Sunteți pe pagina 1din 12

13/05/2019 A voz das coisas

EDIÇÃO 99 | DEZEMBRO_2014

despedida

A VOZ DAS COISAS
A vida, a morte e a morte em vida de Alexander Grothendieck
JOÃO MOREIRA SALLES

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 1/12
13/05/2019 A voz das coisas

De  Grothendieck  se  disse  que  não  descreveu  o  mundo,  mas  a  harmonia  do  mundo.  Tido  como  um  príncipe  das  ciências,
escolheu desaparecer FOTO: PAULO RIBENBOIM_JUNHO DE 1951

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 2/12
13/05/2019 A voz das coisas

N
a noite de 13 de novembro um e-mail chegou à minha caixa de
mensagens. O campo do assunto estava vazio e o texto continha
três palavras: “Morreu o grothendieck…”

Eu nunca tinha ouvido falar em Alexander Grothendieck antes de
conhecer o matemático Artur Avila, que me apresentou a ele logo na
nossa primeira conversa, em agosto de 2009. O poeta Joseph Brodsky
conta que, antes de se deslumbrar com a poesia de W. H. Auden,
deslumbrou-se com o rosto do poeta, que viu numa fotografia. Às vezes é
assim. No meu caso, o que primeiro registrei foi a sonoridade do nome,
dessas que condenam o portador a não ser trivial. Sobre o homem, Avila
me contou que desaparecera voluntariamente do mundo, deixando para
trás uma das obras matemáticas mais ricas do século XX. Não se sabia
exatamente onde estava. As poucas notícias que chegavam dele vinham
de páginas autobiográficas que de vez em quando apareciam na internet,
tratando de matemática, de Deus e do Diabo numa linguagem bela,
exuberante e louca. Dali em diante, Grothendieck se tornou uma pequena
obsessão minha.

Desconfio que muito mais gente ignorava aquele nome. Nas horas que se
seguiram ao e-mail de Avila, fui várias vezes ao site do New York Times,
o padrão-ouro do jornalismo mundial, à cata do inevitável obituário.
Nada, ao menos na quinta-feira. Na manhã de sexta era possível ler sobre
a morte de uma jovem que participara de um reality show na MTV. Foi
só no final do dia, com mais de 24 horas de atraso, que o jornal se
pronunciou: “Alexander Grothendieck, enigma da matemática, morre aos
86 anos.” Àquela altura, os jornais franceses já haviam dado o seu
veredicto. Para o Le Monde, desaparecera “o maior matemático do século
XX”. O Libération anunciava: “Alexandre Grothendieck, ou a morte de
um gênio que queria ser esquecido.”

Várias coisas aqui. O “enigma” do NYT, a hipérbole do Le Monde, o
desacordo de grafia entre os jornais – Alexander, Alexandre–, o desejo de
olvido do morto. Cada um desses aspectos merece atenção, mas antes o
essencial: no dia 13 de novembro de 2014, um homem monumental
morreu. Sua obra redefiniu – quando não inventou – campos inteiros da
matemática. Grothendieck viu o que jazia por trás de geografias isoladas;
onde as cartas marítimas indicavam ilhas dispersas, ele descobriu o

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 3/12
13/05/2019 A voz das coisas

continente submerso que unificava as diferentes florações rochosas e
atribuiu um só nome ao que era conhecido por vários.

