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AGORA OU NUNCA MAIS

AGORA OU NUNCA MAIS

(REGISTRADO EM 23.1.2006 SOB O N. 367.372, LIVRO


680, FLS. 32 DO REGISTRO DE DIREITOS AUTORAIS DA
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL DO MINISTÉRIO DA
CULTURA)

Autor: Maurício Gomide Martins


Rua Hortência, 698, ap. 401
30.280-250 – Belo Horizonte(MG)
Fones: (31) 3564-9975 e (31) 8808-1975
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2

mgomide2@gmail.com

Eu, partícipe e agente da humanidade, dedico este livro


àquela que nos dá à luz, nos conforta com a inocência, nos
alimenta, nos protege, nos aquece no frio, nos doa sombra no
calor, nos abriga pela eternidade em suas entranhas.
Àquela que é nossa morada e da qual somos parte, a mãe
Terra.
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Parte I

MENSAGEM
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1º CAPÍTULO

Alguém, ferido e em desespero, grita por socorro. Darei o


melhor dos meus esforços e empregarei todos os recursos de
que disponho para acudir nessa emergência. Não sei se o êxito
será alcançado, mas vou tentar.
Reconheço que não conseguirei me desincumbir dessa
importante missão sem a sua ajuda. É necessário que me
acompanhe. Sem você, não sou mais que um objeto, um inútil.
Venha! Venha comigo! Não tenha receio. Precisa ter
coragem. Este é o momento, e não deixe de me apoiar.
Consciente-se de que o mundo precisa de nós.
Venha! Será imprescindível sua colaboração nessa tarefa.
De nada adiantarão meus esforços se não houver quem os
testemunhe e os transforme em conhecimento por meio do
artifício da leitura. Não sabe você que os grandes
acontecimentos da História começaram com um simples faiscar
de idéia? E neste instante ouço aqueles gritos desesperados a
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que me referi. O momento da nossa tarefa é agora; agora ou


nunca mais.
Olhe aquela mansão. Vislumbrei dentro dela uma aura
indicativa de acontecimento extremamente importante para
iniciar esta missão de socorro. É o sinal luminoso de uma
alma aturdida. Intuí sua relevância, mas ainda não está clara a
situação. Aquela mente em chamas impede percepção mais
apurada. Impossível adivinhar. Chegamos justamente no início
de um processo em desenvolvimento. Atentemos.
Dentro de um dos escritórios daquela casa, num coração
apertado e sofredor de um rapaz brasileiro, pulsam correntes
de lava sanguínea, queimando os caminhos da vida e toldando
as aspirações da alma.
Guilherme, 27 anos, gênio excepcional em informática,
com diversos cursos na área, acha-se sentado ante o
computador. Imóvel na cadeira, olhar petrificado, perdido no
tempo e no espaço, ausente de si, deixa escapar dissimulada
expressão de amargura. Na tela, em imagem fixa e gélida,
gráficos complexos apontam uma situação não muito clara,
mas que, por força de seu significado, conseguiram levar esse
jovem àquela postura de anestesia mental.
Assim estava, inerte, sem vida aparente, quando começou
a ver no monitor o embaralhar dos dados, evoluindo a imagem
para nuvens espiraladas, alternadamente escuras e claras, até
que se foi formando ante seus olhos uma figura refletida de
remota memória, como fotografia que lhe parecia familiar.
Era ele mesmo aos onze anos e mais três amiguinhos que
se dirigiam, guapos e felizes, a algum destino. Percebia-se a
dinâmica do momento pelos semblantes ansiosos, braços
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gesticulados e pernas articuladas. Essa visão não assustou o


personagem. Impassível, com olhar lânguido, continuava
sondando fixamente aquela composição remota, até que o
quadro estático começou a dar prosseguimento ao entusiasmo
da turma. Desenvolvendo-se em quadros posteriores – no
início em câmera lenta –, foi aumentando o ritmo até se
deslanchar em movimento normal, tomando todo o campo
visual de Guilherme e se mostrando como um retorno ao
passado.
Está claro que o jovem estava auto-hipnotizado pelas
lembranças de tempos felizes. Extraía do passado um momento
especial que lhe trazia importante significado. Vinha tudo por
meio do subconsciente, com cores de realidade, como se o
tempo houvesse recuado por força da saudade. Talvez essa
metamorfose mental se desse como antídoto às preocupações
e inquietudes pelas quais passava aquele sonhador.
Dando soltura à lembrança, o entorpecido observador
reviu sua infância naquela sucessão de quadros. A turma
rumou para os fundos de uma chácara onde havia tosco
galinheiro. Num caixote, posto a certa altura do chão, uma
galinha acomodada no ninho.
— Num chega muito perto, que ela te bica! Galinha,
quando tá com pintinho, fica brava e bica – advertiu um dos
amigos.
— Num bica, não! Esta é mansinha – replicou o outro.
— Deixa eu chegar perto pra levantar ela. Eu também
tenho...
— Não! Espera aí! Eu é que descobri a galinha. Estou
vigiando desde quando vi que ela num saía do ninho. Eu
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chegava perto, e ela ficava arrepiada e falando choco.


Acostumou comigo. Antes de sair pintinho, eu já tinha
levantado ela várias vezes, e ela nunca me bicou.
— Espera aí! Eu também quero ver!
— Num empurra!
— Cadê os pintinhos? Num dá pra ver nada. Deixa eu ver!
— Ô bocó! É preciso jeitinho. E não pode ter medo.
Na rememoração, o Guilherme juvenil se aproximou com
cuidado, enfiou a mão por baixo da galinha e a levantou um
pouco. O suficiente para que fossem vistos os recém-chegados.
Amontoados, havia uns dez pequerruchos, frágeis, inseguros,
inocentes. Sem tocá-los e em silêncio, os guris ficaram
absortos na admiração da cena desvelada. Era o nascer para o
mundo. Aquilo os excitava e aguçava a curiosidade natural da
idade pelos mistérios da existência. Estava ali, ante seus
olhos, uma afirmação da Vida.
Nesse momento, houve pequeno tremido na tela,
embolando a cena final, de tal modo que voltaram os frios
gráficos da realidade. Com essa brusca mudança no campo
visual, o estático personagem saiu do estado de letargia em
que se encontrava. Piscou várias vezes, tentando expulsar a
fantasia, e retornou à consciência.
Ainda saudoso, ficou absorto ante o computador por longo
tempo, refazendo-se da viagem ao passado. Suspirou fundo,
deu uma sacudida na cabeça e desligou o aparelho. Procedeu a
arrumações em papéis avulsos e livros dispersos na banca ao
lado. Levantou-se e chegou até a área ajardinada, em frente
ao escritório, onde permaneceu parado por alguns instantes,
admirando a noite escura de céu estrelado. Pensativo,
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enquanto admirava o planeta Marte, se perguntava com


desgosto: “Está aí! Parece que não, mas quanta relação existe
entre Marte e todo esse poder do céu com o meu computador!
Mistério!...”
Já era tarde – passava das onze da noite – e seus pais
deveriam estar acomodados. Finalmente atravessou a pérgula
que liga o conjunto de escritórios à parte residencial. Entrou
direto na cozinha, beliscou umas uvas que estavam na fruteira
da copa e se dirigiu ao quarto, preparando-se para o descanso.
O pai de Guilherme é professor de Química na
universidade local e se chama Alfredo Paiva Van Koorten, neto
de imigrante holandês, chegado após a Primeira Grande
Guerra. A mãe, Dona Rosa Madalena, além de assistência
voluntária a uma creche, ocupa-se com os afazeres
domésticos, no que se mostra dedicada e zelosa. Tiveram três
filhos: Terezinha, primogênita, casada e mãe de um garoto;
Guilherme e Luiz Cândido, o caçula, 25 anos, formado em
Física e cursando o último período de ciência da computação.
Ambos, solteiros, moram com os pais. Guilherme,
perfeccionista, introspectivo e taciturno, mantém
exclusivamente a atividade de produzir programas de
computador para terceiros, atendendo a fartas encomendas
que lhe fazem. Seu irmão mais novo ainda balança entre as
diversas atividades pertinentes à Física, mas parece que não
está muito preocupado com o porvir. Está mais interessado é
na namorada e passa por um período róseo de vida tranqüila.
Obtém alguma renda ministrando aulas de cursinho, o que
paga o curso de informática, ramo com o qual também é
fascinado.
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Guilherme é diferente dos irmãos. Demonstra inteligência


abaixo da média e fez com grande dificuldade os estudos
básicos, mas tinha grande propensão para ciências exatas.
Ingressou no curso superior de informática, onde se destacou
e assombrou seus professores demonstrando genialidade na
área. Em pouco tempo aprendeu toda a matéria existente
sobre o assunto e chegou a ser ele objeto de estudo e
pesquisa por parte de médicos neurologistas. Tem cabeça
grande, parece que mal colocada na coluna cervical porque
sempre se ajustando em movimentos incontroláveis. Seu lábio
inferior é caído e carnudo, e anda jogando o corpo para a
esquerda, o que faz gastar o solado dos sapatos de uma forma
irregular. Negligente com suas coisas, não consegue manter
uma conversa firme e demonstra viver num mundo interior,
cheio de imprecisões. Tem dificuldade na fala, apresentando
discreta gagueira, seus movimentos de corpo são desajeitados
e tem sempre a mesma cara, inexpressiva, demonstrando que
mantém prisioneiras suas emoções, à maneira de um quase
autista.
A família mora em bonita mansão, construída em grande
terreno fora da cidade, relativamente perto da universidade,
também esta em região suburbana. É a moradia um complexo
de bela concepção arquitetônica, formado por um bloco
propriamente residencial e outro complementar constituído por
dois escritórios, sala de estudos e um depósito. Ambos ligados
por uma passarela ajardinada, coberta por pérgula curvilínea.
O conjunto é enfeitado por jardins bem cuidados, exprimindo
ambiente de quietude e sóbria elegância, e um variado pomar
no quintal.
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Na manhã do dia seguinte, Guilherme levantou-se mais


tarde, mas a mesa do café permanecia posta à sua espera. A
mãe teve o cuidado de manter aquecidos o leite e o café, e
havia fartura de pão, bolachas e cereais. Enquanto se
alimentava, percebeu que Dona Rosa, vindo da sala, sentou-se
ao seu lado, silenciosa. Parecia que lhe desejava falar, mas se
continha; denotava alguma preocupação com a quase
imperceptível tristeza do filho que lhe transparecia
ultimamente. Depois de algum tempo, levantou-se e, passando
carinhosamente a mão pelo pescoço do filho, foi cuidar de seus
afazeres.
Guilherme sentia-se tenso, um tanto desorientado. Deixou
a mesa e, procurando estabilizar aquele estado psicológico,
revolto desde a véspera, dirigiu-se ao pomar com passadas e
gestos conscientemente lentos, no desejo de encontrar uma
estabilidade emocional. Procurando o intento, deixou-se levar
por calmo passeio ali, fazendo paradas prolongadas na
observação de detalhes das fruteiras. Colheu uma goiaba e
começou a comê-la calmamente. De volta do quintal, chegou
perto da gaiola onde mantinha seu canário de estimação, a que
dera o nome de Jóia, já posta pela mãe na parede externa do
barracão para que colhesse os raios de sol. Faltava apenas o
cuidado diário, rito que Guilherme reservava para si, como
cultivo de ligação afeiçoada para ambos. Ao tempo em que
tratava do canário, assobiava para ele, procurando sugerir-lhe
o ânimo para o canto, no que afinal era atendido.
Vencido o estágio de comportamento controlado, na busca
de domínio da razão, Guilherme entrou em seu escritório
corajosamente, mas vacilou em ligar o computador. Teve
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medo, repugnância, desgosto. Sentiu-se frágil, inseguro, como


que abandonado. Vacilante, procurava ajustar suas dúvidas à
razão e sentiu que estava sofrendo. Por fim, em desespero,
sua alma decidiu: “Não e não! Não ligo”. Não ia dar vida ao
aparelho, tentando com isso fugir do que o atormentava tanto.
Não daria curso à sua angústia nem queria ver mais aqueles
gráficos. Seria melhor esquecer e mudar de idéia, levar o
pensamento para situações agradáveis. Sentiu-se fortalecido
com essa decisão. Olhou o aparelho com desdém e
repugnância.
Pegou um livro qualquer e intentou concentrar a atenção
no que lia só com os olhos. Mas, como nuvens que se vão
formando para o preparo da tempestade, os gráficos do
computador foram impondo o cenário no seu cérebro. Não
conseguia fixar seu pensamento no que as palavras escritas
lhe diziam. Era uma tortura lenta e desgastante. Percebia que
a alma daquele objeto eletrônico desprezível insistia em
invadir e dominar sua vontade. Sentia ódio por aquele algoz.
Nesse momento, Alfredo entrou no escritório e, pondo-lhe
o braço no ombro, com voz mansa e paternal, procurou sondar
os problemas do filho.
— É preciso que te fale com franqueza. Afinal, pai é pra
essas coisas mesmo!
— O que... o que... que foi!? – ainda assustado.
— Eu e sua mãe estamos preocupados com você e esp...
— Ora, pai!
— Não adianta; eu tenho que falar! São coisas de pai!
— Es...está bem; po...pode f...falar!
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— Parece que você tem trabalhado muito nesses seus


programas e esquecido de dar alguma atenção a outros
aspectos da vida. Notamos que você tem emagrecido e parece
que anda meio tristonho ultimamente, que alguma coisa te
preocupa. Do jeito que vai, temos medo que caia numa
depressão. Isso é muito sério! Temos que abortar essa
situação é antes.
— Vo... você está e... e... xagerando!
— Nunca é demais a gente...
— Ah, pai!...
Enquanto Alfredo tecia seus conselhos, Guilherme
pensava: “Eh! Porque você não sabe o tamanho do problema!”
— A vida não é só trabalho; o lazer deve ter também o
seu lugar. Pra uma vivência melhor, tem que reservar espaço
pras coisas do espírito, das emoções, do lazer. Os sentimentos
não podem ser sufocados. Deixa que eles se manifestem
livremente, apenas dosados pelas ponderações da razão e do
bom senso.
E continuou:
— Tenho notado também que você está exagerando no
seu serviço. Fica o dia todo metido no escritório e vai até tarde
da noite. Tem tido tanta encomenda assim?
— Não, pai. É que... que...
— Solte suas emoções, liberte o pensamento. Você se
prende! Fica só remoendo! Isso faz mal pra saúde, pro corpo e
pra mente. Lembra sempre disso que vou te dizer: Você vence,
você vence – encorajou o pai enquanto deixava o escritório.
Naquela noite, Guilherme, atordoado pelo clamor dos
gráficos que não lhe saíam da mente, tomou uma decisão de
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desassombro e pôs à prova sua coragem, como ato de desafio


e desespero. Queria vencer. Ligou o monstro, dando-lhe vida e
afirmação. Com a atenção inteiramente fixada na tela,
manipulava aflitivamente as diversas teclas, denotando cada
vez mais angústia, aflição e descontrole.
Ao final, quando ficaram estampados os gráficos
conclusivos, acusatórios, Guilherme deixou-se ficar imóvel ante
a imagem e assim permaneceu por longo tempo, recolhido em
seus pensamentos, sentindo-se vencido em sua vontade,
derrotado pela imposição de uma incontida e avassaladora
força maior. Sentiu-se irremediavelmente sozinho,
desamparado e profundamente angustiado.
Lá fora a chuva, iniciada mansinha no fim da tarde,
começou a zangar com os deuses do céu, e os ódios celestes,
sob a forma de ventos e trovões, demonstravam seus poderes.
Os estalidos dos raios tornaram-se mais freqüentes,
misturando-se a estalos adversos da vida, manifestando
descargas celestes e terrestres de tensões incontidas.
Pela manhã tudo estava tranqüilo. Em perfeita harmonia,
o ar sereno, o sol brilhante e a natureza mostravam que
sempre haverá um intervalo e oportunidade para a vida.
Só a ausência de Guilherme à mesa do café matinal,
ainda posta, fugia da continuidade diária. Dona Rosa, apesar
de preocupada, esperou até mais tarde para dar tempo a que o
filho acordasse. Até que, não suportando mais a espera,
dirigiu-se ao quarto de Guilherme para acordá-lo. A cama não
tinha sido usada. Ninguém no quarto. Correu aflita para o
escritório, onde se defrontou com a realidade. Só pôde gritar:
“Mãe do céu, me acode!”
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Seu Alfredo, quando avisado da tragédia, pediu a um


amigo que o levasse a casa, tão abalado estava. Chegando ao
escritório e vendo a cena, fechou a janela, trancou a porta e
foi manter companhia à esposa, procurando confortá-la da
melhor forma possível. Num instante a casa estava cheia de
parentes e da vizinhança.
A polícia, chamada para a necessária ocorrência, fez
vistoria técnica no local e concluiu com firmeza que ocorrera
suicídio com arma de fogo. O laudo não deixava dúvidas a
respeito e acrescentava que não fora localizada qualquer
mensagem.
— Não pode ter sido suicídio. Guilherme não tinha motivo
nenhum pra isso! – protestou Alfredo, incrédulo, ao inspetor
técnico da polícia. — Deve ter tido um assalto... anda tanto
bandido por aí... vocês não examinaram direito.
— Pode ficar tranqüilo que é isso mesmo. Estamos
acostumados com essas ocorrências; é muito difícil a gente
errar. E neste caso, tem todas as evidências.
— Mas vocês examinaram tudo?
— Tudo. Este foi um caso até muito fácil. Ninguém mexeu
nas coisas do escritório, o revólver tem as digitais dele e
verificamos outras indicações conclusivas.
— Mas a janela estava aberta, o que é um sinal muito
estranho!
— Verificamos isso também. A ventania daquela noite
deve ter forçado a janela. Foi uma tempestade das bravas.
Isso é bem provável...
— Pode ser, mas não vejo motivo pra...
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— Ele tinha algum inimigo que fosse do seu


conhecimento?
— Nenhum. Ele era muito pacato, calado e se relacionava
bem com todo mundo. Não merecia isso...
Três dias após o infortúnio, e a família ainda se mantinha
unida na casa, vivendo dias melancólicos e chorosos. Ninguém
falava mais que o necessário, refletindo as pungentes dores da
alma. O silêncio era a linguagem daquela infeliz família.
Aos poucos, no entanto, algumas iniciativas começaram a
revitalizar as brasas da vida. Terezinha retornou à sua casa,
onde o marido tinha ficado tomando conta do filho pequeno.
Luiz Cândido retornou às suas atividades acadêmicas. Só
Alfredo se mantinha na posição de âncora moral da esposa,
afastando-se de casa apenas por breves momentos
necessários. Dona Rosa é quem menos cedia à realidade e
continuava a dar guarida à dor e lembranças. Inconformada e
com o coração dilacerado, sua alma em constante paixão
tentava mitigar-lhe a perda com as lágrimas do martírio
materno.
Com o tempo, a cicatrização das dores foi-se efetivando e
os membros da família já encontravam forças para revolver as
cinzas do infortunado acontecimento.
Estando a sós com o pai, Luiz Cândido, mais conhecido e
tratado por todos pelo carinhoso diminutivo Candota, se abriu:
— Pai, o tempo todo eu penso, mas não consigo achar
uma lógica pro suicídio do Guilherme.
— Não fica pensando nisso, não. Já aconteceu mesmo!
Nada vai trazer o Guilherme de volta. Assim é a vida, assim é
a morte.
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— Mas tem que ter uma explicação. Ele não tinha


problema nenhum! Pelo menos que eu saiba! E não deixou nem
um bilhete! Nem pra mamãe! Nada, nada! Quem vai suicidar,
geralmente deixa um depoimento pra família, explicando o
gesto e pedindo perdão! O que me intriga é que ele não deixou
nada.
— Nada, mesmo. Já revirei os guardados dele e não achei
nada. Se tivesse alguma despedida, ele ia deixar bem à
mostra.
— E no computador dele?
— Já olhei tudo. Só programas das encomendas. Nada de
especial. Nada de problemas.
— Mas ele tinha senha de acesso.
— Tinha. Ele me contou.
— É GRA2, não é? Eu também sabia; não sei é donde ele
tirou essa combinação.
— Eu sei: G de Guilherme, R de Rosa, A de Alfredo e 2
dos dois irmãos. Ele até que, no modo dele, era amoroso com
a família. Não demonstrava, mas era. E sempre foi bom filho
também. Você tinha um grande irmão; pode se orgulhar disso.
— Está bem, mas não deixar uma despedida!... Muito
esquisito! A gente não conhece a causa, mas não existe efeito
sem causa. É claro que um motivo teve. Só pode!
— Estive conversando com um psiquiatra amigo, e ele me
deu algumas explicações possíveis pra esse caso. Você sabe
que seu irmão era anormal, não sabe?
— Não. Ele tinha um jeito diferente, mas era muito legal
com a gente. Não vejo nada de mais nisso... só se era pela
genialidade dele...
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— A gente nunca comentou isso. Você lembra que ele era


tímido, recolhido, introspectivo...
— Isso não é defeito. Pra mim, ele era bacana.
— É, mas ele era portador de uma raríssima e pouco
conhecida anormalidade chamada savantismo.
— O que que é isso?
— Chamam os médicos de síndrome de savant, ou
síndrome do sábio. É uma constituição cerebral anormal que
provoca excepcional aptidão para determinada atividade, em
detrimento de outras. Redunda num tipo discreto de quase
autismo. A ciência ainda não consegue explicar isso.
— É, mas ele tinha amor à vida. Tinha projetos. Eu não
me conformo é que não tenha deixado um bilhete.
— Pois é. Segundo o psiquiatra, tudo isso contribuiu pro
surgimento de uma depressão reativa súbita que leva ao
suicídio. Você sabe que suicídio é uma fuga, não sabe?
— Pelo que entendo, só pode ser fuga da vida. E, no caso
do...
— Não, meu filho. Ninguém foge da vida em si. Ele devia
ter algum problema real ou imaginário, que julgava
insuperável, e fugiu desse problema. Se tivesse conversado
com a gente, é certo que eu ia resolver essa questão. Mas o
gênio dele era assim... – e começou a mudar o tom de voz,
num esforço para se conter.
Candota, constrangido pela situação, manteve-se em
silêncio respeitoso por longo tempo. Finalmente, vendo que o
pai já se compusera, deu expressão à curiosidade, insistindo:
— Ainda vamos descobrir o causador disso. Algum dia...
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— Desvia a cabeça disso; esquece. Vai ser melhor pra


você. Este é o melhor conselho de pai: procura esquecer, vai.
Candota ficou pensativo e não falou mais no assunto.
Contudo, ficou arraigada em sua mente aquela inexplicável
tragédia.
Os pais de Guilherme, por respeito e amor, conservaram
todos os pertences do filho amado, mantendo-os nos mesmos
lugares e forma como se encontravam.
Com o tempo, Alfredo voltou a se dedicar às aulas na
universidade, agora com mais empenho porque isso ajudava no
transe do sofrimento. Dona Rosa retornou com zelo redobrado
às atividades na creche do bairro, como um modo de ajudar na
cicatrização de seu abalado coração.
A par dos normais compromissos, Candota mantinha, de
modo involuntário, a perquirição sempre presente em seu
pensamento a respeito da tragédia do irmão. Tinha que haver
um motivo, e isso insistia em lhe fustigar a curiosidade. Pediu
autorização aos pais para investigar as coisas de Guilherme e,
não obstante os conselhos em contrário, insistiu e conseguiu a
concordância.
Daí em diante, nas horas vagas, passou a procurar nos
guardados do irmão algum indício do seu enigmático gesto.
Revirou cartas, documentos, retratos e o que mais fosse.
Consultou anotações no escritório. Examinou seus livros.
Conversou com os clientes de informática. Nada encontrou que
lhe fornecesse uma pista. “O computador não precisava ser
inspecionado, porque meu pai ali já tinha procurado” – pensou.
Mas o mistério continuava a intrigá-lo e ficou a se inquirir:
“Quem sabe, papai não examinou direito ou deixou passar
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alguma coisa!” Na dúvida, resolveu investigar o aparelho. Iria


fazê-lo de forma minuciosa e sem pressa. Seria um trabalho
estafante, mas seu impulso de curiosidade parecia mais forte e
não o deixava desistir.
Num exame superficial, Candota tinha notado que o
aparelho estava sobrecarregado com anotações diversas e
programas feitos de encomenda para terceiros. Era volumosa a
carga de registros a ser verificada. Entrava em cada
documento avulso, que eram muitos, e o lia com atenção e
desconfiança. Começou no princípio da tela, como método de
trabalho; não saltou nada que ali estivesse registrado. Até
pequenas e simples anotações eram examinadas com cuidado.
Às vezes parava demoradamente na análise de um registro,
procurando encontrar sinais suspeitos, mesmo que fossem
apenas sugestivos de rumos.
Assim foi procedendo por muitas semanas. O tempo para
essas incursões não era muito disponível, tendo em conta os
compromissos com as aulas de física no cursinho, os estudos
de informática e o cultivo de um namoro – com Beatriz – que
era de seu agrado. Mas esse último compromisso, de certa
forma, estava sendo relegado pela dedicação cada vez mais
intensa à pesquisa do computador de Guilherme.
No aparelho, depois de examinados todos os documentos
avulsos, sem nada significativo encontrar, Candota abriu o
arquivo de pastas, onde eram indicados os programas
encomendados pela clientela. Achou desnecessário abri-las
todas – eram mais de trezentas – porque eram numerosas e
tinham indicação por palavra relativa a cada cliente, o que as
identificava com facilidade. Refletiu bem sobre tal aspecto e
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imaginou que fora esse o mesmo raciocínio do pai quando


havia pesquisado o aparelho. Assim, decidiu seguir a teimosia
da metodologia adotada de início, baseado em que tudo
deveria ser examinado com minúcia, pensando: “Pode ser que
eu encontre uma perninha...”
Sempre que podia, Candota dava prosseguimento àquele
rito quase diário. Abria uma pasta de programa, lia todo o
conteúdo, estudava e conferia a estrutura-fonte e passava à
seguinte. Sempre o mesmo sistema, o mesmo caminho, só
mudando os objetivos e especificações do programa. Era
realmente trabalhosa e maçante aquela pesquisa. O material
volumoso e monótono indicava não ter relação nenhuma com o
enigma. Mas Candota é determinado, paciente, e continua a
perseguir a tênue luz que acena para sua curiosidade.
Certa noite, já tarde, dispôs-se a abrir mais uma pasta
para exame, antes que fosse dormir, quando o documento
chamado para abertura não abriu e exigiu senha. Nova
tentativa, e o computador não cedeu. Digitada a senha geral
conhecida– GRA2 –, também não foi aceita. Foi tentada a
pasta seguinte, que guardava um programa de cliente, e ela se
abriu normalmente. A pasta seguinte também abriu seu
documento. Tentado o retorno àquela pasta resguardada e ela
não cedeu; exigia senha. Insistiu em GRA2 novamente, e nada.
Estava escrito na pasta o seu nome: Gaia. “Está aqui a
perninha do mistério... eu sabia!” – pensou, triunfante,
enquanto decidia ir dormir e renovar energias para os embates
que viriam com aquele novo mistério.
Passou na copa, tomou o copo de leite de costume e
procurou o rumo do quarto.
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Naquela noite, Candota lutou nos labirintos do


pensamento, procurando se entregar à inconsciência do
repouso. Tentava, mas não encontrava na cama a posição
indutora do sono. Excitado pela descoberta de algo tão
estranho no caminho do que procurava, vieram-lhe à mente
diversas dúvidas e hipóteses sobre o caso. Não sabia se
contava ao pai sua descoberta. Imaginou que ali poderia estar
a explicação do desespero do irmão, o que resultaria em mexer
na ferida que ainda cicatrizava em seus pais. Talvez não
conseguisse descobrir a senha específica do documento e isso
seria outro fantasma em sua vida. Por fim, exausto pelas
lucubrações nebulosas, sem perceber penetrou no abrigo
acolhedor do sono.
— Meu filho, acorda senão você vai perder a hora – ao
tempo em que a mãe o tocava de leve à beira da cama.
O jovem rapaz acordou assustado e, com um lépido
movimento, se pôs de pé. Contudo dava tempo para os
preparos e chegar na hora ao cursinho, onde tinha
compromisso com as aulas. Mas precisava dinamizar suas
ações e vigiar o relógio.
— Ontem você ficou no escritório até muito tarde. Precisa
dosar seu tempo – aconselhou a mãe, enquanto se retirava do
quarto.
O filho, calado, procurou concentrar-se nas providências a
tomar, mas não deixou de se lembrar, de relance, da noite
anterior, quando descobrira aquele intrigante nome, Gaia.
Trataria disso depois.
Mais tarde, chegado em casa depois de cumpridos os
compromissos, Candota se dirigiu ao escritório em estado de
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intensa ansiedade. Primeiro abriu um dicionário para saber o


significado de Gaia. Dizia ali: “Na mitologia grega, a Terra
geratriz”. “Hum! – pensou – é sinônimo de Terra... Mas por que
Terra? Esse nome... seria apenas uma fantasia, ou já indicaria
talvez algum rumo de investigação?”
Ligou o computador e foi direto para a pasta trancada.
Tentou abrir o documento, com insistência, e o pedido de
senha se pôs à frente. Foi às demais pastas que ainda não
tinham sido lidas e, abrindo-as uma a uma, sem dificuldade,
não as lia. Só intentava descobrir se havia outros arquivos
bloqueados por senha. Todas livres. Apenas Gaia protegia com
fidelidade canina os recônditos pensamentos e sentimentos de
Guilherme. Certo de que tinha encontrado o portal de entrada
para a sua curiosidade, firmou o objetivo de que era ali que
tinha de farejar.
O primeiro pensamento que ocorreu ao insistente
pesquisador foi pedir ajuda ao pai – teria de contar o
andamento das suas pesquisas – porque talvez ele soubesse
também a senha daquele documento, pois conhecia a sigla da
entrada. Vendo que nada ia conseguir, fechou a máquina e foi
em busca daquela esperança. Após o lanche, seria o momento
adequado para essa conversa. Na oportunidade, entrou no
assunto:
— Pai, tenho verificado as coisas do Guilherme, como
você sabe, mas até agora não achei nada que...
— Eu sabia que não ia encontrar nada mesmo.
— Não, papai, não é isso. Até que achei uma coisinha no
computador dele, mas preciso da sua ajuda.
— O que foi?
AGORA OU NUNCA MAIS
23

— Encontrei uma pasta que não abre. Está protegida com


senha que não conheço. Queria saber se você tem informação
dela.
— Não. Eu só sabia a senha de abertura, porque ele
mesmo me informou. Mas essa pasta deve ser igual às outras
que andei olhando por alto; tudo ali é programa de clientes.
Bobagem você perder seu tempo com isso.
— Tem razão. Afinal, ele só cuidava de fazer programas!
Com essa concordância, dando por finalizado o caso,
Candota escolheu tratar do assunto sozinho, afastando possível
interesse do pai com relação à misteriosa pasta, pois, como
estava prevendo, a revelação daquele documento poderia
trazer à tona informações discutíveis. Achou melhor reservar
para si a ingente tarefa de decifrar – se tivesse sorte – aquela
intrigante chave de Gaia. Lutaria só, mas já sabia que essa
peleja seria intensamente desgastante. Conscientizou-se de
que doravante deveria exercitar as virtudes da paciência e
obstinação.
Na próxima vez que se sentou ante o computador,
compreendeu que só teria de proceder a um rito curto, rápido
e simples: registrar naquele quadradinho de senha uma
combinação de letras ou algarismos que fosse a mesma que
Guilherme havia registrado. Para isso, tinha diversos caminhos
a seguir; diversos critérios. Mas um juízo era exigível: tinha
que ter imaginação, usando tudo o que conhecia da
personalidade do irmão.
Para a tarefa, haveria de registrar no mesmo computador
as combinações que usasse, a fim de não perder tempo ao
compor a mesma chave duas vezes. Assim fez. Começou então
AGORA OU NUNCA MAIS
24

as tentativas, até com certo otimismo, pois julgava que sua


inteligência serviria de bom condutor para aquela caçada.
Começou imaginando siglas de pessoas e situações
conhecidas. Ficou na busca por vários fatigáveis dias.
Infrutíferas todas as tentativas. Afinal, aquele exercício nada
mais era que uma procura de quase adivinhação.
Um ano transcorrido, desde o falecimento de Guilherme, e
ainda estava Candota ali, pacientemente, ante aquela Esfinge
informatizada, como a lhe propor: “Decifra-me ou eu te
devoro.” O corajoso jovem ainda enfrentava a fera, mas agora
sem tecer raciocínios. Colocava as prováveis senhas,
aleatoriamente, sem muita convicção, confiante que o aparelho
refutaria as chaves repetidas. “Este jogo implica também um
pouco de sorte” – consolava-se em pensamento.
Mais algum tempo decorrido e nosso pesquisador já não
tinha tanto entusiasmo e esperança na busca do segredo.
Aquela labuta já se estava tornando enfadonha e esmorecia o
ânimo na procura de algo tão indefinido. Aos poucos, as
atenções do jovem estavam mais concentradas na beleza de
Beatriz, a quem dedicava mais tempo e coração. O cultivo
desse namoro, que fortalecia o amor de ambos, foi aos poucos
fazendo emergir na mente de Candota os primeiros esboços de
um futuro a dois. Já freqüentava a casa da moça, e começava
a sentir-se um vitorioso no projeto de vida.
Por essa ocasião, Candota já tinha deixado de dar aulas
no cursinho, se formara em informática e conseguira retomar
quase toda a clientela que fazia encomendas com o Guilherme.
Estava satisfeito com os resultados que vinha obtendo, já
projetando seu nome nos meios especializados de informática.
AGORA OU NUNCA MAIS
25

Quando tinha alguma folga, quase como obrigação, retomava


sem entusiasmo o exercício de adivinhação da senha de Gaia,
que se mantinha inexpugnável como uma redoma de aço.
Assunto já quase esquecido.
Em determinado dia, ao proceder a umas procuras no
barracão que servia de depósito para coisas inservíveis,
reconheceu a gaiola do canário de estimação de Guilherme, ali
depositada, mas agora vazia e triste pela morte do
animalzinho, que deve ter voado para junto de seu antigo
dono. Renovada a curiosidade, fixou a atenção naquela triste
prisão. Sob emoção, enquanto rememorava a representação
histórica da gaiola, veio-lhe uma espécie de alento
revigorante, uma ligação incompreensível por tais meios.
Sentiu a intuição de que a chave de Gaia se encontrava
encarcerada na gaiola; ali mesmo, à sua frente. A palavra
canário foi a primeira que lhe acudiu à mente. Entusiasmado,
largou a continuação da tarefa e correu para o computador.
Canário seria a senha. Inexplicavelmente, esse nome não
tinha sido lembrado antes. Talvez porque a ave tenha morrido
poucos dias depois da tragédia, antes que Candota se
empenhasse na investigação da senha para Gaia. O
conseqüente envio da gaiola para o depósito também deve ter
contribuído para o esquecimento.
Procurando conter a ansiedade provocada pela inspiração,
o alentado pesquisador teclou as letras de canário e deu
entrada. Na tela, a recusa de sempre. Experimentou repetir a
palavra, mas sem acento agudo. Recusada também.
Frustração. Mas a força da suspeita ainda permanecia ativa e
acionou o raciocínio, como ajuda naquela situação. Veio-lhe o
AGORA OU NUNCA MAIS
26

nome carinhoso que o amado irmão dera ao pássaro: Jóia.


Experimentou, não passou.
Alguma coisa transcendental, sem explicação, continuava
a rondar o tema e o seduzia com a certeza. Sob essa
influência, adquiriu mais energia e entrou em frenesi.
Seguidamente, e sem sucesso, registrou no campo da senha
tudo o que a visão da gaiola lhe indicava: asa, pena, canto,
poleiro, água, saltar, cantar, bebedouro, arame, amarelo,
prisão, liberdade, porta, perna, canela, comida, voar, alpiste...
Cansado, sem esperança, desistiu e desligou o aparelho.
Voltou a rebuscar no barracão o objeto que antes
procurava. Ainda dentro do depósito, ante a presença ali da
gaiola, parou novamente sob influência de misteriosa força,
adquiriu novo ímpeto mental e começou a construir uma
relação. Sua mente foi conduzindo a razão para caminhos
estranhos, ainda não percorridos. Veio-lhe uma insistência e
foi cedendo à imaginação: “O nome da pasta é Gaia, com o G
de Guilherme; o nome do canário é Jóia que tem certa
identidade com Gaia pelas sílabas, pela tônica e pelo ditongo,
mas não tem o G... Hum... substituindo o J pelo G, vamos ter
Goia... Goia... Mas Goia, o que será? Não significa nada... Mas
pode ser senha...”
Algo inexplicável lhe dava indicação desse nome. Apesar
desse impulso, não mantinha muito entusiasmo. Ligou
novamente o computador e teclou Goia. Não adiantou; não
abriu o programa. Ainda pensativo, foi especulando: “Goia não
significa nada... Hum... aquele angustiado e famoso pintor
espanhol se chamava Goia, mas com Y... Será?”
AGORA OU NUNCA MAIS
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Nesse pensar, Candota deu um pulo de susto. Foi um


estalo de memória. Lembrou-se de que lá no armário de
Guilherme, entre seus guardados, havia uma estampa enorme,
reprodução de “Caprichos”, obra do célebre pintor que tanto
sofreu na sua época. Na expectativa extrema, digitou Goya e...
a tela se abriu... Abriu como a flor se abre para o colibri.
Mostrou-se toda, desnuda, sem rubores e sem cuidados. Como
num ato probatório de confiança, retirou o véu que a encobria
e se ofereceu clara, definida, sem mentiras ao persistente
herói. Enfim, a glória de uma busca!
A satisfação era imensa. Sentia-se recompensado por
aquela busca de tanto tempo. Tinha vencido uma batalha que
inicialmente parecia perdida. E se pôs a pensar: “Não fosse a
inspiração daquela gaiola... que me fez dar tantas voltas! Mas,
afinal, ela era o ímã que me induzia ao ponto certo. Parece que
foi ela que conduziu o meu raciocínio!”
Extenuado pelas energias despendidas com tão renhida
batalha, o jovem físico teve o bom senso de encerrar o
computador e procurar o repouso necessário. Teve que conter
a curiosidade em benefício do bom desvelamento do mistério
que, segundo deu para perceber à primeira vista, tratava-se de
documento complexo. Se desse abertura àquele documento,
sua ânsia de curiosidade não pararia mais. Teve consciência do
perigo de continuar, pois estava extremamente enfraquecido,
tanto física como psicologicamente. O juízo recomendava
descanso e assim o fez.
AGORA OU NUNCA MAIS
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2º CAPÍTULO

No dia seguinte, após atender a uma avalanche de


compromissos inadiáveis anteriormente marcados, Candota
ainda teve que comparecer à colação de grau de odontologia
de Jandira, irmã única e caçula de Beatriz. Saiu mais cedo da
festa, alegando uma indisposição e se dirigiu a casa, ocasião
em que carregava forte tensão ante a iminência de leitura do
arquivo Gaia. Já se tinha contido o dia todo e ansiava pelo
momento em que, sozinho e sem outros embaraços, ficaria
conhecendo todo o segredo do irmão.
Foi direto para o escritório, trancou a porta, acomodou-se
frente ao computador e o ligou. Alcançada a pasta Gaia, teve o
AGORA OU NUNCA MAIS
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sabor de vitória ao digitar a senha Goya. Com olhos espertos e


ansiosos, fixou a primeira tela do documento, como já tinha
divisado anteriormente: um quadro com equações
matemáticas, sem menção ao assunto. Curioso, examinou bem
aquele quadro e descobriu no canto superior a indicação de
que se tratava apenas de uma abertura simbólica. Imaginou
que dali em diante começaria a abordagem do tema, por certo
relativo a cálculos.
Deixou-se ficar entregue à leitura e interpretação do
documento por longo tempo, cada vez mais atento e mais
surpreso à medida que ia avançando na tarefa. Passava direto
por diversos quadros de fórmulas e equações matemáticas, às
quais no momento não tinha paciência e tempo para analisar.
Finalmente, com a última tela apontando dados estatísticos e a
conclusão em destaque indicando o número 2036, Candota
fechou o programa, desligou o aparelho e, completamente
aturdido, exangue, suando na testa com abundância, jogou- se
na poltrona ao lado e ali ficou por bom tempo, apavorado,
ofegante, ruminando mentalmente o segredo desvelado: “Que
horror! Ah!... por isso é que ele às vezes pedia pra operar o
supercomputador lá da universidade! Então foi isso que levou
Guilherme ao desespero! Foi fraco e não resistiu a essas
evidências. Coitado, deve ter sofrido muito, e calado! Agora a
gente sabe!”
Candota percebeu a necessidade de fugir daquela
situação. Sentiu medo de sofrer abalo mental e de ser
dominado pelas mesmas forças misteriosas que se ocultavam
naqueles gráficos acusatórios, os mesmos que levaram
Guilherme àquele trágico descontrole.
AGORA OU NUNCA MAIS
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Deitado à espera do sono, e ainda entorpecido pelas


conseqüências da violação da intimidade do irmão, veio-lhe à
mente aquele quadro final do computador que, por tão
ameaçador, tinha imposto a morte ao irmão, enfraquecido pelo
desespero. Sentiu com vigor o peso da responsabilidade que
agora carregava. Apavorado, pensou: “Não pode ser! Isso é
uma desgraça! Não acredito! Impossível! Por isso é que o
Guilherme não teve coragem de contar pra ninguém! E o pior é
que eu também não posso contar nada pro papai, senão ele vai
se contaminar também. Eh, pior é que tenho de manter
segredo absoluto”. E, depois de fazer longa meditação e
começar a ceder na dúvida à competência do irmão, como se
acusando: “Agora minha vida mudou, e eu me tornei o
responsável e depositário único do segredo. A curiosidade me
levou ao inferno; que coisa horrorosa! Mas tenho que manter o
máximo do bom senso, manter a cabeça firme; não posso
fraquejar de jeito nenhum! Tenho que enfrentar a situação com
os pés no chão. Se a realidade é essa, tenho que aceitar e
lidar com ela do jeito que é; sem me deixar dominar”.
Enquanto o sono não vinha – e prometia não vir, tal o
estado de angústia que dominava aquela alma – e para desviar
o pesadelo, Candota começou a repassar com saudade e
tristeza as recordações dos tempos passados, principalmente
quando os irmãos eram crianças e se folgavam nas
brincadeiras da idade. Do irmão, passou às lembranças dos
amigos, dos colegas de colégio, da primeira paixão e das
aventuras inocentes e despreocupadas.
Forçava só lembranças agradáveis, com o objetivo de
abafar seu estado sofredor. Lembrou-se, ainda, de seu dileto
AGORA OU NUNCA MAIS
31

colega e amigo, William Benton, filho do cônsul norte-


americano na cidade. Tinham sido colegas até o fim, no ginásio
e na universidade, mas William seguiu o curso de matemática.
No começo, quando ingressou no ginásio, esse amigo falava
português com carregado sotaque inglês. Com o tempo e a
dedicada ajuda de Candota, chegou a se expressar com
relativa clareza. A gentileza foi correspondida certo tempo
depois pelo amigo, quando o brasileiro fez o curso de inglês,
que o ajudava na desenvoltura da conversação.
Nos últimos anos de escola, como eram muito chegados,
estabeleceram um regulamento próprio em que dialogariam da
seguinte forma: William falaria em português e Candota, em
inglês, com ambos se corrigindo mutuamente. Ademais, este
freqüentava a casa do cônsul, Harrison Benton Korn, e treinava
o inglês com ele e a esposa, Dona Ruth, que se mostravam
simpáticos e agradáveis. Era comum Candota passar as tardes
ali, por conta de estudos e jogos com o amigo, ocasiões em
que acabavam sendo servidos de deliciosos e lembrados
biscoitos fritos, feitos caprichosamente por Dona Ruth.
Candota chamava o amigo de Bento, e parece que esse
tratamento o agradava, pois nunca o corrigiu nem reclamou. A
amizade entre ambos se consolidou no decorrer dos anos de
escola até que, formado em Matemática, o filho do cônsul se
transferiu para os Estados Unidos onde cursou mestrado. Fez
também doutorado no Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de Princeton e ali passou a lecionar sua
especialidade. Mantinham constante correspondência pelo
correio eletrônico, deixando atualizados seus assuntos
AGORA OU NUNCA MAIS
32

particulares, enquanto consolidavam a sincera amizade e


simpatia que os ligavam.
Num Natal dos últimos anos, antes da morte de
Guilherme, Bento veio passar férias na casa de Candota.
Revisitaram os lugares de outrora, trocaram idéias várias e
falaram de seus sonhos juvenis.
Enquanto Candota revolvia suas lembranças, veio à
memória o dia em que ficou conhecendo Beatriz. Foi quando
entrou na loja do Seu Juarez, procurando um presente para o
aniversário de sua mãe. Quando foi pagar, estava na caixa uma
atraente morena de olhos expressivos. Era Beatriz, que
trabalhava na loja do pai; era a contabilista e tesoureira da
firma. Daí em diante, foi levado a fazer algumas comprinhas
desnecessárias, só para poder ver aquele encanto e sentir o
coração esquentar e pular.
Parece que essas rememorações todas de tempos felizes
serviram para relaxar as tensões do dia, e o saudoso jovem
finalmente se deixou levar para as profundezas do sono.
Ainda profundamente impressionado, na manhã seguinte
Candota saiu para os jardins, contemplando cada tipo de flor
que encontrava. Concentrou atenção numa touceira de
gerânios onde zumbia agitada leva de abelhas, sustentando a
costumeira atividade de sugar o néctar ao tempo em que
polinizavam as flores. Estava ali um espetáculo indicando o
início de mais um ciclo misterioso e insistente da Natureza.
Componente menor, mas essencial no concerto das danças
cíclicas de todo o cosmo. Por algum tempo, deixou-se ficar
absorvido por aquele espetáculo de afirmação da Vida. Não só
das abelhas, mas das flores também. A seu modo, estas se
AGORA OU NUNCA MAIS
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ofereciam como partícipes do enredo maior, compactuando


para o êxito daquele trabalho obstinado de servir e ser servido,
sempre no cumprimento dos desígnios de Deus.
Por vários dias, Candota se deixava ficar absorvido pelo
misterioso programa do irmão, estudando-o em seus
pormenores e repassando os cálculos e dados estatísticos ali
incorporados. Além do exame do programa, fez acréscimos e
alterações técnicas, com base em dados mais atualizados,
sempre na esperança de que o resultado final sofresse alguma
alteração. “Deve ter algum erro nesse negócio... Só pode!...
Num programa tão complexo assim, só pode ter algum
tropeço!” – imaginava Candota, enquanto trabalhava em suas
análises e aperfeiçoamentos.
Depois de diversos dias de cálculos e pesquisas, sentiu-
se esgotado e desorientado, decidindo dar férias à cabeça.
Percebeu que sofria muito. Tinha que se distrair com alguma
coisa. Estava indo com um ritmo forçado e considerou que era
de bom senso aplicar um método mais racional à sua
atividade. Lembrou-se que há dias não visitava Beatriz. Pegou
o telefone e ligou para a casa da namorada:
— Bom dia. É o Candota. Por favor, eu desejo falar com a
Beatriz.
— Aqui é a mãe dela. A Beatriz não está; já saiu pra loja.
Liga pra lá, que já deve ter chegado.
— Obrigado, Dona Berta. Ligo mais tarde.
Pousou o fone lentamente. Sem saber o que fazer e ainda
desorientado, ficou imaginando como se distrair daquela fonte
de massacre mental. Entreteve-se jogando paciência com o
baralho até mais tarde, quando foi chamado para o almoço.
AGORA OU NUNCA MAIS
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À mesa já estavam os pais. Dona Rosa, com expressão de


entusiasmo e satisfação, dirigiu-se ao filho e provocou:
— Hoje fiz um prato do seu gosto: nhoque à napolitana.
— Beleza! E verdura, tem?
— Tem, sim. Couve-flor no vapor e passada na manteiga,
como seu pai gosta.
— Ainda bem que não estou ficando esquecido nesta casa
– brincou o patriarca.
Depois da refeição, Alfredo costumava puxar uma palha,
recostado no sofá. Coisa de dez minutos. Após a sesta,
procurou o filho que se encontrava no jardim, apreciando a
Natureza como de costume. Dirigindo-se ambos para o
escritório, Alfredo falou:
— Parece que você está se dedicando demais ao
computador. Desse jeito, acaba caindo numa depressão... do
jeito do Guilherme... Você precisa enxergar isso.
— Não preocupa, não!
— Preocupo, sim. Parece que você está perdendo o
entusiasmo pela Beatriz, o que é normal. Mas, se for o caso,
procura outra que te acenda o coração. Afinal, nesta vida tudo
se move em torno do amor. Por isso, ele tem centenas de
facetas, sempre diferentes nas formas, sempre iguais no
objetivo. Acho que você se deixou prender a uma rotina. Isso
faz mal.
Ante o silêncio do filho, Alfredo calmamente foi até a
janela. Pensativo, ficou por algum tempo olhando o espaço
profundo. Virando-se para o filho, ponderou:
— Já que você não gosta de lecionar, acho que podia
arrumar um outro emprego. O trabalho numa coletividade é
AGORA OU NUNCA MAIS
35

colorido, interessante e areja o espírito. Fica conhecendo


muitas pessoas e isso é bom. A gente aprende e ensina
também. Vai se sentir útil a alguém ou a alguma coisa.
Acontece uma troca de experiência de vida. Essa atividade que
você herdou do Guilherme é muito solitária e... o seu mundo
acaba sendo você mesmo.
Fez uma pausa, observando a expressão do rapaz, que
ainda se mostrava atento, e continuou:
— Devemos ter idealismo, um objetivo de vida; faz bem
pra saúde. Você precisa encarar as realidades do mundo. Sua
irmã se casou e já constituiu família. O normal é você também
seguir esse caminho, que é o envolvimento sentimental com
uma moça redentora.
O jovem ouviu tudo com paciência e atenção. Pesou bem
as palavras do pai, compassou breve silêncio e respondeu:
— Pai, você está preocupado à toa. Pode deixar que estou
no controle. Quanto à Beatriz, gosto dela, mas...
— E então?
—Ela tem atrativos... é inteligente... parece que gosta de
mim, mas...
— Então?
— Ô pai! Ainda é cedo pra uma definição!
— Não quero te forçar a nada. Estou só tentando um
aconselhamento, e pai é pra isso mesmo!
— É isso aí! Casar por casar, eu não quero. Primeiro,
tenho que me convencer. Ah, tinha até esquecido! Fiquei de
telefonar pra ela.
— Bem, qualquer problema seu é meu também. Fala
comigo, e eu vou te ajudar a resolver. Se precisar, é claro!
AGORA OU NUNCA MAIS
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Pode contar com o seu pai. A Terezinha avisou que vem


almoçar amanhã com a gente. Parece que tem alguns assuntos
sobre costura com sua mãe. Vou andando, que tenho algumas
pendências a resolver lá na escola.
Candota, procurando pôr ordem no raciocínio, ficou
meditando sobre a conversa: “Diabo! Tenho um estorvo na
vida, que são aqueles malditos gráficos, e não posso arrumar
outro com a Beatriz. Não sei pra que que eu fui abrir aquele
diabólico arquivo. As coisas vinham tão bem comigo! Eh...
agora não adianta reclamar. Tenho que decidir isso é hoje! Não
posso demorar! Ainda bem que não fiz compromisso formal.
Tudo não passa de um namoro pra gente se conhecer. Preciso
conversar com ela, mas num sentido que não deixe ela iludida
ou magoada. Afinal, gosto muito dela”.
Pegou o telefone e marcou encontro para aquela noite.
Deu depois uma espanada no carro, parado na garagem por
alguns dias, e procurou se distrair com a televisão.
Na proximidade da noite, preparou-se para o encontro,
tirou o carro do abrigo e se dirigiu à casa de Beatriz. Já no
destino, tocou a campainha e foi atendido pela namorada, que
o esperava. Risonha, irradiando beleza, olhos grandes e
meigos, não escondeu a satisfação.
— Olá, sumido! Foi bom você ter vindo – enquanto lhe
estendia em acolhida as duas mãos; ato correspondido.
— Tudo bem?
— Achei que você tinha se esquecido de mim. Já estava
com saudade.
— Andei muito atarefado com os...
— Tanto serviço assim?
AGORA OU NUNCA MAIS
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— Eh!... você sabe... a gente não pode fugir dos


compromissos que assume.
— Nem telefonou! Vamos assentar na sala. Você prefere
na sala ou na varanda?
— Na varanda é melhor. O tempo está meio quente, e ali
é mais arejado. Além disso, podemos ter mais conforto e mais
inspiração. Quero ter um assunto franco com você, e ali é
melhor.
Para disfarçar o susto com esse aviso, Beatriz tentou se
controlar e disse que ia à cozinha buscar uns biscoitinhos de
coco que sua mãe tinha feito naquela tarde. Com isso, deu-se
tempo para recompor a mente. De volta, carregando um
pratinho coberto com guardanapo, passou na sala, pegou a
mão do namorado e foram ambos para a varanda. Depois de
acomodados num sofá balançante e de uma espera em
silêncio, Beatriz se aventurou:
— Que segredo é esse que você está guardando pra mim?
— Eu vou te falar, mas calma aí!
— Estou calma, ué!
Ante o silêncio mais prolongado do namorado, Beatriz
insistiu:
— Fala! Olha, com três anos de namoro, acho que nossa
conversa é pra ser sempre leal e verdadeira. Essas
sinceridades é que reforçam o relacionamento de duas
pessoas. Mas que assunto é esse afinal? Fala!
Criando coragem, Candota se aventurou:
— Não é nada de mais... É assunto comum dos
namorados e... acho que está na hora de ser abordado, tanto
pelo respeito como pela afeição que sinto por você.
AGORA OU NUNCA MAIS
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De início, parecia que estava ensaiando declaração de


amor, mas aquela palavra no final – afeição, fraca para aquele
momento – trouxe para o coração de Beatriz um primeiro sinal
de desaponto. Ela desejaria uma palavra mais arrebatadora.
Curiosa e decidida, animou o companheiro enquanto oferecia
um biscoitinho:
— Continua, mas seja verdadeiro, hem!
Candota, sufocando seu amor por Beatriz, procurou medir
bem as palavras e, um tanto formal, se manifestou
pausadamente:
— Tenho que ser honesto com você. Gosto de você, te
acho bonita, você tem sido muito atenciosa comigo. Há dois
anos estamos nos conhecendo...
— Três anos – retificou Beatriz, com firmeza.
— É. Três anos.
— E daí? Fala! Pode falar! – animou Beatriz, impaciente,
ante a estacada do namorado.
— Pois é... cada vez eu te admiro mais. Estive fazendo
um exame da situação e cheguei à conclusão de que não posso
ser egoísta.
— Egoísta! O que que é isso!
— Estou tentando te explicar. Assumir compromisso com
você, sem que eu esteja convencido da minha capacidade
emocional de te dar completo amor e felicidade, seria uma
atitude egoísta e enganadora. Eu sou incapaz de atitudes
desse tipo. Gosto de você, mas não o suficiente pra
comprometer o seu futuro. Percebo que devo deixar livre o seu
caminho. Assim, você vai poder encontrar outra pessoa que te
possa fazer feliz.
AGORA OU NUNCA MAIS
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Beatriz, sofreando o choro, com o peito palpitando e face


rosada, solta a alma:
— Você deve saber que eu te amo! Já dei provas disso
várias vezes. Nesses anos, venho cultivando esse amor com
zelo e sonhos. Você tem o seu direito de escolha, mas se gosta
de mim, como disse, tudo passa a ser questão de tempo.
E, já não conseguindo conter o choro, explode em
lágrimas:
— Não me abandona! Dá mais um tempo pra decidir!
Quem sabe, você ainda me amará o suficiente!
A situação ficou constrangedora. Candota, sem
demonstrar, sofria ante aquelas lágrimas de amor à sua frente.
Amava profundamente Beatriz e, no entanto, procurava
cumprir a decisão anteriormente tomada. Sentia que estava
agindo como autômato, tal como executando um esquema de
computador programado para tal desempenho. Com isso,
estava esmagando suas emoções.
Depois de alguns segundos, ambos em silêncio e Beatriz
mais controlada, Candota quebra o embaraço do momento:
— Não adianta dar seguimento a uma relação que está
insegura da minha parte. E você ia ficar embalada numa
esperança que já não tem encanto. Reconheço que o covarde
sou eu, mas não posso deixar de ser honesto com você.
Beatriz nada respondeu. Manteve-se pensativa e, triste,
tentava se conformar.
Mais um período de silêncio e embaraço. Candota,
acanhado, se despede com simples aperto de mão. Vai a
passos lentos para o carro e, sem olhar para trás, retorna a
AGORA OU NUNCA MAIS
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casa. Beatriz permaneceu à porta, contendo o choro, vendo a


esperança se esfumar.
Apesar do sofrimento, naquela noite Candota dormiu
melhor. Havia tirado da consciência um fardo, a
responsabilidade da indecisão e do engano. Agora, sim, tinha
retificado o rumo da sua vida. Estava preso apenas aos
problemas das estatísticas, aqueles gráficos preocupantes
que, como parecia, iriam acompanhá-lo pelo resto da vida.
No dia seguinte – a família reunida na sala –, no meio das
conversas de rotina, Candota falou aos pais:
— Ontem eu terminei o namoro com a Beatriz. Não teve
briga, não; foi só uma conversa franca. Falei que não estou
maduro ainda pra definir um compromisso. Estou muito
atarefado com os serviços encomendados e não tenho tido
tempo pra ela. Foi melhor assim. Saímos amigos.
— Está bem, meu filho. Você já tem idade de
independência e suas decisões devem ser consideradas
acertadas. Tem tempo pra aparecer a moça certa do destino.
Você também não acha, Alfredo? – perguntou Dona Rosa,
virando-se para o marido.
Alfredo, com o jornal nas mãos, assentiu com a cabeça e
não fez comentários. Mas ficou em seus pensamentos: “Será
que fui eu o responsável, com aquela conversa? Não devia ter
me intrometido. Acho que falei demais”.
Indo ao escritório, Candota olhou para os papéis e
cadernos arrumados na mesa e ficou desgostoso e
desanimado. Não via uma saída. Olhou para o computador que,
mudo e sem vida, devia estar esperando que alguém o ligasse.
Era uma fera adormecida, inofensiva, apenas aguardando que
AGORA OU NUNCA MAIS
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lhe dessem vida para, com imagem acusatória, expor sua obra
de destruição.
Parou um momento para se concentrar no problema,
procurando achar uma estratégia para o caso, quando recebeu
um impulso de otimismo e pensou: “Quem sabe eu consigo
achar algum erro? Ah! se tiver um engano no diabo dessas
contas! Vai ser uma felicidade! Aí conserta tudo e vai ser uma
beleza! Vai ser a minha vingança! Guilherme era gênio, mas
pode ter cometido algum engano!”
É verdade que já havia repassado os dados e cálculos
registrados pelo irmão, mas um lapso podia ter ocorrido, o que
mudaria toda a questão. Desta vez, iria coletar os informes
com inteira atenção e reexames, de forma que não escapasse
nada. Precisava ter certeza absoluta. Problema esclarecido, a
vida voltaria a sorrir. Poderia voltar para a Beatriz, realizar os
sonhos acalentados, apaixonar-se, ter muitos filhos, ser feliz.
Aquele bicho-papão não mais o amedrontaria. Era só questão
de coragem e autocontrole. E de sorte também. Valia a pena
esmerar-se na revisão, porque podia significar a sua
libertação. Até já se vangloriava mentalmente: “Liberdade!
Liberdade!”
Movido agora com espírito otimista, arejado por aquela
decisão, fez mentalmente um esboço do plano de ação para
mais logo e se dirigiu a casa. Passou pela copa, foi à sala e
perguntou à Dona Rosa pela Terezinha, que tinha prometido
vir.
— Avisou que não pode vir pro almoço; vem à tarde e
ficar pro lanche. Ela vem com o Zeninho.
— Vai ver, está presa com alguma encomenda.
AGORA OU NUNCA MAIS
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— Está sim. Disse que os pedidos de arranjos têm


aumentado, principalmente pras festas de crianças. Está tendo
muita procura por artesanatos e ela tem queda pra coisa. Está
se saindo bem.
— Antes assim. Pelo menos vai ganhando o dinheirinho
dela.
— Tem mês que ela tira mais do que o Zenon; já viu!
— Fala baixo! A inveja pode escutar!
No começo da tarde, Candota se dispôs a enfrentar o
desafeto eletrônico. Antes, porém, devia fazer um
planejamento meticuloso sobre todos os elementos com que ia
trabalhar e colocá-los numa ordem adequada, sempre se
precavendo contra enganos.
Como de costume, o escritório do pai, onde se localizava
boa biblioteca com expressivo cabedal de publicações sobre
Química, estava à sua disposição para consulta e coleta de
dados. Essas fontes informativas se somavam à boa biblioteca
dos filhos, que ficava no escritório pessoal.
Metodicamente, consultou diversos livros, publicações
oficiais, dados estatísticos. Fez conferência de registros e
confrontou anotações anteriores. Finalmente, rascunhou uma
espécie de guia para orientar todos os passos da verificação.
Estava nesses preparativos quando foi interrompido pela
rápida e estabanada abertura da porta por alguém que tinha
entrado correndo no recinto. Era o sobrinho, de três anos,
garoto vivaz, curioso, que foi ali em busca do abraço de
costume do tio. Sinal de que Terezinha já tinha chegado.
Depois de oferecer alguma atenção ao menino, deu uma
arrumada nos papéis, pegou o guri nos braços e saiu rumo à
AGORA OU NUNCA MAIS
43

residência. Encontrou Dona Rosa e Terezinha na sala,


examinando umas roupas.
— Olá, Tê! Tudo bem? O rapazinho está espertinho, hem!
Lá no escritório quis mexer em tudo. É muito curioso; vai ser
cientista.
Enquanto falava, colocou o menino no chão. Este, com a
lepidez própria da idade, pegou umas batatas que estavam na
cozinha e veio pedir palitos para espetá-las e brincar de
boizinho.
— Tudo certo! E você, continua trabalhando nos seus
programas complicados?
— Complicados pra você!
— Se tem alguma coisa que eu nunca vou aprender é esse
tal de computador. Minha praia é as artes. Lá em casa tem um,
do Zenon, mas eu nem mexo nele. Pro Zenon está certo,
porque faz parte da função dele. Muitas vezes ele traz serviço
pra casa e é ali que trabalha. Diz que ajuda muito, que facilita
os controles. Sei lá! Será que só o trabalho na fábrica não
chega? Ele é muito responsável. Por ser o gerente da fábrica, o
que sobra de encargos traz pra casa. Esse meu marido
trabalha além da conta. Mas não interfiro. Deixo pra lá. Ele
deve saber o que faz.
— Você está certa! Computador é só pra quem gosta de
ferver a cabeça – arriscou Dona Rosa, olhando para o filho,
que respondeu:
— Mas distrai muito. Tem horas que eu fico pensando:
como seria possível viver neste mundo sem a informática?
Como a sociedade de antigamente pôde se entender sem
computador?
AGORA OU NUNCA MAIS
44

— Isso é muito simples de explicar – atreveu-se


Terezinha. — A gente só sente falta daquilo que sabe que
existe. Como não tinha computador na antiguidade, nunca fez
falta pra ninguém. Você hoje não sente falta do exprendito!
— O que que é isso!? – estranhou o irmão.
— Sei lá! Quem é que sabe? Só sei que ninguém sente
falta dele – arrematou Terezinha, soltando deliciosa
gargalhada.
— Eh, você me pegou! Mas deixa isso pra lá! Vamos
mudar de assunto. O Zenon já arrumou o carro depois da
batida?
— Nada! Já tem oito dias que está na oficina. Parece que
está tendo problema com o seguro. E eu é que sofro as
conseqüências; tenho que levar e buscar ele no serviço. Se eu
não tivesse meu carro, não sei como a gente ia se arranjar.
— Isso é assim mesmo. O melhor é não bater. Você deve
é agradecer porque seu marido não sofreu nada no acidente.
— Eh... questão de sorte! Mas tudo na vida tem seus
problemas. Veja só essas roupas do Zeninho; também dão
problema. Estão ficando apertadas pra ele.
— É o Zeninho que está crescendo depressa.
— Pois é! Trouxe pra mamãe ver se consegue dar uma
alargada, mas está difícil. Nas próximas vezes, vou comprar
roupas bem folgadas, que é pra serem usadas mais tempo. Já
tem roupa perdida. Vou ter que dar algumas pra creche.
Ali ficaram certo tempo, pondo os assuntos em dia e
falando das rotinas, quando Dona Rosa avisou que ia preparar
café com quitandas e se retirou para a cozinha. Terezinha
AGORA OU NUNCA MAIS
45

aproveitou a oportunidade. Chegou mais perto do irmão e lhe


disse em voz baixa:
— Vou te contar uma coisa maravilhosa, mas por
enquanto é segredo. Não vai falar nada pra mamãe, porque no
momento não tenho certeza. Segundo meus cálculos, estou
esperando o seu segundo sobrinho. Estou entusiasmada, e o
Zenon também. Dá vontade de anunciar pra todo mundo.
Minha boca coça, mas ainda é cedo. Segredo, hem!
Olhando a cara inexpressiva do irmão, exclamou:
— Ué! Parece que a notícia não te comoveu! Não está
satisfeito como eu?
— Não, Tê! Não é nada disso! Estou feliz pela novidade,
mas é que homem é diferente. Sente pra dentro. Fica tranqüila
que tudo vai bem. E meus parabéns.
Em poucos minutos, chega Dona Rosa chamando os filhos
para a copa, onde tinha arrumado o café. Candota participa da
mesa, mas se retira logo, deixando a conversa ficar entre as
duas, ainda sobre roupas e costuras.
Com o retorno ao trabalho e concentrando-se onde tinha
parado, reviu os papéis, fez umas separações desconexas e...
Parou. Não sabia exatamente o que estava fazendo; seu
pensamento vagava desnorteado entre sombras e luz, sem
referência. O otimismo daquela manhã tinha sofrido
perturbação com a revelação da irmã. De alguma forma, o
futuro daquela gestação estava ligado à acusação do
computador. Em caráter concreto, estava sentindo o primeiro
efeito negativo daqueles gráficos. Mas tinha que lutar contra
essa emoção danosa e enfrentá-la com os recursos do
intelecto. Confiava que sua mente era mais forte e venceria
AGORA OU NUNCA MAIS
46

aquele combate. Decididamente, tomou as rédeas da situação


e impôs sua vontade. Iria refazer seus apanhados e chegar a
uma definição; fosse para o bem ou para o mal. Sentiu um
sopro de vigor e o ímpeto do confronto com a máquina. Sim,
teria de ousar, mas com cautela, conforme aconselhava seu
bom senso.
Depois de certo tempo, já se sentindo confiante e
dominador, reuniu e catalogou todas as informações
necessárias para a definitiva revisão dos seus cálculos.
Sentou-se ante o monstro, olhando-o com ânimo de desafio, e
o ligou. Sentiu um arrepio de medo, como se estivesse
entrando numa arena de combate. Na tela, sem vacilação, a
imagem usual, como que a prévia abertura de cortinas de
teatro. Expunha sua fria determinação de antepor não suas
razões, mas seus fatos que punha à mostra um palco onde
qualquer enredo da vida pode ser montado. Por certo, uma
provocação e demonstração de poder daquele que pretendia
aceitar o bom combate.
Candota suspirou fundo, colocou os nervos em seus
devidos lugares e, num ritmo lento, pensado, cauteloso, entrou
no programa específico que estava revisando. Esse programa
exige que sejam fornecidos dados corretos e coerentes para
que possam ser feitas as análises predeterminadas. E os dados
foram sendo digitados. Somente depois de cuidadosamente
conferidos, um a um, eram eles incorporados ao programa.
No dia seguinte deu prosseguimento ao meticuloso
trabalho. Metodicamente, inseria um índice estatístico,
verificava tabelas, compunha uma equação, confirmava nos
livros de química as fórmulas de reações moleculares,
AGORA OU NUNCA MAIS
47

confrontava indicadores parciais e, em longas pausas,


repassava mentalmente a estrutura racional construída em
cada caso. Não podia errar. Tinha que ter certeza de que os
elementos com que estava lidando fossem confiáveis.
Assim foi trabalhando, com firmeza, até a hora do
almoço. Como demoraria um pouco a ser servida a refeição,
tomou o rumo do quarto, momento em que sua mãe o alertou:
— Não demora não, que o almoço já está saindo.
Candota abriu uma gaveta do armário e, do fundo, sob
roupas, retirou pequena caixa onde guardava certas coisas
pertencentes à intimidade do coração. Folheou rapidamente
algumas fotografias e retirou uma especial. Era o retrato de
Beatriz encostada no carro. Deixando a lembrança aflorar, fica
rememorando. No dia em que recebeu o carro novo foi à casa
de Beatriz para mostrá-lo, como pretexto para vê-la. Ela disse,
então, que esperasse um momento, entrou em casa e voltou
com uma máquina fotográfica que tinha ganhado de presente
de aniversário. A irmã de Beatriz, Jandira, bateu uma foto dos
namorados junto ao carro, e depois se revezaram no manejo
da máquina. A foto de ambos juntos saiu escura, mas a que
focalizou apenas o carro e a moça dos seus sonhos ficou muito
bem enquadrada, com boa exposição, e Beatriz está lindíssima
nela. Depois de namorar o retrato, Candota deu um suspiro,
guardou seus pertences e voltou à copa.
Durante a refeição, Alfredo comentou algumas notícias
políticas do jornal do dia, fez críticas ao governo e
acrescentou:
— Deu no jornal que os incêndios florestais no Brasil nos
últimos três anos, de ano pra ano, têm subido. De dezesseis
AGORA OU NUNCA MAIS
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mil, passaram pra vinte e cinco mil. Desse jeito, não sei aonde
vamos chegar. Uns dizem que a solução é conscientizar os
fazendeiros, mas acho que o assunto é puramente de
administração pública. A culpa é do governo. Só se
conscientiza quem tem consciência. E o povo em geral não
sabe nem o que é isso. Será que o povo sabe, Candota?
— Consciência é ligado a sensibilidade. E as dificuldades e
pressões econômicas desta nossa civilização fizeram o povo
ficar insensível e egoísta. O pior é que esses incêndios
aumentam também nos outros países. Pelas estatísticas
mundiais, essas tragédias são crescentes. E os agentes
desses crimes também aumentam.
— Que agentes são esses? – perguntou Dona Rosa,
curiosa, já se interessando pelo assunto.
— Os agentes são os homens aculturados que, direta ou
indiretamente, são forçados a praticar atos destrutivos pela
necessidade de atender os seus interesses de sobrevivência ou
de enriquecimento. O mundo natural é regido por uma situação
de equilíbrio. Se esse equilíbrio é quebrado, o sistema entra
em estado de desordem. E aí vem o caos.
— Ave Maria! Então, o caos é o nosso futuro? – espantou-
se Dona Rosa.
— Depende! Quando o desequilíbrio é instaurado em um
sistema simples, localizado, a própria natureza reage e
restabelece a estabilidade. É o caso, por exemplo, da nuvem
de gafanhoto. Outro exemplo é a monocultura extensiva, que
favorece o surgimento de pragas agrícolas, como conseqüência
do processo seletivo.
AGORA OU NUNCA MAIS
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— Não entendi como a monocultura pode produzir pragas!


