1. A I Guerra Mundial e o Fim da Abstenção Económica do Estado
O Estado intervencionista faz uma alusão curta à I Grande Guerra Mundial e ao "seu" modelo económico, que é responsável por o Estado ter passado a desempenhar um papel central na vida da comunidade, agindo sobre a economia e a própria sociedade. Na linha de Lumbrales, o que levou a que à I Guerra não tenha bastado uma estrita intervenção pública foi: 1) A transição de uma economia de paz para uma economia de guerra; 2) E, um contexto económico problemático. A Guerra criou uma lacuna no funcionamento do modelo económico dominante, tendo os Governos adotado métodos de atuação autoritária sem qualquer tipo de oposição, passando a economia a funcionar em regime de controlo direto e até militar. Com o fim de superar as disfunções de mercado, visou-se a luta contra a alta de preços e a garantia da repartição de bens. Por seu turno, as exigências de armamento e aprovisionamento obrigaram o Estado a assumir funções produtivas, tendo o clima de guerra tornado manifesta a necessidade de um controlo público efetivo da economia. Esta situação acabou por corresponder não só a uma experiência concreta de disciplina pública, mas também ao modelo de futuras medidas autoritárias de política económica. Os apelos ao patriotismo tornaram possível o aumento da tributação e da despesa pública, e tal incremento, mesmo após o regresso à normalidade, era consequência da guerra na demonstração de Peacock e Wiseman, tornando menos difícil levar os cidadãos à reivindicação do seu abaixamento com o termo do conflito. Juntou-se a este problema, o impacto do grande conflito no despertar da consciência de classe das massas operárias, que viram o seu peso político e força organizativa aumentar, colocando-as em posição de exigir do Estado atenção às áreas sociais. Assim, assistiu-se a uma nova função e atividade do Estado ligada ao alargamento do conceito de necessidade pública, destacando-se a ampla difusão e densificação do sistema instituído pelo modelo "bismarckiano" baseado em seguros sociais obrigatórios de doença, acidentes de invalidez e, ainda, de velhice. O primeiro após-guerra continuou a legitimar o reforço da autoridade do Estado sobre a economia e os crescentes problemas sociais. Neste período económico e socialmente abalado, a crise sem precedentes de 1929, tal como a Grande Depressão que se lhe seguiu, pelo afundamento provocado no sistema financeiro e na economia em geral, foram acontecimentos que, ao revelarem as insuficiências do mercado e dos mecanismos de defesa da concorrência, tornaram evidentes as "falhas" de mercado e funcionaram como um impulso decisivo para a consolidação da intervenção do Estado ao nível económico. A Grande Depressão, para reagir à crise, motivou a forma de intervenção do Estado para corrigir "imperfeições" de mercado. Configurou uma posição que, segundo a influência do novo papel do Estado, ganhou afirmação com a política do "New Deal", baseada num conjunto de medidas de intervenção do Estado na vida económica, e que apontava para o florescimento do intervencionismo estatal. 2. A "Revolução" Keynesiana e as Finanças Ativas Com Keynes surgiu um novo pensamento económico baseado no pressuposto de que um combate sucedido à depressão passava pela adoção de políticas económicas públicas para estimular a procura efetiva global, correspondendo à primeira conceção económica tecnicamente válida aplicável na era moderna. Neste contexto, os principais instrumentos preconizados pela cartilha keynesiana era: 1) A introdução da perspetiva macroeconómica em contracorrente com a visão microeconómica e de mercado, que tinha até aí ocupado a ciência económica; 2) A defesa da integração entre economia e finanças, que havia de conduzir às finanças como uma forma de intervir na atividade económica, introduzindo na prática as finanças modernas; 3) O abandono da neutralidade e passividade das finanças públicas, em favor de finanças funcionais e ativas; 4) O elogio do desequilíbrio orçamental, em lugar do respeito da "regra de ouro"; 5) A admissão do empréstimo público e respetivo efeito multiplicador, como forma de financiar investimentos públicos no combate à depressão. A "revolução" keynesiana contradizia os principais dogmas clássicos, o que fez contribuir para a ascensão do Estado intervencionista, desencadeando