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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social


Museu Nacional

Comércio, Mobilidade e Dinheiro


A busca pela vida no Plateau Central haitiano e
na fronteira dominicana

Felipe Evangelista Andrade Silva

Rio de Janeiro
2019
Felipe Evangelista Andrade Silva

Comércio, Mobilidade e Dinheiro.


A Busca pela Vida no Plateau Central Haitiano.

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos para a obtenção do título
de doutor em Antropologia Social.
Orientador: Federico Neiburg

Rio de Janeiro
Agosto de 2019
Comércio, Mobilidade e Dinheiro.
A busca pela vida no Plateau Central haitiano e na fronteira dominicana.

Felipe Evangelista And rade Silva

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós -Graduação em Antropologia Social do


Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos à


obtenção do título de doutor em antropologia social. 314 pp.

Orientador: Federico Neiburg

Banca examinadora:

Presidente:

Fedeçfr1eiburg, PPGAS, MN/UFRJ

Membros titulares:

André Dumans Guedé, UFF

aL //

/ Eugênia Motta, IESP/1JERJ,

Commerforçj...22A~, MN/UFRJ

acir Palmeira, PPGAS, MN/U FRi

Membros suplentes:

Fernando Rabossi, IFCS/UFRJ

Ornar Ribeiro Thomaz, Unicarnp

Rio de Janeiro

29 de agosto de 2019
RESUMO
Essa tese trata de duas comerciantes haitianas que buscam suas vidas na fronteira
entre o Haiti e a República Dominicana. Privilegiando os pontos de vista destas duas
mulheres, acompanharemos seus percursos, compartilhando o cotidiano nas suas casas e
em mercados públicos, e colocando etnograficamente em evidência os entrelaçamentos
entre as lógicas do comércio (e as relacionalidades que lhes são intrínsecas), da
mobilidade e das casas. Focando conceitos como lizay, lespri, beni, maldichon e lavi, a
análise etnográfica revela articulações multifacetadas (e por vezes dissonantes) entre
trocas materiais, forças invisíveis e princípios morais.

Palavras-chave: Haiti-República Dominicana (fronteira); comércio; mobilidade;


moralidade; pessoa; casa; vida.

ABSTRACT
This thesis deals with two Haitian Market women who search for their lives in the
Haitian-Dominican border. Privileging to the points of view of these two women, we will
follow their whereabouts, sharing the everyday life in their houses and in public markets
and ethnographicaly highlighting the entanglements between the logics of the commerce
(and its intrinsic relationalities), mobility and houses. Exploring Haitian concepts such as
lizay, lespri, beni, maldichon, and lavi, the ethnographic analysis will reveal multiple (and
sometimes divergent) articulations between material exchanges, invisible forces, and
moral principles.

Keywords: Haiti-Dominican Republic (border); market; mobility; morality; person;


house; life.
RÉSUMÉ
Cette thèse traite de deux commerçants haïtiens cherchant leur vie à la frontière
entre Haïti et la République dominicaine. Privilégiant le point de vue de ces deux femmes,
nous suivrons leur chemin, en partageant la vie quotidienne chez elles et sur les marchés
publics, et en soulignant ethnographiquement les liens qui unissent les logiques du
commerce (et les relationnalités intrinsèques), la mobilité et les maisons. En se
concentrant sur des concepts tels que lizay, lespri, beni, maldichon et lavi, l'analyse
ethnographique révèle des articulations multiformes (et parfois dissonantes) entre des
échanges matériels, des forces invisibles et des principes moraux.

Mots-clés: Haïti-République dominicaine (frontière); commerce; mobilité;


moralité; personne; maison; la vie.

REZIME
Tèz sa a pale de de machann k ap chache lavi sou fwontyè Ayiti ak Sen Domeng.
Pandan n fokis sou visyon de fanm sa yo, nou pataje lavi avèk yo anndan lakay yo, epi nan
mache piblik yo, pou n ka konprann ki jan yo menm yo wè aktivite pa yo. Yon fason pou
nou ka montre, ki jan etnografikman gen yon relasyon ant jan moun yo fè komès ak
mobilite epi kay yo. Pandan nou fokis sou konsèp tankou lizay, lespri, beni, maldichon epi
lavi, analiz etnografik la montre plizyè aspè (epi pafwa kontradiktwa) ant echanj materyèl
yo, fòs envizib yo ak prensip moral yo.

Mo kle: Ayiti-Repiblik Dominikèn (fwontyè); komès; mobilite; moralite; moun; kay;


lavi.
AGRADECIMENTOS
O caminho desde o início do doutorado até a conclusão da tese foi longo e cheio de
percalços, passando por mudança de cidade, o nascimento do meu filho mais novo e o
crescimento do mais velho (mais da metade dos nove anos de vida dele se passaram desde que
eu comecei este trabalho), o trágico incêndio que destruiu o Museu Nacional, as eleições
presidenciais mais perturbadoras desde a redemocratização no Brasil, três idas e vindas entre o
Haiti e o Rio de Janeiro, idas e voltas entre licenças concedidas pelo Instituto Brasileiro de
Museus (IBRAM), órgão em que eu trabalho. Se as condições de produção do texto não foram
sempre as mais tranquilas, elas certamente melhoraram muito com a ajuda de pessoas próximas.
Às vésperas do envio à banca, num estado de completo esgotamento mental e físico, tento me
lembrar de todas as pessoas que deveriam ser mencionadas aqui, e peço que me desculpem
aquelas cujos nomes eu esqueci de mencionar.
A pesquisa não teria sido possível sem o auxílio do CNPq, que me concedeu 15 meses de
bolsa entre o fim de 2014 e o início de 2016, sem o edital interno de auxílio à pesquisa do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, que financiou
duas das viagens ao Haiti, e principalmente sem a concessão dos quatro anos de licença
remunerada e dos três meses de licença-capacitação dedicados à escrita da tese, concedidas pelo
IBRAM. Agradeço a todas essas instituições.
No Departamento de Gestão Interna e Pessoal (DPGI) do IBRAM, um agradecimento
especial a Daniela Pinna Souza, Henrique Oliveira e Vanessa Tavares, pelo auxílio com as
diversas etapas do processo do pedido de licença, e também a Sônia Regina de Souza Oliveira
e Denio Menezes da Silva, por sua anuência. No Departamento de Processos Museais
(DPMUS), agradeço às chefias Luciana Palmeira, Juliana Vilar Ramos Ramalho e Raquel
Fuscaldi, por concordarem com a concessão da licença, a Marcos Calebe, pela ajuda com os
trâmites, e a todo o pessoal da Coordenação de Educação e Museologia Social (COMUSE):
Juliana Vilar Ramos Ramalho, Raquel Fuscaldi, Marielle Gonçalves, Vivian Cobucci, Joana
Regatieri, Dalva de Paula, Sandro Gomes, Vitor Rogério Oliveira Rocha, Danilo Alves de Brito
e Jorge Lucas. Sei que meu comprometimento com o doutorado desfalcou o coletivo e, direta
ou indiretamente, sobrecarregou a todos. Espero retribuir a boa vontade e gentileza que vocês
tiveram comigo com muito trabalho na vida após a tese. Muito obrigado.
Aos membros titulares da banca, André Dumans Guedes, Eugênia Motta, John
Commeford e Moacir Palmeira, e aos membros suplentes, Fernando Rabossi e Omar Thomaz.
Agradeço duplamente aos membros da banca de qualificação, André Dumans Guedes e John
Commeford, cujos comentários certamente enriqueceram este trabalho.
Aos professores do PPGAS que foram os principais responsáveis pela minha formação:
Olívia Maria Gomes da Cunha, Luís Fernando Dias Duarte, Márcio Goldman, Moacir Palmeira,
Fernando Rabossi, e Lygia Sigaud (in memoriam), e em especial a Federico Neiburg, meu
orientador no mestrado e no doutorado, que me convidou pela primeira vez para ir ao Haiti
ainda em 2007, quando eu nada sabia sobre o país. Pelas trocas intelectuais, pelas indicações
de bibliografia, pelas leituras sempre atentas de diversas versões da tese e de outros trabalhos,
pela disponibilidade para conversas, pelo incentivo e pela curiosidade que sempre mostrou pelo
meu trabalho, serei eternamente grato.
Aos colegas do Museu Nacional/UFRJ e do Núcleo de Pesquisas em Economia e
Sociedade (NUCEC): Pedro Braum, Flávia Dalmaso, Luana Machado, Ana Fiod, Uliana
Esteves, Mélanie Montinard, Handerson Joseph, Thomas Cortado, Viviane Fernandes, Natália
Velloso, Clemence Leobal, Luiza Dias Flores, Raul Alejandro Delgado, Claudia Fioretti
Bongianino, Thiago Niemayer, Carlos Gomes de Castro, Victor Miguel Castillo de Macedo e
Gustavo Onto. Um agradecimento especial ao bom amigo Rogério Brittes W. Pires, que leu e
comentou um artigo que serviu de base para trechos importantes da tese, e à amiga Rosa Vieira,
que além de ler e comentar textos meus, propôs que o diálogo entre nossos trabalhos se tornasse
uma parceria de coautoria, que espero que ainda dê muitos frutos.
Aos outros pesquisadores que encontrei no Haiti e na RD, interlocutores importantes,
boas companhias e contatos fundamentais para me permitir viajar pela ilha: Pedro Braum,
Joanna da Hora, Rodrigo Bullamah, Jean Louis Sergo, Johnny Fontaine, Louis Marcelin, Flávia
Dalmaso, Mélanie Montinard, June Dutro, Fritz Cothias, Werner Graeber.
Novamente ao querido colega Handerson Joseph, pela ajuda com a tradução do resumo
para o crioulo haitiano, e aos membros de sua família que me acolheram em Fonds-Parisien:
Sheudia Joseph, Kiki, pastor Briz, Madame Briz, Gègè e Madame Gègè. Aos amigos que
vieram me visitar quando eu estava em campo, Miriane Peregrino e Marcus Vinicius Gomes, e
à minha grande amiga e madrinha do meu filho, Marina Soares, não só por trazer o Joaquim
para que ele conhecesse o país onde trabalhava seu pai, mas também pelas décadas de amizade
e pelos diversos momentos em que me fez esquecer da tese.
A Natália Moura pela ajuda com os mapas e a Francyne França pela ajuda com a
editoração. A Felipinho, pela ajuda com a entrega das cópias impressas da tese aos membros
da banca, pela amizade e pela loucura.
Aos meus pais, pelo apoio incondicional ao longo de todos estes anos. Aos meus filhos,
Joaquim Nóbrega Andrade Silva e Ignácio Evangelista Peixoto, por me ensinarem a ser pai e
por tornarem menor o peso da tese e do doutorado frente ao resto da vida. A Márcia Maria
Nóbrega de Oliveira, por compartilhar comigo a criação de nosso filho Joaquim. À minha mãe
e meu sogro Luiz, por todas as vezes em que cuidaram do Ignácio para que eu pudesse trabalhar.
A Juliane Peixoto Medeiros, por compartilhar a criação do Ignácio, pelas noites sem dormir,
pelo suporte ao longo de todo o processo sem o qual teria sido impossível terminar este trabalho,
por me proporcionar um aprendizado radical sobre mim mesmo, pelos momentos mais felizes
que já vivi e também pelos mais turbulentos e duros, pelo amor (às vezes) tranquilo e pela
paixão louca, enfim, por ter revolucionado a minha vida.
Por fim, agradeço a todas as pessoas com quem convivi no Haiti, que são muitas para
mencionar pelos nomes, e um enorme agradecimento às duas interlocutoras principais na tese,
Jaklin Raphael e Madame Dodo, pela infinita paciência que tiveram comigo, pelas boas
conversas, por me apresentar ao seu mundo, e a todos os membros da família de Jaklin, que me
adotaram e cuidaram de mim: Evens Joly, Casline e Linea, Castro, Loudline e Didi, Yvlin e
Kalu, Sondy, Carlos, Carnesto, Faika, Sonia e Judni. Nunca esquecerei a forma como fui
recebido na casa de vocês, e a minha casa estará sempre aberta para receber todos que desejarem
vir ao Brasil. A vocês, eu dedico esta tese.
LISTA DE FOTOS E MAPAS
1 Mapa da Ilha de Hispaniola, indicando a área da pesquisa. ............................................................... 23
2 Mapa elaborado pelo geógrafo George Anglade (L'Espace Haitien. Carte 08, “os mercados”). ...... 40
3 Mapa elaborado pelo geógrafo George Anglade (L'Espace Haitien. Carte 09, “os circuitos”). ....... 41
4 Mapa mostrando diferença da fronteira colonial para a contemporânea, indicando as principais
localidades da zona fronteiriça. ............................................................................................................. 50
5 Detalhe da área da pesquisa. .............................................................................................................. 59
6 Jaklin com pano amarrado na cabeça posando no tet mòn. Foto: Juliane Peixoto. ........................... 61
7 Deyè mòn gen mòn, “depois da montanha tem outra montanha”. Foto do autor com amigos haitianos,
tirada em 2008, autoria desconhecida. .................................................................................................. 64
8 Madame Dodo. Foto: Juliane Peixoto. ............................................................................................... 74
9 Machann e criança ao fundo no Mercado de Belladere. Foto: Juliane Peixoto. ............................... 84
10 Cena no mercado de Kwa Fè. Imagem enviada por whatsapp. ........................................................ 86
11 Tina cortando uma barra de sabão no mercado de Belladère. Foto: Felipe Evangelista. ................ 96
12 Banca no Mercado de Belladère. Foto: Felipe Evangelista ........................................................... 100
13 Mapa centro Elias Piña. Fonte: Google Maps. .............................................................................. 133
14 Mapa de Belladere e arredores. Fonte: Mapquest. ........................................................................ 134
15 Mapa de estradas e caminhos internos. .......................................................................................... 135
16 Motos à espera, próximo ao posto fronteiriço de Carrizal. Foto: Juliane Peixoto. ....................... 137
17 Jaklin a caminho de Porto Príncipe para vender bananas no mercado de Pétionville. Sua carga está
nos sacos costurados ao fundo da imagem. Foto: Felipe Evangelista. ............................................... 141
18 Moto preparada para transportar contrabando de ambwatye.0 Imagem enviada por WhatsApp. . 159
19 Jaklin vendendo pèpè na RD Imagem enviada por WhatsApp. .................................................... 160
20 Jaklin posa com a bíblia. Imagem enviada por WhatsApp. .......................................................... 176
21 Diferentes salmos pintados nas fachadas das casas. Imagens enviadas por WhatsApp. ............... 180
22 Banca de pèpè em Elias Piña. Foto: Felipe Evangelista................................................................ 194
23 Komès chalatan – Guerlin fazendo creme. Foto: Felipe Evangelista. ........................................... 206
24 Komès chalatan - frascos para perfume. Foto: Felipe Evangelista. ............................................... 207
25 Casa de Jacqueline. Foto: Juliane Peixoto...................................................................................... 243
26 Casa de madeira na vizinhança. Próximo ao texto lê-se a inscrição “Ezayi [Isaías] 54”. Foto: Felipe
Evangelista .......................................................................................................................................... 244
27 Casa e cozinha, construções separadas. Foto: Juliane Peixoto ....................................................... 252
28 Carlos transportando planch para construção de casa. Foto: Juliane Peixoto ................................ 254
29 Quarto alugado em Las Matas, base temporária. Foto: Felipe Evangelista. .................................. 277
30 Uma casa desabitada. Foto: Felipe Evangelista ............................................................................. 296
31 Homem trabalha para finalizar o caixão de Jaklin. Foto: Juliane Peixoto. .................................... 301
32 Carlos brincando em frente ao caixão de sua mãe. Foto: Juliane Peixoto. .................................... 302
GLOSSÁRIO
Andeyò. / Moun andeyò. Do lado de fora. Área rural, lugar ermo, com infraestrutura precária. /
Pessoas do lado de fora, excluído/as. Camponeses.
An gwo / an detay. No grosso, Atacado / No detalhe, Varejo.
Ankouraje. Encorajar.
Antèman. Enterro.
Asèt. Bens capazes de produzir renda.
Avans. Avanse. Avanço, adiantamento (em dinheiro ou mercadoria). Avançar.
Baka. Criatura malévola que pode ser comprada e que primeiro enriquece seu dono e depois o
mata.
Bare. Baryè. Barrar, barrado/a, sem saída, sem dinheiro. Barreira, portão, obstáculo.
Barik. Unidade de medida abstrata, equivalente a 40 mamit, ou 280 gode.
Baz. Base. Amigo/a, pessoa de confiança. Grupo de amigos. Local de reunião deste grupo.
Gangue armada.
Benefis. Ti benefis. Lucro.
Beni. Abençoado/a. Abençoar.
Blan. / Blan nwa. Gringo/a, estrangeiro/a, qualquer pessoa que venha de fora da ilha (não se
aplica a dominicano/as). Ajetivo também usado para qualificar objetos e dinheiro. Cor
branca. / Estrangeiro/as negro/as (lit. “branco/a negro/a”).
Bloke. Bloquear. Bloqueado/a. Sem saída, sem dinheiro. Rua engarrafada, com trânsito parado.
Bòkò. Homem que pratica feitiços agressivos.
Bolèt. Loteria.
Bon. / Pa bon. Bom, original. Ruim, falsificado.
Bondye. Deus, Bom Deus, ser transcendente, personagem da Bíblia.
Bouk. Sede urbanizada de vilarejos, cidades de pequeno porte.
Bouzen. / Fè bouzen. Prostituta. / Prostituir-se.
Byen avè. “Bem com”. Relação de amizade, confiança. Caso amoroso entre pessoas não casadas
uma com a outra.
Cabesit. Arroz quebrado.
Chache lavi, Buscar a vida.
Chans. / Malchans. Sorte / Azar.
Chay. Carga, fardo, carregamento.
Chèf. Militar, policial.
Chofè. Motorista.
Dame Misyonè. Missionária.
Depo. / Mèt Depo. / Patrón. Depósito. / Dono/a do depósito. / Dono/as de depósitos na
República Dominicana.
Degaje. Se virar, dar seu jeito.
Depeyze. Desterrar.
Djab. Diabo. Santo. Lwa,
Dolà. Dólar haitiano, moeda sem existência física, unidade de conta equivalente a 5 gourdes.
Èd. Ajuda.
Eklere. Iluminar, esclarecer, iluminado, esclarecido, idiota arrogante.
Etranjè. Estrangeiro, forasteiro.
Frekan. Briguento/a, desrespeitoso/a.
Gode. / Koup gode. Vasilha que serve como unidade de medida nos mercados. / Enganar outra
pessoa fraudando a mensuração feita via gode.
Gourde. Moeda nacional do Haiti.
Gran chemen. Caminho principal.
Granmoun. Idoso/a, adulto/a, anciã/o, pessoa responsável por alguma criança ou adolescente.
Itil. / Pa itil. Útil. Com valor de mercado (no caso de animais). / Inútil, sem valor de mercado
(mesmo caso).
Jaden. Roça, roçado.
Jere. Gerir.
Kado. Presente.
Karo. Unidade de medida da terra, equivalente a 1,29 hectare.
Katolik. Católico/a.
Kay. Lakay. / Mèt kay. Casa. / Dono/a da casa.
Kiltivatè. Cultivador, trabalhador da terra.
Kizin. Cozinha.
Kleren. Cachaça.
Klyian. Cliente e/ou fornecedor com quem se mantém uma relação comercial estável. Sinônimo
de pratik.
Kombit. Mutirão.
Komè. Comadre, feminino de Konpè.
Komès. Ti komès. / Komès Chalatan. Comércio, pequeno comércio. / Comércio charlatão.
Komèsan. Comerciante.
Konesans. Conhecimento.
Kongo. Ignorante (esp. de hábitos urbanos e objetos tecnológicos), matuto/a, estúpido/a.
Kontreband. Contrabando.
Koken. / Pa serye. Pessoa cuja palavra não é confiável, que não paga suas dívidas.
Kraze. Quebrar, arrebentar.
Kredi. Crédito, dívida.
Kretyen. Cristã/o (protestante), em oposição a katolik.
La Capital. Cidade de Santo Domingo.
Lach. Frouxo/a.
Lajan. Dinheiro. (Kòb é sinônimo, mas mais associados a moedas, trocados.)
Lakou. Terreno.
Lanmou. Amor.
Latrin. Latrina.
Lavi. Vida.
Lavil. Cidade, Porto Príncipe.
Lespri. Espírito, alma; Pensamento, memória. Conhecimento, saber fazer. Espirituosidade.
Levanjil. Evangelho, evangélico/a.
Lide. Ideia.
Lizay. Simpatia, empatia, diplomacia.
Lwa. Santo, espírito, personagem do panteão de entidades cultuadas no vodu.
Machann. Comerciante.
Mache. Mercado (como substantivo), andar (como verbo).
Madame Entèl. Companheira de Entèl (madame + nome do marido como um título dado às
mulheres casadas.)
Madanm sara. / Fè sara. Comerciante de longa distância. Fazer comércio de longa distância.
Magazen. Loja. Armazém.
Maldichon. Maldição, amaldiçoado/a.
Malfektè. Malfeitor/a.
Malere. Pobre. Sem dinheiro. Sofredor.
Mamit. Unidade de medida abstrata equivalente a sete gode.
Manje lajan. / Gate lajan. Comer dinheiro. / Estragar dinheiro.
Manje moun. Comer gente.
Manmanlajan. Capital empregado no comércio (lit. “dinheiro-mãe”).
Mare. Amarrar. Amarrado/a. Sem saída, sem dinheiro.
Mawon. / Mawonaj. Fugir, fugitivo/a, fuga.
Mityel. Modalidade de sociedade de crédito rotativo.
Mòn. / Moun mòn. Morro, montanha. Área sem infraestrutura, materialmente precária. / Gente
da montanha. Matuto/a, ignorante (esp. dos costumes urbanos e objetos tecnológicos).
Moun. / Moun deyè. / Moun pa. Nèg. Pessoa, gente, ser humano. / Pessoa atrás. / Pessoa de
(outra pessoa). Sinônimo de nèg.
Oblije. Forçado/a.
Onè. Honra.
Ougan. Sacerdote vodu.
Panyol. Dominicano/a. Sinônimo de dominiken.
Patnè. Parceiro/a.
Pèpè. Objetos usados, de segunda mão.
Peyi. País, região, vizinhança. (Pode abranger diferentes escalas especiais, sentido preciso se
dá pelo contexto de uso.)
Peyizan. Camponês/a, pessoa oriunda do meio rural.
Plasaj. Plase. Relação conjugal na qual os parceiros compartilham uma casa mas não são
oficialmente casados. Pessoa envolvida nesse tipo de relação.
Po. Pele, casca (de frutas e vegetais), embalagem plástica.
Ponya. Juros, punhal.
Poto mitan. Pilar central.
Pratik. Cliente e/ou fornecedor com quem se mantém uma relação comercial estável. Sinônimo
de klyian.
Preche. Pregar (a palavra do Senhor).
Provisyon. Provisão.
Pwen. Objeto com propriedades mágicas.
Pwogès. Progresso.
Pwovens. Província, campo.
Respè. Respeito.
Restavèk. (lit. “restar com”) Criança deixada sob os cuidados de uma família à qual ela não
pertence, da qual se demandam trabalhos domésticos em troca da moradia.
Raje. Mato, zona rural, afastada.
Rale lajan. “Puxar dinheiro”, tipo de roubo que usa técnicas místicas.
Ras. Raça.
Rete. Morar.
Sabotay. Modalidade de sociedade de crédito rotativo.
Salye. Saudar.
San. / Movè san. Sangue. / Sangue ruim.
Satan. Satanás, demônio, diabo.
Sekretè. Pessoa enviada para fazer compras em nome de uma terceira.
Sen Domèn. República Dominicana.
Sere. Guardar, proteger, esconder, ocultar.
Sevis. / Sevitè. Serviço. Servidor/a.
Sistèm. Sistema.
Sòl. / Manman Sòl. Modalidade de sociedade de crédito rotativo. Pessoa responsável por um
destes grupos (lit. “mãe do sòl”).
Tap-tap. Tipo de transporte coletivo.
Tcheke. Checar (uma pessoa ou uma situação). Exigir documentos.
Ti moun. Criança.
Tiguele. Valentão dominicano, bandido.
Travay. Trabalho, esp. remunerado por um empregador. Emprego com salário. Se distingue de
atividades autônomas que geram renda como fazer comércio ou fazer mototaxi.
Tripotay. Fofoca.
Vann. Vender (distinto de “fazer comércio”, fè komès).
Vèy. Velório.
Viewo. Guia em viagens para a RD ou fora da ilha. Pessoa experiente, vivida.
Viv. Viver, morar.
Volè. Ladra/ladrão.
Voye Sòm. Enviar salmo. Forma de assassinato que tem a bíblia como veículo.
Vwazinay. Vizinhança próxima.
Wi-a-non. “sim e não”. Ter palavra, ser uma pessoa confiável.
Wout. Rota, caminho, sendeiro, estrada.
Zanmi. Amigo/a.
CONVENÇÕES ORTOGRÁFICAS

Todas as palavras escrita em crioulo haitiano estão grafadas em itálico, muitas vezes
acompanhadas de uma tradução direta [entre colchetes]. As palavras de outras línguas (que não
o português nem o crioulo) também estão em itálico, geralmente com indicação da língua a
quem pertencem. Trechos de falas mais longa foram citados “entre aspas”.
Para a grafia das palavras crioulas, usei como base o dicionário Vilsen. Para os nomes
próprios, dei preferência à grafia crioula frente à francesa. Se adotássemos a grafia francesa, o
nome Jaklin seria escrito Jacqueline, Modlin seria Maudeline, e assim em diante. Para muitos
nomes, eu desconheço a forma francesa (em alguns casos ela talvez nem exista), o que foi um
dos motivos pela minha preferência por manter todos em crioulo, fazendo o mesmo com o nome
de locais como Kwa Fé (Croix-Fer na grafia francesa), Kwabosal (Croix-des-Bossales), Wa
Sèk (Roy Sec). Para a cidade de Porto Príncipe (Port-au-Prince, ou Potoprens) mantive a grafia
em português.
No crioulo haitiano, a sonoridade das palavras é muito colada à sua forma escrita. Quase
todas as palavras são oxítonas (a sílaba mais acentuada é a última). Por exemplo, a sonoridade
da palavra gode em português seria escrita “godê”, lide seria “lidê”, mare como “marrê”, e
assim por diante. As consoantes possuem os mesmos sons que possuem em português, exceto
pela letra G, que em crioulo sempre marca um som diferente de J, independente da vogal que o
acompanhe. Assim, o nome Gi, se fosse escrito em português, viria grafado como “Gui”.
Eis alguns exemplos de como são pronunciados alguns fonemas:
Laka/nyi/t (do espanhol La Cañite) – como em compa/nhi/a.
/Pè/pè/ – como em /pé/.
/Sò/m – como em /só/.
La/kou/ – como em /cu/rioso.
/Moun/ – como em /mun/do.
O/nè/ - como em bo/ne/co.
/O/nè – como em outr/o/.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 23
O sistema de mercados no Haiti ............................................................................................................ 32
Breve história da fronteira dominico-haitiana. ...................................................................................... 49
O trabalho de campo.............................................................................................................................. 58
Organização da tese ............................................................................................................................... 67

1 A FORMAÇÃO DE DUAS MACHANN .............................................................................. 71


Introduzindo Madame Dodo.................................................................................................................. 71
Lizay ...................................................................................................................................................... 75
De volta a Madame Dodo ...................................................................................................................... 81
A formação de Jaklin ............................................................................................................................. 82
Clientela e lizay ..................................................................................................................................... 85
Ambivalência nas relações entre colegas. ............................................................................................. 89
Uma breve cena a respeito das possíveis desvantagens das relações densas......................................... 93
Unidades de medida. ............................................................................................................................. 94
Nota sobre as origens do capital .......................................................................................................... 102
Mais algumas facetas do ‘pequeno comércio’ praticado por Madame Dodo. ..................................... 108
A crítica de Jaklin. ............................................................................................................................... 114

2 ATRAVÉS DA FRONTEIRA............................................................................................. 119


A arte de fazer caminhos e a sua instabilidade .................................................................................... 120
Nota sobre o conhecimento ................................................................................................................. 130
Tipos de caminhos e seus perigos ....................................................................................................... 132
Amarrações.......................................................................................................................................... 138
Estocagem e hospedagem.................................................................................................................... 142
De onde partiu Jaklin........................................................................................................................... 148
A travessia da fronteira, ontem e hoje ................................................................................................. 150
Os tempos áureos do contrabando ....................................................................................................... 153
Conhecimento e a transmissão da imagem de si ................................................................................. 159
O que impele o deslocamento.............................................................................................................. 165
A grande dívida ................................................................................................................................... 167

3 DINHEIRO ABENÇOADO, DINHEIRO AMALDIÇOADO ........................................... 175


Nota sobre filiações religiosas ............................................................................................................. 177
Os poderes e as vontades da bíblia ...................................................................................................... 179
A importância dos sonhos ................................................................................................................... 183
Interdições comerciais específicas às comerciantes evangélicas......................................................... 185
A bênção do pai ................................................................................................................................... 192
Os conceitos de maldichon e de peche ................................................................................................ 200
Negociando com Bondye ..................................................................................................................... 209
Chache lavi.......................................................................................................................................... 218

4 AS PESSOAS E AS CASAS .............................................................................................. 223


O apego ao sangue............................................................................................................................... 225
Depois das dívidas ............................................................................................................................... 235
As misturas do sangue ......................................................................................................................... 239
Nota sobre os termos compostos e inflexões da palavra moun [pessoa] ............................................. 246
Nota sobre a estrutura física das casas ................................................................................................ 251
Trajetórias habitacionais...................................................................................................................... 254
Abastecimento da casa e regimes de propriedade ............................................................................... 260
Configurações nas quais as casas participam ...................................................................................... 275
A gestão do tempo e dos gastos ........................................................................................................... 282

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 289


BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 305
“Ninguém enterra você como os seus filhos.”
Provérbio haitiano.
INTRODUÇÃO

1 Mapa da Ilha de Hispaniola, indicando a área da pesquisa.

Ao entardecer, o espaço do mercado de Belladère, que até há pouco estivera apinhado de


gente, se esvazia progressivamente. Madame Dodo e Tina, duas mulheres que passaram o dia
vendendo ali, guardaram suas mercadorias num depósito próximo antes de tomar o rumo de
volta para a casa, acompanhadas por uma das filhas de Madame Dodo e por mim. Mototáxis
nos levaram pela estrada asfaltada, deixando-nos à beira do caminho de terra batida. Restavam
ainda cerca de três quilômetros a pé até chegarmos à vizinhança de Lakaniyt, onde ambas
moravam, e onde também ficava a casa em que eu estava hospedado. No caminho, Tina vinha
conversando com Madame Dodo, que recém expulsara seu marido de casa, sobre as vantagens
de não ter marido. A argumentação de Tina tinha como centro o fim da enfadonha obrigação
de dar satisfação a um homem sobre seus itinerários e horários. Madame Dodo apenas a
escutava com o seu usual sorriso no rosto, sem dizer o que pensava, quando cruzou nosso
caminho um homem que trazia aos ombros dois cachos de bananas verdes, provavelmente
recém-cortados.

23
Tina perguntou a ele se aquelas bananas estavam à venda. O homem pediu 30 dolà pelos
dois cachos.1 Ambas discordaram do preço, Madame Dodo dizendo carinhosamente, com um
sorriso, “compadre, elas não valem tudo isso”, Tina com uma risada de escárnio, dizendo que
aquele preço era absurdo e que o homem não tinha a menor noção das coisas.
Virando-se para mim, Madame Dodo disse “tudo bem, vou levar. Eu não posso comer
lixo quando chegar em casa, posso? Não vou servir lixo pros meus filhos. Eu preciso delas.”
Então, ela ofereceu pagar 10 dolà por um dos dois cachos, levemente maior que o outro. O
homem prontamente aceitou seu preço.
Tina continuou dizendo que estava muito caro, não pagaria os mesmos 10 dolà no cacho
restante. Chegou a contar em voz alta, na frente do homem, o número de bananas (algo que
nunca vi ninguém fazer em nenhuma outra transação envolvendo bananas ainda presas ao
cacho). Zombando das dimensões minúsculas daquele cacho, constatou que eram 10, pagando
10 dolà o homem levaria 1 dolà por unidade. Repetiu mais de uma vez, “você quer levar 1 dolà
por cada banana? Um dolà por cada uma?” O homem pareceu cada vez mais constrangido. O
fato de que ele não anunciara o desejo de vender, mas fora abordado por ela em primeiro lugar,
tornava o deboche dela ainda mais ofensivo.
Visivelmente indignado, o homem parecia buscar nos olhos de Madame Dodo alguma
cumplicidade, desejando que ela desse razão a ele e não àquela jovem insolente que andava
junto com ela. Anunciou que não iria se ocupar de Tina (isto é, iria ignorá-la dali em diante),

1
A palavra dolà significa “dólar haitiano”. É uma unidade monetária de uso corrente no Haiti, que tem a
peculiaridade de não existir enquanto moeda material, mas apenas como unidade de conta abstrata, fenômeno
já explorado por Neiburg (2016). Um dólar haitiano é igual a 5 gourdes. Esse padrão segue a antiga paridade
fixa de 5 para 1 entre o gourde e o dólar americano, estabelecida durante a ocupação dos Estados Unidos
(1915-38) que vigorou até os fins da década de 1980. Não encontramos nenhum indício de que a expressão
“dólar haitiano” já existisse a essa altura, mas a partir de então, há relatos de que a moeda norte-americana
começara a ser vendida no mercado informal mais cara que a paridade 5/1 (que, a essa altura, ainda estava
oficialmente estabelecida – ver Plotkin 1989). Com o fim da equivalência oficial, o valor da moeda haitiana
se descolou do dólar dos Estados Unidos, mas a referência ao dólar se manteve, agora duplicada, de um lado
os “dólares haitianos” [dolà ayisien, ou ainda dolà kreyòl, “dólar crioulo”], a moeda imaginária, unidade que
conta os gourdes de 5 em 5, e o chamado dolà ameriken [“dólar americano”], também conhecido como “dólar
verde” [dolà vèt]. Assim, mesmo que uma nota de dinheiro traga impresso o número 100 e o nome gourde, as
pessoas também a chamarão de 20 dolà. Enquanto moeda física, 30 dolà e 150 gourdes são rigorosamente a
mesma coisa (assim como qualquer outro número cujo valor em dolà seja 1/5 do valor em gourdes), trata-se
do mesmo dinheiro recebendo dois nomes diferentes, que correspondem a duas escalas diferentes. Não se usa
o dolà como fração, para valores menores que 1 dolà (ou 5 gourdes), o nome usado é sempre gourde. Poucos
dolà, valores abaixo de 10, também são comumente chamados pelo nome e valor em gourdes. Para valores
mais altos, contudo, o nome dolà (e a escala de 5 que lhe corresponde) é de uso generalizado, muito mais
comum do que gourde. Por exemplo, é muito raro que alguém diga que algo custou 870 gourdes – a imensa
maioria das pessoas dirão, ao invés disso, 174 dolà. A naturalidade com que as pessoas fazem essa conversão
entre escalas, e a rapidez e o automatismo com que dominam as contas com múltiplos de 5, são muitas vezes
difíceis de acompanhar para um estrangeiro.

24
mas que em respeito à granmoun [voltaremos ao termo adiante – nesse contexto, “idosa” ou
“anciã” são traduções razoáveis] que era Madame Dodo, deixaria o outro cacho também, que
ela pagasse quanto pudesse, não tinha problema, ele aceitaria qualquer valor. Madame Dodo
disse que estava tudo bem, levaria apenas o cacho pelo qual já havia pago.
O homem insistiu. Chegou a pedir que ela levasse os dois sem lhe dar dinheiro algum,
puxou a nota já paga para devolver, dizendo que ela pagasse qualquer outro dia, quando
pudesse. A atitude dele me surpreendeu, dado que ele e Madame Dodo não se conheciam
previamente, e não parecia haver garantia nenhuma de que seus caminhos se cruzariam de novo.
Frente a uma nova negativa de Madame Dodo, o homem pousou o outro cacho no chão e deu
alguns passos se afastando, dizendo que não o levaria, que fazia questão que Madame Dodo
ficasse com elas. Ela disse novamente que não, levaria só um dos cachos.
O homem se afastou mais alguns passos, repetiu que não o levaria, que era dela. Madame
Dodo também fez menção de sair abandonando aquele outro cacho ali no chão, não ia pegar. O
homem retrucou, por mim tudo bem, então deixe-as aí, porque eu também não vou levar. Esse
impasse só acabou quando ela se dispôs a pagar um total de 16 dolà pelos dois cachos, dinheiro
que o homem recebeu com um agradecimento antes de seguirmos nossos respectivos caminhos.
Assim que o homem se afastou, Madame Dodo deu um dos cachos para Tina levar e fazer
comida para as crianças dela. Ignoro se Tina pagou Madame Dodo por essas bananas. De todo
modo, havia uma circulação constante de produtos entre as duas casas, de tal forma que, ainda
que talvez não tenha havido um pagamento referente a esse episódio preciso, havia um regime
de reciprocidade entre elas.
Essa foi uma transação atípica. Em primeiro lugar, porque era um homem vendendo. O
comércio dos frutos da terra, de produção local e voltados para o consumo local, pelo menos
no espaço dos mercados, é virtualmente exclusivo às mulheres. Os homens, quando fazem
comércio, compram e vendem outros tipos de bens (como produtos eletrônicos, ou têxteis, ou
animais de grande porte), nunca itens básicos de alimentação.2
Muitas transações comerciais ocorrem fora do espaço dos mercados. No caso da cena que
acabamos de descrever, uma vizinhança relativamente erma era o único cenário viável, pois
seria humilhante para um homem ser visto vendendo ele mesmo bananas em um espaço tão
público quanto o mercado. Em condições normais, ele recorreria a alguma mulher para fazer

2
As bananas são um dos principais alimentos nessa região, costumam ser comidas ainda verdes, salgadas,
cozidas ou fritas. Deixá-las amadurecer para comer cruas é considerado um tipo de desperdício, é um modo
de consumo que faz elas renderem menos.

25
isso por ele (preferencialmente sua esposa, caso ele tivesse uma). O dinheiro passaria primeiro
pela mão de alguma mulher antes de voltar para a mão dele. Inevitavelmente, essa mulher
saberia exatamente o que ele vendeu e quanto dinheiro levara. Agora, embora tivesse se exposto
a uma situação vexatória, ele levava consigo um dinheiro que ninguém saberia que estava com
ele, caso ele não desejasse compartilhar essa informação.
Outro elemento atípico foi o comportamento de Tina. Eu já escutara de diferentes pessoas
a opinião de que ela não era uma pessoa respeitosa, mas nos meses em que eu já convivera
naquela vizinhança e nos mercados da região, nunca presenciara ela agir com tamanho desaforo.
O fato de que negociara com um homem é relevante para que ela tenha se sentido à vontade
para agir como agiu. Era evidente que ele estava numa situação desfavorável para resistir à
pressão colocada por ela, pois o que ele estava fazendo ali, embora não fosse nada ilícito, era
moralmente duvidoso, e ele não tinha nada a ganhar com o barulho que Tina começava a fazer,
ameaçando (de forma implícita, mas inequívoca) atrair a atenção de curiosos. A terceira parte
na interação, como uma anciã respeitável, foi a válvula de escape para evitar um conflito
indesejável para aquele homem.3
Desejamos ainda sublinhar um último elemento, que é a insistência na afirmação do
desejo em realizar uma venda independente do recebimento de qualquer dinheiro no ato, sem
um valor definido, sem a definição de qualquer prazo para pagamento futuro, e sem que sequer
as partes se conhecessem previamente. Levando tudo isso em conta, podemos nos perguntar se
ainda faz sentido continuar chamando essa operação de “venda”. Para leitores não
familiarizados com o Haiti, imagino que esse possa parecer, talvez, o elemento mais inusitado.
Do ponto de vista das interlocutoras da pesquisa, contudo, não é. Com essa cena de abertura,
desejamos colocar logo de saída a/o leitor/a diante de uma lógica culturalmente específica de
aquisição, gestão, distribuição e uso dos recursos que tornam a vida possível. Ao fim da tese,
se formos bem-sucedidos, a explicitação dessa lógica tornará essa mesma cena mais inteligível.
A despeito da considerável atenção que, como veremos, os mercados haitianos já
receberam na literatura, que eu saiba, não foi escrito ainda nenhum trabalho etnográfico de
fôlego especificamente sobre comerciantes no Haiti. Espero dar uma contribuição significativa
neste sentido, uma contribuição marcadamente etnográfica. Assim, descreverei 1) o sistema de
comércio haitiano, visto a partir das relações interpessoais e 2) um universo mais amplo de

3
As outras duas pessoas presentes na cena, uma criança e eu, visivelmente um blan [‘gringo’], não tomamos
parte na interação. Como a situação se repetiu inúmeras vezes ao longo da pesquisa, é provável que este
homem não tenha imaginado que eu pudesse compreender a conversa que acontecia em crioulo haitiano.

26
relações (que inclui forças e seres transcendentes) que, para essas comerciantes, é o que dá
sentido ao comércio e permite localizar essa atividade no fluxo mais amplo da vida e de sua
busca, para iluminar 3) uma lógica moral e culturalmente específica a respeito da aquisição,
gestão e distribuição dos recursos que tornam a vida possível.
Ao abordamos temas como a distribuição de recursos (incluindo os respectivos processos
de tomada de decisão aí implicados), está claro que nos aproximamos de um universo de
fenômenos usualmente identificados, dentro da divisão dos saberes acadêmico científicos,
como “econômicos”. Todavia, a presente tese não é um trabalho de antropologia econômica
stricto sensu.4
Alguns entendimentos clássicos desse subcampo (por exemplo, Firth 1964) propunham a
apropriação de conceitos da economia para dar conta de fenômenos oriundos de contextos
diferentes daqueles para os quais os conceitos haviam sido originalmente forjados (ou seja, o
uso de conceitos ocidentais modernos em situações não-modernas e não-ocidentais, incluindo
sistemas econômicos não monetarizados). Esse esforço iluminaria, reciprocamente, tanto a área
da economia, que teria toda uma nova massa de dados para dar conta, motivando reformulações
e refinamento de seus instrumentos analíticos, quanto da antropologia, que ganharia
instrumentos teóricos e analíticos para identificar e analisar fenômenos e padrões que teriam,
até então, em larga medida, passado despercebidos.
Apesar das áreas de sobreposição entre os temas, não temos, aqui, a menor intenção de
recorrer aos instrumentos da ciência econômica contemporânea (ainda que façamos referência
ao trabalho de economistas que trabalharam no Haiti, em particular estudos pertencentes ao
chamado campo da “economia do desenvolvimento”, como Mats Lundahl 1992 e Simon Fass
1988). Nosso empenho está voltado para outra direção, a saber, a descrição das práticas e a
apropriação dos instrumentos analíticos utilizados pelas interlocutoras da pesquisa. Esse
movimento é análogo à passagem de uma “antropologia política” para uma “antropologia da
política”, e da “antropologia econômica” para uma “antropologia da economia”. A respeito
desta última, Neiburg (2010) oferece a seguinte definição:

4
A identificação dos assuntos aqui abordados ao campo da “economia” será maior se tomarmos como parte
legítima da mesma um subcampo heterodoxo e híbrido, já que mais habitado por sociólogos e historiadores
do que por economistas, a chamada “economia moral” (originalmente formulada em Thompson 1971, com
desenvolvimentos mais contemporâneos em Fassin 2009 e Fontaine 2014). Mesmo tomando essa definição
mais elástica, creio que continua sendo uma identificação parcial, insuficiente para que este trabalho possa ser
classificado como antropologia econômica propriamente dita.

27
“Ao contrário de definir “teoricamente”, a priori, determinadas ordens da vida
coletiva como econômicas (sejam instituições ou comportamentos), a antropologia da
economia tenta compreender os sentidos que o campo semântico que se desenha em torno
da economia possui nas interações de agentes com características e escalas diferentes, como
pessoas, grupos ou nações. Por isso, ela é basicamente etnográfica.”

Enquanto boa parte desses estudos integra, entre os objetos de análise, formulações de
“especialistas”, bem como práticas institucionais correspondentes, aproximando assim o estudo
da economia dos science and technology studies, esse tipo de material (formulações de
economistas profissionais e atuação das instituições onde trabalham) aqui só aparecerá de forma
muito periférica, na medida em que as interlocutoras da pesquisa entram em contato com tais
instituições. Seguindo a analogia, mais precisamente que uma “antropologia da economia”, o
que faremos aqui é uma “antropologia do comércio popular haitiano”, enfatizando as
formulações das “especialistas” deste campo, ou seja, não economistas com formação
acadêmica profissional, mas as próprias comerciantes haitianas.
A descrição de práticas próprias à atividade comercial, observadas presencialmente ao
longo do trabalho de campo, é indispensável para que se possa fazer uma antropologia do
comércio popular haitiano. Contudo, dar prioridade a esse tipo de descrição aumentaria o risco
de enquadrar os fenômenos observados segundo categorias estranhas às pessoas que fazem este
comércio, e, com isso, sobrepor uma visão estrangeira a ponto de eclipsar toda originalidade
que este universo possui na produção de sentidos particulares. Assim, ao mesmo tempo em que
descreveremos ações que fazem parte do cotidiano das vendedoras (incluindo ações verbais,
modos de falar), essa descrição será constantemente remetida à análise dos conceitos que elas
próprias usam para descrever aquilo que fazem.
Embora os efeitos práticos da linguagem sejam reconhecidos e, por vezes, descritos, a
proposta que seguimos aqui desloca parcialmente a ênfase da função pragmática da linguagem,
reivindicada por Malinowski (1935), para ressaltar a atividade conceitual.5 Dedicaremos

5
Em sua célebre teoria etnográfica da linguagem, Malinowski insiste que, metodologicamente, a análise de
falas dos “nativos” deve priorizar a função pragmática da linguagem (frente às funções narrativa e informativa,
por exemplo). Seria um erro tratar a linguagem como um veículo para comunicar pensamentos – pelo
contrário, a linguagem deveria ser estudada não pelo que ela supostamente diz, em abstrato, mas pelo que ela
concretamente faz. (Escrito décadas antes, e em oposição ao que até então eram as correntes predominantes
em filosofia da linguagem, Malinowski antecipa alguns dos argumentos fundamentais do clássico “How to do
Things with Words”, de J. L. Austin, publicado em 1962.) Segue-se daí que o estudo da linguagem deveria
vir sempre acompanhado pela descrição dos contextos de fala, das situações e das atividades práticas
(incluindo também o repertório de conhecimento prévio, principalmente experiências corporais) que
acompanharam este ou aquele enunciado, e que, portanto, a unidade apropriada para a tradução deveria ser
determinada a partir destes contextos. Uma consequência lógica desse argumento é que a palavra isolada se

28
alguma energia para traduzir do crioulo haitiano para o português, além das palavras em si,
tomadas como conceitos, também contextos de uso e conexões entre elas, tocando ainda seus
repertórios de imagens correspondentes, principalmente através dos provérbios, que, como se
sabe, são abundantes no Haiti rural.
Nessa tradução (como em tantas outras), as equivalências simples e diretas são
virtualmente inexistentes, não existem palavras em português que recubram todos os sentidos
de suas contrapartes no crioulo haitiano. O glossário no começo da tese oferece traduções
diretas de uma palavra crioula por outra portuguesa, o que tem o objetivo de facilitar consultas
rápidas, mas abundantes evidências mostrarão ao longo da tese os limites desse tipo de tradução.
Equivalências diretas por ventura aparecerão também no corpo do texto, mas apenas como um
atalho adotado em nome da fluidez do texto ao mesmo tempo em que preserva uma referência
que talvez interesse a futuros pesquisadores. Esses casos são os que menos interessam, pois o
movimento que almejamos é justamente o de aproximações sucessivas que, à medida que forem
feitas, possam revelar outros elementos ao seu redor. A isso nos referimos quando falamos em
ressaltar a atividade conceitual: tratar palavras crioulas como conceitos implica em, ao invés de
lhes dar traduções diretas e/ou de oferecer definições fechadas, mostrar conjuntos de sentidos
que são, ao mesmo tempo, diferentes e aparentados, como eles se relacionam e como se
condensam em determinados conceitos.6 Com isso, colocaremos em suspeição mesmo termos
cuja tradução poderia a priori parecer óbvia, direta e incontestável, como “vida” [lavi],
“pessoa” [moun] ou “sangue” [san].
A compreensão destes conceitos, contudo, não é nosso objetivo final, mas sim um
instrumento para que as atividades e trajetórias de vidas no comércio que descreveremos
possam, na medida do possível, ser compreendidas nos mesmos termos em que as
compreendem as próprias personagens. Não temos, portanto, nenhuma pretensão de descobrir
significados implícitos, desconhecidos pelos próprios atores (como teve certa tradição
antropológica de “tradução cultural”, corretamente criticada por Talal Asad 1986).

revela uma unidade de análise artificial e inadequada: “… isolated words are in fact only linguistic figments,
the products of an advanced linguistic analysis. The sentence is at times a self-contained linguistic unit, but
not even a sentence can be regarded as a full linguistic datum. To us, the real linguistic fact is the full utterance
within its context of situation” (Malinowski 1935:11). Não temos aqui a pretensão ingênua de acesso aos
conteúdos de pensamentos alheios, nem mesmo de estabelecer supostas unidades básicas com que esse
pensamento opera. Temos sim o desejo de que a sucessiva tradução de termos elucide, ao mesmo tempo, áreas
de interesse, focos de atenção e critérios de avaliação largamente compartilhados, bem como modos de
combinação entre eles.
6
A ideia de um conjunto de sentidos “aparentados”, bem como o espírito geral do método de análise aqui
proposto, é diretamente inspirada pelas Investigações Filosóficas, de Ludwig Wittgenstein (1979).

29
Consciente de que o uso excessivo de palavras estrangeiras tornaria a leitura pesada e
difícil, tentei deixar essa operação explícita apenas quando a análise de determinados termos
parecia trazer uma quantidade e qualidade de novos elementos suficientes para recompensar o
esforço. Em outros casos, preferi optar por traduções implícitas, adotando crioulismos na
escrita, ou seja, escrevendo em português frases que se aproximam estética e gramaticalmente
da forma como as coisas são ditas no crioulo haitiano. Quem não tiver familiaridade com essa
língua não poderá identificar, pelo menos não de forma precisa, os momentos em que isso
ocorre no texto. Felizmente, essa precisão não é necessária, pois tais traduções implícitas
pretendem apenas contribuir para recriar uma atmosfera, menos para trazer o que as pessoas
dizem em crioulo para a língua portuguesa, e mais para que a língua portuguesa escrita num
registro acadêmico possa ser afetada por essa outra língua que, além de estrangeira, é uma
língua popular, tomada muito mais no registro da oralidade que da escrita (cf. Asad 1986:157).
A apresentação se apoia nas trajetórias de personagens, a tal ponto que se aproxima,
metodologicamente, das histórias de vida. Contudo, também essa aproximação é parcial, e pode
ser enganosa. Como contraponto, tomemos o livro Worker in the Cane, de Sidney Mintz
(publicação original de 1960), uma história de vida propriamente dita, e uma referência
importante para este trabalho. Nele existe quase um regime de coautoria entre o autor, Mintz, e
o personagem por ele biografado, Don Taso. Por mais fascinantes que sejam as questões
políticas suscitadas por tal regime de coautoria, não seria honesto colocar nenhuma das
personagens da pesquisa nem a mim mesmo nessa posição.
A importância que as personagens têm no texto é enorme, e nos ajuda a localizar social-
mente os conceitos que fundamentam a tese, mas este texto é uma elaboração posterior ao
trabalho de campo, escrito solitariamente, a uma distância de milhares de quilômetros, a partir
de uma infinidade de conversas cotidianas que, no momento em que ocorriam, em sua maior
parte, não foram planejadas previamente para se adequar a esse modelo. As trajetórias são aqui
apresentadas como uma narrativa cuja coerência foi construída de forma assumidamente
artificial, a posteriori, e sem a participação direta de suas personagens no processo de escrita.7

7
Perto do fim de minha última estadia, cheguei a tentar ler para Jaklin versões preliminares de alguns trechos
que viriam a integrar esta tese, gravando tanto a minha leitura quanto as reações dela. Infelizmente, a ocasião
em que isso ocorreu não foi a ideal. Além da constante interrupção de crianças da vizinhança curiosas com o
que estávamos fazendo, o final precoce foi decretado por uma pesada chuva da qual tivemos que correr para
nos abrigar. Pretendo ainda ter a oportunidade de apresentar o texto final a ela e às outras pessoas cujas vidas
aqui são mencionadas, seu retorno seguramente acrescentará muito aos possíveis desenvolvimentos
posteriores desse trabalho.

30
Apesar do artifício usado para dar fio à narrativa, mais do que tomá-las como sujeitos
independentes cujas trajetórias “falam por si mesmas”, nosso objetivo fundamental é tornar
inteligíveis os campos onde estas trajetórias se localizam e sem os quais não fazem sentido (cf.
Bourdieu 1986). Ao mesmo tempo em que olhamos para comerciantes em sua individualidade,
a ênfase nos conceitos através dos quais elas entendem o que estão fazendo apontam,
justamente, para instrumentos de comunicação entre elas e as pessoas com quem elas convivem,
para o âmbito do compartilhamento de ideias e de práticas, onde cada uma é necessariamente
apenas parte de uma conversa maior.
Nossas duas personagens principais, Jaklin e Madame Dodo, serão propriamente
apresentadas adiante. Os capítulos a seguir têm como fio condutor as histórias de vida das duas.
Com elas, veremos circuitos específicos: primeiro, o abastecimento de alimentos para consumo
interno no Haiti; depois, o contrabando através da fronteira dominicana, e o pulsante comércio
de produtos têxteis usados, chamados de pèpè. Em cada um desses ramos, aparecerão as
mesmas variáveis: mobilidade (englobando os caminhos propriamente ditos, os meios de
transporte, as formas de embalagens usadas, os limiares que marcam as passagens, depósitos,
agências dedicadas a controlar os fluxos de pessoas e de objetos), dinheiro (especialmente as
formas de capitalização e de endividamento), e os ritmos próprios a cada um deles. Variam os
circuitos, os meios de transporte, a ordem de grandeza do capital investido, os prazos e as
formas de pagamento, os lucros envolvidos, as fontes de financiamento, além das próprias
mercadorias comercializadas. Nesse conjunto de variações, uma série de relações se estabelece
entre os elos da cadeia distributiva. Essas relações serão descritas a partir das personagens com
as quais convivi e ganhei alguma intimidade.
Para que esse relato intimista e microscópico não nos faça perder de vista os efeitos
sistêmicos dessas relações, recorreremos à literatura sobre comerciantes e mercados no Haiti,
tanto a acadêmica quanto pesquisas encomendadas por agências, ONGs e outros atores
envolvidos na indústria da ajuda internacional, que é uma produção abundante no caso do Haiti.
Nestes estudos foi formulada a ideia de um sistema haitiano de mercados que será apresentada
na introdução.
A introdução cumpre, assim, o papel de fornecer coordenadas mais amplas, tanto num
sentido espacial, abrangendo o país como um todo (e também a extensão das redes comerciais
haitianas no exterior), quanto temporal, uma vez que diversas características deste sistema de
mercados têm profundidade história, remetendo aos tempos coloniais, pré-revolução haitiana.
Tais coordenadas são fundamentais para tornar inteligível a navegação tal como praticada pelas

31
pessoas individuais. Nos capítulos a seguir, a ênfase etnográfica estará menos nos mercados e
na circulação de mercadorias, e mais na vida de pessoas que povoam esses espaços. Para usar
a metáfora de Malinowski (1922:13), essa introdução é o esqueleto aos quais os capítulos
seguintes acrescentarão a carne e o sangue.

O sistema de mercados no Haiti


Tanto suas vertentes camponesas quanto urbanas, numerosos estudos mostram o
dinamismo da economia popular no Haiti.8 Trata-se de um universo onde empregos de
dedicação integral, com salários estáveis, são relativamente incomuns mesmo na capital Porto
Príncipe, e de fato uma raridade excepcional nas províncias. Se há pouquíssimos empregos
nesse sentido que o termo 'emprego' tem na economia dita formal, há muitos 'ofícios' aos quais
as pessoas se dedicam simultaneamente, somando pequenas e variadas fontes de renda. Junto
ao fenômeno da 'pluriatividade', os fluxos de dinheiro nessa economia não-salarial tendem a ser
bastante irregulares e acompanhados por uma proliferação de diversas formas de endividamento
e crédito, e por pequenos serviços, pequenos negócios e pequenos lucros envolvidos no
processo de fracionamento contínuo de mercadorias, conjunto de características que compõe as
bases dessa economia, tal como descrita por Federico Neiburg (2016) com referência a Bel-Air,
bairro popular de Porto Príncipe – embora tenha um contexto urbano como referência original,
em linhas gerais, esses princípios da economia popular haitiana são igualmente (talvez até mais)
válidos para as províncias.
Neste universo, cada pessoa precisa encontrar formas de se degaje – conceito que
significa algo como “dar seu jeito”, “se virar”. Tem tanto um sentido corriqueiro, como quando
se quer mandar alguém fazer algo, ou se despedir de uma pessoa que está saindo para resolver
um assunto qualquer, com a locução degaje ou [pode ser traduzida num caso como “vai lá”, no
outro como “se vira”], quanto um sentido mais substantivo, que fala de invenção, improviso,
adaptação, da busca de soluções onde parece não haver solução. Em cenários de incerteza
radical, as pessoas precisam improvisar rápido, aprender a se locomover sobre um terreno

8
Especialmente ricos, destacamos Alfred Métraux et al (1951), Sidney Mintz (1960, 1961a, 1961b, 1964), Paul
Moral (1961) no universo rural, Georges Anglade (1982) e Gerald Murray & Sonia Alvarez (1975) na
articulação campo-cidade, e Dingan Bazabas (1997), Simon Fass (1988) e Federico Neiburg (2016, coord.
2012) com um foco mais centrado em contexto urbano, principalmente Porto Príncipe. Não é coincidência que
os estudos mais antigos tenham seu foco no mundo rural, e os mais recentes enfatizem os mercados urbanos
– esse movimento parece em alguma medida refletir o processo de intensa urbanização pelo qual o Haiti passou
no último meio século.

32
escorregadio, o que pode responder pelo menos em parte pela “estética da precariedade” de que
fala Barthélémy (1989). Essa inventividade se manifesta de muitas formas, e o comércio é um
dos campos férteis para a inventividade e os improvisos.9
Entre as muitas formas diferentes de engajamento no sistema de mercados no Haiti, a
diferença mais básica feita pelas comerciantes é aquelas entre quem se dedicam a “fazer
comércio” [fè komès, locução usada com frequência] e aquelas que estão apenas “vieram
vender” algo, tipicamente parte da produção agrícola familiar. O verbo “vender” [vann], em
determinados contextos, pode marcar a oposição com algo distinto, que é “fazer comércio”.
“Vender” é uma função feminina clássica no Haiti rural, associada a outra atividade igualmente
feminina, “fazer provisão” [fè pwovisyon], que neste contexto significa abastecer a casa, gerir
os estoques de comida e o dinheiro destinado a garantir a alimentação diária. Portanto, tanto
para comprar quanto para vender, a obrigação de frequentar os mercados no Haiti recai muito
majoritariamente sobre as mulheres. A crítica feminista à generalizada associação dos espaços
públicos ao gênero masculino e dos espaços privados ao feminino (por exemplo, Rosaldo 1974)
faz do Haiti, nesse sentido, um caso atípico e inusitado. Na área da pesquisa, não há espaço
mais público que os mercados, no sentido em que nenhum outro espaço chega sequer perto de
rivalizar com os mercados públicos na capacidade de congregar regularmente tamanho número
de pessoas desconhecidas entre si, com tamanha diversidade de localidades de origem entre as
pessoas que o frequentam. Os mercados são o espaço público por excelência, e eles não são
tidos, de forma alguma, como espaços masculinos.
Isso não significa que o comércio seja uma atividade exclusivamente feminina, muito
menos que não haja homens nos mercados. Pelo contrário, não só há homens dedicados ao
comércio como há nichos específicos com forte predominância masculina, como a venda de
produtos eletrônicos e de animais de grande porte. No comércio de pèpè, as mulheres são
provável maioria, mas há também muitos homens engajados. Além disso, a participação
masculina é central na prestação de serviços fundamentais para o funcionamento do comércio,
com destaque para transporte e segurança, onde o predomínio masculino é absoluto.

9
Um provérbio diz Degaje pa peche, ao pé da letra “dar seu jeito não é pecado”. Significa que uma pessoa
fazendo algo interdito, irregular ou mesmo ilegal, mas que o faz porque precisa fazer, deve ser perdoada. O
mesmo ato que seria condenável se praticado de forma supérflua e leviana por uma pessoa que não precisa
daquilo adquire outra feição quando é praticado por alguém em dificuldade e sem opções. A ideia contida
nesse provérbio não é aceita por todos. Circula na internet um vídeo chamado “Cinco provérbios que podem
destruir o Haiti” que começa por este. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=alPCNmicXX8
Último acesso em 26/06/2019.

33
Contudo, no comércio voltado para o consumo interno no Haiti, os nichos masculinos,
ainda que tomados em conjunto, são minoritários frente ao comércio de víveres. O grosso das
transações feitas nos mercados é de objetos de primeira necessidade, em primeiro lugar, gêneros
alimentícios e insumos usados na preparação deles, como óleo, sal, fósforos, temperos (estes
são os bens que costumam ser reunidos sob a rubrica da “provisão”), além de bebidas para
consumo imediato, e em segundo lugar, objetos de higiene pessoal. Tais mercadorias são
compradas com uma frequência muito maior e mais constante do que quaisquer outras, que, em
comparação, configuram gastos excepcionais e de ritmo instável. Classificado como “a coluna
vertebral da economia haitiana” por Giraud (1978) e Maguire (1991), o mercado de alimentos
é dominado de forma quase exclusiva pelas mulheres (excluindo dessa definição os animais
comestíveis quando ainda vivos), que ademais assumem a função de cozinhar com frequência
muito maior que os homens.
Mais importante que essa predominância empírica é o fato de que a oposição entre
trabalho masculino e comércio feminino (“fazer comércio” não é considerado um trabalho)
estrutura expectativas de gênero no Haiti. Diversos trabalhos atestam como essa divisão de
funções, homens trabalhando a terra, mulheres comercializando seus frutos, é normativa no
Haiti rural, e historicamente profunda, antecedendo inclusive a fundação do país e a abolição
da escravidão (Herskovits 1937, Lowenthal 1987, Mintz 2010, Garrigus 2005:74). Bazabas
(1999:19-20) afirma que, no Haiti camponês contemporâneo, é vergonhoso para um homem ser
visto vendendo produtos agrícolas, uma vez que tal comércio é “assunto de mulheres”. Em mais
de uma oportunidade eu pude testemunhar como, na percepção local, chega a ser ofensivo um
homem pechinchando no mercado; “você por acaso é mulher para saber o preço das coisas?”10
Portanto, vender (e também, em menor medida, comprar) gêneros agrícolas é uma tarefa
eminentemente feminina.
Uma coisa é vender o produto de um “jardim” [jaden, termo usado para qualquer terreno
onde estão sendo cultivados gêneros agrícolas] da família ou de algum conhecido, segundo o
tempo de colheitas específicas.11 Outra bem diferente é tirar o grosso do seu sustento da

10
Levando tudo isso em conta, eu escolhi dar preferência ao uso do feminino como gênero englobante ao longo
da tese (p. ex., “as minhas interlocutoras”), a despeito da participação masculina aqui reconhecida.
11
Cf. Braum (2009): “Já o segundo grupo ao qual me referi compõe a maior parte das vendedoras. Elas se
dedicam, basicamente, à venda do que é produzido exclusivamente nos "jardin" de sua família. Também, por
isso, de deslocam menos, indo no máximo aos mercados dos vilarejos vizinhos, para comprar e vender. O que
não significa que elas vão pouco aos mercados. Ao contrário, é seguro afirmar que elas os freqüentam
semanalmente, mesmo que apenas para comprar parte do alimento necessário para se preparar as refeições,
como o arroz, o óleo, sal, açúcar, carne. Acrescentemos que a ida constante aos mercados é potencializada
pela pequena quantidade de dinheiro que as famílias possuem. As compras são sempre feitas de forma

34
atividade incessante de comprar para revender em busca de “pequenos lucros” [ti benefis], ter
uma rotina que pode incluir percorrer grandes distâncias para encontrar fornecedores de algum
produto específico ou para chegar a lugares onde as pessoas paguem mais caro por uma dada
mercadoria. Essa atividade de fazer comércio demanda um capital que, no outro caso, não é
necessário. Seguindo estes termos, é sobretudo ao “fazer comércio” propriamente dito que nos
referiremos na tese.
A maioria das comerciantes de pequena escala opera individualmente, de forma autônoma,
como se fossem empresas de uma pessoa só. Mas é preciso qualificar melhor o que queremos
dizer com essa afirmação, em que consiste o individualismo atribuído às comerciantes haitianas
por autores como Sidney Mintz (1961, 1964) e Donna Plotkin (1989). Trata-se, em primeiro
lugar, da responsabilidade pela gestão do dinheiro do comércio e das mercadorias compradas
com esse dinheiro. Cada comerciante gere seu capital por sua própria conta e risco. O dinheiro
empregado no comércio é marcado de forma a atribuir a alguém responsabilidade exclusiva por
sua gestão. Até existem tentativas de debater coletivamente, entre as comerciantes, sobre os
processos de capitalização e sobre as melhores formas de gerir o dinheiro (como nos mytiel,
forma de organização que veremos à frente). Contudo, tais fóruns não têm nenhum poder
decisório. Eles oferecem, no máximo, recomendações que cada machann resolverá, por sua
própria conta e risco, seguir ou não. Caso ela tenha prejuízo, ninguém além dela se
responsabilizará pelo dinheiro perdido ou pelas dívidas a pagar. Da mesma forma, se fizer muito
dinheiro, isso só dirá respeito a ela, e tais coletivos não reivindicarão nenhuma participação nos
lucros nem nada além dos valores que foram preestabelecidos. A escolha dos produtos a
comprar, na mão de quais revendedoras, a negociação dos preços e a escolha dos lugares para
revendê-los cabem inteiramente às suas respectivas donas, cada qual por si (obviamente não
são escolhas abstratas, o menor erro de julgamento doerá no bolso, há limites tanto no sentido
dos espaços físicos quanto de nichos de mercado a ocupar, e principalmente os limites
financeiros de cada uma). Essa relação de propriedade entre as mercadorias à venda e as
comerciantes responsáveis por elas é estabelecida de forma clara e inequívoca, e é individual.
Como lamenta Plotkin, não existem sindicatos ou associações de classe efetivamente capazes
de mobilizar politicamente as comerciantes. Dentre elas, apenas uma minoria melhor
capitalizada é capaz de manter um volume de comércio suficiente para empregar outras pessoas,
algo excepcional no universo do “pequeno comércio” [ti komès] que começamos a adentrar.

fragmentada, determinadas por ganhos momentâneos – como o dinheiro enviado por um parente, uma boa
venda no mercado, etc.”

35
Nele, as ajudantes que encontraremos com mais frequência são as filhas das próprias
comerciantes, quando acompanham as jornadas de suas mães. Embora menos comum, o mesmo
tipo de relação também pode ocorrer em outras configurações, em especial entre madrinha e
afilhada. Essa presença infantil nos mercados é habitual, e nos oferece um primeiro contraponto
para nuançar o tipo de individualismo em questão.
Outro contraponto importante está nas próprias relações de crédito. São frequentes
afirmações do tipo “nada do que estou vendendo aqui é meu”, o que significa que as
mercadorias à venda foram adquiridas através de empréstimos que ainda não foram quitados.
As relações de crédito, evidentemente, criam uma conexão entre as duas partes (devedora e
credora) que vigorará enquanto durar a dívida, e a proliferação de relações deste tipo relativiza
a autonomia de que gozam as pequenas comerciantes. Mesmo assim, a escolha de onde comprar
suas mercadorias, o que comprar/vender, onde estocar, onde vender e a que preços cabe
inteiramente a elas (dentro de um campo de possibilidades circunscrito pelas relações pessoais
e pela disponibilidade de dinheiro). Ninguém lhes dá ordens, ninguém as dirige. Quem empresta
tem o direito apenas de exigir seu dinheiro de volta no prazo combinado, mas não tem
legitimidade para se meter em nada do que foi feito com esse dinheiro no meio tempo. Cabe a
cada comerciante descobrir onde e com que ela pode ter mais lucro.
Como resultado, o sistema de distribuição parece menos um ordenamento planejado de
cima para baixo, e mais resultado da sagacidade de cada empreendedora individual de levar e
trazer a cada lugar aquilo que as pessoas precisam e podem pagar. Assim, uma rede de extrema
capilaridade torna possível se suprir de bens básicos mesmo nos interiores mais ermos. Se por
um lado os espaços oficialmente destinados ao comércio, que gozam de algum tipo de chancela
formal (geralmente das prefeituras), como os mercados públicos, atraem multidões com esse
objetivo, por outro lado eles passam longe de abrigar toda a atividade comercial, que transborda
por todos os lados.
Diversos autores elaboraram a ideia de que os mercados haitianos compõem um sistema
coerente, através do qual se canaliza a produção agrícola e se abastecem as cidades. Essa ideia,
adotada em boa parte da literatura sobre mercados no Haiti, não foi formulada por minhas
interlocutoras no campo (embora usassem a expressão “sistema haitiano” [sistèm ayisien], seu
sentido era bem diferente, como explicarei à frente). Por esse motivo, usarei a introdução para
dialogar com essa produção de conhecimento externo, sistemático, enquanto nos capítulos da
tese, ao contrário, a descrição será estritamente etnográfica, colada aos conceitos e termos
efetivamente usados pelos sujeitos da pesquisa.

36
A literatura francófona enfatiza que, na verdade, são dois sistemas, dois circuitos,
identificados a partir da divisão fundamental entre os denrées, “agricultura para exportação”, e
vivres [víveres], “agricultura para consumo interno” (Anglade 1982). Controlada desde as
cidades portuárias por uma burguesia que, devido à localização de suas casas de exportação, foi
apelidada de Bord-de-Mer [beira-mar], esse tipo de comércio marítimo transatlântico foi,
durante boa parte da história do Haiti independente, a principal fonte da receita nacional, tendo
como carro-chefe o café (Trouillot 1990 – para um bom estudo sobre o circuito cafeeiro, ver
Girault 1981).
Hoje em dia, porém, a produção agrícola haitiana é bem menos importante para a
economia nacional do que as remessas enviadas por migrantes no exterior, ou os projetos
financiados por organismos internacionais envolvidos na indústria da ajuda. No meu trabalho
de campo, o único tipo de engajamento que eu encontrei com a agricultura para exportação foi
a procura, da parte de jovens do sexo masculino, por empregos assalariados como mão de obra
agrícola, mas sempre em fazendas na República Dominicana, nunca no Haiti, onde eu
desconheço –assim como desconhecem meus interlocutores– quaisquer empreendimentos
agroexportadores em funcionamento no tempo presente.12 As páginas que se seguem são
dedicadas especificamente ao chamado circuito dos “víveres”, ou seja, ao sistema de mercados
que tem como destino o abastecimento interno, no Haiti.
A ideia de que se trata de um sistema é corrente, pelo menos, desde o início dos anos
1950, quando Métraux descreveu uma sucessão temporal e geográfica de mercados
relativamente especializados. A conexão entre eles aparece de forma bastante empírica, num
momento do texto em que são descritas as andanças de uma comerciante entre os mercados de
Marbial, de Jacmel e de Porto Príncipe, realizando diferentes operações de compra e venda em
cada um deles, trazendo mercadorias diferentes para cada lugar e evitando o desperdício de
pagar os custos do deslocamento para viajar qualquer trecho do caminho de mãos vazias.

12
De forma mais geral, as pessoas repetiam sempre que “aqui não tem trabalho” [pa gen travay], excluindo
explicitamente da definição de “trabalho” atividades autônomas geradoras de renda como o comércio ou o
mototáxi. Dada essa (quase-)inexistência, o mais comum é que os salários fossem buscados na RD, onde a
maioria das pessoas já passou por empregos temporários. Ressaltamos que, na maioria das vezes, esses
empregos dominicanos são encarados menos como um fim em si – a maioria das pessoas não está interessada
em empregos fixos, de longo prazo –, e mais uma forma de capitalizar outros projetos (como a compra de uma
moto, uma empreitada comercial, a construção de uma casa...) em solo haitiano. Neste ponto, é possível uma
ponte com outros contextos etnográficos (como Bolt 2015), que apontam para uma reorientação da vida
(principalmente dos mais pobres) sob o neoliberalismo – do paradigma do trabalho assalariado, do operariado,
típico do período da industrialização, para o comércio informal e autônomo, muitas vezes com margens de
lucro infinitesimais.

37
Underwood (1960) identifica três níveis do sistema de mercados no Haiti; (1) vendedoras
itinerantes individuais, (2) os ti mache [pequenos mercados] que brotam quase
espontaneamente em eventos ou caminhos, e (3) os mercados públicos nas vilas e cidades, nível
que, como nota a autora, fora objeto preferencial da literatura até então. Assim, ela afirma que,
para além dos mercados públicos, o sistema é também composto por ramificações menos
visíveis e estáveis, como o comércio de rua que toma boa parte das calçadas de Porto Príncipe
(objeto central de Bazabas 1997), o comércio itinerante, o comércio a domicílio ou feito desde
a residência da vendedora, o comércio episódico em eventos como funerais, brigas de galo, ou
reuniões de grupos de oração. Basicamente em qualquer evento que reúna muita gente no
mesmo lugar, aparecerá (sem que haja necessariamente articulação prévia com os organizadores
daquele evento) uma machann vendendo produtos adequados àquela ocasião, cujos itens mais
comuns são comestíveis e bebidas.
Há, portanto, níveis sucessivos de fixidez no espaço, desde a pura itinerância, passando
por um estágio intermediário, até os locais dotados de estruturas mais ou menos fixas e estáveis.
Quanto mais isolada uma área rural, mais predomina o tipo 1, quanto mais urbanizada mais
predomina o tipo 3. O revezamento temporal entre os mercados que abastecem uma dada região,
cada qual em dias específicos da semana, é controlado pelo estado (com a ressalva de que os
mercados urbanos de grande porte funcionam diariamente). Nessa sucessão de mercados
correspondentes a dias da semana, o raio de alcance das comerciantes costuma cobrir longas
distâncias, enquanto que para as clientes as distâncias percorridas são geralmente mais curtas.
No local onde fiz minha pesquisa de campo, em qualquer dia da semana pode-se encontrar
algum mercado funcionando numa distância de até quatro horas a pé (e muito menos tempo de
moto), e todas as quintas-feiras milhares de pessoas de diferentes locais vêm se encontrar no
mercado de Kwa Fè, o maior da região. As machann revezam entre estes diferentes mercados,
cada qual constituindo seus próprios circuitos. Os mercados são os nódulos centrais desse
sistema, mas, como vimos, não circunscrevem o comércio dentro de seus limites – pelo
contrário, atraem sempre uma atividade periférica. Há diversas outras atividades e serviços
acoplados aos mercados públicos. Em Belladère, por exemplo, além da intensa venda de
alimentos cozidos, dentro e fora do mercado, suas orlas são ocupadas por ateliês de costura (que
interagem com o pujante mercado de roupas usadas, pèpè), oficinas mecânicas para veículos
automotores, arenas onde se aposta em brigas de galo, e as onipresentes casas de loteria (bolèt).
Nada disso é incomum em outros mercados públicos de província.

38
O primeiro lugar por onde transbordam os mercados são as suas entradas e saídas. Sempre
há comerciantes operando aí. Até 1975, comerciantes precisavam tirar uma licença anual para
ter o direito de fazer comércio, e ocupar essas posições à beira dos mercados, do lado de fora,
era uma estratégia comum de evasão das taxas (Anglade 1982). Hoje, essa licença para fazer
comércio não existe mais, mas as saídas e entradas continuam sendo pontos estratégicos para
abordar pessoas que trazem alguma carga ao mercado. De fato, é muito comum que as pessoas
que desejam vender uma dada carga percorram longas distâncias, em montaria ou a pé, para
chegar num dado mercado – essas pessoas podem ser abordadas em qualquer ponto do caminho
por gente disposta a comprar sua carga. Ao longo das estradas também funcionam pontos de
venda, sejam aqueles onde há estruturas fixas, sejam pontos temporários, formados por uma
ocasião qualquer. Tomemos um exemplo concreto: a estrada por onde vinham as vans de
Lascahobas foi bloqueada antes da chegada a Porto Príncipe, devido a protestos organizados
por grupos da capital. As machann que iam aos mercados da cidade se organizaram no bloqueio,
onde vários veículos, de diversas procedências, foram obrigados a parar. Ali mesmo, à beira da
estrada, negociaram suas cargas umas com as outras, e voltaram trazendo produtos que
revenderiam em seus locais de origem.
As distâncias percorridas por cada comerciante são o principal elemento na taxonomia
que identifica diferentes tipos de comerciantes, definindo o lugar ocupado por cada uma na
cadeia de distribuição (ponto muito bem desenvolvido em Murray & Alvarez 1975).
Voltaremos a essa taxonomia em breve, mas antes, queremos enfatizar um padrão espacial
importantíssimo descrito por Underwood (1960), mais tarde também desenvolvido tanto por
Anglade (1982) quanto por Murray & Alvarez (1975): como ponto de convergência de
mercadorias de diferentes procedências, há uma forte tendência a que os mercados fiquem na
confluência de caminhos.
No mesmo sentido, Sidney Mintz (1961) chegou a descrever as cidades provinciais como
sendo principalmente centros administrativos e pontos de confluência da produção agrícola (e
pecuária) de uma dada região, implicando que são os mercados que orientam os lugares onde
surgem e para onde crescem as cidades, e não o contrário. Essa potência do comércio como
eixo organizador da espacialidade é, nesse universo, uma força fora do controle das classes
dirigentes, fato que fica evidente no fracasso dos reiterados esforços feitos pelo governo
haitiano, em meados do século XX, afim de erradicar mercados rurais para favorecer o
crescimento de centros urbanos (Yarrington 2015). Cada mercado tem sua trajetória particular,
alguns diminuíram, outros cresceram, mas de todo modo, esses movimentos foram em larga

39
medida independentes do apoio ou falta de apoio governamental, de que tivessem ou não
tivessem chancela oficial.13

2 Mapa elaborado pelo geógrafo George Anglade


(L'Espace Haitien. Carte 08, “os mercados”).

São muitos os mercados. Em 1961, Paul Moral afirmou que havia 593 mercados públicos
espalhados por todo o território do Haiti, sucedendo-se ao longo dos dias da semana. Há uma
hierarquia na ordem de grandeza que vai de ermos mercados rurais de pequeno porte, passando
por mercados regionais que cuja atração possui um raio mais amplo, até os grandes mercados

13
É notável também o fracasso de projetos de mercados modernos, como o Mache Mirak de Fonds-Parisien, um
projeto milionário, com financiamento estrangeiro e centenas de stands construídos em concreto. Cerca de
dois terços deles estão vazias por falta de vendedoras interessadas em ocupá-los, enquanto não muito longe
dali, numa parte de Fonds-Parisien mais densamente povoada, as calçadas são diariamente tomadas por
comerciantes, mercadorias e compradores, atraindo uma atividade frenética se comparada à calmaria do
esvaziado mercado moderno.

40
de Porto Príncipe (com destaque para a região onde ficam o enorme mercado de Croix des
Bossales, ou Kwa Bosàl, o maior do Haiti, outros três grandes mercados públicos, Marché En
Fer, Marché du Port, Marché Hyppolite, e ainda o Marché Tête Bouef que foi destruído por um
incêndio em 2005). Funciona aí um centro gravitacional tão forte que atrai e reúne praticamente
todos os circuitos comerciais do país, e que, não cabendo nas estruturas que originalmente lhes
foram destinadas, se espalha em um comércio de rua bastante denso tomando inteiramente as
calçadas em suas respectivas adjacências, menos denso à medida que nos afastamos desse
epicentro, mas ainda visível, ocupando virtualmente as ruas da cidade inteira (Neiburg coord.
2012, Bazabas 1997). No limite, a onipresença desse comércio de rua assemelha Porto Príncipe
a um imenso mercado a céu aberto, fenômeno que não está de forma alguma restrito à capital.
Mesmo nas províncias, todas as cidades menores –virtualmente qualquer aglomeração urbana–
possuem algum comércio de rua ocupando suas calçadas.

3 Mapa elaborado pelo geógrafo George Anglade


(L'Espace Haitien. Carte 09, “os circuitos”).

41
Esse sistema de distribuição de bens, com suas ramificações, alcança virtualmente todos
os pontos do território do Haiti e canaliza o fluxo dos produtos da terra, desde estreitos sendeiros
e veredas que atravessam plantações e só podem ser percorridos a pé, passando por caminhos
cada vez mais largos até chegar a alguma estrada asfaltada onde caminhões fazem a conexão
direta com “a cidade” (ou seja, Porto Príncipe). Cada um desses tipos de caminhos é habitados
por personagens específicas, e há uma nomenclatura que classifica as diferentes posições no
sistema de comércio. Alguns dos termos que costumam aparecer na literatura eu escutei pouco
no meu próprio trabalho de campo (em particular aqueles ligados aos circuitos de exportação
cafeeira, como spéculateur e agents-de-liaison) enquanto outros termos eram espontaneamente
citados pelas pessoas numa base quase diária.
O termo machann é a palavra de uso mais comum para “comerciante”, de uso abrangente,
muito usado também em formas compostas (como machann dlo, vendedor/a de água). O termo
ti machann [“pequena comerciante”] também é muito comum, e se relaciona, evidentemente,
com o ti komès [“pequeno comércio”].
Há um termo alternativo para “comerciante”, komèsan. Timothy Schwartz (2012, 2015)
define o sentido de komèsan como comerciantes de grande porte, bem capitalizados, que
movimentam produtos alimentícios importados desde grandes centros (cidades portuárias onde
chegam navios estrangeiros ou Porto Príncipe, que além do porto é também o ponto de destino
para os caminhões que vêm da República Dominicana via Malpas) para consumidores nas
províncias, no interior. Para Schwartz, os komèsan (pois eles seriam majoritariamente homens)
são a antítese das madanm sara, que levam os produtos da terra desde as zonas rurais em direção
aos grandes centos – e segundo o autor (2015), fariam o transporte em um único sentido,
voltando de mãos vazias para repetir a operação, desde o campo rumo à cidade.
Em minha própria experiência de campo, o termo komèsan apareceu basicamente como
uma resposta para preencher formulários (por ocasião da expedição de documentos como a
carteira de identidade ou certidão de nascimento – no segundo caso, era solicitado que se
informasse a profissão do pai e da mãe). Talvez, nessas circunstâncias, o termo estivesse sendo
usado num sentido dignificante, por pessoas que passam longe de comercializar nos termos
descritos por Schwartz.
O termo madanm sara, por outro lado, é evocado constantemente, e diz respeito a um
comércio de mais longa distância, classicamente entre as províncias e Porto Príncipe, no
circuito de alimentos para consumo interno. O termo também pode ser usado para rotas de
comércio internacional de produtos industrializados (não-agrícolas) feitas por avião, havendo

42
rotas estabelecidas com países como Panamá, Curaçao e sobretudo os Estados Unidos (Plotkin
1989). Contudo, as pessoas que conheci geralmente restringiam o uso da expressão ao seu
sentido mais tradicional, do comércio dos frutos da terra. As madanm sara são em sua maioria
mulheres, e são personagens centrais no sistema de comércio haitiano (Mintz 1964, Murray &
Alavrez 1975, Stam 2013, Schwartz 2012, 2015, entre outros).
A expressão madanm sara tem como origem um pássaro (de nome idêntico) cujos
atributos foram descritos de diferentes formas a partir de diferentes informantes. Em Métraux
et al. (1951), trata-se de uma ave migratória destruidora, que arruína as colheitas. O apelido
seria como uma acusação metafórica por parte de camponeses haitianos contra as madanm sara
que supostamente guardavam estoques para causar um aumento artificial no preço, pelo qual
elas esperavam antes de vender, sendo portanto as responsáveis pela vida cara [lavi chè]. Mintz
(1964) afirmou tratar-se de um pássaro migratório barulhento, dupla referência aos hábitos de
andar e de falar. Essas comerciantes teriam ganhado esse apelido como uma forma jocosa de
chamar-lhes de tagarelas. Já os informantes de Murray & Alvarez (1975:105) o definem como
um pássaro migratório que “voa de um lugar para o outro e nunca deixa de encontrar comida,
não importa onde esteja”. Eu mesmo não cheguei a ser apresentado aos pássaros mandanm
sara.
Este termo também costuma ser usado como verbo, “fazer sara” [fè sara]. Muitas das
machann que tive como interlocutoras afirmam não fazer sara por não terem dinheiro o bastante
para investir nos circuitos de mais longa distância, entendendo sua própria posição como mais
baixa que a das madanm sara para quem vendem e de quem compram. As madanm sara mais
capitalizadas podem chegar a terceirizar a busca por estoque nas áreas rurais a pessoas a quem
confia seu dinheiro, contratando-os como sekretè, que, curiosamente, costumam ser homens
(Murray & Alvarez 1975).
No mundo do pequeno comércio no qual participam a maioria das interlocutoras da minha
pesquisa, a ordem de grandeza do capital com o qual operam é muito menor. Comparado às
camadas mais altas do sistema de mercados haitianos, como o fazer sara e outras rotas
internacionais para trazer mercadorias estrangeiras ao Haiti, ou como os circuitos da agricultura
de exportação nos tempos áureos do café, o ti komès movimenta pequenas quantias de dinheiro.
Ele é de fato pequeno nas quantidades negociadas, que passam por um processo de subdivisão
que chega ao ponto de cortar uma barra de sabão em 4 lascas vendidas separadamente, a abrir
uma caixa de fósforos para separar saquinhos com dez fósforos cada, à venda de sal e de sabão
em pó medidos com uma colher. Esse apequenamento de unidades maiores em unidades

43
menores permite que pessoas com um poder de compra reduzidíssimo consigam, contudo,
acessar itens dos quais seria muito difícil dispor caso tivessem que pagar por pacotes maiores
(ainda que a preços proporcionalmente caríssimos, mais um efeito desse fracionamento). A
subdivisão aumenta o número de intermediários, que operam com uma margem de lucro ínfima
[ti benefis]. Assim, em termos do volume de dinheiro de cada transação tomada isoladamente,
bem como nas quantidades negociadas, o ti komès é verdadeiramente pequeno.
Por outro lado, se olharmos para a quantidade de pequenas transações e o número de
pessoas nele engajadas, o universo do ti komès é gigantesco. Se o comércio engaja pessoas de
todas as classes sociais, o ti komès está para o sistema de comércio interno haitiano assim como
os pobres estão para a população em geral – menores em termos de prestígio, mas
evidentemente majoritários no número de pessoas. Como eu mesmo não produzi dados de valor
estatístico, não realizei nenhum censo durante a minha pesquisa, tomo os dados de Locher
(1975) como base. O autor estimou que, em 1975, o comércio empregava diariamente, apenas
em Porto Príncipe, cerca de 1.300 madanm sara e 50.000 machann, um contingente
substancialmente maior do que qualquer outra classe profissional na capital.14
Devo acrescentar, contudo, que não são se tratam de categorias fixas – uma mulher que
passou a vida como machann e de repente, por um acontecimento qualquer, tem acesso a uma
quantia maior de dinheiro, pode arriscar investi-lo em “fazer sara”, aventura que pode se
sustentar lucrativamente durante anos a fio assim como pode dar errado e “estragar o dinheiro”
[gate lajan]. Da mesma forma, uma mulher que atuou boa parte de sua vida como madanm sara
pode, seja por dificuldades financeiras, seja por cansaço de viajar, deixar essa atividade,
desmobilizar o capital aí investido para usá-lo de outra forma, situação que veremos mais de
perto nos capítulos à frente.
Em todo caso, estamos tratando não apenas de diferentes formas de engajamento no
sistema de mercados, mas de diferentes modos de deslocamento. É óbvio que as distâncias
cobertas por cada comerciante estão relacionadas aos meios de transporte usados em cada caso.
Não é possível fazer sara a pé, assim como uma ti machann não tem a menor condição de fretar
um caminhão. Na hierarquia própria a esse sistema, o comércio feito a pé ocupa a posição mais

14
De 1975 a 2018, a população da capital triplicou, e nada indica que essas proporções tenham mudado muito
no período. Esses dados mostram uma proporção de mais de 38 machann para cada madanm sara, o que
condiz com a situação que eu encontrei quase meio século depois. Parece verossímil estimar que haja algo
entre 30-40 pequenas comerciantes retalhistas para 1 comerciante de longa distância. Na área da minha
pesquisa, contexto bem diferente de Porto Príncipe, as únicas outras atividades geradoras de renda que, talvez,
se aproximem do comércio, no sentido de haver grandes contingentes de trabalhadores dedicados a elas, são
1) o cultivo de roças e a criação de animais, e 2) o mototáxi.

44
baixa, incluindo a venda itinerante, andarilha, de casa em casa, mas também pessoas que andam
até uma loja ou depósito, trazem o que compraram equilibrado em cima da cabeça (técnica
corporal muito difundida no Haiti), caminhando até um ponto fixo (por exemplo, a entrada de
um mercado público) onde se sentam e de onde não saem até terminar de vender o que
trouxeram. Essas distâncias cobertas a pé chegam facilmente a dez, a quinze quilômetros, às
vezes bem mais do que isso, e o principal motivo para não pegarem uma moto é economizar o
dinheiro da passagem.15 Quando se dispõe de um cavalo ou um burro, uma distância como essa
se torna bem menos penosa – mesmo que a comerciante venha conduzindo o animal a pé, sem
montá-lo (o que é comum), ela agora pode transportar um volume muito maior de carga,
aumentando seu potencial de lucro, ao mesmo tempo em que diminui a exigência de seu esforço
físico.
Entre os veículos motorizados, o mais popular é sem dúvida a moto. Existem tap-taps em
circulação na área que cobram preços similares aos preços dos mototáxis, mas os tap-taps têm
roteiros fixos.16 Eles são o meio de transporte preferencial quando se vai de uma cidade a outra,
pela estrada principal. Já as motos se movimentam de uma forma muito mais flexível, andam
por caminhos alternativos e fazem o trajeto de escolha do cliente. É mais rápido conseguir uma
moto, a oferta é muito maior. O número de motos em circulação seguramente ultrapassa, de
longe, todos os outros tipos de veículos somados. Evidentemente, a capacidade de volume
transportável via moto é menor do que a dos veículos de quatro rodas, mas os mototaxistas
haitianos conseguem transportar volumes impressionantes para um veículo tão pequeno.
Embora não sejam associações rígidas e unívocas, as motos estão para o ti komès como
os caminhões estão para as madanm sara. Murray & Alvarez (1975) inclusive definem as
madanm sara como “comerciantes que transportam suas mercadorias em caminhões”. De
quanto espaço cada uma precisa depende, evidentemente, do volume dos seus negócios. Há
aquelas mais capitalizadas, capazes de fretar um caminhão sozinhas, ou mesmo mais de um
caminhão – contudo, figuras com tamanho poder econômico são raras. Muito mais comuns são
os caminhões que levam até quinze ou vinte madanm sara. Por mais que a cena se repita sempre,
ela nunca deixa de ser impressionante – na boleia do caminhão, o motorista vem acompanhado

15
Para que se tenha uma base dos preços vigentes em 2016, um mototáxi de Los Puetes até o centro de Belladere
(distância de aproximadamente 10 quilômetros pela estrada, que está quase toda asfaltada, com exceção de
um pequeno trecho), custava 5 dolà, ou 25 gourdes. Na cotação da época, isso equivalia a cerca de 40 centavos
de dólar americano (U$ 0,40).
16
Tap-taps são um tipo de caminhonete transformada para levar passageiros, com a carroceria equipadas com
duas tábuas longas paralelas, uma em cada lateral, servindo como bancos, deixando um estreito corredor entre
elas. É um transporte público muito comum no Haiti.

45
por um ou dois ajudantes (ou amigos), enquanto que no compartimento de carga, os produtos
são empilhados preenchendo toda a capacidade da caçamba, a maioria das quais tem mais de
três metros de altura. Não há bancos para sentar na parte traseira. Sempre acompanhando suas
cargas, as madanm sara viajam literalmente em cima dos fardos que transportam, seus corpos
pendendo parcialmente acima e/ou para fora da caçamba. Nessas condições precárias de
acomodação, são capazes de viajar o país de ponta a ponta, embora em geral elas se restrinjam
a um roteiro específico, entre uma zona de província com a qual tenham relação e um mercado
urbano. No caso da zona da minha pesquisa, as madanm sara frequentam aqueles mercados no
intuito de formar estoques que levarão a Porto Príncipe, de forma que faz sentido considerar
estes mercados estão integrados à órbita da capital.
Outra parte fundamental do sistema de mercados são os nódulos por onde passam as
linhas de transmissão de produtos, onde as mercadorias são guardadas entre um deslocamento
e outro, e entre o fim de um dia de mercado e o começo do próximo, na semana seguinte.
Existem “lojas” [magazen] que cumprem essa função de armazenar estoques. Esses armazéns
funcionam como grossistas, vendem em unidades grandes (sacos de 20, 25, 30 e 50kg) para
revendedoras que as subdividirão em unidades menores, viáveis para os consumidores finais.
Os estoques guardados nesses armazéns pertencem todos ao dono da “loja”. Muitas são
construídas em alvenaria dentro da área dos mercados públicos, e via de regra uma série de
estruturas menos estáveis, feitas com pedaços de pau, panos e cordas, se aglomeram ao seu
redor – ali mesmo pode-se encontrar a revenda em detalhe (isto é, no varejo).
Por outro lado, os depósitos [depo] alugam espaços de estocagem para que as multidões
de comerciantes guardem suas respectivas mercadorias. Os depo que eu conheci ficam sempre
próximos aos mercados, muitas vezes contíguos às suas margens, mas dificilmente dentro.17
Qualquer mercado tem pelo menos dois ou três destes depósitos em seus arredores. No caso da
área da minha pesquisa, as machann moram perto o suficiente dos mercados para voltar para
casa no fim do dia, deixando apenas as suas mercadorias no depo. Contudo, diversos estudos
(Locher 1975, Neiburg coord. 2012, Stam 2012) mostram que, em Porto Príncipe, muitas
machann e madanm sara vindas de lugares distantes dormem junto com os seus estoques,
dentro do depo. Assim, esses espaços cumprem a dupla função de armazéns e de hospedarias,

17
Uma única exceção era uma casa, localizada dentro da área do mercado de Kwa Fè. A construção de dois
andares possui uma área gradeada no térreo, como um tipo de varanda externa sobre a qual um andar superior
foi construído. Ela servia normalmente como residência durante a semana, assumindo sua função de depósito
com capacidade máxima apenas de quarta para quinta-feira, quando os sacos empilhados uns sobre os outros
nessa área gradeada subiam até atingir o teto.

46
embora muitos deles não forneçam mais que as paredes e um teto, não havendo camas nem
nenhuma outra estrutura para que se possa dormir com conforto, deixando a cargo das próprias
comerciantes que improvisem essas estruturas usando aquilo que trouxeram consigo. (Por
vezes, quando não querem ou não podem pagar o depo, passam as noites junto com suas
mercadorias em espaços públicos, abertos, enquanto esperam o início da manhã seguinte para
começar a vender.) Esse tipo de arranjo com pernoite é típico do comércio de longa distância,
e permite que as relações entre os donos dos depósitos [mèt depo] e as comerciantes ali
hospedadas ganhem maior densidade, o que não é de forma alguma necessário, muitas relações
se restringem ao aluguel do espaço de depósito, mas pode também acontecer que as trocas
passem a envolver mais que o pagamento pela cessão do espaço, evoluindo para relações de
maior proximidade e intimidade, sejam de amizade, de cumplicidade, de parcerias comerciais
ou ainda entre amantes (cf. Stam 2012).
Locher (1975) descreve bem o funcionamento desses espaços na capital, onde se
encontram comerciantes do país inteiro, havendo depósitos segmentados por região (por
exemplo, o chamado depo Jeremie, posicionado próximo ao ponto final onde estacionam os
veículos vindos de Jeremie para Porto Príncipe) e por produtos (como um depósito de sal,
próximo ao porto). A geografia desses depósitos mostra bem a conexão entre estradas nacionais
e ruas internas da capital, entre os caminhos por onde passam caminhões de grande porte e os
caminhos estreitos dentro dos mercados, onde a densa e intrincada rede de estruturas
precariamente montadas mal deixa espaços para a passagem de motos, tornando o carrinho de
mão um meio de transporte mais conveniente e adequado ao terreno. Locher (idem) mostra
ainda que os donos dos depósitos [mèt depo] da capital por vezes também atuam diretamente
no comércio, aproveitando-se de sua posição para comprar e revender parte das cargas ali
guardadas.
No circuito regional e provinciano que eu acompanhei de perto, os depo cumpriam
basicamente sua função de guardar [sere] mercadorias em segurança. Em caso de necessidade
de pernoite, os arranjos são outros, envolvem parcerias e relações que não passam pelos depo.
Voltaremos ao tema de forma mais concreta nos capítulos adiante.
Até aqui, os termos abordados para descrever as posições existentes no sistema de
mercados – (ti) machann, komèsan, madanm sara, sekretè, magazen, mèt depo... – são todos
termos substantivos. Temos também os nomes dados a relações interpessoais recíprocas, como
pratik, tema de um clássico artigo de Mintz (1961). Na área da minha pesquisa, a palavra klyan
era mais comum do que pratik, mas ambas eram tratadas como sinônimos. Diferente da língua

47
portuguesa, no crioulo haitiano o termo “cliente” [klyan] não diferencia quem está comprando
de quem está vendendo, assim como ocorre com o termo costumer na Jamaica (Mintz, 1974).
É um tratamento de proximidade, que indica uma relação constituída, relativamente estável,
que nomeia pessoas que “compram na mão” umas das outras. Ninguém é pratik sozinho – uma
pessoa só pode ser pratik se outra pessoa reciprocamente também a tenha como pratik dela. Os
termos pratik e klyan nomeiam um tipo de relação especificamente comercial, de compra e
venda recíproca (mesmo numa relação em que uma parte só compre, a outra só venda).
Também aparecem no universo do comércio outros termos de proximidade, geralmente
com sentidos mais abrangentes, como “amiga/o” [zanmi] e “parceiro/a” [patnè]. São também
relações um-a-um, e são fundamentais na garantia das condições infraestruturais necessárias
para a circulação das machann. Cada machann estabelece e cultiva relações que são
fundamentais para acessar meios de capitalização, de transporte, de estocagem e de
hospedagem/hospitalidade, e mesmo para garantir a própria segurança. A reciprocidade um-a-
um é um método de navegação, tanto de passagem quanto de permanências periódicas na
ocupação de um espaço.
Portanto, a definição dos circuitos se dá não apenas segundo os locais onde é possível
comprar estoques e onde é possível vendê-los, mas também segundo as relações interpessoais
estabelecidas em cada lugar. Dadas essas coordenadas sistêmicas, os dados etnográficos da tese
estão localizados principalmente no mundo do pequeno comércio.
O universo do ti komès seguramente existe em todo o Haiti, mas ganha contornos
particulares na área da fronteira onde floresce o contrabando [kontreband]. A possibilidade de
vender em pesos dominicanos multiplica as oportunidades de lucro, mas quem passa para o
outro lado é lembrado o tempo inteiro de que está na casa dos outros – tanto em crioulo haitiano
quanto em castelhano, são comuns as referências ao Haiti enquanto a “casa dos haitianos”, e à
RD como “casa dos dominicanos”. Como argumentou Shoaff (2017), para além dos postos
fronteiriços, a fronteira entre é continuamente demarcada dentro da RD, uma vez que a
deportabilidade opera em qualquer ponto do território, e é também demarcada no corpo. 18 O
mesmo pode ser dito a respeito do Haiti, embora os instrumentos de demarcação não sejam os

18
Considerações sobre os cuidados corporais são importantes marcadores de diferença. Na RD é lugar-comum
afirmar que “los haitianos son sucios”. Uma diferença visível está nos cabelos femininos. Entre os homens,
tanto no Haiti quanto na RD, o cabelo costuma estar sempre raspado ou bem curto, não há diferença. Mas as
mulheres no Haiti passam a maior parte do tempo com os cabelos trançados (e a prática de fazer e desfazer
tranças ocupa um tempo considerável), enquanto na RD o alisamento dos cabelos crespos – que são ampla
maioria nos dois países – é a regra. Por isso, haitianas que desejam passar despercebidas na RD alisam seus
cabelos, como uma medida de segurança.

48
mesmos. Mas a minha própria circulação gerou em diversas ocasiões reações de pessoas que
me confundiram com um panyol [um dos nomes dados aos dominicanos, sinônimo de
dominiken], por vezes de forma dura, deixando bem claro que ali não era a minha casa, que eu
estava na casa deles, exigindo respeito de forma algo ameaçadora.
Descreverei em mais detalhes o local onde se deu a minha pesquisa empírica e a forma
como se deu minha inserção no local, mas antes disso, façamos uma breve digressão sobre
história da região.

Breve história da fronteira dominico-haitiana.