O Libération descreve assim a coisa: “Imagine que trinta especialistas
estão esquadrinhando um conjunto de quadros, centímetro por
centímetro. Eles sentem que há pontos em comum entre as obras, sem
poder afirmar com certeza. Ninguém conhece tão bem cada uma dessas
obras, mas nenhum deles consegue relacioná-las entre si. Enquanto os
especialistas mantêm o nariz colado nas telas, Grothendieck recuará 20
ou 30 metros. Ele mudará o ponto de vista e, assim, à distância,
descobrirá que os trinta quadros têm um só autor, Claude Monet, e que a
catedral de Rouen é seu único modelo. Ele viu e mostrou o que ninguém
mais via.” A analogia é boa, mas termina cedo demais. O caminho
ascensional de Grothendieck rumo a categorias cada vez mais gerais nos
autoriza a ir além: ao chegar, via Monet, à catedral de Rouen, ele pularia
para Chartres, Notre Dame de Paris, Metz, Colônia, Siena, reconheceria a
unidade desses edifícios e, da energia colossal necessária para erguê-los,
intuiria a presença de uma força organizadora maior. Sem jamais ter
aberto um livro de história medieval, de uns tantos pingos de tinta
Grothendieck deduziria a Igreja, Ecclesia.

A
lexander Grothendieck nasceu em Berlim, em 1928. O pai,
Alexander Schapiro, judeu russo, era um anarquista trágico e
venturoso. Aos 17 anos, por participar da Revolução de 1905, foi
condenado à morte. Poupado, permaneceu na cadeia por dez anos,
quando foi libertado pelos acontecimentos de 1917. Juntou-se logo a uma
facção de extrema-esquerda e os bolcheviques o despacharam uma vez
mais para o pelotão de fuzilamento. Escapou antes e, na fuga, perdeu um
braço. Apátrida pelo resto da vida, serviu com coragem às revoluções da
primeira metade do século passado. Esteve com Béla Kun em Budapeste,
com Rosa Luxemburgo em Berlim e com as brigadas internacionais na
Guerra Civil Espanhola. Grothendieck dizia com orgulho que seu pai
havia sido prisioneiro político em dezessete regimes diferentes. Até o fim
da vida, insistiu em que seu nome fosse grafado à moda russa,
Alexander, e não à moda francesa, Alexandre.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 4/12
13/05/2019 A voz das coisas

A mãe, Hanka Grothendieck, era alemã. Jornalista com veleidades
literárias, frequentava os círculos de extrema-esquerda e acompanhou
parte das aventuras revolucionárias do marido. Quando os nazistas
tomaram o poder, em 1933, decidiu juntar-se a ele em Paris, deixando o
pequeno Alexander num orfanato para filhos de refugiados políticos. O
menino, descrito como “absolutamente honesto”, passou cinco anos longe
dos pais, sozinho e infeliz. Da mãe, chegou a receber algumas cartas; do
pai, nada. Em 1939, com os nazistas fechando o cerco, o ex-pastor
luterano responsável pelo abrigo julgou não ser mais possível proteger o
garoto “de aspecto judeu”. Alexander foi posto num trem e, aos 11 anos,
reencontrou os pais em Paris. No mesmo ano, Schapiro foi separado da
família e internado num campo francês. Em 1942, o regime de Vichy o
despachou para Auschwitz, onde morreu.

Hanka foi enviada com o filho a outro campo, do qual Grothendieck
fugiu com o propósito de assassinar Hitler. Tinha 12 anos. Logo
apanhado, acabou sob os cuidados de outro pastor protestante que, assim
como o primeiro, também se guiava por imperativos da consciência
moral. Completou o ensino médio e parece que foi feliz ali.

Ao final da guerra, tinha 17 anos e nenhum país. Assim como o pai,
passaria parte da vida como apátrida. Sem acesso às grandes
universidades francesas, matriculou-se no bacharelado de matemática de
uma instituição secundária no sul do país. Mãe e filho, finalmente unidos,
viviam de trabalhos nos vinhedos e, no caso dela, de serviços de limpeza
doméstica.

