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Caminhando

Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista


Universidade Metodista de São Paulo
v. 16, n. 2 – p.1-224, jul./dez. 2011

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Caminhando
v. 16, n. 2 – p.1-224, jul./dez. 2011

Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista


Universidade Metodista de São Paulo

EDITEO
São Bernardo do Campo, 2011

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Caminhando
Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista
Universidade Metodista de São Paulo
v. 16, n. 2 – p.1-224, jul./dez. 2011

Catalogação preparada pela bibliotecária


Aparecida Cornelli Tavares (CRB 8-3781) – Biblioteca Dr. Jalmar Bowden

Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista,


v. 16, n. 2, 2º semestre de 2011. São Bernardo do Campo,
SP: Editeo / Umesp, 1982.
Semestral
Publicação da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista
– Universidade Metodista de São Paulo
ISSN 1519-7018
1. Teologia – Miscelânea 2. Teologia – Periódicos
CDD 230.02

Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – FaTeo


Diretor: Paulo Roberto Garcia
Conselho Diretor Claudia Maria da Silva Nascimento
Edson Cortásio Sardinha
Lia Euniace Hack da Rosa
Paulo Dias Nogueira (presidente)
Paulo Tarso de Oliveira Lockmann (bispo assistente)
Rute Kato
Wesley Gonçalves dos Santos
Comissão Editorial Blanches de Paula
Helmut Renders (coordenador da Editeo)
José Carlos de Souza (presidente da comissão)
Magali do Nascimento Cunha
Tércio Machado Siqueira

Conselho Consultivo Internacional Dr. Joerg Rieger (Perkings School of Theology,
Southern Methodist University, Dallas, TX, EUA)
Dr. Luís Wesley de Souza (Chandler School of
Theology Emory University, Atlanta, EUA)
Dr. Michael Nausner (Seminário Teológico da Igreja
Metodista Unida na Alemanha, Reutlingen, RFA)
Dr. Nestor Miguez (ISEDET, Buenos Aires, ARG)
Dr. Ted Jennings (Chicago School of Theology, EUA)
Dr. Tércio Bretanha Junker (Christian Theological
Seminary, Indianapolis, EUA)

Editor Helmut Renders
Revisão Hideíde Britto Torres
Tradução Glenn Ivan Ynguil Fernandez
Assistente editorial Fagner Pereira dos Santos
Editoração eletrônica Maria Zélia Firmino de Sá
Capa Cristiano Freitas

Editeo
Editora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista
Rua do Sacramento, 230 – Rudge Ramos – 09640-000
São Bernardo do Campo, SP – Telefone: (11) 4366-5958
Editora: editeo@metodista.br
Editor da revista: helmut.renders@metodista.br
Revista on-line: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA

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Sumário

Editorial
Helmut Renders 9

Dossiê / DOSSIER / DOSIER

Apresentação do Dossiê 15
Presentation of the Dossier 17
Presentación del Dosier 19
Suely Xavier dos Santos, Margarida Fátima Souza Ribeiro

Uma leitura sócio-antropológica do sacrifício (estudo de caso


Levítico 6,17-23) 21
A socio-anthropological reading of sacrifice: case study based
on Leviticus 6.17-23
Una lectura socio-antropológica del sacrificio: estudio de caso sobre Levítico 6.17-23
Suely Xavier dos Santos

Trajetória das mulheres metodistas: memória, presença e desafios 31


Trajectory of Methodist Women: memory, presence and challenges
Trayectoria de las Mujeres Metodistas: memoria, presencia y desafiós
Margarida Fátima Souza Ribeiro

O carisma social das primeiras pastoras metodistas do Brasil 41
The social charisma of the first Methodist women pastors in Brazil
El carisma social de las primeiras pastoras metodistas en Brasil
Elena Alves Silva

História de vida como possibilidade metodológica para Educação Cristã 53


Life History as a possible methodology for Christian Education
História de Vida como possibilidade metodológica para Educação Cristã
Vera Luci Machado Prates da Silva

Inclusão de pessoas com deficiência, a responsabilidade social das igrejas 65
La inclusión de personas con discapacidad: la responsabilidad social
de las iglesias
Inclusion of people with disabilities: the social responsibility of the churches
Elizabete Cristina Costa-Renders

Cuidados paliativos numa perspectiva brasileira: aspectos introdutórios 77


e a contribuição das mulheres
Palliative care in a Brazilian perspective: introductory aspects and contribution of woman
Los cuidados paliativos en el punto de vista brasileño: aspectos introductorios
y la contribución de las mujeres
Blanches de Paula

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“Ser mais”: um princípio educativo 89
To be more: an educational principle
Ser más: un principio educativo”
Renilda Martins Garcia

O telejornalismo global e suas relações discursivas a partir de Foucault 97
Global tv-jornalism and its discursive relations in the perspective of Foucault
El periodismo de la televisión mundial y sus relaciones discursivas
según Foucault
Hideide Brito Torres

Artigos / Articles / Artículos

Silêncio - crítica - aprendizado: uma análise teológica introdutória


ao tema do mal 107
Silence-critique-learning: a theological introductory analyses of the theme of evil
Silencio-crítica-aprendizaje: un análisis teológico introductorio al tema del mal
Claudio de Oliveira Ribeiro

Edith Stein: concepções de ser finito e ser eterno, significados


e manifestações 127
Edith Stein: Design of Be finite and Be Eternal, expressions and meanings
Edith Stein: Diseño de Ser finito y Ser Eterno, significados y los expresiones
Jéferson Luis de Azeredo

Os dois caminhos: uma investigação dos fundamentos das atitudes


do metodismo conservador na crise da década de sessenta 143
The two paths: an investigation of the foundations of the attitudes of the conservative
Brazilian Methodism in the crisis of the sixties
Los dos caminos: una investigación de los fundamentos de las actitudes conservadoras
brasileñas del Metodismo en la crisis de los años sesenta
Daniel Augusto Schmidt

Centros de treinamento:entre o adestramento religioso e a educação cristã 161


Training Centers: between religious formation and Christian education
Centros del formación: entre la formación religiosa e la educación Cristiana
Edemir Antunes Filho

Educação para os novos tempos 169
Education for the new times
Educacíon antes de los nuevos tiempos
Elias Boaventura

Resenhas / Book reviews / Reseñas

O Messias-Profeta e os pobres: desafios do evangelho de Lucas 185


The Prophet-Messiah and the poor: challenges of the Gospel of Luke
El Profeta-Mesías y los pobres: desafíos del Evangelio de Lucas
Paulo Roberto Garcia

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O futuro da criação 189
The future of creation
El futuro de la creación
Leonardo Boff

Um olhar sobre a exclusão da população de rua 193


A look at the exclusion of the homeless
Una mirada a la exclusión de las personas sin hogar
Helmut Renders

Documentos e Declarações / Documents and Statements /


Documentos y Declaraciones

Uma “mulher metodista pregadora” em 1775: capaz de mobilizar


uma cidade inteira, mas – esquecida 199
A “woman Methodist preacher” in 1775: capable of mobilizing an entire city,
but – forgotten
Una “predicadora metodista” en 1775: capaz de movilizar a toda una ciudad,
pero – olvidada
Helmut Renders

Registros / records / registros

Relação de autores e autoras 207


Notes on the contributors
Relación de autores y autoras

Pareceristas em 2011 210


Reviewers in 2011
Revisores y revisoras em 2011

Normas para colaboração 211


Guides for contributors 213
Normas para colaboradores y colaboradoras 215

Relação de permutas 217


Journals exchange
Intercambio de revistas

Bibliotecas parceiras 223


Partner libraries
Bibliotecas afiliadas

Diretórios e indexações 224
Directories and indexation
Directorios y indización

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Editorial

A segunda edição do ano 2011 da revista Caminhando evidencia,


em primeiro lugar, a contribuição da mulher metodista na sociedade, na
universidade e nas igrejas. Agradecemos às doutoras Suely Xavier dos
Santos e Margarida Fátima Souza Ribeiro pela organização do Dossiê que
comemora 40 anos do ministério pastoral feminino na Igreja Metodista.
A seção Artigos abriga as temáticas livres. Ela é aberta pelo Dr.
Cláudio de Oliveira Ribeiro e sua introdução ao tema do mal na teologia.
O texto encontrará, certamente, muitas pessoas interessadas, tanto na
academia como nas igrejas. Em seguida, Jeferson Azeredo familiariza os
leitores e leitoras com o pensamento de Edith Stein, filósofa cristã com
raízes judaicas. Depois, o doutorando Daniel Augusto Schmidt apresenta
parte da sua pesquisa de mestrado sobre a atuação de partes das lideran-
ças da Igreja Metodista durante a ditadura. O texto de Dr. Edemir Antunes
Filho foi preparado pelo Dossiê da edição do primeiro semestre 2011 e
deve ser lido junto a estes textos. Terminamos com uma contribuição de
Dr. Elias Boaventura, na área da educação.
As resenhas apresentam obras novas da exegese do Novo Testamen-
to (Dr. Paulo Lockmann), da Teologia Sistemática (Dr. Jürgen Moltmann e
Dr. Levy Bastos) e do trabalho pastoral prático (Alcides Barros).
Na seção Documentos e declarações, o registro do impacto de uma
pregadora metodista em 1775 mostra que já há 237 anos pregadoras
metodistas fizeram história e muita diferença.
Atenciosamente,

Helmut Renders
Pela equipe de Editoração

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 9-11, jul./dez. 2011 9

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Editorial

The second edition in 2011 of the journal Caminhando shows, first,


the contribution of Brazilian Methodist women in society, university and
church. We are grateful to Dr. Xavier Suely dos Santos and Dr. Margarida
Fátima Souza Ribeiro for the organization of the Dossier celebrating 40
years of the pastoral ministry of Women in the Methodist Church in Brazil.
The section Articles houses different contribution. It is opened by Dr.
Claudio de Oliveira Ribeiro and his introduction to the evil in theology. The
text will certainly find the interest of many people, both in academic circles
and in the churches. Next, Jefferson Azeredo familiarizes our readers with
the thought of Edith Stein, Christian philosopher with Jewish roots. After
this, the doctoral student Daniel Augusto Schmidt presents part of his
research to obtain a Master Degree dedicated to the attitude of some of
the leaders of the Methodist Church in Brazil during the dictatorship (1964-
1988). The text of Dr. Antunes Filho Edemir originally has been prepared
for the Dossier of the first edition 2011 of our journal and should be read
together with these texts. The section is closed by a contribution of Dr.
Elias Bonaventura focusing on education.
The reviews discuss new works from the fields of New Testament
exegesis (Dr. Paul Lockmann), Systematic Theology (Dr. Levy Bastos and
Dr. Jürgen Moltmann) and pastoral theology (Alcides Barros).
In the section Documents and statements the record of the impact of
a Methodist woman preacher in 1775 shows that already since 237 years
Methodist woman preachers made ​​history and a lot of difference.
Sincerely,

Helmut Renders
For the Editorial Tam

10 Editorial

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Editorial

La segunda edición del año 2011 de la revista Caminhando demues-


tra, en primer lugar, la contribución de la mujer metodista en la sociedad,
en la universidad, en las iglesias y entre las iglesias. Agradecemos a las
doctoras Suely Xavier dos Santos y Margarida Fátima Souza Ribeiro por la
organización del Dossier que conmemora 40 anos del ministerio pastoral
femenino en la Iglesia Metodista.
La sección Artículos recoge las temáticas libres. La abre el Dr. Clau-
dio de Oliveira Ribeiro y su introducción al tema del mal en la teología.
Con toda seguridad, el texto encontrará muchos/as interesados/as tanto en
la academia como en las iglesias. En seguida, Jeferson Azeredo familiariza
los lectores y lectoras con el pensamiento de Edith Stein, filósofa cristiana
con raíces judaicas. Después, el doctorando Daniel Augusto Schmidt pre-
senta parte de su investigación de maestría sobre la actuación de parte
de los líderes de la Iglesia Metodista durante la dictadura. El texto del
Dr. Edemir Antunes Filho foi preparado por el Dossier de la edición del
primer semestre 2011 y debe ser leído junto con esos textos. Terminamos
con una contribución del Dr. Elias Boaventura del área de educación.
Las reseñas presentan obras nuevas de la exégesis del Antiguo
Testamento (Dr. Paulo Lockmann), de la Teología Sistemática (Dr. Jür-
gen Moltmann y Dr. Levy Bastos) y del trabajo pastoral práctico (Alcides
Barros).
El registro del impacto de una predicadora metodista en 1775 en
la sección Documentos y declaraciones muestra que ya 237 años atrás,
predicadoras metodistas hicieron historia y mucha diferencia.
Atentamente,

Helmut Renders
Por el equipo de Editoración

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 9-11, jul./dez. 2011 11

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DOSSIÊ

DOSSIER

DOSIER

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Apresentação do Dossiê

No ano de 2011, a Igreja Metodista brasileira celebra os 40 anos


de aprovação do ingresso de mulheres na ordem presbiteral. Dentre os
vários frutos advindos desta abertura, temos na Faculdade de Teologia
o Centro Otília Chaves, um espaço para capacitação, partilha e reflexão
sobre o tema gênero-igreja-sociedade. No contexto das celebrações
dos 40 anos, o Centro foi desafiado a participar também, organizando
um Dossiê de reflexões de mulheres metodistas. A Revista Caminhando
apresenta nesta edição o resultado deste trabalho, contendo artigos de
Pastoras e Teólogas da Igreja Metodista, que atuam em diversas áreas
na igreja e na sociedade. A proposta é partilhar um pouco sobre o que
essas mulheres estão produzindo em seu campo de atuação.
Nesta Revista, você encontra, principalmente, reflexões a partir das
três grandes áreas do saber teológico: Bíblia, Teologia/História e Pastoral.
Sobre o tema Bíblia, Suely Xavier dos Santos, pastora professora e biblis-
ta, apresenta uma leitura socioantropológica do sacrifício a partir do texto
de Levítico 6.17-23, em diálogo com Marcel Mauss, Henri Hubert e René
Girard, a fim de compreender um pouco mais a respeito das sociedades
que convivem com o sacrifício.
Na área de Teologia/História, Margarida Ribeiro, pastora, professora e
historiadora, destaca a trajetória de mulheres metodistas desde a Inglaterra
até o Brasil, e como estas mulheres fizeram diferença em seu tempo. E
Elena Silva, pastora e educadora, destaca o papel das primeiras pastoras
metodistas, sobretudo, pastoras que exerceram seu ministério a partir
do carisma social. Também a pastora e educadora Vera Silva, apresenta
a vida no cotidiano como possibilidade de educação cristã, dialogando
principalmente com o texto de Lucas 24.13-35, que narra uma cena do
cotidiano e a postura educadora de Jesus.
Na perspectiva da Pastoral, temos diversos temas sendo abordados.
Elizabete Costa-Renders, teóloga e educadora, apresenta o tema da
inclusão e demonstra a importância de a igreja dialogar e ter ações efe-
tivas de inclusão a fim de construir condições de acesso e permanência
para todas as pessoas nos diversos espaços sociais. Blanches de Pau-
la, pastora, professora e psicóloga, aborda a importância dos cuidados
paliativos, uma área da saúde focada nas pessoas que estão passando
por doenças terminais e encaram o processo de morrer. Renilda Garcia,

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 15-16, jul./dez. 2011 15

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pastora e educadora, dialoga com Paulo Freire acerca do conceito de
“ser mais” e sua aplicabilidade na educação cristã. E Hideide Brito Torres,
pastora, escritora e jornalista, oferece um estudo sobre as reportagens do
Jornal Nacional com o tema “Os evangélicos”, que foram ao ar em maio
de 2009, buscando compreender as relações discursivas entre telejorna-
lismo, religião e ciência, especialmente em diálogo com Michel Foucault.
Com satisfação, entregamos este Dossiê às leitoras e aos leitores
para que seja instrumento de estudo e, ao mesmo tempo, partilha nos
espaços cotidianos tanto nas comunidades de fé como na academia.
Boa leitura!

Centro Otília Chaves


Suely Xavier dos Santos
Margarida Ribeiro
Editoras da sessão Dossiê

16 Apresentação do Dossiê

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Presentation of the Dossier

In2011, the Brazilian Methodist Church celebrates 40 years of the


approval of the admission of women as elders of or pastor in the Church.
Among the many fruits resulting from this opening, exists today at the
Theology Seminary of the Methodist Church the Otilia-Chaves-Center,
a space for training, sharing and reflection on issues concerning gender
church and society. Within this context of the celebrations of these 40
years, the Otilia-Chaves-Center was also challenged to contribute by
organizing a Dossier uniting articles written by Methodist women. The
theological journal Caminhando presents in this edition the results of this
initiative, containing articles of pastors and theologians of the Methodist
Church, working in various areas within church and society. The proposal
is to share what these women are producing in their field of knowledge.
In this journal, you find mainly reflections focusing on the three major
areas of theological knowledge: biblical, systematic and pastoral theology.
On the subject of the Bible, Suely dos Santos Xavier, elder of the Methodist
Church and professor for the Old Testament, presents in dialogue with
Marcel Mauss, Henri Hubert and Rene Girard,an anthropological reading
of sacrifice interpreting Leviticus 6:17-23, in order to understand a little
more about societies where sacrifice is a central part of its religion.
In the area of Theology
​​ / History, Margarida Ribeiro, elder of the Me-
thodist Church and historian, points out the trajectory of Methodist women
from England to Brazil, and how these women made a difference in their
time. After this, Elena Silva, elder of the Methodist Church and educator,
emphasizes the role of the first Methodist woman preachers, especially
those who exercised their ministries based on what she calls their “social
charisma”. In a similar direction, Vera Silva elder of the Methodist Church
and educator presents the possibility of Christian education in everyday
life, especially in dialogue with Luke 24:13-35, a narrative of a daily life
situation showing the pedagogical attitude of Jesus .
In a pastoral perspective, several issues are addressed. Elizabete
Cristina Costa Renders, theologian and educator, introduces into the uni-
verse of inclusion and demonstrates how important it is that the church
dialogues and develops effective initiatives of inclusion so that its mission
will be directed to all people. Blanches de Paula, elder of the Methodist

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 17-18, jul./dez. 2011 17

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Church, professor of pastoral theology and psychologist, discusses the
importance of palliative care, a health care able to attend people with a
terminal illness and who are facing the process of dying. Renilda Garcia,
elder of the Methodist Church and educator, dialogs with Paulo Freire and
discusses the applicability of his concept of “To be more” in Christian
education. Finally, Hideide Brito Torres, Methodist elder, writer and jour-
nalist, offers a study about a series of programs concerning “Protestants”
which have been broadcasted by the Journal Nacional, the major news
program, at May 2009. The author seeks to understand the discursive re-
lations between TV journalism, religion and science, based on a dialogue
with Michel Foucault.
We deliver this Dossier with satisfaction to our readers and hope that
it will serve as an instrument of study, and at the same time, as a space
to sharing everyday’s live both in communities of faith and at university.
We wish a pleasant reading.

Center Otília Chaves


Suely Xavier dos Santos
Margarida Ribeiro
Editors of the Dossier

18 Apresentação do Dossiê

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Presentación del Dosier

En 2011, la Iglesia Metodista del Brasil celebra 40 años de la aproba-


ción de la admisión de mujeres a la Orden de Presbíteros/as de la Iglesia.
Entre los múltiples frutos como resultado de esta apertura, tenemos en el
Centro Otilia Chaves en la Facultad de Teología, un espacio de formación,
intercambio y reflexión sobre el tema género, iglesia y sociedad. También
en el marco de las celebraciones de los 40 años, el Centro fue movido
a participar de la composición de un Dossier de reflexiones de mujeres
metodistas. La revista Caminhando presenta, en esta edición, el resultado
de este trabajo, que contiene artículos de los pastoras y los teólogas de
la Iglesia Metodista, que trabajan en diferentes áreas de la iglesia y la
sociedad. La propuesta es compartir un poco sobre lo que estas mujeres
están haciendo en su campo.
En esta revista, usted encuentra, principalmente, las reflexiones
de las tres grandes áreas del conocimiento teológico: Biblia, Teología e
Historia, y Pastoral.
En cuanto al tema Biblia, Suely Xavier dos Santos, pastora, profesora
y biblista, presenta una lectura socio-antropológica del sacrificio a partir
del texto de Levítico 6.17-23, en diálogo con Marcel Mauss, Hubert Henri
y René Girard, con el fin de entender un poco más sobre las sociedades
que conviven con el sacrificio.
En el área de Teología e Historia, Margarida Ribeiro, pastora, profeso-
ra e historiadora, subraya la trayectoria de las mujeres metodistas desde
Inglaterra hasta el Brasil, y cómo estas mujeres marcaron la diferencia
en su tiempo. También Elena Silva, pastora y educadora, hace hincapié
en el papel de las primeras pastoras metodistas, sobretodo, pastoras que
ejercieron su ministerio a partir del carisma social. Asimismo, la pastora y
educadora Vera Silva, presenta la vida cotidiana como posibilidad de edu-
cación cristiana, en diálogo, principalmente, con el texto de Lucas 24.13-
35, que narra una escena cotidiana y la postura educadora de Jesús.
Dentro de la perspectiva de la Pastoral, se tratan varios temas. Eliza-
bete Costa Renders, teóloga y educadora, presenta el tema de la inclusión
y demuestra la importancia de que la Iglesia dialogue y tenga acciones
efectivas para la inclusión con el fin de crear condiciones de acceso y
permanencia de todas las personas en los diferentes espacios sociales.
Blanches de Paula, pastora, profesora y sicóloga, habla de la importancia

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 19-20, jul./dez. 2011 19

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de los cuidados paliativos, un área de la salud centrada en las personas
aquejadas de enfermedades terminales que enfrentan el proceso de morir.
Renilda García, pastora y educadora, dialoga con Paulo Freire acerca
del concepto de “ser más” y su aplicabilidad en la educación cristiana.
También Hideide Brito Torres, pastora, escritora y periodista, ofrece un
estudio sobre los reportajes del telenoticiero Jornal Nacional sobre el tema
“Los evangélicos”, que se emitió en mayo de 2009, tratando de entender
las relaciones discursivas entre periodismo televisivo, religión y ciencia,
especialmente en diálogo con Michel Foucault.
Con satisfacción, entregamos a los lectores y lectoras, este Dossier
para que sea un instrumento de estudio y, al mismo tiempo, de intercam-
bio de ideas en los espacios cotidianos, tanto en las comunidades de fe
como en la academia. ¡Feliz lectura!

Centro Otília Chaves


Suely Xavier dos Santos
Margarida Ribeiro
Editoras del Dosier

20 Apresentação do Dossiê

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Uma leitura sócio-antropológica
do sacrifício: estudo de caso
Levítico 6.17-23
A socio-anthropological reading of sacrifice:
case study based on Leviticus 6.17-23
Una lectura socio-antropológica del sacrificio:
estudio de caso sobre Levítico 6.17-23
Suely Xavier dos Santos

Resumo
A proposta deste artigo é estudar o texto de Levítico 6.17-231, à luz dos conceitos
de Marcel Mauss, Henri Hubert e René Girard, que ajudam a compreender uma
sociedade que convive com o sacrifício.
Palavras-chave: Sacrifício; sacrificante; Levítico; pecado; oferta.