A ilha de Hispaniola (ou Española) foi o primeiro lugar no Novo Mundo em que
navegadores europeus conseguiram estabelecer um povoamento contínuo. Seu domínio da ilha,
seguido pela rápida aniquilação da população indígena que ali habitava (Cassá 1974), só foi
desafiado mais de um século mais tarde, quando uma comunidade formada por navios piratas
começou a se formar na parte ocidental da ilha, que estava abandonada pela coroa espanhola.
Esse domínio de fato tornou-se também de direito em 1697, com o Tratado de Riswick, que
concedeu à França (de onde vinha parte dos fundadores daquela comunidade heterogênea)
soberania sobre aquela parte da ilha.
O que até então havia sido uma sociedade de caçadores-coletores formada por
aventureiros, piratas, desertores e náufragos, passa então por uma transformação radical. Após
1697, toda uma nova classe de latifundiários se estabeleceu ali, empregando os métodos de
produção mais eficazes e modernos em seu tempo, gerando um boom econômico vertiginoso.
Devido principalmente às culturas de cana e de café, Saint-Domingue logo fica conhecida como
“a colônia mais rica do mundo”. A eficácia produtiva da colônia vinha tanto de tecnologias
materiais quanto de tecnologias de controle sobre a imensa população escrava. Vigorava do
lado francês um regime de trabalho proto-industrial altamente organizado. Já o lado espanhol
era bem menos povoado e mais pobre, havia grandes vazios demográficos.
Os senhores franceses criticavam seus vizinhos espanhóis como senhores indolentes que
não só sub-utilizavam suas terras e aplicavam tecnologias precárias, como também eram
brandos demais com os seus escravos (Fumagalli 2011). Um dos pontos da crítica era a
incapacidade da colônia espanhola de tomar conta de certas partes do seu território, como o
Serra do Bahoruco, que desde meados do século XVIII se tornara dominada por grupos de
fugitivos da escravidão. Os senhores franceses se queixavam que seus escravos encontrassem

49
abrigo do lado espanhol, onde além disso a manumissão era mais fácil e mais frequente do que
em Saint-Domingue.
A demarcação da fronteira entre as colônias era imprecisa. Em 1777, o Tratado de
Aranjuez ofereceu o primeiro esboço de linha divisória, porém sem eficácia prática, dado que
legislava sobre terras que os poderes coloniais em disputa mal alcançavam, principalmente do
lado espanhol. A alta densidade da colônia francesa ajudou a povoar essa região limítrofe tanto
com a inauguração de novas plantações por senhores franceses, que empurravam para o leste
os limites de seu domínio, quanto com fugitivos da escravidão que se integraram aos dispersos
povoados hispânicos que preexistiam à sua chegada.

4 Mapa mostrando diferença da fronteira colonial para a contemporânea,


indicando as principais localidades da zona fronteiriça.

Em 1791, menos de um século após a sua fundação, estourou a revolta que viria a mudar
de forma radical a meteórica trajetória da economia escravista de Saint-Domingue, destruindo-
a para sempre. Após a revolução e a abolição da escravidão, a pressão pela terra levou muitas

50
famílias camponesas haitianas até bem dentro do território espanhol, onde ainda havia
abundância de terras públicas (Turits 2002:594). Como resultado desse processo, existe um
pedaço do Haiti contemporâneo – principalmente no departamento do Centro, região também
conhecida hoje como Plateau Central – que nunca pertenceu legalmente a Saint-Domingue.
Esses pedaços da ex-colônia espanhola se anexaram ao Haiti já como estado independente
(Despratel 2005). Embora parte da historiografia dominicana tenha falado num tipo de
imperialismo expansionista do Haiti, Martinez (2003) afirma que na verdade esses municípios
ermos receberam com entusiamos a chegada dos revolucionários haitianos e voluntariamente
solicitaram sua anexação.
A sociedade que se desenvolveu então é descrita por Richard Turits & Lauren Derby
(2002) como um mundo fronteiriço híbrido e integrado, onde a convivência entre pessoas de
origem haitiana e dominicana era pacífica. Tanto o crioulo quanto o espanhol eram amplamente
falados, o gourde e o peso dominicano circulavam juntos, as práticas religiosas populares
acomodavam elementos de ambas as origens (Derby 1994), eram comuns os matrimônios entre
cônjuges dos dois lados, assim como relações de apadrinhamento (Turits 2002). Ao longo do
século XIX, esse miolo de fronteira terrestre continuou marginal para ambos os estados
nacionais, distante dos seus centros de poder, gozando de grande autonomia. Até o início do
século XX, os circuitos comerciais que envolviam sua economia, de base pecuária, estavam
muito mais orientados para Porto Príncipe (que ocupava no imaginário dos habitantes locais,
mesmo os dominicanos, sua referência de metrópole) que ficava então a dois dias de viagem,
do que para a longínqua Santo Domingo, que ficava a dez dias de distância (Dilla & Carmona
2010:54-5).
Na virada do século XIX para o XX, a correlação de forças entre os países vizinhos
começara a mudar. A República Dominicana inseriu sua economia no mercado internacional,
através de modernas plantações agro-exportadoras, com destaque para a cana-de-açúcar,
fenômeno na literatura anglófona chamado de sugar boom (p.ex., Derby 2009), que a essa altura
praticamente não era mais produzida no Haiti. No ano de 1884, os chamados braceros, a mão
de obra menos qualificada empregada nas safras, eram mais de 90% dominicanos, mas com o
crescimento dessa indústria nas décadas por vir, um número cada vez maior de trabalhadores
estrangeiros é importado, e logo os braceros haitianos se tornariam a maioria nos engenhos
dominicanos (Vega 1988). Nos anos 1930s, a RD já superava seu vizinho em termos
econômicos e militares, ao mesmo tempo em que mostrava um crescimento demográfico mais
rápido (Dilla & Carmona 2010:61).

51
Porém, o boom econômico das centrais açucareiras estava concentrado em outras regiões
do país. A fronteira permaneceria ainda algum tempo como um lugar remoto, habitado por
camponeses pecuaristas em grande medida autônomos do resto do país, e aos quais a elite de
Santo Domingo censurava por conta da influência haitiana (também pensada como africana)
que os tornaria retrógrados e avessos à modernidade. Em especial as crenças identificadas ao
vodu eram um tema constante de queixas. Havia ainda o receio de que, se não houvesse
correções de rumo para modernizar aqueles rincões, eles acabariam também anexados ao Haiti.
Embora os primeiros esforços de modernização datem da virada do século XIX para o
XX, eles ganharam impulso efetivo com a chegada das tropas norte-americanas, que ocuparam
o Haiti em 1915, e a República Dominicana em 1916. Um dos objetivos dessa ocupação teria
sido garantir o retorno de empréstimos de origem estadunidense, o que levou ao fortalecimento
do controle fiscal sobre o comércio transfronteiriço (Baud, 2000). As primeiras tentativas de
instalar postos na fronteira e montar uma guarda para cobrar impostos aduaneiros data de 1908,
mas foi duramente resistida pelos habitantes e políticos locais. Dezenas de inspetores de
aduanas e soldados foram mortos, ao mesmo tempo em que cresciam grupos binacionais
dedicados ao comércio e ao roubo de gado (Dilla & Carmona 2010), tema que sempre despertou
muito debate na região.
Com a ocupação, o exército norte-americano fez da consolidação destes postos
fronteiriços uma prioridade, intensificando a vigilância e a fiscalização para efetivamente
enquadrar e punir como contrabando atividades comerciais que até então eram banais e
cotidianas. Novamente houve resistência da população camponesa, em ambos os lados, que
burlou e boicotou o novo sistema como pode. Nos primeiros dois anos da implementação do
controle fiscal pelas forças da ocupação, 18 oficiais norte-americanos que trabalhavam nos
postos foram assassinados (Baud 2000:60-61). O grau parcial de sucesso eventualmente
conquistado foi paralelo ao florescimento de novas atividades. Baud (idem:59) sugere que a
vizinhança entre diferentes sistemas de taxação e os obstáculos impostos à circulação de
mercadorias, longe de paralisarem a economia transfronteiriça, tornaram esse comércio mais
lucrativo e atraíram uma atividade frenética, embora, com a militarização da fronteira, o
contrabando tenha se tornado perigoso para pessoas comuns, passando a se organizar em grande
escala, com uma estrutura logística dotada de bandos armados e conexões com pessoas
poderosas. Nesse processo, surgiram grupos bi-nacionais que eram um misto de crime
organizado e resistência política contra a ocupação (idem:65-66. Cf. Derby 1994:500).

52
Entre as reformas infraestruturais promovidas pelos marines, houve uma importante
expansão da rede viária em ambos os países. Embora o sistema de trabalho obrigatório
conhecido como corvée já existisse no Haiti há várias décadas, as forças da ocupação norte-
americana a utilizaram numa escala sem precedentes (Yarrington 2015). Também os
camponeses dominicanos foram convocados para trabalhos compulsórios na construção de
estradas, o que foi oficialmente instituído com a aprovação da Ley de Caminos, em 1907 –
contudo, o governo dominicano não conseguiu torná-la efetiva, e só com a ocupação dos
Estados Unidos é que esse dispositivo legal começou a ser amplamente usado, o que gerou
revolta e ressentimento entre as populações camponesas (San Miguel, 2011:100-103). Como
parte dessas obras, começou a ser construída a primeira estrada asfaltada conectando os dois
países por terra. As forças da ocupação tomaram ainda a iniciativa de usar mão de obra haitiana
para construir e melhorar as estradas dominicanas, sob o argumento de que a mão de obra
dominicana era escassa e insuficiente (Vega, 1988:136).
Após a retirada das tropas norte-americanas, em 1924, o governo dominicano afirmou seu
desinteresse em seguir com as obras na estrada transnacional aberta pelos americanos, porque
embora esta facilitasse o comércio entre os dois países, facilitaria também a migração ilegal
(Vega 1988:21). Poucos anos mais tarde, ao chegar ao poder, Trujillo mudaria esse panorama,
retomando a construção de diversas estradas – são dessa época os quatro principais caminhos
viários que atravessam de um país ao outro – não só na zona de fronteira, mas para integrar as
diferentes partes da RD, o que ele fez, novamente, usando tanto mão de obra importada quanto
o trabalho compulsório para camponeses dominicanos – usados ainda em trabalhos de irrigação
(San Miguel 2011, Vega 1988).
A economia pecuária da região trazia complicações para a consolidação da fronteira. Um
contraste entre áreas de criação de gado e de produção agrícola organizava o pensamento
espacial da época (Baud 2000:50) – enquanto o gado pasta solto, alheio a convenções humanas,
as plantações cercadas possuíam limites muito mais facilmente discerníveis. Os terrenos
comuneros, propriedades de usufruto coletivo onde os animais eram criados, foram
caracterizados pela elite urbana dominicana como berço de vagabundos preguiçosos, e
instrumentos legais foram criados para privatizá-los sob o argumento de que isso aumentaria a
produtividade (Derby:499, San Miguel 2011:capítulos II, IV e V).
Contra esses espaços mal definidos característicos da economia pecuária, vieram os
projetos de colonização agrícola, que tinham também o objetivo declarado de povoar a região
com populações não-haitianas (Turits 2002). A reformulação do espaço se articulou com

53
medidas sanitárias, de limpeza pública, misturando noções de “sujeira” e “poluição” com
referências morais e raciais. No discurso sanitário dominicano oficial, homologias explícitas
foram traçadas entre a circulação de animais e a circulação de haitianos (Derby:506).
Significativamente, as feiras e mercados públicos foram alvos preferenciais das reformas
modernistas (idem:508).
No início, este projeto paradoxalmente trouxe imigrantes europeus brancos para
dominicanizar a região. Em 1927 o governo de Horacio Vasquez estabeleceu as primeiras seis
colônias agrícolas experimentais com imigrantes brancos, num primeiro momento vindos das
Ilhas Canárias, de onde há uma longa história de migração para a RD (Gonzalez 2006), depois
com italianos e alemães. Quando a Europa vivia os tormentos que precederam a segunda guerra
mundial, o governo Trujillo facilitou a entrada e ofereceu abrigo a judeus europeus, a refugiados
da guerra civil espanhola (1936), entre outros. Contudo, os planos de povoar a fronteira com
europeus brancos fracassou, dado que a maioria deles residiu ali por pouco tempo (Vega 1988).
Esforços governamentais para concentrar e adensar a população humana e animal em
pontos fixos já não eram novidade, como a campanha promovida pelo então presidente Ramón
Cáceres em 1908.19 Foram também implementadas grandes propriedades, sob controle estatal,
dedicadas à produção de cana-de-açúcar (Derby 1994:497). Embora a maioria desses
empreendimentos estivesse em outras regiões do país, o modelo teve também sua parte na
colonização da fronteira e no esforços, da parte de governos dominicanos, em evitar que mais
áreas do país acabassem anexadas ao Haiti.
Num acordo firmado em 1929, os presidentes Horacio Vasquez e Louis Borno fixaram os
limites da linha divisória entre os dois países que vigora até hoje, que corta a ilha no sentido
norte-sul com uma extensão total de 360 km. Nesse momento já havia sido inaugurada uma
estrada conectando Porto Príncipe a Santo Domingo, cortando o Plateau Central haitiano e o
Vale de San Juan do lado dominicano. Contudo, em 1930, o ciclone Zenon destruiu boa parte
dessa estrada, e a pedido de Trujillo, que então acabara de chegar ao poder, o governo haitiano
enviou engenheiros para reabrir a estrada (Vega, 1988:53).

19
Medidas tomadas por algunos gobernantes, y que afectaron de manera particular a la Línea, también
contribuyeron a definir sus afiliaciones políticas. Así, la campaña de concentración de la población y del
ganado del presidente Ramón Cáceres «Mon», en 1908, dirigida a socavar el apoyo a una de las tantas
rebeliones anti gubernamentales, dejó un amargo recuerdo entre los linieros [“La Línea” é uma das
expressões usadas na RD quando se referem à fronteira com o Haiti]. Aparte de abonar a la decadencia
económica de la región, ya que se autorizó la matanza de las reses que no fueran concentradas en el plazo
fijado por las autoridades, tal medida contribuyó a generar una fuerte tradición en contra del horacismo,
tendencia política a la que pertenecía Cáceres. Algunos de los «generales» más aguerridos y legendarios del
país provenían de esa zona. (San Miguel, 2011:49)

54
Nos primeiros anos de seu governo, Trujillo mantinha boas relações com o Haiti. Ele não
só se esforçou em criar novos caminhos para fortalecer o comércio entre os dois países, como
também sempre reconheceu que a mão de obra que carregava o carro-chefe da economia
dominicana, a produção de cana-de-açúcar, era majoritariamente haitiana. O seu problema era
a fronteira, uma região em que, historicamente, a presença do Estado dominicano foi muito
sempre tênue, que na prática era comandada por caudillos.20 A região era também um refúgio
para rebeldes, que em tempos difíceis atravessam para o Haiti onde se organizam e se
municiavam para voltar, assim como os cacos haitianos também encontravam refúgio
atravessando a fronteira quando precisavam de tempo para organizar suas ações. Havia ainda a
preocupação, por parte da mídia e das elites capitaleñas, de que aquela sociedade mista
estivesse se degenerando racialmente, que a região cultivava costumes bárbaros (em particular
aqueles associados ao vodu) e seus habitantes eram avessos ao progresso, e por fim, havia o
medo de que mais partes da região fossem perdidas pela RD para serem anexadas pelo Haiti.
Hintzen (2016) mostra como os primeiros esforços de Trujillo para garantir a lealdade da
fronteira ao governo central, bem como os primeiros esforços em separar haitianos e
dominicanos, encontraram resistência local.
Foi então que o comandante Rafael Leonidas Trujillo decidiu tomar medidas drásticas
para consolidar, de fato, a separação entre os dois países. Calcula-se que de 2 e 8 de outubro de
1937 foram assassinados entre 15.000 e 20.000 “haitianos”.21 O massacre, conhecido do lado
dominicano como El Corte, dotou a fronteira entre os dois países de uma consistência
inimaginável até então. Este evento traumático deixou profundas marcas no imaginário da
região, em especial na fronteira norte, tendo sido retratado em diversas obras ficcionais como
El masacre se pasa a pie, de Eddy Prestol Castillo, ou The Farming of the Bones, de Edwige
Danticat.22 Após o genocídio brutal, a região ficou virtualmente despovoada, campos foram

20
Y en ausencia de un Estado que pudiera validar en la práctica sus reclamos sobre el territorio y la población,
las relaciones de las masas rural estendían a oscilar, no en torno a los organismos de un poder lánguido y
etéreo, sino alrededor de las personas, los individuos que eran, en las zonas rurales, los poderes reales y
efectivos. (San Miguel, 2011:45)
21
As aspas, usadas por variados autores, pretendem indicar que o critério do lugar de nascimento importou pouco
nesse contexto, e que famílias que residiam ali há várias gerações e que se consideravam “nativas” da região
foram, praticamente de uma hora para outra, tornadas estrangeiras com base numa atribuição de origem,
determinada de formas arbitrárias, entre as quais a mais lembrada é o uso da pronúncia. Os soldados
dominicanos mandavam que as pessoas capturadas dissessem palavras como perejil (salsinha) e tijera
(tesoura), supondo que a incapacidade de pronunciar o som da letra R indicava a identidade haitiana (ver Turits
2002:617-8).
22
Para uma crítica que coloca em diálogo diversas obras ficcionais que abordam esse momento histórico com a
literatura não-ficcional produzida sobre o mesmo evento, ver Fumagalli 2018.

55
abandonados, tomados por ervas daninhas, cronistas da época contam que a situação chegou ao
ponto de faltarem alimentos em Dajabón (idem:66). Para resolver o problema, Trujillo iniciou
uma política de migrações induzidas para a região, assentando ali, além de migrantes
estrangeiros, deportados políticos e presidiários: “...como parte da dominicanização da
fronteira, muitos prisioneiros, incluindo assassinos condenados a 15 anos de prisão ou mais,
foram levados à fronteira e ali deixados em liberdade, sob a condição de que não voltassem às
suas zonas de origem” (Vega 2007 apud Dilla & Carmona 2010:66).
O processo cinicamente chamado de modernización ou dominicanización de la fronteira,
termos usados de forma intercambiável, consistiu no estabelecimento de colônias agrícolas
“autenticamente” dominicanas, que além dos incentivos ao deslocamento de dominicanos de
outras partes do país para ocupar a franja fronteiriça também contou com a curiosa importação
de colonos estrangeiros considerados brancos (vindos principalmente das Ilhas Canárias e da
Espanha continental, judeus e outros refugiados europeus na Segunda Guerra Mundial, e
japoneses – Dilla & Carmona 2010). Além disso, os esforços de dominicanização incluiram
ainda a troca para nomes hispânicos de lugares e vilas cujos nomes soavam haitianos, expansão
significativa do sistema de ensino público com ênfase na língua e na cultura hispânica, e na
criminalização do vodu, cuja pena de dois anos de prisão podia ser troca pela “pena alternativa”
da deportação ao Haiti, independente de que o “criminoso” em questão tivesse ou não qualquer
ascendência haitiana (Derby 1994:512, Turits 2002:608-9, Wooding & Moseley-Williams
2004:21).23 Trujillo investiu na construção de cidades para que se tornassem cabeceras
provinciales (equivalente a capitais estaduais), erigindo para este fim as cidades de Jimaní,
Pedernales e Comendador (Elias Piña), e equipando com edifícios públicos e obras
infraestruturais povoados previamente existentes, como Dajabón e Montecristi.
No Haiti, foram também fundadas novas colônias agrícolas para abrigar refugiados
sobreviventes do massacre (Turits 2002: 590, 601). Jean-Price Mars relata a fundação de
colônias financiadas pela indenização paga pelo governo de Trujillo, mas eram pequenos
povoados, e a maioria delas teve curta duração (apud Dilla & Carmona 2010:67). A construção
mais ambiciosa foi a da cidade de Belladère. A principal estrada terrestre conectando Porto
Príncipe a Santo Domingo entrava no Haiti por essa região, que era um povoado minúsculo,

23
Essas ações eram justificadas como um esforço para conter a “invasão silenciosa” que a população haitiana
estaria, subrepticiamente, promovendo em território dominicano, tese que teve como principal ideólogo
Joaquin Balaguer, um dos principais intelectuais do estado trujillista, que ainda viria a ser presidente da
República Dominicana duas vezes. O infame conceito é desenvolvido em seu livro La Isla al Revés.

56
antigamente chamado de Varadero, nome que foi adaptado para a sonoridade francesa como
Belladère. Ao longo da década de 1940s, esse povoado foi transformado num tipo de cidade
modelo, com pesados investimentos feitos pelo então presidente Dumarsais Estimé, gastando
parte significativa do orçamento nacional em uma obra monumental, criticada pela oposição
(Smith 2009). Como portal de entrada no Haiti, e também em resposta à dominicanização que
acontecia do outro lado da fronteira, Estimé desejava que Belladère fosse uma cidade moderna,
com parques e praças, ruas asfaltadas, aqueduto, uma série de prédios públicos como tribunal
de paz, sede da prefeitura, um hospital com casas residenciais construídas para os médicos nos
seus arredores, um posto de aduana, entre outros. Em 31 de outubro de 1948 foi inaugurada a
moderna cidade conhecida então como “fina flor de Plateau Central”, com suas ruas plenas de
casas imponentes e bem-feitas para abrigar famílias da elite haitiana. Segundo Despratel Cabral
(2005:19), apenas cinco anos após a sua inauguração, boa parte da cidade já havia caído no
abandono, e os ocupantes dessas casas chiques e modernas já haviam voltado a morar em seus
locais de origem.24
Com exceção das eventuais travessias de trabalhadores braçais haitianos rumo aos
canaviais dominicanos e de um esquálido comércio, a fronteira ficou oficialmente fechada pelas
décadas seguintes (Dilla & Carmona 2010:67). Se o primeiro movimento no sentido do
fechamento foi feito por Trujillo, de forma recíproca, governos haitianos subsequentes também
investiram recursos materiais e militares para garantir a consistência da fronteira. Governantes
haitianos tinham as mesmas preocupações, a região central também era para eles um asilo de
onde rebeldes refugiados poderiam se aremar e tramar revoluções. É claro que um fechamento
completo é impossível, mas é certo que atravessar a fronteira de um lado ao outro se tornou
efetivamente muito mais difícil do que em qualquer outro momento histórico.25

24
Na Belladère contemporânea, podemos ver construções imponentes totalmente abandonadas, em particular
aquelas que sediavam instituições públicas, com plantas crescendo por todos os lados, paredes caídas, ruínas
onde ainda se pode entrever a opulência do modernismo urbanístico haitiano sonhado por Estimé, enquanto
boa parte das sedes atuais dessas mesmas instituições funcionam em containers de metal que foram deixados
em uma de suas praças centrais, bem próximas a essas ruínas chiques. Há diversas construções que parecem
ao mesmo tempo bem construídas e prestes a desabar, apenas cachorros andam dentro delas, nenhuma pessoa
se aventurava a ocupá-las. Os estabelecimentos que funcionam o fazem sob estruturas geralmente bem mais
precárias que os containers, como restaurantes ao ar livre dotados apenas de uma lona estendida para fazer
sombra, ou a estrutura do mercado, cuja estrutura original contém uma parte tomada por lixo, e que funciona
pelo menos 4/5 fora dessa estrutura, sobre panos estendidos no chão, mesas improvisadas, e mais panos
amarrados para dar sombra, em muitos trechos de tal forma que mesmo uma pessoa com menos de um metro
e meio de altura precisa se agachar para não atingi-los com sua cabeça.
25
Los testigos recogidos indican que en toda la franja existieron acciones represivas y castigos –en ocasiones
cruentos– por parte de las autoridades trujillistas contra los dominicanos que se aventuraban a cruzar o a
establecer contatos informales con los haitianos. De igual manera, estos conctatos fueron perseguidos por

57
A reabertura da fronteira se deu primeiros aos poucos, progressivamente, desde meados
da década de 1970 (época em que a RD se redemocratizava, após o assassinato de Trujillo), e
ganhou impulso com a queda do então presidente Jean-Claude Duvalier, em 1986. O governo
dos Duvalier vigiava fortemente os portos e fronteiras, com o objetivo declarado de proteger a
indústria nacional, ao mesmo tempo em que isso elevava o custo de vida. Nos tempos de
Duvalier, o contrabando era uma atividade para poucos e poderosos, era necessário ter conexões
com altos escalões do exército e com as autoridades aduaneiras. Com a ruína desse regime, a
partir dos últimos anos da década de 1980, ocorreu um movimento que Plotkin (1989) chamou
de “democratização do contrabando”.
Não que a repressão ao contrabando tenha desaparecido de uma hora para outra, longe
disso. Nos meses e anos que se seguiram à queda de Duvalier, o então comandante do exército
haitiano, general Henri Namphy, acumulou também o cargo de presidente da república do Haiti.
Como um dos principais articuladores do “duvalierismo sem Duvalier”, segundo a expressão
cunhada por Trouillot (1990), Namphy encabeçou diversas juntas cívico-militares, que
comandaram a transição para a democracia. A primeira eleição popular presidencial no Haiti
pós-Duvalier foi vencida por Jean-Bertrand Aristide, que tomou posse em 07/02/1991, sendo
deposto pelo mesmo exército em 30/09/1991. Nos três anos seguintes, o país foi novamente
governado por uma junta militar, até o restabelecimento do mandato de Aristide, em
15/10/1994, quando já estava perto do fim. Em 20/02/1995, Aristide dissolveu as forças
armadas. Segundo diversos relatos de moradores da região, com a dissolução do exército
haitiano, a repressão ao contrabando na fronteira tornou-se bem menos efetiva.

O trabalho de campo.
Minha pesquisa teve como origem o desejo de estudar a itinerância de mulheres haitianas
fazendo comércio no Vale de San Juan, na República Dominicana (RD), região contígua ao
Plateau Central haitiano, na expectativa de que a mobilidade delas, em especial nas viagens
com pernoite, impactasse a configuração das redes de parentesco, as lógicas de moradia e os
papéis de gênero. Parti buscando uma população vivendo em condição de estrangeira, que
embora seja reconhecidamente indispensável para a vitalidade da economia local, é foco de
suspeita permanente para as autoridades dominicanas (Wooding & Mosely-Williams, 2004).

las autoridades haitianas y dominicanos que vivieron en aquella época indican que ni siquiera existian
contactos visuales entre los habitantes de ambos lados. (Dilla & Carmona, 2010:67).

58
5 Detalhe da área da pesquisa.

Há uma crescente literatura sobre mulheres haitianas na RD, de ênfase feminista e


bastante ligada à atuação de ONGs dedicadas à promoção de direitos humanos (ver, por
exemplo, Mailloux 1997, Petrozziello & Wooding 2011, Wooding 2012, Shoaff 2017).
Contudo, eu não cheguei através de nenhuma dessas instituições, mas apenas como um homem
branco (blan no Haiti, rubio na RD) viajando sozinho e sem conhecer ninguém previamente, o
que não inspirava confiança em ninguém, menos ainda no tenso contexto de retirada de direitos
de cidadania de dominicanos de descendência haitiana e ameaças de deportação em massa.26

26
Em 23 de setembro de 2013, a Junta Central Eleitoral (JCE), máxima autoridade jurídica da RD, emitiu uma
decisão judicial (conhecida como Sentença 168) segundo a qual filhos de imigrantes “em trânsito”, que não
tinham direito de fixar residência, por extensão também não possuíam direito à cidadania dominicana. A ideia
de “em trânsito” antes costuma ser aplicada apenas a situações em que uma mulher grávida se dirigia a outro
país, cujo parto na RD fosse apenas uma contingência não planejada, cobrindo um período de não mais que
algumas semanas. O entendimento do que configura uma situação “em trânsito” foi radicalmente alargado.
Por exemplo, o fluxo de trabalhadores braçais que moviam a produção açucareira na RD, aos quais nunca
foram concedidos oficialmente vistos de permanência, passaram a ser considerados “em trânsito”, mesmo que
estivessem a várias décadas no país. Sendo uma “sentença de princípio”, ela propunha ainda “uma auditorial
minuciosa” nos livros de registro desde 1929 até a data (23/09/2013) para compor uma “Lista de estrangeiros
inscritos irregularmente no Registro Civil”. Assim, a Sentença 168 retirou, retroativamente, a cidadania de
dominicanos de origem haitiana (cujo número é estimado em dezenas ou até centenas de milhares de pessoas,
que a JCE garante ser menor), criando uma grande massa de apátridas, convertendo pessoas que nasceram e
cresceram na República Dominicana, e sempre foram considerados cidadãos dominicanos, em imigrantes

59
As comerciantes com quem eu tentava conversar invariavelmente negavam ser haitianas, e em
uma ocasião, quando eu as abordei falando em crioulo, três delas saíram literalmente correndo
de mim, deixando inclusive parte de seus pertences para trás. Minha conclusão resignada foi
que a pesquisa só seria viável começando pelo lado haitiano da fronteira.
Através do meu colega Handerson Joseph, consegui contatos na seção comunal de Fonds-
Parisien (fronteira com Jimaní, na RD). Aluguei um quarto na casa de um pastor chamado Briz.
Fiquei baseado em Fonds-Parisien de março a junho de 2015, fazendo pequenas viagens pela
região para conhecer diferentes pontos da fronteira.27 Os objetivos desse primeiro período de
campo eram modestos; melhorar minha compreensão e fluência em crioulo haitiano, mapear a
região fronteiriça e fazer contatos.
O posto fronteiriço de Malpas, entre Fonds-Parisien e Jimaní, é o principal ponto de
entrada de produtos dominicanos no Haiti e vice-versa. Mais da metade do comércio entre os
dois países passa por aí. Há um grande fluxo de caminhões, que formam longas filas para serem
vistoriados, atravessando em ambos os sentidos. Contudo, o tipo de comércio que me
interessava floresce menos ali que em qualquer dos outros pontos da fronteira por onde passei.
Fonds-Parisien fica perto de Porto Príncipe, menos de 30km até Croix-des-Bouquets, que já é
parte da região metropolitana, trajeto que leva cerca de uma hora em transporte público. Muita
gente que mora em Fonds-Parisien trabalha na capital. O povoado fronteiriço está integrado à
órbita de Porto Príncipe, quase como um subúrbio expandido, o que ofusca a importância da
proximidade com a RD. O posto de Malpas é pouco frequentado pelas pessoas da minha
convivência em Fonds-Parisien, que o descreviam como um lugar desagradável e perigoso,
cheio de ladrões.28 Como estrangeiro, pouco apto a estimar os riscos reais que corria em cada
lugar, eu tendia a dar ouvidos ao que me diziam. Recomendaram-me ficar longe de Malpas,

ilegais. Dentre os ex-dominicanos que mudaram de status com a Sentença 168 da JCE, a esmagadora maioria
é composta por descendentes de haitianos, cujos pais, mães e avós teriam entrado indocumentadamente, a
partir de 1929, na República Dominicana. Essa polêmica decisão se desdobrou em outras, gerando
controvérsias no direito internacional, e acentuou gravemente a tensão política quanto à presença de haitianos
(e seus descendentes) na RD. Análises sobre o caso e suas consequências podem ser encontradas, por exemplo,
em Centro Bonó 2016, Amnistía Internacional 2015, Petrozziello 2014, Hintzen 2014, Shiptley 2014,
Martinez2016, Shoaff 2016.
27
Acompanhado pelos colegas haitianos Jean Louis Sergo e Johnny Fontaine, jovens antropólogos e membros
da equipe do NUCEC desde 2008, fiz viagens curtas a Anse-à-Pitres, Thiotte, Belladère e Ouanaminthe,
enquanto do lado dominicano, viajando sozinho, gastei algo entre três e oito dias e noites em cada uma das
seguintes localidades: Elias Piña, Hondo Valle, Las Matas de Farfán e San Juan de la Maguana. Apenas passei
por Jimaní e Dajabon, uma breve volta por cada uma de não mais que duas horas.
28
As únicas pesoas que conheci que frequentavam Malpas eram Kiki e Gègè. O primeiro supervisiona
caminhões que trazem para Porto Príncipe produtos importados via porto de Santo Domingo, regularizando
os trâmites na aduana, e o segundo trabalha eventualmente dirigindo esses caminhões entre as duas capitais.

60
conselho que, com a minha má experiência no lugar (passando por tentativas de extorsão tanto
de civis quanto de policiais, e presenciando pelo menos três perseguições e prisões de supostos
ladrões, uma delas com disparos de arma de fogo contra um suspeito em fuga), foi fácil seguir.
Por fim, ganhei pouca intimidade com as pessoas que conheci em Fonds-Parisien, o que lançava
dúvidas sobre o prosseguimento da pesquisa.
Em uma das viagens que fiz a Belladère, uma das comerciantes a quem entrevistei,
chamada Jaklin, convidou-me a conhecer sua casa e sua família. Nos tornamos próximos, e no
período seguinte, de setembro de 2015 a abril de 2016, eu me estabeleci na casa dela, numa
vizinhança conhecida como Lakanyit. A menos de cem metros da estrada que conecta Porto
Príncipe a Santo Domingo, a ampla casa do pastor Briz é bem estruturada, toda em alvenaria,
piso de cimento queimado, conectada à rede elétrica e dispondo de eletrodomésticos incomuns
nas casas haitianas, como geladeira e máquina de lavar roupas. Ela possui quatro quartos, com
cozinha e banheiro integrados à planta, é ocupada apenas pelo pastor Briz e sua esposa, Já a

6 Jaklin com pano amarrado na cabeça posando no tet mòn.


Foto: Juliane Peixoto.

61
casa de Jaklin fica a cerca de dois ou três quilômetros do ponto mais próximo onde passa a rede
de fiação elétrica, ainda mais longe de qualquer caminho asfaltado. Lá vivem quinze pessoas
num espaço bem menor, cujas divisórias internas são marcadas não por paredes, mas por panos
e lonas pendurados, e com a área de cozinhar e a latrina do lado de fora, modelo mais comum
no Haiti. Eu estabeleci uma relação muito mais íntima com a família de Jaklin que no período
anterior. Fui englobado, de certa forma adotado por essa família. Além de responder com
paciência infinita muitas perguntas, Jacqueline e seus filhos me apresentaram a muitas outras
pessoas. Partindo dessa rede, eu frequentei os mercados da região cerca de três vezes por
semana, acompanhando a jornada de trabalho de algumas machann de quem me aproximei. Os
dados de campo de que disponho tratam principalmente desse convívio, das famílias e casas na
vizinhança de Lakaniyt, onde passei o período mais importante da pesquisa.
Ao todo, foram nove meses em Lakaniyt, comuna de Belladère, no Plateau Central (o
primeiro período de setembro de 2015 a março de 2016, depois em julho e agosto de 2017),
quatro meses em Fonds-Parisien com diversas viagens curtas para outros lugares (de março a
junho de 2015), além de três meses passados em Jacmel da primeira vez que fui ao Haiti, por
ocasião da minha pesquisa de mestrado, em 2008.
Localizada no Plateau Central, a comuna de Belladère faz fronteira com o município
dominicano de Elias Piña, sendo o terceiro ponto de passagem mais importante entre os dois
países (após Malpas, por onde hoje passa a principal estrada entre Porto Príncipe e Santo
Domingo, e Wanamint/Dajabón, que conectada, ao norte da ilha, Cabo Haitiano com a região
do Cibao). Meu local de moradia durante a maior parte do meu trabalho de campo fica a cerca
de quinze quilômetros do centro de Belladère.
Nessa zona, a grande maioria dos homens e algumas das mulheres trabalham a terra e
criam animais. A palavra kiltivatè [“cultivador”] designa os trabalhos braçais na produção
agrícola, e a grande maioria dos homens (particularmente entre os que já atingiram certa idade,
e não nutrem pretensões de migrar para fora do país), se perguntados sobre o seu ofício,
responderão kiltivatè. Essa ocupação – o cultivo da terra para produção de gêneros alimentícios,
seja para consumo próprio, seja para venda – pode coexistir com outras, de tal forma que
pastores, ougans, mototaxistas, enfermeiros e professores que moram na área geralmente
também são, parcialmente, kiltivatè.
Evidentemente, a quantidade de terra de que cada família dispõe varia, mas praticamente
todos os homens adultos que conheci (e muitas mulheres) em Lakanyit cultivam alguma terra

62
que chamam de sua, e daí tiram parte do seu sustento.29 Com isso, poderia parecer justificável
chamar a área onde se deu a pesquisa de zona rural, e as pessoas que lá habitam de camponeses,
não fosse o fato de que elas usam a palavra campesino (em espanhol) como xingamento. Mais
que a tradução direta [peyizan], as expressões moun mòn ou nèg mòn, que significam
literalmente “gente da montanha”, transmitem a mesma ofensa em crioulo, ou ainda kongo,
palavra que na fala local também tem o sentido de ignorante, que não conhece nem os objetos
tecnológicos nem os costumes urbanos. Ninguém por lá gosta de se reconhecer nesse lugar,
ainda que façam piadas a respeito e que se xinguem uns aos outros nesses termos. Em uma
dinâmica análoga àquela identificada por Motta (2014:154) no Complexo do Alemão, no Rio
de Janeiro, onde o uso dos termos “pobre” e “pobreza” parece apontar sempre para lugares e
pessoas mais além, dos quais se deseja marcar distância (referindo-se ao próprio interlocutor
apenas quando este deseja enfatizar injustiças sofridas que merecem compensação), também
em Lakanyit quem as pessoas consideram como verdadeiros campesinos são aqueles que
habitam lugares mais distantes.
Temos um conjunto de termos como mòn [“montanha” ou “morro”], raje [“mato”] e andeyò
[“lado de fora”], que, por um lado, são descritivos, mas por outro, são também referências de
classe. Embora o Plateau Central seja uma região bem menos montanhosa que as outras no
Haiti, ainda assim a geografia é acidentada, e a paisagem é marcada por diversos conceitos entre
os quais mòn. Enquanto referência espacial, o sentido do termo é claro. As pessoas usam esse
tipo de referência para indicar caminhos, para descrever lugares, e apreciam a “cabeça dos
morros” [tèt mòn] (ou seja, seu cume) como um local que tanto oferece uma visão esteticamente
agradável da paisagem quanto permite ver de longe quem está chegando, quem está partindo, a
movimentação de veículos, é uma posição que permite antecipar acontecimentos e comunicar
à distância. Mas ao mesmo tempo, mòn é uma metáfora para as dificuldades, uma imagem cuja
ressonância é imediata para pessoas acostumadas a atravessar encostas íngremes, descer
barrancos, atravessar ravinas, em meios a caminhos mais suaves. A experiência de caminhar
por sendeiros irregulares em um país extremamente montanhoso como o Haiti faz com que
qualquer um entenda facilmente que os morros e montanhas são obstáculos. Assim, a frase deyè

29
Nas proximidades imediatas onde morei, apenas duas famílias tinham mais que cinco karo, que é a unidade
mais usada na região para medir a terra (equivalente aproximadamente a 1.29 hectares). A maioria tinha bem
menos que isso, mas tinha alguma. Ao afirmar isso, estou seguindo a forma como as pessoas se expressam,
mas noto que quando dizem que “tal terra é de tal pessoa” não necessariamente significa que essa pessoa seja
juridicamente a proprietária daquela terra. Existe uma pluralidade de arranjos fundiários complexos, que foram
melhor descritos por autores como Métraux et al. 1951, Larose 1976 e Woodson 1990.

63
mòn gen mòn [“atrás da montanha tem outra montanha”] é usada como um provérbio para
afirmar que as dificuldades da vida não cessam, que quando você conseguir resolver um
problema, aparecerá outro. O lugar que as montanhas ocupam no imaginário se relaciona ainda

7 Deyè mòn gen mòn, “depois da montanha tem outra montanha”.


Foto do autor com amigos haitianos, tirada em 2008, autoria desconhecida.

ao fato de que historicamente as planícies eram os locais preferidos para plantações de cana-
de-açúcar, carro-chefe da economia colonial antes da revolução, e que as principais cidades
cresceram junto aos portos que escoavam essa produção, enquanto que os terrenos mais
acidentados, menos nobres, foram frequentemente ocupados como áreas periféricas da
economia colonial, onde a infraestrutura disponível era muito mais precária. 30 Hoje em dia,

30
Boa parte da literatura ressalta as articulações entre topografia e poder no Haiti. Destacamos a clássica obra
de Paul Moral (1961), em que a história das políticas agrárias desde o início dos tormentos revolucionários

64
além de ser uma descrição topográfica, a palavra mòn também se refere a lugares onde
condições infraestruturais são precárias, onde os caminhos são de má qualidade e os veículos
não conseguem chegar, onde não há energia elétrica, e assim em diante.31 Nesse sentido, pode-
se usar essa palavra mesmo para locais planos, desde que sejam percebidos como espaços
precários, mal equipados.
Enquanto termo descritivo, “mato” [raje] se refere aos espaços não-construídos e não-
cultivados, onde a vegetação cresce por conta própria, alheia ao domínio humano. Mas quando
se diz que tais pessoas moram “no mato”, o sentido é parecido com o de “montanha”, com a
diferença que é ainda mais pejorativo. Já o termo andeyò [lit, “do lado de fora”] é uma
denominação bastante comum para o mundo rural, definido em oposição à cidade. Na
composição demográfica do Haiti pré-século XXI, as cidades eram pouco populosas, de forma
que aqueles “do lado de fora” eram mais de 90% da população total. Mas há como graus
sucessivos de “ruralidade”. Se, do ponto de vista dos habitantes do centro de Belladere,
Lakanyit é uma zona dita andeyò [“zona rural”, “longe”], ou, de forma mais ofensiva, nan raje
[“no mato”], do ponto de vista dos habitantes de Lakanyit os locais verdadeiramente andeyò
são os que estão mais longe, mais isolados. Essa distância relativa se refere não só aos centros
de população mais densa (que poderíamos caracterizar como ‘pequenas cidades provinciais’,
embora as pessoas de lá nunca usem a palavra ‘cidade’ nesses casos), a referência fundamental
está espacialmente dispersa. O critério principal é o acesso a facilidades infraestruturais
urbanizantes, com destaque para a rede de energia elétrica e as estradas (caminhos asfaltados
ou, pelo menos, caminhos de terra amplos o bastante para a passagem de veículos de médio e
grande porte). Uma vizinhança sem rede de fiação elétrica é mais andeyò do que a outra que
tem luz, assim como a vizinhança que fica a meia hora de distância a pé do ponto mais próximo
onde se tem energia elétrica é menos andeyò do que aquela que fica a uma hora e meia de
distância (o mesmo vale para o termo mòn).

até o tempo em que o livro foi escrito é recheado de menções ao “setor montanhoso”, grosso modo
caracterizado por pequenas propriedades onde uma população resistente à economia (neo)colonial e seus
regimes de trabalho levava uma vida frugal e autônoma.
31
A mesma fusão entre estes dois sentidos de mòn, as mesmas evocações da imagem, foram mobilizadas por
jovens da região que haviam partido para buscar a vida no Chile, e acabaram retornando frustrados ao Haiti.
Eles reclamavam amargamente que “o Chile é um peyi mòn”, expressão que significa tanto “país montanhoso”,
descrição literal da geografia chilena, quanto que as condições em que estiveram alojados neste país eram
ruins, que a busca por trabalhos bem remunerados não foi recompensadora, que passaram por dificuldades
econômicas enquanto estavam lá, que era um país pobre e que a vida lá era sofrida.

65
Usa-se ainda o termo “esclarecido/a” [eklere] como uma ofensa que tem o sentido
contrário de “gente da montanha” [moun mòn]. Embora, ao que tudo indique, a palavra tenha
sido (auto)elogiosa em outro momento histórico, eu presenciei repetidamente seu uso de forma
irônica, como uma categoria de acusação significando algo como “sabichão”. O “esclarecido”
é alguém que se coloca pateticamente numa posição de autoridade moral que não lhe cabe, que
julga como se estivesse acima dos outros, e fica “iluminando” as pessoas, fazendo exigências
que ninguém respeita, e/ou dando conselhos não-solicitados e indesejados. O uso constante
desse termo relembra a todos de que não há garantia que as pessoas nascidas em cidades e que
possuem educação formal também não sejam perfeitos idiotas, cuja opinião não merece ser
levada em conta. Como mostra Labelle (1986), o termo eklere tem ainda fortes ressonâncias
raciais, referindo-se a um tempo em que a elite urbana de pele mais clara se afirmava
“esclarecida”, derivando daí seu direito de governar as massas não-esclarecidas.
Para evitar formas de identificação pejorativas, prefiro não caracterizar esse universo
como “camponês”. Em vez disso, daremos preferência aos termos que a partir dos quais as
pessoas compreendem sua própria situação. A forma de identificação na qual as pessoas se
reconhecem espontaneamente, que poderão usar como auto-descrição em determinados
contextos, mais neutra e descritiva, é “gente da província” [moun pwovens], em contraste com
as “pessoas da cidade” [moun lavil]. Quando usado isolado, o termo para “cidade” [lavil] tem
seu uso restrito, especificamente, a Porto Príncipe, cidade que raramente é chamada por seu
próprio nome (Pòtoprens em crioulo). As maiores aglomerações urbanas próximas, Mirabelais
e Hinche, não são chamadas de “cidades”, mas sim por seus próprios nomes (Mibalè e Ench
em crioulo). De forma análoga, também não costumam chamar a cidade de Santo Domingo
pelo nome – diziam, antes, la capital, reservando o nome Sen Domeng para a RD como um
todo. Viajando nas vans que transportam passageiros pela estrada principal, “a cidade” fica a
pouco mais que três horas de distância desde Belladere, cerca de duas horas e meia desde
Lascahobas. Essa viagem já foi muito mais longa antes da inauguração da nova estrada
principal, construída com dinheiro da cooperação europeia sob o governo de Marthélly
(presidente do Haiti de 2011 a 2017). Esta é, de longe, a principal fonte de elogios a este governo
na região.
Historicamente, no Haiti, a distinção entre campo e cidade remete a divisões cujas
referências são geográficas tanto quanto de classe, articulada à oposição entre “povo” e

66
“elite”.32 Contudo, após décadas de intenso êxodo rural, especialmente rumo a Porto Príncipe,
cuja área metropolitana hoje concentra cerca de um terço da população do país, o Haiti já não
é mais o país de ampla maioria camponesa que foi até o fim do século XX.
Se em algum momento de sua história o campesinato haitiano foi considerado “isolado”
do mundo moderno (como afirmaram Herskovits 1937 e Métraux 1952, entre outros), esse
diagnóstico seria absurdo hoje em dia. Toda família de zona rural tem parentes, amigos e/ou
outras conexões vivendo em Porto Príncipe, na RD e/ou em outros países, as pessoas usam
roupas de marcas internacionais, têm acesso à internet através de telefones celulares,
acompanham notícias políticas e esportivas do mundo, comem comida importada, e todos –
mesmo as crianças – conhecem pelo menos três moedas nacionais (gourde haitiano, peso
dominicano e o dólar dos Estados Unidos). As pessoas engajadas no comércio, em particular,
costumam viver em trânsito constante entre interiores mais ermos e mercados urbanos. Com
grande variabilidade de rotas, são as principais responsáveis pela distribuição de mercadorias
que conecta sendeiros e estradas. Como consequência, na vizinhança, muitas das mulheres
conhecem “a cidade” e dominam seus costumes melhor do que os homens, embora isso não
seja, obviamente, uma necessidade.33

Organização da tese
Na introdução, revisei parte da literatura a respeito do “sistema haitiano de mercados” e
da história da fronteira dominico-haitiana para oferecer um panorama mais amplo, o contexto
dentro do qual se inserem os relatos etnográficos nos capítulos a seguir.
O primeiro capítulo começa apresentando as duas personagens principais da tese, Jaklin
e Madame Dodo. O que narro de suas trajetórias nesse capítulo diz respeito especificamente ao
universo do ti komès, do circuito de alimentos básicos para consumo interno, e popular, no
Haiti. Seguindo o fio dessa narrativa, serão desenvolvidos dois argumentos principais. O
primeiro é que a atividade comercial tal como praticada no Haiti rural ao mesmo tempo cria e
depende de uma série de relações interpessoais, e que suas condições de possibilidade estão

32
James Leyburn [1941] escreveu um livro clássico sobre o Haiti que tem como tema principal o abismo entre
campo e cidade, tão profundo para o autor que ele chegou a afirmar se tratar de uma sociedade de castas.
33
Sempre pautado pela divisão de gênero entre agricultura masculina e comércio feminino, Mintz (1964:284)
afirma que devido à natureza de cada uma dessas atividades, as mulheres comerciantes costumam ser mais
espirituosas, rápidas nas respostas, criativas e destemidas que seus maridos. Bastien (1985 [1951]:127)
desenvolve o mesmo argumento, afirmando que com frequências as mulheres camponesas são “mais
inteligentes” que seus maridos por conta da atividade comercial e das viagens à cidade.

67
diretamente relacionadas com o estabelecimento e manutenção dessas relações. Partindo das
reflexões de Sidney Mintz sobre a importância das relações de pratik para o sistema haitiano
de mercados, discutirei até que ponto o sistema de comércio interno haitiano se apoia em
relações um-a-um. A imbricação entre parcerias comerciais (que podem por vezes se colocar
em termos de disputa) e afetos personalizados dá densidade a essas relações carregadas de
ambiguidade. O conceito de lizay, bastante utilizado pelas interlocutoras da pesquisa, será
explorado no intuito dar inteligibilidade às reflexões dos atores sobre os códigos que regem tais
relações e nos permitirá transitar entre relações de diferentes ordens. O segundo argumento diz
respeito ao que é possível “fazer” (expressão usada no sentido de ganhar, lucrar) no circuito de
comércio interno haitiano. Dentro da complexa cadeia de distribuição de bens, a posição de
Madame Dodo, em destaque no capítulo, pode ser considerada uma das mais frágeis, por seu
baixo nível de capitalização, sua dependência de empréstimos tanto em dinheiro quanto em
mercadoria, e suas pequenas margens de lucro. Diferentes embalagens (como garrafas de
plástico, garrafas de vidro no formato long neck, galões, sacos e potes) são usadas ora como
unidade de medida, ora como containers (função que Mintz 1961 descreve como storage and
shipping devices). A passagem entre diferentes ordens de grandeza é uma conversão na qual as
machann são especialistas, uma vez que é do processo de reunir e desmembrar seus estoques
que elas tiram seu lucro. Com frequência, elas calculam o quanto fazem mais em termos de
volume do que de dinheiro (ou fazem ambas as contas, separadamente, caso tenham recebido
adiantamentos paralelos em mercadorias e em dinheiro). Veremos ainda como essas unidades
de conta – recipientes não como um conceito abstrato, mas em sua forma física – também
participam de um universo moral onde se negociam os limites entre lucros lícitos e o que é
percebido como fraude.
No capítulo seguinte, passaremos a outro circuito – aquele do contrabando, atravessando
a fronteira. Começaremos no período em que houve uma abertura significativa da fronteira, no
período entre a queda de Jean-Claude Duvalier (1986) e a dissolução do exército haitiano
(1994). Esses anos são lembrados na vizinhança como os tempos áureos do contrabando.
Veremos primeiro Madame Jaklin como um tipo de funcionária terceirizada de sua sogra, uma
importante contrabandista, e depois o comércio feito por ela de forma independente, quando
começou a comercializar pèpè. A ênfase estará na expertise necessária para cruzar e fazer suas
mercadorias cruzarem a fronteira, bem como para navegar em solo dominicano. Tomo como
objeto da etnografia um corpo de conhecimento dos caminhos e dos agentes que podem
facilitar, dificultar ou impedir a passagem, dos ritmos do comércio, avaliações sobre onde e

68
quando é melhor comprar e na mão de quem, onde e quando vender. A descrição terá três focos
principais: 1) estradas e caminhos [wout] por onde elas se movimentam, os meios de transporte
específicos a cada tipo de caminho, e o que é possível levar por cada rota; 2) as relações com
as pessoas e instituições que favorecem ou impedem os deslocamentos, e; 3) concepções a
respeito da abertura, amarração e bloqueio de caminhos, que possuem ressonâncias com temas
mágico-religiosos. A fronteira aparece como um umbral, que leva a perguntar que conversões
se operam na passagem de um lado para o outro, por exemplo uma mercadoria que vale “X”
em gourdes se converte numa que vale “Y” em pesos dominicanos, mercadorias lícitas em
contrabando, de cidadãos em invasores ilegais, entre tantas outras. Existem parcerias para
atravessar produtos de um país ao outro. Há ainda um intenso compartilhamento de informações
sobre os caminhos, desde um bloqueio na estrada até as condições de visto em diferentes países,
formas de chegar tanto no sentido de quais caminhos tomar, e por quais meios, quanto no
sentido de com que postura e aparência se deve chegar.
O terceiro capítulo tem como foco o impacto da atuação religiosa (cristã, protestante) das
duas personagens principais nas suas atividades comerciais. Veremos algumas características
mais gerais do protestantismo popular praticada na área da pesquisa. Há distintas forças
espirituais e místicas em jogo, e as pessoas se preparam para enfrentar ações de diferentes seres
que pertencem ao reino místico [mystik]. Existem seres humanos e não-humanos que abrem e
fecham caminhos. Dentre estes, o principal é “Deus” [Bondye]. Deus aparece dotado de uma
potência infinita para abrir e para fechar caminhos. Mais que isso, tanto em contextos de culto
e em orações quanto em conversas cotidianas, uma enorme parte das falas sobre Deus exploram
metáforas em torno da abertura de passagens e caminhos, como se esse tema tivesse uma
importância teológica central. Deus, tão libertador quanto punitivo, coexiste com uma multidão
de outros seres (djab, baka, pwen, lwa) que também podem bloquear/abrir caminhos. A bíblia
possui uma agência própria, capaz de pautar muitas ações das pessoas, e é assim que elas se
referem a ela: “a bíblia quer que você faça tal coisa”, “a bíblia não gosta que você faça tal
outra”. Dentro da bíblia, o livro dos Salmos [Sòm Yo] em especial é tido como o mais poderoso.
As duas formas mais importantes de comunicação com Bondye são a bíblia e os sonhos tidos
após preces noturnas. Veremos que tipo de eficácia é atribuída às orações e aos sonhos. Teremos
assim elementos para adentrar uma economia moral específica, onde tanto o dinheiro quanto
outros recursos (animais, árvores ou objetos) podem tanto ter um estatuto abençoado quanto
amaldiçoado, atraindo para o seu dono, no futuro, as consequências de ações passadas. Como
veremos, operam aqui noções de causalidade particulares.

69
O quarto e último capítulo tem como tema redes de relacionalidade em que estão inseridas
as personagens para além do comércio. Para elas, as principais são, em ordem de importância,
as de parentesco (onde o sangue [san] é uma metáfora mestra que se estende além e aquém dos
consanguíneos stricto sensu), de conjugalidade (o sexo também mistura o sangue), e de
vizinhança/amizade. Especial atenção será dedicada à posição que ocupam as trocas
econômicas nas relações de proximidade, nas demonstrações de afetos e de reconhecimento.
Enquanto o capital investido no comércio é gerido individualmente por cada machann, quando
se trata de gastá-lo, não em novos estoques, mas em bens para consumo próprio, é quase sempre
gasto coletivamente. Significativamente, na fala local, as pessoas dizem menos “gastar”, e mais
“comer” o dinheiro (o que não significa que tenha sido gasto necessariamente em comida, pode-
se dizer que foi “comido” um dinheiro gasto em qualquer item que seja para consumo próprio).
A casa é uma unidade de análise fundamental para que se compreenda esse consumo coletivo,
com atenção especial ao consumo de comida, que será vista junto ao sistema de
compartilhamento de outros bens, como roupas, telefones e motos. É impossível compreender
a busca pela vida sem que se compreenda os regimes de compartilhamento de recursos e de
substância (em especial comida e sangue). Na concepção de vida em jogo aqui, a vida faz pouco
sentido se tomada isoladamente. A vida que faz por merecer seu nome está inextrincavelmente
entrelaçada com outras vidas, as pessoas fazem parte umas das outras. Mas não quaisquer
pessoas. Exploraremos quais recursos (não) se compartilham com quem, como se garante um
compartilhamento desejado, e o que se faz para prevenir um indesejado.
Nas considerações finais, as questões mais substanciais abordadas ao longo da tese serão
retomadas, apontando conexões entre elas e alguns desenvolvimentos possíveis que ficaram em
estado latente. A trajetória de Jaklin, nossa principal personagem chega ao seu fechamento com
a descrição de providências que ela e seu marido estão tomando em vida para preparar suas
futuras mortes.

70
1 A FORMAÇÃO DE DUAS MACHANN
Neste capítulo, apresentarei duas comerciantes cujas trajetórias serão seguidas no intuito
de fornecer um fio à narrativa que nos permita articular dois argumentos. O primeiro é que a
atividade comercial tal como praticada no Haiti rural ao mesmo tempo cria e depende de uma
série de relações interpessoais, e que suas condições de possibilidade estão diretamente
relacionadas ao estabelecimento e manutenção dessas relações. A imbricação entre parcerias
comerciais (que podem por vezes se colocar em termos de disputa) e afetos personalizados dá
densidade a essas relações e também as carrega de ambiguidades. O conceito de lizay, bastante
utilizado pelas interlocutoras da pesquisa, será explorado para dar inteligibilidade às reflexões
dos atores sobre os códigos que regem tais relações.
O segundo argumento é que as comerciantes são especialistas na conversão entre
diferentes escalas de grandeza e de valores. O tema diz respeito ao que é possível “fazer”
(expressão que neste contexto tem o sentido de ganhar, lucrar) no circuito de comércio interno
haitiano. Dentro da complexa cadeia de movimentação de bens, a posição em destaque no
capítulo está entre as mais frágeis, por seu baixo nível de capitalização, sua dependência de
empréstimos tanto em dinheiro quanto em mercadoria, e suas pequenas margens de lucro.
Veremos como as pessoas pensam essas margens, suas reflexões a respeito da formação de
preços, com atenção aos recipientes concretos que definem unidades de medida e métodos de
cálculo correspondentes. As propriedades materiais de cada tipo de mercadoria são relevantes.
Essa análise apontará, ainda, dilemas morais a respeito dos limites entre o lucro lícito e a fraude.

Introduzindo Madame Dodo.


O nome próprio de Madame Dodo é Woslene, mas eu só descobri isso num contexto de
entrevista mais formal, nunca presenciei ninguém chamando-a assim. É comum no Haiti que
as mulheres casadas sejam chamadas pelo nome de seus maridos, precedidos pelo termo
“madame”, tipo de nomeação que responde a regras de etiqueta (ver Lowenthal 1987).34

34
Dou preferência a esse nome aqui porque era assim que todos a chamavam, enquanto Jaklin, por outro lado,
apenas muito raramente era chamada de “Madame DuCas”. Não estou seguro sobre o que motiva essa
diferença a ponto de tornar isso um argumento no corpo do texto, porque em um caso o título formal e educado
que reduz a mulher ao homem é usado e não no outro. Noto apenas que habitualmente existe uma pluralidade
de nomes para cada pessoa, tanto com apelidos jocosos quanto com diferentes nomes próprios, não
relacionados entre si, mas usados para um mesmo indivíduo. Por exemplo, um rapaz que era sempre chamado
pelo apelido de Tèt Long [“cabeção”], mas cujo nome era Cleomèt. Ao me deparar com seus documentos,
descobri que seu nome nos registros oficiais é Lionel. Creio que isso não justifica considerar esse como o seu

71
Quando eu a conheci, Madame Dodo me foi apresentada por Jacqueline como sua comadre
[komè], amiga e “missionária” [dame misyonè]. Sabendo que ela ia sempre aos mercados de
Belladere e Kwa Fè, eu comecei a acompanhá-la três vezes por semana, passando parte do dia
sentado perto dela nos dias desses mercados (às quartas e sábados o primeiro, às quintas o
segundo).
Madame Dodo nasceu em Kwa Fè. Sua mãe, Fifi, morreu quando Madame Dodo tinha
apenas três anos de idade. Como não guarda memórias dela, considera que não chegou a
conhecê-la. As lembranças de seu pai são mais palpáveis. Ele ganhava a vida fazendo e
consertando sapatos, se chamava Ti Ramon, e seu pai, avô de Madame Dodo, era dominicano.35
Ela ignora quando seu avô cruzou a fronteira para o Haiti, mas sabe que ele já estava
estabelecido no Haiti quando seu pai nasceu.
Madame Dodo provavelmente nasceu por volta de 1955-1960. Como quase todas as
pessoas de sua faixa etária, ela ignora tanto o dia de seu aniversário quanto sua idade precisa.36
Ela foi a primeira das cinco crianças que tiveram Ti Ramon como pai.
Assim como seu avô paterno, várias pessoas naquelas vizinhanças fronteiriças são
descendentes de dominicanos. Pela faixa etária dos descendentes e pela natureza dos laços
genealógicos (geralmente de segunda ou terceira geração), podemos estimar que essa migração
da RD para o Haiti se deu de forma mais intensa entre as décadas de 1920-1950. Hoje em dia,
ao contrário, são raros os dominicanos que se aventuram a entrar mais que uma centena de
metros no Haiti, e menos ainda aqueles que se mudam de vez e criam famílias.37
Parece fácil suspeitar que esse fluxo no sentido RD-Haiti tenha sido composto pela
população negra de origem presumida haitiana que o governo de Trujillo decidiu expulsar da

“nome verdadeiro”, uma vez que ninguém o chama assim. Em todo caso, essa pluralidade de nomes não é
incomum.
35
No crioulo haitiano, a palavra ti significa pequeno. Quando usada como prefixo, forma o diminutivo. Podemos
traduzir o apelido pelo qual o pai de Woslene era mais conhecido como “Ramonzinho”.
36
Jaklin é cerca de dez anos mais nova que Madame Dodo. Nos quatro documentos que ela mostrou que
continham a informação da sua data de nascimento, nenhuma data se repetia, mudavam tanto os dias e meses
(e nenhuma das quatro datas registradas coincidia com o dia que ela afirmou ser seu aniversário) quanto os
anos, que iam de 1965 a 1972. Em uma oportunidade, ela me disse acreditar que o ano correto de seu
nascimento foi 1968, em outra afirmou ter nascido em 1970. Diferente de Jaklin, quando eu perguntei a
Madame Dodo a sua idade, ela logo dispensou o assunto respondendo com uma risada “não sei”, me
convencendo (intencionalmente ou não) de que essa informação não era lá muito relevante, e só um blan
ignorante como eu perguntaria isso.
37
Em todos os casais binacionais contemporâneos que conheci, a configuração era a mesma: a mulher haitiana,
o homem dominicano, e ou a mulher foi viver com o homem na RD, ou o dominicano sustentava sua
companheira haitiana à distância, visitando-a de tempos em tempos numa casa situada sobre a linha fronteiriça,
arranjo que costuma ocorrer quando o homem também tem uma esposa dominicana e a mulher haitiana não é
a companheira principal, oficial.

72
RD. Sem dúvida a região recebeu parte do fluxo de refugiados criados pelo massacre de 1937.
Contudo, outras evidências apontam que pelo menos alguns dos dominicanos que vieram buscar
refúgio no Haiti eram fenotipicamente brancos, e escolheram sair da RD e viver no Haiti não
por terem sido alvos diretos da perseguição xenófoba e racista, mas por outros motivos que
desconhecemos.
Alguns dos descendentes de dominicanos que habitam a fronteira possuem a pele
consideravelmente mais clara do que a média haitiana, como Dèdè, um dos senhores mais
velhos da região, filho de pai dominicano (ele não sabe a própria idade, mas muito
provavelmente já passou dos 70 anos, talvez já tenha chegado aos 80). Levando-se em conta
apenas sua cor e seus traços, ele poderia não ser considerado negro nem no sistema de
classificação racial dominicano, nem no haitiano – mas na verdade, nesse caso, tais
características fenotípicas importam pouco ou nada. Por seu modo de falar, em bom crioulo
haitiano, por suas roupas, trejeitos e costumes, além de seu círculo de amizades e conhecidos,
Dèdè é reconhecido inequivocamente como um senhor haitiano.
Para Madame Dodo, ser neta de um dominicano não faz diferença de um ponto de vista
prático. Ela nunca teve contato com a família do seu avô do outro lado da fronteira, quase nada
sabe sobre eles (sem dúvida as chances de que esse desconhecimento seja recíproco são
enormes). Além disso, ela entende pouquíssimas palavras em espanhol.
A desconexão é ainda maior pelo fato de que Ti Ramon morreu quando ela tinha apenas
sete anos idade. Ela teve ao todo quatro irmãos, dos quais três morreram cedo. Ela evitava entrar
no assunto, mas disse mais de uma vez, casualmente, que foi um diabo que os comeu, e que se
ela não tivesse se convertido ao protestantismo, certamente teria sido comida também e já não
estaria entre os vivos. Mas ela se converteu desde criança, e isso, segundo ela, salvou a sua
vida. (Na ocasião em que a gravei tocando nesse assunto, após repetir o que está escrito acima,
ela remendou na sequência “não, isso é besteira, os diabos não comem gente de verdade”,
mudando de assunto imediatamente depois.)
Muito mais relevante que sua ascendência dominicana era o fato de ser uma criança sem
mãe e sem pai. Madame Dodo não tinha “gente velha” [granmoun] com ela, ficou sem “gente
atrás de si” [moun deyé-l]. Assim a pequena órfã foi criada entre diferentes casas, contando com
a boa vontade de vizinhos. Quando ela tinha doze anos de idade, um jovem chamado Dodo,
quase dez anos mais velho, disse que ia tomar conta dela, e ela foi viver com ele. Logo
engravidou, e pouco depois de parir seu primeiro filho engravidou outra vez, e pouco depois
mais uma. Depois de dar à luz seu terceiro filho, Woslene e Dodo se casaram na igreja. No

73
mesmo ritmo, continuaram tendo novos filhos, muitos filhos. Woslene teve ao todo 18, “todos
eles de Dodo”, como ela gostava de frisar.
Jaklin a conhece desde criança. Dodo ajudava o pai de Jaklin a trabalhar as terras dele, e
quando havia tarefas que demandavam dias consecutivos de serviço, eles ficavam para dormir.
Em certo ponto, o casal Woslene-Dodo chegou a morar um tempo de favor numa pequena parte
da casa dos pais de Jaklin (fora da casa principal onde dormia a família, em uma estrutura
externa, de construção precária, incapaz de barrar chuvas fortes). Ela disse que, quando criança,
sentia pena do casal, “porque eles eram muito pobres”.
Sempre bem-humorada e risonha, Madame Dodo nunca me contou muito das dificuldades
que enfrentou na vida. Foi por Jaklin que eu soube que, quando jovens, o casal continuou
morando de favor entre diferentes casas, que muitas vezes não conseguiam ter o bastante para

8 Madame Dodo.
Foto: Juliane Peixoto.

74
alimentar seus filhos, que dependiam da boa vontade de vizinhos. Em uma das longas conversas
que tínhamos em sua varanda, Jaklin me contou da ocasião em que todos os seis filhos (‘apenas’
seis já eram nascidos na ocasião) de Madame Dodo ficaram doentes ao mesmo tempo. Um deles
faleceu num dia, e outro morreu no dia seguinte. “Você sabe o que é isso, perder um filho num
dia, perder outro no dia seguinte, e ver os que restaram ainda doentes, sem saber se a morte
também virá buscá-los amanhã? Você não faz ideia!”, me disse Jaklin. Madame Dodo enfrentou
esse desespero buscando toda ajuda possível, tanto médica quanto espiritual, e conseguiu salvar
as outras crianças dessa “febre” [fyèv]. Outras crianças vieram, e outras dificuldades também.
Hoje, ela já enterrou cinco de seus filhos. Os outros treze estão vivos.
Ela tornou-se mãe cedo, mas antes disso, passou pela experiência de ser uma criança sem
adultos responsáveis por ela. Nesse ambiente, o destino de uma criança órfã depende, em boa
medida, do seu temperamento e comportamento. Uma criança que não demonstre respeito pelos
adultos e não obedeça às suas ordens não será tolerada por muito tempo. Desde muito cedo,
Madame Dodo precisou ter lizay, conceito importante e complexo, empregado com frequência,
ao qual dedicaremos uma atenção mais demorada.

Lizay
O dicionário Vilsen dá a seguinte definição: “Lizaj. n. : mannyè, fason. Timoun ki malelve
konsa yo andire fanmi yo pat bayo lizaj.” (Tradução livre: Lizaj : maneira, modo. “Essas
crianças são tão mal-educadas que parece que a família delas não lhes deu lizaj.”)38 Seguindo
essa definição, a tradução literal seria algo como “(bons) modos”, “(boas) maneiras”,
“educação”, “polidez”. É uma primeira pista para começar a delinear o conceito, mas ainda é
pouco para nos fazer compreender os sentidos em que ele é usado.
Trata-se de uma habilidade essencialmente oral e dialógica, uma forma de dirigir-se aos
outros. No contexto diretamente relacionado ao comércio (como algo necessário à atividade),
Jaklin me explicou a ideia de lizay como a arte de falar bem com as pessoas, ser respeitosa, não-
invasiva, mas ao mesmo tempo transmitir entusiasmo, saber saudar as pessoas [salye], ou ainda
“ter a boca doce” [bouch dous]. Conforme definiu outra interlocutora, “lizay é a capacidade de
falar com as outras pessoas de uma forma que elas gostem de você”.

38
No dicionário, não consta a palavra lizay, que é como ela é pronunciada na zona da pesquisa. Apesar da
diferença, acredito que se trate da mesma palavra. Por via das dúvidas, adotei no texto a grafia que reproduz
de forma mais exata como a palavra é dita por minhas/meus interlocutores/as.

75
Partindo daí, poderíamos sugerir paralelos entre as ideias de lizay e de “simpatia”. O
sentido corriqueiro do adjetivo “simpático” recobre parcialmente o que significa ter lizay. Uma
pessoa sociável e alegre, mas que fale muito de si mesma e escute pouco aos outros, dando
pouca importância àquilo que não lhe diz respeito diretamente, não tem lizay. Ainda que sorrir
não faça mal, é plenamente possível ter muitíssima lizay mantendo o semblante sempre sério,
sem um único sorriso. Lizay é como uma forma específica de ser gentil e agradável, uma
gentileza que consiste, principalmente, no reconhecimento do outro, de sua posição, de suas
necessidades e dificuldades, ao mesmo tempo em que se transmite com sucesso ao outro as suas
próprias necessidades e dificuldades, de tal forma que ele também entenda o seu ponto e
reconheça a sua posição.
Citemos um pequeno incidente para tornar a ideia mais inteligível. Certo dia, Widlin (a
mãe de Judni) chegou à casa de Jaklin pedindo para ficar lá por uns dias. Ela saiu fugida da
moradia que compartilhava com seu (ex) namorado, Ti Dok, que vinha a agredindo fisicamente.
Ela veio trazendo seu filho menor, uma criança de dois ou três anos.39
Ti Dòk descobrira que Widlin se refugiara na casa de Jaklin, e avisou que viria buscá-la.
Essa visita era aguardada com ansiedade pelos membros da casa, uma vez que Ti Dòk tinha
fama de “bandido” [bandi], e ninguém sabia como ele iria se portar. Ele vivia em Elias Piña,
onde causara alguns problemas, dando origem à cicatriz que marca seu rosto. Corria a história
de que ele lutara contra um chèf dominicano (a palavra chèf designa tanto militares quanto
policiais), em quem deu socos e tapas na cara, rasgando, ainda, o uniforme dele. Ele foi pego
mas não o mataram porque, segundo as pessoas que compartilhavam essa história na casa de
Jak, os dominicanos podem dar uma boa surra mas não matam os homens valentes [vayan, ou
michan], “eles respeitam a valentia”. Ti Dòk vivia agora em uma vizinhança de Belladere, onde

39
Sua filha mais velha, Judni, que tinha então cerca de 8 anos, foi “dada” a Jaklin e mora com ela desde bebê.
Judni veio em definitivo, ao contrário de Sonia, que foi “emprestada” por seu pai há cerca de 7 anos. Jaklin
afirma tratar Judni como uma filha, embora algumas evidências –como o fato de que, ao contrário de todos os
sete filhos biológicos, ela não receberá herança alguma– possam colocar em dúvida essa afirmação. Já no caso
de Sonia, seu status de criança “emprestada” ganhou relevância quando ela chegou à adolescência, e o tema
de sua “devolução” (após ela ter passado 7 dos seus 13 anos sob o teto de Jaklin) se tornou um tema frequente
de conversas. O ponto é que se Sonia engravidasse sob os domínios de Jaklin, ela também seria parcialmente
responsável pelo bebê, algo que afirmava não poder assumir, por isso queria devolvê-la logo antes de correr
esse risco. A própria Sonia se colocou de forma veemente contra a devolução, pedindo para ficar em Lakanyit.
Pelo menos enquanto eu estava lá, ela teve sucesso em adiar sua partida. Embora não possamos desenvolver
o tema aqui, essa nota traz indícios a respeito da intensa circulação de crianças entre diferentes casos, que
pode acontecer tanto por iniciativa dos adultos responsáveis quanto por iniciativa das próprias crianças. A
própria Madame Dodo experimentou essa circulação em sua infância.

76
está embasado o seu grupo [baz], composto também por outros bandidos.40 Há rumores de que
há gente grande por trás deles, em especial o ex-candidato a deputado Luther King, que seria o
financiador de parte das atividades do grupo e o mandante de alguns de seus crimes, como o
incêndio em que morreram dois médicos, nos distúrbios pré-eleitorais de 2011.
Ti Dòk chegou de manhã cedo. Veio sozinho, o que foi compreendido como um gesto de
boa vontade. Ele se apresentou, pediu licença para entrar, e dirigiu-se apenas à dona da casa.
Conversou o tempo inteiro com Jaklin, com reiteradas manifestações de respeito por ela e pela
casa dela.41 Ele se colocava de forma a reconhecer a autoridade dela, uma vez que ele estava
sendo recebido em seus domínios. Widlin estava presente, mas apenas escutava a conversa, sem
dizer palavra. Ti Dòk chamava Jaklin de “mamãe”, agradecia a ela por ter recebido Widlin,
dizendo entender o lado dela em querer proteger sua amiga, conjeturando a respeito das coisas
que Widlin poderia ter dito a respeito dele, mas que toda história tem dois lados, sugerindo que
ela também considerasse a versão dele. Argumentou a respeito das dificuldades do casal, de
circunstâncias particulares que levaram sua namorada a perder a paciência com ele, contou que
ela também o agredira, que chegara a puxar uma faca para ele em uma briga causada pelos
ciúmes que ela sentia dele, e no calor da situação ele também perdera a cabeça, além do que
não seria viável, para um homem na posição dele, apanhar de uma mulher na frente dos seus
comparsas dos quais ele era o líder. Discorreu também em termos mais genéricos e abstratos
sobre as dificuldades da vida em casal, e o quanto o amor necessita de esforço e compreensão.
Disse ainda que embora Widlin estivesse com a “cabeça quente” [tèt cho], as coisas seriam
melhores em sua volta, que ela era a namorada dele e que o lugar dela era ao lado dele, o que a
própria Widlin reconheceria em breve, assim que a poeira baixasse.
Dentro da casa, enquanto Ti Dòk esperava pela decisão do lado de fora, Widlin disse a
Jak: “por favor, madrinha, não me mande de volta para ele, você não sabe a miséria que eu vou
passar se eu voltar para lá”, ao que Jak respondeu “meu bebê, você não sabe a miséria em que
você vai me meter se você não for.” Widlin acabou indo com Ti Dòk, mas não trouxe suas

40
Baz é um conceito complexo, que pode significar inofensivamente algo como “turma”, “grupo”, pode
significar “gangue” quando associado a contextos criminais, pode significar a base eleitoral de um
determinado candidato em tempos de campanha política, assim como pode designar um local, um ponto onde
determinadas pessoas costumam se reunir. Este conceito é melhor descrito e analisado no contexto de Porto
Príncipe em Braum (2014, 2018) e Neiburg (2016).
41
O termo “respeito” [respè] está relacionado, mas são conceitos que não se confundem. Uma saudação padrão
quando uma pessoa visita outra é dizer onè [“honra”], como uma forma de se anunciar, ao aguardo de que
alguém dentro da casa responda respé, palavra que nesse contexto funciona como um “pode entrar”. Respè é
muito usado como adjetivo para qualificar ações (p. ex., como derespektan [“desrespeitoso/a”]), mas é como
se se tratasse de um pré-requisito mínimo. É obrigatório, digamos, respeitar pai e mãe, e nada garante que uma
pessoa que faça esse mínimo seja por isso uma pessoa agradável, tal como quem tem lizay.

77
coisas, deixou a sacola com suas roupas. Jaklin não permitiu que Widlin permanecesse porque
não queria de jeito nenhum ter aquele bandido com seus amigos rondando a sua casa, mas
propôs um plano de fuga. Como ela não podia ficar lá, uma vez que Ti Dòk já conhecia seu
paradeiro, Jaklin a levaria para a casa de sua irmã Darline, em Carrizal, onde ela ficaria
escondida por alguns dias, até que Jaklin viesse buscá-la trazendo seus pertences para levá-la
até Las Matas de Farfán (RD), onde lhe arranjaria um emprego e moradia com a sua filha Yvlin,
que estava prestes a parir um bebê, a quem Widlin poderia ajudar.
Contudo, Widlin não aguentou nem mais um dia perto de Ti Dòk, e foi embora de novo
já no dia seguinte. Ti Dòk, então, ligou para Jak, perguntando do paradeiro de Widlin. Jak foi
muito simpática com ele, dizendo que não fazia ideia (o que ela teria dito de toda forma, mas
que nesse caso era verdade), e após desligar lamentou que ela não tenha tido paciência para
seguir com o plano, temendo que a sua precipitação acabasse deixando-a em um lugar menos
seguro e do qual logo teria que fugir novamente.
Nesse incidente, o fato mais marcante para mim foi a forma como, em meio a negociações
altamente tensas, tanto Jaklin quanto Ti Dòk – duas pessoas que jamais haviam se visto antes –
falavam entre si de forma bastante carinhosa, como se se gostassem muito. Não resta dúvida de
que Ti Dòk era considerado uma pessoa desprezível por Jak e sua família, que jamais desejaria
manter qualquer tipo de contato com ele (desprezo que bem pode ter sido recíproco).
Contudo, assim que Ti Dòk foi embora, o comentário geral da impressão causada por ele
era de que ele tinha muita, mas muita lizay. Por mais que se tratasse de uma figura por quem
sentiam aversão e de quem desejavam apenas distância, todos reconheceram prontamente essa
qualidade em Ti Dòk. Ele tratara todo mundo bem, demonstrou respeito o tempo inteiro, e
conseguiu o que queria como se fosse de bom grado, sem que ninguém demonstrasse
abertamente qualquer desgosto com o desfecho. Sem que tivesse feito uma única ameaça, Ti
Dòk deixou Jak numa posição em que não lhe restava nada a fazer exceto ceder, o que ela fez
com um sorriso no rosto, ao mesmo tempo em que, internamente, tentava tramar formas de
livrar Widlin daquele homem em definitivo.
O incidente é esclarecedor para mostrar como ter lizay é também uma questão um domínio
dos códigos, do idioma, que permite, àqueles que a têm, colocar suas necessidades e demandas
de forma que elas encontrem a menor resistência possível. É algo capaz de transformar
situações de potencial antagonismo num convencimento que passa por consenso suave, sem

78
embate. Lizay é, portanto, algo que se tem, que se pode ter mais, ter menos, ou não ter
nenhuma.42 É sempre como crítica que se afirma que tal pessoa não tem lizay.
Citemos ainda mais um caso, que dessa vez ilumina em que consiste a falta de lizay. Tina,
sobrinha de Jaklin que faz comércio no Haiti e através da fronteira, vinha há alguns meses
trazendo cerveja, rum e cigarros contrabandeados para vender na RD. Ela costumava fazê-lo
em várias viagens, num sucessivo entra-e-sai, trazendo um pouco de cada vez, ocultando maços
de cigarro e pequenas garrafas de rum debaixo de suas roupas. Em cada viagem, ela conseguia
trazer ocultas pelo menos oito pequenas garrafas de rum, e um número bem maior de pacotes
de cigarros. Ambos os itens são relativamente caros. Uma garrafa de rum Barbancourt três
estrelas era vendida no Haiti por algo entre 15 e 18 dolà (o preço teve aumento durante o tempo
em que estive lá), enquanto um pacote de cigarro da marca “Comme Il Faut” valia em torno de
30 dolà, preços que quase duplicavam uma vez que fossem vendidos em pesos do outro lado
da fronteira.
Tina as levava para a casa de uma amiga, juntava uma boa quantidade para vender tudo
de uma vez a um revendedor dominicano, o que para ela era mais seguro do que vender a varejo
nas ruas de Elias Piña. Certo dia, dois guardas da CESFRONT (sigla para Cuerpo Especializado
en Seguridad Fronteriza Terrestre, um corpo de militares do exército dominicano cuja
especificidade é autoexplicativa) a seguiram até a frente da casa usada como depósito, quando
a abordaram e revistaram. Pega em flagrante, ela teve apreendidas não só as mercadorias que
estavam em seu corpo, como também aquelas trazidas previamente. O prejuízo foi violento – a
carga perdida valia mais de 3.500 dolà (equivalente a quase U$ 300 na cotação da época). Para
uma comerciante como Tina, cujas condições financeiras eram bastante precárias, foi um golpe
duríssimo.
Ao mesmo tempo em que se compadeceram do triste ocorrido, diversas pessoas opinavam
que o infortúnio era, pelo menos em parte, culpa da própria Tina. Ela sempre reclamava que os
guardas dominicanos eram ladrões – até aí, uma opinião amplamente compartilhada. Contudo,
a grande maioria das comerciantes que trazia contrabando para a RD reconhecia a necessidade
de agradar esses guardas, de “ajudá-los”, o que se fazia com pequenos subornos (a quantia
padrão era de 100 pesos, mas dependendo do volume de mercadorias, era prudente dar
“presentes” [kado] melhores). Tina não queria saber, ela era pobre, passava necessidade com

42
Diferente de uma palavra como “simpatia”, que na língua portuguesa é atribuído a sujeitos na forma de adjetivo
(“simpático/a”), no crioulo haitiano não se usa lizay em forma de adjetivo, mas sim acoplado ao verbo “ter”.

79
seus filhos, precisava de dinheiro, e não se sentia devendo nada a esses “ladrões”. Essa foi a
versão que Jaklin me contou do ocorrido:
“Tina passava todas as semanas pelos guardas na fronteira sem nunca dar dinheiro a
eles, nunca, nada. Ela não pensa que eles também têm família, têm seus gastos, não quer ver
o lado deles nem contribuir com nada, só reclama que eles são ladrões, que não deve nada a
eles... Agora, veja você, com vinte dolà hoje, dez dolà na semana que vem, ela teria evitado
isso, mas, por um orgulho idiota, tomou um prejuízo muito maior.”
“Mas os guardas que encontraram o contrabando dela não o teriam confiscado de
qualquer jeito?”, eu perguntei.
“Claro que não! Eles sabem quem traz contrabando, se nos deixam passar é porque
escolheram nos deixar passar... Foi um rapaz chamado Montero, ele se irritou com ela por
nunca dar nada e se vingou. Ele não foi atrás dela ele mesmo, ele esperou um momento fora
do turno dele, só passou a informação a dois guardas que vieram da capital, mandou-os para
revistarem ela, e deu no que deu... Tina não tem lizay”, lamentou Jaklin.

Como seria estranho considerar que é uma falta de educação não oferecer, por
iniciativa própria, subornos periódicos a militares, fica claro como a lizay se diferencia de
traduções diretas como “polidez” ou “educação”, ela implica uma percepção das
necessidades alheias, o reconhecimento do lugar ocupado pelo outro com quem é preciso
lidar, bem como o reconhecimento de que caso esse outro se sinta desconsiderado e
desrespeitado, ele pode te fazer mal, pode dificultar o seu caminho. Reciprocamente,
implica também a habilidade de fazer com que o outro sinta a necessidade de perceber,
reconhecer e respeitar o seu lugar.
Um último comentário. Em uma conversa entre vizinhos, Dandynio contava de um
rapaz que andava por aí levando um violão consigo, que cantava bem e era sociável e
agradável, ia fazendo amigos pelo caminho. Dandynio se divertia contando como as pessoas
ficavam sempre felizes em oferecer comida e abrigo para esse rapaz, dando a entender que
ele mesmo o considerava um tipo de espertalhão. Logo a conversa se tornou sobre como
quem não tem dinheiro mas tem lizay acaba sempre se virando bem. Evens concluiu que a
“se você não tem nada, mas tem lizay, para tudo se encontra um jeito... lizay abre todas as
portas.”
Assim, o conceito de lizay articula um tipo de teoria nativa da diplomacia, etiquetas
de respeito que são também eficazes como medidas de proteção (o que não invalida o fato

80
de que, mais que um mero epifenômeno do potencial de ameaça que as pessoas representam
umas às outras, o respeito é um valor em si).43

De volta a Madame Dodo


Embora seja útil para qualquer pessoa, a lizay é mais indispensável àqueles que estão numa
posição mais frágil. Na zona da pesquisa, é difícil conceber uma posição mais frágil do que a
de uma criança sem contato com familiares vivos.44 Como órfã de pai e mãe desde os sete anos
de idade, a pequena Woslene precisava que os adultos ao seu redor a tivessem em boa conta,
ter lizay para com as pessoas que a receberam em suas casas antes que ela se juntasse [plase] a
Dodo.
Muitas machann aprendem o ofício do comércio através do contato com mulheres adultas
(há muitos homens que também fazem comércio, mas via de regra, esse tipo de relação
construída desde a infância se dá entre uma mulher e uma menina, sendo as combinações mais
comuns mãe-filha e madrinha-afilhada). Esse não foi o caso de Woslene. Ela teve que começar
sozinha. Começou por volta dos onde ou doze anos idade.45 Um vizinho lhe ofereceu: “tenho
mandioca, venha comprar”. Ela comprou um “jardim” inteiro a crédito (a unidade que ela usou
foi um jaden, que não tem um tamanho fixo). Usou a mandioca para fazer kasav, um tipo de
pão de mandioca, que lembra a tapioca brasileira exceto pela consistência – a do kasav é
crocante. O processo de sua produção é trabalhoso, são dias inteiros para fabricá-lo, mais tantos
dias para vendê-lo. Somente após finalizar a venda do kasav é que ela pagou pela mandioca que
comprara.
Essa lógica de pegar primeiro para pagar depois, como um tipo de crédito consignado,
persistiu por toda a sua vida. De fato, entre as intermediárias mais descapitalizadas no Haiti –
e lembremos que as ti machann são a maioria absoluta, muito mais numerosas que aquelas que
operam em maior escala, como as madanm sara – o comércio é movido à base de consignação.

43
Como sugeriu o professor Louis Herns Marcelin (oficina no MN, 07/06/2018), é possível ainda ver esse tipo
culturalmente específico de “polidez” como um dispositivo de governamentalidade, onde o comportamento
de cada agente está sempre pautado pelo reconhecimento do dano que o outro pode causar.
44
Cf. comentário de Karen McCarthy Brown (2006:5) sobre a ignomínia da mendicância: The ignominy of
begging comes largely from the fact that beggars are seen as isolated individuals whose activity announces
to the world that they have been abandoned by the extended kin group and now must forage on their own.
Even if the family were lost through death rather than discord, the person who must beg can easily be seen as
someone who was not clever enough or respectful enough or sufficiently hardworking to find a place as
adopted kin in another family.
45
Quando eu perguntei a ela que idade ela tinha nessa época, ela apontou para sua filha Nawòs, que deve ter
entre dez e doze anos de idade: “eu era do tamanho dela”.

81
Adiante, voltaremos a essas operações do ti komès tais como praticadas por Madame Dodo hoje
em dia. Antes disso, passemos aos anos de formação de Jaklin.

A formação de Jaklin
O falecido pai de Madame Jaklin era dominicano, vindo de um lugar chamado La Jagua.
Ainda jovem, se mudou para o Haiti, onde casou e teve dois filhos e cinco filhas. Sua mãe vinha
da localidade de Laiai (que a própria Jaklin classificava como andeyò e lwen, “longe”], no
Plateau Central haitiano, próximo à fronteira. Ambos bilíngues (espanhol e crioulo haitiano),
eram um autêntico casal rayano, gente de la línea, ou ainda linieros, expressões usadas na fala
dominicana para nomear quem vem da região fronteiriça.46 O casal viveu no Haiti, mantendo
contato com familiares na RD.
Ao falar sobre as ocupações de seus pais, Jak contou que seu pai foi “cultivador”
[kiltivatè], ou seja, trabalhava a terra, plantava tanto para o sustento de sua família quanto para
venda, enquanto sua mãe foi comerciante [kòmèsan]: ela revendia arroz, óleo, feijões, tabaco,
além dos produtos cultivados nas terras de sua família, como banana, milho, pitimi [trata-se de
um cereal pouco comum no Brasil, conhecido por nomes como “milhete”, “painço” ou
“sorgo”], mandioca, amendoim… Hoje em dia, o cultivo de amendoim é uma das principais
fontes de renda para os habitantes da zona da pesquisa, especialidade do mercado de Wa Sèk,
o que parece ser o caso pelo menos desde a geração do pai de Jaklin.
A combinação de marido cultivando a terra e esposa fazendo comércio ainda é bastante
comum hoje, e era ainda mais na geração passada.47 Nesse sentido, os pais de Jak viviam em
um arranjo clássico entre casais camponeses haitianos. Nunca foram ricos, longe disso, mas a
família era dona das terras em que trabalhavam, e gozavam de uma situação econômica
consideravelmente melhor do que aquela de onde partiu a pequena Woslene.

46
Que eu saiba, não há nenhuma expressão análoga em crioulo haitiano. Existe a palavra lin, que corresponde a
línea em espanhol, e se refere à fronteira enquanto linha, mas que fala do espaço (ou antes de uma abstração
espacial), e não das pessoas. Talvez essa diferença seja sintomática do quanto o Haiti (e por extensão a
fronteira com o Haiti), ou “a questão haitiana” (expressão constantemente usada pela mídia dominicana) é
mobilizadora no panorama político dominicano, objeto de calorosos debates, mas a recíproca não é verdadeira,
pelo menos não com a mesma intensidade.
47
Presenciei pessoalmente pelo menos quinze ocasiões em que vizinhos vieram procurar Jak pedindo ajuda para
expedição de documentos, geralmente certidões de nascimento tiradas por pessoas mais velhas para preencher
pré-requisitos de outros trâmites, diversos. Vinham a ela porque, além de saber ler e escrever (o que é comum
para a geração mais jovem, mas não tanto entre aqueles nascidos há cerca de meio século ou mais velhos),
tem um bom trânsito no centro de Belladère, conhece esses processos burocráticos e as pessoas a quem é
preciso recorrer para fazê-los. Nessas ocasiões, ela sempre preenchia uma pequena ficha com informações
sobre a pessoa que requeria os documentos, e perguntava a ocupação do pai e da mãe. Todas as pessoas, sem
nenhuma única exceção, responderam a mesma coisa: pai kiltivatè, mãe kòmèsan.

82
Jaklin morou na casa de seus pais, na vizinhança de Botoncy (uma zona rural), até os dez
anos de idade, quando foi mandada a Belladère para continuar na escola (havia uma escola em
Botoncy mas o ensino oferecido aí só ia até o terceiro ano). Dormindo durante a semana em
Belladère, ela voltava à casa dos pais toda sexta-feira para passar o fim de semana.
Depois disso foi a Porto Príncipe para continuar os estudos, e também a Gonaïves, onde
passou pouco mais de um ano recebendo treinamento como agente de saúde (aprendeu a aplicar
soro, injeções, noções básicas de enfermagem) e em pequenos artesanatos, quando tinha entre
14 e 15 anos de idade.
Tais deslocamentos não poderiam jamais depender de hotéis. O custo era inviável para
sua família. Pagar os estudos já era um sacrifício (além de ser um investimento, uma aposta no
futuro). Ela ficava hospedada em casas de parentes, de amigos e de conhecidos de seus pais,
num tipo de mobilidade razoavelmente comum para a juventude haitiana – todos os jovens de
Lakaniyt que eu conheci que foram estudar em Belladere, Las Cahobas ou Porto Príncipe,
também foram dormir em casas de gente conhecida por seus pais. Foi assim também que ela
foi pela primeira vez a la capital (Santo Domingo), onde vivam sua irmã mais nova, uma tia, e
várias primas.
Vale a pena ressaltar que a circulação entre casas em diferentes províncias, cidades e
mesmo países, mesmo que originalmente articulada por motivos outros, é um fator essencial na
criação de condições de possibilidade para o comércio a distâncias mais longas (e as pessoas
estão conscientes disso, fazer uma filha conhecer o país é parte do investimento). Na infância
de Jaklin, parte dos deslocamentos fora motivada por oportunidades educacionais, mas não
todos. Também desde criança, ela acompanhava sua mãe quando esta ia vender nos mercados
da região. Sua mãe frequentava regularmente diversos mercados tanto no Haiti quanto na RD,
em locais tão longe da fronteira quanto Las Matas de Farfán (a cerca de 40 km de distância da
casa de seus pais).
Tais trânsitos permitiram que ela se familiarizasse com o idioma castelhano desde cedo,
bem como com outras ações próprias ao ofício. Como um dos principais produtos de sua mãe,
ela logo aprendeu a ensacar o tabaco em pó, em pequenas trouxinhas, que é a unidade de venda
padrão (tipicamente vendidas ao preço de 1 dolà hoje em dia). Quando as pernas da mãe já não
aguentavam caminhos fisicamente mais exigentes, como as longas horas de caminhada subindo

83
monte atrás de monte para chegar aos mercados de Baptiste e Barank, Jaklin, então recém-
chegada à adolescência, encarava o caminho por conta própria para vender o tabaco dela.48
É bastante comum que, na ausência de uma comerciante, outra venda suas coisas por ela,
algo que acontece de forma fluida tanto entre parentes e amigas(os) quanto entre colegas de
ofício que se sentam próximas no mercado. Não é raro que mães mandem suas filhas (mas não
seus filhos homens) para vender algo no mercado, ainda que seja dia de escola e elas precisem
matar aula para isso. Em todos estes casos, o dinheiro arrecadado pertence integralmente à dona

9 Machann e criança ao fundo no Mercado de Belladere.


Foto: Juliane Peixoto.

48
Como adotou a fé evangélica, ela supostamente deve se afastar tanto do tabaco quanto do kleren (cachaça),
renegados enquanto coisas “do mundo” não devem ser consumidos nem comercializados, o que ela lamenta
por ser um comércio vantajoso (“tabaco paga até 3 pra 1”). Em sua infância católica, essa questão não se
colocava.

84
da mercadoria. Não é raro que uma filha vendendo por sua mãe, com ou sem consentimento
desta, compre pequenas coisas para si ao longo do dia, como um biscoito ou algo para beber,
um sabonete ou um creme. Quando vendia o tabaco de sua mãe, Jaklin conta que só ficava com
o dinheiro que sua mãe escolhia lhe deixar, ainda que para isso tivesse que caminhar horas a fio
sem nada para comer, enfatizando que sempre foi boa filha, obediente.

Clientela e lizay
Nessa época, suas andanças lhe deram conhecimento de diferentes lugares, e mais
importante, lhe ensinaram a falar com as pessoas. Ela aprendeu a ter lizay, que também ela
sempre cita como uma habilidade necessária ao comércio. Quando me explicava porque uma
de suas filhas não sabe vender, Jaklin disse; “o problema é que Yvlin não sabe conversar, não
gosta de pessoas. Pode passar o dia inteiro no mercado que não vende nada. Para vender, é
preciso ter amor [lanmou]”.
Bem diferente do conceito de um mercado onde compras e vendas se processam entre
agentes anônimos, de relações que uma vez mediadas pelo dinheiro dissolveriam a relevância
de quaisquer outros atributos sociais dos agentes envolvidos na troca monetária (tal como a
hipótese do “dinheiro-enquanto-ácido” que corrói as relações, de alguma circulação nas
ciências sociais, criticada por Bill Maurer 2012), muitas vezes, nos mercados haitianos, as
relações entre quem compra e quem vende, para além do momento em que se concretiza a
transação comercial em si, estão longe de ser irrelevantes.49
Tal como estudado por Mintz (1961), a formação de uma clientela estável continua sendo
fundamental, o que vale não só para as pessoas a quem se vende, mas também de quem se
compra. As palavras klyan e pratik nomeiam reciprocamente tanto as vendedoras quantas as
compradoras, caso a relação entre elas goze de certa estabilidade temporal. Entre duas
pratik/klyan, frequentemente ambas adquirem aquilo que a outra vende, mas pode ser que uma
esteja apenas vendendo sem comprar. Por exemplo, Madame Dodo tinha essa relação com duas
jovens de Vye Savann. Toda semana, as jovens de Vye Savann compravam na mão de Madame
Dodo para revender na vizinha delas, com uma margem mínima de lucro, itens básicos de
alimentação, como arroz, açúcar, feijão e vemisèl (ou vermicelle, em francês, que é o nome da

49
E seguindo a trilha dos estudos de Viviane Zelizer (2011), vemos que a inaplicabilidade do paradigma
“dinheiro-enquanto-ácido” de forma alguma é exclusiva aos mercados provinciais haitianos, a crítica se
estende a todos os mercados, quer se suponha que eles sejam “modernos” e “ocidentais” ou que não sejam.

85
massa de farinha de trigo crua e seca, em fios muito finos e enroscados, conhecida no Brasil
como “cabelo de anjo” ou “aletria”). Elas são klyan de Madame Dodo e vice-versa, ainda que
esta nada comprasse delas, é uma relação sempre entendida como recíproca.

10 Cena no mercado de Kwa Fè.


Imagem enviada por whatsapp.

Quando duas pratik se encontram no mercado, via de regra, a interação entre elas inclui
saudações, perguntas sobre a família uma da outra, troca de notícias sobre as respectivas
vizinhanças, além, é claro, do ato de compra propriamente dito. Ao descrever a forma como
surge esse tipo de vínculo nos mercados haitianos, Mintz (idem) afirma que tudo começa com
uma conversa onde, “caso o jeito da compradora lhe agrade”, a vendedora faz uma oferta

86
razoavelmente vantajosa, demonstrando o desejo de investir na relação.50 Ainda que seu estudo
mire, em primeiro lugar, a racionalidade econômica subjacente às práticas de fidelização, fica
também evidente que afetos acompanham fluxos de mercadorias e de dinheiro. A afeição é
indissociável do processo de fidelização, mediada por códigos de demonstração de respeito e
etiqueta. Sua ausência pode também vir a interromper esse fluxo. É necessário ter lizay tanto
com quem compra quanto com quem fornece (além dos guardas na fronteira, como vimos, e no
limite, por toda e qualquer pessoa). Por vezes o acesso a determinados estoques depende
fundamentalmente disso que Jaklin chamou de “amor”, que impacta também arranjos de
crédito, por exemplo no cuidado que cada pratik tem de não quebrar [kraze] sua parceira.
Algo no mesmo sentido foi afirmado por Madame Dodo, citando a necessidade de dar
pequenos “presentes” [kado] a clientes quando estes passam por momentos de dificuldade
aguda e estão sem dinheiro para nada.51 Nestes casos, ela costuma dar quantias pequenas,
abaixo de um gode, que pelo menos garanta a possibilidade de ter algo para aquele dia. Esses
presentes são como investimentos, da parte dela, na relação com aquela(e) cliente. Em suas
palavras, ela faz isso “por causa da lizay”, ponto que acrescenta mais uma camada à definição
(e a afasta ainda mais de uma tradução direta como “polidez”): mais do que a mera percepção
e reconhecimento da situação vivida pela outra pessoa, implica também agir no sentido de
cuidar dessa outra pessoa quando ela está em apuros (dentro de seus próprios limites, é claro).
Essa postura acolhedora não precisa ser dispensada indiscriminadamente a qualquer
pessoa que apareça, mas é aconselhável quando se trata de uma relação já estabelecida. Madame
Dodo considera necessário dar não só a quem não tem condições de comprar, mas também
quando uma klyan que contraiu dívidas com ela há certo tempo e finalmente vem pagá-las, “é
preciso dar um presentinho, uma colher de açúcar.... por causa da lizay.”
Como já sabemos, o próprio idioma falado no Haiti não diferencia entre compradores e
vendedores uma vez que as relações tenham alguma estabilidade. Dito isso, é evidente que a
mesma lizay que se demonstra com as pessoas que “vêm comprar na sua mão” deve ser
oferecida também àquelas de quem se compra.

50
Certa vez, viajando perto de Arcahaie, pedi um prato de comida a uma vendedora de rua no valor de 10 dolà,
acreditando que o tanto de comida servida era proporcional ao valor pago. Após comer o prato, voltei a ela,
elogiei a comida, e pedi mais um prato no mesmo valor, ao que ela prontamente me censurou: “então é assim
que você quer fè klyian [lit. “fazer cliente”, tornar-se cliente], comendo pratos de 10 dolà?”
51
Presenciei vendedoras de tabaco dando folhas de presente para rapazes que queriam fumar e não tinham
dinheiro, por isso ela devia dar. Madame Osen também dava tabaco a clientes costumeiros temporariamente
sem dinheiro. Até para mim ela deu um cigarro de presente. Quando uma cliente pede para não pagar, ela
responde com “sim, tudo bem, se pratik nou ye [‘nós somos pratik’]”.