– admirou-se Dona Rosa.
— Na natureza, tem espaço pra todos. Se, num terreno
onde existem árvores de diversos tipos, eu planto um
pessegueiro, vai ter comida pra todo tipo de inseto e
bichinhos. E o pessegueiro segue existência normal e sadia.
Por quê? Porque cada um daqueles bichinhos tem o seu
alimento de preferência. Se eu derrubar a mata e plantar só
pessegueiros, os que se alimentavam das outras árvores vão
morrer por falta de comida. Já os que se nutriam de
pessegueiro vão ficar sem inimigos naturais e se imaginarão no
paraíso, com a oferta abundante de alimento da sua
preferência. Dessa forma, a população de parasitos de
pessegueiro crescerá com tal ímpeto e abundância – aí sim,
tornando-se praga – que provocará a morte das próprias
fruteiras. Moral da história: o exagero de pessegueiros, por
desequilíbrio do ambiente local, provocará excesso dos seus
parasitos, o que, por sua vez, destruirá a sua própria fonte de
alimentação. Em conseqüência, fica destruída a população da
própria praga. Numa situação de desequilíbrio, sofrem todos.
Todos morrem.
— Mas é isso que você anda aprendendo com os seus
trabalhos de informática? – pergunta Alfredo.
— Não! Nada disso! Informática é instrumento de
trabalho; é recurso pra alcançar resultados com rapidez. Não
tem nada a ver com informações científicas, que estão nos
livros e podem ser consultados por qualquer um. Essas coisas,
a gente vai aprendendo com leitura, observação e raciocínio.
AGORA OU NUNCA MAIS
50

Mas você deve saber disso. Na sua biblioteca tem muitos livros
importantes que falam dessas coisas também.
— Sim, eu sei. Achei interessante é você se entusiasmar
pelo assunto. Assumiu uma impostação e linguagem
professoral. Parecia um mestre apaixonado pela matéria dando
aula! E depois ainda diz que não tem queda pra lecionar!
Gostei de te ver!
Candota percebeu que se tinha deixado embalar pelo
tema e, por isso, tinha falado mais que devia. Em
conseqüência, ficou meio acabrunhado e procurou mudar de
conversa, comentando excelente documentário que tinha visto
na televisão, em que era ensinado o preparo de mexilhões.
Depois de calmo passeio pelos jardins para arejar o
espírito, Candota recomeçou seu desgastante trabalho no
escritório. Enfrentou o computador com naturalidade, já
familiarizado com o inimigo, e ficou alimentando-o com os
complexos elementos de cálculo e dados estatísticos, sempre
sob a esperança de que algumas pequenas falhas encontradas
na revisão fossem alterar para melhor as indicações finais. E
assim continuou por mais alguns dias.
Prosseguindo cautelosamente no trabalho, o tempo foi
avançando, e as últimas folhas de anotações sendo viradas. O
coração do nosso personagem acelerando as batidas, as
orelhas esquentando, e a mente se enevoando. A decisão de
parar novamente o fez estacar. Só faltava inserir o último dado
e comandar a conclusão. Era intensa a ansiedade e tinha que
se conter. Parecia que a cabeça ia ferver.
Essa parada foi racional e salutar. Lembrou-se de
Guilherme e pensou: “Tenho que ser mais forte. Não me
AGORA OU NUNCA MAIS
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entrego.” Levantou-se, foi à janela, respirou fundo algumas


vezes e procurou impor o autocontrole. A tensão era forte, mas
teimava que não podia ser dominado pelos caprichos do
programa. Depois de uma meditação e de um exercício de
relaxamento, compenetrou-se da superioridade do intelecto
sobre as emoções. Reuniu forças e conseguiu superar a
instabilidade.
Agora estava impávido, sereno, dominador.
Lentamente, já com domínio de si, cumpriu o rito previsto
e a última etapa do apanhado. Sem hesitar, calcou finalmente
a tecla de inclusão do último dado disponível e aguardou a
elaboração e apresentação na tela das informações finais.
Pronto. Ali estava à mostra o mesmo quadro estatístico
apurado anteriormente por Guilherme e – o principal – a
confirmação da desalentadora e nefasta data: 2036.
“Guilherme era um gênio mesmo” – pensou.
Foi bom ter feito a revisão. Serviu como prova de
exatidão e coerência daquele programa. E isso era
fundamental. Não havia mais dúvidas. Como o monstruoso
resultado foi confirmado, seus cálculos só podiam estar
corretos. O abalo em Candota foi grande. Aquilo equivalia a
julgamento definitivo de um juiz togado que lhe apontava o
dedo e dizia: “culpado!”, que sua cabeça traduzia, ressoando:
“condenado... condenado...”.
O certo é que ele se sentiu ao mesmo tempo derrotado e
como que anestesiado; sem dores, insensível, porém de certo
modo aliviado. Aquele resultado era, agora, uma informação
definitiva e reveladora, traçando o rumo da sua vida e que iria
afetar a sociedade, os povos, o mundo. E era segredo também.
AGORA OU NUNCA MAIS
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Não podia ser divulgado sob pena de ocasionar uma das


seguintes situações contraditórias: ou Candota ser
desacreditado e ridicularizado, ou o pânico aflorar e se alastrar
pelos povos. Doravante, tinha que ser mantido o máximo
cuidado nas conversas. Não podia partilhar o assunto com
ninguém.
No dia seguinte, antes de sair do quarto para o café
matinal com os pais, ante o espelho procurou reverter seu
abatimento psicológico mediante uma auto-análise. Raciocinou
que tinha de ser forte, não demonstrar a angústia e perseguir
o equilíbrio necessário para enfrentar a luta que prometia ser
árdua dali em diante. Consultou sua consciência que dizia: “A
partir de agora, devo desligar o nome de Guilherme desse
maldito programa, como forma de prestar meu preito a ele.
Será como redimi-lo pra poder descansar em paz. Por ter tido
o pecado de violar seu segredo, assumo as conseqüências
disso, ainda mais que fui eu que conferi tudo e confirmei como
exato. Doravante, esse programa passa à minha guarda e... só
peço ao Guilherme, lá do céu, que me ajude a encontrar o
caminho da minha vida.”
Depois do café, ainda à mesa e comentando com os pais
assuntos triviais, tocou o telefone situado na mesinha do canto
da copa, atendido por Dona Rosa. Depois dos cumprimentos e
palavras de praxe, Dona Rosa ergueu o telefone na direção do
filho:
— É pra você. É a Beatriz.
Candota vacilou e sentiu um baque na alma. Procurando
não demonstrar aflição, levantou-se e pegou o aparelho.
Seguiu-se uma conversa só de lá, pois o personagem de cá
AGORA OU NUNCA MAIS
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ficou quase só na escuta, soltando apenas expressões soltas


de afirmação ou negação e balbuciando interjeições. A
conversa ficou finalizada de cá por um lacônico depois-te-ligo.
Dona Rosa abafou a curiosidade e sustentou o silêncio.
Alfredo, que tinha permanecido calado para assuntar o diálogo,
também se fez de ausente.
Depois da costumeira volta pelos canteiros do jardim,
onde procurava se distrair e admirar a natureza, Candota se
dirigiu ao escritório, seu esconderijo e abrigo, seu ambiente.
Recostando-se confortavelmente no sofá que ficava em
frente da pequena estante de livros, pôs-se a meditar sobre
aquelas situações de tumulto mental. Primeiro tinha que
relaxar o corpo e a mente para absorver todos os dados das
suas inquietações. Tinha que contar apenas consigo mesmo,
pois não podia pedir conselhos a ninguém. Primeiro iria pensar
sobre a Beatriz, assunto que parecia ter sido resolvido, mas
que voltava a dominar sua alma depois do telefonema daquela
manhã, e que despertou e agitou o seu coração. E ficou
meditando:
“Vamos supor que eu me entregue aos apelos do coração
e procure a felicidade, casando com a Beatriz. Afinal de
contas, eu a amo, eu já existo, e ela também. De qualquer
modo, vamos ser vítimas desse futuro insano. Nesse caso, eu
tenho que contar tudo a ela e eliminar a possibilidade de
termos filhos. Contar antes do casamento? Contar depois? Se
ela concordar, até aí tudo bem. Mas, como é do destino dos
casais apaixonados, pode ocorrer o indesejável e ela se
engravidar. Nesse caso... o peso da responsabilidade... eu não
ia agüentar... eh, a vida ia ficar insuportável! Eu tenho que
AGORA OU NUNCA MAIS
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enxergar essas coisas é antes, porque depois não adianta! Não


posso violentar minha consciência. Sei que meus filhos não
terão futuro e serão sacrificados no pior dos infernos. Não,
essa hipótese tem de ser riscada. Definitivamente, de qualquer
forma isso não pode ocorrer; nem que seja por solução
cirúrgica.”
Por alguns minutos, Candota deixou-se ficar no vazio do
pensamento, como a procurar serenidade e clareza mental.
Depois de longo suspiro, prosseguiu em seus pensamentos:
“Eh!... falar com a Beatriz sobre filhos... posso tentar...
eu posso até ser considerado atrevido ou estúpido. Seria mal
compreendido? Ou teria o acolhimento da sensatez? E se a
crueza do assunto matar o amor da Beatriz? Quem sabe, o
melhor seria eu me tornar irresponsável? Existe tanta gente
irresponsável! Mais um não ia fazer diferença! Aí eu ia tratar
apenas da minha felicidade, ficar egoísta, igual muita gente...
Ahh! me dá é nojo; não é por aí! E se eu estiver sendo muito
pessimista? Dúvida... ah, dúvida! Quem sabe estou louco e não
sei? Na verdade, estou entre duas forças: amor e consciência.
Qual seria a mais forte? O que que eu faço? Seria justo
sacrificar a maior das emoções, o amor, por uma causa
irresponsável da humanidade? E com base em fatos que talvez
nem aconteçam! Mas... e o rigor e frieza das conclusões das
projeções estatísticas? Estaria duvidando da exatidão dos
meus cálculos?”
“Não, assim não é possível. Parece que uma só cabeça é
insuficiente pra suportar todos esses problemas. Só com a
ajuda de alguém, eu ia poder sair com a melhor solução. Sim,
ajuda. É isso mesmo! É disso que estou precisando. Mas de
AGORA OU NUNCA MAIS
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quem? Aí é que está a questão. Não tem ninguém. Meu pai não
serve, porque vai subordinar o problema ao amor paternal.
Pode ser que ele assuma os meus problemas, e aí quem vai
ficar sofrendo é ele; isso eu não quero. Ou vai rir de mim? E
amigos? Qual? Em quem confiar, tendo em vista que o assunto
não pode sair de controle? O único é o Bento, talvez. Tem a
vantagem de ser matemático. Mas mora nos Estados Unidos
e... deve ter suas próprias ocupações e problemas... Eh,
vamos ver...”
Candota deixou a mente vagando pelos mesmos
problemas existenciais, procurando uma lógica de raciocínio,
mas sempre se defrontava com os obstáculos conflitantes
entre as emoções e a razão. Resolveu que aproveitaria a
oportunidade do diálogo que ia ter com Beatriz e procurar
sondar a possibilidade da primeira hipótese – casamento sem
prole – o que seria a introdução de fato novo nessa intrincada
questão.
Ligou para a amada e marcou o encontro para a noite.
Sentiu-se aliviado por ter sido capaz de tomar uma decisão e
já sentia um disfarçado otimismo. Apanhou novo ânimo e pôs
fé naquele fio de esperança.
Cumprindo a rigor o horário marcado, o visitante foi
recebido à porta por Beatriz que se apresentou deslumbrante,
com a vida toda brilhando naqueles dois olhos grandes. Tinha
se preparado com especial capricho. Usava belo vestido rosa
puxado para solferino sem enfeites, mas bem talhado, com
diversos recortes ressaltados por sutache da mesma cor, em
tom mais claro. O cabelo tinha sido arranjado com capricho,
ainda que solto e sem adornos aparentes, guarnecendo aquele
AGORA OU NUNCA MAIS
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belo rosto, tratado com ligeira e suave pintura. Nas orelhas,


singelos brincos com longos pingentes oscilantes que
completavam sua formosura com agradável e sedutora
aparência.
Ao vê-la, Candota sentiu fortes pulsos de amor no
coração, mas se conteve. Estendeu-lhe a mão, em
cumprimento, e expressou um forçado sorriso de bom humor.
— Oi, Beatriz!
— Oi! Como vai?
— Tenho trabalhado muito e vivendo como a vida manda.
Mas está tudo bem.
— Sempre a mesma desculpa. Sempre trabalhando...
Entra! Vamos conversar na varanda lá de dentro.
Ao passarem pela sala, Candota notou que a família
estava com visita. Manifestou, sorridente, uma boa-noite-a-
todos e se deixou levar para a conhecida e amistosa varanda.
Trocaram conversas quase protocolares sobre
amenidades, ocasião em que Candota aproveitou para admirar
os encantos daquela que poderia mudar, ou o seu destino, ou o
da humanidade.
Já estava pensando se teria coragem de abordar o
assunto crucial da conversa, no interregno de longo silêncio,
quando Beatriz se compôs na postura e no semblante e, com
coragem e meiguice, se aventurou, olhando fixo nos olhos do
amado:
— Eu pedi pra conversar pessoalmente porque imaginei
que você já podia ter pensado melhor sobre o nosso namoro.
Te dei um tempo. Pelo que sei, você não está interessado em
outra mulher. Só cuida do trabalho e deve estar se sentindo só.
AGORA OU NUNCA MAIS
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Candota percebeu a angústia dessa última palavra – só –


e Beatriz prosseguiu:
— Como já te disse, eu te amo! – e ficou esperando a
reação.
Candota, sem saber o que dizer, sofria calado. Ante o
silêncio, a jovem prosseguiu:
— E como você declarou que também gosta de mim, acho
que está faltando apenas um entendimento... um
entendimento! – repetiu, como que fazendo uma pergunta.
Sem reação, insistiu:
— Talvez tenha alguma coisa obscura atrapalhando
melhor entrosamento e que eu desconheço. Queria que você
fosse mais claro comigo. Fala, fala alguma coisa!
Por fim, recebeu um impulso de coragem e disse:
— Beatriz, eu também te amo, mas acho que tudo tem
que se ajustar a realidades. Sei que você completaria minha
vida, mas não devemos ser egoístas.
— Lá vem você com a mesma conversa!
— É que não podemos querer felicidade só pra nós dois.
— E daí?
— Temos que pensar em outras pessoas também!
— E daí?
Criando coragem, entrou no difícil tema, pensando: “Seja
lá o que Deus quiser” e ousou:
— Tenho notado, pelas suas palavras e ações, que você
tem demonstrado que gosta de crianças.
— Ah! adoro crianças! Elas são um mimo, não são?
— Me diga uma coisa, quantos filhos você gostaria de ter?
AGORA OU NUNCA MAIS
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— Ué... estou te estranhando! Essa pergunta é a


propósito de quê? Você está desviando a nossa conversa.
— Não pense errado de mim. A minha pergunta tem razão
de ser. Acho que ela é natural e faz parte do nosso processo de
entendimento. Afinal, devemos ser honestos e francos um com
o outro. Sempre foi assim!
— De certo modo, você tem razão. É que me assustei com
o repentino desvio do assunto que estava sendo tratado. Já
que você está curioso de saber... pois é... como você sabe,
gosto de crianças. Agora, quanto a filhos... isso depende do
destino. Eu deixaria essa sina pra Deus resolver. Mas gostaria
de ter filhos sim; quantos eu merecer. Satisfeito?
— Pois é. Aí é que está a questão. No caso hipotético de
assumir um compromisso com você, eu não poderia ter filhos.
Se te pedisse em casamento, seria com essa condição.
Candota deu cumprimento à missão, mas sentiu a vista
escurecer, o cérebro rodopiar, parecendo que se tinha lançado
num abismo escuro. Instintivamente, segurou firme na cadeira,
esperando as conseqüências.
Beatriz constrangeu-se. Achou que ele foi muito direto na
revelação; não fez rodeio, não fantasiou, não amaciou nem
preparou o espírito da amada. Foi brusco e mostrou falta de
tato. Poderia ter sido mais gentil. Contudo, refazendo-se da
surpresa, preocupou-se em afastar o obstáculo, oferecendo
palavras de otimismo:
— Ah, Candota! Isso hoje em dia não é problema. Com a
evolução da medicina, tem muitos tipos de tratamento, e essas
questões seriam resolvidas. Além disso, caso Deus não queira,
AGORA OU NUNCA MAIS
59

existe a alternativa de adoção de uma criança, que não é nada


difícil.
Candota não queria magoar Beatriz, mas não podia deixar
prevalecer aquele mal-entendido. E agora? Como sair dessa
situação? Teria que usar de franqueza sem revelar seu
segredo. Procurou se compor com serenidade e regulou a voz
com doçura e carinho:
— O caso não é esse! Não é do jeito que você está
pensando! Eu, pessoalmente, não tenho problema dessa
ordem. A minha falta de entusiasmo com filhos é pela
insegurança de futuro que a gente está vendo neste mundo.
Acho que não tem boas perspectivas de felicidade pra nossos
descendentes. Esta nossa civilização está em plena
decadência, em todos os aspectos, e eu temo pelos inocentes
que estão por nascer. Não vejo nada de bom pras novas
gerações. Esse o meu ponto de vista.
Percebendo o desgosto que causou na amada, cujas
feições mostravam severo aborrecimento, procurou justificar
seu arrazoado, mas dando por perdida sua estratégia:
— Não estaríamos realizados se vivêssemos só pra nós
dois. Em conseqüência, eu estaria frustrando seus ideais de
felicidade visto que você pretende uma família com
descendentes.
Percebendo que Beatriz não se tocou com a justificação,
ainda tentou obter pelo menos uma concordância amigável e
jogou sua última cartada:
— Você não acha?
A jovem, sentindo-se decepcionada e infeliz, retrucou
zangada e com voz alterada:
AGORA OU NUNCA MAIS
60

— Você é muito racionalista. Ter filhos implica realização


de atos de amor que se legitimam perante a Natureza. As
ações de emoções e sentimentos não podem ser prejulgadas
pela razão. As aspirações do coração não se subordinam a
censuras. Acho que você está enxergando o mundo com muito
pessimismo. Você...
— Beatriz!...
— ...precisa receber uma sacudida de emoções. Não se
pode pensar somente no lado escuro da lua. O luar foi feito pra
encantar e estimular os sentimentos do amor. Ademais, você
precisa saber que, por natureza, as mulheres são coração, e os
homens ficam usando a mente pra atrapalhar o coração. Daí
que a felicidade duma vida a dois reside justamente na
sabedoria da dosagem certa de emoção e razão. Você
demonstra que apenas pensa, não sente. Você não me ama,
porque não sabe o que é amar; vive mergulhado na lógica do
raciocínio.
Candota, sentindo-se vencido e desencorajado, se
entregou:
— Você tem toda razão. Eu bem que tentei romper minhas
visões negativas, mas elas continuam a comandar as minhas
decisões. Sou prisioneiro delas.
Seguiu-se longo silêncio. Da sala ouviam-se movimentos
indicando que a visita se retirava. Candota, despertado para a
realidade e percebendo as feições de revolta da moça,
esforçou-se para permanecer em tom sereno e disse:
— Por te amar e respeitar é que tinha que ser franco e
honesto. Agora você conhece a dúvida que me atormenta.
AGORA OU NUNCA MAIS
61

Acho que não temos escolha. Você encontrará outro amor a


quem...
— Tá! – bradou Beatriz com indignação. — Você não
precisa me dizer mais nada. Chega! Já vi que não nos
entendemos mesmo!
— Beatriz, por favor, me leve até à porta.
Despediram-se secamente nesta noite. Parece que tudo
estava terminado mesmo.
Na volta para casa, Candota ficou se conformando e se
justificando perante a consciência. De qualquer forma, tinha
sido frutífera aquela conversa, que afinal serviu para definir as
condicionantes das suas dúvidas. Mas estava pesaroso por ter
deixado Beatriz magoada. “Quem sabe, ela teria razão? Talvez
não a amasse o suficiente” – pensou.
Doravante estava delineado seu caminho, e a primeira
coisa a fazer era se esforçar para abafar aquele amor. Tinha
que se tornar imune a esse sentimento. Sua atenção doravante
seria dirigida apenas para a luta contra o medonho computador
que o atormentava. O andar do tempo impunha providências
urgentes. Já o tinha gastado inutilmente com suas indecisões,
e os primeiros passos deveriam ser planejados logo.
Em casa, já acomodado, sentia-se ansioso apesar do
esforço para relaxar. Lembrou-se dos comprimidos ansiolíticos
que tinha na gaveta do armário, receitados na época em que
ficou abalado pelo conhecimento do revolucionário programa e
que acabou gerando essa situação. Tomou um e se aquietou,
aguardando a visita de Orfeu.
No dia seguinte, levantou-se mais tarde por efeito do
tranqüilizante. Sentia-se bem dormido e disposto. Foi ao
AGORA OU NUNCA MAIS
62

escritório; deu uma arrumada em alguns papéis e notou que


alguém tinha andado mexendo em suas coisas. Parece que não
estavam daquela forma. Verificou os conteúdos, mas concluiu
que suas anotações não mostravam nada que pudesse revelar
o verdadeiro objetivo do seu trabalho. Teria sido a faxineira?
Talvez, mas resolveu não dar importância ao fato.
Candota se acomodou no confortável sofá para meditar
sobre o planejamento da sua vida:
“Nessa indecisão é que não posso permanecer. Se não
encontrar um rumo, vou ter que providenciar uma consulta ao
psiquiatra. Mas como? Teria que contar meu segredo? Se
chegasse a esse ponto... só se estivesse louco, mas isso eu
não sei.”
“Bom, de qualquer forma, descartando a hipótese do
psiquiatra, agora só existe um rumo. Isso é taxativo. Eu
sozinho não posso fazer nada. Divulgar minhas descobertas é
arriscado. Preciso de ajuda, mas que seja forte, efetiva,
condizente com a situação. Acho que o único que pode entrar
nesse esforço é mesmo o Bento, porque afinal ele é norte-
americano, vive nos Estados Unidos, exerce atividades
intelectuais e deve ter relacionamento com pessoas influentes
na política americana. E, pensando bem, numa empreitada de
caráter mundial, só mesmo os Estados Unidos têm condições
materiais e políticas de liderar medidas compatíveis com o
problema. Não vejo outro caminho.”
“Ele já me convidou várias vezes pra passar férias lá, e a
oportunidade é agora. Levo todos os documentos da pesquisa
pra demonstrar e colher alguma alteração que o Bento possa
sugerir. Quem sabe pode dar certo? Duas cabeças pensam
AGORA OU NUNCA MAIS
63

melhor. É isso aí. Vou pôr à prova a exatidão dos meus estudos
ou concluir que estou louco. Pelo menos, a situação vai ficar
mais clara. Antes de tudo, preciso entrar em contato com ele
pra saber como anda a disponibilidade.”
Depois da decisiva reflexão, ligou o computador e mandou
um correio eletrônico para o amigo:
“Caro Bento, saúde.
Espero que tudo esteja bem com você, a Miriam e a
filhota.
Como você já sabe, eu não vinha muito entusiasmado no
namoro com a Beatriz. Terminei de vez com ela. Nada de
briga; foi acordo mesmo. Minha família continua bem. Só eu é
que ando com umas preocupações de ordem intelectual. Sinto
que estou precisando da sua ajuda. Se ainda tiver algum
cantinho na sua casa, pretendo passar férias com vocês, mas
não sei quando vou poder partir. Me comunica sua
disponibilidade de tempo, pra eu preparar a viagem.
Adianto que vou precisar da sua colaboração num
trabalho importante que vou levar comigo.
Do amigo, Candota.”
Remetida a mensagem, estava inaugurado o início de uma
peregrinação que só Deus sabe onde vai terminar. Estava dada
uma guinada naquela vida de sofrimentos e despontava uma
tênue luz de esperança.
Ia aguardar a resposta do amigo, mas já podia adiantar
as providências para a viagem. O primeiro passo era a
comunicação de sua decisão aos pais. Para adiantar, pediria o
passaporte e o visto da embaixada americana, coisas que
geralmente apresentam alguma demora.
AGORA OU NUNCA MAIS
64

Arrumaria os documentos que serviram de fonte à sua


pesquisa e daria outros passos. Tinha que pedir ao pai um
empréstimo para as despesas, pois suas economias eram
insuficientes para a jornada. Agora, possuidor de extremo
otimismo, calculou que, com a ajuda do amigo, em trinta dias
conseguiria interessar o governo americano no assunto ou
colher o fracasso total. Depois... o depois seria imprevisível.
Tudo ia depender do grau de compreensão das autoridades
americanas e dos cientistas que dão suporte a elas.
Naquele dia, Candota disse aos pais, com certa
formalidade:
— Como vocês sabem, tenho trabalhado muito. Estou é
precisando de férias. Como o Bento vem me convidando há
tempos, decidi que chegou a hora. Já contei o dinheiro que
tenho, mas não basta.
Olhando para o pai, perguntou:
— Dá pra você me emprestar o dinheiro das passagens?
Pra minha manutenção lá, vai ser fácil; vou ficar na casa do
Bento, e a despesa vai ser pouca. Pra isso eu tenho.
— A gente dá um jeito, mas preciso de prazo – respondeu
o pai.
Contudo, ainda surpreso, indagou:
— Você decidiu essa viagem assim de repente? E logo pra
um lugar tão longe? Pra descansar, podia escolher uma boa
praia aqui no Brasil mesmo. Temos tanto lugar bonito,
tranqüilo, reparador.
— Eu nunca viajei pro exterior e não vou perder esta
oportunidade do convite do Bento. Vou apenas pagar uma
visita.
AGORA OU NUNCA MAIS
65

— E pra quando você marcou essa viagem?


— Não marquei ainda. Passei um correio eletrônico pro
Bento, dando conta dessa decisão e pedi que me avisasse uma
boa data, de acordo com o interesse dele. Sei que ele tem lá
seus compromissos.
— Pra essa viagem, você tem de rever suas roupas –
aconselhou Dona Rosa. — Ouvi dizer que lá faz muito frio e
você tem de levar uns agasalhos.
— Não preocupa não, mãe! Vou fazer planejamento da
viagem e pretendo não esquecer de nada. Se ficar aqui alguma
coisa, não tem importância; vou ficar em casa de amigo. O
Bento é muito atencioso, como você viu quando ele esteve
aqui no Natal. Lembra?
— Eh! Eu conheço esse moço desde os tempos de escola
e, quando ele esteve aqui, até então estava solteiro. Agora
casado, as coisas costumam modificar. Você não conhece ainda
a mulher dele e não sabe o ambiente que vai encontrar.
Tomara que dê tudo certo. Faço votos que você goze bem as
férias – arrematou Dona Rosa com tranqüilizador sorriso.
Alfredo procurou encorajar o filho:
— Vai e pode fazer o seu esquema de viagem que eu vou
providenciar o dinheiro das passagens. Pensando bem, é até
bom você conhecer outros lugares e arejar o espírito com
culturas diferentes. Assim...
— Ah, meu filho! – atalhou ansiosa Dona Rosa. — Vou te
contar uma novidade, o Zeninho vai ganhar um irmão. Você
não vai se demorar nessas férias, não é? Não vai esquecer da
vida e ficar por lá, vai?
Candota, fingindo surpresa:
AGORA OU NUNCA MAIS
66

— A Tê! Parabéns pra ela. É até bom eu saber disso


agora, porque ia na casa dela me despedir. O trabalho dela vai
aumentar, mas a vida é assim mesmo, impõe essas coisas.
Nos dias seguintes, Candota ocupou-se com os
preparativos da viagem. Fez cópia de todos os documentos que
serviram de base à sua pesquisa, gravou em disco o seu
programa, os arquivos concernentes e os dados estatísticos
apurados. Transpôs para um computador portátil todos os
elementos com que trabalhou, fez testes e se certificou de que
tudo estava em ordem. Não podia chegar à casa do Bento sem
a documentação completa, que seria o apoio à argumentação.
Diariamente consultava o correio eletrônico em busca da
esperada notícia do amigo.
No quarto, fez lista das roupas e objetos que ia levar,
anotando algumas faltas e as providências próprias da véspera
ou do dia da viagem. Supriu-se no comércio do que faltava,
comprou cheques de viagem e se deu como aprontado. Havia
apenas uma providência pendente: fazer ligeira visita à irmã,
que já devia saber da viagem.
A demora da manifestação do americano estava pondo
Candota numa dúvida. Por isso, ficou matutando:
“Quem sabe o correio eletrônico não chegou ao destino?
Já havia cinco dias desde a data da mensagem. Esquisito! E se
a mulher do Bento fosse uma danada, como minha mãe
sugeriu, e tivesse interceptado a mensagem e jogado ela no
lixo? Não. Não posso aceitar a hipótese de encontrar obstáculo
logo antes de começar. Se assim fosse, já era pra pensar em
desanimar. Nada disso! De qualquer jeito, tenho que ir em
frente. Só preciso de uma palavra do Bento. Mas, pensando
AGORA OU NUNCA MAIS
67

bem, minha situação é fraca. Conto só com ele. Eh, por


enquanto não tem alternativa!”
À tarde, na volta da faculdade, Alfredo procurou o filho no
escritório, onde estava lendo alguma coisa para passar o
tempo, e disse:
— Olha, eu arrumei o dinheiro pras passagens. Dois mil
dólares! Dá?
— Dá, sim.
— Seu amigo já respondeu?
— Ainda não. Já preparei minhas coisas, mas as
passagens vão ficar pra depois; deixa ele confirmar primeiro.
À noite, por mais uma vez naquele dia, Candota consultou
o computador para ver se havia notícias do Bento. Chegou o
que esperava. Sentindo-se radiante e esperançoso, abriu o
texto e leu pausadamente a mensagem:
“Olá, Candota.
Só hoje é que abri o correio eletrônico, porque fiquei fora
de casa uma semana, dando um cursinho intensivo em Boston.
Fico satisfeito que afinal você vem ver a gente. A Miriam já
arrumou seu quarto, e você pode vir quando quiser. É só me
avisar o dia e a hora, pra te esperar no aeroporto. Você deve
marcar passagem pra Nova York, onde fica mais fácil eu te
pegar. Me informa também o número do vôo e qual o aeroporto
de destino, porque Nova York tem três.
Quanto às suas preocupações, saiba que amigo é pra
ajudar mesmo. Estou às ordens.
Aguardando suas notícias, abraços meu e da Miriam.
W. Benton”
AGORA OU NUNCA MAIS
68

“Boas notícias! Agora, é só ultimar os preparativos” –


pensou.
No dia seguinte, pela manhã bem cedo, Candota foi à
casa de Terezinha, entrando pela porta da cozinha, onde
encontrou todos reunidos em torno da mesa do café. Zenon já
estava colocando o paletó para ir trabalhar, denotando sua
costumeira afobação.
— Tudo bem? – cumprimentou Candota. Virando-se para a
irmã, acrescentou: — Mamãe me contou a novidade. Agora é
notícia pública; todo mundo vai ficar sabendo. Parabéns pra
vocês. Na época da festa, devo estar de volta. Vocês sabem
que eu vou passar as férias nos Estados Unidos, não sabem?
— Eh! Mamãe me falou. Disse que está preocupada. Você
nunca saiu de casa. Já sabe quando vai?
Zenon, apalpando os bolsos para verificar a posse das
chaves, do celular, da carteira, estende a mão para Candota:
— Boa viagem, cunhado. Vê se não arranja namorada
americana. Depois, casa e acaba ficando por lá. E, aí, as
visitas ficam bem mais difíceis. Não repara não, que está na
hora de ir trabalhar. Aproveita lá e te cuida, hem!
— Pode deixar.
Dirigindo-se à irmã, respondeu:
— Tê, ainda não marquei a data da viagem, mas será por
estes dias. Estou nos preparativos finais.
E, virando-se para o Zeninho:
— O moleque aí vai bem? Está tomando mingau e nem dá
confiança pro tio, hem! Tem feito muita arte? Dá aqui um
abraço no titio. Vovô e vovó também mandaram abraços pra
você.
AGORA OU NUNCA MAIS
69

Zeninho corresponde e estende os braços para o


cumprimento, mantendo na mão a colher lambuzada de
mingau, o que faz o tio tomar os devidos cuidados para não
sujar a roupa.
— Tê, o que você quer que eu traga lá dos Estados
Unidos?
— No momento, não estou pensando em nada. Se você vir
alguma novidade pra nenê, pode trazer que eu vou precisar.
— Está bem! Deixa comigo.
Depois das despedidas, Candota foi até à agência de
viagens onde colheu informações. Em casa, consultou o
calendário e definiu a data da viagem para 17 de setembro, à
noite – sábado – de acordo com o vôo bissemanal da
companhia escolhida.
À tardinha, comunicou ao pai a data, o trajeto, o preço
das passagens e as providências que já havia tomado. Alfredo
mostrou-se muito prático e eficiente, dizendo:
— Está tudo bem! Sábado vai ser um bom dia; é dia livre
pra mim. Já depositei o dinheiro na sua conta. Pode pagar com
cheque seu.
Candota não quis confiar no correio eletrônico para
mensagem tão importante ao amigo – a decisão do dia da
viagem – pois precisava evitar desencontro de informação.
Chegar ao aeroporto de Nova York sem contar com a
assistência do amigo seria uma penúria. À noite, telefonou
para Bento e comunicou o número do vôo, o dia, a hora
provável de chegada e o aeroporto. Assim estava bem; não
havia perigo de a viagem dar errado. Foi orientado pelo amigo
AGORA OU NUNCA MAIS
70

sobre o melhor procedimento no desembarque, indicando o


local onde se encontrariam.
Os dias seguintes foram gastos com uma série de
providências em bancos, repartições públicas, com clientes e
amigos, de forma que pudesse viajar com tranqüilidade.
Na véspera da viagem, Candota fez, em seu quarto,
revisão de todos os passos da bagagem. Estavam ali, o
computador portátil, a mala grande e a sacola de mão. Para
simplificar, resolveu acomodar o computador entre as roupas,
retirando um robusto casaco que talvez não lhe fizesse falta.
Rememorou os conteúdos da mala e da sacola: roupas;
calçados; documentos da pesquisa; objetos pessoais; um
presente para a filha do Bento. Nos bolsos, levaria o
passaporte, documentos pessoais e a passagem. O que mais?
Parece que estava tudo certo.
Sentiu-se extremamente ansioso. Tomou consciência
desse estado e pensou se tomaria um comprimido do
tranqüilizante. Já estava esquecendo de levar a caixinha do
remédio. Colocou-a na bolsa de mão e considerou terminado o
inventário de viagem.
No dia aprazado, depois de um sono sereno, sentiu-se
bem disposto e otimista. Ligou o televisor para se inteirar da
previsão do tempo; estimativas favoráveis. Olhou a gaveta
onde guardava fotografias e deu uma namorada naquelas em
que Beatriz aparecia. Ficou pensando em levar pelo menos
uma, para matar saudade. Vacilante, acabou por guardar todas
na gaveta. Não levaria nenhuma. O assunto estava terminado
e seria bobagem manter acesa qualquer brasa emocional.
AGORA OU NUNCA MAIS
71

Além disso, era necessário tirar aquela beleza dos


pensamentos.
Na copa, encontrou Dona Rosa que estava terminando uns
riscos de molde de roupa.
— Bença, mãe! Deu na televisão que o dia hoje vai ser
firme. Como o vôo vai ser à noite, não tem ainda informações
mais precisas. Mas setembro é época de tempo normal, tanto
aqui como nos Estados Unidos. Vai ser uma boa viagem.
— Não fica preocupado, não! Eu só quero é que você dê
notícias logo que chegue lá. É só não esquecer da gente. Você
está levando roupa pra frio?
— Minha mala está completa. Estou levando até coisas
que nem penso usar. Mas, por precaução... não é? Antes
sobrar do que faltar.
Alfredo, vindo da sala, mostrou-se sorridente e feliz.
Condescendia com as esperanças do filho. De imediato, logo se
ofereceu:
— A que horas você tem de se apresentar no aeroporto?
Nós vamos te levar pra ver você partir.
— O embarque é no aeroporto internacional.
— Daqui até lá são cinqüenta minutos... uma hora de
carro.
— Isso mesmo! O vôo sai às dez da noite, mas eu tenho
que me apresentar duas horas antes, pros procedimentos
finais. Toma, guarda este papel onde anotei o telefone do
Bento, o endereço e o correio eletrônico, pro caso de vocês
precisarem.
Na expectativa da espera tensa e para empurrar o tempo,
Candota achou boa idéia ler alguma coisa leve. Para afugentar
AGORA OU NUNCA MAIS
72

as preocupações, pegou na estante da biblioteca o primeiro


livro que lhe apareceu à vista. Acomodando-se no sofá do
escritório, começou a reler trechos do Dom Quixote de la
Mancha.
Apesar de conhecer o livro, deliciava-se com o humor
inocente do herói e se sentia feliz. Saltava capítulos para fugir
da leitura formal. Sem escolher, e por acaso, deu-se lendo a
descrição dos preparativos da ingente luta de Dom Quixote
contra os moinhos de vento, apesar dos argumentos bem
ajuizados do seu escudeiro Sancho Pança.
Interrompeu a leitura; não podia continuar. Conhecedor
da história e sabendo do insucesso do visionário, veio ao
pensamento o paralelo entre aquela aventura e os seus
próprios ideais. Estaria sendo também um Dom Quixote? Seu
otimismo e disposição começaram a se deixar invadir pela
dúvida. Por alguns segundos, ficou meditando. Fechou o livro,
guardando-o na estante, e ligou o televisor num canal de
desenho animado. Sua ordem mental indicava, resolutamente,
que deveria desviar qualquer idéia de caráter derrotista.
Naquele dia, o almoço foi especial. Dona Rosa caprichou
no cardápio, não se esquecendo do nhoque à napolitana, prato
marcante no relacionamento com o filho. Seria almoço de
despedida, mas que deixasse no subconsciente dele aquele
toque de presença materna.
— Eh! Todas as vezes que eu vir massa nas refeições, vou
lembrar daqui de casa – comentou Candota, olhando para a
mãe. — Você não esquece, hem!
— Isso é a marca que te ponho na idéia, pra você lembrar
de voltar.
AGORA OU NUNCA MAIS
73

— Olha, eu vou por trinta dias! Mas, se estiver gostando


da hospedagem de lá, vou prolongar as férias por mais tempo,
viu? A viagem é muito longa e precisa ser bem aproveitada.
— Eu e seu pai não vamos ficar sossegados. É a primeira
vez que você viaja pra tão longe. Vê se não fica por lá muito
tempo. Já estou começando a sentir saudade – e começou a se
emocionar. — Bobagem! Aproveita bem o passeio, que você
merece.
À tarde, o ambiente ficou mais alegre e animado com a
família toda da Terezinha, chegada de surpresa.
— A sua despedida não valeu! – disse a irmã logo que
entrou e se encontrou com Candota. — Nós vamos no
aeroporto também. O Zeninho está doido pra ver avião de
perto. Depois que você foi lá em casa ele só fala nisso. E não
pára de brincar de avião.
Com todos reunidos na sala, e as conversas animadas,
parecia dia de festa. Era na verdade a reunião de uma família
unida em homenagem a um membro que estava prestes a se
ausentar. Zenon contou, historiando os pormenores, um
acidente que houve na empresa em que trabalha. E, com isso,
as horas foram avançando com suavidade, sem que Candota
sentisse a expectativa da viagem.
Foi Alfredo quem interrompeu a reunião, anunciando que
já era hora de tomar as providências, pois o relógio marcava
18:30h. Recomendava que era bom saírem mais cedo, por
previdência, pois não é conveniente deixar as coisas para
correrias de última hora.
— Vamos que um pneu fure no caminho! – ponderou.
AGORA OU NUNCA MAIS
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Imediatamente Candota foi ao quarto e trouxe, com certo


esforço, sua mala-sanfona bem abaulada. Colocou-a perto da
porta de saída e foi buscar a maleta. No quarto, apalpou os
pertences nos bolsos. Verificou a passagem. Tudo em ordem.
Os dois carros chegaram ao aeroporto com tempo de
folga, no horário marcado. Quem se previne não perde viagem.
Ali estavam afinal.
Feitos os procedimentos normais, a mala acusou excesso
de peso, e teve que ser paga a taxa adicional. Zeninho insistia
em ver os aviões de perto e sua mãe prometia mostrá-los da
sacada superior, mas depois que “o titio embarcar”.
O horário de partida estava confirmado e se aproximou o
momento da chamada dos passageiros para a sala de
embarque. Todos se despediram com emoção e Dona Rosa
cedeu às lágrimas.
Com Candota já isolado da família na sala de embarque,
os familiares se dirigiram ao terraço superior, de onde teriam
visão ampla dos aviões estacionados e das pistas de rolagem.
Para Zeninho, foi uma festa.
AGORA OU NUNCA MAIS
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3° CAPÍTULO

Feita a decolagem, Candota sentiu-se calmo, leve e


otimista ante o ambiente acolhedor e a poltrona confortável.
Sua presença naquele avião, levando-o agora para destino
definido, produziu-lhe eficiente efeito tranqüilizador. Estava
satisfeito e confiante em que tinha tomado a decisão
adequada. Esse estado relaxante, mais o adiantado da noite e
a cantiga sussurrante dos motores proporcionaram-lhe a
chegada furtiva do sono. Mas não foi uma dormida contínua,
porque intranqüila e recortada a todo o momento por sonhos
perturbadores.
Contadas as escalas e a diferença de fusos horários, o
avião pousou no destino, domingo, às sete horas. Somente
AGORA OU NUNCA MAIS
76

depois de quase uma hora, contudo, foram cumpridas todas as


formalidades legais para o desembaraço. Conforme instruções
precisas do amigo americano, Candota se dirigiu ao ponto de
encontro determinado, no saguão do aeroporto.
Enquanto caminhava, empurrando o carrinho com a
bagagem, procurava vislumbrar o amigo naquele bulício de
gente. Parecia que toda a população de Nova York estava ali
apesar de ser domingo. Nunca tinha visto tanta gente girando
num aeroporto. Era o primeiro embate visual que tinha naquela
nova terra.
À frente do ponto de referência, procurava distinguir o
amigo naquela multidão quando este o surpreendeu, tocando-o
pelas costas.
— Ei, cara!
— Bento!
Sorrisos de satisfação de ambos, e se abraçaram.
— Que bom te ver! E aí? – disse Bento.
— Tudo certo. E você?
— Mais velho e mais experiente. Mas não posso queixar. E
agora, com a sua vinda, minha casa vai melhorar. Miriam vai
ficar contente em te conhecer. Sua ficha já está feita com ela.
Bento, pegando o carrinho da bagagem e se dirigindo
para determinado rumo, recomendou:
— Vamos sair logo desta confusão. Com este mundo de
gente, cuidado pra não sumir de mim.
— Não tem perigo.
— Vamos pegar o meu carro, lá – apontando o caminho.
No estacionamento, enquanto acomodavam a bagagem no
porta-malas do carro, Bento disse:
AGORA OU NUNCA MAIS
77

— Olha! Você não sabe, mas eu vou te contar. Mais de um


ano, sofri um acidente feio de carro. Eu estava na direção,
conversando com um colega lá da escola. Não sei explicar
como; só sei que avancei o sinal vermelho num cruzamento, e
um carro me pegou.
— Você não me contou! A gente se falava pelo correio
eletrônico, mas isso você não contou!
— Devo ter esquecido. Também não ia te pôr preocupado.
— O principal é que você está vivo. Isso é que vale!
— Pois é. Sorte que ninguém morreu. Mas a trabalheira
que deu, além dos prejuízos, não dá nem pra contar. Paguei
tudo e fiquei no hospital uns dez dias.
— Que brincadeira!
— Os remendos no corpo até que foram fáceis. O pior foi
o trauma psicológico. Passei um tempão sem ter condições de
dirigir. Quando eu tentava, dava uma tremedeira danada.
Depois, com os tratamentos que fiz e mais a minha força de
vontade, consegui dominar a situação.
— É isso! Trânsito é um perigo só!
— Tem uma coisa: ainda ficou um restinho de
conseqüência. Não sei nem explicar direito, mas, por
prudência, quando dirijo ponho toda atenção no trânsito e não
converso. Você vai compreender. Não repara não, hem!
— Tranqüilo! Tudo bem!
— Isso aumenta a segurança.
— Eu entendo, cara!
Acomodado no carro, Bento julgou que devia dar antes
algumas explicações sobre o roteiro da viagem.
AGORA OU NUNCA MAIS
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— Moro em Nova Jersey, num condomínio a meio caminho


entre a Universidade de Princeton, onde trabalho, e a capital,
Trenton. Minha casa está relativamente perto de Nova York e
tem boas estradas pra todos os lados.
— Você caprichou na escolha, hem! Fica perto de tudo.
— Pro meu caso e pra Miriam, está num lugar bem
estratégico. Depois você vai conhecer melhor.
Fez uma pausa, olhando curiosamente para o amigo, e
indagou:
— Antes de começar nossa viagem, o que que você tem
de problema? Estou curioso, mas acho que não é nada grave.
Pelo menos na aparência, você está bem.
— Agora não dá pra tratar disso, que não é tão sério
como você pode pensar. Deixa isso pra lá. Depois a gente
conversa, tá?
— Certo! Pega este guia rodoviário e vai se orientando
enquanto a gente viaja. Assim, você vai ficar conhecendo
alguma coisa sobre nossa localização.
Enquanto o carro percorria o núcleo urbano, Candota
manteve-se em silêncio, apreciando as novidades e detalhes
do caminho. Com ajuda do mapa, foi identificando diversas
referências. Sentia-se num outro mundo, em ambiente
perturbador, enquanto o veículo ia rodando. As paisagens de
concreto que iam surgindo lhe pareciam estranhas, e tudo se
afirmava desconhecido, quase agressivo. Muita engenharia
para muita gente. Parecia estar num impressionante
formigueiro vazio, porque era domingo, e o povaréu devia
estar recolhido.
AGORA OU NUNCA MAIS
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Depois de manobrar num extenso trevo rodoviário,


entraram na auto-estrada, bastante movimentada, que os
levaria ao destino. Bento acelerou a velocidade para a
indicação ali permitida, fixada nas placas. Candota observou
que havia, a certas distâncias, saídas para condomínios
residenciais. A viagem se prolongava mais que tinha
imaginado. Notou que passaram ao largo de Princeton, vista
bem distante, e o amigo continuava tranqüilo ao volante.
Após uma longa curva, Bento começou a diminuir a
velocidade, sinal de que iria sair daquela rodovia e tomar uma
estrada secundária, rumo ao caminho da residência. Passando
para outra estrada, mais estreita e menos movimentada,
entrou por bela alameda, contornou algumas ruas e penetrou
diretamente pela frente livre de sua casa, estacionando o
veículo numa ampla cobertura lateral.
— Chegamos, ô meu! Está na sua casa. Achou longe?
— Tendo em vista que rodamos por dois Estados e a ótima
condição das estradas, gastamos pouco tempo. Estou vendo
que você escolheu um condomínio bacana. Sua casa deve ser
confortável.
Com o barulho da chegada do carro, Miriam surgiu, vindo
da frente da casa e carregando a filhinha nos braços.
Sorridente, estendeu a mão para Candota e se apresentou,
dizendo que estava satisfeita com a visita e que o marido
falava muito sobre ele e das coisas do Brasil, principalmente
dos costumes diferentes.
Descida a bagagem, Bento apressou-se em prestar ajuda,
carregando a mala grande. Miriam tomou a dianteira e instruiu
Candota para que a acompanhasse. Passando ao lado da sala,
AGORA OU NUNCA MAIS
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seguiu por extenso corredor até uma porta. Abrindo-a


explicou:
— Seu quarto é este. Espero que seja do agrado. Aqui
você vai ficar longe do choro da Elizabeth e pode dormir
sossegado. Você sabe, criança nova não escolhe a hora de
chorar. Mas em geral ela é boazinha.
Encantando-se com a filha, brincou:
— Não é, minha filha? Filhinha da mamãe!
— Não se preocupe! Aqui está bom. Afinal, não sou
nenhum marajá. Nem mereço tanto. Fico é muito grato pela
sua atenção – manifestou-se Candota, com certa cerimônia.
O anfitrião, logo que entrou no quarto, foi abrindo as
janelas e acomodando a bagagem. Abriu os armários vazios e,
chamando Miriam para sair, disse:
— Agora você fica à vontade, arruma suas coisas e pode
dar uma descansada. O banheiro fica aí do lado. E se faltar
alguma coisa, é só me chamar. O telefone interno fica ali
naquela mesinha.
O amigo não se sentia propriamente cansado, pois a
viagem tinha sido confortável. O que lhe pesava era certa
insuficiência do sono daquela noite inquieta, tendo em vista
que havia tido uma dormida sobressaltada. Como pretendia
recuperar a forma, desfez a mala, escureceu o quarto, tomou
um caprichado banho quente e, relaxado, deitou-se com a
intenção de dormir ao menos por uma hora.
Acordou com batidas na porta e a voz de Bento.
— Entra, sô!
— Deu pra dormir um pouco? – perguntou ao vê-lo
deitado e com pijama. — Não estranhou a cama?
AGORA OU NUNCA MAIS
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— Nada! Estava mesmo precisando desse repouso. Meu


sono ficou atrasado e agora parece que eu sou eu outra vez.
— Vim te chamar porque nos fins de semana nós
costumamos almoçar fora. Vou te esperar lá na varanda.
Dando uma boa espreguiçada, Candota se sentiu
renovado. Depois de enviar aos pais notícia de sua chegada,
vestiu-se e saiu do quarto rumo à varanda, onde encontrou
Bento sentado numa cadeira de balanço com a filhinha no colo.
— Senta aí, Candota, e me conta as notícias da sua terra
e da família. A Miriam está se aprontando e daqui a pouco
vamos ao restaurante de costume. Você vai gostar; comida
italiana. Minha sogra tinha uma cozinheira filha de italianos, e
Miriam pegou gosto pela culinária daquela terra. Eu, por mim,
aprecio qualquer tempero. Mas me conta como vão as coisas
por lá.
— Depois da morte do meu irmão, voltou a rotina de
sempre. Meu pai continua entusiasmado com a Química e não
larga o magistério. Nem fala em aposentadoria. E minha mãe,
sempre sentimental. Ela foi quem mais sentiu a morte do
Guilherme. Até hoje carrega nas feições a dor de mãe. Ela se
distrai muito é como voluntária numa creche que fica perto de
casa; às vezes fica o dia todo lá. Mandaram abraços pra vocês
todos. E os seus pais? Será que eles se lembram de mim?
— Claro! Não faz tanto tempo assim. Depois do consulado
no Brasil, ele foi nomeado pra cargo elevado no Departamento
de Estado, e ficamos morando em Washington. Continua no
mesmo serviço até hoje. Às vezes fala em aposentar, mas
parece que se acostumou com a burocracia e tem medo do
ócio. Ele não tem inclinação pra outra atividade. Já ofereceram
AGORA OU NUNCA MAIS
82

cargos em empresas particulares, mas recusa. Ele gosta


mesmo é do serviço público.
“Esta é uma esperançosa notícia, pois o pai dele está no
núcleo do poder político e deve ter boas relações com as
autoridades federais” – pensou Candota. Para se esclarecer
melhor, perguntou:
— Quer dizer que o seu pai ainda mora em Washington?
— Mora. De vez em quando, eles vêm me visitar. Os avós,
como mariposas atraídas pela luz, estão sempre esvoaçando
em torno da Beth. É a primeira neta dos meus pais. Você se
lembra da minha irmã? Ela se casou há cinco anos, mas não
tem filho. Mora longe, em Dallas.
— Eu me lembro dela vagamente. Quando eu ia na sua
casa, ela se escondia de mim. Acho que é mais velha do que
você, não é?
— Dois anos.
— Eh! As mulheres geralmente se casam mais cedo.
— Por falar em mulher, e aquela sua namorada... a...
esqueci o nome dela.
— Beatriz.
— Beatriz... isso mesmo. Naquela vez, no Natal, você me
apresentou a ela e você estava bem entusiasmado. Ela é
bonita! Acabou mesmo?
— Eu continuo com os meus trabalhos de informática, na
área de programação, e vou tocando a vida. No aspecto
econômico, não posso me queixar.
— Largou a Física?
— Não. Eu gosto da Física e acompanho as atualizações.
Mas me ocupo mesmo é com o computador, que é o meu vício,
AGORA OU NUNCA MAIS
83

o mesmo que o Guilherme tinha. Crio programas e consigo


ganhar algum dinheiro.
— Então, está ganhando o dinheirão.
— Nada! Só coisa miúda. De vez em quando, pego
encomenda grande, mas é raro.
— Informática... isso é bom só pra distrair e
complementar outras atividades. Afinal, sua profissão é a de
físico. Aí é que você tem que entrar de cabeça, eu acho.
— Já me ofereceram a possibilidade de me inscrever pra
cátedra de Física, na universidade onde meu pai trabalha, mas
não tenho aptidão pra ensinar. Gosto da Física, mas não pra
ensinar. É preciso muita paciência; questão de pendor. Pra
mim, não dá.
— Tem razão. Eu digo por experiência; ensinar é bom
quando a gente gosta. Tenho colegas que ficam queixando do
desgaste que sofrem. Mas pra quem gosta, como eu, não tem
nada disso. Tenho é prazer de lecionar.
— Já no meu caso, eu gosto mesmo é de criar, usando a
fantástica potencialidade da informática. E esse ramo está, de
certo modo, associado à Matemática, matéria do seu mundo
intelectual. Se examinar bem, a informática abarca todas as
áreas.
Candota evitou tocar no assunto Beatriz, fazendo-se de
distraído, para não entrar em explicações que não estava
disposto a dar. Falaria disso oportunamente. Voltando o amigo,
no entanto, a citar Beatriz, Candota saiu-se, fazendo
comentário genérico:
— Destino é fator interessante na nossa vida, não é?
Cada um de nós parece ter uma urdidura adrede preparada e,
AGORA OU NUNCA MAIS
84

inconsciente, cumpre esse enredo direitinho. Pensamos que a


nossa vontade modifica o roteiro, mas quem sabe essa vontade
também já foi prevista pela danada da Fortuna? Você, que é
matemático, já procurou calcular o destino?
— Não. Na minha área temos o cálculo de probabilidades
que, dentro das suas limitações, funciona. Já é uma
aproximação com o destino, não é?
— O destino é um traçado exato; não aceita o mais-ou-
menos. Na verdade, ele é um mistério que habita o futuro e
nem a Matemática consegue descobrir, porque ele fica
escondido na abstração, até quando fica mais próximo o dia
que marcou pra aparecer. Nesse caso, quando...
— Acho que você é que está ficando abstrato. Deixa o
destino sossegado e não liga pra isso, não!
— Eu só estava meditando alto. Quando a gente...
Neste momento, Miriam apareceu à porta, trajando
discreto vestido, sobraçando grande sacola e o carrinho
dobrável do nenê.
— Podemos ir. Já fechei a casa toda. Está tudo em ordem.
E, dirigindo-se ao Candota, sugeriu:
— Você pode ir no banco da frente. No de trás é melhor
pra mim e pra Beth. Fica mais fácil ajustar a cadeirinha no
cinto de segurança.
Candota respondeu que sim e ficou aguardando que Bento
acomodasse o carrinho no porta-malas e entrasse no carro.
Logo que pegaram a estrada, Miriam puxou conversa com o
hóspede:
AGORA OU NUNCA MAIS
85

— Vamos sempre a esse restaurante. Fica em Trenton,


mas é perto; menos de trinta minutos. No Brasil existe
restaurante com comida italiana?
— Tem muitos! Lá tem casas com cardápio de quase todas
as partes do mundo.
— Miriam, por favor! – reclamou o marido, lembrando-a
de que a conversa perturba a concentração ao dirigir o carro.
Calados, foi até melhor para Candota, que pôde
concentrar atenção no panorama que se ia desfilando ao correr
da estrada. Chegados finalmente ao destino, acomodaram-se
em acolhedor restaurante, muito bem estruturado,
estabelecido em belo retiro próximo à entrada principal da
cidade.
Candota não perdeu a oportunidade e optou por nhoque à
napolitana, como secreta homenagem à mãe. Bento ofereceu
vinho tinto californiano para acompanhamento do almoço. O
nenê não foi esquecido; recebeu sua papa industrializada,
trazida de casa e servida em colherinha pela mãe.
Terminada a sobremesa, escolhida dentre variada oferta
de manjares, pudins e sorvetes, Bento pagou a conta, virou-se
para o amigo e perguntou:
— O que você achou da comida? O tempero é italiano,
mas tem um tom meio americanizado, não tem? Fica mais do
nosso gosto.
Tentando ser agradável, Candota, não obstante a
frustração com o sabor do nhoque – nem de longe lembrava o
paladar do que Dona Rosa fazia –, manifestou-se satisfeito
com a refeição e respondeu:
AGORA OU NUNCA MAIS
86

— Você tem razão. Mas é natural que o tempero varie de


país pra país. É conseqüência cultural. Isso é coerente e dá
beleza à diversidade de gostos e prazeres. São os tons dos
sabores básicos.
— No Brasil também é assim? – perguntou Miriam.
— Também! Imagine se os povos tivessem os mesmos
valores, os mesmos gostos, as mesmas preferências. O mundo
ia ser insuportável.
— Já pensou? Tudo igual? Comida ia ser sofrimento, em
vez de prazer – reforçou Bento.
— A gente dá preferência a certos caracteres nacionais
simplesmente porque nasce e é criado dentro duma contextura
de tradição. Mas o restaurante é ótimo, tem bom serviço e
ambiente de tranqüilidade. E esse vinho me surpreendeu; não
sabia que vocês tinham vinicultura tão apurada.
— Vamos embora, que a Beth já está choramingando pra
dormir na caminha dela – lembrou Miriam ao marido.
O retorno, feito em silêncio apenas interrompido
eventualmente pelo choramingo da criança, foi tranqüilo e
rápido. Ao chegarem a casa, Bento correu para abrir a porta da
frente a fim de que a esposa levasse logo a guria para o
quarto.
Candota dirigiu-se ao seu aposento, onde pretendia
colecionar os documentos atinentes ao programa que iria expor
ao amigo. Não podia perder tempo. Precisava abordar o caso
com o amigo antes que algum fato superveniente pudesse
atrapalhar sua intenção. Pensando sobre o assunto, raciocinou
e concluiu que melhor seria deixar a parte documental para
depois, caso o amigo realmente se interessasse em ajudá-lo.
AGORA OU NUNCA MAIS
87

Primeiro, iria expor seu problema e analisaria a reação do


Bento. Daí, saberia como agir. Talvez seu otimismo não
encontrasse a acolhida que esperava.
Indo até a varanda, ali se assentou e ficou observando a
circunvizinhança, enquanto aguardava oportunidade para uma
conversa. Estava nessa distração quando surgiu Bento à porta,
vindo da sala, e comentou:
— Está tão pensativo aí! O que foi? Pensando sobre o
destino? Vem, vou te mostrar a nossa casa. Não é tão boa
como a do seu pai, mas dá pra gente se esconder. Vem!
— Eu queria aproveitar este domingo pra expor o
problema que já te falei. Vamos deixar pra ver a casa depois.
Pode ser?
— Está bem! Você é que manda.
— Senta aqui. Eu preciso te falar agora, porque estamos a
sós. O assunto é muito sigiloso.
Bento franziu a testa, mostrando-se preocupado e
concordou em sentar-se ao lado de amigo, exclamando:
— Ora, ora! O que será isso que precisa ser tão secreto?
Acho que não é nada com você! Não deve ser questão pessoal.
Está com boa aparência!
— É pessoal, sim! De tão complexa, é pessoalíssima... e
coletiva também! Mas não é do jeito que você pode pensar. É
coisa muito diferente. Por isso, eu preciso da sua ajuda. Você
sabe, duas cabeças pensam melhor do que uma.
— Você está muito sério! Pode desembuchar que estou
ouvindo.
AGORA OU NUNCA MAIS
88

— Primeiro, eu quero que tenha paciência comigo e que


faça esforço pra tentar me compreender. Quero expor minha
situação com clareza.
Bento, impaciente, animou:
— Pode falar!
— Eu descobri um fato muito sério, de alcance mundial, e
que guardo só comigo.
— Caso sério, mas em que medida?
— Tão sério que parece inverossímil; mas é real. Não tive
confiança nem coragem de revelar ele nem pro meu pai.
— Por quê?
— Porque o assunto é muito perigoso se cair no
conhecimento público. A única pessoa que confio, e que pode
me ajudar, é você.
Candota, calado, olhava para o amigo, tentando perceber
indicação de seu interesse.
— Prossiga! – convidou Bento, curioso.
— Tem quase um ano que venho carregando na
consciência a responsabilidade de conhecer o destino provável
da humanidade e de não poder fazer nada.
— Lá vem você outra vez com o destino. Sai dessa! Liga,
não!
— Por isso eu te pedi paciência.
— Tudo bem! Fala.
— Dependendo das medidas administrativas que os
governantes tomarem, há duas prováveis situações. Uma é
trágica, mas redentora. A outra, simplesmente trágica. Não
tem meio-termo; não tem outro caminho.
AGORA OU NUNCA MAIS
89

E, olhando fixo nos olhos de Bento, sentenciou com


expressão amargurada:
— A humanidade está numa bifurcação.
— Não te entendi!
— Decide ou não decide. Segue o rumo da morte ou da
vida.
— Continuo não te entendendo. Seja mais claro!
— Achei necessário fazer algumas considerações pra que
você pudesse captar a importância do assunto. Já entende que
o problema é monstruoso?
— Mas que problema? – voltou Bento com certa
impaciência. — Continuo não te entendendo. Não sei nem do
que você está falando!
Notava-se que Candota estava ansioso e suava muito, o
que embaraçava um pouco sua capacidade de encadear as
idéias.
— Vou entrar nos detalhes. Calma!
— Calma, você!
— Depois vou te mostrar os documentos que trouxe
comigo e que comprovam a certeza dos meus cálculos. Você
sabe que sou aficionado pela informática, não sabe?
— Sei, sim. E daí?
— Além dos meus estudos de física e informática, sempre
me interessei pelos assuntos de ecologia. Eu estava, em certa
época, estudando...
Candota se interrompeu à vista de Miriam que surgiu na
porta da sala, naturalmente para lhes fazer companhia na
varanda. Sentando-se ao lado do marido, comentou:
AGORA OU NUNCA MAIS
90

— Dois amigos de infância rememorando os tempos


passados, hem!
— Hum-hum! – fez Bento.
Dirigindo-se ao visitante, comentou:
— O William fala sempre nas aventuras que vocês dois e a
turma tiveram na época em que morou no Brasil. Não sei se é
por causa do país ou por influência da idade escolar que a
memória dele sempre volta com saudade.
— Todo mundo gosta de lembrar dos tempos da meninice
– justificou-se Bento.
— Fala muita coisa daquele tempo. Eu acho bom escutar
as histórias que ele conta; é engraçado! Conta que a turma
roubava jabuticaba numa chácara.
E, olhando para o marido, arrematou:
— Que coisa feia!
— Não roubava, apenas colhia – corrigiu maliciosamente
Bento, olhando para o amigo. — Roubar é pecado; colher, não
– justificou-se, dando uma gargalhada marota.
— De qualquer modo – continuou Miriam –, o tempo de
infância é muito bom, não é? Eu me recordo, também com
saudade, dos tempos de férias que passava na fazenda dos
meus avós. Era muito bom lá! Tudo me encantava; as galinhas,
o gado, o céu estrelado...
E dando um suspiro de saudade:
— Na cidade não se vê nada disso... Nem a beleza do céu!
Fica tudo poluído, muito materializado! Mas o tempo passa,
não é? A gente perde a inocência, adquire responsabilidade,
torna-se cidadã, enfrenta a peleja da vida e co...
AGORA OU NUNCA MAIS
91

— Você está saudosa da fazenda? – atalhou o marido. —


Quando aposentar, vou comprar uma estância e você vai
poder voltar a compartilhar com a Natureza. Gosto também da
vida livre do campo. Resta saber se nossos filhos também vão
apreciar a tranqüilidade.
— Hã! Eles vão ser produto de cultura diferente. Vão
preferir é a agitação da cidade. Nunca vão saber o que é
tranqüilidade.
— Mas até lá, eles já serão adultos e vão ter a vida deles.
— Mas eu me lembro que foi um tempo bom, que a
memória guarda pra sempre! Pena é que meus avós já
morreram, e a fazenda hoje pertence a uma empresa agrícola.
— Depois você voltou lá? – perguntou Candota.
— Não, mas deve estar completamente modificada. O
progresso destrói os nossos sonhos. Ah! estava esquecendo,
William! Mamãe telefonou dizendo que eles vêm passar dois
dias com a gente. Papai melhorou da dor de coluna.
Candota, ante essa notícia, sentiu que as atenções de
Bento seriam divididas com os sogros. Talvez tivesse que ser
mais oportunista na exposição do seu problema. Resolveu não
tocar no assunto enquanto Miriam estivesse ali por perto, para
não ser novamente interrompido e evitar que ela pegasse uma
ponta da confidência. Talvez Bento o abordasse, mas teria que
ser cauteloso. Não acreditava que a esposa pudesse guardar
sigilo.
Miriam, dirigindo-se a Candota:
— Meus pais residem em Baltimore. É perto daqui; uma
hora de carro. De vez em quando, eles vêm cá. Mais por causa
da Beth. Eles têm dois netos homens, das minhas irmãs, mas
AGORA OU NUNCA MAIS
92

esta é a primeira neta, e acham ela um xodó. Outras vezes,


somos nós que viajamos pra lá. Seus pais vão bem? Eles
também têm netos?
Bento, que se achava calado, percebeu que o amigo se
sentia tolhido pela presença de Miriam e parecia ter ficado
meio acabrunhado.
— Eu moro com meus pais, e eles também têm um neto,
filho da minha irmã Terezinha. Mas vão ganhar breve o
segundo neto. Esse é o esquema da vida, não é? Um desdobrar
contínuo de gerações que se amam no tempo curto e se
desconhecem no tempo longo.
— Acho que não te entendi. Os pais amam os filhos e são
por eles amados eternamente. Pelo menos isso é o normal. E
mesmo depois da morte esse amor perdura, eu penso.
— Você está certa; é isso mesmo! Mas eu me referi a
gerações. Quanto mais próximas, mais se amam; quanto mais
afastadas, mais se desconhecem. O fator tempo é que
determina a intensidade dessas ligações afetivas. O tempo
parece coisa à toa, mas altera tudo, e a gente quase não
percebe, não é?
— Justamente por isso, é que entendo que a vida deve
ser desfrutada intensamente, com toda a alma, porque ela não
se repete. Se ela...
Interrompida sua atenção por algo que só as mães
percebem, disse:
— Me dá licença que eu vou olhar a Beth; parece que
chorou. William, você já mostrou a casa pro Candota? Mostra
pelo menos o seu escritório. Ele vai gostar de ver suas coisas –
AGORA OU NUNCA MAIS
93

foi dizendo enquanto se encaminhava ligeiro para a porta


principal da casa.
Bento atendeu à sugestão da esposa e guiou o amigo pela
casa toda, mostrando-lhe também o belo e grande quintal com
piscina e deixou o escritório para o final, onde entraram.
Fechando a porta por dentro, pediu que Candota se assentasse
e o interrogou:
— Você foi interrompido na varanda, mas aqui pode falar
livremente. Notei que você está tendo cuidados na preservação
do seu segredo, no que está certo. Afinal, segredo é segredo.
Mas ainda não estou sabendo do seu problema. Pode falar, que
estou interessado no assunto.
— Pois é. Eu sempre me ocupei com os problemas da
ecologia e, na ocasião, estava envolvido com programações pra
dois projetos diferentes. Um era pra avaliações econômicas, e
o outro pra tensões tangenciais duma obra grande.
— Não precisa rodear. Fala logo qual é o problema! –
interrompeu Bento com impaciência.
— Calma! Eu vou chegar lá! Baseado num estudo do
Guilherme sobre projeções, desenvolvi um programa que
resultou em conclusões sobre o ambiente presente no futuro –
esquecendo-se Candota da promessa feita à memória do
irmão.
— Futurologia?
— Não! Futurologia trabalha com especulações idealísticas
e muita imaginação fantasiosa. Eu me propus executar um
trabalho científico consistente, com base em estudos
estatísticos, observância da lógica e usando informações
objetivas das fontes oficiais. Mediante...
AGORA OU NUNCA MAIS
94

— Isso é muito complexo. Imagino que é difícil – atalhou


Bento.
Sem se perturbar, Candota, centrado apenas na idéia da
exposição, prosseguiu:
— Mediante o desenvolvimento de um programa
informático especial de projeções angulares, entendi que
aqueles dados podiam alimentar esse programa sob a forma de
simulação da realidade futura. Você sabe que o computador
não mente, não é?
— E você conseguiu fazer esse tal de programa?
— Foi o que deu mais trabalho! Nele, figurei todas as
situações e condições atuais, em tudo que se relaciona com
transformações, alterações e, naturalmente, as condições
ecológicas. É um esquema dinâmico e muito complexo
realmente. Com qualquer introdução de determinado dado
potencial, o programa se ajusta automaticamente nessa nova
situação.
— Fez isso sozinho?
— Eh... Como já te falei, o Guilherme criou a base do
programa. Depois eu estudei o assunto, acrescentei novos
dados, aperfeiçoei e fiz testes de comprovação. Tudo com
ajuda de livros, de informes científicos, dados e estatísticas
oficiais.
— Fez alguma prova?
— Diversas. Fiz várias simulações de curtíssimo prazo em
ambientes diferentes, pra comprovar a eficiência do programa,
e o resultado foi positivo. Essas experiências foram muito úteis
porque me levaram a fazer ajustes finos no programa-mestre.
Acho que não tem campo nele pra ser mexido, mas pretendo
AGORA OU NUNCA MAIS
95

que você dê uma examinada nele. A sua crítica é muito


importante.
— Vai sobrar pra mim? Eu ainda nem sei que história é
essa!
— Mas vai saber. Veja só a minha situação. Eu não tinha
ninguém a quem pedir opinião. Fiquei angustiado e
desorientado; não perdi o juízo porque sou forte e comando
minha cabeça.
— Bobagem!
— Sacrifiquei interesses emocionais pra poder me dedicar
à busca de soluções que beneficiassem a humanidade. Foi
preciso até sufocar o amor que sentia pela Beatriz!
— Por quê?
— Teria que contar tudo a ela. E acho que ela não está
preparada pra entender as implicações desse problema. Além
disso, eu não podia ficar dividido entre duas paixões.
— Acho que você está exagerando as coisas.
— Eu é que sei os apertos que passei! E tudo
solitariamente!
— Em qualquer circunstância da vida, principalmente
quando a situação parece mais grave, a gente deve ficar em
guarda, usando a razão e a inteligência. Serenidade!
Serenidade, meu caro! Esse é o segredo pra essas horas.
— Você tem toda razão, e foi o que fiz! Consegui me
controlar e vim aqui te pedir ajuda.
— Bom!... Você fez o programa de projeção evolutiva e
depois a simulação. E daí? Ele abarcou todo o mundo ou só a
atividade industrial? E que aplicações você encontrou? É muita
coisa que você tem que me explicar.
AGORA OU NUNCA MAIS
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— O programa é global. Não pode ser de outra forma.


Todas as partes, como a atmosfera, os mares, os países e as
culturas são interdependentes e intercambiáveis. Até a batida
de asas duma borboleta... você sabe!
Bento, franzindo a testa como que enxergando sério
problema a ser enfrentado – o problema seria o próprio
Candota e não o assunto que trazia –, levantou-se, pôs a mão
no ombro do amigo, procurando tirá-lo da tensão em que se
encontrava, e disse:
— Bem, Candota. Estou enxergando que esse caso é
complicado e precisa de estudo mais atento. Você vai
concordar comigo que precisamos de um tempo longo pra eu
me inteirar de todos os aspectos.
— Mas você já viu a gravidade do problema, não é?
— Acho que ainda não entendi nada! Vamos precisar é de
uma conversa mais demorada.
— Nada!? – exclamou meio desanimado.
— Só alguma coisinha; mas valeu o papo.
E, consultando o relógio, esclareceu:
— Vou olhar os meus compromissos e depois vamos
marcar encontro, só pra tratar desse assunto. Não esquenta a
cabeça, vai! A realidade da vida e a Matemática ensinam que
não existe problema sem solução. Ainda bem! Já pensou?!
Depois vamos conversar com calma. Daqui a pouco, eu venho
te chamar pra gente tomar uma cervejinha gelada. Relaxa. Vai
esfriando a cabeça, vai!
— Olha, eu sei que entre marido e mulher não deve
existir segredo, mas eu te peço que, por enquanto, não fale
sobre esse assunto com a sua mulher, tá?
AGORA OU NUNCA MAIS
97

— Mais cedo ou mais tarde, vai precisar saber, é claro!


Mas por ora não vou falar nada. Pode ficar tranqüilo.
Depois da saída do amigo, Candota se sentiu aliviado por
ter, pela primeira vez, comunicado o que sua mente mantinha
aprisionado durante tanto tempo. Parece que, finalmente, tinha
dado um grito que havia muito estava engatilhado na
garganta. Não falou tudo, é verdade, mas as amarras foram
soltas, o que já era o começo libertador do seu sufoco. Agora,
teria de aguardar o convite do amigo para nova reunião, o que
esperava não demorasse.
Naquela noite, Candota rebuscou os apanhados do
programa. Releu alguns, ligou o computador, reviu os
procedimentos, tudo como preparo da apresentação que ia
fazer para o amigo. Precisava estar seguro dos informes,
porque Bento deixou transparecer que tinha certa resistência
em aceitar a sua exposição. Mas isso podia ser considerado
natural ante o tremendo impacto negativo que a visão do
futuro podia mostrar. Sabia que, de modo geral, as pessoas
tendem a não aceitar fatos desagradáveis, principalmente
quando advêm de uma situação ainda teórica.
Sentiu necessidade de dar descanso à alma. Ligou o
aparelho de televisão e ficou procurando um canal de notícias,
pois estava acostumado a se manter atualizado com os
acontecimentos mundiais. Isso o manteve ocupado por algum
tempo.
Talvez por influência mesmo da diferença do fuso horário,
o sono se manifestou cedo, e Candota procurou o conforto da
cama.
AGORA OU NUNCA MAIS
98

Teve noite tranqüila e despertou bem disposto no dia


seguinte. Ouvindo vozes altas e sons de alegria de pessoas
chegando a casa, consultou o relógio e viu que havia dormido
além da hora pretendida. Outra conseqüência da diferença
horária. Percebeu, pelo alarido, que os pais de Miriam haviam
chegado. Bem, ia conhecer Thomas W. Klintok, renomado
advogado e político no Estado de Maryland segundo tinha
ouvido nas conversas com os anfitriões.
Candota dirigiu-se à sala, onde se pôs a manusear
algumas revistas enfadonhas que tratavam de modas e outras
frivolidades. Achou um álbum de fotografias, tiradas por
ocasião do casamento do Bento. Diversos retratos continham
anotações de identificação dos parentes e amigos que
compareceram à solenidade. Ficou se imaginando sendo
apresentado aos que iam desfilando pelas páginas assim
identificadas.
Súbito Miriam entra na sala, acompanhada pelos pais,
dirigindo-se ao hóspede que imediatamente se levanta e dá
curso às apresentações. Depois desse ritual, Miriam se retira,
alegando obrigações domésticas, e ficam os três em cordial
conversa.
Klintok é homem forte, bem nutrido, boa estatura, com
aparência vigorosa de quem goza de excelente saúde. Não
demonstra sofrer da coluna. Exceto pelas têmporas
branqueadas, mostra-se com idade inferior à real. Corado, liso,
bigode farto e bem aparado, mantém constante sorriso de
felicidade que – percebe-se – não é forçado, mas advém do
espírito de sua natureza bem conservada e vida folgada.
AGORA OU NUNCA MAIS
99

Veste-se sobriamente e com capricho, em destaque os


sapatos bem lustrados. Adota o uso de suspensórios por baixo
do colete tradicional, este com ar afirmativo pela exposição
quase acintosa de farta corrente de ouro, guarnecendo o
relógio dourado, recolhido no bolsinho do lado contrário.
Empertigado, conversa bem, demonstra inteira convicção de
suas idéias, mostrando-se incapaz, no entanto, de analisar
qualquer hipótese em contrário.
Dona Helen, a esposa, que ainda usa chapéu, é magra e
alta. Tem aparência de idade superior à do marido. Cobre-se
com indumentária clássica, bem cuidada mas sem luxo. Fala
comedidamente e parece estar inteiramente em harmonia com
a personalidade do consorte.
No início da conversa, Candota é perguntado sobre os
mais variados assuntos relativos ao Brasil, sempre atendidos
com explicações amplas e atenciosas. Estava satisfeito em
poder revelar aspectos de sua terra e sentir-se útil nas
explanações. Dona Helen, agora aposentada pela universidade
de Baltimore onde lecionava História, mostrava-se mais curiosa
sobre pormenores da cultura. O marido atinha-se a questões
políticas. Enfim, era conversa animada e agradável, o que fez
nosso personagem esquecer as preocupações arraigadas no
subconsciente.
Depois dessa sessão de perguntas, Klintok achou-se na
obrigação de retribuir, versando sobre si.
— Como posso te chamar?
— Pode me chamar de Candota, que fico satisfeito.
— Está bem. Caro Candota, fico muito satisfeito de te
conhecer. Eu digo que moro em Baltimore, mas na realidade
AGORA OU NUNCA MAIS
100

minha casa fica em Annapolis, a pequena capital de Maryland,


lugar muito bom pra se viver, encostadinho de Baltimore, onde
tenho minha banca de advocacia.
De imediato – hábito de não perder oportunidades –
enfiou a mão no bolsinho do paletó, tirou seu cartão de visitas
e estendeu a mão, prosseguindo:
— Vou te dar meu cartão e depois você vai nos visitar.
Será prazer te receber em casa. Aí tem também a indicação do
meu escritório porque, caso precise, terá o melhor apoio
jurídico do país. Sei que você não vai fazer nenhuma bobagem
por aí, mas pode pisar, por distração ou inocência, nalguma lei
americana, e as leis por aqui estão em toda parte.
— Também reside em condomínio em Annapolis?
— Não. Moro no centro da cidade, na mansão que
pertenceu ao meu avô. Meu pai morou lá também, mas por
pouco tempo. Foi obrigado a mudar pra Washington quando foi
nomeado diretor da Secretaria de Comércio Exterior. Nessa
época eu era solteiro, estudava na Universidade John Hopkins,
em Baltimore, e morava na casa de um tio. Logo depois de
formado, fiquei conhecendo a Helen, na Igreja Metodista que
freqüentávamos. Depois de casado, passei a residir na mansão
e trabalhar, por recomendação do meu pai, na banca do
famoso advogado e político Sans Shefield. Durou pouco, mas
aprendi muita coisa ali. Durou pouco porque Shefield foi eleito
senador por Maryland e pôs à frente da banca um parente que
se envolveu com negócios escusos. Isso gerou enorme
escândalo na época. Pouco tempo depois, o próprio Shefield foi
assassinado, e a banca se desintegrou.
— São os riscos da política – comentou Candota.
AGORA OU NUNCA MAIS
101

— Não – tornou Klintok. — Política é atividade honrosa e


segura como outra qualquer.
— Eu quis dizer que há riscos em todas as atividades –
emendou Candota.
— Pois bem. Se a política é exercida com seriedade, os
louvores e respeito vêm de todos os lados. No caso do
Shefield, ninguém ficou sabendo dos motivos, mas parece que
sofreu pressões nebulosas por parte de pessoas interessadas
em usufruir vantagens por sua posição de senador. Ele era
muito liberal e isso facilitou o acesso de pessoas
inescrupulosas ao seu círculo de relações. Na política, como na
vida, é boa tática a gente manter as boas conveniências já
conhecidas e se acautelar com as novidades oportunistas. Com
a derrocada da banca, fiquei deslocado, meio aturdido.
— E ficou desempregado, então?
— Por pouco tempo. Graças à educação doméstica e
religiosa que recebi, me ensinando a olhar todos os atos da
vida com otimismo, confiança e serenidade, e ao apoio
financeiro do meu pai, aproveitei o vazio da área jurídica em
Baltimore. Reuni os melhores advogados remanescentes e
fundei nova banca, titulando ela com meu nome. Hoje tenho
dezesseis advogados trabalhando pra mim. Fico na supervisão
e no relacionamento com os clientes mais importantes. É claro
que no começo a firma teve dificuldades. Com o empenho
profissional da turma e um pouco de sorte, depois de um ano
já tínhamos firmado o nosso bom conceito no círculo de
Baltimore. Com ajuda do meu pai, conseguimos muitas
procurações nos assuntos de Washington. E o conceito de
seriedade e competência, depois de conquistado, dá trabalho
AGORA OU NUNCA MAIS
102

dobrado pra ser conservado. Não se pode descuidar nunca.