uma transformação na estrutura económica do sistema capitalista. Contudo, acabou definitivamente por abrir caminho ao acolhimento do intervencionismo financeiro e à integração entre economia e finanças como um elemento constante, que passou a fazer parte do Estado e ganhou lugar na própria constituição. O novo paradigma era moldado pela consciência do poder organizador e disciplinador do Estado em matéria económica, mostrando-se o alargamento das funções públicas uma decorrência da regra de que ao Estado cabia a tarefa de promover o bem-estar coletivo. O modelo intervencionista levou à institucionalização de um comprometimento real do Estado com a economia: 1) Para suprir as lacunas da iniciativa privada; 2) Para lhe corrigir deliberadamente os excessos ou defeitos de atuação; 3) E, para dirigir a economia global. Entretanto, o abandono do esquema liberal afetou o dogmatismo jurídico, o que motivou o surgimento de outros fenómenos jurídicos. Conclui-se que a II Grande Guerra Mundial renovou as motivações da ação pública, visível no lançamento de uma planificação económica de guerra, com o Estado a ocupar-se diretamente do racionamento e da utilização da mão-de-obra e dos recursos, e também da produção, pelo menos nos sectores associados às necessidades bélicas (pertencentes à guerra). No período do segundo pós-guerra, apareceu a prosperidade associada à ligação do Estado com a economia, que respondia por um crescimento considerável do sector público em todos os países, designadamente por via da criação de grandes sectores públicos empresariais. Deu-se também a expansão quer da produção pública direta de bens e serviços, quer de políticas económicas de estabilização e redistribuição, que se conjugavam quer com as despesas militares que o reforço do bloco socialista e a "Guerra Fria" não permitiam reduzir, quer com as despesas de fomento económico. E, esta necessidade de políticas de desenvolvimento e transformação estrutural evidenciava o carácter de uma intervenção pública poderosa. Com a vitória dos Aliados, que colocou do lado das democracias uma série de países socialistas, e mesmo os países não diretamente socializados, passaram a adotar medidas híbridas, simultaneamente de liberalismo e socialismo. Em resposta aos problemas de ordem social e económica da reconstrução do após-guerra e o período de forte crescimento e prosperidade dos “anos de ouro”, as áreas sociais continuavam a merecer uma atenção do Estado para a satisfação das necessidades decorrentes da civilização industrial. Assistiu-se, assim, ao nascimento do Estado de Bem-Estar marcado pelo seu ativismo nas áreas económica e social, simultaneamente por via da participação direta na produção e prestação de bens e serviços e pela regulação da atividade económica. Ora, o Estado democrático e social trouxe o esbatimento das fronteiras entre o Estado e a Sociedade, bem como a substituição da lógica liberal de confrontação, adversidade e exclusão por uma atitude de cooperação e ação concertada, que se expressava através de variados e complexos processos de interpenetração e de um novo modelo de relacionamento entre os universos público e privado. Deste modo, segundo Delorme, conclui-se que "ao Estado circunscrito do liberalismo sucedeu o Estado inserido da intervenção, numa relação de imbricação de duplo sentido, em que avultava o Estado na economia e a economia no Estado". Conclui-se, em modo especial, que o aumento da dimensão do sector público, legitimado pelas ideias de socialização e recuperação da economia, havia de atingir entre 30% e 50% do rendimento nacional, assim como a alteração dos critérios de intervenção. Em relação à Administração Pública, para além de uma simples alteração de carácter quantitativo, verificou-se também uma transformação qualitativa da evolução de uma Administração de pura execução da lei para uma Administração de prestações. Assistiu-se à criação de uma administração económica específica e à multiplicação de formas organizatórias, em que se inscreviam os institutos públicos e as empresas públicas, estas últimas como decorrência dos processos de nacionalização e de participação direta do Estado na atividade económica do após II Grande Guerra Mundial. Da mesma forma, registou-se o surgimento: Do "Estado económico", com a economia a fazer parte do Estado; E, da "constituição económica", com a economia a adquirir um lugar no próprio texto fundamental. Entretanto, nos sistemas de monopólio público ou de produção pública de bens e serviços essenciais, o foco residia na disponibilização de bens e serviços, de igual modo para todos os utilizadores e de continuidade dos serviços, sendo as missões económicas e condições de funcionamento definidas pelo Estado. A atividade económica do Estado evidenciava uma finalidade regulatória, isto é, correspondia a estar na economia para melhor a orientar ou dirigir e, por conseguinte, a empresa pública representava um meio de transmissão privilegiado de regulação. Mas, além da regulação indireta através de empresas públicas, a intervenção económica do Estado desenvolvia-se igualmente através do condicionamento da iniciativa privada, assumindo a forma de planeamento diretivo do conjunto da economia. Por outro lado, este quadro económico de forte intervenção estatal coexistia, em alguns países, com o projeto de economia de mercado, suportado por normas de defesa da concorrência, introduzidas pelo Tratado de Roma (criador da CEE), tornando-se um dos traços essenciais do modelo de economia de mercado ordenada e regulada, que se mostraria predominante na Europa de então em diante.
3. Os Anos 70 e a Crise do Estado Social
O que teve um impacto decisivo na mudança para o paradigma intervencionista, foram as consequências dos choques petrolíferos e das crises monetárias da década de 70, ao nível da própria falência do modelo europeu de Estado proprietário e gestor direto de atividades empresariais. Depois de duas décadas de crescimento económico quase ininterrupto, passou a observar-se um abrandamento das taxas de crescimento ou mesmo fenómenos de estagnação económica, que era combinado com elevadas taxas de inflação, perda de dinamismo económico, ineficiências e falta de inovação do sector público, endividamento de muitas empresas públicas em consequência de má gestão ou custo elevado dos serviços públicos, ficando, assim, a maioria dos países com défices pesados e duradouros da balança de pagamentos. Por conseguinte, o balanço negativo das políticas económicas e da Depressão motivou críticas pesadas tanto à omnipresença e gigantismo estadual, como rigidez e inadequação das políticas públicas. Neste quadro, as opiniões públicas nacionais sobre o rumo da intervenção económica, levou que fosse imputado ao Estado a responsabilidade pela inoperacionalidade das políticas anti cíclicas. Foi uma posição que culminou no reconhecimento de que o crescimento do sector público era um fator que representava um obstáculo real à sua realização. Correspondia às primeiras dúvidas sobre o Estado Providência, nascido sob os auspícios das doutrinas socialistas e social da Igreja Católica e defensoras da intervenção pública na economia, que acusava um duro colapso, e ao questionamento dos elevados níveis de despesa associados à atuação pública. Outro fator incentivador da substituição do Estado intervencionista é a referência às constrições orçamentais, decorrente da redução da capacidade tributária dos Estados (inibidos pela competição fiscal internacional e pela existência de jurisdições fiscais mais favoráveis) e de um aumento persistente da despesa pública. Relativamente à noção de "falhas" de Estado, começou por se fazer uma alusão direta à: Incapacidade pública, em gerar com eficiência os resultados económicos e sociais pretendidos ou prometidos; Contestação do modelo de desenvolvimento macroeconómico, dominante durante décadas nos países industrializados, e que foi o resultado da combinação da receita keynesiana de fomento da despesa pública, que se mostrava incapaz de gerar soluções adequadas à modernização e adaptação estrutural requeridas pela exigência de aumento de produtividade e melhoria de competitividade. Então, os argumentos de ordem ideológica combinavam-se com a reação às falhas de intervenção de um Estado especialmente ativo na área económica e social, ora pela participação direta na produção e prestação de bens e serviços através de empresas públicas, ora pela orientação, controlo disciplina da atividade económica privada. No final, era evidente não só a alegada ineficácia do Estado-Providência para agir como garante da promoção de condições básicas de vida a todos os cidadãos, mas ainda