87
Para Madame Dodo, o principal ponto a ser observado nesse caso são os prazos dos
empréstimos. Ao enfatizar a necessidade de pagar em dia, por um lado ela reconhece se tratar
de uma necessidade, para que continue tomando novos empréstimos sem que nenhum credor a
recuse – como opera quase sempre por consignação, para ela, dar um único calote traria um
risco imenso de inviabilizar seu comércio futuro. Por outro lado, é também uma questão de
reconhecer o lado da pessoa que lhe emprestara (seja em dinheiro, seja em mercadoria), que um
atraso de sua parte pode prejudicar as operações alheias, onde também há prazos e obrigações
a cumprir. Ela não acha justo atrasar a vida de alguém que adiantou a dela, e se envergonharia
profundamente em fazê-lo, preferindo complicar sua situação financeira com novos
empréstimos a deixar outra pessoa esperando, descumprindo o combinado prévio. Também
isso, para ela, é uma questão de lizay, princípio moral que nem todo mundo consegue seguir
com o mesmo zelo.
De fato, ouvi comentários de outras pessoas (em conversas da qual eu não era parte ativa,
estava presente apenas como ouvinte) afirmando que Madame Dodo era uma senhora muito
correta. A própria Jaklin, que detestava emprestar dinheiro a outras pessoas e tentava sempre
esconder seus próprios recursos, evitando ao máximo que outras pessoas se inteirassem do que
ela estava fazendo ou deixando de fazer, emprestava tranquila e feliz a Madame Dodo tudo que
estivesse dentro de suas possibilidades. A questão para ela é que ter que cobrar dinheiro dos
outros era sempre um desgaste na relação e um desgosto para si mesma, que preferiria gastar
seu tempo com praticamente qualquer outro afazer a ter que sair para pressionar alguém pelo
pagamento daquilo que lhe é devido, enquanto que, com Madame Dodo, “se ela diz que vai te
pagar de volta dia tal, ela vem e paga dia tal, ela mesma te procura, você nunca precisa ir atrás
dela, não precisa lembrá-la, não precisa mandar recado, não precisa dizer nada. É por isso que
para ela eu nunca vou negar nada, é um prazer poder ajudar quando ela precisa”. Ressalto que
Jaklin e Madame Dodo podem entender-se, segundo o contexto, como amigas, como vizinhas,
como correligionárias, costumam chamar uma à outra de “minha comadre” [ma komè] não são
e nunca foram pratik / klyan uma da outra, uma vez que elas não têm hábito de comprar na mão
uma da outra (vendas pontuais podem já ter ocorrido, mas não configuram a relação).
A pratik é uma relação específica de compra e venda – há uma diversidade de outras
relações, que são chamadas por outros nomes, geralmente termos mais abrangentes, como
“amiga/o” [zanmi], “parceiro/a” [patnè] ou “minha pessoa” [moun pa-m, ou moun mwen, duas
formas de dizer a mesma coisa, termo importante ao qual voltaremos mais tarde]. Em todo caso,
são igualmente relações um-a-um, e são fundamentais na garantia das condições infraestruturais

88
necessárias para a circulação das machann. Cada machann estabelece e cultiva relações que são
fundamentais para acessar meios de capitalização, de transporte, de estocagem e de
hospedagem/hospitalidade, e mesmo para garantir a própria segurança. A reciprocidade um-a-
um é um método de navegação, tanto de passagem quanto de permanências periódicas na
ocupação de um espaço.
Relações afetivas, relações comerciais, fluxos de créditos e dívidas estão embrenhados.
Creio que o “elemento pessoal”, corretamente identificado por Mintz através do vínculo
chamado pratik, é um fenômeno de amplitude ainda maior, e que o “sistema de comércio
interno haitiano” está ainda mais profundamente apoiado em relações interpessoais do que
admitiu o autor. O conceito de lizay nos permite transitar entre relações de diferentes ordens
para qualificar a afirmativa de que a atividade comercial no Haiti possui um caráter fragmentado
e individualista (elaborada em Mintz 1964). O individualismo com respeito ao alto grau de
autonomia envolvido na lógica de auto-empreendimento coexiste com e é pautado por relações
interpessoais um-a-um, em todos os pontos da cadeia de distribuição. A densidade dessas
relações é justamente uma das características mais marcantes do comércio praticado no Haiti.
Para dar mais consistência ao argumento, vejamos ainda algumas outras instâncias desse caráter
relacional.

Ambivalência nas relações entre colegas.


Entre as vendedoras que percorrem os mesmos circuitos, há ambivalência e limites
ambíguos entre relações de competição e de cooperação. Aquelas que sentam no mesmo espaço
costumam vender umas pelas outras, quando alguém se ausenta momentaneamente.52 A
confiança que as vendedoras pareciam ter na honestidade de suas companheiras (e/ou
concorrentes) era impressionante para mim, lembrando que se trata de um universo onde há

52
Por exemplo, quando é necessário se abastecer de algum item específico, seja num revendedor de maior porte
dentro do próprio mercado (os magazen que vendem em unidades grandes), seja atravessando a fronteira para
se abastecer de itens dominicanos (o que é comum nos dias de mercado em Belladère, processo de ida e volta
pode durar duas ou três horas), ou visitando parentes e conhecidos no hospital (em Belladère há um importante
hospital vizinho ao mercado), ou ainda para encontrar pessoas, em especial quando se deseja que os encontros
sejam discretos, já que, na andança pelos mercados, saindo aos entornos dos mercados propriamente ditos,
pode-se gozar de uma privacidade difícil de se obter na sua própria vizinhança. Agradeço a Rodrigo Bulamah
pela lembrança do último ponto. Excerto do caderno de campo: “Uma mulher comprou um galão de kleren,
muito provavelmente para revender. O preço original era 75 dolà, ela ofereceu 70, e Madame Fouton me
instruiu a aceitar. [Eu estava vendendo por Madame Elmo, que passara o dia quase todo fora.] Eram elas que
negociavam, óbvio. Eu só enchia as garrafinhas, pegava o dinheiro, dava o troco. Madame Olsen guardava
com ela o dinheiro de Madame Élmo. Confiança total, deixam seus negócios na mão uma da outra sem
qualquer preocupação aparente.”

89
severa escassez de dinheiro, e o volume preciso de grãos em grandes sacos abertos ou o número
exato de centenas de caixas de fósforo, por exemplo, pareciam impossíveis de se controlar com
precisão.53
Além de cobrirem as ausências umas das outras, comerciantes que são mais próximas
entre si podem compartilhar também fornecedores, informações sobre onde conseguir tal
produto a bom preço, viajar juntas para se abastecer, oferecer segurança mútua durante os
caminhos (tanto contra pessoas quanto contra malefícios e/ou indisposições corporais), além de
sentar juntas por longas horas em determinados dias da semana. 54 Tais relações podem ainda
possibilitar esquemas de crédito rotativo, como quando duas machann parceiras se revezam em
viagens de abastecimento a Porto Príncipe, e aquela que viaja, em seu turno, traz todas as
encomendas para a outra que ficou, economizando assim o dinheiro de uma das passagens.
Jaklin tem boas memórias das andanças com sua amiga Madame Jonas, como enfrentavam
horas de caminhada só para comprar algo que estivesse muito barato num dado lugar, como
exploravam lugares desconhecidos juntas, sempre conhecendo gente nova. A atividade de

53
Nunca presenciei, mas ouvi histórias de vendedoras que roubaram suas colegas, o que entre elas é uma
acusação gravíssima, um evento excepcional que reverberará durante tempos, manchando o bom nome da
machann, o que pode inviabilizar sua atividade como comerciante. Existem outras circunstâncias mais dúbias,
como uma ocasião que eu presenciei, quando Tina saiu para buscar uma cadeira emprestada (para que eu me
sentasse), o que levou pouco menos que meia hora. Nesse meio tempo, pediu à machann que se sentava à sua
direita (segundo a própria Tina, elas não se conheciam direito) para vender suas coisas por ela caso alguém
viesse comprar. Quando ela voltou, eu perguntei se ela escrevia, como mantinha o controle de todas as
mercadorias. Ela disse que não anotava nada, mas sabia tudo de cabeça, exatamente quanto de cada. Perguntei
o que a outra tinha vendido por ela. Com um olhar instantâneo sobre as suas coisas, respondeu de pronto “um
leite condensado bongu”. “Nada mais?” “Não.” “Olha bem.” “O que foi, fala.” “Três caixas de fósforo.” (3
unidades valem 1 dolà, costumam ser vendidas assim, de 3 em 3). Tina não tinha percebido, de fato parecia
impossível perceber, havia talvez centenas de caixas de fósforo juntas em um saco (elas costumam ser usadas
como troco para outras compras). Ela não disse nada na hora. Só quando foram acertar as contas, ao fim do
dia, a outra machann calculou quanto Tina lhe devia (por conta de alguma outra transação prévia entre elas
que ignoro), abateu o valor do leite Bongu, e Tina botou na conta também esse dolà referentes aos fósforos,
ao que a outra respondeu “ah, sim, teve isso, eu tinha me esquecido.” Como o valor era muito baixo, parecia
de fato algo esquecível (5 gourdes, na cotação da época U$ 0,08). Um “esquecimento” como esse não
configura uma tentativa de lesar a outra parte. Mesmo assim, Tina fez questão de abater aquele dolà de sua
dívida. Essa pequena cena é uma amostra do grande número de pequenas transações que as machann
controlam de cabeça, guardando mentalmente diversos valores como estes desde o começo da manhã até os
acertos ao fim do dia, de uma semana para a outra, de um mês para outro, em múltiplas temporalidades. A
habilidade delas para lembrar valores exatos (ou, como vimos agora, quase exatos) de contas envolvendo
diversas pessoas, sem recorrer a anotações, é admirável.
54
Lembro de um grupo de cinco garotas que vendiam bebidas nos arredores do mercado de Belladère todas as
quartas e sábados. Elas tinham a mesma idade (15-16 anos) e eram colegas de classe no colégio (estudavam
no Liceu Charlesmagne Péralte, segundo elas a melhor escola de Belladère), perdiam as mesmas aulas juntas,
sentadas entre cerca de oito da manhã até quatro da tarde, onde aprendiam a falar com uma pequena infinidade
de pessoas, a dar tiradas espirituosas a provocações que recebiam de estranhos, fazendo piadas e brincando
umas com as outras, e vendendo as mesmíssimas bebidas (po glas, soda, ji, dlo, toro, ragaman…). Suas mães
não só consentiam que suas filhas matassem aula, mas eram elas mesmas que compravam e preparavam as
bebidas vendidas, e a elas as garotas remeteriam o dinheiro das vendas.

90
desbravar interiores, além de alimentar um ethos aventureiro e independente, tinha também
como objetivo ganhar acesso direto aos produtores. As duas circulavam juntas, trocavam
gracejos com pessoas que conheciam pelo caminho, dormiam em casas alheias, fazendo
amizade e tornando-se conhecidas nesta ou naquela localidade. Numa dessas ocasiões
conseguiram ficar “bem com” [byen avè] produtores de laranjas de Laiai.55 Essa parceria durou
cerca de três anos, nos quais elas comercializaram a totalidade das colheitas. Quando se dispõe
de estoques fartos, a prática é vender tudo rapidamente em grandes porções [an gwo] para outras
machann e madanm sara que revenderão em quantias menores [an detay]. Eventualmente, tanto
Jaklin quanto Jonas se engajaram em outros circuitos mais vantajosos para elas, e deixaram de
frequentar a região, perdendo o contato com os produtores daquela zona.
Essas andanças compartilhadas entre Jaklin e Madame Jonas se passaram cerca de duas
ou três décadas antes da minha chegada ali, mas não resta dúvida que esse tipo de relação segue
em pleno vigor, como no caso de Madame Wousen, que conheci no mercado de Belladere.
Certo dia, ela trouxe um grande saco de pimentões, novos e bonitos. Muitas machann vieram
comprar na mão dela, para revender ali mesmo. A notícia da chegada deste estoque se espalhou
rápido. Ela vendeu tudo em menos de uma hora, com exceção de uma pequena parte que ela
separou em lotes de três unidades, igual às outras machann que compraram na sua mão, também
revendiam em lotes de três, pelo mesmo preço. Ela contou que ela está “bem com” [byen avè]
o dono do jaden, que comprava avançado e que ele confiava nela a tal ponto que ela pode entrar
na terra e colher tudo mesmo na ausência dele. Essa relação começara como uma relação de
compra e venda, mas evoluiu como um tipo de amizade, e esse afeto -ou, no mínimo, confiança
mútua- entre os dois é fundamental para que continuassem as trocas a crédito. As visitas de
Madame Wousen à casa desse senhor aparecem como um importante signo do valor atribuído
à relação, e do reconhecimento prestado à pessoa visitada.
Existem mais modalidades de parcerias subjacentes ao sistema de comércio haitiano do
que aquelas que conseguirei descrever aqui. Na área da pesquisa, são particularmente
importantes as parcerias entre comerciantes que residem no Haiti e na RD para atravessar os
produtos de um lado ao outro da fronteira. Desde o lado dominicano, Shoaff (2017) reporta que

55
O termo byen avè é uma expressão comum, vaga o bastante para abarcar desde parcerias numa cooperação
comercial como a que acaba de ser descrita, passando por amizades (que podem não ter nenhuma relação com
o comércio), até amantes extraconjugais e namoros públicos (desde que não sejam casados, pois nunca se diz
que um marido é byen avè sua esposa nem vice-versa, a relação deles estaria em outro patamar uma vez
celebrado o casamento). A ambiguidade de um termo como este permite hábeis jogos de linguagem, aos quais
se prestam também outros termos suficientemente vagos como “amiga/o” [zanmi] e “parceiro/a” [patnè].

91
as pepeceras (revendedoras de pèpè importado do Haiti) se referem a suas parceiras como
“mi/su haitiana” (o pronome possessivo implica vínculo pessoal, mas não implica numa relação
nem hierárquica, nem exclusiva), que são fornecedoras individuais trazendo pèpè desde o Haiti.
O vínculo pode ser estritamente comercial (como Shoaff dá a entender que é o caso na área
onde ela fez sua pesquisa), mas em todo caso é uma relação direta entre duas pessoas. Nem
sempre quem recebe e revende a mercadoria na RD têm nacionalidade dominicana – eu soube
de dois haitianos (ambos homens), plenamente documentados, que cumpriam essa função.
Eram receptores daquilo que traziam comerciantes haitianas em situação legal/documental
menos segura que a deles.
Um homem dominicano tinha uma relação similar com Jaklin. Acredito que ele financiou
diversas compras dela, mas os fluxos de dinheiro entre os dois não eram publicamente
declarados. Mesmo na intimidade, Jaklin nunca me explicou muito bem como funcionava. 56
Ela mais citava quantias de dinheiro pendurado, saldo com o qual ela se programava para contar
num futuro próximo. Ela lhe trazia objetos pelos quais ele lhe pagava só depois de revendê-los,
tipicamente em torno de duas semanas depois, embora haja casos de montantes maiores que
ficam pendurados por meses inteiros, dependendo de movimentações maiores de dinheiro,
como a venda de um boi (no caso, um boi adquirido na RD, trazido por outro rapaz para ser
vendido no Haiti). Em uma ocasião, ele veio visitar a casa dela, onde foi recebido com honras.
Todos celebraram o fato de que ele tivesse atravessado a fronteira e percorrido todo esse
caminho apenas para ir à casa dela, tomando esse esforço como uma valiosa demonstração de
consideração. Este homem agia também como cambista, não um cambista profissional, mas
como um amigo disponível para fornecer pesos dominicanos quando necessário (não o fazia
para qualquer pessoa, apenas para o seu círculo de relações). Ela tem duas parcerias similares
com mulheres dominicanas que vendem no mercado de Las Matas de Farfán: quando não quer
se demorar na RD, Jaklin apenas deixa seu estoque de pèpè com uma delas, que revende pelas
próximas semanas e lhe paga depois (paga um preço previamente acordado pelo estoque todo,
que independe do valor pelo qual a pepecera o revenderá).
Também há parcerias que se dão direto com consumidores finais, especialmente comuns
em Elias Piña (Comendador). Uma grande vantagem para as machann que conseguem vender
a domicílio, trazendo encomendas para gente conhecida, é evitar os cobradores do mercado,

56
Como mostra o estudo sobre intimidade e dinheiro de Zelizer 2005, a gestão do dinheiro remete a camadas
profundas de intimidade, o que torna o assunto especialmente difícil de enfocar etnograficamente, a despeito
do seu caráter mundano e de sua onipresença em nossas vidas.

92
que frequentemente cobram taxas arbitrárias e abusivas das vendedoras haitianas. Esse sistema
é particularmente importante para mercadorias contrabandeadas, como remédios trazidos do
Haiti de venda proibida na RD. Mas não é fácil formar e manter uma rede de clientes que
sustente viagens constantes, é preciso falar espanhol fluente, e além disso ter muita lizay.

Uma breve cena a respeito das possíveis desvantagens das relações densas
Numa quinta-feira de manhã, Jaklin saiu de casa portando três pencas de bananas,
amarradas num grande saco de pano. As bananas vieram da roça de seu filho Sondy. Chegando
próximo ao mercado de Kwa Fè, ela percebe a presença de Madame Tchit, uma madanm sara
de Lascahobas. Madame Tchit estava sentada num local estratégico, na borda da estrada nova
(que conecta Lascahobas a Belladère, passando por Kwa Fè, asfaltada e em bom estado), justo
no ponto em que esta se encontra com a estrada velha, de terra, que é o caminho principal para
a região de Lospwèt, Lakaniyt, e todas as outras localidades nessa direção, onde vivem Jaklin
e Madame Dodo.
Jaklin tenta evitá-la e passar despercebida, não porque desgostasse dela, longe disso. Ela
não conseguiu não ser notada. Madame Tchit vi-a de longe, e sem se levantar, chamou-a usando
uma frase padrão: Jaklin, vin pale ou [“Jaklin, venha falar comigo”].57 Jaklin não podia ignorá-
la. Estaria mais à vontade para “fazer preço” [fè pri] com uma desconhecida a quem ela nada
devesse. Com Madame Tchit, sua margem de manobra era bem menor, dada a antiga parceria
entre as duas (formulada também, alternativamente, em termos de “amizade” [nou zanmi]).
Madame Tchit fazia sara há anos, principalmente no comércio de bananas. Jaklin, ainda
uma jovem mãe que buscava estabelecer seus próprios circuitos, foi recebida por Madame Tchit
tanto em sua casa de Lascahobas quanto também no pequeno imóvel que esta alugava em Porto
Príncipe. Madame Tchit também já visitara a casa de Jaklin na zona de Lospwèt (a troca de
visitas é uma importante mostra de reconhecimento, assim como deixar de visitar implica uma
falta de reconhecimento). “Ela era minha pratik”, disse-me Jaklin enquanto me explicava
porque tentou evitá-la, resposta que a princípio me pareceu enigmática e contraintuitiva.
As duas se saudaram com demonstrações de afeto antes que Madame Tchit pedisse para
ver a mercadoria trazida por Jaklin. Sempre chamando uma à outra de “comadre” [komè],
Jaklin, encurralada por sua amiga, disse que as bananas não eram dela, estava vendendo por um

57
É uma frase que pais e mães usam com frequência para chamar seus filhos, mas dificilmente os filhos falam
assim com os pais, pois isso soaria desrespeitoso. No contexto entre Madame Tchit e Jaklin, ambas podiam
falar assim uma com a outra sem problema.

93
vizinho. Essa mentira não era inverossímil, de fato era algo comum na vizinhança que as
pessoas vendessem aquilo que pertencia a outra, o que se fazia como um favor, sem levar
nenhum tipo de comissão – não remeter o dinheiro integral da venda ao dono/à dona original
do produto seria considerado um roubo (exceto, é claro, se o próprio dono determinasse uma
quantia que desejasse deixar com a intermediária, o que, nesse caso, seria compreendido como
um presente). A própria Jaklin o fazia com alguma frequência, mas naquele dia calhou que a
carga que ela trazia vinha da roça de seu próprio filho.
Madame Tchit examinou o lote trazido por Jaklin, e ofereceu-lhe 210 dólares haitianos
para levar tudo. Jaklin respondeu “comadre, você sabe que eu quero vendê-las para você, mas
preciso consultar o dono antes”. Lá onde estava Madame Tchit havia vários outros sacos, que
a madanm sara já tinha adquirido ao longo da manhã. Jaklin deixou o seu saco junto aos outros
(ambas distinguiam facilmente entre sacos que alguém como eu teria provavelmente
confundido) e saiu andando pelo mercado, como se estivesse rumando para consultar alguém.
Ela esperou cerca de 40 minutos antes de voltar, trazendo a notícia de que o suposto dono achara
a oferta baixa demais, pedira-lhe para não vender por menos que 250 dolá. Madame Tchit disse
“então você vai falar para ele que a banana não está vendendo assim, que você conseguiu vender
por 230 e que ele deve ficar feliz, pois foi um ótimo negócio”. Ela tirou o dinheiro, e Jaklin não
viu outra opção que não fosse aceitar. Sempre mantendo o bom humor, ela agradeceu sua
comadre antes de pegar o dinheiro, dizendo que convenceria o dono a aceitar aquele valor. A
estimativa de Jaklin é que, caso tratasse com uma madanm sara desconhecida, aquela carga
valeria até 270 dolà. Paciência, teve que se resignar com um “Deus é quem sabe” [Bondye
konnen].58

Unidades de medida.
O preço das bananas flutua mais do que o de outras mercadorias. Quando são medidas em
gode e mamit, seu preço costuma ser muito mais estável. A margem de lucro envolvida no

58
Excerto do caderno de campo: “Saí de manhã com Jak pro mercado de Kwa Fè. Fui o caminho inteiro a cavalo,
ida e volta. O animal também levou bananas na ida e as compras do dia na volta. Arranquei gargalhadas ao
passar por Los Puetes. As bananas – 5 cachos – eram do jaden de DuCas. Gina pediu que esperássemos no
caminho, e junto mais dois cachos que trazia consigo. Quando chegamos, eu e Gina (Jaklin havia ficado pra
trás), foi Gina quem negociou. Ela foi mais agressiva que Jaklin, que se considera byen avèk aquelas machann.
Queriam pagar 110 dolà pela carga toda, ela pediu 200, e acabou fechando por 180. Jaklin disse que teria
vendido por 140 numa boa, devido às relações de amizade. Gina me passou a impressão de estar mais
urgentemente necessitada de dinheiro que a sua irmã. As compradoras (todas mulheres) estavam no mesmo
ponto que da outra vez, antes da entrada do mercado. Jaklin disse que não há bananas dentro do mercado, o
ponto de sua compra e venda é ali mesmo.”

94
“pequeno comércio” [ti komès] de itens básicos da alimentação local que são medidos em gode
é geralmente ínfima. Existe um tipo de operação padrão, que é usada na venda de arroz, de
feijões e de açúcar: sacos grandes (que variam de 10 a 50 kg, sendo o de 25 kg o mais comum)
são comprados numa “loja” [magazen]. Muitas dessas “lojas” também funcionam como
depósito, ou armazém, e ficam dentro da área dos mercados (muitas estruturas menos estáveis
se aglomeram ao seu redor). Os sacos de 25 kg de arroz e açúcar ali estocados são “avançados”
(vendidos a crédito) para as comerciantes que os vendem “na medida do gode”, por vezes a
poucos metros da magazen onde o compraram.59 O mercado de Kwa Fè, um dos maiores da
região, conta com, pelo menos, cinco magazen espalhadas, em pontos dispersos.
Entre os donos de magazen (que mal cheguei a conhecer), havia muitos homens. Já nesse
tipo específico de operação varejista, as mulheres são uma esmagadora maioria – não me
lembro de ter visto sequer um único homem que se dedicasse a esse tipo de operação, embora
este circuito empregue um contingente enorme, talvez maior do que qualquer outro segmento
do mercado tomado isoladamente (como o de animais, de alimentos já cozidos para consumo
imediato, de calçados, de roupas, de cachaça, de tabaco, de bebidas, de livros e materiais
escolares, de ferramentas). Não disponho de dados quantitativos, não cheguei a produzi-los,
mas me parece seguro afirmar que as vendedoras desse “pequeno comércio” de alimentos
básicos eram, no mínimo, várias dezenas em mercados de porte menor, como Wa Sèk, e
provavelmente algumas centenas num mercado maior, como Kwa Fè, a cada dia de mercado,
em qualquer época do ano.60 Em Porto Príncipe, esse contingente alcança proporções
vertiginosas (ver algumas estimativas em Locher 1975).
Como já mencionamos, esse tipo de “pequeno comércio” [ti komès] é de fato pequeno no
valor de cada transação individual, pequeno no tamanho das porções vendidas e do dinheiro
mobilizado em casa compra/venda, mas é colossal no tamanho das multidões que ele mobiliza.
Madame Dodo opera nesse nicho. Ela vende produtos diversos, praticamente todos comestíveis
(as exceções são caixinhas de fósforo, sabão em barra e sabão em pó, que às vezes ela tinha
mas nem sempre, além de son de ble, que é comestível mas não destinado ao consumo humano,

59
Madame Dodo me mostrou um saco de arroz branco dizendo que pagava 145 dolà por ele, pois comprava a
kredi [crédito], fosse lajan nan men [“dinheiro na mão”] pagaria menos. Após vender o saco inteiro, tirava
165, lucro de 20 dolà que podia ser de 25 caso tivesse lajan nan men (aqui o lucro fica em torno de 13%).
60
Estudos mais antigos, como Métraux et al. (1951), mostram uma variação importante entre a safra e o “tempo
morto”, porém a agricultura comercial para exportação definhou, é muito difícil ser contratado como mão de
obra no campo (os jovens da região interessados em conseguir esses trabalhos vão buscá-lo na RD, em especial
na região de Constanza). Hoje a temporalidade dos fluxos de dinheiro e aquecimento do comércio é marcada
por outros eventos, como o início das férias escolares, a volta às aulas, dias de festas importantes, entre outros.

95
é usado para engordar porcos). Arroz (de diferentes qualidades), açúcar e óleo são os passam
em maiores quantidades pela sua mão, estão sempre presentes. Além desses, ela também
costuma vender milho moído, farinhas de trigo e de mandioca, sal grosso, vemisèl, spaguetti,
caldo maggi, salame, enlatados (leite, leite condensado e molho de tomate), às vezes arenque
seco. Seguindo o ritmo das safras, ou seja, apenas durante algumas semanas ou meses
específicos, ela vende também diferentes tipos de feijões, pimentões, cenouras, tomate,
mandioca e pequenas quantidades de abacate. Vende ainda biscoitos doces e salgados, e balas
– a seção das balas e pirulitos, dispostos sobre uma cesta, é gerida por sua filha que costuma
acompanhá-la, Nawoz, de 12 anos. Esse tipo de pequeno comércio de produtos alimentícios
sortidos é muito comum. Em qualquer mercado público no Haiti, será possível encontrar aos
montes mulheres dedicadas a esse ramo dos alimentos básicos. Não há itens de preço
inacessível, todos são produtos de consumo popular, e compõem uma parte significativa da
dieta local.61

11 Tina cortando uma barra de sabão no mercado de Belladère.


Foto: Felipe Evangelista.

61
Ao qualificá-los como “acessíveis”, queremos com isso dizer que são produtos consumidos cotidianamente
por pessoas que são malere [“pobre”/“desafortunado”]. Malere é a condição comum, popular, compartilhada
por todo mundo que não pertence à elite. É um termo corriqueiro, no qual as pessoas se reconhecem e brincam
umas com as outras, diferente do termo pòv [“pobre”/“miserável”] tem um sentido mais forte, menos inclusivo,
refere-se a uma situação de pobreza mais grave que a do simples malere. Palavras como kraze e razè (ambas
significam, ao pé da letra, “quebrado”) se referem a momentos de dificuldade aguda de pessoas que não estão
sempre naquela situação. Em condições extremas, a compra desses produtos básicos pode se tornar difícil ou
até impossível, mas isso é incomum. Em uma vizinhança malere como Lakaniyt, boa parte desses produtos
poderão ser encontrados na maioria das casas, pela maior parte do tempo.

96
Há outros alimentos básicos que passam menos por esse circuito, com destaque para as
bananas e o amendoim, ambos amplamente cultivados na região, em parte para consumo
próprio, em parte como fonte de renda, em uma lógica de distribuição que canaliza essa
produção das áreas rurais do Plateau Central para os grandes centros urbanos através das
madanm sara. Esse mesmo tipo de circuito, onde as madanm sara vêm reunir os produtos da
terra, até então uma produção dispersa, em unidades maiores, para transportar a longas
distâncias, funciona também (embora em uma escala aparentemente menor que a da banana e
do amendoim) para outros produtos como milho, gergelim, abóboras, batata, inhame, batata-
doce, mandioca e cenouras. Como todas essas espécies são cultivadas na zona da pesquisa, o
acesso a estes alimentos se dava mais como fruto do próprio trabalho familiar, ou como
presentes circulando entre vizinhos, embora possam também ser comprados no mercado.
Assim, o “pequeno comércio” voltado para consumidores finais coexiste com o comércio
comandado pelas madanm sara, voltado principalmente para os grandes centros urbanos, e
proporções diferentes de cada produto podem ser absorvidas por um ou outro circuito.
Voltemos então à operação de divisão de grandes sacos em unidades menores (gode e
mamit), a base do pequeno comércio praticado por Madame Dodo. A principal unidade de
medida para sólidos é o gode. Ele é usado para todos os grãos, como arroz, açúcar, feijão, sal e
farinhas, entre outros. É uma vasilha padrão com cerca de 400ml (volume estimado quando
cheia só até a altura das bordas, da forma como as pessoas de fato o usam a capacidade é
significativamente maior), objeto bastante difundido, toda machann tem seu próprio gode, e
esses potes têm sempre uma aparência similar, são metálicos, possuem duas abas laterais,
lembram uma caneca só que com muito menos profundidade, e com o diâmetro muito maior.62
Depois do gode, a unidade de medida mais importante é a mamit. Uma mamit equivale a
sete gode. A mamit já existiu como um recipiente físico, tanto Métraux (1952), como Mintz
(1963) e Bazabas (1997) mencionam a mamit como um objeto fabricado em metal, de origem
norte-americana, e era usado em dois tamanhos, grande [gwo mamit] e pequena [ti mamit].
Eu mesmo não sei se hoje em dia esses objetos continuam em circulação e uso em outras
partes do Haiti, mas nunca cheguei a ver uma mamit em sua forma física.63 Em todos os

62
Além desse objeto específico, gode é também o nome dado para copos de plástico não-descartáveis [copos de
vidro recebem outro nome, vèt], bem como para outros recipientes mais largos, usados para tomar banho (não
há chuveiros, a água fica em baldes e é atirada sobre o corpo manualmente, com a ajuda desses potes de
plástico). Mas só o gode padrão, de metal, é usado como medida nos mercados.
63
Após alguma insistência da minha parte, Jaklin me mostrou um pote de margarina, de plástico, que estava
servindo como vaso de planta, cuja capacidade em volume devia ser próxima a sete gode, e me disse “pronto,

97
mercados que frequentei, a mamit é uma unidade de conta abstrata, usada com muita frequência,
e válida para tudo que é mensurável através do gode (a medida de sete gode equivale à antiga
mamit em sua versão grande – ignoro quantos gode caberiam numa pequena mamit, uma vez
que essa unidade já não é mais de uso corrente).
Para tornar mais claro como essa abstração chamada mamit é usada nos mercados que
frequentei, vejamos um exemplo concreto: se uma cliente pede três mamit de arroz, a vendedora
contará 21 (ou seja, 3 x 7) gode bem cheios. O arroz (ou o que estiver sendo medido) contido
em cada gode é despejado num outro recipiente, tipicamente uma sacola plástica (similar aos
sacos de supermercado embora mais resistentes e grossas, e sem nada escrito ou desenhado,
toda preta ou cinza – essas sacolas também são compradas e vendidas nos mercados), o processo
se repetirá 21 vezes. No fim, a sacola portará o equivalente a três mamit, que segundo Madame
Dodo é o limite da capacidade dessas sacolas plásticas (com uma mamit e meia comentei com
que ela já me parecia estar cheia demais e a ponto de rasgar, o que Madame Dodo desmentiu,
me chamando de ignorante [egare], e me corrigindo sobre a capacidade real das sacolas).
Os preços são dados em gode e mamit, as pessoas compram nessas unidades, sendo que o
gode é uma unidade mínima, indivisível (no preço pago por quem compra, mas não como
unidade de cálculo para as machann). Já a mamit pode ser fracionada ao meio, ou seja, pode-se
comprar meia mamit, o que se mede com três gode plenos, e um último parcialmente cheio. O
gode inteiro deve estar com a altura do arroz (ou o que estiver sendo medido) bem acima do
limite de suas bordas. Segundo Jaklin, se o gode não estiver suficientemente cheio, a machann
terá roubado seu cliente, uma vez que ele não receberá tudo aquilo pelo que pagou. (À frente
teremos a oportunidade de ver como é polissêmica a noção de “roubo”.)
Esse jogo entre recipientes concretos e medidas abstratas caracteriza muito do que ocorre
nos mercados haitianos, onde é raríssimo o uso de instrumentos de medida tais como balanças
(exceto para algumas carnes frescas) ou fitas métricas (que, contudo, costureiros/as têm sempre
à mão). Boa parte dos produtos que, para o consumidor final, são medidos via gode (uma
medida de volume), no estágio imediatamente anterior, quando nas embalagens mais volumosas
compradas pelas revendedoras, eram medidos por peso (p. ex., sacos de 25 kg).
Isso introduz um elemento de imprevisibilidade nas contas, pois sacos com 25 quilos de
peso nem sempre dará o mesmo volume em mamit / gode. Essa variação é menor no caso de
grãos como o arroz, onde num saco de 25 kg é difícil que a diferença ultrapasse dois ou três

isso é uma mamit”. Seguramente não se trata do mesmo recipiente descrito por Métraux ou Mintz, que
aparentemente já foi muito comum no Haiti.

98
gode. Mas no caso do sabão em pó, produto mais suscetível à compactação, a variação pode
chegar até a uma mamit inteira. Para as machann que operam com muito pouco capital, essas
diferenças são significativas. A margem de lucro envolvida nesse processo de fracionamento é
tão pequena que quando se tem o azar de pegar um saco com tantos gode ou uma mamit a
menos, pode-se sair no zero a zero ou até mesmo no prejuízo.
É de chamar a atenção a competência das machann para calcular volumes. Madame Dodo,
que nunca frequentou escola, não aprendeu a ler nem escrever, sabe bem quantas mamit e
quantos gode cabem neste ou naquele saco. Quando eu lhe perguntei quanto é a diferença de
preço entre um saco inteiro de arroz (25 kg) e o mesmo saco após ser fracionado por ela em
pequenas porções, eu esperava receber uma resposta em dinheiro, mas ela disse “ao todo dá uns
cinco gode, mas o que fica para mim, pessoal, fica em torno de dois gode e meio por saco”.
Acontece que ela sempre compra o arroz a crédito, como um empréstimo, e o valor que ela
devolve à loja [magazen] é “dois gode e meio” maior do que o valor que eles originalmente lhe
emprestaram, ou seja, metade do lucro fica com ela, a outra metade é pagamento de juros pelo
empréstimo, que “é como uma garantia para eles”, nas palavras dela.
Como tantas outras ti machann, Madame Dodo costuma calcular seus gastos e lucros mais
nessas medidas correntes de volume, tornando posterior o cálculo em dólares haitianos (ou em
gourdes, o que dá na mesma).64 Esse cálculo em volume é a forma mais corrente de controlar
entradas e saídas de mercadorias, mas os empréstimos em espécie, por outro lado, são
calculados em termos de dinheiro propriamente dito.
Atendo-nos ainda ao caso do arroz, com essa margem de lucro tão curta e com o grande
número de revendedoras, seu preço tende a sempre encontrar um ponto estável, uma
padronização entre todas as machann que vendem no mesmo mercado e no mesmo dia. Não
que haja qualquer tipo de organização formal entre elas. Ocorre que todas vendem com uma
margem de lucro baixa demais para que qualquer uma delas possa se sustentar cobrando menos,
assim como não é viável aumentar sua margem de lucro individualmente quando há multidões
ao redor vendendo a mesma coisa por um preço menor.
É certo que qualidades diferentes redundam em preços diferentes. O arroz branco (cujos
sacos indicam origem na indústria da ajuda norte-americana, vários são marcados com a sigla
USAID) é mais caro, enquanto o cabesit (um tipo de arroz quebrado, que é como um sub-

64
No caso do arroz Djako (mais barato que o arroz branco importado), o saco de 25 kg foi estimado por ela
como, em média, 7 mamit e 2 gode (que dá 7 x 7 = 49, + 2 = total de 51 gode). Se o lucro dela gira em torno
de 2 a 3 num universo de 51, a taxa de lucro fica, aproximadamente, entre 4% e 6%.

99
produto do arroz industrializado na RD para consumo dominicano) é uma opção mais
econômica. Mas entre as machann a variação de preço é mínima, a tendência é que todas
cobrem o mesmo preço tanto pelo arroz branco quanto pelo cabesit (e a ampla maioria delas
possui ambas, além de outras variedades intermediárias).
Os preços de determinados itens podem variar bastante ao longo do ano, de acordo com o
tempo das respectivas safras. Mas essas flutuações são rapidamente niveladas no mercado. Num
primeiro momento, uma mudança no preço do saco vendido pelas magazen pode ser repassada
pelas revendedoras em proporções ou em velocidades diferentes. Eu acompanhei pessoalmente
uma ocasião em que o preço do saco (25 kg) de arroz subiu de 140 para 145 dolà. Por um breve
momento, os preços no varejo variaram, porque ainda havia muitas machann revendendo arroz
de sacos comprados pelo preço anterior e àquela hora da manhã nem todas estavam inteiradas
do aumento. Mas essa variação nos preços – que, aliás, era pequena65 – não durou nem um par
de horas. No fim daquele mesmo dia, o preço no varejo já encontrara um novo ponto estável,
compartilhado por virtualmente todas as revendedoras, como se todas conspirassem para
acompanhar juntas as flutuações e aumentar (ou baixar) os preços em uníssono.

12 Banca no Mercado de Belladère.


Foto: Felipe Evangelista

65
O preço da mamit foi 22 para 23 dolà, ou seja, de 110 para 115 gourdes, aumento que, na cotação da época,
equivalia a oito centavos de dólar americano (de U$ 1,77 para U$ 1,85).

100
Maior que o gode e a mamit está uma outra medida, o barik, que equivale a 40 mamit (que
é o mesmo que 280 gode). Essa medida também parece derivar de um recipiente físico padrão
que desapareceu em sua forma concreta, mas persistiu enquanto unidade de conta (talvez em
alguma parte ainda existam os barik que originaram a medida, mas de novo, eu nunca os vi).
Essa medida é grande demais para ser usada no comércio de varejo, destinado a consumidores
finais. Seu uso é mais vinculado ao circuito das madanm sara, quando estas compram (ou
enviam algum ‘secretário’ [sekretè] para comprar em nome delas) direto dos produtores,
costumam comprar em barik. Por envolverem grandes volumes de mercadoria e de dinheiro,
são operações menos corriqueiras. Não só os tempos entre uma e outra venda dessa monta são
mais espaçados (por vezes uma única vez ao ano, por ocasião da colheita) quanto a própria
temporalidade dos pagamentos também é outra.
Descrevo uma dessas vendas, a de uma colheita de amendoim de Evens, feita por Jaklin.
O comprador era um homem que agia como secretário de outra mulher, chamada Samanta, que
não cheguei a conhecer. Os arranjos foram feitos dias antes, quando foi combinado o preço
pelos dois barik que ele vinha comprar. Ele pagou 2.500 dolà (12.500 gourdes) em adianto, e
combinou quando viria buscar a carga, três dias depois. Quando ele veio já era noite. O
amendoim foi despejado na terra, formando um montinho. Com um gode, Jaklin começou a
contagem, que fez na frente do rapaz. Ela enchia o gode e despejava no saco, contando em voz
alta, de 1 até 70, e então recomeçava a contagem. Foi do 1 ao 70 oito vezes ao todo (8 x 70 =
560, ou seja, 2 barik = 80 mamit = 560 gode). Essa contagem fluiu com naturalidade para ambas
as partes, sem hesitação alguma, como se o cálculo lhes parecesse autoevidente, ninguém
precisou parar para fazer contas. O resultado final foi costurado em três sacos, dois grandes e
um terceiro menor. Ele apoiou os sacos tanto sobre a cabeça quanto nos braços, agradeceu, e
seguiu o seu caminho, carregando com impressionante destreza os volumes consideráveis,
caminhando por sendeiros irregulares, sob a luz da lua, até desaparecer da vista, dentro da
noite.66

66
Esse tipo de operação, vendas medidas em barik, é típica para produtores rurais. Para Madame Dodo, que não
cultiva terra alguma, o uso dessa medida é improvável, pois as operações que caracterizam o seu comércio são
de outra ordem de grandeza, se localizam em um ponto diferente no processo de fracionamento contínuo que
caracteriza a economia popular haitiana.

101
Nota sobre as origens do capital
Como se forma um capital que torne uma empreitada comercial viável? Essa é uma
questão fundamental para as comerciantes no Haiti. Há muitas formas possíveis, e cada uma
possui um estatuto moral distinto.
Para Madame Dodo, o jaden de mandioca oferecido por seu vizinho foi o primeiro
elemento a introduzi-la em um encadeamento de formas sucessivas de crédito, das quais ela
nunca saiu. Neste caso, parece claro que a intenção do vizinho era ajudá-la, dar-lhe algo com
que pudesse começar a trabalhar, que era também um voto de confiança para aquela jovem que,
notadamente, não tinha a quem recorrer. A fabricação de kasav para venda, a partir dessa
mandioca ‘adiantada’, foi sua primeira entrada, ainda na adolescência. Uma entrada minimalista
em termos dos valores monetários envolvidos, o pagamento que ficou pendurado como dívida
não era tão alto. Logo, ela começaria a acessar outras fontes de crédito, não apenas em produto,
mas também em dinheiro.
A própria Madame Dodo estabeleceu relações relativamente estáveis com determinados
cambistas e agiotas, o que foi e é fundamental para ela, mas parte do seu capital é também
gerido através de outras formas de crédito, notadamente o dito crédito rotativo.67 Seus formatos
mais conhecidos nos mercados haitianos são os chamados sòl e sabotay.
A situação de Jaklin, por outro lado, era um pouco melhor. Sua condição familiar era mais
estruturada, ela tinha “pessoas atrás de si”. Começou acompanhando sua mãe, vendendo os
produtos dela. Depois, como veremos no capítulo seguinte, passou a vender para sua sogra, que
a auxiliou para que começasse a fazer comércio por conta própria. Relações próximas com
gente que tenha condições financeiras favoráveis é talvez a forma mais confortável para se
entrar no comércio. Empréstimos dessa natureza tendem a não cobrar juros, por vezes não
cobram sequer a devolução.68 Contudo, isso não significa que seja algo sempre tranquilo e

67
A literatura em inglês adota a sigla ROSCA (Rotating Savings and Credit Association) para tornar o fenômeno
comparável em diferentes partes do mundo. De fato é um modelo que, com pequenas variações, pode ser
encontrado em diversas partes na África, na Ásia, nas Américas e no Caribe. Ver a coletânea Ardener &
Burman (1995), que inclui um artigo pioneiro de Geertz [1962].
68
Mesmo dentro da subcategoria “empréstimos entre parentes”, existe uma diversidade de arranjos e acordos,
sei de parentes que cobravam juros uns dos outros. Também entre os pagamentos sem devolução existe
diversidade interna, desde fluxos de dinheiro que num primeiro momento são anunciados como empréstimos,
mas cujas dívidas geradas, por um motivo ou outro, desaparecem sem terem sido (integral ou parcialmente)
quitadas, até os fluxos de dinheiro que desde sua origem foram conceitualizados como “presentes” [kado].
Entre os “presentes”, possuem um estatuto diferente, por exemplo, aqueles que vêm de pai/mãe para filha/o e
aqueles que vêm de um homem cortejando uma mulher (no Haiti, vigora o pressuposto de que se um homem
deseja ter relações sexuais com uma mulher, dar presentes a ela é parte necessária do jogo – cf. Lowenthal
1987). Ambos implicam em obrigações recíprocas entre quem dá e quem recebe o presente, mas os conteúdos
dessas obrigações são profundamente distintos num e noutro caso.

102
suave. As tensões intra-familiares vão muito além de questões relacionadas a dinheiro, mas
também é óbvio que os fluxos de dinheiro por si mesmos possuem alto potencial para gerar
tensões e conflitos, para hierarquizar determinadas relações, para explicitar preferências e
descasos. Conseguir dinheiro emprestado com parentes pode gerar conflitos com outros
parentes que se sintam preteridos por aquela transação, inveja e retaliações. O mais comum é
que tais transações sejam feitas de forma privada, sem alarde.
As alternativas ao dinheiro de parentes e amigos também são complexas. Como já
sabemos, o ti komès depende em grande medida de fluxo de empréstimos contraídos “na mão
de” gente conhecida por prestar esse serviço (algumas das quais também são machann, mais
velhas e bem-sucedidas, comparativamente ricas), frente aos quais é fundamental manter um
bom nome. Crédito e confiabilidade estão sempre conectados, mas essa forma de crédito onde
o credor, de alguma forma, profissionalizou-se neste papel (ainda que o exerça na
informalidade) e mantém um olhar avaliativo atento sobre as pessoas que acessam o sistema,
compartilhando informações sobre as más devedoras, é apenas uma possibilidade entre outras.69
A entrada considerada mais desvantajosa de todas é aquela que se faz sem dinheiro
nenhum, pegando todas as mercadorias a crédito [en avans] para quitá-las num certo prazo.70
Como um comércio por consignação, esse é o tipo de arranjo onde a comerciante corre, corre e
corre só para gerir as coisas dos outros. Como tantas vezes escutei no mercado, “essas coisas
que eu estou vendendo não são minhas”. Nada é dela, tudo é emprestado, e ela, estando
responsável pelas coisas alheias, assume sozinha o risco por tudo que possa dar errado, assume
a obrigação de garantir que tudo seja vendido, retirando para si margens de lucro ínfimas. Tanto
no caso do dinheiro emprestado em espécie quanto no caso das mercadorias avançadas, existe
cobrança de juros [ponya], no primeiro caso o valor retornado será maior que o valor
originalmente emprestado, no segundo o preço posterior pago pela mercadoria será mais alto
do que se o pagamento fosse feito à vista.71

69
Não tenho profundidade de dados sobre estes agiotas, apenas escutei falar deles pelas próprias machann. A
ideia de que eles avaliam, de forma mais ou menos organizada e sistemática as pessoas a quem emprestam, é
uma inferência dos comentários a respeito de como ficar mal falada no mercado é algo que fecha todas as
portas. Do ponto de vista das machann, os agiotas, pelo menos em alguma medida, parecem trocar informações
e agir de forma orquestrada, em conjunto (ainda que, repetimos, informalmente).
70
O termo en avans é usado para todas essas transações onde um lado já quitou sua parte, e a outra parte (seja o
pagamento, seja a entrega da mercadoria) fica pendente, prometida para um futuro próximo.
71
Curiosamente, a palavra ponya significa tanto “dinheiro emprestado com juros” quanto “punhal”. Quando
alguém contrai uma dívida nociva (possivelmente sendo enganado no processo), diz-se que tomou um kout
ponya, expressão traduzível tanto como “golpe de punhal” quanto por “golpe de juros”.

103
Outra fonte importante é o crédito rotativo. É a forma menos hierárquica de todas, e não
tem nenhum tipo de juros embutidos, o que se paga é o que se recebe. Cada sòl tem uma “mãe”
[manman-sòl], a pessoa que propôs e convidou as participantes, que coleta os fundos e organiza
sua distribuição. Ser “mãe” de um sòl não é uma atividade remunerada (existem casos de mães-
do-sòl que retiraram uma comissão para si, mas isso é considerado uma modalidade de roubo,
condenado com veemência). O eventual prestígio é a única recompensa pelo trabalho. 72 Desde
um ponto de vista financeiro a manman sòl paga e recebe exatamente o mesmo valor que todas
as outras participantes. Cada uma paga uma cota por período até que chegue a sua vez de receber
a sua “mão”. Os períodos mais comuns são de uma semana, quinze dias, ou um mês. 73 Assim,
num sòl de 100 dólares haitianos e 20 participantes, cada uma pagará sua cota durante as 19
“mãos” alheias. Quando chegar a vez da sua mão, ela receberá, contando com o pagamento de
sua própria cota, 2.000 dólares haitianos [100x20].
A ordem das mãos costuma ser combinada previamente, cada participante sabe desde o
início se a mão que lhe caberá será a quinta, a décima terceira ou a vigésima. No caso de um
sòl com 20 participantes (o número médio de participantes fica entre 10 e 20), cujas mãos são
pagas a cada 15 dias, que é um espaçamento temporal comum, a rotação total levará quase um
ano (20x15 = 300 dias), o que enseja um planejamento de médio prazo. Em todo caso, não é
raro que participantes troquem suas mãos, o que a princípio só pode ser feito havendo acordo
de ambas as partes. Alguém pode pedir para atrasar sua vez se, por exemplo, um motivo
qualquer a impossibilite de viajar em tal data, para a qual o dinheiro estava previsto, ou pedir
um adiantamento, por exemplo, se surgiu alguma emergência. Muita coisa pode acontecer,
nesse ponto os arranjos são flexíveis e abertos às demandas individuais de cada participante,
que via de regra se conhecem umas às outras, e conversando chegam aos seus acordos. Por
outro lado, o valor de cada mão é inflexível, ele é definido desde o início do sòl. Não se têm
mãos de valores diferentes, mas caso queira, a mesma pessoa pode pegar duas (ou três, ou
quantas quiser) mãos no mesmo sòl, o que não é uma ocorrência tão rara. Naturalmente, neste

72
Federico Neiburg (comunicação pessoal) conta que em Porto Príncipe as mães do sòl (ou sabotay) ficam com
1 dolà, pelo serviço prestado na gestão do dinheiro coletivo. Essa prática não é aceita na zona de Belladère.
73
Existem grupos de crédito rotativo cuja rotação é bem mais rápida. Segundo minhas interlocutoras, eles
recebem o nome de sabotay, as mãos são diárias, ou seja, quem entra num sabotay paga todos os dias, e todo
dia alguém recebe. Os sabotay são bastante comuns nos mercados de Porto Príncipe, mas não na região onde
se deu minha pesquisa, onde a menor quantidade de dinheiro em circulação dificulta a participação em grupo
com um ritmo tão acelerado. Como o próprio ritmo dos mercados é semanal (Kwa Fè) ou no máximo bi-
semanal (Beladè), fica claro como é difícil a viabilidade de um arranjo do tipo sabotay.

104
caso, o número de cotas a pagar em cada turno será igual ao número de mãos a receber. A
mesma pessoa pode também participar de mais de um sòl simultaneamente.
Após o fim do ciclo, o grupo se dissolve. Há novos grupos sendo formados e dissolvidos
o tempo todo. A falta ou atraso no pagamento mancha o nome de quem não pagou. Sòl é coisa
séria, não se deve atrasar. Muitas vezes as pessoas pedirão dinheiro emprestado de outras fontes
para não deixar de cumprir essa obrigação no prazo. Quando as participantes do sòl convivem
umas com as outras cotidianamente na vizinhança ou mercado, o que é mais regra que exceção,
precisa haver um motivo muito forte para que um atraso seja tolerado, ela precisa estar passando
por dificuldades sérias. Cito um exemplo concreto: uma mãe cujo filho adolescente estava numa
van que sofrera um grave acidente, o garoto corria risco de vida, quase perdeu a perna, teve que
ser operado, e para o nível econômico de sua mãe, as contas hospitalares eram astronômicas. A
próxima mão do sòl foi dada a ela, e depois disso, ela teve muita dificuldade para pagar as mãos
seguintes. Esse atraso foi tolerado sem qualquer reclamação, pelo contrário, as pessoas se
informavam periodicamente da situação do garoto no hospital, e cada qual ajuda como podia a
essa família. Para completar o sòl, sempre houve outra participante disposta a cobrir a
contribuição dela, como um tipo de empréstimo pelo qual esperavam ser pagas de volta, mas
num futuro indeterminado, apenas quando a condição da devedora (e, neste caso, também do
filho dela) estivesse melhor.
As pessoas avaliam a situação uma das outras o tempo inteiro. Isso fica claro na urgência
com que as dívidas são cobradas ou na tolerância para esperar. Quando reconhecem que a
situação de alguém é tão grave que o seu atraso seja legítimo, as pessoas serão solidárias, mas
normalmente apenas uma dificuldade excepcional justificará isso.
Idealmente, se a manman sòl convidou alguém que não deveria, uma caloteira [koken,
visye, pa serye], a mãe do sòl é responsável por seu erro de avaliação, e deverá cobrir o calote
para não prejudicar as outras participantes, assim como deverá cobrir em casos de atraso, pois
a pessoa que espera a sua mão não aceitará pegar o valor incompleto.74
Instituições bancárias também organizam seus próprios sòl, seguindo o modelo popular.
Um dos maiores bancos do Haiti, o Sogebank, possui uma filial que trabalha com
microfinanças, braço voltado aos segmentos menos favorecidos da população, chamado

74
Se o calote viesse da própria manman sòl, essa seria uma ofensa tão grave que ela dificilmente poderia
continuar residindo na mesma vizinhança, teria que desaparecer. Mas eu nunca escutei nada nesse sentido,
cheguei a formular a pergunta como algo hipotético (as respostas que recebi embasam a frase anterior), mas
não tenho nenhum indício de que isso já tenha acontecido de fato por aquelas bandas.

105
Sogesòl. Quando o sòl é organizado por bancos, eles sempre cobram uma taxa, levam algo. No
caso do Sogesòl, ao qual Jaklin já recorreu, era um ponya pequeno na opinião dela, pegavam
apenas 100 gourdes em um sòl de 1.000 dolà (ou seja, 5.000 gourdes, que dá 2% do total).
Outras instituições cobravam valores bem mais altos.
Como parte de projetos de educação financeira atuantes na região, virtualmente sempre
com um importante envolvimento de organizações internacionais, um modelo similar ao sòl foi
fomentado com o nome de mytiel. Nesse modelo, as participantes pagavam suas cotas para que
uma delas recebesse a quantia integral, de forma rotativa, tal como no sòl. A diferença é que,
enquanto o sòl é um tipo de organização popular e independente, onde as pessoas não esperam
nada além de pagar e receber, o mytiel é também um tipo de grupo de discussão e de formação.
Cada grupo recebe um nome, escolhido coletivamente na reunião.75 Todas as participantes se
encontram presencialmente nos dias de pagamento, passam por dinâmicas de grupo que
culminam em um tipo de debate, no qual cada uma conta o que pretende fazer com o seu
dinheiro quando chegar a vez da sua mão, e as outras opinam sobre a qualidade dos
investimentos, sugerem alternativas se for o caso, conversam sobre quais mercadorias para
revenda parecem promissoras e quais não, conversam sobre como gerir e assim por diante.76
Segundo Jaklin, algumas evitam compartilhar muita informação, dizem apenas “o meu dinheiro
[que será pago quando chegar a vez dela no mytiel] vai passar tão quente pela minha mão que
vocês não vão ver nem a cor dele”, querendo com isso dizer que as mercadorias que ela vier a

75
Por exemplo, o nome do último mytiel de que Jaklin participara é Pa dekouraje, “não se desencoraje”. Quando
eu perguntei se os sòl também têm nome, Jaklin disse que “sim, se quiserem podem batizar também um sòl,
mas se não quiserem não precisa, não precisa dar um nome”. Seu sim me soou mais como uma possibilidade
teórica. Em todos os sòl que vi as pessoas participarem, nunca ouvi o nome do sòl sendo dito de forma
espontânea, assim como não presenciei nem tive notícia do batismo de sòl.
76
Tais projetos parecem querer associar o microcrédito com formas de organização coletiva. A consultora da
USAID Donna Plotkin, em seu belo estudo “Madanm Sara (1989), International Traders of Haiti” lamenta a
falta de formas de organização coletiva no Haiti, de associações, de sindicatos. O sindicato que ela registrou
agia de forma muito similar às agências de viagens. Não havia uma liderança organizada, parecia cada uma
por si. A pauta haver conservado sua atualidade para as organizações trabalhando cerca de 30 anos depois. No
caso dos projetos contemporâneos, na zona de Belladère, não tive nenhum contato direto com eles, apenas sei
por Jaklin que existem blan que aparecem nessas reuniões, mas não sei qual função executam. Houve uma
reunião enquanto eu estava lá, ela não quis ir, tinha outros planos, e mandou sua filha Caslin no seu lugar. Não
era a primeira vez que Caslin ia participar no lugar dela. Caslin voltou reclamando amargamente dessa reunião,
por que fizeram um macarrão com molho de tomate para oferecer às participantes. Não havia ninguém
separando as porções nos pratos, cada pessoa serviu seu próprio prato como bem entendeu. Eram mais de 20
pessoas. Quando foi chegando o final da fila, o molho foi minguando, e para as últimas pessoas a se servirem,
entre elas Caslin, já não havia molho absolutamente nenhum, “apenas um resto de macarrão velho e seco”,
que algumas pessoas aceitaram, em pequenas porções, já que mesmo do macarrão sobrava pouco. Caslin se
recusou a comer aquilo. Saíra de casa por volta das 10 da manhã e agora que voltara já eram 4 da tarde, sem
ter comido nada. Jaklin ficou indignada, dizendo que “essas pessoas não sabem viver” [yo pa kon viv]. É
notável que a ideia de “vida” mobilizada neste contexto tem um sentido de viver junto, viver como saber
compartilhar.

106
comprar não ficarão muito tempo em posse dela, que não se preocupem porque antes que
pisquem os olhos ela terá dinheiro para pagar de volta. Esse tipo de justificativa responde a uma
demanda, como as pessoas continuarão pagando suas cotas do mytiel é um tema colocado em
debate.
Além desses modos de rotatividade institucionalizados (seja instituído nos moldes
tradicionais e populares, que em sua informalidade possuem um formato pré-definido e bem
conhecido, seja em projetos estruturados formalmente, desenhados por consultores
especializados, e fomentados por organizações internacionais), existem ainda outras formas de
rotatividade mais ocasionais e improvisadas, como o caso citado em que Jaklin e uma amiga
combinaram de fazer suas viagens de compras a Porto Príncipe em revezamento, apenas uma
iria e compraria pelas duas, economizando assim o dinheiro de uma das passagens. O dinheiro
da viagem era compartilhado meio a meio, assim como as mercadorias trazidas eram dividias
ao meio assim que chegavam em casa. Para que uma compre pelas duas, as chances de dar certo
são maiores caso elas comercializem os mesmos produtos, como acontecia com Jaklin e sua
amiga. É preciso que aquela responsável por comprar pela outra conheça aquilo que está
comprando, ou então que compre estoques já previamente escolhidos por quem fez a
encomenda. Arranjos deste tipo são improvisos cujas formas concretas são imprevisíveis, os
combinados variam de caso a caso, e teoricamente podem envolver mais pessoas, embora
pareça improvável que esse tipo de revezamento envolva mais que três amigas. É necessário
um nível de confiança na outra parte que não é fácil ter com muita gente (consideravelmente
maior do que num arranjo institucionalizado como o sòl, onde o comportamento das outras
partes é muito mais previsível, e a margem para erros de comunicação e de entendimento é
nula), além das dificuldades logísticas que seriam enfrentadas pela pessoa que tivesse que trazer
estoque demais desde Porto Príncipe.
Outro arranjo do tipo, embora neste caso não seja um revezamento, acontecia quando a
sogra de Jaklin a mandava a Porto Príncipe para que, além de comprar seus próprios estoques,
também fizesse compras para ela. Ela financiava os custos da viagem, e deixava o dinheiro
certo para que ela voltasse com mercadorias específicas – o que ela quisesse trazer para si
mesma, teria que pagar com seu próprio dinheiro com a única (mas importante) vantagem de
não gastar o dinheiro da passagem.
Tanto num caso quanto no outro, Jaklin já se aproveitou do arranjo com seus próprios
improvisos pessoais, sem conhecimento da outra parte. Ela pegava o dinheiro da viagem e partia
antes da data combinada, em segredo, fazendo compras apenas para si mesma, e voltando no

107
dia seguinte. De volta em casa, revendia esses estoques até refazer o dinheiro original da viagem
(ficando ainda com uma sobra guardada, um extra, em mercadorias), e então partia de novo,
como se estivesse indo pela primeira vez. Como a combinação das datas dessas viagens era
flexível, ela entende que sua apropriação pessoal de um dinheiro cuja finalidade era coletiva
não prejudicava em nada a outra parte, pois ela fazia a viagem de fato usando o mesmo dinheiro
combinado, trazia tudo direitinho. O pior que acontecia (do ponto de vista da outra parte) é que
sua ida a Porto Príncipe para cumprir o destino original do dinheiro demorava alguns dias a
mais para acontecer, não era nada grave, não tinha grande importância, não estava roubando
ninguém. Ela acredita nunca ter sido descoberta em relação a essas andanças sorrateiras, assim
como crê que sua amiga talvez possa já ter feito o mesmo, ela não se importaria se fosse o caso,
77
mas nunca chegou a ficar sabendo. Diferentes desses arranjos efêmeros e improvisados, o
formato bem definido do sòl faz com que suas participantes saibam o que esperar (embora
mesmo assim, às vezes, o inesperado possa acontecer).
Por fim, há relatos de pactos com diversos seres, como os lwa, que concederiam capital
inicial à pessoa que entra na transação com eles, cobrando a dívida correspondente anos mais
tarde, via de regra com a própria vida da pessoa. Esse tipo de transação levanta toda uma série
de outras questões morais e espirituais que não podemos desenvolver aqui, mas às quais
voltaremos no terceiro capítulo.

Mais algumas facetas do ‘pequeno comércio’ praticado por Madame Dodo.


O grosso das compras de abastecimento realizadas por Madame Dodo acontecem em solo
dominicano. A maioria dos seus produtos são adquiridos no mercado de Carrizal, situado

77
Está claro como a maleabilidade de roteiros e de datas se relaciona com o controle da informação e seu eventual
ocultamento. A despeito da frequência com que as pessoas –parentes, amigos, vizinhos– perguntam “onde
você está indo?”, ou talvez por isso mesmo, ninguém parece ter qualquer intenção de manter as pessoas à sua
volta de fato bem informadas sobre todos os seus paradeiros, e não só quando isso implicaria em expor
comportamentos questionáveis. Em muitas circunstâncias, muitas pessoas tentarão despistar a curiosidade
alheia independente disso. No caso do comércio, a proteção da informação tem o sentido adicional de que “se
todo mundo souber o que você está comprando e por quanto você vende, se todo mundo souber quanto dinheiro
dá, eles irão lá tomar esse comércio da sua mão”. Mas mesmo que não haja nenhum segredo comercial em
jogo, desconversar discretamente ou mentir sobre os próprios paradeiros é um tipo de prudência, um cuidado
amplamente tomado. Ao mesmo tempo, há casos em que informar seus paradeiros é uma medida de segurança.
Para isso, serão escolhidos interlocutores específicos. Viajando a Porto Príncipe com quantias consideráveis
de dinheiro, Jaklin costumava ligar de diferentes pontos no caminho, no desejo que seu marido e seus filhos
soubessem exatamente onde ela estava, tanto para tranquilizá-los quanto porque a informação poderia ser
valiosa caso algo ruim lhe acontecesse. Na volta, perguntada sobre a mesma viagem por, digamos, um vizinho,
ela poderia dizer que foi numa missão de igreja a Lascahobas ou Mirabelais. Em sua visão, se ela já foi e já
voltou em segurança, não há porque ficar dando satisfação dos lugares por onde realmente andou.

108
exatamente sobre a linha fronteiriça. Embora oficialmente seja um mercado dominicano, com
galpões onde chegam caminhões dominicanos trazendo produtos dominicanos que são
vendidos em pesos dominicanos, trata-se de um lugar que qualquer haitiano pode acessar sem
necessidade de passar pelos guardas dominicanos, sem ter documentos checados nem propinas
a pagar. Para quem vem do lado haitiano, o mercado de Carrizal fica antes do grande portão de
metal que marca o limite entre os dois países, como se estivesse num tipo de limbo.
Na RD, Madame Dodo se limita a comprar estoques, não vende nada, nem em Carrizal
nem alhures, pois não tem o menor desejo de lidar nem com os cobradores ‘ladrões’ que atuam
no mercado de Elias Piña, nem com os guardas da CESFRONT, nem com civis xenófobos. Ela
evita sequer passar, mesmo enquanto pedestre sem mercadorias, do ponto onde está Carrizal,
para penetrar mais fundo em terras dominicanas. Mesmo com as filhas vivendo lá, Madame
Dodo não as visita, são sempre elas que vêm ver sua mãe no Haiti.
Embora também pratique a operação descrita algumas páginas acima, de comprar grande
para vender pequeno dentro do mesmo mercado, para Madame Dodo isso é uma parte
minoritária do seu comércio. O grosso consiste em trazer unidades maiores da RD para revender
em unidades menores no Haiti. Num caso a subdivisão pode ser realizada num espaço de poucos
metros, no outro se cruza uma fronteira internacional (que fica a pouco mais de 10 km do
mercado de Belladere), mas a lógica é muito parecida. Madame Dodo pega, por exemplo, dois
sacos de cabesit em Carrizal. Uma semana depois ela volta trazendo o dinheiro para pagar ao
“patrón” [essa foi a palavra usada por ela quando me explicava o ponto] a compra anterior,
com uma margem de juros similar às praticadas pelas magazen no Haiti. A única diferença é
que quando as compras e a revenda se dão no mesmo espaço, pode-se comprar um saco de cada
vez, pagando no mesmo dia, dando o dinheiro pelo último quando for retirar o próximo saco,
caso se vendam vários sacos no mesmo dia (e não é raro que se venda dois ou até três desses
sacos grandes por dia de mercado), enquanto que trazendo de Carrizal, ela traz dois ou três
sacos de uma só vez, para economizar a viagem, e pelos quais poderá pagar alguns dias mais
tarde, a depender dos termos do acordo com cada patrón.
O comércio de Madame Dodo é todo movido à base de adiantamentos, o que é uma
necessidade incontornável para as comerciantes menos capitalizadas. Ao mostrar suas
mercadorias, ela afirmava, “tudo isso que você está vendo aqui, nada é meu, é tudo emprestado,
tudo ainda falta pagar.” A situação é tal que ela se vê tomando conta de coisas que não são suas,
mas que estão sob sua responsabilidade e risco. Quando há roubos ou outras perdas, é ela quem
arca com o prejuízo, integral. Como ela própria colocou a questão:

109
“Tem gente que pega emprestado e não paga, por isso não conseguem novos
empréstimos. É preciso ter 'sim-e-não' [wi-a-non, ou seja, é preciso manter sua palavra].
Quem pega empréstimos e não paga é chamado de koken. Você precisa saber que aquele
dinheiro não é seu. Mesmo que algo dê errado, um acidente, um ladrão, quem emprestou
não tem nada a ver com isso, você tem que se virar para pagar. Não faz muito tempo, me
roubaram dois sacos de cabesit, que estavam guardados no depósito... mas o patrón não
perdeu dinheiro, quem perdeu fui eu, estava na minha mão quando roubaram, é
responsabilidade minha. Ele não pode levar prejuízo quando quem foi roubada fui eu, não
estava na mãe dele. Então eu pago, e assim nós continuamos amigos.”

Um bom patrón negocia, dá à machann alguma margem temporal, e Madame Dodo


cultiva com zelo suas boas relações com eles. Assim ela recebe parte de seus estoques
adiantados [en avans], mas isso vale para alguns poucos itens específicos, não passa nem perto
de cobrir a totalidade de suas compras. Ela também precisa de dinheiro vivo quando chega para
se abastecer Carrizal, mas dificilmente ela tem em mãos a quantia necessária, quanto mais em
pesos dominicanos.
A forma para conseguir esse dinheiro é uma outra modalidade de empréstimo, que, neste
caso, exige pagamento ao fim do mesmo dia. São arranjos que ela tem com alguns cambistas
que trabalham na fronteira (há algumas poucas mulheres, a grande maioria são homens, tanto
haitianos quanto dominicanos, geralmente bilíngues). Além de trocar gourdes, pesos
dominicanos e dólares americanos (todos operam, no mínimo, com essas três moedas), esses
personagens também trabalham como agiotas. Chegando em Carrizal, Madame Dodo pega
adiantado, com um desses cambistas, um valor x em pesos dominicanos, que ela lhe devolverá
com juros, ao fim do dia, em gourdes haitianos. Às vezes acontece de ela não ter vendido o
bastante naquele dia para pagar integralmente o que deve. Quando esse é o caso, ela empresta
dinheiro (de preferência com amigos que não cobrarão juros, mas isso nem sempre é possível)
para completar o que falta, e remete ao cambista/agiota o valor combinado.
De fato, o comércio dela é totalmente dependente dessa dinâmica de empréstimos, de
relações de crédito que, muitas vezes, engendram umas às outras. É comum para Madame Dodo
contrair novos empréstimos quando vence a data de um pagamento para o qual ela não tenha o
dinheiro completo. Assim, ela se envolve em múltiplas relações de crédito simultâneas, está
sempre devendo a quatro ou cinco credores diferentes, e com cada um destes tem prazos a
observar. Isso faz com que a mercadoria que ela tem 'emprestada' em suas mãos não possa ficar
parada, é obrigatório que ela esteja saindo continuamente. “Obrigatório” foi o termo empregado

110
pela própria Madame Dodo (assim como por diversas outras machann), quando estava em um
estado de saúde frágil, e apesar da febre, do cansaço e de sua idade relativamente avançada,
seguiu com suas jornadas no mercado como se nada tivesse acontecido, dizendo resignada: “sou
obrigada” [mwen oblije].
Em apenas uma ocasião eu a vi deixar de ir ao mercado, quando ela caiu gravemente
doente, e não tinha condições de sequer manter-se em pé. Ela ficou nesse estado por cerca de
20 dias, prostrada em casa, com febre alta, recebendo visitas de vizinhos que vinham rezar
juntos pela recuperação dela. Mesmo nesse momento de crise, ela mandou sua filha mais velha,
Nataly, buscar as coisas no depósito e vendê-las no lugar dela. Nataly fez isso durante uma
semana, mas após esse tempo voltou para a região de Pedro Corto (RD), onde vivia com o seu
marido. A mercadoria ficou parada, portanto, por quase duas semanas – essa pausa já
comprometeu em alguma medida os recursos de Madame Dodo, que se esforçava ao máximo
para restabelecer-se o quanto antes (sendo examinada por amigas treinadas em enfermagem,
tomando remédios e alimentação especial, e principalmente através de orações e pedidos a
Deus, atividade que mobiliza também a vizinhança).78
Sei que pessoas da vizinhança foram enviadas para falar em nome da Madame Dodo com
alguns de seus credores, mas ignoro se e quantos dentre eles foram solidários e aceitaram
receber, dessa vez, depois do prazo combinado (imagino que sim, se houvesse problemas
provavelmente haveria falatório a respeito). O que eu acompanhei foi a angústia dela, dizendo
repetidamente a Deus que, se fosse a Sua vontade, que a levasse embora de uma vez, mas que
se a sua hora ainda não tivesse chegado, que Ele a deixasse voltar logo ao seu ofício. Noto ainda
que, nas conversas entre as pessoas que acompanhavam o estado de saúde de Madame Dodo,
transparecia a esperança de que, em alguma medida, aquilo que não pudesse ser resolvido com
dinheiro, seria resolvido com lizay.
Já deve estar claro a que ponto uma mulher como Madame Dodo, como ‘pequena
comerciante’ descapitalizada e dependente de dinheiro e de estoques recebidos a crédito, tem
sua vida pautada pelo ritmo contínuo dos mercados semanais. Todas as quartas e sábados ela
passa o dia no mercado de Belladère, às quintas no mercado de Kwa Fè. “Passar o dia” aqui
significa que ela saía de casa entre cinco e meia e seis da manhã, e chegava de volta pouco antes

78
Cheguei a sugerir a Jaklin que nós dois fossemos buscar as coisas de Madame Dodo e vender por ela, até que
ela se restabelecesse, sugestão que Jaklin negou prontamente: “Nem você nem eu sabemos exatamente o que
ela tem guardado em cada depo, as coisas já ficaram paradas lá por vários dias... e se alguma coisa tiver
sumido? Se tiverem levado algo? Se fizéssemos o que você sugeriu, teríamos que pagar qualquer diferença
que apareça, não posso tomar essa responsabilidade para mim.”

111
do pôr do sol, compreendidos nesse intervalo tanto o tempo que ela passava efetivamente
sentada no mercado, quanto os deslocamentos de ida e volta, quanto a busca das mercadorias
no depósito no começo do dia e o retorno para guardá-las de novo ao fim da jornada. Ela
costumava frequentar também o mercado de Baptiste, ia tanto a pé quanto a cavalo, mas agora
que chegou a uma idade mais avançada, considera impossível continuar fazendo isso (esse
mercado fica situado na parte alta de uma região montanhosa).
Poder-se-ia argumentar que o comércio não é, para ela, um trabalho de tempo integral, no
sentido de que, a partir do momento em que ela atingiu certa idade, só a ocupa durante três dias
na semana. A isso seria necessário responder duas coisas. Primeiro, a atividade de comprar (em
Carrizal ou alhures) para formar seus estoques, bem como de buscar e negociar empréstimos
necessários, tomam no mínimo mais um dia por semana, podendo sob algumas circunstâncias
chegar a ocupar todos os dias restantes. Segundo, e mais importante, um conceito como
'trabalho de tempo integral' não faz sentido nesse contexto, onde salários fixos mensais são
praticamente inexistentes, cada pessoa procura como pode meios de conseguir dinheiro, e a
maioria exerce diversos ofícios simultânea ou alternadamente, como por exemplo, um
agricultor, que é também criador de animais, que é também mototaxista, que é também pastor,
e que é também mecânico. Não são exemplos aleatórios, eu de fato conheci vários homens que
fazem todas ou quase todas as funções citadas. Esse tipo de poliatividade é mais regra do que
exceção. As pessoas se esforçam para compor sua renda extraindo de diversas fontes, muitas
vezes marcando recursos desta proveniência para aquele tipo de despesa.
Mas Madame Dodo era já uma senhora idosa, que não possuía terras para cultivar, nem
marido ou filhos adultos que ainda morem com ela.79 Tomando a casa como unidade produtiva
e de consumo, a casa de Madame Dodo tem essa forte desvantagem frente a quase todas as
outras da vizinhança: é uma das poucas que não possui nenhum “jardim” [jaden], que aqui
significa um pedaço de terra cultivada com alguma planta comestível e/ou comercializável. Na

79
Seus filhos adultos já haviam se mudado para suas próprias casas. O marido ela mandou embora porque não
estava de acordo com a forma como ele a tratava, neglicenciando as necessidades dela e da casa, chegando a
esconder não só dinheiro, mas também instrumentos que não queria compartilhar – quando ela descobriu que
ele construíra, no forro do teto, um pequeno esconderijo para ocultar alguns de seus itens pessoais para que
ela não pudesse usá-los na ausência dele, e encontrou lá dentro um facão, para ela, foi a gota d'água: “como
alguém pode ser tão sovina a ponto de esconder um facão?!” ela perguntou perplexa à sua comadre Jaklin. Ela
sabia há anos que seu marido tinha um caso com outra mulher, e isso ela vinha tolerando, mas que ele não
botasse quase nenhum dinheiro em casa e ainda por cima escondesse seus objetos de sua própria esposa e dos
seus próprios filhos, era ofensivo demais. Por isso ela o expulsou, e ele foi morar na casa de sua outra
companheira, com quem já tinha, a essa altura, outros cinco filhos. Pelo que pude constatar, a maioria dos (se
não todos os) filhos de Madame Dodo desprezam o seu pai.

112
casa dela, o seu comércio é a única fonte de renda (ela também atua como “missionária”
[mysionè] em sua igreja, mas essa atividade mais consome do que traz novos recursos).
Ela usa a expressão “na medida do gode” [a gode mezi a] para descrever seu ofício, sua
fonte de recursos. Como ela comentou comigo algumas vezes; “eu não tenho jaden, o comércio
é o meu jaden”, ou “a medida do gode é o meu jaden.”
Foi “na medida do gode”, sempre num tipo de comércio por consignação (na verdade um
comércio de mercadoria alheia recebida adiantada e para a qual não há possibilidade de
devolução, tem que ser paga integralmente), que ela conseguiu botar seus filhos na escola.80
Enquanto órfã que se criou à base da solidariedade de vizinhos, “sem gente atrás de si”, Madame
Dodo nunca frequentou a escola, não sabe ler nem escrever (exceto os números, que ela sabe
tanto anotar quanto consultar). Por desejar aos seus filhos um destino mais próspero que o dela
(que já se considera no fim de sua vida), oferecer-lhes oportunidades educacionais é uma
questão fundamental. Tirando os custos da alimentação diária, os gastos com escola
seguramente consumiram bem mais da metade do dinheiro que ela conseguiu levantar com o
seu comércio.81 A escola como imagem metonímica para falar dos gastos com os filhos é
recorrentemente evocada, por diversas machann, como a grande conta entre as contas que
aquele comércio intenta pagar.
Segundo suas palavras, Madame Dodo “fez 18 filhos no comércio”, oferecendo alguma
instrução a todos eles – todos, incluindo os menores, são mais escolarizados que a própria mãe,
todos os que estão vivos concluíram as classes de alfabetização (embora alguns leiam com
dificuldade) e um deles, Dyesèl, de 19 anos, não só terminou o ensino médio como fez também
cursos de informática e de inglês, sendo uma das raríssimas pessoas na vizinhança que
compreendia a língua inglesa sem nunca ter saído do país. Em 2016, Dyesèl foi mandado a
Porto Príncipe para continuar seus estudos. Sua mãe deposita muita esperança nele, acreditando
que pode ser ele “o filho que vai nos tirar da miséria”, que conseguirá um emprego, e
recompensará todos os duros esforços feitos para lhe oferecer uma boa educação.

80
Na entrevista gravada, ela soltou essa frase enigmática: “Botei todos eles na escola, que é para quando o diabo
chegar, levar só a mim, sozinha.” Logo depois, como se estivesse arrependida de ter me dito isso, remendou:
“Não, ele não vai me comer, porque eu sou evangélica [levanjil]... Diabo não come de verdade...”
81
Vivendo atualmente em casa própria, ela não paga aluguel, assim como não há energia elétrica nem água
encanada. Como acontece para a maioria da vizinhança, sua grande despesa cotidiana são os gastos gerados
pela alimentação, que seguramente consomem a maior parte dos seus recursos. Excetuando a alimentação, o
dinheiro que sobra é fundamentalmente destinado a despesas educacionais (gastos cuja temporalidade é anual)
e despesas médicas (cuja temporalidade é errática e imprevisível).

113
A crítica de Jaklin.
Na opinião de Madame Dodo, as duas coisas mais importantes para fazer comércio são
dinheiro e lizay. Quanto mais dinheiro disponível, melhor o comércio. “Para ter um belo
comércio é preciso ter muito, muito dinheiro.” Como ela tem pouco, seu comércio funciona à
base de empréstimos. Ela compra a crédito [en avans], em pequenas quantidades e de vários
fornecedores diferentes para montar seus estoques, que na avaliação dela são pequenos, assim
como ela também vende pequeno, no gode. É inevitável que parte importante de seus pequenos
lucros acabe sempre nas mãos de seus variados credores. Quando vence um prazo, se ela não
tem o dinheiro inteiro para pagar, é comum que empreste dinheiro com outra fonte para
completar o valor faltante. Assim, ela consegue rolar suas dívidas entre os patrón da RD,
fornecedores no Haiti e cambistas, nunca deixa de pagar, assim como nunca deixa de dever.82
Esse tipo de comércio que consiste em vender no retalho, no gode, estoques comprados
en avans, tanto na mão de algum patrón dominicano como também na mão de haitianxs com
quem mantém relações de klyan/pratik, na opinião de Jaklin é uma correria lamentável, que
paga mal e traz muitos problemas. Para ela, fazer comércio dentro do Haiti não vale a pena, só
compensa se for para “fazer sara” – comprar grandes carregamentos em Elias Piña ou direto
com os produtores, fretar um caminhão, pagar gente no caminho (desde subornos para guardas
até a compra da proteção vendida por máfias). Mas num comércio como o de sua comadre
Madame Dodo, “não tem nada, só preocupação”.
Ela oferece diversos motivos para justificar sua repulsa a esse tipo de comércio. Além de
trabalhosa demais para o pouco que paga, essa atividade é arriscada. O processo de rolamento
de dívida pode travar em algum ponto, por exemplo, quando há manifestações e a fronteira se
fecha, momentos em que os credores usuais se negam a fazer novos empréstimos porque “não
tem comércio”. Faltariam estoques para vender, enquanto prazos de dívidas já contraídas
venceriam, e nessa hora, Madame Dodo teria um problema sério.
Existe ainda a inconveniência de que, em caso de morte, um fardo será deixado sobre a
cabeça dos filhos. Além disso, as duas se entendem como missionárias, e não fica bem para
uma cristã [kretyen, que aqui tem o sentido de protestante, em oposição a katolik, “católica/o”]
ser cobrada em público, talvez até xingada no mercado, pois isso enfraqueceria a sua palavra e
por conseguinte a sua mensagem.

82
Esse estado de dívida permanente foi comentado por ela quando perguntei: “Você tem vontade de parar de
fazer comércio um dia?” “Vou parar no dia em que eu não tiver mais dívidas.”

114
Enquanto os cambistas “estão fazendo o dinheiro trabalhar para eles”, Madame Dodo seria
“roubada duas vezes”, uma quando troca o dinheiro (pois a cada conversão entre gourdes e
pesos o dinheiro perde um pouco do seu valor), a segunda nos juros pelo dinheiro adiantado.
Jaklin considera mil vezes preferível fazer comércio pagando à vista por seus estoques lajan
nan men [lit. “dinheiro na mão”] do que ficar pegando ponya. Na visão de Jaklin, Madame
Dodo tem a triste sina de precisar pegar ponya na mão alheia.83
É um desafio comercializar produtos que também se consomem em casa, ainda mais no
caso de Madame Dodo, onde pesa o fato de ela não ter jardim [jaden]. Ela precisa
constantemente pagar para comer, ao contrário de boa parte de seus vizinhos (como Jaklin) que
possuem uma autonomia maior, podendo ficar semanas inteiras sem comprar nos mercados,
alimentando-se do que plantam (bananas, feijões, batatas, inhame e milhete como as principais),
ou trocando pequenas quantias desses cultivos de subsistência por outros produtos desejados
para a preparação dos mesmos (como óleo, caldo Maggi, sal, açúcar, molho de tomate,
cebola)…
O comércio de retalho praticado por Madame Dodo não ultrapassa um nível que Jaklin
considera ainda muito baixo, é um comércio tonto [komès tenten], uma correria que não vale a
pena. A forma realmente vantajosa de fazer comércio no Haiti é movimentando grandes
estoques de produtos mais especulativos (como as bananas ou amendoim, que são os principais
cach crops da região), cujo fluxo principal se dá comprando produção local para vender nos
grandes mercados urbanos de Porto Príncipe e arredores.84 E esse tipo de comércio à longa
distância, do tipo sara, só consegue fazer quem tem dinheiro na mão.

83
Métraux et al. 1951 também menciona a forte preferência pelo comércio feito com dinheiro na mão frente ao
comércio por empréstimo.
84
O que nos motiva a qualificar determinados produtos como “especulativos” é o fato de que, ao contrário dos
itens que compõe o grosso do comércio de Madame Dodo, sua avaliação é mais incerta e variável. No caso
das bananas, dada a irregularidade das pencas e cachos, as avaliações de preço flutuam bastante, além das
variações próprias aos ciclos sazonais. Os fardos não são pesados em balanças, não existe uma unidade de
medida padrão, a avaliação é feita no olho, tanto da quantidade quanto da qualidade. Amendoins podem ser
medidos em gode para venda a preços razoavelmente uniformes (de novo, não no tempo, mas entre diversas
machann num dado momento específico). Contudo, as transações que envolvem quantias maiores
frequentemente usam embalagens não-padronizadas (sacos, de diferentes tamanhos e formatos), o volume é
medido no olho, o que abre uma maior margem de dúvida e negociação sobre o preço. Mesmo quando unidades
maiores (como o barik) são mensuradas com o gode, o preço negociado direto com o produtor está sujeito a
variar em função das condições de pagamento, da qualidade do amendoim, das relações entre as partes, e de
suas respectivas habilidades de negociação ou de “conhecimento” [konesans, lespri]. O preço dos vegetais
mais perecíveis também varia mais, pois a velocidade da perecibilidade torna a qualidade uma variável mais
importante, e também objeto de maior especulação (como no circuito de cebolas descrito por Mintz em Saint-
Raphael). A perecibilidade mais rápida pode colocar tudo a perder, mas as possibilidades de lucro são bem
maiores do que o que se costuma obter revendendo produtos agroindustriais mais padronizados como arroz e
açúcar importados.

115
As operárias na ponta da cadeia levam muito pouco, a tal ponto que é um desafio não
“comer o dinheiro” [manje lajan] – pois estão sempre passando pelas suas mãos quantidades
consideráveis de produtos que elas mesmas usam para alimentar as suas famílias, e que podem
estar em falta em suas casas. Não é fácil guardar ao fim do dia no depo estoques intactos quando
se passa necessidade em sua própria casa. Existe uma forte tentação a trazer uma mamit aqui,
outra acolá, daquilo que se precisa para comer em casa. Com isso, a conta não fecha. O lucro
que haveria já foi comido, o que – segundo argumenta Jaklin – nem todas percebem como
acontece, pois falta a disciplina de separar os estoques para venda (que, elas não cansam de
lembrar, estão apenas emprestados) da “provisão” [provisyon], ou seja, os estoques para uso
pessoal, para abastecer suas casas.

“É assim que as pessoas dizem 'ah, o dinheiro se perdeu na minha mão', 'puxaram o
dinheiro', 'ela/e tem baka', 'um baka fez o dinheiro ir embora'... mentira, não é verdade. Ela
foi e comprou dois sacos de arroz, por 460 dolà, um de açúcar por 230 dolà, dá 690 dolá.
Ela pega esse comércio e se senta no mercado. Então hoje ela vende uma mamit de arroz por
35 dolà, e um gode de açúcar por 12 dolà. E não vende mais por hoje. Ela vai pra casa, e
não tem provisão na casa dela. Tudo deu 47 dolà. Esses 47 que ela leva na bolsa não são
dela, porque ela comprou a crédito. Mas com esse dinheiro ela compra feijão, óleo, maggi,
(...epis?...) e pega 4 gode para cozinhar [e comer na casa dela]. Amanhã ela vai a Wa Sek.
Esse dinheiro foi cozido, ela não tem mais. Compra mais dois gode de café. Assim ela
estragou os 47 dolà que vendeu. Quando chega em Wa Sek, ela vende 2 mamit de arroz, 1
mamit de açúcar. Com o dinheiro que fez, compra mais feijão, mais óleo, pra fazer comida
em casa, e o dinheiro foi embora. Ela fez 4 dias de mercado e no fim, não tem dinheiro
nenhum na mão dela. Aí chega e diz, comadre, eu vendi tanto e o dinheiro sumiu, puxaram
da minha mão, foi tal pessoa pra quem eu vendi que tem baka... mentira, foi ela quem comeu.
Porque mesmo se você fizer 10 mercados, você estragou 20 dolà em cada um, foram 200
dolà que você estragou, e você comprou por 690 dolà. Vá ver o que você vai fazer...
problema dela, não soube gerir o comércio dela... quando você tem um comércio, precisa
gerir ele.” Jaklin, agosto de 2017.

Nessa fala, aparecem diversas figuras de linguagem correntes no crioulo haitiano, como
“comer” e “estragar” dinheiro, assim como a figura do baka, que é uma entidade malévola capaz
de assumir a forma de diferentes animais, e que puxa dinheiro alheio em benefício do seu dono,
como veremos adiante. Voltaremos mais à frente para desenvolver os temas morais que estão
implícitos tanto nas expressões estragar e comer dinheiro quanto em algumas formas do que se
entende como roubo. Por agora, o que nos interessa marcar é a crítica formulada por Jaklin a

116
respeito de uma separação defeituosa entre o dinheiro do comércio e o dinheiro da casa. Ela
afirma que as pessoas usam subterfúgios, como a figura do baka, para dar conta de erros de
cálculos das quais elas mesmas são culpadas.
Há muitas incertezas com as quais as comerciantes precisam lidar. A passagem de uma
escala de peso, usada pelos fabricantes, para outra de volume, usada pelas comerciantes
haitianas, contém seus riscos, como no caso do sabão em pó já citado – as propriedades físicas
do produto em si, por sua capacidade de compactação, cria uma disjunção entre volume e peso
que introduz um elemento de acaso, de difícil controle. À incerteza na transposição de medidas,
somam-se acontecimentos sobre os quais as comerciantes não têm controle algum e que
impactam diretamente o seu negócio, como no caso das manifestações que frequentemente
fecham a fronteira.85 Além de não poderem fazer suas compras nos depósitos dominicanos,
quando acontecem manifestações e bloqueios, os cambistas se recusam a fazer novos
empréstimos. Como consequência, essa modalidade de comércio que consiste no retalho das
mercadorias dominicanas efetivamente cessa por alguns dias. Existem ainda as flutuações de
preço, fenômeno sobre o qual as “pequenas comerciantes”, em oposição às madanm sara (sobre
as quais pesa esse estigma, a acusação de “esconderem” determinados itens para forçar uma
subida de preço antes de vendê-los – ver Métraux et al. 1951, Maguire 1991), não têm domínio
algum. Ainda que, a princípio, os aumentos sejam repassados aos consumidores finais,
mantendo as mesmas taxas de lucro, essas variações podem reduzir o consumo. Isso aumenta o
tempo que as mercadorias levam para sair, sem contudo alterar os prazos dos empréstimos, o
que, evidentemente, coloca mais uma vez essas revendedoras numa posição complicada.
Para comerciantes com capital de giro, tais percalços poderiam talvez ser enfrentados sem
causar grandes danos. Mas para as pequenas comerciantes como Madame Dodo, a margem é
mínima, e qualquer desvio pode colocar em risco a sobrevivência do seu negócio e a sua
capacidade de botar comida em casa. A crítica de Jaklin fala justamente dessa incerteza, da
dificuldade que é operar e cumprir seus prazos com uma margem curta, do quanto um dinheiro
tão exíguo exige de sua dona para não dispersar-se, para não “estragar” nem ser “comido” (essas

85
Nos períodos que estive em campo, aconteceram pelo menos quatro ocasiões em que a fronteira foi fechada
em meio negociações e reivindicações que, na ocasião, eram originados no Haiti. Não sei quão bem informadas
estavam as pessoas que me transmitiam essas notícias, mas elas diziam que não se tratava de uma iniciativa
governamental, que era um movimento popular – na vez em que a fronteira passou mais tempo fechada (quase
duas semanas), disseram que quem tinha fechado a fronteira era “o pessoal de Kwa Fè”, liderados por grupos
ligados ao contrabando. Embora aqui não tenha sido o caso, não resta dúvida de que, em diversos outros
momentos históricos, também aconteceram fechamentos dessa mesma fronteira por iniciativa de agentes
dominicanos, como mostra Despratel Cabral 2005.

117
expressões serão revistas à frente). É preciso muita disciplina e autocontrole para garantir lucros
mínimos, além de serem “obrigadas” [oblije] a manter uma atividade incessante.
Com essa crítica, concluímos a descrição deste circuito do pequeno comércio que teve
Madame Dodo como pivô. Vimos em que medida esse circuito depende de relações
interpessoais, ao mesmo tempo em que as cria. A forma como as pessoas gerem suas relações
são, de certa forma, parte do ofício. Essa proliferação de relações não deve deixar nenhuma
dúvida de que o comércio é, evidentemente, mais que apenas comércio.
Embora tenhamos nos esforçado para reconhecer a individualidade das personagens,
muitos dos fenômenos que descrevemos não são de forma alguma de ordem pessoal ou
idiossincrática. Os critérios de avaliação que vimos são usados por diversas pessoas, e seu
caráter compartilhado é justamente o que os qualifica como instrumentos de comunicação.
Tentamos tornar inteligíveis alguns dos termos de conversas das quais nossas personagens
participam. Da mesma forma, como consequência de uma posição econômica frágil, na qual
muitíssimas pessoas se encontram e da qual não é nada fácil sair, as dinâmicas de
endividamento como condição de possibilidade do comércio são generalizadas, infelizmente
(tanto do ponto de vista de Jaklin quanto de Madame Dodo – para além delas duas, a opinião
de que essa é uma condição dura e infeliz é amplamente compartilhada no Haiti). Com os jogos
de escala que possibilitam os lucros de que se alimenta o pequeno comércio, a passagem entre
diferentes medidas de volume e peso nos coloca diante de instrumentos que são, ao mesmo
tempo, únicos (em sua materialidade) e comuns (como unidades de conta). Esse duplo caráter
de recipientes físicos que são ao mesmo tempo materializações de um padrão abstrato colocam
dilemas particulares, abrem margens que são elas mesmas tema de debates morais, como
também o são as dívidas e sua gestão, bem como os modos de cobrança, ambos assuntos aos
quais voltaremos adiante. A gestão das incertezas é um campo em que as possibilidades são
muitas, há sofrimento envolvido, mas há mais que isso. No próximo capítulo, seguiremos os
passos de Jaklin em uma trajetória que ocupa um nicho diferente, onde a travessia da fronteira
rumo aos mercados da República Dominicana ganha uma grande relevância, e onde as
possibilidades são marcadamente diferentes daquelas do pequeno comércio.

118
2 ATRAVÉS DA FRONTEIRA
Este capítulo tem como principal objetivo descrever a experiência do deslocamento do
ponto de vista de madame Jaklin enquanto machann, ou seja, deslocamentos orientados pela
busca por mercadorias e por compradores, e as formas de transportar os objetos do comércio de
um ponto a outro. Diferente de Madame Dodo, cujo raio de ação é mais curto, desde a infância
Jaklin conheceu povoados dominicanos fronteiriços, acompanhando o comércio de sua mãe, e
foi até la capital para visitar parentes ainda em sua adolescência. Há uma relação intrínseca
entre cobrir distâncias maiores e a possibilidade de lucros maiores, o que implica no uso de
outras unidades de medida e/ou tipos diferentes de mercadoria, outros meios de transporte, e
manuseamento de diferentes moedas. Existe uma diferença significativa entre conhecer apenas
locais próximos à fronteira, que virtualmente todas as pessoas da região conhecem (inclusive
Madame Dodo, apesar de não gostar de sequer pisar no país vizinho), e entrar fundo em
território dominicano, percorrendo centenas de quilômetros até Santo Domingo. 86 Há diversas
modalidades de deslocamentos que atravessam a fronteira, desde o chamado “entra e sai”
[antre-soti] até as viagens mais complicadas e perigosas guiadas pelos chamados viewo, que
descreveremos em breve.
A essa altura já deve estar claro que cada comerciante estabelece suas rotas por sua própria
conta, mobilizando suas relações pessoais e seus conhecimentos particulares para definir seus
caminhos. Assim, cada uma estabelece roteiros únicos, e estes sempre podem mudar,
temporária ou permanentemente, em função de diversos acontecimentos.
Em certo sentido, meu esforço em descrever os deslocamentos de uma única personagem
pouco diz sobre os outros percursos feitos por outras comerciantes. Os trajetos em suas
especificidades são de uma diversidade infinita, e seu mapeamento completo é impossível. Mas
se em suas especificidades, o conhecimento dos caminhos desenvolvido por cada machann é
único, o reconhecimento da necessidade e a valorização desses saberes ligados à mobilidade

86
Pela estrada atual, a distância entre Elias Piña e a capital é de 242 km. A viagem feita nos guaguas (tipos de
vans e mini-ônibus adaptados, principal meio de transporte coletivo de longa distância na RD), leva cerca de
5 horas no sentido Santo Domingo-Elias Piña, e cerca de 1 hora ou 1 ½ hora a mais no sentido contrário. A
diferença existe porque os veículos vindos da fronteira haitiana são parados entre 10 e 15 vezes em chequeos
militares ao longo do caminho, onde os documentos dos passageiros que se supõe estrangeiros são checados,
às vezes também suas bagagens, às vezes alguns passageiros são impedidos de seguir viagem, às vezes isso se
resolve mediante negociação e pagamentos. Quando os veículos estão a caminho da fronteira com o Haiti,
raramente são parados. Hoje, dadas as facilidades de acesso, a maioria das pessoas de Elias Piña conhecem
Santo Domingo. Mas até meados do século XX, conhecer la capital era um sonho entre os habitantes daquele
interior, que só uma minoria chegava a realizar (Derby 1994, Dilla & Carmona 2010).

119
são disseminados.87 Se, por um lado, cada composição particular dos conteúdos daquilo que se
conhece é individual, por outro lado, é generalizada a noção de que existe algo chamado
“conhecimento” [konesans, ou lespri], que esse conhecimento é distribuído de forma desigual
(ninguém questiona a afirmação de que algumas pessoas conhecem mais que outras), e que
conhecer é condição sine qua non para a navegação no terreno, para cruzar caminhos, atravessar
passagens, para entender seus ritmos de abertura e de fechamento.
A expertise das machann para fazer caminhos, tanto para si mesmas quanto para os objetos
que transportam consigo, é uma dimensão fundamental na busca pela vida. A descrição dessa
singularidade revela concepções e tipos de práticas amplamente compartilhadas, bem como
situa de forma mais abrangente a importância da mobilidade para a atividade comercial nesse
universo. Acompanhando as viagens de Jaklin, colocaremos eventos de ordem nacional e
internacional lado a lado com percepções populares a respeito das transformações da região.

A arte de fazer caminhos e a sua instabilidade


Como nossos interlocutores haitianos, partimos do princípio de que a vida não é um dado,
é preciso ir buscá-la. O fato de que as pessoas digam o tempo todo que se trata de uma busca
não é banal. Busca implica deslocamento, movimento. O tema da mobilidade é incontornável,
assim como os meios de transporte usados em cada caso.
Atravessar o mar rumo a outros países é sempre uma possibilidade no horizonte, em
particular para os jovens. Tais viagens são feitas de avião, que é o mais caro e mais prestigioso
meio de transporte.88 Se a grande maioria das pessoas nunca entrou num avião, virtualmente
todos conhecem alguém que o fez. O avião povoa o imaginário como um símbolo de mobilidade
internacional. Como mostra a vasta literatura sobre a diáspora, há grandes contingentes de
haitianos vivendo no exterior.89 Esses fluxos humanos e as remessas de dinheiro que os

87
Para além do comércio, os jovens também gostam de afirmar seu conhecimento dos caminhos e dos lugares
por onde já passaram. Há ainda um saber prático, a habilidade para andar em condições desfavoráveis (em
noites sem lua, ou sobre a lama escorregadia, ou descendo barrancos íngremes) é cultivada sem ser
explicitamente formulada, só vindo a ser elaborada quando eu os acompanhava em caminhadas sob tais
condições desfavoráveis, ocasiões em que lhes custava uma boa dose de paciência esperar a locomoção do
blan, muito mais lento que eles.
88
A hegemonia dos aviões frente às embarcações marítimas como meio para sair da ilha é relativamente recente.
O aeroporto internacional de Porto Príncipe começou a operar em 1965 (Anglade 1975:219). Embora pouca
gente hoje viaje de barco, conheci dois sobreviventes de viagens em embarcações precárias que, em três
diferentes ocasiões, tentaram sem sucesso alcançar Miami entre o fim dos anos 1970s e começo dos 1980s.
Esse movimento em sua ponta norte-americana recebeu o nome pejorativo de boat people, e foi estudado,
entre outrxs, por Stepick 1982, Glick-Schiller 1990 e Richman 2005.
89
Há estudos sobre várias levas migratórias diferentes, e comunidades de migrantes haitianos em vários países.
Cito apenas alguns exemplos: Suriname (Joseph 2015), Guiana Francesa (Joseph 2015), Brasil (Joseph 2015,

120
acompanham são fundamentais para que se compreenda a inserção contemporânea do país no
cenário internacional. As remessas enviadas por pessoas trabalhando no exterior são hoje a
principal fonte de receitas no orçamento nacional haitiano. Para Karen Richman (2005), o Haiti
se tornou uma economia cujo principal item de exportação é mão de obra barata e precarizada.
A diáspora haitiana é um tema que toca em questões políticas delicadas e complexas que
não podemos ignorar, ao mesmo tempo em que nos cabe aprofundá-las aqui (pesquisas recentes
o fizeram de forma muito mais competente do que eu poderia – duas particularmente ricas em
dados empíricos são Joseph 2015 e Montinard 2019). Como uma pesquisa etnograficamente
situada em uma região específica do Haiti, o que me proponho a fazer é tratar dessa circulação
internacional da forma como ela aparecia desde a vizinhança de Lakaniyt, de onde eu vi pessoas
partindo e voltando, notícias, músicas e fotografias enviadas por migrantes, trocas de
informações sobre as condições de visto, os modos de chegar e as oportunidades econômicas
disponíveis em diferentes países.90
Os Estados Unidos continuam sendo o destino ideal para virtualmente qualquer jovem da
região, embora esse ideal seja dificílimo de ser alcançado. Por conta das políticas migratórias,
países da América do Sul são mais fáceis de chegar. Tanto como destino final quanto como
lugar de passagem, o Brasil foi bastante procurado no começo da década de 2010, mas na época
em que eu estive lá, já estava ofuscado pelo Chile. De todos os jovens que me contaram dos
amigos que tinham no exterior, todas as mães e pais que mencionaram filhos vivendo longe,
assim como entre os migrantes que voltavam ao Haiti de visita, creio que o país citado com
maior frequência foi o Chile.
A República Dominicana é um caso à parte. É um país estrangeiro muito mais acessível
que qualquer outro, pois não está lòt bò dlo (“do outro lado da água” - aqui, “água” é o mar). A
área onde se deu minha pesquisa é uma zona de fronteira a partir da qual a República
Dominicana pode ser facilmente alcançada de moto, em montaria animal ou mesmo a pé. É um
país presente no imaginário e na experiência da maioria das minhas interlocutoras. Os

Vieira 2017, Beaninger & Peres 2017, Montinard 2019) França (Bastide, Morin & Raveau 1974, Mooney
2011), Estados Unidos (Basch, Szanton & Glick-Schiller 1994, Glick-Schiller 1990, 1999, Chaffee 1994,
Richman 2005, Jackson 2011, Verna 2011, Montinard 2019), Canadá (Drotbohm 2011), Guadalupe (Brodwin
2011), Bahamas (Chaffee 1994, St. Jacques 2011), Cuba (Hume 2011, Cunha 2014). Noto que a bibliografia
aqui referida é uma amostra, está longe de ser exaustiva.
90
Um fato curioso que me parece digno de nota, e que escutei em diferentes ocasiões, é que entre os poucos
países que não exigem vistos de entrada para haitianos está Taiwan. O custo da passagem é astronômico e as
dificuldades linguísticas parecem enormes, além do que não há ainda um fluxo de haitianos estabelecido, que
certamente tornaria muito mais fácil a chegada de novos migrantes. Mesmo assim, conheci três jovens que em
breve pretendiam se aventurar e tentar a sorte neste país asiático, desbravando essa nova rota.