Meu pai, antes de morrer, me dizia sempre: “Se você quer
garantir segurança e felicidade, procure conservar sempre o
que de bom adquiriu”.
Enquanto Klintok continuava alisando suas vaidades,
Candota ficou pensando: “Imagina se eu exponho minhas teses
pra uma mente dessas! Pra ele, tudo está bem, certinho, e vai
continuar assim pra sempre. Essa disposição e caráter será
que provêm duma gênese mental? Ou a boa e sólida situação
material é que condicionam essas posições? Eh, daí já dá pra
ver as dificuldades que vou enfrentar quando tiver que dialogar
com gente do governo! O conservadorismo se defende de
idéias, interpondo um escudo mental protetor”.
Depois, Klintok versou sobre a família. Contou que tinha
outras duas filhas, casadas com gente importante e residentes
em Estados do Meio-Oeste. Nesses assuntos, Dona Helen
participou com entusiasmo, informando sobre as filhas, pelo
que dava descanso ao loquaz marido. Esgotado esse tema,
Klintok passou a conversa para a política, fazendo
entusiasmados elogios ao Partido Representativo, de sua
preferência e ardência. Combateu o aborto e defendeu os
valores morais pregados pela Igreja, manifestando-se contrário
à conspurcação das escolas com o aviltante ensino das teorias
evolucionistas.
Candota pouco se externava; tornou-se um ouvinte
complacente. No campo das idéias, estava tolhido ante tão
árido terreno. Percebeu que devia manter conversa contida,
dentro de assuntos e expressões genéricas.
AGORA OU NUNCA MAIS
103

— Olá, pessoal! – cumprimentou Bento, chegando da


universidade.
Tinha saído cedinho e retornava com feição alegre.
Dirigiu-se direto para o interior da casa, naturalmente em
busca da esposa e filha.
— Me dá licença! – disse Dona Helen, levantando-se da
poltrona. — Vou ver a Beth. Fique à vontade.
— No seu país vocês tratam muito de política? Têm
muitos partidos? De qual partido você gosta mais? – retornou
Klintok, numa enxurrada de perguntas.
— Eu não estou muito a par desse assunto, mas calculo
que temos mais de dez partidos. Cada um tem sua vez no
poder. Lá em casa nós cuidamos mais é de estudo, cultura e
trabalho. Ninguém se entusiasma com política.
Klintok cofiou o bigode, como a repensar o que dizer, pois
ficou na certeza de que o assunto de política estava encerrado.
— Então, você é físico! E seu pai, químico! Família de
cientistas. Sempre admirei os cientistas. Eles é que constroem
o verdadeiro progresso. A área de atuação da minha família é
a da palavra. Nada mais do que palavras... – e ficou pensativo.
Candota não sabia o que dizer, na circunstância, quando
Miriam apareceu na sala, incorporando-se na conversa e
contando “prodígios” da Beth.
Naquela tarde, tendo Bento retornado à universidade, a
família se reuniu a fim de irem ao supermercado da cidade
para compras. Convidado, Candota aproveitou a oportunidade
para um passeio.
No início da noite, Candota estava em seu quarto quando
bateram à porta.
AGORA OU NUNCA MAIS
104

— Pode entrar.
Era o confidente em mais uma visita.
— Olha – foi logo dizendo –, eu quero te esclarecer que
precisamos conversar, mas hoje não é possível porque tenho
que dar presença na casa. E eu já percebi que essa nossa
conversa não pode ser fragmentada; tem de ter continuidade.
Por causa do sigilo do assunto, amanhã cedo eu vou te levar
no meu gabinete, lá da universidade e, sem interferência,
quero te ouvir. Amanhã você levanta mais cedo? Ou quer que
eu te chame?
— Você não tem que dar aula amanhã? Como é que fica o
seu trabalho?
— Não. Já ajeitei tudo. Meu assistente me substitui.
Quanto às pesquisas, elas não têm prazo pra terminar.
Pesquisa é coisa que nunca acaba; tem sempre mais.
— Está bem! É melhor você me chamar, porque meu ritmo
circadiano ainda não está ajustado.
Foi uma noite tranqüila para Candota. Enfim teria sossego
para expor toda a sua angústia. Imaginou que o ambiente no
gabinete do amigo deveria ser favorável.
Candota acordou com o toque do telefone em seu quarto.
Levou susto. Estranhou, mas atendeu. Era o Bento.
— Te acordei?
— Ora, é você! Esqueci que tinha telefone interno.
— Não combinamos de te acordar? Não vai dormir mais.
Estou te esperando aqui na copa pro desjejum.
Depois de um reforçado café da manhã, Bento avisou:
AGORA OU NUNCA MAIS
105

— Amor, eu vou levar o Candota pra conhecer a


universidade e vamos demorar. Não precisa esperar. Vamos
voltar tarde.
Miriam notou que Candota carregava um embrulho
volumoso e a maleta do computador de mão. Raciocinou que
os dois não iriam apenas passear, mas projetavam apresentar
na escola algum trabalho da área matemática; alguma tese ou
trabalho científico. Talvez tivessem programado uma palestra
ou participação em conferência na universidade. Esse tipo de
atividade do marido era normal, acontecia com freqüência, e
Candota podia ser um convidado especial. Isso constituía
ocupação própria dos interesses acadêmicos, e Miriam não
sentiu qualquer interesse em fazer perguntas. Apenas
observou:
— William, vê se não chega muito tarde, que meus pais
pretendem voltar hoje no começo da noite. Eles gostam de
despedir de todos.
— Vamos chegar a tempo. Pode me esperar pro lanche da
tarde.
AGORA OU NUNCA MAIS
106

4° CAPÍTULO

Foi agradável o trajeto até à universidade. Mantendo o


silêncio, Candota foi prestando atenção, apreciando os belos
condomínios por onde passavam. A universidade é um grande
complexo de construções – onde é fácil se perder. Bento parou
o carro num amplo estacionamento que, como explicou, fica
mais perto de seu escritório. Há outros nas demais áreas.
No percurso final, feito a pé, Bento cumprimentou
diversos colegas e alunos que também estavam chegando e
começavam a dar vida à escola com seu vozerio. Com passos
ligeiros, foram direto para o refúgio de destino. Um corredor
imenso, no segundo andar da ala norte de um dos edifícios,
era via de acesso a diversas salas independentes, destinadas
aos professores. A de Bento era identificada por plaqueta com
seu nome e o do departamento disciplinar.
AGORA OU NUNCA MAIS
107

— Agora, aqui, você está livre de qualquer interrupção e


podemos conversar com tranqüilidade – foi falando Bento,
enquanto trancava a porta.
Em seguida, sentou-se ante a mesa de trabalho,
emudeceu a campainha do telefone, desligou o celular, apontou
ao amigo a cadeira que estava à frente e provocou:
— Pode acabar de explicar seu problema, que vou ficar
sintonizado. Quero descobrir o que tem de tão importante
dentro do seu coco.
Candota, tentando diversas posições na cadeira,
procurava encontrar melhor jeito, denotando o nervosismo
ante aquele clímax da revelação. Limpou a garganta, assumiu
semblante tenso e começou:
— Pra entender bem a questão é preciso expor, antes, as
condições reais que existem e que me levaram a conclusões
importantes.
— Você já me fez o seu prólogo, lá em casa. Não precisa
repetir.
— Não. Lá foi só um comecinho. Você ainda não sabe
nada, como você mesmo disse.
— Está bem!
— Tenho que te mostrar o alicerce do assunto, senão você
não vai ser capaz de perceber o problema.
Depois de uma pausa, pensativo, continuou:
— Sim. É isso mesmo! Eu tenho que ter habilidade de
expor o problema duma forma que você seja capaz de
entender e sentir. Não basta compreender; precisa sentir a
gravidade da situação.
— Que história é essa de sentir? Eu só quero entender!
AGORA OU NUNCA MAIS
108

— Entender só não basta; o assunto é envolvente. Pra ter


uma compreensão perfeita, é preciso sentir todos os aspectos
do problema.
— Está bem! Vou me esforçar...
— Pra ficar claro: eu digo sentir, mas com comando da
inteligência. Isso é importante! Nós somos racionais. Vê lá,
hem!
— Ah! isso é fácil! Tenho inteligência sobrando. Continua.
— É certo que eu confio na sua inteligência. Mas sentir,
mesmo... acho que é o mais difícil.
— Vai!
— Pra facilitar, você deve entrar na atmosfera do
problema. Abandona a propensão natural às rotinas otimistas,
induzidas pelo seu ambiente cultural. Assim, você vai ter
melhor percepção.
— Nesse ponto, você pode ficar tranqüilo. Estou
prestando muita atenção. Pode falar, sô! – respondeu Bento,
mostrando-se já impaciente.
— Como já te expliquei, montei um programa de
computação que fornece indicações precisas da situação
futura. Nele inseri os dados estatísticos de todos os elementos
atuantes que configuram as condições vivenciais do planeta no
presente. A própria Natureza atua nesse processo com
dinâmica própria, já conhecida pelos cientistas, e que obedece
às leis físico-químicas.
— Você, então, fez uma salada estatística.
— Não. Até pode chamar assim, mas fiz uma salada bem
arrumadinha, com todos os elementos dispostos numa ordem
AGORA OU NUNCA MAIS
109

lógica. Salada bonita e inocente, mas que pode explodir num


tempo predeterminado.
— Não fica zangado! Fiz apenas uma brincadeira.
— A imagem da salada até que é boa. Olha só o que que
eu fiz. Classifiquei os dados em duas grandes partes – fazendo
gestos no ar, como se estivesse ali escrevendo. — Uma vem
das ações do homem, que podem ser positivas ou negativas, e
a outra, dos comportamentos da Natureza, também com
ponderação positiva ou negativa. Você é matemático, sabe:
numa equação em que figuram forças variáveis positivas e
negativas o resultado pode ter duas soluções. Ou positiva, ou
negativa.
— Não. Pode ter três. O resultado pode ser zero também.
— Discordo! Num raciocínio estritamente técnico, você
está certo, mas no caso que trato não tem possibilidade de dar
resultado nulo, porque as forças atuantes são dinâmicas e
instáveis. Qualquer resultado de equilíbrio – zero, como você
diz – ia valer só pra um momento pontual teórico. Mas como o
fator tempo – o tempo, viu? –, entra nessa equação, o
desequilíbrio operacional é constante. Entendeu?
— Entendi, mas vamos deixar esses pormenores técnicos
de lado. Pode continuar!
— Resumindo um pouco minha explicação, devo
esclarecer que, justamente por causa desse dinamismo todo,
tive muita dificuldade em montar o programa de projeção. E
nesse aspecto, vou precisar que você analise os dados que
estão computados, pra eu ter mais firmeza.
— Então, você não tem certeza?
AGORA OU NUNCA MAIS
110

— O programa foi refeito, analisado e testado. Tenho


convicção que está correto, mas é sempre bom outra cabeça
fazer a crítica. Não me considero onisciente. Depois eu te
mostro os papéis que serviram de base no estudo. Por
enquanto, quero continuar o raciocínio anterior.
— Você está meio afobado! Vai com calma, sô!
— Coloquei no computador todos os fatores destrutivos
produzidos pela civilização – que são muitos – e os
correspondentes regenerativos oferecidos pela Natureza como
reação. Depois, adicionei os informes favoráveis da ação
humana – que são poucos – e os prejudiciais da Natureza, que
também são poucos, mas violentos.
— Você considerou as variáveis nessas equações?
— Xi! Elas são muitas e me deram bastante o que pensar.
Por segurança, estabeleci índices marginais de oscilação pra
cada valor. Por isso, o resultado final do computador não é
fixo; ele indica certa margem pra avaliação. Mas é margem
pequena e pode ser desprezada. Na conclusão, não chega a
dois anos pra mais ou pra menos.
— Explica melhor esse tal de resultado. Você pulou
alguma coisa nessa exposição.
— Vou explicar, mas na hora certa. Primeiro, quero te
provocar e te obrigar a raciocinar junto comigo. Olha só: você
já prestou atenção que todas as forças políticas, de qualquer
sistema social ou regime econômico, seja ele socialista ou
capitalista, democrata ou ditatorial – exceto as de povos
primitivos –, só se preocupam com desenvolvimento,
progresso, crescimento?
— Não vejo mal nisso. Todos aspiram por progresso.
AGORA OU NUNCA MAIS
111

— E assim é porque a humanidade cresce fisicamente sem


parar. Veja: o animal humano é um ser muito especial pra ser
reproduzido em escala industrial. Você sabe que qualquer
coisa, em todo o cosmo, tem um limite de crescimento ou
expansão, não sabe?
— Vai!
— Os administradores deste nosso mundo não enxergam
isso. Eles só pensam em desenvolvimento. Acham que é um
bem.
— E não é um bem pra humanidade?
— Não! Aí é que está o engano! Repara que
desenvolvimento é palavra maligna. Você já imaginou um gato
crescendo sem parar? Ele sozinho tinha que ficar apoiado em
metade do planeta. Depois, duas patas na Terra e duas na Lua.
Concorda que nada deve crescer eternamente?
— Que isso! Acho que você está exagerando!
— Raciocínio é raciocínio em qualquer lugar e em
qualquer época. Matemática é puro raciocínio! Você é até um
privilegiado nessa área.
— Está bem! O gato. E daí?
— Pra que existisse harmonia na Natureza e felicidade nos
humanos, a população mundial devia ser pequena, compatível
com a capacidade planetária, em harmonia com todos os
componentes do planeta. Num estudo paralelo que fiz...
— Continua!
— Bem, deixa isso pra lá! Estava adiantando as coisas.
— Até agora, não percebi aonde você quer chegar. Fica
mais calmo; temos muito tempo.
AGORA OU NUNCA MAIS
112

— Tem razão! Estou muito emocionado; é a primeira vez


que conto essas coisas pra alguém. Bento, escuta bem!
— Estou ouvindo! Fica tranqüilo! Relaxa, vai!
Candota se levantou, deu uns passos lentos na sala,
chegando até a janela e ficou pensativo. Bento, em
expectativa.
Depois de uns minutos e sentindo-se mais relaxado,
Candota se aproximou da mesa e, antes de se assentar,
permanecendo por algum tempo em pé, disse:
— A dinâmica desta civilização... veja bem, essa dinâmica
não pode continuar. Ela é destrutiva do nosso meio de vida, do
nosso ambiente. Você é capaz de enxergar a enormidade do
problema? Já não podemos falar em meio ambiente; agora é
meio vital. Você não tem que perceber esta civilização. Tem
que perceber é a dinâmica dela. Ela é ação e essa ação...
— Você não está sendo pessimista? – interrompeu Bento,
assustado.
— Calma, aí! Eu ainda não te revelei o principal. Você
sabe que a toda ação corresponde uma reação...
— De valor igual e em sentido contrário. É uma lei da
Física!
— E, se é lei, é imposição da Natureza. De acordo? Pois
bem. Isso ocorre também com a Terra. A toda ação predatória
do homem, a Natureza tenta reagir com procedimentos de
restauração, mas a ação do homem é intensa e contínua. Não
dá tempo pra coitadinha da Natureza se recuperar. Há
trezentos anos, havia menos de um bilhão de homens
dilapidando pouco o nosso ambiente. Hoje, somos seis bilhões
AGORA OU NUNCA MAIS
113

destruindo o planeta com fúria e intensidade progressiva. A


ação do homem é uma só: destruir, destruir e destruir.
— Correspondendo a seis vezes mais destruição!
— Não, meu prezado! Seiscentas vezes mais; seiscentas!
A capacitação tecnológica gerou uma conseqüência de índice
geométrico. E a Natureza não conta com esse índice. Um
homem, atualmente, gasta dez minutos pra derrubar uma
árvore que levou duzentos anos pra se desenvolver.
— É verdade!
— A Natureza bem que procura reagir. Em última análise,
ela reage é em nosso próprio benefício, tentando restabelecer
o equilíbrio vital. Mas, dentro dos nossos parâmetros, ela se
manifesta muito lentamente, como todas as ações cósmicas.
No relógio da Natureza, um minuto leva um ano pra decorrer. E
esse interregno, entre ação e reação, é importante na análise
de combinação dos fatores finais. O computador acusou que a
capacidade de regeneração da Terra vai ficar definitivamente
esgotada em 2036.
— 2036! – exclamou Bento, apavorado. — Mas está muito
perto! Não pode ser! Deve ter algum engano nessa história!
— Agora, o mais importante: como a Natureza demora a
dar o troco, a humanidade só vai perceber a esterilidade
planetária, em caráter progressivo e irreversível, depois de 20
anos daquela data, lá pra 2056.
Bento olhava o amigo com os olhos arregalados de
espanto e não disse nada.
— Em outras palavras, depois de 2036 já não vai ter
retorno; não será possível qualquer conserto na situação.
Mais: até 2036, a humanidade não vai querer acreditar que
AGORA OU NUNCA MAIS
114

está à beira do abismo, mas a bomba já estará armada pra


explodir. Aí, é só esperar.
Bento estava concentrado de corpo e mente na exposição
do amigo e sentia firmeza e convicção em suas palavras. Ficou
impressionado com o rumo do que pensava inicialmente ser
apenas um pequeno problema. Procurou raciocinar com as
informações agora conhecidas, mas sua emoção tomou a
frente de seu cérebro e, ficando de pé ante o amigo, exclamou
em completo descontrole:
— Isso é catastrófico! Não tenho condições de acreditar!
Você me hipnotizou! Você está men...
Candota o interrompeu bruscamente, dando quase um
grito:
— Pára! O que que é isso! Vamos parar e relaxar um
pouco.
Bento, completamente transtornado, com os olhos
espremidos e demonstrando medo e sentimento de traição,
manteve-se em silêncio, encarando fixamente os olhos de
Candota. Via-se pela expressão que engendrava um raciocínio
acusatório. Depois de longo tempo, chegou-se bem perto do
rosto do amigo e perguntou com voz calma, mas incisiva:
— Você ainda não me contou o motivo do suicídio do
Guilherme! – como que sugerindo algo relacionado ao
programa.
Candota levou um susto com essa mudança repentina de
postura do amigo. “Eu teria ido direto demais com o assunto, a
ponto de perturbar a mente dele? Será que tive pouco tato e
habilidade? Ou o Bento não tem a fortaleza mental que eu
imaginava?” – pensava, enquanto procurava um caminho para
AGORA OU NUNCA MAIS
115

esfriar a situação. Evidente que não ia contar tudo, mas


pretendeu dar uma satisfação sem provocar agravamento da
situação.
— Vou te contar tudo direitinho, mas primeiro trata de
controlar suas emoções. Eu já tinha te prevenido pra usar a
inteligência. Você não é assim! Eu te conheço; sei que é
inteligente e muito racional. Controla aí, vai!
Bento se afastou daquela situação muito próxima e
agressiva, voltou a uma postura de expectativa, ainda de pé,
desviando o olhar para o vazio da sala, como a dizer que
estava escutando.
— O Guilherme se suicidou por decisão repentina, sem
deixar qualquer recado. Nem pra mamãe. O motivo é mistério
até hoje; ninguém conhece. Mas você sabe que ele era
introspectivo, calado, não tinha namorada. Vivia num mundo
só dele. Isso deve ter influído. Algum motivo fantasioso deve
ter sido a causa. Afinal, ele provou que era mentalmente fraco.
— Não teria sido por causa dessa projeção de futuro...
desse programa?
— Ora, Bento! Eu trabalhei com o programa, aperfeiçoei
ele, estou muito preocupado com a revelação que traz, mas
não me deixo abalar por isso. Se você é mentalmente sadio,
também não. O caso do Guilherme é que ele era mesmo
possuidor de uma personalidade propensa à depressão. É o
que acontece com muita gente por aí. Não é o nosso caso. Ao
tomar contato a primeira vez com isso, a gente se assusta,
mas depois o bom senso prevalece. O programa traduz uma
realidade e nós temos que preocupar é com essa realidade.
AGORA OU NUNCA MAIS
116

Bento ouviu e não se manifestou; continuou com o olhar


perdido, naturalmente pensando sobre o ambiente nublado que
tinha criado.
Depois de longo tempo de mutismo, cada um procurando
se arrefecer, Bento interrompeu a pausa e, com voz
conciliadora, se manifestou:
— Você me desculpe. A culpa foi minha. Agora esfriei a
cabeça, e você pode continuar a exposição. Mas que é um
baque a gente se dar conta da realidade, ah! isso é!
— Eu também estou controlado, mas vou te dizer que a
culpa não foi sua, não. Não existe culpado nessa questão. Se
existe culpado é o próprio assunto que é explosivo, como eu já
tinha te avisado.
— Deixa isso pra lá! Está tudo bem comigo.
— Tudo bem, mesmo? Posso confiar?
— Claro, ô meu!
— Uma coisa é importante eu te dizer: estou só te
relatando o problema. Relatando, narrando, contando,
transmitindo. Minha idéia se restringe a isso.
— Como assim?
— Meu objetivo não é te convencer de um dogma; é só
expor um resumo do problema pra você poder entender,
perceber, sentir. Nessa nossa conversa, o seu intelecto é que
tem que funcionar.
— Claro! Tudo tem que passar pelo meu julgamento
mesmo!
— Isso! Tem que ter crítica. Agora parece que você está
começando a entender a situação. E ela nada mais é do que a
realidade. É só questão de enxergar.
AGORA OU NUNCA MAIS
117

— Eh!... Eu não vou assim na sua conversa, não! Eu vou


teimar em ser otimista. Tenho que ser o advogado do outro
lado. Preciso encontrar um modo de te contestar.
— E vou ficar satisfeito se você conseguir me mostrar que
estou errado. Vai ser um alívio e uma grande felicidade. E eu
estou precisando mesmo de alguém que faça a crítica.
— É na contraposição de idéias que a gente encontra
novos rumos. Por princípio, não aceito enquanto não submeter
essas idéias ao meu próprio crivo racional. Vamos ver... estou
pensando... pode ter algum erro nesse programa. Não pode?
— Pode.
— Acredito que tem brechas nessa teoria. Ninguém é
absolutamente exato. O seu estudo vai precisar de exame
profundo da minha parte e de outros cérebros. Isso é muito
sério pra ser aceito de imediato. Você não acha?
— Estou de pleno acordo. Tudo demanda estudo acurado,
principalmente quando se trata de assuntos funestos. Foi por
isso que vim te procurar e pedir ajuda. Claro que seu estudo
da matéria vai ser importante, mas só no que aparece
superficialmente já dá pra sentir a gravidade da situação. Não
dá?
— Se dá! Cheguei a ficar desnorteado!
— Você já percebeu que essa teoria – como você chama –
não pode ser solta na rua? Ou você fica desmoralizado, ou
provoca comoção pública de repercussão imprevisível.
— Tem razão. Mas sabe o que eu acho? Você pode sair por
aí falando isso pra todo mundo que ninguém vai te acreditar.
Eles vão dizer é que você é louco.
AGORA OU NUNCA MAIS
118

— Eh! Sempre foi assim! Faz parte da índole humana! A


verdade trágica é inverossímil; a bondosa, crível. Ninguém
quer acreditar nas más notícias, mas crêem piamente nos
benefícios das promessas vãs e enganosas.
— Também acho. Repara que o povo diz, depois que
ocorreu, que toda tragédia natural foi de surpresa, inesperada!
Mas salvação da alma e prêmio de loteria todo mundo acha
que vai ganhar!
— Agora, você pode avaliar a minha agonia lá no Brasil, a
de condenado ao silêncio. E você pode dimensionar, também,
que a confiança que te devoto é uma porta de fuga pra mim.
Só de te contar meu segredo, fico aliviado. E te agradeço
muito por me ouvir. Só amigo mesmo!
— Estou pensando uma coisa...
— O que é?
— Assim de estalo, acho que você teve muito tempo pra
pensar no assunto e deve ter procurado soluções viáveis.
— Eh! Pensei nas saídas pra esse problema. Encontrei
vários recursos, mas todos são paliativos e caem no mesmo
lugar comum. Na essência, só existe uma solução.
— Qual é?
— É como eu já te disse. O caminho que estamos
trilhando vai dar numa única solução que depende das
lideranças mundiais: ou decidem, ou não decidem.
— Mas decidir o quê? Você não falou sobre a solução
encontrada. Quero saber até aonde você chegou.
— Eu vi que se impressionou com a minha exposição. Isso
demonstra que foi capaz de perceber a seriedade do problema.
— Você me amarrotou, isso sim!
AGORA OU NUNCA MAIS
119

— Mas vai se amarrotar muito mais depois que eu te


mostrar os dados da análise. Mas mantenha a sua mente sob
controle. Vê lá, hem!
— Que que isso! Você pretende me crucificar?
— Acho que você ainda não está preparado pra isso. Eu
trouxe os documentos, mas eles vão ficar pra depois. Até
agora, você não está convencido da exatidão da minha tese, o
que é bom. Depois, se ela se confirmar nos seus estudos, aí
vamos falar de novo.
Meio desorientado pelas últimas palavras ouvidas, Bento
procurou se recompor nas tensões, ficou pensativo por alguns
instantes e disfarçou:
— Você não advinha o que estou pensando.
— Sei, sim. Você vai ter que contar tudo pra Miriam.
— Isso! Mas vou pedir segredo absoluto. Eu confio nela.
Você sabe, a gente tem que partilhar assunto importante com
a esposa!
Bento, sentindo a hora, levantou-se, foi até uma estante
onde consultou uma agenda e telefonou para alguém do
restaurante. Instruiu que lhe mandassem duas refeições
simples. Voltando-se para o amigo, disse:
— Vamos almoçar aqui mesmo. Não pretendo sair pro
restaurante. A gente perde muito tempo.
Bento estava curioso com aquela conversa e não
pretendia deixar o assunto no meio. Economizando seu tempo,
esperava conseguir mais informações antes que tivesse de
voltar a casa. Sem escrúpulo e usando a liberdade que tinha
com o amigo, foi logo provocando:
AGORA OU NUNCA MAIS
120

— Você me deu a entender que esse assunto é sério


mesmo. Se os seus cálculos estiverem corretos, 2036 é quase
amanhã. Por que deixar pra depois a discussão do problema?
Eu...
— Estou gostando de ver sua coragem!
— ...como te disse, não posso aceitar nada sem exame
minucioso. Mas já estou enxergando com mais clareza o que
você me apontou, mesmo antes de fazer as análises. Não vou
deixar de examinar seus cálculos depois. Isso é claro pra você,
eu sei. Vou querer analisar tudo. Mas, dando como certa sua
teoria, já podemos adiantar algumas questões. Agora me
explica os pormenores.
— Vou explicar. Mas preciso, antes, pôr em relevo
algumas considerações pra você poder entender melhor
essa...
— Você está sendo muito didático! Pode abreviar.
— Não, meu amigo. Isso não é ser muito didático. A
importância do assunto exige que ele, apesar de resumido,
seja bem explicado pra ser bem entendido. É o que procuro
fazer. Em caso vital como este que estamos tratando, não
posso deixar dúvidas no caminho.
— Foi só uma observação. Acho que é a minha ansiedade.
Não repara, vai!
— Veja que toda atividade humana moderna tem como
objetivo o danado do lucro, o ganho, o bem material. Pior:
ganhar já não é o fito dos homens, mas acumular esses
ganhos.
— Pra quê? Bobagem! Bastava o suficiente. Todos perdem
tudo na hora da morte!
AGORA OU NUNCA MAIS
121

— Isso mesmo! Existe uma visão distorcida na concepção


econômica dessa nossa civilização.
— Começou com a revolução industrial. E hoje continua
com as tecnologias que reinam no comércio, na indústria, nos
serviços profissionais, na política, na religião, nas ciências, em
tudo enfim.
— Você está começando a enxergar as distorções. Mas,
prosseguindo, quero acrescentar algumas perspectivas que
passam despercebidas. Como não existe milagre, quando
alguém obtém determinado lucro, alguém perde valor
correspondente.
— Isso é uma lei universal.
— Correto. Como o consumidor também adquire ganhos –
os da subsistência –, o alguém que afinal paga tudo não sai da
área dos humanos. De onde vem esse maldito lucro?
Diretamente, sai dos que consomem, como costumam afirmar
os economistas. Mas, na verdade, vem mesmo é do meio, do
ambiente, do substrato vivencial, isto é, vem da Natureza, vem
dos bens do nosso planeta, que são chamados,
apropriadamente, de recursos.
— Realmente!
— Todo bem que você imaginar foi arrancado da
Natureza. Num exame mais acurado, você pode concluir que a
Terra, apesar da grande contribuição solar, é que paga tudo.
Paga com seu próprio corpo, com sua própria vitalidade,
ficando em chagas. Dessa atividade do ganha-ganha, a que
chamamos de atividade econômica, é que vêm todas as demais
conseqüências danosas. A cultura do consumismo é um crime
contra o planeta.
AGORA OU NUNCA MAIS
122

— Espera aí; um ponto é defensável. O lucro é


moralmente sustentável. Ele, em si, não é um mal, pois
apenas comanda e faz mover a atividade humana que traz o
desenvolvimento, objetivo que se ajusta com a atividade
social, própria dos humanos.
— Você falou certo, mas só dentro do contexto cultural
que moldou nossa mente segundo normas ditadas pelo
egoísmo. Dentro dessa ótica, o lucro é defensável. Mas o
assunto que trato é amplo e passa por cima de considerações
éticas. Estou tentando expor uma situação global das causas
maléficas sobre nosso ambiente. Veja você os motores que
movimentam a sociedade moderna.
— Esses motores que você fala devem ser os interesses
econômicos, presentes em todas as sociedades.
— E que são o mal. As forças do dinheiro lutam pelo
desenvolvimento e progresso, pois trazem lucros pra eles.
Essas elites e os políticos, que fazem as vontades delas e são
seus representantes, estão sempre medindo os indicadores
econômicos. O PIB, por exemplo.
— Faz parte do sistema essa aferição.
— Quando há um perder de forças do sistema, com os
indicadores apontando deflação, isto é, produção e consumo
decrescentes, eles lamentam e fazem sombrios prognósticos
pro futuro. Tal situação balança a estabilidade dos pilares da
economia de mercado do ganha-ganha, com reflexos dolorosos
no orçamento individual de toda a população.
— É claro! Eles têm que se defender.
— Em escala mundial, é angustiante essa tragédia. Mas o
que eles não percebem é que a degradação ambiental, além do
AGORA OU NUNCA MAIS
123

desequilíbrio climático e ecológico, provoca descontroles na


economia, trazendo o caos financeiro. É bom notar que tais
espasmos econômicos têm efeitos proporcionalmente menores
nas nações, segundo seus estágios de desenvolvimento, de tal
forma que as comunidades indígenas primitivas nenhuma
influência receberão.
— Mas, se a estrutura mundial está construída com base
nesses critérios, é natural que indicadores negativos sejam
vistos como debilitantes do sistema.
— Certo! Mas de qualquer forma, numa projeção, o
sistema financeiro está ameaçado. Resta saber se os
argentários do mundo querem perder seus bens excessivos
agora, mas salvando o planeta, ou se preferem uma
bancarrota total, radical e definitiva.
Bento ficou pensativo, olhou para o amigo com expressão
de incredulidade e observou:
— Você estava falando sobre os índices do PIB que...
— Eh! Eu queria é apontar que o decaimento daqueles
índices constituem vantagem pro planeta. Diminuindo o ganha-
ganha, melhora a condição do planeta. Observe bem que estou
falando em função dos interesses maiores da Terra, e não em
função dos interesses individuais. Esta é uma visão global,
ampla.
— Não estou entendendo bem. Explica melhor essa
questão.
— Você percebe que o interesse do todo deve se sobrepor
ao interesse de uma parte desse todo?
— Como?
AGORA OU NUNCA MAIS
124

— Questão de lógica! Sem o todo, não há parte. Se o todo


se extinguir, as partes dele também se extinguirão. Claro!
Pensa bem!
— Deu nó... Espera aí, deixa eu pôr a cabeça no lugar.
E Bento procurou se concentrar, demonstrando confusão.
Olhou indagativamente para o amigo e ouviu:
— Pra poder enxergar o conjunto – o interesse da Terra –,
é preciso que você apague da idéia os interesses da sua
própria individualidade. Tem de imaginar que você é um juiz
inteiramente imparcial e honesto. E ampliar ao máximo sua
visão mental.
— Eh! Agora entendo a sua lógica. É isso mesmo! E a
solução?
— Eu defendo, no caso, que as autoridades promovam,
gradualmente e sob cuidadoso controle, a desaceleração da
economia de mercado. Ainda tem tempo. Tudo que cresce sem
parar, não cresce, incha. E, inchando sem parar, num dado
momento estoura.
— Exceto se for um gato, não é? – emendou Bento, dando
boas gargalhadas.
Candota começou também a rir, o que contribuiu para
relaxar aquela tensão de conversa séria, que já estava
toldando o espírito de ambos. Mantinham ainda o semblante
risonho, trocando brincadeiras, quando o copeiro bateu à
porta, trazendo o repasto encomendado.
Dando folga à mente, os amigos cuidaram dos interesses
do corpo, temperando o almoço com suave e digestiva
conversa sobre frivolidades. Como sobremesa, Bento convidou
o visitante para conhecer os pormenores do escritório.
AGORA OU NUNCA MAIS
125

Mostrou-lhe como organiza o currículo de aulas, os arquivos de


pesquisas, as lembranças de viagens acadêmicas e as
fotografias de astros celestes que coleciona. Depois dessa
ligeira digressão, Bento sentou-se novamente à mesa e deu a
entender que deveriam terminar de engolir o indigesto
assunto.
— Segundo informes oficiais – continuou Candota
enquanto se dirigia para sua cadeira –, só a emissão de
dióxido de carbono na atmosfera aumentará em 70% nos
próximos 25 anos. Isso equivale a 38 bilhões de toneladas.
Trinta e oito bilhões, Bento! Você tem noção do que é isso?
— Absurdo!
— As atividades humanas, de modo inteiramente
irresponsável e irracional, estão importunando até os vírus em
seu habitat que, procurando seus espaços de sobrevivência,
invadem as coletividades e provocam essas epidemias que
grassam por aí. Além disso, tais atividades poluem a
atmosfera, os rios, os mares, os oceanos, o solo, o subsolo.
Nada escapa. Até a nossa mente elas poluem.
— A nossa mente! Como? Explica melhor.
— Ora, Bento! Se você atentar direitinho, vai ver que
estamos vivendo num mundo de mentiras.
— Que mentiras!
— Ou, falando de outra forma, de verdades falsas,
construídas pelas tecnologias na propaganda, na indústria e na
política. Hoje, tudo se resume a propaganda!
— Você está exagerando!
AGORA OU NUNCA MAIS
126

— Essa questão é muito abrangente e você vai descobrir


por si. Eu estava falando é sobre a poluição, e você me
desviou. Dizia que...
Bento, procurando reforçar o assunto, sacudiu a cabeça
em concordância e disse:
— É verdade! O automóvel, que na construção exige
muita matéria-prima – produzida com grandes destruições e
sujeiras no ecossistema – é ele próprio, depois de acabado, um
agente poluidor contundente.
— Não! Se você pensar bem, o agente poluidor não é o
automóvel, mas o homem que fabrica e dirige ele. Está
comprovado que existe correlação do aumento da temperatura
média do planeta com as emissões de gases-estufa. O efeito
estufa na Terra é fenômeno evidente, ancorado por diversos
estudos e previsto pela Lógica.
— Eh, eu tenho lido algumas coisas sobre o alerta dos
cientistas! Mas parece que ninguém liga pra isso.
— Pelo que sei, só eu é que ligo!
— Um só não adianta nada. Vamos ver no que vai dar
essa sua hipótese. Continua.
— Não estou falando sobre hipóteses, mas sobre fatos
concretos. Essa é a grande diferença. O monstro está aí na
porta da nossa caverna, e ninguém se incomoda. Todo o
equilíbrio do ecossistema está sendo perturbado, com reações
já à vista. Estudos científicos concluíram que a humanidade
consome quarenta por cento mais que a capacidade de
renovação da biosfera. Em outras palavras, isso é esgotamento
do planeta.
— Incrível como a humanidade não se dá conta disso!
AGORA OU NUNCA MAIS
127

— Humanidade representada pelos seus governantes


incompetentes e irresponsáveis. As mudanças climáticas, as
alterações nos regimes hídricos e o desequilíbrio na
biodiversidade são outros sinais significativos das reações às
nossas ações irracionais. São sinais claros de advertência.
Candota sentia a boca seca, tanto pela emoção em
argumentar como pela tensão ao falar. Sorvendo lentamente
um copo d’água, justificou-se:
— O mais triste de tudo é que isso que estou te dizendo
não é novidade. É publicado esporadicamente e sem destaque
na mídia, tendo como fonte os cientistas. Você deve saber
disso. Estou repetindo o que é público.
— E por que isso não tem repercussão?
— É muito simples. Tratam do assunto sem destaque,
como se fosse fato de insignificante importância. O que a
grande mídia não explica é que todas essas ações destruidoras
são conseqüência de visões e posturas políticas dos diversos
sistemas que dominam a constituem a atual civilização,
conforme já te expliquei quando identifiquei as causas.
Também não falam nada sobre as conseqüências catastróficas.
Sobre isso não falam nada. É tabu.
— Deve ter um motivo pra isso!
— Tem, sim! É porque essa mídia também é
representante das elites e faz parte do sistema político que
domina cada país. Estamos vivendo uma civilização que é
auto-aniquiladora. Ela se destrói enquanto se glorifica do
próprio crescimento. Isso é irresponsabilidade. Não percebe,
ou não quer perceber, que cresce à custa do definhamento de
seu suporte, a Terra.
AGORA OU NUNCA MAIS
128

— Você disse que a Natureza demora a reagir. Então, esse


prazo que você achou pode estar errado!
— Eu explico. Esses indícios perceptíveis atualmente já
são conseqüência das degradações cumulativas dos últimos
anos da era industrial.
— Eh!... Ultimamente têm ocorrido com mais freqüência
cataclismos naturais que parecem mesmo um aviso.
— A Natureza protesta a longo prazo. Por isso é que
temos de tomar providências com certa antecedência. E o meu
programa acusou o ano de 2036 como o último prazo pro início
de atuações adequadas. Até aquela data, as ações humanas de
reversão, conservação e recuperação da Natureza serão
recompensadas por ela. Isso porque suas forças de
regeneração ainda não estarão esgotadas. A continuar assim,
vamos poder viver relativamente bem até 2100, talvez; mas
nessa época já não terá salvação. É verdade que até lá já
morremos de velho. Mas... e os nossos descendentes? Vão
ficar numa armadilha que nós mesmos estamos construindo e
legando a eles.
— Puxa! A sua conversa é desconcertante. Nunca ouvi
análise tão negativista. E o pior é que não estamos tratando de
ficção.
— As conferências, tratados, protocolos, acordos e
movimentos de conscientização ecológicos que você tem visto
por aí, porque superficiais e enganadores, nada alteram os
interesses materialistas dos senhores do poder. Acho que só
com a apresentação dos fatos contundentes evidenciados no
meu programa, que têm sentido de ultimato, é que as
AGORA OU NUNCA MAIS
129

autoridades vão tomar as decisões apropriadas. Apesar disso,


tem tempo. O prazo, no entanto, é muito pequeno.
— Está bem! Você pintou a situação atual do planeta dum
jeito que bate com os informes divulgados pelos meios
científicos e que já eram, de modo geral, do conhecimento
público. Mas até agora não me disse qual a solução do
problema. Você só deu a entender que é a parte mais difícil do
esquema. Sou forte. Estou pronto pra te ouvir.
— Eu não vou te dar uma solução pronta e acabada. Isso
não existe. Eu tenho na idéia apenas indicação do rumo da
saída. E essa via é dura!
— Quer dizer que você tem várias soluções possíveis?
— Não é assim. Tem vários procedimentos, mas um só
caminho; e esse eu vou te apontar. Você já deve ter notado,
pela minha paixão ao fazer diversas explanações, que ficou
evidente a identidade do criminoso.
— O bandido dessa história parece que é o próprio
homem.
— Exatamente! Ele é agente e também vítima dos
próprios atos. Sob esse enfoque fica todo o êxito da solução.
Tente entender que a decisão certa tem apenas uma opção –
desfazer gradualmente tudo o que diz respeito a progresso,
desenvolvimento, crescimento. Aí está incluída a problemática
do aumento populacional, que é o cerne da questão.
— Reverter o crescimento demográfico?
— Também. Aliás, é o principal fator nessa equação. Se
você diminui a quantidade de agentes causais, reduz as
conseqüências dos seus efeitos.
— Primário!
AGORA OU NUNCA MAIS
130

— Pois é. As providências devem incluir restrições à


reprodução, é evidente. O homem é quem perverte tudo.
Concorda?
— Vai!
— Logo, ele deve ser o foco no processo regenerativo da
Natureza. E não esqueça que o homem é componente dessa
mesma entidade. Ele é Natureza e, ao modo de células
cancerosas em um corpo, que se reproduzem sem parar, vai
matando o próprio meio de vida. Entende a imagem? Você
sabe, o planeta Terra é um corpo vivo. Por enquanto!
— Pelo que você disse, esse problema exige medidas
urgentes. Mas essa reversão é demorada.
— Demora um pouco. Por isso deve começar logo e ser
enquadrada em norma rígida, sob pena de fracasso. E não
pode ser feita de modo paliativo, como os políticos costumam
agir. A solução que proponho é de execução totalmente
administrativa.
— Não estou entendendo bem esse ponto.
— As medidas restritivas devem promover condições pra
Natureza readquirir forças suficientes à auto-sustentação, mas
de forma gradativa pra não abalar muito o vínculo social. É
preciso lembrar que, com essas primeiras ações, aquela data
fatal vai sendo postergada. Eu não vou dar a receita, porque
as providências das autoridades deverão ser monitoradas por
uma comissão de notáveis, responsável por todo o processo.
Naturalmente que cientistas e técnicos devem ficar à frente
nas análises e procedimentos. Nada de políticos.
— Você é contra os políticos, hem!
AGORA OU NUNCA MAIS
131

— Eles só servem pra atrapalhar.Você já parou pra


raciocinar que o mundo não necessita de políticos? Que bastam
apenas administradores?
Enquanto Candota estava falando, quase com
naturalidade, Bento foi ficando vermelho e com as feições
transformadas depois que ouviu referência ao assunto
demográfico. Notava-se a angústia e desorientação ante
aquela exposição que o levou a sentir a ameaça concreta.
— Candota, pára um pouquinho. Deixa eu olhar uma
coisa.
Levantou-se, andou lentamente pelo escritório. Abriu
algumas gavetas, como a procurar algum guardado, só para
distrair a atenção. Fingiu rebuscar algumas anotações de aula,
ensaiou idas e vindas e tomou um copo d’água bem devagar,
sem vontade. Candota, calado, observando. Depois de alguns
minutos, Bento readquiriu lucidez suficiente e disse:
— Estou me esforçando pra entender o problema por
inteiro. Mas é bom parar por aqui. Agora estou vendo que o
assunto é muito sério. Já tenho toda a questão na minha
cabeça. Você afinal me contagiou. Vou ter que meditar muito.
Fiquei um pouco perturbado, mas já passou. Tomara que essa
história não se confirme.
— Quero te pedir um favor. Procura se acalmar. Eu não
tive a intenção de te magoar.
— Não, não foi nada! Vamos mudar de assunto. Já estou
bem. Acho que por hoje chega.
— Está lembrando que temos de ir embora, a tempo de
fazer a despedida de seus sogros?
AGORA OU NUNCA MAIS
132

— Sim, sim – respondeu, ainda aturdido. — Está na hora


mesmo. Vamos pra casa.
Depois do retorno, Bento colocou o carro no abrigo e se
manifestou:
— Vem comigo até o escritório pra você deixar lá o seu
computador e os dados do programa. Estou disposto a
examinar e enfrentar tudo. Vou fazer a minha crítica.
Candota, enquanto depositava os embrulhos sobre a mesa
do escritório, revelou ao amigo a senha de acesso e fez
algumas observações sobre os papéis, cuidando para que
ficasse mais fácil a análise do programa. Disse que o chamasse
para as despedidas e que ia ficar no quarto. Ao sair, avisou:
— Se você precisar de esclarecimentos ou se tiver alguma
dúvida, me chama. A sua análise não deve aceitar pontos
obscuros sem uma melhor explicação.
Mais tarde, no momento das despedidas dos hóspedes,
via-se que a família era amorosa e alegre, tantos os beijos e
abraços entre eles. Candota foi alvo de atenções e protocolares
cumprimentos de mão. Klintok, antes de entrar em seu carro,
renovou o convite para que o visitasse em Annapolis.
Naquela noite, Candota notou que Bento se trancou no
escritório, saindo mais tarde. E, não tendo ido ao trabalho nos
dois dias seguintes, passou grande parte do tempo recolhido
ali. Certa manhã, estando apreciando as flores do jardim
lateral, ouviu o seguinte diálogo entre o casal, que se
encontrava na copa:
— William, eu preciso que você vá ao banco renovar o
seguro do meu carro, que ele vence na próxima segunda-feira
e eu não estou podendo sair. Tem umas coisas aqui em casa
AGORA OU NUNCA MAIS
133

que eu preciso ajeitar, antes de recomeçar meu trabalho lá na


biblioteca.
— Tem tempo! Está com medo de perder o prazo?
— Você sabe que eu não gosto de deixar as coisas pra
última hora. Nas minhas anotações, isso ficou agendado pra
hoje. E a minha licença lá na biblioteca está vencendo.
— Estou compondo um relatório de pesquisa com prazo
certo de entrega. Se você não se importar, vou lá amanhã ou
depois. Pode ser?
— Não tem problema. É só não esquecer!
Pelos termos da conversa, Candota concluiu que seu
confidente estava afincado no estudo do programa e que ainda
não havia revelado nada à esposa. Estava começando a temer
que tinha trazido para o amigo um problema conjugal. Mas que
fazer? Já tinha iniciado sua epopéia, e – pensava – “bom herói
tem de lutar até o fim. Igual Dom Quixote. Nada de
desanimar”. Sabia que mais dias encontraria muitos obstáculos
pela frente. Tinha que ser obstinado em qualquer
circunstância.
Enquanto aguardava uma provável manifestação do
amigo, procurava distrair-se com exercícios físicos, natação,
passeios pela vizinhança. Não deixava de exercer o prazer de
observar os insetos e as flores dos jardins e extasiar-se com
suas cifradas mensagens de vida. Nesse enlevo, ficava longo
tempo.
Desde que chegou, tinha mandado dois correios
eletrônicos para os pais e aproveitou para mandar mais um,
dando conta de sua boa saúde e de que tudo ia bem. Recebeu
AGORA OU NUNCA MAIS
134

confortantes mensagens de casa, salientando que já estavam


com saudade.
Certa manhã, Bento disse ao amigo, de forma que Miriam
escutasse:
— Vem comigo até o escritório. Quero discutir com você
uns assuntos de física pra inserir no relatório de pesquisa que
estou fazendo. Com a sua assessoria, será mais fácil.
E foram os dois para lá. Porta trancada, Bento acomodou
numa mesinha os papéis e o computador do Candota, dizendo:
— Está aí o material todo. Agora vai ser mais fácil
compreender seu arrazoado. Vi tudo. Examinei os dados
estatísticos, verifiquei as equações, estudei as simulações de
teste e avaliei as conclusões parciais. A data final de 2036 é
compatível com as estratégias do programa. Até aí, tudo bem.
Mas eu te pergunto. Quem sou eu pra dizer que tudo ali está
certo?
— É só...
— Deixa eu falar. A minha avaliação diz respeito apenas à
coerência matemática, à clareza de apresentação e à lógica
das inserções. Aceitei como válidos os excertos provindos das
leis físicas, da química e alguns procedimentos da informática,
que desconheço. Você vai entender isso. É natural, porque são
ramos do conhecimento que estão fora da minha especialidade.
Considerando corretos todos os informes, a sua tese é perfeita.
O que é lamentável. E triste também.
— Eu não tenho uma tese. Eu tenho é uma evidência,
produto da nossa própria ação egoística. Os fatos existem. O
que eu fiz foi apenas calcular a data provável do caos. Estamos
ante dois pontos: ou a inteligência humana impõe ações de
AGORA OU NUNCA MAIS
135

reversão agora, e com urgência, ou ela não se chamará


inteligência.
— Tem razão. Mas o que vamos fazer, afinal? Dar
publicidade não podemos; manter segredo, também não.
Continuo na expectativa que seu programa tem algum erro
básico, o que torna ele apenas um pesadelo. Precisamos
submeter o seu trabalho a exame de pessoas capacitadas pra
isso. A propósito, o que você tinha na cabeça quando disse que
precisava da minha ajuda? Você está vendo que não posso te
ajudar em nada. A não ser te oferecer solidariedade com a sua
angústia.
— Não podemos perder tempo expondo o programa pra
exame de outras pessoas. Isso vai ser feito, naturalmente, no
momento adequado e dentro de outras circunstâncias. Agora,
temos é que achar uma forma de arranjar ajuda efetiva.
— Que ajuda é essa? E de quem?
— Eu ainda não tinha te falado sobre isso, mas vou
explicar. Em princípio, esse é um problema mundial. Logo, o
assunto deve ser apresentado perante o governo do mundo.
Como não existe essa entidade, o que é gravíssimo, temos que
tentar convencer o governo dos Estados Unidos, na qualidade
de líder mundial, a se sensibilizar pelos interesses de
sobrevivência do globo terrestre. E a ameaça, evidenciada no
meu programa, deve ser o alerta que vai servir pra obriga-lo a
tomar uma posição, porque os seus interesses nacionais
também estão em jogo. Nesse risco, está todo mundo
comprometido.
AGORA OU NUNCA MAIS
136

— Isso! É por aí que temos de argumentar. Acho que a


questão de segurança é a mais sensível do meu país. Mas os
interesses econômicos... sei lá! Vai ser difícil.
— Se conseguirmos que o seu país considere os riscos à
sua própria segurança, é certo que o meu programa vai ser
exaustivamente analisado antes de qualquer providência
efetiva. Se tiver falhas, é nessa hora que vamos saber. De
qualquer forma, vai ser o momento de desafogo. Porque, ou
vamos estar errados e aliviados, ou estamos certos, o que vai
fazer o governo americano se mexer. E aí, nesse caso, a gente
vai se sentir mais responsável.
— E a Organização das Nações Unidas? Ela representa os
interesses de todos os países e pode acolher esse assunto.
— Ora, ora! A ONU é uma espécie de clube social de
amigos e inimigos em pugnas políticas. Ela não tem qualquer
jurisdição. Está subordinada aos interesses conflitantes de
cada país. É um centro de discussões acadêmicas. Ela, enfim,
não tem autoridade efetiva. O que faz falta neste planeta, que
se tornou tão pequeno, é um órgão administrativo real, pelo
menos pra assuntos ecológicos mundiais. Quem tem condições
políticas, financeiras e militares pra liderar uma decisão dessa
magnitude são os Estados Unidos.
— Você é um sonhador! Apesar do interesse de
segurança, acredita que vai conseguir sensibilizar uma
estrutura feita de dinheiro e aço? Você não enxerga isso?
— Aí é que entra o seu esforço.
— Eu!? Quem sou eu? Sai dessa, cara!
— Você é americano...
— E daí?
AGORA OU NUNCA MAIS
137

— ...conhece seu país e tem seus relacionamentos. Temos


que entrar nessa engrenagem, e com sua ajuda.
— Meus relacionamentos são na área acadêmica!
— Seu pai deve ter amigos em Washington, suponho. Seu
sogro, pelo que comentou comigo, é bem considerado no
círculo oficial.
— Eles são comodistas. Não creio que estejam dispostos a
entrar em uma odisséia. À primeira vista, seu projeto é uma
loucura! E não me ponha nessa encrenca. Vê se não vai me
jogar no brejo, hem?
— Sem esforço, a gente não arranja nada. Por isso é que
conto com você. Temos de obter ajuda de qualquer jeito pra
chegar no final ao miolo desse governo. Todo grande
movimento da História começou com a faísca das ações e
palavras de um único homem. Pensa bem, o mundo depende
de nós.
Bento ficou pensativo. Sentiu que a solução daquele
problema era mais complicada que o próprio problema. Veio à
sua mente que teria de solicitar favores, entrar no círculo
político, licenciar-se da Universidade e contar tudo para a
Miriam. Como que dizendo, pensou: “Candota, coitado, sozinho
não tem condição nenhuma. Se ele procurasse outros recursos,
não ia adiantar nada. Ele tem razão. Isso é assunto pra um
país líder, que possua condições de impor decisões. Também,
se meu país não liderar, qual outro vai assumir o encargo?
Nenhum tem condições pra uma empreitada tão pesada assim”.
— Entenda que não estou te forçando a nada. Tudo fica na
dependência da sua decisão. Acho que eu não tinha outra
saída. Como amigo, era da minha obrigação te expor essa
AGORA OU NUNCA MAIS
138

ameaça. Ela tanto afeta a mim como a você e toda a


humanidade. Como amigo, eu só vejo duas direções: eu te
defendo contando, e você me defende ajudando como puder.
— Xi! Parece que você me jogou num tacho de melado!
Preciso de tempo pra pensar. Deixa eu amadurecer a questão
que depois volto a te falar. Tenho que ir à cidade pra renovar
o seguro do carro da Miriam. Quer ir comigo?
— Claro! É bom apanharmos outros ares. Vai ser bom pra
nós dois; descansa a cabeça.
Procurando a esposa, Bento a informou da sua intenção.
— Amor, eu e o Candota vamos na cidade renovar o seu
seguro.
— Aproveita e leva esta listinha pra comprar.
No dia seguinte, estando Candota na sala de televisão,
chega o amigo, acompanhado da esposa. Bento, pedindo
licença, encaminha-se para o televisor e o desliga. Miriam,
mostrando-se meio assustada, fitava o hóspede e lhe
transmitia pela expressão a mensagem clara: “Eu já sei”.
Candota notou a nova situação e, de certo modo,
considerou-a favorável, pois indicava que estava vencida mais
uma etapa da sua missão. Agora, era só enfrentar os
arrazoados que os dois iriam apresentar. Ficou na expectativa
e procurou se mostrar tranqüilo. Bento tomou a iniciativa na
abordagem da questão, justificando-se:
— Candota, como já tinha falado, contei o nosso segredo
pra Miriam. Você sabe, não podia ser de outra forma. Eu e ela
não temos segredos.
— Correto, corretíssimo! Já tínhamos tratado disso. Tudo
bem! – reforçou Candota.
AGORA OU NUNCA MAIS
139

— A Miriam concorda com você e também acha que esse


problema tem que ser depositado é nas mãos de quem tem
autoridade e condições de resolver. Não tem outra saída.
Estive pensando sobre as pessoas que possam ajudar. Eu sou
amigo do filho de um deputado aqui do Estado de Nova Jersey.
Mas acho que ele tem pouca expressão política na capital.
Aproveitando o silêncio que se fez após a demonstração
de desânimo do Bento, Miriam encorajou-se e deu vida à
conversa:
— William, eu acho que o meu pai pode ajudar. Ele é
muito relacionado com os políticos de Washington e já fez
diversos favores na área judicial. Meu pai não deixa de
comparecer nos eventos oficiais. É um recurso! O que que você
acha?
— Acho que não. Seu pai é pessoa muito boa, mas
extremamente conservador e otimista. Acho que não vai
entender a gravidade do problema.
— E o seu pai?
— Com essa última mudança de governo, ele ficou sem
amigos na cúpula. Agora, é só gente nova no governo.
Candota, percebendo a insuficiência de auxílio e o
desânimo dos amigos, argumentou:
— Olha, eu só preciso duma apresentação com alguém da
alta esfera. Alguém que tenha influência no governo. Daí em
diante, eu me viro. Eu quero é expor a situação pra esse
alguém e libertar a minha consciência. Dever cumprido,
pronto! Me dou por satisfeito.
AGORA OU NUNCA MAIS
140

— Ó Candota, você é cândido mesmo! A coisa não é tão


fácil assim! Primeiro, a gente tem que encontrar um caminho –
ponderou Bento.
Os três naquela encruzilhada, pensativos, desanimados.
Longo silêncio na sala; ninguém se olhava. Todos procurando
os recursos da razão. Bento, de estouro, tomou uma decisão:
— Miriam, amanhã vou levar o Candota a Washington pra
conversar com meu pai. Vamos ver o que que ele pode fazer.
Afinal, não vamos pedir nenhum favor. Temos é que envolver
mais gente nesse problema. Do jeito que está é que não pode
ficar. Pensando bem, temos o direito e obrigação de mostrar
esse perigo e a sua gravidade. E o assunto está, em essência,
relacionado com a segurança do país. Afinal, é uma atitude
patriótica. Esse é o mote da nossa estratégia: Segurança
Nacional.
— É isso aí! – exclamou Miriam. — Vocês têm é que
apelar mesmo pro patriotismo dessa gente. Quanto mais,
melhor. Até serem ouvidos.
— Beleza! Isso mesmo! Você encontrou a indicação do
caminho; é por aí mesmo – entusiasmou-se Candota.
— Acho que meu pai é capaz de entender pelo menos a
urgência do problema. Ele é muito entusiasmado com o país, e
o patriotismo faz parte da profissão dele.
— Além disso, ele é mais vivido, mais experiente. Acho
que a opinião dele é muito importante – reforçou a Miriam.
— Vamos ver! Temos é que programar os nossos passos.
Está decidido. Primeiro, vamos falar com meu pai. Está
animado? Vamos mesmo?
AGORA OU NUNCA MAIS
141

— Claro! Afinal somos dois mosqueteiros à procura de um


terceiro. Depois, vamos precisar é de muitos mosqueteiros –
brincou Candota, demonstrando um sopro de coragem.
Bento, sentindo-se com ânimo e despachado, disse à
esposa:
— Amor, você arruma a minha maleta que amanhã cedo
nós vamos a Washington. Vamos de avião, que é mais prático.
Vou telefonar pro meu pai, avisando. E você, Candota, vai
arrumando as suas coisas. Faz duas cópias extras do
programa, que talvez a gente tenha de apresentar provas da
história toda. Ah! vou telefonar pro meu assistente também!
Assim, viajo tranqüilo.
AGORA OU NUNCA MAIS
142

5° CAPÍTULO

Foi uma viagem rápida; a capital ficava próximo. No


aeroporto, Bento indicou ao taxista o endereço do escritório,
explicando ao companheiro:
— Meu pai está avisado da nossa vinda. Ele disse que era
pra passar pelo escritório. Depois, vamos todos pra casa.
O táxi parou defronte de imponente e grande edifício,
separado da rua por imensa esplanada ajardinada e cruzada
por diversas pistas de rolagem. Toda cercada, era guarnecida
logo na entrada por maciça guarita com cancela e diversos
guardas fardados. Bento deu instruções ao chofer:
— Pode chegar até à guarita, pra você deixar a gente lá
dentro.
AGORA OU NUNCA MAIS
143

Manobrado o táxi com frente para a cancela, aproximou-


se um guarda que pediu credenciais. Bento mostrou-lhe um
documento e a barreira foi liberada. Candota se encantou com
o esmero dos canteiros e com as flores ali cultivadas.
Mentalmente louvou os jardineiros do lugar. Desceram diante
de belo pórtico, sobriamente ornamentado, próprio de
construções que abrigam os símbolos do poder. Estavam diante
do prédio do poderoso Departamento de Estado.
À entrada da majestosa construção, outra exigência de
documentos. Notava-se a presença de seguranças em todas as
partes. Bento, que já conhecia os caminhos, dirigiu-se
rapidamente para o gabinete do pai, situado no quinto andar.
Depois de se apresentarem perante um secretário numa ante-
sala e de esperarem um pouco, foram convidados a entrar.
Korn veio ao encontro do filho, mostrando-se alegre e
afetuoso. Virou-se para Candota e exclamou:
— Meu caro, é bom te ver! Fico satisfeito que tenha
vindo. Como vai a sua família?
Antes que se manifestasse, Korn abriu a porta de um
armário e recomendou que guardassem ali as maletas.
Candota agradeceu as atenções. Foi perguntado sobre
algumas coisas do Brasil, e retribuiu as amabilidades
respondendo a todas as perguntas.
Foram convidados a se assentar nas poltronas que
formavam um conjunto ao lado do escritório. Bento perguntou
pela mãe e foi logo explicando o motivo da visita. Não fez
muitos rodeios. Estava no princípio de sua exposição quando
foi interrompido pelo pai que, olhando alternadamente para os
dois, disse:
AGORA OU NUNCA MAIS
144

— Calma, William! Parece que você está engatilhando


uma conversa especial. Isso precisa ser bem discutido lá em
casa. Estou notando, pelos seus cuidados na fala, que o
assunto está pedindo sigilo, e aqui é o lugar menos indicado
pra isso.
Levantando-se da poltrona e, antes de se dirigir à mesa
do escritório, recomendou:
— Esperem um pouco, que vou dar algumas instruções
pro meu secretário e já volto.
Candota encantou-se com a perspicácia demonstrada por
Korn e cochichou para o amigo:
— Seu pai pegou a importância do assunto no ar. Gostei
de ver!
— Também com a experiência diplomática de tantos anos!
Korn pegou o interfone e se comunicou com o subalterno,
dizendo que não voltaria à tarde. Depois, avisou ao chofer que
o esperasse à saída.
— Podemos ir. Peguem a bagagem.
Desceram até o portal oposto àquele pelo qual tinham
entrado. Era um lugar adequado para embarque mais discreto.
Mesmo se tratando de carro do serviço federal, devidamente
identificado, o motorista teve que parar à cancela da guarita
principal. Mas um simples olhar do guarda foi o suficiente para
a liberação.
No percurso, delongado por instruções de Korn, este foi
apontando ao Candota os diversos departamentos
administrativos da capital, não deixando de passar pelas
imediações da Casa Branca e do Congresso. Ao se desviar o
veículo para uma avenida mais simples, Bento esclareceu que
AGORA OU NUNCA MAIS
145

estavam entrando no bairro residencial onde moravam os pais.


Era um bairro especial – notava-se – pela suntuosidade das
moradias, sempre grandes, majestáticas, construídas no meio
de enormes terrenos abertos, sempre ajardinados e com todos
os complementos de conforto.
Foram recebidos à porta de entrada pelo mordomo, fiel
escudeiro do século XXI, que se apressou em pegar as
maletas. No interior, acudiu à ante-sala Dona Ruth. Abraçando
o filho e o Candota, mostrou-se satisfeita por revê-los, não
deixando de perguntar pela netinha.
O anfitrião chamou os dois para a biblioteca, onde
ofereceu latinhas de cerveja, dizendo que ali podiam conversar
à vontade e que o filho terminasse de expor o assunto.
À medida que Bento desenvolvia o raciocínio, de modo
conciso, e mostrava os documentos sobre o programa da
projeção ecológica, fazia pausas para pedir confirmações de
Candota. O pai se mostrou bom ouvinte, como hábil diplomata
que era. Manteve-se em silêncio, prestou muita atenção e não
fez perguntas até o fim. Quando Bento arrematou as
conclusões, aludindo a 2036 e finalmente espalmando as
mãos, dando a entender que havia terminado, o pai ponderou:
— Acho que vocês dois estão enxergando monstros em
bolhas de sabão. Aceito que seus dados são corretos, mas
apenas em princípio, como primeira formulação. Entendo que
esse programa está, até o presente, na classificação de
hipótese. Pra merecer atenção das autoridades, precisa passar
por estudo crítico a ser efetuado por renomados cientistas.
Este é um país otimista, que não vai criar interesse por teses
pessimistas.
AGORA OU NUNCA MAIS
146

— Seu Korn – interveio Candota –, sua opinião é muito


importante, mas creio que meu estudo é realista. E o pior é
que ele é ameaçador e perigoso. É verdadeiro alarme, um
aviso. Entendo que a vacilação, no caso, aumenta o risco.
— Mas você não tem uma prova conclusiva.
— Prova conclusiva mesmo, só depois de 2036.
Korn percebeu que tinha feito uma observação
inadequada e se corrigiu:
— Eu quis dizer um estudo crítico por cientistas da
confiança do governo.
— Papai, acho que a sua observação sobre estudo crítico
é correta. É justamente isso que estamos querendo. Que o
assunto seja acolhido pelo governo pra estudo e análise. Não
queremos que as autoridades engulam ele como pílula. O
problema é muito sério pra não ser considerado. Vim aqui
pedir sua ajuda pra esse estudo, justamente pra ser
examinado por alguma autoridade do país. O nosso esforço não
implica interesse pessoal.
— Ah! isso eu sei!
— Nossa ação é patriótica e humanitária. A rigor, não
estamos pedindo favor; apenas cumprindo um dever. Acho que
nesse objetivo você pode ajudar. Como podemos chegar ao
secretário da Defesa?
— Não, William. Isso não é caso pro Departamento da
Defesa; ao menos por enquanto.
— Você deve ter conhecimento com o secretário de
Estado; ele deve ser seu amigo. Você trabalha lá.
— Xi! Você nem imagina. A estrutura burocrática é muito
complexa. Não é simples, como você pode estar pensando.
AGORA OU NUNCA MAIS
147

Além disso, com a recente mudança do Presidente, os


secretários são novos. Nenhum da outra administração foi
mantido. Conheço o secretário de Estado apenas por participar
de cerimônias oficiais. Também, isso não é assunto pro
Departamento de Estado.
— Mas o caso não é só da segurança do mundo; isso tem
a ver com a segurança nacional. Com a nossa segurança!
— Eu entendo, mas esse problema primeiro tem que
passar por outras alçadas.
— Bem, qual o caminho que você aconselha, então? –
perguntou, angustiado, o filho.
Korn calou-se por uns instantes, mostrando-se pensativo.
Tocado talvez pelo amor paterno e tendo revisto suas primeiras
opiniões, um tanto duvidosas, disse:
— Considerando que o programa ainda é uma hipótese e
também o risco que carrega, vou tentar ajudar, apesar de não
comungar com as suas conclusões. Vou lavar minhas mãos.
Não quero, por omissão, contribuir pra um desastre feio como
esse. Prefiro pecar por zelo. E trabalhar pela segurança do
mundo afinal é um privilégio, não é?
Os visitantes estavam em silêncio, com olhares
interrogativos. Suas almas continham com esforço as
expectativas pelas palavras de apoio do patriarca.
— Deixa eu pensar! Isso aí equivale à subida duma
escada. Vocês vão ter que passar por vários degraus. Eh! O
primeiro degrau é conseguir ser ouvido com ajuda de uma
cunha política. Vamos ver se colocamos essa bomba na mão de
alguém.
AGORA OU NUNCA MAIS
148

— Ô pai, aquele deputado de Nova Jersey, o Harveys, não


pode ajudar? Eu tenho diálogo com ele.
— Não, William. Esse assunto pede discrição e exige
auxílio de gente graúda. Eu tinha diversos contatos
importantes na cúpula, mas, com a mudança política na última
eleição, restaram nas minhas relações apenas alguns
senadores. Um deles é meu vizinho de fundo, senador Albert
Brighton. Ele não é do partido do governo, mas é muito
respeitado em todas as rodas. Já foi conselheiro especial no
antigo governo do presidente Trasten. Vou falar com ele. Vou
ver se consigo pra vocês audiência com o administrador da
Agência de Proteção Ambiental, que é quem tem autoridade
pra tratar do assunto antes de ser encaminhado à Presidência.
Candota, deixa comigo um disco de cópia com o programa, pra
reforçar os meus argumentos.
— Está aqui. Que ele seja nosso melhor mensageiro!
— Tem que ser. Obrigado.
— Quero só lembrar que a questão é sigilosa – advertiu
Candota.
— Esse senador vai ter que ser discreto. O assunto é
explosivo – acrescentou Bento.
— Fiquem tranqüilos! Ele é homem inteligente e vai saber
a importância do segredo. E eu não vou fazer discurso pro
Brighton. Vou resumir ao máximo o assunto, ressaltando a
urgência e o caráter de risco. Se essa via não tiver sucesso,
posso tentar outros recursos. Vamos ver. Depois, William, eu
te dou notícias. Vocês vão dormir aqui hoje?
— Vamos. E já deixamos marcadas as passagens de volta
pra amanhã cedo.
AGORA OU NUNCA MAIS
149

— Tudo bem. O mordomo vai indicar os quartos em que


vocês vão ficar. William, depois você leva o Candota pra
conhecer a casa.
À noite, na sala, todos estavam assistindo ao noticiário da
televisão. Em dado momento, o apresentador informou:
“Decidindo antiga reivindicação das empresas petrolíferas, o
governo acaba de liberar, para exploração do petróleo, a região
no Alaska que estava demarcada como habitat do urso polar”.
Os participantes da recém-realizada reunião
entreolharam-se, significativamente, mas permaneceram
recolhidos em seus pensamentos. “Lamentável! Mais um passo
rumo ao insaciável progresso” – pensou Candota.
Já no avião, na volta, os dois amigos conversaram sobre
assuntos leves, refletindo o estado de espírito esperançoso,
adquirido com a conversa do patriarca. Esperavam que em
poucos dias avançassem nos entendimentos com as
autoridades.
Candota, calculando que o tempo programado de trinta
dias seria insuficiente para o término da empreitada, julgou
melhor insinuar ao amigo essa dúvida.
— Acho que essa nossa epopéia vai demorar um pouco.
Vou ter de voltar pra casa, deixando os encaminhamentos
intermediários pra você. Pros passos finais, eu volto.
— De jeito nenhum! Você vem aqui, me põe plantando
bananeira e vai embora? O que que é isso! Estamos
amarrados agora, e eu não vou te deixar ir enquanto a gente
não levar o assunto até o fim. Eu sei que você não tem
compromisso na sua terra; você mesmo me falou! Qual é,
bicho!
AGORA OU NUNCA MAIS
150

— Mas a Miriam pode não achar bom a minha presença


muito demorada. Sou hóspede; devo ser incômodo pra vocês.
— Deixa de bobagem! Vira essa boca pra lá! Você mesmo
me convenceu que o risco que passamos é maior do que
qualquer outra consideração. Depois de entregar o problema
na mão do governo, podemos conversar sobre sua viagem e...
— Mas, Bento!
— Nada disso! No momento, não! Agora você ficou
prisioneiro do seu programa, e eu também estou amarrado.
Não percebe a situação?
— Sei! Acho até que você tem razão, mas precisa
conversar com a sua mulher.
— Conversar o quê? Não tem nada que conversar. Miriam
é muito sensata e compreensível. Ela é amiga dos meus
amigos. Além disso, você está esquecendo que agora ela
participa da nossa conjuração?
— Está bem, mas não fica chateado comigo, porque não é
caso pra isso. Eu só queria reforçar a sua liberdade e abrir
condições pra um entendimento mais franco. E confesso que
fiquei mais tranqüilo depois da sua reação.
— Ora essa!
Bem entendidos, voltaram a outros assuntos mais
amenos, ficando em suas almas a certeza de consolidação
daquela amizade e o esforço comum no encaminhamento do
problema.
Quatro dias se passaram sem notícias de Korn. Na casa
de Bento, ninguém falava no assunto do programa, a não ser
de passagem, a fim de poupar desgastes e tensões, porque
afinal era um quesito que mexia muito com o cérebro e as
AGORA OU NUNCA MAIS
151

emoções. Mas, no íntimo, estavam todos ansiosos à espera de


telefonema da capital.
Bento tinha retornado às aulas na Universidade, mas o
entusiasmo com elas diminuiu perceptivelmente. Miriam
também já tinha reassumido suas funções na biblioteca
municipal, e a rotina da casa havia sido alterada. Até a Beth
entrou na mudança. Agora ficava parte do tempo na creche.
Candota passava os dias num estado de indiferença com a
vida, sentindo um vazio no tempo pela espera, apesar de
procurar distrair-se com exercícios matinais, andanças pelo
condomínio, observações dos jardins, programas de televisão e
leituras de livros garimpados na biblioteca da casa.
Num fim de semana, Miriam sugeriu ao marido que
fossem a Annapolis no domingo para visitar os pais. Candota
foi convidado.
Os amigos, sem notícias de uma definição de seus
problemas, sentiram que seria conveniente se distraírem com a
viagem. Seria uma boa e oportuna fuga da rotina modorrenta
da semana.
Depois de tudo arrumado, puseram-se na estrada. Em
menos de duas horas, já estavam entrando na pequena cidade.
Contornando trecho de uma graciosa baía, o carro parou
defronte de sólida portada que guarnecia imponente conjunto
arquitetônico. Anunciando-se pelo interfone, o portão foi
aberto, e Bento dirigiu o carro pelo pátio ajardinado até a
entrada principal da residência.
Era um prédio grande, construção antiga em estilo
colonial, linhas sóbrias, pintado com cores tristes. Parecia,
como homenagem aos antepassados, ter passado por diversas
AGORA OU NUNCA MAIS
152

ações de manutenção, preservando os talhes e cores de


outrora. Localizava-se no centro de uma quadra inteira. Muito
arvoredo nas laterais e no fundo do terreno.
Ao chegarem, já estavam à porta os pais de Miriam.
Abraçaram-se com alegria e entusiasmo, como não se vissem
havia muito tempo. Costume familiar. Candota foi recebido com
atenção e sorrisos pelos anfitriões. Como sempre, nesses
encontros, a Elizabeth foi a rainha da festa. Dona Helen não
disfarçava o deleite de acarinhar a menina.
As mulheres se entretinham no interior da casa e os
homens foram se acomodar nas poltronas da sala, numa
conversa bem animada. Klintok fornecia o combustível dos
assuntos com sua verbosidade. Mantinha com o genro longos
diálogos sobre a política nacional, e Candota notou que
diversas vezes ele concordava com as posições do sogro,
porque devia saber que não valia a pena contestá-lo, tão
convicto e inarredável mostrava-se ele de suas idéias.
Num momento de pausa, parecendo que Klintok tomava
fôlego para perorar algum novo tema, Bento se levantou, pediu
licença e se internou na casa, talvez procurando livrar-se
daquela conversa maçante.
Klintok, após consultar o relógio demoradamente, olhou
bem para Candota e, sem mudar o tom de voz, disse:
— Então você está querendo destruir o mundo?
“Pronto! Começou a encrenca” – pensou Candota.
O coração disparou, e Candota se sentiu acuado. Parecia
que tinha cometido um crime e estava sendo acusado. Tudo
indicava que coçou a língua da Miriam, e teria contado tudo
aos pais. É provável que não tenha descrito o assunto com a
AGORA OU NUNCA MAIS
153

devida fundamentação, e a impressão do pai só podia ser


negativa. Tudo o que não queria, aconteceu. E Dona Helen
também deve estar participando da embrulhada.
— Não estou entendendo bem o que você quer dizer –
retornou Candota, ainda sem graça, voz desafinada, tentando
recompor o raciocínio após o choque da surpresa.
— Minha filha me telefonou outro dia, dizendo que ela e o
marido não andam dormindo direito, que estão sobressaltados,
entristecidos, preocupados. Disse que o William anda muito
descontrolado e nervoso; até o choro da Beth anda
perturbando ele. Com a minha insistência em saber dos
motivos, disse que isso tudo começou depois que você induziu
o William a acreditar numa teoria subversiva, retrógrada e
caótica.
— Ela disse isso? Fez classificação negativa do assunto?
— Não. Ela explicou a sua teoria e tentou uma
justificativa; quis até me convencer! Mas, pelo que falou, vi
logo que isso é uma aberração. Eu é que acho essa sua história
absurda, verdadeiro contra-senso. Fora da realidade até!
— Seu Klintok, peço por favor que não faça juízo
apressado sobre um simples estudo analítico, gerado com
dados de pesquisa científica. É normal que a ciência tenha a
ânsia da curiosidade. Ela busca conhecer o porquê das coisas.
— Bem, se é ciência eu não tenho alcance pra formar um
juízo. Mas não posso aprovar é o estrago que essa sua ciência
pretende causar. A ciência que eu conheço e admiro sempre
construiu. Não vê que maravilha a nossa modernidade? A
ciência só destrói na guerra, mas a guerra é uma aberração
AGORA OU NUNCA MAIS
154

que até hoje ninguém conseguiu explicar. E essa sua teoria


está me parecendo uma pregação de guerra subversiva.
Candota percebeu que tentar esclarecer seus estudos
para Klintok seria perder tempo, complicando a situação. De
momento, julgou melhor minimizar a importância do problema,
jogando-o ao depósito de coisas inservíveis. Pelo menos para
aquele contestante. Se não desse certo, tentaria outro
caminho. Mas, de qualquer forma, não podia cultivar
adversidade naquele espírito tão conservador. Achou melhor
contemporizar o assunto e encontrar uma saída diplomática.
Manteve a calma e retornou:
— Meu estudo não ficou bem compreendido. Na verdade,
minha teoria não tem tanta importância assim. É apenas uma
teoria científica, como tantas outras que existem por aí. Foi
exposta pro Bento em caráter de conversa, sem intenção de
magoar ninguém. Parece que há um mal-entendido nessa
história.
— Se tem desencontro de informações, é preciso que o
assunto fique bem esclarecido. E, nesse caso, é você quem
tem de aclarar a idéia deles.
— Com todo o respeito, Seu Klintok, vou tentar esclarecer
o assunto de forma que...
— Um momento. O que eu tinha de dizer, já disse. As
suas teorias a mim não afetam. Eu sou um homem
amadurecido e já curtido pelas lutas da vida e não me deixo
influenciar por fantasias. Quem está sobressaltado são os dois,
que são verdes ainda. Espere aí um pouco, que vou chamar
eles pra ouvir suas explicações.
AGORA OU NUNCA MAIS
155

