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GEOGRAFIA:

Teoria e crítica
O saber posto em questão
Ruy Moreira (org.)

O espaço geográfico intervém de modo crescente no esquema da reprodução estrutural do


capitalismo, ao mesmo tempo que o saber geográfico permanece ao nível público como uma
"práxis" de espaços "apolíticos": a Escola, os Departamentos Universitários e os organismos
estatais de pesquisas e planejamento espaço-territorial. Mas a Escola e o Estado encontram-se tão
incorporados à reprodução do capitalismo quanto a renovação contínua do aparato técnico-
científico, de vez que Escola e Estado têm a mesma raiz da Fábrica: a divisão capitalista do
trabalho. Ao despojar o operariado do conjunto dos meios de produção o capital logra separar o
trabalho intelectual do trabalho manual e o trabalho de direção do trabalho de execução, se
apropria igualmente do sabere do poder. Constitui-se o capital por esta via o senhor moderno dos
homens, da natureza, do espaço, da sociedade. O que é então o espaço geográfico e que lugar ocupa
na reprodução dos homens e do capital?
Que forma de poder é este saber chamado Geografia? Que geografia é a "geografia que se
ensina"? Sendo a aula de Geografia a passagem de uma dada "visão de mundo" aos
alunos, por gerações sucessivas, uma dada "configuração de sociedade", que concepção de mundo e
de sociedade se estará passando nas escolas brasileiras? Que papel ideológico tem cumprido a
Geografia?Se não é o planejamento que planeja o capital, antes o capital que planeja o
planejamento, como adverte Paul Baran, qual tem sido a função social do geógrafo e do
planejamento espaço-territorial?
Conferir à Geografia o necessário rigor teórico-epistemológico que se requer a toda
ciência, sem contudo esconder o caráter político de todo o saber em uma sociedade estruturada em
classes, eis do que trata profusamente este livro.

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INTRODUÇÃO

O SABER GEOGRÁFICO: PARA QUE/QUEM SERVE?

Ruy Moreira

Reúne esta coletânea alguns dos textos de geógrafos brasileiros vindos à luz no
período 1978-1981. Refletindo o plano geral dos anseios de liberdade democrática e
justiça social que conduzem ao extraordinário ascenso político das organizações de massas
operárias e populares — 1978 é o ano das greves no ABC — atravessa-os um certo
propósito de crítica e superação daquela geografia da imagem popular que Yves Lacoste
denomina "geografia do professor" e "geografia dos estados maiores do Estado e do
empresariado".

Não se precisa advertir um tal propósito de conferir ao saber geográfico uma outra
"práxis" — identificada esta com a construção de uma sociedade estruturalmente capaz de
abrir soluções reais à problemática popular, dos homens, para a qual a vigente mostrou-se
historicamente incapaz — cada autor aqui presente formula e situa suas ideias em campos
político-ideológicos nem sempre concordantes, nisto precisamente residindo uma das
riquezas da coletânea.

Não se verá — desnecessário seria dizer, não fora o episódio recente da "nova
geografia" gestada nos anos 1968-1978 — qualquer pretensão de uma "revolução na
geografia". Simplesmente porque só é real a transformação que se opere na estrutura
objetiva da sociedade e com esta esteja incorporada, quando é o tema, as ideias. Antes, é
esta realidade objetiva e seu movimento histórico que se deseja pôr à mesn, submeter à
dissecação, ver revelada sem as máscaras que dissimulam suas raízes de classe.

Neste conjunto de textos se evidencia uma interinfluência, sugerindo um subjacente


debate no fluxo do qual cada autor se põe e repõe, convergindo e se separando, avançando
em conjunto. Mais que isto, sugerindo um plano de indagação ansiosa da história con creta
dos homens, no interior da qual, porque só então expressivo e transparente, se indaga

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acerca do saber geográfico: "a geografia, o que é, para que serve e a quem serve?" Ainda
mais, sugerindo a eleição do caráter histórico-concreto da sociedade de nossos dias e dos
caminhos de sua superação histórica, o contexto da luta de classes, por conseguinte, como
eixo do carroussel em que se movimentam e se refazem o instrumental discursivo da
geografia, seu valor específico, função, envolvimentos. Se porém todos os textos e autores
da coletânea movem-se nesse solo comum, não estão contudo presentes todos os que o
vêm produzindo, advirta-se. São inevitáveis, então, as omissões involuntárias.

Com esta coletânea se divulga, assim, parcela da rica massa já acumulada de


subsídios ao pensamento geográfico gestada por um segmento do saber geográfico em
desenvolvimento recente no Brasil e no exterior.

A sociedade como "práxis", o objeto e seu caráter concreto como condição de


cientificidade, a estrutura interna do discurso (dicotomia ou projeto unitário?), a relação
teoria-epistemologia, as articulações ideologia-política-ciência, tais entre tantas questões as
que atravessam os textos reunidos.

As intenções revelam-se na estrutura do livro. O que aqui se tem é a ampliação de


um propósito inicial de reunir-se em coletânea textos publicados esparsamente em
periódicos os mais variados, e não só geográficos — tornou-se hoje fato corrente revistas
de cultura e política abrirem seus espaços para textos de geografia, a exemplo das revistas
Vozes, Encontros com a Civilização, Contexto, Temas de Ciências Humanas — no biénio
1978-1979, período marcante para o processo de reformulação do pensamento geográfico
em curso. A dificuldade de acesso a tais textos, crescente no tempo, sua dispersão e as
frequentes referências bibliográficas, por si sós justificariam a reedição em livro único.
Porém, a rápida evolução intelectual e político-ideológica que acompanha e promove o
avanço das lutas democráticas no Brasil, com inevitáveis e imediatos reflexos nas ciências,
aconselhou incluirmos alguns de seus próprios desdobramentos posteriores, agora na forma de
estudos concretos da realidade nacional e internacional.

Daí, uma primeira parte reunindo aqueles textos do projeto inicial, seguida de uma
segunda parte reunindo textos de tratamento do real, na verdade um trabalho de releitura

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radical da sociedade.

Todo um largo passo está dado. Que esta coletânea sirva para encurtá-lo e tirar-se o
saber geográfico do casulo dos círculos oficiais e academias. Um instrumento de ação
popular poderoso como o saber geográfico não pode mais continuar usurpado.

GEOGRAFIA, MARXISMO E SUBDESENVOLVIMENTO

Milton Santos

As categorias do pensamento marxista não são inovações em geografia. As razões


pelas quais são raramente discutidas pertencem a dois tipos: 1) o relativo isolamento das
chamadas "escolas nacionais" que ignoram frequentemente os avanços em outras línguas;
e 2) as ideias marxistas nunca alcançaram a marca de uma aprovação
oficial. Os geógrafos marxistas, membros ou não do partido, foram
mais que modestos em citar suas maiores fontes: Marx, Engels, Lenin
ou Rosa Luxemburgo. Provavelmente, esta foi uma forma de evitar serem denominados
"tipos políticos", durante o período em que tal denominação era evitada pêlos académicos.

Esta atitude prevaleceu na França após a Segunda Guerra Mundial. Jean Dresch e
Jean Tricart, antes de serem geomorfólogos, estiveram interessados em tópicos marxistas.
O primeiro estudou o papel dos fluxos de capital na organização do espaço africano e o
segundo estudou a estrutura interna das cidades (ecologia urbana) no contexto do conflito
de classes, a propriedade da terra e o mercado especulativo da terra urbana, isto foi o
resultado da inflação, essencial a esta fase do capitalismo e a exploração das exter-
nalidades (não reconhecidas explicitamente nestes termos, mas financiadas pela coletividade)
através da criação da mais-valia.

Pierre George, leal à tradição da geografia humana francesa, agrupou um certo


número de geógrafos ativistas. Merece o crédito de haver estabelecido a importância das
estruturas sócio-econômicas na explicação geográfica. Suas primeiras publicações sobre
população (1951-1959), geografia social (1946) e seu tratado sobre as cidades (1952)

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demonstram seu esforço em abarcar a dinâmica dos sistemas sócio-econômicos com as
estruturas de produção. A Guerra Fria, sem dúvida, e a invasão da Hungria marcaram um
ponto importante de mudança. Alguns seguiram as linhas marxistas muito discretamente,
enquanto outros a abandonaram. Todavia, esta ideologia sobreviveu. A geografia necessitava,
nesse momento, de uma ideologia coerente.

Os geógrafos "não envolvidos na política" buscavam alguns fundamentos teóricos.


Começavam a adotar, inconscientemente, termos do vocabulário marxista": por exemplo,
acumulação da renda urbana; ou melhor, teses que explicavam a cidade como uma criação
da mais-valia rural. Sem conhecer sua origem, não tiveram dúvidas em usar uma
interpretação marxista da evolução urbana durante o período de transição do feudalismo ao
capitalismo e, inclusive, no contexto do pós-guerra. A noção de "ruralização urbana" que
se aprende na literatura sobre "pequenas cidades'' é também emprestada a Marx (1964, p.
78). Uma reflexão similar pode ser feita em relação à noção de "região urbana" definida
como uma área na qual cidade e campo se complementam através de intercâmbios
bilaterais. Uma frase-chave na geografia francesa e americana é: "Não há cidade sem uma
região, nem há região sem uma cidade." Efetivamente, este foi um cliché desprovido de
significado sólido.

GEOGRAFIA (ESPAÇO) E CATEGORIAS MARXISTAS

As contradições existentes nas extremas concentrações de poder do gigantes


Estados-corporações renovaram o interesse por Marx e seus discípulos (ortodoxos ou não),
como fontes de explicação geográfica (sobre as dimensões geográficas deste problema, ver
Santos 1974, 1975). As desigualdades económicas e sociais, a decrescente participação do
povo na tomada de decisões geram uma alienação social e económica, com importantes
efeitos na organização do espaço. Isto é uma realidade em todas as escalas de observação
geográficas.

Duas importantes questões metodológicas, pelo menos, surgem deste problema:


primeiro, como se pode entender — em termos de variáveis — a totalidade; segundo, como

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se pode interpretar o presente significado de espaço em termos de tempo acumulado. A
noção de totalidade somente pode ser relacionada com o mundo como um todo. Por outro
lado, o espaço nacional é contínuo, como o é o espaço de suas partes, e assim a noção de
escala é fundamental. Os elementos definidores do espaço, conseqüentemente, deveriam ser
considerados como variáveis cuja natureza e significação variam segundo o nível (de espaço)
considerado. O problema da delimitação espacial assume outra dimensão, já que cada uma
das partes é supostamente uma réplica da totalidade. Este objetivo torna-se particularmente
difícil já que a geografia, com seus esforços de especialização, fragmentou-se e tem
fragmentado também a realidade que ela estuda. Ao selecionar várias ideias de diferentes
fontes, a geografia burguesa foi incapaz de interpretar o todo. Em muitos casos, poder-se-ia
dizer que esta foi uma ignorância deliberada.

Por outro lado, quando se têm explicado os aspectos dinâmicos da geografia, a


noção de sistemas "espácio-temporais" tem sido utilizada, mas geralmente espaço e tempo
têm sido considerados como categorias independentes, infelizmente, a significação do tempo
não foi bem fundamentada, e a perspectiva transtemporal foi escassamente desenvolvida,
até um ponto em que, não obstante, os modelos de difusão permaneceram medíocres.

O que se pode dizer sobre o presente? Isso é muito difícil hoje, quando, segundo M.
Dobb (1963, p. 12), o tempo de mudança é "normalmente acelerado". Tais fases
revolucionárias representam transições entre períodos históricos. Contudo, é muito mais
conveniente lidar com ritmos temporais (sistemas), que são relativamente definíveis em
termos de períodos de rupturas. A velocidade da mudança aumenta a amplitude do
desconhecido e pode encobrir a hierarquia real de variáveis em um mundo caracterizado
pela instabilidade.

Estas dificuldades significam um desafio. Não se pode aplicar a análise marxista à


interpretação do espaço enquanto aquelas categorias marxistas relacionadas com a
geografia não forem opera-cionalizantes. Isto significa que não se pode usar categorias
convencionais, já que não serão obtidas em textos oficiais.

Noções marxistas, como a de mais-valia, podem ser aplicadas, como o fez Harvey

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(1976), a situações sociais empíricas. É neste sentido que Harvey assinalou certas
debilidades fundamentais da teoria da renda da terra (Alonso 1964). Outras ideias
poderiam ser similarmente aplicadas: por exemplo, a acumulação e circulação do capital; o
impacto da inovação no capital monetário, capital fixo e capital circulante; valor de uso e
valor de troca; medo e estrutura da produção; estrutura de classes; . . . são todas categorias
que podem ser levadas à linguagem espacial ou geográfica.

Os êxitos alcançados por autores com Harvey, Bunge, Eichen-baum e outros, na


investigação da estrutura interna de classes, deveriam ser seguidos por estudos similares
sobre externalidades, ou a natureza integral do espaço. Isto pressupõe algumas questões
metodológicas. A unidade fundamental para o estudo geográfico deveria ser a Nação-Estado,
Não se pode dissociar a noção de sistema da noção de um sistema de estruturas (Santos
1974). Nesta perspectiva, poder-se-ia utilizar todo o poder explicativo das múltiplas forças
dialéticas no espaço. Se o espaço é concebido como um todo, "enïão a distinção artificial
entre "espaço económico" e "espaço geográfico" poderia ser abolida (Santos 1971, 1974a).
Dever-se-ia conceber o espaço como um todo e não como um espaço aristocrático onde os
fluxos estudados são unicamente aqueles das grandes empresas e população burguesa. Isto
produziria uma verdadeira geografia da pobreza, uma geografia onde riqueza e pobreza não
fossem tratadas como entidades separadas, mas como partes complementares de uma só
realidade.

UM ESPAÇO SUBDESENVOLVIDO?

A geografia dos países desenvolvidos coloca a questão de como definir o espaço. É


possível chegar a uma definição universal de espaço, como um tipo de chave-mestra? A
geografia burguesa tentou fazê-lo: o subdesenvolvimento foi simplesmente um apêndice ou
um capítulo suplementar nos manuais "gerais".

(Sem dúvida, aquelas variáveis formadoras do espaço e suas combinações, as quais


originam as diferenças entre lugares, são universalmente as mesmas. O problema é
descobrir se estas combinações se manifestam espacialmente e se sua manifestação é a

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mesma no centro e na periferia do sistema mundial. Neste sentido, pelo menos três
aspectos são essenciais: 1) aquelas forças que promovem a modernização e operam no
centro do sistema não alcançam a periferia ao mesmo tempo; existe um efeito decrescente
definido da distância. Isto poderia explicar historicamente a acumulação do capital no
sistema capitalista, as variações entre países e as desigualdades regionais dentro dos
países; 2) alguns pontos no espaço são alcançados por novas forças, enquanto outros não
recebem tais impactos. Sem dúvida, esses impactos não se dão ao acaso, sendo dirigidos
do centro do sistema em termos de máxima produtividade. A história do espaço é assim de
tipo seletivo; 3) as forças emitidas dos centros (pólos) mudam à medida que alcançam a
periferia. Ainda que se possa encontrar isomorfismo, o valor do fenómeno é diferente. Por
exemplo, a noção de "cidade privada" na França, ou de "metrópole incompleta" nos
Estados Unidos e Alemanha, não pode ser interpretada da mesma forma nos países sub­
desenvolvidos.

O "espaço subdesenvolvido" tem um caráter específico: as prioridades de


importância variam, mesmo quando operam as mesmas forças, já que suas combinações e
resultados são diferentes. É algo que os geógrafos ocidentais têm tido grande dificuldade
em entender. Por que nós não podemos, então, reunir a experiência surgida nos países
subdesenvolvidos: desenvolver teorias que tenham sentido tanto para os geógrafos como
para os cidadãos? A malmente, a geografia "oficial" funciona como se o Ocidente tivesse o
monopólio das ideias. Além disso, há muitos geógrafos do Terceiro Mundo que preferem
permanecer silenciosos: sem dúvida, existem geógrafos ocidentais que estão começando a
repensar muitos problemas do Terceiro Mundo. Isto é muito importante, já que nós não te­
mos uma ideologia global que possa ser aplicada aos países subdesenvolvidos. Há um
risco, então, de superpor categorias marxistas sobre uma superfície débil.

É urgente que uma teoria seja formulada: e o método dialético é adequado para um
contexto onde múltiplas forças externas e internas, passadas e presentes, políticas,
económicas e sociais, se enfrentam constantemente.

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AS FRENTES DO AVANÇO

Participar de uma renovação radical da geografia é um desafio tentador. Isto


provavelmente explica o entusiasmo com que este tó pico é considerado nos Estados
Unidos, Grã-Bretanha e Françaa. Alguns, sem dúvida, não apreciaram a seriedade desse
trabalho. Algumas observações sobre este assunto são aqui sugeridas em formas de
conclusão.

Este movimento é bem-vindo por diversas razões: permite-nos reconhecer a


hegemonia que a chamada "revolução quantitativa" tem mantido no recente
desenvolvimento da geografia. Pode-se, assim, denunciar este tipo de dogmatismo científico
que está mais interessado na verificação de hipóteses que na fonte e natureza destas
hipóteses (J. Doherty 1974, p. 10). Este tipo de arrogância ("o mais destrutivo de todos os
vícios académicos" — Freeman 1961, p. 38) não conduz a nenhum tipo de progresso.
Pode-se denunciar também o uso de linguagens obscuras (o leitor fica com a impressão de
que está dirigida somente a pessoas realmente científicas). Liberados de tais vícios, pode
ser mais fácil impedir a formação de clichés, os quais se sustém através de recíprocos
rituais de citações bibliográficas e proceder sob a forma de discussões abertas. O marxismo
permanecerá empobrecido até que tal situação seja alcançada. Tem-se que afastar, é claro,
exercícios puramente académicos. As citações bibliográficas são úteis para dar embasamento
a uma ideia ou explicá-la melhor, mas não têm valor intrínseco em si mesmas. É bastante
ridículo ver como alguns autores citam cegamente Marx, Engels, Lenin e Rosa
Luxemburgo, geralmente fora de contexto.

Uma boa coleção de enunciados não tem necessariamente maior significação:


"Elegância não significa relevância"; uma sofisticada demonstração de um problema não é
necessariamente melhor que uma explicação simples. A sociologia latino-americana tem
sido vítima de uma "diarreia retórica" — tal como Aníbal Quijano (1973,
p. 46) a tem criticado: "Se somos incapazes de abandonar esta
atitude persistente de discutir nossos problemas em termos ideológicos. . . Eu creio, tu crês,
nós cremos, Lenin pensou, Trotsky creu, Stalin afirmou, Mão disse. . . será impossível fazer
algum progresso."

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Finalmente, não é suficiente seguir uma corrente que possa resultar simplesmente
em outra moda passageira. Tem-se que sele-cionar os aspectos mais apropriados e úteis aos
estudos geográficos: aspectos apropriados à realidade do presente e ao caráter espacial dos
lugares. Por outro lado, não se deve vacilar em usar todas as evidências — históricas,
filosóficas ou empíricas — porque o perigo de ser dogmático estará sempre presente. O
valor de tais instrumentos de análise será julgado dentro de um contexto de ação social e a
partir de uma perspectiva dialética. O risco de converter-mo-nos em inúteis é também
herdado do marxismo clássico. A crítica que Engels fez a Buchner, Vogt e Moleschott não
se baseava (de acordo com Lenin 1967, p. 227) no fato de que estivessem em desacordo
com Marx, mas no fato de que eles foram "materialistas vulgares": não desenvolveram
uma teoria maior que a de seus mestres.

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A GEOGRAFIA SERVE PARA DESVENDAR MÁSCARAS SOCIAIS

Ruy Moreira

distinguir a essência nas aparências..." (Marx)

Nelson Werneck Sodré chamou atenção, em livro recente', para o uso ideológico
da geografia pelo capitalismo no decorrer do colonialismo e do imperialismo. Mas o que
nele expõe, acerca do determinismo geográfico e da geopolítica, nem de longe se
compara com a manipulação, de que é hoje objeto o espaço geográfico, denunciada por
Yves Lacoste.

Usando a paisagem com fins turísticos; projetando "obras de impacto" em áreas


estratégicas; confinando ideias cívicas à unidade espacial Estado-Nação; planejando a
exploração e consumo de recursos naturais; redistribuindo populações faveladas (viveiros de
mão-de-obra) para áreas destinadas à implantação de distritos industriais; fabricando
imagens de lazer e conforto com áreas verdes, sol, sal e mar para forjar venda de imóveis
de fachadas e nomes pomposos, ou marcas de cigarros; manobrando as articulações do

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complicado tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial; espraiando os tentáculos desses
polvos gulosos e insaciáveis eufemisticamente chamados multinacionais; tais são alguns
exemplos dessa interminável lista de maneiras que o capital encontrou de usar o espaço
geográfico como instrumento de acumulação e poder.

O capital descobriu o espaço geográfico. Resta saber quando o descobrirão os que


se opõem à sua ditadura.

Ora, como afirma Lacoste: "Toda a gente julga que a geografia mais não é que uma
disciplina escolar e universitária cuja função seria fornecer elementos de uma descrição do
mundo, dentro de uma certa concepção 'desinteressada' da cultura dita geral. . . Pois qual
poderia ser a utilidade daquelas frases soltas das lições que era necessário aprender na
escola? ( . . . ) A função ideológica essencial do palavreado da geografia escolar e
universitária foi sobretudo de mascarar, através de processos que não são evidentes, a
utilidade prática da análise do espaço, sobretudo para a condução da guerra, assim como
para a organização do Estado e a prática do poder. É, sobretudo, a partir do momento em
que surge como 'inútil', que o palavreado da geografia exerce sua função mistificadora mais
eficaz, pois a crítica de seus fins 'neutros' e 'inocentes' parece supérflua. ( . . . ) É por isso
que é particularmente importante ( . . . ) desmascarar uma das funções estratégicas
essenciais e demonstrar os subterfúgios que a fazem passar por simples e inútil"3.

Mas se é uma necessidade cada vez mais premente tomar a tarefa do estudo do
espaço geográfico, para uma maior compreensão dos processos sociais gerais das formações
econômico-sociais contemporâneas, porquanto o espaço geográfico torna-se mais e mais um
elemento importante nesse processo, esta necessidade lança por outro lado um desafio aos
cientistas e estudiosos de geografia.

Definida como a ciência da organização do espaço, a geografia até agora


negligenciou seu próprio fundamento de cientificidade. Desprestigiados por todos quantos
preocupam-se com as questões da teoria e da prática da transformação social, os geógrafos
não alcançaram o quanto o desprestígio reflete uma incómoda realidade. Os geógrafos não
perceberam que o que lhes falta é pôr os pés no seu próprio chão, e, então, propor uma

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teoria do espaço, que seja uma teoria social.

Este texto propõe-se a sugerir alguns pontos de reflexão para uma teoria do espaço,
considerando o autor ser este um projeto prioritá rio no campo da teoria da transformação
social para todos aqueles que pretendam conduzir a geografia ao encontro das
necessidades mais prementes de nossa época.

1. OS TERMOS DA QUESTÃO

Yves Lacoste intitulou seu livro recente: A geografia Serve Antes de Mais Nada para
Fazer a guerra. Diríamos, alargando o significado desse enunciado, que a geografia, através
da análise dialética do arranjo do espaço, serve para desvendar máscaras sociais, vale dizer,
para desvendar as relações de classes que produzem esse arranjo. É nossa opinião que por
detrás de todo arranjo espacial estão relações sociais, que nas condições históricas do
presente são relações de classes.

Com isso, afirmamos que espaço é história, estatuto epistemoló-gico sobre o qual a
geografia deve erigir-se como ciência, se pretende prestar-se a alguma utilidade na
prática da transformação social. JE tal noção reside não na mera constatação de que a
história desenrola-se no espaço geográfico, mas, antes que tudo, de que .p espaço
geográfico é parte fundamental do processo de produção social e do mecanismo de
controle da sociedade.

Conseqüentemente, afirmamos também que o espaço geográfico tem uma natureza


social, do que deriva que a geografia é uma ciência social.

Compreendido como parte fundamental em uma formação econômico-social de


dois processos articulados que lhe são vitais, o de produção social e o de controle de suas
instituições e relações de classes, o espaço é uma entidade de rico tratamento científico.

Tal compreensão parte do pressuposto de que ao incorporar-se o "espaço físico",


que doravante chamaremos de "primeira natureza", ao processo de gênese e

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desenvolvimento de uma dada formação econômico-social, inicia-se a formação de um
espaço geográfico, uma "segunda natureza", dizia Marx tomando a expressão a Feuerbach,
que nada mais é que a própria formação econômico-social.

Ora, a origem, em última análise, das sociedades, é o processo social de


transformação da natureza em meios de subsistência e de produção. [Ocorrendo numa
sociedade de classes, tanto o processo de produção quanto o de distribuição dos bens
produzidos estão sujeitos aos condicionamentos das formas como se travam as relações
entre as classes sociais. Motivo pelo qual Marx propôs a fórmula segundo a qual "o motor
da história são as lutas de classes".

O que afirmamos, então, é que o arranjo espacial brota tanto do processo de


produção-distribuição, quanto do controle que se exerce sobre as relações existentes entre
as classes. Como o processo de produção-distribuição se faz sob o condicionamento das
formas como se travam as relações entre as classes, pode-se afirmar que o arranjo
espacial, na verdade, numa sociedade de classes, reproduz em síntese as relações de
classes da formação econômico-social.

Vimos que o processo formador do espaço geográfico é o mesmo da formação


econômico-social. Por isso, tem por estrutura e leis de movimentos a própria estrutura e leis
de movimentos da formação econômico-social. Podemos, com isso, doravante designar o
que até agora chamamos de organização do espaço por formação espacial, ou for-jtnação
sócio-espacial, como propôs Milton Santos".

Confundindo-se com a formação econômico-social, a formação espacial contém


sua estrutura e nela está contida, numa relação dialé-tica que nos permite, através do
conhecimento da estrutura e movimentos da formação espacial, conhecer a estrutura e
movimentos da formação econômico-social, e vice-versa. Fato de fundamental importância
ao estudo da formação espacial e da destinação desse estudo ao conhecimento da
formação cconômicc-social. Chave da inserção da geografia e dos geógrafos no campo da
teoria e prática da transformação social no sentido da resolução dos problemas mais
candentes de nossa época, ao lado dos demais estudiosos sociais.

15
É fácil perceber-se, por exemplo, através de elementos do arranjo espacial (objetos
espaciais), a fusão do espaço com as instâncias que compõem a estrutura da formação
eeonômíco-social, como a fábríca (instância econômica), o tribunal (instância jurídico-
política) e a Igreja (instância ideológica). Fica evidente, portanto, que tais elementos
dcTãiranjo espacial não se encontram "soltos" no espaço, pois -inserem-se numa lógica de
arranjo espacial que reproduz a própria lógica do modo de produção a que pertencem.

A fábrica moderna, por exemplo, jamais seria um objeto espacial encontrado na


paisagem de uma formação econômico-social feudal. Mas, se pode ser encontrado na
paisagem tanto de uma formação econômico-social capitalista, quanto na de uma formação
econômico-social socialista, em cada qual tem um significado próprio, significado que só
pode ser apreendido quando visto no interior da totalidade social de que faz parte. Desligado
da sua totalidade social, um objeto espacial, e, por extensão, um arranjo espacial, perde
completamente sua expressão e seu valor analítico de uma formação espacial ou uma
formação econômico-social.

Observe-se, contudo, que o significado dado a um objeto espacial ou um arranjo espacial


por uma totalidade social, é dado, em última e primeira análise, pelo caráter das relações
sociais de classes dessa totalidade social. Nunca pela cultura, como tornou-se voga pelas
mãos da antropologia funcionalista-culturalista ou da filosofia da escola neo-hegeliana de
Frankfurt. O contexto em que qualquer dado ganha sua expressão não é o contexto cultural,
mas o contexto das relações sociais de classes, do qual deriva o próprio contexto cultural.

Se por um lado a presença da fábrica na paisagem sugere revelações sobre o grau de


relacionamento do homem com o seu meio físico, daí sua ausência na paisagem de uma
formação espacial feudal, por refletir determinado estágio de desenvolvimento das forças
produtivas, o mesmo para as formações espaciais capitalista e socialista por exemplo, por
outro lado seu significado e papel na dinâmica do espaço só podem ser apreendidos na
medida em que se distingam as relações sociais que a originaram e comandam: capitalistas
numa formação espacial, socialistas, noutra.

Assim, desde que conceituado nos quadros de uma teoria do espaço geográfico

16
submetida ao rigor epistemológico necessário e da compreensão de que a geografia é, por
origem, uma ciência social, por construir-se sobre um objeto de natureza historicamente
determinada (o espaço), e, que, portanto, seus objetos (os objetos espaciais), como a
fábrica do nosso exemplo acima, tiram seu significado da natureza da totalidade social de
que fazem parte, perdendo totalmente sua expressão quando isolado dessa totalidade, o
arranjo espacial pode e deve ser transformado numa categoria de análise, de fundamental
valor para a análise do espaço. Por extensão, de cada formação econômico-social, como deve
ser o objetivo da Geografia e do geógrafo.

Ora, como vimos que o arranjo espacial é a própria estrutura da totalidade social, e
como na base dessa estrutura está a natureza do processo de reprodução social, é no
conhecimento das leis que regem este processo de reprodução que deve se apoiar a análise
do espaço.

Como, face à sua natureza, pode-se partir do arranjo espacial para o conhecimento
das leis da reprodução social, ou vice-versa, há aí uma flexibilidade de alta importância
para o geógrafo. O importante é que sempre se tenha em vista a necessária relação entre
arranjo espacial e o processo de produção social.

2. OBJETO E OBJETIVO DA GEOGRAFIA

O espaço é o objeto da geografia, o conhecimento da natureza e leis dos


movimentos da formação econômico-social é o seu objetivo. O espaço geográfico é o
espaço interdisciplinar da geografia. É a categoria por intermédio da qual se busca
apreender os movimentos do todo: a formação econômico-social.

A noção de espaço como "chão" da geografia é, certamente, um tema que perpassa


todos os discursos geográficos em todos os tempos, tal como se pode aferir duma simples

17
confrontação da maneira como a vêm definindo os geógrafos.

Os gregos definiam a geografia em seu sentido etimológico, como "descrição da


terra", em termos de um enciclopedismo que era fruto de sua visão sistémica dos
fenómenos. O objeto da geografia seriam os fenômenos passados na superfície terrestre,
mas como estes tinham sua génese numa escala fenomenológica que transcendia a epiderme
do Planeta, suas dimensões eram cósmicas.

Esta foi a herança que arrastou-se até o século XVIII e desenvolvida por Estrabão,
Ibn Khaldun, Cuverius, Avenarius, cada qual alargando apenas o campo de conhecimento e
esboçando uma primeira sistematização da ciência.