Abstract
The purpose of this paper is to study the text of Leviticus 6.17-23 in light of the
concepts of Marcel Mauss, Henri Hubert and Rene Girard, which help to unders-
tand a society that coexists with the sacrifice.
Keywords: Sacrifice; sacrificial; Leviticus; sin; offer.

Resumen
El propósito de este artículo es estudiar el texto de Levítico 6.17-23 a la luz
de los conceptos de Marcel Mauss, Hubert Henri y René Girard, que ayudan a
entender una sociedad que convive con el sacrificio.
Palabras clave: Sacrificio; sacrificante; Levítico, pecado; ofrenda.

Introdução
A palavra sacrifício significa cumprir um ato ou ofício sagrado. Sen-
do assim, o sacrifício é um mecanismo social produtor de sagrado. Uma
pessoa ou animal é culpabilizado pelas mazelas do grupo e, igualmente,
será o doador da salvação depois de oferecido em sacrifício, havendo
uma relação estreita entre sacrifício, sacrificado e sacrificador.
Na pesquisa bíblica, a leitura socioantropológica tem grande importân-
cia, pois apresenta a sociedade como um organismo social e as relações
que as regem como movimentos orgânicos, demonstrando, assim, que
cada aspecto da vida social é parte de um conjunto integrado. E no caso
da sociedade israelita não é diferente.

1
Na Bíblia editada pela SBB, este texto se encontra em 6.24-30.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 21-30, jul./dez. 2011 21

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Deste modo, será analisada inicialmente a estrutura da teoria sacrifi-
cial de Mauss, Hubert e Girard para, a seguir, desenvolver tais conceitos
e verificar sua aplicabilidade para a melhor compreensão da teologia bí-
blica, especificamente, no texto de Levítico 6.17-23, que regula a prática
sacrificial pelos pecados do povo.

Teoria sacrificial em Mauss e Hubert


Para Mauss e Hubert, “o sacrifício2 é um ato religioso que, mediante
a consagração de uma vítima, modifica o estado da pessoa moral que
o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa” (MAUSS e
HUBERT, 2005, p. 19). Esta modificação sacraliza o ato violento que se
autojustifica pela purificação que executa.
Os autores apontam a “natureza e função social do sacrifício” (MAUSS
e HUBERT, 2005, p. 21) a saber, que há nele uma força motriz que pro-
voca a remissão de pecados e comunhão, além de ter uma finalidade na
sociedade na qual ele se realiza. Alguns traços do sacrifício que, de alguma
maneira, é possível observar em diversas culturas, são apontados pelos
autores. Segundo eles, há que se destacar a presença de um esquema
para a realização do sacrifício que ocorre com poucas variações, em muitos
povos. Este esquema3 se expressa da seguinte maneira:
a. Entrada: antes do sacrifício, o sacrificante, o sacrificador e os
instrumentos próprios para sacrificar são profanos. Por isso, há que se
introduzir estes elementos na esfera sagrada para que realize o rito sa-
crificial.
b. Sacrificante: há uma pretensa identificação entre sacrificante
e deus; por isso, deve haver uma série de ritos e cerimônias para que
o sacrificante atinja o status divino e assim possa sacrificar, porque “ a
aproximação da divindade é perigosa para quem não é puro” (MAUSS e
HUBERT, 2005, p. 28). Se o sacrificante não passar por um processo de
purificação, ele pode até morrer no momento da cerimônia.
c. O sacrificador: neste caso, há uma pessoa destinada a realizar
o sacrifício, que comumente é chamado de sacerdote 4, ou seja, este tem
a possibilidade, por estar mais próximo dos deuses, de sacrificar sem ser
consumido junto com o sacrifício. O sacerdote, neste caso, torna-se o elo

2
Mauss e Hubert distinguem sacrifícios pessoais, em que o sacrificante é afetado pelo
sacrifício, e sacrifícios objetivos – estes são os objetos que recebem ação sacrificial.
(MAUSS e HUBERT, 2005, p. 19).
3
Posteriormente, este esquema será aplicado ao rito sacrificial dos israelitas, conforme
Levítico 6.17-23, e, deste modo, será possível a observação e análise do mesmo em
determinada cultura.
4
Entre os hebreus, o sacerdote, como representante de Deus, deveria seguir uma série
de rituais para estabelecer um “contato” entre Deus-povo. No livro de Levítico, especial-
mente, encontramos as normas para que esses rituais aconteçam.

22 Suely Xavier dos Santos: Uma leitura sócio-antropológica do sacrifício

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entre o mundo sagrado e o profano, fazendo com que ambos participem
de um mesmo status, sem, necessariamente, poluir-se mutuamente.
d. O lugar e os instrumentos: o sacrifício 5 para ocorrer sem que
haja contaminação, deve ser realizado em local específico, em horários
determinados. Se a cerimônia for realizada fora do local estabelecido,
segundo Maus e Hubert, “a imolação não é mais que um assassinato”
(MAUSS e HUBERT, 2005, p. 32), o que desvincula completamente o
sacrifício do ato sagrado. O lugar onde se sacrifica é parte do esquema
sacrificial e é de extrema importância, pois não se pode sacrificar em
qualquer lugar, ou ainda, utilizar instrumentos que não estejam devida-
mente purificados para a realização da cerimônia (MAUSS e HUBERT,
2005, p. 51).
e. Saída do sacrifício: as pessoas e objetos utilizados devem ser,
necessariamente, purificados ou inutilizados. No caso do sacerdote e das
demais pessoas que participaram do sacrifício, há uma série de ritos de
purificação para que não haja contaminação. Do mesmo modo, os instru-
mentos são purificados, enterrados ou até destruídos, de acordo com sua
função no sacrifício, para que não contaminem o ambiente e as pessoas
que fazem parte daquele determinado grupo.
Deste modo, vimos que o sacrifício, para Mauss e Hubert, obedece a
um esquema próprio, que é seguido por algumas civilizações, com traços
que lhe são essenciais e adaptados em cada cultura. Estes delimitam o
que faz parte da esfera do sagrado e que faz parte do profano. No en-
tanto, cada povo expressa, no rito sacrificial, o ato de unir-se, de alguma
maneira, à divindade.

Estrutura sacrificial em Girard


Para René Girard, o sacrifício é o fundamento das sociedades primi-
tivas, é uma saída apropriada para manter um equilíbrio social razoável,
porque há a percepção de que, para manter a sociedade nos padrões,
rejeitando a violência dentro dela, tem que haver o sacrifício reparador.
Isto é, para apaziguar a violência do grupo há que se encontrar uma
vítima alternativa.
Segundo Girard, a “imolação de vítimas animais desvia a violência
de certos seres que se tenta proteger, canalizando-a para outros, cuja
morte pouco ou nada importa” (GIRARD, 2000, p. 15), ou seja, quando
se canaliza a violência para determinado animal, por exemplo, rompe-se
uma cadeia de violência justificada pela eleição de um bode expiatório
(GIRARD, 2004, p. 55).

5
Neste item os autores Mauss e Hubert, explicam sobre a ornamentação da vítima em
alguns países, para maiores esclarecimento ver a obra citada.

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Assim, há um quadro de violência que se autojustifica pelo sacrifí-
cio de uma vítima que é escolhida para “enganar a violência”. A vítima
é sacrificada em nome do grupo. Ela se torna uma vítima fundadora ou
bode expiatório que é o cerne da diferenciação primeira das sociedades:
a comunidade de um lado; a vítima do outro. Com isso, a violência sacri-
ficial apazigua e reconcilia.
O sacrifício tem sua eficácia enquanto processo preventivo, que coíbe
uma violência recíproca desenfreada na comunidade. Para que cumpra
seu papel enquanto última palavra da violência, o sacrifício precisa de
uma vítima que não reaja violentamente ou vingue-se de outra maneira.
Por isso, esta é sempre alguém à margem da sociedade (animal, criança,
rei, estrangeiro, escravo, prisioneiro, bruxa, messias e outros).

1. Estereótipos da perseguição
No texto “O bode expiatório”, René Girard apresenta quatro estere-
ótipos que marcam a perseguição (GIRARD, 2000, p. 33):

1. A descrição de uma crise social e cultural, ou seja, de uma indi-


ferenciação generalizada;
2. Crimes “indiferenciadores”;
3. Se os autores mencionados desses crimes possuem marcas de
seleção vitimária, marcas paradoxais de indiferenciação;
4. A própria violência.

Segundo Girard, “os males que a violência pode causar são tão
grandes e os remédios tão aleatórios, que a ênfase é colocada na pre-
venção. E o domínio do preventivo é primordialmente religioso. A preven-
ção religiosa pode ser um caráter violento. A violência e o sagrado são
inseparáveis.” (GIRARD, 2000, p. 21).
Por isso, há dois momentos a serem considerados na execução
do sacrifício: “O primeiro momento é a acusação de um bode expiatório
ainda não sagrado, sobre o qual toda a força maléfica se aglutina. Ele é
recoberto pelo segundo, o da sacralidade positiva, suscitada pela recon-
ciliação da comunidade” (GIRARD, 2004, p. 67). Neste sentido, o sagrado
é a ferramenta reguladora da qual as sociedades lançam mão diante da
ameaça de violência generalizada. Este processo é a própria fundação
da cultura. O âmbito do sagrado está pleno de violência, e a violência é
sempre sacralizada.

Teoria sacrificial em diálogo com a teologia bíblica (Lv 6.17-23)


A prática sacrificial acontece desde tempos remotos, embora não haja
relatos de onde aparece pela primeira vez nem de que o povo influenciou

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a teologia sacrificialista entre os israelitas. Contudo, é fato que a prática
sacrificial é antiga e anterior à cultura israelita, pois é possível encontrá-la
na Mesopotâmia, Arábia e Canaã6.
É provável que, quando da sedentarização dos hebreus na Palestina,
os sacrifícios tenham sido tomados dos cananeus e combinados aos anti-
gos ritos de sangue. Isso ocorreu principalmente no período monárquico
em Israel7, quando a exigência do sacrifício era notória e assegurava a
reis, governantes e, em menor grau, ao povo, a segurança de expiação
dos pecados por meio do ato de sacrificar e, assim, eles participavam
da esfera divina.
Os ritos sacrificiais, de um modo geral, compartilhavam a crença de
que no ato de sacrificar ocorria uma união mística com a divindade. O
ser que oferece o sacrifício e o próprio sacrificado participam da esfera
sagrada. De Vaux explica esta crença da seguinte maneira (DE VAUX,
2003, p. 486):

1. A união com a divindade por comer uma vítima divina – neste o


pressuposto é totêmico: há um parentesco entre os membros da
tribo e o deus da tribo, que é o ancestral de todos e cuja vida
circula no animal que lhe é consagrado, o totem. O sacrifício
tem por fim reforçar esse parentesco, participar na vida do deus
comendo seu animal sagrado.
2. A união com a divindade por intermédio da vítima que representa
o ofertante – a vítima é o substituto do ofertante que, pela im-
posição das mãos, lhe transferiu, ao mesmo tempo, seu pecado
e seu princípio vital. Tal princípio está no sangue. Sendo assim,
os diferentes ritos de sangue, unção do altar, efusão ao pé do
altar, aspersões, colocam o princípio vital da vítima, a saber, do
ofertante a quem ele substituiu, em contato com a divindade e
estabelece ou restabelece o elo entre o deus e seu fiel.

Deste modo, observa-se que, no primeiro, há por parte da comuni-


dade uma participação divina e o sacrifício ocorre para reafirmar essa
comunhão. Já no segundo, há uma transferência do pecado, mas a própria
6
De acordo com de Vaux, o sangue no sacrifício mesopotâmico “tem uma função com-
pletamente secundária; é até duvidoso que ele aparece nesses ritos, pois as libações
de sangue não são atestadas explicitamente nos sacrifícios normais”. Sobre os árabes,
De Vaux salienta que é difícil relacionar o sacrifício israelita com o árabe, “pois não há
uma, mas muitas religiões árabes pré-islâmicas”, que são diferentes de acordo com a
região. Sobre os sacrifícios cananeus, salienta-se que, segundo a Bíblia, “há uma se-
melhança fundamental entre o sacrifício cananeu e o israelita, mas textos bíblicos não
podem provar que os termos técnicos relativos ao sacrifício tenham sido idênticos entre
israelitas e cananeus” (De VAUX, 2003, p. 471-475).
7
O período monárquico abarca de mais ou menos 1050 a.C. a 590 a.C.

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vítima participa da divindade e a restabelece no ofertante por meio do
sangue. Nestes dois casos, o sacrifício é cruento e, para restabelecer o
vínculo entre o fiel e seu deus, o sangue8 tem que ser ofertado, pois nele
há o princípio vital de todos os seres, que deve unir-se à divindade.

1 Mauss e Hubert em diálogo com a teologia bíblica


Leis sobre os sacrifícios encontram-se em Levítico 1-7, contudo
observamos que Lv 6.17-23 apresenta, especificamente, a lei sobre a
purificação do pecado. Neste texto encontramos o sacrifício de abate
(zebah). Trata-se de um sacrifício de comunhão, do qual participam o
sacerdote e o povo. O esquema apresentado por Mauss e Hubert sobre
o sacrifício será, portanto, aplicado a esta perícope.

1.1 Texto: Levítico 6.17-23


17. Javé falou a Moisés:
18. Diga a Aarão e seus filhos:
A vítima pelo pecado será imolada9 diante de Javé,
no mesmo lugar onde se imola o holocausto.
É porção sagrada.
19. O sacerdote que oferecer a vítima poderá comer dela.
Deverá comê-la em lugar sagrado,
no átrio da tenda da reunião. 20.
Tudo o que tocar a carne ficará consagrado.
Se o sangue respingar na roupa, a mancha será lavada em lugar sagrado.
21. A vasilha de argila em que a carne foi cozida será quebrada.
E se foi cozida numa vasilha de bronze será esfregada e bem lavada
com água.
22. Todos os homens sacerdotes poderão comer dela. É porção sagrada.
23. Mas não se comerá nenhuma das vítimas oferecidas pelo pecado,
cujo sangue tenha sido levado à tenda da reunião,
para ser oferecida no santuário pelo pecado;
elas deverão ser queimadas.

Poderíamos subdividir esse texto em quatro seções, e fazer um pa-


ralelo com as teorias de Mauss e Hubert, da seguinte maneira:

a. O mandamento divino e a vítima (entrada e sacrificante) v. 17-18


b. Porção sacerdotal (sacrificador) v. 19
c. O local do sacrifício (lugar, instrumentos e saída) v. 20-21
d. O interdito no sacrifício (saída do sacrifício) v. 22-23

8
Segundo a nota da Bíblia Edição Pastoral, “o centro do sacrifício pelo pecado é o sangue,
que é a sede da vida e tem força para perdoar o pecado (Cf Lv 17.11)”.
9
A imolação é um talho que se faz no pescoço da vítima para retirar-lhe todo o sangue. O
sangue é a vida do animal e, no sacrifício, representa a vida da pessoa que o oferece.

26 Suely Xavier dos Santos: Uma leitura sócio-antropológica do sacrifício

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a. O mandamento divino e a vítima ( entrada e sacrificante ) v . 17-18
17. Javé falou a Moisés: 18. Diga a Aarão e seus filhos: A vítima
pelo pecado será imolada diante de Javé, no mesmo lugar onde se imola
o holocausto. É porção sagrada.
Há nestes versos o que Mauss e Hubert chamam de entrada: uma
apresentação dos personagens envolvidos no sacrifício – Javé, Sacerdo-
te, povo, vítima. Deus ordena ao sacerdote e ao povo que ofereça uma
vítima a ser imolada pelo pecado do povo. Claro que nem todo o povo
pode participar do sacrifício em si, mas é parte dele no que diz respeito à
finalidade do sacrifício, a saber, trata-se de uma celebração para perdão
de pecado. O final do verso 18 legitima a ideia de que a vítima é sagrada.
Ela saiu do ambiente profano e agora participa da esfera divina; por isso,
é porção sagrada.

b. Porção sacerdotal (sacrificador) v. 19


19. O sacerdote que oferecer a vítima poderá comer dela. Deverá
comê-la em lugar sagrado, no átrio da tenda da reunião.
No v. 19, aparece o sacerdote como o sacrificador, aquele que tem
a função de restabelecer o contato entre deus e os seres humanos por
meio do oferecimento da vítima a ser sacrificada. Como parte do ritual,
o sacerdote pode comer dela, porém deverá fazê-lo em lugar sagrado,
isso para que não haja “contaminação” daquilo que é sagrado no mundo
profano, o que traria uma série de sortilégios para o grupo em que o
sacerdote10 está inserido.
Ao oferecer a vítima e comer dela também, há no sacerdote o que
Mauss e Hubert chamam de “natureza divina”, ou seja, o sacrificador
recebe, após ritos de purificação, status divino. Isso aparece neste texto
quando ao sacerdote é dada a autorização para comer um pedaço da
vítima a ser sacrificada e como parte dessa sacralidade observa-se que
ele deverá comer no átrio da tenda da reunião.

c. O (lugar, instrumentos e saída) v. 20-21


local do sacrifício
20. Tudo o que tocar a carne ficará consagrado.
Se o sangue respingar na roupa, a mancha será lavada em lugar
sagrado.
21. A vasilha de argila em que a carne foi cozida será quebrada.
E se foi cozida numa vasilha de bronze será esfregada e bem lavada
com água.

10
Em Levítico, há normas específicas sobre os ritos de purificação do sacerdote para que
este esteja apto a realizar qualquer sacrifício, sendo ele o representante ou até mesmo
a própria divindade.

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Nestes versos, podemos observar que há no sagrado um interdito
que o torna, ao mesmo tempo, puro e impuro 11. Por isso, há prescrições
que determinam como será feita a “desconsagração” daquilo que foi to-
cado em parte ou totalmente pela vítima imolada. Neste caso, podemos
perceber a ideia de que uma aproximação com o divino sem prévio es-
tabelecimento de limites ou de consagração é perigoso. O que é impuro
não pode participar daquilo que é puro, sob a condição de que o sagrado
também pode tornar-se impuro.
Há aqui também o que Mauss e Hubert chamam de saída. É o que
ocorre quando termina o sacrifício, o que é feito com as pessoas e objetos
utilizados no sacrifício. Neste caso, o que tocou a vítima se tornou sagra-
do, por isso todos os objetos que partilharam da porção sagrada devem
ser destruídos, a fim de eliminar o “mal”, o que pode trazer impureza no
meio do grupo. Os itens que não podem ser destruídos devem ser lavados
abundantemente para retirar do objeto qualquer potencial de impureza.

d. O interdito no sacrifício (saída do sacrifício ) v . 22-23


22. Todos os homens sacerdotes poderão comer dela. É porção sagrada.
23. Mas não se comerá nenhuma das vítimas oferecidas pelo pecado,
cujo sangue tenha sido levado à tenda da reunião,
para ser oferecida no santuário pelo pecado;
elas deverão ser queimadas.

Nesta parte, observa-se um interdito sobre o sacrifício, em que não


se deve comer nenhuma das vítimas oferecidas pelo pecado, estas não
deve ser partilhadas nem pelo sacerdote. Há aqui uma restrição absoluta,
pois se trata de um sangue que pode contaminar até mesmo quem já foi
sacralizado. A contaminação se dá pelo sangue da vítima, que tem em si
o poder de contaminar o que nela tocar, por isso deverá ser queimada. Em
Mauss e Hubert, trata-se do fogo como algo purificador, “a incineração e o
consumo pelo sacerdote tinham o fito de eliminar completamente do am-
biente temporal as partes do animal” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 44).

11
Mary Douglas analisa ritos de pureza e sua função no meio do grupo. Para ela, na
análise de religiões primitivas, é possível perceber que a pureza ou higiene não se trata
apenas de um conceito estético, mas os “rituais de pureza e impureza criam unidade
na experiência do grupo” (p.13). Os limites que organizam e dão unidade ao grupo são
guardados por perigos que ameaçam os transgressores. Para que o grupo conserve as
“ideias sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões”, os limites têm como sua
“função principal impor sistematização numa experiência inerentemente desordenada”
(p. 15), ou seja, há que se criar interditos para que não haja transgressões em ritos ou
cerimônias sagradas. Para mais esclarecimentos, conferir: DOUGLAS, Mary. Pureza e
Perigo. São Paulo: Debates, 1984.

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Este texto bíblico também apresenta a relação que Mauss e Hubert
fazem entre sacrifício e consagração, uma vez que “o objeto passa do
domínio comum ao domínio religioso” (MAUSS e HUBERT, 2005, p. 15).
Aqui temos o animal que se torna puro e impuro ao mesmo tempo, além
dos objetos e roupas que, quando entram em contato com alguma parte
da vítima, tornam-se consagrados, e para sair desse estado e retornar ao
mundo profano precisam passar por um ato de “desconsagração”.

Girard em diálogo com a teologia bíblica


No caso de Levítico 6.17, observa-se o ritual para o sacrifício pelo
pecado, a saber, uma distinção entre aquilo que é puro e impuro. Para a
realização do sacrifício neste caso é necessário obedecer alguns critérios.
Talvez se aplique aqui o primeiro estereótipo apresentado por René Girard:
“a descrição de uma crise social e cultural, ou seja, de uma indiferenciação
generalizada” – o pecado, neste caso.
O pecado traz para a comunidade uma crise que pode desencade-
ar um processo de morte. Neste sentido, há a indiferenciação, ou seja,
rotula-se o que é o pecado e o pecador, mas para que este seja purifica-
do há um ritual a ser seguido, que consiste na vitimização de um animal
que representa o pecador. Após a imolação, o animal torna-se “porção
sagrada” (v. 18), por isso o sacerdote poderá comer dela, porém há um
local específico para conter a sacralidade desta porção, a saber, o lugar
sagrado. Tudo o que tocar a carne fica consagrado, demonstrando que
esta sacralidade apresenta o que Girard chama de “ambivalência” (GI-
RARD, 2000, p. 13).
No caso do animal imolado, observa-se também o que Girard apre-
senta da seguinte maneira: “a sociedade procura desviar para uma vítima
relativamente indiferente, uma vítima ‘sacrificiável’, uma violência que
talvez golpeasse seus próprios membros, que ela pretende proteger a
qualquer custo” (GIRARD, 2000, p. 16). Deste modo, o animal passa a ser
uma “vítima sacrificiável”, que carrega a ambivalência e, por isso, pode
substituir aquele a quem a sociedade precisa proteger. Se não houvesse
essa vítima, certamente haveria uma violência generalizada, uma vez que
a vingança geraria um círculo vicioso. Com a substituição sacrificial, isso
pode, num certo sentido, “enganar a violência”.
Temos neste texto a potência do “mal” que é o bode expiatório. Este
é uma vítima escolhida para receber todo o pecado da comunidade (v.
18). Nele se expressa ou se projeta o pecado da comunidade que pode
gerar uma crise no sistema. Por isso, a necessidade de se sacrificar para
apaziguar os instintos de violência entre os seres humanos, para que
não haja violência coletiva pela prática do pecado, e assim, a acolhida
do “mal” na comunidade.

