
dirigiam a palavra ao povo e explicitavam o sentido dos textos. O
conhecimento da Escritura era mediado pela versão sinagogal e pelas
interpretações que aí eram feitas. Em muitas comunidades cristãs, esse
acesso ao AT foi mediado pela versão dos LXX, em língua grega, tendo já
presente as perspetivas teológicas a que essa Tradução obedece.
Assim, nesta leitura das Escritura o acontecimento pascal tem uma
função determinante; é ele que vai iluminar e ‘abrir’ o sentido da Escritura.
‘Abrir o sentido’, ter acesso à Escritura era um processo muito importante
no Judaísmo. É o ‘Espírito Santo’ quem abre a mente e o coração ao
sentido da Escritura. O mesmo se diz no NT: Jesus promete o Espírito
Santo para que Ele abra o coração dos crentes ao sentido da Escritura e
assim possam compreender que elas só têm sentido em Jesus.
Por isso, ao acreditarem em Jesus, os seus seguidores buscam
encontrar no AT o fundamento daquilo que acreditam e compreender a
missão d’Aquele que é ‘acreditado’ à luz da Escritura. Deste acreditar
nasce então o processo de escrever, de testemunhar e transmitirem o seu
testemunho. O recurso à Escritura é um processo de historicizar (dar
sentido e dimensão ao testemunho) que antecede o processo de registar na
História (escrever) o testemunho recebido e transmitido. Tudo isto se faz
num contexto muito próximo e muito semelhante ao que sucede no
Judaísmo. Assim, todo aquele que regista e testemunha a sua fé
(Evangelhos) tem de ser também um especialista, um conhecedor do
Judaísmo, já que a semelhança dos processos é profunda. Deste modo, a
Comunidade pós-pascal acredita Jesus tendo como base desse acreditar o
AT e também os ‘sinais’ dados pelo Mestre.
Ao debruçar-se sobre a Escritura para fundamentar a fé no Mestre, a
Comunidade cristã recorre a um processo de derash (buscar, interpretar,
procurar o sentido) no que diz respeito ao AT, seguindo, tal com o fazia o
Judaísmo, 2 princípios básicos:
.a unidade de toda a Escritura (a Escritura é única e nela perdura a
verdade que se explicita nas suas partes;
.há que explicar qualquer texto da Escritura mediante outros textos
da Escritura.
Como facilmente se constata, estes princípios estão pressupostos nos
autores e nos escritos do NT que, sem temores nem receios, recorrem ao
AT e assim fundamentam a fé em Jesus. Todavia, nem sempre essa
fundamentação é feita da mesma forma. Importa ter presente que muitas
vezes o recurso ao AT é apenas feito de forma abrangente, talvez resultante

74
daquilo que eram os processos de acesso á Escritura através da leitura e do
serviço sinagogal. Os processos hagádikos e halákicos, tão comuns à
exegese judaica do tempo, estão aí bem presentes73, o que significa que os
autores do NT conheciam-nos e serviram-se deles.
O acontecimento de Jesus que mais fundamentação do AT carecia e
apresenta é certamente o ‘mistério pascal’ (morte e ressurreição). Os ecos
disso são inúmeros, tanto nos Evangelhos como também nos Atos dos
Apóstolos, mormente nos chamados ‘Credos’ da Igreja das origens. Aliás,
as alusões ao AT nos relatos da paixão são uma constante, mesmo que nem
sempre sejam citações explícitas. As alusões podem assumir um caráter
genérico ou mesmo uma espécie de prefiguração tipológica, mormente à
figura de Moisés, Isaac, Jeremias e outros.
5. O Autor, de nome Mateus e publicano de profissão:
Mateus, como já atrás referimos, é apresentado no Evangelho como
sendo ‘publicano’. O termo que os textos do NT usam é ‘telones’,
precisando nós de definir e demarcar este conceito para bem
compreendermos o seu sentido e o alcance que tem no quadro da realidade
política e social do tempo. Não podemos olhar apenas para a pessoa
Mateus, mesmo que incluído na designação de publicano, sem percebemos
o contexto em que telones se integra e o sentido simbólico, mesmo de
caráter negativo, que isso possa acarretar.
5.1 O conceito fundamental de ‘publicano’ (Telones):
Segundo Michel (Grande Lessico del Nuovo Testamento), a palavra
é composta de dois elementos: telos (imposto indireto) e o verbo ônéomai
(no sufixo nes) que significa ‘comprar’, designando assim ‘uma pessoa que
compra ao estado o exercício dos direitos estatais de impostos e recolhe os
impostos dos devedores.
O sistema não era exclusivo da Palestina e, menos ainda, uma imposição
do poder romano sobre os habitantes da região. Pelo contrário, o sistema é
usual na antiguidade, já praticado em Atenas que, como Pólis – estado,
recolhia impostos juntos dos habitantes, assim como dos recursos
disponíveis de então: terrenos, casas, minas, etc. No período da Atenas
clássica (séc. V e IV), havia já um sistema jurídico que regulamentava o
exercício daqueles que se dedicavam à cobrança dos impostos para que esta
atividade tivesse uma cobertura legal. O cobrador dos impostos devia
garantir ao governo aquilo que tinha sido contratualizado entre as duas
partes, não se importando as autoridades da cidade com a forma como isso

73
Pode-se verificar isso no conjunto dos procedimentos a que aludo no meu livro Hermenêuticas
Bíblicas, UCE, Lisboa, 2011.

75
era conseguido nem com a contabilidade que esse mediador fazia em seu
proveito. O que o cobrador (o telones) tinha a fazer era garantir perante a
autoridade com quem tinha contratualizado a cobrança dos impostos que a
importância devida era entregue, podendo chegar mesmo a uma prática de
adiantar essa importância, caso as autoridades precisassem da quantia
antecipadamente, para satisfazer compromissos políticos ou
administrativos.
Esta atividade podia ser exercida por pessoas singulares ou por grupos,
autênticas sociedades que se dedicavam a essa atividade. O governo, fosse
local, de uma cidade, por exemplo, ou internacional, de um império,
negociava esta ‘cobrança’, garantindo o direito de cobrança a quem mais
oferecia, o que permitia, naturalmente, uma prepotência muito grande sobre
aqueles a quem eram exigidos os impostos. Esta prática tornava-se mais
gravosa no caso dos impostos aduaneiros sobre aqueles que
comercializavam os produtos da região, precisando de se deslocarem para
colocar as suas mercadorias em praças onde mais poderiam ganhar.
Algo semelhante sucedia também no mundo religioso, junto aos
templos, embora neste caso não se fale de cobrança de impostos, mas sim
de ‘cambistas’ que recorriam a uma técnica semelhante, como se pode
constatar pelos relatos evangélicos (Mt 21,12; Mc 11,15; Jo 2,15). Como
nos templos, designadamente no de Jerusalém não era possível fazer ofertas
ou pagar compromissos em dinheiro profano, com efígies de soberanos ou
imagens que violavam os preceitos cultuais, os peregrinos desses templos
tinham de fazer o câmbio do seu dinheiro para a moeda específica desse
templo, impondo taxas de câmbios que, muitas vezes, eram abusivas e
exploradoras das boas intenções dos devotos que ali se deslocavam. Os
titulares dos templos, no caso do de Jerusalém seriam o Sinédrio e o Sumo-
sacerdote, vendiam igualmente a função desses câmbios, o que suscitava
igualmente uma grande repulsa pela usura a que o processo dava azo. No
entanto, para este caso, os Evangelhos não recorrem ao termo ‘publicano’
(telones), mas sim a ‘cambista’ (- em Mc/Mtassim como
- em Jo). A função, embora fosse merecesse alguma
suspeição, não suscitava o ódio com que era olhada a dos publicanos, uma
vez que o dinheiro recolhido se destinava ao Templo e não às autoridades
políticas que dominavam o país.
5.2 O que sucedia na Palestina?
No que diz respeito à Palestina, a prática da ‘venda’ dos impostos
do estado a cobradores que os recolhiam e que deviam entregar aos
governos as quantias estipuladas nos respetivos contratos estava já em uso
nos finais do séc. IV (aC), na altura em que Protomeu II (308-246)
controlava o território palestinense. Nesse período, havia um responsável
geral pelos impostos (uma espécie de atual ministro das finanças) que

76
depois vendia essa cobrança a quem localmente, nas diversas localidades e
circunscrições do império, garantisse melhores proveitos.
Segundo Flávio Josefo, a prática corrente no território palestinense
não foi sempre a mesma. Ao tempo que o país era controlado pelo Egito
(de 312 a 198 aC), o poder egipciano vendia os impostos a quem oferecesse
mais proveitos, como aliás já referimos, ao passo que após a batalha de
Banias (ao sopé do Hermon, em 198) quando o território passa para o
controle dos Selêucidas da Síria, esses impostos eram garantidos pelos
cidadãos mais notáveis das cidades e das regiões do território que os
colhiam e deviam garantir junto do rei, como representantes da sua cidade
natal. Este processo não parece ter uma finalidade lucrativa, mas antes
representativa, tendo, certamente, como contrapartida o controle e
liberdade desses cidadãos dentro das respetivas cidades que, libertas dos
poderes tradicionais, mantinham uma estreita relação com as autoridades
do império, perante as quais respondiam.

No que à prática do império romano na região diz respeito, sabemos


que Pompeu, após a tomada da Palestina (em 63 aC), impôs às autoridades
locais o pagamento de um imposto de que era responsável o Sumo-
sacerdote74. No entanto, após as revoltas internas em 57 (aC), o novo
governador da Síria, Gabino, retirou este direito a Hircano, reduzindo-o
apenas à função de Sumo-sacerdote, dividindo o território em 5 distritos
( ou ), cada um à volta de uma cidade75, competindo
agora às autoridades de cada uma dessas circunscrições administrativas
pagar os respetivos impostos, uma espécie de distritos fiscais unitários. É
nesta altura que se formam aquilo que podemos designar de ‘societates
publicanorum’ (sociedades de publicanos) a quem era confiada a função de
recolher os impostos devidos.
Após a vitória na batalha de Alexandria, em 47 (aC), César
restruturou a governação na Judeia, concedendo, de acordo com as
informações de Flávio Josefo aos habitantes um aligeiramento dos
impostos, isentando o ano sabático e permitindo uma forma dupla de
pagamento: em dinheiro e em géneros.