O ^período científico" que toma lugar no século XVIII ao "período de coleta e


classificação", inicia-se com J. R. e J. G. Forster, alemães11, ganhando crescente expressão a
noção de "estudo da relação homem-meio". A partir de então, as concepções teóricas da
geografia deixam-se prender pela armadilha de falsas questões, como a querela determinismo
ratzeliano e possibilismo lablacheano. É nesse período que são lançados os alicerces da
"geografia científica", como o primeiro grande esforço de enquadramento epistemológico
das ciências em geral, e da geografia em particular, por Kant que a lecionou por 40 anos
(de 1756 a 1796) na Universidade de Kõnigsberg, e o arrolamento de seus "princípios" com
Humboldt e Ritter.

Ganham corpo nesta época as "armadilhas epistemológicas" que ainda hoje lançam
a geografia em contradições e impasses, diligentemente cultivados pêlos geógrafos. Com
Kant nascem as noções de "ciência de descrição" e "ciência de síntese", e com os "pre­
cursores" as encruzilhadas dicotômicas 'homem-meio" e "geral-regional", noções dualistas
que têm prestado enormes desserviços à geografia como ciência social.

Durante toda a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX, por quase
um século, o pensamento geográfico girou em torno de suas matrizes: a escola francesa e a
escola alemã, multiplicando-se as definições, em todas as quais o espaço está implícito. La
Blache define-a como "o estudo dos lugares", e não dos homens, e Hettner define-a como
"estudo das diferenciações de áreas". Delas, Carl Sauer, nos Estados Unidos, extrai a

18
definição"" de "estudo das paisagens", nascendo o que veio a chamar-se "geografia cultural",
talvez pretendendo fugir à dicotomia homem-meio.

Continuador conspícuo da tradição francesa, Pierre George, marxista até seu


rompimento em 1956, define a geografia como "estudo da organização do espaço pelo
homem", refletindo a influência de F. Perreux e de seus trabalhos sobre a economia espacial,
particularmente de sua teoria de pólos de crescimento. Este geógrafo repre senta, em nossa
opinião, o estágio de maior destrinçamento das "armadilhas epistemológicas" aludidas atrás,
até o surgimento recente das novas tendências, ainda fragmentárias e nascidas sob marcada
influência do marxismo pós-estalinista, que encontramos representadas em trabalhos
publicados nas revistas Espace et Soclété, Hé-rodote (dirigida por Lacoste) e Antipode
(americana).

Não é nosso intuito traçar um retrospecto da evolução do pensamento geográfico,


embora seja nossa opinião de que é hoje uma necessidade das mais prementes o
desenvolvimento de trabalhos histórico-críticos sobre o saber geográfico.

Mas se o espaço foi sempre o "chão" desse saber, como se explica não ter sido
notado, dotado do mínimo rigor teórico e epistemológico, e usado como instrumento de
conhecimento e transformação das sociedades? Questões que, para os geógrafos, são ainda
mais desafiantes, quando se observa que o espaço é hoje tema comum nos trabalhos das
demais ciências sociais, como a economia, a sociologia e a antropologia. Quando se
observa que o espaço foi descoberto pelo capital como instrumento de acumulação e poder.

3. A GEOGRAFIA É UMA CIÊNCIA SOCIAL

Tendo por objeto uma categoria de natureza social, a natureza científica da


geografia fica determinada pela natureza do seu objeto. Ora, o espaço é essencialmente um
espaço social.

19
Pelo que já se deu a entender, o espaço não é "suporte", "substrato" ou
"receptáculo" das ações humanas, não se confunde com o "espaço físico". O espaço
geográfico é um "espaço produzido", uma formação espacial.

Mas a "primeira natureza" não é mera parte integrante da formação espacial. É uma
condição concreta de sua existência social e isto por ser uma condição concreta da
existência social dos homens. Conquanto a "primeira natureza" não seja o espaço geográ­
fico, não há no entanto espaço geográfico sem ela.

Sobre este assunto, que merece de uma teoria do espaço viva


atenção, vale lembrar que de todos os objetos existentes num ar- ranjo espacial os de
ordem natural são os únicos que não derivam do trabalho social.

Ora, a "primeira natureza" somente é incorporada ao espaço geográfico quando


absorvida pelo processo da história. Daí decorre que sua importância geográfica resulta
sobretudo do fato de situar-se no próprio âmago da natureza social do espaço, sendo este
âmago o trabalho social. A "primeira natureza" integra a base material da sociedade.

4. O ESPAÇO COMO ESPAÇO SOCIAL

A natureza social do espaço geográfico decorre do fato simples de que os homens


têm fome, sede e frio, necessidades de ordem física decorrentes de pertencer o homem ao
reino animal, ponte de sua dimensão cósmica. No entanto, à diferença do animal, o homem
consegue os bens de que necessita intervindo na "primeira natureza", transformando-a.
Transformando o meio natural, o homem transforma-se a si mesmo. Ora, como a obra de
transformação do meio é uma realização necessariamente dependente do trabalho social
(a ação organizada da coletividade dos homens), é o trabalho social o agente de mutação
do homem, de um "ser animal" para um "ser social", combinando estes dois momentos
em todo o decorrer da história humana.

Decorre, então, que a formação espacial, na verdade a formação econômico-


social, deriva de um duplo conjunto de interações, necessariamente articuladas: a) o

20
conjunto das interações homem-meio, erroneamente denominadas "relações geográficas"; e,
b) o conjunto das interações homem-homem, as relações sociais.

Tais interações ocorrem simultânea e articuladamente, sendo, na verdade, duas


faces de um mesmo processo. Aqui são vistas como "duplo conjunto" apenas para
encaminharmos a crítica a um dos postulados básicos da geografia clássica: o de que a
geografia é o "estudo da relação homem-meio". Expressão que originou formas correlatas
do tipo "base geográfica da história", com que o senso comum manifesta a imagem que
tem da geografia. A decomposição dessas interações em "interação homem-meio" e
"interação ho-mem-homem" é um dualismo perigoso, embora estejamos aqui correndo este
risco ao buscarmos forma mais simples (simplista?) de crítica ao clássico "dualismo físico-
humano".

O caráter simultâneo e articulado dessas interações pode ser expresso nos seguintes
termos: os homens entram em relação com o meio natural, através das relações sociais
travadas por eles no processo de produção dos bens materiais necessários à existência. En-
gels já observava que os homens entram em relações uns com os outros através de
"coisas". No caso, não haveria relações sociais, se não houvesse a necessidade de os
homens transformarem por via do trabalho social o meio natural em meio de subsistência
ou de a este chegarem.

Decorre do exposto que é o processo de produção dos bens necessários à existência


humana, no bojo do qual se dão tais interações, que lhes confere unidade.

Eis por que achamos que toda análise do que chamamos formação espacial
confunde-se com a análise do processo de produção. Vejamos isto em termos breves.

A consecução dos bens de subsistência humana implica numa intervenção do homem


em seu meio natural, inicialmente sob a forma de extração e a seguir sob a forma de uma
transformação crescentemente complexa, do ponto de vista da história. Eis a origem da
"primeira" forma de interações: a relação homem-meio.

Ocorre que esta consecução dos bens, seja pela forma mais primitiva ou seja pelo

21
ato mais complexo de transformação do meio natural em produtos, é uma tarefa que
transcende ao trabalho individual do homem, sobretudo face à crescente complexidade que
adquire mais e mais no tempo o processo de produção por realizar-se sob a dependência de
emprego de forças produtivas crescentemente mais evoluídas. Implica, pois, numa divisão
de trabalho. Em trabalho social.

Ora, trabalho social significa o travamento de relações entre os homens que se


reúnem para o ato de produzir. Por exemplo, implica uma divisão de trabalho definir-se o
que produzir e o volume do que se vai produzir e ainda um modo de repartição da riqueza
coletivamente produzida. Implica, pois, em determinadas relações sociais. Eis a origem da
"segunda" forma de interações: as relações homem-homem.

São todas estas interações que estão na base da origem e evolução das formações
espaciais que se sucederam no tempo.

O discurso geográfico clássico, não só lablacheano, só viu a "primeira" forma de


interações, não percebendo ou evitando perceber, que a relação homem-meio é, antes de
tudo, uma relação social. Não é de estranhar que esta concepção de geografia só tenda à
dicotomia entre os "lados" da relação. Afinal, o que exprime o termo "homem" senão
aquilo que Pierre George frequentemente chama de "co-letividade humana" do lugar,
reproduzindo o discurso clássico, expressão que os geógrafos reduziram ao significado
demográfico mais simples: o de quantidade de homens. Expressão que esconde a natureza
dos fenómenos espaciais de totalidade estruturada das relações sociais estabelecidas pêlos
homens no decurso do trabalho social.

Daí, concepções nada geográficas, em verdade, como "estudo das relações homem-
meio" ou "charneira entre o físico e o social", e toda uma série de distorções de cunho
epistemológico. Verdadeiras "armadilhas epistemológicas" em que os geógrafos vêm
incorrendo insistentemente, sem perceberem ou fazendo vistas grossas ao fato de que elas
desviam a epistemologia geográfica do seu real terreno. De que a falsa dicotomia "físico-
humana" só serve para esconder a natureza social da geografia e do seu objeto; de que a
falsa querela "determinismo x possibilismo" só serve para desviar os geógrafos do emprego

22
da categoria "determinações"; de que a falsa dicotomia "geografia geral-geografia
regional" só serve para afastar a geografia da lógica dialética, atrelando-a à lógica formal e ao
kantismo.

"Armadilhas epistemológicas" que tiveram o papel de manterem a geografia como o


último reduto do positivismo nas ciências sociais e de, por consequência, torná-la a única
ciência social refratária ao marxismo, ao emprego do materialismo dialético e histórico como
bússola.

Daí, a ausência de qualquer postura crítica e atuante, científica e consequente,


perante a "sociedade global" por parte dos geógrafos e da geografia, demonstrando uma
ridícula indiferença ou arrogância para com os fenómenos sociais, "coisas carentes de rigor
científico".

Parece-nos pertinente, por estas razões, propormos tomarí a geografia como sendo
a ciência de análise das formações espaciais que adquirem as relações sociais de dada
jormacão econômico-social

5. ESPAÇO SOCIAL E ESPAÇO TEMPO

Todo objeto tem uma dupla dimensão: a espacial e a temporal. E se os geógrafos,


por força da natureza mesma de sua disciplina, não puderem abstrair-se por completo do
espaço, substituindo-o pela ambígua noção de "relação homem-meio", o fizeram com o
tempo. Daí o espaço geográfico ter-se tornado, no dizer de Foucault, um espaço
"congelado"20. Durante todo o tempo os geógrafos trabalharam seu objeto escamoteando-o
e tendo uma noção do tempo, quando tinham, mecanicista, evolucionista. Ao separarem o
espaço do tempo, pagaram seu tributo ao kantismo; ao desprezarem a histo-ricização do
espaço geográfico, pagaram seu tributo ao positivismo (geografia clássica) e ao
neopositivismo (new geography).

Ora, o tempo não é só movimento, mas movimento dialético. Movimento que


combina continuidade e descontinuidade, estabelecendo uma periodização na qual cada

23
período caracteriza-se por formas historicamente específicas de relações de produção. Daí
a importância de se utilizar a categoria dos modos de produção nos estudos espaciais.

A introdução da dialética espaco-tempo nos estudos de geografia é fundamental


para compreender-se as leis de movimentos das formações espaciais e seu conteúdo
histórico. Sem ela, a noção de arranjo espacial torna-se uma noção estática, meramente de
"estrutura" da formação espacial.

Somente através da dialética espaço-tempo podemos acompanhar os processos e os


estágios de desenvolvimento das formações espaciais, no interior dos quais encontraremos
diferentes estágios de relação homem-meio. Dar aos objetos do arranjo espacial e ao
arranjo como um todo o significado social e temporal necessário.

6. ESPAÇO E REPRODUÇÃO

Vimos que a formação espacial é um "espaço produzido". Que a produção do


espaço confunde-se com a produção dos bens mate riais necessários à sobrevivência dos
homens. E que isto decorre do fato de que os homens suprem suas necessidades
convertendo a a terra, que Marx denominou "sua despensa primitiva", nos bens ne­
cessários, pela via do trabalho social.

Vimos também que a formação espacial é a própria formação econômico-social,


espacializada, contendo sua estrutura e leis de movimento, e nela estando contida.

Retomemos estas duas afirmações, a fim de, estabelecendo a unidade necessária


entre base económica (infra-estrutura) e formação econômico-social, precisarmos mais a
noção de formação espacial e compreendermos o significado de modo de produção.

Em primeiro lugar, o espaço não seria formação espacial se o processo de produção


não fosse, em verdade, um processo de reprodução". A formação espacial teria existência
efémera, restrita ao momento (período) de conversão da "primeira natureza" em bens pelo
trabalho social, não chegando a adquirir uma estrutura duradoura e mais definitiva.

24
Terminado o processo de produção, se extinguiria a "ordem espacial" gerada pelo trabalho
social, como resultado e ao mesmo tempo condição de realização da produção.

É devido ao fato de que o processo de produção é em verdade um processo de


reprodução que esta "ordem espacial" ganha existência permanente. Fica mais uma vez
patente o vínculo existencial entre a formação espacial e o processo de produção: como a
reprodução é a produção em caráter permanente (contínuo), a formação espacial ganha um
caráter permanente.

Em segundo lugar, decorre dessa relação com o processo da produção social a


relação de correspondência básica entre a formação espacial e a formação econômico-
social. Produzida pelo mesmo processo gerador, em última instância, da formação
econômico-social, e em simultaneidade, a formação espacial exerce dialeticamen-te papel
fundamental nesse processo, já que é resultado e condição da reprodução.

Mas a relação de correspondência básica é o fundamento da correspondência


necessária entre a formação espacial em seu todo e a formação econômico-social em seu
todo. Se a formação econômico-social organiza a formação espacial em se organizando,
estrutura a formação espacial em se estruturando, origina a formação espacial em se
originando, transfere-lhe suas leis de organização e movimentos, isto tudo ocorre também
no sentido inverso, o da formação espacial para a formação econômico-social.

Acompanhemos mais de perto o processo de reciprocidade de influências que se


verifica como decorrência da relação de correspondência necessária entre a formação
espacial e a formação econômico-social.

A produção de bens é feita em razão das necessidades de consumo, realizando-se


tanto a produção quanto o consumo segundo as leis historicamente determinadas, que são
próprias a cada modo de produção. Como o montante dos bens oriundos do processo de
produção desaparece sob o consumo, o processo de produção se repete continuamente, isto
é, se reproduz.

Como para realizar a produção os homens travam relações sociais, denominadas

25
relações de produção em razão de sua natureza, a realização da reprodução implica em
reprodução das relações de produção.

Coloca-se, aqui, a questão das articulações das instâncias de uma formação


econômico-social e desta com a formação espacial em termos de totalidade.

Dependendo da posição em que os homens se coloquem face aos meios de


produção, as relações de produção serão relações sociais entre iguais ou entre proprietários
e não-proprietários, surgindo, neste segundo caso, uma estrutura social de classes sociais
que comandará o processo global da formação econômico-social. Assim, numa formação
econômico-social desse tipo, toda vez que no processo de reprodução se reproduzirem as
relações de produção, estará na verdade com a reprodução destas se reproduzindo a
estrutura de classes. Ora, para que tal encadeamento da reprodução realizada ao nível da
infra-estrutura se faça sem rupturas ou prejuízo à própria continuidade da reprodução
provocados pelo entrechoque dos interesses contrários das classes, surgem as relações
sociais superestruturais, jurídico-políticas e ideológicas. Estas relações sociais
superestruturais, por surgirem em decorrência de o processo de reprodução ser comandado
pelas relações de classes (relações de classes estas engendradas pela reprodução das
relações de produção), entram também em processo de reprodução a cada vez que se
reproduzem as relações infra-estruturais.

O fenômeno da reprodução é, assim, como observa Henri Lefebvre, uma


reprodução da formação econômico-social como um todo, numa dialética em que as
relações sociais de todos os níveis perpassam umas às outras.

No dizer de.Engels: "A situação económica é a base, porém as diversas


partes da superestrutura — as formas políticas da luta de classes e suas consequências,
as constituições estabelecidas pela classe vitoriosa, uma vez ganha a batalha, etc. — as
formas jurídicas — e em consequência inclusive os reflexos de todas essas lutas reais
nos cérebros dos combatentes: teorias políticas, jurídicas, filosóficas, ideias religiosas e
seu desenvolvimento posterior até converter-se em sistemas de dogmas — também
exercem influência sobre o curso das lutas históricas e em muitos casos preponderam

26
na determinação de sua forma".

Ora, sendo a formação espacial a própria formação econômico-social, ao nível


do espaço, e sendo seus movimentos os mesmos, fica mais que evidente que, toda vez
que a formação econômico-social se reproduz como um todo, a formação espacial se
reproduz como um todo.

O que afirmamos é que na formação espacial se realiza todo o processo de


reprodução realizado na formação econômico-social. E o que pomos em realce é que
todo movimento resultante do per-passamento da instância económica no todo e todo
movimento resultante do perpassamento das instâncias superestruturais no todo en:.
contram correspondência integral na formação espacial. Por isso'o espaço geográfico
intervém em dois processos articulados na formação econômico-social: o de produção
social (instância económica) e o de controle de suas instituições e de relações de
classes (instâncias jurídico-política e ideológica).

Alargamos, assim, a noção inicial de correspondência entre o "espaço produzido" e o


processo de produção dos bens materiais necessários à sobrevivência dos homens, que
denominamos de relação de correspondência básica entre a formação espacial e a
formação econômico-social, noção que é o equivalente espacial da noção de determinação
em última instância da instância económica, e estabelecemos a noção de correspondência
entre o todo da formação espacial com o todo da formação econômico-social, noção que
denominamos de relação de correspondência necessária entre a formação espacial e a
formação econômico-social.

7. ESPAÇO E ACUMULAÇÃO

A formação espacial, como a formação ecunômico-social com que se confunde, é


resultado e agente impulsor, ao mesmo tempo, do processo de desenvolvimento da história dos
homens. Ora, processo de desenvolvimento é processo de acumulação.

O processo de evolução, de desenvolvimento, das sociedades humanas é o

27
armazenamento contínuo de um arsenal de "coisas" produzidas pêlos homens, como instrumentos
de trabalho e conhecimentos (know-how?), de que os homens se valem para reproduzirem sua
existência social e impulsionarem o progresso mais para a frente. Os objetos do arranjo espacial e
o próprio arranjo em seu todo são exemplos de formas dessas "coisas" produzidas e acumuladas
no decurso infinitamente contínuo do processo de reprodução.

Para que a produção seja um processo contínuo, necessário se torna que no ato de produzir
se gere simultaneamente os bens de consumo, bens que garantam a continuidade. Como exemplo,
que parte das sementes cultivadas seja separada para a reprodução; que a força de trabalho
despendida pelo trabalhador encontre, ao lado do consumo, descanso e lazer, indispensáveis à sua
reprodução; que as ferramentas de trabalho surgidas no processo de trabalho sejam reincorporadas
à reprodução.

Quando o processo de produção se repete cada ano nas mesmas proporções, como ocorre
com as comunidades agrícolas primitivas e o pequeno artesanato, diz-se que há reprodução
simples. Quando o processo de produção se repete sob uma forma mais vasta, diz-se que há
reprodução ampliada. Vê-se, pelo exposto, q u e s ó existe acumulação quando a reprodução é do
tipo ampliado. O espaço geográfico tem uma participação relevante no processo de reprodução,
seja na reprodução simples ou na reprodução ampliada. Os objetos do arranjo da "segunda
natureza" (espaço produzido), tais como prédios, caminhos e lugares de trabalho, ou da "primeira
natureza", como a água, solos e jazidas minerais, bem como o próprio arranjo como um todo, são
aspectos daquilo de que se valem os homens para uma produção contínua e que Marx denominou
de "condições de reprodução".

Seja como "espaço produzido" ou mesmo como "primeira natureza'', o espaço


geográfico atua no processo de reprodução como "condição de reprodução", através do
qual, em seu seio, o devir histórico foi acumulando.

Ocorre, contudo, que tais "condições de reprodução" são meios de produção e, por
conseguinte, objetos de apropriação pelas classes de uma formação econômico-social.

Conforme seja o modo de produção, diferente uns dos outros justamente pela forma
de relações de produção e de classes que encerram, as "condições de reprodução" e os

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demais meios de produção ganharão uma conformação própria. Como também o processo
ide acumulação.

Nas condições do modo de produção capitalista, os meios de produção são capital,


ou seja, veículos por meio dos quais a forca de trabalho operária, produzindo a mercadoria,
produz mais-valia. Dessa maneira, os meios de produção têm sua apropriação por uma
classe social que os considera um meio de geração de sobretrabalho (excedentes), que ela
utilizará com fins de acumulação de capital.

Sendo assim, uma formação espacial capitalista encerra em seu cerne a luta que
travam o capital e o trabalho.

Primeiramente, porque através dos elementos extraídos à "primeira natureza" o que se


garante não é a conversão da "dispensa primitiva" em meios de sobrevivência dos homens,
mas a produção, sob a forma de matérias-primas brutas, de capital circulante. Em segundo
lugar, porque através da geração de "condições de reprodução" o que se gera não são
aquelas condições de continuidade sem as quais os homens não repetem com regularidade
a produção dos meios de sua sobrevivência, mas capital fixo. Em terceiro lugar, porque
através do uso desses meios de produção o que se está gerando não são meios de
sobrevivência dos homens, mas mercadorias, veículos de transformação da mais-valia
extraída daqueles que a produziram, em lucros. Em quarto lugar, por fim, porque através
da reinversão da mais-valia expropriada em nova fase do processo de reprodução o que se
produzirá não será o desenvolvimento econômico-social, mas a acumulação do capital.

Eis por que, em belíssimo e inspirado texto, afirma Francisco de Oliveira: "Não
pode o Estado solucionar o chamado problema de transporte urbano? Pelo tamanho do
excedente que maneja, pode; mas, se esse excedente provém em parte da produção
automobilística, então não pode. Pode o Estado solucionar o chamado problema da
poluição? Tendo tanto chão neste país, parece que se poderia descentralizar a indústria,
principal poluidora; mas o chão da pátria não é chão, é capital"24.

29
8. ESPAÇO E INSTÂNCIAS

Vimos que a formação espacial tem a própria estrutura e leis da formação


econômico-social. Uma analogia simples nos permitirá ilustrar o que afirmamos.

Se observarmos uma quadra de futebol de salão, notamos que o arranjo do terreno


reproduz as regras desse esporte. Basta aproveitarmos a mesma quadra e nela superpormos
o arranjo espacial de outros esportes, como o vôlei, o basquete ou o handball, cada qual
com "leis" próprias, para notarmos que o arranjo espacial de cada qual diferirá no terreno.
Diferirá porque o arranjo espacial confundindo-se com as regras do jogo, estas regras
diferem em cada um dos esportes citados. Se fossem as mesmas as "leis" para todos eles, o
arranjo seria um só.

Naturalmente que a transposição do exemplo da quadra de esportes para o que


ocorre com a formação espacial implica em alguns cuidados, como de resto deve acontecer
com as analogias. Não se trata de uma diferença de escalas, apenas, mas de natureza qua­
litativamente distinta entre a quadra e a formação espacial, embora possamos falar da
quadra como de uma formação espacial. Mas as regras do esporte são regras simples quase
mecânicas, com intuitos de repetições de jogadas de reduzida margem de variações. As leis
de uma formação econômico-social são da ordem de grande complexidade de movimentos
determinadas historicamente. Confundindo-se com estruturas complexas e enquadradas no
tempo histórico, e não no tempo sideral como o da quadra, a formação espacial tem uma
estrutura complexa e submetida ao tempo histórico.

Ora, sabemos que uma formação econômico-social tem uma estrutura formada pelo
perpassamento de três estruturas (instâncias ou níveis): uma infra-estrutura (a instância
econômica) e duas superestruturas (a instância jurídico-política e a instância ideológica).

Estas "três" instâncias permeiam-se, formando uma única totalidade social. Embora
no interior dessa totalidade guardem certa autonomia, não se pode na verdade falar de três,

30
exceto em benefício (ou deformação?) da análise científica. Projetando-se umas sobre as
outras, cada uma contém as demais, de modo que um fenómeno social qualquer é, ao
mesmo tempo, "económico", "jurídico-políti-co" e "ideológico". Tal concepção de unidade
das instâncias decorre da própria concepção de totalidade social, que não deve ser
entendida como "uma combinação de partes" ou "um todo articulado de partes". Uma
totalidade social não é um sistema, é um todo confundido com as "partes", sendo cada
"parte" a forma específica como se manifesta o todo. Assim, o Estado, por exemplo, não é
uma parte da formação econômico-social, mas uma forma específica como o todo se
manifesta, sintetizando esta "parte", o Estado, tudo o que constitui o todo. O raciocínio é o
mesmo para a formação espacial que vimos usando neste trabalho, como já se deu a
perceber. Não se pode dizer que a instância jurídico-política, materializada no exemplo do
Estado, seja uma parte da formação econômico-social, o mesmo sucedendo quanto às
demais.

Projetando-se umas sobre as outras, somente sobre o espaço "projetam-se" as três


simultaneamente. Contendo as três instâncias a um só tempo, o espaço está contido em cada
uma delas, através de um jogo dialético em que, ao confundir-se com cada uma, passa a
interferir nos movimentos de cada uma. Como as instâncias estão perpassadas, passa a
interferir no movimento da formação econômico-social em seu todo.

Vejamos, somente para efeito de maior visualização do que foi exposto, a articulação entre
o espaço e cada instância.

ESPAÇO E INSTÂNCIA ECONÓMICA

A articulação do espaço geográfico com a instância económica dá origem ao que


chamaremos "arranjo espacial económico". Tal arranjo é, em essência, o resultado de
como se exprimem no âmago da instância económica as forças produtivas como relações
de produção. As formas de expressão das forças produtivas como relações de produção
diferem, qualitativamente, de uma formação econômico-social para outra, vale dizer, de
uma formação espacial para Outra, e são, por sinal, os elementos qualificadores de cada

31
formação.

As forças produtivas, por sua vez, articulam, no processo de trabalho, a força de


trabalho, os objetos do trabalho e os meios de trabalho. Os meios de trabalho e os objetos
de trabalho constituem os meios de produção. Somente quando a força de trabalho põe os
meios de produção em movimento é que as forças produtivas ganham vida e se põem em
movimento como um todo.

Sabemos já que o espaço confunde-se com a instância económica como meio de


produção e, então, de dupla forma: primeiramente, como objeto do trabalho, temos a
"primeira natureza"; em segundo lugar, como meio de trabalho (o arranjo produzido no
espaço pela acumulação), temos a "segunda natureza" ou "espaço produzido”.

Como objeto do trabalho, a inserção do espaço se faz por intermédio dos seus
componentes de ordem natural, sob a forma de matérias-primas brutas ou semi-
elaboradas. Como meio de trabalho, a inserção do espaço se faz por intermédio dos seus
componentes "históricos", isto é, dos objetos nele gerados, organizados e acumulados pelo
incessante processo de reprodução ampliada. Ou em termos já ditos: como "condição de
reprodução".

Ora, sabemos que o arranjo espacial económico resulta da forma como se


exprimem historicamente as forças produtivas como relações de produção, ou dito em
outros termos: do grau de desenvolvimento das forças produtivas e do caráter das relações
de produção.

Nas condições do modo de produção capitalista, para tomarmos um exemplo, as


forças produtivas se encontram em alto grau de desenvolvimento, implicando numa
relação do homem com o meio físico caracterizada pela forte superioridade daquele,
significando uma ampla divisão social de trabalho que confere ao arranjo espacial intensa
complexidade de formas. As relações de produção expressam-se nas forças produtivas de
uma forma típica: a força de trabalho, e somente ela, pertence ao proletariado, o qual tem
que vendê-la para adquirir os meios de subsistência; os meios de produção (objeto e meios
de trabalho) pertencem à burguesia, que compra a força de trabalho do proletário, para,

32
fundindo-a aos meios de produção, produzir mais-valia.

Assim, o "chão" é capital e a formação espacial tem sua estrutura e movimentos


determinados pelo entrechoque entre aquelas classes, básicas desse modo de produção.

Podemos, então, imaginar um arranjo espacial económico numa formação


econômico-social capitalista central, composto ipor porções do espaço de traços definidos:
aqui uma área industrial, articulada a uma área mineira localizada mais além, e a uma área
urbana, que pode confundir-se com o próprio espaço industrial; derredor, em círculos
concêntricos, áreas agrícolas encerradas por pastagens. Podemos imaginá-lo como uma
porção, por sua vez, de um espaço mais amplo, onde inúmeras porções de espaço de
arranjos igualmente simples ou mais complexos se articulam numa sucessão de escalas de
concentricidade, numa hierarquia de dominância de umas porções de espaço por outras,
hierarquia esta definida em termos de "equipamentos terciários" existentes em cada cidade
maior de cada porção de espaço, até atingir-se o espaço global, que é o espaço de domínio
hierárquico de uma metrópole.

Enfeixando todo o espaço, articulando a totalidade, uma densa e ramificada rede


viária, que cobre todas as porções de espaço e atinge todos os objetos dos seus arranjos.

Um arranjo assim poderia estar confundindo-se a uma instância económica


altamente desenvolvida e composta por: a) uma intensa divisão de trabalho representada
pelas diferentes fases de circulação do capital (capital industrial, capital agrário, capital
mercantil, capital financeiro), isto é, por setores e suas ramificações; e b) diferentes níveis
de articulação interna das forças produtivas, significando diferentes níveis de taxa orgânica
de capital.

Como o espaço capitalista é um "espaço de relações", por exemplo, um espaço de


relações intra e intercapitais e entre capital e trabalho, comandadas pela lei do
desenvolvimento desigual e combinado, vale dizer, pela lei da acumulação capitalista,
evidentemente que num arranjo espacial económico desse tipo teremos inevitáveis
desigualdades. As porções de espaço que atuarem como locus da acumulação,
principalmente a metrópole da totalidade espacial, serão aquelas onde a riqueza mais se

33
centralizará; aquelas porções de espaço que atuarem como locus de produção e
expropriação de excedentes serão as que empobrecerão. Locus da riqueza e locus da po­
breza", cada um desses espaços, reproduz internamente por seu turno em seus arranjos
espaciais específicos a desigualdade, porque riqueza e pobreza são os nomes eufêmicos de
burguesia e proletariado, as classes sociais básicas das formações espaciais capitalistas
centrais.

Basta olharmos o arranjo espacial do espaço metropolitano de Nova Iorque, ou de


qualquer metrópole das formações econômi co-sociais capitalistas centrais, para vermos
estampada na paisagem a estrutura de classes desses lugares.

É nesse sentido que talvez possamos falar da formação espacial como sendo uma
formação de múltiplos espaços desiguais. Sendo a estrutura da formação espacial a própria
estrutura da formação eco-nômico-social, tais espaços desiguais não são nada mais que as
desigualdades sociais existentes entre as classes sociais da formação econômico-social.
Mais importante que a imagem é o que ela revela: que a causa das desigualdades espaciais
é a mesma das desigualdades sociais, ou seja, a exploração do trabalho pelo capital.

