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L'histoire de l'Angola a associé, depuis le 16ème siècle, la traite et l'esclavage au

commerce des hommes, qui n'a pu fonctionner sans les marchandises considérées légitimes
par les Européens.
C'est ainsi que la période de la transition angolaise vers la modernité, au 19ème siècle,
accompagne l'évolution du commerce des esclaves. Au fur et à mesure que ce commerce est
remis en question et progressivement aboli par l'Europe, les structures angolaises évoluent
pour essayer de maintenir les hégémonies africaines face aux enjeux: la production africaine
propose des marchandises nouvelles imposant des relations inédites aux Européens. PERCURSOS DA MODERNIDADE
Le commerce à longue distance, inter-africain d'abord, international ensuite, entrdine
des changements ainsi que la modernisation des agents de production, tout en exerçant une
EM ANGOLA
influence sur les organisations politiques. Le cas des Imba gala et des Tshokwe, ayant tout
deux une origine lunda, est à ce titre exemplaire: ils deviennent des agents de changement
et des interlocuteurs privilégiés des Européens, permettant de définir les conditions de Dinâmicas comerciais e transformações sociais
l'hégémonie africaine ainsi que de son effritement inéluctable. no século XIX
After the 16th century, Angola history linked both trade and slavery for commercial
purposes and could fonction without the merchandise considered legitimate by the Europeans.
Thus the Angolan transition to modernity, in the 19th century, follows the evolution of
slave trading and as this trade is subject to questioning and progressively abolished in
Europe, the Angolan structures develop in an attempt to maintain African hegemonies against
various challenges. The African production now proposes new merchandise, imposing new
relations to the Europeans.
The long distance trade, first African then international, beings about changes as well
as modernization of the production agents, whilst exerting influence on political organiza-
tions.
Of such, the Imbangala and the Tshokwe, both of Lunda origin, are the perfect example.
They become the agents of change and the Europeans' privileged interlocutors, thus making
away for the definition of the conditions of African hegemony as well as its, inevitable,
wasting away.
Isabel Castro Henriques

PERCURSOS DA MODERNIDADE
EM ANGOLA

Dinâmicas comerciais e transformações sociais


no século XIX

Prefácio
Edição: INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL de
INSTITUTO DA COOPERAÇÃO PORTUGUESA
Jean Devisse
ISBN: 972-672-862-2

Depósito legal: 115036/97

Composição e Impressão: SILVAS - Coop. de Trab. Gráficos, crl — Lisboa


Tradução

Tiragem: 1500 exemplares de
Alfredo Margarido
Capa: Arranjo gráfico de Alfredo Margarido, utilizando aguarelas de Alberto Diniz, A. H. U., 1851

o
ESTA PUBLICAÇÃO FOI SUBSIDIADA PELO INSTITUTO DA COOPERAÇÃO PORTUGUESA

INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO

Lisboa INSTITUTO DA COOPERAÇÃO

CIENTÍFICA TROPICAL 1997 PORTUGUESA
Universidade de Brasília
LG-43)
- • r. , i/lk t t.., 1

II 9 6 p =_6cio

Ao meu Pai,
Dr João Ramos Dias,
que me ensinou o rigor cirúrgico
da História

Percursos da Modernidade em Angola : Dinâmicas comerciais e transformações sociais no


século XIX / Isabel Castro Henriques. — Lisboa : Instituto de Investigação Científica
Tropical; Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997. - 836p.

Tradução do original francês intitulado: Commerce et changement en Angola au XIXème À memória


siècle. Imbangala et Tshokwe face à la Modernité, 2 volumes, Paris, L' Harmattan, 1995 de Luís de Albuquerque
e de Joaquim Barradas de Carvalho
ISBN: 972-672-862-2

Descritores*: Historia contemporanea / Antropologia social / Colonialismo / Populacoes /


/ Comercio / Producao / Escravatura / Relacoes internacionais / Seculo 19 / Angola / Africa
Central / Africa Austral

* Grafia dos descritores fixada pelo Thesaurus SPINES - Volume II (English-French-Spanish-Portuguese 1988 edition
(UNESCO))
ABREVIATURAS

AA — Arquivos de Angola
AGC — Agência Geral das Colónias
AGU — Agência Geral do Ultramar
AHNA — Arquivo Histórico Nacional de Angola (antigo CNDIH)
AHU — Arquivo Histórico Ultramarino
ANTT — Arquivo Nacional da Torre do Tombo
BIFAN — Búlletin de l'IFAN
BMNE — Biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros
BNI,, — Biblioteca Nacional de Lisboa
BOGPA — Boletim Oficial do Governo da Província de Angola
BPMP — Biblioteca Pública Municipal do Porto
BSGL — Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa
CCPG — Comissão Central Permanente de Geografia
CEA — Cahiers d'Études Africaines
CGA — Correspondência dos Governadores de Angola (AHU)
CICIBA — Centre International des Civilisations Bantu
CNDIH — Centro Nacional de Documentação e Investigação Histórica (hoje AHNA)
CX — Caixa
ICALP — Instituto de Cultura e Língua Portuguesa
IFAN — Institut Fondamental d'Afrique Noire
IICT — Instituto de Investigação Científica Tropical
ISCSPU — Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina
JAH — Journal of African History
JIU — Junta de Investigações do Ultramar
JMGIU — Junta das Missões Geográficas e Investigações do Ultramar
MMA — Monumenta Missionaria Africana
MNE — Ministério dos Negócios Estrangeiros
PUF — Presses Universitaires de France
RIEA — Revista Internacional de Estudos Africanos
SGL — Sociedade de Geografia de Lisboa
PREFÁCIO
Isabel de Castro Henriques acaba de propor uma contribuição excepcional ao
nosso conhecimento, ainda muito embrionário, do passado da África central. Consagrou
anos de trabalho à análise de um espaço político-económico complexo: o dos Lundas;
mostrou com todos os matizes impostos pelas fontes consultadas os métodos muito
originais, sem relação com as concepções europeias, da administração directa ou
indirecta do «império» pelo poder central lunda e também a maneira como este
utilizou, a oeste, os Imban galas e, mais tarde, os Quiocos, como autênticos blocos
protectores contra as pressões, a princípio económicas, dos portugueses; falta em
parte a contrapartida do lado oriental, mas a autora abriu tantos caminhos à
investigação e à reflexão, que lhe cabe agora, à frente de uma equipa internacional
de investigadores, prosseguir o esforço até ao oceano Indico.
Com uma tenacidade e uma coragem raras, Isabel de Castro Henriques reuniu
uma grande quantidade de fontes inéditas ou mal conhecidas. Teve sobretudo o talento
de extrair, graças a uma ficha gem minuciosa e preciosa, indo até ao mínimo pormenor,
os materiais de base da sua reflexão muito inovadora e da sua tese monumental.
Talvez a longa retrospectiva, consagrada às relações mentais e políticas dos
Portugueses com a África entre o século XIX e o último quarto do século XX, não
fosse tão indispensável como a autora pensa; sobretudo, ela não é suficientemente
comparativa em relação ao que se verificou no conjunto dos países ocidentais. Pelo
menos, Isabel de Castro Henriques deu-se a ela própria e forneceu-nos informações
necessárias ao aprofundamento do tema.
Mas o essencial não reside nisso. A autora mostra, de tal maneira que provoca
a adesão, que existia, no interior das estruturas económicas e militares lundas, um
autêntico espaço económico, por elas controlado, de um oceano ao outro, que estradas
comerciais percorriam este espaço e que produtos, cuidadosamente estudados, eram
por aí transportados por comerciantes a propósito dos quais talvez gostássemos de
conhecer melhor a fisionomia e o estatuto. O cuidado que a autora mobiliza para
estudar, caso a caso, a produção e a circulação da mandioca, dos dentes de elefante,
do mel e da cera, fornece apoios concretos à tese central. As coisas tornam-se ainda
mais interessantes no que se refere ao sal, cujos circuitos são muito mais complexos
do que aquilo que se julgava. As estratégias económicas, militares e sociais dos
grupos humanos de níveis e composições diferentes — que nem a autora nem nós nos
resignamos a chamar etnias — são analisadas de maneira pormenorizada. O seu
lugar no espaço e na evolução mostra bem o interesse dum estudo do centro para as
periferias no caso lunda. E certo que este estudo teria ganho se se tivesse apoiado
mais nas referências ao meio natural: já é vigorosamente posta em evidência a
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importância dos rios grandes e pequenos. Eles são frequentemente «fronteiras» que
detêm, sob ordem do poder central, as viagens dos europeus curiosos de conhecerem AGRADECIMENTOS
o interior, consentindo contudo na passagem de alguns, cujas narrativas são, para
Isabel de Castro Henriques, indicadores preciosos; os soberanos da África ocidental Este livro é a tradução — algumas vezes a versão — portuguesa de uma tese de
não reagiam de maneira diferente no que se refere ao controlo do território, aproveitando doutoramento, defendida na Universidade de Paris I — Panthéon-Sorbonne, em Fevereiro
a extensão das terras e as dificuldades das travessias, para limitar o acesso dos de 1993.
comerciantes arábico-berberes às zonas de produção do ouro. Isabel de Castro Elaborada em três países e dois continentes, durante longos anos, contou com a
Henriques volta a encontrar assim, dez a doze séculos mais tarde, um comportamento ajuda e a colaboração de um grande número de instituições e, sobretudo, de amigos.
comparável entre os Lundas. Este comportamento não tinha sido possível aos Kongo, Os meus primeiros agradecimentos vão para a Universidade francesa que me deu
provavelmente devido à frágil profundidade do espaço que controlavam. a possibilidade de me consagrar à História de África, num momento em que não era
Mais tarde, após 1850, a pressão dos métodos e dos produtos europeus acentua- possível fazê-lo no meu país.
-se e desorganiza pouco a pouco as condições do poder e as funções dos comerciantes Devo também agradecer àqueles que, na Universidade de Paris I e no seu Centre
africanos. Os Europeus, principalmente os Portugueses, ganham a partida, ligando de Recherches Africaines (C. R. A.), me iniciaram na História de África: Raymond
a metade ocidental da Africa equatorial a uma economia-mundo, cujos efeitos e Mauny, Roger Pasquier e o malogrado Yves Person. A este grupo vieram juntar-se Jean
solicitações são muito diferentes daqueles que conhecia o antigo sistema de trocas. Devisse, que aceitou dirigir esta tese, impondo-lhe o seu rigor habitual, Alfredo Margarido,
Neste movimento, o interesse que concedem os Europeus a certos produtos de cujo conhecimento de Angola me foi indispensável, Jean Boulègue e Yoro K. Fall.
compensação, em troca das suas vendas, provoca uma adaptação coerente dos Pude contar, na Faculdade de Letras de Lisboa, com o apoio de Manuel Viegas
produtores africanos. É o que se verifica no que se refere à mandioca, por exemplo, Guerreiro e de Ilídio do Amaral. Sem a amizade de Victor Jabouille, então Presidente
cultura essencialmente feminina, muito exigente em mão-de-obra; ocasião é assim do Conselho Directivo, não poderia ter elaborado esta tese, pois permitiu-me utilizar
oferecida a Isabel de Castro Henriques de estudar o estatuto das mulheres produtoras. de maneira eficaz os recursos da instituição. Nisso, foi secundado pelas Senhoras
D. Rosalina Santos e D. Lucília Miranda.
À medida que se destrói lentamente o antigo equilíbrio económico dos Lundas, Recebi de alguns amigos um apoio essencial, entre os quais Vasco de Castro, Jill
faz-se mais forte a pressão da economia-mundo europeia e das suas tradições sociais,
que penetram cada vez mais longe. Os Imbangalas e depois os Quiocos são encarregados Dias, José Fialho, Ferran Iniesta, Fernando Pereira Marques, Filipe Rios, Agostinho da
de travar o movimento. Os últimos, guerreiros, são também escultores oficiais do Silva, Vera Teixeira, Miguel Veiga, meu tio, o almirante António Braga e, acima de
império; e os portugueses não desdenham adquirir, desde o século XIX, as efígies todos, os meus Pais.
esculpidas das personagens importantes da vida lunda, produzidas pelos Quiocos, Em Angola, mais particularmente em Luanda, pude beneficiar da ajuda, tão amistosa
mas adaptadas com candura e humor à procura profana. Estas estátuas atingem hoje como eficaz, oferecida por Aurora Ferreira, Conceição Neto, Luísa Almeida, Ana Paula
preços exorbitantes no mercado da arte. Tavares e Ruy Duarte de Carvalho.
O historiador das sociedades africanas tal como os comparatistas preocupados As múltiplas tarefas da organização material foram asseguradas por Elisa Costa,
em evidenciar convergências e matizes entre continentes encontrarão nesta tese um José António Fernandes, Maria da Graça de Castro Henriques, Pedro de Castro Henriques,
número considerável de temas de reflexão. Um dos seus maiores méritos é o de Joze Hradil, Fátima Lopes, João Pinto, Luís Tavares, mas de maneira mais particular
fornecer alguns elementos totalmente desconhecidos até agora ou poucas vezes por Maria João Dias e pela minha Filha mais velha, Inês de Castro Henriques. António
reproduzidos, como o mapa de Angola elaborado por volta de 1916, que nos oferece Gouveia procedeu à revisão do texto.
um olhar externo assaz surpreendente, divisor em etnias evidentemente rivais, que se A minha Filha Mariana soube suportar com estoicismo as condições existenciais
pode sobrepor aos elementos de controlo do espaço anteriormente valorizado por difíceis, impostas por este trabalho.
Isabel de Castro Henriques. A estes agradecimentos devem acrescentar-se os que são devidos ao Instituto de
Desejo muito vivamente que este belo trabalho seja rapidamente posto à disposição
dos investigadores, pelo menos em português e em francês, numa versão tão integral Investigação Científica Tropical (IICT) e ao Instituto da Cooperação Portuguesa (ICP),
assim como ao Dr. Inácio Guerreiro e ao Dr. Américo Abreu Ferreira, que tornaram
quanto possível, para incluir a documentação da versão inicial.
possível esta edição portuguesa.

JEAN DEVISSE
Professor emérito
Universidade de Paris 1 — Panthéon-Sorbonne
Paris, Junho de 1993

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INTRODUÇÃO
A Angola de hoje é o resultado de uma história complexa, na qual se combinam
as opções africanas e as pressões europeias. A reorientação das escolhas políticas
europeias do século XIX impôs a revisão das actividades comerciais. A abolição do
tráfico negreiro modificou de maneira definitiva os interesses da produção africana,
criando soluções políticas e económicas inéditas.
O território, ainda marcado pelas dilacerações, internações ou interetnias, passa a
estar cada vez mais dependente dos esforços e das escolhas dos Portugueses, decididos
a liquidar os resíduos dos poderes africanos, única maneira de impor uma direcção
centralizada, à qual deviam enfim obedecer todas as autoridades angolanas. Face a esta
nova situação, as estratégias africanas organizam-se para procurar manter a sua
hegemonia, inclusivamente no plano económico.
As decisões tomadas em Berlim em 1884-1885 abriram caminho a uma desestru-
turação das unidades políticas e étnicas: o grande conjunto lunda, que integrava os
Quiocos e era aparentado com os Imbangalas, encontra-se, como tantos outros, partilhado,
«repartido» por três potências coloniais: Portugal, Inglaterra e Bélgica, esta representada
pelo Estado Livre do Congo e pelo rei Leopoldo II.
Estas intervenções europeias verificavam-se precisamente no momento em que as
sociedades africanas estavam em via de procurar criar os meios políticos, mas sobretudo
económicos, para obter condições que lhe permitissem enfrentar as novas exigências
europeias. O desenvolvimento das novas produções, que dão origem a relações comerciais
mais flexíveis, devia, na lógica do projecto africano, manter as redes comerciais africanas,
evitando comprometer a autonomia política. Angola, na realidade, era nesse momento
• o palco de importantes mutações que procuravam assegurar a modernização interna das
estruturas políticas e económicas, processo bruscamente travado pela necessidade de
fazer face à nova distribuição dos territórios africanos pelas potências europeias.
A análise da situação, que se desenrola a partir dos fins do século XVIII, mostra,
é verdade, que a África continuava a ser a vítima do comércio negreiro, mas começavam
contudo a aparecer projectos económicos mais virados para a produção e comercialização
dos produtos «legítimos». Os documentos permitem-nos pôr em evidência a importância
do comércio a longa distância, inteiramente africano, porque, contrariamente a uma
ilusão infelizmente demasiado banalizada, este tipo de comércio não foi uma invenção
tardia e exclusivamente europeia.
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As estruturas políticas e económicas das sociedades africanas puderam organizar Estas duas sociedades, ambas originárias do vasto grupo dos Lundas, apresentam
este sistema de trocas, sem o qual, de resto, não teria sido possível levar a cabo qualquer diferenças notáveis no que diz respeito às suas estruturas, tal como ocupam posições
relação comercial em África. Foi graças à organização da produção e da comercialização bastante assimétricas no contexto geográfico ou até político da região. Estas condições
africanas que o comércio afro-europeu pôde desenvolver-se. determinaram relações tão particulares como diferenciadas com os Europeus e percursos
Perante as solicitações europeias, os Africanos procuraram responder, ao mesmo históricos simultaneamente complementares e distintos.
tempo que se davam os meios para impor as regras africanas. A pressão europeia nunca O estudo dos dois grupos permitiu pôr em evidência as particularidades das respostas
teria sido suficiente para provocar uma mudança das estruturas africanas, a não ser com africanas, tanto à influência exterior como às solicitações internas, resultantes das novas
a participação activa dos produtores e dos responsáveis políticos africanos. articulações políticas. O processo de mudança tinha sido desencadeado nesta região
A mudança, da qual procuramos mostrar os meandros, era determinada, desejada bastante cedo, mas foi reforçado no momento da passagem para a segunda metade do
e controlada do interior pelos Africanos, sendo ao mesmo tempo pretendida e estimulada, século XIX.
de fora, pela procura europeia. Os Imbangalas, sob a chefia de um jaga, aparecem na tradição oral angolana, tal
Nestas condições, somos levados a dar-nos conta de que o comércio «legítimo» como ela nos foi transmitida através dos documentos escritos, por volta dos primeiros
europeu só pôde desenvolver-se graças à própria existência de meios e de uma vontade anos do século XVII. Instalados na Baixa de Kasanje, criaram um Estado-intermediário,
africanas que souberam identificar as soluções europeias e organizar as estruturas que criou os meios para impedir os Portugueses ou até os seus agentes africanos de
africanas que podiam satisfazê-las, sem renunciar contudo à autonomia que pudera ser organizarem relações — comerciais ou outras — com as populações das regiões da
mantida durante séculos. Tarefa complexa, pois envolvia obrigatoriamente a alteração África central e oriental.
das regras do trabalho, para assegurar uma resposta eficaz e conveniente. A história das relações entre os dois grupos é fundamental para nos apercebermos
Este dinamismo africano permitiu o alargamento contínuo das trocas, o que tornou das formas africanas de instituir os laços com os Europeus, sobretudo no momento em
possível a modificação das antigas estruturas e consolidou a reorganização política e que o tráfico negreiro está em via de ceder o lugar que fora seu durante séculos,
económica dos diferentes espaços angolanos. substituído por actividades comerciais «legítimas».
Somos assim levados a considerar, de maneira pormenorizada, este «por dentro Os sistemas políticos africanos devem gerir a novidade, agindo de maneira a
africano», única maneira de conseguir compreender a substância dos laços dinâmicos suscitar produções novas, solicitadas, de resto, pelo comércio europeu. Os pedidos
que o ligam ao «de fora português». A única forma de chegar ao imo da questão era europeus são reconhecidos pelos poderes e pelos produtores africanos, o que autoriza
começar por escolher, entre as sociedades angolanas, aquelas que, no interior do actual a mudança e, sobretudo, a modernização dos sistemas.
país angolano, tinham desempenhado papéis particularmente significativos, não somente Os Imbangalas tinham criado uma situação de monopólio graças à dupla relação
em relação ao comércio, mas também no quadro do afrontamento armado com os mantida, por um lado, com os Portugueses, pelo outro, com os reinos e organizações
políticas da vasta região de Angola oriental, para lá do Kwangu. Tendo afastado os
Portugueses.
Esta delimitação do objecto da investigação era, por assim dizer, natural: seria Europeus de qualquer contacto directo com o rio e com as populações de além-Kwangu,
impossível pretender levar a cabo, no quadro de uma tese de doutoramento, a análise os Imbangalas impedem as relações com o imenso espaço da África oriental e central, o
sistemática do conjunto tão vasto e ainda tão confuso das sociedades angolanas. Apenas que lhes dá uma autoridade constante na gestão dos negócios, tanto os correntes como os
podemos agir lentamente, de maneira a compreender a realidade africana — ou melhor, demais.
as realidades africanas —, a sua lógica, as suas pulsões, as suas contradições, os seus A renovação do sistema das trocas luso-africanas não podia deixar de abalar o reino
de Kasanje, cujo poder dependia da capacidade militar e económica de manter os
muitos mecanismos de produção e de reprodução, sendo também indispensável identificar
Europeus fora do espaço associado ao rio Kwangu.
e estruturar os diferentes períodos da sua evolução histórica. De maneira completamente inversa, os Quiocos parecem quase ausentes das esco-
Como seria possível, se tivéssemos adoptado outra pef§pectiva menos rigorosa,
lhas políticas e económicas durante o primeiro terço do século. O grupo só raramente
apreender e compreender as capacidades de invenção, de resposta e de adaptação face
emerge nos textos de que dispomos, portugueses ou outros. Sabemos, todavia, quanto
aos choques provindos do exterior que, no caso angolano, se iniciam já nos fins do mais não seja através da tradição oral retida pelos viajantes do século XIX, que o grupo
século XV? Como não considerar a importância complementar das perturbações e das se encontrava há muito no território que se manteve o seu.
mudanças endógenas que se multiplicam ao longo dos séculos XVIII e XIX? Contudo, só após os anos 1840, os Quiocos aparecem como intervenientes bem
Retivemos, entre as diferentes sociedades que ocupavam um lugar preeminente no visíveis e decididos nas redes comerciais internas, o que implica relações contínuas, ou
interior de Angola, as duas que, ao longo do século XIX, desempenharam um papel até privilegiadas, com os Europeus.
essencial no processo histórico da região: os Imbangalas de Kasanje e os Quiocos da Os textos retêm sobretudo a sua capacidade de responder, de maneira quase
margem direita do Kwangu. instantânea, à busca exterior de produtos «legítimos». Os Quiocos modificam as suas

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estruturas polfticas, o que reforça a sua capacidade de intervenção, a ponto de determinar ideologias coloniais, que só podiam impor uma visão deformada do Outro africano,
uma remodelação polftica e comercial da região. A mutação será de resto tão importante, propondo e impondo leituras eurocêntricas que serviam os interesses do colonizador.
que os grupos militares quiocos conseguirão desmantelar o Império lunda, graças à Esta orientação começou a modificar-se a partir da Conferência de Bandung (1955),
ocupação da capital — Musumba — em 1887. que anunciava o fim das situações coloniais e a cascata das independências africanas.
Quer dizer que por detrás destas duas sociedades angolanas, em pano de fundo Do lado do conhecimento da África «portuguesa» a situação era completamente
indissolúvel, aparece o Império lunda. A história dos dois grupos, que mantiveram laços diferente, dominada pelo fenómeno colonial. É certo que ela conheceu estudos provenientes
simbólicos, por vezes pragmáticos com os Lundas, permite assim dar conta das opções de outros horizontes culturais, sobretudo a partir dos anos 1960. Eles foram principalmente
das sociedades africanas da região mais oriental de Angola, o que implica a análise produzidos no quadro da guerrilha que estalou em Angola entre Fevereiro e Março de
também de algumas escolhas das populações da África central. 1961, para servir os projectos específicos dos dois grupos que se afrontam.
Como levar a cabo semelhante estudo? Como realizar, de maneira satisfatória, esta Estes estudos vão em duas direcções: há, em primeiro lugar, aqueles que se preocupam
abordagem das continuidades, das mutações, das inovações das sociedades do espaço fundamentalmente em denunciar a situação colonial, desmontando o mecanismo perverso
angolano, ao longo do século XIX? da dominação, o que torna estes estudos frágeis, pois o manifesto é mais importante
A história destes dois grupos, assim como a dos seus vizinhos, depende essencialmente do que o rigor. Num registo complementar, é preciso encarar os estudos que, apoiando-
da tradição oral, tal como foi retida pelos viajantes europeus do século XIX, associada -se nos instrumentos teóricos e metodológicos aperfeiçoados a partir dos conhecimentos
aos documentos europeus, narrativas ou diários de viagem, documentos administrativos, adquiridos em outras regiões africanas, propõem uma leitura menos rígida e menos
cartas, relatórios, desenhos, mapas ou fotografias. Se estes documentos não são muito redutora da história angolana.
abundantes, sobretudo no que diz respeito às populações instaladas fora do «controlo» Contudo, a grande maioria dos estudos respeitantes a Angola mantém-se, no quadro
português, são ainda mais frágeis do ponto de vista da qualidade do olhar europeu, intelectual português, demasiado dependente da ideologia colonial da época. Na sua
lançado sobre as sociedades africanas. visão da história, dominada pelo luso-tropicalismo e pela «originalidade» das relações
Ao inevitável eurocentrismo, acrescenta-se a falta de conhecimentos da maior parte luso-africanas — o número de mulatos seria indicação suficiente para dizer o teor das
dos autores portugueses — sobretudo dos comerciantes — da primeira metade do relações humanas e determinar o futuro —, os Portugueses só se interessam realmente
século. Encontramos aqui um dos paradoxos do «caso» português. Se o papel fundamental pelos seus negócios comerciais e pelas condições necessárias à sua expansão, fazendo,
do comércio no desenvolvimento das relações euro-africanas e do conhecimento do tanto quanto se pode, a abstracção dos produtores, quer dizer, dos Africanos.
Outro constitui um elemento corrente e até banalizado nos dias de hoje, os Portugueses,
mergulhados em relações comerciais constantes com os Africanos, mas cujo treino Neste estudo, procuramos inventariar as técnicas que nos parecem capazes de
intelectual era quase nulo, só podem produzir documentos medíocres, apesar da sua permitir uma análise eficaz das opções africanas, que provocaram mudanças. O comércio
integração frequente nas estruturas africanas. Ora, o olhar e as escritas dos autores apareceu-nos como o lugar onde era possível dar-nos conta da maneira como as sociedades
letrados do último quartel do século XIX não podem, evidentemente, traduzir a densidade africanas eram capazes de gerir de forma marcadamente dinâmica as relações,
da experiência dos primeiros, o que explica antecipadamente um certo número de frequentemente conflituais, com os Europeus.
hesitações do texto. É certo que um número importante de investigadores afirma, sem a menor cautela,
que o desenvolvimento do comércio em Angola foi o resultado das intervenções europeias.
É preciso acrescentar a tudo isso a maneira como esses documentos foram utilizados Nesta leitura do sistema, o comércio «legítimo» teria sido inteiramente criado pelos
nos estudos elaborados no contexto colonial português. Portugueses, forçados a renunciar ao tráfico dos escravos, devido às decisões dos
Até 1974, o processo de produção do conhecimento português, respeitante a África, Estados europeus e particularmente da Inglaterra. Esta «purificação» das condições das
que se manteve profundamente dependente da ideologia colonial.? foi caracterizado, pois, trocas, elemento prévio indispensável às formas comerciais novas, é apresentada como
pelas restrições impostas pelo regime ditatorial e colonialista português. A dureza das o resultado de um humanismo que os Portugueses tinham sido forçados a impor aos
regras coloniais foi de resto reforçada pela guerra colonial que contribuiu para o Africanos. Nesta perspectiva, a modernização das maneiras africanas de produzir e de
desamparo a que foi votado o trabalho dos antropólogos e dos historiadores. comercializar não seria senão um resultado induzido ou imposto do exterior pelos
É certo que alguns antropólogos e poucos historiadores se inscreveram no fluxo do Europeus e de maneira alguma o resultado de uma mutação organizada no interior das
anticolonialismo militante que marcou um certo olhar português minoritário; contudo, sociedades africanas.
estes homens, as suas obras, não foram capazes de travar o sistema e mantiveram-se Esta visão torna-se cada vez mais redutora, à medida que as investigações consagradas
marginais até ao golpe de Estado de Abril de 1974, que impôs a modificação do sistema. à história angolana se desenvolvem: a mudança foi também o resultado de decisões
Durante a primeira metade do nosso século, a maioria dos estudos europeus africanas. Os historiadores, em particular os das mentalidades, mostraram amplamente
consagrados a África e aos Africanos foi marcada pela inelutável sobrecarga das que nunca se registou mudança imposta do exterior sem uma reelaboração endógena.

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É certo que não se deve subestimar a acção poderosa do comércio e do sistema Não se deve esquecer que a evolução comercial reforça a importância de alguns
capitalista nas mudanças verificadas em África, mas se experimentarmos partir da grupos minoritários, entre os quais os comerciantes vindos do Brasil, que parece terem
realidade africana, podemos dar-nos conta da eficácia das dinâmicas comerciais existentes adquirido competências particulares nas relações com os clientes afro-brasileiros. A
em África, onde tinham desempenhado, durante séculos, um papel fundamental na passagem das formas arcaicas às formas modernas da gestão colonial foi, no que diz
respeito ao essencial, assegurada por homens de negócio pertencendo ao grupo afio-
comercialização dos produtos importados.
-luso-brasileiro e possuindo laços económicos comerciais preferenciais com o Brasil.
Por outro lado, e no caso particular de Angola, é preciso ter em conta os interesses
Tal é o caso de D. Ana Joaquina dos Santos, cujas relações privilegiadas com os
dos portugueses/brasileiros instalados mais particularmente na costa angolana, que procuram
Africanos do interior eram bem conhecidas; no princípio dos anos 1840, esta mestiça
assegurar uma dupla hegemonia: em relação aos Africanos, completada por uma segunda
angolana enviou uma espécie de embaixador — o comerciante brasileiro Joaquim
nas relações com os Europeus. Isto põe em evidência a existência de, pelo menos, três
Rodrigues Graça, então proprietário de plantações de café em Cazengo — à capital
núcleos emergentes de burguesia — brasileira, angolana, portuguesa, — cujo choque
lunda, encarregado de procurar convencer as autoridades políticas do país a modi-
acaba por impedir, às vezes, a modernização dos modelos angolanos. ficarem o sistema comercial, para o adaptar às novas exigências do comércio interna-
A análise das práticas comerciais põe a nu o aperfeiçoamento da assaz notável
homogeneidade das formas de controlo exercidas pelas autoridades africanas, pois que cional.
os comerciantes devem apresentar e confiar a totalidade das mercadorias aos chefes que Não estaremos nós perante um processo de «democratização» do espaço angolano,
centralizam o poder. Graças a esta medida, as autoridades africanas impedem a circulação consequência do fim dos sistemas de monopólio português e africano? O termo é
indiscriminada das mercadorias preferenciais ou ostentatórias: ao controlar o comércio certamente exagerado, mas possui a vantagem de nos colocar perante o carácter inédito
a longa distância, os chefes políticos criam os meios de manifestar o seu poder, o que da situação. Encontramo-nos em presença de uma situação caracterizada pela banalização
não os impede de fazer evoluir as estruturas em seu proveito. do comércio a longa distância, não já assegurado por caravanas que mobilizam centenas
A questão será então dupla: se por um lado se trata de medir os lucros económicos, de pessoas, mas por grupos reduzidos, associados às estruturas clânicas.
eventualmente políticos, que decorrem destas práticas, trata-se também de saber qual Estas condições novas multiplicam o número de comerciantes, que procuram romper
é a sua evolução sob a pressão dos produtores africanos, que procuram furtar-se ao com os controlos, sejam eles africanos sejam portugueses. Esta situação, que determina
controlo dos chefes, de maneira a poderem aparecer no mercado com a sua produção novos ritmos de produção, serve para explicar a importância da «democratização» dos
doméstica. circuitos, agindo fora da esfera das autoridades africanas. A emergência de novos
A questão fundamental parece girar não só em torno dos produtores, mas sobretudo parceiros modifica obrigatoriamente as técnicas comerciais e anuncia as tentativas de
dos comerciantes. Se o produtor leva pessoalmente a sua produção ao mercado, às vezes concentração de capitais, mesmo que muito reduzida. Nas cidades, e até no campo, dá-
distante, não pode contudo pôr em causa a solidez do poder. -se conta de africanos pretos e mulatos enriquecerem, o que modifica também o sistema
A procura europeia ocupa um lugar central, na medida em que serve de guia às das relações existentes.
produções africanas. Os produtores africanos organizam-se para poder responder a esta Foi de resto por esta via que o sistema foi posto em causa. Portugal foi levado a
solicitação, ao mesmo tempo que procuram aproveitar-se individualmente desta situação. recuperar a sua hegemonia durante o último quartel do século, à medida que se
A evolução do conceito de riqueza traduz, de maneira evidente, a nova sensibilidade desenvolvem os projectos agrícolas, uma parte dos quais foi inspirada pelo êxito da
económica e social. Se, na primeira metade do século XIX, a riqueza é representada agricultura «capitalista» do arquipélago de S. Tomé e Príncipe. São então tomadas as
pela posse de mulheres e de escravos, ela muda no século XX, para se exprimir por medidas necessárias para assegurarem a eliminação de cena — comercial primeiro,
meio da concentração dos bens (mercadorias, objectos) e, principalmente, das moedas política depois — dos vários estratos — mestiços e pretos — da «burguesia» angolana,
europeias, angolanas ou belgas. Esta mudança encerra a soma das evoluções históricas que estava em via de crescimento.
angolanas, aceleradas na segunda metade do século XIX. Coli jo? Por que vias? Com Não há nenhum paradoxo português em Angola, mas apenas o resultado normal
que consequências? A que preço? das operações que provocam mudanças entre os Africanos, o que força também os
A nova organização da produção, associada à nova maneira de considerar a riqueza, Europeus a procederem a uma revisão da falsa cordialidade das relações dos Brancos
coloca o historiador perante a necessidade de recorrer às informações de carácter com os Pretos. A mudança imposta pelas regras comerciais, pós-abolição efectiva do
antropológico. O comércio faz evoluir o conjunto das actividades, permitindo compreender tráfico negreiro, implica a necessidade desta dupla reorganização: a das estruturas
a importância do papel dos intermediários, o que explica que o número dos comerciantes africanas em primeiro lugar, o que obriga também à correcção das práticas europeias,
angolanos esteja em crescimento constante, situação que serve para reduzir o poder dos em vista das novas realidades: em África, na Europa e nas Américas.
chefes, mas parece amputar, também, a importância dos agentes do comércio europeu, As fontes escritas de que dispomos não podem deixar de respeitar esta mesma via.
que estão tão presentes nos documentos portugueses. Elas consagram uma atenção minuciosa às relações com a Europa, ao mesmo tempo
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que minimizam as relações comerciais locais, assim como as formas de organização das pelos governos e pelas instituições científicas, pretendem ter sido os «primeiros» nestes
sociedades africanas. caminhos africanos.
Como se isso não fosse suficiente, as fontes nunca fornecem séries estatísticas Para encerrar a nossa cronologia, retivemos o ano de 1887: trata-se de uma data
fiáveis, parciais ou globais, o que torna difícil a quantificação das trocas comerciais. puramente africana, mesmo que esteja indirectamente associada às datas da Conferência
É por isso impossível comparar quantitativamente os fluxos comerciais durante o período de Berlim, 1884-1885. Os Quiocos atacam então a capital lunda, mas se não podem
estudado, através das diferentes etapas do processo de mudança angolano. ainda saber que o território vai ser confiado ao rei dos Belgas, já tinham começado a
Podemos muito simplesmente salientar o crescimento geral do comércio exterior, aparecer os primeiros sinais da futura ocupação europeia do território.
mas é evidente que este aumento da exportação permite dar conta do aumento das trocas Com efeito, 1887 é o ano da ocupação da capital do Império lunda, a Musumba,
no interior do país, tendo como elemento prévio um desenvolvimento considerável das pelos Quiocos. Mas a data corresponde também à retirada da missão portuguesa que,
produções africanas. sob o comando de Henrique de Carvalho, procurara criar uma situação em que a
Esta situação obriga-nos a reconsiderar a importância dos dados africanos, pois é dominação portuguesa fosse autorizada pela corte lunda e pelas populações lundaizadas.
preciso tentar medir a densidade e o ritmo das mutações verificadas nas estruturas Os Quiocos chegam à Musumba no exacto momento em que os Belgas procuravam
africanas, submetidas à dupla pressão das duas solicitações: os Europeus querem sempre assegurar a ocupação deste território-fronteira que, mais tarde, se tornará o lugar-chave
mais mercadorias para alimentarem os circuitos económicos, ao passo que os próprios
da exploração mineira do Congo Belga pelas empresas europeias.
africanos reforçam a procura de produtos europeus. A perturbação desencadeada pela repartição deste espaço, em consequência das
Deste modo, o nosso trabalho, que privilegia as trocas, está sobretudo centrado nos
fenómenos de estrutura — conservação, mudança, invenção — em detrimento das decisões da Conferência de Berlim, provocou uma redistribuição das populações, ficando
os Lundas sob controlo da dominação belga, ao passo que os Quiocos foram, como os
análises conjunturais e quantitativas.
Imbangalas, atribuídos na sua quase totalidade às autoridades portuguesas. Para impor
Semelhante opção impõe que haja na determinação do leque cronológico uma parte as novas fronteiras, estabelecidas sem a menor consulta feita aos Africanos, foi preciso
significativa de arbitrário. Podíamos, é verdade, ter adoptado outra maneira de organizar pôr fim a toda e qualquer tentativa de política de boa vizinhança entre os Europeus e
este corte temporal, porque a questão da cronologia é difícil de definir, dada a ausência os Africanos, na medida em que estes não podiam aceitar de maneira alguma a liquidação
de balizas africanas conhecidas, válidas para as totalidades do território angolano tal tão apressada como brutal do que constituía o seu património histórico, quer dizer,
como o conhecemos hoje. político.
A data de 1802 parece contar-se entre as mais significativas. Instalados na costa Talvez seja conveniente acrescentar que 1887 precede de muito pouco a extinção
congolesa desde os fins do século XV, os Portugueses tinham-se mostrado incapazes de legal da escravatura no Brasil (13 de Maio de 1888) que se liga às novas condições
ligar por via terrestre os povos de Angola aos de Moçambique. Partida de leste, em económicas do país — o começo da expansão industrial, o desenvolvimento dos caminhos-
1787, a expedição dirigida por Lacerda e Almeida não fora capaz de ir além do reino -de-ferro, as técnicas novas de produção do açúcar e do café, a chegada maciça dos
de Kazembe. A morte trágica do chefe da expedição reforçou então a ideia da impotência capitais estrangeiros — que não podiam continuar a aceitar o recurso ao trabalho servil.
europeia perante os homens e a natureza africanos. Esta situação determina o enfraquecimento das relações com Angola, na medida em que
Um oficial português recruta dois — inicialmente eram três — escravos africanos, o Brasil se volta para os países sul-americanos e europeus, procurando atrair um
angolanos por consequência, que se mostraram capazes de realizar a travessia de África. povoamento branco aos seus espaços imensos e vazios.
Muito simbolicamente, esta expedição conta com a presença de um mulato alfabetizado Trata-se, por isso, de uma referência cronológica que, por um lado, serve para pôr
— apesar de escravo — e de um preto, a respeito do qual as informações são praticamente em evidência a maneira como foram reorganizados os espaços angolanos — tanto no
inexistentes. plano comercial como no económico e político — em consequência da conjugação, às
Parece-nos que esta data e estes homens fornecem as balizas cronológicas mais vezes bem-vinda, das dinâmicas africanas e dos projectos dos afro-luso-brasileiros. Mas
indicadas para levarem a cabo a nossa tarefa: trata-se de dois africanos, dois angolanos,
ela simboliza, também, o fim de um certo tipo de relações entre os Africanos e os Euro-
que põem fim às incertezas e às hesitações que se tinham acumulado desde o
-Brasileiros, que deixam, aos primeiros, fragmentos, assaz importantes, da sua antiga
século XVII, no que diz respeito à própria estrutura do território entre as duas costas.
hegemonia, na medida em que isso permitia uma melhor consolidação das relações
Ignorados por muitos historiadores, estes dois angolanos, mais particularmente Pedro
económicas e políticas entre os dois grupos, sem que, porém, os Portugueses renunciassem
João Baptista, fizeram avançar o conhecimento do continente.
Esta expedição sublinha a unidade dos homens e das estruturas, e permite dispor à prossecução das suas tentativas de enfraquecimento desta mesma hegemonia africana.
de uma escrita africana para dizer a África. Discreto, o relatório de Pedro João Baptista Este período de 85 anos (1802-1887), ao longo do qual se organiza esta análise,
nem por isso. perde o seu lugar primacial, abrindo caminho aos que, melhor apoiados concentra-se em torno de um momento crucial da história angolana: os anos 1850.
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Trata-se do momento da instalação das inovações e das mudanças que poderiam ter sido, apresentar os sistemas em presença da forma mais precisa. Trata-se do interior, onde
com um apetite menos importante das potências europeias, formas modernas nos diferentes Imbangalas e Quiocos são determinantes, mesmo que as suas intervenções não sejam
domínios das organizações sociais angolanas. de maneira alguma idênticas, do ponto de vista cronológico. As duas sociedades possuem
estruturas diferentes e as suas intervenções na organização do comércio são por vezes
A primeira parte deste trabalho, consagrada às obras e às fontes sobre Angola do conflituais. Todavia, estes dois grupos desempenharam um papel fundamental na
século XIX, permite pôr em evidência as desproporções, os desequilíbrios que caracterizam reorganização das relações políticas e comerciais, e permitem também analisar a maneira
as informações às quais temos acesso, ao mesmo tempo que propõe uma visão crítica como os Lundas pesam sobre as escolhas dos dois grupos.
uma explicação das condições que caracterizavam a produção dos conhecimentos A última parte do nosso trabalho é consagrada aos fenómenos de mudança, verificados
na segunda metade do século XIX. O choque é evidente entre a tentativa de manter
portugueses no que diz respeito à África e aos Africanos.
estruturas em via de se tornarem arcaicas, em todo o caso pouco apropriadas às funções
A análise dos processos de mudança, verificados no espaço angolano, implica uma
novas, e a impossibilidade de as conservar tal-qualmente. Trata-se de um período
reflexão consagrada aos conhecimentos existentes, assim como às condições, aos meios
marcado pelo fim tanto dos monopólios como das múltiplas proibições, que complicavam
aos instrumentos de trabalho susceptíveis de serem utilizados, de maneira a definir a actividade de todos os grupos que procuravam criar e impor orientações novas às
as limitações e os atrasos do conhecimento histórico angolanos. Esta situação determina
sociedades angolanas.
naturalmente opacidades, obstáculos que esta obra deve identificar, ao mesmo tempo Semelhante situação não podia evoluir isenta de conflitos, uma vez que as novas
que procura constantemente ultrapassá-los. regras, os mercados novos, as produções inéditas exigiam modificações que abrangiam
As partes seguintes estabelecem o nó primordial deste trabalho e foram organizadas todas as organizações sociais. O reforço das actividades comerciais e a banalização das
de maneira a permitir responder à questão central: em que condições o crescimento do mercadorias provocam uma degradação, mesmo que relativa, do controlo exercido pelas
comércio «legítimo» europeu, nascido no próprio imo do tráfico negreiro, de que constitui autoridades africanas. O resultado mais significativo regista-se no próprio estatuto do
um ramo menor, pode contribuir para iniciar as operações de mudança que levam à comerciante africano: homens cada vez mais próximos dos sistemas europeus tentam
modernidade? A introdução de inovações em vários sectores, ligados ao domínio das libertar-se da dupla restrição que pesa sobre eles: a autoridade política reforçada ou
trocas, provocou alterações nas sociedades africanas, agindo como estimulante e detonador completada pela rigidez familiar.
das tensões internas e regionais. Verificamos, assim, que é a nova procura provinda do exterior que modela, pelo
Quer dizer que uma análise deste processo de mudança, cujos resultados se tornam menos em parte, a intensidade da resposta, o que nos força a partir do «exterior»
visíveis ao longo da segunda metade do século XIX, obriga a descrever, com a minúcia português/brasileiro para o «interior» africano, sendo o escravo o elemento determinante
indispensável, as relações entre os dois blocos heterogéneos da costa e do interior, antes em volta do qual se reorganizam as estruturas do passado. Os dois tipos de comércio,
da viragem do século. Ela impõe também o exame do quadro histórico no qual Imbangalas o negreiro e o «legítimo», foram sempre indissociáveis e indissociados: as novas formas
e Quiocos apareceram, em momentos diferentes, para se converter em Estados poderosos políticas reforçam o segundo, sem contudo eliminar inteiramente o primeiro. Mas os
hegemónicos neste espaço da África central. Africanos sabem, pelo menos a partir de 1840, que é necessário encarar a reconversão
Se as relações seculares afro-portuguesas se estabeleceram em torno do escravo- dos sistemas de produção de mercadorias, e também as técnicas comerciais. Deve
-mercadoria, é também necessário pôr em evidência á importância da escravatura na lembrar-se que tal não é possível sem passar por uma revisão sensível das maneiras de
definição das relações de dominação e de dependência do interior do país. gerir o equilíbrio de cada sociedade, assim como as relações intersociedades no quadro
O acesso directo às mercadorias exteriores, adquiridas com os escravos, foi controlado de Angola.
durante décadas por Kasanje. As populações da margem direita do Kwangu, sem excluir Fomos assim obrigados a considerar, com o pormenor indispensável, o estatuto dos
os Lundas, só podem organizar relações indirectas com os Portugueses, constantemente agentes da mudança, as formas e os sinais de uma inovação nos diferentes domínios da
vida social, e mesmo a persistência de travões à modernidade, de maneira a compreender
mediatizados pelos Imbangalas, que assim reduziam a sua dependência em relação à
a reorganização dos espaços angolanos, verificada na segunda metade do século XIX (*).
Musumba.
Se o tráfico negreiro constitui a resposta aos problemas específicos das realidades
coloniais, sobretudo na América — embora seja necessário, no caso angolano, considerar
também as necessidades manifestadas pelas ilhas atlânticas desde o século XV —, a
escravatura africana existia já e procurou conservar as suas correntes específicas. Ao
tornar-se a actividade principal destes grupos, o tráfico impunha também o eixo da
mudança, como se verificou a partir dos anos 1850. (*) Respeitamos a ortografia adoptada pelas autoridades angolanas que substituíram os sons de
A diversidade das situações políticas, económicas e sociais da primeira metade do c e de q, pelo k, e num certo número de casos a vogal u pelo w. Não poucas vezes o i foi substituído
século determina a escolha do percurso a respeitar: uma opção monográfica, para pelo y.

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Univers/d3d d PrasIlla

FHPLI:TECA

PRIMEIRA PARTE

TRABALHOS E FONTES ESCRITAS SOBRE A ANGOLA


DO SÉCULO XIX. OS FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS
DO CONHECIMENTO PORTUGUÊS RELATIVO
A ÁFRICA
TRABALHOS E FONTES ESCRITAS SOBRE A ANGOLA
DO SÉCULO XIX. OS FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS
DO CONHECIMENTO PORTUGUÊS RELATIVO
A ÁFRICA
O processo de produção do conhecimento português relativo a África foi, até
1974, determinado pela ideologia colonial, associando uma velha tradição portuguesa
— enraizada nas práticas sociais correntes a partir do século XV — às exigências da
exploração colonial. O regime ditatorial, proclamado em consequência do golpe de
Estado de Maio de 1926, limitou-se a reforçar esta orientação, ao eliminar os poucos
resíduos de preocupação humanista impostos pelas escolhas republicanas.
Se as regras da gestão colonial se mostravam já muito duras, elas foram agravadas
por uma guerra colonial, muitíssimo longa. A generalização da guerrilha, imposta pelos
Angolanos aos Portugueses, após a insurreição de 4 de Fevereiro de 1961, em Luanda,
e a explosão camponesa do Norte do país, a partir de Março do mesmo ano, obrigaram
os gestionários portugueses a criar uma legislação mais flexível para gerir as relações
com os Africanos; a sociedade angolana nem por isso deixou de ficar sob a ameaça da
morte, cada vez mais tragicamente real (I).
A produção científica foi afectada por estas modificações, já que as exigências da
guerra se mostravam mais importantes do que qualquer investigação, o que provocou
o silêncio dos antropólogos e dos historiadores ( 2 ), à medida que se restringia o espaço
das ciências humanas, cada vez mais recuperado pelas escolhas e pelas produções
militares, algumas das quais não hesitavam em reivindicar uma etiqueta científica (3).

A reconstrução das sociedades angolanas, quando estas não eram alvo das intervenções militares
portuguesas, resultou das operações de recrutamento dos trabalhadores «contratados». Obrigados a
abandonar região, aldeia, clã e família, estes trabalhadores, oficialmente «voluntários», registavam taxas
de mortalidade muito elevadas. Ver Afonso Mendes, 1966.
A dureza das regras coloniais, reforçada pela guerra colonial, obrigou muitos antropólogos e
historiadores a dobrar a espinha teórica, mesmo quando manifestavam o desejo de agir de maneira
diferente. Tal foi o caso de Jorge Dias, de José Redinha, de Alexandre Lobato, entre muitos outros.
A questão será analisada nos capítulos ulteriores.
(3 ) A fragilidade da investigação portuguesa ainda não permitiu proceder ao balanço das
«antropologias» aplicadas à guerra colonial. Não podemos, contudo, deixar de observar a importância da
«antropologia militar», produzida essencialmente pelos oficiais especializados na «recuperação psicológica»,

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As interpretações fornecidas pelos trabalhadores das ciências humanas eram decididamente As sequelas das guerras coloniais foram deveras importantes no plano das ideologias
etnocêntricas, inteiramente viradas para as opções europeias, em detrimento dos elementos e da revisão das teorias coloniais. O complexo militar-colonial reforçou a importância
africanos (4). da dominação colonial, tendo o período de 1961-1974 permitido, quando não exigido,
A Conferência de Bandung, em 1955, impôs uma visão nova, graças à importância a refacção dos mitos inesgotáveis da ideologia colonial. Esta situação impediu os
inédita do Outro, que começava enfim a recuperar a sua unidade, quando não a sua Portugueses de conseguirem organizar um conhecimento real das sociedades africanas,
unanimidade. Não seria difícil utilizar uma vez mais a velha ideia herdada de Shakespeare, que eles pensavam dominar de maneira absoluta.
salientando a importância da recuperação da palavra pelos dominados. Contudo, a «Precisamos (...) de manter sempre vivo na gente portuguesa o sonho de além-mar,
questão é muito mais complexa, porque se trata de coisa muito diferente do que a e a consciência e o orgulho do Império. A África é mais do que a terra que se explora
simples recuperação da palavra: o mundo foi colocado perante a rejeição dos modelos agriculturalmente e é capaz de produzir aquilo de que a Metrópole precisa. A Africa
colonizadores. A tarefa está longe de estar concluída e, mesmo que ela conheça muitos é, para nós, uma justificação moral e uma razão de ser como potência. Sem ela seríamos
deslizes, temos de reconhecer que o sistema das relações internacionais mudou de uma uma pequena nação; com ela, somos um grande país» (8).
forma radical (5). A violência da afirmação de 1935 permite concentrar os valores mais importantes
Um só afrontamento armado marcou a política francesa na África do Norte, a da mitologia colonial portuguesa, na qual as terras africanas deviam compensar a
guerra da Argélia, que pôs a França face à sua contradição máxima: o país que se reduzida superfície do território do Portugal europeu. Face aos grandes impérios
orgulhava de ter criado os direitos do homem e do cidadão não hesitou em adoptar a — entre os quais a URSS, os Estados Unidos e a China — Portugal não podia deixar
violência como única maneira de enfrentar os Argelinos, cujo desejo de independência também de ser grande. Não podemos esquecer, nesta visão, o elemento mais discreto,
fora reforçado pelo impacto das revoluções chinesa (1948) e cubana (1958), que não mas todo-poderoso, que autoriza Portugal a dispor de «tudo» aquilo de que o país podia
dissimulavam — muito pelo contrário — a importância das lições de Bandung (1955) ter necessidade: a Africa aparece como um imenso celeiro, reforçado por uma espécie
e de Nasser (1956) (6). de kraal, cheio de «gado» africano.
Este contexto internacional, cuja complexidade é evidente, explica que, também do Esta tendência não fará senão reforçar-se, sob a pressão dos acontecimentos,
lado português, a situação era outra. Face a um mundo cada vez mais adepto das organizando-se as afirmações no sentido de recusar toda e qualquer realidade africana,
independências das nações até então submetidas ao colonialismo, incluindo a Namíbia, na medida em que os Portugueses eliminavam a própria existência dos Africanos, a não
Portugal não hesitou em enveredar pelo caminho das guerras coloniais, na Guiné- ser como coisas da natureza africana, como já quisera Hegel (9). Se olharmos as coisas
-Bissau, em Angola e em Moçambique. A grande mobilização militar portuguesa não tão de perto como é necessário, podemos constatar que se verifica um subentendido
impediu o inelutável: as independências das antigas colónias, mesmo daquelas em que constante: a dureza de uma «selvageria africana» que é necessário, de maneira deveras
não houvera nem combates nem guerrilhas, em 1974 e 1975 (7). paradoxal, denunciar e conservar ao mesmo tempo.

que recrutou homens tais como Otelo Saraiva de Carvalho, Ramalho Eanes, Melo Antunes, quer dizer, uma
parte substancial dos «capitães» da «revolução dos cravos», de Abril de 1974. No plano inverso, a produção
portuguesa no estrangeiro foi obrigatoriamente reduzida e limitada aos antropólogos ou aos sociólogos
militantes (Alfredo Margarida Mário Moutinho, Eduardo Medeiros, Leonor Correia de Matos, por exemplo).
Ver capítulos II e III.
Bandung, que simboliza a modificação definitiva do xadrez das dominações coloniais, determinou
uma reflexão consagrada a África, produzindo estudos que se pretendiam despojados de qualquer
vestígio de europocentrismo. Em Portugal, a Conferência ficou praticamente desconhecida, na medida
em que a maior parte dos estudos votados a África procurava, sobretudo, du até exclusivamente, exaltar
a missão civilizadora portuguesa.
Teria havido uma guerra colonial tão prolongada, se o Estado-Maior português não dispusesse
do modelo argelino, ou se os Franceses e Americanos não se tivessem lançado na guerra impossível do
Vietnam? Todas as questões da geopolítica colonial se encontram concentradas nestas duas operações.
Os militantes da esquerda aceitam a ideia de que a guerra colonial teria sido mais curta se Portugal
não tivesse sido constantemente apoiado por algumas organizações internacionais, sobretudo a NATO.
A Guiné foi a primeira colónia portuguesa a adquirir a independência, a 10 de Setembro de
1974. A das quatro outras colónias foi proclamada durante o ano de 1975: Moçambique a 25 de Junho,
os arquipélagos de Cabo Verde e de S. Tomé e Príncipe, a 5 e a 12 de Julho respectivamente, Angola, Editorial de O Mundo Português, n.° 2, Julho-Agosto de 1935, p. 218.
a 11 de Novembro. Hegel, 1979, pp. 245-269.

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CAPÍTULO I

A ideologia colonial e os africanismos portugueses


Se o discurso das antigas potências coloniais manifesta uma tendência evidente,
sobretudo no campo histórico, para se afastar dos preconceitos colonialistas, é muito
fácil constatar que tal não é o que se verifica no caso português: Portugal da epopeia
do século XVI absorveu os Africanos, a ponto de terem ficado, quase até aos nossos
dias, despojados de existência histórica, enviscados nas espiras dos acontecimentos da
expansão colonial portuguesa. O discurso histórico mantém-se ainda muito surdo à
recuperação da voz autónoma do Outro africano (10).

I. Ideias, mitos, teorias: o tecido ideológico português


A África não desempenhou um papel determinante na organização social e política
portuguesa, a não ser a partir da independência do Brasil (1822). É certo que os
territórios africanos serviram para fornecer a força de trabalho indispensável em parte
ao povoamento, mas sobretudo à exploração agrícola e mineira do Brasil ( 11 ). Contudo,
a relação assaz directa entre o Brasil e a África, particularmente Angola, não contaminava
o país, cujo território mítico era já o Brasil, onde cresciam as famosíssimas «árvores
das patacas» (12).
Amputados deste imenso país sul-americano, os Portugueses foram obrigados a
instalar-se em África, não sem conhecer enormes hesitações: até aos fins do século XIX
e mesmo muito mais tarde ( 13), uma fracção da intellegentia portuguesa não hesitou

Não há, até hoje, nenhuma Universidade portuguesa que tenha criado uma cátedra de História
de África, pois que esta é ainda, quase sempre, considerada como um elemento subsidiário da expansão
portuguesa, o que quer dizer que a produção de textos respeitantes à história dos Africanos não só é
muito reduzida, mas frequentemente de péssima qualidade.
Ver Alexandre, 1970, pp. 28-34.
A «árvore das patacas» é uma maneira popular e quase sempre irónica de salientar as condições
de enriquecimento tão rápido quanto fácil dos portugueses no Brasil. Ela serviu, sobretudo, para mostrar
que a natureza das colónias tornava possíveis os enriquecimentos extremamente rápidos, quase miraculosos.
A expressão, que está em via de desaparecer, foi utilizada em todas as situações coloniais onde surgia
a promessa de enriquecimento.
Oliveira Martins, o mais fiel intérprete, na cultura portuguesa, do «darwinismo social»,
procurou mostrar a inutilidade de qualquer tentativa destinada a «civilizar» os Africanos. Só duas
colónias lhe parecem rendíveis: Angola e S. Tomé e Príncipe, devendo as outras ser vendidas. Martins,
1953, pp. 261-265.

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em propor a venda das colónias, que pareciam então uma canga que impedia Portugal decidido a fornecer as provas «indiscutíveis» da função colonizadora dos Portugueses,
de organizar uma política europeia sã (14). Os protestos mais veementes contra estes que precedem amplamente os outros europeus em África. Num registo inteiramente
projectos provieram de alguns grupos de colonizados, muito particularmente aqueles complementar, começa a esboçar-se a teoria para-antropológica, destinada a provar que
formados pelos intelectuais de Cabo Verde (15). os Portugueses mantiveram constantemente, sem a menor interrupção, relações singulares
Este projecto chocava-se contra a presença dos mitos, reforçados pelos lucros com os Africanos. Esta tese, que só encontrará a sua forma final em 1933, na escrita
obtidos, desde o primeiro terço do século XIX, em S. Tomé e Príncipe, pelas novas sociológica de Gilberto Freyre (18), constitui o eixo do segundo período da mitologia
plantações de café e de cacau (16). Esta exploração permitia provar a rendibilidade colonial portuguesa, que começou a ser elaborado por volta dos anos 1940 (19).
agrícola das colónias, desde que os capitais irrigassem estes territórios, que durante mais Esta obstinação teórica terá consequências políticas deveras importantes: embora
de três séculos tinham estado associados à política económica do Atlântico Sul. A as antigas potências coloniais europeias negociassem quase em toda a parte, a partir
Conferência de Berlim (Novembro de 1884-Fevereiro de 1885) serviu paradoxalmente dos anos 1950, as independências africanas, os Portugueses limitaram-se a reforçar o
os interesses daqueles que desejavam manter a África no espaço português. A partir do
momento que as decisões da Conferência amputavam ferozmente os direitos que um
grande número de portugueses considerava tão «históricos» como «sagrados», as colónias
foram consideradas como uma espécie de «sobreviventes», que as ideologias coloniais Miguelista: adjectivo servindo para identificar os adeptos do príncipe D. Miguel (1802-1866),
souberam utilizar com alguma eficácia. adversário das soluções políticas liberais. As escolhas dos «absolutistas» pretendiam, essencialmente,
Esta revisão dilacerante da posição portuguesa recebeu uma ajuda inesperada eliminar a adopção em Portugal dos princípios impostos pela Revolução Francesa e assegurar o regresso
resultante da brutalidade das intervenções inglesas: o Ultimato de 11 de Janeiro de 1890, ao Antigo Regime.
exigindo que os Portugueses abandonassem o território dos Matabeles, provocou uma O carácter pretensamente excepcional da colonização portuguesa, no que diz respeito às
imensa reacção patriótica, na medida em que a fraqueza militar portuguesa não permitia relações inter-humanas, suscitou uma rude polémica, que mobilizou alguns dos intelectuais mais brilhantes
responder à agressão britânica. A rebelião republicana, no Porto, em 31 de Janeiro de que se ocuparam da história da África colonizada pelos Portugueses. Desde muito cedo, Mário Pinto
1891, fazia aparecer a África como uma parte indiscutível do tecido territorial português. de Andrade (1928-1991), utilizando o pseudónimo quimbundo, Buanga Fele, denunciou na revista
Obrigados a fazer face às múltiplas «agressões» europeias, inspiradas na sua Présence Africaine (n.° 4, Out.-Nov., 1955, pp. 24-35) a mistificação teórica proposta por Gilberto
Freyre, de resto acusado por Baltasar Lopes (da Silva) de pura insensibilidade sociológica face aos
maioria por um apetite colonial homólogo ao que caracterizava os Portugueses, foi particularismos do arquipélago de Cabo Verde (Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. Apontamentos
necessário proceder à revisão «histórica» das conquistas e dos direitos dos Portugueses lidos ao microfone de Rádio Barlavento, Praia, Imprensa Nacional, 1956).
em África. Durante este período final do século XIX foram elaborados ou consolidados Contudo, os textos mais organizados e mais vigorosos provêm de autores anglófonos, entre os quais
alguns mitos destinados a explicar e a justificar os direitos dos Portugueses, que teriam Charles Boxer, que continuam a fornecer o paradigma. Só muito mais tarde, os intelectuais portugueses
sido, em todos os lugares, os primeiros a dar conta das terras, dos homens, das línguas adoptaram esta maneira de ver, podendo admitir-se que José Capela se encontra entre os que procederam
e das produções. a uma demonstração mais sistemática, assente essencialmente no exemplo fornecido pela colonização
Neste campo tão particular da mitologia colonial portuguesa, podemos isolar dois de Moçambique.
períodos distintos, o que não os impede de ser concomitantes: o primeiro, organizado Talvez, neste registo tão importante, seja necessário reter os escritores, cuja produção forneceu uma
durante o último terço do século XIX, está mais nitidamente virado para o exterior, reflexão que associou o simbólico e o imaginário, que permitiu a apreensão das especificidades do
marcado pelo trabalho encarniçado do visconde de Santarém (17), miguelista exilado em racismo português. Num conto elucidativo, A menina Victoria, o muxiluanda Arnaldo Santos salienta
Paris. Trata-se do trabalho apaixonado, mas frequentemente meticuloso, do historiador, as brutalidades mais correntes, entre as quais a recusa dos particularismos fonéticos e sintáxicos dos
locutores angolanos. A menina Victoria vai ao ponto de rejeitar a existência da pitanga, que não pode
substituir as cerejas metropolitanas que, naturalmente, não eram conhecidas por nenhum aluno luandense.
De facto, a quase totalidade destas posições teóricas sofre de um defeito fundamental, que o
Ver Rates, 1920. Então secretário-geral do jovem Partido Comunista Português, Rates queria historiador não pode deixar de pôr em evidência. Estes documentos, cujo rigor não está em causa, foram
que o «programa» da organização mencionasse a necessidade de vender as colónias. Só a intervenção elaborados no quadro do combate anticolonial, mas, sobretudo, durante a guerra de libertação. Ou dito
do delegado do Kominformo, Jules Humbert-Droz, o obrigou a renunciar a esta opção. Ver Margarido, por outras palavras: uma parte desta literatura está bastante marcada pela violência da polémica pró ou
1975, p. 123. contraportuguesa.
Na Revista de Cabo Verde (1898), os intelectuais de Cabo Verde, mais particularmente Isso é ainda mais significativo na medida em que pudemos assistir, durante esse período que foi
Eugénio Tavares, denunciaram apaixonadamente esta orientação da política colonial portuguesa, na qual demasiado longo, ao descrédito dos documentos em língua portuguesa, pois se partia do princípio que
viam a consequência das vendas da Luisiana e do Alaska, mas, sobretudo, das Filipinas: «nós não somos
a língua do «colonizador» negava a qualidade de qualquer documento. Nesta situação, a história foi
filipinos!», salientavam estes intelectuais.
O crescimento rápido da agricultura capitalista em S. Tomé e Príncipe serviu para dar uma obrigada a submeter-se às condições políticas e culturais deste período perturbado.
nova credibilidade aos projectos agrícolas coloniais. Ver Francisco Mantero, 1911. Teríamos de analisar a questão numa óptica menos polémica, quer dizer, mais próxima da história
Exilado em Paris, Manuel Francisco Mesquita de Macedo Leitão e Carvalhosa, segundo dos comportamentos sociais. O historiador não pode divorciar-se das condições históricas, qualquer que
visconde de Santarém (1791-1855), publicou os Atlas portugueses, que deviam provar os direitos seja o seu comportamento político. Infelizmente, um número importante de historiadores, sobretudo
históricos dos Portugueses sobre os territórios africanos. Ver Essai sur l'histoire des progrès de la africanos, por vezes acompanhados por europeus e americanos, renuncia a qualquer forma de espírito
géographie après les grandes découvertes du XVe siècle, Paris, 1849-1852. crítico exigido pela história, para se instalar no terreno, quase sempre minado, do mito.

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carácter obstinado do seu colonialismo, apoiado pela massa dos colonos. Se, no plano Enquanto os Europeus são «filhos apurados das raças policiadas», os Africanos são
interno, os responsáveis políticos se serviam do racismo difuso que caracterizava as «broncos», «entes quase impensantes e impulsivos», «rudes» e «vadios ociosos» (24).
relações da comunidade nacional portuguesa com os Africanos, no plano internacional, Este tipo de discurso poderia ter-se transformado numa espécie de manifestação
mobilizavam sem pudor os «direitos históricos», para recusar deixar-se arrastar pelos arqueológica, simples sintoma de um racismo sem limites, que a sociedade portuguesa
não teria tido a menor dificuldade em eliminar. E necessário considerar a situação de
«ventos» da história. um ponto de vista mais próximo da realidade, porque tanto Oliveira Martins como
O esforço ideológico — o qual não pode nem deve ser confundido com o trabalho António Ennes se apoiam nas propostas da Escola de Antropologia de Paris para dar
teórico — encontra-se concentrado em três grupos de mitos. Se bem que estes não ao discurso colonialista uma justificação científica, o que, no caso de Ennes, é reforçado
estejam muito afastados das ideologias coloniais europeias — é esta homogeneidade dos pela experiência do terreno moçambicano. Não há nada de surpreendente, por isso
discursos coloniais que os tornou eficazes durante tanto tempo — apresentam, apesar mesmo, nas reaparições constantes deste tipo de discurso, sempre que o país sente a
de tudo, algumas formas autónomas, cuja força pode ser medida pela sua duração, necessidade de rever a sua política colonial (25).
capaz de resistir à desaparição da própria dominação colonial. 2) A segunda ideia é a da missão específica que cabe aos Portugueses, cujo
O primeiro grupo de mitos é caracterizado por duas ideias centrais que, solidificadas «espírito» permite o alargamento contínuo das «conquistas», ao mesmo tempo que
nos fins do século XIX, se mantiveram operatórias durante a primeira metade do século XX: contribui para a solidificação do Império. Os Portugueses, colonos, religiosos, militares,
são nada menos do que «os Santos que vão avançando para darem ao gentio o pão do
1) A superioridade racial do homem branco que é também a do civilizado. Esta Espírito» (26).
superioridade existe de maneira intrínseca, sendo reforçada pela inferioridade absoluta Os direitos dos Portugueses são, por esta via, instalados tanto na história como
do homem negro. Este não passa de um enselvajado permanente. Se o primeiro detém numa certa mística, cujo carácter religioso se torna a partir daí indiscutível. Trata-se
o progresso, o conhecimento, a razão, tudo isto justificado pelo discurso histórico, é de um registo assaz novo, mesmo que os Portugueses nunca recusem os alicerces
para que o segundo apareça como um oposto absoluto (não se trata de um negativo, religiosos das suas operações de conquista e de colonização. É todavia Henrique de
na medida em que este contém o Outro em positivo. De facto, a oposição articula-se Paiva Couceiro, governador de Angola de 1907 a 1909, que leva mais longe esta
em função de uma impossibilidade de conjunção que coloca os homens em posições maneira de classificar o colonialismo português, despojado durante algum tempo das
petrificadas no espaço e no tempo), não apenas feio, mas também enterrado na natureza, suas preocupações materiais (27).
Foi sobretudo após a implantação da ditadura militar (1926), que engendrou o
quer dizer, passivo e adormecido. A sua extrema selvajaria não lhe permite organizar
Estado Novo (1933), que a ideia de missão civilizadora, pela via da assimilação, se
nem religião nem formas políticas, ainda menos a História. Esta, como salientava tão reforça para justificar a colonização portuguesa em África. Estima-se, por um lado, que
rudemente Hegel, não passa da soma dos incidentes quotidianos, o que é constantemente este processo de assimilação dos Africanos levaria muito tempo, devido precisamente
repetido pelos textos portugueses. ao seu atraso em relação à civilização, de acordo com as afirmações extremamente
Oliveira Martins, certamente o representante mais brilhante do darwinismo social violentas do professor Armindo Monteiro, ministro das Colónias, em 1935: «não
em Portugal ( 20), aceita e desenvolve a ideia, em 1880, de que «um tipo superior [de imaginemos que é possível a brusca passagem das suas superstições para a nossa
raça] repele e acaba por exterminar o inferior, porque a vida natural é uma luta civilização (...) É impossível que, de um salto, eles [os Africanos] transponham esta
constantemente devoradora» (21 ). Recorrendo aos resultados pedagógicos fornecidos distância de séculos» (28).
pelas escolas mistas dos filantropos da Nova Inglaterra, Oliveira Martins salienta que A ideia mantém-se e reforça-se nos finais dos anos 50, no momento em que a maior
«as crianças de cor jamais vão além de um limite de desenvolvimento intelectual que parte dos observadores não pode recusar a necessidade de definir, de maneira diferente,
é o limite constitucional da raça». Desta forma «a ideia de uma educação dos negros as práticas políticas africanas. O próprio Salazar mete a colherada nesta papa ideológica,
é, portanto, absurda, não só perante a História, mas também perante a capacidade num discurso de 1957, para afirmar que «nós cremos que há raças, decadentes ou
mental dessas raças inferiores» (22). atrazadas, como se queira, em relação às quais perfilhámos o dever de chamá-las à
Alguns poucos anos mais tarde (1899), António Ennes, que fora comissário régio civilização» ( 29). Se esta afirmação não contém nada de verdadeiramente novo, já o
em Moçambique, encarregado de elaborar um relatório consagrado ao «trabalho indígena»
nas colónias ( 23), põe em evidência, de maneira abrupta, a dicotomia primitivo/civilizado. Id., ibid., pp. 26-33
Ver, por exemplo, Cunha Leal, 1961, pp. 48-49.
Id., ibid., p. 88.
Couceiro, 1910.
Ver Alexandre, 1979, pp. 209-210. Monteiro, «Directrizes duma política ultramarina». Discurso proferido em 1 de Junho
Martins, 1953, p. 257. de 1933 na Sessão inaugural da 1.' Conferência dos Governadores Coloniais, in Monteiro, A., Para uma política
Id., ibid., pp. 261-265. imperial, S / d (1933?), pp. 108-109.
Ennes, António, «Relatório da Comissão encarregada de dar parecer sobre o trabalho indígena», «Discurso proferido por sua Excelência o Presidente do Conselho, em 1 de Novembro
in Antologia colonial portuguesa, Lisboa, 1946, vol. 1 e único, pp. 23-55. de 1957, ao microfone da Emissora Nacional». Publicado in SALAZAR, 1957, p. 10.

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momento em que é pronunciada parece fundamental, pois que a África se encontra em A primeira serve para pôr em evidência o papel pioneiro dos Portugueses nas
toda a parte na véspera das independências. Salazar decidia em favor da única operação tarefas europeias das descobertas. Portugal, que «deu novos mundos ao mundo» (34),
possível do ponto de vista dos Portugueses: prosseguir aquilo a que se dava o nome «conseguiu contagiar os [seus] vizinhos espanhóis» para uma empresa semelhante e
de «esforço civilizador», já que os Africanos continuavam a manter-se fiéis à sua atrair a atenção dos «Ingleses, amantes da obra feita, (...) [para] os melhores pontos
selvajaria. estratégicos», descobertos pelos Portugueses, com o objectivo de os ocupar «à surrelfa
Um dos autores, que melhor mobilizaram todos os recursos do discurso colonialista para más tarde os utilizarem na construção de um gigantesco Império» (35), merecendo
obcecado pela selvajaria do Outro, foi Cunha Leal, um homem político dos mais activos assim o reconhecimento e os aplausos da Civilização.
da 1.a República e que nunca se calou durante a 2.a (30). Possuindo uma experiência A segunda «verdade», cuja articulação íntima com a primeira não pode ser
angolana, embora limitada, pois que participara, graças ao seu estatuto de engenheiro dissimulada, alimenta-se da presença multissecular dos Portugueses em África: «nós
militar, na construção dos caminhos-de-ferro (31), este republicano manteve-se, durante estamos em África há cinco séculos». Esta certeza, falsamente histórica, mas inteiramente
toda a sua existência, um dos teóricos colonialistas mais puros e mais duros da vida ideológica, caracterizou as escolhas políticas portuguesas durante as operações de
portuguesa. A justificação da autoridade portuguesa, mesmo que mergulhe na duração guerra e permitiu a difusão até à banalização de uma espécie de hino à colonização
histórica dos «descobrimentos», apoia-se sobretudo na condição enselvajada dos Africanos. portuguesa em Angola (36). As colónias portuguesas tinham a sua «origem (...) no
Com efeito, só as intervenções dos Europeus serão capazes de eliminar o «canibalismo», fenómeno dos Descobrimentos próprios, ao invés do que aconteceu (...) com as
assim como a «nudez», sem esquecer a necessidade de irradicar a «doença do sono» arquitecturas imperiais exóticas da Inglaterra e da França» (37); o tempo tornara-se,
e de liquidar os «feiticeiros» (32). A confusão dos valores no discurso (1961) de Cunha desta maneira, o pilar da razão histórica da dominação.
Leal é reveladora das incertezas teóricas e das insuficiências de informação dos
colonialistas (33). O terceiro grupo dos mitos alimenta-se destes elementos sócio-históricos, ou que
É de resto a posição de Cunha Leal que permite melhor dar conta da importância do tal se pretendem. E reforçado pela intervenção das teses de Gilberto Freyre.
segundo grupo de mitos, resultando dos choques que abalaram muitas certezas portuguesas A partir do século XIX, os Portugueses tinham insistido no carácter muito excepcional
nas relações com a comunidade internacional. Se Cunha Leal insiste em repetir a selvajaria da colonização portuguesa, mas esta leitura das relações entre os Portugueses e os
inata dos Africanos, é para convidar os agentes portugueses a afirmar com força, ou Africanos foi revista em alta pelos Brasileiros. Estes estavam perante a obrigação de
mesmo paixão, os direitos específicos dos Portugueses, os únicos capazes de bem os definir — ou seja, de alargar — o lugar que convinha aos afro-brasileiros que, até hoje,
«civilizar». formam a parcela demográfica mais importante da população do Brasil. Esta questão
Este segundo grupo de mitos fornece à historiografia colonial portuguesa, que se mobilizou a maior parte dos teóricos da nacionalidade brasileira, mas coube a Gilberto
estrutura a partir do século XIX, duas «verdades» tão simples como vigorosas, e que Freyre a criação da noção de luso-tropicalismo, destinada a designar o que seria o
parecem repelir a menor possibilidade de ser discutidas: carácter colonial dos Portugueses, os quais, para colonizar, teriam renunciado «ao
gládio e à cruz, para recorrer apenas ao sexo» (38).
Freyre, que manifestara a sua repulsa perante o regime português nos anos 1945, foi
seduzido por Salazar por volta dos anos 50, fazendo então elogios exaltados à acção
colonial portuguesa. Os Portugueses teriam sabido criar um acordo perfeito com os grupos
de «cor», dando nascimento a situações novas nas colónias, caracterizadas por uma
A convergência registada nestes discursos prova a uniformidade do discurso colonial português.
«unidade psicológica e de cultura» inédita (39). Nos anos 60, Gilberto Freyre reforça
Referência ao caminho-de-ferro que ia de Moçâmedes a Sá da Bandeira (Lubango).
estas teses — e os elogios da colonização portuguesa —, procurando na história da
Leal, 1961, p. 49.
Trata-se de uma confusão que caracteriza o discurso colonial da época. É evidente que o expansão portuguesa os argumentos destinados a justificar as suas afirmações (40).
canibalismo não pode, a não ser artificialmente, ser incluído na categoria a que pertence a nudez. As
doenças, entre as quais as pneumonias, resultantes da nudez, devem ser classificadas alhures, não
«Novos mundos ao mundo irão mostrando...», Camões, Os Lusíadas, canto II, estrofe 45,
esquecendo, do mesmo modo, que a «feitiçaria» é na maior parte dos 'casos uma pura invenção dos
europeus que desconfiam das cerimónias mais ou menos rituais associadas aos diferentes registos do aforismo banalizado pelo Estado Novo.
conhecimento, mais particularmente os da medicina, os nganga. Leal, 1961, p. 43.
Acrescente-se que Cunha Leal está longe de ser o primeiro português a enfurecer-se perante a Um estribilho assaz pouco musical repetia: «Angola é nossa, é nossa, é nossa...», de maneira
obcessiva, até ao delírio. Trata-se da busca de um ritmo encantatório, para levar os Portugueses a aceitar
intervenção dos nganga, assim transferidos para o registo difamatório e perigoso da feitiçaria. Mas,
sobretudo, a maneira furiosa como Cunha Leal dá conta dos obstáculos africanos levantados diante da esta «verdade eterna». O disco sobreviveu à independência, e os nostálgicos do Império conservaram-
potência colonizadora deriva de um certo ressentimento. O técnico, o homem político e, eventualmente, -no e ouvem-no de quando em vez, para recordar os grandes dias do passado.
o humanista torna-se intransigente perante a dificuldade de levar os Angolanos para os espaços culturais Leal, 1961, p. 58.
e políticos que, do seu ponto de vista, lhes devem convir melhor. O paternalismo enxofrado de Cunha Recorro à bela síntese de Roger Bastide, 1971.
Leal indigna-se perante os «infantilismos» culturais e sociais dos Africanos, sabendo embora que não Freyre, 1940, pp. 45-57.
(40) •ia 1961, p. 278.
lhes poderá pôr termo.
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O segundo aspecto deste terceiro grupo mantém uma relação apertada com o luso- por meio do recurso ao trabalho forçado ou constrangido. A legislação portuguesa de
-tropicalismo, embora apresente uma diferença muito nítida. Se o luso-tropicalismo se 1899 (46) estrutura-se em função desta ideia central, apresentada de maneira dissimulada
prova pela multiplicação dos mestiços, esta segunda maneira de encarar as acções para escapar ao controlo e à eventual censura das nações «civilizadas».
coloniais portuguesas encontra a sua razão de ser na ausência de sentimentos e de A teoria central decompõe-se em duas partes:
práticas racistas por parte dos Portugueses. Esta situação permite salientar a existência
de uma nação grande e unificada «do Minho a Timor» ( 41 ), pois o mecanismo da Aos Europeus cultos, só se podem reservar os lugares de comando e de direcção,
assimilação assegura a homogeneidade dos homens e das culturas. Semelhante operação levando os Africanos até à civilização pela via do trabalho forçado, tanto mais que as
evidencia a ausência de qualquer preconceito racial ( 42) nas práticas coloniais e características naturogeográficas africanas, em particular o clima, não permitem que os
civilizacionais portuguesas, completando o leque das legitimações dos Portugueses para Europeus exerçam, como trabalhadores, actividades agrícolas ou outras (actividades
conservarem as possessões africanas e dominar as suas populações. extractivas);
Ao invés, os Africanos, cuja preguiça é muito simplesmente congénita, não
dispõem de qualidades intelectuais para assegurar a modernização e o desenvolvimento
II. A visão e a dominação dos Africanos da África: estão assim destinados pela própria «história natural» a transformar-se em
exército de trabalhadores de que têm necessidade os Europeus. E isto porque ninguém,
Se em 1954, as teses luso-tropicalistas estavam já na moda entre os responsáveis nem preto nem branco, pode negar que o trabalho constitui «para todos e para cada
políticos de Portugal, um antigo governador-geral de Angola, Vicente Ferreira, exprimia
um, um dever social» (47).
de maneira decidida a visão dos Africanos, banalizada então na sociedade portuguesa:
«Os chamados «indígenas civilizados», como todos os sociólogos colonialistas (43) Esta teoria encontra-se confirmada e reforçada por uma segunda, a da assimilação.
têm reconhecido, não passam, em regra, de arremedos grotescos de homens brancos. Dado que os Africanos não possuem nem nação, nem Estado, nem religião, nem línguas
Salvo raras excepções (...), o «indígena civilizado» conserva a mentalidade do primitivo, estruturadas, nem regras sociais e familiares convenientes, é preciso agir de maneira a
mal encoberta pelo fraseado, gestos e indumentária, copiados do europeu» (44). levá-los a assimilar os valores do colonizador. O objectivo é o de assegurar a mutação
O autor salienta desta forma o carácter primitivo dos Africanos, mesmo quando estes dos Africanos, que devem tornar-se teoricamente portugueses como os naturais brancos
conseguem obter a situação ou o estatuto de assimilados. Esta maneira de dizer apoia-se
da metrópole (48).
na convicção de uma diferença cultural reforçada por uma herança genética singular. Estas maneiras de encarar os Africanos e as tarefas da colonização impõem uma
Retenhamos, por isso, o indispensável: o colonialismo português não encarava pergunta: como agir para que a África, e mais particularmente Angola, renuncie à sua
nenhuma técnica capaz de assegurar a passagem do «primitivo» ao «civilizado». Era
selvajaria fundamental? Só há um caminho: a redução dos Africanos a uma situação
quase necessário preservar as características essenciais da «selvajaria», de maneira a
de dominação sem qualquer dissimulação, ao mesmo tempo que o colonizador se orienta
manter sem dificuldades uma dominação eficaz. Uma das constantes do colonialismo
para conseguir substituir as populações africanas por europeias. A ambiguidade da
português, largamente partilhada pelos Europeus, afirma que os Africanos são pregui-
assimilação irrompe na sua total ferocidade: deve agir-se de tal modo que os Africanos
çosos ( 45). Não podem, por isso, participar na construção da África moderna, a não ser só assimilem alguns valores europeus, os do trabalho, quer dizer, aqueles que justificam
a sua própria dominação (49).

Esta frase, que se banalizou a partir de 1961, serve para exacerbar as opções colonialistas
portuguesas, no momento em que a África era agitada pelos movimentos de independência. Em 1963, Trata-se da legislação referente ao trabalho obrigatório dos Africanos, elaborada com base no
Salazar continuava a afirmar que Portugal era uma «nação pelo mundo repartida». relatório apresentado ao governo por António Ennes, em 1899, que fora encarregado de uma missão de
Freyre, 1963, p. 45; Leal, 1961, pp. 59 e 63. estudo da questão na então colónia de Moçambique.
Não podemos furtar-nos a mostrar a nossa surpresa perante esta referência aos «sociólogos Leal, 1961, p. 67.
colonialistas», num país onde não só não havia ensino especialmente consagrado à sociologia, mas Algumas cláusulas destinadas a permitir que os Africanos pudessem adquirir o estatuto de
também onde o recurso às ciências humanas para organizar o sistema colonial era considerado como um assimilado servem para assinalar a importância pragmática destas mudanças. O assimilado deve morar
luxo, demasiado dispendioso, quando não encarado como simples operação de carácter subversivo. Só numa casa mobilada à europeia e renunciar à cozinha africana. O escritor Raul David deu conta da
os especialistas da Antropologia Física interessavam as autoridades coloniais, pois deles se esperava a violência desta operação: «... agente da autoridade... ia a casa da pessoa ver se ela tinha móveis, como
prova da selvajaria definitiva dos Africanos, tal como ela fora proposta por Mendes Corrêa, em As raças é que se alimentava — se se alimentava somente à base de alimentação indígena, então não tinha
do Império, Porto, Portucalense Editora, 1943. deixado os hábitos e costumes». Ver Michel Laban, Porto, 1991, I, p. 57.
Ferreira, 1946, p. 260. O texto citado na nota anterior, de Raul David, dá conta das estratégias dos dois grupos,
(45) Ver, por exemplo, Silva Rego, 1956-1957, p. 203, que afirma que «era conhecido o horror do procurando os Europeus restringir, recorrendo a qualquer tipo de violência, os projectos dos assimilados.
preto pelo trabalho». Ver, a este respeito, Henriques, 1990 a. Ver, também, a entrevista de Arlindo Barbeitos, in Laban, 1991, II, pp. 519-670.

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De facto, esta situação apresenta alguns aspectos mais complexos: a propriedade Os responsáveis portugueses, por mais divididos que se encontrem no que respeita
colectiva da terra tornava impossível a sua rendibilidade, na visão europeia. As terras, às escolhas políticas na metrópole, parecem esquecê-las quando se trata de assegurar
declaradas «vazias» ou não utilizadas, podiam, graças a este mecanismo simplista, ser a gestão das colónias. Os governos republicanos tomaram logo nos primeiros anos de
assim ocupadas pelos Europeus ou recuperadas pelo Estado. Os Africanos perdem, gestão as medidas destinadas a confrontarem o conhecido «bom-senso» colonial português.
pouco a pouco, os seus direitos sobre as terras ancestrais, nas quais se transformam Começaram por criar o Ministério das Colónias (1911), que veio libertar estes territórios
em trabalhadores, de tal maneira que os neoproprietários europeus possam alcançar a da tutela do Ministério da Marinha. Esta primeira grande medida é reforçada pela
autonomia económica, senão mesmo a riqueza. publicação da Lei Orgânica das Províncias Ultramarinas (expressão que substitui o
Enfim, último elemento teórico: é preciso evitar que os Europeus se deixem seduzir morfema colónias) (1914) que acompanha a revisão do estatuto dos Africanos. A partir
pelos valores africanos, a ponto de renunciarem às práticas europeias. Essa situação só de 1911-1912, várias comissões ligadas à Sociedade de Geografia de Lisboa estudam
pode provocar o seu enselvajamento, a que se deu o nome de cafrealização (50). É certo os meios mais eficazes para obrigarem os Africanos a trabalharem no quadro colonial
que os Portugueses já tinham denunciado os riscos provocados por esta situação no (51). Em 1913, o imposto transformou-se no instrumento de coerção colonial mais eficaz
século XVII, mas o próprio carácter precoce da denúncia sublinha a força destes valores para reduzir a autonomia africana face ao poder português (52). Foi realmente o major
negativos capazes de arrastar os Brancos, contudo, congenitamente «civilizados» para Norton de Mattos, então governador de Angola (1912-1915) (53), quem compreendeu
as práticas marcadamente selvagens. a importância política do imposto. Sendo um dos raros dirigentes do aparelho colonial
português a encarar os Africanos com menores preconceitos, o que lhe permitiu criticar
Esta visão do Outro adequava-se perfeitamente às necessidades do sistema colonial as ideias portuguesas a respeito da preguiça dos Africanos, sublinhando que «toda esta
do século XX, o qual não pode furtar-se à obrigação de reconsiderar o lugar que devem riqueza (...) num valor de 3 milhões de contos da nossa moeda actual [o autor refere-
-se às toneladas de borracha] [é] produzida pelo trabalho dos indígenas» (54), o major
ocupar os Africanos no quadro colonial.
A primeira fase deste novo sistema prolongou-se até 1926. É caracterizada por uma considera o imposto como «o acto final da ocupação, pacificação e administração das
situação de incertezas e de imprecisões, de passos para a frente e de recuos, que são regiões do interior» (55), quer dizer, da dominação dos Africanos.
Neste território «pacificado», a política colonial portuguesa centra-se na
devidos a um leque de factores assaz importante:
questão da «colonização étnica», destinada a reforçar a presença dos Europeus em
A instabilidade política portuguesa, agravada pela proclamação da República África, em quantidade suficiente para deslocar o eixo social. Era necessário
— Outubro de 1910 —, que impõe a necessidade de uma revisão da polftica colonial. que, em Angola, este espaço onde a vida era, no século XIX, «uma luta contínua com
A dificuldade em organizar uma exploração económica racional das colónias, a doença e com a morte» (56) se transformasse num território povoado por uma maioria
dadas as incertezas da própria economia portuguesa. branca, penhor desta «portugalização» tão apaixonadamente desejada (57).
A resistência africana à ocupação lusa obrigou as autoridades portuguesas a O crescimento demográfico dos Europeus, aumentando o número de mulheres
consagrarem homens e capitais à tarefa das «campanhas de pacificação». Estas campanhas brancas, havia de permitir reduzir, ou até mesmo eliminar, a produção de mestiços, uma
foram mais demoradas do que se previra e prolongaram-se até aos anos 1920. De resto, das chagas denunciadas directa ou implicitamente em numerosos textos do período que
a própria necessidade de ocupar pela força e de proceder à «pacificação» põe em analisamos. Ferreira Diniz, «Secretário dos Negócios Indígenas e Curador Geral da
evidência a maneira como os Africanos podiam controlar os seus espaços, reduzindo Província de Angola», afirma em 1918: «Não convém deixar de frisar quanto pernicioso
os Portugueses ao papel de intrusos indesejáveis e indesejados. tem sido o cruzamento da raça branca com a negra, e quanta vantagem havia em
Não esquecendo a maneira como os Alemães, tanto em Angola como em
Moçambique, manifestam o seu apetite pelos territórios «controlados» pelos Portugueses.
Em Angola, os Alemães não hesitam em apostar na reconstituição da unidade do reino Capela, 1977, pp. 84-86.
Ovambo, partilhado pelas fronteiras políticas, resultando das ocupações «efectivas» que O principal relator da comissão encarregada de estudar a questão afirma sem a menor titubeação
ser necessário «obrigar, pelos impostos directos, os indígenas das colónias a trabalhar para poderem pagar
foram levadas a cabo após a Conferência de Berlim. o imposto, criando-lhe tanto quanto possível necessidades que só pelo trabalho assíduo possam satisfazer»,
Capela, 1977, p. 85.
Trata-se do primeiro governo de Norton de Mattos.
Mattos, 1944, vol. II, p. 252. Ver, também, pp. 290-292.
Id., 1953, p. 167.
Lima, 1846, I parte, p. 206. Ver, também, Quarenta e cinco dias de Angola..., 1862, p. 87.
(50) A cafrealização parece-nos um neologismo indispensável. Esta operação era muito receada pela (57) Estes projectos foram em parte contrariados pelos próprios portugueses, que continuaram a emigrar
administração portuguesa, segundo Margarido, 1980. Ela é muitas vezes descrita como uma estratégia utilizada preferencialmente para o Brasil, mas também, entre 1920 e 1930 para a Europa, que pedia força de trabalho
pelos colonos portugueses, tanto em Angola como em Moçambique. Ver, também, Raul David, o. c. para reconstruir os países feridos pela guerra, ao mesmo tempo que recusavam os territórios africanos.

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promulgar medidas que tivessem por fim dificultar semelhantes ligações. Destas ligações a qualidade «portuguesa» do território, o comandante não hesitava em pôr em evidência
não tem resultado senão o definhamento da raça negra, como bem contestado está nos o carácter retardatário do sistema económico da colónia.
indígenas das tribus que povoam as regiões de mais intensa ocupação [branca] e em A observação do militar é significativa, pois mostra a insatisfação dos especialistas
que se deram maiores cruzamentos. Estas populações são de constituição raquítica e de das colónias perante um arcaísmo que parece cada vez mais difícil de aceitar. Ora, os
uma indolência doentia, que contrasta com a robustez das populações circunvi- militares conspiravam já, pelo menos desde Abril de 1925, para levar a cabo uma nova
zinhas (...). Nestes termos, torna-se urgente proibir (...) as ligações legítimas dos indivíduos operação destinada a tomar posse do Estado. Tendo falhado este desígnio várias vezes,
das duas raças» (58). a partir de 1917 ( 61 ), os militares não renunciam aos projectos da instauração de uma
Não podemos esquivar-nos a fazer um curto comentário à singularidade teórica ordem forte que a Europa parecia então apreciar muito.
deste texto, que não foi traduzido em medidas administrativas, pois se vê mal como é A proclamação da ditadura militar, a 28 de Maio de 1926, permite uma reforma
que Norton de Mattos podia subscrever um projecto deste carácter. Mas ele descentra rápida da política colonial ( 62). Se não rompe com a tradição da administração colonial,
de maneira assaz hábil a análise tradicional: não são os Brancos que se devem considerar reforça as tendências para a exploração sistemática dos trabalhadores africanos. A
como as vítimas da mestiçagem: os resultados negativos que esta acarreta são inteiramente ditadura — que vai durar até 25 de Abril de 1974 — não rejeita, de maneira nenhuma,
suportados pelos Negros, cuja fraqueza congenital é desvendada e reforçada pelo as medidas tomadas pela 1. a República (1910-1926), mas procura essencialmente torná-
cruzamento com os Brancos. Para assegurar a manutenção da robustez dos Africanos -las mais eficazes, primeiro, em termos económicos, em termos políticos logo a seguir.
é necessário que os Europeus sejam impedidos de toda e qualquer relação genésica com A publicação do Acto Colonial em Julho de 1930 ( 63 ), que foi mais tarde integrado
as mulheres negras. Quão longe se estava então do sonho luso-tropicalista! na Constituição plebiscitada em 1933, apura as condições da gestão colonial portuguesa.
Estas inquietações genésicas só podem explicar-se na medida em que o projecto de De resto, nesse mesmo ano, Salazar afirma que Portugal assumia a tarefa de salvaguardar
uma Angola exclusivamente portuguesa, inteiramente branca pois, percorre incansa- os interesses das «raças inferiores», sem esquecer de assinalar que um dos feitos mais
velmente o sistema colonial português. Em 1923, Brito Camacho — médico de formação, ousados da colonização portuguesa fora o de colocar as populações indígenas sob a
não o esqueçamos —, sublinha o carácter eminentemente «português» de Angola (59), influência do cristianismo (64).
quando aí passou a caminho de Moçambique, onde ia ocupar o elevado cargo de alto- As declarações reiteradas dos homens que tinham a seu cargo a gestão da política
-comissário da República. Uma disjunção subtil aparece no interior da falsa unidade colonial nos anos 1930, se são forçadas a minimizar os efeitos da crise mundial, devem
também, num movimento complementar, assegurar os meios de sobrevivência económica
colonial para fazer de Angola o país português de África, ao passo que Moçambique
dos colonos. Os efeitos da crise parecem drogar os gestionários, o que explica que as
estaria já em via de cair numa situação ambígua, em todo o caso menos portuguesa.
opções da política colonial insistam tanto na inferioridade congenital dos Africanos.
É todavia conveniente não nos deixarmos arrastar por estes momentos de lirismo
patriótico. Em Janeiro de 1926, o comandante Leite de Magalhães afirmava que «Angola
só abandonou o seu estatuto de entreposto há muito pouco tempo, para se transformar
numa colónia mista de exploração e de plantações» ( 60). Se Brito Camacho celebrava O ditador Sidónio Paes foi assassinado na Estação do Rossio, em Lisboa, por um antigo
sargento do Exército. Esta morte assinala o fim dos sonhos da direita clerical e monárquica, que
multiplicou as tentativas de recuperação do poder, que provocaram a insurreição monárquica de 1919
(a famosa Traulitana).
Mais tarde, este projecto de «branquização» de Angola levou a administração portuguesa a criar os A partir de 1926, começa uma nova fase caracterizada por importantes medidas destinadas
«colonatos», destinados a fixar os colonos em terras de onde tinham sido excluídos os Africanos. É certo a assegurar a estruturação do sistema colonial português. Esta revisão agrava as contradições entre o
que estes participavam na preparação das terras, tal como trabalhavam na construção das casinhas discurso do poder, instalado na Europa, e as práticas dos colonos. Mau grado isso, apoiando-se nas
«familiares» destinadas aos colonos brancos, mas eram, uma vez acabada a obra, evacuados, para que os medidas tomadas pela República, a ditadura militar conseguiu sistematizar os princípios que, durante
camponeses portugueses pudessem assegurar as tarefas da produção, sentrecorrer ao trabalho africano. O algumas décadas, permitiram assegurar a gestão das colónias. Em 30 de Julho de 1930, Salazar apresentou
colonato da Cela foi o mais conhecido, dando corpo ao sonho exacerbado de uma Angola exclusivamente ao país os «Princípios fundamentais da nova ordem das coisas», onde a questão colonial adquire a função
branca e portuguesa. O ministro Adriano Moreira teve, alguns anos mais tarde, o mesmo sonho: importar,
de eixo central da sua política. Ver Salazar, 1933, p. 9.
a partir de 1962, tanto os «pieds-noirs» franceses, escorraçados da Argélia, como os gregos, para aumentar
Contrariamente à lenda organizada pelo aparelho político da ditadura, o Acto Colonial não foi
a taxa de ocupação branca, a única capaz de assegurar a presença e a dominação portuguesas. O fracasso
redigido pelo Prof. Oliveira Salazar, nem provavelmente a ideia lhe pertence. Em 1932, numa obra
destas duas tentativas de «branquização» não reduz, de maneira alguma, a força do mito branquizante, que
devia permitir a exclusão dos Africanos do seu próprio território. Este projecto supera até os valores correntes demasiado esquecida, Nacionalismo Português, Avelino Quirino de Jesus publicou os decretos mais
do «apartheid» sul-africano, forçado a tolerar a coabitação com Africanos. Ver, sobre esta questão, Pélissier, tarde adoptados e assinados pelo Prof. Salazar. Antigo jesuíta, especialista das questões africanas,
1978, 1' parte, cap. I. Quirino de Jesus foi durante algum tempo colaborador da Seara Nova, revista que se tornou, após o
Diniz, 1918, p. 593. fracasso do contragolpe de Estado de 5-7 de Fevereiro de 1927, a expressão teórica de um grupo que
Camacho, 1923, p. 65. tentou organizar a oposição à ditadura.
(60) Magalhães, 1926, citado por Capela, 1977, p. 84. Salazar, 1939, p. 177.

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Afinam-se as técnicas de controlo de tal maneira, que é possível sentir nelas a força consolidação de empresas e de indústrias no quadro de uma economia que não se limita
de gravidade da influência sul-africana: «caderneta indígena» (cópia do «pass» dos Sul- a encarar a substituição das importações, mas integra as possibilidades de abastecer os
-Africanos), proibição das viagens sem autorização prévia, expropriação das terras, mercados dos países limítrofes.
trabalho forçado ou obrigatório (65), imposto indígena, inibição de actividades económicas Deve contudo notar-se que estas novas orientações dadas à economia não põem
independentes, castigos físicos, limitação ou mesmo proibição de frequentar certos termo às técnicas de pilhagem que, desde sempre, tinham caracterizado as relações dos
espaços recreativos, eis o painel das medidas tomadas para garantir o carácter estanque portugueses com o território e as populações angolanas:
da fronteira física e cultural que devia separar os Europeus dos Africanos, os Brancos
A apropriação de uma parte, sempre mais importante, da produção agrícola
dos Pretos, para sermos somaticamente mais precisos, ou para ficar na esteira desta
africana pelo comércio local. Se os Africanos são os produtores forçados de um certo
partilha desigual da África. tipo de bens agrícolas, esta produção não é destinada a satisfazer os mercados e as
De resto, a partir de 1933, são elaborados documentos oficiais para impor aos necessidades nacionais angolanos, mas sim para saciar as exigências dos portugueses,
professores primários — em Portugal — as matérias, os princípios teóricos e os que querem responder à procura do mercado nacional metropolitano, assim como afirmar-
métodos do ensino primário. O documento central, publicado em 1934, carrega um título -se nos mercados mundiais. Estas produções são quase todas recuperadas pelos pequenos
esclarecedor: a formação do espírito colonial na escola primária portuguesa (66). O comerciantes brancos disseminados no mato, e circulam graças à prática da permuta
Estado procura definir o que deve ser ensinado, nos registos da «moral e da educação directa com os Africanos. Trocam-se produtos agrícolas por manufacturados, mercê de
cívica», da «língua», da «história» (67), da «geografia», não esquecendo a «aritmética taxas verdadeiramente de usura, o que permite, às vezes, lucros de 500 a 1000 %. O
a geometria», matérias «que muito poderão contribuir para a formação do espírito comércio de exportação continua inteiramente dominado pelos brancos, como de resto
colonial (...) cujo desenvolvimento na mocidade portuguesa se reconhece urgente». Estas sempre aconteceu.
matérias constituem «poderosos auxiliares para a recapitulação e a fixação da história A existência de grandes plantações, algumas das quais propriedade de estrangeiros
da geografia do Império colonial (...) [não esquecendo] o estudo prático de quanto — quer dizer, brancos não-portugueses —, trabalhadas exclusivamente pelos africanos,
interessa à vida das colónias» (68). Este documento limita-se a pôr em evidência um dos arrancados às suas terras, muitas vezes após a sua recuperação pelo Estado, por via dos
projectos mais característicos da ditadura militar, que pretende de certa forma Serviços de Agricultura e pelos colonos europeus. Uma parte dos salários, adquiridos nestas
«ultramarinizar» o espírito dos jovens alunos — a matrícula «obrigatória» nas escolas actividades, devia ser consagrada ao pagamento do imposto, podendo a fuga a esta exigência
primárias fazia-se então aos sete anos de idade —, para reforçar o sentido e o peso do fiscal acarretar a prisão e a condenação aos trabalhos públicos forçados (70).
projecto colonial.
Esta política colonial visava o crescimento económico da colónia, num duplo
Estas modificações da política dos homens, na gestão das organizações sociais, são registo: o primeiro era destinado a dar satisfação aos diferentes estratos da burguesia
contemporâneas da modificação profunda das práticas financeiras. Só após o fim da branca, que adoptava, contudo, um projecto económico assaz reduzido, que quase nunca
ultrapassava a visão medíocre das burguesias portuguesas. O segundo estava associado
Segunda Guerra Mundial, Angola começou a conhecer um aumento relativamente
aos interesses da metrópole portuguesa, que esperava das colónias não só mercados,
considerável de capitais importados do exterior, ocupando os capitais não-portugueses
mas também compensações financeiras, destinadas a equilibrar uma balança de
um lugar importante no novo dispositivo económico. É todavia conveniente salientar que
pagamentos em constante equilíbrio instável (71).
só a guerra de guerrilha foi capaz de convencer o governo central a modificar as Se até 1961 o edifício colonial assentava inteiramente na exploração dos Africanos,
restrições impostas à circulação dos capitais estrangeiros o que alterou profundamente obrigados a trabalhar em condições extremamente destruidoras, a guerra de guerrilha
panorama económico de Angola. interrompeu duramente o sonho português. A explosão de uma vontade nacionalista
Estes investimentos destinaram-se, principalmente, às actividades extractivas — angolana foi reforçada pelas intervenções da comunidade internacional, que se tornara
ferro, cobre, manganésio, petróleo, diamantes — assim conp ao desenvolvimento das deveras sensível às violências praticadas pelos sistemas coloniais. Face a esta vaga de
infra-estruturas ferroviárias e rodoviárias indispensáveis aos transportes para a costa reprovações, o governo português adoptou uma política de soberba indiferença: «estamos,
inversamente (69). Sendo todavia certo que se verificaram também a criação 'e a ficaremos orgulhosamente sós», afirmava Salazar, perante os aplausos de uma parte
importante da população portuguesa.

Ver Carreira, 1977.


(A) Formação do espírito colonial..., 1934. Convém lembrar que este sistema, que mais tarde se banalizou, foi experimentado primeiro
Id., ibid., p. 33. em S. Tomé e Príncipe, tendo as duas ilhas servido, uma vez mais, de laboratório, entre os anos 1860
Id., ibid., p. 17. e 1880.
(69) Torres, 1991, cap. 2, 3 e 6. Ver Torres, 1991, cap. 6.

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Tal não impediu, sobretudo sob a impulsão do ministro das Colónias, Prof. Adriano uma sólida unidade nacional — que reduz a importância dos choques entre a «situação»
Moreira, a multiplicação de leis, decretos, discursos, proclamações e demais objectos e a «oposição» — face a este Outro que procura, mas em vão, repelir a selvajaria que
retóricos, destinados a reforçar a ideia de que Portugal era uma nação multirracial, que lhe impõem os portugueses.
jamais procurara explorar a África e os Africanos. Na óptica de Adriano Moreira, que O facto de a colonização portuguesa ter recorrido essencialmente a «brancos pobres
assim confirmava as escolhas teóricas do presidente do Conselho de Ministros, Oliveira ou modestos» que, na maior parte dos casos, não possuíam nem capitais nem uma
Salazar, Portugal sempre ajudara o continente negro a sair do estado primitivo em que grande competência técnica, reforça a importância desta condenação. Ela só podia
tinham encontrado os primeiros portugueses que desembarcaram na costa ocidental tranquilizar, dando aos europeus um lugar hiperdominador, que nenhum africano podia
africana (72). contestar. A colonização portuguesa, que assentava no recrutamento dos europeus
Em 1967, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, pronunciou pobres, a maior parte dos quais oriundos do campo e portadores de valores camponeses
um discurso onde estão concentrados todos os narizes-de-cera capazes de justificar a arcaicos, não podia, por isso, interessar-se por um qualquer conhecimento científico do
colonização portuguesa: «... fomos nós, e nós sós, que trouxemos à África antes de Outro.
ninguém a noção de direitos humanos e de igualdade racial; e somos nós, e só nós, que
praticamos o multirracialismo, havido por todos como a expressão mais perfeita e mais A,fricanismo e Africanistas: o sentido das palavras, a concepção de
ousada de fraternidade humana e progresso sociológico. No mundo, ninguém contesta Africa e os particularismos do africanismo português
a validade do princípio; mas hesita-se em admitir que o mesmo é de autoria portu-
guesa (...); porque isso seria outorgar-nos uma autoridade moral e imporia um respeito Para a quase totalidade da população portuguesa, o morfema africanista significava,
incompatíveis com as ambições que nos visam» (73). ainda há trinta anos, aquele que, tendo vivido em África durante longo tempo, havia
Estas declarações, tão destinadas ao consumo externo como à acalmia das tensões regressado rico ao país, ou o que, partilhando a sua vida entre as colónias e Portugal,
internas resultantes da guerra colonial e da dura situação económica e política vivida era proprietário de uma riqueza constituída no continente africano. Tratava-se, nos dois
pelos Portugueses, estão impregnadas de luso-tropicalismo, o qual, sobretudo a partir casos, tanto aos olhos da burguesia como dos demais grupos sociais, de um novo-rico,
dos anos 50, fornece ao colonialismo português o que devia ser a sua especificidade, o que provocava o desprezo que sempre acompanha esta etiqueta (74).
procurando separá-lo dos outros colonialismos e recorrendo à história dos Portugueses A partir dos anos 1950, as palavras africanismo e africanista vulgarizaram-se na
em África para tornar mais credível e mais compreensível o discurso colonial do regime Europa, designando o conhecimento científico e o especialista desses conhecimentos e,
ditatorial. por extensão, o estudo e o investigador que se ocupam de África e das suas sociedades.
As palavras e os discursos dos anos 60 não modificarão, de maneira nenhuma, o Em Portugal, o conteúdo dos termos e a sua evolução são muito particulares,
juízo português sobre os Africanos: os «conhecedores» e os «especialistas» de África permitindo o aparecimento de duas vertentes: a primeira, que dominava até há pouco,
são sempre os mesmos e o olhar lançado sobre o continente remete sempre o Africano e que podemos nomear africanismo socioeconómico ou africanismo das emoções, das
para uma selvajaria que nada pode dissolver e limita-se a confirmar — quando não paixões, da irracionalidade, traduz o conhecimento pela via de «estar», «viver», «ser
reforçar — o desconhecimento português do Outro. Esta visão é partilhada por explorador» em África. A outra, definida como o africanismo consagrado ao estudo da
comerciantes, funcionários, militares, missionários e colonos, lá instalados, manifestando África, só agora começa a orientar-se para o conhecimento científico das realidades
africanas.
Recorramos, para uma visão mais precisa, aos dicionários da língua portuguesa que
fornecem informações, dando conta da carga semântica destes dois sintagmas, africanismo
Para melhor analisar as opções da política colonial do Prof. Adriano Moreira, consultar,
e africanista.
sobretudo, as suas obras de 1956 e de 1961. Até 1870, os dicionários dos séculos XVIII e XIX não registaram nenhum destes
Nogueira, 1967, pp. 197-198. Franco Nogueira fez-se notar 'bela sua constante falta de pudor
de circunspecção. Talvez tal se deva ao complexo de «traição», tendo sido um dos expoentes das termos ( 75). A primeira referência aparece apenas em 1877, sendo o africanismo definido
escolhas culturais da esquerda durante alguns anos da sua vida. No momento em que ousava afirmar
que Portugal tinha ensinado a «noção» de direitos humanos aos Africanos, um número bastante elevado
de portugueses e de africanos jazia nas masmorras do regime, que tinha multiplicado as violências da
polícia e as intervenções da Censura. É de resto divertido que o jurista de formação, que era Franco A literatura de Camilo Castelo Branco troçou frequentemente das pretensões ridículas e
Nogueira, fosse capaz de transformar os «direitos do homem e do cidadão», em «noção de direitos
excessivas dos «Brasileiros», quer dizer, dos portugueses regressados a Portugal, após terem acumulado
humanos e de igualdade racial». O pleonasmo é evidente e revelador: no raciocínio de Franco Nogueira
fortuna no Brasil. Este modelo de troça foi depois utilizado para estigmatizar as pretensões dos
pode acontecer que os «direitos do homem» não coincidam com a «igualdade racial»! Estas incertezas
não podem surpreender-nos, se aceitarmos o princípio de que declarações tão tonitruantes só serviam «Africanistas». Numa terceira fase tem servido para ridicularizar os «Emigrantes».
para tentar iludir os ingénuos da comunidade internacional. O que pode surpreender é que o Ministro Ver, por exemplo, Bluteau, 1712; Moraes, 1.° edição, 1789, até à 6.. edição, 1858; Constâncio,
tenha conseguido, e com mais frequência do que parece. 1.° edição, 1836.

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como «expressão bárbara, modo de falar de gente africana» (76). Encontramo-nos perante Trata-se de um pequeno segmento de informação que abre uma porta nova, pois
uma definição assaz particular, que dá conta da maneira como — no juízo português admite que as «coisas de África» possam ser estudadas de maneira perfeitamente
— os Africanos adulteram tanto a fonética como a semântica da língua portuguesa. Por autónoma. Mudança profunda e que parece assinalar uma certa homologia entre as
que razão esta presença no dicionário se regista tão tarde, quando já o teatro de Gil línguas neolatinas; estas só mais tarde aceitaram a existência de conhecimentos
Vicente multiplicara as referências à maneira como os Africanos se serviam da língua especificamente africanos.
O adjectivo africanista seguiu uma evolução diferente. A primeira referência verifica-
portuguesa? (77).
No plano linguístico, este adjectivo foi precedido por uma metáfora, cuja carga é -se nos fins do século XIX, para definir «aquele que se consagra ao estudo das coisas
bastante mais ampla: haveria em Portugal uma linguagem portuguesa que seria a de África» (81). A definição é nitidamente ambígua, na medida em que este «consagrar-
«língua de pretos». Foi esta «língua de pretos» que, no século XIX, se transformou em -se» se pode referir aos muitos campos do saber ou do comportamento. Só nos finais
de 1930, contudo, é que este conteúdo é reforçado por comportamentos que os dicionários
africanismos. A mutação é significativa, já que não se registava, nas peças de Gil conservaram até aos nossos dias: «aquele que viveu durante muito tempo em África e
Quase não há palavras ou maneiras africanas
Vicente, a menor presença de africanismos.
de dizer, maculando a língua portuguesa. De uma maneira geral a «língua de pretos» de lá voltou geralmente rico» (82). Mas também «aquele que teve ou tem permanência,
não conserva nenhuma memória das formas linguísticas africanas. A sua organização negócios ou lavouras na África» (83). O elemento positivo, no plano da sócio-história,
é sobretudo definida pelas deformações fonéticas e sintácticas impostas pelos Africanos reside no facto de só regressarem de África os ricos. Os pobres, que são numerosos,
ou não regressam ou não pertencem ao quadro dos africanistas.
à língua portuguesa. A definição é paradigmática, pois que o africanista ou faz negócios, quer dizer,
A perplexidade linguística portuguesa aparece reforçada nos dicionários de 1890.
Vem então somar-se, às «qualidades negativas» já referidas, o «vício de pronúncia ou compra, vende, troca, ou então possui «lavouras», o que na verdade não parece constituir
de linguagem dos que vivem entre os africanos» (78). Esta indicação é muito interessante, uma definição muito rigorosa. Nestas condições, a definição proposta, se bem que
pois não se trata já da língua dos Africanos, mas da língua corrompida daqueles que aparentemente liberta de qualquer preconceito, não permite ainda penetrar o imo do
vivem entre os Africanos. Estamos perante um exemplo discreto das formas de sujeito. Tal facto limita-se a traduzir a incerteza das relações com África e os Africanos,
cafrealização, caracterizado pela corrupção dos valores europeus, sob a pressão das sem contudo esquecer de pôr a claro a ambiguidade das relações que os colonos podem
tecer e manter entre si.
sociedades africanas. O conteúdo do sintagma alargou-se, porém, por volta dos anos 1950, permitindo
Com efeito, o europeu cafrealizado é aquele que se deixou arrastar pelos valores
africanos — vestuário, alimentação, religião, relações sexuais ou conjugais —, a ponto a entrada daquele que viajou, explorou e combateu em África (84). Dez anos mais tarde,
de virar as costas às práticas europeias. É o que nos é afirmado pelos dicionários: podemos aperceber-nos de mais um acrescento: aquele que «teve ou tem negócios ou
significa «vício, costume ou modo próprio da África. Nome dado a certas interesses em África», mas aí não mora, ou que, pelo menos, não o faz de maneira
africanismo permanente (85).
locuções que foram empregadas por autores latinos nascidos em África: encontram-se
As incertezas dos dicionários permitem compreender, de maneira assaz fácil, que
muitos africanismos em S. Agostinho» (79). as relações dos Portugueses com África estavam longe de ser precisas. De resto, tudo
Trata-se, como podemos verificar facilmente, de um discurso genérico, que considera
a África como uma unidade geográfica, política e linguística, onde não existem se passa como se os Portugueses receassem este substantivo, onde parece sobrenadar
particularismos culturais, nem sequer grandes distâncias físicas. Por estas razões, o uma parte da selvajaria mítica atribuída aos Africanos, pelos Europeus em geral, pelos
Portugueses em particular.
Africano do Norte — quer dizer Branco, Santo Agostinho — serve para explicar a
Apesar disso, o elemento que parece essencial reside no facto de nenhum dos
maneira como as locuções não-europeias puderam ser integradas no texto paradigmático
sintagmas se aplicar aos próprios africanos. O sentido tão particular da não-coincidência
do teólogo, mesmo que, acrescente-se, a identificação dos africanismos pareça derivar
entre Africanos e africanistas aparece de maneira incisiva, repelindo a menor dúvida
essencialmente do aumento da competência técnica dos filólogos do século XIX.
a respeito do espaço coberto por cada uma destas categorias. O facto de a palavra ter
Podemos dar-nos conta de que o problema se mantém neste quadro, no século XX.
sido criada tão tarde põe em evidência a aceleração do facto colonial, que exige um
Por volta de 1950, a definição de africanismo recebe um elemento mais: «estudo das
coisas de África» (80).
Lemos, 1895-1923; Figueiredo, 1.° edição, 1899.
Moraes, 7.a edição, 1877.
O Pranto de Maria Parda. Figueiredo, 5.a edição, 1939; Moraes, 10.a edição, 1949.
Sobretudo nas peças Frágua de Amor e Magne, 1950, 1963.
Moraes, 8.° edição, 1890.
Lima e Barroso, 1951; Fontinha, 1957.
Lemos, 1895-1923. (85) Coelho, J. R, 1976.
(80) Moraes, 10.° edição, 1949; Bivar, 1948; Magne, 1950.

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número constantemente crescente de burocratas e de militares, para reduzir, impedir ou durante o século XX, e mal-grado a multiplicação das perspectivas — histórica, política,
anular as acções autónomas dos Africanos. económica, jurídica, cultural, sociológica, até linguística — foi redigida por «especialistas»
O facto de não haver nestes substantivos adjectivantes a menor referência precisa que ocupavam também postos de responsabilidade na direcção dos negócios políticos
ao estudo e, por isso, ao conhecimento do Outro, põe em evidência a situação paradoxal coloniais.
de um país que pretende dispor das melhores técnicas para integrar o Outro africano, Com efeito, o «saber africano» pertencia exclusivamente ao poder que o organizava
no quadro da «civilização» absolutamente branca. A integração seria menos o resultado em função dos interesses coloniais, considerados de maneira muito restritiva. Quando
de propostas teóricas, e mais a consequência de escolhas pragmáticas que ocorrem à muito, o poder colonial renunciava a uma parcela deste monopólio nos espaços «neutros»
revelia das autoridades, dos legisladores e, naturalmente, dos próprios teóricos. da geografia, da biologia, da botânica, da zoologia, da antropologia física, ou seja, no
campo dos saberes ou dos conhecimentos que parecem furtar-se à sobrecarga da ideologia.
Esta situação permitia escamotear a história da África, despojada de qualquer
Estas maneiras de dizer servem de suporte a uma segunda série de problemas, entre
forma de intelectualidade, como já o fizera Hegel, mestre directo ou indirecto de Silva
os quais avulta aquele que se refere à concepção portuguesa da África, num momento
Cunha, entre tantos outros homens fortes do regime salazarista. A história da África
em que ali estava já instalado um grande número de colonos portugueses.
Quais eram as imagens, as ideias que orientavam o olhar português para as terras tornava-se, assim, num elemento muito importante da expansão portuguesa. Na maior
e os homens africanos? A pergunta é deveras importante, e deve levar em linha de conta parte dos casos, o Africano era apenas mobilizado para permitir a afirmação da coragem
o facto de esta leitura do Outro ser dominada durante muito tempo pela maneira por ou da inteligência dos Portugueses.
Como poderemos nós explicar esta maneira de eliminar o Outro?
via da qual Gomes Eanes de Zurara, que traduzia o sentimento dos Europeus da sua
Não podemos explorar, como seria talvez necessário, a longa duração das relações
época, organizara as hierarquias raciais (86):
entre os Portugueses e os Africanos, mas isso não nos dispensa de considerar a maneira
Um imenso território pertencendo à nação portuguesa onde «iam (...) os nossos como se organizou, entre os séculos XV e XIX, o que podemos designar como sendo
campónios [com] a ideia da possibilidade de um nível de vida superior ao da miséria uma espécie de «africanismo sem estatuto». Não lhe poderíamos dar o nome de
«africanismo ingénuo ou espontâneo», adoptando a maneira de dizer de Paul Mercier,
que por cá conheciam», quer dizer em Portugal (87).
Um espaço ainda a explorar e, por isso, não utilizado, que devia ser ocupado que definiu um discurso antropológico deste tipo, que caracterizava a produção
antropológica, precedendo a criação da disciplina? (89).
de maneira a produzir uma riqueza que o continente africano devia aos Portugueses e
Se aceitarmos esta hipótese, podemos dar-nos conta da convergência de vários
a Portugal. factores que permitiram enraizar, na vida portuguesa, uma espécie de a priori, funcionando
Uma terra povoada, não por homens normais mas sim por selvagens, sem
civilização, sem culturas, merecendo ser registada e estudada. A contribuição da África de modo quase mecânico, o que tem a possibilidade de explicar as opções, seja das
para o desenvolvimento do conhecimento científico só podia ser possível do lado das instituições políticas seja dos homens que se empenham em explorar os valores africanos.
No caso português, sobretudo no longo período anterior ao século XX, parece que
ciências «neutras». o marcador mais importante não era o corpo, mas sim a língua. É certo que a condição
Há também a considerar a existência (é verdade que tardia) de uma opção
do Africano nunca foi muito invejável, mas tornou-se mais complicada em consequência
etnológica, caracterizada pelo olhar sincrónico e estático do Outro, sobretudo atraído
pelos aspectos falsamente primitivos dos Africanos, e destinado a servir os objectivos das particularidades da língua falada. É como se a sociedade portuguesa recusasse
aceitar estas agressões à sua própria língua, e como se os Africanos se revelassem
do poder colonial. definitivamente incapazes de alcançar a norma linguística do português.
Nenhum destes homens do saber reivindica uma especialização exclusivamente Se o corpo marcava já os Africanos, a língua reforça estas marcações que explicam
africana, porque os estudos «realmente» africanos aparecem como sendo a «especialidade» e impõem a exclusão, porque, mesmo que os Africanos consigam obter, recorrendo a
dos homens formados pelas escolas de quadros da administração colonial ( 88). Com um número infinito de astúcias, um corpo tão branco como o dos Brancos ( 90), a língua
efeito, a parte mais substancial dos estudos consagrados a África, levados a cabo serve para os denunciar. Esta situação permite que nos interroguemos melhor a respeito

Zurara, 1973, p. 122. Mercier, 1966, p. 15.


Sérgio, 1974, p. 191.
Na peça de Gil Vicente, Frágua de Amor o ferreiro pode transformar o preto em branco, mas
(88) Trata-se da Escola Superior Colonial (1906), que se transformou em 1926 no Instituto Superior não consegue modificar-lhe a língua, o que o impede de conseguir realizar plenamente esta operação
de Estudos Ultramarinos, cujos programas foram modificados várias vezes, conforme a evolução da
de «branquização», a primeira da literatura portuguesa.
política colonial portuguesa.

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limitado, das autoridades africanas. Nos documentos, tornados públicos por Carvalho,
das condições que colocam os Africanos fora da sociedade portuguesa, tal como acontece
encontra-se um grande número de tratados, alguns dos quais assinados pela totalidade
fora dos africanismos. das personalidades polfticas lundas (94). Carvalho denuncia a hipocrisia europeia, carac-
A sociedade portuguesa não consegue renunciar aos juízos destinados a excluir
terizada, em sua opinião, pela indiferença aos desejos e à história africanos (95).
o Outro africano. Será que semelhante situação não pode explicar o carácter tardio
da aparição dos africanistas e do africanismo? Como se apenas, após a abolição É conveniente não desprezar o facto de o estudo dos Africanos não depender do
do tráfico de escravos e a desaparição real da escravatura, já muito tarde, no século registo do conhecimento, mas da maneira como devia ser organizada a exploração dos
XIX (91), os Africanos conseguissem furtar-se ao seu estatuto de coisa, para se tornar territórios e dos homens. Ora, a burguesia portuguesa, encarregada desta operação (96),
senão cidadãos dispondo de todos os seus direitos, pelo menos sujeitos da sua própria não considerava a África como um lugar de investimento seguro e rendoso. Por esta
história. razão, a exploração só podia manter-se no quadro bastante limitado da comercialização
O aparecimento dos dois termos estaria assim ligado às modificações associadas dos produtos fornecidos pelos Africanos.
ao estatuto dos Africanos. Mesmo que as definições pareçam dar pouco lugar aos Neste contexto, os Africanos não parecem portadores de conhecimentos económicos
Africanos, não se nos afigura excessivo mostrar que a nova situação destes arrasta interessantes ou, simplesmente, capazes de assegurar uma percentagem de lucro aceitável,
consequências sociais e científicas inéditas, exigindo a criação de «especialistas», tanto o que, no plano estritamente económico, quer dizer que ficaram limitados a um registo
no domínio dos negócios como no dos conhecimentos científicos (92). primário. Nestas condições, que sentido teria consagrar-se ao estudo das sociedades
africanas?
A evolução histórica da África nos finais do século XIX permite compreender Os representantes da ciência portuguesa interessaram-se, assim, pela antropologia
melhor esta questão, dado que a divisão internacional das tarefas, decidida em 1815 na física, que permitia acumular indicações que confirmavam a inferioridade racial dos
Conferência de Viena, provocou a realização da Conferência de Berlim. Na região que Negros, tão constantemente sublinhada ao longo da história das relações dos Portugueses
estudamos, os Portugueses foram forçados a recuar, pois que o Estado Independente do com os Africanos. O tipo de exploração dos territórios e dos homens africanos, escolhido
Congo ocupou o território lunda, que Henrique de Carvalho tinha tão minuciosamente pela colonização portuguesa, só podia ser levado a bem à custa da negação da humanidade
percorrido e inventariado. Como o acaso faz as coisas bem de mais, o Estado Independente do Outro africano.
podia assim dispor das reservas minerais que, mais tarde, assegurariam a felicidade e Um segundo elemento permite medir a situação de maneira mais precisa: de início,
os lucros da Société Générale. as colónias não pareciam destinadas a assegurar o rápido enriquecimento dos colonos.
Henrique de Carvalho, apanhado na teia destas decisões, quis provar que as fronteiras Era preciso começar por instalá-los e alojá-los, de modo a tornar possível a construção
resultantes da Conferência destruíam as estruturas políticas que as populações africanas de uma África portuguesa — sonhando com o Brasil perdido! —, cujo embranquecimento
tinham organizado durante muitos séculos. O major português procura recorrer à história devia ser a consequência necessária da evolução demográfica. Só a partir do momento
oral africana para se opor aos apetites do Estado Independente. Os argumentos revelam- em que se instalaram no continente africano contingentes europeus demograficamente
-se demasiado frágeis, tendo em vista a importância das apostas europeias. Henri Bruns- significativos, criadores de um fluxo de relações interindividuais, é que foi possível
chwig mostra muito bem que esta «partilha» é uma questão exclusivamente europeia (93), assistir à banalização da África. Mas que África?
mas permite salientar que, para Carvalho, toda e qualquer reivindicação das potências
europeias devia utilizar, como apoio e como prova, a história africana.
Os Portugueses tinham utilizado desde muito cedo a via diplomática, multiplicando
os acordos e os tratados. Os documentos implicavam o reconhecimento, mesmo que
Ver Carvalho, 1898.
O major Henrique de Carvalho deixava-se arrastar pelos seus fantasmas, pois o seu projecto
africano estava longe de ser normalmente aceite pelos homens que asseguravam a gestão dos negócios
(91) Ver Bastos, 1912, que em 1910 dá conta das caravanas de escravos que continuam a chegar políticos. É certo que a África começava a estar de novo na moda, mas ela só conseguia interessar um
a Benguela. Na polémica travada com as autoridades portuguesas e os roceiros de S. Tomé e Príncipe, grupo reduzido da burguesia. Mais ainda: contava muito pouco no orçamento do Estado. Carvalho queria
«dar» à África,. ao passo que o Estado e os Portugueses só queriam «receber». O desfasamento é
Cadbury, 1910, provou que as técnicas da escravatura continuavam a ser muito operatórias, tanto em
demasiado importante, o que explica que Carvalho tenha sido preso, vítima da paixão humanista que
Angola como em S. Tomé.
consagrava aos Africanos.
• (92) O que explica a expansão da antropologia física e da craneometria resultante das lições das
(96) Adelino Torres, 1991, mostrou, de maneira satisfatória, que a burguesia portuguesa dispunha
escolas de Viena e de Paris, entre Gall e Broca. O professor Bernardino Machado, presidente da
de capitais, mas que recusara empregá-los nas colónias. Esta demonstração, que se apoia em números
República por duas vezes (1915-1917 e 1925-1926), organizou o laboratório da Universidade de Coimbra.
e não apenas em opiniões, devia pôr termo à ilusão de que a burguesia não se empenhou em África
(93) Brunschwig, 1971, p. 73, afirma que «a aceleração da partilha foi levada a cabo em função
dos nacionalismos e do progresso técnico da Europa». por não dispor de capitais.

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Os colonos lá instalados, sobretudo em Angola, parecem dominados por um
sonho sem partilha: enriquecer, para poder voltar à aldeia ou à região de origem (97).
Esta situação provoca uma leitura assaz particular dos Africanos e da África — produ-
tores e fonte da sua riqueza —, cuja banalização, mesmo sem podermos proceder
ao inventário dos pormenores, deu origem ao africanismo socioeconómico que
arrasta atrás de si o africanismo «científico». A contribuição das grandes expedi-
ções, organizadas durante o último terço do século XIX, é certamente decisiva:
os Portugueses são então obrigados a recorrer ao conhecimento científico dos CAPÍTULO II
territórios para justificar a sua autoridade, tanto perante os Africanos como perante os
Europeus. Vazios e ambiguidades do discurso científico português
Esta segunda vertente depende, sobretudo, da organização do discurso administrativo
colonial, no decorrer do século XX. O recurso à força, para obrigar os Africanos a Se os mitos portugueses se estruturam à medida que se desenvolvem os projectos
aceitarem as decisões portuguesas, é reconhecido como meio de pressão de eficácia colonialistas em África, tal explica que tenham conhecido um sério reforço durante as
duvidosa. Para mais, os agentes da administração colonial reconhecem que seria melhor últimas décadas do século XIX: de maneira inesperada, os Portugueses — que pensavam
dispor de um mínimo de conhecimentos a respeito dos grupos, dos usos e costumes, da estar ao abrigo de qualquer crítica histórica ou geográfica — foram forçados a enfrentar
língua, das estruturas da autoridade, para levar a cabo, em boas condições, os projectos
as consequências da revisão das tarefas políticas internacionais. Entre a Conferência de
coloniais. É esta vertente «científica» do africanismo português, certamente uma das
mais importantes, que tece o laço, unindo o conhecimento, muitas vezes empírico, Viena (1815) e a Conferência de Berlim (1884-1885), Portugal viu-se cada vez mais
despojado de qualquer teoria, e as práticas e decisões administrativas, porque as marginalizado, sobretudo após a independência do Brasil (1822), que lhe retirou toda
autoridades portuguesas não podem furtar-se à necessidade das relações íntimas e e qualquer possibilidade de intervenção na vida americana.
contínuas com os Africanos (98). O Império Português cai aos pedaços, mas nem assim os Portugueses renunciam
à visão redutora do Outro que tinha caracterizado as operações coloniais portuguesas.
A abolição do tráfico de escravos e da escravatura não põe termo às concepções
negativas do Outro, mesmo que assistamos às tentativas de organizar uma visão mais
científica que, é verdade, responde mais às exigências da época. Portugal organiza uma
investigação, que depende menos dos projectos e das necessidades nacionais do que
procura responder à pressão internacional, que exige que os Portugueses forneçam
provas de dispor de um «autêntico conhecimento».
A história não passa então — e depois — de um dos ramos desta busca, reduzida
de resto a um fragmento insignificante, já que os Portugueses do século XIX se recusam
aceitar a existência das histórias africanas autónomas, bastando-se e explicando-se a
si próprias. A história da presença portuguesa é, por isso, constantemente solicitada
para «criar» uma história que permita dar conta da existência destes Outros africanos
que convém — em nome do realismo colonial — manter sob tutela. Os Africanos
deviam, acima de tudo, tornar-se produtores, sob as ordens dos Portugueses, já que os
Brancos eram «incapazes» de trabalhar em condições climáticas tão particulares como
as dos trópicos.
O racismo adquiria, assim, uma tinta «climática»: a superioridade do homem
branco tornava-se visível, podendo até ser medida, devido ao facto específico da sua
Raul David, in Laban, 1991, I, pp. 61-62, descreve a visão africana das técnicas «civilizadoras»
dos Portugueses: «o português é capaz de esperar por uma vitória social durante trinta ou quarenta anos fragilidade física. Só as bestas, quer dizer, os homens caracterizados por uma rusticidade
— marra, marra, marra —, está ali trinta ou quarenta anos à espera de uma oportunidade» (...) «mas que os punha no mesmo plano das grandes feras, podiam enfrentar esta natureza
quando tem poder económico, volta à civilização — isto é curioso...». descaroável. Ora, se os animais não possuem história, seria inverosímil que as bestas
Esta situação foi agravada pelo choque, quando não o conflito, entre a administração europeia, humanas possuíssem uma. A vida dos Africanos escoava-se, por isso, sem marcas
instalada em Lisboa, e os agentes da administração que, em Angola, estavam a braços com a dureza
históricas, o selvagem de hoje era a exacta reprodução do selvagem dos tempos imemoriais.
pragmática do facto colonial.
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Como acreditar na possibilidade ou, sequer, na probabilidade de poder organizar que começa a considerar as condições em que o Outro assegura a sua autonomia e
uma qualquer explicação científica relativa aos Africanos, uma vez que o continente, preserva até a sua hegemonia. Tal não impede, contudo, que o discurso se mantenha
que não conhecia a escrita — a não ser na sua margem norte, brancóide —, parecia assaz impreciso do ponto de vista teórico, o que toma muito aleatória a construção para-
povoado por animais malfazejos, indo dos mosquitos aos leopardos, sem esquecer a tsé- -antropológica do olhar português.
-tsé tão tardiamente identificada? O recurso à antropologia negativa foi constante através da história colonial europeia,
não podendo os Portugueses escapar à sua utilização. Quando se trata de destruir um
I. O Outro nas preocupações científicas do fim do século XIX grupo, quer seja em África quer no Brasil, os colonizadores exacerbam o número de
O primeiro problema a pôr em evidência diz respeito à ausência de um conhecimento traços culturais que os integram no quadro desta antropologia negativa (3). Mas isto
antropológico antes do século XX, o que não quer dizer que os textos portugueses não quer também dizer que se verificava a ausência de um quadro teórico que permitia
estejam invadidos por informações que permitam a reconstituição de uma estrutura concentrar as informações e proceder a comparações, por um lado, e definir as qualidades
antropológica. Mas, podemos dar-nos conta, ao mesmo tempo, da ausência de um das estruturas das sociedades angolanas, pelo outro.
projecto de conhecimento que se ocupe e preocupe com a autonomia do Outro. Se os Mal-grado a incerteza das informações, é todavia conveniente salientar que será
Portugueses organizam, como todos os mais colonizadores, expedições científicas, estas sempre impossível proceder à construção do discurso histórico e antropológico sem o
são, sobretudo, destinadas ao conhecimento da geografia que permite desenhar o quadro recurso sistemático aos documentos elaborados pelos Portugueses ou pelos Africanos
preciso da dominação, sem esquecer o registo tanto das plantas como dos minerais, ao serviço dos Portugueses. Mesmo quando é preciso submetê-los à «enxaguadora» da
garantes de uma mais completa exploração das riquezas já reveladas ou, simplesmente, história, é necessário dispor dos meios para os integrar no conhecimento da África. É
potenciais. A definição do quadro territorial, acompanhada pelo inventário das que o discurso consagrado ao Outro, mesmo quando se verifica estar sobrecarregado
possibilidades comerciais, permite a organização de uma malha económica e política de preconceitos, nunca consegue eliminar inteiramente a presença e as marcas do Outro,
mais apertada e mais eficaz do que aquela que fora utilizada durante o período do tráfico considerado como simples objecto negativo da história. O perigo reside no período
negreiro. Os homens, esses, só aparecem nos textos, devido aos acidentes da escrita. moderno: à medida que avançamos para o último quartel do século XIX, assistimos a
Quando muito, o interesse destes viajantes concentra-se nos chefes, elevados ao papel uma lenta mas contínua redução da informação etnográfica, substituída, cada vez mais
de interlocutores únicos, na medida em que os Portugueses — como em geral os sistematicamente por um não-olhar. O preconceito cega a visão e anula a possibilidade
Europeus — estão convencidos de que qualquer poder africano é inelutavelmente da informação.
despótico. Alguns textos, consagrados ao inventário e à descrição das técnicas e dos volumes da
As expedições da segunda metade do século XIX foram sistematicamente confiadas produção, dos circuitos comerciais e dos valores das mercadorias, não podem escapar
a militares, recrutados entre os especialistas das armas sábias (Marinha e Artilharia). inteiramente às inquietações muito fracamente antropológicas. De resto, a ambiguidade não
Alguns destes homens mostraram-se capazes de interrogar o Outro, como foram os é difícil de explicar: por um lado, os Portugueses querem salpicar o interior africano com
casos — em relação à zona que nos preocupa — do major — mais tarde general — comerciantes portugueses, mas esta maneira de fazer determinou — no século XIX —
Henrique de Carvalho e do capitão Paiva Couceiro, o último governador de Angola o nascimento e a afirmação de uma rede cada vez mais intensa e eficaz de comerciantes
durante a Monarquia. Estes homens recebem a companhia, quando não são mesmo africanos. A história política e económica do século XIX permite medir o duplo movimento
precedidos, dos comerciantes, tais como o brasileiro Joaquim Rodrigues Graça e o que empurra o comércio angolano para leste. Para que esta pressão europeia possa
português, que tinha uma experiência comercial brasileira, António da Silva Porto. desenvolver-se sem choques, toma-se necessário que as autoridades e os comerciantes
Seria de facto possível, e diríamos até necessário, salientar a existência de vários disponham de informações fiáveis e suficientes a respeito das técnicas comerciais, mas,
discursos possuindo um carácter ou um conteúdo antropológico, pois os missionários sobretudo, a da estrutura política e das formas religiosas.
não possuem o olhar que caracteriza os militares ou os responsáveis pela administração. O comércio só pode avançar graças ao conhecimento, mesmo que este dependa
Por sua vez, os comerciantes julgam os Africanos em função dàs mercadorias produzidas
mais do esforço empírico dos comerciantes que da construção de um modelo antropológico
ou a produzir e das condições sob as quais podem organizar as trocas.
teórico. A instalação de autoridades metropolitanas, que patinham nos preconceitos
O século XIX ainda se não libertara então da antropologia «ingénua» de que nos
banalizados a respeito dos hábitos e dos valores africanos, acaba por substituir, de
fala Paul Mercier (1), mas seria certamente mais exacto mostrar que este discurso
maneira paulatina, mas constante, este esforço de conhecimento empírico.
antropológicô assinala a transição da antropologia negativa (2) para uma antropologia

Mercier, 1966.
Margarido, notas do curso de D. E. A., no Centre de Recherches Africaines da Universidade (3) A selvajaria da língua é prova da selvajaria dos costumes e denunciam a violência potencial
de Paris-I, 1984-1985. antibranca, como lembra Pero de Magalhães Gândavo, a propósito dos índios Aymorés. Gândavo, 1576.

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Esta situação compromete o valor das informações, pois elas são organizadas em Encontramos nesta linha teórica a sombra das grandes figuras do Museum parisiense,
função do quadro teórico importado da Europa. É por isso que a fragilidade do estudo mas, sobretudo, a dos homens que procuram classificar as raças, para melhor poder
consagrado ao Outro se agrava nos fins do século XIX, devido à importação das teses geri-las, de Cornelius de Pauw a Bory de Saint-Vincent (7).
da Escola de Antropologia de Paris. O peso do darwinismo social é reforçado pelo Para levar a cabo esta tarefa, é necessário que a fronteira que separa os selvagens
recurso ao quadro teórico de Paul Broca, inteiramente dominado pelos valores mensuráveis os bárbaros dos civilizados disponha de uma base científica que só os médicos,
da estrutura somática, dos ossos à espessura dos cabelos ( 4 ). As análises do facto especialistas das questões de antropologia física, podem fornecer. O mais grave reside
africano, levadas a cabo por Oliveira Martins, transformam-se no credo antropológico no facto de o recurso à antropologia física permitir restringir, de maneira preocupante,
de grupos cada vez mais numerosos da intellegentia portuguesa. alcance eficaz do olhar lançado ao Outro. Reduzido à condição de grande macaco,
Nestas condições, qualquer projecto de modernização das práticas culturais africanas Africano é expulso das considerações relativas aos valores humanos.
encontra-se condenado antes de começar a funcionar, afogado pelo peso dos valores De facto, Oliveira Martins explicita de forma mais sistemática — quer dizer,
«reais» das culturas africanas: «o plano poético da educação dos pretos seduz hoje em apoiada por um suporte teórico — uma corrente da prática colonial portuguesa. Um
dia os ânimos entusiastas que, não podendo conceber já com as velhas religiões, imaginam primeiro decreto de 2 de Outubro de 1869 tinha posto em evidência a importância de
fundar novos cultos filantrópicos... A história prova que a educação dos povos «bárbaros» um autêntico conhecimento antropológico das colónias. Os tempos não iam de feição:
só pode ser feita pela força. Mal-grado isso, a filantropia persiste em esperar que a decreto não provocou a mínima reacção, o que se compreende: faltava em Portugal
Bíblia, traduzida em bundo ou em banta, acabe por converter «os selvagens»; que a uma autêntica tradição de investigação no campo da antropologia física. Se alguns
férula do mestre-escola fará deles homens como nós (...) [Mas] (...) abundam os responsáveis pela gestão das colónias se dão conta da importância do discurso científico,
documentos que nos mostram no negro um tipo antropologicamente inferior, não raro parece que ele não seduz ninguém no seio da comunidade científica. A lição de Broca,
próximo do antropóide e bem pouco digno do nome de homem» (5). mesmo que conhecida e divulgada, não consegue romper a inércia do tecido cultural,
Dando uma sequência a este discurso, que denuncia todas as tentativas dos indiferente ao debate que discute as condições em que se pode proceder à classificação
humanistas do século XIX e procura alvejar, acima de tudo, a obra do marquês de Sá das raças, mas indiferente também aos esforços da craniometria que levaram Paul Broca
da Bandeira, Oliveira Martins recorre aos estudos consagrados à antropologia física em a mobilizar as autoridades coloniais e diplomáticas francesas para obterem crânios de
via de realização, para reforçar a sua posição. Segundo este autor, as provas são todos os continentes e grupos humanos (8).
suficientes para demonstrar que a civilização dos selvagens não passa de uma «ruinosa Dois decretos publicados em 1874, a 24 de Novembro e a 23 de Dezembro,
quimera». «E se não há relações entre a anatomia do crânio e a capacidade intelectual reforçam as instruções enviadas às autoridades coloniais para assegurarem o
e moral, porque há-de parar a filantropia do negro? Por que não há-de ensinar-se a desenvolvimento destes estudos antropológicos. O registo é efectivamente o da antropologia
Bíblia ao gorila ou ao orango, que, nem por não terem fala deixam de ter ouvidos, e física em via de se desenvolver, tanto na Europa como nos Estados Unidos; alguns anos
hão-de entender quase tanto como entende o preto, a metafísica da encarnação do Verbo mais tarde, ela intervirá no Brasil, quer através de Agassiz quer do discípulo brasileiro
e o dogma da Trindade?» (6). de Broca, Nina Rodrigues, sem esquecer, no entanto, tudo o que se refere à antropologia
Este discurso está longe de ser único na Europa, e podemos seguir o seu rasto entre cultural. De resto, está constantemente subentendido, em numerosas intervenções de
os herdeiros de Broca e da Escola de Antropologia de Paris. Em Portugal, serviu para Paul Broca e dos seus amigos parisienses, que a antropologia física permite iluminar,
reforçar a corrente que desejava vender as colónias, mas, sobretudo, propor e levar a de maneira precisa, as relações entre o corpo e as capacidades culturais (9).
cabo a exploração desenfreada dos Africanos, que é tão difícil de distinguir dos «grandes
macacos».
As descrições das raças não-europeias por Buffon são suficientemente esclarecedoras da
importância assumida pela classificação das raças no século XVIII. Michèle Duchet reuniu em
De l'Homme, Paris, Maspero, 1971, uma antologia do pensamento de Buffon.
Estes pontos de vista são muito perceptíveis nas considerações consagradas à mestiçagem, que Estes crânios constituem a colecção Broca, conservada no Musée de l'Homme, em Paris. O
mobilizaram a atenção do médico parisiense. cônsul francês em Kobé explicava, numa carta dirigida ao Dr. Paul Broca, que fora obrigado a enviar
Martins, 1953, pp. 261-263. os crânios dissimulados debaixo das raízes das flores — bastava retirá-las para recuperar os crânios,
(6) Id., ibid. Constava do arsenal das anedotas angolanas, aquela em que um africano explica a salientava a autoridade consular — dada a resistência oposta pelas autoridades japonesas à exportação
outro a inteligência dos macacos: «eles não querem falar, porque perceberam que se o fizessem, os destes crânios. Carta inédita do cônsul francês em Kobé, Arquivos Paul Broca, Musée de l'Homme,
brancos os obrigavam a pagar imposto». A história podia ser considerada como uma denúncia da Paris.
violência do imposto, se não insistisse na animalização dos Africanos, que só se distinguem dos macacos (9) Paul Broca (1824-1888) limita-se a assegurar a continuação das investigações anteriores. Se
por possuírem a palavra e serem, por isso, capazes de pagar imposto. Neste caso, é a legitimidade do os Hotentotes tinham mobilizado sábios como Cuvier e Saint-Hilaire, a Sociedade de Antropologia de
imposto que sobressai, porque só ele pode assegurar a humanização dos Africanos. Paris enviou um delegado à África do Sul, de maneira a obter uma informação mais fiável.

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O carácter reiterativo destas disposições legais põe em evidência a distância entre científicos, ao passo que as populações africanas devem aprender a «propriedade»
as escolhas da administração portuguesa, que vive na Europa, e a indiferença dos privada e o «trabalho livre» (14).
funcionários instalados nas colónias. Só em 1885, os especialistas de antropologia física A administração científica, que a SGL defende com todas as suas forças, deve
acabam por introduzir as preocupações científicas europeias no espaço colonial português. assegurar a promoção social de uma fracção da população africana, destinada a tornar-
Apesar de tudo, não conseguem sensibilizar médicos, enfermeiros ou administradores, -se um grupo de «nível superior», ao mesmo tempo que dá origem a um outro
pouco interessados pela estrutura física ou craniana dos Africanos. Só alguns crânios intermediário, formado por uma classe média de técnicos auxiliares, estando estes
foram enviados para Lisboa, graças à intervenção da Sociedade de Geografia de Lisboa grupos colocados acima de uma ampla população de trabalhadores manuais (15).
que, desta maneira, apoiou as operações levadas a cabo pelo Ministério da Marinha e Neste mesmo ano, a SGL propõe, por iniciativa de Luciano Cordeiro, o projecto
das Colónias. de criar em Lisboa uma escola colonial, o Instituto Oriental e do Ultramar Português,
que dispensa um ensino secundário e superior e tem como objectivo a formação de
A criação desta Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) — a 31 de Dezembro quadros superiores especializados e treinados para assegurar uma administração racional
de 1875 —, assaz tardia em relação às suas congéneres europeias, deve-se a um grupo e científica das colónias.
de intelectuais portugueses, preocupados com a ausência de uma política colonial definida Este projecto é destinado a satisfazer a necessidade de uma «educação científica
e assumida pelo Estado. Este grupo pretende exercer uma pressão permanente sobre o (16), adoptando as orientações então seguidas pelas demais potências coloniais
colonial»
lo
Estado, para conseguir desencadear uma reflexão sistemática consagrada às «questões
europeias. Convém salientar que Portugal, país cuja experiência colonial é apresentada
ias.
coloniais», projectando introduzir uma maior racionalidade nesta polftica portuguesa, como multicentenária, se encontra sempre em atraso relativamente à organização da
de modo a garantir os interesses nacionais em África. Entre esses objectivos, encontramos
modernidade colonial.
«o estudo, a discussão, o ensino, as investigações e as explorações científicas de
Esta formação superior «colonial» integra matérias derivadas da História da
geografia, nos seus diferentes ramos, princípios, relações, descobertas, progressos e
Colonização, assim como da Geografia Colonial, às quais vêm somar-se «etnografia e
aplicações» (10). hierologia, no ponto de vista indígena» (17), os diferentes aspectos e práticas do Direito,
A aparição da SGL na cena portuguesa impõe ao governo português a criação, em
a Economia Polftica, bem como as diferentes actividades da Administração Colonial,
Fevereiro de 1876, de uma Comissão Central Permanente de Geografia (CCPG), junto do
conforme uma técnica comparatista, levando em conta as «necessidades que resultam,
Ministério dos Negócios da Marinha e do Ultramar, «incumbida de coligir, ordenar e
do grau de civilização da metrópole e dos povos administrados no Ultramar» (18).
aproveitar, em benefício da ciência e da nação, todos os documentos que possam esclarecer
Este ensino integra também a Química Agrícola, Botânica Agrícola e Florestal do
a geografia, a história etnológica, a arqueologia, a antropologia e as ciências naturais em
Ultramar, a Geografia Médica e as línguas dos territórios portugueses ultramarinos. A
relação ao território português e, especialmente, às províncias ultramarinas» (11).
Durante quatro anos, uma certa rivalidade caracteriza as relações entre as duas estas disciplinas acrescentam-se matérias diversas relacionadas com as culturas asiáticas,
instituições. Enquanto a SGL, que dispõe de uma força intelectual importante (12), está muito particularmente indianas. Esta situação provoca uma falta de equilíbrio e uma
fragilizada por uma impotência financeira que neutraliza a sua capacidade organizacional, desigualdade de tratamento, relativamente às duas zonas de cultura do domínio colonial,
a CCPG dispõe não só de uma forte base logística e material, mas assume sobretudo a saber: a africana e a asiática, tanto mais que esta última diz apenas respeito aos
uma função de consultante junto do governo. Verifica-se uma inversão da situação em pequenos territórios que formavam então, e ainda, a «Índia portuguesa» (19).
1880: sob proposta do ministro da Marinha e do Ultramar (13), fundador e ex-presidente De facto, podemos dar-nos conta do atraso português: este projecto, mesmo que
da SGL, esta instituição integra no seu seio a CCPG. O apoio financeiro, que fora até perfeitamente decalcado de outros elaborados pelas diferentes escolas coloniais europeias,
então concedido à CCPG, é transferido para a SGL, a qual se torna a instância está sobrestimado. Não é pedido pela comunidade nacional e, menos ainda, pelos
consultante junto do Ministério. colonos. Trata-se de uma tentativa de burocracia colonial, mais aberta à modernidade,
Esta fusão entra no quadro dos esforços destinados a Melhorar a administração e para procurar reformular um certo número de tarefas de conhecimento e da administração.
a melhor «conhecer» as populações africanas. A primeira deve adquirir caracteres

Pereira, 1986, p. 198.


Guimarães, 1984, p. 11. Id., ibid.
Id., ibid., p. 13. Guimarães, 1984, p. 202.
Por exemplo, Luciano Cordeiro, Jayme Batalha Reis, Andrade Corvo. Id., ibid., p. 203.
Trata-se do visconde de S. Januário. Ver, a propósito desta modificação de 1880, Guimarães, Id., ibid.
1984, cap. II. Id., ibid., p. 205.

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Mas a escola será, até muito tarde, uma instituição anã, na medida em que a colonização que nos finais do século XIX, a SGL procurava, de maneira deveras decidida, fazer
portuguesa continuara inteiramente dependente de um pragmatismo, na maior parte dos aparecer um «colonialismo científico» português: formação, ensino, investigação
casos, provinciano. constituíam as preocupações principais dos dirigentes da instituição, cada vez mais
Uma fórmula célebre de Yves Lacoste quis mostrar que a geografia serve, em associada ao Estado. Se o colono partia para África sem nenhum conhecimento prévio
primeiro lugar, para fazer a guerra ( 20). Procuremos dizer de outra maneira: a geografia ou específico, os funcionários coloniais deviam dispor de uma bagagem «científica»
serve para fazer a colonização. É certo que a geografia colonial se não pode afastar considerável, capaz de os tornar autónomos e superiores aos Africanos. Na verdade,
das necessidades do conhecimento científico, mas serve também, quando não sobretudo, trata-se até de agir de tal modo que os funcionários possam ensinar a África aos
para determinar as condições da organização da pilhagem económica, que deve ser Africanos.
apoiada pelas técnicas de dominação do Outro. A etnologia não é senão um ramo desta A história de África estava ausente das preocupações portuguesas, porque
geografia colonial. Foi Jayme Batalha Reis, intelectual da geração de 70 ( 21 ), agrónomo considerada inexistente ou impossível a propósito das populações africanas, ao passo
de formação, professor universitário e diplomata, estreitamente associado aos projectos que os estudos geográficos, botânicos e as ciências consideradas neutras, os estudos
da SGL, que pôs em evidência o papel fundamental da investigação e da informação antropológicos, se bem que limitados à antropologia física, progridem mal-grado a
geográfica «para o conhecimento [do mundo] e [a sua] exploração» ( 22), sem nunca indiferença e, pior, o desdém dos quadros da administração colonial.
esquecer, contudo, que a geografia alimenta os projectos e as pretensões políticas O desfasamento entre os interesses elaborados pela metrópole colonial e os
portuguesas: «quando há pouco, a luta pela posse do que era português em África responsáveis pela administração nas colónias só podia ser corrigido a partir do momento
lançou nas discussões veementes da imprensa periódica os nomes das regiões, dos rios em que o pessoal recrutado em Portugal tivesse adquirido a formação «adequada» (27),
e dos povos das colónias africanas, poucos puderam, em Portugal, fazer uma ideia capaz de o tornar sensível aos problemas antropológicos/etnográficos. Esta formação só
exacta da importância territorial do conflito» ( 23). Acrescenta ainda, a propósito das podia, contudo, tornar-se eficaz a partir do momento em que a administração colonial
Revistas Geográficas ( 24) então criadas, que elas «propõem-se formar em Portugal sobre verificasse a necessidade de conhecer a antropologia das populações submetidas, para
a geografia da África e (...) do Brasil uma consciência pública (...) Uma outra razão melhor as dominar. Esta situação nova intervém em Angola imediatamente após a
há ainda para assim se proceder: Portugal tem de ser um grande centro de comércio proclamação da República (5 de Outubro de 1910), quando os governos republicanos —
e a África (...) para os Portugueses um grande centro de acção. Por isso, a geografia, aproveitando o trabalho dos administradores nomeados pela Monarquia, particularmente
sobretudo a geografia africana, deve (...) ser uma das disciplinas mais ensinadas às Paiva Couceiro, no caso angolano — procuram racionalizar a exploração colonial.
crianças portuguesas, destinadas a ser os futuros comerciantes (...) navegadores (...)
exploradores (...) colonos de raça portuguesa» (25).
Este hino à geografia não fica por aqui, já que Jayme Batalha Reis acrescenta que II. Conhecimento antropológico e administração colonial na
«a inteligência colonial é, em grande parte, uma aplicação da inteligência geográfica...». primeira metade do século XX
Salienta ainda o agrónomo português ser impossível compreender e tirar proveito de um
«país que não se conhece, e só se pode conhecer (...) quando se tenha adquirido o hábito O projecto de um recurso sistemático à antropologia, meio de conhecimento e, por
da observação geográfica inteligente, quando se tenha aprendido a ver e a descrever o isso, meio de gestão política, só pode, por essas razões, aparecer após 1910. É certo que
que se vê» (26). Henrique de Paiva Couceiro — o último governador-geral nomeado pela Monarquia —
A intervenção destes homens do saber, completamente separados dos problemas se mostrou um militar atento aos valores antropológicos, no texto que consagrou às
literários que continuam a ocupar a cena principal da cultura portuguesa, permite ver populações do Sul de Angola ( 28). Mas não foi capaz de transformar o conhecimento
antropológico num dos vectores da organização da administração colonial portuguesa.
O abalo provocado pela mudança de regime veio favorecer o discurso modernista, que
Lacoste, 1974. queria utilizar o conhecimento antropológico como um dos suportes de uma administração
Membro da S. G. L., foi um dos intelectuais que mais se entusiasmou com a criação de uma colonial menos tradicionalista, quer dizer, menos dependente dos fantasmas do tráfico
Escola Colonial, sendo um ardente defensor dos «direitos» de Portugal em África. negreiro e da escravatura.
Reis, 1941, p. 85.
Id., ibid.
Estas Revues Géographiques propõem-se aumentar o conhecimento geográfico, mas sobretudo
contribuir para a banalização de uma visão colonial do mundo, em particular da África. Reis, 1941,
pp. 397-402.
Id., ibid., pp. 88-89. Margarido, 1975, p. 322.
(26) Id., ibid., pp. 401-402. Couceiro, 1892.

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RC(JRSOS DA MODERNIDADE EM ANGOLA
A instauração deste novo processo só podia ser muito lenta: era obrigada a sacudir
com mão pesada as crenças e as práticas da maior parte dos colonos, homens que apenas Por esta via, foi possível dividir Angola em quatro regiões antropológicas: a metade
acreditavam no pragmatismo das acções quotidianas. Esta recusa de um projecto colonial, norte da costa ocidental, que chegou ao conhecimento dos Portugueses nos fins do século
e até pessoal, de longa duração estava destinada a travar qualquer tentativa de organização XV, onde se instalam colonos que serão dentro em pouco reforçados por missionários
do discurso científico. Para mais, a administração angolana dividia-se em dois ramos, recrutados em toda a Europa, mais particularmente em Espanha e Itália; a metade sul da
o civil e o militar, cujas intervenções nem sempre coincidiam. Se os civis queriam lucros, costa, conhecida um pouco mais tarde, uma vez que os portos ofereciam abrigos seguros
os militares queriam também promoções e condecorações e, eventualmente, glória. Não às embarcações; a metade norte-oriental, conhecida muito tempo depois, a partir da segunda
surpreende, por isso, que as informações antropológicas tenham sido reduzidas ao metade do século XVIII, mas a respeito da qual as informações só começaram a adquirir
mínimo possível: os Angolanos e os Africanos não passavam de meros objectos de coerência desde 1840; enfim, a metade sul-oriental, onde se regista um fraquíssimo
dominação. povoamento de grupos, na maior parte dos casos nomadizantes, e que só será conhecida
Nem as próprias sociedades científicas, como foi o caso da tão citada SGL, muito mais tarde, na maior parte dos casos já no século XX.
consideram a informação antropológica como uma necessidade imediata. Os Africanos Durante o primeiro período do governo de Norton de Mattos (1912-1915)`,4oram
devem muito simplesmente submeter-se à autoridade portuguesa, sendo qualquer recusa feitos esforços para levar a cabo um autêntico trabalho antropológico. Os responsáveis
punida pelas forças militares. Na prática, os Africanos não aceitam, na maior parte dos políticos querem dispor de um conhecimento suficiente das populações angolanas, que
casos, esta submissão, que devia ser automática, o que obriga as autoridades e, mais deve servir para racionalizar o trabalho da administração colonial.
ainda, os comerciantes a estabelecerem acordos. O princípio altivo da submissão As primeiras medidas foram tomadas já em pleno período republicano, em 1911,
automática — quando não congénita — é substituído por práticas muito mais flexíveis, quando o governo era assegurado pelo secretário-geral, Manuel Moreira da Fonseca.
marcadas pelo sentido da negociação. A legislação multiplica as decisões destinadas a garantirem a organização de uma
A dimensão real das relações entre os colonos portugueses e as autoridades africanas autêntica investigação científica:
é aceite como um mal menor para permitir a sua organização entre as duas comunidades,
sem por isso renunciarem levar a cabo um grande número de operações destinadas a A Lei n.° 832, de 5 de Agosto de 1911, aprova o Regulamento das Circunscrições
subverter o que ainda se mantinha, no que diz respeito à hegemonia africana. Civis da Província de Angola (29), cujo artigo 25-10 convida os funcionários da
Se não podemos dizer que se tratava de uma forma de indirect rule, tal como este administração a prestar atenção aos «costumes dos indígenas (...) desde que não
se generalizou em algumas colónias britânicas, incluindo as africanas, a partir dos anos ofendessem os direitos de soberania [dos Portugueses] ou não repugnassem aos princípios
da humanidade» (30);
1920, devemos, apesar disso, reter esta espécie de antropologia pragmática ins-
talada não a partir de um discurso de carácter científico, mas sim das necessidades O Decreto n.° 215, de 23 de Fevereiro de 1912, dá instruções às autoridades
imediatas dos agentes portugueses, comerciantes, assim como funcionários da administrativas, convidando-as a responder a um inquérito etnográfico a partir das
administração. informações fornecidas pelos «chefes indígenas, os missionários, o pessoal subordinado
e as pessoas ilustradas da região» (31);
Está-se perante uma combinatória singular, cuja organização não é levada em
conta pelos raros antropólogos portugueses. Todavia, esta situação terá de modifi- 3) O Decreto n.° 266, de 5 de Março de 1912, decide a criação do Museu
car-se sob a pressão dos modelos internacionais. Modificação pouco importante, mas Etnográfico de Angola e Congo, destinado a permitir que o investigador, o colono
significativa, que intervém, como sempre, quando a administração das colónias é forçada acabado de chegar, o comerciante, o funcionário colonial possam conhecer «o tipo
a dar-se conta do passo em frente efectuado pela investigação científica das outras cultural das (...) populações semicivilizadas», cujos traços eram considerados tão curiosos
e ainda tão mal estudados (32).
potências coloniais. Face a esta situação, mobilizam- as energias para se procurar
colar ao pelotão do conhecimento, o que determina a organização de inquéritos, destinados
O secretário-geral de Angola pôde contar com a colaboração de Alberto Osório
a fornecer as informações que, em princípio, deviam servir para alimentar os
de Castro, que pertencia ao quadro da magistratura do Ultramar e era, na época,
conhecimentos nacional e internacional, sem esquecer os interesses sempre legítimos da
administração. membro do Institut Ethnographique International de Paris. Este intelectual — que
começara a sua carreira em Timor — propusera-se «dispor metodicamente, segundo as
Foi em Angola, a mais rica e a mais pretendida e, por isso, a mais protegida das
colónias portuguesas, que nos encontrámos perante as mudanças introduzidas neste
domínio específico. Estas operações são tanto mais necessárias quanto a colónia apresenta
também uma complexidade e uma diversidade antropológicas que devem ser esclarecidas, Pereira, 1986, p. 201.
para permitir uma gestão eficaz. É necessário reduzir os conflitos, única maneira de Id., ibid.
aumentarem as produções e os lucros, tanto os do Estado como os dos colonos. Boletim Oficial de Angola, 8, 24 de Fevereiro de 1912,
Id., 10, 9 de Março de 1912, Id., ibid. in Pereira, 1986, p. 201.
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indicações da museologia etnográfica e arqueológica, as colecções que na Secretaria do convenientes a respeito dos funcionários que participaram nesta colecta de dados, eles
Governo se recebessem» (33). continuam a ser de uma utilidade indiscutível.
De facto, os dois funcionários parecem muito inspirados pelos esforços teóricos e Apesar dos projectos do autor, que queria contribuir para o «estudo das populações
práticos de Van Gennep, citado no Decreto n.° 266, como sendo «o sábio director da indígenas nas partes que mais devem interessar ao seu governo e administração, isto
Revue d'Ethnographie» ( 34), uma das leituras destes intelectuais que apostam num é, do ponto de vista sociológico, habilitando o governo com os elementos indispensáveis
conhecimento extenso da cultura dos outros, sem por isso renunciarem, de maneira para a elaboração da legislação especial para indígenas» ( 39), estas informações nunca
alguma, à convicção da superioridade racial dos brancos. foram utilizadas pelos responsáveis pela administração de Angola.
Retenha-se a importância desta tentativa, não devendo contudo esquecer-se o carácter Digamos as coisas de outra maneira: este inquérito, que procura, uma vez mais,
restritivo que põe em evidência a maneira como alguns intelectuais portugueses, muito pôr a antropologia ao serviço da administração, reduz-se a um elemento mais na longa
bem informados das escolhas europeias, pensam os Angolanos fora da civilização, pois litania das operações vãs da mesma natureza ( 40), destinada a responder às práticas
que as suas práticas culturais só são consideradas como meras curiosidades. Esta administrativas das potências coloniais, que parecem apoiar-se em pesquisas
amputação da substância dos valores africanos deixa já entrever os limites culturais e antropológicas assaz estruturadas, em particular na África anglófona.
políticos do recurso à antropologia. Seria, por isso, excessivo concluir pela existência Poderemos nós dizer, perante este trabalho, estarmos diante de uma «nova consciência
de uma modificação tão inesperada quanto radical da visão portuguesa, o que não nos etnográfica» ( 41 ) no que diz respeito a Angola? Parece bem que devemos responder pela
impede de reconhecer, estarmos perante uma situação que teria podido retomar os laços negativa, como de resto salienta o próprio Norton de Mattos, ao evocar as condições
com as técnicas e os projectos elaborados por Henrique de Carvalho. em que se processou o seu regresso à administração de Angola, em 1921: «tudo o que
O governo de Norton de Mattos reforça esta orientação: o Decreto n.° 372, de 17
eu tinha construído [para assegurar a posse das terras aos Africanos] fora des-
de Abril de 1913, cria o Serviço dos Negócios Indígenas e de Reconhecimento e
truído» (42).
Exploração Científicos ( 35 ), que dará lugar, alguns meses mais tarde, por via do Decreto Nestas condições, podemos observar que, se grupos restritos, pertencendo à elite
n.° 175, ao Secretariado dos Negócios Indígenas (36).
cultural portuguesa, são levados a encarar a possibilidade de concentrar uma informação
Foi também sob a administração de Norton de Mattos que Ferreira Diniz, que tinha
antropológica abundante, destinada, em princípio, a ajudar a gestão científica das
a seu cargo a responsabilidade destes Negócios Indígenas ( 37), organizou uma espécie
populações, na prática, é a mentalidade do pequeno funcionário ( 43) e do pequeno colono
de inquérito de carácter «nacional», devendo os questionários etnográficos ser preenchidos
que dominam, para impor as soluções que lhes convêm, centradas em torno de dois
pelos funcionários da administração colonial. Os resultados deste inquérito ( 38) foram
eixos: a «recuperação» das terras, não só nas regiões agrícolas, mas também nas da
reunidos, em 1918, num espesso volume, intitulado Populações Indígenas de Angola,
pastorícia, e o recrutamento da força de trabalho, tão numerosa e gratuita quanto
que não encontrou o mínimo eco na comunidade científica. Durante anos, a edição
possível, sem se deixar entravar por considerações humanistas.
envelheceu nos alfarrabistas, e mesmo que o autor não nos forneça as informações
O fracasso das tentativas de conhecimento propostas por homens esclarecidos,
ocupando postos-chave na administração angolana, é o resultado do tipo de colonização
escolhido pelos Portugueses, frequentemente criticado por alguns responsáveis políticos
Id., ibid., p. 202. O secretário-geral de Angola, Manuel Moreira da Fonseca, pôde contar com a da época, que se opunham a que as colónias se transformassem em «vazadoiro do que
colaboração de Alberto Osório de Castro (1868-1946).
Pereira, 1986, p. 201.
há de pior, de menos socialmente útil na sua população [da Metrópole]» ( 44). Os colonos
Id., ibid. eram na quase totalidade homens pobres, degredados ( 45) não poucas vezes, sem
Id., ibid.
A administração portuguesa, obrigada a mostrar-se eficaz, consagra a partilha colonial, que confirma
a existência de uma sociedade a duas velocidades. Diniz, 1918, p. VI.
Um documento manuscrito de 1857 b — AHNA, Avulsos, doe. n.° 132 — permite dar conta da A respeito desta questão, ver Moutinho, 1980.
maneira como são evocadas em África as preocupações de uma certa antropologia física, preocupada com os Pereira, 1986, p. 202.
caracteres somáticos das raças humanas. O comandante Liony, de Cambambe, numa nota enviada aos «comandantes Ver Mattos, 1944, III, pp. 234-237, sobretudo p. 235.
de divisão», insiste para que sejam cumpridas as ordens do governo, remetendo «amostras de cabelos de todas As ordens de Lisboa, onde estava instalada a administração central, são simplesmente ignoradas
as espécies animais», incluindo o homem. Estes funcionários devem levar em linha de conta algumas indicações pelos funcionários espalhados no mato. Esta situação não faz mais do que reforçar o choque entre os
técnicas: cada madeixa de cabelos deve ter a espessura de um dedo. Os «cabelos dos animais masculinos» devem «práticos» e os «teóricos» ou «ideológicos», que é uma das constantes da história colonial portuguesa.
ser separados dos «animais femininos». Era necessário respeitar os mesmos princípios de separação quando Camacho, 1923, p. 64.
havia mistura de sangue, quer dizer, branco, preto e mulato, e neste último caso qual era a percentagem do (45) Degredado: desterrado por razões aflitivas ou infamantes. Convém contudo reter o carácter específico
cruzamento. Deviam agir de tal modo que alguns destes cabelos fossem fornecidos com as raízes. Os «idiotas» da criminalidade portuguesa, onde não há crime organizado. A maior parte dos condenados tinha cometido
e os «doentes» não estavam excluídos desta colecta. O eco das preocupações científicas da Escola de Antropologia crimes associados às questões do património, mais particularmente o que se refere às heranças ou então à
de Paris continuava a caracterizar as operações científicas portuguesas. afectividade, sendo o ciúme um mecanismo que fabrica assassinos, tanto homens como mulheres.

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conhecimentos intelectuais muito importantes, na maior parte das vezes analfabetos ou Dois homens definem esta nova orientação da política colonial, Quirim Avelino
quase, que não se detinham a considerar o que podia vir a ser esta meia-civilização que de Jesus e António de Oliveira Salazar. O presidente do Conselho de Ministros — a
seria o traço principal das populações angolanas: eles viam apenas selvagens que era partir de 1933 — é um especialista dos equilíbrios financeiros, mesmo que ainda hoje
necessário submeter, para os tornar úteis aos colonos. Foi de resto isso que autorizou, se insista em defini-lo como sendo um «economista». Para se manter fiel à sua política
ou até impôs, a continuação do trabalho forçado, que a maior parte dos observadores de orçamentos equilibrados, no que foi ajudado pelo choque provocado pela crise da
neutros não hesita antes em classificar como a forma moderna da escravatura bolsa de Nova Iorque de 1929, reforçado pela desvalorização da libra, Salazar adoptou
portuguesa (46). uma política de «rigor» que, se permitiu alimentar o espírito nacionalista, amputou, no
mesmo movimento, toda e qualquer possibilidade de desenvolvimento das colónias,
É de resto indispensável salientar as mudanças verificadas na política de Norton
assim descapitalizadas até ao fim da Segunda Guerra Mundial (51).
de Mattos, durante o seu segundo período de governo (1921-1923): a sua preocupação
O Prof. Salazar empenhou-se numa política destinada a manter os estrangeiros —
central já não busca assegurar o conhecimento dos Africanos, nem sequer a formação e às vezes os chamados «estrangeirados» — afastados das funções administrativas e
das comissões de inquérito etnográficas, mas agir de maneira a fazer aparecer as económicas, tendo como objectivo impedir a implantação de companhias estrangeiras,
condições necessárias ao desenvolvimento de uma colonização europeia em Angola, nacionalizar as existentes e proteger os quadros técnicos portugueses (52). Mas ao forçar
como salienta o Decreto n.° 122, de 28 de Março de 1922 (47). as colónias a serem financeiramente auto-suficientes, ao proibir-lhes o recurso aos
É já dentro deste espírito, que organiza, em 1923, o Congresso de Medicina empréstimos, ao travar os investimentos estrangeiros, Salazar maltratou ou condenou
Tropical da África Ocidental, cujos objectivos são «o estudo, troca de ideias e resolução à morte as estruturas administrativas organizadas e modernizadas por Norton de Mattos.
de assuntos que interessam à saúde e à higiene dos povoamentos europeus e indígenas Os nativistas africanos (53), assim como os colonos, perdiam os benefícios e os
da África Ocidental» (48). É impossível deixar de observar que não se trata da saúde privilégios que lhes tinham sido consentidos pelos governos republicanos (54). Esta
abstracta dos homens, mas de distinguir cuidadosamente, mesmo que em termos política destruidora é completada pelo ministro das Colónias, Armindo Monteiro, que
tecnicamente médicos, o que diz respeito ao Branco e o que se refere ao Africano. chega ao ponto de proibir a importação de bens essenciais numa colónia tão extensa
Sob a pressão das crises que se sucedem no fim da Primeira Guerra Mundial, os e a decretar medidas destinadas a reduzirem a emigração dos colonos portugueses, que
ventos políticos mudam em Portugal, o que obriga Norton de Mattos a abandonar o seu só podem aceder à colónia, dispondo de uma carta de chamada (55).
cargo, na medida em que não pode levar a cabo os seus projectos coloniais. O golpe Muito recentemente, um antropólogo português de origem caboverdeana (56)
de Estado de 28 de Maio de 1926, que provocou uma revisão dramática do sistema interrogava-se a respeito da intervenção tardia do projecto colonial português, e avançava
político português, acaba por transformar a ditadura militar em Estado Novo. Esta
mudança das perspectivas políticas portuguesas não podia deixar de provocar uma
revisão do sistema da colonização, embora ele não seja muito importante: este processo
Esta política baseia-se no princípio absoluto do equilíbrio financeiro: as colónias só podem
é relativamente indiferente à cor política dos homens que governam (49).
despender o que produzem, sem recorrer .3 financiamentos exteriores. Desta maneira, o investimento
A primeira fase desta ditadura caracterizou-se pelas intervenções decididas do torna-se praticamente impossível. Ver Cunha Leal, o. c.
ministro das Colónias, comandante João Belo, destinadas a pôr termo ao contencioso Trata-se das operações destinadas a reafirmar o carácter «português» das colónias, operação
com uma África do Sul, que considerava os Portugueses uma espécie singular de sub- tornada mais fácil pela eclosão da Segunda Guerra Mundial. O resgate do caminho-de-ferro da Beira,
-brancos. A segunda fase é marcada pelo Acto Colonial (1930), que foi integrado na em 1942, constitui o ponto mais elevado destas operações. As dificuldades levantadas à livre circulação
Constituição plebiscitada em 1933 (50). dos indivíduos permitiram manter à distância os estrangeiros, incluindo os missionários.
O modelo do movimento «nativista» foi importado do Brasil, certamente após a independência
brasileira (7 de Setembro de 1822). Manteve-se muito activo até 1926, tendo originado a Liga Africana,
associação criada em Lisboa para tornar possível uma política africana de oposição ao colonialismo
Ver Cadbury, 1910. português.
Pereira, 1986, p. 204. A redução do número de lugares na função pública tapou o horizonte dos homens que
1.0 Congresso..., 1923, vol. I, p. 3. dispunham, na maior parte dos casos, da escolaridade obtida nos seminários, e foram impedidos de
Os militares, que haviam organizado o golpe de Estado, tinham na sua grande maioria uma aceder a uma autêntica formação profissional. Ver Raul David, in Laban, 1991, p. 66: «não senhor, no
considerável folha de serviços em África. O primeiro comandante escolhido, general Alves Roçadas, que meu tempo, quem tem pai não vai para um ofício». Dito por outras palavras, procura tornar-se empregado
morreu durante o período preparatório, era um «herói» da ocupação do Sul angolano, ao passo que o de escritório ou funcionário.
seu sucessor, general Gomes da Costa, participara nas operações do Sul de Moçambique (1894-1897), Esta carta de chamada permitia filtrar o acesso às colónias, mas servia também para impedir
tendo sido o responsável pela morte do chefe militar Nguni, Maguiguana, que tentara prolongar a que, em África, aparecessem os desempregados brancos, que poderiam «cafrealizar-se» para escapar às
resistência de Gaza, após a captura de Gungunhana. dificuldades e comprometer a imagem de superioridade dos Brancos.
(50) A operação política é destinada a ligar as colónias à metrópole, para eliminar toda e qualquer Mesquitela Lima, 1985, pp. 23-25. O antropólogo não hesita em afirmar que «a colonização
ideia de autonomia das «províncias» ou das «colónias», sonho de um número importante de colonos. Portuguesa nunca foi uma obra planeada», e «nem sequer havia um projecto colonialista» português.

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a afirmação que este só fora elaborado a partir da proclamação da ditadura militar, em Henrique Galvão, um dos jovens militares que participaram na realização do putch
Maio de 1926. Todos os elementos acumulados permitem-nos constatar que o projecto militar de 1926, nos anos 50, deputado à Assembleia Nacional Portuguesa, denunciou
sempre existiu desde os finais do século XV, se bem que, coisa natural, tenha conhecido o carácter brutal da colonização portuguesa, o que não o impediu de, em 1947, ter dado
várias adaptações às condições civilizacionais. Convém pôr de lado uma das constantes o título de Antropófagos a um livro de reflexão (58), consagrado ao caso angolano. Este
da ideologia colonial, elaborada pela ditadura: Portugal seria um país sem ideologia título simplificador serve para reunir textos dos anos 30 e 40, provenientes dos documentos
colonial, dado que nunca procurou impor a dominação racial do Outro. elaborados pelas autoridades administrativas e destinados a reforçarem a ideia da
É naturalmente necessário esclarecer este problema, admitindo a existência de um selvajaria irremediável dos Africanos.
projecto teórico português, que associa constantemente a prática da dominação à A antropofagia é assim descrita como uma prática inata entre muitos grupos
superficialidade do conhecimento, mesmo quando este visa essencialmente servir os angolanos, como seria o dos Kongoleses, que «regressariam imediatamente à barbárie
interesses comerciais ou económicos. A teoria colonial portuguesa assenta numa base em que tinham vivido durante séculos, no caso de desaparecer a acção permanente dos
simplista mas eficaz: os Europeus devem levar a civilização aos povos selvagens. europeus». O autor acrescenta que graças à «maior antiguidade da ocupação portuguesa
É preciso que estes paguem os lucros recebidos, trabalhando praticamente de graça — (...) [assim como] (...) da nossa acção missionária — tiveram como resultado a extinção
algumas vezes obrigados a garantirem a sua própria subsistência — para assegurar o da antropofagia, como costume, mais cedo no território português e respectivas zonas
enriquecimento dos Europeus. Por esta via, os Portugueses vêem-se como agentes de influência espiritual do que nas colónias vizinhas» (59).
específicos da civilização europeia, à frente dos países europeus que tinham levado anos Nesta perspectiva, a antropofagia seria uma espécie de pendor psicossomático
— séculos até — para descobrir a importância da África no quadro geral das práticas natural na maior parte das populações do Norte de Angola. As missões antropológicas,
criadas nesta data, limitavam-se a efectuar estudos de antropometria, que estavam em
da colonização.
O artigo 26 do Acto Colonial de 1930 assegurava às colónias «a descentralização voga na Europa, e cuja preocupação central era a de qualificar os «tipos raciais» que
administrativa e a autonomia financeira (...) compatíveis com a Constituição Política permitiam pôr em evidência as «diferenças naturais», isto é, biologicamente fundadas,
da República, o seu estado de desenvolvimento e os seus recursos próprios...» (57). que podiam justificar as relações de dominação já existentes no espaço colonial (60).
A hipocrisia do regime salazarista, no que diz respeito às colónias, aparece aqui De resto, a leitura do Outro constitui o eixo teórico central — ela é tanto a causa
de maneira cortante: uma legislação cuja «descentralização e autonomia» não passam como a consequência — do 1.0 Congresso Nacional de Antropologia Colonial, realizado
de mecanismos indispensáveis à conservação de um estado de infradesenvolvimento que, durante a 1.a Exposição Colonial do Porto, em 1934 (61). As preocupações principais
naturalmente, se tornou crónico até aos anos 50-60. A partir do momento em que a dos participantes deste congresso, quase todos especialistas de Antropologia Física,
maioria dos colonos era recrutada entre os camponeses, dispondo de conhecimentos giravam em torno de cinco problemas:
limitados, a colonização não poderá fazer grande coisa para assegurar a divulgação do
A necessidade de introduzir a antropologia na formação dos funcionários, assim
saber moderno entre as populações africanas. É assim possível afirmar que a pior
como na dos missionários, para que eles possam, mais tarde, recolher os materiais
colonização é aquela levada a cabo pelos pobres, pois nunca pode conseguir assegurar
etnográficos, bem servir a administração, permitir o controlo das populações pelo
o enriquecimento global das populações. Estado e levar a cabo a obra civilizadora dos Portugueses em África (62).
Nestas condições, o discurso antropológico só retoma os temas clássicos da Desenvolver a colonização branca: deve substituir-se a «ideia (...) radicada no
antropologia negativa. Trata-se, sobretudo, de fornecer uma razão às convicções dos espírito dos nossos emigrantes, de que se emigra com o simples objectivo de realizar
colonos que querem que o Outro africano se torne no bom dominado, que é possível algumas economias (...) um pecúlio mais ou menos volumoso para regressar endinheirado
utilizar em troca de coisa alguma. à terra natal (...) [por uma ideia] mais patriótica e importante: a de que possuímos
Por todas estas razões não há, para dizer as coisas secamente, uma antropologia extensos territórios ultramarinos onde o clima é bom (...) onde é possível trabalhar e
colonial portuguesa, se exceptuarmos aquela que os funcionásios da administração são
obrigados a inventar na prática para cobrar o imposto e recrutar as centenas de milhar
de trabalhadores que asseguram o funcionamento das obras públicas, da agricultura, das Galvão, 1947, Henrique Galvão organizara a Exposição Colonial de 1934, tendo sido depois
indústrias, do comércio, da pesca e das explorações mineiras. O princípio da rendibilidade nomeado governador da Huíla. O seu discurso «africanista» parecia então traduzir uma experiência
substitui, de maneira cínica, toda e qualquer forma de interrogação que se possa directa.
Id., ibid., p. 119.
interessar pelos particularismos da organização do Outro. O número reduzido de textos Trata-se das missões criadas após as conclusões do I.° Congresso Nacional de Antropologia
publicados só pode confirmar esta orientação. Colonial, em 1934.
Aqui, como em outros lugares, os colonialistas portugueses copiam a exposição francesa que
concentrou, na Porte Dorée, em 1931, os valores do colonialismo francês.
(57) Ver Constituição da República Portuguesa, 1933. (62) Moutinho, 1980, pp. 59-61

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poupar (...) À ideia de que nós, portugueses, vamos para a África apenas para comandar em dados científicos, que parecem, devido ao seu «rigor», rejeitar toda e qualquer
pretos, deve sobrepor-se a ideia de que o que mais convém ao interesse nacional e à possibilidade de confusão entre as raças, o que não deixaria de contribuir para reforçar
economia individual dos emigrantes é a constituição definitiva de núcleos populacionais a armadilha do racismo, que passa de vulgar a científico.
(...) de famílias portuguesas, onde as actividades profissionais se exerçam e repartam
como se se tratasse de autênticas povoações portuguesas metropolitanas» (63).
A manutenção da pureza racial, quer dizer, a organização do processo contra
a mestiçagem: «é preciso também que os colonos ofereçam (...) uma descendência de
III. As mudanças em África e as maquilhagens do discurso português
valor (...) [formada] de indivíduos inteligentes de carácter forte e de capacidades A segunda fase deste longo período ditatorial começa com a expansão económica
hereditárias reconhecidas, capazes de manter em nível elevado a pureza e as energias mundial, que caracteriza os anos seguintes ao termo da Segunda Guerra Mundial e da
da raça, de cujos altos destinos estejam firmemente convencidos. Muitas vezes se aplicação do Plano Marshall à Europa: esta impôs a reorganização das estruturas
apresenta como prova evidente da alta capacidade colonizadora dos Portugueses a económicas coloniais, de maneira a responder aos pedidos de um mercado mundial em
pequena repugnância que manifestam nas aproximações sexuais com elementos de plena mutação, o que provocou a revalorização geral do preço dos produtos coloniais.
outras origens étnicas. É indispensável modificar radicalmente semelhante atitude (...) O fim da guerra fez também explodir as exigências de liberdade dos povos
Quando dois povos ou duas raças atingem níveis culturais diferentes e organizam colonizados: os Africanos participaram nesta revisão dilacerante das condições políticas
sistemas sociais completamente diversos, as consequências da mestiçagem são e económicas da dominação. O peso da gravidade racista da visão portuguesa do Outro
necessariamente desastrosas» (64). tornou-se, então, indefensável e intolerável: teria sido necessário organizar uma nova
A racionalização do trabalho do Outro, quer dizer, como explorar cientificamente legislação, mas sobretudo um discurso capaz de assumir a história da colonização.
o Africano, de maneira a rendibilizar ao máximo o seu labor. Trata-se de obrigar o O discurso colonial da ditadura mostrou-se incapaz da menor mudança, opondo-
Africano a trabalhar em diferentes domínios, levando em conta as suas características
-se a rigidez dos «princípios» a qualquer possibilidade de diálogo, na medida em que
físicas: «à parte a questão sanitária referente aos estados mórbidos, circunstância esta
os Africanos, apenas encarados como dominados, devem submeter-se às vontades dos
que só por si deverá ser a eliminatória prévia em engajamentos para toda a modalidade
colonizadores. Já se não trata de «civilizar», pois que o termo se torna insuficiente, mas
de trabalho violento ou demorado, é preciso proceder aos seleccionamentos baseados
de «domesticar», no sentido em que Michel Serres recorre a esta expressão ( 68). Nestas
nas pesquisas anatomofisiológicas dos indivíduos ou grupos humanos recrutados para
condições, deixou de haver limites para a «domesticação», só podendo o dominado
misteres variados (...) para evitar inutilizações pessoais e fracassos económicos. A
identificar o mundo por meio dos gestos e da palavra do dominador, o que não impede
caracterização do grande desenvolvimento físico relaciona-se com a observação
a África de avançar para a sua mutação, à medida que os mercados internacionais
antropométrica vulgar (...) e quanto ao seleccionamento funcional (...) deve-se efectuar
recuperam as suas funções normais e normativas. Antes da guerra, Angola exportava
mediante as mensurações ergográficas, reflexo-motoras...» (65).
5) A investigação, no terreno, com carácter científico — que assim se distingue cerca de 18 000 toneladas de café, quase exclusivamente robusta. Depois da guerra, este
e se separa daquela organizada pelos funcionários da administração —, levada a cabo número subiu rapidamente para 40 000 toneladas, e os arábicas fizeram a sua aparição.
pelas missões antropológicas, devia orientar-se não somente para os «estudos in loco», Pela primeira vez na sua história, o governo português do Estado Novo decide tomar
mas também fornecer os centros de investigação metropolitanos em material medidas de planificação, integrando as economias da metrópole e das colónias, graças
antropológico fiável, «a obter por exemplo nos cemitérios» ( 66) já que «quaisquer ossos ao plano quinquenal — de boa cepa soviética — de 1953-1958.
que cheguem ao nosso Museu são já um valioso documento antropológico» (67). A nova rendibilidade das colónias, se seduz os futuros colonos, impõe a criação
de novas formas de gestão: o fim da discutidíssima descentralização administrativa, já
Não é difícil dar-se conta da continuidade da política colonial portuguesa. É de que só a integração permite levar a cabo os novos projectos económicos. Nesta nova
resto esta constância que permite identificar o projecto colonia' que atravessa o tempo, óptica, empurrada pelos interesses económicos da metrópole, o governo põe termo à
adaptando-se às novas circunstâncias científicas ou políticas. Se os preconceitos raciais «autonomia económica» que serviu para tornar mais pobres as colónias africanas.
portugueses nunca se procuraram dissimular, tornam-se mais radicais quando se apoiam A legislação acompanha este movimento: a Lei Orgânica do Ultramar Português
substitui, em 1953, a entretanto envelhecida Carta Orgânica do Império Colonial Portu-
guês (69). A importância da mudança aparece de maneira nítida na modificação do
Intervenção de Eusébio Tamagnini. Ver Moutinho, 1980, p. 62.
Intervenção de A. Silva Correia. Ver Moutinho, 1980, p. 63.
Id., ibid., p. 64. Notas de curso do ensino de Michel Serres na Sorbonne, 1974-1975.
Intervenção do presidente da Comissão de Arqueologia da S. G. L., in Moutinho, 1980, p. 64. Carta Orgânica do Império Colonial Português. O colonialismo português pretende um
(67) Id., ibid. Trata-se, como no passado, de seguir o modelo das operações organizadas por Paul Broca. alargamento do território, acrescentando à parca superfície europeia a massa territorial das colónias.

74 75
vocabulário, pois que o Império — que fora recuperado junto dos projectos totalitários Os estudos portugueses votados a África, durante este período, são totalmente
europeus — desaparece, para se transformar num ultramar português, assaz neutro. No dependentes da muleta teórica da assimilação, não deixando, por isso, de estar impregnados
mesmo quadro, «colónias», «colonial» e «colonização» são palavras substituídas por pelas teses, cada vez mais banalizadas, do luso-tropicalismo. O Estado Português, que
«ultramar», «ultramarina» e «integração», enquanto as colónias voltavam a ser as durante muito tempo desprezara a riqueza desta abordagem teórica, serve-se dela
«províncias ultramarinas». constantemente, com boas ou más razões.
«São vários os homens de ciência portugueses (...) que vêm (...) reorientando as
Trata-se de respeitar as regras da nova Constituição da República (1951), que
suas investigações em diferentes especialidades em torno das relações da gente lusitana
definem as «províncias ultramarinas como parte integrante do Estado português (...) com os trópicos, sob o critério luso-tropical» (72), afirma Gilberto Freyre, em 1961. Cita
solidárias entre elas e solidárias com a Metrópole» (70). Uma mudança importante, do então os nomes de Almerindo Lessa (73) na medicina, de Orlando Ribeiro (74) na
ponto de vista do povoamento, consiste num aumento do fluxo de colonos europeus. geografia, de Marcelo Caetano e de Adriano Moreira (75) no direito e na gestão do poder,
Esta branquização do território, se provoca um choque entre as burguesias — a sem esquecer Jorge Dias (76), que desempenhou um papel fundamental na evolução da
metropolitana e a angolana—, impõe a liquidação institucional da separação proclamada antropologia cultural portuguesa (77).
entre 1930 e 1933, quer dizer, entre a publicação do Acto Colonial e a sua integração A reorganização da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (78)
na Constituição. entra no quadro da renovação. A reestruturação da administração permite — ou impõe —
É neste novo quadro político e económico que a noção de assimilação e o princípio a reorganização da investigação. Trata-se de dar «à investigação científica nas colónias
de integração adquirem uma nova densidade sociopolítica. Os «indígenas» podem tornar- (...) novo impulso que lhe permita contribuir (...) com maior eficiência, para os progressos
-se «assimilados», categoria que se caracteriza por uma situação indefinida, entre duas da técnica e da política de colonização» (79). Na história dos passos científicos dos
águas: nem africanos nem europeus, mas sim «cidadãos» portugueses de pele escura. Portugueses para ir ao encontro do Outro, trata-se de definir de maneira menos mesquinha
a relação entre o conhecimento científico e a gestão colonial.
A nação portuguesa, que vai da Europa à África e à Ásia — sem esquecer a América,
Esta preocupação, perante a fragilidade clássica da investigação científica, provoca,
por via do Brasil, país-filho ou país-irmão —, aparece como uma entidade política em 1949, uma série de colóquios organizados pela Junta de Investigações Coloniais (80), para
moderna, capaz de assegurar não só a presença portuguesa no mundo, mas também
lucros cada vez mais volumosos.
Esta situação permite a hierarquização da nova sociedade colonial: os colonos (de (72) Freyre, 1961, p. 2. Esta obra de Freyre, publicada após a realização do Congresso Internacional
facto os portugueses de Angola), os assimilados (quer dizer, os africanos que começaram de História dos Descobrimentos, no quadro das comemorações do V Centenário da Morte do Infante
a tornar-se portugueses) e os indígenas (os africanos que esperam um dia alcançar o D. Henrique, propõe-se reflectir a propósito dos métodos utilizados pelos Portugueses para conseguir
a integração dos «povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização:
purgatório da assimilação). O bloco dos «civilizados» encontra-se reforçado pelos
luso-tropical» (subtítulo da obra em referência).
«assimilados», rejeitados, no entanto, pelas autoridades administrativas, que receiam, (73) Id., ibid. Almerindo Lessa, médico especializado na sero-antropologia, que se tornou uma
acima de tudo, estes «pretos» que, tendo frequentado a escola, não hesitam em pegar espécie de complemento do luso-tropicalismo. Ver Almerindo Lessa e Jacques Ruffié, «Soro-antropologia
na caneta para se queixar das exacções cometidas, quer junto dos responsáveis portugueses das ilhas de Cabo Verde — Mesa redonda sobre o homem Caboverdeano», in Estudos, Ensaios e
quer das instituições internacionais, tais como a ONU. Documentos, JMGIU, Lisboa, 1957.
Os assimilados que se encontram, às vezes, em concorrência com os colonos, Id., ibid. Orlando Ribeiro, geógrafo, consagrou uma parte da sua actividade à geografia das
«colónias», convencido de que «a geografia e a etnografia podem fornecer, à administração e à política
alguns dos quais só possuem competências mínimas, nem por isso deixam de se apresentar colonial, bases muito mais sólidas», IICT, 1983, p. 143.
como candidatos aos lugares que lhes deviam ter sido reservados. Para limitar o número Id., ibid.
destes concorrentes, os responsáveis administrativos mostram-se muito rigorosos no Id., ibid.
exame das condições exigidas para que os «indígenas» possam ser considerados como As teses de Freyre receberam recentemente um novo impulso graças ao historiador Jorge
«assimilados». Ou por outras palavras: a criação dos assimilados, que parecia reforçar Borges de Macedo que, num artigo intitulado «O luso-tropicalismo de Gilberto Freyre — Metodologia,
prática e resultados», Revista ICALP n.° 15, Março de 1989, pp. 131-156, mantém, quando não reforça,
a lógica interna da colonização, limitou-se a criar uma frente, opondo os colonos menos
delírio colonial português.
preparados aos «africanos assimilados» (71). (78) A Junta das Missões Geográficas e das Investigações Coloniais, criada em 1936, foi reformada
Sendo assim, como se organiza então o discurso científico consagrado a este Outro em 1943 e em 1973. Extinta em 1979, transformou-se então no que continua a ser, nos dias de hoje,
tão movediço? Como organizar o conhecimento dos Africanos? Instituto de Investigação Científica Tropical. Ver Da Comissão de Cartographia..., 1983.
(79) Id., ibid., p. 135.
(80) Estes colóquios decorreram em 1949 e em 1950, neles ocupando a geografia o lugar central,
devido ao peso da tradição da investigação portuguesa referente ao Ultramar, mas consequência também
Artigo 135 da Constituição de 1951. da presença e do peso científico e ideológico de Orlando Ribeiro. Ver Da Comissão de Cartographia...,
Pereira, 1986, p. 215. 1983, pp. 141-144.

76 77
discutir esta questão, à qual deve ser dada uma solução rápida ( 81). Foi sobretudo a partir Dias pensa então organizar um Museu de Etnologia do Ultramar. Tal se fará em 1962,
dos anos 50 que os estudos de antropobiologia conheceram uma renovação. Mas foi também quer dizer, cerca de um ano após a eclosão da guerra de independência angolana.
durante este período que um homem, dispondo de uma formação de etnólogo, com trabalho O governo português procura reagir a esta explosão angolana, procedendo ao
de campo em Portugal, foi chamado a dirigir a investigação científica colonial. reforço do esforço militar, sem esquecer a importância potencial do discurso científico.
«Já não era mais possível encarar os Africanos como uma massa amorfa de Não esqueçamos, contudo, que a renovação dos estudos antropológicos em Angola
As conclusões
trabalhadores braçais ou bons selvagens que havia que saber explorar» ( 82). se fez, nas regiões orientais, graças à Diamang, Companhia de Diamantes de Angola.
da Conferência de Bandoeng constituem um aviso muito sério que os responsáveis pela A Diamang, certamente influenciada pelos accionistas belgas, não se recusa a uma
política colonial portuguesa não podem desconhecer. Torna-se, por isso, urgente actividade de mecenato, que cobre um campo muito largo de investigações, médicas ou
reorganizar o trabalho científico consagrado ao Outro. Jorge Dias recebe então a biológicas, geológicas ou antropológicas. A criação do Museu do Dundo, ao qual são
responsabilidade de dirigir a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar associados alguns escultores quiocos, permite concentrar a criação etnológica e artística,
Português, destinada a assegurar o estudo dos Africanos, das suas práticas, das suas
frequentemente ajudada pelas ofertas das populações locais, que põem em segurança, no
aspiraões, das suas motivações. Museu, os objectos civilizacionais que desejam proteger das contingências do quotidiano (86).
E quase certo que o elemento mais singular nesta designação, e também nos seus
objectivos, reside no facto de os Portugueses considerarem os Africanos como simples Seja como for, a investigação antropológica, consagrada às regiões e às populações
«minorias étnicas», numa curiosa inversão da realidade demográfica da situação. angolanas do Nordeste — e que se estendem ao Zaire e à Zâmbia —, foi deveras
A única minoria étnica seria, nesta situação colonial, a formada pelos Portugueses, se importante, mobilizando etnólogos portugueses formados no contacto com o terreno:
aceitarmos a definição de etnia proposta por Vacher de Lapouge ( 83). Esta distorção José Redinha, então ao serviço da Diamang, Mesquitela Lima, funcionário da
da verdade demográfica acaba por reforçar a orientação colonial clássica dos Portugueses: administração colonial, como era também o caso de Eduardo dos Santos, de Vicente
reduzir ao mínimo estrito o peso dos Africanos para reforçar, de maneira absurda, a Martins e de Castro Soromenho, entre outros (87).
importância da minoria branca portuguesa. É fácil verificar-se que não há em Angola um autêntico projecto de investigação
Foi neste quadro institucional que Jorge Dias e os seus colaboradores foram etnográfica. A quase totalidade desta produção está consagrada a uma região sob a
levados a redigir e a publicar, após cinco campanhas de investigações junto dos Makondes direcção da administração da Diamang. A maior parte dos etnólogos são funcionários
(1956-1960), a mais completa e exaustiva monografia portuguesa consagrada à etnologia
da administração, sendo a sua formação científica deveras reduzida, mesmo que alguns
africana, a dos Makondes de Moçambique ( 84). Henrique de Carvalho, o especialista
das populações do Nordeste angolano, quase encontra um duplo em Moçambique. tenham aumentado depois. José Redinha, por exemplo, não possui a menor formação
Os projectos de trabalho da Missão permitiram que fossem levados a cabo outros científica e, do facto, se ressente constantemente a obra que publicou (88).
estudos de carácter etnológico em Angola e em Moçambique ( 85). Para dar coerência À frente dos Serviços da Administração Civil ( 89), o director Manuel Figueira
à organização das colecções dos objectos recolhidos ou comprados em África, Jorge retomou um hábito antigo dos responsáveis da administração, impondo aos funcionários
em actividade — que na maior parte dos casos aceitam muito mal esta obrigação de
escrever — a elaboração de uma monografia consagrada à população que administram,
destinada a ser publicada no Mensário Administrativo, que se manteve durante muito tempo
Id., ibid. como a única revista angolana, quase regular, consagrada à produção etnográfica (90).
Pereira, 1986, p. 218.
Georges Vacher de Lapouge (1854-1936) propôs, em 1896, a criação do conceito de «ethnie»,
na medida em que não queria utilizar nem povo, nem nação, nem estado, etc. Ver Les selections raciales.
Cours libre des sciences politiques, professé à l'Université de Montpellier en 1888-1889. Paris, Librairie
Thori, 1896. O Museu do Dundo parece ter sido entendido pelas populações quiocas como um lugar de
A escolha deste grupo é reveladora da dependência da antropologia portuguesa. Em 1956, após
preservação das suas criações plásticas. É assim que podemos explicar que um certo número de objectos
uma viagem em Angola, em busca de um grupo «acéfalo», no sentido de Evans-Pritchard, Jorge Dias
lhe sejam oferecidos pelos chefes políticos. Ver José Osório de Oliveira, 1954.
acabou por escolher os Makondes, que lhe pareciam responder melhor às condições socioculturais
As investigações destes antropólogos, apesar do seu carácter demasiado descritivo e limitado
definidas pelo antropólogo britânico. Ao fazer esta opção, Jorge Dias pretendia furtar-se a qualquer
pelas regras e pela ideologia coloniais, continuam a ser fundamentais para o conhecimento das populações
compromisso com uma antropologia aplicada, que o teria colocado numa situação de dependência em
desta região de Angola.
relação à administração colonial portuguesa. Informação de Alfredo Margarido, que acompanhou Jorge
Só muito tarde José Redinha pôde frequentar a Universidade em Lisboa, tal como aconteceu
Dias durante o seu trabalho de prospecção em Angola. a Mesquitela Lima, que completou a sua formação em Paris.
(85) Por exemplo, as investigações de Manuel Viegas Guerreiro entre os Bosquímanes do Sul de Ver nota 38 deste capítulo.
Angola; missões organizadas nas regiões de Humbe, Ambares, Gambo, Mussorongo, Muxicongo e
Quiocos em Angola, e nos territórios Chope, Maganja, Changane e Ronga no Sul de Moçambique, às (90) A qualidade é muito irregular e frequentemente organizada com base nas pequenas monografias
exigidas aos funcionários que se inscreviam nos concursos de promoção.
quais está também associado o nome de Margot Dias.
79
Jorge Dias acredita na justeza dos princípios teóricos que a política colonial também, a maneira como a antropologia — oficial ou particular — se comprometeu com
o Estado Novo. O aparelho colonial português dissimulava atrás de uma máscara
portuguesa, alimentada pelas teorias do luso-tropicalismo, como mostram as suas muito
científica a dureza repressiva das suas intervenções.
numerosas declarações ao longo da sua carreira de etnólogo e de professor universitário. A ausência de neutralidade, que caracteriza este espaço privilegiado das ciências
Já em 1956, ele salienta que «a chamada expansão ultramarina portuguesa tem (...) um humanas consagradas ao estudo do Outro, é confirmada pela geografia que procede, de
significado de alta transcendência para a história da humanidade. A acção dos Portugueses igual modo, à apologia da colonização portuguesa (95), ao passo que a história nem
não se pode confundir com os movimentos colonizadores das nações capitalistas, que «sequer se dá conta» da existência dos Africanos como sociedades organizadas e
instituíram um tipo de relações humanas com base na diferenciação racial, em que complexas, portadoras de culturas seculares. A história não tem razão nenhuma para
contrastam raça superior dominadora e raça inferior dominada» (91). inflectir a sua posição, dada a maneira como as demais ciências humanas maltratam
Contudo, Jorge Dias havia de ser obrigado a dar-se conta não do rigor da teoria a realidade africana. Por essa razão, a história fica amarrada ao elogio dos factos
mas das verdades que resultavam do seu trabalho de campo. Num documento confi- heróicos dos Portugueses, não esquecendo o seu papel fundamental na tarefa considerável
dencial, destinado aos responsáveis da investigação, Jorge Dias salienta a existência de de «civilizar» os Africanos.
uma situação muito diferente do paraíso exibido pelo luso-tropicalismo: «ao contrário
daquilo que em geral se pensa, e que eu também pensava, os pretos, hoje (...) temem-
nos, muitos detestam-nos, e quando nos comparam com outros brancos é sempre de
maneira desfavorável para nós» (92). Acrescenta também que o Português «habituou-
se a considerar-se de tal maneira um ser superior que não dá por nada (...) nem mostra
a mínima cortesia ao falar com pretos instruídos ou assimilados, nem muito menos
pensa em estender-lhes a mão. Desta maneira vai-se cavando um abismo absolutamente
desnecessário entre pretos e brancos, que me parece contrário às superiores directrizes
estabelecidas pelos responsáveis [políticos]» (93).
A posição de Jorge Dias nunca consegue dissimular uma ambiguidade preocupante,
partilhada entre as declarações científicas públicas e os relatórios confidenciais, destinados
a ser unicamente consumidos pelos responsáveis políticos. Nas suas publicações, o etnólogo
será fiel ao elogio das práticas portuguesas, procurando provar a ausência de «orgulho
racial» português. Sem esquecer de lembrar o carácter «humano, sensível, amoroso e
bondoso» dos Portugueses, assim como a sua «enorme capacidade de adaptação a todas
as coisas, ideias e seres», aspectos que lhe permitiram conservar desde «sempre uma
atitude de tolerância (...) que imprimiu à colonização portuguesa, em certas épocas, o
carácter inconfundível da assimilação por adaptação» (94).
Isto mostra, de maneira isenta de equívocos, que o africanismo científico português
depende do projecto do Estado Português. Esse africanismo procura sobretudo provar
a excelente qualidade dos seus métodos de colonização, ao mesmo tempo que fornece
aos colonos, isto é, aos «africanistas», as justificações teóricas que servem para legitimar
as suas pretensões e as suas acções, alimentando assim o outro aspecto do africanismo
português, o africanismo socioeconómico.
Este inventário permite-nos compreender que se os esttltlos consagrados ao Outro,
em geral, e ao Outro africano, em particular, conheceram um alargamento evidente
durante esta fase do africanismo português, nem por isso deixam de mostrar a importância
das interferências deformadoras da ideologia colonial portuguesa. Não pode esquecer-se,

(95) Em 1950, no quadro do colóquio consagrado aos problemas da Investigação Científica Colonial,
Dias, 1961, p. 153.
Orlando Ribeiro afirmou: «a investigação pode e deve também servir fins práticos; quanto melhor for
Id., 1957, p. 59, cit. por Pereira, 1986, p. 223.
o conhecimento da História Natural que se tenha de uma região tanto mais firme será o delineamento
Id., ibid., p. 225.
Dias, 1961, pp. 190 e 178-179. do seu desenvolvimento económico», Ribeiro, 1950, p. 11.

81
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CAPÍTULO III

A historiografia colonial e a rejeição da história africana


Pode afirmar-se que a importância, o poder e as funções da história começam logo
que o homem toma consciência do valor do tempo, cuja fluidez e ausência de fronteiras
ameaçam a própria integridade da sociedade: ao dar-se conta da memória, o homem
procura definir as suas leis e as suas funções. A história entra assim no terreno oscilante
da memória e das suas genealogias.
Durante o período que nos interessa, a partir da segunda metade do século XVIII e,
sobretudo, no século XIX, a história põe-se cada vez mais ao serviço de uma consciência
nacional que se apoia na existência de uma consciência colectiva. Ela serve para justificar
tanto os Estados como as nacionalidades, ao mesmo tempo que organiza e legitima as
hierarquias sociais. Dito por outras palavras, a história é posta ao serviço da difusão ou
até da banalização dos Estados-nações, sem contudo se separar das consciências nacionais
(transformadas em consciências «regionais»), associadas a valores étnicos.
Por estas razões, a produção historiográfica pertence àqueles que dominam a
escrita. Os outros, os mudos da história, são os que se mantêm — ou são mantidos —
na tradição oral. É certo que esta começa enfim a reforçar o sentido e a prática da
história, mas ao preço da passagem da oralidade à escrita. É assim que é possível
compreender que o controlo e a vigilância da história se contam entre as práticas mais
antigas do homem.
Como é que aqueles que dispõem do poder, podiam permitir que as suas opções
e as suas práticas fossem vítimas do comentário azedo dos cronistas ou dos historiadores?
A censura da escrita foi constante, embora se tornasse cada vez mais difícil, à medida
que se multiplicava o número daqueles que podiam ler e escrever. Na história cultural
portuguesa podemos aperceber-nos, assaz cedo, dos princípios de exclusão aplicados a
algumas práticas africanas, graças aos comentários do conde de Tentúgal ao manuscrito
da crónica consagrada ao rei D. Manuel, o Bem-Aventurado, por Damião de Goes.
A simples referência ao estojo peniano adquirido por Álvaro Velho na baía de Santa
Helena, em Novembro de 1497 (1), provocou a cólera da aristocracia. O carácter

(1) A primeira edição da Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel apareceu em 1566. A primeira
parte voltou a ser impressa no ano seguinte, mas profundamente modificada, para levar em conta as
observações muito críticas da aristocracia, aqui representada pelo conde de Tentúgal. Ver a edição da
Imprensa da Universidade de Coimbra, 1933.

83
precoce da censura serve para mostrar a tarefa difícil dos historiadores, sempre que se Todavia, a história portuguesa contém o mesmo tipo de violências que é possível encontrar
trata de definir as sociedades outras. em qualquer história europeia, quando as sociedades, ou os seus grupos dominantes,
A sociedade participa também nesta operação selectiva, na medida em que impõe, privilegiam a guerra em detrimento da paz, ao mesmo tempo que esmagam, de maneira
aceita ou rejeita certas formas de elaboração da história. Não há sociedades passivas evidentemente pesada, o respeito devido à autonomia e à identidade dos Outros.
perante as suas próprias opções históricas, tal como a história não é, nem nunca pode
A grande constante da historiografia oficial portuguesa reside precisamente na
ser, neutra. É certo que houve sempre mudos da história, mas eles, em tempo algum,
se calam de maneira definitiva. Pense-se nos camponeses, cujas revoltas — que são a dificuldade de dar ao Outro uma autonomia qualquer: a história portuguesa seria assim
sua maneira de se fazerem entender por uma história demasiado aristocratizada ( 2 ) — caracterizada pela rejeição permanente, brutal às vezes, desta autonomia potencial ou
atravessam a sociedade e a história. A partir da Revolução Francesa, o controlo sobre real do Outro. Quando esse Outro aparece, incerto, impreciso, é para o esmagar com
a história tornou-se muito mais difícil, tendo sido, contudo, amplamente reforçado no referências negativas, que o tornam ou selvagem ou marginal. Ao recusar esta autonomia
quadro dos regimes totalitários (3). ao Outro, aos Outros, a história recusa-lhes também o direito à sua própria história. O
Por todas essas razões, a história aparece como um lugar de reflexão e de Outro torna-se assim pretexto para a história heróica, a da dominação sem partilha. Nos
conhecimento tão poderoso como definitivo, dado o papel que desempenha na formação casos em que esta rejeição é menos brutal, este Outro transforma-se em simples ausência.
e na expansão das ideologias. Isto é particularmente visível, no que se refere às nações Se as operações de descoberta, que estão na origem da primeira fase da expansão
colonizadas, e foi até possível medir — nos tempos que são os nossos — o choque europeia, forneceram o essencial da história portuguesa, a partir do século XV,
desencadeado pelo aparecimento das histórias nacionais. Tal foi o caso em Angola, onde multiplicando as explicações míticas, esta construção é mais mítica do que histórica,
a péssima história, organizada em Argel pelos intelectuais do MPLA ( 4 ), forneceu uma sendo também caracterizada pela maneira como os Outros encontrados pelos Portugueses
plataforma que reforçou ou enquadrou a consciência nacional dos Angolanos, no espírito
são presentes ou escamoteados no discurso desta história nacional.
dos jovens e dos menos jovens, que tinham sido instruídos no quadro da história colonial
portuguesa. Dado o grande recuo de que dispomos, é possível apercebermo-nos de que os
O controlo da produção historiográfica foi, desta maneira, assegurado pelas Outros nunca são desejados, a não ser como objectos para a autovalorização, como
instituições oficiais, mas contou com o apoio directo e constante daqueles que partilhavam dependentes, coisas da vontade e da dominação portuguesas. Esta situação torna-se
a mesma ideologia. Esta situação determinou a redacção e a difusão de histórias ainda mais brutal, quando se trata dos Outros africanos, que a história e os mitos só
aproblemáticas, cujo único objectivo era reconfortar as escolhas do poder instalado, podem encarar pelas lentes das condições somáticas.
recusando os textos, os autores e até os acontecimentos que os punham em causa (5). Expulso da sua humanidade, enselvajado e enselvajador, o Africano só podia ser
Tal era a situação da historiografia oficial portuguesa até ao último quartel do considerado como «coisa» da Natureza. O estatuto de substituição é o da religião, na
século XX: a história, caracterizada pelas relações multisseculares dos Portugueses com medida em que as características somáticas do Africano o reduzem a uma perigosa
um grande número de Outros, não era mais do que uma evocação mecânica dos seus homologia com as forças diabólicas. «Diabolizado», o Africano não podia dispor da
heróis e dos seus momentos de glória, assente numa visão triunfalista que conseguia menor possibilidade de organizar uma história autónoma.
transformar em vitórias espirituais as mais graves e mais mortíferas derrotas portuguesas. Eis, pois, a direcção ideológica que determina a construção da história colonial, a
única história possível de uma África selvagem ou diabólica, se não optarmos pela
comodidade da concomitância. Os Portugueses — que se consideram os primeiros
Ver Ferro, 1985. europeus a desembarcarem e a instalarem-se de maneira duradoira nas duas costas africanas
A redacção desta história foi assegurada em Argel pelos membros do Centro de Estudos
— devem mobilizar uma energia indomável para impor a passagem dos selvagens para
Angolanos (C. E. A.), formado por intelectuais militantes do M. P. L. A.: Mário Pinto de Andrade, Artur
Pestana (Pepetela), Henrique Abranches, Adolfo Maria, Tomás Medeiros, entre outros. Mas pode aí a civilização. Estes factos servem-lhes para afirmar que as colónias africanas são uma
sentir-se a mão de Henrique Abranches que procurara organizar essa história durante o seu curto exflio propriedade legítima e indiscutível de Portugal.
em Portugal, após ter sido expulso de Angola. Estas informações foram fordécidas por Alfredo Margarido.
Os primeiros contactos com a costa ocidental africana transformam os Africanos em simples
figuras do Diabo da Terra. Ver Zurara (1453), 1973, p. 122. A pintura também assegurou a banalização
dos Africanos. Ver Devisse e Mollat, 1979. Jean Devisse ocupou-se igualmente desta questão: a partir I. A escrita da história e a justificação dos direitos portugueses
de uma análise dos textos de Zurara e de Ca da Mosto, que Jean Devisse faz acompanhar de um certo
sobre a África
número de representações plásticas e do seu inventário, este historiador salienta o carácter inovador da
visão atlântica do Africano, por oposição à visão mediterrânica até então dominante (pp. 154-159).
Podemos aperceber-nos desta preocupação historiográfica portuguesa, tanto em Rego, 1956-
Esta concepção de uma África, propriedade da Coroa portuguesa, aparece como
1957, p. 224, como em Caetano, 1951, pp. 26-27. Ambos põem em evidência a ausência de rupturas pano de fundo dos quatro mitos, a partir dos quais se organizou a historiografia
na história da colonização portuguesa, marcada por uma «vocação colonial», que se manteve inabalável portuguesa no que diz respeito a África e, mais particularmente, no que se refere à
no decurso dos cinco séculos de relações com os Africanos. Angola do século XIX.
84 85
O esforço «histórico» não é destinado a servir a história, mas a libertar os elementos Enquanto o primeiro mito possui um carácter mais marcadamente conjectural e só
capazes de «provar» os direitos portugueses à dominação dos territórios e dos homens se apresenta como eixo essencial na organização da primeira fase da história colonial,
africanos. Já o dissemos mais atrás: não se trata, de maneira nenhuma, de definir o os três outros possuem um carácter constante/estrutural. Por esta razão, aparecem como
conhecimento do passado, mas de dar conta das «maneiras de fazer» e das «maneiras pano de fundo de todas as fases seguintes da história colonial. É a estes mitos que a
de dizer», capazes de servirem o projecto colonial português. história pede o carácter de continuidade, de processo ininterrupto, desenvolvendo-se no
O peso da ideologia é assim particularmente forte nos estudos históricos portugueses mesmo sentido todas as acções portuguesas.
respeitantes à questão colonial. Se é certo que a história portuguesa se não pode separar É também possível adoptar uma história colonial do século XIX, organizada num
da presença portuguesa no mundo, é também verdade que a maneira de definir as
ritmo de quatro tempos (6).
relações com os Outros deve ser organizada, tendo como único objectivo exaltar os O primeiro tempo, que vai até à década de 1840, é considerado como um período
valores tradicionais portugueses. A realidade do Outro importa pouco ou nada. de decadência nacional portuguesa, caracterizado pela grande instabilidade política
A visão dominante da história colonial do século XIX faz aparecer a sua dependência desencadeada pela proclamação do novo regime liberal (7). Todavia, as ideias importadas
em relação aos projectos e às directrizes do Estado colonial português, tendo Angola
como objectivo principal. Estes foram reorganizados em função dos factos, dos pela intellegentia liberal jamais esquecem a «vocação colonizadora de Portugal» (8)
e a sua missão histórica, velha de alguns séculos. Assaz contraditoriamente, aparecem,
acontecimentos, das problemáticas nacionais ou internacionais mais significativas do contudo, propostas que defendem a necessidade de abandonar ou de vender as colónias (g).
século XIX, mas nunca renunciaram à sua dureza nacional. As propostas da periodização, Dominado pelo tráfico negreiro, condenado pela comunidade internacional após a
a divisão dos períodos significativos, a escolha dos temas dominantes e os problemas
Conferência de Viena de 1815, mas largamente praticado pelos Portugueses e pelos
históricos foram organizados em função da modernidade, sem pôr em causa a coerência
Brasileiros (antes e depois da independência do Brasil, em 1822), este período é explicado
da dominação portuguesa.
a partir de dois blocos de raciocínio histórico. O primeiro procura ilibar os Portugueses
Podemos apresentar estes mitos — que cabem no quadro mítico geral já esbo-
çado — da maneira seguinte: de erros — senão de crimes — que não cometeram, pois não foram eles que inventaram
o comércio do chamado «ébano humano» (10). Este raciocínio, ou antes, esta defesa
O mito do papel pioneiro dos Portugueses na abolição da escravatura e no seu pro domo põe em evidência a necessidade de trabalho escravo no Brasil, onde a
«insuficiência do caudal do indigenato (...) [tornou] indispensável, para a determinação
prolongamento, no fim de uma exploração arcaica das riquezas africanas e da valorização
das terras de África; do seu processo, a importação de negros em regime de escravatura» (11). A isto vem
O mito da presença multissecular portuguesa em África, dos direitos adquiridos somar-se a responsabilidade africana neste processo: «qual terá sido mais vil — o cliente
e da não-legitimidade das pretensões europeias sobre territórios historicamente da actividade esclavagista ou o fornecedor desta variedade potencial de trabalho manual?» (12).
portugueses; O segundo bloco, destinado a explicar as condições de funcionamento deste mesmo
O mito de uma vocação colonial especificamente portuguesa, traduzindo-se pela período, está centrado em torno da figura «heróica» de Sá da Bandeira (13), fortemente
presença de importantes núcleos de população branca fixados em África, destinados a preocupado com a questão colonial, e decidido a colocar os Portugueses à cabeça das
substituir, de maneira progressiva mas inelutável, os selvagens africanos; medidas de mudança abertas à escala mundial. Já não se trata, como se pode verificar,
O mito da hegemonia portuguesa nas relações com os Africanos, pois é um dos descobrimentos, mas de devolver aos Portugueses o papel pioneiro na abolição da
Estado legftimo que se dedica à organização e à gestão do espaço que lhe pertence de escravatura, «que nós começáramos a abolir quando a Inglaterra a defendia ainda pela
maneira muito objectiva. voz dos seus parlamentares e dos seus estadistas» (14).

Se os dois primeiros mitos — cuja carga é sobretudo política — foram organizados


para responder a problemas tanto portugueses como europeus,.já o terceiro, que parece Para definir os marcos cronológicos da história colonial do século XIX, Rego, 1969, p. 3, retém
o mais humanista, está ligado às questões levantadas pelos dois primeiros, querendo as datas de 1834, fim das guerras liberais, e 1910 (proclamação da República), como sendo os dois
também justificar perante os colonos a necessidade da violência que é necessário utilizar momentos históricos que introduziram mudanças significativas no espaço do Ultramar Português.
em África. Na realidade, trata-se apenas da domesticação indispensável dos animais Ver Cabral, 1981, I .a parte.
selvagens. É ainda possível afirmar que este mito desloca o eixo da explicação/justificação Ver Alexandre, 1979, p. 9.
para o espaço africano «branco» ou «embranquecido». Ver cap. I.
É contudo o último destes quatro mitos que esclarece as escolhas portuguesas; ele Leal, 1961, p. 66.
Id., ibid., p. 65.
contém os dados mais importantes da visão portuguesa, destinada a apreender e justificar
Id., ibid.
— o que é diferente de compreender — as relações entre a África e os Africanos, não Pinto, 1972, p. 32, e Rego, 1969, p. 92.
se esquecendo de definir a espessura das relações entre Africanos e Portugueses. (14) Cordeiro, 1934, p. 15.

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Esta pretensão de Luciano Cordeiro, simultaneamente cínica e ingénua, o que não explicar aos chefes africanos a necessidade de pôr termo ao tráfico negreiro. Estas
impediu que ficasse incrustada no tecido ideológico português, não passava de uma operações permitem que sejam postos em evidência a «vocação colonial» e o
falsificação histórica apoiada numa confusão terminológica: Luciano Cordeiro, como humanitarismo «naturalmente» português (20).
tantos outros intelectuais portugueses, confundia tráfico negreiro e escravatura (15). A questão africana está, a partir daí, em via de se internacionalizar: face ao
A 12 de Outubro de 1836, Sá da Bandeira manda publicar o decreto que abolia comércio «legítimo», as antigas feitorias de carácter puramente comercial, que
o tráfico negreiro, procurando assim colocar-se em posição favorável face às acusações asseguravam as transacções tendo os escravos como mercadoria principal, perdiam
da comunidade internacional, que denunciava não só a prossecução do tráfico negreiro o seu carácter operacional. As presenças deviam ser politicamente mais marcadas,
português, mas as trágicas condições em que este se verificava. É certo que o decreto capazes de estabelecer relações com os africanos produtores, procurando ao mesmo
de Sá da Bandeira visava também um objectivo mais nacionalista: procurava impedir tempo aumentar os parceiros comerciais.
a transferência da força de trabalho angolana para o Brasil, de maneira a conso- «Ao iniciar-se o século XIX, nós ocupávamos a costa angolana com maior ou
lidar a escravatura nas colónias portuguesas, ao mesmo tempo que elevava uma menor intensidade e ninguém se lembrava de nos contestar a sua posse» ( 21 ). Os apetites
imagem do colonialismo português, humano e despojado de qualquer mácula escla- das nações europeias empurraram os dirigentes políticos e a intellegentia portuguesa
vagista (16). para a criação do mito da presença multissecular dos Portugueses em África, reforçada
Apesar disso, a historiografia adopta igualmente outras maneiras de ver e de julgar pela legitimidade histórica das suas pretensões. Estes dois vectores do raciocínio político
esta questão: «como encarar a acção dos Portugueses em África? Não como denúncia e histórico português determinaram a orientação das explicações históricas do período
das acções levadas a cabo, mas antes de mais com o orgulho da missão civilizadora seguinte.
que nos fora dado levar a cabo. Contra os deformadores da história, que acusavam «Decorria assim em sossego cheio de lentidão o acabar da instalação em Angola,
Portugal de todas as maldades em relação aos povos coloniais, Sá da Bandeira decidia 302 anos passados depois de chegar (1575) como donatário Paulo Dias de Novais,
elevar a voz para defender a causa justa. Não punha ele em dúvida que o espírito quando do inesperado aparecimento do americano Stanley (1877). Não são aqueles 302
religioso tinha frequentemente antecipado os apetites comerciais, em pulsões que tinham anos de vida colonial inútil, como se pretende por vezes. Pois o desbravar, o criar
levado a nação a exprimir um ideal ecuménico» (17). Civilização progressiva em terra tão selvagem leva tempo (...) e mais tempo leva quando
O segundo período da história colonial, indo de 1840 a 1870, foi caracterizado pelo essa actividade se espalha como a portuguesa, para se defender de tanto Civilizado,
recomeço dos conflitos com as demais potências europeias, que procuram tomar posições pirata ou não...» (22).
nos territórios «portugueses» em África. Foi o caso da reactivação da questão de Chegámos desta maneira à terceira fase da história colonial do século XIX, de 1870
Bolama ( 18), assim como da questão associada às polémicas suscitadas por Ambriz, ao Ultimato britânico de 1890. Ela caracteriza-se pelas grandes expedições científicas,
Molembo e Cabinda ( 19), nas quais os Ingleses contestavam as posições portuguesas. mas igualmente pelas tentativas de uma colonização (branca) mais sistemática, para
Face a esta contestação, os Portugueses procuram, acima de tudo, multiplicar as provar ao mundo civilizado a soberania portuguesa e a «completa hegemonia [portuguesa] na
viagens ao longo da costa africana, ocupando posições consideradas importantes para África tropical», resultado da «grande Missão Histórica que Portugal tem de cumprir» (23).
assegurar o controlo das regiões, mas também para levar a sua influência mais para Este período é, do mesmo modo, guiado pelo mito da presença multissecular dos
o interior, de maneira a estabelecer relações comerciais «legítimas» com os Estados Portugueses em África e, por consequência, dos seus direitos, mas também pelo mito,
africanos. Até então, o conhecimento tinha-se mantido indirecto, e era indispensável indissociável, da vocação colonial portuguesa. Os dois mitos funcionam a nível interno
para despertar, primeiro, o «sentimento nacional» da população portuguesa — da
metrópole, bem assim como a já instalada em África — contra o usurpador estrangeiro
Esta confusão manteve-se até aos nossos dias. Após Figueiredo, 1937, p. 35, Rego, 1969, e, em seguida, a vocação colonizadora portuguesa, cujo carácter é único e sobrenatural.
cap. VI, e Capela, 1974, continuam a confundir a escravatura com o tráfico negreiro. Se as teorias do luso-tropicalismo desempenham um papel fundamental na justificação
Alexandre, 1979, pp. 5-6. teórica desta vocação colonial portuguesa, a ideia de continuidade histórica faz também
Veríssimo Senão, História de Portugal, vol. XIII, p. 128. • parte da panóplia do bloco das ideologias portuguesas. A história dos Portugueses, nas
A questão de Bolama foi provocada em 1834 pelo governo britânico, que contestava os direitos suas relações com os Outros, não pode apresentar quebras ou rupturas, porque resulta
portugueses à ilha e aos territórios circundantes. Em 1860, os Britânicos procederam à integração de
Bolama no território da Serra Leoa. Convidado a assegurar a mediação entre os dois adversários, o presidente
dos Estados Unidos, Ulysses Grant, reconheceu os direitos portugueses, em 21 de Abril de 1870.
( 19) A questão de Ambriz, de Molembo e de Cabinda data dos finais do século XVIII: os Portugueses A viagem de Joaquim Rodrigues Graça (1843-1846) é provavelmente o melhor exemplo desta
começam a construir uma fortaleza em 1779, tendo os Franceses reagido imediatamente, destruindo a estratégia, tendo o comerciante brasileiro aceite a missão de convencer os Africanos a reorganizarem
parte já construída. Um acordo assinado em 30 de Janeiro de 1786, em Madrid, põe fim a esta contenda. os seus modos de produção.
O choque com as autoridades britânicas só começa quando os Portugueses manifestam o desejo de go 1956-57, p. 77.
Rego,
ocupar definitivamente o Ambriz, a 11 de Setembro de 1846. Esta discussão, que não encontrou solução Villas, 1938, vol. 2, p. 324.
imediata, esteve na origem da questão do Zaire, infinitamente mais complexa. Mattos, 1944, vol. III, p. 364.

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desta vocação do povo português, quer dizer, de um sentimento nacional que se furta pelo seu carácter retrógrado. Os heróis portugueses, perante esta situação, procuram
ao domínio da contingência histórica (24). enfrentar esta selvajaria desaustinada com a «serenidade, altivez e confiança» que lhes é
É contudo o primeiro destes mitos que fornece o suporte essencial da argumenta- conferida pelo «orgulho da raça» (27). Foi este traço particular dos Portugueses que os
ção portuguesa, destinada ao exterior, o que pode ser visto de maneira esclarecedora empurrou para a «perigosa loucura que constitui hoje a obra imortal do nosso génio
nas posições portuguesas assumidas durante a Conferência de Berlim, onde os colonizador» (28).
representantes de Portugal procuram legitimar os direitos portugueses em África, No fim do século, «após os afrontamentos para manter a posse do que era português
recorrendo ao tempo e à história. «O Congo é, pois, bem o reflexo da acção de certos em África» (20), as preocupações dos Portugueses são dominadas pela criação de condições
políticos, retalhando a terra e distribuindo-a a seu talante, conforme paixões e sem um favoráveis à instalação de uma população branca capaz de, pouco a pouco, substituir os
ideal de realidades a animar a sua obra, preparando não futuro de paz, mas de lutas «selvagens» para transformar os territórios «do Minho a Timor» em autênticos espaços
que não se pode prever (...) Esta Conferência de Berlim, para o pensador e para o do «território nacional» (30), porque «a África [era] o único dos continentes colonizáveis
homem político, está cheia de ensinamentos. Pensando bem, Portugal não perdeu onde Portugal [possuía] como nação soberana (...) interesses importantes assim como (...)
territorialmente porque salvou a Lunda até ao Cassai (...) a sua perda é de ordem promessas de uma prosperidade futura» (31).
espiritual (...) É costume dizer-se que Portugal só apresentava direitos históricos nesta Por esta via, os heróis portugueses e os acontecimentos históricos associados aos
emergência. É claro que ele ao menos tinha uns direitos: os outros não apresentavam Portugueses e às suas relações com a África do século XIX, «parte integrante do mundo
nada. Mas a questão é outra: — o Congo, tal qual se apresentava (...) pelos novos português» (32), serviram de directriz à historiografia colonial portuguesa.
pioneiros, era inteira criação de Portugal; pois a sua actividade [de Portugal], o seu A obra do padre Silva Rego (33), O Ultramar português no século XIX, publicada
dinheiro, o sangue dos seus, transformaram o Selvagem na gente acessível, sem ser em 1969, constitui um exemplo significativo, procurando o autor escrever para o grande
preciso guerra (...) para o Europeu, este de agora se instalar. público uma história dos «acontecimentos ultramarinos» (34). Querendo dar conta da
Se isto se fizera, não era justo agora só os outros se aproveitarem [deste estado totalidade do «Império português», Silva Rego adopta uma metodologia que valoriza os
de coisas] em vez de ser organizada partilha amigável. Defender a posição assim criada actos portugueses da época, ao mesmo tempo que remete os Africanos para o espaço de
não era apresentar simples direitos históricos (...) [Isso] quer dizer que todos tinham um silêncio sem história, só interrompido pelo impacto das acções portuguesas, não
direito a colher imediatamente sem terem semeado, excepto aquele que arcara sozinho esquecendo, contudo, o carácter benéfico e protector da dominação exercida por Portugal (35).
com a dura tarefa de desbravar o terreno, de o tornar de fácil acesso à Civiliza-
ção» (25). II. A história angolana do século XIX: um passado organizado em
Esta longa interpretação da questão, elaborada por um «historiador» dos anos 1938, função dos mitos portugueses
põe em evidência todos os elementos utilizados na construção da história deste período. A organização da história de Angola não podia deixar de ser uma operação moderna.
A quarta fase da história colonial do século XIX ocupa os dez últimos anos do É certo que, na totalidade dos documentos portugueses, dispomos de duas tentativas de
século para se prolongar até ao século XX. O mito da vocação colonial portuguesa organização desta história: a de António de Oliveira Cadornega, datada de 1680 (36),
adquire então toda a sua força justificadora, assim como toda a carga civilizacional.
As guerras de ocupação são apresentadas como indispensáveis à valorização dos territórios
africanos, o que deve permitir a criação das condições necessárias à missão civilizadora (22) Alexandre, 1979, p. 10.
Henrique Galvão, 1935, p. 7, após ter salientado o facto de a presença portuguesa ser um
portuguesa. «Os portugueses só fizeram a guerra aos naturais de África quando para
acontecimento real, desde o século XV, escreve que «a história dos Dembos é mais uma confirmação
ela foram impelidos pelas suas [dos Africanos] arremetidas ou quando a guerra se dessa perigosa loucura que constitui hoje a obra imortal do nosso génio colonizador».
tornava indispensável para lhes arrancar concessões a que obstinadamente se recusavam Reis, 1941, p. 85.
e de que carecíamos absolutamente, como a de trânsito pelos seus dominios, exploração Rego, 1969, p. 7.
de minas e outras...» (26). Reis, 1941, p. 87.
Nesta mitologia, as guerras coloniais desempenham assim um papel essencial e só Veríssimo Senão, ob. cit., vol. II, p. 121.
O padre António da Silva Rego, antigo missionário formado no Extremo Oriente, é certamente
seriam a confirmação da selvajaria dos Africanos, não sendo a violência dos combates o melhor representante de uma igreja católica que procura renovar-se, mas continua prisioneira das suas
mais do que a consequência da «fúria selvagem» dos «indígenas» reforçada ou imposta obsessões.
Rego, 1969, pp. VII-VIII.
A obra foi dividida em 32 capítulos, três dos quais são inteiramente consagrados a Angola.
Caetano, 1951, p. 26, e Leal, 1961, pp. 42-43. Os capítulos VII («Abolição da escravatura») e IX («Viagens africanas e sonhos cor-de-rosa») ocupam-
Villas, 1938, vol. 2, pp. 350-351. -se também desta colónia portuguesa.
(26) Botelho, 1938, pp. 9-10. (36) A respeito de Cadornega, ver Heitor Gomes Teixeira, 1982.

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que não passa, na verdade, de uma história das guerras angolanas, e reforçada pela A abolição da escravatura;
de Elias Alexandre da Silva Corrêa, redigida no século XVIII, mas cuja primeira As repercussões da independência do Brasil e a reorganização das relações com
edição só data de 1937 ( 37). Estes dois olhares lançados sobre a história, por importantes a nova nação brasileira, tendo estas duas últimas operações forçado Portugal e Angola
que sejam, são organizados em função das visões coloniais portuguesas, e se a redefinirem as perspectivas económicas;
proporcionam elementos fundamentais para julgarem a ideologia colonial da época, 7) O peso das intervenções britânicas destinadas a impor a Portugal opções que,
não podem fornecer uma percepção tão ampla quanto seria desejável da situação na maior parte dos casos, sob o disfarce de um humanitarismo indiscutível, pretendem
histórica angolana. pôr os Portugueses ao serviço exclusivo dos interesses ingleses.
A periodização da história de Portugal foi feita durante o século XIX e encontrou
uma espécie de «purificação teórica» no trabalho de João Lúcio de Azevedo (38). As histórias de Angola do século XIX são organizadas em função deste catálogo
A organização da história de Angola, elaborada quase exclusivamente pelos europeus e, elaboradas por historiadores, quer profissionais quer amadores, durante os primeiros
nascidos em Portugal e raramente nativos de Angola, não podia separar-se do quadro sessenta anos do século XX, não podem superar as condições deste quadro mais
ideológico da historiografia portuguesa. Estes historiadores pretendem provar a existência
de uma hegemonia portuguesa indiscutível, que fornece o eixo central de toda e qualquer ideológico do que teórico.
É normal que esta história, ao mesmo tempo que respeita as condições sócio-
leitura dos factos angolanos. Com efeito, nem sequer há factos «angolanos», porque a
-históricas de um Portugal a contas com a tarefa pouco confortável de assegurar a
história de Angola é pensada a partir das intervenções e das reacções portuguesas em
transição do antigo regime para a modernidade, não possa constituir um tecido homogéneo.
Angola. Esta história é assim caracterizada por uma ocultação contínua dos Africanos.
Esta orientação permite organizar uma espécie de inventário dos temas preferenciais Se há autores que se recusam a reconhecer a mínima autonomia aos Africanos, somos
desta história tão particular: também capazes de identificar algumas tentativas para lhes devolver a humanidade que
lhes é tão duramente recusada pela ideologia colonial portuguesa.
Podemos considerar três tipos de escritas históricas: uma primeira, caracterizada
Ela põe, constantemente, em evidência a selvajaria dos Africanos, porque qualquer
contestação do poder português é encarada como uma prova dessa «selvajaria»; pelas preocupações totalmente patrióticas, dependentes dessa ideologia colonial; uma
A irrupção inesperada dos «Jaga» no século XVI serve, nesta história, para segunda que, mesmo respeitando os valores patrióticos, nem por isso deixa de tentar
reforçar o carácter selvagem dos Angolanos (39); manter-se no quadro da realidade histórica, recorrendo aos arquivos para organizar a
A exaltação da intervenção do brasileiro Salvador Correia de Sá e Benevides, narrativa histórica; por fim, a terceira, a menos patriótica, que tenta dar conta de uma
que aparece como uma variável desta luta contra os «invasores», e que permitiu expulsar história angolana já «africanizada». Estas tentativas são, de resto, em muito menor
em 1648 os Holandeses, pondo termo às operações que levaram à recuperação da número relativamente ao conjunto da produção historiográfica que é consagrada a
independência portuguesa, perdida em 1580; Angola.
As ideias e as guerras liberais que impuseram uma revisão das relações com O primeiro tipo concentra as histórias de Angola que pretendem pôr-se ao serviço
os Africanos; do colonialismo português. São estruturadas em função dos quatro mitos que analisámos,
o que só pode reduzir a importância da sua contribuição para a história angolana. De
maneira mais precisa, esta leitura da história possui duas vertentes: a primeira só
concebe a história de Angola como uma espécie de inscrição limitada nas histórias de
A edição mais tardia desta obra não é explicada pelo autor do prefácio, Manuel Múrias, Portugal e da expansão portuguesa. A história de Angola e dos Angolanos só encontra
historiador oficial das colónias. O manuscrito pertence à SGL, mas esta instituição nada fez para justificação, quando reduzida à função de apêndice menor ou exótico das operações
assegurar a sua publicação. políticas portuguesas. A segunda vertente, na aparência consagrada à história de uma
A obra Épocas de Portugal Económico, 1920, é geralmente considerada como sendo a primeira Angola autónoma, mantém-se, mau grado isso, dependente da organização da história
história económica portuguesa.
(39) Joseph Miller, 1963, já pode cantar, de maneira muito mozartiana, o Te Deum dos Jagas, portuguesa, de tal maneira que esta «autonomia» caiba no quadro da indiscutível
considerados como sendo os angolanos mais «antropófagos». Trata-se de um excesso crítico, porque se, hegemonia portuguesa.
de facto, os Jagas não formam uma unidade «étnica», nem por isso deixam de ser um «sujeito» A primeira vertente é representada por uma «multidão» de historiadores, profissionais
fundamental da história colonial de Angola. Os Portugueses transformaram este «grupo» em personagem
ou simples «amadores». Entre os historiadores profissionais, encontramos aqueles que
central dos conflitos que caracterizaram as relações entre Portugueses e Africanos, ou Angolanos. Seria
difícil eliminar a importância central deste grupo, mesmo que inventado em consequência de um são competentes sempre que se trate da história de Portugal no quadro europeu, mas
conhecimento insuficiente da história angolana por parte dos Portugueses. Ver 2.' parte, cap. III. que se mostram incapazes de compreender o sentido da história de Angola e dos

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Africanos (40). Quer se fale de António Baião e dos historiadores, que ele mobilizou para numa lista acompanhada pelos seus trabalhos. Enfim, a obra descreve, de maneira
levar a cabo a História da Expansão Portuguesa no Mundo (1940 ) (41 ) , quer de minuciosa, as tentativas dos Portugueses para vencerem a barreira da costa, a fim de
Veríssimo Senão, autor de uma imensa História de Portugal (42) tão ambiciosa como se disseminarem através de todo o país angolano.
popular, ou ainda do padre Silva Rego, que foi também um especialista da história da Esta história só subsidiariamente se pode considerar uma história de Angola,
porque rejeita a condição angolana dos africanos que repelem a autoridade portuguesa.
missionologia, mas que consagrou um estudo a O Ultramar Português no século XIX
Sem a menor originalidade, os Portugueses só reconhecem os africanos que se põem
(1969) (43), encontramos sempre a mesma retórica colonial, inabalável e inabalada
ao seu serviço, que, não sendo todavia inteiramente «civilizados», se instalam num
perante as mudanças registadas na organização da história africana, sobretudo a
espaço intermediário, onde é já possível distinguir algumas pulsões no sentido da
partir dos anos 1950. O coronel Gaspar Ribeiro Villas, autor de uma História Colonial
(1938) (44), produz desta uma subleitura, mostrando o militar de carreira uma concepção «civilização».
A orientação do padre Silva Rego respeita esta visão da história. Os temas, os
caricatural da história de Angola. problemas, os acontecimentos e os heróis são praticamente os mesmos. A única novidade
Na imensa história dirigida por António Baião, a de Angola do século XIX não reside no facto de este universitário fazer esforços para organizar uma teoria capaz de
aparece de maneira autónoma, mas integrada no capítulo intitulado «Da Reforma explicar tanto a soberania portuguesa em Angola como as relações entre os Portugueses
Liberal ao Tratado de Berlim (1833-1885)» (45), organizado em torno de alguns temas, e os Angolanos. O autor classifica o sistema angolano durante o período que se estende
que resumem bem os fantasmas portugueses: a importância das escolhas teóricas, mas de 1850 a 1885, como sendo um «regime de feudalidade luso-africano» (48). Para Silva
sobretudo políticas, do Marquês de Sá da Bandeira, caracterizadas pela abolição do Rego, as decisões da Conferência de Berlim, que impuseram a «ocupação efectiva do
tráfico negreiro e a tentativa de reorganizar as relações metrópole/colónias; as guerras território», perturbaram a soberania exercida pelos Portugueses, autêntica e sólida na
de «conquista», impostas pelas populações africanas que «ousavam» contestar a autoridade costa, assaz incerta «para o norte e para o sul». Sendo Portugal reconhecido como «país
«natural» dos Portugueses, cujos «heróis» se viam a braços com, por exemplo, a suserano», era frequentemente solicitado pelos chefes africanos quando inquietados por
«existência da belicosa tribu dos Ovampo» (46); as «tentativas de colonização sistemática «vizinhos turbulentos». O governo de Angola, devido a este «estatuto de suserano», podia
de Angola», destinadas a apressar e a reforçar a colonização branca; as viagens de pedir a ajuda da guerra preta (49), indispensável perante a multiplicação destas expedições
exploração e o papel da Sociedade de Geografia de Lisboa; assim como as guerras de punitivas, o que não impedia que uma parte dos sobas — chefes africanos —
«pacificação», destinadas a impor, de maneira definitiva, a dominação portuguesa (47). se considerasse semi-independente, assegurando a administração quase total das suas
Estes capítulos são precedidos por uma espécie de exaltação da presença «antiga» terras, ao mesmo tempo que impunham aos Portugueses algumas obrigações de carácter
em Angola, mobilizando os heróis portugueses, tais como Paulo Dias de Novais e económico. Estas estavam condenadas a desaparecer, à medida que se alargava o
Salvador Correia de Sá, cujos herdeiros e continuadores foram os governadores, lembrados domínio do poder central. Para mais, os sobas castigados pelas autoridades portuguesas
aceitavam, na maior parte dos casos, colaborar com estas, quando novas expedições
eram organizadas contra outros chefes.
O autor, ao mesmo tempo que indica tratar-se de um sistema «fluido», coloca em
A incompreensão do racismo português continua a ser um dos obstáculos mais importantes
das análises históricas. A. H. de Oliveira Marques, 1986, II, p. 532, vai ao ponto de afirmar que, nas evidência as oposições existentes entre os «sobas profundamente divididos entre si por
relações entre Portugueses e Africanos, as razões económicas dominam, mas não aquelas determinadas rivalidades tribais», o que fazia dos Portugueses o «único cimento que ia, lentamente,
pelo racismo. Vê-se mal como teria sido possível manter, durante tantos séculos, a escravatura e o tráfico trabalhando a unidade angolana. As revoltas dos sobas mais poderosos perante a
negreiro, sem o suporte ideológico do racismo. autoridade portuguesa representavam, desta forma, o protesto da desordem contra a
António Baião revelou aos Portugueses a torpeza da Inquisição e a violência anti-semita. Por ordem, da indisciplina contra a disciplina» (50).
isso mesmo, é ainda mais surpreendente registar a sua impotência ideológica perante a maneira como Assim se encontrava justificada a legitimidade das acções e das pretensões de
os Portugueses trataram os Africanos e os Índios americanos. Portugal que, lentamente, devido aos comportamentos «tribais dos africanos», fazia
Joaquim Veríssimo Serrão pertence ao grupo dos patriotas do lu?o-tropicalismo, como mostra
o estudo que consagrou a O Rio de Janeiro no século XVI, Lisboa, 1965. Não é por isso surpreendente
penetrar em Angola a «civilização e o progresso» (51).
que os Africanos só sejam utilizados para justificar o heroísmo dos Portugueses, brancos e civilizados.
O padre Silva Rego nunca conseguiu separar-se da sua visão de missionário, que o obriga,
no seu longo estudo consagrado à missionologia, a desculpar a violência da escravatura, pois que, quando
baptizados, os Africanos teriam adquirido — devido a esta cerimónia — «uma qualidade superior»!
Gaspar Ribeiro Villas é um excelente representante da escrita militar, aplicada aos factos Rego, 1969, cap. XX, pp. 247-250.
Id., ibid., p. A guerra preta era «uma tropa organizada entre os indígenas por conta da
coloniais. Há uma bela tese a consagrar este tipo de escrita!
Coroa; ela significava também, por extensão, uma horda de raziadores». Ver Pélissier, 1978, p. 667.
Baião, 1940, vol. IV.
Id., ibid., p. 310. Rego, 1969, pp. 248-249.
Id., ibid., pp. 325 e seg. Id., ibid., p.

