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Teoria e crítica
O saber posto em questão
Ruy Moreira (org.)
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INTRODUÇÃO
Ruy Moreira
Reúne esta coletânea alguns dos textos de geógrafos brasileiros vindos à luz no
período 1978-1981. Refletindo o plano geral dos anseios de liberdade democrática e
justiça social que conduzem ao extraordinário ascenso político das organizações de massas
operárias e populares — 1978 é o ano das greves no ABC — atravessa-os um certo
propósito de crítica e superação daquela geografia da imagem popular que Yves Lacoste
denomina "geografia do professor" e "geografia dos estados maiores do Estado e do
empresariado".
Não se precisa advertir um tal propósito de conferir ao saber geográfico uma outra
"práxis" — identificada esta com a construção de uma sociedade estruturalmente capaz de
abrir soluções reais à problemática popular, dos homens, para a qual a vigente mostrou-se
historicamente incapaz — cada autor aqui presente formula e situa suas ideias em campos
político-ideológicos nem sempre concordantes, nisto precisamente residindo uma das
riquezas da coletânea.
Não se verá — desnecessário seria dizer, não fora o episódio recente da "nova
geografia" gestada nos anos 1968-1978 — qualquer pretensão de uma "revolução na
geografia". Simplesmente porque só é real a transformação que se opere na estrutura
objetiva da sociedade e com esta esteja incorporada, quando é o tema, as ideias. Antes, é
esta realidade objetiva e seu movimento histórico que se deseja pôr à mesn, submeter à
dissecação, ver revelada sem as máscaras que dissimulam suas raízes de classe.
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acerca do saber geográfico: "a geografia, o que é, para que serve e a quem serve?" Ainda
mais, sugerindo a eleição do caráter histórico-concreto da sociedade de nossos dias e dos
caminhos de sua superação histórica, o contexto da luta de classes, por conseguinte, como
eixo do carroussel em que se movimentam e se refazem o instrumental discursivo da
geografia, seu valor específico, função, envolvimentos. Se porém todos os textos e autores
da coletânea movem-se nesse solo comum, não estão contudo presentes todos os que o
vêm produzindo, advirta-se. São inevitáveis, então, as omissões involuntárias.
Daí, uma primeira parte reunindo aqueles textos do projeto inicial, seguida de uma
segunda parte reunindo textos de tratamento do real, na verdade um trabalho de releitura
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radical da sociedade.
Todo um largo passo está dado. Que esta coletânea sirva para encurtá-lo e tirar-se o
saber geográfico do casulo dos círculos oficiais e academias. Um instrumento de ação
popular poderoso como o saber geográfico não pode mais continuar usurpado.
Milton Santos
Esta atitude prevaleceu na França após a Segunda Guerra Mundial. Jean Dresch e
Jean Tricart, antes de serem geomorfólogos, estiveram interessados em tópicos marxistas.
O primeiro estudou o papel dos fluxos de capital na organização do espaço africano e o
segundo estudou a estrutura interna das cidades (ecologia urbana) no contexto do conflito
de classes, a propriedade da terra e o mercado especulativo da terra urbana, isto foi o
resultado da inflação, essencial a esta fase do capitalismo e a exploração das exter-
nalidades (não reconhecidas explicitamente nestes termos, mas financiadas pela coletividade)
através da criação da mais-valia.
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demonstram seu esforço em abarcar a dinâmica dos sistemas sócio-econômicos com as
estruturas de produção. A Guerra Fria, sem dúvida, e a invasão da Hungria marcaram um
ponto importante de mudança. Alguns seguiram as linhas marxistas muito discretamente,
enquanto outros a abandonaram. Todavia, esta ideologia sobreviveu. A geografia necessitava,
nesse momento, de uma ideologia coerente.
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se pode interpretar o presente significado de espaço em termos de tempo acumulado. A
noção de totalidade somente pode ser relacionada com o mundo como um todo. Por outro
lado, o espaço nacional é contínuo, como o é o espaço de suas partes, e assim a noção de
escala é fundamental. Os elementos definidores do espaço, conseqüentemente, deveriam ser
considerados como variáveis cuja natureza e significação variam segundo o nível (de espaço)
considerado. O problema da delimitação espacial assume outra dimensão, já que cada uma
das partes é supostamente uma réplica da totalidade. Este objetivo torna-se particularmente
difícil já que a geografia, com seus esforços de especialização, fragmentou-se e tem
fragmentado também a realidade que ela estuda. Ao selecionar várias ideias de diferentes
fontes, a geografia burguesa foi incapaz de interpretar o todo. Em muitos casos, poder-se-ia
dizer que esta foi uma ignorância deliberada.
O que se pode dizer sobre o presente? Isso é muito difícil hoje, quando, segundo M.
Dobb (1963, p. 12), o tempo de mudança é "normalmente acelerado". Tais fases
revolucionárias representam transições entre períodos históricos. Contudo, é muito mais
conveniente lidar com ritmos temporais (sistemas), que são relativamente definíveis em
termos de períodos de rupturas. A velocidade da mudança aumenta a amplitude do
desconhecido e pode encobrir a hierarquia real de variáveis em um mundo caracterizado
pela instabilidade.
Noções marxistas, como a de mais-valia, podem ser aplicadas, como o fez Harvey
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(1976), a situações sociais empíricas. É neste sentido que Harvey assinalou certas
debilidades fundamentais da teoria da renda da terra (Alonso 1964). Outras ideias
poderiam ser similarmente aplicadas: por exemplo, a acumulação e circulação do capital; o
impacto da inovação no capital monetário, capital fixo e capital circulante; valor de uso e
valor de troca; medo e estrutura da produção; estrutura de classes; . . . são todas categorias
que podem ser levadas à linguagem espacial ou geográfica.
UM ESPAÇO SUBDESENVOLVIDO?
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mesma no centro e na periferia do sistema mundial. Neste sentido, pelo menos três
aspectos são essenciais: 1) aquelas forças que promovem a modernização e operam no
centro do sistema não alcançam a periferia ao mesmo tempo; existe um efeito decrescente
definido da distância. Isto poderia explicar historicamente a acumulação do capital no
sistema capitalista, as variações entre países e as desigualdades regionais dentro dos
países; 2) alguns pontos no espaço são alcançados por novas forças, enquanto outros não
recebem tais impactos. Sem dúvida, esses impactos não se dão ao acaso, sendo dirigidos
do centro do sistema em termos de máxima produtividade. A história do espaço é assim de
tipo seletivo; 3) as forças emitidas dos centros (pólos) mudam à medida que alcançam a
periferia. Ainda que se possa encontrar isomorfismo, o valor do fenómeno é diferente. Por
exemplo, a noção de "cidade privada" na França, ou de "metrópole incompleta" nos
Estados Unidos e Alemanha, não pode ser interpretada da mesma forma nos países sub
desenvolvidos.
É urgente que uma teoria seja formulada: e o método dialético é adequado para um
contexto onde múltiplas forças externas e internas, passadas e presentes, políticas,
económicas e sociais, se enfrentam constantemente.
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AS FRENTES DO AVANÇO
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Finalmente, não é suficiente seguir uma corrente que possa resultar simplesmente
em outra moda passageira. Tem-se que sele-cionar os aspectos mais apropriados e úteis aos
estudos geográficos: aspectos apropriados à realidade do presente e ao caráter espacial dos
lugares. Por outro lado, não se deve vacilar em usar todas as evidências — históricas,
filosóficas ou empíricas — porque o perigo de ser dogmático estará sempre presente. O
valor de tais instrumentos de análise será julgado dentro de um contexto de ação social e a
partir de uma perspectiva dialética. O risco de converter-mo-nos em inúteis é também
herdado do marxismo clássico. A crítica que Engels fez a Buchner, Vogt e Moleschott não
se baseava (de acordo com Lenin 1967, p. 227) no fato de que estivessem em desacordo
com Marx, mas no fato de que eles foram "materialistas vulgares": não desenvolveram
uma teoria maior que a de seus mestres.
Referências bibliográficas
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Paul, 1963 (l. a ed. 1946). Doherty, J. The Role of Urban Places in Socialist
Transformation (Some Tentatives and Introductory Notes), mimeograf. 10 p. Dar es
Salaam, University of Dar es Salaam, Department of Geography, 1974.
GEORGE, Pierre. La ville. Lê fait humain à travers lê monde. Paris, Presses Universitaires
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SURET-CANALE, Jean. L'exploitation coloniale est-elle une réalité scien-tifique? La
pensée 16, 1948, p. 13s.
Ruy Moreira
Nelson Werneck Sodré chamou atenção, em livro recente', para o uso ideológico
da geografia pelo capitalismo no decorrer do colonialismo e do imperialismo. Mas o que
nele expõe, acerca do determinismo geográfico e da geopolítica, nem de longe se
compara com a manipulação, de que é hoje objeto o espaço geográfico, denunciada por
Yves Lacoste.
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complicado tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial; espraiando os tentáculos desses
polvos gulosos e insaciáveis eufemisticamente chamados multinacionais; tais são alguns
exemplos dessa interminável lista de maneiras que o capital encontrou de usar o espaço
geográfico como instrumento de acumulação e poder.
Ora, como afirma Lacoste: "Toda a gente julga que a geografia mais não é que uma
disciplina escolar e universitária cuja função seria fornecer elementos de uma descrição do
mundo, dentro de uma certa concepção 'desinteressada' da cultura dita geral. . . Pois qual
poderia ser a utilidade daquelas frases soltas das lições que era necessário aprender na
escola? ( . . . ) A função ideológica essencial do palavreado da geografia escolar e
universitária foi sobretudo de mascarar, através de processos que não são evidentes, a
utilidade prática da análise do espaço, sobretudo para a condução da guerra, assim como
para a organização do Estado e a prática do poder. É, sobretudo, a partir do momento em
que surge como 'inútil', que o palavreado da geografia exerce sua função mistificadora mais
eficaz, pois a crítica de seus fins 'neutros' e 'inocentes' parece supérflua. ( . . . ) É por isso
que é particularmente importante ( . . . ) desmascarar uma das funções estratégicas
essenciais e demonstrar os subterfúgios que a fazem passar por simples e inútil"3.
Mas se é uma necessidade cada vez mais premente tomar a tarefa do estudo do
espaço geográfico, para uma maior compreensão dos processos sociais gerais das formações
econômico-sociais contemporâneas, porquanto o espaço geográfico torna-se mais e mais um
elemento importante nesse processo, esta necessidade lança por outro lado um desafio aos
cientistas e estudiosos de geografia.
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teoria do espaço, que seja uma teoria social.
Este texto propõe-se a sugerir alguns pontos de reflexão para uma teoria do espaço,
considerando o autor ser este um projeto prioritá rio no campo da teoria da transformação
social para todos aqueles que pretendam conduzir a geografia ao encontro das
necessidades mais prementes de nossa época.
1. OS TERMOS DA QUESTÃO
Yves Lacoste intitulou seu livro recente: A geografia Serve Antes de Mais Nada para
Fazer a guerra. Diríamos, alargando o significado desse enunciado, que a geografia, através
da análise dialética do arranjo do espaço, serve para desvendar máscaras sociais, vale dizer,
para desvendar as relações de classes que produzem esse arranjo. É nossa opinião que por
detrás de todo arranjo espacial estão relações sociais, que nas condições históricas do
presente são relações de classes.
Com isso, afirmamos que espaço é história, estatuto epistemoló-gico sobre o qual a
geografia deve erigir-se como ciência, se pretende prestar-se a alguma utilidade na
prática da transformação social. JE tal noção reside não na mera constatação de que a
história desenrola-se no espaço geográfico, mas, antes que tudo, de que .p espaço
geográfico é parte fundamental do processo de produção social e do mecanismo de
controle da sociedade.
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desenvolvimento de uma dada formação econômico-social, inicia-se a formação de um
espaço geográfico, uma "segunda natureza", dizia Marx tomando a expressão a Feuerbach,
que nada mais é que a própria formação econômico-social.
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É fácil perceber-se, por exemplo, através de elementos do arranjo espacial (objetos
espaciais), a fusão do espaço com as instâncias que compõem a estrutura da formação
eeonômíco-social, como a fábríca (instância econômica), o tribunal (instância jurídico-
política) e a Igreja (instância ideológica). Fica evidente, portanto, que tais elementos
dcTãiranjo espacial não se encontram "soltos" no espaço, pois -inserem-se numa lógica de
arranjo espacial que reproduz a própria lógica do modo de produção a que pertencem.
Assim, desde que conceituado nos quadros de uma teoria do espaço geográfico
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submetida ao rigor epistemológico necessário e da compreensão de que a geografia é, por
origem, uma ciência social, por construir-se sobre um objeto de natureza historicamente
determinada (o espaço), e, que, portanto, seus objetos (os objetos espaciais), como a
fábrica do nosso exemplo acima, tiram seu significado da natureza da totalidade social de
que fazem parte, perdendo totalmente sua expressão quando isolado dessa totalidade, o
arranjo espacial pode e deve ser transformado numa categoria de análise, de fundamental
valor para a análise do espaço. Por extensão, de cada formação econômico-social, como deve
ser o objetivo da Geografia e do geógrafo.
