Trabalho e interação: comentários sobre a Filosofia do Espírito de Hegel
em Jena. In: ______. Técnica e ciência como ideologia. São Paulo: Editora Unesp, 2014, pp. 35-74.
1. Cursos sobre a filosofia do espírito e da natureza proferidos por Hegel em Jena
entre 1803-4 e 1805-6; Elaboração fragmentária do sistema de eticidade, ainda sob forte influência dos estudos de economia política; Tendência implantada por Lasson de considerar a Filosofia do Espírito como uma preparação para a Fenomenologia do Espírito. Habermas, por outro lado, defende estes escritos como uma sistemática particular abandonada posteriormente; 2. Padrões de relações dialéticas: linguagem, instrumento e família > representação simbólica, processo de trabalho e interação baseada na reciprocidade/ética > mediações que representam estágios diferentes da relação entre sujeito e objeto; “[…] não é o espírito que, no movimento absoluto de reflexão sobre si mesmo, manifesta- se também, entre outras coisas, na linguagem, no trabalho e na relação ética, mas é apenas na relação dialética de simbolização linguística, de trabalho e de interação que determina o conceito de espírito” (p. 36); Surgimento das categorias na filosofia real e não na lógica [há uma concepção concreta, historicamente situada, e não metafísica da formação do espírito humano]; “[…] encontra-se nas lições de Jena a tendência de que apenas os três padrões dialéticos da consciência existente tomados conjuntamente manifestam o espírito em sua estrutura” (p. 37) [necessidade de imbricação e completude das três esferas]; [Honneth em Ação Social e Natureza Humana: redução dos três padrões dialéticos ao trabalho em Marx é uma opção metodológica, recorte; nos marxistas é reducionismo] NOTA 3: em Hegel, as categorias destacadas correspondem às formas do espírito objetivo/efetivo, pois representam a forma como a consciência se manifesta no mundo; I. 3. Recordação do conceito de eu: unidade pura [funcionamento lógico racional que independe da experiência] que se refere a si mesmo, é unidade e universalidade; 4. Noção kantiana de apercepção tomada como ponto de partida do conceito de eu em Hegel; Identidade do eu é experimentada na autorreflexão, na autoexperiência do sujeito cognoscente abstraído do mundo envolto; Subjetividade como reflexão: “relação consigo do sujeito que sabe a si mesmo” (p. 39); Kant: unidade da consciência transcendental diante da apercepção empírica; 5. Fichte: consideração da autorreflexão anterior à divisão em esferas; Hegel, por outro lado, concebe a dialética do eu e do outro no quadro da intersubjetividade do espírito: “[…] não é o eu que se comunica consigo mesmo como com seu outro, mas o eu que se comunica com um outro eu enquanto outro” (p. 39); 6. Autoconsciência como superação da reflexão solitária em prol de uma relação complementária de dois indivíduos > experiência de interação [aprender a ver a si mesmo com os olhos de outrem]; Formação da autoconsciência por meio do reconhecimento recíproco [reflexo que obtenho de mim mesmo na consciência do outro sujeito] faz com que a autoconsciência não possa voltar-se a si mesma, como em Fichte. É necessária uma teoria do espírito; Espírito como médium da comunicação entre o eu e o outro e a partir do qual ambos se formam reciprocamente [não só meio, o espírito também é constituinte do sujeito e do objeto]; “A consciência existe como meio no qual os sujeitos se encontram, de tal modo que, sem seu encontro, eles não poderiam ser na qualidade de sujeitos” (p. 40) 7. Fichte como aprofundamento da unidade transcendental da consciência kantiana. Hegel, pelo contrário, concebe essa autoconsciência como uma abstração de todos os conhecimentos e representações dados ao sujeito; Universalidade e singularidade do eu abstrato > constituição da individualidade; 8. Fichte: eu como identidade do eu e do não eu x Hegel: eu como identidade do universal e do singular; Espírito como desenvolvimento dialético da unidade > totalidade ética (luta por reconhecimento); “O espírito é a comunicação dos singulares no médium de uma universalidade, a qual funciona como a gramática de uma língua perante seus falantes ou como um sistema de normas válidas em relação aos indivíduos agentes, e que não extrai o momento de universalidade