Sunteți pe pagina 1din 162

CARTAS DE

AM R
DE HOMENS
NOTÁVEIS
Editado por

ROMANCE!
PROTAGONIZADOS
PELAS PERS O N A L I D A D E S
MAIS I N F L l . E N T E S
DA HISTÓF IA

Inspi ado
no livo de
Carrie Br^dshaw em
Sex and the City
N O FILME SEXAND THE CITY, C a r r i e Bradshaw

d e s p e r t o u o interesse de leitores no mundo inteiro

a o r e c i t a r p a r a Mr. Big t r e c h o s d e u m a c a r t a d e a m o r

escrita por Beethoven. U m a verdadeira corrida

às l i v r a r i a s t e v e início e qual não foi a d e c e p ç ã o

d a q u e l a s p e s s o a s a o d e s c o b r i r e m q u e a o b r a lida p e l a

p e r s o n a g e m s i m p l e s m e n t e não e x i s t i a .

Até agora.

Cartas de amor de homens notáveis reúne algumas

das correspondências mais românticas d a história,

e n c o n t r a d a s e m m e i o a d o c u m e n t o s pessoais de ícones

c o m o J o h n K e a t s , D a v i d H u m e , Napoleão B o n a p a r t e e

Honoré d e Balzac.

P a r a alguns d e s s e s h o m e n s i l u s t r e s , o a m o r " r e s u m e

a existência n e s t a e e m o u t r a v i d a " ( L o r d B y r o n ) ;

p a r a o u t r o s , é " u m a e s p o s a linda e d e l i c a d a n u m

sofá, c o m u m a b o a l a r e i r a , l i v r o s e música" ( C h a r l e s

Darwin). O amor pode queimar c o m o o calor do

sol ( H e n r i q u e V I I I ) o u p e n e t r a r n o coração c o m o

uma chuva refrescante (Gustave Flaubert). Todas

as n u a n c e s d a paixão estão n e s t e l i v r o , d a refinada

eloquência d e O s c a r W i l d e à singela d e v o ç ã o d e

Mozart, passando pelo sofrimento admiravelmente

m o d e r n o d o g o v e r n a d o r r o m a n o Plínio, o J o v e m , q u e

s e refugiava n a s r e s p o n s a b i l i d a d e s d o p o d e r p a r a

e s q u e c e r a s a u d a d e d a a m a d a e s p o s a , Calpúrnia.

E s s a s c a r t a s m o s t r a m q u e o s c a s o s d e a m o r não

m u d a r a m t a n t o n o s últimos d o i s mil a n o s : paixão,

ciúme, esperança e d e s e j o estão r e p r e s e n t a d o s

aqui, a s s i m c o m o o p r a z e r d e r e c e b e r o u e n v i a r u m a

mensagem à pessoa amada.


Editado por

Úrsula Doyle

Romances protagonizados
pelas personalidades mais
influentes da história

Tradução
Doralice L i m a

BestSe//er
C I P - B R A S I L . CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
S I N D I C A T O N A C I O N A L DOS E D I T O R E S D E L I V R O S , R J .

Cartas de a m o r de homens notáveis: romances protagonizados


C314 pelas personalidades mais influentes da história/editado p o r Úrsula
D o y l e ; tradução: D o r a l i c e L i m a . — R i o de J a n e i r o : BestSe//er, 2 0 1 0 .

T r a d u ç ã o de: L o v e letters o f great m e n


I n c l u i bibliografia
ISBN 978-85-7684-388-7

I . C a r t a s de a m o r . I . D o y l e , Úrsula.

10-1314 CDD: 808.8693543


CDU: 8 2 - 6

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

T Í T U L O O R I G I N A L INGLÊS
L o v e letters o f great m e n
C o p y r i g h t © 2 0 0 8 by Úrsula Doyle
C o p y r i g h t da tradução © 2 0 0 9 by E d i t o r a Best S e i l e r L t d a .

A seleção e os comentários são de a u t o r i a de Úrsula D o y l e .

A s cartas que constam desta edição respeitam a


pontuação e a grafia dos documentos o r i g i n a i s

P r i m e i r a edição publicada e m 2 0 0 8 p o r M a c M i l l a n ,
u m selo da P a n M a c M i l l a n L t d .

C a p a : E l m o Rosa
Editoração eletrônica: M a r i Taboada

T o d o s os direitos reservados. P r o i b i d a a r e p r o d u ç ã o ,
n o todo o u e m parte, sem autorização prévia p o r escrito da e d i t o r a ,
sejam quais f o r e m os meios empregados.

D i r e i t o s exclusivos de publicação e m língua portuguesa p a r a o B r a s i l


a d q u i r i d o s pela
EDITORA BEST SELLER LTDA.
R u a A r g e n t i n a , 171. parte, São Cristóvão
R i o de J a n e i r o , R J - 20921-380
que se reserva a p r o p r i e d a d e literária desta tradução

Impresso n o B r a s i l
ISBN 978-85-7684-388-7

Seja u m leitor preferencial Reco r d .


Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções-

A t e n d i m e n t o e venda direta ao l e i t o r
m d i r e t o @ r e c o r d . c o m . b r o u (21) 2 5 8 5 - 2 0 0 2
 memória de três grandes homens:

JSS,JD,AJD
Sumário

9 Int odução

13 De Plínio, o Jovem, para a esposa, Calpúrnia

15 Do Rei Henrique VIIIpara Ana Bolena

17 De William Congreve para a Sra. Arabella Hunt

20 De Richard Steele para Mary Scurlock

23 De George Farquhar para Anne Oldfield

26 De Alexander Pope para Martha Blount

28 De Alexander Pope para Teresa Blount

29 De Alexander Pope para Lady Mary Wortley Montagu

31 De David Hume para Madame de Boufflers

33 De Lawrence Sterne para Catherine Fourmantel

35 De Lawrence Sterne para Lady Percy

38 De Denis Diderot para Sophie Volland

41 De Henry Frederick, Duque de Cumberland, para Lady Grosvenor

44 De Wolfgang Amadeus Mozart para a esposa, Constance

48 Do Lorde Nelson para Lady Emma Hamilton

52 De Robert Burns para a Sra. Agnes Maclehose

55 De Johann Christoph Friedrich von Schiller para Charlotte von Lengefeld

58 De Napoleão Bonaparte para a esposa, Josephine

64 De Daniel Webster para Josephine Seaton

66 De Ludwig van Beethoven para sua 'Amada Imortal"


7o De William HazJittpara Sarah Walker

74 De Lord Byron para Lady Caroline Lamb

77 De Lord Byron para a Condessa Guiccioli

78 De John Keats para Fanny Brawne

85 De Honoré de Balzacpara a Condessa Ewelina Hanska

89 De Victor Hugo para Adele Foucher

93 De Nathaniel Hawthornepara a esposa, Sophia

96 De Benjamin Disraelipara MaryAnne Wyndham Lewis

104 De Charles Darwin para Emma Wedgwood

io8 De Alfred de Mussetpara George Sand

ni De Robert Schumann para Clara Wieck

De Robert Browning para Elizabeth Barrett

"9 De Gustave Flaubert para Louise Colet

120 De Gustave Flaubert para George Sand

123 De Walter Bagehotpara Elizabeth Wilson

128 De Mark Twain para Olivia Langdon

132 De William F. Testerman para a Srta.Jane Davis

De Charles Stewart Parnellpara Katharine O Shea


f

137 De Oscar Wilde para Lorde Alfred Douglas

142 De Pierre Curie para Marie Sklodovska (Marie Curie)

146 De G . ff. Chesterton para Frances Blogg

151 Do Capitão Alfred Blandpara a esposa, Violet

154 Do Sargento-major de Regimento James Milne para a esposa,

156 Do Segundo-tenente John Lindsay Rapoport para a noiva

158 Bibliografia

159 Agradecimentos
Introdução

EM NOSSOS D I A S , m u i t o s p e n s a m que cartas de amor

n ã o são m a i s escritas e que o correio eletrônico e as

mensagens de texto r e p r e s e n t a m a m o r t e do r o m a n t i s -

mo. H o j e p a r e c e i m p r o v á v e l q u e até m e s m o o aman-

te m a i s a p a i x o n a d o d i g a , c o m o o d r a m a t u r g o William

Congreve, que "Só tu consegues d o m i n a r m i n h a mente,

e e s t a n ã o se o c u p a s e n ã o d e t i . " C o n t u d o , Congreve

era u m génio da literatura. Por outro lado, o almirante

N e l s o n d e f i n i t i v a m e n t e n ã o e r a u m l i t e r a t o e m e s m o ele

concebeu para Lady H a m i l t o n a comovente expressão:

" E m m a é o alfa e o ô m e g a de N e l s o n ! " Talvez t e n h a m o s

n o s t o r n a d o m e n o s r o m â n t i c o s e m a i s céticos, o u talvez

aqueles h o m e n s fossem mais desinibidos do que somos

hoje. Com certeza, a i r o n i a , o espírito que preside a

nossa era, quase n ã o e n c o n t r a espaço nesta coletânea.

P o r t a n t o , a o l e r t o d a s essas c a r t a s d e a m o r e d e s c o -

b r i r as h i s t ó r i a s p o r trás d e l a s , s o m o s t e n t a d o s a p e n s a r

q u e n ó s , b á r b a r o s m o d e r n o s , p e r d e m o s a fé n ã o só no

a m o r , m a s t a m b é m n a arte de expressá-lo. P o r é m , nas

c a r t a s q u e se s e g u e m , o q u e m a i s m e t o c o u n ã o foram
as d e c l a r a ç õ e s elegantes e apaixonadas, ou, pelo me-

n o s , n ã o s o m e n t e elas; q u a n d o e s b a r r a m e m preocupa-

ções mais prosaicas como a confiabilidade do correio,

a n e c e s s i d a d e d e r o u p a s d e c a m a l i m p a s , as l e m b r a n ç a s

à m ã e d a a m a d a o u a d e s c r i ç ã o d e u m s o n h o , as c a r t a s

s u b i t a m e n t e g a n h a m v i d a e seus autores p a r e c e m mais

h u m a n o s . P o d e - s e d e f e n d e r a i d e i a d e q u e as d e c l a r a -

ç õ e s rebuscadas são m a i s p a r a s e r e m vistas ( e m alguns

casos, p e l a posteridade) do que p a r a expressar c o m a u -

t e n t i c i d a d e u m s e n t i m e n t o g e n u í n o — são m a i s f r u t o das

c o n v e n ç õ e s do que da convicção. E seria razoável cha-

m a r este l i v r o de " H o m e n s notáveis: F a l a n d o s o b r e si

m e s m o s desde 6 l d . C . " C o m certeza faria b e m a alguns

d e s s e s m i s s i v i s t a s se a l g u é m o s c h a m a s s e d e l a d o e d i s s e s -

se: v o c ê n ã o é o c e n t r o do u n i v e r s o .

Evidentemente, não faz sentido afirmar que uma

m e n s a g e m de texto c o m o " N O B A R V E N D O F U T V O L T O J A H

BJS" é mais genuína, portanto mais romântica do que u m a

declaração c o m o a de B y r o n : " O que sinto p o r t i é m a i s

d o q u e a m o r , e n ã o c o n s i g o d e i x a r d e te a m a r . " A s s i m ,

e m b o r a e s p e r e m o s q u e esta c o l e t â n e a a g r a d e , e m o c i o n e e

talvez até d i v i r t a os l e i t o r e s , ela t a m b é m p o d e s e r v i r p a r a

l e m b r a r aos grandes h o m e n s d a atualidade q u e n ã o é p r e -

ciso ser u m g é n i o literário p a r a escrever u m a carta, u m a

m e n s a g e m de texto o u u m e - m a i l de a m o r sinceros.

Ú R S U L A D O Y L E , Londres, 2008

10
John Donne

Anne Donne

Un-done*

John Donne, da prisão Fleet, em carta à esposa depois de seu

casamento secreto, em dezembro de l6oi.

* D e s - f e i t o s , e m tradução l i t e r a l . (JV. doE.)


I Plínio, o Jovem
6ld.C.'U2d.a

PLÍNIO, O JOVEM (Gaius Plinius Caecilius Secundus) era

f i l h o de u m p r o p r i e t á r i o r u r a l d o n o r t e d a Itália. D e p o i s

da morte do pai, foi criado pelo tio, Plínio, o Velho, a u -

tor de u m a famosa enciclopédia de história n a t u r a l . O tio

m o r r e u n o a n o 79 d . C , d u r a n t e a e r u p ç ã o do Vesúvio.

P l í n i o fez c a r r e i r a c o m o advogado e s e r v i d o r p ú b l i -

co, tendo sido cônsul e depois governador de u m a p r o -

víncia r o m a n a . E l e d e i x o u dez v o l u m e s de cartas: nove

p a r a amigos e colegas e u m p a r a o i m p e r a d o r T r a j a n o .

q& q£> qfc

Para a esposa, Calpúrnia

N ã o acreditarás n a saudade que sinto de t i . A p r i n c i p a l

causa é m e u a m o r e o fato de n ã o c o s t u m a r m o s ficar se-

parados. P o r isso, d u r a n t e a noite m e acontece ficar acor-

dado p o r m u i t o t e m p o , p e n s a n d o e m t i , e de d i a , q u a n -

do chega a h o r a e m que costumava visitar-te, m e u s pés,

c o m o se d i z c o m r a z ã o , m e l e v a m a t é t e u q u a r t o ; m a s n ã o

te e n c o n t r o lá e v o l t o , t r i s t e e d e p r i m i d o c o m o u m a m a n t e

13
d e s p r e z a d o . S ó f i c o l i v r e desses t o r m e n t o s q u a n d o estou

assoberbado de trabalho n o t r i b u n a l e nos processos dos

a m i g o s . A v a l i e c o m o é a m i n h a v i d a q u a n d o só e n c o n t r o

repouso n o trabalho e conforto n a tristeza e n a ansiedade.

Adeus.

14
Henrique VIII
1491-1547

HENRIQUE VIII estava casado com a p r i m e i r a esposa,

C a t a r i n a de A r a g ã o , q u a n d o c o n h e c e u A n a B o l e n a , e m

1526. A Igreja Católica n ã o p e r m i t i a o divórcio; o r e i ,

o b c e c a d o p o r A n a , q u e se r e c u s a v a a s e r s u a amante,

fez o q u e p ô d e p a r a c o n v e n c e r o p a p a a c o n c e d e r - l h e a

anulação do p r i m e i r o casamento. D i a n t e da recusa do

pontífice, H e n r i q u e r o m p e u relações c o m a Igreja R o -

m a n a e c r i o u a I g r e j a A n g l i c a n a , d a q u a l se t o r n o u d i -

rigente s u p r e m o . ( E l e não tinha p r o b l e m a s de autoesti-

m a : veja n a carta a seguir o presente que e n v i o u a A n a . )

D e p o i s de sete a n o s de i n c e r t e z a , e m j a n e i r o de 1533,

H e n r i q u e e A n a f i n a l m e n t e se c a s a r a m . E m setembro

do m e s m o ano, a rainha deu à luz Elizabeth, que viria

a r e i n a r c o m o E l i z a b e t h I . E m m a i o de 1536, a r a i n h a

Ana foi presa, acusada de adultério c o m diversos ho-

mens, inclusive o próprio irmão, George, Visconde de

R o c h f o r d . E l a foi c o n d e n a d a e decapitada n a T o r r e de

L o n d r e s . N o m e s m o dia, seu casamento c o m H e n r i q u e

f o i a n u l a d o . O n z e dias depois, o r e i desposou J a n e Sey-

m o u r . D a s seis a f o r t u n a d a s esposas de H e n r i q u e , J a n e

15
foi a única a dar-lhe u m filho que viveu mais que ele:

Eduardo V I .

Para Ana Bolena

M i n h a amante e amiga:

M e u c o r a ç ã o e e u n o s c o l o c a m o s e m tuas m ã o s e s u p l i c a -

m o s q u e n o s r e c o m e n d e s a tuas boas graças. Q u e a d i s t â n -

c i a n ã o d i m i n u a a afeição q u e n o s dedicas; isso a u m e n t a r i a

nossa dor, o que seria m u i t o lamentável, pois a separação

já causa d o r suficiente, mais do que algum d i a pensei ser

possível. Isso m e l e m b r a u m fato a s t r o n ó m i c o , q u a l seja,

q u a n t o m a i s d i s t a n t e s os p o i o s estão d o s o l , m a i s a b r a s a -

d o r a é a t e m p e r a t u r a . O m e s m o se d á c o m n o s s o a m o r : a

ausência nos distanciou, mas o fervor é m a i o r pelo menos

e m m i m . E s p e r o o m e s m o de ti e garanto que, n o meu

caso, a angústia da separação é tanta que seria intolerável

se e u n ã o g u a r d a s s e firme esperança e m t e u afeto i n d i s -

s o l ú v e l . P a r a q u e te l e m b r e s d e m i m e c o m o não posso

e s t a r c o n t i g o e m p e s s o a , m a n d o - t e o q u e m a i s se a p r o x i m a

disso*, m e u r e t r a t o e o b r a s ã o q u e j á c o n h e c e s , aplicado

e m pulseiras, desejando estar e u m e s m o n o l u g a r deles,

q u a n d o for do teu agrado. Pela m ã o de

T e u servo e amigo,

H.R.

16
William Congreve
1670-1729

W I L L I A M C O N G R E V E foi u m aclamado dramaturgo, mais

c o n h e c i d o p e l a p e ç a TheWayof the World. A r a b e l l a H u n t , u m a

das m u s i c i s t a s favoritas d a c o r t e d a r a i n h a M a r y , c a s o u - s e

c o m J a m e s H o w a r d e m 1680. Seis meses depois, ela p e d i u

a anulação do casamento pela procedente justificativa de

q u e J a m e s e r a u m a v i ú v a c h a m a d a A m y P o u l t e r , q u e se f a -

zia passar p o r h o m e m . N ã o a d m i r a que A r a b e l l a n ã o t e n h a

t o r n a d o a se c a s a r . N a q u e l a é p o c a , o t e r m o s e n h o r a e r a

u m a m a n e i r a r e s p e i t o s a d e se d i r i g i r a u m a m u l h e r a d u l t a .

C o n g r e v e t a m b é m n ã o se c a s o u , m a s m a n t e v e prolonga-

dos casos de a m o r c o m A n n a B r a c e g i r d l e , u m a a t r i z p a r a

q u e m escreveu diversos papéis, e c o m H e n r i e t t a , D u q u e s a

de M a r l b o r o u g h , que l h e d e u u m a f i l h a e m 1723.

Para a Sra. Arabella Hunt

Cara senhora

— Não crês n o m e u a m o r ? N ã o podes ter a pretensão

de ser tão i n c r é d u l a . Se n ã o acreditas n a m i n h a palavra,

17
c o n s u l t a m e u s o l h o s e c o n s u l t a os teus. P o r m e i o de teus

o l h o s , verás q u e eles t ê m e n c a n t o s ; n o s m e u s , verás que

m e u c o r a ç ã o é sensível a eles. R e c o r d a o q u e a c o n t e c e u à

n o i t e passada: a q u i l o p e l o m e n o s f o i u m beijo de a m o r .

O fervor, a veemência e o calor daquele beijo d e r a m voz

ao d e u s de q u e m ele é f i l h o . M a s , o h ! S u a d o ç u r a , s u a t e r -

n a s u a v i d a d e expressavam a i n d a m a i s aquele d e u s . C o m os

membros trémulos e a alma febril, me deliciei. C o n v u l -

sões, suspiros e m u r m ú r i o s m o s t r a r a m a i m e n s a desordem

d e n t r o d e m i m , d e s o r d e m q u e o b e i j o só fez a u m e n t a r ,

pois aqueles lábios queridos injetaram e m m e u coração e

e m m i n h a s entranhas u m veneno delicioso e u m a ruína

inevitável, mas encantadora.

Q u a n t o não pode acontecer e m u m dia! N a noite a n -

t e r i o r eu m e considerava u m h o m e m feliz, a q u e m nada

faltava, c o m a certeza da sorte: louvado pelos h o m e n s sá-

bios e aplaudido pelos outros. Satisfeito, o u m e l h o r , e n -

cantado c o m meus amigos, então meus melhores amigos,

c o n s c i e n t e de t o d o s os p r a z e r e s d e l i c a d o s e n e l e s p o s s u i n -

do tudo.

Mas o a m o r , o a m o r todo-poderoso, parece ter em

u m ú n i c o i n s t a n t e m e afastado p r o d i g i o s a m e n t e de t u d o o

q u e n ã o seja t u a pessoa. N o m e i o da m u l t i d ã o , estou s ó . S ó

t u c o n s e g u e s d o m i n a r m i n h a m e n t e , e e s t a n ã o se o c u p a

senão de t i . Pareço ser t r a n s p o r t a d o contigo p a r a a l g u m

d e s e r t o e s t r a n g e i r o ( a h ! Se a s s i m fosse de fato t r a n s p o r t a -

d o ! ) , o n d e , e m t i a b u n d a n t e m e n t e p r o v i d o de t u d o , po-

d e r i a v i v e r u m a e r a de êxtase i n i n t e r r u p t o .

18
O c e n á r i o do grande palco do m u n d o de r e p e n t e p a -

rece ter sido miseravelmente t r a n s f o r m a d o . A não ser p o r

t i , os o b j e t o s q u e m e c e r c a m são desprezíveis; os e n c a n t o s

do m u n d o i n t e i r o parecem ter sido traduzidos e m t i . D e s -

sa f o r m a , n e s s e e s t a d o d e p l o r á v e l , m a s , o h , t ã o p r a z e n t e i -

r o , m i n h a a l m a s ó se c o n c e n t r a e m t i ; e l a v o s c o n t e m p l a ,

a d m i r a , adora, o u m e l h o r , confia somente e m t i . Se tu e a

esperança desertarem m i n h a alma, o desespero e o s o f r i -

m e n t o i n f i n i t o serão os c o m p a n h e i r o s d e l a .

19
Richard Steele
1672-1729

R I C H A R D S T E E L E foi jornalista, escritor e político. Com

seu amigo, Joseph Addison, fundou a revista Spectator.

Mary S c u r l o c k foi sua segunda esposa. Ele a conheceu

n o enterro da p r i m e i r a e a cortejou c o m u m a obstinação

apaixonada. A segunda carta aqui incluída foi escrita duas

semanas antes do casamento. E l a é divertida e emocio-

n a n t e p e l a d e s c r i ç ã o q u e o a u t o r faz de si m e s m o como

u m h o m e m c o m p l e t a m e n t e a r r a n c a d o das p r e o c u p a ç õ e s

do dia a dia pela lembrança da m u l h e r amada. R i c h a r d e

M a r y se c a s a r a m e m 1707» m a s a u n i ã o p e r m a n e c e u s e c r e -

ta p o r a l g u m t e m p o , talvez p o r u m a q u e s t ã o de d e c o r o — o

que p o d e r i a explicar a trivialidade do pós-escrito da ter-

ceira carta. O casamento foi notoriamente feliz, e m b o r a

às v e z e s t u m u l t u a d o , e M a r y f o i d u r a n t e t o d a a v i d a d o e s -

critor sua "querida P r u e " . Antes e depois do casamento,

Steele escreveu p a r a a esposa m a i s de quatrocentas cartas.

Ela morreu em 1718.

qfc cfa qfr

20
Para Mary Scurlock

Senhora,

Q u e l i n g u a g e m devo usar para c o m u n i c a r à adorável bela

o s s e n t i m e n t o s d e u m c o r a ç ã o q u e e l a se c o m p r a z e m t o r t u -

r a r ? L o n g e de t i , n ã o t e n h o u m m i n u t o de t r a n q u i l i d a d e ;

q u a n d o estou contigo, t u m e tratas c o m tanta indiferença

que p e r m a n e ç o n u m estado de a l h e a m e n t o , agravado pela

visão dos e n c a n t o s de que n ã o posso m e a p r o x i m a r . E m

s u m a , é preciso que m e dês u m leque, u m a máscara ou

uma l u v a q u e t e n h a s u s a d o , caso c o n t r á r i o n ã o p o d e r e i v i -

ver; o u e n t ã o , deves e s p e r a r q u e e u b e i j e t u a m ã o o u r o u -

be t e u l e n ç o q u a n d o m e sentar j u n t o a t i . És u m a dádiva

grande demais p a r a ser conquistada de i m e d i a t o , p o r t a n t o

d e v o s e r p r e p a r a d o a o s p o u c o s p a r a q u e esse p r e s e n t e p r e -

cioso n ã o m e deixe l o u c o de alegria.

C a r a s e n h o r i t a S c u r l o c k , estou cansado de c h a m a r - t e

p o r esse n o m e , p o r t a n t o , d i g a - m e e m q u e d i a , s e n h o r a ,

r e c e b e r á s o n o m e deste q u e é t e u servo m a i s obediente,

devotado e h u m i l d e ,

RICH. STEELE

Agosto de 1J0J (duas semanas antes do casamento)

Senhora,

N ã o há n o m u n d o n a d a m a i s difícil do que estar a p a i x o n a -

d o e t e r de c u i d a r de n e g ó c i o s . N o m e u caso, t o d o s os q u e

falam comigo m e a c h a m e m falta; preciso m e encarcerar,

antes q u e a l g u é m faça isso p o r m i m .

21
H o j e pela manhã, u m cavalheiro me perguntou: " T e n s

notícias de L i s b o a ? " e eu r e s p o n d i : " E l aé r e q u i n t a d a m e n -

te b e l a . " O u t r o q u e r i a s a b e r q u a n d o estive e m H a m p t o n

C o u r t p o r último. R e t o r q u i : "Será n a terça-feira da p r ó -

x i m a semana." Peço-te, deixe-me pelo menos beijar tua

m ã o antes daquele dia, para que m i n h a mente possa m a n -

ter a l g u m a c o m p o s t u r a . Ó amor!

Mil tormentos me cercam!

Mas quem viveria para viver sem vós?

Penso que poderia escrever-te u m v o l u m e i n t e i r o , mas

t o d a s as l i n g u a g e n s d o m u n d o n ã o são capazes d e d e s c r e v e r

o quanto, e c o m que paixão imparcial, sou sempre teu,

RICH. STEELE

? de outubro de 1707

A m a d a criatura,

E s c r e v o - t e somente p a r a desejar-te u m a boa n o i t e e t r a n q u i l i -

z a r - t e q u a n t o à m i n h a dedicação àquele assunto que m e n c i o n e i .

P o d e s t e r c e r t e z a d e q u e e u te v a l o r i z o d e a c o r d o com

t e u m é r i t o , o q u e e q u i v a l e a d i z e r q u e m e u c o r a ç ã o está p r e -

so a t i p o r t o d o s os laços d a beleza, d a v i r t u d e , d a b o n o m i a e

d a a m i z a d e . P e l o p r o g r e s s o q u e r e a l i z e i esta n o i t e , concluo

que e m dois dias devo e n c e r r a r m e u s negócios c o m bons

r e s u l t a d o s . E s c r e v e - m e p a r a d i z e r q u e estás c o m b o a d i s p o -

sição, o que dará o m a i o r prazer a teu grato m a r i d o ,

RICH. STEELE

A m a n h ã , v o u p r e c i s a r de a l g u m a r o u p a de c a m a d a t u a casa.

22
George Farquhar
1676/7-1707

GEORGE FARQUHAR nasceu em Londonderry. Filho

de sacerdote, estudou no Trinity College, em Dublin.

Quando deixou a universidade, tentou a carreira de

a t o r , m a s t i n h a m e d o d e se a p r e s e n t a r e m p ú b l i c o . M u -

dou-se para L o n d r e s , onde foi encenada sua p r i m e i r a

p e ç a , Love and a Bottle, que contava a história de u m i r -

landês recém-chegado à cidade e m u i t o bem-sucedido

c o m as m u l h e r e s . S e g u n d o a o p i n i ã o g e r a l , o próprio

F a r q u h a r era bonito e sedutor, espirituoso e agaitador.

Uma noite, n u m a taberna, Farquhar escutou uma

j o v e m d e n o m e A n n e O l d f i e l d , q u e l i a e m voz alta atrás

do b a l c ã o . C o n v i c t o do talento dela, ele a a p r e s e n t o u

a amigos do teatro, e A n n e foi recebida c o m o atriz n a

companhia Drury Lane.

A relação entre George e A n n e não foi d u r a d o u r a e e m

1 7 0 3 e l e se c a s o u c o m u m a v i ú v a c h a m a d a M a r g a r e t h P e -

m e l l . D u r a n t e t o d a á v i d a , G e o r g e teve p r o b l e m a s f i n a n c e i -

r o s e de saúde, p o r é m , m e s m o nos p e r í o d o s m a i s difíceis,

a i n d a escreveu suas c o m é d i a s s u r p r e e n d e n t e s e i c o n o c l a s -

t a s , d a s q u a i s a m a i s c o n h e c i d a d e v e s e r The Recruiting Officer.

23
N a m e s m a é p o c a e m q u e G e o r g e se c a s o u , A n n e O l -

dfield manteve u m longo relacionamento c o m u m de-

p u t a d o , A r t h u r M a i n w a r i n g . A c a r r e i r a d e l a se t o r n o u

cada vez m a i s sólida. A o m o r r e r , e m 1730, A n n e e r a r i c a

e f a m o s a . F o i sepultada n a A b a d i a de W e s t m i n s t e r .

Para Anne Oldfield, domingo, após o sermão (i6gg?)

E u v i m , v i e f u i v e n c i d o ; n e n h u m h o m e m teve t a n t o a d i -

z e r , m a s n ã o p o s s o d i z e r n a d a . O n d e os o u t r o s v ã o salvar

suas almas, p e r d i a m i n h a ; p o r é m espero que ela t e n h a

sido recebida p o r aquela divindade cujo n o m e expressa

c o m j u s t i ç a suas ações. M a s v o u t e n t a r c o n t e r p o r u m m o -

m e n t o m i n h a s expressões de êxtase e f a l a r c o m c a l m a . . .

S e n h o r a , n o m u n d o , só tua beleza p o d e ser m a i s e n -

c a n t a d o r a q u e t e u e s p í r i t o : d e p o i s d i s s o , se e u n ã o t e a m a s -

s e , t u m e p r o c l a m a r i a s u m t o l o ; se e u d i s s e s s e q u e t e a m o

e p e n s a s s e d e o u t r a f o r m a , s e r i a d e c l a r a d o u m v i l ã o ; se a l -

g u é m m e considerasse u m dos dois, eu ficaria ressentido; e

se p e n s a r e s q u e s o u u m d o s d o i s , p a r t i r á s m e u c o r a ç ã o .

Já m e conheces bastante, s e n h o r a , p a r a ter p o r mim

e s t i m a o u aversão. T e u b o m - s e n s o é s u p e r i o r ao do t e u g é -

n e r o , p o r t a n t o d e i x a q u e t e u c o m p o r t a m e n t o faça o m e s -

m o e d i z - m e c l a r a m e n t e o q u e posso e s p e r a r . Se e u fosse

p e d i r conselho a meus méritos, m i n h a h u m i l d a d e afasta-

r i a q u a l q u e r s o m b r a de esperança, mas depois de ver u m

24
rosto cuj a c o m p o s i ç ã o é u m s o r r i s o de benevolência, por

que e u d e v e r i a ser tão i n j u s t o a p o n t o de s u s p e i t a r - t e de

c r u e l d a d e ? D e i x a - m e v i v e r e m Londres e s e r f e l i z o u v o l t a r

p a r a m e u deserto para controlar a vaidade que m e trouxe

d e lá. M a s d e i x a q u e te i m p l o r e o u v i r m i n h a s e n t e n ç a de

teus p r ó p r i o s lábios, p a r a que e u possa escutar-te falar e

v e r - t e o l h a r - m e ao m e s m o t e m p o ; e n t ã o , q u e e u seja i n -

f e l i z , se i s s o f o r p o s s í v e l .

Se não eras a dama de luto sentada à minha direita na igreja, então,

podes ir para o inferno, pois estou certo de que és uma bruxa.

25
Alexander Pope
1688-1744

O E X T R A O R D I N Á R I O Alexander Pope foi poeta, crítico

literário, ensaísta, satirista, paisagista, especialista em

arte, missivista e humorista. D u r a n t e toda a vida, Pope

foi atormentado pela doença, o que foi atribuído ao

f a t o de p a s s a r t e m p o d e m a i s c o m os l i v r o s . N a v e r d a d e ,

ele s o f r i a de t u b e r c u l o s e óssea, c o n t r a í d a n a infância, e

que o deixou raquítico, inválido e afligido p o r diversos

p r o b l e m a s de s a ú d e . P o p e estava s e m p r e e n v o l v i d o em

conflitos, mas também m a n t i n h a u m grande círculo de

amigos dedicados. Adorava a companhia f e m i n i n a e era

m u i t o s e d u t o r . N o e n t a n t o , e m b o r a as m u l h e r e s a p r e -

c i a s s e m os galanteios e a sagacidade d o p o e t a , seus s e n t i -

mentos recônditos nunca foram retribuídos.

E n t r e s u a s a m i g a s , as i r m ã s M a r t h a e T e r e s a B l o u n t

eram especiais. Pope mantinha correspondência com

a m b a s , t e n d o u m a vez e s c r i t o a T e r e s a : " M i n h a v i o l e n t a

paixão p o r tua bela pessoa e p o r tua irmã t e m sido p a r -

tilhada c o m a regularidade mais admirável do mundo.

Desde a infância sou apaixonado por u m a após a outra,

s e m a n a a p ó s s e m a n a . " P o p e n u n c a se c a s o u , e M a r t h a

foi a p r i n c i p a l h e r d e i r a e m seu testamento.

26
A seguir, temos quatro cartas: u m a p a r a cada u m a

das i r m ã s B l o u n t e duas p a r a L a d y M a r y W o r t l e y M o n -

tagu, é u t r a a m i g a íntima, esposa de u m d i p l o m a t a que

vivia e m C o n s t a n t i n o p l a .

cfc cfc

Para Martha Blount, 1714

Diviníssima,

C o n s t i t u i p r o v a da m i n h a s i n c e r i d a d e p a r a c o n t i g o o fato

de escrever após b e b e r c o m o p r e p a r a ç ã o p a r a d i z e r a v e r d a -

de; e c o m certeza u m a carta escrita após a m e i a - n o i t e deve

estar r e p l e t a desse n o b r e i n g r e d i e n t e . O c o r a ç ã o a q u e c i d o

p e l o v i n h o e p o r t i deve ter u m a a b u n d â n c i a de c h a m a s : o

v i n h o d e s p e r t a e e x p r e s s a as p a i x õ e s e m b o s c a d a s n a m e n t e

a s s i m d o m o o v e r n i z d e s t a c a as c o r e s o c u l t a s e m u m a p i n -

t u r a , r e s s a l t a n d o t o d a a s u a r a d i â n c i a n a t u r a l . E m t o d a s as

h o r a s de s o b r i e d a d e do passado, m i n h a s boas qualidades

f o r a m tão congeladas e aprisionadas e m u m a constituição

d o e n t i a que m e causa m u i t o espanto e n c o n t r a r e m m i m

tanta v i r t u d e , agora que estou embriagado.

Nesses t r a n s b o r d a m e n t o s do m e u coração, agradeço-te

p e l a s d u a s c a r t a s g r a c i o s a s c o m q u e m e f a v o r e c e s t e n o s d i a s 18

e 24 do mês corrente. A que p r i n c i p i a p o r " M e u encantador

Sr. Pope!" m e trouxe inexprimível prazer; p o r f i m , d e r r o -

taste c o m p l e t a m e n t e t u a i r m ã n e s s a c o n q u i s t a . E v e r d a d e q u e

n ã o és b e l a , v i s t o q u e és u m a m u l h e r q u e p e n s a n ã o s ê - l o ,

27
mas a boa vontade e a ternura que nutres p o r m i m têm u m

e n c a n t o i r r e s i s t í v e l . O r o s t o q u e estava a d o r n a d o p o r s o r r i -

sos m e s m o q u a n d o n ã o p ô d e a s s i s t i r à c o r o a ç ã o [ d e G e o r g e

I , e m s e t e m b r o d e 1714] s ó p o d e s e r c a t i v a n t e . I m a g i n o q u e

n ã o vás e x i b i r esta c a r t a p o r v a i d a d e , c o m o t e n h o c e r t e z a

q u e t u a i r m ã faz c o m t u d o o q u e l h e e s c r e v o . . .