Ora, como vimos que o arranjo espacial é a própria estrutura da totalidade social, e
como na base dessa estrutura está a natureza do processo de reprodução social, é no
conhecimento das leis que regem este processo de reprodução que deve se apoiar a análise
do espaço.
Como, face à sua natureza, pode-se partir do arranjo espacial para o conhecimento
das leis da reprodução social, ou vice-versa, há aí uma flexibilidade de alta importância
para o geógrafo. O importante é que sempre se tenha em vista a necessária relação entre
arranjo espacial e o processo de produção social.
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confrontação da maneira como a vêm definindo os geógrafos.
Esta foi a herança que arrastou-se até o século XVIII e desenvolvida por Estrabão,
Ibn Khaldun, Cuverius, Avenarius, cada qual alargando apenas o campo de conhecimento e
esboçando uma primeira sistematização da ciência.
Ganham corpo nesta época as "armadilhas epistemológicas" que ainda hoje lançam
a geografia em contradições e impasses, diligentemente cultivados pêlos geógrafos. Com
Kant nascem as noções de "ciência de descrição" e "ciência de síntese", e com os "pre
cursores" as encruzilhadas dicotômicas 'homem-meio" e "geral-regional", noções dualistas
que têm prestado enormes desserviços à geografia como ciência social.
Durante toda a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX, por quase
um século, o pensamento geográfico girou em torno de suas matrizes: a escola francesa e a
escola alemã, multiplicando-se as definições, em todas as quais o espaço está implícito. La
Blache define-a como "o estudo dos lugares", e não dos homens, e Hettner define-a como
"estudo das diferenciações de áreas". Delas, Carl Sauer, nos Estados Unidos, extrai a
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definição"" de "estudo das paisagens", nascendo o que veio a chamar-se "geografia cultural",
talvez pretendendo fugir à dicotomia homem-meio.
Mas se o espaço foi sempre o "chão" desse saber, como se explica não ter sido
notado, dotado do mínimo rigor teórico e epistemológico, e usado como instrumento de
conhecimento e transformação das sociedades? Questões que, para os geógrafos, são ainda
mais desafiantes, quando se observa que o espaço é hoje tema comum nos trabalhos das
demais ciências sociais, como a economia, a sociologia e a antropologia. Quando se
observa que o espaço foi descoberto pelo capital como instrumento de acumulação e poder.
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Pelo que já se deu a entender, o espaço não é "suporte", "substrato" ou
"receptáculo" das ações humanas, não se confunde com o "espaço físico". O espaço
geográfico é um "espaço produzido", uma formação espacial.
Mas a "primeira natureza" não é mera parte integrante da formação espacial. É uma
condição concreta de sua existência social e isto por ser uma condição concreta da
existência social dos homens. Conquanto a "primeira natureza" não seja o espaço geográ
fico, não há no entanto espaço geográfico sem ela.
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conjunto das interações homem-meio, erroneamente denominadas "relações geográficas"; e,
b) o conjunto das interações homem-homem, as relações sociais.
O caráter simultâneo e articulado dessas interações pode ser expresso nos seguintes
termos: os homens entram em relação com o meio natural, através das relações sociais
travadas por eles no processo de produção dos bens materiais necessários à existência. En-
gels já observava que os homens entram em relações uns com os outros através de
"coisas". No caso, não haveria relações sociais, se não houvesse a necessidade de os
homens transformarem por via do trabalho social o meio natural em meio de subsistência
ou de a este chegarem.
Eis por que achamos que toda análise do que chamamos formação espacial
confunde-se com a análise do processo de produção. Vejamos isto em termos breves.
Ocorre que esta consecução dos bens, seja pela forma mais primitiva ou seja pelo
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ato mais complexo de transformação do meio natural em produtos, é uma tarefa que
transcende ao trabalho individual do homem, sobretudo face à crescente complexidade que
adquire mais e mais no tempo o processo de produção por realizar-se sob a dependência de
emprego de forças produtivas crescentemente mais evoluídas. Implica, pois, numa divisão
de trabalho. Em trabalho social.
São todas estas interações que estão na base da origem e evolução das formações
espaciais que se sucederam no tempo.
Daí, concepções nada geográficas, em verdade, como "estudo das relações homem-
meio" ou "charneira entre o físico e o social", e toda uma série de distorções de cunho
epistemológico. Verdadeiras "armadilhas epistemológicas" em que os geógrafos vêm
incorrendo insistentemente, sem perceberem ou fazendo vistas grossas ao fato de que elas
desviam a epistemologia geográfica do seu real terreno. De que a falsa dicotomia "físico-
humana" só serve para esconder a natureza social da geografia e do seu objeto; de que a
falsa querela "determinismo x possibilismo" só serve para desviar os geógrafos do emprego
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da categoria "determinações"; de que a falsa dicotomia "geografia geral-geografia
regional" só serve para afastar a geografia da lógica dialética, atrelando-a à lógica formal e ao
kantismo.
Parece-nos pertinente, por estas razões, propormos tomarí a geografia como sendo
a ciência de análise das formações espaciais que adquirem as relações sociais de dada
jormacão econômico-social
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período caracteriza-se por formas historicamente específicas de relações de produção. Daí
a importância de se utilizar a categoria dos modos de produção nos estudos espaciais.
6. ESPAÇO E REPRODUÇÃO
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Terminado o processo de produção, se extinguiria a "ordem espacial" gerada pelo trabalho
social, como resultado e ao mesmo tempo condição de realização da produção.
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relações de produção em razão de sua natureza, a realização da reprodução implica em
reprodução das relações de produção.
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na determinação de sua forma".
7. ESPAÇO E ACUMULAÇÃO
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armazenamento contínuo de um arsenal de "coisas" produzidas pêlos homens, como instrumentos
de trabalho e conhecimentos (know-how?), de que os homens se valem para reproduzirem sua
existência social e impulsionarem o progresso mais para a frente. Os objetos do arranjo espacial e
o próprio arranjo em seu todo são exemplos de formas dessas "coisas" produzidas e acumuladas
no decurso infinitamente contínuo do processo de reprodução.
Para que a produção seja um processo contínuo, necessário se torna que no ato de produzir
se gere simultaneamente os bens de consumo, bens que garantam a continuidade. Como exemplo,
que parte das sementes cultivadas seja separada para a reprodução; que a força de trabalho
despendida pelo trabalhador encontre, ao lado do consumo, descanso e lazer, indispensáveis à sua
reprodução; que as ferramentas de trabalho surgidas no processo de trabalho sejam reincorporadas
à reprodução.
Quando o processo de produção se repete cada ano nas mesmas proporções, como ocorre
com as comunidades agrícolas primitivas e o pequeno artesanato, diz-se que há reprodução
simples. Quando o processo de produção se repete sob uma forma mais vasta, diz-se que há
reprodução ampliada. Vê-se, pelo exposto, q u e s ó existe acumulação quando a reprodução é do
tipo ampliado. O espaço geográfico tem uma participação relevante no processo de reprodução,
seja na reprodução simples ou na reprodução ampliada. Os objetos do arranjo da "segunda
natureza" (espaço produzido), tais como prédios, caminhos e lugares de trabalho, ou da "primeira
natureza", como a água, solos e jazidas minerais, bem como o próprio arranjo como um todo, são
aspectos daquilo de que se valem os homens para uma produção contínua e que Marx denominou
de "condições de reprodução".
Ocorre, contudo, que tais "condições de reprodução" são meios de produção e, por
conseguinte, objetos de apropriação pelas classes de uma formação econômico-social.
Conforme seja o modo de produção, diferente uns dos outros justamente pela forma
de relações de produção e de classes que encerram, as "condições de reprodução" e os
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demais meios de produção ganharão uma conformação própria. Como também o processo
ide acumulação.
Sendo assim, uma formação espacial capitalista encerra em seu cerne a luta que
travam o capital e o trabalho.
Eis por que, em belíssimo e inspirado texto, afirma Francisco de Oliveira: "Não
pode o Estado solucionar o chamado problema de transporte urbano? Pelo tamanho do
excedente que maneja, pode; mas, se esse excedente provém em parte da produção
automobilística, então não pode. Pode o Estado solucionar o chamado problema da
poluição? Tendo tanto chão neste país, parece que se poderia descentralizar a indústria,
principal poluidora; mas o chão da pátria não é chão, é capital"24.
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8. ESPAÇO E INSTÂNCIAS
Ora, sabemos que uma formação econômico-social tem uma estrutura formada pelo
perpassamento de três estruturas (instâncias ou níveis): uma infra-estrutura (a instância
econômica) e duas superestruturas (a instância jurídico-política e a instância ideológica).
Estas "três" instâncias permeiam-se, formando uma única totalidade social. Embora
no interior dessa totalidade guardem certa autonomia, não se pode na verdade falar de três,
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exceto em benefício (ou deformação?) da análise científica. Projetando-se umas sobre as
outras, cada uma contém as demais, de modo que um fenómeno social qualquer é, ao
mesmo tempo, "económico", "jurídico-políti-co" e "ideológico". Tal concepção de unidade
das instâncias decorre da própria concepção de totalidade social, que não deve ser
entendida como "uma combinação de partes" ou "um todo articulado de partes". Uma
totalidade social não é um sistema, é um todo confundido com as "partes", sendo cada
"parte" a forma específica como se manifesta o todo. Assim, o Estado, por exemplo, não é
uma parte da formação econômico-social, mas uma forma específica como o todo se
manifesta, sintetizando esta "parte", o Estado, tudo o que constitui o todo. O raciocínio é o
mesmo para a formação espacial que vimos usando neste trabalho, como já se deu a
perceber. Não se pode dizer que a instância jurídico-política, materializada no exemplo do
Estado, seja uma parte da formação econômico-social, o mesmo sucedendo quanto às
demais.
Vejamos, somente para efeito de maior visualização do que foi exposto, a articulação entre
o espaço e cada instância.
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formação.
Como objeto do trabalho, a inserção do espaço se faz por intermédio dos seus
componentes de ordem natural, sob a forma de matérias-primas brutas ou semi-
elaboradas. Como meio de trabalho, a inserção do espaço se faz por intermédio dos seus
componentes "históricos", isto é, dos objetos nele gerados, organizados e acumulados pelo
incessante processo de reprodução ampliada. Ou em termos já ditos: como "condição de
reprodução".
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fundindo-a aos meios de produção, produzir mais-valia.
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centralizará; aquelas porções de espaço que atuarem como locus de produção e
expropriação de excedentes serão as que empobrecerão. Locus da riqueza e locus da po
breza", cada um desses espaços, reproduz internamente por seu turno em seus arranjos
espaciais específicos a desigualdade, porque riqueza e pobreza são os nomes eufêmicos de
burguesia e proletariado, as classes sociais básicas das formações espaciais capitalistas
centrais.
É nesse sentido que talvez possamos falar da formação espacial como sendo uma
formação de múltiplos espaços desiguais. Sendo a estrutura da formação espacial a própria
estrutura da formação eco-nômico-social, tais espaços desiguais não são nada mais que as
desigualdades sociais existentes entre as classes sociais da formação econômico-social.
Mais importante que a imagem é o que ela revela: que a causa das desigualdades espaciais
é a mesma das desigualdades sociais, ou seja, a exploração do trabalho pelo capital.
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A separação do jurídico-político e do ideológico fica ainda mais desaconselhável
quando novamente nos remetemos a Foucault e nos introduzimos em um seu objeto de
reflexão, o das "relações que podem existir entre poder e saber", relações que têm sua
inscrição espacial, como: saber psiquiátrico e asilo; saber disciplinar e prisão; saber
"médico" e hospital; economia política e fábrica; que se complementam com o saber
geográfico e país, chão da ideologia do nacionalismo.
Exemplo recente disto temos na história brasileira, em que estas duas instâncias se
integram completamente. Quando a crise do "modelo económico" foi explicada como tendo
sido gerada pela "crise do petróleo", interveio o Estado com o planejamento do espaço
como medida de solução: tomando em conta o arranjo espacial de consumo do combustível
existente (distribuição dos postos de gasolina), permaneceriam abertos nos fins de semana
somente os pos-los que guardassem determinada distância dos centros urbanos.
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Ocorre que os propósitos desse arranjo revelam bem a articulação que existe numa
formação econômico-social entre esta instância e a instância económica. A conquista de um
território extenso, formado pela anexação militar de territórios de outros povos, tinha por
finalidade a cobrança de tributos. A par de garantir a cobrança regular dos tributos, o
arranjo em satrapias visava garantir o exercício da dominação e da integridade do império.
A fórmula encontrada foi a criação de uma malha político-administrativa da qual não
escapasse qualquer parte do espaço sob domínio persa, dividida em satrapias. Com base
nessa malha, os "aparelhos de Estado" jurídico-políticos (e ideológicos) puderam ser
estrategicamente distribuídos: os sátrapas (governadores), os organismos de tributação, os
contingentes militares de ocupação, as estradas e o correio a cavalo.
