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Introdução
Nossa proposta, para este artigo, é tecer algumas considerações sobre a estrutura
de três contos de Fagundes Varela (1841-1875), atendo-nos essencialmente ao espaço e
às personagens. Ao longo do texto, buscamos demonstrar que, apesar da presença de
elementos pertencentes ao universo de horror nos três contos, eles não desempenham a
mesma função. O que se pretende, sobretudo, é destacar as técnicas usadas pelo escritor
fluminense no que se refere à criação da atmosfera narrativa.
Apesar de a Noite na taverna,1 de Álvares de Azevedo (1831-1852), ser
reiteradamente lembrada como obra emblemática da literatura fantástica brasileira do
século XIX, recentemente, os estudos literários buscam ampliar esse quadro. Entre as
narrativas que, nos últimos anos, têm recebido atenção estão os contos As Ruínas da
Glória, A Guarida de Pedra e As Bruxas, do escritor fluminense Luís Nicolau Fagundes
Varela (1841-1875). Tais histórias foram originalmente publicadas em folhetim ao longo
de 1861, no Correio Paulistano, pouco tempo depois de vir a lume a obra de Álvares de
Azevedo, junto da qual constituem os fios tênues dessa tradição literária no Brasil.
Nas Ruínas, a ação tem início com três amigos bebendo e conversando dentro de
um botequim, enquanto, do lado de fora, a noite é castigada pela tempestade. Ao entrar
na taverna um homem, o qual o narrador nos descreve como uma figura estranha, tem-
se o ponto de partida para os eventos que levam a história ao insólito. A cada aparição
dessa personagem, da qual não se sabe sequer o nome, descrevem-se o seu aspecto
físico ou o efeito de sua presença sobre os demais. Os amigos, cuja curiosidade fora
atiçada pela presença do homem, resolvem segui-lo até as ruínas de um velho
seminário, local onde, segundo o taberneiro lhes havia informado, vivia o estranho. Ao
chegar à entrada da velha construção, um deles, Alberto, se adianta e desaparece no
interior do prédio em ruínas. Enquanto os outros o procuram, acabam encontrando o
homem que seguiram até ali e o ouvem narrar a triste história de sua filha morta na flor
dos anos, prestes a se casar. Ouvem-no também dizer que ali, todas as noites, produzia-
se “um drama de lágrimas e de sangue” (VARELA, 1961, p. 140). Pouco tempo depois,
1
Volume publicado postumamente, em 1855.
reencontram Alberto, que tem febre e parece delirar. Em alguns dias, o jovem morreria,
mas não sem antes descrever ao narrador o que vira nas ruínas do prédio: uma noiva
fantasmagórica pela qual se sentira fatalmente atraído. No final do conto, há uma
espécie de epílogo, em que, dois anos após a morte de Alberto, o narrador – que também
participara da aventura – revê o morador das ruínas em um hospício e, informado de que
ele havia assassinado a própria filha na véspera do casamento, sai de lá correndo como
um “doido” (VARELA, 1961, p. 150).
Na Guarida, o insólito surge de outra forma. Há duas camadas narrativas, em
que a história propriamente dita só começa depois de uma espécie de preâmbulo, em
que o narrador resolve visitar um amigo, um grande contador de histórias. O espaço é
Bertioga, no litoral paulista: uma fortaleza feita de uma só pedra, onde muitos soldados
diziam ter visto uma procissão de fantasmas, motivo pelo qual, tomados pelo medo,
recusavam-se a passar a noite naquele lugar. Havia, porém, entre eles um soldado que se
oferece para fazer a guarda. À meia-noite, conforme seus companheiros haviam
relatado, surge uma procissão de fantasmas. Os outros soldados ouvem um estampido
vindo da guarida, mas eles, com medo, esperam a chegada da manhã para verificar o
que havia ocorrido. No dia seguinte, encontram apenas o capote do soldado e sua
espingarda, “com o cano quebrado e torcido como se fosse de cêra” (VARELA, 19--, p.
298). Nesse ponto, termina a narrativa central, e, em sequência, vem o epílogo. O
narrador do primeiro plano retorna para sua vida, deixando em Bertioga seu amigo
contador de histórias.