Para Teresa Blount, 1716

Senhora,

T e n h o p o r ti tão grande estima e tanto da o u t r a coisa que,

se e u f o s s e u m h o m e m c o m q u a l i d a d e s , f a r i a m u i t o p o r

t i , m a s d o j e i t o q u e as c o i s a s s ã o , s ó s i r v o p a r a e s c r e v e r

u m a carta cortês o u fazer u m b o m discurso. N a verdade,

se c o n s i d e r a r m o s c o m q u e f r e q u ê n c i a e f r a n q u e z a d e c l a r e i

m e u a m o r p o r t i , fico assombrado (e u m tanto o f e n d i d o )

p o r n ã o m e haveres p r o i b i d o de escrever-te e n ã o m e teres

d i t o d i r e t a m e n t e : Não me apareça maisl

N ã o é s u f i c i e n t e p a r a tua reputação, s e n h o r a , que tuas

mãos estejam l i m p a s de m a n c h a s da tinta empregada p a r a

trazer satisfação a u m c o r r e s p o n d e n t e d o sexo m a s c u l i n o .

Pobre de m i m ! E m b o r a teu coração consinta e m e s t i m u -

l a r neste c o r r e s p o n d e n t e a dissoluta l i b e r d a d e de escrever,

n ã o és ( r e a l m e n t e n ã o és) o q u e t a n t o te e s f o r ç a s p o r me

fazer pensar — u m a p u r i t a n a ! S o u suficientemente pre-

sunçoso p a r a c o n c l u i r ( c o m o a m a i o r i a dos h o m e n s j o -

vens) que o silêncio de u m a boa d a m a é c o n s e n t i m e n t o ,

portanto c o n t i n u o a escrever.

28
N o e n t a n t o , p a r a ser tão i n o c e n t e q u a n t o possível n e s -

t a c a r t a , c o n t o - t e as n o v i d a d e s . P e r g u n t a s t e - m e m i l v e z e s

q u a i s s ã o as n o v a s , n a s p r i m e i r a s p a l a v r a s q u e m e d i r i g i s t e ,

o q u e alguns i n t e r p r e t a r i a m c o m o u m s i n a l de que não

esperas n a d a dos m e u s lábios; e n a verdade, q u a n d o dois

a p a i x o n a d o s p o d e m ser tão i m p e r t i n e n t e s a p o n t o de p e r -

g u n t a r o q u e o m u n d o faz, isso n ã o é s i n a l de q u e estejam

j u n t o s . O q u e q u e r o d i z e r é q u e u m de n ó s n ã o está a p a i -

x o n a d o p e l o o u t r o . D e i x o p o r tua c o n t a a d i v i n h a r q u a l de

n ó s é essa c r i a t u r a i d i o t a e i n s e n s í v e l , t ã o cega p a r a a e x c e -

l ê n c i a e os e n c a n t o s d o o u t r o .

Para iLad
Lady Mary Wortley Montagu, junho deijlj

Senhora,

Se v i v e r n a l e m b r a n ç a de o u t r e m é algo desejável, isso é o

q u e t e n s e m m i m , n o m a i s elevado s e n t i d o das p a l a v r a s .

N ã o se p a s s a u m d i a s e m q u e t u a i m a g e m se a p r e s e n t e

d i a n t e de m i m ; tua conversação volta à m i n h a l e m b r a n ç a e

cada situação, lugar o u ocasião e m que desfrutei dela res-

s u r g e m p i n t a d o s de f o r m a tão vívida q u a n t o u m a i m a g i n a -

ção tão a p a i x o n a d a q u a n t o t e r n a é capaz de r e p r e s e n t a r .

D i z e s que o p r a z e r de estar m a i s p e r t o d o sol exerce

excelente efeito sobre tua saúde e tua disposição. A t r a í s -

te t a n t o m i n h a s a f e i ç õ e s p a r a o O r i e n t e q u e m e tornei

quase c o m o u m dos adoradores daquele astro, pois j u l g o

que o sol t e m m a i s motivo de o r g u l h o p o r m e l h o r a r - t e a

29
d i s p o s i ç ã o d o q u e p o r d a r v i d a a t o d a s as p l a n t a s e m a t u r a r

t o d o s os m i n e r a i s d a t e r r a .

P e n s o q u e u m h o m e m razoável p o d e r i a viajar feliz três o u

q u a t r o m i l léguas p a r a c o n t e m p l a r tuas q u a l i d a d e s e t u a i n t e -

l i g ê n c i a e m s u a p l e n a p e r f e i ç ã o . Q u a n t o n ã o se p o d e e s p e r a r

de u m a c r i a t u r a considerada o que há de mais perfeito nesta

p a r t e d o m u n d o e, n a o u t r a , b e n e f i c i a d a a c a d a d i a p e l a l u z d o

s o l ! Q u a n d o n ã o escreves e f a l a s o q u e d e m a i s m a r a v i l h o s o se

p o s s a i m a g i n a r , deves c o n f o r m a r - t e p o r c o m p a r t i l h a r c o m o

r e s t a n t e d o O r i e n t e a a c u s a ç ã o d e te h a v e r e s e n t r e g a d o à m a i s

extrema debilidade, preguiça e licenciosidade da vida...

Pelo a m o r de D e u s , s e n h o r a , escreve-me s e m p r e que

p u d e r e s , n a certeza de que n ã o há o u t r o h o m e m m a i s f i e l o u

m a i s a n s i o s a m e n t e d e d i c a d o a t i . D i z - m e q u e passas b e m ,

d i z - m e q u e t e u f i l h i n h o passa b e m , d i z - m e q u e t e u p r ó p r i o

c ã o — se o t i v e r e s — t a m b é m p a s s a b e m . N ã o m e p r i v e s d e

n a d a q u e te d ê p r a z e r , p o i s , s e j a o q u e f o r , i s s o m e a g r a d a r á

mais que qualquer outra coisa. S o u eternamente teu.

Para Lady Mary Wortley Montagu,

depois do retorno dela à Inglaterra, 1719

E u p o d e r i a estar m o r t o o u t u p o d e r i a s estar e m Y o r k s h i r e ,

a j u l g a r pelo que desfrutei de tua estadia n a cidade. D e s d e a

ú l t i m a v e z q u e te v i , e s t i v e d o e n t e e a g o r a t e n h o o r o s t o i n -

c h a d o e m u i t o r u i m ; n a d a m e f a r i a tão b e m q u a n t o a visão

d a q u e r i d a L a d y M a r y ; q u a n d o vieres p a r a cá, p e r m i t e q u e

te v e j a , p o i s te a m o m u i t o .

30
David Hume
1711-1776

DAVID HUME foi filósofo, economista e historiador.

S e u s p r i n c i p a i s t r a b a l h o s i n c l u e m o Tratado da natureza hu-

mana e a Investigação sobre o entendimento humano. E l e viveu u m a

v i d a e r u d i t a e e x e m p l a r até 1763, q u a n d o f o i p e l a pri-

m e i r a vez a P a r i s , p e r m a n e c e n d o p o r m a i s de dois anos

naquela cidade. Nesse período, H u m e parece ter pas-

sado p o r a l g u m tipo de crise da m e i a - i d a d e ; aclamado

n o s salões das g r a n d e s d a m a s p a r i s i e n s e s , enamorou-se

especialmente de certa M a d a m e de B o u f f l e r s , amante do

p r í n c i p e de C o n t i . N o e n t a n t o , esta s e n h o r a e r a m u i t o

mais experiente que o filósofo nesse tipo de flerte e o

apaixonado H u m e ficou cada vez m a i s c o n f u s o . Quando

o m a r i d o dela m o r r e u , t o r n o u - s e evidente que ela espe-

r a v a c a s a r - s e c o m o p r í n c i p e e, p o r fim, o filósofo se v i u

n o papel n a d a gratificante de confidente dos dois.

• ***
Para Madame de Boufflers, 3 de abril de 1766

C o n s i d e r o impossível, cara senhora, descrever o quanto

m e é difícil t o l e r a r tua ausência e o constante desejo de

3i
estar contigo. H á m u i t o tempo m e h a b i t u e i a pensar e m ti

c o m o u m a a m i g a de q u e m j a m a i s p r e c i s a r i a estar distante

p o r u m p e r í o d o p r o l o n g a d o ; t e n h o cultivado a ilusão de

q u e s o m o s destinados a passar nossas vidas e m m ú t u a i n -

t i m i d a d e e c o r d i a l i d a d e . A idade e certa e q u a n i m i d a d e de

t e m p e r a m e n t o ameaçaram reduzir m e u coração a u m esta-

d o d e g r a n d e i n d i f e r e n ç a p o r t u d o , m a s ele f o i r e v i t a l i z a d o

p o r tua graciosa conversação e teu caráter vivaz. Q u e tua

m e n t e , p e r t u r b a d a p e l a i n g r a t a s i t u a ç ã o e m q u e te e n c o n -

tras e t a m b é m p o r tua tendência natural, possa repousar

n a simpatia mais tranquila que encontra e m m i m .

M a s , v ê b e m ! J á se p a s s a r a m t r ê s m e s e s d e s d e q u e t e

d e i x e i e n ã o m e é possível prever q u a n d o posso esperar

r e v e r - t e . T o r n o a desejar n u n c a ter saído de Paris e t e r - m e

m a n t i d o f o r a d o a l c a n c e de t o d o s os deveres, a n ã o ser d a -

quele tão doce e agradável: cultivar tua amizade e desfrutar

d e t e u c o n v í v i o . T u a s e x p r e s s õ e s g e n t i s t o r n a m esse a r r e -

pendimento mais intenso, ainda mais quando mencionas

as f e r i d a s q u e , e m b o r a s u p e r f i c i a l m e n t e f e c h a d a s , n o f u n -

do ainda supuram.

Oh, querida amiga, temo que, nesse t o r m e n t o tão

resistente a qualquer remédio, ainda demores a alcançar

u m e s t a d o d e t r a n q u i l i d a d e e, p e l a n a t u r a l e l e v a ç ã o d e t e u

c a r á t e r , e m l u g a r d e te c o l o c a r e s a c i m a d e l e , t u o e x p e r i -

mentes c o m a mais profunda sensibilidade. Só queria p o -

d e r p r o p i c i a r - t e o c o n f o r t o t e m p o r á r i o que a p r e s e n ç a de

u m a m i g o n u n c a deixa de r e p r e s e n t a r . . . beijo tuas m ã o s

c o m a m a i o r devoção possível.

2
Lawrence Sterne
1713-1768

A O B R A P R I M A d e L a w r e n c e S t e r n e f o i Tristram Shandy, o u ,

m a i s e x a t a m e n t e , A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy,

c u j o s n o v e v o l u m e s f o r a m p u b l i c a d o s e n t r e 1759 e 1767. O

r o m a n c e fez sucesso i m e d i a t o e S t e r n e f o i a c l a m a d o t a n t o

e m seu país q u a n t o e m todo c o n t i n e n t e e u r o p e u . A vul-

g a r i d a d e d o h u m o r e d a sátira dessa o b r a c h o c o u alguns

leitores, pois parecia entrar e m conflito c o m a profissão

do autor: Sterne era clérigo, tendo publicado diversos

volumes de sermões. S u a natureza paradoxal — m o r a l i s -

ta l i c e n c i o s o e cristão cético — é i l u s t r a d a p e l a segunda

carta a q u i i n c l u í d a , p a r a L a d y Percy, n a q u a l ele p r o c u r a

veementemente promover u m encontro clandestino e n -

quanto s i m u l a deixar tudo p o r conta dos deuses.

E r a de c o n h e c i m e n t o geral que o casamento de S t e r -

n e era i n f e l i z ; sua esposa, E l i z a b e t h L u m l e y , f o i descrita

pelo p r ó p r i o p r i m o c o m o " u m a m u l h e r de g r a n d e i n -

t e g r i d a d e e m u i t a s v i r t u d e s , q u e n o e n t a n t o se p r o j e t a m

c o m o as f a r p a s d e u m i r a s c í v e l p o r c o - e s p i n h o " . Sterne

viveu muitos romances, sendo o mais duradouro com

Catherine Fourmantel, u m a famosa cantora.

33
Para Catherine Fourmantel, 8 de maio de 1760

M i n h a querida Kitty,

C h e g u e i a q u i e m segurança e boa saúde, a n ã o ser pela fe-

r i d a a b e r t a q u e causaste e m m e u c o r a ç ã o , c o m o a q u e r i d a

e e n c a n t a d o r a p e r v e r s a que és. E agora, m i n h a c a r a , a m a d a

m e n i n a , deixa-me garantir que tenho p o r ti o mais fiel

afeto que u m h o m e m já n u t r i u p o r u m a m u l h e r . Onde

q u e r q u e e s t e j a , m e u c o r a ç ã o se e n c h e d e a r d o r p o r t i e

s e m p r e o fará, até q u e esfrie p a r a s e m p r e .

Eu te a g r a d e ç o p e l a g e n t i l p r o v a d e a m o r q u e me

deste e p o r t e u desejo de a c a l m a r m e u c o r a ç ã o , p o r te

o b r i g a r e s a r e n u n c i a r a t u s a b e s q u e m . E n q u a n t o fico t ã o

i n f e l i z p o r estar longe de m i n h a m u i t o q u e r i d a Kitty,

m i n h a alma seria apunhalada pelo pensamento de que

um sujeito como aquele p o d e r i a ter a liberdade de se

a p r o x i m a r de t i . P o r t a n t o , recebo c o m i m e n s a satisfação

essa p r o v a d o t e u a m o r e dos teus b o n s p r i n c í p i o s ; confio

e c o n t o t a n t o c o n t i g o n e s s a q u e s t ã o c o m o se e s t i v e s s e a

t e u l a d o — p u d e s s e D e u s p e r m i t i r q u e e u aí estivesse nesse

momento! Mas estou sentado e m m e u quarto, solitário

(às d e z h o r a s d a n o i t e , d e p o i s d a p e ç a ) e d a r i a u m g u i -

n é u de o u r o e m troca do toque da tua m ã o . M i n h a a l m a

se p r o j e t a p e r p e t u a m e n t e p a r a v e r o q u e f a z e s ; a h , se e u

pudesse m a n d a r c o m ela o m e u corpo!

34
Adeus, querida e gentil m e n i n a , creia-me sempre teu

b o m amigo e m a i s c a r i n h o s o a d m i r a d o r . Esta n o i t e v o u ao

Oratório. Adeus! Adeus!

P.S.: Meus préstimos a tua mamãe.

E n c o n t r e - m e n o P a l l M a l , n a s e g u n d a casa d a r u a S t .

Albans.

Para Lady Percy

Enviada do caféMount Cojfee House, terça-feira, 3 horas

U m e s t r a n h o e f e i t o m e c â n i c o se p r o d u z q u a n d o se e s c r e -

ve u m a c a r t a de a m o r a tão p e q u e n a distância d a d a m a q u e

d o m i n a o c o r a ç ã o e a a l m a d e u m inamorato. P o r esta r a z ã o

(e m a i s a i n d a p o r q u e devo j a n t a r nas vizinhanças), e u , T r i s -

t r a m S h a n d y , t r o q u e i m i n h a residência p o r u m café, o m a i s

p r ó x i m o q u e e n c o n t r e i d a casa de m i n h a q u e r i d a L a d y , e

solicitei u m a f o l h a de p a p e l c o m b o r d a s d o u r a d a s p a r a testar

a v e r a c i d a d e deste artigo d o m e u c r e d o — v a m o s a ele:

Oh, m i n h a q u e r i d a L a d y , fizeste d a m i n h a a l m a u m

t r a p o ! A p r o p ó s i t o , p e n s o q u e essa a b e r t u r a g u a r d a ex-

cessiva f a m i l i a r i d a d e p a r a u m a situação tão p o u c o fami-

l i a r q u a n t o é a m i n h a c o n t i g o — n a q u a l , sabe D e u s , s o u

m a n t i d o a distância e perco a esperança de m e a p r o x i m a r

de t i a l g u n s c e n t í m e t r o s , apesar de t o d o s os passos e r o -

deios q u e s o u capaz de c o n c e b e r p a r a advogar m i n h a c a u -

sa d i a n t e de t i . N ã o i r i a q u a l q u e r h o m e m razoável f u g i r

d i a m e t r a l m e n t e de t i , p a r a tão l o n g e q u a n t o suas p e r n a s

35
p u d e s s e m l e v á - l o , e m v e z d e se e x p o r d e s s a f o r m a l o u c a

e irresponsável, seguidamente, quando seu coração e sua

c o n s c i ê n c i a l h e d i z e m que ele c o m certeza fracassará, se

n ã o resultará totalmente p e r d i d o ?

P o r que m e dizes que gostarias de m e v e r ? Será que

tens p r a z e r e m m e fazer mais infeliz, o u teu t r i u n f o é

m a i o r p e l o fato de teus olhos e lábios t e r e m feito de tolo

u m h o m e m que o restante da cidade considera sábio?

S o u u m idiota, o mais fraco, o mais submisso, o mais

c a r i n h o s o idiota cuja fraqueza foi posta à prova p o r u m a

m u l h e r , e o m a i s instável n o p r o p ó s i t o e n a r e s o l u ç ã o de

recuperar a segurança da mente.

H á apenas u m a h o r a f i q u e i de j o e l h o s e j u r e i n u n c a

m a i s m e a p r o x i m a r de t i ; depois de r e z a r u m Pai-Nosso

b u s c a n d o o b e n e f í c i o d a p a r t e f i n a l d a o r a ç ã o — não cair em

tentação —, p r e c i p i t e i - m e p a r a a r u a c o m o q u a l q u e r herói

cristão, p r o n t o a entrar e m campo contra o m u n d o , a car-

n e e o d e m ó n i o , s e m d u v i d a r de que f i n a l m e n t e i r i a t ê - l o s

todos a meus pés.

E a g o r a q u e e s t o u t ã o p e r t o de t i , a essa d i s t â n c i a t ã o

p e q u e n a de t u a casa, s i n t o m e u ser m e r g u l h a d o n u m t u r -

b i l h ã o q u e v i r o u m e u c é r e b r o d o avesso. E m b o r a t e n h a

c o m p r a d o u m camarote para o espetáculo beneficente da

s e n h o r i t a , s a b i a m u i t o b e m q u e , caso m e seja e n v i a d a u m a

s ó l i n h a p a r a i n f o r m a r - m e d e q u e a L a d y e s t a r á a s ó s às

sete h o r a s e aceitará q u e e u passe a n o i t e c o m e l a , s e m f a l t a

ela c o n f i r m a r á tudo o que lhe revelei.

36
J a n t o n a casa d o S r . C r , n a r u a W i g m o r e , neste b a i r -

r o , e lá p e r m a n e c e r e i até sete h o r a s , n a e s p e r a n ç a d e que

te d i s p o n h a s a m e p ô r à p r o v a . S e n ã o r e c e b e r qualquer

n o t í c i a até essa h o r a , c o n c l u i r e i q u e t e n s c o i s a m e l h o r a

fazer; t o m a r e i u m lamentável c a r r o de a l u g u e l e t r o t a r e i

t r i s t e m e n t e p a r a o t e a t r o . M a l d i t a seja a p a l a v r a , n a d a m e

r e s t a s e n ã o t r i s t e z a , a n ã o s e r p e l o f a t o d e q u e te a m o ( t a l -

vez l o u c a m e n t e , p o r é m ) c o m a m a i o r s i n c e r i d a d e ,

L . STERNE

37
Denis Diderot
1713-1784

O FILÓSOFO, romancista e polímata Denis Diderot

n a s c e u n a c i d a d e de L a n g r e s , n o leste da F r a n ç a . Depois

d e se f o r m a r , e l e a b a n d o n o u o p l a n o o r i g i n a l d e dedi-

car-se à teologia, dedicando-se ao estudo das leis; p o r

s u a vez, e m 1734 a b a n d o n o u essa a t i v i d a d e e d e c l a r o u a

i n t e n ç ã o d e se t o r n a r e s c r i t o r , o q u e o i n d i s p ô s c o m a

f a m í l i a . O s p a r e n t e s se a f a s t a r a m a i n d a m a i s q u a n d o ele

se c a s o u c o m A n t o i n e t t e C h a m p i o n , u m a d e v o t a cató-

l i c a q u e eles c o n s i d e r a v a m s o c i a l m e n t e i n f e r i o r , p o u c o

instruída e m u i t o velha (ela tinha quatro anos a mais do

que ele). O fato é que o casamento n ã o foi feliz, e em

1755 D i d e r o t i n i c i o u u m r o m a n c e c o m S o p h i e V o l l a n d

q u e d u r o u até a m o r t e d e l a .

Tal como tantos h o m e n s notáveis, Diderot estava

s e m p r e s e m d i n h e i r o . E l e passou quase 25 anos com-

p i l a n d o u m a das p r i m e i r a s e n c i c l o p é d i a s , um projeto

q u e as a u t o r i d a d e s f r a n c e s a s c o n s i d e r a v a m u m a p e r i g o s a

sedição contra o Estado e durante o qual o filósofo so-

freu intimidação constante. Por fim, Catarina, a G r a n -

de, i m p e r a t r i z da Rússia, conhecendo as dificuldades

38
financeiras de D i d e r o t , ofereceu-se p a r a c o m p r a r - l h e a

b i b l i o t e c a . E l a , e n t ã o , i n f o r m o u ao filósofo q u e o a c e r -

vo d e v e r i a ser m a n t i d o e m P a r i s e ele s e r i a r e m u n e r a d o

c o m o c u r a d o r . D e p o i s da m o r t e dele, a biblioteca foi

levada p a r a São Petersburgo, o n d e a i n d a hoje p e r m a n e -

ce n a c o l e ç ã o d a B i b l i o t e c a N a c i o n a l d a R ú s s i a .

I cfc> qfc cfa

Para Sophie Volland, julho de lfóg

N ã o posso i r e m b o r a daqui sem dizer-te algumas palavras.

E n t ã o , m i n h a q u e r i d a , t u esperas m u i t o de m i m : segundo

dizes, tua felicidade, tua p r ó p r i a v i d a d e p e n d e m do meu

amor eterno!

N ã o temas, m i n h a q u e r i d a S o p h i e ; ele p e r d u r a r á e t u

viverás e serás feliz. A t é h o j e , j a m a i s c o m e t i u m c r i m e e n ã o

p r e t e n d o c o m e ç a r . S o u t o d o t e u — és t u d o p a r a m i m ; a m p a -

r a r - n o s - e m o s e m t o d a s as v i c i s s i t u d e s q u e o d e s t i n o d e c i d i r

n o s i n f l i g i r ; s u a v i z a r á s m i n h a s d o r e s ; e u te c o n f o r t a r e i n a s

tuas. A h ! Q u i s e r a s e m p r e p o d e r ver-te tal c o m o tens sido

nos últimos tempos! Q u a n t o a m i m , precisas a d m i t i r que

s o u exatamente o que era n o p r i m e i r o dia e m que m e viste.

N ã o é m é r i t o m e u , mas, p a r a ser j u s t o c o m i g o m e s m o ,

é p r e c i s o q u e te d i g a i s s o . U m d o s e f e i t o s das b o a s q u a -

lidades é serem percebidas c o m mais intensidade a cada

d i a . F i c a c e r t a da m i n h a f i d e l i d a d e a tuas q u a l i d a d e s e d o

v a l o r que lhes a t r i b u o . N e n h u m a paixão f o i tão a m p a r a d a

39
pela inteligência quanto a m i n h a . Não é verdade, m i n h a

q u e r i d a S o p h i e , q u e és a d o r á v e l ? E x a m i n a a t i m e s m a — v ê

c o m o m e r e c e s s e r a m a d a e s a b e q u e te a m o m u i t o . E s s e é o

p a d r ã o invariável dos meus sentimentos.

B o a - n o i t e , m i n h a q u e r i d a S o p h i e . S o u tão feliz q u a n -

to u m h o m e m p o d e ser, pois sei que s o u a m a d o pela m e -

l h o r das m u l h e r e s .

Para Sophie Volland, Au Grandval, 20 de outubro de lfóg

Estás b e m ! Pensas e m m i m ! A m a s - m e . S e m p r e m e a m a r á s .

C r e i o e m t i , agora estou feliz. T o r n o a viver. Posso falar,

trabalhar, b r i n c a r , c a m i n h a r — fazer o que quiseres. D e v o

ter m e c o m p o r t a d o de f o r m a m u i t o desagradável n o s ú l t i -

m o s d o i s o u três dias. N ã o , m e u a m o r : a tua p r ó p r i a p r e -

sença não m e teria deliciado mais que tua p r i m e i r a carta.

C o m que impaciência esperei p o r ela! T e n h o certeza

d e q u e m i n h a s m ã o s t r e m e r a m a o a b r i - l a . M e u r o s t o se

t r a n s f o r m o u ; m i n h a v o z se a l t e r o u ; e, a n ã o s e r q u e f o s -

se i d i o t a , o h o m e m q u e m e e n t r e g o u t u a m i s s i v a d e v e t e r

d i t o : " E s s e h o m e m está r e c e b e n d o n o t í c i a s d o p a i o u d a

m ã e , o u de a l g u é m m a i s q u e ele a m e . " N a q u e l e mesmo

m o m e n t o e u estava p r o n t o p a r a m a n d a r - t e u m a c a r t a m a -

n i f e s t a n d o m i n h a g r a n d e a n s i e d a d e . E n q u a n t o te d i v e r t e s ,

esqueces quanto m e u coração sofre...

A d e u s , m e u q u e r i d o a m o r . M i n h a afeição p o r ti é a r -

d e n t e e s i n c e r a . E u t e a m a r i a a i n d a m a i s , se s o u b e s s e c o m o

fazê-lo.

40
Henry Frederick,
Duque de Cumberland
ms-mo

H E N R Y F R E D E R I C K e r a i r m ã o d o r e i G e o r g e I I I . S e u caso

de a m o r c o m H e n r i e t t a V e r n o n , L a d y G r o s v e n o r , u m a

s e n h o r a casada, c a u s o u g r a n d e e s c â n d a l o — os a m a n t e s

não e r a m discretos e o duque perseguia L a d y G r o s v e n o r

p o r toda parte, fazendo-se passar p r i m e i r o p o r " u m ga-

l ê s " ( s e j a m q u a i s f o r e m as i m p l i c a ç õ e s d i s s o ) e depois

por " u m fazendeiro". Lorde Grosvenor moveu contra

ele u m a ação p o r a d u l t é r i o . A p ó s v e r u m a a m o s t r a d a

correspondência dos amantes, o j ú r i d e t e r m i n o u que o

d u q u e pagasse ao l o r d e I O m i l l i b r a s p o r d a n o s m o r a i s .

A s cartas f o r a m roubadas, publicadas e c a u s a r a m sensa-

ção p o r toda a cidade de L o n d r e s . G o m o nos m o s t r a o

e x e m p l a r a seguir, e m b o r a n ã o fosse a r t i c u l a d o , o d u -

que era bastante ardoroso.

I ctfj qfc

Para Lady Grosvenor

M e u querido anjinho,

E s c r e v i m i n h a ú l t i m a c a r t a p a r a t i às o n z e h o r a s d e o n t e m

a s s i m q u e d e i x a m o s o p o r t o j a n t e i às d u a s h o r a s e t i v e m o s

42
música tenho a bordo m e u próprio criado que toca... e m e

r e c o l h i e m t o r n o d a s d e z h o r a s — e n t ã o r e z e i p o r t i meu amor

mais querido beijei teus adorados cabelos f u i p a r a a c a m a e s o n h e i

c o n t i g o e s t a v a s c o m i g o n a q u e r i d a caminha e m m e u s b r a ç o s

d e z m i l v e z e s t e b e i j a v a e d i z i a q u a n t o te a m o e a d o r o e

parecias contente mas, oh. dor, quando acordei e desco-

b r i que tudo era u m a ilusão n i n g u é m comigo a n ã o ser e u

m e s m o a b o r d o . . . E s t o u c e r t o de q u e u m r e l a t o desses d i a s

n ã o te d a r á p r a z e r n o e n t a n t o m e u a m o r é e x a t a m e n t e o

que t e n h o feito e c o m o p r o m e t i sempre i n f o r m a r - t e sobre

meus movimentos e pensamentos agora c u m p r o minha

p r o m e s s a neste d i a e s e m p r e c u m p r i r e i até à d e r r a d e i r a

c a r t a q u e recebas de m i m .

Q u a n d o voltar para ti naquele instante ó m e u amor

l o u c o e f o r a d e m i m de f e l i c i d a d e p a r a d i z e r - t e q u a n t o te

a m o e p e n s o e m ti desde que f u i apartado de t i . . . E s p e r o

q u e estejas b e m c o m certeza n ã o p r e c i s o d e c l a r a r - t e que

n ã o tive e m m e u s p e n s a m e n t o s senão tua pessoa q u e r i d a

e a n s e i o p e l o m o m e n t o de v o l t a r p a r a t i e até lá c u i d a r e i

m u i t o b e m d e m i m p o r q u e t u o d e s e j a s minha querida amigui-

nha a n j o d o m e u c o r a ç ã o p o r f a v o r c u i d a - t e p e l o b e m do

teu fiel s e r v i d o r q u e v i v e s o m e n t e p a r a te a m a r e a d o r a r

e p a r a b e n d i z e r o m o m e n t o q u e te fez t ã o g e n e r o s a p a r a

a c e i t á - l o e espero, n ã o , ouso d i z e r que n u n c a terás m o t i v o

de a r r e p e n d i m e n t o . . .

D e fato m e u q u e r i d o anjo n ã o preciso d i z e r - t e sei que

entendes m u i t o b e m o motivo que me levou a fazê-lo foi

p a r a e s c r e v e r - t e , p o i s D e u s sabe q u e n ã o escrevi p a r a m a i s

42
n i ni g u ée m n e m i r e i e s c r e v e r s e n ã o p a r a q u e o R e i D e u s te

abençoe criatura mais adorável e querida que existe...

D e u s te a b e n ç o e até q u e m a i s u m a vez e u t e n h a a o p o r -

t u n i d a d e de m e c o r r e s p o n d e r contigo, v o u escrever-te u m a

carta p o r d i a tantos dias quantos sintas falta de m i m q u a n -

d o o f i z e r t o d a s c h e g a r ã o s e x t a - f e i r a 16 d e j u n h o Deus

te a b e n ç o e n ã o m e e s q u e c e r e i d e t i D e u s s a b e q u e o d i s -

seste a n t e s q u e e u tivesse t e u c o r a ç ã o e isso m e aquece

o p e i t o e e s p e r o o m e u te s e j a i g u a l m e n t e s u a v e ó v ó s a l e -

gria da m i n h a vida adeus.

43
Wolfgang Amadeus Mozart
1756-1791

W O L F G A N G A M A D E U S M O Z A R T foi u m dos composito-

res m a i s talentosos, produtivos e influentes que o m u n -

do já t o m o u conhecimento. E l e nasceu e m Salzburgo e

c o m e ç o u a tocar e c o m p o r a p a r t i r dos 5 anos. Mozart

p a s s o u g r a n d e p a r t e d a i n f â n c i a p e r c o r r e n d o as c o r t e s

d a E u r o p a c o m a f a m í l i a , s u r p r e e n d e n d o as p l a t e i a s c o m

sua precocidade.

E m S a l z b u r g o , as o p o r t u n i d a d e s p a r a u m m ú s i c o e

c o m p o s i t o r tão competente e brilhante eram limitadas,

mas, posteriormente, durante u m a viagem pela E u r o p a

e m M a n n h e i n , n a A l e m a n h a , o a r t i s t a c o n h e c e u e se a p a i -

x o n o u p o r A l o y s i a W e b e r , u m a c a n t o r a . Q u a n d o ele r e -

t o r n o u a S a l z b u r g o , e l e s se d i s t a n c i a r a m . A o s e r e e n c o n -

t r a r e m d o i s a n o s d e p o i s , A l o y s i a j á n ã o estava m a i s i n t e -

ressada nele; de acordo c o m alguns relatos, a cantora n e m

mesmo o reconheceu.

A l g u n s anos mais tarde, e m V i e n a , Mozart t o r n o u a

e n c o n t r a r a f a m í l i a W e b e r . A l o y s i a estava casada c o m u m

ator, e Mozart voltou a atenção para a irmã mais nova da

a n t i g a a m a d a , C o n s t a n z e , c o m q u e m se c a s o u e m 1 7 8 2 .
E l e s t i v e r a m seis filhos, p o r é m somente dois sobrevive-

r a m aos p r i m e i r o s a n o s .

A sorte d o casal passava p o r altos e b a i x o s de a c o r d o

c o m a m o d a e c o m a disposição de M o z a r t p a r a c o m -

p o r músicas que p u d e s s e m agradar a possíveis p a t r o c i -

n a d o r e s . O casal e r a inegavelmente extravagante. Gomo

e r a d e se e s p e r a r , a p o s t e r i d a d e c u l p o u G o n s t a n z e p e l o s

eternos problemas financeiros da família. N o entanto, a

c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e os d o i s m o s t r a q u e o casamento

era feliz. E l e s p a r e c e m ter c o m p a r t i l h a d o u m senso de

h u m o r i n f a n t i l — as b r i n c a d e i r a s d e M o z a r t e r a m q u a s e

obsessivamente escatológicas. Constanze acompanhou

M o z a r t e m m u i t a s de suas i n ú m e r a s viagens. D e p o i s d a

trágica m o r t e p r e m a t u r a do compositor, ela t r a b a l h o u

a r d u a m e n t e para preservar-lhe o legado e m e l h o r a r - l h e

a repu açao.

Para Constanze

De Dresden, em 16 de abril de l?8g

Q u e r i d a esposinha, tenho alguns pedidos a fazer. Rogo-

te q u e

(1) não fiques triste,

( 2 ) c u i d e s d a s a ú d e e t e n h a s c u i d a d o c o m as b r i s a s d a p r i -

mavera,

45
( 3 ) n ã o s a i a s p a r a c a m i n h a r s e m c o m p a n h i a — e, d e p r e f e -

r ê n c i a , n ã o saias p a r a c a m i n h a r de j e i t o n e n h u m ,

( 4 ) fiques absolutamente segura do m e u a m o r . A t é o p r e -

sente n ã o escrevi n e n h u m a carta para ti s e m ter diante

de m i m teu amado retrato.

( 6 ) * e, p o r f i m , p e ç o q u e m a n d e s m a i s d e t a l h e s e m t u a s c a r -

t a s . G o s t a r i a i m e n s a m e n t e d e s a b e r se n o s s o cunhado

H o f e r veio visitar-nos n o dia seguinte à m i n h a p a r t i -

da. E l e vem c o m frequência, conforme p r o m e t e u ? Os

L a n g e s n o s v i s i t a m às v e z e s ? O r e t r a t o e s t á p r o g r e d i n -

d o ? Q u e t i p o d e v i d a estás l e v a n d o ? T o d a s essas c o i s a s

naturalmente m e despertam m u i t o interesse.

( 5 ) S u p l i c o que tua c o n d u t a , a l é m de atentar p a r a t u a h o n -

r a e a m i n h a , t a m b é m l e v e e m c o n s i d e r a ç ã o as a p a r ê n -

c i a s . N ã o te z a n g u e s c o m i g o p o r p e d i r i s t o . D e v e s m e

a m a r a i n d a mais p o r valorizar tanto a tua h o n r a .