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Considerações Finais
A partir dos conceitos estudados, pudemos observar como se aplicam
as teorias de Mauss, Hubert, assim como de Girard, na teologia bíblica
do sacrifício expressa em Levítico 6.17-23. Deste modo, a conclusão é
que os referenciais teóricos nos auxiliam numa leitura antropológica do
texto bíblico e nos apresentam outra ótica que ajuda a compreender a
importância de estabelecer limites na sociedade, para que ela não entre
em colapso. Os referenciais nos mostraram a perspectiva do sacrifício
como ato violento e legitimador na esfera sagrada da cultura israelita.
Também é possível observar que, diferentemente do processo de
violência que a vítima pelo pecado desencadeia, conforme Girard, o
Antigo Testamento propõe outro processo para lidar com vítimas em sua
cultura: ao invés da figura do bode expiatório para coibir a vingança e a
rivalidade generalizada, a Bíblia propõe o perdão e a dignidade da vítima,
como se percebe posteriormente em Jesus Cristo. Neste caso, a Bíblia
indica uma alternativa para a violência fundadora da cultura, que não foi
possível analisar com profundidade neste trabalho, mas que nos deixa
aberta outra porta para continuar a pesquisa.

Referências bibliográficas
Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1999.
BAUMGARTNER, W. e KOEHLER, Ludwig. The Hebrew and Aramaic Lexicon of
the Old Testament. v. 1. Leiden/New York/Köln: E. J. Brill, 1994.
BORN, A. Van den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1992.
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teo-
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DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Debates, 1984.
GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/ Unesp, 2000.
HARRIS, Laird Harris et all. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testa-
mento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1984.
RODRIGUES, Elisa. Regras de pureza e poluição no Novo Testamento. São Paulo:
s/ed, 2005. Texto apresentado ao grupo de pesquisa em Apocalíptica Judaica e
Cristã “Orácula.”
SCHULTZ, Adilson. A violência e o sagrado segundo René Girard. Disponível em:
<http://www.est.com.br/nepp/numero_03/violencia.htm>, acesso em 21 jun 2007.
WERNER, Schmidt H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2004.
WILLI-PLEIN, Ina. Sacrifício e culto no Israel do Antigo Testamento. São Paulo:
Loyola, 2001.

30 Suely Xavier dos Santos: Uma leitura sócio-antropológica do sacrifício

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Trajetória das mulheres metodistas:
memória, presença e desafios
Trajectory of Methodist Women: memory,
presence and challenges
Trayectoria de las Mujeres Metodistas:
memoria, presencia y desafiós
Margarida Fátima Souza Ribeiro

Resumo
Este artigo apresenta, num primeiro momento, uma breve trajetória das mulheres
metodistas, desde a origem do movimento na Inglaterra, passando pelos Estados
Unidos e chegando ao Brasil, demonstrando o trabalho desenvolvido por elas
nos diversos ministérios, e particularmente no ministério pastoral. Num segundo
momento, destaca-se a trajetória do ministério pastoral feminino no Brasil nas
Igrejas históricas e nas Igrejas pentecostais.
Palavras-chave: Mulheres; memória; ministério pastoral feminino.

Abstract
This article presents, at first, a brief history of the Methodist women, since the
origin of the movement in England, via the United States and arriving in Brazil,
showing the work done by them in the various ministries, and particularly in the
pastoral ministry. Secondly, there is the trajectory of pastoral ministry in Brazil
in the women’s historic churches and the Pentecostal churches.
Keywords: Women; memory; pastoral ministry for woman.

Resumen
Este artículo presenta, en un primer momento, una breve trayectoria de las
mujeres metodistas, desde el origen del movimiento en Inglaterra, pasando por
los Estados Unidos y llegando al Brasil, lo que demuestra el trabajo realizado
por ellas en los distintos ministerios, y en particular en el ministerio pastoral.
En segundo lugar, subraya la trayectoria del ministerio pastoral femenino en el
Brasil, en las iglesias históricas y en las iglesias pentecostales.
Palabras clave: Mujeres; memoria; ministerio pastoral femenino.

Mulheres metodistas da Inglaterra ao Brasil


Susana Wesley, mãe de João Wesley, considerado o fundador do
Metodismo, era uma mulher firme e metódica, que sabiamente educou
dezenove filhos. Ela dominava o grego e o latim e tinha um bom conhe-
cimento da língua francesa. Insistia na educação não somente dos filhos,
mas também das filhas.
Em 06 de fevereiro de 1712, Susana escreveu uma carta a Samuel
Wesley, seu esposo. Ele era pastor e estava em viagem, atendendo a
uma convocação da assembleia deliberativa de bispos e clérigos angli-

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canos, em Londres, Inglaterra. Susana havia começado a ler os sermões
para a sua família, como forma de educação religiosa. Mas os criados e
amigos pediram permissão para assistir e, eventualmente, ela chegou a
reunir em sua casa mais de quarenta pessoas. O marido, inquieto com
essas práticas, a questionara em uma carta. Porém, Susana respondeu,
escrevendo:

(...) como sou mulher, também sou a senhora de uma numerosa família.
Muito embora a maior responsabilidade das almas nela contidas caia sobre
ti, mesmo assim, na tua ausência, não posso deixar de encarar cada alma
que tu deixas sob meus cuidados como um talento entregue a mim sob
confiança, pelo grande Senhor de todas as famílias do céu e da terra. E se
for infiel a Ele ou a ti, em aumentar estes talentos, como lhes responderei
quando ele me mandar prestar contas da minha mordomia? (...) Quanto à
sua proposta de deixar outra pessoa [do sexo masculino] ler, infelizmente tu
não consideras que naipe de gente é este! Não acho que qualquer homem
entre eles possa ler um sermão sem soletrar uma boa parte dele; nenhum
membro de nossa família tem voz suficientemente forte para fazer-se ouvir
por um número tão grande de pessoas (REILY, 1981, p. 50-52).

Susana Wesley persistiu, pois entendia que “maior era aquele que a
mandava falar do que aquele que a mandava calar-se”. Por conta dessa
influência, anos mais tarde João Wesley disse que o chamado ordinário
de Deus para o ministério era para os homens e o chamado extraordinário
era para mulheres. Depois de fortes resistências, “foi obrigado a aceitar
que o Espírito de Deus queria falar através de homens e mulheres não
formados, mas que receberam o poder de pregar a mensagem do Evan-
gelho. Wesley aceitou a evidência dos fatos e os inseriu, de forma típica
para ele, na organização de seu movimento” (Klaiber; MARQUARDT,
1999, p. 190). Ele apoiou a pregação dos leigos e, no que tange às mu-
lheres, aconselhou e autorizou cerca de vinte e sete pregadoras, entre
elas Sarah Crosby, Grace Murray, Sarah Mallett, Hanah Ball e Elizabeth
Ritchie. Entretanto, a questão das mulheres pregadoras foi sendo tratada
conforme a inserção do movimento metodista nas diferentes culturas.
Já a Condessa de Huntington ajudou a sustentar o trabalho mis-
sionário de João Wesley e Jorge Whitefield (pregador leigo). E Ana Ball
organizou a Escola Dominical em 1769 (onze anos antes do jornalista Ro-
bert Raikes). Muitas mulheres iniciaram o trabalho missionário em lugares
em que o movimento wesleyano ainda não havia chegado. Por exemplo:

Leslie F. Church conta que, quando George Whitefield foi a Barnard Castle,
em 1753, perguntou ao dono da hospedaria se havia metodistas na vizinhan-

32 Margarida Fátima Souza Ribeiro: Trajetória das mulheres metodistas

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ça. O homem o olhou e disse: Não ouvi falar de nenhum, porém aqui tem
as que chamamos “tamancos barulhentos”. Surpreso, Whitefield descobriu
que esse era o nome dado no local às mulheres metodistas. Elas se loco-
moviam desde suas casas, todas as manhãs muito cedo, para o local de
reunião de oração, usando seus tamancos de madeira. Elas tinham que usar
esses tamancos por causa dos pântanos e lama que havia na localidade.
No silêncio da madrugada, tantos tamancos deviam realmente fazer muito
barulho (CHURCH, 1996).

Mary Bosanquet era guia de classe e pregadora leiga. João Wesley


considerava a sua pregação como sendo “luz e fogo”; ou seja, ela era
sábia e inteligente, cheia de ânimo e vivacidade. As mulheres também
participavam no sustento do trabalho missionário, com recursos financeiros
e atuação efetiva.
Nos Estados Unidos, destacamos a participação de Francis Willard.
Ela chegou a ser Presidente Nacional da União Cristã de Mulheres pela
Temperança. Também defendeu outras causas, referentes ao direito de
voto feminino e à educação. O grupo liderado por Francis foi considerado
a primeira organização de mulheres americanas.
No Brasil, em geral a trajetória da chegada do metodismo é descrita a
partir do protagonismo dos missionários. Mas os caminhos foram trilhados
inicialmente pelas mulheres visitadoras. Os jornais Expositor Cristão e O
Testemunho contêm alguns rastros da trajetória dessas mulheres. Além
disso, há referências nas atas das primeiras conferências realizadas na
Igreja Metodista do Brasil, ainda em processo de formação e pesquisas
realizadas pelo historiador Duncan Alexander Reily.
Nas primeiras atas das conferências aparecem as seguintes palavras:
visitantes e visitadoras. Inicialmente nos pareceu redundante, mas somente
após percorrer aproximadamente quinze anos dessas atas, constatamos
que as pessoas que são visitantes nestas primeiras conferências são pas-
tores, missionários, autoridades locais. As visitadoras tratam-se de outra
categoria, contudo, não é possível encontrar uma referência explícita ao
trabalho desenvolvido por elas. Sabe-se que se deslocavam de casa em
casa, especialmente para ler a Bíblia para as pessoas, num período em
que a Bíblia era lida em latim e de difícil acesso ao povo, sem contar as di-
ficuldades em relação à leitura, devido ao alto índice de analfabetismo 1.

1
O site Reescrevendo a educação destaca: “As taxas de analfabetismo entre os brasileiros
com 15 anos ou mais decresceram de 65% em 1920 para 13% em 2000. Esse decréscimo
resulta da expansão paulatina dos sistemas de ensino público, ampliando o acesso à edu-
cação primária. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tal como se faz em
outros países, sempre apurou os índices de analfabetismo com base na autoavaliação da
população recenseada sobre sua capacidade de ler e escrever.” Disponível em http://www.
reescrevendoaeducacao.com.br/2006/pages.php?recid=28 Acesso em 29 de dezembro de
2007. Estes dados nos mostram as dificuldades enfrentadas pelas visitadoras.

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O historiador Reily descreve o seguinte:

Rev. Vollmer tem desenvolvido um grupo de líderes de classes e é ajudado


por um grupo esplêndido de Mulheres da Bíblia que dão uma parte de cada
dia à visita e leitura da Bíblia (...) a Reitora do Colégio Americano, “nossa
mulher da Bíblia tem sido fiel na visitação e na distribuição de literatura
cristã” (...) em “Santa Maria, (RS) uma mulher da Bíblia está empregada”
(REILY, 1990, p. 82).

O Rev. Vollmer atuava em Porto Alegre, onde também é citado o


trabalho desenvolvido pela reitora e pelo grupo de “mulheres da Bíblia”.
A outra mulher está na cidade de Santa Maria, que fica no interior do
Estado do Rio Grande do Sul. O historiador também se refere ao trabalho
desenvolvido pela missionária Amélia Elerding, registrado em uma das
notas de rodapé do artigo Os metodistas no Brasil (1888 –1930):

O Trabalho em São Paulo foi liderado por uma missionária Amélia Ellerding,
a qual trabalhou por uns sete anos, geralmente com a cooperação de quatro
mulheres da Bíblia. Cada ano entre 1915 e 1922, menos 1919, há um rela-
tório circunstanciado desse trabalho. Sofreu solução de continuidade com a
volta da missionária para os Estados Unidos, mas foi retomado pelas próprias
mulheres da Bíblia depois (AR 122, p.130; cf. REILY, 1990, p. 91).

A citação acima originalmente encontra-se no Annual Report of the


Board of Missions of the Methodist Church South 2, em que constava o
relato das pessoas designadas pela Igreja Metodista dos Estados Unidos
para exercer atividades missionárias em diversos países, especialmente
África, América Latina e China.
O trabalho desenvolvido por Amélia Elerding e as demais mulheres
foi mais intenso em São Paulo: “Em 1914, quatro mulheres da Bíblia
realizaram 3.493 visitas, quase 2.500 com leitura da Bíblia e oração”
(REILY, 1990, p. 82).
Outra visitadora foi D. Elisa V. de Jesus, protestante de berço, nas-
cida no Rio Grande do Sul, que desde 1896 exerceu essa função. D.
Della V. Wright3, oriunda dos Estados Unidos, além de ensinar um grupo
2
Há outros relatos do trabalho desenvolvido pelas mulheres no Annual report of the
Woman´s. New York: Board of Missions and Church Extension of the Methodist Church.
Esta publicação, a partir dos anos 40, passa a ser editada como revista. Na Biblioteca
da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista há alguns números a partir de 1949.
3
“D. Della é moça que, a par de vastos conhecimentos possue um coração meigo e ca-
rinhoso que a tornam a predilecta das crianças. Com geral satisfação tem ella dirigido o
annexo n. 1 de nosso collegio, que funciona a rua do Parque n.76, onde nossa egreja
possue uma missão muito prospera (...) DD. Clara Fullerton e Della Wright tem contribu-
ído para o desenvolvimento de nossos collegios”. In: O TESTEMUNHO: Orgam da Egreja
Methodista no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, vol. 2, 15 de janeiro de 1905, p. 1.

34 Margarida Fátima Souza Ribeiro: Trajetória das mulheres metodistas

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de aproximadamente 40 a 50 crianças, também dedicou as suas tardes
à visitação. Outra delas foi Adélia Mayer, natural da Alsacia Lorena, que
chegou ao Brasil em 1899, casou-se e enviuvou muito cedo.
O jornal O Testemunho também destaca na primeira página, Eliza-
beth Hafeley, que chegou ao Brasil depois de ter tido uma experiência na
África. Seu trabalho em Porto Alegre era “limitado aos membros da vasta
colônia alemã desta cidade a quem ela visita com assiduidade religiosa.
E esta irmã, uma poetisa de fina tempera, e queremos crer que quando
ela estiver familiarizada como o nosso idioma, nosso hynario evangélico
será enriquecido com suas produções” (O TESTEMUNHO 1905. p. 1).
Há também breves relatos das atividades realizadas por Julia Ribeiro,
Maria Araújo, Albertina Guimarães e Núncia Bevilacqua: o encaminhamen-
to de 23 novas sócias à Sociedade Missionária de Senhoras, 16 novos
membros à Igreja Metodista, 175 novos alunos à Escola Dominical, e 2
pessoas à Escola Paroquial. Quanto à venda de livros, constam 81, além
das assinaturas do Expositor Cristão e do Bem-Te-Vi (revista destinada às
crianças). Podemos dizer que além de visitar, ler a Bíblia, as visitadoras
também realizavam o serviço de colportagem4, essencial na propagação
do protestantismo brasileiro. Segundo o historiador Leonard:

Desde a Independência eram distribuídas Bíblias – primeiro pela Sociedade


Bíblica Britânica, e depois pela Sociedade Bíblica Americana, que se valiam
especialmente dos bons ofícios de comerciantes em viagem que colocavam
caixas de Escrituras Sagradas, à disposição de quem as desejasse - deixan-
do-as mesmo, algumas vezes pura e simplesmente abertas nas alfândegas
(LEONARD, s/data, p. 42).

O serviço de venda e distribuição era realizado pelos colportores,
que eram na maioria missionários, ou pessoas contratadas pelas Socie-
dades Bíblicas para oferecer a Bíblia de casa em casa. Algumas dessas
pessoas contratadas eram mascates ou exerciam outra profissão além
da colportagem. No entanto, pelo menos neste período de implantação
do protestantismo não encontramos estas terminologias “colportores/
colportagem” sendo utilizadas para mulheres exercendo esta atividade.
Somente “mulheres da Bíblia”, conforme dito anteriormente.
Assim sendo, encontramos até o momento as seguintes visitado-
ras: Elisa V. de Jesus, Della V. Wright, Adélia Mayer, Elizabeth Hafeley,
Adelaide Vurlod, Amélia Elerding, Julia Ribeiro, Maria Araújo, Albertina
Guimarães e Núncia Bevilacqua; além do grupo de mulheres da Bíblia
4
A palavra “colportagem” vem de “Colportor” que deriva do francês e significa “levar no
pescoço”. Esse nome originou-se do costume que tinham os colportores valdenses de levar
os escritos sagrados debaixo da roupa, ou numa bolsa que pendia do pescoço. Disponível
http://www.asdmr.org.br/html/colportagem.html acesso em 27 de dezembro de 2007.

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que atuava em Porto Alegre, Santa Maria e São Paulo. Eram mulheres
solteiras, viúvas, estrangeiras, brasileiras que exerceram a função de vi-
sitadoras; dirigindo reuniões, distribuindo e procedendo à leitura da Bíblia,
dialogando sobre religião e preparando a trajetória dos missionários que
implantaram igrejas a partir das bases por elas levantadas.
Quanto às missionárias e educadoras, ressalta-se Marta Watts, que
fundou o Colégio Piracicabano e perseverou, em meio às dificuldades do
seu tempo, pois no primeiro momento teve somente uma aluna, Maria Esco-
bar. Do Colégio, nasceu a Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep.
Destacamos ainda a educadora Carmem Chacon, de apenas 17 anos.

Em 21 de março de 1885 João Corrêa recebeu nomeação para o circuito do


Rio Grande do Sul. João Corrêa, Maria Rejos (esposa), Ponciana C. Rejos
(filha), e a professora Carmem Chacon mudaram-se para Porto Alegre (...)
em 27 de setembro de 1885 iniciaram-se as reuniões na casa da família
Corrêa. Em outubro, abrimos ao público um colégio misto que foi inaugurado
com três alunos. No final de 1886 eram 187 crianças. Com o passar do ano
chegamos a sustentar 4 escolas que atingiram a frequência de mais de 400
alunos matriculados (O TESTEMUNHO, 1905, p.1).

Havia mulheres de todas as idades e etnias. Encontramos, por exem-


plo, o relato de uma missionária negra.

Um dos exortadores, de nome João de Barrios, que visitava os povoados


mais distantes do Rio Grande do Sul, conta em um de seus relatórios, a
história de uma mulher que liderou um trabalho metodista. Tratava-se de
uma mulher negra que, após libertada da escravidão, tinha imigrado de São
Paulo para a colônia de Ijuí, no Rio Grande do Sul. Mesmo sendo analfabeta,
tinha uma Bíblia e organizou uma classe para Estudos Bíblicos e cânticos.
A maneira de superar o analfabetismo foi pedir sempre que alguém lesse o
texto e então ela fazia o comentário, interpretando o texto lido. Quanto aos
hinos, ela conhecia 14 que tinha aprendido de memória e assim os ensina-
va. Escreve o mesmo relator que ainda hoje há muitos convertidos pelos
esforços d’ella (O TESTEMUNHO, 1904, p.15).

As mulheres também criaram a primeira Sociedade Metodista de


Senhoras, no dia 5 de julho de 1885, na Igreja Metodista do Catete, Rio
de Janeiro. E na área social, Eunice Weaver organizou escolas e abrigos
para crianças saudáveis, cujos pais eram portadores de hanseníase.
Ocorreram também outras iniciativas e ações das mulheres em favor da
cidadania. Na área de comunicação, foi criada, em 18 de setembro de
1929, a Voz Missionária, revista da mulher metodista no Brasil.

36 Margarida Fátima Souza Ribeiro: Trajetória das mulheres metodistas

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Também destacamos a participação de Ottília Chaves, que esteve
presente em todos os Concílios Gerais da Igreja Metodista, no período
de 1930 a 1970/71. Ela chegou a ser presidente da Federação Mundial
de Mulheres Metodistas.

O ministério pastoral feminino na Igreja Metodista


No Concílio Geral realizado em 1930, houve uma proposta quanto
à ordenação de mulheres na Igreja Metodista, mas não foi aprovada.
Todavia, a ordem das diaconisas foi criada em 1946, tornando-se lei
canônica em 1954. Somente na sessão da tarde do dia 20 de julho de
1970, em Belo Horizonte, Minas Gerais, o X Concílio Geral da Igreja
Metodista decidiu:

Projeto de Reforma da Constituição da Igreja Metodista do Brasil – Proposta:


Odyr Gedeão Köeche propõe e é aprovado com emenda a nova redação
aos artigos 12 e 13, os quais ficam assim redigidos: Art. 12: Ordens são
categorias eclesiásticas nas quais a Igreja Metodista acolhe aqueles que
reconhece vocacionados para serviços especiais no desempenho de sua
missão. Art. 13: As ordens na Igreja Metodista são duas: presbiteral e diaco-
nal, constituídas, respectivamente, de presbíteros e diáconos, sem distinção
de sexo. (...) O Artigo 12 submetido à votação apresenta o resultado: Sim
– 68; Não – zero; e o Art. 13: Sim – 64; Não – zero. (IGREJA METODISTA,
1970/1971, p. 29).

A primeira presbítera ordenada foi a revda. Zeni Lima Soares, em 1974.


No Concílio Geral de 1997, pela primeira vez na história, temos a presença
de três candidatas ao episcopado, sendo eleita, em julho de 2001, durante
o XVI Concílio Geral, a primeira episcopisa da Igreja Metodista, a revda.
Marisa de Freitas Ferreira. Hoje, mais de sessenta por cento dos membros
da Igreja Metodista no Brasil são mulheres. Dessas, aproximadamente 400
mulheres (presbíteras e pastoras) exercem o ministério pastoral5.

O ministério pastoral em outras igrejas cristãs no Brasil


Quanto ao Ministério Pastoral Feminino no Brasil podemos ainda
informar que historicamente as Igrejas foram acolhendo e reconhecendo
o ministério pastoral, conforme relação a seguir:

Exército da Salvação – A primeira pregadora no Brasil foi Stella De-


lisle Miche, oficial e logo ministra, que chegou ao Rio de Janeiro no dia
8 de maio de 1922 (REILY, 2003, p. 384).
5
No quadro estatístico consta um total de 214.715 membros, sendo 132.049 mulheres. São
1073 presbíteros e presbíteras, sendo 344 mulheres e 209 pastores e pastoras, sendo 67
mulheres. Dados fornecidos pela Sede Geral da Igreja Metodista no dia 17/10/2011.

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Igreja do Evangelho Quadrangular – fundada por uma evangelista,
Aimee Semple McPherson, tem prestigiado as mulheres no ministério
da pregação. No ano de 1958, seis ministras foram ordenadas (REILY,
2003, p. 388).

Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) - A pri-


meira pastora a assumir congregação na IECLB foi Rita Marta Panke,
formada pela EST em julho de 1976. (IECLB, 2006).

Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) – O Sínodo realizado em


junho de 1984 aprovou a ordenação feminina na IEAB, sendo ordenada
a primeira presbítera ordenada em maio de 1985 – Carmem Etel Alves
Gomes. Outra conquista importante foi a eleição, na Catedral da SS.
Trindade Porto Alegre, da primeira deã brasileira a revda. Marinez Rosa
dos Santos, em janeiro de 1999. É mais um marco histórico na caminha-
da do ministério feminino ordenado do Brasil (DIOCESE MERIDIONAL,
IAB, 2011).

Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPI) - O Supremo Concílio


da IPI aprovou, no dia 28 de janeiro, o ingresso das mulheres ao Ministério
Presbiteral Feminino, podendo atuar como pastoras e presbíteras. Esta
lei entrou em vigor no dia o3 de fevereiro de 1999.