Enquanto aguardava a chegada dos amigos, Candota foi


mentalmente construindo a estratégia do seu arrazoado. Devia
ser honesto, coerente e cuidadoso para não ferir mais os brios
do patriarca. Tinha, no entanto, que se ater à realidade do
momento.
Chegam afinal à sala, inclusive Dona Helen. Candota
sentiu calafrio ao vê-la, ante a possibilidade de que lhe fizesse
alguma pergunta sem consistência ou imprevisível.
Todos olhavam para Candota, com expressões
interrogativas. Sentaram-se em silêncio. Klintok, com ares de
presidente de um tribunal, virou-se para o genro e ponderou
mansamente:
— William, eu estive conversando com o Candota a
respeito da teoria dele sobre o fim do mundo, e me explicou
que se trata apenas de simples divagação científica. Como eu
sei que vocês andam transtornados com o assunto, pedi que
esclarecesse bem a questão. Afinal, acho que não precisamos
viver hoje um mal que está previsto acontecer num futuro
incerto. E tudo não passa de hipótese científica. Não é isso,
Candota?
— Exatamente! O estudo que fiz não deixa de ser uma
hipótese. Ela só pode ser levada mais a sério quando for
examinada e criticada por uma comissão de cientistas. Quanto
a isso não há dúvida, e nós estamos de acordo. Mas, enquanto
não for devidamente analisada, ela não deixa de preocupar.
Isso é natural. Não diz o sábio ditado popular que o Seguro
morreu de velho? Quando a gente desconfia da possibilidade
de um mal, o melhor a fazer é tomar cautela. Sem se
amedrontar, é claro. Na questão da minha hipótese, não
AGORA OU NUNCA MAIS
156

precisamos alterar os ânimos. Não pode é deixar o pessimismo


tomar conta da nossa inteligência.
Ouvindo essas palavras finais, Klintok esboçou ligeiro
sorriso de aprovação e as reforçou:
— Nem às vésperas duma hecatombe podemos perder a
serenidade.
— Isso mesmo! – confirmou Candota. — Temos de manter
nosso controle emocional ante qualquer adversidade. É uma
atitude de bom senso.
Nesse momento, Dona Helen, que a tudo prestava
atenção, pigarreou e perguntou ao Candota:
— É verdade que está previsto o fim do mundo pra 2036?
Candota já esperava pergunta desse tipo. Sentiu que
tinha de ser contundente e dar uma resposta que satisfizesse,
senão desencadearia diálogo estéril por longo tempo.
— Não, Dona Helen; não é verdade. Essa data se refere
apenas a uma referência estatística. Ademais, eu não podia
fazer afirmação assim tão exata.
Dona Helen parece que se deu por satisfeita, não
exatamente com a resposta, mas pelo alívio causado pela
negativa. Candota, por sua vez, não deixou de dizer uma
verdade.
Klintok não se perturbou com a interferência da esposa.
Mas aproveitou o embalo da pergunta e, dirigindo-se ao genro
e à filha, provocou:
— Mas os nossos amigos aqui parece que ficaram
preocupados com essa hipótese. Pelo visto, então não existe
fundamento nessa atitude.
AGORA OU NUNCA MAIS
157

Miriam, que permanecia calada, como a se remir do


pecado de ter produzido todo o desconforto, fez apenas lento
gesto de cabeça, indicando negativa.
Bento, percebendo a situação incômoda do amigo,
procurou acalmar o sogro:
— Ah! essas preocupações são passageiras! Acontecem só
quando a gente toma conhecimento de alguma coisa que está
fora da nossa rotina. O Candota é que nos mostrou a pesquisa,
mas se ela tivesse sido publicada no jornal, ia causar a mesma
repercussão na nossa cabeça. Ele não pode ser acusado de
nada; ele apenas me deu informações sobre essa teoria. Faz
parte dos nossos assuntos acadêmicos. A Miriam ficou meio
apavorada quando eu contei pra ela, mas, depois que trocamos
idéias a respeito, ficamos mais sossegados. O Candota, lá no
Brasil, também passou por esse transe, mas hoje trata do
assunto com a maior tranqüilidade.
Klintok olhou para a filha, procurando sondar sua reação
àquelas palavras, remexeu-se na poltrona com desassossego e
disse ao genro:
— Eu não entendo uma coisa. Esse assunto vai ficar
estacado na cabeça de vocês ou vão tomar alguma providência
pra ficar esclarecida essa tal de hipótese?
— Justamente isso é que eu queria explicar. Nós estamos
pensando em tomar o único caminho plausível, que é entregar
o problema pra uma comissão de cientistas pra eles
confirmarem ou não a correção dos cálculos do Candota.
Afinal, não podemos adotar posição de passividade.
Klintok, mostrando-se acorde, disse:
AGORA OU NUNCA MAIS
158

— É isso que eu já tinha dito. E essa tal de comissão deve


ficar a cargo do nosso governo, que tem todas as condições de
examinar o assunto. Nós temos gente muito capacitada. E o
órgão mais adequado pra isso é o Conselho de Qualidade
Ambiental. O que eles disserem, podem confiar. Eu conheço
vários dos membros. Ali figuram diversos cientistas com
competência reconhecida no mundo todo. Eu sugiro que vocês
mandem esses estudos pra lá, e pronto. Ficam resolvidas as
dúvidas.
— Eu e o Bento, depois, vamos examinar essa opção. Mas
é boa a idéia.
— Me mandem os papéis que eu mesmo entrego eles pro
presidente daquele órgão. Somos amigos há muito tempo e
temos bom entendimento – ofereceu-se Klintok.
Admirado pela mudança repentina no senso do dono da
casa, Candota tirou a conclusão de que Klintok estava convicto
da incorreção dos dados estatísticos e muito interessado em
afastar logo as inquietudes da filha e do genro. Mas a oferta de
interferir no encaminhamento do exame, deixou-o
desorientado. Precisava de tempo para uma resposta
adequada. Pensou na ajuda de Korn, ainda sem notícias, e
enxergou que duas interferências num mesmo assunto
poderiam se cruzar e oferecer obstáculo a um exame normal.
Além disso, a indicação de órgão público diferente do
mencionado por Korn mostrava discrepância de competência.
Depois, com calma, conversaria com o parceiro a respeito. À
oferta, Candota contrapôs:
— Não, Seu Klintok, por enquanto, não. Agradeço e não
dispenso sua ajuda, mas vamos aguardar um pouco. Eu e o
AGORA OU NUNCA MAIS
159

Bento estamos refazendo alguns cálculos, e a pesquisa por ora


não está em ponto de ser avaliada. A propósito, peço que
mantenham o caso sob sigilo até que ele seja entregue ao
governo. É assunto explosivo e pode ser mal-interpretado por
alguém dos meios de comunicação.
— Somos discretos. Pode ficar tranqüilo.
Virando-se para o genro, Klintok reforçou a oferta:
— William, depois que vocês examinarem esse assunto,
me telefona. Vocês são inexperientes nessa área de governo, e
eu posso dar um auxílio. Além disso, considero que isso é
assunto que diz respeito à segurança do país. E, nesse caso,
tenho a obrigação patriótica de ajudar.
Num gesto, como destinado a aliviar a tensão do
ambiente, Klintok levantou-se, abriu a porta do armário
climatizado para vinhos e dali retirou duas garrafas. Sugeriu
que Dona Helen servisse a bebida e começou a discorrer sobre
a vinícola californiana que tinha produzido aquele vinho.
Gabou-se de que se tratava de safra especial e que o rótulo
era numerado.
Mais tarde, depois do retorno dos visitantes, Dona Helen,
estranhando a oferta do marido em ajudar naquele assunto
melindroso, perguntou:
— Esse moço está possuído de idéia fixa e esdrúxula, e
você ainda quer bancar o ridículo com seus amigos,
prometendo ajudar eles? Você não percebe que esse rapaz só
veio do Brasil pra trazer desassossego pra nossa filha?
— Calma, Helen! Eu apenas adotei uma posição
estratégica. Quando me convenci de que o moço é
desequilibrado – marcou até data pro fim do mundo –, achei
AGORA OU NUNCA MAIS
160

melhor despistar minha posição. Em vez de me defrontar com


ele, me ofereci pra ajudar. Se ele me entregar a papelada, digo
que encaminhei pro departamento competente. Quando ele
cansar de esperar uma resposta, informo que o processo foi
arquivado por inconsistência. Com isso, elimino a causa das
aflições que esse visionário veio plantar na casa da nossa filha.
— E se ele não te entregar os documentos?
— Vai entregar; tenho certeza! Vou ficar em cima do
William, cobrando a remessa dos papéis. Vou explicar que, sem
prestígios políticos como os das minhas amizades, eles não vão
conseguir que o projeto seja levado a sério, nem sequer
examinado.
— O William tem outros meios de alcançar as autoridades.
O Korn pode tentar ajudar eles.
— Nada disso! O Korn é apenas funcionário burocrático, e
o círculo dele está restrito à área diplomática. Ele não tem
penetração na faixa superior. Não se pode nem comparar com
as amizades que tenho na alta esfera. Meu poder de fogo é
muito superior ao dele. Pode ficar tranqüila.
— Você, então, não pode descuidar de trabalhar a cabeça
do William.
— Dia sim, dia não, vou telefonar pra ele.
Em Washington, Korn já tinha dado cumprimento à
promessa. Havia falado com o senador Brighton e aguardava
seu pronunciamento. Não podia insistir, sob risco de se tornar
aborrecido. Cautela, jeito, finura, argúcia, eram as qualidades
exigíveis de um ex-diplomata, e Korn sabia disso. Mesmo tendo
ressaltado a urgência do assunto, tinha que se mostrar
paciente e aguardar a oportunidade certa. Como vizinho de
AGORA OU NUNCA MAIS
161

fundo, os encontros casuais eram poucos, mas não os podia


forçar. Tinha mesmo é que esperar. Essa virtude tinha sido
exercitada por toda a carreira diplomática e não seria agora
que se deixaria dominar pelo anseio.
Nesse mesmo domingo, o senador chamou Korn ao
telefone. Depois de se identificar, disse:
— Como vai? Se você estiver disponível, dá um pulo até
minha casa. Quero conversar sobre aquele assunto.
— Vou aí agora.
— Pode entrar direto no meu escritório, que estou te
esperando.
Korn, que já conhecia bem a casa do vizinho, tantas as
vezes que ali tinha estado, percebeu que a instrução para que
entrasse diretamente no escritório indicava a reserva com que
o senador estava tratando o caso, e que pretendia manter uma
conversa protegida. Enfim, ia ter alguma notícia.
— Não repare que te receba no escritório – foi dizendo o
senador logo após os cumprimentos de praxe. — Aqui podemos
conversar mais à vontade.
— Você tem razão; fica melhor.
— Vamos sentar!
Enquanto Korn se ajeitava ante a escrivaninha, o anfitrião
pegou um bule que estava sobre uma bandeja e ofereceu uma
xícara ao amigo.
— Chá de hortelã. Aceita?
— Ótimo! Também gosto.
Depois de sorverem a infusão, calmamente e aos
bocadinhos, o senador se manifestou:
AGORA OU NUNCA MAIS
162

— Estive com o administrador da APA, Agência de


Proteção Ambiental. O nome dele é Devers, Charles Devers.
Temos relacionamento antigo. Foi Assessor para Assuntos
Ambientais por oito anos lá no Senado. Está no cargo há pouco
tempo. Foi nomeado pelo novo Presidente por méritos
próprios. Não houve nenhuma indicação política. Foi escolhido,
naturalmente, pela projeção que o nome dele alcançou na
ocasião daquele horrível acidente ecológico, ocorrido nas
praias da costa oeste. Não sei se você se lembra.
— Eu me lembro do desastre, mas não dos personagens.
— Bom, o fato é que ele é muito dedicado à defesa do
meio ambiente. Por isso, foi fácil a nossa conversa. Pena que
tenha sido curta. A agenda dele estava muito carregada. Ele
me atendeu foi mesmo por causa da atenção que me dedica.
— Afinal de contas, você é senador!
— Também por isso. Fora esses aspectos, o Devers é
muito responsável e liberal; gosto dele. Eu fiz relato sucinto do
problema, e ele me deu muita atenção. Não cheguei a entrar
nos pormenores. O principal é que deixei cravado no espírito
dele a urgência e a seriedade do assunto. Acho que isso é o
principal e que ele ficou impressionado. Os pormenores do
problema, depois os rapazes explicam.
— O administrador marcou alguma agenda?
— Não. Ele me disse que tem diversos compromissos nos
próximos dias, inclusive uma audiência com o Presidente. Não
pode atender os moços em agenda de rotina, porque quer
discutir o assunto em profundidade com os assessores. Deixou
claro que pretende marcar um horário amplo pra ouvir as
AGORA OU NUNCA MAIS
163

justificativas e fundamentos científicos da matéria. Não tem


outro jeito; temos que aguardar.
— Muito obrigado pelos seus esforços.
— Esse encontro será muito importante. Se o seu filho
não conseguir apresentar o problema com boa base de
sustentação e se não conseguir convencer o Devers a respeito
do caráter de urgência e gravidade nacional, o assunto será
considerado arquivado. Não estou exatamente por dentro da
questão, mas, se for do jeito que você expôs pra mim, o caso
será considerado de segurança nacional. Não é pra menos!
— Segurança do mundo, melhor dizendo!
— Eh! Se for considerado caso sério, até nós do
Congresso vamos ter que participar da discussão.
Korn sentiu-se satisfeito com o êxito conseguido até ali e
se apressou em dar notícias ao filho assim que chegasse em
casa. Não teve êxito, contudo, mas deixou recado na secretária
eletrônica: que lhe ligasse logo que possível.
Naquele domingo, chegados de Annapolis mais tarde na
noite, ninguém se lembrou de consultar a secretária eletrônica.
Bento, mentalmente, programou para o dia seguinte conversar
com o amigo sobre o oferecimento do sogro. Cansados,
procuraram o repouso da cama.
Candota dormiu até mais tarde e, quando se levantou, os
amigos já tinham saído para o trabalho. À tarde, no retorno a
casa, Bento recebeu pela esposa o recado do pai. Ansioso,
ligou de volta e ouviu as boas notícias. Dando ares de
otimismo e mostrando semblante alegre, comentou as boas-
novas com a esposa e chamou o amigo ao escritório.
AGORA OU NUNCA MAIS
164

— Eu tinha planejado trocar idéias com você sobre a


conversa de ontem com meu sogro, quando se ofereceu pra
ajudar na nossa...
— Também estava pensando nisso e tenho umas opiniões.
— Agora acho que não adianta nem pensar. Recebi notícia
do meu pai dando conta de êxito inicial na tal conversa com o
senador.
— Ô, boas falas! Conta!
— O administrador da Agência de Proteção Ambiental,
Devers, se dispôs a receber a gente, mas quer reservar uma
agenda aberta e com assessores. Parece que enxergou
importância na questão. Meu pai me avisou que vai ser
sabatina rigorosa e nós precisamos pôr todas as cartas na
mesa. Se perder essa guia, vamos ter que passear no deserto.
— Essa agência será o órgão adequado pra tratar de
segurança?
— Segundo meu pai, o administrador se reporta
diretamente ao Gabinete da Presidência. Não precisamos saber
exatamente os caminhos burocráticos. É aquele esquema: a
gente entrega a bomba nas mãos de quem de direito e, daí,
não vamos ter mais nada com o caso. Missão cumprida!
— Exceto oferecer assessoria, pra não deixar a coisa
desviar do caminho certo. Eu tenho interesse em acompanhar
toda a evolução do processo. Se for possível.
— É claro! Eu também! Mas aí, se a gente tiver êxito na
apresentação inicial, o resto é sopa. Já pensou?!
— Agora, acho que você pode comunicar ao seu sogro que
iniciamos um curso de pesquisa na universidade pra analisar
AGORA OU NUNCA MAIS
165

meu programa. Assim, ele vai ficar mais tranqüilo e fica na


nossa reserva pro caso da gente precisar.
— À noite eu ligo pra lá e explico.
— Pelo jeito, a entrevista com Devers vai demorar um
pouco. Temos que ter paciência e mais paciência. Enquanto
isso, vamos estudando as diversas estratégias que a gente
pode adotar. Você me ajuda no plano da abordagem.
— Vamos nos antecipar e ensaiar bem o nosso papel. Eh,
mas vai ser duro esperar! Isso é que me põe nervoso. Por mais
que eu procure me controlar, não tenho tido êxito. Ando muito
agitado, ansioso... sei lá!
— Eu tenho uns comprimidos pra ansiedade. Em casos
extremos eu tomo um e me sinto mais calmo. Você quer
experimentar?
— Não, obrigado. Não costumo tomar remédio sem
receita. É perigoso!
— De fato, mas esses que tenho foram receitados por
médico, lá no Brasil. Não têm contra-indicação, exceto com
bebida alcoólica que potencializa o efeito.
— Está certo, mas mesmo assim eu prefiro não tomar.
Deixa pra lá, não preocupa, não. Se a coisa piorar, procuro um
médico.
— Então, acho que deve ir ao médico logo. Ficar aí
sofrendo sem precisão!
— Ainda não. Deixa ver!
— Faz uma meditação e busca o autocontrole. Dizem que
dá certo!
— Vou tentar. Agora, o melhor é a gente buscar distração
e esperar pela entrevista. Além do planejamento com você,
AGORA OU NUNCA MAIS
166

vou retomar uma pesquisa atraente sobre equações


assimétricas que eu desenvolvia e que estava parada. Esse vai
ser um bom remédio pra mim.
— Boa receita essa: “pra ansiedade, matemática nela”!
Nesse caso, o melhor mesmo é a gente jogar paciência com
baralho. Sabe jogar?
— Está me ironizando, mas te garanto que não é a
matemática que cura ansiedade. A saída é a gente se distrair
com qualquer coisa que seja do agrado.
— Você está certo. É isso aí! Vou usar seu computador
pra dar notícias pro meu pessoal. Vou dizer que você está me
segurando aqui por mais uns tempos.
— Pode usar, mas vê se não mente muito, hem! Meu
computador é beato e pode reclamar.
— Eu só minto no minuto.
— Ô! Sai dessa!
Alguns dias se passaram sem novidades. Não diminuíram
os telefonemas de Klintok para o genro. Apesar da tolerância
deste, essa insistente interferência não deixava de atormentar
a todos.
O clima já começava a dar sinal dos rigores do inverno, e
Candota tinha que limitar suas atividades esportivas fora da
piscina. Ficava mais tempo absorto em leituras, pois a
biblioteca do amigo era bem sortida e interessante.
Em certa noite, Bento recebeu telefonema do pai,
informando que Devers tinha marcado a esperada entrevista
para quinze horas da próxima quarta-feira no seu gabinete em
Washington. Emocionado e todo sorridente, deu a notícia à
esposa e ao Candota, que também se tomaram de redentora
AGORA OU NUNCA MAIS
167

esperança. Estava ali a oportunidade de ser cumpridos os


ditames da consciência e vislumbradas novas perspectivas de
vida. E Miriam exclamou, entusiasmada:
— Enfim, a salvação do mundo! O destino da
humanidade, agora, está nas mãos de vocês dois. Caprichem!
— Já preparamos tudo – tranqüilizou o marido.
Tinham dois dias de prazo para os preparativos da
viagem, que devia ser realizada na véspera do encontro, a fim
de que se apresentassem descansados e bem dispostos.
Dormiriam na casa de Korn.
Na terça-feira, pegaram o avião para Washington, levando
todos os documentos comprobatórios do programa. Na casa
dos anfitriões, receberam informações adicionais sobre os
aspectos burocráticos que iriam enfrentar e conselhos
variados. Recomendações de quem é mais vivido e experiente.
Naquela noite, depois do noticiário da televisão, ainda
assistiram na sala a desenhos animados, como distração,
acompanhados por uma boa copada de cerveja. Finalmente se
recolheram aos quartos, que ficavam contíguos.
Se antes os amigos se sentiam melancolicamente
ansiosos, agora o nervosismo da expectativa tomava ares de
descontrole rítmico. Antes, a espera indeterminada era um
sofrimento sob cinzas; agora, a ânsia da espera queimava.
Miriam, lembrando-se das vésperas de seu casamento, havia
recomendado ao marido que, antes de deitar, bebesse água
com açúcar.
Candota, no quarto, depois de um bom banho de água
esperta, sentindo-se extremamente tenso e imaginando que
não conseguiria dormir, resolveu tomar o tranqüilizante de
AGORA OU NUNCA MAIS
168

costume. Abriu o vidrinho e observou aqueles comprimidinhos.


Tão pequenos! Decidiu tomar dois em vez de um só. Deitou-se
e procurou se aquietar.
Depois de quinze minutos de espera, o sono não vinha; só
a ansiedade teimava em permanecer. Levantou-se e, para
reforço, engoliu mais um comprimido. Deitou-se novamente e,
preocupado com o dia seguinte, ficou pensando nas diversas
hipóteses de comportamento do administrador. Quais as
perguntas que lhe faria? Como responderia? Os assessores
seriam impertinentes? Antevia um escritório amplo e com
muito luxo. A mesa do encontro devia ser redonda... ou seria
oval? Não; era retangular, de jacarandá preto com diversas
cadeiras brancas em volta. Do teto pendia rico lustre de cristal
azulado, mas iluminava pouco. O ambiente transmitia
agradável impressão de acolhimento e sossego. Para aquele
momento, seria imperioso que estivesse tranqüilo... calmo...
sereno...
AGORA OU NUNCA MAIS
169

Parte II

TRAGÉDIA
AGORA OU NUNCA MAIS
170

6° CAPÍTULO

Candota foi andando por longo corredor, mal iluminado,


até que se viu numa ante-sala com diversas cadeiras
estofadas, revestidas com tecido vermelho e dispostas ao
longo das divisórias. No centro, uma mesinha alta de três
pernas. Nas paredes, quadros de diversos tamanhos e
desalinhados, figurando paisagens bucólicas. Sentado perto da
porta, Bento já tinha chegado e estava esperando e fumando
um comprido cigarro. Ao lado, no chão, grande quantidade de
tocos de cigarro.
— Você já veio, Bento!?
— Há muito tempo! Fiquei com medo de chegar atrasado.
Você sabe que não podemos perder a hora, senão...
— É mesmo! É a única oportunidade que a gente vai ter!
— Cadê os discos de cópia?
— Ai, meu Deus! Esqueci! O embrulho ficou em cima da
mesa da copa, junto com o meu amuleto da sorte.
AGORA OU NUNCA MAIS
171

— Não tem importância. Usa a minha pasta. Ela tem


várias repartições e tem discos de todas as cores.
Nisso, surgiu da porta lateral um secretário que se
identificou e anunciou que o administrador os esperava.
— Façam o favor de entrar – disse.
Ingressando pela porta que o secretário indicava,
caminharam por lúgubre e estreito corredor, ladeado nas
paredes por diversos retratos de figuras ilustres. Em frente,
via-se a porta do gabinete. Estava fechada, trancada com
corrente e cadeado, e havia enorme calendário nela fixado,
que cobria toda a metade superior da porta. Tinha uma
estampa mostrando frondosa e imponente árvore sendo
derrubada a machado. Marcava o dia oito de abril e era
encimado pelo ano de 2036, grafado com enormes e grossos
algarismos.
Aberta a porta, o secretário apontou a direção a seguir,
mas Candota reagiu com rudeza:
— Desnecessário me mostrar o caminho, tantas vezes
tenho vindo aqui!
O secretário se afastou sem responder, e Candota
avançou pela enorme sala até onde se localizava grande mesa
retangular. À cabeceira achava-se o administrador. No lado
direito estavam assentados quatro assessores. Permaneciam
impassíveis em seus lugares.
Candota se aproximou do administrador. Este, sem se
levantar, disse:
— Eu sou James G. Crosh, substituto do titular que está
de férias. Estes são meus assessores.
AGORA OU NUNCA MAIS
172

— Olá! Muito prazer. E eu sou Candota, autor do


programa que se encontra em poder dessa agência. Quero
apresentar Bento, meu amigo e colaborador. E esta aqui é
minha esposa, Beatriz.
— Muito prazer também. Podem se assentar neste lado –
indicando o lado esquerdo da mesa. — É preciso que você,
Candota, dê detalhada explicação sobre seu estudo de
simulação, pra eu poder analisar com a ajuda dos meus
assistentes. Esse material chegou a esta agência, foi
examinado com atenção, mas não conseguimos entender ele
direito.
— Já cansei! Não vou explicar mais. Também, agora não
adianta. Tem anos que venho tentando alertar o governo
quanto ao suicídio da humanidade, mas vocês, que são os
responsáveis pelo governo americano, ficaram por tanto tempo
adiando esta reunião que agora é tarde. A situação ficou muito
mais difícil. Agora, não adianta mesmo!
— Como assim? Não estou te entendendo.
— Ora, ora! Porque a população mundial cresceu pra dez
bilhões, as ações danosas ao ambiente se multiplicaram, e eu
não sei mais as medidas a ser tomadas. Vocês demoraram 30
anos pra tomar conhecimento de um assunto que pedia
urgência. Está claro que vocês não sabem o que significa
urgência.
— É pra isso mesmo que estamos aqui – retorquiu Crosh.
— Se não discutirmos o assunto agora, tudo vai ficar pior.
— É tarde! Você não enxerga isso?
— Pelos documentos em meu poder, o seu trabalho aponta
pra este ano o fim do mundo.
AGORA OU NUNCA MAIS
173

Tomando ares de prazer e ironia, com leve sorriso,


acrescentou:
— E, no entanto, parece que nada vai acontecer. Está
tudo indo bem. Acho que você cometeu um ingênuo descuido.
Mas, como recebi ordens do Presidente pra examinar essa tal
de teoria e elaborar parecer fundamentado, preciso de
melhores esclarecimentos.
— Este ano é apenas uma referência estatística. Em
projeções tão complexas como as que você tem aí, a definição
de data é flutuante, com margem ou intervalo de erro, tendo
em vista as inúmeras equações que incorporaram diversas
variáveis aleatórias. A indicação deste ano é um limite de
confiança; e qualquer estatístico entende isso. Você tem aí os
informes dos 30 últimos anos?
— Sobre o quê?
— Sobre os fatores degenerativos do planeta que
entraram nos meus cálculos. Verifique aí se os índices de
poluição atmosférica continuam crescentes. Confira se
aumentou a área de desertificação das terras cultiváveis. Olhe
se o regime dos rios ainda perenes diminuiu e se foi ampliada
a quantidade de mananciais secos. Observe se a fauna
aquática continua em extinção. Examine se as misérias e
comoções sociais têm sido ampliadas. Atente se todas as
indicações negativas expandiram e se as positivas diminuíram.
Espie se as reações recentes da Natureza fornecem indicação
de serem elas cada vez mais incisivas, com vastas inundações,
secas prolongadas, ciclones imensos, desertificações contínuas
e degelos generalizados.
— Espera um pouco! Deixa eu verificar.
AGORA OU NUNCA MAIS
174

Procurou os papéis, ticou os índices indicados, conferiu e


respondeu:
— Tenho aqui todas essas indicações. A resposta é sim
pra todas as dúvidas citadas.
— Não! Não são dúvidas! São indicações reais que
confirmam as projeções feitas há trinta anos. Eu não fiz
milagre nenhum; apenas simulei no computador a realidade
atual com dados dinâmicos daquela época. Você está vendo
que meu programa apontava um resultado correto, que foi
sendo confirmado com as atualizações anuais.
O administrador, dirigindo-se aos auxiliares, indagou:
— Então? O que vamos fazer pra abortar esse processo?
Um dos adjuntos se manifestou:
— Eu estudei profundamente o trabalho do Candota. Pena
que tenha chegado às minhas mãos só há quinze dias. Isso
devia ter sido resolvido há muito tempo. Não sei o que houve.
Mas creio que, com a tecnologia altamente desenvolvida e
disponível, não precisamos de conselhos destrutivos desse
estrangeiro. Ainda temos oportunidade de abortar os efeitos
negativos apontados.
Outro assessor foi mais explícito:
— Bem, esse assunto está sendo tratado nas esferas
burocráticas há muitos anos. Presidentes anteriores não
tiveram muito interesse em discutir o problema e foram
empurrando com a barriga e prov...
— Por quê? – interrompeu Bento, curioso.
— Porque, segundo deixaram transparecer, teriam que
tomar medidas impopulares, o que ia prejudicar os objetivos
eleitorais. Além disso, não houve entendimento dos outros
AGORA OU NUNCA MAIS
175

países com os Estados Unidos, e a questão foi tratada


secretamente. Se a ONU não tivesse sido dissolvida por
inoperância, os entendimentos teriam sido mais frutíferos e
rápidos. O atual Presidente, pressionado pelo Conselho
Científico Internacional, resolveu retornar a papelada pra esta
agência. Tive recomendação especial pra acelerar parecer a
respeito. E, pelo que pude concluir, o tempo urge. Acho que
ainda existem condições pra uma solução efetiva. Você
também não acha, Candota?
— Sim, ainda há tempo, mas não pra salvar a Terra da
destruição. Ela já está condenada; é só esperar. Existe
oportunidade apenas pra prolongar, com grande sofrimento, a
nossa existência e a de nossos filhos. A dos nossos netos,
duvido. Bisnetos? Jamais!
Elevando a voz, numa demonstração de descontrole
emocional, prosseguiu:
— Eu não tenho filhos por decisão própria, estão ouvindo?
Ia me sentir um criminoso se legasse a eles esta terra maldita,
agredida e imunda! O prazo pra medidas adequadas foi
perdido. Estamos atualmente em processo degenerativo, sem
retorno.
Angustiado, olhos arregalados e feições de nojo, gritou:
— Vocês não conseguem enxergar isso? Seus criminosos!
O administrador se mostrou desagradado e ofendido com
essas palavras tão pessimistas e falou gritado:
— Olha aqui! Nós não te convocamos pra trazer
derrotismo nem ofensas. Eu e meus conselheiros precisamos é
de incentivos pra dar o desempenho que o presidente Gerfield
exigiu e espera. Se você e seus amigos se dispuserem a
AGORA OU NUNCA MAIS
176

colaborar, podemos continuar esta reunião. Caso contrário, sou


obrigado a dispensar sua presença.
Menos tenso, Candota ainda se dispôs a continuar a
argumentação e respondeu:
— Crosh, você precisa entender que meu desejo é
justamente o de ajudar o governo nessa situação. Mas o que
preciso deixar claro é que a oportunidade já passou. Agora eu
posso ajudar, mas fica entendido que estamos numa
emergência. E, assim, todas as recomendações que podemos
fazer ao Presidente vão ser de caráter excepcionalíssimo.
— O que você quer dizer com isso?
— Você viu aí que o causador de toda essa degeneração é
o homem. Logo, a primeira medida é diminuir com urgência a
quantidade de gente.
— Acho que temos de diminuir é a poluição!
Ironicamente, tornou Candota:
— Você está certíssimo! Poluição!... E você tem
capacidade pra perceber que não existe poluição neste
planeta?
— Ora, não existe! E a poluição do ar, dos rios, do mar, da
terra...
— Não existe. Só existe uma única poluição: a poluição de
gente.
— Você está falando sem coerência!
— Vê se, nessa situação, você elimina, mentalmente, a
poluição de gente que eu falei!
— E daí?
AGORA OU NUNCA MAIS
177

— Daí que, não tendo gente, não vai ter poluição de ar,
de água, de nada. Repito que não existe poluição. Existe é o
agente poluidor. Esse é que tem que ser combatido.
— Mas como?
— Não precisa extinguir a humanidade. Basta reduzir ela
a um nível compatível com as atuais condições de vivência.
— Você está falando em controle populacional? Já existem
diversos programas com essa finalidade.
— Programas! Ora, programas!
— Então, o que é?
— Controle agora é bobagem! É pano quente! Estou
falando é que devem ser eliminados com urgência 80% da
população. Urgente, está ouvindo? Se demorar um pouco, tem
que ser 90%.
— Você é louco! Isso não é solução administrativa!
— Digo 80% da população pra que os 20% possam viver
por mais algum tempo. É uma condição peremptória. E é
decisão administrativa, sim.
— Eu queria ouvir a opinião dos meus assessores sobre
isso. Fala você, primeiro – apontando para o auxiliar mais
próximo.
— Acho que estamos discutindo assunto extremamente
grave. Deve ser, portanto, compartilhado com outras
autoridades, inclusive com o Congresso e o Presidente. Se a
coisa chegou a esse ponto, eu me considero incompetente pra
tratar do assunto. Eliminar 80% da humanidade é decisão pra
quem disponha de um poder absoluto. Só mesmo um super-
homem!
— E você? – apontando para o seguinte.
AGORA OU NUNCA MAIS
178

— Penso que esse programa é sério e deve ser discutido


mesmo, mas não com o Candota, que parece estar com o juízo
prejudicado. Não podemos perder tempo com uma pessoa
temperamental e inconseqüente.
— Fala você – indicando o terceiro.
— Como matemático, examinei o programa e não achei
erros; deve estar correto. Quanto a medidas de saneamento da
situação, creio que deveriam ser convocados cientistas e os
congressistas pra participar e dar legitimidade às decisões.
Precisamos de opiniões de pessoas normais, não de
aventureiros visionários e pessimistas como o autor.
— Você é o último. Fala.
— Eu também opino que esse moço e seus amigos não
têm competência política pra tratar do assunto. Eles podem
entender de física, mas não entendem nada de política. Eles
devem ser afastados das discussões. O nosso governo tem
gente à altura que pode bem administrar a situação.
Candota se manteve calado, triste, pensando no quanto
tinha sofrido naqueles anos todos e, por fim, ser relegado à
situação de simples espectador da tragédia terrena. Sentiu-se
derrotado, impotente. Seu destino doravante seria o de um
humanista desiludido e angustiado, como tantos outros,
conhecidos pela História. Tão aturdido, mal ouviu as palavras
finais de Crosh:
— Estou de pleno acordo com as opiniões dos meus
conselheiros. Por isso, encerro esta sessão e – dirigindo-se a
Candota – não vou precisar da sua presença nem a de seus
amigos. Está encerrada a reunião.
AGORA OU NUNCA MAIS
179

Pegando Beatriz pela mão, Candota virou-se para o


parceiro e disse:
— Vamos! Vamos pra casa. É bobagem insistir e depois
ficar decepcionado com os humanos. Não adianta. A verdadeira
racionalidade está nos animais irracionais.
— Os animais, coitados! Inocentes e puros, vão perecer
com a gente, vitimados por nós, os Reis da Criação. É o
castigo de quem peca – acrescentou Bento enquanto se
levantava.
— Eh, é isso ai! Só o homem é realmente pecador e será
o único a ser julgado no Juízo Final.
Oito dias após a fracassada reunião, Candota lê no jornal
da manhã, em página interna, a notícia de que um
desconhecido Conselho para Assuntos Emergenciais, por ordem
do presidente Gerfield, realizou uma reunião secreta e decidiu
convocar os melhores cientistas do mundo para juntar-se aos
conselheiros. Tendo em vista a qualificação dos convocados e a
urgência com que foram chamados – dizia o jornal – especula-
se que o governo deva estar planejando a construção de nova
arma de guerra, mais poderosa que a bomba atômica,
concebida também com a colaboração de cientistas.
Candota, com olhos arregalados, evidentemente
transtornado e possuído de idéia fixa, ficou mastigando a
notícia: “Não se trataria de arma. A bomba atômica já tem
poder destrutivo absoluto. Hum!... a reunião foi secreta! O
Presidente deve estar apertado. É o meu relatório de simulação
que está bulindo com a máquina de governo. Agora estão
enxergando a gravidade da situação e entrando em desespero.
É isso!”.
AGORA OU NUNCA MAIS
180

Chamou Beatriz, mostrou-lhe o jornal nervosamente e


releu com eloqüência a notícia. Comentou suas suspeitas num
tom de angústia, e a esposa aconselhou:
— Pára de se preocupar com essa questão. A informação
deve ser de outro assunto. Você só fica pensando nisso. Acaba
ficando louco. Procura se distrair e mudar o pensamento pra
outras áreas. Não adianta a gente se desgastar com uma
simples cisma. Afinal, é o destino que conduz nossas vidas.
— O destino, em si, não existe. No universo, o que existe
mesmo são forças, são energias. E a vida é um tipo
aprimorado de energia. O intelecto é a manifestação mais
refinada de energia que conhecemos. O embate dessas
energias todas é que constrói o destino.
— O que tem de ser, será. Essas suas preocupações não
mudam nada. Você viu que em 30 anos não conseguiu mudar o
mundo. Agora, muito menos! Ocupa sua cabeça com as aulas
de física, meu amor. A Física é uma área de conhecimento
fascinante e tem muito campo pra pesquisas. Fica só com ela
e você vai se sentir melhor.
— É no conhecimento dela que eu me inspiro pra sentir a
Vida!
E não se deixou levar pelas razões da esposa. Não
adiantava se esforçar para aceitar os seus conselhos. O destino
do mundo era a sua vida. Telefonou para Bento, procurando
obter sua opinião e convencê-lo de suas próprias
desconfianças. Este, no entanto, que já se tinha conformado
com a situação, procurou acalmar o amigo, repetindo as
advertências de Beatriz e encaminhando a conversa para
AGORA OU NUNCA MAIS
181

assuntos acadêmicos da universidade, onde ambos


trabalhavam.
Candota estava ficando empedernido na idéia. Como bem
disse a esposa, era de toda a conveniência para a saúde
mental do marido que se procurasse distrair com outras
ocupações. Um casal sem filhos, e ainda Candota se ocupando
apenas com aulas de física, possuía ele tempo de sobra para
escarafunchar a cabeça. E isso era ruim. Tinha realmente que
impor uma vontade vigorosa nos pensamentos para aliviar a
carga emocional de tragédias.
Mas estava com idéia fixa, quase paranóico. Procurando,
por todos os modos, acompanhar os movimentos do governo
que lhe fossem suspeitos, esse sofredor e obcecado não
deixava de ler detidamente os jornais e de assistir aos
principais noticiários da televisão. A rede internacional de
informação era também objeto de suas bisbilhotices, e passava
horas ante o computador. Com isso, procurava seguir
indicações sobre o tratamento que o governo americano
estaria dando ao grande problema. Pela raridade de pistas,
concluiu que os veículos informativos estavam sendo
censurados.
Por intermédio da diretora do departamento de Física da
universidade, Candota ficara conhecendo, no ano anterior, um
repórter de importante jornal da capital. O jornalista – de
nome Arnold Spinder – freqüentou o campo universitário por
alguns dias, hospedando-se na casa de Candota, e ficou
filmando e colhendo informações para uma reportagem
encomendada pelo editor. Fizeram amizade na ocasião, e agora
AGORA OU NUNCA MAIS
182

Candota, pretendendo obter notícias de bastidores, perguntou-


lhe:
— Você viu esses dias a notícia que diversos cientistas
foram convocados pra uma reunião em Washington?
— Vi, sim. Qual a importância disso?
— É que essa reunião era secreta. Isso está me cheirando
mal. Você não tem indicação nenhuma sobre isso?
— Ações secretas, aqui nos Estados Unidos, já é coisa de
rotina. E geralmente se referem a assuntos militares. Por que
essa preocupação?
— Essa reunião secreta com cientistas mundiais não mexe
com a sua curiosidade? Você sabe onde estão e o que que
estão fazendo? A imprensa não falou mais no assunto e isso é
sintomático. Sintomático, Spinder! Você não enxerga?
— O que você acha?
— Você, que circula no ambiente das informações, bem
que podia assuntar essa guia que estou te dando. Tenho quase
certeza que ela vai te levar até um assunto explosivo. E toma
cuidado!
— Em que você se baseia pra ciscar nesse terreno vazio?
— Tenho perspicácia! E o assunto de certo modo está
ligado à minha especialidade, a Física. Vai por mim que você
acha o ninho da cobra. E depois me dá notícias.
— Vê lá se não está me jogando no brejo! Vou apalpar
algumas fontes e depois te digo.
Dias mais tarde, Spinder telefonou para Candota.
— Olha aqui. Eu consegui saber que os tais cientistas
ficaram isolados em instalações militares secretas, próximas
AGORA OU NUNCA MAIS
183

de Washington, e são visitados quase diariamente pelo


Presidente e alguns secretários de Departamento.
— Eles tratam do quê?
— Só sei isso que te informei. Parece que ali existe uma
confabulação muito importante. Se o Presidente participa das
reuniões... já viu, não é? Parece que o seu faro é bom!
— Não precisa elogiar. Continua investigando que você vai
ser recompensado pelo seu jornal. Tenho certeza que o
assunto é quente.
Candota não se conteve. Comentou a notícia com Beatriz,
que demonstrou estar começando a se preocupar.
— O que você acha que eles vão fazer? – perguntou,
ansiosa.
— Ora, meu amor! Se eles estiverem examinando o meu
programa – e eu tenho quase certeza disso –, as decisões
lógicas só podem ser as que já previ. Afinal, eles deixaram
passar o prazo. Agora, é esperar pra ver. Não podemos fazer
nada.
— O que que o Bento acha?
— Vou falar com ele também. Não sei como esse
problema até agora não caiu no conhecimento público. Mas no
momento que o povo souber, não vai adiantar muito.
— Por quê?
— Porque o povo vai ser o primeiro alvo. Você vai ver!
— Como as suspeitas ainda não se confirmaram, acho
que, por questão de estratégia de vida, é melhor a gente
esquecer o assunto, senão a gente vai ficar sofrendo antes da
hora. Vamos esquecer esse assunto. Pra nosso próprio bem.
Não adianta você se amargar.
AGORA OU NUNCA MAIS
184

— Amargurado eu já estou há muito tempo! Trinta anos!


Até já acostumei.
Candota não precisou esperar por novas notícias de
Spinder. O apresentador do noticiário noturno da televisão já
abriu o programa, com postura circunspecta, informando:
“O presidente Gerfield acaba de fazer um pronunciamento
na Casa Branca, dirigido aos governos de todos os países,
dizendo que os Estados Unidos, cônscios de suas
responsabilidades, declara a soberania do governo americano
sobre todos os territórios e mares do mundo e se proclama
titular de poderes e mandatos para se legitimar como Governo
Mundial. Adiantou que, de imediato, vai constituir grupos
administrativos e militares com atuação em todas os países.
Caso algum governo nacional se oponha a essas ações, o
Presidente promete reagir com o maior rigor, inclusive com o
emprego de meios militares.”
— Está aí – comentou Candota para a esposa, que
também assistia ao noticiário – o primeiro sinal concreto! O
caos vai ser instalado mesmo, e não demora! Isso é apenas o
preparativo pra ações mais fortes. Você vai ver daqui pra
frente.
Beatriz, assustada e trêmula, chegou-se ao marido,
abraçando-o e falou, com pessimismo:
— Estou achando que este nosso amor é fim de linha. A
missão da vida vai ficar interrompida em nós. Não vai ter
prosseguimento pelos filhos, aqueles que não teremos. Agora
reconheço que você tinha razão em não querer filhos.
AGORA OU NUNCA MAIS
185

Candota, achando-se confortado pelo apoio e


compreensão da esposa deu-lhe um beijo e a estreitou nos
braços, sem fazer comentários.
Tocou o telefone. Era Bento, que foi logo dizendo:
— Você viu o noticiário?
— Vi, sim. A situação começou a se complicar. Depois
você e a Miriam vêm pra cá pra gente trocar idéias sobre a
melhor estratégia pra enfrentar essa rebordosa.
— Está bem. Pode nos esperar amanhã à noite, que hoje
vou ter visita. Estou conversando com um colega e vizinho
sobre o assunto.
Naquela noite, Candota passou o tempo procurando
notícias complementares ou ouvir os comentaristas habituais.
Ninguém falava sobre o anúncio oficial. Estranhou esse
comportamento. Só podia ser por censura do governo.
No dia seguinte, na universidade, alunos e professores só
falavam sobre o pronunciamento do Presidente. Aludiam a
todos os tipos de objetivos e conjecturavam sobre os motivos,
menos o verdadeiro. Candota julgou necessário mostrar-se
indiferente à novidade. Não podia se manifestar, a não ser com
enigmáticas interjeições.
Os jornais da manhã davam destaque ao anúncio oficial,
mas não ofereciam qualquer comentário. Estava confirmada a
censura. Candota estranhou não receber telefonema do amigo
repórter. Teria ele sido preso por bisbilhotar nessa área? E se o
seu telefone estivesse grampeado?
À noite, Bento e a mulher já tinham chegado. Havia meia
hora que conversavam os dois casais, expondo hipóteses e
AGORA OU NUNCA MAIS
186

suposições sobre o andamento da situação, quando a


campainha soou. Era Spinder, que chegava da capital.
— Fica à vontade. Estes aqui são meus amigos. Você pode
falar sem receio. E este é o meu amigo Spinder – fazendo
Candota as apresentações.
— Resolvi te visitar porque a situação está tão trancada
que não estou podendo usar o telefone.
— Eu já desconfiava!
— Além disso, todos na redação estão avisados, por
ordens superiores, que só vai ser publicado o que vier das
autoridades do governo. É como você me alertou. Parece que
está se aproximando um furacão político. Mas alguma coisa já
transpareceu. Graças a antigas amizades que tenho no meio
político, consegui alguns informes sigilosos. Boato é o que não
falta. Você sabe, quanto mais segredo a gente pede, mais
escorregadio ele fica.
— Essa medida autoritária do presidente Gerfield encobre
algum objetivo sombrio e traiçoeiro. Senão não ia ter tanto
segredo – disse Candota. — Mas o que que você conseguiu
saber?
— Foi criado um Comitê Executivo Especial, com a
participação de todos os secretários, presidido pelo secretário
da Defesa, instalado na própria Casa Branca. E os
representantes de todas as religiões foram chamados a esse
Comitê, mas não dizem nada do que trataram.
— Por quê? – perguntou Beatriz.
— Estão amedrontados. Tentei entrevistar vários deles,
mas não disseram nada. Um deles, um bispo, se esforçava pra
AGORA OU NUNCA MAIS
187

mostrar tranqüilidade, mas estava é com os olhos arregalados


e feições angustiadas. Fiquei com dó dele, coitado!
— O que mais você soube? – indagou Candota com
ansiedade
— O secretário do Tesouro se suicidou. A informação
oficial é que morreu de ataque cardíaco.
— Isso pode ser coincidência.
— Acho que não! O Congresso fez duas reuniões secretas,
com a participação do Representante de Comércio dos Estados
Unidos. Toda a cúpula do governo está envolvida nesse
mistério. Mas de concreto mesmo, até agora, nada.
Bento, oprimido, que até o momento se mantinha só
escutando dirigiu-se a Beatriz e sugeriu:
— Você tem alguma bebida na sua casa? Estamos
precisando desarmar essas tensões. Por mim, esses assuntos
de tragédia estão me esgotando. Não agüento mais.
Chamando a atenção de todos, Bento se manifestou com
ousadia:
— Acho que precisamos de férias psicológicas. Eu convido
todos pra mergulhar de cabeça na sombra da
irresponsabilidade por algum tempo. É bom pra saúde e
aumenta a nossa resistência. Precisamos enxergar, também,
que lutar contra os fatos é asneira. Vamos deixar a coisa rolar.
Todos se sentiram relaxar só de ouvir essas judiciosas
palavras, enquanto Beatriz, fazendo ares de festa, servia a
bebida. Trouxe mais garrafas. Todos beberam. Bebeu-se mais.
Depois, mais e mais.
Que bela noite aquela! Os cinco, bastante alegres e
fazendo pândegas, num ambiente leve e risonho, conseguiram
AGORA OU NUNCA MAIS
188

esconder as realidades da vida atrás do espelho da


irresponsabilidade. Pena que não se possa ficar olhando
sempre para as imagens da alegria.
Dois dias depois, os jornais trouxeram, na primeira
página, a seguinte declaração oficial:

“O Governo Mundial, tendo em vista os fatos emergenciais


surgidos em estudos científicos, e consciente de suas
responsabilidades para a preservação da vida terrestre, vem
fazer ao mundo as seguintes considerações:
a – todas as ações do estágio atual da civilização vêm
dilapidando os recursos naturais em um grau que não sustenta
a sua capacidade de regeneração;
b – essas ações são produzidas por pessoas como atos
naturais de vivência, o que as tornam agentes de fatores
danosos;
c – a carga demográfica de dez bilhões de seres humanos
é excessiva, e essa circunstância prejudica o direito à vida de
quem a merece;
d – os estudos científicos feitos estão indicando
necessidade de medidas gerais imediatas e contundentes;
e – é fato irrefutável que, sendo eliminadas as causas,
eliminam-se os efeitos.”
“Em decorrência, ficam estabelecidas as seguintes
resoluções a ser implementadas de imediato por todos os
países e sob a orientação e supervisão dos Grupos
Administrativo-Militares (GAM), já instalados em todas as
capitais nacionais:
AGORA OU NUNCA MAIS
189

1 – serão eliminadas todas as pessoas que se


enquadrarem em qualquer das seguintes condições:
I – que tenham mais de cinqüenta anos de idade,
exceto cientistas de nomeada e militares até oitenta anos;
II – que sejam portadoras, em qualquer idade, de
alguma deformidade física ou deficiência mental, a critério das
autoridades militares locais, que as impossibilite de exercer
atividades normais;
III – que estejam apenadas ou em processo criminal
em qualquer forma ou condição.
2 – serão fechados os hospitais, farmácias, laboratórios,
escolas de medicina e enfermagem, exceto os
estabelecimentos de interesse do Exército;
3 – cada mulher somente poderá gerar um filho, desde
que esteja entre dezoito e vinte e cinco anos;
4 – serão fechadas todas as indústrias de transformação
que impliquem processamentos químicos em qualquer fase,
inclusive as usinas termonucleares;
5 – serão plantadas árvores, nativas ou não, em
quantidade correspondente a mil vezes o número de habitantes
remanescentes de cada país;
6 – outras medidas complementares serão anunciadas
posteriormente, em razão do acompanhamento que o Comitê
Executivo estará fazendo de forma permanente;
7 – estas determinações se aplicam a todos os povos e
nações.”
“Contando com a compreensão e apoio da sociedade em
geral e das autoridades de todos os países, o Governo Mundial
esclarece que as decisões ora adotadas se impõem como
AGORA OU NUNCA MAIS
190

necessidade para a salvação da espécie humana. Bem


compreendidas e assimiladas, essas razões hão de servir de
orientação nas ações dos governos nacionais.”
“É oportuno alertar que, caso algum país fuja ao
cumprimento dessas diretrizes, nossos recursos militares estão
aptos a fazê-las cumprir, inclusive com o uso de armas
nucleares. Não será pelo desvio de um país que os esforços
administrativos deste governo ficarão fracassados.”

No jornal que lhe foi entregue de manhã, Candota leu o


comunicado diversas vezes, tanto para absorver o exato
sentido daquelas palavras como para se convencer de situação
tão trágica, já prevista havia trinta anos. Finalmente, chegou o
dia de enfrentá-la.
Pesquisou todo o jornal em busca de outras notícias
alusivas, comentários ou entrevistas, mas, sobre isso, o jornal
se calou. A censura era rígida. O governo, naturalmente, já
teria dado instruções precisas aos outros países e presumia
que, com o comando de informações, conseguiria abortar
situações de pânico e o caos.
Estava absorto em seus árduos pensamentos, sentado na
poltrona da sala, quando Beatriz, que tinha dormido até mais
tarde, veio por trás e o abraçou ternamente, causando-lhe
sobressalto.
— O que foi, amor! Levou susto comigo?
— É que eu estava muito distraído. Você precisa ler esta
notícia. Depois nós vamos conversar.
Entregou o jornal à esposa e se retirou para o interior da
casa. Quando voltou, encontrou Beatriz chorando, quase em
AGORA OU NUNCA MAIS
191

desespero. Ao ver o marido, abraçando-o apertado, verteu


ondas sucessivas de pranto.
— Meu amor, o momento é de autocontrole. A gente tem
que ser forte. Você viu pela notícia que os fracos são
eliminados.
— Estou pensando é nos meus pais. E a minha avó,
coitadinha, tão boa! Você acha que os governos vão ter
coragem de cometer esses assassinatos todos? E você acha
que os padres vão deixar?
— Meus pais também estão condenados. A situação é de
calamidade pra todos. Temos que tomar alguma providência.
Vamos até à casa do Bento. Quero ouvir as idéias dele. Antes,
vou ligar a televisão pra ver se tem algum comentário.
Mudando de canal, Candota ouvia em todos a mesma e
enervante leitura do comunicado oficial. Nenhuma reportagem.
Desligou o aparelho e, com a esposa, foram à casa do amigo.
As residências ficavam no mesmo bairro, mas deu para
perceber grande movimento de veículos e gente nas ruas. A
notícia já estava provocando as primeiras reações.
— O que que a gente pode fazer agora? – foi logo
perguntando Candota ao entrar na casa.
— Nada! Fugir? Pra onde? O esquema de execução é
mundial. Esse roteiro é o que nós já conhecemos. É aceitar... e
pronto! Miriam está lá no quarto com a Beth, chorando que dá
dó!
Beatriz, já refeita do estrago, disse para os dois:
— Acho que nós devíamos ir ao supermercado e comprar
o máximo possível de gêneros de primeira necessidade, que
vão faltar.
AGORA OU NUNCA MAIS
192

— É mesmo! Vamos – chamou Candota.


Olhando pela janela, viram nas ruas intensa agitação de
gente e veículos atravancando os caminhos. Não dava mais
para passar. Se entrassem no trânsito, ficariam parados e não
iriam a lugar algum. Além disso, tudo levava a crer que os
supermercados, nessas alturas, já deviam ter sido saqueados.
A turba continuava a aumentar. Candota ponderou:
— É tarde demais pra isso. Vamos ficar quietos, que é
melhor. É deixar as coisas como estão. Quem dirige agora a
vida de todos é o caos. É o que é chamado cientificamente de
ordem caótica.
— Bela extravagância! – comentou Beatriz.
Estavam ainda conversando quando ouviram intenso
barulho vindo da rua. Chegaram à janela e viram diversos
tanques de guerra passando por cima de carros, atropelando
gente e disparando tiros em todas as direções. Um espetáculo
sangrento e infernal.
Tal ação era compatível com as diretrizes de governo.
Quanto mais mortes, melhor. Se elas não podiam ser seletivas,
que fossem indiscriminadas, pois os efeitos eram os mesmos. E
a milícia, por aquela demonstração, devia ter recebido
instruções para matar com eficiência e sem compaixão.
Atiravam, parece que com prazer, em adultos e crianças; uma
orgia de sangue e tragédias. Se algum infeliz ficasse apenas
ferido, recebia um segundo tiro, dessa vez direto na cabeça.
Era uma visão de extenso matadouro humano. Agiam com o
mesmo ânimo com que se costuma combater pragas de
insetos.
AGORA OU NUNCA MAIS
193

Os furtivos expectadores deixaram a janela em repulsa


àquelas cenas nojentas de sofrimento e morte.
— De que adiantou os governos incentivarem o
crescimento populacional? – ironizou Candota.
— Gastaram rios de dinheiro pra aumentar e agora
gastam pra diminuir. Isso se chama irracionalidade – concluiu
Bento.
Dentro de casa, no quarto de casal, as mulheres,
desesperadas com aquela estrondosa sinfonia macabra no
compasso de sons bélicos e de gritos, choravam com
desespero. Miriam se agarrava à filhinha e secava as lágrimas
com uma toalha. Os maridos, sob tensão de pavor, conseguiam
com grande esforço manter o comando da mente e do corpo.
Assim era necessário, naquela emergência, para que pudessem
exercitar o raciocínio, tão útil naquele momento.
Bento ligou a televisão para se inteirar de acontecimentos
em outros lugares. Nenhuma notícia; a censura continuava.
Tentou telefonar para a casa dos pais. O serviço não
funcionava. Por sugestão de Beatriz, resolveram os dois casais
tomar um aperitivo na cozinha, buscando uma fuga passageira.
O fragor da violência, com tiros e gritarias continuava lá fora,
agora menos intenso. Enquanto se confortavam na bebida,
Beth acordou assustada com o barulho. Ouvindo a filha chorar,
Miriam correu para acalentá-la, seguida de Beatriz.
— Bento, vamos deixar a televisão ligada. Precisamos
ficar de olho. Talvez o governo vá se comunicar com a
população. A situação está seguindo curso indefinido e não
podemos ficar na ignorância.
AGORA OU NUNCA MAIS
194

— Boa idéia! Enquanto você fica vigiando, vou até o


quarto consolar minha mulher.
Quando Bento chegou ao quarto, Miriam tinha acabado de
fazer a Beth retornar ao sono e a tinha colocado no berço. Não
precisando mais da companhia, Beatriz retirou-se para a sala
onde seu marido, olhos fixos na televisão, estava que nem
piscava. O tiroteio tinha diminuído, e eram ouvidos poucos
gritos.
Estavam ambos na expectativa de notícias quando
bateram à porta. Súbito medo tomou conta deles.
Entreolharam-se, indagativamente, e não encontraram clareza
para uma decisão. Só observavam a porta. Bateram outra vez
e com mais força.
— Chama o Bento, que pode ser alguém conhecido dele,
mas estranho pra nós – disse Candota à esposa. — Corre!
Anda depressa!
Novas batidas insistentes. Correndo, vieram os três.
Bento se pôs perto da porta e, com ares de destemor,
perguntou:
— Quem é?
— Abre, que eu preciso te falar.
— Quem é? – repetiu.
— Eu preciso de socorro! Abre logo!
Candota, que ouviu tudo, num lampejo de iniciativa
arrastou uma poltrona até a porta, dando a entender que
concordava em que não fosse aberta. Bento tratava de
procurar outro móvel para reforçar a entrada quando foi ouvida
uma rajada de metralhadora, perfurando o umbral da porta, ao
AGORA OU NUNCA MAIS
195

tempo em que desesperado grito de dor partiu do


desconhecido que tentava entrar.
— Estou percebendo que na rua os soldados não estão
poupando ninguém – comentou Bento. Não podemos acolher
gente estranha, sob pena dos milicos nos acusarem de
qualquer coisa. Afinal, não sabemos em que situação estamos.
— Bento, convém reforçar também a porta dos fundos.
— Bem lembrado! Temos que ficar alertas o tempo todo.
Qualquer descuido é perigoso.
Candota tornou à televisão e ficaram todos atentos e em
silêncio. Era enervante a postura de regularidade com que os
canais se apresentavam. Reprisavam espetáculos de toda
ordem e os intercalavam com os costumeiros anúncios
comerciais, já sem serventia, só para preencher o tempo.
Notava-se que os tiros agora eram esporádicos. Aos poucos,
retornava a calmaria.
Bento chamou Candota e foram ambos para o sótão, de
onde, por uma fresta na janela, fizeram observações da
situação nas ruas. Viram que o povaréu vivo tinha sumido.
Ficaram só os mortos e destroços, que coalhavam as vias
públicas.
Máquinas enormes se ocupavam em retirar das ruas os
restos de automóveis, e caminhões basculantes estavam
recolhendo os cadáveres. Após duas horas de serviço,
caminhões-pipa começaram os trabalhos de lavação e limpeza.
As autoridades estavam mostrando que trabalham com
competência e em sintonia com as determinações do governo.
Estavam nessa observação quando ouviram Beatriz
gritando que viessem. Assustados, correram para a sala e
AGORA OU NUNCA MAIS
196

viram que a televisão estava dando informes oficiais sobre a


situação. Compenetrados, ficaram ouvindo com muita atenção.

“O Comitê Executivo Especial, órgão encarregado de


implementar as medidas emergenciais do Governo Mundial, ora
em pleno exercício de suas prerrogativas, vem comunicar ao
público que está executando com eficiência, em todo o planeta,
as diretrizes traçadas. Observa que, em algumas cidades,
houve inaceitável e injustificada reação às normas oficiais, mas
que medidas efetivas já foram tomadas, normalizando a
situação.”
“Este governo aproveita a ocasião para realçar ao povo
que as medidas excepcionais foram absolutamente necessárias
conforme justificativas anteriormente feitas. Mas julga de seu
dever instar pela compreensão e colaboração de todos. Apela,
ainda, para que cada um se ajuste ao programa, concordando
passivamente com a perda de parentes ou doando sua vida
para o êxito da empreitada, que é feita no benefício dos que
irão sobreviver.”
“Àqueles que estão enquadrados para o sacrifício
supremo, fazemos especial pedido para se conscientizarem e
assumirem a heróica postura de desprendimento em favor de
continuidade da espécie humana. Lembramos a esses que o
sacrifício voluntário redundará em oportunidade de vida para
seus filhos e netos. O amor que devotam a seus descendentes
somente refulgirá em sua grandeza se for efetivamente
convertido em holocausto.”
“Reiteramos, finalmente, que nossa determinação é rígida
e que não pouparemos esforços para alcançar os resultados
AGORA OU NUNCA MAIS
197

estabelecidos, inclusive com a tomada de duros procedimentos


militares.”

Todos ouviram e sentiram que a situação era terminante,


definitiva.
Depois de certo tempo de completa mudez na sala,
Candota arriscou um comentário:
— É isso aí, gente! Não tem como fugir. É aceitar ou
morrer. Estamos vendo que a morte é o objetivo. E o pior é
que eles estão certos. Estamos vendo que é...
— Candota! – exclamou Beatriz, horrorizada.
Sem tê-la ouvido, continuou:
— ...incrível, mas real: morrer pra poder viver! A que
ponto chegamos! E isso, na circunstância atual, fica
perfeitamente lógico. Tudo porque deixaram o tempo passar,
sem medidas adequadas na hora certa. E eu já tinha previsto e
alertado o mundo sobre esses riscos, mas de nada adiantou.
Essas mesmas conseqüências foram claramente expostas no
livro que escrevi faz trinta anos.
— O que foi feito do seu livro? – perguntou Bento. — Na
época as autoridades não leram ele?
— Perdeu-se no meio desse turbilhão de livros editados
sob a ótica de ficção. Alguns leram, mas o mundo não se
tocou; permaneceu o mesmo. Não adiantou nada. Serviu
apenas como mais um objeto de distração ou calço de algum
móvel.
— Eh! Faltou visão lógica e espírito arguto das
autoridades.
AGORA OU NUNCA MAIS
198

— Bem que despendi esforços. Mostrei, expliquei, gritei,


clamei, agitei, alertei. De nada valeu! Ah! deixa isso pra lá!
Meu único consolo é que cumpri o meu dever. Deixei um
documento pra História.
— Console-se, Candota. Você não está sozinho. Os
cemitérios guardam não só os corpos, mas também os sonhos
e idéias de muitos heróis.
— Por falar em livro, está na hora de dar o meu plantão lá
na caverna. Você não quer ir? Estamos precisando de mais
gente pra trabalhar. O Guilherme já se apresentou como
voluntário. Está lá. Você também podia ajudar.
— Ajudar o quê?
— Tem uma turma de intelectuais trabalhando em surdina
pra construir um conjunto subterrâneo de salas enormes, em
concreto, com passagem secreta. A polícia não pode saber,
senão...
— Essa bobagem é pra quê? Isso não vai salvar ninguém!
— É pra salvar os livros da nossa biblioteca. Em todas as
grandes cidades estão fazendo a mesma coisa. Aqui o serviço
já está quase terminado. Você bem que podia ajudar; também
é intelectual! Pega esta picareta, que eu levo a pá. Anima, que
o serviço é nobre. Será recompensado pela sua consciência.
— Deixa disso sô! Não vê que está perdendo tempo? Nós
precisamos é achar um jeito pra salvar a nossa pele.
— Pensei que você podia cooperar. Afinal, precisamos
salvar pelo menos a memória da humanidade.
— Francamente! Salvar livros!...
AGORA OU NUNCA MAIS
199

— Bento, nós duramos no máximo cem anos. Os livros


das bibliotecas duram uma eternidade. São o único tesouro
tangível de nossa humanidade.
— Bobagem! Não são mais que objetos!
— Engano, meu chapa! Ainda não percebeu que o livro
tem alma?
— Alma!... Ora, ora! Com efeito!...
— Até parece que você nunca leu um livro! Ele é um
objeto enquanto está fechado e na prateleira, mas volta à vida
quando está sendo lido. A alma de um livro é imortal. Só
depende da gente preservar a integridade do seu corpo. Nunca
percebeu esse milagre maravilhoso?
— Você pretende mesmo perder o seu tempo com isso?
— Não vê que esta civilização está condenada? A única
coisa sábia que podemos fazer é salvar os livros.
— E eles vão ficar escondidos, lacrados em subterrâneos?
— Isso mesmo.
— Então, pra quê?
— Pra quê!?
— Ora! Se não vai ter gente pra ler, por causa da extinção
da humanidade, esses livros vão ficar sem vida – mortos – pra
toda a eternidade! Ora, ora! Então, pra quê?
— Eu te explico.
— Não percebe que...
— Calma, aí! Deixa eu explicar.
— Então explica, vá!
— Pois é... Pra quê? Pra que os futuros arqueólogos de
uma futura nova humanidade...
— Hum!
AGORA OU NUNCA MAIS
200

— ...possam, nas suas escavações, descobrir o acervo de


riquezas intelectuais de todo um período, o Período Intelectual,
e não caiam no mesmo equívoco nosso. Precisamos defender
esse patrimônio riquíssimo, o cabedal da mente humana, a
verdadeira riqueza da criatividade.
No dia seguinte, domingo, todos foram à missa na igreja
católica. O templo estava completamente tomado pela
multidão de crédulos. O vigário nunca havia visto a casa de
Deus tão procurada. Candota e Beatriz chegaram cedo e se
postaram no banco da frente. Nas imediações estavam, além
de Bento e Miriam, também todos os seus familiares. Lá
estavam ainda Alfredo, Dona Rosa e Terezinha num banco
recuado quatro fileiras à direita. Ninguém se abraçou, mas
todos se olhavam. Parece que os parentes estavam cônscios da
situação e de seus destinos. Mostravam-se tranqüilos e
aguardavam o início da cerimônia religiosa. Guilherme
encontrava-se separado do grupo familiar, sentado dois bancos
atrás, também sereno, imperturbável. Ao vê-lo, Candota
chegou perto e exclamou, com sentimento de alívio:
— Ô Guilherme! Que bom que você está vivo. Eu pensava
que você tinha morrido...
O irmão continuou impassível, olhando em frente; nem
desviou o olhar para Candota.
Os sinos no campanário tocavam languidamente, parece
que dobrando de antemão pelas almas programadas para
migrar. A imensa e imponente nave da igreja infundia ambiente
majestático e de conforto espiritual. E os diversos círios
ardentes nas laterais emitiam, com seu odor característico,
mensagens de serenidade e paz nas almas daquela multidão.
AGORA OU NUNCA MAIS
201

Nas laterais do altar, os coroinhas começaram a vibrar suas


sinetas, anunciando o início da liturgia.
Postados perto da escada do púlpito, trocando os últimos
ajustes de procedimento, viam-se o padre, ricamente
paramentado, e um presbítero protestante sobriamente vestido
de preto. Estava preparado um solene e inusitado culto
ecumênico. Depois dos ritos iniciais, valorizados pelos incensos
espargidos e pelo murmúrio das preces, subiu ao púlpito o
distinto padre. Ante o silêncio absoluto daquele imenso
público, o sacerdote estendeu as mãos, como que abençoando
seu rebanho, e pronunciou sua prédica:
“Meus caros irmãos. Que todos sejam abençoados. Hoje,
ante a situação única e excepcional que surgiu pelas medidas
políticas e administrativas do recém-criado Governo Mundial,
não podemos deixar de lhes trazer a palavra de Deus. Ela é
necessária neste momento em que as almas estão agitadas e
sem rumo. A palavra divina do Pai Eterno não poderia faltar
aos seus filhos bem-amados, que passam por tão grande
provação.”
“Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer a
legitimidade e justeza das medidas governamentais. Elas se
fazem necessárias ante uma situação em que os inconscientes
descontroles dos homens tornaram perigosa a continuidade
desta destrutiva civilização.”
“Perante uma realidade que, numa visão serena, advém
da vontade divina e da qual não temos como fugir, resta-nos
aceitar com coragem, resignação, humildade e fé cristã o
destino que nos foi traçado. Os caríssimos e abnegados fiéis
aqui presentes deverão lembrar- se, como exemplo de uma
AGORA OU NUNCA MAIS
202

época, dos nossos estóicos irmãos de fé que, nas arenas


romanas, entregaram suas vidas nas mãos do Senhor.”
“As trombetas celestes tocam neste momento os hosanas
e divinos hinos de louvor aos que vão chegando à morada
eterna e se sacrificando nesta epopéia de renúncia em
benefício da própria espécie humana, legítima representante
de Deus na terra. O sacrifício de muitos não será em vão.
Terão a certeza da redenção de seus filhos e netos em nossa
comunidade terrena.”
“Dessa forma e em nome de Deus, fazemos apelo
veemente a todos os que crêem na justiça divina para que não
ofereçam resistência às normas corretas do governo. Que se
entreguem de corpo e alma ao amor humanitário que se há de
concretizar na segurança de seus descendentes.”
“Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.”
O povo, que a tudo ouviu em respeitoso silêncio, calado
permaneceu. Parece que a prédica do padre se infiltrou nos
espíritos dos ouvintes como eficiente lenitivo.
Mal o padre desceu do púlpito, o presbítero ali assomou.
Usando palavras inflamadas e com gestos largos, teceu
loas às virtudes da humanidade e pôs em destaque a caridade
e o espírito de renúncia do verdadeiro cristão. Também
justificou os atos das autoridades e terminou fazendo
eloqüente apelo para que os fiéis se submetessem àquela que
era a vontade de Deus.
Depois de terminada a cerimônia religiosa, as pessoas
foram se retirando da igreja em passos muito lentos,
guardando silêncio absoluto e com inteira tranqüilidade. No
AGORA OU NUNCA MAIS
203

recinto ainda, Candota procurou pelos parentes, mas não os


viu.
Do lado de fora, no largo da igreja, existia imensa fila de
pessoas idosas que desembocava num portão de quartel. À
entrada, um soldado anotava os dados do apresentante e o
mandava seguir adentro. Alguns transeuntes informavam que
os voluntários eram executados com injeção letal de poder
instantâneo. De outro portão, saíam caminhões carregados de
cadáveres que os levavam para longe, onde grandes covas
coletivas os aguardavam.
Candota notou que os voluntários se mostravam serenos,
resignados, com postura altiva e honrada. Não conversavam
entre si, mas irradiavam uma mensagem de conformismo
vitorioso e contagiante que atingia os passantes próximos.
Afoito, procurou os pais em toda a extensão da fila, não os
encontrando.
Restava razoável multidão aglomerada defronte da igreja
e talvez eles estivessem lá. Candota se embrenhou por entre
as pessoas, mas elas eram tantas que a busca foi infrutífera.
Beatriz, que permaneceu em observação perto da fila,
correu para o marido e lhe disse:
— Achei! Venha que eles estão na fila. Não demoram a
entrar no quartel. É o meu pai e a mamãe.
— Mas o que é isso? Eu já tinha percorrido a fila e não vi
ninguém!
Ali estavam Juarez e a esposa. Candota olhou mais à
frente e atrás procurando achar os pais. Beatriz se mostrou
feliz pelo encontro, mas não foi correspondida. Seus pais não
lhe dirigiram a palavra. Estavam impassíveis. Parece que havia
AGORA OU NUNCA MAIS
204

ordem dos militares para que se mantivessem insensíveis.