Fascinado desde a adolescência pelos conceitos de comprimento, área e
volume, Grothendieck desenvolveria sozinho um método para calcular o
volume de objetos complexos, a exemplo das nuvens. Mais tarde viria a
descobrir que a ferramenta não só já existia, como era uma das mais
poderosas da matemática; em completo isolamento, recriara em vão, em
poucos meses, instrumentos que haviam exigido décadas para ser
pensados. Não se abateu: “Sem me dar conta, aprendi na solidão o que
nenhum professor pode realmente ensinar. Sem que ninguém precisasse
me dizer, eu soube, ‘do fundo das minhas entranhas’, que era um
matemático: alguém que ‘faz’ matemática, no sentido mais pleno da
palavra, como quem ‘faz’ amor”, escreveu ele nas suas meditações

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 5/12
13/05/2019 A voz das coisas

autobiográficas, Récoltes et Semailles [Colheitas e Semeaduras], um texto
misterioso que se estende por mais de mil páginas e que ele qualificou
como “fantasmagoria matemática”.

Com cartas de recomendação no bolso e um bacharelado de província no
currículo, Grothendieck chegou a Paris em 1948. Foi logo posto sob a
guarda de dois matemáticos de estatura, Jean Dieudonné e Laurent
Schwartz. Schwartz, que ganharia a Medalha Fields dali a dois anos,
estava às voltas com uma série de problemas espinhosos cuja solução lhe
escapava, emperrando a pesquisa que desenvolvia com Dieudonné. Pelo
sim ou pelo não, passou catorze deles para Grothendieck, que, seis meses
depois, entregou a tarefa. “Ele resolveu tudo!”, exclamou Dieudonné para
pasmo de Schwartz. Alunos talentosos precisariam de quatro anos para
solucionar um único problema, o que já justificaria um doutorado, mas
Grothendieck, em meio ano, dera a seus mestres catorze razões para ser
chamado de doutor.

Estava patente ali a sua extraordinária capacidade de abstração, essa
mudança de ponto de vista que alterava radicalmente a maneira de
encarar os problemas. Schwartz e Dieudonné ajudaram a disciplinar
Grothendieck, evitando que escapasse, antes do tempo, para as
“generalizações cósmicas” do pensamento abstrato, na expressão de um
admirador. Pierre Cartier, matemático francês que conviveu
intensamente com Grothendieck, escreveu: “Dizer que o discípulo
ultrapassou os mestres seria pouco: ele pulverizou o campo da análise
funcional” – área de Schwartz e Dieudonn à época, ligada ao cálculo das
nuvens, por assim dizer – “com um trabalho solitário em que não teve
companheiros e tampouco continuadores”.

Uma via real se abria diante de Grothendieck, não fossem dois
obstáculos, o primeiro deles ligado ao temperamento. Na definição que
deu de si mesmo, era um construtor de casas que não tinha vocação para
habitá-las. O segundo impedimento era de natureza legal. Apátrida, não
poderia ser contratado por uma instituição francesa. A cidadania era a
saída óbvia, não fora a obrigação de cumprir o serviço militar francês.
Pacifista radical, Grothendieck se negou.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 6/12
13/05/2019 A voz das coisas

Sem alternativas, aceitou o convite para trabalhar dois anos na USP como
professor visitante. Veio para cá graças à recomendação de Laurent
Schwartz, que já passara uma temporada na universidade, mas com
certeza pesou na decisão a estreita amizade com o brasileiro Paulo
Ribenboim, também aluno de Schwartz e autor da fotografia que ilustra
esta Despedida. Grothendieck morou em São Paulo de meados de 1952
até fins de 1954. Segundo um colega, vivia praticamente de leite e
bananas. Chegou a planejar um livro de topologia em parceria com
Leopoldo Nachbin, grande matemático, mas o projeto gorou. Seria difícil
superestimar o impacto que tal publicação exerceria sobre as ciências no
Brasil – pensem em Einstein convidando Cesar Lattes para coassinar um
livro sobre física de partículas. Grothendieck considerou 1954 o ano mais
difícil de sua vida profissional, “o único em que a matemática se tornou
um fardo”. Havia deixado para trás a análise funcional – esgotara o
campo, “fechara o capítulo”, na expressão de Cartier – e agora voltava
seus olhos em outra direção. Tinha 26 anos.