No que diz respeito às Igrejas Pentecostais, destacamos a Congre-


gação Cristã e a Assembleia de Deus, que iniciaram seus trabalhos em
1910  em território brasileiro. As mulheres também estiveram desde a
nascente dessas Igrejas, mas em relação ao ministério feminino consta
que na primeira Convenção Geral das Assembleias de Deus (CGADB) 
realizada em 5 a 10 de setembro de 1930, foi feita uma solicitação por
Gunnar Adolf Vingren para ordenar as mulheres:

Vingren era fervoroso defensor do ministério da mulheres na Igreja, chegan-


do a separar uma diaconisa no Brasil, o que na época criou certa polêmica
entre os líderes assembleianos. A primeira diaconisa das Assembleias de
Deus no Brasil foi a irmã Emília Costa, consagrada por Vingren no Rio de
Janeiro em 1926. (CONDE, 2001. p.34).

As mulheres da Assembleia de Deus podem assumir cargos no Cír-


culo de Oração, também podem ser consagradas ao Diaconato e assim
receber autorização para organizar o culto e distribuir a ceia, e atuar
na área social. Há algumas que atuam como missionárias. Mas para
o exercício do ministério pastoral há muitas dificuldades, por exemplo,

38 Margarida Fátima Souza Ribeiro: Trajetória das mulheres metodistas

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na Convenção Geral de 2001 realizada de 15 a 19 de janeiro de 2001,
consta que:

A sessão plenária da manhã de 17 tratou inicialmente de assuntos relaciona-


dos ao batismo nas águas e sua aplicação conforme a Bíblia. Um dos temas
mais esperados foi o que tratou da aceitação do pastorado para as mulheres.
A votação foi rápida e fulminante, sendo rejeitada por maioria esmagadora
de votos. Dos cerca de 2,5mil ministros presentes à sessão, apenas três
foram favoráveis à ordenação de pastoras (DANIEL, 2004, p. 555).

Em meio às controvérsias, ocorreu em 2005, a consagração da pri-


meira pastora assembleiana:

No último dia 23, ao ser consagrada pastora ao lado de seu marido Jairinho,
Cassiane também entrou para a história da Assembleia de Deus. Ao ser
consagrada a primeira pastora da denominação centenária, a cantora quebra
um dos maiores tabus da instituição: o pastoreado feminino. Cassiane foi
pega de surpresa. Jairinho já vinha se preparando para assumir o pastora-
do há 1 ano, sempre apoiado pela esposa, mas nenhum dos dois poderia
imaginar o que aconteceria durante a cruzada da ”Convenção Nacional das
Assembleias de Deus do Brasil, Ministério Madureira”, com uma multidão
por testemunha. (...) Cassiane e Jairinho foram consagrados, pelo Bispo
Manoel Ferreira (Presidente das Assembleias de Deus - Madureira do Brasil),
pelo Pr. Reverendo Samuel Ferreira (Pastor Presidente da AD-Madureira do
campo de Campinas - SP) e pelos Pastores Presidentes presentes. (Site
oficial da cantora, 2009).

Certamente há muitas histórias a serem contadas: mulheres que


enfrentaram obstáculos para anunciar o Reino de Deus, que encararam
as mais diversas situações, deixando as suas marcas e nos desafiando
a continuar a trajetória, na certeza de que o Deus da Vida nos renova a
força para prosseguir nos caminhos da Missão!

Referências bibliográficas
CHURCH, Leslie F. The Early Methodist people. In: SIMEONE, Maria Inês. As
extraordinárias irmãs metodistas. São Bernardo do Campo: IMS, 1996.
CONDE, Emílio. História das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro:
CPAD, 2001.
DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil.
Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
IGREJA METODISTA. Atas, suplementos documentos do X Concílio Geral e do
II Concílio Geral Extraordinário, 1970/1971.

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Klaiber, Walter e MARQUARDT Manfred. Viver a Graça de Deus: um compêndio
da teologia metodista. São Bernardo do Campo: Editeo, 1999.
LEONARD, Emile G. O Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história
social. São Paulo: ASTE, s/data.
REILY, Duncan A. Metodismo brasileiro e wesleyano. São Paulo: Imprensa Me-
todista, 1981.
REILY, Duncan Alexander. Os metodistas no Brasil (1889 – 1930). In: V.V.A.A. His-
tória, Metodismo, libertações: Ensaios. São Bernardo do Campo: Editeo, 1990.
REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. 3.
ed. São Paulo: Aste, 2003.

Periódicos
O TESTEMUNHO: Orgam da Egreja Methodista no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: vol. 2, 15 de janeiro de 1905.
O TESTEMUNHO: Orgam da Egreja Methodista no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: vol. 2, 1º de julho de 1905.
O TESTEMUNHO: Orgam da Egreja Methodista no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Ano 1, n.º 4, 15 de fevereiro de 1904.

Sítios na internet
CASSIANE. Cassiane é primeira pastora da Assembleia de Deus. Disponível em:
<http://meadd.com/cassianefan/news/422214> . Acesso em: 7 out. 2011.
http://www.reescrevendoaeducacao.com.br/2006/pages.php?recid=28 . Acesso
em: 29 dez. 2007.
IGREJA ADVENTISTA. Colportagem. Disponível em: <http://www.ads-mr.org.br/
html/colportagem.html> . Acesso em: 27 dez. 2007.
IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. EST comemora
60 anos. Disponível em: <http://www.ieclb.org.br/noticia.php?id=7978> . Acesso
em: 7 out. 2011.

40 Margarida Fátima Souza Ribeiro: Trajetória das mulheres metodistas

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O carisma social das primeiras
pastoras metodistas no Brasil
The social charisma of the first Methodist women
pastors in Brazil

El carisma social de las primeiras pastoras


metodistas en Brasil
Elena Alves Silva

RESUMO
Este artigo analisa o ministério feminino na Igreja Metodista com ênfase na figura
das pastoras metodistas no Brasil que conquistaram o direito à ordenação no
início da década de 70 e passaram a desenvolver a prática pastoral com maior
envolvimento em questões sociais na ótica das novas tendências teológicas e
pastorais latino-americanas. O momento social brasileiro, os ideais progressistas
dos movimentos sociais organizados e o movimento ecumênico influenciaram este
início da ação pastoral feminina nos ministérios ordenados na Igreja Metodista.
O termo “carisma social” define a ação pastoral diferenciada desenvolvida pelas
pastoras metodistas.
Palavras-chave: Ação social; mulheres; ministérios; Igreja Metodista; pastoral.

ABSTRACT
This article analyses women’s ministry in the Methodist Church with its specific
characteristics. Major emphasis is given to the case of Methodist women pastors in
Brazil who acquired the right to ordination early in the 1970s and began to develop
their pastoral activity with more involvement in social issues from the viewpoint
of new Latin American theological and pastoral tendencies. The present Brazil-
ian social situation, the progressive ideas of the organized social movements and
the ecumenical movement also influenced the start of pastoral action by women’s
ordained ministry in the Methodist Church. The term “social charism” defines this
different pastoral action developed by Methodist women pastors.
Keywords: Social action; women; ministries; Methodist Church in Brazil; pastoral care.

RESUMEN
Este artículo analiza el ministerio femenino en la Iglesia Metodista dando énfasis
al caso de las pastoras metodistas en el Brasil que conquistaron el derecho a la
ordenación al inicio de la década de 70 y comenzaron a desarrollar la práctica
pastoral con mayor compromiso en cuestiones sociales bajo la óptica de las
nuevas tendencias teológicas y pastorales latinoamericanas. El momento social
brasileño, los ideales progresistas de los movimientos sociales organizados y
el movimiento ecuménico influenciaron este inicio de acción pastoral femenina
en los ministerios ordenados de la Iglesia Metodista. El término “carisma social”
define la acción pastoral específica desarrollada por las pastoras metodistas.
Palabras clave: Acción social; mujeres; ministerios; Iglesia Metodista en Brasil;
pastoral.

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Introdução
A abertura oficial para a ordenação feminina ao ministério pastoral na
Igreja Metodista no Brasil deu-se no X Concílio Geral da Igreja Metodista,
realizado em dois períodos (1970-1971) na cidade de Belo Horizonte, MG.
A primeira ordenação feminina ocorreu em São Paulo somente em 20 de
janeiro de 1974. A primeira presbítera metodista ordenada foi a Revda
Zeni de Lima Soares.
No período de 1970 a 1990, 47 mulheres concluíram o curso de
Bacharel em Teologia na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em
São Bernardo do Campo, SP e outras concluíram o Curso de Bacharel
em Teologia no Seminário Metodista César Dacorso Filho, no Rio de
Janeiro. Hoje atuam como pastoras. Este artigo apresenta uma síntese
da pesquisa de mestrado que teve por base o estudo de caso da práti-
ca pastoral em ministérios sociais realizados por um grupo de pastoras
formadas no período de 1970-1990. Foram envolvidas 12 pastoras nas
entrevistas.
As duas décadas referidas são marcadas por um momento de gran-
de efervescência política, econômica e social no Brasil. Nelas, situam-se
alguns episódios importantes na Igreja Metodista como o fechamento
(1967) e reabertura (1968) da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista,
em São Bernardo do Campo, SP; o fechamento do Instituto de Educação
na Chácara Flora, Santo Amaro, SP (1970); a formulação do Plano para a
Vida e a Missão da Igreja Metodista (1982) e a implantação da estrutura
de Dons e Ministérios (1987). A Igreja Católica experimentou o auge da
Teologia da Libertação e o país viveu o tempo da ditadura militar e a pos-
terior redemocratização, com a anistia de presos políticos e campanhas
por eleições presidenciais livres e diretas.
O tema surge, inicialmente, como uma convergência das perspec-
tivas pastorais dessas primeiras mulheres metodistas ordenadas – fruto
de uma trajetória de reivindicações (REILY, 1984) – e o momento social
brasileiro no período. Trata-se de demonstrar como a conjugação desses
aspectos contribuiu para a formação de uma consciência social crítica,
apta a enriquecer a experiência pastoral prática dessas mulheres.
A Igreja Metodista, historicamente marcada por seu compromisso
social e a única a estabelecer um Credo Social, constitui um espaço
privilegiado para essas mulheres pastoras refletirem teologicamente e
agirem pastoralmente diante da realidade brasileira.

O ministério feminino na Igreja Metodista


Com a autonomia da Igreja Metodista no Brasil, em 1930, foi apre-
sentada a proposta de inclusão da ordenação ao presbiterado, sem dis-
tinção de sexo, nas leis da igreja. A proposição não foi aprovada naquele

42 Elena Alves Silva: O carisma social das primeiras pastoras metodistas no Brasil

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momento. Até que fosse novamente apresentada e aceita, e os Cânones
da Igreja Metodista fossem alterados, passaram-se quarenta anos.
A Igreja Metodista foi uma das primeiras no Brasil a eliminar a dis-
tinção de sexos no ministério ordenado. Este fato se deu em 1971, na
segunda fase do X Concílio Geral desta igreja. No item a seguir, serão
tratados aspectos do processo político e o contexto social em que se dá
a abertura oficial para a ordenação feminina na Igreja Metodista.
O período que antecede a aprovação do ministério feminino ordena-
do foi marcado por momentos de transição e inquietações na história do
país. Por essa razão, os acontecimentos na Igreja Metodista no Brasil,
no início dos anos 70, não podem ser dissociados de fatos religiosos e
políticos que ocorreram no país e grande parte da América Latina desde
as décadas de 50 e 60, com movimentos reivindicatórios por justiça e
melhores condições de vida na cidade e no campo.
Em decorrência do empobrecimento que provocava o êxodo rural,
deu-se a mobilização dos trabalhadores do campo em todo o país, como
também de estudantes e operários, que, juntos, pediam a reforma agrária.
As Igrejas não estavam alheias a esse momento e reivindicavam também
a justiça social e as reformas necessárias (BEOZZO, 1994).
Na Igreja Metodista, a Junta Geral de Ação Social começou a apontar
a urgência da aplicação prática do Credo Social, com sua forte ênfase na
justiça social. A atuação dos secretários desta junta – Robert Davis, Almir
dos Santos (que foi eleito bispo em 1965) e João Parahyba Daronch da
Silva – preconizava uma sociedade responsável.
Na sua experiência pastoral de busca de conciliação e tomada de
consciência da responsabilidade social das Igrejas, o movimento ecu-
mênico começa a ganhar força no Brasil. Animados por esse espírito,
homens e mulheres de diferentes igrejas cristãs decidem lutar lado a lado,
nos sindicatos e associações, por melhores condições de vida. Seguin-
do o exemplo da Igreja Metodista e da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana que haviam se filiado ao CMI (Conselho Mundial de Igrejas),
respectivamente em 1942 e 1950, outras igrejas 1 fazem o mesmo na
década de 60.
Assim, a década de 60 foi marcada por um sentimento ecumênico,
pelo comprometimento social diante das graves questões colocadas pelo
empobrecimento da população e pela mobilização de setores da sociedade
contra as arbitrariedades do regime militar.
Nesse contexto político, histórico e eclesiástico, foi inserida na Igreja
Metodista a decisão conciliar de ordenação “sem distinção de sexo”. Na
expressão de uma das pastoras entrevistadas:

1
A Igreja Episcopal Anglicana e a Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo”.

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E, na verdade, se no Brasil ainda vivíamos sob a época da ditadura, havia
os ventos contestatórios do ABC, e a emergência da consciência dos direitos
das mulheres, tornados públicos na Conferência Mundial de Mulheres e, em
seguida, a Década da Mulher (organizadas pela ONU), apoiados a nível reli-
gioso pelas igrejas do Norte e o Conselho Mundial de Igrejas” (Rosângela) 2

Foram os ventos contestatórios que, certamente, induziram a aprova-


ção do ministério feminino ordenado na Igreja Metodista, embora não haja
registros oficiais de conflitos em torno dessa questão. Testemunhas dessa
luta importante para a transformação da Igreja relatam que o processo
transcorreu tranquilamente. O relatório do III Encontro sobre Ministério
Pastoral Feminino3 apresenta o resultado de pesquisa realizada no Jornal
Expositor Cristão nos anos de 1968 e 1969, com a finalidade de verificar
se a matéria canônica referente à alteração integrava as propostas da
comissão de legislação, o que seria o procedimento normal, mas nada
foi encontrado. Tudo leva a crer que a proposta surgiu no decorrer do X
Concílio Geral da Igreja Metodista (IGREJA METODISTA, 1971).
A reforma canônica que estabeleceu o direito legal para a ordenação
feminina ao ministério pastoral na Igreja Metodista foi proposta na primeira
fase do X Concílio, em 1970. O texto da proposta e sua aprovação foram
transcritos da Ata daquele conclave nos seguintes termos:

Na sessão da tarde do dia 20 de julho de 1970, em Belo Horizonte, MG, o


X Concílio Geral da Igreja Metodista, com emendas à nova redação do art.
13, recebeu a proposta de Odyr Gideão Köeche, a qual fica assim redigida:
‘As ordens na Igreja Metodista são duas: presbiteral e diaconal, constituídas,
respectivamente, de presbíteros e diáconos, sem distinção de sexo. Parágrafo
único: os presbíteros ativos estão sujeitos à itinerância’. O resultado desta
votação foi: Sim 64 e Não: Zero (IGREJA METODISTA, 1971).

O depoimento do Rev. Sergio Marcus Pinto Lopes4 conta os detalhes


ainda não publicados da história da ordenação feminina. Segundo ele, a
proposta original da inclusão da mulher na Ordem Presbiteral da Igreja
Metodista partiu da Comissão Geral de Legislação, nomeada pelo IX Con-
cílio Geral e composta dos seguintes membros: Marianna Allen Peterson,

2
A partir deste momento será usado este modelo, entre parênteses, para definir as citações
das entrevistas realizadas com as pastoras. Encontra-se um quadro com o perfil de cada
uma na pesquisa original.
3
No ano de 1971, as alunas da Faculdade de Teologia decidiram realizar encontros de
reflexão sobre o Ministério Feminino e chamaram os professores para estar com elas.
Foram realizados três encontros.
4
Cf. Anotações feitas pelo Prof. Dr. Sérgio Marcus Pinto Lopes para a defesa desta dis-
sertação, realizada em 21 de março de 2002.

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presidente; James William Goodwin, Dácio Toledo Lima, Moacyr Louzada
Machado, Aser d’Ávila Ramos, vogais, e ele próprio, secretário.
Essa comissão trabalhou durante os anos que antecederam o X
Concílio e publicava regularmente um noticiário de seu trabalho no jornal
O Expositor Cristão, destinado a incentivar toda a comunidade metodista
a enviar sugestões de alteração da legislação canônica. Já na edição de
14 de abril de 1970 (três meses antes do X Concílio Geral da Igreja Me-
todista), a Comissão propôs a inclusão de mulheres na ordem presbiteral
e, nessa mesma edição, encontra-se a seguinte proposta de alteração
constitucional, provinda da Comissão Geral de Legislação:

Art. 7º Ordens são categorias eclesiásticas nas quais a Igreja metodista


acolhe aqueles que reconhece vocacionados para serviços especiais no
Reino de Deus, sem distinção de sexo.
Art. 8º As ordens na Igreja Metodista são duas: a presbiteral e a diaconal.
Parágrafo Único: A ordem presbiteral é constituída de presbíteros e pres-
bíteras ativos e aposentados e a ordem diaconal de diáconos e diaconisas
ativos e aposentados.
Art. 9º Os presbíteros e presbíteras ativos estão sujeitos à itinerância. 5

Ainda em seu depoimento, o Rev. Sérgio Marcus considera importante


acrescentar que o Concílio Regional da II Região Eclesiástica – realizado
de 8 a 12 de fevereiro de 1969 e a cuja delegação pertencia o Sr. Odyr
Gideão Köeche – havia aprovado um projeto substitutivo ao da Comissão
Geral de Legislação, que fora enviado àquela Região. Neste projeto, não
consta qualquer referência à possibilidade de ordenação feminina. Quem
traz esta proposta – da qual se assenhoreia o Sr. Köeche – é a Comissão
Geral de Legislação, que cunha a palavra “presbítera”, jamais ouvida antes
em qualquer tradição religiosa cristã na língua portuguesa.
Depois de aprovada a redação da constituição como ficou registrada
na ata da primeira fase do X Concílio Geral, chegou-se ao consenso de
que as reformas deveriam ser reencaminhadas aos concílios regionais e
retomadas numa segunda fase do mesmo Concílio Geral, a ser realizada
na cidade do Rio de Janeiro, em 7 de fevereiro de 1971. Nessa ocasião, a
proposta foi aprovada quase por unanimidade nos Concílios Regionais.
Já vigorava na Igreja Metodista a ordem das diaconisas, estabelecida
no VII Concílio Geral. Para tanto, as mulheres ingressavam numa escola
preparatória e depois da conclusão do curso eram ordenadas diaconisas.
Esta escola funcionou na Chácara Flora, Santo Amaro, São Paulo, de
1950 a 1967, quando foi proposto às interessadas prepararem-se para a
mesma função diaconal na Faculdade de Teologia.

5
Jornal O Expositor Cristão, 14 de abril de 1970, p. 15

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A primeira mulher a ser ordenada presbítera foi Zeni de Lima Soa-
res. Ela havia concluído seus estudos na Chácara Flora, em 1965, mas
fez questão de cumprir todas as exigências normais feitas aos homens e
somente depois de cumprir o período probatório tornou-se, enfim, pres-
bítera, em janeiro de 1974.
Depois de 1971, a primeira turma de formandos em Teologia na
Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em São Bernardo do Campo,
SP, a ter a presença de mulheres foi a de 1977: Abigail da Silva e Eunice
Roberto de Araújo Oliveira foram as primeiras a se tornarem Bacharéis
em Teologia com direito a serem ordenadas presbíteras, o que ocorreu
em suas Regiões Eclesiásticas de origem. Eunice já era casada com
um pastor e não enfrentou muita rejeição. Mas, como toda história é
construída com dificuldades, o caso da pastora Abigail da Silva, da Sexta
Região Eclesiástica, foi marcado por vários conflitos com o corpo docente
na comunidade acadêmica, embora ela fosse uma excelente aluna, e por
uma incompreensão muito grande na Região. A Sexta Região recomen-
dou ainda Ione da Silva e Kiomi Sakamoto (1978) para ingressarem na
Faculdade Metodista de Teologia, mas exigiu que Marilia Schüller (1981)
assinasse um termo de compromisso com a Região de que nunca plei-
tearia nomeação pastoral. Marilia, apesar de ter concluído seu curso de
Bacharel em Teologia, não foi ordenada presbítera.
Inicialmente, na realização dos trabalhos pastorais, as pastoras tiveram
de criar estilos próprios, pois não havia modelo de pastorado feminino para
seguir e, definitivamente, ser pastora não era idêntico a ser pastor. Este, em
geral, sai da Faculdade de Teologia casado e segue para o ministério com
a esposa. Este modelo de família pastoral repetia padrões estabelecidos
havia tempo pelos missionários vindos dos Estados Unidos. Por outro lado,
as mulheres formadas nesse período eram solteiras e jovens.
Naquele momento, a condição de pioneira acarretava um preço alto:
em primeiro lugar, a dificuldade de ser aceita pela comunidade local, em
segundo, a necessidade de construir um “estilo” de ser pastora. Tudo
estava por ser feito, uma vez que os modelos existentes não se encaixa-
vam no padrão feminino. Era preciso definir as roupas, a fala no púlpito,
as visitas pastorais e tudo o mais.
Logo as mulheres decidiram reunir-se em encontros específicos para
tratar do ministério feminino. Nesses encontros, homens e mulheres pen-
savam juntos diversas questões. Chamavam a atenção os temas tratados:
questões feministas, econômicas, políticas, teológicas, bíblicas e sociais.
As monografias versavam sobre temas que caracterizam o interesse
social, a questão da mulher e vida litúrgica da comunidade. A leitura des-
ses trabalhos monográficos deixava perceber o grau de consciência que
essas mulheres tinham de sua opção pelo pastorado, pois todos falam da
necessidade de uma ação mais concreta da Igreja na sociedade.

46 Elena Alves Silva: O carisma social das primeiras pastoras metodistas no Brasil

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No universo teórico dessas primeiras pastoras estavam os conteúdos
do novo movimento feminista, evidenciado na França e Itália na década
de 70. Nas referências bibliográficas do relatório produzido no III Encontro
sobre o Ministério Pastoral Feminino encontram-se autoras como Simone
de Beauvoir, Heleiet Saffioti e Heloneida Studart. O conteúdo de reflexão
fez parte das ações concretas dessas mulheres que buscavam evidenciar
sua especificidade. A mulher não é igual ao homem e nunca poderia sê-
lo, mas quer oferecer exatamente essa especificidade como contribuição
para o desenvolvimento de relações novas.
Dificilmente uma igreja acostumada a ter à frente um pastor e aco-
modada a um determinado modelo poderia enfrentar com tranquilidade
a presença de uma mulher na liderança. A mulher é, então, a diferença
que está pedindo explicação. Embora haja um esforço para colocá-la em
segundo plano, ela já é protagonista em muitas situações. É verdade
que por séculos a mulher foi excluída da história e da vida pública; hoje,
porém, esta exclusão se torna impossível.

