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Universidade Federal de Juiz de fora

Faculdade de Letras – Programa de Pós-Graduação em Letras


Mestrado em Estudos Literários

Diálogos entre os contos de fadas e o trauma da mulher latino-americana

Disciplina: Literatura e Interdisciplinaridade

Trabalho final apresentado ao


Programa de Pós-Graduação em Letras
à Profª Drª Terezinha Zimbrão pela
acadêmica Isadora de Araújo Pontes.

Juiz de Fora
Agosto de 2015
Diálogos entre os contos de fadas e o trauma da mulher latino-americana

1. INTRODUÇÃO

Os contos de fadas são narrativas que tratam, frequentemente, de um herói ou heroína que
passa por provações para alcançar aquilo que precisa ou deseja. Eles se caracterizam pela presença
do "fatum" - destino, fatalidade, oráculo - palavra latina que deu origem ao termo "fada"
(COELHO, 2009). Essas histórias, assim como os mitos e lendas, possuem um grande poder
arquetípico, pois representam um espaço onde, segundo a psicologia junguiana, a anatomia
comparada da psique mais se manifesta. Marie Louise Von Franz (apud GIGLIO, 1991) afirma que
suas origens parecem residir na potencialidade arquetípica do ser humano, de modo que os contos
de fada são uma representação de problemas gerais e soluções possíveis. Para Jung, tais histórias
exercem um papel singular no processo de individuação, pois é através delas que tomamos
consciência de arquétipos do inconsciente coletivo. Os contos de fada são notoriamente aceitos e
estudados pela psicologia junguiana, desse modo este trabalho se inscreve numa perspectiva
interdisciplinar que busca melhor compreender uma das representações arquetípicas associadas ao
feminino por eles desenhada, buscando um intercâmbio entre a literatura e a psicologia analítica, de
modo a investigarmos como os contos de fadas manifestam arquétipos esquecidos pela sociedade
patriarcal.
Nosso objeto de análise serão os contos abordados no livro Mulheres que Correm com
Lobos (1992), da psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés. A autora realizou uma vasta
pesquisa de campo em várias regiões para colher versões dos contos de fadas, além de fazer parte de
uma comunidade de contadores de histórias. Os contos de fadas, assim como as outras histórias de
forte valor arquetípico, muitas vezes não têm autores, por manifestarem aspectos da sabedoria
popular. Assim, a autora se refere aos contos, que ela transpôs para a escrita, sempre como histórias
contadas que vão passando pelas gerações. Afirma que tais histórias relatadas são apresentadas em
sua integridade arquetípica, pois mesmo a partir de fragmentos é possível se alcançar o todo.
Antes de partirmos para nosso objetivo mais específico, é necessário que tenhamos em
mente o conceito de arquétipo, ele "indica a existência de determinadas formas na psique, que estão
presentes em todo tempo e em todo lugar" (JUNG, 2000, p.53), o arquétipo não se desenvolve no
nosso inconsciente pessoal, como os complexos, mas no inconsciente coletivo, que é herdado, não
se desenvolvendo individualmente. Os arquétipos remetem a conteúdos psíquicos que ainda não
possuem uma elaboração consciente, ele "se modifica através de sua conscientização e percepção,
assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta"
(JUNG, op. cit., p.17). Através da história e da literatura, podemos observar que os arquétipos estão
por toda parte e possuem uma natureza universal. Como pertencem ao inconsciente, é quando
conseguimos integrá-los na consciência que temos aquilo que Jung chamou de "processo de
individuação", caracterizado pelo momento em que o indivíduo se torna aquilo que sempre foi. O
arquétipo central tratado por Estés é aquele que ela denomina de Mulher Selvagem, tal arquétipo,
segundo a autora, manifesta o Self instintivo inato, o ser alfa matrilinear, ele é em si a própria
psique natural e se encontra, ao mesmo tempo, por trás dela.
Ao escolher utilizar contos e mitos, Clarissa Pinkola Estés afirma, em seu prefácio, ter por
objetivo bater à porta da psique profunda da mulher, de modo que ela possa se recuperar e resgatar
sua forma psíquica, uma vez que defende que tais narrativas aguçam o olhar. Ela se volta para a
mulher pois assume o ponto de vista, assim como fazemos nesse trabalho, que a psique da mulher é
muitas vezes atacada por elementos da cultura patriarcal que se manifestam tanto no indivíduo
quanto no coletivo, mesmo não negando que alguns desses elementos também se manifestam nos
homens. Neste trabalho, temos por objetivo analisar algumas das histórias narradas por ela de modo
a levantarmos um estudo que tenha por base como os contos de fadas representam alguns aspectos
da sociedade e podem funcionar como uma espécie de despertar e cura para o feminino dentro da
história de dominação das sociedades latino-americanas. Desse modo, este estudo se dividirá nos
seguintes momentos: um olhar sucinto para a formação da alma latino-americana, e um
levantamento das feridas originadas na alma da mulher; um aprofundamento do conceito da Mulher
Selvagem dentro dos contos, bem como uma breve análise dos mesmos; e os meios pelos quais o
reconhecimento desse arquétipo pode significar uma forma de cura para essas feridas histórias.

