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A violência apresenta implicações sobre a saúde da mulher, levando ao adoecimento. Este artigo objetivou identificar
as manifestações de violência vivenciadas por mulheres e descrever as formas de enfrentamento das mulheres após
a agressão. Estudo descritivo, qualitativo, realizado com mulheres em situação de violência cadastradas em duas
Equipes de Saúde da Família do município de Jequié (BA). Os dados foram coletados por meio de entrevistas
semiestruturadas, no período de maio a junho de 2010 e organizados com base na técnica de análise de conteúdo.
Os resultados evidenciaram a violência física e psicológica contra a mulher com adoecimento físico e mental, na
relação conjugal; a denúncia ao agressor por parte de algumas mulheres decorreu do conhecimento da Lei Maria
da Penha e o silêncio das mulheres deveu-se à intimidação e medo da morte. Evidenciou-se a necessidade da
estruturação da rede de serviços pela gestão pública para propiciar assistência e empoderamento às mulheres após
a agressão.
Violence has implications for women's health leading to illness. This article aimed to identify the manifestations
of violence experienced by women and describe the means of coping by women after aggression. A qualitative
descriptive study, conducted with women in situations of violence, enrolled in two Family Health Teams of Jequié/
BA. Data was collected through semi-structured interviews in the period from May to June 2010 and organized using
the content analysis technique. The results evidenced physical and psychological violence against women implying
in physical and mental illness with alterations to the marital relationship; denunciation of the aggressor by some
women occurred after awareness of the Maria da Penha Law and the silence of women was due to intimidation and
fear of death. The necessity of structuring the network of services by public administration to provide assistance and
empowerment to women after aggression was evidenced.
1
Especialista em Enfermagem do Trabalho. Enfermeira do Trabalho do Serviço SESC-BA em Jequié, Bahia, Brasil. iracemacrg@hotmail.com
2
Mestre em Saúde Coletiva. Doutoranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Professora do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Campus de Jequié. vprodrigues@uesb.edu.br
3
Mestre em Enfermagem. Professora do Departamento de Saúde da UESB, Campus de Jequié. ignvone@gmail.com
4
Doutora em Enfermagem. Professora do Departamento de Saúde da UESB, Campus de Jequié. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e
Saúde. albavilela@gmail.com
5
Doutora em Saúde Coletiva. Professora Adjunta da Escola de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFBA. jeanefreitas@ig.com.br
6
Doutora em Enfermagem. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da UFBA. normeliadiniz@gmail.com
La violencia tiene consecuencias para la salud de la mujer que lleva a la enfermedad. Este artículo tuvo como objetivo
identificar las manifestaciones de violencia que sufren las mujeres y describir las formas de enfrentamiento de las
mujeres después de la agresión. Un estudio cualitativo descriptivo, realizado con mujeres en situación de violencia,
inscrito en dos equipos de salud familiar de Jequié/BA. Los datos fueron colectados a través de entrevistas semi-
estructuradas en el período de mayo a junio de 2010 y analizados mediante la técnica de análisis de contenido.
Los resultados evidencian que la violencia física y psicológica implicando en enfermedades físicas y mentales con
alteraciones en la relación matrimonial; la denuncia al agresor ocurrió del conocimiento de la Ley Maria da Penha
y el silencio de las mujeres fue motivado por la intimidación y miedo de la muerte. Hemos demostrado la necesidad
de estructurar la red de servicios de la administración pública para proporcionar asistencia y empoderamiento a las
mujeres después de la agresión.
INTRODUÇÃO
entre estas a pré-análise, que consistiu na leitura ou saúde corporal da pessoa (BRASIL, 2006). Em
flutuante do material empírico inerente às entre- relação à violência física, as mulheres do estudo
vistas. Sucessivas leituras desse conteúdo possi- declararam que a agressão faz parte da sua re-
bilitaram a codificação dos dados, com base no lação com o companheiro e é evidenciada por
recorte do texto para identificação das unidades empurrões, tapas, murros, arma branca e arma
de registro. Na sequência, os dados foram classi- de fogo, conforme falas a seguir: “[...] empurrões,
ficados e agregados, estabelecendo-se os temas tapas, murros [...]” (Esmeralda). “O meu marido
e, posteriormente, as categorias e respectivas já me bateu, já me furou com uma faca, já me
subcategorias (BARDIN, 2011). ‘engarguelou’ [...] ele bebia e ficava violento [...]”