contra a singularidade, mas permite entre ambas um liame próprio” (p. 41); Identificação de sujeitos particulares uns com os outros e conservação como não idênticos; “A ideia original de Hegel consiste em não podermos compreender o eu como autoconsciência senão na qualidade de espírito, isto é, se passa da subjetividade à objetividade de um universal, no qual os sujeitos que se sabem como não idênticos são associados com base na reciprocidade. E justamente porque o eu é identidade do universal e do singular no sentido preciso que acabamos de explicitar, um recém-nascido que no seio materno se apresenta como um exemplar pré-linguístico da espécie, capaz de ser suficientemente explicado sob o ponto de vista biológico segundo uma combinação deum número finito de componentes, só pode ter sua individuação concebida segundo um processo de socialização [Sozialisierung]. E esta, contudo, não deve ser aqui entendida como a inserção em sociedade [Vergesellschaftung] de um indivíduo previamente dado, mas é a própria socialização que produz o ser individuado” (p. 42); II. 9. Explicação da relação ética por meio da relação entre os amantes: conhecer que se conhece em um outro; 10. Não há explicitação da noção de conhecer-se no outro em Hegel. O amor é considerado como uma espécie de reconciliação de conflito prévio; Composição da identidade no reconhecimento recíproco: relação dialógica de associação complementar entre sujeitos opostos (de forma lógica e prática); Relação ética de luta por reconhecimento = opressão e restauração de uma relação de diálogo como uma relação ética; “O dialético não é a própria intersubjetividade sem coerções, mas a história de sua opressão e de seu reestabelecimento” (p. 44) > símbolos dissociados e relações lógicas de relações reificadas que promovem a distorção da relação dialógica; 11. Exemplo do castigo como destruição de uma totalidade ética explicar a relação entre crime e eticidade; Supressão da base ética no crime faz com que o destino se volte para si; 12. Desvinculação da relação entre crime e luta por reconhecimento nas lições de Jena, mas fundamentação na fragilidade das relações constituídas; 13. Destino como autoafirmação desgarrada do contexto ética; Há um reconhecimento recíproco (conhecimento de que a identidade do eu só é possível através da identidade do outro) que precede o movimento de reconciliação; Salvação absoluta da singularidade no reconhecimento; NOTA 10: associação de Hegel à renovação de sua ideia por Mead (assunção de papeis sociais para a constituição da identidade do eu); 14. Identidade como universal e singular se contrapõe a noção de unidade abstrata da consciência pura (Kant); Conceito de eu hegeliano deriva da experiência da consciência prática; Crítica à doutrina dos costumes kantiana; 15. Autoconsciência a partir do processo de interação conduz à consideração da vontade autônoma como “abstração da relação ética peculiar de singulares comunicantes” (p. 47) explicar; Kant retira a ação ética do campo da moralidade > imperativo categórico > universalidade das leis morais representa um consenso a priori e um compromisso intersubjetivo amplo; 16. Caráter abstratamente universal das leis morais significa que elas são válidas para todos os seres racionais; 17. Relação positiva de vontades impossibilita a comunicação, nesse sentido, a ação moral é uma ação estratégica; 18. Ação estratégica x ação comunicativa; Problemas da eticidade só podem aparecer numa comunicação harmônica e intersubjetividade constituída no reconhecimento recíproco; III. 19. Expectativa da ação comunicativa como médium para o processo de formação do espírito autoconsciente; “O espírito é uma organização de meios co-originários” (p. 50) – memória, trabalho e família; Linguagem e trabalho não podem ser atribuídos à experiência de interação e do reconhecimento recíproco; 20. Linguagem como emprego simbólico de nomeação pelo homem solitário, não compreende o processo de comunicação; “Apenas como linguagem e na linguagem a consciência e o ser da natureza se diferenciam para a própria consciência. O espírito que dorme acorda de seu sonho quando o reino da imagem é traduzido ao reino dos nomes” (p. 51); Influência de Herder na noção de representação como atividade própria