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A segunda vertente deste primeiro tipo de escrita da história «angolana» pretende Se na primeira referência o autor mobiliza o sentimento filial, garante do seu
fazer a história de Angola, mas conserva-se limitada ao inventário dos acontecimentos próprio sentimento nacional, a segunda serve para mostrar que a epopeia familiar não
ligados à chegada e à permanência dos Portugueses àquele território. Qualquer que seja pode ser separada das tarefas nacionais. A lição ideológica é transparente: só esta dupla
o alvo destes historiadores, discurso erudito ou discurso popular, a orientação é sempre capilaridade, associando o familiar e o nacional português — os valores angolanos não
a mesma: os heróis são exclusivamente portugueses, os Africanos não existem, a não passam de uma variável menor desta situação —, permite dar conta de um passado
ser quando a sua «selvajaria» os leva a querer pôr em causa a autoridade portuguesa. mobilizado para justificar o futuro, muito mais do que o próprio presente.
Uma das explicações mais curiosas do mecanismo interno da colonização portuguesa O carácter triunfalista do texto quer acordar-se aos valores do tricentenário,
é fornecida por José de Figueiredo nos seus Apontamentos sobre a história de Angola
ao passo que no registo, especificamente histórico, o autor pretende «preencher lacunas
(1937) ( 52), centrados em torno da actividade dos comerciantes: «antes de se fazer a
fundamentais da cronologia e da interpretação dos respectivos acontecimentos» (57).
ocupação militar de qualquer região, os comerciantes, avançando por ela, travavam Para levar a cabo esta tarefa, Ralph Delgado propõe uma periodização em cinco
conhecimento com os indígenas e preparavam-nos para o reconhecimento da soberania partes, cuja simples elaboração é já mais portuguesa do que angolana: a primeira parte
portuguesa. Por vezes, os indígenas, bárbaros e traiçoeiros, depois de os terem roubado, vai de 1472 a 1575 («descobrimento, política de atracção dos indígenas e monopólio
matavam-nos, intervindo então a força armada para castigar essas traições e submeter comercial»); a segunda, de 1575 a 1648, analisa «o desenvolvimento do tráfico, fase
os seus autores ao domínio português» (53). inicial da conquista e condomínio «luso-flamengo»; a terceira, de 1648 a 1836, estuda
Na sua História de Angola (1940), José Ribeiro da Cruz deu ao século XIX a a «dependência do Brasil, segunda fase da conquista e progresso social e administrativo»;
seguinte organização: «Marquês de Sá da Bandeira. Abolição do tráfico negreiro. o quarto período, de 1836 a 1918, caracteriza-se pela «abolição da escravatura, a
Colonização». «Viagens e reconhecimentos do continente africano». «Conferência de ocupação definitiva do território e o início do aproveitamento das fontes de riqueza»;
Berlim — Ultimatum» ( 54). O simples enunciado dos títulos dos capítulos permite por fim, a quinta parte, «de 1918 a ?» — este fim da história parecia tão longínquo
compreender a maneira brutal como os Africanos são eliminados da sua própria história. que o autor não avançou a mínima sugestão cronológica —, devia ocupar-se do estudo
Se bem que a História de Angola de Ralph Delgado (1940) esteja um pouco fora da «expansão económica e administrativa, transformação social e caminhada para a
desta análise, dado que se não ocupa do século XIX, seria impossível ignorá-la, devido criação de um estado português de grande amplitude» (58).
à sua importância na historiografia consagrada a Angola. A obra foi redigida durante Digamos, para ser precisa, que esta disposição não traz grandes novidades,
um período de perturbação do colonialismo português, face à expansão da Segunda exceptuando um maior rigor na organização das cronologias. O mais importante
Guerra Mundial, tendo a redução dos transportes marítimos isolado a colónia. Por uma reside nesta visão de uma história branca de uma Angola onde os Africanos não
espécie de sobrecompensação, o autor retoma, mais ou menos, a orientação de Cadornega: seriam mais do que um acidente lastimável. O reino do Kongo, introdução necessária
as derrotas angolanas eram constantes perante o génio militar português. a um trabalho desta natureza, é descrito como «um país de negros sem baptismo,
Redigida em S. Filipe de Benguela, um dos grandes centros da escravatura angolana, dirigido pelo seu quinto chefe principal, sociedade nómada de congoleses amalgamados
caracterizado pelos quintalões, espaços que serviam para concentrar os escravos destinados com ambundos (...) com todos os sinais de uma organização tribal» ( 59), na qual os
à exportação, esta obra foi dedicadá pelo autor a seu pai, que fora o primeiro administrador «ritos feitichistas», as «danças guerreiras e religiosas», as «formações militares
do Bié, e cujo sentimento nacionalista não podia deixar de exaltar ( 55). Esta história é [armadas] de flecha e arco» ( 69), e a ausência de fronteiras definidas fornecem as
organizada em torno de um motivo central: trata-se de uma «obra destinada a animar, características que, para Delgado, são as mais significativas. A análise não retém um
na província de Benguela, as comemorações do tricentenário da Restauração, que único traço positivo nas práticas sociais dos Kongoleses. Assim, desde a sua chegada
transcorre em 15 de Agosto de 1948» (56). à costa angolana, os Portugueses ter-se-iam encontrado a braços com uma selvajaria
que o tempo não tinha nem gasto, nem corrigido.
Os valores positivos pertencem todos aos Portugueses, «portadores de uma civilização
urbana e caídos abruptamente nesta sociedade primitiva» que eles «desejam transformar»,
José de Figueiredo organizou a sua História em torno das viagens de descobrimento e da instalação conseguindo, após alguns anos de presença, fazê-la passar para «uma fase rural» (61).
portuguesa em Luanda (1576) e em Benguela (1617). O século XIX depende das acções portuguesas
contra «a escravatura» e das viagens com objectivo «comercial e científico» dos Portugueses em Angola.
Figueiredo, 1937, p. 37.
Cruz, 1940, pp. 211-221.
Id., ibid., p. I.
O pai de Ralph Delgado é apresentado como um «daqueles portugueses de antanho que, a troco
Id., ibid., p. II.
de canseiras e da própria vida, fizeram ocupar, restaurar e transformar Angola, legando-a, ao presente,
Id., ibid.
como afirmação incontroversa da expansão lusíada», Delgado, 1948; I, «Dedicatória».
(56) Id., ibid., s. p. (antes da Introdução). Id., ibid., pp. II, III.
(61 ) Id., ibid., p. III.
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Os sinais de progresso de mudança civilizadora são inventariados por Delgado: «imposição • O autor salienta também as condições específicas de Portugal, entre as quais a
da cultura escrita», «organização feudal», «organização da corte indígena», «substituição pobreza demográfica e económica — trata-se de um dos paradoxos mais singulares do
dos feiticeiros pelos sacerdotes», «empreendimento de tarefas agrícolas singelas», texto —, que permitem que «o povo português [possa] realizar e defender-se das
«baptismo e fixação dos limites do território», não esquecendo «a instalação de um ambições estranhas, salvando as suas possessões (...) [criando em cada uma delas] um
mercantilismo escravocrata e o começo da pesquisa do subsolo» (62). Os Portugueses, núcleo populacional português [agindo como] elemento de absorção etnográfica e polftica
agentes desta mudança, são «colonos e sacerdotes», os quais «alimentados de bons das populações aborígenes (...) [tendo sido assim] possível salvar da derrocada geral
intuitos (...) [utilizando] o grau de adaptação do aborígene (...) obtiveram testemunhos que lhe resta do seu Império colonial e fundar, nitidamente portuguesa, a grande
eloquentes dessa evolução repentina» (63). Nação brasileira» (67). A lição histórica deve ser, contudo, ainda mais imperativa. Por
Será possível, e legítimo, mostrar a menor surpresa perante a maneira como os esta razão e em relação a outras colónias, «o nosso dever fundamental (...) é de nos
documentos de origem europeia são maltratados pelo historiador português nascido em fixarmos e fundarmos, em cada uma delas, outra nação portuguesa (...) É a história que
Angola? De facto, ele recusa os valores civilizacionais do reino do Kongo, seja a nos ensina estas verdades insofismáveis, é ela que nos aponta o único caminho que
metalurgia seja a agricultura, em nome de uma lógica do enselvajamento dos Africanos, temos para realizar inteiramente o nosso dever nacional e humano» (68).
que permite rejeitar qualquer acordo entre os dois grupos. Historicamente selvagens, os A organização da História de Alberto de Lemos leva em conta quatro períodos:
Africanos são também enselvajadores, razão pela qual o seu lugar na história deve ser «Descoberta e conquista», que constitui uma «página brilhante da epopeia portuguesa» (69),
reduzido à descrição de alguns dos traços negativos que os caracterizam. sendo a batalha de Ambuíla designada por «Aljubarrota de Angola» (70) (XVI-XVIII);
Como não se dar conta da coerência portuguesa deste discurso? O reino do Kongo segundo período, é dedicado à «Ocupação e tráfico de escravos» (XVIII); o terceiro
serve, assim, para mostrar que só os Portugueses puderam impor algumas práticas período «Colonização e desenvolvimento», de 1820 a 1910, respeita a temática clássica
civilizacionais agrícolas aos Africanos. Se a colonização não tivesse intervido, os Africanos das histórias portuguesas de Angola: abolição do tráfico negreiro, reorganização
continuariam a ser simples coisas da Natureza, na óptica desta leitura «histórica». administrativa do país, viagens científicas, ocupação das regiões do interior, colonização,
O segundo tipo de escrita, que reconhece um lugar aos Africanos em certas situações formas novas de exploração económica. Todavia, Alberto de Lemos, que na sua vida
e contextos, é nitidamente mais tardio e marcado pelo peso do luso-tropicalismo. O Outro familiar tinha adoptado opções luso-tropicalistas — pai e avô de muitos filhos e netos
torna-se indispensável, quanto mais não fosse para permitir a mestiçagem, sem a qual a «crioulos» —, permite, embora de maneira tímida, que os Africanos façam a sua
história civilizacional e colonial portuguesa não seria a mesma. aparição no tecido da história. É verdade que se trata de africanos urbanos, mais
Alberto de Lemos, funcionário que ocupou lugares importantes na hierarquia precisamente das grandes famílias mestiças, objecto de Nótulas históricas (71), pondo
administrativa de Luanda, organizador da Repartição de Estatística, assim como do em evidência o seu papel preponderante na formação de Angola. Estes homens, que,
Arquivo Histórico de Angola (1937), publicou algumas obras consagradas à história do século XVII ao século XIX, mantêm Angola no espaço português, não só não
de Angola (64). Técnico rigoroso, quis levar a cabo uma história minuciosa, sem contudo agrediram o poder português, mas, muito pelo contrário, tudo fizeram para o conservar
menosprezar as dificuldades às quais devia fazer face a sua História de Angola (1929) para o transferir aos novos colonos (72).
que começa por um longo resumo dos factos primordiais da história portuguesa, desde
«a expulsão dos árabes da Península» seguida pelas «descobertas» que autorizam e
exigem «a causa colonial» (65). A colonização torna-se assim «a função fundamental
da nossa nacionalidade» (66). Id., ibid., p. 62.
Id., ibid., pp. 62-63.
Id., ibid., p. 9.
A importância da analogia deriva desta maneira de pensar a história de África, mantendo a
fidelidade ao caso português. A história angolana devia, por isso, multiplicar os paralelismos com a
Id., ibid. •
história de Portugal. Aljubarrota, em 1385, tinha consolidado a independência portuguesa. Ambufla,
Id., ibid., p. IV. momento e lugar onde foram esmagados os Ba-Kongo, aparece como o momento idêntico, em que se
Além da sua História de Angola, 1929, ver também Nótulas históricas, 1969, A Reconquista afirma a hegemonia portuguesa.
de Angola e o dever português contemporâneo, 1934, e Quadros da História Angolana, 1941, onde a Ver nota 64.
visão lusocêntrica, versão luso-tropical, se afirma de maneira transparente. Lemos, 1969, p. 240, afirma: «Nos séculos XVII, XVIII e parte do XIX são euro-angolenses,
Lemos, 1929, p. 61. Portugal, após ter cooperado na expulsão dos Árabes da Península, mestiços e pretos civilizados, os que ocupam maior número e os mais importantes cargos da função
empenhou-se na tarefa dos descobrimentos. Terminada esta função, lançou-se na causa colonial que pública — civil, militar e religiosa — e nem por deterem a força e as posições, atentaram contra o
continua ainda hoje a ser a sua justificação principal. Colonizar ou, melhor dito, povoar e civilizar as domínio português, antes o conservaram e entregaram aos novos colonos que, reacendido o interesse
suas possessões tão extensas, colaborando no progresso da humanidade em geral, eis as ideias directoras africano, passaram neste século a chegar em maior número. Esta é a verdade histórica» O autor, pai
de Alberto de Lemos. de tantos mulatos, exalta a importância da mestiçagem, que alguns outros entendem dever ser chamada
(66) Id., ibid.
I
i
«crioulismo».

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A História de Angola de Norberto Gonzaga, publicada em Angola em 1963, O primeiro e um dos poucos representantes desta releitura da história angolana é
cujo objectivo principal foi pôr em evidência o papel determinante assumido pelos Norton de Mattos ( 79). Se ele afirma que a história portuguesa começa com o início da
Portugueses na história angolana, começa por um «período pré-colonial» anterior ocupação em 1483, é para acrescentar que neste território existiam, «havia [já] muitos
à chegada dos Portugueses, ao mesmo tempo que dá uma autonomia histórica rela- séculos » , «povos com uma organização social que muito surpreendeu os descobridores
tiva ao reino do Kongo, assim como a outros acontecimentos nos quais os Africanos e cuja história (...) é essencial conhecer, para bem se compreender o desenrolar dos
complexos acontecimentos que, naquela região, se têm produzido, desde os fins do
aparecem como figuras centrais: tal é o caso da rainha Ginga. Isto não impede que
os heróis autênticos, promotores de progresso e de mudança, sejam os Portugueses, século XV aos nossos dias» (80).
Norton de Mattos avança com dexteridade um terreno histórico, minado pelas
sempre em choque com os Africanos, alguns dos quais como «os Jaga [são] come- ideologias e pelos mitos, para salientar que a história de Angola era de facto «constituída
dores de carne humana» ( 73). A análise da história do século XIX respeita esta perspectiva, pela análise das reacções e transformações que os seus antigos habitantes indígenas (...)
indo da abolição do tráfico negreiro — «coubera a Portugal a iniciativa (...) de ser a experimentaram ao nosso contacto. Finalmente, a história da formação do território
primeira nação a contrariar o vergonhoso tráfico» ( 74) — à progressiva ocupação do português angolano, tal como hoje existe, dependeu não só dos elementos africanos, que
território angolano através do reconhecimento do interior e uma nova pulsão colonizadora. se levantaram em obstáculo à expansão portuguesa, umas vezes derrotados, outras não,
O fim do século aparece como o momento da internacionalização da questão africana, mas também de nações europeias que impediram a nossa [quer dizer, dos Portugueses]
procurando o autor pôr em evidência a acção civilizadora e a capacidade portuguesas: livre expansão» (81).
«nós lobrigávamos nos habitantes de outros hemisférios, embora de raças diferentes, Norton de Mattos, cuja curiosidade intelectual era grande, phroudoniano teó-
irmãos a acarinhar e que nos acolheram (...) e fundimos (...) um bloco homogéneo» (75), rico ( 82), não era, contudo, um historiador profissional. Todavia, levado a repensar a
sem esquecer os direitos legítimos dos Portugueses e a posse de um vasto território, organização de Angola, ele pretende dar aos Africanos um lugar que lhes foi
permitindo a união de Angola a Moçambique. Este projecto fora vítima das ambições constantemente recusado pelo discurso patriótico e colonialista português, o que lhe
estrangeiras materializadas na Conferência de Berlim e no Mapa Cor-de-Rosa ( 76), o que permite salientar que a história de Angola é «acima de tudo, a história dos seus
tornara impossível a realização de um projecto que datava de Paulo Dias de Novais (77). habitantes pretos e da maneira como eles têm reagido, nestes quatro séculos e meio,
O Ultimato inglês de 1890 completa esta série de situações provocadas pela ambição perante a ocupação e a civilização portuguesas» (83).
estrangeira, à qual respondeu a «cólera colectiva», reforçada por um «sentimento unânime Estas tomadas de posição, acompanhadas por uma mobilização da juventude, que
de incontrolável repulsa» (78). não devia renunciar ao património colonial português, em nenhuma circunstância e sob
Esta história constitui uma espécie de concentrado dos ingredientes míticos, os nenhuma pressão, leva-o a adoptar uma periodização lusocêntrica da história angolana,
quais fornecem o fio condutor dos diferentes factos históricos. As lentes lusocêntricas mesmo quando afirma que «em todas estas épocas, entra forte e essencialmente o preto
impedem uma leitura dinâmica e africana da informação portuguesa respeitante ao africano» (84).
Esta história divide-se em três períodos: o primeiro, consagrado à pré-história
século XIX que, ainda por cima, é assaz abundante.
«desde os tempos mais remotos às datas das descobertas», o segundo, dedicado à
«transformação da civilização indígena, resultante do estabelecimento dos Portugueses
Por fim, o terceiro tipo de escrita da história procura devolver aos Africanos o em Angola», indo das «Descobertas (...) até aos nossos dias», o terceiro, o momento
papel central que lhes cabe na história de Angola, pondo em evidência a importância presente, tratando das «relações de Angola com os povos vizinhos e nações estrangeiras,
das relações com os Europeus, mas deslizando assaz frequentemente sobre as armadilhas de que resultou a formação político-nacional do território» ( 85). O segundo período é
decorrentes de uma ideologia muito fortemente enraizada no tecido cultural português.

O antigo governador e alto-comissário de Angola, que confessa a sua fidelidade a Proudhon,


mergulhava assim em plena contradição. O reconhecimento da anterioridade da história dos Angolanos
não devia, em caso algum, incomodar o poder português, que também devia controlar a história.
Mattos, 1944, vol. II, pp. 27-28.
Gonzaga, 1963, p. 145. Id., ibid., pp. 27-28.
Id., ibid., p. 299. O general — antigo ministro, antigo candidato à Presidência da República, antigo embaixador,
Id., ibid., p. 304. antigo governador, antigo alto-comissário, antigo grão-mestre do Grande Oriente — pensa ter pronunciado
O Mapa Cor-de-Rosa traduziu o sonho português de unir Angola a Moçambique, para criar a primeira conferência sobre Marx em Portugal. Esta lembrança é destinada a confirmar a sua inclusão
um imenso domínio colonial, a exemplo do Brasil. Este projecto confrontava-se com os Ingleses, nas fileiras da esquerda republicana moderada.
animados por Cecil Rhodes, o que determinou a violência do Ultimatum de 11 de Janeiro de 1890. Id., ibid., vol. I, p. 17.
Gonzaga, 1963, p. 306. Id., ibid., vol. II, p. 29.
Id., ibid., p. 310. (85) Id., ibid., p. 28.
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repartido em seis épocas, sendo a terceira e a quarta consagradas ao século XIX. Norton espaço africano, transferindo-a para o espaço americano, consumidor dos escravos
de Mattos privilegia «a abolição do tráfico e da escravatura, que se intensificou de 1836 africanos. Da mesma forma, as guerras e os conflitos, provocados pelas tentativas
a 1878» (86) e a época do «trabalho forçado, iniciada com o primeiro «Código do portuguesas de alargarem a dominação sobre as populações africanas do interior, são
Trabalho Indígena», publicado em 1875, e cuja duração vai até um pouco para além estudados de maneira menos heroicamente portuguesa, verificando-se a redução sensível
de 1910» (87). da «selvajaria» do Outro africano.
Mesmo que o antigo alto-comissário da República, antigo governador-geral, pareça Os demais temas tratados pelo autor são o desenvolvimento do comércio entre
limitar-se a algumas afirmações de princípio, não deixa, por isso, de ocupar um papel Portugueses e Africanos: os primeiros «entendiam-se admiravelmente com o gentio» (91),
particular, na medida em que — ao invés do discurso colonialista português — não a colonização branca, deslocando-se do Brasil para o Sul do país, à volta da primeira
esquece a importância dos Africanos na organização de Angola. É certo que este metade do século XIX, tal como a situação económica pouco confortável que caracterizava
discurso respeita sem grandes variantes o enquadramento patriótico, mas ele quer que as finanças de Angola durante a década de 1880. Sobretudo, e ao arrepio da maior parte
as relações dos Portugueses com os Africanos em geral sejam menos brutais e desprezantes das histórias de Angola que analisámos, Castelbranco considera os grandes acontecimentos
ou, mais simplesmente, menos racistas (88). angolanos num plano idêntico aos acontecimentos internacionais e aos portugueses, e
A História de Angola de Francisco Castelbranco, publicada em Luanda em 1932, preocupa-se com as questões que dizem respeito à vida, por assim dizer, quotidiana dos
é mais fluida, descritiva e «africanizada». Este autor, que pertence à pequena burguesia Angolanos. É assim que são consideradas as situações, provocadas pelas epidemias,
angolana mestiça, também não possui uma formação de historiador. Não hesitando em pelas crises de seca e pelas fomes que elas provocam, as questões relacionadas com o
proceder ao inventário das posições teóricas correntes, consciente das insuficiências do exercício da autoridade administrativa sobre as tropas portuguesas e as suas condições
seu trabalho, Castelbranco vai antes no sentido das posições de Henrique de Carvalho de vida, as melhorias registadas por volta do fim do século, como no caso da construção
que, nisso sendo o primeiro, tinha posto em evidência a falta de conhecimentos existentes dos caminhos-de-ferro. Finalmente, o Ultimato inglês, apresentado de maneira muito
no que dizia respeito a uma realidade tão complexa como a angolana (89). Contudo, o desdramatizada, a morte de Silva Porto e os conflitos entre Portugueses e Africanos,
autor encara estas dificuldades, na medida em que considera urgente e necessária a consequência das acções de ocupação militar que se multiplicavam, encerram esta
tarefa de proporcionar «o meio de se conhecer a História de Angola» (90). análise do século XIX (92).
O trabalho, dividido em 22 capítulos, e sem nenhum plano, é revelador das opções Francisco Castelbranco quis submeter a leitura da história angolana à existência
do autor, pondo os Africanos nas primeiras linhas, mesmo que arrastados pela mão de realidades históricas muito autonomizadas, africanas e portuguesas. Para chegar a
paternalista/fraterna do herói português. uma análise destas realidades históricas, procurou eliminar da sua escrita todas as
Os capftulos XII a XX são consagrados ao século XIX, revelando uma massa formas discriminatórias utilizadas de maneira ritual, para descrever tudo o que era
importante de informações, sobretudo comparados com outros séculos da história africano, tal como rejeitou a solenidade, o heroísmo e a superioridade — racial e
angolana. Mesmo que a sua escrita se caracterize por um pendor demasiado descritivo civilizacional —usados da mesma maneira ritual, quando se trata de citar os Portugueses,
e nunca suficientemente analítico, Francisco Castelbranco põe em evidência a importância o que nos impõe uma conclusão: mesmo que esta história de Angola esteja incorrectamente
dos Africanos na «fabricação» desta história, associando-os aos acontecimentos estruturada, dada a falta de conhecimentos metodológicos que caracteriza o autor,
provocados pelas intervenções portuguesas. Muito interessado pelas viagens de possui ela, contudo, o mérito de procurar abrir aos Africanos um espaço autónomo no
«reconhecimento», Castelbranco fornece dados «libertos» de qualquer juízo ou preconceito,
interior da sua própria história (93).
a respeito das populações contactadas durante as viagens. Se a questão da abolição do
tráfico negreiro aí encontra eco, é para que o autor procure reduzir a ênfase patriótica
característica do discurso português. De resto, ele pretende analisar a questão fora do

Id., ibid., p. 199.


Id., ibid., pp. 255-256.
(93) A única reserva que se pode enunciar diz respeito ao estatuto de muxiluanda de Castelbranco,
Id., ibid., p. 29. Norton de Mattos nunca se deixou levar pela confusão entre a escravatura responsável por uma visão «nortista» da história. Na bibliografia crítica da sua obra, La colonie du
e o tráfico negreiro, como ainda hoje é corrente entre nós. Minotaure, René Pélissier julga de maneira apressada a obra de Francisco Castelbranco: «na falta de
Id., ibid. melhor, pára em 1910». De facto, demasiado preocupado com os choques militares que, na sua opinião,
Para medir a importância do papel desempenhado em Angola por Norton de Mattos, ver seriam o eixo da quase totalidade da história de Angola, René Pélissier — todavia excelente leitor —
Torres, 1991, cap. III, assim como o prefácio de Alfredo Margarido. não teve tempo de se aperceber da diferença entre dois tipos de construção da história de Angola. Ora,
Carvalho, 1898, p. 105. é hoje cada vez mais evidente que o mestiço muxiluanda deve ser considerado como um dos primeiros
(90) Castelbranco, 1932, prefácio. historiadores angolanos.

102 103
A produção historiográfica, consagrada pelos historiadores de língua portuguesa ao
século XIX angolano, é deveras magra ( 94). Estas leituras da história assentam numa
base dura: a do mito de uma hegemonia portuguesa nas relações com os Africanos, ele
próprio consequência do princípio da soberania de Portugal sobre amplas regiões africanas,
o que provoca (e reforça) uma visão redutora dos povos africanos. Esta leitura resiste,
de maneira decidida, a qualquer pressão do real, na medida em que se mostra capaz
de esquecer as numerosas derrotas infligidas pelas forças africanas aos Portugueses (95).
É certo que a questão da evolução da hegemonia nas relações entre os Europeus
— em particular os Portugueses — e os Africanos é infinitamente mais complexa. Se
ela constitui um dos eixos teóricos essenciais deste trabalho, devemos procurar, a partir
CAPÍTULO IV
de agora, deslocar o nó do problema, da Europa e da estrutura da ideologia colonial
portuguesa, para África, de forma a pôr em evidência os valores que contaram, que
continuam a contar, na organização sociocultural dos Angolanos. A Angola do século XIX: a presença portuguesa, os
documentos e os conhecimentos
A Angola actual resulta de uma operação histórica de muito longa duração, que
se construiu associando Africanos e Portugueses. As fronteiras de hoje são o resultado
das condições internacionais que impuseram a ocupação efectiva, considerando-se os
Portugueses muito prejudicados pela maneira como foram expulsos de territórios que
tinham conhecido muito cedo. A longa coabitação sob a autoridade colonial portuguesa
criou uma proximidade física e cultural entre os grupos, que deriva de dois tipos de
razões: o peso da colonização e a necessidade de uma unidade interna exigida pela
contestação do poder português (1).
Todavia, a Angola do século XIX era, de facto, um espaço definido pela presença
das diferentes sociedades africanas, que mantinham entre si relações complexas. Estas
sociedades, cujas estruturas económicas, sociais e políticas eram muito diversificadas,
desempenhavam papéis específicos — a nível do poder e do comércio — nos quadros
regionais, mantendo relações directas ou indirectas com o sistema económico e político
organizado pelos Portugueses.
Nos princípios do século XIX, os Portugueses encontravam-se instalados ou na
costa, sobretudo nas regiões de Luanda e de Benguela, ou pontualmente no interior do
país, nos presídios, instalações de carácter militar e comercial, espécies de ilhas destinadas
a assegurarem a autoridade portuguesa em território efectivamente controlado pelas
autoridades africanas. Na impossibilidade de controlar as populações e as instituições
africanas, os Portugueses apostavam nos efeitos «civilizadores» das mercadorias e do
comércio. Esta situação muito complexa, cuja análise não é por ora satisfatória, determinou
a produção de documentos em número assaz abundante.
A documentação portuguesa caracteriza-se por uma grande heterogeneidade, devido
não só ao desequilíbrio quantitativo e qualitativo dos textos respeitantes aos diferentes
períodos do século XIX, mas também aos seus próprios conteúdos. Estes reflectem a
(94 )'É necessário salientar, a partir dos anos 1960, o papel dos historiadores não-portugueses na
elaboração de uma história angolana não «portugalizante». É o caso de Jan Vansina, Joseph Miller, J. L.
Vellut, Wheeler, Bender, Pélissier, David Birmingham, cujas contribuições continuam a ser fundamentais
(1 ) Os Africanos começaram a recorrer à táctica da «frente unida» — que ainda não fora teorizada —
para o conhecimento da história desta região da África central. muito cedo. Na batalha de Ambula (1665), as forças dos Ba-Kongo são postas sob a direcção de um
(95) A respeito da qual se podem ler os pormenores em René Pélissier, 1977.
comando unificado. Ver Randles, 1968, cap. X.

104 105
evolução dos eixos da política colonial no decurso do século, assim como a diversidade muitos historiadores, mas se ela não pode ser aplicada, perante a recusa dos colonos
do olhar consagrado ao Outro, não esquecendo os interesses frequentemente muito e da administração do Estado, serve de peão fundamental, pois anuncia as novas regras
divergentes dos autores, quer dizer, das autoridades coloniais, dos funcionários da do jogo (4).
administração, dos missionários, dos militares e dos comerciantes. Esta medida política permite definir os dois campos em presença: de um lado, os
O carácter heterogéneo da documentação portuguesa, resultado da combinatória de que — mais numerosos — pretendem prosseguir a política tradicional, a que se opõem
todos estes elementos, é agravado pela situação de dependência em relação aos Africanos: as fracções mais modernizantes da burguesia portuguesa, que querem a liquidação do
estes, que controlam o espaço interior, condicionam o acesso dos autores aos factos tráfico negreiro. Tornou-se habitual afirmar que estas medidas não podiam ser aplicadas,
sociais africanos. Os Europeus só podem ver e conhecer aquilo que os Africanos em consequência da falência da administração portuguesa em Angola. A explicação é
oferecem à visão e à descrição, o que foi traduzido em discurso literário. bastante restrita: esta administração estava ligada aos valores dos colonos, e isso, na
As informações tinham, por isso, de ser limitadas. Conhecidos estes limites, os medida em que o seu enriquecimento dependia do tráfico e dos comerciantes que lhe
dados fornecidos pelas fontes portuguesas tornam-se fundamentais para o conhecimento asseguravam a sobrevivência.
da história angolana, ao mesmo tempo que permitem novas interpretações dos problemas O debate é importante, porque é o primeiro que permite avaliar as condições em
históricos da região. que se organizava o encontro, opondo as duas burguesias portuguesas, a da metrópole
europeia e a das colónias, mais particularmente a de Angola (5). Não parece muito
I. Os Portugueses em Angola: técnicas de contacto com as sociedades correcto afirmar que as medidas de Sá da Bandeira não passaram de letra-morta, tendo
africanas ficado sem efeito e sem eco: diremos, mais simplesmente, que o decreto redigido por
Sá da Bandeira é o antepassado normal do decreto do conselheiro brasileiro Euzébio
Os primeiros anos do século XIX são, no Atlântico Sul, consagrados à regularização Queiroz — de resto nascido em Angola — que, em 1850, proibiu o desembarque dos
do tráfico negreiro. Ao votar a abolição deste tráfico em 1807, o Parlamento britânico escravos africanos nas costas e nos portos brasileiros (6).
modifica para sempre o jogo comercial, que se queria neutro, justo e, por isso, legítimo. No quadro angolano, a medida mais importante é apenas oficiosa: a organização
A posição britânica é reforçada em 1812, quando o governo inglês se apresenta como da embaixada que, sob a direcção de Joaquim Rodrigues Graça, comerciante brasileiro
o protector aliado das «nações desgraçadas e oprimidas» (2). instalado em Angola, foi à capital lunda, à Musumba, para dizer aos diferentes chefes
É certo que, como se diz frequentemente, os Britânicos estão preparados para africanos que o tráfico não podia prosseguir e que era necessário reorganizar os métodos
defender os seus interesses, mas esta operação económica é prolongada pelas tomadas e as condições da produção africana, destinada ao comércio internacional (7).
de posição políticas — e às vezes religiosas — que perturbam uma actividade negreira, Os discursos, então dirigidos por Rodrigues Graça às autoridades africanas, não
que começara já no século XVI e permitia uma boa exploração das riquezas e das permitem a menor dúvida: uma fracção significativa dos comerciantes portugueses e
populações americanas. brasileiros, instalados em Luanda, estava já preparada para liquidar o tráfico negreiro.
Os Portugueses e os Brasileiros encontram-se associados na mesma denúncia dos É verdade, que o seu fim não pusera termo às operações dos que — europeus e
projectos britânicos, pois que a quase totalidade dos gestores, dos proprietários e dos africanos — estavam decididos a manter este tipo de comércio. Mas a partir do momento
comerciantes julgava que o Brasil só podia manter o seu estatuto graças à força de em que persiste em toda a parte a dúvida acerca da continuidade desta actividade, é
trabalho escrava africana, arrancada, em grande parte, às diferentes populações angolanas. imperativo que a mudança se inicie. O projecto económico angolano é forçado a
O Brasil era então um país profundamente angolanizado e a abolição do tráfico e da modificar-se, para se adaptar às condições novas impostas no Atlântico Sul por uma
escravatura pareciam, a quase todos, operações irreais, no entanto sem justificação comunidade internacional decidida — por razões nem sempre convergentes — a eliminar
aceitável (3). esta «actividade comercial» (8).
Os homens políticos portugueses só tomam posição oficial em 1836, após a vitória
da burguesia «liberal» que pusera fim ao antigo regime. O marquês de Sá da Bandeira,
engenheiro militar e combatente das tropas liberais, homem político e hábil, faz aprovar,
Ver, por exemplo, Alexandre, 1979, cap. IV-V.
em 1836, o decreto que abolia o tráfico negreiro. O marquês cede pouco à pressão
Torres, 1991, cap. WH.
internacional e muito às suas convicções humanistas. Esta decisão parece prematura a O brasileiro Euzébio Queiroz, que nascera em Luanda, encontrou a solução para acabar com
o quebra-cabeças chinês do tráfico. Se era impossível controlar a costa africana, era no entanto possível
controlar a costa brasileira. Ao proibir o desembarque dos Africanos, o conselheiro Euzébio liquidou
o comércio clandestino.
V. Bethell, 1970, pp. 12-14. Voltaremos a ocupar-nos de Rodrigues Graça na segunda parte deste capítulo.
Alencastro, 1986, cap. VIII-IX. (8) Alencastro, 1986, cap. IX-X.

107
106
so ponto de vista, interessa sobretudo observar que a nova situação forçou
as sociedades africanas a d A província de Angola, e não já os reinos do Kongo ou de Benguela, permitiu a
esencadearem ou a ampliarem um certo tipo de produções
e a aumentarem a quantidade de produtos graças à « organização das estruturas coloniais portuguesas. A tarefa foi lenta, mas visava a
invenção» de novas mercadorias.
Tratava--se, para as autoridades africanas, de conservar e de desenvolver o fluxo das concretização dos objectivos portugueses: ocupação dos pontos indispensáveis ao
mercadorias trazidas pelos Europeus. De maneira c desenvolvimento do tráfico negreiro. Foi preciso esperar a segunda metade do século
afro-europeias foram também pr oncomitante, as relações comerciais
ofundamente alteradas, pois estas novas formas de XVIII para que o projecto colonial português permitisse o aparecimento de novas
produção determinavam novas relações comerciais, permitindo o a perspectivas, durante o governo de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Foi sob o
parceiros, tanto africanos como europeus. parecimento de outros
governo deste «iluminado» que a exploração mineira, a siderurgia e a agricultura
Se a produção de escravos só podia ser assegurada por unidades políticas estáveis e apareceram como actividades destinadas a assegurarem uma evolução autónoma de
dotadas de força militar — fossem elas africanas ou portuguesas —, a produção de novas Angola, separada, enfim, da relação siamesa sustentada com o Brasil (").
mercadorias pedidas pelo comércio europeu, ao mesmo tempo que mobilizava uma maior
quantidade de força de trabalho, com inclusão do trabalho feminino, ampliou, de maneira
perceptível, o número potencial dos i
nterlocutores comerciais, africanos ou portugueses. 1. Cidades, presídios e feiras
As mudanças internas do conceito de riqueza fornecem a prova da importância desta
modificação (9).
Angola, «pela Carta constitucional e os tratados de 1810 e 1815 e pela convenção
Estas situações provocaram um aumento sensível das informações a partir dos anos de 1817, ia ao longo da costa, de 5° 12' a 18° de latitude sul, para o interior os
1840, consequência do maior número de agentes portugueses, capazes de estabelecerem limites ainda não estavam determinados», afirma, em 1850, o governador-geral Silveira
contactos contínuos com autoridades e territórios africanos. A abertura das estradas Pinto (12).
para leste, que começara por volta do fim do século XVIII em direcção do Lovale, O governador faz referência às regiões do interior, ocupadas pelos Portugueses, que
conhece um alargamento significativo nas terras dos Quiocos e dos Lundas. Esta se encontram apenas a 300 km da costa. Estas precisões geográficas são completadas
situação provoca a produção de documentos i
ndispensáveis ao conhecimento histórico pelas informações respeitantes a dois pontos essenciais, referentes à presença portuguesa
das populações africanas, sem esquecer a importância das relações interafricanas. em Angola. Os Portugueses são obrigados a recorrer ao sistema dos presídios, que
A. A instalação das estruturas portuguesas funcionam como uma espécie de ilhas: trata-se de fortalezas instaladas no território do
«inimigo», permitindo, pelo menos, assegurar a protecção dos comerciantes que aparecem
no sistema de ocupação português como os pontas-de-lança da actividade colonizadora.
A Angola portuguesa «nasce» com Paulo Dias de Novais, que recebeu o título de
cap O governador assinala, neste mesmo documento, as dificuldades experimentadas
itão-donatário em 1575, sendo então considerado o primeiro governador de Angola
pelos Portugueses, quando se trata de abandonar a região costeira, relativamente protegida,
(1575-1589). A operação é tanto mais interessante quanto resulta da associação de
para percorrer o interior, dado os obstáculos levantados pelos Africanos. A «linha indo
capitais portugueses e espanhóis, estes obtidos em Madrid por um sindicato dirigido por
Jerónimo Castanho (1°). de Malanje a Kasanje» é então caracterizada por comunicações constantemente precárias.
A contradição manifesta-se, todavia, no texto da autoridade portuguesa: os sertanejos
Designada como «reino de Angola» ou «província de Angola», ela está centrada
em Luanda e separada, do ponto de vista a portugueses podem aí chegar e circular e são autorizados a comerciar. As viagens e as
«província de Benguela». Esta « dministrativo, do «reino de Benguela» ou actividades comerciais decorrem numa situação de facilidade relativa, havendo até
« província» foi criada em 1617 — contando com um
governador de Benguela», que dependia, pelo menos t «alguns portugueses instalados entre os gentios» (13).
eoricamente, do governador de Estes territórios, cujas fronteiras são muito vagas, dependiam, do ponto de vista
Angola
d
— no momento da fundação da cidade de S. Filipe de Benguela, cujo
esenvolvimento data, na verdade, de 1648. Só em 1837, no quadro do projecto colonial português, das cidades instaladas na costa, Luanda e Benguela, que asseguravam a
de Sá da Bandeira, foi enfim assegurada a criação do território angolano, dispondo de relação com o exterior. O aparelho colonial é o mais clássico possível, mas as cidades,
uma unidade administrativa, encabeçada por um governador-geral. que os Europeus criaram bastante cedo, conhecem dois períodos muito diferenciados.

( 9) Com efeito, Rodrigues de Areia assinala a


tr reorganização deste conceito, que
significava
adicionalmente mulheres e escravos, ao passo que na segunda fase quer dizer dinheiro. Areia, 1985,
pp. 406-408. O conceito adapta-se, assim, à modernidade do salário, tal como à novidade' do dinheiro,
de papel ou metálico.
(to) A. A., Coutinho, A. A., 1939.
1943-1944, vol. I, 2.' série, n.° 1. Lavradio, 1936, p. 190.
108 ( 13) Id., ibid.

109
No primeiro, aquele que mais nos interessa, estas cidades são lenta mas seguramente Senegal (18) —, era descrita por Lopes de Lima (19) como sendo «uma cidade notável»,
africanizadas (14); no segundo, o crescimento demográfico branco expulsa os Africanos bela e cheia de nobreza (29, com uma população de 5605 habitantes, brancos, pretos
do centro da cidade, para os instalar na periferia dos muceques até à independência, — dos quais a maior parte eram escravos — e mestiços (21). Tinha alcançado «cerca
em 1975 (15). de doze mil habitantes», de acordo com Livingstone, por volta de 1854 (22).
As cidades costeiras, caracterizadas pelas suas funções importadoras e exportadoras, Dividida em duas partes, a cidade alta e a cidade baixa, Luanda ocupava as coli-
são cidades-fortalezas, como o demonstra o dispositivo militar que funciona, é certo, nas até ao porto e ao mar, estendendo-se ao longo da praia, protegida pelas fortalezas
contra o inimigo externo, mas também destinado a fazer face ao inimigo interno, que de S. Miguel, de S. Pedro da Barra e de S. Francisco do Penedo. A parte baixa constituía
pode ser arquitectado durante a noite e afirmado de madrugada, quando nada o revelava o coração da cidade, onde estavam instalados não só os centros político, militar, religioso
anteriormente. e administrativo da colónia, mas também todas as estruturas ligadas ao comércio.
As cidades costeiras suscitaram o aparecimento das «cidades-plataformas», quer se A escolha urbana não podia ser mais evidente: a cidade estava unida ao porto,
trate de presídios, forma muito utilizada pelos Portugueses, ou de feiras, geralmente porque a sua actividade visava exclusivamente a exportação, única maneira de que
instaladas ao lado dos presídios, para beneficiarem da sua protecção. De resto, os dispunham os colonos para alcançarem a riqueza tão desejada, pois só ela permitia o
lugares escolhidos para instalar estes presídios tinham sempre em atenção as redes abandono da colónia e o regresso a casa, a Portugal e, eventualmente, à aldeia remota
comerciais africanas e, por conseguinte, as possibilidades de comércio no interior do de onde se partira (23).
país, seja directamente seja através dos agentes africanos. Apesar da parte baixa ser a menos salubre da cidade, era a preferida por quantos
estavam ligados à máquina comercial, que continuava dependente do tráfico negreiro,
LUANDA: A CIDADE E A ACTIVIDADE COMERCIAL mesmo muito depois de 1850. A cidade era de construção definitiva, por vezes com
casas de alvenaria importada de Portugal, mas as habitações africanas, de madeira e
Fundada em 1576, S. Paulo da Assumpção de Luanda foi a primeira cidade cobertas de folhas de palmeira, continuavam a cercar o núcleo europeu. Esta parte baixa
portuguesa na região. Anteriormente, os Portugueses tinham-se instalado na capital do era a da Casa da Alfândega, dos estabelecimentos comerciais, assim como das casas
reino do Kongo, a partir de 1483. As condições nas quais se organizou a presença dos habitantes ricos, construídas em boa pedra trabalhada (24).
portuguesa entre as populações Ba-Kongo impediram os Portugueses de construirem Ruas alinhadas e amplas, jardins, praças públicas, igrejas, por vezes imponentes,
uma cidade. De resto, esta operação teria sido difícil devido ao pouco peso demográfico lindas casas, a Câmara Municipal, o hospital, as instalações militares, as belas
dos Europeus, situação reforçada pelo facto de se tratar de uma cidade do interior, assaz residências dos europeus, o palácio do governador, a Casa do Tesouro, os conventos,
afastada da costa e do mar, meio «natural» dos Portugueses nesse momento histórico. os mercados, entre os quais a Quitanda Grande (ou mercado principal), o Terreiro
Instalados em 1575 na pequena ilha de Luanda, os Portugueses puderam fixar-se Público prolongavam-se para a cidade alta e completavam o quadro da «cidade
em terra firme em 1576, após terem estabelecido um acordo com as populações branca» ou «civilizada» (25).
Mushiluanda. Trata-se de uma cidade-fortaleza, idêntica às demais que os Portugueses
criaram, tanto nas ilhas atlânticas — Cabo Verde e S. Tomé — como na costa, S. Jorge
da Mina (16). Ver Stamm (Tese), s. d., p. 16.
Em 1845, Luanda, cuja urbanização datava do século XVIII (17), — conside- Lima descreve a cidade de Luanda em 1846.
rada a terceira cidade colonial de África ao sul do Sahara, após o Cabo e S. Luís do Lima, 1846, 2. parte, pp. 5-13.
De acordo com Lima, 1846, este número estaria assim distribuído:
Brancos: 1601 (1466 homens + 135 mulheres)
Mestiços (pardos): 491 ( 221 homens + 254 mulheres)
Esta africanização permitiu até a eclosão de uma teoria com forte carga luso-tropicalista, ( 9 homens + 7 mulheres, escravos)
afirmando que Luanda se tornara uma cidade «crioula». Mas, se do ponto de vista demográfico tal pode Pretos livres: 780 ( 335 homens + 445 mulheres)
parecer verosímil, o poder nunca foi abandonado aos «crioulos», qualquer que tenha sido o seu peso Pretos escravos: 2733 (1073 homens + 1600 mulheres)
comercial, que um grande número de analistas confundem com a capacidade de intervenção económica. Em 1848, Menezes, p. 27, refere-se a uma população de 6000 habitantes, constituída por 1000
Ver Oliveira, 1990, pp. 345-354; 473-480; 489-496; 519-540. Ver, também, Margarido, «As reservas brancos, 2000 mestiços e 3000 pretos (livres e escravos). Em 1862, Calheiros de Menezes assinala
históricas», Finisterra, 1992, N.° 9, pp. 161-166. 13 500 habitantes em Luanda.
Amaral, 1983. Livingstone, 1859, p. 435.
S. Jorge da Mina, 1482, S. Tomé (Povoação), 1493, ascende ao estatuto de cidade em 1535. O sonho dos Portugueses foi sempre o de voltar a casa. Ver 1." parte, cap. 1.
Durante o governo de D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho (1764-1772). Ver Amaral, Lima, 1846, 2.' parte, pp. 7-9•
1968, e Mourão, 1992. Id., ibid.

110 111
A cidade fora instalada num deserto, como salienta um geógrafo que lá nasceu (26), criação de uma agricultura essencialmente destinada a alimentar a população, que
o que explica que a falta de água potável se tenha prolongado durante séculos, até aos aumentava naturalmente as suas necessidades, à medida que crescia (33).
anos 1920 (27). Núcleo central da Angola «portuguesa», Luanda vive olhando em duas direcções:
A partir do século XIX, a distância entre as construções africanas e europeias o Brasil, que lhe exige escravos, e o interior do país, que fornece estes escravos,
torna-se cada vez mais importante, completada pelo recurso às calçadas de pedra, destinados à exportação, em troca de mercadorias. Contudo, a cidade está prenhe de
depois ao alcatrão, na cidade branca, enquanto a areia vermelha dos lateritos caracteriza perspectivas novas que a abolição do tráfico de escravos, em 1836, faz explodir,
as ruas das populações africanas. Este contraste entre a cidade do alcatrão e a cidade obrigando os habitantes a encarar a necessidade de uma mutação que começa a realizar-
vermelha das areias africanas foi muito bem analisado pelos geógrafos, assim como por -se por volta dos finais do primeiro terço do século XX.
um romancista angolano, Luandino Vieira (28).
No século XIX, encontramos várias descrições que confirmam esta visão da cidade, O SISTEMA DOS PRESÍDIOS
salientando-se o luxo em que viviam os ricos comerciantes de Luanda. Em 1850, o
viajante George Tams refere-se a uma cidade caracterizada por uma intensa vida portuária, O modelo de ocupação, criado pelos Portugueses, pode.intervir graças a uma série
que passa lentamente, mas de maneira constante, da função militar e administrativa à de presídios — ou seja, campos entrincheirados, fortificados e dispondo, às vezes, de
função comercial (29). artilharia — que deviam, pelo menos em princípio, permitir a ocupação militar,
Foi esta mesma função comercial que estimulou uma actividade deveras animada acompanhada pela propagação da fé cristã e a protecção dos comerciantes, que não
dos diferentes artesãos (barbeiros, lavadeiras, sapateiros, alfaiates, latoeiros) ( 30), ao hesitavam em avançar no sertão para aí obter, a preços muito favoráveis, as mercadorias
mesmo tempo que assegurava as condições de instalação e de enriquecimento dos indispensáveis ao funcionamento regular das cidades costeiras.
comerciantes portugueses e brasileiros. A burguesia comerciante, em via de se afirmar, De facto, o que ocupa e preocupa os moradores dos presídios são os negócios. Os
integra um núcleo deveras significativo de mestiços e de pretos (31). oficiais e os soldados acumulam estas funções com as do comércio e pode até dizer-
Este comércio estava, já a partir do século XVI, dependente da evolução do Brasil, -se que não há em Angola europeu que se não transforme em comerciante. Trata-se de
que recebeu as vagas mais densas dos escravos exportados por Luanda, Benguela, Ambriz, resto — como já sugerimos — da única maneira de conseguir acumular a «riqueza»
ou qualquer um dos portos que alimentaram o comércio legal ou clandestino (32). que autoriza o regresso ao lugar de origem.
A função esclavagista da cidade nunca impediu que outros tipos de mercadorias Incapazes de recrutar forças europeias em número suficiente, os Portugueses apostam
fossem comercializados e o alargamento das funções urbanas da cidade suscitou a no recurso à utilização dos poderes africanos, que devem permitir-lhes o controlo
indirecto das regiões circundantes. Tratava-se, para as autoridades e os colonos
portugueses, de empurrar para o interior a linha fronteiriça, de maneira a tranquilizar
Trata-se de Ilídio do Amaral, que consagrou uma parte substancial da sua actividade de os comerciantes. O carácter movediço desta fronteira serve para pôr em evidência a
geógrafo a Luanda. Ver, por exemplo, 1968. maneira como agem os avanços e os recuos dos Portugueses, que, a contrario, permitem
Só nesta data as autoridades portuguesas conseguiram assegurar o abastecimento de água, mas dar conta da maneira como os poderes africanos se desagregam perante os ataques —
pode também afirmar-se que um dos sinais da impotência da administração africana, incapaz de gerir directos e indirectos — dos Portugueses.
o monstro urbano em que se transformou Luanda, aparece nos dias de hoje na falta de água em todos Os presídios, o primeiro dos quais foi o de Massangano, construído por volta de
os bairros da cidade, a ponto de obrigar à utilização de camiões-cisternas, funcionando graças à água
bombeada no Bengo. Já em 1846, Lopes de Lima se preocupava com o problema do abastecimento de
1585, na confluência do Lucala e do Kwanza, estavam concentrados no distrito,
água à população de Luanda, o. c., pp. 7-8. dependendo das duas cidades, Luanda e Benguela. A incerteza administrativa portuguesa
Luandino Vieira, Luuanda, Luanda, ABC, 1961. devia fazer face às condições pragmáticas das relações comerciais com os Africanos,
Tams, 1850, pp. 190-228. o que explica que cada uma das cidades dispusesse de uma espécie de coroa formada
Lima, 1846, o. c., pp. 10-11. pelos presídios. A articulação cidade/presídio permitia compreender o sentido e o ritmo
Alguns autores, entre os quais o malogrado Mário António Fernandes de Oliveira, 1968,
da expansão portuguesa em Angola.
pretendiam afirmar a existência de uma burguesia mestiça independente. Tal não seria mais do que um
contra-senso histórico, pois que esse fragmento da burguesia de Luanda só podia afirmar-se graças ao
quadro económico definido pelos Europeus e, mais particularmente, pelos Portugueses. É certo que esta
burguesia se encontra algumas vezes em situação difícil, mas o sistema de aculturação prova ser cada
vez mais necessário renunciar aos valores africanos para ser reconhecido pelo conjunto da burguesia de
Luanda. Ver, também, Dias, 1981 e 1989. (33) Já a partir do século XVII, Cadornega se refere à produção agrícola destinada à população de
(32) Sobre esta questão ver Alencastro, 1986, cap. VII-VIII. Ver, também, cap. II, 5. a parte deste Luanda. Esta agricultura parece constituir a primeira tentativa portuguesa para assegurar a sua autonomia
trabalho. face aos agricultores africanos. Cadornega, 1972, vol. III.

112 113
Em meados do século XIX, os Portugueses criam enfim distritos, com os seus dos Moluas [os Lundas] com os quais se podem agora travar relações utilíssimas» (37),
chefes, os seus regentes ou capitães-mores; estas divisões administrativas, que se pretendem Malanje, Talla Mugongo, ou Kasanje e Pungo Andongo, na vizinhança do qual se
intervenientes e independentes dos presídios, devem, contudo, contar com a presença e encontra «a feira de Beja (...) aonde outrora afluía muito tráfico das terras Ginga,
a força destas instituições. Casanje, Ganguelas...» e através dos quais se estabelecem ainda hoje os caminhos para
Os presídios foram, até ao século XX, os centros do sistema colonial que garantiam o Bié (88), pois que o comércio se transferiu para Kasanje, Malanje e Talla Mugongo (39).
aos Portugueses em Angola, senão a «posse», pelo menos o controlo de fracções do Distritos, presídios, feiras, eis as três componentes do sistema de ocupação português
território (34). em Angola, que tinha em vista substituir a posição hegemónica que os Africanos
O espaço angolano «português» estava assim dividido em presídios, sob o comando mantiveram até ao fim do século XIX. A eficácia da gestão portuguesa pode ser
de um militar, assistido por um juiz e um capelão, que não era um missionário. avaliada através da simples consulta dos mapas: o avanço, lento é verdade, mas imparável,
O presídio encontrava-se subdividido em chefados, governados por chefes africanos dos presídios, mais tarde substituídos nesta função pelas «povoações comerciais», torna
«vassalos» dos Portugueses. A relação entre os chefes africanos e os comandantes dos visível a forma como os colonos impõem a sua autoridade, os seus modos de produção
presídios era organizada através de tratados de aliança, que definiam os direitos e as e as suas mercadorias aos Africanos (40).
obrigações das partes.
Em 1848, a «província de Angola» era composta pela capital, à qual se somavam
sete presídios e onze distritos. A diferença entre as duas instituições reside na existência,
2. Os comerciantes do mato
nos presídios, de uma fortaleza que não encontramos nos distritos. Todavia, no que diz
respeito à administração, a diferença é puramente nominal, porque se trata de instituições O comércio no mato foi persistentemente, pelo menos até aos finais do século XIX,
independentes e governadas por um chefe militar. Os presídios directamente dependentes
controlado pelas autoridades africanas. É certo que os territórios submetidos à autoridade
do Governo-Geral de Angola eram: Muxima (1599), Massangano (cerca de 1585),
portuguesa estão em via de alargamento constante, mas a quase totalidade do espaço
Cambambe (finais do século XVI, instalado perto da importante Feira do Dondo),
angolano continua nas mãos das autoridades africanas. Os comerciantes, que podiam
Pedras de Pungo Andongo (1671, sediado no burgo, onde se encontrava a corte do rei
penetrar no mato, eram escolhidos não só em função dos seus caracteres somáticos, mas
de Dongo), Duque de Bragança (1838), Pedras de Encoje ou S. José de Encoge (1759)
e Novo Redondo (1769), na costa, entre Luanda e Benguela. Os distritos são: Icolo e levando também em linha de conta os marcadores sociais que utilizavam.
Foi desta maneira que os homens calçados foram afastados do mato durante muito
Bengo, Dande, Zenza e Quilengues, Golungo Baixo, Golungo Alto, província dos
Dembos, Ambaca (que antigamente fora um presídio [1614] substituído pelo de Duque tempo (41). As regras africanas, que as autoridades portuguesas não podiam nem infringir
de Bragança), Barra do Bengo e Barra do Kwanza ou distrito de Calumbo (35). nem anular, definiam de forma negativa as próprias condições de recrutamento dos
Em 1864, o governador-geral de Angola procedeu a uma reorganização administrativa comerciantes. Era por isso necessário que estes, que controlavam as empresas que
do país. Este tornou-se então um território formado por cinco distritos (Luanda, Benguela, consagravam a sua actividade à importação-exportação, dispusessem de um grupo de
Moçâmedes, Ambriz e Golungo Alto), divididos em concelhos que englobavam os agentes capazes de levar a cabo as operações comerciais no sertão (42).
presídios situados dentro dos seus limites. Tratava-se de garantir pouco a pouco a O controlo exercido pelas autoridades africanas, associado à demografia dos europeus
transição da ocupação estritamente militar para uma combinatória, na qual a administração em Angola, conduziu a que a maioria dos comerciantes, trabalhando no sertão angolano,
civil devia enfim superar os simples interesses militares. fosse essencialmente formada por mulatos e pretos. É certo que de tempos a tempos,
Entre todos estes distritos, o que se situa mais no interior do país, é o do Golungo mas sobretudo a partir dos fins do século XVIII, os negociantes brancos começam a
Alto, formado em parte pelos concelhos que se encontram próximos daqueles que aparecer, de maneira notória, na estrada comercial que ligava Benguela às terras do
constituem o núcleo central do nosso trabalho: Ambaca (ou M' liaka) considerado, desde
sempre, o mais povoado e aquele onde se regista uma actividade comercial mais importante (36),
Duque de Bragança que «confina com o lado do oriente com as pouco exploradas terras
Lima, o. c., p. 21.
Id., ibid., p. 18.
Menezes, 1861, p. 13.
Solla, 1838, p. 689; Lima, 1846, 2.' parte, pp. 12-26; Menezes, 1848, pp. 13-27. Milheiros, 1972, permite compreender as condições das mudanças técnicas que reduzem ou
Menezes, 1848, pp. 13-14. O autor também descreve os presídios e distritos de Benguela, eliminam o mato, em proveito do urbanismo.
p. 14. Ver S.' parte, cap. I, deste trabalho.
(36) Solla, 1838, p. 689. Id., cap. II.

114 115
Lovale. Mas a sua percentagem em relação aos Africanos era muito reduzida. A quase A situação mais importante é, certamente, a dos escravos, dado que estes homens
totalidade destes agentes, 94 % em 1845, era constituída por não-europeus (43). podiam integrar-se nas sociedades africanas, com as quais estabeleciam contacto,
A maior parte destes negociantes não dispunha de capitais pessoais: tinha de abandonando o proprietário branco. Sabemos que o escravo africano é «fabricado» a
recorrer ao crédito para poder deslocar-se para o sertão e propor as mercadorias que partir do princípio de que um homem se torna cada vez mais escravo à medida que se
lhes tinham sido confiadas pelos grandes comerciantes das cidades, Luanda e Benguela. encontra distante do seu clã — matri ou patrilinear — de origem. Isto quer dizer que
As condições de controlo destes homens eram bastante incertas, o que explica que os
este escravo não pode recuperar o seu clã, e que, por essa razão, se mantém ligado ao
juros exigidos pelos grandes comerciantes, que aceitavam conceder créditos aos colegas
patrão branco. Mas nada o impedia de recorrer às técnicas utilizadas para manifestar
que trabalhavam no sertão, fossem muito elevados, de carácter usurário até. O mecanismo
o desejo de mudar de patrão, de passar das mãos de um branco para as de um preto.
era, de resto, muito simples: face à possibilidade de desaparição de alguns destes
Nada disso aconteceu: o sistema europeu começa a abalar os sistemas africanos a partir
comerciantes-intermediários, que não prestavam contas, os comerciantes-financiadores
do momento em que os escravos se mantêm fiéis aos patrões europeus, mesmo quando
procuravam eliminar o risco de perder parte ou a totalidade das mercadorias, aumentando
lhes tenha sido possível voltar a integrar-se nas sociedades africanas.
tanto os preços como os juros. Os «comerciantes-intermediários», que acabavam por
pagar de maneira mais ou menos regular, deviam bastar para compensar as perdas Lopes de Lima definiu os pombeiros como sendo «pretos descalços, espécie de
sofridas neste sistema. bufarinheiros, agentes dos aviados para a venda a retalho, na qual se mostram muito
A situação era malsã, mas parece — feito o balanço — ter sido eficaz, dado que hábeis, e quase sempre dão boas contas do pacotinho, que se lhes incumbe» (48).
este mecanismo funciona até ao século XX. É evidente que uma situação deste tipo Para Lopes de Lima trata-se de um falso comerciante, pois que só lhe é confiada
implicava o aparecimento de uma hierarquia de comerciantes do sertão, como mostra uma pequena quantidade de mercadoria, o que lhe retira toda e qualquer hipótese
a existência de um certo número de maneiras de os designar que surgem nos textos desde de arbitragem comercial. Este «comerciante» é um dependente, como mostra o facto de
o século XVI: sertanejos, pombeiros, aviados, feirantes ou funantes, ambaquistas, andar descalço, situação agravada pela circunstância de só poder vender a mer-
quimbares (44). cadoria que lhe é confiada por um patrão, o qual não possui, mesmo ele, capitais
O primeiro termo a aparecer, para designar seja o comércio com o mato seja, pessoais.
sobretudo, o comerciante africano, é o de pombeiro ou pumbeiro. Mais tarde, o morfema Marcelo Caetano também se ocupou desta questão, e não hesita em divergir da
alargou-se aos comerciantes brancos, mas parece difícil aceitar a ideia de que os definição de Lopes de Lima: «o pombeiro era um preto ou um mulato, assimilado, [nós
Africanos tenham permitido a livre circulação dos comerciantes europeus através do teríamos preferido dizer aculturado] de que o comerciante sertanejo se servia dantes
sertão. É preciso pensar nas restrições criadas por todos os africanos para reduzir a para penetrar mais profundamente no sertão ainda mal conhecido e não ocupado [pelos
presença destes homens vindos de alhures. É por esta razão que pombeiro parece poder portugueses] (...) Eram uma espécie de caixeiros-viajantes ou de mensageiros diplomáticos
ser remetido para uma origem africana (45). dos aviados brancos» (49).
Este termo foi, a princípio, utilizado no reino de Loango, pelos africanos do século XVI, Como não pensar que o estatuto de pombeiro não podia manter-se imóvel, fossilizado,
para designar os comerciantes portugueses que frequentavam o mercado de Pumbo, que no quadro da história económica de Angola? Dadas as condições em que estes homens
muito tempo depois se tornou o Stanley Pool ( 46). Mais tarde, o sentido do substantivo são recrutados, deviam receber um treino mínimo, para estar em con-
alargou-se de maneira nítida para designar qualquer espécie de agentes itinerantes que dições de levar a cabo as operações comerciais que interessavam aos Portugueses:
se dirigiam ao interior das terras, à frente de caravanas, para negociar com os «indígenas» aprendiam a falar português, ou eram, sobretudo, recrutados, como nos inclinamos a
por conta dos comerciantes portugueses proprietários de casas de exportação nas cidades pensar, em função das suas competências linguísticas? É sabido que os Portugueses não
portuárias, primeiro em Luanda, seguidamente em Benguela. Muitas vezes tratava-se falavam todas as línguas africanas, muito longe disso, a tal ponto que quando um colono
de escravos destes comerciantes, mas podiam também ser homens forros ou livres (47). conhecia algumas, o facto era referido pelos textos.

Manuel Correia Leitão, o primeiro europeu a aproximar-se do rio Kwangu, foi
recrutado, a despeito da sua idade já provecta, pelo facto de ser um bom conhecedor
das línguas africanas (50).
Graça, 1890, pp. 399-400, organiza um inventário dos habitantes da «província do Bié», que
permite dar conta desta situação.
É necessário acrescentar os caixeiros, os empregados de comércio que asseguram, no mato,
a gestão das sucursais ou das agências das casas comerciais da costa.
Willy Bal, 1965. Lima, 1846, p. 63.
Vansina, 1966, p. 42. Caetano, 1954, p. 77.
(47) Cadornega, 1972, vol. I, p. 619. (50) Leitão, 1938, pp. 5 e 11.

116 117

Parece-nos curioso que estes autores nunca levem em linha de conta as condições e
competências linguísticas, o que é compreensível quando os Portugueses viajam com
intérpretes, mas deve ser reconsiderado pela história: os comerciantes são também homens
que devem conhecer bem as línguas africanas, além de serem locutores de português.
Seja como for, os pombeiros formam uma espécie de nuvem comercial que atravessa a
história de Angola, mas cujas funções se confundem, muito frequentemente, com
as dos sertanejos. Parece, em todo o caso, ser difícil conseguir distingui-los com estes
argumentos, sendo necessário recorrer aos documentos para os localizar cronologica-
mente: os séculos XIX e XX valem-se mais dos sertanejos do que dos pombeiros.
Nas literaturas africanistas, a expressão mais usada é a de pombeiro. Na prática
comercial angolana, é contudo o sertanejo que caracteriza a transição para a modernidade.
Trata-se de um substantivo adjectivante que, no Brasil, deriva de sertão, isto é, do mato.
O sistema hierarquizante depende nesta circunstância de confirmações complemen-
tares, reunidas caso a caso, o que quer dizer que qualquer comerciante pode ser incluído
nos sertanejos, como faz Lopes de Lima quando se refere aos aviados (51).
Dadas as limitações culturais impostas aos comerciantes portugueses, podemos
afirmar que a expansão dos sertanejos só se verifica após a segunda metade do século
XVIII. Alguns historiadores multiplicam os juízos feitos a propósito dos sertanejos,
essencialmente recrutados entre os condenados de direito comum que deviam cumprir
nas «possessões» portuguesas penas consideráveis, podendo ser dispensados de prisão
permanente.
Convém, todavia, ser um pouco mais rigoroso, porque a percentagem de brancos
era muito reduzida entre os sertanejos. Por um lado, e contrariamente ao que continua
a ser afirmado por alguns historiadores (52), a criminalidade portuguesa é, fundamen-
talmente, de carácter rural, porque não havia em Portugal criminalidade urbana
organizada. Estes homens tinham sido frequentemente condenados por querelas e crimes
provocados pelas heranças ou por questões de amor ou de honra. Naturalmente, devemos
considerar os casos patológicos, mas a maior parte destes «criminosos» mostrou-se
capaz de se entender perfeitamente — dentro do quadro de valores coloniais — com
as populações africanas.
Do ponto de vista da história do morfema, parece banalizar-se a partir da região c--/ c,
r c
do Bié, provavelmente em consequência da criação da capitania-mor em 1769, reforçada '47,-":- c 4
4- c 4, c":,cl ,

pela instalação de um pequeno núcleo de comerciantes brasileiros em Benguela, que


se «apropriaram» — no século XVIII — da estrada que ligava a cidade às terras de
Loyale (53).
«Preto de Ambaca que faz negócio em Cassange»; aguarela de
A importância socioeconómica dos sertanejos reforçou-se com o tempo, à medida
Alberto Diniz, AHU, 1851
que a dominação portuguesa irradiava da costa para o interior. Mas convém sobretudo
reter que os textos portugueses, consagrados aos sertanejos, manifestam uma tendência
muito branqueadora, que elimina regularmente a presença dos Mulatos e dos Pretos.

Lima, o. c., p. 63.


Bender, 1980, 2.* parte, pp. 93-143.
(53) Felner, 1940, vol. I, doc. 3 e 4.

118
De uma maneira geral, estes homens não possuíam capitais, como não dispunham
de grandes conhecimentos escolares ou profissionais. Por essa razão, e para conseguir
alcançar uma qualquer independência socioeconómica, tinham de apostar no crédito
obtido junto dos grandes comerciantes brancos, assim como na possibilidade de convencer
os Africanos a trabalharem para eles sem a menor remuneração, o que é importantíssimo,
se quisermos considerar que o trabalho de transporte só podia ser assegurado pelos
Africanos. Para conseguir lucros era preciso que o sertanejo obtivesse as mercadorias
a preços muito reduzidos, pagando poucos juros, para serem transportadas até aos
chefes compradores, por carregadores que não auferiam a mínima remuneração, e que
deviam assegurar a sua própria subsistência.
As condições apontadas parecem explicar, pelo menos em parte, o comportamento
muitas vezes brutal destes sertanejos, que participam nas operações de razia que serviram
para alimentar o tráfico negreiro (54).
Este comércio não podia deixar de ser violento: parece ter sido assegurado por
europeus socialmente desqualificados, economicamente frágeis, associados a mulatos e
pretos que procuravam obter um estatuto capaz de lhes permitir aproximar-se dos
brancos.
Os Africanos foram obrigados pelos Portugueses a produzir os seus próprios
especialistas do comércio do mato: os ambaquistas, que percorriam com facilidade não
só o sertão angolano, mas também os textos de quantos foram levados a circular nesta
bacia central que nos ocupa.
Por volta dos fins da primeira metade do século XIX, estes africanos aparecem até,
na literatura «africanista» portuguesa, como o modelo da civilização luso-africana: «o
povo de Ambaca é talvez o mais civilizado dos nossos distritos e presídios, pois é raro
o preto ambaquista não saber ler e escrever, ainda que mal, ou pelo menos assinar o
seu nome; geralmente são portugueses e amantes dos termos empolados e pouco comuns,
nas suas extensas escritas» (55).
Treinados na missão de Cahenda, por Jesuítas e Capuchinhos, estes homens não
só sabiam ler e escrever, mas também se vestiam à europeia. Eram suficientemente
hábeis, também, para tirar os sapatos quando estes se tornavam um obstáculo para
chegar ao entendimento mínimo exigido pelas actividades comerciais. Os exploradores
Capello e Ivens descrevem-nos percorrendo os territórios africanos em todos os sentidos,
vestidos de maneira extravagante em relação aos modelos ortodoxos europeus: «é tal
a mania pela leitura e escripta... que em marcha leva [o ambaquista] sempre dentro de
pequena mu-hamba um tinteiro, uma penna e duas ou três folhas de papel» (56).

Convém não esquecer as condições específicas da actividade comercial em Angola onde, até
muito tarde, foi necessário obter não só homens para alimentarem o tráfico, mas também para fornecerem
— a partir dos primeiros anos do século XIX — a força de trabalho às roças do arquipélago de S. Tomé
e Príncipe.
Francina, 1854, p. 13.
(56) Capello e Ivens, 1881, II, p. 40. Ver, também, Livingstone, 1854, pp. 417 e 423-424.
119
Participam, igualmente, na banalização da escrita, recuperada pelos Africanos. Resta-nos ainda a categoria dos agregados, «africanos integrados na casa de um
Podemos também pensar que o pombeiro Pedro João Baptista, que redigiu o roteiro da comerciante português» (63), o que queria dizer que estes homens eram não-escravos,
sua viagem da Musumba Lunda a Kazembe, tinha sido treinado em Mbaka, por homens mas homens livres, saindo do mato e do seu sistema ciânico para se transformar não
desta origem, com os quais havia aprendido a ler e a escrever, o que nos permitiu dispor em associados, mas em dependentes dos Portugueses. Trata-se, de resto, de uma situação
de um documento que se conta entre os mais significativos, dos primeiros anos do século suficientemente constante na história das relações entre as duas comunidades, porque
XIX. É por isso evidente que este grupo só podia vulgarizar as aquisições culturais dos Elias Corrêa no-la tinha mostrado em relação aos quimbares: aqueles que pretendem
Europeus, e apercebermo-nos da sua influência, ouvindo Henrique de Carvalho descrever afastar-se do seu clã ou da sua aldeia fazem acordos com os Portugueses, que lhes
a maneira como Bezerra (57) tinha conseguido instalar o gado bovino existente na capital permitem organizar situações sociais e familiares à margem das duas sociedades (num
lunda (58). espaço intermédio, a igual distância das suas sociedades, embora esta autonomia só seja
A primeira referência aos quimbares, que pudemos identificar, é feita por Elias possível graças aos Europeus).
Corrêa (59): estaríamos perante uma categoria a respeito da qual se pode salientar a Acrescente-se o que convém explicitar: os Portugueses têm constantemente
imprecisão sociológica, porque se trata de guerreiros livres ou cativos; ou de chefes de necessidade de recorrer à competência dos Africanos para assegurar as suas relações
família ligados a uma pessoa para a defesa dos seus bens ou dos membros da sua comerciais com o mato. Há uma firme procura de homens de confiança, que nem sempre
família. A questão do pagamento destes comerciantes — em produtos, tecidos, cauris é possível conseguir, recorrendo aos escravos. Os Africanos são necessariamente obrigados
ou mercadorias — nunca é enunciada, e a relação fica, deste modo, um tanto descarnada. a dar-se conta desta situação, e alguns propõem os seus serviços, que não podem deixar
Mas ela parece evidenciar a existência de homens que funcionam como guardas, capazes de ser aceites. Estas condições de funcionamento das relações entre Africanos e Europeus
de assegurarem a defesa dos indivíduos e dos seus bens ou famílias. Em troca de quê? tornam-se transparentes quando analisamos as diferentes situações criadas para permitirem
Os documentos ulteriores não permitem eliminar as imprecisões, o que é bastante que estes voluntários consigam integrar-se, embora continuem a oscilar entre as duas
significativo, dado que a sua actividade se exerce ainda no século XX. comunidades. Ora, sabemos que é frequente as autoridades religiosas africanas
Os quimbares seriam «negros livres ou forros que vivem junto dos brancos» (60), aconselharem um homem, que está em conflito com o seu grupo, a ir instalar-se em
mas Silva Porto propõe uma definição assaz afastada daquela: tratar-se-ia do «nome outro lado (64). Esta possibilidade de se viver junto dos Portugueses para trabalhar no
comummente empregado pelos Quimbundos para designar os escravos pertencentes aos comércio, mesmo que este fosse pouco importante, tanto em volume como em valor,
brancos, no entanto, aqui [Silva Porto escreve no Bié] dá-se indistintamente o nome de permitia certamente, a estes homens, poderem furtar-se às perseguições quantas vezes
Quimbares à gente que sai do Bié» (61). geridas pelos «feiticeiros».
A última referência a estes agentes comerciais provém da região do Dondo: os Por todas estas razões, parece-nos indispensável pôr em evidência o grande número
quimbares seriam africanos originários das regiões entre Luanda, Nkoje (Encoje) ou de imprecisões que os documentos não nos permitem esclarecer. Julgamos todavia
Kasanje, integrados no comércio europeu. Assis Júnior descreve-os como imbari, plural necessário referir as muitas situações que aparecem nos documentos, deixando este
de kimbari, quer dizer, «chefes de caravana dos comerciantes, ou contra-mestres» (62). inquérito em aberto, sabendo, embora, que devemos dar as respostas indispensáveis para
Como nos orientarmos no pântano destas definições, a não ser levando em conta estar em condições de melhor definir as formas de associação tecidas entre Europeus
o que parece ser comum às duas regiões citadas, Bié e Dondo? Os quimbares são assim e Africanos. Esta observação é tanto mais importante quanto mais estamos convencidos
agentes comerciais africanos que se põem ao serviço dos Europeus, mas conservam a de que o comércio é capaz de permitir a criação de situações inéditas, que rompem com
sua liberdade de movimentos. Se há também escravos entre os quimbares do Bié, não o quadro tradicional das organizações africanas. Ao instalarem-se junto dos Europeus,
parece que se trate de situação geral. Por outro lado, os quimbares entram na imensa os Africanos parecem mais capazes de se libertar da rigidez dos controlos ciânicos, tal
categoria dos agentes sem os quais os Europeus não conseguem orientar-se no mato. como esta situação lhes permite dispor de uma margem de decisão infinitamente mais
ampla.
O aviado parece ser de criação mais recente e provavelmente importado, senão o
homem, pelo menos a função, do Brasil (65). A profissão não é assinalada por Cadornega
Ver 5.° parte, cap. III. no século XVII, mas já aparece no texto de Elias Corrêa, como complemento necessário
Carvalho, 1894, vol. IV, p. 228.
Corrêa, 1937, I, p. 93.
Ver Angolana, 1968, I, nota de Mário António Femandes de Oliveira, p. 262, que retoma uma Margarido, 1981, p. 901.
definição de 1801. Areia, 1985, pp. 370-373. A aparição, no cesto do adivinho, do fruto da árvore muhasu está
Silva Porto, 1866, vol. 3, citado por Maria Emília Madeira Santos, 1986, p. 39. ligada à partilha. Aquele que a recusa rompe com o seu grupo.
Assis Júnior, 1979, p. 86. Ver, também, Margarido, 1981, p. 902. (65) Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. 3, p. 840.

120 121
do aviante. Este é o comerciante que lhe concede crédito, do qual depende, enquanto as não impede que o comércio africano seja, até finais do século XIX, dominado por
contas não forem regularizadas. Nesta actividade, não conseguimos apurar se há fiadores agentes africanos, o que não proíbe a existência de uma partilha funcional, que
ou se o contrato é estabelecido entre dois homens que se conhecem, um dos quais fica na parece, de resto, bastante eficaz: uma elite branca instalada na costa, que podia
cidade, enquanto o outro deve internar-se no mato, para aí recrutar sub-agentes. recrutar os homens negros ou mestiços no sertão ou nas pequenas povoações ainda
Os aviados estão perto de outras categorias de agentes portugueses. Lopes de extremamente rurais, e controlava a totalidade do comércio de importação-exportação.
Lima salienta aquilo que os distingue imediatamente dos pombeiros: trata-se de «pretos Nesse caso o funante apenas seria, na hierarquia de Marcelo Caetano, um
calçados» ( 66). «São comissários volantes, sertanejos, a quem os moradores de Luanda pequeno comerciante do sertão, funcionando como itinerante, indo de um mercado
costumam confiar grosso cabedal em fazendas de que nem sempre dão boa conta; e às para outro. Foi capaz, sobretudo no Sul, de substituir os carregadores por carros
vezes por lá morrem e lá fica tudo; e outras vezes vivem, mas não voltam» (67). de bois, introduzidos pelos poucos bóers que se instalaram no Sul angolano (69).
Trata-se, de facto, de uma espécie de lotaria do crédito que aparece como uma técnica Mas esta mutação técnica já não cabe no nosso campo territorial e cronológico.
útil nas relações com o sertão. Também neste caso pensamos que estas técnicas foram
certamente mais úteis durante o período do tráfico negreiro: o seu ocaso, parece ser um
sinal da dificuldade da mutação dos meios técnicos deste tipo de comércio. Não é esse B. Da independência do Brasil à abolição da escravatura. Mudanças e continui-
o ângulo de análise do Prof. Marcelo Caetano: «o aviado é um comerciante sem capital dades da política colonial portuguesa (1822-1878)
próprio. Para tentar o negócio do mato, o aviado faz um acordo com uma casa comercial
importante, geralmente do litoral, mediante o qual esta lhe abre uma conta-corrente. O 1. A legislação e as mudanças (1822-1850)
aviado recebe a crédito um sortimento de artigos de comércio para venda ou permuta com
os nativos; e compromete-se ir enviando, para amortização desse débito, ao estabelecimento A transição de Portugal do antigo regime para a modernidade política e económica
credor, os géneros que for obtendo pela permuta ou pela compra (...) Mas os aviados não pode, de maneira alguma, ser dissociada da evolução das escolhas coloniais. A Coroa
podem estar estabelecidos em lojas onde esperam a afluência da clientela nativa, ou fazer portuguesa, instalada no Rio de Janeiro a partir de 1807, para evitar as consequências
comércio ambulante, originando (...) o funante» (68). das invasões napoleónicas, tornou mais fáceis as mudanças nas colónias (70).
O antigo ministro das Colónias, último primeiro-ministro do fascismo português, O regresso da corte portuguesa a Lisboa levou a burguesia brasileira a impor a
procurou clarificar um certo número de informações associadas à economia colonial. independência (1822), mas muito habilmente o príncipe-herdeiro português lançou em
A definição das condições de recrutamento e de funcionamento do aviado parece-nos Ypiranga (S. Paulo) o que ficaria na história dos dois países, como o «grito do Ypiranga».
muito útil, tanto mais que faz aparecer uma situação inédita: o aviado dispõe, às vezes, A família real portuguesa conseguiu, assim, assegurar a sua posição hegemónica,
de uma instalação comercial no mato, que as casas comerciais da costa podem utilizar embora se pudesse considerar que o príncipe D. Pedro geria bem os negócios da família,
para assegurarem as trocas com os produtores africanos, que não desejam deslocar-se em detrimento dos interesses portugueses e, possivelmente também, dos brasileiros (71).
até às cidades costeiras. Porque convém não o esquecer: todos estes homens, que se
entregam ao comércio no sertão, estão em concorrência com os próprios africanos,
capazes de organizarem caravanas para irem negociar nas cidades.
O que parece assaz inédito nas explicações dadas por Marcelo Caetano é o facto de Guerreiro, 1958.
Estando a corte portuguesa instalada no Rio de Janeiro, que se tornara a capital da colónia
os aviantes serem europeus, tendo africanos ao seu serviço. A pirâmide dos capitais, dos portuguesa mais importante, Portugal mobilizou consideráveis fracções da aristocracia e da burguesia,
caracteres somáticos e da autoridade seria constituída por três níveis: os capitalistas brancos, para estar em condições de recuperar a plenitude da gestão política. O marechal Beresford, que governava
que forneciam mercadorias aos comerciantes brancos sem fundos, e, por fim, os Africanos. Portugal, reagiu com a mais extrema brutalidade perante a conspiração que, sob o comando de Gomes
Contudo, esta organização tripartida possui a vantagem de tios permitir avaliar a Freire de Andrade e apoiada pelas associações secretas, pretendia devolver a gestão do país aos
importância absoluta dos Africanos na corrente das actividades comerciais. Portugueses.
O fracasso da conspiração de 1817 não podia convencer os Portugueses a manterem-se sob o jugo
Fica-nos, como resíduo, não o esqueçamos, um pequeno mistério: para que os
da dominação inglesa e, em 1820, no Porto, os «conspiradores» conseguem impor a retirada dos
aviantes sejam todos europeus, é necessário que o grupo seja muito restrito, dadas Britânicos, o que provocou o regresso do rei D. João VI, a Lisboa. No Rio, seu filho, o príncipe Pedro,
as condições da demografia angolana. A situação é ainda mais particular, porque assumia a gestão da colónia. Todavia, a presença da corte no Brasil provocara o reforço dos laços
administrativos e económicos entre Luanda e o Rio, consequência da redução das relações com Porto
e Lisboa.
(71 ) Esta independência fora preparada há muito tempo pela burguesia brasileira, pelo menos a
Lima, 1846, p. 63. partir do último quartel do século XVIII. O movimento da Inconfidência (1789) tinha até tentado
Id., ibid. estabelecer relações com os Estados Unidos, através de T. Jefferson, então em França. Tratava-se de
(68) Caetano, 1954, p. 95. obter o apoio da jovem república burguesa para se poder separar da dominação portuguesa.

122 123
n11.111111nMI.

A independência brasileira modificou, de maneira considerável, a estrutura já secular É, pois, durante a década de 1850, que pode ser enfim aplicada a polftica colonial
das colónias portuguesas, sobretudo as da costa ocidental africana, entre as quais esboçada por Sá da Bandeira (75): paragem total do tráfico negreiro, aumento da
Angola. A relação triangular que unira Angola ao Brasil, e estes dois países a Portugal, produção das mercadorias destinadas ao comércio normal, fim das relações de dependência
teve de ser substancialmente modificada, e numerosos foram os angolanos, pertencentes — alimentadas pelo comércio negreiro — que tinham colocado Angola numa situação
à «burguesia» comercial, que encararam a possibilidade de uma independência associada de inferioridade em relação ao Brasil. Esta situação nova arrasta com ela a revisão dos
ao Brasil (72). laços que unem Angola a Portugal, o que engloba também a Europa. De facto, se esta
Para os Portugueses, as consequências desta independência são outras. É certo que década é a da viragem, a verdade é que a consolidação destes projectos só poderá ser
as autoridades e uma fracção significativa da intellegentia portuguesa procuraram opor- levada a cabo após a proclamação da República, em Outubro de 1910.
se — apoiadas por núcleos numerosos e influentes de colonos — a esta independência. No registo simplesmente comercial, a legislação liberal acumulou as medidas
Mas desde os primeiros anos de 1830, a situação tornou-se irreversível: Angola passa destinadas a assegurarem a renovação da estrutura angolana. A partir de 1834, e antes
então a ocupar o papel de principal colónia portuguesa. das decisões que aboliam o tráfico negreiro, é publicado o decreto que põe termo ao
Só a partir de 1836, os Portugueses modificam a sua estratégia nas relações com monopólio da Coroa portuguesa sobre a exportação do marfim. São numerosos os que
o Brasil, assim como com Angola. Os laços privilegiados são conservados, e numerosos atribuem a este primeiro decreto do governo liberal efeitos desmedidos, pois teria
são os brasileiros que procuram assegurar a manutenção do fluxo dos escravos, na permitido que os comerciantes pudessem assegurar a comercialização do marfim,
medida em que uma fracção continua convencida que o país não seria viável se não acumulado por eles e pelos africanos, tendo suscitado o reforço da actividade dos
dispusesse desta numerosa força de trabalho, mesmo que menos barata que no passado. caçadores, que em poucos anos haviam de reduzir seriamente o número de animais. Os
O aumento constante do preço dos escravos na costa, consequência da intervenção Quiocos, ferreiros hábeis, que tinham começado a especializar-se na conservação e
britânica no Atlântico Sul, provocara sequelas importantes. Os trabalhadores brancos reparação das armas de fogo, tornam-se os campeões desta nova actividade (76).
tornam-se mais baratos do que os escravos negros (73). Deve também reter-se, imediatamente após a publicação do Decreto de 1836, a
Todavia, as condições ainda não estão reunidas para quebrar o laço esclavagista, importância do Decreto de 1837, que autoriza a introdução nos portos africanos, sob
tecido durante séculos entre Angola e o Brasil: assistimos, nas duas costas do Atlântico, controlo português, dos produtos europeus de origem não-portuguesa, indispensáveis ao
à lenta, mas inexorável, redução do fluxo do tráfico negreiro. A legislação portuguesa aumento das trocas com os Africanos. Estas medidas são também destinadas a reduzir
multiplica os decretos destinados a pôr-lhe fim, mas foram as medidas adoptadas pelos o contrabando, tanto mais incómodo quanto diz ele respeito a mercadorias de melhor
Brasileiros que permitiram acabar, de maneira definitiva, com estas operações tão qualidade, do que as utilizadas pelos comerciantes portugueses nas trocas com os
mortíferas (74). Africanos.
É certo que o Decreto de 1850, que proíbe o desembarque dos escravos nas costas e Parece, contudo, que as decisões de 1837 vão além deste objectivo certamente
nos portos brasileiros, não impede que sejam levadas a cabo operações clandestinas, quase importante, mas assaz limitado. O legislador procura reduzir, ou até eliminar, o tráfico
sempre apoiadas pelas autoridades brasileiras. Trata-se, contudo, dos estertores finais, clandestino dos escravos, graças ao aumento do comércio «legítimo», que exige
condenados a desaparecer sob a dupla pressão da lei e de uma nova moral que reforça a mercadorias outras que os homens. Os resultados parecem provar a boa lógica da
condenação dos negreiros. De resto, a própria palavra torna-se tão injuriosa que afasta da reflexão da administração portuguesa, pois que os Africanos confiam cada vez mais
sociedade burguesa aqueles a quem pode ser aplicada, sem duelos nem protestos. mercadorias «normais», quer dizer, não-humanas, às casas comerciais portuguesas.
É indispensável acrescentar, a este curto inventário das medidas adoptadas pelas
autoridades portuguesas, a abertura, aos navios estrangeiros, dos principais portos das
Os documentos da época fazem referência à formação de «partidos brasileiros», em Luanda colónias. Semelhante decisão pode ser interpretada de várias maneiras, mas é necessário
e em Benguela, devendo esta ser até subordinada ao Brasil, por meio da aceitação de medidas adoptadas começar por integrá-la no movimento desencadeado pelas grandes potências comerciais
no Rio de Janeiro. Para Alexandre, 1979, p. 32, semelhantes «partidos» não seriam mais do que a
consequência das clivagens existentes entre os diferentes grupos de comerciantes, dependendo as suas
que desejam abrir ao comércio internacional — à economia-mundo — todos os continentes
opções essencialmente das medidas tomadas a respeito do tráfico. Cremos, contudo, que Alexandre não e todos os países que se abrigam atrás das medidas proteccionistas para afastar a
considera assaz a importância desta relação com o Brasil, que salienta a existência de uma possibilidade ameaça humana e comercial do Outro. Os Portugueses preferem, de certa maneira,
de criar uma república inédita no Atântico Sul, o que seria possível no quadro federativo dos Brasileiros.
Alencastro, 1986, cap. X, p. 571, refere que «um certo número de traficantes e de plantadores
(...) utilizam a vasta frota negreira construída antes de 1850 para transportar contratados portugueses,
sobretudo açorianos, para as plantações brasileiras». Estamos no direito de pensar que uma parte da
emigração portuguesa se destinou a substituir a força de trabalho escrava. Alexandre, 1979, pp. 47-55.
(74) Alencastro, o. c., cap. X. Ver 5. parte, cap. III.

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antecipar-se ao risco da intervenção previsível da comunidade internacional, desencadeada escravos exportados por D. Ana Joaquina dos Santos Silva não impedem, de maneira
pelos Ingleses (77). nenhuma, a aplicação das leis, e que os negreiros estejam também condenados a
Estamos no quadro das motivações portuguesas: as medidas liquidam a aparência desaparecer, mesmo que mais lentamente do que se tinha esperado em Lisboa e no Rio
da legalidade — perdoe-se o falso paradoxo! — do «contrabando». É que os capitães de Janeiro.
dos navios surpreendidos em plena actividade de contrabando podiam justificá-lo,
demonstrando que as autoridades portuguesas impediam a liberdade dos actos comerciais. 2. Os comerciantes da cidade
Esta operação podia ser liquidada, tanto mais que permitia submeter os navios de guerra
ingleses às normas internacionais, pondo assim termo às vantagens de que gozavam, A legislação de Sá da Bandeira provoca uma espécie de cataclismo interno em
em virtude de um certo número de tratados luso-britânicos, o primeiro dos quais fora Angola: a maior parte dos grandes comerciantes portugueses, ligados à actividade
assinado no Rio de Janeiro, já em 1810. negreira, renuncia a qualquer acção em Angola, incapaz de compreender o novo imenso
Estas medidas, consideradas no seu conjunto, permitiram, mesmo que de maneira espaço comercial que estava em via de desabrochar, encontrando-se os produtores
algo tímida, que se instalassem em Angola interesses portugueses, decididos a assumir africanos dispostos a aceitarem a reorientação dos seus esforços, mesmo sem renunciar
as condições da mudança angolana. A agricultura industrial, mas sobretudo o comércio à escravatura (80).
dos produtos coloniais «normais» (ou lícitos) atraíram a Luanda as primeiras casas O espaço angolano, que assegura o controlo do comércio exterior, cujas cidades
comerciais especializadas nas relações com o mercado de Lisboa (78). mais importantes continuam a ser Luanda e Benguela, apresenta-se então ocupado por:
A proibição do serviço gratuito dos carregadores (31 de Janeiro de 1839), destinada
a impor uma utilização menos irracional da força de trabalho africano, de maneira a Pequenos e médios comerciantes portugueses, na sua maior parte «brancos
preparar a sua utilização maciça no sector agrícola, aparece como uma medida comple- pobres», provindos do mundo rural, artesanal ou pequeno-burguês, enriquecidos pelo
mentar, permitindo compreender o projecto colonial português da segunda metade da comércio negreiro com o Brasil, que continuam ligados aos valores potenciais da
década de 1830. economia angolana, não hesitam em retomar, constantemente, o caminho das feiras e
A aplicação destas medidas foi tornada difícil, devido a vários obstáculos, entre os do sertão, mesmo quando as grandes caravanas se desagregam para dar lugar a pequenas
quais retemos aquele que nos parece mais significativo: a visão do mundo da burguesia expedições comerciais.
colonial não podia deixar de ser rígida, e considerava que estas decisões constituíam Trata-se de um embrião da burguesia atlântica, instalada em Angola e no Brasil,
uma agressão, nem sequer dissimulada, por parte da burguesia metropolitana. ou hesitando entre os dois países.
Estes homens pensavam poder servir-se da astúcia, para conseguir obter o máximo Esta burguesia opõe-se, por vezes brutalmente, às decisões do governo português,
de vantagens no imediato, mas não tinham ainda compreendido que estavam condenados que é acusado de defender, sobretudo, as escolhas e os interesses da burguesia
a perder, face às novas exigências do processo colonial, que só lhes daria novas metropolitana. O conflito entre as duas burguesias tende a agravar-se, pois, alguns
possibilidades no caso de serem capazes de assegurar a sua própria reconversão comercial comerciantes angolanos acalentam, até aos anos 1830, o sonho da proclamação da
ou agrícola. independência, sob a direcção dos brancos, graças a um dispositivo administrativo
Alguns dos triunfos destas astúcias foram altamente celebrados e ficaram na história autorizado pela Constituição Federal Brasileira (81);
quotidiana como prova da habilidade sem peias de alguns comerciantes, como foi o caso Grupos mestiços ou africanos, os primeiros resultando das relações conjugais
do túnel que teria permitido que uma comerciante mulata de Luanda pudesse assegurar com os europeus — que não poucas vezes são na realidade brasileiros — e os segundos
a exportação dos escravos, a partir da grande casa instalada na parte baixa da cidade- recrutados entre os autóctones mais ousados, que aprenderam a ler, a escrever e a contar
-capital ( 79). Na verdade, estas operações não podem modificar, de maneira substancial,
o dispositivo instalado pela Inglaterra e apoiado pelos paísq europeus: os poucos

Este abandono começara mais cedo. Já nos anos 30, um grande número de comerciantes
decidira instalar-se no Brasil. A maior parte deles participava no comércio negreiro e tinha recusado
toda e qualquer forma de reconversão.
As autoridades portuguesas conseguem, desta maneira, escapar às operações brutais dos Ver nota 82. Este sonho de independência não desapareceu, tendo até conseguido sensibilizar
Ingleses que, a partir de 1808, intervêm constantemente nas escolhas portuguesas. Os territórios portugueses a pequena burguesia mestiça ou preta, cujo estatuto social estava em deperecimento, sobretudo a partir
são assim mobilizados para servir os interesses britânicos no Atlântico Sul. dos anos 1860. À medida que o tráfico, legal ou ilegal, se reduzia, fracções desta burguesia, ligadas
Todavia, a exportação da urzela foi reservada à navegação portuguesa (1837). Este monopólio ao comércio, perdiam a sua razão de ser e não conseguiam encontrar maneira de se reconverter. Em 1874,
está, provavelmente, na origem da instalação de casas comerciais em Luanda e em Benguela. é apreendido em Luanda um panfleto manuscrito, onde se reclama claramente, pela primeira vez, a
(79) Omboni, 1846, pp. 100-110, e Gil, 1854, p. 14.
independência de Angola. O documento foi publicado por Alexandre, 1979, pp. 162-163.

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em contacto com os ambaquistas ou m'bakistas ou com os europeus. Este grupo vive muito importante de brasileiros em Angola. Estes homens dispunham da experiência do
do comércio dos escravos, dispondo de um poder económico e polftico importante e modelo brasileiro, que não vive da exportação de homens, e podem por isso acreditar
dando origem a figuras paradigmáticas, como a famosa D. Ana Joaquina dos Santos na mutação das formas de produção e do comércio angolanos.
Silva que pôde dominar a vida de Luanda durante os anos 1830-1840. Esta mulher • Parece-nos que a leitura, que se apoia no princípio de que o tráfico negreiro resiste,
reúne, de maneira perfeita, as duas vertentes do projecto angolano: por um lado, dissimula de maneira excessiva a importância das alterações. Estas modificações tinham
mantém-se fiel à continuação do tráfico negreiro, pelo outro, interessa-se pelo começado muito antes da abolição do tráfico e desenvolveram-se durante o século XIX,
desenvolvimento das novas práticas agrícolas, particularmente no domínio do café e da caracterizado pela coexistência das mercadorias «legais» e «ilegais» nas redes comerciais
cana-de-açúcar, ao mesmo tempo que alarga os seus interesses comerciais a diferentes angolanas, assim como no quadro das suas exportações. Os comerciantes de escravos
regiões do país: Golungo, Dembos, Cazengo, Ambaca, Benguela, Moçâmedes e Lunda (82); tentavam propor e obter outras mercadorias que não escravos e as autoridades coloniais
3) Comerciantes brasileiros ou luso-brasileiros, quer dizer, homens que possuíam procuraram criar um quadro legal capaz de reforçar as condições da mudança.
no Brasil a sua vida comercial, assim como as suas relações afectivas preferenciais, o
que lhes permitia assegurar um laço orgânico entre a economia «urbana» angolana e 3. Comércio de escravos/comércio legítimo: uma falsa ruptura
o sertão africano. Deve compreender-se que a posição destes comerciantes se confundia
com os interesses dos grupos protoburgueses portugueses e mestiços, o que reforçava Tráfico de escravos, tráfico clandestino, comércio legítimo e comércio lícito formam
a sua resistência às decisões portuguesas (83). um conjunto de expressões ambíguas para ser usado política e ideologicamente, e que
parece querer dissimular a realidade das práticas: a coexistência das mercadorias «ilegais»
O governo da metrópole proclama e apoia uma polftica colonial que não pode
e «legais» nos circuitos comerciais (84). Esta situação já existia no comércio externo
impor, na medida em que as autoridades administrativas e até militares são ou cúmplices
antes da abolição do tráfico negreiro, e manteve-se, de maneira constante, no comércio
ou impotentes perante os interesses e as decisões desta burguesia, ou melhor dito,
burguesias. Estas gozam, realmente, de uma autonomia graças ao vazio político e interno.
O conceito que falta invariavelmente, ou que só de maneira discreta atrai a atenção,
económico criado, a partir dos primeiros anos do século XIX, pela ausência de um poder
é o de contrabando, tão duramente denunciado pelos Portugueses, e que recebe no fim
colonial forte. A autonomia é reforçada pela convergência de acções, destinadas a
afirmar o peso e a coerência das suas opções, na maior parte dos casos contrárias aos do século XVIII, na pena de Elias Corrêa, a designação de «comércio ilícito» (85).
projectos e às medidas portuguesas, apesar de divergências múltiplas que explodem, Trata-se, como não podia deixar de ser, da panóplia dos conceitos e noções europeus,
quando se trata de defender os seus interesses próprios. destinados a regularizar, por meio da escrita, a terrível desordem provocada pela
É durante a década 1860 que a situação começa a modificar-se em proveito da escravatura. Esta desordem ainda não terminou, na medida em que a história do tráfico
metrópole, encerrando-se assim o luto polftico e colonial, provocado pela independência negreiro não foi feita até agora, mesmo que lhe tenham sido consagrados muitos estudos,
do Brasil. As mudanças mais importantes são, contudo, a consequência do repentino alguns de grande qualidade (86).
enriquecimento obtido pelas plantações de S. Tomé e Príncipe, que fez do cacau o É evidente que não podemos recomeçar a história das relações com o Outro
sinónimo de dinheiro, no calão lisboeta. No momento em que há ainda propostas africano, mas é conveniente lembrar, mesmo que muito sucintamente, o suporte religioso
destinadas a assegurar a venda das colónias, os lucros obtidos abalam algumas certezas que preside do lado cristão a todas as operações ligadas ao tráfico negreiro e à escravatura.
e obrigam a intellegentia portuguesa a repensar o espaço colonial. A legislação humanista europeia nunca se pôde separar do peso dos interesses
Retenha-se um dos elementos-chave do sistema: a passagem das formas arcaicas económicos, permitindo que as éticas religiosas — católica ou protestante — pudessem
da relação colonial, assentes no tráfico negreiro, às formas modernas da gestão comercial, coabitar com a escravatura, mesmo que houvesse grupos reduzidos que denunciassem
que apostam na produção normal, agrícola ou mineira, foi assegurada pela presença esta situação pouco «fraterna». As igrejas instituídas não hesitaram em aceitar a
escravatura e não eram poucas as instituições religiosas que, em África e nas Américas,
recorreram ao trabalho escravo para levar a cabo a sua actividade.
Os Portugueses eram considerados, em geral, como os negreiros absolutos, mas a
Lopo, 1948, Mário António Fernandes de Oliveira, 1981, assim como Pacheco, 1990.
A evolução do sistema comercial inglês, durante o período que vai do fim do tráfico negreiro verdade é que a sua intellegentia soube aderir, assaz rapidamente, aos princípios da
até ao reforço do comércio «legítimo», põe em evidência o dinamismo destes comerciantes luso-brasileiros. liquidação do tráfico negreiro e da escravatura. A liquidação do antigo regime e a
Uma das figuras que deve ser aqui assinalada é a de Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo, ao qual
havemos de consagrar uma atenção particular. O exilado político liberal procura mobilizar o apoio dos
Britânicos para proteger os seus negócios e impor a sua autoridade sobre a administração portuguesa. Ver, a respeito desta passagem do tráfico negreiro ao comércio «legítimo», Vellut, 1989.
Ver Tams, 1850, assim como Oliveira, 1981, que condena Carpo, sem ter chegado a aperceber-se do Corrêa, 1937, vol. II, p. 36.
papel dinâmico do ilhéu na modernização angolana. (86) Ver Miller, 1988, um dos melhores estudos consagrados à questão no quadro angolano.

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redução do peso miguelista no aparelho de Estado permitiram que as ideias liberais, ATLÂNTICO
aprendidas normalmente no exílio, em França e na Grã-Bretanha, pudessem ser
transformadas em decisões legais. É verdade que, na estratégia do marquês de Sá da
Bandeira, a figura mais notável desta mutação, contava muito a necessidade de evitar
todo e qualquer conflito com a Grã-Bretanha.
São conhecidas as dificuldades para fazer respeitar as decisões do Estado, como Território aberto aos Europeus
já tivemos oportunidade de lembrar, mas tal não deve impedir-nos de salientar as
incertezas ou até dissimulações do vocabulário utilizado pelos Europeus: a distinção
entre comércio legítimo e aquele que o não era esquece — ou dissimula — o simples
facto de ambos estarem associados ao comércio dos homens. Quer dizer que os dois Espaço africano interdito aos Europeus e aos Pretos calçados
tipos de comércio dependem da mesma opção económico-humanista, e que os lucros
obtidos não têm, aparentemente, o menor cheiro a escravo.
Parece-nos que a réplica dada pelo Mwatyanvua a Rodrigues Graça, em 1846, na
capital lunda, traduz de maneira suficiente a surpresa dos Africanos perante a modificação Esta situação conhece algumas variantes, mas, em geral, os Africanos consideram
das regras que tinham sido criadas, introduzidas e desenvolvidas pelos Europeus. Esta que ela só pode perverter as relações do homem com a natureza. Mais adiante, faremos
surpresa é reforçada pelo facto de a maior parte dos portugueses não renunciar, de a análise do sentido da pequena piroga kwanza, que faz parte do cesto dos adivinhos
maneira nenhuma, ao comércio dos escravos, mercadoria que, como afirma o documento quiocos, e que associa um certo número de perturbações — físicas e mentais — à
português, possui a enorme vantagem de poder andar, o que não acontece com as presença dos Europeus. Trata-se, por isso, não só de manter à distância os concorrentes
demais, que obrigam a recrutar carregadores, muitas vezes impossíveis de encontrar (87). comerciais, mas também de assegurar que o território africano seja poupado à mácula
Retenhamos, contudo, o essencial: as distinções entre os diferentes tipos de comércio, que trazem consigo os Europeus, o que nos ajuda a compreender melhor a ausência de
praticados nesta região de África, são perfeitamente fantasistas, dado que, até aos informação portuguesa, a respeito do espaço africano assim interdito.
primeiros anos do século XX, a escravatura continua a alimentar os fluxos comerciais
angolanos. Nós, europeus, decidimos esquecer esta operação artificial, destinada, parece, 4. Os primeiros passos para a valorização de Angola (1850-1878)
a reforçar a boa consciência das sociedades que não hesitaram em reduzir, durante
séculos, o Outro africano à condição de simples mercadoria. Só a partir de meados do século, quando o Partido Regenerador ( 88) assume o poder
O comércio interno africano, que se desenvolvia ao nível local, assim como a longa para assegurar a «regeneração» da economia portuguesa, se torna possível a definição
distância, alimentava o comércio internacional. As redes comerciais africanas fizeram de uma política industrial, associada à valorização das colónias africanas. Os anos
sempre coabitar a mercadoria escrava com um leque assaz amplo de outras mercadorias, 1850-1878 são caracterizados por:
do sal ao marfim. Parece quase tautológico salientar que estes fluxos comerciais aspiravam
às mercadorias europeias para as fazer circular da costa ao sertão mais remoto. A abolição efectiva do tráfico negreiro (1858), consecutiva à legislação brasileira,
A interpenetração comércio europeu/comércio africano tornou-se cada vez mais organizada pelo senador Euzébio Queiroz (1850);
profunda, à medida que o tráfico negreiro ia sendo substituído pela circulação das O fim teórico da escravatura nas colónias portuguesas, decidido pelas leis de
mercadorias «normais». Esta operação parecia abrir aos Europeus as vias do interior 1854 e de 1859. Sem eco em Angola, estas medidas legislativas foram repetidas em
do território, mesmo que os Africanos procurassem manter-se fiéis à estratégia secular 1869 e, ao mesmo tempo que procedem à abolição da escravatura, obrigam os antigos
adoptada para conservar os Europeus junto à costa, situação Clue pode ser utilmente escravos a servir os seus senhores até 1878, com o estatuto de libertos (89);
representada por um gráfico:
Portugal não conseguiu — nem podia — furtar-se à pressão da «regeneração», que organiza,
mesmo que tardiamente, em relação à Europa, as escolhas políticas (1851-1868) que desejam modernizar
o país, recorrendo para isso à multiplicação das obras públicas.
O verdadeiro objectivo desta medida visava retirar aos proprietários dos escravos a possibilidade
legal de exigir a indemnização prometida no Decreto de 1858, que devia ser paga quando se registasse
a abolição efectiva da escravatura, em 1878. Este novo diploma transformava os «escravos» em «libertos»,
cujo tempo de trabalho «obrigado» terminava por volta de 1878, o que desobrigava o governo do
(87) Ver capítulo dedicado aos carregadores, 4.' parte, cap. I, assim como 5." parte, cap. II. pagamento de qualquer forma de compensação. Ver Nogueira, 1880, pp. 196-202.

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O desenvolvimento do comércio «legftimo», centrado em torno dos produtos em «território inimigo», ao mesmo tempo que procura furtar-se à cobrança dos impostos
africanos, provenientes da recolecção e da caça — a cera, o marfim e a borracha —, e taxas exigidos pelas Finanças portuguesas. Instalados no interior do sertão, estes
reforçados timidamente, a princípio, pelas plantas cultivadas — o café, o algodão, a comerciantes europeus apenas se tornam visíveis através dos números da exportação.
cana-de-açúcar — algumas das quais serão mais tarde transformadas em culturas Mas, ao mesmo tempo, o comércio interafricano faz explodir os sistemas internos
obrigatórias para os Africanos; africanos, «inchando» as cidades com os antigos camponeses que procuram aí instalar-
Uma forte preocupação portuguesa para conseguir impor a fixação de núcleos -se, exercendo pequenas profissões, que mal conseguem alimentá-los (91). Esta dissolução
importantes de colonos brancos em Angola, a fim de aí assegurar uma sólida branqueação, das regras internas das sociedades africanas fornece a prova do seu enfraquecimento,
garante do crescimento de uma produção agrícola em grande escala, dirigida e que transfere gradualmente a hegemonia para os Europeus.
Podemos pensar estar-se perante um processo de substituição do poder, e não
comercializada pelos Portugueses (90);
hesitamos em dizer que enfrentamos uma maneira de organizar uma visão do mundo
5) A legislação consagrada às tarifas alfandegárias (1867), visando a protecção
menos dependente das influências africanas. As novas produções, mas sobretudo o fluxo
das mercadorias e da bandeira portuguesas, que sofreu modificações a partir dos anos
dos migrantes que se instala em todas as povoações comerciais angolanas, impõem uma
1870, em consequência da reactivação da indústria portuguesa. nova relação/estruturação do poder polftico, pois que os chefes deixam de poder estabelecer
uma autoridade indiscutível e indiscutida, sobretudo porque um número crescente dos
Todavia, a política colonial portuguesa reage às perturbações internas do Portugal seus dependentes se furtam a qualquer controlo para se instalar nos centros urbanos.
europeu, mais particularmente ao boom industrial dos anos 1870. O projecto colonial Este esvaziamento do poder africano tradicional é acompanhado por uma corrente de
sente a necessidade de criar em Angola um mercado para os produtos portugueses, mercadorias obtidas na cidade ou ao serviço dos Europeus, e faz do dinheiro europeu
industriais e agrícolas, assim como uma fonte de matérias-primas indispensáveis ao um interveniente muito inesperado, mas eficaz.
funcionamento das indústrias, entre as quais a têxtil. Esta orientação política não cederá No registo do comércio a longa distância, estabelece-se uma concorrência entre os
perante os maus resultados — do ponto de vista português — da Conferência de Berlim, portugueses, que se instalam no mato, vivendo de maneira idêntica aos Africanos, a
nem perante a dureza do Ultimato inglês de Janeiro de 1890. maior parte das vezes, quando não sempre, em companhia de mulheres africanas, que
procuram manter viva a prática e até o mito dos Ambaquistas. Esta situação torna-se
A última década do século XIX mantém a característica do «pacto colonial», impossível, devido à pobreza da maior parte dos portugueses, que só podem apoiar-se
mesmo que os Portugueses sejam forçados a congregar esforços consideráveis para na sua força de trabalho e no seu comportamento violento, para conseguir obter uma
anularem os projectos de partilha das colónias africanas pelas potências europeias. base económica mínima. Se estamos perante o fim da hegemonia africana, assistimos
Portugal sente as maiores dificuldades para fazer aceitar a sua «presença histórica», no também ao termo das ilusões luso-tropicalistas.
momento em que as grandes potências europeias consideram o império como uma Isto quer dizer que, à medida que avançamos no tempo, se alargam os contactos
componente normal do poder de carácter «imperial». luso-africanos, tal como se multiplicam os relatórios e os diários de viagem; os documentos
Esta vaga de inovações vai ter consequências junto dos Africanos, cada vez mais e as informações respeitantes às sociedades africanas tornam-se mais precisos e mais
solicitados para fornecer produtos «lícitos» aos comerciantes europeus. Esta situação diversificados, talvez, também, mais marcados pela visão racista que se reforça nos
provoca a multiplicação dos pequenos comerciantes, tanto europeus como africanos, a finais do século XIX, para se banalizar posteriormente no espaço português metropolitano
maior parte dos quais será condenada a desaparecer, alguns anos mais tarde, vítima da e colonial.
borracha asiática, assim como das mudanças verificadas nas regras de comer-
cialização. II. A construção dos conhecimentos: do olhar à escrita sobre o Outro
As duas últimas décadas do século XIX permitem que se multipliquem em Angola
as redes africanas, provocando uma explosão, sobredeterminada,pela multiplicação dos O quadro histórico do século XIX que acabámos de esboçar, pondo em evidência
parceiros. O número de comerciantes africanos aumenta, suscitando uma resposta paralela os projectos dos Portugueses no que se refere a Angola e a sua maneira de abordar as
dos circuitos portugueses.
Esta situação põe constantemente em causa e de maneira aguda os poderes estabelecidos,
pois que um número importante destes comerciantes não hesita em instalar-se (91) António de Assis Júnior, procedendo ao inventário das actividades asseguradas por alguns
trabalhadores do Dondo, refere-se aos carregadores de tipóias, os bambeiros ou matemos, que punham
guizos nos tornozelos, e aos quais se somavam os libolos, empregados no transporte de barris, bidões
(90) Esta preocupação traduz-se na criação do Banco Nacional Ultramarino (BNU), em 1864, sendo e fardos. Havia também os africanos encarregados de realizar as operações de troca e muitas outras
um dos seus objectivos prioritários financiar as operações necessárias ao crescimento agrícola. A respeito actividades domésticas, pois que os europeus e os europeizados utilizavam um número considerável de
desta questão, ver Torres, 1991, pp. 91-117. africanos. Assis Júnior, 1979, pp. 37 e 39.

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sociedades africanas, sugere-nos uma organização do tempo em quatro períodos, 6) Documentos gráficos, tais como mapas, planos, plantas, desenhos, fotografias,
elaborados em torno de três marcadores cronológicos: os anos de 1830, 1850 e 1870. sobretudo no último terço do século (94).
Esta periodização lusocêntrica permite uma classificação eficaz dos autores e dos
documentos portugueses, respeitantes ao espaço angolano. Trata-se do quadro no qual Estas fontes escritas, desenhadas ou fotografadas, que são na maior parte dos
se podiam organizar os conhecimentos. Impõem-se, por isso, três observações: casos testemunhos directos ( 95), permitem-nos conhecer, sem desvios e de maneira
muitas vezes crua, a evolução dos interesses portugueses nesta região. Com efeito,
Os textos dizem respeito ao espaço «português», ao passo que as informações a quase totalidade dos documentos fornecem muitos dados claros e directos a respeito
referentes ao interior do país, sob controlo dos Africanos, só aparecem em consequência da história dos Portugueses em Angola. A contrapartida negativa deste estado de
da aceleração do ritmo das viagens e das explorações, primeiro comerciais, depois coisas reside no facto de estas informações serem menos precisas e, na maior parte
«científicas». Quer dizer que estas foram tardias, aparecendo como consequência das dos casos, sobrecarregadas de preconceitos quando se trata de considerar as sociedades
mudanças verificadas nas estruturas comerciais a partir da metade do século;
africanas.
Os dados são também consequência daquilo que os Africanos querem mostrar No decurso do primeiro período, do fim do século XVIII até aos anos 1830, as
ou contar aos Europeus. Dando-se conta deste obstáculo principal, Cannecatim salienta,
fontes escritas portuguesas, elaboradas principalmente pelos militares, ligados à
nos princípios do século XIX, a importância do conhecimento da «língua» dos Africanos,
para evitar, pelo menos, a intervenção do intérprete africano (92); administração colonial ou encarregados de missões específicas, na maior parte de
3) O carácter caracterizadamente analfabeto da maior parte dos colonos e dos carácter científico ( 96), ou redigidas pelos comerciantes ( 97 ), podem ser classificadas em
comerciantes portugueses. Silva Porto queixa-se da «má qualidade dos homens enviados quatro grupos. Esta classificação retém, sobretudo, os conteúdos decorrentes das
para África», cuja incapacidade intelectual constitui um dos mais importantes obstáculos preocupações centrais dos seus autores. Trata-se de descrições geográficas e fracamente
ao desenvolvimento do conhecimento (93). etnográficas; notas consagradas ao comércio interior — mercadorias, entre as quais os
escravos, estradas comerciais, mercados —; memórias, relatórios e estudos respeitantes
ao comércio de escravos, o «contrabando» e os seus efeitos negativos sobre a economia
A. Homogeneidades e diversidades dos textos e dos autores angolana; documentos empenhados em provar a necessidade da ocupação de pontos
estratégicos na costa e a possibilidade de estabelecer a famosa ligação por terra do
Os documentos portugueses, que dizem respeito a Angola, podem ser partilhados Atlântico ao oceano Índico.
em seis grupos: Os documentos do segundo período, de 1830 a 1850, testemunham a preocupação
das autoridades portuguesas em fazer respeitar, na costa e no interior do país, a abolição
Narrativas de viagem: expedições de carácter comercial, político/militares e do tráfico negreiro e em desenvolver o comércio «legftimo». Os autores, militares ligados
científicas, conforme o período e o autor; ao sistema colonial e comerciantes, por vezes ao serviço das autoridades portuguesas
Documentos oficiais, tais como despachos, processos judiciais, cartas — quer
junto dos chefes africanos ( 98), dão-nos informações respeitantes: ao comércio interno,
sejam dos governadores, dos militares e de outras autoridades portuguesas instaladas
em Angola e enviadas para Lisboa, ou provenientes das diferentes instâncias
metropolitanas e remetidas para a colónia —, assim como relatórios ou memórias
respeitantes à situação económico/comercial, político/diplomática e militar de Angola; Henrique de Carvalho recorre constantemente à fotografia, que lhe permite desenhar
Documentos particulares: cartas, notas e apontamentos respeitantes ao quadro ulteriormente um grande número de objectos. Espera-se que uma instituição acabe por publicar as suas
religioso e às experiências dos autores em Angola; fotografias de homens e mulheres que geriam o poder lunda, assim como o poder quioco. Estas
fotografias permitem compreender as escolhas de um investigador muito interessado pela antropologia
Estudos económicos, históricos, políticos e de carácter antropológico, respei-
da imagem.
tantes à região; Com efeito, os viajantes só devem falar do que viram; se procuram enganar o leitor, correm
5) Quadros estatísticos consagrados às relações comerciais entre Angola (Luanda o risco de ser desacreditados para sempre. Douville esqueceu esta «lei» e foi duramente castigado.
e Benguela), Portugal e o Brasil. Muito incompletos na primeira metade do século, estes Registam-se algumas missões de carácter científico nos fins do século XVIII, como foi o caso
quadros tornam-se mais precisos e, por consequência, mais fiáveis depois de 1850; de Lacerda e Almeida, em 1797, mas esta actividade só recomeça no princípio da segunda metade do
século XIX.
Os comerciantes brasileiros e portugueses, que viajam para o Lovale a partir do Bié, nos finais
do século XVIII, fornecem informações insubstituíveis.
Cannecatim, 1854, pp. V e VI. (98) Tal é o caso de Joaquim Rodrigues Graça e da sua viagem à capital lunda, a que já fizemos
Porto, 1942, pp. 19-23. referência.

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sobretudo no Nordeste; à evolução das relações com os chefes africanos, as autoridades
Manter e desenvolver as relações com as autoridades africanas, levando-as a
portuguesas propondo uma protecção contra a exclusividade comercial; à instalação de compreender os «benefícios» da civilização europeia, sem esquecer de as transformar
postos militares nas regiões costeiras do Norte ou do Sul, onde é levada a cabo a quase
em súbditos «fiéis» da Coroa portuguesa;
totalidade das operações de «contrabando»; às iniciativas que visam conseguir estabelecer
Estabelecer «núcleos de civilização» no interior do país, para levar a cabo os
a ligação entre as duas costas africanas. Estudos e quadros económicos e comerciais,
ainda pouco rigorosos, põem em evidência a preocupação portuguesa de organizar uma objectivos comerciais e civilizadores, recorrendo à instrução, à cristianização e ao
economia nova para as colónias, assentando em bases liberais. trabalho, devendo os Africanos renunciar progressivamente, mas definitivamente, à sua
O terceiro período que vai de 1830 aos anos 1870 assiste a um aumento da «selvajaria inata»;
documentação portuguesa, cujos conteúdos são os seguintes: crescimento do comércio Aumentar as redes de transporte a fim de assegurar a circulação dos homens,
«legítimo», provado pelo aumento de expedições que se dirigem ao interior em busca das ideias e dos valores, mas, sobretudo, das mercadorias e das matérias-primas africanas;
de novos mercados, de novos parceiros, de novos produtos; alargamento das relações Mostrar à Europa que Portugal consagrava um grande interesse aos seus territórios
políticas com os chefes africanos para os convencer a renunciar ao tráfico dos escravos africanos, justificando uma presença que se apresentava como secular e anterior a
e a adoptar novas formas de produção ou, ainda, para os colocar na dependência qualquer outra presença europeia.
económica e política dos Portugueses; imposição, pela força, da dominação portuguesa,
quando esta é contestada pelos Africanos, como se verificou no caso das relações com De maneira mais geral, e qualquer que seja o período, todos os documentos exprimem
Kasanje; instalação de novos estabelecimentos, tanto ao longo da costa, a fim de as preocupações portuguesas do momento e explicitam os temas particulares de cada
contrariar o «contrabando», como no interior, para organizar e reforçar o conhecimento
período. A diferença de qualidade é quase sempre determinada pelo estatuto cultural dos
do mato e fazer avançar progressivamente a ligação entre as duas costas; introdução
autores. Dito por outras palavras: os textos respeitantes às sociedades africanas devem
de culturas novas, que procurem chamar a atenção dos colonos instalados (ou a instalar)
em Angola para formas inéditas de exploração colonial. a sua especificidade, a sua riqueza e o seu valor histórico, à maneira como o autor
Os diferentes textos deste terceiro período, ligados aos aspectos positivos da acção estabelece relações com os Africanos, o que deriva das suas razões pessoais, à sua
portuguesa em Angola, ainda não estão asfixiados pela obsessão de provar a primazia leitura dos factos africanos, visto não haver em Portugal nenhuma autêntica tradição
da civilização portuguesa, corrente nos documentos do período seguinte. Se não nos de investigação africanista.
fornecem informações directas sobre os Africanos, os seus dados são indispensáveis A produção «literária», e até científica, que é consagrada ao território angolano —
para compreender a resposta das sociedades africanas à procura europeia de produtos sobretudo nas regiões do interior do país —, está longe de ser quantitativamente importante
«lícitos» e a maneira como elas se inserem progressivamente nos novos sistemas de antes da segunda metade do século XIX, porque este território estava classificado entre
produção controlados pelos Portugueses, assim como pelas mudanças verificadas nas aqueles que, habitado exclusivamente por «selvagens», não merecia mais do que a
suas diferentes estruturas, não esquecendo, também, de levar em linha de conta a atenção superficial, exigida pelo estudo da «mercadoria-homem». Nestas condições, a
organização de uma polftica colonial portuguesa, empenhada finalmente em assegurar falta de interesse pelas informações respeitantes aos valores específicos das populações
a ocupação efectiva e a colonização de Angola.
angolanas explica este vazio da escrita.
Os textos produzidos durante o quarto período, que se estende dos anos 1870 aos
A mudança, verificada em meados do século, é o resultado de uma dupla pressão:
fins do século, são dominados por uma «curiosidade científica» que se interessa pelas
a das relações internacionais, devendo Portugal fornecer as provas indiscutíveis dos seus
populações, pelos contextos geográficos e pelas possibilidades económicas de Angola.
direitos «históricos» e a do conhecimento, caracterizado pelas tentativas, tão numerosas
Os autores, sobretudo militares e homens políticos ligados ao poder, recrutados entre
os «mais instruídos», procuram ser rigorosos nas suas descrições e nos seus estudos, quanto eficazes, de conseguir definir um sistema classificador das raças. Estas duas
decididos a organizar uma produção científica, cuja qualidade seria idêntica ao que séries de elementos encontram-se assaz apertadamente associadas para impor uma
produziam Europeus e Americanos. mudança da visão portuguesa sobre África e, sobretudo, sobre os Africanos.
Como nos períodos precedentes, estes documentos dão a conhecer o crescimento Retenhamos, contudo, um elemento importante, até agora mal explorado: o peso
do interesse português em relação a Angola e podem ser classificados em cinco grupos, dos funcionários ou dos comerciantes nascidos no Brasil ou dispondo de uma experiência
conforme os temas dominantes: brasileira. Naturalmente, esta situação torna-se mais significativa à medida que se
verifica o crescimento demográfico brasileiro, mas a corte portuguesa recruta no Brasil
1) Conhecimento das possibilidades de organizar o comércio com as populações militares, administradores e até cientistas. Deve observar-se que alguns destes autores,
do interior, o que provoca a descrição das redes comerciais africanas, assim como dos que dispõem de uma formação ou de uma experiência brasileiras, se revelam observadores
recursos naturais — minerais e agrícolas — do país, a fim de organizar a sua exploração; atentos das articulações internas das sociedades africanas.
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Sem ter a pretensão de organizar uma espécie de literatura comparada, seria pelo respeitantes à história da fundação dos Lundas, o que contribuiu para a revisão da
menos difícil de esquecer o relatório consagrado à vida económica de Angola e do Brasil história de um número importante de grupos angolanos, entre os quais os Imbangalas
(1592), de Domingos de Abreu e Brito, funcionário da administração portuguesa no e os Quiocos (99).
Brasil; a história angolana do brasileiro Elias Alexandre da Silva Corrêa (1793) e
sobretudo — respeitando o nosso quadro cronológico — os textos de dois autores B. Henrique de Carvalho: contribuição para o conhecimento científico dos homens
dispondo de uma experiência brasileira: Joaquim Rodrigues Graça e António da Silva e dos sistemas angolanos
Porto. O primeiro, brasileiro de nascimento, estava instalado em Angola como especialista
do tráfico negreiro, ao qual decidiu renunciar entre 1840 e 1845, momento em que foi Henrique Augusto Dias de Carvalho nasceu em Lisboa a 9 de Junho de 1843.
encarregado de chefiar uma embaixada oficiosa à corte do Mwatyanvua, cuja descrição Pertencendo à burguesia portuguesa, fez os estudos secundários no Colégio Militar e
constitui um documento fundamental para o estudo das estruturas quiocas e lundas; o os superiores na Escola do Exército e na Escola Politécnica (too).
segundo, nascido em Portugal, empregado no Brasil ainda adolescente, decidira fixar- Muito cedo decidiu organizar a sua carreira nas terras ultramarinas, levando em
-se em Angola em 1838, tendo aí levado uma vida de altos e baixos, devido à falta de linha de conta a sua competência técnica, mas também, certamente, as possibilidades
capitais, o que o não impediu de recolher um número impressionante de informações, de promoção. Partiu primeiro para Macau, onde dirigiu os Serviços das Obras Públicas.
sem as quais seria impossível proceder à organização da história de Angola, elaborada Em 1873, está em S. Tomé e Príncipe, onde ocupa funções civis na administração da
a partir de uma maneira de ver que procura identificar-se com a dos Africanos. ilha. Em 1877, parte para Moçambique e, no ano seguinte, encontra-se em Luanda
A escrita provinda dos Angolanos, se é manifestamente rara mesmo fornecendo durante quatro anos, nas Obras Públicas de Angola. Regressado a Lisboa em 1882, é,
indicações indispensáveis, depende da ausência de tradição escrita. O pombeiro Pedro a 6 de Abril de 1884, encarregado de uma missão junto do imperador lunda, pelo
João Baptista (ou Batista), que conseguiu levar a cabo, nos princípios do século XIX, ministro da Marinha e das Colónias. Esta missão possuía um duplo carácter: um
em companhia de outro pombeiro, Anastácio Francisco, a ligação entre Angola e projecto científico/comercial, destinado a assegurar o conhecimento das populações do
Moçambique, obriga-nos, dada a importância das informações fornecidas, a lamentar interior — Kimbundu, Kwangu e Kasai — de maneira a alargar as relações comerciais;
a ausência desta tradição. De resto, esta falta de escrita parece dever-se em parte à conhecimento, também, das condições climáticas e das bacias hidrográficas da região,
intervenção das autoridades portuguesas, que não hesitavam em denunciar a dos a fim de estudar as possibilidades de fixação de colonos e a utilização eventual da
Ambaquistas como pomposa e incómoda. navegabilidade dos rios; um segundo, de carácter político, com o duplo objectivo de
De facto, os documentos consagrados à história são, na sua quase totalidade, conseguir assinar um tratado com o Mwatyanvua para permitir a instalação de um
redigidos por homens recrutados entre militares e missionários. Só estes dois grupos «núcleo civilizador», religioso e comercial sob a direcção portuguesa, nos territórios
contam nas suas fileiras com pessoas que dispõem de instrução média ou superior, o lundas, e eliminar, de maneira definitiva, a influência dos outros exploradores europeus,
que permite tanto uma certa liberdade de escrita como uma visão suficientemente
informada do mundo.
A situação modificou-se de maneira substancial durante o último terço do
século XIX, quando os Portugueses organizaram expedições destinadas, por um lado, (99) O major Henrique de Carvalho procedeu à síntese teórica do seu trabalho de terreno: «É
a provar os seus direitos e, pelo outro, a tentar obter informações indispensáveis à preciso viver-se algum tempo entre estes povos, mezes e mesmo annos, para se poder fallar com pleno
instalação da autoridade portuguesa. conhecimento de causa, não só dos seus usos e costumes, como ainda da sua historia tradicional, da
Militares, tais como Hermenegildo Capello e Roberto Ivens, Serpa Pinto e outros, sua politica, do seu modo de viver, de commerciar, da sua industria, crenças e superstições, e ainda das
procuram replicar às campanhas lançadas na Europa para desacreditarem os Portugueses. differentes phases por que foi passando, a fim de ajuizar se progridem ou retrocedem, e se poderão ou
não aproveitar-se com reconhecidas vantagens, de auxilios estranhos, isto é, dos povos mais cultos com
Mas devemos também considerar os textos provindos de autores estranhos à língua
que possam estar em contacto». Porque, se o território dos Lundas — no sentido amplo — havia sido
e à cultura portuguesas, que são hoje indispensáveis, devido ao conhecimento que percorrido por muita gente, estas visitas tinham outro objectivo que não o conhecimento das estruturas
demonstram das populações e da história de Angola. do Estado. Uns preocupavam-se apenas com o comércio, outros pretendiam utilizar as riquezas do
Tal é o caso de Lázlo (Ladislas) Magyar, húngaro, chegado a Angola em 1848, Mwatyanvua ao serviço do seu país, realizando, por esta via, a travessia do continente africano. O
e de David Livingstone, escocês, que percorreu as regiões angolanas no princípio dos inventário dos viajantes — «Romão, Rodrigues Graça e, ultimamente, Carneiro, Saturnino Machado,
anos 1850, e cuja leitura das sociedades angolanas está hoje, mal-grado as suas hesitações António Lopes de Carvalho, Silva Porto e João Baptista, negociantes sertanejos, Dr. Pogge, Dr. Max
e imprecisões, integrada no conhecimento de Angola. Büchner, tenente Wissmann, Otto Schütt, Barth, Livingstone, Cameron e outros, o que nos dizem? Muito
pouco!» — tal é a conclusão descoroçoada do major português. Carvalho, 1890, pp. 384-385.
A partir dos anos 1870, outros autores europeus — entre os quais os portugueses —
( 10°) Esta preparação científica revelou-se muito útil durante a sua viagem pela África central,
percorrem o interior, deixando documentos fundamentais. Basta apoiliar o exemplo permitindo-lhe resolver as questões do conhecimento que apareceram ao longo de quatro anos de vida
de Henrique de Carvalho que, pioneiro nesta matéria, permitiu eliminar as incertezas em território gerido pelas autoridades africanas.

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que levavam a cabo uma forte concorrência na região, de modo a manter uma dominação grande colónia homogénea. O sonho português, alimentado pela mistificação da presença
exclusivamente portuguesa. portuguesa a partir do século XVI, devia permitir a criação de uma imensa colónia,
Carvalho regressa a Lisboa em 1888, após ter concluído a sua missão, que lhe assegurando, enfim, a rendibilidade de alguns séculos de intervenções coloniais nesta
permitiu apresentar uma proposta ao governo português: a criação do distrito da Luncla. região de África.
Em 1895, já coronel, Henrique de Carvalho volta a Angola para ocupar o cargo de O major Henrique de Carvalho era um homem meticuloso e decidido: a sua expedição
governador desta nova circunscrição administrativa autónoma. dispunha do material científico mais avançado da época e aceitara também levar a cabo
Poucos anos depois, acusado de fraqueza no exercício das suas funções, pois operações de propaganda comercial. Pedira aos industriais e produtores portugueses
sempre recusou o recurso à força para impor as soluções desejadas pelos comerciantes, amostras de mercadorias que deviam ser propostas aos Africanos, de maneira a suscitar
Carvalho regressa a Lisboa sob prisão. Ficou detido durante um ano, à espera de um fluxo comercial que permitisse compensar as despesas realizadas com a organização
julgamento. O tribunal reconheceu a sua inocência e o coronel foi absolvido. Após este desta missão.
episódio doloroso, Carvalho aceitou uma missão particular na Guiné, ao serviço da A curiosidade deste militar é prodigiosa, sendo a simpatia profunda, que nutria
Companhia de Comércio e de Exploração da Guiné (101) . Regressa a Lisboa, onde morre pelos Africanos, a sua qualidade principal. Conta que, de regresso a Malanje, última
a 4 de Novembro de 1909, deixando uma obra importante consagrada ao nordeste e ao paragem antes de Luanda, os Africanos, ao seu serviço, tinham ido refugiar-se no mato,
centro-leste angolanos (102,,) o que lhe vale ser hoje classificado pelos investigadores gritando que estavam a chegar os brancos (105). Henrique de Carvalho não pensa em
contemporâneos, fora das fronteiras portuguesas, como «o principal autor científico do mais nada: como vive como Africano, acompanha os seus homens e procura, também,
século XIX angolano» (103). Em 1923, Norton de Mattos presta-lhe homenagem: a um refúgio, para se pôr ao abrigo da ameaça representada pelos brancos. Foi-lhe
capital da Lunda (Saurimo) é baptizada com o nome de Henrique de Carvalho, mas
necessário um bom quarto de hora para se acalmar e reintegrar o mundo dos Brancos,
nos anos da ditadura cai no esquecimento e no silêncio científico português. Após a
do qual tinha estado separado durante alguns anos.
independência, os Angolanos voltaram à velha designação de Saurimo, eliminando dos
A historieta salienta, igualmente, a importância do medo desencadeado entre os
mapas o nome do investigador.
africanos pela simples aparição dos brancos. Esta reacção desvenda uma situação
A viagem de Henrique de Carvalho à Lunda, em 1884 — ano em que começaram profundamente inimical, resultado certamente das agressões cometidas pelos comerciantes
os trabalhos da Conferência de Berlim —, insere-se no quadro da política colonial brancos, sobretudo durante o recrutamento dos carregadores que, na maior parte das
portuguesa, sob pressão das opções europeias em África. Empurrados pelo contexto vezes, se fazia de maneira brutal (19.
internacional, os Portugueses tinham multiplicado, durante os anos a partir de 1840, as A singularidade da personagem ajuda-nos a compreender a imensidão do seu
expedições científicas em África, particularmente em Angola. Saliente-se que estas trabalho, pois ele consagra milhares de páginas ao inventário de todas as estruturas, de
operações, por mais importantes que sejam, só involuntariamente conseguem chegar ao todas as alianças e de todos os conflitos que punham então em ebulição os territórios
reconhecimento científico e antropológico das populações. dos Imbangalas, dos Quiocos, dos Lundas, e se prolongavam, como as vagas provocadas
Henrique de Carvalho, que possuía então uma certa experiência das questões num lago por uma grande pedra, até às populações lundas instaladas a leste, na região
tropicais, aceitara dirigir a expedição que devia levá-lo ao coração do Império lunda. do Kazembe.
Este revelara-se, durante a primeira expedição (1756) do sargento-mor Manuel Correia Henrique de Carvalho marca uma ruptura profunda no quadro do discurso colonial
Leitão (104), o nó das ligações com a África central e uma das chaves das relações português, não só devido à duração da sua permanência entre as populações da África
africanas com a costa oriental. central, que vai de 1884 a 1888, mas também porque procurou libertar-se dos preconceitos
Os Portugueses estavam então empenhados em organizar uma política destinada a para dar conta das estruturas e das instituições políticas, religiosas e comerciais africanas.
assegurar a ocupação dos territórios de maneira a unir as duas costas, criando uma Encontra-se menos à vontade no terreno religioso, onde as práticas dos nganga (19
lhe parecem constantemente repugnantes. É de resto, por esta razão, que não consegue pôr
a nu um certo número de práticas, tais como a iniciação masculina — a mukanda— todavia
Esta missão permitiu-lhe publicar um estudo consagrado à história do país. tão importante na organização dos valores sociais dos Lundas e dos lundaizados.
Ver a Bibliografia. Henrique de Carvalho escreveu também sobre a Guiné-Bissau, após a sua
estada nesta colónia portuguesa: Guiné: apontamentos inéditos pelo general Henrique de Carvalho,
Lisboa, Agência Geral das Colónias, Ática, 1944.
Pélissier, 1977, p. 571. Carvalho, 1894, vol. IV, p. 611.
Este oficial tentou, mas em vão, atravessar o rio Kwangu, para estabelecer contacto com as Ver Margarida 1981.
populações da margem oriental onde se encontravam os Lundas, sem o mínimo êxito. Havemos de voltar (19 Trata-se da designação genérica dada aos homens capazes de gerir as relações com os espíritos
à questão. ou, eventualmente, as divindades.

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Feita esta reserva, dispomos de uma crónica interna dos Lundas e das populações O que há de profundamente original no trabalho de Henrique de Carvalho, para
aparentadas, em particular os Quiocos, porque Carvalho, que aprendeu o lunda, não lá das questões de método — terreno e conhecimento linguístico —, reside na atenção
rejeitou o mais ínfimo informador, mesmo considerando a importância dos Lundas prestada tanto aos mitos de criação dos Lundas como às estruturas da história, não
centrais na organização destes testemunhos quotidianos, quer dizer, Henrique de Carvalho devendo esquecer-se os particularismos das formas políticas, que puderam ser afinadas
reuniu a tradição oral, sem nunca se esquecer de tomar nota no seu imenso diário, cujo mais tarde, sem por isso anular a contribuição fundamental de Carvalho. Língua, mitos,
manuscrito se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino, dos pequenos acontecimentos história, formas políticas são seriamente estudadas numa época — cujos preconceitos
que davam sentido às sociedades africanas e à sua viagem. sobreviveram mesmo no coração do século XX —, em que os Europeus negavam ou
De resto, a enorme curiosidade de Carvalho não pode ser dissociada do rigor dos desprezavam qualquer organização histórica africana.
seus trabalhos e da sua preocupação de dar a conhecer a complexidade das sociedades Como esquecer que esta maneira científica de agir, que encontrámos também, com
que lhe são reveladas pelo avanço da expedição. Os seus conhecimentos, adquiridos no menos cintilação e curiosidade, no trabalho de Gamitto (112),) elaborado na costa oriental,
terreno, dão-lhe a capacidade de ver de maneira diferente os Africanos sem o impedir ficou sem eco no próprio Portugal? Estar-se-ia no direito de esperar que, após a
de reconhecer as suas próprias dificuldades e as suas próprias limitações. É a primeira publicação destes trabalhos, os Portugueses se orientassem para uma produção científica
vez que um militar português, dispondo de relações íntimas com o poder colonial, de da antropologia, tanto mais que Carvalho é certamente o primeiro cientista que procura
chegar a uma antropologia aplicada, utilizando as informações obtidas para dar nova
quem é delegado, fala de história de Angola, para acrescentar que não poderá escrevê-
força às instituições políticas lundas, que teriam podido prestar serviços à administração
-la «porque lhe faltam os conhecimentos para um trabalho tão importante» ( 108). Mas
portuguesa.
ocupar-se-á, ele mesmo, de acompanhar a publicação das suas obras e de todos os
É certo que Henrique de Carvalho nem sempre foi capaz de encontrar as fórmulas
documentos que tinha redigido, tais como «observações meteorológicas, nosológicas e para designar algumas das suas informações, como é o caso do «parentesco perpétuo»,
astronómicas, colecções de fauna e de flora, artefactos e fotografias, diagramas, os que Ian Cunnison aplicou às estruturas políticas do vale da Luapula ( 113). Carvalho
diários e livros de toda a correspondência» (109). descreveu a situação, pois ela constitui um dos elementos-chave da organização do
Só as condições do colonialismo português, agravadas pelos preconceitos culturais poder dos Lundas centrais. Se essa circunstância pode indicar os limites da investigação
portugueses, impediram que a lição de Henrique de Carvalho encontrasse o eco que do autor português, será sempre necessário pôr em evidência a prodigiosa capacidade
merecia. No momento em que Frazer acabava de publicar o seu trabalho principal e 9, de escuta deste militar, que compreendeu e amou os Africanos, permitindo-lhes que
Henrique de Carvalho propunha um tipo inteiramente novo de investigação antropológica entrassem no espaço do conhecimento, onde se combinam antropologia e história.
no terreno, em contacto directo e constante com as populações, durante meses e anos, Henrique de Carvalho considera ter sido traído pelas autoridades portuguesas. Em
registando os mitos e a história, após uma aprendizagem da língua ou das línguas 1888, o seu Ministério faz chegar-lhe às mãos a correspondência anunciadora dos
faladas na região. resultados da Conferência de Berlim. O território que ele estimava tanto, que ele
Muito antes de Malinowski abalar as fortalezas teóricas da «antropologia de aprendera a tão bem conhecer, tinha sido «arrancado» aos Portugueses, para ser integrado
cadeirão», Henrique de Carvalho tinha acumulado uma obra prodigiosa, mas infelizmente no Estado Independente do Congo. O choque foi tão brutal que o major caiu como
redigida numa língua que lhe não podia dar a projecção internacional que ela merecia. morto, provocando uma grande inquietação entre os africanos que o acompanhavam há
Ainda hoje, Carvalho fica fora de todas as histórias da antropologia, como se nunca tantos anos: teria morrido? Seria possível fazê-lo voltar à vida? Henrique de Carvalho
tivera existido. Paul Mercier não lhe faz a menor referência e, contudo, ocupa-se dos recuperou a consciência, mas a amargura roía-lhe a alma: continuava o nacionalista de
Lundas ( 111 ). Mas seria impossível, hoje como ontem, organizar uma qualquer investigação sempre, mas a confiança nos homens políticos, encarregados dos negócios coloniais,
consagrada à história dos Lundas e dos lundaizados, em particular dos Imbangalas e deixara de ser a mesma.
dos Quiocos, sem considerar os documentos e as informações carreadas por Carvalho. De regresso a Angola, em 1895, será cada vez mais um homem de ciência, «um
africanista», como ele dizia, referindo-se a si próprio ( 114), profundamente integrado nos
valores africanos, recusando recorrer à violência e decidido a participar no

( 1 °8) Carvalho, 1898, p. 13.


Id., 1894, IV, p. 782.
James G. Frazer, The Golden Bough, 1890, tradução francesa, Le Rameau d'Or, Paris, Laffont, Trata-se da viagem realizada por este militar pela África central, vindo da costa oriental, que
1983. Como aconteceu a quase todos os autores clássicos da organização da antropologia, este texto o pôs em contacto com os Muizas, em companhia do major Monteiro. Ver Gamitto, 1854.
nunca foi traduzido em português. Ver Cunnison, 1951 e 1959.
(111) Ver Mercier, 1966. (114) Carvalho, 1894, IV, p. 817.

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desenvolvimento do conhecimento da África. Alguns anos mais tarde, na prisão, nos Há ainda poucos anos, o debate estava centrado em torno da duração da presença
arrabaldes costeiros de Lisboa — S. Julião da Barra —, Henrique de Carvalho fará portuguesa, questão reforçada por outra: mesmo que a presença portuguesa seja, de
sair da cadeia, clandestinamente, cartas escritas com sangue sobre pedaços de camisas maneira evidente, antiga, os Portugueses tinham sido mantidos na costa pela oposição
rasgadas, hoje conservadas na secção de manuscritos da Sociedade de Geografia de geral dos Africanos. Dito por outras palavras: esta longa permanência nos territórios
Lisboa, como se Carvalho tivesse lido o Conde de Monte Cristo. costeiros não se traduzira numa dominação real. As dificuldades experimentadas pelos
Portugueses — assim como pelos europeus em geral —, para vencer certas fronteiras
impostas pelos Africanos, não fariam mais do que confirmar os particularismos da situação.
Nos últimos anos, desenharam-se outros eixos de análise. Tal é o caso daquele que
III. A questão da hegemonia nas relações afro-portuguesas do século
XIX: fontes, conhecimentos e novas perspectivas orienta o debate para uma diferença — senão até para uma complementaridade — entre
a «presença» e a «influência» dos Portugueses por via da introdução e da circulação
«Um dos meios de cativar a simpatia dos régulos do sertão por onde tem de das mercadorias europeias. Porque é neste plano que podemos explicar as alterações
atravessar a Missão é o de se conformar aos usos e aos estilos do país, assinalando que os valores europeus — por intermédio das mercadorias e dos comerciantes (europeus
a sua passagem, para ser bem acolhida, com presentes e dádivas, a que se deve recorrer, ou africanos) impõem às estruturas africanas.
Todavia, este eixo, que se toma cada vez mais pertinente, à medida que se desenvolve
não como tributo, mas como espontânea demonstração de amizade e boa disposição de
manter estreitas relações com os que dispõem das populações de tais países» (115). Trata- a investigação histórica angolana, não explica os pressupostos subjacentes à ideia da
-se de uma recomendação do ministro da Marinha e Ultramar a Henrique de Carvalho, soberania portuguesa, base do mito da hegemonia, questão prévia que se deve esclarecer
no meio de muitas outras, feita antes da sua partida para Angola, onde devia levar a imediatamente.
Os Portugueses mantinham com Angola relações diferentes das conhecidas pelas
cabo a sua missão junto dos Lundas.
demais potências europeias com os «seus» espaços africanos. Não se tratava apenas de
Semelhante documento articula-se em torno de três questões essenciais: o ministro
relações comerciais, mas também de relações que deviam impor a vassalagem aos chefes
reconhece que os Africanos exercem um controlo efectivo sobre os territórios submetidos
africanos, o que deriva certamente da concepção de Estado absolutista enraizado em
à sua autoridade; recorre a uma leitura paternalista, tendo como função reduzir a
Portugal. Este primeiro facto associa-se ao atraso português em relação à lógica do
importância real do Outro, o qual, fascinado pelos presentes portugueses, devia satisfazer
capitalismo moderno, quer dizer que nos dois casos se pode verificar a persistência de
os mais ínfimos desejos dos Portugueses; lembra, por fim, com o vigor necessário para
eliminar qualquer ambiguidade, que não há sinonímia entre presente e tributo, o que opções do antigo regime.
A ideia que os Portugueses tinham da África era a de que se tratava de um grande
é destinado a afirmar a preeminência da autoridade portuguesa.
território, propriedade do rei de Portugal, que mantinha relações suserano/vassalo com
Estamos perante um discurso encantatório, destinado a alimentar o mito da hegemonia
portuguesa. O ministro não pode deixar de reconhecer a autoridade exercida pelos os chefes e as autoridades africanas (116,.) Assim sendo, e mesmo que não dominasse
grandes territórios no interior, Portugal, por intermédio dos seus «vassalos» africanos,
Africanos sobre o seu território: contudo, esta autoridade só pode existir — procura
que mantinham, eles próprios, relações de dominação/dependência com os Africanos do
insinuar o ministro — no quadro de uma política inteiramente orientada pelos Portugueses.
interior, pretendia dispor de uma ampla hegemonia, que se estendia para além dos
É naturalmente uma estratégia destinada a tranquilizar os Portugueses, pois a ideia da
soberania portuguesa está tão fortemente enraizada na ideologia, que fará cair como
morto o major Henrique de Carvalho, quando uma carta oficial lhe anuncia as
«amputações» impostas a Portugal pela crueldade dos homens políticos europeus.
Seja qual for o fantasma hegemónico carreado pelas fontes portuguesas, estas (116) As designações de vassalo ou aliado eram utilizadas pelos Portugueses para definir o tipo de
fornecem informações que nos permitem constatar o choque' entre os Europeus e os relação desejado pelas autoridades portuguesas, sendo contudo duvidoso que as suas congéneres africanas
Africanos, mas sobretudo a maneira como estavam organizadas as estruturas africanas. dessem o mesmo conteúdo a esta designação.
A condição de «vassalo» ou «aliado» — sendo a sinonímia afirmada nos textos portugueses
Seguindo esta via, é possível dar conta da rede complexa das relações entre os dois reveladora da ambiguidade portuguesa que sempre presidiu às suas relações com os Africanos —
grupos, assim como da importância do choque que pôs termo à hegemonia africana. obrigava este ao pagamento de um imposto anual (o dízimo), correspondente a um décimo dos lucros
obtidos no comércio e recolhido normalmente em escravos. Na verdade, não há nenhuma indicação que
permita calcular, de maneira precisa, o volume dos negócios levados a cabo pelos Africanos.
Esta relação de «vassalagem», a respeito da qual os Africanos desconheciam tanto as regras como
a função, era consagrada por um tratado de aliança, assinado pelas duas partes. O chefe africano
«vassalo» recebia do «suserano» protecção e, no momento da assinatura do tratado, presentes e títulos
(115) Carvalho, 1890, vol. I, p. 39. militares honoríficos.

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limites da sua dominação directa ( 117). Esta perspectiva, que desaparece no fim do século conta que a tradição oral imbangala faz depender a instalação política do grupo Kasanje
XIX com uma nova concepção de Estado, instituída em África após a Conferência de da necessidade de responder à presença do poder e do comércio portugueses.
Berlim, deve ser retida porque se afirma claramente nos autores e nas fontes portuguesas A instalação dos Imbangalas faz-se, por isso, numa dupla perspectiva: levando em
do século XIX. conta a importância desta presença portuguesa, que os Africanos não conseguiam
No que diz respeito à realidade histórica africana, devemos começar por verificar eliminar, mau grado as guerras que tão duramente marcaram a história colonial
que os Europeus foram mantidos fora das sociedades africanas, tendo estas sido capazes portuguesa, mas considerando ao mesmo tempo a importância política e económica das
de conservar a sua hegemonia, pelo menos até ao último terço do século XIX. Esta força organizações africanas instaladas a leste do Kwangu.
africana permitiu uma organização autónoma por parte das autoridades e dos grupos O exame das condições da instalação dos Imbangalas, que não pode ser separada
africanos, mas não podia impedir os efeitos da presença dos Europeus e das suas das explicações míticas veiculadas pela tradição oral, não pode rejeitar as condições que
mercadorias. presidiam às escolhas políticas e às orientações económicas. É certo que os Europeus
Estamos assim colocados perante a questão central: será que a influência europeia são mantidos a distância e que os chefes políticos imbangalas conservam a sua hegemonia
só se exerceu de maneira contínua a partir do momento em que os Europeus — em até meados do século XIX. Como ignorar, contudo, que o aparelho político foi criado
particular os Portugueses — se instalaram na costa? Ou então: não é verdade que os e estruturado em função da presença e das relações com os Portugueses?
historiadores não prestam a devida atenção às influências indirectas, quando procuram Enunciemos a questão de outra maneira: o poder imbangala e a própria força da
analisar as relações entre as comunidades e as estruturas a partir daquilo que se sua hegemonia não podem ser explicados nem compreendidos se não estudarmos esta
considera como sendo a presença efectiva dos Europeus em território africano? longa e pesada presença estrangeira, o que não retira nem autoridade nem eficácia ao
Será possível responder, de maneira suficiente, a estas questões? São elas poder imbangala, mas obriga o historiador a considerar as articulações internas des-
fundamentais no quadro do nosso trabalho, porque se trata não só de descrever uma tes poderes. De certa maneira, não podemos analisar um destes poderes sem levar
indiscutível presença portuguesa, mas sobretudo saber como se organiza a articulação em linha de conta as relações entre os diferentes grupos envolvidos numa relação
entre estes dois eixos da questão. complexa.
Para o conseguir, é necessário libertarmo-nos de dois perigos teóricos consideráveis: Estamos, pois, perante a necessidade de reintegrar estes dados na análise histórica.
os que provêm dos mitos portugueses, que são apenas, quando apuramos as contas Deste modo, podemos alargar o campo do debate de maneira a organizar a grelha
teóricas, a variável mais extrema das concepções europeias dos benefícios da «civilização complexa da estruturação histórica. Não poderemos nós compreender, enfim, o carácter
branca», devendo ao mesmo tempo lembrar o peso dos mitos africanos que se alimentam um pouco vão das considerações que pretendem medir o peso da presença portuguesa,
de uma espécie de resistência apaixonada e sistemática das estruturas africanas. Não a partir, quer da demografia quer das provas cartográficas, provando que os Portu-
poucas vezes, se vai ao ponto de recusar a prova dos documentos. Esta opção é muito
gueses só ocuparam realmente uma fracção mínima do território e isso até aos finais
visível nas incertezas africanas face à necessidade, cada vez mais urgente, de definir
as responsabilidades das autoridades e das populações africanas na banalização do do século XIX?
Queremos simplesmente pôr em evidência a existência de um laço, unindo de
tráfico negreiro.
maneira permanente e vigorosa as estruturas europeias e africanas. Como seria possível
Se aceitarmos a lenta mas indiscutível erosão da hegemonia africana, somos também
forçados a considerar dois aspectos das alterações induzidas pela presença portuguesa agir de outra maneira?
É certo que as autoridades africanas procuraram manter a distância toda e qualquer
ou europeia na costa: a dura obrigação de reorganizar as estruturas políticas, para
influência europeia. Seria possível consegui-lo, ou era necessário, em nome de uma
melhor responder à «novidade» desta presença estrangeira, e a necessidade de aceitar,
eficácia africana, que de todo não se recusaria, organizar o poder político de maneira
controlando-o, o comércio a longa distância luso-africano, assegurado pelos próprios
a conservar esta hegemonia ao abrigo de alguma ferida infligida pelos Europeus? Os
Portugueses ou pelos seus agentes africanos. •
historiadores não podem deixar arrastar-se pela ilusão de uma facilidade antropológica,
Se conhecemos, assaz bem, a maneira como o poder do reino do Kongo foi
reorganizado perante a presença e a pressão portuguesas, podemos também dar-nos que podia «fabricar» uma estrutura africana independente de qualquer laço com os
Europeus. A partir do momento em que foi necessário contar com a pressão directa ou
indirecta das potências estrangeiras, quer dizer, dos Europeus, tornou-se também
( 117) As autoridades portuguesas reconheciam, de resto, a sua incapacidade para assegurar o
indispensável estruturar as instituições políticas capazes de lhe dar resposta. As autoridades
controlo do território e dos homens, face à autonomia dos Africanos: «Mas não se entenda que todo este e os comerciantes portugueses agiram da mesma forma, pois não podiam furtar-se ao
paíz obedece à Coroa de Portugal: nele se acham encravadas as terras de muitos régulos com os títulos peso das autoridades e dos valores africanos.
de Sovas e de Dembos, dos quais uns obedecem ao nosso governo, ou lhe pagam tributo, outros são Como é que estas estruturas, que procuravam injectar-se mutuamente nos seus
independentes e muitas vezes nos fazem guerra». Neves, 1830, pp. 186-187.
valores, podiam escapar a mudanças que naturalmente haviam de possuir alguma simetria?
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A partir desta constatação, a nossa proposta torna-se tão inelutável como simples: europeias. Quando, no princípio do século XX, o capitão Paiva Couceiro demonstrou que
as estruturas políticas dos Portugueses e dos Africanos são forçadas a mudar, para o comércio angolano dependia quase inteiramente da produção africana (118 ) , não fazia
permitir uma articulação eficaz, isto é, capaz de evitar as derrapagens perigosas, que mais do que provar a eficácia das actividades angolanas, produção e comercialização
podiam arrastar consigo tanto os conflitos armados como o congelamento dos negócios. confundidas.
Os Portugueses são forçados a respeitar as regras africanas. No século XIX, os Imbangalas Seremos levados, mais tarde, a interrogar as formas de organização do trabalho,
decidiram congelar os negócios, para respeitar as suas regras religiosas, comprometendo quando as estruturas africanas forem forçadas a renunciar à produção de escravos,
o equilíbrio, sempre precário, como sabemos, das relações comerciais. Por seu lado, os substituídos por outras mercadorias preferenciais. Mas podemos, desde já, acrescentar
Africanos são, de maneira crescente, obrigados a observar as regras portuguesas. que a soma das práticas de trabalho masculino ou feminino terá de ser alterada de alto
Podemos também dispensar alguma atenção ao caso dos Lundas centrais, cujas a baixo, para permitir a produção das mercadorias solicitadas pelos Europeus. As
informações de que dispomos não são, infelizmente, muito numerosas, mas as indicações
relações directas com os Portugueses só se organizaram mais tarde, devido ao apertado
implícitas na importância numérica das caravanas, reforçadas por tudo o que se refere
controlo que os Imbangalas exerceram sobre estas relações.
aos quilómetros percorridos para alcançar os mercados escolhidos pelos chefes africanos,
Com efeito, os primeiros contactos entre os Portugueses, ou os seus agentes, e os
permitem medir as modificações, quantitativas e qualitativas, introduzidas pelas relações
Lundas, só se verificaram aquando da grande viagem realizada pelos pombeiros de com os Europeus.
Honório José da Costa. Podiam eles manter-se fora do abalo provocado pelos Europeus? A soma destas operações, às quais será sempre possível acrescentar um certo
Tal solução parece-nos hoje impossível, pois, o comércio dos escravos em Luanda foi número de outras, serve para provar que as estruturas africanas não se caracterizam
muitas vezes alimentado pelas caravanas vindas de leste, através do Kwangu, controlado apenas pela resistência, ignorância ou desprezo dos valores europeus. Nem de resto tal
pelas autoridades imbangalas. seria possível. Parece, por isso, mais indicado mostrar a enorme flexibilidade das duas
Se não podemos contestá-lo — e voltaremos à questão visto que as relações entre estruturas. Se os Portugueses não podem, de maneira alguma, desprezar esta hegemonia
os Imbangalas e os Lundas, assim como com os Portugueses estão no centro deste africana que a maior parte dos historiadores portugueses (e europeus) quis negar ou
trabalho — talvez nos faltem provas suficientes para dar a esta hipótese uma estrutura esquecer, é preciso acrescentar que os Africanos se encontram na obrigação de se vergar
indiscutível. Mas ela é amplamente suficiente para nos obrigar a dar-nos conta da sob as pressões comerciais exercidas pelos Portugueses. Desta maneira, a situação
maneira como os valores de cada grupo acabam sempre por agir uns sobre os outros. torna-se mais lógica, caracterizada por uma imbricação cada vez mais profunda das duas
Porque se os Lundas não conseguem, ou não podem, estabelecer relações directas com economias. Mesmo que, com o tempo — nos finais do século XIX—, os Africanos pareçam
os Portugueses, tal não impede que os valores que estes introduzem em África exerçam condenados a assistir à desagregação da sua hegemonia: se as indicações respeitantes
a sua influência. às novas orientações provêm, de maneira crescente, dos Portugueses, sem contrapartida
É assim que as escolhas políticas dos Lundas são influenciadas pelos Europeus. africana válida, torna-se evidente que os Africanos estão em via de perder a sua própria
A operação de informação junto do imperador lunda, levada a cabo em 1840-1844 pelo energia. Digamos as coisas de outra maneira: a situação é tal que os Africanos se vêem
comerciante brasileiro Joaquim Rodrigues Graça, deve ser compreendida como o resultado na obrigação de recusar a modernidade, recuando sobre os seus próprios avanços no
da integração cada vez mais acentuada das duas economias. Os Lundas forneciam caminho de uma modernização, conseguidos na segunda metade do século XIX.
Estes passos à retaguarda implicam um atraso que não pode deixar de se agravar,
preferencialmente escravos e a abolição do tráfico negreiro obrigava os Portugueses a
ao longo do século XX.
tentarem reciclar a sua economia. Todavia, esta operação não teria obtido um êxito tão
Eis, a maneira como pretendemos abordar o problema: é esta leitura da hegemonia
completo, como o desejavam os comerciantes de Luanda, sem a adesão dos Lundas ao
— ou antes das hegemonias (119), porque não se trata de um bloco homogéneo africano
novo estado de coisas. perante os Europeus — nas relações entre os Angolanos e os Portugueses que constitui
Como seria possível dissimular a importância da integração das duas economias? um dos fios condutores deste trabalho.
Como, ainda, esta integração teria podido produzir-se sem conhecer um certo número
de acordos ou de cumplicidades políticas? Como organizar uma história lunda sem levar
em consideração esta infiltração dos valores portugueses/europeus, no mesmo momento
em que as relações directas continuavam a ser impossíveis, dada a intransigência do
mediador imbangala? A superação deste controlo, durante a primeira metade do século
(08) Couceiro, 1898, pp. 10-12.
XIX, se permite pôr em evidência o carácter assaz estanque da orientação imbangala, (119) Conceito proposto por Alfredo Margarido, 1989, e que vamos utilizar neste trabalho. Jean
revela também a pressão dinâmica dos valores introduzidos pelos Europeus. Boulègue, 1986, também recorreu a este conceito. Os dois investigadores e professores dirigiram em
Este segundo exemplo mostra, sobretudo, como o desenvolvimento do comércio em conjunto seminários de D. E. A. (Diplôme d'Études Approfondies — Universidade de Paris I) onde o
Angola depende da maneira como as autoridades africanas aceitam ou rejeitam as propostas conceito foi desenvolvido.

148 149
SEGUNDA PARTE

OS ESPAÇOS POLÍTICOS LUNDAS E A CRIAÇÃO DO


ESTADO IMBANGALA: LAÇOS HISTÓRICOS E RELAÇÕES
DE DEPENDÊNCIA ANTES DE 1850
OS ESPAÇOS POLÍTICOS LUNDAS E A CRIAÇÃO DO
ESTADO IMBANGALA: LAÇOS HISTÓRICOS E RELAÇÕES
DE DEPENDÊNCIA ANTES DE 1850
A Angola da primeira metade do século XIX vivia numa situação contraditória,
partilhada entre os laços que a uniam de maneira íntima ao Brasil e aqueles que a faziam
depender da gestão política e administrativa de Portugal. A complexidade destas relações
é reforçada pela importância financeira desempenhada pela praça de Londres, que
determinava uma parte substancial das escolhas da economia portuguesa.
A mercadoria preferencial era constituída por escravos, sobretudo destinados ao
Brasil, então povoado pelas «nações angolanas» a ponto de Luanda se ter tornado a
cidade africana mítica dos afro-brasileiros. A estratégia portuguesa tinha confiado a
quase totalidade da «produção» dos escravos às autoridades africanas, o que permitiu
aparecimento e o reforço dos Estados intermediários, como o de Kasanje.
Inserido no Kwangu, o Estado de Kasanje foi capaz de controlar as redes de homens
de mercadorias. O tráfico negreiro permitiu que o poder imbangala se tornasse o
árbitro das relações com a África central, bloqueando os Portugueses na região que se
estende entre Luanda e Kasanje.
O segundo quartel do século XIX foi marcado por medidas administrativas
portuguesas, destinadas a modernizar a gestão das colónias, sobretudo após a
independência do Brasil, em 1822. A abolição do tráfico, em 1836, abalou o sistema,
mesmo quando os colonos angolanos recusam respeitar a lei. A prazo, havia de sacudir
poder imbangala, incapaz de criar formas comerciais de substituição.
Simultaneamente, este poder era posto em causa devido à aparição dos Lundas nos
circuitos comerciais, cujos interesses nunca coincidiam com os dos Imbangalas. Os
Lundas identificavam-se mais com as populações da África central, que se relacionavam
de preferência com a costa oriental. A primeira expedição portuguesa, levada a cabo
por dois pombeiros angolanos, nos princípios do século, decide os Lundas a estabelecerem
relações directas com os Portugueses.
A função intermediária dos Imbangalas, que lhes permitira ocultar aos Europeus
as populações instaladas a leste do Kwangu, perde uma parte do seu papel principal.
Os laços dos Lundas/Imbangalas tinham sido marcados por relações genéticas: os
Imbangalas resultavam de uma segmentação lunda, mas tinham podido obter uma
grande autonomia política e económica, graças ao relacionamento com os Portugueses.

153
Os Lundas reorganizam as suas relações com os Europeus durante a segunda metade
do século XIX, o que também permite a emergência dos Quiocos, vítimas das escolhas
dos Imbangalas, incapazes de se separarem das autoridades lundas. As relações inter-
-regionais e internacionais separam-se do poder imbangala, cujo enfraquecimento permitiu
as campanhas militares portuguesas nos fins da primeira metade do século XIX.
Foi assim a preeminência lunda que caracterizou o princípio deste período de
recomposição do quadro político, que recusa aos Imbangalas a preponderância política
de que tinham beneficiado durante o século XVIII e primeira metade do século XIX.
CAPÍTULO I
Se acrescentarmos a esta reorganização a importância das estradas comerciais que
contornam o território imbangala pelo sul, teremos diante de nós o sistema de relações
que assegurou a transição — nunca pacífica — para a modernidade política e económica. Os mitos de origem e a história das relações
Lundas/Imbangalas/Quiocos

Apesar dos esforços de um número assaz importante de historiadores, aos quais se


associaram alguns antropólogos ( 1 ), não dispomos ainda, nos dias de hoje, de um quadro
científico estável que nos permita esclarecer, de maneira definitiva, as condições nas
quais apareceram as estruturas políticas da África central. Mas a história, nesse aspecto
corroborada pela antropologia, aceita a existência de laços privilegiados entre um
número importante de grupos, saídos do molde político e cultural dos Lundas centrais.
Estes laços de natureza diversa e muito complexos asseguram as trocas entre os grupos
permitem a floração das complementaridades regionais a vários níveis (2).

I. Uma origem mítica comum: o acesso ao poder, os laços de parentesco


e os laços históricos
«Os povos conhecidos hoje por Cassanges (Bângalas), Bongos, Songos, Quiocos,
Xinges, Lundas (sujeitos ao Muantiânvua formando diversos estados), Cazembes, e os
que entre estes tomaram outros nomes como Minungos, Macossas, Maluênas, Cangombes,
Lubas, Tucongos, Tubindis ou Tubingis, Cassongos (de Muene Puto) e Peindes, com
excepção dos três primeiros todos para além do rio Cuango, a que os antigos escritores
até aos princípios deste século chamavam Moluas, e antes os Jingas, Holos e longos,
etc., todos eles eram da mesma família (...) descendo para leste, entre os rios Lumani
Lulua depois, uns continuaram aquele rumo e outros subiram para o sudoeste e
sudeste, a constituir estados independentes...» (3).
De acordo com estas informações de Henrique de Carvalho, os Lundas, os Imbangalas
os Quiocos, entre outras populações de uma vasta região da África central, do
Atlântico ao Índico, possuíam origens comuns muito antigas, que os mitos de origem

Areia, M. L. R. de; Bastin, M.-L.; Biebuyck, D.; Birmingham, D.; Cunnison, I.; Duysters, L.;
Margarido, A.; McCulloch, M.; Miller, J. C.; Turner, V.; Vansina, J.; Vellut, J. L.; White, C.
Ver a 3.' parte deste trabalho.
(3 ) Carvalho, 1898, pp. 14-15.

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154
---"111111~110111"--

só retêm de maneira muito aproximativa. Também o nascimento do Império lunda, que caçador luba, Tshibinda Ilunga, e uma jovem princesa lunda, Lweji (8). Este mito
aparece numa grelha cronológica, hesitando entre os séculos XV e XVII, não é confirmado corresponde à lição da corte lunda, mas parece ter sido partilhado pelos Quiocos ou,
pelos numerosos mitos de origem que circulam na região. até mesmo, pelo conjunto dos lundaizados. Pode ser assim resumido: um dia, um jovem
A fixação da data da fundação do Império lunda não responde a nenhum critério caçador luba, Tshibinda Ilunga, que pertencia à linhagem real, afastou-se do seu grupo,
histórico verificável ou verificado, pois que está mais inscrita no mito colonial português, indo dar ao território então controlado pelos Bungos. Aí encontrou, perto do rio Calaanhi,
tal como foi interpretado por Henrique de Carvalho. Com efeito, a dedução lógica do uma rapariga, Lweji, acompanhada pela sua comitiva (9). A tradição hesita afirmar qual
militar português decorre das datas internas da presença portuguesa: os Portugueses dos dois se apaixonou primeiro. Podemos economizar as efusões, concluídas pelo
chegam à foz do Kongo em 1482 (4), instalam-se no território que vai ser mais tarde casamento. Esta união provocou vários resultados: o caçador Tuba assegura a transição
a cidade de Luanda, em 1575 (5). A criação do Império lunda deve — na visão das técnicas líticas pard as da metalurgia, tal como introduz as maneiras de corte, que
portuguesa — entrar nesta grelha cronológica. A relação de causa a efeito é assim impõem a modernização dos rituais e das relações entre as diferentes autoridades do
tornada visível, reforçada pela importância da invasão do Kongo pelos Jagas, as «hordas Estado. Enfim, ao aceitar das mãos de Lweji o lukano, pulseira tecida com veias
antropofágicas» que desempenham um papel tão considerável na organização da relação humanas, usada pelo chefe supremo, ele assegura a passagem de um estado matrilinear
mítica entre Portugueses e Africanos (6). para a patrilinearidade, que caracterizava já o poder Tuba.
Isto quer dizer que a data proposta por Henrique de Carvalho faz depender a Esta operação provocou a cólera de vários parentes de Lweji — irmãos, tios e tias —
própria história africana, incluindo a dos grupos que não mantinham relações directas o que determinou algumas partidas, que desempenham um papel fundamental na dispersão
com os Europeus, das intervenções europeias. A maneira como a proposta de Henrique dos Lundas e dos lundaizados. Kinguri (10) — de quem nos ocuparemos um pouco mais
de Carvalho foi aceite remete, por isso, para a mitologia europeia, na medida em que
tarde e que está na origem do Estado imbangala — foi o primeiro a partir para oeste até
a fonte europeia substitui as fontes africanas. O facto de estas datas terem sido admitidas
à região do Kwanza em busca das minas de sal (11) e também, provavelmente, à procura
durante algum tempo pelos próprios africanos limita-se a reforçar o peso deste esforço
dos Portugueses, que acabou por encontrar nos princípios do século XVII (12). A tia de
de leitura da história, que se transforma, à medida que o tempo passa, numa espécie
Lweji, Anguina Kambanda, teria partido para sul em companhia de Anduma-ua-Tembue,
de mistificação involuntária. Mas, como é que o patriota que foi Henrique de Carvalho
podia, apesar da maneira como compreende os valores africanos, separar-se da importância Andubam e Quiniama.
A complexidade da operação parece traduzir uma amálgama de diversos períodos
absoluta do projecto político português?
Inversamente, as ligações originárias dos Quiocos e dos Imbangalas com os Lundas históricos e de várias personagens ou até de múltiplos títulos políticos, mas assinala a
estão bem assinaladas nas tradições destas sociedades, que pertenciam, na sua maior modernização da sociedade bungo, que se torna lunda, seguida pela transferência do
poder e a disjunção entre o casal real e a fratria que se julga, por boas ou más razões,
parte, ao espaço angolano (7).
O mito mais espalhado é o recolhido por Henrique de Carvalho entre as populações espoliada e afastada do poder. Simultaneamente, esta operação põe em evidência a
e, sobretudo, as aristocracias quioca/lunda, e que apresenta os amores entre um jovem importância das segmentações internas dos Lundas, que permitiram a criação dos
núcleos duros do poder do Império.
Retenha-se o essencial: esta tradição assinala o momento em que as sociedades
passam das armas líticas à metalurgia, mudança reforçada pela alteração das regras da
Entre 1482 e 1493 — viagens de Diogo Cão — as informações obtidas permitiram a banalização descendência, que teria então abandonado o sistema da sucessão matrilinear para a
dos Ba-Kongo e dos seus sistemas políticos. patrilinearidade. Acrescente-se a criação das maneiras de corte, quer dizer, da soma de
Paulo Dias de Novais, capitão-donatário, foi a primeira autoridade portuguesa nesta região
africana. Ver La parte, cap. IV.
rituais que dão ao aparelho político a possibilidade de assegurar a coesão das funções,
Joseph C. Miller (1973) quis eliminar da história de Angola a importância dos Jagas, sublinhando
que este grupo não possuía existência real e nunca constituíra uma etnia. Esta revisão da história só
possui o defeito de comprometer a compreensão das relações entre os Portugueses e os Africanos:
transformados, pela literatura ocidental, em antropófagos absolutos, os Jagas justificam as intervenções Carvalho, 1890, cap. I.
dos Europeus que destroem os Africanos, quer seja pelo recurso à razia quer seja recorrendo à escravatura, Ver o desenho do lugar, onde se teria verificado o encontro do casal Tshibinda Ilunga — Lweji,
ou à simples destruição física. A antropofagia geral dos Jagas expulsa-os do espaço dos humanos, in Carvalho, IV, 1894, p. 252 e 1890, p. 73. Ver, também, in Carvalho, IV, 1894, p. 281, um desenho
transformando-os num grupo sub-humano, ainda pior do que as feras, os únicos adversários lógicos da da sepultura de Ilunga.
espécie humana. Como justificar, contudo, as práticas antropofágicas tal como foram tão miudamente Henrique de Carvalho tinha já desconfiado que não se estava perante o nome de uma personagem,
descritas pelo missionário Cavazzi? Voltaremos a esta questão, que se conta entre as mais importantes mas sim de um título político. Joseph C. Miller deu a esta intuição uma base histórica mais robusta,
na fixação do discurso mítico da exclusão do Outro africano do espaço da norma humana. ver Miller, 1976, pp. 118-128.
Ver, por ex., Capello e Ivens, 1881, I, p. 172; Duysters, 1958, p. 78; Bastin, 1961, pp. Carvalho, 1890, cap. I e II.
30-33. (12) Voltaremos a abordar este problema no cap. III.

156 157
operação indispensável para manter a estrutura política ao abrigo dos sobressaltos
individuais.
Se esta história conheceu uma tão grande difusão ( 13) — o que reforçou o carácter
normativo da sua intervenção — ela parece dever ser corrigida, quanto mais não for
no que diz respeito ao carácter demasiado tardio da transição do material lítico para
a metalurgia ( 14). As investigações levadas a cabo por Ema Maquet salientam a existência
de instrumentos metálicos muito anteriores ao século XV ( 15). Esta revisão da cronologia
torna-se, por isso, indispensável. Mas se somos incapazes de resolver esta questão,
podemos contudo interrogar-nos a respeito da operação fundamental. Pode aceitar-se a
injecção de técnicas lubas no quadro da sociedade bungo, futura lunda, feita neste caso
pelo herói cultural Tshibinda Ilunga, porque não contraria, de maneira alguma, a
organização das estruturas políticas. De resto, os Quiocos deram a esta versão uma Fig. 1 — Túmulo de Tshibinda Ilunga.
importância considerável, na medida em que a estátua do caçador luba é uma das Carvalho, 1894, IV, p. 281.
A árvore do «encontro» está defendida por
representações mais importantes esculpidas pelos Quiocos (16).
figuras esculpidas, que representam os espíritos
O mito salienta a existência de um grupo anterior aos Lundas centrais, os Bungos, ancestrais. A gravura, feita a partir de uma
os quais só utilizavam material lítico. Os Lundas seriam os seus descendentes, mas é fotografia, não permite a menor identificação destes
sobretudo necessário acreditar na recuperação de um laço genealógico destinado a espíritos.
confortar o direito de ocupação das terras pelos Lundas, que se manifestam fiéis a uma
tradição: a ocupação das terras não pode fazer-se sem o acordo dos espíritos dos
antepassados, dos mais velhos, que se tornaram figuras religiosas. Podemos, por isso,
aceitar o princípio de que a referência aos Bungos serve aos Lundas para afirmarem
os direitos indiscutíveis às terras que ocupam.
Parece também que os Bungos forneceram aos Lundas alguns modelos civiliza-
cionais, mas admitimos uma maneira de ver mais articulada com os mitos. Estes, mesmo
que salientem a importância do herói cultural, querem sobretudo manifestar o valor
decisivo da mutação técnica e política que se verificou, que permite a organização de
um poder eficaz e que se apoia na flexibilidade da gestão e nas técnicas de caça.
Convém, contudo, lembrar que estas servem igualmente para «caçar» homens, e que o
caçador mítico luba deve ser considerado como o modelo do guerreiro.
Se aceitarmos esta maneira de interpretar os mitos lundas, compreenderemos melhor
as formas adoptadas pelas segmentações internas: a história mítica lunda sublinha a
ruptura provocada pelas novas técnicas, que levam os irmãos de Lweji a abandonarem
a corte e o território, para se instalar alhures. O esquema é clássico: as migrações são
assim apresentadas como decorrendo de uma ruptura familiar. Interpretaremos esta
afirmação mítica como uma verdade simples, ou inscrevê-la-amos num quadro teórico
mais largo, determinado pelo carácter polissémico da sua própria estrutura?

Foi traduzida em inglês por Turner, V. W., A luunda love story and his consequence.
Ver Ervedosa, 1980; Maret, 1983.
Maquet, 1965, p. 7.
Esta estátua mereceu a atenção plástica e etnológica de Marie-Louise Bastin, 1965; ela serviu Fig. 2 — Grande túmulo no caminho de Cudungulo. Carvalho, 1894, IV, pp. 592/593.
também de elemento central da tese de Lima, 1971, e de alguns trabalhos de Margarido, 1965 e 1970, Os viajantes encontram-se perante uma ampla concentração de esculturas que representam OS

consagrados aos Lundas. espíritos, tal como se verificava no caso do túmulo de Tshibinda Ilunga.

158 159
Henrique de Carvalho foi o primeiro a pôr em evidência a importância do modelo Em 1880 — quer dizer, um século depois — dois exploradores, Capello e Ivens,
familiar na organização política lunda. A isso era autorizado pelo mito de origem registaram as informações que lhes foram fornecidas pelo chefe N'Durnba-Tembo, que
dos Lundas modernos, mas foi Ian Cunnison que propôs um quadro teórico mais respeitam a estrutura geral dos mitos de fundação ou de instalação: os avós do chefe
apropriado (17). O «parentesco perpétuo» que este autor encontrou entre os lundaizados quioco haviam-lhe contado que o território tinha sido outrora pouco povoado. Os
do vale do Luapula permite compreender a estrutura do poder político, formalmente Lundas centrais já existiam então, necessariamente, e foram, de resto, os conflitos com
identificado com as estruturas familiares. Os homens e as mulheres que ocupam o poder três caçadores lundas que provocaram a sua partida. Se o mito retém a habilidade dos
são herdeiros e portadores dos laços de parentesco — que são também laços históricos caçadores, é para melhor salientar as operações de conquista e de submissão das
— estabelecidos entre os responsáveis pelo poder político, o que permite que estes populações provavelmente autóctones, muito dispersas e não dispondo de chefado central,
responsáveis sejam por vezes, quando não sempre, portadores de uma dupla história o que deve ter simplificado as tarefas do controlo político. N'Dumba-Tembo ocupou
familiar: a que lhes é própria e a do seu título, devendo assumir e narrar esta história o território T'schiboco, Muzumbo-Tembo tomou posse do Songo, ao passo que o
na primeira pessoa. terceiro caçador, Cassanje-Tembo, escolheu as terras que, a norte, se encontram ainda
Se as migrações são assim explicadas a partir de um quadro familiar, elas garantiram, entre o Kwangu e Talla Mugongo. Adoptou, na altura, o título de Jaga destas terras
de igual modo, o enxameamento do modelo luba. Vamos reter, entre as populações que recém-ocupadas. A narrativa etiológica insiste na normalidade das relações estabelecidas
assim adquiriram a sua autonomia, essencialmente os Imbangalas e os Quiocos, na com os grupos conquistados, visto que o chefe lunda seguiu uma política de
medida em que se trata dos grupos que se mostraram capazes de dar ao território da intercasamentos, destinada a transformar os súbditos conquistados em parentes. Isto
África central o perfil que é ainda hoje parcialmente o seu. Com efeito, os Imbangalas permitiu-lhes estender esta política de conquistas para oeste, onde se instalaram grupos
ficaram instalados na Baixa de Kasanje (18), ao passo que os Quiocos, continuando a aparentados, entre os quais o chefe do Bié, que parece descendente de Muzumbo-
descer para o Sul angolano, ficaram ligados ao território que era o seu no século XIX, -Tembo, cuja filha ou neta estabeleceu relações com o chefe do Sul, «dando como
aquando da famosa expedição de Henrique de Carvalho. resultado os Ganguelas, Bienos, Bailundos» (22).
Capello e Ivens quiseram submeter a narrativa de N'Dumba-Tembo à apreciação
de outros chefes. As informações foram-lhes confirmadas na região de Quembo (23).
II. Cronologia, conhecimentos e desconhecimentos: a imprecisão das Nesta região, os mitos asseveram que os Imbangalas invadiram o território pouco antes
fontes de os Portugueses terem chegado a Pungu N'Dongo, ou seja, nos finais do século XVI.
Nesta versão da narrativa, um ramo dos Jagas, vindo do território lunda, teria conquistado
Os documentos coloniais portugueses só se dão conta da existência dos Lundas Kasanje, graças a um movimento que inclui a invasão e a instalação na região.
muito tarde: foi no relatório do sargento-mor Manuel Correia Leitão, de 1756, que Neste momento da história quioca, os mitos estão divididos entre duas pulsões: a
apareceu a primeira referência aos Lundas, um grupo instalado na margem direita primeira, associada à origem lunda, a única que pode dar prestígio às populações deste
do Kwangu: indicação imprecisa, mas que modificava, de maneira ténue, o inventário imenso espaço cultural; a segunda depende da presença portuguesa, que é preciso
das populações (19). Pinheiro Furtado esperaria apenas vinte anos para os situar no integrar na história. A narrativa é organizada de maneira a que a referência aos Lundas
seu mapa de 1776 (20): anteriormente este espaço ou era deixado vazio nos mapas não possa eliminar a importância da irrupção dos Portugueses, assim como a referência
(como se verifica no de Anguille) ou ocupado pelas designações mais fanta- aos Portugueses não pode reduzir o carácter determinante desta intervenção fundadora
siosas (21). Não dispomos de elementos que nos permitam esclarecer as causas desta lunda.
falta de conhecimento, tanto mais que Correia Leitão salienta o facto de um grande É, de resto, por esta razão, que as querelas que se referem ao encontro entre
número de escravos exportados pelos Portugueses em Luanda e em Benguela serem Portugueses e Imbangalas dependem, é certo, das histórias lunda e imbangala, sem
originários da referida região. contudo se separarem da história das relações entre Portugueses e Africanos.
Dispomos, pois, de informações orais consagradas à migração dos Imbangalas.
Esta datação deu lugar, há alguns anos, a uma polémica entre Jan Vansina e David
Birmingham (24), mas podemos aceitar a ideia de um encontro entre portugueses e o

Cunnison, 1951.
Baixa de Kasanje, ver cap. III.
Leitão dá-lhes o nome de Malundo, 1938, por exemplo, pp. 17, 19, 21, 23-24. Capello e Ivens, 1881, I, pp. 173-174.
Ver Mapa, vol. III. Id., ibid., p. 302.
(21) Id., ibid. (24) Ver cap. III.

160 161
grupo imbangala, numa região onde eles se não fixaram, como aconteceu na zona do que contêm na margem esquerda os Lundas e os Quiocos, assim impossibilitados de
Kwanza ou na do Holo — Kwangu superior —, onde os Imbangalas estiveram instalados contactar os Portugueses. A operação permite assegurar a dominação imbangala, que
durante algum tempo, atraídos pelas minas de sal, antes de se fixarem definitivamente garante a circulação das mercadorias provenientes das regiões e das populações orientais,
na região pouco povoada do Centro-Oeste do Kwangu, mais tarde chamada Kasanje. enquanto controlam as mercadorias europeias.
Os Imbangalas estabeleceram-se numa zona muito particular, pois permite controlar Em que momento e em que condições intervêm os Lundas na história? Trata-se de
as relações das populações da costa, fundamentalmente dos Portugueses, com as terras uma questão essencial, tanto mais que os Lundas centrais lançam uma migração para
para lá do Kwangu. Simultaneamente, esta posição impede que as populações da leste, que deu origem aos Lundas de Kazembe; podemos afirmar que eles procuravam
margem oriental do Kwangu possam escapar ao controlo imbangala e estabelecer um o contacto com as estruturas políticas e económicas da costa oriental, árabes ou indianas,
contacto directo com os Europeus. primeiro, europeias também, mais tarde. Chegados a este ponto, temos de escolher: ou
O mito que explica a maneira como os Imbangalas escolheram o seu território está aceitamos a existência de um acordo entre os Imbangalas e os Lundas centrais, ou então
muito longe de corresponder à realidade: diz que Kinguri, o chefe dessa migração lunda, salientamos a impotência dos Lundas centrais perante um duplo obstáculo: a que resulta
se teria lançado em perseguição de um elefante que entrara nas suas terras. Neste caso, da associação tecida entre os Imbangalas e os Quiocos.
o mito está encarregado de dar uma explicação fora do quadro formal da família, de A única dificuldade, mas que é considerável!, reside no facto de não conhecermos
tal forma que as escolhas dos Lundas possam ser interpretadas graças à relação sustentada a situação dos Quiocos ( 25), a respeito dos quais não possuímos — por enquanto —
com os espíritos, que teriam levado o animal até à Baixa de Kasanje, sede do poder nenhuma informação anterior aos últimos anos do século XVIII ( 26). Se de facto os
imbangala. Lundas emergiram na história da África central muito mais tarde do que os Imban-
Se a narrativa permite relacionar estas deslocações com a história mítica, o historiador galas, foram eles que, por sua vez, arrastaram consigo os Quiocos. Ficariam estes
está condenado a considerar que a tradição mítica nunca dissimula os laços pragmáticos, sob o controlo directo dos Lundas centrais, ou instalar-se-iam no seu território dos
antes os reforça. Os espíritos, ao guiar o elefante até este território, põem-se, na verdade, séculos XIX-XX, pouco tempo antes de os Portugueses tentarem estabelecer um con-
ao serviço dos Imbangalas. É graças à «viagem» de um animal ferido, sinal da força tacto directo com os Lundas?
e da longevidade, que os Imbangalas dispõem de um guia providencial, que lhes permite A tradição quioca — como vimos — conta que caçadores lundas, sob a chefia de
alcançar e identificar as terras, que servem para se instalarem e organizarem o poder. Tembo, caçador eminente, que contestavam o poder de Lweji, teriam deixado o Império
É devido a um falso acaso, pois se trata de uma operação determinada pelos lunda, dirigindo-se para o Sul, ao longo do rio Kasai. Ter-se-iam instalado na região
espíritos, que o elefante vai cair nas terras onde se instala o poder imbangala. das nascentes do Kwangu e do Kasai, que se tornou, provavelmente por volta da metade
Tendo estabelecido contactos precoces com os Portugueses, os Imbangalas vão do século XVIII, a encruzilhada das vias comerciais internas, ligando o Império lunda
«inventar» os meios de controlar as potências das quais dependem as correntes e os às regiões do sal (Holo, Imbangala e até Kisama) e às redes organizadas pelos Portugueses (27).
valores comerciais, tanto a leste como a oeste do rio. Trata-se de agir de maneira a A importância estratégica desta zona não escapou ao Império lunda que,
impedir que os dois grupos estabeleçam contactos directos. O génio imbangala afirma progressivamente, a controlou. Foram instalados chefes lundas nas fronteiras do Império
a sua flexibilidade, podendo, desta maneira, obter não só lucros consideráveis, mas para cobrar tributos às aldeias quiocas aí fixadas (28).
sobretudo poder: o grupo e o seu chefe tornam-se árbitros militares, na medida em que Mal-grado a ausência de informações precisas a respeito dos Quiocos, permitindo
esta situação exige forças organizadas e eficazes, assim como árbitros comerciais. definir melhor o seu estatuto, que caracteriza todos os documentos portugueses antes
Teremos de renunciar, pelo menos enquanto a arqueologia não nos tiver fornecido do fim da primeira metade do século XIX, sabemos que estes emergem lentamente, mas
documentos complementares, a identificar os grupos que habitavam na região antes de de maneira determinada, durante a primeira metade do século XIX ( 29). Se eles exercem,
os Imbangalas aí se estabelecerem. A verdade é que a maior parte dos mitos faz na segunda metade do século, uma tão forte pressão sobre os Imbangalas, é sobretudo
referência a grupos que estão em deslocação constante, seja devido à violência generalizada contra os Lundas centrais que se precipitam com violência. Estes serão submergidos
seja em consequência da simples pressão demográfica. Tanto num caso como no outro,
devemos reter a importância estratégica desta instalação.
Neste caso específico, a explicação não perde o seu carácter inteiramente mítico,
Léon Duysters, 1958, p. 78, faz referência a este problema e denuncia os erros cometidos pelos
mesmo que o mito não possa funcionar sem o recurso à história. Teremos sempre de
Europeus «a propósito da ortografia dos nomes indígenas».
explicar as razões que permitiram que os Imbangalas mantivessem, de maneira voluntária Ver 4.' parte, cap. II, consagrado à emergência dos Quiocos.
e politicamente coerente, o controlo do acesso às margens do Kwangu: na margem Id., cap. I.
direita impedem as raríssimas tentativas portuguesas de chegar ao rio, ao mesmo tempo Id., cap. II.
(29) Id., ibid.

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pela vaga quioca que, em 1887, irá ao ponto de ocupar a capital do Império, originando
a queda de uma das maiores organizações políticas africanas da África central. Parece,
contudo, que a força dos Quiocos não foi inventada nessa época, pelo que se torna
necessário reconstituir a história das segmentações internas dos Lundas, para dispor de
condições de análise credíveis.

CAPÍTULO II

Poder político, controlo regional, formas de integração


e mecanismos de dominação
Os mitos de origem, conservados por Henrique de Carvalho, parecem organizados
em função da lição do evolucionismo: retém-se sobretudo a maneira como as estruturas
simples do passado foram substituídas por formas mais complexas e, eventualmente,
mais dinâmicas.
O poder polftico supera o quadro da família, da linhagem ou da aldeia. As operações
de produção, tal como as da gestão do facto político, mobilizam um grande número de
homens, e encontram-se dispersas em espaços cada vez mais amplos. Nestas condições,
a gestão de tipo familiar está condenada a ser substituída por estruturas mais complexas.
É certo que o poder político lunda continua a ser enunciado em termos de parentesco
entre os diferentes titulares, mas a relação entre os títulos não exige, de maneira alguma,
um autêntico parentesco entre os responsáveis pelos cargos políticos.
Se o poder lunda atrai a atenção, tal se deve à notável eficácia das formas de
dominação, que não podem ser separadas das de gestão. A expansão dos Lundas foi
necessariamente lenta, só tendo perdido a sua eficácia no último terço do século XIX,
em consequência da emergência de novas redes comerciais e do dinamismo das populações
dominadas, a isso impelidas, quase sempre indirectamente, pela pressão europeia. Mas
até ao século XIX, a corte dos Lundas centrais mantém o seu poder directo sobre um
número importante de populações, sem contudo renunciar a uma certa dominação sobre
os grupos cuja origem lunda é evidente, como se verifica no caso dos Imbangalas de
Kasanje.
A história das migrações lundas só se separa das práticas clássicas da segmentação,
na medida em que os grupos migrantes nunca se afastam, de maneira total, do grupo
de que são originários. A história destas migrações repete sempre o mesmo esquema,
o que parece provar a existência de um projecto levado a cabo com uma notável
eficácia. Se os grupos migram, é porque as técnicas de gestão estão tão afinadas que
permitem estas partidas, que caracterizam a expansão dos Lundas e dos seus modelos
de gestão (1).

(1) Registam-se situações semelhantes em outras regiões africanas, como se pode verificar entre
os Merina de Madagáscar. Ver Rasoamiaramanana, 1987, pp. 265-281.

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Sabemos que os mitos servem de estrutura, de explicação e de instrumento de em evidência por Henrique de Carvalho e Ian Cunnison. O mito multiplica os parentescos
racionalização destas migrações. Os grupos preparam-se para estas migrações, com origem lunda, o que permite criar uma estrutura de parentesco «lundaizada», que
algumas vezes apresentadas como sendo o resultado da decisão mais ou menos assume a direcção das diferentes fracções «nacionais».
improvisada de uma ou de várias personagens. Parece ser necessário separar-se desta Este tipo de «parentesco perpétuo», qualquer que seja a sua carga mítica, admite
«não-previsão», para optar por uma leitura mais próxima dos resultados obtidos: se a desdramatização das relações, ao mesmo tempo que impõe a criação de uma malha
assim o não fizermos, como explicar a notável coesão dos grupos lundas e lundaizados, em que a dependência é reduzida em proveito do aparentamento. Esta técnica lunda, se
se as escolhas de uns e de outros forem levadas a cabo sem a mínima previsão, se inscreve na grelha de um parentesco mitificado, permite fazer do dominado um
quer dizer, em contradição e em conflito real ou potencial com o grupo central? parente. É, de resto, o parentesco que aparece em primeiríssimo lugar, de maneira a
A interpretação clássica ateve-se à necessidade de mostrar que a expansão dos evitar o conflito.
Lundas depende quase exclusivamente da eficácia do seu modelo militar, que repousa É certo que a quase totalidade das genealogias possui um carácter fictício. Importa,
sobre uma intendência bem organizada. É importante restringir esta maneira de analisar sobretudo, reter a eficácia de que elas deram provas, tornando possível a criação de um
a formação e a organização do Império: é certo ser necessário levar em conta a espaço assaz homogéneo onde o poder central se podia afirmar, porque reconhecido, a
importância do facto militar, na medida em que este se não pode estruturar sem dispor bem ou a mal. Aquando da expedição de Rodrigues Graça, o Mwatyanvua, que acolheu
de sólidos apoios técnicos, entre os quais a metalurgia, como de resto salienta o mito o comerciante brasileiro na Musumba, a capital lunda, procede ao inventário dos chefes
da transição dos Bungos para os Lundas. Seria pelo menos ingénuo, contudo, esquecer «que [lhe] prestam obediência (...) o grande Cazembe-Muculo, Muzaza, Quimbundu,
os trunfos culturais de que dispõe o poder lunda (2). Catende, Quinhama, Chinde, Canonguessa, Muxima, Muço-Cadanda, Maneputo das
Com efeito, a coesão deste vasto conjunto político depende também da estrutura praias, Luvar, Sacambuge, Quiboco, Cabinza, Chava-hua, Difunde, Challa, Cabo
religiosa, a qual permite que os homens se identifiquem através das forças criadoras. Caconda, Muata-Mibanda, Zam-vi, Cassongo, Catena Calende, Quiria, Milondo, Massoje,
A explicação cosmológica unitária assegura a coerência da relação com a ou Cagengi, Cha-huta, Cassongo e outros muitos» (3).
as divindades. Esta estrutura religiosa é reforçada pela competência adminis- O quadro geográfico, no qual se inscrevem os mitos de origem, abarca um espaço
trativa que permite que os Lundas centrais integrem no seu espaço, em expansão imenso, cuja organização deve ter sido muito lenta. É a história destas sedimentações
permanente, populações tão afastadas como os Kazembes, os Imbangalas e os Quiocos. que é recusada ou extremamente simplificada pelas tradições orais. Estas procedem a
simplificações, tanto no que diz respeito à relação com o tempo como no que se refere
I. A formação do Império lunda e os processos de integração dos ao espaço. Todavia, o mais significativo reside na impossibilidade de escapar a este
homens e dos espaços peso: os homens que se deslocam e ocupam o poder não podem deixar de ser parentes.
Qualquer chefe, conquistado e dominado, deve ocupar um lugar entre os parentes. Esta
Senão, como explicar a formação e a expressão do que é para nós, hoje, o Império medida é exigida pela necessidade de impedir, ou de tornar mais difícil, qualquer conflito
lunda? A segmentação programada foi completada por um processo de aglutinação: os com os antepassados, que ocupam a terra e são os únicos que podem autorizar a
poderes locais não são eliminados de maneira sistemática ou brutal. Colocados perante instalação de «estrangeiros», sendo também destinada a reduzir as possibilidades de
estruturas dispersas num espaço muito grande, os Lundas permitem que os chefes, lutas entre os vivos.
conquistados ou submetidos, sejam integrados nas linhagens reais graças a manipulações Na medida em que estas técnicas de gestão política não podem, de maneira alguma,
genealógicas. negar a claridade da mensagem religiosa, estas formas de parentesco permitem também
proceder à integração dos espíritos dos antepassados na nova forma de gestão e de
A. Parentesco e homogeneidade do Império dominação. Dado que a terra não pode ser ocupada sem contar com a adesão ou a
Já assinalámos a maneira como o mito das origens lurrda cabe no quadro das aprovação dos espíritos dos antepassados, a criação deste parentesco está duplamente
técnicas utilizadas pelos Lundas para criar o sistema de «parentesco perpétuo», posto justificada. Lembremos que, quando uma aldeia se desloca para se alojar em campos
agrícolas em pousio, as populações lundas transportam com elas um ramo de mulemba
(Ficus elasticus), para ser plantado. A aldeia só se instalará definitivamente se o ramo
(2 ) Uma das explicações mais banalizadas, no que diz respeito aos Lundas e aos lundaizados, põe ganhar raízes. E explica-se que estas dependem não da botânica, mas da aceitação dos
em evidência a importância do «facto militar», tese largamente considerada nos anos 1960 por certas espíritos, estabelecidos no local. A sua cólera impede as raízes de crescerem e os homens
interpretações de Georges Balandier, 1967, e que já tinham sido utilizadas por Daniel Biebuyck, 1957.
Este tinha feito coincidir o «facto militar» com as técnicas administrativas. Margarido, 1970, põe
preferencialmente em evidência a importância das práticas religiosas, assim como a competência
administrativa, como suportes da expansão lunda. (3 ) Graça, 1890, p. 445.

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são então forçados a procurar em outro lugar uma terra cujos espíritos sejam mais considerada não só vulgar, mas também um autêntico atentado às regras que asseguram
acolhedores. Nestas condições, a relação com os espíritos, que detêm o poder sobre o a dignidade do poder (7). Isto quer dizer que o poder lunda, mesmo reconhecendo e
território, aparece como essencial. O parentesco fictício permite associá-lo com os organizando a guerra, tenta, antes de mais, avançar na paz, não hesitando recorrer à
Lundas centrais (4). força para a conseguir, procurando, acima de tudo, organizar o consenso.
Esta rede de parentesco está assim em crescimento constante, sem por isso anular Na gestão do poder, que explica a maneira como esta expansão pode ser assegurada,
as tradições familiares dos chefes que possuem, por essa via, uma dupla história os Lundas não hesitam em recorrer às técnicas militares, embora estas apareçam como
familiar: a do cargo que os associa aos Lundas centrais e a da linhagem que lhes permite último recurso, precedidas pela utilização do parentesco — real e fictício —, assim
legitimar a sua instalação, graças aos direitos adquiridos, de que a história oral é como à religião e à capacidade administrativa.
Henrique de Carvalho reproduziu nos seus livros os desenhos — uns feitos no
portadora.
terreno, outros realizados a partir de fotografias, a maior parte infelizmente desa-
parecida —, mostrando que os espaços lundas e lundaizados estão povoados de monu-
B. Ritos de passagem e integração
mentos religiosos, aos quais os homens devem prestar constantemente homenagem (8).
A disseminação destes monumentos permite que nos apercebamos da importância
As técnicas da expansão lunda não podem ser de maneira alguma reduzidas ao maximal do «facto religioso», no sentido em que está encarregado de exercer uma
«facto militar» ou ao «facto guerreiro». É certo que este é muito importante, já que uma espécie de coerção sobre as populações. Não só é indispensável prestar-lhes homenagem,
das possibilidades de «mobilidade social» na sociedade lunda provém dos «factos de mas, mais ainda, exercem um controlo constante e efectivo sobre os homens. Eles
guerra». Tal como o Mwatyanvua não pode ser confirmado neste cargo, sem ter provocado servem para assegurar a presença, por assim dizer física dos espíritos. Esta, valendo
uma guerra para aí combater e vencer. Henrique de Carvalho descreve, a partir das como vale, para assegurar uma homogeneidade indiscutível das formas religiosas, serve
informações obtidas junto dos aristocratas lundas, quais as condições em que é organizado também para manter os homens sob o olhar dos espíritos (9).
o ritual da intronização, que deve ser finalizado com a guerra (5). Mas ao mesmo tempo Perante esta soma de técnicas, só podemos constatar o refinamento do sistema de
os Lundas organizaram uma forma de gestão que deve pô-los ao abrigo das lutas e, até gestão lunda, que se apoia nos valores mais espalhados entre as populações dominadas.
mesmo, dos ataques imprevistos. Quando um chefe dependente dá mostras de ser Se o esforço lunda tem como objectivo obter sempre a integração, isso não quer dizer
demasiado conflituoso, o poder central coloca a seu lado um delegado, encarregado de que a violência esteja definitivamente excluída. No entanto, os Lundas procuram, mais
impedir qualquer decisão brusca. Cada chefe local só pode tomar decisões no quadro do que as manifestações de guerra, a congruência entre as populações dominadas.
dos interesses da corte, isto é, do poder da Musumba.
Esta medida é reforçada por uma outra, que a completa. Com efeito, os chefes mais C. O recurso aos escravos
importantes devem instalar-se na área da Musumba, o que permite que a gestão das suas
terras, dos seus súbditos e das suas produções seja acompanhada mais estritamente pelo Uma das questões, constantemente sublinhadas pelos textos europeus, reside no
delegado do poder central. Isto é confirmado por uma terceira medida: a nobreza, que recurso à escravatura e aos escravos pelas autoridades africanas, nomeadamente lunda,
gere as terras lundas, deve enviar alguns dos seus filhos varões para a Musumba, onde no intuito de manterem a coesão social e alargarem não só o número de súbditos, mas
seguem, antes de chegar à mukanda — a iniciação masculina—, o ensino que é assegurado também o poder exercido em territórios conquistados. Convém, contudo, distinguir duas
pela Lukonkesha. Esta mulher é, no organigrama do poder lunda, a mãe mítica do operações, algumas vezes concomitantes: há escravos que resultam das operações de
imperador, sendo igualmente a ela, a quem cabe a tarefa de preparar os descendentes exclusão. A sociedade decide, através da sua venda aos Europeus, desembara-
para ocuparem o poder (6). çar-se dos homens e das mulheres que se tornaram incómodos. Os vendedores africanos
Entre estas técnicas, os observadores europeus retiveram'a maneira extremamente não podiam deixar de saber que estes homens e estas mulheres não voltariam mais. Os
ritualizada que está presente em todas as cerimónias da corte. Quando o Mwatyanvua escravos eram, desta maneira, banidos da sociedade africana, para ser entregues — do
se dirige a pé para um local, onde se virá a instalar no espaço que ritualmente lhe cabe, ponto de vista africano, entenda-se — a um espaço e a um estatuto, a respeito do qual
leva horas a fazê-lo, pois, os «passos do Estado» impedem-no de qualquer pressa, sabemos muito pouco. Com efeito, quando vendiam os seus conterrâneos, que destino
lhes era reservado no pensamento africano?

Ver Carvalho, 1890, p. 93; Porto, 1986, p. 351. Id., ibid., pp. 394-400.
Carvalho, 1890, pp. 351-356. Ver, por exemplo, vol. IV, 1894, pp. 252, 278, 281, 561.
(6) Id., ibid., pp. 207-220; pp. 524-525. (9) Ver Lima, 1971; Margarido, 1973.

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/11111111111111•1111111111n

Estes escravos excluídos da norma social são confiados aos Imbangalas, que os Poderá dizer-se que estes escravos foram também os agentes dos valores lundas? A
vendem aos comerciantes europeus da costa, os únicos que podem proceder às operações origem destes escravos foi abordada várias vezes pelos autores europeus, que salientam
de embarque e de exportação. Um segundo grupo de escravos é formado por pessoas o recurso à escravatura como um meio de excluir os elementos nocivos da comunidade,
que não podem ser vendidas, e que podemos designar como «escravos integrados», que de maneira a reforçar a coesão social e a assegurar a estabilidade da sociedade.
gozam de direitos quase idênticos aos dos homens livres. Não dispomos de informações Os viajantes portugueses dão uma explicação corrente a esta questão. Em 1846,
que nos permitam conhecer a data em que os Lundas integraram o circuito do comércio Rodrigues Graça escreve que o crime é castigado pelo «indígena» com a escrava-
dos escravos, aos quais, a partir das instalações europeias da costa, transferem para as o que permite o afastamento do criminoso, o qual, de outra maneira, seria
tura ( 12),
Américas hispânicas. O primeiro documento, que estabelece uma relação entre o tráfico condenado à morte. O autor recebe esta explicação, aquando da sua expedição à corte
negreiro e as populações instaladas a leste do Kwangu, é o relatório do sargento-mor, central lunda, no intuito de transmitir às autoridades lundas a decisão portuguesa de
Manuel Correia Leitão (10). abolir o tráfico negreiro e de recusar continuar a comprar escravos africanos.
Este documento fornece indicações indispensáveis, mesmo que hoje nos pareçam Rodrigues Graça reforça esta informação ao dar conta da sua conversa com o
bastante imprecisas. A verdade, contudo, é que o autor nos dá a conhecer que uma Mwatyanvua: «estando em prática escravizar os que cometem crimes de assassínio,
percentagem assaz importante dos escravos comercializados, em Luanda, pelos roubo, adultério, desobediência, feitiços, etc., e não havendo quem os compre, somos
Imbangalas, provém dos imensos territórios situados a leste do Kwangu, habitados por obrigados a mandá-los matar para exemplo dos mais e se Maneputo proibiu a venda
povos desconhecidos dos Portugueses. deles, que outro meio me restará para puni-los?» (13).
Se a data do documento nos permite desvendar o momento em que os Portugueses Não será necessário proceder a uma revisão desta explicação, considerando-a como
decidem esclarecer o mistério destas origens, para contornar o poder imbangala, ele não demasiado solicitada, idêntica a tantas outras que se multiplicam para justificar a
nos autoriza a responder às questões essenciais: como é que os Portugueses levam tanto legitimidade da escravatura?
tempo a dar-se conta deste afluxo de escravos provenientes das regiões controladas O período cronológico, que nos interessa, é aquele em que a escravatura está sob
pelos Imbangalas? Como é possível que o nome dos «Moluas», que serve na época para denúncia constante: a proibição do tráfico de 10 de Dezembro de 1836, seguida — é
designar as populações que alguns anos depois serão os Lundas, tenha aparecido tão verdade que só a partir de 1856 — por medidas impondo a abolição da escravatura,
tarde? Estes escravos chegados a Luanda e enviados para o Brasil vinham às vezes de o que quer dizer que se há ainda uma «produção» de escravos, ela serve pouco o
leste e até do Nordeste angolano: como é que os Europeus se mostraram incapazes de comércio, embora continue a preencher a sua função política. Se alguns chefes, como
se dar conta desta intervenção? Contudo, um dos mitos de origem evidencia claramente foi o caso de um chefe ganguela, contactado por Rodrigues Graça, querem continuar
o encontro dos súbditos de Kinguri com os Portugueses. Falta a contrapartida portuguesa: a discutir as propostas portuguesas de «comércio e vassalagem», que só serão aceites
teriam estes lundas ocultado a sua origem, de que tanto se orgulhavam? em troca da liberdade de comprar e de vender escravos ( 14), o sistema está em mudança,
Não possuímos elementos para responder, mesmo que as informações portuguesas digamos mais secamente, em mutação.
nos mostrem que os Imbangalas exerciam, em 1756, um controlo deveras estrito, que De resto, a autoridade africana só pode afirmar-se através de um grande número
mantinha fora do conhecimento português a totalidade das populações lundas. Alguns de dependentes. Existe uma contradição entre o comércio de escravos e a necessidade
anos mais tarde, a viagem de Francisco José de Lacerda e Almeida, que partira de Tete, de homens em grande quantidade. É por esta razão que as afirmações veiculadas pelo
em 1789, pôde confirmar, embora de maneira um tanto grosseira, a justeza das informações discurso dos viajantes e dos comerciantes europeus nos parecem pouco credíveis;
de Correia Leitão, postas em dúvida, sobretudo, pelo governo de Luanda. A leste, o preferimos proceder ao inventário das estratégias destinadas a reforçar o poder, graças
reino de Kazembe exerce uma função totalmente idêntica à dos Imbangalas, a oeste, à integração contínua dos escravos. Estas informações são essenciais, dado permitirem
impedindo o acesso à Musumba, assim como o comércio directo entre os Portugueses a apreensão da densidade das contradições internas do poder central lunda, que através
e os chefes lundas ( 11 ). • das segmentações pode ocupar espaços cada vez mais consideráveis, sem, por isso,
Estas informações permitem concluir que se verifica uma importante circulação de impedir que as populações mais afastadas da capital consigam criar uma barreira eficaz
escravos, que se tornaram indispensáveis ao funcionamento normal da sociedade lunda, entre aqueles que controlavam o comércio a longa distância e a própria corte.
como o serão no caso de todos os luandaizados, incluindo os Imbangalas e os Quiocos.

Graça, 1890, p. 461.


Leitão, 1938, pp. 25-26. Id., ibid., p. 443.
Almeida, s. d., pp. 86 e seg. (14) Id., ibid., pp. 406-407.

170 171
O angolano Pedro João Baptista pôde conhecer a Musumba, antes de chegar, na É certo que o proprietário pode oferecer-lhe ou adquirir-lhe uma família, casando-o com
sua viagem para a costa oriental, a Kazembe. As informações respeitantes à história uma mulher livre, mas pode também ser forçado a casar-se com mulheres escravas (20).
recente das tensões internas da corte permitem-lhe dar conta da importância da intervenção Parece, contudo, que a situação de escravo não é eliminada tão rapidamente como
dos escravos, de resto utilizados pelos seus proprietários para gelar os negócios políticos pretendem alguns autores, o que permite a utilização do escravo em tarefas que o
arriscando-se a pagar com a vida. Pedro João Baptista escreve: «Dito Cazembe é coloeam em oposição real ou potencial com os súbditos do chefe. Os Lundas adoptam
poderoso, na sua corte é senhor de muita gente, o seu sítio é um pouco menor ao do um esquema aliás bem reconhecido, pois o escravo nomeado para desempenhar tarefas
seu rei Mwatyanvo...», ao qual paga tributo. «O Cazembe era escravo do filho do de confiança encontra-se de facto amputado da possibilidade de organizar uma carreira.
Mwatyanvo de nome da terra Mutanda (...) [este] partiu para (...) as guerras e deixou De facto, o escravo só pode adquirir a liberdade que lhe é consentida pelo proprietário,
para fazer suas vezes em seu lugar o seu escravo Quinhata para mandar tributos de sal e qualquer que seja a ilusão da liberdade, ele é constantemente colocado perante a
o mais necessário a seu Pai Mwatyanvo, comprado com o sal» (15). evidência da sua impossibilidade de decidir.
De regresso da guerra, o filho de Mwatyanvua não fora ver seu pai, tendo ordenado Mas a situação explica-se quando se considera o peso do parentesco, estrutura que
a execução do seu escravo, que enviara uma soma mais importante de tributo. Quando não pode ser esquecida, mas que deve ser gerida de maneira a evitar os seus «excessos».
o Mwatyanvua teve conhecimento desta situação «mandou deitar fora o filho do governo O escravo, que assume a responsabilidade da gestão de Kazembe, não está travado por
da Salina e entregou ao filho deste falecido Quinhata [que tinha sido condenado à morte] considerações decorrentes de um parentesco normativo, o que lhe permite exercer uma
(...) e lhe deu o barro branco, faca, escudo, zagaias e mais companheiros quilolos para função fundamental da maneira mais independente: a sua arbitragem pode libertar-se,
estar no seu domínio e lhe ordenou que fosse governar a salina e conquistar terras...» (16). por conseguinte, da ampla farragem do parentesco. Deve todavia considerar-se que o
O inventário etnográfico permite dar conta da importância dos bens oferecidos ao poder de decisão e de arbitragem que lhe é assim confiado, quando não imposto, o
escravo, filho de Quinhata, porque a argila branca, a mpemba, estabelece o laço com transforma em alvo de todas as contestações, pois aparece como uma espécie de escudo
os espíritos, sendo também sinal de paz, e o punhal só pode ser o macuale, punhal de do poder político centralizado, que pode fazer tudo com ele, incluindo oferecê-lo como
dupla lâmina, que é a arma dos grandes guerreiros lundas (17), ao passo que o escudo bode expiatório para permitir que se satisfaça o espírito de vindicta dos chefes dominados
as azagaias servem para criar um corpo de exército autónomo e eficaz, graças aos que suportam mal o poder exercido por um escravo. O poder central forma, por isso,
homens que são igualmente confiados a Quinhata pelo chefe dos Lundas centrais. alguns escravos para lhes dar os meios de assegurar a gestão do poder.
Convém ainda acrescentar que aqueles que se deslocassem sem armas, e particularmente Perante a importância deste mecanismo da gestão política, verificamos que, pelo
sem arco e flecha, eram considerados vagabundos e, em consequência disso, passíveis menos a partir do século XVIII, as autoridades políticas lundas se deram conta da
de serem reduzidos à escravatura (18). contradição potencial existente entre o parentesco e o exercício do poder político.
O recurso aos escravos parece constituir uma norma corrente. Pedro João Baptista Podemos, de resto, pensar que a maneira como se organiza a hierarquia dos cargos
não manifesta a menor surpresa, como se o facto fosse normal. De resto, é fácil políticos lundas anunciados em termos de parentesco, mas ocupados por homens e
compreender que o escravo possa ocupar cargos de responsabilidade de maneira mais mulheres que podem não ser realmente parentes, traduz a importância desta maneira
flexível do que os não-escravos. O escravo é aquele que foi capturado, raptado ou de tornar o poder político bastante independente do parentesco.
comprado ao seu grupo de origem, e se encontra por isso sem parentes. Certos O recurso a autoridades, ocupando o poder de maneira provisória, recrutadas no
comentadores sugerem, ou afirmam até, que o escravo pode ser rapidamente integrado grupo assaz largo dos escravos, serve para pôr em evidência um ponto essencial da
na família. As pequenas esculturas, que no cesto do adivinho quioco evocam o escravo, estratégia daquele que ocupa os cargos de responsabilidade, porque pode nomear uma
põem em evidência as perturbações provocadas pelo esquecimento da situação de escravo autoridade provisória encarregada de pôr os negócios em dia. O escravo encontra-se
de um antepassado. Semelhante esquecimento pode originar a disjunção entre os homens numa situação preferencial por não ser parente, condição que lhe permite cortar a
e os espíritos, que é necessário apaziguar (19). • direito, sempre que tal se manifeste necessário.
Os autores portugueses da segunda metade do século XIX, fazendo-se eco das tradições
orais, com as quais entram em contacto, salientam a importância deste recurso aos escravos,
Baptista, 1843, pp. 437-438. para assegurar a extensão do Império e a eficácia das formas de gestão. Serpa Pinto, que
Id., ibid. contudo não procura dissimular a importância das tensões existentes, consagra uma grande
O mucuale acompanha os migrantes lundas em todas as suas migrações. Encontramos o atenção a este aspecto do problema, procurando comparar o sistema africano às formas
mucuale entre os Imbangalas (ver cap. III ), os Quiocos (o primeiro documento que se refere aos Quiocos
— Anónimo, 1789 — assinala o uso de um «facão à maneira de coração», p. 25) e também utilizado
pelos Ambuelas, como assinala Magyar, 1973, cap. III, p. 13.
Almeida, s. d., p. 60; ver, também, p. 28.
(19) Areia, 1985, p. 193. (20) Ver cap. III.

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de colonização dos territórios americanos: o mesmo princípio que reinava «antigamente» Não podemos esquecer que esta estrutura urbana, fiel ao peso das formas simbólicas,
na América, colonizando-a com escravos, existe e continuará a existir durante muito tempo é desenhada como uma tartaruga projectada sobre a terra ( 25). O animal encontra-se,
em África; «os governos africanos também dispõem da sua política de colonização» (21). deste modo, apertadamente ligado à realeza, tornando, por assim dizer, visível a longa
Para apoiar estas afirmações, Serpa Pinto avança com o exemplo do Bié, cuja eficácia vida que deve caracterizar o Império, bem como aqueles que assumem o peso da gestão
teria sido assegurada por escravos (22). política quotidiana. Cada cargo político está associado a uma parte do corpo da tartaruga,
Capello e Ivens fazem referência à origem das populações Ma-Iacca, que seriam que indica, desta forma, o que permite uma compreensão globalizante das relações
«escravos da Lunda ali estabelecidos», na margem esquerda do Kwangu e cujo chefe, simbólicas — que não podem deixar de possuir algumas características pragmáti-
Quianvo, se teria tornado «mais poderoso do que o Mwata da Lunda, pois era ele quem cas — entre os diferentes cargos políticos (26).
concedia em cerimónia o estado [quer dizer o poder] ao sucessor, por morte do Iamvo Trata-se de uma cidade cuja estrutura é dominada pela função política que
da Lunda» (23). desempenha, e organizada para obter um duplo efeito de controlo: o primeiro, em
Não podemos consagrar muito tempo às relações Iacca-Lunda, mas, mesmo que relação aos chefes políticos disseminados através do Império, que devem renovar de
as informações sejam relativamente tardias (1881), permitem certificar a precisão do maneira regular as provas de submissão, qualquer que seja a forma que estas puderem
que foi registado por Serpa Pinto, consentindo esta conjunção a confirmação do carácter
geral do sistema, assim como a sua eficácia e as suas contradições. ter. Com efeito, se os tributos aparecem constantemente — pelo menos na literatura e
É certo que estas informações mantêm um aspecto um tanto impreciso, porque nos testemunhos orais de que dispomos — como a maneira mais simples e mais eficaz
nenhum destes viajantes se mostrou suficientemente curioso para se interrogar a respeito de ler as relações de dominação, podemos, recorrendo às informações fornecidas por
das várias situações em que permanecem os «escravos», mostrando-se antes dispostos Ladislau Magyar ( 27) e por Henrique de Carvalho ( 28), salientar a importância de outras
a generalizar esta etiqueta a todos os que pareciam encontrar-se numa condição de formas de obrigar os chefes locais e regionais a reconhecerem o poder central.
inferioridade. Podemos, apesar disso, aperceber-nos da existência de dois circuitos da É também para satisfazer a necessidade de manter sempre activas as formas de
escravatura que funcionam interligados, mas não devem ser confundidos: o do tráfico dominação, que a cidade existe. A demografia referida por Henrique de Carvalho
destinado aos Europeus, ou até assegurado por eles, os tráficos internos, África-África, permite encarar a concentração de alguns milhares de habitantes, o que é fácil de
que permitem, às vezes, que o escravo provisório — como nas situações em que há compreender, a partir do momento em que os «principais» aí se encontram instalados
escravos «empenhados» — possa ser apoiado e até resgatado pelo seu grupo. A abolição com as suas comitivas, na maior parte dos casos muito numerosas. Mas se algumas
do tráfico negreiro perturba os sistemas africanos, porque lhes retira a sua mercadoria dessas comitivas são alimentadas pelas plantações instaladas nas proximidades da
preferencial, mas os circuitos internos mantêm-se intactos. De resto, estes escravos própria cidade, outras devem ser abastecidas pelas populações que continuam a viver
«internos ao sistema» permitem a reconversão das produções africanas, graças à qual nas suas aldeias. O vaivém entre a cidade-capital e as autoridades dependentes do poder
os circuitos comerciais a longa distância se mantêm activos.
central lunda permite manter a informação actualizada, tal como a obrigação de fornecer
uma grande quantidade de bens aos delegados forçados a instalarem-se na cidade,
II. A organização do Império lunda e os mecanismos de controlo:
guerras, tributos, religiões e rituais circunstâncias que só podem reforçar a coesão da administração central.

A. A Musumba: o centro do Império

A cidade capital dos Lundas, a Musumba ( 24), concentra, na forma que lhe
conhecemos no século XIX, o conjunto do pessoal político que deve assegurar uma
musumba (em língua lunda), a exemplo de mbanza (em quimbundo), designa, em sentido lato, a sede
gestão complexa; esta Musumba fornece o modelo da conceptração das tarefas políticas de um chefe importante, alguém equivalente ao rei. Baptista, que, no princípio do século XIX (1843,
num espaço unitário e privilegiado. p. 434), visitara a capital lunda, emprega igualmente o nome de Musumba ou «Mussamba», ou seja,
«citio grande» ou ainda «Banza» do Mwatyanvua, dando o mesmo nome de Musumba à capital do rei
Kazembe. De resto, aceitando a lição de Magyar (1859, p. 17), a capital lunda servia de modelo às outras
cidades do «império» e Gamitto (1854), que levantou o plano da cidade de Kazembe, pôs em evidência
o modelo da Musumba do Mwatyanvua. Ver também Vellut, 1972, p. 74.
Carvalho, 1890, pp. 225-226, deixou-nos o levantamento desta cidade, em forma de uma tartaruga
Pinto, 1880, I, p. 225.
projectada no terreno. Foi posteriormente retomado e analisado por Margarido, 1970, pp. 857-861.
Id., ibid., pp. 133-135.
Capello e Ivens, 1881, II, pp. 123-124. Carvalho, 1890, pp. 225 e seg.; Margarido, 1970.
Diz Magyar, 1859, p. 17, que habitou na capital lunda durante os anos 1850-1851, que esta Magyar, 1859.
se chamava Kabeba, nome que também encontrámos no mapa de Burton, 1870. Parece que a palavra Carvalho, 1890.

174 175

▪-
Seria verdadeiramente excessivo pôr em evidência a existência de um controlo
«nacional», a partir do momento em que estas grandes unidades polfticas e territoriais
são realmente Estados, cujo cimento não depende apenas de uma consciência «étnica», MUSSUMBA DO MUATIÂNIMA
mas antes de uma situação transétnica que implica, pelo menos, o embrião de uma E.
consciência «nacional»? Talvez o conceito seja demasiado ocidental, mas é-o da mesma
rifeadazas.,,
forma, senão mais, o de etnia (29). Podemos pôr em evidência a importância da peneira
ideológica dos Lundas, sem a qual esta vasta organização seria impossível. É certo que grà mkssu
esta organização pode apoiar-se numa competência militar provada, mas a sua expansão e
exigiu a elaboração de um sistema de valores, entre os quais os religiosos, cuja coerência Zirla
ts,
-- -----
permitiu a criação de um espaço cultural ou ideológico, onde são mais os pontos de — ------ -
identificação que os de diferença. O facto de as insígnias do poder, em numerosos
estados de origem lunda, só poderem ser manipuladas por homens de pura procedência
,' 1- • Alhos. de", ,,
lunda (30) serve para salientar, mostrando ao mesmo tempo a importância jamais , Tiwthie
Mss'erce
cosia
,
desmentida do parentesco e das genealogias, a maneira como esta construção ideológica
sobrevive a todos os acidentes da história polftica dos homens e das suas estruturas -
políticas. Não se trata, pois, de um simples acidente redutível aos termos algo etnocêntricos -Fidalgos. come Tior
, nnn
da etnia, mas, de maneira evidente, de um mecanismo cuja transetnicidade podia provar ,i- honniístle.,ilizaliánvua, zvxza rea.ruizA\
,- ‘ett.,
a existência do carácter nacional. -,, ,' --, o

$4.

B. O exercício do poder: corte — kilolo — chefes locais if-ri ene RirtAlistga- Micads ata Lues:agis
;
O poder nunca é simples, uma vez que as estruturas políticas africanas jamais ;,Sizaita Mar:mela ,' Xa ifaana.
permitem, praticamente, que um homem isolado possa decidir a respeito dos negócios -4 S.
referentes a um grupo. Encontramos de maneira sistemática um grupo complexo de
homens, fortemente estruturado, que assume a responsabilidade das decisões políticas:
'Na
os autores repetem constantemente esta lição. Estamos perante uma parelha: o rei e o n••.
seu conselho. De resto, esta organização é confirmada pela política dos «presentes» e é?' n
'
dos tributos impostos pelos poderes africanos. Os presentes são hierarquizados e dados — .n
p
ao chefe principal e à sua comitiva, quer dizer, o conjunto dos conselheiros — qualquer
,
que seja o nome dado nas línguas locais — que asseguram a gestão colectiva, a qual "

não é necessariamente gerontocrática (31). t4I


As decisões políticas nunca são elaboradas pelo imperador, de maneira solitária e ,,
despótica. Esta autoridade situa-se no centro de uma rede de autoridades (32), cujas 7.*
relações são enunciadas em termos de parentesco (33). A presença da Lukonkesha , :CekbiZet
\ o
oc,:p:--51
-
ahoeCio:jrin...( t • ' Co t itièiror
', onyv.e.f4;krenJ(#

Utilizado pela primeira vez, em 1896, por Vacher de Lapouge.


Ver cap. III, consagrado ao Estado imbangala. o sp ct ,,°.9
Ou então esta gerontocracia só se explica pela posição relativa de cada autoridade.
Carvalho, 1890, p. 231.
(33) O poder dos Lundas centrais põe em evidência uma organização complexa, na medida em que
o rei nunca pode tomar sozinho uma decisão, estando rodeado por um conselho formado por doze
conselheiros — estes homens representam no conselho um lugar onde se associa o real ao mítico, pois
são os representantes dos Bungos originais — sem esquecer a rainha-mãe, a Lukonicesha, que podia
bloquear o funcionamento do poder. Fig. 3 — Musumba do Mwatyanvua. Carvalho, 1890, pp. 225/226.

176 177
— a «rainha-mãe» que, no registo simbólico, representa Lweji ( 34), permite o exercício Corte Lunda
de um contrapoder fundamental, pois que o conselho não pode reunir e, sobretudo, não
Mwatyanvua / Conselho de Estado
pode decidir sem a presença desta figura feminina ( 35) — que, ainda por cima, é
encarregada de assegurar a educação — quer dizer, o treino político — de todos os
filhos de chefes que têm, virtualmente, o direito de exercer o poder.
Retenhamos, pois, algumas técnicas de gestão que reforçam a importância da
cidade, constantemente associada ao exercício do poder. Se os Lundas centrais impõem

Kl'1o 1
o =-> Chefe local dependente
às autoridades locais ou regionais que enviem para a capital delegados, acompanhados
pelos seus homens armados, que ocupam o lugar que cabe simbólica e pragmaticamente O delegado do poder central deve instalar-se junto do chefe local e do seu conselho,
aos seus chefes, esta «ocupação» desenrola-se de maneira particular: os delegados de tal modo que nenhuma decisão, que toque nos domínios sensíveis, possa ser tomada
«transformam-se» nos próprios chefes ( 36), assumindo a sua história na primeira pessoa. sem o seu conhecimento. O mecanismo do poder lunda previa a possibilidade de
Esta primeira operação, destinada a assegurar a «presença» física dos chefes que rebeliões, o que explica que o poder central envie os seus delegados — os famosos
formam a constelação dos súbditos do Império, é reforçada por uma segunda: a corte «Mwatyanvua do caminho» de que falam muitos viajantes, entre os quais Baptista e
instala junto de alguns chefes, ou até em todos os seus domínios ou governos, um Henrique de Carvalho. Estes homens, membros da nobreza dirigente lunda, recebiam
uma delegação do poder na Musumba e transformavam-se, assim, em «duplicados» do
macota (delegado), que obedece somente às ordens da corte, o kilolo ( 37). Trata-se de
delegados encarregados de exercerem um controlo constante sobre as decisões destas Mwatyanvua, trazendo consigo as insígnias da soberania, o que obrigava os chefes
dependentes a respeitarem as ordens de que eram transmissores ( 38). Perante a dimensão
autoridades, principalmente no que diz respeito às relações internacionais, quando os
do Império, os Lundas agiam tanto por fragmentação relativa do poder, através das
negócios comerciais permitem a deslocação dos homens. Só muito raramente os kilolo
autoridades locais, como criando uma espécie de ubiquidade política, dado que o poder
intervêm nas decisões locais, onde parece excluir-se que a intervenção directa seja
central se podia multiplicar por grande número de «Mwatyanvuas do caminho», cuja
desejada ou necessária. autoridade estava ligada à consecução de uma determinada tarefa.
Estes delegados tinham a faculdade de agir acompanhados de uma escolta reduzida,
formada por homens pouco armados, podendo, contudo, levar a cabo intervenções mais
determinantes, impondo o recurso às armas. Para permitir que estas forças militares
interviessem sem ser travadas por questões de intendência, algumas aldeias cultivavam
Lweji ocupa um lugar fundamental na fundação do novo poder lunda, definitivamente separado
mandioca, destinada essencialmente a alimentar estes militares que, graças a isso,
dos Bungos. Ela fornece também a figura da mulher ocupando o poder político que, na organização dos se podiam deslocar com grande rapidez. A intervenção nestas circunstâncias era
Lundas, é agora representada pela Lukonkesha. Na organização do poder lunda, pensada como uma indispensável, quando os conflitos alastravam e provocavam lutas internacionais. Isto,
estrutura familiar, a Lukonkesha é a «mãe do rei». O recrutamento desta «mãe» faz-se entre as famílias como já foi assinalado, implica a criação e a manutenção da ideologia do grupo, sustentada
da nobreza lunda. O papel desta mulher é essencial, não podendo o conselho dos notáveis tomar nenhuma por uma boa organização da informação, destinada à corte lunda. Quando um chefe,
decisão na sua ausência, o que transforma, muitas vezes, a Lukonkesha em autêntico árbitro das decisões principal ou menor, agia contra os interesses do Mwatyanvua e, por consequência, dos
do poder lunda. Lundas, a corte confiava uma delegação a um destes chefes, para forçar o desobediente
Não há nada de surpreendente nesta organização, dado o papel confiado às mulheres nas estruturas
políticas de vários grupos angolanos, onde ocupam frequentemente o lugar dos sobas, função que lhes a submeter-se à razão política. «Quando qualquer dos seus subordinados lhe desobedece
dá direito a vários «maridos». As mulheres que exercem cargos políticos mostram-se muitas vezes ou falta com os tributos [o Mwatyanvua] ordena a um dos seus potentados que levante
refractárias às intervenções das autoridades portuguesas. Em 1865, um documento intima Manuel Dias armas contra o insurgente» ( 39). O chefe delegado apresentava então ao chefe «rebelde»
Bastos a forçar Branca Francisco, que dá pelo título de «Dalla Tutu», *a submeter-se aos rituais de uma azagaia, que este devia partir no caso de querer manter-se em estado de «rebe-
«vassalagem» exigidos pelas autoridades portuguesas. O documento acrescenta, de resto, que se a soba lião» ( 40). Na quase totalidade dos casos, a chegada do delegado era suficiente para quebrar
recusar esta cerimónia, serão tomadas as medidas adequadas para a obrigar a vergar-se às decisões
portuguesas.
As mulheres foram afastadas dos postos de comando sob pressão das autoridades portuguesas,
ajudadas pela perda da importância da matrilinearidade nas sociedades angolanas. Doc. 170, pp. 64 v.- Baptista, 1843, pp. 229, 282, 426-439. O autor angolano refere-se também à existência de um
65, Avulsos — vol. IV, Cambambe, AHNA (Luanda). «cazembe do caminho» (p. 432), o que nos autoriza a reforçar a importância dos laços existentes entre
Desempenha também um papel central na eleição do Mwatyanvua, Carvalho, 1890a, Kazembe e Lunda, na medida em que o primeiro respeita o modelo da organização do segundo na
pp. 318-320. estrutura do Estado. Ver também Carvalho, 1890, p. 231.
Carvalho, 1890, p. 231. Graça, 1890, p. 455.
Graça, 1890, p. 455; Carvalho, 1890, pp. 225 e 231. (40) Id., ibid., pp. 455-456.

178 179
o impulso contestatário e forçar o chefe dependente a regressar ao quadro determinado
pelas ordens emanadas da Musumba.
O facto urbano aparece, em organizações deste tipo, como um dado fundamental.
O Mwatyanvua delegado não representa apenas a «vontade» do chefe político, por
supremo que ele seja, pois que qualquer operação desta qualidade exige que o conselho
de Estado tome uma decisão, em presença da Lukonkesha, a mãe mítica e ritual do
imperador. O mecanismo político lunda aparece assim organizado para ser defendido
de duas pragas que, com muita frequência, impedem a eficácia do poder africano: o
parentesco e o arbitrário individual, sobretudo exercido pelos chefes. O chefe que vê
chegar à sua corte um «imperador delegado», um aristocrata envergando uma cópia das
insígnias do poder central, sabe encontrar-se não perante Fulano, parente de Sicrano,
mas perante uma autoridade representativa da vontade política da corte. O facto de uma
parte importante dos chefes locais ter sido treinada na Musumba, sob a direcção da
Lukonkesha, serve também para criar a homogeneidade dos comportamentos dos homens
do poder, que tão frequentemente surpreendeu os Europeus.
Por outro lado, estas formas de intervenção rápida só podiam robustecer a confiança
dos chefes políticos que, ameaçados pelas forças exteriores, pediam protecção ao poder
central.
A. Rodrigues Neves, largamente confirmado por Henrique de Carvalho, permitiu-
-nos saber que homens e mulheres livres podiam decidir tornar-se escravos, bastando-
-lhes para isso abater um animal, do qual comiam um bom pedaço de carne, ou partir
ou destruir um objecto pertencente àquele de quem desejavam tornar-se escravos (41).
É aquele que deseja tornar-se dependente que deve calcular qual a coisa a destruir, para
eventualmente poder resgatar-se. Esta situação não equivaleria, pois, a uma escravatura
pura, mas a uma espécie de compromisso, permitindo que aquele que se deparasse com
uma situação crítica pudesse encontrar um apoio ou até mesmo uma solução. Henrique
de Carvalho indica que, durante uma crise de fome, um número importante de homens
e mulheres lundas tinha recorrido a esta operação para poder obter comida (42).
Aparentemente, os chefes políticos podiam recorrer à mesma técnica para se colocar na
dependência provisória ou condicional de um chefe mais poderoso, capaz de assegurar
a sua protecção, como salienta Rodrigues Graça (43).
Também, neste caso, somos levados a considerar a eficácia destas intervenções
políticas, constantemente associadas à organização do poder e da cidade, não esquecendo
contudo que o poder lunda mobiliza um número assaz importante de técnicas de gestão.
No diário elaborado durante a viagem que, de Tete, o levou quase até à corte de
Kazembe, o brasileiro Lacerda e Almeida dá conta da tradição local, salientando o facto
de o imperador ter nomeado um escravo como delegado, encarregado de gerir os
negócios políticos (44).

Ver cap. III, consagrado ao Estado imbangala.


Carvalho, 1890, pp. 180-205.
Graça, 1890, p. 418. Fig. 4 — Desenho representando duas autoridades políticas lundas.
Almeida, s. d., p. 36. Carvalho, 1892, II, pp. 819/820.

180 181
Podemos desta maneira verificar a existência de técnicas de delegação do poder, O quadro seguinte aponta o valor anual dos impostos pagos ao imperador:
das quais interessa sobretudo reter o carácter provisório. O poder centralizado, apoiado
por delegados da corte, instalados de maneira permanente junto de alguns chefes, tem «Orçamento dos redditos que o Matianvo recebe annualmente
muitas vezes precisão de intervir para acertar os relógios da hora política. Julgamos que de seus potentados, a saber: (47)
o elemento principal reside na necessidade de tornar visível este princípio de delegação, Tributa marfim, escravos e fazendas (48):
que permite intervir praticamente em todos os lados, sobretudo nas regiões fronteiriças, Transporte 114:900$000
Catende 4:000$000
onde o poder central pode ser posto em causa, situação que não deixaria de ameaçar 800$000 Cassongo 1 2: 000$000
Cauánu 4:000$000
a totalidade da estrutura da organização política. A expansão do Império e a conservação Cabinda 600$000 Cabo Catenda
2:000$000 Iambo 4:000$000
da autoridade do poder central nas regiões fronteiriças mais distantes passam por esta Quibuica
6:000$000
Sinde 8:000$000 Defunda
possibilidade de intervir utilmente. 8:000$000 Defunda Pequeno 500$000
Canungueça
8:000$000 Challa 4:000$000
Quinhame
C. Os laços de obediência e de dependência 4:000$000 Mane Dom. as 6:000$000
Muxima
8:000$000 Mane Quitage 14:000$000
Quizametondo
1 2:000$000 Mane Quininga 8:000$000
Esta situação parece confirmar-se na lista dos chefes que deviam pagar imposto Catema
8:000$000
Musso-Candanda 10:000$000 Mutombo-Mucullo
à capital do Império ( 45). Fiel a esta lógica, o brasileiro Rodrigues Graça procedeu ao 8:000$000 Cauanda (anthropoph.os) 8:000$000
Cazembe Grande
inventário dos chefes que remetiam tributos para a corte central, não esquecendo — ele- 4:000$000 Comalage 12: 000$000
Cazembe Pequeno
Cacoma-Mulonga-Lybeje 14:000$000 Caniquinha 14:000$000
mento indispensável na lógica da demonstração — de indicar o seu valor monetário. 1 6: 000$000
Quiaguelle 1 2: 000$000 Canhoca (o poderoso)
É certo que os cálculos de Graça nos parecem bastante arriscados, porque ele aceita 4:000$000 Cassongo das Praias
Sacambuge
a ideia de que estes impostos são pagos anualmente, e de maneira regular, à corte, isto Quibundo 2:500$000 (costa oriental) 16:000$000
é, o brasileiro não pode furtar-se a fazer uma projecção, tomando como modelo os 2:500$000 Caibarundo 8:000$000
Manzaza
2:500$000 Caende 1 2: 000$000
serviços das Finanças, tal como funcionam nos Estados Unidos ou na Europa (46). Zabo-Mutondo
114:900$000 266:500$000»

Se organizarmos este quadro levando apenas em conta as somas pagas, dispomos


de uma visão mais estruturada da distribuição das forças políticas:
Pagam 16.000$000: Canhoca (o poderoso) e Cassongo das Praias (costa oriental).
14.000$000: Cacoma-Mulonga-Lybeje, Mene Quitage e Caniquinha.
12.000$000: Catema, Quiaguelle, Cassongo, Comalage e Caende.
A relação de dependência de várias populações nas suas relações com os Lundas centrais
10.000$000: Musso-Candanda.
manteve-se durante o século XX. Na monografia consagrada aos Ndembu da Zâmbia (que na época era
8.000$000: Sinde, Canungueça, Quinhame, Quizametondo, Cazembe
ainda a Rodésia do Norte),Victor Turner fornece informações rigorosas a respeito da relação de dependência
que unia os Lundas centrais, os da Musumba e os Ndembu. Se já não são então tributários, os chefes Grande, Mane Quininga, Mutombo-Mucullo, Cauanda
dos Lundas do Sul e os seus representantes vão visitar a capital, no rio Lulua, sempre que se regista (antropófago) e Caibarundo.
a entronização de um novo Mwatyanvua. Quando um chefe «Southern Lunda» herda o seu cargo, a con- 6.000$000: Defunda, Mane Doma
firmação era pedida ao Mwatyanvua. As autoridades inglesas permitiam, de resto, a intervenção reguladora 4.000$000: Catende, Muxima, Cazembe Pequeno, Sacambuge, Cabo
do chefe lunda, pois que em 1947, quando se encarava a hipótese de fazer desaparecer o chefado de
Catenda, Iambo e Challa.
Nyakaseya, o responsável pediu ao Mwatyanvua que escrevesse uma carta ao Western Provincial
Commissioner, que restabeleceu o chefado.
2.500$000: Quibundo, Manzaza e Zabo-Mutondo.
A última informação respeitante à longa duração deste laço de dependência data de 1951, quando 2.000$000: Quibuica.
Mbaka ocupou o trono lunda: Kanongesha mandou um representante, Musokatanda, ao passo que 800$000: Cauanu.
Kazembe Mutandu foi pessoalmente à «capital», assim como vários subchefes («native Authority Sub- 600$000: Cabinda.
Chiefs»), dentre os quais Ikelenge, Nyakaseya e Mwininyilamba, que foram visitar o novo Mwatyanvua
500$000: Defunda Pequeno.
acompanhados pelas suas comitivas, albergadas pelo chefe lunda. Turner, 1964, pp. 2-3.
Rodrigues Graça limitou-se a antecipar-se sobre alguns historiadores que procuram racionalizar,
de maneira excessiva e quase caricatural, o comportamento fiscal das organizações políticas africanas.
O exemplo mais representativo continua a ser o do antigo reino do Kongo, visto por W. G. L. Randles, Graça, 1890, p. 468.
Paris, 1986. Id., ibid., p. 445.

183
182
Assim apresentadas, as informações de Rodrigues Graça são mais loquazes, porque institucionais. A própria cobrança reproduz as formas de estratificação, podendo delegar
mostram os valores médios pagos pelos dependentes (36 no total), reorganizados em o poder central esta operação, de acordo com um princípio clássico:
função dos critérios do colonizador. Se continua a ser indispensável mostrar-se prudente
no que diz respeito ao rigor destas cobranças anuais, dispomos, apesar disso, de uma Imperador [Musumba]
possibilidade de medir as relações financeiras entre os diferentes grupos que formavam
o mosaico das populações dependentes da corte. Mesmo que os valores nos pareçam
muito elevados, apercebemo-nos que pouquíssimos chefes estão abaixo da soma mínima chefe central paga tributos à Musumba
dos 2.500$000 cruzados (49).
O grupo central é formado por chefes que, em teoria, pagam à volta de 8.000$000
cruzados anuais. Estes impostos devem ser liquidados não em numerário, mas em chefe secundário paga tributos ao superior cobrando-os aos chefes «inferiores»
produtos, em «marfim, escravos e mercadorias».
Se Rodrigues Graça põe em evidência o papel de recebedor assumido pelo kilolo,
o qual não conserva em sua casa «as fazendas que compra e as que recebe de tributo «pequenos chefes» pagam tributo às autoridades superiores
(...) [mas] as espalha pelas casas de seus fidalgos, e um dia por outro lhe são apresentadas» (50),
A «funcionalidade» destas operações é evidente: destinadas a cobrir o conjunto do território, elas
não nos fornece as indicações precisas para julgar a maneira como estava organizada permitem que qualquer chefe possa cobrar os tributos, que chegam ao Mwatyanvua através da
a burocracia encarregada de controlar a regularidade dos pagamentos. É necessário escala crescente das autoridades políticas.
resistir, aqui como alhures, à tentação que consiste em considerar esta situação recorrendo
automaticamente ao modelo europeu. Todavia, estas referências, embora confusas, Tal é o caso de Kazembe — nos princípios do século XIX — que recebe «sal de
permitem mostrar a importância desta intervenção do poder central, impondo uma pedras que vêm em tributos na salina (...) onde se acha um seu potentado a tomar
punção às produções e até às aquisições dos súbditos. Uma parte destas mercadorias sentido na dita salina...» (52). Este sal é mais tarde remetido, sob a forma de tributo
pertencia ao registo simbólico, podendo ser dadas, mas não comercializadas. «ao seu Muropoe» (53). Rodrigues Graça refere-se com frequência, também, a um
A comercialização a longa distância devia, na maior parte dos casos, ser assegurada súbdito do Mwatyanvua, cujo governo considera despótico e bárbaro, o que não o
pelo chefe político ou seus delegados. impede de maneira alguma de organizar politicamente o seu território, para cobrar os
Torna-se, apesar disso, evidente que o mecanismo é deveras complexo e supõe a tributos que deve pagar ao imperador lunda.
existência de uma racionalização mínima da estrutura administrativa, embora nos faltem A integração destes vários níveis é mais importante do que curiosa, na medida em
dados para descrever o mecanismo contabilístico, de cuja existência não podemos que não há autoridade que se não encontre implicada nesta organização, servindo os
duvidar. impostos não só como medida de submissão económica, mas, sobretudo, como indicador
Devemos nesse caso aceitar a informação fornecida por Rodrigues Graça que dá suficiente das situações de dominação política. Aquele que exige e obtém impostos
conta de uma grande homogeneização dos produtos aceites como imposto? Torna-se dispõe de uma autoridade indiscutível, mas é ainda necessário conhecer as contribuições
evidente, seja qual for a maneira de ver as coisas, que a organização política engloba que ele deve pagar também a uma autoridade superior, para dispor de informações
a totalidade do sistema económico. Os dependentes políticos também o são no plano capazes de permitirem medir a autêntica dimensão da sua autonomia. A base política
da economia, o que quer dizer que as populações são obrigadas a romper com o é, neste caso, formada por todos aqueles que se limitam a pagar tributos, sem poder
princípio da autarcia: os impostos, destinados a obter os excedentes indispensáveis à exercer a menor pressão sobre ninguém.
satisfação das necessidades da corte central, são alguns deles muito simbólicos, como O tributo é sempre considerado uma dura prova de submissão, não só em termos
os representados pelas bebidas, entre as quais o maluvo (51). Apesar disso, os valores de valor, mas igualmente em função da dependência que traduz. Como indica o chefe
cobrados desempenham um papel essencial, pondo em evidência as relações de força Cabita Catembo, entre outros chefes quiocos, a Rodrigues Graça: «o Matianvo me
incumbiu do governo destas terras, e me ordenou que os seus, meus subordinados, nem
roubem, nem maltratem os negociadores que o procuram» (54). Estas instruções não

Cruzados, moeda portuguesa que correu do século XVI ao século XIX. Baptista, 1843, p. 190.
Graça, 1890, p. 455. Id., ibid.
(51) Ver 3. parte, cap. II. (54) Id., ibid., p. 418.