2. UM BREVE OLHAR PARA O TRAUMA DA DOMINAÇÃO LATINO-AMERICANA

A história da origem da América Latina é marcada por episódios sangrentos de extermínios e


intolerância, pois apesar de ter sido palco do intenso convívio de raças e culturas, ele não se deu de
maneira pacífica, mas através da subjugação. O trauma da nossa formação permanece encoberto
enquanto se clama por fatos, ignorando-se seu poder determinante sobre os acontecimentos. Ele é
reprimido assim como a dor de nossa origem, mas não é curado (GAMBINI 2000). No caso do
Brasil, por exemplo, falamos até hoje do seu "descobrimento", termo que, para além de uma
aparente ingenuidade, oculta, como aponta Gambini, "uma verdade essencial difícil de ser
finalmente assimilada pela consciência coletiva" (GAMBINI, 2000, p. 56).
O continente latino-americano sofreu graves abusos desde o início da chegada dos europeus,
os povos, com suas diferentes crenças e línguas, foram dominados e massacrados, enquanto a
afirmação da supremacia do homem branco era difundida. Esse europeu era a imagem do
conquistador, do homem fálico, do detentor da verdade, portador de uma religião que permite que
se canalize toda a força acumulada no ego para aniquilar o outro em nome de seu Deus. São essas as
imagens que correm no inconsciente latino-americano e superá-las seja, talvez, a nossa maior
dificuldade. Tal como elucida Roberto Gambini:

Esse ego racional e cristão, é bom que se diga, é um especialíssimo fruto da história do
Ocidente, eficiente, criativo, vitorioso, lógico e consequente, criador de ciência, de
tecnologia e do Primeiro Mundo. Sua perigosa sombra criou o Terceiro Mundo. Somos
portanto os filhos bastardos da sombra da Europa. Que é o quê? É aquela dimensão
psíquica do modo de ser cristão que não reconhece suas inferioridades e sua patologia, suas
defesas, sua cobiça, sua falta de ética, seu desejo insaciável de poder e de luxúria, sua
hipocrisia, seu sadismo e sua destrutividade. Esses aspectos do indivíduo ou da
coletividade ibérica católica obviamente existiam, mas não eram reconhecidos pela
consciência oficial dominante. O que vai acontecer então? Essa enorme e dissimulada
sombra projetar-se-á como flecha veloz certeira sobre os habitantes da América
(GAMBINI, op. cit, p. 58)

A América está ainda aprisionada sob essa sombra, pois o trauma não tratado impede-nos de
deixar que ela volte para a Europa. Gambini em seu texto "O nascedouro da alma brasileira", aponta
que é necessário que curemos esse trauma, buscando como foi produzido para que seja possível
ressignificá-lo, para que "a defesa que protege o Self ferido da América Latina" perca aquilo que
possui de arquetípico e diabólico.
A nova sociedade criada na América Latina não foi a união de duas partes, mas a submissão
e a destruição de uma delas. Essas feridas permanecem abertas e pulsantes, pois ao invés de nos
voltarmos para o Self para curá-lo, nos dissociamos dele na tentativa de protegê-lo. Dessa forma,
devemos voltar o olhar para o interior, para as nossas próprias imagens, pois não adianta curar
apenas aquilo que pertence ao mundo público. É importante ressaltarmos que ao voltarmos o olhar
para dentro como Gambini afirma que devemos, precisamos ter em mente que a situação das
mulheres nos processos de dominação possui as suas especificidades e para tratarmos o indivíduo e
a cultura, temos de voltar nossa atenção também para a sua compreensão.
2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRAUMA DA MULHER LATINO-AMERICANA