Nesse processo, os resultados foram organi- (Safira). “[...] me deu um tapão e me bateu mes-
zados em duas categorias temáticas: expressão mo [...] quase levei um tiro [...]” (Diamante).
da violência na relação conjugal e respectivas Podemos inferir, com base nesses relatos, a
subcategorias – violência física e violência psico- influência da ideologia patriarcal na construção
lógica; enfrentamento de mulheres após agres- da relação conjugal, o que denota uma questão
são e respectivas subcategorias – denúncia, não de gênero permeada pela posição de superio-
denúncia. ridade do homem em relação à mulher, o que
A análise fundamentou-se em estudos de gê- permite a aceitação da violência no contexto pri-
nero e violência doméstica contra a mulher, bus- vado da família.
cando-se uma contextualização com a categoria Pesquisa confirmou a recorrência da violên-
analítica de gênero. cia conjugal na vida das mulheres, que suporta-
A pesquisa foi submetida ao Comitê de ram a opressão durante um longo período por
Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do acreditarem na mudança da situação e garanti-
Sudoeste da Bahia, aprovada sob o protocolo n. rem a manutenção do modelo idealizado social-
217/2009, respeitando os preceitos éticos e legais mente de que a mulher deve casar, ter filhos
inerentes à Resolução n. 196/96 (BRASIL, 1996), e preservar a família. Os resultados dessa pes-
vigente no período em que a pesquisa foi reali- quisa demonstraram ainda que algumas mulhe-
zada. As entrevistadas concordaram em assinar res reconheceram a desigualdade de gênero e
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido as contradições decorrentes da relação conjugal
(TCLE) e foram identificadas no texto por um que culminam em atos violentos. Outras mulhe-
codinome de pedras preciosas. res identificaram a violência como um fenômeno
natural inerente à agressividade própria do sexo
RESULTADOS E DISCUSSÃO masculino, impedindo sua compreensão como
mulher (GUEDES et al., 2007).
Após o tratamento dos dados emergiram as Considerando a trajetória histórica e cultural,
seguintes categorias e respectivas subcategorias. apesar de terem ocorrido algumas mudanças,
destaca-se a forte influência androcêntrica que
Categoria 1: expressão da violência na persiste nos dias atuais na organização da socie-
relação conjugal dade. Esta estrutura coloca o homem no centro
das decisões, estabelece relações de poder desi-
Nessa categoria, a violência física e psicológi- guais, atribui ao homem o papel de produtor e
ca vivenciada pelas mulheres foi praticada pelo à mulher o papel de reprodutora, com ênfase no
companheiro. aspecto biológico, e desvaloriza a inserção social
da mulher como sujeito e protagonista da sua
Subcategoria 1.1: violência física própria vida. Tais situações configuram a perda
do sentido político e histórico em virtude da na-
A Lei Maria da Penha define a violência física
turalização na sociedade de que o homem deve
como qualquer conduta que ofenda a integridade
ser agressivo.
Nesse contexto, um dos fatores que influencia emocional e diminuição da autoestima, que
os atos violentos é a subordinação da mulher, prejudique e perturbe o pleno desenvolvimen-
determinando uma situação de sujeição e sub- to ou que vise a degradar ou controlar suas
serviência na relação de intimidade estabelecida ações, comportamentos, crenças e decisões, me-
entre o homem e a mulher. Além disso, não se diante ameaça, constrangimento, humilhação,
pode desconsiderar o viés da ideologia patriarcal, manipulação, isolamento, vigilância constante,
que vincula uma estrutura de poder na relação perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridi-
conjugal, ao situar a mulher numa posição in- cularização, exploração e limitação do direito de
ferior aos homens e legitimar os atos violentos. ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause
Urge que se reflita sobre a complexidade que prejuízo à saúde psicológica (BRASIL, 2006). No
envolve a violência contra a mulher, uma vez que estudo, a violência psicológica expressou-se nas
se relaciona não apenas com a categoria gênero, seguintes falas: “[...] ameaça [...]” (Pérola). “[...]