Beatriz, surpresa e chorosa, ainda ficou observando os pais por
algum tempo até que entrassem pelo portão.
Candota e a esposa foram para casa. A contar da igreja,
ela ficava no final de oito quarteirões. Nas ruas, só
transeuntes. Veículos, apenas os militares. No meio do
caminho, ao cruzarem uma praça, notaram outra longa fila de
voluntários ao sacrifício heróico. Também caminhava para o
interior de outro quartel. Tentando cruzá-la para alcançar o
outro lado do caminho de casa, viram-se, com surpresa, diante
de Alfredo, Dona Rosa e Guilherme.
Olharam à frente e atrás e identificaram os parentes
próximos do Bento. Havia, também, diversos amigos e
conhecidos idosos. Era uma grande família, a das suas
amizades. Todos, imperturbáveis em seus lugares, caminhando
a passos lentos. Olhavam para Candota, mas não
demonstravam qualquer emoção nem falavam. Mostravam-se
entorpecidos ou sob rígida hipnose.
Candota percebeu que também já estava ficando
insensível, apático, só de olhar aqueles inexpressivos rostos.
Estaria sendo atingido pela aragem funesta propagada pelas
novas situações de normalidade? Parecia que a morte já não
tinha qualquer ligação com sentimentos e afetos. Até o amor
parecia ser apenas uma palavra assassinada. O que seria
mesmo o amor?
Beatriz, notando que o marido estava tomando ares de
ausente, tomou-o pelos braços e o sacudiu com violência, ao
mesmo tempo em que gritava desesperada:
AGORA OU NUNCA MAIS
205

— Candota! Candota! Reaja! Você é jovem e eu te amo.


Meu amor, veja e sinta a vida. Reaja, que você tem que ser
forte!
Valeu o ímpeto da dedicada esposa. Candota, retornando
do torpor, se recompôs e ficou amedrontado ante aquele
ambiente macabro, afastando-se rapidamente rumo a casa.
Mais tarde, já refeitos daqueles estranhos acontecimentos
e estando Candota na sala bisbilhotando os canais de
televisão, Beatriz trouxe um prato coberto com guardanapo.
Após colocá-lo sobre a mesinha, perto da poltrona em que
estava o marido, chegou-se a ele, abraçando-o com ternura.
— Lembra?
— Hã-hã! – fez Candota afirmativamente, enquanto
mantinha os olhos fixos na televisão.
— São os biscoitinhos de coco com feitiço que eu te servia
antigamente. Você ainda gosta deles?
Surpreso com a lembrança, mirou a esposa nos olhos e,
com amor e admiração, respondeu:
— Então era esse o seu segredo? E eu, hem! Sempre
pensei que os seus olhos é que me prendiam. Que feitiço
sedutor e sublime! Que venha mais feitiço desse tipo!
— Sabe que meu amor por você é imortal? Mesmo que eu
não chegue à velhice, ele não morrerá nunca. Serei sempre
sua, e o meu desejo é que essa tortura termine logo.
— Vai terminar! – consolou Candota enquanto, carinhoso,
enlaçava com os braços a amada. — Você é um anjo! Tem
suportado comigo todas as minhas angústias. Eu não podia ter
casado com outra. Pra mim, você é a única mulher que
preenche meu coração. Você se lembra daquela vez quando...
AGORA OU NUNCA MAIS
206

Interrompeu-se, súbito, pela notícia aparecida na


televisão, dizendo que transmitiriam um comunicado oficial.
Efetivamente, logo informaram:

“O Governo Mundial, por seu Comitê Executivo Especial e


no uso de suas atribuições, comunica ao povo que estão em
pleno andamento as normativas do controle ambiental, já
tendo alcançado trinta por cento dos objetivos iniciais. Para
tanto, vem o Governo Mundial obtendo em todos os países a
devida compreensão e colaboração das autoridades locais e do
povo em geral. Algumas poucas resistências vêm sendo
energicamente combatidas e não chegam a comprometer o
esquema traçado.”
“Informa ainda que, no intuito de assegurar a correta
aplicação das medidas saneadoras, as pessoas componentes
dos governos nacionais estão, sob qualquer condição, isentas
de sofrer as ações restritivas capituladas anteriormente.”

Mais tarde, o telefone tocou. Era Miriam, chorando e


desesperada, perguntando se Bento estava ali.
— Não. E não esteve aqui.
— Candota, me ajuda! Eu... – e não conteve o choro.
— Calma, Miriam! Pára de chorar e fala direito. O que que
foi? Fala, Miriam! Miriam! Ô Miriam, você está me escutando?
Vê se fala alguma coisa!
— O William...
— Fala! Pára de chorar!
— O William... até agora...
— O que foi?
AGORA OU NUNCA MAIS
207

— ...ele não voltou.


— Não disse aonde ia?
— Ele... estava muito abatido com essa situação e...
— Sim! E daí?
— ...saiu de casa sem me dizer nada.
— Estou te escutando.
— Eu estava ocupada com a Beth...
— Fala direito!
Conseguindo dominar o choro, explicou:
— Como demorava a chegar, fui até o jardim, e meu
vizinho disse que ouviu o William resmungar que ia participar
dos voluntários. Quase entrei em desespero! Já percorri
diversas filas, mas não adiantou. Ninguém dá notícias dele.
— Fica calma que eu vou dar uma solução.
— O que que eu vou fazer sem ele? E minha filhinha? Não
tenho mais meus pais. Não tenho ninguém! Me ajuda,
Candota!
— Calma, Miriam! Deve ter algum mal-entendido. Vou sair
pra tentar notícias. Procure se controlar, que é o mais
importante agora. Depois eu te ligo.
Candota virou-se para Beatriz, que tinha ouvido a
conversa, e disse que ia sair para procurar o amigo.
— Não, Candota! Não sai, que eu fico apavorada! Não sei
se você vai sumir também. Ninguém conhece o que os
militares andam fazendo de secreto. Só sabemos o que o
governo diz. Não vai, não!
— Não vai ter problema! Eu não estou enquadrado
naqueles dispositivos. Não demoro; vou só espiar algumas
filas.
AGORA OU NUNCA MAIS
208

— Então, olha de longe! Se chegar perto, você pode ficar


contaminado pela letargia. E eu não posso ficar sozinha neste
mundo. Seria o meu fim também!
Não contendo a aflição, começou a chorar e disse:
— Ai, meu Deus! Não vai não, amor! Estou prevendo o
pior! Sem você eu não existo!
— Preciso ir! O Bento está em perigo.
— Então, me leva!
— Mesmo com esse perigo?... Então vamos!
Com muito receio, foram ambos inspecionando de longe,
procurando localizar o amigo. As ruas estavam quase desertas
e a passagem eventual de algum veículo militar os assustava.
Percorreram poucos quarteirões e não viram nenhuma fila. Por
medo e precaução, suspenderam a busca.
Já em segurança dentro de casa, Candota ligou para
Miriam.
— Procurei o seu marido, mas também não encontrei.
Deixa passar mais um tempo; ele ainda pode voltar.
— Estou desesperada! Não agüento mais!
— Fica firme aí! Ele é inteligente e não vai fazer nenhuma
besteira. Você não quer vir pra cá?
— Mas...
— Espera ele aqui em casa. Você vai ficar mais confortada
e te damos proteção.
— Está bem. Vou deixar um recado escrito aqui, no caso
do William aparecer, e sigo pra sua casa agorinha mesmo.
Candota continuou de olho na televisão ligada.
Após longo tempo de espera, a campainha soou com
insistência.
AGORA OU NUNCA MAIS
209

— Beatriz, atende lá por favor que deve ser a Miriam.


Demorou muito! Dá assistência a ela, coitada, que deve estar
precisando.
Depois de abrir a porta da frente, que estava fechada à
chave e com dois ferrolhos, Beatriz se admirou; era o Bento.
Mal aberta a porta, este foi entrando e perguntando se Miriam
estava ali. Mostrava-se apavorado, desesperado, com olhos
arregalados e agitando sem controle os braços. Estava
completamente transtornado. Falou coisas que não faziam
sentido, balbuciou palavras misturadas com murmúrios e não
ouvia as perguntas que Candota lhe tentava fazer.
A situação era de pânico. Candota percebeu que o
momento exigia uma providência urgente para acalmá-lo.
Pediu que Beatriz preparasse chá calmante bem forte e
conseguiu que seu amigo o tomasse. Sentados na sala,
deixaram que ele ruminasse sozinho seus queixumes, mas
ficaram em silêncio e atentos para ver se conseguiam deduzir
alguma informação.
Bento falava desconexamente de filas, registros, crianças.
Depois de certo tempo, verificaram que o amigo estava
lentamente voltando a um estado mais calmo. Agora, já ficava
longo tempo em silêncio, sempre olhando para o chão. Em
momento algum, encarou os donos da casa. Mais um
interregno de espera silenciosa e Bento, muito sério, olhou
para Candota e fez uma saraivada de perguntas sem esperar
respostas:
— Como é que vim parar aqui? O que que houve? Onde
está a Miriam? E a Beth? Me explica tudo!
AGORA OU NUNCA MAIS
210

— Primeira coisa é você ficar calmo e controlar a sua


cabeça.
Bento se assustou com essas palavras e insistiu:
— O que que aconteceu com a Miriam? Conta logo!
— Não aconteceu nada de anormal – tentou tranqüilizá-lo.
— Então, ela está aqui? – insistiu Bento.
— Não. Não está, mas primeiro vamos tentar saber o que
aconteceu com você. Saiu de casa sem avisar, hem! E sumiu! O
que que andou fazendo durante esse tempo todo? Miriam me
telefonou mostrando preocupação.
— Na verdade, eu não sei nada disso. Alguma coisa me
perturbou. Só me lembro que estava numa fila de
apresentação. Quando cheguei na mesinha de controle, o
guarda não me deixou passar. Disse que no momento não
estou enquadrado nas normas. Nessa hora, me deu uma coisa
esquisita na cabeça. Fiquei apavorado e saí correndo pra casa,
mas lá não tinha ninguém. Li o recado da Miriam. Dizia que
tinha vindo pra cá e vim correndo. Por que ela não está aqui?
O que vocês estão me escondendo? – perguntou, desconfiado.
Percebendo a situação aflitiva, Beatriz insistiu que
tomasse mais chá, no que foi atendida, e aconselhou:
— Calma, calma! A Miriam está chegando. Enquanto
esperamos, tome um banho com água bem quente, que é bom.
Vá, enquanto ficamos vigiando a televisão. Até agora, não
deram mais nenhuma notícia.
Momentos depois, Bento retornou com aparência mais
tranqüila, parece que meio envergonhado do descontrole
demonstrado. Chegou de mansinho à sala, sentou-se em
silêncio e assim permaneceu, atento também à tela da
AGORA OU NUNCA MAIS
211

televisão. Vários minutos de expectativa se esgotaram, sem


ninguém conversar.
Soando a campainha, Bento deu um pulo ágil em direção
à porta e, com avidez, a destrancou. Não era Miriam. Era o
repórter Spinder, que foi logo entrando e indo ao encontro de
Candota. Todo trêmulo e com expressão amarga, implorou:
— Candota, quero te pedir um grande favor. Deixa eu
ficar morando na sua casa por uns tempos. Estou sendo
perseguido de todo jeito e foi só por milagre que ainda estou
vivo. Você não imagina o que essa gente anda arrumando.
— Hoje eu tenho que pedir calma a todo mundo. Só eu é
que não tenho o direito de desesperar. Confio na minha força
de vontade. Só espero que essa minha resistência dure.
— Coisa horrorosa, Candota! Os postes... as bonecas...
— Meu amigo Spinder, calma! Que diabo! Não consegue...
— Você é porque...
— Assim não dá!
— Candota!...
Frisando palavra por palavra e fazendo esforço para não
perder a paciência, Candota franziu a testa e falou com
energia:
— Tenta ficar calmo, pelo amor de Deus! Sem
autocontrole, você não consegue nem pensar. E ainda vai me
desmontar.
— Mas, Candota...
— Spinder! Você não ouviu? Agora, você não tem que
falar nada! Nada, nada!
Virando-se para a esposa:
AGORA OU NUNCA MAIS
212

— Beatriz, prepara pro Spinder um pouco daquele santo


chá. Pode fazer mais quantidade, que eu também vou querer.
Ainda bem que temos um bom estoque na despensa.
Bento voltou para a poltrona e ali ficou curtindo sua
decepção com a angustiosa demora da esposa. Não prestava
atenção ao recém-chegado nem ao que se passava em volta. O
ambiente estava carregado de medos e desesperanças.
Beatriz preparou a bebida com abundância, de forma que
bastasse a todos. Estimou que necessitavam de calmante,
inclusive a Miriam que não demoraria a chegar.
Servido o chá, com certa cerimônia e sorvido em
bocadinhos, por efeito dele ou da sugestão do nome, as
tensões foram cedendo aos poucos. Sentiam-se como
recebendo do além um sopro de alívio mental. Ninguém falava.
Parece que se concentravam no esforço de consolidar suas
vontades. Até a vigília na tela da televisão ficou relaxada.
Candota, percebendo a calmaria do ambiente, disse ao
repórter:
— Você pode ficar aqui em casa. É um prazer acudir um
amigo e também poder contar com a sua companhia. Desculpe
a minha rudeza, mas eu estava quase perdendo as estribeiras.
— Eu é que tenho que pedir desculpas. Me desculpa, vai!
Muito obrigado pela acolhida e espero não te pesar muito.
— Deixa de bobagem! Tudo bem! Agora conta o que
aconteceu com você. Eu te dou uns quarenta anos de idade;
você não está incluído nas restrições à vida. Por que as
perseguições?
— A vida de repórter já é muito dura em tempos normais.
Imagina agora, nessa situação excepcional.
AGORA OU NUNCA MAIS
213

— Está dura pra todo mundo!


— Você deve saber que nós repórteres não inventamos
nada. Nossa ambição é a notícia. É quase uma doença. Mas
quem não consegue informações não tem notícias. Por isso,
temos que tecer uma estrutura de comunicação confidencial
com o máximo de pessoas que são autores ou testemunhas
dos fatos. E não podemos revelar as fontes. De jeito nenhum.
— Vocês são mesmo que padres no confessionário.
Morrem com os segredos – reforçou Beatriz.
— Isso mesmo! Se não fosse assim, repórter nenhum ia
receber informações. Essa regra é como juramento; tem de ser
mantida a qualquer preço.
— Você fugiu do seu jornal? – indagou Candota.
— Fugi, mas não do jornal. Depois eu te conto. Agora,
vou te dar umas informações que consegui das minhas fontes.
Está havendo desentendimentos entre os membros do Comitê
Executivo Especial. Alguns querem medidas mais drásticas e
outros querem segurar um pouco. O que está pesando muito
nas decisões do comitê são os relatórios do Conselho para
Assuntos Emergenciais.
— Deve ser tudo baseado em suposições. Esse conselho é
formado com maioria de militares – opinou Candota.
— Não é assim, exatamente! Os cientistas que vêm
monitorando o processo insistem que são fracos os resultados
observados até o momento. A prevalecer essas opiniões,
podemos esperar mais aperto.
— Acho que vem chumbo grosso por aí! – concluiu
Candota.
AGORA OU NUNCA MAIS
214

— Não é só isso, não! Vou te contar mais! Tive informação


que o Governo Mundial incentivou e conseguiu que vários
países da Ásia entrassem em guerra. Estimulando o ódio, os
governos nacionais conseguem que o povo participe dessa
insanidade patriótica.
— E eles vão só matando e morrendo!
— Do jeito que o governo quer. Não bastasse a desgraça
da situação, eles arrumaram mais essas tragédias.
— Já pensou!? Será pouco matar oitocentos milhões de
idosos? – lastimou Bento, amargurado, entrando na conversa.
E continuou, já mostrando certa recuperação do estado
depressivo:
— Candota, se você estivesse no comando desse comitê,
ia tomar essas mesmas medidas?
— Eu? É pra pensar mesmo! Deixa eu ver... Tendo em
vista que a primeira oportunidade já foi perdida, só ficaram
mesmo essas providências extremas. Faz parte do processo a
gente ter que lamentar, chorar e padecer as dores dessas
desgraças. Como sofredor dessas ações administrativas tão
cruentas, só posso ficar é perturbado.
— Mas se fosse você? – insistiu Bento.
— Se fosse eu que decidisse no governo... pensando
bem... Olha, só posso achar que eu ia ficar insensível, sereno e
irracional. Tinha que me tornar um robô. Tomava providências
muito mais radicais. Afinal, estamos numa emergência! Acho
que o governo está sendo até bonzinho!
— Não acredito! – exclamou Beatriz, apavorada. — Você é
capaz de pensar assim?
AGORA OU NUNCA MAIS
215

— Vamos reconhecer que, pra governar numa situação


dessa, esse povo do governo teve que sufocar a alma e se
transformar em autômato. Ali não existe emoção nenhuma
nem podia existir. Ponha-se no lugar deles e vê se você não
faria a mesma coisa! Pelo que eu percebo, a realidade mundial
é quase de salve-se-quem-puder.
— Então, estamos perdidos mesmo! E o pior é que meu
marido está de acordo com essa barbaridade toda! Incrível!
— Procure enxergar as coisas como elas são – contestou
Candota.
— E eu que pensava que você tinha coração!
— Ora, Beatriz! Não leva suas idéias pra esse lado.
Enxerga que estamos no limiar duma mudança histórica e
somos personagens e testemunhas dela.
— Eu sou é vítima!
— Consola com isso que vou te falar: nos últimos milhões
de anos, a Terra já passou por diversos cataclismos que
destruíram os principais seres viventes, mas preservou a fonte
da vida. Este é apenas o início de mais um cataclismo, um
período cíclico, sistema universal que o cosmo usa pra se
renovar. Nós vamos perecer, mas a Vida vai ser conservada nas
bactérias.
— Belo consolo! Então, vamos festejar! – ironizou Beatriz.
— Eh! A Vida teima em viver – resmungou Bento.
— E você, Spinder, soube de mais alguma coisa? –
interveio Candota, procurando mudar o assunto que já estava
começando a azedar.
AGORA OU NUNCA MAIS
216

— Ah! Depois do caso do secretário do Tesouro, teve


vários suicídios nos quadros do governo. E não é só lá, não. É
pra todo lado. Suicídio agora passou a ser moda.
— Não é pra menos! Numa situação sem qualquer
perspectiva de vivência, a não ser sofrimento e desgraça total,
até que o suicídio é uma solução sensata – observou Bento.
— Sobreviverão os que forem fortes de espírito e os que
não se deixarem abater pelo desespero – ponderou Candota,
como a pregar.
— Não tem tido revoltas populares? – perguntou Beatriz.
— Tem sim, mas só em alguns países. Nos que não estão
em guerra, as forças armadas intervêm imediatamente à base
de reações violentas e mortais. Acredito que o governo acha
até vantajosas essas irrupções. É um bom pretexto pra matar
mais gente.
— Você acha? – perguntou Beatriz.
— Claro! Porque, dessa forma, melhora o índice de
diminuição populacional, que é o principal objetivo deles. O
pior é que, nas cidades grandes, estão sendo formados grupos
de saqueadores que entram nas casas, roubam o que querem e
ainda matam os donos.
— Jesus! – espantou-se Beatriz.
— Essa baderna não está sendo combatida pelas
autoridades, e os grupos de assalto estão aumentando. É isso
aí. Quanto mais morte, melhor pro governo. Não pude
confirmar, mas circula à boca pequena que vários empresários
e políticos conseguiram apoio de alguns generais e
conspiraram pra derrubar o governo.
— Isso faz a situação piorar mais! – calculou Candota.
AGORA OU NUNCA MAIS
217

— Se faz! Mas não vai piorar, não! Foram descobertos e


todos executados. O Governo Mundial está senhor da
conjuntura e se mostra decidido nas ações de radicalização
total.
— De quem você está fugindo? – perguntou Candota, com
curiosidade.
— Deixa eu explicar. Na intenção de obter informações,
consegui fazer contato com diversos elementos bem colocados
nos órgãos do governo. Um deles, com cargo elevado no
comitê, foi flagrado quando me passava informes confidenciais
das últimas reuniões. Ele foi preso e executado, mas eu
consegui me esconder. Mudava de pouso a cada dia pra
despistar a polícia. Nem compareci mais ao jornal. Soube que
vários jornalistas foram presos e interrogados sob tortura. Saí
de Washington escondido num caminhão e vim parar aqui.
E, embargado pela emoção, mal conseguiu acrescentar:
— Nem notícias da minha família eu tenho! Meus filhos...
Tentando reprimir as lágrimas, não agüentou o aperto no
coração e se entregou ao choro, virando o rosto para o lado.
À medida que ouviam o relato de Spinder, culminado pela
triste cena, os três companheiros mostravam expressões de
desalento, alternado com desespero. Era visível o esforço que
faziam para manter a cabeça fria. Candota, procurando
modificar aquele quadro de vexame, disse:
— Spinder, uma coisa eu não entendi. Se o jornal não
pode publicar nada sobre esses problemas, por que você tem
de obter informações?
— É minha função e eu sou pago pra isso. É norma da
empresa ela se abastecer com todas as notícias diárias,
AGORA OU NUNCA MAIS
218

mesmo que só pra figurar nos arquivos do jornal. Podem servir


oportunamente quando a situação se normalizar. Ficam como
registros históricos. Você sabe que, pra melhor ou pra pior,
isso não vai continuar pra sempre. Algum dia a humanidade vai
voltar a ter existência normal. Aí os arquivos vão falar.
— Sei lá! Acho que esses arquivos vão ser lidos é pelas
traças e baratas – resmungou Candota.
Toca a campainha seguidamente. Bento, que tinha o
pensamento ligado à esposa, adiantou-se esperançoso para
abrir a porta. Só podia ser a Miriam, chegando finalmente a
seu destino. E era. Foi reconhecida porque, no momento em
que a porta foi aberta, exclamou, como se confortada pela
visão do marido:
— William! – jogando-se nos seus braços.
— Miriam! – admirou-se Bento, enquanto a apertava com
calor.
A figura de Miriam, quando surgiu à porta, quase não foi
reconhecida, tal sua aparência. Cabelos desgrenhados e
cobrindo os olhos, roupas sujas e rasgadas, sem sapatos, rosto
inchado e arranhado, além de marcas roxas e vermelhas. Não
chorava; já não tinha lágrimas para verter. A expressão era
como a de uma moribunda, a custo mantendo-se de pé.
O marido a carregou para um quarto, deitando-a na
cama. Beatriz a acompanhou e se dispôs a cuidar dos
ferimentos. Trocou suas roupas, fez compressas de gelo e lhe
deu alimentos e palavras de conforto. Manteve-se em guarda
no quarto para acudir no que fosse preciso.
Miriam finalmente tinha chegado, mas deixara no
percurso parte de sua vida. Algo de muito grave teria
AGORA OU NUNCA MAIS
219

acontecido. Bento não teve paciência para esperar melhora nas


condições da esposa e lhe perguntou, quase em desespero:
— Onde está nossa filha?
Com dificuldade, por causa dos ferimentos internos na
boca que lhe afetavam a clareza das palavras, Miriam foi
desfilando as cenas do seu calvário.
— Quando eu estava no meio do caminho pra cá,
apareceu um grupo de soldados enfurecidos que tentaram
tomar a Beth. Lutei, recebi muitas pancadas, mas levaram ela
assim mesmo. Foi jogada de qualquer jeito na caçamba dum
caminhão que já tinha outras crianças, todas chorando e
chamando mamãe; uma tristeza!
— Coitadinha! Ela é inocente! Bandidos! – bradou Bento.
— Depois que me tiraram a Beth, ainda me bateram muito
e me levaram pra um quartel. Diziam que era por causa da
minha resistência. Me entregaram este papel, onde está escrito
que a Beth pode depois ser retirada do Hospital Militar, um
centro de triagem. Ali os médicos examinam as crianças pra
verificar se possuem alguma deficiência física de nascença. Ela
é sadia, mas se eles acharem que tem qualquer coisa, mesmo
que de caráter subjetivo, nunca mais vamos ver nossa filhinha.
— Mas por que você está tão machucada assim?
— Lá no quartel, fui submetida a tortura por castigo e pra
indicar onde parentes meus acima de cinqüenta anos estão
escondidos. Não adiantava informar que eles já se
apresentaram como voluntários pra morte. Demorou muito até
que eles consultassem os registros. Pensei não sair viva de lá!
— Agora procura se tranqüilizar e aceitar essa realidade,
que não tem como a gente alterar. Vê se consegue dormir. Vou
AGORA OU NUNCA MAIS
220

ficar aqui perto de você, naquela cama ali. Se precisar, é só


me chamar.
No dia seguinte, Miriam já se apresentava melhor,
fisicamente, e se dispôs a levantar e andar um pouco, para
domar as dores que ainda sentia nos ossos. Beatriz lhe
apajeava com dedicação.
Spinder, que estava de plantão ante a televisão, gritou
para os amigos, dizendo que fossem à sala urgente, que
estava sendo anunciado para breve um comunicado do
governo. Mantendo-se em silêncio, na expectativa, ficaram os
homens de olhos e ouvidos atentos às notícias. Efetivamente,
com uma introdução musicada, o locutor começou a ler
pausadamente o documento oficial que aparecia na tela:

“O Comitê Executivo Especial, órgão do Governo Mundial,


em aditamento às resoluções anteriores, vem comunicar ao
povo as seguintes considerações e disposições:
a – considerando as razões apresentadas pelo Conselho
para Assuntos Emergenciais, composta de insignes cientistas,
especialistas e sábios, de que as medidas adotadas até o
momento são insuficientes para atingir o objetivo
anteriormente divulgado;
b – considerando que, apesar de nossos apelos, pessoas
egoístas e oportunistas têm procurado dificultar as ações
saneadoras;
c – considerando a urgência de medidas efetivas que o
problema ecológico exige;
este órgão executivo dispõe que:
AGORA OU NUNCA MAIS
221

1 – passam a ser alvo de eliminação todas as pessoas


que tiverem mais de quarenta anos, mantendo-se as exceções
anteriores;
2 – a geração de único filho fica restrita para
mulheres entre dezoito e vinte anos;
3 – crianças que nasçam com qualquer deficiência, a
critério das autoridades policiais, serão sacrificadas;
4 –as pessoas acima de dezoito anos deverão usar,
permanentemente e bem à vista, um adesivo grande, na altura
do peito e das costas, contendo os algarismos da idade sob
pena de serem imediatamente executadas;
5 – não obstante estas resoluções, a quantidade de
árvores a ser plantadas continua a mesma anteriormente
definida;
6 – ficam proibidas viagens para fora do domicílio.”
“Este comitê informa, finalmente, que está atento para
que todas as suas decisões sejam cumpridas com disciplina e
aceitação passiva pelo povo. Apela ainda para que, a exemplo
dos idosos, os novos limites de idade sejam aceitos
voluntariamente pelos que estejam neles enquadrados, o que
será considerado ato de heroísmo que redundará em benefício
da humanidade sobrevivente.”

— Pronto! Mais matança! – lamentou Bento.


— Eu já estava prevendo isso! – sentenciou Candota
enquanto passava as mãos na cabeça, tentando reanimar seus
neurônios.
E continuou:
AGORA OU NUNCA MAIS
222

— Agora, apesar de que estamos fora desses limites,


temos de tomar muito cuidado com esses saqueadores que
vagueiam por aí e os desmandos que esses militares cometem.
Não viram o que fizeram com a Miriam? Vocês têm armas?
— Tenho duas pistolas e uma carabina, mas contra o
exército isso não vale nada. É temeridade usar armas nessas
circunstâncias. Você está pensando nalguma bobagem?
— Eu tenho uma pistola – disse Spinder. — Mas o que
você está planejando?
— Eu também tenho duas armas. Estou vendo que já
formamos um exército. Eu não estou planejando nada, só
pensando alto.
— Então, pra que esse tal de exército particular? –
insistiu Spinder.
— Só quero frisar que não podemos ficar à mercê desses
bandidos, que aproveitam o estado de exceção pra saquear e
matar gratuitamente. O caso da Miriam tem que servir de
exemplo. O nosso lema deve ser este: manter o autocontrole e
não confiar em ninguém. Bento, onde estão as suas armas?
— Tenho que buscar elas em casa. Vou de madrugada, por
ser mais seguro.
Beatriz, muito abatida à vista do que ocorrera com
Miriam, chegou à sala e informou ao Bento que a mulher
estava dormindo. Candota chegou-se perto da esposa e lhe
contou as últimas decisões do governo. Já debilitada e muito
tensa, a notícia foi como espoleta em seu sistema nervoso,
provocando uma explosão de emoções contidas. Após um
sumiço de expressão no olhar, pôs-se a chorar aos gritos,
jogou-se no chão e ficou esperneando com desespero. Puxava
AGORA OU NUNCA MAIS
223

os cabelos, arranhava-se e agredia o tapete do piso, ao tempo


em que se lamentava:
— Por que eu fui nascer? Meu Deus! Me acode! Bandidos e
assassinos! Eu quero morrer! Não agüento mais!
Com aquela visão de histerismo, Candota correu para a
cozinha, dali trazendo uma vasilha grande com água fria.
Despejou toda a água, de uma só vez, no rosto de Beatriz.
Com aquele choque e ainda estendida no chão, a mulher
parece que retomou o fôlego e se deixou ficar ali, imóvel,
entorpecida. O marido só observava, sem dizer palavra.
Passaram-se alguns minutos de expectativa.
Abaixando-se, Candota cingiu a mulher por baixo dos
braços e a ergueu diretamente para uma poltrona.
Pacientemente, com palavras doces e esperançosas, conseguiu
que ela sustentasse o frágil equilíbrio emocional. Durante certo
tempo, enquanto lhe dava chá, prosseguiu numa preleção
recheada de alvíssaras, de modo que mais tarde Beatriz já se
tinha recomposto e chegou mesmo a trocar algumas palavras
com o marido.
— Amor, você está precisando de repouso prolongado. Faz
um favor e vamos até o quarto que vou te acomodar na cama.
Todos nós temos um limite de resistência e você precisa
recuperar as energias.
Beatriz, calada, balançou a cabeça concordando, e foram
os dois para o aposento. Após alguns minutos, retornou
Candota dizendo aos presentes que a esposa estava calma e
conseguiu dormir.
AGORA OU NUNCA MAIS
224

— Eh, coitadas! – resmungou Bento. — As mulheres,


parece que sofrem mais e têm de despender mais esforços pra
suportar os embates.
— E os homens costumam ficar aí cantando de galo! É
nessas horas que a gente vê que elas são as primeiras vítimas!
— Você tem idéia do que nós podemos fazer pra conseguir
alguma segurança? Porque aqui na sua casa, ou mesmo na
minha, não tem garantia de nada. Esses bandidos podem vir
de repente e não temos defesa, a não ser esses revólveres
vagabundos. Não podemos confiar neles.
— Tem razão. Eu até já estava pensando nisso desde
ontem. No meu carro, que é maior e cabe mais bagagem,
ainda tem certa reserva de combustível e dá pra ir até a
fazenda do meu pai, que deve estar abandonada. Lá vai ser
mais fácil a gente se esconder e arranjar alimentação. Quando
você for buscar as armas, aproveita e traz o que puder de
gasolina do seu carro.
— Tá, pode deixar – respondeu Bento.
Candota foi até o interior da casa, vasculhou alguns
cômodos e se instalou à mesa da copa com papelões, roupas
brancas, pincéis, linhas, agulhas, grampeador e tesoura.
Chamou os companheiros para que o ajudassem na confecção
dos indicadores de idade, exigidos pelo governo. As roupas
foram recortadas de forma que satisfizesse as exigências.
— Spinder, quantos anos você tem? – perguntou Candota.
— Fiz trinta e oito no começo do ano.
— E você, Bento, tem vinte e sete, não é?
— Não. Fiz vinte e oito no mês passado. Anota aí que a
Miriam tem vinte e quatro.
AGORA OU NUNCA MAIS
225

— A mesma idade da Beatriz. Vocês têm documentos pra


provar a idade? Eles vão exigir. E que ninguém se esqueça de
usar esses indicadores, que são o nosso passaporte.
Estavam distraídos com a execução desse trabalho
quando a campainha deu o sinal. O visitante não teve
paciência de esperar um pouco e ficou apertando o interruptor.
Esse comportamento já era sinal de impertinência e
arrogância. O medo se apossou dos companheiros. Spinder,
num ato reflexo, puxou a pistola e se pôs em expectativa num
canto da sala. Candota, procurando interpretar a situação,
aconselhou que Spinder saísse dali e se escondesse em algum
lugar nos fundos da casa.
Na indecisão, Candota falou firme para o jornalista:
— Corre! Se esconde! Eu mesmo vou enfrentar a porta.
— Não! Deixa, que eu abro! Tenho que enxergar o meu
destino é de frente! Esses bandidos!
A campainha não parava. O repórter chegou perto da
porta e perguntou, gritando:
— Quem é?
— Não interessa. Abre!
— Quem é? – repetiu.
— É a lei! Somos a patrulha da lei e temos que entrar de
qualquer jeito. Por isso, é melhor abrir logo esta porta, senão
ela será arrombada. Quem estiver aí dentro é considerado
nosso prisioneiro até que seja liberado. Abre, senão eu
arrebento.
Spinder, ante o sinal de concordância do Candota,
guardou a arma e começou a destrancar a porta. Percebeu
pelos barulhos, que havia mais de duas pessoas. Preferia que
AGORA OU NUNCA MAIS
226

fossem soldados a saqueadores. Escancarou a porta de


repente, de modo que pudesse, num primeiro momento,
enxergar a qualificação dos intrusos.
Estacado em frente, impedindo a entrada, viu que eram
três militares empunhando submetralhadoras. Tinham
expressões rudes e, com extrema brutalidade, empurraram o
repórter para dentro, apontando-lhe as armas. A essa altura,
Candota e Bento se achavam em pé na sala, aguardando os
acontecimentos.
— Eu quero que todos os moradores se reúnam aqui –
disse, apontando para a sala, aquele que parecia ser o
comandante da patrulha. — Que não falte ninguém!
Candota e Bento foram imediatamente aos quartos onde
as esposas descansavam, e dois milicos ficaram bisbilhotando
as áreas próximas da sala. Vendo que os moradores
trabalhavam com suas identificações, o comandante comentou
com ironia:
— Estou vendo que eles são cumpridores das leis. São
bons meninos!
As mulheres, muito assustadas e desarranjadas, surgiram
na sala, acompanhadas dos maridos.
— Estão todos aqui? – perguntou o chefe.
— Sim, somos cinco – respondeu Candota.
— Pois bem. Agora quero ver os documentos de
identidade de todos. Não tentem me enganar, hem!
Depois de verificar a exatidão dos documentos, tirou do
bolso um pequeno computador e o consultou demoradamente.
Depois, chegou-se perto dos outros dois milicos, chamou-os
AGORA OU NUNCA MAIS
227

para um lado e cochichou algo. Voltou para o centro da sala e,


com arrogância, disse:
— Tudo bem.
Olhou para os dois auxiliares, como sinal para que se
acercassem do jornalista, e arrematou:
— Estão liberados. Menos este aqui! – apontando Spinder.
Parece que o repórter já esperava essa possibilidade. Mal
viu o dedo acusador, num movimento instantâneo jogou-se
para um lado, ao mesmo tempo em que sacou a arma e
disparou contra um dos policiais. Não houve tempo para
segundo tiro. A submetralhadora do outro bordou no seu peito
uma rede de furos vermelhos.
Os dois casais, apavorados, permaneceram estáticos
nessa seqüência toda, tanto pelo terror como pelo receio de
que qualquer movimento se transformasse em pretexto para
alguma ação irracional daqueles beleguins.
Enquanto o chefe se certificava de que Spinder estava
morto, o auxiliar que atirou ajudou o companheiro ferido a se
levantar e o encaminhou para a porta de saída. Antes, o
comandante se dirigiu aos moradores:
— Esse indivíduo estava sendo procurado pelo crime de
alta traição. Ele vai ficar aqui mesmo e vocês providenciem o
enterro. E que vocês aprendam de uma vez por todas que não
brincamos em serviço. A lei é pra ser observada mesmo!
Saíram sem fechar a porta. Candota deixou passar alguns
minutos e se aproximou da entrada. Tinham partido. Voltou o
alívio geral, mas ficaram as imagens da tragédia na mente de
todos.
AGORA OU NUNCA MAIS
228

— Ainda bem que não nos implicaram no histórico de


traição – suspirou Candota.
— E agora? O que que nós vamos fazer com esse
cadáver? – perguntou Bento, ainda assustado.
— Não vamos enterrar ninguém. Não temos ferramenta
pra isso. Você me ajuda a puxar o corpo pro quintal que vamos
deixar ele num canto. Nós vamos abandonar a casa mesmo!
— Logo tenho que pegar as armas e a gasolina lá em
casa. Vou esta noite, e amanhã partimos pra fazenda. Agora,
vou até o Hospital Militar pra trazer a Beth. Ela já deve estar
liberada.
— Põe a sua tabuleta de idade e não esquece da
identidade – lembrou Candota. — E toma muito cuidado. Não
vai deixar a gente com aflição, como da outra vez!
As duas mulheres, que até este momento se conservavam
em choque, ainda sob o impacto da brutalidade, aos poucos
foram retomando o fôlego e começaram a combinar a
arrumação das bagagens. Candota, demonstrando ânimo,
também começou a organizar os petrechos essenciais para a
viagem, não esquecendo de testar o carro, tanto tempo
parado.
Mais tarde, batendo na porta com os nós da mão e em
ritmo previamente combinado, chegou Bento todo esbaforido.
— Não adiantou! A querida da Beth ficou pra outro dia.
Disseram que só podem dar solução depois de quinze dias. Não
podemos esperar. Depois do prazo, eu dou um jeito e volto ao
hospital. Onde está minha mulher?
— Com a Beatriz, providenciando coisas de viagem.
AGORA OU NUNCA MAIS
229

Dada a notícia à esposa, ela não se tocou nem chorou. O


corpo e a alma de Miriam já não expressavam sentimentos,
emoções, vida. Era um ser que agia segundo comandos
verbais; era pouco mais que um autômato.
De madrugada, Bento foi a casa e trouxe as armas e uma
bombona de plástico com gasolina. Não encontrou patrulhas
militares no caminho, mas viu de longe um grupo de
malfeitores saqueando a mansão de um ex-reitor da
universidade, de suas relações de amizade.
Pela manhã, tudo arrumado e depois de acurado exame
das redondezas, os quatro amigos se puseram a caminho para
a fazenda que Alfredo possuía, retirada uns duzentos
quilômetros da cidade.
A viagem não começou bem. Depois de duas quadras,
avistaram ao longe uma patrulha militar no caminho. Candota
virou à esquerda, percorreu ruas diferentes e encontrou mais
milicos. Desviou-se para uma via transversal e conseguiu
retomar o rumo certo numa larga avenida. Adiante, outro
grupo militar. Seguiu à direita, tentando contornar duas
quadras. Alcançou uma praça, vertente de diversas ruas, e
ficou em dúvida sobre em qual entrar. Arriscou seguir numa
delas.
Após duas horas de negaças, o veículo ainda se
encontrava no perímetro da cidade, dando voltas e retornos.
Parecia que estava dentro de um labirinto, tantos giros sem
rumo certo. O marcador do carro acusava gasto crescente de
combustível, e os fugitivos se deixavam tomar por nervosa
impaciência. Logo já estavam tomados por sufocante angústia.
AGORA OU NUNCA MAIS
230

Beatriz, percebendo a desorientação do marido, sugeriu


que seguissem o rumo de saída da cidade, mesmo arriscando o
inquisitório das patrulhas. Disse mais: que, fora dos limites da
cidade, talvez não existissem barreiras. Candota aceitou a
idéia, tendo em vista que não havia outro recurso.
Tomando o caminho certo, entraram por uma ampla e
conhecida avenida. Tinham-se adiantado bastante quando
viram à frente uma barreira guarnecida por policiais. Candota
diminuiu a marcha, parou ante o cavalete que barrava a rua e
ficou alerta. Aproximou-se um guarda, olhou displicentemente
para dentro do carro, reparou nos letreiros de idade e sacou do
embornal seu computador de bolso.
— Eu quero ver a documentação dos quatro – no que foi
prontamente atendido.
Pachorrento, ficou examinando os documentos e
consultando o computador. A cada qualificação que examinava,
chamava o nome e conferia o adesivo de idade. Chamou um
auxiliar e lhe entregou os documentos que foram passados a
um superior sentado perto de uma mesinha, e que anotou
tudo. Mandou que Candota abrisse a traseira do veículo e
revirou toda a bagagem.
— E esta gasolina? Pra que que é?
— É uma sobra que eu tinha, e serve como reserva.
— Estou vendo que você pretende viajar pra fora da
cidade. Não sabe que é proibido sair do domicílio?
— Não vamos viajar. Estamos apenas indo pra visitar uns
amigos que moram perto dos limites.
— E essa bagagem?
AGORA OU NUNCA MAIS
231

— Hum?... Ah!... coisas necessárias! Só pros dias que


precisar.
Recebendo de volta os documentos, o guarda os repassou
para Candota, pregou um adesivo no pára-brisa do carro e
acrescentou:
— Está tudo bem. Pode ir, mas é bom você ficar sabendo
que as estradas estão vigiadas pra não deixar ninguém fugir.
Até nos campos tem patrulha com cachorros rastreando
fugitivos.
Retirado o cavalete, Candota, quase sem respirar e
transpirando muito, pôs o carro em movimento e seguiu em
frente até a próxima quadra, onde virou à direita e parou logo
adiante. Foi a conta de parar e sentiu suas pernas começarem
a tremer violentamente. No mesmo instante, viu-se invadido
por uma onda de frio. Foi a descarga de toda aquela tensão,
mantida sob controle por demasiado tempo, produto do medo
contido. Ficou assim por uns dez minutos, tremendo de frio,
sem responder às perguntas que lhe faziam os passageiros.
Depois, já se refazendo lentamente, lamentou:
— Pronto, gente! Parece que chegamos no fim da viagem
Vocês ouviram o que o guarda disse?
— Não podemos prosseguir, mas também não podemos
voltar – concluiu Bento. — Ficar em casa é risco muito grande.
— Como já passamos por essa barreira, acho que
podemos arriscar a passar pelas outras – opinou Beatriz.
— Caso existam outras! Sei lá! Estou é desnorteado na
direção desse carro. Quer pegar, Beatriz?
Sentindo-se insegura, respondeu:
— Não vejo necessidade. Você mesmo toca.
AGORA OU NUNCA MAIS
232

— E você, Bento?
— Fica firme aí, meu chapa! Eu ainda tenho o complexo
da trombada.
— Eh! Vou ter que agüentar a barra!
— Pode ser que aquele guarda só queria amedrontar a
gente – observou Bento.
— Quem é que sabe?
— Além disso, agora temos esse adesivo pregado no pára-
brisa e que deve valer alguma coisa – lembrou Bento.
— Eu também acho que a gente deve continuar – reforçou
Beatriz.
Perguntada, Miriam apenas abanou a cabeça, num
significativo gesto de indiferença.
— Está bem! Vamos em frente – decidiu-se Candota.
Sentindo-se mais animado, ante a coragem dos
companheiros, Candota retornou à avenida e seguiu adiante.
Caminho livre. As áreas suburbanas já estavam aparecendo
quando foi avistada nova barreira policial à frente.
— O que que eu faço, Beatriz?
— Segue! Vamos enfrentar. Eles vão ver o selo no pára-
brisa e deixar a gente seguir. Só pode!
Na cancela, Candota parou o carro. O guarda veio e pediu
os documentos.
— Seu guarda, nós já fomos revistados lá atrás e está
tudo certo. Olha o adesivo ai no vidro – apelou Candota com
esperança.
— Está querendo me dar ordem? Aqui é diferente. Ou
você vai ganhar mais um adesivo ou vai levar chumbo. É bom
obedecer e ficar calado.
AGORA OU NUNCA MAIS
233

Candota entregou os pontos. Tinha que ter paciência.


Para examinar a bagagem, o guarda a colocou no chão,
perto da traseira do carro e chamou dois milicos para ajudar.
Mandou que os passageiros saíssem do veículo e passaram a
esquadrinhar todo o interior. Candota apertou os olhos num
gesto de lástima, imaginando que encontrariam as armas que
tinham escondido nos estofados dos bancos.
— Estão carregando armas, hem! Muito bonito! – falou o
guarda com ares de vitória. — E essa gasolina? É pra incendiar
algum quartel? Por que vocês teimam em ficar contra o
governo? Não sabem obedecer à lei?
Mandou que os auxiliares recolhessem as armas e o
combustível a uma guarita que ficava ao lado.
Enquanto o guarda se distraía, surrupiando alguns objetos
das malas, Candota cochichou para Bento e Beatriz que, a um
sinal, entrassem rapidamente no carro. Bento, arrastando a
esposa, entrou no banco de trás enquanto os demais tomavam
seus lugares. Candota, em ações rápidas e destemidas,
acelerou o motor ao máximo e derrubou a cancela, que era
frágil. Ainda viu, pelo retrovisor, que o policial estendia os
braços em sinal de ameaça.
Conseguiram escapar de uma situação que prometia ser
de morte. Logo adiante, Candota diminuiu a velocidade para
não atrair a atenção de alguém.
— Convém mudar de rumo. Aqueles milicos devem ter
avisado por rádio, e alguma patrulha deve estar no nosso
caminho – aconselhou Beatriz.
— Tem razão! Vou mudar o itinerário
AGORA OU NUNCA MAIS
234

Ficou dando voltas em rumo diverso, tentando escapar da


provável perseguição. Olhando o marcador de combustível,
surpreendeu-se:
— Ih, agora é que estou vendo! Gasolina no fim! Estamos
é perdidos! Rodamos demais!
— Então, pára o carro nalguma rua mais escondida antes
que a gasolina acabe de vez. Vamos descer e andar a pé pro
nosso destino – sugeriu Bento.
— Que destino? – perguntou Beatriz.
— Sei lá! Vamos tentar chegar à fazenda a pé mesmo!
Não tem escolha!
Candota, acatando a sugestão, estacionou o veículo numa
rua secundária. Quando estavam descendo, ouviram o barulho
de um helicóptero. Devia estar esquadrinhando a região em
busca do carro. Era a reação dos guardas.
— Vamos correr – gritou Candota. — Vamos esconder
longe do carro antes que vejam ele. Corre, gente!
Apesar de estarem usando sapatos baixos, as mulheres,
enfraquecidas e amedrontadas, não conseguiam correr
depressa. Chegaram, no entanto, a cinco quadras de onde
deixaram o carro. Ali, no desvão de um grande armazém,
aparentemente abandonado, acomodaram-se os casais para se
recuperarem da fadiga. Enquanto descansavam, ouviram mais
perto o farfalhar das pás do helicóptero.
Escondidos ali, não seriam vistos do alto, mas a
insistência do ronco dos motores os assustava.
Aproveitando um afastamento do aparelho, Candota saiu
do esconderijo e fez uma sondagem do galpão. Tinha os
portões fechados a cadeado. Descobriu uma abertura alta de
AGORA OU NUNCA MAIS
235

ventilação, na lateral do prédio, perto do cimo de um muro.


Dava, com alguma dificuldade, para penetrar no recinto. Com
esforço, debruçou-se pelo buraco e viu que o depósito estava
repleto de mercadorias empacotadas e encostadas na parede.
Isso facilitaria a entrada no prédio.
Entrementes, num momento de distração, Miriam saiu do
abrigo e começou a andar pela rua abaixo.
— Bento, a Miriam sumiu! Parece que saiu pra rua. Bem
que eu estranhei a expressão dela. Parecia que estava ausente
de tudo. Acho que ela perdeu a razão.
Bento, de um salto, pegou a rua e viu a mulher andando
meia quadra abaixo. Correu, alcançou a esposa e,
passivamente, a trouxe para a segurança do abrigo.
— Amor, não saia mais de perto de mim. É perigoso. A
polícia está nos procurando. Promete que não vai mais se
afastar?
Impassível, alheia e sem expressão, apenas olhou para o
esposo e não respondeu.
Candota voltou e relatou sua descoberta.
— Bento, primeiro eu vou ajudar a Beatriz a entrar.
Depois eu volto aqui e levamos a Miriam pra dentro. Em
seguida, você entra, e eu fico por último. Mas temos que ser
rápidos; antes que localizem a gente. Venha Beatriz, vamos
subir até aquele buraco.
Com muito cuidado e conseguindo equilibrar-se no alto do
muro, chegaram à bendita abertura. Os roncos do helicóptero
mostravam estar mais perto. Já deviam ter localizado o carro.
Agora alguma patrulha iria caçá-los por perto. Tinham que se
esconder rápido. Candota instruiu Beatriz para que se apoiasse
AGORA OU NUNCA MAIS
236

em seus ombros, alcançasse o vão e, aproveitando a boa


largura da parede, se virasse com os pés para o interior, de
forma a se apoiar nas caixas. Dali, devia descer até o chão e
esperar. A manobra foi demorada, mas deu certo.
Do alto, quando sua mulher acabava de entrar, Candota
viu Miriam correndo pela rua e o marido tentando alcançá-la.
“Que desgraça!”, pensou. Percorreu o muro até o limite da rua
para melhor observá-los. Dali, viu o amigo lutando com a
esposa, tentando arrastá-la de volta ao abrigo, enquanto
gritava:
— Candota! Candota! Candota! – como a clamar por
ajuda.
Neste exato momento, viu uma patrulha militar
motorizada chegar e imobilizá-los em definitivo com abundante
descarga de submetralhadora.
Candota, tremendo de medo, se apressou para entrar no
galpão, onde se juntou à esposa. Fez sinal de silêncio e, em
voz sussurrante, contou o que havia acontecido. Com extremo
cuidado, sondaram todo o interior do armazém para conhecê-lo
e se acomodaram num canto, onde colocaram mantas
encontradas numa das caixas.
Até que os olhos estavam pesados, mas os cuidados de
vigilância prevaleciam, pois tinham que ficar com os ouvidos
afinados para qualquer barulho vindo de fora. No começo, o
medo os fazia tremer. Depois se acalmaram, mas continuaram
atentos.
Tudo silencioso. Era um silêncio confortante. Beatriz, com
tristeza na face, confidenciou:
AGORA OU NUNCA MAIS
237

— Amor, eu queria tanto ter um filho! Eu troco a minha


vida pela de um filho!
— Psiu!
— Amor!...
— Psiu!
De repente, ouviu-se um estouro. Arrombaram o portão
da frente. Candota foi ágil e subiu numa pilha de caixas. De lá
viu três ou quatro soldados, empunhando baionetas e entrando
com cuidado no galpão. Desceu, juntou-se a Beatriz e foram se
esconder atrás de uma imensa pilha de caixotes.
À medida que os soldados iam examinando o corredor
central do depósito, olhavam para os laterais. Foram até o fim
e voltaram, fazendo o mesmo ritual. Quando retornaram à
entrada, dando por terminada a batida, surgiu um oficial que
mandou entrar mais soldados, ordenando que, aos pares,
contornassem todas as pilhas.
Eram dois ratos indefesos sendo caçados por uns oito
gatos de coturno e baioneta. Durante a vistoria, os fugitivos
davam corridinhas por trás das pilhas, entrando e saindo dos
corredores, orientados pelo caminhar dos algozes, e
procurando não serem vistos.
Numa dessas escondidas, subitamente encontram-se
frente a frente com um par de baionetas. Ante o susto, recuam
e correm desesperadamente para lados diferentes. Candota,
por instinto, sobe numa pirâmide de caixas e, lá do alto, vê a
indefesa e amada esposa ser trespassada diversas vezes por
aquelas lâminas de aço.
Candota percebe que seu fim chegou. Não tem qualquer
esperança de sair vivo dali. Dois milicos começam a galgar seu
AGORA OU NUNCA MAIS
238

refúgio, com as baionetas caladas bem à vista. Atrás vêm mais


dois. Trazem no rosto a certeza da decisão. Candota, acuado,
sente as pernas dobrar e se deixa assentar no cume à espera
da cena final. Não é covarde; decide enfrentar a chegada do
destino com dignidade.
As quatro pontas brancas e reluzentes vêm, em mãos
firmes e determinadas, cumprir mais um ato de morte,
componente de um procedimento mundial. Com esforço,
respira e sente que, ante a morte, a coragem se fortalece. Está
tenso, no entanto.
O heróico sobrevivente recebe a primeira carga daquelas
medonhas armas brancas, manejadas com fúria e crueldade.
Mas os punhais de guerra não mais que roçam de leve seu
corpo. Os algozes tentam novo embate, com mais fúria e
força. Outra vez, ele só sente um roçar de folhas macias. Mais
uma tentativa dos praças e Candota continua vivo. Nem
sangue, nem ofensas.
Desistindo da execução, os captores conduzem o
prisioneiro para fora do depósito e explicam o ocorrido ao
comandante da unidade. Este manda vir cicuta sublimada e diz
que daquele veneno nunca ninguém escapou.
— Nem Sócrates! – diz, confiante e sorridente.
Amarrado a uma cadeira, Candota vê chegando uma
caixa; ela é entregue ao oficial que a abre e retira dali um
frasco contendo um líquido amarelo. Desarrolhado o vidro, o
oficial de comando manda que um auxiliar segure firme a
cabeça do condenado. Com ares de satisfação e vitória, o algoz
coloca o pequeno gargalo ante as narinas da vítima que,
AGORA OU NUNCA MAIS
239

apavorado e suando frio, tenta segurar a respiração e fecha os


olhos.
Impossível conter-se por muito tempo. Tentando o
máximo de esforço para resistir, finalmente – por imposição da
natureza – cede com uma forte e incontida inspiração. Aspira a
mortal emanação enquanto um milico ajuda na tortura,
cravando em suas narinas dois pontiagudos punhais.
Começa a sentir estranha vertigem como se a vida o
estivesse abandonando brandamente. Percebe que o corpo vai
entrando em uma fase de doce anestesia. E o espírito, a
consciência, pouco a pouco vai se apagando. Tudo sem dores e
com estranho prazer. E vai indo... vai indo... bem devagar...
lentamente... lentamente...
AGORA OU NUNCA MAIS
240

Parte III

REDENÇÃO
AGORA OU NUNCA MAIS
241

7° CAPÍTULO

Num arranco de desespero, Candota abre os olhos e tenta


afastar com violência o maldito vidro que estava ante seu
nariz. Atônito, olha para os lados e vê muitos vultos em
expectativa. Pisca, esfrega os olhos várias vezes seguidas e
começa a vislumbrar, bem à sua frente, uma pessoa com
feições estranhas. Soando de um lado, uma voz conhecida o
ajuda a completar o retorno.
— Candota! Candota! Você está me ouvindo? Está me
reconhecendo? – disse Bento, denotando preocupação.
Ainda transtornado, Candota ouve, mas não encontra
palavras para responder. Tenta falar e não consegue. Está
completamente sem memória.
— Korn, acho que agora o rapaz está reagindo bem. Não
foi nada de grave; apenas um excesso de ação soporífera. Ele
deve ter feito uso de bebida alcoólica e tomado algum sedativo
– disse o médico que assistia Candota.
Pondo as mãos nos ombros do paciente, procurou conferir
sua consciência:
AGORA OU NUNCA MAIS
242

— Ô moço, você está bem? Já acordou? Responda! –


dando-lhe repetidas sacudidas.
Candota, já desperto, procurou responder, mas não
conseguia. Em resposta, apontou para o termômetro que
estava na mão do médico. Este percebeu que a memória do
enfermo tinha fugido e lhe disse pausadamente: ter-mô-me-
tro. O paciente, como eco, balbuciou:
— Ter... ter...
— Ter-mô-me-tro – ajudou o médico.
— Ter... môm...
— Ter-mô-me-tro – repetiu.
— Ter... môm... metro.
— Isso!
— Ter... mômetro.
— Aí, moço!
Procurando massagear a memória de Candota, o médico
se pôs a mostrar objetos e nomeá-los, um a um, enquanto seu
paciente ia repetindo os nomes. Depois pegou as pessoas
presentes pelo braço e as chegava perto da cama, dizendo:
— Benton.
— Bento.
— Korn.
— Seu Korn.
— Ruth.
— Dona Ruth.
Percebendo os acréscimos que Candota fazia aos nomes,
concluiu que a memória estava se restabelecendo rapidamente.
AGORA OU NUNCA MAIS
243

Daí a poucos minutos, o médico se retirou e Candota já


estava dialogando sem grandes dificuldades com os que o
cercavam.
— Ô cara, você me passou um susto danado! – disse
Bento.
— O que que houve comigo? Precisou chamar médico?
— Você deve ter tomado daquele seu comprimido,
misturado com cerveja, e dormiu demais. Bem que notei que
você estava dormindo muito. Quando já passava da conta,
tentei te acordar. Primeiro, te chamei muitas vezes; depois, te
espetei com os dedos. Não adiantava nada. Fiquei assustado.
Avisei o meu pai pra tomar alguma providência, e ele chamou
o vizinho do lado, que é médico. Você só acordou quando o
doutor pôs o vidro de amoníaco no seu nariz. Estou vendo que
agora você está bem. Mas que me passou um susto, passou!
Está melhor agora?
— Estou meio mole, mas estou bem. Quer dizer, agora
estou bem. Mas tive um pesadelo terrível. Eu nem vou te
contar. Deixa ficar! O que atrapalhou tudo foi que eu tomei um
copo de cerveja à noitinha com vocês e me esqueci disso.
Quando foi na hora de dormir tomei três comprimidos de
tranqüilizante.
— Três!?
— Estava com muita ansiedade e não conseguia dormir.
— Então, levanta e vai se arrumar que nós temos
encontro marcado pras quinze horas com o administrador
Devers. Acho bom você tomar um banho frio pra tirar um
pouco dessa sua bambeza e ficar mais disposto.
— Tá!
AGORA OU NUNCA MAIS
244

Mais tarde, Korn repisou diversas recomendações sobre a


natureza da entrevista que os amigos iam manter. Esclareceu
que deviam ser claros na exposição e externar com segurança
e convicção seus pontos de vista, de forma que o
administrador percebesse a gravidade do assunto. Não deviam
deixar de embasar as idéias com argumentos e documentos
sólidos, pois seriam contraditados pelos assessores,
competentes especialistas.
Com certa antecedência, pegaram um táxi e se dirigiram
ao prédio da Agência de Proteção Ambiental, tendo chegado 20
minutos antes da hora marcada. Ali, depois de identificados,
foram acolhidos e convidados a aguardar numa confortável
sala de espera.
Candota, procurando instintivamente por um cismado
calendário, percorreu com os olhos as portas próximas e
contemplou as paredes, adornadas com discretos quadros
alusivos à Natureza. O ambiente era distinto e nobre.
Quando o secretário de gabinete os introduziu no salão de
trabalho, foram recebidos por três amáveis e sorridentes
senhores e uma senhora que se adiantaram à porta de
entrada. Trocaram cumprimentos e se apresentaram:
— Eu sou Devers, o administrador da agência, e estes são
meus auxiliares, Dorothy, Joshua e Walderez.
— Muito prazer. Eu sou William – repetiu a todos.
— Satisfação. Sou Candota.
Demonstrando tranqüilidade, o administrador e presidente
da reunião apontou uma mesa oval, que se encontrava na sala
ao lado, e indicou a todos que se assentassem. Imediatamente
um copeiro serviu café. Devers foi o primeiro a falar. Dirigindo-
AGORA OU NUNCA MAIS
245

se aos convidados, começou demonstrando ser homem prático


e inteligente:
— Meus amigos, o senador Brighton esteve comigo e
demonstrou muito interesse em que o governo tome
conhecimento de uma revolucionária teoria elaborada por
Candota. O senador apenas fez menção das conclusões desses
estudos, dizendo que se trata de tema extraordinário. Não
entrou em detalhes, mas enfatizou que o assunto é sério,
grave, importante, e que deve ser analisado por esta agência.
Fez uma pausa longa, correu os olhos em cada um dos
participantes e, com expressão séria, prosseguiu:
— Como se trata de teoria que busca preservar o
ecossistema, eu me dispus a ouvir o que têm a argumentar.
Tenho interesse governamental e pessoal nessa questão. Haja
vista que marcamos esta reunião sem tempo certo de duração.
Queremos nos inteirar de todos os aspectos do problema. Pra
evitar dúvidas e mal-entendidos, peço que se sintam à vontade
e exponham suas razões com clareza e objetividade.
Animado com essa demonstração de receptividade e
franqueza, Candota se sentiu libertado para exibir, sem rodeios
e com toda a crueza, a problemática das projeções. E foi direto
ao assunto:
— Há duas questões fundamentais que me permito
apresentar antes de expor o problema central. Primeiro, por
ser questão abrangente a todo o planeta, as tomadas de
decisão vão requerer que se crie imediatamente um governo
mundial, com soberania sobre todos os países. Deverá ele ser
sustentado por forças armadas poderosas que, naturalmente,
serão compostas pelos exércitos dos principais países, o que
AGORA OU NUNCA MAIS
246

garantirá a execução das medidas administrativas. É evidente


pra todos que somente o governo americano tem condições
políticas, econômicas e militares pra liderar a formação do
governo mundial. Isso é revolucionário, mas básico. Segundo,
está em causa a sobrevivência da humanidade, o tempo urge e
não há a mínima condição pra prática da democracia. O
governo mundial, que deverá ser representativo de todos os
países, terá que agir de forma autoritária. O sucesso na
solução desta grande questão dependerá de decisões
corajosas, inteligentes e rápidas.
— Assim, você me assusta! – exclamou Devers.
— Estou sendo objetivo, honesto e franco, como você
pediu. Pra assunto tão sério, só podemos pensar e falar com
sinceridade. Não pretendo dourar a pílula! Entendo que estou
falando pra pessoas inteligentes, que não querem ser
enganadas pela retórica.
— Apóio sua franqueza e gosto que assim seja, mas
entendo que você está apenas sugerindo, porque medidas tão
duras só podem ser tomadas depois de longo estudo
governamental. Percebo também que, pra melhor apreciação
do assunto, tenho de ouvir a exposição do problema central.
— Claro! Comecei apontando aquelas premissas pra
perceberem que vamos tratar de gravíssimo e abrangente
problema vital. É pra que vocês fiquem de olhos arregalados,
pois o assunto é muito sério mesmo. Devo reconhecer também
que todo o meu estudo, pra merecer a relevância emergencial,
deverá ser exaustivamente examinado por uma renomada
comissão, a ser designada pelo seu governo. Isso vai qualificar
ou não o meu estudo.
AGORA OU NUNCA MAIS
247

— Estamos prestando atenção. Pode prosseguir.


Durante três horas, Candota expôs sua projeção
estatística e ofereceu a documentação concernente. Concluiu
ressaltando que o assunto merecia ser tratado com urgência e
sob sigilo para evitar conseqüências insolúveis. Foi ouvido
atentamente e não foi interrompido.
Durante a exposição, notou que, à medida que ia
desenvolvendo o raciocínio, os assistentes iam ficando mais
tensos até que, ao ouvirem a data de 2036, mostraram-se
pálidos e assustados.
Dando profundo suspiro, o presidente da reunião se
manifestou:
— Ouvimos suas razões e nada podemos declarar no
momento. Nossas responsabilidades no governo impõem que
assuntos extraordinários como este sejam meticulosamente
examinados e ponderados, antes que sejam apresentados
perante a Chefia de Gabinete da Presidência. Deixe aqui todos
os documentos. Vou estudar isso e discutir com meus
assessores. Depois, se for o caso, vou convocar uma reunião
conjunta com os membros do Conselho de Qualidade
Ambiental. Por hoje, está encerrada a reunião. Deixem com o
meu secretário os telefones de contato e aguardem notícias
minhas.
Bento, ao tempo em que se despedia, dirigiu-se ao
administrador, esclarecendo:
— Foi tudo bem exposto pelo meu amigo, mas desejo
apenas repisar que este assunto pede urgência no
encaminhamento. Cada dia de atraso, maior a dificuldade na
solução.
AGORA OU NUNCA MAIS
248

— Esteja tranqüilo. Também estou preocupado. E como!


Eu te dou notícias em breve.
Já em casa, Bento fez à esposa breve relato do encontro e
acrescentou:
— Ufa! Acho que foi um sucesso nossa missão. Essa é
também a opinião do meu pai.
— Que bom! Então conseguiram passar o problema pro
governo?
— Ainda não podemos concluir isso, mas já foi um bom
começo. Agora ficamos aliviados e com a consciência leve. Até
que enfim, cumprimos nosso dever.
— Nesse caso, eu também fico feliz. Tomara que no fim dê
tudo certo! Parabéns pra vocês!
Depois de relatar para a esposa os pormenores da
reunião, lembra-se do sogro e sugere:
— Telefona pro seu pai e, sem entrar em detalhes, diga
que a Agência de Proteção Ambiental está estudando o
problema. Sem entrar em detalhes! – repetiu.
— Pode deixar. Sei como dizer. Ele vai ficar satisfeito.
Vocês lavaram as mãos, e a questão agora está na área de
quem pode tomar decisões. Não é isso?
— Isso mesmo! Não esquece de dizer que estamos
tranqüilos.
E, demonstrando sua satisfação, acrescentou:
— Vamos até comemorar!
— Viva!
— Vou chamar o Candota também. Vamos nós três jantar
fora hoje e assistir a algum espetáculo alegre.
— Beleza! Que bom!
AGORA OU NUNCA MAIS
249

— Escolhe aonde você quer ir.


— Você escolhe. Mulher gosta é de surpresa.
E assim, passaram os três amigos a noite toda festejando
aquela situação em que tiraram dos ombros tão pesada carga.
Até exageraram um pouco na manifestação das alegrias, não
esquecendo de registrar essas manifestações em fotografias,
tiradas em cada lugar a que foram.
Sabedor dos passos iniciais de Candota e da breve
reunião que haveria entre a APA e o CQA, Klintok não perdeu
tempo. Sentiu-se na obrigação de conscientizar seus amigos do
Conselho de Qualidade Ambiental sobre o absurdo daquela
teoria que afirmava o fim do mundo. Procurou também alguns
deputados e senadores de suas relações e perfilou tais
aberrações, destacando sempre a premissa de que o autor de
tão espúria teoria era um estrangeiro, visionário, psicopata e
perigoso para as instituições básicas dos Estados Unidos.
Não deixou de insinuar aos amigos que o administrador
Devers seria incompetente e psicologicamente frágil, deixando-
se influenciar com facilidade por idéias extravagantes.
Klintok procurava, assim, solapar previamente os pilares
políticos em que se apoiariam os esforços de Candota. Tinha
convicção de que exercia influência patriótica e esperava que
sua atuação abortasse tão descabida e perigosa teoria.
Quatro dias mais tarde, sob a presidência do
administrador Charles Devers, reuniram-se os dois órgãos
federais, pertencentes à cúpula do governo americano.
Os membros participantes receberam, com antecedência
de dois dias, cópias dos estudos e documentos deixados por
AGORA OU NUNCA MAIS
250

Candota, acompanhadas de relatório elaborado pelo


administrador.
Devers abriu a sessão, proferindo pequeno comentário
sobre o documento, no qual fazia sucinta exposição do
problema ambiental. Abordando o objetivo do encontro, disse:
— Esclareço que esta reunião é apenas preliminar. O
principal objetivo é tomar conhecimento de um problema que
ainda se encontra na fase de hipótese.
— Quer dizer que vamos ter outras reuniões pra tratar do
mesmo assunto? – perguntou o presidente do CQA.
— Exatamente. Como todos devem ter percebido, os
documentos entregues mostram que temos em mãos, em
princípio, um teórico monstro ambiental. É de nossa
responsabilidade o aconselhamento ao nosso governo de um
rumo administrativo. Essa é nossa função e temos que
trabalhar com o máximo de competência, porque estaremos
tratando da hipótese de um desvio da civilização que pode
mudar a história mundial e conduzir a humanidade pra uma
hecatombe. Gostaria de ouvir a opinião dos participantes desta
reunião. Peço que se manifestem, começando pelo primeiro à
minha direita.
— Examinei o programa, mas não tenho conhecimento
técnico suficiente pra fazer uma crítica profunda. Se os dados
apresentados estiverem corretos, o alinhamento do programa
segue uma lógica irrefutável. Mas é evidente que deverá ser
submetido a rigorosa análise por categorizada comissão
científica, antes que se possa apreciar melhor o assunto.
— Penso que alguns pontos precisam ser esclarecidos pelo
autor do programa. Tenho dúvidas sobre certos aspectos
AGORA OU NUNCA MAIS
251

estatísticos. Seria bom que o autor fosse questionado numa


reunião especial com cientistas.
— Pelo visto nos estudos apresentados, as decisões
aventadas pelo autor abarcam tal complexidade de interesses
que as medidas avocadas pra um governo global só podem ser
teorizadas, sem qualquer possibilidade de efetivação. Na
teoria, tudo bem. Até pode proceder. Mas na prática, nada é
aplicável, visto que equivaleria à destruição total da nossa
civilização. E isso é impossível.
— Infelizmente, estamos diante duma realidade projetada
com dados científicos. As evidências impõem decisões
compatíveis com a gravidade do estudo. Não podemos fugir do
problema. O destino da humanidade está em nossas mãos, e
não temos como postergar a questão. Somos pelo
aprofundamento do estudo do problema mediante parecer
duma assembléia de cientistas.
— O assunto é muito pesado pra ficar apenas no nosso
ajuizamento. Precisamos ter o apoio de destacada comissão de
cientistas. Em cima das conclusões deles é que vamos debater
as opções políticas e administrativas. Só, então, teremos
condições de levar este caso ao Presidente.
— Eu me considero incompetente pra opinar nessa
questão. Sou favorável a que se convoque o trabalho de
cientistas.
— Acredito que estamos discutindo a respeito de vento. A
hipótese sob exame nada mais é que o resultado de
divagações doentias de um espírito vazio. A pujança de nossa
civilização está aí à mostra, confirmando a justeza dos
AGORA OU NUNCA MAIS
252

caminhos traçados pelos nossos governantes. Opino que essa


papelada seja arquivada.
— Estamos vendo que, ante opiniões tão desencontradas,
o bom senso nos aconselha a obter o parecer de renomados
cientistas. Como podemos definir rumos se não temos uma
sólida base de apoio?
— O autor aponta, como pilastra da fase executiva, o
abandono de nossa tradicional democracia. Como pode ser
possível? Ele é visionário e inconseqüente. O autor dessa
teoria está possuído de obsessão ecológica.
Os demais componentes da reunião expuseram suas
idéias, também com manifestações divergentes, ficando
patente a disparidade de opiniões. Dava para se perceber que
a atuação ardilosa de Klintok conseguiu erguer alguns
preconceitos.
O presidente do Conselho de Qualidade Ambiental (CQA)
também se manifestou:
— Ouvi com atenção a opinião de todos. Seja pelo
arquivamento ou pela sustentação do documento, por um lado,
antevejo uma situação que, mais dia menos dia, terá de ser
enfrentada pelo bem da humanidade. Enxergo que o destino
nos colocou na posição apropriada pro exercício do heroísmo.
Sim, parece que fomos escolhidos pra esse ato de
desprendimento. Por outro lado, é perigoso ficarmos
influenciados por uma simples hipótese produzida por um
insinuante estrangeiro. Tanto pode ter consistência como não
passar de ilusão. Não podemos brincar com fogo, mas também
não podemos querer pôr fogo na água. Segundo a opinião de
muitos e o bom senso, o primeiro passo a adotar será a
AGORA OU NUNCA MAIS
253

convocação de um colégio de sábios. Eles é que nos guiarão


pra caminhada seguinte.
O administrador fez breve comentário sobre as palavras
ouvidas e assinalou que a opinião prevalecente foi a da
convocação de cientistas. Sobre tal tema, ficaram discutindo as
maneiras de implementá-lo.
Tomando conhecimento do resultado da reunião, por
meio de seus amigos, Klintok não gostou nada do resultado.
Conversando com a esposa, comentou:
— Esses idiotas resolveram acolher a tal teoria e vão
convocar cientistas pra examinar ela. Estão dando força e
prestígio pra essa teoria doida. Não enxergam que estão
lidando com um visionário?
— Mas isso foi bom! – retornou Dona Helen.
— Bom, como?
— Eles ficaram livres do problema, que agora está nas
mãos do governo. Nossa filha está satisfeita e tranqüila. Falei
com ela ontem. Isso é que importa.
O marido ficou pensativo. Depois, disse:
— Eh! Foi bom mesmo. Agora a comissão de cientistas
americanos, que são competentes, vão demonstrar a
insanidade dessa tal de teoria e aquele estrangeiro vai receber
o diploma de louco e ter que voltar pra terra dele.
Esfregando as mãos, acrescentou:
— Ah, vai ser isso mesmo!
Klintok, contudo, não deixou de externar aos amigos suas
malevolentes ponderações a respeito do problema.
O relaxamento que se instalou na casa de Bento foi
transitório. À medida que o tempo se escoava, sem notícias, os
AGORA OU NUNCA MAIS
254

primeiros sinais de ansiedade foram retornando, o que


impunha propósitos e buscas de atitudes de equilíbrio e
serenidade. Aguardar notícia importante exige o exercício da
paciência, e todos se continham.
Passados uns dias, prevendo que o tempo se dilatava e
que não podia abandonar a empreitada, Candota mandou um
correio eletrônico para os pais, dizendo que resolvera, por
insistência do Bento, prolongar as férias por tempo
indeterminado e que iria providenciar a renovação do visto de
permanência no passaporte antes que vencesse.
Apesar do sigilo que sempre pedia, Candota não deixava
de ficar atento às notícias de jornais para filtrar alguma
indicação sobre os movimentos do governo. Nada transpirava,
contudo.
Entrementes, na APA, Devers se reuniu com os assessores
para acertar os entendimentos e passos necessários ao que
tinha sido combinado na reunião com o CQA.
— Devers, eu quero te confessar que fiquei muito
preocupado com essa possibilidade de tragédia – disse
Walderez. — Fiquei desorientado e não tenho dormido direito.
Fico pensando no que será do nosso futuro.
— Deixa disso! Fica mais calmo! Até parece que você não
está acostumado com problemas ambientais. Nós temos que
ser profissionais do ramo, e você já mexe com isso tem tanto
tempo! Problemas ambientais a gente tem todos os dias, ora!
— Eh, mas sempre foram probleminhas! Agora, parece
que estamos chegando é no problemão!
AGORA OU NUNCA MAIS
255

— Procura se controlar. As coisas têm que ser o que são.


Nós vamos fazer a nossa parte com esforço e dedicação. Se
der, bem! Se não der, azar! Afinal, não somos deuses!
Devers ficou olhando para o auxiliar que, de pé frente à
janela, mostrando-se pensativo e com olhos fixos no
infinito, murmurou:
— Hã! A coisa não é tão simples assim!
— Wal, pede à secretária ligar pro presidente da União de
Cientistas Ativos (UCA). Quero falar com ele.
— Sabe o nome dele?
— Não. Na hora, eu fico sabendo.
Alguns minutos depois, completa-se a ligação.
— Bom dia, senhor. Sou Charles Devers, administrador da
Agência de Proteção Ambiental. Com quem estou falando?
— Bom dia. Meu nome é Kurt Hasfield. Sou o presidente
da UCA. Em que posso ser útil?
— Eu tenho um assunto importante pra tratar na área
científica e fico grato se puder marcar um encontro comigo
aqui.
— Vai ser com satisfação. Estou às ordens. Pode marcar
em sua agenda.
— Não repara, mas pode ser pra amanhã, às nove horas?
— Perfeitamente. Posso levar um secretário?
— Pode, sim. Então, fica marcado. Até amanhã.
Walderez tinha voltado à janela, fazendo perguntas
silenciosas ao futuro. Saiu do seu mundo interior quando foi
interpelado pelo chefe:
— Você já ouviu falar em Kurt Hasfield?
AGORA OU NUNCA MAIS
256

— Não. Mas deve ser um cientista importante. É o


presidente dessa associação?
— É, sim. E vai trazer um secretário.
— Secretário nada! Isso é só um modo de dizer. Vai trazer
é uma testemunha. Ele se protege, porque sabe que não pode
confiar em órgão do governo.
— Bem, o encontro é amanhã, às nove, e quero que todos
os assessores estejam aqui. Não esquece de avisar os outros.
No dia seguinte, Devers chegou mais cedo ao escritório,
preparou os documentos que devia apresentar e ficou
aguardando a vinda dos três auxiliares que chegaram logo
depois com certa antecedência.
Na hora combinada, o auxiliar de gabinete da ante-sala
comunicou a presença dos cientistas. Mandados entrar, Devers
e auxiliares se adiantaram para cumprimentá-los e fazer as
apresentações. Sentaram-se à mesa grande ao lado e se
dispuseram a iniciar as conversações.
— Meu caro Hasfield, eu pedi esta reunião porque a
agencia está necessitando da colaboração da sua entidade pra
elaborar um informe científico sobre uma hipótese que nos foi
apresentada e que prevê pra breve o colapso das condições de
vida do planeta.
Hasfield demonstrou surpresa. Conteve-se e,
laconicamente, disse:
— Prossiga.
— Eu tenho aqui um dossiê, expondo e demonstrando
todo o assunto e, se puder contar com sua colaboração, peço
que estude com seus pares esse problema, que pede
encaminhamento urgente.
AGORA OU NUNCA MAIS
257

— Qual é o resumo do problema?