a sua incapacidade para operar os resultados económicos e sociais pretendidos. Correspondeu, em suma, a uma contestação política vigorosa, veiculada tanto pelos movimentos marxistas à esquerda, como pelos grupos ultraliberais à direita, a que não era também alheio o elevado custo financeiro do sector público, responsável por défices orçamentais persistentes e aparentemente incontroláveis que requeriam dos Governos o recurso sistemático ao empréstimo com as repercussões inevitáveis a nível do volume da dívida e da estrutura da despesa. Da mesma forma, também dignas de menção quer as razões intrinsecamente ligadas à dinâmica jurídica e económica da integração europeia, refletida na realização do programa do Mercado Interno, quer a globalização económica, pelo reforço das reações nacionais e do impacto neste "regresso ao mercado". Por fim, a intervenção pública em quase todos os domínios da vida económica e social não só havia inibido a afirmação do mercado e o crescimento da iniciativa privada, comprometendo as regras de conduta de uma economia mista, como também contribuíra para distorcer os sinais transmitidos pelos mecanismos de preços, indispensáveis a um funcionamento eficaz dos mercados. Durante o longo período de responsabilidade máxima do Estado, uma vez deixado para trás o verdadeiro "apartheid" entre os sectores público e privado próprio do liberalismo, assistiu-se à sua substituição por uma atitude de cooperação e ação concertada, expressa através de variados e complexos processos de integração e osmose e de um novo modelo de relacionamento simbiótico entre o Estado e a Sociedade. Mas, a crise do Estado de Bem-Estar acabou por requerer um combate firme aos excessos do Estado Social Administrativo no sentido de uma contração quantitativa da intervenção pública direta, depois de um primeiro esforço corporizado na alteração das formas de concretização da intervenção pública, com o Estado a comprimir a intervenção direta e centrar-se de forma predominante na definição dos quadros gerais em que se desenvolvia a atividade económica. Na verdade, tratou-se de uma tendência contractiva de vocação universal e capacidade de expansão para todas as áreas da intervenção pública, cuja afirmação mais natural e radical surgiu no âmbito dos sectores económicos. Ora, desenhada a evolução do esquema intervencionista e antecipando o seu ocaso, importa reconhecer que em finais da década de 80 o Estado se debatia entre a vontade conservadora de retorno ao liberalismo, por um lado, e a incapacidade de pensar a sua própria transformação de modo efetivo, por outro. O desvanecimento do mito do intervencionismo estadual foi acompanhado da criação de condições propícias ao prenúncio de um novo paradigma, incondicional da reconfiguração do papel do Estado e do aumento da contribuição dos agentes privados para a governação pública, e manifestamente propenso à assimilação dos valores e práticas do "new public management". Capítulo III 1. A crise do Estado Intervencionista e as correntes neo-liberais O Estado Gerador entrou em crise com a “contra-revolução” neo-liberal e conservadora dos anos 80. Tratou-se do florescimento do neo-liberalismo suportado pelas receitas das correntes monetaristas para sustentação e defesa da desintervenção do Estado na economia. O monetarismo defendia um conceito de liquidez diverso do de Keynes, propondo uma concepção que pretendia revitalizar os mecanismos naturais compensatórios, bem como minimizar as decisões discricionárias das autoridades económicas. O novo paradigma económico assentava no caráter da estabilidade da velocidade de circulação monetária e na função decisiva da massa monetária, pressupondo a devolução aos bancos centrais da condução da política macroeconómica. A nova matriz de desenvolvimento pressupõe a revalorização do mercado e da concorrência e, para além disso, mostra a fé numa iniciativa privada para a realização do bem comum. Na linha de Stiglitz, ganhou centralidade a discussão das fronteiras e dos critérios de escolha entre os setores público e privado, prevalecendo a aceitação de uma vocação infra-estrutural e redistribuição do primeiro e produtiva do segundo. Na Europa, o regresso ao mercado significou a implantação dos novos conceitos de privatização, liberalização e desregulamentação, me lugar de direção, planificação