121
dominicanos [chamados de panyol ou dominiken] são os únicos estrangeiros que não entram na
categoria blan, palavra que em crioulo haitiano, além de nomear a cor branca, se aplica a todos
os estrangeiros nascidos fora da ilha de Hispaniola, ainda que sejam negros.91
Entre os meios de transporte terrestre, o mais comum são as motos, em sua esmagadora
maioria conduzidas por homens. Quase todos os adolescentes e jovens sabem dirigi-las. Elas
são de propriedade privada, as pessoas reconhecem os donos de cada moto, mas na prática o
exercício dessa propriedade individual não é rígido. Elas são compartilhadas, os rapazes as
emprestam uns aos outros frequentemente, elas passam de mão em mão. Não sei de ninguém
que tenha comprado uma moto nova, todas eram usadas.
Há uma grande variedade de condições entre a estrada asfaltada e os caminhos atravessando
morros, roças e riachos, pelos quais nenhum veículo motorizado terá chance de passar. A
palavra para estrada é route, na grafia francesa, ou wout, na grafia crioula. A estrada que passa
perto da área da pesquisa é a route departamentale RD31 (o equivalente a uma estrada estadual).
Construída originalmente nos anos 1930s, ela era a principal estrada entre as duas capitais,
Santo Domingo e Porto Príncipe. Ela se tornou um caminho secundário após a construção de
uma nova estrada, que passa por Jimaní, Malpasso e Fonds-Parisien, caminho mais curto,
embora sua construção tenha colocado maiores dificuldades técnicas.92
A perda de prioridade enquanto caminho principal foi concomitante à falta de manutenção.
Do lado haitiano, a estrada se encontrava num estado de deterioração lamentável antes das obras
de reconstrução em 2013. Embora atravesse uma cordilheira, a distância de Porto Príncipe a
Belladère é relativamente curta, são cerca de 100 quilômetros. As pessoas que conheci estimam
que essa viagem levava cerca de 12 horas (confirmando essa informação, o cônsul dominicano

91
Os estrangeiros de pele preta são chamados de blan nwa. Essa expressão fascinou alguns pesquisadores
brasileiros que não esperavam ser chamados de blan, como Baptista (2011) e Rosa (2016). Ao pé da letra pode
ser tomada como “branco-preto”, mas uma tradução mais precisa para blan nwa é “estrangeiro negro”. Joseph
(2015) mostra que, entre migrantes haitianos fora do país, existe debate a respeito da categoria peyi blan [“país
branco'”] - nem todos consideram que países como Brasil, Peru e Chile devam ser incluídos entre os peyi blan.
Neste caso, o termo blan comenta sobre diferenças de classe e ambientais, considerando que os países
verdadeiramente blan são apenas aqueles que são ricos e têm invernos frios (basicamente Estados Unidos,
Canadá e Europa). Mas visto desde o Haiti, um visitante estadunidense negro que não venha de uma família
haitiana é, sem nenhuma dúvida, um blan (nwa). Assim como os soldados vindos de países africanos que
integraram a missão da ONU – talvez os países de onde eles venham não seriam considerados blan por
haitianos que por lá vivessem, mas um soldado angolano que chega ao Haiti sem falar o crioulo haitiano é, de
novo sem margem de dúvida, um blan (nwa). Uso os parênteses apenas para marcar que na fala cotidiana não
é preciso especificar a cor, muitas vezes as pessoas dirão apenas blan.
92
Parte das dificuldades desse caminho é que ele ladeia o Lago Enriquillo, na RD, e o Lago Azuei, no Haiti, os
dois maiores lagos da ilha, cujos níveis de água, em ambos os casos, têm aumentado ao longo dos anos.
Segundo me informaram, do lado do dominicano a estrada teve que ser reconstruída quatro vezes, porque o
aumento das águas teria submergido partes dela. No Haiti, em Fonds-Parisien, havia algumas casas construídas
à beira do lago que se encontravam tomadas pelas águas. Cf. Mimi Sheller 2014.

122
Despratel Cabral relata que, em 2004, fez o trajeto de Porto Príncipe a Belladère em pouco mais
que 12 horas). Com a nova estrada asfaltada (com exceção de um pequeno trecho em que ela
desabou sobre o solo arenoso, ela está impecável), a mesma viagem foi reduzida para duas horas
e meia.
A estrada nova não tem exatamente o mesmo desenho da antiga, em alguns trechos ela
passa por pontos diferentes, como um lugar chamado Teras, que fica à beira da estrada antiga
(feita de terra e de pedras) e a cerca de 1 km do novo trajeto. Teras é o ponto com acesso à
energia elétrica mais próximo da casa de Jaklin. Saindo de lá, pegamos um caminho de terra
que no começo possui alguns metros de largura, podendo acomodar um caminhão (enquanto eu
estava lá, houve – não juntos, em ocasiões diferentes – pelo menos dois caminhões carregados
de contrabando que usaram esse local como esconderijo até que caísse a noite). Mais à frente,
o caminho se estreita, e os únicos veículos motorizados capazes de prosseguir são as motos.
Uma ladeira íngreme e pedregosa vem a seguir. A maioria das vezes, os rapazes preferem parar
suas motos logo antes, para conservá-las, e fazem o resto do caminho a pé. Alguns se aventuram
a levar suas motos para o outro lado, ainda que compartilhem a opinião de que isso reduz a vida
útil das mesmas.
Ao fim da ladeira, há um pequeno rio. Em condições normais, no ponto mais fundo da
travessia, a água mal bate nos joelhos de um adulto de altura mediana. Excepcionalmente,
quando chove muito, aumenta a altura e principalmente a força das águas, havendo inclusive
relatos de casos fatais de pessoas que foram arrastadas pelo rio sem conseguir chegar à outra
margem. Com o rio no seu nível normal, é possível atravessá-lo pisando em uma sequência de
pedras dispostas para esse fim, caminho usado pelas pessoas que desejam não molhar seus
calçados. Com frequência, as pedras ficam submersas se a água sobe um pouco ou são
lentamente arrastadas pela correnteza, ou bagunçadas por algum brincalhão, de forma que esse
caminho precisa ser refeito sempre. Assim, quando uma pessoa vem usando suas melhores
roupas (um domingo a caminho da igreja, por exemplo), mais que confiar no caminho pulando
de uma pedra a outra, o hábito é tirar os calçados e levantar as calças, ou saias, e se recompor
ao chegar ao outro lado. Em condições normais, as motos também são capazes de atravessar as
águas. Os motoqueiros têm inclusive a habilidade de guiar com ambas as pernas levantadas, e
com isso, quando desejam, conseguem cruzar pequenos rios sem molhar seus calçados.
Após o rio, a subida é mais suave do outro lado. Segue o caminho de terra, que é amplo
quando há pouca vegetação nos lados, mas em alguns pontos se estreita em meio à vegetação
fechada. Desse lado do rio, quase não se veem veículos motorizados, as pessoas se movimentam

123
a pé ou em montaria animal. É possível seguir por esse caminho – que em alguns trechos lembra
uma estrada de terra, em outros é tão estreito que se torna quase imperceptível em meio à
vegetação – até dentro da RD, caminhada que as pessoas estimam durar cerca de quatro horas
até atravessar a fronteira. Essas travessias ermas eu mesmo não conheci, me alertaram que não
é seguro. Atravessei a fronteira sempre pelo posto oficial, em Carrizal.
É difícil precisar em que medida esse caminho de terra batida foi criado por um esforço
consciente, ou se foi apenas um resultado das constantes passagens de pedestres, batendo a terra
com seus pés. A certeza é que se o dono de um dado pedaço de terra decide arar [sekle] para
fazer um jaden, ele pode destruir a golpes de enxada um trecho do caminho. Vi isso acontecer
algumas vezes, e ninguém (fora eu) parecia se incomodar com o fato. As pessoas apenas davam
a volta, e em pouco tempo a constante passagem de pessoas batia a terra a ponto de se tornar
identificável um novo trecho do caminho, contornando a parte recém-destruída. O mesmo
acontecia quando parte do caminho era destruído pela chuva ou pela erosão – logo se formava
um novo trecho do caminho evitando aquele ponto onde a passagem se tornara difícil.
A despeito de sua maleabilidade, esse caminho é chamado de gran chemen [“caminho
principal”]. Por ele passa o grosso do fluxo de pedestres e de animais de montaria. É um misto
de trilha com estrada de terra que se bifurca em vários pontos, ou seja, de certa forma ele é um
só, mas à medida que avança, ele se subdivide, e cada um dos ramos subsequentes continua
sendo, para as pessoas que habitam aquele trecho, o único “caminho principal”.
Em regiões como essa, não existe nenhum tipo de disposição retangular ou caminhos que
se cruzem em ângulos retos, nada que lembre a lógica espacial dos quarteirões. Mesmo que tal
disposição fosse desejada pelas pessoas – o que certamente não é o caso – seria de difícil
execução, dada a irregularidade do terreno. O desenho do caminho se orienta pela topografia,
contornando ravinas e outros obstáculos, seguindo um traçado que torna a circulação tão prática
quanto possível (lembrando que embora a região do Plateau Central seja menos montanhosa
que outras partes do Haiti, ainda assim, o terreno está longe de ser plano, é inevitável que haja
algum sobe e desce, em geral suave, mas em alguns pontos bem íngreme).
Esses caminhos orientam, ainda, os locais de construção das casas. Elas não estão
agrupadas próximas umas das outras, mas dispostas como se seguissem uma longa linha,
relativamente distantes umas das outras. Algumas delas ficam à beira do caminho, enquanto
outras ficam um pouco mais recuadas, às vezes (semi) ocultas por árvores ou por elevações no
terreno. As vantagens e as desvantagens de construir sua casa à beira do caminho ou em um
local mais recuado é um tema de debate entre as pessoas. Trata-se da busca por um equilíbrio

124
entre privacidade e visibilidade, entre o resguardo de olhares e presenças indesejadas por um
lado, e a necessidade de ser reconhecido e de receber visitas desejadas pelo outro.
As visitas entre as casas são um índice importe de prestígio. No caso de Jaklin, sua casa
anterior ficava mais afastada, o que em algum momento se tornou vergonhoso para ela, pois ao
receber convidados importantes tinha que conduzi-los “pelo mato” [nan raje] para chegar à sua
casa. Ainda que se tratasse de um trecho curto, não convinha que um pastor eminente (por
exemplo) precisasse sujar seus sapatos sempre que fosse visitá-la. Assim, ela convenceu seu
marido para que refizessem a casa à beira do gran chemen, onde vivem atualmente. Há uma
cerca viva e um portão de madeira (feito à mão pelos filhos dela) separando o caminho do pátio
frontal.
Muitas casas constroem tais anteparos à beira do caminho principal, sendo as cercas vivas
mais comuns, os portões frontais e as cercas de estacas menos, o uso de arame menos ainda.
Em todo caso, essa é a única parte cercada do terreno, as laterais e os fundos não são cercados.
Mesmo na parte frontal as cercas estão postadas apenas nos trechos imediatamente à frente das
casas (em algumas, há outras que não colocam anteparo nenhum), raramente cobrindo mais que
uma dezena de metros, enquanto o resto fica descoberto. Esses anteparos não impedem a
entrada de ninguém. Qualquer pessoa ou animal que deseje entrar, pode fazê-lo facilmente sem
necessidade de abrir o portão ou pular a cerca. A eficácia da barreira é basicamente moral (e
mesmo quando a barreira física está ausente, a barreira moral ainda existe). Vizinhos e parentes
íntimos entram por qualquer lado, mas um visitante não íntimo deverá se anunciar e esperar
pela autorização do dono da casa para fazer uma entrada respeitável, pelo portão frontal.
Essa distinção entre um modo de circulação mais formal e outro mais solto encontra ainda
outras manifestações – se expressa no vestuário, nos modos de anunciação, e nos próprios
caminhos, na oposição entre o “caminho principal” [gran chemen] e as passagens “pelo mato”
[nan raje]. Essa é uma oposição feita com frequência pelas pessoas, por exemplo, criticando
um enterro que foi feito “no mato”, ou ao propor que se mude de um tipo de caminho para o
outro em função das circunstâncias. Caminhar pelo mato é preferível sempre que se vai fazer
algo moralmente condenável – é por onde fogem os ladrões, é onde se encontram os amantes,
é por onde se esgueiram pessoas que não querem ser vistas.
Isso não é tudo. Atividades cotidianas triviais também passam pelo mato: o caminho para
as roças, os caminhos até as fontes d’água e os rios, atalhos que podem encurtar a distância
embora coloquem maiores obstáculos (tomar um atalho “pelo mato” pode fazer sentido quando
se trata de uma distância curta, mas para ir mais longe o caminho principal é muito mais rápido

125
e prático). Para dar comida aos animais, é costume amarrá-los em um ponto durante parte do
dia, depois trocá-los de lugar [chanje bèt, lit. “mudar o(s) animal(is)”], amarrando-os em outro
ponto – passando, também, pelo mato. Mais importante que essa familiaridade cotidiana
mantida em alguma medida por praticamente todas as pessoas (embora de formas bastante
variáveis) é o fato de esses espaços onde a natureza cresce à revelia do controle humano
concentram potências que podem ser exploradas tanto para tratamento de doenças e outras
disposições corporais indesejáveis quanto para infligir males a pessoas que se queira prejudicar.
Saber andar nan raje está relacionado ao conhecimento botânico, não só saber identificar as
plantas, mas também como preparar banhos, chás, emplastres e venenos eficazes tanto para uso
de/em seres humanos quanto em animais.93
Como vemos, há correspondências entre caminhos atravessados e as motivações para o
deslocamento. A separação entre lotes não-contíguos exige deslocamentos constantes (feitos
em roupas de trabalho, as mais velhas, rasgadas e sujas) da parte dos cultivadores, que
trabalham em parcelas dispersas, muitas vezes com quilômetros de distância umas das outras.
Não há escolas próximas, as escolas primárias ficam a alguns quilômetros, que mesmo crianças
pequenas percorrem a pé (e o fazem em uniformes impecáveis, limpos e engomados), e as de
nível médio, superior e técnico ficam em outras cidades para as quais precisam se mudar, ainda
que de forma intermitente, os jovens que pretendem cursá-las. Enterros e velórios são grandes
ocasiões sociais, cujo raio de atração é bastante amplo. Também são comuns as vigílias, grupos
de oração que se reúnem geralmente na casa de alguém que passe por dificuldades,
peregrinações nas festas de santos e outras viagens de ordem religiosa, como intercâmbio entre
igrejas e viagens feitas para pregar, para “espalhar a palavra de Deus”, muitas vezes frutos de
promessas feitas antes. Por fim, as visitas às casas de pessoas conhecidas: quanto mais distante,
mais prestigiosa é a visita, e reciprocamente, quanto mais próxima a casa (não apenas próxima
da casa de origem, mas também dos caminhos frequentados pela pessoa em questão), mais o
tempo passado sem fazer visitas é tomado como um índice de desprestígio e falta de
consideração.
De fato, além dos fenômenos naturais (como acidentes geológicos ou o curso dos rios),
provavelmente os pontos de orientação na paisagem mais usados são do tipo “casa-de-fulano-

93
Como não tenho, no escopo desse texto, condição de aprofundar o tema, limito-me a apenas apontar o fato de
que essa etno-botânica possui vastas interseções com o conhecimento a respeito de seres sobrenaturais que
habitam locais e plantas específicas (como os bambuzais, por exemplo), e que também podem ser mobilizados
tanto para fins curativos quanto para atacar inimigos.

126
de-tal”. É a partir dessas referências que se definem os caminhos, tanto pelo desejo de passar
na casa de alguém quanto pelo desejo evitar o risco de encontros indesejados não passando
perto de tal casa (o que pode ocorrer por motivos triviais, como, por exemplo, alguém que
ganhou ou colheu cinco espigas de milho e contorna a casa de outra pessoa com quem, caso
parasse para conversar, se sentiria moralmente obrigada a presentear pelos menos duas das
cinco espigas).
Como já deve estar claro, as pessoas caminham bem – para deslocamentos a pé, qualquer
distância menor que (aproximadamente) cinco quilômetros é “logo ali”, com mais que isso vira
“caminhar um pouquinho”, e nada a menos que 10 ou 15 km em terreno acidentado seria
chamado de “longe”. O conhecimento do qual as pessoas se orgulham é bem mais exato e
complexo do que o conhecimento do caminho principal, que é básico. Saber andar é um valor,
assim como conhecer diferentes “países” [peyi]. Embora a palavra peyi possa ser traduzida
como “país”, em seus usos práticos, cotidianos, ela costuma ser usada para diversas extensões
territoriais bem menores. Uma vizinhança é chamada de peyi em relação à qual pessoas de outra
localidade, a alguns quilômetros dali, já são chamadas de estrangeiras [etranjè], embora ambas
se considerem do mesmo peyi caso estejam lidando com alguém que vem de mais longe, como
um tipo de lógica geográfica segmentar, composta por camadas sucessivamente englobantes
(como uma cebola). Marcelin (2019) desenvolve um argumento similar quanto à multiplicação
de escalas a que o conceito de sangue se presta, começando pela família mais imediata,
passando a parentescos cada vez mais distantes, até o ponto em que se assemelham localidades
inteiras a famílias (são de fato comuns afirmações do tipo “aqui na zona tal, todo mundo é da
mesma família”), até os laços que unem o país inteiro e sua diáspora numa mesma família
haitiana, compartilhando o mesmo sangue.
Existe um tipo de cosmopolitismo camponês, de valorização desse conhecimento
geográfico. Como outra manifestação correlata dessa valorização, os guias são figuras
importantes, e é comum que, quando alguém pretende se aventurar por “países” que não
conhece (inclusive haitianos andando dentro do Haiti), recrute alguém com conhecimento da
área para atuar como guia. No caso dos caminhos que atravessam a fronteira dominicana, esses
guias são chamados de viewo [provável transformação da palavra viejo em espanhol].94 Os
viewo são figuras reconhecidas, responsáveis por conduzir grupos de haitianos que desejam

94
Moral (1961:355) atribui a adoção dessa palavra no crioulo ao retorno de levas de haitianos que foram cortar
cana em Cuba, no fim do século XIX e começo do XX. Joseph (2015) discute os usos práticos do termo viewo
e de sua antítese kongo entre haitianos que chegaram ao Brasil.

127
entrar na RD sem documentação, sem conhecimento da língua e sem conhecimento do terreno.
Alguns garotos da vizinhança fizeram essas viagens, incluindo dois filhos de Jaklin.95
Entre os casos que me contaram, havia não só longas andanças pelo mato no meio da noite,
mas confrontos e fuga de grupos de bandidos dominicanos conhecidos como tígueles, incluindo
a negociação pela libertação de um refém capturado pelos tígueles, a passagem por locais
desertos e distantes de todos os pontos de chequeo dos guardar dominicanos, o roubo de uma
manada inteira de cavalos em uma pequena localidade dominicana para percorrer parte do
caminho, com o subsequente abandono dos animais na manhã seguinte para que o grupo
seguisse por outros meios. A atividade de guia nessas condições, conduzindo grupos de até 20
pessoas, é um trabalho bastante especializado. Exige não só coragem intrépida e audácia, mas
um fino conhecimento do terreno, o domínio fluente do castelhano tal como falado na RD, o
conhecimento direto de pessoas amigáveis e a localização de suas casas e de outros abrigos
possíveis, uma percepção acurada dos trechos e dos momentos em que é (e quando não é) segura
a locomoção via moto, via transporte público, via carros ou caminhões fretados, a cavalo e a
pé, quais agentes precisam ser subornados ao longo do caminho e como gerir o dinheiro
disponível para a viagem de forma que todos cheguem em segurança ao destino final. Como
são avaliações de momento, as rotas são necessariamente maleáveis, precisam ser
constantemente adaptadas e refeitas em função de circunstâncias imprevisíveis.
Há ainda um termo importante a mencionar: mawon [“fugir”, “esconder-se”]. Aqui, a
ressonância dos tempos da escravidão é inegável.96 No Haiti contemporâneo, ambas as formas
(mawonaj como substantivo, mawon como verbo) são palavras de uso cotidiano. Quando uma
pessoa endividada evita seus credores, não passa perto de lugares onde eles possam estar, e se
esconde quando um deles vem procurá-lo, essa pessoa está mawon, não em geral, mas
especificamente mawon dos credores. Ou seja, nesse caso, trata-se de uma fuga direcionada, de
desaparecer da vista de uma pessoa específica sem necessariamente retirar-se do convívio

95
O mais velho chegou bem, trabalhou, juntou dinheiro e voltou ao Haiti, onde comprou uma moto. O mais
novo estava alistado em um grupo prestes a partir, quando o viewo – que aparentemente era também um tipo
de sacerdote – realizou ritos divinatórios como parte das preparações da viagem. Um desses ritos envolvia
uma vela, cuja chama deveria ter resistido, mas se apagou numa rajada de vento. Frente a esse mau agouro,
ele ficou em pânico e debandou do grupo, que seguiu viagem sem ele, não sem antes passarem por uma tensa
e longa negociação em que, ao fim, ele conseguiu pegar de volta os 2.000 dolà que havia pagado ao viewo por
seus serviços. Em ambos os casos, assim como também para diversos outros rapazes da vizinhança, o destino
final era uma fazenda de morangos que emprega centenas de haitianos indocumentados, na região de
Constanza. Ao todo a viagem levava cerca de uma semana.
96
No mundo francófono, a palavra marronnage designa o ato de fuga da escravidão, e marron é o escravo
fugido. Segundo o dicionário Larousse, esse sentido da palavra marron na língua francesa tem origem no
mundo colonial franco-antilhano, e é uma derivação do espanhol cimarrón.

128
normal. Braum (2014) também mostra como o termo é usado quando membros de grupos
armados estão sendo caçados por grupos rivais e precisam passar um tempo na mawonaj, em
geral longe dali, fora de Porto Príncipe (que é o local de sua pesquisa) ou mesmo fora do país.
Um rapaz que engravidou uma moça por acidente e não tem intenção de assumir o bebê pode
mawon da família dela, o que nesse caso implica em sumir do local que habitava até então. O
termo é usado para situações sérias, mas também para outras mais prosaicas, como por exemplo,
amigas que assumem em conjunto o compromisso de cozinhar para uma celebração qualquer,
e uma delas resolve mawon, ou seja, não aparece no dia. Em suma, é a palavra usada quando
alguém “foge” ou “se esconde” de um trabalho, de uma situação, de uma pessoa, ou de um
conjunto de pessoas.
Diversas providências podem ser tomadas no intuito de tornar despercebida a própria
movimentação. Por exemplo, é prática comum trocar o próprio número de telefone de tempos
em tempos, bem como dar respostas evasivas ou apenas mentir frente a perguntas como “aonde
você está indo?” Passar por caminhos pouco percorridos e de difícil acesso é parte desse
universo. Fica claro que a história da emergência do espaço camponês no Haiti é fundamental
para que se compreenda não só a origem, mas o estatuto da instabilidade dos caminhos e rotas
no Haiti contemporâneo.97 Embora essa instabilidade seja em alguma medida reativa, fruto da
precariedade infraestrutural à qual não resta alternativa senão a adaptação (e como tal percebida
como um problema para o qual se reivindicam soluções), ao mesmo tempo ela é também
cultivada e instrumentalizada enquanto recurso.98
Em crioulo haitiano, o verbo “fazer” é usado para caminhos [fè chemen, fè wout]. ‘Fazer
um caminho’ é encontrar lugares por onde passar. Em certo sentido, é como se os caminhos não
preexistissem, mas fossem criados ao serem percorridos. Alguns caminhos são estáveis que
outros. As estradas, por exemplo, eventualmente definham, podendo ser reformadas ou
abandonadas. Esse ciclo é relativamente longo. Os esforços e os gastos envolvidos na

97
Diversos autores, como Moral 1961 e Barthélémy 1989, apontam a continuidade entre a marronnage das
plantations coloniais e a mawonaj frente às forças administrativo-policiais do Estado haitiano pós-
independência. Em boa medida, a expansão territorial do Haiti foi fruto do movimento espontâneo de famílias
em busca de uma existência autônoma, distante dos mecanismos de controle implantados pela elite.
98
Gérard Barthélemy desenvolveu um argumento análogo no seu Le Pays En Dehors. Há uma estética da
precariedade no Haiti camponês (poderíamos reformular como “Haiti das classes populares”, pois o argumento
parece igualmente válido nas cidades). Ao mesmo tempo em que ela é fruto da falta de dinheiro e recursos
(dificuldades enfrentadas por pessoas que, sem a menor sombra de dúvida, prefeririam não passar por tais
dificuldades), ela é também instrumento de resistência, um meio eficaz de frustrar tentativas de controle
externo.

129
construção de estradas tende a conferir a elas uma longevidade muito maior que a de caminhos
pedestres (embora alguns caminhos pedestres sejam também bastante antigos).
A intensa circulação dentro do Haiti é motivada principalmente pelo comércio e por
compromissos religiosos. O desbravamento e o domínio de rotas, tanto dentro do Haiti quanto
para fora, são fundamentais na busca pela vida. A mobilidade implícita no sentido da busca
envolve também a busca por conexões com pessoas situadas em diferentes locais, conexões
através das quais se consegue requisitos básicos da viagem como informação, abrigo e espaço
de estocagem.
É preciso não romantizar o movimento, a mobilidade. Comerciantes em particular
precisam viajar constantemente, o que é considerado pela maioria delas como uma obrigação
penosa. Desde os anos 1950s, as comerciantes mais errantes, que buscam qualquer aglomeração
de pessoas (não só os dias de mercado mas também arenas de briga de galo, velórios, enterros,
ou em caminhos pelos quais passa muita gente) são descritas como aquelas que têm uma vida
mais dura, onde qualquer infortúnio arrisca botar tudo a perder (Métraux et al. 1951:88). Andar
sem rumo não é bem-visto, como prova o fato de que “vagabundo/a” [vakabon] é um dos
insultos mais comuns.

Nota sobre o conhecimento


A valorização do conhecimento relativo aos caminhos também vale para muitos outros
campos. Existem dois termos principais para falar do conhecimento: lespri e konesans. A noção
de konesans é analisada em Métraux (1959), o termo tem certa carreira na literatura sobre vodu.
O verbo konnen (“saber”, “conhecer”) é uma palavra de uso cotidiano – diz-se que uma pessoa
“conhece água” quando ela sabe nadar; “conhecer banana” significa saber avaliar um cacho,
dominar critérios de precificação para comprar e vender bem, bem como saber cozinhá-la, em
suma, konnen é saber o que fazer com aquilo (diferente de conhecer uma pessoa, cujo verbo
usado é rekonèt). A similaridade da palavra konesans ao francês connaissance ajuda a tornar
mais fácil e direta a sua tradução como “conhecimento”.
Já o termo lespri tem a vantagem oposta, ou seja, tanto seu uso é mais claramente distinto
e descolado da sua origem francesa (l’esprit), assim como sua tradução como “conhecimento”
é menos intuitiva que no caso de konesans. O dicionário Vilsen dá seis sentidos diferentes para
a palavra lespri: 1) espírito, alma; 2) pensamento; 3) poder místico; 4) fantasma, zumbi, morto;
5) inspiração dada por Deus; 6) inteligência, memória. Nenhum destes corresponde exatamente
a “conhecimento”, mas a soma dos sentidos 2, 5 e 6, e em alguma medida também o 1, criam

130
um conjunto fértil para pensar o que essa noção de conhecimento carrega consigo. Konesans é
um substantivo ligado ao verbo como konnen, mas lespri não tem um verbo correspondente, é
uma qualidade que pode estar presente ou ausente, diz-se que alguém “tem”, ou “não tem”, ou
“tem muito” lespri. Jaklin dizia ambas as frases como sinônimas, mwen konnen anpil [lit., eu
conheço muito] e mwen genyen anpil lespri [lit. tenho muito conhecimento/espírito]. Se um
motorista faz uma manobra perigosa, um passeiro grita chofè, ou gen lespri wi?! [lit. motorista,
você sabe muito hein?] Apesar da multiplicidade de sentidos oferecidos pelo dicionário, no
campo eu sempre ouvia a palavra nesse sentido de “saber fazer”, ou para afirmar que alguém
tinha opiniões fortes, ou para ironizar alguém que parece achar que saber de tudo. Ambas são
comuns, mas lespri provavelmente é uma palavra mais escutada no cotidiano que konesans.
Seguindo o dicionário e a origem presumida da palavra, lespri fala de um conhecimento
que remete à inspiração divina e a espíritos como entidades exteriores, o que nos dá uma
imagem particular do conhecimento. Essa forma de formular, em que as ideias parecem ser
exteriores à pessoa (em oposição ao nosso pressuposto de que os pensamentos estão no reino
de uma interioridade privada). A palavra para “ideia” [lide] é usada dessa forma, por exemplo
quando uma pessoa é perguntada sobre algo que ainda não decidiu e responde lide poko di m
[lit. “a ideia ainda não me disse”] e no mesmo sentido, o que tenderíamos a identificar como
“desejos” são às vezes identificados no Haiti como “diabos” [djab], não algo que nasce dentro
da pessoa, mas como algo que tem uma existência própria e tem a potência de invadir e
influenciar o comportamento das pessoas, de fora pra dentro.
Voltaremos a abordar esse ponto de um ângulo um pouco diverso no capítulo seguinte,
mas deixemos já levantada a suspeita de que a noção de conhecimento em jogo diz respeito
menos a conteúdos mentais que cada pessoa acesse em sua interioridade, tampouco a conjuntos
de conceitos e ideias disponíveis em uma forma sistematizada como livros ou suportes
similares, e mais a um saber fazer, cuja distribuição é desigual (algumas pessoas têm esse saber,
outras não têm, umas têm muito, outras têm pouco), cuja origem não está clara, e que não parece
facilmente localizável, nem nas mentes humanas, nem em corpus sistematizados.
E a que se aplica essa ideia de conhecimento? Não é possível fazer um inventário
completo, seria um mapa infinito. Neste capítulo, nosso foco é o conhecimento dos caminhos,
de pessoas ao longo do caminho, o que dialoga com a sociabilidade como método de navegação
que identificamos antes. Como veremos nas páginas seguintes, é preciso ter lespri para aprender
a ver com os olhos alheios, para identificar agentes que podem atravancar o caminho e assim
colocar-se em condições de geri-los.

131
Tipos de caminhos e seus perigos
As primeiras estradas a atravessar o Plateau Central e o Vale de San Juan datam do início
do século XX. Antes disso, levava-se pelo menos dois dias inteiros, em animais de montaria,
para chegar a Porto Príncipe, e cerca de dez dias até Santo Domingo. O grande impulso para a
construção de estradas asfaltadas na ilha foi dado pela ocupação militar dos Estados Unidos,
deflagrada em 1914 na RD, 1915 no Haiti.
A abertura desses caminhos teve grande impacto no equilíbrio entre os meios rural e
urbano. Yarrington (2015) afirma que o não-desenvolvimento de um sistema viário no século
XIX foi uma política de Estado no Haiti, com o objetivo de manter a distância social, cultural,
política e econômica entre campo e cidade. A deterioração da infraestrutura contribuía ao
isolamento da população rural, e imobilizar a mão de obra era um desejo explícito das classes
dirigentes, que inclusive chegou a ter força de lei no Código Rural de 1826.
Esse estado de coisas, que tinha como motor o desejo da elite proprietária de terras de
retomar a agricultura de larga escala para exportação no Haiti, perdurou por décadas, a despeito
do fato de que este objetivo nunca foi concretizado. Só a partir de 1915 começaram a ser
construídas estradas por todo o país, inclusive, pela primeira vez na história do país, foram
construídas estradas que, segundo Yarrington (2015), “não levavam a lugar nenhum”. As
estradas construídas pela ocupação norte-americana estabeleceram uma nova dinâmica de
mobilidade, favorecendo a migração interna, o que teve como um de seus efeitos mais evidentes
o crescimento das cidades, acentuando a centralidade de Porto Príncipe no cenário nacional.
A construção da rede viária era parte fundamental dos projetos de modernização, que
ganharam grande força na primeira metade do século XX, principalmente na RD. Autores como
Lauren Derby (1994, 2009) e Adams Jr. (2006) mostram como uma série de projetos de
modernização (que incluíam também a construção de parques, escolas e projetos sanitários)
visaram a região do Vale de San Juan e a província de Elias Piña, consideradas pelas elites
urbanas entre as mais retrógradas do país.
Não bastasse a proximidade com o Haiti e a pobreza econômica, era uma região de
criadores de gado e caçadores, vistos como entraves ao progresso, em oposição aos agricultores,
que supostamente levariam uma vida mais regrada e seriam mais trabalhadores. Uma frente
importante dos ataques contra o meio de vida dessa população foram as leis contra os chamados
terrenos comuneros, áreas de livre acesso onde os animais eram levados para pastar, que foram
cercados, tornados propriedade privada, e destinados à agricultura (Derby, 1994:502). Segundo

132
Adams Jr (2006: 15), a violência dos projetos modernizantes, que teve seu ápice durante a
ditadura de Trujillo, criou um fluxo de refugiados dominicanos para o Haiti. Derby (1994:493)
narra ainda como parte das estradas construídas pelo governo Trujillo na região eram preteridas
pela população local, em favor dos caminhos pedestres pré-existentes, o que indicaria uma
resistência popular ao seu projeto de modernidade. Adams Jr (2006) fala igualmente em
projetos alternativos, havendo uma concepção popular da modernidade e do progresso diferente
e oposta ao projeto modernizante das elites da capital.
Em todo caso, na RD, o projeto encampado pelo governo prevaleceu. Em consonância
com boa parte do mundo hispano-americano, o resultado, do ponto de vista urbanístico e
arquitetônico, foi um padrão de disposição espacial em que a praça central predomina. A igreja
costuma estar na praça, e funciona como ponto de confluência nos povoados e vilarejos, a partir
do qual se segue um padrão retangular em que ruas paralelas se cruzam em ângulos retos. Esse
padrão geral é identificável em virtualmente todas as pequenas cidades dominicanas por onde
passei, o que podemos ver exemplificado no mapa do centro de Comendador, Elias Piña.

13 Mapa centro Elias Piña.


Fonte: Google Maps.

No Haiti, as coisas são diferentes, há uma outra disposição do espaço que evidencia a
importância do comércio. Os caminhos abertos pelo interior são em boa medida rotas

133
comerciais, e muitas das pequenas cidades de província – os chamados bouk – nasceram como
entrepostos no meio dessas rotas. Mesmo Belladèrè, que é uma exceção a essa regra (pois foi
uma cidade planejada como peça de um projeto modernizante da região, inaugurada em 1948,
rivalizando de forma explícita com as obras do governo dominicano do outro lado da fronteira),
cresceu à moda haitiana, ou seja, à beira dos caminhos. Esse modo resulta em uma disposição
espacial que, ao invés de formar um tecido quadrangular ou retangular, compõe um desenho
semelhante a longos fios estendidos, um padrão mais de dispersão que de conglomeração.

14 Mapa de Belladere e arredores.


Fonte: Mapquest.

Este argumento foi desenvolvido na introdução, não há necessidade de repeti-lo. Por ora,
quero apenas notar que, em oposição ao país vizinho, onde o principal ponto de confluência é
a igreja, no Haiti os principais nódulos capazes de congregar as longas linhas dispersas são os
mercados. Onde há um encontro entre diferentes linhas, tende a haver também um mercado.
Esse fato testemunha e materializa a imbricação entre mobilidade e comércio, algo que pauta
não apenas a vida de comerciantes andarilhas, mas da sociedade haitiana como um todo.

134
Os caminhos podem ser pensados como as linhas de transmissão por onde passa o
comércio. O que é possível transportar, por quais meios e em que quantidades varia em função
do tipo de caminho, sejam trilhas pelo mato, sendeiros, ruas ou estradas. Como mostrou George
Anglade (1982), existe uma lógica da distribuição que canaliza a produção por caminhos cada
vez mais largos.

15 Mapa de estradas e caminhos internos.

Em uma ponta da produção agrícola, muitos jaden estão em locais de difícil acesso. Muitas
vezes, a colheita se dá em locais que, devido às irregularidades do terreno, nem os animais
equestres conseguem chegar. Neste caso, é importante haver muitas mãos para dividir o peso,
pelo menos até um caminho por onde os animais consigam passar carregados.99 Uma vez que

99
Dos jaden menos acessíveis aos gran chemen que comportam animais carregados, a técnica corporal mais
utilizada para transportar as cargas é equilibrá-las no topo da cabeça, o que além de tornar o peso mais
manejável tem a vantagem de deixar as mãos livres. No Haiti, essa técnica parece ser dominada por todo
mundo. Embora seja mais comum ver mulheres com volumes sobre as suas cabeças, os homens usam a mesma
técnica em trabalhos tipicamente masculinos, como a construção de casas. Entre o local onde as árvores são
derrubadas e o local onde a casa será construída, o transporte dos pesados troncos de madeira costuma ser
feito dessa forma.

135
se chegue a esses caminhos mais largos, os chamados gran chemen, há um fluxo maior de
pessoas e animais. Se alguém vem pelo gran chemen portando um volume sobre a cabeça ou
nas mãos, e alguém da vizinhança passa com um animal de carga, a tendência é que o volume
seja acomodado no dorso do animal. A “carona” para a carga só não será oferecida caso o
animal já esteja no seu limite. As pessoas fazem com frequência esse tipo de favor umas às
outras. Mesmo que todos estejam a pé, os mais jovens, inclusive as crianças, se oferecerão
regularmente para carregar algo trazido por gente mais velha. Como diz o provérbio, men anpil
chay pa lou [“se há muitas mãos, o fardo não pesa”].
Tomando um exemplo concreto, da casa de Jaklin para o mercado mais importante das
proximidades, Kwa Fè.100 Dos jaden da vizinhança, incluindo as terras cultivadas por seu
marido e seus filhos, até o gran chemen, tudo precisa ser transportado por seres humanos. Pelo
gran chemen, os animais ajudam no transporte. Passado o rio e subindo o barranco do outro
lado, chega-se a um ponto no caminho em que além dos animais, também as motos conseguem
circular, portando pessoas e mercadorias. Esse caminho leva à estrada antiga, feita de terra e
pedras, mas por onde passam caminhões (embora o fluxo de veículos pesados seja muito mais
intenso na estrada nova, em condições muito melhores que a antiga).
Cada junção entre esses diferentes tipos de caminho são pontos estratégicos, como mostra
a cena citada no capítulo anterior: ao invés de entrar no mercado de Kwa Fè, Madame Tchit
ficava na confluência entre a estrada antiga, de onde vinham todas as pessoas da vizinhança de
Jaklin e de várias outras mais distantes, com a estrada nova, onde ficavam estacionados e de
onde partiam os caminhões rumo a Porto Príncipe (um dos quais fretado pela própria Madame
Tchit em parcerias com outras duas madanm sara). Jaklin, que se dirigia ao mercado de Kwa
Fè para vender as bananas do jaden de um de seus filhos, precisaria fazer desvios por caminhos
mais longos, trabalhosos e desconfortáveis caso quisesse evitar aquele ponto. Como ela fez o
caminho normal, a carga que ela trouxe para vender nunca chegou até o mercado propriamente
dito, o que aliás acontece com boa parte do fluxo de mercadorias produzidas na região que serão
revendidas em Porto Príncipe.
Cada tipo de caminho oferece riscos particulares. É importante não subir na moto de
qualquer um. Acidentes são comuns, tanto em moto quanto os carros e caminhão (talvez seja o

100
A distância entre a casa de Jaklin para este mercado, andando a pé, sem interrupções, é de cerca de 40 minutos
(mas em condições desfavoráveis de chuva e lama escorregadia entre as pedras, já cheguei a levar quase duas
horas para percorrer apenas um trecho de cerca de 2/3 deste mesmo caminho). Para os padrões locais, tendo
como referência as distâncias que as pessoas estão acostumadas a andar, ela mora muito perto.

136
principal motivo de internação hospitalar na vizinhança, cujos custos são comentados com
horror). É preciso escolher bem o seu chofè. Orações ajudam a tirar problemas do caminho, e
Jaklin faz longas preces antes de empreender viagens mais longas, nas quais elenca todos os
empecilhos que pode ter no caminho e que Deus irá destruir cada um deles.

16 Motos à espera, próximo ao posto fronteiriço de Carrizal.


Foto: Juliane Peixoto.

Em Porto Príncipe, grupos armados vendem segurança obrigatória. O controle da cobrança


de taxas nos grandes mercados da capital parece ser fonte de receitas fartas, e já motivou
conflitos entre grupos rivais (Braum 2014, Braum, Dalmaso & Neiburg 2014). Jaklin falou em
especial de um tal Castro, de quem ela tinha muito medo, e a quem pagava sempre com uma
nota de 1.000 gourdes, deixando a critério dele quanto ele lhe daria de troco, como um método
para desarmar a animosidade dele (curiosamente, ela deu o mesmo nome a seu filho mais
velho).
Nos mercados provinciais a situação é outra. O valor individual cobrado como taxa é
pequeno (em Belladere e Kwa Fè, da maioria o valor cobrado era 1 ou 2 dolà, dependendo do
tamanho da banca – cerca de U$0,08-0,16) e é relativamente fácil evadir-se do pagamento. Bem
diferente dos grande mercados de Porto Príncipe, não parece haver disputa (pelo menos não
armada) pelo controle do espaço, que é atribuído à prefeitura. Ladrões são punidos por

137
linchamento, alguns são mortos, a outros se permite sobreviver. O único caso que presenciei
foi um senhor de certa idade que fora visto furtando algo. Ele apanhou sem esboçar reação, e
após sofrer a punição, embora muito machucado e ensanguentado, ainda conseguiu ir embora
a pé.
As machann adotam ainda medidas de segurança mais diretas, como a preferência por
andarem juntas com pelo menos mais uma colega, e o costume –amplamente disseminado– de
portar uma faca sempre à mão, geralmente oculta na cintura por baixo de um pano amarrado ou
de alguma peça de roupa. Mas é sempre melhor não precisar puxar a faca para ninguém. As
principais armas para suavizar o próprio caminho são a lizay, o conhecimento [lespri ou
konesans] e o favor divino, ter Deus e a bíblia ao seu lado, algo considerado fundamental na
formulação das interlocutoras que são evangélicas, como veremos adiante.

Amarrações
Como parte do argumento sobre a importância atribuída ao movimento, é relevante
chamar atenção para menções ao seu fim ou sua impossibilidade. Faremos isso através de um
verbo em especial, mare [“amarrar”]. Além do sentido literal, mare significa também atrapalhar
o caminho de alguém, prejudicar-lhe. Dizer que alguém está mare [“amarrado”] significa que
está numa situação muito difícil, num beco sem saída, talvez prejudicado por meios mágicos,
ou ainda no sentido de ter o espírito paralisado, e não conseguir tomar uma decisão ou fazer
algo que precisa ser feito. Esse vocabulário (que além de mare inclui, entre outros, os verbos
bare e bloke) é usado para dar conta das oportunidades que alguém não consegue encontrar, da
experiência momentânea de encontrar todos os caminhos fechados para si, o que pode tanto se
dar por infelicidade do destino, do acaso ou de seres não humanos.101
Na literatura sobre vodu, há diversas menções a cordas, nós e ao ato de amarrar. Karen
Richman (2005:165-66) descreve um pwen (conceito tratado na nota 128 desta tese) que tem a

101
Os verbos bare [“barrar”] e bloke [“bloquear”], ao descrever a interrupção do movimento, possuem
ressonâncias similares a mare. Quando o trânsito está parado, diz-se que a rua está bloke [“engarrafada”],
assim como no mercado é comum ouvir reclamações como W-ap bloke m! [lit, “você está me bloqueando!”],
que significa que a pessoa está tampando a visibilidade da outra machann, impedindo que as pessoas que
passam vejam as suas mercadorias. Bare é uma palavra de uso comum em diversas situações, por exemplo,
quando uma pessoa está construindo uma cerca, ela diz que vai bare um jaden (este não é um exemplo ocioso,
barrar o caminho dos animais para que não destruam as plantações é uma preocupação frequente e antiga, há
regulamentos explícitos sobre como resolver desavenças decorrentes da mobilidade animal sobre terrenos
cultivados desde o Código Rural de Boyer, de 1826). Além de verbo, também pode ser usada como adjetivo:
quando se diz que tal pessoa está bare [a tradução mais literal seria “barrado/a”], isso significa que ela está
numa situação difícil, sem saída, sem dinheiro.

138
forma de uma garrafa que é amarrada por fora: The vessel, itself a means of containment, is
further restrained by “tying” (mare) the ouside with a cord, which Larose (1975a:107) likens
to the chains of the enslaved spirit. Karen McCarthy Brown (1991:398) também explora o
simbolismo polissêmico do ato de amarrar no vodu, que para ela simboliza os laços sociais,
tanto os laços efetivos quanto aqueles desejados. Nós são também usados com frequência em
feitiços maléficos e em ritos de sociedades secretas. É recorrente a ideia de que há poderes que
precisam ser domados para que possam ser usados de forma efetiva (o que muitas vezes é feito
literalmente amarrando algo, como, por exemplo, um saco de sementes de gergelim amarrado
por fora, para citar um artefato mágico de fato usado).
Terry Rey & Karen Richman (2010) desenvolvem a tese de que o simbolismo associado
às cordas e sua amarração possui sua origem no Congo, comparando práticas religiosas que
usam cordas tanto no Haiti quanto no Congo e em diferentes momentos históricos, com
destaque para as peregrinações religiosas no caso do Haiti contemporâneo, onde os peregrinos
usam cordas amarradas como parte da indumentária e fazem elaborações sobre elas, com
reflexões sobre o poder, sobre proteção, sobre o corpo humano como um receptáculo que, se
bem amarrado, é capaz de conter e direcionar um poder espiritual que, se não fosse amarrado,
sairia de forma descontrolada e perigosa.102 Em todo caso, os autores argumentam que as
ressonâncias da escravidão e do cativeiro são claramente elaboradas em ritos, adicionando outra
camada ao seu simbolismo.
Em um artigo sobre a diáspora haitiana nas Bahamas, Bertin Louis (2012) descreve a
nomeação “igrejas de cabeça amarrada” [tradução literal de legliz tèt mare] como uma forma
pejorativa usada pela elite (evangélica) para se referir às igrejas (também evangélicas)
frequentadas pela classe popular (a categoria de acusação reversa, usada de baixo para cima, é
de igrejas touloulou, apelido que é uma cacofonia usada para ridicularizar o francês
pretensiosamente falado pela elite). Uma vez perguntei a Jaklin se havia igrejas tet mare nas

102
Lauren Derby (2009:236-39) descreve como, para o movimento religioso catalisado por Olivorio Mateo, um
camponês dominicano do vale de San Juan que se tornou um importante profeta e atraiu uma legião de
seguidores no começo do século XX, “the cords indexed a deeply corporeal notion of power, which could
refer to the bondage of slavery, to the lines of electric current, or both.” Derby afirma que o poder de Liborio
estava associado às cordas, que ele costumava manter uma corda amarrada na testa simbolizando esse poder.
Liborio proibiu que fossem usados pregos nas cruzes expostas em sua comunidade para que elas fossem
amarradas com cordas. O exército americano, ao capturá-lo, matá-lo e dispor seu cadáver amarrado na praça
pública de San Juan, desejando dessacralizar o profeta – que era para a Ocupação dos EUA também um
criminoso político – acabou inadvertidamente o transformando num mártir, de forma que até hoje a fotografia
de seu cadáver amarrado é considerada uma fonte de poder, e muitas casas na região de San Juan guardam
cópias dessa imagem.

139
proximidades, ao que ela respondeu “todas as igrejas aqui são tet mare”, não dando indício
algum de que visse algo pejorativo no termo, pelo contrário, parecia algo elogioso.
O lugar ocupado por Deus dentro dela é curiosamente descrito em termos análogos. Ela
falou de um tempo em que, apesar de já ter passado pelo rito do batismo, um marco no processo
de conversão, ela “ainda não tinha Deus firme no coração”, como se uma crença mal amarrada,
frouxa, fosse menos eficaz do que a verdadeira compreensão que posteriormente trouxe firmeza
à crença. Ela vê sua conversão menos como um acontecimento episódico preciso, marcado pela
realização da cerimônia, mas sim como um processo gradual e contínuo que estabiliza sua fé
com firmeza crescente dentro dela. Assim como no português, no crioulo haitiano a palavra
lach [“frouxo/a”] significa tanto uma roupa larga ou uma corda mal amarrada quanto uma
pessoa covarde, que pode ser facilmente pressionada.
Para além destas ressonâncias mágico-religiosas, no universo do comércio, mare é
também uma ação frequentemente evocada no sentido literal de amarrar mercadorias. Como
vimos, a transposição entre diferentes ordens de grandeza é parte importante da atividade. Na
materialidade das formas de embalagem, muitas vezes essa passagem é feita através de sacos e
cordas.103 Por exemplo, no clássico caso do transporte tipo sara, é bastante comum que os itens
comprados nas províncias sejam reunidos em unidades maiores através de sacos relativamente
grandes (tamanho varia, muitos tem um metro de altura ou pouco mais), costurados por cima,
algo que as machann são acostumadas a fazer e desfazer. Uma vez costurados, conjuntos de
sacos são amarrados, seja no lombo de animais de carga, seja na boleia de caminhões, seja o
teto de veículos como vans, seja na garupa de motos.
A falta de desenvoltura para amarrar, dar nós, costurar sacos e ajeitá-los no lombo de
animais pode influenciar a negociação dos preços. Uma machann (ou Madamn Sara) mais
experiente comprando de outra que ela percebe atrapalhada com seus estoques, sem saber
direito o que está fazendo, ficará à vontade para forçar a negociação dos preços para baixo, pois
está claro que a outra sabe (konnen) menos do que ela.
Em certa ocasião, eu caminhava para o mercado de Kwa Fè, e no mesmo sentido vinha
uma mulher tocando um burro carregado com dois grandes sacos amarrados por cima, um de
cada lado. Começamos a conversar, eu perguntei o que ela trazia para vender – eram bananas,
de um jaden de membros da sua família – e quanto dinheiro ela achava que faria com aquela

103
Tanto as embalagens industriais de plástico (nas quais diversas mercadorias são compradas para revenda)
quanto as embalagens fabricadas pelas próprias machann são pensadas aqui como instrumentos para
estocagem e transporte. São indissociáveis, portanto, dos meios de transporte e dos caminhos.

140
carga. Ela vinha de um campo distante, contou estar na estrada desde 6 da manhã (a essa altura
já eram quase 9 horas) estava otimista, achava que poderia fazer até 250 dolà. Quando
chegamos ao ponto conhecido como Teras, uma mulher chamada Bertilia estava sentada numa

17 Jaklin a caminho de Porto Príncipe para vender bananas no mercado


de Pétionville. Sua carga está nos sacos costurados ao fundo da imagem.
Foto: Felipe Evangelista.

encruzilhada entre sendeiros (caminhos pedestres, no máximo para motos), próxima ao ponto
em que esses caminhos desembocavam na estrada antiga. Já tinha adquirido um saco de bananas
previamente, e pediu para ver a carga que aquela mulher trazia.
Relutante, ela desceu do burro em que estava montada e começou a desamarrar a corda
que prendia os dois grandes sacos nas laterais do animal. Enquanto desatava os nós, ela
reclamava, dizendo que não queria ter o trabalho de desmontar tudo à toa. Ela lutou com a corda
e os sacos, visivelmente atrapalhada, e quando finalmente estavam no chão, usou uma faca que
trazia oculta na cintura para rasgar a costura que fechava a boca do saco, também reclamando
que não queria ter o trabalho de costurar de novo, que Bertilia fizesse uma boa oferta porque
ela viera de longe, estava na estrada faz tempo, não estava lá para perder tempo assim. Bertilia

141
observou atentamente todo o processo, em silêncio, sem oferecer ajuda, deixando a outra
reclamar sozinha.
Quando pôde finalmente ver o conteúdo, analisou os cachos, seu peso, sua qualidade, e
ofereceu-lhe 120 dolà para levar tudo. A mulher ficou indignada, xingou Bertilia, e começou a
guardar tudo de novo, demonstrando a mesma dificuldade para amarrar a carga no lombo do
burro. Observando calmamente cada movimento com um leve sorriso no rosto, Bertilia disse
“querida, você não sabe como a banana está vendendo, vai ter esse trabalho só para chegar lá e
te darem o mesmo preço. Deixe logo isso comigo. Eu pago 140 para te fazer feliz. Não se dê
esse trabalho, pode deixar a carga aí.”
O diálogo se estendeu ainda por algum tempo, e depois de xingar novamente Bertilia mais
uma ou duas vezes, essa mulher acabou se rendendo aos 140 dolà. O desgosto por receber
aquela quantia estava estampado no rosto dela. Mesmo depois de guardar o dinheiro, ela ainda
voltou a reclamar antes de tomar seu caminho de volta. Bertilia não se ocupou mais dela,
ignorou-a solenemente após finalizar a compra, juntando aquela carga com o que já adquirira
antes.
Ficou muito claro que nessa negociação uma das partes saíra vencedora e a outra
derrotada, o que não é nem de longe sempre o caso. A postura agressiva de Bertilia (ainda que
seu rosto não demonstrasse agressividade alguma) não é regra. Ela só se sentiu confortável para
agir assim porque estava lidando com alguém que não costumava vir ali, que ela talvez não
voltasse a encontrar (além do que a própria Bertilia não fazia sara de forma constante e estável,
mas só quando tinha dinheiro na mão, de tempos em tempos), e principalmente porque a outra
demonstrara claramente ter pouca ou nenhuma experiência como machann.

Estocagem e hospedagem
Até aqui, temos considerado a movimentação, mas é preciso levar em conta também os
pontos de parada onde as mercadorias estancam entre um movimento e outro. Como parte
fundamental da atividade comercial consiste na reunião e desmembramento de estoques, os
locais de estocagem são essenciais. Todas as machann precisam deles.104 Há uma diversidade

104
Há polêmicas sobre a moralidade de guardar algo do que as pessoas precisam. Robert Muggah (1991) conta
que um projeto da cooperação de construir um grande silo para estocar grãos, no fim dos anos 1980, teria
encontrado resistência armada de ex-makouts (organizados a despeito da queda ainda recente de Baby Doc)
com o argumento que a possibilidade de guardar por períodos de tempo suficientes para alterar os preços do
mercado seria um tipo de violência contra os consumidores (algo bem próximo ao que Métraux et al 1951 fala
sobre a má fama das madanm sara).

142
de locais que cumprem essa função, dentre os quais o menos indicado é a casa da própria
machann. Jaklin citou um provérbio para demonstrar o ponto: “o rosto que vende a carne não é
o mesmo (rosto) que recolhe o dinheiro da carne” [karakter ki vann viande, se pa li ki ranmase
lajan viande].
De um ponto de vista sistêmico, os mais importantes são os depo [“depósitos”] presentes
nos arredores de qualquer mercado público. A pesquisa de Uli Locher (1975) já ressaltou a
importância desses espaços para os mercados de Porto Príncipe, que podem ocupar quarteirões
inteiros, alguns deles especializados em determinados produtos, outros associados a
determinadas cidades (com forte tendência a estarem posicionados próximos às estradas que
levam à cidade em questão ou aos terminais onde chegam e de onde partem os veículos para
lá). Locher mostrou ainda que vários destes depósitos de Porto Príncipe se aproveitam de sua
posição estratégica para funcionar também como lojas, pois seus donos/as compram e vendem
diretamente as mercadorias que as comerciantes trazem para guardar lá.
A área onde fiz minha pesquisa é um universo diferente de Porto Príncipe, mas também
há sobreposições entre a função de loja e depósito. São as magazen [“armazéns” ou “lojas”],
presentes em quase todos os mercados (o único mercado onde não constatei sua presença foi o
de Wa Sèk, mas é bem possível que também as haja lá sem que eu tenha percebido). Elas
vendem no atacado [an gwo] para pequenas comerciantes que revenderão a varejo [an detay],
frequentemente a menos de 100 metros de distância da magazen em questão. Também são
locais de armazenamento, por vezes tomados de mercadorias do chão até o teto, chegando a
ocupar inclusive suas áreas externas, onde os sacos empilhados se aparentam a barricadas.
Além das magazen, são bastante comuns os espaços que funcionam exclusivamente como
depo, onde as machann alugam espaço para guardar suas mercadorias ao fim do dia. As
mercadorias podem ficar guardadas lá até seis dias e sete noites por semana, sendo retiradas
apenas no dia da semana em que funciona aquele mercado. Hipoteticamente, uma machann que
se reveze entre cinco mercados diferentes pode alugar espaços em cinco depo diferentes, nos
arredores de cada mercado. Contudo, isso seria dispendioso. Uma combinação mais provável
seria, por exemplo, o uso de um ou dois depo estrategicamente posicionados, a partir dos quais
os custos de transporte sejam menores do que seria o aluguel de outros espaços.
Nem sempre é preciso pagar pelo armazenamento. Muitas vezes as casas de amigos e
parentes emprestam algum espaço para esse fim. Jaklin e Tina, por exemplo, usam a casa de
Jonas para guardar objetos que venderão depois. A preferência pela casa dele se dá em função
da sua localização, à beira da estrada antiga, onde as motos chegam sem dificuldades.

143
Empréstimos de casas, ou antes algum espaço dentro das casas (que as pessoas continuam
habitando normalmente, dividindo espaço com estoques de mercadorias), são comuns para
esses fins. Sempre a casa que fica mais perto dos caminhos motorizados empresta espaço
àquelas que ficam mais distantes. Na casa de Jonas, relativamente espaçosa, a sala chegou a ser
completamente ocupada algumas vezes. Mas mesmo a pequena banca onde Ti Wilky vende
bolèt (que mal chega a um metro quadrado de área), também postada na estrada antiga, também
guardou um estoque de toalhas de mesa e outros panos que seriam levados para venda na RD.105
À beira do mercado de Kwa Fè há uma casa que faz a função de depo profissionalmente,
cobrando dinheiro, com duas pessoas responsáveis por guardar e tirar os fardos de dentro, anotar
o que pertence a quem, num movimento particularmente intenso do fim da tarde de quarta-feira
ao fim da tarde do dia seguinte. Nos outros dias da semana, a função de depósito continua ativa
mas gera um movimento bem menos intenso, e a função de casa predomina. A potência
produtiva dessa casa particular (uma construção de cimento, com muros e grades) é
completamente dependente de sua posição em relação ao mercado de Kwa Fè.
Na vizinhança de Lakaniyt, algumas pessoas erguem construções de madeira
independentes das casas como depósito, como fez Evens, o marido de Jaklin, que em apenas
dois dias levantou sozinho toda a estrutura. Mas aqui também essa função de depósito, de
“guardar” [sere] não é especializada a ponto de haver uma ruptura definitiva com os espaços
que cumprem a função de dormitório ou casa. Esse espaço anexo logo apropriado durante as
noites por dois de seus filhos, assim como o próprio Evens dormia lá às vezes. A noite naquela
estrutura é mais fresca que dentro da casa principal.106
Enquanto a maioria dos moradores de Lakaniyt produzem bens agrícolas para venda,
relativamente poucos dispõe de espaços designados para a função de “guardar” mercadorias.
Assim, é comum que um volume considerável de víveres seja estocado dentro da casa habitada,
geralmente por períodos curtos de tempo (não mais que quatro ou cinco dias), sendo
preferencialmente vendido de uma só vez.
O uso da própria casa ou de algum espaço anexo para estocar os produtos da terra
destinados à venda é comum. Contudo, guardar comércio dentro da mesma casa que se habita

105
Louis Herns Marcelin (comunicação pessoal, 2018) contou que, no bairro de Miami conhecido como “Little
Haiti”, as casas de migrantes haitianos ocupam seus quintais com enormes pacotes de roupadas usadas a serem
remetidas ao Haiti, usando suas casas como espaços produtivos, como estação de pèpè que será comercializado
no Haiti.
106
A distribuição de quem dormia aonde mudava o tempo inteiro, por diversos motivos. Carnesto, por exemplo,
começou a dormir na casa de Gina quando não havia nenhum outro homem lá, o que é afirmado como uma
medida de segurança.

144
não é nada recomendável. Conforme me explicou Madame Dodo, guardando o comércio em
casa é quase certo que o dinheiro investido ali acabará sendo comido pelos moradores da casa.
Ela recorre aos depo para guardar recursos, em boa medida comestíveis, longe de casa para
evitar que ele seja comido por sua família. Nem que falte comida em casa, o que se come
(idealmente) não deve se misturar com essa fonte de dinheiro. Ela usa diferentes depo tanto no
Haiti quanto em Elias Piña, onde uma carga sua foi roubada enquanto eu estava lá. No Haiti, as
punições para ladrões dentro dos depo são duras, incluindo possível pena de morte, não nas
mãos do Estado, mas na das pessoas que gerem aquele espaço.107 Do outro lado, ouvi de casos
em que grupos responsáveis pela gestão dos depo na RD (a maioria dos donos e trabalhadores
são dominicanos, mas há haitianos entre eles) entraram em confronto com autoridades
dominicanas, por conta da repressão ao contrabando.108
Até onde sei, nos depo de Belladere e Kwa Fè, só dormem as mercadorias, enquanto as
vendedoras passam suas noites em casa (pelo menos as minhas interlocutoras moram
suficientemente perto para voltar às suas casas). Contudo, quando elas vão a Porto Príncipe, é
habitual dormirem junto a suas mercadorias, num depo ou mesmo a céu aberto, na rua que se
tornará um espaço de comércio quando nascer o dia seguinte.
Há, portanto, sobreposições entre o espaço de guardar as pessoas e as mercadorias, entre
casa e depósito, entre casa e mercado. Isso não significa, é claro, que não haja uma diferença
relevante entre os dois. Pelo contrário, essa demarcação conceitual é inequívoca. Os mercados
são reconhecidos como espaços públicos, as casas como espaços privados. Contudo, assim
como depósitos adjacentes aos mercados são usados como locais de pernoite, diversas casas
também funcionam como pontos de venda e como espaços produtivos.109

107
Essa política contrasta com a estrutura física. O depósito de Belladère, por exemplo, possui uma estrutura
frágil, com paredes finas feitas de chapa de alumínio, dando a impressão de que quem quisesse poderia roubá-
lo com facilidade, exceto pela frase escrita em letras garrafais numa das chapas de metais, onde se lê
TOLERANS ZEWO [TOLERÂNCIA ZERO], aviso que contém implícita uma ameaça de morte, para
desencorajar invasões.
108
Sei que esses grupos na RD portam armas de fogo para defender os seus depo, e em ocasiões se dispõe a
enfrentar mesmo a polícia e agentes do CESFRONT, mas não sei se aqui se aplica a mesma política de
tolerância zero que vale no Haiti.
109
O caráter multifuncional das casas como espaços produtivos e de comércio já foi notado por outros autores
em Jacmel (Dalmaso 2014) e em Porto Príncipe, onde Braum, Dalmaso & Neiburg (2014:25) argumentam
que “Given the multifunctionality of residential spaces and the porosity between them and spaces of
circulation, it is common for commercial activities to take place inside homes, just as aspects of Family life
happen in the streets and alleys. Hence Windows and rooms can serve as either permanent or temporary sales
points, in the same way that locations in the alleys or street corners can become kitchens serving food (...) At
the level of food, in fact, we should imagine a continuum that spans from the home kitchen to the professional
food traders located at mobile or fixed points. It is no exaggeration to stress the crucial importance of these
street kitchens in terms of feeding the population characterized by its mobility.” Sobre essa mesma

145
Também é comum que um pequeno coletivo de comerciantes (normalmente duas, três ou
quatro pessoas) alugue pequenas casas ou quartos em locais como Elias Piña, Las Matas e Porto
Príncipe, para usá-los tanto como dormitórios quanto como depósitos. Esses arranjos
certamente ajudam a dinamizar o mercado imobiliário nesses locais, e para as pequenas
comerciantes autônomas trazendo mercadorias do Haiti, funcionam como bases avançadas, um
depósito/pouso temporário. Esses espaços podem ficar fechados e vazios por semanas, podem
ser emprestados a amigos e conhecidos caso haja necessidade, assim como podem se tornar
local de moradia por períodos mais ou menos longos sem contudo chegar a ser entendido como
uma casa propriamente dita.110 Assim, há uma configuração que além das casas inclui também
essas bases avançadas, misto de dormitório e depósito, cuja importância depende da sua
proximidade com mercados e outros pontos de interesse, distantes da casa que se habita (cf.
Marcelin 1996).
Tanto as casas quanto os depósitos têm a função de guardar as pessoas e as coisas,
principalmente durante as noites. Nos hotéis populares que costumam ser encontrados próximos
aos mercados (com diárias em torno de 30 dolà, algo perto de U$ 2,50), quartos que costumam
ser compartilhados por duas ou três amigas, mas em todo caso é preferível não ter esse custo.
Também é possível dormir ao relento junto aos seus estoques –ou então ficar ao relento, junto
aos seus estoques, sem dormir–, é algo que as machann fazem com alguma regularidade, o que
não significa que seja o arranjo ideal do ponto de vista delas. Jaklin me contou de uma noite
entre tantas outras em Porto Príncipe que planejara passar assim, na rua, junto ao mercado que
abriria com o nascer do dia, mas de repente, sentiu muito medo, um calafrio sem explicação
aparente. Pediu a uma colega que vigiasse as coisas dela e, como se fosse só dar uma breve
saída, correu para dormir escondida num desses hotéis populares, aos quais ela recorreu poucas
vezes. Em sua narrativa, o fato de ter sentido medo era quase um motivo de vergonha, assim
como pagar sozinha para dormir nesses quartos, deixando na rua guardando as mercadorias uma
amiga que viajara junto com ela.
A situação mais precária é o comércio feito sem apoio de nenhuma casa nem depósito.
Como Asefi e sua filha, que por vezes recorreram a uma das modalidades de comércio menos

maleabilidade de residências que funcionam como espaços de venda, em Porto Príncipe, ver também Joos
2017.
110
Foi esse o caso, por exemplo, do quarto onde Yvlin, uma das filhas de Jaklin, ficou em Las Matas. Ele era
antes usado para guardar mercadorias. Ela passou meses inteiros lá, mas todo o tempo como quem está num
entreposto, esperando um momento favorável para ir a outro lugar. Jaklin referia-se a esse quarto como “o
lugar onde Yvlin está”, não como “casa”. Na ocasião, a intenção de Yvlin chegar a la capital (depois, ela
conseguiu chegar até Baní, área que ela já entende como fazendo parte da capital).

146
capitalizadas, menos estruturadas e mais duras: elas vão a pé até os depósitos dominicanos em
Carrizal, onde compram grandes sacos de sabão em pó, e os carregam no topo da cabeça, a pé,
até o mercado de Belladere ou algum outro mais distante. Ida e volta caminham ao todo, no
mínimo, cerca de 15 km, carregando no topo de cabeça sacos que pesam até 20 kg, para, no
improvável e feliz caso de conseguirem vender tudo em um só dia, obter um lucro de 25 dolà.
Uma pessoa bem relacionada tem boas chances de encontrar condições mais favoráveis,
assim como as rotas específicas que cada machann consegue estabelecer para si depende de
relações que tornem esse ou aquele local mais favorável.
Passar a(s) noite(s) em casa de pessoas conhecidas tende a ser preferível ao espaço dos
mercados e adjacências. Métraux et al. (1951) descreve que, no Vale do Marbial, o aprendizado
do ofício de comerciante inclui apresentação a pessoas que possam hospedar a jovem machann,
algo que ainda se faz hoje em dia. Dependendo dos caminhos percorridos por cada uma,
especialmente quando o que se está buscando não é um grande mercado mas sim os produtores
que moram em zonas rurais, tais arranjos podem ser imprescindíveis. Mesmo quando outras
opções existem, o estabelecimento e manutenção de uma rede espacialmente dispersa de
contatos que se pode visitar e pernoitar permitem economizar dinheiro, reunir informação de
melhor qualidade, diminuir riscos de roubo e conhecer outras pessoas com quem se possa forjar
novas parcerias no futuro. Para todas as etapas do processo, ter lizay é fundamental.111
As boas relações pessoais tornam mais fácil suprir necessidades que podem,
alternativamente, também ser supridas com dinheiro. Uma desconhecida que busque um espaço
seguro para guardar suas mercadorias e traga dinheiro vivo consigo pode perfeitamente usar os
serviços de qualquer depo. O mesmo vale para as magazen: não é preciso conhecer previamente
o dono ou qualquer funcionário, nada impede que uma desconhecida anônima compre o que
quiser uma vez que ela tenha dinheiro na mão. Mas, quando o dinheiro vivo falta (o que, para
a maior parte das pessoas, acontece durante a maior parte do tempo), as relações interpessoais

111
Noto ainda que os diferentes esquemas de hospedagem e redes de hospitalidade não são exclusivos aos
circuitos ligados ao comércio, mas costumam estar diretamente relacionados com o motivo da viagem, seja
ela de que natureza for. Assim, quando Jaklin foi a Porto Príncipe para buscar documentos (passaportes e
vistos) para seus filhos, sem levar comércio, quem a recebeu em sua casa foi o próprio raketè responsável por
guiar a saga burocrática (a figura do raketè, que é como um guia profissional para lidar com demandas
burocráticas documentais, é descrita em mais detalhes em Montinard 2019). Esse mesmo raketè também fez
uma visita (com pernoite) à casa dela, o que presumivelmente é um gesto de gentileza e consideração ao
mesmo tempo em que é parte do trabalho, ajuda a consolidar sua posição.

147
se tornam uma necessidade. Todo o sistema de crédito depende desse conhecimento
personalizado. Os donos das magazen conhecem as machann a quem concedem crédito.112
Madame Dodo opera diariamente nesse sistema. Ela compra sempre nos mesmos
depo/magazen, a crédito, só pagando depois de vender a mercadoria. Ela julga ser tida em boa
conta pelos mèt depo, pois tem wi-a-non [“sim-e-não”], ou seja, ela tem palavra, é uma pessoa
confiável. Em contrapartida, Tina tem outro método. Em uma oportunidade, eu a acompanhei
pulando de depo em depo perguntando o preço do saco de arroz, para ela parecia não fazer a
menor diferença, compraria na mão de qualquer um que vendesse por menos. Os três deram
exatamente o mesmo preço. Tina vinha com o dinheiro em mãos e esperava pagar menos que
aquilo, que ela considerou como o preço a crédito. No caso dela, de nada adiantou ter o dinheiro
em mãos, deram-lhe o mesmo preço, e por isso ela discutiu e xingou os dois primeiros até
resignar-se com o terceiro.
Após descrevermos algo sobre a forma como se organizam os caminhos e as paragens,
passamos agora a outro conjunto de questões, relativas aos modos de conhecimento que são
necessários para percorrer os caminhos.

De onde partiu Jaklin


O caminho entre Botoncy, lugar onde Jaklin morou com seus pais na infância, e o centro
de Belladère leva em torno de três horas de caminhada. Se isso faz Botoncy parecer uma
vizinhança andeyò, leve-se em conta que a vizinhança de Laiai, lugar de origem da mãe de
Jaklin, fica pelo menos duas vezes mais longe. Como a escola de Botoncy só ia até o terceiro
ano do ensino básico, seus pais mandaram-na a Belladère.
Com um pouco de sorte conseguia uma carona, pois havia um razoável fluxo de animais
de montaria. Quando não, ela percorria o caminho entre os dois locais a pé. Na época, a
disponibilidade de mototáxis não era tão grande quanto hoje. O arranjo feito para lidar com a
distância foi que, durante a semana, Jaklin – então uma criança de dez anos de idade – passou
a dormir em Belladère, voltando à casa dos pais toda sexta-feira, ao fim do horário escolar, para
passar o fim de semana. Na adolescência, ela foi mandada a Porto Príncipe e a Gonaïves, em
ambas as ocasiões, deslocamentos motivados pela busca de oportunidades educacionais, como
vimos no capítulo anterior. Assim, seus pais mobilizavam uma rede de parentes, conhecidos e

112
Embora eu não tenha quaisquer dados estatísticos e fale com base apenas nas compras que eu vi acontecer e
nas conversas com as machann que conheci, o volume de operações feitas à base de crédito parece ser
substancialmente maior do que àquelas pagas à vista.

148
amigos a quem pudessem confiar sua filha para ficar hospedada na casa deles, o que é um tipo
de mobilidade razoavelmente comum para a juventude haitiana.
Vimos também que foi com o simples pretexto de visitar parentes que Jaklin foi pela
primeira vez a la capital. Lá viviam sua irmã mais nova, uma tia e várias primas. Embora nesse
primeiro momento ela não tenha movimentado mercadorias entre os dois países, tal
reconhecimento de terreno (da capital e principalmente de como se fazia para chegar lá)
impactou sua vida futura, abrindo caminhos que seriam mais difíceis caso não tivesse ninguém
a visitar por lá.
Desde os seis ou sete anos de idade, ela também acompanhava em algumas ocasiões sua
mãe quando esta ia vender nos mercados da região. A princípio, as meninas mais novas não
fazem muito mais do que sentar próximas às suas mães e passar o dia com elas. Isso pode
ocorrer por não ter com quem deixar a criança naquele dia, por desejo da própria criança, no
caso de filhas mais apegadas às suas mães, ao mesmo tempo em que existe um processo
pedagógico em andamento. Embora eu nunca tenha presenciado as pessoas envolvidas
discutindo a presença das crianças no mercado em termos de uma metodologia pedagógica,
creio que há no mínimo um reconhecimento implícito desse processo. À medida que ficam
maiores, as crianças começam a ajudar em diversas tarefas, com graus crescentes de
complexidade. Essas atividades começam pela embalagem (a separação do conteúdo de
mercadorias formando novas unidades que são a medida da revenda), passando à arrumação
das mercadorias não vendidas para levar ao depósito no fim do dia, caminhar pelo mercado
vendendo coisas pequenas em cestas levadas à mão ou sobre a cabeça (nessas rondas assumidas
pelas crianças, os produtos típicos são balas, doces e biscoitos), transmitir e receber recados,
levar e trazer dinheiro a/de outras pessoas, comprar algo que a mãe lhe encomende, e tomar
conta de banca e fazer as vendas nos momentos em que a mãe não estiver presente. Para Jaklin,
como para tantas outras, o aprendizado dos caminhos foi indissociável daquilo que foi
aprendido ao lado da mãe. Em sua infância, ela costumava acompanhar sua mãe não só pelos
mercados no Haiti, mas também na RD, alguns tão distantes da fronteira quanto Las Matas de
Farfán (a cerca de 40 km de distância da casa de seus pais).
Dado o papel crucial dos mais velhos para tornar viáveis os deslocamentos dos mais
jovens, logo se vê quão desvantajoso é um ponto de partida de uma jovem como foi Madame
Dodo, sem “gente atrás de si”, sem pessoas mais velhas, cujos nomes carreguem um peso maior
que o dela própria, dispostas a dispensar esforços para lhe abrir caminhos. O que aqui
chamamos de abrir caminhos é tanto poder dispor de casas onde dormir, onde guardar

149
mercadorias e onde se esconder caso necessário, ter apoio logístico para transporte, segurança
e contato com fornecedores, quanto também conseguir dinheiro e/ou acesso a outras formas de
crédito.
Jaklin começou a fazer comércio na RD vendendo cachaça [kleren] comprada por sua mãe
com produtores no Haiti, levada em baldes [bokit] ou galões [galon e djòk são os nomes de duas
embalagens padrão, ambas bem maiores que o galão padrão norteamericano de 3.8 litros] para
ser revendida em pequenas quantidades, em povoados dominicanos próximos à fronteira.113 A
jovem Jaklin costumava dirigir-se para lá quando havia alguma feira especial, ou festa, ou
qualquer evento que se soubesse que traria muitas pessoas. Ela ficava por alguns dias, até acabar
de vender tudo, hospedada em casa de gente conhecida por sua mãe, geralmente famílias
haitianas que viviam “sobre a linha da fronteira”.
Tecnicamente, essa cachaça era contrabando, mas nesse tempo parece não ter havido
agências governamentais capazes de tornar esse estatuto relevante na prática, pelo menos não
naquelas paragens fronteiriças em zonas rurais. Era um movimento de entra-e-sai, com entradas
superficiais no território do país vizinho – contudo, esse reconhecimento do terreno
proporcionou não só contatos regulares com habitantes do outro lado, como também lhe deu
familiaridade com a língua, trunfo que seria fundamental para que, num momento posterior, ela
entrasse mais fundo e por sua própria conta para fazer comércio em terra estrangeira.
Isso, porém, levaria anos para acontecer. Antes ela fez contrabando no sentido contrário,
da RD para o Haiti, em um momento de ebulição contrabandista em que muita gente na
vizinhança estava engajava, como veremos em breve.

A travessia da fronteira, ontem e hoje


Hoje em dia, a fronteira entre os dois países é bastante porosa. É fácil entrar até certo
ponto. O rio Carrizal, que delimita parte da linha da fronteira, em alguns pontos nada mais é
que um filete de água que não chega a molhar sequer os joelhos de uma criança que o atravesse
em pé. Existem caminhos alternativos para entrar na RD que passam por partes rasas desse rio,
e depois por dentro de propriedades rurais que pertencem a donos dominicanos mas são
guardadas por caseiros haitianos. Dentre os caminhos alternativos, alguns contam com uma

113
A maioria das vendas de kleren para consumidores finais é de alguma medida entre a medida feita através de
um pequeno tubo de plástico, chamada wityème [lit., “um oitavo”, ou 1/8 – dava cerca de 350 ml] a 10 dolà,
demi wityème [ou seja, “metade de um oitavo”, que era medida com a garrafa pequena de rum, com capacidade
de 175 ml] a 5 dolà, até 1 garrafa plástica [gode ou po] de 500 ml cheia.

150
mini-estrutura burocrática (a descrição que me deram é que havia um par de guardas e que era
possível “carimbar o passaporte”). Eu mesmo, contudo, evitei esses caminhos, aconselhado
tanto por interlocutores haitianos quanto dominicanos, sob a mesma justificativa de que eram
lugares onde eu teria boas chances de ser assaltado e morto.
Na passagem principal, fica o posto fronteiriço de Carrizal. O trânsito é livre para
pedestres presumidos haitianos, sem exigência de documentos, nos dias de mercado em Elias
Piña, segundas e sextas-feiras.114 Há um grosso portão de ferro na estrada, que é o único
caminho asfaltado conectando os dois países na região central da ilha. Essa é a entrada principal.
O portão abre às oito da manhã e fecha às seis da noite. Existe uma aduana, e muitos guardas.
A pressão constante que eles exercem é menos sobre as pessoas, e mais sobre aquilo que elas
trazem consigo. Mercadorias são revistadas, por vezes apreendidas, segundo critérios que tanto
para meus interlocutores quanto para mim mesmo parecem erráticos. As apreensões parecem
apenas vagamente relacionadas a códigos legais e regras alfandegárias. O que parece ser mais
relevante são a índole e as necessidades pessoais de momento dos guardas presentes na ocasião.
Presenciei a mesma cena diversas vezes – um guarda (militares, em sua maioria lotados
na CESFRONT) pede para olhar a sacola, diz que tais itens não podem entrar, ameaça retê-los,
o dono da sacola reclama, segue-se uma breve discussão com argumentos dos dois lados, até
que ele dá dinheiro aos guardas, e com isso tem seus objetos liberados. O pagamento é feito à
luz do dia, há pouco pudor em dissimular a propina, que de tão institucionalizada tem um valor
padrão: 100 pesos (na cotação da época, pouco mais de U$2). Esse valor pode subir dependendo
da carga em questão, mas na maioria dos casos, as pequenas sacolas apreendidas são liberadas
com 100 pesos.
Embora este valor isoladamente seja pequeno, sua constância e generalidade movimenta
somas consideráveis. Este é inclusive um dos critérios a ser observado na escolha dos caminhos,
pois uma rota mal planejada pode significar a obrigatoriedade de pagar essa pequena propina
várias vezes pela mesma carga, já que evidentemente não emitem nenhum comprovante que
libere a mesma carga de ser taxada outra vez.

114
Essa presunção depende da pele negra. Como eu me destacava enquanto alguém visivelmente diferente pela
cor da pele e pelo cabelo, sempre exigiram que eu mostrasse meu passaporte. Em diferentes ocasiões, tanto
guardas dominicanos como atravessadores haitianos afirmaram que eu era cubano. De fato deve haver um
fluxo de refugiados vindos de Cuba que atravessa rumo à RD por Belladère, pois por mais que eu negasse e
afirmasse ser brasileiro, ignoravam o que eu dizia, os primeiros afirmando com hostilidade que me prenderiam
se eu tentasse passar (ao mostrar meu passaporte, mudavam de atitude), os segundos perguntando insistentes
“quantos cubanos mais estavam comigo”, oferecendo seus serviços para mim e o suposto grupo que eles
imaginavam me acompanhar, dizendo quanto custaria, tentando me convencer a combinar um dia para nos
buscarem de madrugada, afirmando conhecer os guardas do turno etc.

151
Já para as pessoas, exceto os mais ricos, é muito difícil permanecer com os documentos
em dia, especialmente passaporte com visto. O governo dominicano o vende muito caro a
cidadãos haitianos.115 Isso não impede ninguém de entrar na RD, mas torna precária a situação
dos que lá se encontram, especialmente em termos de direitos laborais.116
A circulação em território dominicano sem cédula nem passaporte pode se dar sem
maiores contratempos quando próximo à fronteira, mas a experiência da deportação não é rara.
Certo dia, a família de Jaklin recontava às gargalhadas o caso de um rapaz da vizinhança que
conseguiu a proeza de ser deportado duas vezes no mesmo dia, a primeira de manhã, a segunda
à tarde (e é possível que ele tenha voltado a entrar no país ainda uma terceira vez ao fim do
dia). Ultrapassar a linha da fronteira é fácil, permanecer não. Também é menos fácil ir mais
longe da fronteira. A partir de Matayaya, onde há um dos muitos chequeos militares na estrada,
mas um considerado particularmente duro, o caminho começa a ficar complicado.
Mesmo assim, haitianos indocumentados (lembremos que, na situação atual, apenas a elite
pode escapar a essa condição) estão frequentemente ultrapassando esse ponto, seja usando os
serviços de atravessadores que os ocultam em seus veículos, seja em mototáxis especializados
em fazer seus caminhos entre estradas secundárias e trilhas pelo mato, seja através do
pagamento de propina aos guardas de plantão. O mais comum é uma combinação entre estes
modos.
Nem sempre foi tão fácil entrar na RD. Como vimos na introdução, após o massacre de
1937, a fronteira entre os dois países ganhou uma consistência inimaginável até então, levando
décadas para que sua reabertura progressiva ganhasse ímpeto com a queda do então presidente
haitiano Jean-Claude Duvalier, em 1986.
Na vizinhança onde fiz meu trabalho de campo, o tempo áureo do contrabando foi
justamente o período entre a queda de Duvalier (fevereiro de 1986) e a dissolução do exército
haitiano (fins de 1994), quando a capacidade repressiva do regime era frouxa o bastante para

115
Visitantes vindos do Brasil não precisam de visto, pagam apenas U$ 10 por uma “tarjeta de turista”, válida
por três meses. A mesma regra vale para uma lista de 146 países (os cidadãos de outros 8 países não precisam
sequer dessa tarjeta, podem entrar e sair livremente quando queiram sem nada pagar). Aos haitianos, está
reservada uma modalidade de visto que, na época do meu trabalho de campo (2015-2017), custava U$ 200,
válida por um ano. Em fevereiro de 2018, o valor então vigente (U$ 230) foi reajustado para U$ 350 (ou até
$380, para pedidos feitos em regime de urgência), aumento que motivou protestos. O visto de entrada única
(ou seja, expira assim que a pessoa sair da RD) custa U$ 70, e é aplicado ao Haiti como a uma extensa lista
de países, a maioria deles distantes (na África ou na Ásia), mas também a Cuba.
116
Para que se tenha uma ideia de quão perversa pode ser essa situação, Wooding & Williams (2004) citam
denúncias de patrões dominicanos que sistematicamente mantinham plantéis de haitianos trabalhando em suas
terras durante semanas e depois, na véspera do pagamento, chamavam a migração. Eram todos deportados
sem receber um peso.

152
que pessoas comuns, dotadas de recursos relativamente precários, conseguissem transportar
mercadorias através da fronteira, ao mesmo tempo em que ainda era forte o bastante para que
o contrabando não pudesse ser feito por qualquer forasteiro, pois exigia um bom conhecimento
da região. Hoje em dia, pessoas do país inteiro vêm em veículos motorizados que chegam até
os depósitos de Carrizal, onde compram da mesma forma que os moradores da região, pelos
mesmos preços, tornando inútil e obsoleta a intermediação destes. Antes, contudo, as pessoas
que viviam próximas à fronteira eram especialistas nesse comércio, era na mão delas que
vinham comprar as comerciantes que levariam aqueles produtos ao resto do país. Dava um bom
dinheiro, mas fazer o contrabando era duro.

Os tempos áureos do contrabando


Nessa época, Jaklin devia ter algo entre 16 e 24 anos de idade. Ela teve seus primeiros
filhos nesse meio-tempo. Muita gente na vizinhança fazia contrabando, ela não foi exceção. Ao
contrário do pequeno comércio descrito no capítulo anterior, onde cada machann tomava todas
as decisões sobre como, onde, quando e quanto investir, nesse caso ela foi a princípio uma
ajudante braçal a serviço de outras comerciantes. Sempre à noite, em noites sem lua, era preciso
passar pelo mato. Jaklin revendia no Haiti diversos produtos de origem dominicana, num tempo
em que tudo que vinha de lá era contrabando, “até mesmo os biscoitos”.
O fluxo intenso na vizinhança não vinha direto dos mercados públicos dominicanos. Havia
escalas no percurso. O caminho habitual começava com alguma pessoa que pudesse circular
livremente na RD (via de regra dominicana), comprando no mercado de Elias Piña para trazer
as encomendas, que eram guardadas em casas situadas em áreas rurais dominicanas próximas
à fronteira (como Sanpèt).
O/a próprio/a dono/a da casa podia ir ao mercado comprar, ou outra pessoa podia trazer e
ele/a apenas oferecer espaço em sua casa para guardar os estoques. Os canais por onde passava
esse contrabando engajava gente de ambos os lados da fronteira. Entre os moradores da região
que disponibilizam suas casas, quem compra no mercado, quem transporta para zona rural, e
quem vem buscar para levar ao Haiti, é tecida uma ampla gama de relações, muitas vezes
descrita em termos de ‘amizade’. Além de função instrumental, tais amizades podem (ou não)
adquirir densidade e perdurar no tempo.
As comerciantes haitianas passavam por localidades ermas (como Loba ou Kawis), e de
lá atravessavam a fronteira para buscar as encomendas escondidas ali. Elas não teriam condição
de ir até o centro de Elias Piña. Para elas, o lugar das compras não era o mercado, mas as casas

153
de quem guardou mercadorias com esse intuito. Eram encomendas, as informações sobre as
demandas circulavam entre diversas comerciantes haitianas e moradores dominicanos, um
sistema onde quem passa deixa avisado, querem tal feijão, em tal lugar estão precisando de
arroz para comprar na sua mão... Reciprocamente, do lado haitiano, chegavam os avisos, “tem
carga [chay] para buscar em Margarit”, “tem carga em Pinson”, lugares situados “sobre a linha
da fronteira” [sou lin frontyè a], não dentro da RD. Então muita gente na vizinhança se
mobilizava para buscar, sempre à noite. Quem dispunha de um animal para trazer a carga às
vezes fazia duas, três, quatro viagens na mesma noite, indo e voltando, para trazer tanto quanto
fosse possível.
Boa parte das cargas trazidas por Jaklin pertenciam à mesma dona: Widlen. Essa é uma
personagem importante, não só porque ela era tida como uma grande contrabandista, capaz de
movimentar grandes quantias de carga e de dinheiro, mas também porque era sua sogra. O
marido de Jaklin, Evens, tem, na verdade, duas mães, Joslin, sua mãe biológica, com a qual ele
nunca perdeu o contato, e Widlen, mãe de criação.
Embora ele sempre se refira a Widlen como mãe, e aos filhos dela como irmãos e irmãs,
alguns indícios mostram que ele, enquanto menino de origem pobre que foi “dado” a uma
família relativamente rica para os padrões locais, nunca esteve lá em condições de igualdade [o
termo usado é bay timoun, “dar (a) criança”]. Enquanto todos os filhos e filhas que nasceram
do útero de Widlen puderam frequentar a escola até o fim do filo (equivalente ao último ano do
ensino médio), Evens nunca aprendeu a ler. Ele não costumava abordar o assunto de forma
direta, mas deu várias pistas de que se sentia menosprezado por seus pais e irmãos de criação,
que hoje em dia, enquanto adultos, são todos bem mais ricos do que ele. Uma única vez ele me
falou sobre como não vale a pena continuar visitando parentes que te olham de cima, e que te
mandam fazer qualquer vye travay [trabalho ruim, desimportante, desprezível], pressupondo
que se você apareceu é porque veio lhes pedir dinheiro ou favores. Na última visita, o haviam
mandado chanje bèt [“mudar os animais”, ver pág. 97], tarefa que, pelo menos na vizinhança
onde vive Evens, se não for executada pelo próprio dono de cada animal, cabe às crianças. Ele
voltara ofendido e arrependido de tê-los visitado, maldizendo parentes que não perguntam como
você está, que nunca oferecem nenhuma ajuda espontânea assim como jamais te pedem nada,
dando a impressão de que preferiam que você apenas nunca tivesse existido.117

117
Noutra ocasião, DuCas fez um comentário duro, tangenciando o mesmo tema. Ele disse, como um elogio, que
eu (claramente o elogio era motivado pela minha pele mais clara e cabelo mais liso do que os que se costuma
ver no Haiti) tinha a aparência de um legítimo filho de Deus, que quando eu morresse e chegasse ao paraíso

154
Widlen, segundo Jaklin, está no contrabando até hoje, e ainda o faz da mesma forma, pelo
mato. Tanto hoje quanto na época à qual estamos nos referindo (aprox. 1989), ela ia a pé até a
fronteira, acompanhada por seu burro, que traria a carga nas costas. Mesmo quem tinha
dinheiro, como ela, fazia assim, caminhando pelo mato, nunca pelas estradas principais. Mas,
no caso dela, o contrabando atingiu tal volume de carga que passou a recrutar a ajuda de outras
pessoas para movimentá-lo, como o próprio Evens. Ele não fazia comércio por si mesmo, mas
eventualmente buscava compras da sua mãe, sempre à noite. Em uma dessas idas e vindas, a
polícia o encontrou no caminho. Ele foi preso, passou aquela noite na prisão, mas no dia
seguinte, sua mãe pagou a fiança e ele foi solto. O caso é relembrado jocosamente.
Widlen ensinou muito a Jaklin, especialmente sobre como buscar e passar cargas através
da fronteira, e métodos de contabilidade das despesas e lucros envolvidos em cada operação.
Ela ensinou-a a fazer tabelas de dupla entrada, que ela, por sua vez, fez em um caderno para me
mostrar como funcionava, uma conta simples para controlar, de um lado, o total de despesas, e
do outro, o total do dinheiro obtido com as vendas.118 Jaklin contou que Widlen não só pegava
dinheiro dela, referente às suas mercadorias, mas que também pedia para ver o caderno para
saber se ela tinha anotado tudo direito, se as contas batiam.
A transmissão desse saber foi emocionalmente carregada para Jaklin. Após mostrar a
técnica de contabilidade em um caderno e pedir que ela fizesse algumas contas ela mesma,
Widlen deixou um djòk de kleren na mão dela, com a incumbência de vender tudo e depois
remeter o dinheiro. Como a jovem tinha pretensões de fazer comércio por sua própria conta,
Widlen quis testá-la para ver se ela era capaz de gerir a mercadoria e o dinheiro correspondente.
Isso era também uma forma de checar a qualidade do casamento contraído por Evens.
Caso ela se demonstrasse incapaz de gerir as coisas, Widlen chegaria à conclusão de que seu
filho estava em maus lençóis. Vale notar que no caso ocorreu uma transmissão de saber entre
mulheres, passando ao largo do filho/marido, que não acessava a tecnologia contábil em
questão, sem que fosse feito qualquer esforço de qualquer parte para inclui-lo. (Lembremos que
ele nunca foi à escola e não aprendeu a ler – embora reconheça as notas de dinheiro e seus

sentaria ao Seu lado, bem perto Dele, enquanto que ele mesmo, DuCas, sentaria mais longe e seria novamente
– mesmo depois da morte – a criança enviada por Deus para fazer os vyè travay para Ele.
118
O domínio dessa técnica é motivo de orgulho para Jaklin, como uma especialização incomum, um
conhecimento diferenciado. Como não tenho condições para estimar quão disseminado é ou não esse tipo de
contabilidade, me limito a afirmar que nem Madame Dodo nem Tina faziam tabelas desse tipo, e que se outras
machann mantinham o costume de produzir tais tabelas, não o faziam à minha vista.

155
números impressos, ele não tem domínio suficiente da escrita dos números para fazer contas
usando papel, quando é o caso, ele prefere fazer de cabeça.)
Jaklin tinha grande desejo de agradá-la, tanto enquanto sogra, como enquanto uma
comerciante importante e endinheirada que poderia lhe abrir caminhos caso a tivesse em boa
conta. Eis a forma como a própria Jaklin narrou a ocasião:

Uma vez ela me deu um djòk de kleren comprado em Kwa Fè para vender em Sanpèt.
Fica longe, hein? Ela me deu o djòk para que eu voltasse com o dinheiro dela, e me deu um
caderno para anotar. Vendi, vendi, vendi... Eu tinha medo dela, pois ela era muito rígida, e
eu não queria passar vergonha diante dela. Por isso não gastei nada, não comprei nada com
esse dinheiro. Quando eu saí, levei dinheiro meu para comer. No dinheiro dela eu não
comprei nada, não comi. Todo dia eu ia e vendia, a 500 dolà, a 600, no dinheiro panyol.
Depois de 28 dias, terminei de vender. Ela veio em sua mula, e me chamou: “Jakooo. A
cachaça terminou de vender, vamos acertar o dinheiro.” Ela não me disse isso com uma cara
boa, veio como vinha buscar dinheiro. Se não tivesse o suficiente, se eu tivesse comido o
dinheiro, eu teria que dar um jeito de pagar ela. Quando ela passou perguntando do kleren,
quando ela apareceu eu estava pronta para comer, mas o meu coração ficou bloqueado, não
consegui comer mais nada. E se o dinheiro não desse? Eu fiquei nervosa porque não sabia
ao certo quanto dinheiro tinha que ter ali. Fui buscar o caderno para somar, minha cabeça
quente. Não sabíamos se ela ia dizer que estava faltando, mas não podia estar, porque vendi
tudo e dava aquilo. Passei as páginas do caderno, fui olhando página por página, mostrei pro
Evens e disse pra ele; “Joly, vamos refletir... se eu vendi por todo esse dinheiro, ela não pode
dizer que está faltando. Se ela disser que está faltando, nós vamos juntos nos acertar com
ela.” Então fui pra casa dela. Cheguei, cumprimentei-a com um beijo, e ela disse, “mulher,
você não nos faria um café?” Eu fui fazer o café, mas meu coração saltava, estava nervosa
como se estivesse numa prova, eu não sabia se ela ia me aprovar ou não. Ela veio no fogo e
perguntou, “você vai cozinhar antes de acertamos o dinheiro?” Eu disse “não, podemos
acertar agora”, já me preparando para ir, e ela disse “não, faça a comida primeiro, depois a
gente acerta, vamos ter muito tempo para isso, cozinhe primeiro”. Fiz a comida (descreve
qual) que era a mais rápida possível, fiz correndo, mandei para a casa, e depois que
terminaram de comer, disse “vamos acertar”. Então entramos numa casinha [pequena
estrutura à parte da casa principal] e nos sentamos. Ela tinha colocado todo o dinheiro em
um saco, tudo, tudo. Eu tinha 700 dolà na mão, da última parte que eu tinha vendido. Tinha
saído do mercado, não deu tempo de passar na casa dela, vendi por 700 dolà (lajan panyol)
e trazia comigo. Ela espalhou o dinheiro pelo chão, eu olhei e pensei não é possível que esse
dinheiro não chegue! Nós fomos contando juntas, contando, contando, contando, contando...
no fim ela disse, “você não tem dinheiro na sua mão?” Eu mostrei os 700 dolà e dei pra ela,
ela juntou mais 300 dolà para colocar mais mil sobre a mesa. Tinha muito dinheiro, não era

156
possível que estivesse faltando. Quando ela terminou de recolher todo o dinheiro, eu
perguntei, “você acha que fizemos lucro?” Ela disse “uns 4.000 dolà.” Eu quis mostrar o
caderno, ela não quis ver, disse que eu não precisava buscar o caderno, aquele dinheiro
bastava e estava sobrando, ela disse “bravo!, isso é que é uma mulher!” Depois disso meu
coração ficou contente, eu não tinha comido nada até então, nesse momento eu entrei e fiz
um prato enorme pra mim (descreve as comidas no prato). Então, ela me deu 1.500 dolà...
- Você não sabia quanto daquele dinheiro ia ficar pra você? [eu perguntei.]
- Não fazia ideia, ela só me disse “tome, venda isso”, eu nem sabia se ela ia me dar
algo, ela me deu 1.500 dolà ali na hora, e depois comprou um cavalo por 500 dolà e me deu
esse cavalo de presente. Depois disso ela largava qualquer dinheiro na minha mão, dinheiro
grosso, ela confiava em mim. Eu fiz muito comércio pra ela, fiz comércio pros outros antes
de fazer por mim mesma.
Jaklin, em entrevista gravada no dia 26/08/2017

Nesse relato, vemos mais um momento fundamental na formação de uma machann, desde
o esforço físico nos deslocamentos diários – pois nesse caso ela não pernoitava, quando caía a
tarde ela retornava para dormir na sua própria casa (embora esse povoado dominicano estivesse
a umas quatro horas de caminhada cada trecho para uma pessoa saudável e ágil) –, passando
pela questão fundamental do autocontrole para gerir o dinheiro que tinha em mãos, até as
técnicas contábeis propriamente ditas. Vemos também como o aprendizado do ofício é
indissociável da sua formação como pessoa, e particularmente como mulher, e ainda como
parcerias comerciais podem se imbricar com questões de família, pois a avaliação da capacidade
de uma vendedora era ao mesmo tempo uma avaliação da esposa do filho.
Jaklin então era ainda uma adolescente – apesar de casada –, e já saía para caminhar no
mato, de madrugada, conduzindo sozinha uma pequena manada de quatro mulas de Kwa Fè até
Sanpèt, animais que iam leves e voltavam pesados. Dava um dinheiro bem melhor do que o que
se ganha com o contrabando comum hoje em dia, mas também era mais perigoso. Se um chèf
[termo comum que se usa com referência tanto a policiais quanto a militares] interceptasse o
trajeto, a carga seria integralmente confiscada, e a pessoa responsável pelo seu transporte, além
de ficar sem nada, podia ser presa.
Naqueles tempos, o perigo eram os militares haitianos, não os dominicanos. Os
dominicanos sabiam que aquele fluxo contribuía significativamente para a renda de muita
gente. O gourde haitiano valia mais que o peso dominicano. Eles sabiam da importância para a
economia da região, que era então, e ainda é, uma das regiões mais pobres na RD. Eles
respeitavam isso. Podiam até pedir pequenos subornos na estrada, mas não impediam as pessoas

157
de passar, pelo contrário, ajudavam a esconder as comerciantes em trânsito dos chèf haitianos,
compartilhando sempre que possível informações sobre onde eles foram vistos e por onde se
devia passar para evitá-los. A atividade consistia, portanto, em comprar na mão de dominicanos
moradores de áreas rurais, passar por dentro do mato, fazendo amizades pelo caminho e, ao
mesmo tempo, despistando policiais e militares.
A situação contemporânea é bem diferente. Embora algumas mercadorias sejam visadas
e apreendidas pelas autoridades ao entrar no Haiti, grande parte do contrabando circula à luz do
dia, pela estrada principal, à vista de quem quer que seja, como se fossem mercadorias
quaisquer. É o caso, por exemplo, do arroz cabesit – embora legalmente fosse considerado
contrabando, durante os períodos em que estive lá, esse status legal fazia pouca diferença para
as pessoas que o transportavam e revendiam. Uma vez, eu perguntei a Madame Dodo se aquele
arroz que ela revendia era contrabando, ao que ela me respondeu “não sei, ele é?” Ela o disse
com o sorriso que frequentemente mantinha no rosto, e aqui como outras vezes, não sei ao certo
se ela estava brincando, mas a questão era de fato passível de dúvida, havendo opiniões
divergentes em circulação, algumas pessoas no mercado (tanto comerciantes como o público
em geral) diziam que sim, outras que não. Sem dúvida, o status ambíguo do cabesit, assim como
de outras mercadorias, está relacionado ao fato de que a regulação das mesmas passou por
sucessivas idas e vindas, mudando as regras de ambas as aduanas.119
Outro exemplo, diferente do primeiro, são as ambwatye, embalagens descartáveis para
comidas prontas, um tipo de marmita feita de isopor. Nesse caso não havia dúvida, todo mundo
sabia que elas eram contrabando (de fabricação dominicana, trazidas ao Haiti). Segundo eu ouvi
numa conversa entre homens no mercado, o governo de Marthélly (2011-17) aceitou a pressão
dos Estados Unidos e assinou um acordo proibindo a importação de ambwatye, pois o lixo
gerado, depois de descartado no mar, acabava em praias da Florida. Embora o acordo oficial
tenha sido selado, o governo pouco fazia para colocar a legislação em efeito. Nos depósitos
dominicanos de Carrizal, eram sempre homens haitianos que vinham em motos para buscar a
carga. As embalagens eram amarradas em volumes tais que cobriam a altura da cabeça do
motoqueiro sentado, amarradas também nas laterais, dando às motos na estrada uma curiosa
semelhança com pequenos caminhões de duas rodas, com carcaças de isopor. A composição
<homem/moto/monte de embalagens descartáveis> é chamativa, facílima de ser identificada.
Em março de 2016 houve um aperto da fiscalização e essas motos carregadas de isopor

119
Essa inconstância legal é bem descrita no caso do circuito dos pèpè saindo do Haiti e entrando na RD pela
fronteira norte por Bourgeois 2016.

