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1. Agostinho e o Maniqueísmo
Como, pois, podemos pensar sobre o mal de tal modo a reconhecer o seu
poder opressivo e ao mesmo tempo preservar a plena doutrina cristã de Deus
como o Regente soberano de tudo? A resposta de Agostinho foi sugerida a ele
pelo neoplatonismo para o qual ele se voltou quando renunciou ao maniqueísmo
e que, depois da sua conversão ao cristianismo, parecia-lhe ainda entre todas as
filosofias a que era a mais próxima da verdade cristã. Presumivelmente, ele
recebeu as doutrinas neoplatônicas a respeito do mal sobretudo dos escritos de
Plotino (204 – 270 d.C.), que encontram vários ecos nas próprias páginas de
Agostinho, e lançarão luz sobre a própria teodiceia agostiniana se nós a
abordarmos por meio de uma breve consideração do modo como Plotino lida
4
com o mesmo conjunto de problemas.
2. A Teodiceia Plotiniana
2
E.g., A Cidade de Deus, xix. 4
3
Confessions, vii. 5, traduzido por Albert C. Outler in: Augustine: Confessions and
Enchiridion, Londres: S.C.M. Press Ltd.; e Filadélfia: The Westminster Press, 1955. [cf.
Agostinho: Confissões, São Paulo: Ed. Paulus, 2014]
4
Para uma discussão sobre o desenvolvimento da atitude de Agostinho em relação a
Plotino, veja Régis Jolivet, Lé Problème du Mal d’après saint Augustin, Paris: Gabriel
Beauchnesne et fils, 2a ed., 1936, apêndice: “Saint Augustin et Plotin”.
a Natureza dos Seres e Daquilo que transcende todo o reino do ser é tal
que o Mal não pode ter lugar entre os Seres ou no que está além dos
Seres; esses são bons. Se o mal existe, pode-se apenas dizer que ele é
situado no lado do não-Ser, que ele é de algum modo, por assim dizer,
Não-Ser, que ele está situado em contato com o Não-Ser ou que em certo
grau se comunica com o Não-Ser. Por “Não-Ser”, obviamente, não se
quer dizer algo que simplesmente não existe, mas algo de uma ordem
totalmente diferente do Ser-Autêntico... Alguma concepção dele pode ser
formada se pensarmos no que não tem medida como oposto ao que tem
medida, no não limitado em oposição ao que é limitado, no que não tem
forma em oposição ao princípio de forma, no que é sempre privado de
algo em oposição ao autossuficiente: pense no que nunca é definido,
nunca está em repouso, que tudo aceita mas nunca está satisfeito,
5
absoluta escassez...
Dado que o Bem não é a única forma de existir, é inevitável que, pela
emanação a partir dele ou, se for preferível outros termos, pelo contínuo
defluir e afastar-se dele, teria de ser produzido um Último, depois do
qual nada mais poderia ter sido produzido: esse será o mal. Assim como
há, necessariamente, algo depois do Primeiro, há, necessariamente, um
Último: esse último é a Matéria, que não contém resíduo do bem em si: e
6
essa é a necessidade do Mal.
Enneads, Londres: Faber & Faber Ltd., 3a ed., 1962, i. 8, 3 (traduzido por Stephen
5
MacKenna). [cf. Baracat Jr., J.C., Plotino, Enéadas, I, II e III; Porfírio, Vida de Porfírio:
Introdução e Notas, Tese de Doutorado do Curso de Linguística do Instituto de Estudos da
Linguagem da Unicamp.]
6
Enéadas, i. 8, 7.
sua forma pelas Ideias, não se pode nem mesmo dizer que a matéria exista.
“Eliminemos totalmente todo tipo de Forma; e o objeto no qual não há nenhuma
7
Forma chamamos de Matéria”. “A Matéria não tem nem mesmo existência em
função da qual ela teria alguma parte no Bem: o Ser é atribuído a ela por um
8
equívoco, sendo, pois, verdadeiro dizer que ela não é”.
10
Enéadas, i. 8, 3.
11
Ibid. I. 8, 5
12
Ibid. i. 8, 4.
13
A. D. Sertillanges, O.P., Le Problème du Mal, vol. 1, “L’ Histoire”, Paris: Aubier,
1948, p. 124.
14
Ibid.
15
Ibid. p. 125.