W . A . MOZART

Para Constance

De Viena, em 6 de junho de ljgi

A c a b e i de receber tua preciosa carta e estou encantado p o r

s a b e r q u e passas b e m e estás a n i m a d a . M a d a m e Leutgeb

* O s parágrafos 5 e 6 estão trocados n a cópia da carta a r q u i v a d a n a


B i b l i o t e c a de B e r l i m .
l a v o>u
u m i rn h a t o u c a d e d o r m i r e m i n h a g r a v a t a , g o s t a r i a q u e

t u as visses! S a n t o D e u s ! I n s i s t i c o m e l a : " D e i x e - m e mos-

t r a r de q u e m o d o ela ( m i n h a esposa) c u i d a delas!" M a s de

n a d a a d i a n t o u . E s t o u m u i t o feliz p o r teu apetite ser b o m ,

mas quem come muito também t e m de defecar muito,

quero dizer, c a m i n h a r m u i t o . N o entanto, eu não gostaria

q u e f i z e s s e s caminhadas longas s e m m i m . P e ç o q u e s i g a s à r i s c a

m e u c o n s e l h o , p o i s ele v e m do c o r a ç ã o . A d e u s , m e u a m o r ,

m e u ú n i c o a m o r . Pega n o a r os 2 9 9 9 beijinhos meus

q u e estão v o a n d o p o r aí, e s p e r a n d o q u e a l g u é m os c a p t u -

r e . O u v e , q u e r o s u s s u r r a r algo e m t e u o u v i d o — e t u n o

m e u — e agora a b r i m o s e fechamos nossas bocas de novo,

m a i s u m a v e z e, p o r f i m , d i z e m o s : " T r a t a - s e d e Plumpi-

S t r u m p i * " B e m , p e n s a o q u e q u i s e r e s , p o r isso é tão c o n -

veniente. A d e u s . M i l beijos carinhosos. S e m p r e teu

MOZART

* P s e u d ó n i m o u t i l i z a d o p o r M o z a r t e m cartas íntimas [N. da T.]

47
Lorde Nelson
1758-1805

O CÉLEBRE ROMANCE entre Lorde Nelson e Emma

H a m i l t o n , famosa p o r sua grande beleza, c o m e ç o u em

1798, e m N á p o l e s , o n d e E m m a vivia c o m o m a r i d o , S i r

W i l l i a m H a m i l t o n , u m diplomata trinta anos mais velho

q u e e l a . A t é se c a s a r , E m m a m a n t i n h a - s e c o m d i f i c u l d a -

de graças a trabalhos c o m o atriz e m o d e l o de arte e t a m -

b é m a u m a c a r r e i r a d u v i d o s a n o demi-monde londrino.

F o i e n t r e g u e a s i r W i l l i a m c o m o se f o s s e u m embrulho

pelo s o b r i n h o deste, que cansado dela, aspirava casar-se

c o m u m a h e r d e i r a e não c o m u m a cortesã sem u m único

tostão. S i r W i l l i a m s u r p r e e n d e u a t o d o s ao casar-se c o m

E m m a , por quem parecia nutrir u m sentimento genuí-

no e profundo.

S i r W i l l i a m t a m b é m parece ter tolerado alegremen-

te o r e l a c i o n a m e n t o d a esposa c o m o h e r ó i n a v a l , e os

t r ê s v i v e r a m u m ménage-à-trois após o r e t o r n o d o casal a

L o n d r e s , e m 1 8 0 0 . N o f i n a l de 1801, E m m a d e u à luz

H o r a t i a , f i l h a de N e l s o n .

Sir William m o r r e u em 1803; Nelson perdeu a vida

e m 1805, n a batalha de Trafalgar. A última carta de N e l -

48
s o n para E m m a , a segunda a seguir, foi encontrada na

e s c r i v a n i n h a d o a l m i r a n t e a b o r d o d o H M S Victory. Sobre

ela, L a d y H a m i l t o n escreveu: " O h , p o b r e infeliz E m m a !

O h , glorioso e feliz N e l s o n ! "

E m b o r a o almirante tenha incluído E m m a em seu

testamento e pedido ao g o v e r n o para cuidar dela caso

ele m o r r e s s e e m c o m b a t e , E m m a foi presa por dívidas

e m 1 8 1 3 . E l a e s c a p o u e m 1814 e f u g i u c o m H o r a t i a p a r a

Calais, onde m o r r e u n a miséria no ano seguinte, pro-

vavelmente de cirrose hepática.

cfa C$J Ctfj,

Para Lady Hamilton

M i n h a adorada E m m a ,

T o d a s as t u a s c a r t a s , queridas cartas, s ã o t ã o d i v e r t i d a s e m o s -

t r a m c o m t a n t a clareza o q u e desejas q u e m e c a u s a m o m a i s

p r o f u n d o prazer o u a mais p r o f u n d a dor. São o que pode

haver de m e l h o r , a l é m de estar c o n t i g o .

Só desejo, adorada E m m a , que acredites sempre que

N e l s o n é t e u ; és o A l f a e o O m e g a d e N e l s o n ! N a d a p o s s o

f a z e r — m e u afeto e m e u a m o r t r a n s c e n d e m até m e s m o este

m u n d o ! Só tu podes abalá-lo; e não me permitirei n e m

p o r u m m o m e n t o p e n s a r q u e isso seja possível.

S i n t o q u e és a v e r d a d e i r a a m i g a d o m e u c o r a ç ã o , por

m i m mais amada que a vida; e sou o mesmo para t i . Mas

49
n ã o p o s s o t o l e r a r q u e n i n g u é m se a p r o x i m e d e t i . N ã o ,

s e q u e r a c o i s a m a i s í n f i m a . M a s se e u p r o s s e g u i s s e , esta-

r i a d e m o n s t r a n d o u m a falta de c o n f i a n ç a capaz de ferir

tua h o n r a .

F i c o feliz p o r teres feito u m a viagem tão agradável p a r a

N o r f o l k , e e s p e r o u m d i a c o n d u z i r - t e p a r a l á p o r u m laço

m a i s estreito que o do presente, segundo a l e i , mas n ã o

segundo o a m o r e a afeição.

Para Lady Hamilton

V i c t o r y , ig de outubro de 1805, meio-dia; Cadiz, SSE48 milhas

M i n h a querida, adorada E m m a e amigos queridos do m e u

c o r a ç ã o , recebemos o sinal de que a a r m a d a do inimigo

está d e i x a n d o o p o r t o .

N ã o há m u i t o vento, portanto, não espero vê-los a n -

tes d e a m a n h ã . P o s s a o d e u s das b a t a l h a s c o r o a r de s u c e s -

so m e u s esforços! Seja c o m o f o r , c u i d a r e i p a r a q u e meu

n o m e seja s e m p r e q u e r i d o a t i e a H o r a t i a , a q u e m amo

tanto quanto à m i n h a própria vida. C o m o a última carta

q u e escrevo antes d a batalha será p a r a t i , espero e m D e u s

viver p a r a t e r m i n á - l a após o combate. Q u e o C é u vos p r o -

teja, r o g a m teus N e l s o n e B r o n t e .

20 de o u t u b r o — pela manhã, estávamos p r ó x i m o s à

e m b o c a d u r a d o s estreitos; os v e n t o s p a r a oeste n ã o f o r a m

s u f i c i e n t e s p a r a p e r m i t i r q u e as e s q u a d r a s c o m b i n a d a s u l -

t r a p a s s a s s e m as á g u a s r a s a s d e T r a f a l g a r , m a s e l a s f o r a m e s -

50
t i m aada
d a s e m q u a r e n t a navios de g u e r r a , que s u p o n h o s e r e m

3 4 n a v i o s de l i n h a de b a t a l h a e seis fragatas. E s t a m a n h ã ,

u m grupo deles f o i avistado ao largo d o f a r o l de Cadiz,

m a s o v e n t o é tão suave, p e n s o . . . a c r e d i t o m e s m o q u e eles

buscarão o p o r t o antes da noite.

Bossa D e u s T o d o - P o d e r o s o p r o p o r c i o n a r - n o s sucesso

c o n t r a esses r a p a z e s e p e r m i t i r - n o s t e r p a z .

51
Robert Burns
1759-1796

R O B E R T B U R N S e r a u m poeta de g r a n d e r e n o m e quan-

do conheceu a senhora Agnes Maclehose em u m chá

em Edimburgo, em 1787- Agnes ("Nancy") casou-se

c o m James Maclehose, u m advogado de Glasgow, mas

s e p a r o u - s e dele p o r causa de sua crueldade e v o l t o u p a r a

E d i m b u r g o . E m seguida, ela e B u r n s d e r a m início a u m a

correspondência apaixonada e possivelmente a u m ver-

d a d e i r o r o m a n c e . E l e s u s a v a m os p s e u d ó n i m o s " S y l v a n -

d e r " e " C l a r i n d a " p a r a p r o t e g e r as p r ó p r i a s i d e n t i d a d e s

c a s o as c a r t a s f o s s e m descobertas.

B u r n s era u m mulherengo incorrigível ( o u talvez

incrível); espantosamente, conseguiu engravidar J e n n y

C l o w , a criada da senhora Maclehose, enquanto man-

tinha com a patroa u m a correspondência tórrida. E l e

também tinha, em Ayrshire, u m relacionamento com

J e a n A r m o u r , q u e e m 1786 l h e d e u filhos gémeos e en-

g r a v i d o u n o v a m e n t e . E m 1791» a s e n h o r a M a c l e h o s e e

B u r n s se s e p a r a r a m p e l a ú l t i m a v e z ; e m 1 7 9 2 , e l a p a r t i u

para a J a m a i c a , onde então vivia o m a r i d o , n u m a t e n -

tativa de reconciliação que fracassou. T r ê s meses m a i s

52
tarde, Agnes voltou para Edimburgo, onde morreu,

e m 1841.

qfb qfc qgj

Para Sra. Agnes Maclehose, terça-feira à tarde,

15 de janeiro de \J88

J a m a ii s d u v i d e i , m i n h a C l a r i n d a , d e q u e t i v e s s e s d e f e i t o s ,

mas n ã o sabia quais e r a m eles; e a n o i t e de sábado m e d e i -

x o u ainda mais e m dúvida. O h , C l a r i n d a ! P o r que ferirá

m i n h a a l m a , i n s i n u a n d o q u e a q u e l a ú l t i m a n o i t e deve ter

p r e j u d i c a d o a o p i n i ã o q u e faço de t i ? E v e r d a d e , e u estava

contigo n o s bastidores, mas o que v i ? U m peito cheio de

h o n r a e benevolência; u m a mente enobrecida pela inteli-

gência, i n f o r m a d a e refinada pela educação e pela refle-

xão, elevada pela religião natural, g e n u í n a c o m o nas r e -

g i õ e s celestes; u m c o r a ç ã o f o r m a d o p o r t o d o s os g l o r i o s o s

amálgamas da amizade, do a m o r e da compaixão. Isto eu

vi. E u vi a a l m a i m o r t a l mais nobre que a criação já me

apresentou.

Esperei muito tempo p o r tua carta, m i n h a querida

C l a r i n d a ; p e r t u r b a - m e o fato d e te estares q u e i x a n d o . A t é

a g o r a n ã o te s u r p r e e n d i e m e r r o s e n ã o n a i d e i a d e que

o i n t e r c â m b i o que tens c o m u m amigo é motivo de dor

se n ã o p u d e r e s r e v e l á - l o p l e n a m e n t e a t e r c e i r o s . P o r q u e

suspeitar de f o r m a tão i n j u r i o s a de u m b o m D e u s , Cla-

r i n d a , ao p e n s a r que a a m i z a d e e o a m o r , calcados nos

53
p r i n c í p i o s sagrados e invioláveis da verdade, da h o n r a e da

religião, p o s s a m d e i x a r de ser objeto da aprovação d i v i n a ?

Em meus rabiscos anteriores m e n c i o n e i a próxima noi-

te d e s á b a d o . P e r m i t e - m e v i s i t a r - t e nessa d a t a . O h , meu

anjo! Q u ã o cedo teremos que nos separar! E quando po-

d e r e m o s e n c o n t r a r - n o s n o v a m e n t e ! A n t e v e j o este i n t e r -

v a l o h o r r e n d o c o m os o l h o s c h e i o s de l á g r i m a s . Quanto

p e r d i p o r n ã o ter-te c o n h e c i d o antes!

Tenho medo, tenho m e d o de que nosso relaciona-

m e n t o seja c u r t o d e m a i s p a r a c r i a r e m t e u c o r a ç ã o a i m -

pressão d u r a d o u r a que eu desejaria.

SYLVANDER
Johann Christoph
Friedrich von Schiller
1759-1803

S C H I L L E R foi u m poeta, dramaturgo, historiador e tra-

dutor alemão. Ele conheceu Charlotte von Lengefeld

e sua irmã, K a r o l i n e , e m 1785» D e p o i s d e se corres-

ponderem durante vários anos, Schiller casou-se com

C h a r l o t t e e m fevereiro de 1790. A p r o x i m a carta é d a -

tada de agosto de 1789, sete m e s e s antes d o casamento.

Evidentemente, o poeta havia pedido a Karoline para

interceder junto a Charlotte em seu favor e recebeu

u m a resposta encorajadora. Schiller e Charlotte tive-

ram quatro filhos. D u r a n t e a m a i o r parte de sua vida,

s o f r e u c o m p r o b l e m a s de saúde e C h a r l o t t e v i v e u v i n t e

anos mais do que ele.

Para Charlotte von Lengefeld, 3 de agosto de 1789

E verdade, adorada L o t t e ? Posso esperar que K a r o l i n e te-

n h a lido tua alma e me tenha respondido por teu coração

o q u e e u n ã o tive c o r a g e m de c o n f e s s a r ? O h , como foi

d i f í c i l p a r a m i m esse s e g r e d o q u e p r e c i s e i o c u l t a r p o r t o d o

55
o tempo e m que nos conhecemos! M u i t a s vezes, quando

a i n d a passávamos m u i t o tempo j u n t o s , r e u n i toda a m i n h a

c o r a g e m e m e a p r o x i m e i de ti c o m a i n t e n ç ã o de revelá-lo

— mas tal coragem sempre m e faltou. Pensava descobrir e m

meu desejo u m egoísmo, temia levar e m conta apenas m i -

n h a f e l i c i d a d e e esse p e n s a m e n t o m e c o n t e v e . S e n ã o p u -

d e s s e r e p r e s e n t a r para ti o q u e r e p r e s e n t a s p a r a m i m , m e u

s o f r i m e n t o iria p e r t u r b a r - t e e m i n h a confissão d e s t r u i r i a

a m a r a v i l h o s a h a r m o n i a de nossa a m i z a d e . E u t a m b é m i r i a

p e r d e r o que possuía: tua amizade sincera e fraternal. E ,

n o entanto, houve momentos, quando m i n h a esperança

se r e n o v a v a , e m q u e a f e l i c i d a d e q u e p o d e r í a m o s n o s p r o -

p o r c i o n a r m e parecia superar toda e qualquer considera-

ção, q u a n d o a j u l g a v a tão n o b r e a p o n t o de valer s a c r i f i c a r

t u d o p o r ela. Poderias ser feliz s e m m i m , mas n ã o i n f e l i z

p o r m i n h a c a u s a . S e n t i a i s s o e m m i m e s o b r e esse s e n t i -

m e n t o construí m i n h a esperança.

Poderias dar-te a outro; contudo, ninguém poderia

dedicar-te u m amor mais puro e completo que o meu.

P a r a n i n g u é m essa f e l i c i d a d e p o d e r i a s e r m a i s s a g r a d a d o

q u e é p a r a m i m , e s e m p r e será. T o d a m i n h a existência,

t u d o o q u e vive d e n t r o de m i m , t u d o , m i n h a p r e c i o s a , d e -

d i c o a t i . Se p r o c u r o e n o b r e c e r m i n h a pessoa, faço isso

p a r a m e t o r n a r m a i s d i g n o de t i , p a r a te f a z e r m a i s f e l i z .

A n o b r e z a das a l m a s é u m a b e l a e indestrutível ligação de

a m i z a d e e a m o r . N o s s a a m i z a d e e n o s s o a m o r se t o r n a m

i n d e s t r u t í v e i s e e t e r n o s c o m o os s e n t i m e n t o s q u e l h e s s e r -

v i r a m de base.

56
A g o r a , esquece tudo o que possa l i m i t a r - t e o coração

e deixa teus s e n t i m e n t o s f a l a r e m p o r s i . C o n f i r m a - m e o

q u e K a r o l i n e m e p e r m i t i u e s p e r a r . D i z - m e q u e s e r á s minha

e q u e m i n h a f e l i c i d a d e n ã o te c u s t a q u a l q u e r sacrifício.

O h , d á - m e essa c e r t e z a , basta u m a ú n i c a p a l a v r a . N o s s o s

corações estão p r ó x i m o s há m u i t o t e m p o . D e i x a que de-

s a p a r e ç a o ú n i c o e l e m e n t o e s t r a n h o q u e até a g o r a esteve

entre nós e que nada, nada perturbe a livre comunicação

entre nossas almas. A d e u s , a m a d a L o t t e ! A n s e i o p o r um

momento de t r a n q u i l i d a d e p a r a descrever todo o s e n t i -

mento do m e u coração no qual, p o r u m longo período,

v i v e u s o m e n t e e s s a a s p i r a ç ã o , q u e m e f e z f e l i z e, p o r o u t r o

lado, também infeliz... Não demores a banir para sempre

m i n h a i n q u i e t a ç ã o , c o n f i o a tuas m ã o s t o d o s os p r a z e r e s

da m i n h a vida... Adeus, m i n h a preciosa!

57
Napoleão Bonaparte
1769-1821

N A P O L E Ã O , O h u m i l d e s o l d a d o c o r s o q u e se t o r n o u u m

grande general e imperador da França, casou-se com

J o s e f i n a de B e a u h a r n a i s e m m a r ç o de 1796. E l a e r a u m a

aristocrata falida, descendente de e u r o p e u s d a colónia

francesa da M a r t i n i c a , e tinha dois filhos de u m casa-

mento anterior.

A s três p r i m e i r a s cartas f o r a m escritas p o u c o de-

pois do casamento, quando Napoleão se t o r n o u co-

m a n d a n t e das forças francesas n a Itália; a q u a r t a c a r t a

data da época da campanha da Áustria, e m 1805. N e s -

s a s c a r t a s , N a p o l e ã o se a p r e s e n t a c o m o u m suplicante

à m e r c ê d e s u a l i n d a e i m p i e d o s a e s p o s a , q u e às v e z e s

insiste e m u s a r o t r a t a m e n t o f o r m a l vous, e m vez do

a f e t u o s o tu. H á a l g o d e t o c a n t e e a t é m e s m o d e cómico

n o fato de o general perseguir ansiosamente J o s e f i n a

p o r t o d a a Itália e n q u a n t o d i r i g i a u m a c a m p a n h a m i l i -

tar que o t o r n a r i a famoso. Mais tarde ficou claro para

a m b o s q u e n e n h u m d e l e s f o i fiel n o c a s a m e n t o . A s e x -

travagâncias de J o s e f i n a e r a m u m a fonte constante de

a t r i t o e n t r e o casal, m a s o q u e t r a n s p a r e c e dessas p r i -

58
m e i r a s cartas é q u e N a p o l e ã o estava m u i t o apaixonado

pela esposa.

O general d i v o r c i o u - s e de J o s e f i n a e m l8lO para

desposar a arquiduquesa M a r i a Luísa da Áustria, bus-

cando ter u m h e r d e i r o e garantir a sucessão. J o s e f i n a

continuou a viver perto de Paris, permanecendo em

b o n s t e r m o s c o m o e x - m a r i d o até m o r r e r , e m 1814.

D e p o i s de d e r r o t a d o pelos b r i t â n i c o s , e m 1815, Na-

p o l e ã o foi exilado n a ilha de S a n t a H e l e n a , o n d e mor-

r e u seis a n o s d e p o i s .

Para Josephine, em Milão

De Verona, em 13 de novembro de 1796

J á n ã o te a m o m a i s ; p e l o c o n t r á r i o , d e t e s t o - t e . E s h o r -

renda, m u i t o desajeitada, m u i t o idiota, u m a verdadeira

C i n d e r e l a . N ã o m e escreves n u n c a , n ã o amas vosso ma-

r i d o ; sabes d o p r a z e r q u e vossas cartas l h e p r o p o r c i o n a m

e n ã o l h e envias sequer m e i a dúzia de l i n h a s de rabiscos

ocasionais.

E n t ã o , o q u e fazes o d i a i n t e i r o , s e n h o r a ? Q u e a s s u n -

to de tanta i m p o r t â n c i a o c u p a t e u t e m p o , impedindo-te

de escrever a teu excelente a m a n t e ? Q u e afeição sufoca e

p õ e de lado o a m o r , o a m o r eterno e constante que lhe

p r o m e t e s t e ? Q u e m p o d e s e r esse n o v o a m a n t e m a r a v i l h o -

so q u e a b s o r v e t o d o s os teus i n s t a n t e s , t i r a n i z a p o r i n t e i r o

59
t e u s d i a s e te i m p e d e de d a r a t e n ç ã o a t e u m a r i d o ? J o s e -

f i n a , t e m c u i d a d o , u m a n o i t e d e s s a s as p o r t a s se a b r i r ã o e

e u estarei lá.

E m verdade, m i n h a boa amiga, estou ansioso p o r n ã o

ter r e c e b i d o notícias tuas; escreve-me depressa quatro p á -

ginas e diz aquelas coisas amáveis que e n c h e m m e u c o r a ç ã o

de s e n t i m e n t o e prazer.

E s p e r o logo poder apertar-te e m meus braços e fazer

c h o v e r s o b r e t i u m m i l h ã o d e b e i j o s a r d e n t e s c o m o as c h u -

vas a b a i x o d o E q u a d o r .

BONAPARTE

Para Josephine, em Génova

De Milão, 27 de novembro de 1796, às 3 horas da tarde

C h e g o a M i l ã o , p r e c i p i t o - m e p a r a t e u appartement, aban-

d o n e i t u d o p a r a te v e r , p a r a a p e r t a r - t e e m m e u s b r a ç o s . . .

e n ã o e s t a v a s l á ; c o r r e s p a r a as c i d a d e s o n d e h á f e s t e j o s ; t u

m e d e i x a s q u a n d o c h e g o , n ã o te i n t e r e s s a s m a i s p o r teu

q u e r i d o N a p o l e ã o . T e u a m o r p o r ele f o i u m c a p r i c h o ; t u a

i n c o n s t â n c i a te d e i x a i n d i f e r e n t e a e l e . A c o s t u m a d o ao

p e r i g o , c o n h e ç o o r e m é d i o p a r a as p r e o c u p a ç õ e s e v i c i s -

situdes da v i d a . O s o f r i m e n t o que t o m a conta de m i m é

incalculável; e u t i n h a o direito de ser p o u p a d o disso.

E s t a r e i a q u i a t é a n o i t e d o d i a 9. N ã o t e i n c o m o d e s ;

vai e m busca dos prazeres; a felicidade f o i feita p a r a t i . O


60
m u n d o i n t e i r o fica m u i t o feliz de p o d e r a g r a d a r - t e e s o -

m e n t ( t e u m a r i d o está m u i t o , m u i t o i n f e l i z .

BONAPARTE

Para Josefina, lj$6

N ã o v v i u m ú n i c o d i a e m q u e n ã o te a m a s s e ; n ã o p a s s e i

u m a ú n i c a n o i t e s e m te a b r a ç a r ; n ã o b e b i u m a ú n i c a x í -

cara de chá s e m a m a l d i ç o a r o o r g u l h o e a a m b i ç ã o que m e

forçam a p e r m a n e c e r longe do espírito que inspira m i n h a

v i d a . E m m e i o a m e u s deveres, q u e r e u esteja à f r e n t e do

e x é r c i t o o u i n s p e c i o n a n d o os c a m p o s , m i n h a a m a d a J o s e -

fina d o m i n a m e u coração, ocupa m i n h a mente, preenche

m e u s p e n s a m e n t o s . Se estou m e afastando de t i à v e l o c i d a -

de da t o r r e n t e d o R ó d a n o , é s o m e n t e p a r a p o d e r t o r n a r a

ver-te mais cedo. Se m e levanto para trabalhar n o m e i o da

n o i t e é p o r q u e isso p o d e a c e l e r a r e m a l g u n s dias a chegada

do m e u doce a m o r . N o entanto, e m tua carta dos dias 23 e

2 6 d e V e n t o s o * , m e t r a t a s p o r vous. A p l i c a e s t e t r a t a m e n t o

a ti mesma! A h , infeliz, c o m o podes ter escrito u m a carta

t ã o f r i á ! E a i n d a h á esses q u a t r o d i a s e n t r e o 2 3 e o 2 6 ;

o que fazias p a r a d e i x a r de escrever a teu m a r i d o ? . . . A h ,

m e u a m o r , a q u e l e vous, a q u e l e s q u a t r o d i a s m e f a z e m t e r

saudade da m i n h a anterior indiferença. Q u e se c u i d e o

* Ventoso é o sexto mês do calendário republicano francês; c o r r e s -


p o n d e ao p e r í o d o do f i n a l de fevereiro ao final de março [N. da T.]

61
responsável! Possa ele, c o m o p u n i ç ã o o u c o m p e n s a ç ã o , e x -

p e r i m e n t a r o q u e m i n h a s c o n v i c ç õ e s e as p r o v a s ( q u e p e s a m

e m favor do teu amigo) me fariam vivenciar! O i n f e r n o não

t e m t o r m e n t o s s u f i c i e n t e m e n t e g r a n d e s ! N e m as f ú r i a s t ê m

s e r p e n t e s s u f i c i e n t e s ! Vousl Vousl A h , c o m o e s t a r ã o as c o i s a s

d e n t r o d e d u a s s e m a n a s ? . . . M e u e s p í r i t o está p e s a d o , meu

c o r a ç ã o está a c o r r e n t a d o e s o u a s s o m b r a d o p o r m i n h a s f a n -

tasias... T u m e amas m e n o s ; mas superarás a perda. U m d i a

n ã o m e amarás mais; pelo menos admite; então e u sabe-

r e i o q u e f i z p a r a m e r e c e r esse i n f o r t ú n i o . . . A d e u s , m i n h a

esposa: t o r m e n t o , alegria, esperança e espírito i n s p i r a d o r

da m i n h a vida; a q u e m amo e temo, aquela que m e enche

de sentimentos ternos que m e a p r o x i m a m da natureza e de

i m p u l s o s v i o l e n t o s e agitados c o m o u m a tempestade. Não

te p e ç o a m o r e t e r n o n e m f i d e l i d a d e , m a s s i m p l e s m e n t e . . .

verdade, h o n e s t i d a d e s e m l i m i t e s . O d i a e m q u e d i s s e r e s " t e

a m o m e n o s " marcará o f i m do m e u a m o r e o último dia

d a m i n h a v i d a . S e m e u c o r a ç ã o fosse tão i g n ó b i l q u e p u -

desse a m a r s e m ser a m a d o e u o f a r i a e m p e d a ç o s . J o s e f i n a !

J o s e f i n a ! R e c o r d a o q u e a l g u m a s v e z e s te d i s s e : a n a t u r e z a

m e d o t o u de u m caráter v i r i l e decidido. E l a c o n s t r u i u o

t e u c o m rendas e tecidos diáfanos. Deixaste de m e a m a r ?

P e r d o a - m e , a m o r d a m i n h a v i d a , m i n h a a l m a está s e n d o

esquartejada p o r forças conflitantes.

M e u c o r a ç ã o , o b c e c a d o p o r t i , está r e p l e t o d e medos

que m e d e i x a m p r o s t r a d o de i n f e l i c i d a d e . . . estou p e r t u r -

b a d o p o r n ã o p o d e r te c h a m a r p e l o n o m e pessoalmente.

E s p e r a r e i que t u o escrevas.

62
A d e u s ! A h ! Se m e amas m e n o s , n u n c a m e terás a m a -

d o . Nesse caso, serei b e m digno de piedade.

BONAPARTE

P . S . : E s t e a n o , a g u e r r a m u d o u a p o n t o de f i c a r i r r e c o -

n h e c í v e l . F i z c o m q u e se d i s t r i b u í s s e m c a r n e , p ã o e f o r r a -

g e m ; m i n h a c a v a l a r i a a r m a d a logo estará e m m a r c h a . M e u s

soldados m o s t r a m u m a indescritível c o n f i a n ç a e m m i m ; só

t u m e és f o n t e d e t r i s t e z a ; s ó t u és a a l e g r i a e o t o r m e n t o d a

m i n h a v i d a . M a n d o u m beijo p a r a teus f i l h o s , que deixaste

de m e n c i o n a r . P o r D e u s ! Se o fizesses, tuas cartas s e r i a m

m e i a v e z m a i s l o n g a s . E n t ã o , o s v i s i t a n t e s q u e se a p r e s e n -

t a s s e m às d e z h o r a s d a m a n h ã n ã o t e r i a m o p r a z e r d e te

ver. M u l h e r ! ! !

Para Josephine em Munique, ig de dezembro de 1805

G r a n d e I m p e r a t r i z , n e n h u m a carta tua desde que partiste

de E s t r a s b u r g o . Passaste p o r B a d e n , S t u t t g a r t e M u n i q u e

s e m nos enviar u m a palavra. Isso não é m u i t o admirável,

n e m m u i t o gentil! A i n d a estou e m B r u n n . O s r u s s o s se

f o r a m ; t e n h o u m a trégua. D e n t r o de alguns dias d e c i d i -

r e i o que fazer. D o alto de tua grandeza, c o n d e s c e n d e e m

o c u p a r f te u m p o u c o d e teus e s c r a v o s .

NAPOLEÃO

63
Daniel Webster
1782-1852

T A L V E Z ESTA CARTA de D a n i e l Webster, conferencista e

estadista n o r t e - a m e r i c a n o (e vítima da febre do feno),

n ã o esteja estritamente de a c o r d o c o m o q u e conside-

r a m o s u m a carta de a m o r , mas revela e n o r m e afeição e

e n c a n t o . E l a nos p a r e c e u digna de inclusão nesta c o l e -

tânea p o r ter sido escrita c o m h u m o r sutil e elegância,

sendo dirigida a u m a j o v e m que esqueceu o toucado n a

casa de Webster após u m j a n t a r .

qfr efe cfa

Para Josephine Seaton, 4 de março de 1844

M i n h a querida Josephine,

T e m o que o n t e m à noite tenhas ficado encharcada, pois

c h o v e u a s s i m q u e saíste p o r n o s s a p o r t a . A p r o v e i t o a o p o r -

t u n i d a d e c r i a d a pela devolução de teu toucado p a r a e x -

p r e s s a r o d e s e j o d e q u e estejas e m b o a s a ú d e esta m a n h ã e

de que n ã o tenhas resfriado.

Pedi uma audiência a teu toucado: perguntei-lhe

q u a n t o s o l h a r e s t e r n o s e m t u a direção ele s u r p r e e n d e u ;
q u e s u s s u r r o s ele o u v i u a s e u l a d o ; e m q u e ocasiões um

a r d e t r i u n f o o f e z b a l a n ç a r e se a l g u m a v e z , e q u a n d o , e l e

f r e m i u c o m as t r é m u l a s e m o ç õ e s s o b e l e . M a s e l e se m o s -

t r o u u m fiel g u a r d i ã o d e s e g r e d o s e n ã o r e s p o n d e u a n e -

n h u m a das m i n h a s p e r g u n t a s . S ó m e restava p r o c u r a r , p o r

m e i o da s u r p r e s a , e x t r a i r u m a confissão ao p r o n u n c i a r ,

u m após outro, diversos nomes. E l e p e r m a n e c e u i n d i f e -

r e n t e à m a i o r i a deles, m a s ao ser m e n c i o n a d o d e t e r m i n a -

do n o m e de f o r m a a p a r e n t e m e n t e i n e s p e r a d a , acho que

s u a s fitas d e c i d i d a m e n t e t r e m e r a m !

D e s p e d i - m e d e l e c o m os m e l h o r e s v o t o s , esperando

que ele j a m a i s v e n h a a c o b r i r u m a cabeça d o l o r i d a e que

o s o l h o s q u e e l e p r o t e g e d o s r a i o s d o s o l s ó c o n h e ç a m as

lágrimas da alegria e do afeto.

T e u , q u e r i d a J o s e p h i n e , c o m afetuoso respeito.

DANL. WEBSTER

65
Ludwigvan Beethoven
1770-1827

L U D W I G VAN B E E T H O V E N revolucionou a música, t i -

r a n d o - a dos domínios do patronato aristocrático. E l e

foi u m dos p r i m e i r o s compositores a ganhar a vida sem

contar c o m diversos benfeitores ricos. A dedicatória da

T e r c e i r a S i n f o n i a revela a natureza combativa do com-

p o s i t o r ; o r i g i n a l m e n t e , essa p e ç a f o i d e d i c a d a a N a p o -

leão, de q u e m era praticamente c o n t e m p o r â n e o e que

v i a c o m o h e r ó i . P o r é m , N a p o l e ã o se d e c l a r o u impe-

r a d o r , o que enfureceu Beethoven a tal p o n t o que ele

d e d i c o u a s i n f o n i a " à memória d e u m g r a n d e homem".

A vida de B e e t h o v e n f o i prejudicada pela progres-

siva surdez — u m p a d e c i m e n t o físico inimaginável p a r a

u m c o m p o s i t o r de tal genialidade e que quase o levou ao

s u i c í d i o . D e a c o r d o c o m t o d o s os t e s t e m u n h o s , ele e r a

exigente, angustiado, d e p r i m i d o e irascível— o que, d a -

das as c i r c u n s t â n c i a s , n ã o s u r p r e e n d e . B e e t h o v e n j a m a i s

se c a s o u , e m b o r a t e n h a f i c a d o p r o f u n d a m e n t e apaixo-

n a d o m a i s de u m a vez, e m geral p o r u m a de suas a r i s t o -

cráticas e inatingíveis alunas.

A p ó s sua m o r t e , f o r a m e n c o n t r a d a s e m m e i o a seus

d o c u m e n t o s três cartas de a m o r apaixonadas que n u n c a


f o r a m enviadas, dirigidas à sua " A m a d a I m o r t a l " . Elas

n ã o estão datadas e a identidade da " A m a d a Imortal"

n u n c a f o i d e t e r m i n a d a d e f o r m a c o n c l u s i v a , e m b o r a se

p e n s e q u e a c a n d i d a t a m a i s provável seja A n t o n i e Bren-

tano ( 1 7 8 0 - 1 8 6 9 ) , u m a m u l h e r vienense casada c o m u m

c o m e r c i a n t e de F r a n k f u r t .

Para a "Amada Imortal , 11


6 de julho pela manha

Meu n j o , m e u tudo, m e u p r ó p r i o ser — somente algumas

palavras h o j e , e a lápis (o t e u ) . S ó a m a n h ã estarei d e f i n i t i -

v a m e n t e i n s t a l a d o . Q u e a b o m i n á v e l p e r d a de t e m p o com

essas (Joisas — p o r q u e t a n t a d o r q u a n d o a n e c e s s i d a d e f a l a ?

N ã o p o d e r á nosso a m o r persistir senão p o r m e i o de s a c r i -

de n ã o p e d i r m o s t u d o ? N ã o p o d e i s m u d a r o fato

de n ã o serdes i n t e i r a m e n t e m i n h a n e m e u i n t e i r a m e n t e

vosso** O h , D e u s ! V ê c o m o a n a t u r e z a é b e l a e a c e i t a o i n e -

O a m o r e x i g e t u d o e está c e r t o , p o r t a n t o e l e me quer

contigo e te quer comigo. A p e n a s t e e s q u e c e s d e q u e e u p r e c i s o

v i v e r para ti epara mim — se e s t i v é s s e m o s j u n t o s , s e n t i r i a s e s s a

d o r tão p o u c o q u a n t o e u deveria s e n t i - l a . . .