Exemplos como este multiplicam-se na história. O que hoje haveria de novo seria o
suprimento e a multiplicação dos "aparelhos jurídico-políticos" voltados para as
necessidades específicas de um outro modo de produção, o modo de produção capitalista,
um modo mercantil por excelência.
Objeto secular de uso ideológico, por meio do qual "a maioria das pessoas formam
sua "visão do mundo", se não sua "visão global", o espaço geográfico tem seu arranjo
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fortemente confundido com a instância ideológica.
Mas a fusão do espaço com a ideologia é mais dinâmica sob os interesses mais
rapinantes do capital.
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ideologicamente construído que o espaço urbano. Explorando paisagens por elas cada vez
mais elaboradas, as grandes empresas imobiliárias promovem a fusão do espaço com a
produção de ideologia, seja sob a forma da estética arquitetônica dos "Barramares" ou sob
a forma ecológica de "sol, sal, montanhas e verdes".
É assim que encontramos em Pierre George afirmações como: "Ciência que mobiliza
o conhecimento dos métodos e dos resultados de um bom número de ciências associadas" e
"uma ciência de síntese na encruzilhada dos métodos de diversas ciências". Megalomania
patológica pura e simples? Os geógrafos pareceram sempre acometidos dessa "doença",
que não é mais que a expressão do uso ideológico de que a geografia tem sido sempre
objeto. Eis como a doença se manifesta em Albert Faure, citado por Milton Santos: "A
geografia reúne todas as ciências, abre os horizontes, comporta todos os conhecimentos
humanos". Afirmação muito próxima desta outra, do geopolítico Mackinder, citado por
Sodré: "Quem dominar a Europa Oriental dominará o coração continental; quem dominar o
coração continental controlará a ilha-mundo; quem dominar a ilha-mundo controlará o
mundo".
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Paga a geografia, por consequência, pesado ónus por não terem os geógrafos
percebido, ou feito vistas grossas, ao fato de que é a formação econômico-social uma
totalidade social cuja concretude é dada pelo espaço, a verdadeira síntese de que se devem
ocupar.
Nota Marx na epígrafe que serviu de guia para este trabalho que devemos buscar
apreender ".. .a essência nas aparências. . .". Entendemos com isso que se deve apreender
as leis internas (a essência) que governam as formas, as estruturas.
Marta Harnecker propõe que ". . .para se chegar a .definir um objeto é necessário
ser capaz de descobrir a unidade ou a forma de organização dos elementos que servem
num primeiro momento para descrevê-la. Pode-se descrever uma sociedade; podemos, por
exemplo, dizer que em toda sociedade existem indústrias, campos cultivados, correios,
escolas, exército, polícia, leis, correntes ideológicas, etc. Porém, a organização destes
elementos em diferentes estruturas (económica, jurídico-política e ideológica) e a determi
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nação do papel que cada uma dessas estruturas desempenha na sociedade permite-nos passar
da descrição ao conhecimento de uma realidade social, estabelecer as leis de seu
desenvolvimento e, portanto, a possibilidade de dirigi-lo conscientemente".
Entendemos uma formação espacial como uma "tópica marxista", para tomarmos,
talvez apressadamente mas não de todo sem validade em um texto que se propõe socializar
reflexões do autor, a expressão cunhada por Althusser, qual seja, " . . . u m dispositivo es
pecial que assinala em determinadas realidades seus lugares no espaço", ou, "...um sistema
articulado de posições (lugares) comandados pela determinação em última instância". Sabemos
que esta "determinação em última instância" são as relações de produção. Vimos, ao longo
do texto, que a formação espacial é a própria formação econômico-social, espacializada.
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conceitos que se constróem sobre relações de produção (relações económicas, para empregar
mos o conceito em sua acepção ampla), historicamente determinadas. Assim, se o modo de
produção funda-se em relações de produção homogéneas, a formação econômico-social
funda-se (ou não) em tipos de relações de produção heterogéneas, articuladas sob o
domínio do tipo mais avançado. Desse modo, o certo seria dizer-se "formação econômico-
social com dominante. . .".
Por isso, se afigura ser-nos válido em nosso estudo o conceito que Samir Amin
propõe de formação econômico-social, como sendo "um complexo organizado de modos
de produção", isto é, como sendo "uma estrutura concreta, organizada, caracterizada por um
modo de produção dominante e pela articulação à volta deste de um conjunto complexo de
modos de produção que a ele estão sub-metidos". Formulação que nos sugere a forma
adequada de articulação dos dois conceitos.
41
Amin de que, não se vendo que o modo de produção feudal foi um fenómeno restrito
espacialmente a uma porção do continente europeu, foi-lhe dado uma universalidade que
não teve. Daí as discussões hoje de modo de produção asiático (tributário).
Samir Amin propõe que, já que uma totalidade social se organiza em função da
produção e expropriação de excedentes, a análise da totalidade "deve organizar-se em
torno da forma pela qual é gerado o excedente característico dessa formação, das
transferências e da distribuição interna desse excedente entre as diferentes classes ou
grupos que dele se apropriam. Como uma formação social é um complexo organizado de
vários modos de produção, o excedente gerado nessa formação não é homogéneo. Existe
42
uma adição de excedentes com origens diferentes. Uma questão essencial é a de saber em
determinada formação concreta qual modo de produção é predominante, e, portanto, qual
é a forma predominante de excedente. Uma segunda questão é saber em que proporção a
sociedade vive do excedente gerado por ela própria e do excedente transferido com
origem em outra sociedade, ou, dito em outra forma, qual a importância relativa que nela
ocupa o comércio a longa distância". Convém lembrarmos que Samir Amin debruça-se
sobre o que denomina "formações sociais periféricas", que é o caso da formação social
brasileira, uma formação com dominante capitalista.
43
possível no tratamento de questões referentes ao espaço. Esta posição, resposta a questões de
caráter geral, apresenta-se como um momento de um esforço de reflexão, tentando dar conta
de um primeiro nível de problemas que se colocam aos geógrafos que buscam
compreender o espaço numa perspectiva materialista e dialética. Assim é a bagagem com que
partimos para um projeto de pesquisa. Esta posição foi se constituindo em leituras e
discussões, e deste modo se vier a servir de auxílio ou alimento à discussão, seu mérito
deve ser creditado, aos colegas que conosco discutiram-na; por outro lado, as lacunas e a
brevidade no tratamento de certos pontos ligam-se ao fato de não se tratar de uma proposta
acabada, porém de um posicionamento ainda em formação. Em suma, se conseguir suscitar
o interesse pêlos autores que serão apresentados, a validade do presente artigo estará dada.
44
orientação positivista. Deixemos a estes o árido debate sobre a classificação e a delimitação
das ciências humanas. Entretanto, devemos observar que a reflexão filosófica sobre o
espaço se fez desvinculada de uma análise histórica concreta, aparecendo como um esforço
puramente lógico (por exemplo em Kant ou em Leibnitz). Por outro lado, as ciências
específicas, ao meditarem sobre o tema, já possuem um interesse particularizado (como
por exemplo a cidade para o urbanismo) que as desvincula da preocupação com o espaço
em sua universalidade. Resta a geografia, com uma bagagem empírica considerável, e com
um restrito porém não desinteressante escopo teórico. A elaboração de uma história crítica
deste material poderá fornecer pontos relevantes à discussão. Tal empreitada obviamente foge
ao alcance deste pequeno artigo. Pretende-se aqui avançar na problematização do tema,
tentando elucidar uma proposta de encaminhamento da compreensão do espaço.
45
dado, determinado diretamente pelas leis gerais da acumulação capitalista. De um lado, os
lugares (locais de ocorrência) com seus arranjos únicos de mediações incognoscíveis, de outro,
as leis abstraías do modo de produção. O espaço como receptáculo. Definindo o objeto
positivamente como fato, fenómeno, epi derme de uma essência (na verdade transformada
em princípio normativo), condena-se sua apreensão à metodologia positivista. Este quadro
lembra que as maiores contribuições em direção à dialética do espaço vieram de autores
pouco ortodoxos com D. Harvey e M. Santos.
46
sobre o problema das ciências particulares, respondeu Lukács: "Hoje entre nós, tornou-se
hábito representar qualquer disciplina que encontrou cidadania académica como uma esfera
autónoma do ser... Ora, sou do parecer de que todas estas coisas são historicamente mutáveis
e que, deste ponto de vista, o ser e suas transformações são o fundamental". Porém, desta
formulação não se depreende que Lukács não reconheça a existência de seres diferenciados
no real, pois coloca ele que muitos complexos não podem ser simplesmente deduzidos de
outros, por serem mediatizados por sua causalidade inerente e pela dose de acaso aí contida:
critica, isto sim, p caráter fragmentário e normativo das ciências particulares. Diz Lukács:
"todo o existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e
movida) de um complexo concreto". Assim, o critério de validade de uma dada reflexão
embasa-se no critério da verdade, a existência (não autonomizada) de seu objeto na
realidade. Porém, como apreendê-lo (delimitá-lo)? Para Lukács, numa perspectiva genética:
"devemos pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em que
condições estas formas fenomê-nicas podem tornar-se cada vez mais complexas e
mediatizadas. Porém, não partindo do elemento isolado, que só existe em conexão no
processo e só assim tem sua razão de ser, e sim do complexo unitário em sua existência
primária. Temos então um ser, parte movente da totalidade histórica, cuja singularidade
articulada de elementos lhe denota um movimento próprio; devemos apreendê-lo em sua
manifestação simples e ir problematizando-o. Diz Lukács: "Interessam de fato as conexões
do ser e fazemos abstração do fato de que uma determinada conexão seja tratada pela
ciência atual como algo de psicológico, sociológico, de pertinente à teoria do conhecimento
ou à lógica. . . A conexão vem tratada como conexão existente, enquanto é considerado
secundário perguntar-se qual a ciência que dela se ocupa". A ciência para Lukács é
engendrada no processo de trabalho, ao estabelecer-se no homem a consciên cia da
causalidade do mundo exterior. O trabalho define a materialidade social pois apenas nele
há uma perspectiva finalista, uma teleologia. No ato do trabalho, diferenciam-se a ação e o
pensamento; este, uma interioridade do sujeito, deve-se sujeitar à causalidade do mundo
exterior se quiser concretizar seus fins. "A teleologia é um modo de posição sempre
realizada por uma consciência, que, embora guiando-as em determinada direção, pode
movimentar apenas séries causais". Assim, sem considerar a causalidade, a consciência é
impotente diante da natureza. À pré-ideação (construção mental antecipada) do produto
47
deve-se seguir a avaliação da possibilidade de realizá-lo. Lukács elogia Hartmann, que separa
dois momentos no ato do pensamento: a colocação da finalidade e a investigação sobre os
meios. No segundo momento funda-se a ciência, como a busca do conhecimento adequado.
Ao realizar-se o trabalho, agora materializado num produto (uma natureza transformada), a
consciência objetiva-se. "Tão-somente no trabalho, na colocação da finalidade e dos meios
de sua realização, a consciência, mediante um ato que ela mesma dirige (ou seja, emidante a
colocação da finalidade), ultrapassa a simples adaptação do ambiente — condição essa que
é comum, mesmo àquelas atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza
de modo involuntário e põe-se a executar na própria natureza modificações que para os
animais são impossíveis até mesmo inconcebíveis. Ora, na medida em que a realização de
uma finalidade se torna um princípio transformador e informador da natureza, a
consciência que impulsionou e orientou um tal processo não pode ser mais, do ponto de
vista ontológico, um epifenômeno". Porém, a utilização não implica em conhecimento da
totalidade, apenas na avaliação adequada do ob-jeto e dos meios empregados. O remeter à
totalidade diferencia a práxis apropriadora da práxis utilitária. A ciência fragmentária da era da
decadência ideológica da burguesia tenta perpetuar a práxis utilitária e manipulatória13.
Lukács, ao propor uma base ontológica para o conhecimento científico, possibilita o estudo dos
objetos em sua individualidade sem cair na autonomização positivista. Diz ele: "O objeto é o
que existe realmente, a tarefa é a de investigar o ente com a preocupação de compreender o
seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexões no seu interior", e ainda "... a
questão ontológica não simplifica artificialmente o problema; oferece, ao contrário, uma base
científico-filosófica para compreender o processo na sua complexidade e ra-cionalidade. . .
De tal modo, a ontologia pode superar problemas que a divisão do trabalho nas várias
disciplinas tornou insolúvel".
48
o ser social, forma mais elevada da materialidade. Este transforma teleologicamente (com
finalidade) o mundo externo através do seu trabalho. Apropria e transforma este espaço
natural, imprimindo-lhe sua marca; faz dos objetos naturais formas úteis à vida humana. O
apropriar-se do espaço concreto implica na elaboração de categorias lógicas sobre o espaço.