16
W. R. Inge, The Philosophy of Plotinus, Londres: Longmans, Green & Co., 3a ed.,
1929, i. 134.
3. A Bondade da Ordem Criada
Entre os seres que existem, e que não fazem parte da essência de Deus
Criador, aqueles que têm vida são colocados acima daqueles que não a
têm; aqueles que têm o poder de gerar, ou mesmo de querer, acima
daqueles que carecem dessa faculdade. E, entre as coisas que têm vida,
as sencientes são superiores àquelas que não têm sensações, como os
animais são ranqueados acima das árvores. E, entre os sencientes, os
inteligentes estão acima daqueles que não têm inteligência – os homens,
e.g., sobre o gado. E entre os inteligentes, os imortais, tais como os
18
anjos, sobre os mortais, tais como os homens.
A ordem das criaturas procede do alto até em baixo por graus justos, de
tal forma que é uma marca da inveja dizer: aquela criatura não deveria
existir, e igualmente é dizer: que alguma deveria ser diferente. É errado
querer que algo devesse ser como outra coisa superior na escala, pois ela
tem o seu ser, perfeito em seu grau, e nada deveria ser acrescentado a
ela. Aquele que diz que uma coisa deveria ser diferente do que é, ou quer
acrescentar algo a uma criatura superior já perfeita, e nesse caso ele
carece de moderação e justiça, ou quer destruir a criatura inferior, e é
por isso mau e ressentido, pois quer que uma criatura inferior não exista,
criatura que ele deveria realmente louvar. Por exemplo, a Lua é
certamente muito inferior ao Sol na clareza de sua luz, mas de seu
próprio modo ela é bela, adorna a escuridão terrestre, e é apropriada
aos afazeres noturnos.... Se ao invés de dizer que a Lua não deveria
existir ele dissesse que a Lua deveria ser como o Sol, o que ele realmente
diria sem o saber não é que não deveria haver qualquer Lua, mas sim
que deveria haver dois Sóis. Nisso há um erro duplo. Ele quer
acrescentar algo à perfeição do universo, visto que deseja outro Sol. Mas
ele também quer tirar algo da perfeição do universo, visto que quer sumir
20
com Lua.
20
O Livre-Arbítrio. III. ix. 24. Veja III. ix. 25 e III. v. 13.
Deus, a ideia de que pode haver uma força independente do mal ou uma
resistência ao bem no universo, coeterna com o Todo-Poderoso, que explicação
ofereceria Agostinho para a presença indubitável e para o poder do mal? A sua
resposta – adaptada e não adotada de Plotino – é que o mal não é qualquer tipo
de substância ou força positiva, mas consiste, antes, em uma disfunção na
criação de Deus em algumas das suas partes. O mal é essencialmente o mau
funcionamento de algo que em si mesmo é bom. Pois “omnis natura bonum
21
est”; e ainda assim tudo além de Deus mesmo é feito a partir do nada, é
mutável e passível de corrupção; e o mal é precisamente essa corrupção de um
bem mutável.
21
Enchiridion, iv. 13.
22
A Cidade de Deus, xiv. 13. Veja xii. 1 e 8; The Nature of the Good, i, x e xlii.
23
Veja J. H. S. Burleigh, The City of God, Londres: Nisbet & Co., 1949, p. 77.
24
The Nature of the Good, xxv.
5. O Mal Privativo e Parasitário
Quando esse mau funcionamento ocorre, não se pode dizer que ele exista
como uma entidade separada; pelo contrário, ele é a ausência de ser apropriado
em uma criatura. Assim, “O mal não tem uma natureza positiva; mas é a perda
27
do bem [amissio boni] que recebeu o nome de “mal””. O mal é negativo, uma
falta, uma perda, uma privação.
Portanto, tudo o que existe é bom. Mas muitas coisas são agora piores do
que eram quando vieram pela primeira vez das mãos do Criador. Elas se
distanciaram dos seus estados originais e perderam uma parte do valor que Deus
lhes infundiu. Essa diminuição no bem ou a corrupção da natureza de alguma
entidade significa que a coisa em questão tenha naquela medida se tornado má.