e estatização, que se tornaram as palavras-chave da nova ordem económica dos tempos da transição do século e do milénio. Confere-se prioridade ao movimento das privatizações, subordinadas ao lema “Menos Estado, melhor Estado”, que preconizavam a alienação pelo Estado do setor público empresarial sob a forma de venda de empresas ou participações sociais. O movimento privatizador justificava-se por preocupações de eficiência e garantia de uma melhor satisfação das necessidades públicas, mediante a redefinição das áreas em que a iniciativa privada pode actuar de forma mais vantajosa e que se mostram mais adequadas ao setor público. As privatizações, ao serviço da definição de regimes menos intervencionista e dirigistas, conjugavam o propósito de contribuírem para o reforço da eficiência em vários setores, flexibilizando a forma de satisfação das necessidades públicas por via da ação de entidades privadas, e contrariavam o movimento de crescimento e diversificação do setor público. De facto, as privatizações: Correspondem à alienação do património do Estado, cujo produto era consignado à redução do défice público; E, faziam diminuir, de forma substancial, a participação do setor público na economia (operando o aligeiraremos do peso do Estado, o estreitamento da área do público, a atenuação das incumbências e responsabilidades da Administração). Com a privatização das empresas públicas, o serviço público por elas prestado ficou sem suporte, e o Estado, em sua substituição, passou a impor aos operadores privados um conjunto de “obrigações de serviço público”. É de referir que, enquanto o antigo Estado social se ocupava da provisão de serviços públicos através de empresas públicas ou da concessão de serviços públicos, o Estado pós-liberalização prestava serviços públicos (serviços de interesse económico geral), que incorporavam “obrigações de serviço público” contratualizadas com operadores privados e cuja fiscalização requeria dispositivos regulatórios. Relativamente aos restantes objetivos estratégicos da nova economia pública, a liberalização trouxe a abertura à concorrência de atividades anteriormente desenvolvidas em regime de exclusivo público, permitindo e fomentando o aparecimento de empresas privadas a par de empresas públicas de base societária. Já a desregulamentação correspondeu a uma política de redução (de eliminação), de normas desnecessariamente limitadoras da iniciativa privada e da gestão de empresas. Por último, o objetivo ligado ao “new public management” identificou-se com uma filosofia administrativa construída a partir do modelo de gestão das empresas privadas, centrada em objetivos de especialização, simplificação de procedimentos, avaliação das políticas públicas e desburocratização. Correspondeu a um movimento que visava racionalizar e conferir mais eficiência à gestão pública mediante a aplicação do esquema de gestão privada e da utilização de “mecanismos de tipo de mercado” (MTM), abrangendo a concorrência, o fornecimento de serviços públicos contra um preço, a autonomia empresarial das organizações públicas, a autonomia e responsabilidade dos gestores e a aplicação do direito privado mediante o recurso à sociedade e ao contrato de gestão. Sob os auspícios das novas orientações de política económica, o orçamento voltou a merecer um lugar central no quadro das reocupações de origem macroeconómica, pelo que se retomou a tradição da sua configuração como um ramo jurídico poderoso com tendência a autonomizar-se do direito financeiro. A revitalização do orçamento passou a ser perspectivado como o meio ideal para assegurar a contenção da despesa pública. A interação europeia teve uma posição nuclear no mantido do complexo processo de transformação. O papel da Comissão era o desmantelamento de monopólios públicos e direitos exclusivos ou especiais em setores essenciais da economia dos Estados membros. Depois de 1992, configurou uma questão associada ao processo da construção europeia no quadro da criação do mercado único. O que contribuiu para fragilizar as bases do Estado intervencionista nos Estados membros foi o mercado interno, obrigando à liberalização das “public utilities” é às privatizações. No mesmo sentido, foram eliminadas de barreiras entre os mercados nacionais para a supressão de obstáculos físicos, técnicos e fiscais, e ainda outras vedações às relações económicas entre os Estados membros. Em termos globais, tratou-se de processos complexos não induziam uma modificação do padrão das relações entre o Estado e a economia, e conduziam ao desenvolvimento de uma nova dimensões da intervenção do Estado por via da regulação. 