Num momento de parco desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, esta refle
xão se faz por uma via empírica, utilitária. A elevação deste pensamento, com a construção
de categorias mais específicas, e a apreensão de conexões mais mediatizadas remetem ao
desenvolvimento da apropriação real, do grau de transformação do meio, ao afastamento
do limite natural. Noções como distância, extensão, fronteira, assim como a consciência do
espaço grupai e a demarcação do domínio territorial são engendradas no trabalho social,
são ilações da prática. Esta breve apreciação já nos permite diluir um nó górdio da reflexão
geográfica: a oposição entre a definição lógica e a definição empírica do objeto da
geografia. Para a primeira o objeto, o espaço, seria uma categoria lógica (na linha kantiana
de uma categoria do entendimento); para a segunda o objeto seria a superfície terrestre,
uma categoria empírica (por exemplo, na definição da geografia clássica francesa). Como
foi colocada a questão, supera-se a dicotomia racionalismo x empirismo, realçando o
caráter formal das duas soluções. Mediatizada pelo processo histórico de instalação da
humanidade sobre o globo, a apreensão do espaço se faz calcada na apropriação; este é
posto como categoria his-tórico-concreta, remetendo a um ser em movimento. O ser já não
é uma "natureza em si" mas uma "natureza para o homem" e cada vez mais um trabalho do
homem imbuído do movimento e da dinâmica própria da materialidade social.
Posto nestes termos, o natural vai ser visto como potencialidade substantivada na
apropriação humana. O ser social, forma mais elevada da materialidade, direciona as
manifestações da realidade orgânica e inorgânica com sua ação transformadora. A
materialidade orgânica e inorgânica apresenta-se no homem como necessidades (o
reproduzir sua vida animal), uma natureza interna. A natureza externa é dada como
material para a ação, sobre o qual o homem se debruça, conhece e impulsiona uma
proposta finalística. Na obra transformada (o produto do intercâmbio material), temos a uni
dade do natural e do social, mantendo sua diferenciação enquanto causalidade e teleologia;
no próprio homem, a dialética necessidade-liberdade, mediatizada pelas condições naturais
49
e históricas. Desde logo, homem e natureza já estão colocados em relação na perspectiva da
ontologia do espaço. A apropriação, trabalho social, se faz sobre uma base concreta de
condições diferenciadas que não podem ser anuladas em sua determinação, pois vimos que
o homem apenas impulsiona séries causais. Substantiva as potencialidades naturais, que
como coisas em si fogem ao objetivo de nosso estudo. É como natureza para o homem que
devemos retê-la, parte ativa de um processo determinado pela história da sociedade. A
unidade do objeto é obtida fora dos esquemas deterministas, ambientalistas ou
possibilistas.
50
mos, num nível introdutório, elucidar um instrumental teórico de análise para tal
empreitada. Estudamos e refletimos sobre os pontos da obra de Marx, significantes para o
tema, e tentamos uma aproximação ao diferenciar o "valor do espaço" e o "valor no
espaço". O primeiro é um valor contido, a potencialidade natural a que nos referimos
anteriormente. O valor no espaço é um valor criado, um produto do trabalho. As duas
formas ocorrem em unidade, pois a substantivação de um dado potencial implica no
dispêndio de uma quantidade de trabalho que se materializa no espaço. Porém, se o móvel
que condiciona a apropriação de uma dada porção do globo estiver numa ou noutra forma de
valor, o resultado e a dinâmica do processo de apropriação serão diferentes. No artigo
citado, relacionamos as formas de valor espacial às formas de renda da terra. Atualmente,
estamos trabalhando no sentido de exemplificar tais afirmações em estudos de caso.
51
Neste trabalho considero a legalidade de uma disciplina que denomino geografia
teórica, destinada à discussão do problema do espaço como ser, por uma via que define a
possibilidade da solução teórica, que implica em uma prática específica. Como são muitos
os problemas a levar em conta, e como se trata de um pensamento em elaboração, a forma
que assume o discurso é a de uma auto-avaliação crítica. Esses problemas são: o
movimento, que se repete, da posição racionalista à empirista, e vice-versa; a tentativa de
responder à questão de se a estrutura é um componente ideológico do real ou se é um
atributo do objeto; a categoria da subto-talidade, com a qual trabalho; o problema da
natureza das relações; a busca de resposta para a indagação: o que é o espaço?; a solução
pluralista em sua forma atual; uma teoria do lugar e seus fundamentos; o antigo tema da
dialética da natureza; a materialidade do espaço; a relação positivismo-dialética na
geografia francesa; o que denomino de ontologia de Reclus; a categoria da particularidade;
a natureza dos estudos sobre o Brasil; e singularidade estrutural; o movimento da estrutura;
o movimento do pensamento em nossa época; as soluções ontológicas possíveis, como a
geoeconomia, a geoeconomia política, a espacialização da economia política. Termino o texto
sugerindo a pesquisa como requisito para dar substância ao projeto de uma teoria em
elaboração, capaz de dar a referida legalidade ao trabalho intelectual, capaz de produzir
essa geografia teórica.
Esse nível pode ser referido ao mundo urbano, que representa hoje o lugar em que
52
se condensam as contradições do campo e da indústria, das quais tomamos consciência
intensamente, por meio das comunicações. O discurso tem, então, uma referência lógica
específica, que representa a particularidade do presente, presente esse que contém o
passado e o futuro, espacialmente dados.
Nesta modalidade, as ideias não propõem nem a ação política, nem o debate crítico, a
não ser na própria instância de poder, a universidade. Elas encontram, por isso, seu ser, na
própria ontologia do trabalho intelectual. Todavia, essa ontologia é indicativa da ação
política e do debate crítico, sem pretender substituí-los e necessariamente comprometer-se
com outras soluções que não as do próprio autor, que se coloca aqui como um intelectual,
que não propõe senão sua própria teleologia.
O ESPAÇO ONTOLÓGICO
Muitos geógrafos, hoje, estão tentando encontrar a via de solução teórica para o
trabalho que a geografia deve fazer agora. A geografia realizada até o presente ganhou o
estatuto, que deve e necessita ser reconhecido como amplamente alcançado, de uma dis
ciplina científica, que deveria autodeterminar-se geografia descritiva ou geografia empírica.
O movimento contraditório do pensamento, ao relacioná-las, a primeira e a segunda,
defronta-se com um grande número de questões, sem que consiga resolvê-las. É que essa
geografia descritiva é um produto acabado, ao passo que a geografia teórica está apenas
surgindo.
Diz D. Harvey: "Há outro sentido, em relação ao qual o espaço pode ser pensado
como relativo, e opto por chamá-lo espaço relacional — o espaço, tomado à maneira de
53
Leibniz, como estando contido “os objetos, no sentido de que um objeto existe, apenas e
somente, se contém e representa dentro de si relações com outros objetos” (p. 13).
No entanto, essa solução apresenta um. problema, ou seja, o espaço não se põe
como ser. A solução no que diz respeito ao mo-'vimento do espaço é remetida à prática
humana, que valida a questão da ação política e do debate crítico, mas não resolve o
problema teórico.
Enquanto Harvey lida com total idades e estruturas e não resolve o impasse,
54
Lacoste assume a estrutura como objeto. Em relação à questão de se estrutura é um
componente ideológico ou um atributo do objeto, apresenta, em primeiro lugar, a questão
do observador, ou, como diz, se trata de apreender o real. Esse real é espaciali-dade
diferencial que deve ser estruturada; a partir dessa postura, Lacoste chega à conclusão de
que fazer isso é substituir o empirismo ("uma representação do mundo feita de dados e de
demarcações evidentes") pelo racionalismo ("uma representação do mundo 'construída' ");
essa construção se dá por "combinação" de "conjuntos espaciais"; os "conjuntos espaciais" se
forniam intelectualmente; esses "conjuntos espaciais" constituem "instrumentos diferenciais";
a "apreensão progressiva" do objeto mune-se, então, de instrumentos — os "conjuntos
espaciais" teóricos; o objeto são as "múltiplas formas da 'realidade' — o objeto é múltiplo e
apresenta-se como forma, que é manifestação da 'realidade'.
No entanto, o espaço se põe como ser, mas por uma via epistemo-lógica; a questão,
de simples passa a ser complexa, mas o todo é preservado por um recurso tradicional da
geografia francesa: a noção de combinação. O todo não o é como tal, mas resulta de um
agrupamento.
55
A solução é, por isso, uma proposição metodológica que remete ao fazer e,
portanto, ao empirismo: cabe à prática intelectual resolver a questão. Daí que, a pergunta: a
estrutura é um componente ideológico ou um atributo do objeto? fica sem resposta, ou
seja, só a prática humana a resolve em Harvey, e só a prática intelectual a resolve, em
Lacoste.
Para Milton Santos, que estudou a questão, o espaço se põe como "totalidade e
estrutura interna". Como diz: "A natureza dessa nova forma de totalização correspondente
à era da tecnologia e das multinacionais exige que o quadro nacional seja tomado como a
escala viável dessa totalidade e dá um lugar particular ao valor da estrutura interna,
concreta, de cada país. É através dessa estrutura interna concreta que os chamados valores
mundiais se exprimem ao nível de cada classe social, de cada lugar, de cada cidadão, que é
o que conta" (p. 171).
56
exprime como instâncias (níveis), que são esses: a classe, o lugar, o cidadão; um dado
social, um dado geográfico e um dado político. A unidade do argumento é sistémica e
pode ser representada na sequência: valores mundiais (input), estrutura interna concreta
(quadro nacional) (processamento), e classe, lugar, cidadão (output). O feedback,
representado pêlos níveis classe, lugar, cidadão, influindo sobre os valores mundiais,
realimenta o sistema.
57
A ideia de subtotalidade é uma transposição, para a dialética, do problema do todo
e partes do estruturalismo. É fácil compreender que, tratando do conhecimento em seu
conjunto, a ideia de subtotalidade pode justificar a existência de qualquer conhecimento es
pecífico: em meu caso, da geografia.
Meu ponto de partida é o espaço relacional de Harvey, mas tendo corno ponto de
referência a teoria das mônadas de Leibniz. Por que a tomo? Porque vejo a geografia como
uma ciência que tem no espaço-superfície da terra seu objeto. O espaço é o fundamento de
meu racionalismo, quando o afirmo como categoria que contém o lugar, e este é expressão
da área, da região, do território. A superfície da terra é o fundamento de meu empirismo,
quando a tomo como manifestação concreta sensível do lugar, enquanto céus, rios,
montanhas, planícies, cidades, portos, populações etc. A teoria das mô-nadas identifica as
categorias e conceitos geográficos e os mostra à percepção na superfície da terra, como
lugar em si e lugar de ocorrência e manifestação.
58
Da fenomenologia tomo ajíeoria da percepção e a teoria do fenómeno em geral.
Não há, também, ecletismo, porque não há mistura nem arbitrariedade no tomar
dessas posições elementos para a análise, articulando-os numa ontologia especial. Por isso,
a análise de que lanço mão é, basicamente, a análise ontológica. É por isso que, aos
problemas aqui apresentados, em Harvey, Lacoste e Santos, gosta ria de acrescentar o
seguinte: de que natureza são as relações possíveis, ao nível do objeto e do método? É o que
pesquiso atualmente.
59
Se o espaço é tomado como dicotômico, muitas soluções são possíveis: há tantos
espaços quantas são as abordagens. Se o espaço é tomado como contendo em si a
contradição, apenas duas soluções são possíveis: a monista e a pluralista. A solução
monista implica na consideração do espaço como uma única substância, irredutível a
qualquer outro aspecto do real. A solução pluralista o toma como sendo inteiramente
articulado por seus elementos componentes. Discuto, aqui, apenas esta segunda posição.
Não se trata de apresentar uma solução de "laboratório". O que faço é lançar mão
do fundamento de uma proposição. Parto da crítica da ideia — tomada unilateralmente —
de que “os corpos ocupam lugar no espaço”. Por isso, proponho (desenvolvendo as~cõrïiéqüên-
cias da posição de Harvey), que tanto os corpos como o lugar vazio constituem
rnanifestações da materialidade do espaço. Na medida em que a demonstração não se propõe, a
questão se põe como posição de princípio. Por isso, o tema substantivo passa a ser: teoria do
espaço? ou, teoria do lugar?
Uma teoria do lugar, significativa para o homem, deveria ser uma teoria do valor
em geografia. Por isso, defendo, também, como quës^ tão de princípio, a ser demonstrada,
a existência de um modo de produção natural e a existência do trabalho natural; em outras
palavras, uma dialética da natureza, além de uma dialética do social — que é admitida sem
muita dificuldade — que seja o fundamento da ideia de Marx do que deixa implícito com
a noção de primeira natureza. É um pressuposto necessário para mudar a ênfase da ideia
de ocupação do espaço para o conceito de relações no e do espaço. Não que a primeira
60
não ocorra, mas sua consideração extrapola o objeto da geografia. Por isso, é necessário
tomar o espaço em si como ocorrência material, como espaço absoluto, relativo e
relacional. Por este caminho a geografia deixa de ser ape-nas uma ciência auxiliar e
externa a outras ciências.