A atuação das pastoras metodistas


Ao ingressar no ministério ordenado, as mulheres buscaram exercer
sua prática pastoral de forma própria, diferenciando-se do modelo pastoral
masculino. A opção das pastoras representou uma busca por áreas ainda
não trabalhadas para exercerem a sua vocação. Em geral, as mulheres
organizam, em comunidades dirigidas por elas, grupos de reflexão ou
trabalho com mulheres, crianças, adolescentes, doentes, pessoas caren-
tes, e têm a predisposição para envolver-se com movimentos de luta por
causas diversas: direitos humanos, ecumenismo, moradia, etc.
Mesmo depois de ter conquistado o direito de ordenar-se e ser
considerada líder em uma comunidade religiosa, a mulher pastora ainda
enfrenta as limitações impostas pela sociedade, que a vê como inferior
por ser do sexo feminino. Embora a análise seguida na pesquisa realiza-
da queira enfocar um aspecto da prática pastoral – o chamamento social
das pastoras –, pressupõe-se que elas enfrentam os limites que lhes são
impostos e ousam buscar a plenitude de seus direitos na vida da Igreja,
conscientes de que são diferentes, mas não inferiores.
As teólogas cristãs começaram a tomar posição diante do sexismo
da religião, iniciando a publicação de livros com sérias críticas e denún-
cias a este respeito. Elas também passaram a utilizar o gênero 6 como
instrumental de análise em seus escritos.
As primeiras pastoras sentiam-se livres para descobrir, expressar e
exercitar os seus dons e serviços no cotidiano da vida da Igreja, assim
como as pioneiras do movimento metodistas visavam atender às pesso-
6
No seu uso mais recente, “gênero” aparece entre as feministas americanas que afirmam
a questão fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, tais como Elisabeth
Fiorenza e Rosemary Ruether.

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as necessitadas, pobres, famintas e abandonadas, levando a elas uma
mensagem de urgência, renovação e amor (SIMEONE, 1993).
As primeiras manifestações das pastoras diziam respeito exatamente
à necessidade de agir pastoralmente em favor dos marginalizados7. A pre-
sença da mulher no ministério ordenado, na Igreja Metodista, possibilitou
que as necessidades sociais fossem contempladas na ação pastoral.
Alguém poderia perguntar se esta opção por ministérios sociais não
seria uma armadilha para que a mulher fosse colocada, novamente, no
“seu lugar” na Igreja. Para responder a esta pergunta, vale a pena con-
sultar as motivações que cada mulher entrevistada teve ao fazer a sua
opção pastoral. Não se trata de ser colocada em algum lugar, mas de
criar o seu próprio espaço. Segundo Ione da Silva, “não havia modelos
para as primeiras pastoras e elas precisaram inventá-los”.
Feita a pergunta de como surgiu o seu interesse por este ministério
específico, eis o teor das respostas de algumas pastoras:

Este interesse surgiu a partir das dificuldades enfrentadas na igreja local,


dos desafios que as questões sociais me apresentavam, da criatividade e
esperteza em aproveitar as brechas deixadas pela igreja que se propunha,
primeiro em ser uma igreja voltada à missão, do ponto de vista do Plano
de Vida e Missão e posteriormente da proposta de se tornar uma igreja
comprometida e voltada para os Dons e Ministérios. (Ione)

Os modelos criados pelas pastoras são reconhecidos como compar-


tilhados e não autoritários. Como foi assinalado anteriormente, houve um
compromisso de dar voz e vez a quem, como as pastoras antes de con-
quistarem o direito à ordenação, não gozavam deste privilégio. Há entre
elas um esforço para contemplar as necessidades sociais das pessoas
atendidas pastoralmente.
A pastora metodista Tânia Mara Vieira Sampaio indica as principais
contribuições da mulher no campo social quando no exercício do minis-
tério ordenado:

Os dramas de corte existencial, material e espiritual dos pobres, e muito


particularmente da mulher e da criança pobre, têm desafiado a Igreja, e
especialmente as pastoras, a redimensionar sua prática profética e pastoral,
uma vez que o modelo de ministério tradicional masculino esgotou suas
respostas aos anseios desse novo momento histórico. A novidade das es-
truturas ministeriais inspiradas pelo espírito de Deus tem sido gerada pelas
comunidades na proporção das exigências surgidas (SAMPAIO, 1989).

7
Relatório do I Encontro sobre Ministério Pastoral Feminino na Igreja Metodista, passim.

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No exercício do pastorado e em plena reflexão teológica, as mulheres
recriaram espaços para desenvolver seu ministério. A teoria de relações
de gênero também contribuiu para que elas pudessem reafirmar a sua
identidade. Ana Maria Tepedino fala da inserção da mulher na reflexão
teológica como um “desconhecer o seu lugar”:
As mulheres descobriram uma nova maneira de fazer teologia, a partir
da tomada de consciência da fecundidade libertadora de uma releitura bí-
blica e a partir da necessidade de descobrir sua identidade, ‘desconhecen-
do o lugar’ que o homem lhe outorgou e que foi por ela introjetado. Assim
busca corresponder aos desafios como um serviço aos marginalizados,
comungando com eles o esforço da libertação (TEPEDINO, 1985).
Reafirma-se aqui a relação estreita entre a reflexão teológica da
mulher e a sua ação pastoral com o compromisso social e empenho pela
libertação na luta pela justiça.
Entende-se que essa opção das mulheres por uma ação pastoral
mais radicada nas questões sociais e em sua motivação vem da constru-
ção de uma consciência mais ampla do papel a ser desempenhado pelas
pioneiras nessa trajetória ainda nova para a vida da Igreja Metodista.
Nos anos 70 e 80, esse sentir esteve presente na origem do processo
reivindicatório pela ordenação feminina e nas reflexões elaboradas pelas
primeiras pastoras metodistas em seus Encontros sobre Ministério Femi-
nino na Igreja Metodista.

Considerações finais
Quando se fala em carisma social, usa-se uma expressão que, por
certo, é ainda imperfeita para tratar da força específica das mulheres na
ação pastoral.
As pastoras, juntamente com outros atores sociais, especialmente a
juventude (SAMPAIO, 1998), deram, a partir da década de 70, os passos
necessários para o retorno do empenho social na Igreja Metodista, algo
esquecido desde as origens de um metodismo que nasceu do compro-
misso social e foi sendo descaracterizado por mais de um século de
existência no Brasil. Talvez esta afirmação seja ousada, mas ela precisa
ecoar, como a notícia do gesto daquela mulher anônima para com Jesus
e do que estas mulheres pastoras fizeram pela Igreja Metodista.
O que marcou a experiência pastoral das primeiras pastoras foi o
sentido de grupo articulado. A organização das alunas em encontros para
reflexão sobre a sua nova condição e a elaboração de modelos e parâ-
metros para a ação pastoral, logo no início do processo de ordenação
feminina ao ministério, foram essenciais na determinação da continuidade
de suas atuações.
Houve uma convergência do momento social brasileiro, dos anseios
de compromisso social da Igreja Metodista e a aprovação do ministério
feminino ordenado. Desse modo, a opção social que as mulheres fizeram

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na implantação do modelo pastoral feminino era como um imperativo na-
quele momento. Os homens também viveram esse processo, entretanto,
sua ação não se caracterizava, prioritariamente, por um novo modelo, tão
necessário às mulheres.
A sensibilidade das pastoras permitiu que elas enxergassem lacunas
na ação pastoral da Igreja Metodista e penetrassem nelas. Na fala de uma
pastora, “entraram nas brechas”, e só foi possível encontrá-las porque
havia um desconhecimento do lugar e do modelo pré-estabelecido. Esta
ansiedade por novos modelos de atuação pastoral e por um renovado
compromisso social, presente na Igreja Metodista no início da década de
setenta, foi saciada com a entrada da mulher no ministério ordenado. O
novo não surgiria se sua necessidade não fosse premente. Na urgência
de uma ação pastoral envolvida com as questões sociais e na elaboração
de modelos alternativos para o pastorado feminino, a fome encontrou o
seu alimento.

Referências bibliográficas
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Me-
dellín a Santo Domingo. Petrópolis: Vozes, 1994.
COLÉGIO EPISCOPAL DA IGREJA METODISTA. Credo social. São Paulo: Cedro,
1999 (Biblioteca Vida e Missão, Doc. 10).
PINTO, Elena Alves Silva. O carisma social nas pastoras metodistas: estudo
de caso da prática pastoral em ministérios sociais realizados por um grupo de
pastoras formadas no período de 1970-1990. 2002. Dissertação (Ciências da
Religião). Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, São
Paulo. 2002.
REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. São
Paulo: ASTE, 1984.
SAMPAIO, Tânia Mara. A mulher e o ministério ordenado nas igrejas cristãs. In.
BEOZZO, José Oscar (org.). Curso de Verão. 2. ed. Ano II. São Paulo: Paulinas/
Cesep, 1989, p. 219.
TEPEDINO, Ana Maria. Mulher: aquela que começa a desconhecer o seu lugar.
In: Revista Perspectiva Teológica. Belo Horizonte: Faje, ano 17, n. 43, , p. 375-
379 (1985).
SIMEONE, Maria Inês, A presença da mulher no movimento metodista nascente.
1993. Monografia (Bacharel em Teologia). Faculdade de Teologia. São Bernardo
do Campo, São Paulo, 1993.
SAMPAIO, Jorge Hamilton. Sobre sonhos e pesadelos da juventude metodista
brasileira nos anos sessenta. 1998. Tese. Instituto Metodista de Ensino Superior.
São Bernardo do Campo, São Paulo, 1998.

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Registros, Atas e Documentos
IGREJA METODISTA. Cânones 1971. São Paulo: Imprensa Metodista, 1971.
FACULDADE DE TEOLOGIA. Atas e Documentos, Atas, Suplementos e Do-
cumentos do X Concílio Geral e da Igreja Metodista e Segundo Concílio Geral
Extraordinário. São Paulo: Imprensa Metodista, 1971.
VV. AA. Relatório do I e III Encontro de Reflexão sobre ministério feminino na
Igreja Metodista. Não publicado, s/d.

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História de Vida como possibilidade
metodológica para Educação Cristã

Life History as a possible methodology for


Christian Education

História de Vida como possibilidade


metodológica para Educação Cristã
Vera Luci Machado Prates da Silva

Resumo
A História de Vida tem sido cada vez mais usada com possibilidade metodológica
de pesquisa e formação. O intento deste artigo é refletir sobre esta possibilidade
metodológica aplicada à Educação Cristã. O relato de Lucas 24.13-35 é aqui
tomado como uma experiência pedagógica de Jesus, que aponta pistas para a
utilização desta metodologia. Fazendo da bricolagem um referencial, História de
Vida é entendida como composta de momentos vividos os quais, por sua vez,
são constituintes de subjetividade.
Palavras-chave: História de vida; Lucas 24.13-35; educação cristã; bricolagem.

Abstract
The life history has been increasingly used with the possibility of methodological
research and training. The intent of this paper is to discuss the methodological
possibility applied to Christian Education. 24.13-35 Luke’s account is here taken
as a teaching of Jesus, which aims to track the use of this methodology. Mak-
ing bricolage a reference, life history is understood as being composed of lived
moments which, in turn, are constituents of subjectivity.
Keywords: Life History, Luke 24.13-35, Christian education; bricolage.

Resumen
Historia de Vida ha sido cada vez más usada como posibilidad metodológica
de investigación y formación. Muchos cuestionamientos surgieron al respecto
de este hecho, uno de ellos es sobre la posibilidad de utilizar este recurso en
Educación Cristiana. La intención de este artículo es reflexionar sobre esta po-
sibilidad metodológica. Tomamos el relato de Lc 24.13-35 como una experiencia
pedagógica de Jesús que señala pistas para la utilización de esta metodología.
Haciendo del Bricolaje, una analogía, la Historia de Vida es vista como consti-
tuida de momentos vividos que, por su vez, son constituyentes de subjetividad.
Palabras clave: Historia de Vida, Lucas 24.13-35, la educación cristiana; bri-
colaje.

Introdução
A pesquisa social e educacional tem, há algum tempo, utilizado
histórias de vida como recurso metodológico para coleta de dados, com
vistas a elucidar seu objeto de pesquisa. Costumeiramente, entende-se

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História de Vida como um relato de acontecimentos da existência indi-
vidual, com começo meio e fim. No senso comum, o trabalho biográfico
é entendido como uma linha de tempo, na qual se organizam fatos da
vida em uma ordem cronológica, sem muito pensar nos fatores em que
estes fatos estão imbricados. Segundo Bourdieu (1994), História de Vida
é uma noção do senso comum que está entrando “como contrabando no
universo do saber”. Este autor adverte que pode ser enganoso tomar-se
a história como uma sucessão de acontecimentos.
Contudo, cada vez mais, a narrativa (oral ou escrita) tem sido usada
como possibilidade de pesquisa para construção de conhecimento. Nas
discussões sobre educação, a possibilidade da utilização de história de
vida aparece como recurso educacional, ou seja, “biografia educativa”. Ter-
minologias distintas são utilizadas para denominar as narrativas inseridas
na temática Histórias de Vida. Na educação, as narrativas têm sido traba-
lhadas a partir do processo de formação dos agentes educacionais.
As histórias de vida podem ser um recurso de pesquisa e construção
de conhecimento, que tenha um caráter formativo para os agentes envol-
vidos, não especificamente na formação de professores ou professoras.
Nessa direção, tomo aqui, como ponto de partida, a História de Vida como
constituída de momentos que possibilitam a construção da subjetividade
de cada pessoa. As narrativas desses diversos momentos e suas imbri-
cações podem contribuir para a construção de conhecimento universal e
de formação pessoal dos envolvidos.
Algumas questões se colocam: Há possibilidade de se construir
conhecimento a partir de histórias de vida? Como se faz a relação entre
biografia e o capital cultural acumulado pela humanidade? É possível se
construir conhecimento novo a partir de uma inter-relação entre a biografia
e o conhecimento acumulado? A pergunta prévia colocada à elaboração
deste texto é: É possível trabalhar história de vida em Educação Cristã?
Em caso positivo, pode-se trabalhar com as histórias das próprias pessoas
envolvidas no processo de aprendizagem? Tentaremos buscar alguma
resposta a esta questão, tomando a bricolagem como referencial para
refletir sobre Educação e História de Vida.
A seguir, apresentaremos a opção metodológica, a visão na sua
construção, a visão de educação que a fundamenta e a discussão com
o texto bíblico escolhido (Lucas 24.13-35). Esta narrativa (Jesus com os
discípulos no caminho de Emaús) pode ser entendida como uma pérola
da atuação pedagógica de Jesus. Dois discípulos abatidos, desiludidos,
perplexos, sem entender os últimos acontecimentos, caminham em direção
contrária ao centro desses eventos. Desistem de participar do processo
em que vão desvendar, definitivamente, quem é este que os envolveu a
ponto de o seguirem por algum tempo.

54 Vera Luci Machado Prates da Silva: História de Vida como possibilidade metodológica...

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Opção metodológica
Bricolagem vem da palavra francesa bricoleur, que se refere a um
indivíduo que faz tudo, lançando mão das ferramentas disponíveis para
realização de uma tarefa; sugere criatividade. Em ciência, a bricolagem é
um processo cognitivo de alto nível que envolve construção e reconstrução
diagnóstico-contextual, negociação e readaptação. Emprega elementos
inventivos e imaginativos na pesquisa formal como estratégia metodológica
necessária para o desenvolvimento da pesquisa.
A bricolagem é tomada como referencial para construção deste texto
porque propicia um olhar sob vários ângulos, com inúmeros elementos
que enriquecem a pesquisa e possibilitam a aproximação do pesquisador
e seu objeto de pesquisa. A proposta de relacionar bricolagem e História
de Vida em pesquisa é propícia, porque dá a possibilidade de abertura a
aspectos que a pesquisa instituída até aqui não dá conta, uma vez que
a objetividade está na “frieza” da relação com o objeto.
Por isso mesmo, destaca-se aqui o relacionamento entre as formas
de ver de um pesquisador; não há neutralidade, há uma aproximação
com o objeto. “Os bricoleurs atuam a partir do conceito de que a teoria
não é uma explicação do mundo – ela é mais uma explicação de nossa
relação com o mundo” (KINCHELOE, 2007, p. 16).
Aceitando o fato de que a experiência humana é marcada por incer-
tezas e que nem sempre a ordem é estabelecida, “o bricoleur se torna um
navegador de águas agitadas, traçando um curso que descreve a jornada
entre o científico e o moral, a relação entre o quantitativo e o qualitativo,
e a natureza das ideias sociais, culturais, psicológicas e educacionais”
(KINCHELOE, 2007, p. 18). Porém, não basta o envolvimento com o objeto
de pesquisa, não se pode abdicar de um certo distanciamento, no sentido
de uma escuta sensível. O pesquisador percebe o objeto de pesquisa
em sua complexidade, deixa-se surpreender por ele, permite-se tomar
consciência, interpretar, interferir, sem apresentar qualquer juízo.

Pensando em educação
Tomamos educação na acepção de construção de cidadania e possibi-
lidade de desenvolvimento humano. Nesta perspectiva, o professor Antonio
Joaquim Severino qualifica cidadania e educação da seguinte forma:

Cidadania vista como medida da qualidade da vida humana que se realiza


constituída pelas mediações histórico-sociais do existir concreto do homem.
Ou seja, o homem só é efetivamente humano na medida em que dispões
das condições objetivas que lhe permitam exercer sua tríplice atividade
prática: a prática produtiva, prática social, e a prática simbólica. ... Para ele

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a educação só se justifica e se legitima enquanto for um processo mediador
dessas mediações, ou seja, se ela se der como forma de viabilizar condições
de trabalho, de sociabilidade e de cultura simbólica. Portanto, se estiver
construindo a cidadania. (SEVERINO, 2002, p. 11)

Já para Edgar Morin, “todo desenvolvimento verdadeiramente hu-


mano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais,
das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie
humana” (MORIN, 2002, p. 55). Na perspectiva destes dois pensadores,
queremos refletir sobre História de Vida como possibilidade metodológica
para a Educação Cristã.

História de Vida e ação pedagógica de Jesus em Lc 24. 13-35


O evangelista Lucas, ao narrar o episódio de Emaús, apresenta
elementos das atitudes de Jesus que considero importantes no fazer pe-
dagógico. 1) Ele aproxima-se dos discípulos, caminha com eles, ouvindo,
inteirando-se do que se passa com eles. Percebe sua tristeza, decepção,
desistência de uma caminhada, sentimento de morte. 2) Ele questiona:
pergunta sobre o que aconteceu, dá possibilidade para que eles digam a
sua palavra. “O essencial do trabalho formador nesta pesquisa-formação
reside na formulação das questões que permitem a cada participante
colocar em movimento o seu próprio questionamento” (JOSSO, 2004, p.
132). Jesus tem para com os discípulos uma escuta sensível.
Remi Hess (2004) entende que a vida é constituída de momentos. De-
fine momento como “tempo-espaço que o sujeito se dá para se construir”,
dando, assim, a possibilidade da construção consciente de sua própria
subjetividade. Os momentos não são tempos e espaços estanques, são
vivências que vão se entrelaçando e construindo significados e identidade,
são pilares para a construção da subjetividade. Para Hess, “o momento é
constituído de um conjunto de elementos materiais, psicológicos(afetivos)
e passionais” desencadeado por outro momento. Pode-se dizer que, a
princípio, ele se alimenta de nossa herança, depois ele cresce e evolui.
É um feixe de várias ramificações que vão constituindo nosso presente
(Hess, 2004, p. 35).
Os discípulos, certamente, eram homens comuns que tinham suas
vidas, suas famílias, seus trabalhos, mas que por algum tempo viveram
‘o momento’ como discípulos. Agora, Jesus os obriga a recordar o que
havia acontecido e ajuda-os a refletir sobre o vivido. Estiveram com Je-
sus, ouviram seus ensinamentos, presenciaram seus milagres, ouviram
testemunhos de outros sobre sua atuação.
Esta vivência rememorada deu-lhes a possibilidade de refletir, a
percepção do que se passava e a apropriação dessa realidade. Isto os
autorizou a voltar a fazer parte da comunidade, não só como expectado-

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res, mas pessoas que têm algo a dizer. A percepção do que se passou
deu-lhes a possibilidade de instituírem-se como seres que podem refletir
e dizer sobre uma realidade.
Sérgio Borba (2004) afirma que “pelo vivo, e pelo vivido e no vivido,
temos nossos afetos, nossas emoções, nosso inconsciente” se faz a his-
toricidade no percurso de cada um. Certamente, este momento discípulos/
companheiros de caminhada de Jesus possibilitou àqueles homens terem
consciência de que há uma história sendo construída e que também fazem
história, assim como os outros discípulos. Uma história construída pelo
que foi vivido na carne de cada um, que vai muito além dos relatos que
possam se encontrar na documentação daquele período.
Esta história deixou sulcos na vida de cada um e delineou cada mo-
mento seu. De fato, é no vivido que temos nossas emoções, nossos afetos,
nosso inconsciente. Certamente, aí também está um emaranhado de acon-
tecimentos, sentimentos, situações que vão constituindo nossa vida.
Quando pensamos em nossas vivências, passamos a ter experiências
(JOSSO, 2004). Tendo em vista tais vivências, elas deixam de ser passado,
são constituidoras do presente e alicerces para o futuro. São constituintes
de nossos momentos e, por consequência, esses momentos são consti-
tuintes de nossa subjetividade. Trata-se de um processo de construção da
própria subjetividade, tornando o ser um autor-cidadão. “(...) é uma cons-
trução histórica, geográfica, social, psicanalítica, ecológica que, enquanto
tal, exige politização não só de uma dimensão do sujeito, tal como a eco-
nomia ou a política partidária, mas da vida em suas várias perspectivas,
englobando seu modo de ser e de se expressar (BARBOSA, 2000, p. 90).
Pode-se dizer que a história de vida de cada pessoa, construída
numa relação de intersubjetividades, é marcada por todas as pessoas
que povoaram a caminhada e com ela conviveram. Tanto marcas positivas
como negativas fazem parte da subjetividade, são trazidas junto, em um
processo de construção de conhecimento. Não é possível se desvencilhar
da instituição do outro, como outro, na dimensão do vivido. Na instituição
do outro, se dá o encontro de heterogeneidade que, segundo Ardoino é “a
experiência mais extrema, às vezes, a mais cruel, mas provavelmente tam-
bém a mais enriquecedora” (ARDOINO apud MORIN, 2002, p. 23). Esta
experiência possibilita um processo de alteração e ganha radicalidade na
possibilidade de o outro reagir diferente do modo que esperamos, “que se
opõe a nós, e do qual o desejo não responde ao nosso” (ARDOINO apud
BARBOSA, 2004, p. 17). A esta “capacidade que o outro possui sempre
de poder desmantelar, com suas próprias contraestratégias, aquelas das
quais se sente objeto”, Ardoino chama de “negatricidade”.
Jesus traz à memória o que eles já conheciam sobre a Bíblia e o
que tinha relação com os acontecimentos, valorizando a bagagem deles.