Qual foi a prática de Herodes? Conhecer este período é um elemento


importante, diria mesmo necessário, para enquadrar o acontecimento Jesus
Cristo e os testemunhos que dele nos são apresentados, os seja, os
Evangelhos. É verdade que entre estes dois momentos, o acontecimento
Jesus Cristo e as narrativas evangélicas, medeiam cerca de 40 anos. No

74
F. JOSEFO, De Bello Jud., I, 154-158; Ant., 14,73-76.
75
F. JOSEFO, De Bello Jud., I, 167-170; Ant., 14,89-91.

77
entanto, o enquadramento histórico e social, mormente em Mateus, é de
grande continuidade. Vejamos, então, o que carateriza este período
marcante do Novo Testamento que foi o tempo do governo de Herodes.
No início (pelo ano 37 aC), quando os romanos lhe confiaram o
governo do território, Herodes devia pagar um imposto pelas regiões da
Idumeia (a sul, região do Neguev e zona costeira a sul) e da Samaria (zona
central entre a Galileia e a Judeia). Porém, no ano 30 aC, o imperador
Augusto após ter consolidado o seu poder no império, isentou Herodes do
pagamento de qualquer imposto devido às autoridades do Império, podendo
ele assim dispor das finanças locais sem qualquer restrição76, facto que
pode justificar em grande parte as monumentais obras que então levou a
cabo no espaço do território que lhe tinha sido confiado. No entanto, não
são muito claros os procedimentos de Herodes no que concerne à cobrança
de impostos. Em vez de fazer um ‘leilão’ dos impostos, terá procedido à
sua cobrança de forma direta, tal como o vieram a fazer os seus dois filhos:
o etnarca Arquelau, sobre a Judeia e a Samaria e o tetrarca Herodes Antipas
nos territórios sobre sua administração (Galileia e Pereia)? Com a
deposição de Arquelau no ano 6 (dC), os romanos passaram a
administração do território da Judeia para um Prefeito militar, fazendo da
Judeia uma província sob tutela militar, o que viria manter-se até ao ano 41.
A capital política e administrativa passa a ser Cesareia marítima e
Jerusalém é, agora, apenas a capital religiosa e simbólica para o judaísmo.
É neste contexto que Herodes Antipas, governador da Galileia e da
Pereia, restaura o sistema da contratação dos impostos e, segundo O.
Michel, o episódio de Mateus em Cafarnaum (9,9) tem aqui a sua
contextualização77, já que os impostos aí recolhidos tinham essa finalidade,
uma vez que se destinavam a engrossar as finanças do governador. Não é
claro se este mesmo sistema vigorava também na Judeia após a passagem
do governo para a administração direta dos romanos, já que competia ao
Prefeito proceder à sua recolha. É verdade que a Judeia, como província
imperial, estava isenta de pagar impostos ao aerarium populi romani,
poderia, no entanto, pagá-los à pessoa do Imperador, sendo este o sentido
do chamado tributo (ou fisco) a que alude Marcos em 12,14-17. Trata-se
aqui, é bom dizê-lo, de um outro tipo de imposto que parece não caber nas
competências da recolha a que procediam os Publicanos, os telones, já que
esta não era contratualizada.
Assim, no período neotestamentário, os impostos diretos não eram
entregues em contratualização, e temos a impressão, no dizer do já citado

76
De acordo com os dados de F. Josefo (cf. Ant., 17,205; De Bello Jud., I, 426-428; Ant., 15,365; 17,299-
316, Herodes podia introduzir novos impostos e também conceder isenções fiscais.
77
O. MICHEL, ‘’, in Grande Lessico del Nuovo Testamento, 1079.

78
O. Michel78, que seria o Sinédrio sob o controle do governador o
responsável pelo pagamento deste imposto, a quem competia também o seu
arrecadamento. Flávio Josefo alude a um episódio que tem no centro a
pessoa do rei Herodes Agripa (41-44 dC)79 que, após ter sido insultado pelo
povo e abandonado Jerusalém, enviou alguns notáveis da Judeia a Cesareia
ao governador para que este escolhesse e designasse entre os enviados
aqueles que poderiam fazer a recolha dos impostos. Embora procurasse
respeitar as tradições locais sobre a forma de recolha dos impostos, o
modelo variou também de acordo com o estatuto político que cada região,
ora recorrendo a um sistema de subconcessão a pequenos grupos locais,
designadamente em localidades que se situavam nas vias comerciais, onde
eram recolhidas a taxas aduaneiras ou, então, entregando-os às autoridades
locais que depois deviam pagar ao Império (versus pessoa do imperador ou
ao Senado) as quantias acordadas. Pela sua posição numa das vias
comerciais da região, mormente de contacto com as cidades autónomas do
interior, Cafarnaum tinha aqui uma posição estratégica e será isso que
confere maior destaque ao caso de Mateus.
Conclusão: Valorização ética e moral da atividade de publicano:
Na antiguidade, os cobradores de impostos eram temidos e
desprezados pelas populações. De facto, e como bem sabemos, ninguém
paga de forma voluntária os seus impostos e, mais ainda, quando sabemos
que os proveitos recolhidos se destinavam aos poderes estrangeiros que
dominavam os respetivos países. Partindo daqui, podemos dizer que há
dois motivos que nos ajudam a compreender o desprezo e a
desconsideração com que eram tidos os ‘cobradores’, ou seja, os telones
(publicanos), os homens dos postos de cobrança.
.O 1º desses motivos tem a ver com o poder com que esses
cobradores atuavam, a coberto do estatuto que as autoridades políticas e
militares lhes garantiam, a fim de obter as quantias que com elas tinham
contratado. Essas autoridades podiam ser locais ou do Império. Nas vias
comerciais, os postos de cobrança multiplicavam-se de região em região,
tornando assim difícil e pesada a tarefa dos comerciantes que por elas
circulavam. Significa isto que a pax romana que era imposta acabava por
ser paga a peso de ouro e os cobradores dos impostos eram, no fundo, o
rosto visível dessa pesada obrigação.
.O 2º motivo, tem já uma dimensão mais pessoal e talvez menos
social. Como a quantia a pagar estava contratualizada, os mediadores da
sua cobrança procuravam todos os meios para aumentar os proveitos,
recolhendo para si a parte que superava a quantia que tinha sido

78
IDEM, 1080.
79
F. JOSEFO, De Bello Jud., 2, 405 - 407.

79
contratualizada. Assim, os publicanos, os telones, procuravam por todos os
meios extorquir tudo quanto lhes era possível, muito para além do que a lei
lhes permitia. Os litígios eram frequentes. Apesar de tudo estar regulado
por leis, nem sempre estas eram conhecidas pelos comerciantes, mormente
aqueles que caminhavam nas grandes estradas da região, vindos de fora,
sujeitos a pressões e necessitados de fazer negócios. Muitas vezes, só os
executores dessa recolha conheciam com precisão as normas que
orientavam a cobrança. O próprio imperador Nero, segundo conta Tácito80,
viu-se forçado a fixar nos postos aduaneiros as normas que deviam orientar
a cobrança dos respetivos impostos, procurando desta forma introduzir
alguma moralidade no processo, tal como era próprio do direito romano.
É neste contexto que o judaísmo do tempo associava os publicanos
ao domínio romano e, ao mesmo tempo, a formas desonestas de ‘fazer
dinheiro’. Os códigos éticos do período rabínico tratam os publicanos como
ladrões, bandidos e impuros. Isso, deve-se não apenas às cobranças fiscais,
mas também ao facto desses cobradores estarem em contato permanentes
com os gentios, os impuros que não respeitavam a Lei nem cumpriam o
sábado. Eram assim objeto de desprezo e tratados como ‘am ha’aretz
(Bek.b. 30b), ou seja, gente impura, sem cultura religiosa e sem dignidade
perante a Lei. É neste contexto que Mateus é convidado por Jesus para o
seguir. É assim que ele vai, através do seu Evangelho, abrir a mensagem de
Jesus a todos aqueles que, nas mesmas condições, galileus que vivem no
meio de gentios, são chamados a seguir o Mestre e é da Galileia que a Boa-
Nova se pode estender e anunciar a todos os povos.

80
Annales, 13,51.

80
IV - EVANGELHO DE LUCAS
A – O Mundo e a pessoa de Lucas
Introdução
A importância do estudo do Evangelho de S. Lucas, para além do
valor em si do texto, este ano litúrgico vem ainda reforçar mais essa
importância, oferecendo-nos assim a possibilidade de seguir um percurso
de fé, apoiados e guiados pelo evangelista S. Lucas, fazendo tal como ele
fez uma aprendizagem e uma aproximação a Jesus a partir da sua
mensagem. Antes de mais, importa ter presente que Lucas não conviveu
nem partilhou diretamente com Jesus. Ele não foi um testemunho ocular do
acontecimento Jesus Cristo, não teve a dita de o seguir em pessoa nem de o
escutar diretamente, tendo chegado a Jesus através do ministério de S.
Paulo. Por isso, é muito importante ao olhar para este Evangelho sentir e
pressentir nele o empenho de Paulo, o seu dinamismo e a novidade que o
‘Apóstolo dos gentios’ deu ao anúncio da fé em Jesus.
Lucas não só faz a experiência de Jesus com Paulo, nos seus
trabalhos de missão, mas para além disso quis também deixar-nos um
testemunho muito mais eloquente e ousado do anúncio da Boa-Nova:
oferecer-nos uma obra única, em dois tempos, composta pelo testemunho e
a experiência de Jesus, na 1ª parte – o Evangelho, e pelo anúncio da Boa-
Nova por Paulo e seus companheiros de missão, na 2ª parte, os Atos dos
Apóstolos. Este projeto de Lucas empresta à sua obra uma nova visão,
deixando-nos novos desafios, como que a dizer que o kerygma cristão não
se esgota no testemunho vivido e partilhado com Jesus (a narrativa do
Evangelho), mas compreende também a vivência do anúncio do mesmo (os
Atos), no espaço de um mundo novo, totalmente diferente daquele da
Palestina. Aliás, esse mundo do anúncio da Boa-Nova era aquele de onde
provinha o próprio Lucas, o mundo da cultura grega, o que justifica bem a
forma e o empenho que ele colocou na sua obra. Por isso, importa ter
sempre presente esta unidade Evangelho-Atos, sabendo que uma
complementa a outra e na intenção de Lucas essa unidade apresenta-se
como fundamental. Trata-se da obra de maior envergadura em todo o NT,
superando o conjunto das Cartas de Paulo81.