ESPAÇO E MOVIMENTO
O que entendo por positivismo, no caso, tem como ponto de apoio a ideia de que,
nos autores que vou mencionar, aparência e essência da realidade apresentam-se
separadas, apesar da discussão constante sobre forma: a paisagem. Além disso, suas
posições variam no tempo e em teoria do conhecimento: em linhas bastante gerais, os
clássicos preocuparam-se com o objeto; os modernos privilegiam o sujeito. Há, então, uma
separação também neste aspecto.
61
A separação em Sorre parece como uma tentativa de relacionar espaço e equilíbrio
(ecologia). O equilíbrio é referido como equilíbrio instável. A unidade terrestre de La
Blache transforma-se na análise que fragmenta o espaço em geodésico, natural, humano,
político, económico e social.
Reclus, em sua obra Uhomme et Ia terre, afirma o seguinte: "Cada período na vida
de um povo corresponde a uma mudança em seu meio ambiente. São as desigualdades na
superfície do planeta que criam a diversidade na história humana. A vida reflete o meio
ambiente. A terra, o clima, a maneira de trabalhar, o tipo de alimentação, a raça, as relações
de parentesco e os sistemas de agrupamento social são dados fundamentais, que
desempenham seu papel e influem sobre a história de todo indivíduo" (p. 42).
Essa proposta não teve continuidade. São muito recentes as discussões sobre
62
geografia e dialética. Modo de produção é uma categoria ausente do raciocínio geográfico.
Começam a surgir em alguns trabalhos uma resposta a essas questões. É o caso, por
exemplo, de James Anderson, quando debate ideologia e geografia. Não obstante, a questão
é colocada em termos gerais e não se chega à particularidade.
O ESPAÇO DA PARTICULARIDADE
63
Diz ele, inicialmente: "A verdadeira ciência toma da própria realidade as condições
estruturais e suas transformações históricas, e quando formula leis, estas abrangem, sem
dúvida, a universalidade do processo, mas de modo que pode sempre baixar dessa
legalidade até os fatos singulares da vida, embora, certamente, isso ocorra frequentemente
através de muitas mediações. Esta é precisamente a dialética, concretamente realizada, do
universal, do particular e do singular" (p. 98).
Essa relação dialética tem como referência o modo de produção, sem o que ela
seria apenas um exercício de lógica formal.
Para Lukács, "A singularidade tem uma grande riqueza de determinações, quando é
o elo final de uma cadeia de conhecimentos que conduz de legalidades descobertas, de
universalidades concretas, à singularidade como meta do processo de pensamento" (p. 107).
Mais adiante, afirma: "O singular, precisamente como singular, é conhecido de modo
seguro e verdadeiro, tanto quanto mais rica e profundamente se descobrem suas mediações
com o universal e o particular. Há, evidentemente, casos nos quais o conhecimento do
singular, mediante aspectos isolados e puramente abstratos, é possível e suficiente; mas,
64
nesses casos, trata-se, geralmente, mais de um reconhecimento (no sentido de
identificação) do que de um conhecimento" (p. 116).
A questão se põe, então, como segue: "O singular não existe senão na conexão que
conduz ao universal. O universal não existe senão no singular, através do singular. Todo
singular é universal (de um modo ou de outro). Todo universal constitui uma partícula, ou
um aspecto, ou a essência do singular. Todo universal abrange os objetos singulares de um
modo meramente aproximado" (p. 118).
Diz Lambert que "Os brasileiros estão divididos em dois sistemas de organização
económica e social, diferentes nos níveis como nos métodos de vida. Essas duas sociedades
não evoluíram no mesmo ritmo e não atingiram a mesma fase; não estão separadas por uma
diferença de natureza, mas por diferenças de idade. . . Observa-se, assim, dentro do próprio
65
Brasil, a mesma diferença, grandemente acentuada, entre país novo, próspero e em
constante transformação e sociedade velha, miserável e imóvel, que se nota no plano
internacional" (p. 101).
Mais além, caracteriza os "contrastes" (p. 101), entre a "cultura arcaica" e "uma
outra sociedade, muito mais móvel e evoluída" (p. 102); a diversidade observada abrange o
que chama de "Brasil arcaico" e "Brasil novo". (. . .) "Conquanto o país novo — continua
— e o país velho, colonial, tenham cada qual o seu domínio próprio — o primeiro no Sul e
o segundo no Nordeste — um e outro estão presentes por toda parte e indissoluvelmente
ligados." A isso, acrescenta, esclarecendo, a ideia de "diferenças de idade": "os dois Brasis
são igualmente brasileiros, mas estão separados por vários séculos" (p. 103).
Enquanto Lambert examina uma realidade que lhe aparece como uma estrutura
simples, dualista, e estática, Monbeig preocupa-se com o desenvolvimento dessa estrutura:
66
"Progressivamente, os homens completam a conquista pacífica da terra brasileira, fazendo
surgir regiões humanas singularmente mais complexas do que os grandes conjuntos
naturais" (p. 39). A ideia de unidade na diversidade, presente em Lambert, é retomada aqui
de outra maneira: "As regiões todas participam de igual estrutura económica de origem co
lonial e as estruturas sociais, legado da sociedade do tempo dos plantadores, são, em toda
parte, da mesma essência. É aí que importa procurar os fundamentos da sociedade
brasileira. Aí, também, é que se acha a fonte de seus problemas" (p. 66). Por isso, os
problemas atuais da população "decorrem — diz ele — de uma distribuição muito desigual
dos habitantes pelo território e dos que são suscitados pela expansão demográfica e pelo
futuro da infância" (p. 83). A economia moderna apresenta dinamismo e crescimento
desiguais "em todas as regiões do país" (p. 84).
Tanto Lambert, como Monbeig, podem ser incluídos entre os autores que discutem a
realidade em termos de disparidades regionais. Essas disparidades regionais, contudo, são
tomadas apenas em sua singularidade abstraía, ou seja, é feita a descrição da paisagem ob
servada, em termos de sua aparência.
Lambert parte da ideia de dualismo, para fazer essa caracterização: Monbeig rejeita
67
qualquer ideia orientadora da análise e, como Lambert, preocupa-se com a originalidade. Essa
singularidade é um conhecimento verdadeiro naquilo que se trata de constatação fatual.
Contudo, conforme citação de Hartshone, feita anteriormente, essa geografia deve
ultrapassar o que o leigo pode constatar. Para que isso seja possível, é necessário
considerar a particularidade concreta, como mediação dos espaços relacional e absoluto
concretos, em sua expressão teórica.
68
como diz Althusser, "complexamente-estruturalmente-desigualmente-determinada" (p. 185).
A sobredeterminação implica na consideração da ação, que se sabe determinada e que se
movimenta na autoconsciência da totalidade. Por isso, também da subtotalidade. A relação
é, então, subjetiva-objetiva, ao mesmo tempo, de tal modo que a separação tradicional entre
sujeito e objeto transforma-se em uma modalidade específica de autodeterminação
consciente e não consciente. O ser é sujeito e objeto ao mesmo tempo.
A "era das tecnologias e das multinacionais", a que se refere Milton Santos, está
presente nessa teoria do conhecimento, no âmbito do espaço produtor e do espaço
produzido.
Desenvolvendo uma teoria do sujeito, diz: "A práxis é uma passagem do objetivo
ao objetivo pela interiorização; o projeto, como superação subjetiva da objetividade em
direção à objetividade, tenso entre as condições objetivas do meio e as estruturas objetivas
do campo dos possíveis, representa em si mesmo a unidade em movimento da subjetividade e
da objetividade, estas determinações cardeais da atividade. O subjetivo aparece, então, como um
momento necessário do processo objetivo" (p. 81).
Por isso, "o homem é, para si mesmo e para os outros, um ser significante, já que
nunca se pode compreender o menor de seus gestos, sem superar o presente puro e explicá-
lo pelo futuro" (p. 123). Então, "as significações vêm do homem e de seu projeto, mas se
inscrevem por toda parte nas coisas e na ordem das coisas. Tudo, a todo instante, é sempre
significante e as significações revelam-nos homens e relações entre os homens através das
estruturas de nossa sociedade. Mas estas significações não nos aparecem senão na medida
em que nós mesmos somos significantes" (p. 126). Daí que "o homem não é nem
significante nem significado, mas ao mesmo tempo (. . .) significado-significante e
significante-significado" (p. 133).
Qual a consequência?
69
É que, por isso, o movimento da estrutura se põe, ao mesmo tempo, como estrutura
em movimento. Isto quer dizer que o espaço é (empo do espaço c o tempo é espaço do
tempo. Mas esse es-paço-tempo é um espaço-tempo alheio — para si — ou um espaço-
tempo exterior — para outro. A ação consciente torna-se sobrecons-ciente e se põe como
referência.
70
Não quero terminar a exposição desta auto-avaliacão crítica sem explicitar o
conteúdo deste escrito: o desenvolvimento sério do trabalho teórico tem sido obstaculizado
pelo veloz crescimento da transformação do mundo realizado em nossos dias, que afeta o
próprio resultado desse trabalho, quando é possível realizá-lo. A solução pluralista é uma
resposta a um mundo também pluralista pela incapacidade da teoria de dar conta de sua
unidade. Por isso, o empirismo tecnológico recupera sempre seu terreno, até antecipando-se
à capacidade de compreensão do real. Abre-se o caminho a novas modalidades de
irracionalismo. Daí que se põe como dado a própria necessidade da teoria, que orienta a
ação humana. As ideias aqui expostas têm como finalidade fundar a legalidade do trabalho
intelectual não alienado e cada vez mais socialmente necessário no presente. Como esse
trabalho se põe como produção da teoria, ele se coloca, ao mesmo tempo, como projeto, e
como consciência do existir, que autodetermina a significacão-significado. Por isso,
legaliza-se a teleologia da ideia que se produz como ideia, abrindo caminho para a práxis
específica da inteligência realizando o que o modo de produção coloca ante ela como
necessidade. Põe-se, então, a própria necessidade da liberdade do trabalho intelectual não
alienado, sem o que a fetichização do produto positiva a consciência, empobrecendo-a e, com
isso, produzindo e reproduzindo a ideia pobre e a realidade pobre que fundamenta essa
ideia.
Referências bibliográficas
HARVEY, D. Social Justice and the City. Londres, Edward Arnold, 1976. IBGE.
Geografia do Brasil. Vol. I-V. Rio, Centro de Serviços Gráficos, 1977.
71
LACOSTE, Y. A Geografia Serve Antes de Mais Nada para Fazer a Guerra. Lisboa,
Iniciativas Editoriais, 1977.
SILVA, A. C. da. O Espaço Fora do Lugar. S. Paulo, HUCITEC, 1978. Silva, A. C. da.
Cinco Paralelos e Um Meridiano (Ensaios de Geografia Teórica). Original inédito. São
Paulo, 1979.
Muita tinta se tem gasto para discutir o que seria uma geografia científica. Esta
busca de cientificidade é, até certo ponto, um esforço de legitimação do intelectual perante a
sociedade como um todo. O ritual que envolve o trabalho intelectual tem, portanto, um ca-
ráter de busca de legitimidade que dá ao exercício do pensar o resal uma dinâmica
específica.
72
Qualquer esforço no sentido de desvendar a natureza da crise de um determinado
segmento do espaço do saber deve, portanto, partir da premissa de que o trabalho
intelectual, embora possuindo uma dinâmica específica, sofre influência do próprio
contexto histórico que constitui a materialidade do trabalho científico.
73
que este é discutido e divulgado, exigindo de nós um posicionamento. Está em questão a
cientificidade da geografia e algumas colocações têm de ser feitas para que seja legítima a
própria existência da geografia enquanto um segmento da divisão do trabalho científico. E
o problema que nos parece ser o crucial diz respeito à definição do solo teórico da
geografia, à determinação do seu objeto científico.
Embora não pretendamos esgotar o tema, devemos reconhecer que o que temos
apresentado à sociedade em que vivemos não tem sido capaz de levá-la à superação dos
seus problemas espaciais e que, de certa forma, temos sido os mistificadores dos reais
processos que governam a organização do espaço, fetichismo este que sob diversas
capas tem escondido o caráter histórico do espaço.
O que observamos nos diversos trabalhos que procuraram fazer uma história da
geografia é que essas "visões" sempre existiram, sendo que, em determinados momentos,
uma teria predominado sobre as demais. Neste eixo de abordagem são destacadas três fases:
74
1ª.) A "visão homem-terra" ou "ecológica" que teria sido predominante até a década
de 30, caracterizando bem esse período a ^abordagem determinista de Sumple e Huntington,
num primeiro momento, e a "visão ecológica" da Escola de Chicago e o estudo de "género
de vida" de La Blanche, num segundo momento.
2ª.) A "visão regional" ou "estudo de área" que firmaria posição a partir do clássico
trabalho de R. Hartshorne: The Nature of Geography (1939), estendendo-se até a primeira
metade da década de 50.