158
começaram a aparecer em estradas e caminhos secundários, mas até então era possível ver de
longe muitos deles passando pela estrada principal, a qualquer hora do dia.

18 Moto preparada para transportar


contrabando de ambwatye.0
Imagem enviada por WhatsApp.

Conhecimento e a transmissão da imagem de si


Com o movimento de entra-e-sai, buscando cargas e fazendo amizades com moradores
daquelas paragens fronteiriças dominicanas, Jaklin desenvolveu habilidades essenciais para o
que estava por vir. A primeira foi o domínio da língua de seus vizinhos, elemento indispensável,
mas nem de longe o único. Mais do que a questão puramente linguística, a linguagem que

159
precisa ser aprendida inclui formas de etiqueta, gestos corporais, peças de vestuário, entre
outros. Há uma série de indícios que denunciam lugares de origem, e a manipulação destes
indícios é uma habilidade fundamental a ser desenvolvida pelas machann que procuram a vida
atravessando regularmente a fronteira haitiano-dominicana.
Jaklin costumava se gabar de sua capacidade de convencer todos os guardas de que ela era
uma senhora dominicana. Conta que chegou a ter um passaporte válido, mas que sua atuação
era tão convincente que ela mal precisava mostrá-lo, gostava de mantê-lo no fundo da bolsa
apenas para o caso de uma possível emergência.

19 Jaklin vendendo pèpè na RD


Imagem enviada por WhatsApp.

160
Pude presenciar sua habilidade mimética quando fomos a Las Matas de Farfán, não no
mercado público, onde as pessoas sabiam que ela era haitiana (essa informação era relevante
por marcá-la como uma pessoa que tinha acesso privilegiado a determinados bens que não
custariam a mesma coisa caso fossem comprados na RD), mas principalmente em interações
aleatórias e fortuitas, quando era preciso resolver qualquer assunto na rua. Sua filha Yvlin, em
contraste, era repetidamente repreendida pela mãe por dar indícios visíveis de que era haitiana.
Ela estava passando alguns meses lá, para evitar problemas no Haiti. Não tinha nem visto nem
passaporte, e não sabia falar direito a língua. Esse aprendizado demanda tempo, para a mãe
parecia uma falha perdoável e que requer paciência para ser corrigida. O que a enfurecia era o
desleixo com a aparência, que a mãe enfatizava em comentários sobre as roupas e os cabelos,
dizendo que ou sua filha mudava de postura, ou ficava trancada em casa, pois andando na rua
daquela forma era uma questão de tempo até que fosse deportada.
Quando se trata de uma passagem rápida através da fronteira, pode bastar um gesto pouco
trabalhoso como retirar um pano amarrado sobre a cabeça, que estava cobrindo os cabelos, para
deixá-lo sobre os ombros, prendendo os cabelos com arcos, elásticos e/ou presilhas. Para
permanências mais longas, e principalmente para afastar-se mais da fronteira, é necessário um
investimento maior em dinheiro e cuidados mais trabalhosos.
O primeiro é a compra e aplicação de produtos para alisar o cabelo. A prática do
alisamento capilar é generalizada entre mulheres dominicanas.120 Segundo interlocutoras
haitianas, as dominicanas são mundialmente reconhecidas como referência na arte de alisar
cabelos crespos, e seus salões dominam esse mercado nas grandes cidades dos Estados Unidos
(essa era uma opinião corrente mesmo entre pessoas que nunca saíram da ilha). Para as
dominicanas, até onde eu pude constatar, isso é formulado como uma questão estética. Já para
as mulheres haitianas, esse elemento é secundário, o cabelo deve ser alisado independente de
suas opiniões estéticas sobre os resultados do procedimento. A maioria afirma serem bonitos
os cabelos alisados, mas mesmo quando há opiniões divergentes, elas não importam. Mais do
que “ficar bonita”, o objetivo primordial é reduzir o risco de problemas com a polícia, com
militares e com civis xenófobos.

120
Já entre homens, os cabelos na RD costumam ser bem curtos ou raspados (assim como no Haiti). O alisamento
capilar é fortemente marcado em termos de gênero, a ponto de que, quando praticado por um homem, é um
elemento capaz de torná-lo uma figura efeminada. O único homem dominicano que cheguei a ver mantendo
seus cabelos longos e sempre alisados era reconhecido na sua vizinhança como um maricón.

161
Este jogo com as aparências também existe dentro do Haiti. Jaklin conta que é perigoso ir
aos grandes mercados de Porto Príncipe com a aparência de gente da província, pois os ladrões
sabem que as machann que vêm do interior para se abastecer nesses mercados trazem sempre
dinheiro vivo consigo. É o ofício delas, não existe alternativa. Portanto, parecer-se com uma
machann nascida e criada em Porto Príncipe, em suas roupas, em seu modo de falar e em seus
gestos, é questão de segurança.
Para atravessar o posto fronteiriço de Carrizal, é desaconselhado usar roupas bonitas. Não
podemos subestimar a importância da apresentação de si para quem não deseja ser visto como
gente da montanha ao chegar à grande cidade. Mas viajando sem passaporte, ninguém deve
atravessar a fronteira com as roupas que usará quando chegar a la capital. Usar essas roupas é
um indício claro do destino final da viagem. Mais vale atravessar a fronteira com a aparência
de um camponês que vai visitar algum amigo ou parente ali perto, e manter as melhores roupas
em uma sacola ou mochila – de preferência uma mochila com aparência miserável – para só
vesti-las depois de San Juan, quando o controle migratório se torna menos intenso.
O mesmo vale no sentido oposto. Considera-se ingenuidade passar por ali como quem
conseguiu um emprego em Santo Domingo e volta para visitar parentes no Haiti. Isso é algo
sabido por todos os moradores locais, mas ignorado por muitos haitianos que não possuem
vínculos com a região fronteiriça e apenas a atravessam como um local de passagem. Os
guardas da fronteira não deixarão passar um haitiano endinheirado sem extorqui-lo. É preferível
passar a fronteira com a aparência de um camponês da região sem um centavo no bolso,
guardando as melhores roupas para vestir só depois de estar em solo haitiano.
Quando, em mercados dominicanos, os próprios produtos à venda tornam impossível
ocultar sua proveniência haitiana, há ainda a possibilidade de jogar com essa haitianidade.
Jaklin conta que quando chegavam os guardas do ayuntamiento para confiscar as mercadorias,
muitas machann haitianas as recolhiam tão rápido quanto podiam para sair correndo da batida
antes que perdessem suas coisas e fossem deportadas, mas não ela. Tendo o pano amarrado na
cabeça à moda haitiana, vestida como uma camponesa que não faz esforço algum para
dissimular suas origens, ela continua sentada esperando tranquilamente os guardas chegarem.
Quando estes a inquiriam, ela respondia firme “não estou vendendo, estou procurando a vida.
Meus filhos precisam comer, preciso botar comida na mesa deles.”
Segundo ela conta, tal performance exalando a convicção de não estar fazendo
absolutamente nada errado intimidava os guardas do ayuntamiento, e não necessariamente por
seus sentimentos humanitários, mas também porque os dominicanos sabidamente temem os

162
poderes mágicos de seus vizinhos. As machann que partiam em disparada eram perseguidas e,
caso pegas, tomavam-lhe suas mercadorias e as deportavam, enquanto a sua performance de
feiticeira haitiana esforçando-se para alimentar de forma honesta aos seus filhos causava tal
pânico entre os guardas dominicanos que eles se limitavam a pedir educadamente que ela saísse
da calçada, para que seus chefes não os repreendessem.
Vemos, assim, porque é fundamental o conhecimento dos agentes que podem oferecer
algum risco à mobilidade das pessoas, dos objetos ou do dinheiro que carregam, em cada local
específico do caminho. O controle da própria aparência regulada pelas expectativas desses
agentes é uma habilidade fundamental para o trânsito (tanto de si mesma quanto das
mercadorias trazidas consigo) em segurança através da fronteira, em um e outro sentido.
O que elas desenvolvem é uma capacidade de olhar para si mesmas com os olhos dos
outros. Para tanto, é preciso conhecer estes outros – os pontos cegos do seu olhar, os seus medos,
seus desejos e necessidades. É pouco saber que os militares na fronteira ganham mal e precisam
de dinheiro. O conhecimento atingir um nível bem maior de precisão, reconhecendo entre os
militares presentes quais estão mais ávidos por lucrar algo e quais estão menos, quais
obedecerão ordens e tentarão agradar seus superiores ou quais surda e dissimuladamente
boicotarão o comando de quais outros, quais estão – naquele momento preciso – mais atentos
ou distraídos. O que vale para os militares na fronteira vale igualmente para todos os agentes
que podem facilitar ou impedir o caminho; os cobradores nos mercados dominicanos, os grupos
armados que recolhem taxas compulsórias nos mercados de Porto Príncipe, os motoristas dos
guaguas e dos caminhões, entre outros.
Enfim, é preciso conhecer tudo que possa ser relevante ao propósito. Trata-se de um
conhecimento prático – ele não existe enquanto um corpo consolidado de ideias, com uma
forma definida, existe apenas na medida em que pode ser mobilizado em situações concretas.
Assim como novos saberes são desenvolvidos, algo antes sabido pode simplesmente perder sua
eficácia e relevância.
Portanto, o conhecimento em questão forma composições sempre instáveis.121 Com isso,
quero ressaltar a variabilidade do valor de elemento nas composições. Usando o conhecimento

121
A ideia de composição aqui usada foi tomada de empréstimo de Jane Guyer e Samuel Belinga (1995). O
modelo desenvolvido pelos autores tem como objetivo propor uma alternativa ao modelo da ‘riqueza em
pessoas’ [Wealth in People] para ressaltar a importância do conhecimento nas sociedades em questão (na
África equatorial). A ideia de ‘riqueza em conhecimento’ [Wealth in Knowledge] se opõe à soma simples,
implícita no modelo de ‘riqueza em pessoas’, ao tratar o conhecimento como um acúmulo que funciona por
sinergia. Em outras palavras, não se trata de juntar uma quantidade maior de pessoas, mas sim da capacidade

163
de pessoas para dar concretude ao argumento (mas mantenha-se sempre em mente que o ato de
conhecer, tal como elaborado por meus interlocutores, não se restringe de forma algumas às
pessoas – é desejável conhecer lugares, costumes, caminhos, ritmos, objetos, etc.), interessa
menos conhecer muita gente, é mais importante conhecer as pessoas certas. Às vezes um
pequeno elemento – digamos, um único conhecido em uma dada vizinhança – basta para criar
uma potente sinergia entre conjuntos de conhecimento até então desconectados. Essa lógica
evidencia a importância das parcerias nesse universo – para tomar um exemplo já explorado,
duas machann que viajem juntas possuem à sua disposição um repertório maior de
conhecimento para mobilizar, conjuntamente, na feitura de suas rotas.122
A essa altura talvez já tenhamos argumentado suficientemente a respeito da importância
fundamental da mobilidade, tanto dentro do país quanto através da ilha, mas pouco dissemos
sobre viagens cruzando o mar. Como dissemos, as viagens para “o outro lado da água” [lòt bò
dlo] só aparecerão aqui vistas desde o ponto de vista de meus interlocutores, dentre os quais a
imensa maioria nunca entrou em um avião. Isso não significa que os países do outro lado da
água estejam fora do horizonte dos habitantes de Lakanyit. Todos eles conhecem, mesmo nos
interiores mais recônditos, o dinheiro dos Estados Unidos. É generalizada entre os jovens a
pretensão de um dia sair do país e conseguir um emprego fora. Alguns mostram um refinado
conhecimento sobre os diferentes países das Américas, suas histórias e suas respectivas
políticas de imigração. O destino ideal são os Estados Unidos, mas o visto é dificílimo.123
É altamente compartilhada a crença de que as pessoas que possuam cicatrizes visíveis em
suas peles, principalmente no rosto, jamais conseguirão o visto norte-americano. Diversas
pessoas, ao me conhecerem (sei que em alguns destes casos, eu fui o único blan acessível que
eles encontraram em suas vidas), vieram checar essa informação comigo. Outra informação

de mobilizá-las de forma articulada enquanto diferentes repositórios de conhecimento, de forma a conseguir


uma composição efetiva, ainda que só para uma finalidade particular e efêmera.
122
Algo análogo ocorre com a composição das filiações religiosas entre os moradores de uma mesma casa.
Algumas famílias são predominantemente católicas, outras protestantes, mas em todas as casas que eu conheci,
havia diversidade interna: no mínimo um morador de uma casa predominantemente protestante era católico,
e vice-versa. Essa diversidade interna aumenta o repertório de proteção contra possíveis ataques que, segundo
o caso, poderão ser melhor repelidos por métodos praticados por uma ou outra filiação religiosa. Outra
analogia possível é com o poder cultivado pelos ougans. Eles tentam ter tantas parceiras sexuais quanto
possível, o que não é apenas uma questão de satisfação carnal, mas também tem o objetivo de entrar em contato
com sangues diferentes, ancestrais diferentes, e com isso ampliar o próprio repertório.
123
O único jovem que conheci que estava prestes a partir rumo aos EUA tentaria fazê-lo sem visto, num
complicado roteiro que passava pela RD, pelas Bahamas (onde ele tem um tio), Porto Rico e finalmente os
EUA. Ignoro se ele conseguiu chegar. Em Montinard (2019) se descreve em detalhes uma rota complexa pela
América continental passando por diversos países até chegar aos Estados Unidos, chamada de wout Miami
[“rota (para) Miami”].

164
amplamente compartilhada que diversas pessoas também vieram me dizer, buscando
confirmação, é que quem tiver um passaporte com carimbo de diversos países aumenta muito
as suas chances de conseguir o visto dos EUA. Num primeiro momento, eu fui cético quanto à
história das cicatrizes, mas dada a repetição da informação, logo comecei a responder (para
ambas as perguntas) que eu não sei ao certo, e que provavelmente eles estavam melhor
informados do que eu sobre o que um haitiano precisa fazer para conseguir chegar legalmente
aos EUA.
Do ponto de vista deles, a passagem por outros países visava tanto buscar a vida quanto
cultivar um passaporte que eventualmente poderia ser aprovado pelas autoridades norte-
americanas.124 Sair da ilha não é fácil – não só as passagens aéreas são caríssimas para o nível
econômico das pessoas, tirar um passaporte também é caro, conseguir um visto é trabalhoso e
as chances de ter seus pedidos negados são enormes. Então, por mais que se trate de algo
desejado por meus interlocutores, é como um sonho projetado num futuro indeterminado. Há
ainda uma importante diferença geracional – é um tipo de sonho cultivado pelos jovens, em boa
medida compartilhado por suas famílias, para quem seria muito desejável ter um membro fora
enviando remessas, mas as pessoas numa faixa etária em torno de 40 anos ou mais velhas, como
é o caso de Jaklin, dificilmente cogitam sair elas mesmas em uma empreitada como essa, é algo
que projetam para seus filhos e/ou netos. Para ela, mais que esse horizonte vago, os
atravessamentos terrestres rumo a RD são o que existe de concreto. Voltamos então a explorar
a mobilidade terrestre, dentro da ilha.

O que impele o deslocamento


Existe uma forte afinidade entre fazer comércio e deslocar-se, uma busca que leva as
pessoas por itinerários que de outra forma seriam improváveis. Em maior ou menor medida,
toda modalidade de comércio exige algum movimento. Exatamente por onde se darão esses
movimentos é o que estabelece os limites do que é possível fazer. Identificamos aqui dois tipos
de movimento: de um lado, aquele que se refere às distâncias espaciais efetivamente
percorridas, e do outro, o movimento entre diferentes embalagens e ordens de grandeza.

124
Nesse sentido, países como Panamá, Equador e Peru eram vistos como lugares de passagem. O Brasil possui
um status ambíguo entre fornecedor de um carimbo que fortalece o passaporte e um destino no qual se pode
encontrar um emprego e buscar a vida. A família de Jaklin possui dois conhecidos que vivem no Brasil, ambos
em Curitiba (onde também se estabeleceram algumas outras pessoas da vizinhança). Contudo, como vimos,
em 2015-16 o principal destino sul-americano era o Chile. Joseph (2015) discute esse status ambíguo do Brasil
para a diáspora haitiana, mostrando rotas que incluem Guiana Francesa e Suriname.

165
Em alguns casos, a distância espacial percorrida é irrelevante, como as mercadorias
compradas an gwo [“no grosso”, “atacado”] nos depósitos e revendidas an detay [“em detalhe”,
“varejo”] do lado de fora dos mesmos. O movimento relevante aqui é dos sacos grandes para a
medida do gode. Um movimento como esse possui limites financeiros claros para as
interlocutoras da pesquisa, a margem de lucro tem um teto baixo que não será ultrapassado.
Para fazer mais, é preciso andar mais, frequentar outros lugares.
Além da mobilidade impulsionada pelo comércio, há diversos outros motivos subjacentes
às viagens, dentre os quais destacamos as peregrinações e celebrações religiosas, as
oportunidades educacionais e a visita a parentes e amigos. Jaklin elaborou algumas vezes a
diferença entre os deslocamentos motivados pela religião ou por possibilidades econômicas,
principalmente quando se trata de atravessar a fronteira. Segundo ela, são os dominicanos que
fazem essa diferença. Enquanto uma movimentação motivada pelo comércio pode encontrar
muitas barreiras, tanto para as mercadorias trazidas quanto para a própria comerciante, as
viagens de louvor [pou al preche, lit. “ir para pregar” (a palavra de Deus)] eram tratadas com
mais boa vontade e tolerância. Comentando por exemplo sobre a possibilidade de circular
indocumentada mais longe da fronteira, ela dizia que as viagens de louvor aconteciam sem
problemas, ela andava com pastores e fiéis dominicanos, eles ofereciam lugares para dormir
dentro das próprias igrejas ou em outros espaços, e nessas condições nenhuma autoridade
dominicana oferecia qualquer risco, pois viam com bons olhos o trabalho missionário.
Outras interlocutoras também mencionaram essa dupla avaliação das autoridades
dominicanas, principalmente a respeito da festa patronal de Nuestra Señora de la Altagracia, ou
Virgen de la Altagracia, realizada em Higüey. Como ela é a padroeira do povo dominicano, é
uma grande celebração, realizada dia 21 de janeiro, feriado nacional na RD. A festa na verdade
se estende por alguns dias antes e depois da data, as pessoas no Haiti consideravam que o
período dessa santa na RD durava uma semana inteira. Um grande número de devotos haitianos
comparece a essa festa, e segundo relatam as pessoas, os ônibus plenos de louvor cristão
conseguem chegar até o outro lado do país (Higüey fica depois de Santo Domingo) sem
resistência. A separação entre viagens comerciais e religiosas é relativa, do ponto de vista
haitiano não são motivos excludentes. É perfeitamente aceito que uma fiel que vá fazer trabalho
missionário traga consigo objetos que irá tanto presentear quanto vender a seus correligionários.
Mas aos olhos das autoridades dominicanas, tal como vistos ou imaginados desde o Haiti, essa
separação parece mais rígida. Apesar da diferença de legitimidade atribuída a tal ou qual motivo
para o deslocamento fora do Haiti, dentro do país, o que as pessoas verbalizam sobre o desejo

166
de sair tem como motivo principal a falta de trabalho e a busca pela vida, motivos cuja
legitimidade ninguém questiona.
No caso de Jaklin, a primeira vez que foi a Santo Domingo, ainda em sua adolescência,
pretendia apenas visitar parentes, passear. Ao chegar à idade adulta, uma necessidade mais
imperiosa a moveria para lá outra vez.

A grande dívida
Após fazer comércio para Widlen e outras pessoas, Jaklin conseguiu reunir dinheiro
suficiente para começar a fazê-lo por conta própria. O contrabando na época não exigia um
grande investimento de capital, em particular o contrabando de Fideo, uma marca de vermisèl
que todo mundo na vizinhança revendia. Havia pacotes com 12 e com 24 sacos unitários a
preços acessíveis em dinheiro dominicano, cada unidade saía por 3 ou 4 dolà, as comerciantes
conseguiam lucrar até 2 dolà por unidade. Muitas das pessoas que vinham comprar na mão
delas em mercados como Kwa Fè e Wa Sèk para revender em suas próprias vizinhanças.
Hoje o mesmo produto sai caro, e o lucro para revendê-lo no Haiti é pequeno, então tem
pouca gente se dedicando a isso. As pessoas que ainda fazem são mais aquelas que tem marido
ou filhos em Elias Piña, que estão sempre indo e vindo. Isso aconteceu com o pessoal mais
antigo, muita gente formou família e deixou filhos do outro lado. Para os jovens de hoje, isso
ainda pode acontecer, mas a probabilidade é menor. Como esse contrabando de leva e traz
compensa pouco, muitos partiram de vez, foram buscar empregos na capital, longe do Haiti, e
não voltaram mais.
O dinheiro do contrabando permitiu a Jaklin arriscar-se em outros circuitos. Por um tempo,
dedicou-se ao ramo dos produtos básicos, do ‘pequeno comércio’. Mas julgando esse circuito
pouco promissor, ela começou a buscar mercadorias mais longe, em Porto Príncipe, que é onde
se encontram os melhores preços para alguns produtos industriais (por exemplo, óleo, açúcar,
arroz importado). Foi uma manobra audaciosa, pois além de arcar com os custos de
deslocamentos frequentes, que não eram negligenciáveis para alguém na condição dela, entrar
nesse circuito exigia que ela tivesse quantidades consideravelmente maiores de dinheiro na
mão, pois de nada adianta viajar a Porto Príncipe para comprar em pequena quantidade.
Ela não chegou a ser uma madanm sara no sentido estrito do termo, pois os produtos da
terra que comprava em sua zona natal não eram trazidos à cidade por ela mesma – antes, ela os
revendia a outras comerciantes, melhor capitalizadas, mais capazes de fretar caminhões, e eram
essas as responsáveis por fazer tal produção chegar a Porto Príncipe. Ficou amiga de algumas

167
dessas mulheres, que em diversas ocasiões a hospedaram na cidade. Ela não fazia a viagem de
ida de mãos vazias. Além de pequenas mercadorias cujo lucro não tinha pretensões maiores que
pagar a passagem, costuma levar presentes em forma de “provisões” [pwovisyon, ou seja,
produtos agrícolas que tinham como destino sugerido o consumo e não a revenda] para as
madanm sara que a recebiam em suas casas. Ela as reconhece como amigas, que
reciprocamente a ajudavam em momentos de necessidade e também lhe traziam,
eventualmente, coisas da cidade quando vinham aos arredores de Belladère.
O comércio de longa distância praticado por Jaklin teve mais o sentido contrário, de
comprar em Porto Príncipe mercadorias que revenderia nos arredores de sua zona de origem.
Essa extensão de seu raio de ação foi acompanhada também pela diversificação de suas
compras, arriscando-se, em diferentes momentos, a abrir novas frentes, algumas logo frustradas
(como ocorreu com o material escolar), outras mais duradouras (como sandálias e perfumes).
Então ela começou a trazer coisas de Porto Príncipe para vender sobre a linha da fronteira,
começando com sutiãs e calcinhas, o que ela fez junto com sua amiga Madame Jonas. O método
usado por elas para atravessar as mercadorias pela fronteira era trazê-las vestidas no corpo.
Jaklin, ainda adolescente, cruzava a fronteira sem nada nas mãos, usando dez, quinze, vinte
calcinhas, uma por cima da outra. O costume entre as mulheres haitianas de andar com saias
largas – em contraste com as mulheres dominicanas, principalmente as jovens, que tendem a
usar roupas bem mais justas – torna facilmente ocultável o volume extra. Não só neste exemplo
das roupas íntimas, as roupas largas favorecem que o volume abaixo das roupas seja difícil de
estimar, é difícil dizer se por baixo dos panos volumosos há ou não há algo além do próprio
corpo. Ao chegar do outro lado, ela retirava as calcinhas de seu corpo e as dispunha para venda,
não como roupas usadas, neste caso eram peças novas.
Viajaram juntas, compraram o mesmo comércio, e sentaram para vender no mesmo lugar.
Ao terminar de vender, foram outra vez a Porto Príncipe, mas compraram coisas diferentes, e
depois voltaram outra vez e compraram outras coisas, sem se ater a nenhum tipo de mercadoria
específico, mas experimentando o que passava por suas mãos. Ela descreve esse momento como
loucura que tomou as duas amigas;

“Nesse momento nós ficamos loucas, mergulhamos de cabeça no comércio,


comprando das pessoas a crédito para levar pra fronteira, e o dinheiro todo sumiu, saiu
voando, os dominicanos nos roubaram, quebraram um depo e levaram nossas coisas. Então
fomos pegar empréstimos no banco, buscamos pessoas para assinar os documentos pra

168
gente, e Evens não sabia de nada do que estávamos fazendo. Fomos em vários bancos, no
Unibank, no Songesòl, no Fonkoze, no Kobdès…. Fomos em todos os bancos.”

Jaklin tomou ambiciosamente empréstimos crescentes acreditando que se pudesse


comprar mais, os lucros de revenda a garantiriam. Ela comprava e revendia produtos diversos.
À medida que seus filhos nasciam, suas despesas aumentavam, exigindo a intensificação de sua
atividade comercial, dado que, nas palavras dela, embora seu marido “trabalhasse duro” nas
terras que sua família tinha e nas terras de outros camponeses em condição financeira melhor
que a dele, “ele não tinha dinheiro nenhum, nada, era pobre, pobre, pobre”.
Ela chegou a frequentar diferentes mercados todos os dias da semana, “até domingo!”, o
que ela ressalta como prova de sua má condição. Frequentar três ou quatro mercados diferentes
por semana já exige cobrir distâncias consideráveis, já é uma atividade que absorve energia e
tempo. Muito tempo é consumido nos deslocamentos. É preciso guardar e buscar cargas em
depósitos, amarrar cargas no lombo de animais ou preparar pacotes (com sacos e cordas)
transportáveis por moto, negociar com fornecedores quando compra direto com eles
(negociações que com frequência incluem uma sociabilidade mais lenta, as melhores relações
não são estabelecidas em conversas objetivas e diretas), além do tempo que passam sentadas
vendendo no mercado. Quem frequenta cinco ou seis mercados por semana vive quase sem
direito a pausas. Domingos são dias em que a movimentação nos mercados é menor, poucos
mercados funcionam aos domingos. Podemos assim ter a dimensão do que Jaklin está falando
quando diz que sua necessidade de dinheiro era tão urgente que não era possível descansar nem
mesmo aos domingos. Mesmo que pagasse à vista pelos seus estoques (o que por si,
supostamente, já a colocava numa situação menos conturbada do que a de muitas), o capital
usado para isso era fruto de uma composição de múltiplos empréstimos: “Eu não podia deixar
de ir nem domingo, eu estava gerindo um dinheiro que não era meu”.
A dinâmica de busca por estoques conseguidos via endividamento, e sempre com dívidas
novas a pagar, correndo entre o prazo de um empréstimo e o prazo do próximo, levou Jaklin a
afirmar que sua situação nessa época era “uma escravidão” [esklavaj]. Suas operações e
empréstimos cresceram de uma forma que fugiu de seu controle.
A bomba estourou quando, em uma de suas idas ao mercado de Kwabosàl (o maior de
Porto Príncipe), ela foi roubada antes de deixar a cidade. Perdeu tudo que havia comprado
naquela viagem – mercadoria para abastecer algo entre um mês e meio e dois meses de
comércio. Com empréstimos altos a pagar e nenhuma mercadoria em mãos, precisou tomar
novos empréstimos para quitar os anteriores.

169
Seu marido nada sabia dessas operações, até descobrir, por outras pessoas (no que foi
qualificado como tripotay, [“fofoca”]), o tamanho das dívidas de sua esposa. Ele entrou em
desespero. Num acesso de fúria decepou a cabeça do cachorro dela com um golpe de facão,
fato que ela me contou acrescentando: “foi a minha cabeça que ele cortou ali, porque esse
cachorro era eu.”
Dias depois, ele foi visitar um bòkò [“feiticeiro”] para encomendar a morte dela. Após
explicar a situação, o bòkò se negou a fazer o trabalho, dizendo que aquilo não era motivo
suficiente para matá-la, que eles se resolvessem de outra forma. Essa cena lhe foi descrita por
um de seus tios, que Evens não conhecia e que estava presente na casa do bòkò na ocasião da
tentativa frustrada de contratação do serviço.
Este foi um episódio entre outros que se sucederam na mesma época, cada qual doloroso
à sua forma. Em outra ocasião, um homem a quem ela devia dinheiro parou no gran chemen,
em frente a sua casa, e atirou pedras contra as paredes e o telhado enquanto a xingava em alto
e bom som, para que todos os vizinhos escutassem. O homem demandava que ela aparecesse
imediatamente para pagar o dinheiro, que ela não tinha. Seus filhos, ainda pequenos, ficaram
escondidos dentro da casa, em pânico, enquanto ela, também escondida, tentava acalmá-los,
numa situação descrita humilhante.
Em ainda outra ocasião, uma comerciante a quem ela devia dinheiro começou a maldizê-
la e xingá-la no mercado. Entre os métodos de cobrança próprios ao sistema informal de crédito,
a difamação na vizinhança ou no mercado possuem consequências diferentes. Xingar
publicamente uma comerciante em pleno mercado, o mais público dos espaços, acusando-a de
não pagar suas dívidas (o que também pode ser qualificado como “roubo”, vem acompanhado
de xingamentos como volè [“ladra”] e frekan [“insolente”, “sem-vergonha”, “grosseira”,
“hostil”]) é um ato de graves consequências, por dificultar ou mesmo impossibilitar a contração
de novos empréstimos necessários para manter o comércio funcionando. Como resultado, a
mulher que a maldizia inviabilizava o próprio pagamento da dívida.
Essa comerciante não se deu ao trabalho de buscar mecanismos formais da justiça, foi
direto aos agiotas e a outras comerciantes que também emprestavam. Jaklin decidiu procurar o
juiz de paz por conta própria. Reconheceu a dívida, afirmou que queria pagá-la, porém, com
aquela mulher xingando-a publicamente, era impossível.
Após escutá-la, o juiz de paz chamou sua credora para depor. Esta última, ao ver Madame
Jaklin sentada em frente ao juiz de paz, já chegou xingando e reclamando seu dinheiro,
causando alvoroço na delegacia. Conhecendo o gênio da outra, ela já antecipara essa reação,

170
tinha tudo planejado. Sua adversária fez exatamente o que ela queria, oferecendo uma
barulhenta demonstração ao juiz do que ela acabara de contar, confirmando toda a sua história,
onde ela se colocara como uma mulher pobre que estava lutando para alimentar seus filhos e
que dependia daquele comércio. Ao ver aquela cena, o juiz de paz repreendeu duramente a outra
mulher, ameaçando multá-la caso continuasse maldizendo Jaklin no mercado, e obrigou-a a
renegociar o prazo (mas não o valor) da dívida.
Ao lembrar o caso, Jaklin ri contando como fez as autoridades tomarem seu partido, mas,
apesar de seu bom humor, as dificuldades financeiras eram sérias. Não só estava ganhando má
fama dentro do sistema de crédito informal, ela também recorrera ao sistema bancário, e
também falhara em cumprir os prazos acordados. As instituições bancárias não atiravam pedras
nem xingavam publicamente devedores, mas isso não torna seus métodos de cobrança mais
brandos. Uma das práticas correntes na região é levar a um notário os “papéis de casa” [papye
kay] ou “papéis de terra” [papye tè] para que eles sejam registrados como garantia pelos
empréstimos. Com a dívida em aberto, um funcionário da instituição vinha fechar a casa do
devedor com uma fita bloqueando a porta. Se mesmo assim a dívida não fosse paga, o banco se
apropriaria em definitivo da casa. Felizmente, esse foi um desgosto que ela não experimentou
diretamente.

Por aqui eles fecharam a porta da casa de muita gente. Fecharam a porta da casa de
Ti Wilky, fecharam a porta da casa dessa senhora ali, fecharam a porta da casa da Djeg… O
diretor do banco vem com advogado e fecha a porta para que as pessoas deem o dinheiro ali
mesmo, na hora. Se ele der um prazo e você não pagar, a casa passa a ser dele. O pessoal da
vizinhança que teve a porta fechada, todos correram para pagar, rápido, rápido. […] Por aqui
ninguém chegou a perder a casa de verdade. Isso acontece em Porto Príncipe, Mirabelais,
Lascahobas, Belladère… Zonas mais valorizadas que aqui. O pessoal daqui também não fez
dívidas tão grandes, que fossem impossíveis de pagar, mas em outros lugares... Eu conheço
uma pessoa em Lascahobas que o diretor do banco veio fechar a porta dele, e até hoje, já
fazem mais de três anos, e o banco ainda não vendeu a casa, nem o morador voltou, ninguém
pode morar lá, o banco não vendeu nem fez nada, só deixou a casa fechada, e ela está fechada
até hoje.
Com as minhas dívidas, não chegaram a fechar a porta da minha casa. Porque [ela se
refere a um empréstimo específico, feito junto ao banco Unibank] eu pagava as prestações,
só fiquei devendo a última mão. Só a última mão, a última de seis, as outras cinco eu tinha
pago. Ele não fechou a porta da casa, mas veio até aqui, duas vezes. Quando ele veio, eu me
escondi, ele não me achou. Ele não me encontrou, mas encontrou meu marido. […] Então
disse a ele, eu vim atrás do dinheiro, vocês precisam me pagar… Evens disse que sim, você

171
pode me esperar, eu vou te pagar hoje mesmo. Então ele telefonou para uma pessoa e vendeu
um boi, e deu o dinheiro pra ele. […] Eu devia uma mão de 2.127 dolá, então vendemos o
boi por 1.700 dolà, demos os 1.700 dolà, e depois eu mandei o resto, e pronto.

Entre os papéis que foram assinados para o banco, embora o empréstimo estivesse em
nome de Jaklin, eles exigiam que seu marido também assinasse consentindo. Ela chamou outra
pessoa para assinar no lugar dele, o que era necessário de qualquer jeito – como ele não sabe
escrever o próprio nome, sempre que alguma instância burocrática exige sua assinatura outra
pessoa escreve o nome dele em seu lugar. Mesmo assim, ele poderia ter sido avisado, e não foi.
Sem saber de nada, foi pego de surpresa pela visita do diretor do banco. Por sua esposa,
ele teve que se desfazer de seu boi, um de seus principais patrimônios, conquistado a duras
penas, sem aviso prévio. Este evento desencadeou os comentários na vizinhança a partir dos
quais ele começou a se inteirar das dívidas de sua esposa, descobrindo que o boi que vendera
pagara apenas uma fração de uma única dívida, enquanto existiam várias outras em aberto.
Pouco tempo depois, apareceu o homem que veio atirar pedras em sua casa. Embora no
momento ele estivesse ausente, soube da situação pelos vizinhos assim que chegou. Com
espanto, aos poucos descobriu que sua esposa lidava com quantias substancialmente maiores
que qualquer dinheiro que ele jamais tocara. As cifras em jogo eram, para ele, astronômicas e
aterrorizantes. A situação gerou tamanha tensão entre o casal que Evens chegou ao ponto de
buscar um bokò para encomendar a morte de sua esposa. Falhou em seu intuito por ter ido,
desavisadamente, a um local frequentado por parentes dela.
As chances de que isso acontecesse em uma vizinhança como aquela, onde os laços de
parentesco e vizinhança são densos, não eram pequenas. Porque ele não foi a alguma localidade
mais distante para encomendar o serviço?125 Trata-se de uma mera conjectura da minha parte,
pois nunca cheguei a perguntar nada para ele sobre este tema delicado, eu não tinha com ele a
mesma intimidade que tinha com Jaklin, mas me parece plausível – pelo menos enquanto
possibilidade – que ele na verdade não quisesse de fato a morte dela, mas sim mandar um aviso.
Intencionalmente ou não, teve sucesso em deixar claro tanto para Jaklin quanto para os parentes
dela que não toleraria a continuidade daquela situação.
A história de Jaklin mostra como a dinâmica de dívidas pode criar uma situação
insustentável. O roubo sofrido em Kwa Bosal é marcado por ela como o ponto a partir do qual

125
A julgar pelos rumores e histórias que escutei – uma fonte bastante indireta – parece-me que quando as pessoas
estão realmente mal intencionadas e determinadas a contratar um serviço como esse, o mais comum é que o
busquem fora dos arredores imediatos de suas próprias vizinhanças.

172
os múltiplos prazos colapsaram uns sobre os outros, e a gestão das dívidas fugiu ao seu controle.
Mas que um evento isolado seja capaz de desencadear tamanha sucessão de outros eventos é
algo que evidencia a fragilidade do arranjo. O processo de sua formação enquanto machann nos
ajuda a compreender concepções particulares de conhecimento, com ênfase no que é necessário
para o estabelecimento de rotas, onde a garantia de condições logísticas é inextrincável das
relações interpessoais, da capacidade de se relacionar bem com as pessoas e de interpretá-las
corretamente. Ao contrário de Madame Dodo, a condição familiar de Jaklin era mais
estruturada, ela tinha pessoas atrás de si, incluindo uma sogra cujo auxílio financeiro não pode
ser subestimado. Mesmo assim, sua confiança em suas próprias habilidades a levou a dar passos
maiores que as próprias pernas, suas ambições deixaram-na em uma situação complicadíssima.
Poderia ser pior – outras comerciantes, em dinâmicas similares de dívidas entrelaçadas
colapsando umas sobre as outras e gerando um efeito bola de neve, chegaram a perder porções
maiores de seus patrimônios, incluindo suas casas. Jaklin chegou a ser ameaçada de perder a
própria vida, mas, felizmente, sua situação se resolveu de outra forma. Suplicando a Deus que
encontrasse Uma saída que a tirasse desse ciclo, ela decidiu partir numa viagem a la capital
para fazer comércio longe de quaisquer dos mercados que já frequentara.

173
174
3 DINHEIRO ABENÇOADO, DINHEIRO AMALDIÇOADO
Quando você compra a crédito, é um fardo que você carrega, e é um fardo que você
deixa também sobre a cabeça dos seus filhos. Se você morrer, as pessoas vão te xingar, fica
feio, você é evangélica, não pode sair fazendo dívidas doidas [kredi fou]… E se eu estou
pregando e uma pessoa chega e diz, ei senhora, me dê o dinheiro que você me deve! Nessa
hora o evangelho perde seu valor. Isso não pode ocorrer.
Jaklin.

Um divisor de águas na vida de Jaklin foi a temporada em que ela fez algumas viagens de
ida e volta para revender em Santo Domingo coisas que comprara em Porto Príncipe. O lugar
que esse comércio de mais longa distância ocupou em sua trajetória tem forte relação com as
dívidas contraídas antes. As dívidas impulsionaram os deslocamentos. Esse conjunto de
episódios conta com a presença fundamental de outro personagem: Deus [Bondye]. Neste
capítulo, seremos confrontados com a Sua potência transcendente infinita para abrir e fechar
caminhos (que coexiste com outros seres que, embora menos poderosos, também agem no
mesmo sentido). É revelador que este aspecto particular da onipotência divina ocupe grande
parte das referências a Ele. Muitas das imagens e metáforas usadas tanto em cultos e orações
como em conversas cotidianas quando estas incluem Deus mencionam a abertura de rotas/
estradas [wout], caminhos [chemen] e passagens [geralmente usando o verbo “passar”, pase].
Ganha relevância o fato de que nossas duas personagens principais, Jaklin e Madame
Dodo, além de serem comerciantes, são ambas protestantes. Mas é preciso qualificar o que
significa ser protestante em uma vizinhança como Lakaniyt. Adiantemos de saída que a própria
conversão e aceitação de Jesus Cristo [aksepte Jezi] é um assunto trazido à tona com frequência,
a presença de Deus é introduzida em diversos assuntos, assim como a bíblia é constantemente
citada, principalmente por Jaklin. A afirmação do papel missionário [mysionè] não é acessória,
dá indícios fortes sobre como elas veem seu lugar no mundo.
Ao seguir a trilha da relação com Deus tal como ela é narrada, teremos uma entrada para
analisar a moralidade que permeia as trocas econômicas. Essa análise partirá de dois conceitos
fundamentais: beni [“abençoar”, “abençoado/a”] e maldichon [“maldição”, “amaldiçoado/a”].
Ambos os conceitos são invocados com frequência, muitas vezes como explicação causal. Essa
polaridade de forças espirituais é uma forma particular de mapear o que atitudes corretas e
erradas podem atrair ou repelir, com influência direta sobre o sucesso ou fracasso da atividade
comercial, assim como sobre a própria vida. A elaboração de temas como a diversidade de

175
formas capitalização e a contração, adiamento ou quitação de dívidas é marcada por
considerações bíblicas e pela presença de forças espirituais no mundo material.

20 Jaklin posa com a bíblia.


Imagem enviada por WhatsApp.

Reverberando os termos do estudo clássico sobre o campesinato haitiano de Gérard


Barthélemy (1989), trata-se de uma economia moral própria, na qual os processos de obtenção
de um recurso podem repercutir e entranhar-se nele. Como alguns traços gerais dessa economia
moral que destrincharemos adiante, citamos: nem todo dinheiro vale a pena, ainda que em certas

176
ocasiões se necessite desesperadamente dele; a vizinhança mobiliza uma rede de trocas de
comida, de presentes, de ajuda e mão de obra, e é importante ser tido em boa conta pela
vizinhança, pois os maus pensamentos e a inveja dos vizinhos são temidos; a riqueza é suspeita,
principalmente o enriquecimento súbito; mas, ao mesmo tempo (e contra o que, há trinta anos,
afirmava Barthélemy), o desejo de ascensão econômica é generalizado. Tanto o dinheiro quanto
outros recursos (como animais, árvores, objetos) podem tanto ter um estatuto abençoado quanto
amaldiçoado, atraindo para o seu dono, no futuro, as consequências de ações passadas. Essas
ações podem tanto ter sido tomadas pelo próprio dono do recurso quanto por outras pessoas,
inclusive sem o conhecimento deste. Como veremos, operam aqui noções de causalidade
particulares.

Nota sobre filiações religiosas


Ignoro se existem censos confiáveis sobre as proporções entre católicos [katolik] e
evangélicos [levanjil] na região da pesquisa, mas é seguro dizer que esses dois grandes grupos
abarcam a imensa maioria das pessoas. Virtualmente ninguém nega a existência de Deus ou a
autoridade da bíblia.126
O vasto universo de práticas reunidas na literatura sob a rubrica “vodu haitiano” é
fortemente associado aos católicos, em oposição aos evangélicos, que o renegam, e constroem
suas identidades religiosas, em boa medida, através dessa recusa. Além do termo levanjil [tanto
“evangelho” quanto “evangélico/a”], também são usados de forma intercambiável pwotestan
[“protestante”] ou apenas kretyen [“cristã/o”]. Estes termos nomeiam um grupo definido pela
exclusão dos católicos. Os mais usados são kretyen e levanjil. Não adotarei no texto nenhuma
diferença entre estes termos porque nunca presenciei minhas interlocutoras estabelecendo
qualquer distinção entre eles.

126
Em uma ocasião, conversando com um grupo de jovens no mercado, eu afirmei que não sou cristão, e que
reconheço a importância da bíblia por seu valor histórico, mas não por inspiração divina – que julgava que os
livros ali contidos eram obra humana, haviam sido escritos por pessoas que, por mais distantes que sejam de
nós, eram, ainda assim, apenas pessoas. Que a bíblia tivesse sido escrita por pessoas sem ajuda da inspiração
divina foi uma opinião escandalosa e chocante para algumas das presentes, que custaram a acreditar no que
ouviam. Por fim, uma das mais indignadas entre elas me puxou de lado e me recomendou que, ainda que eu
realmente pensasse aquilo, jamais repetisse em voz alta, “caso contrário as pessoas vão pensar que você
enlouqueceu”. Minha posição parecia radical, excêntrica e incompreensível. Em todo o período que passei lá,
creio que nunca cheguei a conhecer um único haitiano que se declarasse ateu, ou tampouco vinculado a
qualquer outra vertente religiosa não-cristã (embora haja, na literatura, menções a influências islâmicas no
Haiti e crítica quanto ao seu não-reconhecimento – ver Dayan 1995 e Kahn 2012).

177
Os católicos são a provável maioria da população, mas há um número expressivo de
pessoas evangélicas, e são elas as mais propensas a falar sobre suas próprias crenças, passando
por eventuais tentativas de me evangelizar, e principalmente nas críticas às “coisas do diabo”
[bagay djab]. Por outro lado, as católicas tendiam a ser mais discretas e reservadas a respeito
de suas crenças religiosas.
Em Lakanyit, há diversas igrejas protestantes. Eu assisti a cultos em duas delas. Ambas
eram mantidas por pessoas da vizinhança, literalmente construídas por ela mesmas, com
materiais e trabalho manual providos pelos próprios adeptos. Suas sedes físicas são estruturas
de madeira, semelhantes às da maioria das casas na região, só que maiores e sem divisões
internas. Quando eu quis saber sobre seus laços congregacionais, pareceu uma pergunta sem
sentido. Sem dúvida, suas práticas são afins ao pentecostalismo, mas os fiéis não se
reconheciam como parte desse movimento (tampouco o negavam, apenas não se referiam a
ele). Às minhas insistentes perguntas, respondiam simples e consistentemente que eram “igrejas
de Deus” [leglis Bondye]. Em Belladère, Kwa Fè e mesmo Los Puetes, há igrejas batistas,
pentecostais, adventistas do sétimo dia, entre outras, mas essas duas pequenas igrejas de
Lakanyit – e creio que inúmeras outras pequenas igrejas rurais – funcionam de forma autônoma
e desvinculada de qualquer denominação maior.
As pessoas presentes nos cultos eram moradores dos arredores imediatos. Da mesma
forma, todos os pastores são da vizinhança, com exceção de um ou outro pastor de fora
convidado para algum evento ou sermão especial. Tais trocas entre igrejas são valorizadas. É
fonte de prestígio para um pastor ser convidado a falar em outras igrejas. Quando havia alguém
de fora, geralmente era nessa condição de convidado especial. O contato com pastores norte-
americanos é especialmente desejado, embora as duas igrejas em questão ainda não tenham tido
a “sorte” [chans] de estabelecer tais elos. Essa foi frase usada: “ainda não tivemos essa sorte”.
Assim que eu cheguei à vizinhança, Jaklin me convidou a assistir um culto em sua igreja.
Como as pessoas ainda não me conheciam, minha presença num primeiro momento causou
furor e mal-entendido. Todos os presentes vieram me cumprimentar e me felicitar, enviando
saudações à minha suposta igreja. Tomei algum tempo para explicar quem eu era e o que vinha
fazer. A informação que eu não vinha dos Estados Unidos causou uma leve, mas perceptível
decepção, assim como o fato de que eu não era pastor, não tinha vínculos com igreja alguma, e
que sequer era cristão. Essa última parte ainda animou algumas pessoas com a expectativa de
que me converteriam. De todo modo, por mais que tenha ficado claríssimo o quanto seria

178
preferível ter ali um pastor vindo de uma igreja com recursos e com sede em um país rico, todos
me receberam muito bem.
Ser pastor não é de forma alguma uma ocupação de tempo integral. Pastores também
cultivam a terra e se ocupam de outras coisas como todo mundo. Nos cultos, as crianças e
adolescentes são ampla maioria, sempre acompanhando algum adulto. Cada adulto parecia
trazer consigo várias crianças. Com exceção das crianças e adolescentes, é tênue a distinção
entre pastores e fiéis. Quase todos os adultos que frequentam essas duas igrejas são também
pregadores e pregadoras. Quando há gerador e caixa de som, as pessoas vão sucessivamente
pedindo a palavra, e o microfone passa de mão em mão, entre sermões, orações, hinos, avisos
ou pedidos.
Da forma como os cultos são realizados, chega-se a ter a impressão de que a função de
pastor é rotativa, mas na verdade não é. Existe um pastor reconhecido como principal em ambas
as igrejas. Apesar da existência e reconhecimento consensual desse cargo, os cultos, as reuniões
de estudo da bíblia e também os “serviços” [sèvis] (nome dado às orações coletivas realizadas
na casa de algum fiel da igreja, pequenos eventos que acontecem de forma rotativa, e que muitas
vezes visa ajudar a anfitriã com algum problema específico) acontecem em sua ausência sem o
menor problema.
O pastor responsável por uma dessas igrejas tentou migrar para a RD, e permaneceu lá por
cerca de três meses até ser deportado. No período em que ele esteve fora, todos os cultos
aconteceram normalmente. Diversas pessoas tinham a chave da igreja, entravam para limpar,
buscavam e devolviam equipamentos, rezavam e conduziam os cultos. Ao retornar, o pastor em
questão retomou suas funções. Como se vê, os pastores tidos como principais estão longe de
ser uma presença indispensável. No mesmo sentido, eles não estão necessariamente mais bem
informados sobre o que acontece nas igrejas do que os outros membros. Tudo se passa como se
a competência religiosa fosse amplamente distribuída, tendo como sua fonte primordial a bíblia.

Os poderes e as vontades da bíblia


Trechos da bíblia são lidos tanto em momentos de recolhimento individual quanto em
sessões coletivas. Curiosamente, as pessoas se referem à bíblia como um ser vivo, não só capaz
de pautar as vidas das pessoas, mas como se tivesse vontade própria. “A bíblia quer que você
faça tal coisa”, “a bíblia não gosta que você tal outra”, são formas de expressão que as pessoas
usam cotidianamente.

179
21 Diferentes salmos pintados nas fachadas das casas.
Imagens enviadas por WhatsApp.

Certa vez, o rádio que se escutava da área externa da casa de Jaklin trazia um programa
de debates em que os convidados eram um pastor e um ougan. O ougan acusou não apenas
aquele pastor ali presente, mas a comunidade evangélica haitiana em geral, dizendo que eles
condenam os serviços prestados pelos ougan, que os acusam de enviar pwen, de fazer o mal às
pessoas, mas que também eles, os pastores, faziam as mesmas coisas através das suas bíblias.
O argumento causou grande divertimento. Em meio à animação geral, todos começaram a
corroborar a sua verdade, lembrando e recontando casos que conheciam. Essa opinião era
partilhada inclusive pela própria Jaklin: os pastores também liquidam seus inimigos e a bíblia
é o veículo usado. Tanto quanto ocorre com outras práticas e objetos de culto, a bíblia pode
tanto ser usada para proteger e curar quanto para atacar inimigos.
Dentro da bíblia, o “livro dos Salmos” [Sòm Yo] é tido como o mais poderoso, avaliação
que parece unânime. Quando os pastores desejam matar seus inimigos à distância, os salmos
são os veículos mais eficazes para fazê-lo. O termo usado é “enviar (um) salmo” [voye sòm],

180
que é a mesma frase usada para uma prática análoga, “enviar pwen [voye pwen]”. A analogia
não é minha, ela foi feita pelos presentes na ocasião do debate no rádio enquanto tentavam me
explicar o que significa enviar um salmo. Acrescentaram que os envios de salmos são feitos
através da recitação por um pastor, com a bíblia em mãos, que os direciona, pela intenção
colocada naquelas palavras, a algum alvo que não está presente na ocasião. Os envios são feitos
à distância, e geralmente são letais, pois os salmos têm “muito, muito poder”. O alvo em questão
morrerá sem saber pelo quê foi atingido.
Algumas outras publicações, que circulam tanto em meios protestantes quanto católicos,
possuem poderes análogos. A mais popular dentre elas é Chants d’Espérance [“Cantos de
Esperança”], um livro que traz impressas as letras de músicas cantadas na igreja, disponível
tanto em francês quanto em crioulo haitiano. Trechos de seu conteúdo podem ser direcionados
a alvos específicos, tanto na intenção de fazer o bem quanto para causar dano. Publicações
contendo evangelhos apócrifos não são nem de longe tão comuns e fáceis de encontrar quanto
a bíblia oficial, mas tampouco são raridades. Estes textos que também se prestam a usos
análogos, mas de novo, de diluída eficácia se comparados à fonte mais poderosa. Todas essas
outras publicações são consideradas bem menos potentes que a bíblia, assim como todos os
outros livros dentro da bíblia são considerados menos potentes que os salmos.
Um antídoto contra esses possíveis ataques está na própria bíblia. Ela serve de escudo para
as energias agressivas que ela mesma pode veicular, assim como também protege contra ataques
de outras fontes. Em seus momentos de exaltação, Jaklin afirmava que ela protege contra
absolutamente todos os males, embora ela mesma, em outros momentos, relativizasse a
amplitude dessa proteção. Praticamente todas as casas possuem uma cópia da bíblia. Ela é, de
longe e sem margem de dúvida, a obra escrita mais difundida e mais lida (por trechos, não como
um livro inteiro) na área da pesquisa. Mesmo as pessoas menos afeitas à bíblia, incluindo
aquelas que nunca aprenderam a ler, conhecem várias de suas histórias e personagens e as usam
como exemplos e argumentos em discussões. Os adultos contam histórias bíblicas para as
crianças. É um item indispensável para evangélicos, e também é importante para católicos.
Além disso, existe o costume de pintar citações da bíblia sobre a faixada das casas, sempre
no mesmo lugar, acima da porta principal de entrada. Poucas vezes vi alguém escrever frases
inteiras. A forma mais comum é colocar apenas a indicação de um trecho (livro, capítulo e às
vezes versículo – por exemplo, SÒM 25, 4, ou então JAN 14). Essa prática visa proteger a casa
e seus habitantes. Novamente aqui, o livro campeão em citações pintadas acima das portas é o

181
Salmos. Em seguida, os mais populares para essa finalidade são os evangelhos de Mateus
[Matye], Marcos [Mak], Lucas [Lik] e João [Jan].
Embora tais usos da bíblia estejam mais associados aos evangélicos, vale notar que o uso
de trechos da bíblia como proteção para as passagens entre o interior e o exterior também ocorre
em casas de predominância católica. Lembramos que, como dito acima, em todas as casas que
eu conheci havia diversidade interna: no mínimo um morador de uma casa predominantemente
protestante era católico, e vice-versa. O valor dessa diversidade tem relação com a atribuição
de eficácias específicas aos ritos praticados em cada caso, de forma que é desejável aumentar o
repertório para que, como um grupo, sejam capazes de lidar com diferentes seres, e possam
fazer frente a ameaças variadas.
Uma consequência disso é que, a despeito da missão de converter novos adeptos, que os
evangélicos frequentemente tomam para si, não existe muita pressão dentro das casas para que
os membros mudem entre esses dois polos principais do espectro religioso. Jaklin, por exemplo,
já saiu em diversas viagens terra adentro para louvar e pregar, o que ela faz com desenvoltura
quando se trata de falar com pessoas desconhecidas, seja em igrejas às quais se organizam
visitas coletivas, seja em pregações públicas (também coletivas) das quais ela participa.
Contudo, frente às pessoas sobre as quais ela exerce maior influência, que são seus filhos e
filhas, ela não os impele à conversão, deixa isso a critério de cada um, como uma decisão
pessoal que cada qual deve tomar por si caso queira e quando queira.
Ela considera, inclusive, que uma conversão feita sob pressão não teria nenhum valor.
Para ela, entre evangélicos, de um lado existem aqueles que realmente acreditam e se dedicam
e do outro há crentes de fachada, que não seguem os preceitos de verdade nem têm Deus firme
dentro deles. A percepção dessa diferença é amplamente compartilhada, admitida tanto entre
evangélicos quanto usada como acusação por católicos. Uma pessoa que se convertesse sob
pressão, sem um desejo real de fazê-lo, se tornaria apenas mais um crente de fachada.
Certo dia, um dos pastores mais prezados por ela, que não morava tão perto, mas
costumava ser convidado pregar em sua igreja, veio à sua casa para contar de um sonho que
tivera com Castro, seu filho mais velho. No sonho, vira um jardim de feijão que sofria com uma
praga, e ele vinha ajudar a cuidar. No primeiro momento, cheguei a pensar que ele fosse um
engenheiro agrônomo, mas logo me explicaram que era um sonho, que devia ser compreendido
como uma metáfora [imaj]. A mensagem do sonho é que Castro estava espiritualmente à deriva,
e devia ser trazido para dentro da igreja, para que sua vida tomasse rumo. Esse pastor queria
procurar Castro para conversar com ele, transmitir a mensagem, e tentar arranjar alguma

182
maneira de convencê-lo a começar a frequentar os cultos, reuniões de estudo da bíblia, processo
que idealmente devia levá-lo à conversão. O próprio Castro, contudo, não tinha o menor
interesse, e tendo sido informado que o pastor vinha na intenção de conversar com ele, fugiu
pelo mato e se escondeu. Decepcionado, o pastor constatou a recusa do recebimento da
mensagem reclamando um pouco, puxou uma oração coletiva (da qual eu participei, enquanto
Sondy, irmão de Castro, que não participou, ridicularizava a cena do lado de fora, às costas do
pastor) e depois foi embora. Para Jaklin, a situação foi constrangedora. Queria receber bem
aquela figura a quem reconhecia autoridade espiritual, e que trazia uma mensagem enviada
diretamente por Deus, mas, ao mesmo tempo, Castro era seu amado filho, e ela não tinha o
menor desejo de obrigá-lo a fazer o que ele não queria ou de colocá-lo numa posição
desconfortável frente ao pastor visitante, sendo obrigado a dizer “não”. Assim, ela ajudou-o a
se esconder e a fugir [mawon], e mandou as crianças para avisá-lo que já podia voltar depois
que o pastor foi embora.
Essa pequena cena mostra como a guerra espiritual empreendida pelos protestantes
haitianos contra as práticas mágicas associadas ao diabo, e a suposta ruptura que eles
representam frente à religiosidade própria ao universo do vodu e do catolicismo, deve ser
relativizada, pelo menos no que diz respeito a este protestantismo popular rural. Embora a
ruptura seja declarada pública e continuamente, o discurso combativo coexiste com práticas
mais tolerantes à diversidade do que dá a entender o conteúdo das pregações.

A importância dos sonhos


Além da bíblia, que pode ter qualquer trecho legitimamente apropriado como uma fala
emanada diretamente de Deus (inclusive suspendendo o contexto original do trecho em
questão), o principal veículo utilizado para conhecer as Suas vontades são os sonhos.
Erika Bourbuignon (1954) escreveu um artigo sobre os sonhos e sua interpretação no
Haiti. O principal tema explorado por ela neste artigo é justamente a comunicação com os
deuses. O argumento da autora mira o universo católico, excluindo explicitamente os
protestantes que, por renegarem os deuses no plural, tanto enquanto lwa como enquanto santos
católicos, não se comunicariam com eles. Daí vem a curiosa afirmação, implicitamente
atribuída aos seus interlocutores católicos, de que: “Protestants, who believe neither in the
saints in their Catholic form nor in the vodun deities, are thought to dream only rarely and with
difficulty, since the gods would not communicate with them” (Bourguignon, 1954:267).

183
É difícil saber se a diferença se deve à considerável distância temporal entre as respectivas
pesquisas de campo (seis décadas, 1947-48 e 2015-17) ou ao fato de que as interlocutoras que
interessam Bourguignon eram católicas, enquanto as pessoas de quem eu estive mais próximo
eram protestantes, ou ainda a um ethos comum em boa parte da literatura que atribui ao
protestantismo haitiano uma ruptura radical e profunda com os rituais e práticas associados ao
vodu. Independente do motivo que levou à distorção, o fato é que essa suposta dificuldade de
sonhar entre protestantes não encontra o mínimo fundamento empírico.
Muito pelo contrário, sonhos são esperados, contados a outras pessoas e debatidos. Existe
de fato entre evangélicos uma recusa declarada à ideia de que os mortos possam se comunicar
através dos sonhos, o que é geralmente aceito pelos católicos, mas ninguém duvida que Deus
possa se manifestar e conversar com as pessoas enquanto elas dormem.
Nem todo sonho é considerado uma mensagem de origem divina. A maioria dos sonhos
não tem nenhum sentido especial e podem ser esquecidos. O tipo de sonho que é, por excelência,
uma comunicação direta com Bondye é aquele experimentado após uma longa prece noturna.
Trata-se de uma técnica para reflexão [reflechi], que costuma ser usada quando se têm algum
problema de difícil resolução. Se, diante de um problema, a pessoa não consegue se decidir, ou
sente que não lhe cabe o direito de tomar uma decisão, ela pode apelar a Deus. A oração deve
explicar a situação, pedindo pelo desfecho desejado, e deve ser feita logo antes de dormir. O
sonho que se segue é capaz de pautar as decisões futuras, que, uma vez amparadas por Deus,
suspendem a dúvida e transmitem convicção. Esses sonhos são compartilhados e debatidos, e
alguns são lembrados por muito tempo.
Para além destes sonhos que são, por assim dizer, induzidos, existem também sonhos que
captam inadvertidamente mensagens destinadas a terceiros. Por vezes, um pastor tem um sonho
que se dirige a uma pessoa específica de outra vizinhança, o que pode levar o mensageiro a
enfrentar grandes distâncias para transmitir aquilo que Deus lhe deixou saber, como no caso
recém-citado. Anos antes da minha chegada, Jaklin recebera uma dessas mensagens, e ainda
evocava o sonho daquele pastor como prova de determinados acontecimentos que ainda
estavam por vir.
Como pudemos vislumbrar pelo pequeno trecho citado, a reafirmação acadêmica do
abismo que separa católicos e protestantes no Haiti rapidamente leva à conclusão de que a
comunicação direta com os deuses do panteão vodu, experimentada pelos católicos, é algo
inacessível e inexistente para protestantes, cujo Deus estaria muito mais distante dos
acontecimentos terrestres, não deixando espaço para nenhuma forma de comunicação direta.

184
Traremos adiante evidências adicionais que mostrarão como essa visão da inacessibilidade de
Deus no protestantismo popular haitiano está profundamente equivocada.

Interdições comerciais específicas às comerciantes evangélicas


Existem diversas consequências do protestantismo para a forma como se pratica o
comércio. A mais imediata é a interdição de certos ramos. Produtos comuns como o kleren
[“cachaça”] e o tabaco (seja como folhas secas para fumar, seja no formato de rapé para
inalação) têm venda e consumo interdito para protestantes. Enquanto o uso das folhas secas
para fazer manualmente os charutos é um hábito associado a pessoas mais velhas (as gerações
mais novas preferem os cigarros de origem industrial, entre os quais a marca mais popular se
chama Comme Il Fault), o tabaco em pó é amplamente consumido. O kleren também circula
bem, é algo que muitos homens tomam “para dar coragem” quando trabalham nos campos.127
O mesmo ocorre com diversos artigos associados às coisas místicas, que compõe um ramo
à parte – existe um pungente comércio de pequenas garrafas contendo misturas de ingredientes
macerados formando pós coloridos, garrafas contendo líquidos e extratos de plantas, velas
coloridas e de tamanhos variados, e lenços coloridos [mouchwa], cujas cores ou combinações
de cores são associadas a santos (ou lwa) específicos, além das imagens de santos. Embora as
garrafas, a princípio, devam ser preparadas por especialistas, comerciantes que alegam não ter
nenhuma relação com as práticas rituais que usam tais objetos, e que não os preparam, podem
revendê-los nos mercados.
Vale notar a aproximação entre consumo e comércio. Que um dado objeto ou produto
passe pela sua mão para fins comerciais ou para uso próprio, pouco importa. O preceito é que
ele não deve passar de forma alguma pela sua mão. Nos exemplos acima, os primeiros são
renegados como “coisas do mundo” [bagay lemond], os segundos como “coisas do diabo”
[bagay djab].128

127
A embriaguez, contudo, é relativamente rara, além de ser mal vista por católicos, e mais ainda pelos
evangélicos. Mesmo as vendedoras de kleren desprezam seus clientes bêbados, chegando inclusive ao ponto
de recusarem vender mais e expulsá-los quando eles ficam inconvenientes.
128
Djab é um conceito complexo. Não é uma mera categoria de acusação, pois os próprios servidores por vezes
se referem aos santos e aos lwa como “diabos”. Dalmaso (2018:103) mostra que os lwa podem ser chamados
alternativamente de “mistérios” [mystè], “invisíveis” [envizib] ou “diabos” [djab, ou dyab], como sinônimos
parciais mas que, a depender do contexto de enunciação, podem indicar deslocamentos sutis que enfatizam
determinadas características enquanto obliteram outras (não necessariamente excludentes entre si). Um
elemento básico para a compreensão dos efeitos pragmáticos da fala é, justamente, que ela seja enunciada por
alguém católico ou protestante. Exceto no contexto da renegação protestante, esses diabos não possuem uma
polaridade moral puramente negativa. Algumas vezes escutei variações da frase “Jesus Cristo é o diabo mais
forte que há” [Jezikris se djab pi fò ki gen la, pa genyen djab pi fò pase Jezikris]. Enquanto a palavra djab é

185
Também há interdição a certas práticas, como o uso de pwen.129 No contexto do comércio,
o uso de um pwen tem o efeito de atrair clientes e fazer o negócio prosperar, em detrimento das
outras vendedoras que compartilham o mesmo espaço no mercado, e que passam a vender
menos quando uma vizinha/concorrente usa tal artifício. A percepção de que o ganho de uma é
uma perda para as outras, uma apropriação indevida, é o cerne da condenação moral a este tipo
de artifício. Essa condenação do uso de pwen para o comércio como uma prática desonesta é
uma avaliação geral, mas as evangélicas são mais propensas à sua denúncia e mais assertivas
na sua recusa. Tanto Jaklin quanto Madame Dodo afirmam que isso não pode ser feito por
“serventes de Deus” (sevitè Bondye, outro dos termos que elas usam para se referir a si mesmas,
curiosamente análogo à expressão usada para designar os sevitè [“serventes”] dos santos/lwa).
Segundo elas, apenas comerciantes católicas podem “andar com magia na bolsa”.
Além dos pwen, existem outros seres que podem ser fabricados, vendidos e comprados, e
que tem como principal função enriquecer seu dono. Ainda que dotados de poderes invisíveis
(e de outras características que os aproximam dos seres vivos, como a necessidade de serem
alimentados), os pwen são também, em sua materialidade visível, objetos.130

de uso generalizado e, pelo menos potencialmente, pode ser neutra de um ponto de vista moral, minhas
interlocutoras protestantes a usavam de forma intercalada com outros termos que evocam mais diretamente
uma denúncia condenatória, como satan e lucifer, indissociáveis da referência bíblica.
129
Eis como Métraux (1972:288) define o conceito de pwen (ao qual ele adiciona o adjetivo “quente”, adotando
a grafia francesa, point chaud): “It can be represented by a talisman (stone, red herring, etc.) which exercises
a direct effect by virtue of an intrinsic property or through the agency of a spirit attached to the object as a
‘slave’”. Já Serge Larose (1977:106) dá a seguinte definição: “The word ‘point’ is used in a wide variety of
contexts. It has the general meaning of a personal advantage, an ability in which one surpasses others. (…)
But ‘point’ also denote specific powers which can be bought at the hands of a hougan. (…) All points are
means by which an individual tries to manipulate his environment to his own profit, usually at the expense of
others.” Em se tratando de um conceito complexo e intraduzível, oferecemos ainda uma última definição
(Richman 2005:163): “Pwen are mimetic ways … to ‘get hold of an object at very close range by ways of its
likeness, its reproduction’ A pwen seizes or stops the power inside the other by reproducing it. Moreover, a
pwen exists only as a relation; that is, insofar as someone other than the one who created it can perceive it.
Pwen exist, therefore, to be exchanged, ‘sent’ or ‘thrown’. Thus it is said that every pwen has a ‘owner’ (mèt)
to ‘gather it’ or ‘pick it up’ (ranmase li). The owner of the pwen, not its senders nor its creator, subjectively
determines what the pwen is, what it means, and what it can do.” Essa descrição subjetivista é enganosa ao
obscurecer o fato que considera-se que os pwen possuem uma existência própria e uma capacidade de ação
que em boa medida independe do seu reconhecimento. Fiod (2014) descreve em detalhes o preparo e os efeitos
de artefatos identificados como pwen. O pwen que me foi descrito por Jaklin no contexto acima era um artefato
(usado por uma comerciante que ambos conhecíamos) que consistia em um pequeno saco com sementes de
gergelim, amarrado com uma corda e preparado com rezas.
130
Essa visibilidade é relativa. Como mostra a pesquisa de Ana Fiod (2014), num outro contexto (crianças que
criavam, por conta própria, meios de defesa contra a predação de adultos, que as atacavam sob a forma de
lougawou), os pwen fabricados podem ser alojados dentro do corpo, debaixo da pele. Nos casos reportados de
uso de pwen nos mercados, contudo, os objetos eram mantidos pelas suas donas próximos ao corpo, ocultos
nas bolsas ou sob vestes e panos (protegidos, portanto, de uma visibilidade pública, o que, dado seu caráter
imoral, é uma necessidade), mas não debaixo da pele. Possuem uma dimensão visível para suas donas e para
as pessoas de sua confiança, assim como para outras pessoas que venham desmascará-las e expor o que vinham

186
Os baka, por outro lado, são como animais. Igualmente dotados de poderes invisíveis,
estes seres fantásticos não possuem uma forma fixa. O mesmo baka é capaz de assumir a forma
de diversos animais, hoje ele pode vir como um gato, amanhã como uma coruja, e assim por
diante.131 São criaturas noturnas, e o encontro com uma delas é sempre uma experiência
medonha. O medo é, inclusive, uma das formas pelas quais é possível identificá-los. Se uma
pessoa caminhando à noite cruza em seu caminho com um simples gato, nada marcante terá
acontecido, contudo, se ao ver esse gato, ela sentir um pavor inexplicável subindo pela sua
espinha, esse é um forte indício de que se tratava de um baka.
O baka é um tipo de ladrão, quem adquire um deles enriquece rápido. Os roubos realizados
pelo baka são encomendas feitas por seu/sua dono/a, que com isso se apropria indevida e
desonestamente dos esforços de seus vizinhos.
Como é previsível, é muito difícil que alguém diga “eu tenho um baka” (ou “eu sou um
baka”, que é outra possibilidade, pois as criaturas também podem assumir a forma humana),
exceto caso queira ameaçar e assustar alguém. Por outro lado, diversas comerciantes reportam
terem sido vítimas de roubo por baka. A formulação típica é que “um baka comeu o meu
dinheiro”. Como vimos no primeiro capítulo, essa queixa é uma explicação rechaçada por
Jaklin, que atribui o suposto desaparecimento místico do dinheiro à má gestão. Contudo, a
própria Jaklin não nega de forma alguma nem que existam muitos baka por aí, nem que estes
de fato roubem as pessoas.
Essas criaturas são vendidas e compradas em segredo, como um ramo de comércio ilícito,
cujas informações circulam sob a forma de rumores. Ernest Palmer (1976:163), cuja pesquisa
se realizou na mesma fronteira entre o Plateau Central haitiano e o Vale de San Juan na RD,
relata a crença nos bacá [segundo a grafia hispânica] de ambos os lados, ressaltando que, do
lado dominicano, quando algum agricultor enriquecia, acreditava-se ser obra de um bacá, e

escondendo. Mesmo debaixo da pele, sua inserção deixa cicatrizes, marcas visíveis que comunicam algo, são
percebidas e debatidas.
131
Tanto no Haiti, com o nome baka, quanto na RD, como bacá, existem diversas menções a essa criatura na
literatura (p. ex., Herskovits 1937, Bourguignon 1950, Métraux 1959, Palmer 1976, de Heusch 1989,
McCarthy Brown 1991, Derby 1994). Geralmente são citações en passant, mas há um artigo de Derby &
Werner (2013) que tem como episódio central a aparição de uma dessas criaturas em uma fábrica têxtil na RD.
As descrições são variadas, incluindo que seriam “espíritos maléficos” e “o mal encarnado” (McCarthy
Brown), “homens em miniatura” (Métraux), “animais fantásticos e aterrorizantes” (Bourguignon), entre
outras. Entre as descrições discrepantes de que dispomos, me atenho aqui à forma como a criatura me foi
explicada por meus interlocutores em campo. Acrescendo ainda que era um ser do qual eu ouvia falar
diariamente sem precisar perguntar nada, e que o termo baka era também muito usado de uma forma, por
assim dizer, metafórica, como um xingamento, querendo com isso dizer que a pessoa chamada de baka era
uma pessoa fisicamente muito feia.

187
ainda que os agricultores dominicanos que tinham um bacá haviam comprado a criatura na mão
de algum ougan haitiano.
Dentro do complexo repertório de roubos que usam técnicas místicas, temos também a
prática conhecida como rale lajan [“puxar dinheiro”]. Este tipo de roubo consiste no
enfeitiçamento de notas de dinheiro, que são usadas para fazer um pagamento qualquer. Depois
de usada, essa nota retornará ao seu dono original, e a comerciante que a recebeu e a colocou
junto com o seu dinheiro terá a totalidade desse dinheiro “puxado” junto com a nota
originalmente enfeitiçada. Essa modalidade de roubo também é conhecida e temida nos
mercados dominicanos, é algo que os malfeitores de ambas as nacionalidades fazem dos dois
lados da fronteira. O medo de ter o dinheiro puxado faz com que muitas comerciantes se
recusem a trocar dinheiro para desconhecidas no mercado, inclusive a ponto de se recusarem a
fazer vendas de baixo valor (vendas que parecem ter o intuito principal de trocar dinheiro)
quando desconfiam do cliente, para não correr o risco de pegar uma dessas notas.
Cabe perguntar se essa prática não é, de fato, difundida muito além da ilha de Hispaniola.
Na Colômbia, Taussig (1980; cap. 7) reporta a existência de um procedimento chamado
“batismo do dinheiro”, que possui semelhanças com o rale lajan. Na análise deste autor, esta
crença implica na atribuição de poderes reprodutivos, próprios ao mundo animal, às notas
dinheiro (que, ao se reproduzirem, não são mais um mero meio de troca, mas se tornam capital),
o que só pode ser feito mediante uma ação ritual ilícita. A conversão do dinheiro em capital é
tida então como sobrenatural e antinatural. “Capital is thus explained in terms that reveal it to
be unnatural and immoral” (Taussig, 1980:132).
O tipo de explicação popularizada por Taussig, que toma crenças e ritos mágicos como
elaborações a respeito do capitalismo, também foi desenvolvida para dar sentido a formas de
enriquecimento ilícito praticadas no Haiti. Karen Richman (2005, 2008), partindo da dicotomia
entre Ginen e Maji (o primeiro polo associado à África ancestral, respeito às tradições e aos
mais velhos, e o segundo, associado ao dinheiro, ao enriquecimento rápido, ao trabalho
assalariado anônimo, à exploração capitalista), desenvolveu o argumento de que as práticas
mágico-religiosas de seus interlocutores haitianos – dando ênfase aos pwen como fonte de
enriquecimento ilícito – seriam também (ou seriam, talvez, principalmente) uma forma de
elaborar e controlar sua inserção no sistema capitalista transnacional.132

132
Não que controlem de fato as relações de trabalho em que se engajam, longe disso. Para a autora, esse controle
só funciona “simbolicamente”: Despite its authority as an allegedly ancient African practice, this modern
tradition developed in response to major social and economic upheaval in the plains of Haiti, which

188
Em seu artigo sobre o bacá que atacou os trabalhadores de uma fábrica na RD, Derby &
Werner (2013) desenvolveram um argumento análogo: a crença no bacá seria uma forma de
elaborar simbolicamente a exploração capitalista que sofriam de fato nas relações de trabalho.
A fome da criatura (uma fome de sangue humano) seria uma forma de pensar sobre a avidez
capitalista e o enriquecimento dos donos da fábrica.
Não precisamos, aqui, investir na distinção entre a realidade das relações de trabalho
capitalistas, que existem “de fato”, por um lado, e a sua elaboração num plano “simbólico”, por
outro. O fundamento dessa recusa é puramente etnográfico: as pessoas não falam sobre os baka
e os pwen como se fossem formas de comentar sobre alguma outra coisa. Falam deles como
seres que nascem (isto é, são criados, por artifício humano, mobilizando poderes invisíveis) e
morrem (isto é, são neutralizados, deixam de agir), seres que realizam trabalhos e que precisam
ser alimentados, seres vingativos que podem se voltar contra seus donos. Em suma, como seres
que existem por si mesmos, quer você acredite neles quer não.
Ninguém parecia, aliás, nutrir quaisquer dúvidas sobre se eles realmente existem. São
tomados como um fato da vida. A recusa protestante não consiste em negar sua existência, mas
sim em afirmar seu caráter diabólico, em buscar em Deus, e, explícita e enfaticamente, somente
em Deus (o que inclui a bíblia, como Sua palavra), proteção contra a ação de tais criaturas,
recusando qualquer tipo de transação com elas.
Embora a atuação dessas criaturas não seja, de forma alguma, confinada ao universo do
comércio, elas aparecem sempre relacionadas à necessidade de dinheiro e a formas de
capitalização. Circulam rumores, por exemplo, de comerciantes cujas carreiras bem-sucedidas
teriam tido seu primeiro impulso através de transações com esses seres, gerando um capital que,
por sua boa gestão posterior, teria passado por um crescimento orgânico, de alguma forma
limpando sua mancha inicial.
Esses são, contudo, casos minoritários, e geralmente requerem mais de uma geração para
que o acúmulo ilegítimo ganhe legitimidade. Muito mais comum é que tanto o pwen quanto o
baka, como seres famintos que são, cobrem um alto preço por seus serviços, “comendo pessoas”
[manje moun], isto é, causando a sua morte e se alimentando dela. Tipicamente, os primeiros a
serem “comidos” (ou seja, morrer) são filhos e filhas da pessoa que contratou o serviço. Depois,

culminated in the transformation of the free-holding peasantes into producers of migrant laborers and
consumers of wage remittances [...] These ritual practices reformulate a displaced system of traditional
peasant morality, carved out of the disrupted, monetized processes it tries to conceal. […] Guinea and its
“other,” Magic (Maji), are the empowering representations of a powerless, “peasant” community, a way of
making sense of and exerting symbolic control over their history. Richman, 2008:19, 22.

189
as criaturas acabam comendo seus ex-donos. Embora seja uma ocorrência incomum, pode
acontecer que alguém sobreviva, após paga a dívida pelo contrato, para usufruir da riqueza
concedida, com a sua fonte original já neutralizada.133
Há, ainda, uma série de outras magias diretamente associadas ao comércio, cuja renegação
compõe o repertório discursivo protestante. Entre os serviços prestados pelos bokò, existem
magias destinadas a apagar a lembrança de dívidas. Sendo esquecida, a própria dívida deixa de
existir, o que nos permite articular, como hipótese etnográfica, a ideia de que dívidas são,
justamente, uma modalidade específica de lembranças compartilhadas (cf. Hart 2001).
Jaklin já usufruiu desse serviço no passado, algo que ela hoje considera vergonhoso, e
conta que só o fez porque “ainda não tinha Deus firme no coração”. Ela já havia se convertido,
mas, segundo ela mesma, ainda não era “cristã de verdade” [kretyen vre]. Sua amiga Bertilia,
que (sempre segundo Jaklin) já nutriu relações amorosas com diversos ougan, das quais extraía
importantes vantagens, lhe apresentou um de seus amantes que ofereceu o serviço sem cobrar
nada, uma vez que se tratava de um pedido direto de Bertilia.
Eis o contexto: Jaklin tinha uma dívida com outra comerciante, com quem tinha uma boa
relação. A mulher viera a sua casa para pedir que pagasse a dívida, mas, como não tinha o
dinheiro, Jaklin desculpou-se, prometeu pagar assim que conseguisse o dinheiro, e lhe deu
bananas do seu jaden como um pequeno presente, agradecendo a paciência da outra. Poucos
dias depois, ela voltara para cobrar novamente a dívida, e o mesmo processo se repetiu. Ela
veio ainda uma terceira, uma quarta, uma quinta vez, Jaklin sempre adiando o pagamento, e
sempre lhe dando alguma “provisão” [pwovisyon] como presente. A situação chegou num ponto
insustentável, pois sua credora aparecia em sua casa quase diariamente, e isso estava
arruinando-a, os adiamentos lhe custaram tanto que logo começaria a faltar comida em casa.
Contando seu problema à sua amiga, Bertilia disse que daria um jeito pra ela, e a levou até este
ougan.
Na ocasião, o homem lhe deu duas opções, perguntando o que ela preferia. Ou sua credora
continuaria consciente da dívida, mas apenas pararia de passar em sua casa todos os dias para
cobrar, esperaria sentada, calmamente, ou então a credora esqueceria completamente o

133
O modelo proposto por Parry & Bloch (1989), segundo o qual um ciclo de curta duração (explosivo e cheio
de energia porém associado a ganhos individuais egoístas moralmente condenáveis) alimenta um ciclo de
longa duração (associado à tradição, regulador, capaz de conceder um tipo de outorga moral) que, em troca,
faz um tipo de mediação reguladora capaz de limpar as máculas da energia do ciclo curto, continua sendo de
uma atualidade impressionante. O argumento de Karen Richman (2005) sobre a dicotomia Maji vs. Ginen,
fortemente inspirado no clássico artigo de Serge Larose (1977), segue uma estrutura lógica muito parecida.

190
empréstimo feito, e seria como se aquela dívida jamais tivesse existido. Mesmo que ainda não
fosse “cristã de verdade”, Jaklin tinha seus escrúpulos, e disse preferir a primeira opção. Tinha
a intenção de quitar a dívida, pagaria assim que pudesse, apenas queria que aquela mulher
parasse de vir à sua casa. O ougan elogiou sua opção por ser a escolha mais honesta e fez o
serviço, que incluía a amarração de ramos de uma determinada planta sobre os quais foi dito o
nome da credora, num embrulho que depois foi jogado ao chão e pisoteado enquanto se
repetiam as palavras que fariam ela esquecer.
Sua credora nunca mais voltou para cobrar a dívida. Ao contrário do que ela pedira, e
ainda que o ougan tivesse elogiado sua escolha, ele pareceu ter secretamente feito o outro
trabalho, pois ela não apenas parou de cobrar, ela esqueceu a dívida por completo. Atormentada
por escrúpulos cristãos, sentindo que tinha feito algo muito errado, assim que conseguiu
melhorar sua situação financeira, Jaklin voltou para pagar mesmo assim. Foi até a casa dela
fazer uma visita, contou de viagens bem-sucedidas que fizera, que agora tinha dinheiro, e lhe
entregou o valor devido. Sua ex-credora ficou muito contente e agradecida, pensando que se
tratava de um presente e não do pagamento de uma dívida, e lhe retribuiu depois enviando ela
também diversos presentes a Jaklin.
O pagamento feito para redimir um erro passado era necessário, mesmo que ninguém
soubesse de seu erro, porque Deus sabia e não se esqueceria jamais. Este episódio ajuda a
iluminar as imbricações entre a atividade comercial e a filiação evangélica (primeiro
incompleta, depois ganhando consistência e solidez crescentes, o que exigia redenção de falhas
passadas), importantes para que possamos compreender as especificidades da economia moral
em jogo. Deus ressurge não só como fazedor de caminhos, mas também como credor e juiz. Se
a ruptura protestante se caracteriza, em parte, pela recusa enfática em fazer quaisquer
transações, mediações ou acordos com toda sorte de seres diabólicos que povoam o Haiti, por
outro lado, a negociação e a comunicação direta com Deus têm um papel fundamental.
Antes de retomarmos os termos dessa negociação, voltamos aos episódios que marcaram
a trajetória de Jaklin. Angústias religiosas acompanharam a perda de controle na gestão das
dívidas, o que veio como um impulso brutal para a busca de novos horizontes. Nesse contexto,
ficam evidentes as similaridades entre a busca e a fuga, ao mesmo tempo em que também há
diferenças persistentes. O conceito de bênção está no cerne dessa diferença que legitima um
movimento enquanto desvaloriza o outro, e não só a bênção divina: para ela também era
indispensável ter a bênção de seu pai.

191
A bênção do pai
Quando o problema das dívidas atingiu seu casamento e ela foi ameaçada, Jaklin pediu
ajuda a seu pai. Ela costuma frisar que seu pai era a pessoa que ela mais amou em sua vida, e
sempre enfatiza a proximidade entre os dois. Mais de uma vez, ele já intervira na relação entre
ela e Evens. Desde o início, o casamento jamais teria acontecido sem o seu apoio.
Originalmente, Evens não era o marido que Jaklin queria para si, mas o pedido de casamento
viera com “vários anciões atrás dele” [anpil granmoun deyè li], ou seja, pessoas respeitadas
pelo pai de Jaklin que vieram falar em favor dele. Seu pai concordou. Ela, ainda uma
adolescente de dezessete anos de idade, apesar de nada empolgada com o horizonte à sua frente,
aceitou casar-se com Evens. A palavra de seu pai era lei.134
Embora tenha chegado a um acordo com os outros granmoun, o pai dela não era entusiasta
de Evens. Costumava reclamar para sua filha que o marido dela era pobre demais. Certo dia,
quando ainda fazia pouco tempo que estavam casados, alguém escutou no mercado Evens dizer
que furaria Jaklin com um punhal caso ela fizesse algo que ele não queria. Era apenas uma
brincadeira entre os dois, mas a pessoa que entreouviu entendeu mal, não percebera o tom
jocoso, e contou ao pai dela como se fosse uma ameaça real.
O pai ficou furioso. Foi buscá-la no mesmo dia, exigindo que ela retornasse à casa dele,
em Botoncy (a cerca de 3 ou 4 km da casa onde ela vivia com Evens). Ela veio só com a roupa
do corpo, Caslin (sua filha mais velha, que na época ainda era um bebê, não havia completado
dois anos de idade) e uma toalha. No dia seguinte, ele mandou-a voltar e buscar todas as suas
coisas. Ela tentou corrigir o engano algumas vezes, garantiu ao pai que era só brincadeira, mas
ele – sempre descrito como um homem muito rígido – não quis saber. Mesmo não gostando das
decisões dele, obedecê-lo era mais importante.
Passaram-se sete meses inteiros. Duas vezes vieram alguns granmoun em missão
diplomática, em nenhuma delas conseguiram convencê-lo. Até que um grande amigo dele,
chamado Oscar, teve uma conversa bem-sucedida. No dia seguinte, o próprio Oscar veio
pessoalmente buscar Jaklin para devolvê-la ao seu marido. Ela queria voltar há tempos, mas só
foi quando seu pai concordou. Antes, ele expressara a vontade de mandá-la a Porto Príncipe ou
a Santo Domingo. Ela não discutia para não desagradá-lo, fingia assentir, mas não tinha a menor

134
Para exemplificar a importância desse ponto, ela citou a história bíblica do cordeiro de Abraão. O ponto era
que os filhos pertencem aos pais, que podem fazer o que bem entenderem com eles, inclusive tirar-lhes a vida
– assim como Deus, o Pai por excelência, do qual todos somos filhos, tem o direito de fazer conosco quando
bem entenda.

192
intenção de seguir esses planos. Apesar do rigor, tais posturas sempre foram entendidas por ela
como cuidado. Seu pai cuidava dela.
Anos mais tarde, após ter outros filhos e passar por diferentes circuitos comerciais, com
tentativas de aumentar seu volume de operações que foram definitivamente frustradas com o
fatídico roubo sofrido na saída de Porto Príncipe, seus problemas para cumprir os prazos das
dívidas se tornaram de conhecimento de todos. Recontando a história, ela citou uma longa lista
de nomes de pessoas a quem devia dinheiro, a maioria mulheres. Seu pai já entrara numa idade
mais avançada, sua saúde se fragilizara, ela cuidava dele como podia. Apesar da gravidade do
que ocorrera, com a decapitação do cachorro e a visita ao bokò, Evens dessa vez era uma questão
menor. O verdadeiro problema era a necessidade desesperada por dinheiro para lidar com as
dívidas que se acumularam descontroladamente.
Sentia-as pesando como um fardo [chay] não só sobre a sua cabeça, mas também sobre a
cabeça dos seus filhos. Na época, Sondy, seu quarto filho, era ainda um bebê, e Carlos, o quinto,
ainda não nascera. Jaklin decidiu partir para Santo Domingo. Para isso, precisava de um
dinheiro que não tinha. A situação financeira de seu pai era quase tão precária quanto a dela,
seu desejo era ajudá-lo. Não era fácil pedir dinheiro a ele, mas ela não viu alternativa.
Recontando para mim a cena muitos anos depois do ocorrido, ela ainda se emociona. Seu
pai, sentado na sala de sua casa, ouviu até o fim os planos de sua filha. Apenas escutava, não
disse uma única palavra. Ela contataria Soraya, filha de sua irmã Claudette (quase vinte anos
mais velha que ela, hoje falecida) para se hospedar em sua casa, na Avenida Mella, onde ela
revenderia estoques de pèpè comprados em Porto Príncipe.
Os pèpè nesse caso eram roupas usadas. O termo pèpè significa ‘de segunda mão’. Muita
coisa pode ser pèpè: sapatos, tênis e outros calçados, malas, mochilas e bolsas, calças, saias,
casacos e blusas, tudo é pèpè. O termo tem como referência original produtos têxteis,
industrializados e de origem estrangeira.135 Hoje, seu uso se expandiu, e até carros usados são
chamados de “carro pèpè” [machin pèpè].

135
O sociólogo Renol Elie (professor da Faculté des Sciences Humaines na Université d’État d’Haïti) afirma que
o fenômeno começou nos anos 1960s, quando era chamado de kennedy, porque no primeiro momento as
roupas vieram como ajuda humanitária enviada ao Haiti pelo governo dos Estados Unidos durante a
presidência de Kennedy. Ainda hoje, parte das roupas usadas e comercializadas no Haiti chegam ao país como
ajuda humanitária, embora a fonte principal sejam remessas de haitianos vivendo nos EUA. Duas reportagens
que contém falas de Renol Elie sobre o tema estão disponíveis em:
https://www.youtube.com/watch?v=h2ZD1EQu7_U e https://medium.com/@tatewatkins/how-i-learned-to-
stop-pitying-haitians-and-love-the-pepe-2a8f1e7f56e4 . Último acesso em 10 de julho de 2019.

193
22 Banca de pèpè em Elias Piña.
Foto: Felipe Evangelista

Apenas algumas décadas atrás, as vestimentas usadas no Haiti eram feitas manualmente
no país, como atesta a pesquisa de Sergo (2007) a respeito da trajetória de revendedoras de
tecidos, assim como o fato de que, em estudos mais antigos sobre comércio (por exemplo,
Métraux et al 1951, Mintz 1964), é sempre mencionada a importância dos instrumentos de
costura e alfaiataria. Hoje em dia, ao contrário, a esmagadora maioria dos produtos têxteis em
circulação é pèpè.136 (Como única exceção, parece digna de nota; não me lembro de ter visto
pèpè de roupas íntimas.) São roupas de marcas internacionais, algo valorizado especialmente
pelas gerações mais jovens, boa parte fabricadas em países asiáticos, que tipicamente passaram
pelos Estados Unidos quando eram roupas novas antes de serem reexportadas ao Haiti na
condição de pèpè. Enquanto chegam pacotes fechados de roupas misturadas, imprensadas em

136
Isso não significa que o ofício de costureiro(a) tenha desaparecido. Em todos os mercados de porte médio e
grande, e também em alguns pequenos, há oficinas de costura que funcionam articuladas ao mercado dos pèpè,
oferecendo consertos e ajustes, articulação já notada nos mercados de Porto Príncipe (Neiburg coord. 2012).
Na zona de Belladère, continuam existindo as roupas feitas sob medida, embora estas sejam um tipo de traje
de gala. Tais encomendas custam caro, e são feitas apenas para ocasiões especiais, como festas como
casamento e de batismo (mesmo para essas ocasiões, há também uma grande oferta de ternos e paletós e roupas
sociais femininas que são pèpè). A maioria das pessoas possui em casa ao menos instrumentos básicos de
costura como agulha e linha. No caso dessa costura manual caseira (diferente dos ateliê, onde são usadas
máquinas e muitos dos alfaiates são homens), trata-se de uma função feminina, cuja ocupação principal é fazer
consertos e ajustes nos uniformes escolares e em roupas de domingo. De todo modo, não resta dúvida de que
após a consolidação dos pèpè, houve uma queda brutal na demanda por tais serviços, assim como no mercado
de tecidos.

194
blocos compactos, exportadas por quilo, no Haiti elas passam por uma curadoria, um processo
de seleção que inclui reparos e alterações nas formas originais. Com esse valor agregado às
peças selecionadas e retrabalhadas, muitas delas são novamente exportadas à RD.137
O plano de Jaklin era comprar pèpè em Porto Príncipe para revender em Santo Domingo,
circuito de comércio onde é possível lucrar significativamente mais do que as modalidades que
ela experimentara até então. Mas também era mais perigoso. Muita coisa podia dar errado. Se
a seleção feita por ela não agradasse o público dominicano, seria um tiro no pé. Mesmo que ela
fosse feliz em suas escolhas e trouxesse roupas que as pessoas desejam comprar, não é fácil
para uma comerciante haitiana transitar centenas de quilômetros dentro da RD levando e
trazendo mercadorias e dinheiro. Além dos riscos aos quais qualquer haitiano está exposto na
RD, soma-se o fato de que em diversos momentos, o pèpè haitiano foi enquadrado como
contrabando (Bourgeois 2016). Além disso, uma empreitada como essa tinha um alto custo em
transporte e, para ser lucrativa, exigia um investimento inicial maior do que os circuitos que ela
frequentara até então.
Não havia garantia nenhuma de aquilo daria certo. Se não desse, o problema original se
tornaria ainda pior. O plano elaborado por ela se aproxima, assim, a um plano de fuga. Não são
poucas as histórias de pessoas (inclusive algumas amigas de Jaklin) que, em circunstâncias
igualmente adversas, fugiram para a RD sob pretextos parecidos aos que ela formulara, e não
voltaram nunca mais ao Haiti.
Para ela, contudo, isso não era uma possibilidade. O motivo, nas palavras dela, é que “eu
gosto demais do meu sangue”. No caso, o “sangue” [san] é uma imagem metonímica para
relações consanguíneas, com destaque para seus filhos, seu pai e sua mãe. Ela tinha horror à
ideia de não poder mais ver o rosto de seus filhos, de abandonar o pai à própria sorte em sua
velhice. Havia ainda outro motivo, tão importante quanto o primeiro: Deus e a bíblia jamais

137
Catherine Bourgeois (2016:44) descreve assim o processo na fronteira norte, entre Dajabón (RD) e
Ouanaminthe (Haiti): “As pepeceras dominicanas também se abastecem diretamente no Haiti, depois de terem
feito acordos com intermediários haitianos. Algumas compram pacotes fechados (ou pacas – a denominação
dominicana), mas, de acordo com sua explicação, essa operação é mais cara (do ponto de vista da quantidade)
e mais arriscada, pois os pacas contêm todo tipo de roupas, que podem ser de boa ou má qualidade. Uma vez
comprados, os artigos são escolhidos de acordo com seu estado de conservação. Essa operação pode ser feita
na casa dos comerciantes. Em Dajabón, as pepeceras associadas dispõem de um local em que selecionam as
roupas. Em seguida, é necessário submeter os artigos a um processo de transformação, a fim de apagar os
traços perceptíveis dos usuários anteriores e, assim, deixá-los de acordo com as exigências de venda. As peças
são, às vezes, lavadas ou passadas, ao passo que os calçados são costurados, se necessário, e, em seguida,
encerados. Essa operação de transformação pode durar dois dias ou mais, em função da quantidade de artigos,
e requer a participação de muitos membros da família. Terminado esse processo, as roupas e os calçados de
segunda mão estão prontos para a venda, nos mercados e nos vilarejos da zona fronteiriça dominicana.”