81
A obra de Lucas (Evangelho-Atos) é formada por 37.778 palavras; as Cartas de Paulo contêm no seu
conjunto 32.303.

81
1. Quem era Lucas:
Tomando como ponto de partida o texto do Evangelho, podemos
dizer que o ambiente social e cultural não difere grandemente dos outros
dois evangelhos sinóticos: Mateus e Marcos. Sabemos também que cada
um deles tem caraterísticas próprias, motivadas pela pessoa do autor, pelos
destinatários para quem é orientada a obra e também pelo local da sua
composição. Estes fatores, mesmo que não sejam determinantes, tiveram
influência na composição de cada um deles. É verdade que estamos em
presença do mesmo e único Jesus, com o mesmo grupo de discípulos,
percorrendo o mesmo espaço geográfico, orientando o seu itinerário para
Jerusalém e a consumação dessa caminhada acontece, em todos eles, na
narrativa do mistério pascal, na ressurreição do Senhor e na fé daqueles que
o seguiam.
Não nos alongando nas caraterísticas dos outros dois, vamos
debruçar-nos sobre aquilo que singulariza o Evangelho de Lucas e que
pode contribuir para melhor o compreender. Este é o nosso objetivo.
a) A pessoa de Lucas:
Conhecer a pessoa do autor é o dado fundamental para poder
aceder ao conteúdo e ao significado de um texto. Isto é verdade em todos
os escritos e não deixa de o ser por se tratar de um texto evangélico. Como
já antes referimos, Lucas não conviveu diretamente com Jesus. Como se
chega ao conhecimento de Lucas e como chegou ele ao conhecimento de
Jesus?
O autor do 3º Evangelho é um homem instruído do mundo grego, um
artista da escrita com uma grande sensibilidade, um historiador atento às
suas personagens, no Evangelho, a Jesus e nos Atos, a Paulo, tendo
procurado documentar-se sobre aquilo que é narrado. Ele mesmo se
apresenta como um crente que encontrou em Jesus o seu salvador e o seu
grande objetivo é segui-lo.
Comecemos por olhar a forma como se fez a atribuição do texto
(Evangelho e Atos) a Lucas. No séc. II, quando se fez o agrupamento dos
textos apostólicos que nos apresentavam Jesus, em ordem à constituição do
Cânon do NT, à semelhança do que existia no Judaísmo com o AT, aos
textos atribuídos a Lucas foi-lhes dada a designação que chegou até nós:
Evangelho, ao 1º, que nos fala de Jesus e, Atos dos Apóstolos, ao 2º que
nos narra a caminhada da Igreja nascente e a evangelização levada a cabo
pelos discípulos, com destaque para missionação de Paulo. Assim se dá
forma conhecida ao Evangelho segundo Lucas, designação atribuída e
aceite pela Comunidade, enquanto à 2ª obra se designa por Atos dos
Apóstolos, sem aludir ao seu autor. No entanto, a tradição antiga da Igreja
sempre teve presente que se tratava de uma obra em duas partes, atribuída à

82
mesma pessoa e esse autor era Lucas. Tanto o Evangelho, quanto os Atos,
nenhum dos textos nos apresenta o respetivo autor de forma explícita.
b) Os dados internos do texto:
O autor do Evangelho começa por nos dizer que ele mesmo não
foi testemunha ocular daquilo que Jesus fez e que ele vai narrar (1,1-2),
escrevendo a partir daqueles que disso foram testemunhas e junto de quem
procurou recolher os dados que nos transmite. Pelos Atos, ficamos a saber
que foi companheiro de Paulo na obra da evangelização, na segunda e
terceira viagem apostólica, através das secções que podemos identificar
com o pronome ‘NÓS’, numa possível referência inclusiva em que ele
mesmo se inclui: At 16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1-28,16. Como
veremos pelos dados externos à sua obra, esta identificação de Lucas como
discípulo e companheiro de Paulo remonta já à tradição da Igreja desde o
séc. II (com Marcião, Santo Ireneu, em “Contra as Heresias” (Adversus
Haereses), 3,1.1; 3,14.1 e outros).
c) Dados externos aos textos:
Recorrendo a dados externos ao Evangelho-Atos, Lucas aparece
nas Cartas Paulinas, onde é apresentado como companheiro de missão: Col
4,14; 2 Tm 4,11. Fl 24. Paulo, para além de companheiro de missão, refere-
se a Lucas como ‘médico querido’ (Col 4,14). É verdade que, para além
destas referências nas suas Cartas, Paulo nunca coloca Lucas em destaque,
nem lhe dá aquela relevância que alguns dos outros seus companheiros de
missão vêm a ter, como são os casos de Timóteo, Tito, etc. Qual a razão
deste silêncio? Terá acontecido alguma rutura entre ambos? Lucas apostou
na obra de escrever, deixando o grupo de Paulo para se dedicar a essa
tarefa? Não existe uma explicação clara, conhecida e aceite na tradição da
Igreja. No entanto, a partir do séc. II a tradição da Igreja é unânime e são
muitos os textos a referir Lucas como tendo escrito as ‘memórias do
Senhor’ (S. Justino, Diálogos com Trifão, 103,19, pelo ano 160), o Cânon
Muratori (por 170-180) atribui o terceiro evangelho a Lucas, ‘médico e
companheiro de Paulo. Estes elementos são mais tarde referidos também
por outros autores cristãos, tais como Tertuliano (séc. III), Eusébio de
Cesareia (séc. IV, Hist. Eccl. 3,4.2).
2. A Obra de Lucas:
A unidade da obra atribuída a este companheiro de Paulo nunca foi
posta em causa e só no séc. XIX, quando se começou a olhar mais para
dentro dos textos, para o seu estilo narrativo, para a comparação do
vocabulário entre uma e outra e para o seu conteúdo teológico é que
aparecem algumas dúvidas sobre esta mesma unidade. No entanto, tais
dúvidas nunca abalaram a tradição da Igreja acerca desta pertença a Lucas.

83
Trata-se de alguém que não foi testemunha presencial e vivencial de
Jesus; que não acompanhou Jesus na sua caminhada, como o fora Mateus e
João. Ele mesmo o diz no Prólogo ao Evangelho, num pequeno texto,
muito esclarecedor acerca do sentido do deu evangelho e do seu empenho
em apresentar um testemunho fiel e credível acerca de Jesus:
“Visto que muitos procuraram compor uma narração dos factos que entre
nós se realizaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio
foram testemunhas oculares e se tornaram "Servidores da Palavra", resolvi
eu também, depois de tudo ter cuidadosamente investigado desde a
origem, expô-los a ti por escrito e pela sua ordem, caríssimo Teófilo, a fim
de reconheceres a solidez da doutrina em que foste instruído” (Lc 1,1-4).
Este Prólogo é profundamente esclarecedor da intencionalidade que
leva Lucas a compor o Evangelho. A forma como o faz deixa supor já uma
mentalidade diferente, de alguém que vem de um mundo e de um espaço
cultural diferente, que não fundamenta a sua narrativa apenas naquilo que
recebeu da traditio, que lhe foi dado conhecer, mas ele mesmo quis ir à
procura daquilo em que se fundamentava o dado recebido, o kerygma que
lhe fora dado a conhecer e que ele acredita. Temos assim, que Lucas não
foi testemunha da 1ª geração que acompanhou o Senhor, mas sim da
segunda (70-100 dC), daquela que acompanhou os Apóstolos e os ajudou
na missão.
Trata-se de uma pessoa culta, médico de acordo com a tradição, o
que justifica os muitos pormenores que Lucas nos oferece no Evangelho,
mormente no que diz respeito aos doentes, a atenção que dispensa aos
marginalizados e mais frágeis da sociedade do seu tempo. Nascido fora da
Palestina, provavelmente num ambiente de cultura helenística, Lucas não
se mostra muito familiarizado com o ambiente da Palestina, embora
conheça bem o AT e o use bem nos seus escritos, mormente através da
versão Grega dos LXX que seria aquela que lhe serviu para fundamentar a
sua narrativa evangélica.
3. O mundo de Lucas:
Tal como os outros Evangelhos Sinóticos, Lucas enquadra-se muito
bem no mundo do seu tempo, abrindo o Evangelho que narra a novas
intuições. Cito apenas algumas:
.A atenção que dedica ao feminino, com destaque para um conjunto
de mulheres que o acompanham o Senhor e são curadas por Ele
(8,43-48); defende-as e perdoa-lhes (7,36-50; 13,10-17); a
ressurreição do filho da viúva de Naim (7,11-17). Ao contrário do
costume da época, acolhe-as no seu grupo, faz delas suas discípulas
(8,1-3) e ensina-as (10,38-42). São também as mulheres que em
Lucas são os primeiros testemunhos da ressurreição, recebendo o
encargo de ir anunciar aos discípulos (24,1-11.22);