Cremos não haver entre os geógrafos nenhuma polémica de fundo relativa a esta
periodização. O problema mais grave que vemos na historiografia da geografia é a tradição
historicista, evolucionista, que pouco ou nada nos esclarece sobre o problema do
desenvolvimento e da natureza das crises do pensamento geográfico. O fato é que ao se
limitar a dispor através do tempo a predominância de uma "visão" sobre as demais, num
determinado momento, pouco nos permite extrair acerca da natureza das mudanças que,
por exemplo, se deram nas décadas de 30 e de 50. Ou seja, a concepção comum entre
aqueles que se propõem a analisar a evolução do pensamento geográfico é a do caráter de
continuidade da história, o que, exatamente por isso, não abre espaço para pensar e analisar
as rupturas, as mudanças, as revoluções e contra-revoluções.
75
nos altares das academias e instituições oficiais.
Como afirmamos no início deste ensaio, a produção científica, em que pese a sua
especificidade, não pode ser pensada fora do contexto histórico em que foi elaborada. Por
mais que queiramos expressar ou colocar o discurso científico como uma "visão" neutra e
acima de qualquer outro discurso, ele se inscreve naquilo que Marx chamou de
superestrutura. O discurso científico é uma aproximação do real efetivada por indivíduos
inscritos em relações sociais, que, no caso da sociedade de classes, é de onde emanam os
antagonismos através dos quais a história se move.
76
de capital, baseada na extração de mais-valia, o motor propulsor do modo capitalista de
produção, tem este a necessidade de estar munido dos conhecimentos que lhe permitam
uma forma superior de extrair valor excedente, qual seja, a mais-valia relativa.
A ciência adquire com o capitalismo os foros que possuía a ideologia religiosa sob
o feudalismo, não sendo fortuito, aliás, o fato de chamarmos os grandes sábios da
matemática, da física, da história ou da geografia de "papas". São os "papas" de um novo
tempo, de um modo de produção que laicizou o saber, porém, para protegê-los construiu
novos "templos" que são as novas academias de ensino e pesquisa. Este "novo" intelectual
se constitui numa correia de transmissão entre a superestrutura e a infra-estrutura,
procurando compreendê-la melhor para reproduzir a própria estrutura que o produziu.
António Gramici nos fornece a exata medida dessa situação ao dizer que
"Qualquer Estado tem um conteúdo ético, na medida em que uma de suas funções consiste em
elevar a grande massa da população a um certo nível cultural e moral, nível (ou tipo) que
corresponde à necessidade de desenvolver as forças produtivas e, portanto, aos interesses das
classes dominantes. Neste campo, a escola ( . . . ) e os tribunais ( . . . ) são setores da atividade
estatal essenciais: Mas, de fato, há uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades ditas
privadas que tendem no mesmo sentido e que compõem o aparelho de hegemonia política e
cultural das classes dominantes" (Macciocchi, 1977:150).
Jacques Rancière em Sobre a Teoria da Ideologia nos diz que "o saber só tem
existência institucional enquanto instrumento de dominação de uma classe". Isto nos permite
entender o porquê da "ausência" de certas "visões" na trajetória do pensamento geográfico
académico, um saber que, como nos diz Yves Lacoste, "serve antes de mais nada para fazer a
guerra" (Lacoste 1977).
Por outro lado, é preciso deixar claro que não se trata, como gostam de fazer os
mistificadores cientificistas, de propor uma distinção radical entre ciência e ideologia.
Também não se pretende operar com uma distinção muito cara aos stalinistas entre ciência
77
burguesa e ciência proletária. Trata-se, isto sim, de deixar bem evidente o caráter de
apropriação de classes do saber, do caráter de classe que atravessa a sua divulgação por
meio das instituições que, como vimos, "compõem o aparelho de hegemonia política e
cultural das classes dominantes". Esta colocação deve servir, ainda, de alerta face a um
certo tipo de marxismo "domesticado", despo-litizado, que começa a grassar nos meios
académicos da geografia. - Essas -observações, em suma, pretendem enfatizar que a pro
dução do saber não pode ser compreendida sem pensarmos a totalidade social no qual está
inserida. E é tendo sempre em mente essas considerações que nos propomos a analisar as
crises de hege-jnonia através das quais se tem movido o pensamento geográfico.
Antecipando um pouco o eixo de nossa análise, avançamos a concepção de que tais crises
de hegemonia não constituem somente crises teóricas e metodológicas de uma determinada
"visão" da geografia, mas sim crises que estariam subjacentes a essas questões; para o que
uma abordagem epistemológica se faz necessária. Em outras palavras, sustentamos que as
crises de hegemonia são provenientes da não-resposta de uma dada "visão" a uma realidade
historicamente determinada e, portanto, não satisfatoriamente explicada, segundo as
necessidades daqueles que controlam as instituições. A ''nova visão" que substitui a anterior
somente será válida, igualmente, enquanto atender aos interesses dos que a tornaram
hegemónica, garantindo para ela um lugar académico e o status de "científica". Como
acentuaram Marx e Engels:
78
da consolidação da burguesia e, consequente mente, do capitalismo. Influenciada, de um
lado, pelo extraordinário avanço das ciências naturais no século XIX e, por outro lado, pelo
caráter expansionista do capital, ela se afirma cada vez mais à medida que o capital
conquista o mundo. Geografia colonial é uma expressão que define bem o contexto em que
surge a geografia "científica".
Não é por acaso que, nesse quadro, duas "escolas nacionais" se destacassem: a
norte-americana e a alemã, nações que se afirmam enquanto potências capitalistas ao
apagar das luzes do século XIX, quando o caráter monopolista do capitalismo já se
manifestava.
Poucos são os estudiosos que ousam nos dias atuais refutar a íntima ligação entre o
imperialismo e o determinismo geográfico que, embora historicamente mais antigo que o
79
imperialismo, se ajustou como uma luva aos fins expansionistas do capitalismo mo-
nopolista-financeiro.
Talvez por isso suas ideias não tenham atravessado o Atlântico, "defendido" que
estava o Novo Mundo pela Estátua da Liberdade, dificultando a penetração em território
americano das ideias libertárias daquele anarquista francês. Reclus permaneceu um desco
nhecido, ele que já sentia a importância de pensar as relações entre os centros urbano-
industriais e o campo, abrindo caminho à compreensão dos fluxos espaciais de
mercadorias, de onde e como a riqueza se acumulava e da consequente unidade na
diversidade do espaço. Não queremos dizer que essas questões estivessem claramente
explicitadas nas obras de Reclus, mas simplesmente afirmar que, segundo nos atesta
Lacoste, a sua preocupação com as relações cidade-campo permite perceber o movimento
da riqueza no espaço. O "esquecimento" de E. Reclus mais uma vez evidencia que as
instituições burguesas sabem selecionar dentre os cientistas aqueles que lhes permitam
desenvolver e reproduzir a sua forma de regime social.
A "REAÇÃO POSSIBILISTA"
80
cultura a partir de uma experiência que teria travado com uma fração específica da crosta
terrestre sobre a qual, por diversas razões, ter-lhe-ia cabido habitar. Através dessa abordagem
abrir-se-ia espaço para pensar as possibilidades de superação das imposições do "meio geográ
fico". Surgia, assim, um novo "paradigma" da geografia. Manuel Correia de Andrade nos
dá uma bela caracterização desta "Escola Francesa" de Vidal de La Blache ao dizer que ele
" ... realizou uma série de estudos regionais, de análises que poderíamos chamar de
microgeográficas, onde procurou demonstrar que o meio exercia influência sobre o homem, mas
que o homem tinha possibilidades de modificar e de melhorar o meio, dando origem ao possibi
lismo. Possibilismo que seria útil ao governo francês, não só por melhor conhecer e orientar a
política de utilização dos recursos naturais do espaço francês, como também tornar desnecessário
o desenvolvimento de uma teoria radical como a da superioridade da raça branca sobre os nativos
da Ásia e da África, de vez que o domínio colonial francês estava, nestes continentes, em fase de
consolidação. A França deglutia, no início do século XX, o segundo império da superfície da
terra, necessitando, naturalmente, de confundir a política colonial com os interesses humanitários
de levar a civilização a povos incultos e capazes de ser educados e absorvidos pela civilização
ocidental, em vez de pregar uma política de extermínio ou de conquista de povos ditos inferiores"
(Andrade 1977).
O que o possibilismo não conseguiu demonstrar é por que certos lugares tiveram
"possibilidades" maiores que outros. Ou que fa-tores teriam possibilitado a alguns países,
ou regiões, ou lugares, superar as imposições do "meio". O que não conseguiam ou não
queriam ver é que as tais possibilidades também são determinadas. E os geógrafos, em
geral, parecem temer culposamente essa expressão, porque não conseguem ver
determinações a não ser naquilo que as suas sensações e percepções, historicamente
produzidas pela formação académica, observam no "concreto" da paisagem (o relevo, a
vegetação, o clima, etc.).
81
"locais". O possibilismo realmente obstaculizou a compreensão desse caráter de
dominação que o imperialismo assume. Ao isolar cada comunidade para o estudo das
inter-relações homem-meio, cumpria bem o seu papel de dividir o espaço, segmentá-lo em
regiões estanqui-zadas, deslocando assim a análise do espaço do seu real movimento. Dessa
forma, foi eficiente em sua missão de preparar o terreno para a expansão do capital
monopolista financeiro, para a partilha do mundo segundo os interesses imperialistas.
Podemos ver claramente que o surgimento destas novas abordagens significou uma
verdadeira reação, no sentido mais amplo que este termo pode sugerir. Ao deslocar a
análise não fez uma crítica radical ao que até então havia sido produzido e nesta medida se
constituiu numa contra-revolução ao pôr no lugar daquilo que acreditavam ser uma falsa
interpretação uma interpretação falsa. De fato, o possibilismo não passou de um caso
particular de determinismo.
82
autoritária dos regimes nazi-fascistas. Nesse contexto geral de crise, surge uma obra que viria
marcar profundamente o pensamento geográfico. Trata-se de The Nature of Geo-graphy de
R. Hartshorne, publicada às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939). É interessante
notar que esta obra é produzida por um observador político-militar americano em missão na
Europa, para observar problemas de fronteiras na Europa Ocidental. Dada a situação
iminente de guerra, Hartshorne, impossibilitado de exercer a sua missão, dedica-se ao estudo
dos clássicos da geografia europeia, particularmente a alemã, redescobrindo Hettnner.
Recuperando as obras desse pensador alemão, Hartshorne, após um minucioso trabalho,
põe em relevo um novo paradigma, qual seja o estudo da região como caso único, dando
destaque ao que mais tarde seria chamado por Schaeffer de o "excepcionalismo na geo
grafia".
83
menos longínquo, que produziu um espaço com determinados caracteres que a partir do
colonialismo e do imperialismo é submetido a outras "finalidades" que não são aquelas
derivadas das necessidades das "comunidades locais".
A "visão regional", neste sentido, não é um novo paradigma para a geografia, mas
sim uma capa nova para uma postura teórica e metodológica forjada no final do século
XIX e reelaborada para pensar uma realidade nova com conceitos antigos.
84
emancipação viria a colocar ainda mais em xeque a área de influência do sistema
capitalista internacional. A necessidade de manter o controle sobre as regiões que
integravam o chamado bloco capitalista, evitando a sua absorção no bloco socialista,
conduzirá o centro hegemónico do sistema a propor soluções do tipo criação da OTAN e
do Plano Marshall que, por vias de um esforço de recuperação dos países europeus
arrasados pela guerra, constitui, fundamentalmente, uma forma do capital financeiro norte-
ameri-cano marcar mais profundamente as suas posições na Europa Ocidental, assegurando
ali a sua hegemonia e afastando, assim, o fantasma da "ameaça comunista".
85
conseqüentemente, preteridas e substituídas por indicadores cuja validade é atestada pela
sua quantidade e frequência, ignorando-se que a própria seleção de variáveis ou
indicadores revela ou pressupõe um arcabouço teórico explícito ou implícito. A
causalidade é, por conseguinte, jogada fora, para evitar-se a busca de determinantes,
sendo substituída pelas análises de correlação e analogia, um dos pilares da geografia
tradicional. A geografia atingia, assim, o clímax da "cientifi- i cidade", segundo os
cânones do positivismo lógico. . .
Todavia, apesar dessas implicações, ou até mesmo por elas, a "nova geografia"
exercerá um papel significativo no pensamento geográfico. Gozando de enormes facilidades
de autopromoção, através de revistas especializadas, realização de congressos e simpósios,
ainda terá à disposição os novos e poderosos meios de comunicação de massa que se
encarregarão de abrir espaço para sua chegada triunfante aos quatro cantos da terra. As
disparidades regionais passavam a ser anunciadas amplamente através de toda uma nume-
ralogia, sem que se desse conta do processo real — o movimento de circularidade do
capital — que está subjacente e que produz as desigualdades.
Nesse sentido, pode-se dizer que a "nova geografia" não produziu um novo
86
conhecimento, mas sim um novo desconhecimento, capaz de fazer sobreviver por mais
tempo algo que a história já condenou. Portanto, trata-se de uma nova contra-revolução no
pensamento geográfico, tal e qual tivemos às vésperas das duas guerras mundiais. Ao
subordinar o espaço aos interesses do capital, produziu esse espaço-prisão, planejado pêlos
Estados que cada vez mais se tornam capitalistas.