(...) Provavelmente nos encontraremos e m breve, e m -

b o r a h o j e e u n ã o p o s s a c o m u n i c a r - t e as o b s e r v a ç õ e s que

f i z s o b r e m i n h a v i d a d u r a n t e esses d i a s . S e n o s s o s c o r a ç õ e s

e s t i v e s s e m p r ó x i m o s , t a l v e z e u n ã o as f i z e s s e . M e u c o r a ç ã o

está r e p l e t o , t e n h o t a n t o a te d i z e r ! A s vezes p e n s o q u e a

67
palavra n ã o é n a d a . A l e g r a - t e , não deixes de ser m e u ú n i c o

e v e r d a d e i r o tesouro, m e u tudo, tal c o m o sou p a r a t i . Q u e

os deuses n o s e n v i e m o restante, o que há de ser n o s s o , e

será. F i e l m e n t e teu

LUDWIG

Segunda-feira, 6 de julho, à noite

Tu sofres, m i n h a criatura adorada! Só agora percebo

q u e as c a r t a s d e v e m s e r e n v i a d a s n o i n í c i o d a m a n h ã . S e -

g u n d a s e q u i n t a s são os ú n i c o s dias e m q u e o c o r r e i o v a i

d a q u i p a r a K . T u sofres. O h ! O n d e eu estiver, estarás

c o m i g o , c o m i g o e c o n t i g o . T o m a r e i as p r o v i d ê n c i a s p a r a

p o d e r v i v e r c o n t i g o . Q u e v i d a ! Q u e seja! S e m t i , p e r s e -

g u i d o pela b o n d a d e dos h o m e n s e m toda parte, parece-

m e desejar g a n h a r tão p o u c o q u a n t o eles g a n h a m . A h u -

m i l d a d e do h o m e m para consigo m e s m o m e causa d o r .

E quando me comparo c o m o universo, o que sou eu, o

que é aquele a quem chamamos o m a i o r ? E no entanto,

aí r e s i d e a d i v i n d a d e d o h o m e m . C h o r o q u a n d o penso

q u e p r o v a v e l m e n t e s ó n o s á b a d o r e c e b e r á s as p r i m e i r a s

n o t í c i a s m i n h a s . T a m b é m m e a m a s , p o r é m te a m o m a i s .

Contudo, n u n c a te o c u l t e s d e m i m . B o a - n o i t e . Como

estou fazendo tratamento c o m banhos terapêuticos, devo

m e recolher. O h , Deus! T ã o perto! T ã o distante! Nosso

a m o r n ã o é u m a edificação celeste, mas é tão f i r m e q u a n -

to a f o r t a l e z a do c é u .

68
Bom dia, em J de julho

M e s m o a n t e s q u e e u m e l e v a n t e , m e u s p e n s a m e n t o s se d i -

r i g e m a t i , m i n h a A m a d a I m o r t a l , às v e z e s c o m a l e g r i a , às

vezes c o m tristeza, à espera de q u e o d e s t i n o n o s escute. S ó

posso viver totalmente contigo o u não viver. S i m , decidi e r -

r a r p o r l u g a r e s distantes até p o d e r v o a r p a r a teus b r a ç o s e

m e s e n t i r e m casa c o n t i g o e p o d e r e n v i a r m i n h a a l m a c e r -

cada de t i p a r a o r e i n o dos espíritos. S i m , l a m e n t o , deve ser

a s s i m . Irás s u p e r á - l o c o m m a i s f a c i l i d a d e s a b e n d o d a m i n h a

fidelidade a t i ; o u t r a j a m a i s p o d e r á se a p o s s a r d e m e u c o r a -

ção, j a m a i s ! O h , D e u s ! P o r que p r e c i s a m o s estar separados

daquilo que amamos, e n o entanto a vida que estou levando

e m W . é m i s e r á v e l . T e u a m o r fez d e m i m o m a i s f e l i z d o s

h o m e n s , e o mais infeliz. N a m i n h a idade, é preciso ter a l -

g u m a c o n t i n u i d a d e , u m a v i d a estável. S e r á q u e isso é p o s s í -

vel n u m a situação c o m o a nossa? M e u a n j o , acabo de saber

que a correspondência é remetida diariamente, portanto,

p r e c i s o e n c e r r a r p a r a q u e p o s s a s r e c e b e r esta c a r t a i m e d i a -

tamente. Fica tranquila, a m a - m e hoje e ontem.

Em lágrimas, anseio p o r ti, m i n h a vida, m e u tudo,

adeus. O h ! N ã o deixes de m e a m a r e j a m a i s duvides do

coração mais fiel

do teu amado

L.

P a r a s e m p r e vosso

Para sempre m i n h a

Para sempre nosso.

69
William Hazlitt
1778-1830

W I L L I A M H A Z L I T T f o i u m ensaísta e crítico literário q u e

escreveu sobre diversos temas, da l i t e r a t u r a ao p u g i l i s m o

profissional. S u a obra foi ridicularizada pelos mesmos

críticos reacionários que atormentaram o poeta John

K e a t s . C h a m a n d o - o de " B i l l H a z l i t t " , z o m b a r a m dele,

c o n s i d e r a n d o - o u m artista fracassado e u m "fabricante"

de ensaios. A reputação do escritor s e m dúvida f o i p r e j u -

d i c a d a p o r essas c r í t i c a s , m a s t a m b é m p e l a s c o n s e q u ê n -

cias de u m a paixão i n f e l i z .

E m 1808, Hazlitt casou-se c o m Sarah Stoddart, filha

d e u m t e n e n t e d a M a r i n h a . E m 1 8 2 , 0 , eles se s e p a r a r a m

e o e s c r i t o r m u d o u - s e p a r a aposentos alugados p e r t o de

C h a n c e r y L a n e . F o i então que, n a m a n h ã de 2 0 de agos-

to, Sarah Walker, a filha da proprietária, t r o u x e - l h e o

c a f é d a m a n h ã . A j o v e m t i n h a 20 a n o s . I m e d i a t a m e n t e ,

e l e se a p a i x o n o u p o r e l a e d u r a n t e os t r ê s a n o s s e g u i n t e s

ficou fora de si, tentando divorciar-se a qualquer custo.

S ó a l e i escocesa p e r m i t i a u m novo casamento após o d i -

vórcio, portanto Hazlitt partiu para a Escócia. Enquan-

to esperava pelo e n c e r r a m e n t o do processo, o escritor

70
c o s t uIXTíc
mava viajar p a r a L o n d r e s , s o m e n t e p a r a ser d e v o r a -

do pelo ciúme que nutria p o r Sarah Walker, pois suspei-

tava d e s e u r o m a n c e c o m o u t r o h ó s p e d e , J o h n T o m k i n s .

O e s c r i t o r ( e n i n g u é m m a i s ) ficava i n t r i g a d o p e l o f a t o d e

S a r a h o evitar; ele ocupava o t e m p o t e n t a n d o r e c o n q u i s -

tá-la o u apanhá-la e m falta, tendo chegado a pagar a u m

conhecido para alugar u m quarto e m C h a n c e r y L a n e e

tentar seduzi-la.

H a z l i t t d e s c r e v e u essa e x p e r i ê n c i a e m u m l i v r o i n t i -

t u l a d o LiberAmoris. E m b o r a o livro tenha sido publicado

a n o n i m a m e n t e , logo sua autoria foi divulgada, o que foi

u m p r e s e n t e p a r a os i n i m i g o s de H a z l i t t n o s j o r n a i s . A

o b r a e r a t e r r i v e l m e n t e embaraçosa e destituída de d i g -

nidade. Como humilhação final, e m 1 8 2 4 , S a r a h teve

um filho de T o m k i n s e v i v e u c o m este até a m o r t e d e l e ,

e m 1858. E l a m o r r e u vinte anos depois.

cfc cfc

Para Sarah Walker

T u irá$ c e n s u r a r - m e p o r i s s o e p e r g u n t a r se é a s s i m q u e

m a n t e n h o m i n h a promessa de dar atenção a m e u t r a b a -

l h o . Metade dele f o i pensar e m Sarah; além disso, garanto

que não negligencio m e u trabalho. Produzo regularmente

dez páginas p o r d i a , o que r e p r e s e n t a u m g a n h o de t r i n -

ta g u i n é u s p o r s e m a n a . C o m o p o d e s v e r , caso m a n t e n h a

71
t a l r i t m o , d e v e r e i e n r i q u e c e r ; epoderia mante-lo, se e s t i v e s -

ses a q u i c o m i g o p a r a m e a n i m a r c o m t e u s d o c e s s o r r i s o s

e para compartilhar do m e u destino. O veleiro B e r w i c k

p a r t e d u a s vezes p o r s e m a n a e o v e n t o é favorável. Q u a n -

do p e n s o nas m i l h a r e s de carícias que t r o c a m o s , n ã o me

a d m i r o pelo forte apego que m e atrai p a r a t i , mas sofro

p o r n ã o s e r capaz de te a g r a d a r . O u ç o o v e n t o g e m e r p e l a

gelosia d a j a n e l a e r e p i t o p a r a m i m m e s m o s e m cessar os

dois versos da tragédia de L o r d B y r o n :

Ireis encontrar-me sempre a vosso lado.

Aqui e no além, se preciso for.

A s s o c i o esses v e r s o s a t i , m e u a m o r , p e n s a n d o se a l -

g u m dia t o r n a r e i a ver-te. Talvez não, pelo menos p o r a l -

g u n s a n o s , até q u e n ó s e n v e l h e ç a m o s — e e n t ã o , quando

fordes a b a n d o n a d a p o r todos, e s g u e i r a r - m e - e i p a r a vosso

l a d o e m o r r e r e i e m vossos b r a ç o s .

U m a vez m e fizeste c r e r que n ã o e r a detestado por

a q u e l a q u e a m a v a e p o r esse s e n t i m e n t o — t ã o d e l i c i o s o ,

m e s m o q u e n ã o passe de u m a i r o n i a e u m s o n h o — d e v o - t e

mais do que algum dia poderei pagar. J u l g u e i ter secado

m i n h a s l á g r i m a s p a r a s e m p r e n o d i a e m q u e te d e i x e i , m a s

e n q u a n t o escrevo esta c a r t a , elas v o l t a m a c o r r e r . S e n ã o o

f i z e s s e m , p e n s o q u e m e u c o r a ç ã o se p a r t i r i a .

E m u m a dessas t a r d e s c a m i n h a v a p e l a s i m e d i a ç õ e s e

o u v i e m u m v a l e as n o t a s d o c a n t o d o s a b i á , b e m - v i n d o n a

p r i m a v e r a . Mas aqueles sons n ã o suavizaram m e u coração

c o m o costumavam fazer; e r a m frios e m o r t o s . T a l c o m o

dizes q u e u m d i a ele será m a i s f r i o . D e u s m e p e r d o e pelo

72
que acabo de escrever; não p r e t e n d i a fazê-lo. Mas foste

t u d o p a r a m i m e n ã o c o n s i g o t o l e r a r o p e n s a m e n t o d e te

haver perdido para sempre, por m i n h a própria culpa. A l -

g u é m m e p r o c u r o u ? N ã o m e mande n e n h u m a carta que

c h e g u e . G o s t a r i a q u e fosses c o m t u a m ã e (se f o r d o teu

a g r a d o ) v e r o S r . K e a n e m Otelo e a s e n h o r i t a S t e p h e n s e m

Love in a Village*. S e q u i s e r e s , e s c r e v e r e i a o S r . T . p a r a q u e te

envie os ingressos. O S r . P. m e p r o c u r o u ? A c h o que devo

escrever a ele sobre o retrato, o q u a l p o d e r e i b e i j a r e c o m

quem poderei conversar. Beija-me, m i n h a adorada. A h !

Se n u n c a p u d e r e s ser m i n h a , a i n d a assim d e i x a - m e ser teu

orgulhoso e feliz escravo.

Ó p e r a de T h o m a s A r n e [N. da T.]

73
Lord Byron
1788-1824

A E X P R E S S Ã O " B Y R O N I A N O " t o r n o u - s e s i n o n i m o de u m

t i p o especial de h e r ó i r o m â n t i c o : de pele clara, cabelos

escuros, rosto encovado, além de cruel, i r r e q u i e t o , i r -

resistível p a r a m u i t a s m u l h e r e s , s e n d o p o r t a n t o f o n t e d a

m a i s p r o f u n d a i r r i t a ç ã o p a r a os h o m e n s m a i s c o m p o r t a -

d o s e c o n f i á v e i s , tantas vezes i n e x p l i c a v e l m e n t e n e g l i g e n -

c i a d o s . O c o m p o r t a m e n t o e a poesia de B y r o n e s c a n d a l i -

z a r a m vastas r e g i õ e s d a E u r o p a a tal p o n t o q u e , e m 1924»

c e m anos após sua morte, u m a petição para u m m e m o r i a l

d o poeta n a A b a d i a de W e s t m i n s t e r f o i recusada pelo d e -

cano, segundo o qual " e m parte p o r sua vida abertamente

d i s s o l u t a e e m p a r t e p e l a i n f l u ê n c i a de seus versos i m o d e -

rados, B y r o n a d q u i r i u u m a reputação m u n d i a l de i m o r a -

l i d a d e e n t r e os falantes d a l í n g u a i n g l e s a " .

D o s diversos romances de sua vida, u m dos mais n o -

tórios seu relacionamento com Lady Caroline Lamb,

u m a s e n h o r a c a s a d a . E m j u l h o d e 1813, c o r r e u o b o a t o

de que, após d i s c u t i r c o m o poeta e m u m a festa, L a d y

C a r o l i n e t e n t o u f e r i r - s e , p r i m e i r o c o m u m a faca e d e -

p o i s c o m cacos de u m copo q u e b r a d o . T e m p o s depois

e l a se m u d o u p a r a a I r l a n d a , p a r a o n d e l h e f o i e n v i a d a a
carta a seguir. A segunda é dirigida à condessa G u i c c i o l i

u m a j o v e m casada c o m u m h o m e m m u i t o m a i s v e l h o .

B y r o n a c o n h e c e u e m V e n e z a , e m 1819; o p o e t a e s c r e v e u

esta d e c l a r a ç ã o s o b r e a f o l h a de r o s t o de u m romance

que a (condessa l h e havia emprestado.

qfr qfc qfc

Para Lady Caroline Lamb

Minha muito querida Caroline,

S e as l á g r i m a s q u e v i s t e , e q u e n ã o c o s t u m o v e r t e r , e se o

estado de p e r t u r b a ç ã o e m que m e afastei de t i — o q u a l d e -

v e s t e r p e r c e b i d o d u r a n t e t o d o esse n e r v o s o i n c i d e n t e — n ã o

c o m e ç o u a t é o m o m e n t o d e d e i x a r - t e ; se t u d o o q u e d i s s e

e fiz e o que a i n d a estou totalmente p r e p a r a d o p a r a dizer e

fazer n ã o são p r o v a s u f i c i e n t e d o q u e s i n t o e s e m p r e s e n t i r e i

p o r ti, m e u a m o r , não tenho outra a oferecer.

D e u s sabe q u e até a q u e l e m o m e n t o e u n ã o estava c o n s -

ciente da l o u c u r a de m i n h a q u e r i d a , a m a d a e m a i s adorada

a m i g a . N ã o s o u capaz de m e expressar, a ocasião n ã o a u -

toriza palavras, mas terei orgulho, u m melancólico prazer,

e m s o f r e r a q u i l o q u e d i f i c i l m e n t e serás capaz de c o n c e b e r ,

porque não me conheces.

E s t o u prestes a sair c o m o coração pesado, pois m i n h a

a p a r i ç ã o esta n o i t e evitará q u a l q u e r h i s t ó r i a a b s u r d a q u e os

acontecimentos do dia possam causar. Pensas agora que s o u

f r i o , severo e t e m p e r a m e n t a l ? S e r á q u e os o u t r o s p e n s a r ã o

o m e s m o ? Pensará assim tua m ã e ? A mãe p o r q u e m e m v e r -

75
dade precisamos sacrificar muito mais, muito mais da m i -

n h a p a r t e d o que ela j a m a i s saberá o u p o d e r á i m a g i n a r .

" P r o m e t e r n ã o te a m a r ? " A h , C a r o l i n e , j á n ã o p o s s o

p r o m e t ê - l o ! M a s a t r i b u i r e i t o d a s as c o n c e s s õ e s a o motivo

a d e q u a d o e n u n c a d e i x a r e i de s e n t i r t u d o o que j á teste-

m u n h a s t e e m u i t o m a i s que n u n c a p o d e r á ser revelado se-

n ã o p a r a m e u p r ó p r i o c o r a ç ã o — e p a r a o t e u , talvez. Possa

Deus perdoar-te, proteger-te e abençoar-te sempre, mais

do que n u n c a . T e u mais dedicado

BYRON

P . S . : E s s a s z o m b a r i a s te l e v a r a m a t a l s i t u a ç ã o , m i n h a q u e -

r i d a C a r o l i n e , e se n ã o f o s s e p o r t u a m ã e e p e l a b o n d a d e

de teus p a r e n t e s , será que h a v e r i a a l g u m a coisa n o c é u o u

n a t e r r a capaz de m e fazer mais feliz do que t e r - t e t o r n a d o

m i n h a há muito tempo? Agora, não menos do que então,

p o r é m , n ã o m a i s d o q u e neste momento.

D e u s s a b e q u e d e s e j o t u a f e l i c i d a d e e q u a n d o te d e i x e i ,

o u m e l h o r , q u a n d o p o r u m s e n t i m e n t o de dever p a r a c o m

t e u m a r i d o e t u a m ã e , t u m e deixaste, deves reconhecer

a v e r d a d e d a q u i l o q u e m a i s u m a vez p r o m e t o e j u r o : n e -

n h u m a o u t r a , p o r palavra o u ação, j a m a i s terá e m m i n h a s

a f e i ç õ e s o l u g a r q u e te s e r á c o n s a g r a d o a t é q u e e u d e i x e d e

e x i s t i r . Sabes que p o r t i e u desistiria c o m p r a z e r de t u d o ,

aqui e no além-túmulo, e se m e c o n t e n h o , devem meus

motivos ser m a l compreendidos?

N ã o m e i m p o r t a q u e m v e n h a a saber o u que uso se

faça disto — é p o r t i , s o m e n t e p o r t i , t u m e s m a . E u f u i e

sou livre e inteiramente teu, para obedecer, h o n r a r , amar

e f u g i r c o n t i g o , quando, onde e como d e t e r m i n e s .

76
Para a'Condessa Guiccioli, 25 de agosto de 1819

M i n h a querida Teresa,

L i este l i v r o e m t e u j a r d i m . L á n ã o estavas, m e u a m o r , caso

c o n t r a r i o n ã o o t e r i a l i d o . E u m dos teus l i v r o s favoritos

e o autor é u m dos m e u s amigos mais queridos. N ã o e n -

t e n d e r á s e s t a s p a l a v r a s e m i n g l ê s , e o u t r o s t a m b é m n ã o as

e n t e n d e r ã o . . . r a z ã o p e l a q u a l n ã o as r a b i s q u e i e m i t a l i a n o .

N o e n t a n t o , r e c o n h e c e r á s a c a l i g r a f i a d a q u e l e q u e te a m o u

c o m p a i x ã o e a d i v i n h a r á s q u e , d i a n t e d e u m l i v r o q u e te

p e r t e n c e , ele só p o d e r á p e n s a r e m a m o r .

N e s t a p a l a v r a , l i n d a e m t o d a s as l í n g u a s , e p r i n c i p a l -

m e n t e n a t u a — amor mio — se r e s u m e a e x i s t ê n c i a n e s t a e n a

o u t r a v i d a . S i n t o que existo a q u i ; e sinto que existirei n o

a l é m , p a r a qualquer p r o p ó s i t o q u e d e c i d a s . M e u d e s t i n o está

e m t u a s m ã o s e t u és u m a m u l h e r , a o s 17 a n o s , t e n d o s a í d o

d e u m c o n v e n t o h á dois-, q u i s e r a d e t o d o c o r a ç ã o tivesses

p e r m a n e c i d o l á o u p e l o m e n o s e u n ã o te h o u v e s s e conhe-

c i d o n a c o n d i ç ã o d e e s p o s a . M a s é m u i t o t a r d e , e u te a m o e

t u m e a m a s _ p e l o m e n o s é o q u e dizes e t u a s ações c o n f i r m a m

isso, o que acaba p o r ser p a r a m i m u m a g r a n d e c o n s o l a ç ã o .

N o entanto, o que sinto p o r ti é mais do que a m o r e

n ã o c o n s i g o d e i x a r de te a m a r . P e n s a u m p o u c o e m m i m

q u a n d o os A l p e s e o o c e a n o se i n t e r p u s e r e m e n t r e n ó s ;

m a s eles n u n c a o f a r ã o , a m e n o s q u e t u o q u e i r a s .

BYRON

77
John Keats
1795-1821

HOJE JOHN K E A T S é universalmente considerado um

dos m a i o r e s poetas da língua inglesa, mas durante sua vida

os críticos p o d e r o s o s , agressivos e r e a c i o n á r i o s — os m e s -

mos que atormentaram William Hazlitt — trataram-no

c o m o arrivista e ridicularizaramseu trabalho, conside-

r a n d o - o vulgar e dotado de u m a exuberância excessiva

( a p a r e n t e m e n t e , p o r ter sido a p r e n d i z de b o t i c á r i o e fi-

l h o d e u m c a v a l a r i ç o , K e a t s n ã o estava q u a l i f i c a d o p a r a

escrever poesia).

Keats sempre teve poucos recursos financeiros,

e toda a sua vida foi marcada p o r doenças e mortes. A

m ã e , o i r m ã o e u m tio do poeta m o r r e r a m de t u b e r c u -

lose antes q u e ele adoecesse e m 1 8 2 0 , aos 2 4 a n o s . Seu

a m i g o C h a r l e s B r o w n fez o r e l a t o c o m o v e n t e d a p r i m e i -

r a vez q u e K e a t s v i u u m a m a n c h a de sangue n o lençol:

" C o n h e ç o a cor daquele sangue; é sangue arterial. Não

há possibilidade de engano c o m tal cor: aquela gota de

sangue é m i n h a sentença de m o r t e . V o u m o r r e r . " Na

e s p e r a n ç a de obter a c u r a , ele f o i p a r a a Itália, onde

m o r r e u alguns meses depois. F o i enterrado e m Roma


e, a s e n p e d i d o , a l á p i d e r e c e b e u a i n s c r i ç ã o : " A q u i j a z

alguém cujo n o m e foi gravado n a água."

O g r a n d e a m o r da vida de K e a t s f o i F a n n y B r a w n e ,

sua v i z i n h a e m H a m p s t e a d , de q u e m o poeta f o i n o i v o .

A p a i x ã o de K e a t s p o r F a n n y m u i t a s vezes f o i p r e j u d i c a -

d a p e l o c i ú m e . P o r essa r a z ã o , a m o ç a a d q u i r i u a r e p u t a -

ção póstuma de inconsequente e n a m o r a d e i r a , e m b o r a

n ã o pareça h a v e r provas disso. O s fatos m o s t r a m que ela

l a m e n t o u a m o r t e de K e a t s d u r a n t e a d é c a d a de 182,0

e, e m r e s p e i t o à v o n t a d e d e l e , t o r n o u - s e a m i g a d a i r m ã

do poeta. P o r f i m , e m 1833, Fanny casou-se c o m Louis

L i n d o , u m c o m e r c i a n t e abastado.

cfa Qfr qfr

Para Fanny Brawne, 8 de julho de 1819

M i n h a gentil menina,

T u a carta m e trouxe mais alegria do que qualquer coisa n o

m u n d o p o d e r i a trazer, a n ã o ser tua presença; de fato, fico

quase a b i s m a d o p o r ver que a ausência de a l g u é m pode

exercer sobre m e u s sentidos o extravagante p o d e r que s i n -

to. M e s m o q u a n d o não penso e m t i , sinto i n f i l t r a r e m - s e

e m m i m tua t e r n u r a e u m a natureza mais afetuosa. Vejo

que n e m m e u s pensamentos, n e m m e u s dias e noites mais

infelizes m e c u r a r a m do a m o r pela beleza, mas o t o r n a -

r a m tão intenso que m e sinto u m desgraçado p o r não es-

tares c o m i g o ; o u a i n d a , r e s p i r o n a q u e l a espécie de p a c i ê n -

79
cia s o m b r i a que n ã o p o d e ser c h a m a d a de v i d a . N ã o sabia

antes o q u e e r a u m a m o r c o m o o q u e m e fizeste s e n t i r ; n ã o

a c r e d i t a v a n e l e ; m i n h a f a n t a s i a t e m i a q u e esse a m o r m e d e -

v o r a s s e e m s u a c h a m a . P o r é m , se m e a m a r e s p l e n a m e n t e ,

e m b o r a possa h a v e r fogo, ele n ã o será m a i s d o q u e p o d e m o s

s u p o r t a r q u a n d o regados e orvalhados pelos prazeres. M e n -

c i o n a s " p e s s o a s h o r r í v e i s " e m e p e r g u n t a s se d e l a s depende

e u t o r n a r a v e r - t e . P r o c u r a c o m p r e e n d e r - m e nessa questão,

m e u a m o r . T e n h o tanto de t i e m m e u coração que preciso

s e r p a r a t i u m M e n t o r q u a n d o vejo u m a ocasião de te o c o r -

r e r a l g u m m a l . E u j a m a i s v e r i a e m teus o l h o s s e n ã o p r a z e r ,

e m teus lábios senão a m o r e e m teus b r a ç o s s e n ã o f e l i c i d a -

de. G o s t a r i a de v e r - t e desfrutar de d i v e r t i m e n t o s adequados

às t u a s i n c l i n a ç õ e s e t e u s s e n t i m e n t o s , d e m o d o q u e n o s s o s

a m o r e s p u d e s s e m ser u m e n c a n t a m e n t o e m m e i o a prazeres

deleitáveis, e n ã o u m motivo de i n c o m o d o e p r e o c u p a ç ã o .

N o e n t a n t o , c a s o o c o r r a o p i o r , n ã o s e i se s e r e i s u f i c i e n t e -

mente filosófico p a r a agir de acordo c o m m i n h a s p r ó p r i a s

l i ç õ e s ; se v i s s e m i n h a r e s o l u ç ã o c a u s a r - t e s o f r i m e n t o , não

t e r i a essa c a p a c i d a d e . P o r q u e n ã o p o s s o f a l a r d e t u a b e l e -

z a , se s e m e l a e u n u n c a p o d e r i a t e r - t e a m a d o ? N ã o c o n s i g o

c o n c e b e r o advento de u m a m o r c o m o o que sinto p o r t i

se n ã o fosse p e l a b e l e z a . E p o s s í v e l q u e e x i s t a u m a e s p é c i e

de a m o r p e l o q u a l , s e m s o m b r a de descaso, t e n h o o m a i o r

respeito e que posso a d m i r a r nos outros, mas tal a m o r n ã o

tem a riqueza, a plenitude, o encantamento do sentimento

a q u e p r e f i r o . P o r t a n t o , p e r m i t e que e u fale de t u a beleza,

e m b o r a p a r a m e u p r ó p r i o r i s c o , se f o r e s t ã o c r u e l a p o n t o d e

8o
...
experimentar-lhe o poder c o m mais alguém. Dizes que te-

n h o m e d o d e p e n s a r q u e n ã o m e a m a s — a o d i z ê - l o , m e fazes

desejar m a i s a i n d a estar a teu l a d o . E s t o u a q u i e m p r e g a n d o

c o n s c i e n c i o s a m e n t e m i n h a s h a b i l i d a d e s ; n ã o se p a s s a s e q u e r

u m d i a e m que n ã o rabisque versos b r a n c o s o u alinhave a l -

g u m a s r i m a s . D e v o c o n f e s s a r (já q u e t r a t o d e s t e a s s u n t o ) q u e

te a m o m a i s a i n d a p o r a c r e d i t a r q u e m e a m a s t e p o r m i m

mesmo e p o r nada mais. Já encontrei mulheres que, tenho

c e r t e z a , g o s t a r i a m d e se c a s a r c o m u m p o e m a o u d e t e r a m ã o

d a d a p o r u m r o m a n c e . V i t e u c o m e t a e só espero que ele

t e n h a sido u m sinal de que o p o b r e R i c e , t r a n s f o r m a d o pela

d o e n ç a n u m a c o m p a n h i a bastante m e l a n c ó l i c a , irá m e l h o r a r

a p o n t o de ser capaz de d o m i n a r seus s e n t i m e n t o s e e s c o n d ê -

los de m i m c o m u m gracejo f o r ç a d o . C o b r i teus escritos de

beijos n a esperança de que tenhas p r o c u r a d o g r a t i f i c a r - m e ,

d e i x a n d o neles u m p o u c o de m e l . C o m o f o i o teu s o n h o ?

C o n t a - o e eu o interpretarei para ti.

Sempre teu, m e u amor!

JpHN KEATS

Para Fanny Brawne, 1820

O doce Fanny,

À s v e z e s , t e m e s q u e e u n ã o te a m e t a n t o q u a n t o gosta-

r i a s ? M i n h a q u e r i d a , e u te a m o s e m p r e e eternamente,

s e m r e s e r v a s . Q u a n t o m a i s c o n h e c i , m a i s a m e i . D e t o d a s as

m a n e i r a s até m e u s c i ú m e s f o r a m a g o n i a s d e a m o r ; n o m a i s

81
v i o l e n t o a c e s s o q u e s o f r i , t e r i a m o r r i d o d e a m o r p o r t i . J á te

a t o r m e n t e i d e m a i s , mas p o r a m o r ! Posso e v i t á - l o ? S e m p r e

te r e n o v a s . O ú l t i m o d o s t e u s b e i j o s s e m p r e f o i o m a i s d o c e ,

o ú l t i m o s o r r i s o o m a i s l u m i n o s o , o ú l t i m o gesto, o m a i s

g r a c i o s o . O n t e m , q u a n d o passaste d i a n t e d a m i n h a j a n e l a ,

f i q u e i t ã o c h e i o d e a d m i r a ç ã o c o m o se te v i s s e p e l a p r i m e i -

r a v e z . U m a v e z te q u e i x a s t e d e q u e s ó a m o t u a b e l e z a . S e r á

que n ã o terei mais nada a a m a r e m t i ? N ã o vejo u m coração

n a t u r a l m e n t e a l a d o se d e i x a r p r e n d e r p o r m i m ? N e n h u m a

p e r s p e c t i v a m á f o i capaz de desviar n e m p o r u m momento

t e u s p e n s a m e n t o s d e m i m , o q u e talvez s e j a m o t i v o n ã o s ó

de alegria, m a s t a m b é m de tristeza — m a s n ã o v o u falar d i s -

so. M e s m o que n ã o m e amasses, e u n ã o p o d e r i a evitar ser

totalmente devotado a t i . Então, c o m o m e u s sentimentos

n ã o serão m a i s p r o f u n d o s q u a n d o sei que m e amas! M i n h a

m e n t e foi a mais insatisfeita e inquieta já colocada e m u m

corpo pequeno demais para contê-la. N u n c a a senti relaxar

c o m u m a satisfação tão c o m p l e t a e d e s p r e o c u p a d a s o b r e c o i -

s a a l g u m a — s o m e n t e s o b r e t i . Q u a n d o estás n o m e s m o a m -

biente, meus pensamentos n u n c a fogem pela janela, tu s e m -

p r e c o n c e n t r a s t o d o s os m e u s s e n t i d o s . E m t u a ú l t i m a n o t a ,

a ansiedade que mostras sobre nosso a m o r m e traz i m e n s o

p r a z e r ; n o e n t a n t o , n ã o deves d e i x a r q u e essas e s p e c u l a ç õ e s

v o l t e m a te p e r t u r b a r ; n e m e u a c r e d i t a r e i q u e g u a r d a s q u a l -

quer ressentimento contra m i m . B r o w n já foi embora, mas a

s e n h o r a W y l i e está a q u i . Q u a n d o e l a se f o r , f i c a r e i a c o r d a d o

à tua espera. Lembranças a tua mãe. T e u , afetuosamente,

J. KEATS

82
Para Fanny Brawne

M i n h a adorada menina,

Esta m a n h ã f u i c a m i n h a r c o m u m livro nas mãos, mas, c o m o

de c o s t u m e , só m e o c u p e i de t i ; q u e r i a p o d e r d i z ê - l o de f o r -

m a agradável. E s t o u a t o r m e n t a d o d i a e n o i t e . E l e s discutem

m i n h a i d a p a r a a Itália. C o m c e r t e z a n u n c a m e r e c u p e r a r e i se

t i v e r die ficar t a n t o t e m p o l o n g e d e t i ; n o e n t a n t o , a p e s a r d e

t o d a essa d e v o ç ã o , n ã o c o n s i g o m e c o n v e n c e r a c o n f i a r e m t i .

A experiência passada e nossa longa separação m e c a u -

s a m t a i s a g o n i a s s o b r e as q u a i s m a l p o s s o f a l a r . . .

S i m l i t e r a l m e n t e c o n s u m i d o até a m o r t e , q u e parece

ser m è u ú n i c o a m p a r o . N ã o consigo esquecer o que a c o n -

teceu. O q u ê ? N ã o seria nada para u m h o m e m sofisticado,

m a s piara m i m é m o r t a l . V o u t a n t o q u a n t o possível t i r a r

isso d o m e u p e i t o . Se t e u c o r a ç ã o sentisse m e t a d e d a d o r

q u e causava ao m e u q u a n d o t i n h a s o h á b i t o de f l e r t a r c o m

B r o w n , não o farias. B r o w n é u m h o m e m b o m — não sabia

q u e estava m e l e v a n d o à b e i r a d a m o r t e . A g o r a s i n t o e m

m i m o e f e i t o d e c a d a u m a d a q u e l a s h o r a s e, p o r essa r a z ã o ,

e m b o r a ele m e t e n h a feito m u i t o s favores, e m b o r a e u s a i -

ba que ele n u t r e p o r m i m a m o r e a m i z a d e , e m b o r a neste

m o m e n t o , se n ã o f o s s e p e l a a j u d a d e l e , e u e s t a r i a s e m u m

c e n t a v o , n u n c a i r e i v ê - l o o u f a l a r c o m ele, até q u e ele e e u

s e j a m o s v e l h o s , se esse f o r n o s s o d e s t i n o .

Sentirei amargura por m e u coração ter sido tratado

c o m o u m a b o l a d e f u t e b o l . D i r á s q u e i s s o é l o u c u r a . J á te

o u v i dízer que n ã o seria desagradável esperar alguns anos,

q u e t e n s d i s t r a ç õ e s — t u a m e n t e está l o n g e ; n ã o te a f e r -

83
raste a u m a i d e i a , tal c o m o e u ; c o m o p o d e r i a s ? És p a r a

m i m u m objeto i m e n s a m e n t e desejável; o ar que r e s p i r o

e m u m a m b i e n t e o n d e n ã o estás é m a l s ã o . N ã o r e p r e s e n t o

o m e s m o p a r a t i . N ã o ; és c a p a z d e e s p e r a r , t e n s m i l h a r e s

de o c u p a ç õ e s , podes ser feliz s e m m i m . Q u a l q u e r festa,

q u a l q u e r c o i s a q u e te o c u p e o d i a é s u f i c i e n t e .

Como p a s s a s t e este m ê s ? C o m q u e m s o r r i s t e ? T u d o

isso e m m i m p o d e p a r e c e r b r u t a l . N ã o t e n s os m e s m o s s e n -

t i m e n t o s q u e e u , n ã o sabes o q u e é o a m o r . T a l v e z u m d i a

venhas a saber, a i n d a não chegou tua h o r a . P e r g u n t a a ti

m e s m a q u a n t a s h o r a s i n f e l i z e s K e a t s te c a u s o u n a s o l i d ã o .

D a m i n h a p a r t e , t e n h o sido s e m p r e u m m á r t i r , e é p o r isso

q u e f a l o ; essa c o n f i s s ã o é e x t r a í d a d e m i m p o r m e i o d e t o r -

t u r a . R o g o - t e e m n o m e do sangue de C r i s t o , e m que a c r e -

d i t a s : n ã o m e e s c r e v a s se d u r a n t e este m ê s h o u v e r e s feito

a l g o q u e m e f a r i a s o f r e r se e u o v i s s e . T a l v e z t e n h a s m u d a d o ;

c a s o c o n t r á r i o , se a i n d a te c o m p o r t a s n o s b a i l e s e e m s o c i e -

dade da f o r m a como v i , não quero viver. Se o fizeste, quero

q u e esta n o i t e seja a ú l t i m a d a m i n h a v i d a .

N ã o p o s s o v i v e r s e m t i , e n ã o s ó s e m t i , m a s s e m t i casta

e virtuosa. O s o l n a s c e e se p õ e , o d i a p a s s a e a t é c e r t o p o n -

to segues tuas i n c l i n a ç õ e s , s e m ter i d e i a da q u a n t i d a d e de

sentimentos infelizes que me p e r c o r r e m e m u m dia.