Pois o mal é privatio boni; ele é a ausência de bem que prevalece quando algo
abandonou o modo de ser que lhe é próprio conforme a intenção criativa de
Deus. Agostinho, portanto, acentua o caráter secundário e dependente, como
também negativo e privativo, do mal: “não pode haver o mal se não houver o
bem... Nenhum mal existe em si, mas só como um aspecto mau de alguma
entidade efetiva... Os males, portanto, têm a sua fonte no bem, e a não ser que
30
eles sejam parasitários de algo bom, eles não são algo”. O mal é assim
fundamentalmente auto-anulador e absurdo; pois à medida que é bem sucedido,
pode apenas destruir aquilo com o que vive. Portanto, uma entidade totalmente
má não poderia possivelmente existir; à medida que algo tem ser, trata-se de
algo bom, e se não tivesse bondade, não poderia, afinal, existir. “Se o bem é tão
diminuído a ponto de ser totalmente consumido, assim como não sobra um bem,
31
também não sobra qualquer existência.”
33
A Cidade de Deus, vii. 6.
34
Confissões, vii. 12, 18.
possam diferir em valor moral ou estético ou em importância metafísica,
considerados simplesmente como coisas existentes, cada um conta apenas como
um. No entanto, há pelo menos uma abordagem do conceito de “ser” ou
“existência” como capazes de graus quando, por exemplo, falamos do poeta ou
do gênio existindo, ou vivendo, mais intensamente do que outras pessoas. Há
aqui um uso avaliativo de “existir”; quanto mais intensa é a existência, maior é
o valor. E um uso desses poderia ser estendido para e elevado até a definição
neoplatônica de “ser” e “bem” como sinônimos.
Lendo Agostinho com essa distinção em mente, poderia parecer que ele
ilicitamente a viola tratando os dois conceitos como sendo apenas um, pois ele
repetidamente diz que se uma entidade perdesse toda a sua bondade, ela cessaria
35
de existir. (Por exemplo, “si omni bono privabuntur, omnino non erunt”. ) Mas
os graus em que as entidades criadas se aproximam de Deus claramente não são
graus de pura existência. O babuíno, por exemplo, é inferior ao homem na
escala de bens, mas não é, correspondentemente, menos existente. Ele não é, em
comparação com o homem, uma criatura sem densidade, sem consistência,
pouco real, mas, sim, pleno de carne e ossos sólidos, movendo-se com sangue e
energia física. Um babuíno existe assim como o homem – ou, antes, visto que a
existência não admite graus, temos simplesmente de dizer que ambos existem.
Por outro lado, um homem é mais valioso do que um babuíno e, portanto,
incorpora mais existência no sentido em que o “ser” conota valor. Mas se essa
distinção é negligenciada, pode-se concluir, erroneamente, que se uma coisa
perde a sua cota (axiológica) de ser, ela, por isso, deixa de existir. E pode-se
ficar tentado a ver Agostinho como cometendo precisamente esse erro.
Penso, no entanto, que isso seria uma injustiça. Não havia para Agostinho
essa pura existência. Ele sustentava que a existência sempre e necessariamente
exibe certos atributos categóricos que são intrinsicamente valorosos, o mais
36
fundamental deles sendo “medida, forma e ordem” (modus, species, ordo) .
Existir é possuir algum grau de medida, forma e ordem, e esse grau indica o
lugar que a criatura ocupa na escala dos bens:
37
The Nature of the Good, iii. Veja A Cidade de Deus, xi. 15.
que criaturas espirituais, mesmo as más, devam existir para sempre, a sua
resposta será que essa species particular, exibindo o seu próprio modus de ser e
conformando-se a uma ordo que é ou a dos justos levando à felicidade ou a dos
maus levando à punição, é boa, e faz a sua própria contribuição para compor o
bem do universo criado.
Em certo sentido, não é inteiramente incorreto dizer que é isso o que faz
Agostinho. Mas se escolhermos colocar a sua posição nesses termos, temos de
dar grande peso ao novo modo de pensar que Agostinho defende. Pois a sua
doutrina privativa do mal é parte de um quadro metafísico global do universo, e,
se escolhermos vê-la como uma recomendação linguística, nós temos de
reconhecer que o que ele recomenda não é nada menos do que toda a
interpretação cristã da vida. Pois a concepção privatio boni recebe o seu
significado e a sua validade de um contexto de pressuposições
caracteristicamente cristãs (e judaicas). Ela se conecta diretamente com a ideia
de criação ex nihilo. Visto que o universo foi criado por um Deus onipotente e
bom, o que é o mal? Ele não pode ser algo substancial, um constituinte positivo
do universo, podendo ser apenas uma perda de “medida, forma e ordem”
naturais, um mau funcionamento de algo que é em si mesmo bom. Essa
definição privativa deixa claro, no interior de um quadro teológico cristão, como
pode haver o mal em uma criação boa: o mal não foi criado, consistindo antes
em um afastamento do bem que os seres livres voluntariamente efetuam.