É sabido que na história da América Latina as mulheres do “novo” continente, dentro da


lógica do paradigma de dominação do homem branco europeu, eram vistas como ainda mais
inferiores, como a encarnação de Eva que devorou o fruto proibido e condenou todos a serem
expulsos do paraíso, razões pelas quais sempre se justificou a dominação e a censura sobre o sexo
da mulher, de modo que não foi raro, nos processos de invasões da América, o estupro das mulheres
indígenas, consideradas o subproduto do subproduto, talvez ainda pior que Eva na concepção cristã,
Lilith. Dentro da história oculta da nossa dominação, a que diz respeito às mulheres é a que
permanece mais profundamente nas sombras. Por isso, devemos trazer para a superfície essas
feridas e encarar que o pai da América Latina é esse homem branco e violento, ao passo que a mãe é
a mulher indígena, duplamente subjugada, de modo que o trauma do filho já começa no trauma da
mãe. Esquecemo-nos muitas vezes que a Grande Mãe do Brasil foi uma índia, pois, como destaca
Roberto Gambini em Espelho Índio (2000), a imagem dela não conta em nossas representações
coletivas. Essa mãe foi desprovida da história que despreza nossas raízes, soterrada no passado.
Essas mulheres se entregaram aos colonizadores e tiveram seus filhos, pois perceberam que
era a única forma de evitar uma exterminação de sua etnia, no entanto a esses filhos só poderia ser
ensinada a cultura européia. As mulheres eram as responsáveis por passar muitas das narrativas
míticas através das gerações, mas como não podiam ensinar sua língua, essas histórias se perderam,
restando apenas fragmentos conservados a duras penas. Aquelas que perceberam que num embate
frontal com o colonizador seu povo perderia ainda mais, foram também consideradas por suas tribos
como traidoras. De modo que a mulher latino-americana foi completamente aprisionada, reduzida
ao silêncio e à reprodução.
Assim como a América ainda permanece na sombra da Europa, a mulher latino-americana
também permanece na sombra do europeu, do colonizador. Existe a ameaça do trauma reprimido
que originou o arquétipo maligno do invasor, do "homem sinistro", termo de Estés para designar os
o aspecto da psique que muitas vezes se manifesta como homens que aparecem nos sonhos das
mulheres com a intenção de lhes causar algum mal. Sendo assim, é necessário que busquemos
meios de entender e ressignificar esses elementos, procurando na natureza instintiva adormecida
pela cultura patriarcal os resquícios dessas imagens que remetem a Mulher Selvagem para que
sejamos capazes de tratar e curar essas feridas.
3. O ARQUÉTIPO DA MULHER SELVAGEM NA AMÉRICA LATINA

O arquétipo da Mulher Selvagem representa, para Estés, outro nome para a psique instintiva,
que é aquilo que justifica, por exemplo, o comportamento das mulheres indígenas supracitado que
tinha por objetivo a preservação de sua etnia e cultura a todo custo. Segundo a autora, tal elemento é
a fonte de criatividade que mesmo quando enfraquecida, silenciada, podada, possui o poder de
voltar à superfície. Podemos observar no trecho a seguir os principais fatores que causaram a
obscuridade a que as mulheres foram condenadas pela dominação da sociedade patriarcal:

Observamos, ao longo dos séculos, a pilhagem, a redução do espaço e o esmagamento da


natureza instintiva feminina. Durante longos períodos, ela foi mal gerida, à semelhança da
fauna silvestre e das florestas virgens. Há alguns milênios, sempre que lhe viramos as
costas, ela é relegada às regiões mais pobres da psique. As terras espirituais da Mulher
Selvagem, durante o curso da história, foram saqueadas ou queimadas, com seus refúgios
destruídos e seus ciclos naturais transformados à força em ritmos artificiais para agradar os
outros (ESTÉS, 1994, p. 15).