ESPAÇO E INSTÂNCIAS SUPERESTRUTURAS

A forte integração das instâncias jurídico-política e ideológica, sobretudo em face da


onipresença cada vez maior do Estado nas formações econômico-sociais, desaconselha
separá-las.

Talvez se possa falar de um "arranjo espacial jurídico-político" e de um "arranjo


espacial ideológico", se tomarmos noções como as propostas por Althusser de "aparelhos
repressivos de Estado" e "aparelhos ideológicos de Estado". Os objetos de arranjo de cada
um desses "aparelhos de Estado" são mais que visíveis. Parece-nos ter razão, no entanto,
Foucault ao observar que "se quisermos perceber os mecanismos de poder na sua
complexidade e nos seus detalhes, não poderemos nos ater unicamente à análise dos
aparelhos de Estado".

34
A separação do jurídico-político e do ideológico fica ainda mais desaconselhável
quando novamente nos remetemos a Foucault e nos introduzimos em um seu objeto de
reflexão, o das "relações que podem existir entre poder e saber", relações que têm sua
inscrição espacial, como: saber psiquiátrico e asilo; saber disciplinar e prisão; saber
"médico" e hospital; economia política e fábrica; que se complementam com o saber
geográfico e país, chão da ideologia do nacionalismo.

Surgidas sobretudo para regência da instância económica, as instâncias


superestruturais mobilizam cada vez mais o espaço como via de superação de eventuais
obstruções dos processos económicos pelas contradições do sistema, e com isto
preservarem aquela instância na essência de sua organização.

Exemplo recente disto temos na história brasileira, em que estas duas instâncias se
integram completamente. Quando a crise do "modelo económico" foi explicada como tendo
sido gerada pela "crise do petróleo", interveio o Estado com o planejamento do espaço
como medida de solução: tomando em conta o arranjo espacial de consumo do combustível
existente (distribuição dos postos de gasolina), permaneceriam abertos nos fins de semana
somente os pos-los que guardassem determinada distância dos centros urbanos.

Vejamos, entretanto, como poderíamos pensar espacialmente estas instâncias, segundo


arranjos espaciais "próprios".

O "ARRANJO ESPACIAL JURÍDICO-POLÍÏICO"

Dizia-se na formação econômico-social persa antiga, dos tempos de Dario I, uma


formação econômico-social tributária, que "os sátrapas são os olhos e os ouvidos do rei".
Nada mais revelador do arranjo espacial jurídico-político, um arranjo sobretudo moldado
pelo Estado.

35
Ocorre que os propósitos desse arranjo revelam bem a articulação que existe numa
formação econômico-social entre esta instância e a instância económica. A conquista de um
território extenso, formado pela anexação militar de territórios de outros povos, tinha por
finalidade a cobrança de tributos. A par de garantir a cobrança regular dos tributos, o
arranjo em satrapias visava garantir o exercício da dominação e da integridade do império.
A fórmula encontrada foi a criação de uma malha político-administrativa da qual não
escapasse qualquer parte do espaço sob domínio persa, dividida em satrapias. Com base
nessa malha, os "aparelhos de Estado" jurídico-políticos (e ideológicos) puderam ser
estrategicamente distribuídos: os sátrapas (governadores), os organismos de tributação, os
contingentes militares de ocupação, as estradas e o correio a cavalo.

Exemplos como este multiplicam-se na história. O que hoje haveria de novo seria o
suprimento e a multiplicação dos "aparelhos jurídico-políticos" voltados para as
necessidades específicas de um outro modo de produção, o modo de produção capitalista,
um modo mercantil por excelência.

Já vimos como Lacoste refere-se à intervenção do que denomina de "estados


maiores militares e financeiros", orientada cada vez menos pelo espontaneísmo e com
objetivos os mais variados: regulação das relações entre classes e segmentos de classes
sociais, instituições e nações; conquista militar, política, cultural ou económica; alocação
de capitais interessados em rápida circulação; provimento de maior "racionalidade
económica" aos investimentos. Fenómenos que ocorrem no interior de espaços mais vastos
que sonhou jamais Dario I.

Em que medida, no entanto, o planejamento de espaço deixa de ser, também, uma


ideologia?

O "ARRANJO ESPACIAL IDEOLÓGICO"

Objeto secular de uso ideológico, por meio do qual "a maioria das pessoas formam
sua "visão do mundo", se não sua "visão global", o espaço geográfico tem seu arranjo

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fortemente confundido com a instância ideológica.

Como exemplo, o arranjo espacial ideológico contém as instituições pelas quais os


valores circulam e são assimilados, como a família, a escola, os centros culturais, a Igreja,
os asilos, os cárceres. É no interior desses "espaços sociais" que os valores se tornam
concretos. Espaços específicos, cada qual é uma síntese do todo, prescrevendo, segundo a
ideologia dominante, as noções de mundo e hierarquia. Tais noções seguem uma escala de
espaço que vai do "espaço social" específico ao mais geral, como: o espaço familiar, seguido do
espaço estado-nação e encimado pelo espaço cósmico; ou, em outro caso paralelo: o espaço
empresarial, o espaço estatal e o espaço mundial. Curiosamente, o primeiro exemplo é
apresentado na disciplina escolar chamada moral e civismo nas pessoas, sucessivamente, do
pai, do presidente e de Deus.

É interessante a maneira como o arranjo espacial ideológico se organiza em função


da noção de pátria, que numa hierarquia igualmente escalar vai do bairrismo ao
nacionalismo.

Mas a fusão do espaço com a ideologia é mais dinâmica sob os interesses mais
rapinantes do capital.

Anderson observa que há crescente interesse pela "qualidade do meio ambiente",


salientando o caráter ideológico daquilo que veio a chamar-se "crise ambiental". Se nos
lembrarmos do que ficou dito atrás, que "os homens relacionam-se com o meio físico atra­
vés de suas relações sociais", veremos que Anderson tem toda razão. E a "crise ambiental"
entra em cadeia com a "crise urbana" e com a "crise demográfica", esta provocada por uma
"explosão" populacional. Em todas estas "crises" o espaço é tomado como um dos pivôs,
já que está em causa o "acelerado consumo e esgotamento dos recursos naturais em face
do progresso e das necessidades humanas crescentes com o aumento acelerado da
população mundial". Verdadeiro "fetichismo do espaço" que toma como relações entre
coisas o que em verdade são relações sociais.

Citando Goodman, lembra ainda Anderson que "na arquitetura há "ideologias


estéticas", com ele concordando Castells quando afirma que não há espaço mais

37
ideologicamente construído que o espaço urbano. Explorando paisagens por elas cada vez
mais elaboradas, as grandes empresas imobiliárias promovem a fusão do espaço com a
produção de ideologia, seja sob a forma da estética arquitetônica dos "Barramares" ou sob
a forma ecológica de "sol, sal, montanhas e verdes".

E o que dizer das segregações espaciais do tipo ghettos, apar-theids e favelas,


sejam estas "Borel" ou "Vila Kennedy"?

9. A FORMAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL COMO SÍNTESE (TOTALIDADE)

A formação econômico-social é a totalidade que os geógrafos buscam,


quixotescamente e há séculos, sob a ambígua expressão "síntese". Manifestada como
formação espacial.

Entendida como "ciência de síntese" cercada por uma "constelação de ciências de


análise", a geografia ainda não se libertou da epistemologia kantiana do século XVIII,
padecendo de um mal "patológico".

É assim que encontramos em Pierre George afirmações como: "Ciência que mobiliza
o conhecimento dos métodos e dos resultados de um bom número de ciências associadas" e
"uma ciência de síntese na encruzilhada dos métodos de diversas ciências". Megalomania
patológica pura e simples? Os geógrafos pareceram sempre acometidos dessa "doença",
que não é mais que a expressão do uso ideológico de que a geografia tem sido sempre
objeto. Eis como a doença se manifesta em Albert Faure, citado por Milton Santos: "A
geografia reúne todas as ciências, abre os horizontes, comporta todos os conhecimentos
humanos". Afirmação muito próxima desta outra, do geopolítico Mackinder, citado por
Sodré: "Quem dominar a Europa Oriental dominará o coração continental; quem dominar o
coração continental controlará a ilha-mundo; quem dominar a ilha-mundo controlará o
mundo".

38
Paga a geografia, por consequência, pesado ónus por não terem os geógrafos
percebido, ou feito vistas grossas, ao fato de que é a formação econômico-social uma
totalidade social cuja concretude é dada pelo espaço, a verdadeira síntese de que se devem
ocupar.

Repensar a geografia, a partir da categoria formação espacial articulada às categorias


de formação econômico-social e de modo de produção, condição necessária para entender-
se o espaço como es-paço-social e espaço-tempo, eis uma perspectiva que nos parece capaz
de abrir-lhe caminhos no cipoal de ambiguidades em que está secularmente mergulhada.

Significa repensá-la em outros termos de interdisciplinaridade, para podermos colocá-


la, sem patologia, no lugar que lhe cabe entre as ciências sociais.

10. PARA REPENSAR A GEOGRAFIA

Nota Marx na epígrafe que serviu de guia para este trabalho que devemos buscar
apreender ".. .a essência nas aparências. . .". Entendemos com isso que se deve apreender
as leis internas (a essência) que governam as formas, as estruturas.

Ora, se as formas são as aparências, parece-nos que se encaixa aí a noção de arranjo


espacial que vimos usando neste trabalho. Entendemos por arranjo espacial uma estrutura
de objetos espaciais, uma localização organizada de formas espaciais, uma forma ou uma
totalidade estruturada de formas espaciais. O papel da análise espacial estaria em apreender
as leis que regem a formação espacial, seu todo e suas "partes", a partir do arranjo espacial,
e vice-versa.

Marta Harnecker propõe que ". . .para se chegar a .definir um objeto é necessário
ser capaz de descobrir a unidade ou a forma de organização dos elementos que servem
num primeiro momento para descrevê-la. Pode-se descrever uma sociedade; podemos, por
exemplo, dizer que em toda sociedade existem indústrias, campos cultivados, correios,
escolas, exército, polícia, leis, correntes ideológicas, etc. Porém, a organização destes
elementos em diferentes estruturas (económica, jurídico-política e ideológica) e a determi­

39
nação do papel que cada uma dessas estruturas desempenha na sociedade permite-nos passar
da descrição ao conhecimento de uma realidade social, estabelecer as leis de seu
desenvolvimento e, portanto, a possibilidade de dirigi-lo conscientemente".

Lembra Lefebvre: "A análise que distingue os fatos, as formas, os aspectos e os


momentos de um desenvolvimento, deve também preparar a síntese determinando as
ligações internas que existem entre esses elementos""1. E é o próprio Lefebvre que,
observando que a investigação somente ultrapassa o nível do empírico quando norteada
por uma teoria calcada na noção do lodo, diz: "Esta noção do todo desempenha papel
primordial, tanto metodologicamente como teoricamente. Já sabemos por quê. A realidade
que temos de compreender, na natureza tanto como na vida social, apresenta-se como um
todo". Só depois da análise das partes, "só então vem a exposição do todo, do conjunto".

O que propomos é a construção de uma teoria do espaço que se fundamente em três


categorias de totalidade, que são três facetas de uma mesma realidade: a formação espacial,
a formação econômico-social e o modo de produção. O conceito de formação espacial
passa pêlos conceitos de formação econômico-social e de modo de produção e, mais ainda,
pela forma como se articulam estes dois.

Entendemos uma formação espacial como uma "tópica marxista", para tomarmos,
talvez apressadamente mas não de todo sem validade em um texto que se propõe socializar
reflexões do autor, a expressão cunhada por Althusser, qual seja, " . . . u m dispositivo es
pecial que assinala em determinadas realidades seus lugares no espaço", ou, "...um sistema
articulado de posições (lugares) comandados pela determinação em última instância". Sabemos
que esta "determinação em última instância" são as relações de produção. Vimos, ao longo
do texto, que a formação espacial é a própria formação econômico-social, espacializada.

A formação econômico-social define-se como "uma totalidade social concreta", ao


passo que o modo de produção define-se como "uma totalidade social abstrata", não se
podendo separar os dois conceitos, e tomada a expressão "abstrata" não na sua acepção
idealista. A primeira é um "conceito complexo e impuro", ao passo que o segundo é um
"conceito puro, ideal, que permite pensar uma totalidade". Tanto um quanto outro são

40
conceitos que se constróem sobre relações de produção (relações económicas, para empregar­
mos o conceito em sua acepção ampla), historicamente determinadas. Assim, se o modo de
produção funda-se em relações de produção homogéneas, a formação econômico-social
funda-se (ou não) em tipos de relações de produção heterogéneas, articuladas sob o
domínio do tipo mais avançado. Desse modo, o certo seria dizer-se "formação econômico-
social com dominante. . .".

Por isso, se afigura ser-nos válido em nosso estudo o conceito que Samir Amin
propõe de formação econômico-social, como sendo "um complexo organizado de modos
de produção", isto é, como sendo "uma estrutura concreta, organizada, caracterizada por um
modo de produção dominante e pela articulação à volta deste de um conjunto complexo de
modos de produção que a ele estão sub-metidos". Formulação que nos sugere a forma
adequada de articulação dos dois conceitos.

Parece-nos, abreviando um tema controverso e trazendo-o para o terreno da reflexão do


espaço, que a articulação dos três conceitos aqui propostos como as categorias mais gerais
de análise do espaço, envolve a observância de alguns pares dialéticos fundamentais, como:
concreto-abstrato, espaço-tempo, continuidade-desconti-nuidade, forma-conteúdo, assim
expressos:

Concreto-abstrato: A análise de uma formação econômico-social envolve o


conhecimento do mecanismo geral de funcionamento dos modos de produção que a
compõem. Assim, por exemplo, a análise de uma formação econômico-social com
dominante capitalista implica o conhecimento dos mecanismos gerais desse modo de produ­
ção e de cada um dos dominados. Só assim se pode captar as articulações e a
complexidade do todo.

Espaço-tempo: O que dá concretude à formação econômico-social é o espaço.


Contudo, vimos que o espaço sem a dimensão tempo é um "espaço congelado". Do mesmo
modo, pensar um modo de produção apenas pelo prisma do tempo, a-espacialmente, é
produzir uma história de generalidades, que esconde as diferenças das formações econômico-
sociais. A não-espacialização da história produz erros, como aquele observado por Samir

41
Amin de que, não se vendo que o modo de produção feudal foi um fenómeno restrito
espacialmente a uma porção do continente europeu, foi-lhe dado uma universalidade que
não teve. Daí as discussões hoje de modo de produção asiático (tributário).

Continuidade-descontinuidade: O modo de produção é uma des-continuidade no


tempo, razão por que permite-nos uma correia periodização do tempo histórico. Quer nos
parecer que a formação econômico-social é uma integração de tempos históricos desiguais,
estratificados no interior de uma mesma temporalidade e articulados sob o modo de
produção mais desenvolvido. Daí sua formação espacial exprimir-se como uma unidade
articulada de espaços regionais diferenciados, formando uma "regionalização" baseada em
modos de produção, diferenciação espacial esta que se torna "desenvolvimento desigual e
combinado" se o modo de produção dominante for o capitalista.

Duas propostas nos parecem pertinentes à passagem do nível de abrangência mais


geral dessas três categorias para o conhecimento do real, pela via da intermediação do
arranjo espacial.

Marta Harnecker propõe que, sendo as relações de produção o "núcleo estruturador"


que "explica o tipo característico de articulação das distintas instâncias (estruturas regionais)
e determina qual delas terá o papel dominante" das totalidades sociais, "devemos começar
diagnosticando que tipo de relações de produção existem, como se combinam, qual é a
relação de produção dominante, como exerce sua influência sobre as relações de produção
subordinadas. A partir daí, explicar o conjunto, sem negar a autonomia relativa das
estruturas regionais e sem deixar de ver a estrutura económica como determinante em
última instância".

Samir Amin propõe que, já que uma totalidade social se organiza em função da
produção e expropriação de excedentes, a análise da totalidade "deve organizar-se em
torno da forma pela qual é gerado o excedente característico dessa formação, das
transferências e da distribuição interna desse excedente entre as diferentes classes ou
grupos que dele se apropriam. Como uma formação social é um complexo organizado de
vários modos de produção, o excedente gerado nessa formação não é homogéneo. Existe

42
uma adição de excedentes com origens diferentes. Uma questão essencial é a de saber em
determinada formação concreta qual modo de produção é predominante, e, portanto, qual
é a forma predominante de excedente. Uma segunda questão é saber em que proporção a
sociedade vive do excedente gerado por ela própria e do excedente transferido com
origem em outra sociedade, ou, dito em outra forma, qual a importância relativa que nela
ocupa o comércio a longa distância". Convém lembrarmos que Samir Amin debruça-se
sobre o que denomina "formações sociais periféricas", que é o caso da formação social
brasileira, uma formação com dominante capitalista.

Parece clara a combinação das duas propostas: para a compreensão do processo de


produção e expropriação dos excedentes, é preciso conhecermos as relações de produção
existentes na formação. E vice-versa.

O estudo mais e mais preciso do conceito e articulação de formação econômico-


social e de modo de produção, a par do estudo minucioso da economia política, das
instituições e da ideologia, sem o qual não se pode mergulhar fundo na compreensão de
uma formação econômico-social, e a convergência de tudo isto ao estudo do conceito, forma
e processos da formação espacial, eis o que nos parece que é necessário para um bom
trabalho de construção teórica do espaço.

Resta lembrar que o processo de teorização só ganha concretude e vigor se


realizado no interior da práxis.

EM BUSCA DA ONTOLOGIA DO ESPAÇO

António Carlos Robert Morais

Tentaremos neste pequeno artigo introduzir na problemática geográfica um


encaminhamento teórico baseado em autores que acreditamos encontram-se até agora
ausentes de tal discussão. O obje-tivo é fornecer ao leitor indicações de uma posição

43
possível no tratamento de questões referentes ao espaço. Esta posição, resposta a questões de
caráter geral, apresenta-se como um momento de um esforço de reflexão, tentando dar conta
de um primeiro nível de problemas que se colocam aos geógrafos que buscam
compreender o espaço numa perspectiva materialista e dialética. Assim é a bagagem com que
partimos para um projeto de pesquisa. Esta posição foi se constituindo em leituras e
discussões, e deste modo se vier a servir de auxílio ou alimento à discussão, seu mérito
deve ser creditado, aos colegas que conosco discutiram-na; por outro lado, as lacunas e a
brevidade no tratamento de certos pontos ligam-se ao fato de não se tratar de uma proposta
acabada, porém de um posicionamento ainda em formação. Em suma, se conseguir suscitar
o interesse pêlos autores que serão apresentados, a validade do presente artigo estará dada.

Como realizar um estudo do espaço dentro do matelialismo histórico, em que ele


não seja apenas o receptáculo de fenómenos determinados por outras instâncias do real?
Como efetivar a apropriação total do espaço, apreendendo-lhe a essência? Como apreen
der este ser específico, sem autonomizá-lo e sem empobrecer-lhe a singularidade? Como
realizar um corte no real sem cair num procedimento positivista? Estas são dúvidas que
constantemente atormentam todo geógrafo que assume um posicionamento marxista. Al­
gumas são ainda mais amplas, aparecendo como questões basilares de toda a reflexão
geográfica, pois dizem respeito à particularidade da análise, à possibilidade mesmo de
existência da geografia, à definição do objeto.

Por muito tempo a geografia apresentou-se como a única disciplina que se


debruçava cientificamente sobre o espaço, talvez isso explique a raridade de reflexões mais
aprofundadas a respeito desse ser e de sua apreensão no âmbito deste corpo de
conhecimentos. O rigor conceituai e o esforço metodológico precoce por exemplo na
sociologia não frutificou na geografia, que assim entorpeceu-se nas soluções semânticas ou
analógicas. O questionamento sobre os atributos e a dinâmica própria do espaço restou
como campo da especulação filosófica. Nas décadas recentes, por imposições colocadas pelo
trabalho técnico, outras disciplinas começaram a revelar em seus estudos o que poderíamos
chamar de componente espacial da manifestação dos fenómenos. Não cabe aqui construir
uma redoma lógica para justificar a propriedade exclusiva sobre este objeto, nem defender
um rótulo antigo em nome de uma tradição académica, em sua quase totalidade de

44
orientação positivista. Deixemos a estes o árido debate sobre a classificação e a delimitação
das ciências humanas. Entretanto, devemos observar que a reflexão filosófica sobre o
espaço se fez desvinculada de uma análise histórica concreta, aparecendo como um esforço
puramente lógico (por exemplo em Kant ou em Leibnitz). Por outro lado, as ciências
específicas, ao meditarem sobre o tema, já possuem um interesse particularizado (como
por exemplo a cidade para o urbanismo) que as desvincula da preocupação com o espaço
em sua universalidade. Resta a geografia, com uma bagagem empírica considerável, e com
um restrito porém não desinteressante escopo teórico. A elaboração de uma história crítica
deste material poderá fornecer pontos relevantes à discussão. Tal empreitada obviamente foge
ao alcance deste pequeno artigo. Pretende-se aqui avançar na problematização do tema,
tentando elucidar uma proposta de encaminhamento da compreensão do espaço.

As tentativas de fazer geografia utilizando o arsenal teórico do materialismo


histórico têm-se revelado problemáticas. P. Bertoquy um dos primeiros autores da
geografia a citar Marx, partindo de um posicionamento eclético, aceita as formulações do
autor de O Capital, porém realizando uma redução economicista em sua leitura. Negando a
determinação do económico, não compreende o método de Marx, utilizando-se apenas de
algumas explicações retiradas de seu contexto. De resto, realiza um estudo nitidamente posi­
tivista. Citei este autor, pois o seu procedimento demonstra um tipo de conciliação entre o
marxismo e a geografia: a daqueles que utilizam as colocações marxistas em
procedimentos analíticos que lhes são antagónicos. Assim, P. George toma os termos mar­
xistas tendo-os por conceitos e os insere em propostas tipológicas. Por outro lado, alguns
geógrafos claramente posicionados encastelam-se na famosa afirmação de Marx: "Só
reconhecemos a existência de uma ciência: a ciência da história", para deslegitimarem as
questões geográficas. Estes, a partir da crítica de solucionamentos propostos, negam a
validade dos temas em si, tomando a crítica, tarefa importante, por tarefa única do
geógrafo marxista; como se a luta ideológica resolvesse todos os problemas postos para a
ciência. A partir dessa negação m totum da geografia, e tomando o materialismo histórico
por método de análise, chegam ao que poderia ser definido como uma sociologia espacial
(uma projeção das relações sociais no espaço concreto, atentando para as contradições
gerais do capitalismo), reduzindo o objeto ao seu aspecto fenomê-nico, assim una espaço

45
dado, determinado diretamente pelas leis gerais da acumulação capitalista. De um lado, os
lugares (locais de ocorrência) com seus arranjos únicos de mediações incognoscíveis, de outro,
as leis abstraías do modo de produção. O espaço como receptáculo. Definindo o objeto
positivamente como fato, fenómeno, epi derme de uma essência (na verdade transformada
em princípio normativo), condena-se sua apreensão à metodologia positivista. Este quadro
lembra que as maiores contribuições em direção à dialética do espaço vieram de autores
pouco ortodoxos com D. Harvey e M. Santos.

As dificuldades de uma proposta geográfica no materialismo histórico vinculam-se a


uma má compreensão da especificidade do objeto e conseqüentemente da forma de sua
apreensão, e também de um não aprofundamento na metodologia e na teoria do conhecimen­
to marxista. Não há nos clássicos uma teoria sobre o espaço, porém é no procedimento
analítico e explicativo que devemos nos reter, assim às questões de princípios e de
posicionamento frente à realidade. Se em Marx, Engels e Lenin encontramos preciosos
indicadores para o estudo e a compreensão do espaço, é sem dúvida na obra de Lukács que
estão contidas as mais importantes considerações metodológicas para o encaminhamento
de nosso estudo. Não que este autor trate do espaço diretamente, mas pelo fato do filósofo
húngaro refletir sobre as questões gerais (de método e concepção) às quais já aludimos,
explicitamente a possibilidade de se estudar os seres individualizados, de existência e
formas de manifestação específicas. Lukács chega a esta problemática ao tentar apreender
a especificidade do fato estético; embrenhando-se no tecido da reflexão marxista elucida
pontos fundamentais da dialética sujeito-objeto.

A proposta lukacsiana desde logo referenda (e elucida) o primado gnoseológico da


existência, reforçando o fundamento materialista da anterioridade do ser em relação à
consciência. Assim, as coisas têm uma existência anterior e exterior às representações que
os homens delas fazem. Esta prioridade e exterioridade do real frente ao conhecimento é um
dos pontos basilares da proposta lukacsiana. O pensamento é posto como apropriação
humana do real, engendrado pelas atividades cotidianas, pelo trabalho. Sendo a realidade e
o conhecimento movimento, qualquer saber é sempre aproximativo: sendo absoluto e
relativo, pois é a apropriação possível naquele momento concreto, porém é ultrapassado
(como momento imóvel) pelo próprio movimento da realidade. Deste modo, inda gado

46
sobre o problema das ciências particulares, respondeu Lukács: "Hoje entre nós, tornou-se
hábito representar qualquer disciplina que encontrou cidadania académica como uma esfera
autónoma do ser... Ora, sou do parecer de que todas estas coisas são historicamente mutáveis
e que, deste ponto de vista, o ser e suas transformações são o fundamental". Porém, desta
formulação não se depreende que Lukács não reconheça a existência de seres diferenciados
no real, pois coloca ele que muitos complexos não podem ser simplesmente deduzidos de
outros, por serem mediatizados por sua causalidade inerente e pela dose de acaso aí contida:
critica, isto sim, p caráter fragmentário e normativo das ciências particulares. Diz Lukács:
"todo o existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e
movida) de um complexo concreto". Assim, o critério de validade de uma dada reflexão
embasa-se no critério da verdade, a existência (não autonomizada) de seu objeto na
realidade. Porém, como apreendê-lo (delimitá-lo)? Para Lukács, numa perspectiva genética:
"devemos pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em que
condições estas formas fenomê-nicas podem tornar-se cada vez mais complexas e
mediatizadas. Porém, não partindo do elemento isolado, que só existe em conexão no
processo e só assim tem sua razão de ser, e sim do complexo unitário em sua existência
primária. Temos então um ser, parte movente da totalidade histórica, cuja singularidade
articulada de elementos lhe denota um movimento próprio; devemos apreendê-lo em sua
manifestação simples e ir problematizando-o. Diz Lukács: "Interessam de fato as conexões
do ser e fazemos abstração do fato de que uma determinada conexão seja tratada pela
ciência atual como algo de psicológico, sociológico, de pertinente à teoria do conhecimento
ou à lógica. . . A conexão vem tratada como conexão existente, enquanto é considerado
secundário perguntar-se qual a ciência que dela se ocupa". A ciência para Lukács é
engendrada no processo de trabalho, ao estabelecer-se no homem a consciên cia da
causalidade do mundo exterior. O trabalho define a materialidade social pois apenas nele
há uma perspectiva finalista, uma teleologia. No ato do trabalho, diferenciam-se a ação e o
pensamento; este, uma interioridade do sujeito, deve-se sujeitar à causalidade do mundo
exterior se quiser concretizar seus fins. "A teleologia é um modo de posição sempre
realizada por uma consciência, que, embora guiando-as em determinada direção, pode
movimentar apenas séries causais". Assim, sem considerar a causalidade, a consciência é
impotente diante da natureza. À pré-ideação (construção mental antecipada) do produto

47
deve-se seguir a avaliação da possibilidade de realizá-lo. Lukács elogia Hartmann, que separa
dois momentos no ato do pensamento: a colocação da finalidade e a investigação sobre os
meios. No segundo momento funda-se a ciência, como a busca do conhecimento adequado.
Ao realizar-se o trabalho, agora materializado num produto (uma natureza transformada), a
consciência objetiva-se. "Tão-somente no trabalho, na colocação da finalidade e dos meios
de sua realização, a consciência, mediante um ato que ela mesma dirige (ou seja, emidante a
colocação da finalidade), ultrapassa a simples adaptação do ambiente — condição essa que
é comum, mesmo àquelas atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza
de modo involuntário e põe-se a executar na própria natureza modificações que para os
animais são impossíveis até mesmo inconcebíveis. Ora, na medida em que a realização de
uma finalidade se torna um princípio transformador e informador da natureza, a
consciência que impulsionou e orientou um tal processo não pode ser mais, do ponto de
vista ontológico, um epifenômeno". Porém, a utilização não implica em conhecimento da
totalidade, apenas na avaliação adequada do ob-jeto e dos meios empregados. O remeter à
totalidade diferencia a práxis apropriadora da práxis utilitária. A ciência fragmentária da era da
decadência ideológica da burguesia tenta perpetuar a práxis utilitária e manipulatória13.
Lukács, ao propor uma base ontológica para o conhecimento científico, possibilita o estudo dos
objetos em sua individualidade sem cair na autonomização positivista. Diz ele: "O objeto é o
que existe realmente, a tarefa é a de investigar o ente com a preocupação de compreender o
seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexões no seu interior", e ainda "... a
questão ontológica não simplifica artificialmente o problema; oferece, ao contrário, uma base
científico-filosófica para compreender o processo na sua complexidade e ra-cionalidade. . .
De tal modo, a ontologia pode superar problemas que a divisão do trabalho nas várias
disciplinas tornou insolúvel".

Tentemos remeter à problemática do espaço a proposta lukacsiana. Assim, iniciar a


busca da ontologia do espaço. Desde logo, devemos admitir "o espaço enquanto natureza
em si", como existência objetiva anterior ao homem, manifestação de formas da ma­
terialidade inorgânica e orgânica, engendrado numa história natural onde as transformações
ocorrem sem a impulsão finalística. Este espaço é uma realidade fáctica, o reino absoluto da
causalidade. Em termos lógicos e históricos, admitimos que é nesta realidade que se forma

48
o ser social, forma mais elevada da materialidade. Este transforma teleologicamente (com
finalidade) o mundo externo através do seu trabalho. Apropria e transforma este espaço
natural, imprimindo-lhe sua marca; faz dos objetos naturais formas úteis à vida humana. O
apropriar-se do espaço concreto implica na elaboração de categorias lógicas sobre o espaço.
Num momento de parco desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, esta refle­
xão se faz por uma via empírica, utilitária. A elevação deste pensamento, com a construção
de categorias mais específicas, e a apreensão de conexões mais mediatizadas remetem ao
desenvolvimento da apropriação real, do grau de transformação do meio, ao afastamento
do limite natural. Noções como distância, extensão, fronteira, assim como a consciência do
espaço grupai e a demarcação do domínio territorial são engendradas no trabalho social,
são ilações da prática. Esta breve apreciação já nos permite diluir um nó górdio da reflexão
geográfica: a oposição entre a definição lógica e a definição empírica do objeto da
geografia. Para a primeira o objeto, o espaço, seria uma categoria lógica (na linha kantiana
de uma categoria do entendimento); para a segunda o objeto seria a superfície terrestre,
uma categoria empírica (por exemplo, na definição da geografia clássica francesa). Como
foi colocada a questão, supera-se a dicotomia racionalismo x empirismo, realçando o
caráter formal das duas soluções. Mediatizada pelo processo histórico de instalação da
humanidade sobre o globo, a apreensão do espaço se faz calcada na apropriação; este é
posto como categoria his-tórico-concreta, remetendo a um ser em movimento. O ser já não
é uma "natureza em si" mas uma "natureza para o homem" e cada vez mais um trabalho do
homem imbuído do movimento e da dinâmica própria da materialidade social.