Isso tem de ser mantido contra aqueles autores que não distinguem de
maneira clara o bastante entre a compreensão metafísica e a empírica da
doutrina de privatio boni. Sertillanges, por exemplo, no segundo volume de sua
obra sobre le probleme du mal, defende uma explicação estritamente privativa
do mal moral e parece entender que ela é tanto experiencialmente quanto
metafisicamente válida. Consideremos um pouco melhor o seu ponto de vista.
Sertillanges distingue dois aspectos de uma ação imoral: há uma ação física, ou
uma série de ações, enquanto tais, e há a negligência da lei moral na mente do
agente. A ação física enquanto tal não é má. Pelo contrário, “Tudo o que nela
for positivo relaciona-se ao bem. Um estudioso que analisa a ação só encontrará
aí manifestações das leis que governam a natureza e a vida, leis que devem ser
propriamente admiradas. O agente em si visa um bem que a sua ação busca e
sem a qual ela não alcançaria nada. A satisfação que ele busca seria legítima em
outros casos. Se em um caso específico ela não é legítima, isso se deve somente
à regra moral que se aplica à situação e marca como um pecador quem não a
40
obedece”.
O pecado primário, que torna os anjos e os homens maus e lança sobre ele
os males punitivos adicionais da dor e do arrependimento é um “aversio a Deo,
conversio ad creaturas” , um desvio obstinado do desejo pelo bem supremo, que
é Deus, para os bens menores. “Pois quando a vontade abandona o que está
acima dela, e desvia-se para o que está abaixo, ela se torna má – não porque seja
mau aquilo para o que ela se volta, mas porque o próprio desviar-se é
50
pernicioso”. Isso foi o que ocorreu na queda pré-mundana dos anjos e na
queda primitiva do homem, e continua a ser a natureza do pecado ainda hoje:
44
The Nature of the Good, iv. Veja Plotino, Enéadas, i. 8, I.
45
O Livre-Arbítrio, III. xvii. 48.
46
Enchiridion, viii. 23.
47
Confissões, vii. 3, 5. Veja iv. 15, 26.
48
De Genesi Ad Litteram, Imperfectus liber, i. 3.
49
Of The Religion, xii. 23. Veja xx. 39; e Against the Fundamental Epistle of
Manichaeus, cap. 26.
50
A Cidade de Deus, xii. 6. Veja xii. 7, 8 e 9; The Nature of the Good, xxiv, xxvi e xx;
O Livre-Arbítrio, i. 34 e 35; ii. 53; Confissões, vii. 16.
A vontade que se desvia do bem imutável e comum e volta-se para o seu
próprio bem privado ou para algo exterior ou inferior peca. Ela se volta
para o seu bem privado quando quer ser governada por sua própria
autoridade; para algo exterior quando anseia conhecer o que pertence a
outros e não a si mesma; para coisas inferiores quando ama prazeres
corporais. Nesses casos um homem se torna orgulhoso, inquisitivo,
licencioso, e se torna cativo de outro tipo de vida que, quando
51
comparada com a vida correta que descrevemos, é realmente a morte.
Mas embora não haja uma força externa puxando ou empurrando a alma
quando ela “abandona a quem ela deveria se unir como sendo o seu fim e
54
torna-se um tipo de fim em si mesmo”, ainda assim há um motivo no pecador
55
que o desencaminha. Há “o orgulho, que é o começo do pecado”. Enquanto
alguns anjos “continuaram firmemente unidos ao que era o bem comum de
51
O Livre-Arbítrio, II. ixx. 53.
52
A Cidade de Deus, xii. 7. Veja xii. 6 e 9; O Livre-Arbítrio, II, xx. 54.