N
o primeiro volume de Récoltes et Semailles – livro feito de
fragmentos dispersos pela internet, nunca publicado em edição
comercial –,- ele explica em termos leigos a obra que o
imortalizaria.

No mundo aritmético em que vivemos, diz, as quantidades são discretas,
discrimináveis – 1, 2, 2 000, π. Já no mundo da geometria o que temos são
formas, as quais, quando manipuladas, se transformam em outras
formas, num jogo contínuo de metamorfoses, sem pontos fixos. Caberia a
Grothendieck encontrar a profunda unidade entre os domínios do
discreto e do contínuo. Durante cerca de vinte anos, trabalhando em Paris
num instituto criado praticamente para abrigá-lo (por não ser órgão
governamental, ali a condição de apátrida deixava de ser um óbice), ele
se dedicaria a desvendar os laços misteriosos entre o reino dos números e
o reino das formas, harmonia intuída desde Descartes, no século XVII,
que agora se iluminaria como nunca antes ou depois. Foi como penetrar o
inconsciente de dois mundos até então apartados e descobrir que uma
mesma pulsão os movia.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 7/12
13/05/2019 A voz das coisas

O edifício conceitual que criou, ligado ao campo da geometria algébrica, é
uma das mais férteis criações da imaginação matemática. A altura
alcançada pelos milhares de páginas que produziu entre 1958 e 1970 faz
do ar que se respira ali por demais rarefeito. São muito poucos os que
conseguem se mover naquelas abstrações. A nós outros, resta admirar a
imensa beleza de seus procedimentos. Cartier observou que uma das
qualidades mais extraordinárias de Grothendieck era a capacidade de dar
nome às coisas, mesmo antes de elas serem conhecidas. Récoltes et
Semailles é obra de um grande escritor. Ele diz ali, sublinhando:
“A qualidade da imaginação de um pesquisador se mede pela qualidade
da atenção com que ele escuta a voz das coisas.”

Ao olhar para objetos matemáticos, Grothendieck os desconsiderou como
entes isolados para investigar como se conectavam entre si, intuindo que
a verdade profunda se revelaria mais pela relação do que pela
identidade. Toda ciência, quando não a serviço do poder e da dominação,
era para ele “esta harmonia – mais ou menos vasta e mais ou menos rica
conforme a época – que se desfralda no curso das gerações e dos séculos
pelo delicado contraponto de todos os tópicos que vão brotando um
depois do outro, como que convocados do Nada”. O trabalho do
matemático era encontrar o hábitat natural dos objetos – o lar, a “bela
morada perfeita”, o “belo castelo que se herdou” –, no qual eles, objetos,
finalmente se sentiriam em casa. Desprezava a força bruta e fez uma das
mais bonitas defesas da suavidade como ferramenta da descoberta.

Um problema, dizia, pode ser resolvido de duas maneiras. Tome-se uma
noz. Para chegar à “carne nutridora”, há quem use o martelo e o buril. “O
princípio é simples: apoia-se a ponta do buril na casca e bate-se forte.
Precisando, repete-se o procedimento.” O segundo método dispensa a
força. “Mergulhe a noz num líquido emoliente, pode ser simplesmente
água, por que não?, e de tempos em tempos esfregue-a para facilitar a
penetração; o resto fica por conta do tempo. A casca vai amolecer ao
longo das semanas e dos meses. Quando o tempo estiver maduro, bastará
pressionar com a mão para que a casca se abra como um abacate no
ponto. Ou, então, deixe a noz amadurecer sob sol e chuva e quem sabe
até sob as geadas do inverno. Quando o tempo estiver maduro, será uma
delicada pressão da carne substancial que romperá a casca – ou, dito de
outra maneira, a casca se abrirá por si mesma para lhe dar passagem. […]

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 8/12
13/05/2019 A voz das coisas

Mesmo o leitor pouco familiarizado com alguns dos meus trabalhos não
terá nenhuma dificuldade em reconhecer qual desses dois modos de
aproximação é ‘o meu’.”