Posto nestes termos, o natural vai ser visto como potencialidade substantivada na
apropriação humana. O ser social, forma mais elevada da materialidade, direciona as
manifestações da realidade orgânica e inorgânica com sua ação transformadora. A
materialidade orgânica e inorgânica apresenta-se no homem como necessidades (o
reproduzir sua vida animal), uma natureza interna. A natureza externa é dada como
material para a ação, sobre o qual o homem se debruça, conhece e impulsiona uma
proposta finalística. Na obra transformada (o produto do intercâmbio material), temos a uni­
dade do natural e do social, mantendo sua diferenciação enquanto causalidade e teleologia;
no próprio homem, a dialética necessidade-liberdade, mediatizada pelas condições naturais

49
e históricas. Desde logo, homem e natureza já estão colocados em relação na perspectiva da
ontologia do espaço. A apropriação, trabalho social, se faz sobre uma base concreta de
condições diferenciadas que não podem ser anuladas em sua determinação, pois vimos que
o homem apenas impulsiona séries causais. Substantiva as potencialidades naturais, que
como coisas em si fogem ao objetivo de nosso estudo. É como natureza para o homem que
devemos retê-la, parte ativa de um processo determinado pela história da sociedade. A
unidade do objeto é obtida fora dos esquemas deterministas, ambientalistas ou
possibilistas.

O ser é apreendido como o processo histórico-concreto de valorização do espaço,


parte movente movida da totalidade social. A especificidade do ser pode ser facilmente
estabelecida na existência de "marcos territoriais" na evolução da história humana. Por
marcos territoriais entendemos formas históricas de valorização do espaço que atuam como
forças produtivas da sociedade. Marx, em Formações Económicas Pré-Capitalistas, alerta
para o papel da sedenta-rização (fixação a um espaço) e da concentração espacial (agru­
pamento de uma população) no desenvolvimento da humanidade: certas relações sociais
são limitadas pela organização espacial (por exemplo: uma divisão do trabalho evoluída
presisupõe a cidade assim como o aparecimento do Estado pressupõe um território de­
marcado). Porém, são também relações sociais que engendraram a organização espacial.
Há uma dialética da apropriação do espaço, passível de ser explicitada no exame das
formas de trabalho e propriedade. Bem distante assim de qualquer fatalismo (causalidade
absoluta) dos marcos territoriais, pois estes são criações humanas; diz Marx: "O que faz
com que uma região da terra seja um território de caça é o fato das tribos caçarem nela; o
que transforma o solo num prolongamento do corpo do indivíduo é a agricultura. Tendo
sido construída a cidade de Roma e suas terras circunvizinhas cultivadas por seus cidadãos,
as condições da comunidade diferiram das que haviam vigorado anteriormente". Temos deste
modo o movimento como objeto, do qual a forma manifesta na paisagem é apenas um
momento em transformação; a epiderme fenomênica do processo.

Concebendo o ser como a valorização do espaço, cabe estabelecer através de quais


mediações o modo de produção lhe determina o movimento. Partir para o móvel e o
produto desta valorização em exemplos histórico-concretos. Em recente artigo18, procura­

50
mos, num nível introdutório, elucidar um instrumental teórico de análise para tal
empreitada. Estudamos e refletimos sobre os pontos da obra de Marx, significantes para o
tema, e tentamos uma aproximação ao diferenciar o "valor do espaço" e o "valor no
espaço". O primeiro é um valor contido, a potencialidade natural a que nos referimos
anteriormente. O valor no espaço é um valor criado, um produto do trabalho. As duas
formas ocorrem em unidade, pois a substantivação de um dado potencial implica no
dispêndio de uma quantidade de trabalho que se materializa no espaço. Porém, se o móvel
que condiciona a apropriação de uma dada porção do globo estiver numa ou noutra forma de
valor, o resultado e a dinâmica do processo de apropriação serão diferentes. No artigo
citado, relacionamos as formas de valor espacial às formas de renda da terra. Atualmente,
estamos trabalhando no sentido de exemplificar tais afirmações em estudos de caso.

Finalizando, queremos dizer que tentamos apresentar uma perspectiva de trabalho


no estudo do espaço. As ideias expostas são fruto de um processo de abstração; partimos de
alguns pontos e procuramos tecer o encaminhamento teórico que nos permitisse ascender
ao concreto, debruçar sobre a realidade sem reproduzir a tónica empirista da geografia.
Cabe agora iniciarmos o processo de concreção tentando dar conta de formações
territoriais concretas. Tal problemática pode para muitos ser associada a uma discussão pu­
ramente académica, porém acreditamos que solucionando-a poderemos avançar muito na
compreensão da particularidade. Esta questão é de importância vital, pois cada vez mais a
realidade demonstra que não se pode reduzir as singularidades concretas às formulações
genéricas. A singularidade deve ser bem apreendida para uma avaliação correta. O
conhecimento das formações territoriais coloca-se como imperativo de qualquer análise
política consequente.

O ESPAÇO COMO SER: UMA AUTO-AVALIACÃO CRÍTICA

Armando Corrêa da Silva

51
Neste trabalho considero a legalidade de uma disciplina que denomino geografia
teórica, destinada à discussão do problema do espaço como ser, por uma via que define a
possibilidade da solução teórica, que implica em uma prática específica. Como são muitos
os problemas a levar em conta, e como se trata de um pensamento em elaboração, a forma
que assume o discurso é a de uma auto-avaliação crítica. Esses problemas são: o
movimento, que se repete, da posição racionalista à empirista, e vice-versa; a tentativa de
responder à questão de se a estrutura é um componente ideológico do real ou se é um
atributo do objeto; a categoria da subto-talidade, com a qual trabalho; o problema da
natureza das relações; a busca de resposta para a indagação: o que é o espaço?; a solução
pluralista em sua forma atual; uma teoria do lugar e seus fundamentos; o antigo tema da
dialética da natureza; a materialidade do espaço; a relação positivismo-dialética na
geografia francesa; o que denomino de ontologia de Reclus; a categoria da particularidade;
a natureza dos estudos sobre o Brasil; e singularidade estrutural; o movimento da estrutura;
o movimento do pensamento em nossa época; as soluções ontológicas possíveis, como a
geoeconomia, a geoeconomia política, a espacialização da economia política. Termino o texto
sugerindo a pesquisa como requisito para dar substância ao projeto de uma teoria em
elaboração, capaz de dar a referida legalidade ao trabalho intelectual, capaz de produzir
essa geografia teórica.

Os assuntos estão agrupados em três tópicos: O espaço ontológico; Espaço e


movimento; O espaço da particularidade, correspondendo, respectivamente, a uma discussão
sobre objeto, uma discussão sobre método; e uma consideração conjunta de objeto e
método, que, como determinação, põe o problema da práxis intelectual e da legalidade do
trabalho teórico. O resultado, como produto socialmente necessário, justifica-se como
atividade cultural que põe em evidência o saber como componente académica ou utilitária
em nossa sociedade, no presente. Por isso, este texto tem um valor em si e um valor para
consumo cultural. É que as ideias, ao nível da técnica, da ciência ou da filosofia, em nosso
mundo moderno, apresentam-se como elementos necessários à elucidação das contradições
do real, num nível que questiona a própria produção intelectual, como trabalho individual
ou coletivo.

Esse nível pode ser referido ao mundo urbano, que representa hoje o lugar em que

52
se condensam as contradições do campo e da indústria, das quais tomamos consciência
intensamente, por meio das comunicações. O discurso tem, então, uma referência lógica
específica, que representa a particularidade do presente, presente esse que contém o
passado e o futuro, espacialmente dados.

Nesta modalidade, as ideias não propõem nem a ação política, nem o debate crítico, a
não ser na própria instância de poder, a universidade. Elas encontram, por isso, seu ser, na
própria ontologia do trabalho intelectual. Todavia, essa ontologia é indicativa da ação
política e do debate crítico, sem pretender substituí-los e necessariamente comprometer-se
com outras soluções que não as do próprio autor, que se coloca aqui como um intelectual,
que não propõe senão sua própria teleologia.

O ESPAÇO ONTOLÓGICO

Muitos geógrafos, hoje, estão tentando encontrar a via de solução teórica para o
trabalho que a geografia deve fazer agora. A geografia realizada até o presente ganhou o
estatuto, que deve e necessita ser reconhecido como amplamente alcançado, de uma dis­
ciplina científica, que deveria autodeterminar-se geografia descritiva ou geografia empírica.
O movimento contraditório do pensamento, ao relacioná-las, a primeira e a segunda,
defronta-se com um grande número de questões, sem que consiga resolvê-las. É que essa
geografia descritiva é um produto acabado, ao passo que a geografia teórica está apenas
surgindo.

Uma contribuição importante da primeira é a ampla pesquisa que realizou no


âmbito dos trabalhos sobre espaço absoluto. Os textos recentes tratam do espaço relativo.
Mas esses trabalhos geralmente não contêm discussões teóricas. Além disso, põe-se o
problema do espaço relacional.

Diz D. Harvey: "Há outro sentido, em relação ao qual o espaço pode ser pensado
como relativo, e opto por chamá-lo espaço relacional — o espaço, tomado à maneira de

53
Leibniz, como estando contido “os objetos, no sentido de que um objeto existe, apenas e
somente, se contém e representa dentro de si relações com outros objetos” (p. 13).

A proposição de D. Harvey é importante naquilo que representa a possibilidade de


superação da dicotomia espaço absoluto versus espaço relativo. É importante também
porque ultrapassa a consideração do espaço absoluto como solução filosoficamente de
caráter idealista. Isto é, o espaço absoluto de Harvey tem existência real, objetiva e
material.

No entanto, essa solução apresenta um. problema, ou seja, o espaço não se põe
como ser. A solução no que diz respeito ao mo-'vimento do espaço é remetida à prática
humana, que valida a questão da ação política e do debate crítico, mas não resolve o
problema teórico.

A solução é racionalista, naquilo em que provoca o aparecimen-_to de sua


contrapartida, o empirismo. A busca de um caminho à solução deve passar pela tentativa
de resolver a superação da contradição que se põe. Harvey não o faz. Diz ele: "Até aqui
lidamos com totalidades e estruturas como se fossem sinónimos e falhamos em considerar
como as totalidades e estruturas devam ser definidas." Contudo, reconhece que "..
.estruturas distintas existem na totalidade e (...) essas estruturas podem ser diferenciadas
umas das outras" (p. 290).

Relacionando Marx e Piaget, Harvey caracteriza o primeiro como um "estruturalista


operacional". Não sei se essa não é a posição do próprio Harvey afinal. Porque não fica
claro se a estrutura é um componente ideológico ou um atributo do objeto.

Lacoste diz o seguinte: "Apreender a espacialidade diferencial e procurar


"estruturá-la é substituir uma representação do mundo feita de dados e de demarcações
evidentes por uma representação de mundo 'construída' pela combinação de conjuntos
espaciais que se formam intelectualmente e que constituem instrumentos diferenciais de
apreensão progressiva das múltiplas formas da 'realidade'" (p. 121).

Enquanto Harvey lida com total idades e estruturas e não resolve o impasse,

54
Lacoste assume a estrutura como objeto. Em relação à questão de se estrutura é um
componente ideológico ou um atributo do objeto, apresenta, em primeiro lugar, a questão
do observador, ou, como diz, se trata de apreender o real. Esse real é espaciali-dade
diferencial que deve ser estruturada; a partir dessa postura, Lacoste chega à conclusão de
que fazer isso é substituir o empirismo ("uma representação do mundo feita de dados e de
demarcações evidentes") pelo racionalismo ("uma representação do mundo 'construída' ");
essa construção se dá por "combinação" de "conjuntos espaciais"; os "conjuntos espaciais" se
forniam intelectualmente; esses "conjuntos espaciais" constituem "instrumentos diferenciais";
a "apreensão progressiva" do objeto mune-se, então, de instrumentos — os "conjuntos
espaciais" teóricos; o objeto são as "múltiplas formas da 'realidade' — o objeto é múltiplo e
apresenta-se como forma, que é manifestação da 'realidade'.

Ë clara a crítica ao empirismo e a defesa da posição racionalista. Mas por um


caminho diferente do de Harvey. Note-se que Harvey assume a dialética e o método de
Marx; Lacoste trabalha com uma modalidade de estruturalismo que se qualifica como
"estrutura da espacialidade diferencial". O que ambos têm em comum é a preocupação
com a especificidade do objeto: Harvey fala em "estruturas distintas", que podem ser
"diferenciadas umas das outras"; Lacoste fala em "conjuntos espaciais", mentais, que são
o meio para a apreensão progressiva do objeto, que é múltiplo e apresenta-se ao ob­
servador como forma, e esta como maneira de ser da 'realidade'.

A contribuição de Lacoste, que julgo importante, é a desmistifi-cação do


reducionismo geográfico: o todo é, desde logo, complexo. Essa complexidade é, então,
desdobrada analiticamente, no discurso, através de uma solução estrutural que se apoia nos
termos espacialidade diferencial, representação do mundo, combinação, conjuntos
espaciais, instrumentos diferenciais e formas.

No entanto, o espaço se põe como ser, mas por uma via epistemo-lógica; a questão,
de simples passa a ser complexa, mas o todo é preservado por um recurso tradicional da
geografia francesa: a noção de combinação. O todo não o é como tal, mas resulta de um
agrupamento.

55
A solução é, por isso, uma proposição metodológica que remete ao fazer e,
portanto, ao empirismo: cabe à prática intelectual resolver a questão. Daí que, a pergunta: a
estrutura é um componente ideológico ou um atributo do objeto? fica sem resposta, ou
seja, só a prática humana a resolve em Harvey, e só a prática intelectual a resolve, em
Lacoste.

Uma objeção importante às caracterizações de Harvey e Lacoste a propósito do


espaço é a de que elas dizem respeito a uma posição, que pode ser considerada como
resultado de um ponto de vista relativo ao lugar de observação: os Estados Unidos e a
Europa. Qual poderia ser o ponto de vista do Terceiro Mundo?

Para Milton Santos, que estudou a questão, o espaço se põe como "totalidade e
estrutura interna". Como diz: "A natureza dessa nova forma de totalização correspondente
à era da tecnologia e das multinacionais exige que o quadro nacional seja tomado como a
escala viável dessa totalidade e dá um lugar particular ao valor da estrutura interna,
concreta, de cada país. É através dessa estrutura interna concreta que os chamados valores
mundiais se exprimem ao nível de cada classe social, de cada lugar, de cada cidadão, que é
o que conta" (p. 171).

Aqui, a estrutura não é nem um componente ideológico, nem um atributo do


objeto. Desde logo, a questão se põe de modo diverso. É que Milton trabalha com uma
teoria do valor normativa: é quando diz que "a natureza dessa nova forma de totalização"
(tecnologia e multinacionais) exige uma escala ("o quadro nacional"). Por isso, põe-se a
questão da especificidade da escala, especificidade essa que recebe um atributo de valor. Ou
seja, "a natureza dessa nova forma de totalização", "dá um lugar particular ao valor da
estrutura interna, concreta, de cada país". Então, o espaço age valorativa-mente sobre o
espaço e o sobredetermina fenomenologicamente, vale dizer, pelo ângulo da percepção. A
essa teoria do valor psicológico acrescenta-se uma dimensão diferente: não é que o lugar
tenha um "valor em si" (absoluto); mas "é através dessa estrutura interna concreta que os
chamados valores mundiais se exprimem". Há, então, uma teoria do valor, psicológica,
que se exprime através de uma estrutura interna ("concreta, de cada país") objetiva; esta
objetivi-dade é representada pela classe social, pelo lugar e pelo cidadão; o concreto se

56
exprime como instâncias (níveis), que são esses: a classe, o lugar, o cidadão; um dado
social, um dado geográfico e um dado político. A unidade do argumento é sistémica e
pode ser representada na sequência: valores mundiais (input), estrutura interna concreta
(quadro nacional) (processamento), e classe, lugar, cidadão (output). O feedback,
representado pêlos níveis classe, lugar, cidadão, influindo sobre os valores mundiais,
realimenta o sistema.

A solução de Milton Santos implica em uma abordagem que com-bjna economia


política, geografia, fenomenologia, e análise sistémica. Há, aqui, uma estrutura dinâmica de
sentido diverso do das soluções de Harvey e Lacoste. Santos lida com "totalidade e
estrutura interna". O todo aparece como sistema dinâmico, ou em funcionamento, ou em
movimento. Seu ser é a determinação interna do económico, do político, do geográfico e
do psicológico. Objetiva-mente, o todo, o sistema, é envolvente, e o observador sabe que
sua objetividade é produzida e reproduzida pela "era da tecnologia e das multinacionais",
que engloba todo o universo capitalista e se estende aos espaços socialista e Terceiro
Mundo (países subdesenvolvidos). A realidade mundial apresenta, como dado, a nação, o
"quadro nacional", como estrutura interna, que é o meio de expressão dos níveis classe,
lugar, cidadão. O conhecimento resultante é uma modalidade específica de estruturalismo,
que apresenta a possibilidade de tratamento de muitas variáveis a um só tempo. No caso, a
análise sistémica é uma análise geoeconômico-político-feno-menológica. A posição de
Milton, aqui, amplia a discussão de Harvey e Lacoste, quando sugere a noção de
"estruturalismo sistémico. O "estruturalismo sistémico" torna irrelevante a questão de se a
estrutura é uma ideologia ou se é um atributo do objeto.

Minha posição em relação às questões apresentadas não implica em negação das


soluções encontradas. Nesta auto-avaliação crítica preocupa-me a afirmação de Harvey de
que o método de Marx propõe que as soluções sejam tomadas como problemas e estes
como soluções. Examinando as proposições anteriores, encontro lugar para a afirmação de
minha problemática. Digo: "Isto quer dizer que cada geógrafo mantém a tradição da
ciência de síntese, mas termina por abordar apenas uma parte do todo. O possível é, então,
a construção da subtotalidade" (p. 6).

57
A ideia de subtotalidade é uma transposição, para a dialética, do problema do todo
e partes do estruturalismo. É fácil compreender que, tratando do conhecimento em seu
conjunto, a ideia de subtotalidade pode justificar a existência de qualquer conhecimento es­
pecífico: em meu caso, da geografia.

Meu ponto de partida é o espaço relacional de Harvey, mas tendo corno ponto de
referência a teoria das mônadas de Leibniz. Por que a tomo? Porque vejo a geografia como
uma ciência que tem no espaço-superfície da terra seu objeto. O espaço é o fundamento de
meu racionalismo, quando o afirmo como categoria que contém o lugar, e este é expressão
da área, da região, do território. A superfície da terra é o fundamento de meu empirismo,
quando a tomo como manifestação concreta sensível do lugar, enquanto céus, rios,
montanhas, planícies, cidades, portos, populações etc. A teoria das mô-nadas identifica as
categorias e conceitos geográficos e os mostra à percepção na superfície da terra, como
lugar em si e lugar de ocorrência e manifestação.

A dualidade "razão pura" — "razão prática", de Kant, permite que se coloque o


problema da explicação, superando a tipologia implícita na proposição de Leibniz.

A dialética de Hegel me dá condições para entender que o território (tese) é a


afirmação, que leva à sua negação como região (antítese), contradição essa que é
superada enquanto área (síntese). Então, uma dialética do lugar e, por isso, uma dialética
do espaço, do qual tomamos consciência e que, no movimento do real, permite resolver os
problemas que nos coloca.

De Marx tomo a dialética materialista e o materialismo histórico, que me dão a


dimensão da materialidade do espaço e da presença" nele da história e, por isso, de
categorias como o tempo geográfico e o tempo histórico.

De Windelband retenho a noção de ciências idiográficas e nomo-téticas, que deve


encontrar solução no âmbito da geografia.

De Wittgenstein retenho os recursos metodológicos da filosofia analítica, como


instrumental importante para entender a epistemologia.

58
Da fenomenologia tomo ajíeoria da percepção e a teoria do fenómeno em geral.

Do existencialiízma baseio-me, principalmente, na questão do sujeito e objeto


existenciais.

Finalmente, encontro em Althusser as noções de estrutura e sobre determinação, mas


separando o positivista do filósofo dialético.

Não há elitismo, na posição. Essa teoria do conhecimento está se tornando


necessária.

Não há, também, ecletismo, porque não há mistura nem arbitrariedade no tomar
dessas posições elementos para a análise, articulando-os numa ontologia especial. Por isso,
a análise de que lanço mão é, basicamente, a análise ontológica. É por isso que, aos
problemas aqui apresentados, em Harvey, Lacoste e Santos, gosta ria de acrescentar o
seguinte: de que natureza são as relações possíveis, ao nível do objeto e do método? É o que
pesquiso atualmente.

Não há, na minha posição, a tentativa de lutar contra o raciona-lismo, ou contra o


empirismo, embora na minha práxis intelectual tenha que considerar essa problemática, na
medida em que o movimento geográfico pende, ora para uma posição, ora para outra. Mi­
nha preocupação é, lançando mão dos fundamentos enunciados e, talvez, de outros —
tendo como referência o objeto geográfico — encontrar uma solução não sistémica para a
contradição. Por isso, trabalho com ontologia. Mas subtotalidade não é sinónimo de sub­
sistema. Esclareça-se que nada tenho a opor à teoria geral dos sistemas, enquanto ao que é,
ou seja, uma teoria, entre outras.

A questão crítica, que se coloca em relação à proposição de subtotalidade para a


geografia, é o problema das relações e de sua natureza. Não me refiro às relações homem-
meio ou homem-natureza, mas ao conjunto das relações espaciais, naturais e sociais. Por
isso, a questão que se põe, como pré-requisito, e que ainda não está respondida é: o que é o
espaço?

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Se o espaço é tomado como dicotômico, muitas soluções são possíveis: há tantos
espaços quantas são as abordagens. Se o espaço é tomado como contendo em si a
contradição, apenas duas soluções são possíveis: a monista e a pluralista. A solução
monista implica na consideração do espaço como uma única substância, irredutível a
qualquer outro aspecto do real. A solução pluralista o toma como sendo inteiramente
articulado por seus elementos componentes. Discuto, aqui, apenas esta segunda posição.

Não se trata de apresentar uma solução de "laboratório". O que faço é lançar mão
do fundamento de uma proposição. Parto da crítica da ideia — tomada unilateralmente —
de que “os corpos ocupam lugar no espaço”. Por isso, proponho (desenvolvendo as~cõrïiéqüên-
cias da posição de Harvey), que tanto os corpos como o lugar vazio constituem
rnanifestações da materialidade do espaço. Na medida em que a demonstração não se propõe, a
questão se põe como posição de princípio. Por isso, o tema substantivo passa a ser: teoria do
espaço? ou, teoria do lugar?

Não há necessidade de defender a existência de teorias do espaço. O que tem sido


contraditado é a possibilidade da existência de uma teoria do lugar, porque lugar não seria
uma categoria do entendimento. Excluo, desde logo, a ideia de que a proposição de "gê­
neros de vida", de La Blache, por exemplo, seja uma teoria do lugar. Como diz
Hartshorne: "Se as variações entre as diversas cate gorias de fenómenos, referidas pêlos
exploradores e pêlos viajantes acerca de muitas áreas do globo (. . .), não mostrassem
possuir qualquer relação mútua além da que oferece a localização comum, a geografia
seria pouco mais do que um catálogo organizado ou uma enciclopédia de fatos sobre
diversos países" (p. 18).

Uma teoria do lugar, significativa para o homem, deveria ser uma teoria do valor
em geografia. Por isso, defendo, também, como quës^ tão de princípio, a ser demonstrada,
a existência de um modo de produção natural e a existência do trabalho natural; em outras
palavras, uma dialética da natureza, além de uma dialética do social — que é admitida sem
muita dificuldade — que seja o fundamento da ideia de Marx do que deixa implícito com
a noção de primeira natureza. É um pressuposto necessário para mudar a ênfase da ideia
de ocupação do espaço para o conceito de relações no e do espaço. Não que a primeira

60
não ocorra, mas sua consideração extrapola o objeto da geografia. Por isso, é necessário
tomar o espaço em si como ocorrência material, como espaço absoluto, relativo e
relacional. Por este caminho a geografia deixa de ser ape-nas uma ciência auxiliar e
externa a outras ciências.

Penso que as ideias de subtotalidade e de materialidade do espaço, como foram


expostas, representam questões a serem debatidas. E elas levam à questão, na solução
pluralista, da existência de um espaço interno e de um espaço externo. Do ponto de vista
hege-liano, o monismo se põe como tese, o pluralismo como antítese. Não sei qual a
síntese. Talvez não seja possível discuti-la, sem a consideração da questão espaço e
movimento.

ESPAÇO E MOVIMENTO

Esta é uma questão bastante atual e, no plano do conhecimento, 1 vem sendo


discutida como dicotomia, ou contradição, como positk; vismo ou dialética.

Tomo, aqui, o exemplo da geografia social francesa.

O que entendo por positivismo, no caso, tem como ponto de apoio a ideia de que,
nos autores que vou mencionar, aparência e essência da realidade apresentam-se
separadas, apesar da discussão constante sobre forma: a paisagem. Além disso, suas
posições variam no tempo e em teoria do conhecimento: em linhas bastante gerais, os
clássicos preocuparam-se com o objeto; os modernos privilegiam o sujeito. Há, então, uma
separação também neste aspecto.

Comento, brevemente, essa separação em Vidal de La Blache, em Max. Sorre, em


Pierre George e em Paul Claval.

A separação em La Blache manifesta-se na dicotomia espaço e progresso, que tem


como referência o princípio da unidade terrestre.

61
A separação em Sorre parece como uma tentativa de relacionar espaço e equilíbrio
(ecologia). O equilíbrio é referido como equilíbrio instável. A unidade terrestre de La
Blache transforma-se na análise que fragmenta o espaço em geodésico, natural, humano,
político, económico e social.

Em Pierre George a separação assume a relação espaço e ação. A ação desenvolve-


se sobre uma base, a superfície da terra, que é u meio, no qual existe a comunidade
humana. As relações se dão em planos horizontais e verticais e são diversificadas na
tipologia.

Paul Claval estabelece uma separação entre espaço e percepção. A dicotomia


apresenta mais dó que a consciência subjetiva da fragmentação, ela se torna uma aguda
relação sujeito-paisagem, no conceito mais recente de entorno.

Apesar do predomínio, na geografia social francesa, dessa abordagem, essa mesma


geografia apresenta uma ruptura em sua unidade, quando se considera o caso de Elisée
Reclus.

Reclus, em sua obra Uhomme et Ia terre, afirma o seguinte: "Cada período na vida
de um povo corresponde a uma mudança em seu meio ambiente. São as desigualdades na
superfície do planeta que criam a diversidade na história humana. A vida reflete o meio
ambiente. A terra, o clima, a maneira de trabalhar, o tipo de alimentação, a raça, as relações
de parentesco e os sistemas de agrupamento social são dados fundamentais, que
desempenham seu papel e influem sobre a história de todo indivíduo" (p. 42).

Nessa proposição de Reclus são importantes as indicações de que: 1) há uma


correlação entre a existência de um povo no tempo e a modificação do meio ambiente; 2)
essa correlação é explicada como sendo o resultado da determinação das desigualdades do
globo, que geram a diversidade da história humana; 3) o solo, o clima, a forma de trabalho,
a alimentação, a raça, o parentesco, os sistemas de agrupamento social influenciam a
história dos indivíduos.

Essa proposta não teve continuidade. São muito recentes as discussões sobre

62
geografia e dialética. Modo de produção é uma categoria ausente do raciocínio geográfico.
Começam a surgir em alguns trabalhos uma resposta a essas questões. É o caso, por
exemplo, de James Anderson, quando debate ideologia e geografia. Não obstante, a questão
é colocada em termos gerais e não se chega à particularidade.

Considere-se que, na proposição de Reclus, o espaço determina ontologicamente o


real. Mas, nas contribuições recentes, com exceção talvez apenas de Harvey, já citado, não
há uma formulação nesse sentido. O problema é remetido à prática, entendida como ação
política, ou ao discurso de denúncia. Em outras palavras, as questões teóricas têm também
que ter respostas teóricas para que a imanência do real se ponha sem separação de
pensamento e ação. Por isso a questão da particularidade é importante.

O ESPAÇO DA PARTICULARIDADE

Põe-se, por isso, o espaço particular.

A situação apresentã~uma complexidade talvez específica: substitui-se a discussão


das disparidades regionais pela discussão sobre as estruturas, apenas transpondo a
problemática, sem solucioná-la.

Tomo, aqui, os grandes estudos sobre a realidade brasileira geográfica que


apresentam pontos de apoio importantes, para discussão, em livros de franceses sobre o
Brasil, em estudos nossos de grandes regiões e estudos sistemáticos especializados.

Considero, como exemplo, alguns deles.

É importante verificar que todos tomam o Brasil como particularidade, mas o


discutem como singularidade: lógica, nos franceses, empírica, em nosso caso, nos exemplos
escolhidos.

É preciso, então, dizer alguma coisa sobre a particularidade.

Baseio-me nas afirmações teórico-metodológicas G. Lukács, que estudou o assunto.

63
Diz ele, inicialmente: "A verdadeira ciência toma da própria realidade as condições
estruturais e suas transformações históricas, e quando formula leis, estas abrangem, sem
dúvida, a universalidade do processo, mas de modo que pode sempre baixar dessa
legalidade até os fatos singulares da vida, embora, certamente, isso ocorra frequentemente
através de muitas mediações. Esta é precisamente a dialética, concretamente realizada, do
universal, do particular e do singular" (p. 98).

Falando do procedimento de Marx, afirma: "Uma investigação concreta desse tipo


mostra sempre e em todos os casos a relativiza-ção dialética do universal e do particular;
sob determinadas situações concretas especifica-se o universal, que entra em uma deter­
minada relação com o particular; mas também pode ocorrer que o universal absorva, ou
destrua as particularidades, ou que apareça em interacão com particularidades novas, ou que
algo anteriormente particular se desenvolva até converter-se em uma generalidade, e vice-
versa" (p. 101).

Lukács cita considerações de Marx a respeito da divisão no processo produtivo:


"Tomando como referência o trabalho, pode caracterizar-se a divisão da produção social em
seus grandes géneros, a agricultura, a indústria etc., como divisão do trabalho em geral; a
especificação desses géneros da produção em tipos e subtipos, como divisão do trabalho em
particular; e a divisão do trabalho dentro de uma oficina como divisão do trabalho na
singularidade" (p. 105).