53
O Livre-Arbítrio, III. xvii. 49. Veja III. xxii. 63 e II. xx. 54. Agostinho, a despeito
da sua doutrina da predestinação, enfaticamente afirma que a fim de ser moralmente boa ou
má uma ação tem de ser livre: “o pecado é um ato tão voluntário que ele não é pecado a não
ser que seja voluntário”. (Of True Religion, xiv, 27. Veja O Livre-Arbítrio, II. i. 3).
54
A Cidade de Deus, xiv. 13.
55
Eclesiastes x. 13.
todos ... outros, encontrando-se enamorados dos seus próprios poderes, como se
eles pudessem ser os seus próprios bens, desviaram-se para esse bem privado
próprio deles mesmos... e trocando a nobre dignidade da eternidade pela
inflação do orgulho, o princípio mais certo para o engodo da vaidade,
desposando o amor pelo desacordo tendencioso, eles se tornaram orgulhosos,
56
enganadores, invejosos”.
Uma que habita no céu dos céus, a outra expulsa dali e agonizando pelas
baixas regiões do ar; uma tranquila na clareza da piedade; a outra
turbulenta nas suas tenebrosas paixões; uma, atenta aos sinais de Deus,
ternamente socorrendo, justamente punindo – a outra, sob o aguilhão do
orgulho, fervendo com o desejo de se impor e ferir; uma, por todo o bem
que pretende fazer, põe-se ao serviço da bondade de Deus – a outra, com
medo de não fazer todo o mal que pretende, é retida pelo freio do poder
de Deus; a primeira rindo do última quando, com pesar desta, tira
proveito das suas perseguições; a última invejando a primeira ao vê-la
60
recolher os seus peregrinos.
Em relação à criação dos anjos junto com o mundo, e não anteriormente, veja A
57
61
A Cidade de Deus, xi. 33.
62
Veja The Christian Faith, Edimburgo: T. & T. Clark, 1928, p. 293-304.
63
Ibid., p. 161.
de toda dúvida, e saberá, com certeza, que permanecerá eternamente nesse
64
gozo”. A graça dos anjos leais foi sempre completa, mas naqueles anjos
destinados a cair faltava o segundo elemento: “a vida [celestial] desses anjos
65
não era abençoada, pois estava condenada a acabar”. Pois “Como diremos que
eles participavam igualmente da [completa bem-aventurança] com aqueles que
por meio dela eram verdadeira e completamente abençoados, permanecendo na
plena certeza da felicidade eterna? Pois se eles tivessem igualmente participado
desse conhecimento verdadeiro, então os anjos maus teriam permanecido
eternamente abençoados, assim como os bons, porque eles, igualmente, teriam a
66
expectativa disso”.
64
A Cidade de Deus, xi. 13. Veja xi. 4.
65
Ibid., xi, 11.
66
Ibid., xi. 11. Veja xi. 13, e Enchiridion, ix. 29.
67
Ibid., xii. 9.
68
Ibid., xi. 13.
69
Ibid., xi. 20 (itálicos meus)
70
Veja na sequência p. 67 e seguintes.
tendências criminosas irresistíveis e descobre que uma cela na prisão fora
71
reservada para ele antes mesmo que nascesse!
No Paraíso, então, o homem ... vivia no gozo de Deus e era bom pela
bondade de Deus; ele vivia sem qualquer carência e tinha em seu poder
viver eternamente. Ele tinha comida para que não ficasse com fome,
bebida para que não ficasse com sede, a árvore da vida para que a
velhice não o consumisse. Não havia no seu corpo corrupção, nem a
semente de corrupção, que poderia produzir nele qualquer sensação
desagradável. Ele não temia qualquer doença interna, nenhum acidente
externo. A saúde na melhor condição abençoava o seu corpo, dava
absoluta tranquilidade à sua alma. Como no Paraíso não havia calor
excessivo e nem frio, os seus habitantes eram livres das vicissitudes do
medo e do desejo. Nenhuma tristeza de qualquer tipo havia lá, nem
qualquer alegria tola; a verdadeira felicidade jorrava incessantemente
na presença de Deus, que era amado “de puro coração, de boa
consciência e com uma fé sincera”. O amor honesto de marido e mulher
formava uma harmonia segura entre eles. O corpo e o espírito
trabalhavam juntos harmoniosamente e a lei de Deus era observada sem
71
Para uma discussão maior sobre a queda dos anjos, veja A Cidade de Deus, xi. 11,
13, 15, 20, 32-33; xii. 1, 9; Enchiridion, ix. 28.