Clarissa Pinkola Estés começa seu livro por uma história de título espanhol que conta ter
ouvido nas fronteiras do Texas. O conto se chama "La Loba" e é narrado por um dos modos
clássicos de se contar histórias oralmente, através de referências a terceiros que teriam visto a
personagem no mundo real. O conto fala sobre uma velha, La loba, que tem por ofício recolher os
ossos, principalmente de lobos, e que, uma vez tendo encontrado todo um esqueleto, canta até que o
lobo tome vida e saia correndo, de modo que a sua silhueta enquanto se afasta se torna a de uma
mulher sorrindo. A história termina com uma forma de dar esperança àqueles que estão perdidos no
deserto, pois podem encontrar com ela. Através desse relato, a autora trabalha a personificação
arquetípica da velha, uma das mais antigas, e incita o leitor a um contato com o mistério e o
numinoso, isto é, com algo que não pode ser entendido apenas de forma racional, que é ao mesmo
tempo perigoso e mágico.
Esse conto está muito propiciamente situado no livro, pois ele oferece através da catarse a
compreensão de um dos principais aspectos da Mulher Selvagem. Tal aspecto pode ser associado à
sabedoria e o poder de renovação para os quais as mulheres muitas vezes se entregaram na história.
Ele também trata do sentimento de acolhimento para aqueles que se sentem perdidos, o que pode
ser interpretado como um encontro com essa força arquetípica que é capaz de dar vida novamente à
mulher historicamente silenciada.
A velha é uma personificação importante para a cura e os ensinamentos trazidos pelos
contos de fadas, como levanta a autora no livro Ciranda das Mulheres Sábias (2007), na
configuração dessas histórias costuma aparecer uma jovem em uma situação angustiante, quando
aparece uma velha, raramente um príncipe, sob as mais variadas formas para ajudá-la a seguir a
parte de sua alma que sabe o que fazer. Esse aspecto da psique portador de um conhecimento
anterior, ancestral, foi deixado nas sombras pela cultura imposta do colonizador, mas essas histórias
permite que o acionemos, pois "tudo o que tiver valor psíquico, mesmo depois de morto, pode ser
ressuscitado" (ESTÉS, op. cit., p.47).