— Um estudo feito por um cientista brasileiro, chamado
Candota, dando conta de que a degradação ambiental está
perto de atingir um ponto crítico, sem retorno.
— Isso não é possível! – exclamou Hasfield, exaltado e
demonstrando contrariedade.
— Vocês já têm essa conclusão?
— Você não me entendeu. Me perdoa, mas tenho que ser
franco. O seu pedido é impertinente e me coloca numa
situação embaraçosa.
— Perdão, mas quem não entendeu agora fui eu.
Precisamos nós dois de esclarecer isso.
— Precisamos mesmo! – disse Hasfield, mostrando-se
agitado e embaraçado.
— Em que ponto eu não fui claro? O que eu peço é apenas
uma colaboração.
— Você foi claro, sem dúvida. Mas o que me pede é
impertinente.
— Por quê?
— Pelo que estou percebendo, estou conversando com um
inocente.
— Inocente, eu! O que que houve? Você tem toda
liberdade pra falar o que quiser. E é um favor ser franco.
Os assessores se entreolhavam, espantados, sem
compreender nada do que ouviam. Alguma coisa devia estar
errada naquele roteiro. Ou seria o próprio assunto?
Hasfield, procurando se conter, fez uma pausa de silêncio,
como a pensar o que dizer, e pacientemente falou:
AGORA OU NUNCA MAIS
258

— Meu caro Devers, pelo que estou notando, está


havendo uma falta de entrosamento entre os diversos órgãos
do governo. Ou, então, alguma outra coisa que não sei. Aqui,
estou falando com o departamento que cuida dos assuntos
ambientais ligados à concepção da defesa do país. Não é?
— Isso mesmo.
— Pois é. Não conheço essa teoria de que você falou, mas
o assunto é o mesmo — a degradação ambiental e a previsão
das conseqüências caóticas. Isso, nos meios científicos, é
assunto real, palpável, evidente. Já tão batido que não
comporta mais qualquer discussão. Mas as sociedades
governamentais, civis, empresariais, religiosas, teimam em
não tomar conhecimento.
— Sim, mas porque o assunto é impertinente?
— Desculpe, eu me desviei do que ia falar. Você me pede
o que já foi feito pro Pentágono. Não vejo motivo pra executar
o mesmo estudo. Você tem aí no governo cópia de tudo o que
nós fizemos. Onde está eu não sei. Isso deve ser segredo de
estado. Tudo de sério é segredo de estado neste país!
Devers ficou desorientado e surpreso pelo que ouviu.
Nunca poderia supor aquela situação. O Pentágono,
sorrateiramente, tomava a frente das atribuições da agência. E
o pior é que o Pentágono não estava errado. Como
departamento responsável pela segurança do país, estava
cumprindo com competência suas funções.
Devers, muito embaraçado, levantou-se, dando a
entender que a reunião estava encerrada, e lamentou:
— Senhor Hasfield, peço desculpas pelo incômodo.
Agradeço muito a sua presença. Futuramente, ainda vamos ter
AGORA OU NUNCA MAIS
259

oportunidade de conversar. Muito obrigado e me desculpe mais


uma vez.
Após a retirada dos visitantes, Devers voltou à cadeira
que ocupava e, com a mão no queixo e boca aberta, comentou
com os assustados assessores:
— Vocês viram só? O Pentágono, hem! O Pentágono! E
nós aqui fazendo papel de bobos.
— É uma situação esquisita. Agora, precisamos pensar
bastante – comentou o assessor Joshua.
— Precisamos mesmo! Meu primeiro ímpeto é pedir
demissão. Alguém me traiu. Isso não pode ficar assim; foi
sacanagem.
— Espera aí! A situação não é assim como parece –
ponderou Dorothy, outra zelosa assessora. — Primeiro, você
tem que pôr a cabeça no lugar; esfriar a idéia. Você sabe que
o Pentágono é órgão executivo, mas extremamente
especializado. Na estrutura de poder, está sob o comando do
secretário da Defesa, mas tem poder próprio também.
— É, preciso esfriar mesmo. Esse é um assunto muito
complexo. Com calma, vamos ficar sabendo desses
movimentos cavernosos. Preciso é de tempo.
— Devers, a conversa com Hasfield foi muito rápida. Não
deu pra gente saber o que o Pentágono fez com o estudo da
UCA – observou Joshua.
— Disse, sim. Que não sabe o que fizeram com o estudo.
Também não ficamos sabendo das conclusões dos cientistas.
Mas, pelo que ele disse, elas são sombrias. Eu vou pensar
sobre esse problema e depois a gente conversa.
AGORA OU NUNCA MAIS
260

Klintok, que não estava satisfeito com o andamento do


caso, e enxergando a possibilidade de os cientistas reforçarem
as idéias de Candota, imaginou agir de maneira mais profunda
e eficaz. Procurou todos os amigos políticos e empresários
capazes de se interessar pelo assunto. Pessoal e
reservadamente, expunha a questão como perigosa, acenando
com destaque para a possibilidade, ainda que remota, de o
governo subverter a estrutura econômica da nação.
Falou com diversos congressistas, tendo levado alguns a
se disporem a ingressar na campanha de convencimento de
outras figuras da elite, formando um encadeamento de
interesses comuns.
Não deixou de visitar os donos das empresas de
informação, inclusive Roberts Sertting, proprietário de diversos
veículos de comunicação e presidente da poderosa Associação
de Empresas Formadoras de Opinião.
— Sertting, eu não te conhecia pessoalmente. Por meio
do belo trabalho que vem realizando na condução das suas
empresas, avaliei como positiva a sua capacidade
empreendedora e o descortino político.
— Cada um, no seu ramo, faz o que pode. Eu tenho
apenas trabalhado. Mais nada! O procurador Horten, nosso
amigo comum, me recomendou que te recebesse. Disse que
você tem um assunto importante.
— Realmente é importante.
E expôs as preocupações com a Agência de Proteção
Ambiental que acolheu para exame de cientistas “uma idéia
estapafúrdia e altamente perigosa pra segurança das nossas
AGORA OU NUNCA MAIS
261

instituições”. Apresentou argumentos e pediu o apoio da mídia


para a contenção daquela idéia.
— Foi bom você me alertar. Estou de pleno acordo em
combater qualquer fato que venha desequilibrar a estrutura e
normalidade econômica do nosso país. Nesse aspecto, nós,
responsáveis pela formação da opinião pública, estamos
sempre vigilantes. A receita pra esses casos é simples e
eficiente: não falaremos nem contra nem a favor.
— Você vai ficar neutro, numa emergência dessa?
— Não. A nossa ação se faz justamente por ausência de
ação. É não tratando de um fato que esse fato passa a não
existir. Se a mídia desconhece algo, o mundo também
desconhece. É mais fácil do que virar a opinião pública. Se for
preciso virar a cabeça do povo, a gente vira também. Já
viramos várias vezes.
— Temos que ficar alertas. Peço que informe os seus
colegas desse perigo. Já contamos com apoio de expressivas
figuras das elites empresariais, representantes legislativos e
alguns elementos de órgãos do próprio poder executivo. Temos
que abafar essa idéia maldita e virulenta.
— Pode contar comigo. Alguns poderão saber, mas a
massa nunca saberá. O único perigo é algum repórter
independente bisbilhoteiro. Mas esse tipo de imprensa não
repercute.
— Obrigado. Tive prazer em te conhecer e estou às suas
ordens.
Devers, na agência, depois de dois dias tentando definir
seu rumo, tomou uma decisão e disse ao assessor Walderez:
AGORA OU NUNCA MAIS
262

— Pensei muito naquele caso. Já vi que, se não tiver uma


explicação, eu vou ficar louco.
— O que que você vai fazer?
— Vou direto na caixa de marimbondo.
— Vai falar com o Presidente?
— Vou é no Pentágono. Comigo não tem disso, não! Vou
esclarecer isso de vez. Não tenho nem dormido! Liga pra lá e
pede uma audiência com o general Stanfordson, chefe do
Estado-Maior. Já somos conhecidos, e acho que a conversa não
vai ser difícil.
No Pentágono, à hora marcada, o general Stanfordson
recebeu o visitante com palavras acolhedoras:
— Senta e fica à vontade. Vou mandar vir um café.
— Não repara de vir aqui te incomodar. Eu sei que já tem
problemas demais. Mas estou precisando de você.
— O Pentágono é um depósito de problemas, você sabe.
Aqui a gente tem que resolver tudo. Um probleminha a mais
não faz diferença. Pode falar.
Devers, procurando se mostrar calmo, fixou-se nos olhos
do general, sondando suas reações, e disse:
— Fiquei sabendo pelo Hasfield que o Pentágono recebeu
um estudo científico da UCA sobre o problema ambiental. A
agência que eu represento pode receber cópia desse
documento que está em seu poder? É assunto da nossa alçada
e é do nosso interesse também.
Sem se alterar, o general respondeu:
— Você deve saber que a agência não tem alçada
exclusiva. O Pentágono tem autonomia de ação dentro das
AGORA OU NUNCA MAIS
263

suas atribuições. Não posso te fornecer documento nenhum.


Você vai entender isso.
— Está bem. Eu entendo. E vou ser claro com você. Estou
com um problema sério pendente de estudo lá na minha
agência e vou pro...
— Eu sei.
— Sabe o quê?
— Você está falando duma simulação computadorizada
feita por um brasileiro. Isso talvez vá nos interessar também.
— Mas como você soube!?
— Bom, Devers. Faz parte do nosso serviço. É nossa
obrigação. Temos que saber de tudo que se refere à segurança
do país.
— Você pode me dizer pelo menos o que fizeram com o
documento da UCA?
— Lamento, amigo, mas esse assunto deve ser tratado lá
no Departamento de Defesa. Não posso passar por cima do
secretário.
— Nada, nada?
— Só posso dizer que realmente a UCA produziu um
estudo que nós encomendamos. Nada mais. Eu sei que você
vai compreender minha posição.
Devers se despediu e voltou para o seu gabinete, onde
deu conta aos auxiliares do encontro surpreendente e
frustrante.
O administrador da APA foi infeliz na visita ao Pentágono.
Não sabia, mas o ambiente entre o general Stanfordson e o
próprio secretário da Defesa não estava nada bom.
Anteriormente, tinha havido um desentendimento entre eles.
AGORA OU NUNCA MAIS
264

Havia uns quarenta dias, o secretário da Defesa tinha


recebido em audiência o general Stanfordson que lhe levou um
importante e secreto relatório produzido pelo Pentágono, que
versava sobre o risco climático do planeta. Na ocasião, o
diálogo foi o seguinte:
— Secretário O’Connor, hoje venho cumprir uma missão
que não me agrada nada. Nunca pensei que chegaria a este
ponto. Sou mensageiro de más notícias. Mas dever é dever.
— Não me assusta assim! Você já começa o despacho com
pessimismo. Você sabe que pro verdadeiro militar não existe
missão difícil. E eu sei da sua competência. Ora, fica firme!
Tirando da maleta um volumoso maço de papéis e pondo-
o sobre a mesa, bem à frente do secretário, o general
prosseguiu:
— Está aí o relatório do Pentágono sobre as condições
climáticas da Terra. É assunto sério.
— Eu não vou ler isso agora. Você faz um relato sucinto,
pra eu ter uma noção do assunto. Depois, eu leio.
Enquanto o general se preparava para expor o assunto,
selecionando alguns papéis, o secretário acrescentou:
— Estou estranhando... o que tem a ver o Pentágono com
a ecologia? Já tem órgãos no governo, até demais, só pra
tratar disso.
— É simples! Como eu sou o chefe do Estado-Maior, tenho
as minhas responsabilidades. E a principal, como é do seu
conhecimento, é prever problemas de segurança e planejar as
soluções.
— Mas na área militar.
AGORA OU NUNCA MAIS
265

— Me desculpe, mas não. Não é só na área militar. É na


área ampla e geral da segurança do nosso país. Qualquer
assunto que diga respeito à nossa segurança, deve ser objeto
de estudo do Estado-Maior. Eu fui colocado lá pra isso. E
cumpro o meu dever.
— Vá lá! Do que se trata, afinal?
— Em cima de informes da UCA, constituída pelos mais
renomados cientistas, fizemos uma profunda análise das
condições climáticas do planeta e concluímos que estamos
próximos de atingir o ponto crítico de desequilíbrio ambiental.
Calculamos o colapso pros próximos quinze ou vinte anos.
— Quinze anos! Você não fala sério! E você me traz esse
incômodo logo agora! Como se não bastassem os problemas
com a intervenção militar que estamos fazendo em diversos
paises! Você tem alguma sustentação?
— Temos todos os dados possíveis. Estão aí nesse
calhamaço.
— Não estou satisfeito. Explica melhor essa questão.
E o general desfiou minuciosa exposição dos estudos
efetuados, arrematando:
— Com a leitura do relatório, o assunto fica mais claro. Se
for preciso algum adendo, o Estado-Maior providencia.
— Está bem! A obrigação do meu departamento é estudar
o seu relatório, dar um parecer e encaminhar tudo pra
Presidência. Mas eu acho que o seu trabalho é inconsistente.
Você recomenda coisas absurdas. Não vê que é impossível?
Onde é que já se viu propor essas medidas drásticas?
AGORA OU NUNCA MAIS
266

— Acho que todos estamos preocupados com esse


problema. Desejo ressaltar que o documento pede medidas
urgentes e as estratégias pra solução estão ali detalhadas.
— Ainda vem você pedir urgência. Não vê que temos
outros assuntos mais importantes na frente? Francamente, não
sei o que o Presidente vai pensar de você.
Sentindo-se ofendido, o general arrematou a conversa:
— Cumpri o meu dever. Dá-me licença? – e se retirou.
O secretário não quis se comprometer com esse
documento secreto. Mandou fazer sucinta análise e o mandou
para a Presidência.
O chefe de gabinete da Presidência, Abraham Michels, leu
a súmula e foi pessoalmente ao Presidente.
— Recebi um importante relatório confidencial do
Pentágono e me apressei em trazê-lo pro seu conhecimento. É
sério.
— Do que se trata?
Explicado em linhas gerais, o Presidente ouviu e orientou:
— Manda esses papéis pro meu conselheiro científico,
pedindo parecer. Esse general deve estar precisando aposentar.
Eu sou é otimista. E sempre deu certo na minha vida, senão
não teria sido eleito.
O assessor científico, de confiança do Presidente e por ele
nomeado, produziu um longo e tortuoso parecer, dando
margem a interpretações diversas e insinuando pouca
seriedade no trabalho do Pentágono. Para tanto, baseou-se em
estudos ditos científicos mandados fazer por empresas ligadas
à indústria bélica. O trabalho dos cientistas da UCA, entidade
em que figuram mais de 20 laureados, inclusive dois Prêmios
AGORA OU NUNCA MAIS
267

Nobel, não mereceram mais que uma ligeira citação. Encerrou


o parecer, propondo arquivamento.
Em seu despacho, o Presidente considerou que as
informações do relatório não são conclusivas e se baseiam em
suposições erradas, frisando que as alterações climáticas
provêm de um processo natural e cíclico, nada indicando que
se origina de atividades humanas. Mandou arquivar.
O grupo que participou do estudo ambiental no Pentágono
ficou duplamente desesperado; pelo conhecimento da provável
desgraça ambiental e pelo desprezo do governo ao alarme
dado. O único que continuava sereno era justamente o general
Stanfordson. Dizia, quando interrogado pelos colegas sobre a
situação: “Cumpri o meu dever; a minha parte foi feita”.
“Mas... e nossos filhos!”, clamavam os outros oficiais.
AGORA OU NUNCA MAIS
268

8° CAPÍTULO

O general Mac Flinger, integrante do Estado-Maior, não se


continha. Comentava abertamente, no círculo militar, o
desagrado pelo desdém dos executivos do governo. Fazia
reuniões informais com outros oficiais, discutia as
conseqüências do alheamento do governo e reclamava da
posição de Stanfordson.
Imaginou que, se o relatório vazasse, o governo seria
obrigado a voltar atrás e mudar sua atitude.
Pensando, executou. Sem se comprometer diretamente,
entregou a um ativo repórter autônomo cópia de partes do
relatório secreto e aguardou os reflexos que a notícia poderia
causar.
Dois dias depois da visita de Devers ao Pentágono, foi
publicada na revista Grostane, de Boston, extensa reportagem
em que é revelado, com palavras sombrias, o pesadelo que
paira sobre o planeta.
A revista revela toda a seqüência do estudo maldito. Cita,
com detalhes, a impressionante massa de informações
científicas contidas no documento da UCA e os fundamentos
em que se baseou a nata da inteligência militar. Publica, sem
retoque e abertamente, a linha de raciocínio seguida pelos
técnicos militares do Estado-Maior. Mostra a conclusão
definitiva: colapso climático da Terra para o fim da próxima
década. Só não menciona os aspectos estratégicos de tomada
de decisão sugeridas ao Presidente, parte extremamente
delicada, não fornecida por Mac Flinger.
AGORA OU NUNCA MAIS
269

A publicação não se reporta apenas ao documento, por si


só altamente alarmante. Revela que o governo arquivou não só
o relatório como todo o potencial explosivo nele contido,
demonstrando absurda e completa ausência de
responsabilidade.
Antes de a revista sair para venda, o governo já tinha
tomado conhecimento da reportagem e agiu de imediato para
neutralizar os seus efeitos.
Os telefones dos principais comandantes da mídia,
inclusive de Sertting, receberam comunicado de executivos da
Presidência. Davam conta de que os informes atinentes ao
relatório do Pentágono, que estavam sendo publicados por uma
revista inexpressiva e sem compromisso com a verdade, se
referiam a matéria sensacionalista, inconsistente e desprovida
de um enfoque realista. Acrescentavam, ainda, que o governo
daria conhecimento público da opinião científica do assunto.
De fato, o governo liberou uma nota em que diz,
baseando-se em informes ditos científicos, “que as condições
climáticas estão em boas condições, diversas pesquisas ainda
estão em discussão nos meios acadêmicos e que o relatório do
Pentágono não passa de uma peça de ficção científica. Que o
povo pode ficar tranqüilo e confiar no governo, pois o
Presidente tem a necessária capacidade de discernir a
realidade da fantasia”.
Ante as iniciativas do governo e a pouca expressividade
da revista Grostane, a grande mídia mundial, comandada por
poucos proprietários, ignorou o assunto. Em conseqüência, o
mundo também ignorou.
AGORA OU NUNCA MAIS
270

Dessa forma, Devers tomou conhecimento do que estava


escondido e ficou desesperado. Comentou com seus
assessores:
— O estudo do Pentágono chegou à mesma conclusão do
Candota, com apenas alguma diferença de data. Não
precisamos mais de qualquer informação científica, porque isso
o Pentágono já fez. Quer dizer, a previsão é verdadeira. Em
cima disso é que temos que trabalhar. Mas como? Tenho que
pensar.
— Eu tenho uma idéia – arriscou Joshua. — A mídia e os
empresários sabotam os fatos, e o governo não enxerga a
situação. Pra render as...
— O governo enxerga – atalhou Walderez. — Ele não quer
é tomar uma decisão porque já viu que o problema é muito
grande e tem medo de enfrentar os poderosos.
— Você vê que o Candota tem boa percepção. Ele disse
que a solução só vem com um regime de força e tem razão –
reconheceu Devers. — Mas você disse que tem uma boa idéia.
Qual é, Joshua?
— É nessa lógica da força que eu ia falar. E quem tem
força? A corporação militar.
— Nessa área, nós não temos condições de entrar e nem
devemos – opinou Devers. — Temos que trabalhar é só com as
nossas próprias forças, que são fracas. Nossas armas são os
argumentos.
Enquanto isso, os tentáculos do poder estavam se
mexendo. Em seu escritório, Klintok atendeu ao telefone:
— Aqui é o Sertting.
— Fala, amigo. Tudo bem?
AGORA OU NUNCA MAIS
271

— Bem, nada! A situação piorou.


— Me explica isso direito.
— O Pentágono entregou ao Presidente um relatório
secreto, prevendo a mesma desgraça que o seu amigo
Candota.
— Então esse louco conseguiu ser recebido até pelo
Pentágono?
— Acho que não. Um não sabe do outro. O estudo do
Pentágono é independente e baseado em estudos científicos. O
governo está tentando abafar o assunto e nós da mídia temos
cooperado. Acho que a coisa vai morrer por aí.
— Pois eu penso que não teve coincidência, não! Pra mim,
esse brasileiro maluco conseguiu iludir até o Pentágono. Vai
ver que tem dedo dele nessa história.
— Pelas informações que eu tenho, foi coincidência
mesmo!
— Não é possível! Seria coincidência demais! Vai por mim.
Eu conheço esse moço e sei do que ele é capaz. Ele tentou
convencer até a minha mulher! Pode acreditar que tudo é obra
dele.
— Pode ser que você tenha razão. Mas é bom continuar
com seu trabalho junto aos congressistas, a parte política mais
delicada do nosso sistema. E pode contar comigo.
— Está bem. Obrigado pelo telefonema.
Sabedores da atitude governamental, os componentes da
UCA se sentiram amargurados e desprestigiados. Deram
conhecimento do que ocorria a todas as associações científicas
do mundo, pediram que protestassem contra as falsas e
AGORA OU NUNCA MAIS
272

tendenciosas alegações do governo americano e que fizessem


representações de esclarecimento aos governos nacionais.
Todos os congressistas dos Estados Unidos foram
visitados por comissões de cientistas com a finalidade de expor
a grave posição adotada pelo executivo americano.
Entrementes, os mesmos membros do congresso
americano passaram a receber pressão tanto do próprio
governo, mediante razões partidárias, como das grandes
corporações que sustentam as campanhas eleitorais. Estas
apresentavam um quadro social sombrio se prevalecesse, nas
decisões de governo, a aceitação do relatório do Pentágono.
Klintok e seus amigos, à surdina, continuavam a
influenciar importantes defensores da tradição econômica e
social do país, inclusive com ações restritas na área de cada
poder e contavam com o beneplácito do governo. O grande
perigo agora – pensavam – já não era a hipótese de Candota,
mas o documento real, contundente, produzido pela instituição
mais respeitada do país.
Contudo, Klintok já tinha anteriormente conseguido
convencer o senador Brent a patrocinar uma denúncia ao FBI,
na qual recomendava que fossem investigadas as atividades do
estrangeiro Candota, sob suspeita de exercer atividades
contrárias à segurança do país.
Foi por intermédio do FBI que o general Stanfordson ficou
sabendo, desde o princípio, dos passos de Candota na APA.
No momento em que esses esforços contrários eram
encetados no ambiente das sombras, a grande mídia defendia
seus interesses econômicos e os de seus pares, simplesmente
desconhecendo o assunto.
AGORA OU NUNCA MAIS
273

Enquanto isso, Candota já tinha tido conhecimento da


reportagem da revista Grostane e ainda aguardava, sem
entusiasmo, notícias de Devers. Estava desanimado e já
pensava em abandonar tudo e voltar para casa, onde pretendia
esquecer o passado e renovar sua vida. Não perderia tudo;
pelo menos ganharia Beatriz. Falou com Bento sobre suas
intenções.
— Se o Pentágono já alertou o governo sobre o perigo
ambiental e não valeu de nada, o que é que eu vou ficar
fazendo aqui? Devers, nesta altura, já nem se lembra do meu
nome. Eu vou ficar esperando o quê?
— Não desanima, não. De certa forma, você tem razão,
mas convém a gente esperar um pouco, pra ver o que vai
acontecer. Você não vê que surgiu um fato novo e muito
poderoso? E a gente ainda não sabe tudo do que está
acontecendo. Eu acho que o Pentágono se baseou no seu
trabalho. O Devers deve ter mostrado pra eles. E se eles
precisarem de você?
— Se precisarem, é só me buscar lá no Brasil.
— Já que você está aqui, acho que pode esperar mais um
pouco.
— Está bem. Enquanto o passaporte valer, eu fico. Depois,
nada me segura.
Na manhã do dia seguinte, Candota tinha acabado de
fazer uma longa caminhada pelo condomínio. Mal entrou em
casa, a campainha tocou.
— Desejo falar com o senhor Luiz Cândido – disse o
homem à porta.
— Sou eu mesmo. O que deseja?
AGORA OU NUNCA MAIS
274

— Posso entrar? Sou funcionário do Departamento de


Imigração – enquanto apresentava suas credenciais.
Conduzido à sala, explicou:
— Estou aqui em serviço de fiscalização. Pelos nossos
registros, o seu visto de permanência está vencido.
— Não. Ainda vai vencer e talvez eu requeira a
prorrogação.
— Posso ver o passaporte?
Candota foi ao quarto e trouxe o documento. Entregou-o
ao homem e ficou na expectativa.
— Eh, parece que ainda não venceu mesmo! Mas tenho
ordens de retê-lo.
— Não posso ficar ilegal no país. Sem passaporte! Mas,
afinal, qual o motivo dessa atitude?
— Você está sob suspeita de ameaça à segurança
nacional.
— O que que eu fiz?
— Não sei. Só cumpro ordens.
— Então, você me dá um recibo do passaporte.
— Vou lavrar o auto de apreensão. Você fica com uma
cópia, que agora é o seu documento. Ele só vale dentro do
estado de Nova Jersey. Não pode viajar pra fora do Estado.
— Qual é o recurso que me cabe?
— Não sei. Consulte o seu advogado – respondeu
secamente o funcionário enquanto se retirava.
Entrementes, na Agência de Proteção Ambiental, o
administrador Devers recebia, com surpresa, um telefonema
do general Stanfordson, pedindo audiência.
— Venha na hora que você quiser. Pode marcar.
AGORA OU NUNCA MAIS
275

— Em trinta minutos, chego aí.


— Estou te esperando.
Devers mandou que o secretário desmarcasse todos os
compromissos do dia. A visita do general tinha prioridade.
— Devers, desculpe atrapalhar sua agenda, mas eu tinha
que te ver logo. Não estou agüentando mais a pressão lá no
Pentágono; até em casa! – foi dizendo o general logo que
chegou.
— Não se preocupe. Pode ficar à vontade. Temos muito
tempo.
— Você esteve lá naquele dia, e eu não pude adiantar
nada. Você sabe, sou um soldado e tenho que respeitar a
disciplina. Além disso, o relatório era secreto e ainda não tinha
sido arquivado pelo Presidente. Eu tinha que...
— Tranqüilo! Tudo bem! Entendo perfeitamente a sua
posição.
— Como você já deve saber, o documento vazou dos
canais de governo. E vazou justamente porque foi rejeitado
pelo Presidente.
— Deve ter sido!
— Mas não ficou só nisso, não. Como você deve estar
vendo, o executivo vem conduzindo uma campanha de
descrédito do nosso trabalho científico, movido unicamente por
interesses políticos imediatistas, o que considero um crime.
— O problema ambiental, que é real e contundente, se
sobrepõe a todas as questões políticas, que passam a ser, no
caso, menores e subalternas.
AGORA OU NUNCA MAIS
276

— Também acho! Depois do arquivamento do relatório,


decidi ignorar o fato e me manter neutro, por imposição da
disciplina.
— Desculpe, mas posso arriscar uma opinião sobre isso?
— Fique à vontade. Pode dizer o que você quiser.
— Você falou em disciplina. Examinando melhor, não seria
um condicionamento militar?
— É a mesma coisa!
— Desculpe, mas acho que não. Posso?
— Pode!
— Então, lá vai! Na educação militar, vocês ficam com a
mente aprisionada; não têm autonomia pra pensar. Isso é que
leva à observância da disciplina que se resume em obedecer às
ordens; só obedecer, sem pensar. Acostumando-se nesse
cativeiro, vocês passam a reprimir suas emoções
— Mas a gente sente!
— Claro que sentem porque são humanos! Mas ao sentir,
adquirem o complexo de culpa.
— Devers, vamos deixar esse papo pra outra ocasião. Eu
vim aqui pra falar de coisas mais concretas. De certo modo,
até que elas têm relação com essa sua observação.
— Não quis te aborrecer! Fala.
— Como te disse, eu fiquei neutro na questão, mas os
meus colegas do Pentágono e generais de comando começaram
a comentar e se indignar com o assunto, que acabou
transbordando pras esposas. E as mulheres, agora apavoradas,
além de exagerarem nas conseqüências, ficam atormentando
os maridos, reclamando: “O que vai ser dos nossos filhos?”.
AGORA OU NUNCA MAIS
277

Até lá em casa, minha mulher fica repetindo esse refrão. Não


agüento mais!
— E elas têm toda razão.
— Acontece que os nossos oficiais, apoquentados em casa
pelas mulheres e no serviço pela consciência, começaram a
realizar reuniões informais e alguns estão se manifestando
com indignação, já sem controle.
— Isso é perigoso!
— Se é! Eu, como chefe do Estado-Maior, não posso
tomar partido, mas também não posso ignorar esse início de
agitação. Foi algum deles que entregou cópia do relatório pra
um repórter. Foi um ato de rebeldia. Com isso decai o fator
confiança, justamente o que cimenta nossa mais importante
corporação.
— O secretário da Defesa não fala nada?
— Ele não é militar. É político nomeado pelo Presidente e
não vai querer perder o emprego. Ele foi só o intermediário do
relatório. Não apoiou o documento e procurou me ridicularizar.
— Quem sabe, ele ainda não entendeu a gravidade do
problema?
— Pode ser!
— A gente tem que procurar entender a cabeça dele. De
certo modo, ele tem razão.
— Razão!?
— É! Pensa bem! Tão factível e medonha é essa reação
ambiental, que a tendência das pessoas é considerá-la
inverossímil – nem mesmo admissível –, só porque é trágica. A
tecnologia e os confortos materiais desta civilização
condicionaram as mentes dessa gente a tal ponto que elas não
AGORA OU NUNCA MAIS
278

estão mais acreditando no que é verdadeiro, evidente,


dedutível. A fantasia, o sonho e o inconsistente, que são
desejáveis, promissores e extasiantes, têm mais facilidade de
ser aceitos.
Isso é muito importante para entender as razões aflitivas
de quem pede socorro. Com seu testemunho, caro leitor, é a
terceira vez que ouvimos aqui tão importante argumento. Em
diálogos anteriores, Candota fez a mesma observação. É
oportuno repeti-la: — Eh! sempre foi assim! Faz parte da
índole humana! A verdade trágica é inverossímil; a bondosa,
crível. Ninguém quer acreditar nas más notícias, mas crêem
piamente nos benefícios das promessas vãs e enganosas.
E prosseguiu o general:
— O assunto é sério, Devers. Isso não é conto da
Carochinha!
— Eu sei! Nós aqui temos noção do quanto a vida
depende do ambiente. Até mais do que vocês, militares.
— Acredito. Mas vocês aqui olham o assunto mais como
idealistas. Nós militares, em princípio, nem ligamos pro
assunto, mas quando surgem dados concretos de catástrofe,
como agora, passamos a sentir o problema na pele.
— Percebemos isso claramente. Mas nossos governantes
não têm capacidade de perceber!
— A questão agora passa a ser assunto de segurança! O
nosso relatório não foi feito assim, assim! Foi produzido depois
de debates e acurado estudo dos nossos mais categorizados
cérebros. Está muito bem fundamentado. Hoje temos uma
visão clara da realidade. Ela está aí na nossa cara!
AGORA OU NUNCA MAIS
279

— Eh! Nós idealistas e vocês práticos... Esse casamento,


acho que pode dar certo. Acho que combina.
Nesse momento, os olhos do general brilharam. Notou ele
que havia uma harmonia de entendimento com o interlocutor.
Curtindo por um momento essa satisfação pela identidade de
idéias, abriu um largo sorriso e se revelou:
— Ô Devers, você parece que adivinhou! É justamente
sobre isso que eu vim te falar. Sei que um brasileiro te
apresentou um estudo da mesma natureza, prevendo início do
colapso pros próximos anos. O FBI recebeu denúncia contra ele
e deve estar investigando.
— Eu devia ter previsto isso! Você me dá licença um
pouco.
Chamando o assessor pelo telefone, disse:
— Wal, o Candota foi denunciado no FBI. Não tenho
notícias dele. Eu quero que você fique só por conta disso e
cuide da segurança dele. Com urgência, por favor. Faz tudo
que precisar. Me dá notícias logo que puder.
— Desculpe, Stanfordson. Tenho que agir rápido.
— Você está certo. Eu também tenho interesse na
segurança dele. Ele pode ser útil.
— Veja você! Ele já está incomodando certas pessoas.
Pois é... você falava que eu adivinhei. Adivinhei o quê?
— Sobre o casamento dos nossos interesses.
— Ah, sim!
— Eu vim aqui justamente pra conversar sobre o estudo
desse moço. Não conheço os detalhes. Você podia me fornecer
os elementos desse trabalho pra comparar com o nosso.
AGORA OU NUNCA MAIS
280

— Vou providenciar com urgência. Enquanto isso, você vai


segurando a sua tropa. Temos que trabalhar com a cabeça fria.
Depois das despedidas, Devers se apressou na elaboração
de um parecer, juntou cópia dos documentos que Candota
havia deixado e mandou um portador entregar tudo
pessoalmente ao general Stanfordson.
Naquele dia em que perdeu o passaporte, Candota estava
amargurado com a sua nova situação. Sua posição de cientista
estava discriminada. Sentia-se abatido e pensando em desistir
da luta. À tarde, com a chegada de Bento, contou-lhe o
ocorrido e não escondeu o esmorecimento.
— Candota, isso é reflexo dessa luta surda entre a
realidade dos fatos, exposta pelo Pentágono, e a atitude insana
e egoística dos interesses econômicos. Tem gente grossa atrás
disso. Eles querem é que você desista mesmo.
— Mas, e daí? Aqui, não sou cientista; sou simplesmente
estrangeiro e subversivo. Sou perigoso. Não posso falar nada.
— Estrangeiro, sob enfoque discriminatório, todo mundo
é. Isso não desqualifica ninguém. Só na visão estreita de
alguns. Esses americanos!... Não vêem que, no fundo, nos
Estados Unidos todos são estrangeiros? Os índios são os únicos
que não são.
— Já pensou!? Eu é que sou ameaça à segurança do país!
Quem ameaça é a Lógica e a Natureza, não eu.
— Fica tranqüilo. Eu vou tomar alguma providência. Agora
eles mexeram foi comigo.
Passados dois dias, Candota, muito assustado, recebe
nova visita do mesmo funcionário do Departamento de
Imigração.
AGORA OU NUNCA MAIS
281

— Mandaram te devolver o seu passaporte. E já está


prorrogado.
— O que que aconteceu?
— Não sei. Só obedeço a ordens, mas parece que você
tem algum padrinho forte lá em cima.
Deu resultado o empenho da APA diretamente com o
diretor do FBI, ocasião em que Devers lhe assegurou que a
denúncia tinha caráter político e que Candota estava prestando
relevantes serviços à agência.
Alguns dias mais tarde, Devers recebe nova visita do
general Stanfordson que disse:
— Estudamos o trabalho do Candota. Os apanhados e o
embasamento científico se ajustam aos informes que temos. A
metodologia dele é diferente e original, mas as conclusões se
convergem.
— Também pudera! Ciência é ciência em qualquer lugar.
— Há uma pequena discrepância de data, mas isso é
relativo. O fato é que as condições negativas existem e pedem
urgência na solução. Na parte das estratégicas, há também um
enfoque diferente. Enquanto nós defendemos leis urgentes e
medidas enérgicas, com convencimento dos outros países, ele
sugere a criação de um governo mundial e medidas mais
radicais. A solução desse moço é mais racional, efetiva e
profunda.
— Ele propõe um período de hibernação da democracia.
— E está correto. Nós tivemos escrúpulo nessa parte,
naturalmente por influência do respeito à democracia. Nesse
aspecto, devido à nossa situação profissional, ficamos pisando
AGORA OU NUNCA MAIS
282

em ovos. Mas reconheço que nisso nós erramos. Pra falar a


verdade, o Candota foi mais honesto e corajoso.
— Você respeitou a democracia, mas a Natureza não
respeita nem direitos, nem ética, nem leis, nem democracia.
Se você examinar bem, vai ver que essa nossa democracia é
distorcida, não bate com os objetivos naturais.
— Agora, presta atenção! Lá no Estado-Maior, fizemos
esboço de um plano pra convencer o governo a enfrentar a
realidade. Quanto mais demorar, pior. Chegamos à conclusão
que o Presidente sabe da seriedade do nosso estudo, mas
prefere deixar a bomba estourar nas mãos do próximo que vai
ocupar o cargo. É um comportamento egoístico e
irresponsável. Mas o caso é que ele tem medo. E quem tem
medo ante o perigo o que que faz?
— Enterra a cabeça na areia, como o avestruz.
— É isso mesmo! É uma solução animal, mas irracional
pra nós.
— Qual é o seu plano?
— Aí é que você vai entrar. Raciocinamos assim: a
recomendação do Pentágono foi arquivada, morreu. Agora,
entrando outro relatório, independente do nosso, o Presidente
vai ficar com duas denúncias praticamente iguais nas mãos.
Ele vai se sentir pressionado. Como você não tem secretário
intermediário pra atrapalhar, pode falar diretamente com o
Presidente. E falar cruamente, sem rodeios.
— Essa é minha função, e não posso pôr panos quentes.
— Nossa esperança é você. E quanto mais cedo essa
reunião, melhor.
AGORA OU NUNCA MAIS
283

— Deve ser uma reunião conjunta com os secretários, e


não vou nem tocar no assunto do relatório do Pentágono. Pra
todos os efeitos, eu não sei de nada.
— De acordo!
— Conforme ficou decidido com o Conselho de Qualidade
Ambiental, tenho que dar andamento no processo daqui com a
convocação de diversos cientistas, já selecionados. Não
precisava, porque já existe o estudo da UCA, mas como não
posso conhecer nada desse documento, vou ter que ir em
frente. O pessoal do CQA está vacilante, mas eu dobro eles
antes de pedir despacho com o Presidente.
— Sucesso pra você! Me dá notícias depois, viu?
Conforme planejado, Devers convocou os cientistas e os
membros do CQA. Telefonando para Candota, disse:
— Preciso de você aqui, pra participar de uma importante
reunião sobre o seu programa.
— Pensei que você não ia mexer mais com isso. Você
ficou sabendo do fiasco do Pentágono?
— Aquilo é outra história. Agora é assunto mais sério.
Você pode vir? Ah! você recebeu o seu passaporte de volta?
— Recebi, sim. Como é que você sabe?
— Não preocupa, não. Depois a gente conversa. Preciso
de você aqui com certa urgência. A reunião é depois de
amanhã cedo. Pode ser?
— Combinado. Pode esperar.
Candota ficou muito satisfeito com o telefonema e
readquiriu o ânimo. Bento, também alegre com a notícia, teceu
um comentário:
AGORA OU NUNCA MAIS
284

— Doravante você vai ter que tomar muito cuidado! Eles


te devolveram o passaporte, mas vão continuar te vigiando. É
governo de lá e de cá te puxando. Ora te machucam, ora te
assopram. Não sei, não! Estou percebendo que tem
desentendimento grosso lá em cima. Não toma partido; fica só
na posição de cientista. A gente não sabe pra onde a situação
está caminhando!
Na APA, à hora marcada, Candota foi recebido pelo
administrador. Dessa vez, havia em torno da mesa de
discussões mais de 15 senhores.
— Sente-se à mesa, por favor – convidou Devers. — Estes
senhores são componentes de uma primeira comissão de
cientistas e membros do CQA, destinada a examinar as
questões que você descreveu e, se for o caso, encaminhar elas
ao Presidente.
Respeitosamente, apresentaram-se todos. Ali estavam os
principais assessores, alguns cientistas e técnicos do CQA.
Os semblantes se apresentavam sérios, e o recinto
comunicava atmosfera de austeridade. Candota estranhou
aquele ambiente sombrio e depressor, nada amigável. Nem
café foi servido. O administrador confabulou algo com o
assessor ao lado e finalmente se pronunciou:
— Amigos, todos já sabem sobre o que vamos tratar.
Estão presentes as melhores cabeças de que dispõe o país.
Temos, evidentemente, um problema muito grande em nossos
ombros e estamos decididos a encontrar o melhor caminho pra
equacionar a solução. A comissão de cientistas, aqui presente,
já nos ofereceu relatório prévio que fundamentou nossa
decisão de realizar esta reunião.
AGORA OU NUNCA MAIS
285

O presidente da sessão fez longa pausa e olhou em volta.


Era firme o silêncio na sala. Os ouvintes se mantinham imóveis
na concentração e nenhum movia sequer as mãos. Naquele
grave ambiente, Devers prosseguiu:
— O relatório científico prévio atesta que a teoria de
Candota, em todos os seus componentes, tem procedência
científica. Aliás, no aspecto geral, o estudo confirma o que os
luminares da ciência já vêm denunciando há muito tempo nos
congressos mundiais. Mas agora temos em mãos um trabalho
consistente que nos aponta a certeza de um futuro sinistro.
Ante tal situação, entendemos que nosso governo deve tomar
as providências cabíveis.
Foi dada a palavra aos componentes. Convictos da
pungente realidade, todos fizeram diversas abordagens do
assunto, concluindo sempre pela necessidade de criação do
governo mundial. Alguns, mais exaltados e pessimistas,
mostraram-se acabrunhados e previram a implantação de
medidas brutais e radicais. Dada a palavra a Candota, ele
assim se pronunciou:
— Por tudo aqui exposto, está evidente que estamos
diante de um momento histórico que requer decisões corajosas
pra evitar o desaparecimento da humanidade. Mas, se as
autoridades do governo mundial tiverem tato, habilidade e
rapidez de ações, os remédios não precisam ser tão amargos
como alguns aqui estão prevendo.
O administrador, que presidia a reunião, julgou oportuno
encerrá-la, comunicando que ia tomar todas as providências
necessárias e que, posteriormente, pretendia entrar em
AGORA OU NUNCA MAIS
286

contato com Michels para confirmar uma audiência com o


Presidente.
No dia seguinte, feito o relatório final com a colaboração
de Candota, Devers mandou entregar, extra-oficialmente, uma
cópia ao general Stanfordson e aguardou sua manifestação.

9º CAPÍTULO

Entrementes, os fatos se precipitaram.


Foi intensa a atuação dos cientistas dos outros países, por
recomendação da UCA, mas não chegaram a demover seus
governantes, exceto o do Japão, que considerou o assunto
relevante e o primeiro-ministro pediu uma audiência com o
presidente Nash. Na conversa, este foi duramente pressionado
pelo mandatário japonês, dizendo que os acordos ecológicos
anteriores tinham fracassado e que já eram inadequados,
tendo em vista o agravamento da situação ambiental. Se os
Estados Unidos não assumissem a responsabilidade numa
atitude conveniente, o Japão tomaria a iniciativa de convocar
uma conferência internacional para abordar o problema, o que
seria desgastante para a posição de liderança do país
acovardado.
A mulher de um coronel do exército foi presa por
tentativa de afogamento num rio de seus dois filhos menores,
alegando que já não suportava mais as perspectivas sombrias
AGORA OU NUNCA MAIS
287

do futuro e se mostrava insana. Mas finalizava seu


depoimento, citando o relatório do Pentágono, no qual acusava
o Presidente de ser o responsável pelo seu descontrole
emocional.
O tenente-coronel Sullivam, professor de Lógica na
Academia Militar de West Point, que havia participado da
comissão que elaborou o relatório do Pentágono, postou-se
com arma automática numa janela da instituição e matou e
feriu onze cadetes, aleatoriamente, antes de ser abatido pela
guarda de segurança. Na véspera, tinha-se divorciado da
mulher que o acusava de covarde e de lhe ter mentido ao
negar que tivesse participado da comissão de estudos para o
relatório do Pentágono.
Ante esses fatos, as pessoas de governo envolvidas
começaram a se sentir incomodadas, providenciando reuniões
e consultas.
No Pentágono, depois de examinado o documento enviado
pela Agência de Proteção Ambiental, o general Stanfordson
ligou para Devers:
— Seu trabalho foi examinado por uma comissão daqui e
recebeu muitos elogios. A apresentação do Candota foi
acolhida por todos e é em cima dos dois documentos que
vamos trabalhar. Afinal, o perigo apontado é o mesmo que já
tínhamos percebido. Você está sabendo das tragédias que
estão ocorrendo, ligadas ao nosso relatório? Aqui a situação
também não está boa. Sofro pressão todos os dias. A causa é
uma só, a lamúria das esposas: “e o que será dos nossos
filhos?”.
AGORA OU NUNCA MAIS
288

— Fiquei sabendo. Eh, alguma coisa tem que ser feita


mesmo!
— Como é que está o andamento por aí?
— Minha audiência com o Presidente já foi marcada, mas
sem data definida. Reza aí pra eu conseguir virar a situação.
— Vou rezar bastante!
— Depois te dou notícias.
Devers não sabia, mas o general Stanfordson tinha
planejado ações paralelas destinadas a facilitar sua missão.
Conforme estava previamente combinado com os oficiais
insatisfeitos, foi dado sinal para que estes pressionassem seus
superiores. O passo seguinte e culminante foi uma audiência
de Stanfordson com o secretário da Defesa. Outras ações
estavam programadas para depois, de acordo com a
repercussão no governo do trabalho da APA.
No Departamento da Defesa, o secretário recebeu o
general.
— Meu caro O’Connor, não vim aqui falar daquele
relatório, porque ele já está arquivado. Pro governo, o assunto
está encerrado.
— E está mesmo! Então, qual é o assunto?
— Vim tratar de um outro relatório sobre problema
ambiental, produzido pela APA, que nosso serviço secreto
conseguiu captar.
— Que tem de especial esse documento?
— Ele é parecido com o que o Pentágono te entregou há
dois meses.
Pondo a mão na testa e fazendo careta de aborrecimento,
o secretário exclamou:
AGORA OU NUNCA MAIS
289

— Outra vez! Mais uma porretada! Assim, o Presidente


não agüenta!
— Não tenho culpa. Isso é assunto da APA. Ela...
Mostrando contrariedade, O’Connor interrompeu:
— Mas parecido como? Se é parecido, é reprodução. Só
pode ser!
— Não, secretário! Acon...
— Você quer que eu engula isso? Pra seu conhecimento,
sou maior de idade e vacinado, está bem?
— Desculpe, meu chefe. Não tive a menor intenção nesse
sentido.
— É, mas pareceu! Explica isso direito.
— Foi produzido de forma independente, usando outra
metodologia e o autor é um físico brasileiro. Pelo que fiquei
sabendo, o trabalho dele é anterior ao nosso.
— Você insiste em dizer que foi uma coincidência!?
— Não falo de coincidência. Trata-se de abordagem e
estudo de um mesmo fato, real, evidente, que todo cientista
percebe. As leis da Natureza são universais, e o conhecimento
científico também é. Eu vim te trazer a oportunidade de alertar
o Presidente sobre esse relatório que o Devers vai apresentar.
— Esse assunto não é comigo!
— É, sim. Assunto de segurança nacional.
— Mas não é assunto científico, ambiental?
— Não. O miolo do assunto é científico, mas a
conseqüência... a grande conseqüência, O’Connor, é
desgraçadamente explosiva. Nós temos que lidar é com a
conseqüência.
— Bobagem!
AGORA OU NUNCA MAIS
290

— Você precisa tomar consciência da gravidade do


momento. Uma oportunidade já foi perdida, mas agora surge
outra. Talvez mais adiante, outra. Mas, aí, será tarde demais.
— Você fica querendo apressar soluções. Tudo tem o seu
tempo!
— Não sou eu! É a Natureza! Com essa bomba, ninguém
pode ficar indiferente. Você é o responsável pela defesa do
país, e o problema é tão envolvente que é mundial!
— Mundial!... – resmungou com desprezo e incredulidade.
— Você não sabe que o nosso país está no mundo?
Enxerga, Q’Connor! Você só tem que enxergar o que está na
frente dos seus olhos. E depois tem que convencer o
Presidente. Fazer ele enxergar também. Sua missão é a de um
herói.
— Me jogando confete, hem! Já falei que sou vacinado.
— Com esse preconceito, não dá pra gente dialogar!
— Não, não é isso! Pode falar.
— Eu estava te apelando pra enxergar a gravidade do
assunto.
Olhando sério diretamente nos olhos do secretário,
acrescentou:
— Senão vamos ter que arrumar outro Presidente.
Assustado com a ousadia, o secretário, que estava
amuado, retornou com veemência:
— Acho que você está abalado com essa história e
perdendo a razão! Por isso não pensou direito, falando em
arrumar outro Presidente. Ora!...Você sabe o que está
dizendo?
— Sei, sim!
AGORA OU NUNCA MAIS
291

— Então, se contenha que não vou admitir insolência.


— Você não pode confundir insolência com lealdade. É
meu dever ser leal e honesto ao meu superior. Por isso, tenho
que te manter informado de tudo o que diz respeito à
segurança do país.
— Pelo que eu sei, a segurança do país está assegurada.
Ante o silêncio do general, indagou com olhar
desconfiado:
— Ou não está?
— Pelo critério que você deve estar pensando, acho que
não.
Estupefato e levantando as mãos perto da cabeça, como
se estivesse a ponto de explodir, exclamou com ênfase:
— O que que é isso! O que que é isso! Onde estamos!
— O’Connor, me escuta com calma. Diversos oficiais no
Pentágono e alguns com comando estão à beira do desespero
por ver o governo ignorar o perigo ambiental.
— Esse assunto está alastrando?
— É o que estou tentando dizer. Quando...
— E você não fez nada!?
— Eles estão recebendo pressão da família, que também
está sofrendo.
— Vocês são soldados! E a disciplina?
— Você sabe, o soldado, antes de ser soldado, é um
homem comum. Agüentam tudo sem queixar. Mas quando a
coisa mexe com os filhos...
— Ninguém está mexendo com a família!
— Como todo mundo, eles também anseiam pelo futuro
dos filhos.
AGORA OU NUNCA MAIS
292

— E daí? A responsabilidade da disciplina é sua.


— Numa visão do caos, ninguém garante disciplina militar.
Temos potencialidade emocional nos quartéis suficiente pra
desagregar a estrutura de governo e levar a definição pra rua.
— Você está fazendo ameaça de sedição? Seja claro!
— Não faço ameaça nenhuma. Estou é sendo fiel,
relatando a situação na corporação militar. Ela está
ameaçadora. Se este Presidente não tomar comando efetivo da
situação, vai ser preciso arranjar outro Presidente. Estou te
fazendo um relato franco e honesto.
— Isso é muito sério! Você passou da conta!
— É sério, sim! Muito sério... – repetiu.
Notando que o secretário se deixou ficar em silêncio,
pensativo, fixando o olhar no vazio, acrescentou:
— Olha, O’Connor, escuta bem. A Presidência é perene; o
Presidente, não. Dura só quatro anos. O presidente Nash tem
só mais dois anos de mandato. Se as forças armadas
conseguirem segurar a situação por esses dois anos, é
garantido que o próximo Presidente vai ser um militar... e sem
eleição.
O secretário, angustiado e com a boca seca de emoção,
se entregou:
— Eu vou te contar. Alguns congressistas também já se
manifestaram demonstrando preocupação. Depois que o seu
relatório foi vazado, apesar das medidas tranqüilizantes do
governo, as esposas dos políticos estão pressionando os
maridos. O ambiente no Congresso não está ficando bom.
— Estou sabendo.
— Eh!... Eh!... Não sei...
AGORA OU NUNCA MAIS
293

— Com o surgimento desse novo documento, acho que a


situação vai ficar insuportável, e alguém vai ter que manter
controle da situação. É preciso que o Presidente assuma as
suas responsabilidades – e agora – pro país continuar
confiando nele. Faltando confiança num governante... já viu,
não é?
— Eh!... O Presidente não ignora a situação. Sabe mais do
que nós dois, e ele não é imbecil.
— Então por que rema contra as evidências?
— A coisa não é fácil, não. Ele está entre dois fogos. Você
não enxerga isso?
— Francamente, não enxergo, não. É favor você me
explicar.
— Vou te contar a outra parte. Os representantes da
estrutura econômica, que é o que sustenta nossa existência, já
estão se organizando, inclusive com apoio de alguns
congressistas, pra combater essas idéias dos ambientalistas.
— Então, eles estão pretendendo combater o que não
existe.
— Não existe, como?
— Idéias ambientalistas não existem. O que existe é o
ambiente, que é dinâmico e está sendo rapidamente
degradado. Existe é um fato real, já anunciado pela Natureza,
comprovado pelos cientistas e finalmente confirmado pelos
estudos de projeção lógica. É preciso ficar bem claro: existe
um fator contrário à vida, caminhando no rumo do caos. É
contra essa ameaça que temos todos de juntar nossos
esforços. Você não sabe que os cientistas prevêem a
ocorrência de ciclones, erupções vulcânicas e alguns
AGORA OU NUNCA MAIS
294

terremotos? Agora estão prevendo a tragédia ambiental, só


que ainda evitável.
— Sim, eu te compreendo. Mas eles argumentam,
também com razão, que se o problema ambiental for
enfrentado como indicam os cientistas, com violação das leis
de mercado e das normas internacionais, o caos será
implantado da mesma forma. E, dentre eles, eu sou um que
pensa assim, porque tenho meus interesses econômicos na
indústria petrolífera. O Presidente também tem seus próprios
interesses econômicos. Afinal, você sabe: antes de sermos
democratas, somos capitalistas.
— Obrigado pela sinceridade. Eu te admiro! Você tem
muito valor, reconheço.
— Você me obrigou a abrir o coração. É isso!
— Estou vendo que você ainda não percebeu que o
desarranjo ecológico trará conseqüências destrutivas na
economia mundial e o esfacelamento de todo o sistema
financeiro vigente.
— Não acredito!
— O’Connor, eu e outros altos oficiais também temos
interesses econômicos agregados a essa estrutura. Mas, ante a
fúria do futuro macabro, nós entregamos tudo o que for
preciso pra preservar a vida dos nossos filhos. Será que você e
o Presidente não amam os seus filhos?
— Você está me fazendo sofrer!
— Isso não é justo. Não sou eu. Entenda que são as
evidências que fazem todo mundo sofrer.
— Como eu te falei, o Presidente está espremido entre
duas situações, ambas trágicas.
AGORA OU NUNCA MAIS
295

— Entendo, mas ainda tem uma saída: acolher o plano da


APA com a tomada dessas decisões duras, mas necessárias.
Além disso, chegamos a um ponto em que a posição do
Presidente está na resolução de enfrentar a revolta popular,
comandada pelos militares, ou enfrentar a revolta da Natureza.
— Isso agora já é uma ameaça explícita!
— Não me entenda assim. Estou apenas transmitindo a
real intranqüilidade militar.
— Mas, afinal, você disse que não ia tocar no assunto do
relatório do Pentágono e só falou nele.
— Engano seu! O que eu prometi, cumpri. Estou me
referindo ao documento que a APA vai encaminhar ao
Presidente, que contém o mesmo explosivo.
Ficaram em silêncio, pensativos, durante certo tempo. De
vez em quando um olhava para o outro e não diziam nada.
Pensavam; sob tensão. Tocou o telefone na mesa do
secretário.
— Agora não posso! – foi a resposta brusca, desligando o
aparelho.
Virando-se para o general:
— E agora? O que que eu faço?
— Tudo o que nós conversamos aqui, você leva ao
conhecimento do Presidente. Isso é lealdade. Aproveita e diz a
ele que este é o momento exato de ele se tornar um herói
nacional e mundial. Que não perca a oportunidade.
— E você?
— Eu? Estou jogando minha carreira. Meus subordinados
confiam em mim, o que é uma honra. Isso tudo são ações em
AGORA OU NUNCA MAIS
296

defesa da vida. De que vale o mundo, a tecnologia, a riqueza


material e a democracia, sem a vida?
Terminado aquele tenso diálogo, Stanfordson notou que o
secretário ficou muito abatido, denotando profunda amargura.
O general, contudo, sentia-se mais leve, consciência serena.
Tinha assumido uma postura desassombrada, mas necessária.
Acreditava que tinha preparado o caminho para acolhida
favorável do documento que Devers iria entregar diretamente
ao Presidente.
Depois que Stanfordson se retirou, o secretário da Defesa
apressou-se em marcar audiência com o Presidente. Ressoava
em sua cabeça, involuntariamente, aquela síntese: “e o futuro
dos nossos filhos?”.
Entrementes, Candota, depois do seu trabalho na APA,
tinha voltado para a casa de Bento bem mais aliviado. Tudo
indicava que a História ia mudar de rumo. Contou à Miriam o
andamento do assunto na agência, de modo reduzido e róseo,
para estimular positivamente seu espírito, o que foi mais tarde
informado a Klintok, para seu exaspero.
Na Casa Branca, o Presidente recebeu em audiência o
administrador Devers conforme estava agendado. Não se
manifestou, mas deixou a impressão de estar bastante
preocupado. Ouvido o relato do conteúdo do documento
entregue, o Presidente recomendou a seu chefe de gabinete
que entregasse a todos os secretários cópia integral do
relatório da APA e convocou reunião especial do ministério
para os próximos dias.
Acertada a assembléia, com grande expectativa dos
participantes, Devers compareceu sob intensa emoção.
AGORA OU NUNCA MAIS
297

Abrindo a sessão, o Presidente deu boas-vindas aos


presentes e entrou logo na pauta:
— Convido Devers pra fazer a exposição do assunto que
vai entrar em discussão.
— Senhores, todos receberam dossiê completo sobre um
problema ecológico que se mostrou, por meio de estudos
científicos, tão real quanto perigoso pra sustentação da vida no
planeta. Ademais, fiz ao Presidente relato pessoal das diversas
implicações administrativas e políticas que recaem em seus
ombros. O momento é grave e exige medidas condizentes com
esses perigos.
O Presidente fez sinal com o braço e disse:
— Quero esclarecer que os estudos ecológicos e
científicos foram efetuados sob a responsabilidade da Agência
de Proteção Ambiental e que confirmaram estudos anteriores.
Antes, aconselhado pelos meus assessores científicos, confesso
que não estava bem orientado e tinha dúvidas. Acho que agora
não há motivos pra incertezas. Estamos diante de indicações
precisas. Ante esse perigo evidente, cabe aqui discutir os
aspectos políticos no encaminhamento de soluções. Antes
havia um problema ecológico, agora temos sério problema
político. Que se manifeste o secretário de Segurança Interna.
— Segundo o autor do estudo, qualquer providência deve
ser iniciada por duas decisões: a proclamação, sob a tutela dos
Estados Unidos, do governo mundial e a abolição da
democracia, como norma social de administração. Isso é
verdadeira aberração! É uma insanidade! Teria repercussões
negativas e caóticas nas áreas interna e externa. Essas
medidas são inteiramente visionárias e distorcidas da realidade
AGORA OU NUNCA MAIS
298

de nossa civilização. Sugiro que o problema seja apresentado


no foro adequado, a Organização das Nações Unidas, onde
serão encontradas soluções representativas dos interesses das
principais nações. Se sair alguma resolução esdrúxula,
assinarão as nações que estiverem de acordo. Aí o problema
seria de âmbito nacional de cada uma delas.
Devers percebeu que a gravidade do problema não tinha
ainda entrado na razão daquele secretário, apesar dos
arrazoados oferecidos no relatório, o que poderia ter
acontecido também com alguns outros, e se sentiu movido a
apresentar sua contestação. Pediu a palavra e disse:
— Parece que o nobre secretário não conseguiu enxergar,
sentir, perceber o espírito do problema nem os excessos desta
civilização.
— Que excessos? – inquiriu o secretário.
— Excesso de ócio, de espetáculo, de conforto, de
poluição, de irresponsabilidade, de alimentação, de vaidade, de
bens, de poder...
— São excessos de apenas alguns poucos – voltou a
contestar.
— ...excesso de miséria, de ignorância, de destruição, de
sofrimento e excesso de gente também. Principalmente de
gente. Nesta civilização, enquanto as pessoas fazem festas e
se divertem, a Natureza é dilacerada e chora. É preciso ter
ouvidos capazes de ouvir esse choro e olhos pra enxergar essa
tragédia.
— Estou vendo é excesso de pessimismo – insistiu mais.
— Por favor, senhor secretário, não interrompa Devers –
interferiu o Presidente. E Devers prosseguiu:
AGORA OU NUNCA MAIS
299

— Que eu não seja mal interpretado. A situação é grave e


requer solução urgente, conforme os cientistas já
comprovaram. Não há condições pra se perder tempo com
discussões acadêmicas, seja na ONU, seja em qualquer outro
organismo internacional. Trata-se de salvar a humanidade e
com urgência. Algum país tem que tomar a liderança e
conduzir o processo. No meu entender, somente os Estados
Unidos têm os mecanismos pra aglutinar os interesses
esparsos das outras nações num único objetivo estratégico, à
base de cooperação para a sobrevivência. Entendo que este é
um problema mundial e, portanto, deve ser resolvido por um
governo de âmbito global, que ainda não existe, mas que
deveria existir. A Terra é muito pequena, atualmente, em face
da grande massa populacional. Por isso, requer um governo de
alcance mundial. Se temos governo pra administrar até
pequenas comunidades de cinco mil habitantes, por que não
administrar, nessa emergência, o conjunto global?
— Seria o mesmo que declarar guerra aos principais
países desenvolvidos – aparteou o secretário de Estado.
— Não exatamente – retrucou Devers –, desde que haja
representatividade relativa dos principais países. O secretário
de Estado, que tem em mãos a condução da política externa
americana, teria a importante missão de, em curto prazo,
convencer os demais países da coerência dessas medidas. O
problema não é só nosso; é do mundo. Se um meteoro grande
estivesse aproximando-se do nosso planeta, todos os países
não colaborariam pra tentar afastar o perigo de extinção da
humanidade? E, nesse caso, não teria que haver uma liderança
pra coordenar a defesa? E que função teria a democracia,
AGORA OU NUNCA MAIS
300

nessa emergência, a não ser a de atrapalhar? Um incêndio que


está começando não pede água urgente, sem qualquer
consideração às formalidades sociais? Uma bomba armada pra
explodir com hora marcada não exige o desarme urgente, com
democracia ou sem democracia? Pois bem. Temos uma bomba
ambiental pronta pra explodir. Entendo que, numa emergência
como a de que tratamos, democracia é condição
contraproducente e descartável. Ela será chamada de volta
quando estivermos numa situação futura promissora.
— Reconheço que são argumentos a ser considerados –
ponderou o Presidente. — Mas não há, Devers, um modo de
providências administrativas globais serem implementadas sem
se lançar mão de tais excepcionalidades?
— Infelizmente, não. Essas duas condições básicas vão
dar suporte pras decisões posteriores; e serão muito duras. O
governo mundial deve se legitimar e se aparelhar com todos os
recursos possíveis, porque os problemas conseqüentes surgirão
a todo o momento. Por exemplo: ao decidir diminuir a
população mundial – o que será indispensável –, terá de lutar
contra uma série de reações políticas, econômicas e religiosas
dos povos insatisfeitos. Com democracia e sem suporte militar
vigoroso, os objetivos não serão alcançados.
— Palavras desagradáveis, mas realistas – murmurou o
Presidente. — O que acha disso o secretário de Estado?
— Pra convencer os governos estrangeiros, preciso no
mínimo de dez meses. Eles vão querer tomar conhecimento
antecipado dos termos da constituição do governo mundial. E
vão exigir alterações, por certo. Como lembrei a esta
assembléia, o trabalho de convencimento dos demais países é
AGORA OU NUNCA MAIS
301

demorado. Eles não aceitarão que os Estados Unidos se


proclamem mandatários do planeta. Esse processo deve ser
construído com paciência e tempo. Em caso contrário, teríamos
de afrontá-los com proclamações amparadas nas forças
armadas e já temos problemas demais com as nossas
intervenções militares em curso. Mas, como consta do dossiê,
o governo mundial deve contar também com o apoio dos
exércitos estrangeiros, e eu não sei como conciliar essas
situações antagônicas.
— Quero ouvir as idéias do secretário da Defesa.
— Estudei bem o dossiê e ouvi a opinião de diversos
oficiais militares. Concluí que estamos perante situação
emergencial e de sacrifícios. Sendo assim, todas as ações
devem ter o mesmo caráter. Estou de pleno acordo com as
premissas sugeridas pelo autor do projeto. Urgência é
circunstância que entra com vigor na estratégia da solução. É
claro que não vamos tomar decisões unilaterais em seco. Creio
que nossa diplomacia terá êxito no convencimento e
cooperação dos demais países, desde que lhes apresentemos
cruamente o problema. Ademais, o governo mundial poderá
ser gerido pelos Estados Unidos com a participação
representativa de um conselho estrangeiro, o que é pertinente.
Mas isso é trabalho pro secretário de Estado. Na área de
defesa, desde que eliminada a norma democrática, estamos
preparados pra executar as tarefas que forem estabelecidas.
Quero reiterar que o governo conta com o decisivo apoio das
forças militares.
— Muito bem, mas entendo que temos de zelar pela nossa
posição moral também. Antes de tudo, determino ao secretário
AGORA OU NUNCA MAIS
302

da Defesa que providencie urgente acordo com todos os


adversários nesses países em que estamos atuando, a fim de
cessar imediatamente nossas ações.
— Mas, Presidente, nossa posição é muito delicada nessas
regiões!
— Você não me entendeu. Essa é uma medida preliminar
pra fortalecer nossas qualificações morais. Faça qualquer
acordo. O resto não interessa. Não vê que o futuro Governo
Mundial vai precisar ter o caminho livre pra se impor ao
mundo? E, nesse caso, com apoio legal e moral.
— Vou providenciar com urgência.
Depois que os demais ministros se manifestaram, o
Presidente disse:
— As opiniões dos meus secretários não convergem pra
um ponto comum nem são harmônicas. Isso é natural e assim
deve ser, pra que se possa chegar ao encaminhamento de tão
espinhoso e difícil assunto. Ainda não concluí nada, por
precaução, mas percebo que caberá a este Presidente tomar
decisões difíceis e contundentes. Pelo que ouvimos nesta
reunião, uma coisa é certa: estamos diante de um fato que
exige medidas urgentes. Preliminarmente, decido que cada
departamento de governo elabore um anteprojeto de medidas
institucionais. Depois, os senhores se reúnam e me
apresentem anteprojeto único contendo sugestões efetivas.
Marco nova reunião pra daqui a sete dias.
Encerrando a reunião, arrematou:
— Agora vamos trabalhar, que a Teoria de Candota exige
urgência.
AGORA OU NUNCA MAIS
303

Ficou, dessa forma, oficialmente batizado o estudo do


Candota. Sua pesquisa adquiriu formalmente o status de teoria
consensual, que engloba o programa computacional, as
equações matemático-ecológicas, os referenciais estatísticos e
a força de mudar os rumos da atual civilização.
Após a reunião, Devers ligou para o general Stanfordson:
— Tenho boas notícias pra te dar. O Presidente se
transformou num combativo ambientalista. Fiquei até
surpreso; não esperava. Parece que o clima lá está favorável
ao acolhimento do nosso relatório. Acho que tudo vai caminhar
bem.
— Meus parabéns pelo êxito! Pra mim, foi um alívio!
— Parece que a sua reza valeu. Ô reza forte!
No dia seguinte, Candota recebeu telefonema de Devers,
comunicando a boa acolhida do relatório pelo Presidente e
alguns secretários.
Conforme previsto, na semana seguinte instalou-se a
reunião ministerial. O Presidente abriu os trabalhos:
— Senhores, não preciso dizer da importância desta
reunião. Daqui, hoje, deverão sair decisões que revolucionarão
o mundo. Espero que todos estejam cientes dessa gravidade e
contribuam com o melhor de sua inteligência, porque não
podemos errar e porque nossa missão é de especial nobreza.
Peço que o secretário de Estado resuma o resultado da reunião
decisória sobre os estudos elaborados pelos departamentos de
governo.
— Enquanto me empenhei na elaboração do anteprojeto
de ação, despachei funcionários de primeiro escalão pra
contatar os governos dos principais países, já com a missão de
AGORA OU NUNCA MAIS
304

trazerem concordância à criação do governo mundial. Na


reunião preliminar pra discussão dos diversos anteprojetos dos
demais secretários, chegamos à conclusão de que, apesar dos
grandes inconvenientes, não há outra estratégia senão a
sugerida pelo autor da teoria.
— Então, devemos pleitear o direito de liderar o governo
do mundo? – perguntou o Presidente
— Pra atingir os objetivos de defesa desse mesmo mundo,
isso é legítimo e necessário. Mas, conforme já sentimos nos
contatos diplomáticos, é altamente conveniente que haja
participação dos principais países. É pra dar representatividade
a esse novo governo.
— Seus mensageiros trouxeram notícias favoráveis?
— Orientei meus ajudantes pra que informassem os
governos estrangeiros sobre o perigo iminente e que o apoio
internacional é indispensável. Que não há tempo a perder e
que desejamos sejam colocadas sob jurisdição do governo
mundial toda a estrutura administrativa desses países e as
suas próprias forças armadas. Recebemos do governo japonês
apoio incondicional. Os outros, em princípio, repudiaram
nossas sugestões, mas se dispuseram a examinar com atenção
e com urgência a Teoria de Candota, dispondo-se a indicar
mais tarde as suas próprias sugestões. Nossos representantes
encareceram a urgência de um pronunciamento. Não fizemos
qualquer ameaça velada, por enquanto. Preferimos a adesão e
participação voluntária deles.
— Muito bem! Está aí a primeira pedra no caminho. Mas
tenho confiança no seu departamento. Sei que conseguirá
remover os obstáculos.
AGORA OU NUNCA MAIS
305

— A esse respeito, sugiro que se marque urgente reunião


de chefes de governo dos dez principais países, o que seria
muito útil e apressaria a formação do governo mundial. Pelo
menos ficaria definida uma posição de princípios. Essa reunião
fortalecerá a compreensão e confiança entre os países e o
entendimento dos riscos da não-solidariedade.
— De pleno acordo! Marque essa reunião com urgência.
— Quanto ao anteprojeto unificado, redigido após as
discussões dos secretários de governo, estabelecemos apenas
os pontos principais, ficando pra depois os pormenores e a
monitoração segundo o andamento das nossas ações
administrativas.
— Quais foram esses quesitos?
Num ambiente tenso e silencioso, o secretário de Estado
remexeu os seus papéis e, colocando os óculos, passou a ler:
“Primeiro: A avocação aos Estados Unidos do direito de
presidir e constituir um governo mundial, com participação e
assessoria dos representantes dos principais países e apoio da
ONU, o qual terá soberania sobre os povos, nos termos de uma
constituição a ser elaborada pela ONU, mas sob nossa
supervisão. Como conseqüência, os governos nacionais passam
a ser mandatários do governo central;
Segundo: O desmonte universal da representatividade
político-democrática e das estruturas judiciárias. As
administrações nacionais se imporão por decretos e se
apoiarão nas forças militares;
Terceiro: Os interesses do governo mundial se sobrepõem
aos interesses nacionais;
AGORA OU NUNCA MAIS
306

Quarto: Se as determinações do governo mundial não


forem cumpridas pelas autoridades nacionais, as forças
armadas delegadas do poder central as farão cumprir;
Quinto: As medidas iniciais serão de caráter emergencial,
mas, segundo critério do governo central e à vista da
monitoração e avaliações positivas, poderão ser abrandadas.”
— Perfeito! Já temos quase uma constituição. Quero
manifestar ao meu ministério que podem ir tomando as
providências preparatórias. As reuniões internacionais, de
cunho diplomático, deverão apresentar esses preâmbulos como
já definidos pelo meu governo. Esse tema será o foco da minha
reunião com os chefes de estado. Não é possível que eles não
se alinhem! Alguém quer se manifestar? – convidou o
Presidente.
Diversos secretários de governo se pronunciaram, cada
um expondo suas dúvidas e sugestões, finalizando, no entanto,
com o apoio à súmula lida pelo secretário de Estado. Fez
algumas considerações também o vice-presidente, de modo
geral dando respaldo às sugestões do ministro. Quem destoou
um pouco foi a secretária de Comércio, última a falar:
— Pelo que discutimos na reunião preliminar, essas
medidas concretas vão acarretar desequilíbrio profundo nas
relações comerciais internacionais. Isso abalará, de certa
forma, as estruturas econômicas estabelecidas e trará revolta
à nata dos empresários, que são o suporte da nossa economia.
Na reunião prévia eu me bati por medidas iniciais leves, de
forma que a nova linha administrativa não desarrumasse a
harmonia econômica mundial. Estou repisando o meu ponto de
AGORA OU NUNCA MAIS
307

vista porque o julgo mais prudente e compatível com o bom


senso.
— O que acha, Devers, do que ouviu? – perguntou o
Presidente.
— Pro momento em que nos encontramos, é certo que
não podemos nos precipitar. Devemos levar em conta que a
solução do problema central tem de ser conduzida com
autoridade, porém com inteligência. Entendo que as
ponderações da secretária de Comércio traduzem um princípio
básico, cautela. Entretanto, é inegável que o programa
executivo a ser elaborado oportunamente perturbará, direta ou
indiretamente, todas as áreas da atividade humana. É o preço
dos nossos pecados. Em compensação, como objetivo final, é
benéfico. Afinal, quanto mais cedo iniciarmos o processo
inverso de desenvolvimento, menos dolorido será ele. Pra
iniciar, os cinco princípios básicos enunciados pelo secretário
de Estado são satisfatórios e não requerem reparo da minha
parte.
— Por hoje – manifestou-se o Presidente –, têm a minha
aprovação os quesitos enumerados, a realização da reunião de
cúpula e o seguimento de entendimentos diplomáticos.
Recomendo que a reunião de cúpula seja bem preparada.
Virando-se para Devers, disse:
— Após a reunião com chefes de estado, além das
diversas providências burocráticas, vou nomear um conselho
de gerenciamento das nossas decisões. Você convoca Candota
pra participar desse grupo, o que nos será muito útil.
Depois de ter recebido telefonema de Devers, dando-lhe
notícias e transmitindo o convite para compor o futuro
AGORA OU NUNCA MAIS
308

conselho, Candota ficou radiante. Disse aos amigos


hospedeiros que estava satisfeito, pois tudo indicava que o
governo enfrentaria com coragem e decisão aquele lúgubre
problema ecológico. Contou que foi convocado para participar
do gerenciamento dos atos de governo, o que aumentaria sua
responsabilidade para com o êxito do processo.
— E agora? Depois de tudo isso que nos contou, o que
acha que vai acontecer? – perguntou Miriam, demonstrando
preocupação.
— Enquanto estávamos nas conjecturas teóricas, as
soluções eram mais fáceis. Agora, quando as nuvens escuras
da realidade estão se aproximando, estou sentindo é um certo
medo – confessou Candota.
— Estou preocupado é com o nosso emprego. Eu sou
matemático, só sei dar aulas e lidar com abstrações. Não sei
fazer outra coisa. Como fica a situação da Miriam, que é
diretora da biblioteca e tem paixão pela profissão? As escolas
vão ser fechadas? Como ficam as bibliotecas? A situação vai
ficar muito complicada! Também estou sentindo medo.
Procurando animar o marido, Miriam disse:
— Bobagem, gente! Bobagem a gente ficar se
preocupando com essas coisas. Pode ter a revolução que for,
que na Cultura eles não vão mexer. Cultura não tem nada a ver
com ecologia! Nesse ponto, eu não tenho medo nenhum.
— Tem razão, Miriam – reforçou Candota. — Enquanto não
começar a revolução, não vamos saber das conseqüências.
Ainda é muito cedo pra ficar preocupado. O certo é que o
governo tomou uma decisão importante. Agora é aguardar os
resultados diplomáticos pra medir o tamanho das dificuldades
AGORA OU NUNCA MAIS
309

que o governo global vai ter pela frente. Mas posso te adiantar
que as atividades humanas vão caminhar no sentido inverso do
descrito no período recente da História.
— Eh!... A Matemática vai criar teia de aranha! É uma
pena! – resmungou Bento.
— No final, vamos retornar às atividades primárias de
subsistência, como você já sabe. O objetivo principal é
diminuir a população e ir pra atividades não poluentes. Só
trabalho rural é o ideal. Você já pode ir comprando uma
enxada pra praticar – brincou Candota, tentando tranqüilizar o
amigo.
— Vou ter que estudar assuntos de agricultura. Pensando
bem, vai ser até divertido. Já viu? Eu capinando, e Miriam
cuidando das galinhas... – troçou Bento.
Depois de apoiar a brincadeira com um discreto sorriso,
Candota se deixou levar pela seriedade do assunto, revelando
suas preocupações com o futuro:
— O que eu penso agora é que, pra começar a tomar
atitudes concretas, o governo vai ter que conseguir a
concordância dos outros países. Vai ser um problema!
— Isso tem que ser obtido de qualquer jeito! – sentenciou
Miriam.
— Eh!... Mas o Presidente quer formar o governo mundial
com aparência de consenso e legitimidade. Depois, tudo fica
mais fácil. Eles estão trabalhando com afinco. Por esses dias,
vai ter reunião de chefes de governo pra esclarecer essa
posição.
— Mas foi delineada alguma norma de procedimento? –
perguntou Bento.
AGORA OU NUNCA MAIS
310

— Foi. São as estruturais que nós já conhecemos.