84
.O tema da misericórdia e do perdão sempre presente nas suas
narrativas, dedicando-lhe algumas das mais belas páginas do seu
texto: o Filho Pródigo, a ovelha perdida, a dracma perdida (Lc 15);
a parábola do bom Samaritano (10,29-37);
.O sentido itinerante que confere a vários momentos que nos
apresenta e que são apenas seus; recordo: a visitação (1,39-56), os
discípulos de Emaús (24,13-35);
.A procura dos pecadores e publicanos: Zaqueu (19,1-10), o fariseu e
o publicado (18,9-14).
Estes episódios e outros, mostram-nos que Lucas presta atenção a um
conjunto muito diversificado de situações que não são comuns aos outros
textos evangélicos, o que faz dele um evangelista muito humano e sensível
a tudo aquilo que representa situações e pessoas que precisam e procuram
ser salvas.
Por estas indicações e outras, talvez fruto da experiência missionária
de Lucas e da vivência feita com Paulo, o mundo de Lucas abre-se a um
horizonte que vai muito para além daquele que era próprio do ambiente
judaico da Palestina, mormente das questões religiosas entre os grupos
palestinenses (Fariseus e Saduceus), os preceitos rituais do cumprimento da
Lei mosaica (o Templo, os Sacrifícios), a separação entre ‘puros e impuros’
(os Publicanos, os pecadores, a relação com os gentios). Lucas rompe com
esse universo de marginalizações e de exclusão para nos oferecer muitas
perspetivas de inclusão à volta de Jesus. Perante um judaísmo que fazia da
exclusão e da separação uma das suas prioridades, o Jesus de Lucas
oferece-nos uma dimensão se inclusão que a todos incorpora através das
palavras e dos braços misericordiosos de Jesus. Temos aqui uma das notas
mais caraterísticas deste evangelho: ele é uma porta de esperança para um
novo mundo e uma nova humanidade.
Em Lucas não se sente a pressão política do tempo, mas nem por isso
são menores as expetativas e as esperanças que o povo judeu acalentava
nessa época. Muitas dessas expetativas têm também uma grande tensão da
época.
Aludimos, de forma muito sucinta, ao contexto cultural, período
que vai de 64 (aC) a 70 (dC); algumas coordenadas desta época:
.A presença da cultura helenística (grega) e a sua influência na
sociedade judaica, mormente a partir do governo dos chamados
Asmoneus (João Hircano, 134-102 aC), continuada pelo poder
romano (conquista em 64 aC) e que condicionará o tempo de Jesus.
Este fator é um elemento importante para compreender os textos
evangélicos;
.As cidades livres e autónomas: Decápole; redução dos poderes
tradicionais e religiosos; espaços abertos onde se podia viver de
85
forma livre e autónoma face aos poderes religiosos tradicionais,
como era o do Sumo-Sacerdote em Jerusalém;
.Herodes e o domínio romano – a presença da família herodiana no
controle da Palestina; o tempo dos Procuradores (de 6 a 41 dC), com
o exercício do poder e do controle direto de Roma, como Lucas bem
deixa entender na apresentação que faz da geografia política do
tempo (3,1-2).
Para além desta realidade social e política da Palestina, Lucas
apresenta outras sensibilidades que podem estar intimamente ligadas à sua
origem, provavelmente vindo de ambientes externos ao Judaísmo, da sua
cultura helenista e, a nosso ver, da experiência missionária com Paulo,
fortemente marcada pela sua ligação à Igreja de Antioquia, de onde alguns
pensam que era originário, o que faz dele um homem ecuménico e aberto a
novas dimensões da vivência da fé.
4. Os destinatários da obra de Lucas (Ev e At):
Perante uma obra em duas partes, apesar de complementares, uma
pergunta se impõe: a quem se destina esta obra? Ela contempla apenas os
crentes oriundos do mundo grego (pagão) ou está dirigida também àqueles
que provinham do espaço cultural e vivencial judaico? O que nos dizem os
respetivos textos?
O primeiro destinatário do Evangelho é o ‘caríssimo Teófilo’ (1,3) a
quem Lucas trata de forma muito pessoal e de elevada estima com a
palavra grega krátiste (caríssimo, excelentíssimo, designação honorífica),
completando depois com um objetivo muito específico: “a fim de
reconheceres a solidez da doutrina em que foste instruído (1,4). Quem é
este Teófilo? Teria o Evangelho apenas um destinatário tão direto? São
apenas algumas das questões que se colocam e às quais não é fácil dar uma
resposta clara. Este Teófilo, tanto poderia ser um grego (pagão) ou um
judeu com um nome grego, como sucedia entre os judeus da diáspora ou
mesmo daqueles que vindos da diáspora regressavam a Jerusalém, tal como
o NT nos deixa perceber pelas diversas sinagogas existentes na Cidade
Santa com designações de zonas do Império: Sinagoga dos Libertos, dos
Cireneus, dos Alexandrinos e dos da Cilícia e da Ásia (At 6,9). Isto
significa que pelo nome pode estar a dirigir-se a um grego ou um judeu.
Assim, Teófilo poderia ser um cristão ou alguém que se preparava
para o ser, deixando antever que o mesmo estaria ainda em processo de
consolidar a sua fé. No entanto, e apesar de esta hipótese ser possível, o que
a obra de Lucas pretende é ajudar os crentes a fortalecer a sua fé em Jesus,
tratando-se, por isso, de uma designação comum, já que o Evangelho se
destina a todos aqueles que procuram encontrar em Jesus um verdadeiro
salvador. Isto mais se faz notar se nos ativermos ao computo geral do
Evangelho, ao sentido missionário que o mesmo assume, ao dinamismo de
86
procura e de seguimento de Jesus e aos temas inovadores e abertos em que
Lucas foca a sua narrativa, temas estes que ajudam a realizar esta
aproximação a Jesus de uma forma nova, sem se ficar preso às questões
judaicas de então. Carreira das Neves, na sua obra Evangelhos Sinóticos82,
compendia assim os objetivos da obra lucana:
“A defesa do cristianismo frente aos judeus e pagãos, a defesa de Paulo, a
necessidade da evangelização (At 1,8), a proposta teológica sobre o
desígnio universal de Deus em Jesus Cristo e na Igreja, a proposta
teológica do Espírito Santo e da palavra evangelizadora que vem substituir
a febre da parusia”.
Neste contexto, facilmente se compreende como Lucas, e talvez
também o próprio Teófilo a quem é dirigida a obra, sendo um pagão
convertido dá tanto destaque à ‘comensalidade que Jesus dispensa aos
pecadores nas narrativas do Evangelho e descreva com tantos pormenores
ao longo dos Atos as tensões entre cristãos e judeus (12,11; 21,12-19) e
entre pagãos e cristãos, como sucede à volta de Paulo83. É desta forma que
Lucas mostra que afinal foram os judeus que rejeitaram a proposta de
Jesus, o salvador enviado por Deus conforme as esperanças messiânicas do
AT, como fica bem expresso logo na Anunciação, com a referência ao
‘Emmanuel’ (Is, 4,14). Para os judeus, Jesus estava dominado por Belzebu
(11,14-23), enquanto Jesus recomenda aos seus seguidores “acautelai-vos
do fermento dos fariseus” (12,1).
5. Data e fontes da obra de Lucas (Ev e At):
Em geral, a tradição cristã coloca a redação dos Evangelhos
Sinóticos no início da década de 70, na sequência dos graves
acontecimentos que tiveram lugar na Judeia (a guerra contra Roma, a
destruição do Templo, o fim do culto judaico, a eliminação da classe
sacerdotal, etc), o que motivou também a dispersão da Comunidade cristã
da Palestina. Já antes, fruto da perseguição dos Judeus, parte da Igreja se
tinha deslocado para Antioquia e é de lá que parte Paulo e Barnabé para as
tarefas da evangelização. Admite-se que Lucas poderia ter partido dali
também na companhia de Paulo, tendo vindo mais tarde para a Palestina a
fim de recolher de forma rigorosa os testemunhos a que alude no Prólogo
do Evangelho.
É neste contexto que devemos situar a obra de Lucas, tendo já presente
alguns dos acontecimentos a que antes aludi, designadamente a destruição
de Jerusalém (21,3-28). A forma como Lucas dá sequência às palavras de
Jesus acerca de Jerusalém e do Templo testemunham já que algo tinha
acontecido e que materializava os anúncios feitos: “Quando estas coisas

82
J. CARREIRA DAS NEVES, Evangelhos Sinóticos, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2002, 326.
83
Idem, 327.

87
acontecerem, cobrai ânimo e levantai a cabeça, porque a vossa redenção
está próxima” (21,28). O mesmo se pode dizer da leitura da ‘Parábola da
figueira’ (21,29-33) e do convite à vigilância por parte dos discípulos
(21,34-36).
No que aos Atos se refere, a questão é mais complexa, mas a sua
composição deve ser um pouco mais tardia. Em geral, aponta-se o período
de 80-85, sendo, no entanto, estranho que Lucas nunca faça mensal das
Cartas Paulinas que nessa altura já circulavam pelas Comunidades,
algumas das quais eram certamente do seu conhecimento. O silêncio de
Lucas a tal respeito pode bem dever-se àquilo que ele queria destacar como
prioritário: a obra da evangelização e a centralidade da novidade de Jesus
na sua relação com todos aqueles que o procuravam: doentes, pecadores,
excluídos. O essencial para Lucas era a Palavra e a ação do Espírito.
Em relação às fontes da obra de Lucas, especialmente no que diz
respeito ao Evangelho, e tal como o autor refere, é de salientar, em primeira
mão, o empenho e o esforço que faz para se informar e recolher
diretamente os dados que lhe permitem ‘narrar as memórias do Senhor’.
Portanto, Lucas teve como primeira fonte, tal como o diz, a ‘traditio’
recebida e que ele procurou recolher: a tradição “daqueles que desde o
início foram testemunhas oculares e se tornaram ‘Servidores da Palavra’”
(1,2). Por isso, esta será a grande fonte de Lucas, o que lhe permite
oferecer-nos já uma compreensão e uma leitura crente do texto do
Evangelho. Desta ‘traditio’ pode fazer parte o Evangelho de Marcos,
aquele que segundo a tradição84 cristã terá sido o 1º a ser composto, mesmo
que isso corresponda a uma 1ª etapa, ainda algo distante da redação final
que nós conhecemos. Esta questão das fontes, que na antiguidade não tinha
grande importância, pois ela decorria dos dados da tradição, assumiu um
lugar central no estudo dos Evangelhos a partir dos séc. XVIII e XIX,
quando as correntes de pensamento buscavam a fundamentação de tudo e o
romantismo desejava chegar ao conhecimento do mundo antigo, pois o
ideal era voltar ao passado, conhecer a história do passado e reviver essa
mesma forma de vida. Com os Evangelhos sucedeu também o mesmo e daí
surgiu a grande questão sinótica, ou seja, reencontrar a forma e o modo
como os 3 Evangelhos (Mt, Mc e Lc) se entrecruzam e se relacionam entre
si.
Neste contexto, é comum a aceitação que Marcos é a fonte de onde os
outros derivam e que foi também esse o 1º a conhecer uma redação. É
interessante verificar alguns dados:
84
Utilizo nesta reflexão dois termos que podem gerar alguma confusão: ‘Traditio’ e ‘tradição’. Com a
primeira, pretendo em geral designar aquilo que é o dado da mensagem recebida e transmitida, o
conteúdo da mensagem acreditada, também designado por Kerygma. ‘Tradição’ pretende significar aquilo
que era aceite e tido como informação geral que se passava de geração em geração, mesmo que não seja
‘dogma de fé’.

88
.Lucas usa cerca de 55% daquilo que nos narra Marcos;
.dos 661 vv que tem Mc, Lucas usa cerca de 350;
.das 8485 palavas de Marcos, Lucas toma cerca de 7036.
Assim, torna-se claro que Lucas recebe de Marcos muitos elementos,
tanto no plano da sua obra como na temática central que é narrada. Lucas,
no entanto, dá destaque especial a vários aspetos que Marcos não destaca
com tanta evidência. Alguns exemplos; Logo no início, o chamado
‘Evangelho da Infância’ (Lc 1-2); o realce às mulheres que estão sempre
presentes na sua narrativa (Maria, Isabel, as viúvas, a de Naim e a da
esmola do templo, a pecadora, as mulheres que acolhem Jesus a caminho
do calvário, as que vão ao sepulcro, Marta e Maria, as mulheres que o
acompanham e apoiam com os seus bens (8,1-3); as ‘parábolas da
Misericórdia (Lc 15); na parte final do Evangelho, o ‘episódio dos
discípulos de Emaús’. Onde recolheu Lucas, que se preocupa em narrar os
factos acontecidos, informação para estes dados? A presença de Lucas em
Jerusalém, na companhia de Paulo, pode ter facultado a recolha de alguns
elementos junto da comunidade apostólica, junto de Maria e de outros
discípulos. Mas, como diz Fitzmyer, ‘pode ser assim’, mas é difícil
demonstrá-lo85.
Para além da ‘traditio’ recebida (talvez de Marcos como 1ª fonte),
Lucas recorre também ao Antigo Testamento, fazendo dele a grande
fundamentação para a sua narrativa e para a contextualização da mensagem
narrada no quadro da História da salvação. Lucas recorre ao AT através da
versão que lhe era mais próxima, uma vez que não saberia hebraico para ler
os textos na língua hebraica. Recorreu, por isso, à versão grega dos LXX,
tradução esta que em alguns passos já tinha feito uma interpretação mais
teológica (messiânica) de algumas passagens a que Lucas recorre. Veremos
isso na parte II deste nosso estudo.
6. A Geografia histórica do Evangelho de Lucas:
Os textos evangélicos situam-se todos no mesmo contexto histórico
e geográfico: a Palestina do tempo de Jesus. No entanto, casa evangelista
dá particular atenção a aspetos que nem sempre os outros destacam. Com
Lucas sucede o mesmo. Lucas começa logo por situar a narrativa do seu
Evangelho, dizendo: “No tempo de Herodes, rei da Judeia” (1,5). É
certamente um enquadramento histórico que situa o acontecimento no
quadro do governo da família de Herodes. A alusão a Herodes pode referir-
se a Herodes, o Grande, que dominou a cena política e administrativa da
Palestina desde o ano 40 (aC), nomeado pelo Senado romano como Rei-
amigo dos Romanos, governando por delegação deles, era um rei vassalo,