T e m seriedade! O a m o r não é b r i n q u e d o — mais u m a

vez, n ã o escrevas a m e n o s q u e possas f a z ê - l o c o m u m a c o n s -

ciência cristalina. E u p r e f e r i r i a m o r r e r de saudade de t i .

T e u , para sempre,

J. KEATS

84
Honoréde Balzac
1799-1850

HONORÉ DE BALZAC nasceu e m Tours. Após estudar

D i r e i t o , ele d e c i d i u dedicar a vida à l i t e r a t u r a . V i v e n -

do n a pobreza e m u m sótão parisiense, ganhava a vida

escrevendo romances sensacionalistas p o r encomenda.

T a m b é m se e n v o l v e u e m d i v e r s a s a v e n t u r a s c o m e r c i a i s

infelizes, i m p r i m i n d o e p u b l i c a n d o l i v r o s . E m 1831,

B a l z a c c o m e ç o u a t r a b a l h a r n a s é r i e d e r o m a n c e s q u e se

t o r n o u c o n h e c i d a c o m o A comédia humana, que pretendia

ser ufria visão p a n o r â m i c a da sociedade f r a n c e s a . Essa

obra iria ocupá-lo d u r a n t e os v i n t e a n o s seguintes.

Balzac levava u m a v i d a caótica, t i n h a hábitos de tra-

balho excêntricos, saúde precária e situação f i n a n c e i r a

atroz — e r a incapaz de resistir a esquemas absurdos p a r a

g a n h a r d i n h e i r o . N o e n t a n t o , h o j e A comédia humana é

tida c o m o a p r i m e i r a o b r a - p r i m a do realismo, e seu

autor é considerado u m dos escritores mais influentes

da história.

E m 1833, Balzac i n i c i o u u m a correspondência com

a condessa E w e l i n a H a n s k a , casada c o m u m p r o p r i e t á r i o

r u r a l polonês vinte anos mais velho que ela. A corres-

85
p o n d ê n c i a p r o s s e g u i u d u r a n t e 17 a n o s ; e m 1 8 4 1 , depois

da m o r t e do m a r i d o de E w e l i n a , Balzac e a condessa v i a -

j a r a m j u n t o s p o r t o d a a E u r o p a . P o r f i m , e m 15 d e m a r -

ç o d e 1 8 5 0 , e l e s se c a s a r a m . E m 19 d e a g o s t o d o mesmo

ano, Balzac morreu.

q& cfc> cfc>

Para a Condessa Ewelina Hanska

O h ! C o m o teria gostado de passar m e i o d i a ajoelhado a teus

p é s , c o m a cabeça sobre teus j o e l h o s , s o n h a n d o l i n d o s s o -

nhos, contando-te meus pensamentos c o m lassitude, c o m

a r r e b a t a m e n t o , às v e z e s s e m d i z e r n a d a , m a s p r e s s i o n a n d o

m e u s lábios contra teu vestido!... O h , m i n h a m u i t o amada

E v a , d i a dos m e u s dias, l u z das m i n h a s n o i t e s , m i n h a e s p e -

rança, m i n h a adorada, m i n h a absoluta amada, m e u ú n i -

co a m o r , q u a n d o poderei v e r - t e ? Será u m a ilusão? Será

q u e te v i ? S i m , ó deuses! C o m o a m o t e u s o t a q u e , apenas

u m p o u c o c a r r e g a d o , t u a b o c a g e n t i l , v o l u p t u o s a — se m e

p e r m i t e s d i z ê - l o , m e u a n j o de a m o r . T r a b a l h a n d o n o i t e

e d i a p a r a p o d e r passar duas semanas contigo e m dezem-

b r o . D e v o c r u z a r sobre o J u r a coberto de neve, mas esta-

r e i p e n s a n d o n o s o m b r o s alvos do m e u a m o r , da m i n h a

a m a d a . A h ! A s p i r a r o a r o m a dos teus cabelos, segurar tuas

m ã o s , a p e r t a r - t e e m m e u s braços — é daí que v e m m i n h a

c o r a g e m ! A l g u n s dos m e u s amigos a q u i estão abismados

c o m a i m e n s a força de vontade que estou r e v e l a n d o neste

86
m o m e n t o . A h ! Eles não conhecem m i n h a querida, aquela

c u j a i m a g e m p r i v a o s o f r i m e n t o de seus t o r m e n t o s . U m

beijo, m e u anjo terrestre, u m beijo saboreado lentamente

e, d e p o i s , b o a n o i t e !

Para a Condessa Ewelina Hanska

De Dresden em 21 de outubro de 1843

P a r t o a m a n h ã , m e u a s s e n t o está r e s e r v a d o e v o u t e r m i n a r

esta c a r t a p o r q u e p r e c i s o l e v á - l a p e s s o a l m e n t e ao c o r r e i o .

M i n h a cabeça parece u m a a b ó b o r a vazia, o estado e m que

m e e n c o n t r o m e i n q u i e t a mais do que posso dizer. Se m e

s e n t i r dessa f o r m a e m P a r i s , será p r e c i s o v o l t a r . N ã o s i n t o

nada p o r coisa a l g u m a , n ã o desejo viver, n ã o m e resta a

m e n o r e n e r g i a , p a r e ç o n ã o ter o m e n o r r e s q u í c i o de v o n -

t a d e . . . N ã o s o r r i o d e s d e q u e te d e i x e i . . .

A d e u s , e s t r e l a q u e r i d a , m i l vezes a b e n ç o a d a ! Quem

sabe, c h e g a r á u m m o m e n t o e m que serei capaz de r e v e l a r -

te o s p e n s a m e n t o s q u e m e o p r i m e m . H o j e s ó p o s s o te d i z e r

que m e u a m o r p o r ti é demais para m i n h a tranquilidade,

p o r q u e d e p o i s deste agosto e s e t e m b r o , s i n t o q u e só posso

viver j u n t o de t i e tua ausência é a m o r t e . . .

A d e u s ! V o u levar m i n h a carta ao c o r r e i o . M i l c a r i n h o s

p a r a t u a c r i a n ç a m i l vezes a b e n ç o a d a ; m e u s c u m p r i m e n t o s

c a r i n h o s o s a L i r e t t e e, p a r a t i , t u d o o q u e e s t á n o m e u c o -

ração, e m m i n h a a l m a e e m m e u c é r e b r o . . . Se soubesses da

e m o ç ã o que m e d o m i n a q u a n d o deixo n a caixa de c o r r e i o

u m desses pacotes!

87
M i n h a a l m a v o a p a r a t i c o m esses p a p é i s ; c o m o um

l o u c o , d i g o - l h e s m i l h a r e s de coisas; c o m o u m l o u c o , p e n -

so q u e eles c h e g a m a t i p a r a r e p e t i - l a s ; p a r a m i m , é i m p o s -

s í v e l c o m p r e e n d e r c o m o essas p á g i n a s f e c u n d a d a s dentro

de o n z e dias estarão e m tuas mãos e n q u a n t o e u p e r m a n e ç o

aqui...

S i m , q u e r i d a estrela, distante o u p r ó x i m a , conta c o -

m i g o c o m o contas contigo mesma; n e m eu n e m m i n h a

d e v o ç ã o te d e i x a r e m o s e m f a l t a , a s s i m c o m o a v i d a n ã o

deixará e m falta o teu corpo. Pode-se acreditar, q u e r i d a

a l m a i r m ã , n o q u e se d i z d a v i d a e m m i n h a i d a d e ; b e m , c r ê

q u e n ã o existe o u t r a p a r a m i m senão a t u a . M i n h a t a r e -

f a e s t á r e a l i z a d a . S e te o c o r r e s s e a l g u m i n f o r t ú n i o , e u m e

enterraria e m qualquer recanto obscuro e ignorado por

todos, s e m v e r n i n g u é m n o m u n d o ; Allez, não digo isto

e m v ã o . Se, p a r a u m a m u l h e r , ser feliz é saber-se a ú n i c a

n o c o r a ç ã o de u m h o m e m , só ela, e n c h e n d o - o p o r c o m -

p l e t o , certa de ser a luz que b r i l h a n a inteligência dele,

segura de ser seu sangue e de a n i m a r cada b a t i d a de s e u

c o r a ç ã o , de v i v e r - l h e n a m e n t e c o m o a p r ó p r i a substância

d o p e n s a m e n t o , tendo a certeza de que s e m p r e , sempre

s e r á a s s i m ; eh bien, q u e r i d a s o b e r a n a d e m i n h a a l m a , p o d e s

c o n s i d e r a r - t e f e l i z , e f e l i z senza brama, p o i s é a s s i m q u e s e r e i

t e u até a m o r t e . E possível s e n t i r m o s saciedade das coisas

h u m a n a s , m a s n ã o das coisas d i v i n a s , e só esta p a l a v r a p o d e

explicar o que representas para m i m .

88
Victor Hugo
1802-1885

É QUASE I M P O S S Í V E L descrever V i c t o r H u g o sem em-

pregar a palavra "colossal". E l e viveu n o século mais t u r -

bulento da história da França; foi poeta, dramaturgo,

ensaísta, romancista, pintor e político exilado durante

v i n t e a n o s p o r N a p o l e ã o I I I . F o i u m m o n a r q u i s t a q u e se

t o r n o u s o c i a l i s t a , u m a r i s t o c r a t a q u e se t r a n s f o r m o u e m

defensor dos pobres.

H u g o nasceu do conflito. O pai era u m ateu r e p u -

b l i c a n o , oficial de alta patente n o exército de Napoleão;

a m ã e , u m a m o n a r q u i s t a c a t ó l i c a . O s p a i s se s e p a r a r a m

quando ele era criança. H u g o passou a m a i o r parte da

vida c o m a m ã e . A p a i x o n o u - s e p o r u m a amiga de infân-

c i a , Adele F o u c h e r , m a s a m ã e d e H u g o c o n s i d e r o u ina-

ceitável a u n i ã o dos dois. S o m e n t e após a m o r t e d a m ã e

e l e se s e n t i u l i v r e p a r a c a s a r - s e c o m a a m a d a , e m 1822.

Nessa época, ele e r a p r i n c i p a l m e n t e poeta, e sua obra

era m u i t o elogiada. H u g o e Adele tiveram cinco filhos,

mas não foram fiéis: e m 1831, ela manteve u m romance

c o m o crítico S a i n t - B e u v e ; e m 1833, ^ e e
s e
apaixonou

p o r Juliette D r o u e t , u m a atriz que nos cinquenta anos

89
seguintes f o i sua a m a n t e , secretária e c o m p a n h e i r a de

viagem. D r o u e t m o r r e u e m 1882.

P r o v a v e l m e n t e , as o b r a s d e V i c t o r H u g o m a i s c o n h e -

c i d a s f o r a d a F r a n ç a s ã o 0 corcunda de Notre-Dame (1832) e

Os miseráveis, e s c r i t o a o l o n g o d e 17 a n o s e p u b l i c a d o em

1 8 6 2 . Q u a n d o V i c t o r H u g o m o r r e u , seu cortejo foi se-

g u i d o p o r três m i l h õ e s de a d m i r a d o r e s até o P a n t e ã o de

P a r i s , o n d e seu c o r p o f o i sepultado j u n t o aos homens

mais importantes da França.

cfc q£> cfa

Para Adele Foucher, janeiro de 1820

M a i s u m a vez, m i n h a a m a d a Adele, algumas palavras tuas

m u d a r a m m e u estado de espírito. S i m , p o d e s fazer de

m i m o q u e q u i s e r e s ; é f a t o q u e a m a n h ã e u m o r r e r i a se

o d o c e s o m da tua voz e a t e r n a pressão de teus lábios

adorados não fossem suficientes para restaurar a vida e m

m e u c o r p o . C o m que s e n t i m e n t o s , tão diferentes dos de

o n t e m , m e r e c o l h e r e i ao l e i t o esta n o i t e ! O n t e m , Ade-
l e , j á n ã o a c r e d i t a v a m a i s n o t e u amor-, e u t e r i a recebido

b e m a h o r a da morte.

N o e n t a n t o , a i n d a disse a m i m m e s m o : " S e é v e r d a d e

q u e e l a n ã o m e a m a , se n a d a e m m i m v a l e a b ê n ç ã o d o s e u

a m o r sem a qual a vida não guarda mais n e n h u m a atra-

ção, devo m o r r e r ? Será que eu existo apenas p a r a m i n h a

p r ó p r i a felicidade? N ã o ; toda a m i n h a existência é d e d i -

90
cada a ela, a despeito dela m e s m a . E c o m que d i r e i t o e u

o u s a r i a a s p i r a r ao a m o r d e l a ? S e r e i e u , e n t ã o , m a i s do

que u m anjo o u u m a divindade? E u a amo, é verdade,

até m e s m o e u ; p e l o b e m d e l a e s t o u p r o n t o a t u d o s a c r i -

f i c a r a l e g r e m e n t e — t u d o , até m e s m o a e s p e r a n ç a de ser

amado. N ã o há devotamento de que e u n ã o seja capaz

p e l o b e m d e l a , p o r u m de seus s o r r i s o s , p o r u m de seus

olhares. Mas p o d e r i a ser d i f e r e n t e ? N ã o é ela a única

razão do m e u v i v e r ? Se ela m e d e m o n s t r a r indiferença,

o u m e s m o ó d i o , será m e u i n f o r t ú n i o , é t u d o . P o r t a n t o ,

q u e i m p o r t a , se c o m i s s o a f e l i c i d a d e d e l a n ã o f o r p r e j u -

d i c a d a ? S i m , se e l a n ã o p u d e r m e a m a r , s ó a m i m m e s -

m o caberá a c u l p a . M e u dever é s e g u i r - l h e de p e r t o os

passos, cercar a existência dela c o m a m i n h a , s e r v i r - l h e

de b a r r e i r a c o n t r a t o d o s os p e r i g o s , o f e r e c e r - l h e m i n h a

cabeça c o m o apoio, c o l o c a r - m e incessantemente entre

e l a e t o d a s as t r i s t e z a s , s e m d e m a n d a r q u a l q u e r p r é m i o ,

s e m e s p e r a r q u a l q u e r r e c o m p e n s a . S e r f e l i z se e l a se d i g -

n a r às v e z e s l a n ç a r u m o l h a r p i e d o s o s o b r e s e u e s c r a v o ,

l e m b r a r - s e dele n a h o r a do perigo! A i de m i m ! Se pelo

m e n o s ela m e deixar dar a vida para a n t e c i p a r - m e a t o -

dos os seus desejos, t o d o s os seus c a p r i c h o s ! S e ela m e

p e r m i t i r b e i j a r r e s p e i t o s a m e n t e s e u s p a s s o s a d o r a d o s ; se

ao m e n o s ela c o n s e n t i r e m a p o i a r - s e e m m i m de vez e m

q u a n d o nas dificuldades da vida, então, eu terei alcança-

do a única felicidade a que t e n h o a pretensão de a s p i r a r .

Se estou p r o n t o a sacrificar tudo p o r ela, deve-me ela

a l g u m a g r a t i d ã o ? Se a a m o , é p o r c u l p a d e l a ? P o r esta

9i
r a z ã o , d e v e r á e l a se s e n t i r c o n s t r a n g i d a a m e a m a r ? N ã o !

Ela p o d e se d i v e r t i r c o m m i n h a devoção, pagar meus

serviços c o m ódio e repelir m i n h a idolatria c o m des-

p r e z o , s e m q u e e u j a m a i s t e n h a o d i r e i t o de m e q u e i x a r

deste a n j o . N e m devo, sequer p o r u m m o m e n t o , deixar

de despejar sobre ela tudo aquilo que ela desprezaria. Se

cada u m dos meus dias for marcado p o r a l g u m sacrifício

e m favor dela, n o dia da m i n h a m o r t e eu a i n d a não terei

resgatado n e m u m a fração da dívida i n f i n i t a da m i n h a

existência p a r a c o m a existência dela."

M i n h a adorada Adele, estes f o r a m o s p e n s a m e n t o s e

d e c i s õ e s d a m i n h a m e n t e a esta h o r a d e o n t e m . H o j e eles

p e r m a n e c e m os m e s m o s . A p e n a s estão m e s c l a d o s c o m a

certeza da felicidade — tão grande que n ã o posso p e n s a r

nela sem tremer e na qual m a l ouso acreditar.

Então, é verdade que me amas, Adele? D i z - m e , posso

c o n f i a r nessa ideia e n c a n t a d o r a ? N ã o pensas que acabarei

l o u c o d e f e l i c i d a d e se p u d e r p a s s a r t o d a a m i n h a v i d a a t e u s

p é s , c e r t o d e te f a z e r t ã o f e l i z q u a n t o e u s e r e i , s e g u r o d e

s e r a d o r a d o p o r t i t a n t o q u a n t o e u te a d o r o ? O h ! T u a c a r -

ta m e d e v o l v e u a p a z , esta n o i t e tuas p a l a v r a s m e e n c h e r a m

de felicidade. M i l agradecimentos, Adele, m e u anjo ado-

r a d o . Q u e r i a p o d e r p r o s t r a r - m e d i a n t e de t i c o m o d i a n t e

de u m a d i v i n d a d e . G o m o m e fizeste feliz! A d e u s , adeus,

passarei u m a noite m u i t o feliz, s o n h a n d o contigo.

D o r m e b e m e d e i x a q u e t e u m a r i d o r e c e b a o s 12 b e i j o s

que lhe prometeste, além daqueles a i n d a não p r o m e t i d o s .

92
Nathaniel Hawthorne
1804-1864

NATHANIEL HAWTHORNE nasceu e m Salem, em Mas-

sachusetts. U m de seus antepassados, J o h n Hathorne,

foi u m dos juízes responsáveis pelo t r i b u n a l que j u l g o u

as b r u x a s d e S a l e m . T a l v e z H a w t h o r n e t e n h a acrescentado

o "w" ao s o b r e n o m e p a r a se l i v r a r d e s s a a s s o c i a ç ã o . Ele

e s t u d o u n o B o w d o i n C o l l e g e e e m 1837 f o i t r a b a l h a r n a

alfândega de B o s t o n . E m 1842, casou-se c o m S o p h i a P e a -

body, p i n t o r a e ilustradora que participava do movimen-

to t r a n s c e n d e n t a l i s t a n o r t e - a m e r i c a n o , de que também

fazia parte B r o n s o n Alcott, o p a i de L o u i s a M a y Alcott,

a u t o r a d e Mulherzjnhas. D e p o i s d o c a s a m e n t o , os H a w t h o r -

ne f o r a m m o r a r e m C o n c o r d , Massachusetts, n a residên-

cia O l d M a n s e , o n d e p a r e c e m ter sido m u i t o felizes. E m

1 8 5 0 , e l e p u b l i c o u s e u r o m a n c e m a i s f a m o s o , A letra escar-

late, q u e a l c a n ç o u s u c e s s o imediato.

Q u a t r o anos depois da m o r t e de N a t h a n i e l , S o p h i a

mudou-se para a Inglaterra; a família t i n h a vivido na-

q u e l e país e n t r e 1853 e 1857, p e r í o d o e m q u e o marido

foi designado cônsul dos Estados U n i d o s e m L i v e r p o o l .

E l a m o r r e u e m 1871 e f o i e n t e r r a d a n o c e m i t é r i o K e n s a l

93
G r e e n , e m L o n d r e s . E m 2 0 0 6 , seus restos m o r t a i s f o -

r a m trasladados para o jazigo da família H a w t h o r n e e m

G o n c o r d , o n d e h o j e ela r e p o u s a ao lado do m a r i d o .

A característica mais surpreendente da carta p a r a S o -

p h i a , além da i m e n s a afeição que revela, é a franqueza;

parece a voz de u m amigo contando u m s o n h o recente.

Para Sophia

Indescritivelmente amada,

A c a b o de receber tua carta. E l a m e trouxe grande confor-

t o p o r q u e m o s t r a t a l i m a g e m d e t u a v i d a c o m as c r i a n ç a s !

P u d e ver diante de meus olhos toda a família do m e u c o -

ração e pude ouvi-los todos conversar...

À n o i t e p a s s a d a , s o n h e i q u e estava e m N e w t o n , n u m a

sala c o n t i g o e c o m diversas pessoas; aproveitaste a ocasião

p a r a a n u n c i a r que havíeis deixado de ser m i n h a esposa

e t i n h a a c o l h i d o o u t r o m a r i d o . Passastes tal i n f o r m a ç ã o

c o m tanta c o m p o s t u r a e sangue-frio, s e m vos d i r i g i r d e s

d i r e t a m e n t e a m i m , m a s f a l a n d o a t o d o s os p r e s e n t e s , q u e

meus pensamentos e sentimentos ficaram entorpecidos e

n ã o s o u b e o q u e d i z e r . N o e n t a n t o , nesse m o m e n t o , uma

m u l h e r q u e estava e n t r e n ó s i n f o r m o u - n o s q u e , sendo

essa a s i t u a ç ã o , t e n d o d e i x a d o de ser vosso m a r i d o , e u m e

tornara m a r i d o dela. Voltando-se para m i m , perguntou

t r a n q u i l a m e n t e q u a l de n ó s dois deveria i n f o r m a r m i n h a
mãe da nova situação! C o m o d i v i d i r í a m o s os filhos, não

s e i . S ó s e i q u e m e u c o r a ç ã o s u b i t a m e n t e se p a r t i u e co-

mecei a censurar-vos c o m a mais p r o f u n d a agonia e e n -

tão a c o r d e i . N o e n t a n t o , a sensação de ter sido f e r i d o e

ultrajado ficou comigo por muito tempo e a i n d a n ã o se

d i s s i p o u . N ã o deveis agir de tal f o r m a q u a n d o vieres f r e -

quentar meus sonhos.

O h , P h o e b e , q u e r o - t e m u i t o b e m . Sois a única pessoa

n o m u n d o q u e s e m p r e m e f o i n e c e s s á r i a . D e vez e m q u a n -

do, outros f o r a m mais o u m e n o s agradáveis, mas penso

que sempre m e senti m e l h o r sozinho que n a c o m p a n h i a

de t e r c e i r o s , até c o n h e c e r - v o s . E agora só m e s i n t o eu

m e s m o q u a n d o estais a m e u l a d o . S o i s u m a m u l h e r i n d i -

z i v e l m e n t e q u e r i d a . C o m o pudestes i n f l i g i r - m e tão gélida

agonia naquele sonho?

Se continuasse a escrever, seria apenas p a r a expres-

sar m a i s a m o r e saudade; c o m o é i m p o s s í v e l descrever tais

sentimentos, é melhor encerrar aqui.

TEU MARIDO

95
Benjamin Disraeli
1804-1881

BENJAMIN DISRAELI foi romancista e p r i m e i r o - m i n i s -

tro. F i l h o de u m literato de boa c o n d i ç ã o f i n a n c e i r a , f o i

c r i a d o e m L o n d r e s . A f a m í l i a se c o n v e r t e u d o j u d a í s m o

p a r a o c r i s t i a n i s m o e m 1817. I n i c i a l m e n t e , B e n j a m i n e s -

t u d o u d i r e i t o , m a s a b a n d o n o u e s s a a t i v i d a d e p a r a se t o r -

nar escritor. S u a m a n e i r a de vestir-se era u m tanto s u r -

preendente (calças de v e l u d o , coletes e s t a m p a d o s etc).

V i a j o u pela E u r o p a e pelo Império O t o m a n o e escreveu

sem g r a n d e sucesso diversos r o m a n c e s . U m deles — u m a

sátira d a sociedade l o n d r i n a — o f e n d e u m u i t o s dos seus

benfeitores. E l e t a m b é m c o n t r a i u muitas dívidas.

Na década de 1830, Disraeli voltou-se p a r a a política

e e m 1837 t o r n o u - s e d e p u t a d o n a C â m a r a dos C o m u n s .

Ele também começou a cortejar Mary A n n e W y n d h a m

L e w i s , a viúva de u m dos seus p a t r o c i n a d o r e s p o l í t i c o s .

Ela e r a 12 a n o s m a i s v e l h a q u e e l e e , s e m d ú v i d a , o f a t o

de ter r e n d a e p r o p r i e d a d e s valiosas e m L o n d r e s tor-

n o u - a atraente para Disraeli. N o entanto, ela não era

tola. C o m o p o d e m o s ver pela carta a seguir, p r e c i s o u ser

c o n v e n c i d a d a s i n c e r i d a d e das i n t e n ç õ e s do pretenden-

96
te. P o r fim, d e i x o u - s e p e r s u a d i r e casou-se c o m ele e m

agosto de 1839.

P e q u e n i n a , loquaz e vestida de f o r m a espalhafatosa,

M a r y A n n e era r i d i c u l a r i z a d a pela alta sociedade, mas

foi de grande ajuda para Disraeli. A d m i n i s t r o u com

método e generosidade as i m e n s a s d í v i d a s d o marido

(que p e r t e n c i a à escola de administração financeira que

p r e c o n i z a : " f i n j a q u e n ã o está a c o n t e c e n d o n a d a e p a g u e

j u r o s exorbitantes") e foi u m a talentosa gestora da c a m -

p a n h a política, além de fonte de g e n e r o s o apoio práti-

c o . U m a vez, v o l t a n d o p a r a casa d e p o i s de u m triunfo

p o l í t i c o , ele a e n c o n t r o u à sua espera c o m u m a garrafa

de c h a m p a n h e e e x c l a m o u : " N o s s a , m i n h a q u e r i d a , você

parece mais u m a amante do que u m a esposa!" E m b o r a

o c u m p r i m e n t o n ã o seja o m a i s d e l i c a d o o u romântico,

deve ser a n a l i s a d o l e v a n d o - s e e m c o n t a o fato de que

n e s s a o c a s i ã o M a r y A n n e t i n h a 75 a n o s e o c a s a m e n t o j á

contava quase trinta. Disraeli ficou consternado quando

M a r y A n n e m o r r e u , e m 1872.

C#Cb Cfc Cfc

Para Mary Anne Wyndham Lewis

De Park Street, na noite de quinta-feira, 7 de fevereiro de 1 8 3 9

E u teria tentado falar-te daquilo que precisavas saber e

q u e r i a t ê - l o feito c o m a c a l m a n a t u r a l a u m ser h u m i l h a -

97
d o e i n f e l i z . A t é a g o r a só c o n s e g u i f a z e r - t e c o n s i d e r a r - m e

u m " e g o í s t a i n s i s t e n t e " e m a n d a r - m e s a i r de t u a casa p a r a

s e m p r e . P o r essa r a z ã o , a p e l o p a r a este m é t o d o d e s p r e z í v e l

p a r a m e c o m u n i c a r contigo; n ã o existe n e n h u m r e c u r s o

m a i s i m p e r f e i t o , p o r é m e s c r e v o c o m o se h o j e f o s s e a v é s -

pera da m i n h a execução.

Em todas as h o r a s d a m i n h a v i d a e s c u t o todos os

l á b i o s , m e n o s os teus, f a l a r e m de u m c a s a m e n t o p r ó x i m o .

P o r f i m , u m amigo ávido p o r d e m o n s t r a r - m e boa v o n t a -

de p o r m e i o de u m favor i n u s i t a d o , j u l g a n d o conceder-

m e u m a distinção que me deixaria orgulhoso, ofereceu-me

u m a d e suas casas p a r a n o s s a l u a de m e l . A s i t u a ç ã o b e i r a v a

o absurdo. Houve u m período, muito anterior, em que

semelhantes alusões ao futuro e insinuações sobre o

que deveria acontecer eram frequentes em teus lábios;

c o m o se j u l g a s s e s h a v e r n e c e s s i d a d e d e e s t i m u l a r o u g a r a n -

tir m i n h a afeição p o r m e i o da recordação diária daquele

resultado iminente.

Gomo m u l h e r de sociedade, o q u e és i n t e i r a m e n t e ,

n ã o deves, n ã o podes i g n o r a r a diferença entre nossas p o -

s i ç õ e s . C a s o se m a n t e n h a , o a t u a l e s t a d o d e c o i s a s s ó p o -

derá p r e j u d i c a r - t e a reputação e t o r n a r - m e execrável. A

sociedade só i n t e r p r e t a de u m a m a n e i r a , e c o m justiça, a

ligação entre u m a m u l h e r considerada rica e u m homem

a q u e m e l a d e c l a r a a m a r e c o m q u e m n ã o se c a s a . N a I n -

glaterra, p r i n c i p a l m e n t e , n ã o existe p i o r estigma, o q u a l

n e n h u m a c o n d u t a o u posição posterior p o d e apagar. Esse

98
estigma destruiu h o m e n s que i m p u n e m e n t e cometeram

até c r i m e s . N a v e r d a d e , a l g u m a s coisas p o d e m ser m a i s

ofensivas; n e n h u m a será m a i s d e s o n r o s a .

T a l reputação p a i r a sobre m i m . Devo pelo m e n o s p r e -

servar a h o n r a que é o alento da m i n h a existência. N o m o -

m e n t o , estou e m situação comparável à de u m devedor que

a i n d a t e m crédito. N o entanto, d e n t r o de poucas semanas

precisarei inevitavelmente escolher entre ser ridículo o u ser

desprezível; terei de ser c o n h e c i d o c o m o q u e m f o i rejeitado

o u mergulhar n a condição que tua amiga L a d y M o r g a n já

m e a t r i b u i : " O De Novo* d a S r a . W y n d h a m L e w i s " .

D e s s a f o r m a chego ao m a i s d e l i c a d o dos t e m a s , po-

r é m , p a r a fazer justiça a nós dois, escreverei c o m a m a i o r

f r a n q u e z a . C o n f e s s o que, ao m e a p r o x i m a r de t i , n ã o f u i

influenciado por qualquer sentimento romântico. Há

m u i t o m e u p a i q u e r i a q u e m e casasse; c o n s t i t u i r u m a f a -

mília era a condição implícita, e m b o r a não formalizada,

p a r a q u e ele dispusesse de seus b e n s de f o r m a c o n v e n i e n t e

para m i m . D a m i n h a parte, estando p o r dar início a u m a

c a r r e i r a prática, desejava o c o n f o r t o de u m l a r e a b o m i -

n a v a t o d a s as p a i x õ e s t o r t u r a n t e s d o s a m o r e s i l í c i t o s . N ã o

d e i x a v a d e v e r as v a n t a g e n s p r á t i c a s d e s s a a l i a n ç a , m a s j á

havia provado q u e m e u c o r a ç ã o n ã o estava à v e n d a . E u

te c o n h e c i n u m m o m e n t o de tristeza e m e u coração foi

tocado. C o n s i d e r e i - t e , s e g u n d o p e n s a v a , g e n t i l , t e r n a e,

* D o l a t i m : r e i n í c i o , retomada, novo e m p r e e n d i m e n t o . [N. da T ]

99
n o e n t a n t o , arguta e dotada de u m a m e n t e i n c o m u m —

alguém que eu poderia ver c o m orgulho na posição de

c o m p a n h e i r a de m i n h a v i d a , capaz de s i m p a t i z a r c o m m e u s

p r o j e t o s e s e n t i m e n t o s , de m e c o n s o l a r n o s m o m e n t o s de

d e p r e s s ã o , de p a r t i c i p a r das h o r a s de t r i u n f o e de t r a b a -

l h a r comigo para nossa h o n r a e felicidade.

A g o r a f a l e m o s de t u a f o r t u n a : escrevo a m a i s p u r a v e r -

d a d e . E s s a f o r t u n a se m o s t r o u m u i t o m e n o r d o q u e e u e o

m u n d o imaginávamos. N a verdade, n o que m e diz respeito,

e l a n ã o m e p o d e b e n e f i c i a r d e f o r m a alguma-, é a p e n a s u m

e s p ó l i o s u f i c i e n t e p a r a c o b r i r as e x i g ê n c i a s d e t u a p o s i ç ã o

s o c i a l , p a r a m a n t e r t u a r e s i d ê n c i a e p a r a a t e n d e r - t e às n e -

cessidades pessoais. C o m e r e d o r m i r n a q u e l a casa e c h a -

m á - l a d e m i n h a — esses s ó p o d e r i a m s e r os o b j e t i v o s d e u m

a v e n t u r e i r o s e m t o s t ã o . B a s t a r i a essa c o n d i ç ã o c o m o i n c e n -

tivo p a r a que e u sacrificasse m i n h a doce liberdade e a q u e -

l e f u t u r o i n d e f i n i d o q u e é u m a das a t r a ç õ e s d a e x i s t ê n c i a ?

N ã o , q u a n d o h á alguns meses d e c l a r e i - t e só h a v e r u m l a ç o

e n t r e n ó s , s e n t i a q u e m e u c o r a ç ã o estava i n d i s s o l u v e l m e n t e

p r e s o a t i , c a s o c o n t r á r i o t e r i a d a d o fim à n o s s a a m i z a d e . A

partir daquele m o m e n t o dediquei-te toda a paixão do m e u

ser. A i de m i m ! E l a f o i d e r r a m a d a sobre a areia.

C o m o passar do t e m p o , percebi e m teu caráter e n o

m e u c e r t a s q u a l i d a d e s e m e c o n v e n c i d e q u e , se q u i s e s s e

dar c o n t i n u i d a d e à p r o f u n d a e i m p o l u t a afeição existente

e n t r e n ó s , o d i n h e i r o n u n c a deveria ser relevante. Se n o s

casássemos, e u n ã o deveria ver n e n h u m centavo de tua r e n -

da, n e m eu deveria direta ou indiretamente interferir n a

100
administração de teus n e g ó c i o s . Se a sociedade c o m toda

razão c o n s i d e r a i n f a m e o a m a n t e de a l u g u e l , vejo c o m o

m e s m o desgosto a c o n d i ç ã o de m a r i d o c o m p r a d o .

T u m e qualificaste de egoísta, p o b r e de m i m ! T e m o

que tenhas razão. Confesso-o com a mais dolorosa h u -

m i l h a ç ã o . Q u a n d o de f o r m a tão i n e s p e r a d a e irresistível

despejaste s o b r e m e u p e i t o os t e s o u r o s a c u m u l a d o s de t u a

afeição, n ã o i m a g i n e i , ao c h o r a r , que r e c e b i a o salário da

m i n h a d e g r a d a ç ã o ! F r a c o e m i s e r á v e l ! A q u i l o m e fez a c e i -

tar tua assistência e m m i n h a s dificuldades; c o n t u d o , de-

t e r m i n a m o s que aquele seria u m empréstimo. E n q u a n t o

estavas e m B r a d e n h a i m , e u só e s p e r a v a p e l a p r o m i s s ó r i a

que m e u administrador me entregou, c o m o balanço de

nossas c o n t a s e q u e v e n c e este m ê s , p a r a q u i t á - l a c o m t e u s

banqueiros.

N o q u e d i z respeito aos interesses de o r d e m prática,

p o r D e u s , nossa aliança não pode m e beneficiar. T u d o o

q u e a s o c i e d a d e p o d e o f e r e c e r está à m i n h a d i s p o s i ç ã o ; n ã o

é a a p a r e n t e posse de u m e s p ó l i o o que eleva a p o s i ç ã o de

a l g u é m . P o s s o v i v e r t a l c o m o v i v o , s e m d e s o n r a , até q u e o

progresso inevitável dos a c o n t e c i m e n t o s m e c o n c e d a toda

a i n d e p e n d ê n c i a de q u e n e c e s s i t o . S e t r a t e i dessas q u e s t õ e s

d e l i c a d a s f o i p o r q u e taxaste m i n h a visão de p a r c i a l . N ã o ;

e u n ã o aceitaria ser o servo de u m a p r i n c e s a e n e m todo

o o u r o de O f i r m e levaria ao altar. São m u i t o d i f e r e n t e s

as q u a l i d a d e s q u e e s p e r o d a g e n t i l c o m p a n h e i r a d e m i n h a

existência. M i n h a n a t u r e z a exige q u e m i n h a v i d a seja de

amor perpétuo.