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impediam os ressentimentos a respeito do imperador porque Cabita Catembo e os seus decidida, a sua autonomia. A epidemia — revelam as operações rituais dos ngana —
dependentes denunciam os «vexames e pesados tributos que [o Matianvo] deles cobrava». tinha sido desencadeada pelos ngana da corte do Mwatyanvua para dar a saber que os
Não esquecendo de acrescentar: «quem nos protegerá se rompermos os laços de espíritos dos antepassados partilhavam a ira das autoridades, despojadas dos seus
obediência?» (55). direitos por uma decisão que rompia com a tradição. Tomando posição ao lado dos
Se esta passagem põe em evidência a importância dos tributos, serve também para Lundas centrais, os espíritos confirmavam a situação de dependência dos Lundas de
salientar o peso dos laços de obediência ou de dependência. Os chefes políticos integrados Kazembe, que, naturalmente, se apressaram a pagar os tributos em dívida.
no sistema lunda não podem rompê-los de maneira caprichosa. O carácter funcional Deste modo, aparece de maneira clara a relação com a divindade, ou melhor, com
desta organização aparece de forma integral, e podemos dar-nos conta dos seus vários os espíritos, tanto mais que estes condicionam o acesso à terra e, por essa via, permitem
matizes nesta interpelação de Cabita Catembo: é através de Rodrigues Graça que ele que o poder central possa intervir de forma contínua e eficaz.
se dirige ao governo português, para dispor de um apoio suficiente para obter os meios No caso dos Imbangalas, emanação dos Lundas, que se tornaram autónomos em
para romper este laço de dependência. Graça deixa filtrar, de maneira admirável, o resultado de uma migração muito bem organizada e que obteve êxito, põe-se a questão
subentendido do chefe quioco, que não deseja, principalmente, que este anseio de de saber até quando foram obrigados a pagar impostos aos Lundas centrais? Se não
independência possa ser revelado, antes de conseguir os apoios indispensáveis a operação dispomos de documentos que possibilitem responder sem hesitações, parece ser necessário
tão arriscada. afirmar a existência de um período em que o poder imbangala, ainda frágil, mesmo no
Mas, por outro lado, não dispomos também de uma indicação, mostrando a maneira plano religioso, foi obrigado a submeter-se às exigências dos antepassados.
como, neste final da primeira metade do século XIX, a estrutura do poder lunda começa A relação dos Imbangalas com os Lundas aparece de maneira franca nas práticas
a revelar os interstícios que, alguns anos mais tarde, vão ser utilizados pelo poder quioco associadas aos regalia. No momento da crise imbangala, da metade do século XIX,
para eliminar a autoridade lunda? Seja como for, a tensão lunda/quioca torna-se marcada pela intervenção das autoridades portuguesas que pretendiam impor a nomeação
transparente. Será possível ou conveniente atribuir esta situação à contiguidade existente de um jaga sem levar em conta as regras da sucessão, o Jaga deixou cair os regalia.
entre os Quiocos e os Imbangalas de Kasanje, que não podiam deixar de repercutir os Estes permaneceram no chão, já que ninguém, a não ser um imbangala de pura origem
novos valores trazidos pelos Portugueses? Dispomos, contudo, de uma informação lunda ( 56), os podia apanhar.
significativa, mesmo que devamos salientar as suas imprecisões. Embora sendo certo que esta disposição das condições técnicas da gestão imbangala
Este conflito mina a estrutura do poder lunda, dado que os chefes dominados não não dispõe da força das regras respeitadas pelos Lundas de Kazembe, a leste, a verdade
só recusam a lógica da dominação, mas começam a procurar apoios para conseguir é pôr em evidência a relação existente entre o poder político e a origem lunda, quer a
libertar-se de qualquer pressão. A finura de Cabita Catembo abre caminho para se poder sua base seja mítica ou biológica.
compreender os valores internos dos Quiocos que, do ponto de vista da história da Não se pode esquecer que estas práticas, implicando as forças de coerção, funcionam
região, só aparecem nos fins do século XVIII. sem a necessidade da presença física das autoridades lundas. Mais ainda: estas regras,
Face a esta situação de dominação dos Lundas, graças aos tributos, a questão ao impor a importância de uma dominação lunda, da qual o poder imbangala não
complementar é a de conhecer as técnicas por meio das quais esta dominação pode ser consegue desembaraçar-se, nunca mobilizam a intervenção das forças lundas: o carácter
conservada, dada a grande distância que separa os Lundas centrais dos seus dependentes. religioso desta imposição permite o seu pleno funcionamento, pois que, tal como acontece
Os documentos de que dispomos salientam, de maneira absolutamente inequívoca, entre os Lundas de Kazembe, corre-se o risco de uma intervenção punitiva dos espíritos.
a importância do sistema de dependência ideológica. Devemos, neste campo, reter duas Isto mostra que o modelo da expansão lunda não se apoia apenas na competência
séries de dados: os da religião e os das «origens» territoriais e genésicas dos Lundas. militar ou guerreira. Acreditamos até que, nos primeiros tempos, ela mobiliza, sobretudo,
Parece-nos que neste registo podemos admitir a existência de uma certa simetria a coerção exercida através da religião, que depende, ela própria, de uma hierarquia dos
entre a situação dos Lundas orientais, quer dizer, dos Lundas de Kazembe, e a dos espíritos ( 57), embora convenha não esquecer a importância da administração, que dava
Imbangalas. Aqueles tinham procurado libertar-se da pressão s económica, ideológica,
por consequência, dos Lundas centrais, «esquecendo» o pagamento dos tributos.
Ver cap. III, consagrado ao Estado imbangala.
Intimidados pelas destruições provocadas por uma epidemia, que os meios clássicos Mesquitela Lima, na sua tese de doutoramento, 1971, p. 28, afirma a existência, entre as
não conseguiam eliminar, os ngana de Kazembe acabaram por descobrir a existência populações quiocas, de uma separação entre os espíritos já muito antigos no tempo e os espíritos de
de um laço directo entre esta catástrofe e a decisão do poder de Kazembe de recusar há pouco. Estes últimos estariam ainda ligados às pessoas mortas há relativamente pouco tempo e, por
continuar a pagar tributos aos Lundas centrais, medida destinada a afirmar, de maneira isso, também aos clãs, ao passo que os primeiros se teriam já transformado em espíritos gerais, separados
das pessoas que lhes tinham dado origem, o que os teria desobrigado de qualquer laço redutor da sua
liberdade. Se parece excessivo fazer referência a espíritos «de carácter nacional», opostos aos espíritos
(55) Id., ibid., p. 419. familiares, não podemos, contudo, recusar a evidência destas hierarquias entre os espíritos, já sugeridas
de resto por M.-L. Bastin.
186
187
provas de uma racionalidade tipicamente africana, destinada a prever e a conter os
conflitos numa grelha ritualizada (58). Se, contudo, ao eclodirem, estes deformam ou
agridem as formas ritualizadas, o poder central dispunha dos meios de intervir com
muita rapidez, de maneira a repô-los na ordem o mais rapidamente possível. Porque,
se o conflito ritualizado observa uma evolução prevista e, por consequência, controlável,
já aquele que, ao generalizar-se, não pode continuar a ser controlado pelo quadro
ritualizado, põe em perigo a existência das instituições ou até do próprio grupo.
As técnicas militares existem, as forças militares estão organizadas, mas é necessário
que elas se mantenham vigilantes, atrás das operações ritualizadas destinadas a preverem
e a gerirem os conflitos por meio da sua ritualização. Isto porque as desregulações das CAPÍTULO III
estruturas sociais podem revelar-se muito caras, não só do ponto de vista financeiro,
mas sobretudo em homens. A sociedade deve evitar derramar sangue em excesso, o que Na fronteira dos dois mundos: a construção do Estado imbangala.
explica a complexidade dos meios mobilizados para conseguir reduzir a importância e Os Portugueses perante o poder de Kasanje
a duração dos afrontamentos.
Se a origem dos Imbangalas e a sua instalação nas terras de Kasanje estão ainda
por esclarecer de maneira satisfatória, mesmo que alguns historiadores tenham tentado
dissolver o que continua a ser um «mistério», reconhece-se que, a partir dos finais do
século XVII, até ao começo da segunda metade do século XIX, este grupo possui um
grande poder, afirmado num vasto quadro inter-regional.
Tal não impede que o próprio nome dos Imbangalas se mantenha numa grande
imprecisão, porque só muito tarde os documentos europeus começam a interessar-se
pela região, de maneira a, permitir que da fusão Kasanje e Jaga possa emergir esta :"
entidade histórica fundamental. Henrique de Carvalho procura resolver este problema,
dado que só durante a segunda metade do século XIX a atenção colonial foi atraída
pelos «Cassanges» que nessa época já aceitavam que se utilizasse, para os identificar,
«a denominação vulgar de Bângalas» (1).
Nunca renunciando perante a aparente densidade do «mistério», Henrique de Carvalho
afirma que esta designação parece ser apenas a «corrupção» da palavra bangala, porque
as populações de Kasanje se dão a si próprias o nome de aquibang_ala, quer dizer, .,sum
homem do seu povo». A informação recolhida pelo major português afirma que «o nome
viera com os seus antepassados de Ambaca» (2).
Procurando analisar o mais pormenorizadamente possível estas informações, Henrique
de Carvalho fu referência aos meirinhosloficiais de justiça] que acompanham os sobas,
levando na mão direita, como insígnia, grandes e grossos varapaus que terminavam o
alto CP111 uma voluta, à qual se dava o nome de bengalas.+A denominação é seguramente
de origem portuguesa, e estes utensílis punir os maus pagadores.
Esta prática parece ter sido adoptada pelos responsáveis das cobranças dos impostos
destinados ao Jaga, e é por esta razão que os Ambaquistas afirmavam, quando chegavam
a Kasanje para proceder a trocas com os m'banzas ou banzas: «vamos aos jiban galas,
que corresponde a aquibangala, como eles mesmos entre si se alcunharam» (3).

Carvalho, 1898, p. 105.


Id., 1890, p. 85.
(58) Gluckman, 1963, pp. 25-27, 48, 74, (por exemplo). (3) Id., ibid., p. 86.

188 189
Muito atento às encruzilhadas das línguas africanas, Henrique de Carvalho salienta I. A chegada dos Imbangalas ao território angolano
que estas populações não têm nada de comum com os «Bangala» do Norte, instalados
perto do Zaire, assim como se não deviam confundir com os Galas do «nordeste dos De acordo com Vansina, os Lundas — quer dizer Kinguri e os seus companheiros
Grandes Lagos». É necessário aceitar esta indicação, tanto mais que a terminologia que deram origem aos Imbangalas — só teriam chegado a Angola no século XVII.
etimológica quicongo de bangala, tal como a conhecemos desde o século XVII, insiste Qualquer data mais prematura seria o resultado de uma confusão entre os Jagas
no carácter feroz destas populações (4). — chegados em 1568 ( 9) — e os Imbangalas ( 10). A hipótese avançada por David
Kasanje e os Imbangalas mobilizaram um certo número de historiadores actuais: Birmingham, também apoiada por Miller ( 11), é completamente diferente: os Imbangalas
Jan Vansina, David Birmingham, Joseph C. Miller ocuparam-se desta questão a partir estariam em Angola desde meados dp século XVI ( 12), avançando em direcção ao
dos anos 60 ( 5 ). Alfredo Margarido também consagrou um estudo à formação do Estado Kwanza, por volta de 1575 ( 13), de onde teriam, afirma Miller, partido para o rio Kuvo,
imbangala (6 ), questão crucial para explicar o mosaico étnico desta região que assegurou na região de Benguela. Aí ter-se-ia verificado o seu primeiro encontro com os Portugueses,
o laço entre as zonas costeiras ocidentais e as regiões interiores orientais. por volta de 1601 (14).
Depois de Colette Palhares ( 7), Adriano Parreira (8 ) procurou renovar a argumentação Esta divergência, a_respeito da data da presença imbangala em. Angola,está associada
de Joseph Miller, cuja autoridade teria permitido eliminar não só a importância mas, a dois_elementos principais: a identificação dos Imbangalas com os Jagas e o encontro
sobretudo, a lição dos textos do século XIX, particularmente os que provinham dos de Kinguri com os Portugueses.
autores portugueses. O requiem seria não somente o dos Jagas, mas também dos Quem são os Jagas e como aparece o título de Jaga dado ao chefe político principal
documentos portugueses. dos Imbangalas? Reina a incerteza entre os historiadores.
A primeira questão essencial para definir o estatuto histórico do grupo está associada Joseph C. Miller afirma que foram os Portugueses que atribuíram este título ao
à chegada dos Imbangalas ao território angolano, ao passo que a segunda não pode ser chefe imbangala, tal como ao seu reino o nome de Kasanje, em memória do título
separada das condições em que eles se instalaram, quer dizer, daquilo que permitiu a Kasanje Kulashingu que o chefe imbangala utilizava quando se verificou o primeiro
criação do reino de Kasanje, estando as duas questões necessariamente ligadas. Só esta encontro ( 15). De acordo com Carvalho, este chefe teria sido o neto de Kinguri, que deu
associação pode permitir a elaboração de uma explicação coerente do processo de o seu nome ao jagado e, mais tarde, a toda a região, após a união das três grandes
construção do Estado de Kasanje. famílias — questão que trataremos mais tarde — que se sucedem por alternância no
Consolidadas, o mais tardar, a partir da segunda metade do século XVII — em exercício do poder (16).
1680, Cadornega já nos fala de um Estado poderoso —, as estruturas imbangalas Daí viria a designação de Jaga Kasanje para o chefe imbangala, tal como o
possuíam uma flexibilidade e um dinamismo que permitiram que o Estado, apesar das encontramos na documentação portuguesa. Para Miller, os famosos Jagas, descritos
crises regulares ligadas ao carácter heterogéneo e compósito da sua organização social, pelos Portugueses como homens sanguinários e antropófagos, nunca teriam existido, a
conservasse a sua força no quadro regional até meados do século XIX, sem renunciar não ser na imaginação dos autores portugueses da época (17).
ao controlo das relações com os Portugueses. Diga-se que as estruturas imbangalas Estabelecendo o balanço da situação, Adriano Parreira, que recorre a fórmulas
garantem a dupla hegemonia de Kasanje — face aos Africanos como face aos Euro- imprecisas, procura dar uma resposta à questão : «parece» que o título teria sido dado
peus — que só será posta em causa após as mudanças registadas na região, na pelos Portugueses a um número indeterminado — mas certamente elevado — de
sequência da abolição do tráfico negreiro e dos monopólios comerciais portugueses. autoridades africanas (18).
A questão é todavia mais complexa: este título dado pelos Portugueses possui uma
origem africana, ou estamos perante uma «invenção» inteiramente portuguesa?
No «Vocabulário», que não poucas vezes, embora de maneira errada, é designado como sendo
o «mais antigo dicionário de Bantu», o padre De Geel — que os Flamengos continuam a considerar como
o verdadeiro autor desta obra — indica para bangala: «punir, ser duro, ser cruel, ser selvagem, ser atroz, Vansina, 1966, p. 92.
ser difícil» (p. 7), ao passo que ku-bangala significaria «atrocidade» (p. 103). Acrescente-se uma Birmingham, 1972, p. 17.
informação de Cannecatim, 1859, p. X: de acordo com este missionário capuchinho (1805) «a língua Miller, 1976, p. 175.
bunda nasceu em Cassanje ou nas mesmas terras do Ginga...» de onde se teria espalhado, por vários Birmingham, 1970, p. 168.
locais, até chegar «em fim a Loanda». Id., 1972, p. 16.
Ver, entre outros, Birmingham, 1966, 1970, 1972; Miller, 1972, 1973, 1975, 1976; Vansina, Miller, 1972, p. 560.
1962, 1963, 1966. Id., 1976, pp. 185-186.
Margarido, 1971. Carvalho, 1898, pp. 32-33.
Palhares, 1978. Id., 1973, pp. 121-149.
( 8) Parreira, 1990. Parreira, 1990, pp. 155-161.

190 191
Se retivermos a maneira como o nome é utilizado pelos documentos portugueses, dezammar os brancos:_não_lhe_s_ser traidor; e morrer com _eJles, quando° _alcem da
como substantivo ou como adjectivo, ou ainda aplicado ao urbanismo ou às formas de
guerra seja infausto; apezar de serem desamparados pela mesma sua_ Tropa. Estes
organização das sociedades, dispomos de uma soma assaz importante de indicações
animozos gueri_idros_tern-mais- de-hunia vez dado exemplos- da sua_ constancia_(b), e
fundamentais para analisar a sua polissemia cultural e política (19).
da fidelidade ao seu sagrado juramento. Dividem-se os Jagas em companhias comman-
Num artigo demasiado esquecido, Alfredo Margarido observa a existência, na . as subofdibados a hum Golarnbole, j. equiv~3192 (21).
dadas pO7Mãe-Or"---
história das relações entre Europeus e Africanos na costa ocidental, de outro _grupo Trata-se, como é evidente, dos Jagas da costa cleseritospel~_peu_s_, neste caso
de Jagas, não-angolanos, encontrado pelos Portugueses na Senegâmbia, na primeira particular por um militar de carreira, que se revela um observador muito subtil, cuja
metade do século XVI, ao qual se podem acrescentar as formas derivadas de Jaga,_tais história nunca se satisfaz com os simples acontecimentos militares, porque o brasileiro
como jagarefe ou diaraf (20).0s Jagas angolanos só aparecem em 156&Dado que este
procura descrever os valores mais significativos das organizações sociais angolanas.
morfema não é de origem angolana, não seria possível aceitar a ideia de que se trata s Jaga&possui uma grande clareza, porque não se trata de maneira 7
A definição d_c_
de um nome africano que os Portugueses utilizam para designar um grupo, cujo t a- de um grupo étnico, tal como não estamos perante uma nação, mas do seu
algi_m
comportamento lhes parece poder ser identificado com as práticas já observadas e
contrário: de uma concentração de «várias _nações» que estão associadas por via de um!
inventariadas na Senegâmbia? contrato estabelecido com os Portugueses. Poder-se-á acreditar que estes grupos,
Será possível definir, de maneira assaz precisa, o campo de aplicação deste termo? inelutavelmente caracterizados pelas grandes diferenças entre eles, consigam criar uma
Podemos simplesmente mostrar que, a partir do fim do século XVI, ele só é utilizado cultura comum tão homogénea que seja necessário acreditar nas descrições bastante
---
no quadro dos espaços que, mais tarde, se transformaram no Estado angolano. E certo brutais dos seus comportamentos, tal como aparecem nos documentos existentes? (22).
tratar-se de populações numerosas, promovidas à categoria _de_Jaga, de acordo Devemos, pois, encarar os Jagas como sendo grupos criados na_ maior parte_dos
com as visões míticas e as conveniências da colonização portuguesa. O Requiem, que
casos ad hoc, para se pôr ao serviço do colonizador ou, então, paralevar a cabo acções
Miller compôs para celebrar a eliminação dos Jagas da história, esquece que estes interafricanas, ao abrigo das operações comandadas ou organizadas pelos Portugueses.
grupos — terá sempre de se falar no plural — se tornaram um facto histórico da maior Queislizer que, na maior parte das operações conduzidas pelos Jagas,_14-a considerar
importância. É certo que não dispõem de uma unidade étnica, tal corno não_podem ser o objectivo português, mas também — o que é menos evidente na documentação — o
considerados como dependendo de uma estrutura política homogénea, mas os Portugueses objectivo estritamente africano. Se aceitarmos esta maneira de ver, podemos integrar os
-inventaram-nos, tendo-lhes imposto um papel fundamental na história de Angola. .I.agas nahistória angolana, pois que as suas intervenções pesaram constantemente na
Tratar-se-á de um grupo sem suporte, uma espécie de «tornado» sem lógica e sem história_dase formações políticas «angolanas».
raízes? Não, como não podia deixar de ser. As_populações angolanas aceitam, a_partir Qual é o laço capaz de unir estes «bandos» ao Estado imbangala? Este só _pode
do século XVII, ser designadas
_ desta maneira, e centenas ou mesmo milhares de vir dos Portugueses, que assim procuram estigmatizar a oposição que _lhes era movida
v angolanos se vão definir e agir como jagas. Os Portugueses recrutam-nos para os por este grupo. O chefe político, o Jaga, lembra a ferocidade dos Imbangalas nas suas
utilizar como jagas, situação que os Angolanos não só não recusam, mas buscam por relações com os Portugueses. Tudo se passa como se o grupo e o seu chefe se mostrassem
sua própria iniciativa. Não faltam documentos que nos mostram que os próprios Angolanos incapazes de renunciar à sua «selvajaria». Esta, por sua vez, serviria para explicar o
ofereciam os seus serviços aos Portugueses como Jaga. Não se trata de maneira alguma carácter «irracional» das práticas imbangalas, que conservaram os Europeus longe de
de um comportamento amok, mas de uma forma de se integrar nas decisões militares qualquer contacto com o Kwangu, assim como das terras e das populações situadas a
e polfticas, que deviam servir os interesses e os valores africanos. leste do rio.
O brasileiro Elias Corrêa deu, nos finais do século XVIII, a definição que parece O outro elemento importante para esclarecer a cronologia imbangala é o encontro
ser a mais adaptada à situação destas populações: «Os Jagas / de . se compoern parte entre Kinguri e o seu grupo com os Portugueses.
do Exercito /, são governadores de gente beliciosa, e ambulante, q . admitem variedade Henrique de Carvalho descreve o itinerário de Kinguri em território angolano, através
de nasçoens; e debaixo do mesmo nome se entendem os Governantes; e os Governados, do qual o grupo se constitui e se reforça por meio da absorção de diferentes populações.
. formão este Corpo. Aquelles são elleitos por estes: faltando hum elegem o mais antigo
militar; mas quando sucede não ter merecimentos escolhem outro el. melhor sirva, de
mais instrucção, e Liberalidade. Jurão administrar a justissa: defender o seu povo: não
Corrêa, 1938, II, p. 50.
Os Jagas são acusados de praticar uma antropofagia generalizada, se bem que ao mesmo tempo
Cavazzi, 1975, II, pp. 173-229. selectiva, pois devoram todas as crianças jagas nascidas no kilombo. Parece, contudo, que, a ser assim,
não poderia existir uma organização estável do grupo, mau grado as «adopções» a que este ia também
Margarido, 1972, p. 216.
procedendo.
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A maneira como estava organizado este grupo é considerada divergente pelos territórios percorridos estivessem vazios, sem o menor sinal de população, pelo rpie o
historiadores. De acordo com Carvalho, o grupo Kinguri seria já o resultado de uma grupo migrante não tinha de enfrentar .qualquer poder concorrente. Quanto muito, para
fusão com os povos jagas; para Vansina e Birmingh. n sta fusão já se fizera em território temperar -este esvaziamento do mundo, salienta-se a capacidade deste grupo que se
angolano, na região do Songo ( 23). Para Miller, o grupo dirigido por Kinguri era formado desloca para integrar algumas populações esparsas, que reforçam a demografia do
por populações lundas e quiocas que se tinham reunido, assim como por Bundus que se grupo de Kinguri. Como acreditar em tal? Podemos mais simplesmente verificar que
haviam integrado no grupo na região do Songo. Ter-se-iam transformado em Imbangalas, a tradição oral eliminou os «resíduos» da história, quer dizer, os choques inelutáveis
por via da criação do kilombo, uma sociedade_de iniciação_ de origem ovimbundp, destinada com populações associadas aos seus territórios, para nos impor a cristalização dos mitos
keoncentrar guerreiros. Este kilombo, que trataremos mais tarde, tornou-se a base da de origem, que eliminam a amargura dos choques, dos combates _e das mortes. J
organização política, centralizadora e unificadora, dos Imbangalas (24). Apesar disso, os itinerários propostos pelos três historiadores coincidem no que se
Para Carvalho, o grupo dirigido por Kinguri, o chefe que pertencia à família real refere ao essencial. Talvez seja mais rigoroso mostrar que a proposta fundadora
lunda, percorreu a região do Kwanza, procurando apoderar-se das minas de sal, antes de Henrique de Carvalho é retomada e reforçada a partir dos anos 1960. As diver-
de atravessar o rio e de ir ao encontro das autoridades portuguesas que aí estavam gências só se verificam no que diz respeito à duração da viagem; para Vansina e
instaladas. Kinguri ter-lhes-ia então declarado que vinha de muito longe e que desejava Birmingham ( 30), trata-se de uma migração ininterrupta, que durou dez anos, começada
encontrar Muene Puto, quer dizer, o chefe português. O responsável português tê-los- sob a direcção de Kinguri e prosseguida, após a sua desaparição, por Kulashingo.
-ia enviado a Massangano ( 25), de onde partiram para a cidade capital, Luanda, onde Miller, depois de ter mostrado que a característica essencial das tradições lundas
estava o capitão-general, a quem tinham sido apresentados. Parece que o título de Jaga — tal como ele as considera — retomadas pelos Imbangalas é de representar, recorrendo
foi então dado a Kinguri pelo representante português que o recebeu ( 26). Teremos a fizuras vivas individualizadas, os nomes dos títulos políticos, chega à conclusão de
ocasião de reconsiderar este encontro entre Kinguri e os Portugueses, contado de maneira que a migração provocou a transferência assim como a dispersão dos títulos lundas num
algo diferente por Rodrigues Neves, por volta dos anos 1850 (27). ceaoiiúmero de regiões. Kingl, não é pois um indivíduo, mas um título político que
Até aqui, a história de Carvalho não rompe com a tradição oral. O militar mostra foi utilizado por diferentes èfiefes que assumiram a direcção do grupo. Esta interpretação
possuir não só um ouvido atento, mas ser capaz de assegurar a escrita da oralidade. exige um alargamento considerável da duração da migração, que poderia ter começado
Como datar este episódio? nos fins do século XV (31).
De acordo com Carvalho, que se quer a expressão directa da tradição, o governador Quantos anos teriam sido necessários para estabelecer contactos com os Portugueses,
seria, na altura, D. Manuel. Carvalho procede a um curto inventário: de 1606 a 1609, sabendo-se que o encontro se verificou numa região já bastante próxima da costa?
a Angola dita portuguesa fora governada por D. Manuel Pereira Forjaz e de 1630 a A resposta não pode deixar de ser imprecisa, no estado actual dos nossos
1635 ela conhecera um segundo Manuel, D. Manuel Pereira Coutinho (28). conhecimentos. Não podemos arriscar-nos em terreno tão movediço. Mas as datas
Henrique de Carvalho, como o farão mais tarde os dois historiadores, Vansina e propostas por Carvalho permitem afirmar, de maneira aparentemente exacta, que a
Birmingham, procura cortar este pequeno nó górdio: tratava-se do primeiro ou do criação do Estado imbangala vem do século XVII.
segundo Manuel? O militar português prefere o primeiro: durante a sua governação
tinham começado as tentativas para descobrir o caminho terrestre capaz de ligar Angola H. A fundação do reino de Kasanje
a Moçambique (29).
O reino de Kasanje ocupava uma superfície de cerca de 8500 km 2 , numa região de
Ao aceitar-se a ideia de que Kinguri fazia parte da primeira vaga e que se separara
baixa altitude, designada «Baixa de Casanje», limitada a oeste pelas montanhas de Talla-
dos Lundas centrais, devemos também pensar nas condições que presidiram a esta
-Mugongo e as «terras de Songo Bondo» ( 32), a leste pela margem esquerda do Kwangu e
deslocação. Quando observamos em pormenor os documentos, verificamos que as
a norte pela confluência deste rio com o Lui. Este traçado aproximativo dos limites do
interpretações mais coerentes aceitam uma deslocação fácil dos Lundas, como se os
reino pode ser estabelecido graças às informações dadas por Correia Leitão e Salles Ferreira
e também por Capello e Ivens ( 33). Para lá destes limites, ele exercia a sua influência em
todas as regiões vizinhas, até muito longe, sobretudo a leste e sudoeste.
Vansina, 1963, pp. 355-374; Birmingham, 1965, pp. 143-152.
Miller, 1972, p. 561, e 1976, p. 312.
Presídio criado pelos Portugueses por volta de 1585. Vansina, 1963, pp. 355-374; Birmingham, 1965, pp. 143-152.
Carvalho, 1898, p. 31. Miller, 1972, pp. 549-574.
Neves, 1854, pp. 96-109. Ferreira, 1954, p. 26.
Carvalho, 1890, pp. 77-78. Id., ibid., pp. 26-27; Leitão, 1938, pp. 21-28; Capello e Ivens, 1981, I, várias referências. Por
(29) Id., ibid. exemplo, pp. 289-290.

194 195
Dispomos de quatro versões que descrevem a criação do reino. As duas primeiras ~ta tarefa pelos maridos. Esta situação reforça a importância mítica e pragmática das
datam do período 1850-1854, aquando da expedição comandada por Francisco de mulheres não só na organização do Estado, mas também na direcção dos negócios
Salles Ferreira (34). As restantes pertencem a Henrique de Carvalho, uma redigida políticos correntes.
em 1890, ao passo que a outra só foi proposta em 1898 (35). Kinguri viu-se obrigado a mudar de residência, para se instalar em Cahunze,
As duas primeiras, de autoria de Rodrigues Neves e de Salles Ferreira, são certamente mantendo-se sempre nos domínios do Mwatyanvua, arrastando atrás de si alguns macota
as mais importantes porque obtidas em Kasanje, a partir de informações prestadas pelos (Ndonga, Canquengo, Quibonde, Pande-Ambuma, Quinda, Cahete-Caquizunzo, Cuanza-
velhos Maquita (grupo formado pelos filhos do Jaga). Os dois militares não receiam -Ambanguella e Calanda), que concentravam um número importante de pessoas. Kinguri
salientar o carácter impreciso das informações recolhidas. Neves fá-lo por vezes de maneira brutalizava excessivamente os seus súbditos (39), o que forçou o rei lunda a expulsá-
muito brutal, denunciando o fracasso das operações militares, organizadas a partir das -lo definitivamente dos seus territórios. Foi então viver para a montanha onde se
indagações junto das populações: «é o resultado que sempre temos colhido das informações encontram as nascentes dos rios Pulo e Lacombo, «terras dos Quiocos» (40). Voltaremos
desta maldita gente, cujo modo de pensar custa a compreender» (36). Salles Ferreira é a analisar estas informações que concedem um território aos Quiocos, quando os
nitidamente mais moderado, salientando que é impossível inscrever estas informações numa documentos se mostram avaros de referências precisas.
Como compreender que, mal-grado esta violência, Kinguri seja capaz de atrair
cronologia estrita, pois que a fonte das informações eram os velhos Maquita, os quais,
tantos chefes, grandes e pequenos? Durante os anos em que ficou instalado nas «terras
tendo-as recebido, como manda a tradição, de seus pais e avós, não podiam divulgar nada
dos Quiocos», vieram para junto dele alguns sobetas que tinham dependido de seu pai:
a respeito das datas da sua história (37).
Munjunmo, Acafuxe, Capenda-Camulemba, Bumba-Atumba, Cambunge-Catembo,
A situação de Henrique de Carvalho é muito mais curiosa, porque fornece, na realidade,
Muchi, Ndumba-Atembo, Ndumba-Apeso, Malundo e Mussongo (41).
duas versões destes factos. A primeira parece ter sido redigida a partir de informes recolhidos Parece que Kinguri não estava satisfeito com estas terras e enviou caçadores que
não entre os Imbangalas, mas antes junto dos Quiocos ou até dos Lundas. A segunda parece deviam encontrar outras melhores (42). Foi durante esta expedição que os caçadores
não ser mais do que uma reorganização das informações publicadas por Salles Ferreira souberam, através das populações de Songo, que tinham chegado homens brancos a
nos muito discretos Annaes do Conselho Ultramarino. Cazanga («hoje Luanda», informa Neves) (43), «que traziam muitas fazendas bonitas,
armas e pólvora». Foram igualmente os habitantes de Songo que explicaram aos enviados
A narrativa etiológica de Neves provém da tradição oral imbangala e descreve, em de Kinguri qual era a função destes bens, dado que ele a não conhecia.
primeiro lugar, em que condições se tinha verificado a partida de Kinguri-kyaBanguela, Perante estas informações, Kinguri decide-se a partir para ficar mais perto dos
que morava em Nyana, uma região pertencente ao território governado pelo Mwatyanvua. Brancos e das suas belas coisas, escolhendo o caminho de Kileulo. Ao parar em Bola-
Filho do rei, Kinguri pretendera ocupar as terras, mas a sua irmã mais velha, Manhungo, -Cassache, terras de Pungo a Ndongo, «possuídas hoje por um soba daquele nome»,
opusera-se a tal, tendo convencido o seu marido a proceder a essa operação. Kinguri ali achou Sungwe-a-Mboluma. Esta viagem foi realizada em companhia dos chefes que
encontrara-se na impossibilidade de resistir, pois que a força do Mwatyanvua era o tinham seguido quando partira de Nyana. Os sobetas instalaram-se alhures e encon-
deveras importante para que ele se pudesse lançar num confronto. tram-se hoje perto de Kasanje, manifestando uma certa obediência aos Jagas que
Esta narrativa permite o recurso a um modelo — Jon Vansina prefere classificá- ocuparam ulteriormente o poder (44). Kinguri voltou a instalar-se, mas uma vez que ele
-lo como cliché, o que nos parece demasiado redutor (38) — que contém também o mito mantinha o seu comportamento cruel, Sungwe-a-Mboluma, depois de ter estabelecido
recolhido muito mais tarde entre os Lundas por Henrique de Carvalho. Nestas condições, um acordo com os macota, decidiu fazê-lo desaparecer. Fecharam-no durante o sono
podemos pensar que a segmentação originária não se explica apenas por meio dos numa cubata que só tinha uma porta que eles taparam. Demasiado velho, Kinguri não
afrontamentos entre chefes, pois provém das crises provocadas pelas regras da sucessão, conseguiu libertar-se e, por isso, ficou no seu «túmulo».
as irmãs intervindo constantemente para repelir as pretensões dos seus irmãos, apoiados

Neves, 1854, p. 97.


Id., ibid., p. 98.
Trata-se das duas versões do mesmo ano, de Ferreira e de Neves, 1854. Id., ibid.
Carvalho, Ethnografia e História tradicional dos povos da Landa, 1890, e O jagado de Id., ibid. Esta observação deve ser posta em evidência, porque os caçadores são homens
Cassanje, 1898. treinados para matar e podem, assim, fazer frente a manifestações de hostilidade.
Neves, 1854, p. 77. Id., ibid.
Ferreira, 1854, p. 26. Id., ibid., pp. 98-99. Esta observação de Rodrigues Neves dá-nos a possibilidade de nos
(38) Jan Vansina enganou-se na leitura do texto português, pois faz referência a uma negociação apercebermos da importância da sua narrativa que fala do passado numa relação directa com o seu hoje,
entre a filha e o pai: «Kinguri was the legitimate heir, but his sister Manyungo, eldest of ali the children, sem por isso evitar a perplexidade, pois se Kinguri está na origem do poder Kasanje, é evidente que
convected the succession and managed to persuade her father to support her», JAH, n.° 3, 1963, p. 359. estes sobetas só podiam respeitar os laços de dependência que pertenciam à própria herança de Kinguri.

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Após a morte de Kinguri, os macota procederam à eleição de um novo chefe. Esta Esta secção da sequência mítica parece assaz singular, porque sugere uma forte
recaiu no seu sobrinho, Kasanje Ka Kulashingu (que usava também o nome de Kasanje presença portuguesa muito no interior das terras angolanas, e não podia ser assim: a data
Kaimba), que prosseguiu a viagem, para ir ao encontro dos Portugueses e das «belas sugerida é muito prematura, pois que os Portugueses só muito mais tarde puderam instalar-
coisas» de que eram portadores, ao longo das margens do Kwanza, com o objectivo de -se nas terras do interior, longe da costa. Perante esta estrutura não podemos deixar de
atingir o mar, não conseguindo alcançá-los, pois que estes ainda se encontravam instalados verificar estarmos perante uma amálgama de acontecimentos e de personagens.
na ilha de Luanda. A rainha Jinga ocupava a região de Luanda, e Kasanje não dispunha O mito prossegue: Kasanje teria dado a saber ao chefe português que as terras onde
de força suficiente para a expulsar. habitava não eram boas, por terem poucas árvores e serem pouco produtivas. Por estas
Entretanto, alguns chefes mbande, descontentes com a rainha, juntaram-se a Kasanje, razões, pretendia mudar-se para o interior do mato, desejo que foi aceite pelos Portugueses.
o que lhe permitiu concretizar o seu intento. Kasanje pôde assim partir, para se instalar em Kamundai. Não eram ainda as terras
Teve então a possibilidade de contactar o chefe português, a quem convidou a instalar- desejadas. A narrativa procede a um regresso aos valores africanos: Kasanje avança
-se em terra firme. Associados, derrotaram a rainha Jinga ( 45). Kinguri teria recebido, em mais oito léguas para pedir terras ao chefe Kyakilamba, em Cassanza ( 50). O Jaga
sinal de agradecimento, duas bandeiras, uma cadeira, um «cachorro d' ouro» (46), completa esta operação, passando da autorização portuguesa para a autoridade africana,
tecidos em quantidade importante e aguardente (47).
que assegura o acesso às terras.
A explicação histórica apoia-se numa série mítica. Convidado a ocupar as terras Rodrigues Neves afirma que «estes acontecimentos levaram todavia bastante tempo» (51).
abandonadas pela rainha Jinga, Kasanje preferiu instalar-se noutro lugar: partiu a fixar-se Em contacto com os historiadores da corte imbangala, o militar português mostrou-
em Lucamba, território de Ambala, aonde se lhe foram juntar os súbditos que tinham
-se incapaz de obter precisões cronológicas que, na sua perspectiva, dariam substância
ficado em Bola-Cassache.
histórica a estas informações. A narrativa etiológica parece despojada de qualquer
Dois anos depois dessa instalação em Lucamba, as mulheres que iam cultivar as
diacronia, o que confundia o militar interessado pelos acontecimentos imbangalas.
suas terras aperceberam-se de que uma das plantações tinha sido destruída por um
Mas Kasanje tinha estabelecido relações, quando ainda se encontrava em Bola-
elefante. O aparecimento deste animal era então insólito e foi interpretado como sendo
-Cassache, com uma mulher originária do Libolo, a qual o fora visitar a Lucamba,
um presságio (48).
Esta sequência salienta a importância do trabalho agrícola das mulheres, mas faz aceitando acompanhá-lo a Kyakilamba, onde se casaram (52).
aparecer também a função dos homens, muito particularmente dos caçadores. Esta mulher tinha dois irmãos que vieram instalar-se junto dela, no momento em
Kasanje mandou perseguir o animal pelos seus hibindas — caçadores —, que que Kasanje tinha necessidade de ajuda para eliminar o seu inimigo Kyakilamba. Para
depois de terem passado pelo Bondo perderam o rasto do elefante. Este sumiço do recompensar este auxílio, foi estabelecido um pacto, por meio do qual o Estado devia,
proboscídio mostra aos Imbangalas a necessidade de mudar de instalação. em alternância, ser governado por um descendente de uma das três famílias: Kulashingo
Posto ao corrente deste desaparecimento, Kasanje decide-se pela mudança do grupo, (que é o verdadeiro Kasanje), Ngona (que pertence à linhagem Ngona-Mbandi) e
mas devia em primeiro lugar pedir autorização ao «chefe português», um tal «D. Kalunga, que representa a linhagem dos dois irmãos vindos do Libolo (53).
Miguel» (49). Na sua estratégia, Kasanje colocou também sob o seu domínio os sobetas da região,
que não maltratou, comportamento de resto clássico entre os grupos dominantes
provenientes dos espaços e das práticas lundas. Foi assim, conclui Rodrigues Neves,
que «os Kasange se apropriaram do país onde moram». Mas parece que Kasanje não
pôde gozar a sua conquista, pois morreu ano e meio mais tarde.
Id., ibid., pp. 100-101.
Id., ibid., p. 101. Este animal já fez correr muita tinta. Vansina, 1963, traduziu o texto como
sendo uma «golden picture», o que não é perfilhado de maneira alguma pela fonte portuguesa. Se
«cachorro» serve para designar um cão muito jovem, pode igualmente aplica?-se a outros jovens canídeos
e até a jovens plantígrados, mas podemos também aceitar outras hipóteses, a mais simples das quais Id., ibid., pp. 102-103.
seria uma pequena escultura em madeira, dourada, provavelmente destinada à decoração religiosa ou Id., ibid., p. 104.
doméstica. De resto, Rodrigues Neves hesitou perante este excesso de magnificência portuguesa, salientando Id., ibid. A leitura de Vansina (1963, pp. 360-361) volta a mostrar-se deficiente, pois decide
que o «cachorro de ouro» só dispunha deste metal precioso, no nome. celebrar o casamento em Libolo, o que não corresponde ao texto de Neves. De resto, é este texto que
Id., ibid. devemos considerar, tanto mais que estes «noivos» agem sem levar em linha de conta as obrigações
Id., ibid., p. 102. A narrativa organiza-se como se os elefantes nunca tivessem vivido nesta familiares ou parentais, o que só pode reforçar o carácter algo «mágico» do texto. É difícil aceitar esta
região, o que não corresponde, de maneira alguma, à verdade, pois que os elefantes a habitaram até «vagabundagem» de uma mulher jovem, tal como é certamente difícil que ela se possa casar sem a menor
ao século XX, como ainda hoje nos lembra a reserva de caça da Kisama, criada pelos Portugueses. Qual intervenção da família, incluindo a necessidade do pagamento e da cobrança de qualquer «compensação
o sentido desta manipulação do real? matrimonial», para evitar a referência ambígua ao «dote».
(49) Id., ibid. Id., ibid., pp. 105-106.

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Após a sua morte, houve algumas dúvidas a respeito do sucessor, mas o poder veio Macota — os chefes das linhagens reais — o Jaga recebia o título e as funções da
a caber ao «último sobrinho de Kinguri-Kyabanguela» (54). realeza. Esta operação forçava-o a ser o portador da genealogia e da história do título,
Esta tradição é nitidamente mais completa e mais complexa do que as demais que cuidadosamente separada da sua história familiar. O Jaga era assim possuidor de duas
chegaram até nós. Jon Vansina afirma que ela parece estar mais perto das tradições histórias: uma visível, a do seu título, e uma outra, dissimulada, a do seu clã. Um certo
imbangalas (55), mesmo que não dê nenhuma prova que permita aceitar a sua asserção. número de operações rituais servia para reforçar a sua autoridade de chefe supremo,
Mas parece que o facto de ela não ser contestada por Salles Ferreira pode ser considerado separando-o da sua família terrestre. O Jaga era desta maneira instalado na magnificência
como uma prova, apesar de magra, da fidelidade de Neves à tradição que lhe foi narrada do seu poder que o colocava fora das normas do parentesco dos homens, para se
pelos Maquita. O mais significativo reside na circunstância da iniciativa ser inteira e introduzir no núcleo restrito dos seus parentes reais.
constantemente africana, pelo que a formação do reino de Kasanje seria exclusivamente Jan Vansina, apoiando-se nas informações de Henrique de Carvalho, como de resto
africana. faz David Birmingham, considera o ano de 1620 (59), (1630 para Birmingham) (69, a chave
Carvalho descreve de outra maneira — mesmo que a sua narração coincida com a cronológica da fundação do reino de Kasanje, quer dizer, da instalação definitiva dos
de Neves em certos pormenores — a criação do reino (56). Após uma curta passagem Imbangalas no território angolano em via de se organizar.
através da região dos Holos, no Alto Kwangu — onde se encontram minas de sal —, Contudo, a situação, que parecia o mais clara possível para Henrique de Carvalho,
Kinguri, que tinha recebido dos Portugueses o título de Joga, e aos quais havia prestado perdera a sua luminosidade factícia, quando o investigador encontrou um documento que
juramento de vassalagem, instalou-se com o seu grupo no centro-oeste deste rio, região relata uma expedição punitiva portuguesa, organizada em 1624 com o objectivo de castigar
pouco povoada pelas populações bundus, proprietárias, elas também, de minas de sal, tanto as «revoluções» de Golla-Bandi como as das populações de Kasanje (61).
e mais tarde chamada Kasanje (57). É Elias Corrêa que, por volta de 1792, descreve da maneira mais pormenorizada
Devido à necessidade de se afirmar como chefe e de fundar um grande reino, capaz as implicações comerciais e políticas desta operação: «estas revoluções de Golla-Bandi
de rivalizar com o Império lunda, Kinguri, que trouxera consigo a sua parentela lunda, desafiaram a malevolência do Jaga Cassange para roubar os pombeiros que estavam
os títulos políticos e as insígnias do poder lunda, sem os quais não podia provar a sua nos seus estados; e outros, que transitavam em benefício do [seu] comércio, causando
legitimidade de chefe, pôs em acção uma política destinada a atrair as populações considerável prejuízo aos nossos comerciantes; mas ultimamente veio a ressarsir o dano;
circunvizinhas, pois que a abundância de homens e de dependentes é a fonte do poder como a sentir castigo da sua maldade; pois o nosso governador, impedindo-lhe primeiro
de um chefe. a comunicação da Quissama, para ficar destituído de socorro, ordenou a Roque de
Convidou, em primeiro lugar, para se lhe juntar, Angonga, um chefe bundu da
região do Kwanza, irmão de sua mulher.
Este chegou acompanhado de uma grande comitiva de bundus, o que levou Kinguri
— para conservar o poder, assim como o equilíbrio político do reino — a recrutar
dissidentes do reino de Matamba, chefiados por Calunga. Assim foi partilhado o poder
entre os três grupos: o Jaga, quer dizer, o rei imbangala, seria escolhido por rotação A sucessão está ainda complicada pelas regras existentes entre os Lundas e os lundaizados, na
entre os três grupos, de acordo com as regras da sucessão matrilinear, não podendo os medida em que a idade dos filhos depende da posição hierárquica dos pais ou das mães, na fratria. É
filhos do Jaga, os Maquita, ascender ao poder em circunstância alguma (58). Eleito pelos assim que os filhos do irmão mais novo serão sempre mais novos que os filhos do irmão mais velho,
mesmo no caso de os primeiros terem nascido muito antes dos segundos. É certo que a fratria deve aceder
ao casamento conforme a ordem do nascimento, o primogénito antes do mais novo. Mas o casamento
não determina automaticamente a ordem de nascimento dos filhos, pois pode verificar-se que o primogénito
seja impotente ou estéril, assim como a primeira mulher pode ser estéril, de tal modo que a descendência
Id., ibid., p. 108. • do primogénito só apareça muito depois do nascimento das descendências dos filhos segundos, terceiros,
Vansina, 1963, p. 362. até ao mais novo. Esta situação também se pode observar entre os filhos do Jaga, o que provocaria
Carvalho, 1890, cap. I. conflitos, se aceitarmos a ideia que os eleitores têm o direito de escolher o neto do Jaga mais competente,
Este juramento de vassalagem não respeitava o modelo clássico europeu. A técnica adoptada situação em que a classe de idade biológica pode desempenhar um papel muito importante.
pelos Portugueses, e que se manteve praticamente até ao século XIX, é a da redacção de um «acto de Só receamos a projecção do sistema europeu sobre os factos e as escolhas africanas, o que explica
vassalagem», em português, assinado ou marcado — de cruz — por todas as autoridades presentes. a incerteza constante destas informações. Na verdade, a única informação, geralmente transmitida, diz
(58) As indicações respeitantes à relação parental entre Kulashingo e Kinguri, que é constantemente respeito à descendência matrilinear que, frequentemente, surpreende e irrita os puros patrilineares
apresentado como o «avô» do primeiro, parecem esquecer a maneira como o poder imbangala foi ocidentais. Ver também Carvalho, 1898, p. 33.
organizado após a integração dos dois chefes exteriores. Se os Maquita descendentes do Jaga que estava Vansina, 1966, p. 202.
no poder são automaticamente afastados da sucessão, isso quer dizer que só um dos netos de Kinguri Birmingham, 1970, p. 170.
pode alcançar o poder. (61) Carvalho, 1898, pp. 30-32.

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S. Miguel marchasse com o exército (...), a punir o atrevimento de Cassange; o qual à que, em geral, se diz: sabemos, de acordo com os dados de Elias Corrêa, quase
tão derrotado ficou, que foram assaz de sobra os cativos que se lhe fizeram» (62). coetâneos, confirmados por Henrique de Carvalho um século depois, que esta
Se é verdade que o historiador brasileiro aceita que os incidentes provocados pelos instalação se fez muito antes de 1620.
Imbangalas não são nada mais do que a resposta às exacções de «alguns brancos» (63) É certo que não podemos avançar hipóteses de datação mais precisas. Limitamo-
-nos a salientar a necessidade urgente de investigações arqueológicas capazes de
— quer dizer certamente mestiços e negros calçados — que tinham penetrado no mato
fornecerem os materiais que nos faltam de maneira tão evidente para superar esta
para roubar os Africanos ( 64), o mais importante reside, contudo, no facto de estas
incerteza. Mas não nos furtamos ao desejo de afirmar que esta primeira correcção a
informações contrariarem, de maneira vigorosa, as afirmações que se tornaram entretanto
jusante exige que sejam feitas revisões a montante, em tudo o que se refere à organização
clássicas e que pretendem que as informações de Carvalho permitem indicar o ano de
1620 ou, então, o período indo de 1606 a 1630, para datar o encontro de Kinguri com do poder lunda, como de resto já tínhamos sugerido.
os Portugueses.
Se em 1624 foi necessário aos Portugueses organizarem uma expedição que devia
castigar a desenvoltura das populações de Kasanje, podemos concluir que elas se III. A consolidação do poder imbangala (século XVIII)
haviam aí estabelecido há já muito tempo ( 65). Esta hipótese parece tanto mais certa Se Kasanje aparece, nos documentos anteriores ao século XVIII, como uma das
quanto o texto de Corrêa salienta os laços estabelecidos entre Kasanje e as autoridades organizações políticas associadas a Nzinga e, sobretudo, a Kisama, e por esta razão
de Kisama. Era a associação entre estas populações que permitia a Kasanje fazer frente englobada nas «expedições punitivas» portuguesas, podemos dar-nos conta da mudança
aos Portugueses. operada entre 1624 e 1756 — data do relatório de Manuel Correia Leitão —, que faz
Esta informação conta-se entre as mais importantes, visto que proporciona o de Kasanje uma poderosa organização política, militar e comercial, sem a qual a relação
entendimento de factos simples, mas fundamentais. com as regiões orientais (Lunda e Costa oriental) parece impossível.
Em primeiro lugar, Kasanje faz parte de uma espécie de frente criada contra os A inicial fragilidade do Estado imbangala, cujo poder parecia estritamente local e
Portugueses, sendo as populações da Kisama as que se encontravam mais perto dos dependente de Kisama, posta em evidência pelo documento de 1624, foi entrementes
Portugueses, não sendo estes capazes de eliminar a sua capacidade de agressão. alterada, conforme o testemunho de Cadornega ( 67), em 1680.
A redução da capacidade defensiva/agressiva de Kisama só pode ser levada a cabo O reino de Kasanje tinha-se transformado num grande Estado cujo chefe, «guerreiro (...)
éo
na segunda metade do século XIX. veste mui ricos panos de telas e sedas [governa] com justiça e razão» ( 68),
Em seguida, as relações entre Kasanje e Kisama, cuja precocidade é assim afirmada, «poderosíssimo Jaga Casangi que rei e imperador se pudera intitular pela imensidade
merecem alguma análise: Kisama é o produtor de sal-gema, mercadoria preferencial no dos vassalos que tem de sua conquista e domínio (...) que se avaliam em mais de mil
comércio a longa distância ( 66). As ligações entre as duas organizações políticas, que sobas fidalgos, senhores de muitas terras e vassalos, que seu número se não pode
parecem organizar-se em torno dos acordos militares para enfrentar as pretensões compreender » (69).
portuguesas, devem ser interpretadas de maneira menos restritiva. Dado que o comércio O autor põe em evidência não só o poder regional do Jaga e a extensão do território
de Kasanje a longa distância só pode funcionar de maneira satisfatória, dispondo de , isto é, as regiões anteriormente autónomas
imbangala, que reúne numerosas «províncias »
algumas mercadorias preferenciais, o sal de Kisama tornar-se-ia um trunfo comercial que tinham conservado os seus chefes e as suas populações e estão agora sob a
— político, portanto — fundamental. Não deve, contudo, esquecer-se que a capacidade dominação de Kasanje, mas também a estrutura política do reino, cujo centro é
de hegemonia e, por conseguinte, de agressividade militar de Kisama parece, no século representado pelo kilombo do Jaga (70). » , «consta todo
XVIII, superior à de Kasanje. O kilombo (71 ), definido pelo autor como «bivaque, acampamento
Se analisarmos estas informações, podemos concluir que a instalação dos ele de gentio jaga, que não vive mais que da guerra, tendo [sob a sua autoridade] muitos
Imbangalas na região, em que se mantiveram até aos dias de hoje, é muito anterior
Cadornega, 1972, III, pp. 215 e seg.
Id., ibid., pp. 215-216.
Id., ibid., p. 229.
Corrêa, 1937, I, pp. 235-236.
Id., ibid., pp. 217-218.
Id., ibid., p. 236. caracteriza-se por uma polissemia que perdura ao longo da
(71 ) O substantivo masculino quilombo
Id., ibid. história angolana, com alguns reflexos na história brasileira. Serve tanto para nomear os lugares, definir
Carvalho, 1898, p. 32, faz notar que, segundo o Catálogo dos Governadores, em 1624, durante as técnicas de urbanismo, sem esquecer a sua carga ideológica, como também para designar as
o mandato do governador João Correia de Sousa, este fora obrigado a castigar «o neto de Quinguri, que concentrações militares de carácter permanente e, bem assim, as feiras e mercados de Kasanje, de Pungo
era então imperador». Andongo, de Matamba e do Congo.
(66) Ver 3.' parte, cap. II.
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macotas com os seus somgos ou trocos [soldados] de que são senhores absolutos,
O relatório de Manuel Correia Leitão reforça, de maneira surpreendente, os aspectos
reconhecendo só Casanji como sua cabeça e senhor, e muitos capitães de valor com já sublinhados pelos autores do século XVII. Trata-se de um documento que deve ser
gentio de sua jurisdição, com que saem a conquistar fazendo guerra pelo íntimo deste miudamente analisado, na medida em que o tratamento dado pelo autor à concepção
dilatado sertão (...)». «O seu kilombo e as suas terras cultivadas ocupam um território de da organização e do poder africanos renuncia, de maneira evidente, a qualquer objectivo
mais de 40 léguas, o que permite que aí se encontrem concentrados mais de 300 mil Jagas, restritivo. A dignidade e a coerência das estruturas africanas afirmam-se aqui sem a
todos gente feroz e carniceira, assim como uma grande quantidade de armas de fogo, menor ambiguidade ou restrição.
pólvora, e balas em abundância, com as quais atemoriza muita parte desta Etiópia (...) O poder do «imperador e Iaga Cassange» assim como o controlo político e comer-
e há no seu opulento quilombo muito trato de peças e marfim, onde se gastam a maior cial, que o Estado imbangala exerce numa vasta região que se estende para lá do
parte do vinho e fazendas que vêm de mar em fora a este reino de Angola» (72). Kwangu, são frequentemente salientados por Correia Leitão: «este grande Cassange
A partir dos finais do século XVII, Kasanje aparece como sendo a principal força impede todos que em caso nenhum tenham os portugueses trato ou comércio com os
militar e comercial da região. Todavia, o Jaga desempenha também um papel fundamental poderosos e muitos potentados de além do rio; pena de vida, e de geração vendida (76)
no registo mágico-religioso: não só possui as características superiores que se exprimem aos seus vassalos que mostrarem tal caminho, e a razão da sua teima e ordem e, além
por meio da sua força organizadora e da sua capacidade de cura, mas é igualmente o de outras particularidades, para que se não ponham os portugueses da outra banda do
elo que assegura a unidade dos Imbangalas e lhes permite reconhecer-se num antepas- rio e lhe tiremos o comércio dos escravos de que vivem, e os deixemos avassalados e
sado comum, indispensável à coesão da sociedade. «Não observam tanto estes Jagas os sujeitos a presídios e nos não façamos senhores dessas muitas gentes que habitam tão
ídolos como o gentio de Angola e mais sertão; só o que têm em grande veneração e dilatadas terras» (77).
respeitam muito é o que chamam seus quicullos, que vêm a ser os ossos dos seus Leitão enuncia então os pormenores destinados a convencer os destinatários do seu
antepassados, que foram seus senhores, tendo-os em grande veneração, e lhe fazem relatório, primeiro o governador de Angola, depois o governo de Lisboa: «Terá o
muitos sacrifícios de gentio e animais» (73). Cassange negros capazes de tomar armas mais de cento e vinte mil desta sua nação
que vale o mesmo que valorosos,
Cadornega salienta a importância do carácter sagrado do Jaga no que diz respeito natural, por outro nome chamados quimban galas (78),
à conservação da sua força e do seu poder: incomodado pelas perguntas do capitão mulheres e meninos, e todos os incapazes, como se pode julgar conforme o mais que
Fogaça a respeito dos seus próprios «ritos e costumes», o «Jaga Cassanji» respondeu- desta gente há em tôda a parte. O número de gente capaz de tomar armas de seus
-lhe que «se ele não observasse seus costumes e ritos perderia o senhorio, acumulando- potentados e mais gentes que avassalou desde o tempo que passou estas partes de nossa
-se todos os seus vassalos contra ele» (74). Embaca com licença de portugueses, com só duas armas de fogo, conforme tradição
Esta preponderância política, comercial e religiosa de Kasanje torna-se mais forte entre êles, passa de duzentas e trinta e cinco mil, de cujos potentados tenho tomados
no século XVIII (75). os nomes com distinção, fóra os potentados já nomeados atraz, dos que negam a
passagem aos portugueses à outra banda do rio, porque nenhum dêles é seu vassalo;
e não falo em outros muitos sobetas, como alguns de nossa Embaca, que lhe obe-
A etimologia aparece no significado do substantivo em quimbundo, que salienta a sua capacidade decem firmemente, e, nesta conformidade, vêm a ser êste Cassange potentado
de juntar, de unir.
grande» (79).
Para Childs, no seu estudo consagrado aos Umbundus, Kilombo é sinónimo de
Caconda ou de
A manutenção da dominação imbangala, de acordo com o autor, é devida ao
Cilombo, nome de um dos principais grupos ovimbundos.
Cilombo teria tido uma origem mítica, pois recurso às armas de fogo: «Briga todo êste gentio com frechas de ferro e de pau duro
tratar-se-ia da «mulher» do herói civilizador Caconda, que originaria este Estado do centro costeiro
angolano.
Retenhamos ainda que kilombo
foi também uma forma de organização militar, como mostra a «o rei, regulador social é também regulador da natureza, não pode infringir nenhuma das suas obrigações,
tradição oral recolhida por Cavazzi (1965, II, p. 190). Uma das figuras míticas do «Jaga», Temba- pois se tal fizer provoca a desaparição da prosperidade do reino, as crianças morrem, e multiplicam-
-Ndumba, teria imposto a quijila,
«proibição» em quimbundo, para poder organizar as operações militares. -se as expedições dos inimigos, os animais selvagens matam os rebanhos, o raio destrói as colheitas
O substantivo foi transferido para o Brasil, onde indica, em primeiríssimo lugar, os locais em que e os frutos, terra e mar cessam de fornecer os seus recursos, etc.» (p. 27); esta maneira de organizar
são asseguradas as cerimónias religiosas africanas, para mais tarde se transformar no nome dado às o poder é constantemente posta em causa pelo comércio, pois que as regras do comércio europeu nunca
instalações dos negros quilhambolas,
no mato. Ver também Parreira, 1990, II, pp. 153-154.
Cadornega, 1972, III, pp. 215-217. coincidem com esta concepção do poder.
Id., ibid., p. 223. Ver Leitão, 1938, p. 30, nota 4.
Id., ibid., p. 227. Id., ibid., pp. 14-15.
Id., ibid., p. 30.
A função sacral e reguladora do poder do Jaga pode ser comparada àquela que se registou no pp. 17-18. Acrescentemos uma observação respeitante ao substantivo sobeta: o sufixo
Id., ibid.,
Egipto antigo, o que podia abrir a porta a uma espécie de sistema do poder político africano, que tarda em português, indica uma qualidade menor, e pode por isso ser utilizado como hipocorístico. O
em se dessacralizar. A concepção «faraónica do poder» é eta,
assim definida por Devisse, 1985, pp. 27-38: sobeta é por isso um pequeno soba.
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como o mesmo ferro, e com as nossas armas de fogo, de que têm quantidade, e são Toda esta força e este poder do rei imbangala e do seu Estado, que se fazem
tão bons atiradores que os não excedem os portugueses, com as quais se têm livrado largamente sentir para lá das fronteiras de Kasanje, e que se mantêm durante a primeira
o Cassange de seus fronteiros inimigos, porque o excedem no número e no valor, e por metade do século XIX, só podem explicar-se graças à enorme estabilidade das estruturas
respeito de se ver hoje o Cassange forte e poderoso com as nossas armas, faz ludíbrio imbangalas, não devendo, contudo, esquecer-se que o militar só pode alcançar a sua
delas e diz quando quere disbarates (sic) do nosso poder; mas, quando o ameacei, plena eficácia, quando apoiado pela profunda penetração de um poder religioso que
mostrou temor» (80).
depende não só das estruturas de carácter iniciático mas, certamente, também das
A guerra parece ser a técnica mais utilizada pelo Jaga para assegurar o seu poder qualidades pessoais do Jaga.
político e comercial na região: o autor descreve a sua preparação, as armas utilizadas
e a táctica militar, as fortalezas e os símbolos do poder, as hierarquias, não se esquecendo
de mostrar o quotidiano da guerra (81). IV. As estruturas imbangalas na primeira metade do século XIX:
A importância religiosa do chefe imbangala é também posta em evidência por dinamismos e contradições
Leitão, que acusa o Jaga de «agoureiro, feitiçeiro...» ao mesmo tempo que lhe ordena
que destrua «as duas casas de mágicas, chamadas emduas, donde, com o pretexto de Se os textos de Cadornega, no século XVII, e de Correia Leitão, no século XVIII,
especularem verdades, testemunhos ou falsos, que se arguíam uns aos outros, morriam nos fornecem algumas informações a respeito das formas de organização do reino de
tantas criaturas com o veneno que se lhes dava, gentes não só de seus mesmos domínios, Kasanje, são sobretudo os documentos publicados em Lisboa em 1854, que nos permitem
mas de todos os senhorios de Portugal nêstes reinos, e da nação Libolo, Quissamas, dos conhecer melhor as estruturas imbangalas, o seu funcionamento e os mecanismos de
Dembos e dos reinos do Congo, que às tais casas concorriam pelo engano com que o conservação ou de mudança da sua identidade.
Demónio tinha atado o juizo dos miseráveis pretos» (82).
A passagem é das mais notáveis, mesmo que na maior parte dos casos ela seja A. A morte do Jaga e os ritos de sucessão
abandonada sem análise. Não é assim verdade que o poder de Kasanje se exerce entre
todas as populações circundantes e até mesmo nos Dembos apenas por intermédio das Os textos portugueses elaborados por volta dos anos 1850 atribuem uma grande
práticas religiosas, que desgraçadamente Correia Leitão não parece conhecer? Seja importância à maneira como o Jaga pode morrer ou ser morto ( 84), bem assim às formas
como for, torna-se evidente que a força de Kasanje não é exclusivamente militar, mas rituais que servem para designar o sucessor e, ainda, às questões suscitadas pela gestão
que se apoia sobre práticas religiosas conhecidas por toda a parte, recrutando crentes equilibrada do interregno. Alguns anos mais tarde, Henrique de Carvalho reconsiderou a
vindos, praticamente, de todos os grupos africanos. Leitão observa que os súbditos totalidade desta problemática. Se no caso de Rodrigues Neves e de Saltes Ferreira, o interesse
portugueses, ou seja, aqueles instalados nas terras controladas pelas autoridades
portuguesas, não se furtam de maneira alguma à fascinação exercida pelas forças que
agem nas emduas. (84) A descrição da técnica utilizada para executar o chefe não deixa de lembrar algumas tradições
místicas, sendo a melhor descrição fornecida pelo padre Léon de Sousberghe (1956) na sua análise das
Esta influência mágica de Kasanje, que parece alargar-se à quase totalidade das danças rituais mungonge e kela dos Ba-Pende. O kela é «essencialmente uma prova de asfixia e de
regiões do Centro-Norte angolano, não parece reduzir-se no tempo, quaisquer que sufoco». «Numa pequena cubata de um metro e vinte a um metro e cinquenta de altura, cuidadosamente
tenham sido os meios utilizados pelos Portugueses para o conseguir. Numa carta enviada revestida com terra, de maneira a colmatar todos os interstícios, deitam-se ervas sobre uma camada de
ao governador de Angola em 1791, pode ler-se: «Vossa Senhoria lá pode saber com toda brasas, libertando-se um fumo sufocante. Os candidatos são aí fechados durante períodos mais ou menos
a extensão (...) o que isto é, que na substância sobre mil suposições brutais e supersticiosas demorados» (p. 16).
A segunda referência a operações desta natureza é certamente mais subtil, pondo em evidência uma
consiste em se sofrer, que de dentro dos Domínios de Sua Majestade saiam magotes de
relação cruel com a natureza. «O kwanji faz o ninho nos buracos de uma árvore chamada mutondo cuja
negros forros, e escravos a beber veneno artificioza mas grosseiramente preparado, por madeira mole oferece um grande número de cavidades naturais. Quando choca, a fêmea é fechada na
um embusteiro Negro deputado pelo Jaga de Cassanje, quatorze dias de viagem fora cavidade por uma parede de barro, sendo conservada uma pequena abertura através da qual o macho
reais limites [território sob dominação portuguesa]» (83). lhe confia a alimentação» (p. 21). A morte do macho provoca obrigatoriamente a morte da fêmea, assim
tornada prisioneira da árvore. De maneira mais poética, os Pendes salientam que a árvore fica viúva
do pássaro (p. 22).
Sem pretender extrair uma lição desmedida, convém contudo observar o parentesco existente entre
estas operações, que põem em evidência a importância da reclusão e da morte fingida, mas também da
Id., ibid., pp. 18-19.
morte real, e as técnicas da liquidação física do chefe imbangala.
Id., ibid., pp. 20-21.
Tal como acontece num grande número de interpretações das «histórias» da populações lundas e
Leitão, 1938, p. 17.
lundaizadas, é impossível recusar o inventário dos mitos, na medida em que a história fundadora
A. A., III, 22-24, 1937, p. 179.
depende da maneira como eles são cruzados.
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por esta matéria podia ter sido determinado pela situação tão particular que era a certa composição musical tocada no tabalha (um comprido tambor de madeira). A
sua — designar um sucessor do Jaga que, destituído, estava vivo, intocável e resistente —, notícia da sua morte corre célere, atraindo numerosos súbditos, assim como a totalidade
a explicação perde a sua pertinência no que se refere ao texto de Henrique de Carvalho. dos Maquita, isto é, dos chefes das famílias que têm direito a ocupar o poder. Quando
Parece que temos de recorrer a explicações menos conjecturais: a crise de sucessão estão todos juntos, a eleição do Jaga pode fazer-se em reunião secreta.
Rodrigues Neves hesita, finalmente, entre a reunião secreta e a escolha pública do
serve para pôr em evidência a complexidade das estruturas políticas imbangalas, apesar
do equilíbrio mais aparente do que real das regras do poder exercido em alternância. herdeiro entre os Maquita, e não nos fornece elementos suficientes para decidirmos qual
era a técnica utilizada; Saltes Ferreira, por sua vez, introduz uma sequência muito
Para analisar esta questão com tantos pormenores como parece necessário, iremos
importante: antes de nomear ou eleger o Jaga, é necessário resolver um elemento prévio:
utilizar os dois documentos publicados em 1854, dado que ambos foram organizados qual a família que tem direito à sucessão. Só numa segunda fase se pode escolher a
a partir das informações fornecidas pelos Maquita. Por outro lado, é fácil verificar que, pessoa que vai exercer o poder. Pode assim aceitar-se o princípio de que a alternância
no que se refere a este assunto, o texto de Henrique de Carvalho, cujas informações do poder entre as três famílias fundadoras não está regularizada de maneira absoluta,
foram obtidas muito mais tarde, junto de Mbanza Sha Muteba (chefe lunda), possui o que provoca sempre grandes discussões que, em alguns casos, só podem ser superadas
muitos elementos comuns ao de Saltes Ferreira. Não seria difícil aceitar o princípio de pela via das armas.
uma dupla tradição imbangala, sendo um dos ramos inspirados pelos Lundas. Mas Logo que termina a eleição, é dada ordem aos Maquita para se colocarem em fila
interessa-nos sobretudo dar conta das estruturas organizadas para antecipar todo e indiana, e é entre eles que o Tendalla finge procurar alguém que não consegue encontrar.
qualquer vazio do poder, de tal modo que o território imbangala seja defendido das Mas acaba por se dirigir ao Jaga eleito, abraçando-o e exclamando: «Eis aqui o nosso
crises de interregno. Jaga!», após o que o confia ao Conselho de Estado que, por sua vez, o entrega a
No que se refere ao essencial, utilizamos a descrição de Rodrigues Neves (85), por Catondo, outro dos seus membros. Este despe-o completamente, dando-lhe, em troca
ser aquela que mais se apoia nos dados fornecidos pelos filhos de Jaga, não hesitando das suas roupas, um vulgar tecido de palha «para lhe mostrar que nunca se deve
acrescentar os dados de Salles Ferreira (86), sempre que permitam tornar o sentido mais esquecer da humilde situação de que sai», de modo a evitar tornar-se arrogante graças
claro. ao poder de que vai dispor (89).
Quando o Jaga morre na casa onde mora regularmente, é de imediato transferido O Catondo leva-o a uma casa onde só encontra uma cama de palha e na qual deve
para outra, no maior segredo, para que a morte não seja conhecida. O corpo é então deitar-se. A razão desta parcimónia deve exercer o mesmo efeito pedagógico. Antes de
entrar na casa, são-lhe impostas as insígnias reais: manto de plumas de indua, caginga
preparado para ser apresentado em público, devendo o Jaga manter-se sentado, tendo
e rilunga.
em cada canto da boca uma pena de indua (87), na cabeça a caginga, isto é, a coroa
Após esta eleição, procede-se à inumação do defunto — cinco ou seis dias depois da
de Jaga, e à cintura a rilunga, o ceptro do Estado.
morte — não sem antes lhe ser extraído um dente que deve ser confiado ao Tendalla. Esta
Enquanto se realizam estes preparativos, a família procura esconder o máximo de cerimónia decorre numa das casas preferidas do defunto e exige a morte de um rapaz e de
bens, pois que tudo será confiscado pelos candidatos ao poder que, em grande número, uma rapariga, colocados na sua sepultura, à cabeça e aos pés do Jaga enterrado.
chegam a casa do Jaga, quando a notícia se espalha. O Jaga eleito passa quatro dias junto do Catondo e, durante este período, sai à noite
Tomadas estas primeiras cautelas, o Conselho de Estado (88) torna pública, por acompanhado por dois macotas, que o devem ensinar a roubar. Por esta razão apoderam-
intermédio de um dos seus membros, o Tendalla, a morte do Jaga, recorrendo a uma -se de tudo que tem algum valor, fugindo para não serem apanhados (90). Convém
salientar a importância destas operações nocturnas, utilizadas entre os Gregos para
treinar os hoplitas (91). O carácter singular da operação depende, com efeito, do facto
Neves, 1854, p. 109.
Ferreira, 1854, p. 27.
Também se diz que estas plumas devem provir dos papagaios. Teremos tendência a pensar que
se trata preferencialmente deste animal, porque as plumas vermelhas participam na organização da gama cabido a tarefa de pôr termo à incerteza do Conselho de Estado, que atrasava o anúncio do nome do
das cores simbólicas principais. O papagaio foi, ainda por cima, um animal estimado, associado na maior Jaga que fora eleito, porque receava que a população manifestasse um forte descontentamento. Agarrando-o
parte dos casos ao próprio poder lunda. Ver Margarido, 1970. pelos ombros, a viúva apresentou-o: «aqui está o nosso Jaga!» obtendo os aplausos da multidão. É para
De acordo com Neves, 1854, p. 109, o Conselho de Estado era formado por Caza Ndonga, lembrar esta situação, certamente combinando o mito com a realidade, que o Jaga deve ser agarrado
Ca-Nguengo, KyNbonde, Ngunza-a-Nbanguela Riabunda, NdalamaNhungo e Tendalla. pelos ombros pelo Tendalla. Ferreira, 1854, p. 27.
Na versão fornecida por Salles Ferreira, o Conselho é algo menos numeroso: se o Tendalla mantém Neves, 1854, p. 111.
sempre a sua função de tornar pública a morte do Jaga e, por isso, de proceder à convocação do Conselho Uma observação irónica de Neves, 1854, p. 112, salienta que «lhe parece bem pouco tempo
de Estado, este é constituído por Macotas, Cazas, Catondo e o próprio Tendalla. Este título é sempre para saírem tão bons mestres!».
dado a um descendente de uma das esposas de Cassanje-ca-Himbe, originário do Libolo, porque lhe tinha (91) Vidal-Naquet, 1981.

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de que a noite liberta os espíritos e de que o homem que sai de casa pode ser atacado do morto, só restando as paredes que defendem o kilombo. De facto, estas «paredes»
por espíritos malévolos. De resto, o novo Jaga recebe também, das mãos dos dois são constituídas por sebes vivas ( 97) e devem ser tratadas por escravos, cujo número
macotas, informações referentes aos venenos conhecidos, assim como às técnicas utilizadas os textos não precisam, que o morto destina a esta função, tendo à cabeça o Matêmo,
para os administrar, de tal modo que os possa identificar e evitar, sempre que se que é também um escravo. É assim que na história imbangala se formam os kibinda,
verificarem tentativas de envenenamento. espalhados através do território de Kasanje, destinados a dizer à posteridade: «aqui
No quinto dia sai desta casa para escolher o lugar que pretende habitar e que deve repousa um Jaga Kasanje» (98).
situar-se no interior do velho kilombo. Assiste à construção da habitação, que se Um ano após ter sido eleito, o Jaga deve abandonar o seu kilombo e procurar um
processa com grande rapidez, dada a prévia concentração dos materiais e o grande lugar recolhido para ser circunciso. A razão indicada por Rodrigues Neves conta-se
número de braços que participam na operação (92). entre as mais significativas ( 99). Visto ser o representante de Kinguri-kyaBanguela, que
A narrativa de Salles Ferreira apresenta uma versão ligeiramente diferente (93), era de origem lunda, onde todos os homens são circuncisos, o Jaga só pode recuperar
dado que, uma vez escolhida a personagem que irá ocupar o poder, o Catondo organizará os poderes de Kinguri, transformando-se no seu duplo físico. A cerimónia permite a
uma casa e um jardim para aí instalar o novo Jaga, tal como os Macotas deverão fazer aparição dos poderes religiosos do Jaga, pois que os adivinhos apresentam Kinguri como
o seu domicílio próximo. Por esta razão, a senzala (nome deste conjunto de casas ou dispondo de poderes excepcionais entre os Zumbis, os espíritos dos antepassados, que
de cubatas) recebe o nome de Kilombo de Catondo. determinam os acontecimentos e são considerados como divindades protectoras.
Marcada a hora para a cerimónia, o Tendalla dirige-se ao local onde se encontra o O regresso do Jaga não se faz para a antiga instalação, mas sim para o lugar onde
eleito, entra na casa, prende-o, como faria a um assassino, e leva-o para o exterior, onde vai ser construído o novo kilombo. A viagem de retorno exige que o Jaga passe um rio,
é recebido pelo som forte dos tambores e dos xilofones (marimbas), sendo carregado em cuja margem deve dormir e dar uma audiência ao Conselho de Estado, encarregado
às costas — ou aos ombros? — dos seus súbditos até ao lugar do kilombo (94). da gestão dos negócios correntes durante esta operação ritual, que demora nada menos
É fechado na habitação que lhe é destinada e durante muitos dias não vê ninguém que quatro meses. Esta recepção é precedida por um combate que opõe a comitiva do
a não ser dois parentes e o Tendalla. Dois meses volvidos, o Jaga vai morar durante Jaga à do Conselho de Estado. Este grupo vence sempre e acaba por se apropriar do
20 ou 30 dias numa casa preparada na margem do rio Undua, célebre por dar o nome Jaga, com manifestações gerais de alegria.
ao juramento mais terrível e mais mortal ( 95 ). É nesta casa que o Jaga deve demitir todos Entretanto, um homem que deve ser sacrificado encontra-se já com os olhos vendados
os Maquita associados ao exercício do poder, operação muito simples, visto que os por uma tira de couro, a boca fechada com um pedaço de pau que lhe dilacera a carne,
filhos do Jaga morto são afastados. A família do defunto não poderá voltar ao poder, para o impossibilitar dirigir a menor súplica ao Jaga, que poderia libertá-lo.
em consonância com as regras desta operação rotativa, a não ser duas gerações mais Este homem é decapitado, devendo o Jaga passar-lhe quatro vezes sobre o corpo;
tarde, isto é, por intermédio dos seus bisnetos. Esta operação implica também a designação lava também os pés no seu sangue, e só depois desta cerimónia pode atravessar o
dos «Macotas da segunda ordem» ( 96) e de outros dignatários do kilombo, cuja nomeação pequeno rio, no qual o cadáver do sacrificado é lançado aos bocados. Dirige-se então
é vitalícia, à excepção de três eleitores, hereditários, através dos sobrinhos. É ainda
ao kilombo, ainda provisório, onde recebe uma espécie de bandeira em mulele (tecido
neste momento que ele escolhe a Ban-Sacuco, a mulher principal.
feito de palha). Aí fica até se construírem as casas onde se vão instalar todos os que
O luto só termina três meses após a entrada do novo Jaga na sua casa provisória.
estão ligados ao poder (100):
Para levar a cabo esta última cerimónia são capturados um homem e um boi, os quais
são sacrificados ao Jaga falecido. A viúva — ou amázia principal, na língua dos
1) A casa chamada Cazo, na qual Kinguri-kyaBanguela, representado pelo Mucage-
Portugueses de então — deve retirar-se, ao mesmo tempo que são derrubadas as casas
-aKinguri, é consultado, recorrendo a cerimónias de possessão cantadas ao ritmo da
tabalha. Durante a possessão, o possuído recorre apenas a uma «língua dos tempos
antigos», que só é compreendida por um número reduzido de pessoas, razão pela qual
Neves, 1854, p. 112. estas cerimónias contam também com um tradutor, encarregado de dizer em língua
Ferreira, 1854, pp. 26-28.
Esta brutalidade não tem nada de pessoal, sendo imposta pelo ritual. Não seria possível dizer
que se trata de tornar manifesta a metamorfose política, pois este homem assim arrastado como um
criminoso, ou pior ainda, como um assassino, vai tornar-se um mutante: terminado o período de reclusão Em 1885, Porto (p. 604) descreve uma situação semelhante em território quioco, sendo as
que lhe é imposto pelo ritual, tornar-se-á o chefe supremo e, por isso mesmo, praticamente divino, que sebes sinal de abandono de um lugar e «túmulo» de chefe.
ninguém poderá maltratar e menos ainda agredir. Neves, 1854, pp. 112-113.
Vários autores do século XIX descrevem o juramento: Ferreira, 1854, p. 27; Magyar, 1973, ( 99) Neves, 1854, p. 113; Magyar, 1973, cap. IV, pp. 18-20, também observa que a circuncisão
cap. VII, p. 12; Carvalho, 1890, pp. 430-431. do rei é obrigatória na região de Hambo (ou seja, entre o Bié e o Bailundo).
(96) Ferreira, 1854, p. 27. ( 1 9 Neves, 1854, p. 115.

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comum as recomendações do espírito. Nesta casa arde continuamente um fogo e é numa


pequena praça, aberta diante da fachada, que são tratadas as questões mais complexas para o qual o sobeta descendente de Cambunge-Katembo, instalado no Songo, deve
do Estado; fornecer um homem que recebe então o nome de ricongo. Este sobeta era o responsável
À casa do Manuma, onde se encontram depositadas as relíquias do Estado, tais pelo abastecimento de carne a Kinguri-kyaBanguela e, por esta razão, encontra-se na
como os dentes, os arcos e as flechas, as cadeiras de couro e outros objectos que obrigação de fornecer um homem destinado a ser comido durante o banquete (19.
pertenceram aos Jagas anteriores. Esta casa é guardada por «uma geração de escravos», Este homem será morto em companhia de um boi, de um carneiro castrado, de um
grande cão de cor amarela, de um galo vermelho e de um pombo, único da sua ninhada.
que aparentemente se reproduzem para gerar aqueles que, sem interrupção, devem
O homem é cozinhado em separado, metade cozido, metade grelhado, procedendo-se
protegê-la de qualquer ameaça — sendo a mais receada o fogo — que poria este tesouro
em perigo; para os animais da mesma maneira.
Ao nascer do Sol do dia seguinte, com os petiscos colocados numa mesa, Mucaye-
As casas do Jaga são tantas quantas as mulheres principais ou, como diz o texto,
as amázias titulares, dez no caso presente. Estas dez mulheres formam um grupo que -aKinguri, que representa Kinguri-kyaBanguela, acomoda-se num pequeno banco de
ferro (108), em companhia dos responsáveis pela gestão do Estado (109), que se empanturram
se encontra separado das mulheres sem títulos, dado disporem de uma autoridade sobre
um certo número de «povos», que lhes enviam impostos. As outras mulheres, que podem de carne humana. O Jaga não pode assistir ao banquete, pois que a sua autoridade é,
nesse momento, nula, cabendo o papel principal a Kinguri-kyaBanguela. Por esta razão,
ser mais de cinquenta (101), estão disseminadas nas casas das dez principais e colocadas
sob a responsabilidade de um chefe (102); recebe a carne que lhe cabe num espeto, entregue por um escravo.
4) Por fim, as casas dos conselheiros e as dos Macota, que Rodrigues Neves define Os Macota, os Maquita e os súbditos, que acorrem de todos os quadrantes,
acompanham também Mucaye-aKinguri durante o banquete, manifestando-lhe todo o
como sendo as casas dos nobres titulares e as casas do «povo».
Assim preparado o kilombo, o Jaga é aclamado da seguinte maneira: sentado numa profundo respeito, já que, nesse momento, ele é o detentor do poder, o duplo de
cadeira (103), instalada numa espécie de palco, um responsável proclama: «Eis aqui o Kinguri (110).
O encerramento destas cerimónias rituais destinadas à entronização do novo Jaga
nosso Jaga, é este o que tem os poderes de Quingure-cabanguella, fundador deste
Estado; reconheçam-no por tal, porque é sem contestação, o mesmo que vos inculco; exige o envio de um segundo ricongo à kibinda, onde se encontram os despojos do Jaga
e que tem jurado sustentar as leis do Estado!» (104). falecido, devendo esta nova vftima ser sacrificada pelo sobeta Kulashingo.
Estes sacrifícios humanos (aos quais se acrescentam outras execuções praticadas
O Jaga responde, levantando o seu arco e as flechas, após o que se retira para sua
casa. através de todo o território kasanje, incluindo nas regiões já submetidas à autoridade
portuguesa) provocam a indignação de Rodrigues Neves, mesmo mostrando-se capaz
Esta cerimónia é repetida à noite, mas desta vez anunciada por outro responsável,
de compreender que devem ser respeitados para satisfazer os Zumbis. Se o autor é
Cassangae-kyaNgongue, que se serve de um duplo sino que também encontramos entre
os Lundas (105). relativamente parcimonioso em tudo o que se refere à religião, põe todavia em evidên-
Este kilombo é conservado durante um ano (106 ) . Só expirado este prazo é construída cia a importância dos Zumbis consultados, recorrendo às cerimónias de posse (111).
a residência definitiva do Jaga, que deve fornecer um banquete a Kinguri-kyaBanguela,

Por volta de 1846, Graça (1890, p. 461) faz referência às «quinhentas a seiscentas pretas [que Nas narrativas de Ferreira, 1854, p. 27, e de Carvalho, 1898, pp. 430-433, esta operação
o chefe lunda tem] dentro da sua residência». Alguns anos mais tarde, Magyar (1973, cap. V, p. 31) recebe o nome de Sambamento. Não é sem surpresa que nos damos conta da ausência total deste
salienta a importância do número elevado de mulheres — «300 concubinas» — do Mwatyanvua, número substantivo na narrativa de Neves, 1854, que também descreve a operação.
destinado a reforçar o «poder e a dignidade» do chefe. Nas três descrições, a entronização era encerrada por esta cerimónia, associando derramamento de

Trata-se, de acordo com Neves, 1858, p. 115, de Ky-landa KyaMahingue. A única excepção sangue humano e antropofagia. Parece não haver data ou período imposto para proceder a esta cerimónia
é a de Ky-Bangala-kya-Mueto, que possui um «Estado» independente do Jaga. e, de resto, um certo número de Jagas conseguiu não a realizar, mantendo-se no poder mau grado isso.
Uma nota de Rodrigues Neves (1854, p. 117) parece-nos muito importante: este pequeno
A importância da cadeira — exclusivamente destinada aos chefes e a outros dignitários —
é salientada por diferentes autores e em regiões diversas da Angola de hoje. Ver por exemplo Magyar, banco teria sido recuperado pelos Portugueses durante a expedição de 1850, no kilombo do Jaga Bumba.
1973, cap. V, pp. 13 e 32. O facto de o banco ter sido abandonado pelo Jaga não faz mais do que confirmar o carácter inesperado
Neves, 1854, p. 116. do ataque português, na medida em que abandonar o banco significa renunciar a uma parte senão mesmo
Id., ibid. O instrumento — ngongue ou gongue — muito corrente, pode ser visto na fotografia à totalidade do poder.
feita por Léon Duysters, em 1925, na Musumba (texto de 1958). Trata-se de Samba-Ngola-Nbole, Ngola-Nbole-yaManhuene, Ka-Hembo, Kanguengo, Kalunga-
Ver a respeito da maneira como foi organizada a instalação definitiva do Jaga. Neves, 1854, -kamauenho. Neves, 1854, p. 118.
p. 117; e Ferreira, 1854, p. 27, cuja descrição foi retomada por Carvalho, 1898. Id., ibid., pp. 117-119.
(111) ta
• ibid., p. 119.
212
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Seguindo a sua maneira de relatar, verificamos que nada na sociedade imbangala pode As consequências políticas, sociais por isso, deste sistema parecem-nos transparentes
ser compreendido ou explicado sem o recurso à grelha religiosa. e lembram, mesmo que de maneira ténue, os mecanismos democráticos que permitem
a alternância das linhagens. Não queremos, de maneira alguma, afirmar que os Imbangalas
B. A lição política das cerimónias da entronização haviam encontrado um mecanismo africano que permitia o exercício democrático do
governo. Tal seria recuperar as explicações fantasistas que, nos anos sessenta,
O carácter tão minucioso da descrição das cerimónias rituais, sobretudo no caso multiplicaram os «sistemas feudais» por toda a África.
de Rodrigues Neves (que recebeu complementos de informação de Salles Ferreira, A nossa informação tem obrigação de ser mais modesta e, provavelmente, mais
Travassos Valdez ( 112) e Henrique de Carvalho), mostra uma estrutura, cuja intenção realista: para impedir que o parentesco se torne demasiado invasor, pois tal é a sua
de pedagogia política pretende lembrar, de maneira reiterativa, aos Imbangalas, a tendência natural, os Imbangalas distribuem o poder, alternadamente, por três linhagens.
importância absoluta da norma, quer política quer religiosa. A crise da sucessão permite Esta opção implica uma situação de instabilidade relativa, tanto para os chefes como
pôr no primeiro plano os laços que unem as regras do quotidiano à longa duração para os súbditos, e permite assegurar a autonomia, mesmo que limitada, das decisões
imbangala. políticas. As alianças devem contar com as três forças, não obstante uma delas ocupar
No caso das cerimónias exigidas pela morte do Jaga, a situação é ainda mais o lugar das decisões. Mas não é possível governar como se as duas outras forças não
reveladora, pois que todos os actos associados à designação do sucessor devem evocar, existissem, ou fossem um mero empecilho.
obrigatoriamente, a autoridade de uns e a dependência de outros. A importância do Trata-se de agir de tal modo que a «burocracia» imbangala não permaneça presa
Conselho de Estado, que é também um conselho de eleitores, não faz mais do que aos seus hábitos, tal como o sistema pretende impedir o peso frequentemente excessivo
lembrar que o poder imbangala nunca é exercido de maneira despótica, mesmo que os das regras de parentesco. O novo Jaga arrasta com ele todos os que moravam no seu
documentos não escondam as manipulações agressivas que esta situação pode favorecer. kilombo. Se às vezes a eleição era esperada e, por assim dizer, pré-inscrita nas regras
A descrição de Rodrigues Neves, se evoca o mecanismo da alternância do poder, de funcionamento da sociedade, não faltam registos em que o eleito aparece como uma
interpretado como sendo uma simples sequela da lenta organização do Estado, deve ser surpresa relativa, o que serve para reforçar o carácter flexível do sistema imbangala.
entendida de maneira mais lata, como um mecanismo cuja montagem se revela inexcedível Por outro lado, esta situação deve convidar quem ocupa os cargos mais importantes
em habilidade. Graças a esta estrutura, os Imbangalas podem travar a tendência para a pensar miudamente nas medidas a adoptar, porque a morte daqueles que estão à frente
fazer da linhagem a única força política. do poder pode surgir da maneira mais inesperada. Henrique de Carvalho lembra a
Para conter este mecanismo, cujas perversões são conhecidas, incluindo a violência existência de uma categoria de escravos subornável capaz de matar o Jaga. Isto explica
durante os períodos dos interregnos, os Imbangalas deslocam regularmente o eixo do o treino dado ao novo Jaga, quando se lhe ensina não só a roubar e, por conseguinte,
poder. Tal como já referimos, uma das obrigações do Jaga eleito é a de dispensar todos a fugir sorrateiramente, mas também a reconhecer os venenos e os seus efeitos, para
os Maquita nomeados pelo seu predecessor: o mecanismo imbangala mostra assim que
estar em condições de se defender.
se pretende precisamente impedir qualquer cristalização do poder no quadro restritivo Que o poder é perigoso, é-nos assim dito e demonstrado. É necessário contornar
de uma linhagem ou de um clã. Os homens que os substituem à frente dos negócios o risco, recorrendo-se a práticas amplamente experimentadas, de modo a que o Jaga
políticos são novos e podem desta forma reduzir o peso dos hábitos, que dão a algumas
possa superar as ameaças e até os atentados. Também, neste caso, estamos condenados
linhagens ou clãs um excesso de poder. a permanecer na incerteza. Como medir o tempo médio do poder de cada Jaga? A única
É assim evidente que este mecanismo se conta entre os mais eficazes, agindo de
indicação, mas muito indirecta, é-nos fornecida por Rodrigues Neves: os homens do
modo a que a linhagem todo-poderosa seja submetida a formas de controlo que apostam
poder, que encontra durante a expedição de 1851, são todos muito velhos, pois nenhum
no carácter benéfico da mudança. Situação reforçada pela incerteza — mesmo que
parece contar menos de 65 anos, e a média devia rondar os 70. Uma gerontocracia, pois.
relativa — a respeito da personagem que deve ocupar a direcção política. A pré-
Nada de surpreendente numa sociedade africana, que faz da idade um critério de
-designação é bastante relativa — como se verifica, de resto, nos Lundas —, dado que
designação para o poder. Mas esta situação mostra que o poder é menos rotativo do
o Conselho de Estado pode nomear qualquer dos filhos de Jaga que possua as condições
indispensáveis para ser designado e eleito. A escolha é por isso exequível e deixa abertas que parece. Será apenas o Jaga que é substituído?
muitas possibilidades, embora não possamos menosprezar as suas potencialidades O principal documento provém da tradição oral imbangala, tal como esta podia ser
conflituais. explicada aos Europeus pelos Maquita. Salles Ferreira desconfia da incerteza cronológica,
tendo as informações sido obtidas junto de homens idosos, alimentados pela memória
dos pais e dos avós. Se aceitarmos que estes homens vivem em média 70 anos, verificamos
um espaço histórico muito considerável: pelo menos 210 anos (3 gerações x 70 anos
(112) Neves, 1854; Ferreira, 1854; Carvalho, 1890 e 1898. Ver também Valdez, 1861, pp. 156-160. de vida média). Em relação a nós, seria necessário acrescentar os 144 anos que se
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escoaram após a escrita dos dois militares portugueses: 354 anos de história, que nos sociedade dos vivos possa assegurar a sua continuidade. Os dois duplos de Kinguri, o
ajudam a compreender as mudanças do poder imbangala. político e o religioso, permitem, assim, que a sociedade imbangala mantenha a lógica
Falta pôr em evidência a maneira como os Imbangalas querem valorizar, através da sua organização.
dos rituais de entronização, as diferentes metamorfoses por que passa o Jaza eleito. Se
anteriormente era um aristocrata que conhecia as regras da iniciação masculina normal, C. A organização da sociedade: tempos, espaços, hierarquias
agora é constantemente forçado a lembrar-se da sua condição de imbangala, idêntica
à de todos os outros: o poder deve ser exercido com medida. Despojado dos seus trajos, As informações que nos foram transmitidas provêm, pelo menos no essencial, da
reduzido à quase nudez pela tanga, o Jaga deve também morar em casas de palha, «nobreza» imbangala instalada na Baixa de Kasanje. É, pois, muito possível que esta
deitar-se directamente no chão e ser maltratado pelo Tendalla, para melhor se compreender leitura seja demasiado dependente da maneira como está organizado o discurso
a importância desta metamorfose. «aristocrático», em detrimento das formas populares. No entanto, elas permitem que se
Estas cerimónias devem entender-se num duplo sentido: lembrar ao Jaga a sua ponha em evidência a importância, por assim dizer, absoluta não só do político e do
condição de mortal promovido, por uma deliberação polftica, ao cargo que passa a ser religioso na vida social, mas também da divisão hierárquica da sociedade.
o seu, e mostrar, de maneira mais precisa, a todos os outros, que o Jaga é submetido A primeira questão refere-se à interferência do tempo político e religioso na
a formas iniciáticas que lhe são exclusivamente reservadas. O objectivo é associar a organização das actividades socioeconómicas. Descrevendo os ritos de entronização,
consciência de pertencer ao grupo, à colectividade, à consciência do poder excepcional Rodrigues Neves permite que nos possamos aperceber da lentidão de algumas cerimónias:
que caracteriza o Jaga, sobretudo após ter sido submetido às formas iniciáticas reservadas mais de dois meses para levar a cabo uma pequena marcha até ao rio Undua; ao passo
ao homem escolhido para ocupar o poder. que outras cerimónias exigem entre seis e trinta dias. Estes números revelam a importância,
Não é possível dissimular a importância de Kinguri, o fundador brutal, cuja presença ou mesmo o carácter, deveras particular, do tempo político entre os Imbangalas.
se verifica por meio das técnicas de posse. Convém explicar já as ques- Esta situação autoriza-nos a explicar a suspensão de qualquer actividade comercial
tões associadas à definição mais sistemática das práticas religiosas, mas se o Jaga é entre os Imbangalas durante dois anos — o que provoca a exasperação dos comerciantes
o duplo polftico de Kinguri, é igualmente o portador de algumas das suas qualidades portugueses (114,,) pois tal era o espaço de tempo exigido para levar a bom termo
religiosas, porque se mantém em contacto directo com os Zumbis, os espíritos dos as cerimónias associadas às questões políticas internas. Teremos de concluir que a
antepassados. eleição do Jaga exigia uma paragem tão demorada das actividades viradas para a
Se o Jaga é, de maneira indiscutível, o seu duplo político, a sociedade imbangala sociedade exterior?
criou os meios para manter um contacto mais directo, no plano religioso, com o A contabilidade do tempo político não coincide, por isso, com a do tempo do
fundador da sociedade. Para aí chegar, recorre às técnicas ou aos rituais da possessão, comércio ocidental, o que evidencia a existência de disjunções no que diz respeito à ideia
e só um homem se pode dirigir a Kinguri. Como se verifica na possessão africana de tempo e à sua gestão (115). Voltaremos a considerar a questão, mas já nos podemos
conhecida, o possuído é forçado a reconstruir a forma física, os comportamentos, os dar conta da considerável importância da disjunção.
gestos, inclusive a língua e a voz do espírito que o possui. Há uma segunda questão, que se refere à aparente realidade de três tipos de
De facto, este especialista da posse transmite estas mensagens numa língua arcaica organização do espaço dos homens: o kilombo, no que se refere ao Jaga, os Macota,
— não será a língua lunda dos tempos iniciais, que pertencia ao espaço do proto-banta? os Maquita e outras personalidades polfticas; a mbanza, que nos é também apresentada
que é necessário mandar traduzir em vernáculo, para que possa ser compreendida (113). como sendo a sede de um soba, chefe às vezes muito poderoso (116) e a senzala
A divindade não fala em língua corrente, remete-se para um passado longínquo, um (aldeia) (117), que parece corresponder melhor às instalações das pessoas do comum. De
passado em que o espírito que fala estava ainda entre os humanos. Mas nem por isso resto, neste caso, a estrutura normal é aquela que associa a cubata ou as cubatas, às
deixa de ser visível que o poder só se exerce nesta relação indo do terrestre aos espíritos, terras de cultura e, provavelmente, às pastagens.
únicos garantes da continuidade do grupo. Só os espíritos dos mortos permitem que a

Um documento de 1839 dá conta desta suspensão das actividades comerciais decididas pelos
(113) Trata-se certamente de uma língua diferente daquela habitualmente falada pelos Imbangalas, Imbangalas, em consequência da morte do Jaga. AHU, CGA, cx. 590 (1840).
pois, no século XVIII, Leitão (1938, p. 18) reconhece que «a língua dos Cassanges é a melhor destes Consagrámos a este tema e a estas situações um estudo que hoje nos parece limitado, mas
sertões», por conseguinte uma língua fácil de compreender. Mas Cannecatim (1850), 1859, pp. X e que procurava pôr em evidência a disjunção dos tempos africano e português. Henriques, 1988.
XVIII, salienta a antiguidade da língua de Kasanje, o que lhe permite acreditar na existência de uma Neves, 1854, pp. 18-23.
versão arcaica da língua. Id., ibid., p. 19.

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Consideremos, com algum pormenor, o caso do kilombo, recorrendo, para isso, à tubérculo a alimentação principal, ao passo que em outros lugares confia esta tarefa
descrição de Rodrigues Neves (ha,.) Este documento permite identificar as formas da sua ao milho, como já o fizera Magyar, meio século antes ( 125). O milho e a mandioca
organização: a casa principal, a do Jaga, está instalada no centro do compound. A encontram um complemento nos amendoins e nos feijões, não devendo, contudo, esquecer-
distância, a que se encontra uma cubata em relação à do Jaga — ou à do chefe local —, -se as preparações mais modestas, feitas com folhas esmagadas ou não, cozidas em água
permite compreender o lugar que cada um ocupa na escala social. É assim que sabemos simples ou salgada e com molhos de pimentos e óleo de palma, e farinha de mandioca
que os escravos se situam mais perto das entradas, certamente para servir de escudo amassada com água a ferver (126)). Pensamos que Henrique de Carvalho se engana
às autoridades que se concentram em torno da residência do chefe principal. quando se refere aos pimentos, pois deve certamente querer referir-se à malagueta,
Esta primeira indicação é completada pela segunda: as casas das autoridades condimento indispensável em qualquer repasto africano (127).
principais são maiores que as dos súbditos. Desta maneira, dispomos da possibilidade O inventário pormenorizado de Henrique de Carvalho, que fora de resto precedido
de medir a importância social de quem quer que seja: o volume da casa, associado ao pelo de Magyar, permite-nos dar conta da importância da actividade das mulheres, visto
lugar em que está construída, no espaço do kilombo, permitem conhecer a «importância» que o sistema alimentar imbangala — mas podemos certamente alargar estas práticas
social, política ou religiosa do chefe da família. Esta arquitectura retira a mínima à totalidade da região, integrando todos os lundaizados — depende, no que diz respeito
dúvida, mesmo que não pareça respeitar o esquema da tartaruga, tal como é utilizado ao essencial, do trabalho das mulheres (128).
pelos Lundas centrais (119). 1 A construção das cubatas ( 129) é um acto socialmente importante, que é confiado
Fora do espaço político, voltamos a encontrar outras maneiras de organizar o à comunidade dos homens. Lenhadores, por excelência, ocupam-se também do transporte
alojamento dos homens. da madeira indispensável à operação. A casa, que mede entre seis e dez metros, é
As informações de Henrique de Carvalho, associadas às que nos foram fornecidas interiormente dividida em duas partes. Um dos compartimentos serve de quarto, sendo
por Magyar, Capello e Ivens (120), permitem-nos seguir a maneira como ficou disposta o seu mobiliário constituído por uma esteira, que é, normalmente, a cama deste grupo
a instalação das populações imbangalas, fora do círculo das autoridades. É necessário — às vezes, encontra-se uma mutala, ou seja, uma espécie de cama, apoiada em quatro
ocupar um lugar onde a casa possa estabelecer uma simbiose com os campos. forquilhas na vertical, onde vêm assentar, na horizontal, dois ramos de árvore, sobre
Quando o chefe de linhagem ou de família (tal como é frequentemente designado os quais são colocados bocados de madeira, base da esteira —, um pequeno banco, um
pelos textos europeus) escolhe o local conveniente — que deve considerar a produtividade, travesseiro de madeira, um polvorinho, uma espingarda, um machado e uma faca.
assim como a rede de vizinhos — para instalar uma senzala, da qual será o chefe e No outro aposento, existem três cabaças, uma cajinga, duas pequenas panelas para
de cuja linhagem sairão os sucessores, eleitos pelos velhos da linhagem de acordo com o infundi (espécie de papa preparada com farinha de mandioca) e o peixe, servindo uma
as regras de filiação matrilinear ( 121 ),) procura um campo propício à agricultura e ao panela maior para preparar a garapa (bebida fermentada), um missalo (espécie de
abrigo das incursões do gado ( 122).) Encontramos assim a articulação, corrente na literatura peneira cilíndrica destinada à preparação da fuba, papa preparada com farinha de
consagrada à região ( 123), entre a casa e o arimo, quer dizer, entre a unidade de milho), uma caixa de tabaco em pó, um banco, uma rebeca, pendurada na parede, e
habitação e aquela onde se pratica a agricultura. um pilão, instalado num canto do compartimento (13°).
O sistema alimentar dos Imbangalas está centrado em torno do consumo de milho: A importância desta descrição torna-se evidente se considerarmos com atenção os
«o da Europa», diz Henrique de Carvalho, que parece não saber que este cereal é de objectos existentes em cada um dos aposentos: o primeiro pertence à caça e à música,
origem americana, se bem que introduzido em África pelos Europeus, e quase certamente ao passo que o segundo está consagrado à cozinha, indirectamente à agricultura, e à
pelos Portugueses, sem todavia menosprezar a importância dos painços africanos: alimentação. Isto ajuda-nos a compreender a importância da divisão sexual das tarefas,
massango, cazaca e catonde ( 124).) O mesmo autor permite-nos completar o regime porque esta impõe regras de comportamento muito estritas: não há autêntica autoridade
alimentar imbangala: a mandioca — sem recear a contradição, Carvalho fez deste masculina, enquanto os homens não disponham de um determinado número de mulheres,

id., ibid., pp. 106-114.


Magyar, 1973, cap. V, p. 25.
Ver cap. I.
Carvalho, 1895, p. 842.
( 12 °) Carvalho, 1890, cap. V e VIII; Capello e Ivens, I, cap. XI e XIII; II, cap. XIV; Magyar, 1973,
Ficalho, 1945.
cap. VII.
Ver 3. a parte, cap. II.
Ver, a respeitó da organização da aldeia imbangala, Miller, 1973. Nome utilizado nos textos portugueses para designar as casas dos Africanos. Um grupo de
Carvalho, 1895, pp. 840-841; Capello e Ivens, 1881, I, pp. 290-297. cubatas recebe o nome de sanzala ou senzala.Ver, por exemplo, Neves, 1854, p. 25; Capello e Ivens,
Dois textos recentes foram consagrados a esta questão: Maestri Filho, 1978, e Parreira, 1990. 1881, I, p. 295; Magyar, 1973, cap. VII, pp. 30-31, prefere a palavra libata.
Id., ibid., pp. 838-846.
Capello e Ivens, 1881, I, pp. 295-296.

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e a organização da senzala só pode ser compreendida quando um homem possuir uma No fim do século XIX, os Imbangalas possuíam já, de acordo com Capello, Ivens
quantidade significativa de mulheres, de filhos e de escravos (131). e Carvalho, um grande número de cabeças de gado, referindo-se que todas as aldeias
É certo que os observadores portugueses evidenciam o desequilíbrio entre o trabalho tinham estábulos, onde os animais eram muito numerosos (138). Mas voltaremos a
das mulheres e o quase não-trabalho dos homens. As mulheres não têm tarefa pre- considerar este aumento e esta banalização do gado graúdo — uma arma do poder que
determinada: fazem tudo, ou quase. Não só assumem a responsabilidade da produção se transforma em argumento comercial —, que permite uma alteração importante das
agrícola, alimentam os homens e a sociedade, mas são também as reprodutoras que se práticas imbangalas sob a pressão das relações com os Portugueses.
ocupam dos filhos, não esquecendo que devem ainda tratar dos animais domésticos e
mil outras actividades regulares ou circunstanciais. Esta organização do espaço dos homens em blocos nitidamente diferenciados,
Face a este excesso de actividades, os homens aparecem infinitamente menos kilombo, mbanza e senzala, realça o sistema de diferenças que caracteriza a sociedade
dependentes do trabalho: o Mun-gala — na escrita de Capello e Ivens — o Imbangalla, imbangala. A senzala — espécie de pequena aldeia — é o espaço das «pessoas sem
na de Carvalho — passa a vida no não-trabalho, sendo as suas actividades principais estatuto», organizadas conforme as regras das linhagens matrilineares, onde a arquitectura
o cachimbo, ainda mais frequentemente a mutopa, cachimbo de água que serve para e o urbanismo são homogéneos: nada permite distinguir a casa dos ricos da dos pobres,
consumir a liamba, e a conversa (132). Será excessivo dizer que a mulher está incluída incluindo tudo o que se refere à higiene e à organização interior das cubatas.
no espaço do trabalho, ao passo que o homem pertence ao espaço da palavra? Esta observação é certamente significativa, dado que a diferença que caracteriza
Temos, contudo, de resolver uma questão relativamente obscura: a do gado. Por a organização hierárquica, sobretudo no que diz respeito à arquitectura dos kilombo,
volta dos anos 1850, parece que o gado graúdo é assaz numeroso, como prova o diário quer dizer, da aristocracia, desaparece aqui, criando um espaço que repele as distinções.
de Rodrigues Neves, que contabiliza tanto as capturas feitas pelos Portugueses como Desta maneira, a leitura simbólica dos espaços ocupados pelos homens torna-se muito
os presentes «forçados» dos chefes da Baixa de Kasanje (133). Se o gado graúdo, alojado mais fácil, reduzindo a possibilidade de erros, mesmo que tenhamos de responder a mais
nos estábulos, pertence aos chefes, quer dizer, aos «senhores nobres», nas palavras de uma pergunta, do ponto de vista estratégico: ao recusar qualquer dissimulação das
Magyar (134), os «chefes de família, geralmente ricos e influentes» possuem sobretudo hierarquias, ao banir qualquer forma de mimetismo com a natureza, os aristocratas,
gado miúdo que «deixam sem vigilância, (...) [e] quase não constróiem cercas» (135). incluindo os que ocupam o poder, estão assim visíveis para os ataques dos «inimigos».
A importância alimentar do gado graúdo é relativa: se os Imbangalas comem carne «eles De que maneira se estabelecem as relações entre os blocos, isto é, entre as linhagens
não se aproveitam do leite de vaca e consideram, de acordo com as suas crenças, que das senzalas (que também aparecem como sanzalas), os sobas ou os sobetas das
é pecado consumi-lo». Estamos perante um preconceito religioso que exclui o consumo mbanza e os «aristocratas» dos kilombo?
normal do leite — o que criaria uma oposição extremamente forte entre os pastores, Rodrigues Neves dá-nos algumas informações a respeito desta questão obscura das
potenciais consumidores de leite, e os agricultores, que rejeitam o seu consumo —, e relações entre os três blocos. As senzalas, que podem adoptar o nome dos cursos de
acreditam que «os kilulu — os espíritos dos antepassados — os puniriam se o água junto dos quais estão instaladas, são ocupadas por pessoas, «vizinhos» dos sobas,
consumissem» (136). Magyar põe também em evidência o desconhecimento que têm os que moram nas banza e «a quem eles [os «vizinhos»] prestam o serviço de vassalos».
Africanos de qualquer técnica que permita utilizar os animais no trabalho agrícola ou, Outras informações dadas por Neves permitem estabelecer a articulação seguinte: a
mais simplesmente, no transporte. mbanza (ou banza) é o lugar de instalação de um soba (139) cujo território está ocupado
Inversamente, o gado graúdo parece desempenhar um papel de importância por senzalas(mo,.) Ricos e frequentemente poderosos, estes sobas (que podem ser
fundamental no quadro do poder — polftico e social — imbangala: «matar um animal chamados banza) ( 141 ) são subordinados [aos] potentados (142•,) muito poderosos «e de
(e comer um pedaço de carne após o ter assado) é um crime dos mais graves», punido consideração entre os Bangala» como acontece no caso de «Quilamba-quiaxiba (...) um
com a redução à escravatura (137). dos principais Maquitas de Cassanje» (143). Parece, pois, que estamos em presença de
uma estrutura fortemente hierarquizada: a aristocracia organizada nos domínios em
Magyar, 1973, cap. VII, pp. 12-13, faz referência ao número de mulheres necessárias a um
homem para poder ser alimentado.
Capello e Ivens, 1881, I, p. 296. Ver também esta questão do desequilíbrio registado entre Capello e Ivens, 1881, I, p. 296.
os trabalhos masculino e feminino africanos, Magyar, 1973, cap. VII, p. 27 (por exemplo). Magyar afirma (1973, cap. VII, p. 5) que «os soberanos Quimbundos utilizam o título de soma
Neves, 1854. Situação que se regista de maneira difusa ao longo do seu texto. ou soba», o que nos permite concluir que o substantivo soba designou várias categorias de chefes.
Magyar, 1973, cap. VII, p. 17. Neves, 1854, pp. 18-24.
Id., ibid., pp. 16 e 27. Capello e Ivens, 1881, I, p. 334, mostram-nos a imagem de um banza seguido pelos seus homens.
Id., ibid., pp. 27 e 39-40. A palavra portuguesa potentado designa ou um chefe poderoso ou o seu território.
(137) Id., ibid., p. 17. Neves, 1854, p. 38.

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volta dos kilombo e tendo sobas e sobetas como dependentes; estes, morando nas de maneira arbitrária por este. Contudo, não estão eles ao abrigo do soberano e da outra
mbanza, nós centrais de territórios formados por diferentes senzalas, em situação de classe da nobreza que lhe está aliada» (147).
«vassalagem», quer dizer, de dependência, que os Portugueses consideram como sendo Esta longa citação de Magyar deixa entrever não só os conflitos latentes na sociedade
de tipo «feudal». O autor assinala igualmente as estreitas relações entre os sobas e as imbangala, mas também a importância do número de homens, de dependentes, que
autoridades portuguesas. É o caso de um soba que recebeu a banza ou «Estado» por devem ser associados ao comércio, à agricultura e ao gado, para assegurar o poder e
decisão do comandante Salles Ferreira, em reconhecimento de serviços prestados; e da a riqueza (148).
«Banza do Soba Ngio», onde se reunia, «todos os três meses, uma força militar do A questão dos homens é também a dos escravos, e como atestam todos os autores,
distrito de Ambaca, formada por quatro soldados», destinada à protecção dos comerciantes e Magyar de maneira ainda mais afirmativa, nisso acompanhado por Capello e Ivens,
portugueses (144). o poder, «a dignidade (...) e o respeito geral» estão associados ao número de escravos (149).
Não se conhece muito bem a origem destes sobas. Trata-se, provavelmente, de Isto explica as guerras constantes entre vizinhos, e poderia justificar igualmente a
chefes submetidos pelos Imbangalas ou investidos pelo Jaga ou pela aristocracia maneira fácil como o comércio dos escravos pode ser imposto pelos Europeus. Com
imbangala, seja em reconhecimento de serviços prestados seja para assegurar o controlo efeito, a mercadoria caracteriza-se pela sua extrema banalidade. Podemos acrescentar,
das populações e dos territórios, como era o caso dos kilolo lundas. É-lhes possível levando em conta as afirmações de Magyar e de Rodrigues Neves ( 150), que se a
integrar-se na aristocracia imbangala? propriedade dos escravos e do gado constituem os únicos argumentos económicos que
Magyar salienta a existência de «duas classes de aristocracia» nas sociedades da são também argumentos do poder, é necessário que os proprietários não maltratem os
região ( 145 ): «a primeira inclui os erome ya soma (...), quer dizer, os descendentes da dependentes, sob pena de os verem partir para se irem instalar em casa dos vizinhos,
linhagem dos soberanos». Serão estes os mesmos que os Macota que, na maneira de risco que nenhum proprietário quer correr para não assistir à debandada dos homens
ver de Carvalho, «são descendentes dos que fizeram parte da corte que acompanhou o que lhe asseguram o prestígio (151).
primeiro Jaga Quingúri, do seu paiz, entre o Lulua e o Lubilachi (...) sendo o que tem De uma maneira geral, adquirimos o hábito de considerar o escravo como coisa
maior grau o Tendalla (...) o chefe de cerimónias» (146). ou bem de alguém. Mas os documentos mostram-nos que a situação destas pessoas
A outra «classe de aristocracia» é, como diz o autor húngaro, «a dos erombe ya — homens e mulheres — nas sociedades de uma imensa região, que abrange o Kasanje,
sekulu», que são os homens mais idosos. «Na primeira classe, a aristocracia é hereditária, o Bié e a Lunda, é muito mais complexa. Não só os escravos podem pôr em acção
dependendo a segunda de uma eleição. As duas classes nobres possuem desta maneira estratégias pessoais, aceites pelas regras consuetudinárias, mas as suas situações,
bases diferentes e interesses que também o são; por esta razão vivem num ódio mútuo categorias e funções obrigam-nos a aprofundar um pouco mais esta questão.
e em conflitos também permanentes. Só esta dissensão, no seio da nobreza, é a causa Já salientámos a importância do recurso aos escravos para assegurar a extensão
verdadeira para que um poder arbitrário e tirânico possa ocupar o lugar do poder do Império lunda e a própria eficácia dos instrumentos do poder. Podemos também dar-
patriarcal, que foi confiado ao soberano pelo povo. É que a primeira classe desta
nobreza ocupa-se apenas dos negócios aferentes à guerra e goza de uma grande
consideração junto dos militares, cujo chefe é escolhido entre os membros desta classe;
além disso, ela está ligada à casa reinante pelos laços do sangue, e é no seu seio que
são também recrutados os conselheiros supremos e os demais agentes do soberano. Por (147) Magyar, 1973, cap. VIII, pp. 9-11.
consequência, esta classe pode dispor do poder militar da maneira que lhe convém e (ias) Um dos sistemas utilizados para regularizar os conflitos e enriquecer é o das quezílias. Consiste
servir-se dele para oprimir o povo e os sekulu — quer dizer, os mais velhos que são no pagamento de uma certa quantidade de mercadorias pelo acusado à parte queixosa. Este sistema permite
respeitados como chefes. Contudo, a segunda classe da nobreza pode ser formada por a obtenção de bens e está, por isso, na origem de uma importante circulação de mercadorias, tornada possível
criados do soberano (...) se este dá de maneira arbitrária aos seus favoritos a dignidade pela resolução dos delitos ou dos conflitos. Magyar, 1973, cap. VII, p. 12 , e IX, p. 32, refere-se aos quezília,
de erome ya sekulu. De resto, os membros desta segunda classe de nobreza, mais salientando um aspecto deveras importante, que voltaremos a considerar. «Tudo pode ser utilizado para
desencadear a quezília, mesmo uma palavra dita de maneira distraída, que contraria os seus costumes
numerosa do que a primeira, possuem aldeias muito povoadas e uma riqueza considerável estúpidos, é considerada, como um crime quezília e como não há lei escrita e o direito consuetudinário é,
provinda do comércio, da agricultura e da criação de gado; por esta razão, são eles na maior parte dos casos, interpretado e aplicado de maneira arbitrária por aquele que tem o poder e sempre
amados e respeitados pelo povo que defendem contra (...) o poder militar organizado em detrimento dos mais fracos e, enfim, porque não há uma proporção equilibrada entre a gravidade do
delito e o castigo, este é sempre uma pesada multa: é por isso que não devemos mostrar-nos surpreendidos
se quase metade da nação é vendida como escrava à outra. É uma sorte que a situação dos escravos não
seja, de maneira alguma, tão horrível como se podia supor entre estes povos selvagens» (VII, p. 12).
Id., ibid., p. 22. Magyar, 1973, cap. VII, p. 7; Capello e Ivens, 1881, I, p. 295.
Magyar, 1973, cap. VII, pp. 9-11. Magyar, 1973, sobretudo o capítulo VII; Ver Neves, em várias passagens da sua narrativa.
(146) Carvalho, 1898, p. 435. ( 151 ) Voltaremos mais adiante a esta questão. Ver Magyar, 1973, cap. VII, pp. 7-9.

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-nos conta do seu grande valor na organização da sociedade imbangala, onde alguns A hereditariedade. Nas sociedades matrilineares, os filhos dos escravos continuam
deles podem tornar-se chefes poderosos (152). a ser escravos se os dois pais genitores forem escravos, ou se a mãe for escrava. A
Rodrigues Neves fornece-nos informações, até agora demasiado negligenciadas, questão não é descrita com muita precisão. Os dados de Magyar são insuficientes para
respeitantes aos escravos que têm a seu cargo a conservação das kibinda, quer dizer, permitir uma explicação coerente. Temos casamentos de «escravos (...) com mulheres
dos diferentes mausoléus, onde são conservados os corpos dos Jagas. Estes monumentos, livres (...) os seus filhos, como propriedade de sua mãe [sendo] pessoas livres» (186),
cuja importância só se explica, recorrendo-se à religião dos espíritos dos antepassados, assim como casamentos de «homens livres com escravas sendo as crianças (...)
são guardados por um número impreciso de escravos. Trata-se de escravos pertencendo consideradas como verdadeira propriedade do pai e dos seus herdeiros» (157). Nos dois
a uma categoria particular: são legados pelo Jaga para cumprir esta tarefa e mantêm-se casos, como podemos verificá-lo num gráfico, a sociedade procura, sobretudo, criar
vinculados ao monumento. Por outras palavras, os seus filhos ficarão, também eles, homens e mulheres livres:
ligados ao monumento, geração após geração (153). Aparentemente, estes escravos não
são castados, mas é certo que nenhuma informação nos é fornecida no que diz respeito
ao casamento e às regras de descendência. Parece, contudo, que não podem abandonar ESCRAVO MULHER LIVRE HOMEM LIVRE ESCRAVA
as kibinda, nem ser recuperados por ninguém.
A complexidade da situação dos escravos é clara, reforçada, de resto, por uma = Á = •
informação complementar, fornecida por Henrique de Carvalho. Este faz referência a
outra categoria de homens assaz particular: trata-se dos quixinda, escravos que podem
ser instigados a matar o Jaga por aqueles que desejam o cargo, e pensam estar em boa
posição para o ocupar e que são certamente filhos de um Jaga (154). A questão é delicada
e não pode receber os esclarecimentos indispensáveis, em virtude da notória imprecisão
do texto de Carvalho.
• •
Os filhos são recuperados pelo pai e,
Mau grado a incerteza, encontramos nestas duas referências confirmação da existência Os filhos são livres como

de um vasto leque de posições de sujeição, algumas das quais não pertencem às resultado da aplicação das portanto, livres, como prova o facto de
regras da matrilinearidade. serem os seus herdeiros.
condições conhecidas da escravatura, tudo indicando que o sistema de dominação
multiplica as situações de casta, o que quer dizer que a condição dos escravos não é
de maneira alguma homogénea, mesmo que só disponhamos de informações esparsas No primeiro caso, é a linhagem da mulher que aproveita os filhos sem pai, ou com
a respeito dos estatutos particulares. um pai que não conta na organização da genealogia (158). Como escravo vitalício, este
É evidente que tendo podido registar algumas situações dessa natureza, procurámos pai nunca pode intervir nas escolhas dos filhos adultos, quer dizer, após a circuncisão
pôr termo à posição incerta, que não pode deixar de ser a nossa, para dispor dos meios ou, então, após o casamento (159).
mais convenientes para definir a estrutura tão intrincada das formas de dominação dos Se os escravos — Magyar salienta tratar-se de escravos comprados, vitalícios por
Imbangalas. consequência k /160)—
\ pretendem casar-se com mulheres livres é, em primeiro lugar, para
O testemunho de Magyar neste campo específico dá conta da situação da escravatura evitar ter filhos escravos, o que iria reproduzir a sua situação, mesmo após a sua morte.
nas sociedades da região, onde «pelo menos um terço, ou até metade da popula- Há ainda a contar, contudo, com outra condição: «se a mulher é escrava, ele deve servir
ção (...) é escrava, mas entre os escravos só um terço é constituído por mulheres» (155). outra pessoa e não tem tempo de cultivar os seus próprios campos (será que podemos
O desequilíbrio sexual é evidente. Quem é escravo? Em que condições um homem ou encontrar escravos «proprietários» dos seus próprios campos, isto é, tendo acesso
uma mulher se torna escravo? directo à terra?); por conseguinte, ela está impossibilitada de assegurar a alimentação
Segundo as informações dos autores, entre os quais se destaca Magyar, há cinco do marido e dos filhos» (161‘.) Ora,, a mulher livre pode assegurar a vida da célula
maneiras de se tornar escravo: a hereditariedade, a dívida, a compra, a venda, a guerra familiar e até a sua memória.
e a «feitiçaria».

Id., ibid., p. 15.


Ver cap. I consagrado à organização do Império lunda. Neves, 1854, p. 93 dá conta de um
Id., ibid., p. 14.
caso na região imbangala.
Id., ibid., pp. 9 e 41.
Id., ibid., pp. 112-113.
Id., ibid., p. 14.
Carvalho, 1890, p. 438.
Id., ibid., p. 9.
Magyar, 1973, cap. VIII, p. 37.
Id., ibid., pp. 9 e 41.

224 225
De resto, Magyar acrescenta informações cujo interesse é evidente, respeitantes às Esta situação de escravatura por dívida é sempre provisória, apesar de se poder
razões que levam os proprietários dos escravos homens a casá-los com mulheres livres: transformar em definitiva, quando a dívida que a provocou não for satisfeita. Estamos
eles também tiram proveito desta situação. Se os filhos destes casamentos são livres e perante o sistema a que os antropólogos dão o nome de pawnship system ( 165), que
pertencem à família da mãe, a alimentação dos escravos é assegurada pelo casamento. parece muito difundido nesta região da África central.
«Os escravos não custam quase nada ao seu proprietário excepto alguns côvados de Magyar explica-nos este mecanismo: um homem que deve alguma coisa a outro é
tecido que ele lhes dá para se vestirem, pois que o escravo recebe fato novo duas vezes condenado, em reunião pública, ao pagamento da dívida, acrescida de uma multa, mais
por ano. Mais ainda: os escravos devem entregar ao seu proprietário, quando da lua-
ou menos elevada, conforme as regras estabelecidas. «Os chefes de família mais pobres,
-cheia, uma certa quantidade de alimentos: milho, feijões, carne de caça, mel, e estes
quando não podem pagar as dívidas aos credores e não querem vender, para as pagar,
alimentos são em geral suficientes para alimentar os outros escravos não casados» (162).
um ou mais membros da família como escravos de maneira definitiva, dirigem-se àquele
Se alguns destes bens são o resultado de uma actividade masculina — caça e
que possui tecidos europeus, pedindo-lhe, como empréstimo, a quantidade necessária de
recolecção — já os outros são produzidos pelas mulheres, o que quer dizer que o
tecidos e empenhando, entretanto, um ou mais membros da família, dos dois sexos (...)
escravo casado se transforma numa fonte de produtos agrícolas, que serve para aumentar
Estas pessoas assim empenhadas tornam-se criadas, sem salário, como se fossem escravos
a capacidade alimentadora do proprietário do escravo. Infelizmente, o texto não fornece
daquele (...) que lhe emprestou as mercadorias necessárias a título de empréstimo; mas
a menor informação no que diz respeito à relação do escravo e da sua mulher com o
(...) eles não podem ser marcados com o ferro utilizado no caso dos escravos comprados,
clã matrilinear, que também tem direito à produção conseguida pela mulher.
nem vendidos pelo proprietário, que os deve libertar imediatamente em caso de resgate
No segundo caso que referíamos, é o pai que constitui uma família com uma mulher
que obriga [aquele que pediu emprestado] a restituir o dobro das mercadorias
escrava, isto é, uma mulher sem parentes — sobretudo sem irmãos — que teriam podido
emprestadas». Dá-se a estes escravos o nome de fuka ou hafuka (166).
exigir a tutela dos seus filhos. Os filhos gerados com mulheres escravas pertencem-lhe,
Outra situação de escravatura por dívida está associada ao adultério: o homem que
o que explica a situação registada: «a maior parte das mulheres escravas são concubinas
comete o adultério com uma mulher casada deve pagar o seu crime ao marido.
do seu proprietário, fazendo parte dos membros da sua família» ( 163 ). Estes filhos são,
O pagamento é determinado tendo em linha de conta o estatuto do marido «enganado»,
na verdade, falsos escravos vitalícios, colocados sob a autoridade plena do pai, dado
o qual, muito frequentemente, provocou a situação de acordo com a mulher. Se a multa
que este não está sujeito a nenhum controlo por parte do clã materno. A contrapartida
desta situação reside no carácter absoluto da sua dependência, mesmo que os filhos se
contem entre os herdeiros. Neste caso, a estratégia dos pais procura assegurar a perenidade
da sua estrutura familiar — que constitui também a unidade de produção — que deixa modifica substancialmente a situação. Dado o facto de Troni escrever a respeito da cidade onde vive,
e onde aceita as situações de conhecimento com as africanas, que caracterizam a vida dos homens
de depender dos controlos e dos apetites, frequentemente excessivos, dos tios maternos. brancos, descreve o que é corrente em Luanda, entre as populações que continuam a respeitar os valores
da escravatura e dos empenhamentos.
A dívida. A matrilinearidade funciona também a este nível, mesmo que não «Quando lhe tiram a criança, e às vezes já mulher, considera-a a mãe como morta e faz seu tambi
disponhamos de muitos dados a respeito desta questão. «De acordo com as leis destes (óbito). É depois apresentada a escrava ao soba, que julga se vale a condenação; se não, [o condenado]
povos, os sobrinhos (podem tornar-se) escravos», bastando, para isso, que o tio materno vai buscar outra sobrinha. Às vezes é uma família escravizada desta forma, e vem logo ser oferecida
«esteja em dificuldades para pagar uma dívida» (164). a resgate ao litoral ou ao primeiro concelho» (p. 72).
Estas informações estão um pouco fora do nosso quadro cronológico, pelo que devemos analisá-
-las com alguma prudência. Podemos, contudo, verificar que estas práticas eram relativamente correntes
em Luanda nos anos finais do século XIX, pois Alfredo Troni só chegou a Luanda cerca de 1873. Os
Id., ibid., p. 9. Portugueses não conseguiram eliminar as práticas das populações africanas e a ngana muturi, mulher
Id., ibid., p. 16. relativamente jovem, pelo menos no texto, pôde ainda evocar as condições com que fora lançada no
(164) Id., ibid. Num texto de ficção, destinado a registar os traços «exóticos» para consumo dos
circuito da escravatura, tendo sido por esse meio que se tornara propriedade de um comerciante
Europeus, Alfredo Troni retém um dado biográfico de uma das africanas que vivem com europeus: português. O circuito fica assim descrito, o que nos interessa não só para calcular a longa duração desta
«andara dois dias, ao fim dos quais chegou a uma libata onde morava o tio que a levava. Pelas conversas prática, mas também a pouca ou nenhuma eficácia das regras portuguesas que se chocam com o direito
que ouviu no caminho, soube que o tio tinha sido condenado no juramento, e para pagar o crime a fora consuetudinário africano. Podemos, ao mesmo tempo, aperceber-nos de que esta moça não é uma
buscar à mama, pela lei da terra que obriga os sobrinhos a pagar os quituxi dos tios». Nga Muturi (a pawnship, mas realmente uma escrava destinada ao mercado.
senhora viúva), 1973, texto publicado pela primeira vez em 1882, (p. 33). Esta situação deve levar-nos a fazer mais algumas perguntas, não só a respeito do ritmo e da
Em nota, Troni fornece o significado de quituxi: se o condenado a uma multa «não tem com que duração da escravatura, mas também dos homens e das mulheres que podiam ser vendidos. Esta questão
pagar, é escravizado, mas tem direito a dar um sobrinho ou sobrinha, filho de irmã, a qual se sujeita é de suma importância, pois é de molde a permitir conhecer melhor e mais eficazmente a maneira como
ao pagamento» (p. 72). funcionaram os diferentes circuitos da escravatura.
Até aqui, o sistema é idêntico ao que pode encontrar-se em muitos outros lugares, devendo todavia Douglas, 1964. Esta questão volta a ser examinada no capítulo consagrado aos Quiocos.
reter-se uma diferença importante: o penhor não é só feminino, pode também ser masculino, o que Magyar, 1973, cap. VI, pp. 7-8 e 40-41.

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é muito elevada e «não consegue pagar o seu delito (...) ele e a sua família são vendidos A última situação, que provoca a redução à escravatura de um homem ou de uma
como escravos». Por toda a vida ou, simplesmente, até ao pagamento da dívida? O autor mulher, é aquilo a que Magyar chama a feitiçaria: «as pessoas reconhecidas culpadas
não fornece mais pormenores, mas se prestarmos atenção a situações semelhantes, [após terem sido «julgadas», recorrendo à ordália] de feitiçaria nem sempre são mortas.
sabemos que o resgate é sempre possível (167). No caso de serem ainda jovens, fortes e sãos, são vendidos como a sua família como
A compra. A terceira situação de escravatura é a dos dongo ou pika, isto é, escravos, geralmente para o estrangeiro e, se possível, aos europeus; porque, dizem eles,
aceitando as informações de Magyar, os escravos comprados, «considerados como o feiticeiro não pode exercer os seus poderes contra os brancos. Mas a morte ou a venda
animais, sem protecção legal e que por isso se encontram à mercê do seu proprietário, como escravo de um culpado não basta, é preciso que todos os parentes sejam amarrados
podem ser vendidos, sujeitos a castigos corporais. Só no caso de uma agressão mortal e vendidos (...) no caso de não conseguirem fugir. Esta terrível lei tão desumana é a
é que o proprietário deve pagar ao soba uma «indemnização de sangue»» (168). magyar principal causa da abundância de escravos para vender, entre estas populações, porque
dá-nos as informações referentes ao conteúdo desta fórmula: «o preço do sangue que um homem condenado desta maneira tem, com muita frequência, 30 ou 40 parentes que
o proprietário deve pagar pelo assassinato do seu escravo é, em geral, o de um boi cujo são vendidos com ele» (174).
sangue é utilizado pelo kimbanda para limpar o sangue humano derramado. Ao que se É o único caso em que o escravo se torna um dependente não desejável. Isto
acrescentam 30 ou 40 côvados de tecido pago ao soba (...) Mas se o escravo era casado permite-nos pôr em evidência a importância do facto religioso, que obriga a sociedade
e sobretudo se a mulher era uma mulher livre, nesse caso o preço do sangue é muito a separar-se rapidamente destes servos «malditos», sem por isso renunciar ao seu valor
mais elevado devido aos parentes da mulher, e não faltam casos em que o homicídio comercial. Basta um gesto, e estes escravos, lançados nos braços dos Europeus, tor-
de um escravo provoca uma retaliação que pode ir até à morte do responsável» (169). nam-se gente inofensiva, permitindo, graças à venda, a realização de lucros consideráveis.
Este mecanismo de protecção do escravo parece ser suficiente para que as situações A quem pertencem estes cativos? Quem lucra com a sua venda aos Europeus? Perguntas
de violência sejam muito raras, permitindo aos escravos levar «em geral, uma vida assaz a que Magyar não dá a mínima resposta, certamente por não ter podido esclarecê-las,
cómoda», tanto mais que podem recorrer à estratégia da fuga para mudar simplesmente mas que traduzem o campo da investigação que deve ser futuramente elucidado.
de proprietário (170).
O escravo aparece, pois, como um elemento central da organização da sociedade,
A guerra é uma das situações mais favoráveis para assegurarem a «produção» de o que explica o «tratamento benevolente dado aos escravos [o que] não depende do
escravos (171). Magyar dá também a estes escravos os nomes de dongo ou pika, e explica comportamento humanista dos seus proprietários, mas essencialmente do medo de perder
tratar-se de património vitalício dos proprietários. A captura faz-se no campo de batalha, os escravos, que podiam decidir-se a fugir» (175). Com efeito, a sociedade elaborou
entre os adversários — prisioneiros de guerra, os chefes vencidos (172) tornam-se assim regras muito estritas neste domínio, o que reforça o peso efectivo da escravatura nos
escravos —, assim como, na consequência de ataques inesperados que desencadeiam sistemas de poder desta região.
combates sangrentos. «Após a vitória, os velhos e as crianças são massacrados, mas A fuga, chamada vatira, shimbika ou tombika, é o mecanismo que permite ao
os prisioneiros capazes de trabalhar são amarrados uns aos outros e arrastados como escravo «escolher» o seu proprietário (176). «A vatira designa a fuga simples. O escravo
escravos» (173). aproveita um momento propício, abandona tudo, vai-se embora e procura fugir o mais
longe possível (...) Para os proprietários dos escravos a shimbika ou tombika é muito
prejudicial e perigosa, porque este tipo de fuga é não só fácil de levar a cabo, mas
tornado possível pela lei. O escravo descontente com o seu proprietário pode afastar-se
facilmente da casa, dizendo que pretende apenas ir visitar alguém nos arredores; mas
em vez deste passeio, dirige-se à casa de um chefe de família, geralmente abastado e
Id., ibid., cap. VII, p. 12.
Id., ibid., cap. VI, p. 8. • influente que já tinha escolhido; chega, mata diante de testemunhas um cão, uma cabra,
Id., ibid., pp. 8 e 41. uma ovelha ou qualquer outro animal doméstico, o primeiro que encontrar (177). Não
Id., ibid., p. 41.
Todos os autores dos séculos XVIII e XIX se referem aos escravos, prisioneiros de guerra em
todas estas regiões; por exemplo, Leitão (1756), 1938, em território imbangala; Almeida (1798), em
Id., ibid., cap. III, pp. 43-44. Ver também VIII, p. 3.
Kazembe; Graça (1846), 1890, tanto no Bié como na Lunda; Porto (por volta de 1850), 1942, do Bié
Id., ibid., cap. VII, p. 16.
ao Loyale, até ao território lozi. Um documento português assinala, em 1769, as fugas de escravos para a Kisama. A. A., vol. I,
Parece estarmos perante o sistema mais corrente de produção de escravos, caracterizado pela
1933, s. d. (documento proveniente da administração de D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho).
associação entre o comércio e a guerra de pilhagem.
Porto, por volta de 1860 (Memorial de Mucanos, Manuscrito da SGL), p. 4, descreve a
Ver exemplos citados por Neves, 1854, p. 30. situação existente no Bié. Em vez de matar um animal, aquele ou aquela, que pretende tornar-se escravo
(173) Magyar, 1973, cap. VII, p. 19. voluntário de alguém poderoso e rico, rasga a roupa do seu futuro proprietário.

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podendo esquivar-se à prestação de contas, declara então que pretende abandonar o seu
Esta longa e pormenorizada descrição de Magyar, consagrada à situação dos escravos,
senhor, e oferece-se como escravo ao proprietário da casa, para compensar o prejuízo
põe em evidência a complexidade do problema, ao mesmo tempo que dá conta da sua
causado. Mas isso nem sequer é necessário, porque basta que ele pegue no casaco do
importância na organização da sociedade; não só a redução à escravatura implica
proprietário da casa provocando-lhe um pequeno rasgão e declarando: «ame pika yove
maneiras de fazer aparecer o parentesco e os seus laços particulares, mas também as
[sou teu escravo]» (178).
diferentes categorias de escravos, portadoras de designações precisas, preenchem funções
Se o escravo cometeu um crime importante e trocou o seu senhor por outro, o antigo particulares na manutenção da coesão social e da estabilidade da sociedade.
proprietário poderá recuperá-lo em troca de um resgate considerável, se a sua fortuna A questão dos escravos é básica na análise das condições de funcionamento da
ou a sua posição na hierarquia política assim o permitirem. Neste caso, o escravo sociedade imbangala. Mais ainda, se acreditarmos na exactidão das informações de
fugitivo pode provocar um prejuízo mais avultado para poder permanecer junto do seu L. Magyar, podemos constatar que o húngaro quer destacar as condições particulares
novo proprietário: «procura ele penetrar no rebanho de qualquer senhor nobre; mata um de funcionamento das sociedades que ele considera kimbundu. Se parece necessário pôr
animal, corta um pedaço de carne, assa-o numa fogueira e come-o. Isto feito grita em em dúvida a homogeneidade assim formada, convém todavia proceder à análise a partir
voz alta que se oferece, devido ao prejuízo provocado, como escravo vitalício do senhor destas informações. Sejamos ainda mais directos: a narrativa de Magyar permite dar
do animal e evoca como prova da verdade da sua palavra o pedaço de carne de boi que conta da homogeneidade, mesmo que relativa, das situações, o que não tem nada de
tinha assado e comido na fogueira do curral». surpreendente, já que as negociações e os conflitos só podem ser regularizados a partir
Esta fuga, tombika, é em geral levada a cabo por escravos que possuem família, do momento em que se verifica uma grande simetria nas situações. Esta simetria arrasta
convictos de que serão bem aceites pelo seu novo proprietário. Esta maneira de proceder consigo a das soluções.
permite que o escravo pertença ao novo senhor, e que seja acompanhado pela sua ou De acordo com Magyar, o escravo é integrado no espaço doméstico, sendo tratado
suas mulheres e pelos seus filhos. «Além dos escravos (...) pessoas livres podem não como um dominado sem direitos, mas antes de maneira paternalista, o que põe
[recorrendo à mesma operação], de sua livre vontade, tomar-se escravos de um proprietário em evidência a sua integração no espaço familiar. Habitualmente, os homens são
importante, quando são pobres e perseguidos em consequência de um delito ou de uma casados com mulheres livres, de maneira que os filhos possam ser também livres.
dívida, para escapar a um perigo certo. A partir do momento em que se tornam escravos, A importância da sucessão matrilinear parece desempenhar, neste contexto, um papel
renunciando à sua liberdade, são considerados mortos em relação a tudo o que se tinha fundamental.
verificado anteriormente e lança-se um véu de esquecimento sobre todos os seus delitos Com efeito, as mulheres escravas tornam-se concubinas do patriarca e, a partir daí,
anteriores» (179). são tratadas como esposas, sendo o seu lugar na hierarquia conjugal predeterminado
A propriedade de escravos adquiridos em consequência de fuga é legalmente pelas outras já existentes. Os seus filhos serão igualmente livres. Mas, neste caso,
reconhecida e o ex-proprietário é frequentemente obrigado a entregar-lhes as roupas e estamos em presença de uma obliteração do papel e da situação da mãe, em proveito
outros bens, deixados em sua casa, sobretudo quando eles procuram refúgio em casa da exacerbação da função do pai, o que cabe mais numa escolha da ascendência
de um senhor poderoso. O novo amo não se mostra disposto a devolvê-los, a não ser patrilinear.
em consequência de laços de amizade com o antigo proprietário, ou em troca de um Parece relativamente simples mostrar o mecanismo tão flexível destas operações:
grande sacrifício. Aqueles que cedem a estas propostas são condenados pela opinião dos trata-se acima de tudo, para a sociedade que acolhe os escravos, de apagar qualquer
escravos que pensam em fugir; perdem, assim, a confiança dos escravos que, pouco marca de escravatura nos filhos de homens e mulheres do clã. Tudo é feito para eliminar
provavelmente, irão procurar refúgio junto deles. Não é de excluir que os seus próprios a memória da escravatura, e assim exalta-se sempre a condição «livre», seja do pai ou
escravos julguem negativamente a sua decisão, preparando-se, eventualmente, para da mãe. Preste-se a L. Magyar a homenagem merecida, pois só ele, entre os muitos
a fuga. viajantes que se deslocaram neste espaço, foi capaz de nos fornecer uma tentativa de
Acrescente-se que matar gado graúdo constitui um crime extremamente grave, análise dos estatutos tão diferenciados dos escravos.
razão pela qual se evita até mencionar o resgate de um escravo que tivesse praticado Ora, Magyar mostra-nos que o proprietário dos escravos não dispõe de maneira
este crime (1so). absoluta dos seus homens ou mulheres, ou dito por outras palavras, os escravos domésticos
estão numa situação tal que dispõem de meios para replicar, de modo eficaz, à brutalidade
do proprietário. É de resto perante este dispositivo institucional, que o proprietário se
vê obrigado a renunciar a comportar-se como «senhor absoluto», para optar por uma
relação paternalista. Isto porque o escravo pode sempre organizar a sua «fuga». Trata-
Magyar, 1973, cap. VII, pp. 16-17. -se de uma operação que os proprietários receiam muito, não só porque se verifica uma
Id., ibid. quebra dos rendimentos, mas sobretudo porque o estatuto dos Imbangalas depende do
( 18°) Id., ibid.
número de escravos possuídos.
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Deve contudo dizer-se que Magyar não nos permite resolver todos os problemas: uma certa mitologia das relações entre os Portugueses e os Imbangalas. As fontes
de facto, o escravo casado é escravo vitalício? Ou poderá, graças aos mecanismos portuguesas querem fazer de Kasanje uma organização inteiramente portuguesa: os
do parentesco fictício, furtar-se a esta situação? A verdade é que a fuga só parece Portugueses teriam «dado» aos Imbangalas a terra onde decidiram instalar-se, tal como
ser permitida aos escravos temporários, isto é, àqueles que o não são de forma vitalícia. o título de Jaga teria sido imposto (ou concedido) pelos mesmíssimos portugueses.
Isto exige que se precise também o quadro de «fuga»: não se trata de abandonar Cadomega recupera a estrutura deste discurso mitificador: «o poderoso Jaga Cassangi
a comunidade — aldeia, kilombo, ou senzala — porque — esta informação provém da (...) [apresenta-se] como vassalo e Quiambole do Príncipe Nosso Senhor, como o foram
região oriental, de Kazembe (181) — o escravo não armado é considerado como uma os seus antepassados, que vale tanto como seu [o título de] Capitão General (184)». É
presa, que deve ser entregue ao chefe da aldeia ou do clã, que o captura. Quer isto dizer, deste título que ele «mais se preza», sublinha ainda Cadomega (185).
também, que o escravo não pode exercer nenhuma função que lhe permita dispor de É a mesma ideia que aparece num documento de 1682, como podemos deduzir do
armas — nem a caça nem a guerra —, o que, por outro lado, obriga o candidato à fuga modo como é tratada a crise interna então afrontada pelo reino. Trata-se de uma crise
a organizar muito bem a sua operação. Esta deve incluir, certamente, negociações desencadeada em Kasanje pelos ataques reiterados de um súbdito deste reino, Kinkuanga,
preparatórias com o proprietário escolhido, de maneira a evitar situações em que o apoiado pelo rei de Matamba. Incapaz de resistir, o rei de Kasanje pediu ajuda aos
escravo possa ser rejeitado e devolvido ao seu antigo proprietário. Portugueses, que o auxiliaram a restabelecer a sua autoridade (186).
A estratégia para «fugir» deve ser calculada com precisão, mas Magyar indica Esta situação coloca-nos defronte de um número significativo de problemas,
tratar-se de uma táctica utilizada de maneira corrente. Dispomos, num ponto preciso o primeiro dos quais representado pela daxa, o tributo pago aos Portugueses por
mas importante, da confirmação posterior de Henrique de Carvalho (182): ele encontra, Kasanje. É bem sabido que o tributo traduz uma certa forma de dependência, que se
na sua viagem, homens que, oprimidos pela fome, preferiram ser escravos, partindo para pode avaliar através do valor e da frequência do pagamento. Quando apareceu este
isso um objecto pertencente ao homem escolhido. Esta convergência não pode deixar tributo? Qual era o seu valor? Durante quanto tempo foi ele pago? Seja como for, no
de ser significativa, pois confirma a existência de soluções idênticas em várias regiões século XVIII, diz-nos Correia Leitão, deixara de ser pago (187).
pertencentes ao espaço dos lundaizados. As variações destes laços de dependência em relação à Coroa portuguesa podem
ser explicadas, dada a maneira como se organizou a irresistível ascensão imbangala no
quadro regional. O mais significativo reside na estratégia dos chefes políticos, que se
V. As relações Imbangalas/Portugueses: os textos e os factos mostraram capazes de utilizar a presença, os interesses e as técnicas portuguesas para
impor uma autoridade crescente, não só aos vizinhos africanos recalcitrantes, mas
Procurámos, ao consagrar uma fracção deste trabalho à análise dos valores também aos próprios portugueses.
africanos, pretendendo libertá-los da ganga do discurso europeu, não colocar os As relações com os Portugueses não parecem associadas a uma lógica de dependência,
Portugueses no primeiro plano. É certo que eles estão por toda a parte, mas quisemos, todavia constante nos documentos portugueses. Esta leitura portuguesa das relações
apesar de tudo, escapar ao perigo de asfixiar os valores africanos, sob o peso dos com Kasanje deriva não da realidade histórica, tal como podemos compreendê-la
dados e dos juízos de valor dos Portugueses. Há, todavia, uma questão que não pode através dos documentos, mas da ideologia. Esta situação torna-se muito sensível em
ser dissimulada: qual é pois a relação entre o poder do Estado imbangala e os algumas passagens de um documento português: «o calor do nosso nome [dos
Portugueses, antes de estes chegarem a Kasanje e após terem procedido à sua portugueses], [graças também] às armas e à polvora (...) [eles estão protegidos] da
instalação? Dito por outras palavras: podemos continuar a dar crédito à afirmação nação Malundo» (188), a qual «tem vindo a guerrear ao dito Cassanje» (189).
de que este reino tão poderoso é realmente uma criação conjunta dos Africanos e Se interpretarmos de maneira precisa esta referência, podemos ver nela uma prova
dos Portugueses? (183). da dupla estratégia de Kasanje: esterilização da capacidade de agressão do poder
A incerteza dos factos é confirmada pela hesitação dos docúmentos. Parece difícil português, mobilizado alhures para assegurar a impunidade de Kasanje face à ameaça
afirmar, à luz dos documentos utilizados, que o «primeiro» encontro registado entre representada pela nação malundo, que não pode ser outra senão a dos Lundas centrais.
os Imbangalas e os Portugueses se tenha verificado no princípio do século XVII.
O elemento mais impreciso reside no facto de o aparecimento da palavra «imbangala»
ser muito mais tardia. Mas podemos pôr em evidência a maneira como foi elaborada Cadornega, 1972, III, p. 159.
Id., ibid., p. 229.
A. A., 1, 1933 (doc. datado de 1682).
(1 1) Almeida (1798), s. d., p. 110. Leitão. 1938, p. 16.
.(182) Carvalho, 1890, pp. 284-286. (1 88) Id., ibid., p. 16-17.
(183) Margarido, 1972. (189) Id., ibid., p. 21.

232 233
ill11111111n"--

A aceitação do pagamento do tributo faz também parte da estratégia que se mostrou revelam-se extremamente reduzidos: o distrito de Kasanje é aquele que os Portugueses
rendível, pois que Kasanje conhece uma ascensão que se afirma sem a menor ambiguidade conhecem mais a leste, onde instalaram um secretário, sabendo também que é aí que
a partir do século XVIII. se encontra a maior feira de escravos, conhecida (191).
Na correspondência dos governadores e nas instruções dadas a Correia Leitão, Além disso, o chefe de Kasanje — que não é ainda, nos documentos portugueses, o
assim como nas informações deste último, Kasanje aparece como a organização que chefe dos Imbangalas — é poderoso, e não permite que nenhum homem branco possa ir
assegura o controlo em toda a região. Sendo também certo que a tendência da simplesmente contemplar e inventariar as margens do Kwangu. É também proibido que
historiografia, tanto portuguesa como europeia ou americana, vai no sentido de considerar os moradores da margem oriental entrem nos seus domínios, «porém, com eles comercia
que esta estrutura só se explica na relação com as mercadorias e as populações instaladas e lhes compra os negros pela terça parte por que no-los vende» (192).
na outra margem do Kwangu. O governador acrescenta, apoiando-se certamente em informações obtidas em Luanda,
Convém não nos deixarmos arrastar por esta simplificação da autoridade exercida que o chefe de Kasanje tinha castigado — cortando-lhes a cabeça — todos os homens
pelos Imbangalas. Nenhuma análise do poder de Kasanje poderá ocultar a importância que, empurrados pela sua «curiosidade», tinham ido «ver o que tanto se lhe oculta» (193).
das práticas religiosas, que fazem uso da sua influência em toda a região dentro e fora Modesto, o governador reconhece que esta proibição «nos causa problema». De
do espaço onde se processa o poder polftico, ou seja, o poder religioso é mais vasto facto, ela é duplamente incómoda, dado que, por um lado, impede qualquer viagem para
que o poder polftico ou comercial. leste, pondo assim em causa o projecto de ligação com a costa oriental, ao que se
Isto quer também dizer que os negócios portugueses eram mal geridos. Podemos, acrescenta o segundo aspecto, ou seja, o nítido prejuízo infligido ao comércio português.
de resto, aperceber-nos da maneira como a informação portuguesa se mostrou sempre Fiéis à sua estratégia de se servir dos portugueses, os Imbangalas aumentam os preços
desfalecente. Se assim não fosse, como explicar que em Luanda ninguém saiba quais um bom terço, o que reforça a sua riqueza e o seu poder.
as línguas faladas nas margens orientais do Kwangu, e que seja ainda necessário esperar É a razão pela qual o governador tem em vista a instalação de um reduto, «num
uma época tão tardia para que as informações geográficas consigam fornecer os dados sítio cómodo», que deve permitir aos Portugueses tornarem-se «senhores do comércio»
suficientes para permitirem a intervenção racional do Estado? deste imenso país — o de leste — que fornece a base da riqueza e do poder de Kasanje.
Se grande número de escravos são originários das regiões orientais, como repete Desta maneira, os Portugueses, sobretudo o rei de Portugal, poderiam acrescentar cem
ao longo do seu texto Correia Leitão, como circulam eles em Luanda, já que não restam léguas ao território que controlam em Angola (194).
Se o governador assume, de maneira generosa, senão até ostentatória, as «despesas
vestígios das suas línguas nem das suas tradições políticas, nem sequer das suas
desta primeira expedição», espera que «os comissários» que envia sejam capazes de
diferenças físicas, pois que estes homens e estas mulheres tinham sido tatuados ou
pagar um «negro» para conseguir aproximar-se do rio e proceder ao inventário de tudo
escarificados, sendo por isso portadores dos sinais e dos símbolos dos seus grupos?
o que diz respeito à organização desta estrutura política. Não devem esquecer a necessidade
O sargento-mor Manuel Correia Leitão fora encarregado de alcançar as margens
de obter informações a respeito das populações que povoam as regiões orientais, e das
do Kwangu, primeira tentativa portuguesa destinada a superar a proibição dos Jagas.
suas relações comerciais, incluindo os tipos de mercadorias trocadas. O texto do
Estes, e isso durante muitíssimos anos, tinham agido de maneira a impedir que os
governador não desdenha os pormenores reveladores e quer saber «se vestem, conforme
Portugueses se aproximassem do rio que separava os Imbangalas dos Lundas e das
os gentios dos nossos sertões (...) ou usam alguma roupa que pareça das Índias, e se
demais populações instaladas nas regiões orientais. Esta expedição integrava-se, por
outro lado, nas operações então organizadas para recolher o maior número de informações lhe traga pela Contra-Costa» ( 195). É enfim aceite pelos Portugueses que estas populações
do interior, que se pretende angolano, podem ter estabelecido relações contínuas com
possíveis, que permitissem aos Portugueses conseguirem, enfim!, proceder à ligação por
terra com Moçambique. as da costa oriental.
Não deve, contudo, perder-se de vista a demonstração do vazio administrativo
Numa carta do governador D. António Álvares da Cunha (1753-1758), enviada à corte
português a leste, uma vez que não é possível contar com as informações que aí podiam
portuguesa, dispomos de algumas informações interessantes: o autor assinala que vai enviar,
ser obtidas, para confirmar ou infirmar a hipótese ou a possibilidade de relações entre
logo que a estação das chuvas terminar, dois dos homens mais activos, ao território do Jaga
as populações orientais e a África central. Fica assim determinado o vazio europeu, que
Kasanje, situado a mais de «duzentas léguas» «desta capital» de Luanda (190).
Qual o conhecimento então existente sobre esta organização política e comercial
que é o Estado de Kasanje? O governador sabe que um dia de «boa marcha» separa
a cidade (ou antes, o kilombo) de Kasanje do rio. Em tudo o mais, os seus conhecimentos Id., ibid. Ver também Leitão, 1938.
Id., ibid., pp. 4-5.
Id., ibid.
Id., ibid.
( 190) Arquivo das Colónias, I, 2, p. 49. ( 195) Id., ibid., p. 11.

234 235
possui uma importância absoluta no que se refere à hegemonia africana, que não tinha projecto de tratado que devia ser submetido ao Jaga. Esta carta está dividida em três
de afrontar nenhum adversário exterior. partes, todas orientadas no mesmo sentido: impor às populações de Kasanje as regras
De resto, o discurso português, na sua totalidade, serve, além disso, para confirmar destinadas a autorizar e assegurar uma transferência de hegemonia. Se o poder é ainda
esta hegemonia africana, mais particularmente a dos Imbangalas, nas relações com os controlado pelo Jaga, trata-se de uma situação antinatural, por assim dizer, pelo que
Europeus, assim como com os Africanos circundantes. Esta situação explica os esforços tudo deve ser feito para que ele seja recuperado pelas autoridades portuguesas, as únicas
desenvolvidos para impor actos de vassalagem, bem assim o recurso às maneiras que podem dispor de uma legitimidade «civilizada».
depreciativas de dizer, frequentemente ferozes, a respeito das escolhas culturais africanas, Se os Portugueses censuram às populações, mas sobretudo ao poder de Kasanje,
não devendo esquecer-se as manifestações de «astúcia» portuguesa destinada a «enganar a insegurança do itinerário para Kasanje, assim como as extorsões de que são vítimas
aos bárbaros» e as da «autoridade ofendida» que pretendem proceder à cobrança da os comerciantes na Feira, o Jaga deve fazer o necessário para que a paz regresse, de
protecção e das intervenções protectoras do passado (196). tal modo que a actividade comercial possa ser levada a cabo sem o menor sobressalto,
As tentativas portuguesas para conseguir impor o controlo a Kasanje foram no que diz respeito à tranquilidade civil e económica.
permanentes, como de resto se pode compreender, sobretudo sabendo — problema Retenha-se todavia, entre as cláusulas deste tratado, que acabará por abortar devido
que voltaremos a considerar — que Kasanje funciona em estreita relação com Kisama. à sobrecarga das exigências portuguesas, aquelas que nos parecem traduzir da melhor
A verdade é que o quadro dos valores portugueses, pensado em termos de vassalidade, maneira a filosofia política portuguesa. Do ponto de vista das autoridades europeias,
não se adapta às formas organizacionais dos Africanos. Esta disjunção não podia o Jaga deve não só fazer acto de obediência e de vassalagem, mas enviar uma embaixada,
deixar de contribuir para assegurar a solidez da já, tantas vezes referida, hegemonia que será portadora de um imposto anual — ganda —, a Luanda. A famosa daxa parece
africana. limitar-se a mudar de nome, sendo a sua função a de assegurar vassalagem e pagamento
A pressão portuguesa é contudo constante (197), mas está muito longe de provocar de um tributo.
as soluções previstas. Apesar disso, o governo de Luanda só pode manter a pressão, O tratado devia conseguir também impor um regulamento da Feira, acompanhado
empurrado pelos comerciantes que começam a saber que o núcleo mais importante da por uma tabela do preço dos escravos. Os Portugueses — comerciantes e governador —
actividade exportadora de Kasanje se encontra a leste, para lá do Kwangu, o rio querem utilizar o tratado para tentar recuperar o lucro que os Imbangalas obtêm, na
proibido tanto aos Portugueses como aos seus agentes e associados. opinião europeia, graças ao comércio dos escravos provindos de leste, em prejuízo
Após uma destas crises, a 26 de Julho de 1789, o barão de Moçâmedes envia uma manifesto dos Portugueses. A simples leitura aritmética das operações comerciais convence
embaixada a Kasanje, confiada a dois militares, e portadora de um documento-carta, os Portugueses do interesse de uma operação que, sem outros custos além da astúcia
destinado ao Jaga (198). Os Portugueses procuram, uma vez mais, estender sobre os diplomática, lhes entregaria o controlo absoluto sobre o comércio de escravos.
Africanos a rede dos instrumentos diplomáticos, destinados a impor a visão portuguesa Enfim, e provavelmente sobretudo, a jurisdição sobre os comerciantes ficaria
do mundo. Entre as mudanças a impor aos Africanos, o documento pretende forçar os reservada ao secretário — nomeado após a assinatura do tratado — e às autoridades
comerciantes autóctones a levarem as suas mercadorias às feiras mais próximas das de Luanda. Graças a esta transferência do centro do poder, os comerciantes seriam
terras já ocupadas pelos Portugueses. A carta enviada ao Jaga de Kasanje retoma os subtraídos às leis religiosas que permitiam os sequestros, as multas, os presentes, etc.
topoi, que se tinham tornado clássicos: os Jagas mostrar-se-iam profundamente ingratos, A cláusula é, não se pode contestá-lo, extremamente hábil, e mostra que os Portugueses
pois deviam saber que os tecidos que lhes permitiam defender-se do frio ou do calor tinham acabado por compreender que os Kasanjes recorriam às guerras religiosas para
lhes tinham sido levados pelos Portugueses, o mesmo acontecendo com as armas de assegurar o controlo da sociedade. É por via deste controlo, que os lucros elevados se
fogo, graças às quais tinham podido impor a sua autoridade aos grupos dominados, tornam possíveis. Decididos a proceder a uma inversão de tendência, os Portugueses
incluindo os de leste. Os tecidos e as armas de fogo, eis o segredo da equação comercial querem dessacralizar as relações com Kasanje, de tal modo que os «crimes» cometidos
e técnica do poder Kasanje, na visão portuguesa. pelos Portugueses possam ser apreciados à margem deste orgulho religioso que tinha
Esta visão pretensamente histórica, que permite que os Portugueses possam pôr em desde sempre caracterizado as relações entre Portugueses e Africanos.
evidência a «ingratidão» de Kasanje, autoriza as autoridades portuguesas a enviar um Uma troca de correspondência caracteriza as ligações entre Kasanje e Luanda,
de 1790 a 1793. Se o governador manifesta uma visão optimista, é devido ao facto
de ele — e o seu estado-maior — se mostrar incapaz de compreender a estratégia
de Kasanje que, como a quase totalidade dos africanos, recorre à longa duração para
abafar um negócio que lhe convém. Como seria de esperar, o optimismo do governador
Id., ibid., pp. 15-17.
não provoca a mínima alteração no sistema de relações e, em 1793, a situação tinha
Ver Jean-Luc VELLUT (1975) que organizou um inventário bastante minucioso das
iniciativas portuguesas em relação a Kasanje. voltado ao seu ponto de partida. Luanda só pode continuar a tentar encontrar soluções,
(198) A. A., II, 14, 1936, pp. 567-570. sob a pressão de comerciantes que querem, fundamentalmente, conquistar o controlo

236 237
de Kasanje. O que está em causa não é apenas a Feira, pois que esta funciona
como a chave do comércio a longa distância, que continua a pensar-se ligado à
costa oriental (199).
Não podendo submeter a Feira de Kasanje ao controlo estrito encarado pelo projecto
de tratado de 1789, os Portugueses encontram-se impossibilitados de impor as regras
rigorosas com as quais sonham os comerciantes. Por essa razão, a Feira torna-se cada
vez mais aberta, rejeitando dessa maneira as pretensões monopolísticas portuguesas. De
resto, a pressão comercial, após a abolição do tráfico negreiro e da escravatura, obriga
a Feira de Kasanje a banalizar as novas produções, que trazem a Kasanje e, por
conseguinte, ao comércio português, produtos novos, como a cera e o marfim, aos quais
se acrescenta mais tarde a borracha. Kasanje definiu, a partir da sua própria estrutura,
o papel que devia ser o seu na lógica comercial, situação que perduraria, pelo menos, até
à crise de 1860. Finalmente, esta crise foi rapidamente superada, e pôde devolver uma
parte significativa da hegemonia imbangala, até à estruturação do sistema colonial
português, de 1910 (proclamação da República) a 1914 (eclosão da Primeira Guerra
Mundial). TERCEIRA PARTE

O ESPAÇO DO COMÉRCIO ANTES DE 1850:


PRODUÇÕES E COMPLEMENTARIDADES REGIONAIS

( 199) A maior parte das cartas trocadas entre Kasanje e Luanda põe em evidência a incapacidade
portuguesa de controlar os Imbangalas. Esta hegemonia de Kasanje manter-se-á durante a primeira
metade do século XIX. Ver 5.' parte, cap. II.

238
O ESPAÇO DO COMÉRCIO ANTES DE 1850: PRODUÇÕES
E COMPLEMENTARIDADES REGIONAIS
Se o laço político está solidamente estabelecido entre os Lundas e os Imbangalas,
podemos constatar que as duas organizações políticas exercem a sua autoridade sobre
um número assaz elevado de grupos. A distribuição geográfica destes poderes é tornada
evidente pela barreira imposta pelo Kwangu. O rio forneceu aos Imbangalas uma
trincheira para afirmarem o seu poder, permitindo-lhes controlar os homens e os espaços
geográficos, assim como os bens comerciais, sem todavia impedir a circulação de uns
e de outros, embora sob a fiscalização minuciosa do poder central ou dos seus agentes.
Os Imbangalas, como de resto todos os poderes políticos da região, receiam a pressão
das forças centrífugas segregadas nas duas margens pelo conjunto dos grupos e das
forças que desejam o livre trânsito dos homens e das mercadorias.
O inventário das condições de circulação permite dar conta da importância do
comércio interafricano, cuja análise foi correntemente abandonada em proveito das
relações comerciais internacionais. De facto, o comércio interafricano, que põe em
circulação bens produzidos pelas populações africanas, é necessariamente anterior às
formas de comércio internacional sob controlo europeu. Podemos verificar que este
comércio internacional é obrigado a inserir-se nas redes comerciais já existentes, para
as desviar em seu próprio proveito. A autoridade dos Imbangalas nasce da sua situação
geográfica, mas foi necessário que o poder político se mostrasse apto a reconhecer as
condições físicas e a situação das populações, para dispor dos meios capazes de lhe
assegurar a direcção deste espaço, vasto e complexo. É por essa via que os Imbangalas
impulsionam o comércio inter-regional, o que lhes dá conhecimentos e autoridade para
assegurar o controlo da totalidade do comércio internacional, provindo da costa ou a
ela se dirigindo.
O comércio africano nunca se desenrola de maneira livre: está constantemente sob
a observação das entidades políticas e religiosas. As decisões comerciais, praticamente,
jamais são tomadas pelos indivíduos, mas sim pelas famílias, pelas linhagens ou pelos
clãs, e quase sempre pelas autoridades superiores, ou seja, as próprias entidades inter-
médias — sobas ou sobetas — dependem não só do poder central, mas igualmente dos
seus agentes. Acrescenta-se a isto o controlo, certamente o mais minucioso, das autoridades
religiosas. Havemos de ver, um pouco mais adiante, que uma das grandes preocupações
dos comerciantes portugueses provinha da intervenção constante das forças religiosas,
que lhes parecia tão exagerada como injusta. De facto, os Africanos não podem encarar

241
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nenhuma actividade comercial que implique, sobretudo, viagens a longa distância e de
longa duração, sem a autorização dos espíritos e sem carregar consigo uma grande nunca devendo esquecer-se que as mercadorias introduzidas devem ser aprovadas pelas
quantidade de amuletos, os escapulários de certos textos portugueses, destinados a autoridades políticas e, eventualmente, religiosas.
assegurarem o bem-estar das caravanas, assim como o êxito das operações comerciais. Esta situação não impede contudo as tensões internas, umas desencadeadas pelas
A partir destes dados, é evidente que o controlo das actividades comerciais se próprias condições da «produção» dos escravos, outras derivadas do choque inevitável
exerce com maior rigor sobre as mercadorias raras e de maneira mais flexível sobre as criado pela particular necessidade de obter o maior volume de mercadorias preferenciais,
que asseguram a vida quotidiana do grupo. Mas as mercadorias raras, destinadas na à medida que se transformam em prova e suporte do poder.
maior parte dos casos a servir a política ostentatória das autoridades, são submetidas Podemos, graças a um gráfico, salientar a maneira como se modificam as relações
a verificações muito apertadas, de forma a impedir a sua banalização. Muitas vezes, comerciais, o que implica necessariamente uma alteração das próprias relações polfticas:
os tesouros organizados pelas autoridades polfticas são essencialmente constituídos por

estas mercadorias. Esta operação acabará por se transformar num dos agentes do 1 2 3
próprio comércio internacional, na medida em que o prestígio dos chefes está ligado aos
fluxos comerciais que eles são capazes de suscitar. Devemos ver nesta modificação Comércio
Comércio
subtil do quadro comercial uma das razões capazes de explicarem a ambiguidade interafricano
fro-europeu
autónomo
verificada nas relações entre autoridades africanas e comércio português ou europeu,
pois que o volume do comércio internacional fornece a prova visível da autoridade do
chefe político. O volume e o valor das mercadorias podem tornar-se, por esta via, uma

espécie de árbitro exterior, no que diz respeito ao exercício regular e eficaz do poder. Zona de contacto Comércio africano
Na quase totalidade dos casos, as ligações comerciais directas entre os Africanos
e os Portugueses tornam muito difícil, nos finais do século XVIII e princípios do XIX, O comércio estritamente africano pode, de resto, manter a sua estrutura própria,
a descrição das correntes comerciais exclusivamente africanas. Quer estas relações ao mesmo tempo que consente, quando não solicita, a circulação das mercadorias
sejam directas e seculares, como no caso dos Imbangalas, quer sejam indirectas como europeias. Esta situação explica que os Africanos podem conservar as suas relações de
as dos Lundas, somos mergulhados num emaranhado de problemas difíceis de esclarecer. maneira eficaz, mesmo quando as mercadorias europeias acabam por faltar, por inúmeras
Dispomos, contudo, de algumas indicações que dizem respeito a tais circuitos razões que nem sempre as autoridades africanas conseguem prever ou controlar.
interafricanos: o do sal, na região que liga Musumba a Kazembe, e o do peixe seco, Pretendemos, de maneira tão precisa quanto possível, pôr em evidência a importância
salgado ou fresco, nesta mesma região. É certo que só dispomos de um documento, que das operações exclusivamente africanas. A primeira constatação, que se baseia no
nos fornece com alguma minúcia a maior parte das informações todavia excepcionais, documento africano de Pedro João Baptista, é que as redes comerciais estão
em primeiro lugar, por serem redigidas por um africano que possui uma visão africana constantemente prenhes de comerciantes e de mercadores africanos. Estes fluxos
do problema e, em segundo, por se tratar de observações colhidas numa região que comerciais, cuja intensidade pode surpreender aqueles que só têm olhos para ver o
nunca fora percorrida por brancos. O carácter intrinsecamente africano dá-lhe um comércio europeu, apresentam uma característica fundamental: dependem da comple-
crédito excepcional. mentaridade entre grupos e regiões, qualquer que seja o poder político dominante. Esta
Existe um famoso enredado de relações que, ainda por cima, é reforçado pelo situação permite-nos propor a hipótese seguinte: as formas de complementaridade no
silêncio dos Africanos, cuja tradição oral não foi recolhida, o que quer dizer que domínio da produção criam redes que se mantêm estáveis apesar das mudanças políticas,
eles nos deixaram apenas a arqueologia, esta ainda muito mal preparada para responder e que pesam sobre as escolhas feitas pelos responsáveis da gestão política. Estas redes
às nossas perguntas. Todo o conhecimento provém das informações europeias. Um podem impor, mesmo que discreta e indirectamente, correcções constantes no exercício
único documento é de origem africana e é esse que pretendemos utilizar de maneira da autoridade política, e até tornar impossível o exercício de um poder altamente
centralizado. O caso dos Lundas é disso a melhor ilustração.
sistemática, para pôr em evidência a complexidade lógica dos tratos comerciais
interafricanos. O comércio não pode fazer-se sem a organização de excedentes, destinados à
comercialização. Digamos que, antes de tudo o mais, tem de aparecer e de agir
O comércio imposto pelos Europeus manteve-se durante séculos centrado numa «o espírito comercial» ( I ): esta maneira de dizer decorre muito da lição de Max Weber,
única mercadoria, no que diz respeito às relações do interior com a costa: o escravo.
para quem o espírito do capitalismo precedia o próprio sistema capitalista, permitindo
É claro que este tráfico implica, no outro sentido — costa-interior —, uma introdução
constante de mercadorias que servem de contrapartida comercial, ao mesmo tempo que
funcionam como única moeda nos mercados que fornecem e comercializam os escravos,
( I ) Weber, 1969.
242
243
a criação de um espaço cultural, graças ao qual o capitalismo pode tornar-se hegemónico. de dizer — de teorizar? — de não poucos «especialistas». Os circuitos internos africanos
A criação de toda e qualquer forma de comércio exige uma autonomização, mesmo que são também portadores de mudanças, introduzidas sempre que as condições técnicas ou
relativa, dos intermediários, quer dizer, desses comerciantes que preparam, organizam sociais o exigem, o que não nos deve impedir de consagrar a nossa atenção às mercadorias
e guiam as caravanas, para obter termos de troca favoráveis. Lembremos que o comércio europeias, pois, algumas ameaçam as técnicas africanas, incapazes de fazer face ao que
implica o inventário das complementaridades, criando dessa maneira interlocutores era já a hegemonia técnica europeia. Esta preponderância europeia é reforçada pelas
comerciais privilegiados. A importância das condições geofísicas está inscrita nesta novas solicitações à produção africana, à qual os Africanos respondem, assaz rapidamente,
forma de complementaridade, como podemos verificar no que diz respeito ao comércio para impedir que estes novos circuitos, que implicam novas produções e novas condições
das «pedras verdes» ou dos diferentes tipos de pescado. de comercialização, sejam geridos exclusivamente pelos Europeus, colocando-os à margem
Esta complementaridade ou interdependência das regiões exigiu a criação de uma da modernidade.
rede comercial que ia do Atlântico ao Índico. Rede certamente multissecular, criada sem
qualquer intervenção estrangeira — nem europeia, nem árabe, nem asiática —, o que
nos permite devolver às civilizações africanas a função dinâmica, que foi a sua, na
criação destas complementaridades, que nem a ocupação colonial nem as independências
conseguiram destruir. Esta corrente dinâmica não podia instalar-se sem conflitos,
procurando os homens tomar posse dos lugares mais rendíveis em alimentos, em sal,
em caça e assim sucessivamente, desenhando dessa maneira uma carta política que se
revela indissociável da «rendibilidade» dos territórios. A variação dos interesses através
do tempo explica também alguns afrontamentos, organizados para ocupar o espaço
rendível do Outro. Não deve esquecer-se a resistência ou a réplica: nenhum grupo aceita
de boa mente a espoliação: as técnicas de guerra organizam-se também em função das
operações, destinadas a assegurar a produção ou a desenvolver as redes comerciais, ou
seja: a lógica militar não visa apenas a conquista, mas constrói-se em função da
conservação das redes de produção e de comercialização.
Por essas razões, devemos pôr em evidência a complementaridade entre as regiões,
que determina a criação de uma importante cadeia comercial, que os Europeus foram
obrigados a utilizar, mesmo que tenham sido incapazes de a recuperar de maneira
integral. Esta cadeia e estas redes só foram possíveis graças ao aumento crescente da
procura, quer africana quer europeia. De resto, esta complementaridade servia a todos,
pois permitia reforçar algumas correntes em detrimento de outras, conforme a variação
dos interesses e da organização das alianças.
Não podíamos deixar de nos interessar pelos produtos que circulam nas trocas
comerciais. Alguns deles alimentaram os circuitos das trocas africanas, outros só foram
produzidos e comercializados devido à procura dos Europeus. É de resto interessante
verificar o carácter fulminante das respostas africanas às novas procuras, africanas ou
europeias. O exemplo mais significativo — que havemos de retomar — é o da mandioca,
que se transformou, assaz rapidamente, em produto destinado a todos os tipos de
caravanas, o que implicava uma modificação das regras de produção, pois as mulheres
deviam fornecer um sobretrabalho, para que o grupo pudesse dispor desta mercadoria
em quantidade suficiente para garantir o volume das trocas. Ora, esta tarefa era complexa,
pois as mulheres que asseguravam o trabalho agrícola deviam convertê-la em farinha,
o que aumentava a quantidade de sobretrabalho a dar.
Por outras palavras, seria demasiado simplista considerar que só a pressão da
procura europeia podia ter modificado este sistema. Tal tem sido, contudo, a maneira
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245
CAPÍTULO I

O Kwangu e o seu espaço

I. A representação cartográfica
Neste campo dispomos de muito poucos dados fiáveis — antes das explorações do
último quartel do século XIX — no que diz respeito às características geofísicas e
demográficas deste grande espaço interior, partilhado, a partir dos anos finais do século
XIX, entre Portugueses, Ingleses e o Estado Internacional do Congo, quer dizer, os
Belgas.
Integrado na imensa e complexa rede hidrográfica da região nordeste de Angola, o
Kwangu só aparece muito tarde na cartografia. Acrescentemos que a sua identidade foi
muitas vezes posta em dúvida, dada a incerteza — pelo menos do lado europeu — no
que diz respeito às suas relações com o Kasai e o Zaire.
O desconhecimento das redes hidrográficas provocou naturalmente uma certa
imprecisão no que se refere às populações: uma vez que não se conseguia destrinçar
o que pertencia ao domínio dos rios e aquilo que cabia às populações, não era possível
esboçar uma representação cartográfica precisa. Tal tarefa só pôde ser levada a cabo
na segunda metade do século XIX.
Podemos dar-nos conta das dificuldades através do engano constante entre o
Kwangu e o Kuafo, um dos seus afluentes, que só foi dissipado após a expedição
de José Redinha ao Alto Tchikapa, em 1946 ( 2 ). Deve contudo acrescentar-se que
uma leitura atenta do «diário» de viagem de Baptista (1802-1814), publicado em
1843, teria podido reduzir esta imprecisão muito mais cedo, porque o pombeiro não
esquece de indicar a travessia de «o rio Quafo» ( 3 ), evitando a confusão europeia
com o Kwangu.
À medida que aumentam o poder e a vontade hegemónica de Kasanje, os responsáveis
políticos portugueses sentem a necessidade de obter informações que permitam uma
melhor gestão política desta relação: os Portugueses apercebem-se da importância e da
dureza do obstáculo, mas são incapazes de lhe distinguir os contornos internos.

Redinha, 1953, pp. 76-77.


Baptista, 1843, p. 425.

247
Organizada pelo governador de Luanda, a expedição do sargento-mor Manuel Cerca de cinco anos mais tarde, d'Anville refaz o seu mapa, tornando-o de facto
Correia Leitão, em 1756, procura chegar à capital de Kasanje, única maneira de um pouco mais preciso. Primeiro, o Kwangu deixa de correr no sentido leste-oeste —
conhecer as técnicas utilizadas para assegurar a gestão do rio. que corresponde a uma visão europeísta, que pensa que os rios africanos só podem
Correia Leitão mobilizou uma energia considerável, apesar de já não ser um homem correr para o Atlântico! — mas sim sul-norte. Em segundo lugar, d'Anville faz aparecer
novo, para obter as informações capazes de modificarem, de maneira sensível, não só um «Chilombo» perto do rio que, como é evidente, retém uma informação italiana
o conhecimento da região — cidade, território, rio —, mas também as relações com respeitante ao kilombo, quer dizer, à cidade-capital dos Imbangalas. Tal não impede,
o poder de Kasanje. O oficial português liquida igualmente uma confusão, ao mostrar contudo, que a carta não permita ainda dar conta das relações estabelecidas entre as
que o autêntico Zaire é o Kasai e não o Kwangu, como fora até então constantemente diferentes populações: ao norte, d' Anville faz aparecer o Pombo, de onde seriam
dito e repetido, e como continuará a dizer-se após a viagem, certamente devido ao facto originários os pombeiros. Esta designação só consegue reforçar o desconhecimento dos
de este documento ter ficado inédito na globalidade dos arquivos portugueses. territórios e das suas populações, o que se verifica também no vazio que, a leste,
A segunda observação estratégica de Correia Leitão, que também levará tempo a assinala a ausência de informações a respeito das terras e dos homens.
ser entendida, pois só nos fins do século XVIII ela surtirá efeito, é aquela que sugere Estas cartas, da segunda metade do século XVIII, são todas elaboradas pelos
a maneira de furtar o comércio, que procura as regiões orientais, ao controlo do Jaga: cartógrafos franceses. A situação traduz, simplesmente, a ausência de instituições capazes
basta contornar Kasanje pelo sul. Tendo conseguido chegar ao cerne da famosa questão de assegurarem a formação dos cartógrafos portugueses e explica a razão pela qual as
que impede o acesso ao Kwangu, o sargento-mor fica a saber que os comerciantes informações recolhidas por Manuel Correia Leitão, em 1755, só conseguem chegar aos
africanos escolhem um itinerário muito mais ao sul e que escapa à vigilância dos cartógrafos de maneira fragmentária.
Imbangalas (4). Semelhante situação modificou-se em 1790, após a publicação do mapa de Luís
Não é por isso surpreendente, que os mapas dos primeiros anos do século XIX não Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado — mapa que circulou também em cópias
beneficiem destas informações, obtidas por meio de inquérito feito no terreno. manuscritas — organizado a partir das observações levadas a cabo por oficiais da
O Kwangu aparece, pela primeira vez, num mapa de Delisle, de 1708 (5). marinha e por geógrafos, às quais foram acrescentadas as informações recolhidas
Representação errada, que depende em parte de alguns dados mitológicos utilizados na junto dos sertanejos (8).
carta que fora desenhada em Itália, no século XVI, a partir das informações orais do A norte desta carta podemos assistir ao aparecimento do «Rio Kwangu considerado
embaixador do Congo, fornecidas por Duarte Lopez a Filippo Pigafetta (6). como sendo o Zaire». A leste aparecem as «Terras dos Moluas» (Lunda), de maneira
Se o Kwangu é representado, incorrectamente, correndo de leste para oeste, para ainda muito imprecisa, mas que elimina um vazio importante, e depois as «Terras pouco
ir desaguar no Zaire, o mapa de Delisle identifica já as «Terras do Jaga Kasanje», assim conhecidas», que formam uma zona branca que espera informações para poder ser
como a cidade de Kasanje, residência do Jaga. preenchida. As «Terras de Cassanje» ocupam aí também um lugar, limitadas a leste pelo
O laço orgânico, que associa o rio e o poder dos Imbangalas, torna-se assim rio Kwangu.
Contudo, a grande tentativa de modificar e de corrigir a cartografia antiga foi a
evidente para o leitor, e mostra-se, enfim, o sistema geopolítico desta estrutura política.
de Brué que, em 1832, organizou um mapa a partir das informações e dos esboços
O sistema torna-se compreensível, mesmo que, mau grado isso, as imprecisões e os erros
consigam sobreviver. cartográficos elaborados no terreno por Douville. Avelino Teixeira da Mota elimina,
graças a uma observação feroz, o falso rigor deste mapa, considerando ter sido copiado
Os mapas ulteriores, como o de d'Anville, não parecem melhorar muito este
de Pinheiro Furtado, o que, no entanto, a investigação africanista francesa teima em
conhecimento. No de 1727, encontramos apenas um pequenino Kwangu, um pouco
separado das Terras do «Giaga Cassangi ou Casenda». Mas a cidade de «Casangi» já desconhecer (9).
O cartógrafo português não exagera, tanto mais que Brué retrocede alguns passos:
aí se localiza, mesmo que o laço cidade/rio perca clareza em relação à representação
os mapas anteriores mostravam de maneira clara que o Kwangu ia desaguar no Zaire,
que lhe é dada por Delisle (7). • o qual tem a sua origem no Kasai. Brué reduz o Kasai a um pequeno afluente do
Kwangu, o que serve para pôr em destaque o carácter ridículo das informações francesas,
decididas a desacreditar os investigadores e cartógrafos portugueses.
Os «Estados de Cassanje» adquirem um lugar muito nítido neste mapa, e o laço
As informações de Manuel Correia Leitão foram inteiramente anuladas pelo governador António com o Kwangu é definido de maneira mais precisa. Mas encontramos neste mapa o rio
de Vasconcelos que, na sua carta de 7 de Janeiro de 1759, recusava o mínimo valor informativo ao
relatório, afirmando que Leitão não passava de um fabulador. Dias, 1938, p. 5.
Mota, 1964, p. 78.
Lopez e Pigafetta (1591), 1951.
Id., ibid., pp.107-111, e Santos, 1988, pp. 160-161.
Mota, 1964, p. 92.
Id., ibid., pp. 197-198.
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«Cassance», que não parece existir nas outras cartas, na margem do qual estaria
O rio Kwangu
instalada «Cassanci», povoação que devia certamente corresponder à capital i
mbangala.
Estas múltiplas e graves imprecisões servem para mostrar a enorme dificuldade em dar Durante um período bastante longo, o rio Kwangu concentrou os interesses de
à rede hidrográfica a sua verdadeira dimensão.
A melhor representação cartográfica, que inclui as novas informações respeitantes numero sos grupos. Os Imbangalas, encostados ao rio, impediam as populações da
margem oriental de o atravessarem livremente. Por sua vez, estas populações,
às zonas interiores da África central realizadas durante a primeira metade do século
XIX, é a do geógrafo inglês William Desborough Cooley: o seu mapa da África provavelm ente mais interessadas nas operações políticas e económicas viradas para
meridional, datado de 1852 ( 10),
assinala — no que se refere às regiões e populações leste, só manifestaram grande interesse pelas regiões atlânticas nos finais do século
XVIII. Os Portugueses mostraram-se incapazes de liquidar o bloqueio imbangala e de
que nos interessam aqui — Kasanje, a oeste do Kwangu e, a leste, os Muropoe de
Mwatyanvua, quer dizer, os Lundas centrais, o Kazembe dos Lundas orientais, assim conseguir atingir as populações fechadas a sete chaves na margem oriental do rio.
como o Lovale, ausente nos mapas anteriores. É evidente que o rio não é certamente, do ponto de vista estritamente geográfico,
A população instala-se na margem que vai de nordeste para sudeste, ao longo mais «misterioso» que muitos outros pertencentes à mesma rede hidrográfica. Acabámos,
do leito do rio, nas regiões situadas entre o Kwangu, o Kasai e o Alto Zambeze. de resto, de verificar que a inscrição do rio nas cartas geográficas depende da qualidade
Neste mapa, as terras já não são consideradas « desconhecidas», mas as comunicações das informações e do peso dos mapas conhecidos, associados às «certezas» metafísicas
insistem sobre o facto de, nesta região do Alto Kwangu, a população ser tão rara de alguns geógrafos. Mas o Kwangu desempenhou, de maneira maravilhosa, um papel
que Livingstone vai ao ponto de a considerar um autêntico deserto humano ( 11 ). Foram de separador político. Os Imbangalas transformaram, deste modo, o Kwangu em rio
ainda necessários mais trinta anos para que Capello e Ivens assinalassem, nas suas essencialmente político.
cartas, a presença dos Quiocos, informação essa confirmada algum tempo depois por Já o sabemos: a mudança do conhecimento tornou-se possível por via da viagem
Henrique de Carvalho (12). de Manuel Correia Leitão. Infelizmente, esta operação foi desacreditada pelos juízos das
É provável que esta situação seja determinada pela indiferença dos Portugueses em autoridades portuguesas de Angola, o que impediu que as informações obtidas pelo
relação aos territórios e às populações instaladas a leste do rio Kwangu, como mostra sargento-mor pudessem desempenhar o papel político que devia ter sido o seu. Verificou-
o mapa elaborado por Lopes de Lima, geógrafo profissional, em 1846. Se este autor -se depois, quase um século sem notícias, dado que a viagem dos dois pombeiros
reuniu um número considerável de documentos, referentes à geografia física das «Angolas africanos, enviados para a costa de Moçambique por Honorato José da Costa, em 1802,
portuguesas» da época (alusão feita aos dois «reinos» de Angola e de Benguela), não não foi objecto de um relatório sistemático.
se interessou, de maneira alguma, pelo conhecimento das «terras independentes da coroa Inversamente, as informações novas chegam das terras do Sul, quase todas
portuguesa» ( 13), o que explica que renunciasse também a qualquer opinião sobre as concentradas em torno de uma linha que vai de Benguela às fontes do Kwanza e inflecte
«terras desconhecidas». depois, já em terras orientais, para o Lovale. A via sul, sugerida por Correia Leitão,
O carácter impreciso das informações, referentes à região oriental do território que se fazia eco das informações obtidas junto de comerciantes certamente africanos,
organizado em torno do Kwangu, explica o real desconhecimento cartográfico, que só começa a funcionar de maneira muito satisfatória durante o último terço do século
pode ser corrigido após a expedição de Capello e Ivens. Utilizando o facto de serem XVIII.
dois a trabalhar, Capello e Ivens percorreram o rio cada um de seu lado, um pouco ao É difícil, digamos até impossível, afirmar que os conselhos de Correia Leitão
norte da confluência com o Kuafo. Esta técnica permitiu que se comparassem os dados tenham levado os viajantes portugueses e brasileiros a modificarem os itinerários para
geográficos e sociais das duas margens, situação inteiramente inédita na história do alcançar as terras orientais, furtando-se ao controlo imbangala. É verdade que o sargento-
conhecimento científico desta região do Centro-Leste angolano. A operação deu ocasião -mor diz que o conhecimento que possui da rede hidrográfica da região só foi possível
a eliminar os erros mais grosseiros, embora tenha sido necessário, nos anos ulteriores, graças às informações obtidas junto dos comerciantes — evidentemente africanos —
retomar de maneira constante esta cartografia, para afinar as observações e as suas que regressavam das terras dos «Quilubas» ( 15). Todavia, os seus conselhos pretendem
representações gráficas (14).
desviar o eixo das relações com a margem oriental para o Sul do rio, onde, de resto,
as confusões com o Kuafo, o falso Kwangu, foram constantes.
Os comerciantes — preferencialmente os brasileiros — conseguiram estabelecer
( 1 °) Id., ibid., pp. 197-198.
uma ligação indo de Benguela às terras de Lovale, já nos últimos anos do século XVIII.
Livingstone, 1859, p. 378.
Ver o mapa do Kwangu de acordo com Capello e Ivens, 1881, vol. II. Ver também Carvalho,
1890, cap. I.
Lima, 1846, livro III, II parte, cap. I e II.
Ver Capello e Ivens, o. c., vol. I, pp. 205-208, e Redinha, 1953, pp. 76-77.
( 15) Leitão, 1938, p. 24.
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Esta rota atravessava o Kwanza, assim como o Kwangu, o que a fazia aproximar-se
dos territórios quiocos (16). As terras do «Tchiboco» entram desta maneira no conhecimento
geográfico corrente, modificando de maneira assaz sensível o sistema das relações
comerciais com os territórios da África central.
A viagem e o saber do pombeiro Pedro João Baptista ficaram na simples tradição oral,
e só muito tarde o relato deste africano pôde ser acrescentado ao conhecimento da região.
Esta falta de conhecimento não foi compensada, muito longe disso, pela descrição
da viagem levada a cabo pelo francês Douville (17). Este recebeu as homenagens da
Sociedade de Geografia de Paris, que lhe atribuiu a medalha de ouro da instituição, mas
a sua obra não pôde resistir à análise crítica que o remeteu para o inferno das falsificações
científicas.
Há já algum tempo, Anne Stamm procurou reabrir o processo deste falso sábio, mas
parece que não conseguiu obter a absolvição do seu constituinte. De resto, é o próprio
«advogado de defesa» que se sente obrigado a multiplicar os comentários muito duros
perante as múltiplas passagens de Douville que revelam uma falsificação evidentíssima,
pois não concordam nem com o terreno nem com as práticas sociais (18).
Devemos, por isso, concluir ser integralmente enganador tudo o que conta
Douville? Anne Stamm salienta que o viajante teria sido vítima das «fabulações»
Fig. 5 — A travessia do Kwangu. Vê-se, na margem oposta, o feiticeiro. Carvalho, 1890, I, dos seus pombeiros (19). Pensamos, em sentido inteiramente inverso, que os elementos
pp. 526/527. originais que se encontram no texto provêm da forma como Douville ouviu as formas
orais da tradição imbangala.

Ver Derrota de Benguela para o sertão (1789), in Felner, 1940, II, pp. 24-25.
Douville, 1832.
Stamm, 1970, pp. 14-36. Douville foi, todavia, levado a sério em Luanda. Manuel Maria
Rodrigues dos Santos acusa, a 4 de Junho de 1853, numa carta enviada a Salles Ferreira, a recepção
da casca da árvore Panda, muito utilizada na região do Songo em casos de febre elevada. Rodrigues
dos Santos ainda não tinha experimentado o febrífugo, mas promete fazê-lo mesmo que a casca tenha
chegado já bastante desidratada, o que parecia torná-la menos eficaz. O acontecimento é certamente
menor, mas põe em evidência a confiança que se dava em Luanda a Douville, a ponto de a sua indicação
escrita provocar a resposta imediata dos Portugueses, mau grado as condições difíceis em que se
passavam as comunicações. Mas também nos damos conta que esta informação pode provir não de um
qualquer conhecimento directo do terreno, mas sim dos comentários dos carregadores, tão mal julgados
por Anne Stamm; Ver AHU, Doc. 122, cx. 2, diversos (823), p. 12.
Anne Stamm procurou em vão reabilitar Douville, voltando a abrir o seu processo. A historiadora
quis «criar» uma psicologia de Douville, o que é assaz singular, pois era de facto impossível definir a
psicologia do morto, a não ser de um ponto de vista estritamente literário e, por isso, inteiramente inútil.
Lucien Goldmann tinha já alertado contra este pendor da psicologia literária e literalizante, à qual alguns
historiadores resistem mal.
É contudo Anne Stamm (1970) quem multiplica as condenações de Douville, ao pôr em evidência
as imprecisões múltiplas que tornam uma fracção «da sua narrativa inadmissível» (p. 15). Diz ela
também que, a não ser por meio de uma explicação esquisita, lhe parece impossível que Douville tenha
levado a cabo o seu trajecto (p. 29); ele descreve um monte Zambi «de que não encontramos o menor
vestígio» (p. 18), tendo o viajante consagrado também «doze páginas à descrição de um lago que não
existe» (p. 23). A soma destas «impossibilidades», vale mais dizer destas falsificações, torna a narrativa
Fig. 6 — Os rápidos do Canhumgamwa. Capello e Ivens, 1881, I, p. 81. inutilizável do ponto de vista científico.

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Não deixa, em todo o caso, de ser surpreendente que a técnica utilizada por Pensamos que estas serpentes possuíam companheiros aquáticos igualmente perigosos
Douville para conseguir atravessar o rio seja apenas a repetição da operação organizada e temidos, tais como os crocodilos e os hipopótamos, que ameaçavam os homens e as
anteriormente por Correia Leitão. A única diferença reside no facto de Douville ser o culturas (23).
beneficiário da intervenção de um dos «filhos» (?) do Jaga, ao passo que Correia Leitão A presença destes animais pode explicar que as margens estivessem desertas, mas
teve de se limitar a recorrer aos humildes da hierarquia social imbangala (20). obriga-nos a analisar o estatuto dos responsáveis pela travessia dos rios, a quem está
Já sabemos que Correia Leitão foi enganado, apesar de conhecer as línguas confiado o serviço das pirogas, obrigados a manterem-se ligados ao rio. Voltaremos a
africanas; por isso, podemos admitir a hipótese de nos encontrarmos perante uma considerar este aspecto da questão, quando procurarmos elucidar a quantidade de
técnica utilizada pelos Imbangalas, o que explicaria a homologia da situação: sempre problemas associados às pirogas e aos técnicos que as fabricavam e as faziam funcionar.
que é necessário «satisfazer» os estrangeiros, que manifestam tão fortemente o desejo Os Imbangalas organizaram-se de maneira a assegurar a defesa do rio, tornando-o
de conhecer e, eventualmente, de atravessar o rio, os Imbangalas fornecem-lhes o tão impermeável quanto possível, não só proibindo que os viajantes e os curiosos pudessem
guia indispensável! estudá-lo, mas criando um vazio urbano, que assegura — ou reforça — a eficácia de
Estas peripécias não permitem reforçar o conhecimento: as informações de Douville, semelhante controlo.
que a Sociedade de Geografia de Paris imprudentemente caucionou, são até uma regressão. É por estas razões que pensamos ter Manuel Correia Leitão sido enganado pelos
1
A rejeição, é verdade que mais implícita do que explícita, dos documentos portugueses, Imbangalas, que organizaram uma operação destinada a convencê-lo de haver estado
reforçada por certas violências da escrita de Livingstone, impediu o real conhecimento no rio, tendo-o levado para outro curso de água. Todavia, ele regressou seguro de haver
das particularidades da bacia hidrográfica que associa a relação Kwangu-Kasai-Zaire. cumprido a missão de que fora encarregado. De certa maneira, Correia Leitão estava
A defesa do rio foi sempre uma das tarefas essenciais dos Imbangalas, instalados condenado a acreditar que o fizera, pois nisso empenhara a sua honra.
perto do Kwangu. Porque, contrariamente ao que deixam pensar alguns mapas, a capital Deixemos os pormenores de lado. Estas escórias da escrita não nos ajudam em
de Kasanje não se encontra localizada junto do rio. Correia Leitão indica-o com alguma coisa alguma. O facto é que as afirmações do sargento-mor, no que se refere ao rio,
precisão: «a corte de Cassanje, a que eles chamam Quilombo, jornada e meia de preto, são pelo menos curiosas. Diz ele que o rio pode ser atravessado a vau, mesmo durante
e, antes de se chegar a ele, se vadeiam quatro regatos dos nomes Cassanza, Luale, as enchentes, tão estreito é (a sua largura corresponderia a um tiro de pistola,
Catendela, charco de água em que corre alguma [água] e Lueto, o mais vizinho ao dito provavelmente trinta metros). Foi-lhe até possível medir a sua profundidade, recorrendo
Cuango» ( 21 ). Apoiando-nos nas informações dadas pelos textos, podemos calcular que ao libungo, quer dizer, a uma vara comprida: encontrou aí seis palmos como profundidade
esta distância deve andar à volta de cinquenta/sessenta quilómetros (8 + 4 = 12 horas de máxima, ou seja, menos de dois metros ( 24). Esta descrição contrasta com a de Livingstone
marcha X 4,5/5 km/hora). que pôde ver o rio durante o dia, e nos afirma que ele é profundo, medindo «cento e
Livingstone parece confirmar estes dados, mas acrescenta uma reflexão importante cinquenta metros de largo» ( 25 ). Correia Leitão vira um rio estreito, de facto um ribeiro,
provocada pelo grande número de serpentes venenosas que enchem o Kwanza: «é talvez que seria possível passar sempre a vau, em qualquer lugar. Livingstone descobre um
por essa razão que todas as aldeias desta região estão afastadas das margens do rio» (22).

pp. 120-131, e 1992, pp. 31-36). As respostas africanas são, neste quadro geográfico, inteiramente
diferentes, embora a água se mantenha como um nó cheio de preocupações, dado que os homens que
Inversamente, estamos de acordo com Anne Stamm quando ela estrutura o mecanismo da organização se instalam longe da água agravam o trabalho das mulheres, que devem socorrer-se do rio para dispor
de Douville: «certamente o nosso autor comete o grande erro de dar crédito ao falatório dos seus de água nas aldeias. Esta situação faz com que a água doméstica possa rarear numa região onde a rede
pombeiros ou dos autóctones, e ainda mais de extrapolar e de esboçar, a partir destas narrativas, hidrográfica é conhecida pela sua densidade.
paisagens ou situações, que ele afirma ter contemplado» (p. 23). O caçador de elefantes Diocleciano Fernandes das Neves (1878, p. 47; o texto foi recentemente
Não é verdade que estes falatórios fazem parte do trabalho dos antropólogos que se instalam editado em Lisboa, tendo como co-autor Ilídio Rocha, o que constitui uma falsificação escandalosa, que
num terreno destinado à investigação? O que se deve fazer é submetê-los a uma espécie de debate o editor tinha obrigação de evitar) conta haver recebido agradecimentos de uma mulher, depois de ter
contraditório, capaz de permitir a eliminação do falso, para reter o verdadeiro ou, pelo menos, o abatido um enorme hipopótamo: «Ah, melungo [branco], você prestou à gente desta terra um serviço
verosímil. Douville não pode ser utilizado, a não ser como uma espécie de eco das informações d'alta importância, matando o cavalo-marinho. Este feiticeiro devorava todas as nossas sementeiras de
que, em Luanda e em Pungo-a-Ndongo, eram consagradas aos Africanos e às condições sociogeográficas milho». Diocleciano confessa ter-se rido da qualificação dada ao hipopótamo, mas ela traduz o receio
em que viviam. experimentado perante estes animais que o homem não consegue controlar, menos ainda domesticar.
Leitão, 1938, pp. 22-24. Acrescentemos que o incidente se verificou em Moçambique, o que não lhe reduz de maneira alguma
Id., ibid., pp. 21-22. a importância. Livingstone, 1859, p. 405, também dá conta da presença dos hipopótamos, mas não os
(22) Livingstone, 1859, p. 405. A situação diverge inteiramente daquela que se regista entre as considera responsáveis pela distância a que se instalam as populações em relação aos cursos de água.
populações onde a água é subterrânea e obriga à construção de engenhos que permitam utilizá-la. Jean Leitão, 1938, pp. 21 e 23.
Devisse consagrou alguns estudos a estas situações. (Ver Les africains et l'eau: la longue durée, 1985, (25 ) Livingstone, 1859, p. 405.

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grande rio que ninguém poderá atravessar se não recorrer à piroga. Como foi possível portugueses todas as atribulações que suportamos nas populações vizinhas» (29). A
semelhante divergência? situação aparece agora radicalmente mudada: meio século teria sido o necessário para
Temos de acreditar que Correia Leitão foi vftima de uma manobra destinada a que o rio perdesse a sua função de barreira aquática, utilizada para impedir a livre
impedi-lo de ir até às margens do Kwangu. Os Imbangalas receberam os presentes e circulação de homens e de mercadorias.
levaram-no a ver outro rio: ele queria ver o Kwangu, pois bem, mostraram-lhe o
Kwangu, e ele pôde retocar o seu relatório para manifestar ao governador que fora
capaz de levar a cabo a tão difícil tarefa de que fora incumbido. Não lhe passa pela III. Pontes e pirogas
mente a menor dúvida? Correia Leitão tinha vivido demasiado tempo em Angola para
desconhecer que a astúcia foi sempre uma das armas mais apreciadas pelos Africanos É contudo o rio descrito por Livingstone, largo e profundo, que exige o recurso às
nos confrontos com os Portugueses (26). pirogas, cuja existência fora anunciada a Correia Leitão pelos seus informadores:
Comparando as descrições de Correia Leitão e de Livingstone, das mais ricas em «porém, em alguns pontos [o rio] se passa em canoas» (30). Alguns anos mais tarde,
dados físicos e existenciais, antes da segunda metade do século XIX, podemos registar em 1789, a situação dos viajantes, que de Benguela se dirigiam para as planícies de
grandes diferenças. As terras que separavam a capital imbangala do rio estavam desertas: Loyale, dependia do estado do rio, das pirogas e dos passadores. As pirogas pertencem
nem cubatas, nem animais, nem homens; todavia, Livingstone encontra aí alguns grupos: a um chefe, provavelmente songo, e sem este engenho seria completamente impossível
«cerca de três milhas a oeste do Kwangu, encontramos várias casas quadradas, cujos atravessar o Kwanza (31). Afirma-se assim, de maneira peremptória, a importância das
proprietários, mulatos portugueses, estão à porta de casa e saúdam-nos cordialmente. pirogas, razão pela qual elas devem ser consideradas um instrumento político, que os
São todos milicianos e é o nosso amigo Cypriano que os comanda» (27). chefes gerem para autorizar ou impedir os contactos entre as margens dos rios, única
A frente do rio não se encontra, pois, deserta. Estão aí instalados os mulatos maneira de assegurar as relações entre as populações. O comportamento do chefe songo
portugueses ao serviço dos circuitos comerciais. Só mulatos? Certamente, pois em 1843, coincide com o do Jaga, como tinha observado Correia Leitão. As informações do
Rodrigues Graça apenas regista seis brancos entre os habitantes ligados ao comércio sargento-mor mostram que o controlo deveras rigoroso, das pirogas e dos barqueiros,
e instalados no Bié (28). Podemos, sem dificuldade, aceitar o princípio que estas tarefas reforça a possibilidade da fiscalização exercida pelos chefes imbangalas. Não se trata
fronteiriças, numa região muito pouco salubre, teriam sido confiadas a mulatos ou a de impedir os contactos, mas de os tornar dependentes da autorização do Jaga. Não
negros fortemente aculturados. parece, por outro lado, que estas pirogas sejam muito numerosas, servindo a flotilha
Livingstone vê nessa situação a prova de um entendimento entre Portugueses e para criar pontos de passagem obrigatórios, naturalmente mais fáceis de controlar.
Imbangalas; «ainda há pouco tempo, os Bangala faziam sofrer aos comerciantes A circulação dos homens e das mercadorias só parece fazer-se facilmente durante
a estação seca, pois que, em virtude da imensidão da rede hidrográfica, a estação das
chuvas multiplica obstáculos e perigos: todas as depressões do terreno estão cheias de
água e a vegetação espontânea conhece um crescimento, por assim dizer, fulminante,
O reconhecimento do Kwangu foi constantemente diferido pelos Portugueses. Em 1852, o
tornando ainda mais difícil, quando não impossível, a circulação das pirogas, que são
major Francisco de Salles Ferreira redige as respostas «às perguntas exigidas» por «Sua Excelência o
Secretário do Conselho Ultramarino». A sétima pergunta é consagrada ao rio Kwangu: «a que distância embarcações relativamente frágeis (32).
de Cassanje vai juntar-se com algum outro afluente principal com que forma o Zaire?». A resposta é A importância dos barcos, que permitem diminuir as dificuldades criadas por tão
muito significativa: «a esta pergunta nada posso responder, por quanto vi o Cuango em um ou outro ponto numerosos obstáculos aquáticos, é assinalada já muito cedo pelos documentos portugueses.
sem prestar a precisa atenção para cabalmente a satisfazer por ter então cuidados mais sérios de que Um texto anónimo de 1789 permite-nos saber que na região de Loyale «o gentio aqui tem
me ocupar; no entanto, conheço-lhe os afluentes: Catenha, Undio, Lui, que é o maior, Capanza, Unsuela,
suas canoas de pau, que carregam até dez pessoas, feitas mais ou menos toscas a modo
Capanza do Loembo e outros muito pequenos, mas estes rios, que enchem muito no tempo das chuvas,
despejam todos imediatamente conservando pouca água, à excepção do Lurque, mesmo assim não sendo
das do Brasil» (33). Em 1846, pouco mais de cinquenta anos mais tarde, Silva Porto
tempo de chuvas, dá passagem, todos eles nascem no Songo Grande, cortão Cassange na sua largura
e vão desaguar no Cuango».
O documento é revelador da relação tão particular existente entre a cidade real e o rio, de tal modo
que o major, que dirige o ataque militar contra a primeira, pode permitir-se o luxo de não conhecer o
segundo de maneira precisa. É esta situação que explica as insuficiências da cartografia, tal como já Livingstone, 1859, p. 407.
tinha autorizado a operação destinada a enganar Manuel Correia Leitão. Dado o pouco conhecimento Leitão, 1938, p. 21.
de um homem de terreno em 1852, como mostrar surpresa perante as imprecisões de 1755? AHU, cx. Anónimo, 1789, in Felner, 1940, II, pp. 19 e 22.
Carvalho publica a imagem de um barco procurando romper a densa vegetação aquática,
2, diversos (823), s. 12.
1890, p. 20.
Id., ibid., p. 407.
(28) Graça, 1890, pp. 399-400. (33) Anónimo, ibid., II, p. 22.

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assinala, nas regiões a leste do Kwanza, nomeadamente no Zambeze, a utilização de
«canoas que transportam de dez a cinquenta cargas [= 25 a 30 kg] ou pessoas» (34).
Este dispositivo técnico compensa mal a extrema raridade das pontes, tal como
acontece no Alto Kwanza. Ora as regiões do Norte e do Nordeste de Angola são
caracterizadas por uma pluviosidade intensa, exactamente ao invés das regiões mais
secas do Sudeste, tal como no-las descreveu Silva Porto. A violência das cheias arrasta
a maior parte, quando não a totalidade, das pontes feitas de lianas e, por isso, incapazes
de resistir à enorme pressão dos rios engrossados pelas chuvas. Em 1846, Silva Porto
quase caiu ao rio quando a ponte se desfez sob o peso das pessoas, associado à grande
violência da corrente (35).
Por outro lado, as pontes não são — a não ser em casos muito raros — os
instrumentos capazes de enfrentarem a violência dos elementos. A competência técnica
dos Africanos não parece muito avançada neste capítulo. Sempre em 1846, Silva Porto
fornece algumas indicações referentes a este problema: «nesta região do Sudeste, que
se estende do Bié para o Kwangu e Kunene, as pontes são construídas nos meses de
Outubro e Novembro, período durante o qual os rios começam a subir; fora deste
período, a construção de uma ponte torna-se impossível, em consequência das chuvas
contínuas e das grandes enchentes dos rios» (36).
O facto de as pontes estarem ligadas às condições pluviométricas já fora assinalado
por Magyar, mas o viajante húngaro é o único que faz referência a uma particularíssima
Fig. 7 — Uma ponte sobre o Kunene. Capello e Ivens, 1881, I, p. 81. competência técnica dos Africanos. Magyar descreve a «habilidade [com a qual] os
Negros nadam e constroem a ponte. Esta habilidade só pode ter sido aprendida graças
à prática de vários anos [em virtude] das suas numerosas viagens» (37).
Parece que esta informação não pode ser banalizada, na medida em que não conta
com os perigos que caracterizam estes rios, desde as serpentes venenosas, assinaladas
por Livingstone, até aos crocodilos e hipopótamos. E mesmo que estes animais não
existissem, a própria violência da corrente, continuamente evocada pelos viajantes
bloqueados pelas cheias dos rios, seria suficiente para aconselhar prudência.
Apesar disso, os viajantes estão de acordo quanto a um ponto essencial: se os
territórios formam um espaço comum durante a estação seca, tal situação desaparece
enquanto dura a estação das chuvas, reduzindo a circulação dos homens e das coisas,
e tomando flácidos, distantes ou, simplesmente, impossíveis os contactos entre as diferentes
regiões ou grupos (38).
Os autores convergem também para salientar as destruições constantes das pontes,
situação agravada no decurso das grandes cheias. Não só as pontes desaparecem, mas

Porto, 1986, p. 232.


Id., ibid., p. 269.
Id., ibid., pp. 269 e 288-289.
Magyar, 1973, cap. III, p. 21.
(38) E. E. Evans-Prichard descreve, na monografia clássica consagrada aos Nuer, a alteração do
território provocada pelas cheias, que obrigam os Nuer a refugiar-se nas colinas, quando a planície está
completamente inundada. Esta mutação provoca uma outra: os pastores tornam-se, durante a estação das
Fig. 8 — Ponte sobre o Luchico. Carvalho, 1892, II, pp. 583/584. chuvas, pescadores, sendo o peixe, e não o leite, o alimento principal. 1968, cap. II.

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a circulação dos homens é igualmente obrigada a parar: «o rio tinha-se tornado em lago,
As duas perguntas não podem receber resposta satisfatória, mas servem para
que não permitia acesso ao seu leito» (39). É, outrossim, perigoso recorrer às embarcações
mostrar a enorme complexidade das tarefas associadas ao rio, que exigem competências
que, não poucas vezes, são arrastadas pelas correntes, incapazes de fazer face à sua
técnicas consideráveis. O estatuto destes artesãos merece uma análise, mas encontramo-
violência. -nos impossibilitados de a fazer. Provavelmente, a situação dos passadores é inteiramente
Ainda neste registo, retenham-se duas informações provenientes de Silva Porto. A
diferente, mas o laço estabelecido com os rios é por vezes muito particular, na medida
primeira refere-se à construção dos barcos (40): são fabricados respeitando as instruções em que as grandes linhas de água pertencem também frequentemente a Kalunga, a
dos chefes políticos que têm ao seu serviço passadores que devem ser remunerados por importantíssima divindade aquática. A água corrente é, em muitíssimas situações
quantos se vêem obrigados a recorrer aos seus préstimos. religiosas, uma espécie de «pátria» dos espíritos.
Como não chamar a atenção para o facto de a construção destas embarcações não
depender do livre arbítrio dos carpinteiros ou dos chefes de linhagem ou de aldeia? A IV. Semelhanças e diferenças regionais
decisão da construção deve ser tomada pela cúpula do poder político, o que confirma
amplamente o carácter «político» do barco e da sua utilização. Devemos dar conta dos dois registos do conhecimento geográfico aqui implicados:
Esta situação é reforçada de maneira evidente pelo facto de as pirogas, como as o primeiro, o dos Africanos, muito pragmático, cuja eficácia podemos julgar através
pontes, serem organizadas para fornecer rendimentos ao chefe, como de resto diz Silva do conhecimento das redes comerciais a longa distância, e o segundo, dos Europeus,
Porto: «Pago [por nós] o frete da ponte aos donos da passagem que aí achavam através dos documentos escritos e organização das cartografias. A estrutura deste
postados, não obstante a chuva fina que incomodava, passámos este rio [Kunene], para conhecimento foi muito lenta e só terminou por volta de 1950.
a margem direita, de doze braças de largura» O progresso dos conhecimentos permite aos Portugueses aperceberem-se do
Não encontrámos contudo informações capazes de nos permitirem resolver dois conhecimento geográfico que fora há muitíssimo tempo organizado pelos Africanos.
problemas: o das condições de fabrico das pirogas monóxilas e a do estatuto dos Estes dividem este imenso espaço em três regiões, levando em conta tanto as condições
passadores. As pirogas são fabricadas por homens hábeis na utilização do machado e geográficas como as políticas regionais (43).
provavelmente da enxó, mas convém talvez prestar atenção à seguinte questão: para que A primeira região — ao sul — é a de Loyale ou Loval, que os Africanos chamaram
o barco navegue não basta abater uma árvore e escavar o tronco, é preciso também que também Lobalo ou Balobale — formada por planícies, muito pouco elevadas acima do
seja capaz de flutuar, o que exige um equilíbrio constante, para não pôr em perigo nível dos rios, o que explica que as cheias das estações das chuvas transbordem e inundem
homens e mercadorias. as terras.
A produção destas pirogas tem, por isso, de ser confiada a artesãos hábeis, como Estas vastas extensões, onde as gramíneas são quase sempre muito densas, encontram-
se pode verificar ainda hoje no arquipélago de S. Tomé e Príncipe, mau grado a -se em Angola entre o curso superior do Kasai, do Lungue-Bungue e do Zambeze —
importação de técnicas europeias. O trabalho da madeira exige instrumentos eficazes, que teve igualmente os nomes de Diambezi e de Riambezi.
tal como impõe o conhecimento íntimo do material que é necessário utilizar. A compe- Fazendo fronteira com estas planícies, a norte do Kasai — também conhecido como
tência vem assim somar-se aos instrumentos de trabalho utilizados. Infelizmente, os Cassaby, Zaire ou Luce — encontra-se o país do «Tchiboco», que nós nomeámos país
documentos de que dispomos são quase mudos a esse propósito. Até um observador tão Quioco, situado, de acordo com Magyar, «entre 10 e 13 graus de latitude sul e 20 a
subtil como Henrique de Carvalho, que utilizou assaz correntemente as pirogas, se 24 graus de longitude leste» (44).
«esquece» de nos dizer como eram fabricadas e por quem. Os limites do território quioco, «região de montanhas de clima temperado», eram
Esta primeira pergunta suscita a segunda: Correia Leitão dá conta destes passadores «a norte (...) os Szyngye [Xinje ou Shinje] e [os] Molua; a leste [os] Lobale; ao sul,
que consagram a vida à travessia do rio, situação descrita no Kwanza, em 1789 (42). Isto a província Bunda ou Luchaze e no extremo oeste a floresta virgem de Olo-Vihenda,
quer dizer que estes homens devem manter-se à disposição dos cientes habituais ou, ainda que os [Quiocos] separa do povo Kimbandi [aparentado com o grupo ganguela]» (45).
com mais rigor: são prisioneiros do rio. Esta indicação quer dizer que há constantemente É nesta segunda região, que ocupa hoje metade da província da Lunda, assim como
homens em circulação nas rotas comerciais, mas ela exige também que os passadores sejam uma parte importante do Nordeste do Moxico, que encontramos as elevações onde
obrigados, por um estatuto especial, a manter-se longe das aldeias normais. nascem os grandes rios. Na fórmula europeizante de Capello e Ivens, seria aqui o «Saint

Porto, 1986, p. 288.


Id., ibid., p. 269.
Redinha, 1958, p. 46.
Id., ibid., p. 286. Ver também Livingstone, 1859, p. 406.
Magyar, 1859, p. 7.
Anónimo, o. c., II, p. 19. Ver também Porto, 1986, pp. 281 e 286.
(45) Id., ibid.

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Gothard das águas africanas», ao que outros autores preferem dar o nome de «mãe das
águas» (46).
Já a meio do século a fertilidade do território quioco fora assinalada por Livings-
tone ( 47), e trinta anos depois, Capello e Ivens punham em evidência a riqueza das suas
produções vegetais, associadas a um clima fresco e agradável (48).
A terceira região estende-se do outro lado do Kwangu: a de Kasanje. Este reino
estava situado num território de baixa altitude, a Baixa de Kasanje, limitado a oeste
e a sudoeste pela cordilheira de Talla-Mugongo, a leste pela margem direita do Kwangu
e a norte pela confluência do Kwangu e do Lui.
Capello e Ivens dividem a terra de Kasanje em três regiões distintas: Quembo, longo CAPÍTULO II
e Holo. Se bem que estas três regiões apresentem algumas características geográficas
específicas, sendo Quembo aquela onde as árvores são ralas, quente e sem água, o As complementaridades alimentares
território de Kasanje ocupa uma ampla planície irrigada de savana arborizada, onde o
clima é nitidamente tropical, dividido nas duas grandes estações, a das chuvas, que é Como construir a história de África sem levar em conta a densidade das estradas
quente, e a seca, de Maio a Setembro, muito mais fresca ( 49). Regista-se também em que as sociedades criaram para poder assegurar contactos permanentes? A utilização
Janeiro e Fevereiro uma espécie de interestação, a quiangala, caracterizada pela dos instrumentos musicais, tambores de todas as naturezas e instrumentos de sopro,
interrupção das chuvas (50). serve aos Africanos para vencerem a distância e comunicar: esta situação mostra a
Centrada em torno da Feira de Kasanje, esta região vive essencialmente de uma vontade deliberada de romper o falso escudo do isolamento e da auto-suficiência. O
agricultura que se faz, sobretudo, durante a estação seca, produzindo excedentes destinados Outro, vizinho próximo ou distante, é assim mobilizado para funcionar como interlocu-
ao consumo das caravanas. Ocupa, por essa razão, uma posição estratégica no comércio tor indispensável.
regional, desempenhando o papel de intermediária entre a costa e o interior, o próximo, Podemos assim verificar que as sociedades africanas não procuram «enterrar-se»
mas também o distante, em plena região central (51). na floresta ou dissolver-se na savana, mas antes organizar-se, para poder assegurar
A economia destas três regiões possuía grandes semelhanças, mas tal não recusa relações permanentes com os outros: a multiplicação e a eficácia dos «instrumentos de
as diferenças: a agricultura combina-se com as actividades de recolecção, assim como comunicar ou até de falar» (') fornecem uma prova suficiente.
com as práticas predadoras, dado que a cintura da tsé-tsé impede a criação de quase As regras da civilidade africana exigem que, logo que chegue a uma aldeia, o
todos os tipos de bovinos e de cavalos. A organização agrícola depende das rupturas visitante comunique tudo o que ouviu pelo caminho aos homens que se reúnem para
sazonais, como de resto as demais ocupações, incluindo as comerciais. Do ponto de essa circunstância. Aquele que se recusar, rompendo com as regras africanas e tornando
vista alimentar, as populações consomem enormes quantidades de mandioca, assim impossível a comunicação, será mal visto. O homem deve, acima de tudo, revelar-se
como vários tipos de milho-painço. comunicativo.
O comércio constitui uma das actividades que servem para manter ligadas as A soma destas práticas mostra-nos um facto simples: as populações não querem
regiões. É certo que ninguém ignora as suas astúcias, mas nenhum grupo as utiliza para encerrar-se no silêncio. O seu objectivo é assegurar a comunicação. A mercadoria,
romper: a astúcia receberá a resposta por via de uma astúcia mais sofisticada. É de resto sendo embora um bem económico, caracterizado por valores e funções mais ou menos
o comércio que reforça as condições de uma certa interetnicidade que mantém a coerência estáveis e codificados, funciona também como maneira de comunicar: o objecto, a coisa
das regiões. Só ela podia ter permitido a longa duração da hegemonia de Kasanje, tanto oferecida, trocada ou vendida, falam também do fabricante e do comerciante. Estes
face aos vizinhos africanos como aos Europeus. asseguram uma certa presença, pois que a materialidade dos objectos não lhes dissimula
a carga comunicativa.
Estas razões haviam de levar as sociedades africanas a produzirem para trocar, e
o inventário dos bens mais importantes das sociedades inscritas nos espaços geográfico
e histórico, que devemos analisar, põe em evidência a imensidade potencial da
complementaridade, que caracteriza as práticas dos homens. O produto mais modesto
Capello e Ivens, 1881, I, pp. 202-203. encontra-se num plano similar ao do produto rico, pois que todos podem ser trocados,
Livingstone, 1859, pp. 451-452. provocando uma resposta da mesma natureza da parte do Outro.
Capello e Ivens, id., ibid.
Id., ibid., pp. 289-290.
Id., ibid., p. 342.
Id., ibid., p. 292. ( I ) Ver Ablegmagnon, E, 1964, que descreve as funções da «língua tamborilada».

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O inventário das produções serve assim para esboçar a rede das trocas, das O insuficiente diário de viagem de Baptista traduz a maneira como os dois angolanos
complementaridades, sem as quais as sociedades africanas seriam incompreensíveis. — Baptista e o seu companheiro preto Anastácio Francisco (3), ambos pombeiros-
Não há leque de mercadorias rígido e permanente, existe sempre a possibilidade de criar -escravos de um comerciante português (4) — descrevem as sociedades africanas com
algumas novas. No caso que nos interessa, as modificações mais importantes provêm as quais estabelecem contactos. Os viajantes partem de Kasanje em 1802, para chegar
dos próprios Africanos. As redes do comércio interafricano a grande distância são alguns anos mais tarde (1811) à cidade moçambicana de Tete. Baptista recebe instruções
alimentadas por comerciantes africanos, cujo projecto é o de satisfazer os seus desejos. do governador português para redigir as informações respeitantes à fracção da viagem
Os documentos europeus estão saturados de práticas, de mercadorias, de interesses de Musumba — capital lunda — até Kazembe, para completar o diário também
europeus. É contudo graças à análise atenta desta documentação que devemos procurar precário de Francisco José de Lacerda e Almeida (5).
fazer emergir as escolhas africanas. O marco essencial da primeira fase desta investigação Infelizmente, o governador, numa atitude mesquinha, recusou fornecer a Baptista
consiste em pôr em evidência a importância das complementaridades interafricanas. o papel que lhe era necessário para descrever a parte da viagem que o levara de Kasanje
O texto de Pedro João Baptista permite julgar a importância do comércio inter- à Musumba (6). Esta informação serve para evidenciar o carácter da autoridade portuguesa
-regional africano nos primeiríssimos anos do século XIX. Trata-se de um documento que, todavia, soube reconhecer a importância da missão realizada pelos dois angolanos,
estruturado a partir de uma visão fundamentalmente africana, mesmo que o seu autor não hesitando em convidar Pedro João Baptista a sentar-se em sua companhia, o que
seja um mestiço aculturado, como prova a utilização da escrita, neste momento da este recusou, lembrando ao governador o seu estatuto de escravo. Mas não podemos
história angolana. É certo que o Angolano não pode furtar-se às regras específicas que
deixar de condenar severamente o governador que nos retirou, para sempre, a possibilidade
presidem à organização das narrativas portuguesas da viagem, mas trata-se de um
de dispor de uma descrição minuciosa — e africana! — da capital lunda, e da circulação
contexto angolano. O pombeiro, que depois viajará largamente, tendo visitado o Brasil,
dos homens e das mercadorias na região Kwangu-Kasanje-Lunda.
só conhece o interior angolano, e deve receber as informações que a via oral africana
transmite no que diz respeito às populações da África central.
As condições sociológicas do autor permitem explicar o desfasamento existente
entre a visão de um Angolano e a dos Europeus. Os historiadores têm o mau hábito 1. O sal: alimentação, circulação e poder (7)
de proceder à elisão do nome do autor, sendo o texto apresentado como provindo dos
«pombeiros». Simplesmente, a escrita possui um nome, cujo texto constitui uma das A. O sal de Kazembe
chaves que permitem compreender o mecanismo do poder, assim como a organização
comercial destas regiões. Na viagem entre Muropoe (Lunda) e Kazembe, Baptista registou um vaivém
O sal é o melhor exemplo desta situação. Mercadoria preferencial dos Africanos, constante de homens carregados de mercadorias em direcção às salinas, os quais se
fonte de poder e de prestígio, o sal está praticamente ausente nas narrativas de viagem cruzavam com outros já transportando sal, de regresso dessas mesmas salinas de
dos Portugueses, antes que os exploradores «científicos» do último quartel do século Kazembe. Trata-se de um sal algo acinzentado e preparado pelos africanos a partir das
XIX (2) venham substituir os viajantes-comerciantes. Estes, preocupados sobretudo em «palhas». Os Africanos chamam «salinas» aos lugares onde se produzem estas «palhas»
dar conta das mercadorias europeias ou africanas que interessam ao comércio europeu salgadas.
— tais como escravos, cera e marfim —, esquecem com muita frequência as produções
africanas — entre as quais o sal —, destinadas ao consumo africano e colocadas por
Pedro João Baptista no centro da sua descrição.

Tornou-se quase uma lei afirmar que Amaro José acompanhou Pedro João Baptista até
(2) Capello, Ivens e Henrique de Carvalho descrevem, por volta de 1880, este produto africano, Tete. O pombeiro foi, na realidade, acompanhado por Anastácio Francisco. Ver Baptista, 1843, por ex.,
com uma grande minúcia. Deve contudo acrescentar-se que a excelência do sal já fora registada na pp. 496 e 501.
Etiópia, no século XVI. No seu relato, Francisco Álvares fornece algumas indicações que podem ser Trata-se de Honorato José da Costa, militar e comandante-director das Feiras de Mucary e de
relacionadas com as práticas comerciais dos moradores da Kisama ou da Lunda: «Há em ela a melhor Kas anj e.
cousa que há em Etiópia, seja o sal [sal-gema], que em tôda a terra corre por moeda, assim nos reinos Baptista, 1843, pp. 163-165.
e senhorios do Preste, como nos reinos dos mouros e gentios, até dizerem que vai para Manicongo». Id., ibid., p. 494.
A grande diferença reside no sistema de transporte: os Etíopes servem-se dos animais: «Êste sal é de (7) As primeiras referências portuguesas à importância do sal entre os Africanos datam da segunda
pedra tirado em serra (segundo dizem) e vem de feição de adôbes. Tem de comprido cada pedra palmo metade do século XVI. Já em 1563, o jesuíta António Mendes fazia observar que o sal «es alia su moneda
e meio e do meio quatro dedos, de través três dedos, assim vão carregadas nas bêstas como lenha curta». y con el compran todas suas cousas que an menester». Brásio, MMA, vol. II, p. 495. Apesar desta
Lisboa, A. G.
Padre Francisco Álvares, Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias, observação, os Portugueses não tentaram conhecer os modos e os lugares de produção do sal angolano,
C., 1943, p. 108. com excepção do sal-gema da Kisama.

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Baptista dá-nos a primeira descrição do fabrico deste sal: na «varja grande onde parece desenhar-se, nas entrelinhas da descrição algo neutra de Pedro João Baptista,
foi desembocar no rio Lualaba (...) [os africanos] tiram o sal, o qual sal cortam a palha um conflito entre os Lundas centrais da Musumba e os de Kazembe, no que se refere
(...) e vão [-na] queimando a cinza em umas panelas pequenas que eles fazem e vão aos direitos sobre as salinas, o que explica uma parte dos tributos enviados pelas
cozinhando água luada [enlameada], e fazem uma medida de uma panela pequena, todos autoridades de Kazembe ao Mwatyanvua.
em geral onde medem o dito sal para venderem que vem ser [o preço praticado] dez «... Rei Cazembe [possui] (...) no dito território bastante sal que [os habitantes de
panelinhas valem um xuabo...» ( 8 ). Estas ervas seriam assim espontâneas, sendo a Cazembe] tiram na mesma terra, e tem também outra qualidade de sal de pedras que
intervenção dos Africanos e dos recolectores clássicos. Dada a importância e a vem em tributos na salina que está no caminho da terra do Mulopue chamada Luigila
complexidade das operações, esta leitura parece-nos um pouco limitada; deve certamente [a que o autor dá também o nome de Quigila], onde se acha um seu potentado e parente
verificar-se uma intervenção do homem, pelo menos para assegurar o completo chamado Quibery a tomar sentido da dita salina, assim como mandar tributos ao seu
desenvolvimento das plantas, cujo ciclo vegetativo não foi retido por Baptista. Muropoe...» (14).
Alguns anos mais tarde, por volta de 1831, Gamitto, mais interessado pelos habitantes Encontramos assim a confirmação da importância estratégica do sal e das salinas
do território que une a costa oriental à região de Kazembe, descreve minuciosamente nas relações interafricanas, tanto no plano do consumo como no registo mais estri-
a técnica utilizada por estas populações de raiz lunda, na preparação do sal de origem tamente político. O sal está tão profundamente ligado ao poder, que aparece pelo
vegetal: «das cinzas de certas plantas que põem em infusão (...) evaporam (...) extraem menos num bastão de comando quioco comprado em Lisboa pela Companhia de
sal» (9). Diamantes de Angola, e hoje no Museu do Dundo. Este bastão é coroado com uma
Não há, por isso, uma técnica africana única, mesmo que as matérias utilizadas cabeça de homem e deixa aparecer, na parte inferior, um zongo lya mungwa ou salina,
sejam sensivelmente idênticas ou, pelo menos, parecidas. Os Africanos são obrigados desenho identificado por um chefe lwena e evocando um lugar de exploração do sal
a produzir o sal procurado pelas populações, e os seus conhecimentos botânicos permitem-
vegetal (18).
-lhes assegurá-la durante séculos, até à mudança violenta dos circuitos comerciais após
Se o território de Kazembe parece ser a grande região produtora de sal no interior
1888 ( 10). Esta produção era em seguida vendida em «Casas já feitas dos Compradores deste espaço africano, que começa no território quioco, as outras regiões produtoras
de sal» ( 11 ), quer dizer, uma espécie de armazéns destinados a abrigarem os compradores
situam-se mais perto da costa angolana. Trata-se ou das salinas marítimas do Cacuaco
de sal, vindos, por vezes, de bastante longe.
e de Cassequele, a norte de Luanda, ou das salinas situadas mais a sul, na região
O sal está assim na origem de um comércio intenso, no interior de um circuito
de Benguela, ou ainda das minas de sal-gema existentes no território da Kisama,
inteiramente interafricano (que voltaremos a tratar), destinado a satisfazer as necessidades
das populações de uma vasta região da África central. A eficácia deste comércio permite perto da costa angolana, ao sul da foz do Kwanza. A maior parte deste sal-gema
medir a racionalidade da organização científica e comercial africana. desempenha um papel muito importante no funcionamento dos circuitos comerciais
Baptista fornece-nos outras informações respeitantes ao sal de Kazembe, que não do interior.
provém de uma única «salina». Dispomos, assim, de indicações que permitem identificar
três lugares de produção: esta «terra do Cazembe (...) tem suas três salinas, sal de
Cabombo, sal de Muagi, sal de Carucuige, além da salina Quigila que está para cá do
Muatyanvo» (12).
Baptista não é muito claro no que se refere à qualidade do sal de cada uma destas ( 14)Id., ibid., p. 190.
salinas. Trata-se de um produto obtido pela via das plantas ou pela evaporação da água ( 15)Ver Marie-Louise Bastin, 1961, II, p. 301, gravura n.° 77, lb. Podemos acrescentar que o
dos lagos? Parece, contudo, que Quigila produz também uma espécie de sal-gema, destinado sal aparece também como uma matéria que provoca várias analogias. É assim que a «doença do
ao pagamento dos tributos e controlado pelo rei de Kazembe ( 13). Acrescente-se ainda que sal» designa a lepra, tal como a anemia, visto que o doente não pode comer sal. Ver Barbosa, 1989,
p. 657. De resto, a anemia pode também receber o nome de musongo wa ngali, doença do mal-
-de-perdiz. Este doente não deve consumir nem a carne da perdiz nem o sal (Barbosa, ibid., p. 369).
Acrescentemos duas informações respeitantes ao sal utilizado pelos lundaizados, entre os quais os
Baptista, 1843, p. 177. Quiocos: procurando esclarecer a função do fruto da palmeira Elaeis guineensis, Jacq., o dendém,
Gamitto, 1854, p. 359. Rodrigues de Areia (1985) esclarece que o fruto feminino serve para o fabrico do azeite, ao passo
( I °)A chegada das autoridades belgas, ao serviço do rei Leopoldo II, arrastando na sua esteira os que o fruto masculino era utilizado por certos grupos da África central para fabricarem «antigamente»
comerciantes europeus, quase asfixiou esta produção, que prosseguiu, pelo menos, até 1930, na região o sal. Os Quiocos nunca o teriam feito «porque conheciam outras plantas que lhes serviam para
dos Lundas centrais. fabricar sal». De facto, em nota, estas «plantas» transformam-se numa «gramínea», sem mais
( 11 )Baptista, o. c., p. 177. pormenores (p. 374). Carvalho, 1895, p. 844, observa que na região do Kwangu «a falta de sal
( 12)Id., ibid., p. 437. é muito sensível e os resíduos, resultantes da combustão de certas plantas especiais, às quais recorrem
( 13)Id., ibid., p. 438. algumas `tribus' a fim de o compensar, apenas o substituem de maneira muito imperfeita».

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B. As salinas marítimas

As salinas marítimas existentes ao norte de Luanda foram inicialmente exploradas


pelos Africanos, se aceitarmos a tradição oral dos Pendes, que levou A. Haveaux a
admitir a ideia de que estes estavam instalados no Cacuaco, quando os Portugueses
chegaram à costa (16). Aterrados pela irrupção destes imensos barcos, comparados a
enormes pássaros marinhos (17), os Pendes decidiram abandonar a costa para se instalar
no território onde se encontram hoje, a centenas de quilómetros do mar.
Recuperadas pelos Portugueses, estas salinas contribuíram também para alimentar
o comércio a longa distância. O inventário das salinas costeiras a que procedeu Elias
Corrêa, que organizou na sua História de Angola (1792) uma espécie de resumo das
produções angolanas comercialmente significativas (18), assinala a existência de dois
blocos de produtores de um «género abundante [o sal] nesta Conquista, extraído sem
benefício, de grandes lagoas (19)», situados no Sul e no Norte do território: o do Sul,
na região de Benguela, o do Norte, no Cacuaco, hoje, um pequeno arrabalde costeiro
de Luanda.
No primeiro caso, o autor mostra que as salinas são a consequência da «calema
ou grande maresia [o mar] saltando os limites da terra inunda de água salgada aquelas
vargens vizinhas do mar [onde ela é] gelada pelo sol na extensão dos tempos» (20).
Como toda a gente na sua época, o capitão brasileiro não conhece a maneira como
o sal aparece sob os efeitos do sol. Pensa, por isso, como os mais, numa operação que
«gelaria» a água do mar, tal como acontece com o gelo sob os efeitos do frio. Elias
Corrêa, que é todavia um homem culto e curioso, está ainda preso pela importância da
analogia, o que o remete para um quadro de pensamento ainda longe do rigor da ciência.
Quando os Portugueses começaram a instalar-se (21), o sal marítimo fora deixado
sem controlo oficial: os que o queriam iam simplesmente procurá-lo e o preço era muito
variável, mas podia chegar a 6400 réis por exeque (22), quando esta mercadoria se
mostrava indispensável aos Portugueses para levar a cabo operações comerciais ou para
preparar o peixe seco. Mas, segundo Elias Corrêa, o negócio não era lucrativo: de entre

Haveaux, 1954, p. 32. Um documento oficial de 1791, do governador Manuel de Vasconcelos,


assinala a existência, nas margens do rio Loje, ao lado do porto de Ambriz, de um sal excelente
considerado muito importante para o comércio. Isto permite-nos pensar que o sal era explorado por
africanos (os Pendes?), pois que os Portugueses ainda não estavam instalados na região. É de resto o
governador Vasconcelos que, no mesmo documento, propõe ao governo português a construção de um
presídio nesta região. Coimbra, 1959, I, pp. 116-117.
Esta comparação não tem nada de inédito; aparece pela primeira vez no texto de Cadamosto,
Fig. 9 — Bastão de comando, tendo em cima uma cabeça de homem com um penteado de chefe quioco utilizado pelas populações instaladas na costa senegambiana. Ver Cadamosto, 1944, p. 23.
zongo lya mungwa; motivo representando uma exploração de sal vegetal, sob a forma de uma estrela Corrêa, 1937, I, pp. 127-129, coloca o sal em quarto lugar na hierarquia das produções
rodeada por quatro aldeias, que decoram a retaguarda do bastão. Bastin, 1961, II, gravura 77, e I, p. 180. angolanas interessantes do ponto de vista comercial.
Id., ibid., p. 127.
Id., ibid., p. 128.
Id., ibid.
(22) Medida de capacidade para sólidos, equivalente a ± 56 litros.

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todos os que tinham comprado sal, um único conseguira obter um certo lucro. Todos as salinas do Cacuaco, tirar proveito das de Benguela e abolir o estanco do sal, ou pelo
os mais haviam registado perdas suficientes para os afastar desta actividade. menos diminuir quanto for possível o preço deste artigo» (28).
Face a esta situação, o governo português reservou para si a fiscalização da venda Vinda de um governador que se mostrou sempre muito atento às condições de
de sal, que devia ser assegurada pela Fazenda Real. As salinas de Benguela eram funcionamento da sociedade civil angolana, esta longa explicação autoriza-nos a pensar
administradas pela Junta da Cidade de Angola ( 23). A distância à qual se encontravam num consumo muito reduzido de sal marinho. As autoridades portuguesas, que o
as salinas e o seu isolamento exigiam uma vigilância permanente, assim como controlam, não conseguem injectar o «seu» sal nos circuitos comerciais africanos,
administradores fiéis, para impedir as extracções «clandestinas» destinadas aos provavelmente porque os Africanos são capazes de produzir o sal de origem vegetal,
consumidores de Benguela, de Angola e dos seus hinterlands (24). Esta situação aumentava o que não esclarece tudo. Será que estamos perante uma questão de gosto, ou devemos
os custos e impedia que se obtivessem lucros. considerar antes o problema certamente associado aos preços? Sabemos, no entanto, que
Associado ao sal «real» de Benguela, era produzido no Cacuaco um outro sal uma fracção substancial das populações africanas manifestam uma preferência evidente
descrito por Elias Corrêa como um sal «particular tirado das lagoas do Cacoaco e pelo sal da Kisama, circunstância que explica a sua ampla circulação entre a Kisama
Cassequelle, (...) sal gelado sobre um leito lodozo, que o torna denegrido e sujo». No e as terras orientais e centrais. Será que os Africanos lhe atribuem, além da função
entanto, este sal possuía qualidades suficientes para o tornar concorrente do sal «real», alimentar e económica, uma outra que possa estar associada ao sistema religioso?
se a venda não tivesse sido proibida aos particulares: «...o dono deste sal é constrangido
a vendê-lo à Fazenda Real, alterando de preço conforme a bondade. O seu rendimento C. O sal-gema da Kisama
é insignificante nos anos chuvosos; e nos [anos] abundantes os furtos que os Negros
fazem apesar das vigias, o diminuem» (25). Podemos afirmar, de maneira franca, que o sal que mais circula entre as populações
Muito atento aos pormenores desta estrutura, Elias Corrêa explica o modo de produção angolanas é o produzido pelas «minas» da Kisama, cuja comercialização é principalmente
— «60 Negros [eram] empregados continuamente no trabalho das salinas» ( 26) —, assim assegurada pelos Imbangalas ( 29). Elias Corrêa descreve a região, as salinas e o sistema
como as condições de venda, os preços e os destinos deste sal ( 27): a cidade de Luanda de exploração das minas de sal: «no centro da Quissama, província sujeita a um Negro
e o seu mato não consumiam mais de um terço; os barcos consumiam, no máximo, um Potentado tão invejado da nossa cobiça ( 30), quanto inconquistável às nossas armas,
segundo terço; o que quer dizer que o terceiro terço era injectado nas estradas do nasce um sal moreno, que faz o seu precioso tesouro. Tirado mineralmente em grandes
comércio interior, essencialmente destinado ao consumo africano. lâminas e torrões, lhe dão diversas figuras e corre por moeda...». Os Africanos diziam
Não parece que o sal marinho tenha sido muito estimado durante um período assaz
que as águas da chuva, caindo neste terreno impregnado de salitre, transformavam-se
considerável. O inventário dos textos e o exame das produções mostram que os Africanos
em sal, tanto na superfície como no centro. «Os nossos sertanejos o trocam por fazendas,
se mantêm fiéis a duas únicas qualidades de sal: o da região nordeste, obtido nas terras
para temperar naquelas vizinhanças o gosto da comida», se bem que este sal fosse
a leste do Kwangu, em território Kazembe ou da Musumba do Mwatyanvua, e o da
Kisama, o sal-gema, produzido na região próxima de Luanda, na confluência do Kwanza. levemente amargo e pouco salgado. «Este recurso que os feirantes gozam no meio dos
Devemos acreditar que só estas duas zonas marítimas asseguravam a produção do matos, onde o sal de Angola subiria pelo trabalho dos carretos a preço excessivo,
sal consumido por este vasto conjunto de populações que a administração teimava em suspende qualquer parte dos interesses reais. Algum [sal da Kisama], de resto, chega
considerar sob «controle» português? Mesmo que não disponhamos dos documentos à costa. As Quitandeiras de Angola o vendem, como raro. A virtude medicinal concorre
necessários para poder colmatar as lacunas da informação, sabemos contudo que, em
1814, o governador de Angola, António Saldanha da Gama, afirmou — por escrito,
evidentemente — que as salinas do Cacuaco «estão abandonadas pelos seus proprie-
tários (...) Se porém estas salinas não bastassem, as de Benguela dariam todo o sal que Gama, 1839, pp. 71-72.
se quisesse com pouco ou nenhum trabalho (...) É pois necessário restabelecer e lavrar O sal da Kisama irrompe na documentação portuguesa por volta dos finais do século XVI.
O padre Pêro Rodrigues fornece informações cuja precisão continua a ser notável: «Aqui estão as minas
do sal, tão rendosas como se fosse de algum metal precioso, por serem as outras províncias faltas dele,
e daqui correr para elas. Este sal não é da terra, mas de água do mar, a qual por veias secretas vem
de muitas léguas a coalhar-se nesta serra. Serve de dinheiro aos pretos com que compram peças e
mantimentos». «Uma história inédita de Angola», in MMA, IV, p. 550.
Corrêa, 1937, I, p. 128.
(30) Textos anteriores não hesitam em descrever de maneira sumptuosa as vantagens e os lucros
Id., ibid.
da Coroa portuguesa, no caso de os Portugueses conseguirem controlar a Kisama. Ver por ex. a carta
Id., ibid.
de D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, governador de Angola, datada de Outubro de 1769.
Id., ibid., p. 129.
Arquivos de Angola, I, Outubro de 1933.
(27) Id., ibid.
271
270
tanto para a sua estimação, que não só se extrai no país, mas se encaminha aos portos Por volta de 1850, Livingstone descreve, por sua vez, a Kisama «tribo independente
do Brasil» (31). que os Portugueses jamais puderam submeter (...) Os Kisama asseguram um comércio
Estas informações salientam a importância do afrontamento entre os Portugueses de sal muito importante, sal que é muito abundante nas suas terras e que vendem em
e os Africanos, encontrando-se os primeiros perante um duplo obstáculo: o inicial é o cristais com o comprimento de trinta centímetros e vinte e cinco milímetros de diâmetro;
da importância do sal da Kisama, que proíbe a venda do produto «português», o eles distribuem-no em todo o reino de Angola, onde, após a indiana, o sal é o meio
seguinte diz respeito à impotência militar portuguesa diante da capacidade de iniciativa, de troca mais frequentemente utilizado. Quando os Portugueses quiseram apoderar-se
de resistência e de autonomia das autoridades da Kisama. Deve também lembrar-se que do país dos Kisama, não só tiveram de enfrentar uma viva resistência, mas ainda [por
são os comerciantes portugueses que devem curvar-se ante as regras da produção e do cima] os habitantes esvaziaram todos os reservatórios que lhes forneciam água, e que
consumo africanos ao assegurar a exportação do sal da Kisama para o Brasil. não são outra coisa senão enormes imbondeiros transformados em cisternas; como o
Como não pôr em evidência o facto de esta procura brasileira possuir um carácter país oferece poucas fontes e ribeiros, os invasores viram-se obrigados a retirar» (34).
estritamente africano? Os clientes do sal da Kisama nas cidades e nas plantações e Os autores europeus parecem confundidos pela capacidade destes reservatórios
minas brasileiras só podem ser angolanos perfeitamente integrados nas práticas médicas, vegetais (35), que se tornaram tão obsessivos como a importância de Kisama e do sal-
religiosas e comerciais desta região de Angola. Embora não se possa menosprezar o -gema controlado pelos Africanos. Visto que Kisama se localiza quase nos arrabaldes
facto de a rede de consumo deste sal se prolongar para leste — Kasanje e mesmo mais de Luanda, a situação confirma amplamente a impotência dos Portugueses e a sua
longe — assim como para o norte — Luanda, Dembos e, possivelmente, ainda mais incapacidade de recrutar e de treinar as forças militares capazes de enfrentarem os
ao norte. Africanos, decididos a manter a sua hegemonia, em todos os seus aspectos, militar,
As salinas da Kisama ficaram nas mãos dos Africanos até ao fim do século XIX, político, comercial e religioso.
apesar das inúmeras tentativas portuguesas de ocupar o território e de expulsar as
autoridades africanas. Em 1830, Acúrcio das Neves põe em destaque «o receio [dos D. O sal dos lagos
Africanos] de que os nossos [os Portugueses] se apoderem das suas salinas, que são
abundantes e constituem a sua riqueza pelo comércio que fazem para o interior com Devemos também a Magyar a informação a respeito de outro tipo de sal extraído
o sal, cujas pedras correm como moedas» (32). dos lagos — que já havíamos encontrado em Kazembe — da região de Andulo, a norte
Estas informações foram amplamente confirmadas algum tempo depois (1849) por do Bié, fazendo fronteira com o território songo. O autor assinala a presença de
Ladislas Magyar, que faz uma descrição em húngaro, da região da Kisama, com «lamaçais pouco profundos cujo leito fica coberto de bicarbonato de sódio quando a
referências pormenorizadas ao sal. água se evapora; este produto é recolhido, mas sem cuidados, de tal maneira que possui
É na Kisama superior — este território acha-se partilhado em Kisama superior e uma cor desagradável, com uma forte componente de terra. É exportado em sacos
Kisama inferior, cada uma delas sob a autoridade de um soberano — que se localiza (mukata) de 5-10 libras para os territórios distantes, onde é vendido como sal de
a Demba, «a aldeia mais interessante. Encontra-se a cerca de dez milhas da costa, num cozinha» (36).
outeiro calvo e é a sede do chefe da Kisama inferior, povoado por 2000 habitantes que Em 1881, Capello e Ivens fornecem outra «versão» deste tipo de sal, obtido a partir
se consagram principalmente à extracção do sal (...) Assaz perto da Demba encontram- das lamas salgadas das pequenas lagunas da região do Kwangu e que parece circular
-se as salinas do mesmo nome. O sal-gema é aí obtido e exportado em pedaços [de no quadro do espaço lunda: «perto de uma lagoa salgada que chamam T'chinbondi (...)
forma] cilíndrica, medindo palmo e meio, atados em molhos de cinco, através do numerosos indígenas estavam empregados em recolher sal, que ali abunda. O processo
continente. Nestas regiões o sal circula também como moeda, cujo valor varia conforme é simples: reduz-se a reunir parte da lama das margens e, adicionando-lhe uma porção
as distâncias. As salinas são inesgotáveis, fáceis de trabalhar e fornecem o melhor sal, de água, filtrá-la através de amplos cestos, internamente forrados com largas folhas. O
um sal que nunca encontrei em nenhuma região africana» (3.3). Digamos simplesmente líquido obtido evapora-se pela acção do fogo, deixando um resíduo escuro, de aparência
que o palato húngaro de Magyar não coincide de maneira alguma com o palato brasileiro repugnante, difícil de distinguir do húmus. Este artigo, mistura de cloreto de sódio,
de Elias Corrêa. Mas os dois homens estão de acordo para confirmar a importância do azotato de potássio, etc., a que chamam sal, coloca-se em cilindros feitos de palha
sal da Kisama e o papel desempenhado por esta produção na organização do poder chamados mucha, de dimensões diversas e que, no sertão, constituem moeda corrente» (37).
comercial no imenso espaço que vai das terras de Luanda à África central.

Livingstone, 1859, p. 449.


Corrêa, 1937, I, p. 129. Ver, por ex., Pontes (1800), in Felner, 1940, I, p. 249.
Neves, 1830, pp. 195-196. Magyar, 1973, cap. IX, pp. 33-34.
(33) Magyar, 1973, cap. IX, p. 2. Capello e Ivens, 1881, I, p. 257.