mas tem implicações com classe, raça, geração, xingamentos [...]” (Granada). “[...] ele diz que vai
questão geográfica; perpassa e acontece em to- me ver na cadeira de rodas, morta. Xinga a mi-
das as possibilidades de enquadramento identitá- nha mãe já falecida.” (Esmeralda).
rio e permeia relações de poder nesse contexto. Em geral, a violência psicológica contra a mu-
Os achados do presente estudo vão ao en- lher é empregada como uma ideia de intimidá-la
contro do que ressaltaram Deeke et al. (2009) em e forçá-la a conviver no ciclo de violência, de
relação ao uso do álcool pelo homem, que pa- ameaças, reafirmando a hegemonia masculina
rece desempenhar papel importante no contexto nessa relação.
de violência, uma vez que o comportamento de O relato de Esmeralda evidencia o desejo do
beber constitui-se como fator desencadeador e companheiro de vê-la com deficiência e morta,
como motivo direto da desavença entre os casais. além de utilizar palavras desprezíveis para se re-
Estudo realizado por Rosa et al. (2008) cons- ferir à sua mãe, causando-lhe constrangimento.
tatou, por um lado, que alguns homens referiram Para Silva, Coelho e Caponi (2007), a vio-
que o uso do álcool pode ter contribuído para o lência inicia-se de uma forma lenta e silenciosa,
desentendimento e/ou agressão na relação con- que progride em intensidade e consequências.
jugal; por outro lado, o ato de beber foi reco- O agressor, em suas primeiras manifestações,
nhecido como problema pelos homens sem, no não agride fisicamente, mas parte para o cercea-
entanto, relacioná-lo com as situações de violên- mento da liberdade individual da mulher, avan-
cia com a companheira. çando para o constrangimento e a humilhação.
Nessa perspectiva, a abordagem da violência Assim, para exercer sua dominação, é necessá-
de gênero no contexto dos serviços de saúde de- rio primeiro interferir negativamente na autoes-
manda práticas que contemplem a atenção in- tima da mulher, de tal maneira que ela tolere as
tegral e humanizada, tendo a(o) profissional de agressões.
saúde como facilitador(a) do processo terapêuti- As participantes do estudo revelaram que as
co, com base na construção de estratégias com as situações de violência vivenciadas demarcaram
mulheres que contemplem e respeitem seu con- sentimentos de medo, raiva, mágoa, tristeza, in-
texto social e suas singularidades, aproximando- terferindo no seu estado emocional. Os depoi-
-se da realidade vivenciada e dando visibilidade mentos são ilustrativos: “Sinto um peso assim
aos conflitos inerentes às queixas que não são por dentro, uma dor, bebo logo um remédio, sin-
expressas por elas (PEDROSA; SPINK, 2011). to medo, raiva, e sai um bocado de ronchas no
meu corpo.” (Pérola). “[...] me senti magoada por
Subcategoria 1.2: violência psicológica dentro, pressionada [...] muita tristeza” (Ágata).
“Raiva [...]” (Safira). “Muita dor e raiva, porque
A violência psicológica contra a mulher con- eu fui ameaçada de morte e, por isso, não podia
siste em qualquer conduta que lhe cause dano contar nada a ninguém da minha família. Senti
medo, porque não podia reagir, fazer nada e expectativa de que os efeitos dessas drogas as
me sinto arrependida de me envolver com estas ajudassem a suportar a depressão, a ansiedade
pessoas violentas [...]” (Diamante). “Muita raiva e a sensação de impotência desencadeadas pela
[...] pensamentos negativos, estou sobrecarrega- vivência da violência doméstica.
da, às vezes penso que vou entrar em depres- Guedes et al. (2007) constataram que os sen-
são [...] sinto muita tristeza, choro por nada [...]” timentos de decepção, perda, fracasso, mágoa e
(Esmeralda). “Muita raiva, fico deprimida, fraca desgosto repercutem na saúde mental e na vida
[...]” (Granada). das mulheres em situação de violência conjugal.