85
J. A. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, I, Madrid 1986, 155s.

89
até ao ano 4 (aC), altura provável da sua morte. Pode também referir-se a
um dos seus filhos, Arquelau, que lhe sucedeu na administração da Judeia e
que também é conhecido como Herodes. Dos 3 filhos de Herodes que ele
pretendeu fazer seus sucessores, a Arquelau coube a Judeia que
administrou por um curto espaço de tempo; cerca de 10 anos (4 aC a 6 dC),
sendo depois deposto pelos Romanos, quando então o governo da Judeia
foi confiado aos chamados Procuradores, ou seja, a governadores militares
diretamente dependentes de Roma.
Em seguida, Lc 2,1-2, temos de novo uma outra contextualização
histórica e geográfica, situando o nascimento de Jesus no tempo de César
Augusto (de 27 aC a 14 dC), quando Quirino era governador da província
da Síria, altura em que a Palestina dependia diretamente do Governador da
Síria. O recenseamento a que aqui se alude, deve ter acontecido mais tarde,
talvez pelo ano 6 (dC), mas que Lucas integra aqui para no quadro de um
ato administrativo do poder romano mostrar que nasce um outro Senhor do
mundo, aquele mesmo cujo poder é superior ao dos romanos. Aquilo que
Lucas pretende fazer com estes dados é, essencialmente uma leitura
teológica dos acontecimentos e não uma narrativa histórica, embora
procure situar o acontecimento num quadro histórico.
Finalmente, o quadro histórico e geográfico que Lucas nos dá é aquele
que é referido em 3,1-3, podendo nós aí encontrar já uma descrição mais
completa daquilo que era a verdadeira geografia política do tempo em que
Jesus exerce o seu ministério público. Trata-se, na verdade, de um quadro
muito importante, pois a geografia política da Palestina, após o tempo de
Herodes, o Grande, tinha sido muito compartimentada e isso marcará de
forma clara e evidente a atividade pública de Jesus. Temos aqui um
conjunto de pequenas regiões a que o Império havia concedido alguma
autonomia, desfazendo assim a tradicional autoridade dos descendentes de
Herodes e reduzindo também os chamados poderes locais, mormente das
autoridades religiosas de Jerusalém. De tudo isto de faz o texto de Lucas e
todos estes elementos são importantes para compreender alguns dos passos
que a narrativa de Lucas nos oferece. Além disso, isto explica também em
boa parte a liberdade de que Jesus beneficia na Galileia e nas chamadas
‘cidades livres’.

B - A obra e a teologia de Lucas


Introdução:
Depois de analisarmos alguns dos elementos que nos ajudam a
compreender o Evangelho naquilo que está na base da sua singularidade,
assim como no testemunho de fé que dele decorre, debruçamo-nos agora
mais sobre a obra em si, o texto, o plano e a estrutura do texto e, acima de
tudo, sobre alguns dos elementos teológicos mais significativos do 3º

90
Evangelho naquilo que é mais representativo da sua espiritualidade e do
seu pensamento teológico. O Evangelho é sempre um itinerário de fé; foi-o
na antiguidade e é-o hoje na vida da Igreja. Fazer a nossa aproximação ao
Evangelho não é uma finalidade em si; o objetivo é chegar a Cristo através
do Evangelho, fazer esta caminhada de aproximação ao mistério de Cristo
seguindo a proposta de Lucas e descobrindo nela aquilo que é fundamental
para fortalecer a nossa vivência cristã.
Embora a obra de Lucas, como já antes referimos, seja uma obra
composta, narrando duas etapas da História da salvação – a ‘memória de
Jesus e a vida da Igreja nascente à volta da pessoa de Paulo – nós aqui
debruçar-nos-emos apenas e só sobre o Evangelho, mesmo que a espaços
possamos ter de aludir a passagens dos Atos.
1. Plano e estrutura do Evangelho de Lucas:
Todo o texto do Evangelho tem uma centralidade cristológica e é a
partir de Jesus que toda a sequência ganha sentido e unidade. Uma
perspetiva destas é fundamental para poder unir as partes e compreender
como o texto se insere na História da salvação que Lucas reforça pelas
constantes citações e alusões ao AT que é, como facilmente se depreende,
uma das suas fontes principais, com que documenta toda a vida de Jesus
que nos é apresentada. Poderíamos dizer que, sem o AT, não há Evangelho
de Lucas ou, pelo menos, que sem as referências do AT falta-nos uma
chave de Leitura e um código de interpretação que nos permita fazer uma
interpretação correta dos seus objetivos.
Os grandes quadros, as grandes partes do Evangelho desenrolam-se à
volta de Jesus e têm sempre o seu centro da pessoa de Jesus e todos os
personagens convergem para Jesus.
O Evangelho começa com um Prólogo: 1,1-4;
Conclui-se com a Ascensão: 24,50-53.
Este texto tem a forma de um epílogo, uma conclusão que depois é
retomada em Atos 1,6-11. Há assim uma espécie de encadeamento do
Prólogo e da Ascensão no Evangelho no Prólogo e na Ascensão com se
inicia o livro dos Atos.
1.1 Primeiro movimento: 1,5-2,52 – O Evangelho da Infância:
A 1ª grande parte do texto é formada por aquilo a que normalmente
se dá o nome de ‘Evangelho da Infância’: 1,5-2,52. Há aqui duas figuras
centrais, em que a primeira converge para a segunda, ou seja, João Batista
converge para Jesus. Vejamos:
As duas Infâncias
João Baptista Jesus
1,5-25: Anunciação a Zacarias ………… Anunciação a Maria: 1,26-38

91
1,39-45: A visitação de Maria ……….. Cântico do Magnificat: 1,46-56
1,56-58: Nascimento do Baptista ……… Nascimento de Jesus: 2,1-20
Visita dos vizinhos ………… Visita dos Pastores
1,59-79: Circuncisão ………………… Circuncisão: 2,21
1,67-79: Profecia de Zacarias ……… Apresentação no Templo: 2,22-28
Profecia de Simeão e Ana
Benedictus ………………… Nunc dimitis
1,80: Vida oculta do Baptista …... Vida oculta de Jesus de Nazaré: 2,39-40
…………………………… Jesus no Templo aos 12 anos: 2,41-52
Temos aqui um paralelo perfeito, todo ele orientado para mostrar que
o Baptista vem preparar o caminho do Messias e que por ele, ainda filho do
AT, de um sacerdote e de uma mulher considerada estéril, Deus concede a
Israel um novo salvador, tal como o foram no passado Sansão, Samuel, etc.
Nesta curta narrativa, temos um conjunto de citações e alusões ao Antigo
Testamento que nos mostram como Lucas procura fundamentar aí a
mensagem que nos transmite e, ao mesmo tempo, deixar bem explícito que
aquilo que nos narra – o mistério da vida de Jesus – mais não é do que a
realização do plano de Deus já anunciado ao povo de Israel pelos seus
mensageiros:
.Sofonias 3,14-15: ‘Rejubila filha de Sião… o Senhor está em ti’.
.Isaías 7,14: ‘A virgem vai dar à luz um filho e dar-lhe-á o nome
de Emmanuel’.
.2 Samuel 7,14-16: ‘Eu serei para ele um pai e ele para mim um
Filho… o seu trono será para sempre’.
.Êxodo 40,35 (Nm 9,18-22): A nuvem cobriu a tenda da reunião
e a majestade do Senhor encheu o santuário’.
.Génesis 18,13-14: ‘O Senhor disse a Abraão: haverá alguma coisa
que seja impossível para o Senhor?’.
Tomando como referência estes textos, facilmente nos apercebemos
que toda a narrativa lucana está fundamentada e entrelaçada no AT, dando
Lucas um destaque especial ao Profetas ou a textos de cariz profético. Por
isso, podemos dizer que toda a obra de Lucas respira um clímax profético,
em que Jesus é aquele que vem levar à plenitude as esperanças anunciadas
e prometidas ao longo do AT. Embora todo o Evangelho se situe neste
ambiente e dentro desta expetativa, a verdade é que ela está mais presente e
mais visível neste primeiro bloco do Evangelho. Fácil é verificar que se
trata de uma construção essencialmente teológica pela qual Lucas pretende
mostrar que o anúncio de Jesus é precedido da chegada do arauto do
messias que é João Baptista, tal como era esperado entre as tradições
populares.

92
1.2 Segundo movimento: 3,1-4,30 - Díptico introdutório:
Este díptico, colocando em paralelo a atividade do Batista e o início
do ministério de Jesus, pretende mostrar que ambos se situam na grande
tradição profética de Israel. Por um lado, temos o profetismo de João,
apenas e só um anúncio de preparação, recorrendo ao texto de Is 40,3-5,
pelo qual o profeta faz o solene anúncio da libertação de Babilónio, no fim
do exílio. Esse é o grande motivo de júbilo, a alegria que invade o povo que
se coloca em marcha para regressar à sua cidade, a Sião. O Batista é agora
o novo profeta que anuncia a chegada de um tempo novo, o tempo do
Salvador que é Jesus. Passa-se do tempo da promessa (com João Batista)
para o tempo da sua realização (com Jesus). A narrativa deste trecho está
sempre fortemente documentada e fundamentada no AT, pois só assim
ganha sentido a missão de Jesus. Lucas começa aqui a traçar aquele que vai
ser o percurso profético de Jesus, bem definido pelas cenas do batismo
(3,21-22), pelas tentações (4,1-13) e pela sua presença em Nazaré, onde
anuncia o que vai definir a sua missão, o seu ‘programa’ (4,14-30).
1.3 Terceiro movimento: 4,31-9,50 – O ministério na Galileia:
Trata-se de uma parte que é essencialmente dedicada à apresentação do
kerygma de Jesus na Galileia, com a sua presença em Cafarnaúm, o
chamamento dos discípulos e cuja finalidade é apresentar Jesus e a sua
obra, destacando a novidade do seu ensino e sua atenção aos necessitados.
Começa por mostrar Jesus nas sinagogas da Galileia que ele percorre como
um profeta, deixando sinais (milagres) em que procura anunciar a novidade
da salvação de que é portador. Ele vem ao encontro daqueles que o
judaísmo afastava de Deus, para lhes testemunhar este tempo novo. São
vários os sinais, embora todos tenham o mesmo sentido: ele vem chamar e
incluir e não afastar e excluir. Destacaria nesta parte a referência às bem-
aventuranças (6,20-23 – uma espécie de síntese da tradição de Mateus), o
tema da misericórdia (6,36-38), as mulheres (a pecadora perdoada: 7,36-50;
as mulheres que seguiam Jesus: 8,1-3; a cura da hemorroísa e da filha de
Jairo: 8,40-56). São todos temas a que Lucas dará uma particular atenção,
retomando alguns em narrativas subsequentes. Temos ainda os primeiros
anúncios da paixão e a transfiguração, iniciando já a preparação dos
discípulos para o itinerário seguinte, uma nova etapa neste caminho que
levará Jesus a Jerusalém. No fundo, esta presença de Jesus na Galileia
proclama a força e a novidade da sua mensagem, mostrando a sua grandeza
como profeta e salvador.
1.4 Quarto movimento: 9,51-19,28 – A caminho de Jerusalém:
Iniciando a sua vida pública na Galileia, a caminhada de Jesus
orienta-se para a subida a Jerusalém, pois é lá que se consuma a sua
missão, numa tríplice dimensão: morte, ressurreição e exaltação. Esta