Os problemas, para Grothendieck, não eram enigmas a enfrentar com um
feroz ataque direto. A quem lograsse penetrar a essência profunda das
estruturas em que se assentam os objetos, os problemas se abririam em
flor, oferecendo mansamente os seus mistérios. Não se tratava de
retórica. Repetidas vezes Grothendieck demonstrou que era assim. Nas
10 mil páginas que dedicou à geometria algébrica, ele redefiniu de forma
radical a noção de espaço. Nesse aspecto, diz Pierre Cartier, estava ombro
a ombro com Einstein. Os dois, o físico e o matemático, “aprofundaram
nossa visão do espaço, que já não é um receptáculo vazio para a
ocorrência de fenômenos, um palco neutro, mas o ator principal da vida
do mundo e da história do Universo”.

E
m 1966, Grothendieck foi contemplado com a Medalha Fields. Não
a recusou, mas tampouco foi buscá-la. A entrega seria em Moscou,
e ele fez saber que protestava contra a prisão de escritores
dissidentes. No ano seguinte, foi a Hanói prestar solidariedade ao povo
vietnamita. Veio Maio de 68 e Grothendieck se viu no centro de um
paradoxo. Imaginava-se anarquista e libertário, mas percebeu que era
tido como um príncipe das ciências, investido de autoridade
institucional. Era o início de sua deriva para fora do mundo. Afastando-
se progressivamente do trabalho de pesquisa, fundou um grupelho
ecológico de matizes catastrofistas que pregava a resistência contra as
forças negativas da devastação ambiental e alertava para os riscos da
hecatombe nuclear. Passou a acolher mendigos e miseráveis em sua casa,
dispondo-se a viver como eles, mais um pobre entre os pobres. Em 1970,
ao descobrir que parte ínfima do orçamento do instituto de pesquisa que
o abrigara provinha do Ministério da Defesa francês, demitiu-se. Voltou
para a universidade de província em que se formara, mas a matemática já
não era o centro de seus interesses. Tinha 42 anos.

Em 1988 a Academia Real da Suécia concedeu-lhe o Prêmio Crafoord,
criado para distinguir os campos da ciência não contemplados pelo

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 9/12
13/05/2019 A voz das coisas

Nobel, como a matemática. Pouco depois do anúncio, Grothendieck
publicou no Le Monde uma carta em que recusava a distinção e os 270
mil dólares que a acompanhavam: “Sou sensível à honraria, mas não
desejo receber este prêmio nem nenhum outro. Meu salário é mais do que
suficiente para as minhas necessidades.” Foi uma de suas últimas
manifestações públicas. Naquele mesmo ano, rompeu com a comunidade
científica, que denunciou como fraudulenta e a serviço da morte.

Há quem diga que Grothendieck desapareceu quando seus recursos de
imaginação deram sinal de esgotamento. Havia dominado
completamente o seu campo por duas décadas; pensara as mais raras
abstrações doze horas por dia, sete dias por semana, doze meses por ano,
numa obsessão singular que não deixava espaço para mais nada — pai de
cinco filhos com três mulheres, sua vida familiar nunca deixou de ser
caótica. Planejara sozinho o mais complexo edifício lógico, tirara-o do
chão sem ajuda de ninguém, mas, exaurido, fora incapaz de completá-lo.
Via agora um discípulo seu – o belga Pierre Deligne (Fields 1978) –, até
pouco tempo antes um aluno dileto, concluir a obra, instalando os
bronzes, a cúpula e o teto magnífico. Sentiu-se traído, e dedicou mais de
mil páginas para denunciar o “roubo de provas”. Era ele que fornecera “o
espírito”; aos outros, coubera apenas “a tarefa”. O fato de Deligne
aparecer a seu lado como copremiado do Crafoord decerto teve
consequências. Lamentando que a matemática tivesse se transformado
num “esporte competitivo”, Grothendieck comunicou à comissão
julgadora que se recusava a entrar no “jogo dos prêmios e das
recompensas”. Provavelmente era verdade, mas não elimina a
possibilidade de ter se sentido ferido com a companhia que o prêmio lhe
impunha.