101
N ã o faço qualquer comentário sobre tua conduta para

c o m i g o . A g o r a i s s o s e r i a i n ú t i l . N ã o te c e n s u r a r e i . C u l p a -

rei somente a m i m mesmo. Todos me avisaram: a opinião

pública e a particular, todos fizeram questão de m e salvar

d o i n f e r n o e m que caí. S e r i a m u i t a pretensão s u p o r que

agirias e m relação a m i m de m a n e i r a d i f e r e n t e da que agis-

te p a r a c o m c i n q u e n t a o u t r o s !

No entanto, j u l g u e i ter tocado teu coração! Infeliz

idiota!

C o m o m u l h e r de sociedade, deves t e r p r e v i s t o tal s i -

t u a ç ã o . E m t r o c a da gratificação de tua vaidade, de diversão

d u r a n t e dez meses, de distração e m t e u r e t i r o , foste capaz

de fazer isto? N ã o havia qualquer presa ignóbil à m ã o para

e v i t a r q u e d e g r a d a s s e s u m a ave d o c é u ? P o r q u e n ã o d e i -

x a r q u e o C a p i t ã o N e i l fosse o escravo s e r v i l de tuas h o r a s

difíceis, de humilhação e desonra para m i m ? A natureza

n u n c a m e quis n a c o n d i ç ã o de b r i n q u e d o e de tolo. M a s t u

m e feriste f u n d o . Fizeste o que meus i n i m i g o s não c o n s e -

g u i r a m fazer: d o b r a r m e u espírito. D a mais elevada à m a i s

h u m i l d e situação da m i n h a vida, do m u n d o b r i l h a n t e da

f a m a ao recesso do m e u lar, envenenaste tudo. N ã o t e n h o

refúgio: m e u lar me é odioso, o m u n d o me é tirânico.

T r i u n f a — não procuro ocultar m e u estado. Não é

t r i s t e z a , n ã o é i n f e l i c i d a d e : é a n g ú s t i a , a continuidade dessa

d o r é a característica f o r t u i t a da agonia. T u d o o que p o d e

p r o s t r a r u m h o m e m r e c a i u sobre m i n h a cabeça de vítima:

m e u coração ultrajado, m e u orgulho ferido, m i n h a h o n r a

m a c u l a d a . S e i b e m que d e n t r o de p o u c o s dias serei alvo do

102
e s c á r n i o e d o r i d í c u l o desse m u n d o c u j a a d m i r a ç ã o f o i o

objeto dos esforços da m i n h a vida. Só t e n h o u m a c o n s o l a -

ç ã o : a c o n s c i ê n c i a do respeito p r ó p r i o . Será isso s u f i c i e n t e

p a r a m e a m p a r a r ? Este é o terrível p r o b l e m a que deve ser

resolvido rapidamente.

A d e u s . N ã o t e r e i a p r e t e n s ã o de d e s e j a r - t e f e l i c i d a d e ,

p o r q u e n ã o está e m t u a n a t u r e z a o b t ê - l a . D u r a n t e p o u -

cos anos p o d e r á s esvoaçar p o r u m a sociedade frívola. No

entanto, chegará a h o r a e m que ansiarás p o r q u a l q u e r c o -

r a ç ã o q u e te e s t i m e e p e r d e r á s a e s p e r a n ç a d e e n c o n t r a r

a l g u m q u e te s e j a f i e l . E n t ã o , e s t a s e r á a h o r a d a r e t r i b u i -

ção; recordarás então o coração apaixonado que alienaste

e o g é n i o que traíste.

D.

103
Charles Darwin
1809-1882

O ACONTECIMENTO mais i m p o r t a n t e da vida de Char-

l e s D a r w i n se d e u e m 1 8 3 1 , q u a n d o ele teve a oportu-

n i d a d e de v i a j a r até a " T e r r a d o F o g o e de v o l t a ao l a r

pelas índias O r i e n t a i s " a bordo d o Beagle, u m navio de

pesquisas. O convite f o i resultado de p u r a sorte: D a r w i n

certamente não era qualificado como naturalista, tendo

passado a m a i o r parte do tempo n a universidade b e b e n -

do, cavalgando e jogando. A viagem o t r a n s f o r m o u p a r a

sempre. E l e saiu da Inglaterra como u m j o v e m sem ob-

jetivo e r e t o r n o u cinco anos depois como u m cientista

cujas observações m u d a r i a m o m u n d o .

E m 1 8 3 8 , e l e d e c i d i u q u e e r a h o r a d e se c a s a r , d e p o i s

de, c o m o o grande catalogador que era, ter preenchido

um d o c u m e n t o de d u a s c o l u n a s c o m os c a b e ç a l h o s : " c a -

sar" e "não casar". N a coluna "casar", escreveu: "com-

panhia permanente (...), u m objeto para amar e com

que se d i v e r t i r ( . . . ) , no mínimo, melhor que u m cão

( . . . ) , i m a g i n e u m a esposa l i n d a e delicada n u m sofá c o m

uma b o m fogo n a lareira, livros e música". A s vantagens

listadas n a c o l u n a "não casar" incluíam "conversar com

104
h o m e n s inteligentes n o clube, n ã o ter de visitar parentes

e ceder à m e n o r bobagem". E l e f i c o u noivo de Emma

Wedgwood, u m a p r i m a em primeiro grau e o casamen-

to f o i realizado e m j a n e i r o de 1839. O casal passou u m

curto período em Londres. A carta a seguir mostra a

a n i m a ç ã o de D a r w i n ao e x a m i n a r a casa e m q u e iriam

m o r a r , possivelmente i m a g i n a n d o " u m a esposa l i n d a e

delicada n u m sofá". Mais tarde, m u d a r a m - s e para a r e -

sidência D o w n H o u s e , n o c o n d a d o de K e n t , o n d e v i v e -

r a m pelo resto da vida.

O casamento foi feliz, e m b o r a a devota E m m a te-

messe os efeitos das descobertas científicas sobre o d e s -

tino da a l m a i m o r t a l do m a r i d o . A saúde de D a r w i n não

era boa e causava-lhe preocupações constantes. E l e temia

q u e E m m a f i c a s s e p e r t u r b a d a c o m as c r í t i c a s f u r i o s a s a

seu t r a b a l h o . D i z - s e que ele a d i o u a p u b l i c a ç ã o da t e o r i a

da evolução p o r respeito à religiosidade da esposa. Eles

t i v e r a m dez f i l h o s , dos quais três m o r r e r a m a i n d a c r i a n -

ças. A p e s a r d a p r e o c u p a ç ã o c o m a saúde, D a r w i n v i v e u

72 a n o s . F o i s e p u l t a d o n a a b a d i a de W e s t m i n s t e r , ao l a d o

do m o n u m e n t o a Isaac N e w t o n . E m m a m o r r e u e m 1896

e foi sepultada n o cemitério da igreja de D o w n e .

cfc> qfr cfc>

105
Para Emma Wedgwood

Domingo à noite, Athenaeum, 20 de janeiro de 1 S 3 9

( . . . ) N ã o s o u capaz de descrever c o m o a p r e c i e i m i n h a v i s i -

ta a M a e r * — p u d e desfrutar antecipadamente a v i d a t r a n -

q u i l a q u e t e r e i n o f u t u r o ; c o m o e s p e r o q u e sejas tão f e l i z

q u a n t o serei! N o e n t a n t o , fico assustado q u a n d o f r e q u e n -

t e m e n t e p e n s o n a f a m í l i a d a q u a l fazes p a r t e . E s t a m a n h ã

estava r e f l e t i n d o sobre c o m o é possível q u e e u , q u e gosto

tanto de conversar e quase n u n c a m e sinto d e s a n i m a d o ,

posso p a u t a r tão c o m p l e t a m e n t e m i n h a i d e i a de f e l i c i d a d e

n a perspectiva de quietude e solidão. Mas acredito que a

e x p l i c a ç ã o é s i m p l e s e só a m e n c i o n o p o r q u e ela p o d e -

rá d a r - t e a esperança de que g r a d u a l m e n t e e u m e torne

m e n o s s e l v a g e m : d u r a n t e os c i n c o a n o s de m i n h a v i a g e m

( e d e c e r t o p o s s o a d i c i o n a r - l h e s os d o i s ú l t i m o s a n o s ) , os

quais, e m d e c o r r ê n c i a de toda a atividade neles c o n t i d a ,

p o d e m ser descritos c o m o o c o m e ç o de m i n h a v i d a real,

t o d o m e u p r a z e r e r a d e r i v a d o d o q u e se p a s s a v a e m m i n h a

mente enquanto, sozinho comigo mesmo, admirava p a i -

sagens, viajava p o r desertos selvagens o u p o r florestas g l o -

r i o s a s o u a i n d a passeava à n o i t e p e l o convés d o pequenino

Beagle. P e r d o a tanto e g o í s m o — d i g o - t e isso p o r q u e penso

q u e irás h u m a n i z a r - m e e logo irás e n s i n a r - m e q u e existe

u m a felicidade m a i o r do que c o n s t r u i r teorias e a c u m u l a r

fatos n o silêncio e n a s o l i d ã o . M i n h a m u i q u e r i d a E m m a ,

* Residência de J o s i a h Wedgwood I I , p a i de E m m a . [N. da T.]

106
e s p e r o d e t o d o c o r a ç ã o q u e n u n c a te a r r e p e n d a s d o g r a n -

d i o s o , d i r i a m e s m o excelente, ato q u e realizarás n a t e r ç a -

f e i r a ; m i n h a q u e r i d a f u t u r a e s p o s a , D e u s te a b e n ç o e . . .

R e c e b i u m a visita dos L y e l l hoje, depois da missa. L y e l l

estava tão c h e i o de g e o l o g i a q u e f o i o b r i g a d o a r e g u r g i t á -

l a . J a n t a r e i c o m eles n a t e r ç a - f e i r a p a r a g a n h a r u m a a u -

t o c o n f i a n ç a especial. H o j e tive m u i t a v e r g o n h a de mim

mesmo, pois nós conversamos durante m e i a h o r a sobre

u m a geologia nada refinada, enquanto a pobre S r a . Lyell

ficava sentada a nosso lado, u m m o n u m e n t o à paciência.

N ã o c o s t u m o m a l t r a t a r o sexo f e m i n i n o . L y e l l n ã o m e p a -

receu n e m u m pouco compungido. Espero dessensibilizar

m i n h a consciência com o tempo: poucos maridos pare-

c e m ter dificuldade e m fazê-lo. Desde que r e t o r n e i , exa-

m i n e i várias vezes a sala de estar, c o m o f a c i l m e n t e p o d e r á s

a c r e d i t a r . I m a g i n o que m e u gosto p o r cores h a r m o n i o -

sas j á e s t á d e t e r i o r a d o , p o i s d e c l a r o q u e o c ó m o d o p a r e c e

m e n o s f e i o . G o s t o t a n t o d a casa q u e m e s i n t o c o m o uma

criança g r a n d e c o m u m b r i n q u e d o n o v o . N o e n t a n t o , ao

contrário de u m a criança de verdade, anseio p o r ter u m a

companheira e coproprietária.

107
Alfred de Musset
1810-1857

ALFRED D E M U S S E T nasceu e m Paris, n u m a família de

literatos de boa condição f i n a n c e i r a . R o m a n c i s t a , d r a -

m a t u r g o e poeta, ele a l c a n ç o u m u i t o sucesso antes dos

20 anos.

E m 1833, depois de ler o segundo r o m a n c e de G e o r -

ge S a n d ( p s e u d ó n i m o de A m a n d i n e A u r o r e L u c i l e D u -

p i n ) , o p o e t a e s c r e v e u - l h e u m a c a r t a ; e l e s se e n c o n t r a -

r a m e A l f r e d se a p a i x o n o u p o r e l a , q u e h a v i a d e i x a d o o

m a r i d o , o barão C a s i m i r Dudevant, dois anos antes. D e

Musset tinha 23 anos e George S a n d tinha 29.

S a n d era m u i t o respeitada c o m o editora e r o m a n c i s t a .

O f a t o d e se v e s t i r c o m o u m h o m e m e d e a d o t a r u m p s e u -

dónimo m a s c u l i n o p r o v o c a v a as p r e v i s í v e i s r e a ç õ e s sar-

cásticas c o m relação a sua sexualidade e v i d a pessoal. S e u s

p r i n c í p i o s f e m i n i s t a s e socialistas atraíam críticas c o n s t a n -

t e s , m a s o n ú m e r o d e p e s s o a s q u e se a p a i x o n o u p o r ela

m o s t r a que devia ser u m a m u l h e r de m u i t o c a r i s m a .

N a c a r t a a s e g u i r , A l f r e d d e M u s s e t se d e c l a r a p e l a

p r i m e i r a vez, a f i r m a n d o n ã o esperar que ela l h e retri-

b u a a a f e i ç ã o . E l e se r e f e r e c o m t r i s t e z a a u m a v i a g e m

108
p a r a a Itália q u e ambos haviam planejado e que, em

c o n s e q u ê n c i a de sua d e c l a r a ç ã o , ele i m a g i n a ser p r e c i s o

cancelar.

N o e n t a n t o , e l e s se t o r n a r a m a m a n t e s e f o r a m à I t á -

lia j u n t o s ; a viagem f o i o mais c o m p l e t o desastre e o r e -

lacionamento não sobreviveu por muito tempo.

D e M u s s e t m o r r e u aos 47 a n o s ; G e o r g e S a n d v i v e u

até os 7 2 , l e v a n d o u m a v i d a agitada, c o m m u i t a s a v e n t u -

ras e r e l a c i o n a m e n t o s a m o r o s o s .

I cfc> qfr qfa

Para George Sand, 1833

Querida George,

T e n h o a l g o d e i d i o t a e r i d í c u l o a te d i z e r . N ã o s e i p o r

q u e e s t o u , c o m o u m t o l o , e s c r e v e n d o - t e e m vez de h a v e r

dito isso ao r e t o r n a r daquele passeio. H o j e à n o i t e f i c a r e i

a b o r r e c i d o p o r ter agido a s s i m . Irás r i r de m i m , p e n s a r

q u e e m t o d a s as m i n h a s i n t e r a ç õ e s c o n t i g o a t é o m o m e n -

to n ã o passei de u m c r i a d o r de frases. Irás m o s t r a r - m e a

porta da r u a e pensar que estou m e n t i n d o . E s t o u apaixo-

n a d o p o r t i . E s t o u nesse estado desde a p r i m e i r a vez q u e

te v i s i t e i . P e n s e i q u e p o d e r i a c u r a r - m e p r o c u r a n d o v e r - t e

apenas c o m o u m a amiga. T e u caráter t e m m u i t o s aspec-

tos q u e p o d e r i a m c u r a r - m e ; t e n t e i m e c o n v e n c e r disso o

m á x i m o possível, N o entanto, pago u m p r e ç o m u i t o alto

p e l o s m o m e n t o s q u e passo a t e u l a d o . P r e f i r o f a z e r essa

109
c o n f i s s ã o e fiz b e m , p o r q u e s o f r e r e i m u i t o m e n o s se f o r

c u r a d o desse s e n t i m e n t o p e l o fato de m e e x p u l s a r e s a g o -

r a . N a q u e l a n o i t e e m q u e . . . [ G e o r g e S a n d , q u e e d i t o u as

c a r t a s d e M u s s e t p a r a p u b l i c a ç ã o , r i s c o u as d u a s últimas

palavras e c o r t o u c o m u m a tesoura a l i n h a seguinte] decidi

i n f o r m a r - t e de q u e estava f o r a d a c i d a d e , m a s n ã o quero

fazer disso u m mistério n e m parecer discutir sem m o t i v o .

Bem, George, d i r á s : " M a i s u m s u j e i t o q u e v a i se t o r n a r

m o t i v o d e a b o r r e c i m e n t o . " S e n ã o s o u o p r i m e i r o a se

a p r o x i m a r de t i , d i z - m e o que devo fazer tal c o m o m e t e -

r i a s falado o n t e m a respeito de o u t r a pessoa. M a s r o g o - t e ,

se f o r t u a i n t e n ç ã o q u e s t i o n a r a v e r d a d e d o q u e escrevo,

então prefiro que não me respondas nada. Sei o que p e n -

sas d e m i m e n ã o e s p e r o n a d a e m t r o c a d e s t a r e v e l a ç ã o . S ó

p r e v e j o p e r d e r u m a a m i g a e as ú n i c a s h o r a s a g r a d á v e i s q u e

p a s s e i e m u m m ê s . M a s s e i q u e és b o n d o s a , q u e j á a m a s t e ,

e confio e m ti, não como u m a amante, mas como uma

amiga franca e leal. George, sou u m idiota p o r p r i v a r - m e

d o p r a z e r d e te v e r n o c u r t o p e r í o d o q u e a i n d a p a s s a r á s e m

P a r i s , antes d a p a r t i d a p a r a a Itália, o n d e t e r í a m o s passado

n o i t e s t ã o l i n d a s j u n t o s , se e u t i v e s s e f o r ç a s p a r a t a l . M a s a

v e r d a d e é q u e s o f r o e m e f a l t a m as f o r ç a s .

ALFRED DE MUSSET

110
Robert Schumann
{
1810-1856

R O B E R T S C H U M A N N estudou direito e m Leipzig e H e i -

delberg, mas o que realmente amava era a música. Seu

professor de p i a n o f o i F r i e d r i c h W i e c k , cuja filha C l a r a ,

nove a n o s m a i s j o v e m que R o b e r t , e r a u m a p i a n i s t a de

talento. S c h u m a n n também era b o m pianista, mas u m

f e r i m e n t o n a m ã o i m p o s s i b i l i t o u - o de seguir carreira

c o m o m ú s i c o . D e s s a f o r m a , ele v o l t o u - s e p a r a a c o m -

posição e a crítica, f u n d a n d o u m i m p o r t a n t e p e r i ó d i c o

e m que apoiava novos compositores.

R o b e r t e C l a r a se a p a i x o n a r a m q u a n d o e l a t i n h a 15

a n o s . E m 1837, ele p e d i u a m ã o de C l a r a ao p a i dela, que

não consentiu. N a segunda carta a seguir, o compositor

faz u m r e l a t o d a trágica c o n v e r s a . D u r a n t e três a n o s , os

namorados lutaram pelo consentimento de Friedrich,

i n c l u s i v e j u d i c i a l m e n t e . E l e n u n c a c e d e u e, e m 1840,

o s e n a m o r a d o s se c a s a r a m s e m t a l p e r m i s s ã o . N o mesmo

a n o , R o b e r t c o m p ô s m u i t a s d e s u a s f a m o s a s Lieder. Clara

conquistou fama por toda a E u r o p a e apresentou muitas

das c o l n p o s i ç õ e s do m a r i d o , e m b o r a ele n ã o t e n h a a l -

cançado o m e s m o r e c o n h e c i m e n t o que a esposa.

111
Robert começou a apresentar sintomas de doença

m e n t a l e m 1844» s e n d o v í t i m a d e d e p r e s s ã o e a l u c i n a ç õ e s ,

m a s se r e c u p e r o u n o a n o s e g u i n t e . T r ê s a n o s d e p o i s , os

s i n t o m a s v o l t a r a m e ele t e n t o u suicídio, a t i r a n d o - s e no

R e n o . F o i salvo, m a s p a s s o u os d o i s ú l t i m o s a n o s d e v i d a

e m u m hospício. Clara viveu mais quarenta anos.

Para Clara Wieck, Leipzig, 1834

M i n h a querida e venerada Clara,

H á q u e m o d e i e a beleza e a f i r m e q u e os c i s n e s n ã o p a s s a m

de u m a espécie m a i s avantajada de gansos. D a m e s m a f o r -

m a , p o d e r í a m o s declarar que a distância é apenas a p r o x i -

m i d a d e q u e f o i a p a r t a d a . E de fato é a s s i m , p o i s falo c o n -

t i g o t o d o s o s d i a s ( s i m , e c o m a h a b i t u a l s u a v i d a d e ) e, no

e n t a n t o , sei que m e c o m p r e e n d e s . N o i n í c i o , t i n h a vários

planos para nossa correspondência. P o r exemplo, q u e r i a

c o m e ç a r a escrever-te cartas abertas n a revista de músi-

ca. D e p o i s p l a n e j e i e n c h e r m e u balão de ideias p a r a c a r -

tas (sabes q u e t e n h o u m ) e p r o v i d e n c i a r u m a v i a g e m c o m

ventos favoráveis e u m destino adequado ( . . . ) . Q u e r i a c a p -

t u r a r b o r b o l e t a s p a r a q u e l e v a s s e m as c a r t a s às t u a s m ã o s .

Q u e r i a m a n d a r m i n h a s missivas p r i m e i r o p a r a Paris, p a r a

que pudesses a b r i - l a s c o m grande curiosidade e depois,

surpreendida, acreditar-me também em Paris. E m suma,

tive e m m e n t e m u i t o s s o n h o s c r i a t i v o s dos q u a i s s o m e n t e

112
hoje a corneta do postilhão [carteiro] veio m e despertar.

A p r o p ó s i t o , m i n h a q u e r i d a C l a r a , os p o s t i l h õ e s e x e r c e m

sobre m i n h a pessoa u m efeito mágico c o m o o do m e l h o r

c h a m p a n h e . A cabeça parece vazia, sente-se o coração m a -

r a v i l h o s a m e n t e l e v e q u a n d o se o u v e s e u a l e g r e trombe-

t e a r p e l o m u n d o . E s s e s s o n s d e t r o m b e t a s ã o p a r a m i m as

v e r d a d e i r a s valsas d o desejo; eles n o s r e c o r d a m a q u i l o q u e

n ã o p o s s u í m o s . C o m o disse, o postilhão m e t r a n s p o r t o u

dos s o n h o s a n t i g o s p a r a os n o v o s ( . . . ) .

Para Clara, sobre a oposição do pai dela ao casamento de ambos,

18 de setembro de 1837

A entrevista c o m teu pai f o i terrível ( . . . ) tanta frieza, t a n -

ta h i p o c r i s i a , t a n t o a r t i f í c i o , t a n t a s c o n t r a d i ç õ e s . E l e t e m

o u t r o p o d e r de destruição, ele a p u n h a l a - n o s o coração

o cabo da faca ( . . . ) .

E agora, m i n h a querida C l a r a ? N ã o tenho a m e n o r

i d e i a d o q u e f a z e r . M e u r a c i o c í n i o está d e s t r u í d o e nesse

estado m e n t a l c e r t a m e n t e n ã o posso e n t e n d e r - m e c o m teu

pai. O que p o d e m o s fazer agora? A c i m a de tudo, p r e p a -

r a - t e , e não permitas deforma alguma que ele te convença... confio

em t i , do fundo do coração, e e s t e é o m e u a m p a r o ( . . . ) . Mas

p r e c i s a r á s s e r m a i s forte d o q u e i m a g i n a s . N ã o m e d i s s e t e u

p a i a q u e l a s p a l a v r a s t e r r í v e i s , q u e n ã o se d e i x a r á a b a l a r por

nada? E l e te submeterá p e l a f o r ç a , se o s e s t r a t a g e m a s n ã o l o -

g r a r e m resultado. T e m m e d o de tudo!

H3
H o j e e s t o u t ã o a p á t i c o , t ã o humilhado, que sou incapaz

de p r o d u z i r u m a ú n i c a ideia de v a l o r . N ã o estou d e s a n i -

m a d o a p o n t o de desistir de t i , m a s m e s i n t o tão a m a r g u -

r a d o , tão f e r i d o nos m e u s m a i s sagrados s e n t i m e n t o s , tão

p r e s o n u m a grade de t r i v i a l i d a d e s m e d í o c r e s .

Se p e l o m e n o s recebesse u m a palavra tua! D i z - m e o

q u e d e v o f a z e r , caso c o n t r á r i o , t r a n s f o r m a d o e m o b j e t o de

e s c á r n i o , i r e i p ô r - m e e m fuga!

N e m sequer ter permissão para ver-te! P o d e m o s en-

c o n t r a r - n o s , disse ele, m a s e m l o c a l n e u t r o , n a p r e s e n ç a

de todos, transformados e m espetáculo público. Como

isso m e d e p r i m e , c o m o é i r r i t a n t e ! P o d e m o s n o s c o r r e s -

p o n d e r q u a n d o estiveres v i a j a n d o ! Isso f o i t u d o o que ele

permitiu (...).

D e u s amado, c o n s o l a i - m e e não m e deixeis m o r r e r de

desespero. M i n h a vida foi arrancada pela raiz.

114
Robert Browning
1812-1889

ELIZ BETH BARRET tinha alguma notoriedade como

poeta quando R o b e r t B r o w n i n g , seis a n o s m a i s novo

q u e ejla, e s c r e v e u - l h e p e l a p r i m e i r a v e z , e m I O de j a -

3 de 1845* u m a c a r t a de a d m i r a d o r , m a s q u e pre-

n u n c i a v a m u i t a s c a r t a s d e a m o r q u e se s e g u i r i a m : " a m o

teus >ersos de t o d o m e u c o r a ç ã o , cara s e n h o r i t a B a r -

ret." E l i z a b e t h t i n h a a s a ú d e frágil e v i v i a c o m os i r -

as i r m ã s e u m p a i t i r a n o n a r u a W i m p o l e , em

Londres. O p r i m e i r o e n c o n t r o de R o b e r t e E l i z a b e t h

o c o r n e u e m 2 0 de m a i o de 1845; p o u c o d e p o i s , Ro-

bert leclarou impetuosamente estar a p a i x o n a d o por

ela. A s s u s t a d a , E l i z a b e t h se d i s t a n c i o u d e l e ; o s d o i s r e -

construíram o r e l a c i o n a m e n t o n a f o r m a de amizade.

Isso m u d o u n o o u t o n o daquele ano, q u a n d o E l i z a b e t h

foi a c p n s e l h a d a a passar o i n v e r n o n a Itália p o r motivo

d e saijtde. O p a i não p e r m i t i u que ela viajasse e Bro-

w n i n g d e c l a r o u q u e se c a s a r i a i m e d i a t a m e n t e c o m ela

p a r a livrá-la d o j u g o p a t e r n o . D e s s a vez E l i z a b e t h f o i

r e c e p t i v a e os d o i s p a s s a r a m quase u m a n o planejando

a fuga, p r i n c i p a l m e n t e nos aspectos f i n a n c e i r o s , j á que

JJ5
E l i z a b e t h estava c e r t a de q u e s e r i a d e s e r d a d a p e l o p a i —

o que de fato aconteceu.

R o b e r t e Elizabeth casaram-se e m segredo n a igreja

d e S t . M a r y l e b o n e e m 12 d e s e t e m b r o d e 1 8 4 6 e p a r i t r a m

i m e d i a t a m e n t e p a r a a Itália. E m 1849, a o s
43 anos, Eli-

zabeth d e u à luz u m filho. A saúde dela, que n u n c a h a -

via sido boa, não m e l h o r o u miraculosamente; ela u s o u

opiáceos durante toda a vida. T a m b é m não reconciliou-se

c o m o pai, apesar dos m u i t o s esforços da poeta, mas o

casal f o i feliz e p r o d u t i v o . D u r a n t e a v i d a de casada, Eli-

zabeth p r o d u z i u o que provavelmente é sua o b r a - p r i -

ma, Aurora Leigh. O casal d i v i d i u o t e m p o e n t r e a Itália, a

F r a n ç a e L o n d r e s até a m o r t e de E l i z a b e t h e m Florença,

e m 1865. R o b e r t B r o w n i n g viveu mais 2 8 anos, porém

n ã o t o r n o u a se c a s a r , d e c l a r a n d o q u e s e u c o r a ç ã o e s t a v a

s e p u l t a d o e m F l o r e n ç a . E l e m o r r e u n a Itália. S e u cor-

po foi trasladado para a Inglaterra e sepultado n o Poet's

C o r n e r , n a A b a d i a de W e s t m i n s t e r .

qfb qfr Qfr

Para Elizabeth Barret

Quarta-feira [data do correio: 28 de janeiro de 1846]

Eternamente adorada,

R e s p e i t a n d o teu desejo, não direi nada sobre o assunto,

mas, somente e m m e u benefício: pedes que eu considere

116
apenas m e u p r ó p r i o interesse ao m a n t e r o u r o m p e r nosso

n o i v a d o e n ã o m i n h a o p i n i ã o s o b r e o q u e s e r i a teu b e m , e

m e n o s a i n d a a o p i n i ã o a l h e i a . M e u ú n i c o b e m neste m u n -

do - e m comparação com o qual o m u n d o inteiro nada

v a l e — é p a s s a r m i n h a v i d a c o n t i g o e s e r t e u . S a b e s q u e se

reivindico a l g u m a c o i s a , é n a v e r d a d e t e r - t e e m m i m . Conce-

des-me u m d i r e i t o e pedes q u e faça uso dele, e e u de fato

o exerço plenamente quando mais pareço defender meu

p r ó p t i o i n t e r e s s e . P o r t a n t o , dessa f o r m a , o u s o r e i v i n d i c a r

d e u m a v e z p o r t o d a s e e m t o d a s as s i t u a ç õ e s p o s s í v e i s ( a

n ã o s0r n a terrível p o s s i b i l i d a d e de tua saúde p i o r a r n o v a -

m e n t e . . . caso e m q u e e s p e r a r e i até q u e á v i d a t e r m i n e p a r a

nós dois) que cumpras tua promessa — digamos, no final

d o v e r ã o . N ã o é possível q u e a c o n t i n u i d a d e desse estado

d e c o i s a s te s e j a b e n é f i c a . P o d e m o s i r p a r a a I t á l i a p o r u m

a n o o u d o i s e ser tão felizes q u a n t o o d i a e a n o i t e são l o n -

g o s . D e m i n h a p a r t e , e u te a d o r o . N a d a d i s s o é n e c e s s á -

r i o , s j n t o - o à m e d i d a que escrevo: m a s t u pensarás n o fato

p r i n c i p a l c o m o a l g o determinado, c o n f e r i d o p o r D e u s , n ã o é

m e s m o , q u e r i d a ? P o r t a n t o , e l e nunca mais d e v e s e r q u e s t i o -

nado — então, podemos calmamente pensar no futuro. Até

amanhã e para sempre, D e u s abençoe m i n h a B a , do m e u

c o r a ç ã o . A m o r , t o d a a m i n h a a l m a te segue, te e n v o l v e , e

e u vivo p a r a ser teu.

117
Para Elizabeth Barret na manhã do dia do casamento,

12 de setembro de 1846

Estarás apenas esperando algumas palavras. E quais serão

elas? Q u a n d o está r e p l e t o , o c o r a ç ã o p o d e t r a n s b o r d a r ,

mas a verdadeira plenitude permanece dentro dele... P a -

l a v r a s j a m a i s p o d e r ã o d e s c r e v e r ( . . . ) c o m q u e p e r f e i ç ã o te

q u e r o , ó absoluta amada do m e u coração e da m i n h a a l m a .

O l h o p a r a trás e e m cada m o m e n t o , cada p a l a v r a e gesto,

c a d a c a r t a , c a d a silêncio — f o s t e i n t e i r a m e n t e p e r f e i t a p a r a

m i m . N ã o m u d a r i a n e n h u m a palavra, n e n h u m olhar. M i -

n h a e s p e r a n ç a e m i n h a m e t a são p r e s e r v a r este a m o r e n ã o

p e r d ê - l o . Para tanto, confio e m Deus, que o concedeu a

m i m e sem dúvida pode preservá-lo. Basta p o r agora, m i -

n h a m a i s a m a d a B a ! T u m e deste a m a i s elevada, a m a i s

c o m p l e t a p r o v a de a m o r que u m ser h u m a n o p o d e d a r a

o u t r o . S ó t e n h o gratidão e m u i t o o r g u l h o ( . . . ) de que te-

n h a s c o r o a d o m i n h a v i d a dessa f o r m a .

u8
Gustave Flaubert
1821-1880

O RENOMADO ROMANCISTA Gustave Flaubert é mais

conhecido p e l o r o m a n c e Madame Bovary, e m q u e faz u m a

a n á l i s e d o a d u l t é r i o ; essa o b r a o l e v o u a s e r processado

(sem sucesso) p o r i m o r a l i d a d e . Provavelmente, o relacio-

n a m e n t o m a i s i m p o r t a n t e de F l a u b e r t c o m u m a m u l h e r

foi c o m sua mãe. D u r a n t e a m a i o r parte de sua vida a d u l -

ta, F l a u b e r t v i v e u c o m ela e m C r o i s s e t s u r S e i n e , p e r t o de

R o u e n . S e u ú n i c o r e l a c i o n a m e n t o a m o r o s o digno de n o t a

foi com L o u i s e Golet, u m a prolífica escritora de poe-

mas, r o m a n c e s , ensaios e artigos jornalísticos. M u l h e r de

g r a n d e beleza, d i r i g i a u m r e n o m a d o salão p a r i s i e n s e e e r a

confidente de m u i t o s dos maiores escritores da época. E l e

se r e f e r i a a e l a c o m o s u a " M u s a " . O r e l a c i o n a m e n t o e n t r e

e l e s d u r o u d e 1 8 4 6 a 1854» m a s 0
final não foi dos m e l h o -

res. Mais tarde, C o l e t p u b l i c o u u m relato ficcional sobre

o q u e s e p a s s a r a e n t r e o c a s a l n o r o m a n c e Lux. F l a u b e r t

t a m b é m m a n t e v e relações estreitas c o m G e o r g e S a n d .

O r o m a n c i s t a m o r r e u vítima de u m d e r r a m e aos 5 9

a n o s . S u a s a ú d e n u n c a f o i b o a e ele s o f r i a d e sífilis e

de "ataques nervosos", provavelmente epiléticos. L o u i s e

C o l e t m o r r e u e m 1876.

119
Qfr qfr qfr

Para Louise Colet

Croisset f sábado à noite, 1 hora da manha

T u m e d i s s e s t e c o i s a s m u i t o d o c e s , q u e r i d a M u s a . Eh bien,

recebe e m t r o c a t u d o o que de m a i s doce consigas i m a g i -

n a r . T e u a m o r a c a b a p o r se i n f i l t r a r e m m i m c o m o u m a

c h u v a t é p i d a e e n c h a r c a - m e até o f u n d o d o c o r a ç ã o . E n -

tão, n ã o tendes tudo o que m e é necessário para a m a r - v o s

— corpo, mente, ternura? E s u m a alma simples, mas u m a

mente resoluta, muito pouco poética e extremamente p o e -

ta; n ã o h á e m t i n a d a q u e n ã o seja b o m . És i n t e i r a m e n -

te c o m o t e u c o l o : b r a n c a e suave ao t o q u e . Certamente

a q u e l a s q u e c o n h e c i n ã o se p o d i a m c o m p a r a r a t i ; d u v i d o

q u e a q u e l a s q u e d e s e j e i se c o m p a r a s s e m a t i . A s v e z e s t e n t o

i m a g i n a r t e u r o s t o e n v e l h e c i d o e m e p a r e c e q u e te a m a r e i

t a n t o q u a n t o , o u talvez até m a i s , d o q u e te a m o h o j e .

Para George Sand, 1866

Segunda-feira à noite

Estás triste, m i n h a p o b r e a m i g a e q u e r i d a m e s t r a ; f o i e m

t i q u e p e n s e i ao saber d a m o r t e de D u v e y r i e r . L a m e n -

t o p o r t i , p o i s t u o a m a v a s . E s s a p e r d a v e m se s o m a r a

o u t r a s . C o m o g u a r d a m o s e m n o s s o s c o r a ç õ e s essas a l m a s

q u e se f o r a m ! C a d a u m d e n ó s c a r r e g a d e n t r o d e s i s u a

necrópole.

120
S i n t o - m e p e r d i d o desde que partiste; t e n h o i m p r e s -

são d e n ã o te v e r h á dez a n o s . M i n h a m ã e e e u só f a l a m o s

d e t i , t o d o s a q u i te a m a m . D i z - m e , q u e e s t r e l a r e g e u t e u

n a s c i m e n t o p a r a u n i r e m tua pessoa tantas qualidades d i -

ferentes, tão n u m e r o s a s e tão r a r a s ?

N ã o sei c o m o d e f i n i r o que sinto p o r t i : é u m a t e r n u r a

especial q u e até h o j e n ã o e x p e r i m e n t e i p o r m a i s n i n g u é m .