Essa relação dialética tem como referência o modo de produção, sem o que ela
seria apenas um exercício de lógica formal.

Para Lukács, "A singularidade tem uma grande riqueza de determinações, quando é
o elo final de uma cadeia de conhecimentos que conduz de legalidades descobertas, de
universalidades concretas, à singularidade como meta do processo de pensamento" (p. 107).

Mais adiante, afirma: "O singular, precisamente como singular, é conhecido de modo
seguro e verdadeiro, tanto quanto mais rica e profundamente se descobrem suas mediações
com o universal e o particular. Há, evidentemente, casos nos quais o conhecimento do
singular, mediante aspectos isolados e puramente abstratos, é possível e suficiente; mas,

64
nesses casos, trata-se, geralmente, mais de um reconhecimento (no sentido de
identificação) do que de um conhecimento" (p. 116).

A questão se põe, então, como segue: "O singular não existe senão na conexão que
conduz ao universal. O universal não existe senão no singular, através do singular. Todo
singular é universal (de um modo ou de outro). Todo universal constitui uma partícula, ou
um aspecto, ou a essência do singular. Todo universal abrange os objetos singulares de um
modo meramente aproximado" (p. 118).

Por isso, "O movimento do singular ao universal, e vice-versa, está sempre


mediado pelo particular; é um fenómeno real de mediação, tanto na realidade objetiva,
como no pensamento, que reflete de modo aproximadamente adequado essa realidade. Mas
é um meio de mediação, de natureza muito peculiar" (p. 121).

Para Lukács, "a particularidade desempenha, ante o singular, uma relativa


universalidade, e uma relativa singularidade, com respeito ao universal" (p. 126). Mas "os
momentos particulares mediadores têm, frequentemente, na natureza como na sociedade
um ser de contornos relativamente firmes, uma figura própria" (p. 127).

Essas citações são suficientes para a compreensão de que a particularidade é um


momento de um processo, que chega, com frequência, a possuir "uma figura própria", um
contorno que se identifica no processo de movimento do real.

Lukács fala da história e da sociedade. Como ocorre o problema em geografia?

Lambert, em Os Dois Brasis, estuda uma particularidade, mas o resultado é a


consideração de uma singularidade abstraía. Cito esse autor que, embora não geógrafo,
desenvolveu um trabalho que poderia ser classificado como de sociogeografia. Além disso,
sua contribuição marcou a obra de outros autores, como a de Monbeig.

Diz Lambert que "Os brasileiros estão divididos em dois sistemas de organização
económica e social, diferentes nos níveis como nos métodos de vida. Essas duas sociedades
não evoluíram no mesmo ritmo e não atingiram a mesma fase; não estão separadas por uma
diferença de natureza, mas por diferenças de idade. . . Observa-se, assim, dentro do próprio

65
Brasil, a mesma diferença, grandemente acentuada, entre país novo, próspero e em
constante transformação e sociedade velha, miserável e imóvel, que se nota no plano
internacional" (p. 101).

Mais além, caracteriza os "contrastes" (p. 101), entre a "cultura arcaica" e "uma
outra sociedade, muito mais móvel e evoluída" (p. 102); a diversidade observada abrange o
que chama de "Brasil arcaico" e "Brasil novo". (. . .) "Conquanto o país novo — continua
— e o país velho, colonial, tenham cada qual o seu domínio próprio — o primeiro no Sul e
o segundo no Nordeste — um e outro estão presentes por toda parte e indissoluvelmente
ligados." A isso, acrescenta, esclarecendo, a ideia de "diferenças de idade": "os dois Brasis
são igualmente brasileiros, mas estão separados por vários séculos" (p. 103).

Um dos Brasis apresenta "comunidades que não congregam senão um pequeno


número de indivíduos", unidos "pelas relações pessoais"; o outro "constitui uma vasta
sociedade, cujos membros estão ligados não por contactos pessoais, mas pelas
solidariedades in-diretas, e bem mais amplas, da divisão do trabalho e das instituições
políticas" (p. 120/1).

A natureza dos "contrastes" é que "o Brasil é ainda um país essencialmente


agrícola, um país, entretanto, que se industrializa dia a dia e que, em certas regiões, já
deixou de ser subdesenvolvido" (p. 189).

Essa produção do raciocínio singular abstraio reaparece em Mon-beig, no seu


trabalho O Brasil. Por isso, diz que "Procurar uma fórmula-chave para definição do Brasil
moderno seria uma ginástica intelectual. Mais vale reconhecer aquilo que lhe fez a
originalidade" (p. 7). Comparando o "moderno" com o "colonial", afirma: "Seria banal
recordar que este continente tropical é uma terra de contrastes. Tudo aqui se faz por meio
de bruscas mutações" (p. 8).

Enquanto Lambert examina uma realidade que lhe aparece como uma estrutura
simples, dualista, e estática, Monbeig preocupa-se com o desenvolvimento dessa estrutura:

66
"Progressivamente, os homens completam a conquista pacífica da terra brasileira, fazendo
surgir regiões humanas singularmente mais complexas do que os grandes conjuntos
naturais" (p. 39). A ideia de unidade na diversidade, presente em Lambert, é retomada aqui
de outra maneira: "As regiões todas participam de igual estrutura económica de origem co­
lonial e as estruturas sociais, legado da sociedade do tempo dos plantadores, são, em toda
parte, da mesma essência. É aí que importa procurar os fundamentos da sociedade
brasileira. Aí, também, é que se acha a fonte de seus problemas" (p. 66). Por isso, os
problemas atuais da população "decorrem — diz ele — de uma distribuição muito desigual
dos habitantes pelo território e dos que são suscitados pela expansão demográfica e pelo
futuro da infância" (p. 83). A economia moderna apresenta dinamismo e crescimento
desiguais "em todas as regiões do país" (p. 84).

Retomando a ideia de Lambert, sobre a natureza do país, Monbeig afirma:


"Elemento motriz da economia nacional, a agricultura não conseguiu ainda adaptar-se às
necessidades do mundo moderno. Um velho Brasil agrícola se opõe a um novo Brasil
agrícola" (...) (p. 101).

Depois de discorrer sobre o "Surto e limites da indústria", Monbeig conclui: "Uma


enorme distância separa dois Brasis, caracterizados por duas civilizações diferentes: o
Brasil das metrópoles e o Brasil rural (. . .) Entre os dois Brasis, os liames são de
dependência e de dominação. O Brasil evoluído age menos como um pólo de de­
senvolvimento do que como um pólo de atração. A diferença se aprofunda entre regiões de
atividades diversificadas e lugares atrasados, entre as grandes cidades e seu arredores e o
sertão, do mesmo modo que se alarga o fosso entre os países altamente industrializados,
com elevado nível de vida, e o Terceiro Mundo" (p. 127).

Tanto Lambert, como Monbeig, podem ser incluídos entre os autores que discutem a
realidade em termos de disparidades regionais. Essas disparidades regionais, contudo, são
tomadas apenas em sua singularidade abstraía, ou seja, é feita a descrição da paisagem ob­
servada, em termos de sua aparência.

Lambert parte da ideia de dualismo, para fazer essa caracterização: Monbeig rejeita

67
qualquer ideia orientadora da análise e, como Lambert, preocupa-se com a originalidade. Essa
singularidade é um conhecimento verdadeiro naquilo que se trata de constatação fatual.
Contudo, conforme citação de Hartshone, feita anteriormente, essa geografia deve
ultrapassar o que o leigo pode constatar. Para que isso seja possível, é necessário
considerar a particularidade concreta, como mediação dos espaços relacional e absoluto
concretos, em sua expressão teórica.

Em Geografia do Brasil, do IBGE, as disparidades são tratadas como


"diferenciações regionais e seus problemas" (p. VII, vol. I), caracterizando-se a análise pela
descrição das variações das grandes regiões do país. Aqui, também, lida-se com a
singularidade, embora se chegue "ao nível do estabelecimento, ou quase, de sistemas e
configurações espaciais. Trata-se de aplicação de uma teoria.

O estudo sistemático mais abrangente, publicado sobre o país por geógrafos, é o


"Brasil a terra e o homem". Aqui, a singularidade apresenta-se como um conjunto que
mantém, dentro de si, as características simultâneas de metrópole e colónias (p. 27).

Em Lambert, uma caracterização estrutural simples; em Monbeig uma caracterização


estrutural complexa; na obra do IBGE a constatação estrutural sistémica em processo; em
Brasil, a terra e o homem a descrição da relação centro-periferia como componente de uma
estrutura analisada sistematicamente.

Repõe-se, então, a questão: a estrutura é um componente ideológico da análise, ou


um atributo do objeto? O problema se põe novamente porque são possíveis os particulares
e os universais abstra-tos. O que significa que análises de particulares e universais con­
cretos poderiam também deixar em aberto a questão.

Discuto, então, nesta auto-avaliação crítica, algumas questões relativas à


subtotalidade. O primeiro ponto a considerar é o problema do real como funcionamento e
como movimento.

O funcionamento do real é sua estrutura. A afirmação significa que a contradição é,

68
como diz Althusser, "complexamente-estruturalmente-desigualmente-determinada" (p. 185).
A sobredeterminação implica na consideração da ação, que se sabe determinada e que se
movimenta na autoconsciência da totalidade. Por isso, também da subtotalidade. A relação
é, então, subjetiva-objetiva, ao mesmo tempo, de tal modo que a separação tradicional entre
sujeito e objeto transforma-se em uma modalidade específica de autodeterminação
consciente e não consciente. O ser é sujeito e objeto ao mesmo tempo.

A "era das tecnologias e das multinacionais", a que se refere Milton Santos, está
presente nessa teoria do conhecimento, no âmbito do espaço produtor e do espaço
produzido.

Para Sartre, que examinou a questão em seu início de configuração, "compreender


é modificar-se, ir além de si mesmo" (p. 20).

Desenvolvendo uma teoria do sujeito, diz: "A práxis é uma passagem do objetivo
ao objetivo pela interiorização; o projeto, como superação subjetiva da objetividade em
direção à objetividade, tenso entre as condições objetivas do meio e as estruturas objetivas
do campo dos possíveis, representa em si mesmo a unidade em movimento da subjetividade e
da objetividade, estas determinações cardeais da atividade. O subjetivo aparece, então, como um
momento necessário do processo objetivo" (p. 81).

Por isso, "o homem é, para si mesmo e para os outros, um ser significante, já que
nunca se pode compreender o menor de seus gestos, sem superar o presente puro e explicá-
lo pelo futuro" (p. 123). Então, "as significações vêm do homem e de seu projeto, mas se
inscrevem por toda parte nas coisas e na ordem das coisas. Tudo, a todo instante, é sempre
significante e as significações revelam-nos homens e relações entre os homens através das
estruturas de nossa sociedade. Mas estas significações não nos aparecem senão na medida
em que nós mesmos somos significantes" (p. 126). Daí que "o homem não é nem
significante nem significado, mas ao mesmo tempo (. . .) significado-significante e
significante-significado" (p. 133).

Qual a consequência?

69
É que, por isso, o movimento da estrutura se põe, ao mesmo tempo, como estrutura
em movimento. Isto quer dizer que o espaço é (empo do espaço c o tempo é espaço do
tempo. Mas esse es-paço-tempo é um espaço-tempo alheio — para si — ou um espaço-
tempo exterior — para outro. A ação consciente torna-se sobrecons-ciente e se põe como
referência.

O pensamento, como movimento da estrutura, ou estrutura em movimento, ou,


ainda, como movimento-estrutura, ganha concretude na materialidade da ideia. A ideia
espacializa-se. Daí que a ideia espacializada passa a sobrepor-se à consciência para-si e
para-outro.

Surge a possibilidade da teoria, na ontologia do espaço.

Uma primeira possibilidade é a geoeconomia. Trata-se de construir uma


explicação, ao mesmo tempo, geográfica e económica. O fundamento do conhecimento é,
então, aJeoria.do .valor,,.que contém o natural e o social como dados espaciais, em sua
expressão de uso e de troca.

Outra possibilidade é a geoeconomia política. Nesse caso, o natural e o social são


tomados como dados espaciais, em sua expressão de uso e de troca, enquanto fundamento
da decisão política.

Uma solução não geográfica, mas de uso atualmente frequente, é a relação


economia política e espaço, com duas variantes: uma que co*ncebe a espacialização da
teoria do valor de Marx; outra, que acrescenta o espaço como dimensão da teoria marxista.

Entendo por geografia teórica, na solução pluralista, a disciplina capax de


desenvolver o estudo dessas possibilidades, e de outras, que não são pensadas aqui, neste
texto.

A pesquisa nessa direcão deve, não obstante, basear-se, inicialmente, no estudo de


segmentos pequenos da realidade, de tal modo que a questão de ideologia e atributo se
ponha como teoria em elaboração, no âmbito do trabalho intelectual. Coloca-se, então, a
legalidade da geografia teórica.

70
Não quero terminar a exposição desta auto-avaliacão crítica sem explicitar o
conteúdo deste escrito: o desenvolvimento sério do trabalho teórico tem sido obstaculizado
pelo veloz crescimento da transformação do mundo realizado em nossos dias, que afeta o
próprio resultado desse trabalho, quando é possível realizá-lo. A solução pluralista é uma
resposta a um mundo também pluralista pela incapacidade da teoria de dar conta de sua
unidade. Por isso, o empirismo tecnológico recupera sempre seu terreno, até antecipando-se
à capacidade de compreensão do real. Abre-se o caminho a novas modalidades de
irracionalismo. Daí que se põe como dado a própria necessidade da teoria, que orienta a
ação humana. As ideias aqui expostas têm como finalidade fundar a legalidade do trabalho
intelectual não alienado e cada vez mais socialmente necessário no presente. Como esse
trabalho se põe como produção da teoria, ele se coloca, ao mesmo tempo, como projeto, e
como consciência do existir, que autodetermina a significacão-significado. Por isso,
legaliza-se a teleologia da ideia que se produz como ideia, abrindo caminho para a práxis
específica da inteligência realizando o que o modo de produção coloca ante ela como
necessidade. Põe-se, então, a própria necessidade da liberdade do trabalho intelectual não
alienado, sem o que a fetichização do produto positiva a consciência, empobrecendo-a e, com
isso, produzindo e reproduzindo a ideia pobre e a realidade pobre que fundamenta essa
ideia.

Referências bibliográficas

ALTHUSSER, L. Análise Crítica da Teoria Marxista. Rio, Zahar 1967. Anderson J.


Ideologia em Geografia: uma Introdução. Seleção de Textos 3. S. Paulo, A.G.B. 1977.

AZEVEDO, A. (direção de). Brasil, a Terra e o Homem. Vol. I e II S. Paulo, Companhia


Editora Nacional, 1968-1970. Hartshorne. R. Propósitos e Natureza da Geografia. S.
Paulo, HU-CITEC-EDUSP, 1978.

HARVEY, D. Social Justice and the City. Londres, Edward Arnold, 1976. IBGE.
Geografia do Brasil. Vol. I-V. Rio, Centro de Serviços Gráficos, 1977.

71
LACOSTE, Y. A Geografia Serve Antes de Mais Nada para Fazer a Guerra. Lisboa,
Iniciativas Editoriais, 1977.

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Claval, P. Evolucïón de Ia geografia humana. Barcelona, Oikos-Tau, 1905-1908. Santos
M. Por uma Geografia Nova. S. Paulo, HUCITEC-EDUSP, 1978.

SILVA, A. C. da. O Espaço Fora do Lugar. S. Paulo, HUCITEC, 1978. Silva, A. C. da.
Cinco Paralelos e Um Meridiano (Ensaios de Geografia Teórica). Original inédito. São
Paulo, 1979.

A GEOGRAFIA ESTÁ EM CRISE. VIVA A GEOGRAFIA!

Carlos Walter Porto Gonçalves

Muita tinta se tem gasto para discutir o que seria uma geografia científica. Esta
busca de cientificidade é, até certo ponto, um esforço de legitimação do intelectual perante a
sociedade como um todo. O ritual que envolve o trabalho intelectual tem, portanto, um ca-
ráter de busca de legitimidade que dá ao exercício do pensar o resal uma dinâmica
específica.

Todavia, a produção de conhecimento não se dá fora de um contexto histórico-


social, onde uma série de linhas de forças se entrechocam na realidade; relações de forças
essas das quais o trabalho intelectual tem que dar conta. Através dessas observações,
queremos deixar claro que a ambicionada cientificidade, que é o modo específico de
legitimação do trabalho intelectual, é relativa na própria medida em que o real é um
movimento que se faz através de contradições que, por sua vez, atravessam a própria
prática do intelectual.

72
Qualquer esforço no sentido de desvendar a natureza da crise de um determinado
segmento do espaço do saber deve, portanto, partir da premissa de que o trabalho
intelectual, embora possuindo uma dinâmica específica, sofre influência do próprio
contexto histórico que constitui a materialidade do trabalho científico.

Neste ensaio, o que pretendemos fazer é exatamente lançar ao debate algumas


ideias acerca de natureza da crise da geografia, tomando por base a prática dos geógrafos
pensada historicamente.

A CRISE DA GEOGRAFIA E A GEOGRAFIA DA CRISE

Neste momento se discutem os impasses gerados pelo próprio pro-jeto da geografia


enquanto um segmento do saber científico capaz de dar conta, compreender e explicar,
enfim, os problemas concretos que se inscrevem no espaço geográfico em que vivemos:
poluição; "desequilíbrio" — desigualdades regionais e sociais; as guerras de independência-
conquista neocoloniais; redução do espaço geográfico sob o controle do capitalismo
imperialista-expansão do socialismo, etc. São essas algumas das evidências de uma crise
que se materializa em espaços definidos e para a qual os geógrafos teriam que dar a sua
resposta — Uma Geografia da Crise. Na medida em que hesitam, não reformulando uma
base teórica de há muito envelhecida e não assumem, portanto, uma posição crítica, os
geógrafos, em geral, deixam de lado a geografia da crise e são levados de roldão pela crise
da geografia. E isto porque os fatos são teimosos e estão aí a exigir de nós uma
compreensão que possa efetivamente nortear uma prática que leve à superação desses
problemas. Se as teorias dos geógrafos não explicam e não compreendem os fatos, pior
para as teorias!

Não pretendemos com essas afirmações demonstrar a inutilidade da geografia.


Apenas alertamos para o fato de que essa alienação da maioria dos geógrafos tem ocorrido
exatamente num momento em que cada vez mais se acentuam as referências ao espaço, em

73
que este é discutido e divulgado, exigindo de nós um posicionamento. Está em questão a
cientificidade da geografia e algumas colocações têm de ser feitas para que seja legítima a
própria existência da geografia enquanto um segmento da divisão do trabalho científico. E
o problema que nos parece ser o crucial diz respeito à definição do solo teórico da
geografia, à determinação do seu objeto científico.

Embora não pretendamos esgotar o tema, devemos reconhecer que o que temos
apresentado à sociedade em que vivemos não tem sido capaz de levá-la à superação dos
seus problemas espaciais e que, de certa forma, temos sido os mistificadores dos reais
processos que governam a organização do espaço, fetichismo este que sob diversas
capas tem escondido o caráter histórico do espaço.

AS DIVERSAS "VISÕES" DA GEOGRAFIA OU A GEOGRAFIA DE ANTOLHOS

Os geógrafos elaboraram, desde o século passado, uma série de modos de abordar


a realidade, tanto do ponto de vista teórico como metodológico, que passaram a
denominar de "visões" ou "perspectivas" da geografia:

"... A visão espacial será expressa como um estudo de organizacão espacial,


proporcionando, desse modo, uma implicação de antropocentrismo; uma visão que
pode ser, por outro lado, levada ao ponto de pura geometria. A visão homem-terra ou
ecológica como que enfatizando as relações entre o homem e o seu meio ambiente natural
ou biológico. A terceira visão será expressa de várias maneiras: estudo de área, estudo
regional, inter-relações de área, corologia ou dljerenciação de área. Será I referida
também como sendo uma visão integrativa, uma vez que sua característica definitiva é a
sintetização de alcance relativamente amplo. Existe, obviamente, tanto superposição
quanto separação nestes três pontos de vista" (TAAFFE, 1975:6).

O que observamos nos diversos trabalhos que procuraram fazer uma história da
geografia é que essas "visões" sempre existiram, sendo que, em determinados momentos,
uma teria predominado sobre as demais. Neste eixo de abordagem são destacadas três fases:

74
1ª.) A "visão homem-terra" ou "ecológica" que teria sido predominante até a década
de 30, caracterizando bem esse período a ^abordagem determinista de Sumple e Huntington,
num primeiro momento, e a "visão ecológica" da Escola de Chicago e o estudo de "género
de vida" de La Blanche, num segundo momento.

2ª.) A "visão regional" ou "estudo de área" que firmaria posição a partir do clássico
trabalho de R. Hartshorne: The Nature of Geography (1939), estendendo-se até a primeira
metade da década de 50.

3ª.) A "visão espacial" que começa a se firmar a partir do libelo anti-hartshorneano


de Schaeffer (1953) e dos escritos de Ullman e que viria a se consolidar ria década de 60
com os escritos de Berry e de Harvey, para ficarmos somente com os exemplos dos norte-
americanos'e ingleses (TAAFFE, 1975).

Cremos não haver entre os geógrafos nenhuma polémica de fundo relativa a esta
periodização. O problema mais grave que vemos na historiografia da geografia é a tradição
historicista, evolucionista, que pouco ou nada nos esclarece sobre o problema do
desenvolvimento e da natureza das crises do pensamento geográfico. O fato é que ao se
limitar a dispor através do tempo a predominância de uma "visão" sobre as demais, num
determinado momento, pouco nos permite extrair acerca da natureza das mudanças que,
por exemplo, se deram nas décadas de 30 e de 50. Ou seja, a concepção comum entre
aqueles que se propõem a analisar a evolução do pensamento geográfico é a do caráter de
continuidade da história, o que, exatamente por isso, não abre espaço para pensar e analisar
as rupturas, as mudanças, as revoluções e contra-revoluções.

Ora, que tipo de problemas se apresentaram às "visões" hegemónicas nas décadas


de 30 e de 50, levando a essas mudanças de hegemonia? Eis aqui a pergunta fundamental
que se coloca se quisermos pensar a natureza das crises da geografia e para refletirmos
sobre novos horizontes teórico-metodológicos, pois se não percebermos a natureza da crise
que ora atravessamos, produziremos uma nova "visão" que correrá o risco de exercer
uma nova hegemonia não pêlos problemas que efetivamente coloca, mas porque
simplesmente será nova e produzirá novos modismos e novos papas muito bem instalados

75
nos altares das academias e instituições oficiais.

Ao mergulharmos na natureza das crises através das quais a geografia tem


caminhado, não podemos, como tem acontecido com a maior parte dos nossos
historiógrafos, deter-nos no plano das ideias (teorias) para explicar a sua própria evolução.
O que temos visto entre esses autores é uma concepção teleológica da história do
pensamento geográfico. Para nós, não é centrando a atenção simplesmente na cronologia
que poderemos dar conta da natureza das crises, mas, ao contrário, ou seja, procurando
compreender esses momentos cinzentos em que se realiza a passagem de hegemonia de
uma "visão" a outra, como, por exemplo, as décadas de 30 e 50, através da interpretação
dos problemas que se apresentaram às "visões" até então predominantes.

Como afirmamos no início deste ensaio, a produção científica, em que pese a sua
especificidade, não pode ser pensada fora do contexto histórico em que foi elaborada. Por
mais que queiramos expressar ou colocar o discurso científico como uma "visão" neutra e
acima de qualquer outro discurso, ele se inscreve naquilo que Marx chamou de
superestrutura. O discurso científico é uma aproximação do real efetivada por indivíduos
inscritos em relações sociais, que, no caso da sociedade de classes, é de onde emanam os
antagonismos através dos quais a história se move.

Com o advento do capitalismo, a atividade científica adquire um significado muito


particular, dada a própria natureza deste modo de produção que é a de transformar tudo em
mercadoria. Neste sentido, a própria força de trabalho é transformada em mercadoria,
incluindo-se aí a força de trabalho do cientista desprovido de meios próprios de produção.
Uma série de limitações daí decorrem com relação à produção do saber, limitações essas
que apresentarão variações de grau, segundo a correlação de forças em presença numa
determinada formação social capitalista.

A partir da crescente concentração dos meios de produção do conhecimento nas


mãos de algumas poucas corporações e do Estado, a tendência que observamos se faz no
sentido da monopolit zação do saber. Não é fortuito que a tecnocracia se afirme cada vez
mais e uma nova ideologia se consolide: o cientificismp. Isto porque sendo a acumulação

76
de capital, baseada na extração de mais-valia, o motor propulsor do modo capitalista de
produção, tem este a necessidade de estar munido dos conhecimentos que lhe permitam
uma forma superior de extrair valor excedente, qual seja, a mais-valia relativa.

A ciência adquire com o capitalismo os foros que possuía a ideologia religiosa sob
o feudalismo, não sendo fortuito, aliás, o fato de chamarmos os grandes sábios da
matemática, da física, da história ou da geografia de "papas". São os "papas" de um novo
tempo, de um modo de produção que laicizou o saber, porém, para protegê-los construiu
novos "templos" que são as novas academias de ensino e pesquisa. Este "novo" intelectual
se constitui numa correia de transmissão entre a superestrutura e a infra-estrutura,
procurando compreendê-la melhor para reproduzir a própria estrutura que o produziu.
António Gramici nos fornece a exata medida dessa situação ao dizer que

"Qualquer Estado tem um conteúdo ético, na medida em que uma de suas funções consiste em
elevar a grande massa da população a um certo nível cultural e moral, nível (ou tipo) que
corresponde à necessidade de desenvolver as forças produtivas e, portanto, aos interesses das
classes dominantes. Neste campo, a escola ( . . . ) e os tribunais ( . . . ) são setores da atividade
estatal essenciais: Mas, de fato, há uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades ditas
privadas que tendem no mesmo sentido e que compõem o aparelho de hegemonia política e
cultural das classes dominantes" (Macciocchi, 1977:150).

Deste modo, estamos procurando evidenciar o caráter histórico da produção


intelectual que se pretende científica e, obviamente, chamando a atenção para o fato de as
"corporações geográficas", tal e qual nos fala Armen Mamigoniam, constituírem-se em
aparelhos ideológicos, conforme procuraremos aprofundar mais adiante.

Jacques Rancière em Sobre a Teoria da Ideologia nos diz que "o saber só tem
existência institucional enquanto instrumento de dominação de uma classe". Isto nos permite
entender o porquê da "ausência" de certas "visões" na trajetória do pensamento geográfico
académico, um saber que, como nos diz Yves Lacoste, "serve antes de mais nada para fazer a
guerra" (Lacoste 1977).

Por outro lado, é preciso deixar claro que não se trata, como gostam de fazer os
mistificadores cientificistas, de propor uma distinção radical entre ciência e ideologia.
Também não se pretende operar com uma distinção muito cara aos stalinistas entre ciência

77
burguesa e ciência proletária. Trata-se, isto sim, de deixar bem evidente o caráter de
apropriação de classes do saber, do caráter de classe que atravessa a sua divulgação por
meio das instituições que, como vimos, "compõem o aparelho de hegemonia política e
cultural das classes dominantes". Esta colocação deve servir, ainda, de alerta face a um
certo tipo de marxismo "domesticado", despo-litizado, que começa a grassar nos meios
académicos da geografia. - Essas -observações, em suma, pretendem enfatizar que a pro­
dução do saber não pode ser compreendida sem pensarmos a totalidade social no qual está
inserida. E é tendo sempre em mente essas considerações que nos propomos a analisar as
crises de hege-jnonia através das quais se tem movido o pensamento geográfico.
Antecipando um pouco o eixo de nossa análise, avançamos a concepção de que tais crises
de hegemonia não constituem somente crises teóricas e metodológicas de uma determinada
"visão" da geografia, mas sim crises que estariam subjacentes a essas questões; para o que
uma abordagem epistemológica se faz necessária. Em outras palavras, sustentamos que as
crises de hegemonia são provenientes da não-resposta de uma dada "visão" a uma realidade
historicamente determinada e, portanto, não satisfatoriamente explicada, segundo as
necessidades daqueles que controlam as instituições. A ''nova visão" que substitui a anterior
somente será válida, igualmente, enquanto atender aos interesses dos que a tornaram
hegemónica, garantindo para ela um lugar académico e o status de "científica". Como
acentuaram Marx e Engels:

"Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos


dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é
também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção
material, dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento
daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à
classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações
materiais dominantes, concebidas sob a forma de idéias e, portanto, a expressão das relações
que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias do seu
domínio" (Marx & Engels 1976).

A "VISÃO HOMEM-MEIO" OU "ECOLÓGICA"

A geografia surge como saber institucional, como cátedra universitária, quando

78
da consolidação da burguesia e, consequente mente, do capitalismo. Influenciada, de um
lado, pelo extraordinário avanço das ciências naturais no século XIX e, por outro lado, pelo
caráter expansionista do capital, ela se afirma cada vez mais à medida que o capital
conquista o mundo. Geografia colonial é uma expressão que define bem o contexto em que
surge a geografia "científica".

Uma concepção filosófica, ao mesmo tempo bela e ambiciosa, cunhada nesses


primórdios da geografia moderna é a da unidade existente entre o homem e a natureza. A
abordagem de tal unidade tornar-se-á um desafio constante em toda a história da geografia.
A totalidade homem-natureza será preocupação central da chamada "visão homem-meio"
que se afirma através do determinismo geográfico; uma abordagem que caracteriza bem o
final do século XIX.

Em tal abordagem, as diferentes formas de organização do espaço, suas


desigualdades, eram pensadas de modo a-histórico, como resultado de condições
ambientais, climáticas, sobretudo. Como sói acontecer com a ideologia dominante,
"naturalizava" os problemas, pondo-os para fora da história. As explicações para os
fenómenos eram sempre de ordem climática ou biológica (o racismo é filho direto desta
concepção).

Não é por acaso que, nesse quadro, duas "escolas nacionais" se destacassem: a
norte-americana e a alemã, nações que se afirmam enquanto potências capitalistas ao
apagar das luzes do século XIX, quando o caráter monopolista do capitalismo já se
manifestava.

F. Ratzel, E. Semple e Huntington são os grandes expoentes do determinismo


geográfico. É a época em que não faltam financiamentos das "associações geográficas"
para viagens de levantamento dos "recursos naturais e humanos" da geografia colonial.

Poucos são os estudiosos que ousam nos dias atuais refutar a íntima ligação entre o
imperialismo e o determinismo geográfico que, embora historicamente mais antigo que o

79
imperialismo, se ajustou como uma luva aos fins expansionistas do capitalismo mo-
nopolista-financeiro.

Evidentemente nem todos os geógrafos do período se comprometeram com o


imperialismo, honrosas exceções podem ser ressaltadas, como no caso de E. Reclus, que
em suas obras apresentava uma visão radicalmente diversa, segundo nos informa Yves
Lacoste.