272 273
Capello e Ivens confirmam a importância do sal, «indispensável ao organismo» das Na sua história, Cadornega presta muita atenção à guerra, mas tal não o impede
populações ( 38), não devendo esquecer-se a força que o controlo de uma mina de sal de considerar também as produções — entre as quais se conta o sal — e o comércio
assegura ao seu proprietário, que, graças a isso, pode intervir constantemente na venda africanos. As técnicas a que recorre o Jaga para produzir o sal são idênticas às descritas
desta mercadoria tão estimada pelos Africanos ( 39). «O sal mineral, artigo da mais pelos viajantes portugueses no século XIX: instalados numa região de forte densidade
subida valia no interior da África, é procurado com extrema ansiedade nas regiões demográfica, os Jagas mandam elevar barragens em certos rios para obter este produto.
produtoras, pagando-o o indígena por preços altos, e tendo de percorrer distâncias Servem-se, para o conseguir, de duas técnicas de desidratação: na primeira, a água
enormes para o adquirir. A possessão de uma mina de sal é considerada sempre como coagula, ao passo que a segunda mobiliza a cozedura. Qualquer que seja a técnica, a
fonte das maiores riquezas. O Soba que tem esta fortuna goza de uma incontestável qualidade do sal é sempre má, parecendo-se mais com o salitre (42).
influência comercial e política, governando todos em derredor sem contestação. Quantas O sal assim obtido parece ser destinado ao comércio com as populações instaladas
vezes tivemos ensejo de observar a ânsia com que os naturais se arremeçavam para na margem oriental do Kwangu. Os Muzuas ( 43) seriam os compradores privilegiados,
receber uma pitada de sal que lhe oferecíamos na palma da mão (...) O sal refinado, tendo adoptado formas de comunicação graças à utilização do fumo, que analisamos
que levávamos, maravilhou sempre todos os indígenas (...) [que lhe chamam] môngoa- alhures. Deste modo, até ao século XVII, as populações da margem oriental do Kwangu
da Europa (...) Quem, no mato, ainda não dispunham de sal em quantidade suficiente para satisfazer as suas necessidades.
-iá-puto (sal dos brancos), suspeitando ser milongo ( 40)
possuir sal, transita e compra com facilidade, em todas as terras onde se achar» (41). As informações de Cadornega não estão em contradição com os documentos do
Se a circulação dos comerciantes e dos carregadores africanos, minuciosamente século XIX, mas nem por isso deixam de nos colocar perante duas hipóteses. Na
inventariada por Pedro João Baptista, autorizava a descrição dos circuitos comerciais primeira teria havido, na margem oriental e no território que liga a Musumba a Kazembe,
muito estruturados, permitindo que as populações das terras a leste do Kwangu, e só durante o século XVIII, a organização da produção de sal de maneira a criar uma
submetidas à autoridade do Mwatyanvua, pudessem dispor de sal em quantidade suficiente, auto-suficiência deste produto. Não é impossível, mesmo que pensemos que a organização
Capello e Ivens dão conta da surpresa e da paixão dos Africanos por este «sal fino», desta rede de produção deve ter sido acompanhada pela instalação dos homens neste
que era então o produto mais sofisticado da produção europeia. Não deve, contudo, imenso espaço territorial.
esquecer-se que estas pitadas de sal, que os viajantes oferecem na cova da mão, devem A segunda hipótese só pode pôr em dúvida os pareceres de Cadornega, porque seria
ser compreendidas como amostras das mercadorias que os comerciantes europeus então difícil explicar as razões que levaram os Jagas ou os Imbangalas a renunciarem
transportarão depois, para abalar e até liquidar as formas clássicas da produção africana, à produção de um sal autóctone, quando só podiam obtê-lo por esta via. Parece, por
incapazes de resistir à concorrência. outro lado, custoso aceitar o princípio de uma organização tão tardia da produção, por
parte das populações da margem oriental.
E. O sal produzido por Kasanje Talvez seja exequível considerar a possibilidade de uma amálgama na descrição de
Cadornega, como acontece com alguma frequência nas práticas históricas da tradição
Os documentos de que dispomos são muito avaros em referências à produção do oral, que já pusemos em evidência na estrutura de outros fragmentos da história das
sal entre os Imbangalas, embora saibamos a importância da intervenção desta estrutura populações desta região, hoje angolana. Não se deve esquecer quão trabalhosa é a
africana na comercialização de sal, em particular do produzido pela Kisama. Todavia, organização da análise histórica, quando o historiador se encontra na dependência de
António de Oliveira Cadornega faz, é certo que já nos fins do século XVII, algumas um documento isolado, quer dizer, forçado a renunciar ao debate contraditório sempre
alusões importantes à produção de sal no território dos Jagas de Kasanje. As informações possível quando as fontes são numerosas.
do historiador português nunca são fáceis de descodificar e arriscamo-nos constantemente
a ser apanhados na ratoeira do anacronismo.

Id., ibid.
Pinto, 1880, p. 324.
Deve associar-se esta observação irónica dos viajantes portugueses à informação dada por
Elias Corrêa, que não se esquece de dizer que o sal possui uma função medicamentosa no quadro das
práticas farmacológicas africanas. É esta função que Capello e Ivens contestam. O sal ocupa em toda Cadornega, 1972, II, p. 221.
esta região da África central um papel medicinal importante. Monsenhor Alves da Cunha quis identificar os Muzuas como os Moluas do século XVIII, que
Capello e Ivens, 1881, I, pp. 256-257. só se transformaram em Lundas durante o século XIX, in Cadornega, 1972, III, p. 219.

275
francesa, em 1857. Não dispomos de uma indicação tão precisa nos dicionários de
II. O gado, a carne e o peixe língua portuguesa. Mas quer isto dizer que esta entrada no dicionário se verifica quatro
anos após Livingstone ter feito uma referência à mosca e ao seu possível relacionamento
A. Homens, gado e tsé-tsé
com o gado. Podemos até pensar, com boas razões, que o explorador escocês introduziu
O período de que nos ocupamos é caracterizado pela ignorância das causas da o nome africano na Europa.
doença-do-sono, pois que as glossinas só foram identificadas na Europa, em meados do Deve contudo salientar-se que Livingstone não conhece as doenças provocadas pela
século XIX (44). Por essa razão, nem os Europeus nem os Africanos tinham ainda mosca, mesmo que esteja informado (certamente pelos Africanos) dos perigos que
conseguido estabelecer a relação entre a mosca tsé-tsé e a tripanossomíase animal. Isto representa o insecto na vida dos animais. Ao percorrer o território dos «Chiboques»,
tornava impossível a explicação das dificuldades experimentadas para introduzirem e cujas «terras [são] tão fecundas», o autor «pergunta-se (...) a razão pela qual os
assegurarem a sobrevivência de alguns quadrúpedes, como os cavalos e a maior parte habitantes deste belo país não possuem gado; pensei algumas vezes que tal se devia ao
dos bovinos: a criação de gado estava então limitada pela existência da tsé-tsé em despotismo dos chefes, que não permitiam que os seus súbditos possuíssem animais
numerosas regiões angolanas, incluindo as terras próximas de Kasanje, como de resto domésticos. Mas acabei por acreditar que a mosca tsé-tsé infestava antigamente o
ainda hoje, mesmo que a cintura da mosca tenha vindo a diminuir ao longo do século território dos Ba-Londas [quer dizer, dos Ba-Lunda], que ela teria abandonado no
XX, se bem que de maneira irregular, devido à incompetência técnica e administrativa momento em que tinham desaparecido da província os animais selvagens» (40).
O autor retoma de resto esta questão, para acrescentar uma explicação: a desaparição
das autoridades coloniais portuguesas.
Pierre Gourou explica a relação estabelecida entre as condições geográficas e da tsé-tsé estaria associada à introdução das «armas de fogo [que] expulsaram os
a criação do gado graúdo. As regiões quentes e pluviosas não são eminentemente animais bravios. Nas numerosas migrações de tribos pastoras, que vieram estabelecer-
favoráveis a esta criação, em primeiro lugar porque os bovídeos estavam expostos -se no sul para escapar aos Zulus, não se teria visto nunca no sul este insecto, cujas
a graves doenças. As tripanossomíases proibiam a sua instalação na África equatorial, destruições são desconhecidas pelos Portugueses» (50).
onde só podiam viver bois de pouco porte sem grande interesse económico (45). Livingstone considera que a destruição dos animais domésticos é provocada pela
O geógrafo faz também notar a importância da ligação existente entre a densidade mosca, estando esta, por sua vez, constantemente associada à fauna selvagem. Os
demográfica e a expansão da mosca tsé-tsé (46), que se instala preferencialmente nas animais domésticos seriam apenas as vítimas da associação entre a mosca e esta fauna
galerias sombrias e húmidas dos rios. Quer isto dizer, em parte pelo menos, que a sua não-doméstica. Livingstone não viveu o suficiente para saber que a fauna bravia é imune
expansão ou o recuo dependem da humanização completa da zona. Se o homem intervém à tsé-tsé, o que não acontece com os quadrúpedes domésticos, sendo o cavalo ainda mais
de tal maneira que elimina a vegetação espontânea onde se abrigam as glossinas, estas sensível às tripanossomíases, gambianas ou rodesianas, do que o boi. Mais do que isso:
ele não foi capaz de pensar na ligação existente entre a relativamente fraca demografia
estão condenadas a desaparecer.
Não dispomos de documentos que nos permitam analisar a correspondência entre dos Quiocos e a expansão da mosca.
a existência da mosca tsé-tsé e a organização do rebanho. Os autores portugueses não
parecem preocupados com a mosca, mas Livingstone tenta estabelecer em 1853, pela B. A importância económica e social do gado
primeira vez (47) na região que estudamos, a relação possível entre a tsé-tsé e a raridade
As populações lundas e lundaizadas são forçadas a viver com esta situação
ou a ausência total de gado. epidemiológica, sem por isso renunciarem à formação de rebanhos, capazes de darem
Retenhamos a maneira como apareceu, nas línguas europeias, a palavra tsé-tsé (48):
prestígio e força económica aos chefes políticos, que são os únicos proprietários de
aí se encontra indicada a sua origem banta, assim como a data de introdução na língua
rebanhos importantes. Henrique de Carvalho informa-nos de que o Mwatyanvua recorreu
aos serviços do mestiço Bezerra, que lhe trouxe gado das regiões fronteiriças (51), na
segunda metade do século XIX. É contudo Rodrigues Neves que nos permite compreender
O substantivo tsé-tsé apareceu na língua francesa em 1857, tendo a glossina sido dicionarizada melhor a importância económica e social do gado entre os Imbangalas, pelo menos desde
em 1857. Em português, a data da aparição das duas palavras não está indicada. Trata-se contudo de os finais do século XVIII (52).
temível por ser o agente transmissor
uma «mosca africana, pertencente a duas espécies do género glossina,
dos tripanossomas produtores da doença-do-sono e da nagana, que atingem o homem e outros animais,
». Dicionário da
respectivamente, e que para alguns autores é o m. q. cecé. (Do banto tsetse,
Livingstone, 1859, p. 377.
Língua Portuguesa, Porto Editora, s. d. (6.' edição).
Gourou, 1969, p. 77. Id., ibid., p. 393.
Carvalho, 1894, IV, p. 228.
Id., ibid., pp. 18-19 e 122-123.
Livingstone, 1859, p. 377. Neves, 1854. O autor refere-se, em várias passagens do texto, à importância económica e
social do gado na sociedade imbangala.
(48) Ver nota 44.
277
Trata-se do gado graúdo, mercadoria muito estimada nesta região, maioritariamente Alguns anos mais tarde, Livingstone observa, com tristeza, a carência de gado
controlado pelos chefes, utilizado com frequência como presente e, se bem que raramente, graúdo nas belas planícies de além-Kwangu, fazendo ao mesmo tempo alusão à função
na alimentação da população. Todavia, Elias Corrêa torna mais precisa esta informação, social dos rebanhos, que dão prestígio, tanto entre os Lundas como entre os Quiocos.
sublinhando — em 1792 — que semelhante consumo estava reservado às «pessoas ou «No país do Matiamvo [que] está, dizem, muito povoado (...) só o chefe possui um
famílias de melhor trato» ( 53). Este comportamento explica-se em função da rareza rebanho, que alimenta apenas para dispor da carne» ( 61 ). Parece que esta situação se
destes animais, que já é tão difícil manter vivos e que constituem uma grande parte da modifica para o Sul, entre os Lundas meridionais, precisamente junto da fronteira com
riqueza dos agricultores (54). o Barotze, também chamado Lui — região de pastores —, sendo os Lozis descendentes
A região do Kwangu, sobretudo a leste, é caracterizada por uma produção bastante de uma mulher que deu à luz, simultaneamente, uma vaca e um pastor ( 62). Aqui, como
reduzida de gado graúdo — certamente devido à presença da tsé-tsé —, sendo por acontece entre os pastores, a relação com o gado é completamente diferente daquela que
consequência uma zona importadora dos territórios do Sul, em particular do Bié, dos se regista entre os agricultores (63).
Ovimbundos e das populações mais a sul-sudeste, entre as quais os Ganguelas, «muito Livingstone mandou abater a sua última vaca e «ofereceu um quarto (...) a Bango
ricos em gado» ( 55 ). Esta situação, que impôs aos Africanos a organização de redes [o chefe de uma das últimas aldeias dos Lundas meridionais]: mas ele (...) responde que
comerciais onde abundam os bovinos, será de novo analisada. na sua tribo ninguém come vaca, que os seus súbditos consideram o gado como fazendo
Entre outros documentos do século XVIII, encontra-se uma fonte anónima de 1789, parte da humanidade, pois que os bois vivem com os homens com quem partilham a
que descreve a circulação do gado para Norte e Nordeste do país: sobe ele do Sudeste, casa. Ninguém efectivamente se apresentou para comprar [carne desta] vaca, o que não
onde se encontram «grandes quantidades de gado» ( 56), quer dizer, da região do Lovale teria deixado de acontecer em todos os mais países» (64).
onde os «povos não vivem senão dos seus gados, de que são riquíssimos» (57). O autor escreve, também, que «viu povos que não tinham rebanhos, se bem que
Não possuímos informações suficientes para estudar a questão na primeira metade gostando de carne, porque, diziam eles, os bois atraem o inimigo e são uma causa de
do século XIX. Dispomos contudo de três textos, que nos permitem considerar o guerra; mas [era] a primeira vez que encontrava pessoas que recusavam comer vaca,
problema sob o ângulo da função económica e social que o gado graúdo preenche entre excepção inteiramente relativa ao carácter doméstico do animal, pois os mesmos
os Lundas, os Quiocos e os Imbangalas. indivíduos comiam os búfalos e os antílopes que matavam na caça» (65).
A inexistência de gado graúdo nas regiões lunda e kazembe é bem visível na Parece que nesta região da África das «savanas do sul», para recorrer à fórmula
ausência de referências à presença e ao consumo de carne de bovino no relatório tão de Jan Vansina ( 66), as populações de pastores não matam nem comem o gado. Pelo
preciso e minucioso de Baptista (1806). Referindo-se à alimentação das populações, em contrário, nos territórios do Kwangu, entre os Imbangalas, os Quiocos e os Lundas, que
cujas aldeias se instalou, e à dos comerciantes com quem se cruzou ou com quem não são pastores, o rebanho é fonte de prestígio — os chefes lundas eram os únicos
prosseguiu caminho, o autor não faz qualquer alusão à carne. autorizados a utilizarem os cintos em pele de boi, os mais prestigiosos dos quais
As únicas referências aos «bois» permitem-nos demonstrar a importância do gado integravam o rabo, ou eram feitos em pele de boi preto ( 67) —, sendo o consumo da
como mercadoria, destinada a reforçar o poder dos chefes. Baptista descreve os «tributos carne reservado aos chefes e proibido à gente comum.
em gado» que os chefes devem pagar ao rei de Kazembe ( 58). Parece existir a mesma Perante estes comportamentos, podemos facilmente concluir que a posse e o consumo
situação na corte do Mwatyanvua, porque o relatório de Graça, onde é notória a ausência de bovinos servem para reforçar as fortes hierarquias que caracterizam as sociedades
do gado graúdo, afirma que os tributos eram sobretudo pagos em marfim e escravos (59). imbangalas e lundas. Estes comportamentos servem também para pôr em evidência uma
Apenas uma única vez o texto vai ao ponto de dizer que na «província do Matianvo» há hierarquia regional. Os Quiocos, entre os quais, afirma Silva Porto em 1858, só o chefe
«gado vacuum em grande quantidade pertencente ao Estado» ( 60), sem mais dados que
nos permitam explicar a origem, o número e a qualidade deste gado.

Livingstone, 1859, p. 505.


Vansina, 1966, p. 174. Silva Porto registou outra versão do mesmo mito, 1942, p. 107.
Corrêa, 1937, I, p. 131. Ver a longa descrição que Silva Porto consagra aos pastores lozis, 1942, p. 115.
Id., ibid., p. 132. Livingstone, o. c., p. 508.
Porto, 1942, pp. 52-53 e 64. Id., ibid. A observação de Livingstone salienta o carácter arcaico das suas observações. No
Anónimo (1789), in Felner, 1940, II, p. 17. após Lévi-Strauss, que é o nosso, a oposição doméstico/selvagem adquiriu outra dinâmica, sendo o
Id., ibid., p. 24. animal doméstico, no raciocínio dos «indígenas», portador de valores humanos, pois que o animal foi
Baptista, 1843, p. 437. socializado ou humanizado.
Graça, 1890, por ex., pp. 426 e 443. Vansina, Kingdoms of the Savanna, 1966.
Id., ibid., p. 451. (67) Id., ibid., Cunnison, 1959, pp. 152 e 174; Livingstone, 1859, p. 400.

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da terra possui algumas cabeças de gado (68) e que se encontram na dependência dos só encontramos dados que o confirmam no diário da expedição militar de Saltes Ferreira,
Lundas e dos Imbangalas, manifestam uma forte apetência pelo gado e pela carne de redigido por Rodrigues Neves, mas Livingstone assinala também uma «Baixa de Kasanje
vaca. (...) coberta de aldeias (...) [as quais] eram muito mais numerosas do que antes da
Ao atravessar o território quioco, Livingstone dá-se conta de uma procura quase expedição que os Portugueses fizeram contra os Imbangalas em 1850» (73).
frenética de gado por parte destas populações. Armados com espingardas, os Quiocos Continuamente, ao longo do seu diário, Rodrigues Neves regista a presença do gado
pedem-lhe constantemente, de maneira agressiva, bois, assim como escravos, armas de e das diferentes operações desencadeadas em torno do gado graúdo, pois os Portugueses
fogo e marfim, seja como imposto de passagem seja como multa de crimes «inventados» capturaram o maior número possível de animais. As populações imbangalas reconhecem
para extorquir ao viajante tudo o que ele possui. Estão sempre prontos a roubar os bois o valor económico e alimentar do gado e procuram pô-lo ao abrigo do apetite português,
da caravana bem como «pedaços de carne», destinados às refeições dos companheiros afastando-o das zonas de confrontos (74).
do missionário escocês (69). Na estratégia africana, o gado pode desempenhar um papel de apaziguamento.
É por acaso que o missionário descobre um meio de pôr termo a este pedido de É certamente por esta razão que os chefes oferecem reses aos oficiais portugueses, como
bois: oferece-lhes um animal que tinha «perdido a ponta do rabo; Ioanga [o chefe se se tratasse de um «presente» destinado a assegurar a sua protecção (75). De resto,
quioco] julga então que lha cortaram para introduzir um feitiço na chaga; [Livingstone] as populações de pastores do Sul dão gado como oferenda aos viajantes europeus, como
propõe às [suas] gentes que se inflija a mesma operação aos bois que (...) restam, a assinala várias vezes Silva Porto, por volta de 1858, que confirma o que fora observado
fim de impedir que [os Quiocos] ainda os queiram» (70). O facto é simbolicamente por Magyar (1849-1850), nas regiões dos Ovimbundos e dos Ganguelas (76).
importante, pois que os Quiocos dependem do sistema de valores dos Lundas, que só Em 1850, Rodrigues Neves procede, de maneira minuciosa, ao inventário dos
apreciam o animal sem defeitos, muito particularmente no que se refere ao rabo, animais capturados, roubados, achados, abandonados e sacrificados, como se a sociedade
utilizado, como indicámos, para fazer os cintos dos chefes lundas. Sinal também da imbangala estivesse concentrada em torno dos rebanhos e das suas funções e destinos.
contínua disjunção dos sistemas, visto que os Europeus não atribuem a menor carga Se tal não é o caso, podemos contudo aperceber-nos desta tentativa imbangala de
simbólica aos bois e, menos ainda, aos rabos dos bois. conseguir reunir as reses, que seriam capazes de modificar as regras de trabalho,
Não devemos esquecer que, entre os Imbangalas, estes animais desempenham também particularmente entre os homens, em via de se transformarem em criadores de gado e
um papel importante na transferência da propriedade dos escravos, como lembra Rodrigues em pastores.
Neves: quando um escravo decide renunciar ao seu «proprietário», vai ao curral daquele Será que esta situação deriva da desaparição ou da redução da tsé-tsé, em conse-
a quem deseja confiar a sua vida e corta um grande pedaço de carne de boi, abatido e quência do reforço da humanização, provocado pelo crescimento demográfico, uma
assado. Depois disso, faz saber ao seu novo «proprietário» o crime que cometeu, o que parte do qual seria o resultado das deslocações de homens arrastados pela multiplicação
torna impossível devolvê-lo à casa do seu antigo «proprietário». É certo que, como já das operações comerciais? Seja como for, e em contraste com a situação das populações
sabemos, outros objectos podem ser destruídos para chegar a este resultado. Nenhum instaladas na margem oriental do Kwangu, os Imbangalas eram, quando se deu a
acto é contudo tão grave como a mutilação ou a morte de um boi (71). expedição portuguesa que tanto alterou as regras existenciais, proprietários de um
No último quartel do século, em 1879, Capello e Ivens registam a manutenção da grande número de rebanhos de todos os tamanhos.
estrutura do gado nas regiões orientais do Kwangu: as populações «Iacca», dependentes Infelizmente não dispomos de nenhuma informação consagrada à qualidade dos
do Mwatyanvua, «não podem ser criadoras de gado vacuum e apenas de cabras, animais que possuíam os Imbangalas, mas podemos aceitar a hipótese de se tratar de
carneiros, etc. Só o régulo possui e cria [bovinos] e quem ousar infringir semelhante um gado em mau estado, pois, se os animais conseguem furtar-se aos ataques da tsé-
lei perde irreversivelmente a cabeça, porque embora queira fugir, os feiticeiros o -tsé, não deixam de ser vítimas de epizootias ou de miríades de parasitas, como o
descobrirão. Por toda a terra que percorremos (...) na margem esquerda do Cuango, não assinalam vários autores portugueses em momentos e em regiões diferentes (77).
conseguimos avistar um só boi» (72).
Os Imbangalas parecem ter beneficiado com a humanização assinalada por Pierre
Gourou. Os documentos da época dão conta de uma forte densidade demográfica: não
Livingstone, o. c., p. 414.
Em várias passagens do seu relatório, Neves, 1854, assinala os movimentos algo desordenados
porto, 1942, p. 137. das populações em consequência da guerra, procurando estas recuperar e proteger o gado que se
Livingstone, 1859, pp. 379-395.
Id., ibid., p. 395. Id., ibid., pp. 21, 24, 29, 87 (entre outras).
Ver nota 64. Porto, 1942, pp. 29, 33, 52; Magyar, 1973, cap. II, pp. 23 e 33; cap. III, p. 37.
(72) Capello e Ivens, 1881, II, p. 124. (77) Por ex. Silva Porto (1847), 1942, pp. 52-53.

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Pierre Gourou explica que «o gado pode estar tão profundamente esgotado pelas C. A carne e o peixe
picadelas das diferentes moscas, tais as estomoxes, que a criação do gado seria impossível
se os animais não estivessem abrigados durante o dia em currais sombrios» ( 78). Ora, O consumo da carne de vaca é, pois, muito reduzido na região. Mas em certas
parece que as populações desta região, sobretudo a meio do século XIX, não conheciam ocasiões e em algumas zonas, pode constituir o prato ritual oferecido a todos os
esta técnica capaz de assegurar o abrigo dos animais; os viajantes portugueses salientam elementos da comunidade familiar ou aldeã. Em 1846, Silva Porto descreve esta operação,
o facto de o gado estar completamente abandonado na natureza (79).
que se realiza na região do Bié: «Por ocasião de qualquer calamidade, os adivinhos
Em 1879, Capello e Ivens tomam nota de uma importante modificação: «os
também consultam os espíritos dos chefes mortos. Para estas cerimónias preparam
Bengala possuem numerosos rebanhos; em todas as suas aldeias se encontram currais
bem providos» ( 80). Parece que os Imbangalas também retiveram a importância das grande quantidade de panelas ou de cabaças de capata [bebida preparada com base na
fermentação do milho], ancoretas de aguardente, um boi e um casal de veados. A
técnicas introduzidas pelos Portugueses, que modificaram as práticas africanas da
solenidade começa ao alvorecer e termina ao sol-posto ou na antemanhã do dia seguinte,
criação de gado. O curral português serviu para criar o nome e a coisa, quer dizer,
o hábito de fechar os animais, quer recorrendo às vedações quer construindo estábulos. ao som da música e contínuas salvas de espingardas. Os animais são assados segundo
Esta técnica nova, que rompia com o hábito de deixar os animais confiados ao acaso o ritual: primeiro o boi, numa fogueira que o adivinho apaga para em seguida acender
da natureza, levou as populações africanas do Sul, consagradas à criação de gado — outra, que servirá para assar o casal de veados, uma cabra e um galo, sendo depois
entre as quais os Zulus —, a inventarem a palavra kraal, que foi em seguida recuperada tudo distribuído pelos habitantes da povoação. Os utensílios de cozinha e as cinzas são
pelo afrikander (81). lançados fora da libata, para que as cerimónias produzam os seus benéficos efeitos» (85).
O conjunto das condições geográficas difíceis, que os criadores imbangalas eram A cerimónia apresenta dois aspectos, pois que o boi ocupa o primeiro lugar na
obrigados a enfrentar, torna mais importantes a criação e a comercialização do gado, hierarquia dos animais domésticos e a sua carne só será consumida pelos chefes (86)
que transita, assim, para o norte e para o leste, quer dizer, em circuitos essencialmente e/ou no quadro das cerimónias rituais. Pode verificar-se, contudo, que a operação, que
interafricanos, o que explica que os rebanhos se movimentem para oeste, onde se se caracteriza pelo derramamento excessivo de sangue, implica a renúncia aos instrumentos
localizam os Portugueses. Em 1855, Livingstone dá-nos algumas informações a respeito que provocaram a morte destes animais. Mas, no entanto, tudo se organiza para oferecer
do comércio dos Imbangalas com os Shonjes, instalados na margem nordeste do Kwangu: às populações carnes alternativas, capazes de lhes proporcionarem a contribuição
estes consagram-se à agricultura e trocam os seus excedentes por «sal, tabaco e carne indispensável de proteínas animais. Estas provêm tanto do gado miúdo (cabras e carneiros)
que lhes são fornecidos pelos Bangala» (82). como de aves de capoeira (muito abundantes no território) ( 87) ou, ainda e sobretudo,
A importância social do gado encontra, assim, o seu complemento nas trocas da caça. A carne das reses abatidas pelos caçadores desempenha um papel fundamental
comerciais, que só podem agir no sentido de reforçar as relações interafricanas. Os na alimentação das populações. Os Africanos dispõem, assim, de uma alimentação à
Imbangalas não parecem estar empenhados em assegurar a sacralização do gado ou, base de carne, centrada não em torno do gado, mas em torno da caça.
pelo menos, não adoptam as práticas que se deparam entre certas populações de Actividade exclusivamente masculina, a caça fornece às populações a carne de que
pastores do Sul. Mesmo que o gado se tenha transformado num dos elementos necessitam. Nos séculos XVIII e XIX, os documentos portugueses registam o nome dos
obrigatórios do alembamento (83) ou dos impostos, nem por isso consegue tornar-se muitos animais que «dão» a sua «excelente carne» ( 88 ) às populações. A abundância
em animal sagrado (84). de caça em certas regiões permite que os habitantes disponham de carne para vender
ou trocar com os viajantes que atravessam os seus territórios.
As informações de Pedro João Baptista, no que se refere à carne de caça, parecem
Gourou, 1969, p. 78. menos minuciosas do que aquelas que o autor nos forneceu a respeito do sal. Regista
Neves, 1854. O texto, como já fizemos notar, multiplica as referências ao gado que fora
ele, todavia, informações de grande importância, como a que diz respeito à recuperação,
abandonado longe das aldeias e dos estábulos. Trata-se de uma consequência da guerra, que dispersa
tanto as populações como os animais. • pelos homens e pelos outros predadores, dos animais mortos, quer se trate de fracções
Capello e Ivens, 1881, I, p. 296. importantes quer de animais inteiros, como se as pessoas fizessem concorrência aos
O afrikander é um crioulo que integra palavras portuguesas, inglesas, holandesas, francesas,
xosas, zulus, hotentotes, swhahilis, etc. O dicionário francês Robert, incapaz de identificar a palavra
portuguesa corral ou curral — da qual deriva krall — atribui a este substantivo uma origem holandesa.
Mas o Dicionário de Oxford corrige este lapso etimológico.
Deve sobretudo reter-se, a partir desta discordância etimológica, o facto de algumas técnicas
Porto, 1942, pp. 39-40.
africanas de criação de gado terem sido modificadas pela contribuição portuguesa. «Só as pessoas mais importantes se alimentam com carne de vaca», Magyar, 1973, cap. VII,
Livingstone, 1859, p. 486.
p. 32; em particular os chefes, cap. VI, p. 20.
Porto, 1942, p. 113.
Baptista, 1843, p. 43; Graça, 1890, pp. 414, 417, 451; Livingstone, 1859, pp. 201-202.
(84) Id., ibid., pp. 113-115; Magyar, 1973, cap. VII, p. 1.
Lacerda, 1844, pp. 201-202.
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necrófagos clássicos, tais como a hiena ou os abutres (89). Por outro lado, no texto Esta carne «fresca», destinada à alimentação das populações, é frequentemente
de Baptista, não se regista a menor situação de carência ou de fome, tais como as oferecida aos viajantes, preparada em pedaços, como assinala Baptista, no decurso da
que serão referidas, alguns anos mais tarde, tanto por Livingstone como por Henrique sua viagem entre a Lunda e Kazembe ) Observação importante, porque isso quer
de Carvalho (90). dizer que os caçadores africanos teriam renunciado ao corte ritual que os obrigava a
Devemos acreditar que se verificou uma espécie de desregulação das sociedades partilhar o animal em função da hierarquia das autoridades, e não para servir os
africanas durante o período que medeia entre a viagem de Baptista e as de Livingstone, interesses e as exigências comerciais.
primeiro, de Carvalho, em seguida? Ou estamos perante uma visão europeia que contrasta Uma das questões, que não é esclarecida pelos textos portugueses, é a existência
com a do Africano, infinitamente menos dramatizante? Será que os Africanos sentem de carne seca ou salgada. Os autores quase não falam do comércio regional de
de maneira menos traumatizante as situações de carência, que seriam então correntes carne, todavia registado por Pedro João Baptista. Silva Porto, em 1854, quando da sua
ou até banais nas sociedades africanas? A questão é relevante mesmo que estejamos viagem através das regiões no Sudeste angolano, junto do Kubangu, refere-se à «carne
impossibilitados de lhe dar resposta, a não ser assinalando a importância da disjunção de caça (...) à venda» (102,,) muito provavelmente no quadro do comércio local. A carne
entre as duas visões, separadas por um curto espaço de tempo: a africana, dos primeiros ocupa, como de resto todos os produtos alimentares, um duplo espaço: é oferecida de
anos do século XIX, e as europeias, que se situam em meados e nos finais do século. maneira corrente nos mercados locais, não deixando, por isso, de ser uma mercadoria
O inventário dos animais habitualmente caçados pelos Africanos e cuja carne é preferencial, no quadro do comércio inter-regional.
consumida nesta região é amplo: cabras (91), veados (92), búfalos e uma variedade Estas questões são de uma importância aguda, pois a carne é igualmente utilizada
regional chamada empacassas ou pacassas (93), cuja caça é tão prestigiosa como a do como tributo, como indica Rodrigues Graça, ouvindo as queixas das populações sob
elefante (94), segundo nos informa Magyar, que descreve, de igual modo, a técnica de dominação lunda: não dizem elas estar «cansadas de viver debaixo do jugo do Matianvo;
caça (95), assim como a preparação da carne (96) dos roedores (97) e das impalas não temos um dia de descanso, diariamente na caça, [a trabalhar] nas suas culturas (...)
(antílopes) (98). Mas é a carne de elefante que parece ser a mais apreciada. Um texto somos obrigados a caçar elefantes, as pontas e carne são para ele» (103). Silva Porto,
anónimo de 1789 assinala que as populações de Loyale «são muito fartas de carne de colocado perante a mesma questão, confirma o sentido desta informação na região dos
caça, principalmente de elefante» (99). Esta carne aparece em outros textos portugueses, Lozis (Luis): as populações do chefe Riumbo pagam-lhe «tributos de marfim, escravos,
como naquele em que o governador Menezes escreve, em 1846, que «os Negros fazem canoas, escudelas, peles, cereais, carne, mel, sal e frutas da época» coa,.) Por volta de
uso da carne [dos elefantes] (...) os quais atestam ser saborosíssima» (19. 1853-1854, Livingstone dá conta da «parte de tributo que [os caçadores lundas
meridionais, que ele encontra carregados com carne de búfalo e de antílope] fornecem
a Bango», seu chefe (105).
Sabemos que os Africanos ou aceitam, de maneira às vezes estóica, a falta de
qualquer alimentação à base de carne, ou organizam banquetes onde são consumidos
( 89) Baptista, 1843, p. 181.
( 9°) Livingstone refere, frequentemente, a falta de carne entre os Quiocos. Todavia, as grandes animais inteiros (106 ) . Todavia, esta carne que circula nas estradas comerciais, destinada
fomes só aparecem mais tarde, já no último terço do século. Ver, a respeito das crises de fome em à venda ou à satisfação dos tributos, deve merecer uma preparação — sal e/ou sol —
Angola, Dias, 1981. para impedir o apodrecimento, mesmo que a decomposição não esteja excluída, sendo
Baptista, o. c., p. 181. até muito apreciada.
Id., ibid., pp. 181 e 291. A lição, que devemos extrair de tudo isto, é a de que a carne é integrada muito
Id., ibid., pp. 181, 286-288, 291; Porto, 1942, p. 100; Livingstone, 1859, p. 509. A empacassa cedo nos circuitos comerciais, sobretudo locais, mas que não excluem de maneira
ou pacassa é o búfalo do Norte de Angola, cuja carne era muito apreciada tanto pelos Angolanos como alguma o comércio inter-regional. As regras de caça, destinada aos circuitos comerciais,
pelos Europeus. Decidido e astucioso, o animal tornava-se muito perigoso quando ferido e não poucos
caçadores pagaram com a vida as imprudências cometidas frente a um animal que não esquecia o não parecem coincidir com as que devem ser observadas quando se trata do consumo
agressor, procurando caçá-lo para responder ao ataque de que fora vítima. Os corpos de empacasseiros ritual da carne. Podemos assim constatar que existe concomitância, mesmo que pareça
aparecem frequentemente na história de Angola e é preciso entendê-los como sendo formados por
homens decididos, que tinham recebido treino na caça à empacassa.
Magyar, 1973, cap. III, pp. 16-17, 39-40.
Id., ibid., cap. VII, pp. 28-29. Baptista, 1843, pp. 182-183 e 188.
Id., ibid., cap. III, pp. 17-18. Porto, 1942, p. 139.
Livingstone, 1859, p. 399. Graça, 1890, p. 448.
Id., ibid., p. 508. Porto, 1942, p. 77.
( 99) Anónimo, 1789, in Felner, 1940, II, p. 25. Livingstone, 1859, p. 509.
(100) Menezes, 1848, p. 143. Neves, 1878, pp. 53 e 71, entre outras.

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difícil definir o exacto campo de aplicação de uma ou de outra das formas de abater A importância do pescado é de resto reforçada pelos autores um tudo nada
ou de matar, e de repartir e consumir. Mas é evidente que não se deve pensar na mais tardios, os do meio do século XIX, entre os quais Rodrigues Graça e Silva Porto.
aplicação sistemática das regras rituais da repartição — como faz a maior parte dos É assaz curioso verificar que Livingstone, que todavia presta tanta atenção aos rios e
etnólogos — sob a pressão dos interesses e das práticas da comercialização da carne. aos sistemas alimentares africanos, não se dá conta, em momento algum, do valor do
Há quanto tempo foram criadas e são respeitadas as técnicas da conservação das peixe fresco ou seco nas preparações culinárias ou nas trocas africanas.
carnes e dos peixes, salga e seca? Serão estas técnicas influenciadas pelos Europeus, Rodrigues Graça, na sua descrição da «província do Mantianvo», salienta o inte-
ou existem há muito tempo no tecido cultural da região? resse do «peixe de grandes rios». É de resto o mesmo Rodrigues Graça que nos informa
A primeira informação respeitante à prática da conservação data de 1680. É na a respeito dos peixes e das técnicas de pesca utilizadas, permitindo dar conta da exis-
região do Kwanza que o português Ambrózio Fernandes tem como negócio que «lhe tência de dispositivos técnicos que não devem nada às relações com os Europeus e
permite viver e o alimenta» a preparação de carnes e de peixes salgados e secos, que exprimem a sageza técnica africana (111). «O gentio que habita (...) as margens pesca
exportava para a cidade de Luanda ( 107). O documento sublinha ainda não se tratar de com redes de malha, muito compridas e fazendo cerco, e de noite com fachos» (112).
uma pequena produção, mas antes de uma produção importante, pois, o comerciante Estas informações respeitantes às técnicas são reforçadas por Silva Porto, que
português exportava «uma grande quantidade». completa os dados que se relacionam com as populações da região do Bié (113).
A importância desta actividade não explica, de maneira alguma, a razão pela qual
No caso do peixe, alimento muito espalhado e cujo consumo era mais corrente e ela mobilizou tão pouco a atenção dos etnólogos, sendo hoje difícil descrever a parte
mais importante que o da carne, temos de considerar os dois aspectos da produção: que cabe aos homens e às mulheres nesta actividade. Não haverá, do ponto de vista dos
captura e comercialização imediata — ou quase — do peixe fresco, não devendo todavia etnólogos, uma espécie de feiticismo da carne, que os impede de ver a pesca como
esquecer-se o peixe seco. As informações que se podem extrair do texto, em que Elias actividade principal, na qual as mulheres participam por vezes de maneira muito activa (114)?
Corrêa analisa as condições de produção e de comercialização do sal, dão-nos a saber Se o peixe é pois objecto de uma circulação local ou longínqua, destinada
que a cidade de Luanda consumia uma parte importante da oferta do Cacuaco, durante a satisfazer as necessidades alimentares das populações, esse produto possui igualmente
os períodos de chuva, quer dizer, quando o sol não era suficiente para garantir a um valor social e político: tanto Rodrigues Graça como Silva Porto salientam não só
produção normal do peixe seco. os presentes em peixe fresco recebidos durante as suas viagens ( 115), como também os
Não é evidente que a grande abundância de pescado (108), existente na maioria dos tributos em peixe que as populações devem pagar ao Mwatyanvo (116) e «anualmente»
lagos e dos rios, arrastasse consigo a invenção das técnicas de conservação indispen- ao chefe do país «Lui» (Lozi) ( 117), vizinho dos Lundas meridionais.
sáveis, quando se tornasse necessário assegurar a circulação do peixe, destinado a
populações menos favorecidas pela natureza?
Seja como for, Pedro João Baptista no seu diário tão peculiar faz numerosas
(In) Graça, 1890, p. 452. O Rum é o rio que fornece a maior parte do peixe. Abunda, com efeito,
referências aos circuitos de comércio de peixe: este circula fresco ( 109) entre as aldeias, «peixe, [e aí] pesca-se a boa tainha, o robalo, além de muitas outras qualidades de bom gosto, e, segundo
mas devemos pensar sempre no comércio inter-regional que só pode funcionar, recorrendo julgo, e conforme as aparências, [o rio] tem comunicação com o mar, pois a sua água salobra, com cheiro
ao peixe seco ( 110), o que nos leva a concluir que o regime alimentar normal depende a maresia, corrobora a minha asserção».
do peixe, ao passo que a carne — sobretudo a que provém dos animais domésticos — Id., ibid.
Porto, 1942, p. 199. «Está também muito vulgarizada a indústria da pesca, exercendo-a
é de consumo menos corrente. principalmente na monção do frio. Os pescadores preparam primeiro o veneno denominado hullo,
As vendas são confiadas às mulheres nas cidades ou em estruturas para-urbanas, extraído da raiz, talos e folhas das plantas chamadas Capoque, Macanganga e Chiconde; depois fazem
as famosas quitandeiras, ao passo que o comércio a média ou a longa distância parece represas no espaço de duas milhas, deitando em cada uma grande porção daquele veneno, que o peixe
inteiramente confiado aos homens. Deve, por isso, concluir-se que as mulheres só podem isca rapidamente, ficando atordoado e morrendo pouco depois. O peixe que escapa de uma represa é
vender nos mercados locais, as passo que os homens são encarregados de assegurar os apanhado na outra. O veneno que mata os peixes não é prejudicial à saúde. [Os Africanos] usam também
contactos que impõem horas ou dias de marcha, fora do espaço local. represas com armadilhas de canas nas aberturas, sendo desconhecidas entre eles redes de qualquer
espécie». Magyar, na mesma época, salienta também esse desconhecimento das redes entre as populações
do Bié, 1973, cap. VII, p. 30.
Parreira, 1990, pp. 51-52, descreve a técnica utilizada pelas mulheres para a pesca praticada
nos lagos. Trata-se de proceder ao isolamento dos peixes graças a pequenas barreiras, para os apanhar
em seguida à mão.
( 1 °7) Cadornega, 1972, III, p. 70.
Baptista, 1843, p. 437; Graça, 1890, pp. 386 e 451. Por ex., Porto, 1942, p. 102.
Graça, 1890, p. 418.
Id., ibid., pp. 187, 188, 190, 295, 296.
(110) Id., ibid., pp. 169, 224, 280-281, 296. Porto, 1942, p. 107.

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O peixe pode, do mesmo modo, funcionar como moeda. Livingstone descreve a conserva-se por muito tempo, e assemelha-se ao atum, e o azeite que dele extraem em
abundância (...) é preferível ao de baleia» (122).
existência dos «pequenos peixes de água doce, chamados cacusu (...) [dos quais alguns
milhares] constituem uma parte da taxa paga pelos pescadores do Kwanza, destinados Os Africanos não são apenas muito bons pescadores, mas secam — desde quando?
— o seu peixe. Os Portugueses procuram pô-los ao seu serviço, mas sem êxito. Estas
à alimentação dos mineiros e dos ferreiros empregados pelo Estado [português]. O
informações, não nos permitem saber, contudo, se os Africanos adoptaram as técnicas
cacusu é tão estimado no país, que serve de certa maneira como moeda corrente» (118). utilizadas pelos Portugueses desde o século XVII, ou se, inversamente, foram os
Portugueses que recorreram às técnicas africanas.
Como em muitos outros casos, os Africanos estão perfeitamente separados dos
D. A pesca na costa Portugueses, no que diz respeito às suas actividades de produção. Neste momento do
século XIX, estamos ainda numa época em que as duas estruturas estão sobrepostas
Elias Corrêa descreve, em 1792, a importância do peixe que «é como em toda a como duas placas de vidro, fundidas na aparência, mas separadas de facto. A visibilidade,
parte um produto entre os mais rendíveis». Para Corrêa, esta abundância de peixe exigia quando não a transparência não devem ser confundidas com a fusão. Só podemos
soluções industriais, destinadas a garantir, por um lado, a alimentação de todos os atribuir esta situação à manifesta capacidade de hegemonia que caracteriza as sociedades
escravos, os já instalados em Luanda e os que estavam de partida para o Brasil, africanas.
e pelo outro, este peixe salgado podia servir para satisfazer as necessidades do Brasil, Este facto não impede os Portugueses de pensarem em proceder a uma transferência
principalmente nos portos de Pernambuco e da Baía (119). de competência e de autoridade, sensível na informação que se refere às tentativas
O peixe fresco, pescado pelos Mushiluandas, é abundante na cidade de Luanda, portuguesas que procuram convencer os pescadores mushiluandas a tornarem-se
mas só poucas espécies possuem um sabor e uma textura que agrade aos Europeus. trabalhadores assalariados. Esta tentativa de recuperação fracassa, mas permite dar
Corrêa procede ao inventário dos peixes mais correntes (sável, pungo, sardinha) que conta do conflito potencial que decorre da impotência portuguesa frente à eficácia
constituem a comida mais banal da quase totalidade da população da Angola «portuguesa». técnica e comercial dos circuitos africanos, neste caso os da produção, que permitem
Aparentemente, uma parte deste peixe é consagrada ao sustento dos escravos, a organização da comercialização.
servindo também para alimentar os «pretos do mato, que pescam muito pouco nos rios
que irrigam o interior do continente» (120,.) Esta afirmação é assaz surpreendente, pois III. As produções agrícolas e as bebidas
é amplamente contradita pelas informações do século XIX. Haveria neste caso uma
A. A actividade agrícola: subsistência e comercialização dos excedentes
referência a uma determinada região que teria renunciado à pesca?
O sistema comercial de Luanda corresponde a uma lógica que associa o sistema Não há nesta região nenhum grupo que não se consagre à produção agrícola.
dos mercados locais às condições de uma cidade que, embora ainda caracterizada pelos A agricultura nunca é a única actividade, mas está presente em toda a parte, graças ao
valores rústicos, nem por isso deixa de assumir uma organização urbana. São as trabalho das mulheres. Por essa razão, esta actividade está no centro da vida da maior
mulheres, as quitandeiras, que, em Luanda, asseguram a comercialização do peixe, parte das sociedades desta região. Todas as descrições consagradas às populações se
como de resto de muitos outros produtos, vindos do mar ou dos campos. Verifica-se empenham em descrever as técnicas utilizadas e, por vezes, os resultados obtidos (123).
assim a que ponto o peixe constitui um dos produtos mais importantes no sistema As produções agrícolas, que formam a base do sistema alimentar da população (124),
alimentar angolano, tanto rural como urbano. fornecem também bens, que podem ser oferecidos, e valores que servem para satisfazer
Estes conjuntos de dados são retomados e completados pelo governador Saldanha os tributos ou, ainda, mercadorias para vender.
da Gama, em 1814. Após uma descrição das espécies correntes nas águas marítimas
de Luanda (121), o governador afirma que algumas delas seriam perfeitamente apropriadas Id., ibid., pp. 69-71.
para ser salgadas. Desta vez, somos colocados perante uth produto que estava nas
Silva Porto descreve, cerca de 1850, o ritmo agrícola da região do Bié: «De ordinário, é em
entrelinhas dos textos: a salga feita pelos Africanos. «Os Pretos fazem estas operações meados de Agosto ou princípios de Setembro, segundo a temperatura, ou na passagem da estação fria para
[a salga] com muita imperfeição, e apesar disso o peixe azeite, salgado por eles, a quente, que se preparam os terrenos marginais dos rios para a sementeira do milho, feijões e abóboras;
seguidamente faz-se nos lugares secos a sementeira do feijão grande e milho, milho e luco, abóboras de
diversas qualidades, plantas de raízes farináceas, massamballa, ginguba e bihello (feijão-redondo). As
colheitas dos primeiros fazem-se em Dezembro, e as dos segundos em Janeiro e Fevereiro. Os terrenos
são abandonados ao fim de cinco anos [de cultura], porque os indígenas desconhecem o uso dos adubos
Livingstone, 1859, p. 445. e só cavam a terra à superfície. [Logo que] explorado um terreno, escolhem outro». 1942, pp. 174-175.
Corrêa, 1937, 1, p. 134.
(124) Ver Magyar, 1973, que descreve os alimentos e as refeições dos Africanos da região do Bié,
(120) Id., ibid. cap. VII, pp. 31-32.
(123) Gama, 1839, p. 69.

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Os textos dos viajantes fazem aparecer uma rede comercial, é certo que discreta, Em 1854, Livingstone, que chega ao reino de Kasanje, é recebido pelo agente
mas essencial: a dos alimentos procurados e adquiridos tanto nas regiões orientais como mestiço ao serviço dos Portugueses, que «não se cansava de [lhe] oferecer hospita-
nas ocidentais. Os viajantes, africanos ou europeus, dependem de três sistemas: dos lidade (...) manda abater um boi (...); distribui às mulheres que o servem [ao missionário]
alimentos que trazem consigo, que podem tornar-se muito caros todas as vezes que, para raízes de mandioca para abastecer [tanto o missionário como a sua caravana] de farinha,
os transportar, é necessário recorrer aos carregadores africanos; os alimentos recebidos que baste até Kasanje». Acrescente-se que a técnica é a dos Índios do Brasil, transferida
como presentes, mas que exigem sempre contrapartidas ou contrapresentes; enfim, os para Angola pelos Portugueses. O autor acrescenta que lhe ofertaram «a variedade que
alimentos comprados ou trocados que fornecem o núcleo principal (125). aqui se cultiva; a mandioca amarga usada na província de Lunda [assim como entre
Retenha-se a importância destas informações, que associam as ofertas e as vendas os Quiocos] é excessivamente rara neste vale fértil» (131).
de víveres à viagem, à deslocação a média e a grande distância. A banalização destas Devemos encarar a hipótese de uma forte concentração de mulheres particularmente
operações serve outrossim para mostrar que o mundo africano está longe de se manter especializadas na cultura e no fabrico da farinha de mandioca? Dado o número de
estático e que as deslocações são assaz correntes, a ponto de obrigar à organização de compradores que os dois pombeiros encontram no seu caminho, somos levados a aceitar
redes comerciais, destinadas a fornecer sustento aos viajantes. esta hipótese. Resta saber qual era o seu estatuto: estas mulheres só podiam ser escravas,
Deste modo, as redes de produção e de comercialização só podem ser organizadas circunstância que explica que não podem renunciar à sua actividade produtora,
e conservadas na medida em que há constantemente compradores nos caminhos que indispensável ao funcionamento regular do sistema.
permitem o comércio. Com efeito, estes alimentos, que aparecem de maneira, por assim A produção maciça de farinha de mandioca parece um trabalho de «linha de
dizer, natural, sem sobressaltos, supõem a existência de uma racionalização — no montagem», na medida em que é necessário produzir centenas de quilogramas deste
sentido quase weberiano da expressão — da produção agrícola, que passa não só pela produto, destinadas por um lado a alimentar estes compradores e, pelo outro, a fornecer
preparação da terra — tarefa masculina — e pela conservação dos alimentos, mas deve a mandioca indispensável à compra de sal. Não se trata do único exemplo de uma
considerar também a organização do trabalho das mulheres, as únicas produtoras destes produção importante de mandioca, porque, já a partir do século XVII, as populações
de diferentes regiões de Angola, sob «controlo» português, produziam farinha de
bens agrícolas (126).
mandioca para abastecer os portugueses, em Luanda. Esta farinha era destinada aos
Tudo isto deve ser interpretado de maneira precisa, na medida em que a situação
escravos, assim como à aguada dos navios em trânsito ou, ainda, à população da
é a consequência da banalização das caravanas comerciais, que se cruzam praticamente cidade (132).
em todas as direcções. Será necessário avançar a hipótese da existência de uma geografia
A situação parece de resto bastante idêntica através do território «angolano»:
comercial, na qual participam todos os grupos, se bem que com produtos diferentes?
Magyar assinala também que, em Benguela, em 1849, a farinha de mandioca era
O texto de Pedro João Baptista fornece-nos dados complementares e suficientemente fornecida aos Europeus (133).
significativos: na região oriental dos Lundas, já no caminho para Kazembe, as caravanas
encarregadas de comprar e de transportar o sal devem comprar igualmente farinha de
mandioca, única maneira de obter o sal tão desejado (127).
Por volta de 1849, L. Magyar que, em todos os pontos do seu texto, salienta
a importância do trabalho agrícola das mulheres, considerado «humilhante» pelos ho-
mens ( 128), dá-nos informações respeitantes não só à cultura da mandioca e à preparação combinado, e vão visitar, decoradas com coroas de flores, levando bandeiras nas mãos, a mulher casada
[ntembo] que conseguiu a maior colheita da região e oferecem-lhe alguns presentes dos seus produtos.
da farinha entre as populações da região de Benguela ( 129), mas também sobre as festas Depois disso sacrificam aos quilulu [divindades] algumas galinhas para que não prejudiquem as suas
religiosas destinadas a assegurarem uma bela produção agrícola (130). colheitas. Após o que se divertem sem nenhum controle com comida e bebida e dançam, sem música,
acompanhadas apenas pelas vozes, a dança dos kanye (...) À noite acendem grandes montes de lenha
(...) e convidam os homens (...) [entre os quais aparecem] os tocadores de marimbas e de tambores (...)
Vários autores põem em evidência a importância económica e social dos produtos agrícolas.
A festa prolonga-se durante duas ou três noites seguidas».
Por ex.: Anónimo (1789), in Felner, 1940, II, pp. 21-22, 25-26; Baptista, 1843, pp. 170, 181, 187-190,
Livingstone, 1859, p. 409. Ver também nas pp. 399 e 467 as descrições das diferentes
237, 282, 296; Graça, 1890, pp. 417 e 437; Magyar, 1973, cap. III, p. 30; Neves, 1854, pp. 24-25;
maneiras de cultivar a mandioca e de preparar a farinha.
Livingstone, 1859, pp. 377, 393, 498; Porto, 1942, pp. 38 e 102. Cadornega, 1972, III, pp. 135-136 e 138.
Ver por ex. Magyar, 1973, cap. II, p. 27, e cap. VII, pp. 24-25; Capello e Ivens, 1881, I, p. 105.
(133) Ver Magyar, 1973, I, p. 15. «Os Mundombe, quer dizer, os habitantes de Dombe-ou-Kinsamba,
Baptista, 1843, pp. 174, 427-428. cujo número não passa dos 10 000, sabendo utilizar assaz bem as suas terras férteis, produzem uma grande
Magyar, 1973, cap. VII, p. 24. quantidade de mandioca que serve para preparar aquilo a que se dá o nome de «farinha». Esta farinha
Id., ibid., cap. I, pp. 16-17. de mandioca é vendida nas feitorias europeias instaladas na costa em regiões áridas». Deve registar-se a
Id., ibid., cap. VIII, pp. 34-35. O autor descreve a festa da colheita, uma festa feminina, a hesitação classificatória de Magyar para quem parece que a «farinha de mandioca» não pode ser considerada
Kanye: «depois de ter colocado num abrigo a colheita, as mulheres da região [Bié] reúnem-se no lugar uma autêntica «farinha», a qual só se obterá, nesta maneira de ver, a partir dos cereais mediterrânicos.

290 291
Estas operações dependem de uma articulação muito cerrada entre o sistema comercial
gosto, para os tributos, para os prazeres, para os rituais religiosos, assim como para as
e a produção agrícola: os dois elementos condicionam-se um ao outro. Baptista, observador
relações sociais, as bebidas possuem além disso valores simbólicos. Muito apreciadas
tão subtil como africano, faz referência ao comércio de carne (134), de farinha e de produtos
ou, mais simplesmente, indispensáveis, elas são também comercializáveis.
agrícolas, que lhes são «oferecidos»- (135), os quais exigem sempre contrapartidas
Não podemos contudo esquecer que as bebidas mantêm uma relação assaz parti-
económicas (136), respeitando a lógica do dom e do contradom. Acrescentem-se a isso os
cular com o poder, como lembra, de maneira sugestiva, o estudo que Luc de Heusch
tributos pagos pelas populações aos chefes, igualmente em alimentos, entre os quais os consagrou ao «rei bêbedo» (141). A realeza é também aquela que permite que o rei ou
cereais, de maneira muito particular (137). Silva Porto informa-nos que na região do Sudeste as autoridades supremas mergulhem na desmedida da embriaguez, que não amputa a
(Kwandu-Kubangu) as «colheitas [onde se colhem diferentes cereais], na sua quase razão, antes a desdobra e amplia. Em 1854, Gamitto informa-nos a respeito das bebidas
totalidade, são entregues ao suserano para alimentar a sua numerosa corte, constituída de Kazembe, o ramo oriental dos Lundas: «O Mwata [chefe] tem o direito exclusivo
por verdadeiros parasitas» (138). de fabricar o pombe [bebida fermentada feita com milho], preparado com mel, a que
Parece contudo que o mais importante reside na banalização dos princípios de chamam casoule» (142).
«comercialização» dos produtos agrícolas, o que supõe a existência de um excedente A importância das bebidas no espaço africano ajuda a compreender o mecanismo
conservado nos celeiros (139), capazes de responderem a esta procura que aumenta de de integração fácil e rápida das bebidas alcoólicas europeias ou americanas, onde
maneira regular durante o século XIX (140). aparecem todas as castas de licores e de vinhos, não devendo esquecer-se a geribita,
A circulação dos homens e dos bens impõe uma adequação constante dos modos aguardente extraída da cana-de-açúcar no Brasil. A vulgarização rápida dos vinhos
de produção, para os adaptar de maneira eficaz às novas circunstâncias. Nesse aspecto, portugueses, dos vinhos falsificados, de péssima qualidade, fabricados especialmente
pode dizer-se que a flexibilidade africana se mostrou capaz de apreender e integrar a «para o preto», segundo a fórmula banalizada por José Capela (143), não é o resultado
novidade, até a transformar em comportamento e facto normais. entristecedor — como pretendem os autênticos, mas sobretudo os falsos moralistas —
de uma fascinação dos Africanos perante as «qualidades» do vinho português, mas
muito mais simplesmente a consequência do desejo de experimentarem as bebidas
B. As bebidas, a vida social e a alimentação capazes de assegurarem sensações novas. Esta simples constatação poderia, se feita a
tempo e horas, ter economizado a massa de textos que procuram «provar» o
Os homens procuraram sempre superar a norma física pelo recurso às bebidas comportamento irracional dos Africanos face ao álcool, na pena de quantos esquecem
alcoólicas e aos alucinatórios. A produção das bebidas fermentadas deve ser integrada o que nos conta Zola em L'Assomoir (144).
neste processo de conhecimento, em que o homem se permite ultrapassar a barreira da Como em toda a parte, através dos séculos, as bebidas preenchem uma infinidade
norma aristotélica. Estas bebidas são, como tudo aquilo que se refere à alimentação de funções: sociais, lúdicas, rituais, comerciais. As bebidas africanas são essencialmente
— entendida esta no seu sentido lato — oferecidas, vendidas, destruídas, consumidas. fabricadas com cereais ou outros produtos vegetais ou, então, com mel, fermentadas
Elas servem frequentemente nas funções rituais, associadas às práticas religiosas, seja ou cozidas. Trata-se de bebidas aparentadas com as cervejas e não cervejas, porque
para consumo seja para destruição. Não podendo esquecer-nos que elas servem também as populações desconhecem o lúpulo. Existe uma infinidade de nomes para o mesmo
nos juramentos (ordálias): como se a justiça não pudesse ser assegurada sem a «verdade» produto, o que cria ou reforça as fronteiras regionais. Há contudo duas bebidas que
prometida pelas bebidas. ocupam o primeiro lugar nos circuitos da vida social e na alimentação: aquelas que
Fabricadas a partir da fermentação de diferentes produções vegetais, como os cereais se fabricam com uma mistura de milho e de farinha de mandioca ou, apenas, com
ou as bagas, ou animais, como o mel, as bebidas circulam graças aos agentes comerciais milho fermentado; a segunda é extraída de diferentes palmeiras, espontâneas ou
africanos, produzindo cada região as suas «especialidades» particulares. Boas para o cultivadas.
O primeiro grupo integra os vários pombes que são frequentemente oferecidos ou
vendidos aos pombeiros na região Lunda-Kazembe, nos princípios do século XIX (145).

Baptista, 1843, pp. 183, 188, 286.


Id., ibid., pp. 187, 188, 286, 296.
Apoiamo-nos nas observações teóricas de Marcel Mauss, consagradas ao seu estudo sobre o
Heusch, 1972.
dom (1925).
Gamitto, 1854, p. 359.
Porto, 1942, pp. 77 e 107.
Capela, José, 1973.
Id., ibid., pp. 111-112.
Porto, 1942, p. 73, observa a existência de celeiros de massango em território ganguela. Ver, por ex., Corrêa (1792), 1937, pp. 39-42; Magyar (1849), 1983, VII, pp. 7 e 18; Porto
(1850 ±), 1942, p. 186; Capello e Ivens (1877-1880), 1881, p. 344.
(19 Por ex. entre os Shinjes citados por Livingstone, 1859, p. 456.
(145) Baptista, 1843, pp. 181 e 187.
292
293
Este é o nome utilizado pelos Portugueses e vulgarizado mais tarde, que significa bebida do Kwangu, chamando-lhe «vinho do país» ( 153). Designação dada pelos Quiocos, ou
fermentada a partir do milho, a qual Serpa Pinto diz chamar-se Chibombo em língua reacção do brasileiro, menos treinado nas práticas angolanas? (154).
ambunda, e Ualua, Ou'llo ou Walo em língua nganguela (146).) Encontramos, de resto, Trata-se de uma bebida alcoólica que se faz recorrendo-se às variadas palmeiras (155),
em toda a parte no território bié e regiões circundantes este Chibombo, que Magyar a qual recebe, após a fermentação, um número bastante elevado de nomes. As técnicas
nomeia Kimbombo. Afirma o autor húngaro que se trata de uma mistura de milho e de fabrico foram descritas, pela primeira vez, no século XVII por Cadornega ( 156) e
de mandioca fermentados, constituindo a bebida mais apreciada entre as populações confirmadas cerca de dois séculos depois por Capello e Ivens, na região do Kwangu (157).
africanas de que nos ocupamos (147). Os autores descrevem também as técnicas utilizadas pelos Africanos para extrairem a
Há outras bebidas resultantes desta mistura, descritas pelos autores europeus: seiva da planta, operação feita com grande regularidade. Capello e Ivens acrescentam
a kapata, mistura fermentada «que se parece com a cerveja» ( 148) na região do Bié; uma exposição da extracção do maluvo, cuja produção constitui um trabalho individual,
a marra ma kabaka, espécie de cerveja feita com milho (kabaka) fermentado; assim salientando os dois autores a gravidade da infracção praticada por quem quer que
como a marra ma masago, produzida com milho-painço fermentado (masango), em «toque nas cabaças do outro» (158).
território lunda ( 149). A preparação destas «cervejas» africanas foi cuidadosamente Utilizado pelos Africanos ao longo dos séculos, o maluvo manteve sempre, como
descrita por Capello e Ivens, que multiplicaram as informações de carácter etnográfico (19. já salientámos a propósito dos mitos de origem lunda, um valor simbólico, não só
A segunda categoria de bebidas é aquela a que se dá, em geral, o nome de «vinho em Angola, mas em toda a África que produz esta bebida. Adriano Parreira sublinha
de palma», o marufo ou maluvo ou, ainda, malova ( 151 ), que é oferecido por toda a parte
a importância simbólica da bebida, assinalada nos textos europeus desde o século
«do paralelo 7.° para o norte e nunca ao sul, excepto perto da costa e em pequenas XVI ( 159). O vinho de palma era oferecido para desejar as boas-vindas a qualquer
altitudes» ( 152). Rodrigues Graça regista a oferta do vinho de palma, na margem oriental
pessoa, ao mesmo tempo que fazia parte do alembamento em não poucas regiões.
Por outro lado, este vinho de palma era a bebida ritual utilizada em muitas cerimónias,
como no caso das que marcavam o nascimento dos gémeos.
Um terceiro grupo é constituído pelas bebidas «rituais» entre as quais se conta o vinho
de palma. Magyar assinala a existência de duas delas que ocupam este papel: o bulongo,
a bebida dos juramentos (ordálias), fabricado com mandioca e milho-painço, aos quais se
Pinto, 1880, p. 332. E. Corrêa (1792), 1937, que dá ao Chibombo o nome de Ou'llo ou Walo, I, acrescentava um veneno vegetal, extraído da árvore ongaje ( 160), que servia para revelar
p. 130. Parece que walo é o nome utilizado na região de Kisama, Parreira, 1990, p. 49.
Magyar, 1973, cap. VII, pp. 8, 32 e 34; cap. II, pp. 17 e 31, e cap. V, pp. 13, 23, 26,
32 e 33.
Graça, 1890, p. 417.
Id., ibid., cap. I, p. 21; Porto, 1942, p. 83.
Aparentemente, Rodrigues Graça não teve conhecimento das tradições míticas lundas, porque
Carvalho, 1890a, p. 362.
no conflito verificado entre o último rei dos Bungos e seus filhos, diz-se que estes o tinham encontrado
«Cinco raparigas trabalham ao pilão e outra está junto de uma lareira. Trata-se de pulverisar
três artigos importantes, a saber: o milho, a massambala (Sorghum) e o massango (Penisetum typhoideum), bêbedo e despido. Recusando ajudá-lo, teriam feito troça dele, ao passo que sua filha Lweji o teria
de applicações differentes, como o fabrico do jimbolo, especie de pão, simplesmente amassado com a ajudado, tapando-o com um tecido, certamente uma mabela, para impedir que as pessoas se rissem
água ou addicionando-lhe ovos, e o de matete, papas que se cobrem de mel. Não é d'isso, porém, que dele. O chefe bungo é sempre referido como um homem que tece com os ramos de palmeira mergu-
lhados em vinho de palma. Esta tecelagem singular teria sido a origem da ruptura entre Lweji e
as jovens agora cuidam; mas de obter a cerveja do mato, que se denomina úalúa, quimbombo ou garapa,
conforme as terras, ou outra bebida, a quissangua. A primeira arranja-se como estaes vendo. Põe-se o seus irmãos. Ver Margarido, 1970 (dact.), pp. 72-76.
milho de infusão durante tres dias, e, quando começa a germinar, estende-se em amplas folhas e fica Carvalho, 1890a, assinala o marufo ma mabu, vinho de palma, e o marufo ma matombe,
vinho-de-bordão. Ver também Parreira, 1990, p. 49, a respeito das diferentes variedades de palmeiras
exposto ao sol, sendo logo triturado. O processo é o mesmo que o da cerveja.para obter a diastase, depois
coze-se em água, até levantar grande escuma, e retira-se para a decantação. Junta-se-lhe raizes de produtoras de maluvo.
mandioca e de luco, o que lhe dá um travo amargo similhante ao do nosso lúpulo. Ao principio é doce, Cadornega, 1972, III, pp. 358 e seg. Ver também Parreira, 1990, pp. 48-49.
Segundo Capello e Ivens, o maluvo era uma bebida agradável cujo sabor lembrava
mas passado tempo azéda e promove embriaguez. Os exigentes senhores, pouco dispostos a esperar,
— mesmo que de maneira longínqua — a essência do moscatel, e quando saía da planta era
substituem-a muitas vezes por est'outro liquido de que vêdes uma panella cheia. É a quissangua, de
extremamente «gazosa e aromática (...) Ao fim de 24 horas começa a fermentação», a bebida torna-
rapido fabrico. N'um vaso cheio de água a ferver deita-se uma porção de farinha de milho, massango
-se muito acre, suscitando ainda por cima a embriaguez. «É assim que os indígenas a apreciam (...)
ou massambala, junta-se-lhe mel e suspende-se a escumação. Deixa-se esfriar, coa-se por um panno
extraem-se de duas plantas diversas, a Elais Guineensis e a Raphia (...) verdadeira palmeira acaule».
(quasi sempre sujo, que lhe dá um tic de catinga) e bebe-se!». Capello e Ivens, 1881, I, pp. 333-334. Capello e Ivens, II, pp. 143-144.
Carvalho, 1890a, p. 362; Livingstone, 1859, p. 453, dá-lhe o nome de malova, ver Parreira, Id., ibid.
1990, pp. 48-49. ( 159) Parreira, 1990, p. 49.
(152) Capello e Ivens, 1881, p. 143. (16o) Magyar, 1973, cap. III, p. 43.

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a inocência ou confirmar a culpabilidade daquele que era acusado de ter cometido um crime (161)
e o kissoko, a bebida da amizade (162).
Registe-se ainda um grupo de bebidas fabricadas a partir do mel. Com efeito, o
mel pode ser incorporado nas «cervejas» africanas, para lhe reforçar o gosto, tal como
pode ser misturado a outras bebidas como a capata ou kapata que, misturada com mel,
se transforma em quiaca, bebida muito apreciada (163).
O casoule ou kasolo é feito com mel fermentado e encontramo-lo em toda a
parte no território lunda, oferecido, vendido, bebido em diferentes ocasiões, desempe-
nha um papel importante na organização das relações sociais (164N.) Trata-se, muito
simplesmente, do hidromel, que se apresenta sob diferentes nomes conforme as regiões:
minzundo (Bié) ( 165 ) , bigundi ou mingundi (em território ambuela e ganguela) (166),
ou o quingunde (em território quioco) (167). É uma bebida cuja preparação é lenta
e consiste numa infusão de mel e de água, sendo a fermentação assegurada por
aquecimento solar ou pelo fogo (168\), a qual «embriaga como qualquer bebida
espirituosa» (169). O hidromel é utilizado de maneira ritual, mas serve também para
pôr termo aos conflitos, quando estes estão ainda na sua fase de evolução, procurando
impedi-los de atingir um ponto de conflitualidade tal que não seja possível voltar
atrás (170).
Esta bebida, muito apreciada, é preparada nas regiões caracterizadas por uma
ampla produção de mel, como é o caso do país quioco, sendo vendida nos mercados
por mulheres «vendedeiras de hidromel [que se instalam no fundo do mercado], para
impedir que os compradores e os vendedores lhes entornem as cabaças cheias do Fig. 10 — O caldeirão de hidromel. Capello e Ivens, 1881, I, p. 169.

Id., ibid., cap. III, pp. 14-15, 31-32 e 43; cap. VII, p. 12; cap. VIII, p. 3. Cadornega já no
século XVII se refere a esta função da bebida, 1972, III, p. 320.
Diz Magyar, 1973, cap. V, p. 32: «Aqueles que pretendem ficar amigos até à morte, devido
a relações antigas e a uma simpatia mútua, convidam-se um ao outro para beber em conjunto a bebida
kissoko. Os moradores dos arredores reúnem-se e toda a gente começa pelo kimbombo (...) O Kimbanda
faz com á sua faca um pequeno corte nos braços esquerdos [dos dois amigos] e faz correr o sangue para
uma cabaça. Depois, mistura este sangue com Kimbombo, e é isso que faz a bebida Kissoco, que os
dois amigos bebem abraçados».
porto, 1942, p. 197; Pinto, 1880, p. 147.
Gamitto, 1854, p. 359; Carvalho, 1890a, p. 362.
Porto, 1942, pp. 69 e 72. •
Magyar, 1973, cap. III, pp. 13 e 39; cap. V, p. 14; cap. VII, pp. 32 e 40.
Capello e Ivens, 1881, I, p. 334.
Id., ibid.
Porto, 1942, p. 69; Magyar, 1973, cap. VII, p. 32.
Os autores descrevem o ritual quioco, de que foram testemunhas: «uma caneca [cheia] de
hydromel [é oferecida] ao chefe» para acalmar a sua ira prestes a explodir. «Correu então a caneca de
boca em boca, não deixando de ir à de sua alteza umas oito vezes, completamente cheia e voltando de
lá vazia. Generalizou-se a conversa, e N'Dumba, já um pouco satisfeito, começou a narrar algumas
peripécias de sua vida (...) Ingerindo mais duas canecas de hydromel, fez a apologia desta bebida que,
segundo a sua opinião, só tinha rival na aguardente dos brancos». Capello e Ivens, 1881, I, pp. 187-188. Fig. 11 — Colmeia instalada numa árvore na região do Tshiboko. Redinha, I, 1953, p. 64.

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precioso líquido, o qual vazado em amplas panelas é bebido por taças de três e quatro Uma das provas avançadas para demonstrar a existência de uma confusão entre
litros» ( 171 ). Parece ter-se transformado numa mercadoria característica do sistema as duas matérias — é verdade que a contrario — reside na ausência de qualquer
comercial que decorre da importância das complementaridades regionais. produção escultórica que se sirva das técnicas da «cera perdida», todavia, corrente nas
A região de Kasanje é do ponto de vista da produção de bebidas a mais pobre, pois regiões mais ao norte. A situação é tanto mais singular quanto se reconhece, sem a
não possui nem o quingunde nem o maluvo ( 172). Rodrigues Graça é o primeiro a menor dificuldade, a grande qualidade técnica e estética da produção artística de uma
assinalar a ausência de bebidas específicas da região, que não são nem oferecidas nem região que envolve a escultura kongo, e se prolonga até à dos Makondes, já na costa
vendidas. A aguardente portuguesa era a bebida que, por volta dos meados do século oriental.
XIX, circulava de um modo geral na região. A presença já antiga dos Portugueses na Convém também acrescentar que esta dificuldade técnica não impede uma produção
Feira de Kasanje, «impondo» as suas mercadorias, contribuiu certamente para reforçar bastante reduzida de cera, que é contudo de muito má qualidade, cheia de impurezas.
de maneira gradual o consumo tão importante de bebidas alcoólicas importadas (m). Este facto não podia deixar de provocar a reacção dos Portugueses, colocados perante
Em resumo, as bebidas estão colocadas nos dois extremos da organização social: o volume de abelhas e de colmeias, que deviam assistir ao consumo de mel fabricado
associadas ao poder, não podem ser dissociadas da morte, mesmo que através da por insectos que pareciam incapazes de produzir a cera tão desejada. Esta situação não
organização processual da justiça. No primeiro caso, encontramos referências a práticas podia ser aceite: as transformações registadas nas práticas sociais europeias, a partir
míticas, como as dos reis bêbedos, de que nos fala uma das versões do mito de fundação do século XVII, levam a Europa a uma procura cada vez mais importante de cera. Os
dos Lundas. No outro extremo da cadeia, encontramos as bebidas indispensáveis à círios e as velas tornam-se indispensáveis tanto nas cerimónias religiosas como na
celebração dos juramentos, destinados a regularizar, de maneira definitiva, os conflitos iluminação das casas da aristocracia e da burguesia, já que o povo só podia servir-se
que perturbam o equilíbrio da sociedade. de candeias, que consumiam óleos vegetais ou animais, ou de velas de sebo.
Entre estes dois extremos, as bebidas servem para quase tudo, destinadas a
desempenhar um papel essencial, permitindo que os homens possam sair do mundo A. A produção da cera
ordinário para alcançar a exaltação lúdica do imaginário. Por outro lado, aqueles que
bebem em conjunto — operação fundamentalmente masculina — encontram-se numa Cadornega situa a «descoberta» da cera angolana nos anos 1641-1648, na região
relação de amizade. Não vislumbramos a menor referência à embriaguez das rainhas. da Kisama ( 176). Teriam então chegado a Luanda algumas canecas de mel, contendo
No vale do Luapula, o governo só pode ser compreendido graças à bebida. Os homens ainda alvéolos de cera. Foi o próprio governador que separou o mel da cera, aproveitando
que acabam o dia numa situação de quase-ebriedade são os que asseguram a gestão dos esta operação para ensinar um tal Faya, filho de fundidor, que podia mostrar-se capaz
negócios do grupo, da região e, eventualmente, do país. de preparar a cera «como tinha visto fazer em casa de seu pai, a fim de ver se esta
cera podia ser bem trabalhada e purificada». A experiência mostrou-se rendível e «não
IV. O mel e a cera tardou que houvesse numerosos fundidores» em Luanda (177).
O texto de Cadornega afirma a importância da intervenção da autoridade mais
Num artigo bastante importante, consagrado ao mel e à cera na África central (174),
elevada da colónia, tal como faz deste acontecimento o epicentro de mudança que se
Jean-Luc Vellut conseguiu sistematizar as informações demasiado dispersas, que tornavam
verificou mais tarde no tratamento da cera, não só em Luanda, onde, ao que parece,
difícil a organização dos dados, a começar por esta constatação simples, que sempre
se multiplicaram os fundidores, que deviam preparar uma matéria-prima fornecida pelos
provocou comentários irónicos por parte dos historiadores que só conhecem as regiões
mais a norte: foi já bastante tarde que as populações desta região aprenderam a separar
a cera do mel (1").
Cadornega, 1972, I, p. 374.
Do texto de Cadornega deve ser retido: «e foi o cazo, que vindo da Provincia da Quisama,
Id., ibid., p. 169.
onde há muitas Colmeias, alguns potes de mel, com os mesmos favos dentro: posto o mel de parte,
Id., ibid., 334.
mandou o Governo ao seu Pagem por nome Manuel Faya, porque sabia era filho de hum homem honrado
Neves, 1854, p. 43.
de Lisboa, Cerieiro, fizesse experiencia pello que tinha visto obrar em caza de seu Pay; se aquella Cera
Vellut, 1979.
era boa e se se lavrava e curava bem: feita a experiencia se achou ser riquissima, tambem como a melhor
( 175) Vários autores europeus já tinham observado que a cera não era regularmente utilizada pelos
que pode haver no Mundo todo, facil de lavrar, e em quatro dias de a trazerem ao Sol, fica alva como
Africanos na região angolana, afirmando alguns que só a intervenção técnica dos Portugueses lhes tinha
huma neve, de modo que logo se pode por no Altar, sem andar com ella por hortas, nem sereno de noute;
ensinado a separar os dois produtos. Por ex., Cadornega (1680), 1972, I, pp. 373-375; Cavazzi (1687),
esta experiencia foi bastante para dali por diante se tratar de ir buscar aquella Cera áquella Provincia
1965, I, p. 23; Corrêa (1792), 1937, I, p. 127; Mello (1802), 1885, p. 560; Gama, (1814), 1839, p. 80;
da Quisama; e logo houve muitos Cerieiros, que chegou a haver tanta que agora em nossos tempos tem
Graça (1843-1846), 1890, pp. 377-386, 410 e 415; Lima, 1846, p. 17.
hido muitos Quintaes de lá para o Brazil, e escuza vir do nosso Reino cera...».

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Africanos, mas também no mato, sobretudo nos presídios. A descrição da mudança, colocam-lhes no centro [do instrumento] cera preta, muito pegajosa, que aquecem ao
provocada pelo governo, é apaixonante: estes fundidores, que eram igualmente lume ou ao sol» (182).
comerciantes dispersos nos presídios, ensinaram as técnicas aos seus escravos que se A mesma cera preta é utilizada em rituais, organizados aquando do enterramento
tornaram «hábeis a fazer este trabalho» (178). Não parece muito ousado mostrar que a dos chefes polfticos. Estes são depositados na Casa das Caveiras, após terem sido decorados
generalização das técnicas da fundição foi indirectamente assegurada pelos Portugueses. «com cabelos colados com cera preta, entrelaçados com corais brancos e encarnados» (183).
Se estes procuram confiar — ou impor — aos Africanos todo e qualquer trabalho Se o recurso às cores branca e vermelha simboliza os dois pontos extremos da estrutura
manual, eles, em contrapartida, recuperam dos Portugueses todas as técnicas capazes que permite as relações com os espíritos — o branco do lado dos bons espíritos, o vermelho
de lhes fornecer alguma vantagem, quer no comércio quer na guerra. Define-se assim do lado dos maus —, não parece fácil, dada a falta de documentos antropológicos capazes
um duplo movimento: uma africanização evidente da sociedade angolana «branca», que de nos ajudarem a esclarecer a questão, explicar a razão deste recurso aos cabelos humanos
arrasta uma «europeização» das técnicas africanas ou angolanas. «pretos» para reforçarem a cabeleira do morto.
No fim do século XVIII, Oliveira Mendes põe em evidência a abundância da cera, Por sua vez, Jean-Luc Vellut assinala um aproveitamento mais pragmático da cera
não se esquecendo de mostrar qual teria sido o papel dos presídios na preparação da entre os Ganguelas, sem todavia indicar a fonte a que recorreu: «certos Nganguela
cera destinada ao comércio. É nestas instalações semimilitares, semicomerciais que «os [Nkoya] serviam-se da cera para reparar os seus utensílios, mas parece tratar-se de uma
sertanejos (...) têm as suas caldeiras, nas quais a [cera] refervem, e beneficiam de um prática excepcional, e não se sabe quando começou a ser utilizada» (184,.) Seja como for,
tal modo, que transportam cera amarela, e branca; tendo cada pão [de cera] 2, 3, 4 esta utilização da cera parece demasiado rara ou demasiado discreta, pois não foi
arrobas [30, 45 ou 60 quilos] que é transportada pelos Pretos» (179). assinalada por um observador tão atento como Silva Porto.
Os textos apresentam a questão como se os Portugueses pudessem eles próprios O aumento da tonelagem de cera exportada, que caracteriza o comércio dos Africanos
obter a cera. Tal não é o caso, dado que a região que fornece o produto nas primeiras com os Portugueses, resulta da necessidade de substituir o escravo-mercadoria. Apesar
fases da fundição continua a ser a Kisama. Quer isto dizer que, apesar das fricções que dessa evidência, podemos verificar que as informações de Cadornega permitem dar conta
constantemente se registam na região, era possível organizar um sistema que trazia as da anterioridade da comercialização da cera, que dependia sobretudo da aprendizagem
colmeias até aos Portugueses. Mas nada nos é dito a respeito dos preços ou dos termos técnica, que consentia separar o mel da cera. Não nos devemos esquecer que a
de troca que marcavam esta actividade comercial. sobreprodução da cera implica uma sobreprodução concomitante de mel. Este, se não é
Alguns anos mais tarde, em 1814, o governador Saldanha da Gama escreve que comido sem outra preparação, é certamente consagrado ao fabrico de hidromel.
«os Pretos do presídio das Pedras de Pungo Andongo são os que melhor sabem branquear Por outras palavras, as indicações de que dispomos não obstam registar a lenta mas
a cera» (180). constante reorganização das produções africanas, as quais, sem rejeitarem o tráfico
O comércio cresce cada vez mais. As indicações estatísticas não são muito abundantes negreiro, procuram diversificar o leque dos produtos propostos ao comércio afro-
na documentação portuguesa; contudo, as quantidades comercializadas são reveladoras -europeu. As condições tão peculiares do crescimento desta produção associam a busca
da generalização das técnicas, permitindo, enfim, que as populações destas regiões do mel na floresta à integração das colmeias no espaço doméstico, modificando as
consigam separar, tão habilmente como as mais, a cera do mel. Por isso, esta mercadoria relações com o insecto, mas também com as condições de fabrico do mel, que passam
contou-se como das mais importantes nas relações comerciais com os Portugueses e, do selvagem ao doméstico (185).
por consequência, da África com a Europa (181). Como deixar de assinalar esta situação inteiramente inédita, a partir do momento
Trata-se de uma grande modificação, porque a cera não servia aparentemente para em que ela serve para fazer sobressair a capacidade dos Africanos em reconhecer, entre
coisa alguma antes da intervenção dos Portugueses. Parece que as populações tiveram as propostas europeias, aquelas que podem tornar-se rendíveis para as sociedades
dificuldades para lhe inventar uma utilização. É certo que, prosurando bem, acabamos africanas? No caso da produção da cera, eventualmente do mel, os Africanos não
por encontrar nos textos algumas referências ao seu emprego. Todavia, só as encontramos comprometem, de maneira alguma, a sua hegemonia, pois que os Europeus não podem,
no século XIX: Silva Porto indica, em 1846, duas serventias da cera na região do Bié,
provavelmente em país ganguela: «para retezarem as peles [dos tambores], [os Africanos]
Porto, 1942, p. 35.
Id., ibid., p. 39.
Vellut, 1979, p. 97.
Id., ibid. No relatório da sua viagem ao Alto Tchikapa, José Redinha (1955) publica fotografias que
Mendes (1793), 1977, p. 30. mostram a maneira como os Quiocos multiplicam as colmeias no espaço da aldeia, o que permite um
Gama, 1839, p. 80. melhor controlo. Esta maneira de agir não se deixa travar pela selvajaria das abelhas africanas, tão
Ver quadro consagrado à exportação da cera, 5.a parte, cap. II. frequentemente denunciada pelos apicultores europeus ou americanos.

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em nenhuma circunstância, ter acesso ao mato para proceder eles próprios à localização ricos em abelhas, o que tornou possível a organização de sociedades que produziam mel
e à extracção da cera. em quantidades importantes, servindo-se de técnicas diversas, que vão da colheita do
As mudanças das condições e dos ritmos de produção nunca foram muito homogé- mel bravo (sobretudo na floresta húmida) à criação — preferencialmente extensiva, se
neos, como faz notar um documento português de 1802, redigido pelo governador D. Miguel bem que introduzida tarde — das abelhas (nas regiões de floresta clara), sendo a escolha
de Mello, agastado pela lentidão da resposta técnica dos Africanos. O documento revela «geralmente ligada aos tipos de meio e de densidade humana» (188).
uma forte exacerbação perante a teimosia dos Africanos, que pretendem manter-se fiéis A partir do século XVI, os documentos portugueses retêm a importância da produção
às suas técnicas tradicionais, apesar dos benefícios que puderam receber por via das e do consumo do mel. Estes primeiros documentos assinalam já a existência de uma
modificações constantemente sugeridas pelas autoridades portuguesas (186). certa domesticação das abelhas, os Africanos instalando as colmeias, que lhes fornecem
A visão portuguesa oscila entre duas opções: a da vontade de impor, se necessário «um mel muito bonito» ( 189), no cimo das árvores chamadas calabaceiras (adansonia).
pela força, o que parece melhor para os Portugueses e que «deve», por essa mesma Se não estamos ainda perante a total domesticação das abelhas, podemos contudo
razão, sê-lo para os Africanos. Estes, em caso extremo, não hesitam em abandonar dar-nos conta de que os Africanos dispõem de conhecimentos e de técnicas suficientes
aldeias e culturas, carregando com os patrimónios à cabeça para se instalar alhures, fora para forçar as abelhas a instalarem-se em colmeias fornecidas pelos homens, e que estes
do alcance dos Portugueses. Um alhures de resto incerto, pois não é possível esquecer podem alcançar e explorar sem as dificuldades apresentadas pela «caça» ao mel, na
as lentas mas constantes infiltrações das autoridades e dos agentes portugueses.
floresta. Já antes do século XVI, as sociedades angolanas tinham feito progressos nas
Nem todos os grupos reagem da mesma maneira: no momento em que o governador tentativas de domesticação das abelhas, ainda livres no espaço natural, embora cada vez
protestava contra esta «barbárie» africana, sabemos, quanto mais não seja graças aos
mais socializado.
valores das exportações pela alfândega de Luanda, que um grande número de africanos
As referências ao mel multiplicam-se no decurso dos séculos ulteriores, na medida
tinha já sido integrado nas novas maneiras técnicas para aumentar, de forma regular
em que o produto pertence ao catálogo dos consumos regulares dos Portugueses e dos
e constante, a produção da cera. O governador português apercebe-se da capacidade de
Europeus, sobretudo os do Sul. Neste registo alimentar, não há divergências fundamentais
resistência africana, silenciosa mas eficaz, porque nada parece mais frustrante para uma
entre os dois grupos, e o mel é certamente um dos produtos onde se registam a
autoridade do que a desaparição das pessoas a quem podia dar ordens!
convergência dos gostos e dos interesses dos dois grupos, africano e europeu, que em
muitos outros casos se encontram face a divergências essenciais, que, como já vimos,
B. O mel: produção e consumo se referem também aos sistemas alimentares.
O documento de 1802, do governador Miguel de Mello, já referido, é menos
A colecta do mel e a sua utilização na alimentação constituem, certamente, práticas simpático relativamente aos Africanos do que a descrição do século XVI. A sua visão
bastante antigas num número muito elevado de regiões angolanas. A existência de uma das relações dos Africanos com as abelhas é muito catastrófica, porque para obter o
simbiose insecto/homem pode certamente ser explicada graças a um dado biológico, mel, os Angolanos utilizariam uma única técnica, que consistiria em «queimar os
posto em evidência por Sydney Mintz: o homem parece não poder viver sem um enxames, para crestar as colmeias» ( 19 5. O governador Mello, tal como o seu colega
consumo regular de produtos doces. Durante séculos, o mel permitiu responder a esta Saldanha da Gama e os viajantes europeus, que percorreram, em meados do século XIX,
necessidade; o açúcar só começou a intervir de maneira constante desde os séculos XV- as regiões angolanas produtoras de mel, denunciam o método brutal utilizado pelos
-XVI, antes de se banalizar a partir do século XVIII (187). «Negros» para colherem a cera que as abelhas produzem. «... costumam pôr fogo à
As regiões do Kongo, da Kisama, do Bié, do Songo, a leste do Kwanza, os árvore em que está o enxame, com o que não só destroem ou dispersam este, mas perdem
territórios quioco, nganguela e lovale, a leste, a sul e sudeste do Kwangu, são muito o mel, de que poderiam aproveitar-se para muitos usos. Apesar deste exterminador e
bárbaro processo, continua sempre a vir cera em abundância... » (191).

Mello, 1885, p. 560, escreve: «sem embargo de algumas diligências que se têm feito para
(...) desviar [os Africanos] [desses métodos] são eles tão bárbaros, tão indóceis, tão afferrados a seus
usos e costumes, e por maneira tal aborrecem tudo quanto lhes pode dar mais algum trabalho, diverso
daquele a que estão acostumados, que apesar de tudo quanto se lhes diz e ensina, únicamente obram Ver Vellut, 1979, pp. 93-95.
o que querem, e se os violentam, ainda que com prudência e justiça, para que abracem e se conformem Brásio, 1954, IV, p. 548. Ver também 1952, II, p. 510, a carta de um padre jesuíta que,
com o que se lhes incumbia, fogem dos sítios em que vivem, e desamparam as terras e o comércio, em 1563, se refere «ao mel de abelhas» utilizado pelos habitantes na região do Kwanza.
mal este gravíssimo e nos é preciso evitar, acomodando-nos ho que pode ser à sua inteligência e Mello, 1885, p. 560.
vontade». Gama, 1839, p. 80. Ver Lima, 1846, p. 17, que também denuncia a «brutalidade» do
Mintz, 1991, p. 172. método utilizado pelos Africanos para recolher o mel.

302 303
O mel ocupa um lugar deveras importante neste documento, mas sobretudo nas depois, Capello e Ivens também o farão (197). Se esta simbiose dos homens com os
práticas africanas: usa-se para fabricar bebidas muito apreciadas, cujo carácter nutritivo animais é certamente importante, parece-nos, contudo, que o mais significativo reside
não precisa ser reforçado; é utilizado para alimentar os homens, mas serve também para na existência de um código de carácter amplo, que se aplica à propriedade das colmeias
a exportação, aumentando desta maneira o valor do comércio branco de exportação. A e do mel. Magyar diz-nos que, durante a «caça» ao mel, o primeiro a ouvir o pássaro
irritação do governador refere-se tanto à cera quanto ao mel, como mostra a sua torna-se o proprietário do mel que partilha com aqueles que escolhe e que o acompanham.
denúncia apaixonada das características selvagens das técnicas empregadas pelos No caso específico de Magyar, este salienta que, depois de ter descoberto e comido
Africanos. o mel, todos os companheiros da caravana «encheram [de mel] oito grandes cabaças.
Estas violências africanas são confirmadas pelos documentos ulteriores, mesmo que O alvéolo de mel mais bonito foi posto num tronco de árvore destinado ao pássaro tão
os Africanos se mostrem capazes de adoptar técnicas menos destruidoras das abelhas. generoso» (198). Circulava então nas caravanas uma anedota destinada a mostrar que
Em todo o caso, durante o século XIX, são numerosos os testemunhos que patenteiam os avarentos com o pássaro seriam inelutavelmente castigados, porque este os levaria
o interesse da domesticação das abelhas. Valdez lembra, em 1861, que quando levara para armadilhas perigosas ou até mortais (199). Quer dizer que as regras da «caça»
a cabo a sua viagem através de Angola em 1850, os Africanos começavam a adoptar definem as regras dos humanos, que não devem esquecer as suas obrigações perante
um método menos brutal e mais económico para obter a cera, deslocando as abelhas o pássaro que permite o êxito da operação.
em caixas (192), ao mesmo tempo que mantinham o hábito de recorrer ao fogo para É de maneira mais discreta que Silva Porto fornece um sinal importante, ao
retirar o mel das colmeias selvagens. informar-nos que a busca do mel «entre os Cassequeres» seria um trabalho feminino (79.
Silva Porto, Ladislas Magyar e Livingstone, que percorreram, mais ou menos na Infelizmente as informações de Silva Porto não nos permitem saber se estamos perante
mesma época, as mesmas regiões produtoras de mel — caracterizadas por uma «flora uma prática de carácter relativamente comum, ou se devemos considerá-la como uma
melífera abundante (...) povoadas por abelhas do género Apis» (193) —, descrevem-nos excepção. Teria sido necessário um esclarecimento mais amplo e mais pormenorizado
a colheita do mel na floresta angolana. Os métodos utilizados eram quase os mesmos para dispor dos elementos que permitiriam traçar a fronteira das implicações sexuais
por toda a parte, resultado de uma evolução que permite dar conta da lenta transição perante esta tarefa geral e necessária.
da pilhagem, ainda banal, nos princípios do século XIX, para uma criação cada vez Estes autores descrevem igualmente a apicultura das regiões que percorrem.
mais intensiva das abelhas. Livingstone, após ter discutido com os Africanos que queriam vender-lhe cera, acaba
A castração das colmeias para recolher o mel selvagem aparece algumas vezes por comprar mel, referindo que as abelhas desta região centro-leste (junto ao Kasai)
como resultado de uma singular associação entre os homens e o «pássaro do mel», pertencem todas aos indígenas «que colocam colmeias em número suficiente para as
ongilla ou ossole, de acordo com as informações linguísticas de Silva Porto e de
conter a todas» (201 ). É de recear que os conhecimentos apícolas do pastor Livingstone
Magyar (194), ou o cuco indicador (Cucus indicator), como escreve Livingstone (195). sejam bastante reduzidos, pois nem sequer prevê a hipótese da enxameação, que devia
Silva Porto, como de resto faz Magyar, descreve o ritual da procura do mel, seguindo
exigir dos proprietários indígenas outra coisa que não fossem as colmeias instaladas
o pequeno pássaro que «oferece» as abelhas aos apetites dos homens (196). Alguns anos
para aguardar a hipotética chegada das abelhas (202).

Valdez, 186, II, p. 127.


Vellut, 1979, p. 25. abelhas, rumorejando na frente da sua habitação. Acendeu-se uma fogueira, pondo-se-lhe folhagem em
Porto, 1942, p. 209; Magyar, 1973, cap. III, pp. 8-9. cima para fazer bastante fumaça, e logo se iniciou o trabalho de derrubar o gigante vegetal. Ao fim de
Livingstone, 1859, p. 384. • uma hora tínhamos o prémio do mel duma colmeia, que dividimos com a ave que nos encaminhara.»
(196) Porto, 1942, escreve que se trata de uma ave «pouco menor do que o pardal, tendo a mesma (p. 209). Ver também Magyar, 1973, cap. III, pp. 8-9 e 37.
cor [cor de ferrugem, salienta Magyar], com algumas penas brancas nas asas e na cauda; [a qual] chilreia Capello e Ivens, 1881, I, p. 253.
apressadamente desde que se apresenta até que é seguida, moderando-se depois.» (p. 210). «Não há Magyar, 1973, cap. III, pp. 8-9.
viajante que, tendo percorrido o interior dêste vasto continente, tenha deixado de se familiarizar com Porto, 1942, p. 210; Magyar, 1973, cap. III, pp. 37-38.
o 'pássaro do mel', verdadeiro portento da natureza, dando dêle notícia no mundo científico. Certo dia, Porto, 1942, p. 100.
tendo nós as armas carregadas, seguimos o chilrear incessante da maviosa ave, internando-nos pelo mato; Livingstone, 1859, p. 384.
cessando o gorjeio e não a avistando, principiaram as reclamações dos pretos por meio de assobios, ao Era corrente na Europa encontrar camponeses atrás dos enxames que se tinham separado da
mesmo tempo que batiam com os machados nos troncos das árvores. Saindo donde estava, esvoaçando colmeia e que procuravam instalar-se para formar uma nova colónia. Um saco ou uma colmeia deviam
dum para outro lado, ela foi-se internando e nós seguimo-la, até que pousou pela segunda vez e cessou chegar para recuperar os migrantes, para os devolver ao lugar onde tinham sido domesticados. Não seria
de cantar, sinal de que devia começar a tarefa dos machados. Deu-se finalmente com o depósito das difícil pensar na dificuldade de uma operação deste tipo em plena floresta clara.

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O fabrico das colmeias é um trabalho inteiramente masculino, que «exige preceitos o sentido desta operação: trata-se de uma vingança recorrendo às técnicas do «mau-olhado»,
vários», sendo a indústria desses fabricantes «de grande importância» ( 203). A explicação ou a «vingança» é mais directa e recorre ao roubo ou à destruição? O que podemos ver
parece simples: são necessárias ferramentas para conseguir fabricar uma boa colmeia, é que uma colheita abundante, que cria a «riqueza» de um indivíduo, quer dizer, de uma
tal como é necessário controlar as técnicas para que esta «casa» das abelhas possa família, pode constituir um elemento de desestabilização.
preencher a função para que é destinada. Dispomos de duas descrições do fabrico das Não é por acaso que no par cera/mel, as populações africanas manifestam uma
colmeias, a primeira de Silva Porto ( 204) e a segunda de Magyar (205). preferência evidente pelo mel, o que tem como contrapartida o facto de não haver quase
Ambas as descrições salientam a importância da casca — quer dizer do líber — utilização para a cera. Inversamente, o mel é indispensável não só como alimento, mas
das árvores, o material mais frequentemente utilizado no fabrico das colmeias, mesmo principalmente porque serve para a produção de bebidas, que embebedam, permitindo
que Silva Porto faça uma referência a colmeias escavadas em pedaços de madeira. a euforia, mas sobretudo socializam. A equação conta-se entre as mais simples: quanto
Trata-se, em qualquer dos casos, de colmeias cilíndricas, que Silva Porto envolve em mais produção, mais possibilidades de troca, seja de mercadorias seja de relações. A
palha, antes de as instalar na horizontal no cimo de uma árvore muito alta. Magyar maior produção de mel autoriza uma maior produção de bebida, que se traduz em festas,
suspende as colmeias nas árvores. Vistas em conjunto, as técnicas podem ser consideradas quer dizer, em relações sociais.
homólogas, alargando-se esta homologia à maneira como as colmeias são instaladas nas Devemos também lembrar que o mel faz parte dos produtos que servem para
árvores. satisfazer os tributos devidos aos chefes, religiosos ou políticos (208). Num sistema em
Silva Porto lembra uma prática corrente entre as abelhas que se alojam, com que as regras da «fiscalidade» não são calculadas e contabilizadas em dinheiro, é
alguma frequência, em morros de térmitas, o que, de resto, força a partida das formigas. necessário organizar uma lista de produtos preferenciais: o mel é um deles, por razões
De facto, esta observação deve ser considerada como uma indicação que serve para que já analisámos. Tanto o chefe político como o chefe religioso não podem renunciar
descrever a maneira como as abelhas são capazes de se instalar nos buracos ou nos a um produto tão influente na organização das relações sociais que passam pela festa
ocos, para se abrigar dos parasitas, incluindo dos homens. e pela bebida. Se a ebriedade africana foi tão pesadamente denunciada pelos autores
As observações mais significativas provêm de Magyar, que procede ao inventário do século XIX — em perfeita sintonia com a literatura profiláctica da época, que
das práticas sociais associadas à propriedade das colmeias, assim como à produção do pretendia extirpar o alcoolismo das classes trabalhadoras — é esquecer que as regras
mel: a propriedade parece assaz individual, porque o mel pertence àquele que colocou de comportamento social não coincidem, de maneira alguma, com as preocupações
a colmeia. O roubo do mel constitui um crime que pode ser punido com a pena capital. burguesas dos comportamentos europeus (209).
Esta observação reforça o que já sabíamos: existe nas regiões de Angola oriental uma A informação mais importante de Capello e Ivens, mau grado o seu carácter tardio
espécie de direito que se refere, de maneira explícita, à propriedade das colmeias e do em relação à nossa grelha cronológica, reside na referência à produção individual do
mel, que é respeitada em toda a parte. O facto de Magyar assinalar a existência da pena mel e da cera: «em cada árvore encontra-se o respectivo uondé (colmeia), donde se faz
capital como castigo aceite e praticado leva-nos a considerar a importância do produto, a colheita do uitchi (mel) nos meses de Julho e Agosto» (210). Os dois autores salientam
que determina o valor do crime e do castigo, o primeiro exigindo o segundo (206). a necessidade da separação do mel e da cera: «os favos são fervidos em grandes panelas
Como não mostrar que a subsistência de um direito de carácter geral, aplicado em e o mel coado através de um pano; a cera lança-se em pequenas cavidades feitas na
todas as regiões produtoras da mesma maneira, faz aparecer uma generalização do terra com formas diversas desde o paralelepípedo até ao cone» (211).) De maneira
direito, que não é já local, mas pelo menos inter-regional, explicável apenas em infelizmente muito sintética eles acrescentam ainda que «o mel, extraordinariamente
consequência do prestígio assumido pelo mel nas economias africanas? abundante, tem diversos empregos» (212).
De resto, Magyar lembra outro tipo de crime, que parece ainda mais «curioso»: Estas descrições e estas informações permitem dar conta de uma evolução
afirma que as populações de que se ocupa consideram ser um crime grave «invejar o seu constante das relações dos Africanos com as abelhas durante o século XIX. Se nem

vizinho devido à sua rica colheita de mel (...) [a ponto] de procurar vingar-se» ( 207). As
explicações de Magyar são muito reduzidas, de tal maneira que não podemos compreender
Id., ibid., cap. VIII, p. 1; Porto, 1942, p. 77.
Cujo produto mais apurado continua a ser a ética protestante de Max Weber, que faz do
«espírito do capitalismo» o resultado mais refinado do puritanismo religioso.
Porto, 1942, pp. 197-198. (21 °) Capello e Ivens, I, p. 179, e Porto, 1942, pp. 197-198, propõem um calendário levemente
Id., ibid. diferente, caracterizado por duas estações: a de Setembro e Outubro, mais abundante, e a de Maio e
Magyar, 1973, cap. VII, p. 28. Junho, menos abundante.
Id., ibid.; ver também Capello e Ivens, 1881, I, p. 179. Id., ibid.
(207) Magyar, 1973, cap. III, p. 32. Id., ibid., p. 271.

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todas as informações correspondem a situações desconhecidas, pois que os autores
começam a interessar-se pela produção do mel já no século XVI, podemos contudo
verificar que a mudança é geral, pois se impõe na totalidade das regiões produtoras,
à medida que a cera adquire um valor sociocomercial que, até então, pertencera
exclusivamente ao mel.
Estes produtores «individuais» só nos podem interessar, e muito, na medida em que
são certamente o resultado das mudanças desencadeadas pelo aumento das relações
comerciais, quer interafricanas quer especialmente afro-europeias. A intervenção constante
dos «vendedores» individuais, muitas vezes confundidos sob a etiqueta demasiado genérica
CAPÍTULO III
de «comerciantes», constitui um elemento que serve para marcar as mudanças internas
dos sistemas africanos, que não podem afirmar-se sem a aparição, mínima que seja, de As complementaridades artesanais
uma responsabilidade individual: que outra coisa pode fazer um «comerciante» africano
a centenas de quilómetros da sua origem, senão tomar decisões individuais? O sistema das complementaridades não podia manter-se limitado às produções
É muito curioso que, neste campo, o autor, que parece melhor aperceber-se da alimentares. É certo que os alimentos terrestres são importantes, mas não podem nem
situação, seja o romancista português — nascido em Moçambique — Castro Soro- dissimular nem negar o valor das ferramentas, sem as quais a feitura de qualquer
menho (213). Este antigo funcionário da administração colonial trabalhou nas regiões produto seria certamente difícil ou até impossível.
quioca/lunda, marcadas pela sobrevivência dos valores do antigo sistema comercial, Este circuito mobiliza também os produtos de um artesanato que o tempo tornou
quando seu pai assegurava o governo do que era então a província da Lunda. As «tradicional», mas que representava então — quer dizer, ainda no século XIX — o cume
pequenas caravanas e as baixas quantidades de borracha ou de cera, propostas aos da competência técnica das sociedades. É contudo necessário acrescentar que a produção
comerciantes brancos ou aos seus filhos mulatos, são a prova da desagregação irreversível de bens exige dos homens um trabalho de investigação, de classificação, de produção ou
dos sistemas áfricanos, cujas autoridades são apeadas pela falta de homens e de bens, de extracção, de escolha e de preparação, como é o caso do ferro e do cobre.
pondo assim termo à hegemonia secular, senão até milenar, das estruturas africanas. Não podemos, neste inventário, esquecer o marfim nem as «pedras verdes», quer
dizer, as malaquites, muito procuradas devido às suas virtudes curativas, o tabaco e os
produtos alucinatórios do mesmo tipo, entre os quais a liamba — tão duramente
denunciada e combatida pelas autoridades portuguesas — cuja função socializante foi
tantas vezes demonstrada.
O caso mais singular é, de maneira evidente, o da produção artística, esculturas,
amuletos ou máscaras, a respeito da qual os textos são particularmente mudos. Mas se
aceitarmos a hipótese — ou até provavelmente mais do que isso — de que os Lundas
não produziam escultura, embora esta fizesse parte dos consumos e das necessidades
políticas e religiosas, podemos também aceitar o princípio da existência de um mercado
das produções plásticas, de carácter político, religioso e estético.
Se procurarmos proceder a um balanço geral, somos levados a dar-nos conta da
existência de uma produção ampla, que é solicitada pelas práticas sociais, e que suscita
sistemas de troca, que mobilizam dezenas, centenas ou até milhares de intermediários.
Não é difícil verificar que este circuito era necessariamente anterior ao aparecimento
do comércio e dos comerciantes europeus.

I. A metalurgia: ferro e cobre


Os estudos consagrados ao ferro em Angola não são muito numerosos e ainda
menos os consagrados ao cobre (1). É certo que o material arqueológico é cada vez mais
(213) Constantemente recuperado pelos historiadores da literatura angolana, quando na verdade o
romancista se integra no quadro teórico e prático do neo-realismo literário português — designação dada
ao nosso realismo socialista, em virtude do peso da censura —, que caracteriza o aparecimento de uma (1) Ver Redinha, 1953; Murdock, 1959; Fagan, 1965; Randles, 1968; Jadin, 1975; Ervedosa, 1980;
parquíssima corrente anticolonialista na escrita portuguesa.
Estermann, 1983.
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importante, permitindo senão eliminar todos os vazios da informação, pelo menos
reduzir as imprecisões no que diz respeito ao conhecimento das práticas metalúrgicas.
Apesar disso, continuamos a registar uma cruel insuficiência no que diz respeito
à análise das diferentes maneiras como os metais, mais particularmente o ferro e os seus
produtos, integrados na organização das estruturas sociais, políticas e religiosas.
Os ferreiros, de que falam com alguma frequência as fontes europeias em Angola,
asseguram as duas fases clássicas da redução e da forjadura. Os fornos quiocos atraíram,
mas já bastante tarde, a atenção dos viajantes e dos etnólogos, devido à sua estrutura,
que procura assemelhar-se a uma mulher sentada, as coxas largamente abertas, como
se estivesse em via de ser fecundada ou de dar à luz ( 2 ). Quando obtém lingotes de ferro,
a partir das lúpias de redução, o ferreiro pode assegurar a produção daquilo que o seu
grupo necessita: armas, ferramentas, jóias, peças destinadas aos instrumentos musicais,
armadilhas, etc. (3).

A. Os mitos e as funções do ferreiro

Tendo estudado os mitos dos ferreiros na África sub-sahariana, vários autores


observaram que a situação desses artesãos dependia das estruturas de produção, que
provocam uma simetria invertida conforme se trate de populações praticando a agricul- Fig. 12 — Ferreiros do Bungulo. Carvalho, 1893, III, pp. 242/243.
tura ou de populações que se consagrem à pastorícia (4).
No primeiro caso, os ferreiros ocupavam um lugar eminente, sendo frequentemente
identificados com a realeza, como é o caso do rei do Kongo ( 5 ). Os ferreiros das popu- dos Lundas, permitindo-lhes as cisões e a possibilidade de se expandir em todas as
lações de pastores manifestam um comportamento muito diferente: são castados, como direcções do quadrante solar (7).
se verifica no caso dos Peuls ou dos Masais, por exemplo. Na circunstância inicial o Os Lundas associam as duas actividades fundamentais, a agricultura e a caça,
ferro serve para «domesticar» a terra, ao passo que na seguinte é pensado agredir os servindo esta também de treino para a guerra. O gado constitui uma das suas aspirações
animais e derramar o sangue em excesso, o que pode provocar a morte. mais constantes, embora as condições geofísicas não sejam favoráveis, devido à cintura
De resto, nos casos extremos, como o dos Masais, na costa oriental, os ferreiros da tsé-tsé que os rodeia ou que os penetra. Nestas condições, o ferreiro ocupa um lugar
são forçados a instalar-se no exterior da aldeia, pois estilo marcados por um cúmulo importante, que será reforçado nos fins do século XIX, à medida que se assiste à
de negatividade devido à sua profissão (6). banalização das armas de fogo.
A eficácia da organização lunda, tal como a das populações que se identificam com As cisões lundas não seriam possíveis se o grupo não dispusesse de uma boa
este grupo ou dele se separaram, depende da competência dos ferreiros. O mito fundador utensilagem em ferro, resultado da grande competência técnica dos ferreiros. As migrações
lunda salienta a importância da contribuição técnica do caçador luba, Tshibinda Ilunga, a longa distância, em grupo mais ou menos compacto, com mulheres e crianças, só
que teria permitido a passagem do material lítico dos Bungos — o primeiro grupo a podem ser levadas a cabo com instrumentos de ferro, que servem para defender o grupo
desbravar a natureza nesta região — à metalurgia muito sofisticada dos Lubas. das ameaças naturais, assim como dos adversários potenciais, permitindo abrir caminho
Já apontámos que estes mitemas procedem a uma amálgffina, destinada a fazer através da floresta, sempre que tal se impõe.
coincidir no mesmo herói cultural mudanças técnicas que teriam originado o crescimento Além disso, a caça mais rendível é aquela que pode recorrer aos instrumentos de
ferro, mesmo que os Lundas e, sobretudo, certos lundaizados pareçam servir-se até
bastante tarde de instrumentos — azagaias? — fabricados com madeiras muito duras
ou com madeiras endurecidas pelo fogo (8).
Ver Redinha, 1983, p. 139.
Ver Eno Belinga, 1986, p. 22.
Ver, por ex., Margarido e Wassermann, 1972.
Ver Laman, 1953; Cuvelier, 1955; Balandier, 1965; Randles, 1968; Jadin, 1975. Ver 2.' parte, cap. I.
(6) Ver Karpf, J. L., 1860, e Thomson, J., 1881 e 1885. Leitão, 1938, p. 18.

310 311
ISABEL CASTRO HENRIQUES ERCURSOS DA

Esta competência dos ferreiros lundas acompanhou-os nas suas cisões. Por outras Um sistema tão complexo deve exigir uma contabilidade mínima, de que não encontramos
palavras: as migrações lundas permitiram uma larga difusão das técnicas metalúrgicas, o menor vestígio.
à medida que os grupos a que pertenciam os ferreiros se instalavam nos seus «nichos» Todavia, as barras servem também aos ferreiros como valor de troca, pois a
ecológicos definitivos. especialização parece impedi-los de produzir a alimentação de que precisam, que deve,
A vulgarização do trabalho do ferro está directamente associada à acumulação de por essa razão, ser obtida no mercado. A verdadeira surpresa não provém do sistema
conhecimentos, não só entre os Lundas, mas também entre todos aqueles que foram de trocas, sendo sim provocada pelo estatuto das mulheres, das agricultoras, no imenso
lundaizados na esteira das migrações. Entre estes grupos, convém lembrá-lo, encontramos tecido dos Lundas. Será que os ferreiros são obrigatoriamente solteiros, pelo menos
tanto os Imbangalas como os Quiocos. durante o tempo em que trabalham nesta região, associados à produção do sal? Não
dispomos de informações que permitam a dissolução do mistério, mas tal não nos
B. O ferro e o cobre nas fontes portuguesas impede de mostrar a importância destas trocas, que tornam relativamente correntes as
barras de ferro e de cobre, na maior parte, senão em todos os circuitos comerciais.
A partir dos fins do século XVI e em vários momentos, os documentos portugueses De resto, Baptista assinala também a existência de minas de cobre, pertencentes
dão conta da presença do ferro e do cobre em diferentes regiões angolanas. Salientemos a um kilolo do rei de Kazembe, pois é o «sítio [onde] fazem as barras» (12) que circulam
que estes minerais não eram de maneira alguma, a princípio, o objectivo principal das na região. A informação é confirmada por um documento de 1801, que se refere aos
buscas dos Portugueses, que estavam obcecados pelas necessidades em ouro e prata, «Mutuas que vão comprar cobre» (13) a Kazembe, para o integrar — o que confirma
sentidas pelo Estado português. Isto explica a importância absoluta dos mitos que plenamente o mecanismo que já tínhamos assinalado — no tributo a enviar ao
anunciavam a existência, em toda a parte e cada vez mais no interior, de inesgotáveis Mwatyanvua pelo rei de Kazembe.
minas de prata, capazes de fazerem concorrência às minas de Potosi de que beneficiava Fizemos uma curta referência à geografia comercial desta imensa região, mas ela
o erário espanhol. deve ser completada pela geografia política: o comércio, não podemos esquecê-lo, é
O carácter obsessivo destes mitos explica o atraso no conhecimento das indissociável do político. No que se refere a estes dois minerais, o ferro e o cobre, tanto
potencialidades mineralógicas do território, não devendo contudo esquecer-se que, a a extracção como a redução ou a comercialização das barras dependem de decisões
partir da segunda metade do século XVIII, os Portugueses procuram instalar uma políticas. A única «infracção» a este estado de coisas é a comida, pois que os ferreiros
indústria de metalurgia pesada — nas perspectivas da época — em Nova Oeiras, devem procurar obter os mantimentos de que precisam nos circuitos comerciais.
contando com a possibilidade de utilizar os ferreiros angolanos (9). Em meados do século XIX, os textos de Rodrigues Graça, Silva Porto e Magyar
Deve, no entanto, reter-se a data de 1802, porque foi o momento em que Pedro João — que cobrem um espaço cronológico que vai de 1843 a 1850 — fornecem informações
Baptista assinalou — tendo sido o primeiro a fazê-lo — a presença do ferro na região mais precisas no que se refere às produções do ferro nas regiões lundaizadas, como
lunda-kazembe. O autor faz referência aos «mestres ferreiros que mandam fazer as acontece no caso dos Quiocos e das populações vizinhas. As nossas informações
barras [de ferro e de cobre] por seus filhos [no sentido africano desta maneira de dizer, conseguem, mau grado o seu carácter pouco sistemático, identificar os problemas numa
trata-se não dos filhos biológicos ou mesmo sociológicos, mas dos súbditos ou dependentes, região assaz vasta, indo do Norte dos Quiocos ao território do Bié, situado muito mais
que podem ser os escravos] e macotas (chefes) deles mesmos e tributam ditas barras ao sul (14).
ao Quiburi [o chefe Kazembe da salina do mesmo nome] (...) para esse senhor da salina
as mandar ao Muatayanvo» (10). Sempre atento, o angolano sublinha que nesta «terra
dos Ferreiros», estes obtêm em troca das suas «barras farinha para comerem e outros
mantimentos» (li).
As informações fornecidas por Baptista são as mais claras possíveis a respeito de
dois pontos essenciais que permitem dar conta das complementaridades regionais. Se,
• ibid., pp. 287 e 427.
ia
com efeito, os ferreiros fazem barras, estas não são apenas destinadas ao consumo local,
Mello, in Felner, 1940, II, doc. 1. Um segundo documento (datado do mesmo ano) do governador
mas igualmente exportadas sob a forma de impostos, que o rei deve pagar ao Mwatyanvua. Miguel de Mello faz referência às «barras de cobre [que remete para Lisboa] iguais às que Joaquim
Correia Pinto, preto natural de Angola, de 46 anos, e que há mais de 20 faz negócio na feira de Cassanje,
diz que são vendidas na Feira pelos vassalos do Jaga cassanje». O governador acrescenta não conhecer
( 9) Trata-se de um projecto do governador Francisco Inocêncio de Souza Coutinho (1764-1772). o lugar «aonde ao certo existem as minas deste metal». A existência de relações comerciais entre os
Ver Brásio, 1979, pp. 210, 214 e 222. Lundas (Molua) e Kasanje permite-nos pensar que estas barras de cobre trocadas na Feira de Kasanje
(10) Baptista, 1843, p. 427. provêm também de Kazembe. Milheiros, 1965, II, p. 9.
(") Id., ibid., p. 428. (14) Graça, 1890; Porto, 1942; e Magyar, 1973.

313
CU R IDADE EM NGOLA

C. O ferro visto pelas autoridades portuguesas como sejam flechas, machadinhas, algumas toscas facas, lanças e cutelos» ( 18). Não se
esquece ele de se referir ao cobre, com o qual «os Negros (...) fazem colares, manilhas
O fracasso do projecto de instalação da grande unidade metalúrgica de Nova Oeiras e diversos objectos de ornato» (19).
não parece ter eliminado o interesse português pela exploração mineira. Uma das A informação das autoridades portuguesas é manifestamente muito reduzida. Os
missões dos viajantes, sobretudo daqueles encarregados de cumprir missões oficiais ou famosos cinco — ou quatro — séculos de dominação ainda não tinham permitido obter
para-oficiais, era a de reunir informações que pudessem, enfim, tornar possível a e organizar um conhecimento sistemático, o que de resto pode, pelo menos em parte,
sistematização das «descobertas mineralógicas deste reino», para recorrer à frase explicar-se pela ausência de cultura científica da maioria dos viajantes, como é o caso
imperativa do governador D. Miguel de Mello, em 1799 (15). de Pedro João Baptista. Acrescente-se, contudo, que a visão do autor angolano nunca
Em 1839, o governador Saldanha da Gama assinala que tanto Angola como Benguela perde a coerência, jamais se deixando arrastar pela futilidade.
são «países ricos de minas de ferro e de cobre (...) Os Negros com os seus métodos
imperfeitos fundiam [por volta de 1814] barras (...) de excelente ferro, de seis a oito D. A produção e a circulação do ferro
libras» (16).
A estratégia organizada pelo governo para obter uma participação mais activa dos
É pois, por volta de 1850, que as informações portuguesas nos permitem uma
Africanos baseava-se na isenção do pagamento dos dízimos e da corveia dos carre-
melhor compreensão da produção do ferro nas regiões que vão do território imbangala
gadores. Para conseguir estas vantagens, certamente importantes, deviam os Africanos
aos Lundas, tanto centrais como orientais.
— quer dizer os «indígenas» — entregar às autoridades portuguesas um certo número
de barras de ferro. Após ter percorrido o país songo, o qual «possui a pedra de ferro em grande
abundância que [é] de qualidade superior», Rodrigues Graça (1843-1846) empenha-se
O projecto de aumentar o ritmo da produção constitui o motivo central desta
em descrever o modo como os Africanos procedem à fusão do ferro ( 20). Na mesma
operação que, segundo diz o governador, teria sido muito bem acolhida pelos Africanos.
época, Silva Porto interessa-se pela maneira como é levada a cabo a redução na região
A maneira muito pontual como eles cumpriam este acordo fornecia a prova da sua
eficácia, pelo menos no espírito e na escrita do governador. do Bié: «Abrem uma vala de vinte a trinta pés de comprimento, quatro de profundidade
e dois de boca. Depois de bem rebocada e seca, enchem-na com camadas sucessivas
Este estava absolutamente certo da existência de dois minerais, cuja abundância
aparecia, de maneira indiscutível, na multiplicidade de utilizações que os Angolanos de carvão e de minério. Em seguida, deitam fogo ao carvão. Nos dois extremos da vala,
tinham encontrado: os utensílios ou as ferramentas de trabalho ou de guerra, no primeiro aplicam foles, e só deixam de atear o fogo quando supõem que o metal está coado no
caso, os elementos decorativos — pulseiras e colares, tanto nos punhos como nos fundo. No dia seguinte, arrancam o ferro da cova a machado, conduzindo-o para o rio
tornozelos, motivos decorativos para as zagaias, os mucuais ou alfanges, etc. —, no ou riacho próximo. Em cima de uma pedra, e com um pesado martelo da forma dum
segundo. cogumelo, malham o metal até que esteja liberto de todos os corpos estranhos...» e
O governador lembra também que chegam à cidade de Luanda barras de cobre de procedem à sua embalagem (21).
formas extravagantes, pesando entre três e quatro libras ( 17). A razão destas formas não As técnicas são bastante semelhantes, o que nos permite confirmar uma observação
foi esclarecida e, aparentemente, elas não preocupavam os Portugueses. Responderiam anterior, que nos fora suscitada pela maneira como os Angolanos mostravam a existência
à satisfação de um imperativo religioso, ou tratar-se-ia simplesmente das marcas dos de um direito, assaz geral, aplicado à propriedade das colmeias, e que se regista, do
fundidores? mesmo modo, no que se refere ao ferro.
Alguns anos mais tarde, em 1846, o governador Menezes mostra-se igualmente Com efeito, estas técnicas e estas competências são quase homogéneas, o que pode
preocupado com a extracção e a comercialização do ferro, localizada, desta vez, no ser apenas a prova de uma grande interpenetração das artes do ferro. Se muitas vezes
Golungo Alto, onde os Africanos procedem à sua extracção e Transformação. Trata- as formas de gestão política, ou até religiosa, dispõem de conceitos e de rituais muito
-se de uma proeza técnica, porque «sem máquinas, usando de processos imperfeitos, o autonomizados, já o mesmo não se verifica no plano técnico, onde existe grande
gentio o extrai, prepara e trabalha com suma facilidade em instrumentos de guerra, convergência, quando não até homologia total. Não podemos deixar de fazer uma

Mello (1799), A. A., vol. I, 1933-1936, s. p. O mesmo autor refere-se à abundância de ferro Menezes, 1848, pp. 139-140. O autor assinala a importância da exportação de ferro para o
na região, situando-se as principais minas em Golungo Alto e em liamba, ao mesmo tempo que lamenta Rio de Janeiro, durante o primeiro quartel do século XIX.
a fraqueza da exploração e da exportação portuguesas deste mineral, 1885, p. 560. Id., ibid., p. 138.
Gama, 1839, pp. 82-84. Graça, 1890, pp. 381-382.
( 17) Id., ibid.
Porto, 1942, pp. 198-199.
314
315
Fig. 14 — Abertura de um forno de
fusão do ferro após a operação de fusão.
Redinha, 1953, p. 131.

Fig. 13 — A fusão do ferro. Carvalho, 1893, III, pp. 808/809.

Fig. 15 — Sono ja matangwa. Pintura representando sóis matangwa


sob a forma de losangos, desenhados pelo ajudante de fundidor
Namwena, num alto-forno construído perto do Dundo. Bastin, 1961,
I, p. 100.
316
317
referência à situação, mas ela deve mobilizar mais amplamente os historiadores, pois
haverá que explicar a combinatória paradoxal entre convergência e divergência.
Podemos ainda acrescentar que o último autor que consultámos, a parelha Capello
e Ivens, confirma o sentido das observações feitas pelos autores de 1850. Se aí
encontrámos, uma vez mais, as informações que se referem à maneira como os Africanos
asseguram a redução do ferro, podemos também registar a referência pormenorizada às
competências dos ferreiros africanos, os quais dispõem dos «processos necessários para
fabrico do aço, pela combinação do ferro com o carbono e a têmpera» (22).
Os ferreiros pertencem, de maneira ostensiva, às tradições culturais desta imensa
região, tanto mais que o trabalho do ferro é utilizado por todos os grupos, sejam homens
ou mulheres, guerreiros ou agricultores, caçadores ou pastores, na planície ou na floresta.
Esta situação explica que nos deparemos com os ferreiros em todos os lugares,
mesmo em regiões onde não há ferro e, por isso, importadoras das barras que encon-
tramos já entre a fundição e a troca.
Silva Porto permite-nos descrever as conexões existentes entre a produção e a
comercialização. Indica a existência, na região do Bié, de um lugar onde estão
concentrados os «ferreiros em ambas as margens do Cuquema» ( 23). Trata-se de um
pequeno rio no planalto do Bié, próximo de Belmonte, a aldeia criada pelo comerciante
Silva Porto.
Do ponto de vista físico, é um território «plano, entrecortado de riachos, abundante
de arvoredo de todas as espécies, terreno fértil, argiloso, de substância preta e encarnada.
Fig. 16 — Forno de fusão do ferro. Alto Zambeze. Redinha, 1953, p. 140.
As identificações foram acrescentadas com base nas informações fornecidas no texto.
Os ferreiros ocupam uma grande área ao longo do rio, com mais de duas léguas de
extensão à qual é dado o nome de Quélinha» (24).
Os «trabalhadores de Vulcano», aos quais Silva Porto consagra a sua atenção,
fornecem um modelo de actividade, cuja importância já referimos. Na maioria das vezes
trabalham por encomenda. Desta maneira, estão um pouco fora de um sistema de
trabalho controlado pelas autoridades políticas. A aldeia aparece, assim, como uma
De costas
e ao alto espécie de «concessão internacional», que não se caracteriza pelas marcas étnicas ou
pela autoridade política, mas sim pela competência profissional.
Este primeiro elemento acaba por mobilizar um segundo: quando não há encomendas,
os ferreiros consagram a sua actividade ao fabrico de enxadas, destinadas a diferentes
aplicações: agricultura, permuta, pagamentos ( 25). A função normal do objecto encontra-
-se desta maneira muito reforçada: as enxadas de ferro circulam como moeda, permitem
criar tesouros, servem para realizar trocas, podendo ainda ser utilizadas para satisfazer
dívidas (26).
Estas enxadas fabricadas em série, «em grande quantidade», repetem os autores,
são também assinaladas por L. Magyar. Na região de Andulo, cujo «soberano (...) está
Fole de forjador

Bocal em barro cozido Capello e Ivens, 1881, I, p. 105.


0,1,2s» > Porto, 1986, p. 230.
Id., 1942, p. 25.
Fig. 17 — Foles de forjador. Sobado quioco de Tchiungo-Ungo, nascentes do Luachimo,
Id., ibid., p. 353.
região do Tchiboco. Redinha, 1953, p. 138.
(26) Id., 1986, p. 230.
318
319
sob a protecção de Bailundo (...) [a quem] paga tributo anual (...) [existe entre as suas
belo trabalho dos ferreiros do Bié, o comerciante brasileiro assinala a importância da
aldeias uma chamada] Kerangobe, junto do rio Lumbumbo, onde se encontra instalado
modernidade: fabricam tudo o que é possível fazer com as armas de fogo, exceptuando
o chefe, contando cerca de 4000 habitantes, [e] que se ocupa principalmente de assegurar
a fundição dos canos: «fazem fechaduras, concertam armas, deitam molas nos feixos
a extracção e a manufactura do ferro nas forjas dos arrabaldes; entre outros objectos
de espingardas, fazem coronhas, limas, toda e qualquer ferramenta» (29).
fabricam um grande número de enxadas, com as quais se organiza um comércio importante
Aí se encontra concentrada a modernidade técnica: os Africanos não se abandonam
nos territórios do interior, onde estas enxadas circulam como moeda» (27).
nas mãos dos Europeus, e depois de terem estudado as armas de fogo mostram-se
Os textos insistem, de maneira global, em salientar o carácter específico desta
capazes de gerir o novo utensílio. Contudo, os artesãos defrontam-se com a impossibilidade
concentração de ferreiros, mas Silva Porto acrescenta a estas informações um elemento
de dar solução ao difícil problema dos canos. De facto, nunca haverá resolução para
assaz característico, que não foi assinalado por Magyar. As «aldeias» de ferreiros
esta questão primordial, apesar dos esforços feitos pelos ferreiros, neste como em outros
seriam também, quando havia menos trabalho, o local de fabrico «de correntes e
grilhões» (28). Esta produção pertence certamente à competência dos ferreiros e mostra casos, apoiados pelo poder político.
Estas competências novas não são de maneira alguma exclusivo das populações do
até que ponto estes artesãos faziam parte do dispositivo do tráfico de escravos: os
grilhões não se explicam senão pela longa sobrevivência do escravo-mercadoria. Este Bié, pois localizamo-las de modo genérico neste território que ocupa uma parte tão
dispositivo técnico não permite a menor ilusão, pois são os artífices e as autoridades importante de Angola, indo do Norte — quer dizer, das regiões do Kwangu-
africanas que assim consagram uma parte da sua competência e da sua energia para -Kwanza — até ao sul do planalto do Bié. Silva Porto refere a qualidade do trabalho
dispor de instrumentos destinados a assegurarem a circulação dos escravos. entre os Ganguelas e os Quiocos que coincide, de maneira muito exacta, com o que se
Por outro lado, a posição estratégica destes ferreiros explica o número de funções regista no Bié: os ferreiros deste grupo «fabricam perfeitamente», se exceptuarmos os
que lhes são confiadas: eles estão instalados numa zona fronteiriça que abre para o canos, «melhor do que nenhuma outra tribu, (...) facões de dois gumes, azagaias,
interior africano, tanto para as terras dos Imbangalas e dos Quiocos, ao norte, como machados de enfeite, enxadas de trabalho e de enfeite, manilhas e braçadeiras para os
para as regiões de Loyale, a leste. pulsos e os pés [pensamos tratar-se dos tornozelos]» (30).
Magyar procedeu também ao elogio da competência dos ferreiros quiocos, em
E. As armas de fogo e os ferreiros 1850, aquando da sua viagem do Bié para Luanda, através do país quioco. O viajante
húngaro salienta não só a abundância do ferro «cuja qualidade não é menos boa do que
Durante muito tempo, as populações da margem oriental do Kwangu parece terem a do ferro sueco» (31), mas também as minas de cobre que se encontravam a leste desta
recusado o recurso às espingardas. A informação dada por Manuel Correia Leitão, que região (32). Não se esquece, contudo, de elogiar de forma ditirâmbica a habilidade dos
data dos primeiros anos da segunda metade do século XVIII, foi confirmada por ferreiros, «capazes de fabricar cópias das armas europeias (...) [assim como] de gravar
informadores ulteriores: dado que as armas de fogo não permitem que os combatentes as palavras ou os signos que estas ostentam» (33).
mostrem a sua coragem, os chefes políticos tal como os guerreiros recusam utilizá-las. A exaltação da competência daqueles artífices foi ainda reforçada, nos finais do
A grande mudança deste estado de coisas parece só ter ocorrido na primeira metade século XIX, tanto por Henrique de Carvalho como por Capello e Ivens. Estes dois
do século XIX: as armas de fogo conseguem atravessar o Kwangu, para ser adoptadas, viajantes consideram a maneira como agem os ferreiros entre os Ganguelas, para
por assim dizer, instantaneamente. Os conflitos armados mudam de estrutura: os combates salientar a importância das suas proezas técnicas: «reproduzem e concertam com a
corpo a corpo, característicos dos Lundas, que se batiam preferencialmente com os maior facilidade quaisquer artigos (...) [tais como] fecharias, canos de espingardas,
mucuais, transformam-se em combates a distância, graças às espingardas. A segunda zagaias, facas, enxadas, tudo constroem, permutando-as pelo mato» (34).
mudança, de que nos ocuparemos mais tarde, é a do reforço da actividade dos caçadores, A única surpresa reside nos «canos» que o grupo teria sido capaz de fabricar.
sobretudo entre os Quiocos. Nenhum objecto apareceu para confirmar esta afirmação demasiado ousada, e de resto
Esta alteração das técnicas das armas não deixava de mobilizar os ferreiros, pois o carácter arcaico das armas de fogo, empregadas até à guerra de independência (1961-
que estes artesãos eram os únicos que podiam senão fabricar, pelo menos proceder às
reparações destes utensílios modernos. Rodrigues Graça é o primeiro a salientar as
alterações técnicas verificadas, que datam assim da década 1840-1850. Analisando o
Graça, 1890, p. 387.
Porto, 1942, pp. 68 e 136.
Magyar, 1859, p. 10.
Id., ibid. Graça também se refere às minas de cobre da região, 1890, p. 431.
Magyar, 1973, cap. IX, p. 33. Magyar, 1859, pp. 9 e 13.
Porto, 1986, p. 230. Capello e Ivens, 1881, I, pp. 86 e 204.

320 321
-1975), explica-se por essa razão. Muitos canhangulos (35), utilizados pelos combatentes
angolanos, remetiam para esta mutação técnica, incapaz, todavia, de acompanhar a
evolução rápida da técnica mundial. Uma das razões da perda da hegemonia africana
está indissoluvelmente ligada à inferioridade dos Africanos na criação e na produção
das armas de fogo.

F. Os instrumentos musicais e os objectos estéticos

Seria pouco aceitável que se não fizesse pelo menos uma alusão aos instrumentos
musicais destes grupos africanos, visto ser impossível dar conta do funcionamento das
sociedades africanas sem a presença da música e dos instrumentos de percussão.
A maior parte dos historiadores elimina o ruído e o furor que, no entanto, pertencem
às práticas dos homens. Os tambores africanos, os xilofones e os instrumentos de cordas
ou de lamelas fazem parte integrante dos ritmos e dos ritos.
Vamos considerar aqui o exemplo do famoso kisanje, uma espécie de piano reduzido,
podendo ser transportado pelo executante, que se tornou, já em 1960, numa espécie de
feitiço musical da geração literária deste período, que foi igualmente uma geração
militante (36).
Fig. 18 — Mukuale da região tunda- Fig. 19 — Mukuale quioco. Bastin,
O instrumento não pode ser produzido sem a intervenção dos ferreiros, que devem
-lwena. Bastin, 1961, II, gravura 95. 1961, II, gravura 94. fabricar e fornecer as lamelas, quer dizer, as teclas que permitem a obra musical.
O instrumento foi durante muito tempo, séculos certamente, um dos companheiros
preferidos dos viajantes desta área, sobretudo entre os lundaizados, como se os Africanos
da região não pudessem viajar sem música, porque os que não recorrem ao kisanje
levam com eles uma gaiola com um pássaro, que deve cantar durante a viagem.
Não há praticamente instrumentos fabricados sem a intervenção dos ferreiros ou
sem recurso aos utensílios que estes fabricam. Os tambores de todas as qualidades,
sobretudo os grandes tambores de madeira, feitos de troncos esvaziados, mobilizam os
machados, os serpetes e qualquer tipo de ferramenta capaz de abater as árvores e de
criar estas imensas caixas de ressonância, que servem também para assegurar as
comunicações à distância. Nunca deve esquecer-se que não pode haver sociedade africana
sem a produção de música.
Se só houvesse uma palavra a acrescentar, esta seria consagrada à segunda produção
discreta, pouco visível na história, e confiada aos historiadores da arte: a múltipla
produção artística, que só pode estar associada ao poder ou à religião, o que, acrescente-
-se, não elimina as funções lúdicas. Todas as aldeias africanas estão invadidas por uma
prodigiosa floração plástica, que abrange tanto as máscaras indispensáveis à iniciação,
sobretudo masculina, como os monumentos religiosos que, nas aldeias, asseguram a

Fig. 20 — Espingardas — lazarinas — Fig. 21 — Espingarda quioca, prepa- Designação, em língua quimbunda, dada às armas de fogo de carregar pela boca, com um só
decoradas pelos artesãos quiocos. rada com os elementos religiosos des- cano, e que se generalizou durante a guerra de independência (1961-1975), porque frequentemente
Bastin, 1961, II, gravura 103. tinados a criar condições propícias à utilizadas pelas populações, mal-grado o seu arcaísmo.
caça. Bastin, 1961, II, gravura 102. Ver Lima, Manuel (Santos), Kisanje, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império (C. E. I.), 1960.
322
323
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ferreiros sentados no chão a manipular os foles, muitas vezes em pele de cabra, que
permitem as temperaturas indispensáveis à redução e ao trabalho do ferro. Henrique de
Carvalho empenhou-se em reproduzir as imagens (40), assim como L. Duyster e José
I
Redinha, nos desenhos publicados em obras editadas nos anos 50, pela Companhia de
Diamantes de Angola (41).

II. Os tecidos: dinheiro, vestuário, habitação


Fizemos já uma curta referência à versão dos mitos lundas associados à criação
do poder moderno, para termos a possibilidade de salientar a importância política
atribuída às bebidas e, em particular, ao vinho de palma. Existem situações, em que
o vinho de palma é reservado apenas ao consumo dos homens que ocupam os cargos
mais importantes do Estado. Torna-se, deste modo, numa «bebida política».
A embriaguez do rei parece pertencer às situações rituais ou ritualizadas. Em todo
o caso, aqueles que troçassem do rei ébrio deviam ser duramente punidos. O mito lunda
Fig. 22 — Kisanje quiocos. Bastin, 1961, II, gravura 213, elimina qualquer dúvida: os dois filhos que zombam de seu pai são excluídos da
sucessão, acabando por ser forçados a abandonar o território. A sucessão cabe então
presença dos espíritos (37). Produção ela também marcada pela intervenção dos ferreiros, à filha, Lwaji, que se mostrou complacente em relação à embriaguez do seu rei e pai.
e que, em certos casos, parece alimentar circuitos comerciais deveras particulares. Todavia, o mito está sobretudo associado às técnicas de tecelagem: o rei embriaga-
Podemos, em todo o caso, aceitar a existência de trocas, que possuem neste momento -se com vinho de palma, bebida que servia para pôr de molho as fitas de palmeira que
um estatuto muito impreciso. ele utilizava na tecelagem. Podemos até pensar que o monarca estava empenhado em
O modelo que neste campo se tornou clássico é o das relações entre Lundas — grandes tecer uma mabela. Tudo, neste mito, parece insistir em associar o chefe político e a
consumidores de esculturas e de outros objectos — e Quiocos, que não são só grandes palmeira, árvore que oferece tantas coisas boas e belas aos homens, e que sendo
consumidores, mas também se contam entre os produtores mais hábeis do continente. inteiramente africana caracteriza, fundamentalmente, a paisagem da costa ocidental.
Como seria possível recusar a evidência de um sistema de trocas, dado que as Será necessário ver no mito uma operação destinada a criar e a impor uma certa
aldeias lundas são igualmente consumidoras de representações icónicas que tornam os identidade entre a tecelagem e a realeza, a exemplo do que podemos verificar alhures
espíritos presentes e, sobretudo, manipuláveis? (38). em relação ao ferreiro? Tal não parece, porque a operação é destinada a exaltar o
Este facto possui a vantagem de nos pôr perante uma situação deveras complexa: trabalho da tecelagem que, na divisão sexual das tarefas em África, pertence ao homem
a do ferreiro, que aparece como figura central das produções artesanais, fortemente e é considerado como tarefa essencialmente masculina.
associada ao poder e intimamente ligada às autoridades religiosas (39). O mito do
ferreiro, que assegura a transmutação da matéria, podia ser aqui lembrado, mas quisemos A. A palmeira e a diversidade dos tecidos
conservar-nos num espaço mais pragmático, que nos mostrou o apogeu da competência
técnica destes artesãos, já condenados pela importação maciça de objectos produzidos O recurso às fibras extraídas das árvores é uma prática generalizada entre as
pelos Europeus. •
populações angolanas. É de resto uma prática comuníssima em África e sobretudo
A importância destes artífices, no quadro das formas míticas europeias, encontra — o que é natural — entre os habitantes da floresta. Era assim que, a partir destas
a sua confirmação na iconografia, que nunca deixou de se sentir fascinada por estes fibras, se obtinha a maior parte dos tecidos.
A primeira tentativa de sistematização das informações, que dizem respeito à
utilização das fibras vegetais, parece ser a que Duarte Lopez traçou a Filippo Pigafetta

Ver Bastin, 1961; Lima, 1971.


Ver Redinha, 1953; Bastin, 1961; Lima, 1971.
Carvalho, 1890, p. 360.
(39) Redinha, 1953, 1, pp. 129-139.
Duysters, 1958; Redinha, 1953.
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325
matérias-primas simbólica e pragmaticamente importantes, e aquelas que só podem
por volta de 1590 ( 42). O embaixador do rei do Kongo empenha-se em descrever esta
«arte maravilhosa» de que fazem prova os habitantes do reino do Kongo no fabrico dos produzi-las de qualidade inferior. A natureza está assim classificada e socializada, o que
seus tecidos: veludos com «pêlo» e sem «pêlo», brocados, tecidos sem «pêlo», tafetás, permite organizar a sociedade de maneira mais estrita.
damascos, camelos e tecidos deste tipo. A seda não pode ser produzida, salienta o Estas informações salientam a importância das palmeiras que fornecem a matéria
embaixador, devido à ausência do bicho-da-seda — nenhuma referência à falta de mais estimada para todas as espécies de tecidos. Mas possuem também a vantagem de
amoreiras! —, mas os Africanos vestem-se com estes tecidos que lhes são fornecidos nos colocar perante uma imensa variedade de produtos, criados a partir da mesma
pelos Europeus (43). matéria-prima. Os Portugueses não são os últimos a aperceber-se das qualidades técnicas
O sistema de identificação dos tecidos africanos respeita, de maneira insistente, o destes tecidos, que servem tanto em terra como na água: velas ou tendas, permitindo-
quadro das práticas europeias: o Outro assim como os seus produtos só existem na -nos esta última utilização evocar as habitações em tecido, usadas em certas regiões
medida em que podem ser interpretados recorrendo à grelha normativa do Mesmo. controladas pelos Imbangalas, onde era proibido construir casas, recorrendo a qualquer
A eliminação das formas autóctones de designarem os tecidos impõe a «portugalização» tipo de argila (48).
destas produções. Isto permite-nos saber que os Africanos produziam, aquando da Nos fins do século XVII, dispomos de uma nova relação destas produções, organizada
chegada dos Portugueses, tecidos muito diferentes, sendo embora o texto de Lopez muito por Cadornega. O historiador especifica as utilizações das cascas, dos líberes, das folhas
avaro no que se refere às regras sociais que regularizavam o consumo. das diferentes árvores — indo das palmeiras aos imbondeiros — que fornecem aos
Lopez fornece um grande número de pormenores respeitantes às técnicas utilizadas Africanos das regiões do Norte — Kongo, Lwango, Dembos — as fibras com que tecem (49).
para assegurarem a domesticação das palmeiras, das quais os Africanos extraem «fios Não será necessário, ou simplesmente indispensável, evocar os cuidados prodi-
muito finos e delicados em extremo» ( 44). A sua preferência vai para os fios mais galizados às árvores, para conseguir obter matérias-primas de muito boa qualidade?
compridos, porque permitem fabricar peças maiores. Certamente, pois seria demasiado simplificador pensar que a matéria-prima era obtida
Duarte Lopez procede ao inventário das categorias de tecidos associadas a regiões por meio de uma operação simples de recolecta, que reduziria a quase nada o investimento
produtoras: uma parte dos mais estimados provém da região de Incorimbas, ao passo dos Africanos. Duarte Lopez lembra a maneira como, no reino do Kongo, as palmeiras
que outro grupo provém dos Anzicos (Teke), alcançando dez palmos de comprimento eram conservadas «rentes à terra», graças a operações de poda bem organizadas no
e cinco de largura (45). tempo, para facilitar a eclosão de rebentos novos (50).
O embaixador parece acreditar na liberdade total de escolha entre os habitantes: Agindo desta maneira, as populações kongolesas criaram uma arboricultura que
«cada um se serve, para se vestir, conforme as suas possibilidades», mas este liberalismo mostra a que ponto de domínio da natureza tinham chegado as sociedades africanas,
é corrigido por uma referência à ensanda (Ficus sp.), uma grande árvore sempre-verde, já no século XV. A afirmação corrente da ausência destas técnicas entre as
cujo líber se utiliza para vestir os homens e as mulheres pertencentes ao grupo que se sociedades africanas recebe assim um desmentido tão franco como provado. Os
encontra na base da pirâmide social, quer dizer, à gente «de ínfima condição» ( 46). A Africanos podiam por esta via organizar uma produção de muito boa qualidade,
sociedade kongolesa usa o vestuário para confirmar a supremacia das hierarquias. de resto reconhecida pelos Portugueses. A concorrência dos tecidos europeus,
Os tecidos de qualidade superior dispõem de uma robustez tal que resistem à água, injectados nos circuitos comerciais africanos e exigidos pelo tráfico negreiro,
sendo embora ligeiros: «os Portugueses começaram a usá-los para velas e tendas; e [os desmantelou estas linhas de produção, fabrico e consumo, cuja qualidade surpreende,
tecidos] aguentam maravilhosamente as águas e os ventos» ( 47). É pelo menos curioso ainda hoje, os Europeus.
que os textos que julgam as técnicas africanas sejam tão discretos perante esta
«africanização» das produções necessárias à actividade marítima portuguesa.
B. Os tecidos-moedas
As plantas que fornecem os tecidos são, no entanto, mal identificadas, embora o
sistema classificatório possa ser explicado, pelo menos em parte, a partir do estatuto Os Portugueses desembarcaram em Angola, primeiro no Kongo e depois em Luanda,
dos tecidos. Temos neste caso de distinguir as plantas ou as árvores que fornecem as
no meio de vários tipos de moeda. Os mais conhecidos, durante a primeira fase da
«colonização», foram certamente os nzimbus «pescados», na ilha de Luanda, severamente

Pigafetta e Lopez, 1951, p. 44.


Id., ibid.
Id., ibid.
p. 132.
Id., ibid.
Cadornega, 1972, III, pp. 361-369.
Id., ibid., p. 32.
Id., ibid., P. 44. (50) Pigafetta e Lopez, 1951, p. 44.

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controlados pela corte do reino do Kongo (51). Mas havia, sobretudo, tecidos-moedas,
que se mantiveram em circulação no território angolano, praticamente até aos finais do entre os dois sistemas, pois que os Africanos procuraram manter a rejeição das moedas
século XIX. metálicas portuguesas, que acabaram, embora tarde, por expulsar a moeda-tecido (52).
Esta «moeda singular» era essencialmente constituída por libombos. A descrição O discurso de Lopes de Lima fora organizado na cidade, mas foi precedido pelas
dada por Elias Corrêa é bastante precisa: trata-se de quadrados de tecido em palha de observações de Rodrigues Graça, obtidas no terreno. O comerciante encontra as moedas
palmeira, do tamanho de um guardanapo, cujo tom mais corrente era o amarelado da africanas, quer dizer, os quadrados tecidos de palha, por toda aparte, mas de maneira mais
sua matéria-prima (52), mesmo que os africanos pudessem recorrer a vários pigmentos acentuada na margem oriental do Kwangu. O brasileiro assinala-os entre as mercadorias,
para obter uma grande gama de cores. ao lado dos tecidos de origem europeia — as fazendas — que devem ser pagas como tributo
O historiador brasileiro salienta também o facto de esta tecelagem — utilizando fio ao Mwatyanvua pelas populações que «lhe prestam obediência» (58).
de algodão ou de palmeira — ser realizada fora de Luanda, no mato, o que tornava Esta referência é certamente importante, tanto para confirmar a longa sobrevivência
a situação da cidade suficientemente delicada, na medida em que a sua vida comercial destes tecidos como também pelo facto de se encontrarem misturados com outros de
dependia da regularidade do fabrico dos tecidos. A maneira como Elias Corrêa define origem europeia, uma parte dos quais provém realmente da Ásia: a categoria fazendas
esta situação é bastante reveladora: os tecidos, de palha, primeiro, de algodão, depois, não parece proceder a uma separação radical, pois que os tributos exigidos pelo chefe
constituíam «a classe de moeda corrente» (53). lunda confundem os dois produtos. Não será a igualdade perante os impostos, prova
É fácil compreender que as autoridades portuguesas tenham querido ver-se livres suficiente de qualidade?
desta dependência, sem todavia o ter conseguido. A hegemonia africana afirmava-se
assim de maneira indiscutível, tornando impossível que fosse posta em circulação a C. As esteiras
moeda metálica que caracterizava o sistema fiduciário português. Esta substituição só
pôde começar a ser organizada em 1694, graças a uma operação imposta pela corte Há outros tecidos de ráfia que são constantemente citados nos textos, as esteiras (59).
portuguesa, que provocou movimentos militares sancionados pela execução de alguns Podem ser utilizadas de muitas maneiras, pois são indispensáveis na organização existencial
militares, pertencendo ao exército regular que defendia Luanda (54). das populações africanas: tanto servem como leito como para instalar paredes no interior
Se as autoridades portuguesas conseguem eliminar a presença das moedas de palha das cubatas É também verdade que estas esteiras, consideradas como pertencendo ao registo
africanas nas cidades, mostram-se bastante impotentes para conseguir fazê-las desaparecer da tecelagem, parecem muito mais próximas da técnica dos cesteiros, dadas as matérias-
na vastidão do mato. Em 1806, Pedro João Baptista assinala a presença destas moedas- -primas e os processos utilizados.
-tecidos — mukongos de quadrados de palha — no lote das mercadorias compradas na Como qualquer tecelagem africana, trata-se de uma produção masculina (60), e o
região de Kazembe, destinadas a ser imediatamente trocadas pelo sal da salina de seu carácter omnipresente é atestado pelo facto de servirem não só para dar «presentes»
Quigila, no território de Kazembe, que já identificámos com pormenor no capftulo aos comerciantes do mato (61), mas porque também podem ser exigidas como tributo
consagrado ao sal (55). pelos chefes políticos (62). Este produto africano foi muito procurado pelas populações,
A longa duração dos tecidos-moedas africanos encontra-se de novo confirmada por o que se compreende, tendo sido igualmente um dos agentes da africanização das
Lopes de Lima nos finais da primeira metade do século XIX. práticas dos Portugueses (63).
O geógrafo português vai mesmo a ponto de se espantar que tais «moedas» tenham Os textos lembram que a qualidade das esteiras está longe de ser uniforme. Havia
podido circular em Luanda («correm como moeda nos reinos do interior e correram em Angola esteiras de, pelo menos, duas espécies: as esteiras destinadas à exportação
como tal mesmo em Luanda» (sublinhado nosso) (56). O Europeu, seguro da superioridade para o Brasil, de classe superior, ao lado das de qualidade «inferior», utilizadas pelos
do seu grupo, só pode mostrar o seu espanto perante esta verificação penosa, comentada Africanos (64).
como se fosse uma monstruosidade civilizacional. Isto não o „impede de registar a
vitalidade e a generalização desta circulação, tornando ainda mais profunda a disjunção

Id., ibid., p. 82.


Brito, 1931, p. 47; Cavazzi, 1965, I, pp. 82-83; Cadomega, 1972, II, pp. 270-271; e III, p. 41. Graça, 1890, p. 445.
Corrêa, 1937, I, pp. 155-156 e 321. Por ex., Porto, 1942, p. 107.
(58) Id., ibid. Capello e Ivens, 1881, I, p. 216.
Id., ibid., pp. 320-321. Porto, 1942, p. 156.
Baptista, 1843, pp. 427-428. Id., ibid., p. 107.
(56) Lima, 1846, p. 54. Corrêa, 1937, I, pp. 157-158.
Id., ibid.
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Formadas por peças assaz estreitas, reunidas graças a uma espécie de costura, as
D. Tecelagem e construção das casas
esteiras eram classificadas conforme o comprimento. Algumas são chamadas loangos.
A sua importância social e, por consequência, também económica são regularmente
Não é difícil acreditar que as técnicas de construção das casas estavam longe de
evocadas pelos autores dos meados do século XIX, que as compram para as levar
ser homogéneas, pois que os grupos impunham códigos bastante rigorosos, que servem
consigo e conseguir, desta maneira, assegurar o êxito das operações comerciais (65).
para confirmar a relação directa entre a função dos homens e a hierarquia da habitação.
Durante muito tempo, as esteiras constituíram «um artigo de exportação» ( 66), tanto em
Angola como para o Brasil. Quer isto dizer que o espaço habitado é portador de informações, na medida em que
as edificações dependem de um código que nem sempre foi bem interpretado pelos
Magyar parece dar conta de um momento muito particular, em que a produção não
viajantes europeus, vítimas das suas próprias tradições e projecções.
seria tão constante como fora anteriormente. Ele põe em relevo a habilidade dos Africanos
na tecelagem das mabalas ou mabelas [tecidos grosseiros, salienta Magyar ( 67 )1, tecidas Uma curta informação proveniente de Neves salienta o facto de as casas imbangalas
não poderem ser construídas em barro ( 74). A argila, que teria permitido o recurso à
com fibras obtidas das folhas da palmeira chamada mabela — Hyphoene Guineensis (68),
taipa ou a técnicas similares, era substituída pela palha e pelos capins. As construções
muito procuradas no mato, mas denuncia, no mesmo movimento de escrita, a preguiça
de carácter definitivo teriam tornado mais difícil, ou impossível, a transferência das
dos Africanos que os impede de se consagrarem, tanto como seria necessário, a esta
produção (69). aldeias, que se faz regularmente, para compensar o esgotamento das terras de cultura,
sobretudo entre populações que não recorrem aos adubos.
Será que Magyar não se deixa enganar por um sistema então em elaboração que,
Por esta razão, as fachadas das casas apresentam-se como uma espécie de tecelagem,
querendo embora manter-se fiel às produções africanas, se mostra cada vez mais
ao passo que o telhado é, de maneira geral, o mesmo em toda a parte: ramos de palmeira
permeável aos produtos introduzidos pelo comércio europeu, seja qual for o estatuto dos
ou, então, capim. É evidente que estes processos provocam uma diferença sensível na
comerciantes, negros, mulatos ou brancos? Não podemos deixar de verificar que, de
organização urbana, imposta pela superfície construída e pela instalação de cada um.
maneira subtil mas constante, o gosto passa dos produtos clássicos africanos, para as
Os Quiocos constroem casas com paredes de barro, as quais permitem — ou
mercadorias novas, cujos coloridos garridos constituem quase sempre argumentos exigem — pinturas ( 75). A primeira oposição impõe-se naturalmente: casas com paredes
comerciais irresistíveis (70).
tecidas, diferentes ou até opostas às casas com paredes barradas. Os dois tipos de
Não se afigura, de resto, que esta «preguiça» africana possa provocar a desaparição
arquitectura exigem uma decoração exterior: no caso das casas de palha, é a própria
das suas tecelagens, porque, por volta de 1890, as mabelas ou mabalas eram ainda
tecelagem que permite a ornamentação alegórica. As habitações em materiais permanentes
muito abundantes no território lunda ( 71 ), sendo sempre utilizadas, ou como vestuário
recebem o seu sistema simbólico por meio da pintura.
das mulheres ou como pano para manter a criança nas costas da mãe, entre as populações A decoração das paredes pintadas — como de resto a das paredes tecidas — é tanto
do interior, das quais se indicam os Quiocos ( 72). Estes tecidos circulavam, no mesmo
mais importante quanto sabemos que o interior das habitações é muito despojado, pois
período, nas redes comerciais da região lunda, onde eram trocados por mercadorias que homens e mulheres apenas aí guardam os utensílios indispensáveis à realização das
europeias ( 73). Mas é preciso acreditar que esta situação era já meramente residual, visto
suas tarefas. Nessas condições, o embelezamento deve ser sobretudo exterior, visto que
o sistema ter sido definitivamente alterado, em proveito das mercadorias europeias. os habitantes reservam a casa quase só para dormir, isto é, no momento em que não
há luz nem visibilidade.
Estas considerações parecem indispensáveis, para pôr em evidência a importância
Porto, 1942, pp. 26 e 156; Magyar, 1973, cap. VI, p. 29, e cap. VIII, p. 20. simbólica e pragmática desta arquitectura. Pensamos que o símbolo não pode assegurar
Lima, 1846, p. 54. a sua sobrevivência a não ser apoiado em elementos pragmáticos, que o tornam socialmente
Magyar, 1973, cap. VII, p. 20. eficaz. Nestas condições as populações servem-se da arquitectura como se fosse um
Capello e Ivens, 1881, I, pp. 49 e 372. •
Id., ibid., cap. VI, p. 29.
sistema de sinais, destinado a assegurar as diferenças hierárquicas, sem infringir as
Pensemos nos comentários suscitados pela maneira como os Africanos manifestam a sua
interdições. A argila é um material proibido, por ser também o símbolo e a matéria do
«paixão» pelo vermelho e, mais particularmente, pelo «vermelho sangue» ou «vermelho vivo». Mas esta laço com os espíritos: a m 'pemba não é, do ponto de vista físico, mais do que uma argila
cor, permitida pela química post-Reaumur, não constitui uma «novidade» cromática, face ao carácter branca, com a qual o crente unge o corpo para estabelecer contacto com o espírito dos
mais apagado da maior parte dos pigmentos de que dispõem as populações africanas, muito mal armadas antepassados.
no plano da química, que inventou tantas cores novas durante o século XIX? Ver Carvalho, 1890a, pp.
357-362, que procede ao inventário dos vários pigmentos vegetais e minerais utilizados pelos Lundas.
Capello e Ivens, 1881, I, p. 360.
Id., ibid., p. 179.
Neves, 1854, pp. 99 e 312.
(73) Id., ibid., p. 356.
Carvalho, 1890, pp. 220-221. Ver Redinha, 1953.

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Para impedir que a matéria se banalize, as argilas são substituídas por tecidos. investigação consagrada à flora angolana, põe em evidência «a notável capacidade das
A palha muda de estatuto, servindo como uma espécie de revestimento da casa que põe terras de Angola para a produção de algodão (...) [acrescentando] que a cultura e
o homem ao abrigo das agressões possíveis da natureza. aplicação destes preciosos filamentos, já desde tempos remotos, eram conhecidas dos
indígenas da África austro-tropical» (80). Welwitsch avança uma «prova» linguística
E. O algodão
para a sua afirmação: na língua bunda de Angola, o algodão recebia o nome de
muginha, substantivo utilizado nos textos dos missionários que tinham trabalhado
Em 1789, Elias Corrêa anuncia a existência de um algodão espontâneo em Angola, naquele território há um século (81).
informação de resto integrada na descrição das técnicas para fiar e tecer, utilizadas, de Duas «provas» complementares se acrescentam a esta: a segunda é que os Africanos
maneira corrente, pelos Africanos, seja na região de Luanda seja em qualquer outro empregam o algodão como remédio tónico, particularmente nas cefaleias, sob a forma de
lugar, em particular em Ambaca, onde os tecidos de algodão fabricados pelos Africanos fumigações, técnica que não poderia ter sido nem sugerida nem imposta pelos colonos ou
circulam como moeda (76). Qual o seu valor: igual, superior ou inferior ao de outros pelos viajantes, mas que remete para tradições muito antigas entre os Africanos. Por fim,
tecidos-moedas? Impossível de o saber. Estamos certos, em contrapartida, de que a a terceira «prova», aparentemente mais sólida, será a maneira como os Africanos «ainda
fracção mais importante da produção é destinada a fabricar entangas, as tangas da
língua portuguesa, os pagnes da língua francesa (77). hoje o fiam e tecem [o algodão], o qual em tudo é (...) idêntica ao método algum dia em
uso entre os antigos egípcios, conforme isso se encontra representado em vários
Elias Corrêa acrescenta, a este inventário, as descrições dos processos de tecelagem,
monumentos que nos deixou este então tão industrioso povo» (82).
visto que os «tecelões negros» não possuem o menor conhecimento dos teares europeus.
A divisão sexual das tarefas é também explicada: a fiação pertence ao numeroso grupo As razões avançadas por Welwitsch são todas muito frágeis, a começar pelo
substantivo bunda, que dataria dos princípios do século XVIII, quer dizer, muito depois
de «mulheres negras e mulatas», ao passo que a tecelagem diz respeito aos homens,
da introdução dos tecidos de algodão e dos algodoeiros pelos Portugueses. Ora, tudo
igualmente mulatos. Os preços nos mercados variam conforme a qualidade do tecido.
nos leva a pensar que a difusão do algodão surgiu, nesta região da costa ocidental, por
A relação das produções integra também as colchas usadas nas camas «para os
países frios», sendo o trabalho restante consagrado à manufactura de redes de pesca, intermédio dos Portugueses (83).
assim como aos pavios de candeia (78). A totalidade dos documentos portugueses é unânime: nenhuma referência ao algodão
Estas indicações são bastante importantes, porque mostram uma adaptação deveras ou aos tecidos fiados com esta fibra. É assim que não encontramos a menor referência,
rápida das novas matérias-primas às condições de fabrico. Com efeito, Cadornega a mais leve alusão, ao algodoeiro em Duarte Lopez que, em Roma, dispunha do tempo
assinala os fios, obtidos a partir do líber do imbondeiro (licondo), que servem para necessário para responder às interrogações de Filippo Pigafetta. De tal maneira, que o
fabricar redes para a pesca de arrasto. Estas são suficientemente resistentes para permitir algodão só aparece no texto de Elias Corrêa, ou seja, durante a segunda metade do
a captura dos crocodilos de pequeno tamanho (79), o que quer dizer que os fabricantes século XVIII. Isto parece-nos mais de acordo com o período exigido pela adopção da
de redes não tardaram a substituir os fios de licondo pelos de algodão. planta e a integração das suas fibras nos processos de tecelagem já empregados pelos
Mas é o próprio algodão que cria problema: em 1858, Frédéric Welwitsch, botânico Africanos.
austríaco, encarregado em 1854, pelo governador de Angola, de organizar uma A tecelagem africana encontra-se face a três situações que, às vezes, se sobrepõem,
mas que tendem para a eliminação gradual da sua congénere artesanal: a primeira é
caracterizada pela tecelagem que recorre às fibras vegetais extraídas das árvores,
imbondeiros e palmeiras, sobretudo; a segunda assiste à utilização das fibras de algodão,
Corrêa, 1937, I, pp. 155-156.
Id., ibid., p. 156. A palavra portuguesa provém directamente de ntanga, inseridas pelos Europeus (84); sendo a terceira, caracterizada pela redução destas duas
vocábulo quimbundo.
Raymond Arveiller, como de resto o Robert, indica 1637 como data da primeira referência ao substantivo
em francês, citando Alexis Saint-Lô, Relation, p. 73: «Meteram o corpo da dita defunta numa espécie
de plataforma de caniçado e coberta com panos de algodão branco e azul». O termo é frequente na «obra,
empregado como uma palavra francesa assimilada, sem maiúscula nem sublinhado». A palavra francesa, Welwitsch, 1945, pp. 253-254.
insiste sempre R. Arveiller, «é um empréstimo ao espanhol» (pario), mas R. Mauny, de maneira mais
Id., ibid.
exacta, vê nela um empréstimo ao português «pano tecido». De resto, o facto de a palavra ser utilizada Id., ibid.
no Senegal, onde não se regista nenhuma presença castelhana, só pode reforçar os argumentos de Raymond Mauny estudou, com o seu rigor habitual, as situações de expansão desta cultura
Raymond Mauny, 1953, pp. 697-700.
na costa ocidental. Não dispõe contudo de nenhuma informação respeitante às condições em que se
Corrêa, 1937, I, pp. 155-156.
banalizou o recurso à planta e a sua utilização na tecelagem. Mauny, 1953, pp. 697-700.
Cadomega, 1972, III, pp. 366-367. Esta situação oferece um contraste surpreendente com as (84) Vários autores assinalam a adopção do algodão pelos Africanos da região. É o caso de
terras do interior, que não conhecem as redes, recorrendo os pescadores apenas à naças.
Livingstone, 1859, pp. 339 e 442 (em território lunda) e pp. 441-442 (na região do Golungo Alto).
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formas de produção, desaparecendo de resto a primeira antes da segunda, sob a pressão confirmação da falta de tradição artística e artesanal africana, no que se refere ao
dos tecidos introduzidos pelo comércio europeu. trabalho desta matéria-prima tão particular (88).
Em 1868, Silva Porto assinala que a vulgarização do algodão tinha começado
alguns dez anos mais cedo, quer dizer, por volta de 1858. Foi nesse momento que se A. O elefante e as suas partes nobres: os pêlos do rabo, a carne e os dentes
espalhou a autêntica indústria dos «panos de algodão, de dez palmos de comprimento
e seis de largo, e de ramagens com a cor branca primitiva de algodão, encarnado e
A projecção das situações modernas pode levar-nos a pensar que o elefante foi
preto». A produção começara com uma pequena distribuição de sementes, mas sempre um animal fornecedor de carne, e que a questão essencial seria a de saber em
«presentemente (...) fazem a plantação da semente algodoeira pelas povoações onde a
que momento o mamífero se teria tornado interessante não em função da carne, mas
experiência lhes tem ensinado ser terreno mais produtivo». A banalização foi tal, que antes devido ao marfim. Seria demasiado mecânico como interrogação, tanto mais que
todas as famílias possuíam então um pequeno espaço destinado à sua cultura, suficiente
o animal é miticamente estimado em função da sua força, da sua enorme capacidade
para satisfazer as suas necessidades (85).
física e associado a uma inteligência nem sempre amável. Os mitos de origem imbangala
Estas observações assinalam a enorme curiosidade dos Africanos e a sua capacidade
estão frequentemente ligados à presença de elefantes, permitindo que o pragmático se
para responder aos «desafios» técnicos e comerciais dos Europeus. Todavia, esta resposta enraíze no mítico (89).
é eminentemente arcaica, porque pretende conservar os valores da auto-suficiência A partir desta constatação, resta saber de que maneira os Africanos «pensavam
familiar ou ciânica, que faz de cada família ou de cada linhagem ou clã uma estrutura o elefante» quando os Portugueses chegaram, dado que as relações entre as três forças
autónoma, o que dá origem às formas de cultivo do tipo africano, muito desorganizadas, em presença (Africanos, Europeus, elefantes) vão determinar a mudança do estatuto
mas destinadas a assegurar a produção de tudo aquilo de que a família necessita (86). e até da função do animal. É o que podemos verificar, recorrendo às informações de
Na ausência de uma visão alargada da questão, pouco orientados para as monoculturas
Duarte Lopez, que Filippo Pigafetta reuniu em livro: nesse momento, o elefante nunca
de tipo industrial, os Africanos são rapidamente subjugados pela modernidade, antes até
é referido como animal fornecedor de carne. Devemos acreditar que nunca é comido?
de se poderem empenhar no combate.
De maneira alguma, mas ele jamais aparece na lista das carnes preferidas pelos
Kongoleses (90).
Esta ausência de referências à grande quantidade de carne e ao seu gosto permite
III. O marfim: do tributo à troca dos dentes
pensar que o elefante era certamente comido, mas que não era expressamente caçado
para obter carne. Seria então perseguido em função do marfim dos dentes? O parco
O comércio do marfim levou muito tempo até ser rejeitado de entre as actividades
número de manifestações artísticas em marfim parece provar — elas também — que
comerciais de carácter digno. Em África este comércio parece ter sido provocado pelos
Europeus, na costa ocidental, e pelas populações da Arábia e do Oriente, na costa não se tratava de uma matéria-prima particularmente apreciada pelos escultores, todavia,
oriental. As relações entre os Africanos e os elefantes mudaram sob a pressão do
comércio internacional, nas duas costas.
Os Portugueses souberam sempre e em toda a parte reconhecer a competência artesanal dos
No caso de Angola, o marfim tornara-se, nos fins do século XVIII, o segundo artigo Africanos, o que lhes permitiu encomendar objectos em marfim, cujo exemplo mais conhecido é formado
de exportação, um «precioso género de um contrato privado à Fazenda Real (...) [mas] pelo grupo dos «marfins portugueses» do Benim. A encomenda portuguesa foi magistralmente executada
em poucas coisas se aplica no país. As fábricas que em outras [regiões] o consomem, pelos artesãos locais. Ver Fagg, Afro-Portuguese Ivories, s. d., e Ryder, 1964. Não serão também os
e lhe realçam a preciosidade, são desconhecidas em Angola: algum jogo de tábolas famosíssimos «bronzes de Benim» o resultado deste tipo de colaboração?
e copos para deitar os dados, é tudo quanto o bom gosto exige neste género» (87). Ver 2.° parte, cap. I.
(90) Não há nenhuma apreciação sistemática do sistema alimentar kongolês. Só encontrámos uma
Trata-se do ponto de vista dos Europeus: podemos pensar que esta maneira expeditiva referência indirecta: a sua medicina mantém-se fiel às «plantas autóctones», que são capazes de assegurar
de negar a existência da utilização do marfim no seu continente de origem é a a cura, porque «vivem sob um sol temperado e não se enchem com comidas variadas que lisonjeiam
o apetite, tal como se enchem de vinho». Tal não impede que Duarte Lopez forneça algumas indicações
a respeito dos animais que podem ser consumidos. Encontrámos, entre os principais, os cães (p. 54):
«aqueles povos gostam mais de carne de cães que de qualquer outra»: os homens, pois haveria no país
«açougues de carne humana» (p. 41), assim como serpentes e cobras, cuja «carne muito estimada» é
comida assada (p. 68), sem esquecer os flamingos (p. 70). Inversamente, os elefantes nunca são contados
Silva Porto, citado por Santos, M. Emília Madeira, in Reunião Internacional de História de
entre os animais cuja carne pode ser comida. A fortiori, não há nenhuma referência ao seu gosto
África, 1989, p. 216.
provável, o que é assaz surpreendente, pois que alguns anos mais tarde, encontramos referências aos
Ver Tenreiro, 1961, cap. III e IV, que analisa essa situação em S. Tomé, no século XIX. Africanos que apreciam os melhores pedaços do animal: a tromba, as patas, os intestinos. Lopez e
(87) Corrêa, 1937, I, p. 127.
Pigafetta, 1951.

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muito numerosos numa região onde os espíritos só podiam ser controlados graças aos
duplos esculpidos e utilizados pelos nganga (91). A descrição de Lopez não permite a menor dúvida: os Kongoleses desejam, acima
de tudo, recuperar os pêlos do rabo do elefante que são utilizados pelos nobres, homens
O texto de Pigafetta informa, em primeiro lugar, que «os animais que se
e mulheres, num sentido evidentemente religioso, como de resto acontece ainda hoje não
encontram nesta comarca são primeiro os elefantes, os quais nascem em todo o só em África, mas também entre os Europeus. Há sempre à venda, nos mercados «exóticos»,
reino do Congo» (92).
pulseiras de pêlo do rabo de elefante, mesmo que os defensores dos elefantes nunca
Alguns destes animais são enormes, salienta Lopez, que para o confirmar refere contabilizem estes pêlos como uma das razões capazes de levar à morte do animal. Mas
a sua longa vida (150 anos), acrescentando que tinha visto e pesado alguns dentes o escapulário assim fabricado é considerado como sendo dos mais importantes (98).
— que, sublinha ainda Lopez, não devem ser confundidos com cornos (93) —, Os pêlos servem, do mesmo modo, para fornecer as cordas dos instrumentos de
que atingiam as 200 libras de 12 onças (ou seja, um pouco mais de sessenta música, embora existam também de origem vegetal, provenientes dos fios extraídos das
quilos) (94). palmeiras. A associação entre o elefante e a palmeira adquire, desta maneira, uma
Se aceitarmos as informações fornecidas por Duarte Lopez verificamos que os dimensão assaz peculiar, que não esgota certamente os «serviços» prestados pelo animal
Kongoleses não se interessavam, em primeiro lugar, pela carne do elefante. O interesse e pela árvore à sociedade kongolesa (99). Basta dar conta destas funções para compreender
concentrava-se na «cauda [que tem] crinas ou sedas grossas como juncos ou espartos, que o elefante não era ainda um animal a abater, tal como virá a acontecer a partir do
de cor luzente, e os velhos mais formosas e fortes que os novos e mais estimadas, as quais século XIX.
aquelas gentes apreciam para se adornarem o colo os homens e as mulheres nobres (...) Nesse momento que fazem os Africanos dos dentes? Duarte Lopez não dá ocasião
prezando-as por serem belas e raras e de animais tam grandes» (95). Além disso, estes à menor dúvida: o marfim era muito abundante nestas regiões kongolesas, mas antes
pêlos eram resistentes como cordas, de tal modo que um homem não poderia, mesmo de os Portugueses se instalarem no Kongo, os Africanos não lhe prestavam a menor
puxando-os com as mãos em sentidos opostos, quebrá-los, mal-grado a sua força; atenção: «tal matéria só é tida em conta desde que os Portugueses começaram a ter
acabaria sim por dar cabo das suas próprias mãos (96). Para obter estes pêlos, de comércio com aquelas regiões, e deparando-se pelas campinas muitíssimos, em tão
preferência a abater o animal, as populações procuravam uma astúcia para lhe amputar longos séculos ali se foi ajuntando uma infinita quantidade, que ora [ainda] se vende
o rabo (92). Estes pêlos do rabo valiam, no mercado kongolês, dois a três escravos a bom mercado» (19.
cada um. No final do século XVI os elefantes puderam conservar tanto os dentes como a
carne e o comércio pôde funcionar graças aos dentes que se encontravam disseminados
Ver Margarido, 1973.
por toda a parte e que só tinham adquirido um valor importante, devido à presença
Lopez e Pigafetta, 1951, p. 59. portuguesa. É verdade que o proclamado desinteresse pelo marfim não é tão absoluto
Esta interpolação de Lopez, que quer separar os dentes dos cornos, é realmente necessária, como afirma Duarte Lopez. O seu texto dá disso a prova: se o interesse principal se
tanto mais que os próprios africanos se servem deles nos rituais mágicos, como se fossem realmente concentra nos pêlos do rabo, nem por isso os Kongoleses deixam de consumir algum
cornos. Na corte de Kazembe, os dentes são preparados para conseguir efeitos curativos, sem desprezar marfim.
a função mágica mais geral: «Estes remédios depois de preparados [com o sangue de um homem que
o rei manda executar todas as luas-novas, as vísceras e o «azeite» — óleo de palma?] acomodam-se em
pontas de diferentes animais, e até em dentes miúdos de marfim, os quais são tapados com rolhas de
pau ou de pano, e repartidos por vários lugares de sua casa, pelo terreno interior, [cercado da casa] e
penduradas pelas portas, [porque] sem ter algumas destas pontas ao pé de si, [o rei] jamais fala a pessoa Mas há uma segunda técnica, mais atrevida, que consiste em atacar o elefante pela retaguarda,
alguma com receio de que o enfeiticem». Lacerda e Almeida, s. d., p. 110. quando este está a comer, para lhe cortar o rabo com um único golpe, confiando o «amputador» na sua
A onça portuguesa pesa 29,691 g., ou seja, um décimo do arrátel, que os autores portugueses rapidez para escapar à resposta do animal. Lopez acrescenta que esta técnica leva em conta a velocidade
consideram como sendo o equivalente directo da libra, que pesa, por isso, 0,266,91 kg., representando do elefante nas corridas em linha recta, o qual se torna mais lento sempre que é forçado a mudar com
assim as 12 libras apenas 3,202,92 kg. frequência de direcção.
Lopez e Pigafetta, 1951, pp. 59-60. Neste caso não podíamos deixar de recorrer à nossa própria experiência, pois procurámos saber
Id., ibid., pp. 60-61. se as pulseiras feitas com pêlos de rabo de elefante continuavam a ser vendidas em Luanda: encontrámo-
(97) Id., ibid., «por isso se acham muitos [habitantes] que, espiando os elefantes, que sobem por -las no mercado mais frequentado da cidade, o «Roque Santeiro». Prosseguindo este mini-inquérito,
alguma vereda estreita e íngreme se lhes colocam atrás e com facas cortantes talham essa cauda, não pudemos verificar que muitos vendedores africanos, em Paris, em Estrasburgo e em Bruxelas, continuavam
podendo naquela estreitura a fera virar-se para trás à vindicta». a propor pulseiras ou escapulários fabricados com pêlos de rabo de elefante. A longa duração desta
Parece que os elefantes não morrem com esta ferida, mas podemos também reconhecer que as prática, que é já registada no século XVI no reino do Kongo, parece suficiente para provar a importância
populações não procuram abater o animal, que só perde um apêndice, decerto importante, mas desta parte, aparentemente mínima, do animal.
aparentemente dispensável. Lopez e Pigafetta, 1951, p. 126.
(mo) Id., ibid., pp. 62-63.
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Durante as operações de guerra, os chefes militares mandavam tocar os olifantes, Vieira de Andrade ter fornecido a Brant Pontes uma descrição dos nove dias de viagem
feitos com dentes de elefante, grandes e pequenos, pacientemente esvaziados. De acordo necessários para alcançar as terras do chefe Quipamba, caracterizadas por uma produção
com as minuciosas informações de Duarte Lopez, é evidente que as operações em que agrícola muito reduzida, mas onde havia abundância de mel, de cera, de marfim, a que
participavam as forças kongolesas eram conduzidas por meio de sinais acústicos, nos se acrescentavam algumas cabeças de carneiros ) A existência deste marfim é
quais os olifantes ocupam um dos lugares principais, de parceria com os atabaques, confirmada por um documento do governador D. Miguel de Mello que, repercutindo o
isto é, caixas feitas com um único bloco de madeira, que fora também esvaziado com que a tradição afirma a respeito das margens orientais do Kwangu, e também relativamente
cuidado, para permitir uma mais forte ressonância. Estas caixas eram cobertas de couro a Benguela, quer que os Lundas comprem cobre, escravos e marfim, no território de
e tocadas com a ajuda de pequenos martelos de marfim (101).
Kazembe (105).
É contudo claro que os produtos provenientes do elefante não ocupam um lugar O governador e as suas informações modificam o sentido da dominação, pois todos
de destaque na organização social kongolesa. Não parece, no entanto, que a caça os documentos ulteriores salientam o facto de ser o Kazembe que deve pagar tributo
ao grande mamífero esteja tão generalizada, como se acreditou, devido a informações aos chefes dos «Molua». Mas importa menos corrigir o lapso do governador do que
inteiramente desconexadas da realidade. Os próprios olifantes podem ter sido fabri-
pôr em evidência a referência ao marfim nestas regiões, no momento em que ele não
cados a partir de dentes que teriam ficado abandonados após a morte natural de
um elefante (19. parece ser ainda muito corrente nas trocas comerciais da costa ocidental, o que talvez
se explique se tivermos em linha de conta a impossibilidade de o comercializar livremente.
Todavia, em determinado momento, difícil de precisar nesta região, a estrutura foi
alterada: o elefante passou a ser considerado um fornecedor de dentes — sem contudo
perder a qualidade e o interesse dos pêlos — o que parece ter provocado uma modificação B. A «produção» e a circulação do marfim
notável na função da carne. Talvez fosse demasiado fácil sugerir uma sequência em que
os dentes seriam apenas um epifenómeno do apetite de uma alimentação essencialmente Alguns anos mais tarde, Pedro João Baptista pôde verificar pessoalmente o sentido
carnívora, desejada pelas populações africanas. No estado actual dos nossos de alguns dados bastante incertos que salpicam os documentos portugueses. O marfim
conhecimentos, é preciso inverter esta hipótese, na medida em que se torna cada vez é referido, por vezes, no «diário» do angolano, como uma das mercadorias existentes
mais evidente que foi a procura crescente de dentes que provocou a caça sistemática nos circuitos internos, que se dirigem para a costa oriental ( 106), sendo também um
ao elefante e o consumo mais ou menos regular, mas sempre excessivo, da sua carne. produto que fazia obrigatoriamente parte dos tributos pagos pelas populações ao rei de
Os documentos do século XVII não fazem referências ao marfim. A história melhor Kazembe ( 107). «O negócio do marfim é privativo do rei e os grandes do reino só vendem
organizada, a de Cadornega, cita as trocas entre os Lundas, que enviavam as suas uma pequena porção com permissão sua; e daqui vem que ele [o rei] é que recebe todo
caravanas para as regiões vizinhas de Kasanje, na outra margem do Kwangu, para o fato dos comerciantes como presente (...) e depois recompensa cada um deles [chefes]
negociar ( 103). Será possível aceitar a hipótese de que as caravanas constituídas na à proporção do que recebe» ( 108).
) Nestas condições a circulação do marfim — mas esse
margem oriental do rio traziam também marfim, além de escravos? Cadornega não o esquema pode ser aplicado a um número assaz importante de produções — faz-se
diz e nem sequer o sugere. Podemos, por isso, admitir a ideia de que semelhante outrossim pela via dos tributos:
comércio ainda se não fazia, ou a fazer-se era pouco volumoso.
É porém verdade que, por volta dos finais do século XVIII, primeiros anos do REI
século XIX, os Portugueses multiplicam as tentativas para sistematizar as informações
associadas ao comércio que se faz através do Kwangu, do Kwanza e até do Zambeze.
O marfim está dissimulado no interior deste circuito, mas é muito difícil proceder a
cálculos relativamente precisos. Pode, contudo, reter-se o facto de o comerciante Elias

TRIBUTO

Id., ibid., p. 49. CAÇA COMÉRCIO


Não é a única maneira de perder os dentes. Alguns animais perdem-nos ao procurar desenraizar
árvores de porte médio: para o conseguir, entalam-nas entre os dois dentes, torcendo-as até as arrancar
e poderem comer as folhas e os ramos; acontece, algumas vezes, que durante a operação se parte um (104) Ver Felner, 1940, I, p. 252.
dos dentes, razão pela qual não é raro encontrar elefantes, sem um ou, até mesmo, os dois dentes, ( 1 °5) Id., ibid., II, p. 278 (doc. 1).
vagueando pelo meio dos campos. Lopez e Pigafetta, 1951, p. 61. (106) Baptista, 1843, pp. 433-434.
( 103) Cadornega, 1972, III, p. 219. ( 1 °7) Id., ibid., p. 190.
(108) Lacerda, 1798, cit. por Neves, 1830, pp. 384-385.
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Os chefes transferem para o rei uma fracção, quando não a totalidade, do marfim o marfim por terra. É preciso, porém, não esquecer o intermediário: o comerciante. Na
obtido pelos seus caçadores. Mas é necessário acrescentar que Baptista não faz a história do antagonismo entre a lei e os comerciantes, estes conseguiram sempre — ou
mínima referência à presença do marfim no caminho que leva da Musumba do quase — descobrir a resposta conveniente para agir mau grado a lei. O contrabando
Mwatyanvua a Kazembe: a mercadoria visível em toda a parte é o sal. explicaria esta ausência do marfim nas estatísticas oficiais.
Se continuarmos a julgar a situação com base nos documentos, parece ser possível Se a abolição do famoso «privilégio real» dilata automaticamente as estatísticas,
afirmar, sem grande margem de erro, que nos fins do século XVIII, princípios do XIX, tal se deve a duas ordens de razões, que são realmente concomitantes: a primeira
provavelinente até 1834, o comércio interafricano do marfim apresenta-se mais importante autoriza os comerciantes a praticarem preços livres, adequados a um mercado em via
na costa oriental do que na costa ocidental, mesmo que se possa encontrar algum nas de se tornar cada vez mais internacional e intercontinental; a segunda, os Africanos
estradas comerciais que levam ao Atlântico. aceitam levar os dentes de elefante ou de hipopótamo aos mercados geridos pelos
Em 1789, um anónimo português tinha dado conta do «negócio de escravatura e Europeus exportadores.
marfim 'entre' os sovas da Bunda» (109), região abundante em marfim (110 ) . Por sua vez, A aparente explosão inesperada dos dentes, nos registos alfandegários, não remete
o governador Saldanha da Gama critica o monopólio real, mostrando que o «preço fixo apenas para uma actividade frenética e inédita dos caçadores. Ela é também o resultado
do marfim de lei desanima os mesmos Pretos de conduzirem à cidade os dentes de de uma mudança essencial nas regras comerciais portuguesas, que permite aos
grandeza mais que ordinária (...) que os Pretos ou vendem aos estrangeiros ou deixam exportadores adoptarem comportamentos mais transparentes e mais lícitos. Isto não
ficar nas matas e selvas...» (111). impede, de maneira nenhuma, um aumento sensível da actividade dos caçadores,
Face à degradação dos preços, consequência da legislação restritiva portuguesa, os particularmente dos Quiocos, tanto mais que certos comerciantes não hesitam em lhes
Africanos reagem, rejeitando condições que não respeitam as regras do mercado. fornecer armas relativamente modernas.
O atraso das decisões portuguesas é deveras singular, mas as autoridades de Lisboa Este crescimento tão importante da actividade dos caçadores, que se prolongou durante
parecem acreditar que os Africanos são incapazes de reflectir em termos económicos. o século XIX, é a consequência do duplo impacto: mudam as técnicas da caça, devido ao
A legislação de 1834, que põe termo ao «privilégio real», permite uma mudança de aumento do número das armas de fogo, mudam também as orientações comerciais.
ritmo da produção e do comércio desta mercadoria. Todavia, é menos importante do A utilização das armas de fogo para abater os elefantes deve situar-se nos
que continua ainda a acreditar-se (112). primeiros anos do século XIX, sem que todavia os caçadores renunciem à armas
Os textos portugueses dão conta do facto de que «tem o comércio deste artigo e às técnicas tradicionais de caça, que se tornam minoritárias pouco a pouco.
tomado (...) um incremento tão rápido, que já excede [em 1846] de duzentos mil A caça ao elefante é sempre «bastante perigosa em consequência do grande instinto
arráteis a sua exportação anual, entrando neste número o marfim dos dentes de de que é dotado este animal (...) Se a arma do caçador, tendo-lhe feito o tiro, o
cavalos marinhos» (113). Todas as interpretações salientam o aumento desta produção, não matar logo, e deitando ele a fugir a deixa, é apanhada com a tromba e feita
que se teria transformado na actividade principal dos Quiocos, o que é provavelmente em pedaços, e se apanha o caçador mata, vai à patrona aonde está a pólvora, e
verdade até ao momento em que começou a colheita da borracha. a calca aos pés» (114,.) A inteligência e a extrema sensibilidade olfactiva do elefante
Parece contudo legítimo pôr em dúvida estas afirmações. As razões para tal são são amplamente confirmadas por uma informação dos caçadores portugueses, por volta
numerosas: seria a primeira vez, na história de Angola, que uma decisão da burocracia de 1930, segundo a qual o animal ataca em primeiro lugar os auxiliares que
portuguesa de Lisboa teria provocado mudanças tão imediatas e tão radicais em África. transportam a pólvora (115).
É certo que as estatísticas supõem confirmar esta mudança, mas são precisamente estes Não se poderá por isso pensar, como já sugerimos, na existência de uma segunda
números tão oficiais que nos permitem dar conta do sentido da modificação registada. modificação, intervindo no capítulo da gestão dos homens? As caravanas dos caçadores
De facto, o documento do governador Saldanha da Gama é certamente o mais quiocos deslocam-se em todos os sentidos, mas os homens mantêm-se ligados à linhagem,
revelador: os Africanos manifestam um desprezo evidente pela ler portuguesa e abandonam não dependendo de nenhuma autoridade centralizadora. Nestas condições, o produto da
caça depende pouco das autoridades centralizadoras, excepto no que se refere a um
ponto importante, que parece aplicar-se também a outros caçadores: sempre que o
Anónimo, 1789, in Felner, 1940, II, p. 26. caçador quioco mata um elefante em território que não controla, o dente que toca na
Pontes, 1800, in Felner, 1940, I, p. 252.
Gama, 1839, p. 87.
Para evitar esta medida restritiva, o comércio português não hesitou em recorrer ao contrabando.
Ver o quadro da exportação do marfim, 5.a parte, cap. II.
(113) Lima, 1846, p. 17. Ver também Porto, 1942, p. 26, a respeito do crescimento da exportação, Graça, 1890, p. 427.
provindo sobretudo dos elefantes, mas também dos hipopótamos. Gaivão, Cabral, Pratas, 1936, p. 44.

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terra pertence ao chefe desta (116), como se tivesse sido recuperado pelos espíritos para o autorizar a percorrer o território (126) — conta de que maneira o Mwatyanvua
instalados no panteão africano. procurou satisfazer o seu desejo de possuir um «canhão», arma muito mais sofisticada
Não podemos, no entanto, esquecer que os Quiocos não são o único grupo a do que os canhangulos dos Quiocos: «mandou à feira de Cassange dez grandes dentes de
modificar as suas técnicas de maneira muito sensível. Silva Porto informa-nos a respeito elefante para comprar um» ( 127). Por todas estas razões, o Mwatyanvua proibiu os grupos
da circulação do marfim em território ganguela ( 117) assim como na região lui, onde o marfim dominados de «vender marfim a qualquer pessoa que fosse à compra dele, impondo pena
faz obrigatoriamente parte do tributo que as populações devem pagar ao «rei» (1is) , ao capital [a quantos não tivessem respeitado esta determinação]» (128).
mesmo tempo que salienta «o tráfico do marfim» que se regista nas regiões lundas (119).
A abundância de elefantes e o interesse comercial crescente do marfim entre os C. O trabalho do marfim
Lundas e os lundaizados, dos quais os Songos (120) e os Quiocos ( 121 ), são salientados
por Rodrigues Graça e L. Magyar. O autor brasileiro, apoiado por Magyar (122 ), afirma Não parece que os Africanos tenham modificado, de maneira substancial, o número
que o Mwatyanvua recebia o marfim como tributo pago pelos seus povos ( 123), que de objectos ou de utilizações dadas ao marfim, tal como as conhecemos a partir dos
ocupavam territórios imensos, alguns dos quais «eram particularmente ricos em elefantes anos finais do século XV. Se nos fiarmos na aparência, tudo se passa como se o marfim
[que aí] viviam em grupo (...) [e] eram caçados pelo povo Kimbunda, Gyokos [Quiocos],
não fosse uma matéria realmente nobre. É usada nos instrumentos de música, pois que
Bunda e pelo povo Kabenda que morava mais longe (...) perto do rio Riambegysi
os olifantes são constantemente referidos ( 129), mas o leque das utilizações não se alarga
[Zambeze]» (124).
grande coisa.
A gestão política dos Lundas suscitou protestos entre muitos grupos dominados.
A confirmação daquilo a que damos o nome de falta de nobreza desta matéria
Rodrigues Graça reteve os dos Quiocos, muito descontentes com as exacções do poder
aparece claramente no texto de José Acúrcio das Neves, em 1830: «Em Angola [os
central, que exigia corveias, entre as quais a da caça (125).
Africanos] trabalham muito bem o marfim e na tartaruga, fazendo com grande perfeição
Não parece que se possa pôr em dúvida o rigor da observação do comerciante
cabos de faca, bengalas, réguas, almofarizes; mas é necessário darem-se-lhes os
brasileiro. Mas não será ele vítima de uma operação política quioca, destinada a arrastar
modelos» (139.
o comerciante-embaixador para tomar posição ao lado dos Quiocos contra o Mwatyanvua?
Como evitar pensar nos marfins ditos portugueses, que são apenas objectos
A questão mais perturbadora é a que se refere à caça: se Rodrigues Graça ouviu bem
encontrados no Benim por viajantes portugueses e realizados pelos artesãos africanos,
e se foi rigoroso na transcrição da conversa, os Quiocos não se teriam tornado os
que utilizam técnicas inteiramente africanas? Também neste caso foi necessário fornecer
caçadores eméritos que regista a história, se a tal não tivessem sido forçados pelos
Lundas. os modelos. Deve observar-se que os escultores africanos de Angola nem sequer tentam
Será possível aceitar esta informação sem a menor reserva? Pensamos simplesmente servir-se desta matéria-prima para realizar seja que objecto plástico for. No inventário
que os Quiocos alimentavam já o projecto de se libertar da dominação lunda. Estas de Marie-Louise Bastin não encontramos um único motivo esculpido em marfim pelos
queixas são destinadas a impor uma mensagem muito diferente: face a esta violência artistas quiocos (131).
lunda, será surpreendente que nós — os Quiocos — tenhamos decidido pôr termo a esta Haverá uma proibição religiosa que force a sociedade a rejeitar o marfim, que,
situação? com efeito, não intervém na vida quotidiana? Em Luanda, o marfim era uma matéria-
O marfim torna-se, desta maneira, o produto em torno do qual se vai organizar uma
parte significativa da actividade comercial da região. Esta mercadoria preferencial parecia
permitir a substituição dos escravos, e Livingstone — a quem os Quiocos exigiam marfim

Livingstone, 1859, salienta, em diversas passagens, estas exigências dos Quiocos.



Id., ibid., p. 480. Este «canhão» não deve ser compreendido de maneira literal. Parece tratar-
(16) Carvalho, 1890, I, p. 270.
(117) -se dos canhões «bord», fabricados em Liège, cidade especializada na produção ou no apuramento das
Porto, 1942, pp. 68 e 71. armas de fogo destinadas ao comércio africano; ver Vellut, 1989, p. 138. Embora se possa igualmente
(lis) Id., ibid., p. 77.
(19) acrescentar que um grupo angolano procedeu à cópia de um desses canhões, em madeira, que servia
Porto, 1840, Manuscrito BPMP, 1861, vol. 2, cap. B, p. 143. como tambor. Este instrumento pertence ao Museu de Etnografia, que sugere tratar-se de uma cópia
(12o) Graça, 1890, pp. 377-378-380 (por ex.). precoce, já no século XVI, o que parece impossível dada a evolução do uso das armas de fogo. Esta
Id., ibid., p. 423.
cópia só pode ser, por isso, datada dos anos finais do século XVIII, e mais certamente do século XIX.
Magyar, 1859, p. 17. Graça, 1890, p. 447.
(123) Graça, 1859, p. 443.
(t24) Ver Corrêa, 1937, II, p. 194; Graça, 1890, p. 380.
Magyar, 1859, p. 15. Ver também Graça, 1890, p. 459. Neves, 1830, p. 205.
(125) Graça, 1890, p. 448. Ver Bastin, 1961.

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-prima trabalhada pelos Europeus ou pelos Angolanos aculturados, sendo o uso A circulação destas «pedras» está associada às regiões ricas em cobre, mas não
«popular» reduzido a alguns casos raros que pertencem mais ao domínio religioso (132). parece que os Africanos estabeleçam uma associação directa e lógica entre estes dois
Marie-Louise Bastin salienta que «os antigos Quiocos trabalham muito pouco o produtos. Em todo o caso, a malaquite, a que os Africanos parecem chamar as pedras
marfim liso [dente], reservando-o para o comércio». A partir de 1850, a procura verdes, aparece como uma complementaridade regional, muito estimada pelos Africanos
europeia aumenta o comércio destinado à costa. Para impedir que a produção plástica até meados do século XIX. Ulteriormente, as descrições renunciam a dar informações
não reduza a quantidade de marfim comercializado, os anciãos quiocos — chefes das a respeito das «pedras», que continuam contudo a ser procuradas pelo comércio europeu.
secções clânicas — criticavam o emprego do marfim na escultura. Contudo, utilizava- Associadas pois ao cobre, «as pedras verdes [que] vêm da terra chamada Catanga»
-se, por vezes, a ponta dos dentes ou os dentes de hipopótamos para esculpir tabaqueiras, perto da Lunda e de Kazembe (136) eram procuradas pelos Africanos em consequência
assobios, cabos de caça-moscas para uso dos chefes. Algumas pequenas figuras da das suas qualidades terapêuticas, porque carregadas de virtudes curativas e mágicas.
adivinhação, representando o pai, a mãe e o filho, são igualmente talhadas em marfim ou Um documento de 1769 faz referência à «pedra verde de que está cheia a serra de Bende,
em osso. O marfim é trabalhado com a «enxó, a faca, o formão e a lima grossa» (133). oito ou dez léguas distante do presídio de Encoje, situada nas terras de um vassalo
O sistema não se modifica: os escultores quiocos, cuja competência artística é rebelde do Rei do Congo; os Negros lhe chamam pedra unguento, porque com ela curam
indiscutível, nunca consideraram o marfim como uma matéria-prima, ao inverso da
todas as suas chagas e feridas; alguns Missionários a têm reduzido a tinta com que
madeira, a matéria que manifestamente preferem. O vegetal assegura uma relação com
pintam as suas igrejas; eu a fiz examinar e não só achei que era verdaxo, mas que
a divindade, a qual o marfim, esse produto da morte do grande mamífero, parece nunca
encerrava muito cobre (...) Não era difícil reduzir a ramo de comércio esta pedra, ou
poder alcançar.
seja cobre ou tinta, e os negros a venderiam no presídio sem dificuldade» (137).
A lista dos objectos produzidos, frequentemente em companhia da casca da tartaruga,
Esta referência pode exprimir as poucas informações de que dispõe o autor,
é apenas de uso utilitário e típica das encomendas de uma pequena burguesia branca
ou mestiça que quer pôr uma mesa de aparato, cheia de objectos realizados em matérias- mas parece que o conhecimento desta matéria não era grande entre os Portugueses.
-primas nobres, por homens que pertencem a um mundo exótico. De resto, em África, O comércio exterior ainda não conhecia esta futura mercadoria africana, embora se
não parece que o marfim se tenha alguma vez libertado deste estatuto de inferioridade desconfiasse que a «pedra verde» podia ser facilmente comercializável. A visão portuguesa
em relação a matérias-primas infinitamente mais estimadas, tais como, por exemplo, a mantém-se solidamente fiel à leitura dos produtos africanos, em termos de exportação
pele de um grande número de animais, como os que servem, entre os Quiocos, para potencial. Alguns diriam que a visão portuguesa respeita o mesmo constante princípio
fornecer as «roupas» do cesto do adivinho (134). O marfim continuou, assim, a ser uma de pilhagem.
matéria que ou entra na categoria dos cornos ou, então, remete sistematicamente para Nos fins do século XVIII, os Portugueses continuavam a estar interessados na
os Brancos — ou os Árabes na costa oriental — e para o comércio, aparentemente existência das «pedras (...) que Lineu denomina Malaquites que todos sabem contem
despojado de qualquer carga simbólica autónoma. cobre e uma delas foi para o museu de Sua Majestade» (138), assinalando-as no Sul,
nas regiões do interior do presídio de Novo Redondo.
IV. A força mágica das «pedras verdes» A partir do momento em que as «pedras» interessam a ciência europeia — que
autoridade maior do que a de Lineu? — e o comércio, os pombeiros não podiam ficar
A primeira referência às malaquites aparece bastante cedo nos textos portugueses. indiferentes a este proveito. As viagens de exploração procuraram fornecer o maior
Duarte Lopez faz-lhe uma alusão assaz pormenorizada: «há também [no sítio onde está número de indicações que pudessem servir o comércio, o que implica, quase sempre,
instalada a cidade real do reino do Congo] outras pedras raras, que têm do metal, e de dados importantes — mesmo que indirectamente — para o conhecimento científico.
desvairadas cores, como de cobre, que são verdes, lustrosas e lisas; e delas se poderiam Fiel à sua leitura africana, naturalmente dependente da sua aculturação, Baptista
lavrar estátuas e outras obras de singular beleza» (135). dá conta do comércio das «pedras verdes», que liga Kazembe à costa oriental (139).
O angolano descreve as minas de cobre da região de Kazembe, perto do rio Luburi
— que separa as terras do Mwatyanvua das de Kazembe — cheias de «pedrinhas que
O coleccionador e pintor Artur do Cruzeiro Seixas possuía na sua colecção particular uma
espécie de embrião em marfim, que representava o gémeo morto, que a mãe transportava junto do ventre.
Tratava-se de um objecto fabricado para adorno europeu e reconvertido em função do sistema religioso
mushiluanda. Informação pessoal do coleccionador a Alfredo Margarido, a quem agradecemos.
Bastin, 1961, pp. 67-68.
Areia, 1985, pp. 102-103. Baptista, 1843, p. 190.
Lopez e Pigafetta, 1951, p. 84. O facto de o autor nos poder dizer que «delas se poderiam Coutinho, 1769, A. A., I, 1933, s. p.
lavrar estátuas...» deve ser interpretado como a prova da não utilização das pedras na produção de Baptista, o. c., p. 426.
objectos artísticos ou de ornamento? Id., ibid.

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parecem verdes e aonde [os Africanos] cavam o cobre e no meio desta mesma terra é V. O tabaco e as ervas alucinatórias
que [eles] fazem as barras» (14o).
Trata-se de um lugar onde o comércio é importante, porque é lá que os compradores
Capello e Ivens, em 1881, assinalam o uso banal e intensivo do tabaco no Hungo,
procuram «as pedras verdes», transportando-as em companhia do «marfim, cabeças (...)
região do rio Cugho, afluente do Kwangu ( 145). Os dois viajantes acrescentam uma
e barras de cobre para ir comprar fazendas (...) [estas mercadorias formam] o negócio
descrição que foi mais tarde traduzida em língua botânica pelo conde de Ficalho: os dois
da terra do Cazembe (...) que vendem aos viajantes de Tete e de Sena e [aos] Pretos
exploradores «observaram ali a planta de folha larga, lanceolada — Nicotiniana tabacum
da nação Huizas [Muiza] que estão na estrada do caminho para Tete...» (19.
— e uma forma de folha redonda que supuseram, provavelmente com razão, ser a
Podemos concluir que as «pedras verdes» de Kazembe faziam parte do leque dos
Nicotiniana rustica». Na região toda a gente fuma, homens e mulheres, mas têm,
produtos vendidos aos comerciantes da costa oriental, o que ainda se verifica em 1831- sobretudo, o hábito de cheirar rapé. Por esta razão recorrem a pequenas caixas cilíndricas,
-1832, conforme diz a descrição de Gamitto (142).) De resto, Magyar na sua viagem à
onde a folha é moída após ter sido queimada com um pequeno pedaço de pau,
Lunda, em 1850, assinala esta mercadoria que circula «... a sudeste do reino (...) onde acrescentando-lhe também pimenta para aumentar a energia da mistura. Em seguida,
os autóctones extraem e separam o mineral da malaquite» ( 143). Ambos os produtos são, «com uma haste de massambala bem cheia de pó, besuntam o nariz e o beiço superior».
na sua maior parte, confiados ao comércio interno interafricano. Com uma certa inconsciência «científica», o botânico acrescenta: «este hábito concorre
O conjunto destas operações de reconhecimento e de classificação levou as autoridades para dar aspecto repelente a uma raça que de si já não tem muitos atractivos» (146).
de Luanda a interessarem-se mais sistematicamente por estas produções e pela sua Esta «tradução» dos dados recolhidos no terreno pelos dois exploradores portugueses
comercialização. Saldanha da Gama, antigo governador de Angola, afirma em 1839 que — Serpa Pinto faz uma descrição que não diverge desta, na região do Bié (" 7 ) — pode
o comércio das «malaquites (...) não deve desprezar-se [pois se trata de uma] substância servir para esclarecer a questão da importação e da banalização do tabaco em África,
de muito preço, usada para objecto de luxo» (144).
mas mais particularmente em Angola.
A disjunção é neste ponto menos grave do que em outros momentos. O comércio
constitui o denominador comum, porque os africanos asseguram a extracção das «pedras A. A introdução da planta americana
verdes» para as vender a outros africanos que as utilizam nos campos medicinal,
religioso e decorativo. Os Europeus querem recuperar estes circuitos comerciais, sem Sabe-se que a planta é de origem americana e foi introduzida na Europa pelos
contudo perturbar excessivamente o comércio africano, embora impondo as marcas, as Espanhóis, tendo ficado bloqueada na Península praticamente até finais do século XVI.
técnicas e os interesses europeus. Teria sido o embaixador Jean Nicot que a encontrou em Lisboa, numa das muitas hortas
As formas de raciocínio separam-se constantemente, mas mantêm-se identificadas da cidade, para a transportar para Paris, em 1560. Foi a partir da capital francesa que
devido aos objectos que é necessário — ou que é possível — comercializar. São contudo a planta irradiou através da Europa.
as produções africanas que continuam a definir o quadro dos interesses dos Africanos Em África, parece devermos levar em linha de conta duas vias de penetração: a
e dos Europeus. Não parece que as malaquites sejam já utilizadas para fabricar os primeira através do Magrebe. Raymond Mauny mostra-se muito prudente ao sugerir
objectos pedidos pelo comércio europeu, como é hoje o caso, mas os responsáveis esta hipótese: o tabaco «deve ter sido» introduzido por prisioneiros espanhóis que
políticos europeus manifestam o desejo constante de retirar a produção e o comércio serviam nos exércitos do sultão de Marrocos. Esta implantação no Norte de África teria
aos Africanos, menos em função das malaquites do que do cobre. permitido que o tabaco se espalhasse em território muçulmano (148).
Esta cultura havia de se difundir por toda a África a partir de 1600, mas apenas
no espaço a que Mauny chama o «circuito português» [Brasil, costas africanas, oceano
Índico, Japão]. A planta é assinalada no Brasil em 1600; em 1601, no Cabo; em 1602,
• nas ilhas de Cabo Verde; em 1607, encontram-se a cultura e o uso do tabaco na Serra
Leoa, etc. O seu hábito e plantio — tal é a conclusão cronológica de Mauny — parecem
bem estabelecidos, de maneira ampla, em África, em 1650 (149).

("G) Id., ibid., pp. 426-427.


Capello e Ivens, 1881, II, p. 72.
id., ibid., pp. 433-434.
Ficalho, 1947, p. 233.
Gamitto, 1854, pp. 260-261.
Pinto, 1880, p. 95.
Magyar, 1859, pp. 12-13.
Mauny, 1953, pp. 719-722.
Gama, 1839, p. 84.
( 149) Id., ibid.

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Não encontramos nenhuma referência ao tabaco no texto do observador meticuloso fumadas, entre as quais as alucinatórias, a que os Angolanos dão, nos nossos dias, o
que foi Duarte Lopez. É necessário esperar pelo século XVII (a data confirmaria a nome de maconha (Cannabis sativa). Nestas condições, a produção e o consumo do
hipótese de Mauny) para deparar com as primeiras alusões em Cadornega, que faz tabaco não estarão associados a um certo número de plantas destinadas ao uso alucinatório
aparecer a planta no Kwanza, numa ilha que separa as terras portuguesas das que dos homens e das mulheres?
controla o chefe da Kisama, a ilha de Fernando, pertencente ao capitão Fernão Rodrigues: Pode pensar-se que, neste como em outros casos, a adopção da planta se deve ao
«terá esta ilha uma légua de comprido e meia de largo, onde se planta muita farinha parentesco que possui com outras já existentes. Isto explica, talvez, que o tabaco, cultivado,
[quer dizer mandioca], milharadas e tabaco que torcido se gasta naquela vila [Massangano] vendido, comprado, fumado, tomado, se tenha tornado uma das plantas sociais de Angola.
e vai muito para o gasto da cidade [quer dizer, de Luanda]» (159. Nos fins do século XVIII «todo o sertão produz esta erva preciosa» (155). Elias Corrêa
O interesse da informação é duplo: a agricultura é neste caso inteiramente dirigida pretende provavelmente divulgar a existência de uma produção espontânea que leva os
pelos Portugueses e organizada em função das duas cidades criadas por eles: Massangano
Africanos a nunca desprezarem as pequenas coisas do comércio: apesar de uma produção
é a mais próxima, estando Luanda mais distante. Dito por outras palavras: o circuito
insignificante, procuram vender na cidade algumas bolas de tabaco. É de resto este deficit
da produção agrícola muda sob a pressão do consumo urbano que, aparentemente, não
que autoriza a importação de tabaco do Brasil (156). Aparentemente, as culturas encontradas
pode ser satisfeito pela produção agrícola africana. Seja como for, a situação deixa
no século XVII desapareceram, mas sob que pressões?
aparecer uma dicotomia na organização desta produção agrícola: o tabaco consumido
Em 1806, Baptista dá a saber a produção e a circulação do tabaco nas regiões que
nos espaços urbanos não é fornecido pelos produtores africanos, estando esse fornecimento
ligam Kazembe a Tete. A ausência de referências ao tabaco, no percurso que liga a
reservado aos produtores portugueses.
Musumba a Kazembe, não deixará de suscitar uma certa curiosidade, que não parece
Os próprios utensílios, utilizados para consumir o tabaco, desvendam a existência
poder ser inteiramente satisfeita. Será que este espaço interior, tão importante na
de um leque técnico maior do que o revelado pelos Africanos: «fazem também podas,
organização dos sistemas políticos da África central, rejeitou o tabaco até finais da
que lhes servem para as roças dos matos, e fouces roçadouras para alimpar os Zumgais
primeira metade do século XIX? Por outro lado, a singularidade da situação está
e ervagem que nascem nas terras alagadiças do que usam muito para semear tabaco,
reforçada pelo número considerável de «pretos carregados de seus tabacos», encontrados
a que chamam macaia» (151). Numa nota, Mgr. José Mathias Delgado indica a escrita
no percurso já oriental pelos dois angolanos (157).
actual de macaia: «hoje makanha» (152). O conde de Ficalho fora ainda mais seco:
Alguns anos mais tarde, em 1830, Gamitto recebe de um chefe kazembe, instalado
«Apenas [existe o nome do tabaco] em língua bunda, ricanha, plural macanha, [que]
na fronteira oriental do território, um presente constituído por «pedacinhos de tabaco»
é de origem diversa e pouco certa» (153).
Podemos nós afirmar, adoptando os pontos de vista da maior parte dos e também «escravos, marfim, mantimentos vários, mel», em troca de mercadorias
investigadores, entre os quais se devem referir o conde de Ficalho e Raymond Mauny, europeias (158). Se parece difícil explicar as razões deste vazio geográfico na produção
que a cultura se espalhou rapidamente nas duas costas africanas? Esta expansão do tabaco, é preciso acreditar que a sua comercialização foi mais precoce na costa
teria sido tornada mais fácil devido a características genéticas: a planta produz oriental.
uma enorme quantidade de pequenas sementes, que se disseminam muito facilmente. Nas regiões do interior angolano, regista-se a presença do tabaco um pouco depois
Estas condições teriam permitido a difusão da planta, que se tornou espontânea de 1830. Graça encontrou o seu cultivo no Bié (159), ao passo que Livingstone faz uma
em algumas regiões (154). referência à planta que, em 1854, cresce nos «jardins» das aldeias, cultivada pelos
habitantes lundas (19.
B. A banalização do tabaco: produção e consumo africanos Trata-se, provavelmente, do tabaco de introdução recente, pois que Magyar assinala,
em 1851, que os Lundas cultivam «hoje tabaco como faziam quando eu estava entre
Continua a existir, contudo, uma incerteza que deve ser esclarecida: o texto português eles [1850] [porque] lhes tinha generosamente dado o tabaco para eles cultiyarem.
indica o nome de macanha, que parece ser apenas aplicado ao tabaco, mas a verdade
é que o substantivo serve para designar praticamente todas as plantas que podem ser

Corrêa, 1937, I, pp. 158-159.


Cadornega, 1972, III, p. 138. Id., ibid.
Id., ibid., vol. I, pp. 25-26. (152) Baptista, 1843, pp. 230-231.
Id., ibid., nota 1, p. 26. Gamitto, 1854, p. 228.
Ficalho, 1947, p. 232. Graça, 1890, p. 386.
(154) Id., ibid., pp. 231-232. (160) Livingstone, 1859, pp. 399-400.

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Fizeram tão bem esta cultura que [o tabaco] se tornou rapidamente corrente e tomou Mas como aceitar o desaparecimento de produções que são particularmente estimadas?
o lugar do pango ou liamba (...) que eles utilizavam antes» (161). Ou mais simplesmente, existem regiões especializadas que não foram visitadas pelos
O autor húngaro assinala também que os Quiocos tinham começado a semear viajantes? Há em todo o caso um mistério, possivelmente falso, a resolver.
tabaco «nestes últimos anos» (162,,) o que não deixa organizar uma cronologia mais
precisa. A marcha do tabaco parece, com efeito, ser mais rápida a partir da costa C. As ervas alucinatórias
oriental, mas os dois movimentos permitiram colmatar esta brecha geográfica, impondo
o seu consumo a toda a gente. A utilização do tabaco pelos Africanos não podia deixar de se inserir na velha,
Foi sob a pressão das autoridades portuguesas, que assistimos, por volta de 1840, quando não velhíssima, prática africana do uso de ervas alucinatórias, cujo consumo
à ampliação da cultura do tabaco, nas regiões sob «controle» português. Um documento se mantém não em concorrência com o tabaco, mas solidário com a planta americana.
de 1840 dá conta das directivas da administração portuguesa, enviadas a todos os De resto, todas as «novidades» introduzidas pelos Europeus só se banalizaram quando
«chefes avassalados», que deviam ser «convidados» a assegurar culturas rendíveis, tais podiam ser rapidamente reconhecidas, isto é, sempre que identificadas com produtos ou
como o algodão, o tabaco, o café, acrescentando que «nada se tem feito a tal respeito práticas já existentes.
senão o que era de antigo costume; algum tabaco e algodão para seu gasto (...) pequenas Os autores europeus, entre os quais os Portugueses, e mais propriamente estes,
plantações feitas unicamente pelas mulheres, porque os homens não se sujeitariam a assinalam e condenam o consumo de ervas alucinatórias, aspiradas por via oral ou
pegarem na enxada» (163).
fumadas pelos Africanos. Elias Corrêa é um dos autores que consagram algumas
Jill Dias afirma que foi a partir de 1850-1860 que se desenvolveu uma «agricultura referências a esta prática africana, no quadro angolano do século XVIII: os Africanos
de mercado», tornando-se a mão-de-obra feminina particularmente importante na fumam uma segunda erva (que se acrescenta ao tabaco a que se referira Corrêa) o
economia mbundu, o que nos parece algo impreciso, pois que as mulheres sempre pango, servindo--se dos seus cachimbos (166).
asseguraram a produção agrícola nesta ampla região que abarca tantas plantações. Nos princípios do século XIX, o governador Saldanha da Gama salienta que «nas
Jill Dias indica ainda que «o tabaco era cultivado em parte pelas mulheres, como vizinhanças do Bengo havia no ano 1803 uma plantação de cânhamo, que prometia boa
moeda local de troca» (164).
colheita, e mostrava que a terra era própria para esta cultura; o que, aliás, já se devia
Os documentos disponíveis parecem orientar-se no mesmo sentido: a situação só presumir pelo facto de que os Negros cultivam a mesma planta, que fumam seca, e com
teria sido substancialmente modificada durante a segunda metade do século: alguns
que assim se embriagam de um modo terrível e funesto» (167).
africanos, entre os quais as populações do Bié, produzem tabaco destinado ao seu
Nas fontes ulteriores encontramos assinaladas as ervas alucinatórias que recebem
consumo, mas procuram também vendê-lo aos Europeus, principalmente os que viajam
nomes bastante diferentes, conforme os autores, que se limitam a registar as designações
para as terras quiocas, onde é particularmente apreciado (165).
mais correntes, utilizadas pelos Africanos. É o caso de Silva Porto que se refere a uma
O texto de Capello e Ivens refere uma «falta absoluta». Mas então, o que se
erva que os Africanos «denominam pangue e mattocoanne — que constitui uma espécie
passou com as plantações quiocas, que foram citadas por L. Magyar? A evolução
de narcótico para aqueles que não estão habituados a utilizá-la como [substituto] do
da sociedade e da história quiocas — à qual prestaremos uma atenção mais cuidada
tabaco» (168).
posteriormente — explica certamente a mudança de algumas práticas desta população.
Parece evidente que o «pré-antropólogo» português se deixa arrastar pela leitura
do seu grupo, que considera o tabaco como a planta que provoca as técnicas do fumo,
Magyar, 1859, p. 9. e que se não apercebe de que estas ervas alucinatórias tinham precedido a banalização
Id., ibid.
da planta americana.
Carta do governador de Angola, de 29 de Janeiro de 1840, Manuscrito AHU, CGA, cx. 590.
Outros documentos manuscritos da década (1840-1850) repetem o mesmo tipo de informações, como No grupo dos Makololos, na região sudeste de Angola, Livingstone encontrou
se verifica nas cartas do governador P. A. da Cunha, de Março-Abril de 1846, AHU, CGA, cx. 606. também o costume de fumar mutocoane ( 169), ao passo que, por volta de 1879, Capello
Dias, 1989, p. 250. Infelizmente, Jill Dias não cita nenhuma fonte, e parece curioso que seja e Ivens assinalam, em território quioco, a utilização da riamba fumada nos cachimbos
necessário salientar o valor económico do trabalho das mulheres, após alguns séculos de escritas
masculinas europeias, que denunciam constantemente a «preguiça» dos homens, «parasitas» do trabalho
das suas mulheres.
( 165) «O viajante que vai para o quioco deve levar consigo a maior abundância de mercadorias,
entre as quais o tabaco indígena», visto que «a falta absoluta de tabaco por estas terras faz com que Corrêa, 1937, I, p. 159.
semelhante artigo tenha grande valor no Quioco». Capello e Ivens, 1881, I, p. 146. Ver também, I, Gama, 1839, p. 73.
p. 271. Pinto, 1880, pp. 95 e 256, confirma estas informações no que se refere às regiões do Bié e dos Porto, 1942, p. 26.
Ambuelas.
Livingstone, 1859, p. 561.

350
351
chamados mutopa (170), que Carvalho define como sendo cabaças nas quais fumam tanto
a liamba como o tabaco (171).
O ritual e as consequências deste consumo da erva são assim descritos pelos dois
exploradores portugueses: a mutopa passa de mão em mão no círculo dos fumadores
e cada um aspira o fumo quatro ou cinco vezes, antes de a passar ao vizinho. O primeiro
efeito destas baforadas é um ataque de tosse muito forte, que quase sufoca o fumador,
«o qual parece tanto mais satisfatório quanto mais próximo esteve da sufocação. O
cachimbo é logo entregue ao imediato, que continua o processo e fica estatelado,
roncando de modo singular» (172).
Trata-se sempre da mesma planta, a Cannabis sativa, de origem asiática. O conde
de Ficalho afirma que a planta teria sido introduzida primeiro na África oriental, prove-
niente da Índia, por intermédio dos Árabes. Conquistou rapidamente os Africanos
orientais que, não conhecendo as técnicas de preparação das misturas, salienta também
Ficalho, se limitaram a fumar, comer ou beber as folhas e os ramos da planta (173).
Parece que o conde de Ficalho se deixa uma vez mais arrastar pelos preconceitos
que alimenta em relação aos Africanos. Estes aceitaram a planta, mas rejeitaram os
nomes provenientes do sânscrito. Também integraram nas suas práticas culturais os
cachimbos de água, a mutopa angolana, que as autoridades portuguesas proibiram por
volta de 1950.
Ora, o princípio deste cachimbo, que africaniza o narguilé oriental,
salienta de novo a capacidade de resposta técnica dos Africanos. Será aceitável a ideia
de que o princípio e o instrumento, que permitiram a africanização da planta e das
técnicas de consumo, foram primeiro propostos na costa oriental?
No século XVI, o consumo da cannabis estava já generalizado na região de
Moçambique actual (174), de onde a planta e o hábito de a consumir — o vício, salientam
os moralistas da colonização — passaram para a África central, mas reduzidos ao
consumo único do fumo. Diz ainda Ficalho que a via seguida pela planta em Angola
foi a região sudeste, em relação com o território lovale. Mas o mesmo autor sugere a
possibilidade de uma via norte, ou então — o que nos parece mais normal — uma
coincidência entre estas duas vias de penetração e de vulgarização.
Com efeito, a norte, Henrique de Carvalho assinala, de maneira constante, a relação
existente entre a utilização da mutopa, a autoridade e a gerontocracia. O consumo da
liamba, diamba ou riamba realiza-se frequentemente no jambo (cubata destinada
exclusivamente aos homens), entre os homens mais idosos ou, então, acompanha as
operações de beber que caracterizam as assembleias dos «grandes» do Estado. Não deve

Capello e Ivens, 1881, I, p. 152, mostram desenhos de alguns cachimbos. Ver também
Sarmento, 1880, p. 107.
Carvalho, 1890a, p. 353.
Capello e Ivens, 1881, II, p. 126.
Ficalho, 1947, pp. 259-265.
(174) Id., ibid., pp. 262-263, cita o texto de Fr. João dos Santos que descreve a viagem deste
missionário ao Monomotapa, nos fins do século XV. Fig. 23 — Mutopa, cachimbo de água quioco. Bastin, 1961, II, gravura 106.

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contudo esquecer-se que este consumo permite conhecer o futuro e indica aos homens na analogia e que permitiu, de resto, a africanização de uma parte importante dos
os caminhos a seguir «se queriam ser felizes» (175).
produtos importados. A grande tentativa de conservar a hegemonia perante as formas
Será que a cannabis é igualmente comercializada pelos Africanos? Não encontrámos
políticas e económicas europeias só podia afirmar-se, evitando as situações de disjunção
quase nenhuma referência à circulação desta planta ( 176). E também nos faltam as mais densas e mais graves.
informações respeitantes à produção dos cachimbos, sobretudo dos de água. Ora, estes Precisamente, esta disjunção tão receada apareceu em vários registos — produção,
exigem a intervenção de artesãos, e podem, em algumas circunstâncias, mesmo de maneira consumo, projectos — durante a primeira metade do século XIX, e não podia deixar
contínua, tornar-se mercadoria nas redes comerciais que asseguram o trânsito do tabaco. de se agravar, sob a pressão portuguesa, ela própria resultado das mudanças do espírito
É neste sentido que Marie-Louise Bastin põe em destaque a importância da produção dos colonizador europeu. Não se trata da simples consequência da gravidade europeia, mas
cachimbos e das caixas de rapé dos escultores quiocos ( 177). Seria difícil acreditar que essencialmente do resultado da transformação imposta à Europa pela revolução industrial.
esta produção ficasse completamente isolada entre os Quiocos, pois que conhecemos bem Perante a cascata das alterações técnicas, os Africanos estão realmente desarmados,
a imensidão geográfica e cultural da sua expansão. como de resto estavam também, por exemplo, os camponeses europeus.
Não podemos, do mesmo modo, acreditar na ausência de comercialização da liamba, Isto quer igualmente dizer que os sistemas de troca devem também mudar, como
mesmo que as autoridades portuguesas procurassem eliminá-la das práticas africanas. tudo aquilo que está em relação com a circulação das mercadorias e até das formas de
Esta medida administrativa pretendia, por um lado, assegurar a difusão do tabaco, tendo consumo. O abalo experimentado na Europa torna-se em África mais grave ou mais
em vista a criação de um monopólio que devia ser fiscalizado pelo Estado e, por outro, dramático, já que os Africanos não quiseram aceitar o que lhes era proposto sem uma
pôr termo a um hábito que, segundo as autoridades, tornava um número importante de africanização, destinada a rejeitar a violência da mudança. Todavia, o que caracteriza
africanos inaptos para o trabalho, mesmo forçado. Apesar de tudo, estas medidas nunca as operações da modernidade, sobretudo após a Conferência de Berlim, é a redução
foram capazes de eliminar a planta e o seu consumo, muito mais capaz de suscitar o sistemática dos espaços onde os Africanos podiam conservar a aparência da liberdade,
delírio alucinatório do que o tabaco que, desse ponto de vista, não passaria de uma para lhes impor a hegemonia europeia.
planta serena. Acrescente-se que as campanhas militares deste século habituaram os
soldados portugueses ao consumo da liamba, que hoje se cultiva em muitos lugares da
Europa.
A complementaridade das produções africanas, que assegurou a coerência dos
sistemas africanos de produção, de consumo e de comercialização, permitiu a sociali-
zação dos espaços. Ela serve para provar o dinamismo das formas e das estruturas
africanas, que puderam assim aderir às técnicas importadas pelos Europeus, sem cair
na armadilha brutal da europeização forçada. Nunca renunciando à verificação dos
espaços, os responsáveis políticos africanos procuraram eliminar aquilo que nos produtos
europeus podia ser capaz de provocar o desequilíbrio das sociedades africanas.
As produções estimuladas pelos Europeus foram de certa maneira obrigadas a
introduzir-se nos espaços de produção africanos. Trata-se de um processo que se apoia

Carvalho, 1890, pp. 103-105.


Porto, 1942, p. 26, observa: «faz-se aqui o comércio [na região do Bié] (...) de tabaco e de
uma erva que denominam pangué e mattocoanne — que constitui uma espécie de narcótico para os que
não estão habituados a utilizá-la como tabaco».
( 177) Bastin, 1961, vol. II, gravuras de X a Z. Esta mutopa, cachimbo de água, suplantou, afirma
Marie-Louise Bastin, o antigo cachimbo monóxilo peshi. A partir daí, teria sido reservado às mulheres.
Este instrumento masculino servia antigamente para fumar o cânhamo, «substituído no momento actual
[1955] pelo tabaco» (Bastin, I, p. 221, reprodução fotográfica, II, p. 212). Aparentemente, Marie-Louise
Bastin acredita na substituição total do cânhamo pelo tabaco, mas as práticas alucinatórias das populações
angolanas obrigam-nos a desmentir esta afirmação. De resto, a administração portuguesa perseguiu, com
muita determinação e pouco êxito, os fumadores de liamba, que eram comparados aos utilizadores
orientais de ópio.

354
355
QUARTA PARTE

A ORGANIZAÇÃO DAS TROCAS E A EMERGÊNCIA


DOS QUIOCOS ANTES DE 1850
g

A ORGANIZAÇÃO DAS TROCAS E A EMERGÊNCIA


DOS QUIOCOS ANTES DE 1850

A complementaridade ou a interdependência das regiões impôs a criação de lugares


onde se cruzavam os caminhos e onde os comerciantes podiam trocar, em segurança,
as suas mercadorias. Ao acumular experiências, os grupos são forçados a aperceber-
-se da importância das rotas comerciais seguras, quer dizer, garantindo uma defesa
contra as violências e contra os roubos. Estes lugares de trocas deram origem a zonas
estratégicas, cujas populações foram levadas a desempenhar um papel relevante como
intermediárias entre regiões, homens e produtos.
Se, durante séculos, estas regiões se limitaram — como era natural — a servir apenas
as populações e os produtos africanos e alguns outros já africanizados, a situação não
podia deixar de mudar, mesmo que não possamos avançar uma data precisa para esta
mudança. Nesse aspecto, continuamos impedidos de fornecer uma data definitiva. De
facto, a orientação que adoptamos depende dos conhecimentos e das práticas associados
à costa ocidental. Não seria difícil censurar-nos pelo facto de não termos utilizado mais
sistematicamente as fontes provenientes da costa oriental, a não ser quando estas se referiam
a acontecimentos, estruturas ou personagens que mantinham relações com a costa ocidental.
Os documentos de que dispomos mostram-nos, de resto, que nas zonas aqui consideradas,
o peso da costa oriental foi não só ténue mas também tardio. Em não poucos casos, ele
data apenas da segunda metade do século XVIII (1).
Se o movimento interno africano é suficientemente organizado para manter a sua
estrutura, é preciso contar, a partir do século XVI, com a pressão exercida pelas
mercadorias comercializadas pelos Europeus nas duas costas, se bem que de maneira
mais volumosa, na costa ocidental. Esta pressão serviu para reforçar o carácter estratégico
das zonas comerciais já existentes, pois a maneira mais rápida de assegurar a comercia-
lização residia no recurso aos caminhos que já tinham dado provas de eficácia.
O comércio exterior só pode tentar recuperar para si os circuitos que até então tinham
assegurado a regularidade das trocas interafricanas. Este comércio exterior exerce, em
primeiro lugar, uma pressão constante para suscitar, conservar ou ampliar o comércio
de escravos, o que não o impede de aceitar as mercadorias que podem interessar os
mercados internacionais europeus, americanos ou até asiáticos.

(I) Ver 2. parte do cap. III, consagrado à construção do Estado imbangala.

359
A mudança essencial provém do exterior, mas os Africanos nunca renunciam ao
queriam comercializar, o que já se não verificou no caso dos Imbangalas. Estes eram
controlo que exercem tanto sobre os homens como sobre as mercadorias. As regras, que
puros e simples intermediários, em relação à maior parte dos produtos que ofereciam
pretendem impedir o acesso dos homens calçados ao interior e, mais particularmente, aos Portugueses.
dos Pretos calçados, não excluem os Brancos, e reduzem de maneira sensível o número
Tal não impediu que o Kwangu continuasse a ser o lugar estratégico das trocas,
de agentes europeus que procuram instalar-se no mato. De resto, esta medida é destinada
mesmo que sujeito a uma concorrência que não hesitou em recorrer, cada vez mais, às
não a excluir os homens, mas sim as práticas sociais ou civilizacionais incómodas.
estradas situadas ao sul dos Imbangalas, permitindo atingir as regiões orientais. Esta
É por isso que os Pretos calçados constituem o exemplo do escândalo absoluto, porque
lenta degradação do poder imbangala forneceu aos Portugueses a possibilidade de
rompem com as práticas africanas, impedindo as relações físicas directas dos homens
com o além. organizar as campanhas militares após 1850, destinadas a eliminar este obstáculo
secular, que as populações da margem esquerda do Kwangu queriam também fazer
Todavia, os mecanismos de controlo estão ligados aos fluxos comerciais. À medida
desaparecer. A conjunção destes dois projectos permitiu atacar frontalmente o poder de
que a redução do comércio de escravos ameaça os alicerces económicos das organizações
Kasanje. É certo que os Portugueses não conseguiram, na sua primeira tentativa,
políticas africanas, estas aumentam a produção dos bens solicitados pelos agentes
«quebrá-lo», mas estes ataques repetidos provocaram um desmembramento, cada vez
costeiros: a cera, o marfim, a goma, a borracha — se bem que esta apareça bastante
mais grave, das autoridades dos territórios e dos interesses, minando a partir do interior
mais tarde — estão na origem de novos lugares de comércio, porque estes novos
o que fora uma unidade temida, devido à sua homogeneidade.
produtos permitiam que um leque cada vez mais amplo de produtores pudesse inserir-
-se no processo. O aumento dos agentes de produção provocava uma modificação
complementar simétrica: a multiplicação dos intermediários, quer dizer, dos comerciantes
africanos.
É sob estas duas pressões convergentes que as sociedades apontadas são levadas
a mudar, é certo que já bastante tarde, o sistema relacional. As tensões suscitadas pela
pressão exterior e as tentativas dos poderes hegemónicos, para manter fosse como fosse
a situação já superada, não podiam deixar de provocar choques tanto simbólicos como
reais.
O crescimento dos fluxos comerciais permitiu, outrossim, a emergência dos Estados
intermediários — que são às vezes também «grupos de refúgio» ( 2 ) — cujo dinamismo
é evidente. Uma das qualidades destes Estados residia na sua capacidade de dominar
as actividades injectadas do exterior, que devem encontrar uma resposta modernizante
nas sociedades africanas. Tal foi o caso dos Quiocos, que mostraram, sobretudo a partir
de 1850, uma notável capacidade de inovação e de adaptação às novas formas de
comércio, tal como se mostraram capazes de integrar e de utilizar as novas técnicas para
ampliar e reforçar o seu poder.
Face à vaga abrupta da novidade, concomitante e sucessiva às mudanças registadas
no comércio de escravos, os Quiocos procuraram enfrentar o poder central dos Lundas,
sem contudo se deixar «gerir» pelos Imbangalas. Tudo se passou como se o poder de
controlo nas mãos dos homens da margem direita do Kwangu tivesse mudado normalmente
de margem, o que permitiu que os Quiocos da margem direita pudessem fiscalizar as
vias comerciais. A partir do momento em que as mercadorias procuradas pelos Europeus
mudaram, os Imbangalas começaram a mostrar sinais de cansaço, sujeitos à concorrência
de um número cada vez maior de caravanas comerciais quiocas e lundas. Esta situação
foi em parte determinada pelo facto de estes dois grupos serem os produtores do que

(2) Recorro a uma sugestão do Prof. Jean Devisse, a quem agradeço vivamente.

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CAPÍTULO I

Lugares de trocas, circulação das mercadorias e monopólios


regionais
O conceito mais significativo que aparece como resultado das nossas análises é
certamente o da complementaridade. Ele serve, com efeito, para mostrar, em primeiro
lugar, que a África não estava fragmentada em pequenas unidades isoladas (famílias,
aldeias, clãs, linhagens), pelo contrário, ela caracterizava-se pela densidade dos caminhos
e dos homens, ocupados com as mercadorias destinadas a assegurarem as necessidades
do Outro. Necessidades muito diversificadas: alimentares, artesanais e sociais. A divisão
técnica das tarefas permitiu a emergência dos comerciantes, esses intermediários que
dão valor ao que se produz, qualquer que seja a natureza dos bens propostos no
mercado.
Uma das condições singulares da região de Kasanje reside, como já tínhamos
salientado, na parca importância da sua produção, tendo em vista uma actividade
comercial significativa. Os textos não fazem a menor alusão a crises de fome — nesta
época — o que nos autoriza a afirmar que a zona produzia, pelo menos, os alimentos
de que tinha necessidade. Sabemos, de resto, que o gado era, por vezes, bastante
abundante na área (3)
Inversamente, a região não dispunha dos produtos que permitiam sustentar o comércio
a longa distância. O génio do poder de Kasanje reside na sua capacidade de utilizar o
modelo português para permitir a criação da Feira, estrutura afro-portuguesa. O kilombo
africano mantém-se, todavia, autónomo — tanto do ponto de vista do urbanismo como
do ponto de vista do exercício da autoridade — consagrado ao poder africano. A
autoridade real aparece neste caso algo ambivalente, pois que exercida em conjunção
com os Portugueses na Feira de Kasanje e independente de qualquer compromisso com
os Europeus no kilombo. Isto não impede a Feira de se transformar num nó fundamental
na circulação dos homens e das mercadorias. Kasanje pertence ao tipo de organizações
que vivem das condições geofísicas particulares, que lhe permitem a invenção e a gestão
de uma função de intermediário indispensável.

(3) Ver 3•a parte do cap. II, dedicado às complementaridades alimentares. A narrativa de Neves,
1854, faz frequentes referências ao gado.

363
A maneira como o poder político se serve do rio — o Kwangu — torna indispensável Trata-se de uma tentativa de explicação das condições que teriam presidido à
a intervenção das populações de Kasanje, para assegurar a actividade comercial, sem criação da Feira d.e Kasanje, proposta por Salles Ferreira (1854), que deve ter recorrido
por isso deixar de autorizar — ou de proibir — a circulação dos homens. A posição às tradições orais, tanto africanas como portuguesas. O documento português é
da cidade permite a organização de uma situação radial, que não rejeita nenhuma essencialmente destinado a confirmar a ideia central: uma organização comercial deste
direcção comercial possível, o que não impede, de maneira alguma, o comércio local, tipo e desta envergadura só podia ser obra dos Portugueses. Esta obstinação patriótica
que se limita às suas próprias populações e que, de resto, é difícil de identificar nos impede Salles Ferreira de se aperceber da contradição na qual o mergulha a sua
documentos. afirmação:
Para conseguir fazer funcionar este nó de homens e de mercadorias, é também
necessário que o poder político se mostre hábil. Os documentos portugueses multiplicam A Feira teria sido criada pelos Portugueses, mas são os Africanos que decidem
as opiniões negativas consagradas ao poder do Jaga, geralmente considerado demasiado as regras do seu funcionamento e impedem que os Europeus possam agir e deslocar-
brutal. Não podemos, contudo, acreditar nesta leitura, porque os Imbangalas estavam -se livremente.
ameaçados por duas estradas concorrenciais: a primeira ao norte, aquela que através Os Africanos decidem manter secreto o caminho que, das terras de Kasanje, leva
do Norte do Kwangu — perto da confluência com o Kasai — se dirige para as nações para as terras dos Lundas centrais, onde se situaria o maior centro de comércio do
«Quilubas» ( 4 ); a segunda ao sul, que, após a travessia do Alto Kwanza, toma a direcção marfim.
das terras de Lovale (5). 3) A Feira teria sido criada pelos Portugueses, mas é-lhes necessária a «autorização»
Se as mercadorias e os homens se dirigem para Kasanje, muito antes de os do Jaga para aí se instalarem, facto que não consegue dissimular a situação de dependência
Portugueses aí chegarem, é certamente porque os Imbangalas desempenham, de em que se encontram os Portugueses e os Europeus.
maneira perfeita, o papel fundamental de intermediários que se reservaram nas relações
interafricanas. O nosso conhecimento do Kasanje data do momento em que esta De resto, esta dependência é confirmada pelas restrições que se opõem à circulação
organização política estava já encarregada de assegurar o trânsito das mercadorias dos Portugueses, os quais estão proibidos de chegar perto do rio e, mais ainda, de o
europeias, mas podemos avançar a hipótese de que este lugar viveu durante muito atravessar, o que os impede de manter relações com as populações da outra margem
tempo graças ao movimento das mercadorias africanas, sem nenhuma intervenção dos do Kwangu, situação que subsistia ainda em 1884 (8).
Europeus, que ainda não tinham desembarcado na costa. Será possível, ou conveniente, A escrita de Salles Ferreira serve para evidenciar a extrema fragilidade portuguesa,
acreditar que os Portugueses não quiseram destruir o sistema de Kasanje, na esperança visto os Portugueses só poderem instalar-se e manter-se na Feira na medida em que
de conseguir recuperar a função de intermediário? Em parte apenas. O mais importante aceitam as restrições impostas pelas entidades africanas. O discurso patriótico português
residia no exercício do poder, tanto sobre a natureza como sobre os homens. é constantemente deformado pela autoridade africana, que não pode deixar de fazer
aparecer a situação de dependência portuguesa.
I. A Feira de Kasanje: origem e organização

Sabemos, de resto, que a consolidação do reino de Kasanje data da primeira metade A. A origem da Feira: criação africana e pretensões portuguesas
do século XVII ( 6 ). Esta operação atraiu as populações vizinhas para as estradas
controladas pelos Imbangalas; por volta dos finais do século XVII «Começaram os A História Geral das Guerras Angolanas, redigida por volta de 1680, por António
Songo a transitar o caminho da Lunda para Cassanje, caminho muito mais curto do que de Oliveira de Cadornega, revela a existência de um importante comércio de escravos
o do Songo Grande, e d'aí vem a origem da Feira de Cassanje, porque alguns portugueses e de marfim em troca dos vinhos e dos tecidos portugueses, transportados de Luanda
começaram a ir ali comerciar a abundância de marfim que os Cassanjes traziam da até ao kilombo do rei imbangala (9).
Lunda. Os Jagas consentiram no estabelecimento da Feira, mas conservando o caminho
[para a Lunda] oculto e não consentindo que português algum passasse além do rio
Zaire ou Quango» (7).
Por volta dos meados do século, após a guerra de Kasanje, parece que os Portugueses conseguiram
romper a muralha defensiva imbangala. O comerciante Saturnino Machado escreve, em 1864, a seu
Leitão, 1938, p. 7. irmão Custódio Machado para lhe dizer que já conseguira atravessar «ontem o Cuango a norte dos
Anónimo (1789), in Felner, 1940, vol. 2, p. 25. Bangalas [Kasanje] (...) [e eram] os primeiros brancos a fazê-lo» (Carvalho, 1890, I, p. 201). O controlo
Ver 2.' parte, cap. III. do Kwangu pelos Imbangalas foi mais tarde restabelecido. Ver 5." parte, cap. II.
Ferreira, 1854, p. 27.
Cadornega, 1972, II, p. 217.

364 365
A visão portuguesa afirma sem titubeios que esta recuperação teve lugar por via
da sua instalação no século XVII ao lado do kilombo (10), recorrendo a um modelo já
experimentado dos mercados luso-africanos, instalados habitualmente nas áreas de
residência de chefes africanos importantes e dos presídios (11). As feiras dependem desta
dupla articulação destinada a assegurar uma protecção militar às zonas comerciais.
A palavra que serve para nomear esta instalação é inteiramente portuguesa; julgamos,
por isso, fácil afirmar a preeminência portuguesa na criação destas formas comerciais.
Parece-nos que esta «prova» linguística não pode, contudo, ocultar a autêntica estrutura
da instalação: se a designação é indubitavelmente portuguesa, o sistema das trocas,
assim como o controlo político e militar não pertencem, no entanto, aos Portugueses.
Isto quer dizer que estes procuram recuperar uma instalação cuja influência é conhecida
de todos. Os comerciantes portugueses podiam instalar-se na Feira de Kasanje, sob a
vigilância africana de um grande Estado, «ao lado da residência do Jaga» (12) e com
a sua autorização (13).
Jean-Luc Vellut procurou reconstituir a organização da Feira no século XVIII, a
partir dos documentos portugueses. Estaríamos então perante uma «aglomeração de
construções provisórias, povoadas por hóspedes de passagem (pombeiros, carregadores,
escravos) que construíam, eles próprios, as suas instalações. A Feira era administrada
por funcionários enviados por Luanda (o director, o secretário), mas os seus regulamentos,
quer dizer, os preços, as medidas, o exercício da justiça, etc., eram negociados entre
o Jaga e Luanda. A Feira de Kasanje representava assim um mercado sob o controlo
de dois Estados» (14). Fig. 24 — A Feira de Kasanje. Capello e Ivens, 1881, I, p. 258.
A descrição de Vellut permite compreender mais completamente a organização do
urbanismo da Feira: ela está instalada num espaço autorizado pelo poder imbangala,
mas afastada da cidade africana. Esta divisão étnica rejeita os Europeus, assim como
os Africanos aculturados, para os privar de qualquer contacto excessivo com a comunidade
africana. Uma tal situação torna mais fácil a tarefa do controlo, pois que os «estrangeiros»
— Brancos, Mestiços, Pretos calçados — estavam instalados fora do espaço da cidade
africana, de maneira a privá-los de qualquer intimidade com as instalações africanas
e, sobretudo, com as mulheres. Estas regras mostram que se considerava que a presença
destes «estrangeiros» só podia macular os espaços africanos, familiares, religiosos e
políticos.
Segundo Vellut esta organização foi mantida durante o século XVIII, mesmo tendo
sofrido com os conflitos que puseram frente a frente o aparelho administrativo colonial
e os comerciantes, tanto os grandes como os pequenos. Foi essencialmente a proliferação
destes últimos, a partir do derradeiro quarto de século, após as autoridades portuguesas

De acordo com Oliveira, Angolana, 1968, I, p. 663, esta instalação verificou-se em 1624.
Id., ibid.
Cardoso, Fêo, 1825, citado por Carvalho, 1898, p. 1 06.
Ver, a respeito destas instalações portuguesas perto das residências dos chefes africanos,
Oliveira, 1968, I, p. 269.
(14) Vellut, 1972, p. 94. Fig. 25 — O mercado africano (t'chitaca). Capello e Ivens, 1881, I, p. 168.

366 367
terem permitido o livre acesso ao mato ( 15), que introduziu de maneira progressiva as
para aí criar uma Feira, independentemente da vontade do Jaga. O seu projecto, aprovado
mudanças que impuseram outro aspecto à Feira de Kasanje (16).
pelo governador, era organizar esta nova feira em Bondo, a leste de Ambaca. Ao adoptar
A intervenção de Vellut, que parece querer pôr em pé de igualdade Portugueses e esta táctica menos conflituosa, as autoridades portuguesas pensam dispor de argumentos
Africanos no que se refere ao controlo da Feira, dá importância excessiva aos elementos que permitam liquidar a «arrogância» do poder de Kasanje.
inteiramente portugueses, para explicar as mudanças verificadas. Graças a esta maneira
Contudo, de regresso à região, o coronel acaba por se instalar em Kasanje, na Feira
de interpretar, de carácter eminentemente europeizante, Vellut vai a ponto de esquecer
onde se encontram concentrados os agentes comerciais ligados aos Brancos. Decidido
que a hegemonia política e financeira pertence inteiramente aos Africanos. Os conflitos
a recorrer à astúcia para poder fazer face ao Jaga, Honorato José da Costa gere duas
que marcam a história desta instituição verificam-se, por assim dizer, de maneira
políticas: mantém-se por isso em Kasanje, sem, no entanto, renunciar ao projecto da
contínua, reagindo os Imbangalas às tentativas tão constantes como vãs dos Portugueses
feira em Bondo, a respeito da qual não informa o Jaga.
para conseguirem assumir o controlo da instituição.
Enquanto espera poder aplicar o seu golpe, Honorato José da Costa modifica, de
Deve contudo observar-se que esta táctica portuguesa de coabitação com os maneira assaz substancial, a gestão do grupo europeu: agindo de forma diferente dos
Imbangalas, considerada perigosa, suscita algumas críticas, entre as quais a do governador outros comerciantes luso-africanos, sempre dependentes do Jaga para os seus
D. Miguel de Mello, em 1802. O gestor português estima-a responsável da animosidade abastecimentos, o coronel cria plantações [os arimos angolanos] cultivadas por escravos.
manifestada pelos Africanos, o que os levará a estabelecer relações comerciais com Contribui também para transformar a Feira numa zona de instalações permanentes,
representantes de outros Estados europeus: «que outro motivo induziu sempre o Jaga dotadas de uma população estável, recrutada essencialmente entre os quilambas ( 19) e
Cassange para nos impedir estabelecimentos em suas terras, à excepção da Feira, que
os quimbares (20). Honorato lança-se igualmente na tarefa de criar uma rede fixa de
nela temos inteiramente indefeza, senão o ciúme de que se nos fortificassemos em um correspondentes no interior (21).
dia por cautela, passados poucos de seu senhorio o poderíamos privar? Porque outro A estratégia do coronel é transparente: propõe-se instalar, defronte da cidade-
senão mais pelo que deixo referido, de que em razão das conveniências que retira de -capital do Jaga de Kasanje, não um acampamento caracterizado pelo seu carácter
nos vedar comércio directo com os Muluas?» (17).
precário e transitório, mas uma cidade comercial, onde a maioria da população viveria
Jean-Luc Vellut organiza uma cronologia analítica das relações afro-portuguesas, de maneira permanente, dispondo de agentes no interior, que seriam também fixos e
que são manifestamente tensas nesta região, assim como das diferentes intervenções permanentes. Renuncia provisoriamente ao seu projecto de Bondo e mantém-se instalado
portuguesas organizadas para reduzirem a hegemonia de Kasanje, operadas durante o no cruzamento de estradas, respeitando os costumes portugueses que instalavam junto
século XVIII e princípios do século XIX, sobretudo a partir da viagem de reconhecimento
das residências dos chefes mais importantes uma espécie de aldeia portuguesa, como
de Manuel Correia Leitão (18).
foi mais tarde, durante a primeira metade do século XIX, o caso de Amarante, junto
Estas acções, organizadas para responderem à pressão dos comerciantes portugueses
ao Bié (22).
de Luanda ou dos seus representantes instalados em Kasanje, são a causa de numerosos Mau grado a prudência manifestada por Honorato José da Costa, os conflitos com
conflitos, que opõem os Imbangalas aos Portugueses. Convencidos de que a força das o Jaga recomeçaram a partir de 1804: o coronel português tinha enviado os seus
armas acabaria por se impor ao Jaga, os Portugueses multiplicam as intervenções pombeiros, Baptista e Anastácio, para descobrirem o caminho mais directo que levava
armadas. Os resultados não podiam deixar de ser mais desapontadores. Por fim, os a Tete. Os novos confrontos convenceram-no a instalar-se em Mucari (ou Mucary) e,
Portugueses experimentam uma táctica mais flexível, que consiste em contornar o em 1809, a Feira de Kasanje é abandonada pelos Portugueses. Costa recebe, do governo
obstáculo e procurar um novo espaço para instalar a Feira. de Luanda, o título de director da «feira de Mucari e Bondo» (23).
Honorato José da Costa é, na viragem do século XVIII para o século XIX, o A acção de Honorato José da Costa é reveladora da importância da disjunção dos
homem-chave das relações com Kasanje. Comerciante e coronel de milícia em Luanda, dois sistemas, africano e europeu. Ele quis criar, sob a sua direcção, com o aval do
ficou arruinado em 1795, em consequência de um dos seus aviados ter sido roubado governador, as condições para se assegurar o controlo do comércio no interior, procurando
em Kasanje. O coronel decidiu então abandonar Luanda para se instalar em Kasanje, assim arrancá-lo, de maneira definitiva, à hegemonia imbangala.