3.1 O ASPECTO PREDATÓRIO DA PSIQUE

Um conto de fadas trazido pela autora que é muito importante para a compreensão da
situação das mulheres na nossa sociedade é o "Barba-azul", apesar de sua origem européia, a autora
traz uma versão mesclada que foi passada para ela por sua avó. É importante destacarmos que
Pinkola Estés é estadunidense, mas possui ascencentes mexicanos e procura ter uma relação estreita
com as suas origens. Logo, apesar das fontes européias de algumas histórias as versões interpretadas
e escolhidas por ela carregam imagens relevantes também para os povos da América, onde colheu
muitas das versões que apresenta no livro. Como no caso deste conto, tão difundido em nosso
continente. Além do fato de que, como fora explicado, os contos carregam manifestações do
arquétipo dos seres humanos que possuem suas manifestações nas mais diversas culturas, tanto que
costumam apresentar diferentes versões, mas estão presentes nas mais variadas partes do mundo.
O conto é narrado mais distante da oralidade, sem uma conversa com o leitor, como no
anteriormente mencionado, em terceira pessoa e apresentando diálogos. A famosa história do Barba-
azul abre um grande número de interpretações para imagens da psique da mulher. Deteremo-nos
aqui naquela que diz respeito ao predador, pois sua compreensão pode ser útil para os objetivos
deste trabalho. Para Estés o Barba-azul, assassino de suas esposas, representa "uma força específica
e indiscutível que precisa ser contida e mantida na memória" (ESTÉS, op. cit., p.63). Observamos
que ele aparece no conto como o predador que deseja superioridade e poder sobre os outros. Tal
personagem simboliza a força destrutiva presente na psique da mulher, que precisa ser capaz de sair
de sua ingenuidade e invocar sua força combativa para que não seja massacrada. É no momento de
maior perigo que chegam os irmãos da protagonista, que representam a energia masculina interna,
denominada na psicologia junguiana de animus, elemento que é ao mesmo tempo mortal, instintual
e cultural. Quando essa energia está saudável, ela é capaz de neutralizar o predador paralisante da
psique da mulher, como os irmãos fazem ao matar o personagem Barba-azul.
A compreensão do predador se faz importante, pois ele sempre aparece em narrativas
arquetípicas como aquele que deseja dominar o outro. Tal predador precisa ser identificado na nossa
cultura e é possível que uma de suas faces seja a do colonizador, posto que a cultura também pode
ser a causa dessas feridas da psique. A mulher latino-americana hoje não é a mesma da época da
colonização, no entanto faz parte de sua história, da história de seus ancestrais, essa subjugação, de
forma que os ferimentos cobertos, mas ainda não tratados, continuam a se manifestar. Um dos
exemplos é como a essas mulheres ainda é atribuída a imagem de uma intensa liberação sexual, que
ao contrário de uma liberdade, gera uma imposição de comportamento e uma justificativa para atos
de violência contra elas. Falta a nossa sociedade uma reflexão voltada para seu interior que permite
um renascimento da alma ferida latino-americana através do processo de individuação, pois "numa
cultura dominada pelo predador, toda nova vida que precisa nascer, bem como toda velha vida que
precisa partir, é incapaz de se movimentar, e a vida espiritual dos seus cidadãos sofre um
congelamento tanto pelo medo quanto pela inanição espiritual." (ESTÉS, op. cit., p.92). Quando a
cultura fortalece seus valores destrutivos e alimenta a desconfiança da profunda vida instintiva,
realidade de uma sociedade que nega suas raízes, esse elemento predatório da psique ganha mais
força.
Dentro das imagens das quais a nossa cultura latino-americana se alimenta, podemos
encontrar aspectos que intensificam a força destrutiva, independente do sexo do indivíduo, pois ao
invés de cultivarmos nossos próprios símbolos e representações coletivas, estamos sempre bebendo
da fonte européia ou estadunidense de imagens fabricadas que vendem uma ilusória universalidade,
como coloca Walter Boechat, "na medida em que uma cultura não se alimenta de suas próprias
imagens, perde contato com seu passado e, portanto, torna-se incapaz de criar seu próprio futuro"
(BOECHAT, 2000, p.177). Desse modo, permanecemos congelados e nossa força criativa perde seu
sustento.