93
caminhada tem um sentido profético. Trata-se da parte do evangelho que
assume uma dimensão mais doutrinal, mais ilustrativa, durante a qual ele
prepara e ensina os discípulos, preparando-os para a tarefa de darem
continuidade à sua missão, à sua obra. Temos aqui, reunidos por Lucas, um
conjunto de ensinamentos morais, não numa ordem lógica, mas sempre
com uma perspetiva de ir em frente, de caminhar em ordem à consumação
da missão que lhe fora confiada e que deve acontecer em Jerusalém.
A caminhada é constituída por várias etapas, sempre marcadas por uma
espécie de sentido de risco e de oposição, insistindo na oração e na
vigilância que confere a este itinerário uma dimensão escatológica. Na
última parte do caminho temos também outros, para além dos discípulos,
que se querem juntar a Jesus, caminhando com ele. É o caso do jovem rico,
de Zaqueu, do cego Bartimeu. Nesta sua passagem em caminho, Jesus vai
deixando sinais da novidade que anuncia através dos sinais (milagres, as
curas), das parábolas (destaco as referentes à misericórdia) e das
advertências, mormente em relação às práticas normativas dos grupos e
movimentos judaicos de então. Caminhando como um profeta, Jesus deixa
um anúncio novo, uma mensagem diferente que se destaca e se diferencia
daquela que eram as propostas do judaísmo de então.
Sendo esta parte do Evangelho muito descritiva acerca dos vários
momentos da caminhada de Jesus, ela é também fortemente exortativa, pois
o caminho percorrido por Ele é também o caminho que os seus seguidores
devem percorrer. Falando de Jesus e centrando a sua narrativa em Jesus,
Lucas está já imprimir ao texto uma dinâmica missionária, aquela que há-
de caracterizar a vida da Igreja, como depois veremos nos Atos.
1.5 Quinto movimento: 19,29-24,53 – O ministério em Jerusalém:
Neste bloco de textos, Lucas apresenta a última etapa do percurso
de Jesus, com a sua chegada a Jerusalém, onde é recusado pelo judaísmo
oficial e onde consumará a sua entrega à morte e a sua glorificação,
acreditado pelos seus discípulos como messias. Temos aqui um conjunto de
4 secções:
.a chegada e entrada solene em Jerusalém, purificação do templo e
estadia na cidade santa (19,29-21,38);
.o dia dos ‘ázimos’, a ceia, a celebração da páscoa, com a instituição da
eucaristia, o anúncio da traição de Judas, o discurso de despedida e a
‘hora do combate decisivo’ (22,1-38);
.o início da paixão e toda a narrativa dos sucessivos acontecimentos até
à sepultura de Jesus com a alusão, uma vez mais, às mulheres que
tinham acompanhado Jesus desde a Galileia (22,39-23,56);
.narram-se os acontecimentos do 1º dia da semana, as aparições, com
destaque para os ‘caminhantes’ de Emaús, as últimas instruções aos
discípulos e a promessa do dom do Espírito (24,1-49).

94
A obra termina com a Ascensão, uma espécie de conclusão, como já
antes referimos (24,50-53), deixando assim a abertura para a continuação
da narrativa com o 2º livro – os Atos dos apóstolos – em que Lucas mostra
a continuidade da obra de Jesus na missão da Igreja.
Como facilmente se pode concluir, toda a narrativa lucana é apresentada
como uma caminhada itinerante em direção a Jerusalém, numa dimensão
essencialmente cristológica e o seu grande objetivo é mostrar como a
experiência com Jesus leva à fé e ao anúncio da Boa-Nova.
2. O Antigo Testamento lido no Evangelho de Lucas:
O Evangelho de Lucas é todo ele uma releitura cristológica do
Antigo Testamento, feita de forma explícita através de citações de textos
ou, de forma mais implícita, aludindo a cenas, figuras e temas teológicos
dos textos veterotestamentários. Há neste Evangelho todo um percurso de
leitura e toda uma proposta de caminhada profética ao jeito do AT. Fazer
uma leitura sequencial do AT em Lucas é uma tarefa árdua, porque
contínua e intensa, mas é algo possível e que muito nos ajudará a
compreender o verdadeiro alcance da proposta evangélica que este
evangelista nos faz.
Um dos temas mais intensos que percorre o Evangelho de Lucas é o da
‘misericórdia’, uma perspetiva que informa o texto de Lucas de uma forma
especial e que colhe toda a sua riqueza no AT e na tradição judaica do
tempo. Por isso, situar esta temática aqui, na introdução a Lucas, ajudar-
nos-á a compreender melhor alguns dos textos mais marcantes do
Evangelho, especialmente os ‘Cantos’ do Evangelho da Infância e as
‘Parábolas’ do cap. 15. Fazemos aqui um pequeno ponto da situação sobre
este tema.
2.1 A ‘misericórdia lida em Lucas’:
É muito comum, e penso que com bastante razão, considerar o
judaísmo como uma religião fechada, segregacionista, levando por vezes e
em circunstâncias extremas à criação do ghetto social que nós conhecemos
em diversas épocas da história. Falando da misericórdia e da ternura de
Deus será justo e correto pensar assim e continuar a manter e difundir esta
perspetiva? Terá sido sempre assim ou estamos perante uma visão muito
parcial e preconceituosa acerca do judaísmo como tal?
Procurando fundamentar o texto de Lucas a partir dos temas do AT,
impõe ver antes como o tema era tratado no quadro do judaísmo da época,
uma espécie de património comum, apesar das exceções que também
conhecemos. Trata-se de uma perspetiva que assume já uma dimensão
universalista, aberta a todos os povos, que congrega no seio de Deus tanto o
justo como o ímpio, mesmo que na sua forma de dizer e comentar esta
verdade, os Mestres do judaísmo tenham sentido a necessidade de a
graduar, ou seja, de mostrar que ela alcança a todos. Para tanto, tomando
95
um comentário homilético do período rabínico86 ao Sl 36,6-7, temos aqui
um belo testemunho desta universalidade da misericórdia de Yahwé que
alcança todos os homens e toda a criação. Diz o Salmo:
“A tua bondade, Senhor, chega até aos céus e a tua fidelidade, até às nuvens.
A tua justiça é como os montes altíssimos, os teus juízos são como o abismo
profundo. Tu, Senhor, salvas os homens e os animais”.
Rabbi Kahana, um dos Mestres da 2ª geração de Rabinos, faz uma
recolha dos textos que eram usados nas sinagogas da Palestina e que nos
transmitem tradições muito antigas, algumas delas contemporâneas ou
mesmo anteriores à era cristã. Aqui encontramos, mesmo num período
difícil do judaísmo, em guerra declarada contra Roma e contra as tentativas
do Império em assimilar os judeus, um belo comentário que tem como tema
de fundo a ‘misericórdia de Yahwé’ (Sl 36,6: a sua hesed) que é comparada
aos ‘altos montes’ e se eleva até aos céus, ou seja, ela é inesgotável para os
justos, enquanto os juízos de Deus que são aplicados aos ímpios são como
um ‘abismo profundo’, isto é, Deus age para com eles também com uma
bondade profunda que não os expõe ao castigo mas sim à sua misericórdia.
Ao justo, Deus dispensa um amor infinito, elevado como uma montanha,
semelhante a uma alta torre onde o justo encontra abrigo, refúgio e ternura,
dizia Rabbi Aqiba a comentar esta passagem do salmo. A misericórdia (a
hesed) de Yahwé é sempre uma montanha elevada onde o justo se refugia,
onde aquele que pratica a Lei encontrará a plenitude da bondade. Assim, o
justo, entendido como sendo todo aquele que pratica a justiça de Deus, será
como uma alta montanha, pois estará protegido e abrigado à sombra da
bondade do ‘Santo, Bendito seja Ele’, como diziam os Rabinos, para assim
contornarem o problema da pronúncia do nome de Deus. Israel em si
personifica este ‘justo’, o filho querido de Deus, a quem Deus amou, tal
como diz Odeias (11,1: ‘Israel era ainda um menino e eu amei-o; do Egito,
chamei o meu filho’).
Por sua vez, o ímpio, aquele que não faz parte do povo eleito nem
pratica a Lei e a justiça, esse tem outro refúgio; é o ‘vale profundo’ do
arrependimento para poder subir também ele à montanha da misericórdia.
Deus não o abandona, apenas espera que ele seja capaz de reconhecer que a
bondade de Yahwé é uma verdadeira montanha de amor e para lá chegar há
que fazer esse itinerário de ascensão que o leva até Ele. Embora as obras e
as ações do ímpio sejam trevas (Is 29,15), trevas do abismo profundo que
ainda não foram tocadas pela luz dos céus nem regadas pelo orvalho das
nuvens que derramam a chuva da misericórdia de Yahwé, também para ele
se abrem as nuvens da misericórdia divina, pois Yahwé ‘salva todos os
86
Cf. Pesikta de-Rab Kahana: R. Kahana’s compilation of discourses for Sabbaths and Festal Days,
translated from hebrew and aramaic by W. G. Braude and I. J. Kapstein, Piska 9, Philadelphia, 1978, 165-
184.

96
homens e os animais’, ou seja, toda a criação é testemunho da ternura de
Yahwé e está convocada para esse banquete de bondade e de comunhão
que Yahwé prepara para todos os povos no cume do Monte Sião, onde
todos se reúnem nesse festim da sua misericórdia e do seu perdão, tomando
as imagens de Isaías: 2,2-3; 25,6-7.
Esta perspetiva universalista da salvação, muitas vezes abafada e
amordaçada pelo rigorismo normativo que resultava de uma certa
codificação da Lei (da Torah) em ordem à diferenciação e à autonomia do
povo judeu, não pode nem deve ser tida como a única via judaica de
salvação. Mais do que esse exclusivismo, o judaísmo sempre cultivou uma
dimensão universalista, englobante e uma porta aberta para todos. Era essa
porta que permitia ao próprio judaísmo aceitar no seu seio o estrangeiro,
acolher o prosélito, dispensar bondade e compaixão ao migrante e praticar
as obras de misericórdia. Estas, também faziam parte do credo existencial
judaico. De facto, para o judaísmo antigo, o governo do mundo que Yahwé
exercia estava fundado na sua misericórdia. É esta mesma confiança que
preside ao sacrifício de Isaac, tal como diz o Pirkê de Rabbi Eliezer:
“Señor del mundo, tú eres llamado el compasivo y misericordioso porque
tu misericordia alcanza a todas tus obras. Ten compasión de Isaac que es
un hombre y un hijo de hombre y se ha dejado atar en tu presencia como si
fuera un animal. Tú, YHWH, que salvas al hombre y al animal, como está
dicho: “Tu justicia es como las altas cordilleras, tus juicios son un océano
inmenso. Tú, YHWH, salvas a hombre y animales” (Sal 36,7)87.
Nesta súplica que o autor coloca na boca de Abraão, Deus é chamado
de ‘compassivo e misericordioso, servindo-se das duas palavras mais
comuns para designar aquilo que a Escritura expressa como ‘misericórdia’:
hesed e rahamîm. Do mesmo modo, encontramos na Mishná, no tratado
Aboth, uma exortação à oração e ao modo como o justo se deve dirigir a
Deus:
“Quando rezares, não faças da tua oração algo rotineira; pelo contrário,
deve ser um ato (uma súplica) de clemência e graça a Deus, bendito seja
Ele, pois assim está escrito: porque ele é um Deus clemente e
misericordioso, paciente e magnânimo, que se arrepende do mal”88.
Também nas orações da noite pascal que se seguiam ao cântico de
ação de graças (o grande Hallel pascal, Sl 136), ditas pelo pai (ou chefe de
família), após a recitação do Sl 126 que canta a alegria do regresso
(pensamos que é uma atualização do êxodo agora centrado no regresso do
exílio da Babilónia), várias vezes o texto dessas súplicas invoca a

87
Los capítulos de Rabbí Eliezer, versão de MIGUEL PÉREZ FERNANDEZ, Valencia 1984, 220; Cfr.
Jubileus, 18,9.
88
Joel 2,13.