Esses sentimentos propiciam adoecimento da Nos relatos de Pérola e Diamante, evidencia-
mulher, contribuindo para que se sinta fragili- -se o sentimento de medo no convívio com a
zada, humilhada, impotente, arrependida, com violência conjugal e o silenciamento de Diamante
prejuízos, sobretudo, à sua saúde mental. com as pessoas do seu convívio familiar e
Esses achados coadunam-se com os do es- comunitário.
tudo realizado por Andrade, Viana e Silveira A ordem patriarcal é de tal sorte violenta que
(2006), ao ressaltarem as repercussões da vio- inverte responsabilizações e desloca, na maioria
lência sobre os sentimentos e a percepção que a das vezes, sensações de culpa e medo para as
mulher tem de si mesma, a sua autoconfiança; o próprias mulheres, que passam a se sentir humi-
que antes era considerado valoroso e apreciável lhadas, envergonhadas e desonradas no contexto
torna-se desvalorizado e até ridicularizado, pois da sociedade e muitas vezes diante da própria fa-
ela já não mais vê a si como antes, ficando à mília, o que aumenta o sofrimento. Constitui um
margem e fadada à baixa estima e até mesmo à dos lados mais perversos da violência de gênero,
depressão. Além disso, transtornos de ansieda- ao provocar o silenciamento e a dificuldade de a
de, especialmente fóbico-ansiosos, transtornos mulher expor a situação às/aos profissionais de
alimentares e abuso de álcool e de outras subs- saúde (BRASIL, 2012).
tâncias psicoativas também têm sido mais obser- Estudo realizado por Villela et al. (2011)
vados entre mulheres em situação de violência aponta que o atendimento às mulheres em situa-
doméstica e sexual, assim como disfunções se- ção de violência por profissionais de saúde e de
xuais e doenças físicas. segurança pública é marcado por ambiguidades
A violência psicológica nas relações conju- e contradições e as concepções desta(e)s profis-
gais facilita o exercício do poder e tem efeitos sionais são permeadas por estereótipos de gê-
negativos sobre a saúde mental da mulher, in- nero. Assim, as autoras chamam a atenção para
cluindo estresse pós-traumático, ansiedade, o fato de que transformar a mulher que sofre
fobias, disfunção sexual, depressão, perda da violência em vítima, tratando-a com indiferença
dignidade, segurança e confiança em si e nos ou- ou com insensibilidade, consiste em participar
tros, baixa autoestima, isolamento, doenças psi- desse processo.
cossomáticas, entre outros (PEREZ MARTINEZ;
HERNANDEZ MARIN, 2009). Categoria 2: enfrentamento de
Pérola ressalta o uso de medicação para ajudá- mulheres após agressão
-la a enfrentar os desdobramentos das agressões.
Estudo realizado por Deeke et al. (2009) desta- Nesta categoria foram destacadas algumas
cou que o uso de medicamentos por mulheres formas de enfrentamento das mulheres após a
em decorrência da situação de violência parecia agressão: a denúncia, impulsionada pelo em-
estar relacionado a momentos de depressão e/ poderamento da mulher, principalmente pelo
ou ansiedade. Para suportar a angústia pessoal e conhecimento da Lei Maria da Penha, e a não
o desconforto psicológico, elas utilizaram drogas denúncia, decorrente da intimidação do agressor
psicotrópicas como forma de automedicação, na e medo da morte.
segunda, decorrente da invasão de sua priva- ao prestarem queixa na DEAM. Nesse sentido, a
cidade pela exposição do ato sofrido que, aos mulher deve impedir todas as formas de discri-
olhos dos outros, se reveste de significados es- minação e de violência existentes, construindo
truturados por um padrão de relações sexuais o seu espaço de igualdade com os homens em
hierárquicas, no qual a mulher apresenta-se, todas as áreas.