Por volta de 1990, já vivendo em relativo isolamento, foi visto ateando
fogo a dezenas de manuscritos. Exigiu que suas obras fossem eliminadas
das bibliotecas e nunca mais publicadas. A um amigo, confiou cerca de 20
mil páginas escritas entre 1970 e 1991 e em seguida pediu que as
destruísse. Sábio, o amigo as depositou na Universidade de Montpellier,
onde um conservador presciente logo lhes garantiu a classificação de
“Tesouro Nacional”, o que as protegeu dos desejos do autor. Elas
permanecem ali, intocadas, quem sabe guardando joias matemáticas.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 10/12
13/05/2019 A voz das coisas

N
o verão de 1991, Grothendieck deixou de súbito o sul da França e
se recolheu a um lugar qualquer aos pés dos Pirineus. As
coordenadas incertas de sua localização desencadearam centenas
de expedições malsucedidas de peregrinos à cata do santo perdido.
Cessaram todos os contatos com colegas, amigos, filhos. Era como se
tivesse desaparecido.

Mas não tinha, pois novas páginas de Récoltes et Semailles continuaram a
aparecer na internet. O subtítulo da obra, Reflexões e testemunhos sobre
o passado de um matemático, deixava claro que a matemática ficara para
trás. Agora era a vez de Deus e do Diabo, entre os quais Grothendieck se
colocava como testemunha agônica de uma batalha escatológica.
Convertido havia muito a um vegetarianismo radical, passou a maltratar
o corpo com jejuns que o levavam à beira da morte. Pensava que só assim
Deus se revelaria. Relata cânticos entoados por duas vozes simultâneas, a
dele e a de Deus, e é com horror que descreve as façanhas do Diabo no
mundo. Uma delas teria sido reduzir a velocidade da luz, engasgando
assim a máquina do universo. Seu velho amigo Pierre Cartier vê nas
partes lúcidas das memórias – e elas ocupam centenas de páginas – a
confissão tocante de alguém que se julga fracassado por não ter
conseguido completar o projeto monumental a que se lançou quando
jovem. No restante, enxerga apenas loucura e paranoia.

Uma amiga acredita que, ao penetrar tão profundamente na estrutura das
coisas, Grothendieck acabou por se ver diante de coisas horríveis. O
contrário também é possível. Dele se disse que não tentou descrever o
mundo, mas a harmonia do mundo. Terminou só, mas se a fecundidade,
como disse na carta à Academia sueca, se reconhece pela progenitura e
não pelas honrarias, então basta olhar em volta para ver o jardim
exuberante que ele deixou. Três das maiores conquistas matemáticas das
últimas décadas (dentre as quais a solução do último teorema de Fermat),
proezas que originaram duas medalhas Fields, são consequência direta
de sua obra. Muitos ainda precisarão subir nos seus ombros para
enxergar melhor.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 11/12
13/05/2019 A voz das coisas

Depois de 23 anos de reclusão, Alexander Grothendieck morreu, aos 86
anos, no hospital da cidadezinha de Saint-Girons, entre montanhas, a 660
quilômetros de Paris. De todos os obituários que lhe foram dedicados,
talvez gostasse mesmo é do que recebi em minha caixa de mensagens,
escrito por um colega cinquenta anos mais novo, medalhista Fields como
ele: “Morreu o grothendieck…” Seco, rigoroso, urgente; quase brutal,
como quem anuncia um desastre, mas em voz baixa. Pensando em como
Grothendieck tentou desaparecer do mundo, imagino que ele apreciaria
até a minúscula no nome.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/ 12/12

S-ar putea să vă placă și