97
misericórdia de Yahwé e faz-se a proclamação que esse é o seu grande dom
ao povo de Israel, salvo e resgatado, pela ‘sua mão poderosa e pelo seu
braço estendido’:
“Bendito seja o Senhor, nosso Deus, o rei do universo, que mantém o
mundo todo com a sua bondade, a sua graça, benevolência e misericórdia.
‘Ele dá pão a todo ser vivo, porque eterna é a sua misericórdia’ (Sl
136,25”89.
Estas e muitas outras referências à misericórdia de Yahwé percorrem os
escritos judaicos e deixam-nos um eco da constante confiança que Israel
deposita no seu Deus, um Deus que exerce a ‘sua misericórdia por mil
gerações’ e essa gratuidade da sua misericórdia faz parte da sua grandeza,
do seu poder e da sua justiça. Deus é misericordioso porque é assim que
Ele é justo e é na sua justiça que reside a sua omnipotência, capaz de fazer
chover para ‘bons e maus’, tal é a sua forma de ser Pai e criador.
Quanto aos Evangelhos da Infância, tomamos dois textos fundamentais,
mostrando, a partir deles, como a presença do AT é constante e
fundamental para bem entender o Evangelho. Esses textos são os dois
cânticos do evangelho da infância:
.Magnificat (1,46-55)
.Benedictus (1,68-79)
Estes dois textos, pela sua riqueza teológica e densidade de referências
ao AT, constituem uma bela síntese do Evangelho de Lucas e, ao mesmo
tempo, são como que os primórdios para situar o plano do Evangelho no
contexto da História da salvação. Importa referir, que nestes cânticos, tanto
num caso como no outro, mais do que as citações explícitas e diretas,
importa ter presente o clima e o ambiente teológico que se respira ao longo
do texto, o envolvimento temático que dá forma e continuidade ao hino em
si.
a. O Magnificat:
O texto inicia-se com uma contextualização que não tempo como
referência um tempo preciso, mas sim, à maneira do AT, uma relação a
outro acontecimento, o anúncio do nascimento de João a Zacarias. Esta
forma de concatenar acontecimentos é tipicamente veretotestamentária e
prepara o cenário para a entrada num tempo novo, o tempo de Jesus que se
inicia com o anúncio do anjo a Maria.
O Magnificat é, antes de mais, um texto que recolhe os seus
fundamentos teológicos na mensagem do AT, tornando-se uma espécie de
eco dos grandes dinamismos da História da salvação. Maria é a figura, a

89
Hagadá, manual de Pesaj, ed. PABLO LINK, Tel Aviv, 1949, 57. Na mesma tradição pascal, seguem-
se depois um conjunto de invocações (pp. 61-62) em que Yahwé é sempre chamado de ‘Misericordioso’.

98
pessoa por quem esses mesmos dinamismos se atualizam na história e
abrem um tempo novo, o tempo da realização das promessas feitas por
Deus ao seu povo cuja concretização acontece já pelo anúncio da
encarnação e se faz presente na visitação, no seio de Isabel. Escolhida para
ser a mediadora desta grande obra da redenção, Maria beneficia do
insondável ‘favor’ de Deus (gairé, Maria, Salve, Maria…) neste gozo
maravilhoso de se saber amada por Ele. Embora se apresente, na resposta
ao anúncio, como ‘serva do Senhor’, ela é a filha bem-amada de Deus, a
nova Sião que Deus cumulou de bens e libertou do peso do pecado, pelo
que ela pode cantar: ‘A minha alma glorifica a grandeza do Senhor e o meu
espírito festeja a Deus meu salvador’ (1,46-47). Mas ela sabe que tal
benefício não é mérito seu; é sim, dom da grandeza de Deus. É ele que
escolhe, é Ele que olha e pelo seu olhar Ele leva à plenitude, tal como
outrora havia procedido com o Seu povo, elegendo não o mais numeroso
nem o mais forte, mas aquele que Ele olhou com mais carinho e ternura.
Tudo isto Ele fez porque o ‘seu nome é santo’ (1,49).
Um dos textos onde Lucas recolhe a fundamentação para o Magnificat é
o cântico de Ana, em 1 Sam 2,1-10, uma espécie de salmo de ação de
graças que partilha a mesma teologia do amor e da misericórdia de Deus
que percorre a teologia profética, mormente Oseias, e também presente em
muitos salmos. Este texto do cântico de Ana é um daqueles que traduz a
teologia da humilhação – exaltação, própria do AT, pela qual se explicita a
ação de Deus em prol daqueles que libertam de si para que Deus seja neles
a plenitude. Todavia, enquanto no texto do cântico de Ana temos um
agradecimento por um favor recebido, o dom do filho que viria a ser
Samuel, em Maria esse agradecimento não decorre de um benefício que é
concedido a Maria para ela mesma, mas sim porque é um dom para o povo
de Deus de que ela é a mediadora. Como que podemos dizer: Maria louva o
Senhor porque Ele realiza nela aquilo que Ele mesmo é: dom e
misericórdia. Como dizia Lutero, no seu comentário ao Magnificat, Maria
aqui agradece porque ela experimenta em si o que é ser o ‘modelo, o
paradigma’ da ‘sola gratia’, ou seja, o seu louvor e o seu agradecimento é
apenas ‘a graça de sentir a graça de Deus’.
Ao definir-se como ‘serva’ perante o anúncio, Maria assume aqui toda a
carga da identidade do povo de Israel perante Deus no AT. A teologia
veterotestamentária apresenta o povo eleito como servo de Deus, embora
também conheçamos também alguns textos, mais ligados à tradição
profética, em que Israel é também apresentado como ‘Filho’, como aliás
São Paulo vai depois reforçar ao falar-nos da graça da graça que Jesus nos
mereceu ao fazer-nos ‘filhos no Filho’. Mas se o povo de Deus, como
servo, beneficiou sempre dos favores de Deus, agora Maria é cumulada de
bênçãos, é a Mãe do Messias e torna-se serva (como diz o texto doulê) pela
adoração, pela entrega, pela fidelidade e pela disponibilidade total para

99
Deus. Ela é serva não uma condição de dependência, mas sim numa relação
de gratuidade, de adoração. Ela é serva, mas por uma relação de plena
disponibilidade ativa e empenhada para Deus. Ela nada exige para si,
contrapondo-se assim às constantes revindicações de Israel perante Deus
(como bem conhecemos no Êxodo) para se fazer disponível a dar a Deus
aquilo que o povo de Israel não Lhe tinha dado: o dom da fidelidade total.
Agraciada por Deus ela testemunha a plenitude de todo o dom pelo seu
sim, o sim a redenção.
Para além da gratuidade de Maria que se contrapõe à ingratidão de
Israel, temos no Magnificat uma outra dimensão que retoma o AT e mostra
a nova economia da salvação: é a relação figurativa que se contrapõe entre
Eva e Maria. Por isso, o próprio cântico realça a disponibilidade e a
fidelidade de Maria – Ele olhou para a humildade da sua serva –
contrapondo-se à soberba e à ambição de Eva que queria ser como Deus
(Gn 3,4-6). Maria não quer ocupar o espaço nem deseja substituir-se a Ele,
tal como Eva o tinha querido fazer. Por isso, ela sabe que a verdadeira
salvação só pode acontecer naqueles que se abrem a esse dom. Ela deixa
espaço a Deus para que seja Ele a agir n’Ela e por Ela. Pelo seu sim, Maria
não só se declara disponível para Deus, mas também lhe abre espaço para
que Ele faça acontecer no mundo aquilo que até então Israel não tinha
possibilitado: que a sua misericórdia se estenda de geração em geração, por
todas as gerações, ‘a Abraão e à sua descendência para sempre’ (1,55). Foi
assim que promessa tinha sido feita a Abraão.
Ora, é neste contexto que Maria se torna a serva da misericórdia divina,
da nova forma de relação e de comunhão com Deus, essa nova forma de
sentir e viver o dom da gratuidade. Fá-lo, fazendo das suas entranhas, do
deu seio o espaço onde acontece a plenitude da misericórdia. De facto, as
palavras que significam misericórdia (rahamîm) e ternura (hesed) para
expressar aquilo que Deus é em si, a Sua identidade, tornam-se em Maria o
espaço do acolhimento dispensado ao Salvador, o seu seio, o seu ventre que
O acolhe e o faz presente no mundo.
Uma outra cena que nos mostra, de forma reforçada, a relação entre
Lucas e o AT é a da visitação. Israel é, no AT, o peregrino de Deus que
deve levar pelo mundo o testemunho da justiça e da santidade de Deus. Era
isso que faria dele ‘sinal de aliança’ de povos (Is 42,1: para que ele leve às
nações a verdadeira justiça; 42,6: chamei-te por causa da justiça… formei-
te e designei-te como aliança de um povo e luz das nações; 49,6: vou fazer
de ti luz das nações, para que a minha salvação chegue até aos confins da
terra). Maria é agora o novo Israel que se faz portadora dessa luz e dessa
salvação que é levada a todos povos através da ‘Mãe do meu Senhor’
(1,43). Assim, tal como Israel, Maria faz-se peregrina da fé e nesse
peregrinar ela testemunha a plenitude da graça salvadora (1,41: ‘O menino
exultou de alegria… e Isabel ficou cheia do Espírito Santo). Exultar de