Talvez por isso suas ideias não tenham atravessado o Atlântico, "defendido" que
estava o Novo Mundo pela Estátua da Liberdade, dificultando a penetração em território
americano das ideias libertárias daquele anarquista francês. Reclus permaneceu um desco­
nhecido, ele que já sentia a importância de pensar as relações entre os centros urbano-
industriais e o campo, abrindo caminho à compreensão dos fluxos espaciais de
mercadorias, de onde e como a riqueza se acumulava e da consequente unidade na
diversidade do espaço. Não queremos dizer que essas questões estivessem claramente
explicitadas nas obras de Reclus, mas simplesmente afirmar que, segundo nos atesta
Lacoste, a sua preocupação com as relações cidade-campo permite perceber o movimento
da riqueza no espaço. O "esquecimento" de E. Reclus mais uma vez evidencia que as
instituições burguesas sabem selecionar dentre os cientistas aqueles que lhes permitam
desenvolver e reproduzir a sua forma de regime social.

A "REAÇÃO POSSIBILISTA"

A Escola Nacional Francesa reagirá às concepções da Escola Nacional Alemã


acusando-as de deterministas. Segundo a Escola Francesa, a geografia deveria ser o saber
que afirmasse o "caráter nacional". A ameaça do imperialismo alemão que, ao final do século
passado, já começava a mostrar a sua força, exigia uma formulação de ideias que
justificasse os países com tradição colonial. Eis, assim, que na França surge uma "nova
concepção" das relações homem-meio — o conhecimento dos “gêneros de vida”, começa a
ganhar expressão e Vidal de La Blache se torna o grande geógrafo francês: Cada
comunidade ou agrupamento humano teria forjado todo um "género de vida", toda uma

80
cultura a partir de uma experiência que teria travado com uma fração específica da crosta
terrestre sobre a qual, por diversas razões, ter-lhe-ia cabido habitar. Através dessa abordagem
abrir-se-ia espaço para pensar as possibilidades de superação das imposições do "meio geográ­
fico". Surgia, assim, um novo "paradigma" da geografia. Manuel Correia de Andrade nos
dá uma bela caracterização desta "Escola Francesa" de Vidal de La Blache ao dizer que ele

" ... realizou uma série de estudos regionais, de análises que poderíamos chamar de
microgeográficas, onde procurou demonstrar que o meio exercia influência sobre o homem, mas
que o homem tinha possibilidades de modificar e de melhorar o meio, dando origem ao possibi­
lismo. Possibilismo que seria útil ao governo francês, não só por melhor conhecer e orientar a
política de utilização dos recursos naturais do espaço francês, como também tornar desnecessário
o desenvolvimento de uma teoria radical como a da superioridade da raça branca sobre os nativos
da Ásia e da África, de vez que o domínio colonial francês estava, nestes continentes, em fase de
consolidação. A França deglutia, no início do século XX, o segundo império da superfície da
terra, necessitando, naturalmente, de confundir a política colonial com os interesses humanitários
de levar a civilização a povos incultos e capazes de ser educados e absorvidos pela civilização
ocidental, em vez de pregar uma política de extermínio ou de conquista de povos ditos inferiores"
(Andrade 1977).

O que o possibilismo não conseguiu demonstrar é por que certos lugares tiveram
"possibilidades" maiores que outros. Ou que fa-tores teriam possibilitado a alguns países,
ou regiões, ou lugares, superar as imposições do "meio". O que não conseguiam ou não
queriam ver é que as tais possibilidades também são determinadas. E os geógrafos, em
geral, parecem temer culposamente essa expressão, porque não conseguem ver
determinações a não ser naquilo que as suas sensações e percepções, historicamente
produzidas pela formação académica, observam no "concreto" da paisagem (o relevo, a
vegetação, o clima, etc.).

O possibilismo continua postulando que o papel do geógrafo é estudar as relações


homem-meio, contudo, em sua ótica, o homem é mantido como categoria genérica, não
diferenciado em classes e o meio como um dado a ser explorado, ignorando-se o caráter da
sua apropriação real e das relações sociais de produção.

As próprias possibilidades de superação dos problemas com que um dado


agrupamento humano se depara ao se relacionar na e com a natureza são, na verdade,
determinadas por circunstâncias que a cada dia e, já àquela época, mais fogem aos controles

81
"locais". O possibilismo realmente obstaculizou a compreensão desse caráter de
dominação que o imperialismo assume. Ao isolar cada comunidade para o estudo das
inter-relações homem-meio, cumpria bem o seu papel de dividir o espaço, segmentá-lo em
regiões estanqui-zadas, deslocando assim a análise do espaço do seu real movimento. Dessa
forma, foi eficiente em sua missão de preparar o terreno para a expansão do capital
monopolista financeiro, para a partilha do mundo segundo os interesses imperialistas.

Nos Estados Unidos as teorias do sistema ecológico surgiam como os correspondentes


das ideias desenvolvidas por La Blache na França. A escola de Carl Sauer — geografia
cultural — não deixava também de ter em La Blache as suas origens intelectuais.

Podemos ver claramente que o surgimento destas novas abordagens significou uma
verdadeira reação, no sentido mais amplo que este termo pode sugerir. Ao deslocar a
análise não fez uma crítica radical ao que até então havia sido produzido e nesta medida se
constituiu numa contra-revolução ao pôr no lugar daquilo que acreditavam ser uma falsa
interpretação uma interpretação falsa. De fato, o possibilismo não passou de um caso
particular de determinismo.

O DESLOCAMENTO PARA OS EUA DO PÓLO HEGEMÓNICO


DO CAPITALISMO E A NOVA RESPOSTA DA
GEOGRAFIA: "A REAÇÃO REGIONAL"

A Primeira Guerra Mundial põe a nu o real movimento da sociedade capitalista que


as "visões hegemónicas da geografia ironicamente não conseguiam ver. A década de 20
assistirá a uma Europa marcada por uma profunda crise e a hegemonia imperialista se
deslocando para os EUA. O fim desta década verá exposta com enorme evidência toda a
engrenagem da máquina imperialista, pois a crise que eclode no coração do sistema,
atingindo todas as suas peças, demonstra o caráter mundializado da sociedade criada pelo
capitalismo.

Na Europa, a crise do capitalismo receberá como resposta momentânea a solução

82
autoritária dos regimes nazi-fascistas. Nesse contexto geral de crise, surge uma obra que viria
marcar profundamente o pensamento geográfico. Trata-se de The Nature of Geo-graphy de
R. Hartshorne, publicada às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939). É interessante
notar que esta obra é produzida por um observador político-militar americano em missão na
Europa, para observar problemas de fronteiras na Europa Ocidental. Dada a situação
iminente de guerra, Hartshorne, impossibilitado de exercer a sua missão, dedica-se ao estudo
dos clássicos da geografia europeia, particularmente a alemã, redescobrindo Hettnner.
Recuperando as obras desse pensador alemão, Hartshorne, após um minucioso trabalho,
põe em relevo um novo paradigma, qual seja o estudo da região como caso único, dando
destaque ao que mais tarde seria chamado por Schaeffer de o "excepcionalismo na geo
grafia".

De acordo com a visão hartshorneana, se a geografia existe porque a superfície


da terra é diferenciada, caberia ao geógrafo estudar cada um desses pedaços singulares
de território — as regiões. Não se buscava analisar o movimento real que produz
diferenciações de área, o real processo que governa a organização do espaço. Ao
contrário, supunha-se que a simples observação direta da realidade nos "revelasse" todos
os segredos desse caráter diferenciado, cabendo ao geógrafo estudá-los.

O estudo regional assumia, às portas da Segunda Guerra Mundial, uma enorme


importância, assim como os estudos acerca de comunidades isoladas assumiram, com a
investigação dos "géneros de vida", enorme importância às vésperas da Primeira Guerra
Mundial. Exatamente quando os processos reais da vida do espaço demonstravam a
mundialização das suas relações é que os geógrafos procuraram segmentar, dividir o
espaço para "melhor estudá-lo".

De fato, cada lugar é único, pois o movimento que se dá no espaço é desigual e


combinado. Cada lugar é único, pois esta é a forma como se manifesta no espaço a
divisão internacional e interna do trabalho. Entretanto, este atributo de singularidade que
uma determinada porção do espaço apresenta é dado por um processo que não é determinado
por "fatores locais", mas sim por um modo de produção, cujas diretrizes emanam dos
centros hegemónicos do capitalismo, apoiando-se em heranças de um passado mais ou

83
menos longínquo, que produziu um espaço com determinados caracteres que a partir do
colonialismo e do imperialismo é submetido a outras "finalidades" que não são aquelas
derivadas das necessidades das "comunidades locais".

A "visão regional", neste sentido, não é um novo paradigma para a geografia, mas
sim uma capa nova para uma postura teórica e metodológica forjada no final do século
XIX e reelaborada para pensar uma realidade nova com conceitos antigos.

A EXPANSÃO SOCIALISTA, A GUERRA FRIA, O GRITO


LIBERTADOR DOS POVOS E A REAÇÃO POSITIVISTA
DA "VISÃO ESPACIAL"

A Segunda Guerra Mundial marcou profundamente a organização geográfica da


sociedade contemporânea. A expansão do socialismo na Europa Oriental, reduzindo,
conseqüentemente, os espaços sob o domínio do capitalismo imperialista; a afirmação da
hegemonia norte-americana no bloco capitalista; a crise generalizada por que passava a
Europa; a socialização da China em 1949, colocavam frente a frente dois projetos
antagónicos de organização social e, mais do que nunca, o conhecimento do espaço
adquiria uma importância central.

Observamos um recuo geográfico do espaço sob o domínio do capitalismo, o que


impelia a repensar a sua organização, como forma de preservar as áreas ainda sob o seu
controle. Um dos aspectos mais evidentes deste fato diz respeito à formação de mercados
comuns regionais, que possam fazer com que o capital circule e se imponha mais
amplamente, sem as "rugosidades", como diria Milton Santos, representadas pelas barreiras
nacionais. O mesmo capitalismo que havia forjado, na sua fase de acumulação primitiva, os
Estados Nacionais — do século XV ao XVIII — vê-se agora impelido a destruir as
barreiras por ele mesmo criadas. A expressão "o capital não tem pátria" perde todo o seu
mistério e se revela com a clareza do sol tropical.

O clamor dos povos coloniais e semicoloniais da África e da Ásia pela

84
emancipação viria a colocar ainda mais em xeque a área de influência do sistema
capitalista internacional. A necessidade de manter o controle sobre as regiões que
integravam o chamado bloco capitalista, evitando a sua absorção no bloco socialista,
conduzirá o centro hegemónico do sistema a propor soluções do tipo criação da OTAN e
do Plano Marshall que, por vias de um esforço de recuperação dos países europeus
arrasados pela guerra, constitui, fundamentalmente, uma forma do capital financeiro norte-
ameri-cano marcar mais profundamente as suas posições na Europa Ocidental, assegurando
ali a sua hegemonia e afastando, assim, o fantasma da "ameaça comunista".

As ciências do espaço ganham dentro desse contexto, de disputa de áreas de


influência entre dois sistemas rivais, uma enorme importância. Em conexão com esse
quadro, a chamada "nova geografia" ou "revolução teorético-quantitativa" começa a se
impor já na década de 50. Entretanto, essa nova geografia, sem romper com os
fundamentos básicos da chamada geografia tradicional, levará ao paroxismo o positivismo
lógico, essência filosófica do que pretendia criticar, ü pretenso atributo de "nova"
conferido a esta geografia que começava a se tornar hegemónica não nos impede de
constatar que esta geografia, no essencial, se mostra tão velha ; quanto a própria geografia
institucional.

Dispondo de instrumentos técnicos de pesquisa até então dês- : conhecidos,


passaram os pseudonovos geógrafos a utilizar o computador, o que lhes abria amplas
possibilidades de quantificação e exigia que tudo fosse transformado em número. O
empiricismo atinge os seus estertores, o que referendava a postura tradicional da geografia.
Procedimentos matemático-estatísticos serviam de suporte à crença da superação das
dificuldades de análises multivariadas que constituem o complexo instrumental da
geografia. O cálculo das probabilidades começa a ser considerado a forma mais "efi­
ciente" de observar o devenir histórico e geográfico. O futuro é visto como uma projeção
linear do presente, sendo que as contradições sociais que se manifestam no espaço são
afastadas para se evitar a interferência de qualquer "subjetividade". Os dados falam por si
mesmos ou através de modelos a priori tomados de emprés- ( timo às ciências da natureza,
o que lhes garantia a "cientificidade". As análises dos processos sociais são,

85
conseqüentemente, preteridas e substituídas por indicadores cuja validade é atestada pela
sua quantidade e frequência, ignorando-se que a própria seleção de variáveis ou
indicadores revela ou pressupõe um arcabouço teórico explícito ou implícito. A
causalidade é, por conseguinte, jogada fora, para evitar-se a busca de determinantes,
sendo substituída pelas análises de correlação e analogia, um dos pilares da geografia
tradicional. A geografia atingia, assim, o clímax da "cientifi- i cidade", segundo os
cânones do positivismo lógico. . .

Sem romper com os fundamentos teóricos e filosóficos da geografia tradicional,


a chamada "nova geografia" não fez mais que precisar (matematicamente) as imprecisões
da geografia tradicional e, assim, viria a facilitar a identificação dos seus problemas. Esta
sim sua maior contribuição.

Todavia, apesar dessas implicações, ou até mesmo por elas, a "nova geografia"
exercerá um papel significativo no pensamento geográfico. Gozando de enormes facilidades
de autopromoção, através de revistas especializadas, realização de congressos e simpósios,
ainda terá à disposição os novos e poderosos meios de comunicação de massa que se
encarregarão de abrir espaço para sua chegada triunfante aos quatro cantos da terra. As
disparidades regionais passavam a ser anunciadas amplamente através de toda uma nume-
ralogia, sem que se desse conta do processo real — o movimento de circularidade do
capital — que está subjacente e que produz as desigualdades.

Muitos investimentos passaram a ser feitos para criação de "pólos de


desenvolvimento", para "difusão de inovações" atendendo aos interesses dos capitais
disponíveis nos centros hegemónicos do capitalismo. A hegemonia que a chamada "visão
espacial" começava a exercer, através das teorias de localidades centrais ou de outros
nomes como a teoria dos pólos de desenvolvimento ou a teoria de difusão de inovações,
não se deveu ao fato de ter apreendido o movimento real que governa a natureza do espaço,
mas porque atendia aos novos interesses de um modo de produção incapaz historicamente
de superar os problemas que criou.

Nesse sentido, pode-se dizer que a "nova geografia" não produziu um novo

86
conhecimento, mas sim um novo desconhecimento, capaz de fazer sobreviver por mais
tempo algo que a história já condenou. Portanto, trata-se de uma nova contra-revolução no
pensamento geográfico, tal e qual tivemos às vésperas das duas guerras mundiais. Ao
subordinar o espaço aos interesses do capital, produziu esse espaço-prisão, planejado pêlos
Estados que cada vez mais se tornam capitalistas.

Se, por um lado, a chamada "nova geografia" se desenvolvia amplamente nos países
anglo-saxões, não podemos deixar de colocar, também, os danos trazidos aos países
subordinados ao imperialismo pêlos geógrafos franceses. De acordo com a "visão espacial"
da geografia francesa, o estudo do subdesenvolvimento assumia um significado muito
importante, sendo absorvido nos países periféricos por grande parte dos estudiosos que se
pretendiam críticos. Não percebiam esses estudiosos, entre os quais muitos geógrafos, que
o tema subdesenvolvimento constituía um falso problema nos marcos etnocêntricos em
que era colocado e no qual o próprio problema já vinha com uma definição de modelo a
ser atingido, ou seja, do que era o desenvolvimento. Este se caracterizava por elevados
níveis de renda per capita; elevado nível de urbano-indus-trialização; elevado índice de
alfabetização; forte grau de integração nacional, etc. Era tudo uma questão de quantidade e
não de processo. Àqueles países que apresentavam tais indicadores em níveis reduzidos se
atribuía o prefixo Sub, não se questionando a raiz que vinha depois Desenvolvimento. A
ausência de integração nacional nos países chamados subdesenvolvidos não era vista
como um produto da divisão internacional do trabalho nos marcos do sistema capitalista
que se materializava em espaços nacionais e que agora, numa nova fase do capitalismo
caracterizada pelo predomínio dos conglomerados, e oligopólios, com níveis organizacionais
altamente sofisticados, necessitou ser rompida para que os grandes capitais "planejassem"
melhor o seu passeio pelo espaço.

Os trabalhos de Yves Lacoste: Os Países Subdesenvolvidos e Geografia do


Subdesenvolvimento, constituíram, durante muito tempo, o suporte teórico dos geógrafos
brasileiros que se pretendiam críticos. E a própria crise com que hoje se defronta a socie
dade brasileira não se teria construído com a contribuição da ideologia desenvolvimentista
que ajudamos a criar?

87
De fato, tanto de um lado como de outro do Atlântico Norte se forjaram "teorias"
que responderam às necessidades das classes: dominantes ao nível internacional e nacional,
se é que é possível fazer esta distinção tão marcada numa época em que os naciona-
lismos, ao nível das classes dominantes, foram de há muito secun-
darizados.

MARCOS HISTÓRICOS, EPISTEMOLÓGICOS E TEÓRICOS PARA SE PENSAR A


CRISE ATUAL DA GEOGRAFIA

Como vimos, as chamadas "visões" ecológica, regional e espacial se inscrevem em


momentos históricos precisos, sendo definidas por eles, e as suas crises de hegemonia só
assim podem ser percebidas. Não foi por mera coincidência que o determinismo
geográfico começou a ser criticado às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando as
disputas interimperialistas se exacerbaram, nem o fato de ter sido o possibilismo uma
reação da escola francesa contra a escola alemã. Também não foi pura coincidência o fato
da "visão" regional que substitui a ecológica se afirmar às vésperas da Segunda Guerra
Mundial. Ou, ainda, que a "visão espacial" se torne hegemónica quando a "ameaça
comunista ao mundo livre" (sic), representada pela socialização dos países do leste
europeu, exigia uma "teoria" da localização a fim de alocar os capitais que o Plano
Marshall dirigia ao velho continente. Se quisermos ir mais longe,
as teorias locacionais, de difusão de inovações e de pólos de desenvolvimento, deveriam
abrir espaço para a expansão das transacionais para a periferia do sistema capitalista,
notadamente a partir, da 2ª. metade da década de 50, quando o capital internacional,
preocupado com a luta de libertação dos povos subordinados, se propõe a "salvar o mundo
livre" do subdesenvolvimento, eliminando a miséria, "solo fértil para a inseminação de
ideologias espúrias".

Entre nós, geógrafos brasileiros, a chamada "visão espacial" norte-americana


começa a se tornar hegemónica a partir de 1968, descartando por "não científica" a "visão"
da organização do espaço da "Escola Francesa" de P. George e M. Rochefort. A "visão

88
espacial" de B. Berry representou o clímax da hegemonia do imperialismo norte-americano.

Este foi o movimento geral do capitalismo internacional que impôs essas "teorias"
aos geógrafos dos países da periferia, outorgando-lhes foros de cientificidade, deixando
poucas opções àqueles que não quisessem abraçar tais posturas. É uma técnica muito
aperfeiçoada do marketing impor uma determinada mercadoria, mas deixar ao ingénuo
consumidor a impressão de que foi por sua livre iniciativa que a adquiriu. Assim, diversos
geógrafos brasileiros, "espontaneamente", optaram por um tipo de postura teórica e
metodológica de evidentes males para o povo brasileiro.

A crise que ora atravessamos não é, portanto, somente da geografia ou de uma


determinada "visão" ou postura teórico-metodo-lógica, mas se inscreve em uma crise mais
geral, cujos sintomas começaram a vir à luz com a derrota norte-americana no Vietnam.
Este fato deve ser retido por todos aqueles geógrafos que se propõem a uma produção
científica comprometida com uma perspectiva ; transformadora, com um espaço que seja
o da liberdade dos homens ! e não um espaço do capital.

Todavia, nesta empresa, faz-se necessária uma postura ao mesmo tempo teórica e
epistemológica fora dos quadros ideológicos dominantes — o que não parece ter sido a
principal virtude dos teóricos da chamada "visão espacial teorético-quantitativa" — ingle­
ses e norte-americanos que, através das teorias locacionais, de clara inspiração neoclássica,
pensaram o espaço sob o modo de produção capitalista como se fosse o espaço. Assim,
comprometeram uma interpretação da organização do espaço com o modo capitalista de
produção. Pensaram o espaço como "coisa", como sói acontecer entre os positivistas, como
um receptáculo das ações do homem e não o espaço como relação social.

Ë necessário que superemos os limites impostos à geografia pelo positivismo


lógico. É mesmo constrangedor verificar como, sendo a geografia uma ciência que trabalha
com relações de elementos de natureza heterogénea e sendo a dialética, primeiramente,
uma lógica de relações, a maioria dos geógrafos tenha ignorado uma interpretação dialética
da organização do espaço. Sendo ciência do concreto — como os empiricistas não
cansaram de repetir — não tenham lançado mão do materialismo. Sendo ciência de

89
totalidades especialmente constituídas, a maioria dos geógrafos não se tenha valido de
materialismo dialético e de materialismo histórico.

Torna-se, portanto, mais que necessário pensar o objeto da geografia. O espaço


deve ocupar o centro dos debates entre os geógrafos, porém não com as definições vagas
das "visões" anteriormente expostas. Não mais com a dicotomia natureza e sociedade, pois
que nenhuma sociedade está fora do espaço e o espaço do geógrafo é o espaço da sociedade,
forjado, construído por ela e condição para a sua reprodução e produção do próprio espaço.
Estas as pistas que acreditamos possíveis para a elucidação do nosso objeto de ciência. Para tal
empreendimento de reflexão acerca do espaço alguns conceitos e categorias tornar-se-ão
úteis e entre essas categorias e conceitos se inscrevem os de modo de produção e de
formação social.

Isto se deve ao fato de que a relação do homem com a natureza, sua dialética de
produção do espaço e da sociedade, se faz através do trabalho e este trabalho só existe
socialmente, enquanto relações de produção que caracterizam um determinado modo de
produção. E entendemos aqui modo de produção naquele sentido que lhe deu Marx ao
dizer que

" . . . Na produção social de sua existência, os homens contraem determinadas relações necessárias
e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase
do desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção forma a estrutura económica da so ciedade, a base real sobre a qual.se levanta a
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência
social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e
espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de
desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade se chocam com as relações de produção
existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade den­
tro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas
relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social."

Por outro lado, é preciso considerar que a realidade histórica não se apresenta
homogénea, mas ao contrário ela se faz de modo desigual e combinado. Daí ser também de

90
enorme importância para o geógrafo o conceito de formação social que diz respeito ao
modo como concretamente se fazem essas combinações de desigualdades, onde diversos
modos de produção se apresentam submetidos à hegemonia de um modo de produção
dominante. O espaço pensado através do conceito de formação social emerge como o lugar
onde a sociedade se constrói, forjando as características dos lugares.

O lugar único é assim a síntese de uma multiplicidade de determinações que não


podem ser entendidas pelo lugar em si mesmo. O único é uma forma específica de
materialização do universal e este, o universal, é mais do que a soma dos lugares únicos,
para ficarmos com a expressão geográfica.

Os estudos geográficos dão, dessa forma, um importante passo ao investigar a


organização do espaço sob a ótica do modo de produção a seu modo de realização concreto
que é a formação social. E trabalhar com esse instrumental não inviabiliza os estudos
regionais ou ecológicos. Assim, aqueles que desejassem continuar a fazer estudos
localizados, regionais, poderiam analisar especificamente como em um determinado
segmento do espaço se forja a sociedade global; que tipos de relações espaciais uma
determinada região manteria corn os outros segmentos sócio-espaciais; qual a situação desse
determinado segmento espaço nos quadros mais amplos de uma dada formação social
(situação de dominação ou de dependência); que tipo de relações homem-natureza aí se
produziriam num determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas que, por sua
vez, dependem das relações sociais de produção.

Da mesma forma, os conceitos do materialismo histórico poderiam ser de grande


valia à abordagem "ecológica" que nos últimos anos recrudesce com a crescente
conscientização do problema da depredação da natureza. Pressionados por esta situação, os
estudos dos ambientes e do inter-relacionamento homem-natureza começam a exigir dos
geógrafos respostas que possam dar conta desses fenómenos. Todavia, que respostas
poderá dar o geógrafo a essas questões enquanto:

1º.) Considerar, nesse relacionamento, o homem como categoria genérica e não sob
relações sociais determinadas que dão ao processo de produção um significado específico,

91
com finalidades que não são ditadas pelo relacionamento homem-natureza, mas pelo modo de
produção?

2°.) Considerar a natureza como "meio ambiente" genérico e não como o locus
produzido e condição de re-produção da sociedade? (Marx 1971:203-205).

Ora, a natureza não é um elemento a-histórico, mas, ao contrário, tem o seu


significado determinado historicamente pelo modo de produção e poderá ser vista como um
valor de uso, se olhada por um indígena xavante ou considerada um capital, sob a ótica de
um empresário paulista.

É fundamental ter em conta essa distinção se quisermos compreender a imbricação


das relações homem-natureza/homem-homem. Ê importante ressaltar também que, no caso
das formações sociais capitalistas, a relação homem-natureza não se efetua primordialmente
em função da produção social da existência do homem. Esta, embora uma condição
necessária, como em qualquer outro modo de produção, apresenta-se subordinada aos
interesses da acumulação do capital.

Esta é a questão básica que deve nortear os trabalhos daqueles geógrafos que
pretendem enveredar numa perspectiva "ecológica": observar criticamente a situação do
inter-relacionamento homem-natureza, indo às estruturas que determinam esse tipo de
relação. Logo, deverá procurar através dessa perspectiva dar conta da "paisagem" que é, na
verdade, a aparência que assume a organização do espaço.

Uma última questão deve ser ainda colocada: A partir do momento em que os
homens se organizam socialmente não é mais possível fazer-se uma rígida separação entre
história da natureza e a história da sociedade, pois estas se imbricam, dando origem a uma
só história. A própria natureza passa a ser produzida socialmente, constituindo uma
segunda natureza, tal como Marx desenvolve no livro I de O Capital. Cremos, portanto, ser
inteiramente correto dizer-se, como o faz Samir Amin, que "a História da humanidade é a
do modelamento da natureza pelo homem" (Amin 1976), ou seja, a constrição do seu espaço
social.

92
Eis as pistas que acreditamos úteis à elucidação da crise da geografia, na medida
em que possibilitem a elaboração de uma geografia da crise, engajada com a sua superação
e comprometida com a afirmação de uma teoria do espaço que seja do e para o homem e
não com o espaço da sua opressão. Nessa perspectiva, a crise da geografia é, pois,
altamente instigante e salutar. . .

Se a geografia está em crise, viva a geografia!

Referências bibliográficas

AMIN, S. Os problemas do ambiente na África. Cadernos de Ecologia e Sociedade 2.


Porto, Ed. Apontamento, 1976.

ANDRADE, M. C. O pensamento geográfico e a realidade brasileira. Boletim Paulista de


Geografia 54, p. 5-28, 1977.

LACOSTE, Y. A Geografia Serve Antes de Mais Nada para Fazer a Guerra. Lisboa,
Iniciativas Editoriais, 1977.

MACCIOCCHI, M. A. A Favor de Gramsci. Rio, Paz e Terra, 1977.

MARX, K. O Capital (Crítica da Economia Política). Vol. I. Rio, Civilização Brasileira,


1971.

MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Portugal-Brasil. Editorial Presença —


Livraria Martins Fontes, 1976.

ORLANDI, L. B. L. Estratégia de produção dominante: esboço de uma questão. Classes


Sociais e Trabalho Produtivo. Rio, Co-Edições CEDEC-Paz e Terra (especial), 1978.

TAAFFE, E. A visão espacial em conjunto. Boletim Geográfico 247 (outubro-dezembro),


1975.

93
CIDADE, MAIS-VALI A ABSOLUTA E RELATIVA, DESVALORIZAÇÃO DO
CAPITAL E DO TRABALHO: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE O
CASO DO RIO DE JANEIRO

Milton Santos

Pode-se dizer que a cidade atual, sobretudo a grande cidade, é instrumental na


criação da mais-valia relativa.

Como se sabe, a mais-valia absoluta é obtida através do aumento do número de


horas trabalhadas pelo operário em relação ao valor social real do seu trabalho. Em outras
palavras, o patrão reclama de cada um dos seus empregados um número de horas de tra­
balho maior do que o necessário para compensar-se dos seus gastos, ressarcir o desgaste do
seu material permanente e obter em forma de lucro o capital necessário a continuar
produzindo.

Com o avanço das técnicas, tanto as aplicadas ao-domínio da produção


propriamente dita quanto as do mercadeio, as empresas podem obter lucros consideráveis
sem ter de recorrer a práticas que levem à extração da mais-valia absoluta. A
modernização das máquinas permite maior rendimento em menor espaço de tempo e desse
modo o mesmo número de horas de trabalho fornece resultados maiores àqueles que têm
as condições de modernizar mais as suas técnicas. Pode-se, nesse caso, falar de mais-valia
relativa. Esta é também obtível através do exercício do poder político por parte das
empresas e nessa rubrica se inclui a fixação de preços pêlos monopólios e oligopólios e as
convenções direta ou indire-tamente patrocinadas pelo poder público.

LUCRO DIFERENCIAL E INFRA-ESTRUTURAS

94
Na medida em que há possibilidade de produzir e de fazer circular o produto a
melhor custo, o lucro passa a depender da existência de infra-estruturas localizadas, como é
o caso, hoje, das grandes cidades, onde cada vez mais se criam espaços cientificamente
pensados e tecnicamente realizados para facilitar certas produções. Estas obtêm do próprio
espaço urbano assim constituído as condições de uma maior eficiência e, geralmente, de
um maior lucro. É nesse sentido que se pode dizer que a cidade, e sobretudo a grande
cidade, constitui um instrumento para a formação da mais-valia relativa. Na medida em
que os equipamentos urbanos são crescentemente específicos, isso vai beneficiar mais a
uma firma que a outras, pois nem todas dispõem de espaços propositadamente adequados
às condições atuais de uma produção moderna altamente especializada. O fato, porém, é
que todas as firmas se beneficiam da presença de uma massa de consumidores que, por
estar concentrada, reduz os gastos em transporte e, por conseguinte, favorece duplamente
à firma, primeiro pelo fato de que há maior acessibilidade aos bens produzidos e segundo
porque o retorno do capital empregado se dá mais rapidamente.

Ainda aqui as diversas firmas não se beneficiam da mesma ma


neira dessa vantagem. Aquelas que são capazes de uma produção de massa ou têm a força de
induzir ao consumo ou o poder de fixar preços sem relação com os custos reúnem
naturalmente as condições para uma maior margem de lucro.