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Explora seu conhecimento acumulado, caminhando junto com eles. Neste
percurso amoroso, torna-se parte do grupo, usa gestos conhecidos, como
o partir do pão e é identificado.
Ouvir a própria história, refletir sobre ela e confrontá-la com as histó-
rias de vida do outro faz-nos percebê-lo, com suas emoções e vivências,
por vezes semelhantes às nossas ou totalmente díspares. Isto nos reporta
ao pensamento de Certeau: “Essa maneira de ‘dar a palavra’ às pessoas
ordinárias correspondia a uma das principais intenções da pesquisa, mas
ela exigia na coleta das conversas uma intenção diretiva e uma capaci-
dade de uma empatia fora do comum” (CERTEAU, 1994, p. 26).
Considerando ainda que o objeto em questão é o ser humano, é
preciso examiná-lo na sua complexidade. Isto, vem do fato de que ele é
constituído de bipolaridades que são, ao mesmo tempo, complementares e
antagônicas e, ainda, que as fronteiras entre antagonismo e complexidade
são tênues e permitem que os elementos permanentemente se entrecru-
zem. Esta articulação entre o físico, biológico, social, cultural, psíquico e
espiritual é o que desenha esta complexidade (MORIN, 2005, p. 140).
Esta complexidade situa-se não na ordem do complicado, mas na
forma de se olhar para o objeto, percebendo os feixes de elementos en-
volvidos em sua tessitura.

A complexidade, diferente de complicado, mais que uma característica do


objeto, se constitui numa qualidade do olhar do observador que propõe
“refletir ao invés de pensar nas propriedades assim emprestadas aos mate-
riais da pesquisa”, particularmente quando os procedimentos clássicos de
inteligibilidade se apresentam insatisfatórios e não dão mais conta do que
se propõem (BARBOSA, 2004, p. 17).

Pode-se dizer que o ser humano é um ser político, social, cultural,


econômico, religioso, que está envolvido em um mundo de relações, em
cuja construção se constrói como ser humano. É fundamental a visão de
Paulo Freire sobre o ser humano como inacabado; sujeito de história que
não só sofre os efeitos dos acontecimentos, mas que faz história; que é
capaz de ler o mundo; que tem a sua palavra e, ainda, considerar que a
educação se constrói no diálogo.
Paulo Freire fala ainda na capacidade do ser humano de ler o mundo:
“o ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita
ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência
do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE,
1984, p. 11). A possibilidade de ler o mundo e envolver-se com ele propicia
a alteração. Promove construção da subjetividade em relação, reforçando
a ideia de Freire, do ser inacabado e a vocação de ser mais.

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Considerar o ser humano como inacabado, em construção, permite,
ainda, a ideia de autoria e cidadania, defendida por Barbosa:

Educando é o sujeito que se percebe “não pronto” (fechado), como se fos-


se um lugar definitivo, mas “pronto” (aberto), no sentido da capacidade de,
per si, elaborar uma leitura do mundo e de se expressar nele, como numa
linguagem em que a continuidade é propriedade importante, em resposta
aos desafios das mais diferentes ordens e de velocidade cada vez mais
acentuada, apresentados pela dinâmica social (BARBOSA, 2000, p. 90).

O centro deste processo é a pessoa, que vai se constituindo como


ser humano à medida que se conscientiza de sua condição pessoal e so-
cial. Para Ernani Maria Fiori, “a antropologia acaba por exigir e comandar
uma política (FIORI, 1991, p. 53).
O trabalho com história da vida propicia a inclusão de todos em um
processo antropológico, gnosiológico e político, porque traz a perspectiva
de transformação. Ele aponta pelo menos dois aspectos relevantes para
a construção do conhecimento. Primeiro, contribui para o alargamento
da bagagem cultural da humanidade, à medida que dá voz aos calados.
A história oficial se pauta pela narrativa dos grandes acontecimentos da
humanidade, dos feitos heroicos de personagens que passaram pelo
mundo deixando marcas, nem sempre heroicas no sentido de construção
de humanidade cidadã, solidária e responsável. A história oficial, via de
regra, narra a história dos vencedores, deixando de lado a voz dos que
morreram nas batalhas, dos que deram o sangue para que houvesse uns
poucos vencedores. De outro lado, não visibiliza o cotidiano que dá sa-
bor e cor à vida, que perpetua valores e constrói identidades. Para Mary
Del Priore, “os problemas colocados pelo cotidiano não são ‘menores’
e a história não é um produto exclusivo dos grandes acontecimentos;
ao contrário, ela se constrói no dia a dia de discretos atores que são a
maioria” (DEL PRIORE, 1997, p. 266).
Em uma experiência com histórias de vida em sala de aula, um grupo
de quatro alunos e alunas conseguiu, a partir de suas próprias histórias,
construir um quadro sociocultural e econômico da sociedade brasileira
dos anos 70, explicitando os sulcos deixados em suas vida pela ditadura
militar. Mostraram aspectos e marcas que não passaram pela oficialida-
de, mas que foram influenciados pelo desenrolar desta história oficial, no
dia a dia de cada um, cada uma. “A História de Vida reconstrói aspectos
individuais, singulares de cada sujeito, mas, ao mesmo tempo, ativa uma
memória coletiva, pois, à medida em que cada indivíduo conta sua história,
esta se mostra em um contexto sócio-histórico que precisa ser hermeneu-
ticamente reconstituído pelo pesquisador” (OLIVEIRA, 2011, p. 2).

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No caso dos discípulos de Emaús, eles se ouvem, tomam consciên-
cia do que se passa e voltam à comunidade. “A tomada de consciência é
entendida aqui como atenção voltada para qualquer coisa, como a entrada
de um elemento até então não percepcionado no campo da consciência;
há tomadas de consciência que podem provocar mudanças mais ou me-
nos importantes no campo consciencial e, por esse motivo, necessitam
de mais ou menos tempo para sua integração” (JOSSO, 2004, p. 132).
Eles percebem o que aconteceu e retornam à comunidade dos discípulos,
agora com sentimento de vida e não de morte, prontos para enfrentar os
acontecimentos com a comunidade.
As narrativas de histórias de vida propiciam a explicitação dos con-
dicionantes sociais e culturais que atuam no cotidiano do indivíduo que,
por sua vez, condicionam sua atuação na sociedade. A relação entre o
público e o privado é uma relação dialética. Via de regra, na família se
constrói os valores que vão direcionar o modo como o indivíduo se co-
locará na sociedade. Por exemplo, a questão de gênero é um aspecto
marcante nesta perspectiva da dialética entre o cotidiano e a sociedade.
O gênero sublinha o aspecto relacional entre o homem e a mulher. Em
geral, na família é acentuada a relação assimétrica entre ambos e que
vai perpetuar-se na esfera do público.
Em segundo lugar, contêm um caráter formativo, contribuem no
processo de formação individual e coletivo no grupo envolvido. Explici-
tar essas vivências e diferenças, dialogar com elas é algo que produz
novos significados e um novo patamar de conhecimento da pessoa; por
conseguinte, uma nova identidade do grupo. Para Josso, há uma autoin-
terpretação e uma cointerpretação (JOSSO, 2004, p. 54), produzindo,
assim, uma reformulação da subjetividade e do conhecimento. Kincheloe
afirma: “Ao examinarmos o eu e sua relação com outros nesses contextos,
adquirimos um sentido mais claro de nosso propósito no mundo, espe-
cialmente em relação à justiça, à interconexão e à produção de sentido.”
(KINCHELOE, 2007, p. 55).
Este exercício possibilita, aos participantes do grupo, um caminhar
conscientizador de quem cada pessoa é e como se constitui no que é.
As vivências, como já dito, deixam de ser passado, são constituidoras do
presente e alicerces para o futuro. Passando por um processo de cons-
trução da própria subjetividade, o ser torna-se autor-cidadão e produtor
de saber. Para Ivone Gebara, ‘contar já é interpretar. O ouvir a narração
já é reinterpretar o que foi contado” (GEBARA, 2000, p. 47).

A experiência do “contar” não só indispensável, mas revela nossa própria


condição humana. Somos seres que nos contamos sempre e, a cada vez,
guardamos os traços do passado à luz do presente. O presente muda a

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compreensão que temos do passado e de nós mesmos. O presente introduz
novas mediações para compreender o passado e parece às vezes ampliar
ou às vezes diminuir seu significado (GEBARA, 2000, p. 48).

Nesta perspectiva, as narrativas de História de Vida não se consti-


tuem apenas no relato de uma história que passou, ela aponta para um
vir a ser. Para Delory-Momberger (2008), a narrativa não é só o lugar
no qual o indivíduo toma forma, mas é o espaço que lhe possibilita ser
sujeito de uma história a ser construída. “A ‘história de vida’ não é a
história da vida, mas a ficção apropriada pela qual o sujeito se produz,
como projeto dele mesmo. Só pode haver sujeito de uma história a ser
feita, e é, à emergência desse sujeito, que intenta sua história e que se
experimenta com projeto, que responde o movimento da biografização”
(DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 66).

Considerações Finais
Temos aqui alguns elementos importantes: o entendimento sobre
educação, a história de vida como uma possibilidade metodológica e a
atuação pedagógica de Jesus. Ele aproxima-se deles, pergunta sobre
o que está acontecendo, sobre o que lhes está abatendo. Ouve suas
histórias, traz à memória o que já sabiam, conversa com eles sobre os
acontecimentos. Certamente, eles contam sobre os momentos vividos
com Ele. Momentos estes que deixaram marcas que, ao serem trazidas
à memória, começam a dar sentido a suas vidas. Jesus, assim, os capa-
cita, os autoriza a voltar à comunidade apostólica e dizer: “Nós também
fazemos parte com Cristo ressurreto”.
Consideramos o entendimento sobre educação, apontado nesta
reflexão, como construção de cidadania, que se dá em relação entre se-
res humanos, em diálogo e que entende o educando não como um ser
fechado, pronto, mas com a possibilidade de ser mais, pensando História
de vida como momentos vividos que são constituintes de subjetividades,
numa dimensão individual e social.
Observando a atuação pedagógica de Jesus, nota-se que ele traba-
lha com os discípulos na dimensão do cotidiano. Sua atuação se dá na
relação com a própria vida deles, parte de suas vivências, utiliza recur-
sos relacionados com elas e do conhecimento deles. A reflexão sobre os
acontecimentos da vida propicia-lhes uma tomada de posição. A tomada
de consciência leva-os a uma convicção e a uma mudança de sentimento
(de morte para a vida). Despertados, voltam ao convívio da comunidade,
prontos para enfrentar os desafios do momento. Diante disto, considero
que é possível fazer Educação Cristã utilizando a História de Vida.

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Inclusão de pessoas com deficiência:
a responsabilidade social das igrejas
La inclusión de personas con discapacidad:
la responsabilidad social de las iglesias

Inclusion of people with disabilities: the social


responsibility of the churches
Elizabete Cristina Costa-Renders

RESUMO
O presente artigo trabalha a inclusão de pessoas com deficiência como uma
responsabilidade social das igrejas. Conceitos como bem comum, acessibilida-
de e inclusão darão o norte para o agir das igrejas no sentido da construção
das condições de acesso e permanência s para todas as pessoas nos diversos
espaços sociais, a começar pela educação e trabalho.
Palavras-chave: Inclusão; bem comum; acessibilidade; igreja; pessoas com
deficiência.

ABSTRACT
In this article it is proposed to understand the inclusion of people with disabilities
as a social responsibility of the churches. Concepts such as the common good,
accessibility and inclusion will conduct the churches towards the construction
of the conditions of access and permanence for all people in all social spaces,
starting with the of access to education and work.
Keywords: Inclusion; common good accessibility; church; people with disabilities.

RESUMEN
Este artículo se propone entender la inclusión de personas con discapacidad
como una responsabilidad social de las iglesias. Conceptos tales como el bien
común, la accesibilidad y la inclusión indicarán la orientación para la acción de las
iglesias en dirección a la construcción de condiciones de acceso y permanencia
para todas las personas en os diversos espacios sociales, empezando por los
espacios de educación y trabajo.
Palabras clave: Inclusión; bien común; accesibilidad del bien común; iglesia;
personas con discapacidad.

Introdução
Bem comum, acessibilidade e inclusão serão os conceitos trabalhados,
nesse artigo, na perspectiva da pergunta pela responsabilidade social das
igrejas no que diz respeito à inclusão social de pessoas com deficiência.
O bem comum nos remete à destinação originária de todos os bens
em benefício de todas as pessoas e insere-se no chão da dignidade hu-
mana. A acessibilidade, por sua vez, relaciona-se intrinsecamente com o
caminho que nos remete à metáfora fundante do cristianismo – o acesso.

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Na contemporaneidade, a inclusão ganha força como paradigma que,
amparado em políticas afirmativas, chama a igreja à construção de uma
sociedade para todos a começar pelos espaços eclesiais.
O texto trabalha com três subtemas. Pergunta pelo Bem comum e
pelo sentido de a pertença ao mundo amparando-se na tradição oral da
criação. Na sequência, discorre sobre Acessibilidade e o sentido da inclu-
são nas igrejas, com base na cristologia. Por fim, O desafio da inclusão à
fé cidadã indaga pela responsabilidade social das igrejas e busca pistas
no agir cotidiano de nossas comunidades, no sentido da construção das
condições de acesso para as pessoas com deficiência, a começar pela
educação e trabalho.

Bem comum e o sentido de pertença ao mundo

Agora as palavras ambíguas, cada uma delas com sua parte de verdade e
sua parte de manipulação, são democracia, comunidade, coesão,
diálogo... e outras palavras relacionadas, como diversidade,
tolerância, pluralidade, inclusão, reconhecimento, respeito.
Jorge Larrosa

É usual ouvirmos por aí: Nosso governo é o governo da inclusão!


Nossa escola é a escola da inclusão! Nossa igreja é a igreja da inclusão!
Tornou-se lugar comum, falar da inclusão na sociedade contemporânea.
No entanto, ainda não se tornou o lugar comum para todas as pessoas.
Ou seja, nem todas as pessoas podem usufruir de todos os espaços e
bens sociais. Nossa pergunta nesse artigo é pela responsabilidade ecle-
sial diante da demanda social pela inclusão de grupos historicamente
excluídos no acesso aos bens e serviços sociais construídos no decorrer
da história. Especialmente, trabalharemos a responsabilidade social da
igreja quanto à inclusão das pessoas com deficiência e perguntamos pelo
seu acesso ao bem comum.
Se considerarmos a perspectiva existencial, o bem comum nos re-
mete imediatamente ao solo de nossa existência: o sentido de pertença
ao mundo. Ou seja, a existência humana somente é possível no chão de
todos nós – nosso primeiro bem comum.
Na perspectiva da fé judaico-cristã, a criação está expressa no dese-
nho da Terra imersa no cosmos: ar, céu, terra, trevas, luz, mares, solos,
plantas, sementes, frutos, animais, seres humanos – enfim, uma multidão
de seres vivos vivendo juntos. O desenho desse chão comum apresenta
todas as condições para gerar e preservar a vida, por isso, segundo o
texto bíblico era bom – isto aponta para a compreensão ética da vida.
A narrativa de Genesis, portanto, nos desafia a pensar o bem comum
em todas as esferas da existência humana, a começar pela afirmação

66 Elizabete Cristina Costa-Renders: Inclusão de pessoas com deficiência

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de que todos nós, queiramos ou não, pertencemos ao mundo e temos
necessidades.
Afirmar o sentido da pertença ao mundo e as necessidades ineren-
tes à existência humana é importante porque traz, em si, a impertinência
dos sistemas excludentes histórica e socialmente construídos. O silen-
ciamento do direito à vida pode levar à violação da dignidade humana
quando alimenta e legitima os sacrifícios humanos – de uns em prol de
alguns outros. Nas palavras de Hugo Assmann, “... ao desconsiderar o ser
humano como um ser-com-necessidades, eliminou-se também qualquer
designação de um limite [...] do que poderíamos chamar de mínimo vital,
cuja obtenção, devendo estar assegurada para todos, pudesse dar um
conteúdo concreto mínimo ao conceito de dignidade humana inviolável”
(ASSMANN, 1991, p. 18).
O conceito de bem comum emerge da afirmação do direito de todas
as pessoas à vida e afirma uma doutrina cristã, a “destinação originária
de todos os bens ao benefício de todos” (ASSMANN, 1991, p. 18). Ou
seja, o bem comum exige a ruptura com sistemas sociais excludentes e a
afirmação de ações, social e cooperativamente construídas, a fim de que
“nossos conjuntos sociais preservem a solidariedade mínima em situações
extremas, nas quais estão em jogo os direitos básicos da corporeidade
humana em situações-limite” (ASSMANN, 2001, p.61).
O primeiro direito básico da corporeidade humana é o chão. A vida
(e vida, não somente, humana) apenas é possível se localizada num
meio ambiente. Terra, ar, água – são condições primordiais para a vida.
Portanto, se nosso primeiro e inegociável bem comum é a vida, não po-
demos perder de vista a perspectiva da interdependência dos seres vivos.
Voltando ao ato da criação, o ser humano, por si só, não tem condições
de sustentar a vida - a duras penas, parece que estamos redescobrindo
esta realidade nos tempos contemporâneos.
Voltando-nos para a complexa condição humana (ser biológico e
cultural, com necessidades e desejos), bem como para a complexidade
da sociedade contemporânea, entendemos, tal qual Morin (2002, p. 54),
que “viver exige, de cada um, lucidez e compreensão ao mesmo tempo,
e, mais amplamente, a mobilização de todas as aptidões humanas”.
Assim, poderíamos sinalizar alguns bens necessários à garantia de
uma vida digna para todas as pessoas, tais como: reconhecimento mútuo,
moradia, alimentação, educação, esperança, trabalho, descanso, saúde,
fé, produções culturais, informação, acessibilidade (física, comunicacional
e atitudinal), amor, etc. Nesse emaranhado de bens, o sentido da pertença
é o viés que traduzirá nossas intenções em ações, na operacionalização
do bem comum em todas as esferas da vida.

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Acessibilidade e o sentido de inclusão nas igrejas

Respondeu-lhe Jesus: eu sou o caminho,


e a verdade e a vida.
João 14.6

Precisamos retornar as nossas raízes cristãs para responder a essa


pergunta dos discípulos. Ou melhor, precisamos voltar ao Cristo que nos
trouxe os fundamentos do Evangelho como a abertura de Deus a todas
as pessoas. É notório, no caminhar de Jesus entre as pessoas, que ele
não respeitou espaços fixados ou territórios demarcados pela tradição de
sua época. Ele achegava-se e se colocava com publicanos, pecadores,
sacerdotes, mulheres, crianças, leprosos, pessoas com deficiência, auto-
ridades políticas, etc. Enfim, Jesus estava com e dialogava com as mais
diferentes pessoas de seu tempo.
Jesus, portanto, exercitou bem o seu direito de acesso, mesmo que,
na sua época, este não fosse um direito. Ele achegava-se, circulava e
ficava em todos os lugares nos quais desejava ou necessitava chegar e
estar. Mas tal atitude exigia que o mesmo assumisse o compromisso com
o rompimento das barreiras e dos impedimentos sociais e religiosos de
seu tempo, a começar pelo seu nascer e morrer entre nós.
Foi preciso tanto nascer como o menino Jesus, rompendo as barrei-
ras entre divino e humano – e o verbo se fez carne e habitou entre nós
(Jo 1.14), quanto crescer entre nós rompendo as barreiras da carne – não
precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, por-
que ele mesmo sabia o que era a natureza humana (Jo 2.25). Na raiz do
Evangelho, portanto, está o fato de que Jesus não somente abriu caminho,
ele se fez caminho de acesso ao Pai – eu sou o caminho, e a verdade e a
vida (Jo 14.6) e incluiu todas as pessoas – Pai nosso (...), o pão nosso de
cada dia nos daí hoje (Mt 6.9-11). A sua própria existência traz na essência
o romper barreiras. Jesus foi acesso e criou acesso no caminho.

O caminho acessível é dinâmico e segue a dinâmica da vida humana: na


imprevisibilidade, na vulnerabilidade, na diferenciação e nas conversões
exigidas pela caminhada. Neste sentido, falar de Deus no caminho acessível
é uma tarefa bastante complexa, onde não cabem categorias generalizan-
tes, pois estas não atendem a demanda pelo respeito à singular dignidade
de cada pessoa. Falar de Deus no caminho acessível tem a ver com falar
das pessoas com deficiência e dar visibilidade às necessárias condições de
acessibilidade.(COSTA-RENDERS, 2009, p. 143)

Cristologicamente falando, a acessibilidade está na raiz do Evange-


lho – ter novamente acesso ao Deus Criador e Sustentador da Vida é a

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boa nova que vem com Jesus Cristo. Se, por um modo, estamos do outro
lado do abismo por causa do pecado. Por outro, estamos recebendo por
meio do Cordeiro que tira todo o pecado do mundo, a possibilidade de
acesso ao Pai pelo que possibilita a comunhão do povo com seu Deus
novamente. Todavia, ao perguntarmos pelas práticas eclesiais no decorrer
da história, contrariamente ao Evangelho do Cristo, as igrejas não estão
isentas da prática segregadora e excludente – elas, por vezes, foram e,
ainda, são espaços de exclusão e segregação, bem como foram e, ainda,
são, coniventes com a exclusão social.
É legítimo falar de inclusão nas igrejas, pelo menos, por dois motivos.
Primeiro, se o Cristo foi, ele mesmo, meio para a eliminação de barrei-
ras e criação das condições de acesso ao Pai pela graça do Evangelho,
nós, comunidade comprometida com os valores do Evangelho do Cristo,
devemos assumir o compromisso com a inclusão social. Segundo, se no
decorrer da história contribuímos para a construção de barreiras sociais
e religiosas, na contemporaneidade, precisamos nos converter, nascer
de novo e aplicar o princípio da Graça incondicional na construção de
espaços eclesiais acessíveis para todas as pessoas. Isto exige um movi-
mento em mão dupla. O quebrar barreiras e criar acesso deve começar
em nós e seguir, profeticamente, na denúncia sobre a exclusão e no
anúncio sobre os meios sociais para a eliminação de barreiras impostas
a determinados grupos sociais.
Na contemporaneidade, acessibilidade é um conceito que vem da
área da arquitetura e que tem muito a nos indicar no sentido da responsa-
bilidade social das igrejas nos termos da inclusão que visa uma sociedade
para todos numa via de mão dupla – onde todos assumam sua parcela de
responsabilidade na construção das condições de acesso para todas as
pessoas. Segundo o Decreto de Acessibilidade, Art 8º, inciso I, o termo
acessibilidade nos remete à “condição para utilização, com segurança e
autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos
urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos,
sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoas com deficiên-
cia ou mobilidade reduzida”. Isto nos remete à pergunta pela fé cidadã.