«Chefes associados com os seus 'filhos' aos Portugueses, em troca de serviços prestados,
Leis de 1758, 1761, 1762. O impulso dado definitivamente a estas medidas situa-se no governo
recebem as terras em enfiteuse». Ver Vellut, 1972, p. 96.
de Souza Coutinho. Ver Vellut, 1972, p. 95.
Ver parte, cap. IV.
Id., ibid.
Vellut, 1972, p. 101.
Mello, 1885, pp. 557-558.
Oliveira, 1968, p. 269.
Vellut, 1972, pp. 118-121.
(23 ) Vellut, 1972, pp. 124-128.
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Contudo, Honorato José da Costa deixou-se arrastar pela sua convicção da
superioridade indiscutível dos Brancos, o que o levou a pensar o comércio em termos esperanças de fiar mais fazenda. Razão porque lhe não paga: este é o sistema geral de
exclusivamente europeus, despojados de qualquer referência religiosa. Ao privar as todo o gentio do sertão» (25).
relações comerciais de todo e qualquer suporte político e religioso africano, o coronel A partir do momento em que o comerciante se deixa arrastar pela engrenagem
português não podia deixar de fracassar. do crédito (26), coloca-se numa situação de dependência total, largamente explorada
Em 1812, as relações entre Portugueses e Imbangalas parecem ter recuperado pelos chefes africanos. Se o comerciante permite que a sua existência se esgote, perde
toda e qualquer credibilidade, sendo inteiramente abandonado. Compreende-se a
uma nova situação de equilíbrio e a Feira de Kasanje acolhe os comerciantes
importância desta armadilha, porque naturalmente o «armador», normalmente um
portugueses autorizados pelo governador a aí se instalarem, embora de maneira
comerciante europeu da costa, recusa assegurar o fluxo das mercadorias, liquidando
oficiosa. A prudência do governador é evidente, pois não dá aos comerciantes um
apoio oficial franco. não só o seu agente, mas toda e qualquer possibilidade de recuperação do que fora
já concedido a crédito. O comerciante não possui, desta maneira, uma existência
Podemos, todavia, verificar que nestes primeiros anos do século XIX, a Feira
individual como pessoa, pois só pode ser reconhecido por intermédio das mercadorias
tinha um director nomeado pelo governador de Angola, encarregado de resolver todos
que possui.
os problemas relacionados com os comerciantes. Se estes se desejassem instalar na Esta situação torna a acção dos comerciantes sem capitais próprios muito aleatória,
Feira de Kasanje, deviam apresentar ao director os documentos oficiais fornecidos tal como não podia deixar de colocar os comerciantes da costa perante problemas muito
pelas secretarias de Luanda, assim como as mercadorias que traziam consigo. O sérios, dado o volume de mercadorias e de crédito necessários para manter uma relação
director da Feira vigiaria as transacções, bem assim o comportamento dos seus contínua e eficaz com os Africanos do interior. Os conselhos dados pelos funcionários
compatriotas, para evitar as agressões, nomeadamente contra os Africanos, devendo, ou comerciantes mais conhecedores das regras do sistema nem sempre foram escutados,
além disso, protegê-los.
e naturalmente prevaleceu durante muito tempo a hegemonia africana, em detrimento
De facto, se analisarmos bem a situação, podemos concluir que a mudança não é dos comerciantes europeus ou dos seus agentes africanos, que muitas vezes desapareciam,
muito significativa: o poder do director era mais teórico do que real, pois não dispunha incapazes de prestar contas satisfatórias aos seus mandatários da costa.
de nenhuma força de coerção. Esta situação impunha um sentimento de insegurança,
generalizado em Kasanje. O Jaga podia comprometer, a qualquer momento, a paz das
relações entre Africanos e Portugueses, provocando o desequilíbrio do comércio e
destruindo as casas e as mercadorias europeias, dando assim provas da sua autoridade B. A organização da Feira: a cidade e as relações afro-portuguesas
sem partilha e forçando os Portugueses a aceitarem as suas exigências, tal como se
verificou em diferentes ocasiões (24). As dificuldades do historiador perante esta situação são agravadas pela falta de
Os Portugueses procuram superar as dificuldades impostas pelo Jaga, graças a um informação no que diz respeito às relações entre os comerciantes, estabelecidos na Feira,
melhor conhecimento das práticas rituais africanas. e a população imbangala, tanto a que habita no kilombo vizinho da Feira como nas
Um documento de 1792 procede ao inventário das razões pelas quais os Portugueses muitas aldeias da região. Será que se registam trocas fora do sistema inspeccionado pelo
devem conhecer «os usos e ritos gentílicos do Jaga para o poder persuadir...» a adoptar Jaga? Será que o controlo exercido pelo Jaga sobre os seus súbditos está em via de
as medidas destinadas a servirem os objectivos portugueses. Todavia, o documento não enfraquecer em consequência da «liberdade» comercial concedida aos pequenos
pode eliminar a sua ambiguidade interna, na medida em que põe em evidência a comerciantes brancos ou mulatos que podem de ora em diante levar a cabo os seus
hegemonia dos Imbangalas, através do próprio sistema das trocas: «está visto e conhecido, negócios fora da intervenção e da observação do governo de Luanda, tal como fora do
que a grande soma de fazendas que os Feirantes fiaram ao Gentio de Cassange se não controlo do próprio Jaga?
pode extrair deles (...) os pagamentos». A única maneira de b conseguir é fazer saber Por volta de 1828, Douville escreve que «quando os mulatos compram a qualquer
a este «gentio» que os comerciantes seus credores continuam a receber mercadorias, pessoa que não seja o Iaga, devem pagar-lhe uma taxa» (27). A situação mostra desta
«porque logo que o dito gentio vier no conhecimento que o seu feirante credor não tem
fazendas, nem lhe paga o que lhe deve dos banzos [grupos de mercadorias] que lhe fiou,
nem mais lhe aparece, porque o julga abandonado do seu armador, e por isto perde as
A. A., I, 1933-1936.
Voltaremos mais tarde a considerar esta questão deveras importante. O crédito é sobretudo
interpretado pelos Africanos como sendo uma «dívida do Estado» para com o comerciante e, por isso,
(24) Ver Palhares, 1978, I, p. 42, e II pp. 77-78. considerado como uma «honra», quer dizer, como «sagrado». Carvalho, 1898, p. 702.
(27) Douville, 1832, II, p. 353.
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maneira o carácter deveras apertado da fiscalização exercida pelo Jaga, o que parece
querer dizer que o poder imbangala dispunha de agentes que tomavam conhecimento do Jaga respeitam um alinhamento geométrico, ao passo que o bairro dos nobres está
de todas as operações comerciais, de maneira a poder cobrar os direitos devidos ao próximo do palácio.
poder político. De resto, no registo comercial, o Jaga aparece como o metacomprador Os comerciantes portugueses estão concentrados noutro lugar, a chamada Feira de
e, em certo sentido, como o metavendedor. Kasanje ou mercado dos escravos. Trata-se de um espaço circular, assaz vasto, com,
Ao criar a zona dos entrepostos permanentes, Honorato José da Costa pretendia pelo menos, uma légua, onde negoceiam directamente com o Jaga que possui, em
assegurar aos comerciantes portugueses uma certa estabilidade, destinada a permitir permanência, mais de mil escravos na sua banza. Há nesta feira mil e quinhentas
boas condições de conservação das mercadorias — abrigadas e defendidas —, assim habitações, e cada uma delas abriga em média quatro pessoas, incluindo as crianças
como trocas menos aleatórias que aquelas que sempre tinham caracterizado o comércio e os escravos. A população desta fracção da cidade rondaria assim as seis mil pessoas.
Uma indicação complementar permite-nos saber que o número de escravos representaria
euro-africano, aparentemente durante dezenas de anos. Mas esta operação portuguesa
um quarto — 1500 pessoas — da população (30).
não conseguiu pôr termo à intervenção autoritária do Jaga e dos seus agentes. Não foi
Esta descrição não possui o menor rigor e aí encontramos o cunho das fantasias
por isso possível eliminar nenhuma das razões de conflito, e o futuro não podia senão
de Douville, entre as quais avulta a ideia singular de instalar o palácio do rei numa ilha
confirmar esta falta de equilíbrio das forças em presença.
situada no rio. Ora, de Correia Leitão a Livingstone, todos os viajantes salientam o facto
1. Uma falsa cidade branca de existir uma separação nítida entre o rio e as instalações dos homens, por razões
associadas ao carácter perigoso — na óptica africana — dos animais que aí habitam.
Isto não deve impedir-nos de reconhecer o sentido estrutural das informações
São raras as descrições da Feira de Kasanje, anteriores a 1850. Tal é o resultado ouvidas e transmitidas por Douville; elas ajudam-nos a compreender o mecanismo
do recrutamento dos comerciantes, a maior parte dos quais ou é analfabeta ou pertence africano deste urbanismo que se obriga simultaneamente a integrar os Europeus e a
aos iletrados: sabem ler e escrever para assegurar a escrituração comercial mínima, mantê-los, contudo, a distância. No que diz respeito a esta forma de organização, as
mas são incapazes de se lançar numa literatura minimamente descritiva. Só as comunicações de Douville não divergem do que está registado por outros viajantes. É
obrigações administrativas forçam alguns funcionários a fornecerem elementos que de resto o que acontece sempre que o viajante francês não se deixa arrastar pela
nos permitem proceder à reconstituição — mesmo que tímida — das relações necessidade de dar à Sociedade de Geografia de Paris a alimentação fantasista que esta
existentes. A descrição mais significativa provém de Jean-Baptiste Douville, datada de espera de um viajante de tão grande reputação. Quando se limita a registar o que lhe
1828, mesmo que saibamos hoje, após a publicação das informações existentes nos foi contado pelos Portugueses ou pelos Africanos, Douville consegue tornar-se, momen-
arquivos angolanos por Joseph C. Miller, que o explorador francês nunca esteve em taneamente, coerente.
Kasanje ( 28). Todavia, tendo permanecido durante muitos meses em Luanda e, Rodrigues Neves chegou à Feira de Kasange a 6 de Dezembro de 1850, à frente
sobretudo, em Pungo Andongo, o explorador pôde obter referências dos comerciantes das forças luso-africanas, encarregadas de castigar o Jaga, devido à série de «agressões»
e dos viajantes que asseguravam as ligações comerciais com uma cidade que vendia e de insolências praticadas contra os Portugueses ( 31 ). O objectivo dos Portugueses visa
escravos em grande quantidade. a submissão do Jaga, cuja autoridade e «prepotência» eram consideradas prejudiciais
Na sua Voyage au Congo et dans l'intérieur de l'Afrique équinoxiale, Douville ao desenvolvimento do comércio.
mostra a existência de, pelo menos, dois sectores urbanos em Kasanje, que asseguram O subchefe da expedição militar portuguesa conhece a Feira tal como ela é descrita
a separação entre o kilombo do Jaga e as instalações dos comerciantes brancos ou e julgada na tradição oral, e a sua narração não esconde a surpresa experimentada.
mulatos. Douville confirma o que se sabia já: a determinação imbangala de impedir a «Admirou-me bastante a extensão da feira de Cassange, ao passo que comovia o estado
confusão entre os dois grupos. desprezível em que se encontrou: abandonada no princípio da estação chuvosa, o capim
A cidade está cercada por uma paliçada construída com'estacas muito cerradas, cresceu de tal forma, que escondia metade das casas: as ruas sofrivelmente alinhadas,
criando um espaço fechado, fácil de defender. Está dividida em bairros, havendo o do orladas de bananeiras, e outros arvoredos, tudo se confundia: aqui uma porta arrombada,
soberano, que é designado por «banza ou palácio, defendido por uma forte paliçada e ali todas abertas, servindo as casas de asilo aos bichos e por toda a parte devastação,
instalado numa pequena ilha formada por um braço do rio» ( 29). É neste espaço fechado é o quadro que apresentava a Feira de Cassange...» (32).
que se encontram os armazéns do governo, assim como o arsenal. As casas das mulheres

Ver l. a parte, cap. I. Esta descrição da organização da cidade provém de Douville, o. c., pp. 353-361.
Douville, 1832, II, pp. 353-354. Ver Neves, 1854, pp. 5-11, assim como Carvalho, 1898, p. 118.
(32) Neves, 1854, pp. 35-36.
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A força de 2000 homens, que acompanhava Rodrigues Neves, pode instalar-se nas portuguesa: as culturas importadas pelos Europeus são recentes, o que contrasta com
casas vazias, não sendo esta força suficiente para «ocupar todas as casas da Feira. a «antiguidade das bananeiras e das goiabeiras que devem, calculando pelo número e
Poderá talvez dizer-se que, afora Luanda, não haveria na Província [de Angola] ponto pelo volume, datar da época em que a região pertencia aos indígenas» (35).
nenhum mais povoado, do que era a feira de Cassange» (33).
Dispomos assim de uma descrição da Feira que, apesar do estado de ruína em que 2. A separação brancos/pretos
se encontra, nos permite dar conta das coordenadas de um tão importante nó populacional,
associado ao comércio, mesmo que esta descrição nos não forneça nenhuma informação A descrição do missionário escocês salienta o regresso dos comerciantes
capaz de nos autorizar a descrever as maneiras de gerir este espaço por parte das portugueses à Feira de Kasanje, de que são os únicos ocupantes. A separação brancos/
autoridades africanas. Também não dispomos de indicações certas a respeito da /pretos encontra aqui a sua plena confirmação, o poder africano recusando deixar-
demografia; podemos, contudo, aperceber-nos de que a cidade abrigava, de maneira -se dissolver numa intimidade mal vivida com os Europeus ou com os seus agentes.
geral, mais de duas mil pessoas, embora não possamos analisar mais pormenorizadamente De resto, o carácter falsamente mestiço da cidade só é garantido pelo inventário das
a situação: quantos imbangalas, quantos europeus, quantos mulatos, quantos africanos plantas, pois que os comerciantes portugueses cultivavam sobretudo, como sempre
não-imbangalas, quantos homens, quantas mulheres, quantos livres, quantos escravos? fizeram, os legumes correntes na Europa peninsular. A natureza é assim violentada
Estava-se então na fronteira de um longo período de mudança e de enfraquecimento para dar lugar às formas e aos gostos europeus, que não rejeitam as plantas de origem
do poder de Kasanje. O facto de os Portugueses poderem promover — pela primeira americana. A simples leitura das formas — casas e hortas — confirma o descen-
vez na história — a fuga do Jaga, deve ser considerado a marca de uma modificação tramento da organização urbana que parece rejeitar os Africanos, em proveito dos
profunda nas relações com as forças portuguesas, o que não pode deixar de provocar comerciantes europeus e dos seus agentes, mulatos ou africanos aculturados, na quase
um amolecimento do controlo comercial, exercido pelas autoridades de Kasanje. A totalidade dos casos.
multiplicação das referências aos «aspectos portugueses» da Feira torna-se então Viajante sempre atento aos particularismos culturais, Livingstone, pastor protestante,
obrigatória, já que o militar português organiza a descrição de maneira a reforçar os não podia deixar de descrever as solenidades do sábado de Aleluia, durante o qual os
direitos portugueses sobre este espaço. Portugueses procedem, de maneira lúdica, ao «julgamento de Judas Iscariote», cerimónia
Quatro anos mais tarde, em 1854, dispomos de mais uma descrição, fornecida por ritual em muitas regiões portuguesas, sobretudo no Norte. A cidade comercial de
Kasanje não parece suficientemente atraente para o clero, pois não se encontra aí um
Livingstone, que foi, de resto, acolhido na cidade por Rodrigues Neves, entretanto
único padre, se bem que se trate de uma forte concentração de «católicos». As festas
nomeado director da instalação. A sua descrição confirma a extensão e a importância
retêm simplesmente o aspecto lúdico, com a participação das «pessoas de cor», de que
demográfica da cidade, mas consagra a sua atenção quase exclusivamente aos Europeus
não é fácil definir o estatuto: trata-se de mulatos? De habitantes imbangalas que se
e aos seus agentes.
deixam arrastar pela festa? De Africanos já aculturados? Seja como for, o fogo lançado
Livingstone não dá conta de mais de trinta a quarenta casas: cada comerciante ao manequim é acompanhado pelo mesmo tipo de excessos linguísticos que caracterizam
mandara construir a sua, com ramos de árvore para formarem as paredes sobre as quais a cerimónia portuguesa. Os comerciantes são assaltados pelos «indígenas» que lhes
se aplicava a taipa. O missionário procede também ao inventário das plantações, pois pedem presentes, os quais podem ser recusados, o que os coloca fora das relações
havia mandioca e milho nos terrenos em frente das habitações, sendo a horta, instalada normais — e algo ritualizadas estabelecidas de longa data entre as duas comunidades.
nas traseiras, caracterizada pelo facto de aí se encontrarem «todos os legumes que se Livingstone acrescenta a descrição das cerimónias militares, que incluem o içar da
cultivam na Europa». Se acrescentarmos as plantas americanas, estamos em condições bandeira portuguesa, salvas de artilharia de Kasanje e um festim oferecido pelo capitão
de definir estas práticas agrícolas muito ecuménicas — já que neste caso se verifica, Neves (36).
outrossim, uma certa forma de mestiçagem —, que permitem ver e provar, igualmente,
as mudanças introduzidas pela permanência dos Europeus, que ffiodifica tanto as culturas
como os gostos (34). Mas Livingstone salienta o carácter recente da instalação permanente Id., ibid.
Id., ibid., p. 412. «Celebra-se hoje o aniversário da ressurreição do Senhor; não há padre em
Cassanje e trata-se mais de um regozijo público do que de uma cerimónia religiosa. As pessoas de cor
vestiram um manequim, que deve representar Judas Iscariote; montaram-no em cima de um boi e
Id., ibid. passeiam-no pela cidade; é ver aquele que multiplicará as maldições e os insultos ao miserável judeu
Livingstone, 1859, pp. 410-411, escreve que nestas hortas «se cultivam batatas, feijões, couves, que o manequim tem a pretensão de representar. Todos os indígenas, vestidos com tecidos de cores
cebolas, tomates (...)» e acrescenta que «as laranjeiras, os ananases, as figueiras e os abacateiros só berrantes, vão desejar boa festa aos principais comerciantes, de quem esperam, em troca, receber um
começaram a ser plantados há pouco tempo. Os trinta ou quarenta negociantes, que moram em Cassanje, presente. Este consiste na maior parte do tempo em indiana que o destinatário nem sempre aceita, mas
fazem parte da milícia local de que são oficiais; alguns enriqueceram confiando aos pombeiros uma certa cuja recusa não fere o doador». Trata-se de uma cerimónia que prova a ampla aculturação de fragmentos
quantidade de mercadorias que estes vão levar, longe no interior do continente». das populações africanas da região, que, todavia, não estavam ainda profundamente catequizadas.

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Os comerciantes europeus e os seus associados e dependentes são forçados a
europeus, cujo pagamento assegura, às vezes diferido durante dois anos, ou até mais.
instalar-se na Feira: o espaço exterior pertence aos Africanos. Os Imbangalas espalham-
O Jaga recuperava, junto das entidades que estavam sob o seu domínio, as mercadorias
-se em volta da Feira em número considerável: «o vale de Cassange está coberto de
necessárias para assegurarem a retribuição dos comerciantes portugueses (40).
aldeias; mas elas não têm lugar permanente, e diz-se que elas eram muito mais numerosas
No século XIX, o poder do Jaga sobre este comércio parece exercer-se por meio
antes da expedição que os Portugueses organizaram contra os Bangala em 1850» (37).
da fiscalização do território — com menos incidência sobre as mercadorias — e da
A cidade-feira parece, pois, uma espécie de ilha europeia, inteiramente cercada por
circulação dos homens e das mercadorias: a Feira vê assim reforçado o seu carácter
Africanos. Aparentemente, os Imbangalas não são autorizados a instalar-se no perímetro de ilhéu português, autorizado pelo Jaga e pelo seu Conselho, em território imbangala,
urbano pelas entidades locais. Por outro lado, se uma parte da população é estável, a
assaz próximo da capital.
maioria é constituída por itinerantes, que só aí ficam durante o tempo necessário à Em 1851, um conjunto de documentos elaborados após a guerra de Kasanje (41)
organização dos seus trajectos para o mato. Em consequência dos conflitos, tais como permite acompanhar as relações dos Portugueses com o Jaga. O artigo 5 do Regimento
o de 1850, o comércio pára, mas durante um tempo muito limitado. Já em 1851, os de Talla-Mugongo ( 42), que define as ligações entre as duas partes, determina que o
«Cassanges» voltam a aparecer na Feira, trazendo uma pequena quantidade de marfim (38); «Jaga de Cassange e o conjunto dos sobas devem respeitar, como súbditos da Coroa
em 1853, a «Feira se acha em completo sossego, abundando o marfim, cera e mais portuguesa, todas as ordens que lhes forem transmitidas pelo chefe do Distrito de Talla-
géneros do sertão» (89).
-Mugongo», a quem está então confiado o controlo da Feira de Kasanje. Os artigos
Serão os «Cassanges», de que fala este documento, negociantes africanos ainda sob seguintes deixam aparecer em filigrana a hegemonia do Jaga, como se regista de maneira
controlo do Jaga, ou estamos perante comerciantes que conseguiram, graças à conjectura mais insistente no artigo 11: «quando qualquer feirante tenha devedores Bangala que
provocada pela crise afro-portuguesa, libertar-se das obrigações e das corveias que lhes não queiram satisfazer seus pagamentos (...) deverá apresentar ao comandante da
eram impostas pelo chefe imbangala? As fontes são de um laconismo perigoso, no que divisão uma lista nominal dos devedores, seus sítios, lembas e quantidades de banzos,
se refere a este ponto, não nos permitindo avançar respostas precisas no que diz respeito declarando [também] nesta lista, quais os géneros que devia receber em troca; e ficando
à maneira como as populações imbangalas podem conseguir obter as mercadorias deste modo proibidas as amarrações dos Bangalas pelos próprios negociantes». Todavia,
europeias, o que implicava não só o direito de frequentar a Feira, mas também o de os comerciantes devem, quando remetem mercadorias para qualquer lugar, dar
aí trazer livremente os produtos que podiam ser comercializados. conhecimento da operação ao Jaga, para que este envie o seu Impunga para assistir à
entrega das mercadorias, tornando-se assim responsável no caso em que se verificasse
3. O controlo do Jaga atraso no pagamento acordado (43).
O artigo 13 procura, do mesmo modo, retirar ao Jaga o poder de proceder à
Quais são os mecanismos a que recorre o Jaga para assegurar o seu poder sobre uma cobrança de impostos ou de multas por «crimes» assim considerados apenas pelos
Feira, cujos ocupantes desejam apenas conseguir dispor da liberdade total para se Africanos (art.° 17), e a obrigá-lo a pagar aos Portugueses um tributo anual de
movimentar? A disjunção entre as duas forças, se é conhecida já desde o século XVII, 100 escravos ou valor equivalente em cera e em marfim.
continua sujeita às variações conjecturais: os Europeus estão em via de pôr constantemente A autoridade portuguesa deixa-se embriagar pelos regulamentos, quando o poder
em causa as formas hegemónicas que os Africanos pretendem conservar intactas e real continua, de facto, a pertencer ao Jaga, que recusa partilhá-lo. Isto, contudo, não
funcionais. deve levar-nos a desprezar, de maneira excessiva, a insistência com que as autoridades
É, por assim dizer, normal que as estruturas do poder imbangala sejam seriamente portuguesas repetem, de documento em documento, este projecto. De resto, o mesmo
abaladas, o que não pode deixar de provocar efeitos nas formas de controlo utilizadas Regulamento ordena que os comerciantes sejam também vigiados, para os impedir de
pela autoridade africana na Feira. praticar actos comerciais «clandestinamente com os pretos» ( 44). Esta cláusula salienta
As fontes do século XVIII permitem salientar a existêpcia de uma interferência a importância dos conflitos potenciais entre as autoridades que pretendem impor regras
directa do Jaga na organização da Feira. É ele que controla os preços, tal como é ele
que assegura a comercialização ou a redistribuição das mercadorias europeias. No
primeiro caso, retém consigo a totalidade das mercadorias trazidas pelos comerciantes Vellut, 1975, p. 80.
Trata-se das guerras entre os Portugueses e o Jaga, que se concluíram com uma aparente vitória
portuguesa; os Portugueses impuseram um «Jaga» que lhes garantisse fidelidade e que devia substituir
o chefe derrotado. Ver 5.* parte, cap. II.
Id., ibid, p. 414. No que diz respeito à criação dos presídios, ver 1.' parte, cap. IV; e à do distrito de Talla-
Carvalho, 1898, p. 129. -Mugongo, ver Carvalho, 1898, p. 132.
(39) Id., ibid., p. 171. Carvalho, 1898, p. 146.
(44) Id., ibid., p. 150.
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Amieir
e regulamentos e os comerciantes que procuram obter os máximos lucros possíveis, não
hesitando, por isso, em furtar-se à vigilância exercida pelo director da Feira ou do A instalação definitiva em Malanje — onde existia uma feira portuguesa a partir
distrito. de 1852— realizou-se finalmente em 1862, caracterizada pela deslocação do comércio
Podemos verificar, feitas as contas, que se regista uma certa ansiedade por parte de Kasanje para este estabelecimento de origem portuguesa (46). Esta transferência
dos Portugueses, sempre preocupados com a «instabilidade africana», e desejando, apenas foi temporária: mesmo que a hegemonia comercial imbangala pareça fortemente
acima de tudo, impor regras estáveis, que permitam organizar a previsão. Os comerciantes atenuada, os Imbangalas acabarão por conseguir recuperar, a partir dos anos finais de
da costa dependem dos mercados europeus ou americanos, o que os clientes africanos 1860, o controlo do seu território, assim como do grande número de estradas comerciais.
não podem integrar nos seus cálculos. A perigosa eficácia desta vigilância pode ser provada por meio da referência às
Enquanto se não banaliza o conhecimento geográfico, os Portugueses defrontam- dificuldades experimentadas, nos anos 1880, pelos viajantes europeus: ninguém consegue
-se com dificuldades evidentes para levar os Africanos a aceitarem os seus princípios atravessar o Kwangu, nem Capello nem os grandes comerciantes que eram então os
comerciais. Falta-nos uma monografia consagrada à análise da maneira como os clientes irmãos Machado, Custódio e Saturnino (47). Deve, do mesmo modo, reter-se que nesta
africanos «pensam» as mercadorias europeias: não só as matérias e as funções, mas época a oposição dos Imbangalas estava já um pouco esvaziada da sua força primeira,
também os lugares e as condições de fabrico. É nesta falta de informação que se inserem pois que os comerciantes tinham começado a optar por outras vias, que os Imbangalas
as derrapagens contínuas, criadoras de conflitos lisíveis em termos de mercadorias, mas não podiam controlar, para ir comerciar nas regiões orientais.
portadores de outros valores, provavelmente mais importantes.
Os Portugueses gostariam de suprimir também duas prerrogativas dos Africanos:
a primeira estabelece uma relação com as forças militares. As autoridades portuguesas II. Redes comerciais, circulação e controlo das mercadorias
pretendiam eliminar qualquer função de comando exercida pelo Jaga. Não conseguirão
chegar a este resultado durante o século XIX. Os Africanos produzem para se alimentar, como todos os grupos sociais, mas
A segunda está associada às formas religiosas, que pesam de maneira muito sensível produzem também para alimentar as relações com os espíritos. A produção deve por
nas práticas de comércio, como havemos de verificar quando analisarmos as relações isso assegurar a existência de um excedente que, ao mesmo tempo que permite os actos
comerciais com outros grupos, como os Quiocos. religiosos, serve igualmente para organizar as trocas a grande distância. As sociedades
Se bem que cristãos — ou melhor dizendo, católicos — os Portugueses foram constroem-se graças às relações com os Outros; elas esperam as mercadorias vindas de
incapazes de proceder ao desmantelamento das estruturas religiosas africanas. Estas alhures, para satisfazer as suas «necessidades», tanto as simbólicas como as pragmáticas.
autorizam ou proíbem as operações comerciais, e criam uma rede de controlo que Os actores — produtores, intermediários, consumidores, chefes políticos ou religiosos
multiplica as multas que os Europeus devem pagar, sendo estes as vítimas constantes — são exclusivamente africanos; os produtos, as maneiras de os apreciar e de os
do carácter frouxo das regras que não conseguem compreender inteiramente nem respeitar. consumir ou utilizar, respondem unicamente às solicitações profundas da sociedade.
É que o Jaga também intervém, servindo-se de ataques e destruições, que obrigam Em torno de Kasanje, que mantém, durante a primeira metade do século XIX, o
os comerciantes a abandonarem o território imbangala, deixando atrás de si não só as seu carácter de barreira, à qual os Portugueses só muito dificilmente conseguem chegar,
casas, mas também as mercadorias europeias, destinadas a alimentar o comércio, tanto organizou-se ao longo dos séculos uma imensa rede africana que assegurava, permitia
na Feira como no mato.
ou exigia a circulação dos homens e das suas mercadorias. Se este fluxo se dirige para
Esta situação registou-se em várias ocasiões, nos princípios do século XIX, depois
em 1850, antes de voltar a repetir-se nos anos 1860. leste, nem por isso deixa de estar também presente a oeste, onde fica instalado o reino
de Kasanje que, como vimos, constitui o principal centro comercial ocidental, próximo
É de resto esta situação, constantemente e duramente conflitual, que força os e separado dos Europeus.
Portugueses, sob a pressão de Honorato José da Costa, a compreenderem que a única
A vontade política de Kasanje impede os Portugueses de se estabelecerem no
maneira de sair da armadilha da africanização das relações humanas e comerciais reside
coração do sistema africano. O paradoxo reside no facto de os Europeus não poderem
na criação de uma feira, fora das fronteiras de Kasanje ou mesmo francamente oposta
ser afastados deste sistema, cuja sedimentação principia no século XVII. A periodização
a Kasanje. Depois de ter procurado instalar-se em Bondo e em Mucary, os Portugueses
deste comércio a longa distância conhece três estratos: aquele em que os Africanos
acabaram por se decidir por Malanje, por ser «o modo de atrair ali um núcleo de
organizam sós e para eles mesmos o plano de trocas; aquele em que os Africanos são
negociantes europeus que, com o tempo, fundariam uma povoação» (45).
obrigados a aceitar as intervenções cada vez mais insistentes dos Europeus; e, por fim,

(45) Foi criada em 1857; ver Carvalho, o. c., p. 172. Id., 1890, 1, p. 269.
Id., ibid., pp. 82 e 89.
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aquele em que os Europeus «expulsam» os Africanos do lugar que tinham ocupado no
seu próprio território durante séculos. Em muitos casos, os portos não eram de maneira alguma os lugares onde se organizavam
as caravanas comerciais, pois, estas funções eram frequentemente assumidas por cidades
Só pretendemos ocupar-nos das duas primeiras fases e mais insistentemente da
do interior, tais como Mbanza Kongo, Kasanje, Bailundo, Bié e Caconda. Os agentes
segunda, durante a qual o eixo imbangala-quioco foi o mais importante na definição dos
deste tipo de comércio são os comerciantes europeus, às vezes reis e chefes africanos,
valores e dos projectos africanos. É certo que os Quiocos levaram muito tempo a
comerciantes africanos que conseguem entender-se entre si para conseguir reunir o
emergir na história desta região, mas ninguém os pode eliminar: antes mesmo de serem
«capital» necessário para financiar estas actividades (49).
nomeados, são já interlocutores constantes, nas dobras do poder do Mwatyanvua.
Estes elementos que acumulámos permitem-nos afirmar que a hipótese de Vansina
Apesar disso, o reino de Kasanje constitui o eixo principal desta leitura histórica das
relações comerciais. arrasta consigo, contrariando as suas intenções, a redução da importância das formas
comerciais africanas que, feitas as contas, deviam ser todas incluídas no primeiro tipo,
mantendo-se encerradas num espaço francamente reduzido e, por isso mesmo, incapaz
A. A visão redutora do comércio a longa distância
de suscitar a criação de produtos complexos, indispensáveis à organização das sociedades
africanas. Ora, tudo prova que os Africanos organizaram redes de comércio a longa
Há já alguns anos, Jan Vansina fez uma proposta teórica, destinada a organizar os
distância, muito antes do aparecimento dos Europeus na costa ocidental. Podemos até
diferentes sistemas comerciais desta região ( 48). Arrastado pela lição estruturalista que
avançar a hipótese mais decisiva: foi o comércio a longa distância, constituído pelos
só podia comprometer a história, Vansina salienta que a «estrutura do comércio indígena
Africanos, que criou as condições, técnicas e ideológicas, que permitiram a integração
na África Central» impõe a distinção de três tipos de comércio. O primeiro manter-se-
a generalização do comércio proposto pelos Europeus.
-ia fiel ao quadro local, entre aldeias, articulado em torno de uma complementaridade
O mal-estar provocado pela reflexão de Jan Vansina provém do facto de parecer
que assenta nos bens ou nas competências profissionais, como as dos ferreiros e as dos
pôr ele em dúvida a possibilidade de um comércio a longa distância apenas África-
carpinteiros. Tal comércio tinha como base os mercados locais e recorria a certos tipos
de sinais monetários. -África. A sua ideia é que o comércio a longa distância só pode organizar-se graças
a uma espécie de vaivém de carácter muito limitado: da costa, onde se instalaram os
Vansina acrescenta que este sistema permanece vivo nos nossos dias, porque as
Europeus, para o interior, para depois regressar à costa, e trazer os bens trocados, seja
necessidades continuam as mesmas, sendo a sua organização simples e eficaz.
na Europa seja na América. A chave deste tipo de comércio, na visão teórica de Vansina,
O segundo tipo de comércio funciona a grande distância entre populações
culturalmente diferentes, dispondo de um single state, ou então entre populações vizinhas. residiria inteiramente nas instalações portuárias da costa, onde o comércio de exportação
podia assegurar a internacionalização dos produtos africanos.
Estes mercados obedecem a um ritmo particular, realizando-se todos os quatro ou oito
O segundo ponto fraco da demonstração de Vansina reside no facto de ele associar
dias. Os bens trocados associam as produções locais aos produtos provenientes de
o comércio a longa distância, que seria também o único internacional, aos quilómetros
mercados especializados no comércio a longa distância, tais como os bens europeus, o
percorridos. Adriano Parreira avançou uma proposta que parece mais flexível: seria
sal ou o cobre. Esta actividade comercial recorre a vários tipos de sinais monetários.
necessário considerar o tempo exigido para levar a cabo estas operações, e não já a
O comércio a longa distância constitui o terceiro tipo, e era desconhecido na África
distância ( 50). A observação é subtil, mas pode recear-se que complique ainda mais a
central, insiste Vansina, antes da chegada dos Europeus no século XV. Apresentava
situação, dado que o tempo africano não parece responder a nenhum critério de tipo
características particulares: «não estava ele limitado à passagem de mercado em mercado
ocidental e, por isso, passível de contabilização. Isso quer dizer que nos será sempre
de mercadorias provenientes de lugares distantes», implicando um comércio directo a
impossível aplicar aos diferentes «tempos africanos» a demonstração de Max Weber,
«longa distância», da costa para o interior e inversamente. Ele permitia a troca de
para quem a racionalização do tempo constitui um marco-chave na organização da ética
produtos manufacturados europeus, entre os quais tecidos, cauris, missangas, pérolas
protestante aplicada ao espírito do capitalismo. A transformação do tempo em dinheiro,
de vidro, armas de fogo, pólvora, vinho, aguardente, tabaco e, em alguns casos, objectos
como tão claramente afirmou Benjamin Franklin, não participa na elaboração teórica
de ferro e de cobre, em troca de escravos, aos quais vêm somar-se, nos finais do século
prática do tempo africano (51).
XVIII, a cera e o marfim, e nos finais do século XIX, a borracha.
Face a esta maneira de considerar o tempo, parece também difícil analisar o
Este comércio dependia dos portos costeiros, onde os produtos africanos eram
comércio a longa distância, levando apenas em conta o critério do tempo.
embarcados, sendo descarregados, em perfeita simetria invertida, os produtos europeus.

Id., ibid., pp. 375-377.


(48) Vansina, 1962. Parreira, 1989, pp. 75-77.
(51 ) Weber, 1964.
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Pensamos ser necessário associar estes dois elementos — a distância e o tempo —,
dado que a maneira como as caravanas organizam os percursos pode levá-las a percorrer Esta «branquização» do comércio em África é tanto mais importante quanto deixa
distâncias que a lógica ocidental considera excessivas, o que corresponde, sempre nesta aparecer um velho fantasma ideológico, organizado em torno de duas ideias: tudo aquilo
perspectiva, a uma pura perda de tempo. Podemos até acrescentar que a lógica comercial que possui alguma importância em África foi produzido por populações brancas ou
dos Africanos raramente faz do tempo o juiz dos projectos e das actividades. Por todas brancóides, servindo os mitos camfticos de suporte a esta ideologia; por isso, a salvação
estas razões, qualquer análise do comércio a longa distância depende de equações em que para a África só é possível procedendo à sua «branquização». O passado está destinado
a distância se encontre constantemente ligada ao tempo. a hipotecar o futuro!
Jean-Luc Vellut utiliza, de maneira evidente, a proposta teórica de Jan Vansina. Nesta perspectiva, a função histórica de Kasanje é assaz simples: era necessário
Baseando-se nas informações de Correia Leitão, afirma que no século XVIII «o comércio um grupo, uma cidade, um Estado, para desempenhar o papel de centro comercial
intermediário entre os Portugueses, instalados na costa, e os Africanos, enterrados no
a longa distância (...) é controlado por três grupos de monopólios ou de economias
mato, longe de qualquer relação útil com o mar. Enquanto as estruturas africanas se
intermediárias [économies-relais]: a norte, os monopólios dos grupos Kongo que ligam
apoiam nos caminhos terrestres, os Europeus instalam-se à beira-mar: o eixo do mundo
as costas frequentadas por Franceses, Ingleses (...) aos povos Yaka e a outros grupos
está condenado a deslocar-se para que as estradas comerciais possam integrar os
influenciados pelos Allunda. No centro, o grupo Mbundi, sendo Cassange a etapa
Africanos. Kasanje deve acabar por ouvir o mar, de tal maneira que a actividade dos
principal do comércio entre os Portugueses, baseados em Ambaca, e os grupos situados
Africanos possa assegurar a circulação dos navios, com os porões cheios de mercadorias
para lá do Cuango; enfim, a sul, muito provavelmente o grupo Songo, menos importante, africanas (55).
mais isolado, e em relação com o presídio de Pedras [Pungo Andongoi» (52). Partindo de Luanda, a estrada comercial seguia na direcção de Mbaka, prosseguindo
Se é verdade que este autor não se esquece de levar em linha de conta «a existência depois até Kasanje, após 15 dias de marcha, «regulando as marchas em cada dia por
de trocas a longa distância (...) já antigas em África» (53), põe em primeiro plano, como quatro léguas» (56). A este ritmo, o trajecto Luanda-Kasanje demorava o mínimo de
factor principal do desenvolvimento do comércio a longa distância na África central, 30 dias de marcha (4 X 5 = 20 X 30 = 600 km), isto sem levar em consideração os
a chegada dos Europeus à costa africana. O comércio atlântico teria sido assim criado, tempos de espera para poder atravessar os rios e os numerosos incidentes de percurso,
no final do século XV, pelos Europeus. A participação dos Africanos neste comércio provocados em geral pelos contínuos afrontamentos com as populações locais (57).
é conhecida: continua mergulhada em amargura. Ora, se no século XIX, Kasanje constituía, em companhia da região do Bié, um
Vellut não contraria, em momento algum, as propostas teóricas de Vansina, antes dos grandes nós comerciais onde os Portugueses mantinham uma presença, torna-se
as reforça. Mas esquece-se da maneira mais surpreendente da importância do comércio indispensável uma correcção do eixo da análise, para renunciar à visão europocêntrica
África-África, que não inclui as costas e os grandes caminhos marítimos. Para Vansina, e alargar o espaço da reflexão.
assim como para Vellut, o comércio africano a longa distância só pode ser criado e Sistematizemos o problema: Kasanje era, antes da vinda dos Europeus, o centro
desenvolvido na medida em que os Europeus obrigam à deslocação das velhas estradas de chegada, de formação e de passagem de um número importante de estradas comerciais
comerciais africanas para os portos costeiros. Nesta óptica, o comércio a longa distância africanas que asseguravam, no mato, a distribuição das mercadorias regionais. Esta
é incompreensível sem o mar: a lógica marítima da operação é quase surpreendente, função foi reforçada pela intervenção dos Portugueses, o que permitiu que as mercadorias
porque se fosse aplicada tal como é enunciada, muitos percursos comerciais europeus, africanas fossem acompanhadas por aquelas que os Europeus iam injectando nos circuitos
historicamente provados, estariam condenados a desaparecer. comerciais africanos.
Nestas propostas teóricas, as técnicas e as escolhas comerciais dos Africanos «Ligada a inúmeros caminhos com os sertões distantes, Cassange recebe o marfim da
aparecem como uma simples sequela da presença europeia, como se não tivessem Lunda, do Peinde e de Luba, a borracha do Quioco, colhida nas florestas Itengo e Cabo
existido antes da chegada dos Brancos, e como se nunca tivessem desempenhado um Luma nas margens do Tchicapa e Luajimo, sob o paralelo 10.0, e a cera do sudoeste do
papel fundamental nas complementaridades regionais africana. Como se os Africanos Songo e Ganguelas, que os Bengala exclusivamente procuram» (58). Esta afirmação de
só tivessem descoberto necessidades e desejos após a chegada dos Europeus (54). Capello e Ivens está ligada a uma descrição rápida do comércio interior durante o último
quarto do século XIX, dando apenas conta das mercadorias que interessam ao comércio
europeu. Mas ela mostra também o grau de desenvolvimento de uma rede comercial interna
muito extensa, cuja consolidação é o resultado de um funcionamento secular.
Vellut, 1970, p. 99. Deve todavia acrescentar-se que o mesmo Vellut renuncia, em 1989, a
este modelo explicativo.
Id., ibid.
(54) Estas maneiras de ver encontraram algum eco nos trabalhos que Maria Emília Madeira Santos Ver Devisse, 1989.
consagrou ao comércio em Angola, utilizando os manuscritos de Silva Porto. Nas suas análises, o Carvalho, 1898, p. 187.
comércio a longa distância é essencialmente europeu. Ver Santos, 1981. Id., ibid., p. 186 (por exemplo).
Capello e Ivens, 1881, I, p. 292.
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Com efeito, em meados do século XVIII, Correia Leitão fornece as indicações da Lunda, por onde vem o grosso do comércio de Angola» ( 60). Os escravos e o marfim,
suficientes para nos permitir compreender a sua amplitude — muito particularmente a que caracterizavam este circuito, eram aí trocados contra mercadorias essencialmente
partir da década de 1840, sob a pressão do aumento da procura exterior. Mas se os europeias. As «produções» africanas eram então transportadas até Luanda, onde decorriam
Africanos preferem, durante o último quarto do século XIX, «artigos do nosso comércio, as operações de exportação, ao passo que as mercadorias europeias se encaminhavam
as mulheres fazendas e missanga principalmente, e pólvora os homens», não renun- para nordeste e para leste, destinadas ao consumo africano. A Feira só pode funcionar
ciaram a trocar «entre si os produtos naturais e mesmo os que fabricam, segundo certas graças ao cruzamento destes dois tipos de comércio.
convenções, depois de alguma discussão, pelos valores estimativos ou por serviços, até Este eixo directo, que estabelecia as relações entre Kasanje e a Musumba
tabaco e sal por achas de lenha, pelo transporte de água, etc.» (59). — atravessando o Kwangu a 9° 30' de latitude sul, e 18° 30' de longitude este —, era
O campo de análise, que tínhamos posto em evidência na parte consagrada às controlado de maneira exclusiva pelos Imbangalas e pelas populações que dependiam do
diferentes produções africanas, encontra-se assim alargado, porque as sociedades africanas Jagado. Indicações tão precisas, como as fornecidas por estes documentos, permitem
também compram e vendem serviços. Se estas observações deixam aparecer produtos «ler» as condições reais das ligações entre os diferentes grupos. Kasanje encontrava-se
que funcionam essencialmente como meios de troca, o mais significativo reside na — como já salientámos — a dia e meio de «marcha de preto» ( 61 ) do Kwangu. Este
compra e venda de serviços que, de maneira geral, continuam a estar ausentes nas caminho prosseguia através do território dos Shinjes e dos vastos e heterogéneos territórios
análises dos circuitos e das funções comerciais africanas. dos Lundas centrais — onde os Quiocos já talvez estivessem presentes, mesmo que ainda
Mesmo que não disponhamos, no século XIX, de estudos consagrados às redes não parecessem dispor de uma autonomia capaz de os impor ao olhar dos viajantes —
comerciais internas nesta região, mesmo que as fontes sejam não só raras, mas forneçam até à Musumba.
informações sempre confusas e frequentemente contraditórias, é necessário fazer um Estamos perante um caminho desconhecido pelos Portugueses até à segunda metade
esforço de sistematização para varrer a ideia banalizada por Vansina da existência de do século XIX ( 62), dado que os Imbangalas impediam qualquer europeu, ou os seus
uma única estrutura de comércio a longa distância, que teria sido introduzida pelos agentes, de se aproximar, como assinala, já nos primeiros anos do século XIX, Honorato
Europeus, e isso nas duas costas africanas, sem levar em conta as intervenções shiraze, José da Costa. Este militar-comerciante só pôde enviar os seus dois pombeiros,
árabe, indiana, indonésia e chinesa, no caso da costa do Índico. encarregados de assegurarem a ligação com a costa oriental, pelo caminho que contornava
Kasanje pelo sul, subindo depois para a capital lunda.
Como conseguiram os Imbangalas manter o segredo total a respeito desta ligação
B. As redes e os monopólios regionais essencial? Honorato José da Costa afirma que os Jagas atemorizavam as populações
instaladas na outra margem do rio: «impedia [os responsáveis lundas] e aos seus todo
1. Kasanje-Musumba: caminho directo e monopólios o tráfico directo com os portugueses, para conservar o monopólio (...) servindo-se para
esse fim de vários ardis grosseiros (...) para conter o Muatianvua, cujas forças temia,
Esta primeira rede, cuja importância já tínhamos salientado em várias passagens, asseverando-lhe, por exemplo: que os brancos saíam do mar; que comiam os negros;
liga Kasanje à Musumba, capital do Império lunda, de onde partem os caminhos que as fazendas com que eles comerciavam eram fabricadas nas suas terras e que se
comerciais para Kazembe. Convém reter o facto de esta cidade-capital não ser fixa: o Muatianvua invadisse os seus estados (do Jaga) o Muene Puto (...) tomaria disso
como praticamente todas as instalações africanas nesta região, a cidade desloca-se, vingança» (63).
essencialmente por razões políticas, nunca abandonando contudo um espaço assaz Não se tratava, verosimilmente, senão de uma explicação sobrecarregada de valores
restrito em termos geográficos. Por outro lado, a obrigação imposta a uma fracção dos míticos, que se tornou menos aceitável a partir do momento em que o Mwatyanvua
responsáveis políticos lundas de se instalar na capital reforça a capacidade de negociação, organizou, em 1807, uma embaixada que devia dirigir-se a Luanda para estabelecer um
que caracteriza a cidade. • contacto directo com o Muene Puto de Angola. É certo que os Jagas fizeram tudo o
Esta rede alimentava, em grande parte, a Feira de Kasanje e soube assegurar o controlo que estava ao seu alcance para forçar esta embaixada a dissolver-se, mas ela não deixa,
do fluxo das mercadorias europeias, quando estas fizeram a sua aparição na região. Salles
Ferreira definiu com muita precisão o sentido da situação: Kasanje era a «porta dos sertões
Ferreira, 1854, p. 26.
Leitão, 1938, p. 21.
Douville afirma ter atravessado o rio (1832, III), mas os dados que o viajante francês fornece
são incorrectos ou falsos, tornando mais do que inverosímil, impossível, o percurso que declara ter
(59) Carvalho, 1890, p. 695. seguido.
Carvalho, 1898, pp. 107-108.
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por isso, de mostrar que os Lundas conheciam o perfil do poder português, sabendo que
não corriam nenhum risco ao estabelecer contactos: a provável antropofagia dos inserir noutro eixo de circulação das mercadorias que se dirigia para Kasanje, a Jia Dia
Portugueses não parecia capaz de os intimidar. Uma pergunta subsiste: como é que foi Panda (que abordaremos mais adiante), utilizada também durante uma fracção do seu
criada esta construção mítica, e qual o seu papel nas relações triangulares, envolvendo caminho pelos comerciantes da região do Bié. Isto tem a vantagem de mostrar — ou
Kasanje, Lunda e Luanda? até de provar — que o trânsito dos homens e das mercadorias está assaz bem controlado,
Apesar das múltiplas tentativas dos Lundas, podemos verificar que foi somente porque se há acidentes — certamente inevitáveis, dadas as condições geográficas — a
após as guerras de Kasanje, em 1850, que foi «aberto o caminho para a Lunda e Luba maior parte dos homens e das mercadorias acaba por chegar ao destino, sem problemas
sem intervenção dos Cassanges, que com isso lucravam quase 30 por cento no que de maior.
traziam à Feira» (64). O paradoxo, porque não podemos esquivar-nos de registar o carácter paradoxal da
Este estrangulamento do comércio e dos agentes do Mwatyanvua é assaz singular para situação, reside no facto de o controlo imbangala ter sido tão eficaz que nenhum
nos levar a acreditar nas informações obtidas pelo sargento-mor Correia Leitão: «Este comerciante, tendo viajado na região, na primeira metade do século XIX, conseguiu ter
Molua é muito poderoso e de seus senhorios e domínios saem capitães despedidos por ele conhecimento deste eixo que ligava directamente Kasanje à Musumba. Livingstone,
para oeste, para norte e para sul e mais partes, com tropas de muitíssimas gentes, a fazer cujos objectivos excluíam qualquer projecto comercial, foi o primeiro europeu que atravessou
conquistas de escravos que vendem (...) [destinados a] Benguela e para as partes onde são duas vezes (1854-1855) — indo do e para o Cabo — o Kwangu, nesta região (67). A sua
encaminhados para Cassange, para Olos, até para os reinos do Congo, Sosos (sic), Quiiacas, viagem ascendente (1854) era fundamentalmente destinada a proceder ao reconhecimento
Quilubas, Ungus, que todos têm metido debaixo da sua forte espada» (65). das populações do Sul, entre as quais os Quiocos e os Lundas meridionais.
Devem reter-se as duas questões primordiais: o autor, que recebeu estas comuni- O seu percurso de regresso, em 1855, através do curso médio dos rios Kwangu,
cações dos informadores da região (recolhidas sem o recurso aos intérpretes, dados os Kuilo, Tchikapa e Luajima — adoptando uma linha quase recta de Kasanje a Cam-
seus conhecimentos das línguas africanas), não fornece a menor indicação respeitante bungo (68), no Chihombo, afluente do Kasai «a cento e trinta e duas milhas leste-
«às regiões para as quais são encaminhados [os escravos]...». Trata-se de mercados -nordeste da (...) cidade do Matiamvo, chefe supremo dos Balondas» (69), antes de flectir
interiores, onde provavelmente os Imbangalas vão comprar escravos em troca de para o sul — informa-nos a respeito da circulação interna das mercadorias neste imenso
mercadorias europeias. Isto ter-nos-ia permitido esboçar, de maneira relativamente precisa, espaço dos Lundas centrais.
os itinerários comerciais da zona. Rodrigues Graça, que chegara à Musumba pelo caminho do Sul, destinado a evitar
A segunda questão depende da existência de outros circuitos, que são bastante toda e qualquer vigilância dos Imbangalas, e que se afastara voluntariamente deste
numerosos, contrariamente ao que podia parecer, e que permitem que a Musumba se percurso, fornece-nos, apesar disso, algumas indicações que estão ligadas ao comércio
furte às tentativas de bloqueio levadas a cabo pelos Imbangalas e oriente os seus desta fracção dos Lundas centrais (70).
produtos, entre os quais parecem dominar os escravos, para outros pontos da costa, ' Entre Kasanje e estes lundas circulam, além das mercadorias europeias, produtos
como o Kongo e Benguela. africanos, aos quais se acrescenta um mercado de serviços, que a quase totalidade dos
Contrariamente ao que é afirmado por Van sina — «por volta de 1850 os Imbangalas Viajantes ou não consegue ver ou se esquece de referir e de contabilizar. Encontramos
foram empurrados para norte dos seus antigos caminhos e abriram uma nova estrada ontre esses produtos «o sal, o tabaco e a carne (...) que os Bangala fornecem» aos
para os Pendes de Kasai» (66) —, os circuitos Kasanje-Norte começam a aparecer muito Shinjes, em troca de «excedentes dos produtos que obtêm da sua agricultura» (71). Mais
mais cedo e permitem ligações, através do território dos Shinjes, com as populações *diante, tanto o tabaco como o sal seguem noutras direcções. Livingstone tomou nota
situadas ao norte, a oeste e a leste, quer dizer, desde os Kongo — fixados a oeste — da compra de cento e noventa quilos de tabaco por cinquenta francos franceses. «Com
até aos Luluas, no paralelo 6, entre o Kwangu e o Kasai, passando pelos Lubas e os Orne tabaco, transportado para o centro do país dos Balondas, podem obter-se sete mil
Pendes, situados entre os dois.
e-quinhentas galinhas, ou então alimentar sete mil pessoas durante um dia, dando a cada
O circuito dos escravos, assinalado por Correia Leitãh, encaminhava-se desta uma delas um frango e mais de dois quilos de farinha» (72).
maneira para Benguela. Provindo dos Lundas, devia orientar-se para o Sul, para se

(67) Livingstone, 1859, p. 405.


Esta abertura foi apenas provisória, como de resto já tínhamos assinalado neste capítulo.
Carvalho, 1898, pp. 131-132. (") Id., ibid., p. 501.
Leitão, 1938, p. 25. Id., ibid., p. 503.
(66) Vansina, 1966, p. 202: «By the 1850's the Imbangala were pushed north of their former route Graça, 1890, pp. 429-430.
and they opened a new road to the Pende of the Kassai». Livingstone, 1859, p. 486.
Id., ibid., p. 500.
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Livingstone observa igualmente, em território lunda central-ocidental, que o sal
proveniente de Kasanje constitui «um dos principais artigos do comércio» ( 73). A réplica o que exaspera os homens de negócios, e reduz o comércio, tanto africano como afro-
lunda mantém-se contudo fiel a esta simetria invertida, porque entre os Lundas centrais -português (80).
e Kasanje a mercadoria mais importante é o marfim (74). Também se encontram referências ao comércio de víveres nos circuitos locais, seja
Esta imensa quantidade de marfim chega aos chefes lundas como tributo pago pelas em Graça seja em Livingstone. É o caso da farinha de mandioca, trocada por carne de
«autoridades suas subordinadas, ou (...) em resultado da caça, porque o caçador (...) podia uma vaca, morta pelos homens do missionário, na região dos rios «lundaizados» (81),
caçar em terras de qualquer potentado». As regras da caça no território lunda impunham porque as populações «estão habituadas a receber a visita dos comerciantes africanos
e não se julgam de maneira alguma obrigadas a oferecer alimentos aos viajantes, a não
que «metade da caça [pertencesse] ao dono do sítio onde o animal caísse morto», cabendo
ser para os explorar» (82).
a outra metade ao caçador, considerado não como um produtor independente, mas sim como
A observação é importante: havia ainda, na África central, populações que ofereciam
membro de um grupo, família, linhagem, clã ou aldeia (75).
comida como «presente», num processo completamente exterior ao dos circuitos comer-
Os Lundas centrais remetiam também para Kasanje os escravos, os quais, na ciais. Todavia, o comércio alterou de maneira definitiva as regras anteriores, tendo a
década de 1830, custavam cerca de 25 % menos do que nas terras do Bié, e isso mau comida adquirido o estatuto de mercadoria, não podendo, por isso, ser dada como
grado o controlo exercido pelo Jaga ( 76). O cobre chegava a esta zona fornecido «presente». É importante apontar o facto de esta mudança provir dos «comerciantes
igualmente pelos Lundas: «[o cobre] que os Cassange vendem aos portugueses provem africanos», que se transformam numa espécie de agentes de uma mudança que surpreende
dos Moolooa» ( 77) afirma Bowdich, em 1824. Cerca de vinte e três anos mais tarde, o missionário escocês.
Rodrigues Graça, que avança para a capital lunda a partir do Sul, confirma a passagem Mas não podemos deixar de notar que se sente uma espécie de protesto na escrita
destas mercadorias — marfim, cobre, escravos — a caminho da Musumba, sendo a de Livingstone, para quem a troca assim imposta pelos Africanos carece de uma certa
maior parte — sublinha o autor — recebida como tributo imposto pelo Mwatyanvua equidade: ela possui apenas o objectivo de explorar os viajantes e, mais particularmente,
aos seus súbditos (78). os Europeus, como se o facto de adoptar os comportamentos do comércio, cada vez mais
Como estava organizado este comércio com a Musumba, ou como é que estes dominado pelas regras europeias, apenas fosse uma forma particular de agressão por
tributos pagos ao rei se transformam em mercadorias destinadas ao comércio a longa parte dos Africanos! O comentário de Livingstone põe a nu o viajante nostálgico de um
distância, que desemboca na Feira de Kasanje? passado, em que a regra do «presente» tornava mais fácil a gestão das relações
Rodrigues Graça fornece uma descrição bastante pormenorizada do sistema: «comerciais» com os Africanos, na medida em que os termos da troca podiam ser
«o régulo quando sente falta de géneros de seu consumo, despacha caquatas aos definidos pelo destinatário do «presente».
vizinhos a ajustar os negociadores, que encontrar para que se dirijam com suas
fazendas à capital, e no dia seguinte da chegada ele se apresenta e exige do feirante 2. Musumba-Kazembe: em direcção à costa oriental
ou negociador, que lhe mostre a fazenda toda e assim feito [o rei], aparta tudo que
lhe agrada e manda[-o] conduzir para a sua residência (...) e passados alguns dias Todas as análises, tal como praticamente todos os documentos, fazem aparecer,
atrás das referências aos mercados das regiões ocidentais da África central, o fantasma
o manda chamar [o comerciante] para saber em que deseja receber o pagamento, se
escravos ou marfim» (79). político e comercial do Império lunda e das suas relações com Kazembe, isto é, com
a costa oriental.
Após ter anunciado o preço desejado, o comerciante é aconselhado a «descansar
Os Lundas de Kazembe são o resultado de uma das múltiplas cisões que marcam
[n]esta terra [que] é vossa [do comerciante] e (...) ide vendendo o resto a meus povos». a história dos Lundas centrais, e parecem ocupar um lugar particular na estratégia
O comerciante não pode fazer outra coisa que não seja esperar desesperando, porque adoptada pela corte lunda: os Lundas de Kazembe instalam-se numa via destinada
a espera pode, num grande número de casos, ultrapassar o ano e mais, chegando mesmo a assegurar as relações com a costa oriental, sem contudo rompê-las com o território
a atingir os dois anos. A situação repete-se quando se trata do %negociador por grosso» e o sistema que lhes deram origem. Kazembe mantém, por isso, ao longo do século
XVIII ( 83) e durante a primeira metade do século XIX, relações comerciais e tributárias
intensas com o seu núcleo original (84).
Id., ibid., p. 492.
Id., ibid., p. 480.
Carvalho, 1890, I, pp. 269-270. Id., ibid.
Douville, 1832, II, p. 353. Livingstone, 1859, p. 498.
Bowdish, 1824, p. 20. Id., ibid., p. 493.
Graça, 1890, pp. 431-459. Magyar (1859), p. 10, escreve: «o Estado de Cazembe (...) reconheceu há cerca de 10 anos [1840-
(79) Id., ibid., p. 446, mas também p. 459. -41] a superioridade de Molua e paga-lhe um imposto anual. Actualmente [1850-1851] a situação mudou».
(84) Ver 2.' parte, cap. II.
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No que diz respeito aos princípios do século XIX, dispomos do relatório de Pedro
João Baptista, documento indispensável para poder analisar em pormenor as redes e as Trata-se, por isso, de uma rede comercial profundamente africana, integrada nas
trocas realizadas entre os dois reinos lundas. O autor até permite dar-nos conta da rotas que se dirigem para a costa oriental e que se combinam com as redes orientadas
densidade das aldeias, relativamente próximas umas das outras (85), e de acompanhar para ocidente. Estas estradas comerciais dirigiam-se inicialmente para a Musumba, que
dia-a-dia o ritmo e a direcção das viagens dos carregadores de sal, que é certamente assegurava a comercialização dos produtos provenientes de Kazembe. Esta situação
a mercadoria mais procurada neste sistema comercial africano. Já fizemos anteriormente conheceu uma modificação bastante sensível a partir dos anos 1840, caracterizados pela
uma curta referência a este circuito do sal (86). Queremos agora pôr em evidência o facto intervenção de poderosas caravanas africanas, entre as quais os Ovimbundos, que
de estarmos perante uma actividade comercial, destinada a satisfazer dois objectivos: chegavam até Kazembe. Todavia, esta operação realiza-se fora de qualquer contacto
os carregadores ou os seus chefes são portadores de mercadorias preferenciais, destinadas com os Europeus, pelo menos até ao último terço do século XIX.
ao pagamento do sal. No centro da África, o par político e comercial Musumba-Kazembe pôde estabelecer
Não se trata apenas de um pormenor: tal situação significa que esta rede comercial há bastante tempo, muito antes da chegada dos Europeus às duas costas, as ligações
foi organizada pelos Africanos e, de resto, a descrição de Pedro João Baptista é entre a costa ocidental e a costa oriental do continente.
nitidamente sustentada por um olhar africano. Ou seja, este escritor-viajante está em
condições de ver aquilo que irá escapar constantemente aos observadores europeus. Isto 3. A Jia Dia Panda: em direcção à Musumba através do território quioco
autoriza-nos a avançar a hipótese de que este comércio se conta entre os mais importantes
da região, mesmo que a qualidade do sal não pareça muito satisfatória, nem sequer para Havia uma segunda via que ligava Kasanje à Musumba: a Jia Dia Panda, o
os Africanos que conhecem mal ou pouco o sal-gema ou o sal marinho. Trata-se contudo «Grande Caminho» (89), que contornava, pelo sul, o território imbangala, através do
de uma produção local, controlada por uma autoridade submetida à vigilância do território dos Songos (Bondo-Songo ou Pequeno Songo), atravessando em seguida o
Mwatyanvua. Grande Songo, para se dirigir para leste. Esta estrada chegava depois ao território
Por volta dos anos 1831-1832, Gamitto faz também referência a esta intensidade quioco, na região das nascentes dos rios Kwangu, Kuilo, Tchikapa, Luachimo, Chiombe
das relações comerciais entre a Musumba e Kazembe, apontando ao mesmo tempo, e Kasai, onde foi mais tarde instalado o posto português do Alto Tchikapa. Seguia então
a prioridade dada por Kazembe às relações comerciais, estruturadas num duplo nível: uma linha quase recta para a nascente do Chiombe (Chibombo ou Chihombo), até
o do comércio local e regional e o do comércio a longa distância, interafricano, que encontrar o Kasai, subindo depois para a Musumba.
não impede as trocas com a costa oriental. «O Mwata faz do comércio um monopólio De acordo com o antropólogo José Redinha, que percorreu a Jia em 1946, esta via
para si, quer seja com os mercadores que vêm aos seus domínios, quer seja mandando teria sido utilizada por Xinguri (90), pois se tratava de um antigo caminho que, saindo
fora os seus géneros para os vender onde sabe que poderão ter compradores» (87). da Lunda para lá do Kasai, alcançava Kasanje e daí o mar, ao lado de Luanda. Seria,
Os produtos são cuidadosamente escolhidos — o comércio a longa distância não por isso, o velho percurso utilizado pelas migrações dos séculos XV e XVI, período
pode ser levado a cabo sem uma espécie de estudo dos mercados —: bebidas preparadas durante o qual as populações africanas teriam procedido à divisão hierárquica do
a partir do mel, objectos de ferro, tanto para a guerra como para a agricultura, assim território. Esta visão da história parece ser confirmada pelas tradições orais: não só as
como «marfim (...) cobre (...) malaquites». O autor faz ainda observar que estas dos Lundas, mas também as dos Quiocos (91).
mercadorias são enviadas para as populações africanas, clientes habituais das produções Este eixo, utilizado pelas caravanas comerciais africanas e mestiças, que desejavam
de Kazembe, como os Muizas, e igualmente para os «Impoanes, ou seja, os árabes da furtar-se ao controlo do Jaga, «mudou o nome para Tshikoka, quer dizer, caminho das
costa de Zanzibar» (88). mercadorias ou das riquezas» (92). A mudança é muito significativa, pois mostra, além
do mais, que começa então a estabelecer-se a divulgação do conceito e da ideia de
riqueza, que não pode deixar de estar — na sua forma moderna — associada aos
Europeus. Esta Jia era também percorrida pelas caravanas imbangalas — que Livingstone
encontrou nos anos 1850, entre o Loachimo e o Tchikapa por volta do paralelo 10 (93)
Baptista, 1843. Algumas horas de viagem a pé permitiam passar de uma aldeia à seguinte. — em busca das mercadorias das regiões sul.
Se aceitarmos o princípio de que os pombeiros e a sua comitiva caminhavam 6 a 7 horas por dia, a uma
velocidade média de 5-6 km/hora, encontramos aldeias todos os 30/40 quilómetros.
Ver capítulo consagrado ao sal. 3. parte, II.
Gamitto, 1854, pp. 359-361. Já em 1798, Almeida, Lacerda e (s. d.), pp. 104-124, em várias (89) Redinha, 1953, I, p. 93.
passagens salienta a importância deste monopólio do rei de Kazembe. Baptista (princípios do século (99) Id., ibid.
XIX) (1843) também dele dá conta, em várias referências. Id., ibid.
Gamitto, 1854, pp. 360-361. Id., ibid.
(93) Livingstone, 1859, pp. 393-394.
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Durante a primeira metade do século XIX, foi a via mais conhecida e utilizada pelos Após o Alto Tchikapa, este eixo precipitava-se, em linha recta, em direcção ao
Africanos, para ligar a região de Kasanje à Musumba. Era contudo também seguida Kasai e aos territórios quioco-lunda meridional, até Katende, atingindo também os
pelos comerciantes, vindos do Bié em direcção à Musumba, que a alcançavam no Alto
Tchikapa. Luenas, ao sul, antes de subir para a Musumba.
As mercadorias que transitavam de oeste para leste eram essencialmente, às vezes
Nos primeiros anos do século XIX, foi percorrida por Baptista e pelo seu até exclusivamente, europeias, sendo a base constituída sobretudo por sal e tabaco,
companheiro, durante a viagem à Lunda, a Kazembe e a Tete ( 94). Sendo embora
de que se registava um deficit importante nestas regiões. Os Quiocos e os Lundas
muito mais longa, esta via apresentava a vantagem de evitar Kasanje, adoptando uma meridionais procuravam adquiri-los junto dos comerciantes vindos, ou de Kasanje ou
orientação pelo Sul e percorrendo o território dos Bondo-Songos. Era, todavia,
do Bié (97).
necessário negociar primeiro a travessia do território, o que não se tornava nada fácil, Nos percursos locais e regionais circulavam também víveres, como observou
porque estes Songos — que tinham conseguido autorização dos Imbangalas para Livingstone em Katende, onde as populações «semeiam feijões, que eles usam pouco,
seguir o caminho que os levaria directamente aos Lundas ( 95 ) — estavam sob a
para os vender aos comerciantes que transitam pela região» ( 98). Observação de um
observação muito meticulosa do Jaga.
alcance considerável, pois não se trata de vender — de maneira algo passiva —
A partida dos pombeiros para leste foi negociada por Honorato José da Costa, que apenas os excedentes das culturas destinadas ao consumo local, mas de uma produção
conhecia perfeitamente o mecanismo dos grupos que controlavam as passagens e as suscitada pela importância do fluxo de caravanas, tendo a população registado os
estradas (96).
gostos desses viajantes, para produzir as mercadorias mais indicadas para as operações
Se a Jia representava um desvio muito considerável em relação à linha recta
comerciais.
Kasanje-Musumba, dispunha também da considerável vantagem de atravessar os A região vende, de resto, também carne, muito procurada, porque «a necessidade
territórios do Sul, ricos em mel e cera, onde estavam instalados os Lundas meridionais se faz de tal modo sentir que os Lalondas [os Lundas meridionais] fazem uma caça
e os Quiocos, a pouca distância dos Ganguelas e dos Luenas, que produziam o mesmo muito activa dos ratos» (99).
tipo de mercadorias.
Acrescentam-se a estas mercadorias os produtos de artesanato, entre os quais os
Próximo do Alto Tchikapa, a Jia possuía uma conexão com os caminhos que
machados e as enxadas, que os Quiocos procuraram vender a Livingstone em troca do
subiam do Sul. Esta característica dava-lhe o estatuto de nó comercial estratégico, seu boi (19.
dado que assegurava a confluência com um caminho que levava até ao eixo transversal Regista-se ainda nesta região um comércio de escravos que, em meados do século
que ligava o Bié aos territórios ganguela e luena (Lovale), situados a leste, quando XIX, parece ainda importante. Livingstone cruza uma caravana em que um dos
flectia para leste — para lá do Zambeze — e para as regiões do Centro-Sul do pombeiros que a integrava «tinha presas a uma corrente oito mulheres bastante
continente. bonitas que levava para o território Matiamvo [no Alto Tchikapa] com a intenção de
Zona crucial do comércio do Sul, o Alto Tchikapa garantia a ligação com a as trocar por marfim» (101).
Musumba, percorrendo o território dos Lundas meridionais. Os Quiocos estavam assim Algumas interpretações das formas de parentesco entre as populações imbangalas
instalados numa placa giratória do comércio interior, que se estendia sobre uma vasta afirmaram que elas tinham sido alteradas de maneira radical, devido à compra sistemática
região, com produções muito diversificadas, onde vinham confluir os caminhos de mulheres escravas ( 102).) Mas os viajantes só dão conta de uma quantidade muito
provenientes de todas as direcções. reduzida de mulheres, deslocando-se nestas condições, destinadas ao mercado da

Livingstone, 1859, pp. 400 e 505.


Stamm, 1971, p. 453, que parece desconhecer a viagem de Batista — pelo menos não lhe
Id., ibid., p. 377. Ver também Graça, 1890, p. 427.
faz a menor referência — organizada por Honorato José da Costa em 1802, escreve que «Douville leva
( 99) Livingstone, 1859, p. 399. Receamos, todavia, que esta observação se limite a ser uma
a cabo uma viagem (...) até à capital lunda recorrendo a um caminho desconhecido dos Europeus: a partir
de Kasanje, recorre à Jia dia Panda (...) itinerário que os Portugueses só começaram a conhecer após projecção simplista dos preconceitos europeus, que consideravam repugnantes estes roedores. Mas uma
grande parte das populações africanas caça e consome, com um prazer conhecido, roedores que os
1851». Ora é mais do que evidente que Douville se limita a registar as informações recebidas dos
Europeus teriam rejeitado com nojo. Não duvidamos que na região exista um apetite considerável de
Portugueses, que ouviu certamente durante o longo período da sua instalação em Pungo Andongo. Tudo
carne, mas duvidamos que o consumo dos «ratos» seja disso a prova, pela razão simples de que os «ratos»
leva por isso a crer que Douville nunca conseguiu chegar às margens do Kwangu e ainda menos à capital
lunda. fazem parte integrante do sistema alimentar normal.
(mo) Id., ibid., p. 390.
Ferreira, 1854, p. 27.
(ioi) Id., ibid., pp. 490 e 505. O missionário faz referência ao «país onde se continua a comercializar
(96) Costa, Honorato, «Carta ao governador de Senna e Tete», 11 de Novembro de 1804, in Baptista,
1843, p. 238. os negros» (p. 398).
( 102 ) Ver Douglas, 1964, e Miller, 1970, 1973 (in Heimer), 1976.
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escravatura. O missionário escocês denuncia esta situação, mas os encontros com as nostalgia dos chefes quiocos, «recordando passadas grandezas: as comitivas do marfim,
caravanas que levam escravos para os mercados são muito raros, e não parecem o sal de Cassange, as equipagens dos grandes sobas e as correntezas de servos — entre
confirmar a banalização deste tipo de comércio.
eles lindas negras do Lualaba — aprisionadas nas lutas tribais e mercadejadas no
Esta observação pode ser confirmada por outra: as principais mercadorias, que Tchibeco» (110).
circulam aqui no sentido leste-oeste, são a cera e o marfim. Não se regista, por isso, Semelhante via comercial era naturalmente invejada pelos negociantes africanos,
um fluxo importante de mulheres. Em toda esta vasta região e ao longo da Jia, «há que queriam conservar para eles, a todo o custo, o monopólio das trocas. Tal facto
abundância de marfim e cera e [a região] oferece vantagens no mercado» (10). Rodrigues provocou numerosos conflitos, sobretudo entre as caravanas imbangalas e ovimbundas,
Graça acrescenta que «é tão grande a quantidade de elefantes em Catende e Quibica que provinham da região do Bié.
que andam a rebanhos como o gado» (104).
Estas estradas comerciais nem sempre eram, pois, pacíficas, sendo os conflitos
Mais a oeste, a sul do Alto Tchikapa, Livingstone foi informado de que uma desencadeados pelos grupos que procuravam obter o negócio mais lucrativo. Todavia,
população chamada Kanyika fornecia «a maior parte do marfim» do grande chefe da os conflitos provocados pelos esforços feitos para assegurarem o controlo das vias
região, «Matiamvo», que impedia «brancos e mulatos de visitar este povo» (105). comerciais mais importantes aparecem essencialmente por volta dos fins do século
O mecanismo técnico conta-se entre os mais clássicos, pois que os responsáveis XVIII, princípios do XIX, e tornam-se mais impetuosos cerca de 1840, face ao aumento
políticos desejam produzir artesãos encarregados de levarem a cabo uma única tarefa. constante do número de comerciantes brancos, que ainda procuram escravos, se bem
Tal quer dizer que o mosaico das competências profissionais ajuda a dar sentido à que se interessem simultaneamente e cada vez mais pelo marfim, em consequência das
distribuição dos grupos. Mas isso significa também que os Quiocos não eram os únicos medidas legais tomadas em 1834. Tratava-se de choques violentos e frequentes entre
especialistas da caça aos elefantes, como se diz de maneira monocórdica e sem provas. os dois poderosos grupos de comerciantes africanos — imbangala e ovimbundo —, que
A outra mercadoria não podia deixar de ser a cera, muito abundante nestas regiões, asseguravam as ligações entre o interior africano e o comércio europeu da costa ocidental.
dos Bundos aos Ganguelas, no território quioco ou igualmente no território dos Lundas Ambas as forças procuram manter o exclusivo do comércio com as terras orientais e,
meridionais (106).
mais particularmente, com o Mwatyanvua (mi).
Esta abundância de cera permitia que as populações a vendessem às caravanas, Se os Imbangalas eram comerciantes antigos e dominadores, os Ovimbundos, dos
tanto africanas como afro-portuguesas. Mas uma parte era transportada pelos próprios reinos de Bailundo, Huambo e sobretudo Bié, tinham-se tornado, durante os últimos
produtores até às cidades ou povoações compradoras. Os chefes quiocos conheciam bem anos do século XVIII, poderosos comerciantes de escravos, que concentravam no Bié,
a «força» que esta produção lhes trazia, e sabiam também que poderiam utilizá-la contra de onde eram depois remetidos para Benguela, porto de exportação que fazia concorrência
os Brancos, como salienta um dos chefes quiocos a Rodrigues Graça (19. As populações a Luanda (112). O grupo organizava caravanas imponentes que lhe permitiam um comércio
quiocas propunham frequentemente esta mercadoria aos comerciantes que percorriam activo destinado a penetrar cada vez mais profundamente no mato, pondo termo ao
a região. Tal foi o caso de Livingstone, em território quioco: «as pessoas da aldeia [na monopólio dos Imbangalas nas regiões atravessadas pela Jia.
região do Chibombo] trouxeram-nos cera perguntando-nos se a queríamos comprar; Os Ovimbundos procuravam, desta maneira, estabelecer uma relação comercial
respondemos-lhes que preferíamos o mel, e eles voltaram com uma colmeia pouco tempo privilegiada com os Quiocos. Estes, instalados na região estratégica das nascentes do
depois» (108).
Kwangu, do Kuilo e do Tchikapa, participavam há já muito tempo — pelo menos desde
A importância do comércio ao longo do «caminho do princípio do mundo» (109) e, o século XVIII — no comércio africano a longa distância. Este grupo vendia escravos
sobretudo, no Alto Tchikapa era tal, que Redinha ouviu muitas vezes suspiros de aos Imbangalas e aos Ovimbundos, assim como cera e marfim em pequenas quantidades.
A sua flexibilidade, associada ao quadro físico que era o seu, rico em cera e em
elefantes, permitiram-lhe transformar-se, por volta de 1840, em interlocutor preferencial
(103) Graça, 1890, p. 459.
das caravanas e dos comerciantes intermediários, tornando-o também consumidor
(um) Id., ibid., p. 427. importante das mercadorias europeias. Procurava, de maneira constante e apaixonada,
(1135) Livingstone, 1859, p. 504. adquirir armas de fogo (113).
(106) Assinalada por todos os viajantes que percorrem estas regiões. Ver, por exemplo, Graça, 1890.
Ver também 3.' parte, cap. II.
(1137) Graça, 1890, p. 410.
Livingstone, 1859, p. 384. O missionário descreve uma situação semelhante em território Id., ibid.
lunda meridional, p. 400. Quase um século mais tarde, Redinha confirma a importância destas produções: Vansina, 1966, p. 200.
as terras do Alto Tchikapa são conhecidas pelos Africanos como a «terra do mel».
Id., ibid., p. 202. Ver também Childs, 1949, pp. 198 e seg.
Redinha, 1953, I, p. 97.
Livingstone faz-lhe referência em várias passagens. Ver também Miller, 1970, p. 308.
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O sistema concorrencial, desencadeado pelo aumento dos produtos trocados, teve comércio, porque passava à margem de importantes redes comerciais, aquelas que se
repercussões na gestão das estradas comerciais: as caravanas afrontam-se para pôr dirigiam para norte e para nordeste (120).
termo à concorrência, o que implica o aumento do volume das armas, que tornam certas O Bié era, por isso, o ponto de partida e o ponto de chegada de uma imensa rede
expedições comerciais muito perigosas. É pois aos «proprietários» de cada fracção da de relações comerciais que se dirigiam para leste. Os comerciantes, que passavam além
via comercial que cabe a tarefa da cobrança dos impostos de passagem, assim como da conexão com a Jia, prosseguiam para Lovale, onde estava instalado um mercado
a de assegurar a ordem, permitindo manter o fluxo constante dos homens e das interno de cobre, vivendo as populações do seu gado ( 121 ).) «As caravanas Ovimbundu
mercadorias. É contudo evidente que estas operações armadas reduzem os lucros de [Kimbunda] iam das costas ocidentais até às proximidades do Oceano Índico, e às vezes,
cada um e de todos. até à costa oriental» ( 122),) atravessando o território onde os comerciantes compravam
sobretudo marfim em troca de mercadorias europeias, «de gado e de escravos jovens» (123).
4. Do Bié para o Lovale: a conexão com a Jia Em 1828, Douville descreve o mercado do Bié. Este viajante, por um lado, não
merece muito crédito, pelo outro, regista as descrições que lhe foram transmitidas. Se
A Jia não podia deixar de estar ligada à grande estrada que, a partir do Bié, subia não se trata de uma observação directa, estamos, no entanto, perante informações dadas
para as terras orientais. Dado o quadro geográfico que é o nosso, não podemos descrever, pelos comerciantes que conheciam bem este mercado: «a capital [chama-se banza] está
de maneira pormenorizada, nem o Bié nem as vias que ligavam este importante mercado numa colina elevada (...) sendo as casas construídas em madeira revestidas com barro
afro-português ao interior oriental. Podemos, muito mais modestamente, mostrar como e cobertas de palha. Tem a forma quadrada (...) [O] mercado (...) está situado fora da
foram organizadas as ligações com os Quiocos — que habitavam nas terras atravessadas banza, e consiste numa centena (...) de casas disseminadas a diversas distâncias da
pela «conexão» — e com os Lundas centrais e meridionais. palissada da capital. Estas casas são construídas pelos mulatos que vêm ao Bié comerciar
É já a partir dos anos finais do século XVIII que o Bié, onde são negociados por conta dos negociantes portugueses» (124),
produtos alimentares (114,, ) aparece como um ponto estratégico no caminho que os Deve sobretudo reter-se a indicação que confirma o que já pôde ser verificado em
Portugueses descobrem então e que os leva até às terras do Lovale: «um Preto Kasanje: a cidade comercial, construída pelos brancos e pelos mulatos — estes sob as
descendente do Loval (...) [convenceu Jozé d'Assumpção e Mello, natural da Baía] ordens daqueles — encontra-se separada, isto é, à margem da cidade africana, o que
a ir àquela terra fazer negócio» ( 15). Conhecida pelos Africanos, que forneciam permite o controlo exercido todos os dias pelo chefe: «o soba vai quase todos os dias
indicações aos Portugueses ( 16), esta rede comercial atravessava as terras dos «poderosos visitar estes comerciantes, dado que recebe uma taxa sobre cada cabeça de escravo, e
sovas Amboelas, Bunda e Canunga e [contornava] pelo esquerdo com os sovas vassalos dispõe dos meios para verificar pessoalmente que não o enganam» (125).
do Grande Sova dos Moluas, e pela retaguarda com os sovas Quiboque e Bunda (...) Em 1846, Rodrigues Graça abandona o Bié e percorre a estrada que liga esta região
[que] são mansos e tratáveis e fizeram boa hospedagem aos dois sertanejos, e com lizura ao Alto Tchikapa, onde o comerciante brasileiro entra na Jia para chegar à Musumba-
o negócio (...) deram alguns sinais [de que] não será dali muito distante os Rios de Sena -Lunda.
da capitania de Moçambique» (117). Para definir a «rica» «província do Bié», o autor — tal como fazem também Silva
Este caminho que partia do Bié alcançava o «rio chamado Loando [perto da sua Porto e Magyar, que aí se encontram por volta de 1850 — põe em evidência as relações
nascente, na fronteira bunda-songo-quioca] (...) aqui principia o deserto, que os sertanejos comerciais mantidas com todas as populações, a partir do momento em que elas ofereçam
atravessam indo para o Lovar, no qual gastam quatorze ou quinze dias [de marcha] com a mínima possibilidade de mercado (126).
cargas (...) [e após] seis dias [de viagem] (...) encontram (...) um rio (...) Luena (...)
[e] nas margens deste rio [encontram-se] as primeiras povoações do Lovar» (lis).
Nos anos finais do século XVIII, existia uma estrada alternativa para Lovale. Ela Anónimo (1789), in Felner, 1940, vol. II, pp. 25-26.
Id., ibid., pp. 23-26.
evitava a travessia das terras songo e quioca, por conseguinte a conexão com a Jia,
Magyar, 1973, cap. VII, p. 23.
e seguia pelo Sul do Bié, atravessando a região do Bunda Sul — rica em mel, cera, Id., ibid., p. 24.
marfim ( 119 ) — até ao Lovale. Esta estrada mais directa não era a melhor para o Douville, 1832, [Revue des deux mondes (...) ], pp. 419-423.
O modelo urbano é idêntico ao de Kasanje, incluindo o que diz respeito à agricultura de
subsistência, mesmo que Douville não preste grande atenção às plantas cultivadas: «cada uma [das casas]
Anónimo (1789), in Felner, 1940, vol. II, pp. 21-22. está cercada de armazéns destinados às mercadorias, de cabanas para alojar os escravos, de uma horta onde
Vasconcelos (1799), 1844, p. 159. são cultivadas as plantas alimentares e de um pátio onde se concluem os negócios. O conjunto das
Pontes (1800), in Felner, 1940, vol. I, p. 249. construções e das dependências de cada casa recebe o nome de pombo (...)»: Id., ibid. Assinalemos mais
Vasconcelos, 1844, p. 160. Ver também Pontes (1800), in Felner, 1940, vol. I, p. 249. uma bizarria de Douville: é ele o único autor a nomear desta maneira as construções comerciais portuguesas.
Anónimo (1789), in Felner, 1940, II, pp. 23-24. (126) Graça, 1890, pp. 386-387. Ver também Porto, 1942, que descreve minuciosamente a «província
Andrade (1800), in Felner, 1940, I, p. 252. de Bié». Ver, por exemplo, pp. 174-177.
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Dispomos de algumas informações, assaz técnicas, provenientes de Rodrigues Graça: É contudo necessário reter a informação de Magyar: se há ainda escravos, estes deixaram
o brasileiro é um comerciante que se esforça por proceder a um inventário útil das de ser a essência do comércio, seja local seja a longa distância. É certo que este tipo
estradas comerciais e dos bens produzidos e trocados. A província do Bié aparece, na de mercadoria ainda existe, mas mostra tendência para se reduzir. Só os grupos que se
sua escrita, rica em produtos agrícolas, entre os quais o tabaco, produção relativamente mantêm fiéis aos sistemas comerciais do passado exigem escravos para levar a bem as
recente e que constitui uma das mercadorias preferenciais nas relações com populações operações comerciais.
que se mantinham ainda fiéis aos alucinatórios vegetais clássicos (127).
O sistema de permutas aparece dividido em dois sectores: as mercadorias trocadas
O território é também rico em minas de ferro, cuja extracção é assegurada por pelos produtos europeus e as mercadorias trocadas pelos produtos africanos: «o comércio
mineiros de que os textos nunca falam, porque consagram toda a sua atenção aos
fora das fronteiras é muito mais significativo do que o comércio interior. Os Kimbunda
ferreiros. Estes artistas dedicam-se à produção de utensílios, entre os quais as ferramentas, são, sem a menor dúvida, aqueles que praticam o comércio mais alargado em termos
muito apreciadas em toda a região (128).
de expansão territorial na África austral (...) do norte para o sul penetram no reino de
Os dois produtos — tabaco e instrumentos de ferro — tornam pois possível a Muropoe [Lunda] numa extensão de 200 de latitude sul, até aos desertos de Muncimba.
criação de relações comerciais com as populações que estão amplamente distribuídas Circulam com mercadorias europeias ou então caçam o elefante» (132).
na região. Nesta descrição, a província do Bié encontra-se bem no centro de um número Os artigos que servem de suporte a esta actividade comercial são: o marfim,
avultado de grandes chefes — «Andullo, Bailundo, Camexe [Songo], Bunda, Ambuelas, o corno de rinoceronte e a cera. Esta última é exclusivamente trocada por mercadorias
Quiboco, Mazaza, Cassaby e Lumbige» —, de onde chegam constantemente marfim, europeias. O marfim e os cornos de rinoceronte pedem uma parte de mercadorias
cera e outros produtos consumidos de maneira habitual na região (129). europeias e outra constituída por escravos e gado, conforme as necessidades dos povos,
Todavia, as relações comerciais mais importantes são as estabelecidas com os porque havia populações que não utilizavam ainda os produtos europeus. Eram grupos
Quiocos, a leste, e com os Bundos e os Ambuelas (grupo Ganguela) a sudeste. Não se que só aceitavam os escravos e o gado (133).
devem, contudo, esquecer os Songos, inscritos na rede das estradas que levam para leste, Estes particularismos implicam que os itinerários sejam organizados de tal maneira
ou seja, para Kasanje e que desempenham um papel assaz particular, merecendo referência que a resposta económica não provoque nenhum incómodo aos viajantes. Os comerciantes
mais pormenorizada (130).
visitavam, por isso, em primeiro lugar, os povos onde podiam obter escravos em grande
As informações carreadas por Ladislas Magyar não conheceram o eco que teriam quantidade e a «preços reduzidos». Os territórios em questão eram: o reino de Muropoe,
merecido, devido à sua publicação em húngaro, e em Budapeste, cidade muito afastada Kalovar (Loyale), Lubanda, Katanga e Kazembe. Após terem constituído uma reserva
das preocupações africanistas europeias. Mas o oficial magiar multiplica as informações de escravos, iam visitar os povos que dispunham de grandes reservas de marfim, que
respeitantes às práticas comerciais, às quais está intimamente ligado, através da sua recebiam em troca dos escravos, transportados presos com correntes. As trocas com
família africana. Devemos, em primeiro lugar, reter a importância das particularidades gado bovino apenas se registavam nos territórios do Sul (134).
comerciais: o comércio interno, quer dizer, limitado aos mercados locais a curta distância,
Esta descrição conta-se, certamente, entre as mais significativas, dado que o comércio
é bastante diminuto, quando comparado com o comércio com o exterior, isto é, a longa aparece como um conjunto de operações, cuja complexidade é agora mais evidente,
distância (131).
sobretudo, se acrescentarmos a este inventário geográfico e populacional o problema do
De resto, o sistema comercial tinha-se tornado cada vez mais complexo e os tempo, de maneira a coordenar todas as operações. O projecto de uma expedição
comerciantes do Bié organizaram uma estrada que lhes permitia desempenhar o papel comercial não admite a mínima improvisação, porque é necessário levar em linha de
central de mediadores entre os diferentes tipos de comércio africano e o comércio conta os compromissos humanos e financeiros que ela implica. A escolha das populações
europeu.
e a procura dos produtos também pesam na determinação das opções dos responsáveis,
Magyar insiste muito num aspecto essencial: este comércio foi, senão organizado, quer seja do financiamento quer do recrutamento dos carregadores.
em todo o caso reforçado após a abolição do tráfico de escravos. É certo que um grande Do Bié para leste, esta via dirige-se para as terras do Loyale, através do território
número de viajantes e de historiadores continuam fascinados por este horrível fantasma.
dos Ganguelas (Bundos e Ambuelas). Na região dos Luchazes (que são também
Ganguelas), encontra-se o desvio que vai estabelecer a ligação com a Jia Dia Panda,
encaminhando-se para o território dos Quiocos que «são bons caçadores (...) bons
Graça, 1890, p. 386.
Id., ibid., pp. 381-382 e 385-387.
Id., ibid., pp. 385-386.
Ao longo da sua narrativa, Graça multiplica as referências às relações comerciais existentes Id., ibid., pp. 22-23.
entre as populações, cujos territórios vai percorrendo na viagem para a Musumba.
(131) Magyar, 1973. Id., ibid., pp. 23-24.
(134) Id., ibid.
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artífices e pescadores, preparando e cultivando a terra com acerto. Importam o que Os chefes locais procuram reservar para si a verificação das caravanas, mas
necessitam e exportam o que fabricam» (135). pretendem igualmente atrair o maior número possível de comerciantes, vendendo alimentos
As permutas estavam centradas em tomo de alguns produtos. Os de origem europeia, e, mais particularmente, «milho, feijão e mel» (141).) Região muito povoada — como
tabaco do Bié, gado bovino dos Ganguelas e, em pequena quantidade, enxadas e esteiras (136), prova a viagem de Rodrigues Graça — cada aldeia parece mais um mercado local, mas
trocados por «cera, marfim e escravos» ( 137), produtos agrícolas e mel. destinado — ou até sobretudo destinado — a satisfazer as necessidades dos viajantes.
Estes mercados formam, desta maneira, o embrião do comércio regional, pois há cera
5. Bié-Kasanje: através do território songo
e marfim em todos eles.
Graça, que jamais renunciou à sua visão comercial, vai ao ponto de desejar a
Entre as redes comerciais conhecidas é também necessário sublinhar uma ligação criação de uma «feira como a de Cassange», projecto que não será possível levar a cabo
entre o Bié e Kasanje, que percorria os territórios bundo e songo. Só podemos, infeliz- sem a intervenção directa das autoridades portuguesas (142).
mente, apoiar-nos nas fontes europeias, para procurar reconstituir o percurso entre os A prioridade dada pelos Songos à actividade comercial é a consequência da posição
dois centros comerciais, onde se encontravam instaladas as duas feiras afro-portuguesas estratégica que ocupam — entre o Bié e Kasanje, desenvolve-se a famosa Jia na região
mais importantes, situação que se manteve até meados do século XIX. Uma linha recta oriental deste território — e tornada visível pela organização das suas caravanas que,
ia até ao Kwanza, para subir depois através do Grande Songo. de maneira aparentemente incansável, percorrem as redes comerciais do interior até à
O número dos caminhos foi sempre muito importante, mas só nos é possível Musumba, a norte, e a Lovale, a leste.
considerar aqueles que resistiram às modificações das fronteiras, dos grupos e das Esta situação decorre do estatuto das mercadorias postas em circulação. A cera e
mercadorias. Somos, do mesmo modo, levados a reter apenas as vias frequentadas pelos o marfim ( 143 ) são, pelo menos em parte, produções autóctones. Todavia, nos anos finais
Portugueses, mas é necessário não esquecer aquelas que eles não conheceram ou não da primeira metade do século, os Songos compram a parte mais importante destas
registaram por escrito. Dado que a circulação dos Europeus — que percorriam os mercadorias nos territórios do interior: os produtores, que negociavam a sua própria
caminhos organizados previamente pelos Africanos — provocava a criação de lugares produção, passam a utilizar a sua competência comercial para comercializar as produções
comerciais, pelo menos para retirar alguns lucros das operações de abastecimento das alheias. Magyar refere esta «paixão pelo comércio», que permite que «os Songos sejam
caravanas, é provável que as estradas utilizadas sejam sensivelmente as mesmas. frequentemente localizados nos territórios dos Quiocos e dos Luchazes, muito longe, já
Nos anos finais do século XVIII, o percurso, a partir do Bié, seguia uma linha recta para leste, onde eles compram a cera» (144).
pelo território bundo, em direcção ao Kwanza, para alcançar o lugar onde alguns afluentes, Os Songos aparecem, no século XIX, como uma importante força comercial que
entre os quais o Coquema, se lançam neste rio. É nesta região que «habita um sova muito se projecta devido à dimensão das suas caravanas, assim como pela sua participação
potentado chamado o Bungola» ( 138). Esta fracção de caminho é de resto idêntica àquela no funcionamento das «feiras» afro-portuguesas, como no caso de Kasanje ( 145), centro
que leva não só à Jia, mas também para o Sul, num percurso directo para Lovale. das redes comerciais que ligavam «a Lunda, o Peinde e o Quioco» (146\ ). Decididos a
Alcançado este nó crucial, podemos constatar a existência de uma inflexão para alargar o espaço comercial que lhes pertencia, procuram integrar-se nas redes de negócios
o nordeste, em direcção do território songo: «daqui para a feira de Cassange se gastam que vão de oeste para leste, de maneira a responder mais eficazmente à crescente
quatro dias e meio [de marcha] dizem os Negros, no outro dia pelo meio dia, [o viajante] procura portuguesa ( 147), única técnica que podia permitir o aumento dos lucros. Nos
chega à Libata do sova, que está na beira de um famoso rio chamado Loando» (139). anos 1 86 1 , os Songos já tinham adquirido força e aproveitam as perturbações registadas
Rodrigues Graça, que acampou nas margens do Luando e percorreu o território em Kasanje, para atacar todas as caravanas que circulam desta e para esta feira (148).
songo, multiplica as informações, respeitantes aos produtos comercializáveis — ferro,
cera, marfim, escravos k /140\
)— assim como à circulação do comércio a longa distância,
que parece bastante intensa.

Id., ibid., pp. 376-378 e 381.


Id., ibid., pp. 379 e 393.
Graça, 1890, sublinha que «o seu comércio [o do Songo] é o da caça de elefantes», p. 378.
Porto, 1942, pp. 136-137. Magyar, 1973, cap. IX, p. 32.
Id., ibid., p. 26. Ferreira, 1854, pp. 26-27.
Graça, 1890, pp. 404-407; ver também Porto, 1942, pp. 67 e 71-73. Documento de 1858, in Carvalho, 1898, p. 199.
Doc. 1769, A. A., I, Outubro de 1933. ( 147) Carvalho, 1898, p. 132, regista a abundância de «produtos da região tais como a cera, o
Id., ibid., p. 23. marfim (...), em território Songo e em toda a região do Cuango».
Graça, 1890, pp. 377-379 e 381 e seg. ( 14s) Id., ibid., p. 209.

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C. As caravanas e os carregadores: instituições africanas e «europeização» «laicização», imposta pela lógica comercial, mas também, possivelmente, pelo facto
de ser um «descrente».
O comércio a longa distância é, por isso, inicialmente, uma criação específica e A multiplicação de diários, mas sobretudo de descrições, está associada a uma
inteiramente africana, que existia muito antes da chegada dos Portugueses (149). Para racionalização cada vez mais acentuada dos percursos, o que permite cálculos e previsões.
que esta actividade pudesse ser tornada possível, era necessário dispor de meios de Um documento que se conta entre os mais sintéticos, sendo também um dos mais úteis
transporte. Como é sabido, os Africanos não tinham domesticado os animais que pela multiplicidade das informações, é a descrição de Pedro João Baptista, quando
poderiam assegurar este trabalho, pelo que recorriam ao homem, que se transformou, regressou à Feira de Mucary, vindo da costa oriental. As paragens são cuidadosamente
assim, no único carregador. Por outro lado, era bastante raro que os homens e as indicadas, assim como os dias de marcha, permitindo, por isso, um cálculo do tempo
mercadorias pudessem servir-se dos rios e das ribeiras. exigido por uma tão longa caminhada (151).
Havia inicialmente duas regras às quais se não podia escapar: os homens deviam
ser numerosos e a disciplina muito estrita. Existia apenas uma maneira de conseguir 1. A organização africana: religião e parentesco
satisfazer estas duas condições: a organização de caravanas, o que os Africanos fizeram,
pelo menos a partir do momento em que foram levados a criar o comércio a média e Capello e Ivens assinalaram a existência de duas maneiras de designar as
a longa distâncias. caravanas (152) que, no Norte de Angola recebem o nome de «mbacas», ao passo que no
O sistema da caravana permite encarar as numerosas dificuldades, que era necessário Sul são chamadas «quibucas». Nos dois casos, o responsável é sempre um quissongo (153).
superar no dia-a-dia: primeiro, os obstáculos criados pela própria natureza — a floresta, Não encontramos nestas denominações nenhuma palavra europeia, o que só serve
a anhara, os rios, mas também — ou até sobretudo — as feras, que era preciso caçar para confirmar a sua evidente origem africana, se bem que o mais importante resida,
ou manter à distância, dia e noite. Devia, outrossim, contar-se com as dificuldades como não pode deixar de ser, nas formas de organização.
provocadas pelos homens, que defendiam de maneira apaixonada os seus territórios e Ladislas Magyar é certamente o viajante que descreve a situação de maneira mais
consideravam — em grande número de casos — o aparecimento do Outro, como uma precisa e mais interessante, pois se tinha tornado «africano» graças ao casamento com
ameaça insuportável (150).
uma mulher extremamente jovem, pertencente à corte do Bié. O casamento fora decidido
Alguns textos europeus acusam, de maneira constante e frequentemente brutal, as pela família da rapariga, que o oficial húngaro aceitou, aparentemente, sem grandes
sociedades africanas de serem uma autêntica ameaça, pesando sobre as caravanas protestos. É certo que a sua experiência não foi exclusivamente adquirida entre as
formadas pelos comerciantes europeus. É esquecer demasiado depressa que estas ameaças populações do planalto do Bié, mas julgamos poder utilizar as informações do oficial
recaem igualmente sobre as caravanas africanas, mesmo que conheçamos a sua da marinha para mostrar a maneira como funcionava esta máquina de viajar e de
organização de maneira menos perfeita.
transportar. De resto, Magyar organizou em 1 850 a sua própria caravana, como chefe
À medida que o comércio se desenvolve, e isso mau grado a multiplicação dos
africano, de acordo com as regras africanas, a fim de se dirigir à Musumba, a capital
choques com os Africanos, os comerciantes europeus, os Portugueses em particular, vão
dos Lundas centrais (154).
procurar proceder à «europeização» das caravanas. As dificuldades são contudo
A questão mais importante é a dos ritos e dos rituais religiosos, a que devem
consideráveis, porque se as estruturas de comando podem mudar sem grandes dificuldades,
submeter-se os Africanos que querem levar a cabo operações comerciais a longa distância.
aparentes ou reais, os carregadores são sempre africanos e, por isso, dependentes das
«Duas vezes por ano, realizam-se procissões públicas em honra dos kilulu sande [os
estruturas africanas, do parentesco e da autoridade.
bons espíritos]. Um ídolo fabricado com tecido, de tamanho natural, chamado kandudu
As referências às caravanas são tão numerosas quanto as narrativas das viagens
é transportado (...) em companhia de vários kimbanda [padres ou especialistas da
para o interior ou no interior. A maior parte dos documentos apenas fornece
religião] (...) [os moradores da aldeia] recebem em sua casa o kandudu fazendo[-lhe]
informações desorganizadas, conforme a cultura e os sentimentos do viajante. Lázlo
oferendas para poder contar com a sua benevolência e esperar (...) a sorte no negócio,
Magyar descreve a situação, aceitando uma parte do pensamento africano, pelo menos
até certo ponto; Silva Porto, que se treinou no Brasil, procura impor a estas caravanas certo de ter a ocasião de comprar muito bom marfim, cera e outras mercadorias muito
baratas» (155).
uma organização separada das estruturas religiosas africanas, recorrendo a uma certa

Baptista, 1843, pp. 423-425.


Capello e Ivens, 1881, II, p. 17.
Aqui como se verifica em outras regiões africanas. Ver, por exemplo, Mauny, 1961, no que Havemos de voltar a referir-nos à função do kissongo.
se refere à África ocidental durante a «idade média». Ver documentos em anexo.
Ver Graça, 1890, pp. 377-378. Ver também Magyar, 1973, cap. VII, p. 23. (155) Magyar, 1973, cap. VIII, p. 7.

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O carácter geral desta operação parece-nos muito revelador da propagação deste
As cerimónias são demoradas, complexas e caras, relativamente à importância dada
comércio a longa distância. O facto de estas operações serem públicas deve ser interpretado
a uma operação de que ninguém pode prever os resultados. É, todavia, visível que a
como um sinal de mudança, e entender-se que qualquer homem pode, em princípio,
caravana nunca é considerada como uma questão individual: o recurso público ao
tornar-se comerciante. As mercadorias preferenciais constituem o alvo das operações
kimbanda, aos espíritos e ao «chefe de terra» mostra que os viajantes implicam na
comerciais, e se não é possível dizer que as populações do Bié são exclusivamente
operação todos os membros da família, assim como a própria aldeia. Todas estas
formadas por negociantes, estas cerimónias religiosas, que mobilizam a totalidade da
operações comprometem, de maneira concomitante, as autoridades principais: as políticas,
população, participam na banalização desta actividade.
as religiosas e as familiares.
A impregnação religiosa intervém constantemente na organização da caravana. Os
Os próprios viajantes recebem um treino, porque todo aquele que quer aprender a
indivíduos que nela participam devem, para isso, obter o acordo dos espíritos e a sua fabricar os utensílios que vai usar deve, para preparar o exame, efectuar várias viagens
protecção: todos, chefes ou carregadores, devem ter recebido a mpemba, a argila ou
a regiões diferentes. Só quando o candidato revela conhecimentos suficientes na embalagem
caulino branco que assegura a relação quase física com os espíritos (156). das mercadorias e na composição dos banzos (pacotes, fardo de mercadorias) ( 162) pode
Para ser ungido com a mpemba, o candidato à viagem dirige-se primeiro a um
tomar-se um kimbalo, quer dizer, um comerciante que viaja tanto com as suas mercadorias
kimbanda, para lhe fazer perguntas acerca do possível êxito da operação. Podemos
como com as de terceiros, recebidas em regime de comissão ( 163). As mercadorias são-
pensar tratar-se de um adivinho que consulta os objectos que fazem parte do arsenal do -lhe confiadas por pessoas conhecidas que ficam em sua casa e que recebem uma
especialista ( 157 ) e que autorizam ou proíbem a operação. O kimbanda
sacrifica uma fracção, previamente estabelecida, dos lucros a obter. «Esta ocupação é a mais rendível
cabra e unge o corpo do «cliente» com o sangue do animal abatido. O mesmo especialista e ocupa por esta razão, o primeiro lugar» ( 164) na sociedade.
mergulha um pedaço de tecido no sangue do animal sacrificado, que o pretendente à É importante verificar que nesta região — não será conveniente alargar esta
viagem deve apresentar, acompanhado por um «presente», ao «chefe do território», observação a todas as populações comerciantes de Angola? — o trabalho comercial é
pedindo-lhe autorização para levar a bem o seu projecto. Logo que o «chefe» lhe dá esta considerado como o mais rendível. Esta hierarquia das actividades profissionais é
permissão, conservando consigo um pedaço de tecido embebido no sangue do ani- significativa, porque serve para confirmar o que já tínhamos avançado: o comércio
mal ( 158), traça com «o giz branco», quer dizer, a mpemba, um sinal na testa, no peito
africano deve ser encarado como uma das principais actividades de numerosas sociedades
e nos braços, confiando-lhe também um pedaço de mpemba para poder voltar a fazer africanas. O prestígio de que desfrutam os comerciantes deve pouco aos Europeus:
estes sinais ( 159). O equilíbrio de duas cores extremas da gama cromática simbólica, o
provém das próprias estruturas africanas, mesmo que o comércio europeu possa ter
branco e o vermelho, autoriza o candidato à expedição comercial a partir, após ter dado reforçado a sua importância.
ao chefe — como tributo — «uma pequena parte do seu salário de carregador» (160). O parentesco constitui a linha dorsal da organização das caravanas. Aquele que
Uma segunda cerimónia deve, contudo, ser levada a cabo antes da despedida: após pretende organizar uma caravana, assumindo a chefia, deve ser, em primeiro lugar, um
a exposição feita pelo chefe da caravana, dos objectivos da viagem, a todos os que homem respeitado e rico ( 165). Ou dito por outras palavras: não há espaço para os jovens
devem partir com ele — acompanhados pelas suas famílias — o kimbanda sacrifica aventureiros, para se criar uma barreira contra as operações arriscadas, se bem que o mais
uma vaca, extraindo-lhe as entranhas, para anunciar em voz alta o oráculo que a importante resida na própria concepção do comércio associado às caravanas: os chefes
assistência ouve de maneira atenta. Depois da proclamação, o kimbanda besunta os — religiosos e políticos — não podem autorizar a constituição das caravanas a não ser a
rostos e os braços do chefe e dos membros importantes da caravana com o sangue do quem disponha de uma certa base social. O pretendente à organização não fará coisa alguma
animal abatido, fazendo-lhe o sinal da mpemba no peito, dando, assim, autorização à sem ter consultado os parentes, que a devem aprovar. Mais ainda: esta aprovação não é
partida (161). suficiente, pelo que se exige que alguns desses familiares participem na caravana.
Aquele que pretende organizar uma caravana reúne os kikumba — parentes — no

jango — praça — da sua libata — espaço fechado onde se concentram as casas,
sobretudo, as das mulheres e descendentes —, para os informar do seu plano. Se após
exame, o projecto é considerado razoável, recebe autorização para realizar a operação.
Id., ibid., cap. III, p. 26.
Ver, a respeito deste problema, Areia, 1985, pp. 41-52.
Magyar, 1973, cap. III, p. 26. Ver id., 1973, cap. VIII, p. 15, no que se refere mais precisamente aos produtos que formam
Id., ibid., p. 42. o banzo.
Id., ibid., cap. VIII, p. 1. Id., ibid., p. 16.
) Id., ibid., Anexo V, p. 12. Ver documento em anexo. Id., ibid., p. 8.
Id., ibid., Anexo V, p. 9.
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No caso de recusa, os kikumba abandonam o jango sem pronunciar uma palavra, dando Um terceiro grupo é formado pelos «criados» — kikumba (172) —, na maior parte
a saber ao autor do projecto ser necessário, ou abandoná-lo ou modificá-lo (166). No escravos comprados, indispensáveis para assegurarem um certo número de serviços:
caso de haver aprovação por parte dos kikumba, são estes obrigados a difundir a notícia cozinhar, lavar a roupa, tratar dos doentes, trabalhos que os «carregadores contratados
a fim de se proceder ao recrutamento dos elementos que devem formar a caravana. não querem executar por preço algum» (173), pois se trata de actividades específicas das
A composição desta, sob a direcção do seu chefe — som-Abakka — (167), é a mulheres. Só os escravos — e possivelmente só os comprados — podem ser, dado o
seguinte: os kimbalo, isto é, os comerciantes que transportam mercadorias que lhes seu estatuto, colocados no lugar e nas funções das mulheres.
pertencem, formam o primeiro grupo e ocupam o segundo lugar na hierarquia da Finalmente, nas caravanas descritas por Magyar e nas quais ele participa, no início
caravana; estes kimbalo podem também, em troca de uma comissão, recrutar parentes como convidado — nos primeiros tempos da sua instalação em Angola — depois como
que desejem viajar com as suas mercadorias, ou fazer comércio com as de terceiros. chefe, encontramos dois indivíduos cujas tarefas são definidas de maneira muito precisa:
Trata-se, como é evidente, de um grupo que conhece bem o mecanismo das permutas o kissongo (responsável, encarregado) (174) e o kalei, ou seja, o intérprete (175).
e pode ser considerado como formado por comerciantes já profissionalizados. Magyar Estaremos perante uma estrutura estritamente africana, ou será ela já caracterizada
considera-os como sendo «pessoas astuciosas e experimentadas que adquirem com o por mudanças provenientes dos interesses ou dos métodos europeus? Parece que as duas
tempo uma riqueza importante em escravos e em gado» (168). personagens, kissongo e kalei, só intervêm nas caravanas organizadas por Europeus,
O S kimbalo devem recrutar os carregadores, destinados a transportar as suas exercendo ambos papel de intermediários entre a massa das pessoas comprometidas
cargas. Mas procuram também integrar na caravana, com essa mesma função, conhecidos nesta operação de longa duração e o chefe. Não parece haver funções deste teor nas
e parentes para os quais pedem cargas ao responsável, em troca de um «salário» (169). caravanas organizadas pelos Africanos, mas a situação serve para mostrar, se tal fosse
Estes constituem a fracção mais importante do segundo grupo da caravana: o que é ainda necessário, a grande capacidade de adaptação das estruturas africanas (176).
formado pelos carregadores contratados em troca de um pagamento. A presença de outros grupos especializados nas caravanas depende certamente das
Todos os carregadores (gamba) recebem um «salário» que varia em função do tipo regiões a percorrer ou a contactar. Na caravana que Magyar prepara para viajar até
de mercadoria transportado. Magyar dá um exemplo: no percurso Benguela-Bié, «uma ao território lunda, podemos dar-nos conta da aparição de outra categoria de homens:
distância exigindo 30 a 42 dias de marcha, o salário mais elevado de um carregador os vakongo-an-djamba — caçadores de elefantes — que ocupam o terceiro lugar na
é em geral formado pelas mercadorias seguintes: 10 côvados de pintado (tecido branco hierarquia interna. Viajam sem mercadorias, levando consigo apenas as armas e as
com flores); 10 quadrados de tecido (quer dizer, pequenos quadrados com riscos vermelhos munições, o que nos leva a pensar que são alimentados pela própria expedição. A sua
e brancos); 10 côvados de tecido «legal» (tecido de lã com pequenos quadrados); 4 função parece dupla: caça e protecção da caravana, servindo a sua presença armada
côvados de garraz (tecido branco engomado); 2 garrafas de aguardente, ao que se
acrescentam, como quer a tradição, 6 côvados de tecido para comprar a comida» (170).
O campo semântico coberto pelo substantivo kikumba é revelador do movimento que parece
Os carregadores desejam, acima de tudo, receber tecidos e vestuário, o que os leva caracterizar as sociedades africanas, que procuram acima de tudo — a partir do momento em que desaparece
frequentemente a aceitar e até a procurar este tipo de trabalho (171). o tráfico negreiro — integrar os homens. Kikumba pode ser também utilizado para designar os parentes
Trata-se de um «salário» líquido, sendo o kimbalo responsável pelos carregadores (ver mais acima), permitindo a identificação daqueles que, no quadro da família alargada, se encontram
quem o propõe, devendo assumir os prejuízos que estes possam ocasionar à caravana. numa situação de dependência; noutro registo, o substantivo é também utilizado para designar os escravos
Por esta razão, o kimbalo procura recrutar homens de sua confiança, parentes de comprados — diferentes e opostos aos escravos da aldeia — para assegurarem os serviços domésticos na
caravana. Obrigada a reduzir o número de mulheres, ou até a eliminá-las, a caravana compra homens
preferência. Nestas condições a caravana é simultaneamente homogénea e fortemente destinados a levarem a cabo as tarefas que, nas aldeias, pertencem às mulheres. Formada por homens, a
segmentada em famílias. Pode acontecer que os laços de parentesco sejam substituídos caravana mantém a separação entre as actividades masculinas e femininas, sendo por isso obrigada a
por laços de dependência, consagrados pelos rituais e pelo «sangue da mpemba». encontrar uma solução. L. Magyar completa esta deriva, visto que aplica aos escravos encarregados de
Somos, por isso, levados a considerar as condições segundo as quais se realiza o satisfazerem estas funções domésticas o qualificativo serviçais, que no vocabulário colonial português
designa os dependentes contratados.
recrutamento, sem esquecer a questão importante da remuneração. Magyar, 1973, cap. I, p. 24.
Id., ibid., Anexo V.
Id., ibid., cap. 1, p. 24.
,166,) Id., ibid. (176) Quando Magyar, transformado em «africano» por via do casamento, organiza ele próprio a
sua caravana para a Lunda (ver documento em anexo), as duas personagens desaparecem. Mantém-se
Id., ibid., cap. I, p. 24.
todavia o kissongo, associado a Magyar, em virtude do ritual que serviu para institucionalizar a sua
Id., ibid., cap. VIII, p. 16 (nota 7).
Id., ibid., cap. 1, p. 10. relação de amizade. Estes rituais, cujos pormenores não conhecemos muito bem, terminam com um
Id., ibid., p. 23. abraço entre os dois homens e a ingestão de uma «cerveja feita de milho, o kilombo». Podemos, de resto,
(171) Id., ibid., cap. II, p. 6. Ver também cap. IV, pp. 19-20. perguntar se este ritual não se aproxima de certa maneira dos pactos de sangue de que falámos alhures.
Ver nota 162.
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para tranquilizar. Por outro lado, estes homens, organizados em pequenos grupos, categoria de mercadorias. Os carregadores de sal recebem em geral metade daquilo que
começam a caçar o elefante quando a caravana chega ao destino. Em geral, os caçadores é pago aos carregadores de kupa» (181).
ficam durante um ano no término da viagem com os outros elementos da caravana: «no «Um carregador do Bié recebe em geral uma carga de 64 libras (29,130 kg.), mas
caso de obterem uma grande quantidade de marfim, procedem à venda de uma parte, transporta ele além disso a sua alimentação, as armas, os objectos para cozinhar e a
durante a viagem do regresso, aos kimbalo, em troca de outras mercadorias». No caso
esteira para dormir, de tal maneira que a carga total ascende a cerca de 90-95 libras
de terem obtido pouca quantidade de marfim, regressam a casa com ele (177). (40,824-43,002 kg.)» (182).
Esta descrição da organização das caravanas permite-nos fazer uma ideia Para transportar as cargas, os carregadores utilizam uma corda fina feita de ráfia
verdadeiramente precisa do número de elementos que a integravam, sendo todavia certo, mukolo e duas varas compridas, mango, que servem para apertar o fardo. Este dispositivo
que paira sobre esta questão alguma incerteza. Maria Emília Madeira Santos afirma que torna o transporte mais fácil, ao mesmo tempo que permite que o carregador possa
«uma caravana comercial devia ser numerosa: sempre para cima de mil pessoas mas descansar. Basta para isso encostar as extremidades das duas varas a uma árvore. Pode
muitas chegavam a atingir três mil e mais» ( 178). Infelizmente, não há nenhuma prova também voltar a pôr a carga ao ombro sem grande esforço.
que nos permita aceitar esta afirmação, que nos parece algo excessiva, quanto mais não Para deslocar uma carga mais pesada que, devido à sua estrutura, não pode ser
seja pela dificuldade de manter uma gestão equitativa de tão grande massa de pessoas. dividida — é o caso de certos dentes de elefante — são mobilizados dois carregadores,
A caravana de Magyar contava «400 companheiros armados» ( 179), aos quais é necessário que recebem um salário e meio, «porque o transporte a dois é muito difícil nas florestas
acrescentar outros elementos: se multiplicarmos por três, chegamos a um número médio de vegetação densa e nos caminhos estreitos» (183).
de 1200 pessoas, o que está muito longe das três mil ou mais pessoas anunciadas. A preparação das cargas exige vários meses, estabelecendo o chefe da caravana um
Podemos considerar que o número máximo, de que se podem avançar provas, é de 1500 calendário. É na véspera da partida que se realiza a cerimónia do sacrifício do boi, para
pessoas, o que é já considerável. que os espíritos protejam os homens, as mercadorias e os negócios, terminando a festa
A preparação das cargas é uma tarefa que incumbe aos carregadores contratados, com comida, bebida e, naturalmente, música e dança.
operação que se realiza em casa dos proprietários, onde elas são guardadas até à véspera Depois, os carregadores vão buscar as cargas, que tinham estado até então guardadas
da partida. em casa dos proprietários, e só então se concentram no kilombo — acampamento —,
Já pudemos constatar anteriormente que a técnica da embalagem das mercadorias onde será dada a ordem de partida (184).
constitui uma autêntica proeza artística, pois caracteriza uma especialização associada A pormenorizada descrição de Magyar permite penetrar no mecanismo da organização
ao comércio, exigindo «uma grande habilidade e experiência para que as mercadorias das caravanas africanas, que implica uma série de questões importantes.
não sejam estragadas», permitindo assim distribuí-las de maneira equilibrada pelos A primeira está associada à utilização dos lucros obtidos pelos seus organizadores.
carregadores, evitando as cargas demasiado pesadas, que correm o risco de ser abando- É certo que toda a gente espera ganhos ou então «salários», mas a organização deste
nadas a meio do caminho por aqueles que as transportam (180). tipo de caravanas exige um investimento considerável. Apesar da maneira minuciosa
As mercadorias são divididas em três categorias, conforme a importância que como Magyar nos descreve o sistema, nem por isso estamos em condições de proceder
possuem no sistema hierárquico do grupo. Os tecidos, as porcelanas e os vidros pertencem a cálculos úteis, sendo todavia de registar que Silva Porto também não se mostra mais
à primeira; a aguardente, a pólvora e as armas, à segunda; ao passo que o sal constitui eficaz no que diz respeito aos cálculos.
a terceira. A embalagem e a distribuição das mercadorias respeitam estas regras e os É que os «comerciantes profissionais», a que se refere Magyar, podem constituir
«salários» dos carregadores variam em função das mercadorias transportadas. um elemento modernizante, consequência do reforço da institucionalização do comércio
Magyar empenha-se em descrever de maneira minuciosa o conjunto do sistema, a longa distância. Seja como for, as informações de L. Magyar permitem verificar que
assim como o modo como são organizados e transportados os diferentes tipos de cargas. os Africanos estavam então em via de criar especialistas, cuja função é simétrica àquela
Os tecidos consideram-se como a mercadoria principal, e é assim que «aqueles que que os Portugueses confiam aos sertanejos, quer dizer, comerciantes do mato, que não
transportam (...) os fardos de tecido, os kupa em forma de cubo, recebem um salário podem ser classificados e analisados conforme os modelos do comércio instalado nas
superior, idêntico àquele que recebem os carregadores que transportam a segunda cidades.

Magyar, 1973, Anexo V, p. 10. Id., ibid., pp. 23-24.


Santos, 1981, p. 30.
Magyar, 1859, p. 9. Id., ibid., p. 23.
Id., 1973, cap. I, p. 22. ( 183) Id., ibid., p. 23, assim como cap. VII, p. 24.
( 19 Id., ibid., Anexo V, p. 12.
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Apesar disso, estes comerciantes não podem pôr em causa as condições de
presso em moedas ou notas — recebido pelo trabalhador industrial ou urbano. Estamos
funcionamento das sociedades africanas. Magyar diz que os seus lucros são transformados
mais certamente perante uma compensação não-monetária, que é muito difícil de acumular.
em escravos e em gado bovino. A riqueza africana nesta região só pode ser compreendida
De resto, estas formas de compensação não parecem permitir, em qualquer caso, grandes
por dois excessos de carácter acumulativo: o dos homens, que se soma ao dos bovinos.
acumulações. Alguns carregadores mais astuciosos utilizam, contudo, estes tecidos ou
Os escravos podem ser utilizados nas tarefas domésticas — pelo menos durante o estas roupas para penetrar no mato, em regiões pouco ou nada frequentadas pelo comércio
período em que o seu estatuto os coloca num lugar hierárquico, ocupado pelas mulheres
normal, para obter em troca marfim e escravos.
e pelas crianças não púberes —, os animais podem ser abatidos, se bem que raramente. A maior dificuldade destas organizações africanas reside alhures, no carácter
Se não acontecer, estão destinados a envelhecer: o rebanho mais apreciado é aquele que monoétnico da sua organização. Mais ainda: a caravana depende dos chefes tradicionais,
concentra o maior número de animais idosos.
da aldeia e das diferentes formas de parentesco. Somos levados a considerar estar na
A segunda questão, cuja importância deve ser cuidadosamente avaliada, é a dos presença de um grave obstáculo à generalização do comércio e das mercadorias, que
carregadores e dos seus «salários». Há que considerar, em primeiro lugar, os carregadores circulam numa espécie de canal étnico. Ou dito por outras palavras: os Africanos
livres, que devem ser distinguidos dos escravos transformados em carregadores, tanto parecem incapazes de encarar uma colaboração transétnica, que teria tornado possível
mais que estes se dividem em dois grupos: os escravos da aldeia e os escravos comprados. uma racionalização mais rendível das produções e do comércio. Encerrados no clã, na
Os primeiros podem ser carregadores, ao passo que os segundos devem realizar as aldeia, no grupo étnico, as produções e os comerciantes africanos nunca conseguiam
tarefas associadas ao estatuto das mulheres. Os próprios «salários» dependem do tipo adquirir a liberdade de movimentos, que torna possível a modernização económica. Esta
de mercadorias transportadas, mas o texto mostra que nada impede alguns carregadores fidelidade africana ao território e às instituições clânicas, políticas por consequência,
de organizarem a sua própria actividade comercial. Isto talvez permita afirmar que a interdiz a acumulação (primitiva ou não), sem a qual é impossível integrar-se nos
caravana se caracteriza também pela banalização do «espírito de comércio», ou dito por processos económicos modernos, em suma, no capitalismo.
outras palavras, pela banalização das actividades comerciais, que implica a prática Aquilo que nos é contado por qualquer um dos viajantes, que temos seguido
generalizada desta actividade. atentamente nas suas deslocações, responde a esta blocagem interna: semelhante situação
É certo que estas observações não permitem esclarecer algumas questões internas, deixa aos comerciantes europeus da costa a tarefa essencial de assegurarem a transferência
entre as quais aquela que se refere à existência de uma «ordem do comércio»: se não das «mercadorias locais» para a circulação mundial. Esta situação explica que o comércio
existisse uma hierarquia mínima, a concorrência interna poderia provocar alguma de exportação tenha ficado de maneira constante nas mãos dos Europeus. Foi necessário
desordem, mesmo que relativamente menor. Mas é também verdade que esta ordem esperar os anos 1911-1920, para que os Africanos instalados em Lisboa se dessem conta
existe baseada na qualidade e no número de mercadorias aceites antes da partida pelo desta inferiorização do comércio africano (186,.) A fidelidade ao grupo compromete o
organizador da caravana. Esta observação é da maior importância, porque condiciona desenvolvimento, tal é a lição que se pode extrair destas maneiras de funcionar das
os «salários» dos carregadores. A hierarquia das mercadorias determina o valor dos caravanas.
«salários» pagos aos carregadores.
O sal é uma mercadoria de pouco valor nos cálculos económicos destas caravanas. 2. A «nova ordem europeia». O exemplo de Silva Porto
Pensamos tratar-se da consequência de uma produção muito generalizada, que permite
que uma grande parte dos grupos seja auto-suficiente (185). O sal aparece também nas A religião e o parentesco determinam a organização das caravanas africanas, o que
caravanas como uma mercadoria pouco rendível para os carregadores. Feita esta excepção, explica que as tentativas de recuperação europeia estivessem destinadas ao fracasso.
a hierarquização dos «salários» mantém uma relação directa e constante com a qualidade Não inteiramente, dado que as mercadorias, os percursos e os pagamentos são obrigados
das mercadorias, mais importante do que o peso da carga, que deve ser homogéneo. a mudar, mesmo que procurem conservar-se no quadro africano.
Quando tal não acontece — como já verificámos ser o caso dos dentes de elefante mais Os textos portugueses fazem com muita frequência referência aos carregadores,
pesados —, o «salário» aumenta também. Estas observações colocam-nos perante pois se trata dos únicos «animais de carga» de que podem dispor os comerciantes,
alguns problemas que não podemos resolver: haverá especializações no mundo profissional europeus ou africanos. Mas estes carregadores são referidos de maneira isolada, e as
dos carregadores? caravanas dos negociantes portugueses só começam a ser descritas no século XIX,
Os textos falam geralmente e sem qualquer reserva em «salários». Pensamos que
não se trata na verdade de «salários», sendo estes homens pagos com tecidos ou com
roupas. Não se pode, pois, comparar o acesso destes trabalhadores ao salário — ex-
(186) Os «nativistas» africanos tentaram, por volta de 1920, organizar uma companhia comercial
para assegurar a comercialização das mercadorias produzidas pelos Africanos. O recurso ao modelo de
Marcus Garvey não chegou a efectivar-se, por razões que não são conhecidas. Ver O Correio d'África.
(185) Ver 3.' parte, cap. II, consagrado às complementaridades alimentares.
Lisboa, 1921.
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quando os comerciantes se internam no mato para aí trocar as suas mercadorias por Só à medida que se alargou a procura e a exportação das mercadorias africanas,
produtos «lícitos» africanos. Até aos anos 1830, as caravanas portuguesas eram destinadas
tais como a cera e o marfim, apareceu a necessidade de se organizarem caravanas,
à compra de escravos, que constituíam, por isso, o grupo quantitativamente mais formadas por carregadores que assim asseguravam o caminho de regresso. A forma de
importante da caravana.
organização parece bastante tardia, tendo começado pelos anos 20 do século XIX.
Quer dizer que as regras deveras complexas das organizações africanas estão Este carácter flutuante das caravanas portuguesas do século XIX, em relação ao
ausentes quando se trata das caravanas geridas por comerciantes portugueses, o que não carácter assaz rígido das suas congéneres africanas, depende sobretudo dos elementos
as impede de conservar a sua eficácia no registo da obtenção dos escravos e das «étnicos»: as segundas são mais homogéneas do que as primeiras. Por outro lado, os
mercadorias, embora as suas funções sociais sejam completamente diferentes. homens desertavam mais nas caravanas portuguesas, pois estavam apenas ligados por
Podemos dizê-lo assim: enquanto os Africanos organizam as caravanas no quadro um contrato, ao passo que nas africanas os homens eram responsáveis perante a
de um grupo — sobado ou linhagem —, para obter mercadorias europeias, as caravanas linhagem ou o clã, já que a caravana constituía uma espécie de prolongamento dessas
portuguesas obedecem exclusivamente às necessidades do tráfico de escravos. estruturas. O peso do sobado, do parentesco e da religião faz-se sentir em todas as
Durante este período, assaz longo, as caravanas portuguesas devem ser analisadas opções dos homens integrados nas caravanas africanas. Se um carregador africano é
conforme vão para o interior, ou daí regressam. Não se trata de maneira nenhuma de forçado a abandonar a caravana, é ele próprio que o comunica ao chefe, depois de ter
um contra-senso, pois a primeira parte da viagem é destinada a levar as mercadorias encontrado um substituto ( 190). As caravanas portuguesas — ou europeias — são
para o interior, no intuito de obter escravos: os carregadores tornam-se, então, caracterizadas pelas deserções inopinadas que colocam os chefes perante situações
absolutamente indispensáveis. Às vezes, estes são recrutados entre os escravos em poder
inverosímeis, em que é indispensável renunciar a assegurar o transporte de algumas
dos Europeus, mas podem também ser homens livres que regressam a casa, após alguma cargas, para as quais faltam os carregadores.
operação comercial. A viagem de volta deve ser organizada de maneira completamente Os textos portugueses dos séculos XVII e XVIII permitem-nos acompanhar a
diferente, porque impõe a vigilância dos escravos destinados à exportação nos portos evolução do recrutamento dos carregadores no quadro do comércio dos escravos português:
da costa (187).
as violências cometidas pelos Brancos contra os Africanos não podiam deixar de

provocar as respostas africanas: a fuga ou a deserção eram as menos graves, sendo a
Mato Mato mais importante aquela que implicava o abandono dos territórios «vassalizados» pela

Coroa portuguesa (191).
If Escravos
A partir de 1666, a legislação portuguesa, respeitante à questão dos carregadores
Costa Costa ~e Homens livres em Angola, procura moralizar a situação, impondo o pagamento de um «salário» aos
carregadores, fornecidos aos comerciantes pelos capitães-mores dos presídios. Estes
exigem-nos aos sobas, no quadro dos «acordos de vassalagem» estabelecidos entre as
As viagens para o mato podem recrutar, como carregadores, homens livres autoridades portuguesas e os chefes africanos. Nos princípios do século XIX a situação
de regresso às suas aldeias; as viagens para a costa necessitam apenas de mantinha-se contudo a mesma, pois que a legislação portuguesa ficara sem aplicação
escravos. prática. A retribuição dos carregadores era insignificante, quando paga. Os Africanos
votavam uma repulsa profunda a este tipo de trabalho ( 192). O «salário» — calculado
A composição demográfica destas caravanas era muito fluida, pois só podia variar em «640 réis no fim da negociação» ( 193) — era pago pelo comerciante ao capitão do
em função das transacções efectuadas e dos escravos adquiridos. Quando regressavam, presídio, o qual, na maior parte dos casos, o guardava para si ( 194). Se estas práticas
elas eram essencialmente compostas por escravos acorrentados — os famosos libam- dos responsáveis portugueses eram já inaceitáveis, elas agravavam-se pelo facto de os
bos ( 188) — cada um dos quais era portador do seu próprio
capetal, isto é, da sua carregadores serem considerados «responsáveis pelas perdas sofridas no conjunto das
alimentação ( 189), fornecida pelo comerciante e renovada quando se passava pelos mercadorias» que transportavam (195).
presídios, ao longo de um percurso que podia exigir meses até se alcançar a costa.
Ver Magyar, 1973, cap. V, p. 19. Diz o autor húngaro que os carregadores abandonam as
caravanas, quando, dispondo já de tecidos, chegam perto das suas aldeias.
A respeito destas violências, ver Margarido, 1981, pp. 896 e seg.
Gama, 1839, p. 75.
Ver Lima, 1846, p. 57. Id., ibid., p. 77.
Ver a descrição de Mendes (1793), 1977, pp. 41-42, assim como Correia, 1937, vol. I, p. 36. Ver Margarido, o. c., pp. 896-898.
( 189) Mendes ibid.
Id., ibid., p. 899.
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sta situação de violência e de conflito, que opunha os Africanos aos Portugueses,
Carregadores «caçados»: o reforço da procura de carregadores sugere aos
foi primeiro denunciada pelo governador D. Miguel de Mello (1802) e, mais tarde, em 1814,
capitães a organização da caça aos carregadores, utilizando, para isso, não só os
pelo governador Saldanha da Gama. Os dois responsáveis políticos lamentavam a ausência
soldados brancos, mas recorrendo também aos empacasseiros, quer dizer, às tropas
de animais capazes de assegurarem o transporte dos homens e das mercadorias (196).
africanas (200). Esta técnica parece explicar o enriquecimento rápido de algumas
Gama condenava o sistema português e o apetite dos comerciantes que não se limitavam
autoridades portuguesas (201).
simplesmente a instalar-se para esperar que os Africanos lhes trouxessem as mercadorias,
Trata-se, de facto, de uma nova versão da escravatura: estes carregadores, sem
preferindo ir procurá-las no mato, o que os forçava a recorrer ao serviço dos carregadores,
nenhuma protecção enquanto estão nas mãos dos comerciantes brancos, são vítimas das
que provocava quase sempre a fuga dos Africanos. Estas maneiras de agir reduziam a mão-
-de-obra e travavam o desenvolvimento da «colónia» (197). violências portuguesas, não dispondo do mínimo apoio das sociedades africanas e não
podendo contar com o mais pequeno «salário».
A partir de 1830, as contradições agravam-se, tornando-se ainda mais difícil o
Carregadores voluntários: por volta de 1830, o diploma, que assegura a integração
recrutamento e a utilização dos carregadores angolanos. Como era habitual, os
do território de Pungu-a-Ndongo no «reino de Angola», sublinha que nem os «chefes
responsáveis portugueses denunciam a situação e preparam uma legislação destinada a
eliminar o que é considerado como uma anomalia (198). de terra» nem nenhuma outra autoridade africana seriam obrigados a fornecer
carregadores. Estes deviam ser voluntários, tendo estabelecido acordos individuais com
Estamos, todavia, perante uma forma de choque entre a legislação elaborada em
Lisboa e a sua aplicação em Angola, onde os comerciantes e as autoridades — civis os comerciantes que os quisessem contratar. Esta medida será até retomada em 1851
nas instruções dadas pelo governador de Angola ao encarregado da administração do
e militares — as ignoram. O sistema é conservado, quando não até reforçado, pois se
trata de fazer chegar à costa mercadorias novas, destinadas a compensar a redução e, distrito de Talla-Mugongo, que estava integrado na Feira de Kasanje (202).
mais tarde, o fim do tráfico negreiro.
As medidas realmente decididas para assegurar a protecção dos carregadores
O novo contexto luso-angolano deve regularizar a questão fundamental dos
africanos nunca chegam a impor uma certa moderação aos utilizadores destes homens,
carregadores, levando em conta a ausência de qualquer sistema de substituição, pois se
que eram a chave do êxito do comércio europeu. Digamos que só dificilmente elas
goravam regularmente as tentativas de introduzir animais de transporte. O recrutamento
e a utilização dos carregadores pode ser assim descrito: podiam ser eficazes, dada a ausência de qualquer sistema mecânico ou animal capaz
de assegurar o transporte das mercadorias de maneira mais rápida e sem grandes
1) Carregadores assalariados fornecidos aos comerciantes pelos capitães dos presídios, despesas. As providências de Sá da Bandeira, retomadas pela legislação de 1856,
que os recebiam dos sobas: estes carregadores tinham legalmente direito a um salário chocam-se com os interesses dos colonos (203).
insignificante e pago com atrasos consideráveis. A situação mais corrente era o não A situação só consegue ser desbloqueada, assinalando o termo da impotência da
pagamento deste salário (199). administração portuguesa, por volta dos primeiros anos da segunda metade do século
XIX, graças à multiplicação das caravanas afro-portuguesas, que procuravam fazer
comércio nas regiões interiores da África. Estas caravanas ofereciam condições mais
favoráveis aos carregadores, sem todavia renunciar à obtenção de lucros interessantes.
Mello, 1885, pp. 550-551, e Gama, 1839, pp. 74-75.
Gama, 1839, pp. 76-78.
A legislação do marquês de Sá da Bandeira pertence ao quadro das medidas que procuram
pôr termo ao escravo-mercadoria em África. O sistema dos carregadores parece-lhe de tal maneira
iníquo, que toma medidas urgentes, após ter consagrado a este problema uma análise sistemática, para Documento de 24 de Fevereiro de 1838, A. H. U., CGA, 1838, cx. 3 (587), pasta 544,
acabar com o comportamento inadmissível das autoridades e dos comerciantes. Ver também «Os sofrimentos Novembro de 1838.
de um carregador que vai para o sertão», manuscrito de João Saraiva da Fonseca, que descreve uma Estas autoridades pediam até 200 réis de prémio por carregador, o que permite compreender
viagem de Luanda para Ambaca em 1843. A. H. U., Colecção Sá da Bandeira — Documentos relativos a origem de somas de 30 e 40 000 cruzados obtidos em dois ou três anos por alguns regentes, ao mesmo
às colónias portuguesas, maço 5. Alguns extractos publicados em Alexandre, 1979, pp. 151-153. tempo que explica a queda da população africana. Ver também Margarido, 1981, p. 903.
Documento de 23 de Outubro de 1839, A. H. U., CGA, 1840, cx. 590. Este documento, subscrito «...fica por ora expressamente proibido ao chefe de distrito de dar carregadores não podendo
pelo capitão da Feira de Kasanje, enumera os maus tratamentos infligidos aos carregadores pelo tenente contudo opor-se a que os povos se ajustem para o serviço de carretos com os próprios negociadores».
Miguel Soares de Resende, chefe do distrito de Golungo Alto, conforme as informações — ou as queixas? Ver Carvalho, 1898, p. 151.
— do soba que lhos fornecia. Estes carregadores estavam longe das suas aldeias desde 1837, contrariando Rodrigues Neves, que não é militar de carreira, mas comerciante profissional em Kasanje,
as regras estabelecidas que impunham que eles deviam descansar um mês entre dois serviços, não podendo era acusado de ser «o principal cabeça dos maus tratos cometidos em muitos pretos livres carregadores,
ser instalados em casa daqueles que os contratavam. O documento acrescenta que os carregadores fornecidos
os quais em contravenção das ordens estabelecidas foram mandados sair de Cassanje para fora dos
por este chefe, o soba Bango de Kasanje, se queixam de não poder descansar, tal como de trabalhar no
interior de Kasanje sem nunca ter sido pagos, e quando pedem a remuneração, o comerciante responde que domínios portugueses, presos com correntes ao pescoço, a fim de carregarem com fazendas pertencentes
foram comprados com dinheiro entregue nas mãos do seu chefe. a diversos especuladores, de cujos maus tratos resultou a morte de vinte e dois d'entre eles e grandes
sofrimentos a muitos outros». Ver Carvalho, 1898, pp. 184-185.
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De resto, a utilização dos carregadores em outros serviços aumenta, agravando a
situação destes africanos, uma vez que o seu recrutamento se fazia nas categorias procuram obter vantagens, entre as quais a de reduzir o peso das cargas, considerado
sociais menos vigorosas (204). frequentemente excessivo, para o conservar à volta de 25 quilos ( 207). Os «salários»
Rodrigues Graça e Silva Porto podem fornecer-nos o modelo dos comerciantes deixam de ser sugeridos ou impostos pelos comerciantes: são os carregadores que
do mato que organizam as suas caravanas, procedendo ao recrutamento de Africanos, decidem qual deve ser o preço a pagar, levando em conta o trajecto e a duração da
viagem (208).
que devem ser integrados em formas de organização que respeitam o modelo afri-
cano ( 205). Assistimos, então, a uma espécie de inversão da relação de forças no O modelo mais perfeito das tentativas efectuadas para assegurar a «europeização»
interior da caravana, podendo os carregadores controlar o ritmo e as regras do seu das caravanas, constituídas respeitando o modelo africano, é certamente o fornecido por
funcionamento. Silva Porto. Organizou muitas caravanas durante a sua longa vida comercial e, ainda
Os comerciantes procuram resolver o problema crucial da organização da caravana: por cima, conhecia muito bem a sociedade africana do Bié, à qual se encontrava ligado,
atrair colaboradores comerciais, capazes de utilizarem o parentesco, que continua a devido ao casamento com uma bisneta do chefe do Bié, apesar de manter com orgulho
servir de suporte a todas as caravanas africanas. Para chegar a uma solução aceitável, a sua condição de português.
os comerciantes procedem ao recrutamento de pombeiros, que asseguram a mobilização O comerciante começa por pôr em evidência a estratégia adoptada para recrutar
dos carregadores. carregadores, de maneira a reduzir o peso dos laços de parentesco: procura aceitar os
Todavia, a ausência de uma rede densa de laços de parentesco impede a celebração Africanos não já como membros de uma linhagem, mas sim como indivíduos que
de rituais religiosos que servem para consolidar a unidade da caravana, o que autoriza aceitaram cumprir uma tarefa muito precisa. Deve, por isso, esperar que se manifestem
os Africanos a agirem sem a menor restrição em relação ao chefe da caravana. Podem, os voluntários, pois, «aquele que apela para alguém [assume] responsabilidades em
por isso, desertar por qualquer razão, sem tomar o cuidado de procurar encontrar um relação a esta pessoa no caso de ela vir a morrer». As formas de recrutamento devem
substituto, e sem dar o menor aviso ao chefe. Para completar esta subversão das regras procurar reduzir ambiguidades e incertezas e, até ao momento da partida, o recrutador
observadas nas caravanas africanas, os carregadores exigem também ser pagos deve insistir em salientar «que é de livre vontade de cada qual seguir ou deixar de o
adiantadamente ou a meio do percurso, ameaçando parar se o «branco» manifesta a fazer» (209).
veleidade de resistir às suas exigências. De resto, as surpresas começam antes mesmo da partida. Um grande número de
Estas duas questões preocupam, de maneira considerável, os comerciantes: Rodrigues recrutados renuncia a partir «em consequência de casos de morte entre parentes e
Graça vê-se obrigado a parar durante trinta dias, quando 150 dos seus carregadores amigos, moléstias, passar a noite com mau sonho, ou então na ocasião de amarrar a
decidem abandoná-lo bruscamente num lugar remoto do mato, exigindo receber o carga, porque alguma cobra no trânsito passou de um extremo a outro do caminho,
«salário» da viagem. Só consegue obter substitutos após negociações penosas com o dando-se a mesma particularidade em relação a veados, toupeira, raposa, cão silvestre
chefe local, contra o pagamento antecipado dos novos carregadores, que conheciam e finalmente lobo» (215.
naturalmente as condições em que se tinha verificado a deserção dos anteriores (206). É provável que se trate de animais tabus, mas não dispomos infelizmente de
Para fazer face a esta situação, os chefes de caravana respondem com uma medida documentos que nos permitam afirmá-lo. Seja como for, estes animais desempenham um
recuperada no arsenal das práticas europeias: as caravanas integram carregadores papel determinante nas escolhas individuais, o que significa que estamos perante uma
substitutos, o que as torna muito mais pesadas e dispendiosas, pois ninguém pode semiologia religiosa que nenhum chefe de caravana consegue eliminar. Rodrigues Graça
garantir que os substitutos não decidirão partir também. fora o primeiro a dar conta deste comportamento singular entre as populações quiocas:
Esta «superioridade» dos Africanos traduz uma relação de forças nova: engendrada quando um destes «selvagens» viaja, e cai um pedaço de lenha que atravessa o caminho,
pouco a pouco, forçada pelas práticas brutais de muitos europeus, permite que os regressa a casa para consultar o adivinho; logo que este é capaz de adivinhar «isto ou
Africanos possam replicar aos abusos dos colonos e dos comerçiantes. Os carregadores aquilo», ele faz-se ungir com «remédios» fabricados com ervas e raízes guardadas
debaixo da cama ou junto da porta. Só após a realização destas operações é que o
viajante pode continuar viagem (211,.) Silva Porto confirma a importância desta situação
Já em 1839 as autoridades portuguesas tinham tentado utilizar os Africanos noutros trabalhos, de «corte» do caminho, mas ela parece menos geral, ou menos grave, do que nos diz
queixando-se da «incapacidade dos sobas em controlar os seus homens preguiçosos». Documento de
1839, A. H. U., CGA, 1840, cx. 590. Carvalho, 1898, p. 183, também faz referência à utilização «dos
carregadores de Rodrigues Neves (pelo mesmo) na construção de várias construções na feira de Casanje», Ver Margarido, o. c., p. 907.
em 1856.
Id., ibid.
Graça, 1890, pp. 378-383, e Porto, Manuscrito SGL, Notas para retocar a minha obra, 1866 Porto, Manuscrito citado, p. 51.
(ver documento anexo). Ver também Santos, 1981. Id., ibid. pp. 51-52.
(206) Graça, 1890, pp. 382-383.
(211) Id., ibid.

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Graça: é necessário que o «corte» seja provocado por uma cobra que teria decidido
atravessar o caminho diante daquele que deve partir. europeus» em África, embora reconheça que na «nossa África ocidental, populações
A restrição é importante, pois é evidente que o número de cobras, que podem inteiras, bienos, bailundos, bangalas e várias outras, se dedicam exclusivamente à vida
atravessar o caminho diante dos homens que se preparam para uma demorada viagem, de carregadores» (216). kffler isto dizer que sob a pressão das solicitações europeias, os
deve ser bastante reduzido, pois se trata de animais que vivem à margem dos homens. Africanos separam-se lentamente das suas práticas de produtores, para se inscrever
Mas nem por isso o contratempo é menos real e eficaz, tanto mais que não parece, na numa profissão nova, cuja dureza é confirmada pelos documentos.
versão do Bié, que o viajante possa voltar a partir imediatamente: o indispensável ritual Esta profissão de carregador — que perde então o seu carácter acidental — parece
da purificação deve obedecer a regras complexas. Mas nas duas versões, não podemos tomar-se cada vez mais rendível, mas pode também pensar-se que os Africanos adoptam
duvidar da importância do contratempo: perante estes sinais, visíveis para ele e para esta profissão para se furtar às intervenções europeias, que querem impor aos homens
a comunidade, o viajante suspende a viagem, obrigado a proceder a cerimónias rituais, africanos uma actividade essencialmente agrícola (217). Entre ser carregador e ser agricultor
que podem incluir a consulta a um adivinho, assim como os rituais da purificação. A ou trabalhador agrícola, os Africanos optam pela primeira hipótese, que os deixa mais
única táctica que os Europeus podem adoptar é reduzir o tempo entre o momento em livres.
que procedem ao recrutamento e o da partida. Paiva Couceiro, cujo inventário das chagas sociais introduzidas pela colonização
A táctica de Silva Porto consiste em integrar-se no quadro dos valores africanos, portuguesa se caracteriza pela secura impiedosa, acaba por cair na armadilha da leitura
nomeadamente as festas e os rituais, aos quais assiste sempre, mesmo que continue a europeia da África, pois, o que ele designa como sendo o «serviço dos carregadores»
ser um europeu, branco, não-circunciso, não-iniciado. Todavia, o comerciante português era uma velha instituição africana, que os Portugueses procuraram recuperar para a pôr,
é muito hábil para não se aperceber da impossibilidade de laicizar a sociedade africana. exclusivamente, ao serviço dos interesses europeus. De resto, a intervenção portuguesa
Por todas estas razões, toma medidas «úteis» para assegurar a organização da caravana impõe regras que não podem deixar de provocar males «terríveis», denunciados pelo
e conseguir que ela se mantenha solidária desde o momento da partida até ao regresso. «herói colonial».
Desde os anos 1860, os Portugueses reconhecem as dificuldades para assegurar o Mal-grado tudo isso, os Africanos souberam conservar, durante muito tempo, o
controlo das caravanas, abandonando pouco a pouco aos Africanos a tarefa de irem controlo das operações de transporte a longa distância. Não é nada por acaso, como
procurar no interior as mercadorias pedidas pelos circuitos comerciais da costa. Nos pretende Couceiro, que as populações, hoje angolanas, viajam em todos os sentidos: não
anos 1870, Capello e Ivens salientam a importância dos quibucas — caravanas — há nenhuma «vagabundagem», nenhum «nomadismo», mas antes a revelação de um dos
imbangalas que se tornaram os «únicos medianeiros entre os negociantes e os sertões mecanismos criados para assegurarem uma hegemonia comercial no interior do mato,
longínquos» (212). onde se criam e multiplicam certas organizações urbanas, por vezes de uma grande
Pela mesma época, as expedições científicas encontram-se perante algumas complexidade, como, por exemplo, a capital dos Lundas.
dificuldades para conseguir carregadores. Alfredo Margarido sugere uma diferença
entre as viagens de carácter comercial, as únicas reconhecidas pelos Africanos, e as
viagens científicas, nas quais não há o menor «espírito comercial» e cujo interesse D. A circulação das caravanas: regras internas, conflitos e acordos
escapa inteiramente aos Africanos. Estes receiam, no caso de se comprometerem ao lado
destes europeus tão particulares, encontrar-se face a «povos bárbaros» (213). Com efeito, 1. Regulamentos e acampamentos
as populações angolanas distinguem cuidadosamente, e isso até aos dias de hoje, os
homens «civilizados» — é assim que se auto-intitulam os mais próximos da costa (214) A saída da caravana deve obedecer a regulamentos estabelecidos de acordo com
dos «selvagens», maneira ampla de classificar aqueles africanos instalados longe da o plano das decisões do chefe: é ele que decide o momento de partir — o mês, o lugar,
costa e a fortiori dos Europeus (215). a hora —, e que dá todas as instruções respeitantes aos caminhos a seguir e aos lugares
Nos finais do século XIX, princípios do século XX, Paiva Couceiro observa que onde acampar.
«o serviço dos carregadores» é, entre outros, um dos «males terríveis introduzidos pelos Um chefe bem treinado, conhecedor das formas religiosas africanas, deve começar
por adoptar algumas medidas preventivas, destinadas a assegurar a eliminação dos
conflitos potenciais. Silva Porto só dá ordem de partir após ter feito aceitar um princípio
fundamental: se alguém quebrar uma cabaça ou uma panela pertencente a outro elemento
Capello e Ivens, 1881, I, p. 292.
Margarido, 1981, p. 906.
Capello e Ivens, 1881, I, pp. 4-5.
Margarido, o. c. Couceiro, 1898, p. 52.
Id., ibid.
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da caravana, os objectos serão simplesmente substituídos. Silva Porto procura, deste
modo, impedir que um incidente, certamente menor para os Europeus, possa provocar
querelas intermináveis, capazes de prejudicar o avanço da caravana (218).
Trata-se da intervenção de um comerciante europeu, mesmo que Silva Porto pareça
muito comprometido com as formas de vida africana, quanto mais não seja através das
mulheres e dos filhos. Mas o comerciante ocupa neste caso o lugar principal, procurando
reduzir o peso da religião no comportamento dos homens que formam a imensa mole
humana da caravana. Os acidentes podem ser interpretados, com recurso a uma grelha
religiosa, exigindo a intervenção dos adivinhos ou de outros especialistas. O comerciante
português quer que um objecto seja igual a outro da mesma família, de tal modo que
a caravana nunca seja obrigada a parar para sanar questões que, na óptica europeia,
podem ser analisadas e resolvidas sem recorrer a tais trâmites religiosos.
Os comerciantes europeus influenciam constantemente os Africanos neste sentido,
fazendo tudo o que lhes é possível para que a caravana seja governada apenas pelas normas
comerciais, que têm como objectivo único a obtenção do lucro. A lógica dos Africanos
está mais comprometida com o religioso. Silva Porto deseja libertar o comércio do peso
opressivo das regras religiosas que reduzem a marcha, complicam as relações
interindividuais, desperdiçam tempo e restringem os lucros. Parece ter obtido algum êxito.
O chefe da caravana deve também resolver todas as situações conflituais, assim como
aquelas em que se regista uma grande perturbação, provocada pela intervenção de elementos
exteriores à caravana, que geram imprevistos numerosos e de natureza diversa.
A partida das «caravanas que viajam para os territórios distantes do interior [faz- Fig. 26 — Instalação do kilombo. Capello e Ivens, 1881, II, p. 6.
se] geralmente no início da estação seca» ( 219), o que é normal, dado que as chuvas
tornam a circulação muito mais difícil, quando não impossível: os caminhos tornam-
se inutilizáveis e os rios, mesmo os mais pequenos, adquirem um volume tal que
destroem as pontes '220\) e inundam os terrenos marginais (221\
) Esta-se de resto, perante
uma situação que perturba o comércio e o impede de manter um desenvolvimento em
tudo idêntico ao que se pode registar na Europa.
A caravana, que o chefe controla sempre na retaguarda (222) é identificada — é
isto pelo menos o que se verifica no Bié — por uma bandeira, galferi, cuja cor é
escolhida pelo chefe. As cores mais apreciadas são — como não podia deixar de ser —
o vermelho e o branco, que constituem a gama cromática fundamental do simbolismo
religioso africano ( 223). Durante o percurso, a bandeira é levada por qualquer membro

Porto, Manuscrito SGL, p. 53.


Magyar, 1973, Anexo V, p. 8; Graça, o. c., p. 371, também se refere a esta questão.
Ver 3.' parte, cap. I. Carvalho, 1890, vol. I, p. 524, descreve uma travessia feita de barco:
primeiro «os bois [no caso de os haver]», depois as mulheres e as crianças. Por fim, as cargas — come-
çando pelas mais pesadas — e os homens.
Ver Carvalho, 1898, p. 188.
Magyar, 1973, cap. III, p. 7.
Sobre esta questão ver Turner, 1967, e Margarido, 1977.
Fig. 27 — A paragem dos carregadores. Carvalho, 1892, II, p. 466.
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da caravana e, quando esta pára, uma vez percorridos os quarenta quilómetros diários,
é sempre instalada a meio do acampamento (224).
Magyar fornece uma descrição assaz pormenorizada dos acampamentos das
caravanas do Bié, de resto bastante idênticas às demais, que respeitam uma estrutura
corrente entre as populações de língua banta da África central. Podemos de facto
constatar que esta instalação não faz mais do que adaptar o modelo da estrutura aldeã
às condições específicas das caravanas: um kilombo defendido por uma ou várias
paliçadas, podendo conter cerca de 600 cubatas, que abrigam cada uma duas pessoas
(600 X 2 = 1200) (225).
Estas cubatas, montadas em círculo acompanhando a curva da paliçada, deixam
a meio um espaço redondo e aberto, onde são instaladas as pessoas mais importantes,
servindo também para concentrar os fardos de mercadorias (226).
O acesso ao exterior desta área fechada é assegurado por aberturas praticadas
na paliçada, que servem de portão e são cuidadosamente fechadas à noite. Magyar
salienta também a extrema rapidez das operações exigidas pela instalação deste tipo
de kilombo (227).

2. Direitos de passagem e obstáculos previstos ou previsíveis

Os direitos de passagem e os roubos aparecem em todos os textos como sendo os


principais obstáculos à circulação das caravanas. Estas são constantemente ameaçadas
de roubo: roubo colectivo e violento, precedido pelo assalto à caravana, morticínio e
redução à escravatura de quantos sobreviveram à operação ou não conseguiram
fugir (228);
roubo individual, também ele violento, resultando normalmente do «deixa Fig. 28 — A densidade da vegetação dos pântanos
andar» ou do cansaço de alguns carregadores, que ficaram para trás, isolados, e que e de um grande número de cursos de água.
são então atacados pelos kippambala («ladrões e bandidos»), que se instalam em torno Capello e Ivens, 1881, II, p. 18.
das caravanas à espera do momento de distracção ou de cansaço que permite transformar
o «infeliz carregador distraído» em escravo (229). Há ainda a considerar outra espécie
de roubo, pacífico, praticado de maneira corrente, que procura arrancar mercadorias à

Forma de aculturação ou sistema especificamente africano? Magyar utilizou, na sua caravana,


a bandeira húngara. Magyar, 1973, cap. III, pp. 41-42.
Id., ibid., cap. II. pp. 31-32. Este número confirma a demografia máxima das caravanas, que
tínhamos calculado entre 1200/1500 pessoas.
Ver na 5. parte, cap. II, um esquema consagrado à estrutura das aldeias desta região e, mais
particularmente, às aldeias quiocas. Este gráfico mostra a grande similitude existente entre as aldeias
e os acampamentos.
As cubatas são cobertas por ramos e por capim, no caso de haver ameaça de chuva. Os homens
instalam nas cubatas as esteiras que cada um traz consigo, estendendo-as no chão após ter remexido
a terra com uma enxada para criar uma espécie de colchão coberto de folhas verdes ou de capim. Magyar,
o. c., cap. II, pp. 31-32. Ver também Porto, Manuscrito SGL, 1866 (em anexo).
Graça, 1890, pp. 377-379. Ver também Magyar, 1973, cap. II, p. 11.
Magyar, 1973, cap. II, p. 11. Fig. 29 — Caravana atravessando o Luandu.
Capello e Ivens, 1881, I, p. 144.
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caravana para pagar os «crimes» — mucanos (230), quituxes ( 231) — cuja natureza é
variável, indo do adultério ao roubo de cargas e ao assassínio dos carregadores numerosos como constantes que, aplicados aos Africanos, acabaram por ser também
pertencentes ao grupo do queixoso. Esta categoria integra-se naquilo a que podemos impostos aos Europeus.
chamar a «estratégia da ficção»: aqueles que querem mercadorias grátis inventam O controlo que o Jaga exerce sobre o território imbangala é assinalado, já em 1680,
crimes que teriam sido cometidos pela caravana anterior, proveniente da mesma região. por Cadornega: os comerciantes africanos que, partindo da margem direita do Kwangu,
É necessário que esta astúcia seja pressentida e desmontada pela contra-astúcia do chefe vêm procurar sal, fazem sinais com fumo para dar a conhecer a sua chegada, para que
de caravana que, desta forma, se pretende roubar com toda a tranquilidade (232). as trocas se possam realizar em boas condições ( 237). De resto, esta técnica de fazer
A circulação das caravanas ao longo de percursos « institucionalizados» (233) sinais deve ter sido bastante generalizada, pois que nos princípios do século XIX,
através Cannecatim volta a encontrá-los na mesma região, embora recorrendo não ao fumo mas
das diferentes regiões encontra-se submetida ao pagamento de direitos de passagem:
estes são cobrados pelas populações locais, as quais, desta maneira, se aproveitam da à luz: os Africanos «acend[iam] de noite faróis» (238) para se anunciar. Esta passagem
circulação das mercadorias e do comércio a longa distância, ao mesmo tempo que se do rio implica o pagamento de direitos de travessia.
asseguram do controlo do seu território. Este facto contribui para agravar os preços das Todos os viajantes se referem aos direitos de passagem: Pedro João Baptista (239),
mercadorias de maneira por vezes difícil de aceitar ou de suportar (234). Rodrigues Graça (240) e Gamitto, nas terras da costa oriental (241) Rodrigues Graça
Mesmo que a noção e a prática da fronteira não possuam o mesmo conteúdo em parece ser o mais surpreendido e, como bom contabilista, procede a cálculos para
África do que na Europa de hoje, é preciso levar em linha de conta que cada grupo determinar o valor das somas cobradas pelo Mwatyanvua. Este cálculo revela-lhe uma
levanta barreiras, vigia os pontos de passagem e procede à cobrança das taxas (235). soma tão importante, que o obriga a lamentar as «perdas» financeiras sofridas pelos
Estas formas particulares de fiscalização não perturbam as comunicações a longa Portugueses, que são, na sua óptica, o resultado de um fraco poder militar, incapaz de
distância. Há até um certo paradoxo na situação, visto que a sua eficácia depende do vergar os Lundas e de os obrigar a aceitar os projectos inteiramente portugueses (242).
conhecimento das redes de comunicação, para poder prever as medidas a adoptar no Magyar assinala os direitos de passagem nos territórios do Bié, onde as populações
caso de cada uma das caravanas. preferem proceder à cobrança de uma taxa sobre os rios, instalando numa das margens
Livingstone procura dar uma explicação desta «mordidela» financeira constante, e «a casa da alfândega (...) [que] pertence ao governo [do país]», mas que é cedida para
não encontrou nada melhor do que acusar os Portugueses de fraqueza perante os ser explorada «por aquele que paga mais» (243).
Imbangalas — o que é verdade —, que os tinham forçado a pagar taxas por tudo: pela
água, pela lenha e até pela erva que podiam utilizar no seu território. Porque, salienta 3. As trocas ao longo dos caminhos: pumbos, crédito, moedas, preços
Livingstone, nos lugares onde ainda não chegaram os comerciantes de escravos, não se
registam cobranças de direitos de passagem, pois, reconhecem os autóctones, que «a Uma caravana não é apenas uma organização destinada a assegurar o transporte
terra inculta pertence apenas a Deus» (236). de mercadorias ou até de pessoas; é acima de tudo uma máquina para fazer comércio.
A explicação do missionário é amplamente desmentida pelos textos portugueses, As permutas fazem-se em toda a parte e constantemente. Em primeiro lugar, verificam-
dado que a circulação dos homens e das mercadorias está sujeita a controlos tão -se as trocas para obter alimentos de forma a manter intactas as reservas organizadas
pelo grupo antes da partida. Mas os comerciantes — às vezes também os carrega-
dores — compram as mercadorias mais solicitadas pelo comércio costeiro. As caravanas
instalam o seu kilombo junto dos chefes, locais que lhes oferecem várias vantagens: a
(23 °) Ver, a respeito dos mucanos, Porto, Memorial de Mucanos liquidação dos direitos de passagem torna-se mais fácil e o comércio pode fazer-se com
(1841-1885), Manuscrito SGL.
Maria Emília Madeira Santos, 1986, procedeu ao cálculo do valor dos mucanos pagos por Silva Porto
entre 1841 e 1881, com base neste documento, pp. 391-396.
Designação dada aos mucanos no território lunda. Carvalho, 1880, I, p. 274.
Ver, por exemplo, Magyar, 1973, cap. II, p. 25. Cadornega, 1972, III, p. 219.
Encontramos em Livingstone, o. c., p. 421, uma referência extremamente útil: no percurso que Cannecatim, (1805), 1954, p. XVII.
o leva de Kasanje à costa de Luanda, depara com uma de oito em oito ou de dez em dez milhas «espécie Baptista, 1843, pp. 236 e 493 (entre outras).
de bivaques, formados por abrigos, feitos de estacas e de capim, onde param os numerosos viajantes que Graça, 1890, pp. 403 e 409.
vão ou vêm da costa». Isto quer dizer que o caminho se encontra assim balizado e institucionalizado, Gamitto, 1854, pp. 246-272.
situação que nos autoriza a dar conta da importância normativa das relações comerciais, que criam um ) Graça, 1890, p. 404. Já nos anos finais do século XVIII, os Portugueses lamentavam estas
espaço específico para a circulação e o descanso de quantos se entregam à actividade comercial. «perdas» e procuravam assegurar o controlo das «passagens», chamadas «quiaco», «quer dizer alfândega»,
Ver Lima, 1846, p. 65. para lucrar com o imposto cobrado «pelo senhor do lugar onde se cruzam todos os caminhos». Corrêa,
A respeito deste problema, ver Vellut, 1972. 1937, II, pp. 177 e 196.
Livingstone, 1859, pp. 392 e 402, em território quioco. Mas havemos de voltar a esta questão. (243) Magyar, 1973, cap. II, pp. 5-6, cap. V, p. 23. Ver também Graça, 1890, p. 379, que faz
referência aos «portos» que se encontram instalados nos rios.
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menos choques. Cada instalação nestas aldeias-capitais exige paragens que duram O texto de Baptista nem sempre se recomenda pela precisão — provavelmente
vários dias, para seduzir quantos têm mercadorias para vender (244). porque o autor pensa que os pormenores destas operações são já bem conhecidos —
Nos primeiros anos do século XIX, Pedro João Baptista faz notar a existência dos mas pode concluir-se pela existência de dois tipos de conchas-moeda: os sambos,
pumbos (ou pambos) nas encruzilhadas dos caminhos, onde se concentra um grande possivelmente pequenas conchas, recebidos pelos dois pombeiros das mãos do rei de
número de africanos (245) para proceder a operações comerciais. Estes pumbos Kazembe, e os dolos. Decidimos optar pela pequena dimensão dos sambos, baseados
multiplicam-se ao longo do percurso dos dois angolanos (246\. ) Baptista toma nota de na quantidade recebida por cada um dos pombeiros: nada menos de 300. Trata-se de
alguns aspectos do sistema de trocas, deixando transparecer duas questões muito uma moeda destinada à compra de alimentos, na estrada que os leva até ao Mwatyan-
importantes, embora não nos forneça os dados indispensáveis à sua solução: o comércio vua (250). O dolo, ao qual os habitantes de Kazembe dão o nome de pande, é descrito
a crédito (fiado) e a circulação das conchas-moeda. como sendo um «marisco grande», quer dizer, certamente, uma grande concha (251).
O comércio a crédito é assinalado na região de Moxico, provavelmente povoada, Alguns anos mais tarde, em meados do século, os Lundas assim como os Quiocos
pelo menos em parte, por Quiocos: «tinha lá ido um Negociante da mesma Feira [de exigem que Livingstone, que vinha da costa oriental, lhes dê como direito de passagem
Kasanje] (...) e tomado fiado certo número de escravos e certa produção de cera e alguns uma concha, cuja cotação estava em paridade com a da «indiana» (252). Estas são
dentes de marfim, e não tinha ainda ido pagar ao dito Régulo» (247). Não voltámos a grandes e, por isso, diferentes das pequenas conchas que circulam na costa ocidental,
encontrar mais nenhuma referência a este tipo de comércio e não podemos, por isso, ou pescadas em Luanda ou importadas de Veneza, ou da Baía de Todos-os-Santos (253).
saber se estamos perante uma prática corrente entre os comerciantes africanos, tal como As que provêm da costa oriental são certamente diferentes, grandes, e muito solicitadas
ela o é na Feira de Kasanje (248\,) ou se o crédito — a ideia e a coisa — fora injectado pelas populações. Por que razão não estão elas mais presentes nas trocas? Devido à sua
pelos Europeus no sistema africano. raridade? Ou à sua eventual fragilidade?
Este sistema, descrito por Pedro João Baptista, põe em relação constante os Lundas Tal não impede que o sistema de permutas, existente ao longo das estradas percorridas
da Musumba e os de Kazembe e faz aparecer permutas estruturadas em função dos pelas caravanas, apresente outros aspectos. Em 1853, Silva Porto, que ainda não
produtos que existem no local: os homens compram farinha de mandioca para obter sal, dispunha dos meios para atravessar as «terras de Quiboco e do Luvar», faz algumas
tal como já tínhamos registado. Não aparece a mínima referência a operações de crédito, referências às técnicas comerciais utilizadas: os Africanos da região, que o autor classifica
como «selvagens», «se apresentam no kilombo [dos viajantes] exigindo tributo de
mas voltamos a encontrar grande volume de trocas ao longo do percurso da caravana,
passagem (...) [esta medida é em parte] o efeito da notícia circulante com rapidez
o que a alivia e permite grandes economias de carregadores.
espantosa de que eles [os viajantes] estão próximos, ou já chegaram (...) porque, fazendo
Em oposição, deve registar-se a questão das conchas-moeda. Estas não podem ser jornadas curtas, proporcionais às cargas que os carregadores carregam, dão lugar à
comparadas com as conchas utilizadas na costa ocidental, onde os Ba-Kongo ficaram, novidade da antecipação da notícia da sua aproximação». Estas notícias são possíveis
durante séculos, fiéis às conchas apanhadas na ilha de Luanda, os famosos zimbus, que graças a «esses milhares de caçadores das tribus Ba-Quioco e Ba-Luvar» disseminados
tanto atormentavam os Portugueses (249). por toda a parte. Quando conseguem conhecer a presença da caravana, apressam-se a
A questão geográfica torna-se por esta via um elemento central, pois é só depois regressar a casa, «prevenindo as famílias para preparar mantimentos, bem assim marfim
de ter ultrapassado a Musumba (a caminho de Kazembe e de Tete) que Pedro João e cera» para proceder às trocas com a caravana, recebendo em compensação os bens
Baptista se apercebe da importância destas conchas, que nunca aparecem nos textos de que sentem necessidade (254).
consagrados à costa ocidental.

Baptista, 1843, p. 435.


Id., ibid., p. 439. Sobre este problema ver Vellut, 1972, p. 85, nota 42, que nos fornece algumas
indicações úteis: «o termo mponde é utilizado em várias línguas da Zâmbia e da Tanzânia para designar
Graça, 1890, pp. 403, 409, 413, explica a razão destas paragensNuando uma população uma grande concha do género conus. Fragmentos trabalhados desta concha preciosa eram utilizados como
oferece vantagens comerciais, estabelece ele aí um «entreposto» para comprar marfim, da mesma insígnia de estatuto elevado em toda a África central. No caso dos sambos dolos ou pandi mencionados
maneira que pára sempre junto dos chefes para proceder a trocas.
por Baptista, trata-se de cópias do conus em forma de disco. Encontraram-se vários exemplares destas
Baptista, 1843, p. 236.
cópias em faiança ou em porcelana, sobretudo no território da Tanzânia actual. Ver Harding, J. R., «Conus
Id., ibid., p. 437.
Shell Disc Ornaments (vibangwa) in Africa», in Joumal of the Royal Anthropological Institute, 91, I,
Id., ibid., p. 236.
(1951), pp. 52-66. Deve notar-se que há também sambos que são jóias de ferro ou de cobre».
Ver 5." parte, cap. II e III.
Livingstone, 1859, pp. 380 e 504. A indiana: tecido de algodão muito colorido, pintado ou
A partir do século XVI os diferentes autores referem-se aos zimbus ou nzimbus da ilha de impresso, que inicialmente se fabricava na Índia.
Luanda, muito considerados e muito vigiados pelo rei do Kongo, por funcionarem como moeda preferencial. Ver Capello e Ivens, II, p. 151, e Parreira, 1990, pp. 82-85.
Vejam-se Brito, 1931; Cadornega, 1972, III; Cavazzi, 1965, II; Corrêa, 1937, I. Para uma apresentação (254) Porto, Viagens, Manuscrito de 1853, BPMP. Agradeço à Dr.' Maria Emília Madeira Santos
dos documentos respeitantes a esta questão, Parreira, 1990, pp. 82-85.
a cópia que me cedeu.
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A totalidade do sistema depende das mercadorias preferenciais, dada a ausência de
uma moeda de expressão senão universal, pelo menos bastante ampla. Estas mercadorias lhes permitam organizar qualquer forma de contabilidade previsível, como de resto
salienta, várias vezes, Silva Porto.
servem umas para o consumo corrente, outras para a formação ou o reforço do tesouro.
Os valores de troca raramente são constantes, mesmo que os comerciantes pretendam, Estas condições técnicas explicam a maneira como a economia é constantemente
embora em vão, impor uma tabela de carácter permanente. Os Africanos procuram reconduzida às práticas endógenas. A economia-mundo está fora das considerações
especular constantemente, graças às informações que lhes permitem conhecer previamente comerciais dos produtores africanos. Pode assim compreender-se o mecanismo que
as deficiências de que sofre a caravana. Os produtos tornam-se a partir daí mais caros, desvia as moedas europeias da sua função específica para se transformar em tesouro,
e esta escalada reforça-se no caso de se registarem carências graves e insolúveis. jóia, objecto integrado nos escapulários. Nesse aspecto, as comunidades africanas parecem
Também se pode verificar o inverso, o que arruína os projectos dos produtores. manter-se fiéis a uma prática específica das economias locais — os Portugueses fazem
O banzo, ou seja, o fardo, é formado por diferentes mercadorias europeias, e das libras-ouro britânicas broches, brincos, colares, anéis. Na realidade restringem o
constitui o valor de troca mais utilizado. O valor e a quantidade de géneros que formam campo da circulação puramente monetária, porque o destino preferencial destas moedas
um fardo divergem de maneira importante, conforme a situação comercial das populações está fora do campo económico, com excepção das destinadas ao pagamento dos impostos.
e da distância a que vivem, em relação ao lugar de formação ou de origem da caravana. Esta obstinação em recusar a «banalização» da moeda sublinha o carácter,
Se os valores variam, o conteúdo é assaz homogéneo: tecidos de diferentes cores e evidentemente arcaico, do sistema económico e comercial das populações consideradas.
qualidades, armas de fogo, pederneiras, pólvora e cartuchos, aguardente de diferentes Sabemos, graças aos documentos, que a introdução da moeda metálica pelos Portugueses
tipos, coisas miúdas, tais como pulseiras, facas, missangas e espelhos, constituem o em Luanda, nos fins do século XVII, desencadeou tumultos em que participou o
essencial das mercadorias que formam os banzos. contingente militar, formado essencialmente por soldados brasileiros. Pagos em moeda
Por volta de 1850, Magyar informa que a redução da procura de escravos fez cair de cobre, parece que sobreavaliada em relação aos pagamentos feitos em moeda local
os preços em pelo menos dois terços. O oficial húngaro fornece alguns exemplos de africana, os soldados desencadearam uma insurreição: foi necessário fuzilar cinco homens,
trocas em território lunda, onde um escravo custa cerca de 20 côvados de tecidos de para que a moeda de cobre acabasse por ser aceite (257).
vários tipos, um pacote de missanga branca e dois cordões de 5 côvados de corais de Esta situação prolongou-se até ao século XX, pois sabemos que o comércio desta
vidro vermelho e de porcelana branca. Um dente de elefante pesando cerca de 60 libras região se manteve fiel à troca, praticamente, até à independência. Por outras palavras:
(27,216 quilos) valia quase a mesma coisa: no caso de alcançar 80 libras (36,288 quilos) os Africanos conservaram-se presos a um sistema de operações económicas que só
acrescentava-se uma espingarda, um cobertor e alguns produtos de pouco valor. podia contribuir para apressar a propagação da dominação branca, a partir do momento
Os preços eram mais elevados na região do Bié. Um jovem escravo adulto ou uma em que fosse abalada a hegemonia africana.
jovem escrava custava 35-40 côvados de diferentes tecidos europeus, igual ao valor de Foi provavelmente por volta dos anos 1860 que esta hegemonia começou a decompor-
um grande boi. O preço de uma cabra era o dobro do de uma ovelha, dado a cabra -se, por razões ligadas à natureza interna das sociedades africanas, activadas pelas
ser indispensável na realização dos sacrifícios rituais, e 10 enxadas, formando um feixe, pressões dos Portugueses em particular, dos Europeus em geral. Se as caravanas foram
oscilavam entre 3 e 18 bekkas, conforme o local onde eram trocadas (255). uma maneira de assegurar o controlo do comércio interior, elas contribuíram também
Uma observação mais: não há mercadoria que possa ser vendida ou trocada sem para o enfraquecimento das estruturas africanas, afogadas pelas mercadorias europeias.
uma referência, por mínima que seja, ao sistema religioso. Há situações em que a O aumento constante da procura de certos produtos africanos exigia uma resposta
referência é mais directa: tal é o caso da cabra que acabámos de assinalar. Mas estas satisfatória por parte dos Africanos, impondo uma multiplicação das caravanas e uma
opções religiosas são ainda mais evidentes nas situações de crise: em 1839, o poder mobilização contínua dos homens.
imbangala suspendeu todas as relações comerciais, pois o novo Jaga devia, em primeiro
lugar, levar a cabo os seus «pátrios ritos», antes de as actividades.comerciais poderem
recomeçar de maneira normal (256).
Os sistemas africanos quase nunca conseguiram criar moedas estáveis. A demasiada (257) A. Margarido, 1989, pp. 389-395, estudou esta questão, procurando mostrar que esta situação
fragmentação do poder constituiu um obstáculo suficiente para tornar impossível esta só destacava a impotência portuguesa perante a hegemonia africana, que punha termo a todas as
operação. Ela explica as preocupações dos comerciantes, que não dispõem de meios que tentativas portuguesas de passagem das diferentes moedas africanas para a moeda metálica, a única que
podia permitir uma certa homogeneidade das operações comerciais. Apenas podemos reforçar o sentido
desta análise, mas é de recear que Margarido não tenha retido um elemento complementar, certamente
perturbador, mas indispensável: esta hegemonia, que parecia reforçar o poder africano, rejeitava toda
Magyar, 1973, cap. VII, pp. 22-23; cap. VIII, pp. 15-16 (nota 6). e qualquer forma de modernização do sistema, tornando-o arcaico e ineficaz. Quer dizer que a conservação
Documento de Novembro de 1839, A. H. U., CGA, 1840, cx. 590. da hegemonia africana, feita desta maneira, não podia propor nenhuma alternativa dinâmica por parte
dos chefes políticos africanos.
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Num estudo consagrado à questão polémica dos carregadores, Alfredo Margarido
procedera a uma contabilidade tão precisa como simples, mesmo que ela não considere
a importância do contrabando: dividindo a tonelagem das mercadorias exportadas pelos
portos angolanos por 25 ou 30 quilos — peso médio das cargas transportadas pelos
carregadores angolanos — ele chegava a um número brutal: eram necessários diariamente
250 000 homens pelas estradas para assegurar o transporte desta imensa massa de
mercadorias (255.
O contrabando, impossível de contabilizar, mobilizou também certamente um número
importante de carregadores. É por isso necessário acrescentar mais alguns milhares de
homens ao cálculo de Margarido. Para o tornar ainda mais rigoroso, seria necessário CAPÍTULO II
alargar a forma de calcular: alguns destes homens ficam pelas estradas semanas e até Os Quiocos: em busca da autonomia
meses. As sociedades africanas despojam-se assim de uma fracção importante da força
de trabalho, mas sem ela não teria podido funcionar nenhuma forma de comércio a Entre os falsos mistérios da história de Angola, regista-se o dos Quiocos, que se
média e a longa distâncias. mostraram tão lentos a emergir, mesmo que os saibamos constantemente presentes num
Por volta de 1878, Capello e Ivens confessam a sua surpresa perante o movimento território onde estavam já provavelmente instalados no século XVI, senão mesmo antes.
incessante de caravanas que sobem ou descem o trilho que seguem. A todas as horas As incertezas respeitantes ao estatuto dos Quiocos aparecem de maneira nítida na
«dezenas de negros, portadores de cargas às costas cruzavam» os dois explora- multiplicação dos nomes que lhes foram atribuídos até hoje: A'nioko, Atshokwé, Bachoko,
dores (259). Este ritmo frenético despovoava as aldeias e tornava as mulheres dependentes Badjok, Ba-Djok, Badjoko, Bajok, Bakioko, B as ok, Batchokwe, Batchoque, Batshioko,
do comércio a longa distância. A sociedade colocava-se na impossibilidade de reflectir Battschiokwe, Ba-Tshok, Ba-Tshoko, Bena-Tutchiko, Chiboque, Cokwe, Kaschoko,
sobre o seu próprio projecto, na medida em que se tornava prisioneira desta pilhagem Kioko, Kibokoe, Kibokwe, Kioke, Kioque, Makioko, Ma-Quioco, Maquibocue,
da natureza, recebendo em troca apenas alguns resíduos da riqueza europeia ou americana. Matchioko, Quibouco, Quibôco, Quichoksche, Quioco, Quiôcos, Tchoqué, Tschiboko,
Tschibokwe, Tschiokwe, Tshokwe, Tsokwe, Tutshiokwe, Tyiokwe, Utshiokwe, VaChioko,
Watschiowkwe (1).

(1) Bastin, 1961, p. 21. A dificuldade da nomenclatura desta população foi bem apresentada por
Merran MacCulloch (1951, pp. 28-29) no seu Survey. A situação não melhorou muito desde então aos
nossos dias, dada a ausência de estudos de linguística capazes de resolverem as incertezas que perduram:
«There are almost as many variations on the word `Chokwe' as there are writers on this area.
Practically every combination of the prefixes Ba-, Ka-, U-, Tu-, Va-, or Wa- (used often indiscriminately
for singular and plural) with the roots choko, cokwa, chibo que, chivo que (used by Livingstone), chiboqwe,
chioko, chiokwe, djok, jok, kioko (used by Torday), kio que, quioco (kioko, quioco, etc, are portuguese
versions), tsioko, tshioko, tshiokwe, tshoko, tsiboko, tschibokwe, tschiwokwe or tshivo que has been used.
Reasons for this variation include the adoption by writers of the names used by neighbouring tribes in
referring to the Chokwe, and the correspondence of some of the forms with dialectal differences within
Chokwe country itself. Thus Baumann (1935, p. 10) cites:
Badjok, the name used on the Chicapa river;
Tsiboko, used in the western part of the Chokwe country;
Tsiwokwe or Tsibokwe in the extreme south.
And van Bulck (1948) add:
Mutshok used in Kahemba District of the Belgian Congo;
e) Katshok or Tutshok used on the Loange river;
.f) Kashioko or TuShioko used on the Lunda plateau.
According to White (personal communication), Tsibokwe and its equivalents are used by other
(255 Margarido, 1981, p. 285.
tribes in referring to the Lunda in a derogatory fashion. The most correct rendering of the name is
(259) Capello e Ivens, 1881, II, p. 211.
Kachokue in the singular, Achokue, in the north, TuChokue, in the plural (White). Chokwe in Angola
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O catálogo é considerável, mas não está ainda completo, pois podemos acrescentar, Tal não impede os Portugueses de prosseguirem a sua política de criação das
pelo menos, as formas «Quiboque» ( 2 ), «Kikoko tal como lhes chamam os Kimbunda cidades costeiras, indispensáveis ao tráfico negreiro. Se milhares de africanos foram
ou Gyokoe que é o nome que lhes é dado pelos habitantes da região» ( 3 ). A incerteza exportados através do Atlântico Sul, deve também pensar-se nos Quiocos que,
é por isso antiga e assume, por vezes, aspectos singulares. Adriano Barbosa publicou vendidos pelos seus chefes ou capturados pelos seus inimigos, foram embarcados
ainda não há muito um dicionário Cokwe-Português, mas é corrente encontrar ao longo para o Brasil (6).
do seu texto a forma portuguesa quioco, que é já antiga ( 4 ). Decidimos adoptar a forma Parece-nos legítimo, nestas condições, avançar uma hipótese: se Luanda manteve
Quioco, pois que em português — e por consequência em Angola — ela se tornou sempre as suas características de cidade «portuguesa», mal-grado os brasileiros que aí
pragmática, mesmo que se comece a notar o recurso a Tshokwe, fórmula que parece trabalhavam, a cidade de Benguela, criada em 1682, parece ter-se transformado, ao
mais próxima da língua (5). longo do século XVIII numa cidade com características brasileiras, o que permite
As origens dos Quiocos são normalmente explicadas graças ao recurso aos mitos explicar que um número importante de patriotas brasileiros, que participaram na famosa
fundadores dos Lundas centrais. Um ramo lunda, replicando às mudanças registadas nas Inconfidência Mineira ( 7), tenham sido deportados para a cidade do Centro-Sul.
regras de sucessão, teria abandonado o seu território original, para se instalar num nicho Seja como for, os Quiocos instalados numa região irrigada por múltiplas redes
ecológico que se transformara nos anos e séculos subsequentes no espaço central dos comerciais, tendo recebido quantidades consideráveis de mercadorias europeias, aparecem
Quiocos. na história escrita de Angola graças às expedições comerciais de alguns brasileiros, bons
Como explicar então que este grupo, instalado na margem direita do Kwangu, não conhecedores dos caminhos do comércio que ligavam a cidade de Benguela às terras
consiga fazer-se ouvir, numa espécie de choque mudo constante com os seus vizinhos de Lovale. O primeiro documento significativo, de uma série infelizmente muito reduzida,
da margem ocidental? Com efeito, os Imbangalas bloqueiam a circulação através do rio, permite dar conta da emergência das populações quiocas, num lugar onde o historiador
mas não podem desconhecer a existência dos vizinhos quiocos, tal como não podem
tinha poucas probabilidades de as encontrar (8).
desconhecer as suas formas organizacionais, transformados em interlocutores constantes,
quando não até privilegiados, nas relações com a margem oposta do rio.
Face a esta situação de bloqueio existente nas regiões Centro-Norte do rio, é menos
I. Os primeiros testemunhos históricos: 1789-1814
surpreendente que os Quiocos apareçam nos territórios mais a sul, na zona próxima do
Alto Tchikapa, considerada pelos viajantes como sendo a «mãe das águas» desta imensa O governador de Angola, D. Fernando António de Noronha, enviou ao governo de
rede hidrográfica. O reconhecimento destes meandros históricos prolongou-se durante Lisboa, a 20 de Abril de 1803, um documento anónimo que permite identificar os
o século XX e ainda necessita ser afinado.
Quiocos nas terras do Sul. O documento é consagrado a uma viagem de 1789, mas
refere-se também a uma viagem anterior, que nos é impossível datar de maneira precisa.
Uma referência ao coronel Francisco António de Oliveira ( 9 ), um dos degredados da
Inconfidência brasileira, permite-nos saber que o documento foi redigido provavelmente
are occasionally included in the term Ganguella, and Chokwe immigrants in Northern Rhodesia are em 1793, dado que o coronel foi condenado no tribunal do Rio de Janeiro em 1792.
included by the Lozi in the term Wiko, and by Europeans as well as by other tribes in the term Balovale. É por isso muito provável que a descrição da rota seguida seja o resultado de uma
Minungu, Macossa, Mataba, Mashinje, Aquibundu. The case of these tribes appear on some maps on amálgama, mas tal não a impede de nos informar a respeito das terras quiocas, embora
the outskirts of, or, in the case of Minungu and Mataba, in scattered groups within, Chokwe country. este caminho comercial fosse já conhecido. O chefe de terra Anguruca, que vigiava a
All seem to have become to a large extent incorporated in the Chokwe people during their expansion
in the nineteenth century. Makosa or Macossa is, according to Torday (1992) and Capello and Ivens
(1882), the name given to the eastern Chokwe. It appears on the Marquardsen-Stahl map, in a small
area cut by the 1 lth parallel of south latitude, and meridian 21.5 east. The,Minungu (sing. Tuminungu,
pl. Kaminingu) are thought to have originated in a fashion similar to the Chokwe people, by the fusion Senna, 1938, pp. 81-82, mas sobretudo p. 140.
of Lunda conquerors with aboriginal peoples. Their name is said to derive from their profession of A Inconfidência Mineira foi uma das primeiras tentativas brasileiras para pôr termo à colonização
smithing, or from the little feruginous stones or minungu from which they extracted iron (Struyf, 2, portuguesa. Presos em Março de 1789, os Inconfidentes foram julgados e condenados à morte em
1948). They are found both in middle and west Chokwe country, in Kahemba territory in the Belgian Novembro de 1789. Só um, Tiradentes, foi executado de maneira infamante no Rio de Janeiro.
Congo, and in small numbers in Northern Rhodesia. From a linguistic stand point van Bulck classifies As datas habitualmente atribuídas a estes documentos provêm de uma má interpretação de
both Minungu and Mashinje as related to KiKongo (1948, p. 373. Cf. Verhulpen 1936, p. 49. Maxirje, Avelino Teixeira da Mota. O historiador português propõe que «talvez», em 1793, o «baiano» Jozé de
Cundo, Aquibundu, Bango and Macossa are classified as Chokwe (in this case Tutshiokwe) by Verhulpen)». Assumpção e Mello tivesse chegado, em primeiro lugar, às fontes do Zambeze (1964, p. 114). Não seria
Anónimo (1789), in Felner, 1940, II, p. 49. necessário discutir esta primazia, mas salientar que a leitura apressada de Teixeira da Mota não lhe
Magyar, 1859, p. 7. permite dar-se conta de que estes documentos formam um bloco, que não está preferencialmente ligado
Ver Barbosa, 1989. Por exemplo, p. 372. à corrida às «fontes» do Zambeze, mas sobretudo ao comércio com as terras de Lovale.
De acordo com Duysters, 1958, p. 84, a versão correcta seria TuTshiokwe. Anónimo (1789), in Felner, 1940, II, p. 18.

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travessia do Kwanza, tinha estabelecido um acordo com o comerciante brasileiro Jozé
de Assumpção e Mello (10), garantindo a este último a exclusividade deste caminho que Dando conta da sua viagem através das «terras de Quiboco» (13), que afirma
levava até ao Loyale. Esta situação parece-nos reveladora da estratégia dos chefes de ter percorrido na sua totalidade — do que é legítimo duvidar —, o viajante anónimo
terra, que procuram associar-se aos comerciantes brancos, de maneira a obter rendas. salienta dois pontos deveras significativos.
Este acordo obrigava o negociante brasileiro a pagar «cem panos em fazenda» e O primeiro assinala a existência de uma agricultura bem organizada e que produz
um barril de pólvora, e submetia todos os comerciantes que fossem para o Loyale a mandioca, massambala (milho-painço), milho — em pequena quantidade —, feijões,
um imposto destinado a Jozé de Assumpção e Mello. A eficácia do acordo estava mondobi (amendoim), grande quantidade de cana-de-açúcar e de bananas. Deve observar-
provada, pois o chefe africano tinha procurado assassinar António Pinto Gonçalves, -se que as bananeiras não são assinaladas em todos os lugares, tal como os viajantes
assim como Manuel Peres. O primeiro pôde libertar-se das intimidações do chefe de nunca nos dizem de que bananeiras se trata (14). Devemos acreditar que a banana-pão
terra, o segundo, que se encontrava do outro lado do rio, nas terras do chefe Bongola, está então em via de expansão, chegando a terras que a tinham ignorado até esse momento?
alterou o percurso para evitar as ameaças que pesavam sobre a sua pessoa (11). O segundo dá a conhecer um grupo humano muito corajoso, mas manifestando a
Esta situação poderia ter sido apenas um acidente, mas trata-se de algo mais ausência de qualquer escrúpulo — tanto em relação às coisas como em relação às
complexo, na medida em que é uma associação entre um chefe de terra africano e um pessoas — e muito ambicioso. O sinal cultural, que funciona também no registo econó-
comerciante branco, que permite expulsar os homens de negócio europeus das rotas mico, é aquele que revela a existência de um comércio de escravos muito reduzido,
comerciais de maior interesse, na ligação que levava de Benguela às terras do interior. porque os Quiocos não fazem «guerra aos vizinhos». A carne abunda na região, assim
O chefe de terra Anguruca mantém-se inabalável, mas temos de acreditar que estes como a caça, particularmente aos elefantes.
acordos com o comerciante branco e brasileiro o levaram a proceder a uma revisão Se a primeira série de descrições faz referência a uma agricultura bem organizada,
altista das taxas exigidas a quantos pretendiam atravessar o rio Kwanza. em todo o caso suficiente para as necessidades — o que contraria quaisquer informações
Em todo o caso, o texto que descreve a viagem de 1789 não permite a menor dúvida: que ponham em dúvida a competência agrícola destas sociedades —, a segunda insiste
num ponto confirmado cerca de cinquenta anos mais tarde por L. Magyar: a reduzida
o chefe, proprietário desta passagem do Kwanza, «está hoje um grande roubador e os seus
importância do comércio de escravos (13). Tal não nos autoriza a avançar dados precisos
sequazes, ou Quindures, ainda muito mais, feito cada um senhor absoluto, fazendo aos
no que diz respeito ao número de escravos possuídos pelos grupos quiocos, mas permite-
pobres sertanejos que dirigem suas viagens para o Lovar pagar-lhes 150 e até 200 panos
-nos saber que eles ainda não faziam a guerra, e que não são, por isso, comerciantes
para os deixar passar, e na volta, (...) soltando-lhe duas ou três cabeças das melhores» e
que consagram toda a sua energia à produção de escravos.
retendo também alguns súbditos dos chefes de Loyale «que mandam em companhia dos
Sem pretender levar a análise às suas últimas consequências, podemos certamente
Brancos, talvez para os animar a tornarem lá com o seu negócio» (12).
pensar numa sociedade onde a escravatura, que nunca aparece como a única maneira
Na viagem para Loyale, os viajantes utilizavam os rios como pontos de referência.
de assegurar a coesão dos Quiocos, contradiz assim a óptica que virá a ser — é certo
Encaminhavam-se, em primeiro lugar, para um dos braços mais a sul do rio Luando.
que só a partir da segunda metade do século XIX — a de alguns viajantes, recuperada
Quando aí chegavam, prosseguiam o seu caminho através das terras dos Quiocos, para mais tarde pelos antropólogos do século XX (16).
alcançar o rio Munyango, avançando depois até ao Luena, um afluente do Zambeze,
Encontramos também um segundo documento que confirma plenamente o primeiro:
próximo do qual se encontrava Quinhama, o grande chefe do Loyale.
é redigido pelo português Alexandre da Silva Teixeira, originário de Santarém (17). Esta
Os impostos exigidos pelo chefe de terra aumentam em consequência de uma viagem de 1794 descreve uma situação menos pacífica: as populações «Quiboco» e,
intervenção branca, o que não quer dizer que os Africanos não satisfaçam o que lhes mais a sul, as dos «Bunda» não autorizam os Europeus a viajar pelas suas terras,
é proposto pelos Brancos ou seus dependentes. Mas a observação permite pôr em «porque não gostam que vão brancos [para fazer trocas comerciais] às suas terras do
evidência uma estratégia branca, que os chefes africanos parece nunca rejeitarem, na
medida em que ela lhes permite obter mercadorias de melhor qualidade e em maior
quantidade.
Id., ibid., p. 24.
• ibid., p. 25.
ia
Magyar, 1859, p. 10.
Não receando o paradoxo, Rodrigues de Areia, 1985, afirma que «no sistema de produção
(10) Id., ibid., pp. 22-23. Ver também, a respeito de Mello, um documento assinado por Vasconcelos linhageiro, ele é o único elemento permanente no plano da família» (p. 193). Isto só nos pode obrigar
(1799), 1844, pp. 159-161. a concluir que não há família entre os Quiocos. Se assim fosse, a quem ficaria então ligado o escravo?
(n) Anónimo, in Felner, 1940, II, p. 23. Esta concepção hiperesclavagista da sociedade quioca acaba por abolir toda e qualquer função normal
(12) Id., ibid., pp. 22-23. da linhagem: nestas condições como seria possível assegurar a integração dos escravos?
(17) Teixeira (1794), in Felner, 1940, I, pp. 236-237.
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Lovar, por serem muito ambiciosos» (18). Estas terras prolongam-se até ao Loyale, onde Já lamentámos a ausência de um diário ou simplesmente de uma descrição da
o chefe Quinhama continua a exercer a sua autoridade indiscutível. viagem de Pedro João Baptista, quando na sua rota para leste percorreu as terras que
Voltamos a encontrar o brasileiro (originário da Baía) Jozé d' Assumpção e Mello ligavam Kasanje ao chefe Bomba. Os dois pombeiros escolheram um percurso destinado
no terceiro documento desta série que, já o frisámos, é desgraçadamente muito redu- a contornar os Imbangalas. Este caminho entroncava na Jia, muito frequentada por
zida (19). Estamos perante um homem particularmente aberto às sugestões dos Africanos: quantos estabeleciam relações com as terras do chefe Moxico, já bastante perto do
teria sido um «negro», originário das terras de Loyale, que o convenceu a organizar uma Luena, o rio que corre das terras de Loyale para o ocidente angolano (22). Estaremos
caravana para fazer comércio nestas regiões ainda bastante inéditas para os Brancos, perante um chefe quioco, como afirma Joseph C. Miller? É possível, mas essa informação
europeus ou americanos (20). Contudo, a montagem da operação serve de prova da é inteiramente secundária no que diz respeito à viagem dos pombeiros: foi o chefe
existência de relações deveras particulares entre Brancos e Pretos neste momento e nesta Bomba, e não o chefe Moxico, que os reteve em 1805 (23).
região. As poucas e insuficientes informações, respeitantes ao percurso seguido pelos dois
É certo que a viagem era perigosa e cansativa, mas permitiu a obtenção dos lucros pombeiros, confirmam que a via útil para alcançar o território quioco se encontra a sul,
que tinham sido previstos. Podemos ir ao ponto de pensar que este africano, instalado e que permite evitar a travessia do Kwangu a norte, onde os Imbangalas conseguiram
em Benguela, não passava de um agente das autoridades de Loyale? Em todo o caso instalar um aloquete extremamente eficaz. Os Quiocos estão certamente instalados neste
podemos verificar a extraordinária pressão exercida pelos Africanos, incluindo os chefes nicho ecológico há muito tempo, pois mostram conhecê-lo muito bem, como parece
políticos, para sugerir aos Europeus a abertura de vias comerciais. Só a certeza de obter provar a existência de uma agricultura perfeitamente adaptada às condições geofísicas.
lucros levava os Brancos a lançarem-se em operações de grande envergadura, que não Já nesse momento eles se encontravam nas terras do Alto Tchikapa, onde os Brancos
deixavam de ser física e financeiramente arriscadas. não parecem ser muito frequentes, como mostram as reacções africanas consignadas por
Entre as populações que se integram na grelha complexa destas operações, José Redinha no seu diário de viagem, elaborado em 1946 (24).
encontramos os Quiocos: nas regiões situadas para além do Loyale, estão instaladas Os Quiocos voltam a intervir por volta de 1814, quando se regista o regresso da
diversas populações, entre as quais os chefes «Quiboque» e «Bunda». Chefes e popu- viagem dos pombeiros, que tinham conseguido chegar à costa oriental e à cidade de Tete.
lações são descritos como sendo pacíficos e cordiais, como mostra o facto de dispensarem
um bom acolhimento aos homens de negócio. O seu comportamento comercial é
considerado honesto, permitindo por isso as trocas, já que faziam ao mesmo tempo o
necessário para impedir qualquer tipo de roubo. Os dois homens — o brasileiro fez a Baptista, 1843, p. 236.
viagem em companhia do português Alexandre da Silva Teixeira, que já tínhamos Os dois homens foram retidos pelo chefe Bomba, considerados responsáveis pelas dívidas
encontrado nesta mesma região — extraem uma lição importante: as populações mais contraídas por um comerciante de Kasanje. Só a intervenção de Honorato José da Costa conseguiu
libertá-los, permitindo-lhes prosseguir a viagem para nordeste, até à capital tunda. Miller afirma que
honestas são as que estão mais afastadas dos Brancos (21). os Quiocos «were exporting these products (cera e marfim) through Bihé and Kasanje by 1803, when
Aparentemente, as terras dos «Quiboques» não são muito procuradas para aí se the Cokwe chief Mushiko detained the pombeiros Amaro José and Pedro João Baptista because he
levar a cabo operações comerciais. As caravanas limitam-se a atravessar o seu território, wanted payement for products he has sent out through Kasanje some time previously» (Miller, 1970,
pagando certamente os impostos habituais, mas não se registam permutas de mercadorias, pp. 175-176).
nem na ida, o que se compreende, nem na volta, o que já se compreende menos. Em Numa única frase, Miller acumula as imprecisões ou, mais simplesmente, os erros. Esta série
começa pela identidade dos pombeiros: Amaro José nunca participou nesta viagem, tendo sido substituído
todo o caso, se trocas há, elas não deixaram a menor marca no texto que, todavia, por Anastácio Francisco, por razões que não são explicadas (Baptista, 1843, p. 236). Para confirmar a
procura descrever pormenorizadamente a situação. Sabemos apenas que existem poucos identificação do chefe Moshiko como quioco, Miller recorre ao testemunho de Burton — Captain R.
escravos, mas não há nenhuma alusão ao marfim, se bem que sejam referidos os F. Burton, The Lancis of Cazembe, Lacerda's Journey to Cazembe in 1798, London, John Murray, 1973
elefantes, o que nos permite concluir — certamente sem abusos — que os Quiocos não — que se limitou a traduzir alguns textos portugueses relacionados com a ligação Kazembe-costa
parecem muito interessados pelas trocas comerciais, mesmo impondo aos Brancos o oriental. Acima de tudo, o «captain» Burton não podia dizer coisa alguma a este respeito, porque Bomba,
que de maneira evidente não é um quioco, não podia ser confundido — como faz Miller — com Mushiko.
pagamento de direitos de passagem em tecidos.
A partir dessa confusão, parece difícil afirmar, com base nesta não-prova, que estas vias comerciais
asseguravam já as relações de negócio entre os Quiocos e os Imbangalas. Pensamos, dado o teor dos
documentos, que, pelo menos até esta data, os Quiocos preferiam manter-se à distância dos Imbangalas.
Id., ibid., p. 236. (24) Os Brancos são ainda praticamente desconhecidos na região, nesse momento do século XIX.
E continuarão a sê-lo. José Redinha conta, no relato da sua expedição ao Alto Tchikapa, a reacção de
Vasconcelos (1799), 1844, pp. 159-161.
um jovem quioco: «Um dos garotos, fitando-nos de longe, com os olhos vivos e muito abertos, soltou
Id., ibid., p. 159.
esta frase difícil de interpretar. — É isto um branco!?...». Redinha, 1953, I, p. 114. Parece bem que
Id., ibid., p. 160.
o comentário está longe de ser elogioso!
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A descrição da viagem, feita por Pedro João Baptista na Feira de Mucary, embora muito e que se destina à Musumba-Lunda, percorre o país quioco ( 30). É certo que Joseph C.
sucinta, permite acompanhar a marcha assaz rápida destes homens. Estão aí registadas Miller sugere a importância dos anos 1830-1850: o historiador americano afirma que
todas as etapas: é evidente que os pombeiros se dirigem de nordeste para os «povos do
os Quiocos teriam adquirido a sua posição dominante no comércio da cera durante este
Bomba», onde tinham estado retidos durante longo tempo, de 1802 a 1805.
período ( 31 ). Veremos, nas páginas ulteriores, que os Quiocos não aparecem — nem
Os dois homens passam, desta maneira, do rio Quihubuhe ao deserto vizinho, e
sequer furtivamente — em nenhum dos documentos de que dispomos, e se existe uma
daqui seguem até ao «sítio dos povos Quibonca do Moana Gana Quisengue» ( 25). É de
corrente comercial que fornece aos comerciantes europeus quantidades importantes de
resto a partir das terras de Bomba, que os pombeiros conseguem chegar ao Kwangu,
cera, parece difícil afirmar, de maneira definitiva, estarmos perante uma prova da
para depois alcançar as instalações do chefe Bomba, de onde tomam o caminho que os
leva a Mucary ( 26). A descrição é excessivamente concentrada, mas permite, mau grado primazia absoluta dos Quiocos, no que se refere a esse tipo de comércio.
De resto, a história tradicional recorre, para compreender a reaparição muito
isso, verificar que as terras dos Quiocos se encontram numa espécie de encruzilhada:
brusca dos Quiocos, que se choca com a sua presença anterior evidentemente modesta,
uns caminhos vão para Lovale, outros podem subir até ao norte, quer dizer, às terras
dos Lundas. a um número reduzido de explicações, a mais constante das quais pretende que os
Quiocos foram os maiores beneficiários das medidas que, em 1834, liberalizaram o
Embora sendo visivelmente magros, estes documentos permitem o aparecimento dos
Quiocos no discurso da história escrita, integrados num espaço dominado pela figura do comércio do marfim, até então submetido às regras do «monopólio real». Esta situação
chefe Quinhama de Lovale. Só muito mais ao norte, diz-nos ainda a descrição de Pedro não podia deixar de ser abolida pelo novo poder liberal, decidido a varrer alguns
João Baptista, se consegue encontrar as terras dos Lundas: o documento faz referência arcaísmos políticos que serviam de travão à própria expansão comercial dos Portugueses.
à viagem que de «Muana Muilombe [leva] para o sítio Chabanza do Chacabungi e dali Esta medida administrativa teria provocado uma resposta imediata por parte dos
findou-se as terras do Muatahianvo» ( 27). A descrição de Pedro João Baptista deixa aparecer Quiocos que, para isso, se teriam transformado em caçadores profissionais de elefantes.
uma característica da organização das sociedades africanas: não há fronteiras, mas estes De resto, G. Clarence-Smith, adoptando e alargando as teses de Joseph C. Miller, resume
espaços vazios, «desertos» ( 28) que reduzem o contacto directo entre os grupos. bem esta maneira de definir o lugar dos caçadores, entre os quais os Quiocos, na história
Frequentemente, trata-se de reservas de terras periféricas, ligadas à instalação do chefe de Angola: as técnicas de caça teriam conhecido uma autêntica «revolução» durante a
de terra. Esta informação é de resto confirmada por L. Magyar, mesmo que este não segunda metade do século XIX, graças à introdução de armas de fogo cada vez mais
hesite em recorrer a um conceito europeu — o de fronteiras — que não existe na língua modernas e eficazes. Esta melhoria técnica seria concomitante do aumento da procura de
e na.prática africanas, embora os grupos tomem as suas precauções para impedirem, ou marfim no Ocidente europeu e americano. A este facto se viria juntar a importância da
reduzirem, as possibilidades de choque e de conflito. Todavia, se lermos Magyar com a crise económica que sucedeu à abolição do tráfico de escravos no Atlântico (32).
atenção imposta pela importância do seu texto, podemos verificar que também ele dá É certo que tanto Rodrigues Graça como Livingstone redigiram os seus «diários»
conta dos espaços vazios: as florestas virgens, chamadas Olo-vihenda, separam os estados ou as suas informações na década 1845-1855. A extrapolação parece mínima, sobretudo
Ma-Songo, das províncias Kikokoe ou Gyokoe (29). no que se refere às armas de fogo: se em algumas regiões africanas mais a sul, o arsenal
africano foi em parte modernizado, é impossível generalizar a situação: os Quiocos
II. O «reaparecimento» dos Quiocos por volta dos anos 1840: o discurso mantiveram-se obrigatoriamente fiéis às armas de fogo de carregar pela boca, cujo
europeu da história modelo é o das lazarinas, fabricadas essencialmente em Liège ( 33 ). Digamos as coisas
de outra maneira: é necessário analisar a situação não a partir exclusivamente das
Os Quiocos voltam a desaparecer da história de Angola: não voltamos a encontrá- solicitações exteriores, mas levando também em conta as escolhas africanas. Exigência
-los, nem a norte nem a sul. Esta evacuação prolonga-se desde o ano de 1814 até 1846, indispensável, já que sabemos que os grupos africanos recusaram servir-se das armas
momento em que a embaixada de Joaquim Rodrigues Graça, organizada nos anos 1843, de fogo — antigas ou modernas — para se manter fiéis à suas setas envenenadas (34).

Baptista, 1843, p. 424. Será que os povos quibongas são Quiboucos, Quibôco, Quibôca, quer Graça partiu do Bié a 4 de Maio de 1846, tendo chegado à Musumba a 7 de Setembro de
dizer, Quiocos? 1846. Ficou na cidade lunda quase um ano.
Id., ibid., p. 425. Miller, 1970, p. 178.
Id., ibid., p. 424. Clarence-Smith, 1976, pp. 214-223.
Quer dizer «desertos» humanos, terras vazias, despojadas de populações. Baptista, 1843, Ver sobre esta questão Henriques, 1989.
pp. 423-425. (34) Id., ibid., pp. 419-422; ver também Alpers, 1975, p. 12, que faz referência aos Kambas «who
(29) Magyar, 1859, p. 2. prefered to hunt with poisoned arrows».

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As teses de Joseph C. Miller estão largamente espalhadas na literatura anglófona, A intervenção um pouco mais tardia desta capitalista de Luanda pode ser interpretada
o que provoca não poucas deformações na informação, dado que as armas de fogo não como traduzindo um arrependimento, autorizado pela recuperação do controlo das
liquidaram, de maneira alguma, as técnicas usadas para abaterem elefantes ou outros regras comerciais pelos colonos, o que impunha naturalmente a anulação do projecto
animais de grande porte, nesta primeira metade do século XIX: os arcos e as flechas, de que tinha sido encarregado o negociante brasileiro. De resto, este copiou o rascunho
as azagaias, ambos envenenados, e as armadilhas — buracos largos e profundos, em do seu diário num livro de contabilidade, recorrendo a um apurado trabalho caligráfico,
forma de funil — inventariados por Rodrigues Graça, continuaram a ser utilizados (35). para o transmitir ao governador de Angola. Esta operação, se procurava informar,
A situação é por essa razão infinitamente mais complexa, e é preciso olhar a pretendia também obter uma indemnização, em consequência dos prejuízos resultantes
história a partir das escolhas africanas, tal como foram miudamente registadas pelos da maneira como a sua associada sabotara a operação comércio-diplomática (37).
documentos coetâneos, que são os únicos de que dispomos. O recurso à oralidade não O diário de Rodrigues Graça, no que diz respeito aos Quiocos, constitui um belo
parece de molde a poder anular a coerência e a convergência dos documentos escritos, exemplo da dificuldade experimentada pelos Europeus, para se darem conta das
como pretendem, por vezes, alguns historiadores. A tentativa de eliminar o recurso aos estruturas fundamentais das sociedades africanas. Ora Rodrigues Graça, então instalado
documentos escritos, sistematicamente substituídos pelas informações actuais fornecidas em Cazengo, parecia dispor de conhecimentos importantes, capazes de lhe permitirem
por não-testemunhas, é inevitavelmente deformadora (36). compreender os particularismos das populações orientais que, subentendia-se, não podiam
Vale dizer que se corre o risco de se alterar constantemente o discurso da história, ser muito diferentes das que povoavam as zonas próximas de Luanda.
quando se recorre incontroladamente à «tradição oral», invertendo as posições, quer Para o comerciante brasileiro, a sociedade quioca caracteriza-se pelo nomadismo,
dizer, fazendo da oralidade o agente que controla os documentos escritos, os únicos pela miséria, pela selvajaria e pela brutalidade dos comportamentos de todos, homens
capazes de atravessarem o tempo com o menor número de escarificações ideológicas. e mulheres (38). Esta situação aparece de maneira mais afirmada, quando o brasileiro
A relação entre os dois tipos de testemunhos, sendo indispensável, não pode pôr em procura definir as formas de organização da sociedade. Nesse momento, ele nunca
causa a totalidade do testemunho escrito, qualquer que seja a sua deformação ideológica. consegue separar-se da sua visão euro-brasileira, porque nunca se esquece de salientar
A «embaixada» organizada em Luanda e comandada por Rodrigues Graça tinha que estes «selvagens» são, na verdade, pessoas muito astutas, capazes de assegurar o
como objectivo principal convencer as autoridades africanas de que o tráfico de escravos controlo das suas terras e das suas actividades comerciais (39).
havia realmente terminado, por decisão do governo de Portugal, mesmo que a escravatura Rodrigues Graça regista o facto de os Quiocos estarem instalados na floresta, em
pudesse continuar no plano interno. Colocadas perante esta situação, as autoridades pequenos cercados de palha, tal como os «animais silvestres». Em volta destas cubatas,
africanas deviam proceder à reconversão radical do seu sistema de produção, de maneira os Quiocos dispunham as suas culturas alimentares (40).
a poder fornecer as mercadorias solicitadas pelo comércio lícito internacional. Numa outra passagem, Rodrigues Graça torna-se mais minucioso: os Quiocos não
Esta intervenção serve para mostrar que havia então em Luanda um número teriam habitat fixo ou permanente, tratando-se, por isso, de populações «errantes»,
significativo de comerciantes convencidos de que as medidas legislativas portuguesas contrariamente ao que se verificava com todos os outros povos que o brasileiro tinha
seriam com efeito seguidas, modificando de maneira perturbadora o modelo económico encontrado (41). Estas populações, insiste ele, fabricam todas as suas cubatas, quer
organizado desde o século XVI e caracterizado pela comercialização de escravos- sejam boas ou más, ao passo que os Quiocos vivem dispersos pelos seus campos, tendo
como único domicílio um cercado redondo, sujeito às intempéries do clima. Quando
-mercadoria. Duas medidas tomadas pelas autoridades portuguesas, a primeira em
chegava a estação das chuvas, os Quiocos cobriam este cercado, cobertura que retiravam
1834, pondo fim ao exclusivo real da comercialização do marfim, a segunda, muito mais
logo que aparecia a estação seca (42).
importante, de 1836, decretando a abolição do tráfico negreiro transatlântico, tinham
A indignação de Rodrigues Graça encontra um reforço no facto de estes grupos
abalado seriamente as regras internas dos colonos. Foi esta situação de incerteza que
viverem em florestas, onde a madeira é abundante. Contudo, «estes míseros são tão
conduziu à organização desta «embaixada», mais tarde sabotada pela co-organizadora,
brutais como os outros cohabitadores das selvas [e] são indignos de comiseração,
D. Ana Joaquina dos Santos, personagem fundamental da vidt civil e económica de
porque não são bons para si, nem para os mais» (43).
Luanda.

Graça, 1890, cartas dirigidas ao governador de Angola.


Graça, 1890, p. 427. Id., ibid., pp. 414-416.
Pélissier, 1977, p. 88, critica as interpretações de Miller (1971) as quais seriam elaboradas Id., ibid., p. 415.
apenas com base no trabalho de investigação no terreno, levado a cabo pelo historiador norte-americano Id., ibid.
nos anos 60. Pélissier salienta a extrema fragilidade da oralidade perante os documentos escritos e critica Id., ibid., pp. 414-415.
o facto de a oralidade não ser confrontada com a «dureza» da escrita. Trata-se de um problema teórico Id., ibid., p. 416.
fundamental, que não cabe aqui analisar mais pormenorizadamente. (43) Id., ibid.

440 441
Rodrigues Graça volta a surpreender-nos: o território quioco quase não possui recebem sementes ( 49), e muito hábeis, nomeadamente no trabalho do ferro, como o salien-
qualidades; o clima é frio, a cobertura florestal demasiado espessa, os rios — grandes tam Magyar ( 50) e Silva Porto (51).
e pequenos — muito numerosos, enfim, o território é um mar de lama. Mais inquietante Estas características, entre as quais a astúcia, a dissimulação e a habilidade — sobre-
ainda, as terras quiocas são estéreis, porque os «terrenos são impróprios para qualquer tudo no que se refere às operações comerciais — são amplamente confirmadas pelos autores
agricultura» (").
da segunda metade do século XIX (52).
Tal descrição não impede o autor de proceder ao inventário das produções agrícolas:
Que estrutura política, que habitat, que demografia, que agricultura, que sistema
algumas gramíneas (milho e milho-painço), feijões, mandioca, «contudo amarga», ao
alimentar caracterizam os Quiocos? Todas estas informações se encontram associadas,
que devem ser acrescentadas as galinhas «em número infinito», as cabras, as ovelhas
aglutinadas umas às outras, frequentemente amalgamadas nos textos dos viajantes, que
e o mel. Este leque de produções alimentares não dá conta de nenhum produto provindo
são mais narrativas de operações comerciais do que o resultado de projectos científicos.
da colecta — a não ser no caso do mel —, tal como não parece que a caça melhore
muito a fracção carnívora do regime alimentar (45).
O inventário da «miséria» dos Quiocos, feito sem a menor complacência por A. Chefes, aldeias, organização social e agricultura
Rodrigues Graça, não o impede de proceder a compras de alimentos — esta alimentação
que eles não podem ou não conseguem produzir! — das quais não regista os pormenores. Dispomos, por isso, de poucas informações que digam respeito às formas políticas
Contudo, eles teriam sido muito importantes, quanto mais não fosse para conhecer a e às organizações clânicas ou linhageiras. Se Rodrigues Graça dá conta da «rede
paridade das mercadorias: «no mesmo sítio [quer dizer no Mucu, perto da capital do polftica» formada pelos Catendes ( 53), é sobretudo Magyar que se empenha em descrever
chefe de terra Muanna Angola Diaubamo] ocupei-me em fornecer a caravana de o mecanismo político, que parece ter escapado a Merran McCulloch, a qual afirma sem
mantimentos» (46). a menor cautela: «não há virtualmente qualquer informação sobre a estrutura política
Esta informação, cuja secura é evidente, permite dar conta da existência de excedentes quioca» ( 54). Ora, o oficial húngaro dissera já no século XIX que «os habitantes de
agrícolas bastante importantes, que fornecem aos mercados — idênticos a outros já Kiboke obedecem ao governo popular assegurado por um certo número de chefes
descritos — os produtos alimentares, igualmente indicados nas regiões mais orientais, autónomos chamados Muanangana. Os mais poderosos são: Kanyka, na região noroeste
no trajecto que vai da capital lunda até Kazembe. da província; Dumba, a norte; Pehu, no centro da província; Dina-Kala, junto da
confluência do rio Lume com o Lunge-bungo. Os principais lugares da província (...)
são aqueles onde moram os chefes aos quais acabamos de fazer alusão, de que eles
III. A organização do espaço: as estruturas, os homens, as produções
recebem o nome» (55).
Estaríamos, desta maneira, perante uma espécie de híbrido: estruturas políticas
A opacidade das estruturas quiocas conserva-se ligada à visão europeizante dos
pulverizadas, bastante aparentadas com as sociedades acéfalas ( 56), colocadas contudo
viajantes e dos comerciantes «brancos», mesmo que Rodrigues Graça constitua um caso
extremo, ou até algo patológico, pois podemos verificar que é raro que as descrições
de Lázlo Magyar, de Silva Porto e até de Livingstone coincidam com as visões do
comerciante brasileiro. Id., ibid.
Em primeiro lugar, a caracterização psicologizante, fornecida por estes autores, Id., ibid.
coloca-nos perante uma população sobretudo desconfiada, astuciosa, mentirosa, e acredi- Porto, 1942, pp. 136-137.
tando em todas as formas de feitiçaria ( 47). Mas os Quiocos são também homens e mulheres Por exemplo, Capello e Ivens, 1881, e Silva Porto, 1884-1885.
competentes — «eles cultivam os seus campos de maneira aplicada» (48) —, empre- Canhica Catendo
endedores, pois não hesitam em acolher a novidade do tabaco para o cultivar quando
Kasanje Bié

Luanda— — — — —Benguela
Id., ibid., p. 414.
Id., ibid. É graças ao poder ordenador do chefe político que se organiza a hierarquia dos poderes, a qual
Id., ibid., p. 417. permite assegurar o funcionamento das redes comerciais, quer seja para Luanda quer seja para Benguela.
Magyar, 1859, p. 8. «Their is virtually no information on Chokwe political structure», McCulloch, 1951, p. 46.
(48) Id., ibid., p. 9. Magyar, 1859, pp. 7-8.
No sentido que lhe dá Evans-Pritchard, 1968.
442
443
sob a autoridade de chefes possuindo um carácter regional, governando, às vezes, alguns feitiçaria familiar, aparentemente a mais perigosa, que levava a uma segmentação
milhares de súbditos. A aldeia aparece assim como sendo o elemento central, assegurando constante das aldeias e das linhagens (61).
a coesão dos Quiocos, permitindo-lhes manter a coerência cultural que os caracteriza Os viajantes encontram-se frequentemente em situação delicada, o que lhes não
na relação cada vez mais conflitual com os Lundas. permite proceder a análises eficazes. Silva Porto, que conhece muito bem o mundo do
Livingstone não descreve a aldeia quioca: as suas descrições dizem respeito às aldeias Bié, parece titanizado perante a complexidade deste conhecimento. Mas já pudemos
dos Lundas meridionais — muito próximos dos Quiocos tanto do ponto de vista genealógico observar que Magyar, casado com uma mulher africana originária do planalto do Bié,
como do geográfico — que merecem uma atenção contínua. Não será possível proce- também não consegue diluir o peso desta opacidade. Ora, não podemos acreditar que
dermos a uma ligeira extrapolação, considerando que esta descrição pode também ser esta mulher, dada a sua grande juventude, tivesse renunciado, ou pudesse renunciar, às
aplicada às populações quiocas? Seja como for, os Lundas respeitam os princípios práticas religiosas do seu grupo. Somos por isso levados a considerar que os Africanos
estruturais assinalados entre os Quiocos: pequenas povoações, cercadas pelas lavras. Nesta são obrigados a manter o mistério completo a respeito das suas práticas religiosas. Esta
perspectiva, cultivam essencialmente o milho-painço e o milho. Quando as terras se técnica de ocultação estende-se também a outros sectores da vida africana.
esgotam, por falta de adubos, os homens recorrem à técnica das queimadas, para destruir Se assim não fosse, como seria possível explicar que a organização da família, do
a floresta em busca de terras novas. Livingstone observa, todavia, que esta mudança não peso dos ritos e dos sacrifícios se mantivesse tão incompreensível para os Europeus?
impede a antiga lavra de continuar a produzir mandioca (57). É certo que uma parte da incompreensão deriva dos preconceitos, mas ela é igualmente
Tudo se passa, na realidade, como se houvesse, no sistema lunda e, por isso, gerada pela estratégia dos Africanos, que recusam fornecer informações aos Europeus.
também no quioco, uma espécie de incongruência organizacional: se por um lado os Embora não possamos deixar de constatar a ausência de um aparelho teórico suficiente,
comportamentos se mantêm fiéis às práticas impostas pelas gramíneas, podemos pelo como explicar, nos finais do século XVIII, princípios do século XIX, a importância e
outro verificar que o tubérculo americano possui um ciclo vegetativo muito diferente, a organização dos ritos de passagem, sem dispor da mediação fornecida pelo trabalho
que obriga as populações a manterem os campos já esgotados, e que se tornaram, por teórico de Van Gennep?
esse facto, inúteis para as culturas não-americanas. Procuremos, por isso, resumir os valores profundos das sociedades quiocas. Silva
O autor, que presta mais atenção a estes problemas, parece ser L. Magyar, que é Porto salienta a importância da música que os antropólogos do século XX fizeram
levado a considerar — fantasma do antigo oficial da marinha de guerra austro-hún- desaparecer das suas reflexões, mesmo que conservem a existência de um número
gara? — a importância da rede hidrográfica no quadro da qual estão instalados os Quiocos. importante de instrumentos musicais. É verdade que, aqui e além, os viajantes fazem
Preocupando-se mais com o pormenor, Magyar lembra que até os cursos com pouca água referência aos instrumentos musicais africanos, considerando-os alguns como máquinas
aumentam de volume durante a estação das chuvas. O primeiro problema — que encon- desagradáveis de fazer barulho. Mas estas práticas musicais desempenham um papel
tramos, de resto, em outros lugares — é o da densidade demográfica, a mais reduzida da mais importante do que aquele que lhes é normalmente concedido pelos Europeus. Os
África central interior. As cubatas estão dispersas no meio dos campos e tornam-se quase Quiocos são de resto enviados para os territórios luena e luimbe para aí aprender a tocar
invisíveis (58), o que é confirmado por Livingstone: «algumas aldeias estão de tal maneira marimbas e tambores.
invadidas pelas ervas altas, que mal consigo, de cima do meu boi, aperceber-me do telhado A quase totalidade dos autores substitui rapidamente o interesse pela música pela
das cubatas no meio das quais me encontro» (59). crueldade dos sacrifícios: porque eles «são extremamente sanguinários, fazendo frequentes
A demografia retida por Magyar comprova esta grande dispersão — assinalada por sacrifícios humanos para satisfazerem os preceitos das suas crenças supersticiosas» (62).
Rodrigues Graça, e confirmada por Livingstone e por Silva Porto — tal como a Silva Porto é um dos primeiros a salientar a importância da circuncisão, mesmo que
invisibilidade, mesmo que relativa: cada uma destas aldeias conta apenas com um milhar não se aperceba ainda do prestígio desta operação, e seja manifestamente incapaz de
de habitantes, no máximo (60). Esta disseminação parece destinada a responder às compreender que uma parte das opções sociais dos Quiocos, como de resto acontece
condições de funcionamento da família, impostas pela estrututa linhageira. A expli- com a maioria dos grupos lundaizados, passa pelas regras complexas da circuncisão.
cação foi mais tarde contrariada por outra, provinda de Eduardo dos Santos — que Para Silva Porto, o «acto de circuncisão» é a fonte de grande parte das «loucuras»
sugere uma mais associada ao funcionamento das práticas religiosas: seria o medo da cometidas pelos Quiocos, porque estes consideram corajosos os circuncisos, e efeminados
todos quantos não se submetem a esta intervenção.

Livingstone, 1859, p. 399.


Magyar, 1859, pp. 7-8.
Livingstone, 1859, p. 399.
Santos, 1962, p. 105.
Magyar, 1859, p. 8.
Porto, 1942, p. 136.
444 445
Se é perfeitamente compreensível que Silva Porto não possa ir além destes galinhas em troca de «alguns pedaços de tecido» ( 66). Magyar não faz a mínima
comentários, podemos enunciar a pergunta complementar: sabem os Africanos que os referência à situação alimentar, mas é certo que não se teria esquecido de a mencionar
Europeus — Judeus excluídos — não são circuncisos? Dado o facto de as mulheres se existisse carência. Pelo contrário, ele soma às produções agrícolas a existência de
africanas estarem interditas de manter relações sexuais normais com os não-circunci- cabras, de porcos e de um «número muito importante de galinhas pequenas» (67).
dados, como explicar que esta proibição seja constantemente infringida pelas companheiras Nestas condições, é perfeitamente compreensível que estas populações disponham
dos Brancos?
de excedentes que lhes permitam vender alimentos. Já o dissemos alhures, mas convém
L. Magyar estabelece, por sua vez, uma relação entre «a poligamia e a circuncisão», repeti-lo, sobretudo neste momento em que as sociedades europeias parecem convencidas
que pode parecer pelo menos singular. O autor húngaro considera «correntes» estas duas de que os Africanos nunca foram capazes de produzir o sustento suficiente para assegurar
situações sociais. Podemos talvez aceitar que nos encontramos perante uma espécie de a sua sobrevivência: a agricultura nunca é pensada em termos de estrita auto-suficiência,
acto falhado, dado que estas duas práticas se encontram muito directamente associadas: mas também em função dos excedentes, destinados tanto ao consumo ritual (religioso),
só os homens que cumpriram as regras da circuncisão podem casar-se, isto é, tornar- como à comercialização.
-se polígamos. O carácter original destes textos provém, às vezes, do facto de sustentarem
uma relação com a oralidade africana, entendida e reproduzida, mas pouco meditada. B. Produção e comércio: o ferro, o marfim e a cera
O comportamento de Livingstone não é muito diferente, embora seja de reter um
elemento muito particular: possui uma experiência considerável da África austral, e a Outras actividades, exigindo todas elas uma grande competência técnica ou uma
sua relação com os territórios da África central é constantemente apoiada no grande destreza, permitem aos Quiocos produzirem bens, também destinados aos circuitos
comparatismo, mecanismo reforçado pelos comentários feitos pelos seus «empregados» comerciais: a metalurgia, a caça ao elefante e a recolha do mel e da cera fornecem,
zambezianos. inicialmente, as mercadorias principais, vendidas na própria aldeia e transportadas
Livingstone considera, em primeiro lugar, a questão demográfica: a população depois para longe, através do imenso traçado das vias comerciais.
parece assaz numerosa, quando comparada com a da colónia do Cabo ou a das terras No texto de Silva Porto, intervém uma referência curta mas reveladora da competência
dos Bechuanas, mas é muito pouca quando relacionada com a extensão do território. técnica dos Quiocos, para definir o estado das relações das populações do Bié com os
É este também o juízo de L. Magyar, mesmo que nunca se exprima de maneira tão Quiocos: «é aqui no Quiboco que os bienos deixam de ordinário parte dos seus haveres
peremptória (63). como tributo pago à indústria desta tribu» ( 68). A linguagem às vezes muito alambicada
No registo da produção, Livingstone mobiliza correntemente a opinião dos do comerciante português, quer simplesmente dizer que os artigos produzidos pelos
Zambezianos recrutados no Sul, território de produtores de milho e de pastores. Estes Quiocos são tão apaixonantes que as gentes do Bié não podem resistir à sua sedução,
homens sonham unicamente com gado: «que terra para alimentar rebanhos !», exclamam regressando a casa com os bolsos vazios, mas carregados de compras.
eles no texto do missionário. A situação de abandono dos ricos vales fá-los sofrer de Apresentados como bons artesãos — mas também, o que é muito original, como
maneira intolerável (64). bons pescadores — estes homens são capazes de preparar e de cultivar a terra de maneira
As hesitações dos viajantes não evitam, contudo, que se reconheça ser a alimentação perfeita ( 69). São igualmente bons ferreiros. É contudo curioso verificar que Silva Porto
suficiente. Já tínhamos feito notar que Pedro João Baptista não faz a mínima alusão nunca os inclui entre os tecelões, mas não se esquece de fazer referência aos tecidos de
a qualquer falta de comida. Rodrigues Graça, apesar da desconfiança que lhe inspira algodão que fabricam e que os habitantes do Bié compram frequentemente (7o).
o comportamento dos Africanos, nunca receia a falta de alimentos. Muito pelo contrário: Se o mito fundador quioco atribui a competência metalúrgica aos Lubas, que a
é necessário que os viajantes aproveitem a abundância de géneros alimentícios entre os ensinaram aos Lundas, a prática das populações quiocas revela uma realidade bastante
Quiocos, organizando reservas, no caso de quererem penetrar mais profundamente no diferente; eles tornaram-se — mas desde quando? — os senhores do fogo e do ferro. Silva
território. Porto não acredita que sejam muito hábeis na utilização das espingardas, que só conseguem
Livingstone confirma esta impressão geral de abundância de alimentos: «nada manipular de maneira suficiente. Podemos aceitar este juízo, pois Silva Porto era reputado
anuncia que a população não disponha de comida suficiente» ( 65). Isto explica, talvez, pela sua pontaria, mas a competência relativa dos Quiocos é largamente compensada pela
que os Quiocos se apressem a propor-lhe a compra de farinha (de mandioca) e de forma como assimilaram as técnicas associadas às armas de fogo.

Id., ibid.
Magyar, 1859, p. 10.
Livingstone, 1859, p. 378; Magyar, 1973, cap. I, pp. 6-7.
Porto, 1942, p. 136.
Id., ibid., p. 377.
(65) Id., ibid. Id., ibid., p. 137.
(70) Id., ibid., p. 138.
446
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Com a excepção dos canos — que foram incapazes de produzir até à independência,
e mesmo depois — eles fabricam as espingardas de maneira perfeita, afirmam as
testemunhas. Mas são também fabricantes de grandes facas de duas lâminas (os famosos
mucuales dos Lundas), de azagaias, de machados decorativos, de machados utili-
tários, de enxadas — umas destinadas ao trabalho agrícola, outras à utilização simbó-
lica (71) —, de manilhas para os tornozelos e de pulseiras para os pulsos e para os
tornozelos (72).
Encontramos a plena confirmação da competência dos ferreiros em numerosos
textos, entre os quais os de Magyar (73), que percorreu o território quioco em 1850.
Não parece útil, nem necessário, repetir tudo o que se refere à abundância de
marfim e de cera nas regiões onde estão instalados os Quiocos.
Os elefantes são aí numerosos, neste período dos séculos XVIII-XIX, e a caça revela-
-se uma das actividades mais estimadas pelos homens. Pensamos que esta ocupação foi
empolada aos olhos dos Europeus, que se tinham tornado caçadores «desportivos», abatendo
os animais para obter troféus, ao passo que os Africanos só caçam para satisfazer objectivos
vitais: produzir carne, eliminar os animais que ameaçam tanto os homens como as culturas,
obter mercadorias — dentes, pontas, peles. Estes «resíduos» servem, quer para pagar
tributos (74) quer para alimentar o comércio local ou a longa distância.
Em primeiro lugar, os Quiocos organizam a caça aos elefantes no seu território;
quando, por volta de 1850, o número de animais começa a rarear, devido à perseguição
dos caçadores, os Quiocos avançam para norte e para nordeste, descendo também para
sul e sudeste. Em ambos os casos, os caçadores não procuram seguir para oeste, onde
são forçados a enfrentar os Imbangalas e onde a instalação dos Europeus, mesmo que
ainda reduzida, parece ter afugentado a maior parte dos elefantes. Podemos por isso
aceitar a explicação, que se tornou corrente, de que foi a perseguição do elefante que
explica a expansão-migração nas zonas indicadas?
Parece que devemos moderar o carácter excessivo dessas afirmações demasiado
maquinais: os Quiocos não hesitaram caçar o elefante em regiões onde não pretendiam
instalar-se, existindo zonas em que o animal abunda e em que eles nunca tentaram
penetrar. A oposição dos chefes locais conta muito nestas escolhas, e os Quiocos foram
sempre obrigados a partilhar o marfim obtido. Magyar assinala, já em 1850, que
caçadores de diferentes origens, entre os quais os Quiocos, iam caçar em território
lunda, mas «eram obrigados a dar ao chefe da terra um dos dentes do animal como
imposto». E Magyar acrescenta que os dentes do animal — cujas cores são mais escuras
e sujas do que as dos seus congéneres do Kubangu, que são mais brancas — pesam
muitas vezes 110 e até 125 libras portuguesas (49,896 e 56,690 kg) (75).

Porto, Viagens (...), vol. II, Manuscrito de 1861, BPMP, p. 162. Os viajantes e comerciantes
europeus não conheceram a produção nem a existência das enxadas utilizadas pelos «feiticeiros», cujo
mistério é agravado por Rodrigues de Areia (1980, p. 234): «um dos instrumentos raros e escondidos
do feiticeiro». É certo que a produção devia ser muito restrita, mas é bastante significativa, na medida
em que reforça as relações profissionais e mágicas entre os ferreiros e os «feiticeiros».
Id., 1942, p. 136.
Magyar, 1859, p. 9.
Ver 3.' parte do cap. II, consagrado ao marfim.
(75) Livingstone, 1859, p. 381.
Fig. 30 — Caçador quioco. Capello e Ivens, 1881, I, p. 193.
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Todavia, a profissão de caçador exigia resistência e coragem, o que explica o
Dupla mutação, pois: o chefe de terra não pode continuar a exigir que lhe sejam
cuidado dos Quiocos em darem aos jovens iniciados, durante as cerimónias da circuncisão,
entregues todos os dentes «produzidos» pelos caçadores do grupo; o chefe de linhagem
um treino capaz de lhes permitir enfrentar, com êxito, as grandes feras. A caça, mais Apenas pode renunciar ao controlo que tinha exercido durante séculos. Os viajantes
particularmente a dos animais como os búfalos — empacassas ou pacassas — e os europeus são simultaneamente agentes e testemunhas desta transformação, que nem
elefantes, provocava mortos e estropiados em número bastante elevado entre os Quiocos.
sempre é pacífica. É de resto compreensível que assim seja e a comercialização
Esta situação é muitas vezes a consequência da maneira como se serviam das armas potencialmente possível parece, mal-grado tudo, sujeita a algumas precauções: os
de fogo para obter resultados definitivos, pois os animais feridos representavam um proprietários dos dentes não os comercializam senão quando tal «se torna possível».
perigo para o caçador, assim como para qualquer pessoa que com eles se cruzasse: «eles O que significa esta fórmula tão incerta? Torna-se crível que a situação só nos deixa
enchem a arma até ao meio [com pólvora e com chumbo], o que as faz rebentar uma hipótese: é preciso que a conjunção dos interesses seja tal que o proprietário possa
[provocando] a morte ou então um grave handicap para os caçadores» (76). propor a venda sem provocar a irritação do chefe de terra. Ou, como alternativa, a venda
Tal como já referimos, Silva Porto não hesita em asseverar a existência de milhares será feita de maneira dissimulada, frequentemente durante a noite; todavia, e seja qual
de caçadores «Ba-Luvar» e «Ba-Quioco» que guardam sempre em casa o marfim e o for a técnica utilizada, os dados fornecidos por Silva Porto, e que não são contrariados
trocam quando tal se torna possível ( 77). Os feridos e os mortos nunca impediram os por nenhum dos autores que mantiveram relações relativamente precoces com os Quiocos,
Quiocos de prosseguirem a sua actividade de caçadores, exigida pelo comércio, actividade permitem dar conta de novas regras, destinadas a assegurar ao produtor a possibilidade
que eles organizam sem recorrer ao sistema das caravanas e que explica a referência de dispor sozinho, ou associado a uma fracção reduzida do clã, do seu produto.
de Silva Porto à propriedade individual do marfim. Os Quiocos são também, graças à ajuda interessada de pelo menos uma ave,
Retenha-se a organização da caça ao elefante — situação que pode ser eventualmente «caçadores» de mel. Esta matéria-prima — indispensável à preparação dos vários tipos
alargada a outros tipos de caça — que os Quiocos não parecem praticar individualmente. de hidromel — é muito pretendida pelos Quiocos, grandes consumidores de bebidas
A caça exige a formação de grupos que se movimentam por toda a parte, quando fermentadas. O hidromel possui características lúdicas e até alucinogéneas muito
conseguem obter informações úteis a respeito do percurso dos animais. Esta organização peculiares.
implica uma grande disciplina, e embora Silva Porto não forneça mais nenhuma achega Estes «caçadores» de mel adoptam as técnicas utilizadas por, praticamente, todas
complementar, podemos pensar que estes homens são originários da mesma aldeia ou as populações de Angola, que continuam a suscitar as críticas dos especialistas euro-
até da mesma família, e se encontram ligados pela origem comum e próxima (78). peus ( 79). Se algumas regiões são mais melíferas do que outras — como é o caso das
Parece difícil ir além destas indicações, o que nos impossibilita esclarecer este terras do Alto Tchikapa ( 80), parece que se encontra mel em quase todas elas.
ponto tão eficazmente como seria necessário. Silva Porto afirma também que os caçadores Rodrigues Graça, que percorreu o território quioco, em 1846, escreve: «há em
grande abundância a cera; daqui anualmente partem para Bié e Cassange imensos
mantêm em sua casa os dentes de elefante. Esta referência só pode querer dizer que nos
carregamentos. Com segurança, posso afirmar que a maior parte da cera que se transporta
primeiros anos da segunda metade do século XIX, assistimos a uma profunda mutação
de Benguela e Luanda procede daqui da [região] Bunda» ( 81 ). As produções convergem
interna das hierarquias comerciais quiocas. O marfim deixa de ser uma mercadoria todas para o comércio a longa distância.
reservada exclusivamente aos chefes de terra. O caçador, que partilha esta mercadoria
O inventário das mercadorias e das suas condições de produção é importante, mas
necessariamente com os elementos do seu grupo, pode conservá-la em seu poder. nunca deve convidar-nos a renunciar a medir os efeitos que exerce nas estruturas
Esta situação — que examinaremos mais adiante — assinala, em primeiríssimo sociais. Obter marfim, cera ou borracha (alguns anos mais tarde) torna-se, em determinado
lugar, as consequências da liberalização introduzida pelos Europeus na sua própria momento, a tarefa essencial do grupo, o que se traduz em modificações relacionais
esfera comercial, e arrasta também as formas de comercialização africanas. Trata-se de internas. Estas modificações são ainda mais importantes nas maneiras de produzir, de
agir de tal modo que o comércio deixe de ser inteiramente vigiado pelo chefe de terra. comercializar e de partilhar os bens ou as mercadorias obtidas em troca. Os abalos
Mas estamos igualmente colocados perante uma modificação,deveras importante das constantes, mesmo reduzidos, impõem a mudança, a modernização, qualquer que seja
relações com a produção dos bens utilizados preferencialmente no comércio, a desconfiança em relação a esta.
acompanhados por uma segunda alteração das relações entre o caçador e os chefes de
terra ou de linhagem.
Magyar, 1859, p. 9.
Ver Redinha, 1953.
(81 ) Graça, 1890, p. 415. Esta informação é confirmada pelo chefe Catende que lembra a Graça
que a cera se encontra no seu território, e que é ele «o MUENE PUTO de Luanda (...) [que] precisa
Porto, Notas (...), Manuscrito de 1866, SGL, p. 28.
de mim», «eu não preciso dele» (p. 410). A altivez das palavras do chefe mostra a que ponto as
Porto, Viagens (...), Manuscrito de 1853, BPMP. autoridades africanas estão convencidas da perenidade da sua hegemonia, já então começando a ser
(78) Porto, Notas (...), 1866, p. 26.
abalada, embora tal não tenha sido ainda compreendido pela quase totalidade dos chefes políticos.