72
A Cidade de Deus, xiv. 1, 20; xii. 21.
73
Ibid., xiv. 26.
74
Ibid., xiv. 26.
75
O Livre-Arbítrio, III. xviii. 52.
76
A Cidade de Deus, xiv. 26.
77
Ibid., xiv. 10.
78
Ibid., xiv. 10.
esforço. Nenhuma lassidão tornava as suas horas vagas entediantes;
79
nenhuma sonolência interrompia os seus desejos de trabalhar.
Podemos então ficar surpresos e perguntar: como o mal entra nesse estado
paradisíaco? Se nesse ponto ocorrer nos lembrar do diabo, que já havia caído e
que estava presente para tentar o par inicial até a sua destruição, Agostinho não
permitirá essa sugestão atenuante. Ele insiste que “o ato mau jamais teria sido
cometido se não houvesse uma vontade má que o precedesse” (“Non enim ad
80
malum opus perveniretur, nisi praecessisset male voluntas”), e que Adão já
tinha em seu coração se afastado de Deus para que as solicitações do diabo
fossem capazes de ser atrativas para ele. “Portanto, o ato mau – i.e., a
transgressão de comer o fruto proibido – foi cometido por pessoas que já eram
más... O diabo ... não teria conduzido o homem ao pecado evidente e manifesto
de fazer o que Deus havia proibido se ele já não tivesse começado a se
comprazer em si mesmo... secretamente, esse desejo mau (de ser
81
autossuficiente) já existia nele, e o pecado às claras foi só a sua consequência”.
79
A Cidade de Deus, xiv. 26. O estado idealizada de Adão antes da queda tem um
longa história no judaísmo anterior a alguns dos primeiros patriarcas da Igreja e, então,
anterior a Agostinho. Na literatura rabínica há passagens exprimindo a crença de que “o
primeiro homem foi dotado com uma estatura extraordinária (frequentemente é dito que ele
povoou o mundo), com beleza física, enorme sabedoria, com um brilho que eclipsava o brilho
do sol, com uma luz divina que permitia a ele ver todo o mundo, com imortalidade, e com a
assistência dos anjos”. F. R. Tennant, The Sources of the Doctrines of the Fall and the
Original Sin (Cambridge: The University Press, 1903, p. 149-150.
80
A Cidade de Deus, xiv. 13.
81
Ibid., xiv. 13.
82
Ibid., xiii, 14.
No número de eleitos e predestinados, mesmo os que levaram a pior das
vidas serão pela bondade de Deus levados ao arrependimento... Foram
desses eleitos que o nosso Senhor falou quando disse “E a vontade de
quem me enviou é esta: que nenhum daqueles que o Pai me deu se perca”
(João, 6, 39). Mas o resto da humanidade que não pertence a esse
número, mas que, sendo do mesmo barro que eles, são feitos urnas de
ódio, vem ao mundo para a vantagem dos eleitos. Deus não cria qualquer
um deles sem um propósito [ac fortuito]. Ele sabe que bem retirar deles:
Ele age bem no próprio fato de criá-los como seres humanos, e dirigindo
por meio deles esse sistema visível das coisas. Mas nenhum deles será
conduzido por Deus a um arrependimento total e espiritual... De fato, no
que lhes diz respeito, todos, fora da mesma massa original de perdição,
acumulam, por causa da dureza e impenitência dos seus corações, ira
para o dia da ira; mas dessa massa Deus conduz alguns em misericórdia
83
e arrependimento, e outros, em julgamento justo, não.
Seguramente, se isso fosse dito porque Deus tinha presciência de que eles
acreditariam, não porque Ele mesmo os tornaria crentes, o Filho estaria
falando contra essa presciência quando disse que “Vocês não me
escolheram, eu escolhi vocês” (João, 15, 16); antes, Deus teria tido
presciência de que eles mesmos o teriam escolhido, de tal modo que eles
mereceriam ser escolhidos por Ele. Portanto, eles seriam eleitos antes da
criação do mundo com a predestinação na qual Deus previu que Ele
83
Contra Julianum Pelagianum, livro v, cap. 14.
84
E.g., On the Soul and its Origins, livro iv, cap. 16; On the Merits and Remission of
Sins, and on the Baptism of Infants (De Peccatorm Meritis et Remissione, et de Baptismo
Parvulorum), livro ii, cap. 26, In: Nicene and Post-Nicene Fathers, primeira série, vol. v
(traduzido por Peter Holmes).