Se, por um lado, a chamada "nova geografia" se desenvolvia amplamente nos países
anglo-saxões, não podemos deixar de colocar, também, os danos trazidos aos países
subordinados ao imperialismo pêlos geógrafos franceses. De acordo com a "visão espacial"
da geografia francesa, o estudo do subdesenvolvimento assumia um significado muito
importante, sendo absorvido nos países periféricos por grande parte dos estudiosos que se
pretendiam críticos. Não percebiam esses estudiosos, entre os quais muitos geógrafos, que
o tema subdesenvolvimento constituía um falso problema nos marcos etnocêntricos em
que era colocado e no qual o próprio problema já vinha com uma definição de modelo a
ser atingido, ou seja, do que era o desenvolvimento. Este se caracterizava por elevados
níveis de renda per capita; elevado nível de urbano-indus-trialização; elevado índice de
alfabetização; forte grau de integração nacional, etc. Era tudo uma questão de quantidade e
não de processo. Àqueles países que apresentavam tais indicadores em níveis reduzidos se
atribuía o prefixo Sub, não se questionando a raiz que vinha depois Desenvolvimento. A
ausência de integração nacional nos países chamados subdesenvolvidos não era vista
como um produto da divisão internacional do trabalho nos marcos do sistema capitalista
que se materializava em espaços nacionais e que agora, numa nova fase do capitalismo
caracterizada pelo predomínio dos conglomerados, e oligopólios, com níveis organizacionais
altamente sofisticados, necessitou ser rompida para que os grandes capitais "planejassem"
melhor o seu passeio pelo espaço.
87
De fato, tanto de um lado como de outro do Atlântico Norte se forjaram "teorias"
que responderam às necessidades das classes: dominantes ao nível internacional e nacional,
se é que é possível fazer esta distinção tão marcada numa época em que os naciona-
lismos, ao nível das classes dominantes, foram de há muito secun-
darizados.
88
espacial" de B. Berry representou o clímax da hegemonia do imperialismo norte-americano.
Este foi o movimento geral do capitalismo internacional que impôs essas "teorias"
aos geógrafos dos países da periferia, outorgando-lhes foros de cientificidade, deixando
poucas opções àqueles que não quisessem abraçar tais posturas. É uma técnica muito
aperfeiçoada do marketing impor uma determinada mercadoria, mas deixar ao ingénuo
consumidor a impressão de que foi por sua livre iniciativa que a adquiriu. Assim, diversos
geógrafos brasileiros, "espontaneamente", optaram por um tipo de postura teórica e
metodológica de evidentes males para o povo brasileiro.
Todavia, nesta empresa, faz-se necessária uma postura ao mesmo tempo teórica e
epistemológica fora dos quadros ideológicos dominantes — o que não parece ter sido a
principal virtude dos teóricos da chamada "visão espacial teorético-quantitativa" — ingle
ses e norte-americanos que, através das teorias locacionais, de clara inspiração neoclássica,
pensaram o espaço sob o modo de produção capitalista como se fosse o espaço. Assim,
comprometeram uma interpretação da organização do espaço com o modo capitalista de
produção. Pensaram o espaço como "coisa", como sói acontecer entre os positivistas, como
um receptáculo das ações do homem e não o espaço como relação social.
89
totalidades especialmente constituídas, a maioria dos geógrafos não se tenha valido de
materialismo dialético e de materialismo histórico.
Isto se deve ao fato de que a relação do homem com a natureza, sua dialética de
produção do espaço e da sociedade, se faz através do trabalho e este trabalho só existe
socialmente, enquanto relações de produção que caracterizam um determinado modo de
produção. E entendemos aqui modo de produção naquele sentido que lhe deu Marx ao
dizer que
" . . . Na produção social de sua existência, os homens contraem determinadas relações necessárias
e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase
do desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção forma a estrutura económica da so ciedade, a base real sobre a qual.se levanta a
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência
social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e
espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de
desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade se chocam com as relações de produção
existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade den
tro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas
relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social."
Por outro lado, é preciso considerar que a realidade histórica não se apresenta
homogénea, mas ao contrário ela se faz de modo desigual e combinado. Daí ser também de
90
enorme importância para o geógrafo o conceito de formação social que diz respeito ao
modo como concretamente se fazem essas combinações de desigualdades, onde diversos
modos de produção se apresentam submetidos à hegemonia de um modo de produção
dominante. O espaço pensado através do conceito de formação social emerge como o lugar
onde a sociedade se constrói, forjando as características dos lugares.
1º.) Considerar, nesse relacionamento, o homem como categoria genérica e não sob
relações sociais determinadas que dão ao processo de produção um significado específico,
91
com finalidades que não são ditadas pelo relacionamento homem-natureza, mas pelo modo de
produção?
2°.) Considerar a natureza como "meio ambiente" genérico e não como o locus
produzido e condição de re-produção da sociedade? (Marx 1971:203-205).
Esta é a questão básica que deve nortear os trabalhos daqueles geógrafos que
pretendem enveredar numa perspectiva "ecológica": observar criticamente a situação do
inter-relacionamento homem-natureza, indo às estruturas que determinam esse tipo de
relação. Logo, deverá procurar através dessa perspectiva dar conta da "paisagem" que é, na
verdade, a aparência que assume a organização do espaço.
Uma última questão deve ser ainda colocada: A partir do momento em que os
homens se organizam socialmente não é mais possível fazer-se uma rígida separação entre
história da natureza e a história da sociedade, pois estas se imbricam, dando origem a uma
só história. A própria natureza passa a ser produzida socialmente, constituindo uma
segunda natureza, tal como Marx desenvolve no livro I de O Capital. Cremos, portanto, ser
inteiramente correto dizer-se, como o faz Samir Amin, que "a História da humanidade é a
do modelamento da natureza pelo homem" (Amin 1976), ou seja, a constrição do seu espaço
social.
92
Eis as pistas que acreditamos úteis à elucidação da crise da geografia, na medida
em que possibilitem a elaboração de uma geografia da crise, engajada com a sua superação
e comprometida com a afirmação de uma teoria do espaço que seja do e para o homem e
não com o espaço da sua opressão. Nessa perspectiva, a crise da geografia é, pois,
altamente instigante e salutar. . .
Referências bibliográficas
LACOSTE, Y. A Geografia Serve Antes de Mais Nada para Fazer a Guerra. Lisboa,
Iniciativas Editoriais, 1977.
93
CIDADE, MAIS-VALI A ABSOLUTA E RELATIVA, DESVALORIZAÇÃO DO
CAPITAL E DO TRABALHO: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE O
CASO DO RIO DE JANEIRO
Milton Santos
94
Na medida em que há possibilidade de produzir e de fazer circular o produto a
melhor custo, o lucro passa a depender da existência de infra-estruturas localizadas, como é
o caso, hoje, das grandes cidades, onde cada vez mais se criam espaços cientificamente
pensados e tecnicamente realizados para facilitar certas produções. Estas obtêm do próprio
espaço urbano assim constituído as condições de uma maior eficiência e, geralmente, de
um maior lucro. É nesse sentido que se pode dizer que a cidade, e sobretudo a grande
cidade, constitui um instrumento para a formação da mais-valia relativa. Na medida em
que os equipamentos urbanos são crescentemente específicos, isso vai beneficiar mais a
uma firma que a outras, pois nem todas dispõem de espaços propositadamente adequados
às condições atuais de uma produção moderna altamente especializada. O fato, porém, é
que todas as firmas se beneficiam da presença de uma massa de consumidores que, por
estar concentrada, reduz os gastos em transporte e, por conseguinte, favorece duplamente
à firma, primeiro pelo fato de que há maior acessibilidade aos bens produzidos e segundo
porque o retorno do capital empregado se dá mais rapidamente.
95
adequadas a um melhor desempenho. Esse parece ser o caso de São Paulo, Belo Horizonte
e mesmo Manaus, em relação ao Rio de Janeiro, sem falar nos distritos industriais
recentemente criados em Salvador ou em Recife e que apresentam vantagens locacionais
para um certo número de indústrias.
Em cada época histórica algumas localidades têm condições para revalorizar o seu
capital produtivo em alguns ou em muitos ramos enquanto que outras aglomerações não o
conseguem. O ritmo de crescimento é, por consequência, diferente para cada caso.
Assim como a revalorização num ramo tem efeitos sobre outros ramos, além das
consequências internas ao próprio ramo, assim também a desvalorização gera nos demais
ramos um processo de desvalorização.
96
apenas participa de aspectos produtivos não técnicos e não financeiros. Segundo a estrutura
local da produção, as relações de dependência são diferentes entre tipos nominais de
atividade.
97
maior de trabalho não necessário, de tra- ;j balho socialmente não necessário, há ao
mesmo tempo criação de trabalho excedente, isto é, liberação de mão-de-obra. Isso
significa desemprego cada vez que essa mão-de-obra não pode ser engajada s em outras
atividades seja porque simplesmente tais atividades não existem, seja porque essas outras
atividades exigem uma qualificação que não era exigida na atividade onde o trabalhador
estava anteriormente engajado.
Nas cidades onde o elenco de indústrias é incompleto as conse- s qüências são por
conseguinte maiores. Este é, por exemplo, o caso do Rio de Janeiro se comparado com São
Paulo, o que ajuda a explicar as diferenças na condição de emprego entre essas duas
aglomerações.
Ainda aqui o caso do Rio de Janeiro pode ser analisado sob esse prisma, para
explicar a estrutura de salários correspondente aos seus trabalhadores industriais. Se
comparados com os de outras cidades do País, os níveis salariais presentes na aglomeração
do Rio de Janeiro são menos compensatórios na maior parte dos ramos industriais aí
presentes, isso implica em uma massa salarial menor, com todas as consequências que isso
pode acarretar sobre as demais atividades, do ponto de vista do consumo individual.
98
Metropolitana do Rio de Janeiro cuja capacidade de criação da mais-valia relativa pode ser
analisada em termos paralelos ao que fizemos em relação à indústria. Fazendo a economia
de um raciocínio paralelo ao que já elaboramos em relação à atividade industrial, a
conclusão é semelhante, considerando, porém, as possibilidades de inter-relação entre
indústrias e serviços vemos que a atividade económica tomada num sentido mais amplo
padece de efeitos circulares negativos que contribuem, pela interacão da indústria presente na
cidade e dos serviços aí também presentes, a baixos níveis de emprego e de remuneração,
que contribuem a alargar ainda mais o fenómeno do subemprego e da pobreza.
Ruy Moreira
99
Obscurece igualmente a reflexão fundamental sobre a natureza da totalidade com
que lida a geografia.
100
Ora, totalidade é movimento e contradição, movimento como contradição. Movimento
que se cristaliza em formas, isto é, contradições definidas. Formas que revertem sobre o
movimento, mediando sua continuidade e nele se incorporando para daí saírem renovadas.
Por isto, estão no âmago das "construções teóricas" os pares dialéticos como forma-conteúdo,
aparência-essência, abstrato-concre-to, finito-infinito, singular-universal, continuidade-
descontinuidade. Sem grande rigor, portanto, pode-se afirmar, que cada contradição, ou
série de contradições, tende a transformar-se no nível do conhecimento em categoria,
reproduzindo o próprio movimento real.
101
progresso. Uma vez que o universo da relação homem-meio é um sistema envolvendo
elementos naturais, biológicos, humanos, sociais, económicos, históricos e culturais, cada
qual constituindo campo de uma "ciência de análise", o saber geográfico envolve o próprio
universo do saber humano.
102
uma ciência ou uma arte? Intermináveis porque o saber geográfico, como todo saber, é
tudo isto. Estéreis porque no anêmico terreno da polemica doméstica (na geografia não há
interlocutores, eis uma "tradição" não catalogada por Taaffe e Pattison), as reflexões
jamais ultrapassam limites tacitamente traçados.
Pode ser um bom começo a precisa noção do que seja o obscuro conceito de relação
homem-meio vulgarizado pêlos meios académicos, do caráter e papel que ele desempenha.
103
unidade em termos kantianos. A concepção holista do todo tirada por Humboldt a
Schelling costura a unidade dos "elementos", caminhando-a na direção do determinismo
ratzeliano (determinismo "geográfico") e na direção do pos-sibilismo lablacheano. Segue-se
a quebra kantiana do todo, para restabelecer-se sua unidade já agora despojada de seu
caráter dialético.
Ê fato que a unidade homem-meio só existe como dicotomia nas condições concretas
104
do modo capitalista de produção. Inexiste na consciência dos homens nos modos de produção
anteriores por não fazer parte da sua existência real. Para estes homens o homem e a natureza
compõem perceptivelmente uma identidade. Enquanto "ente exterior" a natureza não passa de
uma abstração cuidadosamente cultivada pelo capital, com a preciosa ajuda da geografia. Só é
uma realidade concreta sob as determinações do modo capitalista de produção. Se não basta a
evidência de que o homem é um "animal social" ou de que é "o estágio superior da escala da
evolução natural", pode-se lembrar ainda que a força de trabalho com que o homem erige a
civilização e produz o capital é ela mesma natureza.