450 451
C. Mulheres empenhadas, mulheres escravas
Como ficar, por isso, surpreendido perante o facto de o estatuto das mulheres e,
mais particularmente, o das sociedades matrilineares terem constituído um mistério para
Os documentos são deveras imprecisos sempre que se trata de definir a situação
dos escravos — homens ou mulheres — durante o período do tráfico negreiro e até os Europeus?
ulteriormente. Os textos insistem no facto de os escravos poderem ser integrados nas Os preconceitos substituíram, de maneira assaz regular, a informação. A nudez, as
formas de iniciação, as tatuagens ou as escarificações, o quase nenhum interesse pela
famílias, por meio do casamento. Mal-grado isso, não dispomos de elementos para saber
virgindade, havendo maridos que recusavam ter relações sexuais com as mulheres ainda
se os escravos eram «sempre» vendidos ou quais os que eram conservados na aldeia
para ser integrados nas linhagens. virgens, a ausência de castigos severos — prisão ou morte — para os adúlteros
ç.onstituem uma panóplia muito negativa, que expulsa as africanas do quadro da
Temos conhecimento, contudo, que um número importante de escravos quiocos
sexualidade normal. Esta perplexidade foi reforçada pelo estatuto das esposas: trata-se
chegou ao Brasil. Um texto de Nelson de Senna informa-nos da presença de alguns
de autênticas esposas, no sentido ocidental, ou são apenas concubinas, as amázias dos
representantes da «nação quioca» no território das minas — que mais tarde se tornou
textos portugueses, cujo estatuto não podia ser comparado ao das esposas? Não
também produtor de café — de Minas Gerais (82). É impossível dizer se estes quiocos
esquecendo que a poligamia complica a visão dos Europeus, sobretudo a partir do
foram vendidos pelas suas famílias, se foram vftimas de operações de razia, ou se eram
momento em que se regista a intervenção dos missionários.
prisioneiros de guerra. A questão é importante, mesmo que estejamos convencidos de
que a desgraça do tráfico negreiro atingiu também os Quiocos. Perante todos estes problemas, parece difícil propor uma conclusão. Tal não impede,
porém, alguns historiadores de avançarem afirmações, que se pretendem exactas, referentes
Os textos são todavia convergentes: os Quiocos participavam pouco no tráfico de
escravos. Não podiam, no entanto, deixar de o fazer, dado o peso dos direitos de que ao funcionamento da sociedade quioca durante a década 1830-1840. Joseph C. Miller,
num artigo que procura descrever o sistema quioco, salienta a importância das mulheres
dispunham os tios maternos, sobre os sobrinhos filhos das irmãs, devido às regras da
empenhadas na organização da família e da produção. A sua proposta pretende levar
matrilinearidade: um grande número de jovens quiocos foram dados como penhor ou
a crer que teríamos à nossa disposição documentos que permitam afirmar, sem rebuço,
até vendidos pelos tios maternos, que não hesitavam, de resto, em multiplicar as infracções
a importância das mulheres pawn: «antes de 1830» («prior 1830») o sistema das
ou os crimes, certos de poder pagar as compensações ou as multas com os filhos das
irmãs (83). mulheres empenhadas («pawn-ship system»), existente na sociedade quioca, seria já
operatório nas relações interlinhagens (86).
Livingstone encontrara — tal como já referimos — durante a sua viagem no
De que prova dispõe o historiador americano? Não foi elaborada nenhuma descrição
território dos «Chiboques» um pombeiro que «levava presas por uma corrente oito
dos sistemas africanos de parentesco desta região durante esse período, a não ser as
mulheres bastante bonitas que conduzia para a terra do Matiamvo, com a intenção de
efectuadas por Douville, que merecem pouco ou nenhum crédito, mas que sobretudo não
as trocar por marfim» (84). Este encontro de Livingstone mostra bem que os Quiocos
fazem qualquer referência às mulheres quiocas, livres ou escravas. Se assim é, de onde
não estavam completamente afastados das técnicas do tráfico, mas deve também reter-
provêm as informações de Joseph C. Miller? Do seu trabalho de terreno levado a cabo
-se o restante da informação do missionário: «as jovens mulheres pareciam envergo-
entre os Imbangalas? René Pelissier mostrou já ser difícil apoiar-se em testemunhos orais,
nhadas» e «tinham ar de sentir vivamente a sua degradação e a sua infelicidade».
Capturadas entre os «Cassanges revoltados», elas tinham-se tornado mercadoria, que que são constantemente desmentidos por fontes escritas. Não é por isso difícil mostrar que
devia, por sua vez, ser transformada em marfim (85). não há nenhum documento que possa confirmar estas afirmações.
Na sua análise da pequena figura kapindji que, no cesto do adivinho quioco,
representa o escravo, Rodrigues de Areia faz surgir a função fundamental da escravatura
nas sociedades matrilineares, como é o caso da sociedade quioca. Neste sistema de
produção linhageiro, a escravatura seria o único elemento permanente no quadro
Senna, 1938, p. 140. familiar (87), dado que os filhos varões são recuperados pelos tios maternos, casando-
Estes costumes parecem começar a mudar de sentido após a Segunda Guerra Mundial. Victor -se as raparigas cedo, obrigadas a abandonar o lar paterno, devido às regras do casamento
C. Tumer conta o choque entre o pai de um dos seus informadores e o cunhado, que lhe exigia uma virilocal, ao passo que as mulheres, passada a menopausa, regressam à aldeia dos seus
das filhas para pagar multas que lhe tinham sido impostas por questões de adultério. O pai opôs-se irmãos mais velhos (88).
violentamente à pretensão, ameaçando agredir o cunhado se alguma vez este levantasse a mão para a
sua filha. O cunhado renunciou, não sem ter acusado o pai de não prestar como parente. Este estava
já do lado dos patrilineares, ao passo que o cunhado pretendia servir-se da autoridade de tio materno
para liquidar as suas dívidas. Turner, 1957, p. 189.
Livingstone, 1859, p. 491. Miller, 1970, p. 189.
Id., ibid. Areia, 1985, p. 193.
(88) Id., ibid.
452
453
Rodrigues de Areia esteve no terreno entre 1974 e 1975: a escravatura — como autoriza, Mary Douglas dispõe dos elementos que fabricou e lhe permitem transformar
instituição — parecia já muito antiga; todavia, a figurinha kapindji continuava presente qualquer mulher escrava, numa mulher empenhada.
no cesto do adivinho, e a sua aparição na borda do cesto obrigava o especialista a Joseph C. Miller adoptou um comportamento praticamente idêntico em relação às
sugerir ou a impor ao consultante uma maneira de agir capaz de neutralizar a presença fontes portuguesas, não hesitando em acrescentar algumas liberdades suplementares
perturbadora desta figura. Consideramos, então, que o escravo aparece como um relativamente às que já tinham sido tomadas por Mary Douglas. A situação das aldeias
substantivo neutro, que deixa ao adivinho a responsabilidade de o sexualizar. É todavia quiocas é assim descrita: «situações como esta deram lugar a uma prodigiosa procura
evidente que não há nesta operação a menor referência às mulheres pawn. Nenhuma de mulheres empenhadas entre as linhagens quiocas de tal modo que nos primeiros anos
figurinha evoca, no cesto do adivinho, as pawn, e podemos por isso sugerir que elas 20 os observadores calculam que 80 % das mulheres de algumas aldeias eram
estão longe de ser tão importantes e tão correntes como o pretendem Mary Douglas e empenhadas» (95).
Joseph C. Miller. O texto expulsa do campo da reflexão a menor dúvida, a ponto de poder calcular
Convém começar por salientar que a importância dada às mulheres pawn, na de maneira rigorosa a percentagem das mulheres pawn. Além disso, o adjectivo tremendous
sociedade quioca, começara não no século XIX, como seria de esperar, mas por volta serve para salientar a existência de uma modificação profunda das regras conjugais na
de 1964, num artigo que Mary Douglas consagrou às mulheres empenhadas ( 89). Mary sociedade quioca. Está-se no direito de esperar que o historiador nos forneça provas
Douglas não conhece a língua portuguesa e ainda menos as fontes portuguesas, razão indiscutíveis, visto semelhante mudança de sistema constituir um elemento fundamental
pela qual não é difícil registar algumas imprecisões nas referências consagradas aos na história do grupo e da região.
grupos instalados em Angola. Só o recurso ao survey de Merran McCulloch ( 90) lhe Fica-se pois surpreendido, quando se verifica que esta afirmação não se apoia em
permitiu propor uma explicação da circulação das mulheres nesta região. nenhuma prova documental. Joseph C. Miller não dispõe de documentos que lhe permitam
Para eliminar um vazio que a incomodava de maneira evidente, Mary Douglas ser tão preciso e tão determinado, quando salienta a importância e a generalização desta
recorreu a informações que Merran McCulloch consagra aos Quiocos: «esta ausência mudança. A única prova que cita provém de um pequeno artigo de A. A. Mendes
de informações pode ser parcialmente compensada pelo que sabemos a respeito dos Corrêa, que nunca procedeu a nenhuma investigação no campo. Este artigo destinava-
-se a servir de introdução e de explicação às notas que Fonseca Cardoso coligira no
escravos domésticos quiocos a que se refere Baumann, sublinhando que as querelas por
terreno, com o objectivo de reunir material para descrever a antropologia física destas
eles provocadas ocupam uma grande parte do tempo dos conflitos locais» (91).
populações (96).
Não é exactamente o que diz o texto de McCulloch, e os deslizes de sentido são
As suas informações não são só modestas, mas também de uma banalidade que se
provavelmente essenciais: «uma grande parte das querelas que se registam nas aldeias,
limita a confirmar as que caracterizam os documentos elaborados durante o século XIX:
por exemplo pequenos roubos e disputas a respeito de escravos domésticos, era
«a poligamia é permitida, assim como o divórcio. O marido não tem direitos sobre a
regularizada perante um ngaji...» ( 92). McCulloch não nos diz se esta operação se
liberdade da mulher, a qual se emprega nos trabalhos domésticos. Além de uma ou de
realiza perante um grande ou um pequeno ngaji, mas tudo indica tratar-se do pequeno,
várias mulheres livres, distribuídas por diferentes cubatas, o marido pode ter também
quer dizer, de uma autoridade adequada ao tipo e à gravidade da infracção cometida. escravas concubinas» (97).
O pequeno juiz podia regularizar localmente as querelas de pouco valor. As informações fornecidas pelos textos não deixam a menor dúvida no que diz
Mary Douglas não hesita também em levar o texto para além daquilo que ele quer respeito ao estatuto de dominação das mulheres, obrigadas a arcar com a totalidade da
dizer, para o forçar a contar a história de que ela precisa. Isto torna-se ainda mais visível produção agrícola, mas participando igualmente na pesca e até na caça. Contudo, não
na tradução de uma citação proveniente do padre Léon de Sousberghe ( 93). Mary Douglas se vai além disso, a não ser para observar que as mulheres, que exercem cargos de
decide traduzir a palavra escravo como sendo o sinónimo de pawn: «Proponho que se chefia, podem também possuir vários maridos, numa situação simétrica que corres-
traduza por empenhada» ( 94). A partir desta liberdade de tradução, que nada no texto ponde à dos chefes homens ( 98). Como se o poder político não pudesse deixar de impor
a organização de um harém, masculino um, feminino o outro.
Douglas, 1964, pp. 301-303.
McCulloch, 1951, pp. 45-49.
Douglas, 1964, p. 306: «It — the gap — may be partly bridged by the Cokwe concerning whom Miller, 1970, p. 151: «Advantages like these created such a tremendous demand for pawn
Baumann made references to domestic slaves, mentionning that disputes about they occuped much of women among the Cokwe lineages that by early twentieth century observers estimated that 80 % of the
the time in local litigation». women in somme villages were pawns».
McCulloch, 1951, p. 50: «Most of the differences which arise whitin the villages for example Corrêa, A. Mendes, «Quiocos, Luimbes, Luenes e Luchazes. Notas antropológicas sobre
small thefts and disputes over domestic slaves, are discussed before a ngagi (...)». observações de Fonseca Cardoso», Archivo de Anatomia e Antropologia, vol. II, 4, 1916.
Douglas, 1964, p. 305. Id., ibid., p. 323.
Id., ibid.: «I propose to translate by pawn». Graça, o. c., faz referência a uma mulher soba que tinha três maridos, p. 406.

454 455
É certo que as explicações se tornam numerosas, mas muito depois de 1850: no espaços rurais, o que leva as mulheres a procurarem rejeitar a autoridade até então
vasto período anterior elas são mais do que modestas e parece-nos perfeitamente abusivo indiscutível e indiscutida dos tios maternos. É a pressão das mulheres que impõe a
proceder a projecções do conhecimento actual no passado. Podemos apenas limitar-nos mudança, sendo este desejo reforçado pela vontade manifestada pelos pais de conservarem
a registar o apetite de mulheres, manifestado pela sociedade quioca que, nesse aspecto, os filhos junto deles. Furtados à autoridade dos tios maternos, perdem a qualidade de
não parece diferenciar-se muito do que se verifica nas demais sociedades angolanas. Se «coisa» que pode ser utilizada como moeda nas transacções comerciais ou aparentadas.
as mulheres são as duplas produtoras — de bens para a alimentação e para o comércio, A transição de uma economia, ainda dependente da venda dos homens, para uma
e de produtores, indispensáveis à sobrevivência da sociedade — elas tornam-se por isso economia inteiramente determinada pela produção, o mercado e o salariado, aparece de
a «coisa» mais procurada. maneira assaz precisa na leitura da mudança do estatuto das mulheres.
Os homens encontram-se constantemente em situação de instabilidade: são os filhos
de seus pais, mas sobretudo de suas mães, sendo por esta via obrigados a instalar-se
nas aldeias dos tios maternos. Os observadores europeus levaram muito tempo a aperceber- IV. O controlo do espaço e as relações afro-europeias
-se das regras da sucessão matrilinear, provavelmente enganados pelas práticas das
sociedades judias, que lhes serviam de modelo, sendo a única sociedade matrilinear Os Europeus denunciaram constantemente as «violências» e os «abusos» cometidos
interna aos patrilineares europeus. Este tipo de sucessão não repele, no que diz respeito por qualquer autoridade africana, cujas exigências seriam apenas o resultado de uma
à sociedade judia, a criança do seu lar paterno, pois não a confia a nenhum tio materno, espécie de primitivismo económico, que obrigaria os Europeus a submeterem-se a regras
mantendo-se a autoridade paterna. cuja falta de racionalidade seria mais do que evidente. Seja qual for a óptica escolhida
Tendo aparecido bastante tarde no discurso histórico consagrado às populações pelo viajante, ele encontrava-se perante duas hipóteses: deixar-se espoliar, ou resistir às
angolanas, os Quiocos só trazem com eles informações caracterizadas por uma grande exigências africanas pela força, se tal fosse necessário. Deste ponto de vista, os Africanos
imprecisão. Só depois da viagem de Rodrigues Graça, que esteve em contacto directo não passavam de ladrões sem alma nem coração.
com o território e as populações, é que as nossas informações adquiriram algum peso, É certamente Livingstone que reage da forma mais decidida face às exigências
permitindo definir a organização da estrutura do parentesco. feitas pelos Quiocos. A disjunção existente entre as duas lógicas atinge aí o seu ponto
Enquanto o tráfico negreiro teve necessidade de mulheres para exportar para as mais elevado: «pergunto-lhe com que direito ele exige um pagamento àqueles que
Américas, a situação delas só podia ser muito incerta. O fim do tráfico reduziu a passam por uma terra que pertence a Deus, nosso pai comum. Nós pagaríamos sem
possibilidade de as vender, e pode por isso aceitar-se a hipótese de que esta condição dificuldade (...) se passássemos pelos seus jardins; mas não para caminhar na terra
provocasse o aumento das escravas-concubinas, não significando, contudo, o termo da comum, que nos pertence tanto a nós como a vós» (100).
escravatura: as informações de Rodrigues Neves em Kasanje ou as de Livingstone em Ao recusar aos chefes africanos a autoridade sobre a terra, que só pertence a Deus
território quioco servem para provar a perenidade da comercialização das pessoas. — o Deus dos cristãos, naturalmente — Livingstone procura desmonetizar a autoridade
Pensamos que as mulheres empenhadas só puderam aparecer de maneira significativa africana, que não pode nem deve interferir na gestão do espaço que diz respeito, na visão
após este período, que tende a assegurar-lhes uma certa estabilidade, pois, menos religiosa do Europeu, à autoridade divina.
procuradas para ser remetidas para o exterior. O conflito descrito por Victor C. Turner,
registado entre os Ndembus, vizinhos dos Quiocos, parece provar ter sido necessário A. Presentes de cortesia e presentes obrigatórios
esperar pelo século XX, para ver a autoridade dos tios maternos vigorosamente contestada
pelos pais das crianças. Numa novela consagrada às condições existenciais de Luanda, O recurso ao substantivo «presente» é destinado a fazer desaparecer, até onde tal
o romancista Alfredo Troni dá notícia das mulheres entregues para pagamento das dívidas é possível, as condições frequentemente brutais que pesam quase sempre sobre o europeu
contraídas pelos tios maternos; todavia, a situação é fonte de descrédito, e as mulheres que «dá». Se é certo que o presente — graças a uma lógica que não deixa de lembrar
que se encontram nesta posição procuram dissimulá-la sempre que podem (99). a relação dom/contradom, teorizada por Marcel Mauss — exige o contrapresente, a
Estas informações — a de Turner e a de Troni — permitem-nos dar conta do questão não encontra solução: exigir o presente permite fazer prova de autoridade e
sentido da mudança, embora muito mais lento do que se podia pensar ou até desejar. deixa prever a existência de uma força de coerção para obrigar o devedor a satisfazer
Os documentos são bastante claros, dando ocasião para mostrar que esta situação se a exigência do credor, no caso de este ter a ideia singular de pensar em não a realizar.
regista tanto no campo como na cidade. A pressão desta acaba por se fazer sentir nos

(99) Troni (1934), 1979, pp. 174-175.


(19 Livingstone, 1859, p. 381.
456 457
A história das relações entre Africanos e Europeus está em parte concentrada nesta e cuja interpretação depende, por isso, dos Africanos. Uma das questões mais delicadas
rede dos «presentes» que os Europeus são continuamente forçados a satisfazer, sempre afrontadas pelos Europeus é a de procurar esvaziar o comércio da incidência das
à espera de dispor de uma razão para eliminar a autoridade africana, como mostra sem
práticas religiosas.
a menor ambiguidade a intervenção de Livingstone. Não esqueçamos que a invocação Isto não impede a multiplicação dos «crimes» contra os valores religiosos. São eles,
da palavra divina pode revelar-se insuficiente: é melhor recorrer à força para devolver por assim dizer, inumeráveis, porque dependem da interpretação que os Africanos fazem
a palavra a Deus. Livingstone, sob a pressão dos Zambezianos que o acompanham dos movimentos, dos gestos, dos acidentes, das palavras dos Europeus e dos seus
— mais perto certamente das realidades africanas — será obrigado a ceder. A força servidores. Uma grande caravana transforma-se, assim, numa espécie de concentrado
não lhe pertence (1°1).
explosivo, que só pode funcionar de maneira satisfatória se o seu organizador mostrar
Podemos contudo sugerir a existência de, pelo menos, dois tipos de presentes: de uma mão de ferro, tanto no interior como nas relações com o exterior. Rodrigues Graça
cortesia e obrigatórios. Nos primeiros não há obrigação estrita de oferecer, tal como procede ao inventário dos «crimes» de que podem ser acusados os viajantes no território
não existe tabela precisa. A incerteza pode agir em favor daquele que «dá», mas não quioco (102).
é raro que se verifique exactamente o contrário. A cortesia pode ser bastante obrigatória, Explicação simples: «se o comerciante cuspiu no chão perante um Negro da região»
mas, apesar disso, faculta ao «ofertante» uma margem de manobra importante. No deve pagar uma multa considerável, de acordo com a gravidade do «crime»: 40 a
segundo caso, existe uma tabela que não pode deixar de ser satisfeita. Já evocámos 50$000 réis ( 103). Esta medida não pode deixar de surpreender os Europeus, porque
algumas situações em que estes «presentes» são obrigatórios e calculados de maneira cuspir no chão era então um gesto, por assim dizer, «institucional» entre os Portugueses.
muito rigorosa. O desfasamento regista-se entre o gesto português hiperbanal e o peso da infracção
Foi o brasileiro Rodrigues Graça o primeiro a procurar pôr em evidência a existência praticada contra os Africanos, para quem a saliva contém um elemento pessoal, que
desta hierarquia. Entre os presentes que recebe do chefe de terra, há as «cabaças de exige uma compensação importante, que todos os portugueses consideram excessiva.
vinho da terra», destinadas a refrescar a caravana. A morte de algum membro da caravana constitui também um «crime», sempre no
As bebidas são acompanhadas por duas cabras e uma certa quantidade de fuba — quadro dos valores africanos, quem quer que seja o morto: intermediário, intérprete,
farinha de mandioca —. Trata-se de um presente simbólico, enviado pelo chefe de terra, carregador, criado, ou escravo. Mas também, o que não deixa de reforçar o sentimento
num gesto de cortesia, que não é gratuito, embora exprima, mau grado isso, uma boa de estranheza dos Europeus, uma multa é devida no caso de os viajantes trazerem
vontade evidente perante o viajante branco. consigo cães.
Não se trata de uma situação corrente, porque a regra quer que aquele que não Rodrigues Graça não dissimula o sentimento de repulsa que lhe provoca aquilo que
dispõe nem de autoridade nem de força ofereça «presentes», que funcionam às vezes considera uma violência, tanto mais que se estas multas forem aplicadas a um africano,
como punções extremamente violentas. Digamo-lo imediatamente: trata-se, na verdade, este corre o risco de perder tudo o que possui: não só o que transporta — e que lhe não
de uma espécie de imposto que não conhece nenhuma regra fixa: depende da força e pertence —, mas também o que é pessoal, incluindo o vestuário. O desgraçado procura
da determinação do viajante, tal como depende dos bens transportados pela caravana. então refugiar-se na floresta, tentando escapar ao abrigo da noite, pois, se assim o não
Esta situação põe em evidência a falta de regras que tanto irrita os viajantes, sobretudo fizer, pode ser capturado e vendido, se tiver a felicidade de não ser morto (104).
aqueles que não procuram fazer comércio. Os comerciantes não hesitam em englobar Não se duvida que esta situação se refira sobretudo a populações ainda «enselva-
nos preços das mercadorias, que devem vender aos Africanos, o valor destes «presentes». jadas», que rejeitam as relações comerciais «normais» com os estrangeiros. Trata-se,
O viajante, cujo objectivo não reside no comércio, fica inteiramente despojado, pois não em todo o caso, da opinião de Rodrigues Graça, mas podemos verificar que o missionário
pode recuperar o valor dos «presentes» pela via comercial. Livingstone, que actua fora de qualquer sistema comercial, tem uma posição pouco
divergente dos juízos emitidos pelo comerciante brasileiro.
O assunto da saliva aparece também, como não podia deixar de ser, no texto de
B. «Crimes» africanos e «vítimas» europeias Livingstone, desempenhando um papel de detonador: «Pisané, um dos meus homens, estava
a aquecer-se, e ao cuspir sujou as pernas de um destes emissários (...) este crime devia
Os presentes não estabelecem, muito longe disso, o lugar privilegiado dos conflitos ser punido com a multa de um homem, de uma espingarda ou de um boi» ( 105). É evidente
entre as duas comunidades. Este é constituído pelos «crimes» que, de acordo com os
Africanos, seriam constantemente cometidos pelos Europeus, responsáveis por um número
infinito de infracções contra os códigos religiosos, que nunca são perfeitamente conhecidos, (102) Graça, 1890, pp. 414-418, 435, 461.
( 1 °3 ) Carvalho também faz referência a este gesto, o qual, em território lunda, é considerado como
sinal de falta de respeito pelo Outro. Carvalho, 1890, p. 395.
( 101 ) Id., ibid.,
pp. 381-382. Graça, 1890, pp. 387, 407, 461 (e outras).
Livingstone, 1859, p. 380.
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459
que a saliva tem uma acção particular na organização simbólica — quer também dizer
religiosa — dos Quiocos. Nenhuma informação a esse respeito nos é fornecida pelos dois Os comerciantes, africanos ou europeus, são obrigados a avançar sempre em estado
viajantes. Alguns anos mais tarde, Henrique de Carvalho permite-nos dar conta de uma de alerta, com o dedo no gatilho. Rodrigues Graça, face ao que considera como sendo
parte do sentido desta operação: quando o Mwatyanvwa manifesta o desejo de cuspir, os tentativas de extorsão por parte do chefe Canica, organiza uma força defensiva «formada
homens da corte apanham o cuspo ou escarro na mão para o engolir imediatamente. O rei por mais de 500 armas de fogo», às quais se juntam os bacamartes, estando os atiradores
pode manifestar a sua generosidade, cuspindo na mão de um súbdito, e esta escolha é muito bem municiados com pólvora e balas (109).
considerada uma grande honra para aquele a quem é oferecida (106). A reacção de Livingstone é bastante parecida à do brasileiro, mas só podendo contar
A saliva aparece assim como portadora de algumas qualidades — quais? —, com cinco espingardas, confia a sua defesa aos «seus» zambezianos, armados com lanças.
directamente associadas ao detentor do poder político ou aos seus agentes, o que implica Um africano, quer dizer, um quioco que procura agredir Livingstone pelas costas «encontra
uma leitura positiva, mas autoriza uma leitura negativa, quando se trata de pessoas o cano da minha espingarda à altura da boca, e retira-se imediatamente» (19.
estranhas ao mundo quioco. É esta situação que parece poder explicar as exigências Queremos sobretudo salientar que, perante os factos, a actividade comercial não
rejeitadas com tanta energia, quer por Rodrigues Graça quer por Livingstone: se a saliva podia ser classificada como normal, do ponto de vista europeu: os dois sistemas são
real é benéfica, já o mesmo não acontece com a saliva estrangeira, que só pode fornecer
muito diferentes, e só os comerciantes africanos ou os europeus desqualificados podiam
miasmas, naturalmente perigosos para os homens e para a sociedade.
aceitar trabalhar nestas condições, que nunca tranquilizaram ninguém.
Rodrigues Graça submete-se, mas Livingstone quis resistir, tendo sido contrariado Se há historiadores que manifestam uma tendência para esquecer a forma como se
pelos homens da sua caravana, que o aconselharam a ceder: uma camisa foi o argumento
realiza o comércio nesta viragem do século, convém não a olvidar. Trata-se de um
utilizado para procurar resolver o diferendo, mas perante a reacção de insatisfação
elemento essencial para se poder proceder ao cálculo dos custos — económicos, claro,
manifestada pelos «jovens Chiboque», Livingstone viu-se na dura obrigação de sacrificar
um dos seus últimos bois (19. mas sem desprezar os humanos — destas operações comerciais.
Aparece, quase na mesma época, uma situação idêntica no diário de Silva Porto, A situação, contudo, nunca é tão unívoca como se pode pensar. Livingstone dá
que a 22 de Dezembro de 1853 faz uma larga referência ao comportamento dos conta da extrema violência do afrontamento em território quioco, provocado por
«autóctones» de «Quiboco e Luvar» — onde ele nunca tinha passado —, cujas proezas exigências africanas que recusa satisfazer. O missionário espera o ataque dos africanos,
percorriam o mato: nestas terras, os viajantes seriam habitualmente assaltados por embora sabendo que será a primeira vítima. Mas a «ferocidade» dos Quiocos não
«selvagens dos dois sexos», que estavam instalados a cerca de quatro dias de marcha parece poder significar uma vontade louca de combater. Optam, por isso, pelo discurso:
do caminho utilizado pelos viajantes, e apresentavam-se no kilombo, exigindo o «imposto «vocês aparecem perante nós de maneira inteiramente nova (...) vocês pretendem ser
de passagem» (108). nossos amigos, mas como podemos nós sabê-lo, enquanto não tiverem partilhado
connosco os vossos alimentos, e enquanto não tiverem provado os nossos?» (111).
Trata-se de uma observação que não encontramos em mais nenhum texto, mas que
C. As exigências e as violências da viagem serve para nos colocar perante uma certa «originalidade» quioca, embora seja melhor
pensar tratar-se de um dado que se pode generalizar a todas as sociedades africanas.
As situações descritas não coincidem, de maneira nenhuma, com o que nos dizem Se assim fosse — e como podemos nós pô-lo em dúvida? — estaríamos em condições
os documentos do século XVIII. Encontramos, por isso, um agravamento evidente das de melhor compreender as dificuldades engendradas pelo conhecimento tão insuficiente
relações estabelecidas entre as duas comunidades, assim como um paradoxo: se, por um do Outro.
lado, parece que o comércio se encontra, devido a estas práticas, assaz comprometido, O que é certamente — do ponto de vista do conhecimento e da teoria — mais fácil
ele torna-se, por outro, mais frequente e mais volumoso. É certo que os comerciantes de saber nos dias de hoje, após a lição de Claude Lévi-Strauss, que nos ensinou que
são constantemente apanhados pelas malhas dos «portos de passagem» e dos «tributos» comer com o Outro e dar-lhe da nossa comida constitui um momento simbolicamente
que devem ser pagos a todos quantos pretendam dispor de uma autoridade, mínima que importante na organização das relações humanas, tanto no campo como na cidade.
seja. A verdade é que o sistema se organiza, superando constantemente estes obstáculos. A segunda observação, suscitada pelo texto de Livingstone, é imposta pela
maneira como os Quiocos invertem o recurso aos tecidos europeus como meio de

(106) Carvalho, 1890, p. 406.


(1o7)
Livingstone, 1859, pp. 381-382. Graça, 1890, p. 410.
(los) Porto, Viagens (...), 1853, p. 359. Livingstone, 1859, p. 381.
(111) Id., ibid., p. 382.
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pagamento ( 112): isso não teria nada de original, mas a verdade é que os Quiocos
pretendem remir, assim, o boi que o missionário lhes forneceu. Acrescentam, no entanto,
produtos africanos, um machado e duas enxadas, que podemos supor terem sido fabricados
pelos ferreiros quiocos (113).
Se se trata de sinais evidentes da banalização das mercadorias e da sua integração
num sistema que procura tornar-se homogéneo, recusando as utilizações independentes
das mercadorias, quer sejam europeias quer africanas, este projecto, cuja invenção
parece pertencer aos Africanos, está algo comprometido pela violência desencadeada na
maior parte dos casos pelos Africanos, mas à qual se não furtam de maneira alguma
os Europeus.
As exigências que os Quiocos fazem a Livingstone deixam aparecer paridades assaz
singulares: um homem vale tanto como um boi, e este vale tanto como uma espingarda,
e esta tanto como marfim; neste caso o dente de marfim deve ser, certamente, dos mais
pesados. Estas paridades mantêm-se fiéis a uma desvalorização indubitável dos homens,
e cabem, sem dúvida, no quadro já conhecido do escravo-mercadoria.
Livingstone, apesar destas analogias, deixa transparecer que o tráfico negreiro e a
escravatura se encontram já em regressão, muito antes de se fazerem sentir os efeitos
da legislação do conselheiro brasileiro, Euzébio Queiroz. Com efeito, estas actividades
perderam o seu carácter universal: «estamos actualmente no território onde existe ainda
a escravatura, e onde ela outrora se fazia com muito mais actividade» (114).
Quer isto dizer que as regiões situadas para lá do Kwangu e do Kwanza se
encontram em plena modificação, imposta pelas novas condições comerciais introduzidas
pelo grande número de homens de negócio que se infiltram através do território,
modificando cada vez mais profundamente as regras arcaicas, africanas sobretudo, mas
arcaísmo ao qual se não furtam os Europeus.

A mudança das estruturas quiocas, comerciais e políticas, processou-se lentamente,


à medida que se iam reforçando as relações cada vez mais directas com os Europeus,
seus agentes ou delegados. Não podemos por isso, dar ao ano de 1830 a importância
mágica que lhe foi atribuída por Joseph C. Miller, quando o transformou em ano central
da mudança. Podemos, sim considerar o interesse da «embaixada» de Rodrigues Graça,
que percorreu o território quioco para alcançar a capital dos Lundas. As condições em
que se operou esta viagem deram aos Quiocos a força para se separarem da dominação
lunda. E se bem que seja excessivo atribuir a esta «embaixada» a modificação radical das
relações entre os dois grupos, podemos todavia verificar que só depois da sua passagem
os Quiocos ousam fazer directamente face aos Lundas.

Id., ibid., p. 390: «no dia seguinte os Quiocos [Chiboques] trouxeram-nos cerca de trinta
metros de tecido de algodão riscado, de fabrico inglês, um machado e duas enxadas, que nos pediam
que aceitássemos em troca do nosso boi», o que foi aceite por Livingstone que «dividiu o tecido de
algodão pelos seus homens».
Id., ibid., p. 390.
(114) Id., ibid., p. 398. Fig. 31 — Miniaturas de pirogas — kwanza — que aparecem no cesto de adivinho quioco.
Areia, 1985, fotografias 279 e 281.
462
463
Na verdade, dispomos de um documento complementar destas informações, embora Trata-se, como é evidente, da única maneira de permitir que o Kwanza e a
ele só funcione no plano simbólico. Serve, no entanto, para revelar as tensões provocadas interpretação dos adivinhos possam integrar-se na estrutura das relações dos Europeus
pelo aparecimento dos homens brancos e da sua utilização do Kwanza para percorrer ou com os Quiocos e outras populações da margem oriental. Semelhantes relações não
ocupar o território quioco. podem ser pacíficas, e as desgraças anunciadas teriam certamente permitido prever os
No cesto de adivinho quioco, tão minuciosamente estudado por Manuel L. Rodrigues conflitos com os Quiocos durante os trinta primeiros anos deste século, se algum
de Areia, aparece um objecto manufacturado, o kwanza, a piroga, que já solicitara a investigador tivesse podido consagrar-se à análise das informações simbolicamente
atenção de alguns dos especialistas das questões religiosas dos Quiocos (115). As concentradas no cesto de adivinho.
interpretações — que dependem de resto dos adivinhos interrogados pelos especialistas Estas informações associam firmemente os Quiocos aos Portugueses: os chefes
europeus, na maior parte dos casos recorrendo a intérpretes — são mais ou menos quiocos esperam constantemente ser apoiados pelos Portugueses, única maneira —
convergentes: quando a piroga aparece na borda do cesto, é preciso ver nisso o sinal de nesta visão restritiva — de conseguir liquidar, ou pelo menos reduzir, o peso do poder
um malefício introduzido pelo próprio branco ou por alguém que atravessou o rio em sua dos Lundas, considerado exorbitante. Esta visão das coisas parece ter sido modificada
companhia. de maneira brutal pela intervenção dos empregados enviados por D. Ana Joaquina dos
Esta influência negativa pode ser sentida em toda a parte, sem excluir a própria Santos Silva, que quis desmantelar o projecto que ela própria tinha elaborado
natureza. A desgraça representada pela hamba kwanza é atribuída ao homem branco, conjuntamente com Rodrigues Graça.
que pode não só ameaçar a caça, mas também fazê-la desaparecer (116). Na sua função de embaixador oficioso, Rodrigues Graça estruturou uma comunicação
A piroga só pode funcionar estreitamente associada ao rio, e muitas vezes é o facto que proferiu repetidas vezes, ao longo da viagem, perante o chefe de terra especialmente
de o atravessar, de vir do outro lado — ocidental — do rio, que provoca a perturbação. convidado, em companhia dos seus súbditos. O discurso de Graça, sempre lido em
Rodrigues de Areia lembra os dados recolhidos por Tucker e confirmados pelo seu português e traduzido pelos seus tradutores (118), é organizado em torno de algumas
próprio informador, o velho adivinho Sakungu: «este objecto também pode querer dizer ideias-bases: a mudança do sistema do comércio angolano destinado ao exterior não
que a pessoa culpada daquela morte, talvez tivesse vindo do outro lado do rio, o Interior pode continuar a depender apenas dos escravos. Todavia, a relação comercial não
(ou seja, de barco)» (117). poderá prosseguir sem a contribuição activa dos chefes africanos. Estando proibido o
A parelha rio/piroga torna-se assim fundamental, na determinação dos malefícios tráfico atlântico, os Africanos devem virar-se para outras produções, de maneira a
e das desgraças. Apenas podemos sublinhar o carácter constantemente negativo desta permitir manter ou até aumentar o volume dos negócios.
parelha, na medida em que os Brancos se caracterizam pela faculdade de trazer com No registo político, este discurso insiste em salientar um ponto: é preciso que os
eles calamidades para o território quioco. chefes quiocos aceitem tornar-se vassalos da monarquia portuguesa, a qual, em troca,
Ser-nos-á possível datar esta piroga, tão profundamente associada à travessia do lhes assegurará a paz com os vizinhos e grandes lucros futuros. Nem sequer se trata
rio? Infelizmente, estamos condenados às hipóteses, mas estas podem, apesar disso, ser de um sacrifício, insiste Rodrigues Graça, «não tendes o exemplo de tantos outros sobas
apoiadas por documentos. Arriscamos pensar numa data ante quem, a das instruções avassalados, que sob a guarda do governo, vivem no remanso da paz, livres das
dadas a Manuel Correia Leitão. Se o rio Kwangu não tinha sido atravessado pelos depradações a que estais sujeitos e que também praticais, gozando das regalias da
Europeus anteriormente a 1 756 — e esta passagem só se fez muito mais tarde, após sociedade, que lhes têm modificado os bárbaros costumes, que tão arreigados estavam
a expedição de Rodrigues Graça —, a travessia do Kwanza, que permite alcançar o entre eles, como entre vós?» (119).
território quioco pelo sul, deve situar-se no decurso da segunda metade do século XVIII, A passagem da «selvajaria» à «civilização» depende assim de um acto político
graças às viagens que conduziam a população costeira a Loyale. adoptado em princípio pelos Quiocos, porque tal lhes permitiria rejeitar a dominação
Talvez convenha levar mais longe esta análise, na medida em que nos permite sugerir lunda, de que praticamente se queixam todos os chefes contactados por Rodrigues
que se os Imbangalas se opunham à travessia do Kwangu, as populações quiocas da Graça. As violências do Mwatyanvua tocam todos os aspectos da organização social:
margem oriental também não desejavam que os Europeus o fize'ssem. Os rios Kwangu e ele impõe uma autoridade tão absoluta que os seus súbditos não se consideram senhores
Kwanza estavam assim guardados não só pelos Imbangalas, como se sabe com tanta «dos seus bens, dos seus lares, da sua família, parentes e amigos» (120,.) As mulheres
precisão, mas também pelas populações da margem oriental, particularmente os Quiocos, eram, também, constantemente recuperadas pelo mesmo chefe, que contava mais de 600
visto que os Brancos só podiam acarretar desgraças e catástrofes. no seu serralho (121).

Areia, 1985, pp. 236-238. Graça, 1890, p. 418.


Id., ibid., p. 237. Id., ibid., p. 417.
(117) Id., ibid., Tucker diz: «The piece may also mean that person guilty of the dead inquired about (120) Id., ibid.
has perhaps come from the other side of the river, the Interior (i. e. by boat)». (121',
) Id., ibid. Ver também p. 440.

464 465
Tal é a situação a meio do século, quando Rodrigues Graça consegue, enfim,
romper a barragem imbangala, adoptando um percurso inspirado pelo caminho seguido
pelos pombeiros, tal como no-lo descreve Pedro João Baptista.
Os Quiocos devem levar a cabo um projecto colectivo. Desconfiados em relação
aos Europeus, querem utilizá-los para se libertar de maneira definitiva da autoridade
excessiva dos Lundas. O conflito, em que estavam empenhados há muito tempo, só
podia forçar os Quiocos a afastarem-se do rio, por consequência dos Imbangalas. Se
bem que muito atento ao que lhe é comunicado pelos Quiocos, Rodrigues Graça não
parece dar-se inteiramente conta da estratégia dos Quiocos, certamente por acreditar que
só os Brancos dispõem de argumentos e de armas para impor a sua hegemonia.
Esta situação serve para mostrar a insuficiência da análise dos Portugueses,
convencidos de que dispunham das armas capazes de imporem uma pax portugalica
à totalidade das populações (122).
Sob a aparente pressão dos Portugueses, empurrados eles próprios pelas alterações
registadas na organização do comércio do Atlântico Sul, os Quiocos, que querem
aproveitar-se do novo quadro comercial, da sua posição estratégica e da flexibilidade
das suas estruturas, estão em via de se tornar os agentes da mudança das estruturas QUINTA PARTE
1 seculares desta região.
IMBANGALAS E QUIOCOS NA SEGUNDA METADE
DO SÉCULO XIX: AS RELAÇÕES AFRO-PORTUGUESAS,
AS HEGEMONIAS E AS MUDANÇAS (1850-1890)

( 122) A visão idílica de Rodrigues Graça foi mais tarde partilhada por todos os viajantes europeus,
que foram severamente desmentidos pela história. As forças militares e a administração portuguesas
mostraram-se incapazes de submeter os chefes quiocos, tendo sido beneficiadas pelas sequelas das duas
guerras mundiais, ajudadas contudo pelos projectos majestáticos da Companhia de Diamantes de Angola
(Diamang).

466
INIBANGALAS E QUIOCOS NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX:
AS RELAÇÕES AFRO-PORTUGUESAS, AS HEGEMONIAS E
AS MUDANÇAS (1850-1890)

CAPÍTULO I

A disjunção dos sistemas em presença e as modalidades da


mudança africana

A década 1840-1850 aparece como decisiva na reorganização interna dos poderes


africanos, forçados a integrar cada vez mais as mercadorias e os comerciantes europeus.
Um dos elementos mais reveladores da sensibilidade das economias africanas reside
certamente na maneira como elas respondem às solicitações da Europa. Com efeito, os
Europeus não podem servir-se da violência para obter transformações nas estruturas
africanas: é por isso necessário que se mostrem suficientemente sugestivos para arrastar
as sociedades africanas nas operações que alteram totalmente as técnicas e as tarefas
da produção.
Os efeitos da presença europeia são de dois tipos: directos, recorrendo aos agentes
portugueses; indirectos, resultando dos valores, das coisas, das mercadorias e das ideias
injectadas pelos Portugueses — desde a introdução dos sapatos à multiplicação das
mercadorias novas — que, assaz paradoxalmente, entram frequentemente em competição
com as produções artesanais africanas: tecidos, objectos metalúrgicos, pérolas de vidro
e missangas, bebidas alcoólicas, etc.
A listagem dos produtos mais estimados pelos Africanos permite dar conta de uma
certeza: as sociedades de África não hesitam em pôr em causa as suas técnicas e
substituem, sem a menor hesitação, os produtos locais por mercadorias importadas.
Renunciando muitas vezes à sua autonomia artesanal, os Africanos parecem aceitar uma
inferioridade tecnológica, que se exprime por meio dos circuitos comerciais. Encontramo-
-nos assim perante um dos problemas mais sérios na relação entre os compradores
africanos e os importadores-vendedores europeus.
469
Como seria possível desprezar a importância de algumas outras características Podemos facilmente verificá-lo: em 1777, quer dizer, já muito tarde na organização
desta situação? Com efeito, as mercadorias propostas nos circuitos comerciais pelos social, em Kazembe, os viajantes europeus ou asiáticos, provindos da costa oriental,
Europeus não são produzidas em África, mas importadas. O produtor europeu não está encontram-se perante o «tesouro» do rei, cuja origem lunda está perfeitamente
em África, sujeito ao controlo social dos Africanos: a sociedade europeia é formada por
documentada. As autoridades de Kazembe escancaram um grande baú, onde se encontram
administradores, por militares e por comerciantes, mas não por produtores, nem por
espingardas embrulhadas em tecidos. Estas armas estão enferrujadas e o «tesouro» do
artesãos, a não ser muito excepcionalmente. As mercadorias europeias desembarcam
rei perde diariamente uma parte da sua função e do seu valor. O princípio do «tesouro»
nos portos angolanos, libertas de qualquer marca do trabalho exigido pela sua fabricação.
Esta situação contribui certamente para atribuir ao produto uma potencialidade mágica, imobiliza e esteriliza — no plano económico — tanto os bens como as massas monetárias
que o torna diferente das mercadorias africanas, cujo processo de produção é conhecido ou que seria possível monetizar. Nestas condições, o «tesouro» parece não levar em
vigiado pelas sociedades africanas. conta o envelhecimento e a desvalorização dos instrumentos, que perdem valor comercial
Numa passagem dos Tristes Tropiques, Claude Lévi-Strauss conta a maneira como e deixam de ter utilidade. O valor simbólico está, por isso, despojado de qualquer
procurava, em Paris, nos armazéns de Reaumur-Sébastopol, as mercadorias destinadas equivalência no mercado. O mesmo se verifica na costa ocidental no século XIX.
às trocas com os Índios do Brasil, recorrendo para isso às técnicas aprendidas com os Por outras palavras, o sistema económico dos Africanos, se bem que apresente
Nambikwara. O etnólogo morde as pérolas de vidro para experimentar a sua resistência similitudes com o sistema europeu, deve servir os valores das sociedades africanas, mais
acrescenta que os Nambikwara manifestam a sua admiração perante a competência simbólicos do que económicos. É por esta razão que parece difícil aceitar que os
dos artesãos europeus, capazes de assegurarem a uniformidade do tamanho e do colorido, sistemas africanos sejam julgados em função da grelha de valores europeus. Só as
largamente superior àquela constatada entre os artesãos mais hábeis do planalto de Mato práticas africanas podem dar-lhes coerência e exprimir a sua função.
Grosso ('). Do ponto de vista da leitura dos textos, devem reter-se as informações respeitantes
Lévi-Strauss nunca procurou explicar aos Índios, aparentemente seus amigos, que aos valores africanos, decifrando os implícitos e as meias-palavras dos textos europeus.
a uniformidade das pérolas que ele levava não provinha, de maneira alguma, da Para levar a cabo esta tarefa, é necessário verificar que os projectos económicos dos
competência dos artesãos, mas sim das máquinas, e talvez se ele o tivesse dito a dois grupos nunca coincidem, sendo antes concorrenciais.
explicação não pudesse ser compreendida. Trata-se para nós de saber a forma como os Esta década introduz uma mudança muito importante na estrutura das relações dos
Africanos compreendiam o mecanismo da produção das mercadorias europeias, uma vez Portugueses e dos Africanos. Assistimos, nesse período, a uma certa reorganização
que estas não eram fabricadas em África, graças a matérias, a técnicas e a máquinas interna dos poderes africanos, assim como a uma pressão agravada por parte dos
que os Africanos não conheciam. Não poderemos pensar em mecanismos de interpretação Portugueses associados, muitas vezes, aos Brasileiros. Os Africanos são obrigados a
total ou parcialmente semelhantes aos que nos descreve Lévi-Strauss no Brasil?
integrar, cada vez mais, as mercadorias e os comerciantes brancos. Um dos elementos
Há contudo um segundo problema que deve ser resolvido, e que aparece como uma
mais reveladores da sensibilidade das economias africanas reside certamente na maneira
das chaves da disjunção entre Africanos e Europeus, no registo puramente comercial:
como elas modulam as solicitações europeias, obrigando o comércio europeu a adaptar-
que é o lucro nas sociedades africanas? Já mostrámos que uma das diferenças
essenciais entre os Índios da América e os Africanos do século XV residia no facto de -se também às condições africanas.
os Africanos conhecerem bastante bem o mecanismo do mercado e o valor de troca, A perda progressiva da hegemonia africana — devorada, a partir dos começos da
ao passo que os Índios se limitavam a recorrer ao valor de uso. Foi o desfasamento entre segunda metade do século XIX, pela pressão europeia — não se manifesta apenas
os dois sistemas que, em 1492, levou o almirante Cristóvão Colombo a proibir toda e recorrendo aos confrontos armados, o que permite aos Africanos conservar ainda a
qualquer permuta entre as duas comunidades por não poder aceitar esta situação desigual, aparência de uma superioridade que lhes pode criar algumas ilusões. Se as aldeias e
consequência do desajustamento entre as duas maneiras de considerar os objectos e de os homens podem ainda opor-se à penetração física dos Europeus, o desfasamento entre
julgar as trocas (2). os dois grupos revela-se de maneira trepidante no plano técnico. Os Africanos — como
No sistema africano, as mercadorias são antes destinadas a assegurar o prestígio já salientámos — são capazes de reparar e até de fabricar armas de fogo, mas com a
daquele que as possui, participando muito pouco, ou até nada, no mecanismo da condição de poder obter os canos, que a sua metalurgia não consegue produzir. Também
especulação ou do investimento (3). são incapazes de dominar os «segredos» da produção da pólvora, sem a qual as armas
de fogo são mais decorativas do que instrumentos de guerra ou de caça. Para que a
( I ) Lévi-Strauss, 1955, pp. 16-28.
guerra e a caça sejam possíveis, é indispensável que o comércio obtenha dos comerciantes
Ver, a este respeito, Margarido, 1984. europeus a pólvora em quantidades importantes ou, pelo menos, suficientes.
Estamos conscientes do carácter anacrónico do conceito, relativamente tardio nas línguas Ao mesmo tempo, e à medida que as regras da produção e da comercialização são
neolatinas europeias, tanto em português como em francês. Mau grado isso, permite contudo dar conta, obrigadas a mudar, assistimos ao endurecimento de certos conflitos internos das sociedades
de maneira assaz precisa, do sentido desta operação central. africanas. É certo que não parece possível reduzir à explicação clássica as tensões entre
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as diferentes sociedades africanas: estas seriam inteiramente provocadas pela pressão
constante e crescente dos Europeus. A violência, que não poucas vezes corrói as
relações interafricanas, jamais pode ser explicada de maneira tão mecanicista. Mas
mesmo que as tensões encontrem a sua explicação na organização interna das sociedades
africanas, nem por isso o comércio perde a sua altíssima função de agente perturbador,
quanto mais não fosse por via da longa e brutal história do tráfico negreiro.
Em meados do século XIX, no espaçò que nos interessa, podemos dar-nos conta
da tensão que caracteriza as relações dos Quiocos com os Lundas centrais, que estão
na origem de dois tipos de conflitos centrados em torno do Kwangu. O afrontamento
— mesmo que reduzido à denúncia da violência dos tributos — entre os Quiocos e os
Lundas pode ser definido como um conflito, caracterizando a margem direita do rio,
cuja pressão se exerce na direcção do centro do continente. Isto significa que semelhante
oposição é independente dos Imbangalas e dos Portugueses, ambos instalados na margem
ocidental, mesmo que não possamos rejeitar o peso destes grupos, organizadores das
vias comerciais, associadas à exportação das mercadorias africanas. Mas a altercação
estrutura-se em função dos projectos políticos dos Quiocos e dos Lundas, procurando
os primeiros anular a dominação secular dos segundos.
Na margem esquerda, o conflito estabelece-se entre os Imbangalas e os grupos que a
eles estão associados, ou que eles dominam, e os Portugueses. O endurecimento da peleja
é a consequência, por assim dizer, inelutável desta degradação da hegemonia africana, que
autoriza a expedição portuguesa de 1850. A derrota do Jaga, obrigado a esconder-se no Conflito Portugueses-Imbangalas
mato, defendido e apoiado pela quase totalidade dos seus súbditos, pode ser contabilizada Conflito Quiocos-Lundas -->
como uma manifestação da capacidade de resistência das organizações político-militares Relação Luanda-Lunda — — —
angolanas. Sejamos contudo claros: o facto de o Jaga ser obrigado a abandonar a cidade
salienta a importância do revés infligido pelas autoridades portuguesas, que assinala o elaboradas e difundidas pela via do poder político. Não há heroísmos individuais, ou
começo da inversão — longa e difícil — das estruturas políticas. são eles raríssimos, mas antes acções constantemente concertadas, sendo os homens
Destarte se desenham em volta do Kwangu os dois tipos de conflitos, bastante delegados das suas linhagens, das suas aldeias, dos seus chefes e dos seus anciãos. Só
autónomos, mas cujos pontos de convergência não podemos ignorar. Um gráfico mostra durante o último terço do século se pode assistir à emergência de práticas comerciais
a maneira como se estruturam as duas linhas de conflito, contrariadas pela decisão mais individualizadas.
portuguesa de contornar o território imbangala, para conseguir manter relações directas Isto dá legitimidade às perguntas a que procuraremos responder: como é que os
com os Lundas. Africanos ajuizaram estas formas comerciais inéditas? Era preciso julgá-las, para as
A mudança nunca foi, pois, imposta apenas pelos Europeus: o nosso trabalho poder controlar, sem contudo as expulsar das estruturas africanas. Ou seja, as sociedades
mostra que as iniciativas da mudança provêm de elaborações africanas. Os estímulos africanas reconhecem a importância das propostas europeias, as quais devem ser integradas
europeus ou árabes — porque nunca se deve menosprezar o impacto das escolhas e verificadas pelos agentes africanos, políticos, religiosos, comerciais ou económicos.
africanas da costa oriental, quando se trata de considerar as escolhas da África cen- Os sistemas comerciais a longa distância são forçados a alargar o seu leque de mercadorias,
tral — são certamente importantes, mas foi necessário que as sociedades africanas o que impõe a criação de novos agentes e de novas maneiras de observar. A aparição
tomassem posição em relação ao que era aceitável e ao que devia ser recusado. O do novo pessoal comercial é certamente uma das consequências mais importantes da
comércio europeu — legítimo ou clandestino — nunca pode funcionar sem a adesão nova situação (4).
das estruturas políticas africanas.
Convém dar a esta observação a sua dimensão mais ampla, pois não se trata, de
maneira alguma, da simples adesão dos indivíduos, uma vez que as mudanças africanas
devem ser sancionadas pelas autoridades religiosas e políticas. Isto quer dizer que a (4) O romance histórico de António de Assis Júnior, O Segredo da Morta (1937), 1979, descreve
bastante bem a coabitação entre os diferentes tipos de comerciantes no Donde), cidade comercial
banalização das formas comerciais e a abertura das estradas e dos mercados devem ser
instalada entre Luanda e o mato.
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Ela é tanto mais importante quanto as duas sociedades, colocadas frente a frente que nunca conseguem integrar-se no espaço que lhes é determinado pelos Brancos,
ou em paralelo, estão longe de ser homogéneas. Muito pelo contrário: as disjunções são assinala o carácter preocupante do excesso de Africanos: enquanto os Europeus vivem
numerosas e extremamente poderosas, traduzindo a maneira como uns e outros procedem para obter lucros, os Africanos não conhecem as autênticas regras da poupança e da
à remodelação das suas organizações culturais. Se as sociedades africanas mostram a acumulação.
sua flexibilidade, não podemos deixar também de considerar as suas formas rígidas, as De resto, o que caracteriza as relações dos Europeus com os Africanos reside na
suas resistências — por vezes extremamente violentas — assim como as suas impotências. contradição. Capello e Ivens, após terem feito uma descrição miserabilista dos Imbangalas
Queremos, por isso, pôr em evidência, nesta quinta parte, os movimentos de aceitação de Kasanje ( 6 ), não hesitam em reconhecer as suas capacidades comerciais ( 7 ). Igual
ou de recusa, sem esquecer as impossibilidades de mudança, sensíveis em tudo o que sistema aparece nas referências aos Quiocos, pois que no mesmo parágrafo se diz que
se refere às formas de transição para o capitalismo moderno, que recusa qualquer figura «o principal meio de vida [dos Quiocos] reside na preguiça», o que nem sequer é
ilegítima de capitalismo periférico.
corrigido pela referência à maneira perfeita como os homens do grupo trabalham a
terra, «fabricam cachimbos» de maneira admirável, ou se manifestam como «hábeis
ferreiros» (8).
I. O Outro visto pelo Outro
Esta contradição faz parte da tradição oral branca à qual já nos referimos. As
manifestações escritas do peso desta tradição oral obrigam Capello e Ivens ( 9) e
A. Brancos/Pretos: a política do lucro e a da moral
Magyar ( 10) a reconhecerem que, feitas as contas, os «povos selvagens» são, também,
inteligentes. É certo que nada é dito para esclarecer o mecanismo lógico que permite
A frase, que resume da maneira mais brilhante a visão europeia do mundo semelhante associação, mas não há dúvida que a tensão interna das relações dos
africano, aparece, em 1792, na escrita do brasileiro Elias Alexandre da Silva Corrêa: Europeus com os Africanos não consegue renunciar à sua violência.
«Os negros (...) compõem no interior das suas libatas um mundo às avessas» (5). L. Magyar é um dos autores mais directos na definição do não-valor dos Africanos,
A possibilidade de qualquer método de conjunção entre pretos e brancos é assim como se alimentasse uma espécie de ressentimento em relação aos homens que lhe
nitidamente rejeitado. O facto de o historiador ser natural do Brasil, mesmo que tinham imposto um casamento, que lhe deu filhos. Do seu ponto de vista, os Africanos
formalmente cidadão português, mas já brasileiro pela educação e pelas opções, reforça apenas se consagram à preguiça, à comida, à bebida, à música e à luxúria. A sua vida
o interesse desta visão dos Africanos, alimentada pela experiência brasileira. Se em é, por isso, inteiramente virada para as paixões, o que os impede de exercer qualquer
Angola há escravos, há também uma imensa população africana livre, dependendo actividade racionalizada. Assim se compreende que se não decidam a executar seja que
de autoridades africanas; no Brasil regista-se a banalização da escravatura, reforçada trabalho for, excepto quando a isso são obrigados por uma necessidade premente.
pela ausência de qualquer poder africano.
Inversamente, e assim voltamos ao paradoxo, são capazes de fazer a guerra, de organizar
Uma inversão do mundo: esta maneira de dizer quer afirmar, de forma grosseira, uma viagem comercial ou expedições de caça e de pesca (11).
que os Africanos não devem ser considerados como inúteis, pois que podem ser perigosos. O viajante húngaro não se preocupa com o facto de as contradições serem mais
Uma «inversão do mundo», sobretudo, fazia pairar uma ameaça sobre o modelo de aparentes do que reais, se formos até ao fundo das suas intenções. Nunca há regularidade
sociedade branca. Um certo número de não-valores que caracteriza as sociedades africanas, nas decisões dos Africanos, e a selvajaria intrínseca da sociedade apareceria tanto no
positivo como no negativo. É que a imprevisibilidade dos Africanos é a própria fonte
dos contratempos: se uma sociedade não possui nenhuma norma, os interlocutores nunca
(5 ) Corrêa, 1937, I, p. 120. A maneira de dizer de Elias Corrêa encontra a sua plena confirmação podem comprometer-se ou assumir compromissos, porque estão impossibilitados de
numa observação de António Gil que denuncia «o estado rudimentar», «estado imperfeito» (Gil, 1854, saber se serão respeitados.
pp. 3-4) no qual estavam mergulhados os Africanos. O carácter maléfico da sociedade africana não podia
ser razoavelmente posto em dúvida, pensam os dois autores, o brasileiro e o português. Acumulam uma
certa quantidade de traços pertinentes que permitem torná-lo visível e descrevê-lo, por isso, aos leitores
brancos, que devem naturalmente adoptar uma posição defensiva, porque constantemente ameaçados
pela desregulação das sociedades africanas.
Capello e Ivens, 1881, I, p. 290. De resto, Elias Corrêa já em 1792 tinha salientado este
Podemos dar melhor conta do sentido da inversão, operação necessariamente diabólica, porque
miserabilismo: I, p. 155.
consiste em esvaziar o mundo de todo e qualquer sentido. A imobilidade intelectual africana, denunciada
Capello e Ivens, 1981, I, pp. 290-292 e 296.
por Gil, só pode pôr em perigo o próprio equilíbrio do mundo, que é apenas possível obter quando o
Id., ibid., I, pp. 203-204.
homem participa plenamente nesta operação, cujo carácter delicado é evidente. Mas isso quer também
Id., ibid., II, p. 166.
dizer que os Africanos só podem encontrar o sentido do mundo quando abandonam os seus valores: os
Magyar, 1937, V, p. 27.
Brancos obrigam-nos a tal, ao impor-lhes o trabalho.
Id., ibid., VIII, p. 18.
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475
Estes homens desorganizados consagram-se também «ao roubo e à pilhagem» (12). de carência sexual, habilmente aproveitada pelas aldeias onde páram. Algumas mulheres
A ocupação permanente é empurrada para as mulheres: «a agricultura tão benéfica aceitam entrar no jogo da sedução sexual, provocando assim um elevado número de
é muito reduzida, porque os homens consideram humilhante o trabalho da terra, conflitos, que devem ser resolvidos de acordo com as leis locais, nunca podendo dar
confiando-o inteiramente às mulheres» (13). Trata-se de um dos topói mais constantes vantagens aos estrangeiros. As instruções dadas pelos responsáveis das caravanas são por
nos juízos consagrados aos Africanos: a maneira como impõem a totalidade do trabalho isso muito severas, pois procuram evitar o menor contacto entre os seus homens e as
às mulheres, obrigadas a trabalhar a terra para alimentarem os homens que se mulheres das aldeias. Não parece que esta operação possa ser contada como um grande
espreguiçam no jambo (o espaço destinado aos homens), comendo, bebendo e fumando. êxito dos chefes de caravana. Isto explica, de resto, as tentativas feitas para modificarem
O desequilíbrio da sociedade, ou até o seu estatuto anormal, é tornado visível pela as regras dos contactos e para anularem o peso do direito costumeiro (16).
condição imposta às mulheres. Os Africanos são apenas produtores de contratempos, tal poderia ser a conclusão:
Não temos sequer de nos preocupar em sublinhar tratar-se de uma das contradições procuram por todos os meios tirar proveito da sua imensa repugnância pelo trabalho, que
dos textos. Estes homens, cuja escrita revela tanta piedade pelas mulheres africanas, faz deles não agricultores — como tanto insistem os documentos europeus — mas
foram incapazes de fazer o menor gesto útil em proveito das mulheres brancas e pilhadores da natureza. É de resto uma acusação corrente e aceite quase sem discussão: os
europeias, que trabalhavam no campo ou nas fábricas. Mas os seus discursos «africa- Africanos estariam na origem da destruição dos elefantes. Os caçadores quiocos teriam
nistas» estão cheios de frases estereotipadas, destinadas a denunciar o estatuto das feito desaparecer os proboscídeos numa vastíssima região da África central. O contratempo
mulheres, apenas para melhor poderem acusar os homens. De resto, não podem estes estaria desta vez associado ao desequilíbrio da natureza, pondo em perigo uma das obras-
homens tão sábios ignorar que os inquéritos, realizados na Europa e consagrados à -primas dos grandes mamíferos. Regista-se, todavia, um pequeno esquecimento: os
situação das mulheres trabalhadoras, mostravam uma enorme miséria, tal como caçadores profissionais, dotados de armas de grande alcance e precisão, são os Europeus,
salientavam a maneira como elas eram exploradas, muitas vezes em companhia dos que jamais cederam aos Africanos armas desta qualidade.
filhos, pela indústria têxtil (14). Procurámos assim proceder à demonstração da incoerência da denúncia dos contra-
A força da contradição arrasta os autores para o espaço da discriminação. É certo„ tempos provocados pelos Africanos. O caçador profissional português Diocleciano
neste discurso, que as mulheres trabalham; aparecem como vítimas ou até coisas dos Neves descreve a organização dos Boers, que se desinteressam da agricultura, não.
homens, mas isso não as torna mais puras, pois caem na mesma «miséria moral (...) podendo contudo «argui-los de indolentes» (17). É certo que estes homens não revelam
a luxúria, o sexo, etc.», numa homologia de comportamentos que contribui para as um grande interesse pela agricultura, não sendo a sua produção muito importante, se
desqualificar, tanto ou mais do que os homens. E L. Magyar salienta ainda que as bem que sejam proprietários de um imenso território extraordinariamente fértil, «que
mulheres africanas teriam perdido qualquer forma de pudor (15). Não estamos perante pode produzir todos os produtos do Brasil, América do Norte e Índia, com muito mais
a confissão de um choque, sobretudo se tivermos em conta o facto de a jovem esposa vantagem que estas nações» (18).
de Magyar não ter mais de treze/catorze anos? Por todas estas razões negativas, os Boers são exportadores dos produtos típicos
Pensamos ver nesta situação o resultado de um contratempo ligado às concepções das formas de pilhagem da natureza já conhecidas: «marfim [de elefante], dentes de
sexuais dos dois grupos. Um dos esforços mais constantes dos missionários europeus cavalo-marinho, pontas de abada, plumas de ema, (...) coiros de animais selvagens e
foi o de levar os Africanos a aceitarem a gravidade dos «crimes» de adultério pelos madeiras». O caçador de elefantes acrescenta: «este último artigo é muito importante,
maridos e pela sociedade africanos. Sem grande êxito, dado que os crimes sexuais pela grande quantidade que exportam para a colónia inglesa» (19).
parecem pouco importantes na quase totalidade das sociedades africanas deste espaço. Não pretendemos, de maneira alguma, estabelecer a comparação entre as formas
Com uma única exclusão: as agressões sexuais, praticadas pelos membros de uma de contratempo dos Africanos, que perdem — no discurso europeu — a sua negati-
caravana comercial perante os chefes políticos, os maridos ou os parentes. vidade, quando praticadas pelos Europeus. A leitura do mundo está dominada pelos
Esta situação constitui uma das mais poderosas fontes de contratempo nas relações preconceitos, mas não se trata de uma simples operação de denúncia ingénua. O nosso
com os Africanos, que a utilizam com muita astúcia. As caravanas, se não são exclusiva- projecto é pôr em evidência a coerência dos sistemas que se organizam em função de
mente formadas por homens, contam com muito poucas mulheres, o que cria uma situação um afrontamento cada vez mais importante, reforçado pela concorrência que se estabelece

Id., ibid., III, p. 36. Porto, Memorial de Mucanos, pp. 4-5, descreve a maneira como, em 1845, foi também vítima
Id., ibid., VII, p. 24. deste tipo de contratempo «sexual».
Ver Louis René Villermé, Tableau de l'état physique et moral des ouvriers employés dans les Neves, 1878, p. 147.
manufactures de coton, de laine e de soie, Paris, 1840. Id., ibid., p. 146.
Magyar, 1973, VIII, p. 35. Id., ibid.

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na própria frente da pilhagem: a pilhagem europeia transforma-se, nos textos escritos,
em norma aceitável, ao passo que aquela que é praticada pelos Africanos, todavia
idêntica, não faz mais do que reforçar a gravidade do contratempo natural que os
caracteriza.

B. Pretos/Brancos: o lugar incerto dos Brancos

Até muito tarde, os Africanos não teriam sido capazes de definir o estatuto dos Brancos.
É certo e evidente que conseguiam distinguir os Brancos, os Portugueses e os Outros, entre
os quais — nesta região — os Belgas. Mas parece tratar-se mais de distinguir as
nacionalidades, separar os já conhecidos, os antigos, isto é, os Portugueses, dos modernos.
Os textos dos viajantes do século XIX, como é o caso de Rodrigues Graça ou
Silva Porto, sublinham o facto de os Africanos procurarem responsabilizar uma
caravana pelos prejuízos provocados por outra caravana que, muito antes, tinha
passado na região. A operação não podia deixar de parecer absurda aos Europeus;
ela só é muito lógica, a partir do momento em que os Africanos consideram os
Europeus como um bloco homogéneo. Esta situação parece ainda mais aceitável,
quando se considera que os Europeus são homens sem mulheres. Pertencem, por isso,
todos ao mesmo grupo, quando não à mesma linhagem. São «todos os brancos [a
que se chama Mugungos] filhos de Mueneputo» ( 20). É de resto a mesma lógica que
explica a atitude de um soba que recusou atacar a caravana de Magyar, porque ela
era «comandada por um branco (...) igual ao seu amigo mais íntimo [amizade
consagrada pelo kissoko]» (21).
Esta grande homogeneidade física ( 22) permite compreender a perturbação dos
Africanos perante os poucos homens que, vindos das costas, mas sobretudo da costa
ocidental, fazem perguntas, medem, desenham, fotografam, interrogam, escrevem. Não
podemos esquecer a importância da lição de escrita que Lévi-Strauss relata também em
Tristes Tropiques. Todas estas actividades fora do comum fazem dos Brancos homens
improdutivos, ao mesmo tempo que detentores de riquezas infinitas.
Os Europeus são, por essas razões, encarados desde o momento da sua aparição
de maneira, pelo menos, interrogativa. Nunca chegaram a transformar-se em figuras
físicas e sociais normais (23).
At •

Baptista, 1843, p. 431. O autor, igualmente mestiço, é designado como sendo mugungo. Gil,
1854, p. 14, observa também que o nome de Mueneputo é utilizado para denominar o rei português,
ao mesmo tempo que acrescenta que «entre eles [os Africanos] é ditado que o Maniput [pai ou rei dos
Portugueses] tem os braços encolhidos; mas que se acaso os estende, não há ninguém que resista».
Regista-se a existência de um receio claramente expresso face ao poder de Mueneputo.
Magyar, 1973, V, pp. 14 e 32.
Os Europeus são demasiadamente idênticos, como mostra a estatuária quioca, a partir do
momento em que se consegue integrar os Europeus na actividade esculpida. Se os Chineses reconhecem Fig. 32 — Representação de um comerciante branco, ungido com caulino branco.
os Brancos devido ao «nariz comprido», os escultores quiocos dão-lhes um nariz peculiar, em forma de Repare-se no nariz em forma de bico de papagaio (Museu do Dundo). Bastin, 1961, I, p. 65.
bico de papagaio. Ver Bastin, 1961, vol. II, várias imagens.
O Europeu provoca a surpresa constante, como já tivemos oportunidade de salientar citando
a reflexão de José Redinha (1955).

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Os únicos corpos brancos conhecidos pelos Africanos eram os albinos, que foram
cuidadosamente escondidos dos Europeus. Esta dissimulação foi tão eficaz, que o considerados perigosos. Esta característica ameaçadora parece reforçar-se pela proxi-
primeiro albino da literatura europeia foi encontrado em Cartagena, na Colômbia actual, midade do mar, pelo menos na visão dos Africanos do Centro do continente, situação que
já no século XVII (24). O facto de — nesta vasta região — os albinos serem considerados o historiador não pode ignorar, tanto mais que Capello e Ivens retiveram aquilo que
reincarnações dos espíritos contribui fortemente para a criação do lugar ambíguo que consideram ser uma velha tradição existente entre os súbditos do chefe quioco N'Dumba
foi destinado aos Europeus. Tembo. Os dois viajantes encontraram um africano que contava a duas mulheres a história
Porque, como lembra J. van Wing, «os senhores brancos (mfumu zi ndundu) são dos Brancos que «são (...) peixes! Vivem na água (...) e quem vai perto do mar vê-os
considerados como sendo grandes antepassados reincarnados» (25). É certo estarmos chegar nadando». Acrescentando que é isso que lhes dá a sua cor, informação que tinha
perante um juízo dos Ba-Kongo, mas ele traduz o sentimento geral dos grupos que recebido dos homens do Bié, no tempo em que estes iam até à costa (27).
mantêm uma relação específica com o mundo do além. A mpemba, isto é, o caulino Como mostra o texto de maneira explícita, os Brancos são considerados como
branco, utilizado para ungir o corpo quando se realizam operações rituais, permite — vivendo num meio não normal, quer dizer, nem terrestre nem humano, pois se encontram
ou impõe — que o homem africano se torne branco: não se trata de uma mudança em condições que são o preciso inverso das regras africanas: instalados na água, entre
somática, mas de uma operação equivalente a uma mutação imposta pelo ritual religioso. as grandes feras aquáticas, sendo na maior parte dos casos equiparados aos «feiticeiros»,
O primeiro sinal perturbador, provocado pelo aparecimento dos Europeus, foi de e a mudança de cor é justificada pelo meio em que vivem. Estes caracteres somáticos
ordem vestimentar: o corpo vestido criou sérios problemas aos Africanos das regiões não devem ser considerados de maneira ligeira, já que permitem que os Africanos se
ocupadas por populações de língua banta, pois esta dissimulação do corpo rompia a dêem conta da ameaça física constante que eles representam.
relação que os homens deviam manter entre si, mas sobretudo com os espíritos. Os A relação existente entre os Brancos e a água, principalmente a do mar, mas
sapatos acabam por ser a metonímia dessa preocupação, na medida em que impedem também a dos rios, é confirmada pela tradição lunda, que N'Dua Solol evocou num
os homens de manterem a relação directa com o panteão subterrâneo, onde estão colóquio realizado em Lubumbashi: «no tempo dos nossos antepassados, as missangas,
instalados os espíritos dos antepassados. os tecidos e as vacas saíam de um grande curso de água. Isto teria acabado quando
Já evocámos alhures a violência da rejeição, que obrigou as autoridades portuguesas apareceu o homem branco» (28). Seria difícil furtar-nos à evocação de certas maneiras
a tomarem medidas no que se refere à circulação dos comerciantes brancos no espaço de dizer com carácter mágico que se registam nos cargo-cults, mas o essencial não
interior, em função dos desejos africanos: a negatividade dos sapatos assinala de novo reside nisso.
a disjunção entre os dois grupos, que apenas pode ser reduzida muito lentamente. Porque De facto, o mito não pode ser muito antigo, ou então encontramo-nos perante
se há disjunção entre os homens nus e os vestidos, há uma outra, aparentemente ainda uma adaptação de um mito antigo a uma situação moderna, como parece prová-
mais poderosa, que separa os homens calçados daqueles que andam descalços. Esta -lo a referência ao gado bovino, visto que a cintura de tsé-tsé tinha impedido os
oposição, não podemos duvidá-lo, deriva de imposições religiosas. Lundas e os seus dependentes de criarem as manadas de bois com que sempre
Livingstone permite-nos ir ainda mais longe na organização desta relação: quando sonharam através da história. Somos levados a pensar que o mito denuncia a maneira
anuncia aos homens que estavam integrados na sua caravana, e que viajavam com ele como os Brancos se apoderaram de todos os bens, em detrimento dos Africanos,
desde o Cabo, que pretende estabelecer a ligação entre Kasanje e Luanda, estes homens a quem os espíritos tinham destinado o fluxo de mercadorias que circulavam nas
manifestam imediatamente o desejo de regressar à sua terra: «tinham-lhes dito que redes comerciais africanas.
[Livingstone] só os queria levar para a costa para os vender, e que chegados a Luanda Todavia, os elementos mais reveladores provêm, uma vez mais, do cesto de adivinho
seriam metidos num navio, onde seriam engordados para serem comidos, sendo os quioco que já referimos, graças ao excelente trabalho de alguns antropólogos,
Brancos canibais» (26). particularmente de Marie-Louise Bastin e de M. L. Rodrigues de Areia. Com efeito,
A brutalidade da reacção permite dar conta da importância do receio, alimentada no cesto de adivinho quioco aparece o imbari, isto é, o espírito dos Europeus,
pela tradição dos Zambezianos, mas reforçada pelos juízos que circulavam entre as constantemente associado aos objectos culturais. Para Rodrigues de Areia, um certo
populações da região do Kwangu. Apesar de três séculos de contacto com os homens e número de doenças mentais decorrem «em princípio de um choque cultural» (29). Temos
as suas mercadorias, as sociedades africanas continuam a rejeitar os Europeus, algum receio do falso rigor do «diagnóstico», mas não podemos deixar de estar de
acordo com a maneira de agir do antropólogo: «o adivinho explica que o espírito dos

Ver a respeito desta questão, Margarido, 1972, CEA, 46, XII.


Wing, J. van, Etudes Bakongo..., 1938, citado por Margarido, 1977, p. 52. Capello e Ivens, 1881, II, p. 122.
(26) Livingstone, 1859, p. 416. N'Dua Solo!, 1983, p. 2, indica que este «homem branco» é o colonizador belga do século XX.
(29) Areia, 1985, p. 404.
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europeus veio com os produtos comprados na loja do comerciante ou diz-se simplesmente que White, em 1940, registou as liamba sitima (caminho-de-ferro) ( 35) e as liamba ndeke
tratar-se de um espírito que veio de longe» (30). (avião) ( 36). As populações são vítimas das doenças provocadas pelo aparecimento
As informações recolhidas junto dos adivinhos quiocos mostram, de maneira nítida, frequente dos aviões. A maneira como os Africanos são atingidos por doenças originadas
a potencialidade patológica das mercadorias, que é necessário ler e interpretar em vários por objectos europeus, com os quais não têm sequer contactos directos, salienta a
registos. O primeiro está muito pragmaticamente associado às mercadorias: se um importância desta relação através das mercadorias e dos objectos.
homem as compra, está potencialmente em perigo, e estas «coisas», «objectos de É contudo a permanência da antropofagia branca que parece a mais perturbadora.
civilização», podem arrastar o homem para a perturbação do espírito. Apesar de séculos Com efeito, os Quiocos «explicam a aquisição das potentes máquinas que revolvem as
de comércio, os bens provenientes dos Europeus parece nunca terem sido completamente terras para procurar os diamantes em termos de feitiçaria: as pessoas seriam apanhadas
africanizados; em todo o caso, esta africanização nunca conseguiu eliminar, de maneira para ser trocadas por estas poderosas máquinas» ( 37). Trata-se da talyanga — consi-
radical, a potencialidade da perturbação patológica, ligada à origem europeia das coisas. derkla pelos Africanos como a «técnica» europeia para capturar africanos —, organizada
As técnicas de cura permitem confirmar esta carga patológica, que só pode ser em duas fases: «na primeira as pessoas cairiam numa armadilha, o que — segunda
repelida recorrendo aos próprios valores dos Europeus. C. M. White — citado por fase — tornaria possível a análise do sangue das vftimas para «definir o valor vital
Rodrigues de Areia, que alarga o campo da observação de White — salienta que as (força de vida) de cada uma». As melhores seriam então escolhidas para ser enviadas
técnicas de cura, no caso dos Quiocos, mas o mesmo acontece com as populações do para o estrangeiro — para a América —, onde se trocariam pelas máquinas (38).
Lovale, recorrem à cozinha como processo curativo. Entre os Quiocos «é necessário em M. L. Rodrigues de Areia salienta, não sem surpresa — o que se compreende, por
primeiro lugar comprar uma imagem de santo ou fazer uma de madeira» ( 31 ), o que se respeito à construção pro domo do discurso — que esta explicação é partilhada pelos
explica assim: os espíritos tornam-se manipuláveis, provavelmente também controláveis, Quiocos na sua totalidade, tanto pelos habitantes das aldeias, cujos contactos com os
por via da utilização dos seus duplos miniaturizados, técnica que explica, de resto, o Europeus eram praticamente nulos, como pelos operários que trabalham há muito tempo
reduzido volume de um número importante de objectos religiosos ( 32). Ao que se nas minas de diamantes: «as máquinas poderosas seriam necessariamente a contrapartida
acrescenta um repasto servido ao doente no estilo das refeições europeias: «será posta de vidas humanas» (39).
uma mesa com toalha, pratos, garfos, etc.». Repastos deste tipo são também organizados No registo das relações entre as duas comunidades, damo-nos conta da disjunção
após a morte do doente, para acalmar o seu espírito. Mais ainda, em certos casos, os que tínhamos assinalado, que não parece diminuir com o tempo. Os Africanos seriam,
parentes continuam a «levar à sepultura diferentes produtos europeus para apaziguar por assim dizer, as vftimas necessárias destas operações, onde a América aparece não
o seu espírito» (33). só como a pátria das máquinas, mas como o lugar da antropofagia de que os Africanos
Um pormenor interessante foi registado por C. M. White: esta refeição deve respeitar são as vftimas propiciatórias.
algumas regras portuguesas: «o paciente veste-se à moda europeia; dança, e come em O conjunto destas informações permite dar conta da importância fundamental das
pratos, com garfo e faca, uma comida preparada à moda portuguesa, tal como galo mercadorias nas mudanças das práticas sociais, qualquer que seja a carga negativa dos objectos
cozinhado com arroz, tomates e cebola; tem cerveja numa garrafa, que bebe por um fornecidos pelos Europeus. Não há apenas um certo número — mesmo reduzido — de
copo» ( 34). É como se as sociedades africanas tivessem despendido grandes esforços — indivíduos que são vítimas da infecção: é por isso necessário desconfiar desses objectos,
no tempo e no espaço — para tentar eliminar a profunda ferida simbólica provocada de maneira a retirar-lhes qualquer carga negativa, sem contudo os recusar. Mas a associação
pela irrupção dos Europeus. Esta situação remete também, embora de maneira mais entre os Europeus e estes objectos serve para mostrar o caminho que leva a escolher um
discreta, para o tráfico negreiro, que foi a demonstração plena da força antropofágica lugar preferencial para indicar a disjunção. Todavia, e qualquer que seja a dimensão das
dos Europeus. perturbações, a lacuna entre os dois grupos parece só poder ser eliminada graças à
Com efeito, os choques culturais experimentados pelos Africanos nesta região vão multiplicação dos objectos libertos da sua carga prejudicial.
repercutir-se na organização das formas religiosas, entre as qttais as hamba. Foi assim

Id., ibid.
Id., ibid. Sitima, de Steamer, nome utilizado para designar os comboios que circulavam na então Rodésia
Id., ibid. do Norte.
Id., ibid. White, 1949, p. 330.
(34) White, 1949, pp. 329-330: «The patient dresses in European style; he dances, and eats off Areia, 1985, p. 405.
plates, with knife and fork, a meal cooked in Portuguese fashion, such as a fowl cooked with rice, Id., ibid.
tomatoes and onion; he has his beer in a bottle and drinks it from a glass». (39) Id., ibid.

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II. A perversão da ordem regras civilizacionais. Em 1620, o governador Luís Mendes de Vasconcelos intervém
para proibir que o comércio no mato seja assegurado por «brancos, pardos e negros
Desde os primeiros contactos, os Portugueses rejeitam, do mundo da ordem, os calçados». A equação parece contar-se entre as mais simples: o comércio não pode ser
Africanos da costa ocidental. O discurso europeu não se limita a salientar a ausência levado a cabo por homens calçados, o que se afigura ser o comportamento dos brancos
de coincidência entre os Africanos e os Europeus, razão pela qual eles devem desconfiar e dos pardos. Os Africanos que entram nesta categoria europeizaram-se ou, se assim
constantemente do mundo dos Africanos, que não respeitam sequer as normas físicas, se quiser, desafricanizaram-se (41).
pelo que não podem também respeitar nenhuma das regras, graças às quais as sociedades
O calçado não é o único objecto europeu que os Africanos repelem de maneira
funcionam de maneira aceitável.
tão vigorosa, a ponto de obrigar as autoridades portuguesas a fixar as normas. O
A única forma de agir perante os Africanos reside no recurso à violência, já que
Regulamento de 12 de Fevereiro de 1676 alarga, de maneira sensível, o rol dos objectos
os Europeus não podem deixar de levar em conta serem eles os agentes da desordem.
em volta dos quais existe uma polémica: «é de muito grande dano irem homens brancos
Desordem do corpo, desordem do vestuário, desordem da natureza, a que se acrescenta
a desordem da alimentação. Face a esta desordem generalizada, os Europeus devem ao sertão e lumbos, como mulatos e negros com calças ou bastões». Muito curiosamente,
defender-se de qualquer prática susceptível de provocar a sua própria perversão, pois este Regulamento não faz a mínima referência ao calçado, para excluir das relações
correm sempre o risco de ser integrados nas práticas africanas. Nada mais chocante do com os Africanos não urbanizados tanto as calças como os bastões (42).
que a rejeição, pelos Europeus, da autoridade normal dos Brancos, substituída pela As proibições, que incidem sobre os sapatos, são contudo renovadas a 9 de Julho de
autoridade dos chefes africanos. 1762 por decisão do governador António de Vasconcelos: os comerciantes brancos só
Retivemos no discurso europeu, utilizado para definir as condições de funciona- podem assegurar a sua actividade no quadro físico das feiras, abandonando o mato aos
mento das sociedades africanas, os comportamentos considerados mais graves: porque «pretos sem sapatos» (43). No documento por meio do qual o Jaga de Kasanje aceita a sua
é que os Africanos são obrigados a renunciar aos sapatos? Esta pergunta prova uma situação de vassalo do rei de Portugal, volta a aparecer este problema, afirmando-se que
conclusão: porque razão os Europeus deviam renunciar aos seus valores específicos o Jaga nunca impusera multas importantes, nem aos «pombeiros descalços» nem aos
para se sujeitar às regras «não-naturais» das sociedades africanas? Os dois problemas mulatos e pretos que penetravam no mato com os pés descalços (44).
convergem: em ambos os casos, as sociedades africanas estão fora da norma, o que as Como acontece frequentemente na documentação portuguesa deste período, deve
impede de atingir a «civilização», que não é senão uma macronorma. A esta situação ler-se o documento em função do que não está dito: se o Jaga não aplica multas
acrescenta-se a tentativa, que às vezes resulta, de obrigar os Europeus a adoptarem as substanciais a estes homens, respeitosos da norma, isso quer certamente dizer que elas
práticas africanas, o que cria estes brancos-pretos que são a prova da capacidade puniam os que não hesitavam em penetrar no mato com os pés calçados. As conse-
pervertedora das sociedades africanas. quências do conflito são importantes: as autoridades portuguesas fazem grandes esforços
para impor o respeito por esta norma, ao passo que do lado das africanas não se hesita
A. Os Pretos calçados em punir com multas consideráveis, aqueles que infringem a proibição portuguesa,
assim como as regras africanas.
As questões associadas ao calçado e ao vestuário permitem-nos medir as reacções Elias Corrêa é o primeiro que tenta fornecer uma explicação constantemente reciclada
dos Africanos perante as práticas e as formas civilizacionais europeias. A documentação até aos nossos dias: ele faz referência a uma hierarquia de brancos, entre os quais se devem
angolana não nos dá a conhecer esta reacção antes de 1620, mas as narrativas dos
contar os brancos sertanejos, ou seja, os brancos do mato, recrutados entre «os Negros
naufrágios das embarcações portuguesas registados na costa oriental, de regresso da cujo trato e distinção os põem ao alcance de andar calçados» (45). A condição do Branco
Índia, descrevem, com minúcia, a maneira como as populações africanas obrigavam os encontra-se assim um pouco alargada na concepção africana, dado que pode integrar os
náufragos a despojarem-se do seu vestuário (49.
Africanos portadores de alguns objectos, marcadores sociais dos Europeus. Os dados
Estes documentos permitem-nos dar conta da violência do choque entre as lógicas estritamente somáticos parecem ser menos importantes do que a capacidade de utilizar os
culturais daqueles que querem cobrir o corpo, perante os que rejeitam a menor objectos culturais que caracterizam o comportamento dos Brancos.
dissimulação do corpo. As questões das oposições entre os nus e os vestidos não podem,
por isso, ser resolvidas pela única referência às condições climatéricas, pois se trata de
Documento citado por Lima, 1846, p. 63.
«Regimento de 12 de Fevereiro de 1676», cap. 18, A. A., I, 5, 1936, s. p.
Documento de 12 de Julho de 1762, A. A., II, 1936, p. 168.
(40) Ver, por exemplo, «Naufrágio do galeão grande S. João» (1554), ia Bernardo Gomes de Brito, Documento de 19 de Dezembro de 1798, A. A., II, 10, Julho de 1936, p. 341.
História Trágico-Marítima, Lisboa, 1735-1736. (45) Corrêa, 1937, I, p. 120, nota 2.

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De resto, esta maneira de classificar é confirmada por um documento um pouco quer dizer que só aqueles que querem tornar-se brancos podem aceitar o risco da
mais tardio (1789), a descrição do caminho que leva de Benguela ao mato. redução deste laço com os mortos. Face a esta informação, apercebemo-nos do sentido
Encontramos aí «igualmente um branco e dois pretos vestidos e calçados a quem da proibição, assim como da razão da rigidez das autoridades africanas, reforçadas
eles [os Africanos de Lovale] também tratam por branco» ( 46). Esta interpretação pelas portuguesas, muito bem informadas das normas africanas.
parece eliminar quaisquer dúvidas: as sociedades africanas procuram manter-se à Em que momento aparece nos textos portugueses o sinal da inversão desta maneira
distância dos Brancos ou dos «branquizados», portadores de ameaças graves. Já de gerir as relações humanas?
tínhamos observado a propósito da canoa kwanza, presente no cesto dos adivinhos Parece fazer-se em meados do século XVIII, na região dos ambaquistas ou m'bakistas,
quiocos, a importância da ameaça representada pelos Europeus que pretendem circular que se aproximam das escolhas portuguesas. Em 1854, Francina considera-os até como
ou instalar-se em terras africanas (47). sendo autênticos «portuguezões», superlativo que serve para denunciar a sua relação
Esta piroga kwanza exige que se passe para lá da explicação avançada por Elias com os mínimos pormenores dos comportamentos portugueses. Interessa sobretudo reter
Corrêa: ela não pode ser suficiente pois é incapaz de integrar as preocupações religiosas a recuperação dos sapatos como marcador social, permitindo assinalar a vontade de
das sociedades africanas. Estes dados só aparecem na escrita europeia, na segunda autonomia de alguns africanos. Este mesmo texto de 1854 afirma que «os pretos do
metade do século XIX. L. Magyar fornece um esclarecimento sobre os sistemas interior em usando de sapatos querem ser considerados como brancos». Recebem nesse
religiosos dos Africanos: «o reino dos mortos não se encontra em cima da terra mas caso o nome de «Camundelles», de mundelle, branco (51).
debaixo dela» ( 48 ). Magyar recolhe esta informação entre as populações instaladas Na mesma época e na mesma região, mais precisamente no Golungo Alto, já há
numa vasta região que se estende do Bié à Musumba, e encontra a sua plena confirmação muito integrado na esfera comercial portuguesa, Livingstone observa que «toda a sociedade
num texto discreto e pouco utilizado de António Gil. se divide em grandes e pequenas personagens, que, mesmo tendo a pele muito preta,
Este português, que viveu em Luanda, observa que os pés descalços não deviam se qualificam com o título de brancos, e dão o de pretos aos pés descalços que não têm
ser explicados em relação a uma prática vestimentária, pois que este comportamento o direito de usar sapatos» ( 52). As formas urbanas assumem a sua função de modo tão
remetia para o sistema religioso: «quando cheguei a Luanda, um dos primeiros eficaz, que conseguem impor uma troca nas opções africanas que, durante algumas
espectáculos que fez impressão foi ver um soba, não sei se calçado se descalço, porque dezenas de anos ou até de séculos, tinham pesado sobre a maneira como se organizavam
é de saber que alguns sobas não podem andar calçados, por ser agoiro ou contra o uso, as relações entre Europeus e Africanos.
que aí é lei» (49). A data da informação parece confirmar a importância da década que retivemos para
Há menos clareza no discurso um nada confuso de Gil, mas podemos dar-lhe indicar a grelha da inversão das tendências internas das sociedades africanas. O calçado
precisão, completando-o graças às informações de Magyar e aos numerosos documentos deixa de ser um sinal de exclusão ou, até mesmo, de negação absoluta da condição de
que, mais tarde, nos permitem explicar este espaço subterrâneo sacralizado ( 50). O mato Africano. Torna-se o sinal de uma aproximação dos Europeus, permitindo que o utilizador
e a cidade estão ainda estreitamente associados, no que diz respeito às regras que se separe da sua comunidade negra, para ser incluído, mau grado a sua condição
permitem aos mortos conservar a relação com os vivos. Inversamente, as autoridades somática, no grupo dos Brancos (53).
africanas mostram a importância da relação que os vivos devem manter com os mortos, Isto permite-nos medir o valor simbólico deste objecto de civilização que tinha marcado
entre os quais se encontram os espíritos que controlam a sociedade dos vivos. tão negativamente os Africanos no relacionamento com a sua própria comunidade, mudando
Podemos alargar mais esta explicação religiosa: andar calçado corresponde a lentamente de sentido, até se tornar um dos marcadores sociais recuperados pelas sociedades
manifestar o desejo de restringir ou de recusar o laço normal com os mortos, laço que de África. Não é apenas uma mercadoria, mas sobretudo um sinal de modernidade
continua a existir ainda hoje nas populações africanas do espaço que analisamos. Isto comercial: anuncia o momento em que os pés nus começam a servir de conotação da
selvajaria, mesmo mantendo o interesse dos valores religiosos. Como será possível duvidar

Anónimo (1789), in Felner, 1940, II, p. 26. Francina, 1854, p. 10; Vellut, 1972, p. 97, faz referência aos quimpacas, espécie de «domínios
Voltaremos a tratar esta questão. Ver último capítulo, consagrado aos Quiocos. fortificados» estabelecidos pelos Cacondistas, no século XVIII, no interior de Angola. Trata-se de uma
Magyar, 1973, VIII, p. 11. « população de origem étnica variada mas culturalmente homogénea», que tinha crescido em Kaconda,
Gil, 1854, p. 15. fundada em 1685. Esta população pretendia-se «pelo menos formalmente» cristã, usava roupas europeias
( 50) Ver a este respeito Margarido, 1977. Basta observar a maneira como a maior parte dos africanos e utilizava «nomes de família portugueses». Este grupo recebeu também o nome de Kacondista.
desta vasta região dos povos de línguas bantas derrama no chão e em todos os lados uma parte do líquido Livingstone, 1859, p. 53.
das suas bebidas, destinada aos mortos, para nos darmos conta do laço tecido entre os vivos e os (53) Por volta dos anos 1880, Carvalho, 1890, p. 690, refere-se a todos estes quimbares (comerciantes
mortos. africanos do mato) que usam vestuário europeu e se consideram brancos.

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que o comércio e o comerciante sejam agentes destas mudanças que ajudam a dissolver a As actividades económicas e, mais particularmente, as tarefas comerciais devem ser
importância das disjunções entre as duas comunidades? assumidas por estes homens, pela única razão de que não há outros. Estes agentes
Mas podemos também constatar que é impossível dar conta do sentido das normas comerciais não possuem capitais próprios e, quando aceitam instalar-se no mato para
africanas sempre que se despreza o vocabulário religioso: as sociedades africanas assegurar as trocas com os Africanos, os proprietários das mercadorias procuram
desconheciam qualquer modelo de laicismo, e o historiador não pode avançar com precaver-se contra os possíveis riscos, pois nada garante que o infractor em Portugal
certeza a não ser quando é portador de informações respeitantes às estruturas religiosas. o não seja também em África.
O branco seria então aquele que não é obrigado a respeitar as regras devotas africanas, O mecanismo é descrito com muita precisão e argúcia por este documento de 1759:
situação tornada lisível pelos objectos culturais que marcam o sentido da ruptura com «os moradores hão-de falir porque o ladrão [a] quem fiaram os géneros vendo que o
as formas religiosas. A longa duração desta proibição permite compreender que o produto não corresponde ao excessivo preço em que os tomou» (57) deixa-se ficar no
comércio só pode separar-se dos imperativos religiosos nos espaços urbanos, que mato, entre os Africanos. Estes homens são acompanhados pelas suas concubinas
permitiam relações menos indirectas entre os Portugueses e os Africanos. africanas, o que dá lugar ao aparecimento de formas de poligamia generalizada, podendo
O fantasma dos pés descalços resiste, contudo, até muito tarde. Em 1923, Brito os Europeus obter facilmente mulheres, mesmo que não saibamos quais as condições
Camacho, médico de formação, considera haver uma espécie de predisposição congénita exactas que permitem e conservam estas relações conjugais. A explicação, geralmente
que autoriza, ou recusa, os sapatos ou as botas. Os Africanos, como os camponeses aceite, esclarece que estas mulheres são recrutadas entre as escravas compradas no
portugueses, possuiriam pés que não aceitavam a violência do calçado (54). Estes mercado. Mas a descrição do ritual da cola, feita por Elias Corrêa (58), mostra que em
juízos são ainda reactivados durante a guerra do Batebá, em S. Tomé, em 1953, Luanda a sociedade africana, que aí continua perfeitamente estruturada, mau grado a
quando o governador do arquipélago dá ordens para que os notáveis da ilha, que sua condição transétnica, é capaz de impor as suas regras aos europeus que pretendem
tinham sido presos, sendo a maior parte transferidos depois para a ilha do Príncipe, ligar-se às mulheres africanas (59).
O enselvajamento não é por isso um movimento de sentido único, na medida em
fossem obrigados a andar com os pés descalços. O sistema está assim completamente
que inclui uma fracção da sociedade branca e urbana de Luanda, que não pode resistir
invertido em relação às práticas africanas identificadas nos primeiros anos do século
à injunção provinda da sociedade africana, capaz de integrar os homens europeus, as
XVII: o que fora prática religiosa, transforma-se em operação de humilhação utilizada
suas mulheres pretas e os seus filhos mestiços sem a menor dificuldade. Não dispomos
politicamente pelos Brancos (55).
de documentos muito pormenorizados consagrados a estas integrações, que são muito
mal vistas, embora correntes; podemos contudo aceitar o princípio de que as relações
B. Os Brancos enselvajados
comerciais foram largamente facilitadas por estes agentes dos valores europeus. Corrêa
salienta com vigor a capacidade de sedução das sociedades africanas: há até padres que
Uma das questões centrais da colonização e da relação com as populações africanas se deixam arrastar por estas operações «enselvajantes», nas quais as mulheres
está ligada à forma de recrutamento dos Portugueses que devem ocupar-se das tarefas desempenham um papel primordial.
administrativas, militares ou comerciais. Nunca há voluntários, razão pela qual o O resultado é considerado muito preocupante pelos europeus que desejam assegurar
recrutamento se faz de maneira violenta, entre os marginalizados, pelo seu comportamento a introdução e a reprodução das regras normais «civilizadas»: estes homens que penetram
ou pelo seu nascimento. Em Angola, instalam-se apenas «gente do Limoeiro, ciganos no mato acabam por se tornar, nas suas práticas existenciais, «mais negro[s] nos
e cristãos-novos» (56). Este recrutamento só podia dar lugar a uma sociedade sem costumes que o próprio gentio», como referem os documentos do século XVIII.
princípios, mas que não pode deixar de levar a cabo as tarefas «civilizacionais» impostas Encontramos com alguma frequência acusações contra os colonos portugueses: Tratar-
pela sociedade metropolitana. -se-ia de «gentes depravadas» (60), incluindo também «clérigos» (61), «(...) desertores e
vagabundos (...) que se acharem entranhados no sertão» (62), «facinorosos (...) que
roubam [aqueles que lhes confiam mercadorias para ir fazer comércio no sertão] para
os [lucros] despender em vícios». Este recrutamento dos agentes comerciais explica-se

Camacho, 1923, p. 63. O alto-comissário de Moçambique pergunta por que razão, nesse caso,
fornecer botas aos soldados africanos integrados nas tropas portuguesas?
Id., ibid.
Informação oral de Alfredo Margarido, que se instalou em S. Tomé e no Príncipe pouco tempo Corrêa, 1973, I, pp. 140-141.
após o conflito. Esta situação registou-se no caso de Salustino do Espírito Santo, engenheiro agrónomo, Ver a análise que Margarido consagrou ao ritual da cola em Luanda, 1989, pp. 385-389.
e de Maria dos Ramos, proprietária, que pertenciam ao grupo dos médios proprietários negros e mestiços Documentos de 1759, A. A., I, 5, 1936, e de 1762, A. A., II, 1936, p. 161.
de S. Tomé.
Documento de 3 de Janeiro de 1759, A. A., I, 5, 1936, s. p.
(56) Documento de 3 de Janeiro de 1759, A. A., I, 5, 1936, s. p.
Ver, por exemplo, documento de 1789, A. A., II, 10, 1936, p. 571.
488 489
facilmente: «entre os homens civilizados, que são poucos em número, nenhum se encontra ocupada pelas populações songas «para [que] os portugueses que se acham dispersos
que queira ir arriscar no sertão a sua vida a troco de lucros incertos e remotos» (63). e entrelaçados com o gentio, vivendo com eles, comendo mucanos uns aos outros, não
Trata-se, é evidente, de um dos grandes problemas provocados pela presença [sejam] vendidos e [possam] mudar de vida, a fim de ampararem suas famílias» (66).
portuguesa em Angola: há uma inversão, pois se o discurso insiste em conseguir o respeito Estes pequenos núcleos de portugueses, disseminados através da África central e
pelas regras, os homens exportados por Portugal parecem incapazes de as aceitar e ainda servindo mais tarde de apoio às teses clássicas do lusotropicalismo, suscitam a reprovação
menos de as reproduzir. A infracção tornou-se a norma, e os dois agentes específicos das contínua dos Portugueses que teimam em não se deixar arrastar pelos valores das
perturbações culturais são, por um lado, as mulheres e, por outro, as práticas comerciais
sociedades africanas.
que impelem os homens, acompanhados pelas suas mulheres africanas, a «fundir-se» no O antigo morador da cidade de Luanda, que é António Gil, permite-se até enunciar
sertão. Se já as regras sociais das cidades são obrigadas a desaparecer perante a pressão uma evidência, que já se tornara sensível nas páginas mais históricas de Elias Corrêa:
das exigências africanas, a situação torna-se ainda mais delicada quando os Portugueses a própria cidade, apesar de aí estarem instaladas autoridades civis e eclesiásticas, não
são forçados a penetrar no sertão, para procurar alcançar a independência económica que consegue furtar-se à pressão existencial africana: «é porém um facto presenciado por
a cidade é manifestamente incapaz de lhes assegurar. mim nos anos da minha residência em Luanda (...), que não vi preto convertido às ideias
A formalização algo teórica desta situação aparece no texto histórico de Elias Corrêa, e pensar dos brancos, mas vi convertidos muitos brancos às crenças e práticas dos
que lhe dá o nome de gentilismo ( 64), designando assim o mecanismo de substituição das pretos, principalmente as mulheres» (67).
regras europeias pelas dos Africanos ou estimadas como tal: o historiador brasileiro É pelo menos curioso que as mulheres sejam mais sensíveis às escolhas existenciais
denuncia «alguns libertinos, desertados da nossa comunhão e inclinados ao Gentilismo, têm e religiosas dos Africanos, sobretudo quando sabemos que não havia brancas vivendo com
estabelecido entre eles [os Africanos] a sua residência, ensopados em uma dissolução negros, ou instaladas nas suas aldeias, ao passo que os brancos, mesmo que casados com
abominável. Para declararem viva guerra à nossa Santa Religião começam por fazer uma mulheres brancas, possuíam muitas vezes concubinas pretas e filhos mulatos ( 68). Deve,
famosa recruta de negras concubinas em que consiste a sua glória» (65). no entanto, acreditar-se que, até aos anos finais do século XIX, um grande número de
Podemos todavia verificar que os dois vectores desta situação associam, constan- portugueses aceitou bastantes práticas religiosas mas, principalmente, medicinais africanas,
temente, o número excessivo de mulheres às práticas comerciais desonestas e passíveis dada a rareza ou a inexistência de médicos e de farmácias europeias.
de penas de prisão. Se as regras urbanas parecem ter sido capazes de impor uma O receio da «perversão», provocada pela longa coabitação com os Africanos, aparece
fisionomia ao consumo das mulheres africanas nas cidades, já a norma parece esvaziar- igualmente numa observação de Capello e Ivens que desejam reduzir a sua estada em
-se quando os Brancos abandonam as cidades, para se dissolver no sertão de que Kasanje, considerada demasiado inconveniente, porque o «seu pessoal» se perverteria (69).
ninguém conhece os contornos exactos. Este mecanismo da dissolução das normas Desta vez, o comentário não se dirige aos europeus, mas sim aos africanos que faziam
brancas parece começar muito cedo e parece manter-se activo até muito tarde: o momento parte da caravana, prestes a renunciar às regras que lhes tinham sido inculcadas pelos
em que o gentilismo foi substituído pelo conceito de cafrealização que resistiu até aos europeus que viviam no mato e, mais particularmente, nas feiras.
dias de hoje. O conceito de cafrealização vulgarizou-se em Moçambique, sendo utilizado para
Durante a primeira metade do século XIX, os autores aludem frequentemente a esta designar as situações em que os europeus se deixavam arrastar pelos valores africanos.
situação atípica, pois que os Europeus afiguram-se incapazes de resistir à «sedução» Um grande número de analistas portugueses ocupou-se desta questão, porque, como
negativa das práticas africanas. Rodrigues Graça, que se serve também da sua educação afirmava de maneira peremptória o alto-comissário da República em Moçambique,
brasileira, aconselha as autoridades portuguesas a mandarem criar uma feira na região dr. Brito Camacho (1923), era necessário ser prudente, pois que os Brancos degeneram
em África ( 70); degenerescência física, mas também cultural e social.

Documento de 1799, A. A., I, 1933, s. p. • Graça, 1890, p. 395.


Gentilismo equivale, na língua portuguesa, à cafrealização, ou seja, a adopção de comportamentos,
Gil, 1854, p. 10.
práticas e regras dos cafres, dos gentios, dos indígenas, em suma, dos Africanos. Os Portugueses criam De acordo com Lopes de Lima (quadro consagrado à população de Luanda) em 1846, época
o gentilismo a partir de gentil, palavra provinda da história religiosa do Mediterrâneo, e utilizada pelos durante a qual António Gil morava em Luanda, a proporção das mulheres brancas era de 100 para 1073
Judeus e pelos primeiros cristãos para designar os povos pagãos. Se a gentilidade serve para indicar homens. Havia em Luanda 135 mulheres brancas, as quais, se acreditarmos em António Gil, eram quase
os povos pagãos, o gentilismo não parece ter atingido os Franceses instalados em África, o que tornava
todas adeptas das religiões africanas!
a palavra inútil. A cafrealização foi criada a partir de cafre, palavra usada pelos Portugueses entre o
Capello e Ivens, 1881, I, p. 343.
século XV e o século XVI, do árabe kafir. Em francês, o substantivo adjectivante cafre só foi registado
(70) Camacho, 1923, p. 124. Brito Camacho, médico de formação, utiliza este termo no sentido
no século XVIII, importado da África austral, ignorando a quase totalidade dos dicionários a sua origem biológico que lhe fora imposto por Buffon, mas não consegue furtar-se à maneira como o conceito foi
portuguesa.
banalizado pela obra A degenerescência de Max Nordau, que conheceu um sucesso retumbante na
(65) Corrêa, 1937, I, pp. 94-95.
Europa, tornando-se uma referência cultural e clínica insubstituível.

490 491
Não podemos esquivar-nos a definir o campo deste tipo de relações e de juízos que
africanas e a respeitar as formas de ritualização das relações comerciais, senão mesmo
elas provocam, pois as ligações comerciais estão integradas num processo de dominação
de toda e qualquer relação, impostas pelos Africanos. Esta ritualização das relações não
cultural e, sobretudo, racial: o sertão é o lugar da selvajaria, o que quer dizer que a
é, para os Europeus, mais do que uma soma de contratempos, provocados pela
totalidade do espaço controlado de maneira exclusiva pelos Africanos ameaça, de modo
irracionalidade africana e provocando perdas enormes aos comerciantes brancos.
directo e constante, o projecto hegemónico dos Europeus. No xadrez tão complexo das
O inventário dos numerosos tipos de contratempos comerciais registados pelos
relações interétnicas, que deve medir o lugar a reconhecer ao Outro, a longuíssima
europeus nas relações com os africanos — comerciantes, autoridades políticas ou
duração desta maneira de excluir não pode tornar as relações mais flexíveis. O binómio
religiosas — permite-nos dar conta das profundas divergências no que respeita aos
comércio + mulheres, sempre que está completamente nas mãos dos Africanos, parece
aspectos essenciais do comércio. Propomo-nos, de resto, esboçar uma tipologia das
comprometer, de maneira definitiva, o equilíbrio das estruturas europeias, e confirmar
contrariedades, retendo os elementos significativos daquilo que os comerciantes europeus
o risco da africanização dos homens e das suas estruturas, tanto existenciais como
comerciais. consideram como sendo a prova da irracionalidade africana. Teríamos mais tendência
para dizer que a inquietação patológica provocada pela racionalização é recusada pelos
Africanos, em proveito de uma organização menos rígida do tempo social, permitindo
III. Os contratempos provocados pelo sistema africano e a sua incidência assim uma gestão mais flexível deste último.
nas práticas comerciais
A. O tempo
Os trópicos recuperaram gradualmente as quatro estações que regulam a organização
das estações europeias, e que caracterizam, por consequência, o imaginário europeu. Os juízos feitos sobre o tempo dos Africanos limitam-se a reforçar, quando não a
Pouco a pouco a divisão em duas estações, a das chuvas e a do tempo seco, deu lugar agravar, o choque entre os dois blocos culturais: a sociedade que pretende que o tempo
ao aparecimento das duas estações que faltavam para permitir a total coincidência dos seja principalmente utilizado para servir a produção, e só ela, opõe-se aos grupos que
sistemas. Trata-se, para os Europeus instalados nos trópicos, de reduzir ou até de desejam que o homem consagre o tempo à festa e ao prazer, reduzindo ao mínimo
eliminar o primeiro contratempo, aquele que impede os sistemas sazonais de funcionarem, indispensável o tempo dedicado à produção. No primeiro caso, o tempo não pode deixar
obedecendo ao mesmo ritmo. Pode ser que o Inverno seja demasiado quente, mas a de ser controlado de maneira estrita, sendo o rigor refinado pelo recurso às máquinas;
existência da estação permite impor uma certa homologia entre o país, o território, ou no segundo caso, o tempo não começa por ser realmente contado, senão quando está
a cidade e as normas sazonais europeias. ao serviço das actividades lúdicas.
Este contratempo está em via de perder a sua importância determinante, à medida Os Europeus estão quase sempre desfasados relativamente à maneira como as
que as regras urbanas se impõem ao campo, mas outros parecem mais difíceis de sociedades africanas contabilizam o tempo. Desde os primeiros contactos na costa
eliminar. Pretendemos considerar aqui os contratempos experimentados pelos Europeus ocidental, esta questão torna-se um dos eixos das disjunções que caracterizam as relações
nas relações comerciais com os Africanos, agravados pela generalização do tempo entre os dois grupos. O tempo dos Africanos não se dobra às regras que os Europeus
mecânico que substitui, de maneira cada vez mais ampla, o tempo natural, tornando querem impor, não só para assegurar uma simetria entre os dois grupos, mas sobretudo
possível a racionalização exigida pelas formas modernas de gerir o comércio. para dispor de meios para melhor manter o domínio sobre os Africanos.
O comércio europeu em África não pode deixar de respeitar o ritmo das operações O sentimento europeu não pode ser mais claro: os Africanos não sabem contar nem
de importação e de exportação. Mesmo que o tempo comercial esteja longe de respeitar controlar o tempo: «o tempo parece não valer nada (...) e é considerado como um espaço
a contabilidade rígida imposta pela cidade e a ideia de lucro associada ao tempo, é indo do berço ao túmulo, metodicamente dividido em distracção monótona e indolente
contudo necessário que os prazos para levar a termo as operações' sejam relativamente da manhã à noite, e deve ser dispensado com a maior fleugma possível. A fórmula que
observados. A dificuldade europeia provém do facto de o controlo do comércio costeiro quer que o tempo seja dinheiro provocaria entre os africanos, se tivessem podido
de exportação, associado aos fluxos de importação e exportação, não conseguir inverter compreendê-la, a mais extraordinária surpresa» (71).
a evidência: as mercadorias exportadas são totalmente produzidas pelos Africanos, tal Os viajantes portugueses limitam-se a traduzir a irritação que acumulam há muito
como os transportes só podem ser assegurados pelo mesmo grupo. tempo; quando querem acelerar as coisas, os Africanos não modificam o seu ritmo. A
As autoridades europeias bem gostariam de impor as suas regras aos Africanos: disjunção dos tempos aparece então como sobrecarregada de ameaças: incapazes de
as comunicações linguísticas devem recorrer às línguas africanas, o que obriga os
Europeus a recrutarem intérpretes, situação que compromete a independência dos seus
negociadores. Quer dizer que os comerciantes brancos são obrigados a aceitar as regras
(71) Capello e Ivens, 1886, I, p. 166.
492
493
conhecer e de medir o tempo, os Africanos não teriam, nesta visão europeia, saído ainda nascimento, uma árvore que receberá entalhes «lunares», destinados a registar os meses
da Natureza, porque controlar o tempo permite conhecer a Natureza e construir a lunares. A idade de cada indivíduo seria então fácil de determinar: dividia-se simplesmente
história. De resto, não pode haver história sem tempo, sem cronologias. o número de entalhes por doze ( 74). O cálculo fantasista do viajante francês tinha como
Os viajantes dão conta, por vezes de maneira muito irónica, das contingências resultado a morte precoce de muitos varões angolanos, que só raras vezes ultrapassavam
dos tempos africanos, como se verifica no caso de Brandt Pontes, de Lacerda e os trinta e cinco anos. Afirmação que contrasta com as informações de outros viajantes
Almeida, de Rodrigues Graça e de Silva Porto. Igualmente atento às condições de europeus, entre os quais Rodrigues Graça, Rodrigues Neves e L. Magyar: os dois primeiros
verificação do tempo e do funcionamento da sociedade está L. Magyar, de quem encontram chefes de terra que ultrapassam largamente os sessenta anos, e o terceiro refere
retemos a lição ( 72): «os Africanos dividem o tempo em dias, meses e anos, mas
que os centenários eram ainda capazes de produzir a sua alimentação (75).
não conhecem a divisão dos meses em semanas, nem a dos dias em horas. As diferentes Os viajantes europeus retêm, acima de tudo, aquilo que consideram ser a incapacidade
partes do dia são identificadas pela altura do sol» (73). africana de racionalizar o tempo. Os Africanos nunca estão apressados e, de resto, nada
As designações dadas aos dias mantêm uma relação com o dia de hoje: hoje, conseguiria arrancá-los à sua «ociosidade inveterada» ( 76). Os comerciantes queixam-se
amanhã, depois de amanhã, ontem, anteontem. A questão de um duplo calendário está das dificuldades experimentadas para pôr uma caravana em marcha. Quando esta se via
assim enunciada, dado que os comerciantes devem ter a certeza de poder respeitar os obrigada a ficar acampada durante um mês no mesmo lugar «nada pode arrancá-lo
acordos estabelecidos, seja com os Africanos seja com os Europeus. Mas estas indicações [o Africano] às delícias do ócio inveterado» ( 77). Há uma estratégia que se manifesta
querem dizer que os comerciantes — entre os quais se conta Magyar, neste caso entre os carregadores para procurarem furtar-se à violência da viagem: «que má disposição,
particular — são forçados a renunciar ao tempo europeu para ser literalmente devorados que vagar, que morosidade, que relutância mostram todos no momento de abalar (...).
pelo tempo africano, que não conhece calendários. A função dos diários destina-se, além Alguns, mais mandriões e ladinos, sentam-se, de cachimbo ao canto da boca (...) olhando
do mais, a manter o comerciante ou o viajante europeu no seu espaço temporal, pois,
de soslaio e fingindo não ouvir as ordens...» (78).
de outra maneira, seria obrigado a renunciar ao tempo europeu, o único verdadeiramente
Quer dizer que não há momento em que os dois sistemas não sejam levados a
significativo. Ora, todos os «roteiros» ou «diários» salientam que os valores associados
revelar a força das disjunções, que os comerciantes europeus procuram contrariar, sem
ao tempo são essenciais para assegurar a autonomia do grupo: conservar o tempo do
contudo o conseguir. A importância destas observações é confirmada em outros momentos:
seu grupo aparece, assim, como uma operação de salubridade cultural, quando não
física. a maior parte dos comerciantes, que, nos anos finais da década 1840-1850, circula com
caravanas nestas regiões, são africanos pretos ou mulatos, educados no respeito das
De resto, os Angolanos organizam os seus «calendários» baseados no mês lunar, e
regras do tempo africano. Parece, pois, que sob a pressão das normas europeias,
doze meses lunares formam o ano africano, partilhado em duas estações: a seca ou fria,
que vai de Maio a Outubro; a das chuvas ou quente, que vai de Novembro a Abril. Os assistimos lentamente à mudança das concepções do tempo comercial, o que terá
consequências no funcionamento da sociedade, obrigando os Africanos a aproximarem-
anos são designados, levando em conta um acontecimento que mereça ser notado: «ano da
-se, cada vez mais, das regras introduzidas pelo comércio europeu.
grande fome» ou «ano da nuvem de gafanhotos». A idade das pessoas é contada conforme
Os observadores europeus salientam também a facilidade com que os Africanos,
a aparência, a partir dos sete anos, ou seja, a partir do momento em que rapazes e raparigas
que se orientam para as actividades comerciais, podem abandonar a sua família e a sua
começam a ser treinados para enfrentar a circuncisão ou a menstruação.
aldeia, para percorrer o sertão. O exemplo de que dispomos é o dos originários do Bié,
Esta aparente dificuldade em controlar e em contabilizar o tempo levou o viajante mas semelhante comportamento pode ser alargado a todos os grupos: um homem pega
francês Douville a propor uma solução: os Africanos escolheriam imediatamente, após o numa carga de trinta quilogramas de mercadorias, penetra no sertão e só volta a casa
2, 3 ou 4 anos mais tarde. É recebido com a naturalidade consagrada àquele que
regressa depois de uma viagem de três dias (79).
Pontes (1800), ira Felner, 1940, I, p. 250; Almeida (1798), s. d., p. 69; Porto, 1942, pp. 212-216, Estamos perante uma grande disponibilidade moral e física, da qual não nos parece
descrevem o calendário lunar das populações do Bié, enumerando os rituais e as actividades específicas que o autor retenha o traço principal: é por via do comércio que o homem parece
de cada mês. Magyar, 1973, VIII, pp. 10-11, revela-se excelente observador e fornece várias informações adquirir uma autonomia em relação à família e à aldeia. Autonomia relativa, mau
respeitantes à contagem do tempo, aos meses, aos nomes dos dias, observando simultaneamente que os
Africanos têm o hábito de designar os anos transactos, retendo um acontecimento ou um fenómeno notável,
que teve lugar nesse momento. Há ainda pouco tempo que o mundo rural português e os mundos rurais Douville, 1831a, p. 202.
europeus agiam assim. Magyar acrescenta que os Africanos não contam a idade dos homens em anos, mas Graça, 1980, e Neves, 1854, assinalam-no em várias ocasiões.
sim «considerando as fases da vida humana», o que parece referir-se ao sistema das classes de idade. Capello e Ivens, 1886, II, p. 256.
Também Henrique de Carvalho, 1890, p. 176, se ocupa do problema do tempo nas sociedades africanas. Id., 1881, I, p. 64.
Magyar, 1973, VIII, p. 11. O que permite identificar «de manhã cedo», de «manhã antes do Id., ibid., pp. 69-70.
meio-dia», «meio-dia», «tarde», «crepúsculo», quer dizer o começo da noite, e «noite cerrada». Pinto, 1881, I, p. 137.
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grado tudo, pois, mesmo passado muito tempo, o homem retorna à aldeia e à família lembra que os Imbangalas — podendo esta prática ser alargada a quase todos os grupos
ou ao clã.
angolanos — recusam as baixas de preços praticadas pelos comerciantes, que dependem
Esta situação não pode deixar de sugerir estratégias, mas nenhum autor, mesmo dos mercados internacionais e das flutuações das cotações. Se uma caravana chega a
os mais ligados à estruturas africanas, nos fornece uma maneira de apreciar plenamente
um armazém que decide aplicar os preços impostos pela modificação da conjuntura
estes comportamentos. Seja como for, o que surpreende a lógica do autor é a aparente
internacional, os comerciantes africanos recusam esta proposta, preferindo regressar a
ausência de qualquer afectividade, em relação à ou às mulheres e aos filhos. Na
casa com as mesmas cargas, em viagens que podem durar dez a quinze dias (84).
óptica dos Europeus, o mais importante reside nesta extraordinária banalização do
Conservam as mercadorias, esperando que os preços voltem a subir no mercado. Por
comércio, parecendo os Africanos completamente disponíveis para se lançarem numa
vezes, sofreram muitas e desagradáveis surpresas, quando — como aconteceu nos
aventura comercial em qualquer momento, sem considerarem sequer as relações
familiares. começos deste século XX — os preços da borracha desceram para não mais regressar
aos valores antigos (85).
Podemos também proceder à associação dos dois tipos de contratempos observados
pelos autores portugueses. O primeiro é polftico, mas certamente indissociável da estrutura A recusa do sistema comercial europeu, que depende das variações dos mercados
ritual: um documento de 1839 dá conta da decisão tomada pelos macotas de Kasanje internacionais, europeus ou americanos, torna-se assim evidente: a disjunção aparece
de suspender toda e qualquer actividade comercial, devido à morte do Jaga. ainda mais aguda, mais conflituosa, dado que os Africanos recusam estas variações
De acordo com as suas regras, só passados dois anos se podiam remeter os escravos de preços que intervêm sempre contra os seus interesses. Para melhor assinalar a
devidos a Luanda, de modo a satisfazer «os seus pátrios ritos», segundo os quais o novo importância da disjunção, no caso de ser portador de um ou mais dentes de elefante,
Jaga devia primeiro submeter-se às regras políticas imbangalas de aceitação do novo «também não os vende, mesmo se lhe for oferecido um preço ligeiramente superior
rei e de submissão dos seus súbditos (80). ao da norma». É que, apesar dos esforços feitos pelos Africanos para se adaptarem
Estamos perante a crise ritualizada do interregno, que em certos reinos — como às condições específicas do grande comércio internacional em via de se tornar
acontece no Bié, descrita por Magyar — pode alcançar uma ferocidade muito grande hegemónico, os Africanos só muito tarde conseguem compreender inteiramente o
durante um período naturalmente curto (81). O contratempo é, neste caso, interno à sistema. De resto, esta compreensão será, no essencial, a conquista teórica dos militantes
própria estrutura do poder, estando a desregularização perfeitamente prevista e nativistas do primeiro quartel do século XX (86).
organizada. L. Magyar põe em evidência o perigo de qualquer viagem: aqueles que
não querem ser vítimas deste tipo de situações, ou dispõem da força necessária para B. Os excessos da palavra
se defender ou procuram tornar-se invisíveis. Tal posição permite-nos medir a
gravidade da disjunção, dado sabermos que os «ritos» das populações africanas estão Um dos aspectos mais marcantes de qualquer organização social é o da produção
ligados à decomposição do poder antigo — Rodrigues Neves salienta o facto de os e controlo da palavra. Num certo número de sociedades, como mostrou Pierre Clastre,
conselheiros do velho jaga perderem as suas funções (82) — substituído por uma entre outros, o chefe é aquele que «fala bem» e esta «bela palavra» legitima a função
estrutura completamente nova (83). de chefe ou até o poder (87). Não é esse o caso em muitas sociedades africanas, onde
Nestas circunstâncias, como impedir que funcione a armadilha do contratempo? o rei nunca fala em público, receando ser vítima do acto feiticeiro que aproveitaria o
Mas há ainda outras armadilhas, entre as quais uma que nos permite dar conta da momento em que o chefe está com a boca aberta para aí fazer penetrar o «agente
dificuldade experimentada pelos Africanos na compreensão do sistema comercial feiticeiro» (88).
regulamentado pelos mercados exteriores. Nos finais do século XIX, Henrique de Carvalho

Documento de 1839, AHU, CGA, 1840, cx. 1590.


Relativamente a este facto, há referências disseminadas. Veja-se, por exemplo, Pinto, 1881,
Magyar, 1973, descreve com bastante rigor esta crise das populações do Bié: «a palavra lunguta
I, p. 138, e Porto, 1885, p. 320.
significa qualquer coisa como a utilização livre das armas, e dura nove dias a partir do enterro do
Ver cap. II, quadro consagrado à exportação de borracha.
soberano. Durante este período reina em todo o país a máxima desordem: as regras sociais, já frágeis
Ver Margarido, 1986, prefácio.
por si próprias, desaparecem de todo, dando lugar à pior anarquia, desaparecendo completamente a
Clastre, Pierre, «Archéologie de la violence: la guerre et les sociétés primitives», Libre, 77-1,
segurança das pessoas e dos bens, podendo o forte atacar impunemente o fraco. A sede de vingança,
Payot, Paris, 1977. Tradução portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1980, p. 31.
reprimida durante muito tempo, retoma o seu curso sem o menor obstáculo e deixa vestígios sangrentos.
Neste período, é impossível viajar sem uma numerosa armada» (VIII, p. 19, nota 25). (88) Carvalho, 1892, II, pp. 758-759. A realeza divina impõe a reclusão do rei, que deve ser
Neves, 1854, pp. 108-111. colocado fora das relações normais com os vivos. O rei lunda age neste quadro ritual e um desenho de
Ver Gluckman, Custom and Conflit in Africa, Manchester, 1945. Carvalho — certamente realizado a partir de uma fotografia — mostra o rei isolado por um biombo de
tecido, estendendo o braço para receber o vinho de palma que está em via de beber.
496
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Mas se o chefe político não fala, há sempre alguém responsável pela palavra ritual atribuem grande importância a estas coisas, é raro encontrar uma meia dúzia que
que deve ser transmitida ao Outro, sobretudo ao estrangeiro europeu. Entre as populações concorde entre eles. A maneira como medem as distâncias e a facilidade com a qual
que estamos aqui a considerar, o ritual exige que aquele que visita o chefe dê o maesu,
se contradizem, diz ainda o autor, não são garantias para que os Europeus possam tomar
quer dizer, seja o primeiro a falar. O convidado deve pois ser o primeiro a falar e este
decisões. Segundo ele, para ir de um lugar para outro, afirmam os Africanos, «é preciso
cerimonial é tanto mais apreciado quanto mais longa for a intervenção oral, sem que
que o sol apareça um certo número de vezes. Trata-se de uma maneira assaz vaga para
a duração provoque a produção de uma palavra vazia; esta deve ser sempre portadora
defenir uma distância, e o erro será tanto maior quanto for a distância» (90).
de informações, mesmo mantendo-se fiel ao ritual. O viajante que chega a uma aldeia
deve dirigir-se ao jango, a cubata onde se instalam os homens, para lhes comunicar tudo A condenação é radical, pondo em causa a soma dos valores africanos: a sua
palavra só carrega engano, não por simples desonestidade, mas por insuficiência
o que viu e ouviu pelo caminho. Isto é exigido pelas regras de civilidade, o génio do
viajante deve fazer o resto. intelectual. Se a palavra ritual é simplesmente inchada, excessiva, esvaziada de qualquer
sentido prático, o seu desfalecimento torna-se mais grave, quando se trata de informações
Estas normas africanas não podiam deixar de provocar mais uma disjunção
relativas ao conhecimento: a palavra dissolve o mundo numa rede complexa de
significativa, pois que os Europeus não concebem as relações com a palavra da mesma
imprecisões, incertezas, tornando impossível toda e qualquer coerência. Nestas condições,
maneira. A anedota é conhecida em Angola, e data provavelmente deste período, quando
para os Europeus, a palavra africana deve ser recusada: só a palavra lógica e científica
as autoridades portuguesas tinham de recorrer aos serviços de intérpretes para traduzir
dos Europeus poderá devolver o sentido ao continente africano.
o que podia interessar à gestão administrativa ou à aplicação da justiça. Um africano
fala demoradamente, sem que o intérprete intervenha para traduzir seja o que for.
Irritada, a autoridade branca interpela o intérprete, que explica: «até agora ele não disse
C. Os contratempos provocados pelo parentesco
nada, chefe, limitou-se a falar». A anedota faz parte da tradição oral branca, que
conserva e transmite as formas estereotipadas, utilizadas para negar os feitos e os gestos
do Outro. Uma das surpresas mais importantes dos comerciantes europeus provém da prática
africana de querer que a linhagem, o clã, o parentesco e a aldeia sejam responsáveis
O desfasamento entre os dois sistemas não pode ser mais evidente, pois que as
pelas infracções, pelos delitos ou até pelos crimes cometidos por um dos membros do
formas de ritualização do recurso à palavra não coincidem de maneira alguma. A
grupo, seja qual for a sua idade e o seu sexo. Os agentes comerciais europeus têm o
palavra protocolar e diplomática dos agentes africanos é assim esvaziada de sentido,
hábito de agir de maneira autónoma, extremamente individualizada, sendo responsáveis
e a situação só pode perturbar aqueles que detêm o controlo e o conhecimento da palavra
tanto pelos seus actos como pelas suas mercadorias. Arriscam o seu património e as
ritual. Mas já no século XIX, L. Magyar observara que «os negros contam tudo com
suas vidas, mas não a dos habitantes das suas aldeias ou cidades, ou dos membros das
grande número de pormenores perdendo-se em circunstâncias insignificantes e em temas
secundários» ( 89). Por esta razão, o oficial húngaro propôs-se reproduzir, de maneira suas famílias.
Quando os dois pombeiros enviados por Honorato José da Costa chegaram, em
resumida, o conteúdo de uma longa descrição africana respeitante aos roubos feitos às
1802, à aldeia do chefe Bomba, foram retidos por ele, e considerados responsáveis pelos
caravanas comerciais. A passagem de um sistema protocolar africano a igual sistema
abusos de confiança cometidos por um comerciante de Kasanje, cuja identidade não foi
europeu implica uma reorganização do texto, de maneira a torná-lo coerente em relação
aos códigos europeus. revelada ou não foi retida pela escrita de Pedro João Baptista. Tendo abusado do crédito,
que lhe fora consentido pelo chefe da aldeia, este homem tinha dado origem a uma
Convém insistir num ponto: a disjunção não provém unicamente do desconhe-
situação polémica, que tornava os pombeiros responsáveis de um acto cometido por um
cimento ou do mau conhecimento das línguas africanas por parte das autoridades
comerciante de que eles não tinham sequer conhecimento. Trata-se de um contratempo
europeias. Ela é mais o resultado da falsa coincidência dos sistemas de valor. A palavra
bastante grave, que conta entre os mais imprevisíveis, obrigando os comerciantes a
ritualista e ritualizada dos Africanos perde a sua função perante asautoridades europeias,
manterem-se informados dos menores movimentos dos seus congéneres.
que só pedem informações secas, rejeitando tudo o que não cabe neste domínio estritamente
Com efeito, os dois pombeiros ficaram detidos na aldeia do chefe Bomba durante mais
pragmático. De resto, tudo aquilo que é comunicado pelos Africanos deve ser analisado
de dois anos, impossibilitados de estabelecer contacto com o seu proprietário, o único que
com atenção. Em 1862, um autor anónimo considera que as informações fornecidas
dispunha dos meios e da autoridade indispensáveis para conseguir libertá-los. Durante este
pelos Africanos, tanto sobre o curso dos rios como sobre a instalação de qualquer aldeia,
período, o tempo do comércio encontrou-se de certa maneira bloqueado.
merecem sempre muito pouco crédito, pois, por falta de inteligência ou porque não

(89) Magyar, 1973, III, p. 12.


(90) Quarenta e cinco dias em Angola, 1862, p. 5.
498
499
Os Africanos não consideram o comerciante como uma pessoa independente; impõem-
-lhe, por isso, uma família, que não coincide com as práticas europeias, tanto mais que Todavia, estas interpelações africanas podem forçar à suspensão da viagem. A
um africano, quando adulto e comerciante, deve ser casado. A disjunção é enorme e caravana não é uma vítima tão desarmada como o foram os dois pombeiros. Muito mais
assinala a importância do abismo existente entre os dois grupos (91). numerosa, ela dispunha dos meios de travar o mecanismo desencadeado pelo chefe, que
Uma referência do texto de L. Magyar confirma estas informações. Durante a sua só desejava proceder a uma fiscalização importante sobre as mercadorias transportadas.
expedição à corte lunda, é obrigado a parar, porque uma carta confiada ao seu kissongo Silva Porto consagrou um Memorial de Mucanos (mucano significa o conflito e
por um delegado do chefe Kindandschi afirma que: «há cerca de três anos, vários filhos a multa) ao inventário destes conflitos, o primeiro dos quais se verifica em 13 de Agosto
meus, que transportavam mercadorias europeias, fizeram uma viagem em companhia de 1841. O texto manteve-se inédito, como de resto um número importante de manuscritos
de uma caravana do Bié para o território dos Ganguelas, para aí obterem marfim em de Silva Porto: o comerciante português concentra em 74 páginas a análise pormenorizada
troca das mercadorias; até este momento nenhum regressou, o que me leva a concluir dos mucanos que foi obrigado a satisfazer face aos chefes africanos (95). O parentesco
que foram certamente assassinados pelos habitantes do Bié que também lhes roubaram intervém constantemente nestes «processos».
as mercadorias» (92). Em 1844, um chefe ganguela cerca o kilombo do comerciante português, para o
Para que a caravana possa continuar o seu caminho, os responsáveis devem pagar obrigar a pagar uma «multa» ou uma «indemnização» bastante importante: nada menos
o sangue derramado, assim como as mercadorias desaparecidas. O chefe Kindandschi que seis dentes de elefante, sendo 2 grandes e 4 médios. Silva Porto denuncia este
comunica também que se o seu pedido for rejeitado, multiplicará por dez as suas «abuso», mas não dispõe dos meios para impedir esta operação africana, destinada a
exigências, já importantes (93). castigar o crime cometido por terceira pessoa, de que o comerciante português não
A caravana protesta com vigor, denunciando a mentira e a invenção do roubo, mas fornece a identidade (96), mas que se presume conhecida neste circuito do comércio. O
o mais importante reside na técnica africana utilizada por Magyar para desmontar o «parentesco branco», ou melhor, o «parentesco entre comerciantes brancos ou assimilados»
mecanismo das exigências. Estas negociações foram confiadas por Magyar a Murssa, adquire toda a importância, tanto mais que os chefes africanos revelam uma grande
que já tinha comandado esta caravana e acompanhava o comerciante húngaro. capacidade de adaptação às regras comerciais europeias: o chefe não se satisfaz com
O antigo chefe de caravana, após ter pedido que fosse precisado o número de homens fazendas ou missangas; exige e obtém a mercadoria preferencial da época, o marfim
desaparecidos (oito), quis também saber a quem tinham sido confiados juntamente com a tão procurado nos mercados costeiros que controlam as exportações.
mpemba, o que parecia ser ignorado pela delegação encarregada de exigir o pagamento da Quer dizer que o elemento mais importante está associado ao parentesco, esta
compensação financeira, ou da multa, se assim se preferir. Mais curioso ainda: esta estrutura dura do afrontamento entre os dois grupos, dada a ausência total de simetria
delegação não podia mostrar o pedaço de tecido embebido no sangue do animal sacrificado entre eles, mesmo quando os brancos se casam com as africanas. Já pudemos evocar
(bikasse). Nestas condições, o chefe Murssa acaba por concluir estar-se perante uma esta situação: os filhos mestiços são educados sem os seus parentes brancos, exceptuando
aldrabice, tanto mais que nada fora feito pelo chefe de terra para se informar a respeito da o pai e, por isso, inteiramente confiados aos parentes maternos africanos. Podemos
situação real dos homens que ele teria enviado às terras dos Ganguelas (94). assim dar-nos conta da importância psicológica, mas sobretudo comercial, desta situação,
Este demorado processo mostra que os comerciantes africanos dispõem de várias que os Europeus nunca conseguem controlar de maneira satisfatória. A falsa «unidade
técnicas capazes de pôr em evidência os abusos cometidos pelos chefes africanos. A situação comercial» branca só será finalmente dissolvida no fim do século XIX, sob a pressão
revela a existência de maneiras de fazer interafricanas, praticamente inacessíveis aos do crescimento da população branca urbana.
Europeus, cujas práticas judiciárias não funcionam nas relações com as sociedades
africanas. D. As relações comerciais e a «feitiçaria»

Sabe-se que as estruturas africanas não podem funcionar de maneira satisfatória,


Devemos reter que os pretos calçados ou os mestiços são considerados brancos pelos Africanos senão quando asseguram um contacto constante entre as forças religiosas que mantêm o
e, por isso, integrados neste bloco uniforme ao qual já fizemos referência. É o caso dos dois pombeiros: laço entre os vivos e aqueles que já o não são. É voluntariamente que evitamos falar dos
Baptista era mestiço e Anastácio Francisco provavelmente negro, embora nada seja dito a esse respeito. «mortos», dado que muito frequentemente, no que se refere aos Africanos, os «mortos»
Todavia, a reacção do governador português de Tete, que só manda sentar Baptista, permite pensar que não dependem das nossas categorias nosológicas. Os homens obrigados a sairem do
a autoridade portuguesa respeitava mais o mestiço do que o preto.
espaço ocupado pelos seus espíritos, quer dizer, dos espíritos dos seus antepassados,
Magyar, 1973, III, pp. 24-25.
O chefe exigia: 20 kupa ou fardos de tecidos (500 peças de diferentes tecidos de algodão);
10 pequenos barris de aguardente; 10 pequenos barris de pólvora (200 libras portuguesas, sendo a libra
igual a 453,6 g.); 10 espingardas; 2 resmas de papel; 500 pederneiras.
Magyar, 1973, III, pp. 25-27. Ver Santos, 1986, pp. 391-400.
Porto, Memorial de Mucanos, p. 3.
500
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são forçados a entrar em relação com espíritos desconhecidos, geridos por outros Esta multiplicação dos monumentos religiosos deve ser interpretada da maneira
grupos. É para obter uma protecção constante e eficaz que, antes da partida, eles mais convencional, dado que ela condiciona o percurso das caravanas ou dos comer-
prestam uma homenagem muito ritualizada aos seus antepassados. Estas cerimônias ciantes que, em princípio, são obrigados a respeitar estes sinais dos espíritos. Os via-
permitem dar aos impetrantes uma carapaça religiosa capaz de se opor a qualquer jantes devem, por essa razão, manter-se continuamente muito atentos, dado que o
operação de feitiçaria organizada pelos grupos com que os homens das caravanas são homem não pode esquivar-se ao controlo exercido por estas forças, cujo olhar do além
obrigados a estabelecer relações. é completado pelo dos crentes, que querem estar certos de que ninguém poderá desencadear
É também por isso que os homens que devem integrar uma caravana são obrigados a ira, sempre perigosa, dos espíritos.
a mostrar-se muito atentos ao menor sinal fornecido pela natureza e, mais particular- Toda e qualquer operação comercial obriga os membros da caravana a renunciarem,
mente, pelas serpentes: a intervenção destes animais opera-se de duas maneiras que têm mesmo que provisoriamente, ao conforto dos hábitos. Contudo, o comércio implica um
tendência a convergir: o sonho e a prática. Silva Porto dá conta da importância das perigo complementar que se encontra instalado mesmo no centro de qualquer actividade
serpentes que forçam alguns futuros membros da caravana a ficar em casa, já que o susceptível de produzir lucros. Este perigo reside na acumulação, que deve ser
aparecimento inesperado de uma serpente deve ser entendido como um aviso dos perigos cuidadosamente controlada. O lucro torna-se, assim, praticamente impossível, porque
que ameaçam os homens, caso estes decidam manter a sua partida. É contudo António aquele que acumula deve fazê-lo de maneira a partilhar ou consumir em companhia dos
de Assis Júnior que nos fornece o melhor catálogo do interesse das serpentes no universo outros este excesso de bens, pois não o fazendo pode ser acusado de feitiçaria. Se no
comercial. O seu testemunho é bastante recente, mas remete para simbolismos e práticas fim das diferentes operações comerciais, se regista um qualquer lucro, tal é devido aos
rituais que se mantiveram constantes durante muito tempo. espíritos e não à habilidade dos homens. Foi necessário modificar os juízos consagrados
Estas informações parece terem escapado à maioria dos etnólogos, mas interessam ao lucro, para que os comerciantes pudessem começar a proceder às acumulações
ao historiador, na medida em que permitem dar conta dos comportamentos e, por indispensáveis à continuação da sua actividade.
consequência, das escolhas sociais e comerciais. Assis Júnior assinala, na ficção de um É de resto essa uma das nossas dificuldades: até onde pode ir o lucro solicitado
diálogo, que «efectivamente, senhora, a aparição de uma cobra é sempre sinal de aos espíritos, tanto mais que a acumulação pode ser considerada excessiva e o resultado
qualquer má nova» ( 97). Ou dito por outras palavras: esta situação exige sempre que de uma conjunção com os espíritos feiticeiros? A sociedade dispõe apenas de um meio
se descodifiquem as condições do seu aparecimento, o que só pode ser feito por um para restabelecer o equilíbrio: a liquidação ritualizada do excesso, já assinalada no reino
especialista. Assis Júnior acrescenta algumas páginas adiante uma explicação de Quiteve por Frei João dos Santos ( 101 ). Mas tal quer dizer que o comerciante deve
complementar: «não se trata aqui de cobras, porque de facto a cobra já não existe; mas submeter à análise todos os elementos que participam nas operações comerciais, para
sim da alma no defunto, por quem choramos o óbito...» (98). manter uma relação satisfatória com o além, isto é, com os vivos.
Apenas podemos citar a rede visível, para podermos pôr claramente em evidência As sociedades africanas parecem pois dispor de um leque bastante vasto de
os sinais religiosos. Porque estes sinais multiplicam-se por toda a parte, envolvendo o mecanismos institucionais, suficientemente eficazes para evitarem que os comerciantes
mundo dos vivos na rede apertada dos não-vivos. Henrique de Carvalho, sempre atento, se deixem arrastar por operações perigosas ou simplesmente ameaçadoras. O lucro é
dá conta de um monumento elevado junto do rio Luvale. Bom desenhador, Carvalho possível, sendo até desejável, desde que não perturbe, devido ao seu excesso, as relações
teve tempo de esboçar, no seu caderno de viagem, um homem, aparentemente um chefe normais entre os diferentes grupos sociais.
imbangala, montado num boi-cavalo, ao qual todos os viajantes, particularmente os É neste ponto que podemos sentir a dificuldade com que se debatem as economias
Lundas, prestavam homenagem. africanas para conseguirem chegar ao capitalismo. Estas operações económicas são
Nesta operação, eram respeitadas as regras tradicionais: os viajantes «batiam na terra constantemente travadas pelo peso do religioso, o qual se encontra em toda a parte,
com o pé direito, esfregavam as mãos com terra e lançavam sobre a sepultura ramos controlando os homens e convidando-os a moderar o seu apetite de lucro, fonte de
colhidos nos arbustos que estavam perto [do túmulo]» ( 99). Ao•lado deste monumento acumulações perigosas. Uma parte importante dos conflitos modernos em África parece
apareciam alguns outros bens associados à circulação dos escravos — fitas de tecidos, articular-se em torno desta questão central, que voltaremos a considerar na última parte
i
missangas, assim como correntes de madeira e de ferro, para os pés e para as mãos — deste trabalho.
aí colocados por aqueles que praticavam este comércio nas terras do interior (mo).

Assis Júnior, 1979, p. 127.


Id., ibid., p. 133.
Carvalho, 1893, III, p. 56. Ver o desenho do monumento na p. 560.
Id., ibid.
(101) Santos (1609), 1891, vol. I, p. 30.
502 503
IV. As modalidades da mudança Encontramos esta maneira de agir no caso dos Imbangalas, que alugam os serviços
dos Songos (103), mas primeiro foi entre os Ovimbundos — mais cedo integrados no
Os Portugueses conseguem, mau grado as situações conflituais, obter frequente- espaço português — que esta prática se afirmou, em particular nas relações entre
mente a colaboração dos Africanos. É evidente que esta afirmação é uma verdade de Bailundos e Bienos, os primeiros que alugaram os seus serviços na região da costa entre
La Palisse, mas não podemos deixar de pôr em destaque esta situação algo paradoxal, Benguela e Bié, não se deslocando «para as terras de leste» (1oa).
dado que os conflitos se manifestam durante séculos, sem contudo conseguirem esterilizar Isto pode querer dizer que a relação entre a costa e as terras do interior aparece
os circuitos e os fluxos comerciais (102). como muito problemática ou até ameaçadora. A especialização socioprofissional
Devem no entanto reter-se alguns fracassos portugueses, cuja importância é manifesta, salienta a importância da divisão étnica e geográfica das tarefas.
mesmo que tenham sido frequentemente conservados sem registo escrito. Vários grupos, Serpa Pinto consagra algumas páginas à maneira como as populações do Bié se
entre os quais os Ovimbundos, no Centro-Sul angolano, os Imbangalas primeiro e os integraram na estrutura das caravanas, salientando que todas elas recorriam a um
Quiocos depois, nas regiões do Centro-Norte, são grupos cuja intervenção na organização grande número de crianças que, carregando cargas proporcionais às suas forças,
dos circuitos comerciais se revelou fundamental. Os Imbangalas, instalados entre a acompanhavam os seus pais ou os seus parentes nas viagens a longa distância. Era
cidade e a Feira de Kasanje, recusaram durante muito tempo deslocar-se até à costa para corrente encontrar homens de vinte e cinco anos que já tinham estado em Mwatyanvua,
aí trazer mercadorias, fosse qual fosse a sua qualidade. Mais tarde, os Quiocos adoptaram Niangué, Luapula, Zambeze e no Mucusso, pois tinham começado a viajar por volta
um procedimento bastante simétrico, obrigando os comerciantes europeus ou os homens dos nove anos de idade (105).
a estes associados a penetrarem profundamente no sertão. As informações complementares dos viajantes portugueses permitem esclarecer a
Tal comportamento impediu as soluções sonhadas por alguns governadores forma como as populações procuram trabalho como carregadores, sob a direcção dos
portugueses, que desejavam obrigar os fornecedores africanos a trazerem as suas merca- chefes: estes recebem o nome de quissongos, da costa até Caquinge, e de pombeiros,
dorias aos mercados da costa. Esta situação obriga os Portugueses a organizarem no Bié e nas terras dos Bailundos (106 ) . Os chefes têm sob as suas ordens cerca de uma
circuitos comerciais específicos, capazes de levarem para o sertão as mercadorias dezena de homens, que aceitam integrar-se em expedições que podem durar vários anos.
apreciadas pelos consumidores africanos. Agindo deste modo, as populações africanas A indicação mais importante é a da classe de idade destes viajantes e que autoriza uma
colocavam os Europeus ou os seus agentes africanos numa situação de fraqueza, que hipótese: as viagens são abandonadas quando o adolescente chega à idade do casamento.
devia assegurar a permanência das estruturas polfticas tradicionais. Serpa Pinto considera o pagamento recebido pelos carregadores como muito
fraco: «para ir do Bié a Garanganja [Luapula] recebem fazendas e um pequeno dente
A. Comércio, mercadorias preferenciais e agricultura de elefante, num valor total de 6400 réis», retribuição que parece ser relativamente
corrente (19. Serpa Pinto acrescenta que os homens do Bié só viajam para o interior
1. A partilha dos espaços como «assalariados; e se por acaso chegam à costa, é por sua conta» (108). Não levemos
muito a sério o substantivo «assalariado», dado que estes homens não recebem um
Esta situação parece poder esclarecer-se se admitirmos a existência de uma autêntico salário, mas são pagos em produtos preferenciais, entre os quais se incluem
geografia das deslocações autorizadas ou possíveis. Com efeito, os documentos as missangas e os tecidos. É contudo verdade que se põem à disposição dos comerciantes
associados à circulação das mercadorias salientam a existência de espaços preferenciais, em troca de uma compensação material que, todavia, não pode ser considerada como
mas também de espaços proibidos. Estamos colocados perante dois elementos cuja um salário de tipo ocidental.
complementaridade parece evidente: os grupos não podem deslocar-se livremente por Assistimos assim à tentativa de cada grupo aderir aos circuitos e às actividades
toda a parte, o que os obriga a alugar os serviços de outros grupos para o transporte comerciais, sem por isso comprometer a sua autonomia. A resposta traduz a existência
das mercadorias para ocidente, quer dizer, para a região onde estão instalados os de um sistema complexo de acordos internos dos grupos africanos, o que lhes permite
Portugueses e, eventualmente, outros europeus. A complementaridade assim estabelecida assegurar esta independência mínima necessária para resistirem a qualquer tentativa de
é cara, dado ser necessário pagar o custo dos transportes. Mas a redução dos lucros
não parece suficientemente importante para forçar estes grupos a assegurarem por
si próprios o serviço do transporte.
(103) Ver Capello e Ivens, 1881, II, p. 15. Voltaremos a analisar o caso imbangala no capítulo seguinte.
(I") Pinto, 1880, I, p. 36.
Id., ibid., pp. 138-141.
Id., ibid., p. 140.
(102) Para alguns historiadores — de Cadornega a Pélissier — tudo se passa como se o rumor e
(19 Id., ibid.
o furor das guerras impedissem o comércio. Nada conseguiu eliminá-lo.
(108) Id., ibid., p. 36.
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desintegração. Multiplicam-se também estas operações, pois, as caravanas mobilizam a situações perfeitamente inéditas e não previstas, tanto entre os homens como entre as
centenas de pessoas, que divulgam por toda a parte o seu projecto e a sua prática mulheres ( 111 ): neste domínio, a hegemonia africana está constantemente posta em causa.
transétnica ou, até mesmo, transnacional. Mas as actividades comerciais só podem abalar os sistemas, mesmo que encontremos
Devemos também dar conta dos choques entre os dois projectos, ou até três: o dos apenas algumas referências ao escravo-mercadoria. Contudo, as caravanas são portadoras
Europeus, destinado a banalizar as operações comerciais; o dos Africanos, que não são de mudanças, algumas das quais dizem respeito aos indivíduos, na medida em que as
radicalmente opostos a estas operações, mas que querem limitá-las aos seus espaços formas de controlo até então detidas pelo parentesco são postas em causa.
regionais; e, por fim, um terceiro, que decorre do aparecimento dos novos agentes No registo mais técnico, os «portadores de correio» ( 112) servem essencialmente a
comerciais, também dos Africanos que se servem da situação para organizar um projecto sociedade europeia, já que as mucanda — as cartas — ou as encomendas são apenas
individual, que procura reduzir o peso dos valores do parentesco, do poder político e enviadas pelos Europeus. A criação da rede parece eficaz, permitindo a relação tão
das formas religiosas. rápida como constante entre os membros da comunidade, o que não pode deixar de
Esta situação torna-se mais fácil, devido às mudanças registadas na organização provocar consequências sobre a organização das relações comerciais, como de resto
das caravanas. Inicialmente masculinas, elas começam a integrar mulheres e crianças aparece na colecção de cartas particulares, infelizmente bastante reduzida, que pudemos
à medida que nos aproximamos do fim do século ( 109). Ou seja, as caravanas podem utilizar. A esta observação convém acrescentar mais uma: os «portadores» africanos,
esses «falsos-autênticos carteiros», adaptam-se perfeitamente às exigências do correio
assegurar, pelo menos em parte, a sua própria reprodução, pondo-se assim ao abrigo
rápido ou até urgente, o que prova que os «tempos» africanos não se recusam às
das autoridades políticas dos territórios que são levadas a percorrer, o que quer também
racionalidades aparentemente ocidentais.
dizer que a actividade socioprofissional de um número cada vez mais elevado de Assistimos, deste modo, a mudanças importantes que alteram, de maneira às vezes
africanos depende das actividades comerciais das caravanas.
substancial, as relações entre os dois grupos. É evidente que semelhantes alterações vão
Trata-se de uma informação importante. Para a maior parte dos observadores encontrar eco nas sociedades africanas. Vemos assim aparecerem ou reforçarem-se
europeus, encontrar-nos-íamos perante uma situação que pode permitir a banalização formas comerciais novas, entre as quais as que alimentam a concorrência e as que
do «salário». As caravanas dos Europeus só se organizam recorrendo aos Africanos. exigem o recurso ao crédito, de resto, estreitamente associadas. Convém contudo observar
O que as diferencia das suas congéneres africanas reside precisamente no modo de que a única riqueza possível — pelo menos na primeira fase destas operações — é a
recrutamento: os Africanos podem recorrer à família, os Europeus são apenas formada por mulheres e por escravos. Mas semelhante forma de riqueza imobiliza
estrangeiros, o que os obriga a pagar uma retribuição, que alguns classificam como capitais e impede qualquer actividade comercial constante e sem interrupções.
sendo um «salário».
A generalização destas retribuições, pagas em produtos, apesar das tentativas 2. As opções africanas
portuguesas para imporem a moeda metálica, salienta a importância da articulação entre
as formas arcaicas da prestação de serviços e a maneira moderna de as pagar. Esta Uma parte das caravanas comerciais europeias é organizada em função das
situação é reforçada pelo aparecimento de novas actividades, suscitadas pelos Europeus, solicitações africanas. Os comerciantes começam por propor aos seus clientes africanos
como a dos «portadores de correio», que não ousamos classificar como «carteiros». um certo tipo de mercadorias preferenciais: a organização de um catálogo fiável destas
O «serviço do correio» é assegurado pelos empacaceiros, recrutados entre os caçadores mercadorias exigiu muitos anos, talvez séculos, para poder ser elaborado. Mas podemos
de empacaças, que foram utilizados pelos Europeus em mil e uma actividades (110). afirmar que este catálogo existe e que permite que as estruturas comerciais funcionem
Estas utilizações não procuram fazer explodir as formas africanas, e o parentesco de maneira útil, tanto para uns como para outros. Os comerciantes europeus aceitam
continua a desempenhar um papel fundamental, ao mesmo tempo que se vai adaptando as escolhas africanas, tal como os Africanos se deixam enlear nos produtos que os
Europeus lhes propõem. É assim que o sistema consegue funcionar de maneira satisfatória.
Trata-se, para os comerciantes europeus, de não criar becos sem saída, no caso de
as mercadorias não caberem no quadro dos produtos normalmente aceites ou pedidos
pelas sociedades africanas. De resto, os fabricantes europeus produzem mercadorias
Ver, por exemplo, Pinto, 1880, I, pp. 138-139; Capello e Ivens, 1881, II, p. 214, e Carvalho,
1882, II, pp. 787-788.
Capello e Ivens, 1881, II, pp. 211-213, referem que, desde a sua criação, estes homens foram, Alfredo Troni, na sua narrativa Nga Muturi (1973), lembra a banalização das antigas escravas
ao que parece, destinados a caçar m 'pacaça e, através deste género de vida um pouco ousado, tornaram- ou até das mulheres livres que, tendo «ascendido» à condição de concubinas, são postas — ou põem-
-se auxiliares importantes nas viagens para o interior. Eram, por esta razão, empregados no serviço dos -se — à distância da sua família, da sua etnia e da sua região de origem (pp. 31-32, 67).
correios, no acompanhamento das caravanas, etc., o que levou o governo português a concentrar um «Eu não sou mais extenso como desejava, porque recebi a sua correspondência no dia 26 [de
grande número deles numa espécie de corpo, destinado a assegurar as actividades citadas. Dispersaram- Setembro de 1859] pelas oito horas da noite, e [a resposta] segue hoje [27] pelas 10 horas da manhã». Carta
-se nos últimos tempos e «é por exemplo na Quiçama (...) que se encontram empacasseiros». inédita do comerciante António Roza d'Oliveira, de 27 de Setembro de 1859. Ver documento em anexo.

506 507
exclusivamente destinadas aos Africanos, como podemos verificá-lo, por exemplo, no Mas esta situação quer também dizer que a agricultura africana podia passar, assaz
catálogo de alguns fabricantes de espingardas de Liège (113). Não podemos consagrar facilmente, da subsistência tradicional, tão frequentemente posta em destaque, pois
muito espaço a este problema, mas esta observação coloca-nos perante a necessidade indicava as insuficiências técnicas e ideológicas dos camponeses africanos, para uma
de saber quais as empresas e até quais as regiões que organizaram a sua economia em produção mais abundante, destinada aos estrangeiros, assim como às operações de
função da sua clientela africana, pois que algumas sociedades europeias vivem então mercado. Isto implica uma forte integração dos projectos europeus pela comunidade
exclusivamente da matéria-prima fornecida por África (114). africana, de maneira a mobilizar as terras e a força de trabalho indispensáveis para
Não será, porém, necessário pôr em evidência o carácter tão particular desta assegurarem um tão elevado volume de produtos agrícolas. Tal facto depende, outrossim,
organização comercial que não podia deixar de arruinar a actividade da maior parte dos da elaboração de técnicas de conservação destes alimentos, uma parte dos quais —
artesãos africanos? Digamos que se assiste a uma espécie de choque entre os comerciantes particularmente a mandioca — pode ficar nos campos, sem esquecer, contudo, que era
e os artesãos, dado que os produtos importados pertenciam totalmente à gama das igualmente necessário prever a produção e a conservação da farinha, quer fosse de
produções artesanais africanas. Quer dizer que a aparente racionalidade comercial se mandioca, quer de milho ou de milho-painço.
exercia em detrimento da racionalidade técnica, pois que os produtos europeus expulsavam Parece estarmos, neste caso, perante um dos elementos mais subtis, mas mais
eficazes, da integração das duas economias, visto que os Africanos aceitam a circulação
do mercado e da utilização corrente um grande número de objectos fabricados pelos
das caravanas europeias, a ponto de lhes preparar a alimentação indispensável.
artesãos africanos, homens ou mulheres. É como se nas suas opções a sociedade
O projecto económico africano organiza-se assim em função da presença contínua dos
africana estivesse condenada a encontrar-se em permanente dissemetria de racionalidades.
Europeus, o que deve ser entendido como a soma de mais um circuito comercial que
E isto apesar dos esforços consagrados à reorganização dos modos de realização de
algumas produções. não anula os estritamente africanos, embora os possa reorientar em função das novas
mercadorias comercializadas. Estas actividades devem dar um lucro mais ou menos
importante. Se só os Africanos estão em condições de alimentar as caravanas, estas
3. A agricultura
permitem a obtenção de ganhos elevados ou, em todo o caso, suficientes para manterem
o sistema em funcionamento normal até ao século XX.
Os Africanos recuperaram a produção dos alimentos terrestres, de maneira a garantir
o fornecimento dos produtos que se tornaram indispensáveis ao bom funcionamento das B. Lucros e riqueza
caravanas europeias, onde apareciam cada vez mais caravanas «científicas», que se
acrescentavam àquelas que se ocupavam exclusivamente do comércio. É certo que só os Não podemos deixar de salientar a dupla implicação económica desta operação, que
Africanos — do ponto de vista individual — teriam podido assegurar esta função, mas deve obriga a sociedade africana a rever a distribuição do trabalho, sem esquecer a importância
aceitar-se que foi graças à capacidade técnica e gestionária das instituições africanas que dos bens recebidos em troca, embora, deve acrescentar-se, continuemos a estar mal
foi possível levar a cabo esta operação complexa. Esta situação é extremamente visível nos informados a este respeito: estas mercadorias, recebidas dos Europeus, como são
documentos europeus da segunda metade do século XIX. redistribuídas nas diferentes estruturas das sociedades africanas? É evidente que os
Não se trata, contudo, de uma novidade na história das relações técnicas e comerciais Africanos se mostram muito reservados para fornecer tais informações, mas podemos
entre os dois grupos: Luanda foi a primeira cidade a poder beneficiar com essa partilha sugerir a existência de uma espécie de «cegueira» dos Europeus, que evidenciam apenas
das tarefas. A situação foi reforçada durante a segunda metade do século XIX: «o atenção aos termos de troca, mostrando-se indiferentes aos mecanismos das práticas
Dombe (...) é o celeiro de Benguela» e os Africanos de Dombe exportam «cerca de 70 redistributivas africanas, contudo, tão importantes para nós!
mil decalitros de farinha [de mandioca] por ano» (115), o que quer dizer que só os Não encontramos na literatura, que se ocupa desta região, a menor informação
Africanos estão em condições de assegurar o êxito destas expedições científicas, cujas respeitante ao lucro esperado pelas sociedades africanas. Na maior parte das vezes, os textos
necessidades essenciais só podem ser satisfeitas pelos produtores africanos. dão conta dos bens exigidos pelos Africanos, para procederem à realização de certas
operações de troca. Podemos calcular, sem grande dificuldade, as variações impostas pelos
Africanos, quase sempre mal acolhidas pelos Europeus. Mas é difícil ir mais longe, já que
estas indicações, às quais os viajantes emprestam uma escrita um tanto maníaca, não
permitem conhecer o proveito real ou potencial conseguido pelos Africanos.
Ver, sobre esta questão, Henriques, 1989, e Vellut, 1989.
É certo que uma operação de cálculo neste registo é demasiado difícil, dada a
Pensamos no marfim africano que permitia o trabalho de algumas empresas britânicas. Ver,
ausência de informações contabilísticas um pouco mais pormenorizadas. Mas podemos
por exemplo, Relatórios dos cônsules, 1870-1871, p. 159, no qual o cônsul de Portugal, em Londres, recorrer à utilização de duas formas de choque entre vendedores africanos e compradores
se refere aos dentes de marfim angolanos, importados pela Inglaterra. europeus — se bem que se registe também a operação inversa — para medir a importância
(115) Pinto, 1880, I, p. 43. que, entretanto, tinham adquirido o lucro e a riqueza na organização comercial africana.
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A upite, a riqueza, representada por uma moeda angolana, zairense ou portuguesa, C. Inovações e blocagens
antiga ou moderna, no cesto de adivinho quioco (116n), está essencialmente, senão até
exclusivamente, associada às mercadorias ou às moedas europeias. Dado não podermos Encontramos, no entanto, vestígios constantes que salientam a importância destas
datar o conceito com precisão, pois que os dicionários quiocos existentes o não permitem, mudanças, pois que a evolução das relações comerciais age em favor de uma redução do
podemos, apesar disso, salientar, apenas, o laço que une o conceito aos valores europeus, peso das estruturas políticas e familiares africanas, que procuram aproximar-se do modelo
para sugerir a hipótese de que a sua banalização se verificou nos ános caracterizados da família conjugal europeia ( 119 ). A redução, mesmo que deveras relativa, dos sistemas
pelo reforço do comércio europeu ou pela instalação dos comerciantes e das indústrias de controlo africano, autoriza a multiplicação dos comerciantes, tanto europeus como,
europeias. sobretudo, africanos, o que permite que um número cada vez maior destes últimos adopte
Parece, de facto, que a upite — à qual havemos de regressar — deve ser considerada comportamentos que são a cópia das regras financeiras europeias. A capacidade de
em função das mudanças registadas na organização económica das populações africanas. adaptação africana aparece provada, em particular, nos testemunhos de Silva Porto e de
Estas caravanas comerciais provocam uma integração nas redes de comércio, como Serpa Pinto, mas todos os documentos permitem dar conta desta capacidade de integração
salienta Silva Porto de maneira assaz clara: «Em época que já vai longe [por volta dos das formas económicas novas por parte dos Africanos.
anos 1820], as tribos da Lunda e Lovar, ainda não pervertidas pelos Bienos, seguiam Tal não impede que o tempo continue a jogar contra os Africanos, na medida em que
estes mesmos hábitos [quer dizer, não se interessavam pelo comércio, como acontecia não são eles quem cria a novidade. É certo que se mostram muito atentos, de modo a
com os Lozis] que com o decorrer do tempo foram modificando» ( 117 ). A «perversão» não se deixar ultrapassar pelos Europeus, mas o seu arsenal técnico — indispensável à
denunciada por Silva Porto não é mais do que a aquisição de uma tecnicidade comercial organização das formas actuais de comércio — está sempre fora da modernidade. Podemos
que, naturalmente, devia amputar os lucros dos comerciantes «tradicionais» africanos verificar que as mudanças são muito importantes não só no que se refere à adopção de
ou europeus. técnicas predatórias mais recentes — colecta do mel, da cera, da urzela, caça ao elefante —,
O preço desta aprendizagem não pode ser analisado em pormenor, mas parece mas também na integração de um certo número de culturas agrícolas: café, algodão,
podermos afirmar estar constantemente perante a necessidade de assegurar a transição tabaco, cana-de-açúcar. Capello e Ivens assinalam, por exemplo, nas regiões de Encoje,
das sociedades, cujo projecto se mantivera principalmente associado à subsistência, para Matamba, Sosso e laca, a existência de uma agricultura africana consagrada a estas
as formas sociais consagradas à produção destinada ao comércio. De resto, a banalização produções novas (120). Alhures — quer dizer, nas regiões de Kubango, Bié e Ganguela —
do lucro aparece de maneira mais evidente num texto um pouco mais tardio de Capello encontramos na escrita de Serpa Pinto pequenas plantações de cana-de-açúcar como
e Ivens: «o comércio, obrigando-os a repetidas viagens, traz como consequência necessária aquela «muito vigorosa...» ( 121 ), na região do Kubango, assim como tabaco no território
as relações e contratos com povos distantes. Forçados a procurar local onde lhes ofereçam Ambuela (122).
os géneros mais baratos, para maior proveito tirarem» (118). O negociante protesta contra De resto, podemos certamente registar um segundo paralelismo, já que os Europeus
esta situação; o viajante científico regista a mudança: verifica-se que o ganho conseguido desenvolvem a produção agrícola quando são forçados a renunciar ao tráfico negreiro,
pelos Europeus nos primeiros tempos da relação comercial é constantemente reduzido à mesmo que mantendo ou endurecendo a escravatura. Um documento do século XIX
medida que os Africanos aprendem as técnicas comerciais. Estas eliminam toda e qualquer permite compreender melhor o processo cumulativo do sistema, visto que o comandante
ingenuidade dos Africanos, obrigados a aprenderem à sua custa a novidade do lucro. do presídio de Cambambe afirma, em 1857, durante uma crise de fome registada na
A multiplicação das redes internas africanas está assim explicada, pois se sabe região, que não podia fornecer a menor ajuda, tendo acabado de «perder todas as
perfeitamente que o lucro não cai do céu: só pode ser o resultado de uma mobilização sementeiras que havia feito ultimamente em ponto grande», acrescentando, também,
permanente dos homens, que devem prestar atenção às mercadorias, sem esquecer, para tornar a situação mais explícita, que a totalidade do seu «capital [estava] empregado
contudo, de proceder ao inventário das possibilidades comerciais, oferecidas pelas em escravos, terrenos e ferramentas» ( 123 ). O sistema desvenda a sua relutância em
diferentes populações. Como não lamentar que nos falte, de maneira penalizadora, uma
boa contabilidade organizada pelos chefes ou pelos comerciantes africanos? Não dispondo
de um documento desta qualidade, estamos condenados a manter-nos dependentes dos
documentos portugueses, sempre pouco explícitos, quando se trata de fornecer informações O texto, que descreve da maneira mais interessante a importância destas formas cada vez mais
respeitantes ao funcionamento interno das sociedades africanas de Angola. autónomas, continua a ser o romance já citado de António de Assis Júnior (1937), 1979. As estruturas
políticas, religiosas e comerciais do Dondo são o resultado de uma integração progressivamente mais
intensa das estruturas africanas, nas formas económicas e políticas portuguesas.
Capello e Ivens, 1881, II, p. 148.
Areia, 1985, pp. 406-408. Pinto, 1880, I, p. 106.
Porto (1853), citado por Santos, 1981, p. 57. Id., ibid., p. 256.
( 118) Capello e Ivens, 1881, II, pp. 16-17. ( 123) AHNA, Luanda, Avulsos, Cambambe, Doc. 171, p. 65 v.

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mudar, mesmo que os escravos já se não destinem ao comércio atlântico, tendo sido Mas os seus projectos querem ir mais longe. As autoridades portuguesas estavam
devolvidos ao trabalho da terra e à produção agrícola. Parece, contudo, que os escravos conscientes de haver a «probabilidade de se tirar melhor e mais breve resultado, por
não são já em número suficiente, o que explica que encontremos uma referência aos isso que do tabaco e do algodão todos os moradores e gentios bem conhecem o cultivo
indígenas assalariados na agricultura (124\,) traduzindo uma capitalização embrionária, e a colheita que não demanda grande arte, inteligência ou maquinismo (...) e geralmente
mas claramente afirmada da produção agrícola, que assim se afasta cada vez mais da a praticam [estas culturas] ainda que em diminuta escala» (130).
simples subsistência. Desde muito cedo os produtores africanos organizaram a sua produção agrícola
Existiam já algumas pequenas plantações no período do tráfico negreiro, na região de maneira a poder fornecer a Luanda aquilo que a cidade tinha necessidade. Esta
Kwanza-Lucala. Por meados do século XIX, aumentaram e multiplicaram-se, pois se situação mudou de maneira sensível, quando se registaram operações levadas a
regista a criação de novas plantações em outras regiões, a norte e a sul de Benguela. cabo pelos Europeus. Os agricultores africanos procuraram então produzir produtos
As suas principais produções eram o algodão, o tabaco, a cana-de-açúcar e o café (125), destinados à exportação: tabaco, cana-de-açúcar, mandioca, óleo de palma, copra,
que começaram a ocupar um lugar cada vez mais importante, no valor das exportações amendoins, etc. (131). Esta produção assinala uma mudança fundamental posta em
angolanas. Trata-se de uma tendência, e certamente das mais notáveis, pois se as evidência por Serpa Pinto: os agricultores do vale do Dombe — nos arrabaldes de
produções africanas são ainda dominantes, elas começam a sofrer a concorrência da Benguela — organizam grandes plantações de mandioca resistentes à falta de
agricultura organizada pelos Portugueses, qualquer que seja a importância dos produtores chuvas, pois os períodos de seca prolongaram-se durante três anos: nesta região
africanos que adoptem as novas plantas. «os indígenas (...) não permutam as fazendas, mas sim vendem a dinheiro, cujo
É de resto esta forte participação portuguesa que explica o interesse e os apoios valor já conhecem» (132).
oficiais dados às actuais culturas, que se manifestam através da introdução de sementes Podemos assim dizer que as pulsões modernizantes nunca escandalizam os
da sua distribuição pelos agricultores europeus, como se verificou, em 1852, com Africanos, mesmo que, como já o salientámos, eles se encontrem numa situação de
algodão (sementes do Iucatão e dos Estados Unidos) e com o tabaco (sementes dependência, só podendo prever e adoptar as propostas dos Europeus. É o que explica
da Virgínia) ( 126).) Para que a agricultura de plantação pudesse conhecer uma expansão a incerteza perante a escravatura, da qual sabemos ter ela alimentado os circuitos
em boas condições de desenvolvimento, o governo de Angola procedeu à distribuição clássicos do tráfico interno, sem grandes dificuldades (133). O facto de esta instituição
de terras a colonos tanto portugueses como estrangeiros — aos quais dava a se ter conservado em funcionamento serve-nos para pôr em evidência o peso das
nacionalidade portuguesa no momento do seu desembarque em Angola — adoptando resistências arcaicas das sociedades africanas. Afastada da costa, esta corrente comercial
velho sistema da enfiteuse (sesmarias), como foi o caso dos Alemães, citados num conserva o seu estatuto primordial nos múltiplos circuitos internos, e alguns autores
manuscrito de 1 855 (127). chegam até a dizer que, em 1880, o escravo era ainda o artigo principal do comércio
É necessário, contudo, acrescentar as preocupações dos governadores de Angola do interior angolano (134). Era trocado por bois, os quais, por sua vez, se trocavam
para melhorarem as técnicas de produção (128) e para ajudarem os produtores portugueses por tecidos, cera e marfim. O escravo era, de resto, e muito frequentemente, um
a assegurarem o transporte das mercadorias, seja para os lugares de exportação seja presente oferecido pelas autoridades africanas aos viajantes portugueses, e seria, no
para os mercados europeus, pondo à sua disposição transportes gratuitos nos navios do mínimo, pouco diplomático recusá-lo (135).
Estado (129). Pensamos que as grandes opções do século XIX, que asseguram a viragem da
colonização portuguesa, não são só compreendidas, mas também integradas pelas
comunidades africanas. Todavia, os movimentos mais profundamente modernizantes
encontram-se travados por dois obstáculos principais: a dificuldade dos Africanos
Id., doc. 209, p. 90 v.
A exportação do café, monocultura importada do Brasil, conheceu tim crescimento regular,
como mostram as exportações feitas pelo porto de Luanda: 1830-1832, 1330 kg; 1844, 2937 kg; 1857,
76 675 kg. Ver Lopes de Lima, 1846; G. Péry, 1875, p. 358.
BMNE, 1854-1857, cx. 883, docs. 231 e 232.
Id., ibid.
Id., 1854-1857, cx. 883, doc. 9.
Carvalho, 1890, I, p. 302.
Em 1846, o governador Pedro Alexandrino da Cunha deseja que Lisboa lhe envie «uma das
Pinto, 1880, I, p. 43.
mais modernas máquinas de descascar e debolhar café...» para oferecer da parte do governo ao chefe
Bastos, Fevereiro de 1912, dá conta da presença de caravanas de escravos em Benguela, em
de Cazengo, João Guilherme Barboza... «para levar por diante a plantação em grande do café». A mesma
5 de Outubro de 1910, que não serão vendidos em consequência do efeito de choque provocado pela
autoridade salienta, em outros documentos, o apoio dado pelo governador-geral, às plantações de tabaco
proclamação da República em Portugal.
e de algodão. AHU, CGA, cx. 606, 1846, 17 de Março.
Ver Quarenta e cinco dias em Angola, 1862, pp. 15-16.
Id., ibid., 21 de Março de 1846.
Podem encontrar-se no texto de Neves, 1854, várias referências a esta situação.
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— e por vezes dos Portugueses — em compreender a importância das formas do
capitalismo moderno, reforçada pela fidelidade à escravatura e ao tráfico dos homens
Ao recusar a generalização rápida da liberdade dos homens, as populações angolanas
punham-se à margem das formas sociais e técnicas modernizantes, e tornavam cada vez
mais fácil o processo de dominação dos Europeus.

CAPÍTULO II

O Estado de Kasanje: relações imbangalo-portuguesas,


reorganização comercial e transformações sociais e políticas

I. A remodelação dos espaços comerciais: Malanje e Kasanje.


Um comércio «branco» submetido ao ritmo da crise imbangala
(1850-1888)

Os anos que se seguiram à primeira abolição oficial do tráfico negreiro (1836)


caracterizaram-se pelo desenvolvimento do comércio «ilegal». Os documentos portu-
gueses preferem dar-lhe o qualificativo de «clandestino», mas trata-se de uma operação
de ocultação destinada a mascarar o facto de o aparelho administrativo — e também
militar — português se ter associado aos negreiros para assegurar a continuidade das
acções exigidas pelo tráfico negreiro.
Tal não impede porém — como já foi salientado — o aparecimento de uma corrente
que acredita na necessidade de proceder à transformação do sistema comercial angolano.
Foi por esta razão que começaram a desembarcar, em Kasanje, comerciantes cujo
projecto era assegurar o crescimento do comércio «legítimo». É certo que estes homens
aceitaram recorrer ao serviço dos escravos domésticos, mas em quantidade já limitada
e no quadro dos fluxos internos da escravatura. Mas outros comerciantes procuram
instalar-se em Kasanje para garantir a prossecução do tráfico negreiro, apesar da
presença de autoridades portuguesas, encarregadas de fiscalizarem a cidade e de se
oporem a semelhante actividade.
Estes comerciantes agiram na mais completa ilegalidade — mas não de maneira
clandestina —, procurando obter escravos através de circuitos paralelos, para se furtar
ao controlo das autoridades africanas (Jaga) ou europeias (director da Feira). Esta
táctica deriva da necessidade de se esquivarem à concorrência existente entre os vários
participantes no tráfico, pois que as autoridades militares ou civis portuguesas possuíam
escravos em grande quantidade, que vendiam nos circuitos normais do tráfico.
Esta situação atraiu a Kasanje um número elevado de comerciantes, alguns dos
quais dispunham de capitais próprios, embora a maior parte funcionasse graças ao
sistema de crédito já conhecido. Uns e outros dependiam também do ritmo «africano»
da Feira, que conheceu as crises e as guerras imbangalo-portuguesas que abalaram

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Kasanje entre 1850 e 1862. Crises e guerras em várias etapas — 1850-1851, 1852- da incompetência dos Portugueses, incapazes de gerirem as simples mas exigente
-1856, 1861-1862 — cada uma das quais com a sua originalidade própria (1), que se questões de intendência. Numa leitura tão decidida a negar as suas qualidades, os
prosseguiram até ao momento em que os Portugueses decidiram transferir definitiva- Africanos perdem qualquer qualidade, e as suas vitórias servem apenas para tornar
mente a função comercial de Kasanje para Malanje (1867). ainda mais visíveis as insuficiências dos Portugueses, que seriam apenas maus europeus,
Tratava-se de conseguir levar a termo uma operação que, desde os finais do século compa-rando a sua eficácia militar com a dos outros exércitos coloniais.
XVIII, preocupava os Portugueses — administração e comerciantes confundidos — A noção de «fraqueza» parece-nos não abranger a veemência deste comentário, dada
para eliminar, de maneira definitiva, a dependência em relação ao Jaga. De facto, os
a sua ambiguidade e imprecisão. Estamos perante uma maneira de dizer que recusa indicar
Portugueses pareciam dispor finalmente da força suficiente para se furtar às regras
a «força» das estruturas imbangalas que se tinham organizado no decurso dos séculos em
africanas, já que o sertão formigava de comerciantes brancos ou dos seus agentes que,
torno do comércio a longa distância e do controlo de acesso à margem esquerda do Kwangu.
tanto a norte como a sul, contornavam a capital jaga, esquivando-se a qualquer controlo.
Pudemos mostrar já não somente a coerência destes valores, mas também dos mecanismos
Instalados em Malanje, os Portugueses não tinham de continuar a satisfazer as exigências
— religiosos, políticos, económicos, militares — que asseguravam o funcionamento, a
dos Imbangalas. O projecto destinava-se muito simplesmente a obrigar os comerciantes
africanos, incluindo os Imbangalas, a trazerem as suas mercadorias — entre elas continuidade e a flexibilidade da sociedade imbangala, capaz de manter a sua hegemonia
escravos, homens e mulheres —, a Malanje. face aos Portugueses e face a outros africanos (3).
Colette Palhares sugeriu uma explicação para a crise de Kasanje. A historiadora O abandono de Kasanje pelos Europeus e a sua instalação em Malanje sancionam,
francesa afirmava que a independência política e económica dos Imbangalas era por isso, o enfraquecimento do poder central imbangala, que perdeu o monopólio das
consequência da fraqueza dos Portugueses, mau grado a existência de uma vassalagem operações comerciais a leste do Kwangu. Para muitos, esta situação foi agravada pela
que nunca teria passado da forma político-retórica, para uso da administração portuguesa. evolução inesperada do controlo do tráfico negreiro, que não contara com a presença
Esta crise, com a sua longa sequência de combates, teria consagrado a ruptura de um dos navios de guerra britânicos, percorrendo as loxodromias do Atlântico Sul. O diálogo
equilíbrio frágil, e a relação dominador-dominado teria funcionado em favor dos comercial e militar perdeu o carácter que fora o seu, encerrado num contencioso, opondo
Portugueses (2). Portugueses e Imbangalas. Regista-se agora a intervenção de um terceiro parceiro, que
Esta explicação parece ser uma simples consequência das teses de René Pélissier lembra a pesada realidade da geografia comercial e política mundial, que é forçoso gerir.
que, nas suas Guerres grises, não se mostra um grande admirador das formas de Temos tendência para acreditar que as sociedades africanas se encontraram muitas
organização dos Africanos: a sua resistência e até as suas vitórias seriam menos o vezes em situação de fraqueza, pelo facto de não conhecerem os laços tecidos entre os
resultado das qualidades específicas dos combatentes africanos, e mais a consequência Europeus fora do continente africano. Quando foi abolido o tráfico negreiro, um certo
número de comerciantes e de autoridades africanas decidiram não respeitar as leis
europeias, particularmente as portuguesas, sem dispor, contudo, das informações
(1) A respeito da crise imbangala, ver Palhares, 1978, pp. 110-111: «Trata-se de uma crise complexa respeitantes à nova organização das relações entre os Europeus, em primeiro lugar; entre
porque é simultaneamente a herança de uma relação histórica antiga entre dois parceiros comerciais e a Europa e a África, em segundo; entre a África e a América, em terceiro; entre a
o fruto de uma transformação recente e em curso, da economia nesta região da África austral. Ela serve Europa e a América, em quarto lugar. O número de problemas mal conhecidos ou
para mostrar o choque directo entre dois mundos (...) Mas a crise é muito mais do que um simples simplesmente desconhecidos pelos Africanos explica, em parte, o descalabro quase total
conflito entre Portugueses e Imbangalas, porque carrega no seio as contradições internas da sociedade
imbangala...». «A divisão em diferentes fases (...) permite mostrar a originalidade de cada uma delas
das suas instituições.
em consequência da especificidade dos motivos dos seus protagonistas...». Este novo contexto, se responde a condições internas, é também, quando não
Respeitando a sua grande linha de evolução, podemos agrupar os diferentes eixos antagónicos da principalmente, imposto pelas condições externas. É caracterizado pelo choque entre
seguinte maneira: comércio «legítimo» e comércio «ilegal», que às vezes se transforma em comércio

Portugueses ofensivos que assaltam a barreira do Kwangu/um jaga oposto à evolução em curso clandestino, e pela substituição de Kasanje por Malanje. Os efeitos sobre as estruturas
e pretendendo salvaguardar o monopólio do comércio. do comércio imbangala foram imediatos e importantes: os comerciantes portugueses
Chefes imbangalas, preocupados acima de tudo com a sua oposição à centralização do poder/ procuraram proceder às operações comerciais, quaisquer que elas fossem, sem pedir o
um jaga rebelde em luta contra um poder ilegal do seu ponto de vista, associado a um número crescente consentimento do Jaga. Este perde, por isso, prestígio e recursos materiais. Dada a
de imbangalas, vítimas da opressão portuguesa.
liquidação do monopólio do comércio com os Europeus, abalado ou arruinado o seu
Uma colaboração provisória e um equilíbrio também provisoriamente recuperado.
Um povo inteiramente revoltado/uma opressão portuguesa que se tornara intolerável.
Podemos observar que, do lado dos Imbangalas, a estrutura da crise se apresenta como um
crescendo, apesar das «pausas».
(2) Palhares, 1978, p. 111.
(3) Ver 2.' parte, cap. III.
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Portugueses. Estes comerciantes africanos podiam ser indiferentemente agentes das
poder comercial, o Jaga, metonímia da sociedade imbangala, começa a sofrer as
consequências dessa situação imprevista, que provoca a liquidação da sua hegemonia. casas comerciais europeias, não-portuguesas, que entrementes se tinham instalado em
Ambriz.
Este comércio era raramente levado a cabo por brancos, cabendo esta tarefa aos
A. Diversidade dos comerciantes, ambiguidade comercial e concorrência no período agentes comerciais mestiços ou pretos recrutados pelos Europeus, a quem se dava
1850-1860 habitualmente o nome de quimbares (7) e que asseguravam, de resto, os dois tipos de
comércio: o ilegal, consagrado aos escravós, e o legítimo, que se concentrava nas
1. O alargamento do quadro comercial mercadorias produzidas pelos Africanos. Na realidade, esta situação era quase sempre
explosiva, sendo os agentes dos comerciantes estrangeiros o alvo preferido do ódio das
Uma das primeiras consequências deste novo quadro comercial — na perspectiva autoridades e dos negociantes portugueses, pois prejudicavam o comércio, tal como era
europeia —, resultante da abolição do tráfico negreiro, traduziu-se por um novo afluxo feito usualmente pelos Portugueses.
de comerciantes à Feira de Kasanje. De facto, este comércio é revelador das condições nas quais se processa a
Já tivemos oportunidade de nos referir à presença de comerciantes decididos a aprendizagem dos clientes africanos. O conflito é determinado pela preferência dada
manterem o comércio de escravos, que se tornara ilegal, e que comparecem na feira para pelos Africanos às mercadorias desembarcadas pelos comerciantes não-portugueses.
deles se fornecer. Trata-se de homens ao serviço dos grandes negociantes negreiros de Esta preferência apoiava-se num único argumento, mas de carácter decisivo: as
Luanda ou de Ambriz. Este porto, instalado no Norte da costa angolana, serve de ponto mercadorias eram de melhor qualidade do que aquelas propostas pelos Portugueses e
de encontro a um número importante de casas comerciais de Luanda, que aí se instalaram pelos seus agentes ( 8 ). Obrigados a encontrar uma solução para esta situação, os
entre 1840 e 1855, período durante o qual se procedeu à ocupação portuguesa desta comerciantes portugueses não procuram obter produtos de melhor qualidade. Visam
região (4). apenas a eliminação dos concorrentes.
Esta duplicação das instalações é destinada a organizar a nova lógica política e Este comércio «ilegal» recorria, na maior parte dos casos, a caminhos comerciais
comercial portuguesa, uma vez que o porto de Ambriz permitia que a navegação conhecidos, que se ramificavam ao longo de uma costa que só muito dificilmente podia
irregular pudesse escapar mais facilmente à fiscalização das autoridades portuguesas ser controlada. As autoridades portuguesas nunca puderam — ou quiseram — impedir
e britânicas ( 5 ). A ocupação portuguesa era essencialmente destinada a travar o comércio estes embarques clandestinos de homens que se multiplicavam nos arredores da cidade-
internacional, que aí começara a realizar-se, e que escapava a qualquer vigilância das -capital ( 9 ), assim como em Ambriz.
autoridades portuguesas. De acordo com uma afirmação de Philip D. Curtin, o ponto mais elevado da
Por volta de 1880 «existem aí [em Ambriz] seis feitorias [portuguesas] que fazem exportação de escravos proveniente de Kasanje, em Luanda e no Ambriz, foi alcançado
importante negócio com o gentio em cera, marfim e outros produtos indígenas (...) Além entre 1836 e 1840 ( 1 °). Quer dizer que Kasanje continuou a ser, durante um período
das feitorias ou casas comerciais, sendo três inglesas, 2 francesas, 1 holandesa, a muito longo, o eixo do comércio de escravos que alimentava a navegação clandestina,
Associação Internacional Africana tem ali uma estação», isto é, uma das «estações
que só veio a terminar sob a pressão da legislação brasileira de 1850.
civilizadoras» criadas para assegurarem o regresso dos escravos forros aos valores e
Podemos reforçar esta demonstração: foi assim possível que uma espécie de comércio
às estruturas africanas (6).
oficioso de escravos pudesse continuar a registar-se, pois era necessário alimentar os
Estas indicações são deveras úteis, permitindo dar conta da recusa dos Angolanos
sectores tradicionais do tráfico. Quer dizer que a legislação portuguesa de 1836,
em aceitarem o estatuto de Portugueses, e trabalharem como tal apenas para os
constantemente republicada ou reorganizada, desempenha um papel decisivo que, mau
grado isso, se revela insuficiente. O seu papel foi decisivo, porque anuncia o fim de uma
actividade já secular, e que alguns queriam manter em funcionamento. Insuficiente,
Os Portugueses estavam então decididos a impedir a importante concorrência europeia que se porque uma parte das autoridades e dos comerciantes portugueses, aos quais se associam
registava na região e que era desqualificada, passando a ser puro «contrabando» na lógica portuguesa.
Vários grandes comerciantes de Luanda, sobretudo portugueses e brasileiros, criaram em
Ambriz sucursais das suas casas comerciais. Foi o caso de Arsénio de Carpo (Doc. de 1846, AHU, CGA,
cx. 606, pasta 31, 1846), assim como do brasileiro Francisco António Flores, negreiro, que procura
Ver 1.' parte, cap. IV.
diversificar a sua actividade comercial a partir do meio do século: recebe assim das autoridades portuguesas
Ver Ferreira, Carta de Francisco Salles Ferreira..., 30 de Maio de 1853, AHU, Angola,
autorização para explorar as minas de cobre de Bembe (1856). Ver doc. 241 e 241 a), b), c) de 1856,
BMNE, Correspondência do Ministro da Marinha e Ultramar para o Secretário de Estado dos Negócios Diversos, doc. 122.
Estrangeiros em Lisboa, cx. 883 (1854-1857). ( 9) Tams, 1850, pp. 210-213.
(6) Morais, 1885-1888, I, s. p. ( 10) Curtin, 1969, p. 262.

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não poucos brasileiros, pretendem assegurar a sobrevivência do sistema. Mas a maioria
simplesmente: o prolongamento da escravatura foi permitido pelas estruturas africanas,
já se apercebeu de que a lei acabará por vencer as resistências, o que leva o país
a ir-se preparando para o comércio estritamente «legftimo». embora consentido pelo aparelho político e comercial português (14), economicamente
impotente e incapaz de reconhecer a importância das propostas do governador-geral,
Durante um período bastante longo, apesar das intervenções pouco enérgicas das
major Norton de Mattos (15).
autoridades portuguesas, mais decididas por parte das entidades britânicas, o comércio
«oficioso» pôde continuar a sua actividade. Serviu para remeter escravos tanto para
Cuba como para o Brasil (11), assim como para S. Tomé e Príncipe, onde esta força 2. Kasanje, os escravos e os produtos «lícitos»
de trabalho era indispensável para assegurar a agricultura do cacau e do café (12).
De resto, a situação não podia ser mais equívoca, pois que a escravatura interna, Se, neste momento, ainda se não encontrava do lado de Kasanje este tipo de econo-
quer africana quer europeia, não parou. Nos anos 1840, os dois grupos encontraram- mia de plantação, devemos considerar esta estrutura técnico-comercial como sendo aquela
-se perante uma pesada herança, e os escravos pululavam por toda a parte, tanto nas que melhor assegurou as ligações com as economias que viviam essencialmente da relação
casas ou nas plantações europeias como nas aldeias ou nos arimos dos Africanos. Esta predatória com a natureza. Não pretendemos repetir aqui algumas acusações dirigidas
conjugação de interesse e de práticas serviu, mesmo que algo paradoxalmente, para aos Africanos, que não teriam sabido preservar a natureza, tendo não só liquidado os
manter os laços entre os dois grupos: os escravos asseguravam o mesmo tipo de comér- elefantes, mas esgotado também as reservas de certas landolphia, para assegurar o
cio, as mesmas relações de trabalho, as mesmas formas de intimidade, quando não as fornecimento de borracha tão avidamente procurada pelos exportadores europeus.
mesmas formas de organização familiar. A acusação peca pela facilidade excessiva, mesmo que não possamos deixar de
A abolição do tráfico negreiro introduziu novos modos de dominação, mas jamais reconhecer uma parte da realidade. O projecto predatório tem sempre duas faces, pois
extinguiu a existência dos escravos. Foi necessário, na fase económica que se organizou que se é utilizado pelos Africanos, as mercadorias produzidas destinam-se na maior
em função da abolição do tráfico negreiro, obter uma força de trabalho numerosa, parte dos casos, aos Europeus. Não podemos interpretar a situação de maneira diferente,
passiva e barata, para assegurar o funcionamento das economias brancas. Não se pode sob pena de ficarmos condenados a não compreender o sistema africano. Quando se
contudo esquecer que as estruturas económicas africanas não funcionam de maneira regista a mudança das actividades africanas, que se orientam no sentido de assegurar
equilibrada, quando não dispõem de uma força de trabalho servil, como mostra a a multiplicação das monoculturas industriais destinadas à exportação, somos arrastados
para uma nova fase das técnicas de dominação. Com efeito, esta agricultura só pode
história de vida do adivinho quioco, Sakulu, tão utilmente recolhida por Rodrigues de
Areia (13). funcionar arrancando as terras aos proprietários africanos e mobilizando uma força de
trabalho cada vez maior, formada em parte por escravos e em parte por antigos
Durante um período muito longo, que se prolonga pelo menos até 1910, a produção proprietários, agora sem terras.
africana continuou a alimentar a maior parte do comércio angolano de exportação, ao
É Kasanje que permite alimentar em escravos, numerosos e baratos, estas novas
mesmo tempo que permitia o funcionamento interno da «província», isto é, da colónia.
unidades económicas europeias, mas contando também com alguns proprietários pretos
A caça, a recolecção, a agricultura, actividades na sua maior parte asseguradas pelos
e mestiços (16). Todavia, seja quem for o senhor, o escravo é sempre africano. Pensamos
Africanos, permitiram manter a respiração económica angolana, tal como as relações
ser mais útil sugerir uma leitura mais dinâmica deste processo, propondo que se considere,
com os mercados europeus e com alguns americanos. Digamos as coisas mais
sobretudo, a homogeneidade dos dominados: o sistema europeu confirma ser radicalmente
diferente e oposto ao sistema africano.
Retenha-se também a mudança imposta pela impossibilidade de manter uma cidade
essencialmente consagrada ao comércio de escravos. Com efeito, a «morte» de Kasanje
A abolição da escravatura data de 1871, em Cuba, e de 1888, 13.0 Brasil.
A produção de café começa a crescer vertiginosamente por volta dos anos 1860, registando-
-se a concorrência do cacau a partir de 1868. Ver Tenreiro, 1961, pp. 216-228.
(13) Esta história de vida permite a este investigador propor um elemento teórico que não poderemos Carvalho, 1890, I, pp. 148-149, assinala a presença dos jesuítas no comércio de escravos em
Ambaca.
analisar em pormenor: nas estruturas matrilineares só os escravos ficariam de maneira permanente na
organização familiar, porque os filhos seriam recuperados pelos tios maternos, ao passo que as esposas Ver o relatório do governador-geral Henrique de Paiva Couceiro, 1898, pp. 10-111, confirmado
por Norton de Mattos, 1944, II, pp. 42-43.
regressariam aos clãs de origem, quando alcançada a menopausa. Esquece-se que se o pai é obrigado
a renunciar os filhos, está obrigado — ou autorizado — a recuperar os sobrinhos, filhos das irmãs ou, (16) Numa entrevista recente, o escritor angolano Arlindo Barbeitos lembra, de maneira apaixonada,
em todo o caso, da irmã mais velha. Esta reserva, mesmo sendo importante, não destrói de modo algum o encadeamento de etnias, de genealogias e de interesses numa família da região de Catete, quase nos
a coerência desta história de vida, que salienta o valor económico e social dos escravos nas estruturas arrabaldes de Luanda. A produção agrícola e as actividades comerciais podem assegurar a criação e a
quiocas. Ver Areia, 1985, pp. 193-196. conservação de estruturas de parentesco caracterizadas pela dissolução das fronteiras étnicas ou raciais.
Ver Laban, 1991, II, pp. 519-669.
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coincide com a eliminação do comércio de escravos feito às claras. As autoridades Eis-nos perante um sistema asperamente concorrencial: os militares e os agentes
portuguesas são obrigadas a aceitar os princípios que, publicados pela primeira vez em da administração portuguesa encontravam-se em situação vantajosa em relação aos
1836, repetidos e reforçados depois, pesam de maneira decisiva na orientação geral do comerciantes profissionais. É com relativa frequência que estes apelam para o governador,
sistema angolano: as ideias tinham mudado, as práticas não puderam deixar de seguir pedindo-lhe para intervir, de maneira a eliminar a corrupção das autoridades oficiais
o mesmo caminho. Esta situação de circulação permanente dos escravos, que tanto havia portuguesas, que não se preocupam com o «bem público [porque] só pensam em
chocado Livingstone, não pôde deixar de desaparecer, para dar ao rosto colonial português
enriquecer» (21).
um aspecto menos repugnante. A acusação é justa, mas pode verificar-se ser algo parcial: o enriquecimento de uns
Foi necessário assegurar a recolha das produções africanas, assim como suscitar prejudica o enriquecimento de outros, a partir do momento em que todos apostam numa
a produção das mercadorias que se tinham tornado indispensáveis ao funcionamento mesma mercadoria para assegurar a acumulação de riqueza. O escravo deve perder o
normal das economias costeiras. A divisão do país sublinha o carácter dirigente que seu carácter de mercadoria única, ou dito de outra maneira, as reclamações dos
pertence à costa em relação ao interior. A instalação de pequenos núcleos portugueses comerciantes podem ser interpretadas como a manifestação clara das fronteiras económicas
ou portugalizados tornou-se indispensável para fazer funcionar as actividades comerciais. destas operações. Esta situação levava alguns comerciantes a separarem-se do tráfico
A desaparição do comércio, realizado pelas caravanas «brancas», só pode ser compensado negreiro, para conseguirem o enriquecimento necessário, sem o qual Angola seria um
pela multiplicação destes burgos comerciais, reforçados pelos presídios. território abandonado à «selvajaria» e aos «selvagens».
Com efeito, os documentos mostram que são raros os portugueses que escapam à A situação na qual evolui uma parte importante da vida angolana não pode ser mais
influência do tráfico negreiro: os agentes da administração colonial, grandes ou pequenos imprecisa, mais ambígua. Ela mantém-se à margem da legalidade e aproxima-se cada
funcionários, soldados ou oficiais, todos participam no negócio nos locais onde se vez mais, à medida que o tempo avança, da clandestinidade. É neste momento que se
encontram instalados. A transição comercial é assegurada pelos homens perfeitamente assiste à segunda mutação interna, que se caracteriza pela passagem da ilegalidade à
integrados na ideologia esclavagista secular e, graças à sua intervenção, espingardas, clandestinidade. A primeira processava-se à luz do dia, a segunda torna nocturnas as
pólvora, tecidos e missangas permitem manter o fluxo de escravos (17). operações que ninguém deve testemunhar. Esta transformação data dos anos 1850 e está
Os arquivos, seja em Lisboa (AHU) seja em Luanda (AHNA), estão cheios de em relação directa com as alterações suscitadas pela legislação elaborada por Euzébio
documentos manuscritos que fornecem a prova de que esta actividade comercial Queiroz, conselheiro brasileiro que, ironia do destino, nascera em Angola.
esclavagista se tornara a obsessão da quase totalidade dos responsáveis da administração
colonial portuguesa. Cegos pela tradição colonial, eles mostram-se incapazes de se
aperceber das mudanças impostas pelas grandes nações europeias. São ainda menos
3. A expansão do comércio «legítimo»
capazes de compreender a modificação radical das explicações filosóficas ou teológicas.
O escravo continua a ser encarado, nesta opção rígida, como a única mercadoria que Todavia, ao lado desta situação, cuja ambiguidade é evidente, encontramos também
permite o enriquecimento rápido dos comerciantes, vindos de Portugal e do Brasil. o comércio «legítimo», que se desenvolve, sobretudo, graças à acção dos comerciantes
Nos anos 1850-1860, os registos de escravos, pertencendo às autoridades portuguesas (18), profissionais instalados em Kasanje ( 22), seja por volta de 1851 (fim da primeira crise
crescem de maneira contínua, nomeadamente no distrito de Talla Mugongo ( 19) que, a partir
de 1851, assegura a tutela de Kasanje, que se tornara então um burgo de carácter
n
secundário, na lógica urbana e administrativa portuguesa ( 20). Esta documentação prova,
da maneira mais evidente, que a escravatura destinada às utilizações doméstica e agrícola Carta de 40 negociantes e moradores de Luanda ao presidente da Câmara Municipal de
é um apanágio da sociedade europeia em Angola. Os escravos que pertencem às autoridades Luanda, 30 de Junho de 1858, AHU, CGA, pasta 5, 1859.
O comércio legítimo nunca dissolve as práticas da escravatura. Numa das cartas enviadas a seu
só funcionam como prova da generalização da prática esclavagista.entre os Europeus,
tio, o comerciante Roza d'Oliveira anuncia a existência de um jovem «crioulo» de 3 anos de idade, que
assim como entre os europeizados, mestiços ou negros. baptizou com o nome de António Luiz d'Oliveira. Este crioulo «pertence» ao seu amigo Carvalho, de quem
sabemos a morte por via de uma segunda carta, na qual José Maria Prado anuncia ser portador de um
«negrinho», destinado ao tio José Luiz. Este «crioulo», informa a carta, tinha sido «oferecido» pelo falecido
O salário dos soldados era pago em fazendas.
Joaquim Maria de Carvalho a António Roza d'Oliveira. Este decide, por sua vez, oferecê-lo como presente
Já assinalámos o caso do comandante Liony, de Cambambe. Ver 5.° parte, cap. I, notas 123
a seu tio, e aproveita a viagem de um vizinho para o fazer chegar a Alcochete. A família africana é comple-
e 124. Ver também Carvalho, 1898, p. 365, documento que faz referência à venda de escravos levada tamente eliminada, e o pequeno «crioulo» é considerado uma coisa divertida que pode ser utilizada como
a cabo pela expedição do comandante Salles Ferreira. presente para reforçar os laços familiares. É certo que estamos perante os gestos elegantes de comerciantes
Ver documentos de Talla Mugongo-Golungo Alto (sede do distrito em que se integra Talla
bem comportados, mas eles mostram a maneira como os Africanos se transformam em «coisas» nas práticas
Mugongo, em 1857) — AHNA, Luanda, Avulsos.
habituais dos Europeus. Não conseguimos averiguar o destino deste «crioulo», pois que a família destinatária
Ver Portaria do governador-geral de Angola, 16 de Agosto de 1851, AHU, CGA, cx. 615, 1851.
não conservou dele nem registo nem memória. Ver Cartas, em anexo.
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imbangala que provocou a intervenção militar dos Portugueses) seja por volta de 1857 [a realizar pelos comerciantes angolanos] até à Musumba que passava de um ano, ida e
(após a segunda crise — 1852 a 1856 — que levou à repetição da intervenção militar volta [pela grande estrada que contornava Kasanje pelo sul], a quatro meses» (28).
portuguesa).
Esta situação conforta, de maneira indiscutível, a teoria que já tínhamos sugerido, Mas o recomeço da guerra, em 1852, acabou por interromper outra vez as trocas
ou seja: a situação conflitual nunca pusera termo às actividades comerciais. É certo que até 1856. Os três anos seguintes representam um período de paz e de expansão comercial,
os comerciantes e as trocas se mostravam bastante incertos durante as operações militares um momento decisivo na consolidação do comércio «legítimo». O comércio ilegal,
mais importantes. Mas quando aparecia a menor réstia de paz, o comércio começava logo consagrado especialmente à comercialização dos escravos — torna-se, finalmente,
com vigor renovado, mobilizando os comerciantes europeus, assim como os vendedores secundário em Kasanje, como atestam os documentos provenientes dos negociantes aí
e os clientes africanos. Estas correntes comerciais só conheciam depressões transitórias, instalados, cujas preocupações giram quase exclusivamente em torno do marfim e da
a actividade pôde prosseguir até ao fim da década e mesmo para lá dela (23). cera (29).
A partir do período final da guerra de 1850-1851, que voltou a permitir uma O princípio dos anos 1860, outra vez marcados pelos conflitos armados e por uma
nova regulamentação do comércio em Kasanje e a abertura — mesmo que por pouco grande revolta dos Imbangalas, que atinge quase todo o sertão, coloca os Portugueses
tempo — da estrada directa para Luanda, o comércio voltou a impor-se com uma em situação difícil. A salvação só é possível graças ao abandono (o primeiro) de
amplitude considerável. Kasanje e à instalação dos comerciantes em Malanje. A paz restabelecida em 1862
Em 1851, quer dizer, imediatamente após a guerra, uma carta oficial dá conta da parece permitir a Kasanje uma retomada fulgurante do comércio, mas os Portugueses
rapidez com que a sociedade voltou a realizar operações comerciais: «cumpre-me levar tinham já decidido liquidar o poder imbangala. Por esta razão, o comércio imbangala
ao conhecimento de V.' Ex.' [governador de Angola] que se encontram desembaraçados foi desviado para Malanje, em 1867, operação que assinala o fim da hegemonia do
os caminhos do Quembo [feira instalada na região norte do reino de Kasanje] onde se acha Estado imbangala na região, ao mesmo tempo que se abre o caminho para a modernidade.
grande porção de marfim e cera, e não existe ali um só fio de fazenda para o negócio; Malanje passa a ocupar um lugar importante nas relações entre o antigo sertão e as
os Cassanges [Imbangalas] já vêm à feira principiando trazer algum marfim» (24). cidades modernas, dispondo de uma urbanização próxima das soluções europeias.
É como se o comércio se limitasse a encolher-se e a esconder-se como um caracol Se os anos 1857-1860 aparecem como um período charneira, no que se refere ao
na sua concha, para voltar a pôr os «pauzinhos ao sol», quando a guerra permitia comércio luso-africano na região, são sobretudo os anos 1863 — depois da guerra —
continuar as operações comerciais. Se não conhecemos as quantidades exactas de cera que marcam o início da reorganização do sistema comercial imbangala, que se caracteriza
de marfim concentradas nos armazéns da Feira, sabemos serem elas importantes, a então por ligações comerciais menos dependentes das autoridades políticas, quer dizer,
julgar pela profusão de tecidos que iam chegando a Kasanje (25) e as grandes cargas mais perto das práticas do comércio individual, isto é, do comércio português. Voltaremos
que seguiam nos barcos que saíam de Luanda para a Europa ou para a América (26). a esta questão fundamental: a autonomia do comércio começa a ser mais importante do
De acordo com Colette Palhares, «esta aceleração eufórica das transacções comerciais que as relações étnicas ou clânicas, o que reforça a função do comércio como agente
deve ser (...) atribuída a múltiplas razões»: de dissolução das antigas práticas comerciais inteiramente africanas, e explica, no
registo político influenciado pelo comércio, a degenerescência do poder do Jaga.
A guerra tinha bloqueado durante muito tempo, do outro lado do Kwangu, uma
Na realidade, esta situação de violência e de incertezas institucionais é também o
grande quantidade de produtos. Esta questão será reconsiderada mais adiante, pois, bem
resultado do abalo provocado pelas novas regras adoptadas e impostas pelas autoridades
pode acontecer que esta grande quantidade de produtos seja uma prática imbangala
portuguesas. Kasanje, como de resto uma parte da Angola ligada ao comércio
destinada a assegurar o armazenamento de mercadorias dirigidas ao comércio e que
internacional, teve de fazer frente a uma situação, em que se degladiavam as pulsões
podem ser requisitadas conforme as conveniências imbangalas (27);
dos negócios ilegais, clandestinos, oficiais e oficiosos, antes de conseguir adoptar situações
A nova regulamentação assegurava uma maior segurança nas transacções;
mais ou menos normais. Contudo, esta convulsão comercial só podia desencadear uma
3) A abertura de uma ligação directa com a Lunda e a redução «dostempo de trajecto
crise complementar, única maneira de conseguir elaborar a nova norma, que devia
separar-se de qualquer reminiscência do tráfico negreiro, fosse qual fosse a amargura
de certos sectores da vida comercial angolana, europeia ou africana.
Voltaremos a este assunto na parte consagrada à organização do «comércio legítimo».
Ferreira, ia Carvalho, 1898, p. 129.
Carta de Sal/es Ferreira ao governador_ 20 de Abril de 1853, AHU, Angola, Diversos,
doc. 122.
Portaria do governador-geral de Angola, 16 de Agosto de 1851, art. 6, 8 e 1, AHU, CGA,
cx. 615, 1851. Palhares, 1978, p. 93.
(27) Questão que vamos analisar mais adiante. Ver Cartas, doc. em anexo.

524 525
B. Arsénio de Carpo: um agente das modificações africanas nos anos 1860 começaram e em relação à ideologia portuguesa, sempre mal inspirada quando se trata
de definir o «espírito do capitalismo» em Portugal e nas suas possessões.
O momento decisivo da passagem comercial angolana para a época pós-tráfico Ligado ao comércio atlântico, Arsénio de Carpo mantém relações com as cidades
negreiro situa-se no Brasil: a legislação elaborada pelo senador Euzébio Queiroz encerra que gerem as suas estruturas: Lisboa, evidentemente, assim como o Rio de Janeiro. O
as costas e os portos brasileiros ao tráfico negreiro, que conseguira ludibriar as auto- antigo actor ( 34) havia organizado no Brasil actividades comerciais, casas e família,
ridades portuguesas e a marinha de guerra britânica. Mas é só nos anos 1857-1860, como tantos outros comerciantes da época, divididos entre Angola e o Brasil (35).
que a organização comercial angolana se consagra, de maneira decidida e exclusiva, à Vários autores dedicam, na sua atenção a este comerciante, algumas referências ou
comercialização das mercadorias «lícitas». algumas páginas bastante magras ( 36). Nos textos que lhe são consagrados, é apresentado
No interior, isto é, no sertão, o processo de mudança comercial começou a funcionar como um terrível negreiro e um comerciante retrógrado, capaz de tudo, não hesitando
em Kasanje, feira que os Portugueses acabam por abandonar em 1867. Tendo falhado perante o crime, para conseguir manter e desenvolver o seu tráfico de escravos.
o projecto da Feira de Mucari ou Mucary, os Portugueses conseguiram organizar-se em Os autores portugueses deixaram-se arrastar pela ideologia que deforma os
Malanje, logo a partir de 1862, o que contribuiu de maneira decisiva para desvitalizar documentos da época. Ora, a análise desta documentação e da personalidade de Arsénio
Kasanje. Uma operação desta dimensão não pode deixar de se apoiar nas estruturas permite apresentar o comerciante como um dos mais notáveis agentes da reconversão
políticas africanas: por essa razão, os Imbangalas desempenham neste quadro um papel económica angolana no século XIX (37).
importante, como havemos de verificar mais adiante. Podemos até considerá-lo como o interveniente fundamental desta operação, levando
Concentrámos a nossa atenção numa personagem central deste processo: Arsénio em linha de conta um duplo registo. Se a sua intervenção favorece os interesses da burguesia
Pompílio Pompeu de Carpo, que nascera no Funchal em 1792, e desembarcara em
Luanda em 1824, entre os exilados que tinham aderido à insurreição portuguesa de
1820, provocada pela luta entre os liberais e os adeptos do absolutismo.
Tendo participado de maneira muito activa nas opções políticas e comerciais de Filho de pedreiro, Arsénio aprendera muito cedo a profissão do pai. Certo das suas capacidades
Luanda, Arsénio de Carpo atingiu o zénite do seu poder durante a década de 1840 a literárias e artísticas, Arsénio abandonou o ofício para se tornar actor. O seu nome, Arsénio Pompílio
1850, não hesitando em se consagrar ao comércio negreiro de contrabando ( 3 °). Parece Pompeu de Carpo, é uma composição organizada com base nos nomes das personagens interpretadas
no teatro. Ver Biografia, 1846, p. 7, e Oliveira, 1981, p. 168.
alcançar o seu poder máximo em 1850, data durante a qual é descrito por Georges Tams
Em 1849, numa carta remetida às autoridades portuguesas do Rio de Janeiro, onde Arsénio
como o «único europeu (...) negociante de escravos, [que] andava [em Luanda] acabara de chegar após a sua expulsão de Angola, motivada por conflitos com o governador da colónia,
acompanhado por um criado branco, igualmente montado» (31). refere-se aos seus negócios brasileiros e à sua família — mulher e filhos —, instalada «nesta cidade
Em 1854, na sequência dos seus conflitos com o poder, o comerciante está instalado [Rio de Janeiro] há treze anos onde se demorou para concluir a educação de seus filhos». Doc. 19/1,
em Ambaca, e recebe Livingstone em sua casa com uma grande generosidade ( 32). Volta cx. 7, ANT.'', Legação Portuguesa no Rio de Janeiro, 1949.
a Ambaca após ter caído de novo em desgraça, procurando encontrar um lugar que lhe Deve todavia acrescentar-se que não parece ser a única «família» de Arsénio de Carpo, pois
encontramos um dos seus filhos, Arsénio de Carpo, no grupo dos intelectuais angolanos que, nos finais
permita refazer a sua vida angolana. Dois anos depois, em 1856, pede a Sua Majestade, do século XIX, princípios do século XX, procuravam criar as condições sociopolíticas para assegurarem
o rei de Portugal, «a graça de o nomear chefe de Talla Mugongo ou de qualquer outro a preeminência dos Africanos numa estrutura social muito movediça. Esta actividade angolana foi
distrito ou ainda mesmo de o prover em qualquer emprego civil» (33). amplamente analisada nas páginas da revista Angola, em artigos publicados entre 1935 e 1938, dos quais
Se nos fiarmos nas aparências, estamos perante o fim da vida de um homem que destacamos «As causas da nossa decadência mental», Angola, ano III, n.° 8, Novembro/Dezembro 1935,
desempenhara um papel decisivo nas escolhas feitas em Luanda. Arsénio de Carpo e «As causas da nossa decadência mental», ibid., ano IV, n.° 1, Janeiro de 1936. O modelo desta reflexão
encontra-se naturalmente em Antero de Quental, «As causas da decadência dos povos peninsulares».
concentra em si as qualidades e os defeitos principais dos homens que, sem capitais
Ver, por exemplo, Oliveira, 1981.
próprios, conseguem acumular uma fortuna considerável, em relação ao lugar onde A partir dos anos 1835, a actividade comercial de Arsénio, principalmente virada para o Brasil,
associa os escravos (o núcleo mais importante das suas exportações) aos produtos «lícitos», entre os
quais a cera. Em 1848, ele é co-autor, em Londres, de um projecto para a criação de uma companhia
destinada a assumir o desenvolvimento «do comércio, da agricultura e da indústria em Angola». Ver
Vários documentos denunciam a actividade negreira de Arsénio, sublinhando a grande dificuldade «Projecto de uma companhia para o melhoramento (...) que se deve estabelecer na cidade de S. Paulo
em encontrar testemunhas ou provas necessárias para o remeter para os tribunais. Ver Ofício confidencial de Assumpção de Luanda», 12 de Julho de 1848, A. A., 2' série, VIII, n.° s 31-34, 1950, p. 50.
do Governador-Geral Adrião Acácio da Silveira Pinto para o Ministro e Secretário de Estado dos Considerado correntemente pelas autoridades portuguesas de Luanda um «perigoso contrabandista» e um
Negócios Estrangeiros..., 29 de Setembro de 1848, AHU, Angola, pasta 14, 1848. «criminoso» (Doc. do AHU, CGA, 1846, cx. 606, pastas 10 e 31) Arsénio tornou-se um «angolano
Tams, 1850, p. 212. urbano» decidido a modificar as estruturas arcaicas do país, sem nunca perder de vista os seus interesses
Livingstone, 1859, p. 424. pessoais. Estamos a preparar um estudo consagrado a esta personagem fundamental da mudança angolana
Doc. de 8 de Fevereiro de 1856, pasta 22A, AHU, CGA, 1856. urbana para a modernidade nos anos 1830-1860.

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de Luanda — branca e mulata—, ela interessa também os Africanos, porque desempenhou Esta cidade conheceu uma rápida evolução administrativa. Em 1853, alguns
um papel exemplar na reorganização e no recomeço do comércio imbangala. comerciantes já aí se tinham fixado, o que levou o governo da colónia a criar no local
Continuando sempre ligado ao comércio de escravos, o rico comerciante organizou um presídio, em 1857, destinado a assegurar a ligação entre Ambaca e Kasanje (43).
várias operações que tinham como objectivo a modernização das estruturas urbanas Tendo-se transformado no mais importante centro comercial do interior, nos anos 1862-
angolanas (38), nunca esquecendo a necessidade de proceder a uma reformulação das -1863, Malanje foi elevada a concelho em 1867 (44), em consequência das reestruturações
relações com os territórios do sertão (39). administrativas que tinham dissolvido o antigo distrito de Talla Mugongo, a partir de
Não queremos limitar-nos a analisar, uma vez mais, os interesses associados ao então integrado no concelho de Malanje.
comércio de exportação organizado em Luanda, mas antes aquilo que nunca foi retido Em 1864, um documento assinado pelo chefe do concelho de Malanje, Ventura
pelos autores portugueses. Estes partem, em geral, do princípio que, obrigado a abandonar José, dirigido ao Senhor «Conselheiro Governador Geral», destinado a remeter «a
Luanda, por volta dos anos 1850, o comerciante tinha sido definitivamente posto de correspondência que me confiou o Ill.mo sr. comendador Arsénio Pompílio de Carpo,
lado. A literatura colonialista portuguesa considera, como uma espécie de «morte polftica», à cerca das boas notícias de Cassange», indica que este «cavalheiro segundo me informou
o facto de ter sido afastado da vida luandense e, apontado como sendo um negreiro e eu tenho presenciado segue hoje ou amanhã para Cassange com oitocentos serviçais,
pobre em relação à sua anterior riqueza, abandonado pelo poder (40).
conduzindo cargas de comércio no valor de 86 contos de réis» (45).
O que nos interessa na personagem é o que podemos chamar a sua «vertente Um segundo documento, datado de um mês depois, confirma que estas cargas
africana», que lhe permitiu desempenhar um papel na modernização das estruturas
partiram de Malanje, aproveitando para precisar que se tratava de «oitocentas e cinquenta
imbangalas.
e seis cargas de diferentes mercadorias, fazendas, pólvora, missanga, etc., no valor de
Não conseguimos saber se Arsénio de Carpo alcançou o cargo, tão desejado, de
86 contos de réis, sendo: 508 pertencentes ao negociante Arsénio, 130 ao Figueiredo,
chefe do distrito de Talla Mugongo. Pensamos que não, pois não aparece, nos documentos
100 ao Carvalho, 80 ao Rodrigo e 38 ao Jerónimo» (46). Se o Arsénio de Carpo é de
existentes, nenhuma referência que o confirme.
maneira tão evidente o comerciante que investe mais, é ele secundado por homens que
Foi todavia, pelos anos 1880, que Henrique de Carvalho escreveu: «Depois do
não hesitam em especular com este tipo de comércio.
abandono da feira de Cassange (41), apareceu aqui um Arsénio Pompílio Pompeu com
Em todo este processo de desenvolvimento comercial, Arsénio parece desempenhar
uma factura importante de Luanda, e que aguardava e animava as comitivas de Bangalas
um papel central. Não só aparece como o elemento dinâmico do comércio legítimo, mas
a internarem-se com comércio fiado para o interior. É daí que data a procura da
também faz pressão para que esta situação se torne corrente e normal nestas regiões
borracha e cera, e tal era a afluência destes produtos que às suas fontes sucedeu o
do interior. É assim obrigado a recrutar uma grande caravana, composta de quase
mesmo que à do marfim, foram-se esgotando», dado que os «indígenas» as tinham
novecentos carregadores. O comportamento de Arsénio diverge profundamente da maior
apanhado sem levar em conta o futuro. A abundância de borracha foi tal, nessa época,
que Arsénio de Carpo e alguns pequenos comerciantes não podiam satisfazer a oferta parte dos comerciantes europeus, na medida em que não hesita em chefiar a sua
destas duas mercadorias. As caravanas eram então obrigadas a tomar o caminho de caravana, para assegurar uma operação comercial directa. Será talvez, levando em
Malanje. A partir desta data, «Malanje tornou-se o verdadeiro entreposto comercial do conta este comportamento, que poderemos verificar a maneira como ele é recebido pelas
centro do continente [fornecendo mercadorias] para Luanda, sendo em princípio os autoridades africanas.
portos do Cuango por onde ele [o comércio] afluía» (42). Porque tudo indica que Arsénio de Carpo é persona grata entre os Imbangalas? Vários
Tudo leva a crer que Arsénio de Carpo se instalou em Malanje para poder assegurar documentos permitem-nos avançar esta hipótese. Deve assinalar-se, em primeiro lugar, que
a gestão dos seus negócios em Kasanje. Arsénio está presente em Luanda, convidado — assinando até a acta final—, em Setembro
de 1863, «para assistir à recepção da embaixada do Jaga de Cassange, e à confirmação do

Em 1849, Arsénio de Carpo ofereceu uma tipografia, papel e tinta para a Imprensa do Governo, Esta ligação fazia-se por via de caravanas que partiam e regressavam em datas previamente
porque, como ele diz, «Angola esquecia ainda a mais imperiosa necessidade quer do espírito, quer do fixadas, escoltadas por pequenos grupos de soldados armados. A viagem durava 15 dias, percorrendo-
interesse material — a imprensa periódica». Ver doc. XVI, 9 de Maio de 1849, A. A., 2.a série, vol. -se 20 km diários. Ver Portaria do governo-geral, BOGPA, n.° 597, 10 de Março de 1857.
VIII, n.°s 31-34, Janeiro-Dezembro 1951, pp. 47-48. «Relatórios do Governador-Geral ao Ministro dos Negócios Estrangeiros», 22 de Agosto de
Ver, por exemplo, Henrique de Carvalho (...), A. A., 1945, p. 254. 1867, AHU, CGA, cx. 642, pasta 37, 1867.
Ver, entre outros, Oliveira, 1981, pp. 168 e 190-191. Carvalho, 1898, pp. 248-249. A palavra serviçal é muito ambígua. Tanto pode ser utilizada
O abandono da Feira verificou-se muitas vezes, tal como a sua reabertura. Trata-se, neste caso, para designar os contratados, criados, como para indicar os escravos, como fazia, por exemplo, L.
da operação de 1862. Magyar.
(42) Carvalho, 1890, I, p. 272. Id., ibid., p. 250.

528 529
• • Ir,

Auto de submissão que, no dia 29 de Agosto último, foi assinado no Sanza [cidade situada Só assim, de resto, se pode explicar o aumento do número de comerciantes instalados em
entre Malanje e Kasanje] por parte do mesmo Jaga» (47). Kasanje. Poder-se-ia ter acreditado que a criação de Malanje viria a enfraquecer, de maneira
Na cerimónia, estavam presentes o governador de Angola assim como «o filho do sensível, a Feira de Kasanje, mas durante os primeiros anos da criação da cidade, as duas
Jaga, D. Bernardo Cassua Cambumba, e os potentados da sua família, Cassange organizações puderam manter um certo equilíbrio relacional.
Cangila e N' Gola-bole Angila» ( 48). Quem eram estas personagens que acompanhavam Mesmo que Kasanje tenha acabado por ser realmente suplantada por Malanje,
o filho do Jaga? Devemos ver nessa presença a prova da perenidade da partilha do poder parece que nos primeiros anos o comércio de Malanje continuou a depender das actividades
imbangala pelas três famílias? Seja como for, a presença de Arsénio de Carpo nesta realizadas pelos Imbangalas. Em 1865, a Feira contava «25 feirantes», que mantinham
cerimónia parece provar a importância da sua recuperação económica, mas também, ou as melhores relações com o Jaga ( 51 ), o que parece — assaz paradoxalmente, convenhamos
antes sobretudo, social. — permitir uma excelente oportunidade para assegurar a transferência para Malanje em
Outros documentos confirmam a carga positiva das relações privilegiadas 1867. Todavia, a explicação do paradoxo é das mais fáceis: trata-se de aproveitar a
estabelecidas entre Arsénio de Carpo e os Imbangalas. Estas relações estão longe de normalização das relações para permitir que comerciantes, mercadorias e dependentes
coincidir com os juízos feitos pelas autoridades de Kasanje a respeito do papel dos possam ser transferidos sem provocar a cólera do Jaga e do seu aparelho político. É
comerciantes, muitas vezes considerados pelos Imbangalas, como já sublinhámos, como certo que os Imbangalas estavam enfraquecidos, tendo acabado de sair de um longo
autores de violências (49). período de guerra, de destruições, de redução da actividade comercial, o que lhes
Tendo deixado Malanje a 16 de Fevereiro de 1864, à frente da sua caravana provocara a fome e a miséria, e esta situação só pôde ser resolvida graças à intervenção
comercial, Arsénio de Carpo chegou a Kasanje a 10 de Março, sendo ele e os seus dos Portugueses (52).
companheiros muito «bem recebidos pelo povo e com demonstrações de amizade e de Colette Palhares procurou explicar esta operação portuguesa: «em vez de se arriscar
desinteresse, o que em outro tempo não sucedia; o próprio Jaga não só a grande a ir em busca dos produtos, era necessário deixar que eles chegassem à colónia
distância do seu quilombo foi receber o negociante Arsénio, mas também tem mandado transportados pelos próprios africanos, que não podiam deixar de o fazer pois não
visitar a todos, sem interesse, não tendo mesmo querido receber sem aprovação minha conseguiam viver sem o comércio. Os lucros do mundo português não deviam sofrer
[trata-se de João José Libório, chefe da Feira, que escreve ao conselheiro e governador- muito, pois somas importantes perdidas antigamente no interior (roubos, impostos,
-geral de Angola] os presentes que voluntariamente lhe mandaram passados seis dias, taxas...) deixariam de ser deduzidas nas margens de lucro, o que viria contrabalançar
até que eu lhe mandei dizer que não havia inconveniente em os aceitar» (50). o nível mais elevado do preço dos produtos africanos» (53).
As boas relações parecem assaz transparentes: já não se trata de preparar ou de Estamos perante uma franca extrapolação que se serve dos argumentos portugueses
responder aos desafios militares, mas de assegurar ligações tão pacíficas como lucrativas para procurar explicar o que, como já vimos mais atrás, pode parecer inexplicável ou
a uns e a todos. É certo que não podemos atribuir apenas a Arsénio de Carpo a demasiado paradoxal. Constatamos que o comércio foi reactivado, não por ter recorrido a
responsabilidade da mudança, mas é a primeira vez que, na história dos dois grupos, uma espécie de espera nos armazéns de Malanje, mas em consequência do voluntarismo
o Jaga recusa os presentes ritualizados e espera que lhe seja dada autorização para de Arsénio de Carpo, que se apropriou do comércio para obrigar os produtores africanos
aceitar o que lhe é enviado, sem que ele, ou a sua, corte, tenha apresentado qualquer a voltarem a participar nas trocas normais. Podemos aceitar que esta intervenção do
exigência prévia. comerciante liberal e esclavagista seja em parte determinada pelos seus azares financeiros,
A questão parece-nos fulcral, porque se o tráfico negreiro implica sempre operações sem contudo deixar de reconhecer que ela se destina a dar outra vez vida às correntes
militares, assim como o recurso à violência, quanto mais não seja para manter os escravos comerciais que tinham caracterizado a vida de Kasanje. Em termos de marketing comercial,
na sua condição de dominados, o comércio «legítimo» implica um sistema de relações mais Arsénio procura assegurar a capacidade de Malanje, que deve aparecer como sendo uma
flexíveis, de modo a que os diferentes grupos estejam livres desta prepotência fundadora. cidade de negócios muito mais sedutora do que o fora Kasanje.
Parece que os Portugueses tentam levar a bem as operações complementares:
o comércio continua a encaminhar-se para o sertão, mas os comerciantes esperam que
os vendedores lhes tragam as mercadorias. Estamos na véspera da degenerescência das
Id., ibid., pp. 238-240.
caravanas comerciais que se dirigiam para as terras do interior, substituídas por comer-
Id., ibid. ciantes europeus distribuídos, de maneira irregular, da costa até ao sertão, os quais, por
O Jaga queixou-se, várias vezes, junto das autoridades portuguesas, das agressões cometidas
pelos comerciantes portugueses, sem contudo obter os resultados previstos. Ver, por exemplo, «Carta
do Jaga Dom Pascoal Machado (Bumba) ao Governador-Geral», 3 de Novembro de 1863, AHU, CGA, A respeito destas relações ver, por exemplo, id., ibid., p. 269.
cx. 673, pasta 32, 1863. Id., ibid., p. 251.
Carvalho, 1898, pp. 251-253. (53 ) Palhares, 1978, p. 116.

530 531
sua vez, são reforçados pelos comerciantes e carregadores africanos que aprendem a
Um documento anónimo de 1862 descreve a maneira como os navios devem
trazer as mercadorias aos estabelecimentos europeus. Castro Soromenho fez uma descrição
desembarcar as suas cargas, indo de porto em porto, pois é difícil encontrar clientes
apaixonante destes lugares-falsas cidades comerciais europeias instalados no mato, em
Terra Morta (54). A grande miséria comercial e moral destes homens explica o seu para a totalidade das mercadorias num único ancoradouro. Por outras palavras, esta
actividade não depende de uma relação comercial normal e estável, que teria encomendado
enselvajamento, assim como o dos filhos mulatos, rejeitados pela comunidade branca.
os produtos e os aceitaria de maneira formal, após verificação do peso, da medida e
Arsénio de Carpo compreendeu, antes de qualquer outro, que a única solução era
da qualidade. As relações de comércio não estão ainda suficientemente institucionalizadas,
a de se instalar na fronteira do sertão, dispondo de uma grande quantidade de mercadorias
e as operações de desembarque e, por isso, de cobrança do investimento são ainda
«lícitas», não mostrando a menor hesitação em investir somas deveras importantes. Era
bastante arriscadas.
destas instalações, que ainda não estavam no sertão, mas já o entreviam, que deviam
«Apenas fundeados [os navios] apresentam-se logo a bordo os negociantes mais
partir os seus delegados, e às quais haviam de chegar os vendedores africanos. Deve
espertos, para tratarem parte do carregamento, ou qualquer dos artigos que lhes faz
afirmar-se que o comerciante arrisca a maior parte da sua fortuna nessa única jogada
mais conta. Nota-se que os mais empenhados na compra são quase sempre aqueles que
comercial, cujo êxito dependia, em parte, da maneira como haviam de reagir os chefes
e os clientes africanos? menos dinheiro têm, e gozam de piores créditos» (55). As técnicas comerciais implicam
o recurso à maledicência, ao boato, destinados a liquidar a concorrência dos outros
Seja como for, assistimos a uma aposta comercial inteiramente centrada no comércio
homens de negócio: esta operação atinge, em primeiro lugar, os comerciantes para os
das mercadorias, que não procura já os escravos como negócio único. A reconversão
quais o capitão é portador de cartas de apresentação, e a quem é destinada a venda de
comercial, experimentada e falhada por D. Ana Joaquina dos Santos Silva e pelo seu
mercadorias.
associado Joaquim Rodrigues Graça, em 1843-1846, é enfim assegurada por Arsénio
As operações de descrédito do Outro são bastante mal apreciadas pelo Anónimo:
de Carpo, que deixa de ser o puro esclavagista da maior parte dos textos portugueses,
«Notei que em Angola de ordinário se mente muito: é um hábito decerto devido à
angolanos ou brasileiros, para se transformar no homem que se apercebe da importância
frequente convivência com os Americanos» (56). Pensamos que estes «Americanos»,
decisiva da modernidade comercial, que depende do comércio «lícito» garantido pelo par
modelos da mentira, são os Brasileiros ou, provavelmente, os Cubanos, então grandes
consti-tuído por Africanos e Portugueses.
consumidores de escravos africanos.
Se as referências ao crédito estão disseminadas no texto, devem reter-se as mais
C. A organização do comércio «legítimo» (1850-1880) importantes. Aparece, em primeiro lugar, a informação esperada e indispensável: há
pouco dinheiro em Angola. Esta situação obriga a que todas as transacções sejam feitas
1. O crédito: uma longa corrente da costa ao interior com base na troca. Apesar disso, o pagamento mantém-se muito lento. Quando o capitão
do navio perdeu toda a esperança de vender a pronto, aceita períodos de pagamento mais
Seria uma tarefa certamente difícil pensar em escrever a história do crédito em Angola. ou menos demorados: desta maneira, acaba por vender qualquer artigo ou qualquer
As condições tão particulares da actividade comercial angolana permitem supor que esta mercadoria. Dado que os prazos são longos e até eternos, quando Deus assim o quer,
técnica começou a ser utilizada muito cedo. De resto, o facto de existir um número o vendedor atribui às mercadorias o dobro do valor que teriam se fossem vendidas em
considerável de comerciantes europeus, que não dispunham de capitais próprios, reforça troca de dinheiro metálico. O comerciante angolano apenas pede tempo, e o preço só
esta ideia, pois não teriam podido funcionar a não ser recorrendo ao crédito. pode aumentar em função do prazo concedido ou pedido. Esta indiferença em relação
Podemos também sugerir uma hipótese: o recurso ao crédito reforça-se, quando se aos preços tem uma explicação: a maior parte dos comerciantes compram com a firme
regista a passagem do tráfico negreiro ao comércio «lícito». Os elementos que nos são intenção de não pagar, e abrem falência na véspera da data de satisfazer as letras
fornecidos pelos documentos da época parecem, em todo o caso, confirmar esta comerciais (57).
possibilidade, e podemos mostrar as diferentes graduações do crédito, sem as quais teria O mecanismo é grosseiro, mas podemos interrogar-nos a respeito das razões que
sido difícil manter as actividades comerciais normais em algumas regiões. Dispomos o mantêm vivo. Podemos, parece-nos, afastar o carácter inelutável do prejuízo dos
igualmente de informações, mostrando que o crédito foi também aprendido e utilizado comerciantes que trazem as suas mercadorias até à costa. A técnica do aumento excessivo
pelos comerciantes africanos. dos preços deve permitir compensar os atrasos ou as faltas de pagamento. Não se pode

(54) Obra editada no Rio de Janeiro, em 1948, pela Casa do Estudante Brasileiro (CEB). A Quarenta e cinco dias em Angola, 1862, p. 54.
tradução francesa foi editada em 1959 pela Présence Africaine. Id., ibid., p. 55.
(57) Id., ibid., p. 56.
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acreditar no carácter suicidário do comércio costeiro, e devemos explicar as razões pelas exclusivamente contra entrega de outros produtos, se bem que em algumas regiões as
quais este tipo de comércio pôde ser assegurado durante anos e anos. A resposta põe moedas locais — não convertíveis — possam circular. Esta situação financeira, que
em evidência a importância do crédito: a maior parte dos comerciantes angolanos, provocou o desespero dos Portugueses durante séculos, torna as operações comerciais
mesmo gozando de uma reputação de grande riqueza, não dispõe praticamente de ainda mais aleatórias.
numerário: compram e vendem a crédito e este depende da maneira como os seus Todavia, o nosso autor anónimo introduz neste inventário das situações difíceis,
devedores satisfazem — ou não — os débitos. provocadas por este tipo de vendas a crédito, um elemento complementar, ao qual já
O credor calcula sempre em função de uma larga margem de lucro, de maneira a tínhamos feito referência: o tempo. «Estas operações [comerciais] levam tempo infinito
poder conceder descontos suplementares, quando o devedor se queixa do preço muito a realizar, por causa das distâncias enormes que as fazendas têm de percorrer, e dos
elevado que lhe foi pedido. A situação é tanto mais interessante quanto estes clientes péssimos meios de transporte de que podem dispor os tais corretores» ( 59). De resto,
enviam a maior parte das mercadorias, assim compradas, aos seus agentes, instalados os comerciantes tornam as coisas ainda mais difíceis, pois não hesitam em falsificar as
nos presídios ou no sertão. Estes «corretores mulatos, chamados pombeiros e aviados», mercadorias, sobretudo os líquidos: a geribita brasileira — aguardente de cana — e o
vão para as aldeias e para as feiras — ou mercados — do interior, para levar a cabo vinho português são submetidos à graça do «baptismo», pois são generosamente
as suas operações de troca. Às vezes, os agentes desaparecem: doentes, mortos, retidos acrescentados com água de má qualidade e, às vezes, até com água do mar (69).
nas aldeias longínquas por chefes de carácter despótico, ou arruinados por parentes que Devemos contudo reter um elemento discretamente presente no texto: a maior parte
os obrigam a delapidar o seu fundo comercial que, na realidade, pertence a outrem (58). dos pombeiros e aviados são africanos, mulatos ou pretos. Os brancos estão instalados
O gráfico, que segue, pode ajudar a tornar visível esta renda da relação de crédito, em níveis institucionais superiores, o que permite que os homens, ditos de cor, possam
à qual parecem sujeitos todos os circuitos comerciais da costa até ao interior angolano: reservar para si o controlo do comércio realizado no sertão. Mas se retemos o aspecto
Mercadorias europeias ou americanas
positivo da operação, podemos também verificar que esta situação torna acessível o
desembarcadas pelos navios recurso ao crédito, a uma parte mínima da população africana. Temos até tendência de
pensar que foi essa, no plano comercial, a maior novidade introduzida pelos Europeus
no corpus comercial africano. De resto, estas técnicas não são praticadas apenas pelos
• Portugueses: elas caracterizam as relações comerciais estabelecidas entre os Europeus
Clientes do porto que recebem
entendidos, latu senso, e os Africanos.
as mercadorias a crédito ou contra a troca
de produtos africanos Um segundo gráfico pode ajudar-nos a dar conta das operações que a generalização
do crédito torna possível nos territórios do interior. A semelhança com o gráfico, que
nos serviu para mostrar a maneira como funcionam as relações comerciais entre o
capitão do barco e os comerciantes da costa, é flagrante. Mas ela não pode ocultar a
p. e av.
importância do circuito do crédito — ou dos créditos — no funcionamento das actividades
p. e av.
p. av. comerciais das regiões do interior. Como se o comércio «lícito» só pudesse funcionar,
pelo menos durante este período que se caracteriza pela transição, apoiando-se no
crédito abundante e universal:
p. = pombeiro
av. = aviado costa
p. do p. p. do p. = pombeiro do pombeiro
operação de subcrédito pombeiro ou aviado

Os passos destas operações comerciais são fáceis de identificar: passagem da carga empregado responsável no sertão
do barco, que vem ainda a navegar, para os comerciantes instalados nas cidades portuárias.
Estes podem vender uma fracção das mercadorias na própria cidade, mas a maior parte
será confiada a pombeiros e a aviados, que as transportam para o sertão, onde as devem
trocar por produtos africanos. Dada a ausência de moeda metálica, as trocas fazem-se aviado

Id., ibid., p. 58.


(58) Id., ibid., pp. 56-57. Id., ibid.

534 535
As únicas novidades autênticas, em relação ao esquema anterior, residem no facto podiam comprar à vista ou a crédito. Esta situação traduz, igualmente, a existência de
de os armazéns da costa poderem instalar uma sucursal, dirigida por um gerente que relações de confiança absoluta entre os comerciantes africanos e as grandes casas
é empregado da casa-mãe (caixeiro), ou então confiar as mercadorias a aviados, que
comerciais europeias, reforçada por outro esclarecimento fornecido por Serpa Pinto, que
prestam contas directamente à casa-mãe. Todavia, o empregado responsável por esta serve para confirmar as teses da cafrealização, ao mesmo tempo que mostra a
delegação pode, ele próprio, recorrer a aviados que levam as mercadorias para o sertão, complexidade do mecanismo das organizações comerciais: «não é difícil, no Bié, encontrar
dando conta ao empregado que, por sua vez, deve ter em dia os livros de contabilidade um branco Português, escapado dos presídios da costa, [trabalhando como] secretário
que, em princípio, a casa-mãe pode inspeccionar em qualquer momento. Nestas condições, de um preto comerciante rico» (65). Esta informação parece inteiramente natural a Serpa
só a casa-mãe arrisca as mercadorias, ou seja, uma fracção — que pode ser muito Pinto, mas é preciso considerar a maneira como funcionam os modelos europeus, que
importante — dos seus capitais.
provocam mudanças de vulto nas práticas africanas.
Numa das cartas do negociante António Roza d'Oliveira (61), são descritas as A branquização do sertão comercial africano é certamente importante, mas parece-
condições em que o jovem comerciante, sem capitais, consegue obter as mercadorias
-nos que o enriquecimento dos comerciantes africanos evidencia uma modificação parcial,
indispensáveis à sua instalação e à sua actividade: «Franco me deu uma carta para
mas nem por isso menos significativa, das estruturas africanas. Os comerciantes ricos
o Remígio para me dar todas as fazendas que eu precisar para Caçanges (sic); eu
não podem acumular ou não devem acumular. É por esta razão que a acumulação
estou bastante satisfeito, pois julgo fazer algumas vantagens, se a sorte me não for africana, como nos mostra o conteúdo do conceito upite (riqueza) — na sua primeira
adversária» (62).
fase —, deve ser transformada em mulheres e em escravos. Todavia, esta forma de
A falta de capitais pôde, por isso, ser superada graças, neste caso, a uma carta de acumulação não permite, de maneira alguma, uma actividade comercial permanente,
apresentação, que sabemos, agora, ser suficiente para agir como caução. Seja como for, razão pela qual os comerciantes instalados mais perto dos Europeus, mais particularmente
o jovem comerciante, obrigado a abandonar Portugal após alguns desaires financeiros, os instalados nas cidades, copiam o modelo europeu. É isso que permite o aparecimento
a respeito dos quais as cartas não fornecem a menor informação útil, consegue obter dos «comerciantes pretos ricos», cujo paradigma é Narciso Paschoal, que investe nas
em Luanda as mercadorias que lhe permitem instalar-se em Kasanje e levar a cabo grandes plantações agrícolas, o que lhe permite tornar-se um grande produtor de álcool
negócios que nos parecem bastante rendosos (63). de cana-de-açúcar.
Podemos completar esta análise, recorrendo a situações que caracterizam as formas As regras do crédito consideram a reputação — que resulta da experiência, e deve ser
comerciais do Bié, alargando-as, contudo, às regiões onde circulam as caravanas capaz de superar as formas de maledicência — assim como o património e as garantias. É
portuguesas e onde se instalam os comerciantes também portugueses. Serpa Pinto é certo que o crédito concedido aos pombeiros e aos aviados africanos é muitas vezes aleatório,
imperativo: «Muitos pretos conheço que negoceiam com um crédito de 4 e 5 contos de réis, mas os comerciantes da costa puderam manter a sua actividade, servindo-se deles. Isto
e alguns com mais, como o preto Chaquigunde, que foi escravo de Silva Porto, que durante quer dizer que eles não eram tão ruinosos como se lê em muitos textos portugueses, porque
a minha permanência no Bié chegou do sertão, onde tinha negociado por sua conta uma só eles podem irrigar o sertão com mercadorias europeias, que servem para suscitar a
factura de 14 contos de réis!» (64). O ponto de exclamação deve ser considerado como a produção africana, destinada às trocas com os Europeus.
expressão gráfica do espanto de Serpa Pinto perante a soma investida no comércio confiado A situação corre, todavia, o risco de se tornar crítica se os pombeiros morrerem ou
ao africano — que não dispunha de capitais próprios —, cuja aprendizagem técnica fora forem roubados, porque, nesse caso, o comerciante da costa não dispõe de nenhum
suportada pelo comerciante português. mecanismo capaz de lhe permitir recuperar o seu investimento. É por isso necessário jogar
As facturas, ou seja, as mercadorias só podiam ser obtidas junto dos grandes com os preços, o que torna muitas vezes as mercadorias portuguesas demasiado caras.
comerciantes brancos, que dispunham de consideráveis quantidades de produtos que Todavia, a banalização do crédito foi um dos elementos que permitiram a generalização
das mercadorias europeias e assim funcionou, pelo menos até aos anos 1960 (66).
Acrescente-se que a situação se conta entre as mais singulares: os Africanos limitam-
Ver documentos anexos.
Id., ibid., carta de 9 de Agosto de 1857.
-se a adoptar os comportamentos dos comerciantes brancos, como salienta Serpa Pinto:
Id., ibid., carta de 12 de Dezembro de 1859. Nesta data o armazém do comerciante ficou des-
truído pelo fogo e o seu desespero foi tal que quis lançar-se nas chamas. Tinha aí mercadorias no valor
de um «rol de contos de réis», «que não eram meus», mas de que ele era naturalmente o responsável. Id., ibid.
Este elemento mostra, uma vez mais, a importância desempenhada pelo crédito na organização deste
Em Luanda, nos anos 50, ainda se encontravam armazéns portugueses na Mutamba, que
tipo de comércio. O armazém depressa foi reconstruído pelos vizinhos, o que lhe permitiu recuperar,
mantinham as técnicas de venda a crédito, criados nos finais do século XIX: o cliente africano escolhia
assaz rapidamente, no plano financeiro; este facto leva-nos a pensar em taxas de lucro subindo aos a mercadoria, estabelecia com o comerciante o valor da prestação semanal a pagar. Este embrulhava
1000 %, e até em alguns casos mais.
a mercadoria — camisa, casaco, calças, vestido ou blusa — a qual só era entregue ao cliente quando
Pinto, 1880, I, p. 138. pagasse a última prestação.

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«Nas viagens sertanejas, aos Brancos seguiram-se os Pretos, e obtendo primeiro alguns, Todos os viajantes — onde aumenta paulatinamente o número de militares
depois muitos, um certo crédito na praça de Benguela» ( 67). Só podemos reter esta encarregados de «descobrir cientificamente» o país — agem no mesmo sentido,
«africanização» constante das operações comerciais europeias, que parecem confirmar o empenhando-se em nos fornecer as longas listas de produtos que carregam consigo para
desejo africano de assegurar, de maneira constante e total, a comercialização das o interior, destinados ou a oferecer «presentes» ou, então, a pagar os serviços prestados
mercadorias provenientes seja da produção agrícola seja da caça ou da colecta, asseguradas pelos Africanos (69).
pelas populações do sertão. O crédito constitui, por isso, o lugar da ambiguidade, quando Estes controlam com a maior atenção a qualidade dos géneros carreados pelos
não simplesmente da trapaça: os Africanos pensam em recuperar o controlo deste comércio, Europeus, obrigando-os a uma escolha minuciosa, pois se torna necessário respeitar o
mas na medida em que não dispõem do acesso aos portos e à exportação, limitam-se a «catálogo» das mercadorias preferenciais, que se organiza graças aos contactos estabe-
trabalhar para obter o lucro destes comerciantes. Encontramos aqui a fronteira técnica lecidos.
que transforma os comerciantes africanos em vítimas das operações de crédito. A fase Serpa Pinto menciona os produtos que transportou durante a sua viagem através da
seguinte, que não pertence ao quadro cronológico que traçámos, permitiu a multiplicação África, por territórios do Centro-Sul angolano. Trata-se de mercadorias especialmente
dos pequenos comerciantes brancos no mato, o que teve como consequência a eliminação destinadas a oferecer os «presentes» aos chefes africanos, mas servindo, sempre que
impiedosa dos seus homólogos africanos. necessário, para conseguir alimentos. As mercadorias apropriadas ao comércio nos sertões
explorados pelos homens do Bié são: zuarte, zuarte pintado, lenços de zuarte pintado, lenços
2. As mercadorias europeias e as escolhas africanas finos, lenços cangengos, fazendas de lei e riscados, «tudo da qualidade mais inferior...».
Por outras palavras, o comércio europeu também se pode organizar em função da falta de
As mercadorias provindas da Europa ou da América, eventualmente da Ásia, adquiridas qualidade, de maneira a obter-se o lucro máximo. No caso de Serpa Pinto, trata-se de reduzir
no próprio navio que as transportava, são destinadas, por um lado, ao consumo dos brancos as despesas de uma viagem destinada a adquirir informações científicas. O comércio no
— europeus ou americanos —, instalados na costa ou no mato, assim como — e mato recorre também às missangas e às pérolas de vidro, à aguardente (três barris de
aguardente) e duas grandes sacas de cauris — cujo volume não é pormenorizado —, pólvora
principalmente — ao comércio com os Africanos. Este comércio é em parte urbano, mas
e sal, arame de latão ou de cobre vermelho, destinado a fabricar manilhas, chapéus de
trata-se fundamentalmente de assegurar a irrigação dos circuitos de comércio do interior
comando vermelho, uniformes, etc. (70).
com produtos destinados aos agentes ou delegados das grandes casas comerciais, que
Os preços são frequentemente calculados em galinhas. Serpa Pinto afirma que uma
procuram obter as mercadorias africanas mais capazes de produzirem lucros. galinha valia uma jarda de tecido de algodão. Na região do Bié, as equivalências são
Os géneros desembarcados podem ser divididos em quatro categorias:
mais sistematizadas: o pano equivalia a 1 jarda de tecido; mas encontramos também
a beca (equivalente a 32 jardas de tecido); o lençol que valia 4 jardas e a quirama,
Produtos alimentares e bebidas europeias: vinho, carne seca, azeite, farinha de que se traduzia em 8 jardas do mesmo tecido (7l).
trigo, «sardinha de Nantes» (sic), conservas diversas, queijo, chá, açúcar de cana e de Isto quer dizer que mau grado a incerteza das operações comerciais no mato, uns e
beterraba, manteiga, legumes secos europeus, massas; outros, mas sobretudo os Europeus, procuram impor um quadro de equivalências
Produtos europeus de consumo não-alimentar: tecidos, chapéus, sapatos, luvas, permanente, permitindo que as mercadorias possam funcionar como uma espécie de moeda,
charutos e tabaco, cartas de jogar, louça e vidros, relógios, anilinas e pinturas, couros, cuja estabilidade seria a garantia da coerência do sistema comercial. Esta operação é
papel, artigos de «toilette» e móveis, cujo consumo pode ser alargado a algumas franjas duplamente importante: por um lado, define o catálogo das mercadorias indispensáveis a
da sociedade africana; qualquer relação com os Africanos, seja ela política ou comercial; pelo outro, permite que
Produtos de consumo «mixto», tanto europeu como africano: a diferença de o comércio possa dispor de algumas referências estáveis que autorizam os cálculos e as
qualidade do mesmo produto traça a linha de separação entre o que é destinado aos trocas, tal como permitem apreciar a importância dos presentes.
Europeus e o que será integrado nos circuitos africanos: espingardas, ferramentas, Capello e Ivens evocam as «mercadorias mais indicadas para circular nas terras
pólvora, objectos de ferro, pregos, garfos, colheres e facas; do Bié, Quiocos, Cassanje e Peinde». Esta indicação étnica e geográfica parece contar-
Mercadorias destinadas principalmente ao comércio do mato, tais como os -se entre as mais significativas, pois estabelece a identidade das solicitações e dos
tecidos de algodão branco e de cor, as missangas e outras pérolas de vidro, os lenços consumos das mercadorias de origem europeia. A partir do momento em que o bloco
para a cabeça, cobre e latão, etc. (68).