Nós nos entendemos, não foi m e s m o ? F o i b o m .

S e n t i m a i s a g u d a m e n t e t u a f a l t a n a n o i t e p a s s a d a , às

dez h o r a s . H o u v e u m i n c ê n d i o n a casa d o m e u v e n d e d o r

de l e n n a . O céu ficou r o s a d o e o S e n a estava d a c o r de

x a r o p e de groselha. T r a b a l h e i d u r a n t e três h o r a s e voltei

p a r a casa tão cansado q u a n t o o t u r c o da girafa.*

U m j o r n a l d e R o u e n , o Nouvelliste, p u b l i c o u a notícia

de t u a visita à região, de m o d o que sábado, depois de n o s

despedirmos, encontrei diversos burgueses indignados

comigo por não ter-te exibido. O melhor comentário foi

o do antigo subprefeito: " A h ! Se soubéssemos que ela esta-

va a q u i . . . t e r í a m o s . . . t e r í a m o s . . . " ; ele p r o c u r o u a palavra

exata d u r a n t e c i n c o m i n u t o s : " t e r í a m o s s o r r i d o p a r a e l a . "

Isso seria b e m p o u c o , n ã o é m e s m o ?

E d i f í c i l p a r a m i m " a m a r - t e m a i s " , p o r é m te a b r a -

__L_
ç o c o m c a r i n h o . T u a carta desta m a n h ã , tão m e l a n c ó l i c a ,

* R e f e r ê n c i a à g i r a f a presenteada p e l o v i c e - r e i do E g i t o , M e h m e t
A l i Paxá, a C a r l o s X , r e i da França, e m 1 8 2 7 . O a n i m a l f o i de M a r -
selha a P a r i s a p é , n u m a viagem que d u r o u 4 1 dias. [N. da 7 ]

121
tocou-me fundo. Despedimo-nos n u m m o m e n t o e m que

m u i t a s coisas estavam a p o n t o de b r o t a r de nossos lábios.

N e m t o d a s as p o r t a s e n t r e n ó s f o r a m a b e r t a s . T u m e i n s p i -

ras u m grande respeito e não ouso i n t e r p e l a r - t e .

122
Walter Bagehot
1826-1877

W A L T E R B A G E H O T foi jornalista, comentarista político

e e c o n o m i s t a ; p o r é m , é m a i s c o n h e c i d o p o r seus ensaios

sobre a m o n a r q u i a . E l e n a s c e u e m u m a família de b a n -

queiros i m p o r t a n t e s de Somerset. Bagehot era muito

apegado à mãe, que era bonita, carinhosa e espirituosa,

m a s que t e s t e m u n h o u a m o r t e de três dos seus c i n c o f i -

lhos; ela sofria de surtos psicóticos, que t o r n a r a m m e -

lancólica a infância do j o r n a l i s t a . O p a i , d o n o de u m a

r e s p e i t á v e l b i b l i o t e c a , e s t i m u l o u - o a d e d i c a r - s e às a t i v i -

dades intelectuais.

Sendo u m estudioso brilhante, Bagehot graduou-se

p e l o U n i v e r s i t y C o l l e g e de L o n d r e s ; t r a b a l h o u i n i c i a l -

m e n t e c o m o advogado, o que detestava, e depois como

banqueiro, o que também não apreciava, a f i r m a n d o que

" s o m a s são u m a questão de o p i n i ã o " . N o e n t a n t o , seu

trabalho no banco e m Bristol deixava-lhe muito tempo

livre p a r a o j o r n a l i s m o . Bagehot f u n d o u u m a revista e

a l ç o u - $ e à p o s i ç ã o d e e d i t o r d o Economist, escrevendo so-

bre diversos assuntos políticos, e c o n ó m i c o s e literários.

E m 18*7, f i c o u n o i v o de E l i z a W i l s o n , a filha do pro-

123
p r i e t á r i o d o Economist. E l e s se c a s a r a m e m 1 8 5 8 e f o r a m

morar em Somerset.

A carta encantadora escrita durante o noivado ates-

ta que o relacionamento inicialmente foi apaixonado

e feliz, mas não d u r o u . Bagehot era muito produtivo,

sempre buscando c u m p r i r prazos; era m u i t o sociável e

amante da vida na metrópole. Eliza não compartilhava

d o trabalho e dos interesses do m a r i d o e t o r n o u - s e cada

vez m a i s retraída. E l e s n ã o t i v e r a m filhos.

Para Elizabeth Wilson

Herd's Hill, 22 de novembro de 1857

M i n h a mais querida Eliza,

T e m o que acharás m u i t o superficial m i n h a resposta à tua

g e n t i l e deliciosa carta, mas a escrevi i m e d i a t a m e n t e en-

q u a n t o pessoas conversavam e m e p e r t u r b a v a m . R e l i tua

c a r t a m u i t a s vezes, m a i s d o que gostaria de a d m i t i r . A c o r -

dei no meio da noite e imediatamente acendi u m a vela

p a r a l ê - l a m a i s a l g u m a s vezes. E l a m e d e u m a i s p r a z e r do

que qualquer outra e m u i t o mais do que eu julgaria p o s -

sível d e r i v a r de u m a c a r t a . I m a g i n o q u e e s c r e v e r p a r a m i m

j á n ã o te c u s t e u m e s f o r ç o — p e l o m e n o s a c a r t a parece

ter sido escrita sem dificuldade. N o entanto, ela diz c o i -

sas q u e , c o m t u a n a t u r e z a i n t r o s p e c t i v a e r e s e r v a d a , d e v e m

ter s i d o difíceis de c o l o c a r n o p a p e l . G o s t a r i a realmente

124
de m e s e n t i r m e r e c e d o r de teu afeto — m i n h a razão, ou

talvez m i n h a i m a g i n a ç ã o , c o m e ç a a a c r e d i t a r q u a n d o s u s -

surras) que eu o tenho, mas c o m o diz alguém e m u m livro

da Srta. A u s t e n : " N ã o m e i n c o m o d a n e m u m p o u c o ter o

que não mereço"; portanto, e m alguns m o m e n t o s m i n h a

s a t i s f a ç ã o é i n t e n s a . S e te f a l e i d a d o r b r u t a l q u e s e n t i , e às

v e z e s a i n d a s i n t o , e m b o r a e s t e j a e j á devesse e s t a r m u i t o m a i s

t r a n q u i l o , n ã o deves s u p o r q u e m e u a m o r p o r t i s e m p r e

foi apenas s o f r i m e n t o . M e s m o nos piores m o m e n t o s havia

u m a excitação d e l i r a n t e , d e l i c i o s a , que e u n ã o gostaria de

p e r d e r p o r n a d a . N o i n í c i o , antes q u e o s e n t i m e n t o fosse

m u i t o forte, i r a C l a v e r t o n era para m i m apenas prazer e o

fascínio de nossas p r i m e i r a s trocas intelectuais era grande,

e m b o r a nos últimos tempos, p r i n c i p a l m e n t e desde aquele

dia n a estufa, o sentimento tenha sido sôfrego demais para

n ã o c o n t e r u m a b o a dose de d o r . E m b o r a e m alguns m o -

m e n t o s a tensão m e n t a l t e n h a de fato sido m u i t o i n t e n s a ,

o p e r í o d o d e p o i s q u e te c o n h e c i e a m e i é i m e n s a m e n t e o

mais feliz que j á vivi. P o r t e m p e r a m e n t o , s e m p r e sou ale-

gre de U m a f o r m a s u p e r f i c i a l , m a s isso n ã o m e satisfaz, e

de a l g u m a f o r m a a v i d a m e s m o antes de ficarmos noivos

era m a i s doce e m a i s suave. O s choques e i n q u i e t a ç õ e s da

ação p e r d e r a m a influência e a literatura a d q u i r i u u m novo

v a l o r desde q u e gostaste dos m e u s e s c r i t o s . T u d o ganhou

b r i l h o , e m b o r a nas ú l t i m a s vezes q u e f u i a C l a v e r t o n p e n -

sasse q u e esse b r i l h o i r i a d e s a p a r e c e r — q u e e u c o n f e s s a r i a

m e u s s e n t i m e n t o s e, t r a n q u i l a , g e n t i l e c h e i a d e c o n s i d e -

r a ç ã o , i r i a s rejeitar-me e eu jamais tornaria a ver-te. T i n h a

125
u m a v i s ã o d a q u i l o q u e g u a r d o p a r a m i m . C o m o i s s o não

a c o n t e c e u , t e m o q u e esteja s e n d o egoísta — n a v e r d a d e , sei

q u e estou — m a s n ã o t e n h o certeza de que o e g o í s m o fique

m a l n a s c a r t a s e q u a n d o te e s c r e v o , p r e c i s o e x p r i m i r o q u e

sinto p o r t i . E estranho c o m o nossos sentimentos m u d a m

c o m p l e t a m e n t e . N i n g u é m é capaz de descrever o esforço

q u e m e c u s t o u d i z e r - t e q u e te a m o . N ã o s e i p o r q u e , m a s

a q u i l o m e d e i x o u ofegante e agora sinto prazer absoluto

e m d i z ê - l o , e m a b o r r e c e r - t e c o m i s s o d e t o d a s as m a n e i -

ras. G o s t a r i a de escrever e m letras garrafais E U T E A M O

n a p á g i n a i n t e i r a p a r a dar ênfase. S e i que vais m e a c h a r

m u i t o i n f a n t i l e ter abalada a p r i m e i r a impressão de que

s o u u m i n t e l e c t u a l , será abalada, m a s n ã o posso e v i t á - l o .

E s s e é o m e u estado de e s p í r i t o .

M u d a n d o de assunto, q u a l é a vantagem específica de

r e c e b e r u m a m a s s a g e m e m Edimburgo? D e s d e o n t e m fiz u m a

investigação c u i d a d o s a e estou c o n v e n c i d o de q u e os i n g l e -

ses s ã o c a p a z e s de a p l i c a r m a s s a g e m . P o r q u e n ã o s e r m a s -

sageado e m S o m e r s e t s h i r e ? Se o m é d i c o m a r c a r o local

e a p l i c a r u m e m p l a s t r o s o b r e e l e p a r a m o s t r a r o n d e e se

q u a l q u e r c i d a d ã o capacitado n o oeste da I n g l a t e r r a m a s -

sagear o m e s m o lugar, certamente o resultado n ã o será o

m e s m o ? Será que o toque do h o m e m , tal c o m o o do r e i ,

cura doenças?

P o r m e i o de pesquisas inacreditáveis e m u m b a ú antigo,

e n c o n t r e i o p o e m a d e q u e te f a l e i . P r e f e r i a n ã o t ê - l o e n -

c o n t r a d o , p o i s p e n s a v a q u e fosse m e l h o r . N ã o o v i d u r a n t e

m u i t o s a n o s e ele n ã o é tão b o m q u a n t o i m a g i n a v a . T a l v e z

H6
n ã o seja n a d a b o m , m a s p e n s o q u e talvez gostes de l ê - l o e

n ã o p o d e r á s f a z e r i s s o se e u n ã o m a n d á - l o , p o r t a n t o v o u

enviá-lo para ti. O n o m e da j o v e m é Orithyia. Segundo a

l e n d a grega, ela f o i levada pelo vento n o r t e . P r e f e r i a c r e -

d i t a r q u e ela estava a p a i x o n a d a p e l o v e n t o n o r t e , m a s n ã o

t e n h o i n f o r m a ç ã o de que a l g u m d i a ela t e n h a declarado

e x p l i c i t a m e n t e tais s e n t i m e n t o s e m q u a l q u e r documento.

O que, a p r o p ó s i t o , t u fizeste. Nesse espírito, acabei de

l e r t u a c a r t a e a n d o p o r aí m u r m u r a n d o : " f i z a q u e l a m o ç a

t ã o d i g n a se comprometer, e u c o n s e g u i , c o n s e g u i ! " E n t ã o m e

a t i r o n b s o f á , e x u l t a n t e . E s s e s são os s e n t i m e n t o s d a q u e l e

c o m q u e m t e a s s o c i a s t e . Por favor, n ã o se o f e n d a c o m m i -

nhas bobagens. A insolência é m e u comportamento ca-

racterístico. S e m p r e s o u r u d e c o m todos os q u e r e s p e i t o .

P o d e r i a e s c r e v e r - t e s o b r e os s o l e n e s e graves s e n t i m e n t o s

que espero acredites de fato e s t a r e m presentes e m m e u c o -

ração, ínas m i n h a p e n a graceja p o r c o n t a p r ó p r i a e s e m p r e

o fará.

T e u , c o m o mais terno e profundo amor,

WALTER BAGEHOT

127
Mark Twain
1835-1910

SAMUEL LANGHORNE GLEMENS (MarkTwain), famoso

escritor, conferencista e satirista n o r t e - a m e r i c a n o , foi

c r i a d o e m H a n n i b a l , c i d a d e p o r t u á r i a d o M i s s o u r i , às

m a r g e n s do Mississipi, o r i o que lhe serviu de inspira-

ç ã o d u r a n t e t o d a a v i d a . A o s 14 a n o s , C l e m e n s come-

ç o u a t r a b a l h a r c o m o a p r e n d i z de gráfico e a escrever os

p r i m e i r o s artigos jornalísticos. E l e viajou bastante pelo

país, a d q u i r i n d o cultura e m bibliotecas e trabalhando

p a r a d i v e r s o s e d i t o r e s . A o s 2 2 a n o s teve a i n s p i r a ç ã o de

se t o r n a r p i l o t o d o s b a r c o s a v a p o r n o M i s s i s s i p i , uma

profissão perigosa e altamente especializada.

E m 1868, C l e m e n s apaixonou-se p o r Olivia ( " L i v y " )

L a n g d o n , filha de ricos liberais do n o r t e do estado de

N o v a Y o r k ; os pais dela f o r a m " c o n d u t o r e s " n a U n d e r -

g r o u n d Railroad, a organização clandestina que facili-

tava a fuga de escravos p a r a o n o r t e d o país. S a m u e l e

O l i v i a se c a s a r a m e m 1 8 7 0 .

Ele foi muito prolífico e bem-sucedido como autor

d e a r t i g o s j o r n a l í s t i c o s , g u i a s d e v i a g e m e r o m a n c e s (Tom

Sawyer, talvez seu l i v r o m a i s f a m o s o , foi publicado em

128
1876). C l e m e n s viajava constantemente para c o n f e r ê n -

cias n o s E s t a d o s U n i d o s e n a E u r o p a . E r a m u i t o p o p u -

l a r n o R e i n o U n i d o . E m u m a dessas v i a g e n s , conheceu

C h a r l e s D a r w i n , de q u e m era grande a d m i r a d o r . O es-

critor também era apaixonado por invenções. E l e r e -

g i s t r o u diversas patentes e i n v e s t i u centenas de m i l h a r e s

de dólares n o d e s e n v o l v i m e n t o da m á q u i n a de escrever

Paige, que impressionava a todos, mas que n u n c a f u n -

c i o n o u adequadamente. A p e s a r de ganhar bastante d i -

n h e i r o , a d m i n i s t r a v a m u i t o m a l os r e c u r s o s , c h e g a n d o

a pedir falência.

C l e m e n s e Livy f o r a m m u i t o felizes n o casamento

e tiveram quatro filhos; tragicamente, o primogénito

m o r eu n a p r i m e i r a infância e duas filhas m o r r e r a m

c o m p o u c o m a i s d e 20 a n o s . L i v y m o r r e u e m 1 9 0 4 , d e i -

xando o escritor desolado.

qfr cjÇ, qfr

Para Livy, em seu trigésimo aniversário

Hartford, 27 de novembro de 1875

Q u e r i d a Livy,

J á se p a s s a r a m s e i s a n o s d e s d e q u e a l c a n c e i m e u primei-

r o g r a n d e sucesso n a v i d a ao c o n q u i s t a r - t e , e t r i n t a a n o s

transcorreram desde que a Providência preparou esse

129
a c o n t e c i m e n t o f e l i z , e n v i a n d o - t e a este m u n d o . C a d a d i a

q u e passamos j u n t o s fortalece m i n h a confiança de que n ã o

só n u n c a m a i s desejaremos estar separados, c o m o n u n c a

p o d e r e m o s i m a g i n a r a tristeza de não nos t e r m o s u n i d o .

H o j e és m a i s c a r a p a r a m i m , m i n h a c r i a n ç a , d o q u e e r a s

n o d i a do teu aniversário passado, q u a n d o eras m a i s q u e -

r i d a d o q u e n o a n o a n t e r i o r — foste t o r n a n d o - t e p r o g r e s -

s i v a m e n t e m a i s q u e r i d a desde o p r i m e i r o aniversário e n ã o

t e n h o d ú v i d a de q u e essa p r e c i o s a p r o g r e s s ã o continuará

até o f i m .

E s p e r e m o s pelos próximos aniversários, c o m a idade e

os cabelos grisalhos, s e m m e d o e s e m depressão, c o n f i a n -

tes e c o n v i c t o s d e q u e o a m o r q u e c o m p a r t i l h a m o s será

suficiente para abençoá-los.

P o r t a n t o , c o m i m e n s o afeto p o r t i e p o r nossos f i l h o s ,

l o u v o e s s e d i a q u e te c o n f e r e o e n c a n t o m a d u r o e a d i g n i -

d a d e de três décadas!

S e m p r e teu

S.L.C.

S t . Nicholas, 26 de agosto de 18J8

Q u e r i d a Livy,

C h e g a m o s h o j e esfuziantes; seis h o r a s de c a m i n h a d a s u b i n -

d o e d e s c e n d o m o r r o s í n g r e m e s , c o m os p é s m e r g u l h a d o s

até os t o r n o z e l o s n a l a m a e n a água, e m b a i x o de u m a c h u v a

constante que não d i m i n u i u e m n e n h u m m o m e n t o . E u

130
estava f a l a n t e e a n i m a d o c o m o u m a c o t o v i a d u r a n t e t o d o

o c a m i n h o e cheguei s e m a m e n o r sensação de fadiga. M a s

estávaibos e n c h a r c a d o s e c o m os sapatos c h e i o s de água,

portanto, comemos imediatamente, t i r a m o s as r o u p a s e

f o m o s para a cama p o r duas horas e meia, e n q u a n t o nossos

perterjces e r a m completamente secos e nossas botas e r a m

e n g r a x a d a s . E n t ã o v e s t i m o s as r o u p a s a i n d a q u e n t e s e f o -

m o s p a r a a mesa de j a n t a r .

C o n q u i s t e i alguns simpáticos amigos ingleses e t o r n a -

rei a vf-los amanhã, em Zermatt.

C o l h i u m pequeno buque de flores frescas, m a s elas

murcharam. N a última noite e m Leukerbad, mandei-te

u m a cfrixa r e p l e t a d e f l o r e s .

Acabei de e n v i a r - t e u m telegrama pedindo que me

telegrafes a m a n h ã as n o t í c i a s d a f a m í l i a , em Riffel. E s -

p e r o q u e estejas b e m e d i v e r t i n d o - t e t a n t o q u a n t o nós,

p o i s t4 a m o , m i n h a q u e r i d a , e t a m b é m , na mesma pro-

p o r ç ã o , a m o o s B ê s [ a m a n e i r a c o m o as f i l h i n h a s d o a u t o r

pronunciavam "bebés"]. Manda meu carinho para Clara

S p a u d f n g e t a m b é m p a r a os pequenos.

S A M L .
William F. Testerman

SOBRE WILLIAM F . TESTERMAN sabe-se apenas que

d u r a n t e a G u e r r a C i v i l dos E s t a d o s U n i d o s ele f o i pri-

m e i r o - t e n e n t e n a C o m p a n h i a C da Oitava Cavalaria do

Tenessee.

qfa cfc

Para a Srta. Jane Davis

Gallotin, Tenessee, 25 de julho de 1864

Cara senhorita,

M a i s u m a vez a p r o v e i t o a o p o r t u n i d a d e de m a n d a r - t e a l -

g u m a s l i n h a s e m resposta a tuas cartas gentis q u e recebi

h á a l g u n s dias, u m a c o m a data de " 2 3 " de j u n h o e a o u t r a

2 4 de j u n h o f o i u m prazer p a r a m i m ter a h o n r a de r e c e -

b e r u m a carta de u m a j o v e m tão e n c a n t a d o r a c o m o a q u e l a

c o m o n o m e acinalado n o f i n a l de cada u m a F i q u e i feliz

d e s a b e r q u e estás b e m , m a s f i q u e i m a i s f e l i z d e o u v i r - t e

expressar t e u p e n s a m e n t o tão c o m p l e t a m e n t e c o m o fizeste

q u a n d o m a n d o esta c a r t a e s t o u p a s s a n d o b e m e e s p e r o q u e

e l a te e n c o n t r e e m b o a s a ú d e N ã o p o s s o d i z e r - t e p o r c a r t a

n a d a q u e j á n ã o t e n h a s o u v i d o das m i n h a s cartas a n t e r i o -

132
r e s + J a n e e s p e r o c h e g a r l o g o a h o r a d e te v e r n o v a m e n t e

E u p o s s o e s c r e v e r m u i t a s c o i s a s p a r a t i m a s se t e v i s s e d i r i a

dizer m a i s n u m m i n u t o do que posso escrever e m u m a se-

m a n a A s c a r t a s q u e e s c r e v e s t e p a r a m i m se m o s t r o u m u i t o

s a t i s f a t ó r i a s p a r a m i m se f i c a r e s f i r m e n o q u e m e d i s s e s t e

nas tuas cartas f i c a r e i feliz do que n ã o t e n h o razão p a r a

d u v i d a r m a s se m e d e s a p o n t a r e s isso q u a s e p a r t i r i a meu

c o r a ç ã o p o r q u e é s a m o ç a e m q u e m e a p o i o e se n ã o f o s s e

p o r tua causa eu não estaria escrevendo luz de u m a vela

esta n o i t e c o m o escreveste p a r a m i m q u e m u i t a s m i l h a s

n o s s e p a r a m e m pessoa S e m e u c o r a ç ã o fosse c o m o o t e u

estaríamos u n i d o s n o coração n ã o precisas d u v i d a r apesar

d e s e p a r a d o s n o p r e s e n t e m e u c o r a ç ã o está c o n t i g o o t e m -

p o t o d o p o r q u e s e m p r e p e n s o e m t i q u a n d o estais d o r -

m i n d o q u a n d o estou b a t a l h a n d o pelas estradas solitárias

do i n t e r i o r do Tenessee A i d e i a dos teus doces sorrisos é

t o d a a c o m p a n h i a q u e t e n h o C o n f i o q u e és c i n s e r a n o q u e

escreveste T e u s b r i l h a n t e s o l h o s e tuas b o c h e c h a s rosadas

g a n h o u toda a m i n h a afeição E s p e r o chegar a h o r a q u a n -

d o n o s e n c o n t r a r e m o s n o v a m e n t e e n t ã o se t e n s a m e s m a

ideia que e u p o d e m o s passar o t e m p o c o m prazer C h e g o u

m i n h a h o r a de d o r m i r e preciso logo t e r m i n a r Q u e r o que

m e escrevas a s s i m q u e p u d e r p o r q u e s e m p r e v o u f i c a r feliz

d e o u v i r f a l a r d e t i M a n d a as c a r t a s c o m o a n t e s e n ã o e s -

queças teus m e l h o r e s amigos assim v o u e n c e r r a r m i n h a s

poucajs l i n h a s m a s m e u a m o r p o r t i n ã o t e m f i m p e n s a e m

m i m <tomo s e m p r e t e u a m o r e a m i g o . D e s c u l p a o s e r r o s .

WILLIAM F . TESTERMAN
Charles Stewart Parnell
1846-1891

CHARLES STEWART PARNELL, "O r e i s e m t r o n o d a I r -

landa", foi u m nacionalista irlandês bastante singular.

P e r t e n c i a à a r i s t o c r a c i a r u r a l protestante e seus interesses

e r a m a caça e o críquete. T e n d o recebido u m a b o a for-

m a ç ã o e m C a m b r i d g e , t i n h a as m a n e i r a s e o s o t a q u e d e

u m inglês de alta classe. I n i c i a l m e n t e , e r a m u i t o tímido

e n e r v o s o q u a n d o falava e m p ú b l i c o . M u i t o supersticioso,

t i n h a p r o f u n d a aversão pela c o r verde, o que e r a u m p r o -

b l e m a e m seu r a m o de atividade.

E m 1875, P a r n e l l a s s u m i u u m a cadeira n o p a r l a m e n -

to c o m o representante da I r l a n d a . E m 1 8 8 0 , e m W e s t -

m i n s t e r , c o n h e c e u a esposa de u m colega p a r l a m e n t a r , a

S r a . K a t h a r i n e 0 ' S h e a , d e q u e m se t o r n o u a m a n t e q u a -

se i m e d i a t a m e n t e .

Parnell ficou encarcerado no presídio de Kilmai-

n h a m de o u t u b r o de 1881 a m a i o de 1882 e a c a r t a seguinte

d a t a desse p e r í o d o . K a t h a r i n e estava g r á v i d a d e u m a filha

dele, que nasceu e m fevereiro 9 mas não sobreviveu.

O m a r i d o de K a t h a r i n e , W i l l i a m 0 ' S h e a , tolerou

o a d u l t é r i o d a esposa d u r a n t e dez a n o s , possivelmente


p o r q u e ela era a provável h e r d e i r a da f o r t u n a da tia e

seria d e s e r d a d a e m caso de e s c â n d a l o . É i m p r o v á v e l q u e

ele i g n o r a s s e o caso — P a r n e l m a n d o u p r e p a r a r u m c a m -

p o de è r í q u e t e n a casa de 0 ' S h e a , o n d e t a m b é m i n s t a l o u

p a r a si u m a sala de t r a b a l h o , o que c o m certeza deve ter

l e v a d o o m a r i d o a s u s p e i t a r d o q u e se p a s s a v a . C o n t u d o ,

q u a n d o a tia de K a t h a r i n e m o r r e u , e m 1890, o m a r i d o

por fim d e c i d i u que a situação era intolerável e p e d i u

o divórcio, o que precipitou u m escândalo público. O

caso e r a u m a v e r d a d e i r a t u r b u l ê n c i a e n v o l v e n d o classe

social, \ d i n h e i r o , m o r a l i d a d e , sexo e política. Kathari-

ne f o i 5 d i f a m a d a c o m o epíteto " K i t t y 0 ' S h e a " , sendo

"Kitty , f
u m a gíria que significava "prostituta". O divór-

cio e n c e r r o u a c a r r e i r a política de P a r n e l l . O s amantes

s e m u d a r a m p a r a B r i g h t o n , o n d e se c a s a r a m e m j u n h o

de 1891. P a r n e l l , cuja saúde s e m p r e f o r a frágil, m o r r e u

c o m a esposa a seu lado m e n o s de quatro meses depois,

aos 4 5 a n o s .

cfa cfc cfa

Para Katharine 0'Shea

Kilmainham, 14 de outubro de 1881

M i n h a querida esposinha,

D e s c o b r i u m a m a n e i r a d e m e c o m u n i c a r c o n t i g o e d e te

c o m u n i c a r e s de volta.

135
Por favor, põe tuas cartas no envelope aqui in-

cluído, colocando-as primeiro em outro envelope em

cujo fechamento p o d e r á s escrever tuas i n i c i a i s c o m um

l á p i s s e m e l h a n t e ao m e u , e elas c h e g a r ã o até m i m . E s t o u

b e m confortável a q u i , n u m a boa cela de frente p a r a o s o l ,

a m e l h o r da prisão. Três o u quatro h o m e n s excelentes es-

tão n a s celas adjacentes e posso passar c o m eles o d i a t o d o ,

p o r t a n t o esse p e r í o d o n ã o p e s a m u i t o s o b r e m i m , nem

m e sinto solitário. M e u único temor é por m i n h a querida

e pequena rainha. T e n h o me sentido torturado durante

t o d o o d i a de h o j e , a n o i t e passada e o d i a de o n t e m , p e l o

t e m o r de que o choque possa ter feito m a l a ti o u a nosso

b e b ê . O h , q u e r i d a , escreve o u telegrafa p a r a m i m a s s i m

q u e r e c e b e r e s esta c a r t a , d i z e n d o - m e q u e estás b e m e q u e

tentarás não ficar i n f e l i z até v e r n o v a m e n t e t e u m a r i d o .

P o d e s t e l e g r a f a r - m e p a r a cá.

T e n h o teu l i n d o rosto aqui comigo; é u m grande c o n -

forto. B e i j o - t e toda manhã.

TEU REI

136
I Oscar Wilde
1854-1900

O S C A R W I L D E , d r a m a t u r g o , r o m a n c i s t a , ensaísta, crí-

tico, poeta, e também espirituoso. Suas maneiras p r e -

tensiosas q u a n d o j o v e m e a a p a r ê n c i a elegante até h o j e

e n c o b r e m seu intelecto respeitável: ele e s t u d o u n o T r i -

nity Gollege, e m D u b l i n , e n o Magdalen Gollege, em

O x f o r d , g r a d u a n d o - s e c o m h o n r a s n o s estudos clássicos,

o que n ã o c o s t u m a acontecer c o m q u e m passa seu t e m p o

de universidade preguiçosamente recostado, p r o d u z i n -

do gracejos malévolos. W i l d e acreditava n a beleza — nas

r o u p a s e n a d e c o r a ç ã o , c o m c e r t e z a —, m a s t a m b é m na

arte e nas relações h u m a n a s . C o m frequência escreve-se

s o b r e e l e c o m o se s u a n a c i o n a l i d a d e i r l a n d e s a f o s s e u m

a c i d e n t e e, p a r a t o d o s os p r o p ó s i t o s , e l e fosse i n g l ê s ; n o

entanto, a p e r c e p ç ã o que t i n h a de si m e s m o c o m o i r l a n -

dês era forte. Politicamente, W i l d e apoiava P a r n e l l .

E m 1874, Wilde casou-se com Constance Mary

L l o y d , u m a protestante de D u b l i n . E l a deu à luz dois

filhos em rápida sucessão. E m 1891, W i l d e conheceu

L o r d e A l f r e d Douglas, filho do marquês de Queesber-

ry. O subsequente romance com "Bosie" efetivamente

137
a r r u i n o u - l h e á v i d a . E m 1895, o pai de Douglas, conhe-

cido pela agressividade e furioso c o m o r e l a c i o n a m e n t o

d o f i l h o c o m o e s c r i t o r , d e i x o u p a r a este u m c a r t ã o no

c l u b e q u e W i l d e f r e q u e n t a v a , n o q u a l se l i a " P a r a O s c a r

Wilde, notório somdomita [sic]". Wilde tomou a infeliz

d e c i s ã o de p r o c e s s á - l o p o r d i f a m a ç ã o . O caso c h e g o u ao

tribunal, mas foi esquecido. O vingativo marquês per-

seguiu W i l d e p o r meio da p r o m o t o r i a pública, o que

l e v o u o escritor a ser processado p o r atentado grave ao

pudor. E l e foi condenado e sentenciado a dois anos

de trabalhos forçados. C u m p r i u pena nos presídios de

Pentonville e Reading.

W i l d e s a i u d a p r i s ã o física e p s i c o l o g i c a m e n t e ar-

rasado. S e g u n d o a c r e d i t a - s e , ele f o i a b a n d o n a d o por

Douglas, mas n a verdade L o r d e A l f r e d escreveu cartas

aos j o r n a i s protestando contra a sentença e apelou à

r a i n h a p o r clemência. A o ser libertado, W i l d e vagou de

u m lugar para outro, encontrando-se frequentemente

c o m D o u g l a s . ( C o n s t a n c e n ã o se d i v o r c i o u d e l e , m a s s e

m u d o u e t r o c o u o p r ó p r i o sobrenome e o dos filhos.)

O escritor m o r r e u e m Paris, n u m quarto de h o t e l , em

1 9 0 0 , tendo declarado alguns dias antes: " M e u p a p e l de

parede e e u estamos travando u m duelo de m o r t e . U m

dos dois terá de p a r t i r . "

qfr cjp, qfr

138
Para Lorde Alfred Douglas, março de 1893

Do Hotel Savoy, Londres

M a i s q u e r i d o dos m e n i n o s ,

T u a carta foi deliciosa, como vinho tinto e branco para

m i m ; mas estou triste e não m e sinto b e m . B o s i e , não de-

ves fazer c e n a s p a r a m i m . E l a s a c a b a m c o m i g o , destroem

a beleza da v i d a . N ã o s u p o r t o v e r - t e , tão grego e elegante,

desfigurado pela e m o ç ã o . N ã o consigo o u v i r teus lábios

sinuosos d i z e r e m coisas h o r r e n d a s p a r a m i m . P r e f e r i a ser

c h a n t a g e a d o p o r t o d o s os a r r e n d a t á r i o s de L o n d r e s a v e r -

te a m a i g o , i n j u s t o , c h e i o d e ó d i o . P r e c i s o v e r - t e l o g o . É s

o d i v i n o objeto do m e u desejo, u m ser de graça e beleza;

mas n ã o sei c o m o fazê-lo. D e v o i r a S a l i s b u r y ? M i n h a des-

pesa a q u i é de 4 9 libras p o r s e m a n a . T a m b é m t e n h o u m a

nova sala de estar c o m vista p a r a o T a m i s a . P o r que não

estás a q u i , m e u q u e r i d o , m e u m e n i n o m a r a v i l h o s o ? T e m o

ser obrigado a sair d a q u i , estou sem d i n h e i r o , s e m crédito

e m e u c o r a ç ã o está p e s a d o .

T E U OSCAR

Para Lorde Alfred Douglas

De Courtfeld Gardens, 20 de maio de 1895

M e u garoto,

H o j e f o i r e q u e r i d o q u e as s e n t e n ç a s s e j a m a n u n c i a d a s e m

s e p a r a d o . É provável q u e T a y l o r esteja s e n d o j u l g a d o neste

m o m e n t o , p o r t a n t o p u d e v o l t a r p a r a cá. M i n h a d o c e r o s a ,

139
minha flor d e l i c a d a , m e u l í r i o dos l í r i o s , talvez a p r i s ã o

s e j a o l u g a r o n d e d e v o t e s t a r o p o d e r d o a m o r . V o u v e r se

c o n s i g o a b r a n d a r os c r u é i s c a r c e r e i r o s p o r m e i o d a i n t e n -

s i d a d e d o a m o r q u e te d e d i c o . E m a l g u n s m o m e n t o s , p e n -

sei que seria m e l h o r nos separarmos. A h ! M o m e n t o s de

f r a q u e z a e de l o u c u r a ! A g o r a vejo que isso t e r i a m u t i l a d o

m i n h a v i d a , a r r u i n a d o m i n h a arte, d e s t r u í d o os acordes

q u e c o m p õ e m u m a a l m a perfeita. M e s m o coberto de l a m a ,

e u te l o u v a r e i ; d o s a b i s m o s m a i s p r o f u n d o s , c l a m a r e i p o r

t i . N a m i n h a s o l i d ã o t u estarás c o m i g o . E s t o u d e c i d i d o a

n ã o m e r e v o l t a r , m a s aceitar t o d o s os u l t r a j e s p e l a d e v o ç ã o

ao amor-, d e i x a r m e u c o r p o ser d e s o n r a d o , desde que m i -

n h a a l m a possa sempre guardar tua i m a g e m . D o s cabelos

s e d o s o s a o s p é s d e l i c a d o s , és a p e r f e i ç ã o p a r a m i m . O pra-

zer o c u l t a - n o s o a m o r , mas a d o r revela-lhe a essência. O

m a i s q u e r i d a d a s c r i a t u r a s , se a l g u é m f e r i d o p e l o s i l ê n c i o e

p e l a s o l i d ã o , d e s o n r a d o , o b j e t o de e s c á r n i o , te p r o c u r a r ,

o h ! P o d e s c u r a r - l h e as f e r i d a s a o t o c á - l a s , e r e s t a u r a r - l h e

a alma que a infelicidade por u m momento sufocou. E n -

t ã o , n a d a te será d i f í c i l , e l e m b r a q u e essa e s p e r a n ç a , e

s o m e n t e e l a , m e faz v i v e r . O que a sabedoria representa

p a r a o f i l ó s o f o , o q u e D e u s r e p r e s e n t a p a r a o s a n t o , t u és

p a r a m i m . M a n t e r - t e n a m i n h a a l m a , tal é o objetivo dessa

d o r q u e os h o m e n s c h a m a m de v i d a . O m e u a m o r , q u e e u

a m o a c i m a d e t o d a s as c o i s a s , n a r c i s o b r a n c o n o campo

a g r e s t e , p e n s a n a d u r a t a r e f a q u e te c o m p e t e , t a r e f a q u e s ó

o a m o r p o d e t o r n a r m a i s l e v e . M a s n ã o te e n t r i s t e ç a s p o r

i s s o , a n t e s sê f e l i z p o r t e r e n c h i d o d e a m o r i m o r t a l a a l m a

140
de u m h o m e m que agora c h o r a n o i n f e r n o , mas leva o céu

n o c o r a ç ã o . E u te a m o , e u t e a m o , m e u c o r a ç ã o é u m a r o s a

q u e t e u a m o r fez f l o r e s c e r , m i n h a v i d a é d e s e r t o arejado

p e l a b r i s a d e l i c i o s a do teu hálito e cujas fontes frescas são

teus o l h o s ; a m a r c a de teus p e z i n h o s c r i a vales de s o m b r a

p a r a m i m , o a r o m a dos teus cabelos é c o m o a m i r r a ; por

o n d e passas, exalas o p e r f u m e das acácias.