195
aprovariam uma fuga dessa natureza. Não havia alternativa, era preciso ir e voltar, fazer
dinheiro e pagar as dívidas.
Ao terminar de ouvi-la pacientemente, seu pai se levantou. Homem de poucas palavras,
ele saiu para um quarto interno da casa, ainda sem dizer nada. Alguns momentos depois, voltou
com um embrulho que abriu na frente dela. Neste embrulho estavam as economias de uma vida
de trabalho. Seus olhos ainda marejam ao evocar essa lembrança. Embora seu pedido tenha sido
alto, ele trouxe ainda mais dinheiro do que ela havia solicitado. Era um gesto de grande
sacrifício, e um profundo voto de confiança. Segurando sua vontade de chorar, Jaklin pegou o
dinheiro e foi embora sem olhar para trás.
A única coisa mais importante que a bênção de seu pai era a bênção de Deus. Em viagens
mais perigosas, como idas a Porto Príncipe para abastecer comércio, é preciso pedir proteção
contra ladrões, contra seres e forças espirituais malignas, contra acidentes de trânsito. Das
diversas vezes em que vi Jaklin preparar-se para pegar a estrada, sempre escutava-a rezando em
voz alta antes de sair. Não eram orações formulares, mas um fluxo rápido e ininterrupto de fala,
como longas conversas improvisadas com Deus, nas quais ela elenca todos os problemas que
pode vir a encontrar no caminho, reafirma sua confiança no poder de Deus contra todas as
outras forças e entidades contrárias, nomeia inimigos repetindo a afirmação de que seu Deus
vai ‘quebrá-los’ [kraze], e reafirma dedicar sua própria vida ao louvor e glória de Deus.
Repetidas vezes, entre outras frases que variam, ele pede que Deus faça caminhos para ela
passar, faça estradas, abra rotas [formulações variadas que incluem frases como fè wout e ouvri
chemen], e que ele bendiga o caminho dela.
Na época em que começaram as viagens aqui narradas, ela já havia se convertido ao
protestantismo, mas, como vimos, “ainda não tinha Deus firme no meu coração”. De todo
modo, ela tinha um imenso desejo de agradar a Deus, o que é importante não só desde um ponto
de vista moral, mas também por suas consequências práticas. Não estar nas boas graças d’Ele
torna a vida mais difícil. Quem não está com Deus, pode encontrar dificuldades terríveis e sair
derrotado. Deus é um aliado importantíssimo, é um guia. Ele abre caminhos, por isso é preciso
tê-lo ao seu lado. Se alguém está com Deus, quem poderá ser contra?
Ela foi primeiro para Porto Príncipe. Chegando lá comprou algumas peças novas de roupa,
e muito pèpè. Existem duas formas de se comprar pèpè. Uma é chamada ji pepe [não confundir
pepe com pèpè], expressão que significa “de olhos fechados”. A comerciante que compra assim
leva um lote que vem em um pacote [nan bwat] sem saber o que está lá dentro. Essa é a forma

196
mais econômica de comprar, mas seus resultados são incontroláveis. Jaklin compara esse tipo
de compra a um bilhete de loteria, pode até dar certo, mas ela prefere não.
A outra opção é selecionar peças específicas de um lote já aberto. A possibilidade de
selecionar as peças aumenta muito o preço das mesmas, mas também aumenta sua margem de
lucro, desde que a seleção seja bem feita. É preciso um olhar atento a tendências na moda, ao
que as pessoas estão usando, estilos e marcas. Neste caso, como ela pretendia vender em Santo
Domingo, sua pouca intimidade com a cidade e a impossibilidade de ver as pessoas andando na
rua torna mais árdua a tarefa de decifrar os gostos alheios. Assumindo o risco, ela escolheu as
peças uma a uma. Após encher duas grandes sacolas com o que havia comprado, partiu rumo a
Santo Domingo.
Vale a pena descrever o contexto em que eu a ouvi pela primeira vez narrando essas
viagens. Posteriormente, ela recontou algumas histórias, respondeu minhas perguntas, mas
nessa ocasião, eu ainda não sabia quase nada das idas e vindas à cidade de Santo Domingo. Um
pastor da igreja dela pedira ajuda para enfrentar a saga burocrática e conseguir um visto
dominicano. Jaklin era um tipo de referência na vizinhança para lidar com tais assuntos. O
pastor acabara de voltar de uma viagem indocumentada à RD, relatando que “passou muita
miséria lá” [m te pase anpil mizè Sen Domen]. Ele ficou cerca de dois meses se escondendo,
esgueirando-se, evitando a luz do dia, sem documentos, sem trabalho digno nem direitos
trabalhistas, dependente da ajuda de pessoas que não foram tão gentis quanto ele gostaria. A
situação foi descrita como humilhante, ele era um pastor, não podia passar por aquilo. Estava
horrorizado com o que vivenciara, e disse que jamais tentaria algo parecido outra vez, só volta
a pisar na RD com se estiver com todos os documentos em ordem. Jaklin concordara, e
começaria logo os trâmites, em primeiro lugar providenciando uma certidão de nascimento,
documento que seria necessário para todos os outros subsequentes. Durante a conversa, o
assunto migrou para as experiências de Jaklin em terras dominicanas, e de como ela passou dos
locais mais próximos à fronteira para chegar até La Capital.
Em meio aos acontecimentos que recordava, ela afirmou uma e outra vez como uma voz
a dirigia, dizendo onde comprar, o que comprar, onde vender. A narrativa era recheada com
frases como “a ideia me disse” [lide di m], “uma voz me mandou para tal lugar” [yon vwa te
voye m tèl kote], “a voz me mandou esperar” [vwa te di m kanpe la]. Esse modo de expressão
era prontamente compreendido pelo pastor, mas incompreensível para mim.
Quando eu finalmente a interrompi para perguntar o que aquilo queria dizer, Jaklin me
explicou que todos somos dirigidos por vozes. O pastor também falou, fazendo coro à

197
explicação dela. Ambos falavam como se se tratasse de algo óbvio para eles, que apenas um
blan como eu podia não entender. Essas “vozes” [vwa] podem aconselhar bem ou mal, pois elas
podem vir de diversas fontes.138 Como ela “tem Deus no coração”, foi bem-aconselhada. Deus
viu o sofrimento dela, escutou suas orações, viu a intenção no seu coração. Isso foi fundamental
para que ela recebesse d’Ele a boa direção.
Eu perguntei como a voz chegava até ela, como era possível acessá-la. Ela respondeu que
o que ela estava me dizendo era literal, era de fato uma voz, perfeitamente audível, dizendo
coisas. Que escutassem literalmente vozes falando dentro da cabeça foi algo que me pareceu
próximo a uma experiência esquizofrênica, eu não consegui disfarçar minha surpresa. Notando
que eu estava perplexo, tanto ela quanto o pastor trataram de me garantir que aquilo era normal,
Deus conversa com os seus servidores, assim como os fiéis, através de suas orações, conversam
com Ele. Eu perguntei então como eles faziam para distinguir se a voz que escutavam vinha
realmente de Deus, se não podia ser uma dessas outras vozes que eles citaram, tomada por
engano. Me garantiram que não havia risco nenhum disso acontecer, que a voz de Deus é
inconfundível, pois irradia uma grande paz e serenidade a quem escuta, transmite confiança. Se
você confia em Deus, sabe que o que Ele está dizendo é o caminho por onde você deve ir.
Nas viagens que fez a Santo Domingo, Jaklin recebeu dessa voz instruções bastante
específicas, tal como num fim de tarde em que ela pretendia desmontar sua banca, a voz a
mandava esperar mais 40 minutos, ou quando ela se dirigia para ir vender em um determinado
ponto, a voz dizia não, ao invés disso pegue tal avenida, tal rua e depois sente-se na praça tal,
onde ela então se deparava com um grupo de turistas que lhe compravam de tudo.
Para surpresa das outras machann com quem ela dividiu um quarto na Avenida Mella,
mais experientes que ela, a novata saiu-se excepcionalmente bem. Além do quarto onde vivia,
a filha de sua irmã tinha também um ponto na calçada da Avenida Mella, onde ela era bem-

138
Recupero aqui uma entrada do caderno de campo (de 20 de novembro de 2015) em que, na intimidade
compartilhada apenas pelos moradores da mesma casa, significativamente, a palavra usada foi “diabo” ao
invés de “voz” (“diabo” é, na verdade, uma tradução problemática para djab, conceito a rigor intraduzível –
cf. nota 145). A despeito da mudança de vocabulário, o argumento que me deram em ambas as ocasiões é
claramente o mesmo: “Ao longo da conversa [já estava escuro, estávamos na casa de Jaklin], disseram [eram
dois filhos e duas filhas de Jaklin tentando me explicar o ponto] que todo mundo tem diabos [djab] dentro.
Usaram minha companheira Juliane como exemplo – eu posso ter um diabo na minha cabeça que me faz gostar
dela, assim como ela pode ter um diabo na cabeça dela que faz ela gostar de mim. Todo mundo tem, ou pode
ter, vários diabos. É quase como se os desejos viessem de fora, e não de dentro – e como se tivessem agência
própria, independente de seus portadores.” Há diversas outras menções sobre essa atuação dos djab, entre elas
um rapaz que encontrei uma única vez, em Fonds-Parisien, que ampliou o mesmo argumento ao reino animal,
afirmando que quando uma cobra pica um ser humano, isso necessariamente só pode ter acontecido porque
um djab entrou na cobra e fez ela fazer isso.

198
vinda a tomar um pequeno espaço para expor e vender suas mercadorias. As calçadas dessa
avenida, uma das principais de Santo Domingo, são tomadas por um intenso comércio de rua,
funcionando quase como uma feira a céu aberto, principalmente de roupas e produtos
eletrônicos. É um lugar que as pessoas buscam para comprar, contudo, é um mercado popular,
pouco frequentado por turistas, e havia outras zonas da cidade onde era possível vender mais
caro. Jaklin não se limitou a ficar lá. Mesmo sem dispor de qualquer estrutura fora dali, ela
mostrava energia infindável para caminhar pela cidade, tomando decisões felizes quanto aos
momentos de tirar algo da sacola, na escolha do que expor (que, nesse modo em movimento,
dificilmente era mais do que três ou quatro peças), na forma de abordar as pessoas, e também
para evitar encontros indesejados com guardas municipais.
Revelara um bom tino para selecionar as roupas que as pessoas desejariam. Conseguiu
proezas como vender uma mala inteira de roupas em uma tarde, e revender a um turista uma
única blusa por um preço mais alto que os dois pacotes originais, contendo doze blusas cada,
que ela comprara em Porto Príncipe.
Vendo que ela comprara bem os estoques que trouxera de Porto Príncipe, sua sobrinha e
as outras machann que andavam por lá expressaram o desejo de fazer comércio em parceria
com ela, convidando-a a estabelecer-se, a arranjar um ponto dela em Santo Domingo. Também
em terra estrangeira, as relações entre as machann são polivalentes, os limites entre
concorrência, amizade, necessidade, interesse e interdependência podem ser difíceis de
discernir.
Tendo Deus como seu guia, Jaklin fez bons negócios, obteve lucros excepcionais,
conseguiu fazer bem mais dinheiro do que conseguira no Haiti. Apesar disso, ela não tinha
interesse em prolongar demais suas viagens e suas estadias em terra estrangeira. Sentia que
aquele não era o lugar dela, sentia falta de sua própria casa. A experiência das sucessivas
viagens, passando dias e semanas longe de casa, vinha mais como um fardo pesado do que
como uma liberdade prazerosa.
Assim que ela juntou dinheiro o bastante para quitar suas dívidas no Haiti, fez o que seu
coração desejava, que era voltar para perto dos seus, sempre se afirmando muito apegada ao
seu “sangue”. Sua jornada foi abençoada por um Deus que se compadeceu de seu sofrimento e
que se agradava com a sua fé, por isso ajudou-a a pagar suas dívidas quando ela se aventurou
por caminhos que até então desconhecia. Como esse dinheiro tinha aprovação divina, suas
dívidas foram pagas e tudo terminou bem.

199
Os conceitos de maldichon e de peche
O caso relatado acima demonstra, do ponto de vista de Jaklin, o efeito da bendição de uma
jornada, o que é ter Deus como guia. Evidentemente, nem todo caminho goza da mesma bênção.
Há uma distribuição desigual de bênçãos divinas que compõe uma economia própria, e que
qualifica não só o dinheiro, mas também pessoas, animais e objetos em geral.
Na análise etnográfica que se segue, tomo o conceito de maldichon como o polo oposto
ao de beni. Como uma chave de leitura, é importante deixar claro que o uso desses conceitos
tal como eu os descrevo é fruto da convivência com interlocutoras evangélicas, embora os
mesmos conceitos também sejam amplamente usados entre católicos. Talvez haja
especificidades na forma como tais conceitos são mobilizados por este ou aquele grupo (são
nuances que eu, infelizmente, não tenho condições de explorar), mas eles não são, de forma
alguma, exclusivos ao mundo evangélico.
Por suas aproximações e distanciamentos, vale a pena comparar brevemente esse par com
outro, onde os respectivos polos opostos são chans [“sorte”] e malchans [“azar”]. Há muitas
similaridades entre ter chans e estar beni – coisas boas acontecem, a pessoa prospera, o que ela
tentar fazer vai dar certo. Contudo, a chans se presta a manipulações de outra ordem. Ela existe
como uma energia que pode ser capturada, é como um tipo de graça que pode ser concedida
por diversos tipos de seres, através de transações escusas.139 A sorte rápida opera no registro da
chans, como um bilhete de loteria, algo capaz de alterar súbita e drasticamente uma dada
trajetória. Por outro lado, a bênção divina é como uma transação de mais longo prazo. Não
propicia guinadas espetaculares, mas um acréscimo gradativo e honesto. Também não existem
truques possíveis para atraí-la, apenas o bom comportamento e a observância das leis de Deus
e da bíblia podem garanti-la. Ela tem uma única fonte, e em nome da unicidade da fonte, pode
se contrapor a todas as outras. De todo modo, mesmo entre evangélicos a confiança em Deus
coexiste com a afirmação da sorte e do azar (como forças que não podemos nem controlar nem
prever, nos remetem a desígnios secretos, alguns dos quais francamente malignos e punitivos)
e da imprevisibilidade do destino de cada um.
À diferença da aparente aleatoriedade que caracteriza os polos sorte e azar, a “maldição”
[maldichon] é direcionada e difundida segundo princípios inteligíveis. Ela contamina os frutos
de um ato moralmente errado e pecaminoso, como o roubo (uma noção polissêmica, que pode

139
Erica Caple James (2010:175) cita casos de rituais macabros, incluindo assassinato e estupro, que teriam como
objeto uma captura da chans a favor dos perpetradores dos crimes. Nesse sentido, a ideia de chans se aproxima
do pwen, aproximação feita pela própria autora.

200
ser entendido aqui como qualquer tipo de vantagem indevida que se tira de alguém numa
relação comercial). Ela pode tanto ser enviada diretamente por um Deus que tudo vê e que pune
as condutas que desaprova, ou de forma indireta, através de preces privadas onde um mau
comportamento é denunciado e uma punição divina é solicitada.
Tomando um exemplo cotidiano, quando se deixa um animal pastar livremente em roças
alheias, ele se alimenta bem e engorda, tornando-se mais valioso para seu dono. Isso acontece
à custa do suor do vizinho, prejudicando seus cultivos (que podem tanto estar destinados ao
consumo próprio quanto à venda), por vezes deixando-o em sérias dificuldades. Jaklin usou
essa expressão para falar do porco de seu filho Sondy. Ela se queixa que ele dá resto de comido
pros porcos ainda de dia. Se ele fizesse na hora em que todos se preparavam para dormir, não
haveria problema. Mas ele não tinha o direito de fazer isso de dia, pois outra pessoa podia
chegar com fome e precisar. Ele também não gosta de amarrar seus animais, para que possam
comer de tudo, inclusive entrando nos jaden dos vizinhos, no que ela via como uma ambição
desmedida e apressada de que os animais cresçam logo. O porco de Sondy estava engordando,
mas era uma questão de tempo até ele pegar maldichon. Vizinhos vão cobrar esse animal em
suas rezas, desejando sua morte.
Como já vimos, a mobilidade animal através dos espaços delimitados pelo cultivo alheio
é, de longe, o motivo mais frequente de brigas entre vizinhos em Lakayint. Quem teve sua roça
prejudicada pode agir diretamente, até mesmo matando o animal de seu vizinho.140 Essa é,
contudo, uma solução drástica, que escancara o conflito com o sério inconveniente de gerar
comentários na vizinhança [tripotay], podendo chegar até a envolver um juiz de paz e a polícia
no conflito, o que não é desejado por ninguém. É muito mais discreto pedir, em suas orações
privadas, que Deus intervenha contra aquela injustiça – como todos reconhecem, as orações
têm poder. Caso funcione (e nenhum ser humano tem como controlar as decisões de Deus, é
Ele quem decide), o animal irá prann maldichon [“pegar maldição”], e logo cairá doente, ou
uma pedra despretensiosa lançada por uma criança qualquer lhe partirá a pata ao meio, ou será
o primeiro a cair num buraco e quebrar uma pata, ou um ladrão de passagem pela região
escolherá para roubar, exatamente, aquele animal. A maldichon opera assim, não tem um agente
específico e bem definido para levar a cabo o mal que lhe cabe, é antes uma qualidade espiritual

140
Em uma ocasião, DuCas falou a respeito de um porco de seu vizinho: “eu não quero matá-lo, mas sou
obrigado”. Disse isso enquanto embebia uma espiga de milho em agrotóxico para envenená-lo. Passou na casa
do dono do porco, e avisou ao seu compadre, pai do rapaz que era dono do animal, o que estava prestes a fazer,
já que ninguém amarrava aquele porco. O anúncio bastou, e o porco foi amarrado depois disso.

201
que levará o mal a acontecer de qualquer jeito, seja qual for a forma em que a situação se
apresente. Nenhuma pessoa “é” maldichon – trata-se de algo que se pode “pegar” [prann
maldichon], e que pode assim passar a definir algo com valor econômico, como o porco, que
se tornaria então um kochon maldichon [“porco amaldiçoado”].
Outro exemplo concreto: certa vez, um parente relativamente distante de Jaklin que estava
vivendo em Santo Domingo mandou uma moto de presente para ela (embora o presente fosse
direcionada a ela, na verdade, a expectativa é que seus filhos fossem efetivamente conduzi-la).
Ela o conhecera anos antes em la capital, e sabia que a principal fonte de renda dele era a
revenda de veículos. Ele ligou avisando que a moto já chegara a um depósito em Belladère, ela
só precisava ir buscá-la. Sem avisar os meninos, ela foi pessoalmente, com seus documentos,
requerer a moto, ainda perplexa que aquele homem, de quem nunca fora próxima, mandasse
um presente tão caro para a sua família. Refletindo sobre o possível motivo, ela se lembrou de
já ter escutado rumores de que esse homem era parte de uma quadrilha dedicada ao roubo de
veículos em Santo Domingo, e então entrou em pânico, achando que o envio da moto ao Haiti
fosse uma estratégia para ocultar a sua origem criminosa. Alguém podia ter sido assassinado
para que aquela moto fosse parar ali, seu sangue podia ainda estar no veículo. Discretamente,
ela fugiu do depósito, deixando a moto para trás, e não só não voltou para buscá-la, como nunca
informou seus filhos sobre o ocorrido, pois tinha certeza de que se o fizesse eles tentariam
convencê-la de que não havia nada errado e fariam questão de trazê-la pra casa.
O medo que ela sentiu está relacionado, em parte, com a possibilidade de que houvesse
investigações policiais buscando aquela moto, e que ficando em posse dela, pudesse ter
problemas com a lei. Mas ela mesma julga que isso não tem tanto fundamento, uma vez que a
moto já cruzara a fronteira, já estava no Haiti. Na região onde ela vive, a polícia haitiana
raramente é vista, e certamente a polícia dominicana jamais chegaria até lá. Além disso, a
imensa maioria das motos não possui papéis, não há registro legal que comprove suas origens.
Essa ausência generalizada de rastros documentais poderia fazer com que aquela moto passasse
facilmente despercebida, mesmo que tivesse sido roubada, o que era apenas uma suspeita, cujo
único fundamento eram fofocas escutadas anos antes. Frente a justiça dos homens, o baixo risco
não parece justificar que ela simplesmente abrisse mão de um acréscimo ao patrimônio de sua
família tão significativo como aquele. O principal motivo do medo era completamente
independente das capacidades logísticas da polícia. Se alguém tivesse sido assassinado por
causa daquela moto, se seu sangue estivesse ali, seria uma maldichon tão pesada que ela não
traria, a ela e à sua família, nada além de desgraça. Ela chegou a descrever a visão que tivera,

202
de um de seus filhos usando-a para fazer mototáxi e acabando estraçalhado junto com a moto
debaixo das rodas de um caminhão. Por isso fez questão de ocultar a sua existência para eles, e
mesmo que alguém tivesse descoberto, teria sido terminantemente proibido de buscá-la. Assim,
a moto foi abandonada no depósito, ninguém apareceu para retirá-la.
Não adiantava sequer vendê-la, pois o dinheiro resultante também seria maldichon.
Quando um dinheiro provém de transações escusas ou práticas desonestas contra alguém, ele
próprio se torna lajan maldichon [“dinheiro amaldiçoado”], trazendo consigo uma qualidade
danosa para seu portador. É um dinheiro que encontrará alguma forma de ferir seu dono, seja
pela própria fuga – pois um dinheiro maldichon tem essa qualidade escorregadia, elusiva, ele
foge do bolso do mesmo jeito que entrou, sem deixar nada – seja atraindo coisa pior, como
acidentes ou doenças graves.
Em geral, essa qualidade não se adere às notas de dinheiro a ponto de ser retransmitida a
outra pessoa que pegue essas mesmas notas numa transação honesta (ao contrário do que ocorre
com as notas maliciosamente preparadas para “puxar dinheiro” alheio). O ônus é de quem
cometeu a falta. Assim, as notas de um dinheiro maldichon não necessariamente mantém essa
qualidade quando retransmitidas – particularmente não a mantém caso seu novo dono seja um
servo do senhor, que, com sua adoração, poderá neutralizar a mácula passada. Contudo, no caso
de outros recursos, como animais e terra, há maldichon contraídas pelos antigos donos que
podem ficar entranhadas nas coisas elas mesmas, e podem, assim, passar inadvertidamente a
novos proprietários sem que estes tenham cometido nenhuma falta moral.
Isso pode acontecer no caso dos seres que primeiro geram riqueza e depois matam seus
donos, seres como os pwen, bacá ou lwa achte. Uma dessas criaturas pode sobreviver ao
falecido dono, por exemplo, enterrada num terreno. As pessoas que vierem morar ali passarão
por diversas dificuldades, ainda que desconheçam a fonte que as está causando.141 Mas a
maldichon não é um ser, no sentido em que o são os djab ou os baka (seres que compartilham
características com os seres vivos) – ela é antes um estado, um tipo de contaminação, que pode
ou ser transmitida por seres como estes, ou por orações que denunciam feitos culpáveis, ou

141
Será preciso então contratar um especialista, que venha descobrir o local onde está enterrada a criatura para
que sua força seja domada. Em alguns casos, o remédio será alimentar aquele ser, tornar-se conhecido dele,
estabelecer uma relação para domesticá-lo. Isso ocorre notadamente no caso dos lwa achte que, uma vez
herdados, podem mudar de estatuto e se tornar lwa da família, uma parte da “herança” [eritaj]. Em outros
casos, a relação entre aquele ser e os novos moradores da terra que ele habita pode nunca chegar a ser
inaugurada, sendo a solução sua neutralização, seu desterramento definitivo dali. Casos concretos de situações
como essas são descritos em Lowenthal (1987) e Dalmaso (2014).

203
ainda pelo próprio ato culpável em si, caso o feito em questão atraia a atenção e a ira divina.142
É mais um adjetivo do que um substantivo.
A primeira coisa a se fazer para evitar a ser atingido por alguma forma de maldichon e
buscar o estado de bênção é obedecer a Deus e à bíblia. Neste contexto, é central a noção de
“pecado” [peche]. Seu uso é corrente, tema de muitas conversas e uma importante fonte de
ansiedade entre pessoas que desejam não pecar.143 A definição do que é ou não pecado às vezes
é objeto de polêmicas. Vejamos, por exemplo, o pecado do roubo. Todo mundo reconhece que
o roubo é um pecado, mas o que configura um roubo?
Algumas pessoas, como Jaklin e Madame Dodo, consideram “roubo” vender um dado
produto em casa mais caro do que se vende no mercado. Se uma machann compra na mão de
outra, no mercado, para revender com lucro em sua própria vizinhança, não há o menor
problema – é o que se faz. Contudo, se uma mesma machann vende a um preço x no mercado,
para não pecar, ela deveria vender ao mesmo preço x na sua casa. Elas também consideram
roubo não encher suficientemente o gode, pois as pessoas compram sua capacidade máxima, e
qualquer coisa menos que isso é uma subtração indevida daquilo pelo já foi pagou por outrem.
Da mesma forma, os preços cobrados para gente próxima ou para completos
desconhecidos também devem ser os mesmos. Cobrar mais caro de uma pessoa que pareça ter
mais dinheiro também é, para elas, uma forma de roubo. Os preços não devem variar em função
de quem está comprando, mas isso não vale para as condições de pagamento. Como vimos,
quando se está lidando com uma klyian, não é incomum vender a crédito, ou até mesmo dar um
pouco de uma mercadoria que se necessite e pela qual, num momento de dificuldade financeira
excepcional, não se possa pagar. É mais difícil fazer isso por um(a) desconhecido(a), inclusive
pela dificuldade em precisar a real necessidade de alguém jamais visto. De todo modo, “ajudar
quem precisa”, dentro de suas próprias condições é claro (e seguindo estimativas complexas do
que a vem a ser a necessidade alheia), é um imperativo moral. Há uma margem de negociação
que é lícita, não há problema algum em dar um preço mais alto quando se está disposta a vender

142
Percebemos aqui uma contradição, pois ao mesmo tempo em que se afirma que Deus vê tudo, há atos que
parecem passar desapercebidos pelo Seu escrutínio, sendo necessário chamar a Sua atenção para que venha a
punição justa. Cheguei a expor essa contradição a Madame Dodo, que não viu nenhum problema aí. Ela disse:
“Você sabe, Deus se ocupa de muitas coisas, tem sempre muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Às vezes
Ele deixa algo passar por estar ocupado com outras coisas, daí depois Ele volta para olhar aquilo que se
passou”.
143
Ainda que considerem que isso seja, no limite, impossível. Presenciei algumas discussões em lugares públicos,
das quais eu não participava, tendo como tema a impossibilidade de nunca pecar e a afirmação de que somos
pecadores, assim como são frequentes as críticas a pessoas que se pretendem moralmente superiores, julgando
os pecados alheios sem reconhecer os seus próprios.

204
por menos; mas vender a 20 o que todas as outras pessoas compraram e continuarão comprando
por 10 é roubo, é pecado.
Nem todas as machann veem da mesma forma, algumas não tem o menor pudor em fazer
isso. Como contraponto, citemos duas irmãs, Guerlin e Lèdla, que moravam nos fundos da casa
de Bertilia, e que claramente possuíam parâmetros morais diferentes daqueles compartilhados
por Jaklin e Madame Dodo. Essas irmãs vendiam cremes, desodorantes e perfumes.
Para Guerlin, não há problema em cobrar preços diferentes de clientes diferentes. Pelo
contrário, seria burrice não fazê-lo. Ela considera que parte importante do conhecimento
desenvolvido no comércio consiste na avaliação das pessoas que passam pelo mercado. Um
trabalhador que vem do campo, com dinheiro contado, e pergunta quanto custa um desodorante,
dará as costas de imediato se a primeira oferta for alta demais. Quando são mais pobres
[malere], ela dá um preço mais baixo, para não assustar – 15 dolà pelo creme branco, que na
verdade está disposta a vender por 10. Segundo ela, quando o produto é original, não se vende
por menos de 15. Por outro lado, quando uma pessoa está com dinheiro – garantiu-me que a
diferença é visível – por exemplo, se algum garoto acabou de vender uma galinha ou uma cabra,
está com dinheiro no bolso, perguntando os preços deste e daquele creme, possivelmente
ansioso por agradar um flerte, ela pede 20. Com sorte, a pessoa com dinheiro estará em busca
de um produto especial, oferecendo a ocasião perfeita anunciar um preço superior por um
produto supostamente superior.
A suposta superioridade do produto era conscientemente percebida como uma mentira.
Ela e sua irmã compravam (em Porto Príncipe) e coletavam (quando haviam sido descartadas
como lixo, mas ainda mantinham uma aparência aceitável) embalagens de diferentes perfumes
e cremes. Essas embalagens eram então lavadas e preenchidas com misturas preparadas por
elas.
Passei um dia com elas numa ocasião em que preparam o conteúdo. Trabalhavam no
mesmo espaço, mas cada uma fazia separadamente as suas próprias misturas, e também
vendiam separadamente, cada qual por si. Segundo contaram, o dinheiro é separado, mas
quando uma tem e a outra não, pasagam as coisas uma à outra. Os perfumes consistiam
basicamente em álcool e corante, exceto pelo conteúdo na mangueirinha do spray, onde havia
o perfume original. Assim, quem o experimentasse sentiria o cheiro do perfume original, mas
ele não durava mais do que quatro ou cinco esguichos. Quando estes esguichos são
desperdiçados sem que o produto seja vendido, é necessário preencher novamente a
mangueirinha.

205
23 Komès chalatan – Guerlin fazendo creme.
Foto: Felipe Evangelista.

Uma combinação de talco, água, pomada de neném e permanente de cabelo fazia os


cremes para a pele. Guerlin me contou que ela coloca tanta água na receita que “qualquer pessoa
pode passar na pele sem problema, a permanente já não queima”. Fazem uma grande bacia de
creme, que é usado para dezenas de embalagens de diferentes cremes, usando um pouco de
corante para controlar a cor específica a cada creme. Um pote de cada um dos cremes originais
é sempre preservado para preencher a parte de cima das embalagens que serão vendidas.
Elas chamavam os perfumes e cremes de “bons” [sa ki bon], no caso dos originais, e de
“ruins” [sa ki pa bon], no caso das misturas preparadas por elas. Isso não impedia Guerlin de
afirmar que sua mistura também cheirava bem, afirmando que “para quem compra, o que
importa é que o cheiro seja bom”, e que portanto o produto vendido por ela, ainda que fosse
claramente um tipo de fraude (Bertilia dizia que as duas faziam komès chalatan, “comércio
charlatão”), tinha também algum valor.
Por um lado, este é um comércio muito lucrativo, no sentido de que o custo de produção
e os insumos são muito baratos se comparados ao preço final. Mas, como Jaklin argumentou
em mais de uma ocasião, é um barato que sai caro, porque o que se ganha com isso é lajan
maldichon. O dinheiro que elas pensam que estão ganhando, na verdade, está arruinando as
duas.

206
De fato, essas duas irmãs estão entre as pessoas mais pobres que conheci. Elas vieram do
norte, mas perambulam de região em região dentro do Haiti, vendendo suas mercadorias. Não
ficam muito tempo no mesmo mercado, pois preferem não ser reconhecidas por seus clientes.144
Passam longos períodos sem ver sua família (Lèdla tem quatro filhos, que não vê há mais de
três anos), vagando por aí, como quem não tem nada na vida.

24 Komès chalatan - frascos para perfume.


Foto: Felipe Evangelista.

Jaklin já teve a infelicidade de comprar perfumes na mão de Guerlin para revender na RD,
uma única vez, quando acabara de conhecê-la. Teve o trabalho de se desculpar pessoalmente
com seus clientes dominicanos que compraram desse estoque, pois ao contrário dela,
funcionava em um regime em que eles a conheciam bem. Mas, ainda que tenha tido um trabalho
desagradável e desnecessário, e mesmo perdendo algum dinheiro por causa dela, não a via como
uma pessoa maldosa ou nociva. Aliás, nem Jaklin nem Bertilia nem ninguém na vizinhança
fazia qualquer menção de desmascarar publicamente o charlatanismo daquele comércio.

144
Na ocasião em que estive com elas, me contou que sairia para o mercado de Mirabelais no dia seguinte, e de
lá para Hinche. Falou em ir para Lascachobas também. Em Belladère, ela disse que não vende nada.

207
Ninguém comprava na mão delas, é claro, mas deixavam que elas se virassem como
conseguissem, já que, como todos sabiam, a vida das duas não era fácil.
Do ponto de vista de Jaklin, Guerlin é antes de tudo uma pobre coitada, digna de pena, seu
lucro (como lajan maldichon que é) não pára no seu bolso, mas apenas a empurra para outro
lugar onde ela também não tem ninguém, e depois a empurrará para outro lugar, e assim por
diante, sem que ela consiga construir nada. A punição última pelos pecados é o inferno, mas
claramente aquelas duas já estavam pagando suas contas aqui mesmo, na terra.145
Outra forma de roubo (e, portanto, de pecado) específica ao mundo do comércio é o
chamado koup gode. Koup ao pé da letra quer dizer “golpe”, e é uma palavra usada em diversas
expressões compostas; gode, como já vimos, é a vasilha padrão usada para medir grãos nos
mercados. Uma forma de dar um koup gode é usando o polegar, discretamente, para ocupar
parte do volume do gode que está sendo usado como medida. Essa manobra exige grande perícia
manual para ser executada sem ser percebida. Embora não as registrem sob esse nome, creio
que o uso de dois conjuntos diferentes de instrumentos de medida, alguns tendo o fundo
levemente amassado de forma a reduzir seu volume, relatado tanto por Sidney Mintz (1961)
quanto por Métraux et al (1951), também pode ser considerado uma forma de koup gode. O
erro na contagem também é koup gode.
No mercado de Kwa Fè, presenciei em cinco ocasiões diferentes a própria madame Dodo
vender três mamit de arroz. Como cada mamit são sete gode, ela conta em voz alta do um ao
vinte-e-um. Mesmo contando em voz alta cada gode que enchia, ela pressentia habilmente o
momento de distração do cliente para pular algum número no meio da contagem. Da primeira
vez em que eu percebi, pensei que ela tivesse se enganado, mas não disse nada, até porque
estava na dúvida se o engano na verdade não havia sido meu. O mesmo “erro” então se repetiu,
e de novo, e de novo. Nenhum cliente deu qualquer indício de ter percebido o “engano” através
do qual ela dava vinte gode de arroz, ao invés dos vinte-e-um devidos.
Em três das cinco oportunidades, era o mesmo cliente, um homem. Sabemos que entre as
modalidades de comércio, a dos alimentos básicos é particularmente dominada pelas mulheres,
tanto comprando quando vendendo, o que faz deste homem um cliente algo improvável.
Também já sabemos que, como uma arena de mulheres, a presença dos homens é

145
Ainda segundo Jaklin, Guerlin “já fez muito bouzen” [bouzen significa puta, fazer bouzen é “prostituir-se”],
já viu homens formando filas do lado de fora do quarto que ela aluga, garantindo que ela transara com mais
de 20 na mesma jornada, algo que para ela era prova da sua condição lamentável, consequência do lajan
maldichon que ela atraía continuamente para si. “Enganar os outros não compensa”, concluiu.

208
menosprezada, no sentido de que as mulheres engajadas julgam que eles não têm conhecimento
deste universo.
Em uma dessas ocasiões, esperei que ele se afastasse, levando o arroz que havia acabado
de comprar, e comentei com Madame Dodo que ela “errara” a contagem pulando um número,
perguntando se fora acidental ou se ela havia acabado de dar um koup gode naquele homem.
Ela imediatamente caiu na gargalhada. Riu convulsivamente a ponto de quase perder o fôlego,
repetindo aos presentes “o blan me perguntou se eu dei um koup gode! Hahahahaha, ei comadre,
escuta essa, o blan me perguntou se eu dei um koup gode! Hahahahaha”. Ela chorou de tanto
rir, e divertiu muita gente ao redor recontando a história, sem ter nunca respondido a pergunta.
O que ela achou tão engraçado? Não tenho certeza. Parte da graça é que a pergunta tenha
sido feita por mim, um blan (além disso, homem). O certo é que ela não ficou constrangida com
o assunto, eu perguntei em privado, só ela havia me escutado, e ela quis repetir a pergunta em
voz alta ao público, às gargalhadas. Madame Dodo transformava vinte-e-um em vinte, muito
provavelmente de forma consciente, mas seria isso condenável do ponto de vista dela?
Aparentemente não. Será a ignorância masculina um fator que autorizou Madame Dodo a
roubar três vezes aquele homem? Ou, ao contrário, o homem percebia que estava levando um
gode a menos, e era complacente com o truque daquela pobre machann que talvez fosse um
golpe inofensivo para ele? Havia alguma cumplicidade entre ele e Madame Dodo? Não sei
dizer. O fato é que, embora o discurso moral possa às vezes parecer rígido, admite-se, com bom
humor, uma certa margem de erro.

Negociando com Bondye


Enquanto me explicava algumas técnicas de koup gode, Jaklin comentou que fazia isso
quando era jovem, nos tempos em que enfrentou uma situação econômica mais sofrida que a
atual, antes que sua conversão evangélica ganhasse firmeza. Não se orgulhava disso, e
ressaltava que não voltaria a fazer, pois ela felizmente não precisava daquilo.
A palavra-chave aqui é o verbo “precisar” [bezwen, palavra que em outros casos seria
traduzida como “vontade” ou “querer”, mas que, aqui, veicula o sentido de “necessidade” –
apesar da aparente ambiguidade, os contextos de uso costumam deixar suficientemente claro
qual é o caso]. Essa formulação implica no reconhecimento de que existem situações realmente
duras na vida, que podem levar as pessoas a fazer coisas que elas prefeririam não fazer, e não
fariam levianamente.

209
De forma mais concreta, a opinião de Jaklin (e eu acredito que a grande maioria das
minhas interlocutoras partilhariam da mesma opinião caso eu as tivesse inquirido
explicitamente a respeito) é que se uma machann que está tentando enfrentar suas dificuldades
recorre a um expediente como o koup gode, isso não é certo, ela terá de responder pelos seus
pecados, mas também não deve ser encarado como uma falha grave de caráter, não é algo capaz
de defini-la, não nos cabe condenar as pessoas com base nisso (veremos no capítulo seguinte
alguns defeitos morais que, pelo contrário, qualificam mais fortemente seus portadores). Deus
tem Suas regras, Seus mandamentos, mas, ao mesmo tempo, Deus é um pai que compreende,
ajuda e ama os mais pobres. Roubar é pecado, claro, mas, ao mesmo tempo, Ele também é
sensível às necessidades que seus fiéis passam. Se Madame Dodo estava sempre correndo para
mal conseguir alimentar seus muitos filhos, quão pecaminoso seria da parte dela “roubar” um
gode de arroz aqui, outro ali?146 Como Jaklin gostava de lembrar, “o céu é para os pobres, a
bíblia diz que é mais fácil um camelo passar num buraco de agulha do que um rico entrar no
reino dos céus”.
De todo modo, é sempre preferível fazer o que “a bíblia quer”. Deus protege e recompensa
quem age de acordo com a Sua vontade. Estar com as suas contas em dias com Deus atrai
bonança em muitos campos da vida além do comércio. É bastante comum que o sucesso em
qualquer empreitada seja pelo menos parcialmente atribuído à boa vontade divina com a
mesma, o que também vale para a evitação de desastres.
Certa vez, um raio atingiu uma casa, destruindo uma de suas paredes, justo no cômodo
onde a mãe se escondia junto com seus quatro filhos pequenos. Parte da casa explodiu e pegou
fogo, mas o fato de que as pessoas tenham saído intactas mostra que aquela casa estava
realmente muito beni, prova irrefutável de que Deus estava satisfeito com o comportamento
daquela família. Uma das imagens usadas para a bênção é que ela é “como um lençol” que
cobre e protege. A ênfase que as pessoas deram, dizendo que estavam “muito, muito bení”
mostra que a bênção se manifesta com intensidades diferentes. Nessa ocasião esse “lençol” se
manifestou com intensidade suficiente para aguentar a força a de raio, o que foi comemorado

146
É preciso fazer uma ponderação sobre essa relativização da condenação moral ao roubo. Se comportamentos
como o koup gode, a não quitação de uma dívida ou o não preenchimento pleno do gode são chamados de
“roubo” e podem gerar conflitos pessoais em termos de “pecado” ou de reputação, por outro lado, não existe
nenhuma margem de tolerância com o furto propriamente dito, que é punido com linchamento (com risco de
morte). O assalto à mão armada é ainda menos tolerado, das raras vezes em que acontecem, as pessoas
perseguem os ladrões, e se eles forem pegos, serão linchados e suas chances de sobreviver serão mínimas. As
pessoas afirmavam com orgulho que suas vizinhanças não deixam ladrões saírem vivos, alguns linchamentos
são filmados com telefones celulares, e esses vídeos são muito assistidos e compartilhados.

210
como algo excepcional (essa celebração do poder da bênção chegou até mim por terceiros, não
cheguei a conhecer diretamente essa família, mas o caso foi contado e recontado).
No comércio, espera-se que a bendição favoreça boas escolhas, compras certas, vendas
bem-sucedidas. Espera-se ainda que os múltiplos seres invisíveis capazes de fazer o mal não
possam atingir os “servidores de Deus” [sevitè Bondye]. A proteção contra eles é uma proteção
contra as mazelas da vida em geral, pois eventos como um acidente automobilístico ou o
encontro com ladrões frequentemente são associados à ação destes diabos. (Lembramos mais
uma vez: traduzir o conceito típico para dar conta dessas agências, djab, por “diabo” é um atalho
que só é útil se nunca perdemos de vista que a forma como essa palavra é usada no Haiti aponta
uma rica multiplicidade de sentidos, bem mais complexa que uma inequívoca encarnação do
mal.) São eles que empurram a pessoa para que tome este veículo ao invés daquele, ou para que
um ladrão venha roubar as coisas dela ao invés das de sua vizinha no mercado, que uma
quadrilha escolha atacar este e não aquele depósito. Todo o amplo espectro de eventos que
podem ser qualificados por termos como “sorte” ou “azar” serve também de palco para a
atuação destes diabos. A proteção contra eles é, idealmente, uma proteção abrangente.
Há ainda transações onde Deus é o próprio credor. O ponto veio à tona quando Jaklin quis
trazer exemplos para ilustrar a importância de ajudar quem mais precisa. Ajudar os mais
necessitados é um imperativo bíblico evocado com frequência pelos cristãos [kretyen]. Assim,
Jaklin contou de certa vez em que um homem muito pobre passou vagando pela sua vizinhança.
Ele veio até a casa dela, e perguntou se ela não teria 100 gourdes para dar pra ele. Ela nunca
havia visto aquele homem. Em qualquer mercado sempre há gente pedindo esmola, o que é
compreensível uma vez que o mercado é um lugar que atrai multidões, e para o qual as pessoas
vão levando dinheiro. Em celebrações religiosas e cívicas de grande porte, também há uma
presença significativa de pedintes. Contudo, é fora do comum que alguém venha em uma
vizinhança como aquela para bater à porta de gente desconhecida pedindo ajuda. Jaklin estava
numa situação econômica ruim, necessitada de dinheiro, mas logo concluiu que aquele homem
precisava mais do que ela. Todo o dinheiro que ela tinha em mãos na oportunidade era,
justamente, uma nota de 100 gourdes. Resolveu dar aqueles 100 gourdes ao homem, e ficou
sem nada. O homem agradeceu e foi embora.
Pouco tempo depois, Dan, seu irmão caçula, de quem ela era muito próxima e por quem
sentia enorme afeição, passou de visita por sua casa. Sem que ela pedisse nada, Dan sacou uma
nota de 500 gourdes, dizendo que era um presente que ele trouxera para ela. Ela dera 100, e
minutos depois recebera 500. Como o tempo dos dois atos foi encadeado, estava claro para ela

211
que o presente de Dan não era apenas dele mesmo. Deus o havia enviado, devolvendo e
multiplicando a boa ação dela, como um credor generoso, que dá mais do que pede a quem
confia n’Ele, ao contrário dos diabos que, como todo mundo sabe, cobram juros caríssimos.
É curioso que Deus tenha escolhido Dan como Seu mensageiro involuntário, já que o
irmão de Jaklin era ougan. Um ougan bem-sucedido financeiramente, e um tio que costumava
distribuir presentes em dinheiro e em comida para todos os seus sobrinhos. Dan morreu em 30
de dezembro de 2014. Sua morte foi um golpe duríssimo para Jaklin. Embora o assunto fosse
cercado de silêncios e não pudesse vir a tona sem que Jaklin desabasse numa depressão
imediata, da qual levava dias inteiros para se recuperar, fiquei sabendo que a causa da morte
dele foi, justamente, um dos diabos que ele mantinha, um lwa achte que “comeu” ele.
O fato de que seus lwa fossem a fonte do dinheiro dele não impediu que esse dinheiro
chegasse para Jaklin como uma remessa enviada por Bondye. Dan ainda teria que responder
pelos seus atos, mas naquela transação específica, a destinatária era Jaklin. Deus estava
recompensando sua servidora. Parece ter sido indiferente para Ele que o instrumento usado para
fazer a remessa tivesse suas próprias transações com diabos, assim como a própria Jaklin não
via problema algum que aquele dinheiro, em última instância, viesse dos diabos de Dan.
Embora ela recomendasse ao irmão a conversão, na esperança de salvá-lo do que – tanto ela
quanto ele já o sabiam – estava por vir, o dinheiro ganho por ele com seus diabos não tinha
mácula, pelo contrário, quando foi presentado a ela, uma servidora de Deus que praticara a
caridade, tornou-se inequivocamente beni.
Mesmo se as Suas regras são consideradas inequívocas, Deus é um ser multifacetado, que,
como juiz, tem muitos elementos para levar em consideração. Seus julgamentos são complexos,
e as posições que Lhe são atribuídas são passíveis de interpretações discordantes. Não há
nenhuma dúvida de que Ele não aprova o uso da magia para enganar outra pessoa, quem
contrata qualquer serviço mágico está cometendo o pecado da idolatria [idolatri], que a bíblia
proíbe. Todo mundo sabe, também, que Ele espera que toda dívida contraída seja paga. Mas,
ao mesmo tempo, Ele é solidário com as dificuldades enfrentadas por seus fiéis.
Quando Jaklin recorreu a meios mágicos para lidar com a mulher que passava pela sua
casa quase todos os dias, Deus sabia que as provisões que ela presenteara à sua credora (também
referida como sua “amiga”) desfalcaram as reservas de sua família a ponto de colocar em perigo
sua capacidade de alimentar seus filhos. À época, isso foi, para ela, motivo suficiente para
relativizar suas ideias de certo e errado. O ditado diz degaje pa peche [“se virar não é pecado”],
e ela certamente estava tentando degaje. Embora se sentisse pecando, ela esperava que Deus

212
viesse a perdoar sua falha, e estava disposta a fazer por merecer o Seu perdão. Mesmo antes
disso, ela estava segura de que Ele compreendia a situação, Ele sabia o que ela estava passando,
por isso ela esperava ser ajudada antes de ser julgada (e até para que conseguisse ficar numa
posição apta a reparar seu erro), o que de fato ocorreu.
A mesma empatia que Deus tem por seus seguidores deve ser imitada por estes quando
foram estiverem na posição de credores. Temos aqui uma das características marcantes da
moralidade em torno da cobrança das dívidas. A tolerância com tentativas de atrasar o
pagamento, ou mesmo de não pagar, depende fundamentalmente da avaliação sobre a situação
vivida pela outra pessoa. Se uma pessoa que deve não tem como pagar, se está passando
necessidade severa, se comprou mercadoria com aquele dinheiro mas ainda não conseguiu
revender nada, deve-se esperar o tempo que for necessário.147
Se, ao contrário, a demora ou o não pagamento for apenas uma esperteza desonesta, uma
forma de tirar vantagem, pode-se cobrar a dívida através da subtração forçada de um produto.
A pessoa que vai cobrar pessoalmente o que lhe devem e se depara com a recusa da outra parte
pode confiscar na marra algum bem da devedora, no valor aproximado da dívida. Esse é um
método reconhecido – apesar de sua beligerância, ele goza de alguma legitimidade entre as
pessoas. Ninguém considera isso roubo.148
Certa vez, Jaklin e eu presenciamos, no taptap, um senhor que voltava da fronteira com
uma pilha de quatro bacias grandes, de metal. Segundo soubemos (por fontes indiretas), ele
voltava de um dia inteiro sem ter vendido nenhuma das bacias, completamente sem dinheiro.
Não tinha nem para a passagem. Ele tentou descer discretamente, mas o cobrador percebeu que
ele estava saindo sem pagar e com um safanão, tomou uma bacia da mão dele. Aquela bacia
valia muito mais que a passagem, aquele senhor não tinha dinheiro para nada, ele as comprara
com um lajan sòl [“dinheiro de sòl”] que deveria remeter de volta em breve, precisava de
qualquer jeito vender as bacias e das quatro que comprara agora só lhe restavam três. Embora
o cobrador estivesse no direito de cobrar pela passagem, as pessoas lamentaram a má sorte

147
O preceito que identificamos diz respeito às angústias religiosas de pessoas que têm a pretensão de agradar a
Deus. Elas devem esperar e buscar entender qual é a situação da devedora, o que não é um preceito exclusivo
a protestantes, mas tampouco se trata de uma regra à qual toda e qualquer pessoa precise se reportar. Em
especial, não há nenhum indício de que agiotas profissionais, pelo menos em situações ordinárias e cotidianas,
observem esse tipo de critério de avaliação.
148
E o método parece ter raízes antigas. Descrevendo conflitos causados por animais invadindo plantações,
Métraux et al. (1951) afirma que, segundo o costume que vigente nos anos 1940s no Vale do Marbial, o dono
do jaden danificado tinha o direito de matar o animal, cortar para si um pedaço cuja carne tivesse um valor
aproximado ao da destruição causada, a título de reparação, e então chamar o dono para recolher o restante do
animal. Embora eu nunca tenha presenciado um animal ser morto e retalhado dessa forma, há semelhanças
palpáveis entre esse modo de cobrança e as situações que eu descrevo.

213
daquele senhor, se compadeceram com sua tentativa de não pagar, sua dificuldade financeira
parecia justificativa suficiente para o que ele tentou fazer (se, por outro lado, uma pessoa com
dinheiro tentasse não pagar a passagem, não encontraria nenhuma simpatia, revoltaria a todos,
talvez até viesse a ser agredida fisicamente por algum passageiro).
Jaklin me contou de uma situação em que ela, como credora, cobrara uma dívida dessa
uma forma, legítima perante os homens, mas contrária à vontade da bíblia. Deus logo deixou
claro qual era a Sua opinião a respeito. Uma mulher que participava de um sòl do qual a própria
Jaklin era a manman sòl já tinha pego a mão dela. Na última rodada, essa mulher mandara o
dinheiro por sua mãe. Quando Jaklin olhou, faltavam 300 dolà. Como manman sòl, cabia a ela
cobrir o restante (e no caso se tratava de um sòl de valor excepcionalmente alto), e cobrar mais
tarde essa diferença da mulher que pagara sua cota incompleta.

E ela nunca mais pagou, nunca mais. E [depois do primeiro contato questionando-a]
eu nunca mais pedi, fiz como se tivesse esquecido. Deixei por conta dela. E um dia eu a
encontrei vendendo café. E assim que eu a vi, fui até ela peguei o café de que ela estava
vendendo e o gode, tomei o café por [no valor de] 300 dolà. É assim. Eu não vou xingar a
pessoa, não vou infernizar ela, mas se eu te encontrei em tal lugar, se você estiver com
dinheiro, você vai me dar ali mesmo, eu não te deixar sair, não quero saber o que você vai
vender mas você vai ter que me dar aqui mesmo.

Ela tomou um monte de café de uma pessoa que estava ali para vendê-lo, brigara por causa
de dinheiro, o que, segundo ela mesma, a bíblia proíbe. Deus viu tudo. O que aconteceu logo
depois foi a prova definitiva da Sua desaprovação. Jaklin voltava para a casa de mototáxi, com
uma sacola cheia de café (o equivalente, grosso modo, a 300 dolà), e a moto em que ela estava
caiu. Não foi um acidente grave, mas o café se perdeu e ela machucou o pé e ralou a perna,
dificultou sua movimentação, teve que passar vários dias em casa. Teve muito tempo para
pensar no que fizera. O encadeamento dos acontecimentos deixava claro que Deus não gostara
nem um pouco da atitude tomada por ela. Os acidentes de trânsito parecem também ser uma
forma de comunicação usada pelo bom Deus, que não mandou um acidente grave, mas apenas
forçou uma parada para reflexão.
Ela refletiu, e chegou à conclusão de que não valia a pena conseguir seu dinheiro de volta
dessa forma, era preferível engolir a raiva e esperar. A necessidade de “dar a outra face”, de
não reagir a agressões e ofensas, era uma das vontades da bíblia mais evocadas, não apenas por
Jaklin, mas em conversas variadas. Ela costumava ser citada sempre que havia um conflito no

214
qual algum fiel não conseguiu se segurar e acabou brigando. A lembrança dessa regra não é
sempre bem recebida. Lembro-me de uma ocasião em que Jaklin, junto a dois outros fiéis,
repreenderam um pastor conhecido deles por ter matado o boi de um vizinho que invadira o seu
jaden (até onde eu sei, o pastor não retirou para si nenhuma peça do animal abatido, apenas o
largou morto no chão num acesso de raiva, não havia reparação, era apenas vingança contra seu
vizinho – cf. nota 148). O pastor ainda estava revoltado, rebatendo que se ele adotasse a
passividade que lhe estavam sugerindo acabaria com todos os seus jaden destruídos, sem ter o
que comer, que ele e seus filhos morreriam de fome, e que se recusava a acreditar que fosse
essa a vontade do Senhor. Estava convicto de que seu vizinho fora um canalha e merecera a
vingança, enquanto seus correligionários, por outro lado, argumentavam que a missão dos
cristãos (ainda mais ele, que era um pastor) não é se misturar em disputas mundanas, mas sim
“ser uma luz na escuridão”.
A moralidade cristã em jogo está aberta a uma diversidade de posições, há debates
constantes em torno do valor dos recursos considerando a forma como eles foram obtidos – há
uma economia moral fortemente imbricada nos fluxos de dinheiro, sujeita à intervenção
constante de seres não-humanos, com destaque para a figura de Deus, mas que coexiste com
muitos outros. Como credor, Deus é generoso, dá mais do que o que pede, ainda que não se
saiba quando Ele vai dar (a paciência [pasyans] e a resignação [reziyen] são virtudes cristãs), e
que se ignore também o que ele vai dar. Afinal, o que você quer pode não ser o que você
realmente precisa, nós humanos somos ignorantes sobre o que é necessário para nós. Tal qual
um pai tem autoridade para decidir o que é melhor para seus filhos quer eles concordem ou não,
“Deus é quem sabe” [Bondye konnen], frase tantas vezes repetida como um lembrete da
necessidade de que nos resignemos e aceitemos aquilo que Ele nos dá.149
Outros seres invisíveis recompensam mais rápido, e nos dão exatamente aquilo que
pedimos, mas cobram com juros. Há uma rica tradição de histórias sobre pactos feitos com
criaturas que concedem riquezas espetaculares apenas para depois cobrar dívidas medonhas,
levando com frequência à morte não só de quem a contraiu, mas também de membros da sua
família, com destaque primeiro para os filhos, depois para parceiros conjugais. Há diversas
tragédias ocorridas na vizinhança que são explicadas como ação de algum lwa ou djab cobrando

149
Nem todo mundo lida bem com essa morosidade e ininteligibilidade divina. Houve um domingo em que Tina,
também convertida [konveti] ao protestantismo (embora pareça dar menos importância a isso que Jaklin e
Madame Dodo), me disse que não iria ao culto, pela terceira semana seguida. Eu perguntei a ela o motivo, e
ela contou que fizera um pedido a Deus e Ele ainda não lhe atendera. Para puni-Lo, ela suspendeu suas idas
ao culto, só voltaria a frequentar depois que Ele atendesse ao seu pedido (ignoro qual era).

215
dívidas. Uma piada circulava contando diversas peripécias de um homem tentando enganar um
espírito que vinha lhe cobrar um dinheiro dado em troca da sua vida cinco anos depois.
Avaliações a respeito da troca de uma longa vida de miséria por dois ou três anos de vida com
dinheiro no bolso não são um tema incomum de conversa.
Tais histórias tratam de conversões extraordinárias. Por outro lado, a ideia de maldichon
que vimos é como uma versão menor, mais banal e cotidiana, dessas trocas onde ao levar uma
vantagem indevida, no curto prazo, recebe-se uma desvantagem maior à frente.
Com isso, notamos que faz sentido que a opinião dos vizinhos seja temida. Existe um
perigo real em jogo, não apenas por ações que as pessoas possam vir a tomar diretamente, mas
também através dos seus pensamentos ocultos, suas conversas particulares com Deus. Tudo
isso favorece a política da boa vizinhança.150 Assim como as orações dos vizinhos pedindo
punição são eficazes, as orações pelo bem de alguém (ou de si) também o são. É uma
demonstração de carinho comum dizer a uma pessoa que rezará por ela ou por alguém/algo
importante para ela. Há grupos de oração que se reúnem para ir a uma determinada casa
oferecendo ajuda a algum problema que a pessoa esteja passando. As pessoas valorizam essas
formas de “encorajar” [ankouraje] umas às outras.
Vimos o caso da comerciante que deliberadamente quis manchar a reputação de Jaklin no
mercado, ameaçando barrar o acesso ao crédito, o que, entre pequenas comerciantes, pode ser
uma sentença de falência. Claramente, neste caso, “falar mal” não implica uma “maldição” do
mesmo tipo daquelas enviadas por Deus. O Senhor vê boas intenções e boa conduta de uma
machann que, apesar disso, não conseguiu quitar suas dívidas no prazo correto (e, portanto, está
“roubando” seus credores). Um mau julgamento de um vizinho ou de uma credora é algo que,
havendo boa vontade de Deus e sendo concedida a Sua graça, fatalmente será revertido, como
ocorreu com Jaklin frente a seus credores. Enquanto outras transações oferecem recompensa
rápida por um alto preço, a transação com Deus por outro lado recompensa aos poucos,
recompensas mais modestas, menos espetaculares, às vezes inclusive menos compreensíveis,
porém de efeitos mais duradouros. Portanto, o investimento em compreender as Suas vontades
(frequentar cultos, ler a bíblia, participar de grupos de estudo bíblico, orar, compartilhar,

150
Convivendo na intimidade com Jaklin, diversas vezes senti o contraste entre pessoas que ela tratava muito
bem e de quem depois, em privado e na ausência delas, me falava mal. Quando eu fazia comentários do tipo
“eu pensei que vocês fossem amigos”, ela respondia “dessa gente? Sou amiga só na boca, só nos meus dentes,
no meu coração jamais. Eu finjo que sou amiga porque é isso que precisamos fazer, quero que pensem que eu
gosto deles, mas não são boas pessoas.” De forma geral, as pessoas fazem esforços notáveis para tratar bem
mesmo as pessoas que detestam.

216
interpretar e aceitar mensagens recebidas em sonho) é recompensador no longo prazo, inclusive
financeiramente.151
Assim, temos delimitadas as linhas principais de uma economia na qual Deus e os diabos
coexistem conduzindo suas transações com os seres humanos, cada qual com suas demandas e
recompensas particulares. Paralelamente ao seu valor econômico, os recursos concretos
também são valorizados ou desvalorizados de acordo com o critério que chamamos de
“bênção”. Essa qualidade varia em intensidade, tanto em seu polo positivo quanto no negativo.
Como qualidades transmissíveis cuja distribuição é desigual, como uma energia potencial cujo
equilíbrio é sempre instável e dinâmico, a bênção e a maldição compõe uma economia própria,
onde as ações de seus respectivos donos estão constantemente transmitindo-as entre recursos
variados (dinheiros, animais e outros). Assim, à materialidade dos recursos econômicos se
adiciona uma camada imaterial, invisível, mas determinante para o curso dos acontecimentos
futuros, tanto no comércio como na vida em geral.
A essa altura, acredito que já esteja suficientemente claro porque um estudo etnográfico
originalmente dedicado ao comércio acabou se detendo por tanto tempo sobre conceitos e
práticas que seriam ordinariamente pensados como de ordem religiosa. A partir do momento
em que o foco do interesse está em comerciantes tomadas em sua individualidade, e que nossa
busca por compreender o que elas fazem privilegia os termos de suas próprias formulações, o
que temos aqui não é uma mistura entre comércio e religião, simplesmente porque eles nunca
foram conceituados como âmbitos separados e autônomos em primeiro lugar.
Gerir um comércio é uma arte que para ser bem-feita exige conhecimento [lespri]: é
necessário conhecer as mercadorias em sua materialidade, o que inclui modos de embalagem e
formas de transportar; também é necessário conhecer as pessoas, saber interpretá-las e saber
como lidar com elas; e é necessário reconhecer forças transcendentes para que elas possam estar
a seu favor, porque uma pessoa que, ignorando essas forças, se coloque inadvertidamente contra
elas, terá resultados catastróficos, tanto no comércio como na vida.

151
Contudo, não me parece produtivo tratar esse protestantismo popular haitiano como uma vertente da teologia
da prosperidade, porque, além da escassa a atenção dada ao dízimo, as igrejas são materialmente muito
modestas, e são geridas coletivamente, o pastor é uma figura que se destaca pouco do conjunto dos fiéis (nos
cultos, a distinção entre pastores e fiéis é bem menos marcada do que a distinção entre adultos e crianças), e
por fim, provavelmente o ponto mais importante para que evitemos essa aproximação, por mais que esperem
que a boa vontade divina as ajude inclusive financeiramente, as pessoas constantemente relembram umas às
outras a preferência de Deus pelos mais pobres e o Seu desprezo pelos mais ricos, muito especialmente pelos
avarentos [chich] que não compartilham as próprias riquezas e não ajudam quem tem menos que eles.

217
Chache lavi
Do ponto de vista evangélico (ou, pelo menos, de algumas evangélicas), agir de acordo
com o que a bíblia quer e evitar o pecado é lidar com um credor mais generoso, a recompensa
é mais duradoura (no limite, a mais duradoura de todas, que é a vida eterna), e portanto é
vantajoso dirigir-se exclusivamente a Bondye, em detrimento do vasto e heterogêneo panteão
de divindades menores (vale ressaltar que essa “vantagem” é pensada como apenas uma
recompensa merecida, e não o motivo primeiro: deve-se obedecer a Deus e à bíblia porque isso
é o certo a se fazer, e essa ética deveria vir antes e estar acima de qualquer recompensa que se
vise receber). Seja em contato com Deus, seja com os diabos, não resta dúvida de que a
aspiração a uma situação financeira mais confortável é um tema central nessas transações, que
se repete de forma consistente.
Em relação ao clássico estudo da economia moral camponesa de Gérard Barthélémy
(1989), esta é uma distinção que voltamos a frisar: o desejo de ascensão econômica é
generalizado (ainda que, como hipótese, possamos admitir que se trate de uma transformação
histórica, que algo novo talvez possa ter surgido no horizonte de expectativas entre meados do
século XX e o começo do XXI). Por mais que o ponto seja importante, reduzir as aspirações a
seu aspecto econômico seria um empobrecimento lamentável de concepções que são bem mais
complexas. Esse horizonte está relacionado a conceitos como avanse [avançar], pwogrese
[progredir], developman [desenvolvimento]. Para além de suas complexas conexões com
conceitos que orientam a atuação de economistas na indústria da ajuda, tão presente no Haiti,
estes termos, que compõe uma mesma mancha semântica, também são de uso popular e
cotidiano. Seus sentidos nesse contexto não são idênticos aos que lhe dão os economistas. Por
mais que essas disjunções de sentido pareçam, em si mesmas, dignas de interesse, investiremos
em outra direção, pois há outro termo que captura melhor o espírito da ampla busca na qual o
comércio é apenas um dos caminhos possíveis.
Este conceito já foi anunciado diversas vezes, mas até aqui só o tratamos de forma
tangente: vida. As pessoas reafirmam constantemente que o que elas estão buscando é a vida.
Chache lavi [“buscar a vida”] é provavelmente uma das expressões mais comuns no crioulo
haitiano, tanto dentro quanto fora do Haiti.152 Uma frase tão gasta corre o risco de parecer mais

152
A expressão chache lavi aparece em teses, artigos, filmes, músicas, além de uma infinidade de textos
jornalísticos. Cito como exemplo apenas alguns casos em que ela é usada como título: a tese de Louise
Mailloux (Cheche Lavi - An exploration into the survival strategies of Haitian women in the DR, 1997), um
artigo de Ana Elisa Bersani (Chache Lavi Deyò; uma reflexão sobre a categoria refúgio a partir da diáspora
haitiana no Brasil, 2016), música do rapper Fantom (Nan chache lavi) que relê o clássico de Beken (Chache

218
óbvia e de tradução mais transparente do que realmente é. “Vida” é um conceito sujeito a
modulações específicas, ela não é um dado, tanto que as pessoas precisam buscá-la. Como
substantivo [lavi] e como verbo [viv], denota algo mais do que o fato de alguém já ter nascido
e ainda não ter morrido. O cuidado etnográfico com o conceito de “vida” permite trazer à tona
formulações importantes, onde se negocia aquilo que caracteriza uma boa vida, bem como nas
acusações de “não saber viver”.
Assim, diz-se que um patrão que concede vantagens a seus empregados lhes dá vida; uma
empresa que explora mão de obra a baixo custo não deixa seus trabalhadores viverem; quando
uma pessoa de quem se sente saudade manda notícias ou telefona, ou quando manda remessas
em objetos ou dinheiro a parentes, ela os faz viver; maravilhados ao pisar pela primeira vez no
centro da cidade de São Paulo, jovens com mais de vinte anos vividos exclamam uns aos outros
“finalmente agora vamos viver”. Todas essas são traduções literais de frases originalmente ditas
em crioulo haitiano. Elas deixam claro que existem variações, os vivos experimentam situações
em que gozam de mais vida ou menos vida. Nestes exemplos, o que se afirma capaz de
potencializar a vida são: condições trabalhistas, contato afetivo com as pessoas que se ama
apesar das distâncias geográficas, dinheiro, o envio de presentes não-monetários, e, por fim,
uma cidade grande e moderna em terra estrangeira. A disparidade interna dessa lista indica quão
mais complexa, aberta e heterogênea é a noção de vida frente a concepções que reduzem aquilo
que se busca a um emprego no exterior com salário pago em alguma moeda estrangeira mais
valiosa que o gourde haitiano (sem diminuir a importância desse elemento, que é de fato
buscado).
No mesmo sentido, há situações em que, embora ninguém tenha ainda morrido de fato, o
que se está vivendo não basta para ser considerado como vida. Pa gen lavi [“não tem vida”] é
uma frase comum como comentário sobre tempos difíceis. A miséria é realmente uma das
principais antíteses da vida: buscar e movimentar-se em direção à vida é um movimento de
ascensão. A frase chache lavi possui variações como chache lavi miyò [“buscar (uma) vida
melhor”]. O que se entende como “melhor” engloba muitas coisas, ter algum dinheiro sempre
está entre elas, mas há mais. Um dos principais índices da vida que não chega a ser plenamente
uma vida é a comida. Um dia passado sem nenhum dos itens de base da alimentação local (como
bananas, arroz, ou pitimi) não é apenas um desconforto físico, é também uma humilhação moral,
principalmente se a pessoa que passa dificuldade não recebe ajuda espontânea e se coloca na

lavi detwi lavi), verso que Paul Farmer (1996) registra como um provérbio (cuja tradução é ‘buscar a vida
destrói a vida’), e um documentário de Claudette Coulanges (Checher La Vie, 2000).

219
posição de pedinte frente a sua família ou seus vizinhos.153 Ao mesmo tempo em que essa é
uma situação de pobreza extrema, parte importante da dor é que ela venha acompanhada por
uma pobreza de relações, pela falta de pessoas que se importem o bastante para perceber o que
se passa e mandar à sua casa um prato de sopa ou um punhado de mandioca. A comida é
profundamente significativa nesse duplo sentido; se ela falta, certamente há uma falta severa de
dinheiro e de recursos em geral, mas também faltam estima e consideração, faltam amigos,
família e vizinhos, em suma, faltam pessoas.
Em diversos momento na literatura etnográfica produzida no Haiti, essa concepção de vida
pode ser vislumbrada, mas, que eu não saiba, até recentemente ela não havia sido analisada
como digna de interesse.154 A postura padrão na literatura é bem ilustrada pelo momento em
que Karen Richman (2005:71) transcreve um diálogo inteiro com uma criança que afirma seu
desejo de migrar para os Estados Unidos a fim de “dar a vida” [bay lavi] à sua família, ao que
a autora pergunta se sua família já não tem vida, e a criança responde “para que eu possa lhes
dar mais vida” [pou m ka bay yo plis lavi]. Passando ao largo das potenciais implicações
conceituais dessa formulação, que é de fato uma fala bastante comum e facilmente tomada
como trivial, a autora traduz lavi como livelihood [“meios de subsistência”], conceito que
reconhece diferenças de intensidade reduzindo-as ao seu aspecto econômico, material. Em se
tratando de um estudo em que tem as remessas tem uma posição central, essa redução
involuntária é compreensível em função da importância financeira das remessas, mas, ao
mesmo tempo, é contradita pela própria riqueza etnográfica do texto da autora, ao mostrar que
as remessas são muito mais do que só dinheiro, incluindo também, via fitas cassete, notícias,
canções, acusações, provocações, justificativas, pedidos, enfim, uma comunicação densa da
qual os fluxos financeiros são uma parte fundamental, mas ininteligível se não se leva em conta
o complexo emaranhado de relações que lhe dá sentido.
Curiosamente, encontramos algum tipo de respaldo teórico a este ponto bem longe do
Haiti, com a ideia de “força vital” trabalhada por Bhrigupati Singh na Índia. O autor conta
(Singh 2018:554) que sua elaboração de um conceito etnográfico de vida foi, em parte, uma
reação à voga do trabalho de Giorgio Agamben levando antropólogos a encontrar o “poder

153
Em uma pesquisa realizada nos tempos em que a economia haitiana vivia da exportação de café, e quando
ainda se cultivava cana-de-açúcar em maior quantidade que hoje, Métraux et al 1951 reporta que o café
ocupava esse lugar. Não ter café para beber, ou não ter recursos para comprar açúcar, era experimentado como
uma pobreza amarga. Hoje, pelo menos na região onde fiz trabalho de campo, bebe-se café apenas
eventualmente, e sua falta não é considerada algo excepcional.
154
Além desta tese, outros trabalhos vinculados ao grupo de pesquisadores no qual me incluo também
desenvolvem este tema: Joseph (2015), Neiburg (2019) e Montinard (2019).

220
soberano” subjugando a “vida nua” [bare life] ao redor do mundo.155 Trabalhando com
técnicas de household survey que mediam acuradamente uma lista de itens capazes de
determinar aonde estava a “linha da pobreza” e quem se encontrava acima ou abaixo dela, algo
fundamental parecia opaco às perguntas dos questionários, algo que excede esses critérios.
Como definir esse algo? Singh compara diferentes tradições de identificação e mesmo formas
de mensuração da vitalidade, ao mesmo tempo em que reconhece que a ideia de força vital
mostra uma inefabilidade irredutível. Mas os debates filosóficos sobre quais são os limites
teóricos desse conceito são aqui apenas um parêntese. O que realmente nos interessa é a sua
caracterização etnográfica.
Quando as pessoas no Haiti falam em buscar a vida, ao que elas estão se referindo? Não
nos cabe dar respostas fechadas, apenas apontaremos algumas direções. A primeira perpassa
tudo que foi discutido neste capítulo: o conceito de vida qualifica o lugar atribuído a Deus. Ele
é a fonte primeva, só Ele pode dar a vida, assim como pode retirá-la quando quiser. Enquanto
no âmbito humano, fala-se o tempo inteiro na busca ativa, quando o assunto é Deus, a vida
aparece como uma dádiva, e seu caráter inescrutável ganha força. Como consequência, temos
todos uma dívida imensurável com Ele e com seu filho Jesus, e nada do que possamos lhes dar
poderia equilibrar a balança. Como outros cristãos, Jaklin sustenta a posição de que uma vida
inteira dedicada a Deus não é um grande feito, é uma mera demonstração de gratidão, mas
mesmo dentro do espectro evangélico, encontraríamos dissidências a este ponto, como indica a
postura de Tina (ver nota 168).
A direção seguinte que apontamos, mais mundana, nos parece menos sujeita a
controvérsias. Trata-se de uma característica intrínseca a essa concepção de vida,
universalmente reconhecida: a vida é compartilhada. Sua busca é incompreensível se não se
leva em conta que a vida buscada não é uma vida individual. Vimos, no primeiro capítulo (nota
83), uma cena em que a incompetência na divisão dos alimentos motivou a acusação de que
“essas pessoas não sabem viver”. Não saber dividir comida equivale a não saber viver junto, e
a capacidade de conviver equivale à própria vida. No mesmo sentido, veremos adiante como
opera a acusação a vizinhos cujas famílias não serviam para casar “porque eles não sabem

155
No Haiti, além das referências diretas ao conceito de bare life, seja em autoras que recorrem criticamente a
ele para explorar os contextos etnográficos que estudam (como James 2012), seja em etnografias que se
colocam como ilustração do conceito (como Shoaff 2017), há um ethos persistente que gravita ao redor do
tema da “sobrevivência” (p. ex., Fass 1988, Fatton 2012). Enquanto o primeiro ressalta forças políticas
autoritárias que pretendem reduzir a vida à sua nudez, no segundo caso a redução que assume uma vida mínima
já é, de saída, tomada como um dado. Essa posição reverbera com frequência na agenda da cooperação
internacional (Evangelista 2010). Cf. a crítica de Fischer 2013 à estética da “vida nua” no Haiti.

221
viver”, isto é, não se respeitam uns aos outros. O conceito de vida e o de convivência [viv
ansanm, lit. “viver junto”] colapsam um sobre o outro, como se fossem o mesmo.156
O conceito de vida implica, portanto, conexões. Será preciso destrinchar quais conexões
são viscerais a ponto de estarem implicadas no próprio conceito. Isso só pode ser feito
etnograficamente, e é deste ponto de vista que afirmamos: a posição que uma pessoa ocupa no
mundo depende de relações nas quais há compartilhamento de substância, com destaque para o
“sangue” [san]. A questão do gênero do comércio ressurge aqui sob um novo ângulo: muitas
das mulheres que fazem comércio também são mães, inclusive as mais jovens. Jaklin tem sete
filhos, Madame Dodo teve ao todo dezoito, dos quais treze estão vivos. O sentido que se dá à
busca é fortemente pautado por um coletivo ao qual Jaklin costuma se referir como “meu
sangue”. Assim, no último capítulo dessa tese, argumentaremos que fazer comércio não é uma
atividade autocentrada, mas sim parte de uma busca mais ampla, e assim buscaremos
compreender motivos subjacentes à atividade comercial, que a excedem ao mesmo tempo em
que são indissociáveis dela.

156
Assim, perder-se de si e dos seus, andar sem rumo em desterro, abandonado por sua família, configura uma
aproximação da morte, pois uma existência individual desconectada de outras vidas tem pouco sentido, é como
um ponto solto no mundo. Existe um verbo, depeyize, para dar nome ao ato de desterrar alguém, geralmente
por meios mágicos, o que é considerado quase um assassinato, dado que a pessoa é levada a sair de seu lugar
para não voltar nunca mais (com a vantagem de não penalizar a família do alvo com os custos do enterro).

222
4 AS PESSOAS E AS CASAS
O comércio, quando bem-sucedido, tende a ser retroalimentado e crescer, mas ele não é
um fim em si. Em se tratando de uma etnografia centrada em personagens (em oposição a
estudos que tenham o comércio como centro, e portanto estarão numa posição mais legítima
para tratá-lo como um circuito fechado), precisamos manter no horizonte o que esse dinheiro
busca criar, manter, fomentar. Nossas personagens se constituem como pessoas através de
processos e relações que as marcam profundamente, que as definem, e somente em meio a esses
processos e relações podemos entender o lugar do comércio no fluxo da vida.
A forma como o dinheiro ganho com comércio é efetivamente gasto (excetuando dessa
definição pagamentos para reabastecer estoques e quitar dívidas, que é um pré-requisito para
que o dinheiro possa ser considerado “ganho”) define coletividades fundamentais. Ao longo
deste capítulo, trataremos de definir como se compõe essas coletividades e quem são as outras
pessoas sem as quais a vida buscada no comércio se torna incompreensível.
Continuamos a seguir o fio da história de Jaklin. Para ela, viver ganhando dinheiro em
Santo Domingo não era uma possibilidade. Suas incursões, guiadas por Deus, tinham um
objetivo bem definido: livrá-la de suas dívidas. Seu maior desejo era ficar “livre” [lib]. É difícil
superestimar o sentido que ela atribui a essa liberdade, que tampouco diz respeito somente a
ela, uma vez que a preocupação de não deixar um fardo sobre a cabeça de seus filhos era uma
grande e recorrente questão. A associação usual entre liberdade e movimento, e do cativeiro
como privação do movimento, aqui aparece invertida. A liberdade visada por ela é quase um
estado de repouso, depende de uma redução considerável do movimento compulsório. Implica
a possibilidade de sentar e ficar com os seus. Veremos o que significa dizer “os seus”, relações
nas quais ela está inserida para além do comércio, com forte destaque para filhos e filhas.
Nesse registro, a descrição será inevitavelmente pautada por questões de gênero, sobre o
que é ser mulher nesse universo, como essa posição constitui e é constituída pela (em oposição
complementar à) posição masculina. Já mencionamos algumas marcações de gênero no
universo do comércio – notadamente, que o circuito do pequeno comércio de provisões, no qual
atua Madame Dodo, é fortemente dominado pelas mulheres. Se como compradoras elas são
maioria, como vendedoras seu domínio é virtualmente total e exclusivo.157 No circuito dos pèpè

157
A exceção que presenciei foram ocasiões em que crianças do sexo masculino, por períodos curtos de tempo,
ajudavam suas mães ou alguma outra adulta quando esta precisava se ausentar. Mas mesmo entre essas
crianças que acompanhavam mulheres adultas, havia mais meninas que meninos, e nenhum dos meninos havia

223
em que vimos Jaklin, por outro lado, a predominância feminina é dúbia. Há muitos homens
comercializando pèpè, e mais importante, fazer esse tipo de comércio não lhes causa embaraço,
não afeta a dignidade, não é motivo de vergonha, como definitivamente seria no outro caso.
Não parece fortuito que os circuitos comerciais mais marcadamente dominados pelo gênero
masculino, como o de produtos eletrônicos e de animais de grande porte, tendam a ser mais
lucrativos e/ou ter transações de valores mais vultuosos, enquanto que, por outro lado, o mais
feminino dos circuitos é, ao mesmo tempo, um dos que tem as menores margens de lucros e o
que se encarrega daquilo que é mais básico e indispensável ao cotidiano. Comparativamente,
os circuitos dominados por homens lidam com mercadorias extraordinárias, mais aptas a
veicular opulência e requinte. Já os pèpè, que transitam bem entre o luxo e a necessidade,
formam um dos segmentos mais neutros em termos de gênero.
Até aí, não há novidade em relação ao que já dissemos. O ponto que queremos desenvolver
daqui em diante é outro. Antes descrevemos atividades que tem o objetivo de produzir renda, e
agora passamos à descrição de algumas formas típicas como essa renda é consumida.
“Consumo” é um conceito que, imagino, será familiar aos potenciais leitores desta tese, e nisso
reside sua utilidade, como atalho para anunciar sinteticamente o que está por vir. Contudo, ainda
que o conceito também exista em crioulo haitiano [sua tradução mais literal é konsomasyon],
ele é secundário, não é um termo de uso habitual quando minhas interlocutoras descrevem o
que fazem ou tentam fazer com o dinheiro do comércio. Investir nele seria uma forma de
traduzir este universo para nossa linguagem, mas a proposta anunciada desde a introdução é
exatamente o inverso disso, ou seja, queremos transfigurar a nossa própria linguagem para que
ela possa tornar-se tão fiel quanto possível aos termos que organizam este universo.
Nessa direção, o conceito chave não é consumo, mas sim provisão [provisyon]. O conceito
de provisão traz um sentido de manutenção, que tem na comida a sua síntese. Esse horizonte de
manutenção está tensionado com outro, de “avanço” [avans], cuja epítome é a educação da
geração mais nova. Fazer e gerir as provisões é uma função feminina por excelência. Essa
gestão das coisas, dos recursos materiais dentro de casa, tem muito em comum com a gestão de
estoques quando se está fazendo comércio, e é nessas similaridades que o gênero do comércio
no Haiti se torna mais evidente.
Abordaremos o que as modalidades de comércio já tratadas permitem prover, e mais
importante, a quem. A casa ganhará preeminência como unidade de análise fundamental para

chegado à adolescência, provável ponto etário a partir do qual sua presença executando essa função se tornaria
intoleravelmente constrangedora para eles mesmos (cf. Lowenthal 1987).

224
que se compreenda o conceito de provisão. Dedicaremos atenção à comida (incluindo a
interessante expressão “comer dinheiro” [manje lajan]), cuja distribuição desigual dentro de
cada coletivo revela diferenças na legitimidade de cada presença, onde existe uma posição
central e posições periféricas, até o ponto da pessoa a quem não se oferece nenhuma comida,
falta de acolhimento que pode revelar a indesejabilidade da visita. Veremos até que ponto algo
análogo acontece com outros bens, como roupas, telefones e motos. Através da descrição dos
regimes de compartilhamento, chegaremos ao “sistema haitiano” [sistèm ayisien] (que nada tem
a ver com a ferramenta analítica cunhada por pesquisadores estrangeiros que vimos na
introdução, o dito “sistema haitiano de mercados”).

O apego ao sangue
A trajetória de Jaklin como a recontamos até aqui culminou nas viagens para Santo
Domingo, quando sua conversão evangélica foi recompensada pela bênção de ter Deus como
guia. Convidada a estabelecer-se nessa rota, com um ponto próprio para vender em Santo
Domingo, ela recusou. Bastou-lhe fazer dinheiro suficiente para quitar suas dívidas no Haiti,
para que ela pudesse colher o fruto que mais desejava – a possibilidade de “sentar-se em casa”
[chita lakay], de estar junto ao seu “sangue” [san].
Essa é uma frase que ela repetia com frequência: “gosto muito do meu sangue” [talvez
para dar mais ênfase, também a repetia para mim em espanhol, me gusta mucho mi sangre]. O
contexto e o sentido dessa afirmação recorrente é que uma vida na estrada, percorrendo
distâncias longas, longe de seus filhos por semanas, vendo-os muito menos do que gostaria
antes de empreender a viagem seguinte, não era uma vida nada sedutora para ela. O dinheiro
não pagava. Embora ela gostasse de afirmar o quanto tinha trânsito livre na RD, por seu domínio
da língua, seu conhecimento do terreno e suas habilidades miméticas, eu imagino que as
dificuldades próprias a esse percurso, bem maiores do que as visitas a localidades próximas à
fronteira, também tenham sido um fator contribuindo a essa recusa. Ela vira vários conterrâneos
jogados em caminhões policiais como se fossem prisioneiros, enquanto esperavam a
deportação. Ela se orgulha de nunca ter subido nesse caminhão infame, e esse risco – contra o
qual, para qualquer haitiano não plenamente documentado na RD, é impossível ter 100% de
segurança, menos ainda indo tão longe quanto Santo Domingo – por menor que fosse, também
não devia lhe parecer nada atraente.
Ao invocar esse “sangue” que a aterrava e a enraizava, a referência mais importante, de
longe, são seus quatro filhos e suas três filhas. Seu pai e sua mãe viriam logo depois, caso ainda

225
estivessem vivos. O sangue é uma imagem metonímica para a substância compartilhada entre
parentes, tanto mais quanto mais direto for o parentesco. Esse entendimento do sangue toma a
gravidez como uma ligação direta, quem nasceu de qual útero é algo sempre comentado (filhos
cujo comportamento frente aos pais não é considerado suficientemente respeitoso são
frequentemente repreendidos com a lembrança de que “sua mãe te carregou nove meses no
ventre dela”), assim como, embora com menos força, as atribuições de paternidade. Assim, na
noção do compartilhamento do sangue, a referência ao parentesco biológico é evidente. Mas,
ao mesmo tempo, está claro também que a noção admite alguma elasticidade em função das
afinidades eletivas, é um parentesco seletivo.
Jaklin não considera da mesma forma todos os seus irmãos e irmãs. Seu preferido, sem
dúvida, era Dan, morto alguns meses antes de nos conhecermos. Na ocasião da morte de Dan,
o irmão mais velho, Maxim, teria dito que Dan encontrara o que há tempos estava buscando,
que teria feito por merecer sua morte. Essa declaração foi uma ofensa inaceitável para Jaklin,
que praticamente cortou contato com esse irmão. “Mesmo que um caminho me leve a passar
perto da casa dele, eu não passo lá nem para dizer oi.” “Se ele falar comigo, eu respondo só o
suficiente para que ele não diga que o ignorei, depois dou as costas e vou embora. Ele já
entendeu isso, também não me procura mais.” Seu desgosto pessoal por Maxim tornava
irrelevante o fato de que tenham nascido do mesmo pai e da mesma mãe, ela não queria nada
com ele. Na vida prática, as ex-esposas do falecido Dan eram muito mais consideradas como
família por Jaklin que seu irmão de sangue Maxim.
Suas duas irmãs, por outro lado, eram mais próximas. Gina (mãe de Tina) vive na mesma
vizinhança, elas se veem com alguma constância, os filhos e filhas de uma frequentam a casa
da outra. No passado, Gina teve questões de saúde mental, com episódios mais ou menos longos
de loucura, mas depois que seu marido faleceu, ela nunca mais voltou a ter esses problemas. Já
Darline mora mais longe, numa casa que está a menos de dez metros do rio Carrizal, cuja outra
margem já está na RD. Darline mora numa casa de alvenaria, que foi construída para ela por
seu companheiro, um homem dominicano, que vive em Higuey com a sua esposa, mas vem
sempre à casa de sua amante Darline (segundo Jaklin, a esposa desse homem acusa Darline de
tê-lo prendido a ela por meio de feitiços amorosos). Dos quatro filhos dela, a menina mais nova
é dele. Quando Jaklin vai atravessar a fronteira, a casa de sua irmã é uma base importante, por
vezes produtos que serão levados à RD ficam guardados lá por alguns dias até que chegue o
momento mais propício para atravessá-los. Muitas vezes sua irmã não está lá, pois ela tem o
hábito de viajar pela RD (duas de suas filhas são alunas da Universidad Autónoma de Santo

226
Domingo, e moram lá a maior parte do ano). Até onde eu entendi, ela tem passaporte e visto
válidos, eventualmente compra e revende produtos entre os dois países, mas sua principal fonte
de renda é esse companheiro dominicano, que me foi descrito (não cheguei a conhecê-lo) como
um homem relativamente rico. Os filhos e filhas de Gina, Darline e Dan também podem ser
entendidos como “seu sangue”, embora o compartilhamento neste caso seja evocado com muito
menos frequência do que seus próprios filhos.
O sangue é também uma noção que mistura saberes biomédicos (Jaklin fez curso de
enfermagem na adolescência, prescreve remédios naturais e alopáticos a vizinhos que a
procuram com essa finalidade, costuma sempre manter em casa estoques de remédios como
ibuprofeno e paracetamol, entre outros, a fim de vendê-los ou presenteá-los a vizinhos doentes,
e já foi contratada pelo hospital de Belladère como participante em campanhas de vacinação
pelo interior) com concepções de outras origens.158 A bem da verdade, a ideia de que estejam
conjugadas aí informações de fontes diversas é minha – do ponto de vista das pessoas, não
existem dois (ou mais) sistemas diferentes em contato, o sangue é um só, o mesmo sangue que
tem, por exemplo, uma dada taxa de açúcar, tem também ancestrais específicos dentro dele.159
O sangue é qualificado como “bom” [bon] e “mau” [movè], o que vale tanto para serem
humanos quanto para animais (cf. Farmer 1988). Por exemplo, de uma cabra que não gosta de
comer direito, é franzina e anda sempre doente, diz-se que ela tem “sangue ruim” [movè san].
Da mesma forma, existem alguns alimentos específicos, notadamente a carne de pombos, que
são recomendados para “dar força ao sangue” quando se considera que ele esteja fraco. Muitas
famílias mantêm pombos em cativeiro no quintal de casa com esse fim, para que sejam usados
como alimento, não no cotidiano, mas como remédio para mazelas específicas. Há todo em
repertório de expressões a respeito da circulação do sangue que dá nome a diversos desconfortos

158
Para um estudo que investe nas conexões interseccionais entre saberes biomédicos e curas que usam diferentes
métodos religiosos e/ou mágicos, ver Brodwin 1996.
159
Lowenthal (1987:219), ao descrever os princípios de um vodu rural (e caracterizando, em oposição, boa parte
da literatura sobre o tema como relacionada a transformações do vodu no meio urbano), afirma que os lwa
existem literalmente dentro do corpo, que andam no sangue, como algo intrínseco aos seres humanos. Todo
sangue humano possui essa propriedade, a diferença é que nós, que somos blan, falhamos em reconhecer e
cuidar dos nossos próprios lwa, agimos de forma ignorante frente aos ancestrais que trazemos conosco. Nesse
sistema, os lwa se transmitem exclusivamente pela descendência, e eles próprios enfatizam isso, corrigindo
atribuições errôneas de paternidade, ressentindo-se tanto de potenciais servidores perdidos (para a família de
um suposto pai, que carrega outros ancestrais no sangue) quanto da intrusão de estrangeiros que não são
herdeiros legítimos de sua herança [não pertencem à eritaj]. Na mesma linha que adotamos no capítulo
anterior, ao mesmo tempo em que protestantes renegam o serviço aos lwa como idolatria e adoração ao diabo
[djab], a concepção de que os ancestrais habitam o sangue conferindo à descendência um lugar tão importante,
tem fortes ressonâncias, que coexistem com o cristianismo (são encontradas, inclusive, confirmações bíblicas,
como a ênfase na necessidade de respeito e obediência de filhas/os para com seus pai/mãe).

227
corporais momentâneos e a condições crônicas (a exemplo do sangue ruim), como “um sangue
subiu e ficou preso na cabeça” (ou em qualquer outra parte do corpo, segundo o mal estar a ser
nomeado), “o sangue ficou quente”, “o sangue esfriou”, “o sangue fluiu” [san koule] essa última
por vezes usada para falar de uma circulação considerada excessiva, e como tal, nociva. 160 Em
suma, o sangue é uma substância que é preciso regular para que funcione corretamente, evitando
tanto que fique preso em determinado ponto como que circule rápido demais, garantindo que
ele nem esquente nem esfrie para além de limites desejados, e cujos estados diversos servem
ainda como expressões de ênfase para descrever sensações como medo, nervosismo, susto e
surpresa.
Existe, ainda, a mistura entre dois sangues através do sexo. Essa mistura de sangue via
sexo é objeto de diversas reflexões, como no caso de Caslin, filha mais velha de Jaklin, que era
censurada por ter misturado seu sangue com um sangue ruim. “Isso não se faz, é preciso
escolher bem, você não vai querer misturar seu sangue com esse tipo de gente!” O mesmo tema
aparecia em comentários sobre as relações sexuais entre um homem idoso e uma mulher jovem.
Para Jaklin, quando se mistura o sangue velho com o sangue novo, o velho rejuvenesce no
contato com o novo, e o novo envelhece no contato com o velho. Esses homens velhos
ganhavam energia, rejuvenesciam, era algo visível no rosto deles, enquanto suas parceiras em
pouco tempo pareciam muito mais velhas do que realmente eram. Por esse motivo, tais relações
eram desvantajosas para as jovens, independente do que os velhos pudessem oferecer a elas em
termos materiais, a juventude de seu sangue valia mais. Tais relações são encaradas, portanto,
como uma forma de vampirismo ou predação, onde a força vital de um sangue é capturada e
transferida para outro, um floresce na medida em que o outro definha (num contexto
completamente diferente, Singh 2018 descreve uma dinâmica similar).
Uma decorrência importante da valorização do sangue é que as relações entre mães/pais e
filhos/filhas são explicitamente mais valorizadas que as relações românticas. Um ditado diz:
mariaj se ven, timoun se venteyen [literalmente, “casamento é vinte, criança(s) é(são) vinte e
um”], o que significa que ainda que se dê um valor alto ao casamento, os filhos são mais
importantes. Ira Lowenthal, que usa o anterior como título de sua tese, registra outro provérbio
que comenta o mesmo ponto de forma ainda mais pungente (1987:313): quando, em um conflito

160
Dalmaso (2014) também aborda o sangue, ao lado da comida, como o suporte que permite compartilhar
substância física para produzir seres similares e relacionados. A autora registra ainda que o sangue é uma
substância que precisa ser gerida, podendo aumentar ou diminuir, e possui força variável.

228
aberto e declarado, uma pessoa toma partido de seu cônjuge contra suas relações consanguíneas,
diz-se que l ap vann san pou achte matye [“ele/a está vendendo sangue para comprar pus”].
Assim como ouvi comentários na mesma direção de outras pessoas da vizinhança, Jaklin
articulou variações dessa ideia muitas e muitas vezes. Por exemplo, em diversos enterros que
acompanhamos juntos na vizinhança, a cônjuge chorava dolorosamente por seu marido morto
ou vice-versa. Especialmente quando eram casais mais jovens, assim que nos afastávamos da
cerimônia, Jaklin ridicularizava aquele comportamento, dizendo que a pessoa fazia aquela cena
para daqui a três meses estar com outro(a) parceiro(a), tratando – de forma recorrente e
consistente – aquele tipo de dor como uma palhaçada, um fogo de palha. Nas primeiras vezes,
fiquei chocado com essa postura de ridicularização de uma dor que a mim me parecia
perfeitamente legítima. Quando tentei contra-argumentar, ela repetiu firmemente “não dou três
meses para ela ter esquecido e estar com outro, daqui a uns anos não lembrará nem o nome
dele”.
É fato que essas pessoas que ficaram viúvas ainda jovens quase sempre se casaram
novamente, o que para mim nunca foi prova de pouco amor pelo companheiro anterior já
falecido, mas para ela, mostrava a efemeridade desse sentimento. A desvalorização das coisas
efêmeras (que por vezes era argumentada com citações de passagens bíblicas) parecia ter para
ela, como implicação lógica, a desvalorização das relações românticas. O cerne dessa crítica
era que parceiros são substituíveis (uma comparação curiosa pode ser estabelecida aqui com as
reflexões de Simmel a respeito da ilusão romântica, que consistiria justamente na afirmação do
caráter insubstituível do/a parceiro/a), em acentuado contraste com a insubstituibilidade
absoluta e permanente de pai, mãe e filhos. Assim, quando um filho chorava a morte de seu pai,
a postura dela era completamente diferente, ela se compadecia dessa dor. Em uma dessas
oportunidades comentou “é uma pena que pai seja só um, se a gente tivesse muitos pais e se ele
pudesse arranjar um novo, o menino talvez não tivesse ficado tão triste”. No caso dos filhos,
não importa quantos sejam, para a mãe que os carregou no ventre e os pariu, todos são únicos
e insubstituíveis. Eles são o sangue dela assim como ela é o sangue de seus pais, e essa
continuidade é tomada como o elo mais forte possível entre seres humanos.
Ao comentar porque não era viável para ela continuar ausente de casa com tamanha
frequência e por tanto tempo, as saudades que talvez viesse a sentir de Evens nunca foram
sequer mencionadas. Seu marido era apenas um marido. O que lhe importava eram seus filhos,
a necessidade que eles tinham da presença dela.

229
Isso nos leva a um importante ponto cego em nossa narrativa. Enquanto ela viajava entre
Porto Príncipe e Santo Domingo, o que estava fazendo seu marido? Quem estava cuidando dos
seus filhos, que nunca lhe acompanharam nessas viagens a longa distância? A própria natureza
dos dados de que disponho gera uma distorção. Jaklin e eu mantivemos longas conversas quase
diariamente, chegamos a construir uma intimidade sem paralelo com qualquer outra pessoa que
eu tenha conhecido no Haiti. Por sua própria índole, Evens é mais calado que a sua esposa. Ela
fala muito espontaneamente, gosta de contar histórias tanto de sua própria vida quando de outras
pessoas que ela conheceu no caminho, aprecia discutir suas opiniões e visões. 161 Como
consequência, eu sei muito mais sobre a vida dela do que sobre o que se passava em sua
ausência.
De todo modo, tenho alguns elementos para recompor o ambiente no qual ela se ressentia
de não estar presente. Sei que a proximidade entre a casa dela e a de sua irmã Gina foi relevante,
embora nem sempre o cuidado viesse da tia para com seus sobrinhos, mas também na direção
oposta, particularmente durante os surtos em que ela se tornou, de forma temporária e episódica,
uma moun fou [“pessoa louca”]. Talvez tenha sido ainda mais relevante a convivência com a
família Ti Wilky e Esther, um casal da mesma faixa etária que Jaklin e Evens, donos da casa
espacialmente mais próxima da casa deles, que têm uma prole ainda mais numerosa, com um
total de onze filhos – as crianças de um e outro casal cresceram numa proximidade de quase
irmãos. Também é pertinente a diferença etária, quando Carlos (o quinto filho) nasceu, a filha
mais velha, Caslin, já devia ter dez ou onze anos, idade em que as crianças já executam tarefas
como cuidar das crianças mais novas, cozinhar e fazer faxina (meninos também o fazem, mas
essas responsabilidades recaem mais sobre as meninas). Essa diferença etária existia igualmente
na casa de Ti Wilky e Esther, na casa de Gina e em outras da vizinhança, com o efeito conjunto
de atenuar e redistribuir as obrigações domésticas que cabem aos/às donas/os das casas.
Portanto, enquanto Jaklin estava distante, sempre houve outras presenças para assumir as
funções femininas. Já os cuidados com as crianças são menos marcados em termos de gênero,
muitos homens não veem problema em assumir as funções relativas aos pequenos. Este homem
específico, Evens, gosta de crianças e elas também costumam gostar dele, mas ele trabalhava

161
E creio que ela também me apreciava como interlocutor para esse fim, tanto pela sua curiosidade sobre o Brasil
e os demais países “do outro lado do mar” que eu conhecera, quanto pelo fato de que eu era um observador
exótico olhando para o mundo dela. Ela sempre me perguntava das coisas que eu vira no mercado, o que tinha
anotado no meu caderno, checava se o que eu pensava ter entendido era ou não uma percepção válida na
opinião dela, me corrigia quando discordava e acrescentava novas informações que julgava importantes para
que eu entendesse algum contexto.

230
duro no cultivo de suas terras e nas de vizinhos, de forma que não sei qual era a disponibilidade
efetiva dele para cuidar de seus filhos na época, não sei quão (in)dependente ele era de ajuda
externa, o que ele conseguia fazer e o que não.
Mas, como anunciamos na introdução, nossa proposta não é uma história de vida por si, e
mais uma etnografia cuja estrutura narrativa está centrada em trajetórias de personagens como
um artifício para descrever tanto conjuntos de práticas quanto as concepções que lhes dão
sentido. Assim, ao ponto cego criado pelas ausências da principal interlocutora, me parece
legítimo oferecer outros dados como contraponto, pois se eu sei relativamente pouco do que foi
a rotina na casa de Jaklin enquanto ela se aventurava para vender pèpè em Santo Domingo, eu
pude acompanhar diretamente a rotina de casas das quais outras mães estavam ausentes, tanto
por viagens de comércio quanto por motivos diversos.
Dentro da própria casa de Jaklin, presenciei o desenrolar de duas dessas idas e vindas, que
deixaram sob os cuidados dos avós, Evens e Jaklin, dois de seus netos. A analogia com o
passado de Jaklin aqui é limitada, pois ambas as mulheres que partiram eram jovens solteiras
que ainda moravam nas casas de seus respectivos pais quando se tornaram mães. 162 Se
lembrarmos que, ainda sem sair da casa de Jaklin, havia mais duas crianças crescendo longe de
suas mães biológicas (Sonia, que fora “emprestada” pelo seu pai, viúvo, anos atrás, e Judni,
filha de uma das esposas de seu falecido irmão Dan, mas cujo pai era outro homem, e que ainda
bebê fora “dada” definitivamente a Jaklin, porque a mãe dela não tinha condições de criá-la –
cf. nota 43), podemos vislumbrar quão intensa é a circulação de crianças entre diferentes casas
e famílias, tanto em caráter temporário quanto em definitivo.163

162
A primeira foi Loudlin, mãe do pequeno Casneidi (filho de Castro, neto de Jaklin) que estava trabalhando na
RD quando eu cheguei, voltando ao Haiti e retomando a guarda do seu filho (que até então estava morando
com Castro na casa de Jaklin) cerca de um ano e meio depois, o que dava mais da metade da vida da criança.
A segunda foi Yvlin, filha de Jaklin que partiu para a RD enquanto eu estava lá, deixando com seus pais o seu
filho Kalu. Foi muito significativa a reação dos adultos à reação de Kalu, que ainda não completara três anos.
Ele chorou por várias horas seguidas nos três ou quatro primeiros dias, repetindo obsessivamente, aos prantos,
a frase “ela foi embora!” [li ale!]. Todos, principalmente Jaklin e DuCas, respondiam a ele, numa tentativa de
consolá-lo e, ao mesmo tempo, como uma forma de repreendê-lo, que ele não tinha motivo para ficar triste,
pois ele continuava tendo uma casa para morar, tinha comida todos os dias, tinha roupas, tinha pessoas com
ele, que ele parasse de chorar pois não havia problema nenhum.
163
Essa circulação foi mais notada por organizações que combatem o trabalho infantil, sendo em alguns casos
tida como um tipo de escravidão moderna, em especial no que diz respeito às crianças chamadas de restavèk
(termo que nomeia a criança que “restou com” outra família). Não entraremos neste tema espinhoso, mas
corroboramos integralmente os seguintes comentários de Braum, Dalmaso & Neiburg (2014:20): The
literature (and international cooperation policies) has highlighted the case of the so-called restavèk children,
denouncing the neglect and abuse to which they are subjected and classifying the contributiuon demanded of
them by adoptive families as a form of slave labor. Unfortunately, though in many cases the denunciations are
pertinent, they fail to apprehend the circulation of children within the wider dynamics of mobility that shape
Haitian family structures, just as they ignore the fact that rather than being an example of exploitation pure
and simple, taking care of a child can be a demonstration of solidarity, comprehension and compassion by

231
Outro caso bem perto foi quando Siana, filha de Gina (portanto, sobrinha de Jaklin), partiu
para a RD deixando a bebê Placinèt, que tinha apenas quatro semanas de vida, sob os cuidados
de sua mãe.164 A bebê ficou doente pouco depois, apareceram irrupções na pele que logo se
transformaram em feridas cobrindo quase todo o seu corpo, teve febre alta, ficou cerca de um
mês internada no hospital de Belladère, quando Gina se convenceu de que os médicos não
podiam fazer muito por ela, e decidiu trazê-la de volta pra casa, apesar dos protestos de Jaklin
em contrário. Jaklin se sentiu culpada porque Siana teve uma longa conversa com ela dias antes
de partir, quando ainda estava na dúvida. Uma amiga tinha arranjado um trabalho para ela em
Las Matas, fazendo faxina na casa de uma família, ela queria o emprego para juntar algum
dinheiro antes de voltar ao Haiti, mas temia que sua filha ainda fosse pequena demais para ficar
longe dela. Jaklin lhe aconselhou a ir buscar o que queria, que não deixasse a oportunidade
passar. Estava arrependida acreditando que dera um mal conselho, que ainda não era o momento
adequado, que se Siana tivesse ficado um pouco mais sua bebê teria uma chance, mas como as
coisas iam, não sobreviveria. Gina partilhava essa opinião, e disse que entre a bebê morrer no
hospital ou em casa, melhor que fosse em casa.165
Baseado nos casos que vi em primeira mão, parece que quando a mãe se ausenta, os
candidatos preferenciais a assumirem o bebê ou criança são, em ordem, primeiro o pai, depois
a avó materna, seguida pela avó paterna.166 Mas na prática, há muitas variáveis que podem levar
cada criança numa ou noutra direção, tais como as condições econômicas de cada família para
alimentar uma boca a mais, avaliações morais sobre o caráter de cada um dos candidatos
possíveis, principalmente no que diz respeito à forma como tratam as crianças, disponibilidade
não só financeira mas também de tempo e de presença da parte de quem recebe para criar,
facilidades ou dificuldades de localização próprias a cada vizinhança (como a proximidade de

the family and, above all, the woman, the head of the home receiving the child. The intense suffering of mothers
who are forced to give up their biological children to be cared for by other families is, sadly, a crucial subject,
but one little remarked on by the literature on women in Haiti.
164
Talvez seja digno de interesse: Siana, Loudlin e Yvlin partiram todas para a mesma região na RD, nos
arredores de Las Matas de Farfán, a cerca de 40 km da zona onde viviam no Haiti.
165
De fato aconteceu, a bebê faleceu pouco antes de completar três meses. Teve um enterro discreto com a
presença da família mais próxima (o único intruso fui eu), com um mini-caixão construído de véspera, sem
velório e sem as recepções que habitualmente acompanham os enterros de adultos, que são importantes
eventos sociais e custam muito dinheiro. A morte de uma bebê tão pequena tem outro estatuto, é como se ela
nunca tivesse chegado a se tornar uma pessoa. Siana estava trabalhando na ocasião, voltou ao Haiti cerca de
dois meses depois do enterro.
166
Os netos que nasceram de uma filha são considerados mais próximos do que aqueles que nasceram de um
filho. Isso se explica pela prioridade atribuída à relação mãe-filho frente à relação pai-filho. Se um neto é filho
de um filho homem (como Didi, filho de Castro), sua mãe pode decidir requisitá-lo e levá-lo embora, é uma
prerrogativa dela. Por outro lado, se é filho de uma filha (como Linea, filha de Caslin, e Kalu, filho de Yvlin),
seu pertencimento àquela família está assegurado, é bem mais difícil que o pai venha tirá-los deles.