Assim procede para justificar as desigualdades sociais, apresentadas como tais e não
como as vertentes sociais do trabalho sob o capital, aspectos do trabalho expropriado5.
Sob o capital a totalidade se expressa sensorialmente sob formas que não se pode
tomar como o real. Este é um fato que em geografia sempre foi escamoteado. O arranjo
espacial é tomado como o real, o concreto, e não como o que realmente é: expressão feno-
mênica do real.
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como discurso. Contudo, é preciso pensar bem: o cuidado não deve ser pouco. Um
primeiro cuidado deve ser com a episteme do arranjo espacial, ou seja, seu caráter de
aparência. Um segundo, decorrente do primeiro, deve ser com seu -lugar nas "instâncias"
do conhecimento: instrumento de leitura, o arranjo espacial situa-se no "campo" do
método. Delineia-se aqui, em nosso entendimento, toda a questão da teoria e da produção
teórica em geografia.
Ë preciso ainda não confundir-se arranjo espacial com paisagem, \ uma vez que a
noção de arranjo espacial é mais fecunda, envolvendo processos nem sempre visíveis. Este
passo, entretanto, exige a "vigilância epistêmica" que evite os enganos (enganos?) da new
geography: os processos existentes no arranjo espacial, revelados ou não pela observação
acurada da paisagem, não são e não se reduzem a relações matemáticas. Estas, quando
muito, servem para emprestar maior rigor aos resultados fornecidos pelas "máquinas sen-
soriais" com as quais a geografia clássica realiza suas pesquisas. A essência de que o
arranjo espacial é aparência jamais se exprime plenamente na e como linguagem
matemática. Esta não passa de uma codificação do real, tão aparência como o arranjo
espacial e mais pobre que ele.
O real é mais fecundo que o que dele mostra o arranjo espacial, portanto. Como
acontece com os livros, o alcance da compreensão está muito entregue ao leitor. Como
toda aparência do real, o arranjo espacial traz toda uma carga ideológica.
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6. A "TOTALIDADE HOMEM-MEIO" SOB O CAPITAL: O TRABALHO ALIENADO
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Alienação no lugar de identidade, valor de troca no lugar de valor de uso, predação
no lugar de consumo humano, tais são as expressões de concretude da relação homem-
meio sob o capital.
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sua forma mais despida. Como pôde o conhecimento da natureza ter-se tornado uma arma
contra seu próprio perscrutador? O que pôde transformar o poder dos homens em arma
contra os próprios homens? O fato de a natureza sob o capital ser capital; de o processo de
socialização da natureza ser processo de acumulação de capital. O fato do trabalho
alienado. Termos reais da "relação homem-meio" hoje são os termos reais, concretos, do
saber geográfico hoje. Raiz mesma da reflexão geográfica, é por isto raiz de toda reflexão
da liberdade do homem e da "práxis" do saber geográfico.
7. A "TOTALIDADE HOMEM-MEIO"
SOB O CAPITAL MONOPOLISTA: A ALIENAÇÃO DO TRABALHO
INTERNACIONALIZADA
109
Esta dupla frente de luta de classes empurrará o desenvolvimento do capitalismo para o
rumo da internacionalização.
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pêlos investimentos estatais, ganham os monopólios na forma do barateamento do capital e
da atenuação dos efeitos da sobreacumulação. Socializando os investimentos em capital fixo,
o Estado revaloriza o capital sobreacumulado ao nível dos monopólios.
Os monopólios deitam seus tentáculos sobre toda a rede escalar do espaço planetário.
Implantam a lógica da acumulação capitalista do espaço local ao espaço mundial, estendendo-a
mesmo sobre as formações econômico-sociais socialistas, instalando-se onde as condições
assegurem a obtenção de superlucros.
Com tal geografia internacional cada grupo monopolista concentra em suas mãos
fantástica massa de mais-valia capturada dos mais diferentes lugares, às expensas da pauperização
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mundial do trabalho e da natureza. Para tanto, munem-se dos mais diversos recursos, tais como
operações triangulares, sobrefaturamento e sub-faturamento, especulação com taxas cambiais,
golpes militares e financiamento a governos ditatoriais, despersonalização nacional e co
lonialismo cultural. A propaganda da Coca-Cola condiciona o com portamento do
consumidor mesmo nos países socialistas. Os enlatados de TVs americanas reproduzem-se
em cadeia simultaneamente por dezenas de países.
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Sob uma estratégia internacional comum, os monopólios combatem o movimento
operário e determinam os preços do trabalho e das matérias-primas.
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estimular os árabes a investirem seus petrodólares nas empresas dos próprios monopólios
imperialistas. Quando muito os lucros dos árabes se ampliarão. Para o imperialismo
significa transferir para as oligarquias árabes parte do custeio da liquidez internacional.
Sabem os monopólios imperialistas que no cotejo final a massa da mais-valia confluirá
para onde maior for a taxa da composição orgânica do capital e melhor se tiver superado a
"lei tendencial".
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ecológica" e "questão demográfica" nascem já sob pesada carga ideológica: servem para
esconder a questão real e sua causa.
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natureza" (implementação de técnicas despoluentes; recuperação de solos, mananciais e re-
florestamento; descoberta de novos recursos). A socialização dos investimentos pelo Estado
em benefício dos monopólios acentua o conflito entre o caráter social da produção e o
caráter privado da apropriação da riqueza. A internacionalização do capital internacionaliza a
contradição burguesia e proletariado e aguça as contradições interimperialistas. Reativam-
se a "lei tendencial" e seu ciclo.
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Carlos Walter Porto Gonçalves
A questão ecológica vem a cada dia ocupando um espaço maior em nossas vidas.
Isto se manifesta não só pelo surgimento de movimentos em defesa do verde como também
pêlos anúncios, cada vez mais frequentes, que nos tentam vender "qualidade de vida",
mormente no mercado imobiliário. Estranho paradoxo este da "questão ecológica": todos,
independentemente da sua posição social, incorporam o discurso do verde, do combate à
degradação ambiental, constituindo um verdadeiro modismo. O próprio ex-pre-sidente R.
Nixon, que tinha por detrás uma série de grandes monopólios, dizia que a preservação
ambiental, a qualidade de vida, se constituía na grande meta da sociedade americana nas
próximas décadas. Pensamos que nunca um discurso tenha sido capaz de reunir tantas
opiniões convergentes como o da "questão ecológica". Aparentemente ninguém é contrário
à preservação da "qualidade de vida" e à utilização racional dos recursos naturais. Seria de
esperar que este verdadeiro consenso em torno da questão já deveria ter produzido frutos
concretos, além da publicidade e da criação de uma disciplina escolar como a ecologia.
Todavia, verificamos que se de um lado cresce uma consciência necessária em tomo do pro
blema, de outro, observamos que esta tomada de consciência apenas não é suficiente para o
superar.
Antes de qualquer outra coisa, é preciso dizer bem claramente que este não é um
problema recente. Em 1844 F. Engels já abordava a questão em seu excelente livro A
Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Assim, enquanto o problema do ar
poluído, do barulho, da água infectada, das casas insalubres foi sentido exclusivamente
pela classe operária, poucos foram os que se levantaram para o apontar e combater. Hoje,
quando o capitalismo se aprofundou e a poluição já não atinge somente a classe operária,
mas também aos segmentos da pequena-burguesia — a chamada classe média — a
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degradação da natureza ganha espaço nos jornais, nas emissoras de rádio e televisão. Em
síntese, invade através do discurso todos os cantos. Eis aí a primeira razão para tanto estar
dalhaço sobre o tema. Se tivéssemos visitado as favelas e os bairros periféricos de nossas
cidades há cerca de 20 ou 30 anos atrás, veríamos que o problema, de fato, não é novo,
nem é simplesmente um problema ecológico. . .
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equipamentos coletivos necessários como hospital, escola, água, luz e esgoto, seja na luta
pela qualidade dos alimentos que consumimos ou contra a degradação ambiental, o que
temos, na verdade, é a contradição fundamental do capitalismo se expressando em cada
momento da produção/reprodução social, invadindo todos os campos da prática cotidiana
dos indivíduos, grupos e classes sociais, onde a história se faz no dia-a-dia.
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Todavia, não podemos enveredar por um caminho extremamente perigoso que é o
da condenação moral do capitalismo, à sua maldade inerente, como se a burguesia fosse
composta de seres desprovidos de boa razão e bons sentimentos e, por isso, incapaz de
fazer o mundo caminhar no "bom sentido". Se o modo burguês de produção é incapaz de
resolver este problema da ecologia não é, evidentemente, por essas razões. Trata-se, na
verdade, de um problema estrutural que, em síntese, se assenta no caráter privado da
produção capitalista, onde cada empresário age por sua própria cabeça com vistas à
chamada "tuilização ótima" dos recursos de que dispõe, objetivando ganhar a concorrência2.
Esta verdadeira "anarquia" do modo capitalista de produção levou a que muitos,
ingenuamente ou não, acreditassem na solução mágica do planejamento. Só que o
planejamento se constitui numa forma superior de relacionamento entre as classes e, no
interior do capitalismo,, foram os monopólios os impulsionadores de um maior
comprometimento da máquina do Estado com a racionalização do uso dos recursos.
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É sabido que o processo de trabalho, fonte criadora de riquezas, pressupõe, antes de
mais nada, o homem e a natureza. Neste processo, "o ser humano, com sua própria ação,
impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Põe em movimento
as forças naturais de seu próprio corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de se
apropriar dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando
assim sobre a natureza externa e modificando-a ao mesmo tempo, modifica sua própria
natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo
das forças naturais". A satisfação das necessidades humanas é, portanto, o fim último do
próprio processo de trabalho ou, em outras palavras, dar à natureza uma forma útil à vida
humana constitui a essência do processo de trabalho. "Como produz valores de uso e é útil,
o trabalho, independentemente de qualquer forma de sociedade, é a condição indispensável
da existência do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a
natureza e o homem".
Numa esclarecedora passagem dos Grundrisse, Marx diz que "a natureza não constrói
máquinas, locomotivas, estradas de ferro, telégrafos elétricos, etc. Esses são os produtos da
indústria humana; matéria natural transformada em órgão de execução da vontade do
homem sobre a natureza ou de sua participação na natureza. São órgãos criados pela mão
do homem, pelo cérebro humano: ciência objetivada".
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podem ser medidos segundo critérios estatísticos objetivos, como a produtividade e outros
índices. Assim, o critério de avaliação do grau de desenvolvimento das forças produtivas
passou,'a ser a quantidade de riqueza produzida, proporção de megawatts, e daí por diante...
O capital é uma relação social que pressupõe o trabalho assalariado e para que este
seja constituído torna-se necessária a expropriação do trabalhador dos seus meios de
produção. Esta separação entre trabalhador e meios de produção está na base do
capitalismo, pois o homem que dispõe de meios próprios de produção não se subordina ao
capital, não precisa, portanto, vender a sua força de trabalho. O primeiro modo de
manifestação desse fenómeno é a desterritorialização do trabalhador, quando ele é arrancado
da sua relação com a natureza, com a terra. Ora, na medida em que o homem não dispõe de
seus meios de produção, todas as suas necessidades terão de ser satisfeitas através do mer
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cado, de uma relação mercantil.
Quanto mais o homem se encontra separado da natureza, mais e tem que suprir as
suas necessidades através de uma relação ercantil. O verde deixa de ser um bem que
exista à disposição ï todos os homens. É preciso destruir o verde para que ele se »rne
mercadoria. A verdadeira indústria de plantas ornamentais, .o presente nas nossas grandes
cidades, não pode sobreviver onde idos tenham acesso ao verde. Parece-nos agora claro
por que as npresas imobiliárias, exatamente aquelas que mais derrubam as mais, têm na
ideologia do verde e da "qualidade de vida" os seus rincipais apelos de publicidade. O
mesmo poderia ser dito das idústrias de máscaras de oxigénio que só sobreviverão
enquanto ar for poluído, pois no dia em que o ar for puro não mais ;rão razão de existir.
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ao processo de degradação ambiental.
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humanos famélicos assistem à natureza servindo aos fins espúrios do capitalismo. Isto para
não falar do militarismo que a cada dia absorve proporções maiores dos orçamentos dos
governos, pressionados pêlos grandes grupos monopo-lísticos, não por razões de defesa,
como alegam, mas devido ao crescimento desigual entre os diversos setores da economia
capitalista, principalmente quando o departamento I — indústria de bens de produção —
precisa cada vez mais da garantia do Estado, das suas encomendas, para manter as suas
taxas de lucro. É claro que a "ameaça do comunismo" é sempre apresentada como justi
ficativa para a elevação dos investimentos bélicos. Todavia, qualquer um que faça uma
investigação séria a respeito do desenvolvimento capitalista verá que a tendência à
militarização é inerente ao capitalismo, independentemente da existência dos movimentos
socialistas.
É neste sentido que podemos falar que a luta pela preservação ecológica é uma luta
pelo socialismo. E a luta pelo socialismo deixa de ser uma utopia e se torna uma
necessidade: a construção de um mundo dos homens para os homens.. .
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