A r f i a - m e sempre, a m a - m e sempre. Foste o a m o r s u -

premo, o a m o r perfeito da m i n h a vida; não pode haver

outro.

D e c i d i que era mais nobre e mais belo ficar. Não po-

d í a m o s estar j u n t o s . N ã o q u e r i a ser c h a m a d o de covarde

e desertor. U m p s e u d ó n i m o , u m disfarce, u m a vida ator-

m e n t a d a , n a d a disso serve p a r a m i m , a q u e m foste r e v e l a -

do n a q u e l a elevada c o l i n a o n d e a beleza é transfigurada.

Ó nais doce dos m e n i n o s , mais a m a d o dos amores,

m i n h a a l m a busca a tua, m i n h a vida é tua vida e e m todo

o mundo d e d o r e p r a z e r , és m e u i d e a l d e a d m i r a ç ã o e

alegria.

OSCAR

141
Pierre Curie
1859-^906

QUANDO PlERRE CURIE conheceu Marie Sklodovska n a

U n i v e r s i d a d e de S o r b o n n e , e m 1894, ela era u m a e s t u -

dante p o l o n e s a s e m u m tostão sequer. Q u a n d o chegou

a Paris, M a r i e t i n h a 2 4 anos. A p e s a r de não ter d i n h e i r o

e d e p r e c i s a r a s s i s t i r às a u l a s n u m i d i o m a e m q u e n ã o e r a

fluente, e m 1893, M a r i e obteve o d i p l o m a de matemática

c o m o a m e l h o r aluna da t u r m a ; u m ano depois, c o n q u i s -

t o u o de física c o m o a s e g u n d a m e l h o r a l u n a d a t u r m a .

P i e r r e j á e r a c o n s i d e r a d o u m físico b r i l h a n t e q u a n -

d o o s d o i s se c o n h e c e r a m ; e l e s c o m p a r t i l h a v a m u m i d e a -

l i s m o feroz, u m a dedicação quase assustadora e u m total

desinteresse p o r h o m e n a g e n s e status. A carta q u e a p r e -

s e n t a m o s f o i e s c r i t a a p r o x i m a d a m e n t e u m a n o a n t e s d e se

c a s a r e m . M a r i e p r e t e n d i a v o l t a r p a r a a P o l ó n i a e, d e u m a

m a n e i r a t í m i d a e c a t i v a n t e , P i e r r e está v i s i v e l m e n t e p r o -

c u r a n d o c o n v e n c ê - l a de q u e eles d e v e m f i c a r j u n t o s .

O r e l a c i o n a m e n t o do casal C u r i e e r a e x t r a o r d i n a -

riamente produtivo. Trabalhando juntos n u m galpão

d i m i n u t o , descobriram dois novos elementos, o rádio e

o p o l ó n i o (cujo n o m e h o m e n a g e i a o país natal de M a -

142
r i e ) , e f o r a m laureados c o m o P r é m i o N o b e l de física

em 1903.

A fatalidade os a t i n g i u e m 1906, quando Pierre

m o r r e u atropelado p o r u m a carroça, e m Paris. Sozi-

n h a c o m duas filhas pequenas, Marie ficou desolada,

m a s s u a f o r ç a d e v o n t a d e a j u d o u - a a s e g u i r a d i a n t e e,

e m 1908, tornou-se a primeira mulher a ocupar uma

c á t e d r a n a S o r b o n n e . E m 1911, M a r i e r e c e b e u o Pré-

m i o N o b e l de química.

D u r a n t e a vida, tanto M a r i e quanto Pierre apresen-

t a r a m s i n t o m a s de e n v e n e n a m e n t o p o r radiação — ele

gostava de levar n o bolso do colete u m a a m o s t r a de r á d i o

p a r a m o s t r a r , e ela m a n t i n h a ao l a d o d a c a m a u m sal

de rádio que b r i l h a v a n o escuro. M a r i e m o r r e u de l e u -

c e m i a e m 1934 e foi a p r i m e i r a m u l h e r a ser sepultada

n o P a n t e ã o de P a r i s . O s d o c u m e n t o s deixados p e l o casal

e m i t e m u m a q u a n t i d a d e e x p r e s s i v a d e r a d i a ç ã o e, h o j e ,

o s e s t u d i o s o s q u e d e s e j a m e x a m i n a r - l h e s as anotações

n a B i b l i o t e c a N a c i o n a l devem assinar u m t e r m o de r e s -

ponsabilidade.

Para Marie Sklodovska, 10 de agosto de 1894

N a d a poderia m e dar m a i o r prazer do que receber notícias

tuas. A perspectiva de ficar dois meses s e m o u v i r falar de

143
ti f o i e x t r e m a m e n t e desagradável p a r a m i m , o u seja, t e u

bilhete foi mais do que b e m - v i n d o .

E s p e r o q u e estejas a c u m u l a n d o u m e s t o q u e de a r p u r o

e que voltes p a r a nós e m o u t u b r o . Q u a n t o a m i m , acho

q u e n ã o v o u a l u g a r a l g u m ; devo ficar n o país, o n d e passo

o dia todo e m frente à j a n e l a aberta o u n o j a r d i m .

N ó s n o s p r o m e t e m o s n o m í n i m o ser b o n s amigos —

n ã o p r o m e t e m o s ? Se pelo m e n o s n ã o m u d a r e s de i d e i a !

P o i s n ã o h á p r o m e s s a s c o m p u l s ó r i a s ; essas c o i s a s n ã o po-

d e m ser comandadas pela vontade. N o entanto, seria m a -

r a v i l h o s o , a l g o e m q u e m a l o u s o a c r e d i t a r , se p a s s á s s e m o s

nossas vidas lado a lado, hipnotizados p o r nossos sonhos:

teus s o n h o s p a t r i ó t i c o s , nossos s o n h o s h u m a n i t á r i o s e nosso

sonho científico.

D e t o d o s eles, c r e i o q u e só o ú l t i m o é r a z o á v e l . Com

isso, q u e r o d i z e r que n ã o temos o p o d e r de m u d a r a o r -

d e m s o c i a l e, m e s m o q u e t i v é s s e m o s , n ã o s a b e r í a m o s o q u e

fazer; ao agir, n ã o i m p o r t a e m que direção, n u n c a esta-

r í a m o s seguros de n ã o fazer m a i s m a l do que b e m , por

r e t a r d a r m o s a l g u m a evolução inevitável. D o p o n t o de vista

da ciência, pelo contrário, podemos esperar fazer alguma

coisa; nessa área, o terreno é mais sólido e q u a l q u e r des-

c o b e r t a que façamos, p o r m e n o r que seja, será c o n h e c i -

mento adquirido.

V ê c o m o s ã o as c o i s a s : c o n c o r d a m o s e m s e r b o n s a m i -

g o s , m a s se d e i x a r e s a F r a n ç a d e n t r o d e u m a n o , e s s a a m i -

zade seria p l a t ó n i c a d e m a i s , aquela de duas c r i a t u r a s que

n ã o t o r n a r ã o a se v e r . N ã o s e r i a m e l h o r se ficasses comigo?

144
S e i q u e essa q u e s t ã o te a b o r r e c e e q u e n ã o q u e r e s t o r n a r

a falar dela — e e u t a m b é m m e s i n t o tão i n d i g n o de t i sob

t o d o s os p o n t o s de vista!

P e n s e i e m p e d i r t u a p e r m i s s ã o p a r a e n c o n t r á - l a por

acaso e m F r e i b o u r g . N o e n t a n t o , se n ã o e s t o u enganado,

ficarás lá a p e n a s u m d i a e nesse d i a é c l a r o q u e p e r t e n c e r á s

a teus a m i g o s , os K o v a l s k i s .

C r ê - m e teu m u i t o devotado

PIERRE CURIE

F i c a r i a f e l i z se e s c r e v e s s e s p a r a m i m p a r a a s s e g u r a r - m e d e

que pretendes voltar e m outubro. Se escreveres d i r e t a -

m e n t e p a r a S c e a u x , as c a r t a s c h e g a r ã o m a i s d e p r e s s a :

P l E R R E C U R I E , r u e des S a b l o n s , 13, S c e a u x ( S e i n e ) .

145
G. K. Chesterton
1874-1936

HOJE E M D I A , OS l i v r o s d e G i l b e r t K e i t h Chesterton

n ã o são m u i t o l i d o s e ele p r o v a v e l m e n t e é m a i s c o n h e -

c i d o pela série de contos policiais do Padre B r o w n . No

e n t a n t o , q u a n d o vivo, ele f o i u m r o m a n c i s t a de sucesso

e literato célebre, famoso pela sagacidade. Chesterton

tinha u m intelecto formidável, mas u m a mente i m p r e -

visível; ele f r e q u e n t o u a escola de arte e cogitou a i d e i a

d e u m a c a r r e i r a p o l í t i c a , m a s só e n c o n t r o u s e u l u g a r n o

m u n d o depois de c o m e ç a r u m trabalho jornalístico p a r a

o florescente m e r c a d o l o n d r i n o de revistas e j o r n a i s d a

década de 1890.

N a infância e na adolescência, Chesterton não se

i n t e r e s s o u p o r religião, mas ao passar dos 2 O anos s e n -

tiu u m a atração crescente pelo cristianismo. E m 1896,

ele c o n h e c e u F r a n c e s Blogg, a filha de u m c o m e r c i a n -

te d e d i a m a n t e s de o r i g e m f r a n c e s a ; a d e v o ç ã o d e l a ao

a n g l o - c a t o l i c i s m o d e u f o r m a às c r e n ç a s r e l i g i o s a s d e l e .

A c a r t a incluída a q u i é u m m o d e l o de encanto, modés-

t i a b e m - h u m o r a d a , s u t i l e z a e c a r i n h o . E l e s se c a s a r a m

e m 1901.

146
í^fos a n o s q u e p r e c e d e r a m a P r i m e i r a G u e r r a M u n -

d i a l , a f a m a d o r o m a n c i s t a estava n o auge. E l e c e r t a m e n -

te e r a u m a f i g u r a i m p r e s s i o n a n t e : a l t o ( l , g o m ) e m u i t o

gord<J>, c o s t u m a v a u s a r u m m a n t o e u m c h a p é u d e abas

larga e e r a f r e q u e n t a d o r assíduo das tabernas e m torno

de Fleet Street. ( S e g u n d o u m a piada famosa, Chester-

t o n diisse a s e u a m i g o G e o r g e B e r n a r d S h a w : "Olhando

p a r a v o c ê , t o d o m u n d o v a i p e n s a r q u e a I n g l a t e r r a está

p a s s a n d o p o r u m a escassez de a l i m e n t o s . " A o q u e S h a w

respondeu: " O l h a n d o para você, todo m u n d o vai p e n -

sar que você a c a u s o u . " )

E m 1909, Frances decidiu que o m a r i d o precisava

d e i x a r L o n d r e s e suas t e n t a ç õ e s . O casal m u d o u - s e p a r a

Beaconsfield, em Buckinghamshire. O casamento foi

feliz, e m b o r a a ausência de filhos tenha sido motivo de

tristeza p a r a ambos.

Os escritos de Chesterton no pós-guerra foram

progressivamente mais religiosos e místicos; em 192,2,

o escritor finalmente se c o n v e r t e u a o c a t o l i c i s m o . Seu

t r a b a l h o f o i desfigurado p e l o a n t i s s e m i t i s m o ; e m b o r a os

a d m i r a d o r e s aleguem que, e m m u i t o s aspectos, seu p r e -

c o n c e i t o n ã o fosse e x t r e m a d o e representasse u m lugar

c o m u m n a q u e l a é p o c a , n ã o se p o d e n e g a r e s s a a c u s a ç ã o .

E l e m o r r e u e m 193^» n a casa de B e a c o n s f i e l d . F r a n c e s

sobreviveu a ele.

c£j> qfr qfr

147
Para Frances Blogg (189-)

(...) Estou contemplando o mar e tentando c a l c u l a r os

bens que tenho para oferecer-te. Até onde posso ver, m e u

e q u i p a m e n t o p a r a c o m e ç a r a v i a g e m ao país das fadas c o n -

siste n o s seguintes itens:

i . U m c h a p é u de p a l h a . A p a r t e m a i s a n t i g a dessa r e -
c

l í q u i a a d m i r á v e l m o s t r a i n d í c i o s de p u r o artesanato n o r -

m a n d o . G r a ç a s ao v a n d a l i s m o dos s o l d a d o s de G r o m w e l l ,

p o u c o resta da faixa o r i g i n a l .

2 . U m cajado nodoso e pesado, a d m i r a v e l m e n t e a d e -


a

q u a d o p a r a q u e b r a r a cabeça de q u a l q u e r habitante de S u -

f f o l k q u e n e g u e t u a c o n d i ç ã o de m a i s n o b r e das d a m a s ; o

objeto não tem n e n h u m a outra utilidade evidente.

3". U m e x e m p l a r dos p o e m a s de W a l t W h i t m a n q u e

u m a vez quase d e i de p r e s e n t e a S a l t e r , m a s e s q u e c i . O l i -

v r o a i n d a tem o n o m e dele, c o m u m a dedicatória afetuosa

d e s e u s i n c e r o a m i g o G i l b e r t C h e s t e r t o n . P e r g u n t o - m e se

a l g u m d i a ele o r e c e b e r á .

4°. D i v e r s a s cartas de u m a j o v e m , c o n t e n d o t u d o o q u e

existe de b o m e g e n e r o s o e l e a l e sagrado e sábio, q u e n ã o

se e n c o n t r a n o s p o e m a s d e W a l t W h i t m a n .

5 . U m a i n c o m o d a espécie de canivete cujas l â m i n a s


Q

quase todas m o s t r a m u m p e r f i l mais variado e pitoresco do

q u e o v e n d e d o r de facas m a i s p r o s a i c o c o s t u m a f o r n e c e r .

N o e n t a n t o , o p r i n c i p a l e l e m e n t o é algo " p a r a r e m o v e r

pedras da f e r r a d u r a do cavalo". Q u e maravilhosa sensação

d e s e g u r a n ç a s e n t i m o s a o r e f l e t i r q u e , se a l g u m d i a t i v e r -

14.8
m o s d i n h e i r o s u f i c i e n t e p a r a c o m p r a r u m c a v a l o e se e n -

trar u m a p e d r a n a f e r r a d u r a dele, estaremos preparados;

ficamos a postos, c o m u m sorriso desafiador!

6*. D e p o i s d e s s e ú l t i m o m i l a g r e d e p r u d ê n c i a , chega-

m o s à c a i x a de f ó s f o r o s . D e vez e m q u a n d o , r i s c o u m deles

p o r q t i e o fogo é b o n i t o e n o s q u e i m a os d e d o s . H á q u e m

c o n s i d e r e isso u m d e s p e r d í c i o : o m e s m o tipo de gente que

se o p è e à c o n s t r u ç ã o d e c a t e d r a i s .

7*. M a i s o u m e n o s t r ê s l i b r a s e m m o e d a s d e o u r o e

p r a t a , o que resta de u m dos surtos de afeto do S r . U n w i n ,

u m a dessas e x p l o s õ e s de a m o r e s p o n t â n e o p e l a m i n h a p e s -

s o a , as q u a i s , g r a ç a s à p e r f e i t a o r d e m e h a r m o n i a d a m e n -

te d e l e , o c o r r e m e m i n t e r v a l o s d e t e m p o surpreendente-

mente regulares.

8T. O m a n u s c r i t o d e u m l i v r o d e v e r s o s p a r a c r i a n ç a s

intitulado "Weather B o o k " , (quase?) acabado, destinado

ao S r , N u t t . T e n h o t r a b a l h a d o nele r e g u l a r m e n t e , o que

c o n s i d e r o b a s t a n t e l o u v á v e l , d a d a s as c i r c u n s t â n c i a s . Não

se p o d e c o l o c a r n a d a d e i n t e r e s s a n t e n e l e . E l a s e n t e n d e r ã o

essas c o i s a s q u a n d o c r e s c e r e m .

9^. U m a r a q u e t e d e t é n i s — n ã o , n ã o c o m e c e s ! F a z p a r t e

do novo regime e é o ú n i c o artigo novo e c o m boa a p a r ê n -

cia n o m u s e u . Logo teremos conseguido amaciá-la, c o m o

f i z e m o s c o m o c h a p é u de p a l h a . M e u i r m ã o e e u estamos

nos emsinando a j o g a r ténis n a grama.

I<J .Q
U m a alma, antes i n d o l e n t e e onívora, mas agora

m u i t o i f e l i z e m se e n v e r g o n h a r d e s i m e s m a .

H9
II . U m corpo,
A
igualmente i n d o l e n t e e quase i g u a l -

m e n t e o n í v o r o , que c o n s o m e chá, café, v i n h o t i n t o , água

s a l g a d a e o x i g é n i o a t é ficar r e p l e t o . P e n s o q u e e l e fica m a i s

f e l i z q u a n d o está n a d a n d o , p o i s o m a r t e m u m tamanho

confortável.

I 2 . U m c o r a ç ã o , p e r d i d o e m a l g u m l u g a r . E esses s ã o
FI

t o d o s os p e r t e n c e s q u e p o d e m ser i n v e n t a r i a d o s n o mo-

m e n t o . A f i n a l , m e u gosto é e s t o i c a m e n t e s i m p l e s . U m c h a -

p é u de p a l h a , u m cajado, u m a caixa de fósforos e u m p o u c o

da p r ó p r i a poesia. D e que mais u m h o m e m precisa?


Cartas da Primeira Guerra Mundial

Capitão Alfred Bland

O capitão escreveu esta carta p a r a a esposa, V i o l e t , e n -

quanto prestava serviço m i l i t a r n a França, n o 2 2 A


batalhão

do R e g i m e n t o de M a n c h e s t e r . E l e f o i m o r t o e m I de j u -

l h o d e 1916, n o p r i m e i r o d i a d a O f e n s i v a d o Somme.

Para Violet

M i n h a única e eterna bênção,

E u t m e p e r g u n t o se f i c a s i r r i t a d a c o m u m m e u e t e r n o

b o m h ^ i m o r ! T u ficas, q u e r i d a ? P o r q u e , c o m o sabes, p o -

derias i c a r . Pelas regras do a m o r , e u deveria passar dias e

noites h u m a eternidade de suspiros e tristeza p o r estarmos

s e p a r a d o s c o n t r a v o n t a d e . E p o r t o d a s as r e g r a s d a g u e r r a ,

e u deveria estar passando f r i o e privações, f o m e e fadiga,

amargiira na alma e desânimo no coração.

A i Ide m i m ! O que posso d i z e r e m defesa própria?

Nem mesmo M e r r i m a n consegue m e deixar deprimido

e quanjto ao c o m a n d a n t e , l i m i t o - m e a ser i m p e r t i n e n t e

c o m ele, ao passo q u e a tediosa r o t i n a de detrás das l i n h a s

m e e n è h e de u m estoque inesgotável de e x u b e r a n t e pa-

151
c i ê n c i a . O q u e p o s s o d i z e r s o b r e i s s o ? F i c a r i a s f e l i z se e u

confessasse q u e de vez e m q u a n d o m e s i n t o a b s o l u t a m e n t e

d e s g r a ç a d o ? S e te d i s s e s s e q u e a b o m i n o a g u e r r a e d e t e s t o

c a d a m i n u t o e m q u e e l a se p r o l o n g a ? S e a d m i t i s s e q u e a n -

seio a cada h o r a pelo retorno, o retorno final para longe

d i s s o t u d o ? S e te d i s s e s s e q u e d e t e s t o m e u s c o l e g a s o f i c i a i s

e n ã o s u p o r t o m a i s a visão da C o m p a n h i a ? Se descrevesse

a s o r d i d e z i m u n d a das r u a s d a a l d e i a , a r e p e t i ç ã o e n j o a t i v a

de nuvens baixas, a garoa irritante e a chuva pesada, a m o -

n o t o n i a exaustiva das rações de c a r n e e p ã o ? F i c a r i a s feliz

ou triste?

O h , e u s e i c o m o te s e n t i r i a s s o l i d á r i a e t r i s t e , e s e i q u e

n ã o f i c a r i a s n e m u m p o u c o c o n t e n t e , n ã o é m e s m o ? E se

ficasses c o n t e n t e , estarias e r r a d a p o r q u e , m e s m o q u e fosse

verdade, n a d a disso c o n t r i b u i r i a p a r a nos r e u n i r , m e faria

a m a r - t e m a i s do que a m o , suavizaria o fato de n o m o m e n -

to estarmos privados daqueles abraços, fortaleceria n e m

u m pouco nossa divina unidade, não é m e s m o ?

N ã o , m i n h a q u e r i d a , agradece d i a r i a m e n t e aos céus

p o r e s t a r e s c e r t a e m t o d a s as c i r c u n s t â n c i a s se i m a g i n a r e s

teu garoto, aqui, simplesmente transbordando irreprimí-

vel alegria. Estou me tornando u m a piada. C u s h i o n diz:

" G o s t o de t i , B i l l B l a n d . " P o r q u ê ? P o r q u e estou s e m p r e

r i n d o de todos e de tudo, recebendo c o m o jovialidade o

que vejo e o que não vejo. E não finjo. É a p u r a verdade.

P o r t a n t o , vamos voltar àquelas admissões hipotéticas

anteriores. N u n c a estou absolutamente infeliz, n e m m e s -

m o q u a n d o m a i s desejo o contato de teus lábios e a v i -

152
são dos m e u s m e n i n o s . P o r q u ê ? P o r q u e estou n a França,

o n d e a g u e r r a acontece, e sei que é m e u dever estar a q u i .

E n ã o a b o m i n o a g u e r r a , a m o 9 5 % dela e detesto a i d e i a de

que ela t e r m i n e cedo demais. N ã o anseio a cada h o r a pelo

r e t o r n o d e f i n i t i v o , e m b o r a esteja a g r a d a v e l m e n t e excita-

do c o m a p o s s i b i l i d a d e da licença de nove dias e m m a r ç o ,

q u e até o m o m e n t o n ã o fizemos nada para merecer. Não

detesto m e u s colegas e oficiais, mas gosto deles m a i s do

que achava ser possível; quanto à m i n h a C o m p a n h i a , D e u s

a a b e n ç o e ! E a l a m a é tão amigável, de certa f o r m a , tão

maleável e c h e i a de c o n s i d e r a ç ã o — e n e m m e s m o preci-

so l i m p a r m i n h a s p r ó p r i a s botas! P e r d i o h á b i t o de ob-

s e r v a r o t e m p o p o r q u e , se c h o v e , ficamos m o l h a d o s e, se

n ã o c h o v e , n ã o n o s m o l h a m o s , e se o s o l b r i l h a , q u e b o m !

S o b r e a c o m i d a , b e m , j á te f a l e i d e l a e n ã o t e n h o n a d a a

a c r e s c e n t a r às d e c l a r a ç õ e s f e i t a s s o b r e esse a s s u n t o e m 30

de n o v e m b r o e 6 de d e z e m b r o passados, o u e m qualquer

outra ocasião.

Não, q u e r i d a , q u e r gostes, q u e r não, estou funda-

m e n t a l m e n t e f e l i z e, s u p e r f i c i a l m e n t e , c h e i o d e u m a a l e -

g r i a p u e r i l . E isso e n c e r r a o assunto.

O c o r r e i o está s a i n d o .

Boa noite, querida.

Sempre teu

ALFRED

153
Sargento-major de Regimento James Mune

J a m e s " J i m "M i l n e f o i sargento-major de u m a compa-

nhia que serviu no 4 f i


batalhão dos G o r d o n H i g h l a n -

d e r s . N a c a r t a a s e g u i r , e l e se d e s p e d e d a e s p o s a M e g n a

eventualidade de m o r r e r e m combate.

M i l n e s o b r e v i v e u à g u e r r a e v o l t o u p a r a casa n a E s c ó c i a .

Para a esposa, "Meg", em julho deigi?

M i n h a a m a d a esposa,

N ã o s e i c o m o i n i c i a r esta c a r t a . A s c i r c u n s t â n c i a s são d i -

ferentes de quaisquer outras e m que já escrevi antes. N ã o

devo enviá-la, mas deixá-la no bolso. Se m e acontecer

q u a l q u e r c o i s a , talvez a l g u é m a e n v i e . E s t a m a n h ã , v a m o s

c r u z a r o t o p o e só D e u s sabe q u e m sobreviverá. V o u p a r a lá

a g o r a , m i n h a a d o r a d a , certo de que estou nas m ã o s d ' E l e e

que, aconteça o que acontecer, estou c o m E l e neste m u n -

do e no m u n d o por vir.

S e f o r c h a m a d o , m i n h a tristeza é d e i x a r p a r a trás a t i e

a m e u s bairns*, mas deixo-os todos entregues à S u a grande

misericórdia e bondade, sabendo que E l e olhará p o r to-

dos e p o r t i . C o n f i o que E l e m e permitirá sobreviver, mas

se E l e d e t e r m i n a r o c o n t r á r i o , e m b o r a n ã o conheçamos

S e u s m o t i v o s , s a b e m o s q u e d e v e m ser os m e l h o r e s . S e f o r

c h a m a d o p o r E l e , t e u a m a d o rosto será m i n h a ú l t i m a visão

* C r i a n ç a , e m gaélico escocês. [N. daT.]


n a t ei r r aa e t e u n o m e e s t a r á e m m e u s l á b i o s , ó m e l h o r d a s

m u l h e r e s . Cuidarás dos meus queridos b a i r n s para m i m e

c o n t a J á s a eles c o m o o p a i deles m o r r e u .

O h ! A m o tanto a todos vocês! Sentado a q u i à espe-

ra, m e p e r g u n t o o que estarão fazendo e m casa. M a s n ã o

posso fazer isso. Já é bastante difícil ficar sentado à espera.

P o d e m o s a v a n ç a r a q u a l q u e r m i n u t o . Q u a n d o esta c a r t a

chegar a tuas m ã o s , n ã o haverá m a i s g u e r r a p a r a m i m — só

a paz e t e r n a e a espera p o r t i .

Precisas ser corajosa, m i n h a q u e r i d a , p o r m i m , pois

d e i x o - t e m e u s b a i r n s . E u m legado de luta p a r a t i , mas

D e u s cuidará de t i e n o s e n c o n t r a r e m o s n o v a m e n t e q u a n -

do n ã o h o u v e r mais separação. N ã o posso mais escrever,

minha a m a d a . S e i q u e l e r á s m i n h a s c a r t a s a n t i g a s e as

guardarás p o r m i n h a causa, e que m e amarás o u amarás

m i n h a m e m ó r i a até q u e n o s e n c o n t r e m o s n o v a m e n t e .

Possa D e u s e m sua misericórdia c u i d a r de ti e a b e n -

çoar-tei até o d i a e m q u e t o r n e m o s a n o s e n c o n t r a r , n a

h o r a d e t e r m i n a d a p o r E l e . Possa E l e , c o m a m e s m a m i s e -

ricórdia, p o u p a r - m e hoje.

Até logo, Meg,

A m o r eterno do

T e u para sempre,

JiM

qfr qfr

155
Segundo-tenente John Lindsay Rapoport

J o h n Rapoport ficou noivo n a p r i m a v e r a de 1918, aos

2 4 anos. A carta a seguir é para a noiva. N o início de

j u n h o , ele f o i declarado desaparecido d u r a n t e a terceira

Batalha do Aisne. Seu corpo nunca foi encontrado.

6 de maio dei 918

O c o r r e i o a c a b o u d e c h e g a r e r e c e b i 14 c a r t a s ! C i n c o d e l a s

e r a m tuas, m i n h a querida. Portanto, podes i m a g i n a r c o m o

m e sinto. Esta noite recebi a primeira, aquela que mandaste

do H a v r e . Eles f o r a m m u i t o relaxados n o envio.

Q u e r i d a , foste s i m p l e s m e n t e m a r a v i l h o s a q u a n d o nos

despedimos e m Waterloo. C o m tua atitude, representaste

a m u l h e r i n g l e s a : t u d o p a r a n ó s , os h o m e n s , e n q u a n t o v ó s

g u a r d a i s p a r a v ó s m e s m a s as h o r a s s o m b r i a s , p a r a n ã o n o s

deixarem deprimidos...

Significas tanto para m i m , não imaginas quanto. A

vida sem ti seria absolutamente vazia. E u m e pergunto

c o m o conseguia viver antes. N a verdade, estou cheio de

a m o r e d u r a n t e os ú l t i m o s d o i s o u três a n o s esperava d e s -

pejá-lo sobre alguém, e sempre vivi n a esperança de p o d e r

fazê-lo — era o que m e sustentava. A g o r a tenho alguém a

q u e m posso dedicar e dedico todo o m e u a m o r .

M i n h a q u e r i d a , e u te a m o e a d o r o d o f u n d o d o c o r a -

ç ã o . E s p e r a até q u e e u chegue e m casa, e e n t ã o g a n h a r á s

m u i t o s b e i j o s e e u te a b r a ç a r e i c o m f o r ç a . S a b e s c o m o , n ã o

sabes, m e u a m o r ?

156
F i c o feliz p o r s e r m o s tão p a r e c i d o s e m matéria de

amigos. C e r t a m e n t e q u e r o que c o n t i n u e s a ver teus a m i -

g o s h o m e n s c o m o se e u n ã o e x i s t i s s e . D e u m a c o i s a e s t o u

tão seguro c o m o da m i n h a p r ó p r i a existência: t e n h o todo

o t e u c o r a ç ã o e t o d o o t e u a m o r . P o r t a n t o , s ó q u e r o q u e te

d i v i r t a s — e u te a m o t a n t o ! T e n h a ó t i m o s m o m e n t o s com

teus a m i g o s , n o r i o , n o s e s p e t á c u l o s e t c , está b e m ?

Pedi a W W p a r a c o n t i n u a r a m e escrever, e m b o r a eu

t e n h a f i c a d o n o i v o — só c o m o a m i g o s . L a m e n t o pelos teus.

A s s e g u r a a eles q u e vocês p o d e m ser c o m p a n h e i r o s como

antes. S e i que não é a m e s m a coisa, mas eu gostaria disso,

p o r q u e sei c o m o podes ajudar q u a l q u e r h o m e m . Agradeça

a teus a m i g o s p e l o s b o n s v o t o s , está b e m ?

O h , quanto mais penso nisso, mais me d o u conta da

sorte que tenho p o r ter você c o m o m i n h a q u e r i d a futura

esposa. D e u s n ã o foi b o m p a r a m i m ? M u i t o m a i s do que

eu mereço.

157
Bibliografia

As fontes a seguir foram de valor inestimável:

G r a n t , A l l a n . Love in Letters Illustrated in the Correspondence ofEminent


Persons with Bioqraphical Sketches of the Writers. N o v a Y o r k : G . W .
C a r l e t o n & C o . , 1867
M e r y d e w , J . T . ( o r g . ) . Love Letters ofFamous Men and Women. L o n -
d r e s : R e m i n g t o n & C o . , 1888
d u B o i s , H e n r i P e n e ( o r g . ) . Love Affairs of Famous Men & Women.
L o n d r e s : Gibbings & C o m p a n y , 1900
The Letters of Robert Browning and Elizabeth Barrett Browning. L o n d r e s :
S m i t h , Élder & C o . , 1900
B u n t i n g , F r e e m a n ( o r g . ) . Love Letters of Famous People. L o n d r e s :
G a y a n d B i r d , 1907
H u m p h r e y s , A r t h u r L . Letters of Love. L o n d r e s , 1911
C h a r l e s , C . H . ( o r g . ) . Love Letters of Great Men and Women. L o n d r e s :
S t a n l e y P a u l & C o , 1924
0 ' R o u r k e , D o n n y ( o r g . ) . The Love Letters of Robert Burns and Clarinda,
b a s e a d o n a e d i ç ã o de 1843, e d i t a d a p o r W . C . M X e h o s e
P a i n e , A l b e r t B i g l l o w ( o r g . e c o m e n t á r i o s ) . Mark Twain s Letters,
editadas e comentadas p o r A l b e r t Bigelow P a i n e . N o v a Y o r k :
H a r p e r & B r o t h e r s P u b l i s h e r s , 1917
F r a s e r , A n t ó n i a ( o r g . ) . Love Letters. L o n d r e s : W e i d e n f e l d &
N i c o l s o n , 1976
W a s h i n g t o n , Peter ( o r g . ) . Love Letters. E v e r y m a n s L i b r a r y , 1996
A m b r o s e , J a m i e ( o r g . ) . Dispatchesfrom the Heart: Love Lettersfrom
theFrontLine. Londres: Little Books L t d , 2005
i4gr.a decimentos

A g r a d e ç o a J G pela i d e i a , a J B p o r e n c o m e n d a r sua execução, a


R M p o r a u t o r i z á - l a , a F C , K T , W D e I A p o r t o r n á - l a tão b o n i t a
e a t o d o s os m e u s a m i g o s n a P a n M a c m i l l a n , M e u s a g r a d e c i -
mentos à equipe da B r i t i s h L i b r a r y . O b r i g a d a a m i n h a família.
A g r a d e ç o de c o r a ç ã o a D P .

159
Este livro foi composto na tipologia Mrs.Eaves,
em corpo 12,5 e 11,5, e impresso em papel off-white 8og/m ,
2

no Sistema Cameron da Divisão Gráfica da Distribuidora Record.


CONHEÇA ALGUNS DO Plínio, o Jovem
AUTORES DAS CARTA Henrique VIII
QUE FAZEM PART
DESSA ANTOLOGI/ Mark Twain
Oscar Wilde
Ludwig van Beethoven
Napoleão Bonaparte
Lord Byron
Nathaniel Hawthorne
Alexander Pope
Wolfgang Amadeus Mozart
Lorde Nelson
Robert Burns
John Keats
Honoré de Balzac
Victor Hugo
Robert Browning
Gustave Flaubert
Charles Darwin
Pierre Curie
DE LUDWIG VAN "A ti - minha vida - meu tudo - adeus.
BEETHOVEN
Oh! Não deixes de me amar - jamais duvides
PARA
AMADA IMORTAL" do coração mais fiel.
Do teu amado,
L.
Para sempre teu,
Para sempre minha,
Para sempre nosso."

DE "Quanto mais conheci, mais amei. De todas as


JOHN KEATS
maneiras até meus ciúmes foram agonias de
PARA
FANNY BRAWNE amor; no mais violento acesso que sofri, teria
morrido de amor por ti. Já te atormentei
demais, mas por amor! Posso evitá-lo? Sempre
te renovas. O último dos teus beijos sempre foi
o mais doce, o último sorriso o mais luminoso,
o último gesto, o mais gracioso. Ontem,
quando passaste diante da minha janela, fiquei
tão cheio de admiração como se te visse pela
primeira vez."

ISBN 978-85-7684-388-7

S-ar putea să vă placă și