O mecanismo que estamos enunciando se apresenta de maneira diversa nas grandes


cidades e nas cidades intermediárias e pequenas. A questão da escala desempenha aí um
papel importante, e embora a análise do problema não se possa cingir a esse aspecto, as
estruturas presentes em cada localidade têm uma influência marcante.

Entre as grandes cidades também os resultados são diferentes. A forma como a


atividade produtiva se estrutura, a distribuição da população, sua repartição em classes, as
facilidades maiores ou menores de intercâmbio, tudo isso faz com que a criação da mais-
valia relativa seja diferente de uma grande cidade para outra. Isso ajuda a explicar por que
na fase recente, e sobretudo na fase contemporânea, certas atividades preferem, dentro de
um mesmo país, tal ou qual grande cidade em vez de outra, e explica igualmente a
migração de antigas firmas para outras aglomerações onde as condições lhes parecem mais

95
adequadas a um melhor desempenho. Esse parece ser o caso de São Paulo, Belo Horizonte
e mesmo Manaus, em relação ao Rio de Janeiro, sem falar nos distritos industriais
recentemente criados em Salvador ou em Recife e que apresentam vantagens locacionais
para um certo número de indústrias.

CIDADE E VALORIZAÇÃO DO CAPITAL PRODUTIVO

As cidades se distinguem também entre elas em função da valorização do capital


produtivo.

Em cada época histórica algumas localidades têm condições para revalorizar o seu
capital produtivo em alguns ou em muitos ramos enquanto que outras aglomerações não o
conseguem. O ritmo de crescimento é, por consequência, diferente para cada caso.

No caso do Rio de Janeiro, como as estatísticas o mostram, verifica-se em muitos


ramos da indústria e dos serviços uma desvalorização do capital, isto é, uma não renovação
do capital investido.

Assim como a revalorização num ramo tem efeitos sobre outros ramos, além das
consequências internas ao próprio ramo, assim também a desvalorização gera nos demais
ramos um processo de desvalorização.

Segundo A. D. Magaline (Lutte de classes et dévalorisation du capital, Maspero,


1975, p. 65) há uma relação entre a desvalorização do trabalho e a desvalorização do
capital, sendo que é a primeira que acarreta a segunda. Esse autor também admite que no
mundo atual e como consequência das novas condições da economia internacional há uma
fragmentação dos capitais autónomos em unidades de produção independentes, ao mesmo
tempo em que se mantém sua unidade na exploração da força de trabalho. As unidades de
produção também estão em relação de dependência umas com as outras. Essa dependência
é de vários tipos. Ela pode ser direta se envolve o processo da produção, ou indireta se

96
apenas participa de aspectos produtivos não técnicos e não financeiros. Segundo a estrutura
local da produção, as relações de dependência são diferentes entre tipos nominais de
atividade.

Talvez se possa inferir disso que os espaços urbanos se diferenciam em função


de como se processa entre os fatores um "jogo" desse tipo. Do mesmo modo poder-se-á
chegar à conclusão de que, É evidente que isso tem consequência direta sobre o poder
aquisitivo da população, reduzido em virtude da necessidade de pagar aluguéis assim
tornados mais caros, ao mesmo tempo em que, sendo esses aluguéis na sua maior parte
inacessíveis, isso leva a que a maior parte da população de rendas inferiores, as
chamadas populações de baixa renda, tenha de ir buscar residência em áreas mais
distantes.

É possível que o mecanismo acima descrito evidencie melhor a relação entre


desvalorização do trabalho e valorização do capital. No caso particular da construção
civil, ela funciona à base de uma mão-de-obra cuja remuneração é baixa e cuja
rotatividade dentro da atividade e dentro da cidade, como assinalado por Ana Clara Torres
Ribeiro, sobre Aspectos Demográficos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (1979, p.
10) facilita a valorização do capital que os emprega. Do mesmo modo, a forma de venda
de produto acabado, atualmente seguida de todas as garantias dadas pelo poder público aos
empresários privados, constitui uma maneira tranquila de valorização do capital em
detrimento do comprador que ) adquire o imóvel com o resultado do seu trabalho passado,
presente e futuro, pagando taxas de juros que o empobrecem, isto é, aceitando a
desvalorização do seu próprio trabalho durante um período que pode representar mais da
metade da sua vida útil.

Ora, esse mecanismo, comum às diversas cidades brasileiras, toma aspectos


particulares em cada aglomeração. No caso do Rio de Janeiro ele parece ainda mais brutal
do que em outras cidades do País.

A criação da mais-valia relativa dá-se, também, com pelo menos duas


consequências. Uma delas é que ao lado de pedir a cada trabalhador uma parcela

97
maior de trabalho não necessário, de tra- ;j balho socialmente não necessário, há ao
mesmo tempo criação de trabalho excedente, isto é, liberação de mão-de-obra. Isso
significa desemprego cada vez que essa mão-de-obra não pode ser engajada s em outras
atividades seja porque simplesmente tais atividades não existem, seja porque essas outras
atividades exigem uma qualificação que não era exigida na atividade onde o trabalhador
estava anteriormente engajado.

Nas cidades onde o elenco de indústrias é incompleto as conse- s qüências são por
conseguinte maiores. Este é, por exemplo, o caso do Rio de Janeiro se comparado com São
Paulo, o que ajuda a explicar as diferenças na condição de emprego entre essas duas
aglomerações.

Em segundo lugar, a extração da mais-valia relativa significa uma queda no valor


real do salário atribuído a cada trabalhador. Essa redução no salário está relacionada com o
tipo de indústria presente na cidade. Certas indústrias mais exigentes de uma qualificação
específica por isso mesmo ensejam aos seus trabalhadores um poder de barganha maior, ao
contrário daquelas onde o nível de qualificação sendo baixo ou nulo, e a substituição da
mão-de-obra se tornando por isso mais fácil e a sua vulnerabilidade maior, o resultado é
um frágil poder reivindicatório.

Se o nosso raciocínio é correio, a estrutura da produção industrial de cada cidade


tem consequências indiretas sobre o nível de remuneração dos trabalhadores.

Ainda aqui o caso do Rio de Janeiro pode ser analisado sob esse prisma, para
explicar a estrutura de salários correspondente aos seus trabalhadores industriais. Se
comparados com os de outras cidades do País, os níveis salariais presentes na aglomeração
do Rio de Janeiro são menos compensatórios na maior parte dos ramos industriais aí
presentes, isso implica em uma massa salarial menor, com todas as consequências que isso
pode acarretar sobre as demais atividades, do ponto de vista do consumo individual.

O mesmo raciocínio, aliás, pode ser aplicado às atividades terciárias da Região

98
Metropolitana do Rio de Janeiro cuja capacidade de criação da mais-valia relativa pode ser
analisada em termos paralelos ao que fizemos em relação à indústria. Fazendo a economia
de um raciocínio paralelo ao que já elaboramos em relação à atividade industrial, a
conclusão é semelhante, considerando, porém, as possibilidades de inter-relação entre
indústrias e serviços vemos que a atividade económica tomada num sentido mais amplo
padece de efeitos circulares negativos que contribuem, pela interacão da indústria presente na
cidade e dos serviços aí também presentes, a baixos níveis de emprego e de remuneração,
que contribuem a alargar ainda mais o fenómeno do subemprego e da pobreza.

GEOGRAFIA, ECOLOGIA, IDEOLOGIA:


"TOTALIDADE HOMEM-MEIO" HOJE (ESPAÇO E PROCESSO DO
TRABALHO)

Ruy Moreira

O trabalho é a categoria fundamental da reflexão. Não o "trabalho em geral", mas o


trabalho como relação concreta.

A propensão atual em geografia de ver na totalidade uma categoria e uma


principalidade do método esbarra na tautologia de se ver o todo pela via do todo ou no pólo
oposto de se ver o todo pela via das suas "partes", revelando a tese como sua formulação
metodológica estarmos ainda atolados no funcionalismo' até o pescoço. Posta a questão
nestes termos, fica obscurecido o fato de que a compreensão do todo pressupõe a reflexão do
seu processo de produção-reprodução pela dialética do trabalho, do movimento que
determina o caráter real, concreto, da totalidade.

99
Obscurece igualmente a reflexão fundamental sobre a natureza da totalidade com
que lida a geografia.

1. TOTALIDADE E MÉTODO: OS MEANDROS DO CONHECIMENTO

O esforço atual pela determinação das categorias que guiam o processo do


conhecimento do real traz em si a consciência de que o conhecimento não pode ficar por
conta do empirismo. Ora, as categorias mais não são que as relações reais existentes no
seio de cada modo de produção, expressas de fornia codificada na linguagem do método.
Tanto, que o "modo de produção" das categorias está determinado pelo modo de produção
real, sendo por isto sempre difusa a "fronteira" entre ciência e ideologia.

Mas se as categorias são as espressões mentais, metodológicas antes que lógicas,


das contradições concretas, reais, sua fonte é a prática dessas contradições. Por isto, todo
homem detém uma "teoria" do real. As "construções teóricas" nascem dessa prática e evo­
luem no perpétuo movimento da "práxis", isto é, da unidade entre a prática e a teoria, e
extraem seu poder de dar conta do real justamente desse compromisso. Uma vez
desligadas, prática e teoria perdem tal poder, dando lugar ao empirismo e ao teoricismo.

Eis por que a teoria, chame-se ela marxismo, funcionalismo, positivismo,


weberianismo, fenomenologia, jamais é algo capaz de, por si só, dar conta do real.
Somente a prática teoricamente orientada disso é capaz.

2. TOTALIDADE E SISTEMA: O EMPOBRECIMENTO DO REAL

O realce à totalidade tomado na forma que apontamos tem na sua origem


epistemológica um fundo ideológico conhecido. Situa-se no campo das ideias que
confundem totalidade com sistema, noção mecânica do movimento que neutraliza o papel
transformador do conhecimento, lineariza as ligações e toma o processo como o já feito e
não como devir.

100
Ora, totalidade é movimento e contradição, movimento como contradição. Movimento
que se cristaliza em formas, isto é, contradições definidas. Formas que revertem sobre o
movimento, mediando sua continuidade e nele se incorporando para daí saírem renovadas.
Por isto, estão no âmago das "construções teóricas" os pares dialéticos como forma-conteúdo,
aparência-essência, abstrato-concre-to, finito-infinito, singular-universal, continuidade-
descontinuidade. Sem grande rigor, portanto, pode-se afirmar, que cada contradição, ou
série de contradições, tende a transformar-se no nível do conhecimento em categoria,
reproduzindo o próprio movimento real.

Processo global, o todo é unidade e diversidade, unidade na diversidade,


manifestando-se a unidade na diversidade. Por conseguinte, a unidade, o todo, não tem nas
diversidades partes suas, mas momentos definidos do processo global, do movimento. O
todo não é o composto agregado de diferentes partes, um sistema, embora um sistema seja
um todo. O todo é movimento de opostos, aspectos da unidade que se transformam uns nos
outros. Razão por que o todo é a parte e a parte é o todo. Não porque haja um tal grau de
interação entre as "partes", que estas se transfigurem com a inter-perpassagem umas nas
outras. E sim porque cada "parte" ê a expressão fenomênica do movimento do trabalho3, sua
expressão formal, sua materialidade. O universo de "partes" é o universo das formas que
exprimem a produção-reprodução do movimento.

Assim, quando entendida como mero "conjunto total de partes interatuantes" a


totalidade tende a uma estrutura de movimentos mecânicos. Despojada do seu caráter
dialético a totalidade fica reduzida a uma noção mecanicista demasiadamente pobre para
captar e influir na riqueza e direção do movimento.

3. "TOTALIDADE HOMEM-MEIO": A TOTALIDADE DO SABER GEOGRÁFICO

Tal noção pobre de totalidade é a que encontramos subjacente ao discurso da


generalidade dos teóricos eminentes do saber geográfico. Considera-se a geografia como a
"ciência de síntese" do conhecimento parcelizado de todo, a partir de um eixo definido: a
relação que o homem trava com o seu meio natural em busca de sua subsistência e

101
progresso. Uma vez que o universo da relação homem-meio é um sistema envolvendo
elementos naturais, biológicos, humanos, sociais, económicos, históricos e culturais, cada
qual constituindo campo de uma "ciência de análise", o saber geográfico envolve o próprio
universo do saber humano.

Saber de abrangência tão completa, a geografia não evitará determinadas


consequências. Uma delas será a própria precisão de sua imagem. Pattison vê na história do
pensamento geográfico o desenvolvimento simultâneo de "quatro tradições", ou seja,
quatro diferentes direções do discurso: a "tradição de ciência da Terra", a "tradição de
estudos de área", a "tradição espacial" e a "tradição de estudos homem-terra"; que Taaffe
reduz a três: a "visão ecológica", a "visão regional" e a "visão espacial". Resultantes de
imprecisão de método ou superficialidade de reflexão epistemoló-gica, o fato é que estas
"diferentes" geografias prescrevem como plano mais geral dos discursos um "fundamento
ecológico": pleno na "visão ecológica", mascarado na "visão regional" ou desfigurado na
"visão espacial".

Já se observou em algum canto que o discurso geográfico jamais conseguiu (o


discurso académico) superar o determinismo naturalista inaugurado por Ratzel. O
possibilismo lablacheano não fez mais que preservá-lo sob a capa historicista da "Escola
Histórica Alemã".

Poucos se deram conta do processo real seguido pela história do pensamento


geográfico e o papel nele representado pelas instituições académicas. Mais restritos ainda
os que perceberam as deformações académicas ao pensamento geográfico clássico.
Reproduzindo o pensamento mais adiantado dos clássicos como Heráclito e De-mócrito,
para os quais todo saber é um saber global, o pensamento grego em geografia não se toma
por uma forma específica e superior de saber. Por esta mesma razão não toma o saber
global por saber sistémico. Para o pensamento geográfico antigo o homem e o meio
ambiente antes de comporem uma relação compõem uma identidade.

Que estudante de geografia já não se enfadou com os intermináveis e estéreis


questionamentos sobre a natureza do discurso geográfico: uma ideologia, uma filosofia,

102
uma ciência ou uma arte? Intermináveis porque o saber geográfico, como todo saber, é
tudo isto. Estéreis porque no anêmico terreno da polemica doméstica (na geografia não há
interlocutores, eis uma "tradição" não catalogada por Taaffe e Pattison), as reflexões
jamais ultrapassam limites tacitamente traçados.

Transformado em saber geograficamente académico o saber geográfico ficou


acrítico, eis mais outra "tradição", porque, ciosos de seus lugares (são famosas as
"panelinhas" das instituições universitárias e de pesquisas), os "mandarins" da geografia se
investiram da autoridade de determinar-lhe seu lugar, enfeudando-a nas instâncias
generosas do poder. Presos ao academicismo rançoso, muitos geógrafos jamais se
perguntaram a quem servem, certamente porque esta tem sido sua real e costumeira
tradição: servirem às classes dominantes. E, no entanto, desde os gregos a geografia é um
saber extremamente popular.

Ora, a popularidade da geografia advém, entre as muitas razões, à de ser um


discurso do cotidiano global. E isto porque é o discurso da identidade do homem com a
natureza, da "totalidade homem-meio". Esta é a sua essência mesma, que as tarefas de
libertação popular de todas as formas de exploração do homem pelo homem exigem seja
resgatada.

Pode ser um bom começo a precisa noção do que seja o obscuro conceito de relação
homem-meio vulgarizado pêlos meios académicos, do caráter e papel que ele desempenha.

4. TOTALIDADE E IDEOLOGIA: A DICOTOMIA GF x GH SERVE PARA


OBSCURECER

Entendida desde os antigos como um saber global, um discurso da identidade do


homem com a natureza, a geografia codifica-se entretanto entre os "precursores" de sua
cientificidade como um discurso sistémico e dicotômico.

Mantendo a relação homem-meio dos clássicos gregos como núcleo do discurso,


separam aristotelicamente o homem e o meio natural, para restabelecer mais adiante a

103
unidade em termos kantianos. A concepção holista do todo tirada por Humboldt a
Schelling costura a unidade dos "elementos", caminhando-a na direção do determinismo
ratzeliano (determinismo "geográfico") e na direção do pos-sibilismo lablacheano. Segue-se
a quebra kantiana do todo, para restabelecer-se sua unidade já agora despojada de seu
caráter dialético.

A quebra da natureza dialética do todo em um sistema de elementos não é um ato


isolado do pensamento geográfico. É o "espírito da época", o discurso do iluminismo,
exaltador da individualidade burguesa. Nada está solto no universo, pensa a burguesia.
Um elemento sempre está ligado aos outros elementos. Tudo é um todo. Mas o todo é uma
união sistémica de indivíduos. Diz Rousseau que o Estado é "um contrato social". Cedo o
discurso iluminista reduzirá a uns poucos indivíduos e povos (aqueles biológica ou fisiogra-
ficamente, dir-se-á geograíïcamente, superiores) a generosidade do seu discurso. Para isto
concorrerá fartamente a geografia académica.

Filho do ascenso do capitalismo, o discurso geográfico académico nem por isto


absorveu o sopro revolucionário que acompanha o ascenso da burguesia. Embora reelabore
o discurso clássico à luz dos parâmetros do saber nascido das lutas da burguesia contra o
Estado feudal, o faz como um saber que se põe mais à direita, sobretudo com relação à
economia política e às ciências da natureza, à física e à biologia em particular, porquanto se
serve ao desenvolvimento do capitalismo revolucionário, presta este serviço como cartografia e
catálogo de informações sobre povos e lugares, por conseguinte, oficializadamente. Saber
apropriado pelo Estado, a geografia só adquirirá feição de discurso do capitalismo na fase
imperialista deste.

A geografia "moderna" portanto já nasce velha. Relê o discurso geográfico acumulado


quebrando seu núcleo, visando atrelar-se mais completamente à máquina do Estado.
Quebrando-se em geografia física e geografia humana, espelha a destinação que lhe confere
o capital: dominantemente uma ideologia.

Ê fato que a unidade homem-meio só existe como dicotomia nas condições concretas

104
do modo capitalista de produção. Inexiste na consciência dos homens nos modos de produção
anteriores por não fazer parte da sua existência real. Para estes homens o homem e a natureza
compõem perceptivelmente uma identidade. Enquanto "ente exterior" a natureza não passa de
uma abstração cuidadosamente cultivada pelo capital, com a preciosa ajuda da geografia. Só é
uma realidade concreta sob as determinações do modo capitalista de produção. Se não basta a
evidência de que o homem é um "animal social" ou de que é "o estágio superior da escala da
evolução natural", pode-se lembrar ainda que a força de trabalho com que o homem erige a
civilização e produz o capital é ela mesma natureza.

A dicotomização do discurso não é um atributo exclusivo da geografia: está na própria


lógica do discurso do capitalismo de que o discurso geográfico académico é um
desdobramento. Está na própria essência da filtragem ideológica do capital às manifestações
concretas do processo do trabalho no modo capitalista de produção, confundindo concreto com
visível. Afinal, é o próprio "sistema das ciências" que se divide em "ciências humanas" e
"ciências naturais".

Assim procede para justificar as desigualdades sociais, apresentadas como tais e não
como as vertentes sociais do trabalho sob o capital, aspectos do trabalho expropriado5.

5. "TOTALIDADE HOMEM-MEIO E ARRANJO ESPACIAL: O LUGAR DA


APARÊNCIA

Sob o capital a totalidade se expressa sensorialmente sob formas que não se pode
tomar como o real. Este é um fato que em geografia sempre foi escamoteado. O arranjo
espacial é tomado como o real, o concreto, e não como o que realmente é: expressão feno-
mênica do real.

Mas a determinação do arranjo espacial como objeto do discurso geográfico


académico induz, se bem pensado, a uma constatação insólita: à de que o arranjo espacial
pode ser um excelente recurso de leitura do real. E de outra forma não poderia ser: não
houvesse qualquer relação entre o arranjo espacial e o real e a geografia não sobreviveria

105
como discurso. Contudo, é preciso pensar bem: o cuidado não deve ser pouco. Um
primeiro cuidado deve ser com a episteme do arranjo espacial, ou seja, seu caráter de
aparência. Um segundo, decorrente do primeiro, deve ser com seu -lugar nas "instâncias"
do conhecimento: instrumento de leitura, o arranjo espacial situa-se no "campo" do
método. Delineia-se aqui, em nosso entendimento, toda a questão da teoria e da produção
teórica em geografia.

Expressão fenomênica do real, o arranjo espacial é a manifestação mais


materialmente visível dos termos da relação homem-meio. E isto a tal ponto, que a
"observação da paisagem" consagrou-se como um recurso do método dos mais clássicos em
geografia. A fotografia sempre desfrutou do mesmo prestígio conferido às cartas e mapas.

Ë preciso ainda não confundir-se arranjo espacial com paisagem, \ uma vez que a
noção de arranjo espacial é mais fecunda, envolvendo processos nem sempre visíveis. Este
passo, entretanto, exige a "vigilância epistêmica" que evite os enganos (enganos?) da new
geography: os processos existentes no arranjo espacial, revelados ou não pela observação
acurada da paisagem, não são e não se reduzem a relações matemáticas. Estas, quando
muito, servem para emprestar maior rigor aos resultados fornecidos pelas "máquinas sen-
soriais" com as quais a geografia clássica realiza suas pesquisas. A essência de que o
arranjo espacial é aparência jamais se exprime plenamente na e como linguagem
matemática. Esta não passa de uma codificação do real, tão aparência como o arranjo
espacial e mais pobre que ele.

O real é mais fecundo que o que dele mostra o arranjo espacial, portanto. Como
acontece com os livros, o alcance da compreensão está muito entregue ao leitor. Como
toda aparência do real, o arranjo espacial traz toda uma carga ideológica.

O que diz o arranjo espacial sobre a "totalidade homem-meio" hoje? O que é em


sua expressão real a geografia, enquanto discurso e realidade objetiva sob o capitalismo?
Partamos de um princípio: a "relação homem-meio" e suas formas espaciais são processo
de trabalho.

106
6. A "TOTALIDADE HOMEM-MEIO" SOB O CAPITAL: O TRABALHO ALIENADO

Sob o capital as forças produtivas adquirem as formas concretas de capital variável


(os homens) e capital constante (a natureza-matérias-primas e a natureza-tecnologia). A
"totalidade homem-meio" exprime-se como formação econômico-social capitalista.

A dinâmica do processo de produção-reprodução da totalidade tem por motor as


contradições que antepõem as classes fundamentais que derivam das relações capitalistas
de propriedade: a burguesia (detentora dos meios de produção, aqui incluída a natureza) e
o proletariado (dono da sua força de trabalho). Estes termos das relações homem-homem
são os termos da relação homem-meio. A separação, no interior das forças produtivas, da
propriedade da força de trabalho e da natureza, separa os homens e a natureza. Nasce a
dicotomia que a ideologia burguesa se incumbirá de tornar natural na consciência dos
homens, escudada na geografia.

A raiz do discurso geográfico académico mostra-se mais profunda e comprometida


que aparenta: seu solo é a própria base do modo capitalista de produção. Sua quebra em
geografia humana e geografia física revela os próprios fundamentos reais, materiais do modo
capitalista de produção: as relações de propriedade das forças produtivas.

O processo do trabalho implicará na reunificação das forças produtivas (do homem


e da natureza, pois) separadas pelas relações de propriedade, mas sob o império destas. O
despojamento do trabalhador, reduzido à propriedade de sua força de trabalho, condiz com
a lógica do mercado capitalista. Despojado do conjunto dos meios de produção e, por
consequência, impedido de suprir-se de meios de subsistência, só lhe restará converter sua
forca de trabalho em mercadoria, vendendo-a. A relação de compra-venda de força de
trabalho restabelece a unidade do homem com a natureza, mas não restabelece a identidade
desfeita pela instauração das relações capitalistas de propriedade entre os homens. Mediada
por estas, a reunificação entre homem e natureza será um mero ritual que institucionaliza a
alienação do trabalho. Homem e meio natural tornam-se ambos cativos do capital.
Despersonalizados, chamam-se agora capital variável (homem) e capital constante (meio
natural).

107
Alienação no lugar de identidade, valor de troca no lugar de valor de uso, predação
no lugar de consumo humano, tais são as expressões de concretude da relação homem-
meio sob o capital.

Dominadores da natureza com seu trabalho, os "homens-vendedores-de-força-de-


trabalho" não são seus dominadores para si e para os homens. São transformadores da
natureza em mercadorias. Quando com ela se identificam no plano mais alto da
consciência, encontram nos termos concretos da propriedade capitalista o limite real da
identidade. Curto momento este, mas em que a pesada cortina que esconde a alienação do
trabalho mostra-se evanescente.

Sob a racionalidade capitalista da relação homem-meio se agitam as contradições


que ela mesma engendra, uma vez que a apropriação capitalista da natureza e do trabalho
subordina-os à lógica que converte os homens em predadores, a força de trabalho em
energia destrutiva, o trabalho em sugadouro humano, a produção de riqueza em
pauperização, a igualdade do mercado em subordinação, a dignidade em virtude, a luta
pela subsistência em cativeiro.

A "totalidade homem-meio" é a expressão desses processos, revelados, não raro com


espantosa clareza, na multiformidade da paisagem e do arranjo espacial. Não deixa de ser
eloquente discurso científico a figura consumida do trabalhador da Amazónia entre os tocos
calcinados a que fica transformada a hiléia. A identidade da imagem
revela a comunidade da causa: o capital, consumidor voraz de homens e da natureza.

Sob o capital a "totalidade homem-meio" — a "síntese" da geografia clássica — é a


totalidade da alienação capitalista. Quaini mostrou-o claramente: a separação histórica do
homem dos seus meios de produção operada pelo capital (período da acumulação primitiva),
separou-o historicamente da natureza, residindo na alienação do trabalho toda a alienação
do homem contemporâneo.

Por isto, o destino da geografia é o mesmo das demais ciências. O drama de


Einstein ao verificar o uso conferido pelo capital ao seu saber físico, colocou o drama
universal de todo saber sob o capital. O mito grego da esfinge se põe à modernidade sob a

108
sua forma mais despida. Como pôde o conhecimento da natureza ter-se tornado uma arma
contra seu próprio perscrutador? O que pôde transformar o poder dos homens em arma
contra os próprios homens? O fato de a natureza sob o capital ser capital; de o processo de
socialização da natureza ser processo de acumulação de capital. O fato do trabalho
alienado. Termos reais da "relação homem-meio" hoje são os termos reais, concretos, do
saber geográfico hoje. Raiz mesma da reflexão geográfica, é por isto raiz de toda reflexão
da liberdade do homem e da "práxis" do saber geográfico.

7. A "TOTALIDADE HOMEM-MEIO"
SOB O CAPITAL MONOPOLISTA: A ALIENAÇÃO DO TRABALHO
INTERNACIONALIZADA

Sob a determinação capitalista de produção de mercadorias a natureza é matéria


que a força de trabalho alienada converterá em "trabalho necessário" (parcela do trabalho
destinada à reprodução da própria força de trabalho) e em "trabalho excedente" (a mais-
valia, parcela do trabalho não pago que constituirá o lucro do capital).

De início, na fase concorrencial, a relação homem-meio sob o comando direto do


capital é restrita a espaços reduzidos do espaço planetário. Nesta microescala de espaço
gesta-se entretanto a economia mundial futura, a dos monopólios imperialistas, porquanto,
embora local, a produção capitalista é a grande beneficiária da divisão colonial de trabalho
implantada pelo capital mercantil em todos os continentes.

Premido por suas próprias contradições internas, o modo capitalista de produção se


mundializará aceleradamente a partir dos finais do século XIX, uma vez que a acumulação
do capital supõe a permanente busca de solução de dupla contradição: burguesia x
proletariado e burguesia x burguesia. O disciplinado exército de operários que o capital vai
acumulando nas cidades industriais já nasce em luta contra suas condições inumanas de
trabalho e seus minguados salários, criando suas formas de organização. ,Os aplicados e
duros comandantes da produção de mercadorias" se entrechocam em luta pelo mercado.

109
Esta dupla frente de luta de classes empurrará o desenvolvimento do capitalismo para o
rumo da internacionalização.

Na raiz desta internacionalização está a atuação da lei fundamental do processo de


acumulação de capital: a "lei tendencial de declínio da taxa de lucro". A pressão dos
trabalhadores pela elevação dos salários concorrerá para a baixa da taxa de mais-valia
(mv/v), que tende a influir na taxa do lucro (mv/c+v). Nem sempre podendo transferir para
o mercado a compensação, em face dos preços dos concorrentes, o capitalista apela para a
elevação da produtividade do trabalho, investindo em capital constante. Como este passo
cedo se dará em todo o sistema produtivo, eleva-se o capital constante em geral,
realimentando-se o ci cio. Em consequência o capital constante tende a aumentar em ritmo
superior ao do capital variável para todo o conjunto da produção, elevando-se a taxa de
composição orgânica do capital média (c/v) progressivamente. A elevação da taxa orgânica
reati-vará a incidência da "lei tendencial" (combinação de mv/v, mv/ c + v e c/v). Como a
elevação da taxa orgânica se torna uma constante no desenvolvimento do capitalismo, a
incidência da "lei tendencial" ocupará permanentemente o tempo dos capitalistas e seus
intelectuais orgânicos.

Na luta contra a "lei tendencial" o capital se concentra e se centraliza técnica e


financeiramente, engendrando os monopólios, suportes da passagem do capitalismo à sua fase
imperialista.

Cedo o vulto da acumulação transforma-a em sobreacumulação, resultando no


surgimento de uma margem crescente de "capital ocioso" que agirá como indutor da
"desvalorização do capital". O Estado é chamado a intervir diretamente na instituição da
socialização de parte do capital fixo do sistema produtivo, assumindo o capitalismo
monopolista a feição do capitalismo monopolista de Estado. No capitalismo monopolista
de Estado o capital monopolista assume por completo o controle da totalidade.

Transferindo para o Estado a parcela principal do investimento em capital fixo


necessário à continuidade da acumulação monopolista, os monopólios reduzem sua própria
carga de investimentos. Como a média social da taxa de composição orgânica eleva-se

110
pêlos investimentos estatais, ganham os monopólios na forma do barateamento do capital e
da atenuação dos efeitos da sobreacumulação. Socializando os investimentos em capital fixo,
o Estado revaloriza o capital sobreacumulado ao nível dos monopólios.

Este milagre realiza-o o Estado intervindo diretamente na economia, primeiro


investindo em "obras de infra-estrutura" (energia, fede de transportes e comunicações e
equipamentos), ou indireta-mente pela via dos incentivos fiscais. A seguir, amplia seu papel de
criar as condições requeridas pela acumulação do capital, agora como "Estado empresário".

Através do planejamento estatal os monopólios padronizam e en-trecruzam nacional e


internacionalmente sua estratégia de dominação do trabalho e da natureza. Ampliam notavelmente
os termos da conversão destes em mercadorias e acumulação de capital. A "totalidade homem-
meio" mundializa-se e se converte em uma "aldeia global". Vis-à-vis da acumulação monopolista
internacional, a pauperização relativa do trabalho e absoluta da natureza são agora fenómenos
mundiais, caminhando pari passu mundialmente.