2. A utopia do novo Estado “mínimo” Após a adoção das medidas de privatização da economia implementadas nas duas últimas décadas do século XX, assistiu-se, no âmbito da dogmática administrativa, à emergência de um outro nível ou grau de responsabilidade pública construído com base na garantia. Seguindo Franzius, a génese de um grau intermédio de responsabilidade pública estava traduzido num novo arranjo de articulações e coordenação de papéis entre o Estado e a Sociedade, mostrando-se o Estado de Garantia como “Estado máximo” do século XX. Deste modo, o modelo institucional do Estado de Garantia surge como um sistema ou uma estrutura de realização do bem comum, situado num ponto intermédio, entre dois modelos extremados (o modelo de mercado e o modelo de Estado), tendo a doutrina proposto designá-lo de regulação. Isto é, trata-se de um novo modelo que se apresenta como resultado de uma interação e partilha otimizada de tarefas e responsabilidades entre as duas polaridades. A intenção do novo grau da responsabilidade pública é promover a articulação entre os dois pólos ou subsistemas em que se divide uma comunidade politicamente organizada (o Estado e a Sociedade), de modo a preservar a racionalidade inerente a cada um e tirar partido das respetivas cooperações. A ideia de garantia pressupõe também a migração de tarefas e incumbências de caráter executivo e operacional para a esfera do mercado e das empresas, cumprindo ao Estado a função de assegurar ou garantir o funcionamento do mercado e a atuação das empresas em conformidade com determinados objetivos e finalidades de interesse público. Estas características correspondem a um novo modo de assegurar o interesse público, minimizando a produção direta de bens e serviços pelo Estado e devolve à iniciativa privada semelhante tarefa através de concessão ou outras formas de delegação. A mudança sobre as formas de administração económica envolve múltiplos sinais de uma transformação profunda da intensidade e das modalidades de intervenção pública no espaço económico e social, e ainda envolve renovadas soluções institucionais de realizar o interesse público. Há um novo tipo de relacionamento entre o Estado e a Sociedade, não apenas incondicional da retração do papel do Estado e do aumento da contribuição dos agentes privados para a governação pública, com base na “partilha de responsabilidades” e de “cooperação” ou “coordenação” para a realização dos interesses coletivos, mas também manifestamente propenso à assimilação dos valores e práticas do “new public management”, ao serviço de uma boa governação da Administração Pública. Começou, assim, a observar-se uma posição diferente do Estado que, ao contrário de atuar diretamente, capta o potencial da Sociedade com o propósito de extrair o máximo benefício das capacidades privadas Lara atingir objetivos públicos. Do ponto de vista dos institutos jurídicos, assistiu-se à revisitação do instituto do contrato, ao mesmo tempo que passou de novo a ser conferida prioridade à antiga figura da concessão administrativa. No entanto, no novo cenário, os particulares passam a ser envolvidos de forma espontânea na realização de tarefas nucleares do Estado, assumindo responsabilidades nos domínios da gestão e exploração de serviços públicos. Perspectiva-se um ambiente em que o particular já não é o cidadão socialmente descomprometido do Estado liberal, nem o simples utente de serviços públicos do Estado social, mas sim que desenvolve um novo papel de agente que partilha com o Estado a tarefa de prosseguir o interesse público e os respetivos fins institucionais. Mas, por mais limitada que se mostre a participação pública direta na atividade económica, não se reduziu a intervenção do Estado que tem funções de regulação da economia privada no interesse da estabilidade do mercado. Outra característica que se deve reter é o abandono da atividade empresarial do Estado, em benefício de entidades privadas, visto que o fim dos públicos implicou um reforço significativo da atividade regulatória