Lembra?
— Vai ser na cacetada ou com habilidade? – voltou Bento.
— Isso não está resolvido, mas vou me bater por medidas
suaves com caráter progressivo. Afinal, ninguém quer
transformar o perigo futuro em caos presente.
— O assunto ainda está sendo tratado sob sigilo? –
interessou-se Miriam, naturalmente pensando nas perguntas
que o pai lhe faria.
— Claro! Mas acho que, aos poucos, o governo vai se
soltar e justificar os fatos. Criaram um departamento com
profissionais só pra cuidar das informações. Elas têm que ser
dosadas pra evitar o pânico. E a grande imprensa vai ser
convidada a cooperar.
— Convidada!... Hum, estou vendo! – exclamou Bento,
com desdém.
— E ela vai cooperar, é claro! Os donos não são bobos!
Mudando de lado, eles não têm nada a perder. Se ficarem
contra, não têm futuro – expôs Miriam, demonstrando seu
raciocínio.
— Candota, vai lá no meu escritório e consulta o
computador. Está cheio de mensagens pra você – convidou
Bento.
Com o envolvimento de Candota nos assuntos de
Washington, a família no Brasil tinha ficado esquecida. O
tempo tinha passado rápido, e a prorrogação indeterminada
das férias não podia ficar sem que o filho desse qualquer
notícia para os pais.
AGORA OU NUNCA MAIS
311

No escritório, ligou o computador. Na tela, diversos


recados.
Leu mensagens de aflição, de saudade, de vida. Contavam
que Terezinha tinha abortado. Intimamente, o irmão sentiu
certo tipo de satisfação misturada com lástima. Dona Rosa,
transmitindo lamúria, reclamava falta de notícias e – agulhada
no coração de Candota – manifestava pressentimento de que
não voltaria a ver o filho. Alfredo, mais formal, insistia em
notícias e confessava sentir saudade. Tecia diversas hipóteses,
inclusive a de que o filho poderia estar necessitando de
dinheiro e se oferecia para enviar o que fosse preciso.
Candota se acusou de negligente e ficou com remorso.
Mandaria de imediato um correio eletrônico para se desculpar
e fazer voltar à mãe a esperança que estava perdendo. E
redigiu:
“Somente hoje pude voltar à casa do Bento e ler as
mensagens. Fiquei vários dias em Washington, dando
assessoria ao governo. Lamento a perda do filho da Tê. Digam
a ela que o destino sabe o que faz. Quanto a dinheiro, no
momento não preciso. Aqui, tudo bem. Não se preocupem.
Minhas férias continuam prorrogadas por tempo
indeterminado, porque fui convocado pelo governo americano
pra participar duma pesquisa muito importante, relacionada
com um programa de computação que fiz. A mamãe pode ficar
tranqüila, que na primeira oportunidade voltarei pra casa. Um
abraço saudoso do filho Candota.”
Como de costume, Candota lia com atenção os jornais e
não perdia os noticiários de televisão. Em poucos dias, entre
as notícias comuns e sem qualquer destaque, o apresentador
AGORA OU NUNCA MAIS
312

de televisão do horário noturno noticiou: “A Casa Branca


informa que o presidente Nash, no próximo sábado em
Antuérpia, se reunirá com dez chefes de governo para tratar
de assuntos ecológicos que afetam o planeta. A Agência de
Proteção Ambiental não adiantou melhores esclarecimentos”.
— Bento, o governo está sendo dinâmico. Se convenceram
que a situação é de urgência. Domingo vamos ter notícia dessa
conferência. Vai ver!
— Também acho.
Ante a radical alteração de atitude do governo, as
evidências ambientais e o intento agora de colaborar, a mídia
começou a divulgar as informações atinentes, porém de forma
comedida, quase como de rotina, na forma estabelecida pelo
recém-criado Departamento de Informações.
Na televisão, alguns comentaristas analisaram a iniciativa
do Presidente e teceram elogios ao seu gesto. Foram
considerações genéricas, ressaltando o cunho patriótico.
Notava-se que não tinham conhecimento dos pormenores. Se
tinham, mostravam-se precavidos.
Já os jornais de domingo deram destaque à conferência e
fizeram especulações a respeito. Alguns se referiram à
possibilidade de a ONU se transformar em governo mundial.
Percebia-se que alguma coisa tinha vazado do encontro. Por
outro lado, noticiava-se que alguns países aprovavam medidas
enérgicas para a contenção da poluição mundial,
principalmente o Japão.
Passados poucos dias, os jornais trouxeram na primeira
página notícias concretas que proclamavam: “ONU outorga aos
Estados Unidos, com participação e assessoria de um conselho
AGORA OU NUNCA MAIS
313

multinacional e em caráter emergencial e provisório, poderes


para administrar o planeta”. Diziam que o organismo
internacional fez assembléia de urgência e tomou a decisão por
maioria de votos. Liam-se diversos comentários de jornalistas
especializados, sempre favoráveis àquela resolução, mas
demonstrando desconhecerem os pormenores ou as
implicações.
Os governantes dos principais países deram declarações
oficiais de apoio ao novo governo mundial, e a imprensa em
geral derramou elogios à nova instituição.
Líderes de Organizações Não Governamentais, de
sociedades alternativas e ambientalistas deram entrevistas,
enaltecendo a definição de posição do Presidente e louvando a
colaboração de diversos países. Aduziam que doravante
haveria maior controle sobre as fontes poluidoras como a
indústria, o lixo, a ganância econômica, o consumismo e a
educação do povo. Alardeavam uma nova era; a era de
reordenação de rumos.
As bolsas de valores operaram em acentuada baixa,
refletindo as expectativas pessimistas do sistema econômico.
Os noticiários de rádio e televisão anunciavam fartamente
que, naquela mesma noite, o Presidente faria importante
pronunciamento.
Efetivamente, na hora marcada, o presidente Nash iniciou
o discurso que, em síntese, dizia o seguinte:
“Na qualidade de primeiro mandatário do novo Governo
Mundial, criado por exigência dos momentos históricos em que
vivemos, dirijo-me aos povos para informar que estou possuído
de toda a coragem necessária ao cumprimento das exigências
AGORA OU NUNCA MAIS
314

de preservação das condições vitais da humanidade. Cientistas


de nomeada têm feito alertas continuados, e estamos
encampando suas recomendações.”
“As medidas serão duras, mas necessárias. Para que haja
êxito na empreitada, é preciso que toda a população do globo
se conscientize dos perigos pelos quais passa esta civilização e
compreenda a gravidade do problema que nos aflige, dando de
si a mais efetiva colaboração.”
“Não preciso descrever em detalhes os problemas
ambientais. Todos sabem quais são. A Terra está esquentando,
os rios estão secando, o clima está revolto, os alimentos estão
escasseando, o solo caminha para a esterilidade, a miséria
humana cresce e não se escuta mais a linguagem do silêncio.
Sim, até o silêncio o homem está poluindo.”
“O governo nacional dos Estados Unidos da América passa
a ser formado pelos atuais substitutos de todos os cargos
constitucionais. E o Governo Mundial terá a mesma estrutura e
organização da sua origem, com a participação efetiva de
representantes de diversos países e os acréscimos necessários
ao bom desempenho de suas funções.”
“Além dos outros órgãos e departamentos aludidos, estou
constituindo um conselho de gerenciamento, composto das
mais representativas autoridades científicas do mundo, que vai
programar as medidas necessárias ao alívio das tensões
negativas do nosso futuro.”
“Esclareço que as decisões finais deste governo são
irrecorríveis e que devem ser satisfeitas por todos os
responsáveis pela execução, sob pena de as fazermos cumprir
com o recurso da força, se necessário. Para isso, estamos
AGORA OU NUNCA MAIS
315

unificando os exércitos nacionais sob um comando rotativo


com supervisão de um colegiado transnacional.”
“A população mundial pode ficar tranqüila, que as
medidas a ser adotadas serão apenas as necessárias,
compatíveis com a gravidade do momento.”
Entusiasmado com a fala do Presidente, Candota avaliou
para o amigo:
— Pela rapidez com que o governo está agindo, acho que
vão me chamar logo. Estive pensando que minha presença em
Washington vai ser prolongada. Sendo assim, vou ficar alojado
num hotel da Capital pra evitar essas viagens pra cá.
— E com isso você vai deixando a gente, não é? –
lamentou Bento. Logo agora que já estava quase fazendo parte
da família. Até a Beth, quando você pegava ela, fazia carinha
boa pra você.
— Não vou fugir daqui, não!
— Você tem dinheiro pra pagar hotel?
— Com essa nomeação, o governo vai me fazer um
ordenado, é claro! E acho que vou ter ajuda de custo pra
manutenção. Além disso...
Miriam, aparecendo na sala e se mostrando muita aflita,
interrompeu:
— William, papai está no telefone. Quer falar com você!
Bento, prevendo aborrecimentos, fez expressão de
preocupação e atendeu no ramal da sala. Klintok foi logo ao
assunto, demonstrando que estava furioso.
— William, o que você e aquele maluco andam fazendo?
Eu estava sossegado porque vocês tinham entregado a tal
AGORA OU NUNCA MAIS
316

teoria pra Agência de Proteção Ambiental. Mas agora estou


vendo que vocês foram muito longe. Até no Pentágono!
— Não é verdade! Nós...
— O que vocês arrumaram?
— Não fizemos nada!
— Como, nada! O pronunciamento do Presidente está me
mostrando que tem dedo seu e daquele irresponsável no
governo. Primeiro, foi a criação do Governo Mundial, com a
liderança dos Estados Unidos, no que estou de pleno acordo,
porque afinal nós somos o único país do mundo que tem
capacidade pra governar esse povo ignorante dos outros
países. Mas agora parece que o governo exagerou com essa
brincadeira que vocês chamam de ecologia.
— Calma, Seu Klintok! Eu e o Candota não temos nada
com o Pentágono. Nós não temos nada a ver com isso. Essas
providências, agora, são apenas conseqüência duma situação
real que o governo enxergou. Nós não mandamos no governo!
— Ora, ora! Eu cansei de me oferecer pra ajudar, mas
vocês me enganaram. O CQA tem muito mais capacidade pra
avaliar essas loucuras do que a agência daquele idiota do
Devers.
— Seu Klintok, por favor, não fique nervoso. Procure se
acalmar e confiar nas nossas autoridades.
— Não estou nervoso, não! Essa bobagem que vocês
aprontaram não vai ficar assim. Você viu as bolsas de valores
caindo? Já perdi dinheiro! Eu vou confabular com os amigos
que tenho na cúpula, reunindo outras pessoas inteligentes, e
vamos interferir com rigor no andamento dessa situação.
Chama a Miriam que eu quero falar com ela.
AGORA OU NUNCA MAIS
317

—Vou chamar.
Miriam, que permaneceu na sala e tinha ouvido o tom da
conversa, recusou o fone que o marido lhe ofereceu e disse:
— Vou atender lá do quarto – e se retirou.
Candota, preocupado, se manifestou:
— Algum problema? Você está meio desconcertado.
— Nada de importante. Meu sogro é que está irritado com
a situação e diz que vai interferir. Bobagem! No pé em que
estão as coisas, ninguém vai fazer o Presidente voltar atrás.
— Depois dessa criação do Governo Mundial, a História
dobrou a esquina. Não tem mais retorno.
No dia seguinte, Candota é chamado a Washington para
se integrar ao Conselho Gerencial Ecológico (CGE), órgão
criado para funcionar provisoriamente em ala reservada na
Casa Branca. Feitas as malas e se despedindo dos amigos,
Candota disse:
— Fico muito grato a vocês pelo apoio que me deram.
Saibam que o maior mérito que demonstraram foi o da
solidariedade. Não vou esquecer nunca disso. Lá na capital,
vou ficar no Main’s Hotel e espero receber notícias de vocês.
Da minha parte, estou à disposição pra trocar idéias e oferecer
meu apoio. Não deixem de falar comigo.
No mesmo dia, os jornais publicaram diversos atos do
Governo Mundial: criando secretarias-adjuntas e agências
executivas no exterior, compondo o conselho gerencial;
fazendo remanejamento de comandos militares; nomeando os
integrantes dos novos cargos, inclusive Candota. Ali estava:
Luiz Cândido Van Koorten.
AGORA OU NUNCA MAIS
318

Na primeira reunião do CGE, sob a presidência de Devers,


houve apresentação dos componentes, cientistas de diversas
áreas, convocados em vários países. Um conjunto
representativo de acordo e em harmonia com o caráter da
problemática.
Devers fez a abertura dos trabalhos, lendo pequena
preleção:
“Senhores, conforme já lhes dei conhecimento dos
objetivos e atribuições deste Conselho, pelo dossiê entregue a
cada um, estamos aqui para equacionar os diversos problemas
que vão surgir em conseqüência das medidas excepcionais que
o Governo Mundial vai tomar. Tais medidas serão aconselhadas
por este organismo, ao mesmo tempo em que serão
rigorosamente monitoradas pelos senhores. Para isso, conta
este Conselho com um serviço especial internacional de
informações, a ser geradas pelos nossos representantes em
todas as áreas e em todos os países. Fui nomeado presidente e
coordenador deste órgão, que considero o mais importante de
todo o esquema de defesa ecológica no Governo Mundial.
Estou à disposição para ouvi-los a qualquer hora e tempo. Não
faço questão de sacrifícios em beneficio do êxito de nossa
missão, porque a considero extremamente heróica e digna.
Quero, também, deixá-los muito à vontade para se desligarem
deste organismo no momento em que lhes pareça a atuação
aqui acima de suas forças. Todos receberam as questões da
ordem do dia, que serão discutidas, ainda hoje, após intervalo
de duas horas.”
Os conselheiros se puseram a estudar o primeiro
documento a ser posto em discussão. Apontava ele mais ou
AGORA OU NUNCA MAIS
319

menos aquelas considerações que já haviam sido apresentadas


pelo secretário de Estado:

a) formação do governo mundial – já efetivada;


b) desmonte da democracia;
c) aspectos dos interesses mundiais;
d) intervenção militar;
e) critérios de rigidez de medidas;
f) primeiras medidas emergenciais.

No final do tempo marcado, Devers comunicou que,


conforme todos já deviam saber, o primeiro item estava
superado. Iniciou-se, em seguida, a discussão da abolição
mundial da representação democrática. Alguns se opuseram a
essa medida, alegando a legitimidade da representação
política. Outros alvitraram a possibilidade de intervenção do
poder executivo nas casas legislativas. Foi preciso que o
presidente interviesse na discussão para esclarecer:
— Quero pedir que os conselheiros releiam com profunda
atenção as diretrizes constantes da Teoria de Candota. Ali
consta claramente que o encaminhamento de soluções não
comporta considerações de constrangimento à cultura. O
Governo Mundial tem como justificativa ações revolucionárias
pra salvar a humanidade, e esse deve ser o objetivo; sem
melindres, sem hesitação, sem delongas. Falando mais claro:
tudo vale pra atingir o objetivo, que é a salvação da
humanidade.
Foi produtivo o pronunciamento do presidente porquanto
vários dos participantes reviram suas posições. Sentiram que o
AGORA OU NUNCA MAIS
320

momento era histórico e devia ser delineado com serenidade e


objetivo prático.
No final, ficou decidido recomendar a extinção de todas as
práticas de representação popular e seus efeitos no judiciário.
Discutidas as duas propostas seguintes, foi reconhecida a
soberania do Governo Mundial sobre os demais governos,
incluído o território dos Estados Unidos, e a legitimidade de
uso de forças militares.
Quanto aos critérios de rigidez, houve desacordo no
tocante aos métodos a ser adotados. Uns defendiam medidas
profundas e peremptórias, outros propunham que as
determinações deveriam ser mais leves, aumentando segundo
avaliação dos respectivos relatórios. Candota se manifestou da
seguinte forma:
— Estamos às vésperas de tomar medidas importantes e
inovadoras. Podemos calcular as repercussões matemáticas e
sociais, mas não temos certeza das conseqüências estruturais.
Uma ação mal calculada pode produzir efeitos mais danosos
que a causa. Adiante, quando formos tratar especificamente
das providências excepcionais, podemos fazer algumas
escolhas quanto a métodos e sistemas, dependendo das
características regionais de cada país. Pra alguns, devemos ser
mais severos, mas pra outros o bom senso vai aconselhar
medidas mais brandas. Tudo vai depender da espécie de cada
decisão. Por isso, sugiro que seja considerado, como princípio,
o critério da precaução.
Devers se manifestou favorável à ponderação de Candota,
e apoiou a resolução para que fossem implementadas ações
cautelosas, segundo a natureza de cada objetivo, e a
AGORA OU NUNCA MAIS
321

elaboração de um cronograma mais flexível. Encerrada a


sessão neste ponto, as primeiras medidas emergenciais, que
demandariam longos estudos e debates, entrariam em pauta
na próxima reunião, marcada para o segundo dia seguinte.
As propostas básicas sugeridas na reunião ministerial
foram aprovadas pelo Conselho e encaminhadas ao Ministério
para apreciação.
No dia seguinte, após reunião ministerial, o presidente
Nash assinou os decretos alusivos a essas normas e fez um
pronunciamento pela televisão:
“Cumpre-me anunciar ao mundo que estamos no limiar de
uma mudança profunda na história da nossa civilização. Ela foi
iniciada com a implantação necessária deste Governo Mundial
e segue com as normas básicas definidas hoje. Com essas
primeiras medidas, visamos interromper um processo
materialista altamente prejudicial à humanidade. Não mais
teremos desenvolvimento, crescimento e progresso ilimitados.
Devemos parar de crescer e manter esta civilização no
tamanho que a Natureza nos impõe. Doravante, seremos
guiados por ideais menos gananciosos e egoísticos.
Perseguiremos os caminhos que nos conduzirão,
gradativamente e com cautela, ao recuo civilizacional.”
“Conforme ampla divulgação, estabeleci de início 4
normas básicas que pautarão a conduta e orientação dos
governos nacionais, com vistas à implementação posterior de
medidas defensivas da Natureza. Devo esclarecer que não
abjuro as práticas político-democráticas, mas elas somente são
saudáveis e justas quando aplicadas numa normal ambientação
ecológica e social. Sua abolição é temporária, prevalecendo
AGORA OU NUNCA MAIS
322

essa excepcionalidade até que sejam alcançados os objetivos


de regularidade ambiental.”
“Esclareço que todas as decisões do nosso governo
objetivam atender aos interesses do planeta como um todo, aí
incluída a própria humanidade. Isso visa a benefícios de vida
tanto para as gerações atuais como para as que se sucederem.
Tais resoluções são de âmbito global, sem distinção de povos,
raça, religião, pobreza ou riqueza.”
“Está sendo legitimado o uso da força militar
exclusivamente para os casos de resistência às deliberações
deste governo. Ela é necessária porque não posso fugir de
minhas responsabilidades nem vacilar na condução dessa
emergencial fase de salvação da espécie humana.”
“Para salvaguardar a justeza dos atos de governo, conta o
povo com o respaldo do instituto de representação, perante o
Departamento Político Especial do Governo Mundial, sempre
que se julgar prejudicado.”
“Infelizmente, temos de nos privar de diversos confortos
propiciados por esta civilização materialista e tecnológica,
porque foi ela, sob a fúria da ganância e do enriquecimento
pessoal, construída às custas da espoliação alucinada e
irracional dos recursos naturais do planeta. Quero, enfim,
conclamar a todos os povos para que me ajudem nessa difícil
missão redentora, procurando seguir as resoluções com
disciplina e senso ecológico.”
Esse pronunciamento varreu o mundo como um vendaval,
transportado pelas ondas do rádio e da televisão. As entidades
mundiais representativas dos poderes políticos, bem como as
dos empresários, dos sindicalistas e dos religiosos convocaram
AGORA OU NUNCA MAIS
323

assembléias para discutir a situação. Receosos de verem seus


interesses prejudicados, constituíram uma comissão mista para
dialogar com o secretário do Departamento Político Especial,
DPE.
Na reunião previamente agendada, expuseram suas
preocupações e argumentos, mas só ouviram notícias que não
queriam. Em resposta, disse o secretário do DPE:
— Ante o perigo ecológico, percebido e confirmado pelos
cientistas – justificou o secretário –, a constituição do governo
global foi imposição do momento. Foi um fato histórico e não
existe outro caminho pra enfrentar a tragédia que já se
anunciou.
— Era mesmo insensatez não haver governo global pra
cuidar da saúde do planeta. Nisso estamos de acordo. Mas o
mundo!... ser administrado por atos discricionários, com
abolição da representatividade democrática, foge às nossas
tradições mais cultivadas e sagradas – rebateu o porta-voz da
comissão.
— O exercício democrático implica demora na resolução e
aplicação de medidas que devem ser tomadas com urgência. E
o culto à tradição deve ser abolido em benefício da razão.
— Absurdo!
— Os senhores precisam entender que estamos numa
posição histórica que nos aponta apenas dois rumos: um leva a
humanidade à sua própria extinção; o outro, à redenção.
— Mas estamos percebendo que o presidente Nash, pelo
pronunciamento feito, tem mãos livres pra contrariar as
aspirações econômicas das elites e, por conseqüência, o
equilíbrio social de todas as categorias. Achamos que, pela
AGORA OU NUNCA MAIS
324

vinculação de interesses entre todas as classes, ficará


perturbada toda essa ordem social e econômica, construída
com sacrifícios durante séculos.
— A classe dos pobres e miseráveis, que é a maioria,
nada perderá porque nada possuem. Essa ordem a que você se
refere corresponde a desordem e desarmonia ecológicas.
Nosso objetivo é restaurar o equilíbrio da Natureza, e é bom
lembrar que o homem é parte dela.
— O perigo é que o presidente Nash se tornou ditador,
sem controle institucional.
— Não. O Presidente está aconselhado e assessorado por
diversos órgãos competentes, inclusive por um conselho
especial representativo das Nações Unidas, que o legitimam.
— Que não foram eleitos pelo povo!
— Ora, o povo! O que o povo entende de assuntos sérios
como esses? Vocês mesmos sabem que eleição política sempre
foi uma enganação, sempre foi um faz-de-conta!
— Queremos manifestar o nosso desejo de participar das
decisões do Governo Mundial, pra oferecer representatividade
e sobrestar alguma decisão equivocada.
— Prometo levar suas preocupações à próxima reunião
ministerial. Mas posso lembrar que seus interesses já estão
representados no governo por intermédio do Departamento de
Comércio, cujo secretário participa de todas as reuniões de
governo.
Encerrada a audiência, a comissão mista resolveu manter-
se em contato permanente, a fim de tomar posições
compatíveis com as novas ações que prometiam vir.
AGORA OU NUNCA MAIS
325

Resolveram também ampliar a representação, procurando


obter a adesão de mais órgãos de classe.
Enquanto isso, no Conselho Gerencial Ecológico (CGE),
durante uma semana, os conselheiros se reuniram e debateram
as primeiras disposições concretas a ser encaminhadas para
decisão da cúpula do governo. Dali saíram, em resumo, as
seguintes disposições:

1) a mulher só poderá gerar um filho, admitida a gestação


de gêmeos. Fica proibida a inseminação artificial ou
antinatural. O aborto passa a ser livre;
2) os países têm o prazo de seis meses para encerrar as
atividades de todas as usinas termonucleares;
3) ficam proibidos: o corte ou derrubada de árvores de
qualquer espécie; o transporte e comércio de madeira; a
queima proposital de qualquer vegetal vivo;
4) os veículos civis de qualquer espécie, movidos a
combustível de petróleo, terão restrição de trânsito de forma
que a cada ano seja ele reduzido de dez por cento, até o
máximo de sessenta por cento;
5) as indústrias automobilísticas de uso civil reduzirão a
produção para quarenta por cento, dentro do prazo de cinco
anos;
6) passa a ser proibida a criação ou ampliação de
qualquer indústria que se ocupe, direta ou indiretamente, de
transformações químicas;
7) ficam canceladas todas as pesquisas científicas que
não digam respeito à ecologia;
AGORA OU NUNCA MAIS
326

8) estas decisões não se aplicam aos silvícolas, aí


incluídos os pigmeus, os bosquímanos e os nativos da
Austrália.

Encaminhadas as recomendações acima, Devers foi


convocado para defendê-las na reunião ministerial. Depois de
longos e trabalhosos debates, foram aperfeiçoados alguns
dispositivos, mas a essência ficou mantida. Prevaleceu o
espírito, já absorvido pelo governo, de que a cultura vigente
pode e deve ser alterada segundo os interesses ecológicos.
Ficou consagrada a estratégia de conduzir as alterações por
meios suaves e cautelosos, evitando-se medidas rudes, mas
sob vigilância dos órgãos de segurança e monitoração a ser
feita pelo CGE.
Os órgãos informativos no mundo deram farta divulgação
a essas primeiras medidas. Em diversos países, formaram-se
organizações de apoio ao Governo Mundial. Membros dessas
associações se apresentaram como voluntários para colaborar
na fiscalização do cumprimento daquelas determinações. A par
da tristeza de grande parte da sociedade, era entusiástica a
manifestação das entidades ecológicas.
Paralelamente, desenvolviam-se em todos os países
debates, conferências, estudos e seminários de esclarecimento
versando sobre os problemas ambientais e as medidas
governamentais.
Especificamente, os órgãos representativos das indústrias
de veículos e do petróleo redigiram violento manifesto contra o
Governo Mundial. Constituíram uma comissão e solicitaram
audiência com o secretário político especial.
AGORA OU NUNCA MAIS
327

— Senhor secretário – manifestou-se o porta-voz dos


industriais –, entendemos que houve exagero muito grande na
tomada de decisão a respeito de transportes. Cremos que não
foi levada em conta a enorme quantidade de pessoas que
ficarão desempregadas.
— Vocês têm o prazo de cinco anos. É muito tempo!
— Que representa curtíssimo prazo. Com a redução da
indústria automobilística, serão diminuídas também as
atividades-meios. Há uma cadeia enorme de empresas
empregatícias que se finaliza na montagem de veículos. Como
ficarão as mineradoras, as siderúrgicas, a indústria do petróleo
e as demais atividades paralelas?
— É o preço da nossa redenção. É o custo da espoliação
ambiental feita por vários séculos.
— Preço e custo de nossa bancarrota, isso sim!
— Não estamos tirando nada de ninguém; apenas
iniciando um processo de recomposição. Vocês tiraram demais.
Agora terão de devolver. Pelo menos uma parte e que é muito
pequena.
— Mas temos estudos que demonstram a viabilidade de
utilização do nitrogênio nos motores de explosão. É uma
prática que não polui o ar.
— Como você mesmo explicou, o veículo automotivo é
apenas produto final. Não se vão contar a poluição e
degradação ambiental propiciadas pelas atividades-meios? A
mineração não deixa chagas abertas no planeta e não destrói
as nascentes? A siderurgia não envenena o ar e as águas? A
indústria petroquímica não desqualifica altamente o ambiente?
Como construir automóveis sem degradar nosso ambiente?
AGORA OU NUNCA MAIS
328

— Dessa forma, sabendo de antemão que estamos


condenados a sofrer prejuízos, muitas indústrias do ramo vão
encerrar as atividades e cessar os investimentos na área.
— É isso mesmo que queremos. No momento, estamos
apenas dando os primeiros passos no retorno às nossas
origens naturais.
— Vocês são loucos! Vão aniquilar nossa civilização!
— Não, meu amigo! Não é assim que você deve enxergar
a conjuntura; vamos é construir a nova civilização. E sob a
égide do respeito à Natureza.
— O mesmo respeito que os silvícolas votam à Natureza!
Silvícolas!...
— Você está ironizando, mas é isso mesmo! Respeitar o
ambiente que nos dá vida é imperativo do bom senso.
As entidades religiosas também se agruparam para
defender seus privilégios e suas razões. Os dignitários das
diversas religiões constituíram comissão composta de bispos,
presbíteros, muftis e rabinos. Redigiram uma petição e foram
entregá-la pessoalmente ao secretário político. O porta-voz da
comissão, dirigindo-se à autoridade, assim se expressou:
— Vimos trazer ao Governo Mundial a palavra da
sociedade religiosa, que representa mais de noventa por cento
de toda a humanidade. Consideramos que nossa voz deve ser
ouvida e considerada na tomada de decisões da cúpula
administrativa.
— Pode deixar aqui sua petição, que será encaminhada e
estudada.
— Não só vamos deixar nosso arrazoado por escrito, mas
cremos ser importante transmitir de viva voz a esse
AGORA OU NUNCA MAIS
329

departamento governamental o sentimento da coletividade


quanto às decisões sancionadas pelo novo governo.
— Estou atento às suas ponderações.
— Queremos manifestar claramente que damos apoio e
fazemos elogio aos quesitos divulgados, exceto quanto ao
primeiro, que nega à natureza humana o direito à livre
procriação e que libera o crime do aborto. Essa decisão fere o
direito à vida de inocentes criaturas e se posiciona contrária
aos mandamentos divinos. Por isso, solicitamos seja ela
reconsiderada e afinal revogada.
— É fato aceito pela Matemática e pela Filosofia que todo
problema tem solução. Mas é também verdade que todo
problema tem causa. A questão de que tratamos já está
identificada pelos estudos científicos. Nela está evidenciada a
sua causa, que é o chamado desenvolvimento, também
conhecido por progresso e crescimento econômico.
— Não estamos percebendo o que têm os inocentes a ver
com o progresso, fator evidentemente benéfico pra toda a
humanidade.
— Parece, meu santo homem! Parece! Questão de
semântica! Ao contrário do que é aceito em geral, aqueles
fatores, em vez de serem benéficos, são altamente prejudiciais
e contraproducentes.
— Então, tudo se resume a uma questão de ponto de
vista.
— Não. Não é. Quem constrói o desenvolvimento?
Evidente que é o homem. Logo, se quisermos combater essa
grave enfermidade ecológica, teremos que combater o seu
agente, o homem. Como? Pelo controle do crescimento
AGORA OU NUNCA MAIS
330

demográfico tanto no aspecto percentual como no de número


absoluto.
— Vejo que o governo está determinado, mas clamo para
que nossa petição seja examinada com desvelo.
De outras áreas, houve também movimento muito grande
de reclamações, mas as autoridades do Governo Mundial não
se deixaram abalar. Haviam estabelecido um objetivo racional
e nobre. Suas atitudes não poderiam ceder a injunções de
corporações, sob risco de fracassarem.
Também não se descuidou o governo de todos os aspectos
de segurança. Foram criados órgãos especiais de
acompanhamento das ações adversas, a fim de, com apoio
militar, sufocar no início qualquer reação. Ficaram sob
observação também os procedimentos dos governos nacionais
no intento de ser mantida a colaboração desejada.
Enquanto a sociedade mundial fervia e os governos
nacionais se acautelavam, o Conselho Gerencial Ecológico
trabalhava com afinco para dar conta do exame das
informações vindas dos diversos países. Ajustes eram feitos,
de acordo com as situações específicas de cada região.
Foram muitas as recomendações aos governos nacionais
para que procedessem com urgência à reforma agrária, com o
fim de constituir comunidades auto-sustentáveis onde
assentariam a população desempregada.
Essa medida, além de guiar a sociedade para o objetivo-
foco da revolução ecológica – volta às origens –, aliviou as
grandes cidades da pressão social e fixou expressiva parcela
de pessoas em terrenos próprios, com atividades de
subsistência, rompendo em conseqüência a estrutura
AGORA OU NUNCA MAIS
331

consumista. Paralelamente, diminuiu o cultivo agrícola


extensivo, liberando mais áreas para assentamentos.
Candota se comunicava sempre com o amigo Bento,
ocasião em que trocavam idéias sobre o andamento da
revolução ecológica. Numa dessas conversas, ficou sabendo da
prisão de Klintok, que estava agitando os meios políticos e
militares ao assumir posição radical contrária e rebelde aos
princípios do governo. Ele e diversos cúmplices foram enviados
a campos especiais, destinados à tentativa de conscientizá-los
da justeza das providências do governo.
No exercício das funções de conselheiro, Candota ficou
conhecendo todos os colegas e se envolveu com eles em
debates e diálogos produtivos dentro e fora dos trabalhos. Por
ser o autor da Teoria de Candota, era muito procurado e
ouvido. Entre eles, Candota se encantou, já nos primeiros dias,
com as idéias e atuação de um francês chamado François De
Lembert. Formulava ele conceitos bem próximos aos que
Candota expunha.
Certo dia, no café da manhã do hotel, De Lembert tocou o
ombro de Candota e exclamou:
— Olá, colega! Você aqui! Estamos hospedados no mesmo
hotel, e eu ainda não tinha te visto.
— Senta aqui! Vamos tomar o café juntos.
— É bom saber que somos companheiros lá e cá.
— Essa epopéia vai demorar muito tempo; pode se
preparar. Na história da vida, somos heróis. Já pensou!?
Heróis!
— Mais herói é o presidente Nash. Eu soube que ele
mudou o modo de enxergar o mundo. Parece que foi um
AGORA OU NUNCA MAIS
332

milagre. Sem a decisão dele e o espírito combativo que tem


demonstrado, não ia ter essa revolução.
— Eh! Todo herói é herói enquanto estiver praticando atos
heróicos. Temo por ele. As forças contrariadas andam muito
ativas.
— Bobagem! Agora não tem volta! Ele já se mostrou
decidido, e o sistema de segurança é eficiente. O vice-
presidente do Governo Mundial reafirmou lealdade e apoio. O
Governo Mundial já é um fato, e tem o apoio geral dos
governos nacionais.
— Me diga uma coisa. Como você veio parar aqui? Qual é
a sua especialidade?
— Minha especialidade é apenas pensar; sou pensador.
— É uma nobre atividade; e rara!
— Você está ironizando.
— Nada disso! Falei sério! Hoje em dia, o povo em geral
tem preguiça de usar a cabeça. Eles deixam que a mídia pense
por eles. Só poucas pessoas conhecem a verdadeira liberdade,
adquirida com o exercício da plenitude do pensamento.
— Tem razão! O intelecto é a maior dádiva da Natureza ao
homem, e muita gente a despreza; simplesmente não a utiliza.
Incrível, mas milhões de humanos passam pela vida e morrem
sem jamais terem pensado.
— A não ser pra engendrar a maldade.
— É mesmo!
— Você ouviu falar alguma vez sobre a Associação contra
o Progresso?
— Não! Nunca ouvi falar!
AGORA OU NUNCA MAIS
333

— Pois é! Eu sou o presidente dessa associação, fundada


na França há mais de 20 anos. Somos poucos e temos sido
sabotados pela mídia. Somos considerados loucos.
— Os sábios sempre foram vistos como loucos pelos que
não são sábios.
— Se a nossa associação fosse Associação pelo Lucro, ia
ser bajulada e conhecida no mundo todo. Nossa ação está
restrita a fazer conferências e promover manifestações
ecológicas na França.
— Francamente, eu não sabia nada disso!
— O embaixador americano em Paris conhecia nossa
atuação e me indicou ao governo francês pra participar do
Conselho. Foi uma grande oportunidade pra pôr em prática
nossas idéias. Fiquei satisfeito por reunirem, num órgão de
cúpula, defensores da Natureza e cientistas de várias partes do
mundo. E isso, eu reconheço, devemos a você. Sabemos dos
seus esforços.
— Os cientistas são neutros em assuntos ecológicos, mas
muito úteis porque fornecem as informações que nos guiam.
São nossa base de sustentação. Sem o aval deles, minha teoria
não teria sobrepujado a vaidade dos governantes.
— Você não acha que as medidas adotadas até o
momento têm sido muito superficiais? Que devemos enfrentar
a situação de degeneração ecológica com atitudes mais fortes,
mais radicais? Sob ótica filosófica, temos que reconhecer que
estamos num mundo natural e que o homem é, em si, também
natural. Tudo o que é artificialismo devia ser abolido. Esta é a
minha receita. O que que você acha?
AGORA OU NUNCA MAIS
334

— Nem tanto! Você está certo no que diz respeito à visão


heurística, mas temos que manter os pés no chão. Você tem
que considerar que o homem é também um ser político, isto é,
se insere num ambiente de poder que ele próprio cria.
— Aí é que está o erro, essa estrutura de poder que ele
criou.
— Nesse caso – pensa bem! – a falha não seria do
homem, mas da própria Natureza.
— Como?
— Lógico! A Natureza é que criou o homem. Sendo
assim...
— Está bem, mas não vamos entrar nessa área filosófica,
que isso não vai ter fim.
— Também acho!
— O homem, por ser racional e pensante...
— Nem todos, como você mesmo reconhece!
— Sim, mas ele deve procurar solução pra qualquer
problema, nem que seja pelo instinto. Essa civilização
materialista avançou demais. Devia ter começado a reversão
há 60 anos, pelo menos!
— Nesse período o mundo não cresceu, fermentou.
— Enquanto isso, milhares de espécies de seres vivos
estão em extinção em nome do progresso.
— Já passamos de seis bilhões de humanos! Absurdo!
— Hoje, temos quantidade em detrimento da qualidade.
De que adianta existirem dois bilhões de miseráveis,
sofredores, em processo lento de morte desde o dia em que
nascem?
AGORA OU NUNCA MAIS
335

Nos dias seguintes, Candota passou a manter com o


francês conversas proveitosas e interessantes. Analisavam as
questões prováveis que surgiriam e, no Conselho, se
manifestavam com idéias harmônicas.
De Lembert também se afeiçoou a Candota e se tornaram
amigos. Numa oportunidade, Bento e Miriam foram
apresentados ao francês. Acontecia algumas vezes de os dois
conselheiros passarem o fim de semana em Nova Jersey, em
casa de Bento.
Como o andamento dos trabalhos no CGE estava se
conformando às normas decretadas, e a aferição dos
resultados ainda demoraria algum tempo, Candota pediu e
obteve licença para se ausentar dos trabalhos por 30 dias a fim
de visitar a família.
Antes, pediu ao amigo francês que o mantivesse
informado das principais questões que surgissem no Conselho.
Não poderia ficar sem acompanhar o desenvolvimento das
atividades desse órgão estatal, para que se mantivesse
atualizado com os acontecimentos. Caso surgisse algum evento
relevante, que exigisse sua presença, até que estaria disposto
a retornar antes do prazo.
Estava ausente do Brasil havia mais de um ano. A
saudade de casa apertava, e a imagem de Beatriz não lhe saía
do pensamento. Pelas circunstâncias anteriores, tinha sufocado
seus sentimentos e sofreu muito. Quem sabe agora... Enfim, a
situação ecológica que o atormentava já se tinha definido, e o
entendimento com Beatriz talvez fosse mais fácil. Só de pensar
no retorno, seu coração pulsava mais forte como a dizer:
“Beatriz está me chamando”.
AGORA OU NUNCA MAIS
336

Comunicou ao pai essa decisão e preparou a viagem.


Houve demora, porquanto havia fila de espera de dois dias no
embarque de avião, efeito das medidas de contenção nos
transportes.
Finalmente, chegou o momento do embarque, o dia em
que reveria sua família e, talvez, a mulher que teimava em
permanecer em seu pensamento.
AGORA OU NUNCA MAIS
337

10° CAPÍTULO

Ao chegar, Candota foi recebido no aeroporto apenas pelo


pai.
— Oh, meu filho! Até que enfim você voltou! –
choramingou Alfredo ao tempo em que apertava o filho num
forte abraço.
Contendo a emoção, Candota se justificou:
— Eu também estava com saudade. Ué! A mamãe não
veio?
— Ela ficou em casa preparando alguma coisa pra você.
Deve estar numa expectativa danada! Vamos sair por aqui pra
pegar o ônibus.
Candota ia perguntar pelo carro do pai, quando se
lembrou de que a restrição ao transporte já podia estar
mostrando seus efeitos. Mas o pai se adiantou e justificou:
— Hoje não é o meu dia pra usar o carro. Você sabe que
tem limitação de uso?
AGORA OU NUNCA MAIS
338

— Sei, sim. Não faz mal, vamos de ônibus.


— Já sabia que me aposentei?
— Ah! que bom! Você não me falou! Agora vai ter tempo
pras outras coisas boas. A vida não é só lecionar. Tem outras
ocupações que podem dar prazer. Você é que me disse isso,
lembra?
Alfredo deu um sorriso e deixou a pergunta no ar. No
percurso, fez muitas perguntas, mas Candota se limitou a
comentar aspectos não relevantes da viagem. Prometeu, no
entanto, que iria contar tudo quando chegassem em casa.
Queria que a mãe estivesse presente, pois esperava fazer o
relato com minúcias apenas uma vez. Para as outras pessoas
que o abordassem, daria informação sucinta. Não queria
rememorar todos os momentos de angústia por que tinha
passado.
Em casa, tudo era alegria. À frente da mansão,
esperando, estavam Dona Rosa e Terezinha com a família.
Foram muitos os abraços e beijos. Dona Rosa deixou que as
lágrimas lhe molhassem o rosto. Não parava de fazer
perguntas sem esperar resposta e murmurava zangas
maternas de permeio. Candota, sentindo-se satisfeito e
integrado às origens, procurava dar atenção a todos, inclusive
ao Zeninho, tomando-o nos braços.
Depois que Candota se recolheu ao quarto para
desarrumar a mala, sem que deixasse de dar ligeira olhada nas
fotografias que tinha deixado na caixa de guardados, retornou
à sala onde todos o esperavam, menos Zeninho que foi posto
para dormir. Após um período de perguntas, Candota esperou
que fizessem silêncio. Nesse momento, disse:
AGORA OU NUNCA MAIS
339

— Vocês estão fazendo muitas perguntas que eu ainda


não respondi. Mas hoje vou contar tudo, direitinho, porque
vocês têm o direito e a necessidade de saber.
— Espera aí – disse Alfredo enquanto se dirigia aos
telefones da casa e os desligava. — Não quero ser
incomodado.
Zenon acompanhou o exemplo e desligou o seu telefone
celular.
Candota se posicionou na poltrona. Com a boca meio
aberta, colocou a mão em torno do queixo, pensando como
começar.
— Anda! Conta logo! – instou Terezinha, demonstrando
ansiedade.
— Pois é. Eu tinha um segredo e agora vou contar.
Enquanto todos se punham na maior concentração,
mantendo um silêncio profundo, Candota revelou toda a sua
epopéia, desde o início de suas sofridas descobertas do
segredo de Guilherme. Não tendo sido interrompido nenhuma
vez, finalmente arrematou:
— Agora vocês já sabem de tudo. É isso aí!
Dona Rosa estava chorando baixinho, pensando no amado
filho, “sacrificado afinal por uma civilização de ganância e
irracionalidade. Criou um programa de alerta para a
humanidade e foi ele a primeira vítima do holocausto previsto”.
— Então, foi você que andou fazendo essa confusão toda!
– admirou-se Zenon, acrescentando que tinha sorte porque a
fábrica em que trabalhava não é poluidora.
AGORA OU NUNCA MAIS
340

— Eu sempre explico que não fiz nada; só mostrei às


autoridades americanas o perigo do futuro. O resto é
conseqüência.
— Pelo que sei agora, foi até bom Deus ter me tirado o
segundo filho – interveio Terezinha. — Não ia ter futuro
mesmo!
— Eu não vou deixar você voltar pros Estados Unidos –
sentenciou Dona Rosa. Ah! mas não vou deixar mesmo!
— Eh! Nós precisamos de você aqui – reforçou Alfredo. —
Pelo seu relato, acho que essas medidas não vão valer de
nada. Pelo que estou vendo, o problema é tão abrangente que
essas medidas vão trazer é mais confusão pra todo mundo.
— Isso vai depender da avaliação que vamos fazer quando
chegarem as informações que estão sendo colhidas no mundo.
— Não tem graça nenhuma essa história! – arrematou
Dona Rosa, fazendo-se de zangada. — Venham pra mesa, que
vou servir um lanche especial que preparei pra nós todos. Hoje
é aniversário do Candota!
— Não é não, mãe! – objetou Terezinha.
— Eu sei! Mas fica sendo. Eu decreto, uai! – enfatizou,
toda orgulhosa e feliz.
Sobre a mesa, guarnecida com toalha e jogo de porcelana
novos, Dona Rosa, mantendo seu sorriso de felicidade, foi
arrumando os quitutes mais variados, deixando o centro vazio.
No final, trouxe um caprichado bolo encimado por delicada vela
azul em formato de C e o colocou no centro da mesa.
Alfredo fez a sua parte. Trouxe duas garrafas de
champanhe geladas, completando aqueles preparativos de
festejo.
AGORA OU NUNCA MAIS
341

Pelo simbolismo da mesa guarnecida e das manifestações


de alegria, não foi preciso discursos. Havia ali um elo espiritual
que os unia pelo amor e afeto. O homenageado, sentindo o
calor daqueles gestos, se extravasava em sorrisos, não
mostrando preocupação em se conter. Era aquele um momento
culminante. Ali permaneceram em conversa risonha por longo
tempo, mesmo depois que se fartaram com as generosas
iguarias.
Acercando-se da irmã, Candota lhe perguntou em voz
baixa:
— Tê, você, por acaso, tem alguma notícia da Beatriz?
— Notícia mesmo, não. Mas eu a vi numa exposição de
quadros, acompanhada de um rapaz. Você ainda pensa nela?
— Não sei explicar, mas ela não sai da minha cabeça.
Parece que no mundo só existe a Beatriz.
— Ah, meu irmão, se você está apaixonado por ela, não
sei o que você está fazendo aqui, parado. Telefona pra ela e
tira as suas dúvidas. Se gostar de você, ela vai te dar uma
entrada. Caso contrário, você pode dizer adeus.
— Você podia ligar pra ela e sondar a situação...
— Nada disso! Eu não entro em campo minado. Isso é
assunto pra você mesmo resolver. Pelo menos esclarece o
destino de vocês dois.
Candota achou melhor deixar para depois, até criar
coragem. À noite resolveria o que fazer. Primeiro precisava
encontrar motivo forte para justificar o telefonema. Tinha de
engendrar um roteiro da conversa inicial, pelo menos até que
sentisse a reação da moça.
AGORA OU NUNCA MAIS
342

Não esperou fechar-se a noite por completo. Na ânsia


pela aventura da iniciativa e sob o fogo do amor agora
redobrado, foi tomado pelo destemor e ousou. Discou o
número do telefone, que ainda sabia de cor, e esperou.
Coração, saltitante. Atenderam. Era a voz do pai.
— É o Seu Juarez?
— Sim. Quem fala?
— Boa noite. Aqui é o Candota – respondeu com
humildade.
— Olá, Candota! Que surpresa! Pensei que ainda estivesse
fora.
Candota se animou. Juarez o recebeu com brandura.
— Eu gostaria de falar com a Beatriz.
— Vou chamar.
Aguardando. Coração pulsando mais forte, pernas
bambas. Expectativa. Finalmente a voz de Beatriz se mostrou:
— Oi!
— Beatriz, como vai? É o Candota – disse com voz
destoada e quase sumida.
— Vou bem, obrigada. E você?
— Agora parece que está tudo bem! – respondeu,
procurando plantar uma curiosidade na mente da moça.
Silêncio de Beatriz. Ficou na espera. Não mordeu a isca.
Candota se desconcertou e não sabia o que dizer. Por isso,
apelou:
— Beatriz, se não for problema pra você, eu queria
conversar pessoalmente. Tenho coisas pra te contar.
— Estou pensando... Você me pegou de surpresa. Eu nem
esperava. Mas o que você tem pra me dizer?
AGORA OU NUNCA MAIS
343

— Não leve a mal, mas a conversa é longa. Pelo telefone


não dá.
— Faz isso: amanhã ou depois eu te ligo e nós marcamos
encontro aqui em casa.
—Está bem. Eu te aguardo.
Candota não se animou com esse primeiro contato.
Beatriz demonstrou indiferença e, de certo modo, o humilhou.
Brandamente, mas humilhou. Ficou pensando: “Beatriz teria
conservado algum sentimento de amor em relação à minha
pessoa? Parece que não. Ainda mais que eu a machuquei com
a nossa última conversa. Também, depois de tanto tempo
ausente, sem notícias, é natural que se tenha deixado envolver
por algum rapaz”.
No segundo dia de espera, Beatriz ligou.
— Você disse que tem um assunto pra me contar. Você me
desculpe, mas eu não tenho nada pra te dizer.
Candota gelou. Como um eco, ficou ouvindo as últimas
palavras. “Nada pra te dizer... nada pra te dizer...”
— Entendi, Beatriz! Entendi...
Sentindo a esperança sumir de repente, conformou-se
com a situação e acrescentou fracamente, como encerramento
da conversa:
— Então, a gente deixa a conversa pra lá. Obrigado e
desculpa!
Antes de desligar, ouviu a voz de Beatriz:
— Vou apenas te ouvir. Você pode vir aqui hoje à noite,
que vou te ouvir.
— Então, às oito – mal balbuciou Candota, desligando o
aparelho.
AGORA OU NUNCA MAIS
344

Candota colocou o fone na base sem saber o que fazia,


tão desorientado estava. Sentiu-se humilhado. O rosto
enrubesceu. Suas esperanças criaram asas e se foram.
Suspirou fundo, buscando retomar a normalidade. Aos poucos,
sua alma foi tentando emergir das profundezas escuras
daquele choque. Transtornado, impôs-se retomar o controle
das emoções. Procurou o refúgio do escritório para meditar,
buscando um meio de se situar naquela realidade.
Procurando separar a razão e os sentimentos, decidiu
aclarar o raciocínio, pensando: “Eu preciso enxergar as coisas
como elas são e não como desejo. A reação da Beatriz tem
lógica. Ela ficou muito ferida pelas minhas atitudes anteriores
e deve ter encontrado quem corresponda aos seus anseios.
Isso é natural e compreensível. Mas o tratamento que me deu
é de quem guardou mágoa e perdeu amor por mim. Ah, não
tem importância! Não posso me insurgir contra realidades. Eu
fui culpado e devo pagar por isso. Aceito e me conformo. Mas
eu me justifico, porque fiquei devendo explicações. E é esse
reparo que vou fazer. Exclusivamente. Será um ato apenas de
satisfazer uma obrigação de consciência. Ela não vai poder me
censurar por cumprir apenas um ato de cortesia.”
Alterando completamente seus objetivos quanto à Beatriz,
Candota sentiu-se justificado e coerente. Iria à casa dela, mas
deixaria o coração acorrentado. Daria o recado sem entrar em
detalhes, pediria desculpas pelo segredo que tinha sustentado
e pronto. Ficaria em paz com sua consciência e iria cuidar da
vida.
AGORA OU NUNCA MAIS
345

Candota fez questão de ser pontual. Às 8 horas,


esforçando-se para conter a ansiedade, apertou a campainha.
A própria Beatriz atendeu.
Resplandecia de beleza. Era de transtornar aquele coração
apaixonado, se Candota antes não o tivesse trancado. Parece
que, de caso pensado – para pisar mesmo –, se esforçou para
aprimorar a aparência. Apresentou-se com um vestido justo,
decote caprichado e sem agressividade, rosto suavemente
maquiado, emoldurado por belos cabelos bem arranjados e o
costumeiro par de brincos pendentes. Aqueles olhos grandes,
que tanto o atraíam, pareciam agora mais expressivos na
composição daquele rosto.
Candota, no entanto, contido em suas emoções, estava
decidido a cumprir a atitude estabelecida em sua mente.
— Boa noite, Beatriz – fez cerimonioso.
— Boa noite, Candota. Faz o favor de entrar.
Beatriz, à frente, dirigiu-se à sala. Mostrou uma poltrona,
onde Candota se assentou. Acomodou-se numa cadeira ao lado
e ficou em expectativa. Não fez nenhum comentário, nem a
respeito do próprio visitante, nem sobre qualquer outro
assunto. Candota, previamente condicionado pela razão,
iniciou a execução do que se propusera:
— Acho que me compete dar uma explicação, a mais
satisfatória possível, sobre alguns assuntos que deixei
pendentes por ocasião do nosso relacionamento. É questão que
pesa na minha consciência e não tenho outra intenção, ao te
procurar, do que cumprir uma obrigação.
Beatriz, sob uma condição adrede estabelecida, não se
deu por tocada. Continuou em silêncio e atenta.
AGORA OU NUNCA MAIS
346

— Como você deve saber, estive por longo período


ausente do país. Só agora me surgiu a oportunidade de voltar
e, por isso, estou aqui. Por extrema necessidade, mantive um
segredo durante muito tempo, mas hoje eu posso te contar.
Nesse ponto, Candota observou que Beatriz continuava
impassível, não demonstrando a mínima curiosidade. Parecia
que a mágoa, ou o ódio, ou o orgulho, estava impondo aquela
atitude. Sem ser interrompido, relatou resumidamente a
história que escondeu e não foi perguntado sobre nada.
Dando-se por satisfeito e sentindo aquele ambiente gelado,
arrematou suas explicações:
— Era isso que eu precisava dizer. Agradeço por me ter
dado a oportunidade de contar meu segredo e lavar minha
consciência.
Levantando-se, como a indicar a intenção de partir,
estendeu a mão para Beatriz e se despediu com um simples
boa-noite. Beatriz apenas retribuiu a despedida e abriu a porta
de saída.
Candota decidiu não pensar mais naquele amor. Deveria
distrair-se com alguma atividade. Seria insanidade ocupar a
alma com emoções descabidas. Aquela ferida por certo seria
curada. Procurou se ocupar, visitando os amigos e fazendo
preleções sobre a situação anômala por que estava passando o
mundo. Essas palestras e conferências eram feitas com dupla
satisfação. Sentia-se útil em prestar esclarecimentos ao povo e
esquecia as inquietudes do coração.
Estava satisfeito com essa ocupação, mas começou a
encontrar alguns atritos. As paixões e os egoísmos de alguns
não cediam facilmente. Passou por alguns momentos
AGORA OU NUNCA MAIS
347

desagradáveis. Teve, no entanto, algumas boas reuniões com


componentes de sociedades ecológicas. Nelas, passava horas
discorrendo sobre sua teoria e isso era bom. Pelo menos
enquanto estava ocupado nessas atividades.
Na quietude da meditação, no entanto, o apaixonado
personagem se esforçava para seguir a razão e desprezar o
coração. Quanto mais tentava se libertar da lembrança da
amada, mais teimava ela em permanecer no pensamento.
Ruminava auto-argumentos para afastá-la da mente; tudo em
vão.
Usando a imaginação, formulou uma solução para esse
insistente capricho do sentimento. Uma estratégia de
compensação. Colocaria a imagem inerte de Beatriz
enclausurada num relicário especial, guardado no fundo do
coração. Dali não sairia e ali permaneceria como eterna e ideal
amante. Seria ali conservada por todo o tempo que vivesse,
sempre a mesma, sempre viva e só para si. Com isso, satisfez
figurativamente os clamores da alma, único recurso julgado
possível.
Quatro dias após a visita de Candota à Beatriz, Dona
Rosa, que prestava serviço voluntário em uma creche, chega
da jornada e se apressa em dar notícia ao filho.
— Eu soube, lá na creche, que o pai da Beatriz foi
atropelado por uma ambulância e que está passando mal.
Parece que o acidente foi grave!
— Como foi? Explica mais!
— Dizem que ele saiu meio afobado da loja pra pegar o
Banco ainda aberto e, numa esquina, parece que ele não viu a
ambulância.
AGORA OU NUNCA MAIS
348

— Uai! Mas quem faz o serviço de Banco é a Beatriz.


Sempre foi ela! O que que houve?
— Ah, esses detalhes eu não sei! Só sei disso que te falei.
— Coitado! Ele é um homem bom. Tomara que consiga se
recuperar. A família deve estar sofrendo.
Dois dias depois, Candota leu no jornal o convite para o
enterro de Juarez.
— Mãe, o Seu Juarez morreu! Deu no jornal de hoje.
— Que pena! Lamentável! Baque medonho pra família.
Você vai no enterro?
— Acho que não. Não tenho mais vínculo nenhum com a
Beatriz. O nosso namoro é coisa do passado. Já acabou
mesmo! E parece que ela já tem outro namorado. Acho que
vou mandar um telegrama.
— Você deve ir! É o cumprimento duma obrigação social.
Sua presença é conforto pra família enlutada; não tem nada a
ver com namoro. Afinal, você sempre recebeu consideração lá.
— É que eu vou ficar deslocado, sem graça!...
— Compareça e dê presença de apoio. Que não seja pela
Beatriz, mas pelo respeito à viúva pelo menos.
— Como separar as duas coisas?
— Não tem que separar nem juntar. A homenagem, no
comparecimento, sempre é dirigida ao falecido. Os familiares
são apenas as testemunhas desse preito.
— Como é que eu faço? Você não sabe, mas fui
maltratado pela Beatriz!
— É fácil! Seja formal. Cumpra as normas pra esses
casos. Sua ausência pode ser reparada pela família, mas a
presença nunca vai ser censurada.
AGORA OU NUNCA MAIS
349

— Talvez você tenha razão. Vou pensar.


Entrando no cemitério, Candota observou três conjuntos
de velório. Um mostrava-se vazio e dois apresentavam-se
movimentados, denotando que ali penavam duas famílias
enlutadas. Ainda de longe, tentou identificar onde estaria o
féretro de Juarez. Parecia ser o que mostrava maior
aglomeração. Juarez era muito relacionado e estimado no
círculo do comércio miúdo, onde atuava no balcão de sua
própria loja e nas atividades corporativas da classe. Chegou a
ocupar, por dois períodos, a presidência da Associação dos
Lojistas de Varejo.
Efetivamente, ao se aproximar, leu a placa postada à
entrada do recinto, indicando o nome do pranteado. Com jeito
e cuidados, foi se introduzindo no ajuntamento, olhando rumo
ao centro onde estava o caixão. Enquanto se aproximava,
tentava localizar a viúva e as duas filhas. Intentava cumprir o
protocolo e se retirar logo.
Ficou parado por alguns instantes no centro do velório e
notou a viúva, transfigurada e sofrida, sentada à cabeceira do
caixão, ao tempo em que era consolada por parentes. Parecia
alheia aos circundantes. A pequena distância, sem choro, mas
muito abatidas, estavam as filhas, recebendo as expressões de
solidariedade e pesar.
Resolutamente, Candota se dirigiu à viúva, pondo a mão
em seu ombro e murmurou as condolências. Em seguida,
voltando-se até onde se encontravam as irmãs, apresentou os
pêsames a Jandira. Dirigindo-se a Beatriz, estendeu-lhe a mão
enquanto se preparava para pronunciar os pêsames. Nesse
AGORA OU NUNCA MAIS
350

momento Beatriz, num estouro incontido de lágrimas, abraçou-


se firmemente a Candota e implorou com insistência:
— Me perdoa! Me perdoa, Candota!
Candota se viu atônito. Não esperava por isso. Beatriz
continuava abraçada a ele enquanto se compungia em lágrimas
sentidas, quase em desespero, e repetindo:
— Me perdoa! Me perdoa!
Aquela recepção fria do último encontro tinha alcance
mínimo ante tal demonstração de remorso. Mas, conforme
Candota atinou, Beatriz estava muito ferida na consciência e,
por isso, implorava perdão. Não parecia manifestação de amor,
mas agudo arrependimento. Isso pedia comiseração e ternura.
O sofrimento de Beatriz tocou fundo na alma de Candota, que
cuidou de confortá-la:
— Está perdoada.
— Você me perdoa mesmo?
— Eu te perdôo de coração. Fique tranqüila. Não tem nada
a temer. Console-se e pode ficar em paz.
— Obrigada, Candota! Depois eu vou te agradecer – disse
Beatriz, mais conformada, enquanto soltava o abraço e
enxugava as lágrimas.
Candota aproveitou que alguém estava à espera para
oferecer condolências e se retirou, esquivando-se no meio da
multidão. Foi para casa com a consciência leve, pois cumprira
sua obrigação social e ainda tinha confortado Beatriz,
praticando uma boa ação.
Em casa, ficou pensando: “Devido aos sofrimentos
causados pelo atropelamento e morte do pai, Beatriz ficou com
fragilidade emocional. Me vendo, sentiu remorso pela conduta
AGORA OU NUNCA MAIS
351

que teve comigo e não suportou a manifestação da alma. É


isso; só pode ser!”
Candota não se preocupou em dar maior importância ao
caso e tentou esquecê-lo. Aquilo, por certo, não tinha passado
de pequeno acidente, e Beatriz também o esqueceria logo.
Dois dias depois, à noitinha, estando os pais na sala
assistindo ao noticiário da televisão, Candota chegou e se
acomodou numa poltrona, a tempo de assistir às últimas
notícias. Terminado o programa, Alfredo comentou:
— Agora, com a diminuição do consumo de petróleo, os
países produtores, que vivem quase que exclusivamente da
venda do óleo, estão em reunião. Discutem a melhor maneira
de enfrentar a situação. Uns dizem que está tudo bem, porque
podia ser pior; outros, que o futuro vai ser sombrio pela
possibilidade do governo apertar mais as medidas de consumo.
O que você acha disso, Candota?
— É isso aí! Não tem outro caminho. Queiram ou não, os
produtores de petróleo vão ter que aceitar a realidade. A
tendência é o petróleo perder importância econômica pela
contínua diminuição do consumo. Esses países vão ter de
retomar as atividades anteriores. É questão de adaptação.
Cada país vai ter a sua própria solução.
— E quanto a essa revolução ecológica? O que que você
acha?
— Tudo indica que as medidas tomadas até o momento
são tímidas. Isso é só o começo. Muitos lá no CGE defendem
correções mais duras. Tem prevalecido a opinião de esperar a
avaliação das indicações científicas e depois decidir. Tenho
recebido notícias do meu amigo francês, de quem já te falei.
AGORA OU NUNCA MAIS
352

Até o momento, não tem novidade, mas esperamos algumas


definições. Nos próximos dois meses, já vamos ter os
primeiros dados. Na ocasião, eu te comunico.
— Então, as perspectivas são de piorar! – exclamou Dona
Rosa, preocupada.
— O que as pessoas precisam entender é que estamos
iniciando outra era. São os primeiros passos pra construir uma
nova civilização.
— A era de desgraças! – resmungou Alfredo, aborrecido.
— Não, papai! Tudo é questão só de adaptação. Temos é
que amoldar nossa existência à realidade do meio e, também,
ajustar nossa mente pra aceitar pacificamente esse retorno. Eu
defendo que esse ajuste deve ser lento. Pra humanidade não
sofrer muito.
— Isso tudo você já tinha explicado. Vá lá, eu aceito! E
daí? O que que podemos fazer pra sofrer menos? – perguntou
Alfredo, demonstrando contrariedade.
— Se ajustar à realidade e se harmonizar com a Natureza.
Pra tornar as coisas mais fáceis, devemos enxergar bem claro
que o objetivo do arranjo mundial é tornar as pessoas auto-
suficientes.
— Como?
— Seguindo diversos princípios.
— Princípios?
— Um deles: cada pessoa deve morar onde exerce sua
atividade. Segundo: a ocupação individual deve ter o objetivo
de auto-suficiência da microcomunidade em que vive.
Conseqüência: com isso, fica eliminada a necessidade de
AGORA OU NUNCA MAIS
353

transporte de pessoas e mercadorias. As coisas vão sempre


ficando mais fáceis.
— Isso é impossível! – ponderou Dona Rosa.
— Impossível por quê?
— Porque os que trabalham numa fábrica não têm
condições de morar perto. Não vê o caso do Zenon?
— A tendência dessa fábrica é ser extinta. Em última
análise, essa indústria, ou é poluidora, ou vai se tornar
desnecessária pelo avanço dos critérios da nova civilização.
— E o que será do Zenon? E a família dele? Como é que
fica?
— O Zenon terá de se adaptar também. Pra explicar bem
explicado: o ideal é que todos voltem às origens. Cada família,
agrupada numa unidade social, vai ter o seu pedaço de terra e
ali vai cultivar os alimentos, trabalhar e morar. Pronto!
— Eh, você acha fácil!
— É fácil, sim! Vida simples, sem atribulações. Já
pensou!? Esta civilização moderna é que construiu essas
complicações todas. Antes, elas não existiam, e as pessoas
viviam muito bem. Até o computador não vai fazer falta
nenhuma, pra meu próprio desencanto.
— Isso realmente seria o ideal! – concordou Alfredo. Mas
onde encontrar tanta terra pra tanta gente?
— Teoricamente, é fácil resolver essa equação:
diminuindo tanta gente.
— Eh! Ainda bem que é teoricamente!
Candota achou melhor parar por aí. Sentiu aperto no
peito com assunto tão triste. Antevia uma solução radical que
poderia demorar a ser implantada e não justificava, portanto,
AGORA OU NUNCA MAIS
354

trazer para os pais sofrimentos antecipados. Achou oportuno,


no entanto, recomendar:
— Papai, acho que a melhor coisa que vocês devem fazer
é reunir uns parentes e amigos escolhidos, mais a Tê com a
família, formando uma cooperativa ou comunidade, e
comprarem um imóvel rural, mudando-se todos pra lá.
— Deixar isso tudo aqui? A nossa casa foi feita com
sacrifícios que você nem imagina. Você era criança então.
— Nada é eterno! Você sabe!
— Bom, você deve saber o que está falando. Está no
miolo das decisões do governo global.
— Não conte com os proventos da aposentadoria; eles
podem faltar no futuro.
— Também!?
— Não esqueça que estamos num processo de
modificação, e tudo é possível. Mais cedo ou mais tarde, todos
vão ter de abandonar as cidades e morar no campo. Isso vai
ser imposição dos governos, como recurso lógico pra
sobrevivência. Seguindo a minha orientação, você pode ir
providenciando essa mudança desde hoje, evitando atropelos
quando ela for obrigatória.
— Pra você tudo é muito fácil!
— Eu dou a receita! A união faz a força. Juntem seus
recursos e comprem um bom terreno rural. Não adquiram mais
terra do que a necessária, porque o excesso pode ser tomado
pelo governo.
— E o que vamos fazer na roça?
AGORA OU NUNCA MAIS
355

— Ah, papai! Exercitar a função primária e natural de


sobrevivência. Produzir alimentos de subsistência e algum
excesso que vai servir pro escambo com os vizinhos.
— Isso é volta ao primitivismo!
— Não, papai! A cultura intelectual vai ser preservada,
mas vai ficar contida dentro de um limite comunal restrito,
suficiente pra uma vivência digna, tranqüila, sem ganância,
com justiça, e contemplação direta da Natureza. Se pensar
bem, isso é enriquecimento espiritual e processo de sabedoria.
Pra que possuir mais do que a gente precisa? Esta civilização
progressista é enganadora e autodestrutiva.
— Se todos agirem assim, como vão ficar as cidades?
— No final, esse vai ser o caminho de todos, como já
expliquei. As cidades, vazias no futuro, vão ser testemunhas
históricas duma civilização desnaturada.
— Isso é horrível, Candota! É o fim do mundo!
— Não, papai! É o fim da atual civilização, justamente pra
preservar o mundo.
— Nunca aconteceu isso antes!
— Já, sim. Você sabe que isso não é novidade. Diversas
civilizações florescidas no nosso planeta se imolaram nas
próprias contradições e deixaram seus monumentos como
marco de existência e demonstração de que as incúrias
humanas sempre pagam o preço da insensatez.
Alfredo ficou pensativo por algum tempo e deixou morrer
o assunto. Dona Rosa, apreensiva, interrompeu a pausa e
perguntou:
— Meu filho, me diga uma coisa. Você vai realmente
voltar pros Estados Unidos?
AGORA OU NUNCA MAIS
356

— Eu tive trinta dias de licença, e o Conselho precisa da


minha volta pra tomar algumas decisões importantes. Nosso
trabalho está só no começo. Ainda tem muita coisa pra ser
feita.
— Você não pode voltar! Nós precisamos de você aqui.
Com essa situação anormal e sem visão de futuro... sei lá!
— Ô mãe, pode ficar tranqüila! Tudo vai ficar bem! Você
está preocupada à toa. Eu já deixei o papai orientado.
— Mas você não tem necessidade de ficar lá. Além disso,
nós precisamos de você é aqui! – e começou a chorar.
— Deixa disso, mãe! Não precisa chorar! Você está
preocupada com o futuro, mas diz a sabedoria popular que
devemos sempre viver o dia de hoje.
— Mas amanhã vai ser dia de hoje também! A gente
precisa pensar no amanhã!
— Em qualquer circunstância, todo futuro é trágico. Não
viu o caso do Seu Juarez? Um dia todos nós vamos ter que
morrer mesmo! Por isso, o melhor é não pensar nessas coisas.
— Eh, meu filho! Você tem razão, mas desconhece o que
é coração de mãe! O Guilherme está vivo no meu coração até
hoje!
— Não conheço, mas imagino. Deixa de sofrer, vai!
Aproveita enquanto estou aqui e feliz.
Alfredo ouviu tudo e não se manifestou. Ficou nos seus
pensamentos. Dona Rosa, pretextando ver algum serviço na
cozinha, saiu da sala como se estivesse fugindo da situação.
Candota achou melhor ir até o escritório consultar sua
correspondência eletrônica. Descuidara-se dela por alguns
dias; devia estar acumulada.
AGORA OU NUNCA MAIS
357

Entre algumas mensagens depositadas no computador,


havia notícias de Bento e de De Lembert. Aquele informava
que não conseguiram retirar Klintok da prisão e que novo
complô, com participação de alguns políticos importantes,
tinha sido debelado. Dava notícia de significativo aumento de
suicídios na classe empresarial. O francês comunicava que
alguns dados climáticos mundiais tinham chegado ao CGE, mas
que Devers não lhes dava importância. Aguardaria os registros
científicos totais e definitivos antes de apresentá-los em
plenário. Pelo visto, a ausência de Candota não impedia as
reuniões.
O telefone interno tocou, e Candota atendeu.
— É a Terezinha que quer falar com você – disse Dona
Rosa. — Está no ramal quatro.
— Oi, Tê!
— Eu soube que você compareceu no enterro do Seu
Juarez. Fez bem. Eu não pude ir, mas hoje telefonei pra
Beatriz, apresentando meus pêsames.
— Ela está bem?
— Parece que já está conformada. Ela é que me contou
que você esteve no velório. Disse que pretendia te procurar no
fim do mês pra te agradecer. Aí eu contei que você vai voltar
pros Estados Unidos por estes dias, e ela parece que levou
susto. Disse que não sabia disso e que vai aí hoje mesmo pra
te visitar. Eu fiquei sem entender. Vocês não terminaram o
namoro?
— Terminamos, sim! Tenho impressão que ela vai me
procurar pra agradecer minhas condolências. É só isso!
— Bem, eu achei que era conveniente você saber.
AGORA OU NUNCA MAIS
358

— Claro! Fez bem em me ligar. Foi até um grande favor.


Candota se despediu da irmã e percebeu que estava com
as mãos frias e sentiu o coração bater mais rápido. Estava
perturbado com a súbita notícia. Não tinha dado importância
àquela conversa de Beatriz, lá no cemitério. Acreditou serem
palavras de momento e não levou a sério a visita prometida.
Percebendo que Beatriz podia cumprir a intenção logo,
apressou-se a melhorar a aparência. Foi ao quarto e ali se
demorou nesses cuidados. Deu uma lustrada nos sapatos e
arrumou o cabelo ao espelho.
Na sala, com o coração batendo mais forte, porque na
expectativa de visita anunciada, ficou lendo, ou fingindo ler,
uma revista.
Não precisou esperar muito. A campainha tocou, e
Candota sentiu o prazer de abrir a porta. Era Beatriz, como
esperado. Vestia-se com simplicidade e sem pintura. Assim,
para Candota, que a olhava com olhos da paixão, mais bonita
Beatriz lhe parecia.
— Fico satisfeito que tenha vindo. Vamos entrar – disse
Candota, sério, após os cumprimentos.
Dirigiram-se à sala, onde se assentaram. Curiosa por ter
ouvido a campainha, surgiu Dona Rosa que, após algumas
palavras de consolo à visitante, se retirou.
— Como vão passando sua mãe e sua irmã? Mais
resignadas?
— De certo modo, estão bem. Foi um golpe duro!...
— Faço uma idéia! Também não é pra menos! Seu pai era
muito estimado.
— E foi muito repentino. Deu pra desorientar a gente.
AGORA OU NUNCA MAIS
359

— Vão continuar com a loja?