Os monopólios deitam seus tentáculos sobre toda a rede escalar do espaço planetário.
Implantam a lógica da acumulação capitalista do espaço local ao espaço mundial, estendendo-a
mesmo sobre as formações econômico-sociais socialistas, instalando-se onde as condições
assegurem a obtenção de superlucros.

Beneficiários de alto grau de centralização técnica e financeira em escala mundial, os


monopólios arrumam sua geografia da dominação combinando concentração e dispersão. Assim,
sob o controle de uma empresa holding cada grupo monopolista espraia amplamente filiais suas
pela rede escalar planetária: a Exxon perto de 200 filiais por quase todos os países, a General
Motors 200 filiais por 30 países, a Roche 60 filiais por 17 países, a Shell 280 filiais por 100 países,
a Nestlé 100 filiais por 40 países, a Colgate-Palmolive 50 filiais por 32 países, a Goodyear 137
filiais por 21 países11.

Com tal geografia internacional cada grupo monopolista concentra em suas mãos
fantástica massa de mais-valia capturada dos mais diferentes lugares, às expensas da pauperização

111
mundial do trabalho e da natureza. Para tanto, munem-se dos mais diversos recursos, tais como
operações triangulares, sobrefaturamento e sub-faturamento, especulação com taxas cambiais,
golpes militares e financiamento a governos ditatoriais, despersonalização nacional e co
lonialismo cultural. A propaganda da Coca-Cola condiciona o com portamento do
consumidor mesmo nos países socialistas. Os enlatados de TVs americanas reproduzem-se
em cadeia simultaneamente por dezenas de países.

Peça de uma engrenagem monstruosa, cada filial é membro de uma "eminente


família" monopolista que engloba complexos industriais, financeiros, comerciais, científicos,
tecnológicos, ideológicos, políticos e militares. Cada "família" é uma potência inter­
nacional, maior que a generalidade dos Estados modernos. Não raro, são Estados dentro dos
Estados em que se instalam, tal a força de seus aparatos e o volume de seus negócios
mundiais, tal a sua rede de relações internacionais. Só a Exxon, a Ford e a General Motors
atingiram em 1975 um faturamento conjunto de 118 bilhões de dólares, volume superior
aos orçamentos somados da Argentina e do Brasil no mesmo ano. Seus tentáculos
penetram em todos os ramos atuais da produção, demandando os mais dispersos recursos; a
Coca-Cola inclui uma lista de 250 produtos diferentes; a General Motors, 250.000; a Dow-
Chemical, 1.000; a Du Pont, 1.200. Em sua estrutura vertical de trabalho incluem-se
departamentos de pesquisas dotados dos mais sofisticados laboratórios de pesquisa de novas
técnicas de produção e novos produtos, onde se empregam centenas de técnicos e cientistas
de alto nível: a Bayer emprega um corpo de 2.000 pesquisadores; a Westing-house, 1.700!

No seu conjunto, as "famílias" compõem um complexo entre-cruzado que as


mantêm combinadas na repressão aos movimentos de caráter nacional e popular nos
Estados dominados e equaciona suas contradições de mercado. Exemplifica esta
articulação a "Comissão Trilateral", pequeno comité de gestão comum dos negócios mundiais
pêlos monopólios imperialistas, criado em 1973 por sugestão do grupo Exxon (Rockfeller)
e que inclui um número de quase 300 monopólios americanos, europeus e japoneses, entre
os quais os grupos Boeing, Ford, Texas Instruments, AFL-CIO, Fiat, Rothschild, Rio Tinto-
Zinc, Mitsubishi, Nissan Motor, Sumitomo.

112
Sob uma estratégia internacional comum, os monopólios combatem o movimento
operário e determinam os preços do trabalho e das matérias-primas.

O poder de repressão e barganha dos monopólios frente aos sindicatos dos


trabalhadores beneficia-se da larga superioridade do seu nível mundial de organização.
Organizados em nível nacional, os trabalhadores quando muito conseguem impor-lhes
magras dilatações em seus salários e algumas melhorias em suas condições de trabalho.
Basta aos monopólios, por exemplo, uma transação fictícia de produtos de uma filial para
outra do mesmo grupo monopolista, para garantirem a continuidade da produção e das
vendas afetadas por movimentos grevistas e minarem sua resistência e esgotá-los. Exemplo
recente encontramos no tratado comercial Brasil-Argentina, assinado em pleno auge da
greve dos metalúrgicos do ABC paulista, mediante o qual as multinacionais de automóveis
instaladas nestes países visam compensar mutuamente o ritmo da produção e das vendas
frente às greves metalúrgicas.

Do mesmo modo concertam o controle das fontes fundamentais e da


comercialização internacional de matérias-primas. É já hoje conhecida a manobra dos
monopólios petrolíferos em face da crise mundial de combustíveis. Despojados do controle
das fontes principais do combustível, nacionalizadas pêlos governos árabes, os monopólios
petrolíferos, em maioria norte-americanos, fomentam a crise. Visam com isto elevar os
preços baixos do petróleo árabe aos níveis mais elevados do petróleo americano, majorados
pelo esgotamento das reservas mais ricas e acessíveis, tornando em consequência
compensadora sua exploração e valorizadas as demais fontes de combustíveis, o carvão em
particular, já por eles antecipadamente adquiridas. Uma manobra desta envergadura não é
impossível aos monopólios. Entre outras razões porque os governos monopolistas árabes
não dispõem de igual estrutura industrial, financeira e comercial dos monopólios
imperialistas, e, principalmente, os decorrentes meios militares e políticos destes. Mesmo
despojados das principais fontes mundiais de petróleo, e ainda que defrontados na esfera da
comercialização com a OPEP, a conjuntura internacional pertence aos monopólios
imperialistas. Assim, se para os oligarcas árabes a crise significa maior massa de lucros
com a especulação do combustível, para os monopólios imperialistas significa uma chance de
ainda mais ampla hegemonização internacional. Podem, por exemplo, dar-se ao luxo de

113
estimular os árabes a investirem seus petrodólares nas empresas dos próprios monopólios
imperialistas. Quando muito os lucros dos árabes se ampliarão. Para o imperialismo
significa transferir para as oligarquias árabes parte do custeio da liquidez internacional.
Sabem os monopólios imperialistas que no cotejo final a massa da mais-valia confluirá
para onde maior for a taxa da composição orgânica do capital e melhor se tiver superado a
"lei tendencial".

9. "QUESTÃO ECOLÓGICA" E "QUESTÃO DEMOGRÁFICA": O QUE ESTÁ EM


QUESTÃO

A monopolização do trabalho e da natureza em escala mundial determina os termos


da relação homem-meio de nossos dias mesmo na microescala do espaço planetário. Por
traz do arranjo espacial que expressa esses termos, encontra-se o alto grau de concentração
e centralização técnica e financeira com o qual o capital busca superar a permanente
incidência da "lei tendencial" que rege a acumulação monopolista. Encontra-se igualmente
o aguçamento das contradições inerentes ao modo capitalista de produção: o gigantismo
atingido pelo capitalismo em sua fase monopolista de Estado acompanha-se do gigantismo
das suas contradições.

Crescem com o capitalismo monopolista a pauperização relativa do trabalho e


absoluta da natureza. Atuando como lei implacável, o crescimento do capitalismo conduz
ao agravamento da alienação do trabalho e da natureza. A internacionalização da
acumulação de capital internacionaliza as contradições que se agitam no seio da
racionalidade capitalista: o trabalho e a natureza se empobrecem agora na escala mundial.
E tão às escâncaras que o eufemismo do "desequilíbrio ecológico" e do "desequilíbrio
demográfico" à custa-consegue esconder.

A medicação somente serve ao agravamento do mal clínico. As chamadas "questão

114
ecológica" e "questão demográfica" nascem já sob pesada carga ideológica: servem para
esconder a questão real e sua causa.

A expansão territorial imperialista desloca as pressões operárias e concorrenciais


sobre a taxa de acumulação, géneses da "lei tendencial", a novas fontes de força de
trabalho e recursos naturais. Quando a expansão territorial atinge seus limites, os
monopólios imperialistas se lançam à redivisão da retaliação colonial. Submetida à
apropriação e competição monopolistas, a natureza torna-se "escassa". Os monopólios
fomentam a farsa da escassez e devastam as reservas naturais de mais baixo custo e
acesso: primeiramente as terras agrícolas e a seguir os minérios e fontes de energia. De
início barata relativamente ao trabalho e às máquinas, a natureza torna-se progressivamente
mais cara. Sendo capital constante (circulante), este fato só concorrerá para forçar mais
para o alto a taxa orgânica do capital e reativar a "lei tendencial".

Provocando duas guerras mundiais de efeitos catastróficos, a retaliação geopolítica do


mundo só se mostrará válida doravante localizadamente. A intensificação da circularidade
dos capitais e produtos apontará uma outra saída. São necessários, todavia, duas medidas:
l?) deteriorar-se a qualidade dos produtos, para forcar a renovação constante das compras;
2°) estender-se as relações de mercado capitalista ao nível mundial, quebrando-se a
autarcia das relações pré-capitalistas onde ainda exista. Produção em massa de
mercadorias de curta duração combinada a um movimento mundial similar da acumulação
primitiva de capital descrita por Marx para o capitalismo britânico. Em suma, inscrevendo os
termos gerais atuais do desenvolvimento capitalista desigual e combinado.

As cifras atingidas pelas trocas internacionais prefiguram os lucros dos


monopólios, mas a deterioração do produto industrial faz-se acompanhar da deterioração
do trabalho e do meio ambiente. Transferindo a tendência à baixa dos lucros para as
condições de vida da massa dos trabalhadores e do meio ambiente, peja inter-mediação do
Estado, pela monopolização crescente do capital, pela internacionalização do capital ou
pela maior velocidade de rotação dos capitais e produtos, o capitalismo monopolista mais
parece um velho feiticeiro: tudo que faz clama pelo seu contrário. A deterioração do meio
ambiente induz ao maior investimento de capital constante, destinado à "reprodução da

115
natureza" (implementação de técnicas despoluentes; recuperação de solos, mananciais e re-
florestamento; descoberta de novos recursos). A socialização dos investimentos pelo Estado
em benefício dos monopólios acentua o conflito entre o caráter social da produção e o
caráter privado da apropriação da riqueza. A internacionalização do capital internacionaliza a
contradição burguesia e proletariado e aguça as contradições interimperialistas. Reativam-
se a "lei tendencial" e seu ciclo.

A metáfora do feiticeiro lembra porém a do Anteu, em antítese: o capital cresce na


crise.

10. "TOTALIDADE HOMEM-MEIO" E SOCIALISMO

Mas o poder de crescer na crise transfigura-se em exaltação do poder do trabalho.


Cada crise abre a perspectiva dessa compreensão.

Separada dos meios de produção e, por conseguinte, do produto do seu trabalho, a


massa dos trabalhadores protesta contra o ar e a água poluídos, o absurdo dos descartáveis
amontoados nas lixeiras, o enguiço frequente dos eletrodomésticos comprados a prestação,
o aluguel e o preço especulativo da terra, o desperdício dos alimentos pelas classes
abastadas, as firulas do poder sobre as causas e soluções da crise. Inconscientemente ou
não, reage contra o uso do seu trabalho e da natureza que fazem os que deles se apropriam.

Manifestando desse modo sua crítica ao mundo da "crise ecológica", prepara-se


para perceber no processo do trabalho a origem da crise e a estabelecer sob suas próprias
mãos a unidade e o domínio das forças produtivas, do processo global do trabalho, da
totalidade social. A controlar sua própria história.

NOTAS PARA UMA INTERPRETAÇÃO NÃO-ECOLOGISTA DO PROBLEMA


ECOLÓGICO

116
Carlos Walter Porto Gonçalves

"...Do ponto de vista de uma formação económica superior da sociedade (o comunismo), a


propriedade privada do globo terrestre, por parte de alguns indivíduos, parecerá tão absurda
como a propriedade privada de um homem por parte de outro homem. Mesmo uma sociedade
inteira, uma nação, e mesmo todas as sociedades de uma mesma época, tomadas em conjunto,
não são proprietários da terra. São somente seus possessores, seus usufrutuários e têm o dever de
deixá-la melhorada, como Boni Paires Famílias, às gerações futuras..." (K. Marx. O Capital.
Livro III. tomo 3).

A questão ecológica vem a cada dia ocupando um espaço maior em nossas vidas.
Isto se manifesta não só pelo surgimento de movimentos em defesa do verde como também
pêlos anúncios, cada vez mais frequentes, que nos tentam vender "qualidade de vida",
mormente no mercado imobiliário. Estranho paradoxo este da "questão ecológica": todos,
independentemente da sua posição social, incorporam o discurso do verde, do combate à
degradação ambiental, constituindo um verdadeiro modismo. O próprio ex-pre-sidente R.
Nixon, que tinha por detrás uma série de grandes monopólios, dizia que a preservação
ambiental, a qualidade de vida, se constituía na grande meta da sociedade americana nas
próximas décadas. Pensamos que nunca um discurso tenha sido capaz de reunir tantas
opiniões convergentes como o da "questão ecológica". Aparentemente ninguém é contrário
à preservação da "qualidade de vida" e à utilização racional dos recursos naturais. Seria de
esperar que este verdadeiro consenso em torno da questão já deveria ter produzido frutos
concretos, além da publicidade e da criação de uma disciplina escolar como a ecologia.
Todavia, verificamos que se de um lado cresce uma consciência necessária em tomo do pro­
blema, de outro, observamos que esta tomada de consciência apenas não é suficiente para o
superar.

Antes de qualquer outra coisa, é preciso dizer bem claramente que este não é um
problema recente. Em 1844 F. Engels já abordava a questão em seu excelente livro A
Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Assim, enquanto o problema do ar
poluído, do barulho, da água infectada, das casas insalubres foi sentido exclusivamente
pela classe operária, poucos foram os que se levantaram para o apontar e combater. Hoje,
quando o capitalismo se aprofundou e a poluição já não atinge somente a classe operária,
mas também aos segmentos da pequena-burguesia — a chamada classe média — a

117
degradação da natureza ganha espaço nos jornais, nas emissoras de rádio e televisão. Em
síntese, invade através do discurso todos os cantos. Eis aí a primeira razão para tanto estar­
dalhaço sobre o tema. Se tivéssemos visitado as favelas e os bairros periféricos de nossas
cidades há cerca de 20 ou 30 anos atrás, veríamos que o problema, de fato, não é novo,
nem é simplesmente um problema ecológico. . .

Coloca-se-nos, pois, uma primeira e fundamental preocupação: como abordar esta


questão nos quadros de uma relação social contraditória entre o capital e o trabalho? Tal
colocação, no entanto, talvez possa levar a que todo um setor significativo do movimento
ecológico nos lance na rubrica de "marxistas dogmáticos", que tudo reduzem à luta de
classes. Todavia, já foi observado que ninguém transforma o mundo por um ato de
vontade, embora também não se possa transformar o mundo sem um ato de vontade. . .
Algo, além da vontade, parece ser necessário à superação do tal "problema ecológico",
ainda mais quando se trata de um destino a ser dado à natureza, isto porque a natureza é
incapaz de lutar pela sua própria preservação. A pergunta que nos devemos fazer efeti-
vamente é, pois, a de que setores da nossa sociedade são capazes de assumir esta bandeira
e levá-la conseqüentemente à vitória.

Acreditamos, por outro lado, que certos elementos que se auto-proclamam


marxistas têm em muito sido responsáveis pela hegemonia ideológica burguesa e pequeno-
burguesa nos chamados movimentos ecológicos, pela maneira estreita (e diríamos não
marxista) com que abordam o problema, limitando-se displicentemente a constatar que o
problema ecológico é uma contradição secundária e ponto final. Ora, uma contradição
secundária não é um fenómeno completamente desvinculado da chamada contradição
principal (capital X trabalho). Na verdade, a contradição principal do capitalismo se
manifesta de diversas formas. Identificá-las e demonstrar suas articulações internas é uma
das exigências teórico-metodológi-cas do materialismo histórico e dialético.

A contradição estrutural do capitalismo se manifesta nos diversos momentos do seu


processo de produção/reprodução, constituindo suas formas concretas de existência. Seja
através da luta dos trabalhadores por melhores salários e estabilidade no emprego, na luta
dos trabalhadores do campo pela terra, nos movimentos de bairro para conseguir os

118
equipamentos coletivos necessários como hospital, escola, água, luz e esgoto, seja na luta
pela qualidade dos alimentos que consumimos ou contra a degradação ambiental, o que
temos, na verdade, é a contradição fundamental do capitalismo se expressando em cada
momento da produção/reprodução social, invadindo todos os campos da prática cotidiana
dos indivíduos, grupos e classes sociais, onde a história se faz no dia-a-dia.

É isto que precisamos recuperar ao nível da análise — já que as contradições sociais


se manifestam na aparência como fenómenos isolados — restabelecendo as suas
articulações ao nível da consciência.

O desenvolvimento do capitalismo, que desde os seus primórdios jogava todo o seu


peso sobre as costas dos trabalhadores, começa também a implicar, na sua fase superior, a
depredação a olhos vistos da natureza. Ironicamente, o desenvolvimento de forças
destrutivas torna-se condição de preservação e reprodução do sistema.

É preciso ir além daquela formulação tão em voga nos movimentos ecológicos de


que os homens estão destruindo a natureza. Se um trabalhador opera uma serra elétrica
que derruba milhares de árvores em algumas horas, não se pode responsabilizá-lo por
este ato sem que enfoquemos as relações sociais sob as quais vive. Todo o disfarce liberal
e democrático do capitalismo se esvai quando se transpõe o portão de uma fábrica ou de
qualquer empresa. Todos sabem que as diretrizes que se impõem ao processo de trabalho
são da inteira responsabilidade do proprietário ou de seu preposto, cabendo ao conjunto
dos que operam — os operários — cumprir tais determinações. Mas este é só um aspecto
do problema: os homens livres no capitalismo só o são formalmente, uma vez que a
existência neste tipo de sociedade só é possível na medida em que não se existe para si
mas para o capital. Se a responsa bilidade pelo desmatamento indiscriminado deve ser
atribuída a alguém, deve ser àqueles que detêm em caráter privado a propriedade da terra
(a qual, diga-se de passagem, não é produto do trabalho de ninguém) e da serra elétrica,
podendo, por isso, se apropriar do resultado do processo de trabalho. O que efetiva-mente
é explorado é o trabalho e não a natureza, posto que esta sem trabalho não produz
qualquer riqueza.

119
Todavia, não podemos enveredar por um caminho extremamente perigoso que é o
da condenação moral do capitalismo, à sua maldade inerente, como se a burguesia fosse
composta de seres desprovidos de boa razão e bons sentimentos e, por isso, incapaz de
fazer o mundo caminhar no "bom sentido". Se o modo burguês de produção é incapaz de
resolver este problema da ecologia não é, evidentemente, por essas razões. Trata-se, na
verdade, de um problema estrutural que, em síntese, se assenta no caráter privado da
produção capitalista, onde cada empresário age por sua própria cabeça com vistas à
chamada "tuilização ótima" dos recursos de que dispõe, objetivando ganhar a concorrência2.
Esta verdadeira "anarquia" do modo capitalista de produção levou a que muitos,
ingenuamente ou não, acreditassem na solução mágica do planejamento. Só que o
planejamento se constitui numa forma superior de relacionamento entre as classes e, no
interior do capitalismo,, foram os monopólios os impulsionadores de um maior
comprometimento da máquina do Estado com a racionalização do uso dos recursos.

Como a racionalidade não é um princípio a-histórico, a racio-nalidade que se impôs


foi a do grande monopólio que cada vez mais captura os aparelhos de Estado como
articuladores de suas estratégias. Isto se manifesta na crescente participação do Estado na
criação das chamadas condições gerais de produção. O Estado de todos, o Estado Leviatã,
que paira acima dos interesses de classe, o Estado Neutro, responsável pelo bem comum, se
ainda existia para alguns (não para nós) perde completamente o sentido. Daí . decorre a
crescente politização de todas as questões face ao caráter de classe do Estado. Assim,
como diz P. Baran, não é o planejamento que planeja o capitalismo, mas o capitalismo que
planeja o planejamento. Todos devemos estar lembrados da interven cão do Estado no
Município de Contagem-MG durante o Governo Geisel; do comprometimento do Governo
com a política de ocupação da Amazónia através de seus projetos Jaris; da política de
incentivos fiscais para reflorestamento com pinus elliotis e eucaliptos para a produção de
celulose, isto para citar apenas alguns exemplos...

O FUNDAMENTO DA APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: O PROCESSO DE TRABALHO

120
É sabido que o processo de trabalho, fonte criadora de riquezas, pressupõe, antes de
mais nada, o homem e a natureza. Neste processo, "o ser humano, com sua própria ação,
impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Põe em movimento
as forças naturais de seu próprio corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de se
apropriar dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando
assim sobre a natureza externa e modificando-a ao mesmo tempo, modifica sua própria
natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo
das forças naturais". A satisfação das necessidades humanas é, portanto, o fim último do
próprio processo de trabalho ou, em outras palavras, dar à natureza uma forma útil à vida
humana constitui a essência do processo de trabalho. "Como produz valores de uso e é útil,
o trabalho, independentemente de qualquer forma de sociedade, é a condição indispensável
da existência do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a
natureza e o homem".

Numa esclarecedora passagem dos Grundrisse, Marx diz que "a natureza não constrói
máquinas, locomotivas, estradas de ferro, telégrafos elétricos, etc. Esses são os produtos da
indústria humana; matéria natural transformada em órgão de execução da vontade do
homem sobre a natureza ou de sua participação na natureza. São órgãos criados pela mão
do homem, pelo cérebro humano: ciência objetivada".

Como se vê, as forças produtivas são produzidas; são o produto e o instrumento da


atividade prático-teórica do homem nas suas relações com a natureza que é a substância de
todo o progresso da humanidade.

Quando se assinala que o trabalho, independentemente de qualquer forma de


sociedade, é a condição indispensável da existência do homem, chamamos a atenção apenas
para um lado da questão, que é o fato de ser o trabalho concreto a fonte de valor de uso
indispensável à existência do homem. A isso K. Marx chamou trabalho produtivo, tomando o
cuidado de salientar que esta concei-tuação de trabalho produtivo não cabia para a
sociedade capitalista. O fato de Marx ter enfatizado a articulação entre trabalho produtivo e
produção de valores de uso levou uma série de "marxistas" a entenderem as forças produtivas
simplesmente como coisas, isto é, como um conjunto de objetos, como máquinas, que

121
podem ser medidos segundo critérios estatísticos objetivos, como a produtividade e outros
índices. Assim, o critério de avaliação do grau de desenvolvimento das forças produtivas
passou,'a ser a quantidade de riqueza produzida, proporção de megawatts, e daí por diante...

Tal postura encerra, evidentemente, uma perspectiva positivista do marxismo, pois


não vê os dois lados do "indivíduo social", qual sejam as forças produtivas e as relações
sociais de produção. Afinal de contas, no momento em que o processo produtivo se
desenvolve, o homem não se encontra diante de coisas como a natureza e as máquinas, mas
diante de outros homens. A natureza, numa sociedade de classes, não está à disposição dos
homens em geral, mas do proprietário.

A máquina, embora seja um valor de uso em qualquer forma de sociedade, é, no


caso do modo de produção capitalista, capital, isto é, uma relação social que concentra nas
mãos de alguns o que expropriaram de outros, estes, reduzidos assim a esta condição de
expropriados, têm de vender a sua força de trabalho. O uso da máquina e da força de
trabalho não é um uso qualquer, mas um uso capitalista, isto é, um uso determinado pela
lógica da valorização do capital e não pela lógica da satisfação das necessi dades humanas.
Chegamos aqui a um ponto importante da questão: No capitalismo a natureza do processo
de trabalho é transfigurada, passando a ser "trabalho produtivo" aquele que valoriza o
capital e não aquele que satisfaz necessidades humanas. A natureza como um dos
elementos das forças produtivas é deteriorada na própria medida em que a natureza do
processo de trabalho é subvertida pelo capital — de produtor de valores de uso em
produtor, fundamentalmente, de valores de troca.

O capital é uma relação social que pressupõe o trabalho assalariado e para que este
seja constituído torna-se necessária a expropriação do trabalhador dos seus meios de
produção. Esta separação entre trabalhador e meios de produção está na base do
capitalismo, pois o homem que dispõe de meios próprios de produção não se subordina ao
capital, não precisa, portanto, vender a sua força de trabalho. O primeiro modo de
manifestação desse fenómeno é a desterritorialização do trabalhador, quando ele é arrancado
da sua relação com a natureza, com a terra. Ora, na medida em que o homem não dispõe de
seus meios de produção, todas as suas necessidades terão de ser satisfeitas através do mer­

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cado, de uma relação mercantil.

E o que regula as trocas numa sociedade capitalista é a quantidade de trabalho


socialmente necessária à produção das mercadorias e não o seu valor de uso. Isto é, um
trabalho qualitativamente indiferenciado, posto que na sociedade capitalista é a quantidade
de trabalho socialmente necessário (trabalho abstrato) que determina se os trabalhos
concretos, que produzem valores de uso, são ou não necessários socialmente. . . Eis a
contradição valor de uso X valor de troca expressa em sua plenitude, significando, em
termos práticos, a contradição entre satisfação das necessidades humanas (trabalho concreto
= valor de uso) e necessidade do capital se valorizar (regulado pelo trabalho abstrato =
valor de troca). Contradição entre trabalho concreto — que forja um produto com
determinada substância físico-orgânica — e trabalho abstrato medido pelo tempo, em sua
quantidade socialmente necessária e indiferente à sua forma material. O que importa no
capitalismo é a realização da mais-valia contida na mercadoria. . .

Quanto mais o homem se encontra separado da natureza, mais e tem que suprir as
suas necessidades através de uma relação ercantil. O verde deixa de ser um bem que
exista à disposição ï todos os homens. É preciso destruir o verde para que ele se »rne
mercadoria. A verdadeira indústria de plantas ornamentais, .o presente nas nossas grandes
cidades, não pode sobreviver onde idos tenham acesso ao verde. Parece-nos agora claro
por que as npresas imobiliárias, exatamente aquelas que mais derrubam as mais, têm na
ideologia do verde e da "qualidade de vida" os seus rincipais apelos de publicidade. O
mesmo poderia ser dito das idústrias de máscaras de oxigénio que só sobreviverão
enquanto ar for poluído, pois no dia em que o ar for puro não mais ;rão razão de existir.

Portanto, ao separar o homem da natureza, o capitalismo se Toduz e reproduz, assim


como cria necessidades novas que fun-amentam a sua existência enquanto modo de
produção de mer-adorias. A separação entre homem e natureza, o fato da exis-ência só
poder ser garantida na medida em que se é para o apitai e não para si mesmo, a
determinação da produção pelo rabalho abstrato e não pelo trabalho concreto, são os
fundamentos listóricos, sócio-econômicos da alienação. Esta verdadeira subver-;ão da
natureza do processo de trabalho efetuada pelo capitalismo ;stá indissoluvelmente articulada

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ao processo de degradação ambiental.

A dinâmica da acumulação do capital implica alterações na com-Dosição orgânica


do capital, isto é, o aumento do "trabalho morto" (máquinas) em relação ao "trabalho vivo"
(força de trabalho) que, por sua vez, é o fundamento da lei tendencial da queda da taxa de
lucro, essa espécie de nêmesis do capitalismo. O paradoxo de uma sociedade que vive do
lucro apresentar uma tendência à queda da taxa de lucro — reconhecida por diversas
correntes do pensamento económico, não só pela marxista — impele o capitalismo a
desenvolver mecanismos contratendenciais a esta lei. Além da intervenção do Estado na
criação de condições gerais de produção,no arrocho salarial e da pressão sobre as
organizações de defesa dos interesses dos trabalhadores – sindicatos e partidos politicos – se
coloca como uma necessidade imperiosa do capital o seu desenvolvimento intensivo,
aprofundando a divisaõ do trabalho – e com isso acentuando a socializaçao capitalista das
forças produtivas – o lançamento de novos produtos no mercado, ao mesmo tempo, a
expansao geografica do capital para novas regioes e setores – a agricultura, por exemplo —
o desenvolvimento de um sofisticado sistema de crédito e publicidade, assim como a já
conhecida técnica do obsoletismo planejado. Daí os automóveis e eletrodomésticos que a
cada dia que passa duram menos, sendo exatamente para esses produtos que os sistemas de
crédito e publicidade mais se têm desenvolvido.

De onde saem as matérias-primas destinadas à produção de automóveis, televisores,


refrigeradores, aparelhos de som, etc., que cada vez mais rapidamente se deterioram? Qual
o sentido do trabalho efetuado por um operário para fabricar produtos que ao invés de nos
servir indefinidamente têm que ser frequentemente substituídos porque o capital requer que
se continuem sistematicamente a produzir, planejando o seu obsoletismo? Que ciência é
essa que se presta a fins de programar os indivíduos para comprarem produtos que uma
outra ciência ajudou a fazer com que se tornassem deterioráveis mais depressa, enquanto
um outro ramo do saber ajudou a facilitar o crédito para comprar, comprar e comprar?. . .
Fica evidente que o trabalho perdeu o sentido de produzir coisas úteis e a natureza, como
corpo inorgânico do homem, também vai sendo mutilado/a em virtude desse princípio de
produzir para o lucro, por esse consumismo desenfreado — maldosamente apresentado
pêlos meios de comunicação de massa como materialismo — enquanto milhões de seres

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humanos famélicos assistem à natureza servindo aos fins espúrios do capitalismo. Isto para
não falar do militarismo que a cada dia absorve proporções maiores dos orçamentos dos
governos, pressionados pêlos grandes grupos monopo-lísticos, não por razões de defesa,
como alegam, mas devido ao crescimento desigual entre os diversos setores da economia
capitalista, principalmente quando o departamento I — indústria de bens de produção —
precisa cada vez mais da garantia do Estado, das suas encomendas, para manter as suas
taxas de lucro. É claro que a "ameaça do comunismo" é sempre apresentada como justi­
ficativa para a elevação dos investimentos bélicos. Todavia, qualquer um que faça uma
investigação séria a respeito do desenvolvimento capitalista verá que a tendência à
militarização é inerente ao capitalismo, independentemente da existência dos movimentos
socialistas.

Nenhuma atividade económica é tão claramente destrutiva como a indústria bélica,


mas não é somente ela que apresenta tal característica, como já vimos anteriormente. O
desenvolvimento capitalista parece cada vez mais se apoiar em tudo aquilo que nega a vida,
não só exigindo dos homens que produzam coisas para a destruição, como também
produzindo coisas cuja única razão é manter o capitalismo de pé.

É neste sentido que podemos falar que a luta pela preservação ecológica é uma luta
pelo socialismo. E a luta pelo socialismo deixa de ser uma utopia e se torna uma
necessidade: a construção de um mundo dos homens para os homens.. .

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