por vezes, merecedora desta violência (SANTI; Estudo realizado por Vieira et al. (2011) evi-
NAKANO; LETTIERE, 2010). denciou que a intenção da mulher em situação
Ressaltamos que a(o)s profissionais de saúde de violência, ao denunciar parte do reconheci-
devem estar atenta(o)s às situações de violên- mento da Lei Maria da Penha como um instru-
cia vivenciadas pelas mulheres nos vários con- mento mediador de justiça, espera do serviço
textos de assistência à saúde, buscando a rede policial e judiciário a proteção e ajuda de que
de apoio, para redirecionarem as suas ações, de necessita, apesar de apontar as incertezas e dú-
modo a promover o acolhimento das mulheres vidas em relação aos desfechos da lei.
nos serviços de saúde, suscitando o seu empode- Por outro lado, a pesquisa destacou que as
ramento na perspectiva de estimular a denúncia mulheres em situação de violência não se sen-
por parte de outras mulheres, além de percebe- tiam devidamente amparadas pela Lei Maria da
rem a importância de a decisão da mulher partir Penha, considerando o descumprimento das me-
de uma consciência crítica sobre a influência das didas protetivas pelos agressores e a dificuldade
questões de gênero e não da atitude prescritiva dos serviços de segurança pública em protegê-
do profissional. -las efetivamente (MENEGHEL et al., 2013).
No contexto da Estratégia Saúde da Família Estudo realizado por Gomes et al. (2013)
a(o)s profissionais de saúde são imprescindíveis constatou a desvalorização das situações de vio-
na identificação do agravo junto à comunidade e lência vivenciadas pelas mulheres, desrespeito
na criação de ações para a prevenção da violên- nos espaços de atendimento da delegacia e nos
cia à pessoa, à família e à comunidade, com des- serviços de saúde, além de despreparo d(a)os
taque para a notificação compulsória como uma profissionais de saúde com postura de julgamen-
obrigação ética e legal (CONCEIÇÃO et al., 2012). to, o que não se coaduna com as políticas pú-
As mulheres do estudo demonstraram ainda, blicas propostas e as necessidades apresentadas
em seus relatos, que conhecem a Lei Maria da pelas mulheres, que requerem acolhimento e
Penha como suporte legal conquistado em defe- escuta à sua singularidade.
sa das mulheres em situação de violência. Veja- Por sua vez, a Lei Maria da Penha, ao priorizar
-se a seguir suas falas: “Esta lei veio pra ficar, foi a a punição do homem na condição de agressor,
melhor coisa que fizeram, [...] veio para ajudar a não contempla aspectos inerentes às singularida-
mulher que sofre com a violência.” (Esmeralda). des das relações estabelecidas entre o homem e
“[...] tenho a lei em casa. Na audiência com a a mulher no contexto dos atos violentos e não
delegada, ele ficou morrendo de medo. A dele- impede a ação do autor da violência por medo da
gada disse que mulher não era propriedade de punição. Além disso, ao universalizar as situações
homem não; aí ele assinou um papel dizendo de violência, não prioriza a prevenção no intui-
que qualquer coisa que acontecesse comigo ele to de antecipar-se à ocorrência da violência com
era o responsável [...]” (Safira). “Eu li que pune a base na construção de masculinidades e femini-
violência contra a mulher e também eu participei lidades menos rígidas (DANTAS; MELLO, 2008).
de uma palestra que a delegada fez aqui na co- Ademais, a vigência da Lei Maria da Penha
munidade.” (Granada). “Diz [a lei] que o homem representa um tempo ainda curto para permitir
não pode bater em mulher.” (Ágata). uma avaliação real de sua eficácia e efetividade.