pública. De facto, a regulação toma formas novas, mas não desaparece. O papel das políticas de privatizações não deixaram de mobilizar o aumento da regulação em obediência à lógica “free markets, more regulation”. Segundo Ferrari, impôs-se uma regulação pormenorizada, sistemática e duradoura da produção e prestação nas áreas entregues à iniciativa privada, para estabelecer a concorrência e para garantir a satisfação de alguns requisitos de serviço público que o Estado manteve em relação a tais atividades. Majone defende que a desintervenção não foi sinónimo da diminuição ou ausência da atividade reguladora do Estado, mas sim da procura de outros instrumentos mais eficazes e eficientes de controlo das atividades privatizadas e liberalizadas, e, assim, de uma regulação de outro tipo. Deste modo, a desregulação pública acabou por gerar uma re-regulação de natureza diferente, tendo o programa regulador dos anos 90 obedecido à formulação de uma nova filosofia reguladora, menos dependente da propriedade pública e da intervenção económica direta do Estado e sobretudo menos restritiva da concorrência. Está profunda mudança de atitude confirmou, sob um ponto de vista organizativo e institucional, a passagem de um Estado positivo, intervencionista é gestor direto (burocrático, hierárquico, unitário e centralizado), para um Estado regulador (descentralizado e que acompanha os processos no mercado), cuja atividade surge enquadrada pelos modelos e princípios reguladores em obediência ao lema “better government, better regulatio”. Depois de o intervencionismo ter provocado a desintegração do substrato económico, político e ético do direito civil, o retorno à iniciativa privada e ao mercado, assim como o desmoronamento das economias coletivas e planificadoras dos países socialistas, foram responsáveis pela abertura a um modelo de economia mista assente na colaboração entre os poderes públicos e as pessoas privadas. A nova matriz, ao envolver o questionamento do statu quo no que toca ao papel do Estado na economia, conduziu à revalorização do mercado e da concorrência e apostou numa iniciativa privada forte e imprescindível para a realização do bem comum. A transição de um Estado Gestor para um Estado Social mínimo caracterizou-se por uma incerteza relativamente à descarga de bens e tarefas do setor público para o setor privado, pois a espontaneidade inerente à lógica do mercado não era suficiente, só por si, para atuar adequadamente no novo universo de economia livre. 3. O impacto da crise económico-financeira de 2008 (ao nível do papel do Estado regulador e do fenómeno regulatório) Invoca-se o argumento de que a crise foi a principal causa da busca de justificações para operar a transformação do Estado regulador ou a alteração substancial do seu modo de funcionamento. Nesta medida, Napolitano designa de “crise de dupla face”, isto é, a crise da economia e das dívidas soberanas, que foi uma consequência do Estado regulador e de vários fenómenos da regulação pública financeira. Na linha de Stiglitz e Waxman, recorda-se a versão americana da crise, geralmente associada às falhas da regulação. Nessa medida, a falha terá sido não da regulação, mas da ideologia que a comandava. A alusão à Grande Recesão de finais da primeira década do século XXI, de que fala Stiglitz, parece não ter provocado uma alteração significativa nem da dimensão, nem das dinâmicas próprias do Estado regulador. Contudo, segundo Ladeur, vê-se na crise um “turnin-point”, que motivou o aparecimento de uma maior intervenção do Estado, ora na Europa, ora nos EUA, sob formas e com uma extensão sem precedentes. Correspondeu a uma intervenção decisiva, acompanhada da passagem de um agógica de responsabilidade pública de garantia, para uma ação estadual direta no mercado, convocando um fenómeno com a designação de “regulação através de negócios” (compra de empresas e de bancos). Dado o caráter transitório da crise, não se deixa de considerar pouco provável que a resposta à crise fosse no sentido de gerar uma expansão consolidada da esfera pública (que iria representar o “esmagamento” do Estado regulador). Isso não impediu que se reconhecesse a necessidade de lhe introduzir mudanças e afincamentos, explorando soluções que passaram a emergir no terreno e configuram o que se designa “Nova Agenda da Regulação Económica”.