232
escolas), entre tantas outras, que seria impossível listar de forma exaustiva. Os arranjos de
moradia envolvendo bebês, crianças e adolescentes são infinitamente variados, sujeitos às mais
diversas contingências práticas.
Isso nos auxilia a contextualizar o papel atribuído ao elo de sangue mãe-filho. Por mais
que ele seja entendido como a conexão mais visceral que pode existir entre duas pessoas, a
maternidade não é romantizada, no sentido de que ninguém nutre ilusões de que ser mãe seja
uma tarefa fácil, suave e doce. Todo mundo reconhece que a vida é dura e que as pessoas fazem
o que conseguem fazer, um realismo prático que não julga (ou, pelo menos, nem sempre) as
mulheres que seguem seus caminhos deixando filhos para trás, que se solidariza com as
dificuldades e os sofrimentos decorrentes da necessidade de deixar um filho sob os cuidados de
terceiros. Acompanhei diversos desses casos na vizinhança e nenhum deles foi conceitualizado
como abandono. Além disso, mesmo que uma mãe nunca tenha tomando conta do seu filho,
este ainda será continuamente lembrado de que, além de respeito, lhe deve gratidão pelo
indelével fato de que ela o carregou nove meses no ventre.
Dito isso, vejamos outro caso mais análogo à situação pela qual Jaklin passou quando teve
que ficar longe do seu sangue, o de sua amiga e parceira de viagens comerciais, Madame Jonas.
Devido ao conhecimento prático que tinha da região, circulando pelos mercados provinciais
dominicanos próximos à fronteira, fluente no idioma, e conhecendo os guardas, Jaklin foi
procurada por sua amiga Madame Jonas quando ela quis ir a Santo Domingo. Foi com o
passaporte de uma que a outra cruzou a fronteira, fazendo o que se chama de dekoulaj, que é
uma técnica artesanal de substituição da foto no documento. Ao chegar em Santo Domingo,
Madame Jonas abriu os braços e se deixou cair no concreto, e chorando disse algo como “Bom
Deus, agora estou nas Suas mãos, ai Senhor, já não tenho casa, perdi meus filhos”. Resoluta a
sair da condição em que vivia no Haiti (a frase típica usada para descrever essa condição é pase
mizè [“passar miséria”]) e mudar de vida, hoje Madame Jonas tem um marido dominicano, vive
com ele (“em uma casa boa”, acrescenta Jaklin), fez novas crianças. Ela enviou dinheiro muitas
vezes, e continua mandando de tempos em tempos até hoje, mas nunca mais pisou no Haiti.
Suas três filhas continuaram morando com o pai, seu ex-marido, Jonas. A casa ficou com ele e
três crianças pequenas, sem mulher adulta.167 Jonas sem dúvida se responsabilizou por criar

167
Como ele é pastor e se casou perante Deus, está proibido de entrar em outra união conjugal. Segundo Jaklin,
desde que sua esposa (ele não a considera ex, ainda são casados, não reconhece o divórcio como uma
possibilidade) foi embora, já há mais de dez anos, Jonas nunca mais teve qualquer contato sexual ou romântico
com outra mulher. Significativamente, o verbo “abandonar” [abandone], que notamos não costumar ser usado

233
suas filhas, mas algumas funções femininas que precisavam ser desempenhadas em sua casa –
principalmente fazer provisão e lavar roupas – foram assumidas de forma rotativa por uma
prima, uma sobrinha e uma amiga da família que mora na mesma rua.
Ele tem hábito de cozinhar, mas nos dias em que vem alguma das mulheres que se revezam
indo à sua casa, elas também cozinham para ele e suas filhas. Às vezes Tina deixa seus filhos
na casa dele enquanto está vendendo no mercado (além de eventualmente também usá-la como
um espaço de depósito, o que se deve à posição estratégica desta casa, como notamos acima) e
quando volta, no fim da tarde, faz comida para todo mundo: os três filhos dela, Jonas, as três
filhas dele, além dela mesma. Algumas vezes enquanto voltávamos juntos do mercado de
Belladère ela expressou alívio porque, naquele dia, seus filhos estavam com sua mãe e portanto
ela não teria que cozinhar quando chegasse em casa, poderia descansar ao fim da longa jornada,
seus filhos já estariam alimentados e ela teria um prato de comida para si sem ter que fazer mais
nada. A casa dela e de sua mãe compartilham o mesmo lakou, as crianças ficam sob os cuidados
de Gina sempre que ela está disponível.168
Jaklin é próxima de Jonas, embora não tanto quanto de sua ex-esposa, que, na juventude,
era sua melhor amiga. Ela ajudou-a a chegar a Santo Domingo sem saber que se tratava de um

para as crianças (inclusive porque, nesse caso, o envio periódico de remessas definitivamente não caracteriza
um abandono), foi usado para essa relação conjugal descontinuada.
168
O lakou é um tema clássico na literatura antropológica sobre o Haiti. Em linhas muito gerais, a definição de
lakou que centra esse debate é um local de moradia geralmente ocupado por membros de uma mesma família
extensa e seus agregados, composto por diversas casas que compartilham um mesmo terreno, assim como
compartilham os mesmos ancestrais e ritos religiosos correspondentes. Já em 1937, há descrições dessa
unidade espacial em Herskovits (1937). Nas importantes pesquisas realizadas no âmbito do projeto-piloto da
UNESCO no Vale do Marbial (Alfred Métraux et al. 1951, Rhoda Métraux 1951, Bastien 1985[1951]), a tese
dominante era de que “la cour” era um modo de organização em decadência, em vias de desaparecimento.
Paul Moral (1961) e Sidney Mintz (1960, 1971) voltaram ao tema sem uma tese teleológica como aquela
defendida por Métraux e Bastien, mas também enfatizando os processos históricos de constituição de uma
cultura habitacional particular, que é remetida, principalmente, à luta contra (ou fuga da) a escravidão e
construção de uma vida autônoma, enquanto campesinato reconstituído, fora do sistema das plantation. O
geógrafo haitiano George Anglade (1982) propõe uma reconstituição histórica cujas linhas gerais são similares
às colocadas por Mintz e Moral, onde o lakou seria uma forma específica de regionalização do espaço,
precedida pelos laços da servidão, constitutivos da organização espacial nos tempos da escravidão, para um
modo de “reagrupamento familiar” nascido com a liberdade, foco de resistência contra o sistema precedente,
sendo depois em larga medida dissolvido enquanto forma espacial, dissolvendo consigo a centralidade dos
laços de consanguinidade na organização do espaço, substituído pela crescente importância da ideia de
“vizinhança” na forma que o autor batiza como bourgs-jardins. Com diferentes ênfases, o apogeu da forma
lakou é localizado por estes autores no século XIX, o que tornaria os usos posteriores e contemporâneos da
palavra transformações de sua forma original. Mais recentemente, Rodrigo Bullamah (2013) também investiu
nesse conceito, conjugando uma síntese histórica com dados etnográficos para se contrapor à antiga tese da
morte do lakou, afirmando continuidades históricas que persistem ainda hoje. Em minha própria experiência
de campo, o conceito de lakou era evocado com alguma frequência com referência ao terreno mais amplo em
que se localizam as casas, enquanto a referência aos ancestrais e aos mortos era tênue, quase inexistente, o que
pode ser um efeito da conversão evangélica. “Terreno” ou “quintal” são traduções aproximativas, imperfeitas,
porém aceitáveis para dar conta desse uso contemporâneo do conceito.

234
plano de fuga permanente, e lamenta a radicalidade da ruptura, mas não a culpa por nada (nem
sente culpa ela mesma por sua participação na história, e considera que Jonas também não
guarda ressentimentos com relação a ela). Reitera sempre que podia ter feito o mesmo se
quisesse, mas é apegada ao seu sangue, não conseguiria viver longe dos seus filhos.
O sangue é, portanto, tido como uma substância cujo compartilhamento máximo se dá via
gravidez. O sangue de qualquer pessoa é uma mistura do sangue de seu pai biológico com o
sangue de sua mãe biológica (lá onde as relações de adoção total ou parcial são tão comuns,
variadas e complexas, essa qualificação biologizante é significativa). Essa mistura é meio a
meio, metade de cada lado. A afirmação dessa bilateralidade é enfática, ponto que Ira
Lowenthal (1987) desenvolve bem.
Pelo mesmo princípio, na afirmação de compartilhamento de um mesmo sangue, os netos
e avós vêm logo depois dos filhos. O sangue dos netos é uma mistura dos sangues dos quatro
avós. Outras relações de compartilhamento de sangue raramente eram evocadas. Se eu lhe
perguntava se tios e irmãos também têm o mesmo sangue, Jaklin respondia que sim, mas isso
não vinha à tona sem que a pergunta fosse feita explicitamente. A única exceção de que me
lembro foi quando ela me contou, em segredo, que estava pagando escola para quatro filhos de
seu irmão falecido. Me alertando sobre a importância de manter o segredo, disse que, antes de
mim, só a mãe deles sabia que ela fazia esses pagamentos, desde o ano seguinte à morte de Dan.
Não queria que ninguém em sua casa se inteirasse disso porque aquele era um gasto
considerável, ela não queria que a questionassem a esse respeito, que demandassem outro
destino para aquele dinheiro, nem queria dar margem para que sentissem ciúmes. Claro que
seus filhos vinham em primeiro lugar, mas todos eles já estavam com suas anuidades escolares
pagas (com exceção de Judni, que embora Jaklin afirmasse tratar igual a seus filhos, não tinha
o mesmo sangue, e pelo menos até seus sete anos completos ainda não havia sido mandada à
escola). Como se estivesse fazendo algo culpável e quisesse justificar o desvio de recursos de
sua casa para seus sobrinhos, ela argumentou “afinal, eles também são meu sangue, não são?”

Depois das dívidas


Ao resolver em definitivo suas dívidas mais graves, Jaklin abdicou das viagens mais
longas espacial e temporalmente, mas não de fazer comércio. A grande conquista dela foi a
possibilidade de controlar seu próprio tempo, este é o cerne da liberdade adquirida. No período
seguinte de sua vida, quando calha de ter algum dinheiro em mãos, ela muitas vezes viaja
primeiro até Porto Príncipe para comprar pèpè, depois para mercados na RD próximos à

235
fronteira, geralmente em Las Matas de Farfán. Embora o mercado de Elias Piña seja o mais
próximo da linha fronteiriça, a apenas uns 3 km de Carrizal, ele tem sérias desvantagens frente
ao mercado de Las Matas (cerca de 22 km mais distante).
O funcionamento do mercado de Elias Piña é atípico frente a outros mercados
dominicanos, o que se deve, pelo menos parcialmente, ao fato de que ele foi privatizado pela
prefeitura.169 Os gestores privados agem de forma a extrair o máximo possível, cobrando taxas
absurdas. Várias de minhas interlocutoras afirmaram que quando o comércio fica mais quente,
como durante o mês de dezembro ou na véspera de festas importantes, paga-se 1.000 RD$ para
se montar uma banca, e 2.000 RD$ se ela ocupar um espaço maior. Nos momentos em que o
comércio esfria, essas taxas diminuem, chegando até a metade disso (500 RD$ diários por uma
banca menor, 1.000 RD$ por uma maior) mas continuam altíssimas frente a qualquer outro
mercado haitiano ou dominicano que eu tenha conhecido.
Essas taxas valem apenas para vendedoras haitianas. Vendedores dominicanos (ao
contrário das haitianas, em sua maioria são homens) pagam cerca de um décimo disso, e mesmo
essa taxa já é cara para padrões dominicanos. Seria impossível cobrar-lhes o mesmo valor que
cobram das haitianas sem gerar sérios problemas políticos, potencialmente enfrentando
resistência armada (Petrozziello & Wooding 2011 documentam casos de vendedores que
puxaram suas facas para cobradores que tentaram cobrar mais). Quando a vendedora não tem
o dinheiro para pagar, suas mercadorias são confiscadas de uma forma arbitrária e imprevisível.
Nunca se sabe ao certo o que eles vão pegar, pegam em valor mais alto do que o da taxa devida,
apenas decidem na hora o que pegar e jogam as coisas em um saco. Como não emitem nenhum
tipo de recibo, se a vendedora consegue o dinheiro e paga a taxa depois, tendo, em teoria, direito
a recuperar suas mercadorias confiscadas, as coisas que devolvem nunca são as mesmas que
antes levaram, o que devolvem é sempre em menor quantidade ou de pior qualidade. Os
cobradores são verbalmente muito agressivos, em alguns casos chegando à violência física. Os
abusos ocorridos no mercado de Elias Piña já foram amplamente documentados (ver, por
exemplo, Murray 2010, Dilla Afonso 2010 e Petrozziello & Wooding 2011).

169
Os atores privados responsáveis pela gestão do mercado compram esse direito por períodos que não se sabe
ao certo se são de 6 meses ou de um ano, em leilões supostamente públicos, mas cercados de mistérios, cuja
lógica de funcionamento os próprios moradores de Elias Piña, em sua grande maioria, não entendem (Murray
2010). Os valores em jogo são estimados em 200.000 pesos dominicanos ao mês por Murray (idem) e em
cerca de um milhão de pesos ao ano por Dilla Afonso (2010). Ambos os autores calculam que esse leilão da
gestão do mercado, sozinho, representa mais de um terço do orçamento total do município. São valores
exorbitantes, absolutamente inacessíveis para os cidadãos comuns dessa província, que é tida como a mais
pobre de toda a RD (Dilla Afonso 2010).

236
Minhas interlocutoras são unânimes nas afirmações de ressentimento contra este mercado,
que consideram ser administrado por ladrões. A maioria das machann da vizinhança se recusa
a vender lá hoje em dia (são comuns afirmações do tipo “já fui roubada lá muitas vezes”), mas
ainda frequentam o mercado para comprar, para abastecer suas próprias casas. As que ainda
vendem preferem não montar bancas, ou tentam vender nas ruas ao redor do mercado e na praça
próxima, circulando a pé com suas mercadorias dissimuladas em sacolas (o que também tem
riscos, no espaço do mercado mesmo as ambulantes são cobradas, geralmente entre 100 e 200
RD$ por dia de mercado, fora do mercado correm o risco de terem suas mercadorias confiscadas
–elas diriam “roubadas”), ou vendem exclusivamente a domicílio para clientes previamente
conhecidos, arranjo obviamente vantajoso mas que só funciona para aquelas que conseguem
manter uma rede ativa de contatos com clientes.
Por outro lado, em Las Matas as taxas cobradas são as habituais em outros mercados
provincianos – 10 RD$ por uma banca pequena, 20 RD$ por uma grande. Como se vê, a
diferença é brutal. Mas é fácil chegar a Elias Piña, nos dias de mercado se atravessa o posto de
Carrizal sem obrigatoriedade de portar documentos, dá para ir a pé até o centro, é também um
lugar de passeio, muita gente se aventura sem falar mais do que algumas frases rudimentares,
enquanto é bem menos fácil chegar até Las Matas trazendo mercadorias consigo: não basta ter
dinheiro vivo para pagar múltiplas propinas pelo caminho, a exigência de domínio linguístico
é bem mais alta, não só para negociar as mercadorias e conseguir o espaço onde vendê-las, mas
também para desenrolar situações hostis que são frequentes. É preciso saber onde parar, ter um
lugar para deixar suas coisas, conhecer o caminho e pessoas que morem lá, enfim, tudo que já
descrevemos nos capítulos anteriores (assim como já sabemos que chegar a la capital é
exponencialmente mais difícil do que chegar a Las Matas).
Desde sua casa até Las Matas, Jaklin consegue facilmente ir e voltar no mesmo dia, caso
queira. Quando, ao contrário, deseja se demorar mais, ela tem um quarto alugado em uma casa
de uma família dominicana, que construiu três quartos para alugar em uma estrutura à parte da
casa principal, nos fundos do quintal. O pagamento do aluguel é anual, ela já o aluga há alguns
anos, tanto como dormitório para ela e outras pessoas conhecidas dela de passagem por lá
quanto para estocar mercadorias. Esse local que oferece um abrigo possível pelo ano inteiro é
importante na determinação do ritmo. Já deve estar claro que diferentes modos de inserção no
comércio têm diferentes ritmos. No ti komès do tipo praticado por Madame Dodo, um
comentário recorrente por parte das machann é que são obrigadas a seguir um ritmo frenético,
sem descanso, que não depende delas. Engajadas numa dinâmica de empréstimos e dívidas,

237
fracionando unidades maiores que de saída já não eram delas, precisam ir todos os dias ao
mercado, faça sol ou faça chuva, mwen oblije [“não tenho escolha”], “não posso deixar de ir
porque o que eu estou vendendo não é meu, o dinheiro não é meu”. Talvez uma das principais
manifestações da diferença de nível econômico entre as machann esteja na capacidade de
controlar o próprio tempo, enquanto as mais privilegiadas possuem maior margem de manobra,
aquelas em situação mais frágil entram numa dinâmica sobre a qual não possuem controle
algum, a margem temporal é nula, só se ausentam em caso de acidentes ou doenças
incapacitantes.
O que Jaklin faz hoje em dia é completamente diferente. Diferente da constância de um
salário mensal, na vida dela os fluxos monetários são altamente irregulares. Quando ela recebeu
um pagamento do hospital pelo seu trabalho em campanhas de vacinação meses antes, quando
algum animal maior foi vendido por algum membro de sua casa, quando sai a colheita do
amendoim nas terras de Evens ou de seus filhos, quando alguma quantia de dinheiro que estava
pendurada com algum parceiro comercial na RD foi finalmente paga, quando recebeu de volta
um dinheiro que ela havia emprestado (ela eventualmente empresta a amigas, não qualquer
amiga – mas apenas àquelas em quem ela confia num sentido de responsabilidade monetária, e
não cobra juros), quando chega uma remessa do exterior (hoje, a principal fonte dessas remessas
sou eu, mas outras pessoas também já lhe mandaram dinheiro, tanto como presente quanto como
pagamento de dívida) – há ocasiões em que algum dinheiro se torna disponível. É apenas
quando um desses dinheiros chega até ela que ela vai a Porto Príncipe, compra principalmente
bolsas e mochilas pèpè, muitas vezes também cremes e perfumes, de vez em quando outros
tipos de pèpè como toalhas de mesa e roupas. Ela leva a maioria de suas compras para revender
em Las Matas, mas uma parte presenteia a seus filhos, principalmente roupas, cujos estoques
passam por renovação constante. Por vezes ela vende pessoalmente, montando uma banca no
mercado que acontece no centro da cidade, o que dá mais dinheiro, mas costuma lhe tomar
vários dias, outras vezes ela prefere repassar tudo de uma vez a outra pessoa, o que paga menos
mas lhe permite retornar imediatamente. Ela se mantém em contato com no mínimo duas
mulheres e um homem dominicanos habituados a comprar na mão dela para revender no
mercado de Las Matas. O principal é que ela não toma mais empréstimos, as coisas que leva
para vender em Las Matas são dela, não emprestadas. Ela pode passar semanas ou mesmo meses
inteiros sem comprar nada para revender, pode se dar ao luxo de esperar o próximo dinheiro
que chegará às suas mãos.

238
As misturas do sangue
A força que puxava Jaklin de volta, e que tornava tão penosa a vida na estrada ou na
distante cidade de Santo Domingo, é identificada por ela como o seu sangue [san mwen / mi
sangre]. A vida que ela buscava fazendo comércio, da mesma forma, não era apenas a sua
própria vida, mas sim a vida do seu sangue. É pelo seu sangue que ela trabalha, assim como foi
pelo seu sangue que ela desacelerou a corrida ininterrupta na qual estava metida, buscando fazer
dinheiro não para expandir o seu comércio, mas pelo contrário, para livrar-se dele, em primeiro
lugar não deixando dívidas para trás, e em segundo, desmobilizando o capital restante para
comprar terras, operação que é uma forma de preparação para o evento de sua própria morte, e
tem o objetivo de legar patrimônio aos filhos. Em 2015, quando nos conhecemos, ela
provavelmente ainda não havia completado 50 anos de idade, e Evens, cinco anos mais velho,
devia ter 50 e poucos. Não obstante, ambos se já consideravam inequivocamente nas fases finais
de suas vidas, e já começavam a tomar algumas providências esperando suas próprias mortes.
Mas não nos adiantemos. Como vimos há pouco, o sangue de toda pessoa é uma mistura
dos sangues materno e paterno, em uma bilateralidade meio a meio.170 O sexo mistura o sangue.
Essa mistura tem lugar principalmente nos filhos, mas não só, como mostram as relações de
vampirismo onde um cônjuge velho suga para si, através do coito, a força vital do sangue mais
jovem. Nas relações com grande diferença de idade, essa transferência de vitalidade é sempre
acompanhada pela transferência de recursos econômicos no sentido contrário, tipicamente de
um homem velho para uma mulher jovem. Na mistura de sangue através dos filhos, também
sempre se mistura, na maioria dos casos, a propriedade. A herança é transmitida numa divisão
explícita e enfaticamente meio a meio – o que um casal constrói em vida pertence metade a
cada cônjuge, e havendo filhos de diferentes parceiros, cada filho herda da mãe a fração
correspondente ao número de irmãos maternos, e da mesma forma com os irmãos paternos
(Lowenthal 1987). A conjugalidade é a principal forma pela qual se estabiliza a correlação entre
os caminhos seguidos pelos fluxos de recursos econômicos e de fluidos vitais.
Por todos esses motivos, há que se escolher bem com quem você quer misturar o seu
sangue. Remy Bastien (1962) descreve bem este ponto – nas escolhas matrimoniais, o poder de
decisão cabe não só a quem está prestes a se casar, mas também, em boa medida, à geração

170
Um sangue pode ser mais forte que o outro e portanto se expressar de forma mais proeminente na geração
seguinte, mas a diferença pode favorecer qualquer dos lados, é uma qualidade totalmente independente de que
sua origem seja paterna ou materna, e um sangue forte tenderá a se manifestar de forma predominante tanto
nos descendentes do gênero masculino quanto feminino (Lowenthal 1987:cap.5 desenvolve todos estes pontos
em maior profundidade).

239
anterior. Já vimos como no pedido de casamento feito por Evens para Jaklin a aceitação
dependeu mais de seu pai do que dela mesma, assim como a força do pedido residia menos nas
qualidades do pretendente, e mais nas pessoas mais velhas [granmoun] que transmitiram o
pedido, que vieram atrás dele. Idealmente, Jaklin e Evens prefeririam também escolher seus
genros e suas noras. A sanção deles é fundamental para que casamentos envolvendo seus filhos
ou filhas sejam celebrados (o que não é nada particular a eles, mas à geração mais velha de
forma geral), mas seu poder de controle sobre as trocas sexuais mais fortuitas dos jovens é,
evidentemente, muito mais limitado.
Dessa forma, sua filha mais velha Caslin engravidou acidentalmente enquanto ainda vivia
na mesma casa que eles, sem ter se casado. Tivera apenas encontros fortuitos com Djèg, o pai
da criança, que na época era tido por Jaklin e Evens como um irresponsável inútil. Mas o mais
relevante é que não tinham apreço pela família deste rapaz. As condenações morais contra Djèg
eram, na verdade, quase todas contra a família dele, e não individuais. “Ele veio de uma raça
ruim” [li soti nan movè ras], as pessoas da família dele “não sabem viver” [yo pa kon viv],
afirmação que Jaklin justificava contando de brigas dentro desta família; um tio desse rapaz
teria arrancado metade do braço de seu primo com um golpe de facão, outro tio estava preso há
anos e ninguém da família ia visitá-lo. Ele podia até ser bandido, mas não tinha família? A falta
de visitas parecia indigná-la mais que os crimes que motivaram sua prisão, que ela nem sabia
ao certo quais foram, e nem se interessava em saber, só se deu ao trabalho de informar-se sobre
as relações que ele (não) mantinha com os seus desde a prisão. Seu veredito é que era uma
família desunida, e daí decorre, simultaneamente como causa e como consequência, que é feita
de gente ruim. Misturar seu sangue com esse tipo de gente era mau negócio, foi uma ideia
infeliz de Caslin ficar com este rapaz. A maior reprimenda pessoal contra Djèg é que ele não
assumira a barriga que fizera em Caslin, mas mesmo esse ponto era ambíguo. Enquanto eu
estava lá, Jaklin afirmava que Caslin estava muito melhor com ela do que estaria com aquele
imprestável, afirmava preferir mil vezes que fosse assim, que Djèg e as pessoas dele se
mantivessem distantes.
Na época em que Caslin engravidou, as coisas foram diferentes. Como sua filha morava
sob o mesmo teto, eles eram os responsáveis pela sexualidade dela. Ficaram extremamente
aborrecidos com aquela gravidez. Considerando que a filha tinha fugido ao seu controle, Evens
disse que ela se virasse, pois ele já não era mais responsável por ela. Caslin tentou se livrar da

240
ameaça abortando a criança.171 Tomou Cytotec, providenciado por Jaklin. Passou muito mal,
sangrou muito, vomitou, chegou a ser hospitalizada, mas não perdeu a criança. Continuou
grávida, continuou o problema. O bebê traria custos que ele, Evens, não assumiria, não só
porque lhe faltava dinheiro, mas porque era um fruto da desobediência de Caslin contra ordens
explícitas de se manter longe daquele rapaz. O caso foi longamente debatido entre ele e Jaklin,
até que ele decidiu que a expulsaria de casa.
Conversando com as suas comadres no mercado, uma amiga pediu a Jaklin que não
deixasse seu marido expulsar Caslin. O pai da criança não tomaria conta dela (a essa altura, ele
inclusive já tinha saído do país, estava trabalhando na RD), então qual destino aguardava sua
filha sozinha no mundo com aquela barriga já visível crescendo a cada dia? Aquilo seria jogá-
la na miséria. A amiga listou coisas ruins que poderiam acontecer neste caso. Uma lembrança
marcante dessa conversa, para Jaklin, foi a perturbadora visão de sua própria filha se
humilhando para pedir esmola pelos mercados. Concordando com a amiga, decidiu que não
permitiria que Evens tomasse aquela decisão.
Chegando em casa, disse a seu marido que não, Caslin continuaria morando com eles, e
eles tomariam conta dela durante a gravidez e após o parto. Assumiriam a responsabilidade pelo
bebê, que viveria na casa deles, junto com ela, por quanto tempo ela precisasse. Evens disse
que não, de jeito nenhum, bateu o pé. Aquilo era inaceitável. Ele afirmou que fora ele mesmo
quem fizera a casa, que ele era o dono, que a decisão final cabia a ele, não a Jaklin.
Por conta de suas atividades comerciais vendendo pèpè na RD, mesmo que a essa altura
já tivessem um ritmo mais irregular, Jaklin continuava acessando quantias de dinheiro muito
maiores do que Evens. Isso poderia fragilizar seu argumento da autoridade, sobre ter sido ele
quem fez a casa. Decidida a ganhar a discussão, Jaklin mobilizou suas redes de crédito para
comprar materiais de construção. Comprou muitos tijolos (que foram transportados pelos

171
Acompanhei um aborto na vizinhança em 2015, feito por uma mulher chamada Manman, com a ajuda de
Jaklin, que lhe arranjou o Cytotec. Manman já estava com três meses de gravidez, e contou que o feto saíra de
braços cruzados sobre o peito, com o nariz e a boca já formados. Esse detalhe deixou Jaklin mal, sentindo
culpa por ter ajudado no que ela definiu como um pecado. Parte do argumento contra o aborto era o fato de
que não se sabia quem era aquela criança, que Deus a tinha mandado por uma razão, e podia ser justo ela que
conseguiria migrar para fora, que tiraria sua família da miséria. Na vizinhança, o caráter pecaminoso do aborto
parece consensualmente aceito, ao mesmo tempo em que a prática é bastante comum, e que todos reconhecem
que nem sempre é possível ter (mais) uma criança em casa. Vale notar que outros métodos contraceptivos,
como a planin (um implante contraceptivo subcutâneo), a pílula e mesmo a camisinha, são considerados
igualmente pecaminosos e condenáveis (o trecho da bíblia sempre citado para justificar essa condenação é
“Crescei e multiplicai-vos”), ao mesmo tempo em que todo mundo reconhece sua utilidade prática,
principalmente as mulheres. Muitas recorrem a métodos contraceptivos em segredo, sem o conhecimento de
seus respectivos maridos, em especial no caso das planin.

241
membros da casa, com destacada participação de seus filhos adolescentes, engajamento que em
si já era uma declaração de apoio à posição tomada por ela), e mandou erguer paredes cobrindo
por fora o contorno das antigas paredes de madeira. Em questão de dias, mandou erigir uma
casca de tijolos ao redor da casa, encapsulando a antiga estrutura de madeira dentro da nova,
feita em alvenaria.
A obra na estrutura da casa era, acima de tudo, uma declaração de poder, um desafio a
Evens. Era uma resposta ao seu argumento de que era ele quem mandava ali porque ele fizera
a casa. Longe de ser um improviso original e idiossincrático da parte de Evens frente a uma
situação difícil, aquele era, pelo contrário, um argumento masculino clássico. Certamente, é um
argumento recorrente em disputas de poder entre cônjuges. 172 A resposta de Jaklin não lhe
deixou nenhuma opção. A vitória dela não aconteceu no campo de argumentação verbal, mas
deveu-se à sua capacidade superior de mobilizar recursos econômicos. Ela estabelecera,
materialmente, que quem mandava ali era ela.
Evens ficou encurralado. Quis discutir com ela quando ela trouxe os primeiros tijolos,
perguntando o que era aquilo, dizendo que ele não ia aceitar. Mas os tijolos continuaram
chegando, seus próprios filhos estavam ajudando a trazê-los. Ele logo viu que não lhe restava
alternativa. No terceiro dia, reconheceu sua derrota. Parou de reclamar e começou a ajudar na
obra. Nunca mais levantou a possibilidade de expulsar sua filha grávida de casa. Sua neta
nasceu e viveu nesta mesma casa pelos próximos cinco anos.
Outros dois netos vieram pouco depois, um filho de sua filha Yvlin, o outro, filho de seu
filho Castro, ambos igualmente solteiros que engravidaram por acidente, não tinham intenção
nenhuma de fazer filhos. No caso de Castro, um(a) filho(a) de um filho homem de alguma forma
parece pesar um pouco menos que um(a) filho(a) de uma filha mulher. Ele reconheceu a
paternidade, é impossível à grávida não reconhecer a maternidade, então a responsabilidade
pelo bebê que viria estava, a priori, dividida por dois (sabemos que os arranjos práticos

172
Em se tratando de conflitos íntimos, é impossível ter uma massa de dados quantitativos referentes a outros
casos, em outras casas. Intimidade, por definição, é algo que se tem com poucas pessoas. Mas a menção a uma
ocasião pública talvez baste para justificar essa afirmação. Como parte de uma campanha movida por ONGs
europeias, houve um momento que várias faixas foram penduradas no centro de Belladère com afirmações
sobre a igualdade de gênero e os direitos das mulheres. Em uma conversa animada entre vários homens (não
havia mulheres presentes na ocasião), eles comentavam com escárnio aquelas faixas, desprezadas como ideias
de blan [“gringos/gringas”] que desconheceriam como as coisas são feitas no Haiti. Diziam frases do tipo
“então quer dizer que você vai lá, constrói uma casa para a mulher morar, ela mora/vive às suas custas, e
depois ela tem os mesmos direitos que você?” “Porque somos nós que construímos as casas pra elas então?”
A maioria das objeções contra aquelas reivindicações de igualdade tinha em seu centro, justamente, a
construção (física) das casas, seguidas, em segundo lugar, por afirmações bíblicas que garantiriam aos homens
um papel mais importante que às mulheres.

242
posteriores, cujo leque de possibilidades inclui “empréstimos” e “doações” de crianças, podem
alterar radicalmente este ponto de partida a priori, mas aqui isso ainda não vem ao caso). Do
outro lado, os respectivos pais dos bebês tanto de Caslin quanto de Yvlin se esquivaram de suas
obrigações e desapareceram antes que eles tivessem nascido. O sumiço do pai do bebê de Yvlin
revoltou Jaklin e Evens a tal ponto que pensaram em contratar um bòkò para matá-lo, mas como
o rapaz não voltou mais à vizinhança, desistiram da ideia. Além do que, ele vem de uma família
de quem eles gostam, não tinham desejo de penalizá-los coletivamente pela irresponsabilidade
individual de um jovem.

25 Casa de Jacqueline.
Foto: Juliane Peixoto

Já no caso de Castro, que estruturalmente poderia a princípio parecer menos grave, havia
um agravante: a moça que ele engravidara, Loudline, vem da mesma família (a mesma “raça
ruim” [movè ras]) que Djèg, é prima dele. Mesmo depois de todas as pesadas censuras feitas a
Caslin, seu sangue ainda voltou a se misturar com aquele mesmo sangue que ela desprezava.
De todo modo, o bebê era seu sangue, e a necessidade de tomar parte em sua criação, de que se
ocupassem dele [okipe li], nunca foi posta em questão. Contudo, tal como Djèg não era bem-
vindo, Loudline também teve problemas para ser aceita. Por complicações decorrentes tanto da
situação desconfortável entre ela e Castro, que nunca haviam chegado a se estabelecer como

243
um casal publicamente reconhecido (o fato de que ele reconhecesse a paternidade do bebê o
obrigava a prover recursos necessários para sua criação, inclusive financeiros, mas não o
obrigava de forma alguma a assumir uma relação estável com a mãe), quanto pela clara falta de
estima da parte da família de Castro por ela e por sua família, Loudline acabou decidindo ir
para a RD, deixando o bebê, Didi, sob os cuidados de Castro. Como este ainda morava com
seus pais, Didi se tornou mais um morador da casa, assim como os outros dois netos.

26 Casa de madeira na vizinhança. Próximo ao texto lê-se a inscrição “Ezayi [Isaías] 54”.
Foto: Felipe Evangelista

244
Loudline estava em Las Matas quando soube que Castro estava construindo uma casa para
si, bem próxima à casa de Jaklin e Evens (na mesma vizinhança em que também habita a família
de Loudline e de Djèg). Então ela enviou Nason, um amigo em comum de ambos, para “dar
palavra” [bay pawòl] a Castro, ocasião em que eu estava presente. Esse é um modo de
comunicação particular: Nason, que morava perto e frequentava a casa cotidianamente, dessa
vez esperou ser recebido e anunciou formalmente que viera para dar palavra em nome de
Lodline, parecendo um mensageiro em missão diplomática. Nason veio para informar Castro
que Loudline estava disposta a voltar ao Haiti e habitar essa nova casa junto com Castro e Didi,
tentando convencer Castro a aceitar essa união com a mãe de seu filho (que ele não via há mais
de um ano). Tanto Jaklin quanto Evens, quando souberam da proposta, foram completamente
contra. Chegaram a dizer que se Castro fizesse isso, deixaria de ser filho deles, pois não queriam
se misturar com aquela movè ras. Jaklin logo me contou, em segredo, que era só ameaça, ela –
supostamente ao contrário de Evens– nunca esteve disposta a deserdá-lo de verdade, pois ela é
mãe, afirmando com isso que seu vínculo é mais forte e difícil de quebrar. De todo modo, ambos
estavam seguros de que Castro não faria isso. Na ocasião, Jaklin me disse que ter gente como a
família de Loudline dentro do lakou seria algo capaz de desvirtuar a herança [etiraj], uma erva
ruim capaz de estragar – após a morte deles – a bela árvore que plantaram em vida (essas
metáforas vegetais vieram de Jaklin).173
Contra o desejo de Jaklin e Evens (que foram explícitos e enfáticos em afirmar sua
preferência de que seu filho entrasse em união com outra jovem, uma mulher com quem Castro
também mantivera relações sexuais esporádicas, e que vinha da família de Ti Wilky, de quem
são amigos), Castro aceitou a volta de Loudline para coabitar sua nova casa. A integração dela
com a família de Jaklin foi lenta e gradual, com algum esforço ela logrou ser superficialmente
aceita por seus sogros, o que significa que era bem tratada e frequentava a casa deles sem
problemas, mas pelas costas dela, Jaklin continuava maldizendo sua família e lamentando
aquela união. A presença de Loudline acabou também viabilizando a aproximação de Djèg, que
se tornou cada vez mais presente, inclusive financeiramente, e se tornou publicamente o
namorado de Caslin. Contudo, até hoje Caslin e sua filha Linea continuam morando na casa de
Jaklin e Evens, nunca coabitaram com Djèg. Não sei ao certo se o motivo é que ele não teve a

173
Aqui traduzimos o termo eritaj como “herança”, pois a referência principal no contexto era o conjunto de bens
(principalmente terras) que os filhos herdarão após a morte de seus pais. Contudo, eritaj é um conceito
complexo, que abrange também a noção de sangue e os ancestrais compartilhados, entre outros elementos.
Este conceito é melhor explorado por Lowenthal (1987) e Dalmaso (2014, 2018, 2019).

245
capacidade financeira ou a decência de fazer uma casa para ela, ou se é Caslin quem não
aceitaria entrar numa união com ele. Jaklin aprecia a presença de Djèg ainda menos do que a
Loudline, e embora não se dedique a infernizar o casal pressionando por uma separação, seu
desgosto com a presença dele em sua casa é perceptível.
Em cada um desses três casos de gravidez acidental, Evens ficou furioso com a
irresponsabilidade de suas filhas e de seu filho. Depois, acabou resignando-se. Na convivência
cotidiana com os bebês que cresceram em sua casa, ele logo se revelou um avô extremamente
carinhoso, brincalhão, disponível e zeloso, inclusive bem mais presente na criação das crianças
que a própria Jaklin (que ainda mantém o costume de passar alguns dias fora, geralmente em
Las Matas ou Porto Príncipe, de tempos em tempos). As interações entre Evens e seus três
netos, que viviam na casa enquanto eu estive lá, não davam nenhum indício da confusão
causada pelos episódios de gravidez indesejada. Em uma ocasião, ele mesmo comentou comigo,
em meio a afirmações de amor pelas pequenas pessoas, as crianças [ti moun], que elas não
tinham culpa nenhuma pelos erros cometidos pelos seus pais/mães.

Nota sobre os termos compostos e inflexões da palavra moun [pessoa]


Isolada, a palavra ti significa “pequeno/a”. Usada como prefixo acoplado à palavra moun,
que significa “pessoa”, “ser humano”, “gente”, temos o termo para criança, ti moun. A tradução
simples de ti moun para “criança” não coloca grandes problemas.174 Pode-se entender
granmoun como o oposto de ti moun, mas é inviável a tradução direta de granmoun como
adulto. Muitas vezes, a palavra é usada no sentido que traduziríamos como “idoso/a”.175 Mas
ela também pode ser usada para pessoas mais jovens, desde que essas ocupem uma posição de
responsabilidade.176 Quando se diz a uma criança a frase “vá procurar o seu granmoun” [al

174
Embora já aqui notemos a curiosa tradução oferecida por Lowenthal (1987:26); “socially defined ‘children’
(ti moun; not fully responsible for themselves)”. Essa não-plenitude da responsabilidade sobre si introduz um
critério não-etário na definição, tornando possível que, de duas pessoas da mesma idade, apenas uma seja ti
moun – o fim da infância tende a acontecer mais cedo para meninas do que para meninos (idem:346, nota 5).
175
Sozinha, a palavra gran quer dizer “avó”, e é usada como prefixo em diversas outras combinações, geralmente
no sentido de “maior que”, seja em tamanho, idade ou importância. Por exemplo, quando se quer situar a
ordem de nascimento entre irmãos, diz-se que tal irmão é mais gran [ou seja, mais velho] que tal outro,
expressão que é usada sem problemas mesmo quando estão falando sobre dois bebês.
176
A pessoa mais jovem a quem vi o termo ser usado ser aplicado de forma consistente foi Franz, um homem que
tinha então 35 anos, ocupava um emprego bem remunerado e era o principal responsável financeiro não só
por sua esposa e filhos, mas também por alguns outros parentes agregados que residiam nos arredores de sua
casa, no mesmo lakou. Seu primo Manès, então com 30 anos de idade, que tinha uma casa própria no lakou
de Franz, mas não era capaz de pagar suas contas, sendo em boa medida sustentado por Franz. Manès não era
chamado de ti moun, mas tampouco granmoun. Embora estivessem na mesma faixa etária, ninguém tinha a
menor dúvida de que Franz é o granmoun capaz de responder por Manès. Sua possibilidade de bancar as

246
cheche granmoun ou], significa “vá procurar o adulto responsável por você”. O termo traz um
sentido hierárquico, de estatuto moral, fala de uma posição de autoridade em seu grupo
doméstico/familiar. Granmoun é alguém capaz de bancar, de sustentar uma posição, moral e
financeiramente. O termo denota liderança dentro do ambiente familiar.
Na vizinhança, os granmoun responde pelos ti moun que habitam sua casa. Quando os ti
moun se comportam mal, as reclamações são feitas aos granmoun responsáveis por eles, para
que corrijam os seus ou arquem com as consequências – digamos, se um animal não é amarrado
corretamente, consegue se soltar e acaba destruindo parte de uma roça de um vizinho, será
necessário dirigir-se a ele para gerir a situação, e talvez pagar pelo prejuízo causado pela
negligência das suas crianças.
O conceito de moun deyè [pessoa atrás] participa do mesmo horizonte. Crianças não
contam como “pessoas atrás” de ninguém. Tipicamente, quando alguém precisa de um tipo de
apoio de retaguarda ou de aval, as pessoas convidadas a serem as “pessoas atrás” serão de uma
geração mais velha. É o caso dos pedidos de casamento, como vimos a respeito da proposta
feita por Evens para se casar com Jaklin. Um pedido de casamento feito por um jovem por sua
própria conta é frágil a ponto de sequer ser tomado em consideração pela família de sua
pretendida.177 Para que o pedido seja levado a sério, ele deve vir com “pessoas atrás dele”, são
elas (as pessoas atrás) que, do ponto de vista da família da possível futura noiva, realmente
contam na avaliação da proposta.
Outra formulação próxima é “ter pessoas” [genyen moun]. Quando uma pessoa vai realizar
algum trabalho que necessite de muitas mãos, como a construção de uma casa, por exemplo,
amigos e vizinhos se juntam em uma espécie de mutirão. O sentido mais comum em que eu
ouvi a frase “ter pessoas” é nesse contexto, alguém gen moun quando tem a capacidade de
mobilizar pessoas para virem lhe ajudar quando necessário.178

dívidas o torna apto a falar por ele, a ser “a pessoa atrás dele” [moun deyè li], que lhe confere confiabilidade,
o que neste caso é uma relação unilateral, pois Manès não poderia de forma alguma servir como uma pessoa
atrás para Franz. Essa condição de chefe financeiro do grupo familiar – que redunda em outras instâncias de
chefia, como por exemplo de diversas operações logísticas em torno das casas de seu lakou, que só podem
realizadas se e quando forem financiadas por ele – é fundamental para que ele ocupe esse lugar.
177
Embora os casamentos arranjados pelas famílias à revelia dos noivos sejam mais raros hoje do que foram no
passado (cf. Lowenthal 1987), quando um jovem escolhe com quem deseja se unir, essa escolha deve ser
sancionada pela família (principalmente pela família da mulher, uma vez que se considera o controle sobre as
filhas mulheres mais firme e mais necessário do que sobre os filhos homens). Não que as gerações mais novas
não enfrentem as oposições de gerações mais velhas, mas esse enfrentamento pode ter um custo alto.
178
Mas algumas pessoas evitarão a ajuda alheia. Cuian, um morador da vizinhança de Lakaniyt que era
ridicularizado pelas crianças, os adultos eram respeitosos com ele, mas o tinham como um moun mòn [gente
da montanha]. Cuian sentia isso. Tratava todos com igual respeito, mas quando foi construir sua própria casa,
ele foi orgulhosamente autônomo, fez tudo sozinho como se estivesse mostrando que não precisa de ninguém.

247
Essa expressão nos conduz a outra, moun pa, que ao pé da letra significa “pessoa de”.179
Como essa categoria já apareceu diversas vezes na literatura acadêmica sobre o Haiti, uma
revisão dos diversos sentidos registrados em texto parece útil aos nossos propósitos. Ulysse
(2015) usa a expressão moun mwen em textos escritos em crioulo haitiano como tradução do
original inglês my folks. Este uso da expressão se refere a coletivos vagamente definidos, assim
como o fazem em português expressões inclusivas como “meu povo” ou “minha galera”, o que
vai de encontro à tradução que deu Bullamah (2018), “minha gente”. Está claro que essa é uma
tradução correta, assim como o uso feito por Gina Ulysse, em se tratando de uma autora haitiana
que escreve em inglês e foi traduzida para sua língua natal por escritoras também haitianas, é
um uso que ocorre no crioulo haitiano. Contudo, no contexto da minha pesquisa de campo,
virtualmente todas as vezes em que ouvi a expressão, seu sentido era menos inclusivo e mais
preciso: ela vinha nomear relações interpessoais diretas entre duas pessoas específicas, que se
consideram reciprocamente moun pa uma da outra, do tipo “Fulano é moun pa Siclano” [Fulano
é ‘pessoa de’ Siclano].
Ana Fiod (2015) e Flávia Dalmaso (2014) sublinham o uso da noção de moun mwen para
falar de relações íntimas que, se não são redutíveis ao parentesco stricto sensu, participam do
mesmo campo semântico. Para Dalmaso (2014:11), “todo este campo de relações que podem
ser criadas quando as pessoas compartilham algo em comum como o sangue, a convivência, a
comida, um mesmo lugar de nascimento ou de moradia, pode ser pensado a partir da categoria
nativa moun mwen, termo mais genérico indicativo de que a pessoa é familiar.” Fiod trata essa
noção como sinônimo para o pertencimento familiar com a ressalva de que o tipo de parentesco
reivindicado aí é mais complicado que a mera consanguinidade (2015:43). A pesquisa de Fiod
mostra ainda o potencial conflitivo das relações de proximidade, em particular na forma como
as crianças lidam com a sua própria posição de vulnerabilidade frente aos adultos de sua família,
suscetíveis a ataques mágicos que se tornam especialmente potentes, dada a facilidade do acesso
destes adultos a essas crianças.
Pedro Braum (2014:140) acrescenta uma nova camada à expressão: além das relações de
proximidade, como parentesco e amizade, ela também pode dizer respeito a “pessoas

As pessoas comentavam jocosamente que a nova casa que ele construía sem ajuda estava ficando torta e mal
feita. Parte do comentário era a afirmação do quão facilmente ele seria ajudado caso pedisse, e como ele
preferiu não dizer nada a ninguém.
179
Outra forma de dizer a mesma coisa é moun mwen [“minha pessoa”]. Entre as expressões sinônimas, daremos
preferência àquela mais comum na região da pesquisa, moun pa m. O m no final é uma contração, cuja forma
extensa seria moun pa mwen. Contudo, ninguém usa essa forma extensa, as pessoas ou dizem moun pa-m, ou
moun mwen.

248
conectadas por laços de dívida, proteção ou promessa”. Ele também salienta o aspecto coletivo
quando faz referência a situações nas quais cada parte tenta conseguir o máximo possível para
os seus (“as suas pessoas”), havendo o risco de oferecerem vantagens desiguais para as “pessoas
de x” em detrimento das “pessoas de y” (um equilíbrio instável que, no universo pesquisado
pelo autor, requer cuidados especiais sob pena de estourarem conflitos armados).
A relação de “minha pessoa” é associada à possibilidade de conseguir vantagens ou
favores por Murray, McPherson & Schwartz (1998). Os autores citam a expressão fòk ou gen
moun pa-ou ladan [“você precisa ter uma pessoa sua lá dentro”] para falar de contatos
necessários para conseguir empréstimos em uma cooperativa de crédito em Hinche, trazendo o
sentido de moun pa-m como pessoas que podem permitir um acesso privilegiado a determinado
recurso. Laura Wagner (2014:393), discutindo sobre como as pessoas entendem suas
possibilidades de extrair benefícios da indústria da ajuda, igualmente menciona a expressão
moun pa comentando as tentativas frustradas de pessoas que buscaram trabalhar na Cruz
Vermelha – seus interlocutores são descrentes dos canais formais (como, por exemplo, o envio
de currículos) para conseguir empregos no Haiti, e consideram que apenas as conexões de
dentro [moun pa] podem garantir a inserção em uma empresa ou instituição.
Erica Caple James (2010:243) desenvolve um ponto semelhante quando se refere a moun
pa-m como uma relação possível de ser descrita em termos de patronagem, enquanto uma
relação de obrigação e reciprocidade. Ela narra como beneficiários de projetos pressionavam
os trabalhadores –não só haitianos, mas também estrangeiros – que tocavam esses projetos (no
caso, da USAID), afirmando uma relação de moun pa com eles como uma forma de demandar
tratamento preferencial. Significativamente, a autora dá a entender que trabalhadores
estrangeiros da USAID nem sempre reconhecem, reciprocamente, a existência dessas relações
para com as pessoas que as reivindicavam. Sua recusa em se assumirem como ‘pessoas daquelas
outras pessoas’ é uma forma de blindagem contra demandas que, do ponto de vista dos
norteamericanos, não poderiam ser atendidas sem ferir princípios de imparcialidade aos quais
eles pretendem se ater. Em um sentido parecido, Elizabeth MacAlister (2002) fala de uma
relação hierárquica entre um líder e seus seguidores. Segundo essa autora, existem figuras no
Haiti, os chamados gran nèg, que são tão poderosas a ponto de expressar na linguagem uma
ideia de posse a respeito das pessoas que as seguem, que gravitam ao seu redor, chamando-as
de “minhas pessoas” (moun pam) como se de fato fossem seus pertences. A autora não deixa
claro se essas pessoas também se referem ao gran nèg em questão, reciprocamente, como sendo

249
uma “pessoa delas”. Em minha própria pesquisa, essa referência não apareceu de forma
unidirecional, mas recíproca.
Se Muray et al (1998), James (2010) e Wagner (2014) sublinham a dimensão
“facilitadora”, “vantajosa”, “proveitosa” de se ter pessoas, Pierre Minn (2011), por outro lado,
discute o outro lado da moeda: a formação e manutenção de uma rede de pessoas “que se tem”
como “suas”, em relações de obrigação, de lealdade, como uma característica definidora da
identidade dos médicos haitianos. Mesmo ganhando muito melhor que a maioria dos
compatriotas, eles precisam sustentar toda uma rede de “pessoas suas”, colocando-se assim
inevitavelmente em dificuldades econômicas.
Fica claro, portanto, que as pessoas umas das outras, ao compartilharem a mesma
substância (sangue e/ou comida e/ou dinheiro e/ou recursos e/ou favores) se aproximam de
maneira que gera mais do que apenas conforto, apoio mútuo e segurança. A proximidade traz
igualmente vulnerabilidade, tanto por compartilhar dificuldades – quando uma pessoa sofre, as
pessoas dela sofrem juntas– quanto porque expõe, encurta o caminho de possíveis agressões,
como no caso do universo de gangues pesquisado por Braum: desentendimentos contra uma
pessoa facilmente reverberaram também contra as pessoas dela, bem como se uma “pessoa sua”
não cumprir devidamente com as obrigações próprias dessa relação, pode sofrer represálias,
especialmente perigosas já que à curta distância os golpes que vêm mais fortes.
As análises citadas apontam para diferentes qualidades das relações de moun pa:
familiaridade –âmbito do parentesco incluindo pessoas que se tornam parentes por proximidade
cotidiana duradoura ao longo da vida, relações férteis em afeto, reconhecimento mútuo,
confiança, obrigação, e também em perigo; abertura de caminhos –pessoas que viabilizam
vantagens, empréstimos, garantias e acesso privilegiado, que podem conseguir vagas de
trabalho remunerado, inserção em projetos; compartilhamento –a necessidade compulsória de
dividir com as “suas pessoas” o que se tem ou se consegue (dinheiro, comida, bebida, casa), e
de eventualmente assumir dívidas que foram contraídas pelas “suas pessoas”. Elencamos estes
aspectos –familiaridade, abertura de caminhos e obrigatoriedade da partilha– um de cada vez,
na tentativa de acrescentar camadas sucessivas para dar um sentido mais denso à expressão. Na
vida, contudo, não são aspectos facilmente separáveis uns dos outros. Todos podem coexistir
na mesma relação, trata-se de uma forma de vínculo que, de fato, tende a possuir todas as
implicações citadas, simultaneamente. A expressão moun pa nos oferece, assim, um caminho
para nos aproximarmos dos termos em que as personagens desta tese pensam e vivem seus
vínculos. Há diferentes conceitos para dar conta de vínculos variados, mas parece haver um

250
substrato comum a alguns deles, como entre o conceito de pratik e o de moun pa. Enquanto a
primeira se refere a uma arena específica, muito mais limitada, que são as relações de compra
e venda, a segunda implica numa vinculação mais ampla e irrestrita, parcialmente sobreposta
ao âmbito do parentesco. Claramente são conceitos diferentes, mas em ambos os casos, uma
pessoa se vincula a outra na expectativa de que a relação entre elas se destaque de uma
sociabilidade genérica, que este elo seja privilegiado (em detrimento de outros, caso seja
necessário escolher), que uma cuide da outra assim como espera ser cuidada. 180 Esta
sociabilidade mais intensa e próxima, os vínculos privilegiados, são constitutivos do que
significa ser “pessoa” neste universo. Uma pessoa desprovida de tais vínculos seria uma pessoa
incompleta, desfavorecida, infeliz.

Nota sobre a estrutura física das casas


Historicamente, as casas receberam bem menos atenção que os lakou nos estudos
realizados no Haiti.181 O termo “casa” [kay ou lakay] se refere às edificações propriamente
ditas, que ficam dentro do lakou, sendo uma pequena parte dos mesmos. Ínfima em termos
espaciais (uma vez que, fora de ambientes urbanos, o tamanho dos lakou é muitas vezes maior
que sua área construída), a casa é uma parte fundamental em termos conceituais. Os terrenos
cultivados onde não há casas habitadas não são chamados de lakou (são chamados de jaden).
Cada lakou pode conter mais de uma casa.182 Seguindo os usos na fala local, o que chamamos
de “casa” se refere à estrutura principal, onde ficam os quartos e onde dorme a maioria dos
moradores, e ao seu entorno imediato.
Cada casa é composta por diferentes módulos, edificações separadas dotadas de funções
específicas. A “cozinha” [kizin] é sempre uma estrutura à parte, pois o método de fogo utilizado
é à base de lenha, gera uma fumaça que, se ficasse retida entre as paredes da casa, tornaria o ar
irrespirável. Às vezes a cozinha é apenas um teto sem paredes, em outras ocasiões as paredes

180
Handerson Joseph (p. 285, nota 107), antropólogo haitiano, falante nativo, tratou ambas como sinônimos
parciais. Ao explicar a categoria pratik, ele afirma: “Pratik também está associado à categoria pessoa. Tanto
vendedora quanto compradora podem utilizar a expressão li se moun mwen (literalmente seria, é minha pessoa,
é minha gente) para se referir a pessoa que é pratik dela.” A relação de pratik poderia ser entendida, portanto,
como a aplicação da ideia de “minha pessoa” a um âmbito especificamente comercial.
181
Exceções dignas de nota são o artigo de Paul Moral, La maison rurale en Haïti, de 1957, e as contribuições
de Mintz 1960, 1971. Sob o impacto da célebre publicação de Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones sobre a
casa (1995), uma onda de interesse renovado está alterando esse panorama, e que já deu frutos na literatura
produzida no Brasil, especialmente nos trabalhos de Dalmaso (2014, 2018) e Joseph (2015). Sobre o lakou,
cf. nota 186 acima.
182
Há mais de 50 anos, Bastien (1985 [1951]) mencionou que os lakou continham até uma dúzia de residências
diferentes, mas na minha experiência em Lakanyit, dificilmente algum continha mais que três casas habitadas.

251
cobrem apenas um dos lados (geralmente o lado que, caso não houvesse a parede, seria visível
desde o gran chemen), e por vezes as paredes são feitas de panos amarrados estendidos. Sua
função é barrar a visibilidade para os passantes, mas nunca são fechadas a ponto de manter
presa a fumaça gerada pelo fogo.

27 Casa e cozinha, construções separadas.


Foto: Juliane Peixoto

Os banheiros também são sempre estruturas à parte, o que também é uma necessidade,
pois não existe água encanada dentro das casas. Enquanto as cozinhas costumam ficar a poucos
metros da estrutura principal, os banheiros ou “latrinas” [latrin], costumam ficar mais afastados.
São como fossas, buracos amplos e profundos (a latrina que eu vi ser construída tinha um fosso
de cerca de seis ou sete metros de profundidade), com algum apoio para que as pessoas sentem
(por vezes uma privada feita em cerâmica) ou se agachem sobre o buraco. Algumas casas são
habitadas por anos inteiros até que seus donos tenham condições de construir uma latrina, são
itens importantes no conjunto que compõe a casa, mas não são indispensáveis (alternativas

252
viáveis são outras latrinas por perto ou o mato, a vegetação é abundante o bastante para oferecer
diversos lugares discretos, com alguma privacidade).
A edificação principal, a casa propriamente dita, é construída primeiro. Ela é uma estrutura
retangular e fechada, geralmente com duas portas de entrada, uma virada para o caminho
principal e outra para os fundos. A maioria delas é feita de madeira, mas há na vizinhança
algumas poucas construídas com tijolos, incluindo a de Jaklin e Evens. Além do seu alto custo,
a falta de caminhos viáveis para que veículos tragam os materiais de construção exige que os
materiais sejam transportados diretamente pelas pessoas, o que desfavorece a utilização dos
pesados tijolos e vigas. Os troncos de árvores custam menos, mas também são caros. Muitas
vezes, o proprietário da árvore a vende enquanto ela ainda está viva, para que o comprador
venha ele mesmo derrubá-la e transportar o tronco. Os pilares da casa são feitos com troncos
de árvores mais duras (a árvore preferida para este fim na vizinhança é chamada de campech),
transportados pelos homens equilibrados sobre as suas cabeças, pois seu formato longo
impossibilita que sejam usados animais de carga. É preciso uma pessoa para transportar um
tronco de cada vez, por vezes um grupo de rapazes vai junto, cada qual trazendo um tronco.
Essa técnica corporal, muito usada pelas mulheres, também é dominada pela maioria dos
homens. Dada a exigência de resistência e força física para transportar esse peso sobre a cabeça,
andando por caminhos irregulares, este trabalho é feito quase exclusivamente por homens,
geralmente jovens.
As janelas das casas são minúsculas. Seu interior costuma ser escuro mesmo durante o
dia, além de quente. Enquanto dura o dia, as pessoas passam muito mais tempo do lado de fora
(ainda que estejam nos arredores imediatos e, com isso, digam que estavam em casa) do que
dentro dessa estrutura que contém quartos e sala. Em alguns casos, as divisões internas são
demarcadas com panos e lonas estendidos, dependurados desde o teto. Em outros, existem
paredes internas feitas em tábuas de madeira ou tijolos, ou então uma combinação entre as
diferentes formas de separação do espaço. O primeiro cômodo, cuja porta de entrada fica virada
para o caminho principal, é a sala, e o(s) outro(s) espaço(s) é(são) o(s) quarto(s), onde fica a
cama de casal. A disposição da casa pode mudar bastante entre o dia e a noite, especialmente
nas casas em que o número de moradores é alto. Quando este é o caso, na hora de dormir,
colchões, esteiras e lençóis que estavam guardados durante o dia são estendidos no chão para
acomodar todo mundo, por vezes cobrindo todos os espaços disponíveis, de tal forma que se
alguém quiser se levantar durante a noite terá que tomar bastante cuidado para não pisar em
ninguém.

253
28 Carlos transportando planch para construção de casa.
Foto: Juliane Peixoto

“Fazer a casa” é uma tarefa masculina por excelência, tipicamente fazendo a casa “para”
alguma mulher com quem mantém relações sexuais. A construção da casa muda o estatuto do
casal, estabelece um modo de cooperação e atribui responsabilidades a cada cônjuge (entende-
se como um dever do homem “cuidar” [okipe] de sua mulher), o que pode vir acompanhado da
celebração do casamento [mariaj], que exige um dispêndio de dinheiro nem sempre viável, ou
não, na coabitação sem o correspondente ritual religioso, arranjo chamado de plasaj. Ambos os
tipos de coabitação de casais, mariaj e plasaj, são comuns.

Trajetórias habitacionais
Já vimos algo das controvérsias geradas pela construção de uma nova casa. Sua não-
construção também pode revelar discórdias. Voltamos agora às trajetórias habitacionais de
nossas personagens principais, começando por Madame Dodo. Aos 13 anos de idade, a pequena
órfã Woslene se casou o jovem Dodo, passando a ser reconhecida desde então como Madame
Dodo. Seu marido Dodo era pobre, e teve muita dificuldade para providenciar uma casa para
ela (e para ele próprio). Eles moraram de favor em diversas casas alheias, já moraram de

254
aluguel, e depois conseguiram comprar uma terra e construir uma casa própria. Contudo, a
união dos dois acabou devido ao que Madame Dodo percebia como um egoísmo e uma
mesquinharia intoleráveis da parte de seu marido (estão separados na prática, mas não
formalizaram seu divórcio perante o Estado, e tudo indica que nunca o farão).
Quando eu gravei uma entrevista com ela em vídeo, em 2017, comecei fazendo perguntas
que pareciam básicas, como quantas pessoas moram na sua casa. A resposta dela foi “eu mesma
e meu marido Dodo”. Antes da entrevista, eu já convivia o suficiente para saber quais eram as
doze pessoas que costumavam dormir diariamente naquela casa: ela, dez de seus filhos (todos
ainda solteiros – suas duas filhas e um filho que estavam casados tinham suas próprias casas,
outro filho não tinha esposa mas estava trabalhando na RD), mais uma outra criança não-
consanguínea que estava sob os cuidados dela. Eu também sabia que seu marido Dodo não
pisava naquela casa há mais de dois anos, e que ele estava, desde que ela o expulsara de casa,
coabitando exclusivamente com sua outra companheira, que havia sido sua “amante” por
anos.183 O que significava, então, a resposta dela? Não importava que Dodo não estivesse
presente, não importava que ele nunca mais voltasse a pisar ali (como era o desejo dela e de
todos os filhos que chegaram a emitir alguma opinião a esse respeito na minha presença) –
aquela casa continuaria sendo pensada como fruto da união dos dois, nenhum dos infelizes
acontecimentos posteriores apagaria isso. A contribuição dada por seu (ex-)marido era
constitutiva daquele espaço.
Flávia Dalmaso (2014:43 ss) já explorou as diferenças entre o verbo rete, que a princípio
poderia ser traduzido como “morar”, e o verbo viv [“viver”]. Tentando inquirir as pessoas sobre
seus locais de residência e tentando determinar quem vivia em qual casa, ela começou
perguntando avèk ki moun ou rete? [“com quem você mora?”], ou ki bò ou rete? [“onde você
mora?”] Logo ela percebeu que as respostas que as pessoas davam a essa pergunta não eram as
que ela esperava obter. Significativamente, o exemplo oferecido para explicar essa falha de

183
Em português, a palavra “amante” parece talvez excessivamente ligada a concepções monogâmicas de
matrimônio. Os votos de casamentos realizados no Haiti incluem a promessa de monogamia, mas as
expectativas práticas a esse respeito não são muito rígidas, e existe alguma tolerância com a multiplicidade de
parceiras, principalmente da parte masculina. Entre os ougan é muito comum a manutenção de múltiplas
esposas/companheiras/namoradas simultâneas. (Uma curiosidade sobre o olhar reverso: a partir de conversas
com parentes que migraram para o Brasil, muitas pessoas no Haiti vieram me questionar a esse respeito, se é
verdade que no Brasil as pessoas levam a expectativa de exclusividade sexual a sério e se chateiam por isso,
que é um povo ciumento, que briga e até mata por esse motivo.) Para Dodo, que não era ougan, e que se casara
diante de um pastor protestante, a manutenção de uma outra relação não era bem-vista, era tomada como uma
falha da parte dele, mas nada que chegasse a ser escandaloso. Sua outra relação era quase-pública, tanto
Madame Dodo quanto diversas outras pessoas na vizinhança sabiam quem era a sua outra companheira. O
nome mais comum pelo qual se referiam a essa relação extraconjugal era fi deyò, literalmente “mulher fora”.

255
comunicação é quando uma mulher responde “eu moro com o meu marido” [m rete avè mari
mwen], e então ela pergunta pelo marido apenas para descobrir que “ele não está aqui, ele partiu,
está vivendo nos Estados Unidos” [li pa la, li te pati, l’ap viv ozetazini]. Uma amiga haitiana a
ajudou a reformular a pergunta para que ela obtivesse as respostas que buscava, sugerindo que
perguntasse “quem está vivendo aqui agora” [kies k ap viv la kounye a]. O verbo rete, portanto,
não é plenamente traduzível por “morar”, uma vez que não se refere à presença física, a quem
está habitando uma casa qualquer nas circunstâncias concretas de momento, mas sim a esse
pertencimento constitutivo. Por esse mesmo motivo, Madame Dodo omitiu todas as crianças e
adolescentes em sua resposta. A presença deles sob os cuidados dela era temporária, aquela era
a casa deles por extensão, como frutos que eram da união daquele casal, mas eles fariam suas
próprias casas quando chegasse o momento adequado, e não eram, portanto, uma presença
constitutiva daquela casa.
A casa é seus habitantes. Conforme o dito local, uma casa sem pessoas “fica triste” e logo
apodrece. Não há nenhuma metáfora em uso aqui, o apodrecimento é literal. Como quase todas
as casas são de madeira, nas casas desabitadas a perecibilidade do material é gritante. As
pilastras se inclinam, e com elas toda a estrutura entorta. Buracos vão se abrindo nas tábuas de
madeira. Várias caem. Aquelas tábuas que continuam boas são arrancadas para uso na reforma
(ou construção) de outras casas. Animais transitam livremente pelo que antes eram espaços
internos, indisponíveis para sua circulação, assim como as águas da chuva encontram cada vez
menos resistência. Com poucas exceções, as casas têm chão de terra batida (algumas poucas
têm piso em cimento, mas novamente, isso custa caro e é preciso levar os pesados sacos por
quilômetros sem auxílio de veículos motorizados). A vegetação começa a nascer dentro. Em
poucos meses, tudo que restava da estrutura que não apodreceu ainda é desmontado e levado
para outros fins, fica apenas uma marca no chão, que depois será coberta pelo crescimento da
grama, e em breve restará apenas a memória, sem a qual seria difícil dizer que antes houvera
uma casa naquele ponto.
Seguindo a célebre proposta de Carsten & Hugh-Jones (1995), mas também e ao mesmo
tempo as formulações de meus interlocutores em campo, não resta dúvida de que a casa e seus
habitantes devem ser pensados no mesmo quadro analítico. Está claro que nem todos os
membros a habitam da mesma forma. O coletivo formado pelos moradores de uma mesma casa
é altamente hierarquizado. Toda casa possui seus mèt kay [“dono(s) da casa”] como parte
constitutiva. Enquanto moram sob o mesmo teto, pai e mãe possuem ampla autoridade sobre
seus filhos, e igualmente sobre outras crianças que venham a morar com eles, independente de

256
que tenham ou não laços consanguíneos (ainda que o dinheiro possa impactar essa autoridade,
caso a geração mais nova tenha mais dinheiro que a anterior, o que, ao mesmo tempo, é um
horizonte desejável – cf. Bastien 1962). Que os filhos se mudem para construir suas próprias
casas atenua um pouco a autoridade da geração, mas, ainda assim, a necessidade de obediência
e gratidão a pai e mãe continua sendo levada a sério. A relação destes com sua prole e/ou outras
crianças agregadas é de hierarquia e englobamento, no sentido que os donos da casa respondem
pelos atos dos outros moradores perante a vizinhança, principalmente das crianças e
adolescentes.184
Esse englobamento onde os moradores de uma determinada casa estão, em certo sentido,
sob a tutela do/a dona/o da casa evidencia uma teoria indígena da soberania, onde as pessoas
ocupam seus respectivos domínios de forma quase autárquica. Pelo menos em teoria, os donos
da casa devem ter sempre sua autoridade reconhecida dentro de seu domínio, a tal ponto que
ninguém tem dúvidas a respeito do direito (não jurídico, mas moral) de matar um ladrão que
tenha invadido sua casa. Lembremos ainda como Ti Dòk, reconhecido bandido e líder de
gangue, que certamente conseguiria se impor pelo uso da força caso assim decidisse, preferiu,
pelo contrário, respeitar ostensivamente o domínio de Jaklin (e implicitamente também de
Evens, embora a participação dele nessa conversa tenha sido nula) sobre o seu lakou,
respeitando esses princípios autárquicos para evitar qualquer atrito direto com ela ou com
quaisquer outros moradores da vizinhança (para os quais uma ação direta e violenta da parte

184
Algo diferente se passa com os adultos agregados. Um parente adulto pode passar meses ou anos em uma
determinada casa sem ser considerado um morador, sendo sempre tomado como alguém de passagem.
Enquanto estiver dentro do lakou ele também deverá satisfações àqueles que o acolheram. Um tema tangente
é o valor da hospitalidade, as pessoas se orgulham em receber bem, valor que parece unânime na vizinhança.
A princípio (na prática, é sempre mais difícil saber o que esperar), uma pessoa nessa condição de hóspede não
tem legitimidade moral para questionar e entrar em conflito com os donos do lakou. Por outro lado, quando
algum granmoun vem coabitar por precisar de cuidados, especialmente sendo o pai ou a mãe de um dos donos
do lakou, a prescrição de respeito aos mais velhos é forte. Nos casos em que eu efetivamente vi esse arranjo,
a pessoa mais velha recebia demonstrações de deferência, é provável que suas opiniões fossem pedidas e
ouvidas, mas em todo caso não pareciam ter nenhuma posição de mando nem reivindicavam isso, aceitando
sua situação de forma pacífica (pelo menos no nível de intimidade que cheguei a ter). Se a pessoa mais velha,
granmoun, tivesse um temperamento mais difícil e causasse problemas com os vizinhos, me parece provável
que esses problemas também tivessem que ser respondidos, em parte, pelos donos da casa que o abrigava. Mas
não acompanhei nenhum caso concreto, são apenas conjecturas. Na vizinhança, as únicas duas pessoas mais
velhas que eram tidas como difíceis moravam ambas sozinhas. Um deles era um senhor escandalosamente
abandonado por seu filho, que migrara com sucesso para os Estados Unidos, formara-se em medicina, e
alcançara um alto cargo como diretor-geral de um hospital. Diziam que ele era riquíssimo, e que mesmo assim,
fazia questão de não mandar um único dólar para seu pai idoso, que era um homem pobre mesmo para os
padrões de Lakanyit. Essa história, contada e recontada na vizinhança, em suas sucessivas versões levantava
questionamentos tanto sobre o caráter do filho rico e mal agradecido, quanto sobre o que poderia ter feito o
pai abandonado para ser tratado com tamanho desprezo e ingratidão.

257
dele seria igualmente ofensiva e passível de retaliação, inclusive armada em casos mais
extremos), como essa escolha foi muito mais estratégica e inteligente no caso.
Um provérbio diz: Ou granmoun sèlman lè ou lakay ou [“você só é granmoun quando está
na sua casa”]. O ditado quer dizer que não se deve assumir a mesma posição de autoridade
frente a pessoas que nada lhe devem. Os/as granmoun possuem um lugar hierárquico e
englobante apenas em relação às pessoas que vivem em sua casa, sob seus domínios. A conversa
entre os granmoun, ao contrário, é uma conversa entre iguais. Nesse âmbito, vigora um forte
igualitarismo, mediado por códigos de etiqueta e de demonstração de respeito. Não se toleram
posturas condescendentes.
Há uma crítica explícita e constante contra essa posição de autoridade tomada em
contextos considerados descabidos. Como já vimos, é comum uso irônico do termo eklere
[“esclarecer”, como verbo, ou “esclarecido/a”, como substantivo] em frases como: “quem você
pensa que é pra vir me esclarecer/iluminar?” Em se tratando de uma metáfora de luzes e
escuridão que incide tanto sobre avaliações intelectuais quanto sobre a cor da pele, o termo
ganha outras camadas em um país como o Haiti, onde historicamente a elite mulata se afirmou
mais culta, iluminada e esclarecida que as massas negras. Micheline Labelle (1976) mostra
como o termo eklere circulava de forma auto-elogiosa entre a elite mulata. Lowenthal (1987),
cuja pesquisa foi feita em área rural e não tinha pessoas da elite como interlocutores
preferenciais, também cita o mesmo termo em oposição à ideia de moun mòn como algo
positivo. Em nenhuma pesquisa alheia encontrei menção ao uso irônico deste termo, talvez seja
uma particularidade geográfica ou uma inovação historicamente recente, mas o fato é que, na
área da minha pesquisa, chamar alguém de eklere, muito mais frequentemente do que não,
equivale a chamar de imbecil pretensioso, metido a sabichão. É uma forma de lembrar os limites
da autoridade moral que cada pessoa pode reivindicar para si. Como os pais têm toda
legitimidade para direcionar o comportamento dos seus filhos e apontar caminhos (inclusive
estabelecendo proibições explícitas e castigos contra a desobediência), a ideia da iluminação
pretensiosa não cabe nesse contexto. Seria extremamente desrespeitoso que um(a) filho(a)
chamasse seu pai ou mãe de eklere – de fato, não vi isso acontecer nenhuma única vez. É um
xingamento usado no mercado, na rua, em lugares onde as pessoas se encontram em condições
de igualdade.
Passamos agora à trajetória da casa de Jaklin. O primeiro local de moradia que ela
compartilhou com Evens foi uma casa dentro do lakou do pai dela, como um tipo de anexo,
logo no começo do casamento. Pouco depois, se mudaram para um terreno comprado com ajuda

258
de ambas as famílias, a cerca de 2-3 km da casa do pai dela, com o tamanho de um e meio (1.5)
karo (quase 2 hectares – cf. nota 33), o que para os padrões contemporâneos da vizinhança
podemos qualificar entre médio e grande.185 A primeira casa construída por Evens ficava num
local recolhido, tanto pelo relevo quanto pelas árvores ao redor, de tal forma que a construção
não era visível para quem passava pelo gran chemen. A escolha feita por seu marido em algum
ponto começou a incomodar Jaklin, porque para receber visitas, as pessoas tinham que passar
nan raje. Pastores respeitáveis que honraram a casa com sua visita tiveram que sujar os sapatos
para chegar até lá, e ela não se sentia bem com isso. A casa foi então transferida para um local
mais alto e à beira do caminho principal, muito mais visível e mais fácil de achar, o que fala do
estilo de sociabilidade desejado por ela. A mudança para aquele local não teria acontecido por
iniciativa de Evens, cujos parâmetros de sociabilidade desejados não eram os mesmos, mas
frente ao apelo de sua esposa, cedeu sem resistência.
A nova estrutura de madeira da casa reciclara parte do material usado na estrutura da casa
anterior. Parte veio de árvores plantadas por ele dentro do lakou, derrubadas para este fim.
Desde o momento da aquisição do terreno, ele plantara muitas árvores, como uma forma de
investimento de longo prazo (obviamente, a madeira crescida é muito mais valiosa que as
sementes). O trabalho da construção envolve várias pessoas, mas a forma como as coisas são
ditas é que Evens “fez a casa” ele mesmo. Como praticamente qualquer homem “fazendo uma
casa” que não seja fisicamente incapaz, ele trabalhou ativamente na construção junto com os
ajudantes, que eram seus amigos, fazendo trabalho voluntário.186 O único pagamento esperado
nessas ocasiões é uma refeição compartilhada nos dias dedicados a esse trabalho. Apenas para
os serviços mais técnicos (como a serragem do tronco em tábuas e o posicionamento correto
das vigas) é recomendável pagar especialistas. De todo modo, a autoria da casa é atribuída
somente a ele, Evens.
Uma e outra vez, Evens fez a casa para sua esposa, atribuição masculina clássica, assim
como, reciprocamente, boa parte da manutenção da casa, no sentido de tornar habitável a
estrutura física construída pelo marido, cabe à esposa. Essa prerrogativa masculina é um

185
Na época em que compraram o terreno e se mudaram para lá, provavelmente no fim dos anos 1980s, DuCas
me disse que a casa deles foi uma das primeiras a ser construída, a zona era muito menos habitada que hoje
em dia. Ti Wilky chegou uns dois ou três anos depois, e a maioria das outras famílias bem mais tarde.
186
Embora os mutirões de maior escala, chamados kombit, sejam falados pelas pessoas como uma forma de
organização cada vez menos comum (as sociedades de trabalho que vendiam e trocavam kombit foram
descritas por Herskovits 1937 e Métraux 1951, e desde esse tempo já eram consideradas como um modelo em
decadência), pequenos mutirões, juntando até dez ou quinze pessoas (número que meus interlocutores
consideram muito aquém das verdadeiras kombit), acontecem o tempo inteiro, especialmente por ocasião da
construção de casas e quando chega o tempo da colheita.

259
argumento típico quando está em disputa o equilíbrio de poder entre os donos da casa. Por outro
lado, a solução encontrada por Jaklin, de comprar material de construção e mandar erigir uma
estrutura em alvenaria cobrindo a antiga estrutura de madeira, foi extrema. Apenas um
problema verdadeiramente grave, como era a expulsão e o deserdamento de sua filha, poderiam
levá-la a mobilizar todos os seus recursos no intuito de desafiar seu marido. Mas o que estava
em jogo era o futuro do seu sangue. No conflito entre uma relação de descendência e uma
relação de aliança (matrimonial), ela não venderia sangue para comprar pus. Casamento é vinte,
crianças são vinte-e-um.

Abastecimento da casa e regimes de propriedade


Com tudo que discutimos neste capítulo até aqui, em especial na descrição do conflito que
motivou a “reforma” da casa de Jaklin e Evens, já devemos ter reunido indícios suficientes para
mostrar que não é possível pensar a casa sem falar do dinheiro da casa. Este é o principal ponto
de conexão entre os capítulos anteriores e este último, entre a gestão do comércio e a gestão da
casa.
Eu não fiz nenhum tipo de levantamento de orçamentos domésticos. A única casa sobre a
qual tenho dados de melhor qualidade é a casa de Jaklin, devido ao fato de que eu morava lá,
passava boa parte do tempo ao lado dela, acompanhando muitas das vezes em que ela foi fazer
compras, e observando fluxos de comida, de roupas e de outros itens. Mesmo que sejam apenas
estimativas, é muito difícil dar conta do orçamento total de uma casa, mesmo na intimidade. O
segredo de Jaklin a respeito do pagamento da escola de seus sobrinhos (e este não foi o único
segredo monetário que ela me confidenciou) não é uma excentricidade, é comum que as
pessoas ocultem determinados recursos, principalmente dinheiro em espécie. Circulavam
rumores de que tal pessoa teria ganho tanto dinheiro no bolèt, de que tal outro vendera uma
moto ou um boi por tal valor, que fulano juntara tanto dinheiro trabalhando na RD, ou que teria
recebido tal quantia em remessa, por exemplo. Mas, na maioria dos casos, não era possível
saber com certeza. As pessoas perguntam abertamente sobre valores (por exemplo, se uma
pessoa volta do mercado trazendo suas compras, é comum que alguém pergunte quanto ela
pagou por tal ou qual item) tanto quanto perguntam “onde você está indo?”, “de onde você está
vindo?” Note-se que são perguntas articuladas entre si, pois a informação de que tal vizinha
comprou X pelo preço Y vale pouco se não se souber onde foi que ela conseguiu esse preço.
Para ambas as perguntas, é muitíssimo comum (e quem faz a pergunta já reconhece essa
possibilidade de antemão) que a pessoa inquirida desconverse ou dê alguma resposta mentirosa

260
para despistar a curiosidade alheia.187 Ao mesmo tempo em que vigora essa curiosidade faminta
de informação pelas operações alheias, as pessoas não saem por aí dizendo quanto dinheiro têm
guardado, tanto para evitar que outras pessoas próximas as pressionem para empregar o dinheiro
dessa ou daquela forma quanto porque se considera perigoso fazer isso. Existe o medo da inveja
dos vizinhos, já citado, e existem assaltos.188 Tomando tudo em conta, nem os próprios
moradores têm uma visão global e completa dos fluxos de dinheiro que entram e saem da casa.
E no caso de falta de intimidade (como a mim me faltava em todas as outras casas, pelo menos
no mesmo grau que eu tinha na casa onde eu morei), levantar orçamentos domésticos exaustivos
é uma tarefa que beira o impossível, à qual eu nunca me propus. Essa longa ressalva pretende
deixar claros os limites dos dados que exponho aqui. Dito isso, vejamos em linhas
assumidamente panorâmicas como se dá a composição de gastos da casa.
Em ordem de grandeza, o primeiro item de dispêndio cotidiano é, de muito longe, o que
se chama de provisão (principalmente comida, mas contém outros itens de uso cotidiano como
fósforos, óleo, sabão, pasta de dente, cremes). Em segundo lugar, vêm as roupas. Quando uma
mulher vai ao mercado fazer provisão – o que costuma se repetir a cada semana, e, dentre as
funções femininas, é uma das mais repulsivas aos homens (cf. Lowenthal 1987) – não existe
marcação do que é destinado para qual membro da casa, exceto talvez em termos genéricos, do
tipo “as balinhas são para as crianças”. A provisão é, portanto, um estoque geral da casa, que
deve suprir todos os seus moradores.189 As roupas, por outro lado, são marcadas para pessoas

187
Essa curiosidade tem nome: tripotay [“fofoca”], e é um tema frequente de conversas. Parece bem disseminada
a opinião de que “existe muita tripotay nessa vizinhança”, escutei variações dessa frase ditas por diversos
interlocutores, principalmente, mas não apenas, na boca de jovens adultos.
188
Em um caso fora do comum, Ti Wilky, um vizinho de Jaklin, se gabara do dinheiro que juntara na RD (ele
pretendia comprar uma moto com esse dinheiro) e chegou a ostentar, em público, um grosso maço de notas,
mencionando o valor total: 28.000 pesos dominicanos. Essa estupidez vaidosa –foi nestes termos que a história
chegou até mim– quase lhe custou a vida, pois no dia seguinte, ladrões mascarados e armados invadiram sua
casa. Teriam roubado também outras casas na vizinhança imediata, segundo disseram apenas para disfarçar o
fato de que já conheciam a vítima, mas enquanto nas outras casas os ladrões foram rápidos e pareceram só
pegar aquilo que encontraram fortuitamente pelo caminho, demoraram mais na casa de Ti Wilky, que levou
chutes e coronhadas até confessar onde estava guardado aquele maço, cujo valor exato eles já conheciam. Um
rapaz reagiu ao assalto, durante a luta corporal apontou a arma que estava na mão do ladrão para a cabeça
dele, e conseguiu matá-lo assim, antes mesmo de desarmá-lo. Os outros dois fugiram. (Um dos ladrões,
morador das proximidades, foi reconhecido mesmo de máscara. Sua mãe teve que mandá-lo às pressas para
fora do país, pois se ele ficasse, assim que fosse encontrado, seria linchado até a morte. O ocorrido se passou
há alguns anos, e até hoje ele nunca mais pisou na região.) Parte do comentário geral é que os ladrões não
eram necessariamente bandidos, a visão daquele dinheiro é que teria deixado-os cegos de ganância. A burrice
de Ti Wilky, portanto, fora prejudicial não só a ele mesmo, mas também aos seus vizinhos, por quem ele foi
duramente repreendido após o acontecimento.
189
E aqui lembramos um ponto interessantíssimo levantado por Karen Richman (2005): no Haiti, fazer comida é
uma função menos prestigiosa do que separar a comida. Fazer a comida é algo que pode ser delegado a crianças
e adolescentes, não se dá muita importância às sutilezas no preparo. Já a separação da comida em porções
proporcionais às necessidades dos moradores, designadas especificamente para esta e para aquela pessoa,

261
específicas. Assim, Jaklin volta do mercado dizendo que trouxe essa blusa para tal filho, essa
outra para tal outra, e assim por diante. Contudo, essa propriedade é vaga. A pessoa reconhecida
como dona pode reivindicar para si, dizer “me dá essa blusa, ela é minha”, mas isso não significa
de forma alguma que ela será a única a usar aquela peça (não garante sequer que ela vá ser
atendida em seu pedido quando for o caso). Pelo contrário, existe uma alta circulação de peças
de roupas entre os moradores de uma mesma casa, inclusive de roupas íntimas e de calçados, e
inclusive quando o tamanho da peça de roupa em questão não é adequado ao tamanho do corpo
que o está vestindo. A separação entre roupas masculinas e femininas existe, mas também há
alguma fluidez: homens nunca usam saias, mas camisetas ou bermudas, por exemplo, são
usadas indiferentemente por ambos os gêneros. Assim, as mesmas peças de roupas passam por
todos os moradores da casa, o que diminui a vida útil de cada peça (e dá um caráter mais
contínuo aos gastos com roupas, é preciso renová-las constantemente), mas garante uma boa
variedade de opções disponíveis. Como dificilmente há armários nas casas (creio que nunca
cheguei a ver um único na região de Lakaniyt), malas são usadas para esse fim. Essas
malas/armários são atribuídas a donos específicos, mas nem sempre individuais. Na casa de
Jaklin, por exemplo, havia sete malas em uso para um total de catorze moradores. Como a casa
dela tem uma condição econômica melhor que muitas nos arredores, é de se imaginar que a
proporção entre malas disponíveis e pessoas usando-as seja menos individualizada na maioria
das casas. Mesmo que houvesse uma mala para cada pessoa, nada garante que a mesma roupa
será guardada sempre na mesma mala. Pelo contrário, a circulação de roupas entre diferentes
malas é a regra, e quando alguém buscava uma peça específica, não era incomum que tivesse
que passar por duas, três, quatro malas diferentes até encontrá-la (via de regra, reclamando ao
longo do processo).
Se uma determinada peça de roupa fosse retirada desse regime de uso comum, seria
preciso marcá-la, dar a ela um caráter excepcional, e provavelmente ter um esconderijo para
guardá-la, longe dos olhos dos outros moradores da casa.190 Esconderijos são usados com
frequência, para roupas ou quaisquer outras coisas que um ou outro morador queira manter fora
do regime de compartilhamento. Por exemplo, Carnesto guardava pilhas alcalinas em um
buraco do teto, Caslin guardava suas canetas preferidas em um estojo oculto sob o forro da

requer a presença de uma pessoa com mais legitimidade para fazê-la. De preferência, a responsabilidade deve
ser tomada pela própria dona da casa, não se pode delegar essa função a qualquer um.
190
Exceto roupas de festa (também usadas aos domingos para ir à igreja), que já são, de antemão, demarcadas
como tais. Não é preciso esconder essas roupas, elas não são pegas sem permissão explícita do(a) dono(a).

262
cama. Esses locais secretos, contudo, costumam ser de duração efêmera, basta uma pessoa
descobri-lo para que logo se tornem de conhecimento comum e percam sua função. O próprio
ato de esconder algo para guardar para si costuma contar com essa efemeridade – Caslin quis
guardar suas canetas enquanto esperava um exame importante que faria, Carnesto também tinha
uma ocasião específica no futuro próximo para a qual reservava suas pilhas, mas dificilmente
alguém teria a pretensão de tirar do regime de compartilhamento geral algo de forma
permanente. Se fosse este o caso, o esconderijo talvez estivesse fora da casa.
Dentro da casa, principalmente para itens de consumo cotidiano, vigora um sistema de
compartilhamento amplo. Quando um morador adquire um bem qualquer e o traz para dentro
de casa, é de se esperar que qualquer outro membro da casa, caso assim deseje, também acabe
usando esse bem. Isso nem sempre é pacífico, o dono original pode reclamar e tentar evitar que
os outros usem suas coisas, mas tais esforços costumam ser em vão.191
Juntas, as provisões e as roupas constituem o grosso das despesas cotidianas da casa.
Existem outros gastos significativos e impactantes, cuja temporalidade ou é mais espaçada, ou
é ocasional e imprevisível, aos quais voltarmos em breve. Antes, descreveremos os regimes de
propriedade dos bens produtivos mais importantes na região: terras, animais e motos. As
operações de compra e venda destes itens movimentam grandes somas de dinheiro e envolvem
planejamento de médio a longo prazo. Por vezes as pessoas, principalmente jovens, passam
meses inteiro trabalhando na RD a fim de juntar dinheiro para efetuar uma dessas compras. As
terras constituem a parte mais significativa do patrimônio dos indivíduos e famílias, em termos
da propriedade que fica como herança, são de longe o item mais importante na região. Veículos
automotores (numa vizinhança como Lakanyit praticamente só há motos) e animais de grande
porte também não são negligenciáveis. Além de funcionarem como reserva de valor, os gastos

191
Nesse sentido, a minha presença causou algum distúrbio, pois o fato de que eu estava morando lá tornava
todos os meus objetos pessoais acessíveis, ao mesmo tempo em que eu sou um blan, um convidado fortemente
marcado pela condição de estrangeiro. Jaklin fez repetidos apelos aos moradores da casa, principalmente às
crianças, que não pegassem minhas coisas na minha ausência, mas isso não extinguiu a curiosidade delas (que
era muito aguçada pelo fato de eu ser um blan). No fim das contas, com exceção do dinheiro (no qual ninguém
nunca tocou, e contra o qual havia um forte tabu, constantemente reafirmado por Jaklin como um motivo de
orgulho a respeito da honestidade de seus filhos e todas as pessoas que habitam sob seu domínio), do meu
telefone celular (que eu costumava manter comigo), do gravador de áudio e dos cadernos de campo (único
caso em que eu pedi enfaticamente que não tirassem do lugar), os outros objetos que levei (por exemplo,
lanterna, tablet, cartão de memória, pilhas, cortador de unha) logo entraram, com meu consentimento
implícito, nesse regime comum. Curiosamente, os rapazes tinham pudor que eu os visse usando minhas roupas,
por vezes alguém usava sem saber (apenas para ser alertado por um de seus irmãos, “ei, tira isso, essa é do
Felipe”, tipo de comentário que parecia ter o objetivo, geralmente bem-sucedido, de constranger), mas quando
reconheciam como minhas, eles evitavam pegar peças de roupa visíveis (além do que, minhas roupas não os
agradavam esteticamente), mas as cuecas, menos visíveis (e menos importantes na composição estética), logo
começaram a circular por outros corpos, à minha revelia.

263
envolvidos nessas aquisições são também uma forma de investimento. As terras podem
geralmente ser revendidas no mínimo pelo mesmo preço que foram adquiridas, e produzirão
frutos valiosos nesse meio tempo (tanto os nascem diretamente do cultivo da terra quanto
indiretamente pelos diversos arranjos de arrendamento), os animais, como seres que nascem e
crescem, são quase sempre vendidos por um valor mais alto do que foram comprados, além de
poderem dar filhotes, e as motos são habitualmente empregadas no transporte comercial de
passageiros.
O regime de propriedade das terras é juridicamente complexo, diversos arranjos
movimentam um mercado dinâmico, que não descreveremos em seus detalhes. 192 O tema
aparece aqui com a finalidade precisa de caracterizar como determinados recursos são
atribuídos a pessoas específicas. No caso das terras pertencentes a família de Jaklin, são lotes
descontínuos, espalhados no raio de alguns poucos quilômetros desde sua casa. Pedaços
específicos desses lotes são atribuídos cada qual a um filho/filha, que é o responsável por seu
cultivo. Assim, um lote designado a Yvlin está ocioso, “porque ela é preguiçosa” (opinião geral
que ela confirma ao justificar o estado de suas terras). Esse pedaço de terra, não tendo nada
plantado nele, não será chamado de jaden, mas de “terra” [tè]. Enquanto isso, os lotes de Castro
estão florescendo com diferentes culturas. O nome mais comum para esses pedaços de terra é
jaden [“jardim”, ou “roçado”], que não é uma unidade espacial, dado que seu tamanho pode
variar muito, mas é uma unidade de cultivo e de propriedade. Embora não sejam cultivos de
monocultura, podendo haver diferentes espécies conjugadas, geralmente há o reconhecimento
de um cultivo como principal que permite uma referência metonímica, do tipo jaden pistach
[“plantação de amendoim”].
A referência ao lote também é feita pelo nome do seu responsável, por exemplo jaden
Castro [“roçado do Castro”]. Se tal lote é atribuído a Castro (seja em qual arranjo jurídico
fundiário for), isso significa que ele ficará responsável por decidir o que plantar, quando plantar,
quando colher, quanto da colheita será vendido e quanto será reservado para uso próprio ou
estocado com o fim de garantir sementes para plantações futuras (esse estoque de sementes
guardadas para semear a safra seguinte também é chamado de pwovisyon). Ele receberá
conselhos e advertências de seu pai e de vizinhos mais velhos, pedindo ou não, mas as decisões
finais caberão a ele, assim como a realização do trabalho braçal. É claro que ele não fará tudo

192
Leitores interessados no tema podem consultar os trabalhos de Métraux et al 1951, Larose & Voltaire 1984,
Murray 1987, Bloch, Lambert & Singer 1988, Woodson 1990, Lundahl 1996, Smucker, White & Banister
2000.

264
sozinho, os trabalhos de aragem, semeadura e colheita demandam muitas mãos. Segundo as
circunstâncias, essa “ajuda” [èd] fundamental poderá ser dada por seus irmãos, pai, tios, irmãs,
tias, amigos, gente da vizinhança.193 Cabe a ele convidar e mobilizar essas pessoas, bem como
providenciar a comida que será compartilhada com todos que trabalharem na ocasião (essa
função tende a ficar a cargo da esposa).
Se ele plantou um jaden de banana, todas as bananas que saírem daí pertencerão a ele.194
Como homem, ele dificilmente irá em pessoa vender suas bananas no mercado. Alguma mulher
fará isso por ele, preferencialmente sua companheira, caso ele esteja envolvido em algum
arranjo conjugal. Caso não, poderia ser sua mãe, uma de suas irmãs, tias ou mesmo alguma
vizinha que se disponha a fazer essa gentileza (como Jaklin recorrentemente faz para alguns
vizinhos menos calejados que ela no universo dos mercados). O dinheiro referente a esse venda
é exclusivamente dele (ou exclusivamente do casal formado por ele e a mulher que coabita com
ele), nenhuma das pessoas que o ajudou no trabalho braçal tem direito a qualquer fração, nem
mesmo a pessoa que foi ao mercado vender para ele. Ele pode dar parte do dinheiro a título de
“presente” para qualquer das partes envolvidas, mas não há obrigação, ele só fará isso se quiser.
Praticamente todos os filhos de Jaklin possuem algum pedaço de terra, em tamanhos e
qualidade desiguais, designado a eles.195 Enquanto recursos produtivos de valor monetário, elas
são atribuídas de forma individual, mas, ao mesmo tempo, são terras da família enquanto
produtoras de comida (embora as pessoas não formulem assim, seria mais exato dizer dizer que
neste sentido as terras são recursos da casa, pois essa é a unidade de consumo de comida, inclui
todos os moradores e também hóspedes eventuais, independente de que tenham laços
consanguíneos ou não). Se Jaklin quer cozinhar banana ou mandioca (que, como alguns outros
tubérculos, pode passar um período variável de tempo debaixo da terra, dando ao seu dono a
oportunidade de escolher o momento mais oportuno para colhê-la), ela sabe qual jaden de qual

193
É provavelmente nesse compartilhamento do trabalho braçal que o conceito de vizinhança [vwazinay] ganha
mais força, sendo importante não só como uma referência espacial, mas como uma fonte de identidade
coletiva, que está sujeita a avaliações díspares. Uma vizinhança unida, onde as pessoas ajudam ativamente
umas às outras, é motivo de orgulho, assim como uma vizinhança desunida está sujeita ao desprezo. Um breve
exemplo: passando por um jaden mal cultivado, mal cuidado, Yvlin fez a seguinte censura; “O que é isso, esse
jaden abandonado desse jeito? Aqui não tem vinhança não?” [pa genyen vwazinay?]
194
Se no momento de fazer determinado jaden ele estiver coabitando com alguma mulher enquanto cônjuge, tudo
que ele fizer pertencerá também a ela. Essa regra tem validade geral, parte do pressuposto de que um homem
só consegue trabalhar se tiver alguém cuidando de sua casa, o fruto do trabalho masculino é de direito do casal,
meio a meio. Mas se estiver morando com seus pais, tudo pertencerá individualmente a ele.
195
Exceto a filha adotiva, Judni. A criança que foi “dada” a Jaklin, que ela afirma criar em condições de igualdade
com seus filhos biológicos, é a única que (ainda) não tem nenhum pedaço de terra, e que não terá parte
nenhuma parte a receber na herança deixada em caso de morte.

265
membro da casa tem o que ela precisa naquele momento (este tipo de informação sobre o estado
dos jaden é compartilhada em conversas, assim como as pessoas da vizinhança têm livre acesso
para frequentar as terras umas das outras), pode mandar o dono ou outra pessoa ir buscar para
ela. Ela acessa os jaden de seus filhos e de seu esposo sem necessidade de pedir antes (o
consentimento prévio para colheita nesses casos já está dado de saída).
Gerir esses estoques vegetais enquanto recursos da casa não é apenas lidar com sua
finitude, escolher o que tirar e o que guardar de forma que ninguém passe fome nem hoje nem
amanhã, é também gerir o equilíbrio entre seus filhos e os frutos de seus esforços. Se ela
retirasse de forma desigual, desfalcando repetidamente os jaden de um deles e deixando intacto
os de outro, isso causaria melindres e conflitos. Segundo ela, esse equilíbrio seria bem mais
complicado se tivesse filhos/as de outro companheiro além de Evens, e se ele também tivesse
crianças de outra mãe vivendo com eles, mas felizmente, na casa dela todos os irmãos e irmãs
têm o mesmo pai e a mesma mãe. Dessa forma, ele pode retirar mais de um em um momento,
mais de outro no momento seguinte, tem uma margem melhor para jogar com o tempo, quem
perdeu algo agora ou deixou de receber (por exemplo, quando ela compra roupas para trazer)
fica tranquilo porque sabe que receberá sua parte depois, eles confiam que existe a intenção de
tratá-los de forma equânime, enquanto a convivência entre filhos de diferentes pais tornaria
essa tolerância mais baixa e as diferenças de momento mais tensas e menos seguras de que se
atingirá algum tipo de equilíbrio no longo prazo.
A comida consumida na casa vem de dois circuitos distintos. Parte dela é comprada no
mercado (principalmente produtos industrializados e importados, entre os quais os consumidos
em maiores quantidades são arroz e óleo). Já os legumes, tubérculos e frutas vêm
majoritariamente das terras de membros da família ou de presentes trocados entre vizinhos. Que
os membros da família tenham ou não terras é um ponto importante na relação de cada casa
frente ao mercado – quando toda a comida vem do mercado, o ritmo das compras é mais
frequente e elas são indispensáveis, enquanto quem tem terras possui uma autonomia maior, as
idas ao mercado para fazer provisão podem ser mais espaçadas.
Quando estão comendo, as pessoas sabem do jaden de quem saiu tal banana ou tal inhame.
Esse reconhecimento de origem não afeta em nada os direitos sobre o alimento preparado. Seria
algo ofensivo, obsceno, grotesco se uma pessoa reivindicasse direitos exclusivos ou mesmo
qualquer tipo de prioridade sobre alimentos já cozidos com o argumento de que vieram do seu
jaden. Ninguém faz isso. Uma vez que o alimento perde sua potencialidade de venda para ser
consumido em casa, a relação anterior de propriedade desaparece completamente. Todos os

266
membros da casa a comerão, sem qualquer distinção motivada pela origem. Já notamos que a
casa é um coletivo hierarquizado – a distinção que se expressa na distribuição da comida reside
aí. Os adultos recebem porções maiores que as crianças, e se alguém passou o dia inteiro
fazendo algum trabalho considerado particularmente duro, poderá receber uma porção mais
generosa por conta disso. Mas a definição de quem comerá quanto, através da separação em
porções individuais, cabe à matriarca – em nenhuma hipótese a qualidade de dono do jaden que
originou o produto autorizaria alguém a assumir essa função ou sequer a tentar influenciar sua
distribuição.
É como diz o provérbio: manje kwit pa gen mèt [“alimento cozido não tem dono”]. Essa
diferença na forma como se encaram recursos com potencial de venda e os mesmos recursos
quando direcionados para o consumo da casa se relaciona às condições infraestruturais. Não
existem geladeiras em funcionamento na vizinhança de Lakaniyt – ela fica há quilômetros do
ponto mais próximo por onde passa a rede de energia elétrica.196 Não se guarda comida de um
dia para outro (da manhã para a tarde ou começo da noite, sim, existem recipientes próprios
para conservar por esse prazo, limitado a algumas horas, como os chamados kabaret). Tudo
que se cozinha deve ser consumido no mesmo dia pelas pessoas que estiverem presentes. Se
por ventura algo sobra no fim do dia, será dado aos cachorros ou outros animais. Jaklin chegou
a afirmar para mim, inclusive, que existem restrições bíblicas proibindo que se guarde comida
para o dia seguinte.
Existe uma correlação entre os regimes de propriedade e as condições materiais, mas umas
não são redutíveis às outras. A convertibilidade de bens entre seu valor de venda,
individualizado, por um lado, e pelo outro lado seu valor de uso, coletivo, também ocorre com
outros bens muito menos perecíveis que a comida já cozida.
Vejamos o caso dos animais. A criação de animais ditos “úteis” [itil], ou seja, animais
com valor de mercado, é muito comum na vizinhança.197 Sua propriedade é individual, seu dono

196
Mesmo em Los Puetes, que é onde passa a rede elétrica, sua disponibilidade é intermitente, não dura mais que
algumas horas por dia, e não é raro que falte por dias inteiros, o que torna impossível, mesmo para o dono de
uma geladeira, organizar sua comida contando com a refrigeração numa base diária. O uso mais comum para
geladeiras e freezers é deixar bebidas gelando para vendê-las antes que voltem a esquentar.
197
Virtualmente todas as famílias, mesmo as mais pobres, têm, no mínimo, galinhas. Eis a lista dos animais que
viviam na casa de Jaklin enquanto eu estava lá começa, dos mais valiosos em ordem decrescente até os mais
baratos: dois bois (ambos de DuCas), um porco adulto (de Sondy), dois filhotes de porcos (um de Carnesto,
outro de Caslin), duas cabras (uma de Jaklin, outra morreu dias depois da minha chegada), e sete galinhas
(pertencentes a diferentes donos, inclusive crianças). Além destes, havia dois pombos que, significativamente,
eram da casa, sem propriedade individual especificada. Para estes pombos, não há expectativa de venda, eles
são mantidos lá caso alguém tenha algum problema de saúde e precise comer a carne deles para “dar força ao
sangue”. Além dos animais comestíveis, havia ainda uma égua (de Jaklin) que estava grávida e deu filhote

267
decide quando vendê-lo, por qual valor, assim como o dinheiro resultante lhe pertence
integralmente. O destino dos animais comestíveis é quase sempre a venda, mas se, por algum
motivo qualquer, ele for consumido em casa, sua carne será consumida por todos os moradores,
e não só os moradores da mesma casa. Exceto se o animal em questão for muito pequeno, ao
preparar sua carne, também enviarão porções da carne cozida a outras casas enquanto presentes.
Esse envio de comida preparada entre casas é um bom marcador das relações de proximidade
e de estima.198 As casas de Jaklin e de Madame Dodo, por exemplo, ficam a mais de meia hora
de distância a pé uma da outra, e todas as vezes em que eu vi um animal ser cozido em qualquer
uma dessas casas, porções fartas foram enviadas à outra, envios que aconteceram nos dois
sentidos. Esse cálculo toma em conta o número de pessoas que se imagina que estarão presentes
na outra casa (seguindo o exemplo, poderia ser até ofensivo mandar para a casa de Madame
Dodo uma porção de comida tão pequena que pudesse servir apenas a ela, excluindo seus
filhos).
Enquanto índice dos fluxos de sociabilidade preferenciais para as pessoas que habitam
cada casa, o envio de presentes comestíveis funciona em paralelo com a troca de visitas, que
podem tanto ser recíprocas quanto unilaterais, ou numa reciprocidade desequilibrada, se uma
pessoa visita com mais frequência que é visitada ou se manda mais presentes do que recebe. No
caso da circulação de comida, a posição de quem faz o envio é mais prestigiosa do que a de
quem recebe, enquanto na troca de visitas, é o contrário, a posição de oferecer hospitalidade
(idealmente recebendo a pessoa que veio visitar com algum presente, principalmente comida já
cozida ou ingredientes crus para que a pessoa os prepare quando voltar à sua própria casa), mas
essa diferença de prestígio é sutil, só se torna marcada se as trocas forem unilaterais – e, neste

(grosso modo, o valor de mercado dos equinos equivale ao de suínos adultos e de grande porte). Como as
casas mais pobres possuíam apenas galinhas, esse conjunto de animais indica que a condição econômica da
casa de Jaklin era melhor que de algumas outras em Lakaniyt, mas nem de longe o bastante para que sua
família fosse considerada rica, havia vizinhos com patrimônio similar ou pouco maior em animais. Para fins
de contraste, a família que me hospedou em Fonds-Parisien tinha em seu terreno um poleiro com várias
dezenas de galinhas, um conjunto de 26 cabras guardadas em outro terreno distante, pagando crianças para
vigiá-las, e ainda um mínimo de três bois e três porcos (conto apenas os animais que eu vi, creio que havia
outros mais), numa casa com cinco pessoas, enquanto na casa de Jaklin havia quase o triplo de moradores. No
caso dos “animais úteis”, existe uma declarada preferência pelas fêmeas, pois quando elas dão cria, todos os
filhotes pertencem ao/à dono/a da fêmea que os pariu. Já com os cachorros, animais tidos como inúteis e
ladrões de comida, passa-se o contrário, preferem-se os machos, porque não querem novos filhotes no lakou.
198
Geralmente as crianças são usadas como veículos para os envios. A proximidade espacial facilita a logística,
é obviamente mais fácil mandar para a casa imediatamente vizinha do que para amigos que vivam a
quilômetros de distância, mas essa conveniência está longe de ser um critério exclusivo – é um critério
predominante apenas no sentido de exclusão, ou seja, a partir de uma certa distância os envios já não são
viáveis, mas dentro do raio de possibilidade que se estabelece uma vez observado esse critério, as escolhas
são demonstrações de carinho claramente eletivas.