O desafio da inclusão à fé cidadã

Não existe propriamente diferença entre “sãos” e “impedidos”, porque toda


vida humana é limitada, vulnerável e débil. Nascemos carentes de ajuda e
morremos no mais absoluto desamparo. Por isso não existe, na realidade,
uma vida “não-impedida”. Tão somente existem os ideais de saúde que
se forjam na sociedade dos “eficazes e fortes”, que fazem com que uns
determinados seres humanos se vejam condenados a ser “impedidos”.
Jürgen Moltmann

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Na história social das “pessoas com deficiência” 1, localizamos mo-
delos de inserção social marcados ora pelo assistencialismo caritativo,
ora pela atuação clínico-terapêutica, que lançaram sobre a vida destas
pessoas, as marcas da segregação e exclusão e, por conseguinte, sua
invisibilidade social.2
A segregação e a exclusão decorrem de estigmas e objetivações im-
postos às pessoas com deficiência, as o quais têm, muitas vezes, origens
em antropologias religiosas, como por exemplo, quando, na antiguidade
se colocava a pessoa com deficiência na categoria de sub-humana – a
deficiência tinha origem divina (anjos) ou demoníaca (demônios). Ou ainda,
quando, na Idade Média – no universo judaico-cristão, a deficiência era si-
nônimo de castigo divino. Enfim, os estigmas trazem em si uma conotação
de des-humanidade que leva à discriminação, segregação ou exclusão.
Localizamos, portanto, a dimensão simbólica deste fenômeno que,
por sua vez, indica os desafios que são postos aos que entendem a fé
na dimensão cidadã. Se, contemporaneamente, nossa compreensão
da condição humana ainda está carregada de força simbólica - seja na
religião (mito da criação) ou na ciência (mito do progresso) expressa no
anseio pela perfeição humana, somos, também, desafiados a rever nos-
sos conceitos e reconhecer a dignidade e os direitos sociais das pessoas
com deficiência.
O rompimento do histórico de segregação e exclusão parece ser
vislumbrado com o paradigma da inclusão 3, onde as pessoas com defi-
ciência ganham visibilidade e as incapacidades são compartilhadas com
a sociedade (equiparação de oportunidades, ONU, 1990) no sentido da
superação das barreiras (arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais,
etc.) impostas às mesmas.
O paradigma da inclusão já encontra ressonância no ambiente cristão.
Alguns documentos representativos de confissões religiosas têm aponta-
do para uma antropologia inclusiva – no sentido do reconhecimento da
diversidade da criação e do valor das diferenças. Podemos citar, como
exemplo, os textos: Uma igreja de todos e para todos: uma declaração
teológica provisória – documento produzido pelo Conselho Mundial das
Igrejas em 2005 e Levanta-te, vem para o meio! – texto-base da Cam-
panha da Fraternidade de 2006 da Igreja Católica Apostólica Romana no
1
Fazemos uso do termo “pessoas com deficiência” justamente no sentido de dar visibilidade
à dignidade destas pessoas e às necessárias condições de acessibilidade nos espaços
sociais (SASSAKI, 1999).
2
Desenvolvo esse tema no livro Educação e espiritualidade: pessoas com deficiência, sua
invisibilidade e emergência. Veja bibliografia final.
3
Antes do movimento pela inclusão, aconteceu o movimento pela integração (adaptação da
pessoa com deficiência de acordo com as condições advindas da sociedade – caminho
de uma via só) que, apesar de suas limitações teóricas, preparou o caminho histórico
para a inclusão – caminho de mão dupla (incapacidades compartilhadas socialmente).

70 Elizabete Cristina Costa-Renders: Inclusão de pessoas com deficiência

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Brasil. São iniciativas modestas, mas significativas no sentido da cons-
trução de confissões de fé que contribuam para a inclusão das pessoas
com deficiência.
O texto-base da Campanha da Fraternidade, de 2006, faz algumas
denúncias bastante relevantes para os que pretendem contribuir na cons-
trução de uma sociedade para todos, tais como:

Cabe denunciar o sentimentalismo e a piedade estéril, o paternalismo ma-


nipulador, a cultura do corpo perfeito, os estigmas sociais e rótulos e, prin-
cipalmente, a tendência ao saneamento da espécie humana e o eugenismo
mascarado na rejeição das pessoas com deficiência. A exclusão daqueles
que não são “tecnicamente” perfeitos, daqueles que são considerados “invi-
áveis” numa sociedade de fortes, saudáveis e competitivos, a pretensão da
espécie humana pura, sem defeitos, fragilidades ou fraquezas, já deu origem
a horrendos crimes contra a humanidade. (CNBB, 2006, p. 93).

Rejeitar a máxima do ser humano perfeito 4 é um dos caminhos


para a superação dos estigmas e objetivações impostos às pessoas com
deficiência.
Tenho trabalhado, em outros textos, na busca de uma teologia da
inclusão, sendo que para tal me sirvo de algumas ideias, tais como:

• precisamos utilizar novas metáforas em nossas celebrações no


sentido do convite aberto a todos para celebrar: o Deus que se
comunica no vento fala com todas as pessoas porque o vento
nos toca - sejamos cegos, videntes, surdos ou ouvintes;
• precisamos resgatar a diversidade da criação fugindo das ciladas
do eugenismo: o Deus Trino, que é diverso e uno, nos autoriza a
sermos diferentes na unidade, bem como o Cristo, que é servo,
nos autoriza a viver nossa corporeidade tal qual se apresenta;
• precisamos assumir nossa comum vulnerabilidade (incapacidade
compartilhada) como espaço que potencializa nossa humanidade: o
Deus que se fez passar pelos ciclos da vida em toda a sua condi-
ção de vulnerabilidade (do nascimento à morte) nos autoriza a viver
as diferentes funcionalidades inerentes à condição humana;
• precisamos garantir que o caminho seja acessível: o Deus,
que atua em todos e para todos pela incondicional Graça, nos
vocaciona à permanente construção do caminho acessível para
todas as pessoas.
4
Refiro-me, aqui, ao conceito da perfeição acabada; também se usa, na teologia, o conceito
de uma perfeição aperfeiçoando-se, no sentido de um processo contínuo e inacabado,
tal qual um horizonte.

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Enfim, o paradigma da inclusão nos desafia a uma conversão de
olhares: do foco na deficiência para o foco nas habilidades humanas e nas
incapacidades compartilhadas socialmente. O que exige de todos nós, e
especialmente das igrejas (pelo papel profético que têm) a construção das
condições de acesso e permanência das pessoas com deficiências nos di-
versos espaços sociais. Aponta-se, portanto, para dignidade de cada pessoa
nos termos dos direitos humanos e dos valores do Reino de Deus.

Em que se traduz a responsabilidade social das igrejas com a inclu-


são de pessoas com deficiência?
O Brasil tem construído uma política pública de inclusão que é re-
ferência mundial, são vários os documentos que indicam os princípios
fundamentais para a construção de uma sociedade para todos. Também
existem inúmeras leis com disposições para a construção da acessibili-
dade (física, comunicacional e atitudinal) nos diversos espaços sociais.
Podemos citar: Constituição Federal de 1988; a Lei de Cotas na Empre-
sas – 3298/1999; o Decreto de Acessibilidade -5296/2004; as Normas
de Acessibilidade - NBR 9050/2004; o Decreto de LIBRAS - 5626/2005;
a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva, etc.
Se fizermos uma leitura atenciosa das leis e políticas acima citadas,
notaremos rapidamente em que ações devem traduzir-se a responsabili-
dade social das igrejas. Nesse artigo, me propus a elencar as principais
ações no que diz respeito à garantia do acesso de todas as pessoas às
comunidades eclesiais e seus templos, bem como à luta pela igualdade
de condições de acesso e permanência das pessoas com deficiência na
educação e trabalho.

1) Acessibilidade: um desafio legal para as igrejas


Mais do que conhecer o conceito de acessibilidade, precisamos
estar sensíveis às condições de uso dos espaços de nossas igrejas por
todas as pessoas que nela desejam adentrar. Perguntas simples podem
ser feitas. A entrada da igreja é convidativa? Há algum impedimento para
chegar até o templo? Uma pessoa em cadeira de rodas consegue chegar
e entrar no templo ou nas dependências da igreja? Caso ela deseje utilizar
o banheiro, isto será possível?
Geralmente, os templos religiosos têm como característica o acesso
através de escadas, na verdade, de escadarias. Isto foi parte da concep-
ção arquitetônica de uma época. Todavia, para além de questões esté-
ticas, hoje, somos desafiados a pensar as condições de acesso, do ir e
vir nas dependências dos espaços coletivos, públicos. Além da beleza,
consideram-se atualmente a segurança e a autonomia das pessoas nestes

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espaços. Isto é inclusão, pensar como um espaço deve ser utilizado por
todas as pessoas.
Lembre-se que não estamos falando de preparar a igreja quando uma
pessoa cadeirante se converte e começa a freqüentar nossa comunida-
de. Estamos falando de pró-atividade, de pensar a acessibilidade antes
mesmo das pessoas com diferenças significativas chegarem. Trata-se
de ser acessível sempre, com a presença ou não de uma pessoa com
deficiência na igreja.
Podemos seguir perguntando: Por um lado, caso uma pessoa
com deficiência passe na calçada da igreja, ela se sentirá convidada a
participar? Terá as condições de circular e assentar-se com conforto e
segurança nas dependências da igreja? Terá condições de participar das
nossas liturgias? Por outro lado, temos utilizado diferentes códigos de
comunicação em nossas igrejas? A LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais)
e o Braile estão presentes no nosso cotidiano? Sabemos comunicar o
amor de Deus fora dos padrões racionais? Muitas outras perguntas se-
riam possíveis, todavia, basta-nos entender que acessibilidade é pensar
e construir as condições de acesso para todas as pessoas antes mesmo
delas desejarem estar conosco.

2) Ação profética rumo à educação inclusiva


A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional de 1996 afirmam a “igualdade de condições para o
acesso e permanência na escola”(LDB, art.3º, inciso I). Tal afirmação
nos remete à necessária atuação no sentido da garantia desse direito às
crianças com deficiência. Hoje, todas as crianças com deficiência devem
matricular-se na rede regular de ensino, sendo amparadas por dotação
dupla de recursos e pelo atendimento educacional especializado (segundo
o Decreto 6571 de 2008).
Sabemos de uma série de contradições na operacionalização da
educação inclusiva no Brasil, todavia, cabe às comunidades cristãs atu-
arem na busca da garantia desses direitos. Inclusive, vale lembrar que a
Lei 7853 de 1989 “... institui tutela jurisdicional de interesses coletivos ou
difusos das pessoas com deficiência, disciplina a atuação do Ministério
Público e define como crime a recusa de alunos com deficiência pela
escola regular”(Lei 7853, art 2º, inciso I, alínea f).
Se no passado, tínhamos a educação especial sendo oferecida em
escolas segregadoras, hoje, precisamos o direito à convivência com as
diferenças para todas as crianças, sejam com ou sem deficiência. Afir-
mamos, na contemporaneidade, o modelo social de deficiência, quando
se entende a incapacidade também como “resultante da relação entre as
pessoas (com e sem deficiência) e o meio ambiente” (ONU, 1983). Sendo

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assim, não há legitimidade na separação ou segregação de alguns seres
humanos com base na naturalização de sua incapacidade.
Nos termos das ações decorrentes dessa nova perspectiva para a
educação no Brasil, as igrejas têm como responsabilidade:

• Agir no sentido da promoção de fóruns de discussão que abordem


o preconceito e a discriminação que atingem as pessoas com
deficiência nas diversas faixas etárias. Inclusive, perguntando
pela abrangência do preconceito e discriminação a esse grupo
nas nossas comunidades;
• Agir no sentido do apoio às famílias de crianças ou adultos com
deficiência no sentido da aceitação da diferença significativa e do
conhecimento e luta pela garantia de seus direitos educacionais
desde a educação infantil até a educação superior;
• Agir no sentido do apoio às famílias na luta pelo direito ao trans-
porte acessível – não basta a porta estar aberta, é preciso ter
como chegar;
• Agir no sentido da implementação da educação inclusiva em
nossas comunidades, perguntando pelas condições de acesso
e permanência de pessoas com deficiência em nossas escolas
dominicais e em nossas instituições de ensino;
• Agir no sentido de fazer cumprir a Meta no. 4 do PNE – Plano
Nacional de Educação – cujo texto diz: “Universalizar para a
população 4 a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades ou superdotação, na rede regular de ensino”, do-
cumento este que aguarda aprovação no Congresso Nacional
desde dezembro de 2010.
• Agir no sentido da produção de materiais didáticos inclusivos
que possam ser utilizados por todas as crianças.

Faz parte da tradição cristã, a prática educacional, inclusive, com a


instituição de escolas e universidades confessionais. Nosso papel profético,
no que diz respeito à educação inclusiva, começa em nossas instituições e
visa à construção da educação com qualidade para todas as pessoas.

3) Ação profética rumo à inclusão no mercado de trabalho


O paradigma da inclusão exige que, não somente, mentalidades
sejam transformadas, mas também que práticas excludentes sejam supe-
radas. Assim, as políticas afirmativas vem ao encontro da reparação de
erros históricos e da garantia de direito de acesso aos diferentes espaços
sociais. No caso do trabalho, o Brasil implementou uma cota para garantia

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de representatividade das pessoas com deficiência nos quadros funcionais
das empresas. Segundo a Lei 3298/1999, art. 36, “a empresa com cem
ou mais empregados está obrigada a preencher de dois a cinco por cento
de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou
com pessoa portadora de deficiência habilitada”, nos seguintes termos:

I - até duzentos empregados, dois por cento;


II - de duzentos e um a quinhentos empregados, três por cento;
III - de quinhentos e um a mil empregados, quatro por cento; ou
IV - mais de mil empregados, cinco por cento.

Tal política busca romper com os ciclos viciosos da exclusão e as-


sistencialismo na sociedade brasileira. É notório o abismo entre pessoas
com e sem deficiência quando se trata da formação para o trabalho. Uma
das dificuldades na implementação dessas cotas é baixa formação esco-
lar das pessoas com deficiência no Brasil. Assim, nos termos das ações
decorrentes dessa nova política, as igrejas tem como responsabilidade:

• Agir no sentido da divulgação do direito que as pessoas com


deficiência tem ao trabalho, zelando pelas condições de acessi-
bilidade das empresas;
• Agir no sentido da capacitação ou do apoio às instituições que
capacitem pessoas com deficiência para o uso das novas tecno-
logias da informação e comunicação;
• Agir no sentido da inclusão de pessoas com deficiência nos qua-
dros funcionais das igrejas, inclusive no corpo clerical.

Mais uma vez, a ação profética começa em nós, na implementação


das condições de acesso e da representatividade do grupo social das
pessoas com deficiência nos quadros funcionais de todas as nossas
instituições. Todavia, isto exigirá a eliminação de barreiras físicas, atitu-
dinais e comunicacionais, bem como uma gestão flexível que possibilite,
inclusive, a formação no trabalho.

Conclusão
Como comunidades cristãs, temos um compromisso social com a
acessibilidade promovendo a inclusão social. Por um lado, devemos
nos esforçar para iniciar imediatamente a construção das condições
de acesso para todas as pessoas que desejarem participar de nossas
igrejas. Por outro lado, devemos nos engajar socialmente na busca da
garantia dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência nos
termos do bem comum.

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As ações acima propostas não demandam muitos esforços financeiros
– podemos trabalhar com parcerias, mutirões ou doações. Entendemos
que, acima de tudo, tais ações demandam esforços pessoais no sentido
de quebrarmos os círculos do preconceito e medo e, finalmente, de nos
dispormos a incluir pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida em
nossas comunidades e nos diversos espaços sociais. Podemos começar
pela educação e trabalho.

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76 Elizabete Cristina Costa-Renders: Inclusão de pessoas com deficiência

5elizabeth.indd 76 28/2/2012 08:26:12


Cuidados paliativos numa perspectiva
brasileira: aspectos introdutórios e a
contribuição das mulheres
Palliative care in a Brazilian perspective:
introductory aspects and contribution of woman

Los cuidados paliativos en el punto de vista


brasileño: aspectos introductorios y la
contribución de las mujeres

Blanches de Paula

Resumo
Este artigo é uma introdução ao tema dos cuidados paliativos numa perspectiva
brasileira. Trata-se, de forma geral, de um retrato histórico de seu nascedouro
e a contribuição de mulheres que lutaram para a continuidade desse tipo de
cuidado na área da saúde e educação. Ademais, apresenta desafios para a
reflexão teológica e sua importância para o cuidado pastoral nos momentos de
despedida da vida.
Palavras-chave: Cuidados paliativos; protagonismo das mulheres; pastoral do
consolo.

Abstract
This article is an introduction to the issue of palliative care in a Brazilian pers-
pective. This is generally developed in a historical perspective focusing on its
origins and the contribution of women who fought for the continuation of this type
of care in health and education. Beside this the article points out challenges for
theological reflection and its importance for the pastoral care for those times of
departure from life.
Keywords: Palliative care; women’s leadership; pastoral care.

Resumen
Este artículo es una introducción al tema de los cuidados paliativos desde una
perspectiva brasileña. Se trata, de manera general, de un retrato histórico de
su nacimiento y la contribución de mujeres que lucharon para la continuidad de
ese tipo de cuidado en el área de la salud y la educación. Además, presenta
retos para la reflexión teológica y su importancia para el cuidado pastoral en los
últimos momentos de vida.
Palabras clave: Cuidados paliativos; liderazgo de las mujeres; consuelo pastoral.

Introdução
Quem não sabe se entregar ao cuidado do outro terá mínimas possi-
bilidades de viver até o fim dos seus dias com a semente do amor. Quando

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 77-87, jul./dez. 2011 77

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falamos de cuidado, falamos de amor em todos os tempos. O tempo do
viver e o tempo do morrer são inseparáveis. Cuidados Paliativos surgem
de um amor à vida até o fim dos seus dias, ou seja, até seu momento
derradeiro: a morte. Os Cuidados Paliativos foram definidos pela Organi-
zação Mundial de Saúde (OMS, 2002)

... como uma abordagem ou tratamento que melhora a qualidade de vida de


pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da
vida. Para tanto, é necessário avaliar e controlar de forma impecável não
somente a dor, mas, todos os sintomas de natureza física, social, emocional
e espiritual.1

Esta definição de Cuidados Paliativos é uma bússola que tem di-


recionado a intervenção na área da saúde ao redor do mundo. Mas, no
caso do Brasil, os Cuidados Paliativos ainda são pouco conhecidos pelos
profissionais de saúde, pacientes e famílias.

Cicely Saunders e os Hospices


As expressões curar e cuidar, médico-paciente-família têm sido en-
focadas no campo brasileiro de cuidados paliativos. A chamada filosofia
hospice2 tem sido gradativamente inserida nos estudos na área de saúde,
embora ainda de forma muito tímida.

Os hospices surgiram há muitos séculos na Europa. Na Idade Média, já a partir


do século IV, há relatos desses estabelecimentos albergando cristãos em pere-
grinação. Dirigidos por religiosos cristãos, tinham esse caráter de acolhimento
ao viajante, que lá recuperava suas forças para seguir adiante em sua jornada.
Dessa época, permaneceu no moderno movimento a palavra hospice, que in-
corpora em sua missão esse caráter acolhedor e a noção, bastante difundida,
da doença como uma jornada a ser percorrida pelo paciente e por sua família
ou cuidador (FLORIANI e SCHRAMM, 2010)

É importante destacar que, na realidade brasileira, encontramos um


contexto semelhante ao nascimento dos hospices: eles foram criados
para atender aos pobres que estavam morrendo. Porém, a população
pobre não tem tido acesso a um sistema de saúde que inclua os cui-
dados paliativos de forma ampla. Ou seja, os cuidados paliativos no
contexto brasileiro inverteram a lógica do nascedouro dos hospices.
Com exceções, o serviço de Cuidados Paliativos atinge uma população
com situação econômica mais estável.
1
Já havia outras conceituações anteriores a esta que vigora nos dias atuais.
2
O nascedouro dos hospices localiza-se na era medieval. Eram dirigidos por ordens reli-
giosas. Os hospices trazem nos seus objetivos o cuidado da pessoa de forma integral,
incluindo o processo do morrer. O movimento hospice volta com muita força na década
de 70 do século passado, com Cicely Saunders.

78 Blanches de Paula: Cuidados paliativos numa perspectiva brasileira

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1. Cicely Saunders: uma educadora dos cuidados paliativos
Mencionamos, como destaque de atuação, valorização do movimen-
to hospice e que influencia os cuidados paliativos até os nossos dias, a
dedicação de Cicely Saunders 3, médica britânica, que empenhou sua
vida em prol dos que estavam em processo de morrer. Saunders nasceu
em 22 de junho de 1918 e morreu em 2005. A dignidade, os conceitos
teológicos e de cuidado formam a tônica desta mulher que de enfermeira
tornou-se médica, para atuar de forma mais profunda na dedicação aos
cuidados paliativos.
Antes dos estudos na área de saúde, Saunders havia iniciado filoso-
fia, economia e política. Quando a segunda guerra eclodiu, dedicou-se à
área de saúde. Cicely Saunders também tinha formação em assistência
social e era uma pessoa que professava uma fé em ação. Saunders
era anglicana. Seu conceito de dor total, ou seja, a dor que não separa
“corpo, alma e espírito” contribuiu de forma significativa com o cuidado
integral às pessoas no processo de morrer. Nesse sentido, encontramos
um campo fértil de diálogo com a teologia quando no conceito de dor total
é incluída a dimensão espiritual. Um questionamento que podemos nos
fazer é a existência da dor “espiritual” e o que ela significa para pessoas
que estão no processo do morrer, denominado também de FPT (fora de
possibilidades terapêuticas)4. Há uma relação profunda com uma pastoral
do consolo que precisa ser revisitada continuamente no meio cristão.

Cicely Saunders começou sua carreira profissional primeiro como enfermeira


e assistente social. Depois estudou medicina, para, segundo ela mesma,
“cuidar bem dos pacientes terminais, esquecidos pelos médicos tradicionais”.
Ela é reconhecida como a fundadora do movimento moderno de Hospice. O
St. Christopher´s Hospice, por ela fundado em 1967, foi o primeiro hospice
que, numa visão holística da pessoa humana e cuidados integrados, ligou
o alívio da dor e controle de sintomas com cuidado humanizado, ensino e
pesquisa clínica. Essa nova filosofia de cuidados direcionados aos pacientes
fora de possibilidades terapêuticas influenciou muito os cuidados em saúde
ao redor do mundo, bem como gerou novas atitudes em relação à morte,
ao morrer e diante da dor da perda de um ente querido, isto é, o período
do luto (PESSINI e BARCHIFONTAINE, 2006, p. 364).

O St. Chirstopher’s Hospice permanece até hoje formando milhares


de cuidadores/as na área da saúde. Esse legado deixado por Saunders
3
Atualmente, há o Cicely Saunders Institute em Londres, com o objetivo de cuidado integral
no processo do morrer. (veja, nas referências bibliográficas, o endereço da sua página
na internet).
4
Rachel Aisengart Menezes aborda a terminologia FPT (fora de possibilidades terapêuticas)
em seu livro “Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos”..

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soma-se ao conceito de dor, mencionado anteriormente. Já como médi-
ca, desenvolveu pesquisas que contribuíram para o controle da dor em
pacientes oncológicos.
É relevante ressaltar que a vocação para o cuidado com pessoas
consideradas no fim da vida trouxe novo sentido aos estudos da medicina
na época de Saunders que, ao se tornar médica (aos 40 anos), procura
um status de reconhecimento científico para os cuidados paliativos.
Outra dimensão relevante dos cuidados paliativos apregoados por
Saunders era o acolhimento incondicional para quem estava no processo
do morrer; essa incondicionalidade incluía a fé, sem perder a identidade
cristã. Saunders não queria transformar o St. Christopher’s Hospice num
gueto de cuidados. Mas, pelo que percebemos, seu legado permanece até
hoje oferecendo capacitação aos profissionais de saúde que promovem
a vida ao lidar com as perdas, o luto, o morrer.