— Eh, estamos estudando! Acho que eu é que vou tocar o
negócio, porque já conheço o serviço. Mas a minha irmã deve
me ajudar. Ainda não tratamos disso. Você sabe, fica tudo tão
confuso!
— De fato!
Candota sentia-se constrangido, sem iniciativa de
assunto, por tudo o que lhe tinha acontecido em relação à
Beatriz e que o tinha levado agora a uma posição passiva.
Contudo, ficaram por algum tempo mantendo conversa
polida e formal. Num momento mais prolongado de silêncio
recíproco, Candota encontrou a saída de se levantar e dizer
que ia pedir à mãe que trouxesse algum quitute. De certo
modo, isso aborreceu Beatriz, que franziu a testa e pediu que
não trouxesse nada, alegando que estava indisposta. Candota
notou que a amada se mostrava um tanto aflita.
— Senta, Candota! Não leva a mal, mas eu não vou
aceitar nada mesmo.
— Está bem! Não vou te contrariar.
— Eu preciso te dizer umas coisas – disse Beatriz,
modulando a voz de modo amigável e acolhedor.
Candota, surpreso e curioso com essa mudança de rumo
da conversa, empalideceu e se esforçou para se dominar. Ficou
na expectativa.
— Quando foi lá em casa, você me revelou o segredo que
guardava por tanto tempo. Mas você não me disse que ia
voltar pros Estados Unidos!
— Achei que isso não era importante, apenas detalhe.
Naquele dia, a minha obrigação, como te disse, era explicar os
AGORA OU NUNCA MAIS
360

motivos das minhas atitudes anteriores. Penso que dei total


esclarecimento
— Você está certo, mas não levou em conta os meus
antigos sentimentos... que... apesar de tudo... – fitando o
rapaz com aqueles belos e sedutores olhos – ainda não
morreram e fazem parte da sua história.
— Mas eu não sabia disso! Não tinha como adivinhar!
Você não me deixou nenhum sinal de interesse. Até pelo
contrário. Você...
— Que isso!
— ...ficou insensível com minha justificativa e me deixou
envergonhado.
— Quanto a isso, eu tenho que esclarecer. Fiquei
esperando que você me dissesse alguma palavra que
confirmasse aquele amor que antigamente me confessava.
Mas...
“Aquele amor” – repetiu Candota mentalmente.
— ...você apenas me fez um... como é que chama isso?...
um... relatório e foi embora.
— Mas, meu amor – deixou escapar – você já tinha me
prevenido antes que ia só me ouvir.
— Ora, Candota!
— Eu te confesso que naquela noite parecia que eu falava
pra uma mulher de cera.
— Quanto a isso, reconheço que fui egoísta e agi mal. Foi
erro meu. Mas eu me penitenciei; pedi seu perdão e você me
perdoou.
— Te perdoei com o melhor dos meus sentimentos.
AGORA OU NUNCA MAIS
361

Beatriz, levantando-se da poltrona, chegou perto de


Candota e disse:
— Você não percebeu? Eu estava magoada com você, que
passou tanto tempo no exterior sem me mandar qualquer
bilhetinho; nem no meu aniversário!
— Pensei que nosso namoro tivesse terminado no ano
passado. Eu não podia te iludir. Você lembra que te liberei? Eu
estava numa...
Foi interrompido por Beatriz que, com delicadeza, lhe pôs
a mão aberta na boca e abriu a alma:
— O certo é que, com sua volta, eu mantinha alguma
esperança de retomar nosso namoro. Antes de você voltar,
terminei o relacionamento que mantinha com um rapaz. Era
um modo de tentar te esquecer. Mas não adiantava nada.
Candota se sentiu nas nuvens. Foi incapaz de dizer
qualquer coisa. Parecia hipnotizado.
Beatriz pegou as mãos de Candota e, olhando-o nos olhos
com o amor expresso no rosto e doçura na voz, confessou:
— Não vai me dizer nada? Você duvida que eu te ame
ainda? Eu só penso em você. Esse tempo todo!
Nesse ponto, Candota entrou em delírio. Estava refeito
aquele grande amor da sua vida. Sentiu-se renascer. Perdendo
qualquer escrúpulo que ainda pudesse ter e, hipnotizado por
aqueles dois belos olhos, deixou a alma se manifestar com
total liberdade e recuperou a fala, dizendo:
— Você quer que eu diga, vou dizer. Depois não se
arrependa!
Beatriz, em silêncio e expectativa, ficou apenas olhando
com candura o amado, enquanto lhe apertava as mãos.
AGORA OU NUNCA MAIS
362

— Nesse tempo todo, lá nos Estados Unidos, fiquei


conhecendo milhões de moças, mas nenhuma parecida com
Beatriz, brasileira, bonita, solteira, prestes a se casar com
Candota.
Beatriz não esperava tão imprevista e bela declaração de
amor. Abraçou-se a Candota, apertou-o e lhe deu um beijo de
concordância. Ficaram por algum momento trocando carícias e
se beijando mais. Estavam entendidos. E selados os destinos.
Foram sentar-se no sofá, juntinhos.
— Meu amor, precisamos conversar sobre nosso
casamento – disse Candota, ainda pálido de emoção, mas
bastante animado e feliz.
— Temos mesmo muita coisa pra ajustar. Você não vai
voltar pros Estados Unidos, vai?
— Eu não tinha te explicado os pormenores da minha
situação, mas vou contar agora.
— Fica aqui, amor! Não vai, não!
— Uma das questões é que tenho um cargo importante
em órgão do Governo Mundial. Tirei trinta dias de licença e
tenho que retornar. Afinal, esse governo está executando o
meu programa e sou uma peça na engrenagem mundial.
— Tem vários embaraços na nossa situação. Primeiro, o
pouco tempo que temos. Segundo, eu aqui e você lá? Não é
isso que a gente quer, não acha?
— Beatriz, o principal é que nós nos amamos e vamos
casar. Por mim, a gente podia ir agora mesmo pros Estados
Unidos e casar lá. Mas e o passaporte e a reserva de
passagem? Como é que fica? Lá nos...
— Lá o quê?
AGORA OU NUNCA MAIS
363

— Nada!
— Também não é só isso! Além da demora desses papéis,
toda moça sonha com aquele ritual de casamento. Esse é o dia
mais marcante na vida de uma mulher. Acho que o nosso
casamento é muito importante pra ser feito de qualquer jeito.
— Você me desculpe. Eu não queria falar o que falei. É
que estou meio afobado. Eu estava era sonhando. Bobagem
minha!
— Eu também penso que não podemos ficar sonhando.
Temos que enxergar é a realidade. Gasta algum tempo arranjar
os papéis e tomar as providências. E você com essa viagem em
cima da hora! Não dá pra adiar?
— Amor, você precisa compreender a minha situação. Não
tem jeito!
— Tá! Pra quem esperou tanto tempo, esperar mais uns
dias não vai fazer diferença.
— Depois você marca a data do casamento. Eu ainda
tenho dois dias de licença. Dá tempo pra algumas
providências, mas o resto fica aí por sua conta. Pede logo o
passaporte, que é demorado!
— Quanto tempo você vai ficar lá?
— Vai depender só da sua definição pra data do
casamento.
— Você vai mesmo?
— Não tem outro jeito, amor! Isso é imperioso, mas
estarei aqui alguns dias antes da data que você marcar. Em
seguida, vamos pros Estados Unidos e vai ficar tudo bem.
— Vamos ter que morar lá?
AGORA OU NUNCA MAIS
364

— Não tem escolha. É lá que trabalho e recebo o meu


ordenado. É lá que preciso permanecer pra corresponder ao
meu compromisso. E lá vamos ser felizes. Eu te garanto!
— Você está vendo as coisas muito fáceis.
— E são fáceis! Basta a gente simplificar os protocolos da
vida. As providências todas pro casamento vão ficar a seu
cargo. O que você fizer, estou de acordo. Depois a gente acerta
os detalhes.
Entendendo que doravante sua vida estava ligada ao
destino do futuro marido, Beatriz expressou belo sorriso de
felicidade, mostrando sua concordância.
Pegando Beatriz pela mão, Candota disse:
— Vem! Vamos contar pra minha mãe.
Nos dias seguintes, Candota se apressou nas providências
para o matrimônio, inclusive com a protocolar visita à Dona
Berta que o recebeu muito bem e concordou com o casamento
rápido. Apenas lamentou, chorosa:
— Acabei de perder meu marido e agora vou perder
minha filha! Vocês vão embora pra longe e talvez eu não veja
mais a Beatriz.
Foi triste a missão, mas os amantes não se abalaram em
seus propósitos. Desmancha-se uma família, forma-se outra. É
o ciclo imperioso da vida. Antes do retorno de Candota,
ficaram as providências encaminhadas e os planos combinados.
AGORA OU NUNCA MAIS
365

11° CAPÍTULO

Já em Washington, no fim da licença, Candota se


hospedou no mesmo hotel, onde encontrou De Lembert.
— Como foi lá? – perguntou o amigo.
— Tudo bem. E aí? Como está o andamento?
— Muito trabalho! Tem tido rebelião em alguns países
mais atrasados, mas o exército tem colaborado dentro do
possível. A culpa é de alguns governos nacionais que têm
mostrado indolência ou incompetência. O pior é que alguns
governos não vêm cumprindo as normas. Acho que o Devers
vai pôr isso em discussão.
— Chegaram mais informes?
— Têm chegado, mas Devers não está satisfeito ainda.
— Amanhã, na reunião, vou tomar conhecimento da
situação.
Candota, feliz e entusiasmado com a conquista de Beatriz,
apressou-se em telefonar para Bento, dando a boa nova. Foi
uma conversa demorada, e os amigos puseram em dia seus
assuntos.
No dia seguinte, Candota se apresentou ao presidente do
CGE, agradecendo a licença concedida e comunicando seu
breve casamento, em data a ser marcada.
— Conto com a sua benevolência, Devers. Vou precisar de
15 dias de ausência, mas voltarei casado e meu coração não
AGORA OU NUNCA MAIS
366

mais ficará partido em dois pedaços, separados por quarenta


mil quilômetros.
— O que que é isso! A distância é grande, mas nem tanto!
Não chega a dez mil.
— Não, Devers. Em assuntos de coração, as distâncias
aumentam muito. Você talvez nem saiba disso.
— Não precisa dizer mais nada! Já vi que você está
apaixonado sem retorno. Talvez essa separação até atrapalhe
sua atuação no Conselho.
— Não tem perigo. Tenho consciência dos meus deveres.
E aí? Vai poder?
— Vá lá! Pode contar com meu apoio, mas 15 dias é
muito. Quando marcar a data, você me avisa, e aí vamos ver.
— Obrigado. Como estão os informes científicos?
— São insuficientes ainda. Temos que aguardar mais
tempo. Diversos relatórios de fiscalização vão dar muito
trabalho. Hoje vou pôr em pauta um desses problemas.
Reunida a assembléia, e apoiado em boletins de
fiscalização, o presidente abriu a sessão:
— Consoante relatório já em poder dos conselheiros, as
normas decretadas pelo Governo Mundial não vêm sendo
observadas com a devida responsabilidade por parte de alguns
governos regionais. Quero ouvir a opinião de todos.
— Entendo que, além da correção rigorosa, as normas
devem ser mais rígidas pra esses países. É uma forma de
impor castigo e seriedade – disse um dos conselheiros.
— Concordo com a opinião do colega porque, já que tais
governos cumprem as determinações pela metade, que se dê
obrigações em dobro.
AGORA OU NUNCA MAIS
367

— Se perdurarem essas negligências sem uma resposta


enérgica da nossa parte, isso pode se alastrar. Também
concordo com o colega.
— Como os países listados são culturalmente mais
atrasados, penso que somente a linguagem mais dura será
compreendida.
O entendimento e opiniões dos demais conselheiros
tomaram um rumo quase que de unanimidade.
Depois de bem discutida a questão, ficou decidido
encaminhar o assunto ao Departamento Político Especial, com
a recomendação de ser empregada a intervenção militar, posto
que o plano mundial não poderia ficar à mercê da negligência
de alguns. Foi medida firme, mas indispensável.
Não era fácil a labuta diária no Conselho. Conflitos de
interesses e desajustes sociais surgiam com freqüência em
todas as partes do mundo. Contudo, com acertos e desacertos,
o plano governamental estava avançando no rumo pretendido.
As reuniões do CGE já tinham caído na rotina, mas os
participantes estavam prevendo dias tumultuados e difíceis
quando tivessem que avaliar os informes científicos. Candota
sabia disso e torcia para que o casamento fosse realizado
antes.
Quase diariamente, Candota se comunicava com Beatriz,
informando-se dos preparativos para o enlace e trocando
mensagens de carinho e expressões de amor. Numa dessas
ocasiões, acordaram a data para a cerimônia, que seria em 14
de maio, quase dois meses depois daquele dia feliz.
Devers foi logo informado daquela decisão a fim de que
ficasse assegurada, com boa antecedência, a certeza da
AGORA OU NUNCA MAIS
368

concessão da licença pedida. Mas o presidente do Conselho


não se mostrou muito liberal.
— Vou te conceder dez dias pro casamento. Temo que
você possa fazer falta nos nossos trabalhos, porque as coletas
de indicações estão chegando e não demoram a se completar.
Nessa ocasião, não quero que você esteja ausente.
— Mas a licença de 15 dias é o mínimo. Eu soube que tem
tido atraso nos embarques aéreos. Tenho que jogar com
fatores imprevisíveis pra não chegar lá depois do prazo. Já
pensou!? Um casamento sem o noivo? Vão pensar que eu fugi!
— Você está exagerando. Dez dias é suficiente. Mais não
posso te dar. Se tiver algum imprevisto, você me avisa.
Candota se conformou. Tratou de fazer os cálculos e
programar os passos. Previu a chegada ao Brasil com
antecedência de dois dias e avisou a noiva. Tinha que reservar
cinco dias para a lua de mel. Tratou de marcar logo a
passagem aérea e ficou na esperança de que tudo desse certo.
Depois daqueles primeiros dias de tumulto, o tráfego
aéreo tinha diminuído, e estava mais organizado, e Candota
embarcou na data prevista. Chegou ao Brasil, como
programado. Foi recebido no aeroporto com muitos beijos e
abraços de Beatriz. Estavam felizes e, segundo informou a
noiva, tudo arranjado na forma do seu desejo.
O casamento foi singelo e restrito, em decorrência das
contenções sociais em vigor. A recepção, moderada e
reservada para os parentes mais próximos, foi realizada na
residência de Alfredo. Ali, com a parcimônia exigida pela
realidade do momento, mas com emocionadas manifestações
AGORA OU NUNCA MAIS
369

de alegria, foram festejados os recém-casados com as


atenções, os salgadinhos e brindes de praxe.
À noite, depois de longa espera no aeroporto, devido ao
atraso do vôo, embarcaram para Nova York. Descansaram por
dois dias num hotel da cidade e viajaram para a Região dos
Lagos, roteiro escolhido por Beatriz.
Os recém-casados, alheios aos amargores da ocasião,
sentiam-se felizes e realizados. Situavam-se num universo
diferente, de encantamento e otimismo; um mundo só deles,
construído sobre sonhos de esperança. Um mundo que, na
realidade, caminhava para outras dimensões e perspectivas.
Foram dias vividos na plenitude do presente, sem
preocupações de futuro. Festejaram as auroras dos dias, as
primaveras dos anos e a sobrevivência do amor.
Prestes a esgotar o prazo da licença, viajaram para a
capital, onde Beatriz se maravilhou com a bela casa mobiliada
que Candota tinha alugado em um bairro sossegado.
— Você caprichou na escolha da nossa casa – elogiou
Beatriz. — Tudo aqui me agrada e me sinto muito leve, sobre
nuvens. Só vou sentir falta duma coisa.
— Não consigo adivinhar. Do que é, meu amor?
— Vou sentir a sua ausência quando estiver trabalhando.
O dia vai custar a passar, mas vou ficar te esperando. Tira um
ano de férias e fica aqui comigo.
— Quem dera! Se dependesse de mim, pra ficar com você
eu tiraria férias eternas. Mas a realidade é outra. Amanhã
começa o meu trabalho duro!
AGORA OU NUNCA MAIS
370

Enquanto isso, no CGE, Devers estava catalogando os


últimos dados de avaliação que haviam chegado e redigindo a
súmula que seria entregue aos conselheiros.
Ao chegar ao serviço, Candota se apresentou ao
presidente do Conselho, que lhe disse:
— Antes de qualquer coisa, meus votos de felicidades pelo
seu casamento.
— Obrigado.
— Gostei de ver! Você cumpriu os dez dias! Meus
parabéns por isso também. Não podia mesmo te dar mais
tempo. As informações se completaram, e hoje mesmo vamos
tratar disso. Estava apenas te esperando.
Iniciada a sessão, Devers fez a apresentação dos
informes:
— Vocês estão recebendo uma coleção de informações
científicas que se completaram nos últimos dias. Peço que
façam um estudo delas e dêem parecer na reunião de depois
de amanhã. Estão dispensados por hoje e amanhã.
Quando chegou cedo em casa, Beatriz ficou surpresa.
— O que houve! Tirou as férias de um ano?
— Antes fosse! Trouxe é um relatório que deve ser
examinado em dois dias. Na próxima reunião, temos que
oferecer nossa opinião. É muita responsabilidade!
Candota passou diversas horas na sala, examinando o
documento e meditando. Após algumas anotações feitas num
caderno, deu por encerrada a tarefa do dia e voltou sua
atenção para a esposa que, paciente, não tinha interrompido o
estudo que o marido fazia.
AGORA OU NUNCA MAIS
371

No dia seguinte, Candota foi ao escritório e ligou o


computador. Chamou o seu programa, que estava atualizado
com as últimas medidas do governo, e fez alguns ajustes.
Cuidadosamente, foi introduzindo alguns informes codificados
por índices e outros apurados em suas anotações. Ao fim do
dia, concluiu a análise e redigiu o parecer. À noite, saiu com
Beatriz para se divertirem.
Na reunião programada, após a introdução da pauta, feita
pelo presidente, Candota foi o primeiro a ser chamado para ler
o relatório de análise:
“Examinei todos os aspectos dos informes apresentados.
De modo geral, como supunha, não há alterações significativas
nos índices apreciados. Isso era esperado porque, como já
expusemos na teoria, a Natureza é demorada em suas reações.
Por outro lado, focalizando isoladamente as indicações por
objetivos, notamos o seguinte:
a) o índice de reprodução humana continua inalterado, o
que é natural devido ao fato de que somente daqui a dois anos
terá expressividade;
b) oitenta por cento das usinas termonucleares já foram
desativadas, o que é um bom índice, mas ainda não produz
reflexo favorável em apanhados concretos. Contudo o objetivo
inicial está sendo alcançado em conseqüência da não-produção
de lixo nuclear;
c) as estatísticas relativas à preservação de árvores são
favoráveis e com índices expressivos, mas insuficientes para
melhor apreciação à vista do pequeno período de vigência;
d) a circulação de veículos civis, nesse pequeno período,
já alcançou a meta estipulada para o primeiro ano. As
AGORA OU NUNCA MAIS
372

medições do ar acusam melhoria nas grandes cidades, mas não


influem beneficamente, no entanto, nos apanhados globais
daquele item.
e) as indústrias de veículos, por força da diminuição da
procura, automaticamente já reduziram a produção em dez por
cento. Indiretamente, sabemos dos benefícios que essa
redução traz para a Natureza;
f) as restrições sobre as indústrias químicas estão sendo
observadas, e os índices apontam estabilidade. Só de não
crescer já é uma boa indicação;
g) as pesquisas científicas cessaram, mas isso, em curto
prazo, não implica alterações do processo ecológico.”

— Eu peço aparte pra fazer uma observação – solicitou


um conselheiro.
— Recomendo que o colega se contenha até que Candota
possa terminar sua exposição – interveio o presidente.
Olhando para Candota e fazendo sinal, disse:
— Prossiga.
Candota continuou lendo o arrazoado:
“Fiz projeções, segundo as pequenas alterações
apontadas pelos nossos observadores, e identifiquei uma
tendência, quase desprezível, de melhora das condições
ecológicas. Isso, contudo, não me influencia na racional análise
da situação atual. Entendo que devemos continuar estimulando
os governos nacionais a proporcionar as condições de
transferência dos habitantes citadinos para as comunidades
rurais. Essas medidas produzem, pelas conseqüências sociais,
muito mais benefícios ecológicos do que as demais normas
AGORA OU NUNCA MAIS
373

restritivas. Concluo que, por medida de precaução, se reduza


em dez por cento as atividades industriais de transformações
químicas, pois são elas altamente prejudiciais. Além disso,
esse critério condiz com os objetivos de saneamento do
projeto governamental. Quanto às demais normas, entendo
que ainda é cedo para ser feita melhor avaliação.”
Todos os conselheiros se manifestaram a respeito. Alguns,
mais rigorosos, entenderam que, por mostrarem os índices
uma estabilização ecológica, deveriam ser tomadas medidas
gerais mais severas. Outros teceram comentários mais ou
menos consentâneos com a exposição apresentada.
De Lembert concordou com as conclusões de Candota,
mas argumentou que a redução das indústrias químicas
deveria ser menor para evitar súbito desequilíbrio social.
Concluiu dizendo:
— Está em nossas mãos o gerenciamento dessas
transformações. Temos poder pra alterá-las a qualquer
momento. Nossa idéia se firma no princípio do parafuso: ir
apertando sempre, mas devagarzinho. A lentidão no arrocho é
compatível com a lentidão da Natureza e da acomodação do
povo em novos sistemas de vivência, principalmente a
migração pro campo, em assentamentos oficiais ou não.
O presidente Devers também interveio, no final,
lembrando:
— Conforme conhecimento dos conselheiros, é preceito do
Governo Mundial que o programa ecológico seja conduzido de
forma cautelosa e gradativa, a fim de evitar movimento
bruscos na reação da sociedade.
AGORA OU NUNCA MAIS
374

Depois de demorados debates, quando todos puderam


expor pontos de vista divergentes, prevaleceu a cautela
recomendada e a redução de apenas cinco por cento das
atividades de indústrias químicas.
A súmula dos debates e resoluções foi enviada à cúpula
do governo para decisão final. Na reunião ali realizada, Devers
defendeu a proposta e obteve aprovação. Circular foi expedida
a todos os governos regionais e aos órgãos de fiscalização.
Chegando em casa, depois de um dia penosamente
extenuante, Candota procura se confortar. Depois de beijar
Beatriz, na sala mesmo tira os sapatos e se joga deitado no
sofá, onde fica imóvel por algum tempo e com os olhos
fechados, recompondo as energias.
— Estou vendo que te puseram pra dançar hoje! – fala a
esposa, com bom humor.
Retribuindo o jogo:
— Eu agora estou dormindo. Não escuto nem vejo nada.
Estou no mundo da ausência, o mundo da não-existência. Só
eu e duas almas!
— Uai! Você tem duas almas?
— E você não sabe disso?
— Está me intrigando! Que história é essa?
— Eu tinha só uma alma, mas a partir de 14 de maio... –
e recebeu uma almofada na cabeça, jogada por Beatriz, ao
tempo em que esta o abraçava e o cobria de beijos, ainda no
sofá.
Candota começou a rir contagiosamente da situação e
ficaram os dois fazendo jogos com a almofada e rindo
seguidamente com as almas soltas como duas crianças.
AGORA OU NUNCA MAIS
375

Mais tarde, para prolongar aquela felicidade, foram a um


clube de dança, onde festejaram a vida. Retornando a casa e
já acomodados para dormir, Candota falou sério:
— Tenho que te confessar uma coisa que estou sentindo.
Assustada e pega de surpresa, Beatriz perguntou:
— O que foi?
— Naquela hora eu falei brincando em duas almas, mas
agora estou pensando sério sobre isso. Estou percebendo que
a sua alma me completa. Pensando bem, não tenho duas
almas, mas apenas uma completada. Essa unidade de dois é a
energia misteriosa que se chama amor.
Assumindo ares românticos e beijando delicadamente a
esposa, acrescentou:
— É isso que vale na vida. O amor é a única mensagem
palpável do Além.
Quase cantando e abraçando a esposa, prosseguiu:
— Amor é vida! Sem amor, pra que vida, pra que mundo!?
Depois de prolongado silêncio, Beatriz murmura no ouvido
do marido:
— Um biscoitinho de coco se você souber o que estou
pensando.
Sem perceber, Candota exclamou, surpreso:
— Se for com aquele feitiço, vou adivinhar!
— Que feitiço!?
Dando-se conta de que tinha sido traído pela lembrança
do pesadelo, consertou:
— O feitiço dos seus olhos!
— Acho que feitiço é outro nome do destino. Parece que
ele já tinha traçado os arranjos das nossas vidas. E quase que
AGORA OU NUNCA MAIS
376

eu te perco, por causa dessa maluquice toda de querer salvar a


humanidade.
— Às vezes, eu me pergunto se a humanidade merece
todo o sacrifício que os abnegados suportam.
— A humanidade, em si, não. Mas o amor que os pais
devotam aos filhos é o mesmo amor que, sem a gente
perceber, se estende pra toda a humanidade. Afinal, essa tal
de humanidade nada mais é do que o conjunto de filhos. Todos
nós somos filhos.
— Tem razão. O povo não enxerga, mas somos todos
filhos... Filhos da mesma mãe Natureza, e existe um vínculo
espiritual que envolve e dirige os nossos atos. E esses amores
todos dos seres vivos, reunidos, devem ser o Grande Amor.
— Candota, eu te amo muito!
— No próximo fim de semana, vamos sair à noite pra
festejar de novo?
— Festejar o quê?
— Qualquer coisa! Nosso amor, por exemplo!
No dia seguinte, depois da volta do trabalho, Candota se
lembrou dos pais e perguntou:
— Você recebeu alguma notícia do Brasil? Consultou o
computador hoje?
— Nada! Nada, nada!
— Estou estranhando! Vou telefonar pro meu pai. Me
passa o aparelho, por favor.
Depois de alguns instantes com o fone no ouvido,
Candota fez um gesto de frustração com a boca e acrescentou:
— Ninguém atende. Devem ter saído. Amanhã eu ligo.
— Me dá aqui, vou ligar pra minha mãe.
AGORA OU NUNCA MAIS
377

Depois de certo tempo tentando, Beatriz também desistiu


e disse:
— Não é possível! Deve ter algum problema na linha!
Efetivamente, Alfredo e Dona Rosa tinham comparecido a
uma reunião na casa de um amigo, o médico Dr. Adalcindo. Ali
estavam Dona Berta e Jandira, alguns parentes próximos e
amigos mais chegados. Davam andamento nas providências
para formar uma sociedade, nos moldes da recomendação de
Candota.
Tendo em vista os desajustes sociais, cada vez mais
evidentes, tinham chegado à conclusão de que não havia outra
saída, a não ser o regresso à vida natural, e estavam
pretendendo construir um clã moderno. Discutiam e estudavam
a estrutura e funcionamento de cooperativas, kibutz, ecovilas e
sociedades alternativas. Unidos por ideais convergentes e
motivados pelas alterações sociais, previstas para ser
agravadas em breve, notaram que a cada reunião se
fortaleciam os sentimentos de companheirismo e solidariedade.
Na noite seguinte, Candota tentou nova ligação. Ninguém
em casa. Ligou para Terezinha e não responderam. Estavam
também reunidos na casa do amigo, o que faziam todas as
noites. Preocupado, Candota resolveu passar um correio
eletrônico, pedindo notícias.
Recebeu resposta dias depois. Explicava Alfredo,
demonstrando entusiasmo, as providências e andamento do
projeto de mudança de vida. Elogiava o filho e realçava que
nunca antes havia percebido o verdadeiro sentido da
solidariedade. Dizia-se feliz por antever a vida de nobreza
AGORA OU NUNCA MAIS
378

espiritual que teria no meio campestre. Já estavam escolhendo


um imóvel rural e, oportunamente, daria mais notícias.
Candota se sentiu satisfeito com a iniciativa dos pais e
previa que o projeto daria certo. Apressou-se em informar a
esposa, acrescentando que Dona Berta e a filha também
participavam da associação. Zenon e Terezinha compareciam
às reuniões, mas não pretendiam abandonar a cidade, tendo
em vista que Zenon estava com emprego seguro na fábrica –
decisão errada, na opinião de Candota.
Alfredo, duas vezes ao mês, mandava notícias para o
filho, contando o andamento do projeto comunitário.
Finalmente, após quatro meses de labutas, estabeleceu-se em
imóvel rural, integrado a uma sociedade alternativa formada
por umas quarenta pessoas, parentes e amigos. Manifestava-
se satisfeito e entusiasmado. Tinha nova visão de vida e dizia
estar integrado a Deus. Nessa mesma ocasião, Candota
comunicou que Beatriz esperava um filho, o único que poderia
conceber, e que estavam muito felizes com a novidade.
Numa última comunicação, Alfredo informava que não
mais contaria com telefone ou computador; havia apenas
correio nas vizinhanças de sua nova morada. Que o filho se
comunicasse doravante com o Zenon, que ainda permanecia na
cidade.
No CGE, Candota e seus pares também tentavam alcançar
o melhor rumo para a sociedade, só que em escala mundial, o
que tornava as tarefas cada vez mais difíceis. As soluções para
os problemas que surgiam, no entanto, não deixavam de ser
encontradas.
AGORA OU NUNCA MAIS
379

Seguindo instruções de Devers, os analisadores


científicos, distribuídos pelo mundo, somente começariam a
colher e enviar resultados após doze meses da última alteração
das normas restritivas. O prazo já se tinha esgotado, e os
primeiros informes estavam chegando. Para evitar visão
distorcida, o presidente do Conselho não dava conhecimento
desses dados aos membros. Aguardaria até que tivesse em
mãos a totalidade das observações.
Entrementes, Candota tinha seus cuidados redobrados em
casa, cercando Beatriz de atenções e desvelo com vistas ao
seu estado de gestação, período tão delicado na vida de um
casal.
Quando os informes científicos se completaram, com
atraso de dois meses, os conselheiros receberam o relatório e
tiveram três dias de folga para que estudassem o documento
em casa.
Ali, os informantes desvelam um dado novo. Acusam em
alguns países pequena, mas significativa alteração na corrente
migratória interna. Notam que as pessoas estão se
locomovendo das grandes cidades para o ambiente rural e em
escala progressiva. Identificam que tal comportamento advém
da reforma agrária procedida por recomendação do CGE e por
iniciativas próprias na formação de comunidades rurais.
Na reunião dos conselheiros, ficou evidenciada a
satisfação geral com a melhora dos índices apurados. Todas as
usinas nucleares já estavam desativadas, as áreas de
reflorestamento tinham aumentado, as indústrias de veículos
se ajustaram às restrições, o consumo de petróleo diminuiu
AGORA OU NUNCA MAIS
380

muito e indicadores apontavam significativa migração no


sentido cidade – campo.
Somente na área demográfica é que restou uma dúvida.
As estatísticas globais apontavam alterações pouco
significativas nos nascimentos, influenciadas principalmente
pela elevada natalidade nos países mais pobres. Isso ia
requerer uma especial atenção do conselho.
O conjunto dos informes foi amplamente discutido, e as
opiniões divergiram bastante.
— É evidente que todos os índices são favoráveis –
manifestou-se um dos conselheiros. — Entendo que estamos
no caminho certo e que nada justifica que as normas sejam
modificadas. O retorno à vida no campo é fator estimulante.
Significa que o objetivo ecológico iniciou seu principal
movimento. No próximo período de coleta, teremos informes
mais condizentes com a realidade, e serão feitas novas e
atualizadas análises.
— Se em doze meses houve melhora – pronunciou-se
outro participante –, só podemos esperar boas notícias no
próximo apanhado. A única indicação fraca é a da demografia,
mas ela não deixa de mostrar a tendência de comportamento.
Estou otimista quanto à situação atual e antevejo melhores
resultados no próximo relatório, desde que sejam tomadas
medidas adequadas quanto aos países mais prolíferos.
Na sua vez de falar, De Lembert assim se manifestou:
— O que me preocupa é que o motor de toda essa
situação continua funcionando.
— Que motor? – atalhou Devers.
AGORA OU NUNCA MAIS
381

— Que motor? Ora, que motor pode ser que não a própria
humanidade? A população mundial devia estar diminuindo com
mais rapidez. Creio que esse é o ponto principal de toda a
problemática. Temos de encontrar um meio pra acelerar o
decréscimo humano, fonte e causa de todos os demais males
que combatemos. Obtido êxito nesse eixo, o definhamento das
outras atividades prejudiciais conseqüentes será automático.
— O fato é que a diminuição já começou. Lentamente,
mas começou. Com as restrições na procriação, creio que
vamos ter melhores resultados nas próximas avaliações –
rebateu o presidente.
— Não concordo com o otimismo de alguns colegas –
interveio Candota. — As melhoras observadas são produto de
coação governamental. Os procedimentos sociais devem ser
conscientes, voluntários e harmonizados com a estratégia do
Governo Mundial. Os povos, como os rebanhos, devem ser
conduzidos não só por coação, mas por estímulos de
sobrevivência e de conservação do ambiente. Entendo que as
migrações internas devam ser encorajadas, mas monitoradas
pelas autoridades locais, seguindo critérios a ser definidos por
este Conselho. Assim, evitaremos que se disseminem as ações
de poluição urbana pra área rural. A migração em si não
melhora a ecologia, a não ser que as pessoas se voltem pra
comportamentos e atitudes de preservação ambiental. Esses
cuidados cabem aos governos regionais, conduzidos por
prescrições emanadas deste órgão.
— Quero alertar o companheiro – interveio um colega –
pro perigo que constitui o esvaziamento das cidades.
AGORA OU NUNCA MAIS
382

— Não há perigo nenhum! – retrucou Candota. — A


substituição da atual civilização implica destruir as grandes
cidades. Isso é evidente.
— Destruir? Isso equivale a desequilibrar a relação social.
— A sociedade urbana, hoje, se fundamenta em
atividades que têm relações tecnológicas. Cessando essas
ligações, substituídas por tratos saudáveis com a Natureza,
não haverá necessidade nenhuma dessas metrópoles. Elas
perderão a função.
— O que será feito das nossas regiões urbanas?
— Elas permanecerão como monumentos, marcos duma
era, como existem as pirâmides, as estelas, os templos e
demais construções megalíticas que testemunham antigas
culturas sociais equivocadas. Esta não seria a primeira vez que
a civilização seria destruída. Pelos registros da História,
sabemos que cada uma delas teve seu período de permanência
e apogeu; e elas foram muitas. No momento, estamos tratando
apenas de mais uma, a atual. O perigo nessa metamorfose,
como referido, é a transferência da mentalidade urbana pro
campo. E isso, precisamos impedir.
— O espaço rural não comporta tão grande população!
— Talvez! E aí reside o nosso principal problema, como
bem disse o colega De Lembert, o do excesso populacional, já
evidenciado nos meus diversos pronunciamentos. Pelos dados
apurados, está evidente que em alguns países a procriação não
vem sendo contida, principalmente nos econômica e
culturalmente mais atrasados. Proponho que sejam discutidas
neste plenário medidas concretas pra acelerar a diminuição
populacional.
AGORA OU NUNCA MAIS
383

Depois que outros se manifestaram, o presidente pôs em


votação diversos itens que formulou. Ficou assentado não
mexer com as atividades nocivas, que seriam automaticamente
reduzidas pelas migrações e pelo simples decréscimo
demográfico; vale dizer, diminuição de consumidores.
No debate sobre pontos divergentes, ainda a serem
votados, De Lembert lembrou:
— Reforçando minha intervenção anterior, quero lembrar
que, por comando genético, a Natureza trabalha imperiosa a
favor da concepção humana e conta com ajuda de vários
suportes, tais como o amor materno e a solidariedade social. A
restrição nesse ponto é de difícil êxito e deve ser objeto de
cuidados especiais. Trabalha ela também – ainda por imposição
dos genes – pela eliminação daqueles que já não procriam.
Nesse mister, a Natureza é dificultada pela tecnologia médica.
Vejam o contra-senso: com os esforços da medicina, ajudamos
a Natureza numa ponta e a estorvamos na outra, o que
contribui pro acentuado desequilíbrio demográfico. Proponho,
portanto – com o maior aperto no coração, infelizmente –, que
este Conselho acrescente aos princípios já instituídos
instruções pra cessação de qualquer assistência médica às
pessoas com mais de sessenta anos. Assim procedendo, a
Natureza se encarregará dos resultados segundo suas próprias
leis.
Pedindo a palavra, Candota se manifestou:
— Estou de pleno acordo com os argumentos do colega.
Quero ressaltar que, com as cautelas mencionadas
anteriormente, a redução populacional é objetivo essencial,
tanto por motivos ecológicos como por conveniência social.
AGORA OU NUNCA MAIS
384

— Não entendo – interveio o presidente – a vinculação


das restrições com fatores sociais!
— Explico. Hoje já está desequilibrada a ideal pirâmide
etária, causada pelos avanços da tecnologia médica. Se
dermos atenção apenas à contenção de nascimentos, maior
desestabilidade haverá na relação etária, com sérios reflexos
na capacidade de trabalho das microcomunidades. O único
modo de contornar essa discrepância é adotarmos com rigor
normas restritivas ao prolongamento da vida além dos
sessenta anos conforme argumentos aqui ouvidos.
— É preciso ressaltar – interveio outro conselheiro – que
essa pirâmide etária tem que ser mantida em sua forma,
diminuindo apenas o seu tamanho. Se contivermos os
nascimentos, mantendo assistência médica aos idosos,
estaremos entrando numa estrutura social perigosa. Já
podemos enxergar esse desequilíbrio, nos dias atuais, em
alguns países mais adiantados da Europa, onde as próprias
mulheres estão restringindo sua reprodução para apenas um
filho ou nenhum. Ali, as bases demográficas estão sendo
supridas pela imigração, o que é solução localizada, mas que
não existe no âmbito mundial.
— Bem lembrado! – reforçou Devers
Quanto à migração interna, um conselheiro alvitrou:
— Devemos instruir os governos regionais pra adotarem
medidas progressivas no estímulo a esses deslocamentos.
Proponho ainda que seja elaborado um manual de
conscientização e vivência ecológicas que servirá de orientação
pra esses casos. Sugiro que os indicadores desses movimentos
devam ser mensais e submetidos ao nosso acompanhamento.
AGORA OU NUNCA MAIS
385

Esses quesitos difíceis foram debatidos demoradamente e


com ardor, mas afinal aprovados. A propósito, Devers se
manifestou:
— As análises e decisões deste órgão são coerentes e
cautelosas. Têm minha aprovação. Contudo creio que a cúpula
governamental terá dificuldades em absorver a essência das
nossas razões quanto à negação de assistência médica aos
idosos.
— Essa medida é dolorosa, mas essencial – ponderou De
Lembert.
— Já pensaram na minha situação? Lá vou ficar na função
de carrasco, de homem mau e sem sentimentos. Aqui tenho
quem me defenda, mas lá quem vai defender o homem mau?
— Devers, a Morte é o custo da Vida – confortou De
Lembert. — Quem vai te defender lá é a soma de argumentos
seus e o bom senso deles.
— Vou colocar o máximo empenho nas recomendações
deste Conselho e espero que convença.
Na reunião ministerial, todas as indicações foram
aprovadas como propostas. Não obstante, decidiu o Presidente
que, por causa de opiniões desencontradas no ministério e de
consciência ética, a recusa de amparo médico ficasse restrita
às pessoas acima de setenta anos. Mesmo assim, não foi fácil
a aprovação final desse quesito. Mas foi imenso esse avanço.
Naturalmente que a “covardia com os velhinhos”, como
ficou jocosamente chamada a cláusula respectiva, provocou
diversas manifestações de entidades empresariais e religiosas.
No entanto, o Governo Mundial, que já esperava pressões
contrárias, contou com preciosa ajuda das organizações
AGORA OU NUNCA MAIS
386

ecológicas, que foram muito ágeis nas preleções sobre a


correção dessa resolução. A fiscalização foi ativada para ficar
especialmente alerta nos hospitais, farmácias e congêneres.
Logo que essas medidas mais severas foram sancionadas
– e que teriam reflexos trágicos nos ascendentes de todas as
famílias –, Candota achou de sua obrigação conversar com a
esposa. Não era boa notícia, à vista do seu estado adiantado
de gravidez, mas deveria saber antes que os jornais a
divulgassem. Ficou relutante e indeciso. Na dúvida, resolveu
deixar para o dia seguinte.
Naquela madrugada, Beatriz, muito aflita, virou-se para o
marido:
— Candota! Ô Candota! Acorda que a festa está
começando.
Ainda mal acordado e assustado:
— Que festa?
— Ora! Acorda! Depressa, que chegou a hora. Enquanto
você toma providências, eu me visto.
Já desperto e consciente da situação:
— Fica calma que daqui a pouco chegamos à
maternidade.
Ao amanhecer, nasceu um sadio garoto com potente
garganta. Seu forte choro de protesto era distinguido do de
outros bebês no berçário. Trouxe consigo um peso adicional de
responsabilidade, que foi direto para a consciência dos pais.
Beatriz já em casa, três dias depois, pediu que o marido
comprasse umas revistas na banca da esquina. Numa delas
veio grampeado um envelope de plástico, como brinde,
contendo algumas sementes de cedro alusivas a uma
AGORA OU NUNCA MAIS
387

reportagem interna sobre estímulos ao reflorestamento.


Preocupado com a possibilidade de alguma revista conter
reportagem sobre as medidas de restrição aos idosos, Candota
se preparou para dar à esposa a triste informação.
— Meu amor, antes de você ir pra maternidade, o governo
aprovou algumas sugestões do Conselho. A mais importante e
revolucionária é a que nega assistência médica a idosos acima
de setenta anos. Foi uma decisão difícil, porque mexe com o
sentimento de todos. Aí ficam incluídos os familiares dos
componentes do próprio governo. E nós temos a nossa parte
dolorida também.
Beatriz começou a chorar, pensando nas aflições de sua
avó. Candota procurou consolá-la.
— Ora, não precisa chorar, amor. O mundo é dinâmico;
nada permanece. A única coisa efetivamente real na vida é a
morte. Hoje somos jovens, amanhã seremos velhos. O
importante na nossa luta é que o mundo agora passa a ter
futuro.
— Futuro adubado com lágrimas e sofrimentos!
— Nada se constrói sem luta. Esse mundo agora vai ter
lugar garantido pro nosso filho que acaba de nascer. A decisão
extrema foi necessária; você pode compreender.
— Eu entendo, mas que é sofrido, é!
Enxugando as lágrimas, lembrou:
— Você já participou o nascimento do Danilo – assim foi
chamado o menino – pro nosso pessoal?
— Ontem passei um correio eletrônico pro Zenon, único
elo rápido com a nossa gente. Ele se encarrega de dar a
notícia. Onde nossos pais estão morando não tem os confortos
AGORA OU NUNCA MAIS
388

da cidade. Comunicação, só por carta demorada. Isso é ruim


em curto prazo, mas é bom em longo prazo. Afinal, temos que
acostumar com a separação. Faz parte!...
— Como estão as perspectivas lá no CGE? Fico
preocupada! Vai ter mais decisões radicais desse tipo?
— Ainda é cedo pra uma definição. Os índices têm
mostrado tendências apenas. Mas uma coisa é certa: se
conseguirmos diminuir a população, o resto se arranja por si.
Vamos esperar as indicações que nossos analistas estão
coletando no mundo. Mas eu creio que tudo vai dar certo! Pode
ficar sossegada!
Com as restrições de transporte, Candota e Bento
pararam de se visitar, mas mantinham conversações pelo
computador ou telefone. Certo dia, Bento telefonou e marcou
visita. Chegou com Miriam e a garotinha Beth.
— Tem tempo que a gente não se vê, hem! – lembrou o
amigo.
— Viajar é um vício que vai acabar.
— Aproveitei que vim ver minha avó, que está doente, pra
também te visitar. Hoje, isso é luxo!
— Não sabia que sua avó estava doente! Depois vou
passar lá.
— Coitada. Está se tratando com chá. Ela é bem idosa, e
a fiscalização vem atuando com rigor.
— Eh!... Vamos ter que aprender tudo que os índios
sabem sobre tratamento com plantas. Temos que preparar a
nossa velhice com antecedência.
— Este deve ser nosso último contato.
— O que foi!?
AGORA OU NUNCA MAIS
389

— Estive pensando sobre seus conselhos e tenho visto


algumas pessoas se retirando das cidades e implantando
comunidades alternativas no campo. Já estou formando um
grupo com identidade de propósitos e pretendo ir pra longe.
— Faz bem! Mas pra longe por quê?
— A região de Nova Jersey tem densidade populacional
muito alta. Miriam já perdeu o emprego mesmo, e eu percebi
que a universidade não vai demorar a fechar. Vou renunciar à
profissão e aos confortos. O elo de família vai acabar mesmo!
Agora, temos que cultivar é a ligação dentro do clã.
— É o preço! Não existe nada de graça!
— Mas, no futuro, a família vai permanecer unida. Porque
vamos viver num núcleo social pequeno. Entendo que isso é a
construção de uma nova cultura.
— É sacrifício hoje, mas depois a vida comunitária vai ser
um bem. Se todos descobrissem essa verdade, nosso trabalho
ia ser bem mais fácil.
— E como estão indo as coisas lá no Conselho?
— A revolução está indo bem. A minha preocupação,
agora, é com algum problema de gerenciamento que possa
surgir.
— O Conselho não está prevendo tudo?
— Está, mas existe o imponderável! Ele costuma ficar
escondido nas sombras do acaso e aparecer de repente, sem
dar qualquer aviso. Esse é o perigo!
— Confio no trabalho de vocês. Por confiar é que tomei
essa decisão. Estou no caminho certo?
— O rumo é esse mesmo! Ainda bem que você está
enxergando e conseguindo identificar o futuro e a esperança.
AGORA OU NUNCA MAIS
390

Pior seria viver sem eles. Quem vive só o presente vive bem,
mas vai acabar ficando angustiado quando o futuro chegar.
— Eu quero me despedir de você e dizer que aquilo tudo
que passamos juntos, valeu! Eu considero um privilégio ter
sido escolhido pelo destino pra te dar uma mãozinha! Fico
orgulhoso disso!
— Valeu mesmo! Nunca vou esquecer de vocês.
Também... se não fosse a sua ajuda... babau!...
Bento, abrindo uma sacola, retirou um pequeno embrulho
e o entregou ao amigo, dizendo:
— Fica com essa lembrança. É parte da minha coleção de
fotos celestes. Elas ajudam na meditação.
Candota, emocionado e pego de surpresa, pensou em
retribuir aquele gesto tão significativo. Não se lembrando de
algo distinto, viu sobre a mesa a revista que continha as
sementes de cedro, ainda grampeadas na capa.
Balançando o saquinho com sementes frente ao amigo,
disse:
— Estas sementes estão vivas e são Vida. Leva elas como
lembrança da nossa luta e planta lá no seu paraíso. As árvores
vão ser as testemunhas da nossa existência e da nossa luta!
As despedidas foram comovidas de parte a parte. As
mulheres pareciam sob melhor controle que os maridos.
De tempos em tempos, Candota atualizava o primitivo
programa de projeção, acrescentando todos os dados
confiáveis que chegavam ao seu conhecimento, inclusive os
provindos do CGE. Vigiava com muita atenção os
deslocamentos que o computador apontava. Já havia
AGORA OU NUNCA MAIS
391

substituído o ano de 2036 pelo de 2054 o que representava


perigo ainda. Mas já era uma boa indicação.
Candota, nessas ocasiões, punha-se a meditar: “O ideal
seria o aparelho apontar o infinito, mas não espero que isso
aconteça antes das oito gerações seguintes. Nessa futura
provável situação, a humanidade, reduzida então a trezentos
milhões de pessoas, teria retornado ao Éden e seria feliz. Seria
mesmo feliz? Ou, a meio de caminho e seduzida pela ganância,
teria esquecido a lição e reiniciado o progresso? Hum!...”.
No Conselho, decorridos quinze meses do último relatório
geral de dados, Devers colecionou e organizou os informes
gerais coligidos pelos observadores.
Examinados e estudados pelos componentes, ficou
evidenciado que tudo caminhava a contento no rumo dos
planos traçados. Os nascimentos tinham recuado, indicando
efetiva diminuição futura da população. Satisfatória, mas
insuficiente por enquanto. Ideal seria que a fertilidade não
ultrapassasse o taxa de um filho por mulher. O melhor
resultado foi a revelação de que o índice de mortalidade dos
idosos acima de setenta anos tinha sido elevado ao dobro em
relação ao apurado na última coleta. Ficou evidente que a
população global começava a diminuir.
O programa de migração para o campo acusava
indicadores satisfatórios, e as cidades grandes já estavam
mostrando os sinais de abandono, com o conseqüente
desmonte das engrenagens progressistas.
O decréscimo de consumidores também apresentava
algumas conseqüências favoráveis. Várias indústrias poluidoras
já tinham cerrado as portas, poucos veículos civis estavam em
AGORA OU NUNCA MAIS
392

uso, e o consumo de petróleo atingia níveis baixos. Também as


ocupações educacionais diminuíram, e as atividades paralelas
em geral decaíram. Havia começado o retrocesso do
crescimento.
Após a apresentação do relatório à cúpula governamental,
que lhe deu seu aval, o CGE recebeu a visita do presidente
Nash que se manifestou entusiasmado com o trabalho ali
desenvolvido. Todos os conselheiros, em solenidade especial,
foram agraciados com uma medalha de honra ao mérito, o que
lhes aguçou o orgulho e a responsabilidade.
Candota, em casa, adicionou os novos dados ao seu
programa e ficou radiante com as indicações. A data da meia-
vida do planeta pulou para 2090. Era para ser comemorado.
Mas não foi. Quando se preparava para externar seu
entusiasmo, Beatriz, demonstrando tristeza e que havia
chorado, deu-lhe más notícias.
— Olha a carta que chegou hoje!
Vinha de parte de Dona Berta, escrita havia trinta dias.
Candota a leu e ficou compassivo.
— Eu sinto muito a morte de sua avó. Sua mãe não
precisava entrar em detalhes; te fez sofrer mais!
— Você viu? Entrou em processo lento de agonia, sem
qualquer assistência. Coitadinha! Era tão boa!
— Beatriz, pense nos milhares de pessoas que estão
passando pela mesma situação. Isso faz parte da renovação da
vida. É a vida dela pela do Danilo.
Num desabafo, provocado pela emoção do momento,
Beatriz olhou firme para o marido e se queixou:
— Vocês aprovaram essa idéia covarde!
AGORA OU NUNCA MAIS
393

— Não me considero culpado. Você é capaz de imaginar o


quanto o caos é pior? Pelo menos a transição segue sob
controle!
— Amor, eu ando com muita saudade da minha mãe.
Quando é que vamos poder ir lá?
— As viagens, atualmente, andam muito difíceis. Não tem
mais linhas aéreas pra América do Sul. Pra lá, agora, só se
viaja de navio.
— A gente vai de navio mesmo! Demora mais, mas chega!
— Não quero contrariar os seus desejos, mas não posso é
te acompanhar, me ausentando agora do Conselho, porque a
situação está exigindo atuação permanente. Estamos passando
por um momento de intensa atividade. Tem anarquia em
diversos países, e nós precisamos ficar atentos pra não deixar
as coisas piorarem.
— Sem você eu não viajo.
— Vai com o Danilo que depois eu vou!
— Quando?
— Isso é impossível prever. Como eu te disse, a situação
em vários países não está boa!
— Não, Candota! Sem você, não vou mesmo!
— Então vamos esperar mais um pouco, até que haja
condições mais favoráveis e que o Danilo esteja crescidinho.
Ainda não tem quatro anos!
— Está bem! Vamos esperar!
Candota abandonou a idéia de se manifestar em casa a
respeito do andamento da revolução, que quase sempre
implicava sofrimentos, porque isso trazia aborrecimento à
esposa. Ficou preocupado e pensativo com novas notícias
AGORA OU NUNCA MAIS
394

tristes que pudessem chegar de repente e decidiu que,


oportunamente, fariam a única e última visita aos familiares.
AGORA OU NUNCA MAIS
395

12° CAPÍTULO

Dois anos se passaram, e o Conselho não parava de


examinar, avaliar e dar soluções de problemas regionais. Além
dos informes semanais, havia os apanhados de mês, mas os
principais eram os elaborados em períodos médios de quinze
meses. Os indicadores já apontavam redução demográfica
significativa, estimando a população mundial em cinco bilhões
de almas.
O programa revolucionário estava indo a contento, mas o
Conselho não podia dormir sobre os louros. Por isso, mantinha
fiscalização constante e renovada sobre todos os aspectos dos
objetivos estabelecidos. O grande perigo seria afrouxar as
exigências de execução.
Quando Danilo atingiu seis anos, Candota percebeu que,
tendo em vista o projeto governamental estar seguindo firme o
curso previsto, podia pedir férias robustas ao Devers.
— Meu caro presidente, as coisas estão caminhando bem,
e os resultados que temos obtido são positivos. Por isso, peço
férias por um período mais longo. Pretendo rever meus
familiares no Brasil. A viagem é demorada pra ir e pra voltar.
Tem grandes dificuldades de transporte, você sabe.
— Você está pensando em férias longas?
AGORA OU NUNCA MAIS
396

— Pelas informações que tenho, pra América do Sul só


estão trafegando navios a vela. A viagem pelo mar é
demorada. Em terra, não sei como vai ser. Preciso de quatro
meses pelo menos.
— Você vai ter que reservar passagem com antecedência.
Depois que tiver a data do embarque, me fala. Eu te dou os
quatro meses. Pode providenciar.
Em casa e satisfeito, Candota disse à esposa:
— Meu amor, você se lembra daquela viagem que te
prometi?
— Claro!
— Agora as coisas estão favoráveis e consegui quatro
meses de férias. Vamos rever o nosso pessoal. Vai ser uma
festa!
Beatriz se mostrou radiante e deu um demorado abraço
no marido. Ficou agitada de tanta felicidade. Tão alegre que
até brincou:
— Você não vai fazer falta lá no Conselho?
— Ora! Vê lá!
— E como está o andamento do seu serviço?
— As últimas análises gerais apontaram situações
excepcionais. Nosso objetivo promete ser alcançado. Todos os
responsáveis pelo governo estão satisfeitos. Pelas projeções do
meu programa, a data-limite de perigo passou pra 2180. Isso
equivale a duas gerações. Danilo e nosso neto têm futuro sadio
assegurado.
— Já marcou as passagens? Preciso de tempo pra arrumar
as coisas.
AGORA OU NUNCA MAIS
397

— Não precisa afobar. Ainda vou tomar algumas


providências. Vai demorar um pouco, mas você pode ir
preparando.
Decorreram uns quarenta dias até que fossem
conseguidas as reservas das passagens marítimas. Com tudo
ajustado, Candota e família, em ônibus, deixaram Washington
rumo a Norfolk, onde aguardaram por dois dias a confirmação
de lugar no navio.
Danilo se entusiasmava e se divertia com todas as
novidades antigas novamente em uso. Fora de casa, os
confortos, facilidades e tecnologias de outrora não lhe faziam
qualquer falta, simplesmente porque não conhecia nada disso.
Aportado em Norfolk via-se elegante veleiro, de
construção recente, equipado com bons instrumentos de
navegação e alguns pequenos motores a diesel, destinados a
uso em caso de emergência.
Depois de embarcados, Candota e Beatriz acomodaram as
bagagens no camarote e se sentiram eufóricos e quase
realizados. Danilo, curioso, perguntava por tudo. Era o início
de uma viagem de volta às raízes, depois de tão longo tempo,
que lhes renovaria os amores e amizades, as lembranças e
emoções.
O navio era de uso misto; transporte de mercadorias e
passageiros. As cabinas eram simples, bem cuidadas, contendo
apenas o necessário. As velas, quando estendidas, davam ao
conjunto majestática harmonia e elegância, transmitindo aos
passageiros uma sensação de liberdade, prazer e confiança.
Sim, confiança na força da Natureza, que os impulsionava por
sobre o mar rumo à terra natal.
AGORA OU NUNCA MAIS
398

A viagem, tranqüila e silenciosa, com algumas escalas


demoradas, proporcionou aos viajantes momentos de
encantamento, reflexão e paz. Durou 35 dias; menos que o
previsto.
Chegados ao porto brasileiro, apressaram-se a procurar
uma condução que os levasse ao destino. A viagem por terra,
devido à nova situação, deveria ser feita em diversas etapas,
sendo usado o transporte coletivo que estivesse disponível.
Depois de espera de alguns dias, passados numa pensão
ordinária, conseguiram condução para a grande cidade onde
outrora moraram e que se encontrava bastante despovoada.
Ali, tudo era marasmo. Pouca gente nas ruas, quase sem
automóveis, e as carroças ressurgiram. Via-se embriaguez
generalizada, algum policiamento e sujeira nas ruas e prédios.
Dava aperto no coração aquela visão. Produto de uma era
de esplendor e paroxismo consumista, mostrava agora a
artificialidade de uma concepção de vida. Onde ficaram aquelas
festas, aqueles luxos e esbanjamentos, aquela abundância de
furtos ecológicos? Estava ali, em amostra, a previsão de que
as grandes cidades permaneceriam apenas como sinais de
irracional e contraditória civilização. Estava ali, em agonia, o
corpo em chagas de uma cultura materialista e antinatural. Era
o prelúdio de um destino já determinado.
O itinerário seguinte seria vencido por uma viagem
semanal em trem misto, puxado a locomotiva elétrica, que
trafegava passando por uma cidade interiorana onde deveriam
descer. Ali, arranjariam um meio de se locomover até a
comunidade dos familiares.
AGORA OU NUNCA MAIS
399

Com grandes esperas e sacrifícios, mas com paciência e


compreensão, espremeram-se por horas no vagão imundo do
trem. Foram deixados na plataforma de uma estaçãozinha
quase deserta. Tiveram sorte, porque algumas carroças
pequenas haviam trazido mercadorias para embarcar no trem e
voltariam vazias.
Indagando, encontraram quem os transportasse numa
delas, mas só até uma vila próxima à comunidade que
procurava. O carroceiro alegava que tinha de preparar um
cabrito para o sacrifício. Candota maquinou que, durante o
percurso, conseguiria convencer o condutor a levá-los até o
destino. Bastaria acrescentar mais algum dinheiro ao valor
tratado da viagem.
Deu certo. O cabrito ganhou mais um dia de vida, e o
abençoado carroceiro, uma gratificação.
A estradinha era muito irregular, esburacada e com
desníveis. Na condução, as malas se moviam sempre.
Roçavam-se e resvalavam nos passageiros. Beatriz, extenuada
e com corpo doído pelos balanços e solavancos, mostrava-se
ansiosa e perguntava a todo o momento se faltava muito para
chegar. Tinha receio de que a noite viesse antes que
chegassem ao destino.
— Pode ficar calma, dona! Vamos chegar antes da
noitinha – tranqüilizava o carroceiro.
Danilo, que no início da viagem se mostrava satisfeito e
extasiado com a novidade da carroça e do cavalo, passou a se
queixar da canseira e da monotonia. O dia quente e a poeira
contribuíam para o desânimo e desconforto.
AGORA OU NUNCA MAIS
400

Quando estava em Washington, Candota tinha mandado


com antecedência uma carta para os pais, informando a
viagem. Adiantava que, devido às irregularidades no trânsito,
não podia prever a data certa da chegada. Se a carta já
tivesse vindo àqueles confins, alguém estaria na expectativa
da visita e teria preparado as acomodações.
Enquanto Candota se ralava na carroça, ficou meditando
sobre a situação: “As gerações atuais estão sofrendo muito
com essas separações, por imposição da revolução ecológica. É
o caso do Bento, do De Lembert e de tantos outros por esse
mundo afora. Isso é outra conseqüência danosa da civilização,
que facilitou muito o deslocamento das pessoas. No futuro, não
vai ter esse problema, porque as famílias não se vão separar.
Em cada torrão, ali a gente vai nascer, viver e morrer. Agora,
viagem é mais um castigo de ajustamento que temos de
passar.”
Depois de vadear um córrego espraiado e romper,
bamboleando, uma ravina que atravessava o caminho, a
carroça contornou um morro chato e abriu vistas para o lugar
onde existia uma aldeia. Era, enfim, a comunidade Sarabem.
Esse nome e o itinerário já tinham sido descritos em carta que
Alfredo tinha enviado ao filho havia tempos.
Agora passavam por terreno plano, e a estrada seguia
ladeada por culturas diversificadas. Ninguém nas lavouras.
Pela hora adiantada do dia, todos já deviam ter ido para casa.
À medida que se aproximavam, crescia a ansiedade do casal.
Procuraram se conter. Nada podiam fazer ante a marcha
cadenciada e pachorrenta do cavalo, que não se alterava desde
o início da viagem. Danilo até tinha dormido de tão cansado.
AGORA OU NUNCA MAIS
401

Dava para ver que aquela comunidade ainda se estava


formando. O casario situava-se numa clareira que dava
entrada a uma robusta mata. O conjunto, descoberto para o
nascente, recebia todo o sol da manhã. À tarde, protegia-se
com a sombra das altas árvores da floresta.Viam-se ali
algumas casas de tijolo, outras de adobe e as demais, simples
tendas de palha de palmeira. Todas em torno de uma
construção grande, à moda de aldeia indígena.
Com os olhos fixos nas moradas, Candota pôde perceber
que algumas pessoas reunidas conversavam e apontavam no
rumo da carroça.
— Já nos viram! – exclamou Candota, não se preocupando
em esconder a emoção.
Beatriz, animada e feliz, procurou despertar Danilo para
que presenciasse os últimos lances daquela histórica viagem.
— Acorda, meu filho! Estamos chegando! Você vai
conhecer os seus avós.
Danilo, nos seus seis anos, tinha noção idealística do que
seria um avô e uma avó. Tinha visto algumas fotografias, mas
a presença física, imaginava ser um encanto. Tinha sido
instruído pelos pais a respeito. O que seria isso exatamente,
de real, mexia com sua ambiciosa curiosidade infantil. Já
conhecia os avós de outros meninos, mas os seus era a grande
expectativa. O chamamento da mãe o pôs em estado desperto
e ansioso.
À medida que se foram aproximando, juntaram-se mais
moradores na entrada da clareira. Notava-se que o fato
aguçava a curiosidade deles. Parecia, pela expressão
AGORA OU NUNCA MAIS
402

comportamental de conjunto, que tentavam adivinhar a


identidade do forasteiro. Não acenavam.
A carroça já estava perto da chegada quando um homem
saiu dentre os curiosos e correu ao encontro dos visitantes. Foi
chegando perto e o carroceiro, puxando a rédea, fez o cavalo
estacar. Era Alfredo, expondo uma alegria tão intensa que
lavava e desfigurava seu rosto. Nos últimos passos, já vinha
com os braços abertos. Quando a carroça parou, Candota
desceu e correu ao encontro do pai. Abraçaram-se longamente.
Não trocaram palavras. Não era preciso.
Em seguida, Alfredo subiu na carroça e abraçou a nora e o
neto. Danilo não mostrou entusiasmo, ficando meio espantado
com a visão do avô. Não era o que pensava. Tinha barba
grande, que já estava embranquecendo. E o chapéu de palha
cobria os cabelos. A figura não se parecia com a das
fotografias.
Acabaram de chegar, e Dona Rosa foi logo distinguida no
aglomerado e recebeu prolongado abraço do filho. Chorou
muito. As mulheres, era um choro só; tudo emoções. Os
abraços foram gerais. Todos os moradores se mostravam
felizes e deram as boas-vindas àquela família que chegava.
Uma festa de palavras e gestos. Foi surpresa para Candota
encontrar a irmã ali.
Já dispersados alguns moradores, Alfredo chamou os
visitantes, os parentes e alguns amigos para sua morada, uma
das poucas de boa alvenaria no local. Com a juntada desse
povo, a casa de quatro cômodos pequenos ficou cheia. Uns se
assentaram de qualquer jeito; outros ficaram de pé. Todos
matando saudade ou curiosidade.
AGORA OU NUNCA MAIS
403

Desconfiando que ninguém esperava a visita, Candota


chegou perto do pai e perguntou:
— Vocês receberam a carta, avisando minha vinda?
— Que carta, que nada! Correspondência aqui só chega
por engano. Não sabia da sua viagem. Foi surpresa. Mas foi
bom, bom demais! Vocês me trouxeram uns cinco anos de vida
a mais. Olha pra sua mãe. Ela até remoçou!
Dona Rosa não parava de sorrir, num orgulho que só. Era
pura felicidade. E logo foi à cozinha preparar um lanche
reforçado, que a hora se aproximava.
— Mas que neto bonito vocês me deram! – elogiou Dona
Berta, enquanto mantinha Danilo no colo. — Eu pensei que ele
não falava português.
— Desde que ele nasceu, combinei com a Beatriz que eu
só ia falar inglês com ele; e Beatriz, português. Deu certo. Ele
agora entende duas línguas. E você, Tê, resolveu sair da
cidade, e eu não sabia! Onde está o Zenon?
— Ele e o marido da Jandira foram pescar. Tem um rio que
passa aqui perto. Tentamos permanecer na capital, mas as
fábricas fecharam. Aí, o recurso foi vir pra cá. Jandira também
veio com o marido; ela é a dentista da comunidade. A família
toda está reunida aqui. Isso é muito bom!
— Vem cá, Zeninho! Quero te ver de perto. Lembra de
mim? Virou um rapazinho, hem, Tê!
— Meu filho – não se conteve Dona Rosa, quase
implorando, vindo da cozinha –, você não vai voltar mais pros
Estados Unidos, vai?
AGORA OU NUNCA MAIS
404

Candota não tinha pensado nessa hipótese. Estava


despreparado para uma resposta. Mas não podia fazer sua mãe
sofrer.
— Acho que não. Mas não vamos falar nisso agora. Acabo
de chegar e vamos ter muito tempo pra pensar. Depois a gente
se fala, tá?
Dona Rosa, pensativa, achou melhor não insistir no
assunto e concordou, fazendo sinal com a cabeça e voltando a
cuidar do fogão. Beatriz, que estava perto, chegou-se ao
marido e cochichou:
— Minha mãe perguntou a mesma coisa. Eu disse que não
sabia dos seus planos!
— Amor, vamos deixar esse assunto pra depois! Estou
muito cansado. Meu corpo está é pedindo cama!
— Eu também. Nunca fiz viagem tão sacrificante! Hoje
vamos ter que deitar mais cedo.
Zenon chegou da pescaria, ficou sabendo da notícia e foi
à casa do sogro, juntando-se aos demais, e o marido da
Jandira foi apresentado aos visitantes. As conversas e notícias
renderam muito tempo.
Aos poucos alguns foram se retirando para suas casas.
Beatriz, sentada a um canto, satisfazia a mãe e a irmã que não
paravam de fazer perguntas. Terezinha, depois de confabular
com o pai, também se retirou com a família.
Naquele ambiente mais calmo, Alfredo achou que agora
podia se comunicar melhor com o filho e falou:
— É bom você saber que aqui em Sarabem tudo é
diferente. Já te contei sobre o projeto e alguma coisa sobre o
AGORA OU NUNCA MAIS
405

funcionamento. Mas outras novidades, você mesmo vai


presenciar e aprender.
— Parece que vocês copiaram alguma coisa da cultura dos
índios. A disposição das casas e...
— Não foi só isso. Juntamos a experiência milenar dos
indígenas com os conhecimentos da nossa própria cultura e
racionalizamos o modo de viver.
— Vi que algumas moradas são muito rústicas. Faltou
dinheiro?
— Não, a coisa não pode ser vista desse modo. No
período da organização, conseguimos arrebanhar pro nosso
projeto pessoas mais maduras. Os jovens – sabe como é – só
pensam em usufruir e em geral repeliram nossas idéias. Na
verdade, precisamos deles do mesmo modo como eles
precisam de nós. Uma sociedade equilibrada é feita com gente
de todas as idades e numa proporção adequada.
— É esse o critério que adotamos lá no CGE.
— Nós fizemos a sociedade com maioria de pessoas
maduras. Isso, no início, sobrecarregou muito. Aqui prevalece
o trabalho físico, e a gente contava na época com pouca força
muscular pra implantação. Foi preciso contratar mão de obra
de fora. Depois é que a situação foi melhorando. À medida que
a vivência foi piorando na cidade, os jovens foram chegando. É
o caso do Zenon, por exemplo. Mas esses novos moradores
têm que se ajustar aos nossos códigos, sob pena de serem
expulsos. Não podemos condescender de forma alguma. Até o
Zeninho já absorveu os costumes e normas daqui.
AGORA OU NUNCA MAIS
406

— É a lei da Natureza que impõe. Esse desequilíbrio


existe agora porque está em curso uma revolução de conceitos
também.
— É isso! E todos devem se adaptar, sob pena de perecer.
Desde o início, fizemos por escrito uma constituição pra
comunidade Sarabem. Tem uma diretoria zelando pelo nosso
êxito. Tudo aqui tem normas que devem ser obedecidas. Existe
elasticidade de comando pra facilitar o estudo e ponderação de
cada caso.
— Como fica a educação e instrução das crianças?
— Por enquanto, os pais ficam responsáveis por isso. Mais
tarde, quando as condições permitirem, vamos ter uma escola.
Está tudo previsto, mas fazemos freqüentemente alterações na
nossa constituição de acordo com os fatos que vão surgindo.
Temos a sabedoria de saber que não somos perfeitos.
— Parece que vocês estão satisfeitos.
— Isso aqui é um paraíso! Diariamente estamos
aprendendo a ler as mensagens da Natureza. Aqui nos
sentimos em comunhão com a verdadeira divindade.
Ganhamos a consciência que somos parte do todo. Isso é
muito difícil as pessoas entenderem. Na cidade, a gente não
tem condições de perceber, mas no campo isso vem à alma
naturalmente. A gente sente!
— Eu sabia que ia dar certo! O Governo Mundial está
trabalhando com esse mesmo objetivo. Sei que em breve a
humanidade, depois de depurada dos vícios dessa civilização
irracional, vai encontrar aquele paraíso que habita a cabeça de
todo mundo.
AGORA OU NUNCA MAIS
407

— Meu filho, você vai entender. A norma sobre visita diz


que, nos primeiros dois dias, qualquer visitante está livre de
obrigações. Mas, do terceiro dia em diante, sob
responsabilidade do visitado, vai ficar sujeito aos mesmos
trabalhos que os outros moradores. No terceiro dia, a diretoria
vai atribuir a você e à Beatriz afazeres comunitários.
— Acho medida justa. Comunidade é isso mesmo! De
pleno acordo! E esses dois dias livres também são muito
justos. Dá tempo da gente observar e aprender a rotina do
trabalho da sociedade.
— Você não vai dormir aqui em casa. Temos um rancho
meio sem conforto, destinado a hóspedes. É lá que você e sua
família vão morar enquanto não se definirem. É a lei daqui.
Dona Rosa começou a arrumar a mesa para o lanche,
dando o melhor de seu capricho. Enquanto terminava a tarefa,
chamou:
— Venham todos pra mesa! Venha, Berta... Beatriz...
Venham! Vem, meu filho, e traz o Danilo!
Danilo, faminto, enfiou a colher no bolo de fubá ainda
morno e não fez cerimônia. Foi acarinhado pela avó e se fartou
com as delícias. Para ele, aquilo era festa. Candota e Beatriz,
que não se tinham alimentado desde o almoço, também se
recompensaram à larga.
Terminada a refeição, Alfredo anunciou:
— Rosa, o pessoal deve estar cansado da viagem. Vou
levar eles pro rancho das visitas. Pega umas roupas de cama e
toalhas. Amanhã nós vamos dar uma arrumada melhor na
cabana.
Virando-se para o filho, disse:
AGORA OU NUNCA MAIS
408

— Aqui todos deitam e levantam cedo.


— Está certo! A noite foi feita pra repousar e sonhar.
— Por esta noite vocês se acomodam lá de qualquer jeito;
amanhã a gente vai dar uma ajeitada. Se precisarem de
alguma coisa, é só me avisar. Lá tem lamparina e fósforos. O
rancho fica perto da casa da Berta. Cada um ajuda a carregar
uma coisa. Eu levo estas duas malas aqui.
Feitas as despedidas à Dona Rosa, foram todos rumo ao
abrigo. A noite estava sem lua, mas clareada pelas estrelas.
Dava para ver o rasto do caminho. Com Alfredo na frente,
seguiram os demais em fila.
Chegados à choupana, Dona Berta e Alfredo acenderam
as candeias e deram varrição nas camas e prateleiras.
Arrumaram as cobertas e deixaram a casa em ponto de uso.
Ministraram algumas recomendações e se despediram com um
“até amanhã”.
Vendo-se sozinhos, Candota logo se estirou no leito.
Beatriz ajeitou Danilo na cama e, lembrando-se da resposta
que o marido tinha dado à mãe, e que a preocupava,
perguntou:
— Você está pensando em não voltar?
— Amor! Você está cansada, e eu também! Depois a
gente conversa sobre isso. Amanhã a gente se fala!
Beatriz se conformou e procurou se acomodar na cama.
Com barriga forrada, corpo doído e cansados, os três
visitantes não tiveram dificuldade em achar jeito e dormir,
principalmente pelo acalento vindo do silêncio da amplidão e
da longínqua orquestração dos grilos e sapos.
AGORA OU NUNCA MAIS
409

As primeiras claridades já entravam pelas frestas da


janela quando Danilo acordou, resmungando:
— Mamãe, quero fazer xixi!
Não tendo resposta, insistiu:
— Mamãe, quero fazer xixiii!
Beatriz, mal acordada e ouvindo o filho, levantou-se e o
retirou da cama. Abriu a porta, colocando Danilo do lado de
fora.
— Vai até ali, faz xixi no chão e volta pra cama, que ainda
é muito cedo!
Enquanto se desapertava, Danilo, meio sonolento, ficou
olhando o chão sendo regado. Depois, erguendo a cabeça no
rumo leste, sentiu-se maravilhado ante o lindo espetáculo que
nunca tinha visto. Embevecido, gritou:
— Papai! Mamãe! Vem ver!
Candota acordou assustado. Beatriz já estava se
levantando para acudir o filho. Ambos chegaram à porta do
casebre quase ao mesmo tempo.
— O que foi, Danilo? – perguntou Candota enquanto se
acercavam do filho.
Danilo, com expressão de encantamento, estendeu o
dedinho para aquela calota dourada e grande no horizonte,
dizendo:
— Olha! O sol está nascendo!
AGORA OU NUNCA MAIS
410

POSFÁCIO

Em geral, livros são classificados como, ou de ficção, ou


de não ficção. Muitos dirão que os personagens e fatos da
história aqui relatada são fictícios. Podem até sê-los em seus
detalhes, mas o foco da história, constituído pelo tema e pela
tese, é tão real e evidente como o é a inteligência humana.
Este romance é, portanto, ficção e não ficção. Cabe ao leitor
distinguir, com os olhos da inteligência, a pintura e a
realidade.
AGORA OU NUNCA MAIS
411

Como podemos dizer, sendo hoje terça-feira, que a sexta-


feira é ficção? Sendo hoje abril, dizer que setembro é ficção?
Estando nós em 2006, o raciocínio impõe que 2036 seja ficção?
Se estivéssemos em 1927, como poderíamos dizer que 2006
seria ficção? Se um homem está, com um conta-gotas,
colocando água num garrafão ou num tonel, como podemos
dizer que nunca esses continentes estarão cheios? Como
podemos afirmar que algo crescerá infinitamente, se até o
amor tem limite?
Aqui, a imaginação e a realidade estão ligadas pelo
inexorável Tempo, principal personagem em todo o desenrolar
da história deste livro. Tempo, esse artífice que move todo o
cosmo, seria porventura uma ficção?
Que a humanidade possa perceber nestes escritos os
alertas que eles carregam. Porque depois...
Nunca mais...

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