100
alegria é o grande dom da presença de Deus. Só Ele pode fazer exultar de
alegria pois só Ele concede a plenitude. Também só ele leva à plenitude, só
Ele é capaz de encher o coração do homem desta força que é o Seu
Espírito. Maria, enquanto peregrina da fé e portadora do dom da salvação, é
também a testemunha fiel e feliz da misericórdia divina, pois ‘Ele olhos
para a humildade da sua serva’ e fez dela, como diz uma das invocações
mais felizes da tradição cristã, a ‘nova arca da aliança’, tal como rezamos
na ladainha que lhe dedicamos. A ‘Arca da Aliança’ era não só a portadora
da Lei, mas essencialmente o instrumento sensível entre o povo da
presença continuada de Deus no meio dele. Onde a Arca chegava, sentiam-
se os efeitos da sua ação. É assim no itinerário do Êxodo, é assim na guerra
contra os cananeus e filisteus. Será assim para o povo de Israel até à
destruição do templo (em 587, pelos babilónios). Maria é a nova Arca que
faz entrar no mundo a nova Lei, Jesus Cristo, e o lugar onde essa nova Lei
se revela, assume a humanidade, tornando-se também parte desta nossa
condição pelo mistério da sua encarnação.
b. Benedictus:
Muito daquilo que é a teologia veterotestamentária de que se faz eco
o Magnificat, encontramo-lo igualmente no cântico do Benedictus que
Lucas coloca na boca de Zacarias, pai do Batista e sacerdote da antiga
aliança. Se o Magnificat é o cântico do futuro, testemunho da esperança
anunciada em Cristo, o Benedictus é ainda o cântico do AT, o hino da
promessa que tem como pano-de-fundo aquilo que eram as linhas de força
das promessas feitas a Israel. Todo ele é um poema de recapitulação que
transporta até ao tempo novo, até ao limiar de uma nova esperança uma
espécie de catálogo das expectativas do povo de Israel. A figura central,
Zacarias, é apenas e só o mensageiro dessas promessas e reassume-as como
que a concentrá-las na pessoa daquele que vai nascer e que é fruto dessas
mesmas promessas: João Batista.
Importa, no entanto, constatar como o cântico faz uma espécie de
percurso histórico sobre o AT, centrando as promessas anunciadas na
pessoa daqueles que dão fundamento à esperança messiânica. São
exemplos disso: as referências a David e à esperança messiânica que
acompanha a sua descendência; a menção da paternidade abraâmica e da
promessa feita à sua descendência; a centralidade da aliança como
fundamento da promessa; a presença dos profetas como arautos da
libertação dos inimigos; a concluir, o anúncio do perdão e da misericórdia
que Deus fará surgir para o Seu povo, mediante a luz do Salvador, qual
aurora que inunda a terra.
Tanto no Magnificat como no Benedictus, assim como o cântico de
Nunc dimitis, para além de serem a memória das promessas do AT, algo
que situa o texto de Lucas no quadro da História da salvação, permitem-nos

101
encontrar aqui uma nova perspetiva aberta ao futuro em que se anuncia a
plenitude das promessas de Yahwé feitas ao Seu povo. Essas promessas
não são apenas um eco longínquo; Lucas, atualiza-as na pessoa de cada um
dos personagens centrais destes poemas: em Maria (no Magnificat), em
Zacarias (no Benedictus), acontecendo o mesmo depois, no canto de
Simeão (2,29-32), mediante a representatividade dos dois anciãos (Simeão
e Ana) que personificam, uma vez mais, o culminar da esperança do AT
que se faz realidade presente e vivida com a chegada de Cristo.

3. Temas fundamentais da Teologia de Lucas – a misericórdia:


Lucas é um Evangelho essencialmente teológico. Para além da sua
narrativa sequencial e da fundamentação histórica a que alude o autor e que
parece ter sido apanágio seu, no texto que nos legou, Lucas mostra-se um
teólogo que vai buscar ao AT a fundamentação temática da sua narrativa e,
de uma forma muito intensa, ele cria outros temas teológicos que
desenvolve com mestria ao longo do Evangelho. Há, de facto, uma grande
densidade teológica em Lucas, tanto cristológica como eclesiológica.
Destacaria, retomando já referências anteriores, deixo aqui três marcas
dessa relevância teológica que é profundamente inovadora:
.a presença da mulher no contexto do Evangelho e na dinâmica da
História da salvação;
.a dimensão profética que percorre todo o Evangelho;
.a misericórdia como expressão do rosto amoroso de Deus que nos é
testemunhado em Jesus.
Destas três temáticas teológicas que Lucas aprofunda ao longo do
Evangelho, e procurando dar atualidade ao ano jubilar que estamos a
celebrar, destaco a ‘misericórdia’ como uma das dimensões que melhor
carateriza e testemunha a densidade teológica do Evangelho lucano. É isto
mesmo que Lucas define como sendo a obra, o programa de vida e ação de
Jesus no anúncio da Boa-Nova. Lucas 4,19:
“Proclamar um ‘ano de misericórdia’ da parte do Senhor”.
Esta missão marca toda a narrativa do 3º Evangelho e ajuda-nos a
perceber, no contexto do tempo, o que significa esta constante ressonância
da misericórdia.
Logo no início, no Evangelho da Infância (Lc 1-2) temos várias
referências explícitas à misericórdia com que Deus trata o homem, o
mundo e o seu povo. Os dois cânticos, a que antes nos referimos,
constituem uma espécie de resume da teologia da aliança e traduzem isso
de forma muito concreta no tema da misericórdia que aí é referido de forma
bem explícita. Vejamos:

102
1,54: “Acolheu a Israel, seu servo, recordando-se da sua misericórdia”.
1,72: “Mostrando a sua misericórdia em favor dos nossos pais,
recordando a sua sagrada aliança”.
A misericórdia de Deus tem como fundamento a aliança em que Yahwé
se compromete com o Seu povo, concedendo-lhe esse benefício que é
próprio d’Ele mesmo, da sua forma de ser, um Deus de misericórdia, lento
na ira e sempre predisposto a perdoar. Esta forma de Lucas traduzir esta
predisposição de Deus é algo que identifica o seu Evangelho e está bem
presente em inúmeras cenas em que Jesus se aproxima daqueles que são
excluídos do judaísmo ou que, pelas suas fragilidades, também não eram
considerados como membros da comunidade, de pleno direito. Para além
disso, e à semelhança daquilo que Deus é em si, também os discípulos
devem ser ‘misericordiosos’, traduzindo assim o que o Levítico definia
como sendo a identidade de Deus:
“Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36)90.
No entanto, os textos que melhor caraterizam o evangelho lucano no
que à misericórdia diz respeito são as três parábolas, chamadas ‘parábolas
da misericórdia’ do cap. 15 do Evangelho. São: ‘a ovelha fugida do
rebanho’, a ‘moeda perdida’ e o ‘filho pródigo’. São três realidades muito
próprias do mundo da época, cada uma compreendendo uma valoração
específica e todas elas com uma carga simbólica muito forte. A introdução
a estas três parábolas é feita através de uma cena que aponta para um
contexto de perdão, algo que dividia o mundo judaico do tempo: quem
merece o perdão, quem pode obtê-lo e como se pode alcançar o perdão. É
neste cenário de grande impacto teológico, já que o perdão era algo que só
Deus podia conceder, que devemos situar estas três parábolas, pois cada
uma delas acrescenta uma dimensão e abre um horizonte novo ao perdão
que Deus concede. Lucas, para reforçar o sentido da sua mensagem, faz a
contraposição entre aquilo que eram as tradições farisaicas e a prática de
Jesus: “Este acolhe os pecadores e come com eles” (15,2). O que Jesus faz
é acolher, partilhando a mesa com aqueles que o farisaísmo excluía,
reunindo-os à mesa, um lugar importante e fundamental na missão de
Jesus. A mesa, em Lucas, constitui-se como uma espécie de lugar de
sentido profético, pois significa a capacidade de acolher e congregar, à

90
Assim traduz e interpreta a expressão com que se define Deus na sua essência no AT: “Sede santos
porque eu sou santo” (Ex 34,6-7; Dt 4,31; Sl 78,38; 86,15). Esta fórmula supera o modo como o judaísmo
tinha convertido toda a praxis judaica num ritualismo de tipo legalista que acabava por neutralizar toda a
iniciativa e capacidades do crentes fazerem uma aproximação a Deus e à comunidade através de uma
vivência partilhada. Para Mateus, a expressão da santidade de Deus atualiza-se pela perfeição, algo que
está próximo daquilo que o judaísmo entendia por ‘santidade (Mt 5,48 põe nos lábios de Jesus: Sede
perfeitos).

103
semelhança da partilha que era própria dos atos constitutivos da aliança,
como aliás se verifica em cada uma das parábolas.
Um dos elementos presente em cada uma das parábolas é o tema da
alegria, do contentamento partilhado com aqueles que são beneficiados
pela ação que cada uma delas descreve. Assim:
.15,6: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida”;
.15,9: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a moeda perdida”.
.15,32: “Tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos… estava perdido e
encontrou-se”.
Nesta progressiva intensidade com que se vive a alegria, resultante do
encontro de ‘algo’ que estava perdido, o texto das parábolas faz uma
graduação qualitativa que assume um significado muito rico na forma
como Deus dispensa a sua misericórdia àqueles que dela beneficiam.
Perder uma de 100 ovelha, pode parecer pouco representativo para o dono
das mesmas; achar a moeda perdida das dez que se tinha, toca já mais
profundamente com a pessoa a quem as moedas pertencem; mas, encontrar
um dos dois filhos, isso é já expressão suprema de uma alegria indizível e
confere, por outro lado, uma maior significação ao gesto do pai e ao
acolhimento que ele dispensa ao filho agora regressado. Para além disso, a
alegria do ‘encontro’ não é apenas uma partilha temporal; ela é também
uma alegria que se vive e se sente no céu, ou seja, isso é próprio do ser de
Deus e da sua relação com o homem. É na parábola do ‘Filho Pródigo’ que
se revela toda a ternura do pai, bem expressa nos adornos que são
dispensados ao filho, querendo o texto com isso dizer que Deus quer
reencontrar-se connosco na nossa condição totalmente refeita, bela e
harmoniosa. As três parábolas transmitem-nos uma tríade de sentimentos,
em que cada um traduz algo daquilo que Deus é em si mesmo: a alegria que
vem do perdão, a conversão que é o seu fruto e condição do perdão e,
finalmente, a reconciliação, ou seja, o reencontro na plenitude da
comunhão.
Quero também destacar, no contexto das três parábolas, algo que as
diferencia no que diz respeito à relação entre o que se encontra (coisa ou
pessoa, que podemos identificar como sendo o ‘pecador’) e quem encontra.
Na 1ª e na 2ª das parábolas, tanto a ovelha como a dracma são procuradas,
é necessário ir ao seu encontro para que elas se deixem encontrar. São uma
imagem que identifica a missão de Jesus, aquele que vem à procura do
pecador para que ao ser reencontrado pelo amor misericordioso do Pai se
converta e volte à sua comunhão. Já na 3ª, a do filho pródigo, joga-se a
liberdade do homem; o filho parte, toma a iniciativa de se afastar e de
voltar, de fugir e regressar, partindo dele a iniciativa, tanto num caso como
no outro. Cabe ao pecador descobrir e experimentar o sem-sentido que
representa o pecado, a vida longe e à margem de Deus. Por isso, é ele que
decide voltar. Mas o Pai aguarda-o de braços abertos e acolhe-o sem

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reprimenda nem censura. O que conta, na misericórdia de Deus, é a ternura
ou, segundo a linguagem própria do AT, são as ‘entranhas’ do amor do Pai
que se deixa encontrar e acolhe aquele que volta a Ele. O Pai, olha o
horizonte para ver se há sinais de regresso; não força, mas espera. E,
quando ele regressa, corre ao seu encontro para o acolher, para que o
regressado nem se aperceba que a sua fuga chegou a ser objeto da mágoa
do pai.
Nisto consiste a misericórdia de Deus: acolher com alegria aqueles que
a Ele regressam, sem que isso represente qualquer retração da parte do Pai
e sem deixar feridas na alma daquele que é acolhido. Uma das melhores
formas de hoje darmos sentido àquilo que é a misericórdia é o acolhimento,
ou seja, o testemunho da ternura que que se partilha em doação plena.

João Lourenço

105

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