268
caso, o mais provável é que a troca não se mantenha por muito tempo, a própria relação tende
a cessar.199 Existe em Lakanyit, portanto, uma etiqueta complexa na troca de visitas e de
presentes entre as casas e as pessoas, além da já mencionada circulação de crianças. A
(micro)política entre moradores da região é vivida nestes termos, interpretando, entre outros
indícios, práticas de hospitalidade e fluxos de presentes trocados entre diferentes casas para
detectar e dar sentido a tensões e desarmonias, para fomentar relações de aliança, identificando
formas de reconhecimento tanto mútuo quanto hierárquico, seja entre indivíduos, seja entre
coletivos identificados a casas e/ou famílias.
Voltando aos animais, o compartilhamento é regra quando acontece o abate e o preparo.
Isso muda radicalmente quem é o beneficiário, de uma pessoa individual, antes dona do animal,
para coletivos cuja definição é mutável, ocasional, sujeita aos mais diversos imponderáveis da
vida real. Uma definição política, que não cabe ao (ex) dono do animal abatido, mas
principalmente à figura feminina dominante na casa onde o alimento foi preparado (pelo menos
a princípio – aqui também podem intervir fatores imponderáveis). Entre os animais “úteis”,
além dos comestíveis, temos os animais de carga. Neste caso, o que estamos argumentando fica
ainda mais evidente. Cada cavalo, cada burro, cada jumento pertence a um(a) dono(a) individual
(só os pombos pertencem à casa). Em caso de venda, o dono tem direito ao dinheiro integral. O
cuidado com o animal, contudo, é uma função com frequência delegada a outras pessoas,
principalmente às crianças no caso do chanje bèt, função que precisa ser realizada algumas
vezes por dia, e que consiste em mudar o local onde o animal está amarrado para que ele tenha
pasto, água e sombra. Já vimos que sempre que um animal de carga passar por um vizinho (ou
até mesmo desconhecidos) carregando algo pesado, a força do animal só não será oferecida
para auxiliar no transporte caso sua capacidade já esteja sendo usada no limite máximo. Caronas
são oferecidas com frequência quando a pessoa está montada no animal. São cotidianos os
empréstimos em ocasiões como, por exemplo, a colheita num jaden de um amigo onde o animal
será útil para transportá-la. Também os bois, enquanto animais de tração, quando são usados
para puxar arado, são habitualmente emprestados, passam de terreno em terreno, segundo a
necessidade.

199
Existem algumas histórias dessa trajetória, por exemplo, em relações de DuCas com alguns de seus parentes
da família adotiva, que apenas ele visitava sem ser visitado. Assim que ficou estabelecida, para DuCas, a
certeza da falta de reciprocidade, ele nunca mais os visitou (seria inclusive algo humilhante continuar indo
nessas condições).

269
Algo análogo ocorre, ainda, com as motos. Documentadas ou não, são entendidas,
conceitualmente, como propriedades individuais. Seus usos práticos, contudo, são pouco
individualizados, não só porque dar carona é um costume generalizado (por vezes para levar
alguma carga, mas no caso das motos é mais usual que as caronas sejam para pessoas – alguns
condutores, a depender do trajeto e da qualidade da moto, por vezes levarão até 3 ou 4 caronas
na mesma viagem), mas também porque os rapazes (neste caso, são quase exclusivamente
homens) emprestam com frequência as motos uns aos outros, as motos passam de mão em mão.
As circunstâncias mais comuns em que amigos pedem as motos uns dos outros são quando se
precisa ir a algum lugar específico, quando se deseja sair com uma garota ou para fazer mototáxi
quando há urgência de dinheiro. Potencialmente todas as motos são destinadas, alternadamente,
tanto ao uso particular quanto ao mototáxi. É difícil que haja uma moto que nunca entrou nesse
circuito do transporte pago em um momento ou outro (ainda que essa não seja sua função
principal), assim como não há mototáxi cuja moto também não ofereça às vezes caronas
gratuitas ou então seja usada por seu dono para fazer seus percursos pessoais, independente de
eventuais passageiros.
A moto de Castro, por exemplo, foi comprada (com dinheiro que ele juntou trabalhando
em fazendas na RD) com a intenção de fazer mototáxi, mas ele nunca conseguiu se dedicar a
isso, tanto por ter outras prioridades quanto porque sua mãe protestou bastante contra a ideia, e
ele mesmo temia sofrer acidentes. Ela se tornou, então, uma moto de passeio. Certo momento,
um amigo dele a pediu emprestada porque queria juntar uma quantia x de dinheiro, e fazendo
táxi na moto de Castro poderia conseguir a quantia desejada em talvez um par de semanas.
Castro não soube mais de sua moto por quase um mês. Quando resolveu pedi-la de volta,
descobriu que seu amigo a havia re-emprestado a outro amigo dele. Este último, ao saber por
telefone que Castro havia requisitado a moto de volta, veio trazê-la para ele no dia seguinte
(embora ambos tivessem o amigo em comum, eles mal se conheciam um ao outro).200

200
Não existe regulamentação da profissão de mototaxista. Embora alguns rapazes se dediquem a essa atividade
regularmente, fazendo sentido portanto considerá-los motoristas profissionais, basta que um rapaz saiba dirigir
e tenha acesso a uma moto para que, caso queira, pare na praça central (ou em qualquer outro ponto propício)
à espera de passageiros. Da mesma forma, este rapaz pode desistir no dia seguinte. Encontrei crianças que
pareciam ter 12 ou 13 anos oferecendo seus serviços para quem se aventurasse a subir na moto com eles. A
maioria dos rapazes aprende a dirigir desde o começo da adolescência. Enquanto difusão do aprendizado da
técnica, a disponibilidade de motos gerada pelos empréstimos é muito importante. Se cada pessoa precisasse
comprar uma moto própria para pegar prática de dirigir, certamente um número menor de rapazes saberia guiá-
las. A marcação de gênero aqui é fortíssima, quase nenhuma mulher dirige moto, e quando o faz, esse fato é
em si a masculiniza e é lido como um forte indício de lesbianismo. Entre os homens, praticamente todos os
jovens sabem dirigir (é um fenômeno recente e geracional, entre os homens mais velhos, muitos nunca
aprenderam a dirigir), embora alguns sejam considerados motoristas muito mais habilidosos que outros.

270
Telefones celulares também estão sujeitos a dinâmicas análogas. Eles não só passam de
mão em mão, sendo objeto de empréstimos frequentes, mas mesmo quando estão em poder de
seu dono, seu uso nunca é exclusivo. Os telefones não são entendidos como objetos íntimos,
como um espaço de intimidade. Quando um morador da casa de Jaklin tinha um telefone
(sucessivamente, Caslin teve um, Castro outro, Sondy outro), vários membros da casa usavam
o mesmo aparelho, assim como o aparelho recebia cotidianamente ligações, mensagens de
áudio e de texto que não eram endereçadas a seu dono, por vezes sequer a moradores da mesma
casa, mas também como recados que deviam ser repassados a vizinhos (em raros casos, isso
pode ser feito como um serviço pago, mas é quase sempre um favor gratuito). Talvez por uma
lógica análoga ao que ocorre com as roupas, esses telefones, passando de mão em mão, parecem
ter uma vida útil relativamente curta, os aparelhos quebram rápido e precisam ser trocados
constantemente, mas, ao mesmo tempo, na rotatividade entre diferentes aparelhos, opera na
vizinhança um sistema de recados bastante eficiente e rápido, que parece permitir a
comunicação à distância com qualquer pessoa, ainda que haja muito menos telefones do que
pessoas.
Voltando aos regimes de propriedade em torno da terra e de seus frutos, vimos que
enquanto culturas destinadas para a venda existe uma propriedade individual bem determinada,
mas enquanto alimento, a propriedade passa de um indivíduo para o conjunto de membros que
dividem a mesma casa (e por vezes de outras casas também), sob critério e supervisão da figura
feminina dominante. Usando os termos da literatura anglófona, descrevemos um processo que
pode ser caracterizado como uma conversão de cash crops, onde o dinheiro é individual e
individualizante, em food crops, onde a comida é compartilhada, e cuja distribuição estabelece
os coletivos que são os sujeitos relevantes nesse caso. Se o estado de um dado legume ou
tubérculo originalmente orientado para a venda passar por uma transformação qualquer que
torne seu preço desvantajoso, ele acabará sendo comido em casa. O mesmo tende a acontecer
com um animal que tenha algum osso quebrado ou outra condição física que desvalorize seu
valor de mercado.
Podemos, ainda, usar os termos clássicos de Marx para ver conversões frequentes entre
“valor de troca” e “valor de uso”. Essa conversão ocorre em ambos os sentidos. Se as
circunstâncias incentivarem, bens que antes tinham função de uso próprio podem rapidamente
ser disponibilizados como mercadorias para venda. Isso ocorre costumeiramente com roupas e

Pequenos acidentes são comuns, quase todo mundo já caiu pelo menos um par de vezes, seja dirigindo, seja
como carona. Acidentes graves são menos comuns.

271
com objetos industriais e/ou eletrônicos de maior valor, incluindo motos. Por exemplo, em uma
das vezes em que foi trabalhar na RD, Castro comprou um gerador de energia elétrica [dèlko]
para dar de presente para sua mãe. Além de simbolizar uma demonstração de cuidado e de
carinho, era um objeto útil, servia bem às necessidades da casa, e embora não tenha sido usado
dessa forma, tinha potencial para gerar renda.201 Contudo, ao precisar de um montante maior
de dinheiro rápido, Jaklin não hesitou em vendê-lo. O que se pretendia como um objeto de uso
próprio foi rapidamente convertido em uma mercadoria disponível para venda (sem que isso
gerasse nenhum mal estar com o filho que presenteou, ele entendia a lógica e reconhecia sua
legitimidade tranquilamente). Em outra ocasião, Sondy viu à venda um tênis que achou bonito
e que estava com um bom preço, justo quando trazia dinheiro com ele, então comprou-o. Já em
casa, ao testar o calçado recém-comprado e constatar ele não servia no seu pé, passou a sugerir
aos outros presentes, inclusive eu, que testássemos todos para ver em qual pé servia. Ele não
deu a menor importância ao fato de que não era o número dele, pois ainda que não fosse esse o
objetivo inicial, ele tinha certeza de que conseguiria facilmente revender um tênis tão bonito a
alguém fazendo lucro.
Vários outros exemplos poderiam ser oferecidos dessa conversão no sentido contrário, de
objetos pessoais para fontes de dinheiro imediato, mas isso não parece necessário. Pretendemos
a essa altura já ter mostrado suficientemente como a separação entre “valor de uso” e “valor de
troca” é fluida, sujeita a marés que sobem e descem. Não é preciso que sejam comerciantes, de
forma geral as pessoas estão abertas a esse tipo de oportunidade. Essa flexibilidade configura
entendimentos e práticas culturalmente específicas no manejo dos recursos econômicos e do
que pode ser legitimamente reivindicado por indivíduos ou grupos. Essa flexibilidade é também
parte de uma estratégia de gestão que dialoga diretamente com a severa escassez de dinheiro,
permitindo lidar com problemas e urgências que, sem isso, seriam talvez insolúveis.
Assim, chegamos ao chamado “sistema haitiano” [sistèm ayisien]. A primeira vez que eu
ouvi essa expressão foi bebendo cerveja com três jovens amigos em Fonds-Parisien. A
explicação que me deram na ocasião é que, se os três estavam andando juntos e apenas um deles
tinha dinheiro, ele gastaria pelos três, compraria as cervejas de três em três, pagaria os petiscos
em porções adequadas ao coletivo, e o que mais viessem a consumir. Ressaltaram logo que,

201
Em vizinhanças distantes da rede elétrica como Lakaniyt, por vezes os geradores são usados para alimentar
uma multiplicidade de telefones celulares, cobrando uma pequena taxa. Esse tipo de serviço existe também
em todos os mercados, além de ser rotineiramente oferecido nos salões de cortar cabelo (como usam máquinas
de raspar o tempo todo, são estabelecimentos que sempre possuem geradores funcionando).

272
como eu não sou haitiano, estou fora desse sistema. Pois para todos eles, os fluxos de dinheiro
são irregulares, é normal que um tenha algo para gastar hoje, e o outro amanhã, uma rotatividade
que supunha alguma igualdade de condições pelo menos grosso modo, como se no longo prazo
a soma total paga por cada um tendesse ao empate (mas ninguém mantinha qualquer tipo de
contabilidade a esse respeito, e fazê-lo iria totalmente contra o espírito do sistema). Já eu, como
qualquer blan, era automaticamente entendido como uma pessoa rica, eu sempre teria mais
dinheiro que os outros, portanto não poderia jamais entrar no sistema sem causar um
desequilíbrio que entre eles não existia.
Voltei a escutar a mesma expressão algumas outras vezes com este sentido de
reconhecimento de uma coletividade (tipicamente entendida em termos de amizade) ocasional
e efêmera, definida pelo consumo comum.202 Os princípios de (não) compartilhamento incidem
diretamente sobre o entendimento de pertencimentos. Se, por exemplo, há um grupo de seis
pessoas conversando, e alguém traz quatro cervejas (que terão destinatários específicos), isso
pode indicar que as duas pessoas que ficaram sem não estão sendo consideradas da mesma
forma, que o seu pertencimento àquele grupo ali reunido pode não ter o mesmo estatuto.
Este é um equilíbrio delicado e instável, em raras ocasiões as pessoas desejarão deixar
claro que estão excluindo tal ou qual pessoa. É óbvio que, nestes termos, o número de pessoas
andando juntas não pode ser muito alto. Tomando o exemplo dado acima, se se tratar de uma
ocasião pública como uma feira ou uma festa, é mais provável que os quatro que estão andando
juntos se dispersem dos outros para que o compartilhamento entre eles seja mais discreto. A
discrição é um elemento sempre enfatizado no sistema – é importante que quem olhe de fora
não saiba quem está pagando pelo que. Como me alertaram diversas vezes, “ninguém precisa
saber quem está andando com dinheiro e quem está sem nada”. É assim também que os gastos
são feitos, alguém por iniciativa própria simplesmente vai e traz algo para todos que estão
andando com ele, não anuncia antes, ninguém faz alarde. Não creio que mesmo entre amigos

202
Bulamah (2018:30-31) identifica diferentes subsistemas (dos ancestrais, da comida, da magia, etc.) que
integrariam e seriam conjuntamente englobados pelo “sistema haitiano” [sistèm ayisien], em oposição ao
sistema estrangeiro [sistèm blan]. A noção de sistema, nesse sentido, se caracteriza por distinguir um modo
específico como as coisas funcionam. Desde minha própria pesquisa de campo, o uso dessa palavra com
referência a algo como subsistemas apareceu principalmente quando as pessoas se referirem ao modo de ser
umas das outras usando esse termo – por exemplo, se alguém menciona “o sistema da Jaklin” [sistèm Jaklin]
é o modo como ela concebe as coisas, como lida com elas, a forma particular como os acontecimentos a
afetam, etc., o que endossa o argumento de Bulamah. Assim, o que identificamos acima como “sistema
haitiano”, em sua relação com o consumo compartilhado em eventos e locais públicos, por um lado se justifica
pelo fato de que, em campo, ele assim me foi explicitamente apresentado, e voltei a escutar a expressão pelo
menos mais quatro ou cinco vezes em circunstâncias similares, mas, por outro lado, temos indícios suficientes
para supor que esta é apenas uma pequena faceta de um conjunto bem mais amplo.

273
íntimos uns saibam ao certo (pelo menos não sempre) quanto os outros têm, ou quanto estão
dispostos a gastar nesse modo coletivo. O que podemos afirmar com mais certeza é que
dificilmente alguém que saiu junto com seus amigos comprará qualquer coisa para consumir
numa porção que sirva apenas a ele mesmo. Fazer isso seria imoral, seria uma atitude
mesquinha e avarenta [chich], coisa que só um blan faria (num contexto como este, o termo
blan pode ser bastante pejorativo).
Retomemos a linha principal do argumento: ao contrário do que acontece no universo dos
mercados públicos, amplamente povoado por “empresas de uma pessoa só”, onde cada
machann é responsável exclusiva por gerir tanto seu capital quanto seus estoques e fazer
compras para reabastecê-lo, quando nos voltamos para o âmbito do consumo, a casa é uma
unidade de análise muito mais relevante que os indivíduos. Individualmente, comerciantes
como Jaklin e Madame Dodo não se colocam de forma alguma como destinatárias preferenciais
do dinheiro que conseguem fazer. Como mulheres, elas precisam sustentar a casa. Existe uma
metáfora arquitetônica clássica no Haiti para se referir às mulheres: poto mitan [“pilar central”].
A imagem popular das mulheres haitianas como a viga central de sustentação da casa sem a
qual toda a construção ruiria, que tem despertado interesse na literatura feminista (por exemplo,
N’Zengou-Tayo 1998, Bell & Danticat 2001, Ulysse 2015), foi retomada por Flávia Dalmaso
(2014) enfatizando as capacidades reprodutivas das mulheres.203 Este ponto que me parece
importante, e implícito no adágio popular fanm se poto mitan [“as mulheres são o pilar central”],
pois a centralidade da posição feminina sustentando esse coletivo ora caracterizado como
família, ora como casa, diz respeito primordialmente às mulheres enquanto mães. A atividade
comercial levada a cabo por Madame Dodo e Jaklin é indissociável do fato de que elas são
mães.
É impossível compreender a busca pela vida sem que se compreenda esses regimes de
compartilhamento, tanto de recursos quanto de substância (comida e sangue). Na concepção de
vida em jogo aqui, a vida faz pouco sentido se tomada isoladamente. A vida que faz por merecer
seu nome está inextrincavelmente entrelaçada com outras vidas. O laço tomado como o mais

203
“Com base nas concepções locais acerca do que é ser mulher e das associações que são comumente feitas entre
as mulheres e a figura do poto mitan, nome pelo qual se chamam as vigas centrais em uma casa e, também, o
poste em torno do qual os espíritos dançam e comem nos serviços vodu e que representa nessa cosmologia a
ligação do céu com a terra, afirmo que as mulheres/mães são agentes fundamentais na produção de
familiaridade entre as pessoas.” “Meus interlocutores associam as mulheres com a figura de um poto mitan na
medida em que as enxergam como responsáveis pelo primeiro alimento de todos os seres humanos - o sangue
que chega ao bebê através do cordão umbilical - e também pelo preparo da comida que é compartilhada por
todos aqueles que estão vivendo juntos em uma casa.” Dalmaso 2014:25, 92.

274
intenso é aquele entre a mãe (e em menor medida, também o pai) e seus/suas filhos/as, mas
vimos também diversos outros princípios de entrelaçamento, como a importância da noção de
vizinhança (cf. nota 203), a forma como o sistema haitiano opera entre amigos, os cuidados
mútuos tomados entre pratik, e também através da comensalidade (tema melhor explorado em
Dalmaso 2014, 2018) e das múltiplas formas de adoção. Nessa constelação de relações, a casa
aparece como uma unidade espacial fundamental, um lugar privilegiado para observar quais
recursos se compartilham com quem, e como.

Configurações nas quais as casas participam


Até aqui, demos uma descrição das casas (neste caso, será mais preciso dizer dos lakou)
como domínios quase autárquicos. Este é um traço pertinente em termos morais, do
reconhecimento que se presta aos donos de cada pedaço de terra. Como nota Lowenthal
(1987:253-4), no Haiti rural “a terra é o que te dá respeito, e o que te dá a vida” [tè-a ba ou
respè ou, e li ba ou lavi-ou tou]; o autor afirma que seus informantes tinham a terra como a
fonte básica de toda riqueza, como a condição sine qua non da liberdade pessoal e da autonomia
individual [sic], e que mesmo o proprietário do mais pobre pedaço de terra retira daí uma fonte
fundamental de orgulho e autoestima. Sem entrar nas complexidades jurídicas das questões
fundiárias, há uma diferença básica na vizinhança de Lakanyit entre as pessoas que são donas
de sua própria casa (a maioria) e aquelas que moram de aluguel (relativamente poucas casas,
geralmente alugadas por casais jovens). A temporalidade dos pagamentos de aluguel costuma
ser anual – a permanência dos moradores de aluguel para além desse prazo é incerta. Seu
pertencimento à vizinhança é mais dúbio do que o dos proprietários (algumas pessoas eram
consideradas mais pertencentes à vizinhança de seus pais do que aos lugares onde alugavam
moradia no momento). A mobilidade entre as casas, e por vezes da estrutura física da mesma
casa, que é desmontada e remontada em outro lugar, como vimos nas trajetórias habitacionais,
muitas vezes se dá dentro do mesmo terreno (que oferece um leque de possibilidades desde a
construção à beira do gran chemen até as posições mais retraídas e menos visíveis) ou entre
lotes não-contíguos mas relativamente próximos.
O senso de pertencimento e de respeito vinculado ao domínio do lakou tem como correlato
o reconhecimento dos domínios alheios nos outros lakou [termo que aqui abrange quaisquer
terrenos que contenham casas habitadas]. Você não pode se comportar na casa dos outros com
a mesma liberdade com que age na sua. Esse reconhecimento da necessidade de uma conduta
mais cuidadosa e respeitosa quando se está em domínios alheios opera em diversas escalas

275
espaciais. São habituais, por exemplo, as referências à RD como “a casa dos dominicanos” e ao
Haiti como “a casa dos haitianos” (esses modos de falar são comuns em ambas as línguas, nos
dois países), e mesmo a pessoa que mais despreza os dominicanos reconhecerá a necessidade
de respeitá-los quando estiver “na casa deles”, assim como eu mesmo fui algumas vezes
duramente cobrado quando fui confundido com um dominicano, por pessoas que fizeram
questão de me lembrar que ali era o Haiti e que eu já não estava na “minha casa”.
Tanto em nível individual quanto em termos de vizinhança, o valor da autonomia é
perceptível em diversas falas. Contudo, seus limites práticos são evidentes, em particular no
que diz respeito ao abastecimento das casas.204 Para encontrar uma descrição mais justa,
precisamos nuançar o sentido desse caráter quase-autárquico do domínio sobre o lakou, em
primeiro lugar reconhecendo que ele se coloca sobretudo em termos morais. Não existe
independência material, nem é algo a que as pessoas geralmente aspirem (ainda que haja
arroubos nesse sentido, como o caso da construção da casa de Cuian descrito na nota 178).
As relações entre diferentes domínios se dão em muitos níveis, como a troca de trabalho
voluntário nos mutirões ou nos presentes comestíveis enviados entre as casas. Até aí, as trocas
se dão entre unidades entre as quais existe alguma paridade, principalmente no que diz respeito
às relações entre figuras dominantes em seus respectivos lakou que pertencem (grosso modo) à
mesma geração, como Jaklin e Madame Dodo. Como já notamos antes, as interações entre os/as
granmoun a princípio operam a partir de um pressuposto de igualdade (com tudo que já
dissemos, deve estar claro que essa igualdade não implica em nivelamento das condições
econômicas ou materiais, ponto em que há diferenças sensíveis, mas sim em demonstrações de
respeito e de estima, em códigos de etiqueta, enfim, um reconhecimento de autoridade sobre
um domínio que é em primeiro lugar de ordem moral), marcadamente distinto das relações entre
granmoun e ti moun [“adultos/as” ou “anciãs/ãos” e “crianças”, ou alternativamente “pessoas
responsáveis por si mesmas e pelos seus” e “pessoas ainda não plenamente responsáveis por si
mesmas”]. Por outro lado, mostramos a dependência dos mercados, sua indispensabilidade para

204
O consumo de produtos industrializados nos interiores do Haiti cresceu exponencialmente no último meio
século. A falta de autonomia alimentar é tema constante de debates entre agências de cooperação, diversos
relatórios citam o caso do arroz, cuja produção nacional é hoje ínfima frente às exportações, com a recorrente
acusação de que doações deste grão (desde os anos 1960s, mas de forma mais intensa após 1986),
principalmente desde os Estados Unidos, teria destruído a produção nacional. Como já notamos, algo similar
ocorreu com as roupas – antes eram fabricadas localmente, mas a invasão dos pèpè de origem estrangeira
mudou drasticamente o panorama. O processo se repete ainda com materiais de construção – enquanto as casas
de madeira são construídas com materiais 100% locais, as casas em alvenaria usam materiais importados. Na
fronteira, o fluxo de importação de vigas desde a RD para a construção civil é intenso e visível, pois muitas
vezes as longas hastes de metal são levadas em moto, arrastando-se no chão e levantando faíscas por onde
passam. Esse fluxo também parece relativamente recente.

276
o abastecimento (independente de que os moradores da casa estejam ou não engajados no
comércio). O resultado é que os lakou (e as casas aí contidas) integram uma configuração mais
ampla, que contém não apenas outras casas com as quais se mantém relações de troca e de afeto,
mas também os mercados, e em especial os caminhos e as estradas que levam aos mercados.205
A questão que apresentamos aqui se baseia em dados etnográficos que já foram
apresentados, mas dos quais ainda resta extrair algumas consequências. Formulado de forma
sucinta, o argumento é que as casas participam de configurações mais amplas que incluem não
só outras casas, mas também espaços que ocupam uma função de quase-casa, como o quarto
alugado em Las Matas ou os depósitos contíguos aos mercados onde se pode pernoitar, e que o

29 Quarto alugado em Las Matas, base temporária.


Foto: Felipe Evangelista.

lugar que essas bases avançadas ocupam numa dada configuração depende fundamentalmente
da sua posição em relação aos caminhos e estradas que levam aos mercados, que são,
reciprocamente, polos frente aos quais as casas e as quase-casas estão sempre referenciadas.

205
A noção de configuração adotada aqui é fortemente inspirada no trabalho de Louis Marcelin (1996), que
mostra como moradores de famílias negras no Recôncavo Baiano estão referenciados simultaneamente a uma
multiplicidade de unidades residenciais, sejam estas bem próximas umas das outras, menos próximas, ou
distantes, como na mobilidade entre a zona de origem e a periferia de Salvador.

277
Portanto, mais que uma configuração de casas, temos uma configuração que inclui casas,
depósitos, os quartos alugados que são um misto de depósito e dormitórios, referenciados aos
caminhos e aos mercados. Estamos cientes de que a oposição entre casa e mercado é clássica
na antropologia econômica, e que modelos importantes foram construídos com base nessa
dualidade (por exemplo, Gudeman 2001). Agregar como componentes de uma mesma
configuração casas e mercados é arriscado, uma vez que se dissolvêssemos as propriedades de
cada um destes espaços, o modelo da configuração de casas perderia sua especificidade, e sua
potência heurística se esvairia no caminho. Não temos desejo algum de questionar ou negar a
efetividade da distinção entre casa e mercado. Como já notamos, ela é claramente reconhecida
pelas interlocutoras da pesquisa. Contudo, o modelo que tentamos esboçar aqui é mais poroso,
tanto por levar em conta a multifuncionalidade dos espaços como uma informação etnográfica
importante (embora nem de longe exclusive ao Haiti – para setores de casa que se tornam
espaços de comércio em outros contextos, ver p. ex. Motta 2014), quanto pela necessidade de
integrar também as estradas e os caminhos, o que também é consequência direta da etnografia.
Para tornar o argumento menos abstrato, voltemos aos dados concretos. Já vimos como
uma rede de conhecidos capazes de hospedar visitantes é um pré-requisito fundamental da
mobilidade, tanto no comércio quanto em viagens com outras motivações. Esse tipo de conexão
entre casas frequentemente passa pela geração mais velha enviando pessoas mais jovens, no
caso das permanências mais longas, como aquelas motivadas pela busca de escolas, mas
também envolve deslocamentos onde o hóspede e o anfitrião são da mesma geração, o que é
mais comum no caso do comércio. No caso do comércio a longa distância, essas hospedagens
costumam ter uma duração comparativamente curta, não mais que alguns dias, enquanto no
caso do envio de jovens buscando oportunidades educacionais pode facilmente durar anos
inteiros. Em ambos os casos, é necessário que as casas em questão estejam a distâncias
consideráveis, no mínimo longe o bastante para tornar inviável ou indesejável o retorno no
mesmo dia. Assim, a casa de Madame Tchit, madanm sara de Lascahobas que há tempos é
amiga e pratik de Jaklin, não é de grande interesse logístico como local de pernoite, mas que
por outro lado tem uma posição vantajosa como espaço de armazenamento, especialmente para
mercadorias destinadas ao mercado de Lascahobas ou Mirabelais.
Vimos também como as casas trocam pessoas no caso da circulação de crianças, em
diversas modalidades de adoção. Nessas trocas de crianças, as distâncias podem ser curtas ou
longas. Como resultado, o coletivo formado pelos moradores de uma dada casa não é uma
unidade fechada, estável, nem os pertencimentos são unívocos. Por outro lado, a condição de

278
granmoun implica mais solidez, e os mèt kay [“dono/a da casa”], dado o seu lugar constitutivo
na casa, não participam dessas trocas, a não ser que a antiga casa esteja se desfazendo.
As casas não só trocam pessoas, também trocam presentes, entre os quais os víveres, as
provisões, ocupam um lugar de grande destaque. Parte importante do abastecimento da casa
vem destes circuitos não-comerciais, que acompanham a mobilidade das pessoas, pois elas são
o meio de transporte destes envios. Além disso, a circulação de presentes é um índice
importante das afinidades eletivas, da consideração que vizinhos específicos gozam uns em
relação aos outros, como um tipo de materialização da sociabilidade que permite avaliar e
hierarquizar a importância das diferentes relações, constituindo um dos principais suportes a
partir do qual se estrutura a micropolítica da vizinhança. Nesse sentido, ao lado das trocas de
presentes, podemos colocar também as trocas de trabalho (quem ajuda no jaden de quem),
incluindo o empréstimo de animais e de ferramentas. Tais trocas dão força à noção de
vizinhança e são fundamentais na manutenção e provimento das casas.
Por fim, um último ponto relacionado aos mercados e à multifuncionalidade dos espaços.
Assim como as casas podem ser usadas como pontos de comércio, nos circuitos comerciais os
depósitos também podem ocupar funções análogas à casa. Os depo ocupam uma função
fundamental, e que as comerciantes insistem em que o pior local para usar como depósito é a
sua própria casa, pois dificulta a separação entre as mercadorias do comércio e as de uso
pessoal, e com isso tornar o risco de “comer o dinheiro” maior que nunca. Vimos também (com
as pesquisas de Uli Locher 1975 e Neiburg coord. 2012) que a posição dos depósitos
profissionais está intimamente conectada com as estradas e os caminhos que conectam os
mercados com as zonas de onde originalmente vêm as mercadorias que ali circulam. Para Jaklin
e Madame Dodo, além da inconveniência da pouca separação entre o que se vende e o que se
come, a posição de suas casas não é favorável ao transporte das mercadorias. Outras casas,
contudo, são, como a de Jonas e mesma a banquinha em que Ti Wilky vende bolèt, pois ambas
ficam na estrada antiga, ponto a partir do qual há uma ampla disponibilidade de veículos
motorizados. A casa de Darline, irmã de Jaklin que mora em Carrizal, praticamente em cima da
linha que divide os dois países, também oferece um ponto privilegiado para guardar objetos que
esperam pelo momento mais adequado para atravessar a fronteira. No mesmo sentido, o quarto
alugado por Jaklin em Las Matas só faz sentido por sua posição privilegiada, próximo a um dos
mercados preferidos dela para vender, pois não se cobram as taxas absurdas de Elias Piña, ao
mesmo tempo em que pode-se ir e voltar tranquilamente no mesmo dia. Nenhum desses espaços
têm uma função única, eles servem como local para dormir assim como servem de depósito.

279
Aliás, vale a pena notar o quanto as casas podem ficar entulhadas com objetos que não
pertencem a nenhum dos moradores, destinados a venda futura. A casa de Jonas, por exemplo,
que é relativamente espaçosa, frequentemente tem não apenas um quarto inteiro bloqueado com
objetos empilhados até quase a altura do teto, como também a sala passa boa parte do tempo
parcialmente ocupada por objetos que vêm e vão. Até onde eu sei, as principais usuárias deste
espaço são em primeiro lugar Tina e em segundo Jaklin, mas é bem possível que haja outras
pessoas. Se a casa de Jonas depende de outras presenças femininas para funcionar propriamente,
a ajuda é de mão dupla, cada parte oferecendo serviços de natureza distintas.
Temos mencionado o abrigo para pessoas e para mercadorias como funções que embora
apareçam misturadas são distinguíveis, mas no crioulo haitiano há um verbo que unifica as
duas: sere. Essa palavra significa “guardar”, “proteger”, “estocar”, “fechar”, “ocultar”, “tirar
do campo de visão”, “esconder”, e é usada tanto para dizer que uma casa sere seus moradores
(isto é, os protege) quanto quando chega ao fim um dia mercado, as comerciantes vão sere suas
mercadorias nos depósitos. De certa forma é o oposto da exibição de mercadorias característica
do mercado: elas precisam estar visíveis para os passantes, se uma comerciante se posta de
forma a bloquear a visibilidade daquilo que outra está vendendo, aquela que foi bloqueada vai
reclamar e a outra terá que sair da frente para evitar uma briga. Mesmo nos interiores mais
ermos, quando as casas funcionam como pontos de venda, é prática corrente deixar expostos,
do lado de fora, exemplares unitários dos bens disponíveis. (Há modalidades de comércio que
fazem de tudo para evitar sua visibilidade, mas estas tendem a passar por outros canais, e não
no espaço dos mercados públicos, que funcionam exclusivamente à luz do dia.) A oposição
entre proteger e guardar, por um lado, e expor, pelo outro, ressalta a inegável distinção entre
estes espaços, um marcadamente privado, outro marcadamente público. Ao mesmo tempo, as
casas dependem dos mercados para o seu abastecimento e os mercados reciprocamente são em
grande medida movidos pelas necessidades de aprovisionamento das casas.
Excluindo por um momento os mercados para considerar apenas as casas (ao lado de
outros espaços que cumpram momentaneamente funções análogas), tanto enquanto locais que
abrigam pessoas quanto como abrigos temporários de objetos em trânsito (essa aparente
dualidade não pode ser abstraída), vimos que a configuração formada pelas casas é (1)
fundamental para tornar possível a mobilidade das pessoas entre diferentes zonas, (2) tem
impacto direto sobre a disponibilidade de comida e de serviços, em particular para os cuidados
com crianças e para mão de obra em atividades agrícolas, onde essas trocas são essenciais, e
(3) embora neste caso não sejam estritamente imprescindíveis, são muito úteis para expandir os

280
circuitos possíveis pelos quais se movimentam mercadorias. Os dois primeiros têm validade
geral, independente de que qualquer membro da casa esteja ou não engajado em circuitos
comerciais, enquanto o terceiro ponto é mais diretamente relacionado com esses engajamentos.
Não desejamos perder as propriedades das conexões entre casas dissolvendo-as em uma
mistura com as do mercado. Um modelo de configuração de casas que inclua o mercado corre
um enorme risco de obliterar a importância da “ideologia da família e do parentesco” (termos
usados em Marcelin 1999), perdendo com isso a força moral da casa como um espaço cria
mecanismos de regulação do individualismo através das relações de troca e de cooperação entre
as casas. Na literatura etnológica sobre o Haiti, aliás, é antiga a descrição de dinâmicas
envolvendo uma multiplicidade de unidades residenciais conectadas umas às outras, nos
debates em torno do lakou, onde Bastien (1985 [1951]) pode ser tomado como a principal
referência. A configuração de casas que este autor se dedica a descrever (naturalmente sem usar
essa expressão, que só seria cunhada décadas mais tarde por Marcelin) é caracterizada pela
contiguidade, pelo fato de que as casas cujas conexões eram ressaltadas compartilhavam um
mesmo terreno, onde o arranjo entre elas era marcadamente hierárquico, principalmente nas
relações intergeracionais. Anglade (1982) argumenta que desde o começo do século XX essa
contiguidade se dissolveu, abrindo espaço para que ganhasse importância a contiguidade
seguinte, a vizinhança [vwazinay]. Hoje em dia, a respeito das trocas que envolvem os cuidados
com as crianças e o fluxo de presentes, alguns dos quais são bastante perecíveis, a proximidade
física é um fator relevante, assim como a ideia de vizinhança é crucial. Contudo, a configuração
que tentamos descrever aqui tem como uma de suas características fundamentais justamente o
oposto da contiguidade. Para muitas finalidades são justamente as distâncias que mais
importam, e a relevância de cada espaço é função da sua posição específica em um emaranhado
de caminhos e de estradas.206 Essa característica ganha maior destaque justamente quando se
trata de descrever as configurações em que estão inseridas as casas das comerciantes.
Sobre o estatuto da relação entre as casas, as configurações em jogo não são uniformes,
no sentido de que algumas conexões são muito mais intensas e importantes do que outras. O
arranjo também não pressupõe que as unidades em jogo sejam iguais, tanto que o espaço
alugado em Las Matas, mesmo funcionando como um tipo de base avançada, e mesmo

206
Se na configuração que esboçamos aqui as distâncias importam, seria importante tomar em conta como
participam as bases avançadas “do outro lado do mar”. Sabemos (pelas pesquisas de Joseph 2015 e Montinard
2019) que migrantes chegados antes são um apoio fundamental para os que chegam depois. Na etnografia,
aconteceu que as pessoas de quem me aproximei não tem outras pessoas próximas vivendo no exterior (as
conexões com a RD são muitas, mas esse outro país é ainda a mesma ilha).

281
abrigando pessoas que moraram lá por vários meses, não é considerado uma casa (é como um
tipo de sub-casa), assim como os depósitos, mesmo quando usados como locais de pernoite,
evidentemente não possuem o mesmo estatuto que as casas. Mas existe um igualitarismo moral,
que mesmo quando fictício possui força normativa, entre pessoas da mesma geração, enquanto
donas de suas respectivas casas. Nesse sentido, a força moral da casa está mais relacionada à
sua faceta quase-autárquica, ressaltando o caráter privado do domínio, o que está em franca
oposição com os mercados públicos (essa qualidade pública foi diversas vezes ressaltada pelas
minhas interlocutoras, na afirmação de qualquer pessoa pode vir vender caso queira, pois no
Haiti estes espaços são para qualquer pessoa que quiser chegar, em oposição ao odioso mercado
privado de Elias Piña).

A gestão do tempo e dos gastos


Já descrevemos alguns sentidos da palavra provisão. Ela nomeia as compras feitas no
mercado para abastecer a casa de itens básicos e de consumo cotidiano, principalmente comida.
A parte das sementes e grãos que é armazenada para garantir a próxima safra também é chamada
de provisão. Os tubérculos que estão debaixo da terra, esperando para serem comidos em casa,
são provisão, como também são as frutas e legumes enviados como presentes.207 Tudo que se
compra (ou que se reserva) para comer em casa é chamado de provisão.
Os custos da provisão dominam o orçamento das casas. Há muitas flutuações, mas durante
a maior parte do tempo, para pessoas do nível econômico de Madame Dodo e Jaklin, o
abastecimento de comida gasta a maior parte do dinheiro. O segundo item são os gastos com
vestuário. Esses são gastos de manutenção, que têm ritmos correspondentes, o primeiro mais
acelerado e urgente, o segundo um pouco menos rápido, uma margem mais maleável.
Em termos esquemáticos, existem recursos marcados para lidar com cada situação, fontes
de recursos típicas para gastos típicos. Na casa de Jaklin, cujos 14 membros acessam perto de
cinco karo de terra, os principais gêneros que cultivam para venda são as bananas e o
amendoim. O dinheiro de ambos têm ritmos diferentes. As bananas são colhidas ao longo do
ano inteiro, tanto para comer (são importantes na dieta) quanto para vender, as bananeiras
funcionam como reservatórios de valor cujo ritmo de extração pode ser regulado de acordo com

207
Essa é uma demonstração de carinho e um tipo de presente habitual desde vizinhanças rurais rumo às cidades,
quando algum visitante está partindo de um lugar para outro. É uma cena comum, por exemplo, quando uma
pessoa jovem que está vivendo em Porto Príncipe vem visitar, digamos, a casa de sua tia em Lakanyit, essa
tia separa uma cesta grande cheia de variados gêneros agrícolas comestíveis para presentear sua sobrinha com
provisão, também para que leve para a mãe dela na cidade.

282
as necessidades de momento. Já os jaden pistach [“jardins de amendoim”] dão safras bianuais,
quando chega a hora da colheita, ele vem em grandes quantidades, de uma só vez, e a próxima
leva só virá daqui há vários meses. O dinheiro do amendoim concentra valores mais altos em
duas parcelas ao ano, o dinheiro da banana pode ser parcelado em um número muito maior de
vezes. Como consequência, o dinheiro do amendoim tende a financiar gastos menos cotidianos
e de maior valor, enquanto o dinheiro da banana é, pelo menos na família de Jaklin, uma fonte
associada aos custos de fazer provisão (principalmente aquelas que vêm dos jaden de Evens).
Onde entra, nestes termos, o dinheiro do comércio? Encontramos aqui dois horizontes
distintos, um relacionado à manutenção, outra ao avanço. Aqui se expressa uma diferença
econômica entre Madame Dodo e Jaklin. A primeira não tem terra, o abastecimento de sua casa
é completamente dependente do comércio, a provisão tem que ser comprada, enquanto a
segunda compra boa parte de sua provisão no mercado, mas a outra parte que vem direto da
terra também é considerável, tanto como comida quanto como fonte de dinheiro independente
do comércio. Já sabemos que, nos termos usados por elas, levar bananas para vender no
mercado (e usar esse dinheiro para fazer provisão) não conta como fazer comércio, pois não
entra na lógica da busca pelo lucro, não há o ato de comprar para revender mais caro, não exige
gestão de capital. O capital gerido por Madame Dodo, parcialmente composto por variadas
modalidades de empréstimos, gera como lucro um dinheiro que, em sua maior parte, é
consumido como comida. Essa marcação do dinheiro do comércio para fazer provisão é, no
caso de Madame Dodo, inevitável em uma situação econômica desfavorável, pois ela não tem
outras fontes de ingresso para além do comércio, seu marido é um sovina que foi mandado
embora, os mais velhos estão se virando como podem mas muitos de seus filhos ainda são
pequenos, o abastecimento de sua casa depende radicalmente do dinheiro que ela faz nos
mercados. Além desta, há uma marcação alternativa para o dinheiro do comércio, que
obviamente passa longe de esgotar as possibilidades e os arranjos concretos, mas que parece
estabelecida a ponto de ser infinitamente repetida nos mercados. É a escola da geração seguinte.
Os pagamentos escolares no Haiti são anuais. Para o nível econômico da vizinhança de
Lakaniyt, ou para as ti machann de forma geral, eles custam caro. O número de filhos é uma
variante fundamental. Quando eles são muitos e as dificuldades econômicas são grandes,
fatalmente será preciso escolher quem receberá uma escolaridade maior e a quem essa
possibilidade será negada.
Essa associação entre o dinheiro do comércio e a educação dos filhos é quase inexistente
na literatura. A única exceção da qual me recordo é um artigo que já completou meio século

283
(1962), Kin groups in a Haitian market, de Caroline Legerman. A associação aparece apenas
em um vislumbre, sem chegar a ser formulada pela autora. Legerman descreve um grupo de
mulheres que vendiam galinhas e ovos em um mercado de Porto Príncipe, mulheres de origens
provincianas com laços de parentesco entre si, migrantes relativamente recentes do campo para
a cidade. Suas filhas, por outro lado, cresciam na cidade, algumas já nasceram lá. Nesse
contexto, a autora comenta as aspirações de ascensão social da geração seguinte, de que essa
melhora viria através da escolarização das crianças que estudavam em Porto Príncipe,
aspirações compartilhadas tanto pelas vendedoras que pagavam a escola quanto pelas suas
filhas que lá estudavam.208
Na pesquisa de campo, por outro lado, foi algo que eu escutei, literalmente, dezenas e
dezenas de vezes, sem ter identificado aí nada muito digno de interesse enquanto eu estava lá.
Apenas relendo minhas anotações de campo, já no Brasil, foi que me dei conta do quão
recorrente é a afirmação dessa destinação do dinheiro do comércio para os pagamentos
escolares anuais para os filhos. É muito comum que as comerciantes se refiram às suas
mercadorias tomando esse gasto específico de forma metonímica. Por exemplo, uma
revendedora de cachaça [kleren] afirma, batendo a mão no galão: “essa cachaça que você está
vendo aqui, ela é a educação dos meus filhos”. Este é um tipo de exemplo que poderíamos
multiplicar indefinidamente.
Esclarecemos que esse comentário não pretende de forma alguma dar conta da destinação
efetiva do dinheiro do comércio, cujos usos práticos sem sombra de dúvida são infinitamente
mais variados e complexos. O que estamos afirmando é que a evocação recorrente deste gasto,
neste contexto, é significativa. Do ponto de vista das comerciantes, essa associação sintetiza
uma autoimagem, um modo de legitimação.
Como símbolo legitimador dos esforços, os gastos menores, de ritmo cotidiano e contínuo,
estão numa posição diametralmente oposta à educação dos filhos. Ao mesmo tempo em que
não é possível se esquivar dos gastos com comida, eles são a síntese do dinheiro não constrói
nada. Esse é o sentido da expressão “comer dinheiro” [manje lajan]. Não significa que o
dinheiro tenha sido necessariamente gasto com comida, a comida aqui é uma imagem

208
Legerman mostra que essas comerciantes sustentavam suas respectivas casas na cidade, mesmo entre as que
eram casadas, a maioria dos maridos não veio junto para a cidade. A autora afirma que elas tinham autonomia
financeira completa de qualquer homem. Assim, mesmo que ela não tenha citado o custo dos gastos escolares
em particular, tudo leva a crer que eles eram assumidos pelas comerciantes, pagos com dinheiro do comércio.
O comércio era a razão pela qual elas foram para Porto Príncipe. Levaram consigo suas crianças, e o horizonte
de avanço imaginado passava fundamentalmente pela escola dessas crianças.

284
englobante, metonímica, que abrange qualquer outro gasto que seja igualmente improdutivo.
Uma expressão sinônima é gate lajan [“estragar dinheiro”], que revela uma concepção
particular do dinheiro enquanto um bem perecível que, caso não se reproduza, se decompõe, se
descaracteriza, perde suas feições originais. Está claro que o tamanho do dinheiro é uma
variante fundamental, um montante de 10.000 dolà reunido não é igual a 100 parcelas de 100
dolà, o que é possível fazer com o primeiro não é possível fazer com o segundo (daí a
importância do crédito rotativo do tipo sòl e sabotay). Estragar dinheiro, assim como comê-lo,
é afirmar que ele foi disperso em gastos irrelevantes, dilapidando-se sem deixar nada em seu
lugar. Assim, à questão “como conseguir dinheiro para fazer comércio?” – que é, do ponto de
vista de muitas comerciantes que tive como interlocutoras, a grande questão – soma-se outra
que, é o seu reverso: “como não comer o dinheiro conseguido?”, “como evitar que o dinheiro
se estrague?” Que tipos de investimentos permitem contornar a perecibilidade do dinheiro?
Há diversas formas de investimento produtivo, entre as quais as principais são a compra
de terra, de animais e de mais comércio. Outros bens como motos, geradores e freezers também
são considerados produtivos.209 Enquanto Taussig afirma que, para os camponeses do Chocó
colombiano, o entendimento do dinheiro enquanto capital, ou seja, como detentor de poderes
reprodutivos paralelos aos dos seres vivos, era visto como algo sobrenatural e imoral, aqui, pelo
contrário, trata-se de algo naturalizado, principalmente para quem está engajado no comércio.
Desperdiçar esses poderes reprodutivos, gastar um montante de dinheiro grande o bastante para
funcionar como capital sem adquirir nada que vá produzir mais, em muitos casos pode ser visto
como incompetência, burrice ou preguiça, mas pode também, em casos como o da comadre
Madame Dodo, ser uma triste sina da qual é difícil escapar, pois ela tem muitos filhos e o capital
de que dispõe nunca é alto o bastante para que seus poderes reprodutivos (diretamente
dependentes de sua ordem de grandeza) possam fazer muito mais do que a provisão diária, o
abastecimento da casa. O nome que o dinheiro enquanto capital recebe no comércio é
significativo do quão naturalizado é o reconhecimento de seus poderes reprodutivos:
manmanlajan, que ao pé da letra significa “mamãe-dinheiro” ou “dinheiro-mãe”. Uma

209
No caso do freezer, que se faz é gelar bebidas destinadas à venda quando chega a energia elétrica. Existem
tipos de picolé, assim como o costume de congelar água em embalagens de plástico (antes destinadas a outros
líquidos, como refrigerantes ou energéticos) chamado po glas [Glas é “gelo”, po é “pele”, ou “casca”, ou
“embalagem”]. As garrafinhas com água congelada são vendidas durante as horas mais quentes do dia nos
mercados, para que seu degelo ofereça água gelada para beber mesmo após o fim da energia elétrica. Bertilia
tem um freezer funcionando (sua casa está ligada à rede de elétrica), e não faz dinheiro com esse freezer, o
que deixa Jaklin revoltada. Ela diz que sua comadre “é preguiçosa, ela tem asèt [possivelmente uma
apropriação crioula da palavra asset em inglês] e não faz nada com isso”. O termo asèt revela inequivocamente
o entendimento do freezer como um bem produtivo.

285
comerciante em Belladère me explicou o conceito da seguinte forma; “se você tem 5.000 dolà
para investir num comércio, então esses 5.000 é o seu manmanlajan [“o dinheiro-mãe”]. Você
compra com esse dinheiro, e começa a vender. Se, com tudo que você comprou, você vender
por 8.000 dolà, você se lembra que 5.000 é “o dinheiro-mãe”, e os próximos 3.000 serão os
filhos dessa mãe.” É preciso marcar qual era a quantia original para que se reconheçam quantos
filhos aquele dinheiro-mãe deu.
Em outra conversa Jaklin contava de alguns dinheiros que recebera, como os pagamentos
que recebia do hospital (por seu trabalho nas campanhas de vacinação no campo), que
chegavam de forma errática, com meses de distância uns dos outros. Se ela recebeu um dinheiro
como esse, um dinheiro que se destaca do fluxo cotidiano (pressupondo que as necessidades
cotidianas estão sendo pagas, que não se está passando necessidades severas no momento e que
não há dívidas abertas das quais se arrisque perder o controle), ela não quer que esse dinheiro
se dilua em pequenos gastos insignificantes. Nas palavras dela, seu desejo é que esse dinheiro
“se torne uma história” [yon istwa]. Ela quer adquirir algo que permita a manutenção da
lembrança de sua fonte, algo que perdure. Como os pagamentos do hospital não permitiam
muito mais, ela comprou uma cabra numa ocasião, três galinhas em outra. Ela aponta os animais
e diz: “ali está o pagamento do hospital”. É um dinheiro que cresce, que pode adoecer e morrer,
mas que, se tudo der certo, quando chegar o momento adequado, voltará à sua forma dinheiro
com um valor maior que o valor original.210
À guisa de fechamento deste capítulo, retomemos mais uma vez os principais pontos
abordados, reforçando a conexão entre o comércio com a gestão da casa e do sangue. Janet
Carsten (2012:28) já apontou analogias importantes entre os atributos do dinheiro e do sangue.
A primeira é que ambos transitam através de, e assim conectam, diferentes esferas que estariam,
em algum grau, apartadas umas das outras (fronteiras corporais num caso, esferas de troca no
outro, como na clássica formulação de Bohannan 1959, retomada e refinada por Jane Guyer
2004). A segunda reside na noção de vitalidade, que a autora trata nos seguintes termos:

If the metaphorical capacities of blood derive partly from its contribution to vitality
and animation, it is worth noting that money, although part of a world of inanimate objects,
is also prone to be “enlivened” through metaphors of growth and fertility. Here, Marx’s

210
Ela disse o mesmo sobre remessas que eu lhe enviei, falando como se prestasse contas: “Quando você me
manda um dinheiro, eu vou cuidar dele, não vou comê-lo. Vou comprar algo que me fará sempre lembrar de
você, vai se tornar uma história, vou saber que ali está o dinheiro que você me mandou”. A forma como ela o
disse parecia um tipo de agrado, como se julgasse que para mim seria importante ver algo construído com a
minha contribuição, como se fosse de um tipo de lisonja para mim que cada remessa perdurasse no tempo.

286
(1954, pp. 76–87) observations on fetishism are pertinent. And of course these qualities of
money derive from its ability to acquire interest, to seed commercial or other projects, to
grow in itself, or to make other things grow. In so doing, it travels between persons,
institutions, and projects. Like blood, money may flow and is perceived as generative. It thus
seems plausible to link this flow, and the processes of increase or depletion that thereby
ensue, to the quality of animation with which it is metaphorically endowed.
Carsten 2012:28

Já argumentamos a respeito da importância etnográfica de conceitos de vitalidade. No


caso haitiano, a ubíqua afirmação de que as pessoas estão buscando a vida traz implícitas, no
conceito de vida, diversas ideias sobre o que faz a vida florescer ou o que faz ela minguar.
Confluindo com a observação que Carsten faz num registro teórico e descolado de contextos
particulares, trazemos aqui dados etnográficos (localizados no espaço, no tempo, na classe
sócio-econômica, nas filiações religiosas, na língua falada, e ainda mais minuciosamente, em
personagens específicas) nos quais dinheiro e sangue aparecem, de forma explícita e recorrente,
como substâncias cujos fluxos estão diretamente relacionados com oscilações de vitalidade,
fluxos que precisam ser geridos com habilidade e conhecimento para que floresçam.
Etnograficamente, parece justo acrescentar ao sangue e ao dinheiro também a comida, tanto em
sua forma já cozida quanto crua, como uma substância que, além de ter sua própria potência
para gerar relacionalidade (Dalmaso 2014), tem uma óbvia relação com a vitalidade, tanto no
crescimento dos próprios vegetais e animais quanto suprindo a demanda corporal. Além disso,
a comida funciona igualmente como um meio de troca conectando diferentes domínios que
estão em alguma medida apartados uns dos outros, ou seja, as casas, tendo como referência aqui
menos a construção propriamente dita, e mais o conjunto de recursos de que cada casa pode
dispor, especialmente terras e animais. Descrevemos como a casa é, em certa medida, um
domínio autárquico, e como esses domínios apartados se conectam através de trocas de
presentes (principalmente comida), de pessoas, em trocas que podem ser mais longas (crianças
em arranjos de adoção temporária ou permanente, e jovens vivendo distante de seus locais de
origem, ou qualquer outra pessoa na condição de hóspede) ou mais curtas, na forma de visitas.
A troca entre casas tem grande importância na política local, interpessoal, tal como vivida
no cotidian, mas grosso do abastecimento não se dá por esses canais entre casas, mas através
do comércio. Estamos lidando com mulheres comerciantes, mas isso continuaria sendo verdade
mesmo em casas onde nenhum/a morador/a faz comércio. Os lucros, o dinheiro que se faz no
comércio, pode ser consumido no abastecimento da casa, como uma manutenção que é vista

287
como uma corrida frenética onde não se sai do lugar. Mas outro horizonte coexiste com esse,
onde há uma expectativa de ascenção projetada para o futuro, sintetizada na ideia de avanço
[avans], que tem na educação dos filhos sua mola fundamental.
O entrelaçamento das vidas umas nas outras exige que as comerciantes, além dos estoques
de mercadoria e do capital (que em parte consiste em relações de crédito) que precisam gerir,
também cuidem de outras pessoas. Uma formulação em termos tão genéricos poderia ser
estendida a todo o conjunto das pessoas envolvidas no comércio no Haiti, no sentido de que ele
engendra relações que, além de competitivas, são também e ao mesmo tempo de reciprocidade
e de cuidado mútuo, mas no nível de abstração de uma afirmação como essa, o que se ganha
em extensão se perde em profundidade, e não foi esse o tom adotado na tese. Preferimos falar
de personagens específicas, tratar de suas particularidades concretas. Isso nos obriga a
reconhecer essas comerciantes também como mulheres e como mães. Como tais, elas são o
principal eixo de sustentação de suas casas. A vida que buscam fazendo comércio é a vida dos
seus, e é de fato uma busca, exige deslocamentos. Assim, elas ocupam a curiosa posição de
pilastras que se movem.

288
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa tese, buscamos descrever diferentes modalidades de comércio popular no Haiti a
partir de duas personagens principais. Num esforço prévio de contextualização, introduzimos
as principais questões abordadas no trabalho recuperando parte da volumosa literatura
produzida sobre mercados no Haiti, que formula uma taxonomia própria para mapear a
diversidade interna entre as posições que as comerciantes ocupam. Um olhar distanciado as
unifica sob a forma de sistema. Neste sistema, as mercadorias aparecem se movendo em uma
cadeia de distribuição que é eficiente em absorver a produção (especialmente agrícola e
pecuária) mesmo dos rincões mais ermos, passando por pequenos e grandes depósitos, e
colocando-as à venda em diversos espaços, não só os mercados públicos, mas também em ruas,
praças e calçadas, nas proximidades de quaisquer locais ou eventos que atraiam muita gente
(como funerais, festas patronais, fábricas ou arenas de briga de galo) e ainda em residências
que abrem ao público parte de um espaço privado a fim de atrair dinheiro. Esse intricado sistema
se conecta por toda a extensão do país, e abastece não só as cidades – entre as quais Porto
Príncipe se ergue como a cidade por excelência – mas também disponibiliza bens variados
mesmo nas vizinhanças mais longínquas.
As posições que compõem esse sistema são identificadas de acordo com os circuitos
percorridos por cada comerciante, com atenção às diferenças relativas aos modos de
deslocamento (a pé, em montaria animal, de moto, em caminhão, de avião), às distâncias
percorridas, ao volume de mercadorias que cada uma consegue movimentar, à capacidade
financeira. O principal pré-requisito que define o que é possível (ou não) fazer no comércio é a
disponibilidade de dinheiro. É sempre preferível operar com dinheiro vivo, mas quando isso
não é possível – e este é o caso para a maioria das comerciantes durante a maior parte do tempo
– existe uma ampla variedade de arranjos de crédito às quais elas recorrerem, desde o apoio de
parentes e amigos, do adiantamento em mercadorias oferecidos por lojas e armazéns, passando
pelos serviços de instituições bancárias (às quais relativamente pouca gente recorre) e de agiotas
e cambistas informais (mais comuns), até as sociedades de crédito rotativo e outros modos de
revezamento entre colegas.
O circuito do ti komès de Madame Dodo funciona nessa base. Seus negócios são
profundamente dependentes de adiantamentos em mercadorias e de empréstimos em dinheiro,
situação que ela mesma não considera desejável. Um dos efeitos práticos mais sensíveis da
dependência do crédito é a falta de margem temporal. Madame Dodo entende estar sempre

289
correndo e não poder parar, não importa quão cansada esteja. “Sou obrigada.” [Mwen oblije.]
Ela considera muito importante não atrasar a vida alheia, quando caiu doente e mal podia ficar
em pé, uma de suas maiores preocupações parecia ser o fato de que seus credores não
receberiam na data acordada, usava as pessoas ao seu redor para enviar explicações a eles/as,
mandava informes sobre o seu estado de saúde. Ela afirma sempre que suas mercadorias são
“emprestadas”, “não são minhas”. Essa lembrança constante ressalta a importância de separar
o dinheiro do comércio e o dinheiro do dia a dia, que exige uma disciplina dura. Ela repassa
quantias consideráveis de variados gêneros alimentícios diariamente, as mercadorias que ela
vende são os mesmos itens básicos que ela compra para alimentar as pessoas na sua casa. Ela
tem muitos filhos, se preocupa com eles, ao mesmo tempo em que precisa gerir o comércio,
separar o que é dela e o que está só emprestado. No final de cada dia de mercado, ela guarda
sem desfalque sacos de arroz e de outros grãos, farinhas, açúcar, leite enlatado, salame,
macarrão, mesmo quando a comida em sua casa foi pouca para as bocas que lá estavam.
Nos momentos mais duros, é importante ter jaden para minimizar o risco de que falte o
que comer. Madame Dodo marcava esse fato sobre si mesma: “eu não tenho jaden, o meu jaden
é a medida do gode”. Sem o marido por perto, que mesmo quando estava presente não ajudava
em nada e por isso foi mandado embora, toda a provisão da casa dependia dela. Ela se sustenta
com o gode, o instrumento que opera a divisão de unidades maiores em unidades menores.
No pequeno comércio de retalho, toda comerciante tem o seu próprio gode. É um
instrumento de mensuração concreto usado para contas feitas em unidades abstratas,
principalmente a mamit (igual a sete gode). A conexão entre a unidade de conta e o recipiente
material não é perfeita, e as imperfeições da mediação são objeto de considerações que são ao
mesmo tempo éticas, políticas e de etiqueta (como a norma a respeito do modo correto de encher
o gode, usando sua máxima capacidade possível), bem como oferecem brechas para fraudes,
como vimos com as distintas variedades de koup gode. Na lógica do fracionamento tão
característica da economia popular haitiana, há diversas disjunções entre diferentes escalas de
peso e de volume, cuja não-unificação cria essas pequenas margens em que as pessoas habitam.
Em uma longa cadeia de subdivisão, as diferentes etapas no processo criam nichos próprios.
O nicho ocupado por Madame Dodo está hierarquicamente num lugar bem mais baixo do
que o nicho onde operam as madanm sara. Na diferença entre elas, além do volume de
mercadorias que movimentam, as distâncias cobertas são outra variável fundamental. Indo mais
longe é possível fazer mais, mas é preciso investir mais, e os riscos se multiplicam. Os caminhos
são instáveis, não só pela maleabilidade das comerciantes que é fruto de sua abertura a descobrir

290
em trânsito possibilidades comerciais não previstas, mas em especial porque as condições de
possibilidade estão sempre mudando. É necessário conhecer, mas o que se sabia ontem pode
ter ficado obsoleto hoje.
Por questões familiares, Jaklin partiu de um ponto mais favorável que Madame Dodo.
Enquanto a primeira se viu órfã de pai e mãe ainda pequena, a segunda os teve vivos e presentes
em sua vida até depois de ela própria se tornar mãe. Ela recebeu uma importante ajuda de sua
sogra, mãe adotiva de Evens, que lhe ensinou técnicas contábeis e lhe forneceu dinheiro para
tocar seu próprio comércio. É preciso conhecimento para gerir capital, e o aprendizado de Jaklin
esteve cheio de percalços. Madame Dodo nunca se envolveu com um banco (me disse que Deus
não queria que ela se metesse nisso, mensagem que Ele transmitiu a ela através de um sonho
quando ela teve dúvidas a respeito), Tina também não mas pensava em fazê-lo em breve, e
pedia a opinião de sua tia Jaklin, que preferiu não prolongar o assunto nem incentivá-la, por
temer que ela quisesse envolvê-la num empréstimo e a convocasse para assinar papéis, coisa
que ela não queria fazer. Jaklin teve um contato mais intenso com instituições bancárias que a
maioria das pessoas na vizinhança, participou de eventos de formação vinculados a projetos de
ONGs que trabalham com microcrédito, mas seu interesse é limitado, comentava com cansaço
dos dinheiros que exigiam tanto compromisso [angajman], e preferia enviar sua filha Casline a
ir ela mesma.
Quando era mais jovem, ela entrou junto com sua melhor amiga num kredi fou [loucura
de crédito/de dívidas], contraindo ambiciosamente múltiplos empréstimos entre diferentes
instituições e com várias pessoas no sistema informal. Essa gestão saiu do controle, ela teve
diversas vezes problemas para pagar o que devia. Suas dívidas foram cobradas de diversas
formas; as visitas em casas feitas por uma credora tida como amiga, que na falta do dinheiro
precisava ser recompensadas com provisões, insultos recebidos na rua e no mercado, pedras
atiradas contra a casa enquanto ela se escondia com seus filhos fingindo não estar lá, objetos
confiscados como método de cobrança, um boi vendido às pressas por seu marido. O
descontrole das dívidas chegou literalmente ao ponto de ameaçar a vida de Jaklin. Foi movida
por essa urgência que ela se arriscou a buscar novos caminhos, desbravando uma rota para
vender pèpè em Santo Domingo.
Nessa busca, a bênção de seu pai (e o dinheiro dele) e a bênção divina foram fatores
determinantes. Um Deus invisível, mas audível, guiou o caminho dela com precisão. As
instruções d’Ele eram sempre certeiras, e seguindo o que Ele dizia, conseguiu fazer mais
dinheiro em Santo Domingo do que jamais fizera. O dinheiro desse comércio tinha um destino

291
pré-definido, resolver as dívidas dela no Haiti. Acertar essas contas foi como financiar sua
possibilidade de retornar à sua casa e ao seu sangue, comprava o direito de sentar entre os seus.
Ela experimentava as constantes viagem para comprar e para vender como um movimento
compulsório, uma falta de liberdade, e tinha um forte desejo de se ver livre, de não ser mais
obrigada a estar sempre correndo.
No momento em que seu comércio foi mais lucrativo, levando pèpè de Porto Príncipe até
Santo Domingo, quando o capital se reproduziu e cresceu, seu crescimento não fomentou um
aumento correspondente no volume das operações comerciais, mas sim sua diminuição. Com a
quitação das dívidas o passo seguinte foi retirar pouco a pouco o capital do comércio para trocá-
lo por terra sempre que possível. 211 Alguns dos lotes de terra que Jaklin e Evens conseguiram
adquirir estão em estado dormente, sem que nada tenha sido feito para que a propriedade da
terra dê frutos e se torne lucrativa (como o lote designado à “preguiçosa” Yvlin), o que não é
uma grande questão para eles. O que lhes importa é que seus filhos tenham “uma garantia”
[garanti] para o futuro, e um lote de terra, mesmo que dormente, é útil a esse propósito. No
futuro poderão fazer um jaden, construir uma casa. Dinheiro é muito perecível, terra não.
Hoje em dia, quando chegam os irregulares fluxos de dinheiro (na colheita de amendoim,
na venda de um boi, em algum serviço remunerado), ela continua fazendo viagens para vender
em Las Matas e fazer esse dinheiro crescer. Ao crescer, o dinheiro não será mantido no estado
líquido, não será usado para fazer o comércio crescer, mas as quantias suficientes para isso vão
preferencialmente para a terra, enquanto quantias menores por vezes são trocadas por animais.
O que ela vê no futuro dos filhos após sua própria morte é o fator determinante para a escolha
do suporte preferencial em que os recursos serão guardados. Capital líquido exige vigilância
constante, seus donos precisarão se deslocar para mantê-lo em movimento, e se faltar disciplina
na sua gestão, nada restará.
O verbo mais usado para dar conta da gestão do capital e do comércio é jere, que pode ser
traduzido como “gerir”, mas em crioulo haitiano possui uma amplitude de uso maior que a sua
contraparte em português. Ele é usado com referência a situações, sentimentos, pessoas,
animais, mercadorias, dinheiro, o próprio corpo. Assim, as crianças devem ser “geridas” por
seus responsáveis, se elas fizeram algo errado e causaram dano ao patrimônio de um vizinho

211
Sidney Mintz (1964:283-4) mostra a retirada do dinheiro do comércio para compra de terra como um
movimento padrão, questionando a aparente contradição entre a necessidade de manter o dinheiro numa
movimentação frenética, enquanto em relação à terra não havia ansiedade nenhuma para torná-la produtiva e
lucrar com isso.

292
que está furioso, é preciso também geri-lo, ir até ele, conversar e encontrar uma forma de gerir
o problema, por motivos de dieta uma pessoa pode recusar uma comida ou bebida dizendo m
ap jere sexy, que ao pé da letra quer dizer “estou gerindo a minha magreza”. Nas relações
hierárquicas dentro da casa, um objeto fundamental dessa gestão é a sexualidade dos
adolescentes, especialmente do sexo feminino. As frases que usam o verbo jere frequentemente
têm um sentido de contenção de danos, e podem abranger os recursos de sua casa, a distribuição
da comida, o próprio corpo ou os próprios sentimentos (normalmente se refere a sentimentos
nocivos, que precisam ser mantidos sob controle), dinheiro e dívidas, situações problemáticas,
mas provavelmente seu uso mais comum é com relação a outras pessoas.
Para dar um exemplo, lembro uma ocasião em que eu estava a caminho do mercado de
Belladère quando fui chamado por um grupo de jovens dentro de um salão de cortar cabelo.
Conversamos brevemente, eles perguntaram de onde eu vinha, para onde estava indo, porque
viera ao Haiti e o que estava achando do país, elogiaram o fato de eu conversar na língua deles,
afirmaram o desejo de que nos tornássemos amigos. Eu me despedi dizendo que estava a
caminho do mercado, então um deles me pediu para trazer de lá, como um presente [kado] para
eles, um pouco de kleren [cachaça], “pou jere nou” [“para (você) nos gerir”]. Seu comentário
apontava, de forma sutil, que conhecer um blan era algo que gerava expectativa nos rapazes.
Eu estava na casa deles (o Haiti) e, portanto, cabia a mim tratar todos com respeito, eles não
precisavam saber nenhuma especificidade da minha condição financeira para ter a certeza de
que eu era muito mais rico do que eles (afinal eu era branco e viajava de avião portando um
passaporte), era óbvio para todos que eu poderia tranquilamente fazer aquele agrado (o presente
solicitado valia 5 dolà, menos 50 centavos de dólar americano na cotação da época). Ao entrar
em contato comigo e estabelecer uma relação, ainda que efêmera e superficial, o rapaz mostrou
que para tomar parte na dinâmica era necessário que eu olhasse para as necessidades deles, que
os reconhecesse, ou segundo os termos que ele usou, que eu os gerisse. O uso de um termo
relacionado à contenção de danos por si já é um alerta sobre as possíveis consequências
negativas daquilo que sai do controle por falta de gestão. Parte substancial da gestão em jogo
se dá através da distribuição de recursos materiais e financeiros (nesse mesmo sentido, Braum
2014, 2019 descreve como funciona a gestão de pessoas em um contexto político mais tenso).
O comentário repetido algumas vezes por Jaklin a respeito das vantagens de que todos os
seus filhos sejam do mesmo pai se relacionam diretamente com isso. É mais difícil distribuir
recursos materiais e financeiros entre um conjunto de filhos que não tenham o mesmo pai,
situação em que as suspeitas de tratamento preferencial e a possibilidade de que alguém se sinta

293
injustiçado encontram terreno fértil. É preciso gerir as expectativas e as frustrações alheias,
tanto com dinheiro e presentes quanto com conversas e explicações. Em uma casa, a
responsabilidade pela gestão das pessoas cabe principalmente ao casal que ocupa a posição
constitutiva. Marido e esposa compartilham a atribuição de disciplinar os seus e gerir o coletivo
formado pela co-residência, mas há funções que são especificamente femininas, entre as quais
destacamos a comida, não só a sua preparação, mas principalmente a separação das porções
destinadas a cada pessoa. Decidir o que e quanto cada um irá comer é uma responsabilidade
séria, uma gestão mal feita pode dar espaço a frustrações e ressentimentos, deteriorando
situações e exigindo esforços maiores para que as coisas não saiam do controle.
Assim, a amplitude do conceito de gestão nos oferece um ponto privilegiado para
formularmos as articulações entre “ser mulher” e “fazer comércio”. Recaem sobre as mulheres
atividades essenciais de manutenção da casa, como o controle dos estoques de provisão e a sua
renovação constante pelas compras feitas no mercado, a alimentação apropriada das pessoas, e
a disponibilização de roupas bonitas e limpas. Tudo isso é objeto de uma gestão que pode ser
bem ou mal feita. A capacidade de gerir é desenvolvida por uma formação na qual as atividades
próprias ao comércio não são nada negligenciáveis. Está claro que nem todas as mulheres fazem
comércio (ainda que virtualmente todas as adultas que tenham suas próprias casas se relacionem
com os mercados no mínimo para fazer provisão, função à qual os homens costumam ter
ojeriza, sentindo-se ridicularizados e humilhados quando as circunstâncias os obrigam a fazê-
lo). O ponto é que a gestão de capital e de um comércio – no controle de estoques, no controle
dos gastos, na efetividade da separação que evita que o dinheiro seja comido ou se estrague, na
capacidade de se relacionar com as pessoas de uma forma que elas se sintam reconhecidas e
respeitadas – possuem analogias profundas com a gestão da casa. Saber gerir é uma habilidade
altamente valorizada nas mulheres, evocada com frequência em avaliações sobre os méritos de
cada jovem como potencial companheira/esposa, e neste contexto reiteradamente afirmada
como mais importante que a beleza física. Quando vimos os testes que Widlen, mãe adotiva de
Evens, elaborou para sua nova nora, ela não testava apenas a sua capacidade para fazer
comércio, testava também o seu valor enquanto esposa. Assim, quando Jaklin contou
entusiasmada a forma como Widlen acabou lhe aprovando, atribuiu à sua sogra a enunciação
do seguinte elogio: “isso é que é gerir, isso é que é uma mulher!”
A imagem clássica para falar da posição ocupada pelas mulheres no Haiti é o poto mitan,
o pilar central que sustenta a construção da casa, sem o qual tudo que está de pé desmoronaria
– mesmo nos casos em que o aporte financeiro do marido é muito predominante ou exclusivo,

294
a metáfora continua valendo para afirmar que cabe à esposa gerir as contribuições dadas pelo
marido, cuidando da manutenção da casa e das pessoas que compartilham a casa, certificando-
se de que não falte nada a ninguém. No caso de Madame Dodo, a centralidade dessa posição se
radicaliza pela inutilidade econômica de seu marido, que hoje é uma figura inexistente no
cotidiano da casa. No caso de Jaklin a definição é mais nebulosa, mas também é possível
considerá-la como a chefe da família a partir dos conflitos em torno da gravidez que lhe deu
sua primeira neta. Enquanto Evens afirmou sua posição de mando assentando-a numa suposição
de autoridade masculina e na prerrogativa de “fazer a casa” (argumentos que de forma geral
gozam de legitimidade e aprovação na vizinhança), Jaklin se aproveitou do fato de que ela
conhece dinheiro melhor que seu marido agricultor, possui contatos que ele não tem, e consegue
acessar variadas fontes de crédito que estão fora de alcance para ele. Valendo-se disso, ela
bancou a disputa de autoridade que emergiu da discordância entre eles, e foi capaz de dar uma
demonstração de força em prol do seu sangue através da reforma (seria mais exato dizer
reconstrução) de sua casa, obrigando seu marido a se resignar com sua derrota e acatar a decisão
dela.
Vemos assim que, assim como a família não pode ser vista de forma sincrônica, como se
fosse uma configuração definitiva e estável, mas que possui ciclos como um elemento
fundamental de sua dinâmica, também a casa, em sua materialidade, é um corpo em constante
transformação e não deve ser encarada como uma construção acabada. Assim como em outros
contextos etnográficos autores como Motta (2014) e Dumans Guedes (2017) identificaram a
rentabilidade de descrever a casa como processo, como uma materialidade na qual podem ser
lidas dinâmicas familiares em relação com eventos políticos e econômicos de outra escala
(como a troca no comando no tráfico de uma favela carioca ou a estabilização de uma nova
urbanidade numa região antes marcada pelas condições precárias de moradia típicas de áreas
de garimpo), aqui também buscamos descrever a sua casa em termos processuais, descrevendo
como mudanças de posição em relação ao caminho principal [gran chemen] falam de estilos de
sociabilidade desejados, como acidentes que atingem casas podem ser indicativos de juízos
divinos, como a perecibilidade dos materiais demanda reparos constantes e uma casa
desocupada fica triste e apodrece, como sua desintegração pode alimentar novas construções e
reformas, e o que a troca de uma estrutura de madeira por uma de alvenaria (onde os
engajamentos na obra são também plenos de sentidos) manifesta tensões de gênero e
intergeracionais, e ainda nos informa sobre o conflito de lealdades entre sangue e matrimônio.

295
30 Uma casa desabitada.
Foto: Felipe Evangelista

Em todo nosso percurso, esforçamo-nos para ser tão fiéis quanto possível aos termos nos
quais eles são originalmente pensados. Trouxemos uma multiplicidade de conceitos haitianos
aos quais evitamos dar traduções diretas (esse tipo operação, a substituição simples de uma
palavra por outra, aparece de forma condensada no glossário que se encontra no início desta
tese, com o objetivo de servir como um guia para consulta que facilite a leitura), mas
aproximamo-nos deles de forma mais lenta, cercando-os por diferentes lados, buscando elicitar
usos práticos, contextos implícitos, identificando diferentes lugares de fala posicionados uns
em relação aos outros. A proposta foi menos de traduzir um conjunto de palavras exóticas para
a nossa linguagem, e mais de distorcer a nossa própria linguagem para que ela se torne mais
apta a dar conta desse universo. Não me refiro tanto à língua portuguesa, o uso pontual de
algumas expressões crioulas, provérbios e construções frasais incomuns nessa língua beiram
um mero detalhe anedótico. A distorção substancial diz respeito às convenções relativas à

296
divisão dos saberes acadêmicos, em particular estudos que assimilem determinadas práticas ao
âmbito da economia e, através dessa circunscrição, se tornem capazes de definir, de fora e a
priori, os focos de interesse e os limites do tema. A etnografia des-reconhece os limites entre
âmbitos que em outro contexto seriam identificados como economia, religião, parentesco, etc.
Isso é o que justifica o formato da tese, que poderia ter sua unidade desintegrada numa dispersão
de temas, mas que, através da construção de personagens e de suas trajetórias, pôde sempre
retornar a uma história linear. Após vermos alguns aspectos práticos de como se dá essa busca
para as nossas personagens, um fechamento coerente com a trajetória seguida é indicar como
elas pensam e se preparam para as suas mortes.
Primeiro Madame Dodo, com quem eu tinha menos intimidade, e posso oferecer apenas
algumas anotações. Quando eu lhe perguntei se ela planejada um dia parar de fazer comércio,
ela respondeu “sim, é claro, eu gostaria disso”, eu perguntei quando ela pretendia parar, e ela
“no dia em que eu não tiver mais dívidas”. Por mais que ela continue pagando suas dívidas
quase sempre no prazo preestabelecido, esse dia nunca parece se aproximar. Apenas quando ela
caiu gravemente doente foi que eu a escutei falar abertamente sobre o fim, quando ela
conversava em voz alta com Deus, pedindo que se tivesse chegado a sua hora, que Ele a levasse
o quanto antes – ela parecia tratar a própria morte quase como um alívio – mas que, se ela não
fosse morrer, que Ele a deixasse levantar-se logo e cuidar de suas coisas, pois todas as dívidas
estavam atrasando, ela não podia ficar ali parada daquele jeito. Podia morrer, mas não podia
parar. Somente a morte absolveria em definitivo os efeitos daquela pausa.
Por vezes, sua corrida incessante não chegou a prover uma quantidade de comida
adequada ao seu número de filhos, mas mesmo em sua frágil situação financeira, ela conseguiu
não comer tudo e fazer investimentos no futuro. Ela não espera estar pessoalmente presente
nesse futuro, não sabe quanto tempo ainda lhe resta, mas espera que seus filhos consigam
encontrar a vida, que tenham mais sucesso que ela. O acúmulo dos frutos do trabalho é pensado
num tempo intergeracional. Com esse senso de futuro, de aposta, ela conseguiu alfabetizar todos
os seus filhos, e concentrou investimentos na educação de seu filho Dyesèl, que não só finalizou
o ensino médio, como também teve aulas de inglês e de informática. Seria impossível propiciar
o mesmo a todas as suas crianças, ela teve que escolher apenas um para avançar nos estudos
(em circunstâncias paralelas, para as pessoas da vizinhança, a escolha parece tender para um
filho homem e não uma filha mulher, embora certamente dependa também de uma avaliação
das capacidades e potenciais de cada filho/a).

297
A esperança de que talvez um dia ele consiga “tirar a família da miséria” está muito
relacionada à expectativa de uma migração bem sucedida, de um salário em moeda estrangeira.
Certa vez ela me perguntou quantos filhos eu tinha (na época, apenas um), depois me perguntou
quantos filhos meu pai e minha mãe tinham (só dois, eu e meu irmão). “Ah”, ela disse, “se você
tivesse dezoito filhos/as como eu, e se seu pai e sua mãe tivessem você mais dezessete
irmãs/irmãos, você hoje estaria numa situação mais parecida com a minha”, com um sorriso no
final, apontando, com um misto de bom humor e argúcia característico dela, que a minha
posição econômica privilegiada frente a dela se articulava com a necessidade de compartilhar
e dividir, eu tinha mais porque precisava dividir e compartilhar menos. Vale a pena ressaltar a
ambiguidade desse tipo de avaliação, pois ao mesmo tempo em que um grande número de filhos
significa que o dinheiro será comido em quantias necessariamente maiores, os/as filhas/os são
uma riqueza em si, ninguém considera que uma pessoa adulta sem filhos seja privilegiada por
isso, muito pelo contrário. Das diversas vezes em que me perguntaram quantos filhos eu tinha,
a maioria das pessoas reagia à minha resposta (“tenho um menino”) com o que me parecia pena,
e em seguida tentavam me consolar com frases do tipo “mas não se preocupe, você ainda fará
outros”.212
Após relatar a Jaklin a conversa que eu tivera com Madame Dodo sobre dívida e morte,
eu perguntei o que acontece quando uma pessoa morre com dívidas no Haiti. Essas dívidas são
transmitidas aos herdeiros? A resposta dela inverteu o sentido da pergunta, contando que
quando seu pai morreu, um tio (irmão dele) lhe devia um bom dinheiro. O decente a fazer numa
situação como essa seria ter pago o devido aos filhos do falecido (ou seja, ela e seus

212
Lowenthal (1987:302ss), discute o aforismo “pitit se richès pov malere” [os/as filhos/as são a riqueza do
pobre], como algo que perturbou demógrafos, economistas e etnólogos por décadas. Herskovits (1937) fala
em “amor pelas crianças”, Bastien (1985[1951]) afirma que havia percepção anacrônica, derivada de um
passado onde havia abundância de terras, a percepção não teria se atualizado para as condições
contemporâneas do tempo em que ele escrevia (aprox. 1948) e Murray (1979) relaciona a utilidade econômica
dos filhos/as principalmente à organização do enterro. Para Lowenthal, pelo menos o último está na trilha
certa. Mas, continua o autor (idem:305), se admitirmos que os camponeses haitianos possuem não só
racionalidade econômica e uma compreensão justa de sua própria realidade, mas também uma sensibilidade
poética, o que aparece é um tipo de riqueza completamente diferente. Cita a fala de uma mulher que coloca
ter filhos como o sentido da vida: Avan ou fè pitit, ou pouco gran moun, ou pa konnen pouki as w ap viv; apre,
ou g’on rezon pou tout as w ap fè, ou konnen pouki as w ap redi ak lavi-a. [tradução do autor: “Before you
have children, you’re not grown up, you don’t know why you’re living; after, you have a reason for everything
you’re doing, you know why you’re struggling with life.”] Não ter filhos é uma circunstância que acaba
minando todos os outros esforços “to live a proper and meaningful life”, o que o autor comenta a partir do
caso da mulher já idosa que perdera sua única filha antes que esta lhe desse netos. O não-nascimento da
geração seguinte é que foi entendido como a grande desgraça: a linha daquela senhora terminava com ela. No
mesmo sentido, o acúmulo de terras por aprte de uma pessoa que morre sem filhos faz as suas propriedades
voltarem para seus irmãos/irmãs, o que é entendido como um desperdício, uma vida sem sentido. “The only
appropriate and ‘meaningful’ course of succession is, essentially, a continuation of the ‘line’ linking parent
to child, to child again.” (idem:262).

298
irmãos/irmãs). Seu tio não teve essa dignidade, preferiu fingir ter esquecido a dívida, e ela
deixou por isso mesmo, mas olhava esse tio de cima, e sabia que ele se sentia envergonhado
frente a ela e seus irmãos.213 Pelo que pude entender por conversas posteriores (não chequei
códigos de direito sucessorial, Jaklin é bem informada sobre os costumes na vizinhança, mas
não sei até que ponto estes coincidem ou não com a legislação), os bens de um morto podem
ser confiscados por dívidas antes que sejam transmitidos como herança, mas fora isso, dívidas
em dinheiro não podem recair sobre herdeiros/as que mal conseguem pagar o enterro do morto.
A organização do velório [vèy] e do enterro [antèman] traz custos de alto impacto para a
família, o que é um tema constante de conversas e de preocupação (também enfatizado com
frequência em estudos sobre economia camponesa haitiana, desde Herskovits 1937 e Métraux
1951, passando por Murray 1979 e Lowenthal 1987, até Richman 2005 e Dalmaso 2014). Há
pessoas que ainda em vida compram seus caixões, podendo guardá-los durante anos inteiros,
com o objetivo desonerar seus descendentes desse custo no futuro. Lowenthal (1987:230-238)
descreve esse processo em várias etapas, que além da compra do caixão e construção da tumba,
incluem a reserva de animais e de lotes de terra como uma parte da herança que tem a finalidade
expressa de que sejam vendidos quando chegar a morte para que o dinheiro resultante liquide
os custos do enterro. Os bens reservados a esse fim são aqueles do morto, e seus herdeiros serão
responsáveis por vende-los, sempre começando pelos filhos, caso os haja. O autor estima que a
ansiedade em torno desses ritos decorre do fato de que você tem que contar com outros para
fazer por você, “in what is otherwise a society characterized by a significant degree of
personal autonomy and self-sufficiency” (idem:235). A preeminência dos filhos para assumir
essa responsabilidade é expressa no provérbio que “ninguém enterra você como os seus filhos”.
Quando não foi possível fazer essa preparação prévia, a morte de um parente pode levar
sua família à falência, pois além do custo do caixão, da roupa fúnebre e do enterro propriamente
dito, há ainda um alto custo em comida e bebidas para recepção dos visitantes. Essas ocasiões
gerarão comentários durante muito tempo, as pessoas lembram quais enterros foram bonitos e
quais foram mal organizados, onde faltou comida ou a sua distribuição não foi feita de forma

213
Outro parente foi mais honrado. Aconteceu quando ela descobriu terras que pertenceram a seu pai, perto de
Lascahobas. Quando ela teve a intenção de chamar a justiça para fazer a partilha legal da terra, um granmoun
veio falar com ela. Ele morava nessa terra, e ele e Jaklin eram parentes mais ou menos distantes. Ele fora
próximo do pai dela, e veio dizer que as outras pessoas que moravam naquela terra continuariam morando,
que Jaklin deixasse de lado, ela não ia solicitar a partilha da terra, eles já estavam ali há tempos, e a terra seria
passada para o nome deles. Trouxe um montante de dinheiro (bem aquém do valor de mercado daquelas terras,
mas ainda assim um dinheiro considerável) enquanto anunciou como as coisas aconteceriam dali em diante.
Ela aceitou o dinheiro, concordou com tudo que lhe dissera o granmoun.

299
respeitosa, onde a escolha do local do enterro foi considerada infeliz, ou onde alguma outra
coisa deu errado. Um enterro que não preenche os pré-requisitos daquilo que se considera digno
pode ser relativizado caso o motivo seja uma total incapacidade financeira dos organizadores,
mas se for fruto de incompetência ou de avareza deste ou daquele membro da família na hora
de tomar responsabilidade pelos custos, é tema de condenação moral veemente.
Sempre há alguém morrendo na vizinhança, e os enterros e velórios são de longe os
eventos sociais mais frequentes para os jovens da região. Por vezes eles/as caminham por horas
na noite escura para comparecer, vestindo suas melhores roupas, animados como quem está a
caminho de um programa lúdico noturno, um ponto de encontro onde pode-se beber, contar
histórias e piadas [bay blag], paquerar, pode haver música tocada ao vivo, as pessoas dançam,
e durante o dia (algumas dessas ocasiões duram dias inteiros) também costuma incluir jogos de
dominó. O caráter quase festivo da ocasião depende da relação que cada um tem com o morto.
A postura das pessoas mais próximas ao morto é mais circunspecta e inclui demonstrações
agudas de dor (principalmente se se trata de um jovem e se a morte foi trágica). A ocasião de
morte importa, quando decorre da ação de malfeitores [malfektè] predomina um clima de
indignação e revolta.
Jaklin e Evens se consideram nas fases finais de suas vidas, estão preparando como podem
sua própria saída. Deixar herança aos seus filhos sempre foi um objetivo para ela, e ela
considera a compra de terras a melhor forma de fazer isso. O capital que ela conseguiu
movimentar fazendo comércio, se fosse acumulado na forma de dinheiro, legaria aos filhos uma
quantia que não se sabe para que serviria dividido por sete. Ela julga que eles/as não saberiam
gerir bem esse dinheiro. Sondy revende roupas de quando em quando, Faika, que em 2015 era
uma criança de 11 anos, vendia balinhas às outras crianças da vizinhança, mas isso não
convence Jaklin. Para ela, nenhum/a de suas/seus filhas/os faz comércio, não sabem gerir, e
logo acabariam comendo tudo. Ela afirma que é muito mais seguro dar um pedaço de terra para
cada um, com isso terão com o que viver, terão um lugar de onde partir. Dinheiro líquido podia
estragar rápido, a terra dava uma garantia bem mais firme.
O planejamento do que deixarão de herança é uma questão norteadora dos seus esforços.
Eles sabem que o funeral e o velório deles custará caro, e que essa responsabilidade caberá
às/aos filhos/as, por isso já compraram de seus próprios caixões, cuja etapa final do processo
de fabricação ocorreu enquanto eu estava lá. Lowenthal (1987) descreve histórias de pessoas
que fazem da construção do caixão um tipo de situação social quase festiva, na qual pessoas

300
vêm visitar de longe para ver os preparativos da futura morte e dar os parabéns. Uma boa saída
deste mundo parece de fato um dos critérios importantes sobre o que é uma boa vida.

31 Homem trabalha para finalizar o caixão de Jaklin.


Foto: Juliane Peixoto.

Ao mesmo tempo em que espera e se prepara para a morte de seu corpo, Jaklin busca
também a vida eterna. Assim como parte das imagens recorrentes a respeito de Deus se ligam
à abertura de caminhos e passagens, a eternidade é um atributo do Senhor frequentemente
mencionado (um dos nomes pelos quais O chamam é Leternel, “O Eterno”). Ainda que se aceite
que somos todos irremediavelmente pecadores, a busca de agradar a Deus para ir pro céu é
levada a sério. Há um contraste entre as expectativas dela e o lugar que Evens imagina para si
mesmo no céu, como um filho adotivo de Deus, que é enviado para fazer as tarefas mais
insignificantes em termos de prestígio (embora indispensáveis em termos práticos, como buscar
água ou mudar os animais de lugar, funções que os adultos repassam às crianças), que come o
que restou dos banquetes, que se senta à distância e nunca será convidado pra se aproximar
muito do nosso Senhor. Jaklin tem uma imagem mais nobre de si mesma. Ela costuma lembrar

301
que o reino de Deus é para os pobres, não para os ricos, está convencida de que compartilhar
seus recursos com quem tem menos do que ela é algo que agrada a Deus, que promete (via
bíblia) não só a vida eterna, também recompensa aqui mesmo na terra. Uma das tantas provas
foi a ocasião em que ela deu 20 dolà, todo o dinheiro que tinha na ocasião, a um homem que
passou mendigando em sua casa, só para receber minutos depois uma visita de seu irmão Dan
que lhe trazia como presente uma nota de 100 dolà. Retomamos a transação com Este credor
tão profundamente generoso para reforçar o ponto de que, lado a lado com comércio, existem
outros sistemas de distribuição e compartilhamento (inclusive dentro dos próprios mercados,
por exemplo quando as machann julgam por bem dar pequenas quantias de suas mercadorias a
quem não pode pagar).

32 Carlos brincando em frente ao caixão de sua mãe.


Foto: Juliane Peixoto.

Por fim, quero citar duas breves cenas que aconteceram comigo no Haiti pouco antes da
minha última volta ao Brasil. Eu desejava ter o dicionário de crioulo Vilsen, e o encontrei à
venda no mercado de Kwa Fè. Quando perguntei o preço, o homem pediu 400 dolà (ou seja,

302
2.000 gourdes). O dinheiro que eu trazia comigo na ocasião dava 1.100 gourdes, bem aquém
do preço do dicionário. Eu agradeci e disse que não poderia levá-lo, o dinheiro não chegava.
Ele me perguntou quanto dinheiro eu tinha, eu contei a ela. Ele disse que eu podia levar o
dicionário, que lhe trouxesse o resto do dinheiro depois. Eu agradeci, mas recusei, dizendo que
estava perto de voltar para o meu país e que poderia nunca mais encontrá-lo. O homem me
olhou de novo e disse “você vai voltar sim, está tudo bem, eu não tenho pressa, só quero que
você se lembre de mim quando voltar”. Insistiu que não tinha problema, que eu levasse o
dicionário por 1.000 gourdes. Como eu não entendia porque ele fazia questão de me vender
pela metade do preço, ele repetiu “quero que você se lembre de mim”.
A segunda cena aconteceu em uma viagem a Jacmel, em visita ao atelier da artista
Charlotte. Comprei duas de suas máscaras, e comentei que eram bonitas as gigantes cabeças de
cavalo enfeitadas, usadas no carnaval, que estavam dependuradas no teto. Ela me deu o preço,
2.000 dolà (10.000 gourdes), um item caro numa loja frequentada por turistas. Eu disse que só
falei como um elogio, não estav negociando nem pedido preço, não tinha nenhuma intenção de
levá-las. Ela me perguntou quanto eu pagaria por ela. Eu repeti que não tinha intenção de
compra-la (me parecia um objeto grande demais para trazer de volta a Lakanyit, cruzando Porto
Príncipe, fazendo boa parte dos trajetos de mototaxi), ela insistiu: “pode pagar o quanto você
puder, eu quero que você leve”. Eu agradeci e recusei de novo, até porque estava com pouco
dinheiro na ocasião e não podia pagar nada que parecesse minimamente justo. Ela perguntou
de qual eu tinha gostado (havia várias, de várias cores), puxou uma delas e disse: “tome, não
pague nada. Esse é um presente meu para você. Tudo que eu quero em troca é que você conte
para as pessoas no seu país quem fez essa máscara, diga que fui eu quem fiz.” Fiquei
constrangido de recusar, e aceitei trazer comigo aquele volume enorme, que eu trouxe na garupa
de uma moto cruzando Porto Príncipe por vielas apertadas, trajeto no qual a cabeça de cavalo
perdeu uma de seus orelhas (chocando-se com outra moto de passagem, espaço era apertado,
foi impossível evitar). Chegando à parada de onde sairia o transporte de Porto Príncipe para
Lascahobas, eu tinha aquele enorme volume comigo, e um grupo de garotos me abordou. Um
deles disse algo como “olhe como esse branco é rico, olha o tamanho do pacote que ele
comprou”. Eu quis surpreendê-lo mostrando que eu entendera tudo que ele tinha dito, e rebati,
disse que eu não era nem de longe tão rico quanto ele imaginava, que nem tinha dinheiro para
comprar aquele pacote, que havia ganhado ele como um presente. O garoto retrucou: “É claro
que você ganhou de presente, você é branco. Você é tão rico que nem precisa pagar nada. Se

303
eu estivesse lá, você acha que eles teriam dado esse mesmo presente para mim, que sou preto e
pobre? Você acha que eu ganho alguma coisa sem pagar?”
É inegável, o garoto tinha um bom argumento. Parece altamente improvável que ele
visitando o mesmo ateliê tivesse recebido o mesmo presente. Sem dúvida, os/as blan somos do
ponto de vista haitiano possíveis aliados desejáveis e valiosos, “invariavelmente enxergados
como potenciais facilitadores de portas e de rotas” (Neiburg 2019:14). Mas não se pode reduzir
as trocas gratuitas que por vezes se sobrepõe e eclipsam as trocas monetárias ao interesse que
alguém como eu poderia despertar.
Voltemos à cena de abertura da tese. Que interesse especial o homem que vendia as
bananas poderia ter em ser tido em boa conta por uma granmoun como Madame Dodo?
Argumentamos longamente a respeito da importância das relações nesse universo, mas não me
parece haver neste caso nada que se compare às vantagens que alguém pode esperar obter do
contato com alguém rico, branco, com passaporte. O fato é que Tina desrespeitara o homem
que vendia as bananas, mas ele foi tratado com respeito por Madame Dodo, que era uma
granmoun. Ele afirmava “você precisa delas, mamãe”, insistindo que preferiria “vender de
graça” para ela e sair sem dinheiro nenhum, deixando aberta em termos vagos a possibilidade
de que ela o pagasse depois, algum dia. Não é que ele não quisesse receber o dinheiro, é claro
que ele queria. Mas no meio do caminho algo se tornou mais importante que isso. Dinheiro
nunca deixa de ser importante, mas claramente havia outra escala de valor em jogo (assim como
coexistem diferentes escalas de valor quando Jaklin afirma seu desejo de transformar “um
dinheiro” em “uma história”). O valor que eles (Madame Dodo e o homem das bananas) deram
um ao outro, pela forma como se trataram ao longo da interação, eclipsou por um momento o
valor monetário. Mas ela também via o lado dele, era óbvio que ele precisava de dinheiro, e ela
não o deixaria partir de mãos abanando. Não é só porque ela busca o céu e quer agradar ao bom
Deus, embora isso seja importante. É porque ela vê o lado dos outros, ela tem lizay.

304
BIBLIOGRAFIA
ANGLADE, Georges. 1975. L’Espace Haïtien. Montréal: Les Presses de l’Université du
Québec.
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