85
Efésios i. 4.
mesmo o faria; mas eles foram eleitos do mundo com o chamamento pelo
86
qual Deus realizou o que ele predestinou.
Nenhum deles, pois, pode ser salvo a não ser que o próprio Deus, por Sua
própria graça irresistível, leve-os ao arrependimento e então lhes conceda o
perdão. A escolha de Deus é o Seu próprio ato livre e inescrutável, exprimindo o
que tem de ser para nós uma justiça oculta: “Em relação à razão por que Ele
quer converter alguns, e punir aqueles que Dele se afastaram... o propósito do
seu julgamento mais oculto está em seu próprio poder [consilium tamem
87
occultioris justitiae penes ipsum est].”
86
On the Predestination of the Saints, cap. 34, in: Nicene and post-Nicene Fathers,
primeira série, vol. v (tradução de Peter Holmes).
87
Merists and Remission of Sins, livro ii, cap. 32.
88
Veja, por exemplo, Antony Flew, “Divine Omnipotence and Human Freedom”, In:
New Essays in Philosophical Theology, editado por Flew e MacIntyre, Londres: S.C.M. Press
Ltd., 1955.
89
A Cidade de Deus, v., 9. Veja xii. 1, 22, 27; xiv. 11, 27.
90
Ibid., v. 9. Veja O Livre-Arbítrio, iii. 6-10.
um homem são determinadas pela própria natureza interna dessas ações. Os
nossos atos procedem de nossos caracteres; fazemos o que fazemos porque
somos o que somos. Assim, Agostinho rejeita a ideia de que “a nossa vontade
poderia permanecer em um estado neutro, de tal modo a não ser boa e nem má;
pois nós ou amamos a justiça, e assim a nossa vontade é boa ... ou não a
amamos, e a nossa vontade não é boa... Visto que a vontade é ou boa ou má, e
visto que não recebemos a má vontade de Deus, resta que recebemos a vontade
boa de Deus ... Portanto, ... para quem quer que ele a dê, ele a concede por
misericórdia, não por mérito, e de quem quer que ele a retire, ele a retira em Sua
91
verdade”. Assim, embora os homens caídos tenham o poder de querer, e
sejam responsáveis por suas volições, as suas vontades são totalmente fadadas
ao pecado. O estado delas é um estado de non posse non peccare (não capaz de
não pecar); portanto, “os mortais não podem viver corretamente e piamente a
não ser que a vontade mesma seja libertada pela graça de Deus da servidão ao
92
pecado no qual ela caiu”.
A situação é assim (1) que o homem foi criado com uma liberdade para
fazer o bem ou o mal; (2) que ele fez uma má escolha e assim perdeu a sua
liberdade para o bem; e (3) que Deus previu a queda do homem “antes da
criação do mundo” e planejou a sua compatibilidade com a perfeição
balanceada do Seu universo. Já vimos que, considerado como a base para uma
teodiceia cristã, esse esquema de pensamento está sujeito a questionamentos
radicais em dois níveis. A noção de que o homem foi primeiro espiritualmente e
moralmente bom, orientado no amor para o seu Criador e livre para exprimir a
sua natureza imaculada sem o impedimento de tentações contrárias, e ainda
assim tenha preferido ser mau e miserável, não pode ser salva da crítica de
autocontradição e absurdidade. E mesmo se essa hipótese estranha for admitida,
ainda seria difícil livrar Deus da responsabilidade última pela existência do
pecado, em vista do fato de que Ele escolheu criar um ser que Ele mesmo previu
que se o criasse, ele livremente pecaria.
91
Merits and Remission of Sins, livro ii, cap. 30-31.
92
Retratactiones, i. 9. A liberdade de se abster de pecar (“posse non peccare”)
pertenceu ao homem no começo, mas foi perdida com a queda. “Quando falamos de
liberdade da vontade para fazer o que é correto, estamos falando da liberdade com a qual o
homem foi criado”. Sobre as complexidades do pensamento agostiniano a respeito do
livre-arbítrio humano, veja J. B. Mozley, Treatise on the Augustinian Doctrine of
Predestination, Londres: John Murray, 2a ed., 1878, cap. 8.