O conto As Bruxas se inicia com uma série de comentários gerais sobre a
natureza das bruxas, entremeados de citações literárias feitos pelo narrador. Após essa
introdução, que é cerca de um quarto da história propriamente dita, o narrador no-la
apresenta como uma lenda já conhecida. A narrativa toda se resume a praticamente um
episódio: um navio e sua tripulação levados por bruxas a uma terra distante. Sob o poder
das feiticeiras, o navio avança vertiginosamente e logo chega a uma costa. As bruxas,
antes horrendas e agora metamorfoseadas em belas moças, andam sobre as águas até a
margem, seguidas pelos marinheiros, em escaleres. Lá encontram um cenário
inesperado, onde se veem “homens e mulheres de olhos negros e scintilantes” e de “face
redonda e bronseada” dançando ao redor de uma fogueira (VARELA, 1861, s.l.). A
estranha dança acontecia ao som de instrumentos igualmente estranhos para os
marinheiros. Quando as feiticeiras voltam para o navio, eles novamente as seguem,
colhendo no caminho algumas plantas, para que soubessem em que terras haviam-se
aventurado. A embarcação retorna ao porto do qual havia partido com a mesma
velocidade que espantara os tripulantes na viagem anterior; as feiticeiras voltam a suas
horrendas formas originais e partem em suas vassouras. Posteriormente, os marinheiros
contam o ocorrido ao capitão, mostrando-lhe as plantas colhidas na terra para onde as
feiticeiras os haviam levado e descobrem que estiveram na Índia. Diferente dos outros
dois contos, a narrativa de As Bruxas não se situa em um lugar específico do Brasil, pois
o cenário se desloca para o longínquo Oriente, com seu ar enigmático e, nesse caso em
particular, designado como a terra das feiticeiras.
Personagens
Espaço
O espaço onde ocorrem as histórias faz parte de ambientes familiares aos leitores
do Correio Paulistano7. O interessante a respeito dos contos de Fagundes Varela é que a
narrativa se desenrola no Brasil, o que confere à história um efeito particular por se
7
Segundo Edgar Cavalheiro (19--, p. 78), no caso das Ruínas, o cenário poderia ser observado quase
conforme descrito no conto.
passar em um ambiente mais próximo dos leitores. Imaginemos o estágio de
urbanização da São Paulo de meados do século XIX: o efeito literário do espaço da
narrativa é dado tomando-se como inspiração o próprio efeito que a paisagem real
poderia causar: “A Glória foi antigamente um dêsses templos vastos e sombrios, que nos
países cristãos muitas vêzes sói encontrar-se longe do bulício das cidades no seio das
montanhas, nas planícies ou nas margens dos rios” (VARELA, 1961, p. 136).
Além disso, a descrição subjetiva do lugar busca imprimir na mente do leitor
uma imagem que se coadune com o a hesitação das personagens. O lugar é “triste” os
ventos da tempestade flagelam a torre e sacodem as árvores, formando vultos ao fundo
do cenário assustador (VARELA, 1961, p. 137). Ao lado desse quadro sombrio que se
exibe ao leitor, há uma intervenção feita por Alberto. O mais destemido dos três amigos
recita uma poesia de Goethe, o que, mais uma vez, reporta à manutenção.
A descrição do cenário em que ocorre o encontro fatal para Jorge, como se vê,
não é marcada por impressões nem por algum efeito sombrio, enigmático, como nas
Ruínas, mas é também importante notar que, assim como ocorre no caso do velho
seminário, a fortaleza é um lugar ermo, o que, como já se disse, favorece a criação de
uma situação fantástica: os moradores das redondezas relatavam “vizões” e descreviam
“espectros medonhos” vistos ali (VARELA, 19--, p. 296).
Nas Bruxas, o espaço – a princípio, local – desloca-se para um lugar
desconhecido, posteriormente identificado como sendo a Índia. Quando, após a insólita
viagem, chegam a uma margem, ouvem estranhos sons vindos de longe, que aos poucos
aumentavam, e sentem um “perfume voluptuoso e sensual”. Seguindo o som e o
perfume, acabam encontrando um cenário inesperado:
Referências
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.