Ver, por exemplo, Carvalho, 1890, I, pp. 19-20. Mas deve também ver-se Gamitto, 1937, I,
pp. 24-25; II, p. 140, que procede ao inventário das mercadorias mais apreciadas na costa oriental.
Pinto, 1880, I, pp. 137-138.
Pinto, 1880, I, pp. 152-153.
Quarenta e cinco dias em Angola, 1862, pp. 52-53.
(71 ) Id., ibid.
538 539
comercial está assim definido, Capello e Ivens permitem-nos considerar a extensão de Contentemo-nos, contudo, com o essencial: em primeiro lugar, pode confirmar-se
um espaço comercial relativamente homogéneo, onde os valores possuem um certo a existência de um catálogo de mercadorias preferenciais, organizado graças aos contactos
parentesco, mesmo que, do ponto de vista político, se registe uma grande fragmentação. permanentes entre os dois grupos. Este catálogo é indiscutivelmente de grande utilidade,
Numa região caracterizada pelas fortes autonomias regionais, instala-se uma realidade
pois só ele permite a organização das caravanas comerciais, cujo modelo foi recuperado
comercial estrangeira, capaz de exercer uma forte pressão homogeneizadora, que reforça
a importância das identidades históricas. pelas expedições científicas. Os organizadores dispõem assim de um instrumento
A lista das mercadorias é assaz clássica: «algodões, riscados, fazenda de lei, panos fundamental, que permite confirmar a existência do duplo registo que define as economias
da costa, lenços de cor, zuarte, chitas de ramagens e contaria variada, tendo em vista que africanas: um circuito interior, autónomo, que não depende em coisa alguma das
a branca tem pouco valor no sul e só se aprecia na Lunda. O explorador pode levar consigo mercadorias e das economias europeias; um circuito externo, dependente dos valores e
missanga grossa, encarnada, missanga miúda, Maria segunda que é indispensável [quer das mercadorias europeias, sobre o qual os Africanos só podem exercer uma pressão
dizer pérolas de vidro vermelhas, brancas no interior], cassungo [pérolas destinadas aos muito reduzida. De resto, esta pressão manifesta uma tendência evidente para diminuir
bordados] de variadas cores». O viajante pode trazer também «fio e chapas de latão, nunca à medida que se define o catálogo das mercadorias preferenciais. A definição do
de cobre, alguma pólvora (...), sal em abundância», mercadorias que serão sempre bem catálogo permite, por sua vez, a estabilização, mesmo que relativa, dos termos de troca.
aceites. Devem acrescentar-se também as armas de fogo: «as lazarinas [armas de peder- A grande modificação provém da expansão do comércio fixo, sobretudo europeu,
neira, destinadas à caça], no sul, raiunas [armas antigas de pederneira] para empregar ao embora encontremos, em igual circunstância, comerciantes mulatos e pretos. Não é
norte, caixas de música (...) e tabaco do Bié», no caso da viagem passar pelo território possível, no quadro desta análise, renunciar a esta modificação técnica: a penetração
quioco (72). Estas cargas são essencialmente destinadas, no caso dos dois viajantes não- dos comerciantes europeus e dos seus muitos agentes permite propagar o número e as
-comerciantes, a presentear os chefes políticos. Talvez esta circunstância exija uma selecção funções dos comerciantes sedentários que renunciam às viagens para o interior, mesmo
mais apurada das mercadorias, que não se destinam a obter lucros comerciais, sendo curtas, para esperar fornecedores e clientes nas suas instalações comerciais. É por esta
reservadas às operações políticas. Podemos, por isso, aceitar o princípio de que a gama via que nos podemos aperceber do fim do comércio «branco», realizado pelas caravanas,
dos produtos orientados para as relações exclusivamente comerciais apresente algumas que serviu para criar a epopeia dos «sertanejos» (75).
diferenças importantes, mais particularmente no que se refere às armas de fogo, que
conheceram uma propagação fulminante nos primeiros anos do século XIX (73).
Os preços nunca se mantêm estáveis, procurando os Africanos adaptá-los 3. Os últimos dias do comércio «branco» de caravana
constantemente às contingências comerciais e políticas que lhes são próprias. Todos os
viajantes se empenham em nos fornecer números que podem ser utilizados para apreciar O comércio dos produtos provenientes do exterior — Europa, América, Ásia —
as situações económicas num momento determinado. Assim, no mato ocidental, a galinha foi, como já assinalámos, assegurado até à segunda metade do século XIX, por caravanas
pode ser trocada por 1 jarda de tecido, valendo um carneiro 7 a 10 jardas, e 1 boi, 60 organizadas e comandadas por Brancos, europeus ou brasileiros, que percorriam as
a 70 jardas. Estas equivalências variarão de aldeia para aldeia, de chefe para chefe. terras do interior para angariar mercadorias: homens e produtos africanos. Não encon-
Assim, no mato oriental, 1 galinha será trocada por 2 a 3 ketes de missanga. O kete tramos comerciantes asiáticos, embora se possa registar a sua presença, provindos de
é a distância que vai do dedo indicador à dobra do polegar, sendo as outras grandezas, leste, em espaços lundaizados. A procura de escravos dominou o comércio angolano
o doti, que mede 4 jardas, e a upanda, duas jardas (74). durante séculos. É certo ter sido alimentado por géneros importados, mas esta situação
Estas mercadorias não pertencem, por isso, ao circuito estritamente comercial, provocou um desequilíbrio evidente, que só pôde ser superado a partir da segunda
embora não se possa afirmar estarmos perante as destinadas às expedições científicas.
metade do século XIX.
Uma parte importante destas mercadorias serve para realizar operações de tipo comercial,
como a compra dos alimentos indispensáveis para sustentarem, pelo menos, os A grande modificação desencadeadou-se com a abolição legal do tráfico negreiro,
carregadores. Devem também servir para pagar as multas e os muc9anos, que continuavam que foi imposta pela legislação organizada pelo marquês de Sá da Bandeira. Já lembrámos
a caracterizar as relações dos habitantes das aldeias africanas com os viajantes e, mais a importância crucial desta legislação, que obrigou os colonos a modificarem os
particularmente, como não podia deixar de ser, com os estrangeiros. O estrangeiro que comportamentos e as mentalidades, mesmo que uma parte da literatura consagrada a
viola o território fica sempre sujeito à desconfiança, pois pode provocar catástrofes este problema continue a salientar a capacidade de resistência dos colonos às decisões
capazes de porem em perigo a estabilidade interna do grupo. da administração portuguesa de Lisboa. Temos a obrigação de pôr também em evidência

Capello e Ivens, I, pp. 6-7. (75) O grande devoto destes homens e destas actividades comerciais foi Castro Soromenho, cuja
Ver, a este respeito, Henriques, 1989. obra é portadora de uma contradição fundamental, partilhando-se entre a exaltação da intervenção destes
(74) Capello e Ivens, 1881, I, p. 6.
heróis do mato e a denúncia do aparelho administrativo colonial. Ver Soromenho, 1943.

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a influência de algumas acções, a mais famosa das quais foi certamente a embaixada portuguesas. Renunciando às caravanas, os comerciantes instalam-se nas feiras, nos
oficiosa dirigida pelo brasileiro, instalado em Angola, Joaquim Rodrigues Graça, que presídios, nos lugares estratégicos, nas encruzilhadas dos trajectos das caravanas, esperando
devia convencer os chefes africanos da margem direita do Kwangu, da necessidade de os carregadores africanos, que transportam as suas próprias mercadorias.
procederem à modificação radical das condições da produção de mercadorias, destinadas Encontramo-nos, por isso, perante um dos elementos mais polémicos da mudança,
ao comércio internacional. na medida em que ele assinala o reforço da associação estabelecida entre os comerciantes
Henrique de Carvalho, numa das suas sínteses mais felizes, salienta o valor deste e as autoridades portuguesas, civis, militares ou até religiosas. O bloco branco encon-
choque: os chefes africanos continuavam a «produzir» escravos que, deixando de ser tra-se concentrado nestas povoações comerciais, e os Africanos são forçados a deslocar-
pedidos pelos exportadores, alcançaram preços muito elevados, que desencorajavam os -se até às suas instalações para poder proceder à comercialização dos seus produtos.
comerciantes ( 76). Além dos escravos, os chefes africanos apenas podem propor É certo que os carregadores africanos podem boicotar um negociante para o punir da
mercadorias de pouco valor, que exigem o recrutamento de milhares de carregadores sua agressividade ou da sua desonestidade, mas a situação tornou-se irreversível: só o
para atingir a costa, única maneira de as fazer chegar aos mercados consumidores, recurso aos comerciantes europeus permite a compra e a venda das mercadorias.
europeus ou americanos. Face a esta situação, os Europeus são obrigados a fazer Não será possível, nestas circunstâncias, sugerir um elemento teórico essencial?:
contas, tanto mais que o século XIX é caracterizado pela agravação dos mucanos, seja qual for a violência dos confrontos armados, constantemente inventariados pela
situações conflituais que são às vezes de uma tão grande intensidade que se tornam versão «heróica» das histórias portuguesas e europeias de Angola, o comércio prossegue
perigosas, em termos de sobrevivência física. Estas operações africanas, cada vez mais a sua expansão, provocando uma descentralização dos valores e das práticas africanas.
raras, agravam de maneira sensível o preço de custo das mercadorias africanas e As armas de fogo, de que se servem tão habilmente os combatentes angolanos, só podem
desencorajam não poucos comerciantes. ser introduzidas e comercializadas pelos vendedores europeus. Sempre que se regista,
sob a pressão da administração, uma redução da pólvora ou das balas, os Africanos
Era por isso necessário impor uma alteração na estratégia comercial europeia.
são colocados numa posição de carência material, pois não dispõem dos meios que lhes
Podemos, de resto, encontrar certos sinais de mudança, indo no sentido de libertar o
permitam remediar tais situações.
comércio europeu de qualquer intervenção africana. As tentativas levadas a cabo para
A modificação das técnicas comerciais põe em evidência mais duas pulsões: a que
abandonar Kasanje aos Africanos, na segunda metade do século XIX, permitiram —
permite assegurar a expansão do comércio europeu, que arrasta consigo a redução dos
ou exigiram — a fundação de Malanje, cidade comercial portuguesa. O sistema de
controlos exercidos pelos Africanos. A redução do número de caravanas constitui o primeiro
comércio desta região está definitivamente alterado a partir de 1862: a cidade comercial
sinal desta nova orientação, que é, de resto, um dos resultados menos analisados da redução
e administrativa de Malanje adquire um prestígio evidente e parece repelir toda e da importância e do volume do tráfico negreiro, o que explica que as caravanas de carácter
qualquer tentativa africana de intervir na regulação das questões comerciais portuguesas. comercial, que alguns portugueses continuam a organizar, sejam de dois tipos:
A instalação da cidade, mesmo que ainda bastante «selvagem», permite que os
comerciantes portugueses se libertem das intervenções autoritárias africanas, que tinham As caravanas que perdem as suas características comerciais, sendo simples
sido capazes de travar, em algumas circunstâncias, a evolução normal das actividades estruturas destinadas a assegurar os transportes nos dois sentidos, levando para o mato as
económicas, agrícolas e comerciais, não só europeias, mas também africanas. mercadorias importadas, e assegurando a entrega das produções africanas às organizações
A resposta portuguesa resulta, por isso, da soma de dois factores, agindo de maneira portuárias angolanas. Estas caravanas continuam a ser indispensáveis, perante a ausência
concomitante: a expansão dos comerciantes, com instalações fixas por todo o sertão, e que de animais de tiro, a pouca extensão dos caminhos-de-ferro e a impossibilidade de utilizar
na maior parte dos casos servem de embrião às futuras «povoações comerciais», base da os cursos de água. Estes circuitos integram numerosos presídios e feiras, entre os quais
ocupação portuguesa de Angola ( 77). A modernização do comércio é assegurada por esta Malanje, Kasanje ou Mona Kimbundo e Bié, que se manteve a principal instalação
combinatória, que será paga pelos Africanos por um preço muito elevado, pois que esta portuguesa, virada para as actividades comerciais do Centro-Sudeste;
situação permitiu que os colonos os expulsassem destes circuitostomerciais. Como se tal As que se mantêm fiéis às estruturas de comércio no interior, mas quase
não bastasse, estes comerciantes europeus, que não dispunham de capitais, faziam do exclusivamente orientadas por agentes do comerciante branco, tanto mulatos como pretos,
sobretrabalho uma espécie de capital, permitindo-lhes assegurar acumulações, às vezes como já pudemos verificar. Estas organizações mostram tendência para se reduzir, dado
importantes, quando se comparam com o volume normal das fortunas comerciais não só a incerteza dos resultados, no que se refere aos comerciantes brancos, mas também
as vantagens oferecidas aos Africanos pelos novas estruturas comerciais que permitem
negociações mais eficazes, revelando-se os Africanos autênticos mestres na arte de opor
Carvalho, 1890, I, p. 270. os comerciantes brancos uns aos outros ( 78), de maneira a obter vantagens que podemos
M. Milheiros, 1972. A colónia portuguesa de Angola foi construída «por dentro» por estes
comerciantes isolados, cuja liquidação pelas autoridades angolanas, após a independência, prestou um
péssimo serviço às estruturas económicas do país. (78) Soromenho, 1959, p. 60.

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Z Z3Z,,,,L7,113,7,17 uswvzinffict~." =TI nivuurit
hoje considerar insignificantes, mas capazes de dar a vitória a uns sobre os outros na óptica
Uma observação de Silva Porto permite-nos saber que o banzo destinado à compra4".......11
dos mercados angolanos do século XIX, e até do século XX.
de serviçal só considera o pagamento da carga pois se trata de um «objecto movente».
Silva Porto (79) fornece-nos algumas informações a respeito deste segundo tipo de A coisificação dos homens-mercadoria limita-se a pôr em evidência a persistência do
caravanas, que organiza na sua instalação, em Belmonte, na região do Bié, por volta dos comércio interno de escravos, que não é apenas interafricano, pois que os Europeus
anos 1880: «Apresentaram-se pombeiros para as Ganguellas, e aos quaes fizemos ver que continuam a participar nestas correntes comerciais. O documento é datado de 1885, quer
a convir-lhes a viagem só na terra do Cuthy receberiam fazendas para a permutação do dizer, de um período durante o qual os ingénuos podiam ainda acreditar que a escravatura
marfim, no intuito de evitar o desperdicio a que constantemente estavam habituados. e os seus circuitos — internos e externos — tinham sido eliminados em Angola. Convém
Receberiam aqui as cargas em casa, e chegados á citada terra, tantos fossem os também observar que a análise de Silva Porto, que nesse aspecto mantém a estrutura
carregadores, tantos seriam os bansos a receber no mesmo ponto; e caso lhes conviesse a que encontramos em documentos do mesmo tipo, nunca faz a menor referência a homens
proposta tratassem de se apromptar, porque não teriamos duvida de cumprir o estipulado». ou mulheres empenhados, possivelmente, em consequência da importância da escravatura,
O autor dá indicações respeitantes à maneira como eram formados os banzos: que continua a circular utilizando os caminhos já clássicos do comércio interafricano,
«Bansos . — É o nome que aqui se dá á importancia da fazenda e generos inherentes, no qual se enxertaram os Europeus que desejavam obter uma força de trabalho estável.
contaria, polvora, etc., para a compra de uma ponta de marfim de lei; um serviçal, um pão Observemos, contudo, que o número de Europeus que se desloca para o interior
de cera ou uma carga de gomma elastica, presentemente que este genero tem principio de é cada vez menor, deixando estes lugar aos aviados, assim como aos ambaquistas,
ser explorado do interior e exportado para o litoral; é esta a fórma de que se compõe: nomeadamente na região centro-leste: Malanje e Kasanje. Os comerciantes europeus da
região recorriam frequentemente, para organizar as suas caravanas, aos carregadores
Valor Valor
Quantidade songos, que se tinham transformado numa espécie de carregadores profissionais,
em réis representativo
trabalhando em troca de um pagamento, que não pode ser comparado ao salário, embora
Banso de ponta de marfim de lei: dele se aproximasse. Esta especialização dos Songos não os coloca só ao serviço dos
Fazenda 56 $400 22$400 Portugueses, mas também ao das caravanas africanas (80). O aparecimento desta
Um maço de missanga 8 —$— 3$200
Um macete de roncalha fina «especialidade profissional» parece-nos particularmente importante, contrariando, pelo
8 —$— 3$200
Dois fios de coral e almandrilha 4 —$— 1$600
menos em parte, a ideia divulgada por um grande número de autores portugueses que
Um arratel de polvora 4 —$— 1$600 pretendiam estarem estas populações sempre preparadas para partir durante meses ou
Pagamento do pombeiro 8 —$— 3$200 até anos. O aparecimento de um grupo especializado parece indicar ou uma revisão dos
Pagamento do carregador do marfim 12 —$— 4$800 comportamentos face às mercadorias e aos Europeus ou, então, uma escolha que interessa
Pagamento do carregador do banso 4 —$— 1$600
Quibanda
não só os Songos, mas também as populações vizinhas, que assim se podem furtar à
4 —$— 1$600
Fazenda para comedorias violência e ao arbitrário que caracterizam, por vezes, esta actividade.
8 —$— 3$200
Um maço de missanga para comedorias . 8 —$— 3$200 Como eram organizadas estas caravanas europeias? Já consagrámos algum
espaço à análise da estruturação das caravanas africanas, assim como às tentativas
124 $400 45$600 para as «europeizar», levadas a cabo por alguns comerciantes europeus em meados
Banso de serviçal, cera ou borracha: do século XIX, e cujo melhor representante era Silva Porto. Serpa Pinto também
Fazenda 40 —$— 16$000 descreve o sistema em 1880, num percurso que ia de Benguela para o Bié, sendo o
Um maço de missanga 8 —$— 3$200 sistema o mesmo, no caso de o comerciante instalado no Bié pretender realizar uma
Dois fios de coral e almandrilha 4 —$— 1$600 viagem através do sertão, normalmente para outras feiras ou instalações do espaço
Pagamento do pombeiro 8 --$4.-- 3$200 considerado português. Acrescentemos que a organização das caravanas em Luanda,
Pagamento do carregador da carga 8 —$— 3$200
Pagamento do carregador do banso 4
destinadas a Ambaca, Malanje, Kasanje e regresso, ou entre as cidades «portuguesas»,
—$— 1$600
Quibanda 4 —$— 1$600
respeita com poucas variantes o mesmo esquema (81).
Fazenda para comedorias 8 —$— 3$200 É contudo necessário observar que um grande número de comerciantes recorre
Um maço de missanga para comedorias . 8 —$— 3$200 também aos serviços das caravanas africanas, entre as quais as constituídas pelas
92 —$— 36$800». populações do Bié, que se tinham transformado em comerciantes muito astuciosos,

Carvalho, 1898, p. 298.


(79) Porto, 1885, n.° 1, p. 24.
Pinto, 1880, I, pp. 139-140.
544
545
gozando de boa reputação em todo o território angolano. Os carregadores do Bié Porque mesmo que Serpa Pinto nos diga que a remuneração paga aos carregadores
possuíam uma qualidade que os tornava, por assim dizer, indispensáveis: as deserções é «diminutíssima» ( 84), nem por isso deixa de ser verdade encontrarmo-nos perante
eram muito raras e, qualidade suplementar, não roubavam nenhuma mercadoria. uma modificação. O carregador remunerado deve ser compreendido como alguém que
Tratava-se de comportamentos muito procurados, pois não havia maior desalento do foi recrutado fora dos sistemas africanos, sendo o recrutamento possível devido à
que o dos comerciantes ou dos viajantes abandonados em pleno sertão pelos popularização dos valores introduzidos nas relações profissionais pelos Europeus.
carregadores. Os Bienos contrastavam assim com um grande número de carregadores Trata-se, de resto, da medida suficiente da modernidade: o carregador que aceita
que não hesitavam em abandonar as cargas de que eram portadores, e que desta voluntariamente um contrato para receber uma remuneração, seja qual for a sua
forma se perdiam para os comerciantes brancos ou mulatos. Sabemos menos o que natureza e o seu valor, deixa de estar integrado no sistema africano. Procede a um
acontece com os Africanos (82). salto qualitativo e está, por isso, nas margens do sistema introduzido pelos Europeus,
Não será conveniente fazer observar que estas qualidades do carregador oriundo que funciona não só fora dos sistemas africanos, mas também — em não poucos
do Bié nos colocam face a um problema que contraria as observações enunciadas por casos — contra eles. Sob a pressão destes contratos orais, está a totalidade da
Silva Porto por volta de 1850 — confirmadas, pelo menos em parte, por Magyar — organização económica africana, que é obrigada a interrogar-se a respeito dos seus
respeitantes à sua reacção aos augúrios de todas as espécies, que se manifestavam próprios valores, que começam a ser repelidos pelas práticas europeias. Os homens,
literalmente em toda a parte, sendo necessário interpretá-las e obedecer-lhes? Será
que ainda há pouco só podiam trabalhar para os chefes políticos ou para a família,
possível acreditar numa espécie de laicização das actividades comerciais, que põem o
oferecem-se para estar ao serviço dos Europeus, em troca de uma remuneração, o
carregador ao abrigo das manifestações dos espíritos? Tal nos parece difícil de aceitar,
que retira a esta relação qualquer cunho africano. Os Africanos penetram assim no
mas as informações tendem a salientar o comportamento excepcional dos carregadores
espaço do capitalismo embrionário, por via de duas portas estreitas: o salário e os
do Bié. De resto, a banalização desta tarefa aparece na mudança do comportamento dos
impostos.
Songos, que encontraria uma espécie de confirmação paralela nas escolhas feitas pelos
Todas estas mudanças — registadas em primeiro lugar nas regiões que já tinham
habitantes do Bié (83).
sido integradas no «espaço português» — não seriam possíveis sem a banalização do
Mas ao mesmo tempo — o que nos coloca face à dificuldade experimentada perante
crédito, essencial tanto para uma parte substancial dos europeus como para os grupos
a multiplicidade das situações e das soluções — podemos verificar que o sistema de
recrutamento dos carregadores não sofreu grandes modificações. Ele mantém-se essencial africanos mais dinâmicos. O fim do comércio branco no sertão é acompanhado por uma
para os Europeus que, não dispondo de família africana, só podem apoiar-se em relações reconversão das estruturas, que reduzem cada vez mais — mesmo que pouco — o
de clientela ou de patronato. As caravanas africanas são sempre organizadas respeitando espaço que fora ocupado pelos Africanos: o poder político é vítima dos ataques constantes
o quadro do poder político, completado pelo parentesco. A novidade provém sempre dos da administração portuguesa — civil e militar —, enquanto os homens passam da esfera
Europeus e dos seus agentes, obrigados a agir fora deste quadro institucional e ritualizante, da aldeia e da autoridade africana para a condição de trabalhadores sujeitos à autoridade
graças aos salários e às gratificações oferecidas para obterem os homens de que precisam. portuguesa. É certo que o crédito permite o aumento constante do número de comerciantes
A profissionalização dos carregadores só pode ser compreendida como uma operação africanos, mas o simples crescimento demográfico europeu não tarda a pôr em perigo
que obriga a reorganizar o sistema: é certo que os homens recrutados para levar a cabo esta expansão, sendo as maravilhas do crédito cada vez mais reservadas aos Europeus,
estas tarefas de transporte continuam a ser africanos, não sendo contudo africano o favorecidos tanto pela banca como pelos grandes comerciantes seus pares (85).
sistema no qual passam a funcionar: este depende cada vez mais das práticas introduzidas
pelos Europeus, que dispensam fidelidade política ou relação parental. Por outras
palavras, as mudanças são certamente bastante subtis, o que não as impede de modificar 4. Comerciantes, mercadorias e conflitos na Feira de Kasanje
de alto a baixo os valores mais particularmente africanos. A partirdaí, convém considerar
as condições em que evoluem os sistemas, modificados por esta pressão dos valores ou Os Portugueses quiseram utilizar a guerra de 1850-1851 para proceder à substituição
das técnicas europeias. do Jaga rebelde, Bumba, por um chefe mais favorável às suas escolhas políticas e
comerciais. A perturbação política não faz mais do que se agravar, contrariando os
projectos portugueses, sendo o Jaga deposto forçado a refugiar-se no mato para escapar à

Id., ibid., pp. 139-140. Ver também Morais, II, 1885-1888, que acrescenta as «boas qualidades
de carregador» dos Bailundos, aparentados aos Bienos. Id., ibid., p. 140.
Pinto, 1880, I, p. 138. Trata-se do Banco Nacional Ultramarino criado em 1864. Ver Torres, 1991, pp. 91-109.

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perseguição dos Portugueses, que pretendem capturá-lo para o enviar para Luanda, de culturas onde as plantas africanas se confundiam com as que tinham sido importadas
como fizeram no caso de outras autoridades imbangalas (86). da Ásia ou da América. A recuperação parece, por isso, extremamente rápida, quando
A situação torna-se deveras complexa, pois os Imbangalas são colocados perante o sistema permite voltar a endireitar as actividades comerciais, sem as quais Kasanje
a necessidade de escolher entre dois chefes políticos: o que fora entronizado de acordo não possui o menor valor para os Europeus (90).
com as regras tradicionais e aquele que, designado pelos Portugueses, procura recuperar A guerra prossegue até 1856, mas o Jaza Bumba não consegue voltar a bloquear
uma certa legitimidade, na ausência de carisma que, tudo o indica, pertence ao Jaga os circuitos comerciais da Feira. Os homens de negócio apercebem-se então de dois
deposto. Bumba recomeça, de resto, as operações militares em 1852, atacando as acontecimentos principais: a instabilidade política do Jaga torna-o menos preponderante
instalações da Feira assim como o kilombo onde se encontra instalado o chefe «usurpador». nas relações com as populações africanas; Malanje dá provas de uma certa eficácia
Estas operações de guerra mobilizam na prática a quase totalidade dos Imbangalas económica e parece capaz de se manter à margem dos conflitos armados que devastam
e provocam uma grande perturbação, criando um desequilíbrio do sistema comercial, o espaço político — e económico, como é evidente — dos Imbangalas.
que convalescia das feridas provocadas pela violência dos ataques portugueses. É em consequência da sua instalação na cidade e das necessidades de libertar o
Destruições e incêndios obrigam a maior parte dos comerciantes brancos a abandonar comércio dos colapsos polfticos e económicos de Kasanje que os comerciantes e as
a cidade e a instalar-se em Malanje, que entrementes se transformara no lugar onde os autoridades portuguesas são levados a criar uma feira em Malanje. Uma feira
Brancos podiam abrigar-se dos ataques repetidos dos Imbangalas. «portuguesa», ou mesmo até «branca», que deixaria de depender dos caminhos africanos.
Os comerciantes europeus e os seus dependentes ou associados são obrigados a Esta feira devia atrair «um núcleo [importante] de negociantes europeus que com o
submeter-se a um ritmo de harmónio: permanecerem na Feira durante algum tempo, tempo fundariam uma povoação» (91).
para se refugiar em Malanje se as perturbações se revelarem suficientemente ameaça- Os Portugueses, autoridades e comerciantes, não desejam afastar-se muito de Kasanje,
para exercer um efeito de aspiração, que lhes permita recuperar os seus fornecedores,
doras para as vidas e para as mercadorias. O regresso a Kasanje opera-se sempre que
assim como os clientes e até os caminhos comerciais. Esta situação ajuda-nos a
a esperança de paz pareça confirmar-se, e foi este o ritmo observado durante a década.
compreender a natureza do laço íntimo existente entre as duas feiras, a «branca», que se
Todavia, esta instabilidade não impede as actividades comerciais. Em Outubro de 1853,
desenvolve, e a africana, que começa a estiolar. Alguns comerciantes que se instalam em
«a Feira se acha em completo sossego, abundando o marfim, cera e mais géneros do Malanje conservam, apesar disso, as suas ramificações em Kasanje, como se regista no
sertão, mas notando-se grande falta das fazendas que desta cidade [Luanda] costumam caso de Arsénio de Carpo, no princípio dos anos 1860. O período de transição é de resto
para ali mandar-se» para assegurar a troca com os produtos africanos (87). bastante demorado. Um certo número de comerciantes, sobretudo os que tinham vivido
Quais são as razões que provocam a rarefacção dos produtos provenientes do durante anos na Feira de Kasanje, considera as suas instalações em Malanje como
comércio atlântico e indispensáveis à manutenção das operações comerciais normais? provisórias. Logo que a paz volta, eles regressam a «casa».
Podemos verificar que o eco dos combates no mato impressiona os comerciantes de Na verdade, parece que a Feira nunca chega a perder todos os seus inquilinos
Luanda, o que serve para mostrar a distância física e ideológica que separa então a europeus. Em 1852, após alguns confrontos muito mortíferos, e alguns incêndios, estão
cidade capital das cidades do interior (88), onde as perturbações provocadas pelos aí instalados pelo menos 16 comerciantes — feirantes — que não abandonaram a Feira
Africanos são ainda possíveis e frequentemente graves. e, ainda menos, as suas mercadorias (92). Deve compreender-se que só a defesa dos seus
Todavia, em 1854, a cidade parece ter curado as feridas e criado o dispositivo haveres os obriga a manter-se no local de maneira tão determinada? É possível, mas
comercial clássico (89). Com efeito, Livingstone, tendo passado pela Feira, descreve a em 1852 o comandante-geral da Feira, Francisco de Salles Ferreira, afirma que a
cidade «branca» como estando bem organizada, contando um número bastante elevado situação está calma, não parando o «giro da Feira», tal como não se regista falta de
de comerciantes aí instalados de maneira permanente, em casas aceitáveis, e dispondo «rações» (93).

De que maneira a Feira de Kasanje recebe as mercadorias europeias? Em linha


Ver Neves, 1854, pp. 9-11. Denuncia o comportamento, pelo menos pouco leal, de Salles recta, a cidade portuária de Luanda está apenas a 300 km, distância que, sem exagero,
Ferreira em relação aos chefes imbangalas que, confiando nas promessas feitas, aceitam regressar aos é bastante reduzida, mas que na prática se revela difícil de superar, pelo menos até aos
seus domínios, para se encontrar logo a seguir metidos a ferros nas prisões de Luanda. primeiros anos após a Primeira Guerra Mundial. Eram necessários muitos homens para
Carvalho, 1898, pp. 171-172.
As relações estão de tal modo institucionalizadas que só começarão a ser modificadas a partir
de 4 de Fevereiro de 1961.
Parece que, como já observámos, os comerciantes de Kasanje estão habituados a estas catástrofes. Livingstone, 1859, pp. 411-414.
O facto de as construções serem inteiramente de madeira, com telhados feitos com ramos de palmeira Carvalho, 1898, p. 172.
e capim, torna-as presas fáceis das chamas. Inversamente, as suas recuperações não são difíceis, pois Id., ibid., pp. 161-162.
que o sistema de entreajuda e a mobilização dos escravos facilita as operações. Id., ibid., p. 163.

548 549
garantir os transportes, assim como estradas seguras e de circulação barata, para que Esta situação é o resultado da recusa dos Imbangalas que, não aceitando trabalhar
as operações comerciais pudessem dar lucros interessantes, mesmo que relativamente como carregadores, não hesitam em recrutá-los entre as populações vizinhas, só transpor-
modestos. tando voluntariamente as mercadorias que lhes pertencem. Devemos pensar que esta
É logo nos primeiros anos da segunda metade dos século XIX que começa a actividade lhes parece particularmente desonrosa, ao ponto de não aceitarem alugar os
esboçar-se a importância desta nova organização urbana de Malanje, nas relações seus serviços a nenhum comerciante, europeu ou africano?
comerciais com a Feira. As mercadorias chegam a Kasanje graças aos circuitos que Por quem e em que circunstâncias são enviadas estas mercadorias que chegam a
dependem de Malanje: a velha organização africana que tolerava os Portugueses é Malanje ou a Kasanje? O sistema de contrato estabelecido entre as três estruturas
substituída por um burgo mais consentâneo com os interesses europeus (94).
urbanas é importante, pois permite dar conta dos compromissos que se organizam entre
As mercadorias são enviadas de Luanda, respeitando as regras observadas pelas
os comerciantes europeus, que nem sempre rejeitam os seus colegas africanos, e que
caravanas de transporte, organizadas na cidade-capital. Os comerciantes europeus agem
só podem funcionar graças à participação dos produtores africanos.
de maneira concertada, para impedir os roubos, assim como para assegurar o
Uma constante: o crédito. Quer se trate das grandes casas comerciais de Luanda,
embaratecimento destas operações, demoradas e perigosas.
de acordo com os feirantes independentes do interior, quer disponham elas próprias dos
Para fazer face à instabilidade das estradas, é organizado um serviço de caravanas,
caixeiros entre os comerciantes instalados em Malanje ou em Kasanje, o sistema não
tendo como objectivo proteger a circulação dos homens e das mercadorias da cidade
de Ambaca para o interior, onde os problemas de insegurança constituíam uma autêntica pode furtar-se à «tirania» do crédito. Alguns comerciantes de Malanje e de Kasanje,
ameaça à sua integridade. Este serviço de caravanas, organizado conforme o esquema gozando de um certo desafogo económico, podiam obter representantes em Luanda, que
geral que já descrevemos, recorria a carregadores remunerados, e ligava Ambaca a se ocupassem em conseguir e remeter as mercadorias necessárias às trocas, os quais
Kasanje, com passagem por Malanje. se encarregariam, por outro lado, da exportação das que chegavam à cidade, vindas do
As caravanas partiam e regressavam em datas fixas, escoltadas por uma pequena interior.
força armada ( 95). De tempos a tempos, o governador-geral de Angola enviava expedições Já nos servimos das cartas, infelizmente pouco numerosas, do comerciante António
ao longo deste percurso, para «limpar» os caminhos ( 96), onde a falta de segurança se Roza d'Oliveira, que, de resto, publicamos em anexo. Chegado a Luanda já adulto,
tornara crónica. educado no Ribatejo e em Lisboa, Roza d'Oliveira esteve em Kasanje durante os anos-
Esta situação era agravada pela dificuldade registada na obtenção de carrega- -chave do crescimento do comércio «legítimo», entre 1858 e 1860. A sua correspondência
dores, certamente em consequência das violências e dos abusos cometidos pelos salienta a importância da entreajuda europeia, que se verifica não só no que se refere
comerciantes ( 97), o que, já em 1851, obrigava as caravanas, que iam de Luanda aos acidentes e prejuízos locais, mas também àqueles que se registam alhures, mesmo
para o interior, a deterem-se no Golungo Alto. Os comerciantes não conseguiam em Portugal (99).
encontrar homens em número suficiente para irem para o interior, ao passo que no Não parece que este comerciante dispusesse de mais pessoal que não fossem os
Songo e nas regiões do Kwangu os esperavam muitos produtos da região, «como escravos, aos quais, acrescente-se, nunca faz referência. Somos levados a acreditar que
cera, marfim, etc. para se permutarem agora mais livremente» (98). as operações de troca se realizavam no seu armazém, onde dispunha dos géneros que
lhe eram confiados a crédito. Ele pode assim acumular cerca de 35 contos de réis de
mercadorias (100), o que representa uma soma importante. A sua actividade comercial
As mercadorias chegam directamente de Luanda, destinadas aos grandes comerciantes de Kasanje, parece interessar-se principalmente pelos dois produtos «legítimos», o marfim, do qual
pela estrada de Malanje, itinerário preferido por razões de segurança. Neste caso, Malanje ocupa neste enviara para Lisboa alguns dentes, para reduzir o débito que tinha em relação a seu
itinerário apenas um papel táctico, que não altera, de maneira alguma, a estratégia comercial clássica. Começa tio, e a cera, de que remete para Lisboa, em 1860, 2364 libras cor,.) Trata-se de uma
todavia a registar-se uma alteração significativa, pois que as mercadorias chegam também a Kasanje cera amarela, não sendo fornecida nenhuma referência, nem a respeito da origem nem
fornecidas por Malanje, quer dizer, por intermédio dos comerciantes de Malanje que instalaram agentes
do preço de compra.
ou delegados em Kasanje ou, então, devido à iniciativa dos agentes dos comerciantes de Malanje, instalados
em Kasanje. Podemos contudo acrescentar que a actividade comercial de António Roza d'Oliveira
Portaria do governador-geral, 10 de Março de 1857, BOGPA, n.° 597. está organizada da maneira mais clássica, e se o comerciante se queixa da indiferença da
Tal se registou em território songo, em 1857. Ver Ofício do governador-geral, 10 de Agosto sua família portuguesa — nenhum dos irmãos responde às suas cartas —, tal não o impede
de 1857, BOGPA, n.° 628.
Ver Carvalho, 1898, pp. 252-260, onde a questão das agressões infligidas pelos comerciantes
portugueses aos carregadores é descrita em várias passagens.
(98) Id., ibid., p. 132. As dificuldades são de novo evocadas durante o ano de 1865, em Malanje,
por Carvalho (1898, p. 262): «Manuel Martins de Carvalho (...) vem ver [a Malanje] se engaja 700 ou ( 99) Ver Carta de 13 de Dezembro de 1859 (em anexo).
mais carregadores para lhe transportarem as cargas que ali tem [em Kasanje], assim como as que (100) Ver Carta de 27 de Abril de 1859 (em anexo).
pertencem ao negociante Arsénio Pompílio Pompeu do Carpo». (mi) Ver Carta de 4 de Junho de 1860 (em anexo).

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de prosseguir a sua actividade comercial, para obter os lucros que lhe permitam regressar Kasanje, constituíam concorrentes perigosos para o negócio português, tal não os impedia
a Portugal, preparando-se para desfrutar os seus rendimentos junto do tio paterno, que o de desempenhar um papel importante na expansão do comércio imbangala. Esta situação,
comerciante considera como sendo seu «pai» (102). reforçada pela via comercial para a costa angolana ao norte de Luanda, permitiu resultados
Todavia, a Feira de Kasanje é também procurada pelos negociantes vindos do Norte importantes no quadro das práticas comerciais imbangalas.
e, mais particularmente, de Ambriz, cidade onde se concentram mercadorias portuguesas Estes agentes do comércio de Ambriz inscreviam-se também, desta maneira, no
e estrangeiras. Após a ocupação da cidade pelos Portugueses, o comércio conhece aí um quadro do negócio a crédito, e as caravanas de transporte das mercadorias podem ser
desenvolvimento considerável. Um documento de 1855 salienta que nunca se tinha regis- perfeitamente integradas na tipologia que estabelecemos. Os famosos e parasitários
tado uma tão grande afluência de cobre, de marfim e de cera. O autor do documento subli- linguisteres inserem-se nestas estruturas, mas nunca as modificam.
nha igualmente que os «Negros estão em paz», não hesitando em frequentar os armazéns Os anos 1861-1862 são caracterizados pelo recomeço da guerra: as consequências
comerciais para conseguir mercadorias a crédito e ir comerciá-las para o mato (103). são idênticas às que já observámos. Quando a paz se restabelecia, os negócios
Estes armazéns dispunham, de resto, de um sistema capaz de atrair os comerciantes recomeçavam da melhor maneira, e esta melhoria prolongou-se, como já observámos,
até aos anos 1867, como se a guerra não fosse, feitas as contas, mais do que um
africanos: todos tinham ao seu serviço um ou mais linguisteres (ou lingsteres), intérpretes
ou «recrutadores do comércio», que falavam o português de maneira assaz satisfatória. adjuvante do comércio (107).
Cada uma das crises, caracterizadas pelas lutas armadas, provocou o abandono total
Vestiam-se meio à portuguesa, meio à indígena, quer dizer, não renunciavam aos panos e
ou parcial da Feira, assim como destruições importantes, cujas cicatrizes eram rapidamente
não usavam sapatos.
eliminadas sempre que as hostilidades se regularizavam graças a negociações, qualquer
O pagamento e a retribuição que recebem habitualmente os linguisteres ou
que fosse o seu tipo. As crises deste período estão quase todas associadas às tentativas
cambuladores — nome que lhes é dado no Sul — é representado por aguardente, tecidos
do jaga Bumba de recuperar o poder, coisa que os Portugueses nunca consentem. Após
e vestuário. Um responsável por um entreposto tem sempre em grande estima um bom este ciclo de guerra, as casas são reconstruídas sob a direcção do comandante Libório,
linguister, pois é ele que lhe permite fazer ou não bons negócios (104). de maneira a permitir que as actividades comerciais normais substituam o furor da guerra.
Este comércio, que se dirigia para o Ambriz, recorria também aos intermediários Em 1864, o chefe do distrito de Talla Mugongo considera que as casas estão «em bom
— pretos na sua quase totalidade — das casas comerciais europeias instaladas no porto
estado, faltando-lhes apenas janelas e portas» (108).
do Norte. As autoridades lusas consideravam-nos como sendo «agentes do contrabando», A Feira de Kasanje era, uma vez mais, posta em estado de funcionar, aumentando o
já que se esquivavam ao controlo oficial português. comércio de maneira considerável. Esta situação permitiu que o «negociante Carvalho (...)
Em 1856, Salles Ferreira encontrou na região de Kasanje, onde continua a ser em menos de dois dias depois da sua chegada [comprasse] sem grandes esforços para
comandante, «pretos do Congo que me pediram não fizesse mal a uma grande conducta mais de mil e quinhentas libras de cera e algum marfim, ficou admirado de assim o ter
de pretos carregadores de marfim que eles conduziam (...) Os pretos (...) vieram chamando conseguido, pela experiência que tinha do modo (...) extremamente moroso como
os carregadores de marfim até ao local do acampamento (...) e ficaram comigo até antigamente se fazia aqui o negócio» (109). Talvez possamos ver nestas operações o peso
ontem, em que seguiram para o Ambriz levando uma guia que me pediram para ir de Arsénio de Carpo, cujo dinamismo parece ter «revolucionado» o comércio imbangala,
directamente à povoação da Fortaleza, sem serem incomodados pelos Lingsteres do ex- caracterizado por uma espécie de vaivém vigoroso com Malanje. Em 1864, «três casas
-régulo [do Ambriz que tinha sido expulso pelos Portugueses durante a ocupação na comerciais despachavam para Malanje cento e cinquenta cargas com cera e marfim e
década de 1840], que no caminho ainda costumam exigir antigos e injustos costumes mais seguiam de outros negociadores em pequena escala» (110). Os armazéns da Feira
de corretagem [quer dizer, direitos de entrada]» (los). estavam abarrotados de produtos africanos, consequência da abertura dos «portos» do
As queixas contra estes linguisteres eram de resto correntes, porque se tornava Kwangu, mais ou menos à altura de Kasanje, onde os Africanos do sertão traziam os
impossível realizar operações comerciais com as autoridades do interior sem passar pelos seus produtos.
linguisteres de Ambriz. Esta intervenção era destinada não só aos nacionais, mas também Em 1864, um documento assinala a chegada de «um dos 5 cacuatas do Mwatianvwa,
aos estrangeiros (106,.) O paradoxo não deixa, no entanto, de ser interessante: se estes que (...) [estavam em viagem para Kasange] tinha chegado com marfim» (m,.) Esta
agentes das casas comerciais europeias de Ambriz, que alimentavam também a Feira de
Capello e Ivens dão-nos a saber que os Imbangalas avisavam os comerciantes antes de
começar uma guerra, de maneira a que os estabelecimentos comerciais e as mercadorias estivessem
Ver Carta de 27 de Abril de 1859 (em anexo). protegidos contra a destruição quase inevitável provocada pelos combates, 1881, I, p. 293.
Doc. de 7 de Novembro de 1855, AHU, CGA, pasta 22A, 1856. Carvalho, 1898, p. 259.
morais, 1885-1888, Vol. I, s. p. Id., ibid., pp. 252-253.
Doc. (592) de 13 de Agosto de 1856, AHU, CGA, pasta 22A. Id., ibid., p. 254.
(106) Doc. de 10 de Outubro de 1856, id., ibid. (111) Id., ibid.

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operação parece assinalar uma reorientação das relações com os Lundas centrais, há Num registo mais doméstico, estas dezenas de milhar de toneladas de mercadorias,
muito tempo desejadas, dado o que se sabia acerca das manadas de elefantes que que atingem os portos do Atlântico, são produzidas a milhares de quilómetros dos locais
circulavam nos territórios vizinhos da África oriental. de embarque, e devem chegar em boas condições aos estabelecimentos dos Europeus.
É neste contexto de crescimento comercial, que o abandono da Feira de Kasanje Os circuitos comerciais controlam tanto o comércio, que se embrenha no sertão, como
pelas autoridades portuguesas cai como uma bomba, em 1867. De 1867 a 1874, a Feira aquele que aí tem a sua origem. É impossível abstrair-nos desta mobilização dos
vai perder a sua vida, não podendo os comerciantes fazer mais do que partir após a carregadores, mola vital das relações comerciais num país e num território onde os
saída das autoridades portuguesas, o que terá incidências na organização económica de cursos de água são pouco numerosos, e onde faltam os animais de tiro.
Malanje, onde a partir de 1868, os núcleos europeus do «concelho de Malanje (...) se O nosso objectivo é dar aqui um resumo do movimento exportador durante o
foram restringindo com o tempo» (lu,.) Os Portugueses tinham desejado criar uma período 1840-1880, de maneira a pôr em evidência os abalos provocados pela passagem
cidade autónoma, mas Malanje só vivia em função do comércio de Kasanje. O abandono do comércio de escravos — que, como dizem os contabilistas da colonização, não
da mais célebre feira portuguesa do interior angolano só podia provocar repercussões
exigiam carregadores, pois podiam dirigir-se para a costa pelo seu pé — ao comércio
graves no comércio da cidade.
Kasanje desaparece dos relatórios oficiais e dos documentos portugueses entre 1874 «legítimo».
Voltemos por isso ao que, sendo demasiado evidente, é frequentemente ocultado
e 1882. Em 1882, a Feira é reocupada pelos Portugueses, a pedido do Jaga. Este pedido
ou esquecido pelas análises do sistema comercial africano: o tráfico dos escravos
deve ser compreendido como o ponto final de uma importante inversão política: o antigo
só pode funcionar porque os europeus trazem os seus produtos para os ceder aos
poder africano encontra-se subvertido, determinando os próprios movimentos do Jaga
vendedores-compradores-consumidores africanos. Numa perspectiva simétrica, o negócio
que se vê obrigado a fazer «solicitações» às autoridades portuguesas. Estaremos perante
de escravos nunca impediu os Africanos de ceder outras mercadorias aos comerciantes
uma «democratização» do poder africano? Voltaremos a esta questão, mas lembramos
europeus. Pode dizer-se que a quantidade e o valor destas mercadorias era
desde já que estamos perante operações centradas em torno do crescimento do comércio
imbangala nos anos 1860. Um dinamismo notável empurrou os Imbangalas para um insignificante perante a abundância de homens vendidos e exportados? Certamente;
crescimento comercial particular durante a «ausência» dos seus pares portugueses: os todavia, a imensidão do número não permite o esquecimento da presença constante
Imbangalas ocuparam o lugar por eles abandonado, cruzando a região com as suas do binómio comércio/produção de bens outros que os escravos. Foi de resto a produção
caravanas, e conseguindo até controlar o comércio do interior. Esta recuperação da e a negociação das mercadorias que permitiram a passagem do modelo comercial
actividade comercial por parte dos Imbangalas faz-se, se não associados aos Portugueses, dominado pela escravatura, para um outro mais consentâneo com os interesses dos
pelo menos de acordo com eles, o que serve, além do mais, para confirmar a nova mercados.
orientação das escolhas políticas dos responsáveis africanos, cuja hegemonia, tão Já tentámos mostrar que o marfim — pelo menos na região que vai do Kongo aos
ciosamente defendida, está manifestamente em via de se esboroar. Lundas — só começou a ser verdadeiramente explorado sob a pressão da procura
europeia. Num momento ainda por definir, mas já no século XVIII, esta procura fez
do marfim uma mercadoria preferencial, e a situação manteve-se até hoje, se bem que
5. A exportação: os produtos e os números os elefantes, entretanto, tenham quase desaparecido. O comércio português do marfim
só foi liberalizado em 1834, pondo termo a um monopólio secular detido pela Coroa
Este afluxo constante de mercadorias irriga a quase totalidade do tecido social:
portuguesa. A exportação parece por isso difícil de avaliar, dado que os registos
é o comércio que liga os dois grupos, Africanos e Europeus, que a guerra separa
portugueses só retiveram as exportações oficiais e legais, não podendo o contrabando,
constantemente. Eles não possuem as mesmas competências: se os Africanos podem ser
por razões óbvias, ser contabilizado. Recorrendo aos registos alfandegários, verificámos
hegemónicos no interior, perdem esta qualidade quando se trata de enfrentar os problemas
que a exportação de marfim registou um aumento fulminante após 1834 ( 113). Mas a
específicos do import-export, que pertence exclusivamente aos Europeus. A questão é
cera, tanto a branca como a amarela, conheceu uma ascensão também muito importante
duplamente importante, pondo em evidência o elemento fulcral da fraqueza comercial
africana, sendo ao mesmo tempo indissociável da ruptura assim estabelecida entre os
Africanos — produtores e comerciantes — e o sistema mundial, no qual estão integrados.
Sentem os efeitos do sistema, mas de maneira indirecta, desempenhando os Europeus ( 113) O marfim era, desde os tempos do monopólio real, repartido em «três classes», as quais
o papel de mediadores exclusivos. determinavam o preço da mercadoria. Em 1802, o governador Miguel de Mello descreve estas «classes»:
o marfim de lei, ou seja, os dentes que pesam mais de uma arroba (15 quilos); o marfim meão, cujo
peso variava entre 16 e 31 arráteis (sendo o arrátel = 459 gramas); o marfim miúdo, abaixo de 16
arráteis. Estas categorias mantiveram-se durante o século XIX, mesmo que os preços tenham aumentado
(112) Id., ibid., p. 274.
de forma substancial. Mello, 1885, p. 559.

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por meados do século, não parecendo que tenha recorrido sistematicamente ao Tal não impede que cerca de sete anos mais tarde «os dentes de elefante cheguem
contrabando, mesmo que os exportadores procurem, como de resto se verifica em [a Londres] em grande quantidade provindos directamente de S. Paulo de Luanda e uma
relação a outras mercadorias, escapar aos direitos alfandegários (114‘.
) Os números
boa quantidade chega do porto de Lisboa». Esta cidade continua a ser, na relação financeira
confirmam, contudo, que o momento decisivo nesta viragem da exportação se regista
com as colónias portuguesas, um entreposto destinado a assegurar o funcionamento da
entre os anos 1855 e 1875:
reexportação imposta pelo governo português, e que alimenta as profissões — portuárias
Exportações legais de marfim (115) e transitárias — associadas à gestão da exportação das mercadorias «tropicais». Regista-
(em navios portugueses) -se também o facto de os compradores ingleses apreciarem muito particularmente o marfim
«das possessões portuguesas», considerado, de uma maneira geral, como de melhor
Portos Anos Quantidades
qualidade que o importado do Egipto, razão pela qual o preço do marfim «português» tinha
Luanda e Benguela 1823-1825 média/ano 38 912 kg (4)
aumentado no mercado de Londres em 1869 (116).
(monopólio da Fazenda Real) Os valores respeitantes à exportação da cera parecem menos imprecisos do que os
Luanda 1830-1832 média/ano 02 288 kg (4) que se referem ao marfim, dado que o contrabando relativo a este produto pode prosseguir
Luanda 1844 52 800 kg (1) muitos anos após 1834, pois que o comércio exportador tinha já organizado o mecanismo
Luanda e Benguela 1845 45 000 kg (1)
Luanda
que permitia furtar-se às fiscalizações e, sobretudo, ao pagamento dos direitos. A
1857 49 789 kg (2)
Luanda e Benguela 1857
exportação da cera registou um crescimento repentino durante o século XIX,
76 455 kg (2)
Luanda 1862 39 960 kg (3) (5) provavelmente em consequência das muitas intervenções das autoridades portuguesas
Luanda 1864 10 000 kg (6) que queriam, acima de tudo, «ensinar» aos Africanos a maneira como se podia separá-
Luanda 1865 14 000 kg (6) la do mel:
Luanda e Benguela 1870-1872 média/ano 51 000 kg (4)
Luanda e Benguela 1884 média/ano 23 106 kg (4) Exportações legais de cera (117)
(em navios portugueses)
O quadro permite-nos verificar a existência de uma queda do marfim exportado por
Luanda entre 1862 e 1865, registando-se uma lenta ascensão a partir de 1865. Trata- Portos Anos Quantidades
-se provavelmente das consequências da guerra de Kasanje, que não podia deixar de
exercer um efeito redutor nos circuitos comerciais. Acrescenta-se a esta primeira razão
Luanda e Benguela 1830-1832 média/ano 106 000 kg (5)
uma outra: a reorientação dos circuitos comerciais para os portos a norte de Luanda, Luanda e Benguela 1820-1833 média/ano 124 950 kg (1)
mais propriamente o do Ambriz, de que já mostrámos a influência na reorientação dos Luanda e Benguela 1840-1841 média/ano 161 700 kg (2)
fluxos comerciais ligados a Kasanje e a Malanje. Luanda 1857 552 836 kg (3)
Benguela 1857 220 616 kg (3)
ou seja: 773 452 kg (2)
Ver 3.' parte, cap. II, consagrado ao mel e à cera. Luanda 1862 469 902 kg (4)
Estes números provêm de fontes diferentes: Benguela 1862 30 916 kg (4)
1." Lima, 1846, pp. 72-73; Pereira, 1971, pp. 76-77, dá-nos um número semelhante para 1844: ou seja: 500 818 kg (4)
105 600 arráteis. Luanda e Benguela 1870-1872 média/ano 915 000 kg (5)
2.° Azevedo, 1945, p. 113. Luanda e Benguela 1884 675 955 kg (5)
3.' «Mapas da Exportação de Benguela e Luanda em 1862», AHU, CGii, cx. 642, pasta 37, 1867.
4.° «Relatório do Governador de Angola», 1887, p. 28. «O marfim, que chega a Luanda e ao Ambriz,
provém de Malanje e das terras para lá do Cuango; o que chega a Benguela é trazido pelos comerciantes
do Bié e Bailundo, que vão procurá-lo mais longe no interior, provavelmente no vale do Loyale». O preço
era, em 1881: «meão», 1350 réis; «miúdo», 880 réis; «lei», 1450 réis. Capello e Ivens, 1881, I, p. 291. «Relatórios dos Cônsules», vol. 1870-1871, p. 159.
5.° Outro quadro de números diferentes para este mesmo ano de 1862: 65 630 lá libras. «Mapa 1. Lima, 1846, p. 51.
das mercadorias exportadas (...) 1861-1865», AHU, CGA, cx. 642, pasta 37, 1867. BOGPA, n.° 645, 13 de Fevereiro de 1858.
6.° Id., ibid.. O documento fornece os números em libras: BOGPA, n.° 674, 28 de Agosto de 1858.
1864 — 19 212 £ (em navios portugueses) AHU (Ver quadro consagrado ao marfim, n.° 3).
11 354 £ (em navios não-portugueses)
«Relatório do Governador de Angola», 1887, p. 28.
1865 — 28 757 1/2 £ (em navios portugueses)
O preço da cera sem resíduos era, em Luanda, em 1880, de 180 réis a libra. Capello e Ivens, 1881,
3859 £ (em navios não-portugueses). I, p. 291.

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O Brasil, sobretudo o porto do Rio de Janeiro, era então um grande importador Portugueses. Muito pelo contrário, pois sabemos, pelo menos a partir da viagem de
de cera angolana, quer directamente de Luanda quer através do porto de Lisboa. Manuel Correia Leitão, em 1756, que a Kisama se opunha deliberadamente aos projectos
Em 1852, aquele porto brasileiro importou 275 458 libras (± 138 000 kg) de cera portugueses, em associação muito apertada com Kasanje.
branca e amarela proveniente de Luanda, que foi transportada em navios portu- O facto de se registar a exportação de urzela, produzida na Kisama, traduz uma
gueses (118). modificação muito significativa na organização interna, que não hesita em assumir
Outros produtos de recolecção, entre os quais a urzela e a goma-copal, aparecem as tarefas da recolecção, participando, desta maneira, nos projectos comerciais
nas tabelas da exportação, a partir de 1830. A «descoberta», ou antes, a identificação portugueses. Por outro lado, embora não saibamos se a referida recolecção foi feita
da urzela parece situar-se por volta de 1838. Um documento de 19 de Março desse por homens ou por mulheres, esta actividade traduz uma reorganização do trabalho,
ano, emanado do governador Manuel Bernardo Vidal, dirigido ao barão de Bonfim destinada a servir os interesses comerciais portugueses. Sabendo-se que a Kisama
(ministro das Colónias, em Lisboa), observa que entre «as produções naturais (...) se opôs sistematicamente à presença portuguesa, podemos no entanto verificar que
acaba de descobrir-se uma prodigiosa quantidade de urzela em toda esta província, o negócio atrai as populações para actividades que são sobretudo lucrativas para
que alguns especuladores principiam a mandar colher; as qualidades deste musgo são o comércio português.
diferentes; mas a de primeira sorte, de que envio amostra (...) parece-me senão melhor O facto de as populações da Kisama se integrarem nesta operação de recolecção
pelo menos igual à de Cabo Verde. Considero tão importante este ramo que não da urzela permite um comentário complementar, na medida em que revela os efeitos,
deixarei de dar aos empreendedores deste novo tráfico todos os auxílios ao alcance por assim dizer fulminantes, das escolhas comerciais portuguesas. Só deste modo se
deste governo» (19).
pode explicar que um grupo conhecido pela sua resistência às escolhas portuguesas se
Apesar das boas intenções do governador — que retivera o modelo e a importância lance na exploração de uma planta que não pertence à panóplia das plantas úteis já
económica da urzela em Cabo Verde — e da grande exploração que assim se abriu, a reconhecidas, cultivadas e utilizadas pelos Africanos. As indicações da estatística
urzela nunca alcançou no mercado internacional as cotações que tornavam o produto portuguesa são, por isso, reveladoras da eficácia das propostas comerciais europeias,
financeiramente interessante. Apesar disso, foi apanhada em quantidades muito grandes, às quais poucos grupos conseguem eximir-se. Por outro lado, podemos dar-nos conta
que apenas permitiram lucros deveras modestos.
da existência de dois níveis relacionais entre Africanos e Portugueses: se no plano
político os dirigentes da Kisama não renunciam à sua autonomia, afirmada frequen-
Exportação de Luanda e Benguela (120)
temente de maneira violenta, já no plano comercial e económico são obrigados a aceitar
Urzela as regras comerciais dos Europeus.
Qual das duas escolhas é a mais realista — ou, pelo menos, a mais adequada à
Regiões de Origem: Terras da Kisama e ao longo do litoral sul, a partir de Benguela (5) evolução da relação de forças entre Portugueses e Africanos — sabendo-se que a
Kisama se mantivera obstinadamente afastada das escolhas portuguesas? Mais ainda:
1844 420 420 kg
1857
não haverá, nesta escolha da exploração da urzela, o peso da lição das demais autoridades
943 504 kg (Luanda)
1862 697 813 kg
africanas, que ainda estão convencidas de ser capazes de manipular os Portugueses,
(3)
impondo-lhes as escolhas, os valores e os interesses especificamente africanos? Em
qualquer dos casos, haverá sempre que considerar, com muito interesse, a singularidade
Registe-se, todavia, o elemento mais singular desta informação, que revela outra desta actividade das populações da Kisama.
modificação profunda na organização geral das opções africanas. Neste documento A goma-copal, ao que parece de boa qualidade, também não era mais rendível do
português sublinha-se que uma das regiões de origem da urzela •exportada é a Kisama, que a urzela. Os botânicos, ao serviço do governador português, procuram todavia
zona que até então não parece ter directamente participado no comércio com os identificar as zonas de produção, porque a estratégia dos Portugueses assentava na
exploração constante dos produtos que era possível recolher ou na recolecção sem
grandes investimentos, além dos exigidos pela força de trabalho e pelos transportes. As
exportações registadas entre 1825 e 1874 provam que todas estas plantas foram «pilhadas»
com determinação pelos comerciantes portugueses (121).
Moreira, 1852, BNL, Reservados, fls. 14-15.
AHU, CGA, cx. 587-3, 1838.
(120) 1. Lima, 1846, p. 76.
BOGPA, n.° 645, 13 de Fevereiro de 1858.
AHU (Ver o quadro já referido, respeitante ao marfim, n.° 3). (121) Moreira, 1852, BNL, Reservados, fls. 14-15.

558 559
Exportações de Luanda e Benguela (122) A borracha, matéria-prima da modernidade automóvel, é destinada a fazer
goma-copal
concorrência ao produto da Amazónia. Trata-se de uma substância mftica, porque
arrancada à floresta da Amazónia por uma espécie de rapto, feito em nome da ciência,
Regiões de origem: Malanje oriental, margem direita do Kwangu
mas que dá às indústrias europeias e americanas um acréscimo de poder. O nascimento
da floresta de heveas asiática aparece como uma operação destinada a reforçar o
1825 390 kg (4) domínio da Natureza, pela indústria. No caso africano, mais particularmente angolano,
1839-35 média/ano 64 935 kg
1844 125 420 kg (1) esta borracha não provém das grandes selvas e das grandes heveas, mas sim de plantas
1857 327 416 kg (1) e (2) mais modestas, que é preciso procurar dias a fio, para fornecer as bolas aos comerciantes
1862 255 296 kg (3) brancos.
1870-72 média/ano 247 333 kg (4) Em Angola, o período que vai de 1870 a 1890 é caracterizado pela exportação
1884 152 859 kg (4)
crescente desta matéria-prima. O relatório do governador-geral de Angola de 1887
assinala o facto de a borracha ser então exportada por três alfândegas: Ambriz, Luanda
e Benguela. As indicações do governador são importantes, pois diz ele que a borracha
A lógica dos comerciantes angolanos é evidente: não dispondo de produções
chega a Benguela transportada pelos autóctones do Bailundo e do Bié, que devem ir
agrícolas em grande quantidade e tendo perdido a mercadoria humana, são obrigados
a reciclar-se, recorrendo a todos os géneros fáceis de adquirir e que pertencem ao procurá-la a regiões muito afastadas, ficando as caravanas pelos caminhos durante seis
catálogo dos produtos já reconhecidos, e de mercados estabelecidos. Para mais, estas a oito meses. A borracha, transportada para Ambriz e Luanda, provinha das regiões
mercadorias não exigem grande saber técnico ao nível da produção, tal como não a leste de Malanje e para lá do Kwangu (124).
exigem um grande investimento em instrumentos de trabalho. Com efeito, se É o recurso às landolphia (125) que permite aos produtores africanos oferecerem
exceptuarmos a caça ao elefante e as operações de busca e de colheita do mel, que às caravanas comerciais uma tão considerável quantidade de borracha. A reciclagem
podem às vezes ser perigosas, as matérias procuradas pelos Europeus inscrevem- das produções africanas destinadas ao comércio internacional a grande distância não
-se na lógica predadora da colonização portuguesa. Todavia, esta começa a ser pára, colocado sob a pressão constante da rede comercial branca, que continua a
modificada pelo aparecimento das explorações agrícolas do Norte e do Centro do mobilizar os mulatos ou os mestiços, mas começa a repelir os negros. Os homens de
país. A agricultura, destinada à exportação, não ocupa contudo, no quadro das negócio africanos e os chefes de caravana asseguram as operações de transporte,
actividades comerciais angolanas, um papel importante, e assim ficará até, pelo menos, levando estas mercadorias até aos armazéns dos Europeus. Se as populações masculinas
à década 1920-1930. do planalto do Bié e os bailundos em geral fornecem toneladas de borracha ao comércio
Em 1862, as mercadorias destinadas à importação não tinham conhecido alterações exportador de Benguela, de Luanda e, provavelmente, também do Ambriz, seria inútil
significativas: «urzela, marfim, cornos de rinoceronte, carrapato, óleo de amendoim e de tentar esquecer a importância da contribuição imbangala.
palma, café do Cazengo e de Encoje, cera, goma-copal, cornos de bovídeos, couros secos, Henrique de Carvalho salienta o papel fundamental desempenhado pelos Imbangalas
dentes de hipopótamo e uma pequena quantidade de algodão» (123). na organização destas actividades comerciais: este grupo contribuiu, de maneira muito
As décadas de 1870 e de 1880 são caracterizadas pelo aumento constante da importante, para «o desenvolvimento de todo o distrito de Luanda» e bastaria a leitura
exportação de borracha, iniciada em 1869. A exportação de café começa igualmente a da estatística anual da exportação da borracha, para verificarmos o valor desta verdade
fazer-se, proveniente das plantações do Norte do país, que revelam a maneira como uma indiscutível (126‘.) O laço Imbangalas-Quiocos-Lundas estaria assim plenamente
parte dos colonos procura rendibilizar a região. Este café do Norte aparece — tal como
confirmado, dado que «este género [a borracha] é trazido das regiões que ficam a
se verificava então no Brasil, em S. Tomé e no Príncipe como sendo a planta E. de Malange e de além do Cuango», embora com algumas excepções, é inteiramente
industrial que devia permitir não só a rendibilização do território angolano, mas assegurar
também a dominação dos Africanos. comercializado pelos Imbangalas e, mais tarde, pelos Quiocos (127).

(122) 1. Lima, 1846, p. 76.


BOGPA, n.° 674, 28 de Agosto de 1858. «Relatórios dos Governadores de Angola», 1887, p. 29.
AHU (Ver quadro do marfim, n.° 3). Capello e Ivens, 1881, II, pp. 88-89, descrevem a planta na região do Kwangu.
4. «Relatórios dos Governadores de Angola», 1887, pp. 28-29. Carvalho, 1898, p. 323. Ver também Dias, 1938, pp. 9-10.
(123) Quarenta e Cinco Dias..., 1862, p. 53.
«Relatórios dos Governadores de Angola», 1887, p. 28.

560 561
O quadro das exportações é revelador da importância do fornecimento da borracha A desvalorização destas competências só pode ser interpretada como a consequência
desta região (128): directa do projecto de branquização de Angola, que participa — como mostrámos na
Exportação de borracha pelo porto de Luanda primeira parte deste trabalho — na ideologia colonial portuguesa. O período de transição
é aquele que pretende substituir as produções da recolecção africana pela produção
Anos Quilos Valores (réis) agrícola organizada nos moldes industriais da Europa. Esta orientação parece exigir a
1880 197 340,370 159 872$295 ocultação das competências africanas, que será levada a cabo pelo discurso discriminatório
1881 295 590,780 236 472$625 do africanismo português.
1882 294 515,291 235 612$370
1883 467 863,773 374 271$180
1884 361 855,990 289 484$795
1885 250 231,751 200 185$405 II. A sociedade imbangala: dinamismo, transformações, blocagens
1886 296 052,852 236 842$285
1887 342 004,070 273 603$260 A inovação comercial dos Imbangalas dependia, como de resto acontecia com quase
1888 279 790,995 223 832$795 todas as estruturas africanas, da capacidade de reduzir a importância dos muitos sistemas
1889 484 364,297 387 391$405 de controlo que pesavam sobre os indivíduos: da religião ao parentesco. O trabalho da
1890 632 368,700 495 894$960
modernização parece ter surtido algum efeito: nos anos 1880, Henrique de Carvalho afirma
1893 1 206 361,500 905 089$200
1894 707 581,600 566 268$480 que esta situação tinha sido ultrapassada, pois que os Imbangalas já não dependiam das
1895 740 835,500 592 465$200 autoridades políticas para se empenhar em operações comerciais ( 132). Trata-se de uma
1896 719 442,440 575 537$920 indicação extremamente útil, na medida em que permite dar conta do sentido das operações
políticas levadas a cabo sob a pressão das forças internas dos grupos, mas que não podem
A observação que se pode fazer será certamente exterior ao nosso campo de deixar de reagir, adoptando-se ou repelindo os choques ou os acordos com o exterior. Temos
trabalho; ela assinala enorme quantidade de trabalho exigida por esta produção de tendência para acreditar que, nesta situação, o comércio constitui o agente mais importante
milhares de toneladas de borracha. Se é verdade que Henrique de Carvalho e, alguns da mudança.
anos mais tarde, Paiva Couceiro ( 129), confirmados por Norton de Mattos (130), reconhecem Estamos, com efeito, perante uma economia que depende essencialmente de dois
a importância da contribuição africana para assegurar a rendibilidade da economia registos: o primeiro refere-se à subsistência que condiciona e exige um certo número
angolana, tal não reduz, de maneira alguma, o peso dos preconceitos europeus, que de produções; o segundo coloca-nos perante economias que procuram na recolecção os
denunciam, sem descanso, o que seria a rejeição do trabalho pelos Africanos! produtos desejados pelos circuitos comerciais geridos pelos Europeus. Trata-se de
O relatório do governador Paiva Couceiro, documento que respeita naturalmente assegurar a combinação destes dois elementos, mesmo que, às vezes, o sector da
uma visão pró-europeia, salienta o pouco peso das mercadorias provenientes das produção agrícola conheça modificações que o transformam em sector-chave das relações
actividades agrícola e industrial dos Europeus na exportação angolana; Paiva Couceiro comerciais a longa distância.
indica o café do Norte, a aguardente de cana do Centro-Sul, o algodão, o peixe seco Esta economia busca, assim, defender as regras tradicionais, certamente muito
de Moçâmedes, assim como alguns cereais, legumes, sal, tabaco preparado e tecidos, tranquilizadoras, ao mesmo tempo que pretende encontrar soluções para enfrentar a
que são quase que exclusivamente destinados a assegurarem o consumo local (131). pressão exercida pela procura exterior. Esta provém dos Europeus, como não pode
O governador mostra-se terrivelmente crítico e um pouco pessimista: a história não deixar de ser, mas é rapidamente recuperada pelos Africanos que desejam obter os
lhe deu razão, pois que a agricultura europeia serviu para expulsar os Africanos da produtos indispensáveis à sua integração nos circuitos comerciais detidos pelos Europeus.
maior parte das suas terras, operação que fornecia também um fundo financeiro para Parece, por isso, que devemos considerar, de maneira muito atenta, a multiplicação dos
alargar o âmbito das escolhas coloniais. agentes africanos que operam no mato e que procuram levar as mercadorias desejadas
Todavia, essas operações não pertencem já ao quadro cronológico que é o nosso, aos armazéns ou aos comerciantes europeus.
sendo a questão essencial a de definir a competência produtiva e comercial dos Africanos. Como não insistir em dar a máxima evidência a este facto principal? Seja qual for
a competência comercial africana, ela deve assegurar a sua própria mutação:
frequentemente, ela conservou-se fechada sobre si mesma, rejeitando as relações com
) Carvalho, 1898, pp. 323-324.
Couceiro, 1898, pp. 10-12.
Mattos, 1944, II, pp. 243-256.
Couceiro, o. c., pp. 11-12. ( 132) Carvalho, 1890, p. 692.

562 563
IDADE EM ANGOLA
o exterior. A mudança exige que, numa fase de transição, cada agente comercial possa
dispor dos meios para se manter numa espécie de cá e lá comercial, fiel a alguns valores resultados da abolição do tráfico negreiro, até então bastante reduzidos em relação à
das estruturas africanas, sem por isso se sentir forçado a repelir as sugestões feitas pelas estrutura geral angolana. Ela não podia deixar de ser simultânea com os efeitos
instituições europeias. desencadeados pela aplicação das regras legislativas propostas pelo senador brasileiro
A situação imbangala não elimina as contradições ou, pelo menos, os paradoxos. Euzébio Queiroz. Todavia, provoca a modernização do quadro das produções, bem como
É assim que a liberalização do comércio, libertada enfim desta tão constante dominação dos circuitos comerciais, dos quais os Africanos são cada vez mais afastados. É o que
do político, não pode repelir nenhum dado económico importante. explica — apesar das modificações — a maneira como os Imbangalas e os associados se
Durante séculos, o chefe de terra tinha sido o fiador permanente de qualquer operação empenham em manter a escravatura: é como se se dessem conta da sua impotência face às
comercial levada a efeito por algum dos seus «filhos». A abertura da situação provoca novas regras do comércio capitalista, cada vez mais internacionalizado.
uma modificação que interessa ao conjunto do sistema comercial: se o comércio pode agora Que modificações? Porque a abolição do tráfico negreiro, a redução da circulação dos
ser praticado por qualquer pessoa, o chefe político deixa de ser o fiador dos créditos escravos e a sua substituição por outras mercadorias, entre as quais avulta o marfim,
consentidos. Instala-se uma situação de choque, agravada pelo facto de alguns dos obrigaram o comércio interno africano ou afro-europeu a mudar as regras e o estilo.
pretendentes às actividades comerciais serem homens jovens, que podem estar livres para
correr o sertão em todos os sentidos, mas que não dispõem ainda de um património capaz Mesmo que o comércio do marfim nunca tenha sido definitivamente legalizado pela
de tranquilizar aqueles que estão em posição de lhe abrir crédito (133). Coroa portuguesa, é evidente que as restrições impostas à sua comercialização foram
Esta situação não podia ficar sem resposta: são os comerciantes europeus ou os seus entendidas pelas populações africanas. Assaltou-nos uma dúvida: até que ponto os
agentes mais dinâmicos, que recrutam estes jovens africanos para levarem a cabo operações preços praticados na costa oriental não chegaram ao conhecimento dos Africanos para
comerciais, quantas vezes ousadas e a muito longa distância. A aposta deve ter-se revelado os levar a recusar as ofertas, mais do que modestas, dos comerciantes da costa ocidental?
compensadora, visto que esta actividade comercial foi organizada rejeitando o controlo Mal-grado as nossas investigações, não nos foi possível concluir até onde a corrente
dos chefes de terra ou dos chefes políticos. Isto deve ser também compreendido em relação comercial do marfim angolano não foi desviada para a costa oriental africana, mas isso
ao carácter social que assegura a independência dos jovens africanos: o casamento e o dote, não nos impede de salientar a dúvida, que esperamos poder resolver mais tarde. Por
a aquisição de mulheres e escravos constituem a soma das condições indispensáveis para agora, procuramos mostrar que se o comércio do marfim conhece um salto qualitativo
se chegar a uma situação aceitável. significativo, ele é menos importante do que nos pretendem mostrar a maior parte dos
A influência de Arsénio de Carpo nesta orientação da mudança foi importante: este textos consagrados à estrutura económica angolana, a partir do momento em que é
comerciante português introduziu em Kasanje, após se ter estabelecido em Malanje, possível proceder a operações de comercialização sem receio da intervenção punitiva
cerca de 600 cargas que deviam ser trocadas no mato, as quais foram comercializadas das autoridades portuguesas.
de acordo com um modelo por si criado. Formou pequenas caravanas, pois deixara de De resto, estas novas perspectivas comerciais não podem deixar de provocar a
haver as grandes que podiam concentrar mais de mil pessoas. A partir de 1840, seguindo irrupção de técnicas de produção e de comercialização, cujo dinamismo é tão grande
Henrique de Carvalho, as grandes caravanas começaram a ser substituídas por pequenas como inédito o seu carácter. De facto, as caravanas imbangalas procuravam as aldeias
estruturas, que penetravam no mato transportando mercadorias que lhe eram confiadas dos caçadores — provavelmente quiocos —, fornecendo previamente os tecidos, a pól-
a crédito pelos comerciantes portugueses (134). vora e as espingardas para que pudessem ir caçar elefantes. Os comerciantes, que assim
capitalizavam os caçadores, não podiam receber mais do que um dente, devido às regras
já evocadas. Infelizmente, Henrique de Carvalho não nos diz qual era o destino deste
A. A substituição das estruturas comerciais
segundo dente, embora não duvidemos ser destinado ao comércio: havia por isso alguns
direitos do comerciante que tinha financiado a operação?
1. As opções imbangalas nos anos 1850-1860
Estamos perante uma das situações mais significativas da modernidade, na qual o
crédito desempenha um papel importante e que assenta, por sua vez, na confiança
A grande crise imbangala podia ser também compreendida como o último sinal das
mútua: o valor do dente só podia ser estabelecido após a morte do animal, sendo
modificações impostas pelas novas regras comerciais. A simples cronologia permitir-nos-ia,
necessário pesá-lo para pagar o complemento de mercadorias (135). Na primeira fase da
nesse caso, mostrar que a primeira fase da grande crise, 1850-1851, coincide com os
operação, os caçadores recebiam as mercadorias apenas em troca da promessa de
entregar ao financiador o ou os dentes obtidos. Se o crédito se nos afigura um dos
Id., ibid., p. 694.
Id., ibid., pp. 698 - 699.
(135) Id., ibid., p. 699.
564
elementos essenciais deste sistema de caça indirecta, é preciso ter em atenção que é este Esta modificação da procura europeia de mercadorias preferenciais africanas impôs
tipo de comércio que deve ser particularmente analisado. Os caçadores não parecem a reorganização das caravanas, pois que as grandes caravanas só se mantiveram
produzir marfim em quantidade suficiente para alimentar a procura, o que dá aos indispensáveis para assegurar o transporte de um grande número de escravos. Mesmo
comerciantes imbangalas um campo de manobra assaz considerável. Por outro lado, e que alguns documentos assinalem a redução gradual do tráfico negreiro europeu, podemos
esta observação completa as que já tínhamos feito a propósito da especialização dos pensar que esta redução se refere essencialmente ao tráfico internacional, mas não ao
carregadores songos, assistimos a uma forte tendência para a especialização das comércio destinado ao consumo corrente entre as sociedades africanas. O recurso ao
populações: os caçadores do Norte detêm a competência profissional da caça e, mais
cesto dos adivinhos quiocos pode ser muito útil, pois aí aparecem os duplos dos escravos
particularmente, a que procura não só abater os animais, mas também conseguir os
melhores dentes. como necessários à regularização de um certo número de situações — que podem
originar a doença, o mal-estar económico ou social —, provocadas pelos espíritos dos
A informação singular fornecida por Henrique de Carvalho reside no hábito imbangala
antepassados escravos, já que os descendentes mostram uma tendência evidente para
de enterrar os dentes de elefante. Mas deve reter-se que as informações do major
português são por vezes excessivas, como podemos verificar relativamente ao marfim «esquecer» as homenagens a prestar a estes espíritos (139).
pertencente ao chefe de terra. De acordo com aquele militar, este marfim não se Esta presença, que era ainda possível verificar em 1973-1974 (140), prova a muito
destinava à venda. Ora, não há nenhum documento que permita confirmar esta informação, longa duração da escravatura, que se estende muito para além da sua abolição pelas
e nada nos impede de pensar que não havia marfim que pudesse furtar-se à maneira autoridades portuguesas, e as perturbações provocadas pela manifestação da ira dos
como os Imbangalas organizavam a comercialização desta matéria-prima. Talvez apenas espíritos dos escravos. O adivinho volta a instalar os escravos no xadrez das relações
fosse enterrado o marfim recebido dos caçadores; estes «depósitos» de marfim acabavam sociais normais presentes nos cestos dos adivinhos quiocos, os únicos dos quais se
por permitir a «aparição» de dentes sem nada o fazer prever, o que dava força e conhecem, de maneira sistemática, o conteúdo, assim como as utilizações (141).
credibilidade à lenda que sustentava que os chefes de terra possuíam consideráveis
reservas de marfim (136). As pequenas caravanas africanas correspondem a técnicas duplas, quer dizer, a opções
A dificuldade em analisar estas informações provém da própria função dupla do africanas que combinam muito bem com os projectos portugueses. Da parte dos Africanos,
marfim: os Imbangalas, seus compradores, seriam também os mesmos que procediam ao as pequenas caravanas são relativamente fáceis de organizar, pois podem ser constituídas
enterro dos dentes recebidos dos caçadores ou através do mecanismo dos tributos. É verdade por homens provenientes da mesma fracção ciânica, morando por isso juntos e ligados
que este desdobramento das funções atribuídas ao marfim podia ser aceite, mas em função pelo mesmo património. Do lado português, esta situação permite fragmentar a massa do
de uma explicação religiosa que, de momento, não conseguimos encontrar (137). crédito a mobilizar e a conceder, de maneira a impedir a sua concentração, que podia
A tradição portuguesa «semeou» dentes de elefante por toda a parte: parece 7nos que atingir valores difíceis de gerir e, sobretudo, provocar prejuízos insuportáveis.
estamos perante uma leitura mítica. Não encontrámos mais do que um documento As pequenas caravanas são mais rápidas do que as grandes. Podemos até pensar
iconográfico: uma pequena parede redonda, em volta de uma cubata, construída com — embora não disponhamos de nenhum documento que o afirme — que o tempo
dentes de elefante. Mas não há mais nenhum testemunho que permita assegurar a passado no sertão pelas grandes caravanas deve ter parecido excessivo à maior parte
realidade deste traço cultural. Henrique de Carvalho dá mostras de acreditar no carácter dos interessados africanos. Mesmo que guardemos na memória a indiferença que os
verosímil desta informação, mas podemos recusar a ideia — dados os documentos de Europeus vêem nos comportamentos africanos face ao tempo, é evidente que as longas
que dispomos — que se tenha registado uma política de armazenamento do marfim por ausências contrariam a gestão normal do calendário económico e social. E não podemos
parte dos Imbangalas.
acreditar que esta gestão não tenha efeitos na trama psíquica, tanto dos indivíduos como
Não será possível interpretar esta informação como sendo o resultado do afluxo
das comunidades.
momentâneo — e irrepetível — de uma muito grande quantidade de dentes, nos anos
A abolição do tráfico negreiro e a redução concomitante da circulação dos escravos
consecutivos à liberalização do comércio? A exportação de mais de 10Q mil quilos de marfim
provenientes de elefantes — o que equivale a 1666 animais abatidos, se aceitarmos que o contribui também para esta fragmentação. As mercadorias não exigem uma vigilância
peso médio dos dentes ronda os 60 quilos — parece impressionar — e com razão — os tão apurada como aquela a que devem submeter-se os transportadores de homens. Tal
comentadores (138). não quer no entanto dizer que os escravos deixem de circular nas estradas e nas picadas
angolanas. Pretendemos simplesmente salientar que a queda do seu número em circulação

Id., ibid. ( 139) Areia, 1985, pp. 193-196.


Id., ibid., p. 698. (14o) Refere-se ao período em que Rodrigues de Areia realizou o trabalho de campo, em território
( 138) Ver quadro e comentários consagrados à exportação do marfim, assim como a 3.' parte, quioco.
cap. III, que lhe dizem respeito. (14t) Areia, 1985, pp. 193-196.

566 567
permite às caravanas tornarem-se mais ligeiras, não tendo de se defender dos atacantes, rio Cuango» ) As relações entre o Jaga e a comunidade portuguesa são excelentes,
nem de assegurar a vigilância de um grande número de escravos. Podemos todavia notar desenvolvendo o chefe esforços notórios para se aproximar dela. Aceita até o baptismo
que os roubos nunca desapareceram, como mostra, de maneira muito «realista», o católico do filho, o que não podia deixar de reforçar os laços existentes (147).
romance O Segredo da Morta, no qual António de Assis Júnior procura descrever as Esta situação deve ser interpretada com minúcia, pois põe em evidência o
formas de organização comercial da cidade do Dondo, que mantém relações, mesmo que enfraquecimento do Jaga, na medida em que o território dos Imbangalas se encontra
ténues, com Kasanje (142). fortemente afectado por uma infinidade de situações conflituais. O Jaga e os seus
Não podendo furtar-se aos choques provocados pelas acções militares, o comércio conselheiros são forçados a registar esta erosão da antiga hegemonia, que é reforçada
imbangala prossegue no quadro da mudança que se regista na região. Já o fizemos pelo demorado mas inelutável crescimento de Malanje. Esta decadência lenta é confirmada
observar alhures: o que nos parece caracterizar mais profundamente a situação é o pelo pedido feito aos Portugueses pelo Jaga, em 1853, no sentido de estes voltarem a
vigor das actividades comerciais, que não tardam a renascer mesmo em circunstâncias abrir a Feira, aceitando as autoridades imbangalas as condições impostas pelos
onde a violência dos confrontos nos poderia levar a prever a sua decadência total. Portugueses (148).
Lembre-se que em 1853, durante a segunda fase da crise (1852-1856) que se tinha O acolhimento português será, contudo, de curta duração. Henrique de Carvalho
transformado, em determinado momento, em guerra luso-imbangala, a Feira abunda em não esconde a sua surpresa perante a decisão tomada pelas autoridades lusas, em 1867,
mercadorias africanas (143). Livingstone encontra-se então em Kasanje e não faz a menor de abandonar definitivamente Kasanje (149). A argumentação de Carvalho é determinada
referência à guerra que, contudo — se acreditarmos em certas tradições portuguesas —, por uma situação conjectural; a decisão portuguesa é inteiramente compreensível se for
abalava a cidade e o sertão. O viajante escocês refere-se sobretudo à prosperidade dos levada em conta a longa série de conflitos entre os dois grupos. Pode também verificar-
comerciantes portugueses aí instalados e ao despovoamento das regiões limítrofes (144). -se que não é o comércio português que perde nesta operação, mas sim o Jaga e os
Graças ao recuo, podemos afirmar que este «despovoamento» só pode ter sido provocado Imbangalas, pois não dispõem dos meios para recuperar a situação que lhes permitia
pela situação de guerra. De resto, os documentos referem-se, frequentemente, ao estado determinar os comportamentos de quantos frequentavam a Feira. O comércio torna-se
da «agitação natural — em circunstâncias como as actuais — de grande deslocação de assim cada vez mais livre, reduzindo desta maneira a autoridade do Jaga e dos aristocratas
pessoas e fortes compras de mantimentos» k / 145) provocados pela guerra, pois que os que dirigem a «nação» imbangala.
O facto de o comércio africano começar, mesmo que timidamente, a libertar-se
habitantes regressavam a casa esperando o restabelecimento da paz. Tal como os homens,
das constrições impostas pelo poder político, permite o aparecimento da concorrência
as trocas seguem este ritmo de alternância. Tanto Kasanje como os Portugueses e os
entre os comerciantes: podiam, investindo, ter acesso às mercadorias europeias, não
Imbangalas vivem nesta situação de permanente instabilidade, recuando uns para
poucas vezes de melhor qualidade que as portuguesas, tal como furtar-se à vigilância
avançarem os outros.
do Jaga, que era forçado a manter-se fiel às mercadorias portuguesas, impostas pelos
O facto do comércio prosseguir durante os conflitos armados não quer dizer que «contratos de vassalagem» há muito negociados. De resto, os Portugueses são
os Imbangalas provoquem estes últimos para obter lucros eventuais mais importantes. igualmente forçados a renovar as suas técnicas comerciais, sob pena de assistir ao
Os anos de 1857-1861 são também anos de paz, caracterizados pela expansão comercial deperecimento inelutável do seu poder comercial, recuperado pelos comerciantes
que foi bruscamente interrompida pela revolta dos anos 1861-62, após a qual assistimos estrangeiros, que não desprezavam tanto os Africanos, não hesitando em lhes propor
a um novo e normal recomeço do comércio. Os homens de negócio lusos são natural- mercadorias de qualidade (150).
mente atraídos por esta situação e, a partir de 1863-1864, a dupla Portugueses-Imbangalas
parece reconstituída e de regresso às suas actividades comerciais.
Na década de 60, de acordo com um documento emanado do chefe Ventura José,
de Malanje, a «situação a leste (...) voltava a ser regular e pdr isso se animara o Carvalho, 1898, p. 248.
comércio a fazer as suas transacções em grande escala com os Cassanjes e vizinhos do Id., ibid., pp. 267-270.
Ver doc. em Carvalho, 1898, pp. 244-248.
Carvalho, 1898, pp. 272-275.
(150) Trata-se de um elemento que teria merecido uma análise mais sistemática, mas que está
certamente fora do nosso quadro de trabalho. Estas diferenças de qualidade são a consequência do
Assis Júnior (1937), 1979, cap. IX. carácter avaro do comércio português, constantemente descapitalizado, e procurando compensar graças
Carvalho, 1898, pp. 406-407. a um sobrelucro a insuficiência da capitalização. Embora a pouca atenção prestada à qualidade das
Livingstone, 1859, pp. 412-414. mercadorias se deva ao princípio de que os Africanos, sendo estúpidos, aceitariam mesmo as mercadorias
«Carta do Governador de Angola sobre a situação de Cassanje», doc. 592, 15 de Julho de de má qualidade. A aposta portuguesa não podia deixar de ser perdida, devido à competência artesanal
1856, AHU, CGA, pasta 22A.
dos Africanos.

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O comércio liga os estabelecimentos instalados no mato com as pequenas caravanas,
2. A reconversão comercial imbangala (1863-1888)
que não hesitam em rumar para as terras do interior, em busca dos produtos «legftimos»,
obtidos em boas condições de preço. Trata-se também da estratégia seguida por outros
Os anos 1863-1882 constituem, por isso, um período de mudanças na história
comerciantes noutras cidades, como é o caso do Dondo (151).
imbangala ( 155). Trata-se de uma história complexa, estruturada em três fases: primeiro,
Estas pequenas caravanas deslocam-se com uma certa facilidade e mantêm um
a paz recuperada permite regressar às actividades comerciais e criar as condições
ritmo comercial assaz regular, respeitando as populações do interior, sem se imiscuírem
na sua gestão política ( 152). Entre os negociantes que tinham adquirido uma base necessárias à eclosão das modificações previsíveis, que já estavam em gestação antes
da crise do meio-século.
financeira considerável, graças ao recurso a estas técnicas comerciais, encontramos o
Entre 1861 e 1882 o Estado imbangala atravessa um período bastante sombrio. Os
africano Narciso António Paschoal, que pôde acumular uma «boa fortuna» (153).
Imbangalas estão numa situação extremamente delicada, fechados sobre si próprios, um
Se o volume das trocas em Kasanje registou uma grande diminuição, os Imbangalas
reino sem rei, mas assegurando, apesar disso, a reorganização do comércio já fora do
sentem-se na obrigação de sair desta armadilha, cujo carácter político lhes parece
quadro da Feira, entretanto abandonada pelos Portugueses. A sociedade imbangala, que
evidente. Pouco a pouco, eles adaptam-se, seguindo o exemplo de vizinhos e de
não pode aceitar este vazio de certa maneira anómico, procura inventar ou importar
concorrentes, adoptando maneiras de agir mais individualizadas, mesmo que o peso do
formas de organização inéditas.
clã nunca chegue a dissolver-se inteiramente. O Jaga não dispõe dos meios para assegurar
Finalmente, os anos 1882 e seguintes são caracterizados pelo dinamismo comercial,
o controlo destes comerciantes, e talvez seja de resto essa uma das razões que o leva
recuperado pelos Imbangalas: é o momento de uma nova «explosão» comercial, o que
a procurar atrair de novo os Portugueses. Mas Bumba, o Jaga que desencadeara esta
provoca alguns efeitos relevantes na sociedade imbangala.
crise por volta de 1850, morreu em 1873, sem ter conseguido que a Feira voltasse a
funcionar. A crise do interregno, que abalou então o reino de Kasanje e se prolongou
A partir de 1870, os Imbangalas devem gerir a retracção das casas comerciais
até 1882, só podia comprometer o regresso dos Imbangalas à antiga organização
portuguesas. Não dispondo de outro interlocutor, são obrigados a encontrar maneiras de
comercial que se encontrava sob a vigilância do Estado. Esta situação, já complexa,
contornar a dificuldade. O individualismo comercial parece fornecer soluções, tanto mais
foi agravada pelas encarniçadas disputas entre os diférentes pretendentes (154),
que estes comerciantes não hesitam em ser os seus próprios carregadores. O comércio
confirmando, de maneira irrefutável, o deperecimento do poder imbangala.
mantém-se, por essas razões, concentrado no grupo: os homens de negócio penetram
A Feira só voltou a abrir em 1882, a pedido do novo Jaga, mas demasiado
profundamente no sertão, de maneira a obter os produtos que na região se tinham tornado
tarde para permitir a recuperação da supremacia do passado. As novas formas de
clássicos: a cera e a borracha, a que se acrescentam os escravos, mais destinados aos
comércio e de relações comerciais tinham tido tempo de se consolidar, tornando mais
Africanos e ao consumo local do que aos Europeus e ao comércio a longa distância.
precária a actividade de uma feira incapaz de modernização. Não é por isso
Os Imbangalas estão, por tudo isso, em situação de vantagem nas suas relações com
surpreendente que esta organização comercial não tenha podido recuperar o poder
as populações das duas margens do Kwangu, mais particularmente, as da margem
regulador que fora o seu.
esquerda. Com efeito, todos estes grupos são aparentados, seja o parentesco real ou o
mítico, e o entendimento — incluindo linguístico — parece fácil de obter.
Estas caravanas, modestas, não contam mais de 50 a 60 pessoas. Trata-se de
grupos extremamente sóbrios, movimentando-se com o mínimo de reservas alimentares,
António de Assis Júnior, 1979, pp. 172-173, descreve a organização de uma caravana sob cujas ambições não parecem consideráveis. Só assim se pode explicar que estas dezenas
a direcção de uma mulher, Elmira, que parte com uma armada, dispondo de mercadorias no valor de de homens se desloquem para proceder à comercialização de um a três dentes de
800$000 réis, e acompanhada por «tipóias, um grande número de carregadores e uma grande quantidade elefante, o que é nitidamente irrisório em termos de comercialização portuguesa — ou
de comida e de bebidas». A comerciante regressa dois meses depois, das Cerras de Ginga, trazendo
consigo «bois, cera, borracha e escravos». europeia —, tendo o lucro como único objectivo (156).
Uma parte das caravanas mantinha-se sob a direcção dos aviados e dos ambaquistas, que Poder-se-á dizer que existe uma espécie de continuum entre o reino, que se tornara
continuavam a infestar a região. Assis Júnior, 1979, p. 107, ao proceder ao inventário dos grupos que momentaneamente acéfalo, e o pouco valor das mercadorias transportadas até aos
tinham, nos fins do século XIX, relações comerciais com Pungo Andongo, afirma que «a cidade mantinha
um comércio de compra e venda com outros mercados em volta, Dongo, Cazengo, Ambaca e Malanje,
como porta de entrada para a feira de Casanje».
Carvalho, 1898, pp. 406-407. Ver também, a respeito deste comerciante que desempenhou
Este período provoca a rarefacção dos documentos portugueses: deixa de haver autoridades
um papel fundamental na recuperação da Feira de Kasanje, «A situação em Angola 1882-1883»,
Angolana, 1968, I, pp. 643 e 667. portuguesas, o que provoca o desaparecimento dos relatórios consagrados à situação da Feira em Luanda,
«Ofício do chefe de Malanje», AHU, CGA, pasta 44, 1874. assim como os documentos provindos dos comerciantes que continuavam instalados em Kasanje.
Carvalho, 1890, I, p. 272.
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mercados? A questão merece ser enunciada, mas não poderá receber mais do que uma de integrar alguns imbangalas nas caravanas alheias representa uma invenção moderna,
resposta mitigada. É em relação ao poder político que o comércio se encontra em plena cuja astúcia é evidente. Eles procuram reduzir a mobilidade dos «estrangeiros», tanto
deliquescência. Os comerciantes particulares conseguem assegurar a organização destas para se deslocar como para proceder às trocas comerciais, não hesitando em provocar
pequenas caravanas e negociar pequenas quantidades de produtos, que ao angariar acções concorrenciais, que se revelam muito prejudiciais para os interesses dos
lucros, mesmo modestos, permitem manter o mecanismo em funcionamento. comerciantes.
Verifica-se, assim, que a acefalia temporária do poder não eliminou as regras 2) O controlo dos carregadores. Como já vimos, os Imbangalas são comerciantes
observadas pelo aparelho comercial. Os métodos e as práticas trazidas do passado muito astuciosos. Acrescentam, por isso, às técnicas de controlo directo, algumas mais
foram assim conservadas. Podem, de resto, ser combinadas com técnicas novas, entre que podemos designar como de controlo indirecto ou dissimulado: o rumor, o boato, a
as quais: intriga e o medo servem também para assegurar o controlo das gentes do comércio. Um
importante negociante de Malanje, Custódio Machado, personagem extremamente visível
1) O controlo da circulação assegurado pela instalação, nos caminhos e nas nesta região, queixa-se: «querendo angariar carregadores para a minha expedição ao
picadas, assim como no sertão, de homens encarregados de identificar os viajantes e de Muatiânvua, tive de lutar com grandes dificuldades (...) [visto que nos] sobados
comunicar esta informação. António de Assis Júnior lembra as práticas que, ainda nas avassalados mais a leste, foi impossível conseguir um único; pôde verificar-se, mais
últimas décadas do século XIX, se registavam, de maneira corrente, numa região que tarde, a influência dos Bangalas que atemorizavam os povos, ameaçando-os de guerras,
vai do Dondo à Jinga e a Kasanje: os homens encarregados de vigiar o mato recorrem no caso de estarem dispostos a comprometer-se com a minha expedição, e fazendo-lhes
aos tambores para dar a conhecer o número e a qualidade das pessoas; um dos tambores crer que, se algum chegasse com vida à Musumba, o Muatiânvua lhe faria cortar o
utilizados para assegurar esta comunicação, e que pode ser ouvido a grande distância, pescoço, depois de lhe roubar a carga que transportasse» (159). Esta primeira observação
recebe o nome de mulange, quer dizer, vigília (157). é importante: os Imbangalas aparecem desta forma como perfeitos manipuladores do
Dispondo destas informações, os chefes de terra podem — no caso de tal se revelar boato, para conseguir obter resultados comerciais específicos. Esta estratégia deve ser
necessário — impedir a deslocação de uma ou de várias caravanas, se estas forem certamente muito útil no caso dos Europeus, na medida em que já nos foi possível
consideradas inconvenientes ou perigosas. Podemos, desta maneira, compreender a verificar que a quase totalidade das populações africanas da região estava convencida
facilidade e a rapidez com que as autoridades africanas conhecem as deslocações dos de que os Europeus eram antropófagos, amadores de carne africana. Em semelhante
agentes dos Europeus, que não dispõem dos mesmos meios de comunicação. Ou seja, terreno ideológico, o rumor ou o boato — de que se queixa tão amargamente o
a estrutura técnica tradicional dos Africanos coloca-os em nítida vantagem perante os comerciantes português — não pode deixar de desencadear resultados úteis para os
Europeus. Imbangalas.
Nestas circunstâncias há dois tipos de fiscalização que funcionam de maneira Contudo, estas manobras não são ainda suficientes. O negociante português
concomitante: o primeiro é o das populações que desejam conhecer as deambulações acrescenta: «não duvidei que os Imbangalas fizessem espalhar tais boatos entre os povos
dentro do seu território; o outro é o dos comerciantes que pretendem dispor de dados a quem se pediram carregadores; mas o que é certo é que fui conhecendo também com
relativos à circulação comercial, numa determinada região. Esta informação não pode o tempo, que os Bangalas dizem o que lhes vem à imaginação, no pressuposto de que
deixar de ser importante, a partir do momento em que condiciona o ritmo das trocas, se torna temido de quem o ouve...», conseguindo afastar quantos ameaçam fazer-lhes
tanto no interior, entre africanos, como no exterior, com europeus. concorrência nos negócios (19.
Os Imbangalas mantiveram-se sempre fiéis a um princípio político e comercial: A informação é preciosa, pois que desvenda um espaço muito particular no quadro
impedir toda e qualquer actividade de comércio junto do Kwangu, receando até as da guerra económica que percorre o sertão angolano. Dado que a reputação de
pequenas caravanas, como as dos quimbares. Para melhor assegurar o controlo e destruir antropofagia não parece suficiente para pôr termo ao comércio «europeu», os Imbangalas
a concorrência, os Imbangalas exigiam que alguns dos seus concidadãos fossem integrados mobilizam argumentos aparentemente mais eficazes, cujo conteúdo não chegou até nós.
nas caravanas sem participar nas despesas das operações, devendo os custos das passagens Mas interessa-nos sobretudo verificar que não há contraboato, pois este age contra os
dos «portos» e os presentes oferecidos às autoridades locais ser assegurados pelos Europeus e os seus associados ou aliados. Nem Europeus nem Africanos europeizados
estrangeiros (158). conseguem injectar, nos espaços ou nos circuitos africanos, os elementos do contraboato,
A combinatória antigo/moderno torna-se, assim, ainda mais visível. A vigilância capazes de reduzir a eficácia de muitas operações africanas. Custódio Machado, que
dos caminhos e das picadas do sertão respeita as técnicas mais antigas, mas a decisão

Assis Júnior, 1979, p. 175. (159) Id., 1898, pp. 298-299.


Carvalho, 1890, I, p. 273. (19 Id., ibid.

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se revela um observador extremamente atento, não parece apto para definir os diferentes disponíveis: os Imbangalas não querem ser espoliados, tal como não desejam perder o
mecanismos da estratégia africana; mas é necessário acrescentar que mal-grado os monopólio do comércio na região (19.
trabalhos teóricos de Edgar Morin, o boato continua à espera da teorização num quadro O que está em causa nestas operações é considerável, ficando os Europeus, desde
suficientemente utópico (19.
início, numa situação bastante impotente, pois nunca conseguiram contrariar a visão
Os Imbangalas não podem ignorar que o comércio do interior, organizado pelos ideológica que os apresentava como adeptos de práticas antropofágicas. Também são
Europeus, depende inteiramente dos carregadores. As novas formas de gestão política prejudicados pelo grande número de juízos provocados pelo seu aspecto físico. O
imbangala explodem, assim, em todo o seu esplendor; o Jaga deixa de ser capaz de combate para obter — ou negar — os carregadores vai prejudicar ainda durante
fornecer os carregadores que os Portugueses precisam. Ora, as condições de «vassa- alguns anos as relações entre os Europeus, os chefes e as populações africanas, antes
lagem» enunciam, entre as tarefas que cabem ao chefe político, a obrigação de fornecer que — mas só depois da Primeira Guerra Mundial — as viaturas motorizadas acabem
os homens indispensáveis ao funcionamento das caravanas portuguesas, tanto as científicas por aliviar o sofrimento dos Africanos, transformados em «animais de carga» das
como as que se ocupam do transporte de mercadorias. Acrescente-se que a situação é mercadorias europeias e africanas.
geral: os chefes não parecem dispor da autoridade e da capacidade de coerção 3) O controlo do espaço comercial interior. Já pusemos em evidência as técnicas de
indispensáveis para assegurar a satisfação das solicitações — ou imposições — vigilância do sertão adoptadas pelos Africanos. Este dispositivo permite-lhes intervir sempre
portuguesas. A fragmentação da actividade comercial, que permite a formação de que lhes pareça conveniente, para impedir a circulação de qualquer caravana que seja
caravanas relativamente pouco importantes, autoriza qualquer imbangala a organizar julgada inconveniente. A situação parece todavia mais complexa, porque não se limita a
um comércio individualizado, que reduz inevitavelmente o número de carregadores este tipo de controlo: é a população que, na sua totalidade, se empenha em impedir a
circulação dos estrangeiros. Henrique de Carvalho confirma em Malanje as informações
potenciais. A demografia intervém de maneira decisiva na organização destas operações.
que tinha recebido de maneira dispersa, mas em todos os lugares: se bem que a desordem
Esta situação de fiscalização muito apertada, no que se refere ao fornecimento de
do interregno marque os negócios políticos, a rejeição do Outro não se atenua (166).
carregadores às diferentes caravanas — portuguesas, europeias ou afro-portuguesas
Por outras palavras: as populações imbangalas vivem dentro de um sistema
(aviados, pombeiros, ambaquistas) —, começou a registar-se nos anos 60: em 1864 o ideológico de exclusão, que multiplica os obstáculos diante dos viajantes. As opções
director da Feira de Kasanje fica durante muito tempo à espera dos «300 carregadores imbangalas não são destinadas aos Europeus: estes merecem, devido à sua diferença,
que requisitara para transportarem (...) cargas de géneros coloniais que o Jaga Bumba um tratamento particular, mas não podem deixar de ser integrados no quadro geral.
tem ido entregando para completar a importância da primeira prestação das indemnizações Todavia, estas proibições não devem impedir o comércio, como observa Henrique de
a que se obrigou para com o Estado [português]» (162) Trata-se das consequências Carvalho: há razões diferentes, acumuladas desde 1867, que fazem dos Imbangalas
económicas do tratado de paz assinado em 1863, que não podia deixar de sangrar a os agentes do comércio português no sertão, «com vantagens para eles e também para
economia imbangala de maneira muito dura. Perante a impossibilidade de conseguir os concelhos (...) do Dondo e Malanje», beneficiando da criação da cidade de Malanje,
carregadores em Kasanje, os comerciantes são obrigados a procurá-los em Malanje, em porque o comércio imbangala atrai para a cidade «os estabelecimentos comerciais de
Ambaca ou no Golungo Alto ( 163). Estes homens deslocam-se «sem carga» até Kasanje, maior importância» (167).
onde recebem as cargas que devem ser levadas para Luanda. Esta situação leva-nos a reter as descrições bastante líricas, consagradas aos
A estratégia imbangala desenha-se de uma maneira assaz firme: se, por um lado, comerciantes imbangalas, que aparecem na literatura portuguesa da época: «o Bangala
recusam ser os carregadores das suas próprias mercadorias, que lhes são extorquidas é puramente comerciante e percorre léguas e léguas com a sua carga em busca de quem
por meio de uma operação política, procuram, por outro lado, convencer as populações mais fazendas lhe dê por ela» ( 168). Esta situação limita-se apenas, quando a analisamos,
vizinhas a congelar estes transportes, que os Europeus nunca poderão fazer por si a manter os Imbangalas no papel, que sempre foi o seu, de intermediários ( 169). Os
próprios. As ameaças parecem, de resto, dar resultados, como foi o caso dos Songos documentos portugueses parecem esquecer, às vezes, o passado recente, retomando
que, «habitualmente», se ofereciam para assegurar os transgrtes em troca de uma constantemente a mesma descrição que nos mostra os Imbangalas, indo em três direcções:
leste, oeste e norte — à excepção das terras do Sul, que não lhes parecem muito
remuneração em tecidos, que começava a identificar-se com um salário ( 164). ) Sujeitos
atractivas (170).
à pressão das ameaças imbangalas, os Songos dão mostras de reagir, tornando-se menos

Id., 1898, p. 298.


Morin, 1969. Id., ibid.
Carvalho, 1898, p. 249. Id., ibid.
Id., ibid., p. 301.
Id., ibid., p. 262.
Id., 1890, II, p. 313. Id., ibid.
Id., ibid., p. 407.
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4) As técnicas do comércio: do interior até Kasanje. Apesar disso, as relações
t'omercial dos grupos do Sul-Centro, quer dizer, os Imbangalas e os Quiocos. Estas
internas não podem deixar de ser abaladas pela irrupção inesperada que sobe do
operações suscitam uma resposta das populações do Norte: os Pendes instalaram em
Centro-Sul. É já na primeira metade do século que começa a fazer-se sentir a
Várias aldeias mercados destinados a assegurar a importação do sal. De acordo com as
concorrência dos Ovimbundos, que arrastam as mercadorias para o Sul, como o
informações disponíveis, era tão grande a falta deste condimento que o terceiro filho de
faziam também os comerciantes que se serviam em geral das estradas e das picadas
uma família recebia o nome de «filho do sal», sendo destinado a ser trocado por sal (176).
do planalto do Bié. Ao aproximarem-se os anos finais da primeira metade do século,
As técnicas de capitalização dos Pendes, onde não encontramos elementos que nos
aparecem os Quiocos, de maneira cada vez mais constante. Os Imbangalas e os
permitam alargá-las a outros grupos, mesmo vizinhos, parecem assaz singulares, sendo
Quiocos partilham o território ocupado pelas duas margens do Kwangu. Podemos
provavelmente a consequência das pressões comerciais exercidas pelas populações do
pensar que esta situação foi criada muito antes de ser registada pelos Portugueses.
Centro-Sul. Este «filho do sal», após as cerimónias da iniciação masculina, «vale tanto
Mas ela é, pelo menos, contemporânea da aparição dos Quiocos nas operações
como um homem e negoceia-se por 22 a 24 medidas (muxas) de sal, valor correspondente
associadas à travessia do rio Kwanza pelos Europeus, na segunda metade do século
XVIII. Os Imbangalas estão instalados relativamente perto do Kwangu, ao passo que a 1000 réis. Uma parte destas medidas é para gastos da família, e a maior parte
principal transformou o chefe em negociante, que vai mais para o norte e por 4 a 5
os Quiocos se estabelecem não só em torno do Kwangu, mas também no Tchikapa. medidas compra uma pessoa, que nos tais mercados [do sal] vende por 22 ou 24
Mesmo quando não há nenhum entendimento formal entre estes dois grupos, eles medidas» (177).
constituem uma barreira que obriga os outros a parar, impedindo-os de seguir os seus As informações respeitantes ao conjunto dos mecanismos económicos são bastante
«instintos comerciais», que poderiam — e quereriam — eliminar a dureza deste frágeis, mas podemo-nos aperceber de que o objectivo principal destas operações, nas
escudo defensivo, que não hesita em servir-se da violência (171). quais continua a intervir a mesma parelha formada por Imbangalas e Quiocos, é a
A grande novidade deste período reside na importância adquirida pelas regiões obtenção de homens. Os Pendes fazem parte deste sistema, sacrificando uma criança
do Norte na articulação de uns e de outros. A borracha fora inicialmente explorada para os adquirir; as 22 ou 24 medidas de sal podem, aceitando que uma pessoa custa
na região quioca (172), «colhida nas florestas Itengo e Caboluma, nas margens do entre 4 a 5 medidas, transformar-se em 4 ou 5 homens, o que permite um lucro de 3
Tchicapa e Luajimo sob o paralelo 100» (173), onde os Imbangalas a trocavam ou 4, conforme os preços praticados no mercado.
essencialmente por mercadorias europeias. Mas esta região foi rapidamente abandonada É certo que esta análise, em termos simplesmente económicos e contabilísticos,
sob o efeito de dois elementos: o rápido esgotamento do produto, reforçado pelo pode parecer excessiva e despojada de reflexos humanistas, mas afigura-se-nos difícil
controlo muito severo exercido pelos Quiocos. As populações que desejavam produzir dizer as coisas de outra maneira. O projecto económico destas populações tenta obter
e sobretudo comercializar o produto iam procurá-lo internando-se nas galerias homens e pode pensar-se, dadas as informações fornecidas por Rodrigues de Areia e
florestais do Norte, na região Lulua-Pende, a leste do Kasai. Era nessa região que indirectamente pela estatuária luba, que se procuram sobretudo mulheres. Já mostrámos
abundava a borracha (174). alhures, recorrendo à história de vida do adivinho quioco Sukulu, a importância dos
Devido a essas razões, o Norte tornara-se na região mais desejada, sendo o sal a escravos na organização das estruturas familiares e aldeãs nesta região (178). O comércio,
mercadoria que, neste espaço comercial, permitia todas as transacções. Como salienta que até à segunda metade do século XIX vivera inteiramente voltado para o tráfico
Henrique de Carvalho, «tanto os Bangalas como os povos aquém do Cuango têm a seu negreiro, mantém-se fiel ao negócio dos homens, agora destinados aos círculos comerciais
favor as salinas onde se fornecem de grande quantidade de sal, que não há em toda a interafricanos.
região de que trato [a leste do Kuangu] (...) Munidos de sal e alguns artigos de comércio De resto, como salienta Henrique de Carvalho, verifica-se que, nos percursos
europeu [missangas sobretudo] dirigem-se essas caravanas para o norte e em diversos comerciais que se orientam para leste e nordeste, há uma mercadoria que ocupa o lugar
pontos conseguem trazer borracha e (...) de quando em quando um dente de marfim (...) principal: o escravo. «Todas as caravanas que se dirigem para leste, para a Lunda, só
E também ultimamente alguns Bangalas levam (...) duas ató seis cabeças de gado têm um objectivo, comprar pessoas; as mulheres na sua maioria são imediatamente
vacuum» (175). A orientação sul-norte deste comércio é reveladora da multiplicação das integradas na caravana, como companheiras dos indivíduos que as compraram» (170).
barreiras que separavam as populações, o que é consequência evidente do apetite Todavia, a procura dos escravos é suscitada por outras razões: «vão em busca (...)
também de escravos para aumento das suas comitivas...», não podendo aí chegar

Id., 1890, I, p. 203.


Id., ibid., p. 292.
Id., ibid.
Capello e Ivens, 1881, p. 292.
Id., ibid.
Carvalho, 1890, I, p. 283. Areia, 1985.
(175) Id., 1894, IV, p. 746. Carvalho, 1894, IV, p. 745.
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nenhuma caravana sem ter levado a cabo trocas para conseguir escravos, tanto mais
do seu êxito. Os Songos tornam-se pouco a pouco especialistas do transporte das
que estes constituíam a moeda mais corrente para obter marfim (180).) Na verdade, damo-
mercadorias — africanas ou europeias — controladas pelos Portugueses, situação que
-nos conta do valor generalizado do escravo, que pode ser trocado por qualquer tipo
põe em evidência uma das grandes mudanças verificadas no sistema comercial das
de mercadoria. Nos finais dos anos 80, Carvalho retoma a descrição destas transacções: regiões vizinhas do Kwangu.
«o negociante de fazendas nas terras dos Lundas troca a maior parte destas por gente A segunda indicação útil provém do inventário das limitações de que sofre o
e depois (...) vende a gente por marfim. É pois ainda a gente que está à venda; é a moeda comércio imbangala. Já tínhamos tido oportunidade de observar que esta actividade
circulante nas transacções para a compra de outros artigos de comércio... » (181). nunca procurava deslocar-se para os territórios do Sul, nem contactar com as suas
Dispomos, por isso, de informações respeitantes a alguns circuitos dominados pelas populações. Podemos assim registar que a intervenção dos Songos reduz a liberdade de
mercadorias: «Troca-se o marfim por fracções de outros géneros, e estes por escravos, movimentos dos Imbangalas a oeste, o que os concentra, de maneira clara, nos caminhos
sendo estes escravos depois trocados com os Bangalas e os Xinges (...) por sal. A maior para leste e para norte ( 186). Esta situação explica-se pelo facto dos Imbangalas
parte desta gente que é levada em direcção à nossa província não passa das margens do manifestarem o desejo — ou o projecto — de pôr termo a qualquer forma de comércio
Quango (...) [onde] vão engrossar os povoados» (182\) A originalidade da situação reside que não controlem. Já pudemos também observar a pressão que o grupo exerce para
no génio dos negociantes, capazes de integrar variáveis regionais, para, recorrendo se infiltrar nas caravanas constituídas por não-imbangalas, de maneira a poder utilizá-
continuamente aos escravos, conseguir assegurar fluxos comerciais constantes. O las em seu proveito. A associação, pelo menos tácita, entre os Europeus e os Songos
historiador não pode deixar de sentir-se constrangido, devido à total falta de números, deve ser considerada um obstáculo às escolhas estratégicas dos Imbangalas, mas também
que não permitem, em caso algum, medir a importância destes fluxos demográficos. Como aceitamos a hipótese de que esta situação inédita se deve, pelo menos em parte, às
acreditaremos na existência de uma espécie de reservatório literalmente inesgotável de sequelas da crise do interregno.
escravos? Será que uma parte deles se encontra permanentemente nos caminhos comerciais, Estas caravanas pertencem àquelas que não hesitam em servir-se das crianças, mas,
trocados um dia por sal e, no dia seguinte, por marfim? na verdade, não parece que as sociedades em questão se mostrem tão atentas aos seus
As mercadorias destinadas aos circuitos europeus eram então levadas para Kasanje, filhos como o pretende uma certa tradição literária ou até etnológica, pois são
onde se transaccionavam com as casas comerciais que aí se tinham instalado, depois frequentemente vendidos ou oferecidos, como presentes ou, então, a preços muito
da Feira ter sido reaberta. Tal era o caso da famosa Casa dos Machados de Malanje, reduzidos, o que explica as legiões de «moleques» — crianças utilizadas, quer seja nos
cuja delegação fora inaugurada em 1884, apesar da instabilidade política que continuava serviços domésticos quer como auxiliares em trabalhos exteriores — que é possível
a caracterizar a existência do Estado imbangala (183). encontrar em Angola. Os carregadores adultos recebem cargas que podem chegar a
Em Quembo ou Kembo — feira portuguesa situada no espaço político de Kasanje — pesar até 90 libras (34,200 kg), que partilham com os carregadores-crianças, impondo-
existia um mercado itinerante, que se deslocava seguindo o rasto dos sertões produtivos. -lhes pesos que podem chegar às 40 libras (15,200 kg) ( 187). Estamos perante uma forma
Como estes se encontravam preferencialmente para leste, «é de prever que em tempo de violência complementar imposta pelas técnicas de transporte de cargas, raramente
mais ou menos longo os comerciantes de Cassanje se evadam (...) para a outra costa analisadas pelos autores que se interessaram por este aspecto fundamental da organização
[oriental]» ( 184). A ironia, no caso de ela fornecer o eixo da reflexão, não parece nada comercial africana (188).
excessiva, pois traduz bem a situação de dependência do comércio europeu, que só pode Podemos verificar que, por volta de 1882, certamente após o enfraquecimento da
funcionar graças à produção, à caça ou à colecta dos Africanos. Mas a Feira encontra- autoridade da corte imbangala, o poder português de Luanda e, indirectamente, de
-se instalada de maneira habilmente calculada: nos princípios da década de 1880 ela Lisboa se apercebe da importância do comércio imbangala como intermediário nas
explorava para cima de 800 cargas de produções diversas, enviadas para leste pelas relações com os Africanos do interior. A partir desse momento, as autoridades portuguesas,
caravanas formadas preferencialmente pelos Songos ( 185). Capello e Ivens mostram que que sabemos tão empenhadas na resolução das questões comerciais, procuram organizar
a técnica do boato, que continua a ser utilizada pelos Imbarwlas, conhece os limites relações desprovidas de agressividade, ao mesmo tempo que suscitam a instalação de
casas comerciais portuguesas, estrategicamente implantadas no interior.

Id., 1890, I, p. 272.


Id., 1892, II, p. 348.
id., ibid. Id., ibid., p. 292.
Id., ibid., II, p. 15.
Estas transacções comerciais também se podiam realizar em Kembo, uma feira que Capello ( 188 ) No estudo que consagrou a esta problemática, Alfredo Margarido (1981) não dá conta deste
e Ivens consideram decadente, 1881, I, p. 290.
recrutamento de crianças e pré-adolescentes e, na sua tese sobre a vida económica de Angola, Adelino
Id., ibid., p. 291.
Id., ibid. Torres, 1991, neste aspecto, demasiado dependente de Margarido, esquece também este recrutamento
de crianças.
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O governador de Angola deseja que a reabertura da Feira não se traduza por transacções ocasionais procuradas pelos Imbangalas, seja em resultado de viagens
«aparatos de força. O seu intento era animar os Bangalas (...) a fazerem seguir (...) as improvisadas seja como consequência das intervenções pessoais dos comerciantes
suas comitivas à permuta da borracha além Cuango [ou seja em território quioco-
imbangalas que, como não podia deixar de ser, procuram obter as melhores condições
-lunda], proporcionando-lhes a compra nos concelhos do distrito de Luanda — Malanje,
de preço e, por isso, lucros cada vez mais consideráveis.
Pungo-Andongo, Dondo e Ambaca — para o que se procurou influenciar também Infelizmente, os comerciantes portugueses, em geral pouco habituados à escrita,
Ambaquistas, Calandulas e povos de outros sobados...» (189). não se mostram muito faladores a respeito das condições em que se estabelecem as
«estabelecimento de agências comerciais em todos esses caminhos de Malanje relações comerciais entre os Imbangalas e os Portugueses. Henrique de Carvalho permite-
até este rio (...) [de tal maneira que os Africanos possam conseguir] trazer-nos o pouco -nos entrever o quadro técnico destas operações. Podemos verificar que existe uma
de [mercadorias] que já se encontra no centro da África, de bons géneros para permutação, espécie de mutismo voluntário referente à utilização, todavia corrente, do crédito: ora,
sem que [nós, os Portugueses] haja necessidade de mais sacrifícios, despesas e mais verificámos que este mecanismo financeiro era utilizado pelos Imbangalas nas relações
vítimas» (190). estabelecidas com as populações do interior. Compreendemos facilmente a dificuldade
do crédito, quando o beneficiário se lança numa viagem a longa — ou até a muito
Os relatórios da década de 80 giram em torno da borracha, mercadoria que aparece longa — distância, de onde pode não regressar. Por outro lado, se não conseguirmos
como a substituta dos escravos e do marfim, funcionando, na maior parte dos casos, pôr em evidência o autêntico e complexo quadro do crédito, não será possível proceder
associada à cera, certamente porque a recolha de uma, no sertão, facilitava a recolha da à verdadeira análise dos sistemas comerciais.
outra. Esta mercadoria só perde a sua importância socioeconómica na véspera da Primeira Durante o período que se definia pelo controlo do comércio de Kasanje pelo Jaga,
Guerra Mundial, em consequência da fulminante queda dos preços, imediatamente após o crédito ou não existia ou era ainda embrionário e, por isso, discreto. Dado que o Jaga
o aparecimento da borracha da Malásia nos mercados internacionais. fiscalizava todo o comércio a longa distância e, mais particularmente ainda, o europeu,
Todavia, uma parte dos dirigentes portugueses continua a encarar a necessidade de parece que nada justificava o recurso ao crédito. Todavia, este irrigava o tecido comercial
uma agricultura industrial capaz de assegurar a expansão não só agrícola, mas também imbangala, acompanhando os aviados e os pombeiros, cujas mercadorias lhes tinham
industrial de Angola. Sobretudo, este projecto pretende transferir para os Portugueses, sido confiadas a crédito pelos negociantes europeus. Quais foram as reacções dos
que procuram recrutar a força de trabalho africano, a responsabilidade da produção Imbangalas que permitiram que cada um pudesse experimentar as suas capacidades de
agrícola exportável. comerciante, furtando-se, para isso, ao controlo das autoridades políticas?
Por volta dos anos 1880, Narciso António Paschoal, que tinha acumulado uma Não conhecemos — e será esse outro elemento desta investigação — a identidade
fortuna — à dimensão angolana — vendendo mercadorias na Feira de Kasanje e nas da quase totalidade destes homens, mas tal não nos impede de fazer a pergunta: não
margens do Kwangu (191), tornara-se o grande organizador do comércio de borracha dos haveria entre estes aviados ou pombeiros algum imbangala, seduzido pelas oportunidades
Imbangalas. Mas este homem de negócios africano, preto e não mulato, proprietário de abertas pelo sistema do crédito? Deve pensar-se ainda mais nesta possibilidade, quando
armazéns em Malanje e em Kasanje, dá mais um passo na modernização das estruturas sabemos que o poder do Jaga conhece um enfraquecimento gradual, mas contínuo, que
económicas da região. Em 1888, Paschoal procede à sua reconversão na agricultura, permitia aos mais ousados furtarem-se à sua autoridade.
lançando-se na produção da cana-de-açúcar, que fornece a matéria-prima para fabricar Esta solução potencial foi exacerbada devido à acção inovadora de Arsénio do
açúcar e aguardente, sendo este produto indispensável no comércio com os Africanos (192). Carpo, que já referimos. A intervenção do comerciante português permitiu que os seus
A cronologia destas operações é muito reveladora, porque permite compreender qual vai colegas imbangalas se organizassem individualmente, partindo para o interior em busca
ser a orientação decisiva dos Portugueses que, sem nunca renunciarem ao comércio, se da cera, mas fundamentalmente da borracha (193).
lançam a fundo na monocultura das plantas, permitindo transformações industriais. O encerramento da Feira de Kasanje reduziu certamente, e de maneira importante,
5) As práticas comerciais: de Kasanje para a costa. Para•assegurar as relações o sistema do crédito, na medida em que proibiu «o fornecimento [de mercadorias] a crédito
comerciais afro-europeias, utilizam-se duas maneiras de proceder: as trocas realizadas aos indígenas» (194). Algumas caravanas imbangalas continuam a fazer comércio a crédito
com os estabelecimentos comerciais, que adquirem um carácter permanente; e as com as casas comerciais de Malanje ou com outras instaladas no eixo Malanje-Kasanje;
mas a maioria recorre a práticas comerciais de natureza completamente diferente (195).

Carvalho, 1898, pp. 294-295.


Id., ibid.
Id., 1890, I, p. 362. Id., ibid., p. 272.
Id., ibid. Id., ibid., p. 280.
(195) Id., ibid., p. 278.
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O sistema das cambolações, comércio praticado graças ao recurso a interme- que nos interessaria dispor de elementos para responder convenientemente, mas podemos
diários, cuja função consiste em atrair os clientes, «reviveu no concelho de Malanje (...) constatar que todas as caravanas contam com um número importante de homens que
saem [os] agentes da cambolação das diversas casas [comerciais] com uma estão reduzidos à sua condição de carregadores, não participando em nenhuma decisão
pacotilha (...) e vão esperar no caminho, a dias de distância, as comitivas de económica. Qual o estatuto destes homens? Tratar-se-á de escravos, o que explicaria
negócio procurando catequizá-las, com dádivas aos chefes e a um ou outro mais a sua marginalização em relação à discussão especificamente económica?
influente, e mostrando-lhes as vantagens que encontrarão se permutarem o seu negócio Também ficamos a saber que a negociação é sempre demorada, devido, em parte
com as casas que representam» (196). pelo menos, à sua ritualização, pois nunca se pode decidir rapidamente, sem antes
O sistema das famorosas: trata-se de um novo método de propaganda utilizado pelas acumular as observações, as comparações, as contagens e as recontagens, conferências,
casas comerciais que, em Malanje, fazem concorrência entre elas. Neste sistema, o reclamações, novas pesagens e complementos. Muitas vezes juntam-se «algumas bolas
negociante lança à frente das caravanas, que lhe passam diante da casa, um certo número de borracha (...) [as quais] estiveram de molho [na água] durante a noite; muitas vezes
de mercadorias — camisas, camisolas, lenços, chapéus, espelhos, novidades de missanga (...) adicionam papagaios ou mesmo curiosidades» ( 199). As fraudes na pesagem, as
e em pérolas de vidro, etc. — para as convidar a parar e a fazer ali as trocas (197). astúcias para conseguir um peso mais elevado, ou — por parte do comprador — um
peso mais leve são tão correntes do lado dos Portugueses como dos Imbangalas. O
Estas técnicas comerciais mostram o enorme desperdício de artigos, dados ou negócio só chega a um acordo após uma série de disputas em que cada grupo recorre
lançados diante das caravanas, para obter a boa vontade dos seus chefes. Este comércio ao maior número de artimanhas possível.
mantém ainda a sua ambiguidade: não se fixa no sertão, mas instala observadores a Uma das astúcias, a que os Portugueses recorriam, era a dobragem das peças de
alguns dias de marcha da cidade, para provocar a adesão daqueles que, vindos do mato, tecidos. Estas deviam contar um certo número de dobras, sempre contabilizadas em
podem nada conhecer da região. Logo que a decisão comercial esteja tomada, o caravaneiro jardas. Se as dobras se tornavam mais curtas, permitindo o aumento das jardas factícias,
transformado de vendedor em cliente inicia uma nova fase das operações: os Africanos não podiam deixar de ser roubados. Mas estes não hesitavam, por sua vez,
«Chegando uma comitiva a qualquer estabelecimento comercial é hospedada pelo em traficar as bolas de borracha, de maneira a aumentar-lhes o peso, tal como falsificavam
menos durante três dias, e a não ser o chefe e um ou outro que o acompanha que entram as gamelas de cera ou até os dentes de elefante (zoo) Neste registo, que persiste na
no estabelecimento para ver diversos artigos e conversar com o dono a respeito do memória colectiva angolana, pensamos que as melhores análises continuam a ser as de
negócio, e observar o modo por que este [comércio] se faz com outros fregueses, os um romancista, antigo angariador de serviçais, Castro Soromenho (201). Estes sistemas,
destinados a restabelecer uma certa verdade comercial — os Europeus recuperavam no
mais [membros da caravana] só pensam em comer e beber bem por conta da casa,
peso os presentes feitos, bebidos ou comidos, enquanto os Africanos lutavam, à sua
dançar e folgar (...) As combinações sobre preços são feitas pelo chefe da comitiva de
maneira, contra as balanças falsificadas —, se salientam a quantidade enorme de
acordo com os mais velhos, sendo a unidade a peça de fazenda de lei, cujo valor se
manipulações e de desonestidades, põem também em evidência a existência de uma
pode reputar em 850 réis. A unidade da pesagem é a libra [de 380 gramas], e segundo
espécie de compromisso, envolvendo os dois interlocutores, em matéria tão delicada.
o acordo a que chegaram, em cima do balcão se colocam as peças de fazenda de lei, Os comerciantes imbangalas recusavam, às vezes, todas as ofertas que lhes eram feitas,
que correspondem às libras pesadas» (198).
preferindo ir negociar alhures, em qualquer outra cidade ou vila comercial, quantas vezes
A descrição é de uma precisão muito importante, na medida em que indica a a centenas de quilómetros, ou então renunciavam a todo o tipo de operação comercial.
diversidade da organização de uma caravana, mesmo que ela não conte mais de 50-60 Carvalho conta um episódio revelador, ocorrido já em 1881, ano em que se registou a queda
pessoas. Dispõe de um chefe, que nunca age sozinho, mas apoiado — ou vigiado? — das cotações da borracha nos mercados internacionais. Os homens de negócio europeus
por alguém que o ajuda a organizar as trocas. Todavia, estes dois homens não podem foram forçados a reduzir os preços pagos aos Africanos, mas esta modificação não foi
decidir coisa alguma, sem se referir primeiro aos mais velhos. Q texto não nos permite compreendida pelos vendedores africanos: «o Bangala, que como disse é o carregador dos
esclarecer este ponto deveras importante: trata-se de um modo de citar a presença dos seus produtos, muitas vezes aqui chega para fazer negócio, e como se lhes fala na nossa
anciãos do grupo que, neste caso, acompanhariam todas as caravanas comerciais, ou baixa [refere-se a 1881] e se pretende dar-lhe o desconto ao preço do costume, supõe que
esta maneira de dizer identifica apenas os mais velhos desta formação ocasional? É certo o pretendem enganar e volta com a carga para a sua terra [mesmo que a viagem de regresso

Id., ibid., pp. 275-276.


( 199) Id., ibid.
Id., ibid., pp. 277-278. (too) Id., ibid., pp. 280-282.
( 198) Id., ibid., p. 279.
(201) Soromenho, o. c., 1958.
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dure 10 a 15 dias] (...) E se trouxer marfim, também não o vende, embora se lhe dê alguma
derrotados, os Imbangalas não têm outra resposta que não seja recusar-se a vender,
coisa mais por este artigo que o usual» (202).
precisamente no momento em que os especialistas europeus e americanos sabem que a
De resto, algumas caravanas mais «ousadas» não hesitavam em seguir para Malanje,
chegada ao mercado da borracha asiática vai modificar os preços de maneira definitiva.
para oeste, «para vender o seu material, pois faziam melhor negócio quanto mais se
Incapazes de controlar o mercado das matérias-primas, os Imbangalas e outros angolanos
aproximassem do litoral», dado que os Imbangalas não prestam atenção às distâncias
esgotam a sua energia nos caminhos, sem a menor possibilidade de lucro comercial.
que são obrigados a percorrer a pé com cargas aos ombros, tanto mais que gastam muito
pouco com a comida. «É esta a razão por que (...) têm aparecido em Luanda (...),
Ambriz, quando noutro tempo não iam mais longe do que o Dondo» (203). B. As consequências do crescimento comercial: o individualismo emergente e os
obstáculos ancestrais
Esta evolução do comércio e estas tentativas imbangalas, de assegurarem uma posição
hegemónica, parecem ser a consequência da sua capacidade de adaptação rápida e A análise da sociedade imbangala, na primeira metade do século XIX, permite o
astuciosa. Não podemos, contudo, deixar de salientar a existência de dois sectores da aparecimento de um ligeiro movimento que parece anunciar algumas mudanças nas
vida imbangala, e alargar esta reflexão a outros grupos. Se a vida comercial se mostra estruturas multisseculares do reino de Kasanje. O sistema só pode ser abalado do
capaz de se adaptar às mercadorias, aos caminhos comerciais e aos preços praticados, já exterior e, nesse aspecto, a crise de 1850-1851 constitui um elemento fundamental, na
no que se refere à vida política somos obrigados a dar conta da rigidez das estruturas, que medida em que põe directamente em causa a coerência do passado.
explica a resistência à mudança ou à mestiçagem política. O desequilíbrio das estruturas Apesar da fragilidade, sobretudo quantitativa das fontes, vamos procurar pôr em
imbangalas está orientado — em meados do século XIX — entre duas pulsões: aquela evidência os valores internos deste processo de mudança, nascido na primeira metade do
que autoriza a modernização, mesmo que relativa, das práticas comerciais, incompatível, século XIX, e cujos resultados se tornam visíveis no último terço do século, do qual os anos
pelo menos até certo ponto, com as formas rígidas da gestão política. finais adquirem aspectos trágicos, no que diz respeito aos valores e aos homens africanos.
Esta situação não impede a modificação e a modernização do comércio imbangala,
tanto sob a pressão dos parceiros europeus como a partir das estruturas internas, para 1. A reorganização do espaço: aldeia, relações sociais e parentesco
permitir formas mais dinâmicas e mais vantajosas para aqueles que apostam na
modernidade comercial. O comércio, cada vez mais individual, que as técnicas do O espaço social imbangala é organizado em três níveis, que correspondem à estrutura
crédito consentidas pelos Portugueses permitem reforçar, ou até mesmo banalizar, opõe- interna de uma sociedade bastante desigual (204):
-se às autoridades políticas, religiosas e parentais. Todavia, ele conhece uma pro-
gressão deveras interessante e consegue superar as dificuldades resultantes da crise 1.0 Encontramos o kilombo, onde estão concentrados o Jaga, os macotas, os maquitas
muito demorada do interregno. e as demais personalidades políticas, que se reúnem não só para poder gerir a sociedade,
Mas já tínhamos assinalado o facto que nos parece constituir um obstáculo muito mas também para dispor dos meios de se vigiar mutuamente;
sério na organização comercial dos Imbangalas. A primeira grande dificuldade assenta 2.° A mbanza aparece imediatamente após o kilombo. Ela surge-nos como sendo a
na evidente falta de invenção das mercadorias e das formas comerciais, que durante muitos sede dos sobas importantes e é formada por um conjunto de senzalas, por vezes muito
anos amarraram os Africanos à comercialização das pessoas. Os Imbangalas — esta numeroso;
observação pode ser aplicada a todos os grupos ou nações angolanos — dependem dos 3.° A senzala parece corresponder, de maneira precisa, às instalações das pessoas
sistemas introduzidos pelos Europeus. E isso verifica-se até aos nossos dias. É certo que do comum. A estrutura corrente destas senzalas associa a cubata ou as cubatas às terras
esta situação permite que os Africanos se apropriem das técnicas europeias, mas esta de cultura e, provavelmente, às terras destinadas aos pastos. A senzala, cuja organização
circunstância não pode contribuir para assegurar a manutenção da hegemonia africana, se manteve apesar de todas as modificações registadas pela sociedade imbangala, permitiu
que se esboroa de maneira inelutável durante a segunda metade do século XIX. que as sociedades africanas resistissem às múltiplas tentativas de aniquilamento, mesmo
O outro obstáculo provém do desconhecimento das técnicas de produção utilizadas quando se registavam situações de acefalias momentâneas, devido à prisão ou até à
pelos Europeus. Essa ignorância aparece, de maneira muito sensível, quando se regista morte do chefe.
a queda das cotações da borracha, que depende das contingências específicas dos países A instalação de uma senzala deve respeitar algumas regras mínimas, mas obriga-
industrializados, grandes consumidores da matéria-prima tropical. Completamente tórias. Quando o chefe de «família» (vamos utilizar neste caso o vocabulário dos autores

(204) Ver 2.' parte, cap. III, onde procurámos definir as diferentes estruturas e analisar esta questão.
Carvalho, 1890, I, pp. 274-275. Ver também, id., 1898, pp. 317-323.
Id., 1890, I, p. 275. Voltamos a considerá-la aqui para pôr em evidência as mudanças registadas na segunda metade do
século XIX.
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europeus) escolhe o lugar conveniente — situação que depende da capacidade de produ-
ção do território escolhido, assim como da qualidade dos vizinhos — para instalar uma É certo que os Portugueses se permitem pôr em causa o ritual dos Imbangalas no
senzala, de que ele assume a chefia, tem em conta a necessidade de esta ficar junto de um que se refere à designação dos herdeiros do poder, o que só pode significar a liquidação
terreno propício à agricultura, ao abrigo da incursão do gado e, sobretudo, das feras. da hegemonia tão asperamente defendida pelos Imbangalas. Esta atitude portuguesa
Para conseguir organizar uma senzala é necessário que o homem se liberte de uma procura anular o direito, que os Imbangalas sempre tinham conservado, de designar os
parte do controlo e das exigências exercidas pela sua matrilinhagem. Deve dispor, pelo titulares dos cargos políticos, operação que é reforçada pela redução da importância dos
menos, de uma mulher, esposa ou concubina, e de alguns filhos. A senzala surge assim laços de parentesco entre os seus detentores.
como a unidade mínima do casal com os filhos, o que podia aproximar esta unidade Quais são as mudanças verificadas na organização do espaço social por volta de
de produção da família conjugal europeia, se não fosse a importância da vigilância 1880, quer dizer, no momento em que assistimos ao crescimento de um comércio
exercida pela matrilinhagem sobre os filhos das mulheres, com as quais o homem está imbangala que deve contar, cada vez menos, com os escravos e, cada vez mais, com
casado ou em situação de concubinagem. o volume crescente das mercadorias europeias?
A senzala garante ao homem uma certa autonomia perante a sua família — patri-
linhagem e matrilinhagem — permitindo-lhe furtar-se à coabitação com outros membros Capelo e Ivens utilizam uma maneira seca de descrever o projecto corrente entre
de qualquer um destes ramos. os Imbangalas: «a maior ambição do mungala é possuir uma banza (senzala), cercada
Já pusemos em evidência a maneira como se organizam as relações entre os blocos, de escravos» (207).
quer dizer, entre os fragmentos de clã das senzalas, os sobas ou sobetas, instalados nas Por outras palavras: não há imbangala que se considere autónomo, enquanto se não
mbanzas, e as autoridades pertencendo à «nobreza» sediada no kilombo. tiver separado da sua linhagem e, para adquirir essa independência, só o pode fazer por
Rodrigues Neves, que se interrogou muitíssimo a respeito da organização imbangala, meio das mulheres, em primeiro lugar, devendo confirmá-la pela aquisição de escravos.
mesmo quando agiu com uma grande dureza em relação tanto aos chefes como às Os descendentes contam bastante pouco: não tardam em ser acolhidos pelos tios maternos,
populações, reteve um grande número de informações que nos permitem esclarecer as que não hesitam em proceder ao casamento de algumas destas raparigas antes da
ligações entre estes três blocos. Estamos em presença de uma estrutura fortemente puberdade, para receber os presentes do noivo ou do marido que, contudo, só poderá
organizada, a exemplo do que se verifica com os Lundas, que forneceram o modelo obter a jovem mulher após a nubilidade.
utilizado pelos Imbangalas. O kilombo exerce a sua autoridade sobre a totalidade das
Todavia, a organização social imbangala apoia-se num mecanismo que multiplica
populações e dos seus chefes, dependendo o poder destes últimos do número de os controlos: os rapazes jovens apenas conseguem as esposas através da família, única
dependentes, livres ou escravos, e podendo ser reforçado pela posse de gado. Homens estrutura económica que dispõe dos meios suficientes para satisfazer o valor do dote
e gado são a conjunção que, na visão de Rodrigues Neves, assegura o poder. exigido pela família da futura mulher (208).
Se o Jaga habita no kilombo, os sobas e os sobetas ocupam mbanzas, cuja impor-
As informações de Capello e Ivens permitem aquilatar a importância das mudanças
tância se estrutura em função do número de senzalas, isto é, de dependentes sobre os
em curso entre os Imbangalas. O candidato à autonomia da mbanza só pode alcançar
quais podem exercer uma autoridade normativa, que passa pela cobrança de tributos,
mas impõe em contrapartida a protecção devida pelo chefe político. esse objectivo por meio da acumulação. Ora, sabemos, e aí reside mais um paradoxo
Rodrigues Neves assinala também as relações muito apertadas que existem entre das estruturas e dos projectos africanos, que uma das regras constantes destas economias
os sobas e as autoridades portuguesas. É o caso de um soba que recebeu a sua mbanza se fixa nas técnicas utilizadas para tornar difícil, ou até impossível, a acumulação
das mãos do major Salles Ferreira, em reconhecimento pelos serviços prestados aos excessiva (209).
Portugueses ( 205). Este tipo de intervenção dos Portugueses regista-se após a derrota das Esta maneira de agir explica-se em função dos valores religiosos: a maior parte
forças imbangalas em 1850-1851. Estas concessões são destinadas, naturalmente, a destes grupos africanos está convencida de que a acumulação excessiva, criadora potencial
recompensar os serviços prestados pelos chefes africanos, mas a operação procura de desigualdade, só pode ser o resultado de actos feiticeiros. Se a acumulação diferencial
sobretudo criar condições de controlo mais eficazes e, principalmente, mais baratas. é consentida e até encorajada no caso dos chefes, que assim podem confirmar a sua
Trata-se de uma operação que podemos classificar como uma forma precoce de autoridade, ela é considerada como uma ameaça quando se regista entre pessoas que
antropologia aplicada, na medida em que estes chefes não são mobilizados por acaso, não pertencem a este nível hierárquico.
sendo recrutados de acordo com — contrariamente ao que é afirmado por Adriano
Parreira ( 206) — as regras de parentesco das estruturas aristocráticas dos Imbangalas.

(2o2) Capello e Ivens, 1881, I, pp. 294-295.


Id., ibid., p. 293.
Neves, 1854, p. 22.
Santos, (1609), 1891.
Parreira, 1990, pp. 153-160.

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O mecanismo imbangala, que, na sua lenta evolução, permitiu o aparecimento das como escravos homens, que concentrados em torno da mbanza tornam visível o número
autonomias, depende da poupança e da acumulação. É este binómio que autoriza os de dependentes, os quais são produtores de bens e, por conseguinte, de riqueza.
Imbangalas a apostar numa certa independência, impossível de alcançar muito cedo. A mbanza aparece, deste modo, como a unidade territorial e social que consagra
Neste mecanismo, onde se regista uma associação entre o conjugal e o económico, o poder do chefe, o mbanza, o qual se apresenta, à medida que nos aproximamos
as mulheres desempenham um papel fundamental, tal como de resto os escravos, assunto dos tempos modernos, cada vez mais dependente da sua capacidade comercial. O
que abordaremos mais adiante. título de mbanza torna-se então sinónimo de «chefe comercial» ou de «chefe de
Capello e Ivens descrevem, de maneira sintética, esta forma de poupança organizada caravana» (211).
pelos Imbangalas para conseguirem mulheres e escravos: «trabalha para isso [para O homem imbangala não pode alcançar a sua realização pessoal sem dispor de uma
constituir uma aldeia] durante anos, conseguindo uma peça de fazenda hoje, um escravo grande autonomia que, contudo, não elimina a existência da autoridade exercida pelo
amanhã, até que (...) estabelece-se definitivamente, mandando-os [os seus escravos] por poder central. A estrutura centralizada pode manter-se apesar dos abalos do século XIX,
sua vez ao negócio» (215. consequência da multiplicação dos choques com os Portugueses.
Para que esta operação resulte é necessário que os Imbangalas façam prova da
obstinação, que constitui uma das armas clássicas dos pobres que pretendem enriquecer. As populações desta região procuraram, com um afinco constante, obter reses em
Só a conjunção do trabalho com a poupança pode permitir que os pequenos e, às vezes grande quantidade. O gado graúdo ocupou, de maneira permanente, um lugar fundamental
até, os pequeníssimos comerciantes consigam obter um número crescente de dependentes, no imaginário dos Imbangalas, sendo todavia a sua passagem à prática contrariada pela
que trabalharão, as mulheres para o marido, os escravos e até os filhos, para o senhor. existência de uma barreira de tsé-tsé (212).
A recusa ou a redução do consumo excessivo permite a acumulação, e esta dá ao chefe Mas, nos finais do século XIX, os Imbangalas já possuem, como salientam Capello,
de fracção de clã os recursos para aumentar de maneira constante o número de dependentes. Ivens e Henrique de Carvalho, um conjunto apreciável de cabeças, havendo currais em
Mas, na longa demonstração de Capello e Ivens, só o comércio permite esta forma todas as aldeias, onde os animais são muito numerosos (213). Essa propagação parece
de promoção social: aquele que consegue formar uma aldeia, que lhe pertença, tem em ser uma consequência significativa das relações com os Portugueses que dão grande
vista um projecto mais amplo: a organização de uma mbanza. Para aí chegar, multiplica importância aos bois ou, quando estes não existem, aos búfalos.
os agentes comerciais e os seus escravos devem então percorrer o sertão em busca dos Os animais, utilizados no consumo ritual ou ritualizado, servem para assegurar o
produtos preferenciais que, integrados já nos circuitos comerciais dos Europeus ou prestígio do proprietário, mas são também, quando não sobretudo, argumentos comerciais
europeizados, contribuirão para aumentar o potencial económico dos senhores. para conseguir obter quer mulheres — e principalmente estas — quer homens. Os
A base do enriquecimento dos Imbangalas provém, por isso, quase exclusivamente Imbangalas, tais como tantos outros, entre eles os Quiocos, procuram adquirir mulheres,
do negócio, quer dizer, da sua capacidade de exercerem a função de intermediários. legítimas ou concubinas, para alcançar o maior número possível de descendentes (214).
Podemos recorrer a Karl Marx que, muito antes de Fernand Braudel, pôs em evidência O Imbangala só acumula para poder aumentar a prole de dependentes. O gado constitui,
a importância absoluta dos intermediários no sistema económico que havia de permitir dado o facto de funcionar como mola preferencial de troca, uma arma económica de
— ou impor — a criação do capitalismo moderno. É o intermediário que cria e importância primordial.
estabelece o valor.
No sistema angolano, esta função pertence em grande parte aos Imbangalas, que
parecem possuir uma espécie de «espírito do comércio». Esta noção, que criámos a
partir do «espírito do capitalismo» de Max Weber, é destinada a evidenciar o carácter
particular dos Imbangalas, que lhes permite não só fazer face aos Portugueses, como
colocá-los ao serviço dos seus interesses. O facto de não possuírem a mínima ideia do
sistema capitalista em que estavam envolvidos, não os impediu de recuperar com grande
habilidade os princípios fundamentais que lhes permitiram assegurar a hegemonia Ver, a respeito deste problema, Capello e Ivens, 1881, I, pp. 344-345, e Carvalho, 1898,
comercial. pp. 303-305.
Entre as populações da região, mas sem que isso tenha mobilizado a atenção da quase
De facto, não é a acumulação protocapitalista que arrasta as mulheres imbangalas totalidade dos viajantes, os efeitos das tripanossomíases manifestam-se sob a forma de sonolência. No
para os arimos e os homens para os caminhos comerciais, mas essencialmente a Dondo, a doença era ainda corrente nos fins do século XIX e até mais tarde. Ver Assis Júnior, 1979,
necessidade de conseguir obter mulheres — esposas, concubinas, servas — assim pp. 62-65. A descrição do escritor angolano não faz mais do que confirmar uma impressão nossa: os
Africanos não tinham ainda estabelecido uma relação directa entre a mosca e a doença. Ver também
a 3.' parte, cap. II, onde analisámos mais sistematicamente esta questão.
Capello e Ivens, 1881, I, p. 296.
(210) Capello e Ivens, 1881, I, pp. 295. Carvalho, 1894, IV, p. 746.

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2. Os escravos Aparentemente, em consonância com Pogge e, mais tarde, com Carvalho, os escravos
não têm todos o mesmo valor, verificando-se mais do que a simples diferença sexual,
Os Imbangalas não hesitam em viajar muito para lá do Kwangu para adquirir escravos um sistema de preços de acordo com a origem geográfica. No que diz respeito às
no interior ( 215). Procuram-nos por toda a parte, tanto mais que eles devem suportar os mulheres, as informações permitem destacar o facto de as luluas e as lundas se contarem
diferentes fluxos que exige esta mercadoria: o que alimenta as plantações europeias em entre as preferidas por muitos grupos ( 219), o que não pode deixar de aumentar a procura
Angola ou em S. Tomé, mas de maneira crescente as correntes internas da escravatura e, por conseguinte, os preços. Mas não podemos ir além desta grelha de interpretação,
interafricana. As descrições de que podemos dispor são infelizmente demasiado sucintas. dado que os viajantes só dão conta de alguns aspectos maiores destas operações. No
Sabemos, por exemplo, que por volta de 1868 os Quiocos e os Imbangalas mantinham último quartel do século, a situação mostrava-se já bastante diferente: os escravos
uma relação constante com a região dos Luluas, onde iam procurar não só a borracha, começam a deixar de circular nas estradas e não aparecem, por isso, no mercado.
destinada a ser comercializada com os Portugueses, mas também as escravas, que eram Aqueles que os capturam ou os compram — «ficam com eles para [os utilizar] os seus
objecto de consumo e de comércio exclusivamente interafricano (216). trabalhos» (220) Dispomos, assim, de algumas informações, pérolas insuficientes
A maior parte das pessoas, arrastadas para a «nossa província», fica instalada nas para formarem um colar, que repetem com muita insistência que alguns grupos não
margens do Kwangu e só uma fracção chega até aos sobados de Kasanje. Destinam- procedem à venda das pessoas, o que consideramos como sendo a consequência visível
-se a engrossar as aldeias dos Jagas, banzas, sobas e sobetas «súbditos» dos Portugueses, da abolição do tráfico negreiro, que acaba por forçar as sociedades africanas a
ou que estão à margem de qualquer autoridade. «A gente assim obtida sujeita-se a servir reorganizarem a produção e o comércio de escravos.
os seus patrões e a transportar cargas porque principalmente os povos que marginam Esta informação cruza-se contudo com outra, que faz do escravo a única mercadoria
o Cuango se tornaram negociantes (...) [chegando até a atingir] o Dondo, [assim como] útil nas trocas que se desenrolam nas regiões de Bacuba: estas são alimentadas por
Luanda e Ambriz» (217). escravos que aí chegam, provenientes do Sul. Henrique de Carvalho cita um documento,
Esta explicação de Carvalho abre uma nova perspectiva, que parece difícil rejeitar, cujo autor, um comerciante português não identificado, afirma: «foi em Novembro de
pois corresponde, de maneira quase perfeita, à lógica do sistema, obrigado a compensar 1886 que encontrei no Sapo-Sapo três caravanas (...) que seguiam para Cabau, levando
a falta de animais domésticos para assegurar os transportes da imensa quantidade de um número superior a oitocentos escravos!! Escravos vendidos por marfim, pelos preços
mercadorias produzidas. A grande capacidade dos Imbangalas para obter escravos teria que lhes custaram, deixa-lhes um lucro espantoso!» (221).
assim contribuído para assegurar o crescimento do comércio com os Europeus. Estes homens seriam membros da «classe inferior» (222), mas o seu estatuto nunca
Deve contudo reter-se um elemento implícito nesta maneira de dizer: tal como perde a sua ambiguidade, porque estão, mesmo numa situação de inferioridade reconhecida
salienta o texto, parece ter-se registado uma modificação importante na organização do e aceite, autorizados a organizar uma existência muito perto da norma social correntemente
comércio de escravos, entre 1851 e 1868. Em 1851, eles são vendidos em Kasanje de praticada. De resto, os Africanos destinados ao mercado preferem sempre ser vendidos
maneira corrente, de acordo com técnicas e valores que todos os intervenientes consideram aos Africanos e não aos Europeus. Carvalho acrescenta que entre os Africanos, os
normais. As informações dadas por Rodrigues Neves no seu «diário de campanha» escravos preferem ser vendidos aos grupos menos «civilizados», provavelmente — a
mostram, de maneira muito precisa, que o tráfico de escravos continua a ser uma extrapolação parece-nos legítima — para se instalar numa sociedade menos marcada
actividade regular, não só nas relações interafricanas, mas também nas relações com pelas diferenças hierárquicas (223).
os Portugueses (218). Quer-nos parecer que os viajantes do século XIX se sentiram muito derrotados
A situação parece modificar-se por volta dos anos 1860, circulando os escravos pela extrema complexidade da situação destes «escravos». Henrique de Carvalho
não pode deixar de se aperceber da extrema grosseria da grelha linguística europeia,
africanos pelos caminhos exclusivamente destinados ao consumo interno, embora se
possa aceitar a hipótese de que nos falta ainda, neste momento, uma parte da informação
capaz de permitir desenhar a geografia da escravatura, necessária à identificação das
estradas que mais serviam esta actividade. De acordo com Livingstone, 1859, p. 491, as luluas eram muito procuradas devido à sua
beleza, ao passo que as lundas eram consideradas de «raça superior», sendo os seus filhos muito
estimados. Carvalho, 1895, p. 842. É evidente que, face a este quadro, ainda que indicado de maneira
sumária, a escolha das mulheres se não fazia somente em consequência das relações normais de
parentesco, o que pede, por sua vez, um estudo consagrado apenas a este aspecto das relações interafricanas.
Id., ibid., p. 288. Carvalho, 1890, I, p. 287.
Pogge, citado por Bastin, 1961, p. 28. Id., ibid., p. 288.
Carvalho, 1892, II, pp. 348-349. Id., 1892, II, pp. 118-119.
Ver Neves, 1854, que faz a esta situação várias referências espalhadas ao longo da narrativa. (223) Id., ibid., p. 120.

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na medida em que as sociedades africanas dispõem de um vocabulário muito mais circunstância reduz inevitavelmente o número de mulheres a que pode ter acesso o
diferenciado do que o utilizado por qualquer sociedade europeia, que depende da mururo, que deve manter-se fiel ao seu quadro institucional, o que o limita ao consumo
palavra latina: «eles [os Africanos] têm vocábulos para distinguir a pessoa homem das mulheres mururos. Uma mulher livre não só teria alguma dificuldade em aceitar
da pessoa mulher, e também os vocábulos para as distinguir segundo as idades, e ser a mãe de filhos de estatuto inferior, mas também estaria sujeita às regras do
ainda para a pessoa homem, os que a distinguem segundo a sua categoria social» (224). casamento, gerido pelos mais velhos.
Carvalho assinala, desta maneira, a existência dos mururos e dos mubicas. Os Fica-se com a impressão de que Henrique de Carvalho procura atenuar a gravidade
Portugueses teriam sido vítimas dos ambaquistas, que interpretam os mururos como e a violência do estatuto dos escravos entre os Africanos: os mubicas seriam, assim,
sendo mubicas, quer dizer, escravos. Carvalho afirma: «não há equivalência entre
mais vítimas dos Europeus do que dos Africanos, pois teriam sido os primeiros a
mururo e mubica senão no facto da dependência de um senhor que o pode passar a
introduzir em África os instrumentos destinados a brutalizar os mubicas africanos. Isto
outrem — é a moeda nas suas transacções» (225).
não impede a contradição de irromper no próprio texto de Carvalho, que explica que
Nas terras dos Lundas do Mwatyanvua, o mururo é aquele que se encontra
os Africanos estavam condenados a inventar uma instituição «abominável», que foi de
abandonado, isto é, não incluído em nenhum tipo de parentesco. De resto, no caso de
uma importância extrema para estas populações, «razão pela qual a conservam ainda
aparecer um parente capaz de provar a existência de uma relação de afinidade, mesmo
ténue, ele pode resgatar este mururo, que readquire, nesse caso, a sua posição na hoje» (229). Esta perturbação de Carvalho se revela a sua profunda adesão aos valores
sociedade normal. africanos, convence-nos também da indispensabilidade desta instituição nas sociedades
O mururo pode ser recuperado por aquele que o encontra, mas é necessário africanas, que continuam, de resto, a evocá-la ainda hoje com uma nostalgia evidente.
acrescentar que a identificação com este grupo parece menos fácil do que aquilo que
é sugerido por Carvalho: «os prisioneiros de guerra, os tomados nos sequestros, os que
não podem pagar condenações» t /226\) são considerados abandonados, quer dizer, mururos. 3. As estruturas políticas: que «democratização»?
Confesse-se que esta etiqueta é pau para toda a obra, servindo para classificar quem
quer que tenha cometido uma infracção ou um crime, assim como as vítimas dos As estruturas políticas de Kasanje atravessam o período agitado da segunda metade
processos judiciários. do século XIX, em situação contraditória, resultante da crise brutal dos anos 1850-
Parece-nos resultar das informações minuciosas — embora insuficientes — de -1851. Com efeito, o poder imbangala julga-se ainda suficientemente forte para se
Carvalho, que as sociedades são capazes de gerar «abandonados» que, naturalmente, deixar arrastar a cometer violências contra os Portugueses. Digamos que o Jaga e os
devem provir de alguma parte, sobretudo no caso das sociedades africanas, cujas seus conselheiros apreciaram mal as novas relações de força, modificadas, sobretudo,
demografias são — pelo menos nesta região — deveras reduzidas. É preciso, pois, que pela abolição do tráfico, mesmo durante o período em que este continua a reger a vida
estes «abandonados» sejam criados pelas sociedades, decididas a eliminar aqueles que comercial angolana: o simples facto de a maior parte deste comércio passar da legalidade
se tornam incómodos, e isso por razões múltiplas que o texto de Carvalho não permite
à ilegalidade salienta a importância e a gravidade das mudanças.
considerar na sua totalidade. Mas o mururo parece também ter sido criado para satisfazer
Como se regista em todos os poderes que agonizam, os responsáveis políticos
as exigências do comércio: na ausência de assalariados, ou seja, de homens cujo serviço
é remunerado — tal é a maneira de dizer de Henrique de Carvalho — o mururo torna- Imbangalas procuram por todos os meios manter uma hegemonia que dependera
-se indispensável para que os grupos possam «penetrar no campo das suas operações essencialmente do tráfico negreiro. A desorganização das estruturas comerciais encontra
comerciais» (227). plena confirmação na desordem das estruturas políticas e, inversamente, dado que o Jaga
Carvalho procura também reforçar a sua argumentação, justificando a diferença que assentava a maior parte da sua autoridade no controlo dos fluxos comerciais, incluindo
separa o mubica do mururo: «o mururo só tem paridade com o mubica de Angola em o das pessoas destinadas ao tráfico ou à escravatura interna. É certo que o poder do Jaga
infelizmente passar como moeda» nas operações comerciais. Garvalho acrescenta uma se encontra justificado pela genealogia, quer dizer, pela tradição e pela prática política
segunda possibilidade de identidade: o mururo pode ser autorizado a organizar uma vida imbangala. Mas o seu pilar principal era a escravatura; quando esta foi abalada, o Jaga
afectiva e sexual normal, embora os descendentes pertençam ao seu proprietário (228 ) . Esta foi empurrado para o combate armado em que não podia ganhar, sendo obrigado a refu-
giar-se no mato, onde encontrou o apoio constante dos súbditos que não podiam aceitar
que o representante do poder fosse capturado pelas autoridades portuguesas.
Id., ibid., 1890, I, p. 284.
Id., 1890, p. 284. Ver, a respeito do preço dos escravos, id., ibid., pp. 287-288.
Id., 1890, I, p. 285.
Id., ibid., p. 286.
(228) Id., ibid. (229) Id., ibid.

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Rodrigues Neves multiplicou esforços para conseguir capturar o Jaga, perseguindo-o Aqueles que tinham recebido ordens do Jaga para proceder a esta operação não
sem descanso através do sertão, incapaz de compreender que se os Portugueses tinham hesitaram em molestar o soba, acusado de um crime de lesa-aristocracia, considerado
posto fim à antiga autoridade do Jaga, este continuava a ser o autêntico sustentáculo do imperdoável por parte dos chefes imbangalas. Também neste caso, nos encontramos
poder político. Essa razão explica o fracasso das correrias dos soldados de Rodrigues Neves
através do mato ( 230). Do ponto de vista simplesmente simbólico, a situação é contudo perante uma situação muito ambígua, pois que se orienta em dois sentidos completamente
opostos: se o chefe Cassaxi se permite utilizar uma tipóia para se fazer transportar,
extremamente reveladora, dado que põe face a face duas impossibilidades: a primeira é a
do Jaga e dos Imbangalas que pretendem regressar ao statu quo ante; a segunda pertence carregado por homens envolvidos pelo tilintar alto e bom som dos guisos que utilizam,
tal indica que as regras de controlo político estão em via de degenerar. Mas, no entanto,
às autoridades portuguesas, que se mostram incapazes de compreender a impossibilidade
de proceder à captura do Jaga. a intervenção violenta e decidida dos súbditos do Jaga, que restabelecem a norma,
A situação permite verificar que o poder imbangala não pode ser eliminado com confirma a existência de um poder político ainda forte, mesmo que já moribundo. É
a facilidade sonhada pelos dois militares. Esta dificuldade verifica-se, de resto, também certo que o soba é vítima de uma operação destinada a repor a norma ortodoxa do
no quadro dos negócios. As operações comerciais continuam a depender da intervenção passado, mas o facto de se verificar uma utilização abusiva salienta a importância da
das autoridades políticas imbangalas: nenhuma operação se pode realizar enquanto o transformação.
chefe de terra não tiver enviado o seu presente ( 231 ). Ela é reveladora das formas rituais Como não podia deixar de ser, o poder simbólico estava estreitamente unido ao
de que continuam a depender as operações comerciais: os negociantes não podem poder real. Os resultados das mudanças não são os mesmos em todas as situações ou
realizar as suas transacções sem ter previamente calculado e enviado o «presente» ao circunstâncias. Se o Jaga pode ordenar a destruição de uma tipóia utilizada por um chefe
chefe político. As autoridades políticas assinalam a sua satisfação — quer dizer, o que parece respeitar pouco as regras hierárquicas, mostra-se incapaz de fazer prevalecer
presente corresponde ao valor das mercadorias a comercializar e à importância reconhecida a sua autoridade num ponto infinitamente mais delicado, como o que se verificou
do comerciante — respondendo a estes presentes. É necessário que esta réplica política durante a sucessão do chefe Quifucussa (233).
se realize, para que os contratos possam começar. Imediatamente após a morte deste chefe, os seus súbditos tinham procedido à
Esta operação tem apenas uma interpretação: os comerciantes, que são sempre eleição de Ambumba. O Jaga considerava este novo chefe como um verdadeiro intruso,
«estrangeiros», mesmo quando africanos, devem ser reconhecidos pelo poder político. estando entendido que só ele podia controlar os princípios de sucessão. O Jaga é
No caso deste ajuste se não fazer, os estrangeiros devem ser boicotados e expulsos. Mas novamente preterido e ninguém dá crédito aos direitos que ele pensa continuar a deter,
uma situação desta natureza só pode colocar-nos perante o elemento mais importante: razão pela qual procura denunciar esta eleição que, do seu ponto de vista, devia ser
o da constante afirmação do papel de comutador do poder político, mesmo no sector anulada.
comercial, que podíamos pensar ter sido abolido ou atenuado sob a pressão dos homens Todavia, a situação era já, em termos políticos, completamente diferente: os dois
de negócio imbangala e, mais ainda, dos comerciantes estrangeiros. Nada disso acontece, chefes, Ambumba e Anganga Anzamba, consideravam-se inteiramente independentes do
o que nos ajuda a compreender este movimento com altos e baixos, que marca as Jaga Andala Quissua, porque se apresentavam como súbditos do Muene Puto, quer
próprias hesitações do poder político imbangala. dizer, do rei português (234). O desmantelamento das estruturas africanas torna-se assim
Podemos constatar que estas maneiras de assegurar o controlo são conservadas de visível: alguns chefes políticos, que tinham satisfeito as condições impostas pelas
forma apaixonada, mas o próprio facto de elas não serem respeitadas tão cegamente autoridades portuguesas, tornando-se seus «vassalos», consideram poder agir de maneira
como no passado salienta a importância das mudanças, que procuram actualizar as autónoma, sem prestar contas ao Jaga.
relações. Num registo complementar, mas que mobiliza igualmente o poder político, De resto, o facto de terem a possibilidade de contar com o apoio do poder militar
tomámos conhecimento da agressão de que foi vítima o soba Cassaxi, cuja tipóia, onde português permitia que os dois chefes procedessem a esta eleição sem qualquer autorização
se fazia transportar, fora destruída pelos súbditos do Jaga. Estes consideram tratar-se do Jaga: as forças enviadas por Andala Quissua, para expulsar o mal-eleito do seu
de uma manifestação exibicionista, pois o soba não pertencia ao grupo político que tinha
poder, são rapidamente desbaratadas pelos militares portugueses que, de resto, fazem
o direito de se fazer transportar numa tipóia levada por homens, que assinalavam a sua
saber ao Jaga que o novo Quifucussa já tinha sido confirmado pelas autoridades lusas
passagem graças às campainhas presas à cintura e aos tornozelos (232).
de Malanje.
Estamos, por isso, perante os últimos sobressaltos do poder político imbangala, não
hesitando — por puro realismo — a maior parte dos chefes em transferir-se para o lado
Neves, 1854, pp. 14-95. Podemos, ao longo destas páginas, acompanhar as numerosas correrias que lhes parece ser mais prometedor, ou seja, o da autoridade portuguesa. A pressão
de Neves e dos seus soldados por montes e vales, em pleno mato, em busca do Jaga escondido e
protegido pelas populações suas súbditas, que recusam considerar-se derrotadas.
Carvalho, 1890, I, p. 379.
(232) Id., ibid. Id., ibid.
Id., ibid.
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constante das mercadorias e dos homens impôs ao poder político imbangala uma usura dificuldade de fornecer aos Europeus os carregadores que estes exigem mais do que
que provocou uma alteração política evidente. Tal é tornado visibilíssimo pelas escolhas solicitam. Henrique de Carvalho sugere que estes obstáculos provêm exclusivamente de
do Jaga. Em 1873, morre o velho Jaga Bumba, mas só em 1882 se fechou o longo um défice demográfico, que impede as autoridades africanas de darem satisfação a estes
período do interregno, que se revelou extremamente turbulento. O fim da crise deve- pedidos (237). Mas outra verdade se impõe: ela afirma-se, em primeiro lugar, no
se à necessidade de conseguir que os Portugueses voltem a abrir a Feira, o que prova comportamento dos carregadores que não hesitam em bloquear a marcha das cara-
a importância da intervenção da autoridade política portuguesa (235). vanas, pedindo — ou exigindo — um complemento de salário, ou recusando prosseguir
O esboroar do poder político, que não pode deixar de provocar uma degenerescência na direcção desejada pelos empregadores ou, mesmo ainda, roubando as mercadorias.
do poder comercial, atinge o seu ponto máximo. O facto de o Jaga se ver na obrigação A deserção é a réplica mais extrema a esta situação e, em alguns casos, é acompanhada
de pedir aos Portugueses a reorganização da Feira põe em evidência o esvaziamento do ou reforçada pelo roubo.
poder imbangala, que é compensado por uma espécie de messianismo imbangala que Não queremos ser acusados de interpretar de igual modo comportamentos muito
confia ao poder português a tarefa de proceder ao restabelecimento de uma certa diferenciados. Tal não nos parece, na medida em que assistimos a uma das fases mais
autoridade imbangala, que serviria de garante a um bem-estar futuro, consequência significativas da dupla ruptura dos comportamentos: os carregadores deixam de aceitar as
desta nova forma de relações com os Portugueses. regras até então correntes, não só aquelas que caracterizavam o contrato estabelecido com
«Assim diziam eles: Muene Puto nos dará parte da esperteza que o sol leva toda os Europeus, mas também as que marcavam ou tinham marcado as relações das autoridades
para as suas terras e nós saberemos então fazer fazendas, pólvora, armas e missangas, africanas com os seus súbditos. É evidente que esta desordem não possui o menor carácter
e já não precisamos vestir as peles dos brutos; faremos boas casas e lavras, teremos institucional, menos ainda ritualizado, e traduz antes uma certa forma de anomia.
os seus remédios para as nossas doenças e aprenderemos a escrever e a ler e já não Como não manifestar alguma surpresa perante a explosão destes comportamentos
seremos enganados com os recados» (236). modernos? Podemos até encontrar nos textos alguns elementos complementares que
É certo que este discurso é reformulado pelo colonizador, e mesmo que ele procure permitem uma definição mais completa da nova situação. Assim, um número importante
estruturar a maneira como os Africanos organizam as suas aspirações, podemos pôr em de carregadores recusa ir para a margem direita do Kwangu e, mais particularmente, para
dúvida, pelo menos em parte, a sua fiabilidade. Todavia, os sinais que nos levam a a corte lunda. Os Imbangalas tinham espalhado um boato muito eficaz: o Mwatyanvua faria
aceitar a verosimilhança deste tipo de discurso são suficientemente numerosos para o cortar a cabeça dos carregadores que conseguissem chegar à Musumba. A reputação do
podermos fazer sem grandes receios. Face à crise profunda das instituições, os Imbangalas grande imperador era tal que o boato funcionou como um agente de dissuasão terrivelmente
procuram recorrer a uma operação mágica, de modo a recuperarem uma situação eficaz, impedindo a circulação na margem direita do rio (238).
equilibrada, que lhes permita superar a violência do choque sofrido em 1850-1851. O Regista-se também a existência de uma segunda razão que pode parecer-nos algo
ideal seria então regressar aos valores do passado. anedótica. Os carregadores, que recusam ir para as terras de leste, manifestam uma forte
São deveras numerosos os sinais que nos indicam não uma «democratização» do propensão para seguir para as terras do Lubuco, a nordeste: a razão é fútil, mas extrema-
poder, situação que seria certamente excessiva, mas um abrandamento das regras, mente poderosa: nesta região o poder fornecia mulheres «para servir» (239) os carregadores.
permitindo relações menos rígidas entre os diferentes estratos da população. Se os autores preferem comentar o grande apetite de mulheres manifestado pelos
A questão dos carregadores conta-se certamente entre as mais reveladoras deste varões imbangalas, parece mais indicado encontrar uma visão mais flexível: não haveria
abrandamento: é sabido que eles são o único «animal de carga» de que podem dispor nestes espaços um considerável défice de mulheres, consequência da poligamia de um
os comerciantes e os funcionários portugueses. À medida que nos aproximamos dos número de homens que, sendo assaz restrito, nem por isso deixava de dispor de centenas
finais do século, assistimos a diversos movimentos entre os homens que estão obrigados ou de milhares delas para consumo exclusivo?
a assumir esta tarefa, que não constituem, contudo, um grupo socioprofissional, tal Estes argumentos podem parecer relativamente frágeis, mas a verdade é que dispõem
como não formam uma casta. Trata-se de homens recrutados entre os recolectores e os da força suficiente para superar a sua condição de boatos, e o seu vigor põe em causa
caçadores, para assegurarem o transporte das cargas, em troca de uma remuneração que a própria coerência do poder político, que se revela manifestamente incapaz de contrariar
só se vem a transformar em salário já nos primeiros anos do século XX, ainda que nem os seus efeitos. É certo que os viajantes estão constantemente a contas com dificuldades
sempre tal se verifique. insuperáveis, como salienta Henrique de Carvalho, mas a mais significativa reside na
A situação destes homens evolui da seguinte forma: em primeiro lugar, os chefes
de terra não conseguem continuar a impor a sua autoridade e são colocados perante a

Id., 1898, pp. 249, 262 e 298-299.


Id., 1898, pp. 286-291. Id., ibid., pp. 298-305 e 352.
Id., 1890, 1, p. 421. (239) Id., 1890, 1, p. 350.

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relação entre carregadores e autoridades políticas. Este sinal de indisciplina, que varre
qualquer explicação política, tal como não parece resolúvel por via das remunerações
elevadas, deve ser compreendido como capaz de pôr em evidência a fragilização do
poder tradicional, definitivamente abalado pelas novas regras de circulação das
mercadorias.
É de resto esta situação que aparece na terceira razão da recusa: um número
crescente de homens, que dispõem de uma experiência de carregadores, rejeita esta
actividade, mesmo que muito bem pagos, porque decidiram abandonar o transporte para
se consagrar ao comércio. Pouco a pouco as actividades de prestígio começam a mudar:
o comerciante é aquele que pode obter riqueza. Parece, por isso mesmo, destinado a CAPÍTULO III
ocupar um lugar cada vez mais importante na sociedade. Seja como for, a generalização
da actividade comercial assinala o fim do poder imbangala, que pôde sobreviver durante Os Quiocos: expansão, inovação e limites
alguns séculos a tantas formas de ataque.
A organização do reino de Kasanje foi modificada para permitir a coabitação de
duas estruturas não poucas vezes conflituais: a do poder político do Estado, encimada
pela autoridade indiscutível do Jaga, e a das opções comerciais dos Europeus, que
deviam submeter-se à disciplina, por vezes duramente hegemónica, dos Africanos.
A Feira afro-portuguesa era destinada a criar um espaço, onde as operações comerciais
podiam ser levadas a cabo sem todavia comprometer, na sua potencialidade perversa,
as estruturas africanas.
A função de Estado-intermediário ocupada pelos Imbangalas nunca foi suficiente-
mente poderosa para implicar, a não ser nos anos finais do século XIX, a recusa das
regras africanas que impuseram, algumas vezes, o encerramento e o abandono da Feira.
O Estado-intermediário, se funcionava como uma espécie de «câmara de passagem» das
mercadorias, provindas das regiões orientais da África central assim como da costa
atlântica, nunca pôde — nem quis — renunciar às regras africanas. Estas deviam ser
escrupulosamente respeitadas, sendo frequentemente mais importantes do que os interesses
comerciais.
Pensamos que, por esta razão, o Estado de Kasanje não pode ser contado entre os
Estados-intermediários puros, embora tivesse aceite desempenhar esta função nas relações
entre a costa e o interior. Podemos dizer que o Estado deve ser antes considerado como
uma estrutura política africana, que aceitou assegurar a comercialização de um certo
número de produtos, mas mantendo-se realmente condicionado pelos valores fundamentais
do poder político africano.
Por sua vez, os Quiocos tornaram-se, mas na outra margem do Kwangu, o grupo
que desempenhou o papel de intermediário. Não dispomos de informações suficientes
antes dos finais da primeira metade do século XIX, a não ser no que se refere ao sul
do território quioco, na fronteira com o Kwanza, rio fundamental, sempre presente no
cesto dos adivinhos.
A diferença de situação entre os dois grupos é primordial: os Quiocos deixaram
de ser estreitamente controlados por um poder central, dado que este papel centralizador
parece ter sido ocupado, até muito tarde, pelo chefe lunda, o Mwatyanvua. Nestas
condições, os Quiocos foram levados a reforçar o seu forte individualismo ciânico ou
familiar, o que permitiu que a «nação» quioca se organizasse de maneira bastante
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fragmentada. Não parece inteiramente deslocado mostrar a existência de dois tipos de 1. As migrações quiocas: direcções e datações
comércio: o centralizado, que corresponde a estruturas polfticas centralizadas, e o mais
fragmentado, que parece ser mais certamente assegurado pelas instituições familiares. Os Quiocos aparecem no conjunto dos textos que lhes são consagrados como sendo
Podemos, desta maneira, constatar que se as sociedades africanas procuram reduzir uma das populações mais errantes de Angola oriental. Os mapas étnicos salientam, sobre-
as consequências do aumento dos fluxos comerciais, elas só conseguem fazê-lo graças tudo a partir da carta demasiado esquecida de Ferreira Diniz, a importância desta expansão
ao reforço da autoridade central, o que pode ser insuficiente sempre que a contestação quioca para norte, em direcção às terras do Kongo, mas também para sul, no território
deste poder, por uma unidade relativamente homogénea, se faz de maneira mais sistemática angolano, que as leva praticamente até ao Kunene (2). Todavia, os caminhos seguidos por
ou obsessiva. Foi este o caso dos Quiocos, que se serviram das novas relações comerciais esta expansão parecem evitar, assaz cuidadosamente, seguir para ocidente, ao encontro dos
para reforçar a sua oposição ao poder central do Mwatyanvua. Será que semelhante Portugueses e do mar. Digamo-lo ainda mais claramente: os Quiocos espalham-se
situação implica ou permite uma qualquer forma de modernização? Assim o cremos, por toda a parte, sendo travados a norte pelas autoridades belgas e a leste pelos Ingleses,
na medida em que a liberdade de fracções de clã ou até de indivíduos se torna mais não procurando, em contrapartida, dirigir-se para as zonas ocidentais.
evidente.
A emergência dos Quiocos, que só aparecem na literatura portuguesa já nos anos
finais do século XVIII (1), está estritamente associada a esta situação. Sujeitos ao poder A. A expansão para norte
despótico dos Lundas centrais, os Quiocos não dispuseram dos meios para criar uma
autoridade centralizada suficientemente forte para se separar do poder lunda e gerir o Se por volta de meados do século XIX, os Quiocos parecem estar unicamente
instalados na região da Tchikapa, como assinala Livingstone que, em 1854-1855, ainda
conjunto quioco que, por essa razão, manteve certas formas de gestão próprias das
sociedades mais ou menos acéfalas. Os poderes locais não conseguem superar o quadro os não encontra no paralelo 10 (3), em 1863, um documento português situa-os já nesse
do clã ou da fracção ciânica na maior parte dos casos. paralelo. Trata-se de um relatório oficial que, dando conta da situação existente nos
Como agem nessa circunstância as forças quiocas, dado que já nos últimos anos territórios de Talla Mugongo, assinala a presença dos Quiocos «do outro lado», isto é,
do século XIX vão mobilizar-se contra o poder dos Lundas centrais, impondo combates na margem oriental. O autor, o capitão António Maria Ribeiro, descreve a situação em
contínuos até ocupar e destruir a capital lunda, em 1887? Esta operação fez-se em vagas relação a Kasanje, cercada pela «grande montanha de Talla-Mugongo (...) dividida ao
constantes que desmantelaram as estruturas lundas, até as tornar impotentes. Trata-se meio pelo grande rio Cuango», acrescentando que «da parte posterior da meia
de uma operação deveras complexa, onde a identificação da «nação» quioca permite circunferência da montanha que olha a leste, começa a nação dos Quiocos, que seguindo
mobilizar as forças indispensáveis ao ataque final dos Lundas, que voltaremos a abordar para o interior naquela direcção, vai confinar com a Lunda, pertencente ao potentado
mais para diante. Muatianvua» (4).
Podemos considerar que o êxito dos Quiocos dependeu, em parte, desta mesma Isto quer dizer que os Quiocos estão em via de se instalar no paralelo 10, na região
fragmentação do poder, que permitiu uma maior liberdade de acção dos indivíduos, ao onde se situa, desde meados do século até aos anos 1880, o mais oriental posto
passo que o peso do poder central dos Lundas os tornou menos capazes de fazer face comercial português-kimbundo (5).
a um grupo decidido a obter a liberdade, destinada a assegurar a circulação dos homens Esta data é confirmada por Otto Schütt, o qual, vindo de Luanda, chegou ao país quioco
nos finais do ano 1878, «no décimo paralelo». O explorador alemão salienta também que
e a levar a cabo operações comerciais sem estarem obrigados a dar conta de qualquer
os Quiocos só alcançaram esta latitude há cerca de 20 anos e «que vêm do sul da região
transacção mais importante às autoridades lundas de tutela. Nesta medida, os objectos
civilizacionais introduzidos pelos Europeus, como as armas de fogo e outras mercadorias das nascentes dos grandes rios que correm para o norte, onde eles se fixaram há trezentos
anos. A sua infiltração prossegue ao longo destes rios entre os quais se instalam entre os
cada vez mais comummente propostas às populações, desempenham um papel
determinante, implicando uma reorganização bastante ampla das formas de actividade
dos Quiocos, tornados caçadores-recolectores, sem renunciarem, contudo, nem ao
artesanato nem à agricultura. Ver os mapas que se encontram em anexo. Deve salientar-se que os mapas étnicos ulteriores
aos de Ferreira Diniz se limitam a afinar a sua proposta, mas não introduzem correcções ou alterações
consideráveis, como podemos constatar comparando-os com os mapas mais conhecidos de José Redinha
e de Mesquitela Lima.
Na sua viagem de regresso de Luanda para a costa oriental através do território de Kasanje
e do Kwangu, Livingstone percorre a região de Kimbundo em direcção a Cabango e a Catema, assinalando
apenas a presença dos Lundas. Ver Livingstone, 1859, pp. 490-530.
(1) Nos anos finais do século XVII, as caravanas que faziam o percurso Benguela/Bié para se dirigir Carvalho, 1898, pp. 223-224.
para Loyale são obrigadas a atravessar o território quioco. Ver 4. parte, cap. II. Ver Pogge, citado por Bastin, 1961, p. 25.

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Lundas, que parecem querer dominar dentro em pouco para formar uma nação Não podemos deixar de assinalar o carácter particular desta informação, já pos-
independente. Todavia, os Quiocos instalados na região de Kimbundo, que o chefe alemão terior à destruição da capital lunda: os Quiocos parecem conservar o seu apetite por
atravessou, ainda pagam tributo ao chefe lunda Mona Quimbundu» (6). escravos até muito tarde, prosseguindo na sua orientação expansionista, mal-grado as
Estas informações salientam a tensão existente nas relações entre os Lundas e os novas políticas europeias, geridas pela tríade, Bélgica, Portugal e Inglaterra. As razões
Quiocos, dado que este grupo não consegue, apesar da sua determinação, libertar-se do comerciais continuam a aparecer no primeiro plano, mas não podemos esquecer que
controlo dos Lundas. Já tão tarde como em 1878, os Lundas continuam a exigir e a obter estes homens se deslocam igualmente para abalar os sistemas políticos que pretendem
tributos satisfeitos pelos Quiocos. Temos de levar em conta que estamos a menos de dez controlá-los e exigir-lhes impostos ou «presentes». O movimento quioco mostra assim
anos do desmoronamento do poder lunda, sem que os Quiocos consigam pôr termo à a existência de uma dupla determinação, pondo mais uma vez em evidência a
dominação lunda que parece ter durado mais de três séculos. É contudo necessário interdependência entre comércio e política.
acrescentar que a situação não é homogénea em todo o território e que algumas secções
quiocas se haviam já libertado desta opressão, mesmo que para o conseguir tivesse sido B. A expansão para sul
necessário refugiar-se em qualquer lugar, fora do território «nacional».
No registo mais directamente geográfico, a informação de Schütt é apoiada por Os Quiocos contam-se também entre as populações angolanas que se deslocam
Buchner, em 1879. Este não só confirma a presença dos Quiocos, bem organizados no mais, graças, em parte, à sua concepção de parentesco e, por conseguinte, à sua
lugar onde são encontrados, mas estima que teriam sido necessários vinte anos para capacidade de regularizar os problemas demográficos. Estes, por sua vez, têm
alcançar o paralelo 10 (7). consequências no plano económico, onde é preciso produzir e vigiar os produtores; e
Parece pois que, por volta dos anos finais da década de 1850, os Quiocos começaram no plano político, onde é sempre necessário prever e controlar as cisões e os afrontamentos
a sua ascensão para norte, aproximando-se da margem direita do Kwangu para ace- que não poucas vezes estas provocam.
der mais facilmente ao comércio praticado na margem esquerda do rio, que sabemos Podemos sublinhar o elemento central desta maneira de agir: qualquer quioco é
estar minuciosamente fiscalizado pelos Imbangalas. Retenhamos as duas informações potencialmente o embrião de uma unidade familiar e política importante, desde que
fundamentais: a primeira obriga a corrigir a maneira como se vê, de um modo geral, a consiga obter um número significativo de mulheres e de escravos. Aparentemente a
instalação dos Quiocos, que são apontados como em via de se deslocar para sul, quando, autoridade política só raramente dispõe dos meios para impor o seu poder, e os Quiocos,
na verdade, a sua primeira grande migração, no século XIX, reside na ida para norte. A grandes andarilhos, dispondo de competências técnicas particulares, parecem capazes
segunda põe em evidência a sua força comercial, pois que os Quiocos aproveitam as de multiplicar ad infinitum o número de células familiares autónomas.
condições que tinham sido abertas pelo funcionamento da Feira de Kasanje. O comércio Por que razão vão eles, em tão grande número, dirigir-se para o Sul? A resposta
continua a revelar-se um dos objectivos fundamentais dos Quiocos, que lhes permite deve ser procurada, em primeiro lugar, no Norte, sujeito durante séculos ao poder
instalar-se em toda a parte, sempre que encontram um nicho ecológico capaz de fornecer o político extremamente centralizado dos Lundas da Musumba. Já pudemos observar que
marfim e a borracha que são já então os seus dois grandes argumentos económicos. os Quiocos deviam pagar impostos à corte lunda, ainda em 1880, quando o projecto
Esta expansão para norte não podia deixar de ser lenta. Buchner afirma que quioco lançava algumas ramificações para norte, guarda avançada que se destinava a
os Quiocos continuam a sua ascensão, assinalando que tinham atingido, na ocasião, o esmagar o poder lunda. Quer dizer que a expansão quioca se organiza em duas direcções:
paralelo 7 ( 8 ). Em 1907, Torday faz referência aos Quiocos que haviam invadido uma para norte, que parece determinada pela deslocação das manadas de elefantes, mas
«recentemente» os Ngongos, ou seja, os Kubas, com os quais mantinham relações que na verdade se destina a eliminar a cidade capital dos Lundas e o poder político que
comerciais, «para aí capturar escravos em troca de latão e de cauris» (9). ela simboliza e concentra. A segunda deve contar com o próprio projecto quioco que,
ao aumentar o número de mulheres e de dependentes, precisa de territórios relativamente
vazios para poder instalar a população que está em via de crescimento constante. Se
o Norte está largamente ocupado pelas populações lundas e lundaizadas, já o mesmo
Ver Schütt, citado por Bastin, o. c., p. 26.
se não verifica no Sul.
Ver Buchner, citado por Bastin, o. c., p. 26.
Id., ibid.
Com efeito, nos anos 1853-1854, Livingstone fizera observar a fraca densidade
Ver Bastin, o. c., pp. 28-29. Marie-Louise Bastin deixou-se enganar pela sua própria escrita, populacional ( 113). É certo que o missionário escocês não se refere a nada que dê a
pois parece-nos difícil capturar alguém em troca de alguma coisa. Teríamos tendência em apostar antes conhecer as razões desta fraca densidade populacional, mas o seu reparo permite
num sistema de troca um pouco obrigatório, dado que os Quiocos «pagam» aquilo de que têm vontade,
que os «invadidos» podiam não querer ceder. O acto obrigado é todavia compensado, embora estejamos
no direito de nos interrogarmos a propósito da violência deste tipo de comportamento que, aparentemente,
pretende «respeitar» uma parte dos direitos dos «invadidos». Os Quiocos «obrigam», mas «compensam». ( 1 °) Livingstone, 1859, p. 378.

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compreender que os Quiocos dispunham das condições geo-humanas para poder avançar O inventário das referências contemporâneas permite encarar a organização da
sem estar obrigados a disputas constantes com os proprietários da terra, havendo tantos expansão quioca não já como a consequência mecânica da caça ao elefante e da sua
espaços vazios ou subocupados. desaparição, mas de a fazer entrar no quadro das escolhas polfticas dos Quiocos.
A expansão quioca não pode fazer-se de maneira atribulada, conforme a vontade Digamos que a caça ao elefante é uma consequência dessas opções, e não o seu único
ou a fantasia (mesmo que esta deva respeitar as regras africanas) dos chefes de família, motor. É certo, e evidente, que a caça ao elefante para obter marfim desempenha um
o que facilita a expansão destas unidades isoladas que se apoiam, apesar de tudo, numa papel importante na deslocação das populações, mas não podemos esquecer que os
interajuda mínima. A leitura dos mapas étnicos dá a possibilidade de compreender, com Quiocos se instalam em territórios onde não há elefantes ou onde já desapareceram seja
certa prontidão, que qualquer nova colónia quioca, que conseguia instalar-se, servia por que razão for. Esta situação salienta a importância fundamental das escolhas
para mobilizar outras, que se lhe associavam sem comprometer a sua autonomia. Isto políticas, a respeito das quais continuamos a estar pessimamente informados.
não impedia a existência de uma consciência colectiva quioca, que se exprimia não só A expansão quioca para sul parece ser fulgurante, na medida em que se realiza
por via dos mitos de origem, mas se apoiava também em escolhas extremamente essencialmente numa região que se caracterizava então por uma «desertificação
pragmáticas.
humana» (14). Infelizmente, pelo menos até agora, a arqueologia não nos informa
Já nos finais da década de 1870, Serpa Pinto, na sua viagem para a costa oriental, a respeito das possibilidades de existência de uma população que teria sido dizimada
atravessa o território luchaze e encontra aí alguns quiocos. Afirma então que «a emi- pelo tráfico negreiro, podendo este ter contribuído, de maneira decisiva, para a
gração constante dos Quiocos e a colonização das terras Luchazes [região de mel e de desertificação do território e, por consequência, para a sua desumanização. Só
cera] por eles é um facto (...) O país dos Quiocos ou Quibôcos (...) é colocado ao norte
constatamos, como no-lo mostram os documentos, que esta região possuía uma
do Lovar (...) Alguns [habitantes quiocos] descontentes com o seu país emigraram para
população muito reduzida e deveras disseminada.
o sul, atravessando o Lovar vieram estabelecer-se na margem direita do Lundo-é-Ungo,
Foi, pois, uma opção quioca que permitiu a organização daquilo a que se chama,
país luchaze. Não foram hostilizados (...) seguiram-se outros, sendo constante hoje a
ainda hoje, a «flecha quioca», metáfora devida à forma que adquire esta instalação nos
emigração» (11). Estas populações continuaram a exercer diferentes pressões umas sobre
mapas consagrados ao inventário das populações. A lição que podemos extrair desta
as outras, o que pode explicar que um número cada vez mais elevado se deslocasse para
situação mostra ser impossível evacuar a dimensão política destas operações como se
se instalar junto do Kubango. Respondendo às perguntas feitas por Serpa Pinto, os
os Quiocos fossem um grupo onde não existissem fortes laços internos. O que podemos
Quiocos justificavam as razões da partida como sendo devidas à doença e à falta
de caça. verificar é precisamente o inverso, já que não há fracção de grupo que não possua uma
Alguns anos mais tarde, Henrique de Carvalho salienta: «os Quiocos animados pelo espécie de consciência «nacional» — alguns teriam preferido que se falasse de consciência
comércio do sul dedicam-se à caça do elefante, mas terminando esta na região (...) «étnica» — que permite a unidade do grupo, sempre necessária para superar as tensões
passaram a ser os medianeiros de transacções do comércio (...) [do] marfim e [da] e os conflitos internos.
borracha». Os Quiocos agem de maneira autónoma, não hesitando em ir procurar as
mercadorias no interior, para as trazer aos comerciantes portugueses. De resto, os
Portugueses receiam as técnicas dos Quiocos, dado que a menor transacção permite um 11. O desenvolvimento do comércio: homens, mercadorias e práticas
grande número de «exigências e (...) caprichos», o que faz perder tempo. No fim de comerciais
contas, os Quiocos aparecem de maneira cada vez mais constante como mediadores nos
circuitos comerciais que se relacionem com a borracha e com o marfim (12). «Produtores» de cera e de marfim, que as caravanas africanas ou luso-africanas
Estas referências permitem-nos dar conta do carácter particular da expansão quioca, iam comprar nos seus territórios nos anos 1840, os Quiocos tornam-se igualmente
que não pode ser reduzida à simples perseguição dos elefantes, como é quase comerciantes das suas próprias produções. Mais tarde, procuram também assegurar a
mecanicamente referido pelos estudos consagrados quer à região,equer ao grupo. Marie- comercialização dos produtos obtidos junto de outros produtores.
Louise Bastin inscreveu num mapa as zonas onde os caçadores quiocos teriam Os Quiocos jamais renunciaram às suas actividades de produção, não hesitando em
praticamente liquidado os elefantes. Esta indicação é certamente importante, embora nos modificar de maneira radical as suas técnicas de trabalho para produzir as mercadorias
pareça excessiva, pois que não eram os Quiocos os únicos caçadores em actividade, desejadas ou solicitadas pelos exportadores europeus. É por esta via que os Quiocos
empenhados em obter marfim e, às vezes, também carne (13). se transformam nos maiores produtores de borracha, exportada pelos comerciantes
costeiros. Ora, a borracha era uma matéria-prima nova, que contribuiu para modificar
Pinto, 1880, 1, p. 234.
Carvalho, 1890, p. 695.
(13) Bastin, 1961, 1, p. 31. (14) Ver Livingstone, citado na nota 10.

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não só as práticas comerciais dos Europeus e dos Africanos, mas sobretudo as A. O comércio a crédito
relações dos Africanos com a natureza e com o trabalho.
A comercialização fez-se, de maneira crescente, graças a pequenas caravanas, O comércio a crédito parece ter sido — como já procurámos mostrar — uma
o que põe em evidência a maneira como se organiza a racionalização destas operações: introdução dos Portugueses, embora não possamos duvidar da existência prévia de
a produção é garantida por pequenas unidades familiares ou clânicas, que procuram várias modalidades que aparecem, de maneira bastante nítida, como recurso a pessoas
assegurar a comercialização daquilo que produzem, pondo em causa o controlo exercido «empenhadas»: as famosas pawn ships da literatura antropológica britânica, que já
pelas autoridades que querem impor uma certa centralização do poder, o que não podia tinham surgido na literatura portuguesa. Na ausência de estudos antropológicos,
deixar de ter incidências económicas. São estes elementos, que traduzem tensões internas consagrados às formas de parentesco, foram os autores literários que nos deixaram as
importantes, que permitem a transição para o comerciante individual. Este desloca-se, melhores informações a respeito desta situação. Tal como já se registara no comércio
transportando a sua produção individual ou, então, a da sua unidade familiar. a longa distância, os Portugueses souberam desviar as formas africanas para as utilizar
Quando as mercadorias manufacturadas pelo seu grupo não parecem suficientes em seu proveito. Esta operação do crédito foi assegurada pelos comerciantes instalados,
para assegurar uma actividade comercial razoável, os Quiocos não hesitam em nos anos 1840-1850, nos territórios controlados pelos Lundas centrais, nas terras do
quilolo Mona Kimbundo, como era então a prática imposta pelos chefes africanos.
transformar-se em carregadores-comerciantes, embrenhando-se até ao fundo do sertão,
Kimbundo era, na altura, o posto comercial português mais oriental. Esta instalação
para aí obter os géneros solicitados pelo comércio europeu. É de resto a actividade
fora criada pelas autoridades portuguesas, levadas pela vontade inabalável de um
destes homens que explica a redução do número de comerciantes europeus que procuram
indivíduo. É Henrique de Carvalho que, uma vez mais, nos informa ( 15): face às guerras
obter mercadorias nos territórios mais longínquos, substituídos pelos Africanos, de Kasanje, Vieira Carneiro tinha compreendido as dificuldades criadas pelas grandes
essencialmente Quiocos, que se mostram capazes de integrar as técnicas comerciais expedições, comerciais ou científicas, realizadas na África central. Estas eram máquinas
europeias. demasiado volumosas, para estabelecer relações com a África, sendo por isso difícil
A superioridade dos Quiocos em relação a outros grupos especializados neste tipo gerir as suas necessidades e impedir os conflitos interpessoais. A expedição que Rodrigues
de negócio é justificada, em primeiro lugar, pelo facto de nunca terem renunciado à Graça levara até à Musumba do Mwatyanvua fornecera-lhe a prova da impossibilidade
sua função de produtores. A degenerescência dos Imbangalas, mesmo que relativa, se de continuar a organizar as relações comerciais, dispondo apenas de um apoio tão
é em parte determinada pela grande quantidade de afrontamentos armados com os instável, devido à sua dimensão.
Portugueses, resulta também — quando não sobretudo — do facto de estes A sua opção mostrara-se tão simples como radical: renunciar às caravanas cada
intermediários jamais terem pensado em organizar uma produção destinada à vez mais difíceis de gerir, dados os interesses e os projectos díspares que elas não
exportação. A partir do momento em que se tornavam essencialmente intermediários, podiam deixar de concentrar, situação agravada pelas armadilhas organizadas pelas
estavam sujeitos, mais do que quaisquer outros, aos contragolpes provocados pelo populações, decididas a extorquir o maior número possível de mercadorias aos
modo como os produtores procuraram assegurar a comercialização directa das suas «estrangeiros», fossem eles europeus ou africanos. Perante esta situação, Vieira Carneiro
produções. Ou seja, a ascensão comercial dos Quiocos havia de provocar a redução preferira instalar-se em território lunda. A escolha da região gerida por Mona Kimbundo
da autoridade comercial dos Imbangalas. explica-se: tratava-se de uma espécie de encruzilhada de estradas comerciais, onde
É por isso que os Quiocos se transformam em árbitros destas relações comerciais, desembocava o comércio internacional assegurado tanto pelos Quiocos como pelos
Lundas (16).
e esta exacerbação explica, pelo menos em parte, a decisão de provocar a ruína do
Esta tentativa era destinada a modificar as regras aceites até então, colocando o
poder central dos Lundas. Tendo-se tornado, durante o último quartel do século, os
comércio na dependência da organização das grandes caravanas portuguesas, africanas
maiores produtores de borracha africana, os Quiocos não hesitam em se instalar na
ou, ainda, afro-portuguesas. O êxito desta operação, que podia ser facilmente previsto,
floresta para assegurar a produção crescente da borracha, graças a uma pilhagem da
levou Saturnino Machado a associar-se-lhe. Os capitais carreados por Saturnino
natureza que algumas vezes tem levado os botânicos a denunciarem a relação violenta permitiram a renovação do posto comercial e agrícola que continuava a atrair as
que eles criaram com o sistema ecológico, pois, algumas variedades das landolphia populações (Ambaquistas, Lundas, Quiocos, Lubas) que aí tinham o hábito de comer-
foram exterminadas em certas regiões do interior quioco-lunda. Mas o excesso de
produção — se a expressão pode ser aceite sem riscos — permitiu o controlo da
comercialização, e esta suscitou a aparição de um número cada vez mais elevado de
comerciantes a longa distância, que procuravam, a partir da produção familiar ou Carvalho, 1890, p. 701.
ciânica, mobilizar mais matéria-prima. Id., ibid., I, p. 221. Carvalho retém não só o papel comercial de Kimbundo, mas salienta
também a sua importância como ponto de apoio das expedições científicas, em particular das alemãs.
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cializar os seus produtos (17). Num determinado momento, que ainda não é possível ultrapassar os limites do crédito que lhes são consentidos. Não são os únicos, mas estas
datar, Vieira Carneiro renunciou, abandonando o negócio a Saturnino Machado, que maneiras de fazer amputam muito seriamente os lucros previstos.
ficou sozinho (18). A interacção dos dois sistemas é também importante, visto que os Africanos são
Vieira Carneiro e Saturnino Machado não hesitaram em mobilizar largamente o capazes de responder às solicitações portuguesas, transformando-se o crédito no agente
crédito. Os dois homens contrataram pombeiros e aviados dispondo de uma prática principal da mudança. Os comerciantes portugueses, assim como os seus associados
invejável, entre os quais se destaca Lourenço Bezerra, detentor de um recorde singular africanos, servem-se dele para reorientar o sistema, de maneira a mantê-lo ao seu
na história da região, pois foi o comprador do maior número de dentes de elefante serviço.
conhecido na história comercial. Estes dentes foram obtidos junto das populações Alguns exemplos permitem confirmar o sentido destas operações. Em 1859, um
lundas, durante uma longa relação comercial que se manteve nada menos de vinte e quioco, Mona Congolo (24), quando tinha necessidade de mercadorias aparecia no
cinco anos (19). estabelecimento de Saturnino Machado, recebia da empresa Machado & Carneiro um
A tão prolongada duração desta ligação de negócios serve para provar a eficácia adiantamento e partia para a caça. Uns dias mais tarde estava de volta, dispondo de
do sistema, que só parece pecar pela sua falta de rendibilidade, o que não impediu os meios para pagar o que tinha pedido emprestado, e conseguia até obter algum lucro.
comerciantes portugueses, assim como os seus agentes, de se mostrarem dispostos a A fonte de que dispomos não hesita em afirmar que o lucro era considerável, embora
aceitar todas as operações de crédito. O comércio era muito lento, mas já mostrámos tenhamos de ser prudentes, pois que este varia conforme o ponto de vista (25).
que as disjunções provocadas pelas diferentes concepções do tempo se contam entre O sistema só podia funcionar graças à simbiose completa entre os Europeus e os
aquelas que mais perturbaram os Europeus. Todavia, nenhum destes homens conseguiu Africanos. Durante a segunda metade do século XIX, as solicitações provêm dos dois
fazer fortuna (20). Carneiro morreu sem herança e Saturnino Machado decidiu partir, grupos. Os Brancos podem facilitar os créditos, mas tal não dispensa que estejam
deixando os armazéns cheios de borracha, confiados à guarda dos pombeiros (21). Estes reunidas as condições para que os Africanos garantam a produção, sem a qual o crédito
abandonos, que traduzem o cansaço destes heróis do comércio, não liquidam, no entanto, só pode funcionar no vazio. Mas é preciso reconhecer que esta associação de interesses
a instalação portuguesa. dos dois grupos permitiu a aparição de um sistema bastante eficaz, que pecou sempre
Continua a ser Henrique de Carvalho que nos permite dar conta do sentido do por nunca ter alcançado a sua plena coerência.
sistema concorrencial que opunha nesse tempo os Portugueses aos Quiocos. Segundo Retenhamos também o prazo durante o qual Lourenço Bezerra se manteve na sua
o autor, tudo servia para convencer os Portugueses que Kimbundo já nada valia como condição de agente preferencial que assegurava a aquisição dos dentes de elefante,
lugar de comércio, porque os Quiocos, tendo-se estabelecido nas terras mais ao norte, obtidos pelos Lundas. Eles provinham inteiramente dos impostos pagos às autoridades,
tornavam difícil a marcha das caravanas comerciais para a Musumba e, às vezes, não ou devemos aceitar a ideia de que um certo número de lundas se tinham tornado
hesitavam em pilhá-las (22). caçadores profissionais, tal como haviam feito os Quiocos? Parece estarmos perante
O lugar devia, contudo, parecer suficientemente vantajoso aos olhos dos Portugueses, uma hipótese difícil de rejeitar, dado que os Lundas recebiam um treino que não se
pois Silva Porto assinala, na mesma época, a existência de algumas instalações comerciais distinguia em nada daquele que caracterizava as práticas quiocas: os rituais de circuncisão
portuguesas, estando a gestão a cargo dos empregados do «sr. Manuel António Maria masculina respeitavam as mesmas regras.
Machado» (23). Esta situação permite instalar-nos no centro das estratégias de uns e de outros.
O mecanismo do crédito avança com os Portugueses e permite que estes se possam O mais notável parece residir na longa duração dos agentes comerciais que asseguram
instalar junto dos chefes políticos. Os Africanos aprendem, assaz rapidamente, as a ligação entre o comércio europeu e os produtores, ou mesmo os intermediários
regras, e se fazem batota com alguma frequência, podemos também dizer que as técnicas africanos. Em segundo lugar, devemos salientar a técnica utilizada para assegurar o
de gestão do dinheiro e das mercadorias foram assimiladas com facilidade, mesmo avanço contínuo do comércio europeu: passa-se do comércio itinerante, que punha o
quando os clientes africanos manifestam uma tendência, mais dó que evidente, para comerciante na dependência das diferentes autoridades, às instalações permanentes,

Carvalho, 1892, II, p. 838. Carvalho, 1890, p. 107, assinala o facto de este caçador quioco se tomar um «amigo e freguês
Id., 1890, p. 701. antigo da (...) casa comercial» de Saturnino Machado.
Id., ibid. Carvalho, 1890, I, p. 271, recorre a outros exemplos: «No Cambembe de Bungulo, dava-se ao
Id., ibid. caçador quioco Quimuango Matala: três barris de pólvora, duas armas lazarinas e seis peças de fazendas
Id., 1890, I, p. 220. e no Luele matava ele poucos dias depois um elefante, do qual uma ponta ficou para o caçador e a outra
Id., ibid. Alguns anos antes, Pogge fizera a mesma observação. Ver Bastin, 1961, p. 26. para o abonador, tendo esta 78 libras de peso». Encontra-se outro exemplo desta técnica comercial em
(23) Porto, 1886, p. 62. Carvalho, 1892, II, p. 837.

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capazes de autorizar a conservação de uma grande massa de produtos. Carvalho refere- É a primeira vez que deparamos com uma referência tão clara e tão importante, que
-se aos «armazéns cheios de borracha» que Saturnino Machado confia à guarda dos seus confia às mulheres uma actividade comercial associada à venda de produtos a estrangeiros.
pombeiros ( 26). A contradição não desaparece contudo, e os Europeus ou os Parece que podemos pôr aqui em evidência a prova de uma modificação sensível
Portugueses vêem-se obrigados a regressar aos caminhos de África para conseguir nas práticas comerciais nos meios rurais, que se afigura influenciada tanto pelas
encontrar as mercadorias pedidas pelos exportadores costeiros. Outro elemento, que quitandeiras das cidades, que já muito cedo se tinham reservado a quase exclusividade
é conveniente reter, reside na rendibilidade muito reduzida destas operações do pequeno comércio urbano, como pela pressão da procura dos produtos agrícolas,
comerciais. Os Europeus, que ficam durante anos nas aldeias de estrutura africana produzidos pelas mulheres. Também neste caso, a mudança parece determinada pela
e percorrem os caminhos do sertão, nunca conseguem alcançar a fortuna tão almejada. fortíssima pressão comercial, que autoriza as mulheres a assumir a responsabilidade
A correspondência do comerciante Roza d' Oliveira, instalado em Kasanje, apenas deste tipo de negócio. Paiva Couceiro confirma, de resto, a intervenção das mulheres
faz referência a pequenos problemas financeiros que ele é forçado a resolver. Todavia, no comércio nas regiões do Sul (29).
não encontramos nessas cartas a menor ilusão a respeito do futuro económico que A transição é ainda mais importante, visto que os produtos alimentares dão mostras
estas operações poderão autorizar, pois só espera um lucro modesto, porque, tal de ter mudado de estatuto, pelo menos no que se refere aos Quiocos: antigamente eram
como os seus colegas, este comerciante é um manifesto prisioneiro do crédito. oferecidos ( 30), agora tornaram-se mercadorias. O alargamento do espaço comercial
Alguns deles acabarão, no entanto, por acumular o pecúlio que lhes dará a modifica, de maneira sensível, a divisão sexual das tarefas, aparecendo as mulheres
oportunidade de pertencer à pequena burguesia (27). como interlocutoras no plano comercial que tinha pertencido exclusivamente aos homens.
A cadeia do crédito é por vezes simples, unindo um credor ao devedor, mas pode Esta nova estratégia africana procura recuperar as técnicas comerciais europeias, que
tornar-se muito mais complexa, a partir do momento em que se ramifica e se fracciona. não podem deixar de aparecer como as mais eficazes, dado o desequilíbrio verificado
É contudo evidente que o sistema está prenhe de sérias ameaças, provocadas por no controlo das mercadorias.
este fraccionamento potencial, que tornava difícil a organização de qualquer tipo de
contabilidade previsional. Tudo se passa como se a uma produção ainda mal racionalizada O comércio de porta não parece ter sido um tipo de comércio muito corrente. Não
correspondesse, no mato, um comércio simétrico, quer dizer, ainda mal organizado. É foi, em todo o caso, registado entre os Imbangalas. Trata-se de uma actividade muito
à medida que o comércio sai do mato, que se purifica e se torna «civilizado», isto é, particular, indo o produtor bater à porta do comerciante europeu, para lhe propor as
que pode ser rapidamente convertido em valores monetários reconhecíveis. mercadorias que trouxe do sertão. Esta forma de negócio não representava mais do que
Esta sobrecarga de negatividade não nos impede de afirmar que o crédito desempenhou uma reduzida percentagem das transacções realizadas ( 31 ). Apesar disso, ela revela-se
um papel determinante na organização dos sistemas comerciais, pelo menos no que diz muito importante, já que assinala a popularização das práticas comerciais, aqui
respeito ao comércio «legítimo». Não podemos responder a uma pergunta que não deve caracterizadas pela familiaridade que assim se estabelece entre comprador e vendedor.
deixar de ser feita: será que esta maneira de agir teria sido criada para permitir o É este pormenor que julgamos dever ser salientado, pois permite também sublinhar
funcionamento do tráfico negreiro? O que nos possibilita o avanço da seguinte proposta o carácter individual da operação. Não se trata de uma lei: mas é com alguma frequência
teórica: a liquidação do crédito, consequência da multiplicação demográfica dos Europeus, que o produtor procura entrar em contacto com o comerciante sem mais ninguém de
a partir de 1920, provocou a morte do comércio africano, que não tinha sido capaz de permeio. Esta situação parece anunciar uma individualização das operações, assim
assegurar a sua plena modernização, na medida em que foi incapaz de criar as condições libertas da vigilância política do chefe, tal como elimina o peso visível dos parentes.
razoáveis de acumulação. Podemos comparar esta forma de comércio com todas as que estavam em via de
assegurar a passagem das sociedades africanas da rigidez comercial, gerida pelo poder
B. O pequeno comércio: mulheres comerciantes e comércio «de porta» político, para a maior liberdade de que podem desfrutar os produtores aliviados das
pressões tradicionais (32).
Instalado em território luchaze, Serpa Pinto foi abordado por «mulheres dos quiocos (...)
[que] além do massango trouxeram (...) para vender umas raízes tuberculosas chamadas
genamba» ( 28). Já tínhamos encontrado uma forte actividade comercial associada à
venda de géneros alimentícios, mas sempre controlada pelos homens.
Couceiro, 1890, p. 44.
Ver 4.' parte, cap. III.
Id., 1890, p. 220.
Porto, citado por Santos, 1986, p. 180.
Ver as cartas publicadas em anexo.
(28) Pinto, 1880, I, p. 234. Carvalho, 1890, I, p. 271, quer referir-se a este problema central da independência do comerciante
africano face às obrigações tradicionais.
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Esta fragmentação da unidade comercial está presente igualmente numa observação banalização constante do comércio, passando os Africanos a procurar os comerciantes
de Capello e Ivens, que assinalam a aparição de «uns vendilhões [que surgem nos nos seus estabelecimentos, invertendo deste modo a relação que forçara os comerciantes
mercados quiocos destinados às trocas locais] de pequenas pontas de marfim e bolas europeus à organização de caravanas caras e, por vezes, perigosas.
de borracha», com as quais procuram atrair os viajantes que passam pelas aldeias (33).
A má qualidade dos dentes constitui uma indicação importante, mas difícil de interpretar:
devemos ver neles o resultado de caçadas levadas a cabo individualmente e que, por C. O comércio das caravanas
isso, só podem matar animais de menor porte?
1. As caravanas: diversidade das funções
Em 1861, Silva Porto possibilita-nos que acrescentemos alguns elementos comple-
mentares: «hoje deu entrada uma pequena caravana de indígenas quibocos amanhã Comecemos por reter a informação essencial: os Quiocos, que na primeira metade
trataremos de aviar». No dia seguinte o comerciante tripeiro considerava o negócio do século XIX praticavam apenas um comércio reduzido, organizam em 1862 caravanas
fechado: «terminámos o negócio dos hóspedes entrados ontem, permutando além da comerciais. Trata-se de uma modificação importante, demonstrativa da maneira como
cera», outros produtos da sua própria indústria (34). age o comércio: lenta mas seguramente, impondo novas regras internas, consequência
A informação não é muito precisa, mas em 1862, Silva Porto regista uma situação da aprendizagem dos Quiocos feita no exterior, como carregadores para outros, em não
idêntica que permite dar melhor conta deste mecanismo de trocas: «2 de Dezembro. poucos casos. As comitivas assinaladas por Carvalho, por volta dos anos 1880 (38),
Chegou uma caravana de Quibocos carregados com cera, que mandamos instalar, bastante pequenas mas dinâmicas, são organizadas conforme o sistema africano da
fornecendo-lhes comida e bebida, comprando-lhes em seguida pequenos nadas que eles região, que já analisámos, e preenchem três funções:
desejam vender: peles de leopardo, arcos e flechas, machados e algumas enxadas. Trata-
-se de hóspedes novos que vêm a nossa casa pela primeira vez» (35). 1.a A procura dos produtos africanos solicitados pelo comércio europeu. Os Quiocos
A lista das compras de Silva Porto é certamente mais reveladora do que interessante. possuem então, pelo menos, duas maneiras de viajar: a dos caçadores, em «bandos» (39),
Se as peles já tinham sido transaccionadas por outros comerciantes, o mesmo não caracterizados por uma espécie de espírito de corpo, tendo os homens que as constituem
acontece com os produtos menos nobres, que salientam a importância do artesanato, o conhecido o mesmo tipo de iniciação masculina; as caravanas, organizações mais
que trabalha a madeira, mas sobretudo aquele que se consagra ao trabalho do ferro. compósitas, mobilizando homens e eventualmente mulheres de várias classes de idade,
O facto de Silva Porto comprar arcos e flechas merece atenção: estas armas são formadas por carregadores (49;
adquiridas como simples curiosidade, indo mais tarde enriquecer os museus portugueses, 2.a A procura dos melhores lugares onde trocar as produções africanas: mercados,
ou trata-se de uma operação típica do intermediário, sendo depois cedidas a grupos feiras luso-africanas, casas comerciais instaladas no interior, já que os Quiocos iam
africanos menos hábeis no fabrico? O mesmo se pode dizer no que se refere aos pouco à costa ocidental, região que nunca apreciaram até aos anos finais do nosso leque
machados e às enxadas, embora se compreenda mal como é que esta produção continua cronológico; este grupo não hesitava em dirigir-se directamente a casa do comerciante
a ser feita, pois existe já a concorrência das ferramentas europeias que, pelo menos em português ou mulato, mais raramente preto;
princípio, são mais eficazes (36). 3.a O controlo dos espaços: o comércio é tanto mais fácil quanto o grupo estiver
Num registo talvez mais pragmático, retenha-se a reflexão de Silva Porto: mais favorecido geograficamente, no caso de dispor dos meios para ocupar os territórios
«o comércio que nos vem bater à porta é sempre bem-vindo, porque é preferível» a mais convenientes, o que lhe permite o controlo do comércio e a cobrança dos direitos
qualquer outro tipo que exija organização e despesas, acarretando às vezes dificuldades de passagem, cujo valor pode ascender a somas deveras importantes.
e problemas (37). Como já tínhamos sugerido, a questão essencial é aquela que leva os
produtores quiocos a bater à porta de um comerciante a qualquer hora do dia ou da Trata-se de situações que se caracterizam pela sua evidente polissemia, devendo
noite, certo de ser bem acolhido. Estas maneiras de proceder' só podem confirmar a esta ser compreendida entre os seus dois pontos extremos: a produção acompanhada
pela comercialização e pela compra, que supõe que os Europeus também são bons
artesãos. A multiplicação das maneiras de fazer o comércio é reveladora das ten-
Capello e Ivens, 1881, I, p. 169.
Porto, 1861, Manuscrito da BPMP, vol. 2, cap. VIII, p. 162.
Porto, 1862, BPMP.
Id. ibid., p. 162. Faz referência às «armas ofensivas que podiam figurar em qualquer museu»,
assinalando mais particularmente «as muttacas ou machados de enfeite [e] cacheiras de enfeite», assim Carvalho, 1898, p. 311.
como «algumas cambonhas», ou seja, estatuetas, que havemos de considerar em pormenor mais adiante. Porto, Notas..., 1866, Manuscrito da SGL, p. 26.
(37) Porto, id., ibid. (40) Id., 1885, p. 59.

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sões existentes em cada um dos dois grupos, pois eles são submetidos a pressões concorrenciais hesitam em ritualizar os contratempos, tudo lhes servindo para impedir os movimentos dos
que os dilaceram e fazem frequentemente do segredo a famosa alma do negócio. outros grupos, tal como o tempo gasto com «frivolidades» ( 49) e com as discussões africanas,
que mais se destinavam a perturbar o diálogo com os Europeus do que a regularizar
2. Os meios de controlo, as astúcias e os contratempos eventuais problemas (50).

Sendo os Quiocos «viajantes, caçadores e ousados» ( 41 ), não podiam deixar de Os mucanos, querelas suscitadas pelas populações, imobilizam as caravanas,
procurar conquistar a hegemonia comercial, servindo-se, para isso, da possibilidade de deixando-as prisioneiras de formas processuais difíceis de resolver pelos Europeus (51).
assegurar a vigilância em diferentes regiões: impuseram, em primeiro lugar, uma barragem Entre a considerável colecção de mucanos retida por Silva Porto, que aparece como
na margem direita do Kwangu ( 42), que aparece como perfeitamente simétrica, vítima especializada, decidimos considerar o exemplo seguinte: «Numa povoação de
relativamente à situação imposta pelos Imbangalas na margem oposta. Ninguém consegue quibocos por onde passámos estava um extenso rastilho de fuba de mandioca num
passar o rio e instalar-se na margem direita enquanto não tiver pago os presentes espaço limpo que atravessava o caminho, e os mesmos indígenas de ambos os sexos,
normalmente exigidos. Não podemos reapreciar esta questão ( 43), mas pretendemos com a atenção fixa no dito espaço, para no caso de alguém (...) lhe pôr os pés em cima,
apenas mostrar que o sistema não só se mantém, mas está em via de alargamento. sair-lhe ao encontro com a notificação de milonga, sinónimo de mucano» (52).
Quais eram as técnicas utilizadas para assegurar este controlo? Consideramos estas práticas como uma manifestação abertamente contraditória,
dado que, noutros registos, encontramos um desejo constantemente afirmado de assegurar
1. a A barragem dos caminhos e dos rios. Este sistema era utilizado tendo em vista a perenidade dos fluxos comerciais. É como se estas manifestações, assinaladas pelos
um duplo objectivo: impedir um grupo de chegar ao seu propósito, graças à multiplicação autores de meados do século ( 53), se tivessem tornado uma espécie de resíduo, que
mantinha a sua capacidade de incomodar, mas estava destinado a desaparecer, na
dos obstáculos. Mas o recurso a esta técnica pode visar fins muito mais modestos:
medida em que impedia que o projecto principal dos Quiocos fosse realmente levado
obrigar os grupos a pagar direitos de passagem, algumas vezes muito elevados, sobretudo
a cabo. Isto não obsta que fiquemos chocados com a brutalidade destas armadilhas,
quando se tratava da travessia dos cursos de água, mesmo havendo pontes; difíceis de suportar — tanto mais que na sua quase totalidade são inteiramente
2. a O medo provocado pela razia ( 44). Esta técnica aparece frequentemente
imprevisíveis — e responsáveis por muitas rupturas entre as duas comunidades.
misturada com as tácticas que visam criar situações tumultuárias. Os guardas das
pontes exigem direitos de passagem excessivos, que provocam protestos, seguidos por 3. Carregadores e escravos
contra-ataques brutais ( 45 ). Os carregadores, que procuravam proteger-se da violência,
abandonavam as cargas, recuperadas, então, pelo grupo agressor. Os ataques As estruturas comerciais destes dois grupos estão divididas em duas partes que, às
inesperados, saídos do mato, provocavam o pânico. Os Quiocos aproveitam esta vezes, funcionam de maneira autónoma, uma em relação à outra. Uma parte do comércio
situação confusa para reaver mulheres e crianças, pois que as mães eram sempre é interafricana, e estes circuitos, mesmo que aceitem algumas mercadorias europeias,
retidas na companhia dos filhos (46). funcionam essencialmente com interlocutores africanos. A segunda esfera desta actividade
3. a As astúcias e os contratempos. O comportamento dos Quiocos perante os Europeus comercial combina constantemente Europeus e Africanos ( 54). Por razões evidentes,
nunca parece ter sido muito claro, situação reforçada pelo facto de se apresentarem como renunciamos à análise sistemática do comércio exclusivamente europeu.
os autênticos fabricantes dos produtos europeus ( 47). Esta maneira de proceder, que não
podia deixar de impressionar os Africanos, compradores e utilizadores das mercadorias
europeias, permaneceu por muito tempo, visto que os Quiocos só podiam ser desmas- Porto, 1886, pp. 58-61.
Vários autores do último quartel do século XIX fazem referência a esta questão. Tal é o caso
carados pelos comerciantes brancos ou mestiços do Bié ( 48). De resto, os Quiocos não
de Porto, 1886, pp. 59-62, e de Carvalho, 1890, pp. 102-106.
Porto, 1885, pp. 169 e 571.
Id., ibid., p. 573.
Ver 4." parte, cap. II.
Pinto, 1880, I, p. 234. Já o dissemos, mas vale a pena repeti-lo: este comércio era organizado em função das
Carvalho, 1894, IV, p. 745. mercadorias preferidas pelos Europeus, tais como o marfim, a cera e a borracha, sendo a primeira
Ver Carvalho, 1898, p. 318, assim como a 4.' parte, cap. II. progressivamente ultrapassada pelas outras duas, em consequência, diz-se, da redução do número de
Ver, por exemplo, Carvalho, 1893, III, p. 89. elefantes. Carvalho, 1890, I, p. 271, salienta o facto de em 1859 se caçar ainda «o elefante entre o Cuilo
Ver, por exemplo, Porto, 1886, pp. 58-59. Ver também Santos, 1981, p. 67. e o Lulua, do 9° paralelo sul (...) para o norte (...)». «Em 1868 já não se encontravam elefantes, senão
Carvalho, 1892, II, pp. 787-788. do Chicapa para lá» (...) (do 8° paralelo para o norte); «e em 1878, só próximo do 7°; para sul já não
Capello e Ivens, 1881, I, pp. 166-172. havia elefantes». Està falta de animais obrigava os Quiocos a comprarem dentes a outras populações
Id., ibid.
estabelecidas mais a norte — em território lunda — em troca de escravos (Carvalho, 1892, II, p.345)
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O comércio a longa distância recrutou um número sempre crescente de actores e a compra de pólvora. O problema central a resolver pelos Quiocos é conseguir, ao
de agentes, entre os quais se contam os Quiocos. Os Africanos, que não dispõem de mesmo tempo, mulheres e espingardas.
meios para se tornar comerciantes, não hesitam em se oferecer como carregadores, de De resto, esse objectivo pode revelar-se na maior parte dos casos exagerado, como
maneira a poder acumular mercadorias que lhes permitam adquirir também o estatuto mostra a história de vida de um escravo, tal como foi testemunhada em 1940 por José
de homens de negócio. É assim que a actividade de carregador é, na maior parte dos Rodrigues da Cruz: o seu proprietário, o falecido Kinzange, tinha-o comprado aos
casos, aceite como uma forma de transição para outra profissão. Quiocos — que o haviam capturado durante um combate com os Lundas, por volta de
Um bom exemplo deste comportamento aparece nas informações respeitantes à 1860, em companhia de sua mãe —, dando em troca tecidos e pólvora (59). Não parece
viagem de Pogge: «Quando Pogge abandona o 6° paralelo em direcção a Cassange e a difícil chegar à conclusão de que havia mercados de escravos, destinados a permitir a
Malanje (...) ainda em território Lunda (...) cruza caravanas de estrangeiros transportando comercialização das vítimas das razias.
produtos da costa, e uma delas, muito importante, incluía pelo menos 250 carregadores J. R. Cruz fornece dados mais amplos: trata-se da venda de uma criança, que não
quiocos» (85). O número é bastante elevado, mas questionámo-nos se todos estes homens estava ainda em condições de produzir, e não parece que sua mãe tenha sido proposta
eram voluntários ou se se tratava antes de um grupo de homens livres, controlando à venda no mesmo mercado. Em todo o caso, a criança foi comprada sozinha. Os
escravos, uma vez que sabemos que a escravatura não foi extirpada das práticas quiocas Quiocos conservavam os escravos que podiam contribuir para a produção ou que
pela legislação portuguesa que, de resto, ninguém conhecia. Em 1884-1885 foram podiam ser utilizados como carregadores nas caravanas. Torna-se difícil estabelecer
vendidos, afirma Wissmann, «aos Quiocos, em território Muquengue, milhares de escravos uma ponderação entre estes dois factores, mas eles mostram o carácter amplo da
em troca de espingardas e de pólvora» (56). O mesmo autor, Henrique de Carvalho, assinala utilização dos escravos, que devem provar a sua rendibilidade.
a compra de escravos em território lunda, principalmente mulheres (57). Não podemos esquecer o que já foi frequentemente dito e provado: na organização
Os Quiocos parecem apreciar muito particularmente as mulheres, rapazes e matrilinear dos Quiocos, um escravo é muito mais do que um produtor, pois se pode
adolescentes lundas. As mulheres dão mostras de ser bem tratadas: «é raro que uma transformar no pilar da unidade de produção, abandonada pelos filhos do homem, em
mulher que chega à aldeia do seu proprietário não se torne a dona da casa; os rapazes consequência da aplicação rigorosa das regras da matrilinearidade. Estas razões levam
inteligentes são durante a viagem auxiliares dos transportes das cargas do seu patrão à sua integração no espaço económico do parentesco, sem que por isso se transformem
e, como as mulheres, procuram ao chegar à aldeia integrar-se na população, e tornam-se em iguais: o escravo pode adquirir uma certa forma de parentesco com a família do
filhos desta» (58). comprador, mas haverá sempre uma diferença inferiorizante que assegura a importância
O discurso de Carvalho é nitidamente excessivo, dado que só um número bastante da família e da hierarquia.
restrito de mulheres pode chegar a ser «dona de casa», mas tal não o impede de salientar
o que lhe parece ser o aspecto essencial da actividade comercial dos Quiocos. Os seus
esforços não têm outro objectivo que não seja a obtenção do maior número de escravos III. Novas técnicas, novos comportamentos
possível. Esta leitura afigura-se-nos demasiado simplificadora, na medida em que os
Quiocos são também compradores de espingardas, objecto caro que exige, além disso, A. As espingardas

A oferta crescente de mercadorias europeias permitiu o aumento da importação de


armas de fogo: esta situação não é contudo tão simples como pode pretender uma leitura
apenas superficial da evolução das sociedades africanas, no que se refere às populações
ou de conchas (Carvalho, 1890, I, p. 271). A cera era obtida junto dos Luchazes em troca de lazarinas bantas. Os mitos quiocos de origem permitem dar conta das dificuldades registadas entre
e de pederneiras (Pinto, 1880, I, p. 221). E as missangas, o tabaco e os tecido;b de algodão eram também as populações que devem gerir a banalização deste instrumento europeu.
mercadorias utilizadas pelos Quiocos nas trocas com as populações do interior. Esta operação sublinha Lembremos simplesmente que o herói cultural luba, Tshibinda Ilunga (60), aparece na
a maneira dinâmica graças à qual os Quiocos orientam o comércio em duas direcções diferentes e tradição oral registada no século XIX, como o homem que introduziu na sociedade lunda
complementares. Por um lado, «produzem» as suas mercadorias — tal como descrevem Capello e Ivens,
1881, I, pp. 179 e 202-203 (preparação da cera e da borracha) e Pinto, 1880, I, p. 220 — por outro,
as armas de ferro. O arco e a flecha seriam — nesta versão do mito das origens — uma
depois de recuperarem as mercadorias europeias, servem-se delas para conseguir outras junto dos aquisição relativamente moderna. Na perspectiva que é aqui a nossa, importa pouco analisar
produtores africanos, cortando as tentativas europeias para assegurar o monopólio do comércio africano.
Bastin, 1961, pp. 28-29.
Id., ibid. Ver também Carvalho, 1890, I, p. 283.
Carvalho, 1894, IV, p. 745. Cruz, 1940, pp. 65-67.
Id., ibid. Ver 2. parte, cap. I.

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os fundamentos históricos do mito. O que sobretudo nos interessa é observar que as Por outras palavras, as espingardas nunca conseguiram ser consideradas objectos
representações esculpidas de Tshibinda Ilunga só o representam armado com uma absolutamente banais, mas sim africanos, cada vez mais afastados da sua origem
espingarda ( 61 ), na atitude digna do caçador ou do guerreiro moderno. Esta disjunção en-
europeia: a aliança com os espíritos deriva desta possibilidade tão particular de dar a
tre a tradição oral e a representação escultórica é fundamental, na medida em que nos ajuda morte, tanto aos homens como aos animais, incluindo as grandes feras. É como se esta
a medir melhor a importância da operação cultural que ela dissimula. sobrecarga da morte tornasse a espingarda ainda mais visível, o que não podia deixar
As espingardas modificaram, de maneira sensível, as regras do combate e da caça, de agravar o seu peso simbólico. Se é certo que o simbolismo não mata, participa
tão constantemente associadas. Os autores são unânimes: a caça ao elefante, levada a
contudo na criação desta consciência colectiva que torna eficazes os actos e os gestos
cabo pelos Quiocos, jamais teria permitido a eliminação maciça do proboscídeo se a
de cada um.
espingarda se não tivesse entretanto vulgarizado. O objecto é francamente caro, raro
Isto quer simplesmente dizer que é necessário encarar as armas de fogo como
por consequência, servindo também — devido à conjunção destes dois aspectos — para
assegurar uma maior magnificência do poder. «instrumentos de trabalho», dotados de uma ampla polissemia ( 67): servem na caça, é
certo, mas são utilizados para reforçar a importância dos cargos políticos, tal como
É certo que algumas espingardas se encontram entesouradas e, por isso mesmo,
condenadas à ferrugem ( 62). Deve dizer-se que os Quiocos foram capazes de assegurar uma decidem certas operações militares, ofensivas ou defensivas. Se este utensílio remete
constantemente para práticas e simbolismos clássicos entre os Quiocos, há um momento
transferência das técnicas do ferreiro para este instrumento, que levou alguns anos a tornar-
em que o simbólico deve ceder o passo ao pragmático: as espingardas devem ser assim
-se indispensável. As fontes europeias repetem frequentemente o elogio dos ferreiros
quiocos, capazes de reparar as espingardas, constantemente recicladas, de maneira a reduzir africanizadas, seja no plano simbólico seja no que diz respeito à sua utilização empírica.
a dependência dos Africanos em relação aos fornecedores europeus (63).
Esta integração não pode pôr de lado as exigências simbólicas, associadas ao poder,
tal como à religião. No vasto espaço quioco, pode notar-se a existência de dois tipos B. A «europeização» dos Quiocos
de armas, associadas a utilizações ritualizadas: os chefes políticos aparecem
frequentemente perante a corte e perante os estrangeiros com raiúnas, armas pesadas Os Quiocos organizaram, como todas as populações instaladas nesta região da
que preenchem melhor as funções de aparato que lhes estão confiadas (64). África central, os seus códigos rituais, entre os quais os que servem para estruturar as
As lazarinas são armas procuradas pelos Quiocos e circulam nos circuitos comerciais suas relações com os Europeus. Silva Porto descreveu, com uma minúcia a que
europeus e africanos destinados mais particularmente aos caçadores ( 65). Estas armas chamaremos entomológica, mal-grado a banalidade da metáfora, os comportamentos
foram africanizadas: entram na categoria ampla dos instrumentos de caça e recebem a ritualizados dos Quiocos.
decoração simbólica que as populações da região consideram indispensável à sua O primeiro que devemos reter diz respeito às maneiras de comerciar: sempre que
sacralização ( 66). As armas são potencialmente portadoras da morte: o caçador que os Quiocos são obrigados a entrar em contacto com os viajantes, vestem-se com as
enfrenta as grandes feras coloca-se numa situação perigosa, da qual só poderá sair melhores roupas que possuem, para propor seja que tipo de negócio for ( 68). A relação
graças ao apoio dos espíritos. social exige que os Africanos passem para o lado dos vestidos, que pertencem ao código
Por estas razões, as armas de fogo são decoradas com os sinais religiosos preferencial dos Europeus.
indispensáveis, tal como devem informar a respeito do número e da qualidade dos Silva Porto prossegue a sua descrição, mas podemos já verificar que não há
animais abatidos. Nestas decorações estão, por isso, misturados os «medicamentos», relações comerciais profícuas, senão no respeito pelas regras europeias, que repelem a
fornecidos pelos adivinhos ou pelos especialistas, e os elementos provindos dos animais nudez. Esta «europeização» é bastante profunda, dado que Silva Porto cita também a
abatidos, que servem para evidenciar a dexteridade do caçador, ao mesmo tempo que utilização de chapéus e de sapatos. O facto de razões comerciais forçarem os Quiocos
indicam a protecção recebida dos espíritos, sem a qual não podia haver êxito, e de a renunciarem, mesmo que de maneira intersticial, às suas escolhas religiosas, aparece
«aviso» para os próprios animais. aqui como uma indicação que não pode deixar de reforçar o prestígio das actividades
comerciais.
Quais as razões desta prodigiosa encenação? Se aceitarmos as explicações de Silva
Bastin, 1961, vol. II. Porto, os Quiocos pretenderiam mostrar, de maneira indiscutível, que estavam mais
Veja-se, por exemplo, Gamitto, 1854, p. 247, e Capello e Ivens, 1881, I, p. 170.
Ver 3.' parte, cap. III, consagrada à metalurgia. Ver também Porto, 1942, pp. 68, 136 e 616;
Capello e Ivens, 1881, I, p. 205.
Ver Graça, 1890, pp. 413 e 426; Gamitto, 1854, p. 237; Capello e Ivens, 1881, I, pp. 161-170. Henriques, 1988, pp. 420-422.
Também é o caso dos Luchazes, assinalado por Pinto, 1880, I, pp. 151-152. Porto, 1885, p. 169, e sobretudo, pp. 603 e 612; Id., 1886, p. 316. O autor descreve
Redinha, 1950, p. 82; ver ilustrações, em anexo. minuciosamente as maneiras quiocas de comerciar de acordo com o modelo português.
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avançados em conhecimentos mecânicos, industriais ou comerciais do que qualquer Am"."1"1"111.11
proposto vender, entre outras mercadorias, «algumas cambonhas» (73), quer dizer, «figuras
«outra tribo» (09). A partir do momento em que esta prova fosse dada, os Quiocos que representam uma pessoa ou divindade, qualquer estátua» (74).
podiam regressar ao seu estatuto normal: para levar a cabo as operações comerciais Silva Porto condena, de maneira apaixonada, a propagação destas esculturas,
aparecem então vestidos com tangas, peles de animais ou quinhangas, assim como líber mesmo que as considere bem feitas, prova de que os Quiocos não manifestam o menor
preparado para o efeito. Esta nova apresentação é o «traje do berço que o acompanha interesse pela «nossa religião» (75). Com a sua sensibilidade habitual, Silva Porto dá-
à sepultura, seja ele o quiboco mais opulento que houver» (70). -se conta da importância desta disjunção, estética e simbólica, que recusa integrar a
O segundo elemento desta «europeização» diz respeito às viagens. Estas aparecem, produção de imagens religiosas católicas, o que mostra que as figuras chamadas «santu»
com efeito, como uma introdução indispensável para alcançar a civilização, prova de são muito recentes. Tal não o impediu de comprar a escultura, que se tinha transformado
que os Quiocos não ficam fechados no seu território, dispondo dos meios e, sobretudo, em mercadoria africana, como qualquer outra. Se aceitarmos este implícito de Silva
da curiosidade para procurar as coisas e os homens em qualquer lugar. No diálogo Porto, teremos de lhe admitir as consequências: o sistema religioso quioco está em via
polémico que o obriga a fazer frente a um jovem quioco, Silva Porto é posto de maneira de perder a sua coerência, a ponto de permitir o fabrico de estátuas que só são
assaz brutal, no que devia ser o seu lugar, do ponto de vista do referido jovem: «o senhor
mercadorias para oferecer aos Europeus. E se os Quiocos vendessem apenas as cambonhas
pensa talvez que eu sou um Quiboco, estúpido, não sou tal, sou um Quiboco civilizado,
dos outros? Porque Silva Porto encontrou, em toda a parte, «bastantes cambonhas
fiz duas viagens a Benguela, e de ambas estive na sua casa do Bié, portanto está da
fazendo as vezes de santos, nas quais os Macupas [populações do Lulua] e os seus
sua parte atender-me» (71).
companheiros (...) depositam inteira confiança» (76).
Estamos perante um tipo de argumentação que abre novas perspectivas a respeito
Retenha-se também a grande competência artesanal quioca que se afirma de maneira
da maneira como os Quiocos organizam o seu discurso, decididos a estabelecer
precisa na produção artística, destinada a satisfazer duas necessidades essenciais. Os
contacto com as instalações urbanas dos Portugueses, as únicas existentes. Digamos
Quiocos pertencem, por um lado, às populações africanas cujo sistema religioso, e mais
que se trata para eles de provar através da viagem, que não pode deixar de ser
particularmente tudo o que se relaciona com a iniciação, depende do complexo de
comercial, a sua capacidade em se tornar cada vez mais diferentes dos seus vizinhos
máscaras que serve para ritmar e forçar à memorização da aprendizagem devota. Por
africanos. O mais significativo reside, contudo, na maneira como é partilhado o
espaço: os civilizados estão do lado dos Europeus e das cidades — mesmo que estas outro lado, a relação Lundas/Quiocos no domínio plástico conta-se entre as mais
sejam ainda embrionárias —, os não-civilizados do lado dos Africanos, sem cidades, importantes, dado que a produção esculpida, de que os Lundas são grandes consumidores,
podendo estes recuperar, no entanto, a «civilização» desde que se disponham a viajar, é realizada por artistas quiocos (77). Será possível que estes artistas, fabricantes de uma
quer dizer, a levar a cabo operações comerciais. quantidade impressionante de máscaras e de esculturas, assegurem também a produção
O terceiro elemento que prova o carácter inventivo dos Quiocos reside no alargamento
do catálogo dos produtos que propõem nos mercados. Não hesitam, por exemplo, em
lançar-se na captura e na comercialização das aves, estimadas pela plumagem ou pelo Porto, 1861, Manuscrito da BPMP, vol. 2, cap. 8, p. 162.
canto: os Quiocos capturam «papagaios cinzentos, aves de canto e outras grandes, que Valente, Dicionário, 1972. Porto dá também a estas estatuetas o nome de «bonecas».
domesticam depois de colhidas no laço para comércio (...) arranca[m] as penas da cauda Tratar-se-á realmente de bonecas destinadas às crianças do grupo, ou estamos perante uma maneira
dos papagaios, que desenvolvem e se tornam perfeitas de três em três meses, e nisto como portuguesa de infantilizar a produção estética africana? Porto, em 1880, refere-se às «cambonhas de
tamanho natural, [vestidas] com túnica dos fios da entrefolha da palma da palmeira mabondo que
em tudo, não há povo que se avantaje ao indígena Quiboco» (72).
abundam no limiar das habitações, e são elas os ídolos a que recorrem em todos os casos supersticiosos
É de resto a partir deste ponto que nos podemos aperceber desta capacidade de da vida», 1885, p. 538. Resta ainda outra dúvida: quando Silva Porto se refere ao «tamanho natural»,
inovação comercial: se os Europeus escolhem as mercadorias a propor aos Africanos quererá dizer tratar-se de grandes estátuas? Se tal fosse, haveria um contraste surpreendente com a
em função do gosto destes últimos, os Quiocos parecem adoptar um comportamento estatuária fotografada, desenhada ou entregue à SGL por Henrique de Carvalho, que mostra esculturas
inteiramente simétrico. Silva Porto informa-nos que, em 1861, os Quiocos lhe tinham de pouco volume, para poderem ser transportadas ou facilmente manipuladas.
Porto, 1866. Notas..., Manuscrito da SGL, p. 80.
Id., 1886, p. 446.
(77) Por uma razão que os especialistas (ver Bastin, 1961) não conseguiram esclarecer, os Lundas
não produzem obras esculpidas, mesmo que estas se revelem indispensáveis na organização das relações
com as autoridades políticas, tal como para assegurar as relações com os espíritos e a sua manipulação.
Marie-Louise Bastin estudou com minúcia sábia e inventiva a representação esculpida do herói
Id., 1885, pp. 575 e 603.
cultural Tshibinda Ilunga, que também mereceu a atenção de Mesquitela Lima e, anteriormente, de
Id., ibid., p. 603.
Michel Leiris e Jacqueline Delange. A antropóloga belga salienta que esta representação é produzida
Id., ibid., p. 619.
apenas pelos Quiocos, que parecem tê-la fornecido aos Lundas. O que também sabemos é que todas
Id., ibid., pp. 579-580.
as esculturas consagradas a Tshibinda Ilunga foram realizadas por escultores quiocos.

620 621
de outras populações? Isto ter-lhes-ia permitido conservar uma certa distância em relação
à carga religiosa destas obras, que não pertenceriam ao seu modo de produção religiosa.
Tendo o hábito de as fabricar para outros africanos, é fácil aceitar que as possam
produzir, da mesma maneira, para o comércio europeu, embora só disponhamos desta
informação proveniente de Silva Porto. A única interpretação útil, provavelmente com
alguma lógica, é a de que se tratava de artesãos que propunham, nos circuitos comerciais,
as esculturas que produziam. Esta operação seria possível, na medida em que estas
representações, estes duplos dos espíritos, só adquirem a sua função religiosa e a sua
eficácia, após uma série de operações rituais, levadas a cabo por um nganga.
Possivelmente, se bem que corramos o risco de entrar no campo da heresia, trata-se
de uma operação imposta pela banalização do comércio, que leva os artistas a considerarem
a sua produção como simples objectos capazes de se transformarem em mercadorias. Este
alargamento do catálogo das mercadorias serve, por outro lado, para reforçar a importância
das operações que «europeízam» a vida das populações quiocas. É por esta razão que não
hesitamos em comparar a venda das esculturas por um quioco à instalação, por outro quioco,
de um «pequeno alambique» de que nos dá conta Henrique de Carvalho (78).
Este quioco também pertence ao grupo daqueles que viajam; fora em Benguela que
ele encontrara um «pequeno alambique» que trouxera até às terras longínquas do Alto
Tchikapa, e graças ao qual «fabricava uma aguardente de mel muito boa, e obtinha,
acrescentando uma essência desconhecida, licores bastante agradáveis, ainda que muito
fortes» ( 79). Carvalho explica a importância comercial do engenho: «as populações
preferem a aguardente a qualquer bebida fermentada» (80).

Dispomos apenas de poucas informações a respeito do conteúdo histórico e económico desta


produção. Marie-Louise Bastin, trabalhando no quadro de uma investigação que associa a etnologia e
a estética, não parece ter consagrado a atenção devida às implicações sócio-históricas desta actividade.
Não estamos em condições de descrever a maneira como se organizou a relação produção/consumo,
organizada entre Lundas consumidores e Quiocos produtores. Sabemos apenas que os Lundas são
grandes consumidores desta produção, mas em que condições se organizavam estas relações, e quais
são os seus conteúdos económicos?
Parece-nos difícil, quando não totalmente impossível, responder de maneira satisfatória a estas
perguntas, mas elas não perdem, por isso, o seu carácter fundamental, tanto mais que encontramos entre
os Quiocos homens que não dependem de uma única actividade, a caça, para produzir marfim destinado
aos circuitos comerciais portugueses, mas sim uma sociedade desempenhando papéis fundamentais no
quadro da produção artística.
Por outras palavras, se aceitarmos a hipótese corrente que a produção artística estava inteiramente
nas mãos hábeis dos Quiocos, damos um passo em frente bastante perturbador, pois aceitamos que a
realização das cerimónias rituais se encontra controlada, de facto, pelos artistas quiocos, os quais
dependem de um poder político que, subordinado embora aos Lundas, possui objectivos próprios.
Se nos deixarmos arrastar para uma interpretação atrevida, mas que consideramos aceitável, Pequena escultura quioca representando um comerciante montado num boi-
podemos dizer que as ofensivas quiocas contra os Lundas estão já, em parte, contidas no controlo que -cavalo. MLA: 1604 a), Museu e Laboratório Antropológico de Coimbra.
estes podiam exercer sobre uma fracção significativa do sistema religioso. Agradecemos ao Professor Manuel Rodrigues de Areia ter-nos gentilmente
Mesmo que consideremos esta interpretação como um pouco forçada, não podemos deixar de cedido esta imagem
dispensar a atenção necessária ao conjunto formado por estas operações, assim como ao seu alcance
simbólico, tanto religioso como político.
Carvalho, 1895, p. 844.
Id., ibid.
(80) Id., ibid., p. 845.

622
Estas transversalidades são constantes, o que nos permite compreender as razões
que levam os viajantes a sentirem-se atraídos pelos Quiocos, que se tornaram um grupo
bastante emblemático a partir da segunda metade do século XIX. Verifica-se que é o
grupo que, na sua totalidade, se deixa arrastar para as novas actividades comerciais,
que exigem contactos intensos e constantes com os Europeus, que, situados na costa,
regiam os preços, tal como as escolhas das mercadorias. É de resto este papel que os
Quiocos procuram desempenhar em relação aos seus vizinhos africanos.

IV. A reestruturação do espaço quioco e o peso dos laços míticos e


históricos
A. Reorganização aldeã e expansão

A grande ruptura do sistema quioco, caracterizada pela generalização do trabalho


assalariado, não cabe no nosso quadro cronológico. Esta operação só pôde ser levada
a cabo após a instalação da Companhia de Diamantes de Angola, a quem o governo
português atribuiu —já quase nos anos 1920— o monopólio da produção diamantífera
da região. A partir desta altura modificou-se o sistema de maneira radical, substituin-
do-se as autoridades tradicionais ou reduzindo-se-lhes os poderes, ao mesmo tempo que
se lhes tiravam os súbditos, transformados em trabalhadores da Companhia.
Esta operação foi precedida por outras, entre as quais as que permitiram que os
Quiocos se separassem das práticas culturais lundas. Se aceitarmos as propostas de
Manuel L. Rodrigues de Areia, verificamos que o homem quioco abandona a sua aldeia
de origem sempre que dispõe dos meios necessários para fundar uma outra que lhe
pertença. Seria essa a única e verdadeira razão da expansão quioca (81). Já pudemos
dar-nos conta de que, no que diz respeito a este problema sócio-histórico, as explicações
são mais do que numerosas, são excessivas.
Podemos contudo reter a informação avançada por Areia, que se mostra um observador
arguto, a partir do momento em que a queiramos considerar como a manifestação de uma
certa ideologia quioca, elaborada durante este século. Ela tinha sido precedida por uma
operação importante, caracterizada pelo abandono do modelo da aldeia quioca, que havia
determinado a organização dos espaços urbanizados dos Quiocos. Os Lundas, cuja estrutura
. dependia de maneira absoluta do poder central, constituem as suas aldeias, sobretudo as
maiores, em função do modelo da Musumba. Foi por volta dos anos 1880 que este modelo
começou a ser rejeitado, substituído por uma distribuição dos espaços mais de acordo com
os interesses específicos dos Quiocos (82).
No survey consagrado às populações lundas e aparentadas, Merran McCulloch
procede à reconstituição das aldeias quiocas a partir das informações registadas por

Areia, o. c., p. 372.


Carvalho, 1890, p. 252.