Os depoimentos das mulheres mostraram co- Esta ainda se encontra em fase de experimenta-
nhecimento da Lei Maria da Penha, e que se res- ção, devendo ser mantido o texto por tempo su-
paldaram nesta lei para denunciarem o agressor, ficiente para medir o seu impacto, antes de fazer
ajustes, no intuito de evitar alterações precipi- vida averiguada, como motivos que influenciam
tadas que possam descaracterizar, distorcer ou muitas a desistirem da denúncia ou de seguir
mesmo anular o dispositivo legal (MENEGHEL com a ação penal.
et al., 2013). O estudo sobre rota crítica, desenvolvido por
Presser, Meneghel e Hennington (2008), buscou
Subcategoria 2.2: não denúncia conhecer, sob a ótica de operadores sociais, os
fatores que impulsionaram as mulheres em situa-
Os depoimentos mostraram que duas mulhe- ção de violência a buscarem ajuda, bem como as
res permaneceram em silêncio, por temerem a dificuldades para levarem adiante esta decisão.
reação do agressor, caso fosse denunciado. Destacou que as mulheres não iniciaram a rota
em virtude de inúmeros motivos, entre os quais
“Eu só fui pro hospital, não fui para delegacia
o medo das ameaças e agressões, a dependência
nem chamei a polícia não, porque ele é trafi-
econômica ‒ por acreditarem que continuar com
cante, usa droga e eu tenho medo de ele me
o companheiro seria melhor para os filhos ‒,
matar e matar a minha filha, como ele queria
além de preconceitos e estereótipos de gênero,
fazer. Eu tenho muito medo dele me matar,
familiares ou culturais.
porque depois ele até pode ir pra delegacia,
ficar preso uns dias e depois bota advoga-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
do sai de lá e eu é que vou pra debaixo do
chão.” (Ágata).
As mulheres em situação de violência do es-
tudo vivenciaram a violência física e psicológica
“Eu não tomei [...] por medo de ser morta,
com repercussões para a saúde física e mental.
pois estes caras não têm amor à vida não.
Com relação às formas de enfrentamento
Eles matam as mulheres, sujam o nome e
adotadas por elas após a agressão, observou-se
some no mundo.” (Diamante).
que algumas denunciaram a agressão à DEAM,
Estes depoimentos evidenciam que a lei ain- rompendo as barreiras com a situação de violên-
da não é suficiente para dar respaldo às singula- cia em seu domicílio, objetivando resolver a pro-
ridades inerentes às situações vivenciadas pelas blemática, o que demonstra o empoderamento
mulheres, considerando que algumas não se delas no enfrentamento da violência. Por outro
sentem seguras para denunciar o agressor e têm lado, duas mulheres optaram por não denunciar
medo de serem mortas. o agressor em decorrência da intimidação sobre
Apesar de a elaboração de leis específicas em a reação deste e do medo da morte.
relação à violência de gênero constituir-se numa Ressalta-se que, apesar do avanço trazido
conquista do movimento de mulheres, a lei, por pela Lei Maria da Penha, algumas mulheres não
si só, não é suficiente, requerendo o aumento de se sentem seguras para a denúncia. Além dis-
recursos materiais, humanos e financeiros, além so, ainda existem questões estruturais locais que
da desconstrução dos mecanismos ideológicos não propiciam esta segurança à mulher em si-
que mantêm as desigualdades sociais e as hie- tuação de violência e não permitem a aplicação
rarquias de poder entre o homem e a mulher da lei com o devido rigor. Sobre isto, destaca-se
(MENEGHEL et al., 2013). que não existem no município de Salvador ca-
Conforme Garbin (2006), as causas que le- sas de apoio ou abrigo para a mulher distanciar-
vam a mulher a não denunciar e permanecer -se do agressor até resolver o seu problema no
junto ao agressor são várias, mas a situação fi- âmbito judiciário, além de os processos demo-
nanceira é a principal condição para que elas se rarem muito para serem analisados em virtude
mantenham caladas. Além do fator financeiro, da quantidade insuficiente de juízes para essa
tem-se a impunidade, o medo, a dependência tramitação.
emocional, além do constrangimento de ter a sua
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