4. O CONTO DE FADAS COMO O LUGAR DE ENCONTRO DA FORÇA CRIATIVA

Neste tópico analisaremos como o conto "La llorona", muito conhecido nos países de língua
espanhola, também presente na obra de Estés pode funcionar como uma forma de reconhecimento
da ferida e de outros elementos que possuem poder curativo, como a força criativa. Essa força
criativa é aquilo que a autora chama de Río Abajo Río, o rio subterrâneo que alimenta nossa psique,
mas que se envenenado ou bloqueado seja por nossos complexos ou por uma cultura repressora,
gera uma crise psicológica e espiritual.
O conto possui inúmeras versões, sua origem é atribuída ao século XVI quando os espanhóis
conquistaram o México e atacaram os astecas. Sua história foi muitas vezes contada como se fosse
um relato sobre Marina La Malinche, a mulher indígena amante do conquistador espanhol Hernán
Cortés, que foi tradutora e mediadora da relação entre os espanhóis e os nativos, e por isso tida
como a primeira traidora da história da colonização mexicana.
Estés defende que a origem desse conto é ainda anterior ao que se imagina e relata ter
ouvido diversas versões da história, por isso traz em seu livro uma versão genérica (Anexo 2) e uma
variante, analisando as duas. Na versão genérica um fidalgo corteja uma mulher pobre, mas muito
bela, e ela tem dois filhos com ele. Ele não se casa com ela e decide voltar à Espanha para lá se
casar com uma mulher rica, o que a faz perder a cabeça e jogar os dois meninos contra a correnteza
do rio para que morram afogados. Ela, La llorona, então cai às margens do rio e também morre, ao
chegar ao céu só pode entrar se resgatar as almas das crianças e até hoje vasculha nos rios por seus
filhos, o conto termina com o aviso de que as crianças não devem passear perto dos rios ao
anoitecer, para que La llorona não os confunda com seus filhos e os leve embora.
Essa base genérica da narrativa traz pontos que saltam ao olhar quando pensamos na história
de dominação da América Latina. O espanhol, o colonizador, engana a mulher, que é pobre por não
possuir o mesmo tipo de riquezas que ele, aquilo que os europeus chamam de riqueza, tem filhos
com ela, mas não se casa, ou seja, não lhe oferece o mesmo status merecido pelas mulheres
européias. O espanhol drena a sua vida até que enlouqueça, pois foi reduzida a um corpo feito para
o sexo e a reprodução. No entanto, ao jogar no rio o símbolo da união dos dois, não se liberta, e tão
pouco renova sua vitalidade, presente antes de se entregar ao colonizador. Por isso, ela também
morre, mas nem assim encontra sua paz, sendo condenada a procurar pela alma de seus filhos, esses
“ninguéns” que pelo trauma de seu nascimento nunca foram capazes de revelar a sua verdadeira
força, com uma mãe reduzida a um fantasma, um ser do passado.
Há ainda a variante da história, que Estés conta ter ouvido no Colorado de uma criança de
dez anos chamada Danny Salazar. A importância de se conhecer as versões das histórias é que assim
somos capazes de compreender melhor os indivíduos pertencentes aquela cultura, além de sermos
capazes de melhor perceber os aspectos universais, pois são esses que se mantêm. A criança relata
que La llorona não matou seus filhos pela mesma razão da versão antiga. Ele garante que ela se
uniu a um fidalgo que era dono de fábricas ao lado do rio e quando ficou grávida bebeu dessas
águas, mas como o fidalgo havia poluído o rio com dejetos de suas fábricas, a água estava
envenenada e por isso os meninos gêmeos nasceram cegos e com os dedos unidos por membranas.
O fidalgo a rejeitou e a seus filhos para se casar com outra mulher, desse modo, temendo que eles
vivessem uma vida difícil, La llorona os jogou no rio e caiu morta. Nesta versão ela também tem de
voltar para buscar a alma dos filhos, mas não consegue enxergar direito devido à sujeira da água,
por essa razão continua procurando-os.
A partir dessas duas histórias, tal como destaca Estés, podemos observar que o tema é o
mesmo, “a destruição do feminino fecundo” (ESTÉS, op. cit., p. 379), pois os rios e lugares de água
abundante representam simbolicamente onde se acredita que a vida se originou. O veneno
despejado no rio, que se torna mais latente na segunda versão, remete tanto a venenos advindos dos
complexos das mulheres, quanto marcas da própria sociedade. Aquilo que polui o rio é uma das
formas do predador, como explicamos anteriormente ao tratar do conto “Barba-azul”, essa força
destrutiva da psique que pode ter origem no indivíduo e na cultura que tira a vitalidade do
indivíduo, da mulher. Nega-se a mulher uma relação com sua natureza instintiva, a própria cultura a
desencoraja, e então essa força destrutiva se intensifica e o rio, sua capacidade de dar vida, seca ou
fica tão poluído que se torna impossível prosperar.
Do ponto de vista da psicologia analítica de Estés, o fidalgo pode ser visto como um animus
não sadio, que quer dominar a mulher, ao invés de se envolver e ajudar no funcionamento do rio. O
animus na concepção junguiana clássica é a força da alma das mulheres, que é masculina, no
entanto psicanalistas como Estés chegarem a uma conclusão contrária, defendendo que o animus