623
H. Baummann ( 83). Esta operação permite tornar visível a organização circular da se organiza a aldeia. De resto, este modelo é usado na estruturação dos acampamentos
aldeia, centrada em torno da chota ou tsota: das caravanas quiocas, sendo então a parte central reservada não à chota, mas às
mercadorias. É certo que se trata de uma técnica defensiva, mas seria absurdo não pôr
em evidência as condições em que é organizado o acampamento, que fazem das
PLANTA DE UMA ALDEIA QUIOCA mercadorias, e não dos homens, o eixo em torno do qual se estrutura essa «aldeia»
provisória:

Cubata principal
ACAMPAMENTO QUIOCO
Cubata

Horta

Forja

Cozinha

Curral

-v Casa das mulheres velhas


IF R Casa das mulheres menstruadas

Cubata dos sobrinhos


Depósito de víveres
Campo de tabaco Mercadorias
6;1 Cubata

Quer dizer que, apesar da ruptura registada, o sistema aldeão continua centrado
em torno da chota, tsota, njangu ou jango, ou seja, a cubata dos homens. V. W. Turner
descreve, de maneira perfeita, este tipo de organização: «as aldeias a respeito das quais
dispomos de informações aparecem como um círculo ou um oval grosseiros formados
pelas cubatas em volta de Um espaço livre no centro do qual está um abrigo circular A estrutura da aldeia quioca, que, no fim de contas, é assaz simples, permite que
utilizado como lugar para os homens poderem conversar ou comer» (84). ela possa ser instalada praticamente em qualquer lugar, o que se articula com os
A aldeia — quioca ou lunda ( 85) — mantém-se fiel à autoridade masculina, e «o movimentos constantes destas populações. Esta estrutura simplificada possibilita a
jango, que serve de casa de recepção e refeição» ( 86), fornece o eixo em torno do qual expansão quioca, graças à proliferação de pequenas aldeias que podem ser rapidamente
construídas ( 87) e que não exigem grandes investimentos em trabalho e em matérias-
-primas. Mesmo que a aldeia seja formada por um homem e pelas suas mulheres,
esposas ou concubinas, ou por fragmentos de clã, a estrutura mantém-se a mesma,
McCulloch, 1951, pp. 40-43. porque só ela é capaz de responder às necessidades mais prementes deste grupo, tal
Turner, 1964, p. 35: «The registered village consists of a roughly circular or oval arrangements
como só ela pode ser conservada durante um longo período, sem exigir mais do que
of huts around a cleared space in the centre of which is a round unwalled shelter (chota or njangu'n)
used as a men's palaver hunt and mess-room». as reparações indispensáveis.
Diz Silva Porto que as aldeias quiocas e lundas se parecem «na construção e no asseio (...)
[vistas de longe lembram] em miniatura as construções góticas», Porto, 1885, p. 579. Embora não se
compreenda muito bem onde é que Silva Porto, chegado adolescente ao Brasil, pôde ver tantas «construções
góticas»!
id., ibid. (87 ) Carvalho, 1892, II, p. 328.

624 625
Os Quiocos são constantemente caracterizados — ou dever-se-ia escrever
acusados? — pelo facto de procederem a razias ou a compras «excessivas» de mulheres. que o poder resista à sua própria usura. O casamento constitui, deste modo, uma
Parece que as não vendem, ou então isso acontece muito raramente. Em todo o caso, maneira de renovar constantemente os laços de dependência em relação aos Lundas,
não encontramos acusações denunciadoras das vendas. Este silêncio afigura-se-nos cujo stock genético deve ser cuidadosamente preservado e transmitido.
bastante probatório, mesmo que seja difícil acreditar que tenham podido conservar, sob Por volta de 1946, José Redinha confirma o essencial desta informação, mas as
o seu controlo, o número tão elevado de mulheres que os textos lhes atribuem. Por volta técnicas utilizadas para conseguir estas mulheres e estes rapazes são completamente
de 1880, Henrique de Carvalho, que manifesta uma grande cordialidade nas relações diferentes: «o seu [dos Quiocos] impressionante poder de assimilação engrossava-lhes
com este grupo, assinala os roubos de mulheres: «nos últimos oito anos [os Quiocos] as fileiras (...) calculadamente, davam ostensivo asilo a toda a espécie de foragidos do
roubando-os [aos Bangalas] têm trazido de lá as melhores de suas mulheres e crianças Estado Lunda, como prisioneiros de guerra, servos desertados...», tendo em vista
para constituir famílias» (88). enfraquecer o poder lunda, dispondo assim de um maior número de súbditos para os
Já tínhamos feito referência a uma informação de Pogge, que fora retomada por ajudar a assegurar a sua expansão territorial (92).
Marie-Louise Bastin, segundo a qual, a partir de 1868, os Quiocos iam procurar mais Se quisermos, José Redinha limita-se a acrescentar uma técnica complementar à
a norte as mulheres luluas (89). Deve acreditar-se que só os Quiocos tentavam obter um aquisição, pelos Quiocos, das mulheres e dos rapazes. Contudo, para assegurar a
número sempre mais elevado de mulheres, ou são apenas os mais hábeis destes reais fidelidade das mulheres lundas aos maridos e parentes quiocos, eram necessários
ou potenciais caçadores de mulheres? argumentos mais quantitativos e marcadamente afectivos. Henrique de Carvalho, uma
A situação é importante, porque a autonomia dos chefes de família ou de secção vez mais, fornece-nos a chave desta dupla busca, na medida em que as mulheres lundas
ciânica apenas pode assentar o seu poder, de maneira estável, graças às mulheres e aos parecem atraídas pelos Quiocos: «são as mulheres lunda as mais estimadas e aquelas
escravos. Para conseguir alcançar este desiderato só há dois caminhos: ou recorrem à que os Quiocos tratam melhor, nunca as vendendo, tal como não vendem os filhos que
razia ou ao comércio. É o papel confiado aos Lundas que nos coloca perante uma têm com elas. Muitos homens lunda, comprados ou raziados pelos Quiocos na sua
evidente perplexidade. juventude, cresceram a partir desse momento, e hoje ninguém os pode distinguir dos
De acordo com Carvalho, a venda (e a compra) de pessoas entre os Lundas era outros e eles acompanham até os Quiocos nas suas razias» (93).
um hábito arraigado: não só «os Bangala (...) como já se disse, [assim como] os Teríamos assim de dar contas de uma situação biológica e conjugal, que se choca
Ambaquistas e Malanjes vão aí [ao território lunda] procurar raparigas para suas com as escolhas políticas, que pretendem, sobretudo, pôr termo à importância da
mulheres e rapazitos [chamados bessas] (...) para os auxiliarem [a transportar as car- dominação lunda. Carvalho sugere uma explicação que possui uma arriscada sugestão
gas], na construção de cubatas, condução de água, lenha, etc., quando em viagem» (90). biológica: «é necessário observar que os Bangala e os Quiocos que escolheram mulher
As informações de Carvalho permitem dar conta do laço que une as mulheres e os entre os lunda procriaram uma descendência superior, do ponto de vista do vigor dos
jovens escravos, na medida em que estes não têm ainda direito ao tratamento reservado filhos e da energia ulterior dos homens, à dos Lunda que se aliaram entre si» (94).
aos homens, devendo levar a cabo um certo número de actividades que, numa situação Esta explicação mobiliza algumas das ideias eugenistas do fim do século XIX, que
normal, teriam sido impostas ou confiadas às mulheres. ainda se não extinguiram totalmente, alimentando certas formas de revivalismo racista,
É todavia a segunda questão que consta do texto que parece ser a mais importante: que nos parece difícil aceitar sem análise. Carvalho, recorrendo a uma «explicação» de
a busca de mulheres seria devida aos hábitos antigos que impunham que a família fosse carácter genético, pretende demonstrar o que lhe parece ser a degenerescência dos
constituída «com gente da Lunda, de onde pela maior parte eles são oriundos ou Lundas perante os Quiocos. Mas na economia da nossa reflexão será suficiente reter
descendentes» (91). esta recuperação constante das mulheres e dos rapazes, deixando de lado o que há de
Já havíamos encontrado esta fidelidade à origem lunda no exercício do poder entre inverificável na argumentação biologizante.
os Imbangalas, pois só os descendentes dos puros lundas tinham o direito de realizar A série de operações destinadas a manter utilizável a relação Lundas-Quiocos deve
algumas operações rituais, as quais nos ajudam a compreendereo mecanismo conjugal pôr constantemente em causa o laço matrilinear, de tal maneira que os filhos das
organizado para permitir a conservação desta pureza de origens, condição que consente mulheres lundas possam tornar-se totalmente quiocos, furtando-se a ser constantemente
marginalizados pelos que descendessem de casais formados por «puros» quiocos, no
caso desta expressão ter algum sentido sociopolítico. Esta operação conjugal não se
Id., 1890, p. 202. Porto, na mesma época, 1885, p. 603, salienta que «a sua riqueza [dos
Quiocos] consta de escravos e de creações».
Bastin, 1961, pp. 28-29.
Carvalho, 1890, p. 711. Redinha, 1958, p. 22.
Id., ibid. Carvalho, 1895, p. 858.
(94) Id., ibid., p. 842.
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destina a provocar uma subversão qualquer das formas de organização quiocas, na caracterizadas num primeiro tempo pela produção de mercadorias preferenciais destinadas
medida em que, e exactamente em sentido inverso, ela reforça o laço que une os dois ao comércio a longa distância — borracha e marfim — que não se separam, contudo,
grupos, embora deixe intacto o peso exercido pela primazia histórica dos Lundas. das mercadorias locais, entre as quais avultam o sal e os escravos. A fase final, aquela
A vontade de poder dos Quiocos não os força a dissolver os laços míticos e que assinala a passagem das estruturas ainda controladas pelos Africanos, para as
afectivos que os ligam aos Lundas, mesmo que não procurem recrutar homens. Para formas já submetidas à vontade europeia, é caracterizada pela aparição da moeda
que um varão se possa tornar quioco, é necessário que seja integrado muito jovem, o metálica no cesto do adivinho. A riqueza muda de sentido, como mudou de sentido a
que sublinha o papel confiado aos homens, que devem assegurar a permanência dos capacidade de intervenção dos Quiocos e dos seus chefes (100).
valores do grupo. Isso já não acontece com as mulheres, que podem transitar para Podemos, é certo, interrogar-nos para saber qual dos dois — o sal ou o escravo —
qualquer grupo, sobretudo enquanto são jovens e se transformam em mães. Mal-grado estabeleceu o primeiro elo para assegurar a criação da riqueza. Somos levados a pensar,
isso, o movimento aspirante dos Quiocos é destinado a ameaçar os Lundas, com quem na esteira do adivinho Sukulu, que o escravo — e nesse aspecto o adivinho coincide
travam uma guerra quase surda, e que se caracteriza pela perda das mulheres por parte inteiramente com o famoso texto de F. Engels — constitui o ponto de partida da riqueza,
dos Lundas, destinadas a ser as reprodutoras dos Quiocos. Estamos certamente perante não só por fornecer a sua força de trabalho, mas mais ainda: o escravo pode pôr ao
uma das chaves do conflito que opõe tão seriamente os dois grupos (95). serviço do seu patrão a sua própria capacidade de inventar situações inéditas. Mas
receamos que os documentos portugueses simplifiquem excessivamente as referências
aos «escravos», pois já pudemos verificar que este termo classificatório concentra em
B. Riqueza, redistribuição e laços de parentesco demasia as formas de dependência que foram criadas pelas sociedades lunda, imbangala
e quioca.
Parece que o conceito de riqueza não é muito antigo na língua quioca. É, em todo A riqueza moderna conhece outros mecanismos de reprodução, dado que só pode
o caso, o que se pode deduzir das informações fornecidas pelo dicionário de língua ser obtida pelo trabalho — isto é, pelo salário — transformando-se em dinheiro. As
quioca ( 96), assim como de outras retidas por Manuel L. Rodrigues de Areia ( 97). Por actividades que no passado, algumas vezes muito recente, permitiam obter acumulações
outro lado, o próprio conceito conheceu senão uma mudança, em todo o caso um significativas, entre as quais o comércio de escravos e o tráfico negreiro, foram destruídas
alargamento do sentido, devido à integração — pela sociedade — de produtos que, só pelos Europeus, principalmente Portugueses e Belgas. Pensamos, no entanto, que o mais
muito tarde, entraram no campo da riqueza. importante não reside nesta simples constatação, mas sim na notável rapidez com que
No cesto de adivinho quioco, aparece «uma moeda do antigo escudo angolano; às os Africanos procuraram responder a esta nova questão que eliminava a hegemonia
vezes encontram-se também moedas provenientes de Portugal ou do Congo» ( 98). Esta secular africana, impondo as novas regras de enriquecimento pelo novo poder hegemónico,
moeda recebe o nome de upite, sendo regularmente interpretada pelo adivinho como o dos Europeus.
significando a riqueza. Por outras palavras, a sociedade quioca actual associa a riqueza Estas duas formas de riqueza, a de ontem e a de hoje, não podem eliminar a relação
apenas à moeda. Não é necessário dizer que se trata de uma situação moderna, tão com a acumulação, a qual arrasta consigo um complemento: o consumo e a partilha.
demorada foi a aceitação das moedas metálicas europeias nesta região. Parece, de resto, que os chefes de família ou de secção de clã quiocos não estavam
De acordo com o adivinho Sakungu, um dos informadores do antropólogo português, dispensados de repartir com as esposas e os escravos, razão complementar para agir
«antigamente a moeda upite significava sobretudo as coisas que se podiam trocar por no sentido de assegurar a multiplicação dos dependentes, sem os quais não se podia falar
produtos vindos da Europa» ( 99). Antes do dinheiro europeu — ou colonizador — ter de autêntica acumulação. A mudança é assim assinalada pela redução da importância
conseguido abalar a sociedade quioca, a riqueza era principalmente representada pela das mulheres e das descendências, em proveito de propriedades algo abstractas, como
borracha (dundu) e pelo marfim, acompanhados pelo sal e pelos escravos. é, neste caso, o dinheiro colonial.
A observação do adivinho quioco permite dar conta, com uma precisão relativa, Não podemos esquivar-nos a referir algumas condições singulares do funcionamento
da própria evolução do conceito, que é obrigado a adaptar-se às novas condições, das sociedades matrilineares, entre as quais avulta a possibilidade do regresso das
mulheres às suas famílias, quando cessavam as suas funções reprodutivas. Atingida a
menopausa, a mulher dependia menos do carácter virilocal do casamento e podia
Nos ataques ao Império lunda, os Quiocos procuram recuperar as mulheres para constituir ou regressar ao seu grupo matrilinear. A situação era completamente diferente para os
reforçar a família. Parece que elas não se opõem a esta operação. Ver Carvalho, 1890, pp. 674-675. homens, que não podiam — ou não eram obrigados — a regressar ao seu matriclã.
Barbosa, Dicionário, 1989.
Areia, 1985, pp. 403-407.
Id., ibid., p. 406.
(99) Id., ibid., p. 497. ( 100) Id., ibid., pp. 407-408 e 454 (imagem).

628 629
Somos assim colocados perante uma das principais contradições do sistema quioco, autores, parece-nos ir contra a importância normativa das regras religiosas, pois que tanto
mal preparado para encarar as exigências do financiamento do comércio a longa distância. o indivíduo como o grupo dependem efectivamente dos espíritos dos antepassados, que não
Não iremos ao ponto de afirmar que os Quiocos e outros comerciantes da mesma podem ser manipulados de qualquer forma, nem por qualquer pessoa, nem em qualquer
importância se dão conta das implicações mais prementes do capitalismo moderno, mas
momento.
não podem furtar-se à necessidade de organizar os seus próprios circuitos em função
O upite assinala, deste modo, o desejo do enriquecimento e a dificuldade de conseguir
da forma, já hegemónica, do capitalismo ocidental. O lucro e a acumulação são riqueza, dadas as condições já evocadas em que a sociedade africana controla os lucros.
indispensáveis para que o candidato a comerciante possa dispor dos artigos necessários Tal não quer dizer, de maneira alguma, que os Africanos não compreendam o
para levar a cabo as operações comerciais. A solução não é fácil, já que as sociedades funcionamento dos mecanismos do dinheiro, mesmo que não haja memória da criação
africanas não permitiam que o negociante pudesse utilizar inteiramente o lucro que de instituições que, de perto ou de longe, exerçam as funções confiadas aos bancos.
acaso obtivesse. O facto de as regras sócio-religiosas exigirem uma partilha constante, Alguns comerciantes africanos instalam-se por isso nas cidades, onde as estruturas
colocava os comerciantes africanos perante escolhas difíceis, mas que acabavam por urbanas permitem escapar à violência das regras quotidianas do parentesco. Na novela
tornar impossível qualquer forma de capitalização importante.
Nga Muturi, Alfredo Troni descreve a aprendizagem da cidade — Luanda — assim como
Os homens de negócio europeus, sobretudo aqueles que trabalhavam com capitais dos modelos económicos por uma antiga [pawn] (empenhada), que não hesita em lançar-
pessoais — o que era bastante raro entre os Portugueses, pelas razões já evocadas — -se em operações de usura: ela empresta dinheiro, principalmente em troca de penhores
podem revelar-se menos hábeis ou ser abandonados pela sorte e ver-se impedidos não em ouro, tendo o cuidado de saber se o precioso metal, que lhe confiam, é realmente
só de obter lucros, mas registar graves prejuízos, o que pode representar uma travagem de qualidade (103). O facto de uma antiga mulher empenhada ser capaz de se instalar
dolorosa na orientação dos negócios. Mas a situação é simultaneamente paralela e na cidade, aproveitando a sua condição de concubina de europeu, para se lançar na
diferente no que diz respeito à quase totalidade dos comerciantes africanos, obrigados usura, serve para pôr em relevo a maneira como os grupos africanos, através de algumas
a despojar-se dos lucros obtidos para satisfazer as exigências do parentesco. personalidades singulares, transpõem a dura barreira do capitalismo.
O paradoxo africano quer que o comerciante mais hábil, o mais capaz de utilizar Todavia, entre as normas mais estritas das sociedades africanas, devem reter-se as
as potencialidades comerciais da sociedade, seja também o mais espoliado pela religiosas, sempre presentes e eficazes, servindo-se o clã do recurso à feitiçaria para
parentela. Se estes homens recusam a partilha, procurando salvaguardar as suas poten- afastar aquele que, como um ladrão, não hesita em levar a cabo uma acumulação que
cialidades comerciais, ou estimar que os lucros obtidos lhe pertencem inteiramente, o próprio excesso torna criminosa. A lógica do raciocínio salienta que o excesso de
encontram-se bastante desarmados perante as exigências tradicionais dos parentes, acumulação só pode ser obtido, reduzindo algum ou alguns a uma situação de penúria.
tal como parece difícil oporem-se à aldeia, pois que, além do mais, as autoridades Sem pretendermos entrar no campo específico da etnologia, desejamos apenas salientar
e os parentes podem sempre recorrer aos serviços dos especialistas da feitiçaria. as ameaças que pesam sobre os comerciantes, que atravessam a dura barreira da
Para o afirmarmos, dispomos, entre outras, das declarações do adivinho Sukungu acumulação primitiva. Dado, por outro lado, o receio que as sociedades manifestam face
a Rodrigues de Areia: o clã e a aldeia mostram-se extremamente atentos a todos os à feitiçaria, compreendemos as dificuldades de criação de formas comerciais autónomas,
responsáveis por uma acumulação muito importante (101 ) . Já evidenciámos, embora de que possuem um carácter sobretudo capitalista. Será possível dizer que, exactamente
maneira demasiado alusiva, quais as condições em que se organiza o controlo das ao invés da famosa ética protestante de Max Weber, as práticas religiosas dos Bantas
formas de acumulação, cujo valor conhecemos, pelo menos desde Adam Smith, na proíbem qualquer possibilidade de espírito do capitalismo, mesmo que permitindo o
organização das economias que procuram tornar-se capitalistas. Os comerciantes africanos comércio interafricano mais restrito?
são obrigados a partilhar o que ganharam, situação que lhes reduz as possibilidades de
procederem à realização da acumulação primitiva.
É certo que os Quiocos podem procurar furtar-se a esta fiscb.lização, refugiando-se C. As relações Quiocos-Lundas: autonomia e dependência
alhures, sempre que submetidos ao descontentamento do clã ou da aldeia. Mas mesmo que
seja afirmado, repetidamente, que os Quiocos são os «ciganos da África» (102 )n , não é muito Como negar a aparente dependência dos Quiocos em relação às mulheres lundas?
difícil compreender que as operações de mudança não podem ser levadas a cabo de maneira Porque, se os Quiocos são grandes consumidores de mulheres desta origem, isto quer
caótica. Este automatismo da mudança, que encontramos referido num certo número de dizer que eles exportam constantemente as suas próprias mulheres, o que constitui
certamente uma situação paranóica, embora encontremos uma resposta mais simbólica

Id., ibid., pp. 83-85, 262 e 407.


Ver Redinha, 1958, p. 20.
(103) Troni, 1973, p. 60.
630
631
e menos psiquiátrica, se considerarmos que esta situação de dependência deve ser É preciso considerar, embora num registo complementar, que os Quiocos espalham
interpretada no quadro dos valores emblemáticos. É certo que estas mulheres lundas são por toda a parte o modelo autoritário dos Lundas centrais. Não há contradição nesta
reais, mas o lugar que ocupam no imaginário quioco é quase tão importante como a afirmação, pois já mostrámos que os Quiocos podem optar pelas posições politicamente
sua existência física, na medida em que são destinadas a continuar a situação de acéfalas, mas tal não impede a existência de formas políticas fortemente hierarquizadas,
dependentes na qual se mantiveram — ou foram mantidos — os Quiocos durante embora constantemente ameaçadas pelas cisões internas. Nesta situação de poderes
séculos. solidamente concentrados, os chefes quiocos manifestam uma tendência evidente para
A aquisição da independência aparece como uma operação deveras difícil. Não se transformar em «tiranos» perante as populações submetidas, a quem ocuparam
faltará quem nos censure o aparentamento, mas podemos verificar que os Quiocos se o território e a quem colonizaram os próprios espíritos. Consideramos que esta maneira
mantiveram na dependência dos Lundas não só no que se refere às mulheres, mas de agir impede qualquer forma de modernização. Verifica-se que a escolha das mulheres
também no que diz respeito aos impostos (io4). Não seria certamente incongruente lundas depende de uma certa fidelidade às práticas lundas, revitalizadas pelas mulheres,
evidenciar que estas duas situações estão directamente associadas às formas de produção. mas não podem ser separadas desta maneira dramática de viver as relações sócio-
Saliente-se o génio político dos Lundas que souberam manter a sua superioridade, pelo -históricas ou antes sociopolíticas.
menos ideológica, graças à criação de formas particulares de dominação/dependência.
Os Imbangalas dependem dos Lundas originários, os Quiocos precisam de mulheres
lundas, o que parece reforçar a sua obrigação de pagar impostos aos Lundas. A infe-
rioridade desse Outro particular, que são os Quiocos, depende, por isso, das regras da
produção e da reprodução: a ideologia não pode separar-se do seu complemento, a
prática social.
Os Quiocos procuram reduzir incessantemente esta situação de dependência, mas
a sua consciência colectiva, reforçada pelas formas ritualizadas da vida social, man-
tém-se ligada aos valores da norma lunda, e uma grande parte destes quiocos continua
a ser engendrada por mulheres lundas. Receamos, de resto, a impregnação lunda de que
foi vítima Henrique de Carvalho, pois que o major português, bom conhecedor dos
Quiocos, se transferiu com armas e bagagens para o domínio linguístico e cultural
lunda. A situação é, de resto, significativa, pois quando a expedição de Carvalho
penetrou no território lunda, já o poder deste grupo estava em plena decomposição,
devido às intrigas de uma corte «imperial» que se mostrou absolutamente incapaz de
proceder à regularização dos problemas da sucessão. Esta situação de instabilidade
favoreceu, como não podia deixar de ser, os ataques armados dos Quiocos (105).

(toa) Em 1881, Schütt encontra quiocos que se tinham instalado há pouco em Kimbundo e obrigados
«a pagar ainda tributo ao chefe lunda Mona Kimbundo que reina sobre os Macoza» [nome dado aos
Quiocos nesta região]. Citado por Bastin, 1961, p. 26. A situação é a mesma 'um pouco mais a nordeste,
já a caminho da Musumba, entre o Luachimo e o Kasai. O «Muatianvo (...) há-de vir sujeitar (...) os
chefes quibocos [que vieram instalar-se] debaixo do seu domínio a fim de que lhes paguem tributo».
Porto, 1885, p. 629. Estas duas situações levam-nos a verificar que quando um grupo quioco se instala
em território sob controlo de um chefe lunda, este manifesta-se imediatamente, para afirmar a sua
autoridade, por meio da exigência de um imposto, que nunca é recusado. Isto explica, talvez, os ataques Fig. 33 — Lukano. Três cauris pashi decoram a pulseira
dos Quiocos contra os Lundas, que se sucedem durante décadas. O processo parece ser o seguinte: um lukano, usada por Mwatshisenge durante uma visita ao Museu
grupo quioco instala-se em terras consideradas vazias, mas pertencendo realmente a um chefe lunda, do Dundo. Este importante chefe quioco, actualmente instalado
paga o tributo, para se revoltar em seguida, deixa de pagar e ataca os Lundas. Trata-se, por isso, de junto do Saurimo e que se chama Itengo, é o sucessor do
uma táctica de alargamento do espaço quioco, graças ao esgotamento das forças lundas. grande Mwatshisenge, que se celebrizou devido às suas proezas
( 1 °5) Ver, a respeito desta crise, Carvalho, 1890, pp. 637-665. guerreiras no século XIX. Bastin, 1961, I, p. 121.

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É certo que, e nesse aspecto, os Quiocos são completamente diferentes dos Lundas tradicionais lundas. A utilização do lukano fora assinalada por Silva Porto (113) e os
centrais, visto que estas situações de poder excessivo não implicam a criação de um chefes que o usam são transportados às costas de homens especialmente encarregados
poder absoluto e centralizador. Entre os Quiocos só encontramos uma figura epónima, desta tarefa (114 ) , sendo a utilização destas formas de transporte severamente controlada.
o caçador luba Tshibinda Ilunga, herói cultural dos Lundas, que os Quiocos parece Carvalho diz as coisas de maneira ainda mais peremptória: «os Quiocos roubam
terem sido forçados a integrar no seu panteão «nacional». A direcção polftica dos ao Mwatyanvua o seu próprio território, as insígnias do seu poder» (115). Somos assim
Quiocos não é, apesar disso, assegurada por um «imperador» ou por um «jaza». A levados a compreender a existência de um duplo movimento entre os Quiocos,
evidente coesão cultural e política dos Quiocos parece depender, sobretudo, de uma forte visceralmente ligados aos Lundas. O primeiro é destinado a assegurar a rejeição das
identificação histórico-cultural, capaz de sobrecompensar a ausência de uma autoridade formas mais brutais do controlo exercido pelos Lundas, e apoia-se na dissolução dos
centralizadora. clãs, que autorizam as instalações mais individuais, sendo também aquelas que permitem
É necessário acrescentar que esta identidade «nacional» foi obtida por práticas de as mais importantes manifestações de acefalia política. Estas operações acabaram por
culto reconhecidas pelo grupo, e que se manifestavam através da ocupação religiosa do provocar um resultado que, a posteriori é certo, estava incluído no movimento
território, onde as hambas revelam a força da religião, afirmando ao mesmo tempo o desencadeado: a aparição de um desejo de autonomia fortemente generalizado, que
carácter homogéneo da sociedade (106,.) Os elementos dinâmicos dos Quiocos são tão contribuiu muitíssimo para o aumento da segmentação dos clãs.
vigorosos, que conseguem manifestar-se mal-grado estes obstáculos, o que lhes permite Trata-se de um movimento centrífugo, não podendo os Quiocos furtar-se à
combinar a tradição mais rigorosa com a modernidade mais assumida, como pode fiscalização lunda a não ser recorrendo às operações que permitem a dissolução de
provar a integração de objectos novos, sinais da técnica e do comércio europeus, nos qualquer forma de dependência. No primeiro período desta situação, as operações que
elementos simbólicos presentes no cesto de adivinho (19. autorizam a segmentação rápida e constante dos clãs criam as unidades de produção,
Os viajantes que descrevem a sociedade quioca, por volta dos anos 1880, não hesitam que podem sobreviver em circuito fechado, em autarcia, recusando de maneira empírica
em mostrar que formas familiares quiocas autónomas, fiéis a um certo espírito o poder lunda. Na segunda fase, é evidente que a recuperação de uma autonomia
descentralizador e adeptas das soluções políticas acéfalas, andam quase de mão dada com crescente por parte dos Quiocos só podia completar-se com a morte dos Lundas. Morte
formas políticas extremamente centralizadas, tendo à sua frente chefes de tipo tradicional, simbólica, mas exigindo a sua realização física.
que parecem depender mais do modelo lunda. Um chefe quioco afirma nesse período a Esta opção foi contrariada pelo regresso do modelo lunda, o que, paradoxalmente,
Capello e Ivens: «Os meus domínios são tão grandes, que se estendem daqui até Catende, não avantajou as autoridades lundas, vítimas da multiplicação das formas observadas
e para o norte até Quimbundo; neles só eu governo, a mim tudo obedece» (los). pela centralização quioca. Semelhante centralização permitiu, senão a organização de
Acrescentam, os dois viajantes, que os Quiocos respeitam os seus chefes de maneira um exército «nacional», pelo menos a criação de um movimento muito geral, que visava,
muito estrita, não provocando o seu poder quase absoluto a menor controvérsia. «As acima de tudo, atacar os Lundas, expulsando-os dos territórios onde se tinham instalado,
ordens do chefe cumprem-se; ninguém ousaria protestar» (109). Aquilo que nos revelam para os empurrar para a capital (116,,) que vivia então mais uma crise de interregno.
os documentos portugueses é a recuperação do modelo lunda (110), no que se refere a Trata-se do momento de passagem do poder das mãos do imperador Mukanza, que tinha
um número crescente de autoridades quiocas, o que é tornado ainda mais visível pela ocupado interinamente o trono, entre 1884 e 1887, para as de Umbana ou Mbala, em
adopção dos símbolos do poder lunda. Conta-se entre estes o famoso lukano, «a pulseira Maio de 1887 (117).
símbolo da função que herdam do tio materno» (111).
Uma tentativa de organizar uma visão retrospectiva pode ajudar-nos a compreender
como é que esta estrutura social, com tamanha tendência para a acefalia (112), foi
arrastada para soluções políticas que não são mais do que uma duplicação das formas

Id., ibid., pp. 620-622.
Somos levados a pensar que este tipo de transporte procura uma similitude com o que recorre
Sobre as hambas, ver Lima, 1971. às tipóias. Ambos foram importados dos modelos banalizados pelos Europeus. O recurso aos homens
Lima, o. c., pp. 110-111. foi necessário para substituir os animais domesticados que transportavam pessoas — os cavalos ou os
(los) Capello e Ivens, 1881, I, p. 164. bois-cavalos — de que os chefes africanos não podiam dispor, dadas as condições físicas da região.
(109) Id., ibid.
(Ho) Carvalho, 1895, p. 858.
Carvalho salienta este facto: os chefes quiocos têm «o direito de dispor dos seus súbditos como Ver Carvalho, 1890, p. 664.
propriedade sua», 1890, p. 692. (117) As cronologias dos chefes lundas são bastante imprecisas, mesmo no fim do século. Ver
Bastin, 1982, p. 41. Carvalho, Duysters, Verhulpen, Van den Byvang, Biebuyck e Margarido (1973) que procedeu à comparação
Ver Porto, 1886, p. 57. de todas as informações disponíveis entre 1965-1970.

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Léon Duysters assinala a desagregação do Império lunda, tendo sido a Musumba
atacada pelos Quiocos, em 1887: «os Quiocos, invadiram todo o território lunda,
excepto a região entre Kasidishi e Mulungu, mas apareceram pouco depois no
Kamutambai e declararam guerra a Mitombo Mukumu e aos Bene Kanioka», o que
autoriza este funcionário colonial belga a adoptar a expressão trágica utilizada pelo
historiador oficial lunda, que lhe forneceu as informações: «o Império lunda tinha
deixado de existir» (118).
A partilha do império foi impedida pela intervenção do poder do novo Estado Livre
do Congo, que receava, acima de tudo, os conflitos que podiam determinar a intervenção CONCLUSÃO
das autoridades portuguesas. Os Quiocos mostraram-se capazes de pôr fim à longa vida
do Império lunda, mas não puderam extrair dessa operação os lucros políticos esperados. As sociedades angolanas do século XIX encontram-se submetidas a um duplo
Pensamos que a situação confirma, de maneira exacerbada, a perda da hegemonia movimento: o endógeno, cuja importância é evidente, é desencadeado pelas sociedades
africana. Obrigados a renunciar aos lucros políticos e económicos desta operação, que africanas que desejam não só assegurar a sua hegemonia, mas também procurar alargar
levara larguíssimos anos a ser organizada, os Quiocos, como de resto as populações o controlo que exercem sobre os Europeus, assim como sobre as regras e as práticas
da região, estão em vésperas de ser transformados em simples assalariados ao serviço comerciais. E o exógeno que, contrariando — e paradoxalmente reforçando — o
das autoridades e das empresas capitalistas europeias. movimento anterior, procura impedir a concretização de uma modernidade africana mais
radical, considerada incompatível com os projectos das forças colonizadoras. A crescente
e trágica erosão da hegemonia africana permite a instalação da hegemonia euro-americana,
que sujeita o continente aos imperativos das regras coloniais.
Quais são as forças mais dinâmicas? Se tivermos apenas em conta a situação
colonial, que encontrou o seu termo em 11 de Novembro de 1975, os Africanos parecem
ter sido incapazes de assegurar a manutenção dos seus sistemas. Será essa situação
consequência da força militar dos Europeus, antecedida e reforçada pela autoridade
comercial e industrial, isto é, capitalista? Se assim fosse, não poderíamos fazer mais
do que proceder à organização da história da inevitável vitalidade do capitalismo
europeu. Ou estaremos perante uma situação mais ambígua, que depende da manifestação
da incapacidade angolana — e mais latamente banta — para proceder à modificação
das estruturas africanas, que acabam por comprometer a sua própria vontade de assegurar
as formas hegemónicas africanas?

Procurámos analisar as condições que autorizaram ou exigiram a criação dos circuitos


comerciais modernos, que não hesitaram, contudo, recorrer aos caminhos criados para
assegurar a circulação das mercadorias africanas. O Estado moderno angolano não pode
ser explicado a não ser através do choque das forças europeias, que obrigaram as diferentes
«nações», «impérios», «reinos», «sobados» ou «etnias» a viverem em conjunto, sob a
autoridade de um governo centralizador, inteiramente criado pela potência colonial,
paradoxalmente a única força que podia impor uma «unidade» política.
A intervenção das autoridades portuguesas — e mais latamente europeias —
organiza-se, além do mais, para pôr termo aos particularismos das «nações», ao passo
que estas trabalham para manter a sua hegemonia secular em relação aos Europeus, mas
também em relação aos demais Africanos. A história moderna de Angola está longe de
se resumir a uma simples história das «guerras», como pensam alguns historiadores,
de Cadornega a Pélissier. É mais um afrontamento de duas concepções da maneira de
( 118) Duysters, 1957, p. 96.
gerir os homens.
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Os documentos que inventariámos e utilizámos, mesmo que demasiado marcados Esta decisão faz parte da panóplia das medidas adoptadas pelas autoridades africanas
pela visão europeia das sociedades africanas, não podem eliminar as condições pragmáticas para poderem controlar as deslocações dos Europeus, e que atingem os seus agentes
que presidem as relações entre os dois grupos. Por esta razão, eles permitem a identificação africanos, impondo-lhes regras destinadas a impedi-los de comercializar directamente as
do peso das produções e das escolhas económicas dos Angolanos, destinadas por um suas mercadorias. Trata-se, por parte dos poderes africanos, de reduzir continuamente o
lado a assegurar as complementaridades interafricanas, mas que servem também para espaço pretendido pelos Portugueses, e as regras impostas aos «pretos calçados» pretendem
organizar relações estritamente afro-europeias. O comércio africano a longa distância impedir que os Europeus possam agir graças aos intermediários africanos. Não há
traça as fronteiras e as opções económicas de Angola. movimento, por mais insignificante que seja, que não chegue ao conhecimento das
Tal afirmação é ainda mais eficaz perante as condições tão particulares que, ao autoridades africanas, o que lhes permite intervir constantemente para obrigar os Europeus
permitir a circulação de milhões de toneladas de mercadorias, implicaram o recruta- a respeitarem as regras inerentes ao funcionamento normal das sociedades africanas.
mento de um número elevadíssimo de carregadores. Na ausência de animais domes- Digamos as coisas de outra maneira: a mercadoria transforma-se no agente
ticados para assegurar os transportes, perante a impossibilidade de utilizar, de maneira preferencial da mudança, e esta situação vai-se reforçando de maneira paulatina,
normal, os cursos de água, demasiado tormentosos, os Angolanos são obrigados a acompanhando a evolução do tráfico negreiro. A sua extinção, após a legislação brasileira
servir-se dos homens para assegurar a circulação das mercadorias. de 1850, põe termo ao contrabando e permite uma gestão mais clara das relações. De
O comércio a longa distância só pode estruturar-se e adquirir a sua máxima resto, a partir da década 1840-1850, as autoridades portuguesas, nisso ajudadas por
amplitude, respeitando as relações, assaz particulares, que entre si estabeleceram as alguns comerciantes mais lúcidos, procuram convencer os Angolanos a renunciarem à
comunidades africanas, que designaremos como «nações». Quer dizer que a comple- simples produção de escravos, para lhes propor a produção de mercadorias novas,
mentaridade, tecida entre as sociedades, assenta também no suporte essencial do solicitadas pelos mercados europeu ou americano.
parentesco, que carrega com ele as exigências específicas das religiões. Os parentes Com efeito, para que as novas regras comerciais possam funcionar, é necessário
vivos, que produzem e circulam, dependem dos parentes mortos, que gerem as relações que os Angolanos aceitem assegurar a produção de mercadorias, cuja realização não
com o além, julgando, castigando ou premiando os vivos. fora feita ou o fora mal, que interessem os mercados internacionais.
Quando chegaram a África, os Europeus foram levados a estabelecer relações A forma como se articulam os pedidos dos produtos e as respostas africanas parece
comerciais com os Angolanos, tendo sido forçados a levar em conta a importância orientar-se de maneira a poder manter quase intacta a hegemonia africana, tão claramente
destas redes comerciais, que já então permitiam atravessar o continente de costa a costa. afirmada até então. Ela torna-se, todavia, incómoda para os Europeus, a partir do momento
A única maneira de assegurar a difusão das mercadorias europeias reside no inventário em que, perante os resultados económicos do arquipélago de S. Tomé e Príncipe, os
e na utilização das redes africanas já constituídas. De resto, o próprio dinamismo da Portugueses pretendem impor a sua autoridade sem a partilhar com os Africanos. A
situação levou à criação de outras redes, sob a pressão interna dos Africanos ou sob obrigação da ocupação efectiva imposta pela Conferência de Berlim força também o
a pressão externa — fixada sobretudo na costa — dos Europeus. governo português a procurar aumentar o número de colonos, de modo a criar uma espécie
As relações entre os Angolanos e os Portugueses são caracterizadas pela mútua de tampão humano branco, face aos apetites das potências coloniais.
desconfiança, já que os Angolanos mobilizam todas as técnicas possíveis para impedir Até ao fim da primeira metade do século XIX, a hegemonia africana desempenhou
os segundos de penetrar muito profundamente no mato. Estas operações duraram séculos, um papel determinante na organização das relações internacionais, mas esta situação
sendo destinadas a manter intacta a hegemonia africana, assim como a impor as regras começou a modificar-se de maneira definitiva, a partir das primeiras campanhas militares
africanas, incluindo na cidade de Luanda. organizadas contra Kasanje, precisamente em 1850. O desmantelamento desta unidade
A situação aparece, de maneira muito visível, no inventário da multiplicidade dos política, que durante séculos desempenhara um papel de falso estado intermediário,
obstáculos, levantados pelos Africanos à circulação dos Europeus. e dos seus aliados assinala o princípio do fim das hegemonias angolanas.
ou, simplesmente, daqueles que adoptam as práticas europeias mais censuradas. O A emergência dos Quiocos, que no espaço de séculos se tinham mantido dissimulados
exemplo mais evidente reside na proibição imposta aos Africanos calçados de penetrar na história lunda, é uma consequência destas modificações políticas, que lhes permitiu
no sertão. Trata-se de uma medida que torna claras as distâncias civilizacionais: Os reduzir e até mesmo liquidar o controlo exercido pelos Lundas. Todavia, esta vitória
Europeus calçados rompem — ou não respeitam — a relação contínua e íntima com havia de ser paga por um preço muito elevado, pois que ela permitiu a intervenção, cada
os espíritos subterrâneos, e comprometem, desta maneira, o equilíbrio das relações entre vez mais constante, dos poderes europeus, não só portugueses, mas sobretudo belgas.
os vivos e os mortos. Semelhante escândalo deve ser extirpado, o que explica que os No plano técnico e comercial registou-se a banalização das espingardas, que autorizaram
Pretos calçados sejam proibidos de penetrar no sertão. Estes homens, tendo adoptado uma certa militarização dos conflitos, embora a maior parte destas armas tenha sido
os comportamentos dos Brancos, são assim escorraçados do espaço mais puramente utilizada na caça aos elefantes, como se vê na subida vertiginosa dos quilos de marfim
africano. exportados.
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Seja como for, as sociedades africanas não podiam manter-se indiferentes às
contribuições e às intervenções europeias. É assim que, tanto os Imbangalas como os que impõe as «únicas» regras que devem ser seguidas. Certos conflitos entre os jovens
Quiocos, associados na sua história às populações lundas, tendo escolhido soluções e os anciãos, que só podem ser regularizados graças à cidade, possuem esta origem,
políticas autónomas, adoptam, de maneira crescente, os produtos, as técnicas e os novos mesmo que o travão mais importante seja o da escravatura, que autoriza não só a
comportamentos propostos pelos Europeus, entre os quais os Portugueses. Tal é o caso dominação e a exploração do homem pelo homem, mas mais gravemente a sua coisificação,
das armas de fogo, que modificam as técnicas de caça e obrigam os ferreiros a criar situação que precede a comercialização. O facto de a escravatura ter resistido durante
os meios de reparar e até de fabricar espingardas. Os Angolanos importam também tanto tempo aos choques sociais confirma o lugar que ocupa na organização destas
alambiques, que autorizam o fabrico de alcoóis inéditos. Estas populações aprendem sociedades. A riqueza é, de resto, representada pela parelha mulheres-escravos, que
rapidamente a assegurar (e a aumentar) as novas produções vegetais (ou conhecidas já assegura o poder dos proprietários, mas tem como consequência a recusa do dinamismo
há muito tempo), destinadas à exportação — cera, urzela, borracha, azeite de palma, das sociedades.
mel, milho, tabaco — sem esquecer o crescimento de formas mais dinâmicas de negócio De resto, este travão faz-se também sentir na gestão das mulheres, muito especialmente
a longa distância, cada vez mais dependentes das «regras» impostas pelos gestionários nas sociedades matrilineares: a poligamia obriga-as a produzir para o chefe de família, tal
do comércio atlântico. como, simultaneamente, são forçadas a renunciar aos filhos, recuperados pelos tios
Estas mudanças permitem que se passe das grandes caravanas, que eram grandes maternos, o que só tarde vai provocar conflitos que os impedem de continuar a utilizar os
«máquinas» de comerciar, mas impunham regras de funcionamento que tolhiam os sobrinhos como moeda para liquidar os seus compromissos financeiros.
movimentos dos indivíduos, às pequenas caravanas, que permitem a diversificação das Este quadro social, dizíamos, é assim agravado pelo parentesco, que coloca os mais
práticas comerciais. A vulgarização do crédito constitui, certamente, uma das chaves novos na dependência da autoridade masculina. A socialização das crianças e dos pré-
para explicarem este frenesi comercial, que tem como ponto mais elevado a passagem -adolescentes decorre no respeito estrito pelas cerimónias ritualizadas, que permitem a
para um comércio cada vez mais individualizado, mais liberto dos poderes políticos e inculcação do que podemos chamar a «ideologia do parentesco» banta. Esta situação
familiares, por isso mesmo, mais concorrencial. teve efeitos bastante negativos no registo comercial, impedindo não só que os mais
É contudo necessário reter os comportamentos mais modernizantes, a começar pela novos nele tomassem parte, mas também acabando por levantar muitos obstáculos à
banalização da escrita entre as populações de Ambaca, que deram origem aos famosos acumulação primitiva, que continua, todavia, a ser indispensável levar a cabo.
«Ambaquistas», esses africanos que quiseram apoderar-se de todas as técnicas A religião, que depende dos espíritos dos antepassados, implica um reforço do peso
portuguesas. A escrita permitiu o estabelecimento de relações contínuas com as autoridades da família, sendo as relações com os antepassados asseguradas pelos mais velhos da família.
políticas e as empresas comerciais da costa: os Africanos podiam responder por escrito, Esta circunstância obriga a sociedade a tornar-se gerontocrática, com desvantagem para
aos documentos dos Europeus. Há também a considerar a mudança do vestuário, os grupos mais jovens, que não podem superar a lentidão da estrutura das classes de idade.
invertendo uma relação polémica já antiga: os Europeus deixam de ser obrigados a Quais são as consequências? A primeira é definida pela incapacidade de racionalizar
despojar-se das roupas, sendo os Africanos a procurar vestir-se e calçar-se dentro das a economia, inapta para assegurar a própria — e simples! — auto-subsistência das
normas seguidas pela «moda» da burguesia portuguesa, que os poucos e parcos burgos sociedades. Esta situação impede também de «pensar» a moeda, assim como a gestão
angolanos reproduziam. das diferentes estruturas comerciais, porque o comércio africano acaba por não conseguir
ocupar um lugar seu na distribuição das tarefas da import-export. Não tendo sido
Será exagerado considerar que a mudança mais significativa reside na modificação
capazes de modificar, de maneira sensível, as estruturas rurais das economias africanas,
da leitura do parentesco? Os Angolanos são obrigados a comparar a evolução dos
os homens políticos, bem como os comerciantes, acabaram por permitir que os Europeus
Europeus para a família nuclear, em nítido contraste com a extensa família africana.
instalassem da maneira mais tranquila possível os instrumentos da dominação económica.
Tanto a primeira parece permitir o comércio e o lucro, como a segunda surge como um
travão destinado a impedir a acumulação e, por consequência, ase actividades comerciais A última parte deste estudo devia centrar-se na tarefa de pôr em evidência as razões
que determinaram a tão rápida como brutal destruição deste sistema de mudança/
e normais mais rendíveis. As cidades começam a abrigar homens e mulheres que
preferem separar-se das famílias, para levar a cabo projectos individuais. /modernização. O nosso objectivo era o mais simples possível, sendo todavia indis-
pensável: quais os obstáculos que se levantaram e que impediram que a modernidade
O choque entre os dois projectos civilizacionais não podia deixar de pôr em evidência
pudesse fornecer à sociedade africana novas maneiras eficazes de gerir os homens.
as forças que pretendiam limitar o acesso à modernidade. A primeira depende da
Procurámos mostrar que um dos obstáculos à modernização das estruturas africanas
concepção paternalista do poder. O chefe político é sempre o «pai» dos seus «filhos»,
era apenas a consequência da contradição resultante da banalização das formas novas
embora esta paternidade social sirva também para engendrar uma gestão política, cujo
de produção e de comercialização, e das tentativas para manter as técnicas tradicionais
carácter tendencial e realmente despótico foi frequentemente sublinhado. O «pai» é
da gestão política. Não se poderá dizer que esta situação era homogénea, mas a maior
aquele que não autoriza o menor gesto autónomo e que exige contas, ao mesmo tempo
parte daqueles que encontraram força para tentar modificar a situação acabou por ser
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obrigada a instalar-se nas cidades, onde podia prosseguir os seus esforços sem provocar
A condenação destes grupos, que nunca mais puderam recuperar as funções que
grandes surpresas ou contestações, perdendo embora eficácia.
lhes tinham pertencido, contribuiu para tornar ainda mais rígida a fronteira que separava
Há contudo duas ideias fundamentais que põem em evidência a estrutura dos
prodromos do sistema colonial moderno: já então os Angolanos dos Portugueses.
Esta situação adquire ainda maior importância se nos lembrarmos que estes grupos
tinham permitido a importação e, sobretudo, a integração das formas capitalistas
1.a O grupo afro-brasileiro, de que é exemplo a associação D. Ana Joaquina dos
modernas, porque se tinham mostrado mais capazes de compreender a importância
Santos Silva / Rodrigues Graça, nos anos 1840, nunca conseguiu apropriar-se do
da produção, da poupança e da acumulação. Esta mutação fora completada pelo
controlo dos espaços da produção, da circulação das mercadorias e da mão-de-obra.
investimento na produção agrícola, sobretudo nas regiões produtoras de café, de onde
Este espaço manteve-se constantemente dependente dos Africanos e, não somente separado,
uma parte dos proprietários africanos acabarão por ser expulsos já na década de
mas na maioria dos casos, decididamente oposto ao «poder português». As cidades
1950.
constituem, como de resto não podia deixar de ser, a única excepção a esta regra, pois
Desarmados pelo regresso dos Portugueses às teorias eugenistas, os Angolanos não
que as autoridades africanas se viram praticamente eliminadas de todos os espaços
podiam deixar de ser rudemente marginalizados, o que retira aos produtores africanos
urbanos onde se instalaram as sociedades transétnicas;
os parceiros capazes de, na zona mais especializada da comercialização, conterem a
2.a Os Africanos independentes mostraram-se absolutamente incapazes de se
violência da hegemonia europeia, que procura extirpar uma parte substancial dos
aperceber da importância do controlo e da gestão do comércio destinado à exportação;
proprietários e dos produtores angolanos.
as relações comerciais internacionais ficaram, de maneira permanente, nas mãos dos
Nestas condições, a condenação não podia deixar de ser dupla: apoiava-se, por um
Europeus e de poucos afro-portugueses que lhes estavam associados, mantendo-se os
lado, no xadrez dos preconceitos raciais, ao passo que, por outro, se sustentava com
Angolanos empenhados na gestão das actividades comerciais internas que, contudo, os
a exclusão dos Angolanos das formas de produção e de comercialização que alimentavam
afastavam de uma fiscalização mais eficaz dos preços praticados nos mercados
as formas capitalistas modernas. De facto, durante este período, os Portugueses
internacionais e da maneira como eram repercutidos em Angola.
procuraram expulsar os Angolanos dessas formas. Esta situação nova foi continuamente
reforçada ao longo do século XX, a ponto de obrigar, a quase totalidade dos mestiços,
Pode assim verificar-se que esta estrutura hegemónica, que se mostrara capaz de
a aderir às fileiras do «nacionalismo» angolano moderno.
fazer face aos Europeus durante alguns séculos, acabou por ser vftima — trata-se de um Estamos, assim, colocados perante aquilo que constitui uma das molas fundamentais
paradoxo pelo menos incómodo — das condições resultantes do aumento das trocas, que
deste trabalho: estas inovações e estas mudanças teriam podido permitir, no caso de o
exigiram uma reconversão do aparelho de produção e de comercialização angolanos. A
apetite hegemónico das potências europeias ter sido capaz de consentir o reconheci-
possibilidade de assegurar actividades comerciais individuais enfraqueceu os poderes
mento de uma fracção da população africana, a banalização das formas modernas da
polfticos «tradicionais», mas não deu a estes comerciantes africanos a força institucional
gestão social nos diferentes domínios das organizações sociais africanas.
e económica para recuperar uma fracção da hegemonia de outrora.
O período que se inicia nos anos 1888 é, por isso, aquele que permite instalar as
Se as economias africanas produzem mercadorias destinadas aos mercados
condições e os mecanismos que, ao mesmo tempo que interrompem as operações de
internacionais, os comerciantes africanos, assim como os responsáveis políticos, jamais
modernização das estruturas angolanas, autorizaram a ocupação e a dominação portuguesa
conseguem obter os meios de conhecer e, sobretudo, de gerir as relações económicas
internacionais. em Angola, até 1975.
Assim, a questão mais candente é esta: como é que, mau grado esta soma de
Nestas condições, a hegemonia e até mesmo a autonomia africana estão
mudanças, de modernização, a vida económica e política angolana se encontrou na
necessariamente amputadas, pois que não dispõem dos meios de agir livremente, não
impossibilidade de se pôr realmente em movimento?
podendo, por essa razão, furtar-se à intervenção regularizadora.dos Europeus. Porque
mesmo os africanos mais europeizados — ou os mais aculturados — são mantidos fora A questão é tanto mais delicada quanto, durante este último século, ou seja, de 1890
deste tipo de comércio, o único que permite um controlo, mesmo que relativo, do fluxo até aos dias de hoje, 1990, nos encontramos perante uma manifesta impotência angolana,
das mercadorias, assim como das cotações praticadas. cujos parâmetros não podem deixar de nos preocupar.
O receio da cafrealização, denunciado com um vigor crescente pela população A verdade é tão simples como dramática: o facto colonial moderno organizou-se
europeia, quer eliminar do comportamento branco qualquer forma de compromisso com sempre contra os Africanos, o que explica que a mobilização das técnicas e dos capitais
empreendida pelas autoridades coloniais se tenha sobretudo interessado pela instalação
as maneiras de viver dos Africanos. Estas novas regras, que pretendem branquear
de um número cada vez maior de europeus, para poder expulsar os Angolanos das zonas
Angola, interessam-se pelos menores sinais civilizacionais, e rejeitam também os
de produção e das actividades, quer honrosas, em termos sociais, quer lucrativas, em
Africanos, que manifestam o desejo de se integrar nas práticas europeias.
termos financeiros.
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As populações e os chefes africanos não dispunham dos instrumentos convenientes
e indispensáveis para fazer face a esta situação, desejada pelas potências europeias e
americanas. Não se trata, por isso, de pensar em termos de capitalismo periférico, mas
de reflectir sobre as condições que impediram os Africanos de se tornarem parceiros
do capitalismo moderno, transformando-os em simples objectos destas operações
«modernizantes».
Verificámos, contudo, que foi igualmente a incapacidade africana — técnica,
financeira, política, estrutural — de apreender as opções e as condições da modernidade,
que devemos tornar responsável pelo terrível êxito da dominação colonial. Tanto as
sociedades africanas pareciam capazes, até ao último terço do século XIX, de recuperar,
em seu proveito, os valores utilizados pelos Europeus, como os tempos modernos
agravaram a dimensão das crises que, assinaladas por guerras e por fomes,
comprometeram as escolhas do presente e anunciam as inquietações do futuro.

CARTOGRAFIA (*)

(*) Os mapas VII e VIII foram desenhados por José Peres e os mapas XL a LII por João Pinto.
Todos os outros provêm de obras cujos autores são referidos.

644 645
A.

POPULAÇÕES E QUADROS GEOGRÁFICOS


MAPA I — Mapa etnográfico de Ferreira Diniz, 1918

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MAPA III —
Mapa etnográfico actualizando a proposta de Ferreira Diniz (Lima, 1970)
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MAPA II — Distribuição das populações do Nordeste (Bastin, 1961)

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MAPA IV — As populações da Lunda (Diniz, 1918)

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E 2 — Zona de transição 6 — Bacia de Kasanje (Kwangu)
3 — Zona de montanha 7 — Bacia do Kwanza
4 — Planalto antigo 8 — Bacia do Zambeze e do Kubango

MAPAS VII — O meio físico: geomorfologia e temperaturas


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VIAGENS E CONHECIMENTOS CARTOGRÁFICOS


(SÉCULOS XVIII — XIX)

1 — Vegetação de montanha
2 — Floresta húmida
3 — Savana húmida
4.5.6.7 — Diferentes tipos
de savana relativamente
húmida
8.9 — Diferentes tipos de
• savana relativamente seca
10.11 — Estepe
12 — Estepe subdesértica

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MAPAS VIII — O meio físico: pluviosidade e vegetação

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CAPRICÓRNIO

MAPA IX — Mapa simplificado de Deslile (1708) (Mota, 1964)

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MAPA XI — Mapa de Pinheiro Furtado (1790) (Mota, 1964)

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VIAGEM DOS POMBEIROS


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MAPA XIV —
Viagem de Pedro João Baptista e de Anastácio Francisco (1802-1811) (Mota, 1964)

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MAPA XVIII — Viagem de Joaquim Rodrigues Graça (1843-1846) (Mota, 1964)

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MAPA XVII — Mapa de Brue executado a partir de informações de Douville (1832).
(Douville, 1832, T. 3.) :.
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MAPA XIX — O conhecimento da África austral em meados do século XIX (Santos, 1988)

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MAPA XX — Mapa simplificado de Arrowsmith elaborado a partir das informações da viagem de Livingstone (1853-1856) (Mota, 1964)

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MAPA XXI — As viagens de Silva Porto e dos seus pombeiros (1839-1890) (Santos, 1988)

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M APA XXIII — Os itinerários das viagens de 1802 a 1888 (Bastin, 1961)
MAPA XXII — Angola. Mapa elaborado sob a direcção de Sá da Bandeira e de Fernando da Costa
Leal (1863) (Santos, 1986)

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AFRICA CENTRAL.

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MAPA XXIV - A África central tal como a descreve Henrique de Carvalho (1890)

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MAPA xxv — A Angola «portuguesa» em 1845-1848 (Pélissier, 1977)

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MAPA XXVI — A penetração no Nordeste (1848-1878) (Pélissier, 1977)


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MAPAS XXVII — A penetração em território lunda nos fins do século XIX (Pélissier, 1977)

MAPAS XXVIII — Situação da ocupação portuguesa em 1878 e em 1906 (Pélissier, 1977)

676 677
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KASANJE. IMBANGALAS E PORTUGUESES


NO SÉCULO XIX
MAPA XXIX - O espaço imbangala (Diniz, 1918)

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MAPA XXXI — O reino de Kasanje (segundo a proposta excessiva de Miller, 1971, pois não há
provas da presença dos Imbangalas na margem direita do rio Kwangu)

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MAPA XXXII —
A encruzilhada comercial de Kasanje (1860-1880) (segundo a proposta de Miller, 1973)

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MAPA XXXIII — "Mapa dos terrenos vizinhos da feira de Cassanje" (1847) (doc. 117, Salles Ferreira, AHU, 1851-1853)
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MAPA XXXIV — "Mapa da região de Cassanje" (1862) (doc. 122, Sailes Ferreira, AHU, 1851-1853)

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MAPA XXXV — Kasanje por volta de 1880 (Capello e Ivens, 1881)



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7.°

M APA XXXVI — A região de Malanje-Kasanje por volta de 1880 (Capello e Ivens, 1881)

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PERCURSOS DA MODERNIDADE EM ANGOLA

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MAPA XXXVII — O espaço quioco antes de 1850 (proposta de Milier, 1970)

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// c. 1890
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PRODUÇÕES E REDES COMERCIAIS NO SÉCULO XIX

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MAPA XXXIX —
A "flecha quioca" (Lima, 1971)

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- Sal-gema
- Sal dos Lagos
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MAPA xL — Principais lugares de extracção de sal

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MAPA XLI — As regiões produtoras de mel e de cera (conforme proposta de Vellut, 1979)

695

MAPA XLII — A tsé-tsé (segundo Pollock)

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MAPA XLIII — O gado MAPA XLV — O elefante nos princípios do século XX (conforme proposta de Galvão, 1936)
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697

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O cobre e as pedras verdes
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As vias comerciais por volta de 1850

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Elefante antes de 1850
MAPA L i — Vias comerciais e produções II Elefante no princípio do
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CRONOLOGIA GERAL

A tradição histórica escrita afirma ser a data da chegada dos Imbangalas


ao Kwanza.
Paulo Dias de Novais é nomeado primeiro capitão-donatário de Angola.
Os Portugueses passam da ilha à terra firme, após acordo com as
autoridades africanas, para criar a cidade de Luanda.
O — Aparecimento de um certo número de pequenos estados entre os
Ovimbundos.
12-1620 — Primeiro encontro provável dos Imbangalas com os Portugueses.
— Aliança Imbangalas-Portugueses.
7 — Fundação de Benguela.
1630
624) — Fundação possível do reino de Kasanje pelos Imbangalas.
— Salvador Correia de Sá e Benevides consegue expulsar os Holandeses
de Luanda, cidade que tinham ocupado em 1642.
Os Portugueses atacam Pungo Andongo, para aí instalar o presídio de
Pungo Andongo.
O governador de Angola envia uma embaixada a Kasanje.
Viagem ao Loyale de um viajante anónimo, que nos deixou a primeira
referência conhecida aos Quiocos.
— Viagem de Alexandre da Silva Teixeira ao Loyale.
-1814 — Viagem de Pedro João Baptista e de Anastácio Francisco, de Kasanje
a Tete, percorrendo as regiões dos Quiocos, Lundas e Kazembes.
— 7 de Setembro: grito do Ipiranga e independência do Brasil.
• — Abolição do monopólio real português sobre o comércio de marfim.
— Abolição do tráfico atlântico de escravos.
— Autorização para introduzir, nos portos africanos sob autoridade portu-
guesa, produtos europeus de origem não-portuguesa.
O poder imbangala suspende todas as operações comerciais no seu
território.
Abolição do transporte obrigatório de mercadorias.
Expedições portuguesas nas baías do Sul.
— Tratado anglo-português: o tráfico sob bandeira portuguesa é classi-
ficado como acto de pirataria.

705

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1843-1846 — Viagem de Joaquim Rodrigues Graça à Musumba.


1845 Fim oficial da escravatura.
— Chegada legal dos primeiros navios estrangeiros aos portos angolanos.
— Fundação do presídio da Huíla. 1880 — Otto Schütt sobe o Tchikapa.
1849 Viagem de Buchner à Lunda.
— Chegada a Moçâmedes dos colonos portugueses expulsos do Brasil e
mais particularmente de Pernambuco. 880-1912 — Boom da borracha.
1850 — Guerra de Kasanje. A 23 de Setembro, o Jaga Bumba, principal adver- 2 — Criação de Malanje.
sário dos Portugueses, ocupa a Feira de Kasanje. — Reconstituição do concelho de Talla Mugongo.
— Lei Euzébio Queiroz, no Brasil, que fecha os portos e as costas bra- 1887 — Viagem e estadia de Henrique de Carvalho na Lunda.
sileiras aos navios negreiros. 1885 — Conferência de Berlim.
c. 1850 — Início da expansão quioca. 5 — Instalação dos Portugueses nas terras interiores de Moçâmedes, em Sá
1850-1851 — Viagem de Magyar à Musumba, capital do Império lunda. da Bandeira.
1851 — Expedição de Salles Ferreira e de Rodrigues Neves contra Bumba. Tratado entre a Associação Internacional e Portugal.
Fuga do Jaga, abrigado, todavia, pelos seus súbditos. — Silva Porto nomeado capitão-mor do Bié e do Bailundo.
Golpe de Estado em Portugal. A Regeneração. Os Quiocos atacam e ocupam a Musumba, após anos de ataques e de
1852 — Segunda guerra contra o Jaga Bumba. combates.
1853 — Viagem de Silva Porto ao Barotze (Lui). — Começa a construir-se o caminho-de-ferro de Ambaca.
1854 — Frederic Welwitsch é encarregado de organizar a investigação consa- — Os Quiocos instalam-se na Musumba.
grada à flora angolana. — Abolição — 13 de Maio — da escravatura no Brasil.
Abolição parcial da escravatura. Ultimatum britânico a Portugal, exigindo a retirada das forças lusas
1853-1855 — Viagem de Livingstone ao centro de África. da região ocidental de Moçambique, no território dos Matabeles.
1854-1855 — Acções de guerrilha do Jaga Bumba contra os Portugueses. As operações militares portuguesas destinadas a assegurarem a ocupação
1857 — Repressão no Songo. efectiva provocam revoltas africanas em várias regiões de Angola.
Paz entre o Jaga Bumba e os Portugueses. — Tratado luso-britânico (costa oriental).
1858 — A abolição efectiva do comércio de escravos é fixada para o ano de A 1 de Abril, Silva Porto suicida-se, considerando-se insultado pelo
1878. comportamento atribiliário dos Africanos.
c. 1860 — Começa a decompor-se a hegemonia comercial africana. Viagem de Paiva Couceiro ao Kubango.
— Mona Kimbundo torna-se a encruzilhada comercial afro-portuguesa 91 — Insurreição republicana no Porto.
essencial na região quioco-lunda. Aprovação do tratado luso-britânico (costa oriental).
1861 — A guerra de Kasanje recomeça. Vitória do Jaga Bumba. 93 — Os Quiocos ficam bloqueados na fronteira imposta pelo Estado Livre
1862 — Os Portugueses abandonam a Feira de Kasanje. do Congo, em Mona M'Buambua.
1863 — Paz entre o Jaga Bumba e os Portugueses. 10 — Proclamação da República em Portugal.
— Os Quiocos chegam ao paralelo 10.
1867 10-1914 — Reorganização do sistema colonial português.
— Malanje torna-se «concelho».
1869 1913 — O imposto torna-se o instrumento preferencial da coerção colonial.
— Abolição da escravatura, devendo os libertos trabalhar para os seus Criação da Repartição dos Negócios Indígenas.
proprietários até 1878.
1874 1914 — Lei Orgânica das Províncias Ultramarinas.
— Panfleto distribuído em Luanda, proclamando a independência de 1923 — Em Luanda: Congresso de Medicina Tropical da África Ocidental.
Angola.
1875 1926 — Proclamação da Ditadura militar.
— Criação da Sociedade de Geografia de Lisboa. *930 — Publicação do Acto Colonial.
— Publicação do Código de Trabalho Indígena. 1934
1875-1876 — Viagem de Pogge à Lunda. — I Exposição Colonial no Porto.
1877-1879 — Travessia de África, no sentido oeste-leste, por Serpa Pinto. 1937 — Criação do Arquivo Histórico de Angola.
1877-1880 — Capello e Ivens sobem o Kwangu desde a nascente até às «Terras 1946 — Expedição de José Redinha ao Alto Tchikapa.
1953 — «Lei Orgânica do Ultramar Português».
d'Iacca».
1955 — Conferência de Bandoeng.
706
707
1961 — A 4 de Fevereiro, os militantes do MPLA lançam um ataque contra
a prisão de S. Paulo. A resposta dos Portugueses provocou milhares
de mortos enterrados em valas comuns abertas a bulldozer.
— A 15 de Março as populações rurais do Norte lançam um ataque
contra as instalações e as populações portuguesas. Início da guerra de
guerrilha.
1974 — Golpe de Estado em Portugal, pondo termo à ditadura fascista.
1975 — Independência de Angola.
CRONOLOGIA DOS GOVERNADORES DE ANGOLA

NATÁRIO

75 - 1589 Paulo Dias de Novais

VERNADORES

589-1591 Luís Serrão


91-1592 André Ferreira Pereira
92-1593 Francisco de Almeida
593-1594 Jerónimo de Almeida
1594-1602 João Furtado de Mendonça
1602-1603 João Rodrigues Coutinho
1603-1606 Manuel Cerveira Pereira (1.0 mandato)
1607-1611 Manuel Pereira Forjaz
1611-1615 Bento Banha Cardoso
1615-1617 Manuel Cerveira Pereira (2.° mandato)
1617-1621 Luís Mendes de Vasconcelos
1621-1623 João Correia de Sousa
1623 Pedro de Sousa Coelho
1623-1624 Simão de Mascarenhas
1624-1630 Fernão de Sousa
1630-1635 Manuel Pereira Coutinho
1635-1639 Francisco de Vasconcelos da Cunha
1639-1645 Pedro César de Meneses
1645-1646 Francisco de Souto-Maior
1646-1648 (Junta)
1648-1651 Salvador Correia de Sá e Benevides
1651-1653 Rodrigo de Miranda Henriques
1653-1655 Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha
1655-1658 Luís Mendes de Sousa Chichorro
1658-1661 João Fernandes Vieira
1661-1666 André Vidal de Negreiros
1666-1667 Tristão da Cunha
1667-1669 (Juntas)

708 709
1669-1676 Francisco de Távora
1676-1680 VERNADORES-GERAIS
Aires de Saldanha de Sousa e Meneses
1680-1684 João da Silva e Sousa
1684-1688 837-1839 Manuel Bernardo Vidal
Luís Lobo da Silva
1688-1691 João de Lencastre 839 António Manuel de Noronha
1691-1694 839-1842 Manuel Eleutério Malheiro
Gonçalo da Costa de Alcáçova Carneiro de Meneses
1694-1697 842-1843 José Xavier Bressane Leite
Henrique Jacques de Magalhães
1697-1701 Luís César de Meneses 844-1845 Lourenço Germack Possolo
1701-1703 845-1848 Pedro Alexandrino da Cunha
Bernardino de Távora de Sousa Tavares
1703-1705 (Junta) 848-1851 Adrião da Silveira Pinto
1705-1709 Lourenço de Almada 851-1853 António Sérgio de Sousa
1709-1713 853 António Ricardo Graça
António de Saldanha de Albuquerque Castro e Ribafria
1713-1717 João Manuel de Noronha 853-1854 Miguel Ximenes Rodrigues Sandoval de Castro e Viegas,
1717-1722 Henrique de Figueiredo e Alarcão visconde de Pinheiro
1722-1725 António de Albuquerque Coelho de Carvalho 1854-1860 José Rodrigues Coelho de Amaral (1.° mandato)
1725-1726 José Carvalho da Costa 860-1861 Carlos Augusto Franco
1726-1732 Paulo Caetano de Albuquerque 861-1862 Sebastião Lopes de Calheiros e Meneses
1733-1738 Rodrigo César de Meneses 1862-1865 José Baptista de Andrade (1.° mandato)
1738-1748 João Jacques de Magalhães 866-1868 Francisco António Golçalves Cardoso
1749-1753 António de Almeida Soares Portugal de Alarcão Eça e Melo, 1869-1870 José Rodrigues Coelho de Amaral (2.° mandato)
marquês do Lavradio 1870-1873 José Maria da Ponte e Horta
1753-1758 António Álvares da Cunha 1873-1876 José Baptista de Andrade (2.° mandato)
1758-1764 António de Vasconcelos 1876-1878 Caetano Alexandre de Almeida e Albuquerque
1764-1772 Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho 1878-1880 Vasco Guedes de Carvalho e Meneses
1772-1779 António de Lencastre 1880-1882 António Eleutério Dantas
1779-1782 João Gonçalo da Câmara 1882-1886 Francisco Joaquim Ferreira do Amaral
1782-1784 (Juntas) 1886-1891 Guilherme Augusto de Brito Capello (1.° mandato)
1784-1790 José de Almeida e Vasconcelos Soveral Carvalho e Albergaria, 1891-1893 Jaime Lobo Brito Godins
barão de Moçâmedes 1893-1896 Álvaro da Costa Ferreira
1790-1797 Manuel de Almeida Vasconcelos 1896-1897 Guilherme Augusto de Brito Capello (2.° mandato)
1797-1802 Miguel António de Melo 1897-1900 António Duarte Ramada Curto (1.° mandato)
1802-1806 Fernando António de Noronha 1900-1903 Francisco Xavier Cabral de Oliveira Moncada
1807-1810 António de Saldanha da Gama 1903-1904 Eduardo Augusto Ferreira da Costa (1.° mandato)
1810-1816 José de Oliveira Barbosa 1904 Custódio Miguel de Borja
1816-1819 Luís da Mota Fêo e Torres António Duarte Ramada Curto (2.° mandato)
1904-1906
1819-1821 Manuel Vieira Tovar de Albuquerque • Eduardo Augusto Ferreira da Costa (2.° mandato)
1906-1907
1821-1822 Joaquim Inácio de Lima 1907-1909 Henrique Mitchel de Paiva Couceiro
1822-1823 (Junta)
1909 Álvaro António da Costa Ferreira
1823 Cristóvão Avelino Dias
1824-1829 1909-1910 José Augusto Alves Roçadas
Nicolau de Abreu Castelo Branco 1910-1911 Caetano Francisco Cláudio Eugénio Gonçalves
1829-1834 José Maria de Sousa Macedo Almeida e Vasconcelos, 1911-1912 Manuel Maria Coelho
barão de Santa Comba Dão José Mendes Ribeiro Norton de Mattos (1.° mandato)
1834-1836 (Junta) 1912-1915
1836 1915-1916 António Júlio da Costa Pereira de Eça
Domingos de Saldanha de Oliveira Daun
1916-1917 Pedro Francisco Massano de Amorim
710 711
18-1919 o a osta Morais
1919-1920 Filomeno da Câmara Melo Cabral (1.0 mandato)
Francisco Carlos do Amaral Reis
GOVERNA
DORES-GERAIS / ALTOS-COMISSÁRIOS

1921-1924
1924 José Mendes Ribeiro Norton de Mattos (2.° mandato)
1924-1925 João Augusto Crispiniano Soares
1925-1926 Antero Tavares de Carvalho
1926-1928 Francisco Cunha Rego Chaves
1928-1929 António Vicente Ferreira
1929-1930 António Damas Mora
1930-1931 Filomeno da Câmara Melo Cabral (2.° mandato)
1931-1934 José Dionísio Carneiro Sousa Faro
1934-1935 Eduardo Ferreira Viana
1935-1939 Júlio Garcês Lencastre
1939-1941 António Lopes Mateus DOCUMENTOS ANEXOS
1941-1942 Manuel da Cunha e Costa Marques Mano
1942-1943 Abel de Abreu Souto-Maior
1943 Álvaro de Freitas Morna
1943-1947 Manuel Pereira Figueira
1947 Vasco Lopes Alves
1947-1955 Fernando Falcão Pacheco Mena
1956-1959 José Agapito da Silva Carvalho
1960-1961 Horácio José de Sá Viana Rebelo
1961-1962 Álvaro Rodrigues da Silva Tavares
1962-1966 Venâncio Augusto Deslandes
1966-1972 Silvino Silvério Marques (1. mandato)
1972-1974 Camilo Augusto de Miranda Rebocho Vaz
1974 (Julho) Fernando Augusto de Santos e Castro
1974 (Julho) Silvino Silvério Marques (2.° mandato)
António Rosa Coutinho (sucessivamente, Presidente da Junta Militar,
1975 (Jan.-Ag.) Presidente do Governo Provisório, Alto-Comissário)
1975 (Agosto) António Silva Cardoso (Alto-Comissário)
1975 (Agosto) Ernesto Ferreira de Macedo (Alto-Comissário)
Leonel Alexandre Gomes Cardoso (Altei-Comissário)

712
MAGYAR, Ladislau ou Ladislas (Lázlo)
Reisen in Süd-Afrika den jahren 1849 bis 1857.
Neldeln, Kraus Reprint, 1973 (1. a edição húngara: 1859), Anhang, Anexo, Capí-
lo V (1).

PREPARATIVOS PARA A VIAGEM AOS PAÍSES DO INTERIOR (2)

Passou mais de um ano desde que me fixei no Bihé. Estive sempre de óptima saúde
e aproveitei o tempo o melhor possível. Longe do ruído do mundo civilizado, dediquei-
me atenta e exclusivamente ao estudo da língua e dos costumes dos povos em redor,
até que me julguei capaz de fazer viagens para as terras mais longínquas da África
Austral.
A circunstância de ter estabelecido um parentesco consanguíneo com o soberano do
país foi para mim, do ponto de vista material, mais desvantajoso do que proveitoso; mas
do ponto de vista intelectual essa circunstância foi-me certamente útil. A consequência
deste passo foi que os indígenas me demonstravam respeito geral // e firme confiança e
isso foi proveitoso para a execução do meu plano.
As caravanas que viajam para os territórios distantes do interior costumam partir
no começo da estação seca, e aqueles que querem tomar parte nelas começam alguns
meses antes os preparativos necessários. Logo que acabam os seus preparativos e após
terem posto em ordem os assuntos domésticos com vista à longa ausência, partem e
reúnem-se no dia combinado, no sítio designado, geralmente entre o Kokéma e o
Koanza. Ali, as pessoas reunidas esperam alguns dias até estarem no local todos os
membros da caravana, que vêm de diversas regiões e chegam pouco a pouco. Após o
• que, sob a orientação de um chefe de caravana já conhecido e de confiança, eles iniciam
a viagem.
Eu enviara os produtos adquiridos no Bihé para Benguela, com a primeira caravana,
e tinha mandado comprar em troca daqueles, produtos europeus que ainda me faziam
falta. Depois de ter obtido estas novas provisões, fiz logo os preparativos para a futura

Utilizámos uma tradução portuguesa em via de publicação, em Luanda. Essa tradução foi-nos
amavelmente cedida pela Dr.' Maria da Conceição Neto, investigadora do AHNA.
Pp. 7 a 12 da referida tradução.

715
viagem. Queria viajar, o mais longe possível, pela África Austral e pensava estend
gradualmente as minhas caminhadas, respeitando uma certa ordem, de Norte para S mesmo a vida, então ele próprio — se ficar vivo — ou os seus familiares exigirão
indemnização ou um preço de sangue àquele que o convidara para a viagem,
Por isso empenhei-me na organização de uma caravana que estivesse interessada e
viajar para os países situados na direcção nordeste. erindo o seu nome, apresentando a queixa de que seria ele o culpado do prejuízo
frido ou da morte; pois se não tivesse convidado a pessoa em questão mencionando
As caravanas do Bihé tinham desistido, há alguns anos, das viagens para o
territórios dos Moropu [Lunda], situados a nordeste, porque não puderam concorrer, p eu nome, esta teria ficado em casa.
Desta forma, a notícia do planeado empreendimento depressa se espalha por todo o
muito tempo, com os Bangala (negociantes indígenas) de Pungo Andongo e Kassandsc
s. Se encontrar eco, os interessados na viagem, vindos de todos os lados, juntam-se em
[Kasanje] que visitam aqueles países com frequência e que revelam maior conheciment
a do responsável do empreendimento para receber mais pormenores sobre a viagem e
e diligência, tanto no comércio de marfim como na caça aos elefantes. Por isso surgi
a finalidade. Entre as pessoas que aderem a uma tal empresa, os kimbálo ocupam o
entre os habitantes do Bihé e os Bangala, uma grande inveja e os descampados d
meiro lugar; também eles possuem mercadorias, em maior ou menor quantidade, que
Moluva foram frequentemente testemunhas de contendas sangrentas que se verificav erem transportar para o país designado. Geralmente levam também os seus conhecidos
entre caravanas inimigas, quando calhava encontrarem-se. Geralmente, os do Bihé e
liares, para os quais pedem ao responsável do empreendimento carga para transportar.
menos numerosos e várias vezes ficaram em desvantagem. Por fim, desistiram das tas cargas de mercadorias são-lhes entregues logo que concordam com o salário de
viagens para esses países e deram às suas caravanas uma // direcção leste e sudeste para gador que lhes é oferecido; a responsabilidade tem-na o kimbálo que responde por
não haver encontros com os Bangala demasiado fortes.
s e tem de reparar qualquer prejuízo que resulte do descuido dos trabalhadores. Os
Eu bem sabia disso; mas mesmo assim decidi reanimar os ânimos desfalecidos dos ongo-an-djámba (caçadores de elefantes) ocupam o segundo lugar: estes costumam
Bienos e levá-los a perder o medo ao inimigo. Se o conseguisse, podia ter a certeza de ompanhar a caravana até ao local de destino e enquanto ela ali permanece — pois as
que seria fácil para mim convencer essa gente, que se distingue por uma certa ganância vanas que viajam até aos países distantes do interior ficam geralmente um ano inteiro
e um certo gosto pela aventura, a frequentar de novo aqueles territórios dos quais tinham ra da sua terra — os seus membros dividem-se em grupos e vão à caça de elefantes;
desistido por medo dos Bangala. Também sabia que no interior da África a caravana pois regressam, com o marfim obtido, à caravana, com a qual voltam para casa. Se
chefiada por um Europeu era mais temida e respeitada; por isso esperava firmemente tiveram muito marfim, vendem uma parte, já durante a viagem, aos kimbálo, obtendo
que os do Bihé não deixariam de aderir com confiança incondicional à minha proposta. troca outras mercadorias. Os caçadores de elefantes, em geral, trazem como carga apenas
Quem pretende organizar uma caravana para uma terra qualquer, reúne primeira- necessário em armas e munições; não levam consigo nem mercadorias, nem outro tipo
mente a sua própria gente de maior importância no
jango da sua libáta e informa-a da carga, por conseguinte só são úteis à caravana porque a sua presença lhe proporciona
sua intenção. As pessoas reunidas, entre as quais o
kissongo desempenha evidentemente s força e segurança. //
o papel principal, reflectem então no plano que lhes foi proposto, sob todos os aspectos, Os carregadores contratados distribuem e embalam as mercadorias como já descrevi,
calculam o proveito e o lucro que se pode esperar do empreendimento planeado e s deixam-nas ainda em casa do proprietário até o chefe convocar todos os membros
ponderam os factores favoráveis e os obstáculos que tornariam o empreendimento ou caravana no dia previamente fixado para a realização do sacrifício da viagem. Os
realizável ou impossível. Posto o que, conforme as circunstâncias, ou dão o seu mbros da caravana aparecem então armados e festivamente vestidos, juntam-se no
consentimento, ou recusam tomar parte no empreendimento. No primeiro caso, átio exterior da libata e sentam-se, em círculo no chão. Então o chefe planta a bandeira
comprometem-se logo a querer apoiar, com todas as suas forças, a realização da meio desse círculo, acompanhado por numerosas salvas de honra, e manda colocar
caravana; no segundo, abandonam o jango bs kimbango perto da bandeira. Estes ficam abertos para que toda a gente possa
sem dizer palavra e dão assim a entender
ao autor do plano que deve desistir absolutamente desse plano, ou pelo menos que o Verificar com os próprios olhos que os carregamentos estão em bom estado. Ao ver os
deve modificar bastante. fcimbango, toda a gente reunida irrompe numa gritaria de alegria, dizendo repetidas
Assim sendo, se os membros da família (kikumba) vezes: Ulu! Ulu!
dão o consentimento, são obrigados Depois, o chefe ocupa o seu lugar e expõe num longo e solene discurso a finalidade
a trabalhar para reunir o pessoal da caravana. Para este fim, eles juntamente com os
seus amigos e parentes constituem vários grupos, percorrem o país e anunciam em todos da viagem, convidando os ouvintes a apresentar abertamente as suas observações e
os jango
que este ou aquele (tem de ser um homem respeitado e abastado) deseja levar objecções, se as houver: pois proporcionar-lhe-ia grande satisfação e sossego se pudesse
mercadorias para este ou aquele território, procurando por isso carregadores. Não concluir das suas declarações que tomaram a resolução de fazer a viagem não para lhe
devem dizer mais nada, e não devem sobretudo convidar ninguém, mencionando o seu (agradar, mas por iniciativa própria e com vista ao proveito próprio. Geralmente, a gente
nome, para se juntar à caravana. A razão é que se aquele que fora convidado desta reunida manifesta a sua concordância e o seu contentamento por uma gritaria geral:
forma se junta // de facto à caravana, sofrendo por acaso uma perda durante a viagem, «Otyiri! hámokomó! hetyekotyo!» (Verdade! Certo! Muito bem!). Então, um porta-voz
716 avança e declara ao chefe, em nome das pessoas reunidas: que tomaram a decisão da

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viagem absolutamente de livre vontade e por escolha própria; que o reconhecem c
seu chefe e que lhe vão obedecer resp
ter um co eitosamente; além disso, prometem que qu
mportamento viril no perigo, prestar auxílio uns aos outros e até que qu
morrer pelo outro se tal for necessário.
Em seguida começa a tarefa do kimbanda
que até aí apenas assistia c alado.
abate então o boi destinado ao sacrifício, tira-lhe as entranhas,
operação com um murmúrio in acompanhando
compreensível e anuncia, em voz alta e solene, o
que a assistência escuta atentamente. Geralmente, o organizador obteve já, com oráçai
presentes, o prévio acordo do kimbanda, ' informação acerca dos Moluva ou Morupuu e dos Estados Lobal, pelo
de modo que o oráculo é quase se
favorável. Após a proclamação do oráculo, o kimbanda çorrespondente Lászlo Magyar (*)
besunta os rostos e os b
do chefe e dos membros notáveis // da caravana com o sangue do animal abatido,
-lhes, por fim, o sinal de impemba no peito e dá assim o aval à partida da carav. Outubro de 1859
As solenidades terminam com comida e bebida, com dança e outros divertimen
Por fim, os carregadores põem aos ombros os fardos, já antecipadamente r. David Livingstone, um missionário de Londres, merece ser plenamente
e vão com eles para casa. Daí dirigem-se ao kilombo e mbalad
montado num local predetermin 'do entre os mais conhecidos viajantes de África que, nos últimos anos, fizeram
e esperam ali a chegada do chefe, no dia seguinte, dando o sinal para a de grande valor, que muito alargaram os conhecimentos geográficos.
p artida.
Também eu organizei da maneira descrita a caravana com a qual queria prosse o a que as ideias e resultados das viagens de Livingstone são melhor conhecidos
a minha viagem. Mandei também participar ao soberano o meu projecto — mais do que de mim próprio não pretendo referir-me a eles de maneira muito
cortesia do que por obrigação — e pedi o seu c onsentimento apenas pretendo descrever sucintamente as partes ou territórios de Morupuu ou
e xpressamente, porq
minha mulher queria a todo o custo viajar comigo. O soberano mandou-me dizer pel ( 1 ), bem como os estados do Lobal, onde as (suas) rotas cruzam as minhas —
meus mensageiros que aceitara com gratidão os presentes enviados; além disso las extraídas da segunda parte do meu livro de viagens. Vou pôr em evidência
c omunica
que estava de acordo com o meu projecto, desejando-me bons resultados. Quanto ações erradas fornecidas pelo eminente viajante inglês acerca dos mencionados
minha mulher, podia levá-la ou deixá-la em casa, a meu bel-prazer. Que ele já não ti isto é, acerca da sua situação geográfica e do verdadeiro nome dos rios e
nem poder nem direito de dispor da sua filha depois de ela se ter tornado minha espo ão do seu curso.
Mas era sua convicção que a mulher devia servir fielmente o marido em todas tornar o assunto mais claro, tomámos em consideração seis graus (8-13) de
situações, por conseguinte achava bem que a minha esposa quisesse acompanhar-m e e 8 graus (17-25) de longitude, onde o limite a oeste atinge o Koanza, a este
além disso ela tinha escravos bastantes, os quais a podiam transportar na tipóia, o Liambegysi; a norte, o Luola desagua no Kaszábi enquanto, em direcção a sul,
modo que ela não me iria causar atrasos nem criar obstáculos na viagem. Também n gue através da província de Bundá ou Lucsazi. Irei descrever as províncias das
-
seria exposta a perigos, pois não era provável que os Ganguela ousassem atacar u s mencionadas, de oeste para leste, e só aqui e além serão feitas algumas pequenas
caravana chefiada e apoiada por um branco. Marquei a data para a partida da caravan ações sobre assuntos precisos.
a qual estava a ser preparada já há meses, para o princípio do mês de Maio, no an artindo do Atlântico em direcção a leste, ao longo de alguns graus, levo os meus
de 1850, s para o interior de África, deixando o estado de Bihé, atravessando o rio Koanza, e
e aguardei o futuro entregando-me completamente à Providência divina, co
entusiasmada esperança. ndo as suas margens, chega-se à província de Gym-bandior Kim-bandi ( 2). As suas
eiras são os estados Ma-song a norte, a leste uma vasta e inabitada floresta virgem
ada Olo-vihenda, que o separa das províncias de Kibokoe ou Gyiokoe, a sul os povos
buela do estado Banko-akanuka e, finalmente, a oeste o rio Kwanza.

( l') Trata-se do primeiro texto enviado por Magyar à Academia das Ciências da Hungria, de que
autor era membro correspondente. Publicado em 1859, no Bulletin de l'Académie des Sciences de
ngrie, XIX, XI, pp. 921-941, o texto, aqui traduzido pela primeira vez, descreve a viagem de Magyar
e o Bié à Lunda do Mwatyanvua (1850-1851). Agradeço a Joze Hradil, Luís Tavares, Inês de Castro
enriques e sobretudo Pedro de Castro Henriques que traduziram o original húngaro, primeiro em inglês
radil) e depois em português.
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A região é muito montanhosa; na direcção este, as montanhas vão-se elevando c e é no norte. A floresta virgem separa os territórios de diversos povos, que vivem
vez mais e possuem florestas densas de média altura. A terra é fértil, composta por are
argilosa, preta e vermelha. erra permanente, estando dessa forma bastante afastados uns dos outros; o contacto
Os seus rios: o Kuiba ou Kuiva, esses povos é muito raro, facto também atestado pela quase ausência de caminhos
que nasce a leste, na floresta virgem Olovihen
e está ligado a rios mais pequenos, vindos do norte e do sul, o que o transforma nu vés da floresta virgem.
rio navegável. Este rio, formando bonitos meandros, divide a província em duas p A floresta Olo-vihenda é quase completamente desabitada; alguns caçadores de
e corre até ao Kwanza. Os afluentes do Kuiba são o Bem-dika, antes e recolectores de mel aí vagueiam, vindos das terras de Gyiokoe e Bunda, além
o Kotia, o Vindika ou Szi-sze, o Kuima o Kambále ou Umbál
e o Karima. tribos Ka-szekelor, que nas zonas do sul são chamadas mu-kankála (3), que sobem
O 'Kujo, no sudoeste, com origem nos prados pantanosos do planalto de bunda, zonas do sul em direcção a norte, sendo completamente nómadas.
na estação das chuvas possui um caudal considerável, mas na estação seca é pouc Por outro lado, existem muitos animais selvagens. O leão exerce o seu terrível poder
profundo e corre lentamente até ao Kwanza. os animais do seu território; os elefantes e os rinocerontes também podem viver
Os diferentes povos da província de Kim-bandi, em número proporcionalmen boas condições nessas áreas ricas em espécies vegetais, tanto mais que as florestas
elevado, estão sob a autoridade dos chefes tribais, chamados muánángá, 's densas são cortadas de vez em quando por clareiras de várias dimensões.
ou menos independentes uns dos outros. que são mai
O viajante é invadido por várias emoções quando caminha sob a constante sombra
Os chefados principais são:
ra das árvores de grande porte, num mundo rico em mudanças naturais — mas cedo
Kujo, no lugar com o mesmo nome, instalado nas terras altas da margem leste d
ilêncio sepulcral desperta na sua alma sentimentos de tristeza e depressão. A cansativa
Kwanza, de onde se dispõe de uma visão notável do rio próximo, que aí corre e notonia é apenas interrompida aqui e ali, por clareiras, cheias de erva e de águas
meandros, assim como das pastagens ali existentes, rodeadas de densos bosques. Kuj as e cristalinas que atravessam a zona; estas clareiras animam-se com os suaves
é um dos mais conhecidos pontos de travessia do rio.
Kariongo, que tem o mesmo nome que a capital muá-nángána, no coração vimentos dos bandos de animais selvagens que aí pastam.
da A área é ondulada, numa mutação de altitudes em direcção a leste, que parecem
floresta virgem Olovihenda, está situado na margem leste do Kuiva com numerosos
entrar-se junto à província de Gyiokoe, formando no planalto sul-africano uma das
povos; era o local onde as caravanas, no seu caminho para leste, se reabasteciam de
alimentos; este percurso permitia-lhes cortar caminho através de lugares desabitados m conhecidas elevações (culminatioi), de onde corre um grande número de cursos de
que podiam atravessar em alguns dias. a tanto para oeste como para leste. Os europeus não poderiam sequer imaginar que
Na-Szénda, interior de África pudesse existir uma tão profusa e permanente quantidade de água
não muito distante de Kuiva, no coração de uma fértil planície, era a
sede da única duquesa desta província, usando o mesmo nome no desempenho da sua ue essas terras altas, cobertas com grandes florestas, pudessem ser irrigadas em todas
autoridade de chefe. direcções. Por ali correm pequenos e grandes rios e linhas de água. As margens, onde
Angoluka ou Anguru lamaçais e pântanos, podem constituir um sério obstáculo até para os caminhantes
é o ponto de travessia do rio situado no extremo norte da
margem oriental do Kwanza, utilizado pelas caravanas provindas do estado do Bihé dividuais) e seria quase impossível a passagem de caravanas com animais.
para atravessar o rio. Os seus habitantes são os mais combativos e esta é Os numerosos rios deste elevado planalto correm tanto para oeste como para leste;
qual parecem dominar outros povos. a razão pela
último citado corre para o Oceano Indico. Aqueles que já mencionámos integram os
O povo da província de Giambándi são agricultores activos, que plantam mandioca guintes:
(Jatropa manihot) em abundância, masambála
de pisorgum) (Rea minima), masángo (uma espécie Kwango, um dos afluentes do Zaire, o Kuiva e o Vindika ou Si-se.
e, algum milho. Artigos comerciais: muita cera, algum marfim e escravos. Daqueles que correm para leste, podemos nomear:
Animais domésticos: muito gado vacum, carneiros, cabras e porcos; entre as aves imenso Kaszabi ou Kasavi, o qual, com as suas fantásticas ondas e grandiosas
domésticas apenas há galinhas em abundância.
rvas, provocadas por vários cursos de água que nele desaguam, corre para leste
A sua religião consiste num feiticismo estúpido; os seres bons e os maus são
avés da parte norte da província de Moluva; o Luge-bungo, que separa o estado
homenageados com muitos rituais repugnantes. A poligamia e a circuncisão são, em Gyiokoe dos Bunda, e, no sentido descendente, o território Lobal de Zambuella, corre
geral, práticas respeitadas. São em geral desconfiados, mentirosos, vis e desonestos,
embora o dissimulem perante desconhecidos. até ao Liambaje, um rio que vem do norte e corre em direcção ao sul; este rio permite
Para leste da província de Gyimbandi, chegamos à floresta virgem de Olovihenda, a navegação numa grande distância; o Lume corre de noroeste para o leste e desagua
no Lunge-bungo; as embarcações navegam apenas no seu troço inferior, numa distância
sem habitantes, que, tal como tinha calculado, se estende por alguns graus, do norte
para o sul, até ao rio Kubango [Tingyshe]. A extensão dessa floresta, de oeste a este, de cerca de 20 milhas; o Kuitu (um Zambuella), que corre do norte para sul através
é diferente, sendo mais pequena para norte — são necessários seis, sete dias de marcha das províncias do povo selvagem de Bango-akanuka e Lulu, e que desagua no Kubango
para a atravessar — ao passo que, para sul, é cada vez maior, sendo mesmo o dobro no sítio de Indiriko, a um dia e meio de caminho da residência de Libebe (o chefe
Mukurusu). O Kuitu é navegável durante todo o ano.
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Deixemos a monotonia da região de Olo-vihenda e avancemos para a província
Gyiokoe, habitada por povos caóticos e confusos, onde fomos agradavelmen diatamente a multa (apopokamilonga); se alguém não o pagar, eles não hesitam,
surpreendidos pelo cantar dos galos, após sete dias de viagem por terras desabitad nforme as circunstâncias, em atacá-lo aberta ou insidiosamente com armas, até o
e abandonadas. tar. Eu próprio estive por diversas vezes entre eles e, conhecendo a sua natureza
Kiboko, como é chamado pelos Kimbudas ou onfiada e dada a feitiçarias, sempre prontos ao roubo, fiz os possíveis para viver
Gyikoe, como é conhecido entre
nativos, situa-se entre 10 e 13 graus de latitude sul e 20 a 24 graus de longitude oes paz com eles, mas, apesar disso, tive de lutar uma vez contra eles com os meus 400
(Greenwich). As fronteiras são, a norte, as terras Szingyse e Manzaza Moluva, a lest panheiros armados — tendo ficado ferido um grande número de homens de ambos
Lobal, a sul; a província Bunda ou Lucsazi e, por fim, a oeste a floresta virgem 01 lados, e eu próprio tive uma coxa perigosamente atingida por uma seta.
vihenda que separa aquele povo do Kimbandi. Por outro lado, os habitantes de Kibokoe possuem algumas características positivas:
Kibokoe é, em geral, um tanto acidentado, mesmo montanhoso; todas as su tivam activamente os campos, em especial mandioca, masambála, masango, lukó
montanhas se estendem em direcção a leste perdendo altitude e, por fim, aplanam-s a espécie de pisorgum, de cor vermelha), e nos últimos anos obtiveram excelentes
completamente no limiar da província de Lobal. A superfície é totalmente coberta p ultados com o tabaco; são corajosos caçadores de elefantes e são geralmente bem
e
altas e densas florestas virgens. As suas zonas montanhosas semicirculares, ordena hecidos como ferreiros (5).
damente sinuosas, são separadas umas das outras por estreitos mas profundos Organizam as suas caçadas aos elefantes em grupos, e podemos encontrá-los
húmidos vales, onde existem prados pantanosos de onde correm lentamente cursos d smo a grandes distâncias, nas províncias junto de Moluva e do Riambégysi ou junto
água clara e cristalina. O clima é rio Liambáje, onde eles mostram a sua habilidade de caçadores de elefantes. A troco
temperado, mesmo no Verão. Se se puser u
termómetro ao ar livre, numa noite seca de inverno, ele indica frequentemente marfim eles conseguem preciosas mercadorias europeias ou compram escravos. A
temperatura de congelação ( 4 ). Os cursos de água que correm em todas as direcçõe ligamia e a circuncisão são práticas correntes.
desaguam nos rios Kasábi, Luge-bungo, Luena e Artigos de comércio: cera em muito grande quantidade, a melhor da África meridional,
Lumegysi; estes dois últimos
nascem. Há também outros que nascem em Kibokoe: o Kiapela, os dois ontra-se em grande quantidade nos bosques densos. Extrai-se dos favos das abelhas
o Lu-zangala, o Lu-angrika, Luati, o Salem,
os quais são todos mais pequenos mas, durante os ano agens que são, ao mesmo tempo, destruídas pelo fogo. Além disso, têm ainda alguns
chuvosos, carregam uma grande quantidade de água; após percursos mais ou menos tes de elefante e um reduzido número de escravos. Só vendem a sua própria gente
longos, associam-se aos outros 4 rios principais já mencionados. Dada a enorme casos excepcionais. Como animais domésticos possuem um número deveras reduzido
quantidade de água que, em qualquer altura do ano, inunda essa província situada á animais com cornos, um grande número de cabras e de porcos e um número muito
tal altitude, poder-se-ia dar a Kibokoe um nome tonitruante: a mãe das águas sul- vado de galinhas magras. Entre os produtos naturais, deve mencionar-se em primeiro
africanas e, se quisermos dizer que essas grandes colinas, que se precipitam umas sobre ar o ferro, que não é pior que o dos suecos.
as outras, são montanhas, poderemos chamar a esse local do planalto sul-africano: Deixando a província de Kibokoe, e avançando mais em direcção a leste, o viajante
Helvetia.
a terra decair suavemente até se tornar, junto dos estados de Moluva e Lobal, num
Comparando a densidade populacional dessa província com a sua área, poder-se-á e encaixado, limitado a norte por arcos montanhosos, onde corre também o belo rio
dizer sem risco de erro que Kibokoe é mais densamente povoada do que qualquer outra abi, com as suas ondas murmurantes, no seu trajecto para nordeste. Seguindo pelo
província da África interior. Os habitantes de Kibokoe obedecem ao poder popular de fundo vale deste rio chegamos ao maior estado do sul de África: Moluva ou Morupuu,
alguns chefes independentes chamados muánángana. do o território de Lobal a sul, que possui fronteiras com aquele até atingir o rio
Os mais poderosos são: Kanyika,
a noroeste da província; Dumba, a norte; Pehu,
a meio da região; e Diva-Kala, perto da begyshi. As duas regiões referidas constituem o assunto principal a que quero
confluência do rio Lume com o Luge-bungo. erir; começarei pelo estado de Moluva e passarei depois ao estado de Lobal, de
As principais aglomerações da província — se é que podemos chamar aglomerações eira a tomar mais evidentes os erros cometidos pelo Dr. Livingstone no que se refere
às feias e escondidas cabanas de colmo — são os locais de residência dos mencionados sição geográfica e às condições hidrográficas.
chefes que usam o mesmo nome, reunindo cada uma cerca de mil pessoas; a esse número As verdadeiras fronteiras dos extensos estados Moluva não são muito claras nem
há que adicionar também todas as cabanas dispersas em redor com campos cultivados. uer conhecidas daqueles que actualmente as descrevem; e há ainda mais, eles mal
Os habitantes da província são desconfiados, vis, mentirosos e extremamente dados ecem esse estado, chegando a ponto de confundir o seu nome com o de Kazembe.
a feitiçarias; estão sempre prontos a roubar os estrangeiros e não manifestam a mínima vem conhecer-se os dois nomes e os dois estados, não se podendo confundir um com
ideia de hospitalidade, motivo pelo qual os estrangeiros terão de ser vigilantes, de utro. O estado de Moluva fica a cerca de 30 dias de marcha, através de um território
maneira a evitarem ser vítimas de armadilhas, tanto mais que a maior parte dos habitantes sua maior parte vazio e desabitado, do estado de Kazembe, que fica situado a leste
adeptos da feitiçaria consideram todos os estranhos movimentos dos estrangeiros como
Moluva. Há cerca de 10 anos, Kazembe reconheceu a superioridade de Moluva, a
algo que pode acarretar desgraça e, com esse pretexto, forçam a vítima a pagar
em paga impostos anualmente. Actualmente a situação alterou-se completamente.
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As pessoas naturais desse estado designam-se a si próprias com nome nacional O Riambegyshi ou Liabaje nasce nas grandes pradarias pantanosas do distrito de
Moluva; ao passo que Moropuu terá, provavelmente, sido criado por geógrafos zembe-Mutanda (6), situado no centro do estado, e corre de norte para sul, inflectindo
q
trocaram o nome Moluva. O estado Moluva estende-se entre 4 e 13 graus de latitude leste no final do seu curso. Penso que ele forma um grande delta nas margens do
e entre 21 e 26 graus de longitude este. Na verdade, não sei o nome das suas fronte' lemani e desagua no Oceano Índico.
a norte; de acordo com algumas informações, há diferentes povos antropófagos ft
O Kifumagysi ou Csi-fumagyse, correndo através da grande planície Inamuana,
fronteiras do estado, nos territórios de Kauhanda e Mu-bumbo; a leste há fronteiras co e nos lagos do mesmo nome. Este rio corre de oeste para leste, desaguando no
os estados Muene-Kanika e Kazembe, e este último como já referi, está separado daque 'ambegysi. O Luttembe e Dilolo correm do norte, enquanto o vagaroso e pantanoso
por uma imensa floresta virgem não habitada; a sul faz fronteira com o estado de Lob
-áti provém do sul e os três desaguam no Kifumagysi. O Kila-Metunda, proveniente
até ao rio Riambegyshi, enquanto mais adiante se encontram Kapenda e Mu-kongoto o norte, desagua no Riambegysi. Na estação das chuvas, todos estes rios aumentam
tal como essas províncias são geralmente chamadas, as províncias de Lui-banda; e n seu caudal e, nos meses de Março e Abril, inundam a terra com as suas enchentes.
confins do ocidente situam-se os estados chamados de Ma-hungo, Singyse e Gyiok De modo geral, pode dizer-se que não existem grandes lagos permanentes no estado
De uma maneira geral, o estado de Moluva é montanhoso, a norte e a les
Moluva, dado que os chamados lagos Dilolo e Kifumagysi perdem a maior parte da
fortemente ondulado e coberto de densas florestas; as montanhas, igualmente ondulad a na estação seca, tornando-se numa espécie de prados pantanosos apenas cobertos
atingem os pontos mais elevados a sul, prolongando-se pela província de juncos e capim, alto e inclinado. No entanto, produzem uma grande quantidade de
Manaza
chegando ao distrito de Csalla; a partir daqui, e em direcção a leste e a sul, a altitu ixes diferentes durante o ano, em especial peixes de água fria, lúcios, carpas e
vai decrescendo em declive suave, até se tornar, nos distritos de Katenda e Katema qu assius. Os habitantes pescam-nos servindo-se de cestos abertos de ambos os lados;
completamente desprovidos de bosques, numa planície ricamente coberta de erva, qu am o peixe e fazem com ele um bom negócio. O peixe seco é um pouco ácido,
se prolonga ainda do rio Luena ao rio Lungebungo, pelo que esses locais estão sujeito ssuindo um sabor desagradável, como se o peixe estivesse insosso.
a cheias anuais.
O clima do estado é agradável e temperado de tal forma que os europeus facilmente
A terra é em geral ligeiramente arenosa, com maior ou menor quantidade de húm adaptam. É muito raro que durante os meses chuvosos de Verão a temperatura suba
sendo os campos mais ou menos férteis. Mas podemos falar de abundância de água em to ima de 26 graus R. Durante o inverno, sem chuvas, a temperatura ao meio-dia gira
a parte. O estado é percorrido por diversos rios. Os mais importantes são:
O Kasabi volta de 20 graus e à noite é de 8 graus, por vezes menos, excepto nas regiões
que, como já vimos, corre de oeste para leste através da província d tanosas. Nos locais planos onde se verificam cheias periódicas são frequentes os
Gyiokoe. Nele vão desaguar vários outros pequenos e grandes rios transformando
mores, febres e disenterias.
primeiro num grande rio; não muito longe de Katemba, cinco milhas acima, o Kasab Animais domésticos: há pouco gado vacum e carneiros, mas uma grande quantidade
corre entre dois rochedos que, encostados um ao outro, originam uma queda de água
chamada Mueva; cabras e de galinhas. Não há suínos. Entre os animais selvagens contam-se muitos
depois, fazendo uma curva, dirige-se para norte; daí vira novamente efantes; nas zonas a sul, especialmente à volta dos prados pantanosos de Dilolo, vi
para leste e, como me disseram os nativos, no seu troço inferior a largura aumenta a grande quantidade de enormes serpentes — uma dezena delas encontrava-se
várias milhas, tornando-se calmo e navegável, sendo perigoso apenas em alguns troços
reguiçosamente estendida no capim — e os meus companheiros, em vez de fugirem
devido às grandes ondas que se formam. Tenho algumas razões para acreditar que ele
ugnados, apanharam-nas e comeram vorazmente o saboroso assado de cobra.
se torna mais amplo no local onde o grande Mouva (Moura) ou Uhanja entra em
contacto com o lago. Nesta região de minérios, encontra-se frequentemente o ferro, na parte sudeste do
O Lu-lua corre nas planícies do sudeste do estado em direcção a noroeste e desagua stado existem minas ricas em cobre (em barras), onde os nativos são capazes de fundir
limpar o minério e a malaquite; o cobre puro que extraem tem a forma de X e
no Kasabi; dada a sua profundidade, poderia ser utilizado para navegação — excepto erramam-no em pesadas peças de 4-5 libras que podem ser encontradas nos mercados
nas zonas rochosas devido às quedas de água.
O Lu-embo do interior com o nome de muambo.
corre de sudoeste para nordeste, um pouco abaixo de Lu-lua; no distrito O povo Moluva é alto e magro, atraente se comparado com outros povos sul-
de Muadi desagua no rio Kasabi. Apesar das suas quedas de água, o Lu-embo também 'africanos . Mesmo as mulheres são ávidas de luta; para os estranhos eles são hospita-
poderia ser utilizado para navegação ao longo de todo o ano.
O Kasongo, o Manzaza ou Maluvo, o leiros, simpáticos e conversadores. As suas armas: grandes flechas e arcos, uma lança
Kihombo ou Csihombo, com as suas que nunca é envenenada, espadas de folha larga [Kaimpaka], espécie de punhal com
correntes no sentido nordeste, juntam-se ao Lu-embo, enquanto o Lu-atiri,
Sakaruila se lançam no Kasabi. Aqui desaguam também os rios o Lualo, o gume trabalhado; andam com esta arma numa bainha, pendurada no ombro; para
Lu-ana e Chicha, protecção usam um escudo em forma de ovo, feito da pele de diferentes animais. A parte
provindos do sul. Entre todos, só o Kasongo, Manzaza e Kihombo são mais ou menos interior é guarnecida com canas bravas, sendo debruado com pérolas de várias cores.
propícios à navegação; todos os outros apenas só na época das chuvas adquirem um Só se encontram armas de fogo nas regiões a sul, nos locais frequentados pelas caravanas
caudal significativo.
vindas de leste.
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O povo Moluva d PERCURSOS DA MODERNIDADE EM ANGOLA
esenvolveu a sua habilidade e as suas capacidades mentais
que qualquer outro povo no sul de África. C m o humano. O chefe, cujo título é Muati-Janvo, é um proprietário obstinado no que
onseguem fazer uma grande quantidade
coisas de modo perfeito e totalmente original. Fazem, por exemplo, arm refere à vida dos seus súbditos e aos seus bens e, sob o seu chicote de ferro, aqueles
de mais, jóias que decoram com pérolas de diferentes cores e tamanh. os Fazem
as, mas,
an t
entam-se como eternos escravos. É inacreditável a sua obediência animal e a rapidez
as penas coloridas das aves misturadas com pérolas belas pulseiras e colares. Mistur. co m que cumprem as ordens desumanas do seu tirano; deixam-se punir com uma
o cobre de maneira a que fique amarelo, ut
ilizando-o como um delgado fio p mpleta submissão, muitas vezes sem qualquer razão, morrendo com a cabeça esfolada
enrolado no pêlo da cauda de elefantes, fazendo assim bonitas e flexíveis pulseiras ara s cortada, após torturas como a amputação de orelhas, de narizes ou de órgãos
colares chamados minungo ou kinung.
Estes objectos são levados para zonas distant nitais. O súbdito não tem possibilidades de se queixar a ninguém dada a impiedade
do interior do sul de África, para serem vendidos por dinheiro. Por último, tem que
m s suas leis sangrentas; mais ainda: o chefe é adorado como um deus, aproximam-se
encionar as esteiras de junco de diferentes cores usadas pelas famílias ricas para cob
as paredes interiores das suas casas. le rastejando por terra, enquanto, com uma mão-cheia de terra macia friccionam o
ito e os braços, dizendo em voz alta «U-vurie! Vurie Kalombo! Vurie! Muati-Janvo
O povo
Por esta razão,Moluva,
é in que criou muitas regras positivas, possui também uma vida soei rie!» (Salve! Salve o nosso deus! Salve! Muati-Janvo, salve!). Por outro lado a
canibais, não se hoacreditável que sejam ao mesmo tempo estupidamente supersticiosos gnidade do chefe não é hereditária, assumindo esses cargos após a eleição feita pelos
K alumbo, a quem pedem rrorizando com o sacrifício de sangue humano ao seu colérico de
v ingança. As suas erradas loolo cs thaedf oe s)e n.
c onvicções religiosas são criminos
e autorizam que uma rapariga, antes do seu c contra-se dividido em diversas províncias feudais, cada qual com o seu
pai ou irmão. A poligamia e a c asamento, seja desflorada pelo seu própri efe chamado muanangana. Os chefes são independentes uns dos outros, mas todos
ircuncisão também são comuns.
O povo Moluva planta mandioca em quantidade e, em menor s reconhecem a suprema autoridade de Muati-Janvo, pagando-lhe impostos anuais,
masango, luko, amendoim, e, act q uantidade, masamb to é, marfim, escravos, peles de vários animais e diversos produtos europeus e nativos.
ualmente, também tabaco, (depois de ter p
bom bocado de tempo com eles, fui generoso dando-lhes as assado um a corte dos chefes feudais existem um ou mais funcionários, chamados Kilolo, que
s ementes de tabaco que eles
semearam.
pango Fizeram-no bem e depressa se tornou popular, tendo ocupado o lugar e comunicam de imediato qualquer ocorrência. A colecta de impostos é tarefa dos
ou liamba,
isto é, o cânhamo bravo que era ant de hamados Kakuata que comparecem nas cortes dos chefes feudais na companhia de um
locais pode ser encontrada can eriormente usado). Em alguns
a-de-acúcar em grande qu mero variável de gente armada, trazendo as taxas pertencentes a Muati-Janvo; mas
a nordeste do rio Luiza, também nozes de dendém. Produtos antidade, ananás, b ananeira e, as províncias distantes, nas fronteiras dos estados, os habitantes recusam-se a pagar
de marfim ( 7 c omerciais: grande quantidade
), escravos de ambos os sexos em número tal que, quase durante um século, taxas e os Kakuatas chegam mesmo a sofrer uma perseguição vergonhosa; o poder
um terço dos escravos dos mercados de Luanda e
B enguela eram pr Muati-Janvo nesses locais é mais nominal do que real.
de Moluva. Hoje em dia, as caravanas de Bihé e Pungo-Andongo ovenientes
compram do estado
ali os A capital do estado é Kabebe que se encontra entre 7 e 8 graus de latitude sul e
escravos — escravos que são mais tarde n
ovamente trocados por presas nas províncias e 25 graus de longitude este, numa zona plana com declives suaves, baixando em
do interior ou utilizados como animais, carregando as presas até aos portos. No estado irecção a leste. A cidade, circundada de todos os lados por diversos povoados, mede
de Moluva deve ter existido muita cera, mas o seu transporte através de penosos
caminhos, acilmente três milhas alemãs, sendo percorrida por diversos e bonitos cursos de água.
ac rescentado às grandes distâncias,
impor-lhe-ia um custo elevado e não população ascende a cerca de 50 000 habitantes. A imensa capital de Muati-Janvo
traria qualquer lucro, daí a cera p
Co ermanecer no sítio. constituída por casas agradavelmente cobertas com palha, tendo sido construídas
mparada com a extensão dos estados, a população é
reduzida, pouco mais que olocando grandes paliçadas na terra em forma de um quadrado rodeado de vedações
um milhão de pessoas. No interior do estado existem muitas regiões
ne de sabitadas, sendo çluplas. Estas casas dos chefes parecem possuir dois andares devido ao seu alto telhado
cessários vários dias para as percorrer e tal como pude verificar só no nordeste
existem zonas com uma maior densidade pop oval mas na realidade, são de um só andar, ou, melhor, térreas; o alto telhado é colocado
belas casas com telhados de forma oval, feitosulacional. em palha,Nestas zonas há pequenas e pobre estacas tal como se faz na Hungria, onde as grandes mós dos moinhos movidos
c onstruídas longe dos rios, por animais têm uma cobertura idêntica. As paredes interiores e o chão das casas são
no interior da floresta virgem. Perto desses lugares são abertas clareiras onde se situam
os campos de cultivo. Esses locais possuem atractivos literários porque cercados por decorados com esteiras de junco de diversas cores.
florestas extremamente altas, são
i luminados pelo sol f As ruas das cidades são regulares podendo-se dizer que se entrecruzam quase em
com a escuridão da floresta cir ormando um agradável contraste angulo recto sendo ladeadas e ensombradas, aqui e além, por grandes árvores «panda»;
cundante. Nesses lugares — com excepção daqueles em
que se situa a sede do chefado — vivem cerca de 100 pessoas. as ruas levam aos mercados situados no interior da cidade, onde se podem adquirir
O chefe é a d iversos alimentos e mesmo alguns produtos europeus tais como têxteis, etc. Para a
di utocrático e tirânico, desumano e sequioso de sangue e só muito
ficilmente alguém poderá imaginar que o modo de tratar as pessoas tenha algo a ver compra pode-se usar moeda ou pérolas de porcelana branca, conchas de cauri e os já
726 me ncionados minungos feitos de fios de cobre amarelo.
Aqui a terra é cultivada com evidente cuidado e os resultados são melhores
As fronteiras são: o estado Moluva no norte, o rio Biambegysi, a leste, que a separa
cultura dos mencionados produtos. Aqui também se encontram bastantes palme' províncias de Lui-banda, Lunge-bingo, enquanto no sul separa das terras de Zambuela,
dendê; cozendo as sementes do seu fruto — que é tão grande como uma ame
unda e Gyiokoe, mais a sul.
comprida e oval, e que maduras têm a cor agradável de um cavalo castanho — obtê
A província é geralmente formada por planícies e apenas os pontos mais altos estão
o óleo de palma de dendê. Aqui também crescem bananas, sobretudo as compridas co bertos por densas florestas; daí que muitas partes do território estejam expostas às
as de São Tomé, bem como ananases. Apenas aqui tive a sorte de provar bananas eias e mesmo na estação seca permaneçam grandes e pequenos lagos onde se reproduzem
ananases oriundos do leste, vindos do Atlântico para o interior de África. mencionados peixes. O clima é idêntico ao que caracteriza o sul do estado Moluva.
Galanye com 6000 habitantes dista cerca de seis dias de marcha para o norte
s rios mais conhecidos são:
capital. É bem conhecida porque os Muati-Janvo têm aí o seu mausoléu. De acordo co
um velho costume, quando faleciam, os chefes moluva eram sepultados em Galany O Lu-ena, que nasce a sul da província de Gyiokoe, nos chamados pântanos de
yiokoma, e que deixando essa província abre o seu caminho através de montanhas
cada um na sua própria cripta, com vários pés de superfície, suficientemente profun hosas, segue a sua via para leste e atravessa o estado Lobal, e no fim no distrito
coberta com um tecto oval em palha e com uma porta de entrada. As paredes
Szonan-gambo cria a queda de água rochosa Hapuho, correndo para o Riambegysi.
sepultura eram cuidadosamente cobertas com esteiras coloridas e finos panos europeu
muitos locais a navegação é possível durante todo o ano.
No centro da sepultura há um andar, uma espécie de cadafalso, onde é colocado o co
do chefe em trajos de cerimónia, depois de terem sido mortos inúmeros escravos O Lu-megysi também nasce no sul de Gyiokoe, não longe de Pehu, e depois de
des voltas deixa Gyiokoe no local de Hamisibi lobal, precipitando-se no Luena.
ambos os sexos para remir a sua alma colérica; dois escravos permanecem vivos p
rio também permite a navegação em quase todo o seu curso com embarcações
cuidarem quer do corpo quer da sepultura, para manterem tudo limpo e em orde
enquanto o sucessor do chefe for vivo. Logo que este último morre a sepultura do che 'fitares de fundo chato.
precedente é fechada para sempre. O Lu-valogyse nasce na parte sul da província, e no seu caminho para leste, conflui
Szakambungsy situa-se junto do rio Kaszabi e é o local de origem da dinastia d om outros grandes cursos de água, tornando-se rapidamente um grande rio de tal modo
e dois terços do mesmo prestam-se à navegação durante todo o ano. Também se
actual chefe Kinanezi-Muati-janvo e é a capital de onde provém pela via do sangue
recipita no Lu-ena depois de ter recebido as águas de afluentes como o Lu-zsirakata
dinastia do chefe feudal. Como está bem posicionada, tornou-se o local de encontro dai
caravanas de Pungo-Andongo, Kaszangysi e Dihei que seguem para leste, e que aqui o Mukusze, rios de volume médio.
obtém não só os alimentos de que necessitam para a sua longa viagem para leste como O Lunge-bungo nasce no sul da floresta virgem de Olo-vihenda; no seu curso para
ste separa Gyiokoe de Buunda, através do território Zambuella (magyse) a partir de
também podem adquirir marfim. Julgo ter uma população de 2000 habitantes, cuja
relação com os estrangeiros que aí vão frequentemente é amigável. bal, e no troço final desagua no Riambegysi. O Lunge-bungo — que tive a sorte de
Kamunguese, Musz-Kantanda, Kapend, a leste do rio Riambegysi, são os locais r em diferentes locais — recorda-me alguns dos nossos rios: o Tisza, tendo presente
seu curso assim como o seu volume de água. A leste recebe as águas de vários rios:
onde praticam remunerativos negócios com marfim, daí serem aí frequentes as caravanas.
Katenda, junto do rio Kaszabi, apenas é conhecida pelo barco que liga ambas Leonbale, o Mukenda, o Luma-megysi e outros mais pequenos.
margens do rio. Deste ponto, a 4-5 dias de marcha para sudeste, a seguir à planície de No estado de Lobal a chefia está entregue a vários tiranos, com graus hierárquicos
Ina-muaána, fica Katema, próximo da fronteira do estado Lobal, local que tem o mesmo ferentes, sendo parcialmente independentes uns dos outros; entre eles existem também
nome do que o seu chefe feudal, chefe de menor importância e em que o mesmo habita. posições de chefia algumas duquesas (szonan), ou seja Szonan-gambo, Szonan-
Tem aproximadamente 1000 habitantes que também fazem bons negócios com as hu, Szonan-kabango. O chefe mais poderoso é o chamado Kakenge (periquito?) que
ma na parte leste da província há mais de meio-século de uma forma sangrenta,
caravanas a caminho do leste, dado que Katema também fica na sua rota.
utocrática e tirânica. Mesmo agora e desde há muito o povo treme ao pronunciar o
Deixemos Moluva de que já conhecemos o suficient,p e avancemos para sul, para
o coração do Katenda através da planície desabitada de Inamuana com as suas pastagens u nome o mesmo sucedendo às pessoas das caravanas que aqui vêm e que há muito
em que o capim agitado pelo vento ondula suavemente na estação seca, enquanto na mpo mantêm uma importante relação comercial com ele atendendo a que apenas com
estação das chuvas está completamente inundado com água parecendo um mar; aqui sua autorização podem comunicar com as populações além-Riambegysi e adquirir
e além podem-se ver parcelas de terra azuladas nos locais livres das águas que parecem m e escravos. Há muito que estes produtos apenas podem ser comprados em seu
verdadeiras ilhas servindo de refúgio a diferentes animais. Tendo gasto pelo menos três tome e este, tal como o seu poder, tornaram-se conhecidos mesmo em províncias
dias de marcha para atingir a parte sul da planície e a fronteira do estado de Lobal, distantes. Esta é provavelmente a razão por que Livingstone situou o local de residência
chegámos ao rio Lu-ena. Atravessando o estado de oeste para leste, e à província de do mencionado chefe vários graus para o interior, no local onde as caravanas costumavam
Lobal. Para além desse rio e ao longo do rio Lunge-bungo situa-se a plana e castanho- oniprar marfim. Agora quando deixam o caminho para leste através de Moluva, as
-escura província Lobal, percorrida por numerosos cursos de água. caravanas costumam seguir via Katenda e Katema para visitar o Riambegysi e os seus
locais, gastando um pouco mais de tempo mas atingindo os seus objectivos com menor
728
729
1IIIi2~1.rvrasa-. 1".

custo e maior segurança, situação melhor do que a de viajar por entre os quezilem O estado de Lobal não possui marfim, necessitando do que vem das províncias
e selVagens povos ka-lobar, dentre os quais se destaca o referido chefe Ka-Kenge adas junto dos rios Lunge-bungo e do Riambegysi. Nos últimos cinco anos também
as obriga a pagar taxas, e pior ainda, algumas vezes com as taxas já pagas, atac •
encontra aqui cera que também se tomou um produto comercial; a razão está nos
a vítima com armas roubando-a. avos, que podem ser comprados a baixo preço e transportam às costas a cera para
O chefe Kinyama (leão) não é tão poderoso mas dado que governa há muito tem
osta. Caso sobrevivam à viagem podem realizar um pequeno lucro. Estes escravos,
tornou-se tão popular como Ka-Kenge, mas por outro lado Kinyama também idos para a costa podem ser usados para colher urzela.
popular por ser muito hospitaleiro e as caravanas estrangeiras gostavam de
especialmente os Bihé, que mesmo hoje em dia apreciam ir até lá. Eu próprio visi
duas vezes o mais que centenário chefe, cuja generosidade nunca deixarei de salien
especialmente se o comparo com a natureza desses povos quezilentos e ladrões. NI
ele já não está vivo, morreu há um ano e meio sendo substituído por um neto com
mesmo nome.
A população do estado de Lobal é relativamente numerosa calculando-a e
200 000 habitantes. De um modo geral têm uma figura e aspecto agradáveis; é u
pena terem um carácter tão quezilento, no caso de se mostrarem hospitaleiros faze
-no por causa do seu próprio interesse porque não cumprem as suas promessas, e mesm
que recebam alguém de forma acolhedora em suas casas pode acontecer que o ataque NOTAS
com armas após a sua partida desde que não tenham medo da sua força. Mesmo entre
eles, os vassalos dos chefes vivem numa quezília sem fim e o seu principal objectivo Todas as notas que se seguem são da autoria de Láslo Magyar.
é capturar outros de modo a fazê-los escravos. Esta é a razão por que aqui se encontram, ( I ) «Lunda» ou «Ba-Lunda» não é um verdadeiro termo geográfico, sendo sobretudo usado pelos
sempre tantos escravos que mesmo hoje podem ser comprados a baixo preço pelos jantes de países estrangeiros — os povos de Kibunda e Pungo-andongo, que costumam passar por
membros das caravanas. Estes escravos deixam facilmente as suas casas e esquecem em caravanas. A palavra, em si, significa na realidade um estado vastíssimo com uma grande extensão
o seu velho destino; eles seguem fielmente o seu dono que quase nunca abandonam. São terra árida/desabitada, sendo essa, na verdade, a característica do império Moluva. Aí, os territórios
voados estão separados entre si por grandes extensões de terra não habitada e, habitualmente, são
eficientes, corajosos e decididos e por isso é que são tão úteis para transportar armas
essários alguns dias de marcha para passar de um território para o outro.
e porque se pode fazer com eles longas viagens. Os escravos que eu levava nas minhas «Kim-bandi» provém de duas palavras «abunda»: a primeira significa Ser humano/Homem, a
viagens vinham sobretudo de Lobal. gunda significa algo parecido com «um vaso de barro como estado/um estado oleiro». Desta província
Regressaram à sua terra comigo pela segunda vez em 1855, alguns estiveram a leste, a terra argilosa desaparece completamente, prevalecendo os solos arenosos, misturados com
mesmo junto do lugar onde tinham nascido e nunca nenhum deles fugiu, muito pelo is ou menos húmus; a terra muito arenosa não serve para fazer olaria e, assim, as populações que
viam nessa zona costumavam ir a um estado próximo do Kwanza para conseguir barro ou, pelo menos,
contrário, de parentes que ainda ali encontraram, trouxeram-me alguns presentes. Também s grandes potes utilizados para preparar a bebida chamada «oválua». Daí esta província ser conhecida
é verdade que tive muitas dificuldades em casá-los com mulheres kimbunda no estado no exterior, por Kim-bandi, sendo o seu nome nacional, utilizado pelo povo, Luembi.
de Bihé no entanto muitos deixaram os seus filhos aquando da partida — o amor de Os Mu-kankala são de pequena estatura, cor amarelada de fuligem, face chata, pelo que formam,
pai rapidamente cedeu diante do amor pela terra natal. untamente com as tribos sul-africanas, uma classe etnográfica especial. A sua aparência mostra apenas
a desfiguração da figura humana; medem pouco mais de 4 pés de estatura, têm pernas finas, o corpo
A religião dos Lobal é um feiticismo estúpido em que o ser bom é chamado
é magro mas musculado e cerca de um terço é composto pelos pulmões ovais; sobre um pescoço fino
Kajanda e o mau, Makicsi. Oferecem-lhes frequentemente'ali animais, mas nunca seres
está uma cabeça grande com uma face completamente chata assim como o nariz; podemos até dizer que
humanos. A poligamia e a circuncisão também são populares entre eles. apenas existem duas aberturas; as bocas parecem grandes fendas horizontais, lábios finos, os olhos muito
O seu modo de cultivar a terra é semelhante ao dos Moluvas enquanto os seus Pequenos, as orelhas grandes e os cabelos lanosos, curtos formando tufos.
produtos comerciais quase se reduzem aos escravos, e atendendo a que não fazem Apesar do seu aspecto desagradável e feio, as suas características mentais podem ser agradáveis;
são pacíficos e pode até dizer-se que são simpáticos com os estrangeiros pois trocam dentes de elefante,
comércio com os países litorais o preço dos escravos é muito baixo. As caravanas cera, mel e carne de caça seca por pequenas mercadorias tais como contas ou pérolas de porcelana,
apenas os compram porque os podem trocar noutros mercados por marfim e esse tabaco, etc. Nunca se apoderam dos pertences dos estrangeiros pelo roubo ou pela força. Do rio
produto é novamente transportado para a costa por escravos. Para poder escolher Kubango para o Sul, nos territórios de Kongári e Mukurszu, encontrei frequentemente tribos de Mu-
mulheres compram regularmente marfim enquanto os homens o carregam como animais. Kankála ou Kazeks, que só dificilmente se encontram para Norte; nenhum destes povos pode ser
encontrado acima de latitudes superiores a 11 graus, pois temem os povos de Masongo e Kibokoe que
Mais de metade destes infelizes escravos morrem em tais viagens.
se encontram perto da floresta virgem de Olo-Vihenda que, nessa zona, é mais estreita, razão pela qual

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esses povos a percorrem frequentemente, perseguindo-os, tratando-os de forma selvagem e capturando.
os para os reduzir h escravatura. Tenho um rapaz e duas raparigas já crescidos pertencentes a este povo;
comprei-os quando ainda eram crianças ao povo Bunda; mostraram-me os seus sentimentos nobres o,
ao longo das minhas viagens, cruzei-me diversas vezes com as suas tribos e nunca se afastaram de mim,
manifestando sempre a sua obediência. No entanto, as suas capacidades mentais não estão ainda
desenvolvidas.
Em meados de Julho, na altura da minha viagem à nascente do rio Lu-mégysi,
que se situa nos
prados pantanosos na extremidade de um planalto densamente coberto pela floresta, completamente
aberto ao vento sul dessa província, parei por uma noite e fiz uma experiência — fez tanto frio que
a água que eu tinha deixado no púcaro de barro congelou durante a noite e o solo ficou coberto por
fina camada de geada branca. uma

São capazes de fazer uma imitação de uma arma europeia com todos os pormenores, tal coroo UM COMERCIANTE PORTUGUÊS EM KASANJE
fizeram com a minha arma quando tive de mudar o cano. Uma vez, quando viajava entre eles, confiei
a minha arma estragada a um ferreiro gyiokoe e não lhe forneci nenhuma ferramenta. Queria que a CARTAS DE FAMÍLIA (1857-1860)
reparasse. Confiei-lhe também uma arma francesa na qual estava gravada a palavra «Laport». Alguns
dias depois, o mestre gyiokoe trouxe-me a arma; não só a tinha arranjado bem como tinha feito ainda DOCUMENTOS INÉDITOS (1)
mais:
tinha gravado na arma a palavra «Laport»; apenas as letras eram um pouco grosseiras.
É necessário estabelecer uma distinção entre, pelo menos, três locais com o mesmo nome da
zona interior da África do sul, isto é, Kazembe-Mutombo, Kazembe-Mutanda e Kazembe-Tambalameda; Lisboa, 9 de Agosto de 1857
os dois primeiros são províncias feudais do estado de Moluva enquanto o terceiro é o estado de Kazembe, Thio Jozé Luiz (2)
conhecido pelos geógrafos e que também ps nativos, para o distinguirem, lhe acrescentaram o nome da
sua capital: Tambalameda.
O Navio suspende sem falta quarta-feira, às 8 horas da manhã, e no cazo por
Os elefantes vivem em bandos nas zonas situadas a norte e a leste do Estado, nas florestas
algum inconveniente não possa vir, fará obséquio de pagar ao sr João Pinto Coutinho
virgens, onde são caçados pelos povos Kimbunda, Gyiokoe, Bunda e ainda pelo povo Kabenda, que vive
mais afastado do rio Riambégysi. Os caçadores são obrigados a pagar uma taxa ao chefado desse local, Ribeiro a quantia de 22$700 provenientes de uns livros que lhe comprei que me são
dando--lhe um dente de elefante. As presas desses elefantes pesam frequentemente 110, e mesmo 125 precizos para a minha negociação. O franco [sic] me deu uma carta para o Remígio
libras portuguesas; a sua superfície é de cor castanho-escura, podendo chegar a preta, diferindo das para me dar todas as fazendas que eu precizar para Caçanges (sic); eu estou bastante
presas provenientes das zonas junto ao rio Kubángo, já que as provenientes das províncias Libebe, satisfeito, pois julgo fazer algumas vantagens, se a sorte me não for adversária.
Kongari, etc., são brancas. Penso que a explicação reside no facto de, nas regiões planas do interior Recomende-me à thia, D. Cândida, e a toda a mais família, e fará o obséquio de
do Norte de África, existirem muitos pântanos e prados alagados, e de, no seu fundo, existirem muitas
raízes, principalmente de cucurbitáceas; estes elefantes encontram a maior parte do seu alimento entre
transmitir um abraço e um beijo a meu filho, e sou com todo o respeito
as plantas aquáticas que apanham revolvendo o lodo. Por outro lado, os elefantes das zonas secas do
Sul encontram o seu alimento nos frutos das árvores, não tendo que revolver o lodo, razão pela qual Seu sobrinho
as suas presas teriam mudado de cor. Muito Am. e Obg.
António Roza d'Oliveira

Agradecemos à Senhora D. Maria da Graça Roza de Oliveira de Castro Henriques e ao Dr. Jorge
Roza de Oliveira terem-nos amavelmente cedido as cartas do seu trisavô. Respeitamos integralmente
O texto, actualizando a ortografia nos casos em que a sua compreensão assim o exigia.
Todas as cartas, à excepção de uma, são dirigidas a José Luís d'Oliveira, nascido em Alcochete
em 1806, presidente da Câmara de Alcochete e accionista da Empresa da Real Fábrica de Vidros da
Marinha Grande.
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Sr Jozé Luiz d'Oliveira
Feira de Cassange, 16 de Março de 1858 Meu Querido Thio do Coração
Feira de Cassange Africa Ocidental 27 de Abril 1859
Amigo e Senhor
Recebi a sua carta e cópia de 1.° mez passado, e como não me acho com forças
Sem nenhuma sua a responder, participo-lhe que cheguei a esta feira de perfei poder responder-lhe, pelo o estado de minha completa desgraça, e quando recebi
saúde, e tenho estado com bastante cuidados em virtude das notícias da febre
amarei mesmas suas cartas perdi inteiramente os sentidos, e devo ao Sr. Joaquim Maria
não ter por aí atropelado essa vila, e toda a nossa família se ache de perfeita saúc
j alho, administrador deste concelho, e ao Pároco, Padre Jozé, desta freguezia, e a
O Alexandre Joaquim Sequeira Lopes dirijiu uma circular a todos os n
egociantes d is negociantes, que tomarão parte nos meus infortúnios, e por isso, limito-me
Luanda, para aqui se tirar uma subscrição a beneficio das viúvas e orfãs que ficar.
ao desamparo, e já se acha em cofre dois contos, e calcula-se tirar na província se icamente a dizer-lhe que o sentimento que meu Thio acaba de me mostrar pela morte
sua adorada sobrinha, minha querida e nunca esquecida espoza, é um testemunho
a oito contos, pois todos os Portugueses que aqui se acham residentes assinam de b
m certo da sua amizade, e ao qual sou em extremo grato como devo. Golpes tão
vontade. Nesta data peço à Emília para no primeiro navio que para aqui venha
remete fundos, como este, não pode a natureza suportá-los sem as consolações dos amigos,
-me uma lata cheia de linguiça de vara metida em azeite doce, depois de ela pronta nã
ebo pois com a mais alta consideração esta nova prova da estima que meu Thio me
deve pesar mais de 80 lb., é uma carga para um carregador a conduzir para o i
Recomende-me à tia M. a Emília e D. Cândida dos Olivais, e eu sou nterior pelo meu justo desgosto; esperando que Deus me dará forças para suportar tão
de infortúnio. Continue meu Thio a honrar-me com a sua amizade, pois essa certeza
De V.Ine serve de consolação para mim. Não me é possível poder liquidar a minha negociação,
M. t °
Att.° e [...] poder-me retirar para essa se não nos fins de 1860, por ter a meu cargo ainda perto
António Roza d'Oliveira 35 contos de réis em fazendas, e depois irei acabar o resto dos meus dias na
mpanhia de meu bom Thio, por ser o único pai que me resta neste mundo. Queira
eu Thio agradecer em meu nome às minhas primas, e a todos os parentes, e a todas
N. B. Esta lata vem dirigida ao Sr. António Feliz Machado e auzente João Euzebiq
e C.a — Luanda. pessoas dessa vila, que partilharam na minha completa infelicidade. Será impossível
der haver entre os casados uma Esposa como eu perdi, minha amiga verdadeira,
oza, honesta e honrada.
Ah! Meu Deos, e o que é que me resta agora?, ir acompanhando túmulo!, eu irei
bre a terra derramar minhas lágrimas, d' angústia dôr que sofro e hei-de sofrer.
Peço a Deos que me dê resignação bastante e que me guie para aí poder chegar.
u mesmo lhe irei fazer o ofício do corpo prezente com a maior pompa que seja possí-
1, não olhando a despezas não a dinheiro e isto durante a minha vida nada mais lhe
sso dar. Adeos meu querido Thio receba um coração saudozo e cheio de dôr (...)

Seu sobrinho
António Roza d'Oliveira

N. B. Abra a carta que dirijo ao António Luís, e veja o que lhe digo àcerca do
achado.

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Sr. Jozé Luiz d'Oliveira
Feira de Cassange, 19 de Maio de 1859
Lisboa Feira de Cassange, 19 de Maio de 1859
Exmo Sr. Ferreira
Meu bom Thio e amigo
Recebi a sua carta datada de 1.0 de Março e com maior franqueza do meu coração
O Sr. António Félix Machado, meu credor e correspondente, sabendo que eu de vou responder, na certeza de que estas quatro linhas que lhe dirijo devem-lhe servir
a V.m.cê por lho ter confessado se me ofereceu para quando eu quisesse fazer algu memória, e o aconselho que as mostre ao seu pai, e a Sra sua mãe, para que nunca
remessa para seu pagamento, que lhe dirijisse, porque nisso tinha muita satisfação, liberem o coração de suas filhas sem serem da sua convicção pois pela experiência
como conheço que os votos deste homem são sinceros e verdadeiros, é por esta mes temos tido muitas filhas têm descido ao túmulo pelas ambições de seus pais, e o
via que lhe remeto cinco pontas de marfim de lei, sendo com os pesos seguintes, 10 inte são as fatais consequências da cobiça. Os pais não permitem que suas filhas
88, 90, 82, 72, total de 435 lb. m.ca J.A. e dei ordem ao mesmo Sr. Machado que lo espondam ao amor de homens honrados e levam sua crueldade ao extremo de
que este marfim chegasse em Luanda, o embarcasse no primeiro Paquete, a seguir p entá-las a que firmem uma criminal impostura, e aceitem a mão de um homem a
Lisboa, fazendo-o completamente seguro; e logo que meu bom thio, o receba venda em aborrecem, só porque este homem odioso é milionário. A isto chamarão os
por o melhor preço que poder obter nessa praça, e se servirá levar o produto dele e entos casar bem suas filhas, porém isto não é casá-las, é sacrificá-las, é vendê-las
crédito de minha conta, devendo ter a bondade de me prestar uma continha para o sald mo vendem em Africa os escravos. O melhor tesouro d'um marido, é a honradez,
que houver a seu favor, remeter-lho com a maior urgência que me pode caber. se os pais não abdicasem desta verdade, não haveria na sociedade escândalos nem
continuação da melhor saúde é que lhe apeteço para amparo de toda a nossa famíli graves desgraças que costumam produzir os casamentos desacertados. O primeiro
e disponha deste que é com todo o respeito
a que num matrimónio haja paz, é o recíproco afecto dos esposos, e se os pais
não arrogassem direitos que à sua autoridade não competem, não haveria enlaces
De V.m.cê
onstruosos, filhos da ambição, da mesquinha sede de ouro ou de outras paixões de
Seu sobrinho amigo e muito obrigado
ssima índole, com que alguns ignorantes pensam engrandecer-se. Estes meios são
António Roza d'Oliveira
fames, e a infamia (...) envelhece, ainda que produza riquezas, comodidades, e títulos
nobreza, nobreza desprezível e ridícula quando se adquire por bastardas vias. Muito
N. B. Incluso achará uma cópia de resposta a uma carta do filho do Algibebes seráveis são os pais tenazes que preferem o dinheiro às afeições mais doces da alma,
que no meio das minhas mágoas me veio atormentar e convencido estou que me não rque esses tigres, que contrariam o amor honesto e puro de seus filhos, ignoram o
há-de escrever mais. Talvez o meu thio me taxe [sic] insensato por dar tal resposta mas ntimento mais delicioso e sublime que alberga o coração humano. Nada há neste
como sou franco costumo sempre dizer aquilo que sinto undo comparável ao amor paterno, se o egoista execrável, que sacrifica a felicidade
e seus próprios filhos nos sacrilégios altares do sórdido interese, não tem coração de
Roza
ai!!! é uma fera insensível, que merece a execração da humanidade. A continuação da
elhor saúde é que lhe desejo e disponha V.S.', deste

humilde (...) atten.z°


António Roza d'Oliveira

736
737
en or Jozé Luiz d'Oliveira
Feira de Cassange, 12 de Setembro de 1859 Meu querido Thio
Feira de Cassange, 27 de Setembro de 1859
Amigo
Sem nem uma sua a que deva resposta, cumpre-me dizer-lhe que nesta, ou e Foram-me presente os seus 3 favores, firmados de 15 de Junho, 4 e 18 de Julho,
do corrente despachei para o Sr. António Felix Machado, ou assignado, por via com muita satisfação cumpre-me responder-lhe, primeiro, julgo que já deverá estar
Golungo Alto, 3 pontas de marfim de lei com os pezos posse do aviso das 5 pontas de marfim de lei que despachei pela via do Sr. António
1/2 Ib.'. ni. ca 70, 70 e 66 1/2, total de 2
J.A., a quem nesta data dou ordem para logo que o receber tratar de f. lix Machado, o qual já por ele foi embarcado a bordo da barca "Progressista",
o seguro e embarcá-lo no primeiro paquete que estiver a sair para essa, gundo, pela mesma via do Sr. Machado despachei mais 3 pontas de marfim para lhe
a V.M. cê remetendo-
ou a assig.° a fim de vendê-lo pelo melhor preço e levar em meu rem remetidas, essa 3.a remessa que eu lhe fizer mandarei o resto do marfim que aqui
produto dele; podendo V.M. cê crédito nho para lhe completar onça de mil libras, porque eu pagando o que devo sou rico,
ficar certo que em todas as remessas que eu fizer ao di
Machado, também não deixarei de fazer para V.M. cê poderei-me apresentar aí ou em outra qualquer parte com aquela decência que sempre
nada mais se me oferece dizer-lhe, se não d até saldar a sua conta. Por ago
esejando-lhe uma perfeita saúde, e stumo usar, e então farei estalar a castanha da boca, aos meus inimigos que disseram
companhia de toda a família dessa caza a quem peço faça os meus e eu que dezembarquei em Luanda com luxos e prodigalidade. A minha reputação
c umprimentos e crêa-me ser De V.M.cê re speitoz
ommercial na Africa é bem conhecida há muitos anos, e ninguém se limita mais às
uas circonstâncias do que eu, principalmente quando tenho somas avultadas confiadas
Seu sobrinho attenc.° am.° meu crédito, e se uso de prodigalidade é com aquilo que é meu ganho pelo fruto do
António Roza d'Oliveira eu trabalho, e não prejudico nem os meus credores, e nem tão pouco a sociedade. Vejo
que me diz àcerca do meu filho, seu neto, cada vez que vou a caza do Sr. Carvalho
ejo o crioulo da idade de 3 anos, vivo e muito esperto, digo-lhe eu, «lá está o teu Sr.
m Alcochete", ele me responde, «sim Sr. quero ir ver meu padrinho», porque o Sr.
arvalho o baptizou pedindo-me licença para lhe pôr o nome de António Luiz d'Oliveira,
um pretinho muito esperto, faz muitas macaquices, e está sempre a fazer rir a gente.
u mostrei as suas cartas ao Sr. Joaquim Maria de Carvalho, assim como lhe entreguei
s jornais, e me pede para lhe agradecer tanta bondade e delicadeza.
Remeto a resposta que o mesmo Sr. me deu para vossa V.M. cê Agora tenho-lhe um
obséquio a pedir-lhe. Recordo-me ter-lhe remetido algumas cartas para algumas pessoas
dessa vila, únicamente de cumprimentos segundo manda a etiqueta, e como não tenho
tido respostas, espero que meu Thio me diga se foram ou não entregues para eu tomar
as competentes notas, nessa nota entra o meu cunhado Diogo, a quem tenho escrito 3
cartas, e não tenho tido a satisfação de ter resposta, mas algum dia se o Ente Supremo,
assim o permitir, lá no Café Cantante e ao som da Harpa, ajustaremos essas contas.
Eu não sou mais extenso como dezejava, porque recebi a sua correspondência no dia
26 pelas 8 horas da noite, e segue hoje pelas 10 horas da manhã, limitando-me só a
dizer-lhe que dissolvi a minha sociedade em 7 de Abril, não tivemos prejuízos mas os
lucros não foram muitos em consequência dos infortúnios atrazados, e gira hoje esta
sua casa debaixo da firma de António Roza d'Oliveira, negociando ainda em maior
escala que no tempo da sociedade, é de meu dever participar-lhe isto para os fins
c onvenientes. Se por motivos de negócio eu tiver que me demorar aqui mais alguns anos,
e se meu filho estiver nas circonstâncias de poder entrar em alguns dos colégios para
se tratar da sua educação e instrução que preciza, rogo pois a meu Thio, que procure
um colégio melhor dos que houver em Lisboa; não olhando a despezas porque o que
dezejo é que ele aproveite, que aprenda o Francês, o Inglês, o Latim porque depois se
738
eu viver o mandarei para Coimbra, e eu darei logo as minhas ordens para pôr à sua

739
disposição as mesadas para este fim. Se fosse possível que o Ente Supremo me des
vida para eu poder ver um dia meu filho na missão recebida do Céu, do que advog Meu querido thio
a causa do infeliz, e os sagrados direitos da humanidade. O Feira de Cassange, 30 de setembro de 1859
Sr. Carvalho, me entreg
meia dúzia de peles de onça que lhe oferece, como meu Thio verá pela carta que e
O portador desta é meu amigo Manuel António Pinheiro, que segue para essa
me escreve, e eu espero remetê-las por uma via segura. Tenho a pedir-lhe mais u
pital, afim de abraçar seus pais, a quem pedi o favor de levar para entregar a meu
obséquio, que essa carta que vai fechada, entregar-me-á na mão própria do
Sr. irmão io, um volume que contém, seis peles de onça, assim como também leva um
Carvalho, e a que vai aberta muito me obsequeia em a dar a ler ao mesmo Sr. afi
de ver se meu Thio pode conseguir que esse Sr. pagaio, e uma pluma de marabú, que é para o chapéu de seu neto. Todo e qualquer
escreva a seu irmão a quem é séquio que meu thio se digne prestar ao dito meu amigo o tomarei como a mim feito,
afeiçoado. Ouve uma intriga entre ambos por um sujeito que foi desta província, e
meu ver o Sr. Joaquim Maria de Carvalho tem razão, mas ambos são muito caprichos is torna-se merecedor disso, e tem merecido sempre a estima e confiança de todos
e nem um quer ceder. us amigos. Ao M. Ant.° Pinheiro, entreguei a quantia de 200$. duzentos mil réis
ouro, moeda desta província, sendo peças de 4 oitavas, as 3 (...) e soberanos no
Tenho conhecido que entre irmãos, a donde há um mais velho dezeja sempre cal
o mais novo, e que obedeçam e respeitem como se fosse seu próprio pai — Não pen lor de 7 (...) cada um, e logo meu thio receba-os levará esta quantia a crédito de
'nha conta, afim de não ser tão pesada a ordem que lhe dei das mesadas a minha mãe.
eu desta maneira, porque na época ilustrada em que hoje nos achamos, dá-se o merecimen
ao homem pelas suas virtudes e pelo seu bom comportamento na sociedade. continuação da perfeita saúde, é que desejo a meu thio em companhia de toda a nossa
ília, recomendando-lhe a minha boa thia, a Ex. Sra D. Maria Emília, e queira dar
Talvez alguns dos meus irmãos mais velhos não gostem deste meu preâmbulo
beijo a meu filho e deitar-lhe a minha benção, recebendo um coração saudoso, deste
são estes os meus votos — Queira-me recomendar a minha boa thia, a benção E m
L* e com todo o respeito se preza ser
D. Maria Emília, e a todas as pessoas dessa vila que de mim se lembraram e receb
meu Thio um coração saudozo deste que se preza ser com todo o respeito.
Seu sobrinho attz.° am.°
Seu Atz.° Amigo
António Roza d'Oliveira Estamos a 4 de Outubro
Remeto a meu thio um relatório sobre as providências que são precisas o governo
sobre esta importante Feira de Cassange, que fará o obséquio de mo mandar
ublicar no jornal do Comércio ('), e no outro titulado Archivo Universal.
Também espero que meu thio peça aos redatores que componham este relatório
ais bem forjado, e a despesa que fizer ma debitará, remetendo-me V.M.cê um exemplar
e cada jornal pelo vapor, pelo que lhe ficarei obrigado.

Sou com amizade


António Roza d'Oliveira

(I) Este «relatório apareceu no Jornal do Comércio, em Janeiro de 1860, sob o título
«Correspondências — carta dirigida por António Roza d'Oliveira ao Redactor».
740
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VIRE71.7a7
Meu querido thio
Feira de Cassange, 12 de Dezembro 1859 Meu querido thio
Cassange, 27 de Março de 1860
Foi-me presente o seu favor firmado de 18 de Agosto do corrente e ao seu conte
satisfaço resposta. Ao primeiro, estimei muito saber que gozava saúde Recebi as suas 3 cartas, e de todo o conteúdo fico certo, e os conselhos que me
c perfeita,
ompanhia de toda a família, ao segundo, o melhorar de sorte que esperava nos s na sua de 17 de Novembro congratulo-me com eles. Enquanto o dizer-me que está
negócios. Eu também vivo nestas e nfuso se é de uma ou duas remessas que lhe tenho feito, dir-lhe-ei que são duas
tra speranças, mas parece que de dia para dia se
nstornaram as coisas, e de ano para ano, me acontecem prejuízos que a não ser forme lhe tenho enviado, e o Sr. António Felix Machado de Luanda me aviza de
minha resignação já tinha sucumbido. Ac ficar a remeter as outras 3 pontas de marfim, e logo que meu thio me remeta a
onteceu-me um desastre de me incendiarem
armazém de fazendas pela uma hora da noite, sem se saber até hoje quem fosse, e , como exijo mandarei saldar logo e logo a minha conta com V.M.cê. Fico certo
me tão d re o que me diz de meu galante e jovem filho, Deos lhe dê a missão do céu, para
esorientado que me queria lançar às chamas se não fossem os meus amig
que me acudiram, por me lembrar que tinha ali um rol de contos de réis e que não er ele possa seguir uma brilhante posição na sociedade, e logo pois que ele possa
meus!! O Sr. Joaquim Maria de Carvalho a quem sou devedor de muitas finez em estado de poder frequentar um dos melhores colégios de Lisboa, meu bom
mandou-me construir um outro armazém pela sua e assim o fará avizando-me a despesa que ele mensalmente fizer, porque ele neste
scravatura, e car
debaixo de suas vistas, que em 10 dias ficou pronto. Parece, desdepinteiros,que foi asen
fa undo não conhecerá outro pai se não o seu avô, assim como ele não foi feliz em gozar
desgraça da perda de minha esposa, todos os i carícias de sua mãe, também é justo que não goze das de seu pai. Motivos enlação
nfortúnios me perseguem, e eu não s
o motivo porque isto me acontece! finalmente devo-me contentar com a vontade d eu coração e meu túmulo será na Africa se a sorte não mudar!! A continuação da
Altíssimo e trabalhar, ainda mesmo que eu pense que por aqui hei-de dar a ossada ior sorte é que lhe apeteço em companhia dessa ilustre família, e sou com todo o
prefiro antes isso, do que ser pesado a alguém na vila speito
d 'Alcochete. Não digo isto por
orgulho nem por soberbo, mas sim por ser filho de meu génio. Apesar destes meus
infortúnios todos breve terei tenção de estar saldado com o meu bom thio, e depois estou De V.M. cê attenz.°
tranquilo e corajoso para poder encarar todas as reveses que me podem acontecer! Seu sobrinho
Tenho uma coisa a meu favor, quando me sordem destes desastres, são públicos António Roza d'Oliveira
notórios, e não me é desairoso porque não posso prover o futuro, porém todos os meuse
credores me dizem que eu tenha coragem e resignação porque
c ontinuavam a fiar-me
tudo quanto eu quizesse para continuar a trabalhar. Não quero dizer mais nada porque
estas notícias sempre afligem. Adeos meu querido thio, estimando que continue a passar
de perfeita saúde, para amparo do meu filho e de toda a nossa família,
ela toda em geral, e receba um coração saudoso deste que se preza serrecomendando
Seu sobrinho
António Roza d'Oliveira

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Meu bom thio
Feira de Cassange, 4 de junho 1860 Meu Sr. António Luiz d'Oliveira
Luanda, 21 d'Outubro de 1860
Em data de 28 do passado despachei (24) vinte e quatro gamelas de cera amare
com os pesos (2364) dois mil trezentas sessenta e quatro libras dirigidas aos Am.° Sr.
Manuel Roiz Carmelino e C.a negociantes da praça de Luanda a quem pedi aque Seu sobrinho o Sr. António Roza de Oliveira encarregou-me de lhe mandar entregar
serviços que logo que a receberem a embarcassem e fisessem o competente seg um preto pequeno de nome António de Oliveira que o finado Joaquim Maria de
e remeterem um dos conhecimentos dentro desta e fecharem a carta e remeterem p Carvalho lhe tinha oferecido.
o correio. Em 12 do corrente fico daqui a remeter a 2•a via, a quem peço os mesm O Sr. António Roza de Oliveira lhe escreve mais circunstanciadamente a tal
para remeterem o segundo conhecimento, e logo que receba a venderá pelo melh respeito, pois eu em consequência da minha proxima chegada ao interior apenas tenho
preço que obterá nessa praça e levar a crédito de minha conta. A continuação tempo para lhe dizer que o dito preto vai de passagem no Brigue «Experiência»
melhor saúde é o que lhe desejo, e espero que me recomende toda família dessa c entregue ao Cap. do mesmo, de quem V.Ex.a o poderá receber.
e dê ao meu filho um estreito abraço, e deito a minha benção com respeito dispo
deste Sou com a maior consideração
José Maria Prado
seu muito obrigado
António Roza d'Oliveira

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PORTO, António F. F. da Silva
Notas para retocar a minha obra logo que as circunstâncias o permitam.
Manuscrito de 1866. Sociedade de Geografia de Lisboa, reservados 2-c. 7.
Capítulo 11.

CAPÍTULO 11 (1)
Das viagens e acampamentos dos viajantes (2)

Aos Portugueses que tem habitado a terra desde o século décimo sexto devem os
bienos a importância de que gozam, e que assás tem contribuído para sua morigeração,
quiçá; que, o seu estado não diversificasse do dos mais povos de sua mesma raça, se
tal circunstância se não realizasse. Para o interior não é necessário propor viagem
orque logo que o sertanejo se recolheu de Benguela, os Quimbundos sucedem uns após
outros para saber da partida para os Ganguelas, visto que lhes convem a denominação
de pombeiros para receber fazenda afim de a permutar por cera e marfim, igualmente
ao sertanejo pela circunstância de ficar a seu cargo a procura de carregadores, ficando
por consequência livre da responsabilidade de pagar a vida de qualquer que sucumba
na viagem; mas para Benguela o caso é diferente, porque se torna preciso que aquele
que quer seguir o faça de seu motu-próprio; fazendo constar pelos seus escravos e
pombeiros que necessita de carregadores para a viagem, que na língua quimbunda é
designado com o nome de Longuento; apresentando-se um após outros para amarrar
cargas, que nunca excedem o peso de oitenta libras em cera ou marfim, salvo o dar-
se a hipotese neste segundo género, da ponta exceder tal pezo, porque em semelhante
caso é carregado por dous pretos.
O chamar-se alguém positivamente significa responsabilidade da sua pessoa
verificado o caso de morte; esta fraude pode evitar-se com facilidade sempre que se dão
ocasiões de tal natureza, dizendo, que é de livre vontade de cada qual seguir ou deixar
de o fazer, porque em presença de tal clausula findaram os pretextos para tal exigência.
Muitas vezes os carregadores que tem amarrado cargas deixam de seguir viagem
em consequência de casos de morte entre parentes e amigos, moléstias, passar a noite

Páginas 51 a 56 do manuscrito.
Actualizámos a sintaxe de Silva Porto de maneira a tornar o texto mais acessível ao leitor.

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com mau sonho, ou então na ocasião de amarrar a carga, porque alguma cobra
mover qualquer obstáculo no caminho, fazer alto à espera da rectaguarda no caso de
trânsito passou de um extremo a outro do caminho, dando-se a mesma particularid
alquer conflito sobrevindo com o povo da terra; em compensação percebem cada um
em relação a veados, toupeira, rapoza, cão silvestre, e finalmente lobo; para se evi
uatro panos de fazenda, e na falta quatro enxadas, da pessoa por quem se deu a
tais inconvenientes // torna-se necessário que se active a partida, pois que exceptuau
meação; do chefe da comitiva percebe a cabeça do boi que se matar em viagem, e
os dois primeiros casos, de morte ou moléstia, é raro que alguém depois da car
a falta qualquer criação miúda, uma vez por outra. O mesmo estilo é seguido em
amarrada com tenção de seguir, o não faça pelo proveito que daí lhe resulta, como se'
lação ao povo da guerra, mesmo no que diz respeito a pleitos, que se falam e decidem
o porte, despesas inerentes de comedorias, e finalmente o seu pecúlio a permutar
cm uma rapidez pasmosa visto que em tal conjuntura o poder da força supre os meios
cidade que de ordinário se reduz a algum escravo, pão de cera, ou ponta de marfi
Todas estas superstições verificadas que sejam no caminho, ficam sanadas com ara tal fim.
O chefe da comitiva é obrigado uma vez por outra, e sempre ao por do sol, por
competentes deprecações aos mortos, pois que sendo de rigor originadas por eles e po
er a ocasião em que depois da comida se goza de algum descanso; a convocar todas
qualquer motivo da mesma procedência visto que vêem na transmigração do espírito do
pessoas principais a fim de lhes expôr qualquer novidade ocorrida, ou que tenha de
defuntos; em virtude de adivinhações a que proceda a pessoa com a qual se deram tai
obrevir, e do qual já tenha conhecimento antecipado, para as devidas providências; pois
factos, ela, logo que chegou a porto de salvamento tratou imediatamente de aplacar
ue obrando em contrário fica sendo o responsável de qualquer desastre que possa
espírito do morto, com festa de capata e o indispensável boi; ou do contrário promove
ontecer. Exige igualmente de cada uma, e em proporção dos seus haveres que sempre
o pagamento da vida, a que da mesma forma se segue a dita festa, a fim de no futuro
xistem // patentes à vista, a competente contribuição afim de ocorrer às despesas feitas
evitar qualquer desastre, visto ser ele inevitável dada a hipótese de indiferença.
com todos os sobas das terras pelas quais tem de passar; esta contribuição que é de
Na ocasião em que as cargas estão completas de carregadores, marca-se o dia para
rigor dar a cada um dos seus chefes, e a cujo encargo ninguém se pode eximir, é
a partida, sendo necessário que o sertanejo se ponha fora da sua povoação em tal prazo,
denominada na língua quimbunda de Quibanda, a qual se torne maior ou menor em
pois que só em presença desse passo é que a turba principia de se por em movimento
para o arraial, ou como os Quimbundos o denominam de valor, segundo a sua categoria.
Hilombo Hiólónguenta Os arraiais de guerra e de viajantes diferem unicamente no nome como temos dito,
(Hilombo ou Quilombo Chiolonguenta), a não ser não haja receio de que alguém o faça
pela circunstância de se verem sujeitos a fazer despesa fora de casa. é uma contínua aglomeração de acampamentos tendo sempre o do chefe no centro, como
Depois do sertanejo chegar no (sic) a barraca deste seja especial, e a única que demanda mais primor, trataremos de a
arraial aí passa um ou dois dias se quer, à descrever convenientemente. Dele ocupam-se todas as pessoas de graduação, trazendo
espera de quem mais se lhe deve agregar, ou então continua a marcha porque nos
uns paus, outros cordas, e outros finalmente a palha; enquanto que a gente que lhes diz
primeiros dias da partida comummente se lhe vai reunindo povo de diversas localidades;
respeito se ocupam no fabrico das suas pessoas, e que depois de concluídas tem então
junta a comitiva em um dia ao por do sol manda reunir as pessoas principais, a fim
de lhe fazer ver as suas intenções, isto é, que procedendo todos do Bihé não deve haver lugar a feitura das que lhes dizem respeito a eles. Sendo de forma oblonga que denominam
bavanda, são três forquilhas a engatar umas nas outras de um lado, do outro, e paralelas
divergências nem rivalidades no caminho, tratando o geral de se unir porque da união
resulta a força, para com ela fazer frente a qualquer eventualidade que por acaso possa a estas engatam mais três forquilhas, pondo por cima um pau servindo de cumieira e
que abrange todas as seis forquilhas; são postos então paus a partir da dita cumieira
sobrevir; dando-se a mesma circunstância relativamente a pleitos que por ventura possa
ficando fixes no solo, e cujo espaço de uns aos outros não excedem dois palmos, mas
haver entre pessoas da comitiva, devendo esperar // ensejo apropriado para os resolver
ficando juntos no cume pela circunstância de grande porção de madeira; sendo depois
em outra qualquer paragem, que não a actual por se dar a alternativa de se encontrarem
de postos por esta forma, entretecidos de cordas e por cima das quais tem lugar a
acredor e devedor; que no mesmo caso está aquele que por casualidade partir cabaça
ou panela de outrem, ficando sujeito unicamente à entrega de idênticos objectos, e cobertura de palha; medindo vinte pés de comprimento, por doze de largura, e quinze
jamais constrangido a diferente indemnização; que se resolv61 pleitos, mas tão somente de altura, tendo a porta no centro, que é igualmente feita de palha, com quatro palmos
aqueles que disserem respeito a pessoa da terra com outra da comitiva, em atenção a de largura, e altura proporcional ao dono. A segunda espécie que apresenta a forma
que estão nas suas naturalidades e desmedida sordidez. Tendo, pois, a comitiva entrado cónica e que denominam Hingue, é formada unicamente de quatro forquilhas a engatar
ou estando para entrar em território estranho, para seguir derrota debaixo de boa ordem, umas nas outras, sobrepondo paus que não excedem o cume das mesmas, e que no solo
torna-se necessário que ninguém sob qualquer pretexto passe além dos exploradores que ocupam também o espaço de dois palmos distante uns dos outros, sendo igualmente
entretecidos de cordas a fim de suster a palha da cobertura; mede de ordinário sessenta
marcham na vanguarda, e que em seguida a este exórdio são nomeados, para o dito
efeito; apresentando cada pessoa principal um preto armado que fica reconhecido pelo Pés de circunferência, e vinte perpendicularmente de altura das forquilhas ao solo, tendo
chefe dos exploradores que é o porta bandeira, e o condutor da patrona do cartuxame, muito maior espaço para acomodações da baga//gem, que não a bavanda que acabamos
sendo da sua atribuição, cortar paus e arranjar cordas para a passagem de qualquer rio, de descrever, e que em qualquer das ditas barracas se goza de uma temperatura regular,
e se está inteiramente ao abrigo do tempo, tendo de mais a vantagem sobre as chamadas
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arracas de campanha,
i nsuportável onde, debaixo de um sol abrasador e frio rigoroso, se torna arma de fogo para o dito fim, e com o que obtém melhoras principiando de fazer obra
ap
ermanência de uma pessoa; sendo o geral das barracas depois de por baixo e por cima; sendo para notar que, enquanto estiver a passar povo, o escárnio
completas pela mesma forma, cobertas de folhagens das árvores e por cima desta a torna-se o estribilho da multidão contra o bruto, prostrado por terra, denominando a
cobertura de palha; tendo lugar depois de concluído tal trabalho, a feitura do cerco que
denominam ganjo, indigestão de Melláve-Offe. Passa como provérbio entre eles o dizer que, não podendo
advertindo que a comitiva chega sempre no local do arraial do meio chegar a ricos e obtendo algum recurso, a única cousa que levam deste mundo é o haver
dia às duas da tarde, mas que até o ocaso os pretos não têm descanso
c possível, passado bem; ou na sua própria língua Turílla ómuénho. Passam pois como acabamos
onservando os machados nas suas mãos em contínua revolução, em guerra aberta às de descrever, mal e enselvajadamente como os próprios animais, visto que se limitam
árvores e completa destruição de palha na sua circunv
izinhança. ao dia de hoje olvidando o de amanhã.
Dada a hipótese de adoecer alguém no caminho,
espécie de e nfermidade, os parentes do enfermo O'cubéra, designam eles toda a
oc upam-se com contínuos curativos a
fim de o rebocar ao seu estado normal, dando-se a par
ticularidade de ser carregado nos
primeiros dias de doença; mas vendo que se não dão melhoras, o abandono é a sorte
que o aguarda, ao cabo do quinto dia de carregado, que, se pode dizer sem
cinco dias de sofrimentos para o desgraçado, porque não tratam de exageração, se
conv
enientemente de qualquer pau ou árvore rente do caminho, roçando com odesviar corpo
pelos mesmos, e que mesmo em caso de cansaço atiram com ele para o solo, como quem
atira um fardo inútil; tornando-se i
morre em d nhumanos na verdadeira acepção da palavra. Se
espovoado, segue-se acto contínuo à morte o enterro de qualquer lado do
caminho, e fora do arraial, se é pessoa de alguma c
que chegam a porto de s onsideração; tendo lugar o óbito logo
alvamento; mas sendo algum desgraçado o cadáver é lançado
no mato a curta distância do arraial, e muitas vezes nem a tal
i ncómodo se dão, porque
o deixam ficar no arraial na mesma barraca em que faleceu, verificado o caso de que
seja dia de marcha; em povoado modifica muito um tal proceder. Seja qual for a
categoria do defunto, torna-se necessário que seja enterrado a grande distância das
povoações e a desoras a fim de não dar na vista dos estranfillhos; outros enterram o
cadáver na mesma barraca numa cova bastante funda, deitando fogo à mesma afim de
desviar suspeitas, pois que sendo um facto trivial o incêndio do arraial no povoado após
a saída da comitiva, jámais o povo da terra liga i
mportância a tal sucesso, e do qual
os viajantes têm lançado mão afim de se subtrairem às muitas despezas em casos de
semelhante ordem; na língua quimbunda designam a pessoa que morreu de
de Hibimbe. Máffaa e o
Remataremos com o que diz respeito a g
astrónomos. Se bem que seja regra geral,
os Bienos neste sentido excedem os mais selvagens, visto que os meios lho facilitam,
no caminho nada ab solutamente deixam de comprar
re lativamente a criações, carne de
toda a qualidade, mesmo em estado de putrefacção; mantimentos e
capata; esta bebem-
-na com grande sofreguidão e logo que chegam no arraial são os moleques ou molecas
que se ocupam da comida; uma a sair do fogo, tragada, e outra para o logar até ficar
pronta e ter o mesmo destino, e assim continuando alte
rnadamente; além disto, acrescem
os debiques, milho assado, torrado, cozido; e mandioca crua, assada e cozida; terminando
unicamente com o dar à boca, depois que se entregam ao repouso. Sendo a intemperança
um vício predilecto entre eles, não é raro no caminho
e ncontrar-se um bruto revol-
vendo-se no solo porque deseja evacuar, e se torne difícil tal meio; para obter este efeito
dão-lhe a beber pólvora dissolvida em água, ou então passam água no cano de qualquer
750
751
GLOSSÁRIO (*)

cto Colonial — Redigido por Quirino Avelino de Jesus (v.), este diploma adoptado
por António de Oliveira Salazar (v.) forneceu o quadro institucional utilizado pelo
«imperialismo colonial» do Estado Novo.
Agregados — Homens livres que se colocam voluntariamente na dependência dos
Portugueses, para levar a cabo operações comerciais no mato.
Alfange — Azagaia.
ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e (1753-1798) — Cientista, nascido no Brasil,
foi nomeado governador dos Rios de Sena (Tete), para proceder à ligação por terra
com Angola. Morreu na corte do Mwata Kazembe (lago Moero), acontecimento
que o impediu de concluir o projecto.
Amarrações — Capturas de escravos, atados com cordas ou encadeados com correntes
de ferro para os impedir de fugir.
Amázia — Amante, concubina. Os Portugueses nomeiam correntemente, desta maneira,
as mulheres que vivem com as autoridades africanas, casadas de acordo com as
regras africanas, embora o termo tenha um alcance mais geral, destinado a enselvajar
as relações conjugais africanas.
Amázias titulares — No caso dos chefes, as mulheres — esposas — principais.
Ambanza, Banza ou Mbanza — Povoação onde está instalado um chefe. Às vezes este
termo é utilizado para designar o próprio chefe.
Ambaquistas, Ambakistas ou Mbakistas — Os naturais de Ambaca — ou M'baka —
que se vestem à europeia e, em princípio, sabem ler e escrever, ocupando-se
principalmente de actividades comerciais.
Ame pika yove — «Sou teu escravo».
Amok — Loucura assassina estruturada, utilizada pelos Malaios.
ANDRADE, Elias Vieira de — Sertanejo que pertencia ao grupo de comerciantes
portugueses estabelecidos na região do Bié, os quais mantinham relações comerciais
quase regulares com o Loyale, na última década do século XVIII.

(*) Principais termos, expressões, personagens e acontecimentos citados no texto e cujo sentido não
é evidente para o leitor não familiarizado com a história angolana.

753
« rvore das patacas» —
Fórmula para designar uma árvore de país de cocanha,
permitia o enriquecimento rápido dos colonos. ZERRA, Lourenço — Mestiço angolano instalado na Corte lunda, e assegurando
Arimo — assim a ligação com a Feira de Kimbundo, especializada no comércio de marfim.
Terreno agrícola; horta ou campo cultivado, algumas vezes com uma cerc
Armador — nos ou Bienos — Os originários da região ou do território do Bié.
Aquele que fornecia mercadorias a crédito aos aviados ou aos po
Arrátel — mbeiro casse — Pedaço de tecido embebido no sangue de um animal (cabra, sobretudo),
Medida de peso hoje abandonada, equivalente a 0,459 kg. Equivale ao pes
da «libra» portuguesa. sacrificado nos rituais que precedem a organização e a partida das caravanas
Arroba — Unidade de peso de 15 kg. africanas (região do Bié).
ASSIS JÚNIOR, António de (1870-1960) — Mestiço angolano, jornalista, escritor O, Domingos de Abreu e — Funcionário da administração brasileira enviado a
advogado provisionário. Angola, em 1590-1591, para proceder a um inquérito sobre o comportamento do
Atabaque — Tambor monóxilo, coberto de couro e tocado recorrendo a capitão-donatário Paulo Dias de Novais.
malhetes de marfim. peq uenos ROCA, Paul (1824-1880) — Cirurgião e antropólogo francês, fundador da Escola de
Aviado — Antropologia de Paris.
Comerciante do mato, trabalhando com mercadorias fornecidas a cr
pelos seus colegas dos portos ou das cidades comerciais. édito RUE, Joseph Henri Ferdinand (1846-1937) — Professor de Paleontologia na École
Supérieur des Mines de Paris.
ulongo — Bebida utilizada nas ordálias.

BANDEIRA, Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, Visconde, Barão e Marquês de C


Sá da (...) (1795-1876) — Engenheiro e matemático de formação, elaborou os
decretos que pretendiam pôr termo às ideias coloniais do Antigo Regime: em 1834, abaca ou kabaka — Milho fermentado.
Cabeças — Termo utilizado para designar os escravos.
o decreto liberalizando o comércio do marfim; e a 12 de Outubro de 1836, o decreto
Caçados — Carregadores forçados a esta tarefa após terem sido capturados.
abolindo o tráfico negreiro. Decidido a fazer dos Africanos homens livres, Sá da
Cacuso — Pequeno peixe de água doce, que serviu como moeda no Nordeste angolano.
Bandeira também proibiu o transporte gratuito de cargas (1839). Um decreto de
CADORNEGA, António de Oliveira (?-?) — Soldado e mais tarde capitão, participou
1858 deu a esta actividade o golpe mortal, impondo a abolição da escravatura em
nos combates contra os Holandeses e contra a rainha Jinga. Instalado em Luanda
ì,11 todos os territórios portugueses ou sob dominação portuguesa.
Banzo ou fardo — em 1699, aí foi conselheiro municipal.
Fardo composto por mercadorias, destinadas ao comércio do mato. CAETANO, Marcello José das Neves Alves (1906-1980) — Professor de Direito,
BAPTISTA, Pedro João — Mulato angolano, pombeiro
escravo do comerciante Francisco sucessor de Oliveira Salazar à frente do governo, foi o último presidente do Conselho
Honorato da Costa (v.), que, tendo partido da Feira de Mucary, estabeleceu a da ditadura, preso e expulso do país pelo golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.
ligação por terra com Moçambique (Tete). Esta viagem de ida e volta [1802-1811 Morreu exilado e amargo no Brasil. Autor de vários estudos consagrados a África,
(Tete)-1814] está na origem do primeiro texto consagrado à descrição dos territórios estimava que os Africanos não passavam da força de trabalho bruta ao serviço da
Lunda-Kazembe, elaborado por um angolano.
Barreadas — inteligência branca.
Casas em taipa, proibidas em certas regiões que só permitiam construções Cafrealização ou gentilismo — Situação em que os Brancos renunciam aos valores
de madeira e de capim.
Bastoinz — Bastões, bengalas. civilizacionais brancos para adoptar as práticas africanas.
Beca ou beka — Medida de te Cafrealizado — Europeu que segue as práticas africanas. Sinónimo de enselvajado.
cido.equivalente a 32 jarda's. Caginga ou cajinga – A coroa do Jaga.
Beirame — Medida de tecido, que servia como moeda de conta.
Calçoinz — Calções; também parece indicar as ceroulas compridas.
Bekka — Palácio, capital.
Caixeiro — Empregado das casas comerciais, instalado no mato.
BELO, João (1876-1928) — Comandante da marinha de guerra, pr Calabaceira ou licondo — Servia para designar o embondeiro (Adamsonia digitata).
imeiro-ministro das
Colónias da ditadura militar (1926-1928). Calema — Agitação tempestuosa das marés.
BENEVIDES, Salvador Correia de Sá e (1602-1681) — Nascido no Brasil, foi o CAMACHO, Manuel de Brito (1862-1934) — Homem político, médico de formação,
comandante da expedição militar que expulsou os Holandeses do Norte de Angola, Alto-Comissário da República em Moçambique, em 1923.
em 1648, restabelecendo assim o poder português na colónia. Cambolação — Comércio praticado por via de um intermediário ou cambulador.
Bessa — Rapaz.
Cambonhas — Estatuetas representando uma pessoa ou uma divindade; aparentemente
754 qualquer tipo de estátua.

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Cambuladores — Veja-se Linguisteres.
Camundelles — Pretos calçados. HA, D. António Álvares, Conde da (?-1791) — Governador de Angola de 1753
Canhangulo — a 1758. Deve-se-lhe a preparação da expedição a Kasanje, missão confiada a
Trata-se das espingardas fornecidas pelo comércio branco, na sua mai Manuel Correia Leitão e a Francisco Grizante, em 1756.
parte lazarinas, decoradas pelos Africanos.
Capata ou kapata — HA, Joaquim Silva (1920) — Professor de Direito, ministro das Colónias de
Bebida feita com milho fermentado. Salazar, conta-se entre os teóricos do colonialismo repressivo português.
CAPELLO, Hermenegildo Carlos de Brito (1841-1917) — Oficial da marinha. Procedeu,
com Roberto Ivens, ao reconhecimento do Kwangu e das populações instalad
junto ao rio, assim como à travessia da África, em 1884-1885.
Capetal — Alimentos.
Capim — Toda a espécie de ervas.
Caquata — Delegado do rei. axa — Tributo pago pelo Estado de Kasanje aos Portugueses.
egredados — Os condenados à pena de degredo, em colónias de primeira ou de
CARPO, Arsénio Pompílio Pompeu do (1792-187?) — Nascido na ilha da Madeira, segunda classe. Esta pena era aplicada não só aos criminosos de direito comum,
liberal, desembarcou em Luanda em 1824, como deportado político. Rico comerciante mas também aos «crimes» políticos ou de consciência.
de Luanda, foi considerado um dos grandes negreiros do espaço Angola-Brasil. Foi, ELISLE, Guillaume (1675-1726) — Geógrafo que procedeu à elaboração da Carta
certamente, um dos modernizadores das práticas comerciais angolanas. de Angola de 1708.
Carrapato — Grãos de rícino.
IAS, António Jorge (1907-1973) — Antropólogo, ocupou-se, a partir de 1956, daquilo
Carta de chamada —
Carta-contrato, imposta pelas autoridades portuguesas, que que se veio a designar como sendo as «minorias étnicas», expressão que serve para
funcionava como passaporte, destinado a reduzir o afluxo desordenado de colonos. classificar as sociedades acéfalas, entre as quais os Makondes do Norte de Moçam-
CARVALHO, Henrique Augusto Dias de — Ver 1.a parte, cap. IV, 3. bique.
Casoule ou kasolo —
Bebida fermentada, preparada com milho e mel. INIZ, José de Oliveira Ferreira (1878-?) — Alto funcionário, participou no grupo que
CASTELBRANCO, Francisco — Historiador, membro das associações africanas de' estudou o Código do Trabalho Indígena. Membro do Partido Republicano, secretário
Luanda, colaborador da revista Angola, dos Negócios Indígenas de Angola e da Guiné e curador-geral de Angola durante
Catonde, cazaca ou massongo — órgão da Liga Nacional Africana.
Nomes dados aos milhos-painços. o primeiro mandato de Norton de Mattos.
Catondo — Membro do Conselho de Estado imbangala.
olo ou pande— Grande concha, que serve não só de decoração, mas também de moeda.
Cozo —
Casa onde se mantém o fogo aceso permanentemente, e onde são tratadas as ongo ou pika — Escravos comprados.
questões do Estado.
Doti — Medida de 4 jardas.
Chibombo, kimbombo, ou' llo, ualua ou walo — DOUVILLE, Jean-Baptiste (1794-1837) — Explorador francês. Após ter recebido a
Compound — Do malaio kampong, Bebida fermentada, preparada com milho.
serve para designar o espaço ocupado por um medalha de ouro da Sociedade de Geografia de Paris, as suas obras de África foram
comerciante ou um mineiro. fortemente contestadas, precipitando o seu autor no descrédito absoluto. A sua
CORRÊA, Elias Alexandre da Silva (1753-?) — Historiador brasileiro, autor da única falsificação dos dados é evidente, e o autor não foi reabilitado mau grado as tímidas
História de Angola do século XVIII, que só foi publicada em 1937. tentativas contemporâneas para o fazer.
COSTA, Francisco Honorato da (?-?) — Comerciante português, proprietário e comer- Dundu — Borracha.
ciante de escravos, tenente-geral das Feiras de Mucary e de Kasanje, nos anos finais
do século XVIII, princípios do século XIX. E
COUCEIRO, Henrique Mitchell de Paiva (1861-1944)
Oficial de carreira, foi
governador-geral de Angola em 1907, tendo renunciado ao cargo em 1909, por Empacassa ou pacassa — Búfalo.
estar em desacordo com o governo central. Ernpacasseiros — Tropas negras formadas inicialmente por caçadores de pacassas.
COUTINHO, Francisco Inocêncio de Sousa (?-?) — Governador de Angola de Maio Enduas — Casas destinadas à realização de certas operações mágicas (Imbangala).
de 1764 a Novembro de 1772, tomou medidas destinadas a assegurar o ENNES, António José (1848-1901) — Ministro da Marinha e do Ultramar, após o
desenvolvimento económico da colónia, incentivando a agricultura e fundando a Ultimatum de 1890, foi, em 1891, nomeado Comissário Régio em Moçambique.
fábrica de ferro de Nova Oeiras (1765). Organizou as campanhas militares no Sul de Moçambique, que arruinaram o poder
Côvado — Antiga medida de comprimento equivalente a 66 cm. dos Ngunis e criaram o herói nacional português, coronel Mouzinho de Albuquerque.
Cubata — Casa, palhota. Ensanda ou mulemba — Ficus.
Entanga — Tanga.
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I GIBI

Erombe ya sekulu — Anciãos da aldeia ou do clã.


Erombe ya soma — Descendentes da linhagem dos soberanos. mba — Carregador.
Estação — Trata-se das «estações civilizadoras» criadas no século XIX. AMITTO, António Cândido Pedroso (1806-1866) — Oficial de carreira, colocado em
Moçambique a partir de 1825, foi segundo-comandante da expedição que, sob as
Estado Novo — O Estado Novo foi fundado em 1933, tendo como objectivo t
formar a ditadura militar em ditadura civil, caracterizada pela organização co ordens de Correia Monteiro, chegou à corte de Kazembe em 1831-1832.
rativa. anda — Tributo anual.
arap a — Bebida fermentada.
arraz — Tecido branco engomado.
entios — «Os indígenas selvagens», conforme a definição dos dicionaristas da primeira
metade do século XIX.
Famorosas — Métodos de propaganda utilizados para atrair as clientelas africanas
eribita — Aguardente extraída da cana-de-açúcar e importada do Brasil.
algumas casas comerciais, situadas no interior de Angola. olambol e — Título militar africano, geralmente considerado como sendo o equivalente
Fazenda — Designa tanto os tecidos, as fazendas, como também a soma dos bens
de coronel.
um indivíduo. RAÇA, Joaquim Rodrigues — Comerciante brasileiro instalado em Golungo Alto,
Fazenda de lei — Mercadoria europeia servindo para o comércio no interior e que po onde procurava cultivar café, e que organizou, associado a D. Ana Joaquina dos
ser igualmente utilizada nos pagamentos oficiais. Santos Silva (v.), a embaixada oficiosa à capital lunda, em 1846.
FERREIRA, António Vicente (1874-1953) — Engenheiro militar, ministro das Colóni uerra preta — Forças auxiliares formadas por soldados africanos.
(1921-1923) e Alto-Comissário da República de Angola (1926-1928), tendo també
assumido a Presidência do Conselho do Império Colonial, de 1946 a 1953.
FERREIRA, Francisco de Salles — Comandante das expedições organizadas em meado
do século XIX pelas autoridades portuguesas para «submeter» os Imbangalas. H
Folhinha — Medida equivalente ao côvado.
FORJAZ, D. Manuel Pereira (?-1611) — Capitão-geral, governador de Angola de 160
a 1611, tendo imposto o tributo anual de 12 000 cruzados aos chefes africanos. amba (plural mahamba) — Objectos de culto habitados pelo espírito de um ante-
Durante o seu governo, Baltazar Rebelo de Aragão tentou fazer a travessia d passado.
continente africano. amba kwanza — Pequena representação de uma piroga (kwanza), que faz parte do
Funante — Pequeno comerciante do mato, funcionando como comerciante itinerante; cesto dos adivinhos quiocos, evocando os espíritos kwanza. O objecto indica que
FRANCISCO, Anastácio — Pombeiro preto, escravo de Francisco Honorato da Costa entre as pessoas que fizeram a travessia em companhia de um branco, alguma ficou
(v.) que acompanhou Pedro João Baptista (v.) na sua viagem de Kasanje a Tete na região, sendo a causa do malefício ou da doença.
(1802-1814). Hamba ndeke — Avião.
FREYRE, Gilberto de Mello (1900-1987) — Sociólogo e antropólogo brasileiro, que Hamba sitima — Caminho-de-ferro.
teorizou o luso-tropicalismo. Hibindas — Caçadores.
Fuba — Farinha de mandioca.
Fuka ou hafuka — Escravatura por dívidas.
FURTADO, Luís Cândido Pinheiro — Geógrafo militar, autor do mapa de Angola de
1790.
G Imbari — O espírito dos Europeus.
Galferi — Bandeira utilizada por uma caravana. Impala — Antílope.
Impoanes — Os Árabes da costa de Zanzibar.
GALVÃO, Henrique Carlos Malta (1895-1970) — Oficial de carreira, exerceu diferentes Impunga — Encarregado de uma comissão ou de uma mensagem do Jaga.
funções na gestão colonial portuguesa, entre as quais a de organizador da Exposição Indiana — Tecido de algodão pintado ou impresso, que se fabricava primitivamente na
Colonial (Porto, 1934), e de governador do distrito da Huíla (1946). Tendo passado
Índia.
para a oposição política, o deputado Henrique Galvão destacou-se pela apresentação
Indua — Ave (Musophoga rosae) muito procurada devido à sua plumagem vermelha.
à Assembleia Nacional de uma denúncia feroz dos métodos da gestão colonial
portuguesa. Infundi — Espécie de papa preparada com farinha de mandioca.
Interior — Mato ou sertão; as terras longe da costa.
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IVENS, Roberto (1850-1898) — Oficial da marinha, acompanhou Brito Capello (v.)
na expedição de 1878-1880, que permitiu proceder à cartografia dos rios Kwangu, Kilombo — Sociedade de iniciação de origem ovimbundo, destinada a agrupar os
Luando e Tchikapa. Entre 1884 e 1885, organizou, sempre em companhia de Brito guerreiros. Sede do chefe imbangala. Cidade-capital de Kasanje, onde estava instalado
o Jaga. Acampamento de caravanas. No Brasil: lugar de iniciação, onde se dançava,
Capello, uma nova expedição, que o levou, por terra, da costa ocidental, através
da Huíla, até Quelimane, em Moçambique. possivelmente danças religiosas africanas (séc. XVII, v. Gregório de Matos). Mais
tarde: instalação dos escravos fugidos, que serviu de base de resistência.
Kilulu — Espíritos dos antepassados.
Kilulu Sande — Bons espíritos.
Kimbalo — Comerciante.
Jaga — Título dos chefes políticos principais imbangalas. Kimbanda — Padre. Responsável religioso. Especialista de conhecimentos esotéricos.
Jagado — KINGURI ou QUINGURI — Príncipe lunda, fundador — real ou mítico — do reino de
Expressão criada a partir de jaga, para designar o território polftico dos
Imbangalas. Kasanje.
Jambo — Cubata
instalada no centro da aldeia, destinada às reuniões, às conversas e Kippampabala — Ladrão e bandido.
aos repastos dos homens. Kisanje — Piano manual, com teclas de ferro, que acompanha a maior parte dos
Jango, chota, njangu ou tsota — Casa dos homens. viajantes. Afirma-se ser o único instrumento musical de criação africana.
JESUS, Quirino Avelino de (1835-1935) — Antigo jesuíta, especialista das questões Kissoko — Na linguagem corrente significa confiança, familiaridade. Trata-se, de
coloniais, foi conselheiro do Prof. Oliveira Salazar, tendo, entre outros diplomas, maneira mais precisa, de um «pacto de aliança», graças ao qual duas ou várias
redigido o Acto Colonial
(v.), documento fundamental da política colonial portuguesa, pessoas se comprometem a respeitar um costume ou uma lei.
organizada pelo Estado Novo.
Jia dia panda — Kis(s)ongo ou quis(s)ongo — O responsável de uma caravana, mordomo, homem de
«Grande caminho». Estrada comercial, ligando a região de Kasanje confiança.
à Musumba, contorna os territórios imbangalas. Kraal — Palavra criada a partir de curral. Serve para designar os espaços onde se
Jibangalas ou Aquibangalas — Nome dado pelos
ambaquistas aos ambanzas. encerra o gado, seja recorrendo a cercas (enclosure), seja construindo estábulos.
Kupa — Fardos de tecido em forma de cubo.
Kwanza — Pequenas pirogas que se encontram no cesto dos adivinhos quiocos.

Kabaka — Milho fermentado.


Kalei — Intérprete.
Kalunga — Grande divindade aquática, associada sobretudo ao mar.
Kampakala ou maria segunda — Lazarinas — Espingardas de carregar pela boca, utilizando pederneira, muito procuradas
Grandes pérolas, muito estimadas pelos Lundas. pelos Quiocos, originalmente fabricadas em Braga e, mais tarde, principalmente em
Trata-se de pérolas vermelhas com pintas brancas.
Kandudu — Ídolo em tamanho natural fabricado com tecido. Liège.
Kapindji — Escravo. LEAL, Francisco Pinto da Cunha (1888-1970) — Engenheiro militar, presidente do
Kete —Medida Conselho de Ministros, reitor da Universidade de Coimbra, desempenhou um papel
da distância que vai da ponta do dedo indicador à articulação do polegar.
Kibâgala, Quinbangla, Bâgala, Bangala ou Imbangala — determinante na gestão política portuguesa até 1930. Criador do Banco de Angola,
As populações do reino de que dirigiu de 1927 a 1930, foi marginalizado pelo poder ditatorial e manteve-se
Kasanje. Encontramos, de novo, a incerteza da ortografia que já marcara o caso
dos Quiocos. na oposição até à morte. Muito ligado às escolhas políticas e económicas angolanas,
Kibilas — Escravos encarregados de guardar as quer directamente quer por intermédio do seu cunhado António Videira, advogado
kibindas.
Kibindas — em Luanda.
Os diferentes mausoléus onde são conservados os corpos dos Jagas.
Kikumba — LEITÃO, Manuel Correia — Sargento-mor (posto equivalente ao de coronel), foi
Parentes. Designa também os escravos comprados e destinados aos serviços
domésticos nas caravanas africanas. encarregado de reconhecer o território imbangala e o rio Kwangu, em 1756.
Kilambas ou quilambas — Lembas — Protectores, procuradores, credores.
Chefes ligados, com os seus «filhos», aos Portugueses. Em
troca dos serviços prestados recebem terras em regime de sesmaria. LEMOS, Alberto Jorge Júdice Ferreira de (1893-?) — Nascido em Angola, foi o
Kilolo ou quilolo — organizador dos Serviços de Estatística. Assegurou, de 1937 a 1957, a direcção do
Delegado do poder central lunda, junto dos chefes locais. Chefes
lundas. Arquivo Histórico de Angola (AHA).
Lençol — Este tecido representa, comercialmente, 4 jardas.
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LESSA, Almerindo (1909) — Médico, professor na Faculdade de Medicina do comerciais no interior do continente, a respeito das quais nos deixou informações
especialista de Seroantropologia e defensor apaixonado do luso-tropicalismo. fundamentais.
Liamba ou riamba — Trata-se de um alucinatório,
a Cannabis sativa. laba — Tecidos grosseiros fabricados com fibras obtidas com as folhas da palmeira
Libambo — Corrente destinada a prender os escravos.
mabela.
Libata — Casa no sentido africano, constituída por várias cubatas destinadas às multi
ango — Vara comprida.
Libungo — Uma vara comprida.
anuma — Cubata onde se encontram concentrados os regalia do Estado imbangala.
LIMA, José Joaquim Lopes de (1796-98?-1852) — Oficial da marinha, geógraf quita ou Makita — Filho do Jaga em exercício. Esta qualidade perde-se logo que
autor de vários estudos consagrados às colónias. o pai e jaga morre.
Linguisteres, lingsters ou cambuladores — arimbas — Xilofones.
Intérpretes, agentes das casas c omerc
que procuram atrair os clientes. arra ma kabaka — Espécie de cerveja preparada com milho fermentado.
LIVINGSTONE, David (1813-1873) — Missionário escocês, explorou a África aus arra ma masango — O mesmo tipo de bebida, mas feito desta vez com milho-painço.
e central, tendo combatido o tráfico de escravos. RTINS, Joaquim Pedro de Oliveira (1845-1894) — Administrador de empresa,
Loango — Esteira. homem político, polígrafo, adepto da venda das colónias e banalizador das teses
de antropologia física de Paul Broca e do darwinismo social.
LOPEZ, Duarte (?-?) — Instalado desde 1570 no reino do Kongo, foi enviado pelo
Álvaro I, como embaixador a Roma em 1582, tendo aí chegado em 1588. A Fili arufo ou maluvo — Vinho de palma.
Pigafetta fez a descrição de tudo o que tinha visto nessa região da África. asango — Milho-painço fermentado.
Lucano ou lukano — Pulseira real, símbolo do poder lunda, normalmente feita c assambala — Milho-painço.
veias humanas ou, mais raramente, animais. atêmo — Chefe dos Kibilas (v.).
Luconquesha ou Lukonkesha — A mãe simbólica do imperador lunda. ATTOS, José Mendes Ribeiro Norton de (1867-1955) — Militar de carreira,
desempenhou papel importante durante a I República (1910-1926); Governador-
Luso-tropicalismo — Noção criada por Gilberto Freyre (v.), afirmando que o colora -geral de Angola de 1912 a 1915, ministro das Colónias e da Guerra, de 1915
lismo português, ao recusar a cruz e o gládio, para optar pelo sexo e banalizan a 1917, e Alto-Comissário da República em Angola, de 1921 a 1923. Integrado
a mestiçagem, criou uma forma inédita de assegurar as relações entre os home na oposição política ao fascismo, Norton de Mattos, candidato à Presidência da
somaticamente diferentes. República em 1948, manteve-se intimamente ligado aos problemas angolanos até
Lweji ou Lueji — Personagem feminina central da história lunda que represen
à morte.
— na organização do poder — a mãe do primeiro Mwatyanvua. attocoanne ou mutocoanne — Erva que constitui uma espécie de narcótico; planta
alucinatória.
M baca ou mbaka — Nome dado às caravanas no Norte de Angola. Nome de cidade
angolana.
Mabela — Palmeira (Hyphoene guineensis). eirinho — Oficial de justiça que acompanhava os chefes.
Diz-se, por extensão, dos tecidos e das
esteiras fabricados com as fibras extraídas desta planta. MELLO, Jozé d'Assumpção e — Comerciante, um dos pioneiros que percorreu o
Macaia, macanha ou maconha, ou ricanha — Tabaco. território quioco, antes de 1789.
MACHADO, Custódio e Saturnino — Dois irmãos comerciantes, instalados durante muito MELLO, Miguel António de — Governador de Angola, 1797-1802.
tempo em Kimbundo, no Império lunda, onde a sua casa comercial foi o eixo do Mfumu zi ndundu — Grandes antepassados reincarnados.
comércio luso-africano da região, durante a segunda metade do século XIX. Milharadas — Fragmentos de milho.
Macota ou Makota — Milongo — Produto mágico-curativo, medicamento.
Título dado aos chefes mais importantes dos Imbangalas; chefe. Mingundi ou bigundi — Nome dado ao hidromel no território ambuela.
Macuale ou mucuale — Espécie de espada curta, de dois fios, utilizada essencialmente
Minzundo — É assim que no Bié se designa o mesmo hidromel.
pelos Lundas e lundaizados. Esta arma salienta a importância do combate corpo Missalo — Espécie de peneira cilíndrica destinada a purificar a Tuba.
a corpo, na ideologia militar lunda.
Maesu — Aquele que fala em primeiro lugar. Moleques — Crianças utilizadas no trabalho, sobretudo nos espaços domésticos; mas
serve também para indicar uma classe de idade.
MAGYAR, Lászlo Amerigo (1818-1868) — Oficial da marinha austro-húngara que Moluas, Moluvas ou Miluas — Nomes utilizados nos séculos XVII e XVIII para
desembarcou depois de outras viagens, em Angola, em 1848. Instalado no Bié, designar os Lundas.
aí foi obrigado a criar uma família africana, tendo organizado várias expedições Mondobi — Amendoins.
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ongoa-ia-puto — O sal dos Brancos.
MONTEIRO, Armindo (1896-?) —Professor de Direito, nomeado ministro das Colóni em vista a independência da «colónia». Os nativistas só começaram a perder a
em 1932. Armindo Monteiro foi um dos teóricos da ideologia colonial do Estado Nov importância política após a Segunda Guerra Mundial.
VES, António Rodrigues (?-?) — Subchefe da expedição militar enviada a Kasanje em
MOREIRA, Adriano (1922) — Professor de Direito, ministro do Ultramar de 1961
1962, soube utilizar a perturbação provocada pelo começo da guerra de guerri 1850-1851, onde acabou por se instalar como comerciante e como director da Feira.
em Angola, para revogar o tristemente célebre Estatuto dos Indígenas. gaji — Juiz.
Mpemba, pemba ou impemba — ganga — Especialista dos saberes ligados à religião e à medicina.
os espíritos. Argila ou caulino branco que assegura a relação co
Muana ou muene — Chefe.
Muanangana — Chefes autónomos. o
Mubica ou mubika — Escravos.
Mucano ou milonga —
Expressão que serve para designar simultaneamente o crime Ongaje — Uma espécie de árvore.
o delito, assim como o castigo ou a multa. Ongilla ou ossole — Pássaro-do-mel.
Muceque —
Cidade africana, instalada na periferia das cidades brancas; uma espéci
de bairro de barracas.
Mucha — Cilindro de palha.
Mucongo ou mukongo —
Tecido servindo de moeda.
Muene Puto —
O rei de Portugal e por extensão o governador de Angola. Pango, liamba ou diamba — Erva alucinatória.
Muginha — Algodão.
Panos da costa — Tecidos multicores.
Mugungos — Pardos — Termo criado para designar, no século XV, os não-brancos e os não-pretos.
Brancos. Às vezes também se aplicava aos mestiços.
Mukanda — Mensagem, carta. Mais tarde, foi utilizado para indicar os Índios do Brasil e, finalmente, os mulatos.
Mukata — Embalagem para o transporte de sal.
Parentesco perpétuo — Esta noção serve para mencionar a prática lunda que organiza
Mukolo — Corda fina de ráfia. o poder político em função de uma linha de parentesco inamovível. Os cargos
Mulele — Tecido de ráfia. políticos são aparentados entre si, mas não os titulares desses cargos.
Mundele — Branco, homem de cor branca.
Pawn — Homem ou mulher empenhado.
Mungala — Imbangala.
Pawn ship system — Designa a situação provisória da escravatura por dívida, podendo
Mururo — todavia tornar-se definitiva, no caso de a dívida não ser paga.
Aquele que se encontra abandonado, excluído de qualquer parentesco.
Musumba —
Nome dado à capital lunda que, na maior parte dos casos e das épocas, Peça — O escravo-mercadoria.
era itinerante. Foi destruída em 1887 pelos Quiocos. Um grande número de chefes PIGAFETTA, Fillippo (século XVI) — Escritor italiano que deu forma literária à
lundas procurou construir cidades respeitando o mesmo esquema urbanístico, em narrativa oral de Duarte Lopez.
forma de tartaruga. Pintado — Tecido branco com flores.
Mutala — PINTO, Alexandre Alberto da Rocha Serpa (1846-1900) — Encarregado por Andrade
Espécie de cama apoiada em quatro forquilhas verticais.
Mutopa — Corvo de dirigir uma expedição científica em África, atravessou as regiões do curso
Cachimbo de água, utilizado, sobretudo, para fumar maconha.
Muxa — Medida de sal. superior do Zambeze, para alcançar, em 1877, as Quedas de Vitória.
Muxiluanda ou Mushiluanda — Pombe — Bebida fermentada preparada com milho.
Populações da ilha de Luar-Ida. O nome alargou-se ao
conjunto das populações instaladas em Luanda, assim como aos que nascem na cidade. Pombeiro ou pumbeiro — Comerciante do mato, agente itinerante de uma casa comercial.
Muzambazes ou moçambazes — Em princípio devia ser um agente branco, mas os textos mostram ter havido
ocidentais. O equivalente, nas regiões orientais, dos pombeiros
sobretudo pombeiros pretos e mulatos.
Mwatyanvua, Mathyanvo, Matianvo ou Matiânvua — PORTO, António da Silva (1817-1890) — Tendo primeiro emigrado para o Brasil,
O imperador lunda. acabou por se instalar em Angola na década de 1830, provavelmente devido ao
clima antiportuguês posterior à independência do Brasil. Comerciante no Bié,
dispunha de grande prestígio entre os Africanos. Suicidou-se, considerando que os
Nativistas — «indígenas» lhe tinham faltado ao respeito.
Termo que serviu para designar os Africanos que, a exemplo do Brasil,
exaltaram os valores nacionais, procurando, sobretudo, expulsar os colonos, tendo Potentados — Maneira utilizada, em geral pelos Portugueses, para designar os chefes
764 africanos mais importantes.
765
— nstalações de carácter militar, às quais esteve quase sempre associ
uma função comercial; por vezes, mas r corporativo e deu coerência à teoria colonial portuguesa, o que permitiu endurecer
Pumbos ou ',ambos — aramente, religiosa. o tratamento dado aos Africanos e prolongar a guerra colonial.
Pungo — Sardinha. Mercados do interior.
ambos — Conchas. A palavra também serve para designar jóias de ferro ou de
cobre.
amos, dolos — Falsos cauris.
ANTOS, D. Ana Joaquina dos — V. SILVA.
Q
ekulu — Os antigos, respeitados como chefes.
Quiaça — Bebida misturada com mel.
enzala ou sanzala — Conjunto de habitações pertencentes a um fragmento ciâ-
Quiambole — nico.
Quiangala — Título dado aos chefes militares do Jaga; vassalo. erralho — Harém.
Quibucas — NomeÉpoca entre a estação fria e a estação das chuvas.
dado às c ertanejo — Comerciante do interior, isto é, do mato ou do sertão.
aravanas no Sul de Angola.
Quicullos — Ossos dos antepassados. erviçal — Criado. Empregou-se, sobretudo, para designar os trabalhadores contratados,
Q uimbangalas —
Homens capazes de pegar em armas. quer o contrato fosse voluntário quer obrigatório.
Quimbares — ILVA, D. Ana Joaquina dos Santos — Comerciante e personagem central da cidade
Negros livres ou libertos que vivem junto dos
Quindure — Dependente. Brancos. de Luanda no segundo quartel do século XIX.
Quingunde —
Hidromel em território quioco. Soba ou sova — Chefe de um fragmento do clã, exercendo a sua autoridade sobre os
Quintalões — chefes subordinados.
Espaços, nas traseiras dos prédios co
os escravos destinados ao tráfico. Quintalões merciais, onde eram concentrados Sobeta — Chefe secundário, instalado nas terras, ou conselheiro de um soba.
Quirama — de B enguela.
Tecido de algodão que equivale a 8 jardas. SOROMENHO, Fernando Monteiro de Castro (1910-1968) — Filho de português e de
Quitandeiras — Mulheres co cabo-verdiana, começou por ser agente da Diamang, encarregado de angariar
Quituxes ou q uituches — merciantes nos espaços urbanos. trabalhadores, tendo sido também funcionário administrativo (aspirante a chefe de
Crimes.
Quixinda ou kixinda — posto). Mais tarde editor e escritor. Morreu no exílio, em S. Paulo.
Escravos.
SOUSA, Luciano Baptista Cordeiro de (1844-1900) — Homem político. Criou, com
seu irmão, a SGL. Delegado técnico à Conferência de Berlim.
R
Raiunas — E spingardas antigas.
Real (plural réis) — Moeda
p ortuguesa, substituída em 1910, após a
República. proclamação da Tabalha — Tambor de madeira sobre o comprido.
Rebeca — Espécie de violino.
Talyanga — Feitiçaria organizada por estrangeiros.
Reduto — Instalação militar. TEIXEIRA, Alexandre da Silva — Originário de Santarém, conta-se entre os criadores
Regalia — Símbolos do poder. do comércio com o Lovale nos anos finais do século XVIII.
Régulo —
Chefe. O termo foi sempre mais utilizado na Guiné e em Tembo ou djamba — Elefante.
vezes em Angola. M oçambique, raras Tendalla — Membro do Conselho de Estado imbangala.
Ricongo ou rikongo —
Homem. • Tornado — Surto de vento muito violento. Para alguns é considerado como uma espécie
Rilunga — O ceptro dos Jagas.
de sinónimo de tufão.
Riscado — Tecidos de algodão riscado.
Tropas — Caravanas comerciais ou científicas.
Tshibinda Ilunga — Caçador luba, herói cultural, considerado como o fundador do
Império lunda.

S
ALAZAR, António de Oliveira (1889-1970) — Ministro das Finanças em 1928,
presidente do Conselho de Ministros de 1932 a 1968. Criou o Estado Novo Uakongo-an-djamba — Caçadores de elefantes.
766 Uitchi — Mel.

767
e uma medida polftica inglesa — 11 de Janeiro de 1890
impondo aos Portugueses o abandono das terras dos
Upanda — Medida de 2 jardas. Matebeles, na costa oriental
Upite —
Riqueza, representada nos tempos modernos por moedas metálicas.
Uonde — Colmeia. a riqueza era representada por mulheres e escravos.
Anteriormente

VALDEZ, José Lúcio Travassos (1787-1862) — Chefe do governo em 1839, foi, no BIBLIOGRAFIA
fim da guerra civil, em 1846, deportado para Angola.
Vatira ou shimbika ou
tombika — A bibliografia está organizada em três partes: fontes, estudos, instrumentos de trabalho.
escolha o seu proprietário. Mecanismo que permite que o escravo mude ou
As fontes estão distribuídas por três secções:
Vendilhões — Pequenos vendedores.
— Os manuscritos, consultados nos diferentes arquivos e bibliotecas identificados,
oram organizados respeitando o critério adoptado por cada uma destas instituições, para
acilitar a consulta do leitor interessado.
— As fontes publicadas, definidas como tais com base num critério directamente
WELWITSCH, associado à cronologia do texto, foram organizadas por autor e apresentadas com mais
1853 a 1860.Friedrich (1806-1872) — Botânico que estudou a flora angolana de ormenor sempre que são objecto de referência directa no texto.
— Os documentos, cuja recolha integrou os textos citados de maneira autónoma, por
X terem sido utilizados directamente neste trabalho, assim como alguns outros, cuja
importância para o período considerado é reconhecida.
Xuabo(s) ou chuabo(s) —
Não dispomos de fontes orais. Procurámos compensar esta quase lacuna, conservando
trocas. Peças de tecido de algodão, que serviam como moeda nas
todas as informações, mesmo as mais ínfimas, retidas pelos viajantes a partir dos primeiros
anos da segunda metade do século XVIII.
Esta informação foi confirmada ou reforçada pelos investigadores e pelos antropó-
logos do século XX, alguns dos quais se mostram particularmente atentos às «tradições»
Zongo lya mungwa — Salina.
orais (Redinha, Bastin, Lima, Areia, Santos, entre outros).
Zuarte — Tecido sarjado, azul.
A segunda parte é consagrada aos estudos — publicados ou inéditos — que reúnem
Zumbis ou Nzumbis —
Os espíritos dos antepassados. trabalhos, obras, artigos, publicações escritas de diferentes qualidades, que alargam o
Zungais — Terrenos de aluvião.
espaço consagrado à palavra directamente africana.
A terceira parte assinala os instrumentos de trabalho indispensáveis ao historiador:
dicionários, enciclopédias, gramáticas, periódicos, atlas e outros materiais.
Não recusamos, de maneira alguma, a contribuição da iconografia, seja a estatuária,
particularmente a dos Quiocos, sejam os desenhos e a fotografia, sobretudo a colecção de
placas de vidro, propriedade da Diamang, da autoria do Capitão Sertório de Aguiar que,
na expedição organizada por Henrique de Carvalho, tinha a seu cargo a realização das
fotografias. Agradecemos a Alfredo Margarido ter-nos confiado uma cópia dessas
fotografias.
É necessário adicionar as fotografias e os desenhos de um grande número de
publicações consagradas a estas populações, que nos permitiram resolver dificuldades
ligadas à distribuição dos espaços ou às técnicas de transporte, por exemplo. Devemos
acrescentar aos nomes de Henrique de Carvalho, Hermenegildo Capello e Roberto Ivens,
os de José Redinha, Marie-Louise Bastin, A. G. Mesquitela Lima, Manuel L. Rodrigues
768
de Areia.
769

ss ve c ERCURSOS DA ODERNIDADE EM ANGOLA
onsultar os arquivos belgas, tal como o nosso mau conheciment
do alemão nos obrigou a recorrer a citações ou a traduções - Mappas e Informações dos Oficiais, 1853.
de Lászlo Magyar, a tradução portuguesa, o p arciais. Utilizámos, no cas
de Inv - Alfândega, Importação de Pólvora, 1870-1891.
rganizada sob a direcção do Centro Nacion 5 - Estatística, Navios Entrados e Saídos, 1842-1843.
que nosestigação e Documentação
foi confiada pela Dr.' C Histórica (hoje Arquivo Histórico Nacional de Angola) 07 - Administração de Angola, 1859.
onceição Neto. Ser
da descrição, em húngaro, da sua viagem à Lunda, vimo-nos
em também da versão portugu - Informações, Processo de Militares e Funcionários Civis.
anexo. 1 850-1851, que pu es
blicamos em
4 - Angola - Sala 12 - Livros de Registo de Angola
Fontes vro 1 - (1835-1837) - 680.
vro 2 - (1840-1844)- 679.
I. Manuscritos vro 4 - (1848-1850)- 676.
vro 5 - (1850-1854) - 675.
A. 'vro 6 - (1854-1855) - 674.
Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
o 7 - (1856-1857) - 672.
1 - Angola - 1." Secção vro 9 - (1859-1861) - 670.
Caixa 164 -1830. vro 10 - (1861-1864) - 673.
Caixa 165 -1830.
Caixa 166 -1830. 5 - Códices de Angola
Caixa 167 -1830.
Caixa 168 -1830. .° 543 - Cartas régias e ofícios para diversas autoridades de Angola, 1830-1833.
Caixa 177 -1833-1837.
6 - Informações Semestrais de Militares
2 - Conselho Ult ramarino -
Direcção-Geral do Ultramar Angola.
Angola. Pasta 1 - 1853-1855.
Pasta 5 - 1853. Pasta 2 - 1856.
Pasta 8 - 1854. Pasta 3 - 1857-1858.
Pasta 12 - 1855.
Pasta 17 - 1856. 7 - Estatística - Alfândegas
Pasta 22 - 1857.
Pasta 23 - 1857. Angola.
Pasta 28 - 1858. Pasta 1 - 1843-1846.
Pasta 34 - 1859.
Pasta 35 - 1859. 8 - Correspondência dos Governadores de Angola - 2." secção
Pasta 37 - 1860.
Pasta 41 - 1861. Pastas 1A, 1B (1834-1837).
Pasta 43 - 1862. Pastas 2A, 2B, 2C - (1838-1839).
Pasta 48 - 1864. Pastas 3A, 3B, 3C (1840).
Pasta 54 - 1865. Pastas 10A, 10B (1846).
Pasta 59 - 1866. Pastas 11A, 11B (1846).
Pasta 60 - 1866. Pastas 12, 13 - (1847).
Pasta 64 - 1867. Pasta 15 - (1849).
Pasta 67 - 1868. Pastas 16, 16A (1850).
Pastas 17, 17A (1851).
3 - Angola - Sala 12 - Maços de Angola Pastas 18, 18A (1852).
9 - Al fândegas, Mappas Pastas 19 (1), 19 (2) (1853-1854).
82
812- 827 - de Importação-Exportação, 1858-1860. Pasta 20 (1854).
Papéis do Marquês de Sá da B
857 andeira. Pasta 21 (1855).
- Alfândegas, Mappas dos Valores de Importação-Exportação, 1870-1894. Pastas 22, 22A - (1855-1856).
Pastas 26, 27 (1860).
770 Pastas 30, 31 (1862).

a —(1864).
Pastas 34, 35 — (1865). Consulado Português em Roterdão e Antuérpia, 1806-1834, 1 Caixa, 1.53.59.
Pasta 36 — (1866). Correspondência dos Consulados e Legação de Portugal no Brasil, 1830-1850, 7 Caixas, 1.53.12.
Pasta 37 — (1867). Correspondência da Real Junta do Comércio com os diferentes consules de Portugal no estrangeiro,
Pasta 38 — (1868).
Pasta 40 6-1834, Maço 53, 1.53.124.
— (1869). Legação de Portugal no Rio de Janeiro «Correspondência da Legação para a Secretaria de Estado
Pasta 41 —(1870).
Pasta 42 Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa», anos 1847 a 1850, Caixa 201, N.° 12136.
— (1871-1872).
Pasta 48 — (1878).
2 — Outros Fundos

9 — Angola — Diversos «Balanço Geral do Comércio do Reino de Portugal com os seus domínios e nações estrangeiras»,
uscrito da Livraria, N.° 1899.

«Dados Etnográficos sobre os Povos de Caçange (Duque de Bragança)», 1846, Caixa 608. Conselho da Fazenda
926. «Mapas de Importação e Exportação da Alfândega de Benguella», Janeiro-Fevereiro 1856, «Registo do Regimento da Alfândega da Cidade de S. Paulo de Angola», 1799, 1 Livro, N.° 664,
Cai 2.106.
«Mapas de Importação e Exportação da Alfândega de Loanda», Fevereiro-Maio 1856, Caixa 9
608. «Mapas de Importação e Exportação da Alfândega de Loanda», Janeiro-Abril-Maio 1846, Junta do Comércio
Cai «Mapa Geral da Alfândega do Porto, 1788-1791», N."' de Ordem 216A, 216B, 216C, 216D.
884. «Mapas de Importação e Exportação da Alfândega de Loanda», Junho-Julho-Agosto 1855, «Resumos (primeiros e segundos) de importação e exportação de Portugal com o Brasil (...) África
Cai nações estrangeiras, 1799-1831», Maços 301 a 308, N." de Ordem 425 a 437, 1.40.38.
«Mapas de Importação e Exportação
Janeiro 1856, Caixa 908, Doc. 31. da Alfândega de Loanda», Novembro-Dezembro 1855

«Mapa das Mercadorias Exportadas pela Alfândega de Loanda nos anos de I861-1865», Caix
642 (1867). Biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros (Lisboa)
«Mapa dos Rendimentos dos Dízimos nos Anos de I858-59», Doc. 55, N.° 631 (1860).
Arquivo
117. «Memória Histórica sobre o Certão de Cassange por Francisco de Salles Ferreira», N.° 823, Doc.

«Respostas às perguntas exigidas em offício do Ilmo. Senhor Secretário do Conselho Ultramarino,' Os documentos anteriores a 1850 constituem o Fundo do Ministério dos Negócios Estrangeiros
datado de 30 encontram-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
826, Maço 22,deDoc.
Setembro
122. de 1852 ao major Francisco de Salles Ferreira», 22 de Março de 1853, N.° «Correspondência (despachos numerados) enviada pelos Secretários de Estado dos Negócios
«Resumo dos lançamentos trangeiros para a Legação Portuguesa no Rio de Janeiro», 1849-1859.
Província de Angola, 1858-1859,do
N.°Dízimo
55. dos Concelhos do interior nos anos abaixo mencionados», «Correspondência da Legação (Embaixada) Portuguesa no Rio de Janeiro (Brasil) e Consulados
926. «Tabelas Demonstrativas do Rendimento da Alfândega de Benguella», Abril-Maio 1856, Caixa de Portugal no Rio de Janeiro», 1850, Pasta 1850-1852.
«Correspondência da Legação de Portugal no Rio de Janeiro para o Secretário de Estado dos
«Tabelas Demonstrativas do Rendimento da Alfândega de Benguella», Negócios Estrangeiros em Lisboa», 1851-1853, Cx. 202.
1856, Caixa 948. Junho-Julho-Agosto-Setembro «Correspondência do Ministério da Marinha e Ultramar para a Secretaria de Estado dos Negócios
«Tabelas
Caixa 927. Demonstrativas do Rendimento da Alfândega de Loanda», Março Estrangeiros», 1850-1853, Cx. N.° 882 e 1854-1857, Cx. N.° 883.
-Abrilo 1856,
«Tabelas
Caixa 908. Demonstrativas do Rendimento da Alfândega de Loanda», Novembro Biblioteca Nacional de Lisboa (Lisboa)
-Dezembro 1855,
Reservados
B. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa) •
ANDRADE, Elias Vieira, «Carta ao Governador de Angola sobre o exame da natureza, suavidade,
agricultura da terra, que lhe mandou fazer, 18 Novembro 1797», Sambos, Res., Cod. 1687, Fl.
1 — Ministério dos Negócios Estrangeiros
110--112.
«Breves Reflexões acerca do tráfico da escravatura pelo governador-geral da Província de S.
Arquivo da Legação de Portugal nos Países Baixos
Tomé», Res., Cod. 8555, Fl. 18.
«Mapas do Comércio entre Portugal e os Países Baixos I825-1844», Maço 125, 1.53.57. «Catálogo dos Governadores do Reino de Angola c. 1758-1807», Res., Cod. 8554, Fl. 119-212.
Balança
ComissõesGeral do Comércio dos Reinos de Portugal, Anos de 1777, 1778, 1808.
Mistas «Comércio da Africa Portuguesa», Res., Cod. 600, Fl. 103v.
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Luso-Brasileira, 1842-1850, 3 Caixas. DIAS, Luís F. Carvalho, «Memória sobre os productos do contracto de Angola que dá huma ideia clara
Rio de Janeiro, 1837-1840. da facilidade e do lucro com que ele pode ser administrado pela Real Fazenda, 1769», Res., Cod..
8554, Fl. 99-101.
772
773
8554, Fl. 103-115v rmação do Reino do Congo 1793-1795», Luanda, Res.,
- «D 2/182-2-4-18. Cambambe. «Registo de Correspondência», 1856-1857.
- «Doocumentos vários, 1651-1807», Res., Cod. 8554.
cumentos vários, 1759
14/125-3-3-10. Luanda. «Curadoria dos Negros Libertos», 1845.
- « -c.1800», Res., Cod. 8553. 17/138-3-3-23. Luanda. «Junta Protectora dos Escravos Libertos», 1861-1870.
Estatística Geral dos Navios Mercantes Nacionais 35/63-4-2-4. Massangano. «Correspondência», 1865-1867.
Continente e Ilhas A Ma triculados nas Diferentes Praças do
- « Instrução do djacentes, 1864», Res., JC, Maço 34, N.° 7. 52/80-4-2-21. Cambambe. «Registo Matrícula do Indígena e Família», s. d.
Go 3/5-5-1-5. Cambambe. «Administração do Concelho. Registo de Testamentos», 1878.
vernador, 1833», Res., Cod. 600, Fl. 160.
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i mportação e exportação entre Portugal,
domínios e o Rio de Janeiro no ano de 1852 do 75.
Cod. 11490. G overnador Geral Co
nselheiro (...), 1852 », R 16/28-5-1-28. Malange. «Concelho de Malange. Diário de Expedição Portuguesa à Lunda», 1890.
- «Relação dos d
egredados para Angola, 1822», Res., Cod. 857, Fl. 183-193. 33/145-5-2-58. Malange. «Comissão Municipal. Correspondência Diversa», 1857, 1893, 1894.
80/288 5-4-42. Luanda. «Administração. Correspondência Diversa», 1858.
07/315-5-4-69. Luanda. «Livro de Contas de Várias Casas», 1895-1896.
E.
Biblioteca Pública Municipal do Porto (Porto) 10/318-5-4-72. Luanda. «Comarca. Registo de Escravos», 1855.
98/406-5-6-12. Luanda. «Alfândega. Registo de "Termos de abertura de cargas" dos Navios de Alto
PORTO, António Francisco Ferreira da Silva, « undo», 1875-1888.
Viagens e Apo ntamentos de um
Portuense em Alije 14/422-5-6-28. Malange. «Administração. Registo de Correspondência», 1827-1931.
vol.
de D I.' (de 15 de Maio de 1846 a 30 de Abril de 1854); vol. 2.° (de 1e Mao de 1854
i 21/429-5-6-35. Luanda. «Registo de Contas de Diversas Casas Comerciais», 1866-1868.
ezembro de 1862); vol. 3.° (de 1 de Agosto de 1862 a 30 de Abril de 3
1 de Janeiro de 1863 a 3 de Junho de 1864); vol. 4.° (de 1866); vol. 3 .°is 07/53-6-1-53. Catumbo. «Journal de Voyage. Expédition de Catumbo au Kavango et à la frontière du
1 de Maio de 1866 b a(
de 1868); vol. 5.° (de 1 de Março de 1868 a 30 de Abril de a ongo Belge», 1907. Par P. Saux.
1869 a 30 de Junho de 1872), Res. ms. 1235-1241. 1869); vol. 6.° (de2 91 de 08/54-6-1-54. Barra do Bengo. «Registo de Escravos», 1855-1884.
de Maio
512/58-6-1-58. Luanda. «Registo das Cartas de D. Miguel António de Mello», 1797-1827.
2514/60-6-1-60. Luanda. «Governo Geral. Concessão de Passaportes», 1846-1847.
E 2528/74-6-2-3. Pungo-Andongo. «Registo de Escravos», 1855.
Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa (Lisboa)
2538/84-6-2-13. Golungo. «Comando do Zenza. Registo de Escravos», 1855.
«Cidade de São Paulo de A 2541/87-6-2-16. Libongo. «Comando. Registo de Escravos», 1854-1855.
ssumpção de Loanda aos vinte e quatro dias do mês de Março de 2552/98-6-2-27. Cambambe. «Comissão Municipal. Registo de Licenças», 1870-1871.
« oitocentos e quarenta e oito». Res., Est. 145, Pasta A, N.° 21. mil
2653/56-G(1)-4-3. Cassange. «Registo da Feira», 1890 (?).
Memórias sobre o Estado Actual d'África ocidental, seu comércio com Portugal e medidas que conviria 2854/56-G(4)-3-6. Luanda. «Junta Protectora dos Escravos Libertos. Actas das Sessões», 1864-1869.
adoptar-se em 1841», Lisboa, 1841.
PINHEIRO, Visconde de, Relatório co 2858/60-G(4)-3-10. Tala-Mugongo. «Correspondência Expedida», 1883-1889.
de Angola (...) 13.12.53, nfidencial sobre os negócios de Cabinda pelo governador geral 2861/63-G(4)-3-I3. Malange. «Secretaria da Junta da Fazenda. Correspondência Expedida», 1877-1880.
Sociedade de Geografia de Lisboa. 3018/41-G(5)-2-20. Pungo-Andongo. «Presídio. Correspondência Expedida», 1797-1809.
PORTO, António Francisco Ferreira da Silva,
Fevereiro de 1888), vol. 1.° [ En Copiador de Cartas (17 de Janeiro de 1871 a 29 3031/54-G(5)-3-4. Malange. «Governo. Correspondência Expedida», 1868-1870.
cadernado], Res. ms. 2-B-30. de 3035/58-G(5)-3-8. Golungo Alto. «Registo de Escravos», 1853.
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G. Centro Nacional de Do
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capuccini, accuratamente compilata dal p. Gio Antonio Cavazzi da Montecuccolo sacerdote
capuccino, ii quale vi fu' prefeyto. E nel presente stile ridotta dal p. Fortunato Alamandini da COUTINHO, D. José Joaquim da Cunha de Azevedo, Análise sobre a justiça do comércio do resgate
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Furtado e pelo tenente de mar António José Valente, em que se nota a marcha feita nos sertões «Notícia da campanha e paiz do Mosul que conquistou o sargento-mor (...) do anno de 1790 até
limítrofes pelo S princípio do anno de 1791», Annaes Maritimos e Coloniaes, Lisboa, n.° 4, 1846, pp. 127-133.
argento-mor Gregório José Mendes, tudo por ordem do (...) Barão de Moçamedes,
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governador e capitão general do reino de Angola e suas conquistas, desenhado por Luís Cândido
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Memória histórica e política sobre o commercio da escravatura entregue Maritimos e Coloniaes (parte não official), Lisboa, 6." série, n.° 2, 1846, pp. 127-133.
no dia 2 de Novembro de 1816 ao Conde Capo d'Istria (...), Ministro do Imperador da Rússia «Notícia da cidade de S. Filipe de Benguella e dos costumes dos gentios habitantes daquelle
por — (depois Conde de Porto Santo), Enviado Extraordinário de Portugal em S. Petesburgo, Sertão», Loanda, 10 de Novembro de 1797, Annaes Maritimos e Coloniaes (parte não official),
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do offício do (...) governador de Angola e suas
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presídio de Caconda, a fim de abrir corr LIMA, José Joaquim Lopes de, Ensaios sobre a Estatística de Angola e Benguella e suas dependências
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Revista militar, Lisboa, desde 1848.
Revista Portuguesa Colonial e Marítima, Lisboa, 1897-1910.
Studia Africana, Barcelona, desde 1990.
Studia, Lisboa, desde 1958.
Revue Française d'Histoire d'Outremer, Paris.

ÍNDICE DOS MAPAS

A. Populações e quadros geográficos

Mapa I Mapa etnográfico de Ferreira Diniz, 1918 649


Mapa II — Distribuição das populações do Nordeste (Bastin, 1961) 650
Mapa III Mapa etnográfico actualizando a proposta de Ferreira Diniz (Lima, 1970) 651
Mapa IV As populações da Lunda (Diniz, 1918) 652
Mapa V A bacia hidrográfica e o relevo (World Atlas, 1976) 653
Mapa VI A «mãe das águas» (Redinha, 1955) 654
Mapas VII O meio físico: geomorfologia e temperaturas 655
Mapas VIII O meio físico: pluviosidade e vegetação 656

B. Viagens
e conhecimentos cartográficos (séculos XVIII-XIX)

Mapa IX — Mapa simplificado de Deslile (1708) (Mota, 1964) 659


Mapa X — Mapa de Bourguignon d'Anville (1732) (Mota, 1964) 660
Mapa XI — Mapa de Pinheiro Furtado (1790) (Mota, 1964) 661
Mapa XII — Mapa simplificado de Pinheiro Furtado (1790) (Mota, 1964) 662
Mapa XIII — Viagem de Lacerda e Almeida (1798) (Santos, 1988) 663
Mapa XIV — Viagem de Pedro João Baptista e de Anastácio Francisco (1802-1811) (Mota,
1964) 664
Mapa XV — O conhecimento da África austral em 1819 (Santos, 1988) 665
Mapa XVI — Mapa de Bowdich (1822) (Santos, 1988) 665
Mapa XVII — Mapa de Brue executado a partir de informações de Douville (1832) 666
Mapa XVIII — Viagem de Joaquim Rodrigues Graça (1843-1846) (Mota, 1964) 667
Mapa XIX — O conhecimento da África austral em meados do século XIX (Santos, 1988) 667
Mapa XX — Mapa simplificado de Arrowsmith elaborado a partir das informações da via-
gem de Livingstone (1853-1856) (Mota, 1964) 668
Mapa XXI — As viagens de Silva Porto e dos seus pombeiros (1839-1890) (Santos, 1988) 669
Mapa XXII — Angola. Mapa elaborado sob a direcção de Sá da Bandeira e de Fernando da
Costa Leal (1863) (Santos, 1986) 670
Mapa XXIII — Os itinerários das viagens de 1802 a 1888 (Bastin, 1961) 671
Mapa XXIV — A África austral tal como a descreve Henrique de Carvalho (1890) 672

C. A presença portuguesa em Angola no século XIX

Mapa XXV — A Angola «portuguesa» em 1845-1848 (Pélissier, 1977) 675


Mapa XXVI — A penetração no Nordeste (1848-1878) (Pélissier, 1977) 676
826
827
Mapa XXVII — A penetração em território lunda nos fins do século XIX (Pélissier, 1977) 676
Mapa XXVIII — Situação da ocupação portuguesa em 1878 e 1906 (Pélissier, 1977)
677

D. Kasanje. Imbangalas e Portugueses no século XIX

Mapa XXIX — O espaço imbangala (Diniz, 1918)


Mapa XXX 681
— O caminho seguido por Kinguri (segundo a proposta de Miller, 1971) 682
Mapa XXXI — O reino de Kasanje (segundo a proposta de Miller, 1971)
Mapa XXXII 683
— A encruzilhada comercial de Kassanje (1860-1880) (segundo a proposta de
Miller, 1973) ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES
Mapa XXXIII 684
— «Mapa dos terrenos vizinhos da feira de Casanje» (1847) (doc. 117, Salles
Ferreira, AHU, 1851-1853) Fig. 1 — Túmulo de Tshibinda Ilunga. Carvalho, 1894, IV, p. 281 159
Mapa XXXIV 685
— «Mapa da região de Cassanje» (1862) (doc. 122, Salles Ferreira, AHU, 185 1- Fig. 2 — Grande túmulo no caminho de Cudungulo. Carvalho, 1894, IV, pp. 592/593 159
-1853) Fig. 3 — Musumba do Mwatyanvua, Carvalho, 1890
686 177
Mapa XXXV — Kasanje por volta de 1880 (Capello e Ivens, 1881) 687 Fig. 4 — Desenho representando duas autoridades políticas lundas. Carvalho, 1892, II, pp. 819/
Mapa XXXVI — A região de Malanje-Kasanje por volta de 1880 (Capello e Ivens, 1881) 688 /820 181
Fig. 5 — A travessia do Kwangu. Vê-se, na margem oposta, o feiticeiro. Carvalho, 1890, I,
pp. 526/527. 252
E. A expansão quioca (século XIX) Fig. 6— Os rápidos do Cuanhumgamwa. Capello e Ivens, 1881, I, p. 81 252
Fig. 7 — Uma ponte sobre o Kunene. Capello e Ivens, 1881, I, p. 81 258
Mapa XXXVII — O espaço quioco antes de 1850 (segundo a proposta de Miller, 1970) 691 Fig. 8 — Ponte sobre o Luchico. Carvalho, 1892, II, pp. 583-584 258
Mapa XXXVIII — A expansão quioca após 1850 (segundo a proposta de Miller, 1970) 691
Mapa XXXIX — A «flecha quioca» (Lima, 1971) Fig. 9 — Bastão de comando tendo em cima uma cabeça de homem com um penteado de chefe
692 quioco zongo lya mungwa; motivo representando uma exploração de sal vegetal, sob a
forma de uma estrela rodeada por quatro aldeias, que decoram a retaguarda do bastão.
Bastin, 1961, II, gravura 77, e I, p. 180 268
Fig. 10 — O caldeirão do hidromel. Capello e Ivens, 1881, I, p. 169 297
E Produção e redes comerciais no século XIX
Fig. 11 — Colmeia instalada numa árvore na região do Tshiboko. Redinha, 1953, p. 64 297
Mapa XL — Principais lugares de extracção do sal Fig. 12 — Ferreiros do Bungulo. Carvalho, 1893, III, pp. 242/243 311
695 Fig. 13 A fusão do ferro. Carvalho, 1893, III, pp. 808/809. 316
Mapa XLI — As regiões produtoras de mel e de cera (conforme proposta de Vellut, 1979) 695 Fig. 14 Abertura de um forno de fusão do ferro após a operação da fusão. Redinha, 1953,
Mapa XLII — A tsé-tsé (segundo Pollock) 696 p. 131 317
Mapa XLIII — O gado
696 Fig. 15 Sona ja matangwa. Pintura representando sóis matangwa sob a forma de losangos,
Mapa XLIV — O elefante antes de 1850 697
Mapa XLV — O elefante nos princípios do século XX (conforme proposta de Galvão, desenhados pelo ajudante de fundidor Namwena num alto-forno construído perto do
1936) Dundo. Bastin, 1961, I, p. 100 317
697
Mapa XLVI — O ferro Fig. 16 Forno de fusão do ferro. Alto Zambeze. Redinha, 1953, p. 140 318
698
Mapa XLVII — O cobre e as pedras verdes Fig. 17 Foles de forjador. Chefado quioco de Tchiungo-Ungo, nascentes do Luachimo. Redinha,
698
Mapa XLVIII — A borracha 1953, p. 138 318
699
Mapa XLIX — As vias comerciais por volta de 1850 Fig. 18 — Mukuale da região lunda-lwena. Bastin, 1961, II, gravura 95 322
e 700
Mapa L — As novas vias comerciais após 1850 Fig. 19 — Mukuale quioco. Bastin, 1961, II, gravura 94 322
701
Mapa LI — Vias comerciais e produções I Fig. 20 — Espingardas — lazarinas — decoradas pelos artesãos quiocos. Bastin, 1961, II, gra-
702
Mapa LII — Vias comerciais e produções II vura 103 322
703
Fig. 21 — Espingarda quioca, mostrando as preparações religiosas, destinadas a criar condições
propícias à caça, Bastin, 1961, II, gravura 102 322
Fig. 22 Kisanje quiocos. Bastin, 1961, II, gravura 213 324
Fig. 23 — Mutopa, cachimbo de água quioco. Bastin, 1961, II, gravura 106 353
Fig. 24 — A Feira de Kasanje. Capello e Ivens, 1881, I, p. 258 367
Fig. 25 — O mercado africano (t'chitaca). Capello e Ivens, 1881, I, p. 168 367
Fig. 26 Instalação do kilombo. Capello e Ivens, 1881, II, p. 6 421
Fig. 27 — A paragem dos carregadores. Carvalho, 1892, II, p. 466 421
828
829
Fig. 28 — A densidade da vegetação dos pântanos e dos cursos de água. Capello e Ivens, 1881, II,
p. 18
423
Fig. 29 — Caravana atravessando o Luandu. Capello e Ivens, 1881, I, p. 144 423
Fig. 30 — Caçador quioco. Capello e Ivens, 1881, I, p. 193 449
Fig. 31 — Miniaturas de pirogas — kwanza — que aparecem no cesto de adivinho quioco. Areia,
1985, fotografias 279 e 281
463
Fig. 32 — Representação de um comerciante branco, ungido com caulino branco. Repare-se no
nariz em forma de bico de papagaio (Museu do Dundo. Bastin, 1961, I, p. 65) 479
Fig. 33 — Lukano. Três cauris pashi decoram a pulseira lukano, usada por Mwatshisenge
durante uma visita ao Museu do Dundo. Este importante chefe quioco, actualmente
instalado junto de Saurimo e que se chama Itengo, é o sucessor do grande Mwatshi- ÍNDICE GERAL
senge, que se celebrizou devido às suas proezas guerreiras no século XIX. Bastin,
1961, I, p. 121 633 PREFÁCIO 11
AGRADECIMENTOS 13
INTRODUÇÃO 15

PRIMEIRA PARTE

Trabalhos e fontes sobre Angola do século XIX. Os fundamentos ideológicos do


conhecimento português relativo a África 27

Capítulo I — A ideologia colonial e os africanismos portugueses 33


I. Ideias, mitos, teorias e tecido ideológico português 33
A visão e a dominação dos Africanos 40
Africanismo e Africanistas: o sentido das palavras, a concepção da África e os particula-
rismos do africanismo português 49

Capítulo II — Vazios e ambiguidades do discurso científico português 57


I. O Outro nas preocupações científicas do fim do século XIX 58
II. Conhecimento antropológico e administração colonial na primeira metade do século XX 65
III. As mudanças em África e as maquilhagens do discurso português 75

Capítulo III — A historiografia colonial e a rejeição da história africana 83


A escrita da história e a justificação dos direitos portugueses sobre a África 85
A história angolana do século XIX: um passado organizado em função dos mitos portu-
gueses 91

Capítulo IV — A Angola do século XIX: a presença portuguesa, os documentos e os conhe-


cimentos 105
I. Os Portugueses em Angola: técnicas de contacto com as sociedades africanas 106
• A. A instalação das estruturas portuguesas 108
1) Cidades, presídios e feiras 109
Luanda: a cidade e a actividade comercial 110
O sistema dos presídios 113
2) Os comerciantes do mato 115
B. Da independência do Brasil à abolição da escravatura
Mudanças e continuidades da política colonial portuguesa (1822-1878) 123
A legislação e as mudanças (1822-1850) 123
Os comerciantes da cidade 127
Comércio de escravos/comércio legítimo: uma falsa ruptura 129
Os primeiros passos para a valorização de Angola (1850-1878) 131
II. A construção dos conhecimentos: do olhar à escrita sobre o Outro 133

830
831
Homogeneidades e diversidades dos textos e dos autores 134 O sal de Kazembe 265
Henrique de Carvalho: contribuição para o conhecimento científico dos homens e dos As salinas marítimas 269
sistemas angolanos 139 O sal-gema da Kisama 271
III. A questão da hegemonia nas relações afro-portuguesas do século XIX: fontes, conheci- O sal dos lagos 273
mentos e novas perspectivas 144 E. O sal produzido por Kasanje 274
II. O gado, a carne e o peixe 276
SEGUNDA PARTE Homens, gado e tsé-tsé 276
A importância económica e social do gado 287
Os espaços políticos lundas e a criação do Estado imbangala: laços históricos e relações de A carne e o peixe 283
dependência antes de 1850 A pesca na costa 288
151
III. As produções agrícolas e as bebidas 289
Capítulo 1— Os mitos de origem e a história das relações Lundas/Imbangalas/Quiocos A A actividade agrícola: subsistência e comercialização dos excedentes 299
155
Uma origem mítica comum: o acesso ao poder, os laços de parentesco e os laços his- B. As bebidas, a vida social e a alimentação 292
tóricos IV. O mel e a cera 298
155
Cronologia, conhecimentos e desconhecimentos: a imprecisão das fontes 160 A. A produção da cera 299
B. O mel: produção e consumo 302
Capítulo II— Poder político, controlo regional, formas de integração e mecanismos de domi-
nação 165 Capítulo III — As complementaridades artesanais 309
I. A formação do Império lunda e os processos de integração dos homens e dos espaços 166 I. A metalurgia: ferro e cobre 309
Parentesco e homogeneidade do Império 166 A Os mitos e as funções dos ferreiros 310
Ritos de passagem e integração 168 B O ferro e o cobre nas fontes portuguesas 312
C. O recurso aos escravos 169 C. O ferro visto pelas autoridades portuguesas 314
II. A organização do Império lunda e os mecanismos de controlo: guerras, tributos, religiões D. A produção e a circulação do ferro 315
e rituais 174 E. As armas de fogo e os ferreiros 320
A Musumba: o centro do Império 174 F. Os instrumentos musicais e os objectos estéticos 323
O exercício do poder: corte — kilolo — chefes locais 176 II. Os tecidos: dinheiro, vestuário, habitação 325
C. Os laços de obediência e de dependência 182 A palmeira e a diversidade dos tecidos 325
Os tecidos-moeda 327
Capítulo III — Na fronteira dos dois mundos: a construção do Estado imbangala. Os Portu- As esteiras 329
gueses perante o poder de Kasanje 189 Tecelagem e construção de casas 331
A chegada dos Imbangalas ao território angolano 191 E. O algodão 332
A fundação do reino de Kasanje 195 III. O marfim: do tributo à troca dos dentes 334
A consolidação do poder imbangala (Século XVIII) 203 A. O elefante e as suas partes nobres: os pêlos do rabo, a carne e os dentes 335
As estruturas imbangalas na primeira metade do século XIX: dinamismos e contradições 207 B. A «produção» e a circulação do marfim 339
A morte do Jaga e os ritos de sucessão 207 C. O trabalho do marfim 343
A lição política das cerimónias da intronização 214 IV. A força mágica das «pedras verdes» 344
C. A organização da sociedade: tempos, espaços, hierarquias 217 V. O tabaco e as ervas alucinatórias 347
V. As relações Imbangalas/Portugueses: os textos e os factos 232 A. A introdução da planta americana 347
B. A banalização do tabaco: produção e consumo africanos 348
C. As ervas alucinatórias 351
TERCEIRA PARTE

O espaço do comércio antes de 1850: produções e complementaridades regionais QUARTA PARTE


239

Capítulo 1— O Kwangu e o seu espaço 247 A organização das trocas e a emergência dos Quiocos antes de 1850 357
A representação cartográfica 247
O rio Kwangu 251 Capítulo 1— Lugares de trocas, circulação das mercadorias e monopólios regionais 363
Pontes e pirogas 257 I. A Feira de Kasanje: origem e organização 364
Semelhanças e diferenças regionais 261 A origem da Feira: criação africana e pretensões portuguesas 365
Capítulo II — As complementaridades alimentares 263 A organização da Feira: a cidade e as relações afro-portuguesas 371
I. O sal: alimentação, circulação e poder 265 1) Uma falsa cidade branca 372

832
833
A separação Brancos/Pretos 375 504
A partilha dos espaços
O controlo do Jaga 507
II. Redes comerciais, circulação e controlo das mercadorias
376 As opções africanas
379 3) A agricultura 508
A visão redutora do comércio a longa distância 380 Lucros e riqueza 509
As redes e os monopólios regionais 511
384 Inovações e blocagens
Kasanje-Musumba: caminho directo e monopólios
384
Musumba-Kazembe: em direcção à costa oriental 389 Capítulo II — O Estado de Kasanje: relações imbangalo/portuguesas, reorganização comer-
A Jia Dia Panda: em direcção à Musumba através do território quioco cial e tranformações sociais e políticas 515
391
Do Bié para o Lovale: a conexão com a Jia I. A remodelação dos espaços comerciais: Malanje e Kasanje. Um comércio «branco»
396
5) Bié-Kasanje: através de território songo submetido ao ritmo da crise imbangala (1850-1888) 515
400
C. As caravanas e os carregadores: instituições africanas e «europeização» 402 A. Diversidade dos comerciantes, ambiguidade comercial e concorrência no período
1) A organização africana: religião e parentesco 403 1850-1890 518
2) A «nova ordem europeia». O exemplo de Silva Porto 411 O alargamento do quadro comercial 518
D. A circulação das caravanas: regras internas, conflitos e acordos 419 Kasanje, os escravos e os produtos «lícitos» 521
Regulamentos e acampamentos 3) A expansão do comércio «legítimo» 523
419
Direitos de passagem e obstáculos previstos ou previsíveis 422 Arsénio de Carpo: um agente das modificações africanas nos anos 1860 526
3) As trocas ao longo dos caminhos: pumbos, crédito, moedas, preços 425 A organização do comércio «legítimo» (1850-1880) 532
O crédito: uma longa corrente da costa ao interior 532
Capítulo II — Os Quiocos: em busca da autonomia As mercadorias europeias e as escolhas africanas 538
431
Os primeiros testemunhos históricos: 1789-1814 433 Os últimos dias do comércio «branco» de caravana 541
O «reaparecimento» dos Quiocos por volta dos anos 1840: o discurso europeu da história . 438 Comerciantes, mercadorias e conflitos na Feira de Kasanje 547
III. A organização do espaço: as estruturas, os homens, as produções 442 5) A exportação: os produtos e os números 554
A. Chefes, aldeias, organização social e agricultura II. A sociedade imbangala: dinamismo, transformações, blocagens 563
443
B. Produção e comércio: o ferro, o marfim e a cera 447 A. A substituição das estruturas comerciais 564
C. Mulheres empenhadas, mulheres escravas As opções imbangalas nos anos 1850-1860 564
452
IV. O controlo do espaço e as relações afro-europeias A reconversão comercial imbangala (1863-1888) 571
457
A. Presentes de cortesia e presentes obrigatórios 457 B. As consequências do progresso comercial: o individualismo emergente e os obstáculos
B. «Crimes» africanos e «vítimas» europeias ancestrais 585
458
C. As exigências e as violências da viagem A reorganização do espaço: aldeias, relações sociais e parentesco 585
460
Os escravos 590
3) As estruturas políticas: que «democratização»? 593
QUINTA PARTE 599
Capítulo III — Os Quiocos: expansão, inovação e limites
I. As migrações quiocas: orientações e datações 601
Imbangalas e Quiocos na segunda metade do século XIX: As relações afro-portuguesas, as 601
A expansão para norte
hegemonias e as mudanças (1850-1890) 603
467 A expansão para sul
II. O desenvolvimento do comércio: homens, mercadorias e práticas comerciais 605
Capítulo I — A disjunção dos sistemas em presença e as modalidades da mudança africana 607
469 O comércio a crédito
I. O Outro visto pelo Outro 610
474 O pequeno comércio: mulheres comerciantes e comércio «de porta»
Brancos/Pretos: a política do lucro e da moral 474 C. O comércio das caravanas 613
Pretos/Brancos: o lugar incerto dos Brancos 478 1) As caravanas: diversidade das funções 613
II. A perversão da ordem • 2) Os meios de controlo, as astúcias e os contratempos 614
484
Os Pretos calçados 484 3) Carregadores e escravos 615
Os Brancos enselvajados 488 III. Novas técnicas, novos comportamentos 617
III. Os contratempos provocados pelo sistema africano e a sua incidência nas práticas comer- As espingardas 617
ciais A «europeização» dos Quiocos 619
492
A. O tempo IV. A reestruturação do espaço quioco e o peso dos laços míticos e históricos 623
493
B. Os excessos da palavra 497 Reorganização aldeã e expansão 623
Os contratempos provocados pelo parentesco Riqueza, redistribuição e laços de parentesco 628
499
As relações comerciais e a «feitiçaria» 501 C. As relações Quiocos-Lundas: autonomia e dependência 631
IV. As modalidades da mudança 504 CONCLUSÃO 637
A. Comércio, mercadorias preferenciais e agricultura 504 CARTOGRAFIA 645

834 835
CRONOLOGIA GERAL 705
CRONOLOGIA DOS GOVERNADORES DE ANGOLA 709
DOCUMENTOS ANEXOS: 713
«Preparativos para a viagem aos países do interior» (1859), in Viagem ao sul da África 1849-
-1857 por Lászlo Magyar 715
«Breve informação àcerca dos Moluva ou Morupuu e dos Estados Lobal, pelo membro corres-
pondente Lászlo Magyar» (10 de Outubro de 1859) 719
«Um comerciante português em Kasanje. Cartas de família (1857-1860)» 733
«Das Viagens e Acampamentos dos Viajantes», in Notas para retocar a minha obra logo que
as circunstâncias o permitam, por António da Silva Porto (SGL-1866) 747
GLOSSÁRIO 753
BIBLIOGRAFIA: 769
Fontes
Manuscritos 770
Fontes escritas publicadas 776
III. Compilações de documentos 790
Estudos
Estudos não publicados 792
Estudos publicados 794
Instrumentos de trabalho
Atlas, Bibliografias, Dicionários, Enciclopédias 824
Principais publicações periódicas 825
ÍNDICE DOS MAPAS 827
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES 829

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