do símbolo; Nomeação e memória como um uno, a linguagem; 21. Dupla função do símbolo (nome de coisas): presentificação de algo não imediatamente dado em um outro (representação) + produção dos próprios signos (objetivação da própria consciência); Redescoberta de si mesmo pela linguagem em Herder: constituição da natureza no mundo do eu pela linguagem necessita de dissolução e conservação da coisa intuída num símbolo + distanciamento da consciência em relação a seus objetos = eu encontra-se nas coisas e em si mesmo; Linguagem é a primeira categoria na qual espírito é medium, não algo interior, pois é o logos de um mundo; 22. Trabalho como “modo específico de satisfação dos instintos que distingue a natureza dos espíritos existentes” (p. 52) Linguagem como rompimento da intuição imediata; trabalho como rompimento do desejo imediato (satisfação dos instintos); “O nome é aquilo que permanece diante do momento efêmero das percepções; do mesmo modo, o instrumento é o universal frente ao momento evanescente dos desejos e dos prazeres” (p. 52); Redescoberta do instrumento pelos símbolos; 23. Diferença entre a dialética do trabalho e a dialética da representação; Possibilidade de transformação do sujeito em coisa na dialética do trabalho [reificação/ação instrumental]; 24. Instrumento e linguagem correm em sentidos opostos: consciência astuta x consciência nomeadora; “Apenas no caso limite de uma convencionalização, o falante pode se relacionar com seus símbolos de forma similar àquela do trabalhador com seus instrumentos; os símbolos da linguagem corrente penetram e dominam a consciência perceptiva e pensante, enquanto que a consciência astuta coloca os processos naturais à sua disposição por meio dos instrumentos” (p. 53); Objetividade da linguagem: conservação de poder sobre o espírito subjetivo x superação astuta da natureza sobre poder do espírito objetivo: ampliação da liberdade subjetiva; 25. Consciência astuta [instrumento/trabalho], consciência nomeadora [representação/linguagem] e consciência reconhecida [família/interação > luta por reconhecimento]; Crítica à moralidade como crítica à cultura (sentido teleológico de obtenção de fins por um ser racional em Kant); “O eu cultivado, ao qual Kant atribui a capacidade para a ação instrumental, Hegel o concebe contrariamente como um resultado do processo de trabalho, vale dizer, como um resultado do trabalho social que se transforma no curso da história universal” (p. 55) 26. A identidade da consciência só se constitui pela linguagem [“a identidade do eu não pode preceder nem os processos de conhecimento nem tampouco os processos de trabalho e de interação” (p. 57)!!!] IV. 27. Kant: identidade do eu como unidade originária da consciência transcendental x Hegel: eu como identidade do universal e do singular (vir a ser); Unidade de um processo de formação > três modelos de formação heterogêneos; Princípios de interpretação articulados a partir de Hegel: Cassirer – dialética da representação, Lukács – dialética do trabalho, Litt – dialética da luta por reconhecimento; “Como podemos pensar, afinal, a unidade de um processo de formação que segundo as lições de Jena percorre a dialética da linguagem, do trabalho e da interação?” (p. 59); 28. Linguagem: símbolos representativos como primeira determinação do espírito abstrato; 29. Penetração da linguagem na ação comunicativa pela tradição cultural; Ação instrumental como ação monológica, ação solitária de utilização de instrumentos que dependem de símbolos [demonstração da relação entre linguagem e trabalho]; 30. Destaque para a relação entre interação e trabalho – irredutibilidade de ambas as esferas, embora haja conexão entre os processos de trabalho e as normas jurídicas, por exemplo; 31. Intercambio juridicamente regulado e possibilidade de institucionalização do reconhecimento recíproco; Relação entre o produto do trabalho, a ação instrumental e a interação; 32. Exemplificação da relação por meio do exemplo do sistema de trabalho social oferecido por Hegel, onde a troca é a possibilidade de institucionalização das dialéticas do reconhecimento; “A institucionalização da reciprocidade efetivada na troca é resultado da força normativa contida na palavra dada por cada um; a ação complementar é