não é alma da mulher, mas uma de suas partes, a responsável pelo transporte: “em vez de ser a
natureza da alma da mulher, o animus, ou natureza contra-sexual da mulher, é uma profunda
inteligência psíquica com a capacidade para agir, que viaja de um lado para outro entre os mundos”
(p.390). Todavia, na história o fidalgo, que pode ser visto como uma representação do animus, ele
está corrompido, tal apodrecimento do animus pode ser causado também pela cultura, que
desvaloriza o feminino e desacredita na importância da natureza mediadora do masculino. Sendo
assim, no lugar de proteger a força fecunda da mulher, o animus passa a atacar e deixar de lado
qualquer força criativa, representada pelos filhos. E a única maneira de corrigir os danos é
procurando arduamente, tirando o rio das sombras e purificando-o, tratando-o para que possa ser
curado e seus filhos, o futuro que foi negado, encontrados.
Através dessa análise podemos associar os filhos de La llorona aos próprios filhos da
América latina, pois também a eles negou-se o futuro. Devido ao aspecto masculino que só atendia
a satisfação de seu ego, a mulher se tornou apenas um fantasma errante e seus filhos seres sem
rostos e desaparecidos. Seja o fidalgo encarado como a imagem do colonizador ou como um
aspecto da psique da mulher, na verdade ele é os dois, assim como na história, só podemos curar a
alma latino-americana se encontrarmos o nosso futuro, que vem das nossas raízes, das nossas
próprias imagens e força criativa. E nessas raízes, precisamos encontrar também a mãe, a índia, que
foi completamente esquecida pelo coletivo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise de alguns contos de fadas podemos perceber que eles carregam
arquétipos, que como tudo o que pode ser definido como tal, possuem uma natureza dual, positiva e
negativa. A Mulher Selvagem está presente nessas histórias, ainda que nem sempre saltando aos
olhares como em “La loba”, uma vez que a propagação dessas narrativas diz respeito também à
cultura e, dessa forma, muitas vezes esses elementos foram encobertos pelo cristianismo. Em
“Barba-azul” podemos perceber que a mulher se aproxima de sua psique instintiva ao abandonar a
ingenuidade e resistir ao predador, já em “La llorona” temos um contato mais estreito com o
aspecto aprisionado, podado e silenciado da mulher que teve sua natureza instintiva soterrada.
Desse modo, escolhemos esses contos para que fosse possível abordar diferentes manifestações
dessas histórias que se relacionem com o feminino.
A leitura dessas narrativas abre espaço para a compreensão do nosso processo de
individuação e para questionarmos o que pode ser feito para tratar essas feridas e elementos nocivos
presentes neles, pois estão também presentes na nossa sociedade. Um bom exemplo é a constante
aparição do masculino como algo negativo, doente, tanto se pensando no coletivo, quanto no
indivíduo. Uma vez que os arquétipos assumem nuances diferentes de acordo com a consciência
individual ou de um grupo de indivíduos vale nos perguntarmos se existe uma explicação histórica,
posto que o sistema patriarcal europeu nos foi imposto, e quais foram as consequências sofridas
mais especificamente pelas mulheres. Questões como essas são positivas e requerem uma profunda
reflexão, pois, como as próprias histórias nos mostram, precisamos nos reconciliar com o aspecto
masculino da psique, mas para tal precisamos entender a razão dessa dissociação. Os contos de
fadas nos ajudam tanto no momento de revelar essas feridas quanto para tratá-las, pois alguns de
seus elementos são compreendidos para além da racionalidade, sendo assim a sua leitura e estudo,
unindo-se a literatura, a psicologia analítica e a história, revelam-se como um meio de reflexão que
pode levar a sociedade a curar as feridas do passado, voltando-se a suas próprias raízes, para ser
capaz de construir seu próprio futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOECHAT, Walter. “Identidade e identificação: um paradoxo e um desafio para a América Latina”.
In: A identidade latino-americana – Anais do II Congresso latino-americano de psicologia
junguiana. Rio de Janeiro, Brasil, 200.
ESTÉS, Clarissa Pínkola. Mulheres que correm com os lobos: Mitos e histórias do arquétipo da
mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
___________. A ciranda das mulheres sábias. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
GAMBINI, Roberto. “O nascedouro da alma brasileira”. In: A identidade latino-americana – Anais
do II Congresso latino-americano de psicologia junguiana. Rio de Janeiro, Brasil, 2000.
GAMBINI, Roberto. Espelho Índio: a formação da alma brasileira. São Paulo: Axis Mundi, 2000.
JUNG, Carl Gustave. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis – RJ: Vozes, 2000.

FRANZ, Marie-Louise Von. A Interpretação dos Contos de Fada. 3ª ed. Trad. Maria Elci
Spaccaquerque Barbosa. São Paulo: Paulus, 1990.

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GIGLIO, Zula Garcia (org). Contos Maravilhosos: Expressão do Desenvolvimento


Humano. Campinas: NEP/UNICAMP, 1991.

THOMPSON, Clara. Evolução da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

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