mediada por símbolos que fixam expectativas de comportamento obrigatórias” (p. 62); 33. Normatização da relação de reconhecimento recíproco; 34. Institucionalização da identidade do eu é fornecida pelos processos de trabalho e de luta por reconhecimento; Inscrição dos processos de trabalho na luta por reconhecimento; 35. Descrição da relação de reconhecimento unilateral (dialética senhor-escravo) é realizada pela via do trabalho; Perda da dialética entre trabalho e interação na Fenomenologia; 36. A divisão das dialéticas indicadas em Jena é substituída pela divisão enciclopédica entre espírito subjetivo, objetivo e absoluto. Mantem-se apenas a dialética das relações éticas, percebida como movimento da eticidade absoluta; V. 37. Perda da importância dada à conexão específica entre interação e trabalho; Espírito como o absolutamente primeiro da natureza, onde encontra sua completa objetividade externa; 38. O interior da natureza é o próprio espírito; “A intersubjetividade, na qual um eu pode se identificar com outro eu sem abandonar a não identidade entre ele e o outro, pode também se produzir na linguagem e no trabalho se o objeto com o qual o sujeito falante e trabalhador se confronta é concebido de antemão, em termos idealistas, como um confrontante [Gegenüber] com o qual se estabelece uma interação do tipo que somente é possível entre sujeitos: isto é, se este confrontante é um oponente [Gegenspieler] e não um objeto [Gegenstand]” (p. 66); 39. Trabalho e interação como processos de exteriorização e apropriação dos sujeitos, enquanto a dialética do amor e da luta é um movimento de intersubjetividade (cisão e alienação); A unidade entre linguagem, instrumento e ética não precisa se alojar na conexão entre interação e trabalho; 40. Espírito absoluto = eticidade absoluta; 41. Destino como automovimento da totalidade; 42. Modelo de eticidade absoluta: identidade do espírito com a natureza é identidade com o outro (dialética da autoconsciência + dialética da relação ética); 43. Necessidade de reconstrução após as mudanças nas concepções de interação e trabalho para a noção de direito; 44. Relações jurídicas formais como resultado da decadência da eticidade livre ideal da pólis grega; “No movimento da eticidade absoluta, o direito pertence a essa fase na qual o ético se envolve com o inorgânico e se sacrifica aos ‘poderes subterrâneos’. Na Filosofia do Espírito de Jena, diferentemente, a condição jurídica, que se faz caracterizada agora também pelas determinações do moderno direito privado burguês, já não aparece mais como produto da desintegração da eticidade absoluta, mas, ao contrário, como a primeira figura da relação ética constituída” (p. 70); Apenas a relação formal entre pessoas jurídicas garante a ação com base no reconhecimento recíproco; Direito abstrato como emancipação por meio do trabalho social; 45. Vontade autoconsciente e livre (ápice do espírito subjetivo) > pessoa jurídica determinada pelo espírito objetivo; “A dialética da eticidade é responsável apenas pela ‘transição’ da vontade ainda interior para a objetividade do direito” (p. 72); VI. 46. Redescoberta de Marx da dialética entre forças produtivas e relações de produção > vínculo entre trabalho e interação; 47. Embora recupere o vínculo hegeliano, Marx não o faz enquanto relação propriamente dita, pois submete a interação ao trabalho – submissão da ação comunicativa à ação instrumental; 48. “[…] o desencadeamento das forças técnico-produtivas […] não corresponde à criação de normas que possam consumar a dialética da relação ética em interações recíprocas e livres de dominação” (p. 74); Ausência de esclarecimento sobre o vínculo entre interação e trabalho, pois não há uma congruência na evolução destes; “A libertação da fome e da miséria não coincide necessariamente com a libertação da servidão e da humilhação, pois não existe uma conexão evolutiva automática entre o trabalho e a interação. Existe sim uma relação entre ambos os momentos, mas nem a Realphilosophie de Jena, nem a Ideologia alemã a esclareceram satisfatoriamente – ainda que possam, entretanto, ter-nos convencido de sua relevância: desse vínculo entre trabalho e interação depende essencialmente o processo de formação tanto do espírito quanto da espécie” (p. 74).