2. Elizabete Kübler-Ross e os estágios do luto


Elizabete Kübler-Ross foi uma das mulheres cuja biografia conquista
certa admiração, surpresas e um profundo espaço para questionamentos
ligados à nossa existência. Kübler-Ross nasceu na Suíça em 1926 e mor-
reu, aos 78 anos de idade, no dia 24 de agosto de 2004. Formada em
medicina, mudou-se para os Estados Unidos logo após o término do curso.
Desde tenra idade interessou pela arte do cuidado em meio às perdas.
Possivelmente Kübler-Ross seja mais conhecida pelos denominados
estágios do processo de morrer. Mas sua contribuição vai bem mais
além. Kübler-Ross adentrou num mundo subterrâneo de todos nós, onde
estão alojadas nossas perguntas, buscas e, paradoxalmente, encontros
e realizações.
Com sua ampla experiência em hospitais, começou sua pesquisa nos
seminários interdisciplinares sobre a morte e o morrer no ano de 1965,
incluindo estudantes do Seminário Teológico de Chicago. Esses pediram
sua ajuda para compreender as crises da vida humana, das quais a morte
era, para eles, a maior. Em linhas gerais, a crise, para Kübler Ross, está
ligada a um processo de perda que tem fases distintas.
Kübler-Ross alertou sobre os procedimentos de acompanhamento
ao paciente terminal nos seguintes aspectos: comunicação ao paciente
de sua doença; a importância da participação da família; presença do
conforto verbal e não-verbal; trabalho de equipe interdisciplinar;

2.1 Estágios do pesar


A partir desses seminários e das pesquisas sobre o processo da
morte e do morrer, Kübler-Ross sistematizou esse momento por meio dos
estágios do pesar, do luto para quem está na fase terminal da vida. O

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conhecimento desses estágios é de grande relevância para os cuidados
paliativos. São eles:

Primeiro Estágio: negação e isolamento


Como o próprio nome denomina, o primeiro estágio é a experiência
da não-crença no que está acontecendo consigo mesmo. A negação
pode ser seguida de um choque inicial. Evidentemente, trata-se de um
mecanismo de defesa da pessoa, diante do limite da vida. “Em suma, a
primeira reação do paciente pode ser um estado temporário de choque
do qual se recupera gradualmente. Quando termina a sensação inicial de
torpor e ele se recompõe, é comum no homem esta reação: ´Não, não
pode ser comigo´” (KÜBLER-ROSS, 2000, p. 47). As atitudes diante da
negação absorvem a pessoa, podendo ter momentos de quase completa
fuga da realidade.

Segundo estágio: raiva


O estágio da raiva expressa a impotência e a falta de controle para
lidar com a situação.
“Quando não é mais possível manter firme o primeiro estágio de ne-
gação, ele é substituído por sentimentos de raiva, de revolta, de inveja e
de ressentimento. Surge a pergunta: Por que eu? (KÜBLER-ROSS, 2000,
p. 55)”. A exposição dos sentimentos pode vir com uma roupagem de
raiva da equipe de saúde, da família, do clérigo, de Deus, de si mesmo
e até mesmo da pessoa que morreu. Por isso, nesse estágio, é essencial
a compreensão e expressão da raiva pelo paciente.

Terceiro Estágio: barganha


O terceiro estágio é uma espécie de acordo com pessoas que signi-
ficam segurança, proteção para a pessoa. Geralmente, as barganhas são
feitas com Deus. A barganha está ligada a um sentimento de culpa. É uma
dívida afetiva com alguém ou um comportamento realizado pelo paciente
no passado e “não aceitável” socialmente e que, no seu inconsciente, pode
ter desencadeado a enfermidade. Segundo Kübler-Ross, a barganha, na
realidade, é uma tentativa de adiamento; inclui um prêmio, oferecido ´por
bom comportamento`, estabelece também uma ´meta` autoimposta e uma
promessa implícita de que o paciente não pedirá outro adiamento, caso
o primeiro seja concedido.

Quarto estágio: depressão


Essa fase é marcada por uma grande sensação de perda. A percep-
ção da perda de si mesmo é mais presente do que em estágios anteriores.
Kübler-Ross apresenta dois tipos de depressão: “Se eu tentasse diferenciar

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estes dois tipos de depressões, classificaria a primeira como uma depressão
reativa e a segunda como uma depressão preparatória (KÜBLER-ROSS,
2000, p. 92)”. A família precisa de um acompanhamento no sentido de
orientá-la a deixar o paciente expressar os sentimentos de perda.

Quinto Estágio: aceitação


O estágio da aceitação advém quando cessam as possibilidades de
tratamento e a morte se torna mais próxima. Nesse estágio, Kübler-Ross
afirma que “é como se a dor tivesse esvanecido, a luta tivesse cessa-
do e fosse chegado o momento “do repouso derradeiro antes da longa
viagem” (KÜBLER-ROSS, 2000, p. 118). É também o período em que a
família geralmente carece de ajuda, compreensão e apoio, mais do que
o próprio paciente.

2.2 Heranças para morrer e viver


Kübler-Ross deixou-nos como herança que o processo de morrer
vai além de estágios, mas vincula-se às formas pelas quais podemos
ser acompanhados ou não no processo de despedida da vida. Conflitos
morais podem transformar em vitrines as angústias mais profundas do
ser humano, desencadeadas pelo medo de morrer sem “completar” o
ciclo da vida.
Destaca-se também o seu intenso acompanhamento com crianças.
Por meio de desenhos das próprias crianças, Kübler-Ross oportunizava
um diálogo sobre suas vidas no processo de morrer. Algumas contribui-
ções que podemos destacar de seu trabalho foram: como as crianças
enfrentam a morte; orientações para diálogo com pacientes terminais,
orientação sobre diálogo entre membros da família sobre o processo de
morrer; estímulo às pessoas para falarem sobre o processo de morrer;
presença de familiares, religiosos e amigos com uma pessoa que está
enfrentando o processo de morrer; comunicação no processo de morrer
[O uso da linguagem simbólica].
Evidentemente, para lidar com tantas situações adversas, Kübler-Ross
enfatizou as emoções tais como raiva, tristeza, medo. A falta de externali-
zação da raiva causava (e causa) um sofrimento ainda maior às pessoas.
E, ainda, ao acompanhar as pessoas no processo de morrer, Kübler-
-Ross ressaltava as crises existenciais, os conflitos com a medicina e a
possiblidade da criação de equipes multidisciplinares para o cuidado com
pacientes em processo de morrer. Como ela própria ressaltou, “havia
muito o que aprender sobre a vida escutando os pacientes terminais”
(KÜBLER-ROSS, 1998, p. 145).
As últimas pesquisas de Kübler-Ross permearam a experiência
quase-morte e a vida após a morte. Essas investigações trouxeram gran-

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de inquietação no mundo científico, que recebeu com imenso ceticismo
suas afirmações. Kübler-Ross transmitia muita coragem e paixão pelo que
fazia. Além disso, apresentava um desprendimento em prol do que mais
acreditava: a vida. Por isso, sua dedicação à medicina e ao cuidado com
as pessoas expressava claramente que viveu de modo intenso.

4. Aspectos gerais dos Cuidados Paliativos no contexto brasileiro


Os Cuidados Paliativos levantam temas como a dor e o sofrimento,
que são aspectos próximos e que expressam também uma identidade
cultural. No Brasil, há necessidade de uma educação para lidar com
essas questões. É indispensável uma formação que estimule equipes
multiprofissionais, como: pessoas doentes, médicos, enfermeiros, familia-
res, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais, capelães, religiosos,
dentre outros, para o cuidado integral da pessoa.

O contexto da assistência médica em nosso país é ainda caracterizado em


muitos segmentos populares por uma cultura que cheira ao conformismo
dolorista (é assim mesmo) da sociedade enquanto tal. Num ethos social
marcado por desigualdade e exclusão, herança de nosso período de escra-
vidão, o pobre tem que sofrer, e o crente não menos, para ganhar o céu.
Este manto dolorista que acaba sacralizando a desigualdade sociopolitica
e cultural felizmente vai desaparecendo aos poucos. Alguns sinais positi-
vos já começam a surgir no contexto clinico brasileiro. Foi criado em 1997,
no âmbito do Ministério da Saúde, um Programa Nacional de Educação
Continuada em Dor e Cuidados Paliativos para os profissionais da Saúde.
(PESSINI e BERTACHINI, 2004)

No cenário brasileiro, percebe-se um processo de ampliação da


importância dos cuidados paliativos para o bem-estar das pessoas nos
últimos dias de vida, embora, na cultura brasileira, o tema da dor ainda
esteja mais no nível da aceitação do que do questionamento e do enfrenta-
mento com dignidade. A expressão “Pobre tem que sofrer” é um equívoco
social/cultural muito presente na mentalidade brasileira. De certa maneira,
é uma forma de acobertar o estigma da pobreza aliada a uma causa an-
tropológica e de status social. Pode-se afirmar que a relação entre o tema
da pobreza e os cuidados paliativos ainda é muito introdutório nas pesqui-
sas brasileiras. Tratar sobre Cuidados Paliativos no contexto da pobreza
torna-se um artigo de luxo, pois se nem em todos os serviços básicos na
área de saúde, as pessoas têm sido tratadas como seres humanos, que
se dirá de um acompanhamento digno no processo do morrer?! De fato,
na experiência brasileira, encontramos muitas pessoas que, na fila de
espera para um atendimento, muitas vezes acabam morrendo.

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Além disso, destacamos a comunicação com os pacientes, que tam-
bém tem um caráter cultural muito presente nos países latinos. Vejamos
uma afirmação sobre o assunto:

Nessas circunstâncias, não é rara, principalmente em países latinos, uma


atitude falsamente paternalista, que leva a ocultar a verdade ao paciente.
Com frequência, entra-se no círculo vicioso da chamada “conspiração do
silêncio”, que além de impor novas formas de sofrimento para o paciente
pode ser causa de grave injustiça. A comunicação de verdades dolorosas
não deve destruir a esperança da pessoa. (PESSINI e BERTACHINI, 2004)

Como temos pontuado, no Brasil, os Cuidados Paliativos têm con-


quistado seu espaço gradativamente. Por exemplo, o Programa Nacional
de Humanização dos Serviços de Saúde, lançado em 24 de maio de 2000,
é uma das iniciativas brasileiras para o processo de humanização, que
prioriza o cuidado em todas as ações em prol das pessoas doentes. Há
também serviços voltados para o nascimento de crianças, o pré-natal, e
também para a saúde da família. O SUS, Sistema Único de Saúde, já
tem um programa de Cuidados Paliativos, mas tem grandes desafios para
atingir a população empobrecida do nosso país.
Outro destaque é a criação da Associação Brasileira de Cuidados
Paliativos5, ocorrida em São Paulo, no ano de 1997. O objetivo primordial
dessa associação é oferecer espaço para a criação de diretrizes para a
implantação da filosofia hospice no Brasil respeitadas as diferenças so-
cioculturais do país. Ela tem promovido eventos, cursos de capacitação
e também parcerias com outros grupos afins como as Sociedades Bra-
sileiras de Cancerologia e de Oncologia Clinica e também publicações
como a Revista: o Mundo da Saúde, voltada especificamente para o tema
dos Cuidados Paliativos. Hoje, podemos afirmar que existem cerca de 30
serviços de cuidados paliativos no Brasil, os quais incluem assistência
em ambulatório, internação e domicílio.
O cenário brasileiro tem começado a semear as sementes de uma
educação que, antes de ser para a morte, é para vida. Não há como
separar uma da outra. Por isso, ao tratar o tema dos cuidados paliativos,
tocamos também no tema do luto, que envolve um processo desencade-
ado pela perda de si mesmo e também dos familiares. Evidentemente, a
relação entre luto e cuidados paliativos envolve um acompanhamento da
equipe de saúde e a família. Possivelmente, podemos abordar o luto ante-
5
A Associação Brasileira de Cuidados Paliativos tem oferecido orientações que são de
grande relevância para a formação profissional no campo da saúde. Evidentemente, essa
formação deveria ampliar seus ramos educacionais para outras expressões de cuidado
com o ser humano, como: pedagogia, filosofia, teologia, sociologia, dentre outros (veja
o endereço da sua página na itnernet nas Referências bibliográficas).

84 Blanches de Paula: Cuidados paliativos numa perspectiva brasileira

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cipatório em relação aos cuidados paliativos. Ou seja, o processo do luto
pode ser desencadeado antes do momento derradeiro da vida. Este tema
tem recebido atenção nas pesquisas brasileiras sobre os mais variados
processos de perda existentes. Pesquisadoras, como Maria Júlia Kovacs
e Maria Helena Pereira Franco, ambas psicólogas, têm defendido uma
educação para a morte. O Laboratório de Estudos da Morte, coordenado
por Maria Júlia Kovacs, criou um programa de DVDs para escolas públicas
e privadas, com a série Falando de Morte: para criança, adolescentes,
idosos e profissionais de saúde.
Em uma das pesquisas realizadas por Kovacs em uma unidade de
cuidados paliativos no Brasil, foram encontrados os seguintes desafios:

problemas financeiros; manutenção da família após a morte do paciente;


o futuro dos filhos; receio de se tornar uma sobrecarga para a família;
sentimento de inutilidade por não trabalhar ou não realizar as atividades
domésticas; pacientes relataram também não entenderem o que está acon-
tecendo com eles, o que seus médicos dizem, e têm receio de perguntar,
pelo medo de ser considerados ignorantes, porque crêem que o médico
está muito ocupado para perder tempo com eles, ou que possa sentir que
a sua autoridade está sendo questionada, e isto causar interferência no seu
atendimento. (KOVACS, 1998)

Outros desafios vinculados aos Cuidados Paliativos no Brasil estão


na capacitação de profissionais de saúde, estudos sobre a dor total (de-
fendidos por Cicely Saunders) e carência de recursos financeiros para
pesquisas na área.
Cabe destacar também que a história de vida de muitos brasileiros
inclui a crença nos milagres e também do suporte da dor como parte de
sua existência. Por ser um país onde a fé de certa forma está vinculada
à cultura, o tema da dor e dos cuidados paliativos torna-se muito mais do
que um tema na área de saúde, mas do contexto vivencial do brasileiro,
na sua esfera social, política, econômica, cultural, espiritual. Os cuida-
dos paliativos em terras brasileiras vêm assimilando a lógica do cuidado
não somente no fim da vida, mas desde o estágio inicial de uma doença
considerada incurável. Há também interesse crescente pela relação entre
cuidados paliativos e geriatria. No Brasil, tem aumentado o número de
pessoas idosas e também a expectativa de vida além dos 80 anos.
Independente da idade, etnia, situação socioeconômica, estado
civil, consideramos que os cuidados paliativos no Brasil têm tocado no
sentido da existência do cotidiano dos profissionais de saúde e também
dos cuidadores espirituais. Este é um tema que tem levantado profundos
questionamentos no sentido da palavra saúde em todas as etapas da vida.

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Além disso, tem evocado o sentido da existência e da finitude, temas tão
caros tanto às ciências como a teologia.
Cabe, a título de desafio, a construção contínua de uma pastoral
do consolo que viabilize o diálogo sobre o tema da vida e sua finitude,
na formação de lideranças religiosas. Além disso, é indispensável para
o desenvolvimento de uma pastoral do consolo, a inclusão de leigos/as
como cuidadores/as. Uma pastoral do consolo é oferecer suporte, em uma
espiritualidade de esperança, de diálogo e que caminhe com as pessoas
até as terras desconhecidas daqueles/as que ainda não passaram pelo
vale da sombra da morte. Nesse quesito é sempre salutar reafirmar a
importância de uma pastoral que ofereça os ombros da ternura, da cora-
gem, da graça e do amor que ama até o fim.

Referências bibliográficas

Livros e artigos
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ciente em cuidados paliativos: valorizando a alegria e o otimismo”. In: Rev. esc.
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KOVACS, M. J. “Bioética nas questões da vida e da morte”. In: Psicol. USP, 
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FLORIANI, C. A.; SCHRAMM, F. R. “Casas para os que morrem: a história do
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PESSINI L.; BERTACHINI, L. (orgs.). Humanização e cuidados paliativos 2. ed.
São Paulo: EDUNISC/Loyola, 2004.
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Paulo: Paulus/Centro Universitário São Camilo, 2006. (Questões fundamentais
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PESSINI, L e BARCHIFONTAINE, C. P. (org.). Biotética e longevidade humana.
São Paulo: Universidade São Camilo/Edições Loyola, 2006.
SANTOS, F. Santana (org.). A arte de morrer: visões plurais, vol. 1 e 2. Bragança
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Páginas eletrônicas
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Cicely Saunders Institute, Londres. Disponível em: < http://www.cicelysaunders-
foundation.org/cicely-saunders-institute >. Acesso em: 25 set. de 2011.
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Prática hospitalar. Disponível em: < http://www.praticahospitalar.com.br/pratica%20
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Ser mais: um princípio educativo

To be more: an educational principle

Ser más: un principio educativo”


Renilda Martins Garcia

Resumo
O presente artigo pretende refletir sobre a educação a partir do conceito de Ser
Mais, postulado pelo educador Paulo Freire como elemento presente no processo
educativo Intenta-se resgatar este conceito e compartilhar esta perspectiva freire-
ana relevante para a educação, contribuindo, assim, para a análise da temática.
Palavras-chave: Ser Mais; educação; querer bem; mundo; ser humano.

Abstract
This paper reflects on education from the concept of To be more, postulated
by the educator Paulo Freire as an element in the educational process. It is at
tempted to rescue this concept and share this Freirean perspective relevant to
education, thus contributing to the analysis of the issue.
Keyword: To be More; to want the good; world; human being.

Resumen
El presente artículo pretende ser una reflexión sobre la educación a partir del
concepto de Ser Más, postulado por el educador Paulo Freire como elemento
presente en el proceso educativo. Se hace el intento de rescatar este concepto
y compartir esta perspectiva freirena relevante para la educación, contribuyendo,
así, para el análisis del tema.
Palabras clave: Ser Más; desear el bien; educación; mundo; ser humano.

Introdução
O educador brasileiro Paulo Reglus Neves Freire, Paulo Freire,
pessoa de renome por suas contribuições na área da Educação em nível
nacional e internacional, faz uma reflexão interessante concernente ao Ser
Mais como elemento presente no processo educativo. O contato com esta
vertente do conhecimento inspirou a elaboração deste artigo, Ser Mais:
Um Princípio Educativo, objetivando resgatar este conceito e compartilhar
esta perspectiva freireana relevante para a educação, contribuindo, assim,
para a análise da temática.
O ser humano é essencialmente relacional e, por sê-lo, carece de
outro para a construção de sua identidade. Como meio de suprimir esta
carência, estabelece relações de convivência e, na doação de si mesmo,
pode construir sentimentos de humanização. A atitude de ir ao encontro de
outra pessoa não acontece por acaso. É decorrente da gênese humana
como potencialidade relacional, capacidade de conviver.

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Nesta interação de saberes, marcada definitivamente por aproxi-
mações, doações multifacetadas, a convivência é moldada por diversas
mãos, toma formas e cores, conotações as mais variadas. Dessa maneira
de viver e conviver, emerge um jeito peculiar de encarar o mundo, de
interpretar e decidir a vida, de deixar a marca no tempo. Nasce a cultura.
Além de ser uma produção humana, a cultura é um processo comu-
nicativo e é somente por meio do processo social, mediado pela cultura,
que o ser humano consegue perceber-se como pessoa, como individua-
lidade e nesta interface relacional se descobrir como gosto, apreciação
e desejo, sonho. Descobre o sentido de pertença a um grupo social. A
cultura ajuda o ser humano a descobrir este sentido e sua identidade.
Paulo Freire ilumina esta reflexão ao afirmar que a vocação para
a humanização se caracteriza pela busca do ser mais por meio da qual
o ser humano curiosamente busca o conhecimento de si mesmo e do
mundo, em prol de sua liberdade. Mas quem é o ser humano? “O ser
humano é um universo inesgotável de possibilidades; um projeto sempre
aberto ao aperfeiçoamento” (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 416) e “existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. [...] Não é no silêncio
que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”
(FREIRE, 2008, p. 90). O ser humano é um ser em constante busca por
sua autonomia:

Autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a


ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da
autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão
e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade
(FREIRE, 2010, p. 107).

Tendo como horizonte a liberdade decorrente de experiências respei-


tosas na educabilidade por parte do/a educando/a e educador/a, Freire
introduz a autonomia como um processo de vir a ser. Processo, pois, é
algo a ser construído, considerando a dinâmica da realidade em todas
as suas dimensões, a partir de experiências estimuladoras. Tais expe-
riências de aprendizagem possibilitam ao/a educando/a instrumentais,
conhecimentos os mais variados, permitindo-lhe tomar decisões com
responsabilidade e consciência de si, do/a outro/a e do mundo. Cabe
destacar que o aprendizado e aplicabilidade destes instrumentais não
dependem unicamente do/a educador/a. É resultado da interação entre
educador/a e educando/a e do contexto em que vivem. O/a educando/a,
em algum momento de sua vida, decodifica as informações recebidas,
baseado/a em estímulos vivenciais, transformando-os em conhecimento,
aprendizagem. Desta forma, cada pessoa tem o seu tempo de aprender.

90 Renilda Martins Garcia: “Ser mais”: um princípio educativo

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Tal compreensão é fundamental para evitar equívocos quanto à potencia-
lidade de aprendizado do/a educando/a, ao mesmo tempo em que lança
o desafio da construção de um processo educacional que, de fato, bus-
que a autonomia deste/a, tendo como horizonte a liberdade humana. É o
resgate da individualidade na arte de conhecer, sem, no entanto, excluir
a influência do grupo social na construção deste mesmo saber. Assim, na
construção de sua autonomia o ser humano anseia por ser e ser mais.
Neste sentido, Freire concebe o ser mais como desafio da libertação
dos/as oprimidos/as como busca de humanização, em que a natureza hu-
mana é programada para ser mais, porém não determinada por estruturas
ou princípios inatos (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 369):

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado,
mas consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a
diferença profunda entre o ser determinado e o ser condicionado (FREIRE,
2010, p. 53).

No entanto, o fato de a natureza humana ser programada para “ser


mais” não garante que, por si, só esta potencialidade se concretize na
existência humana. Faz-se necessária a criação de espaços de ação-
-reflexão, reflexão-ação que propiciem que o ser mais se emancipe,
pois este, “inscrito na natureza dos seres humanos” (FREIRE, 2010, p.
75), implica que o ser humano tenha consciência de si na qualidade de
possibilidade. Este espaço pode e deve ser a escola, a academia, mas,
essencialmente, a vida como espaço educativo, como “tempo de possibi-
lidade, não de determinação” (FREIRE, 2010, p. 75) e o ser mais, regado
pela afetividade.
Dentre os elementos que constituem a natureza humana, a afetivi-
dade, a ternura, a sensibilidade delineiam de forma peculiar o humano.
Dentre eles se destaca o querer, querer bem que tem como essência a
dialogicidade, um princípio ético delineado pelo ouvir, ouvir a outra pessoa,
percebê-la e considerá-la fonte inesgotável de vida (STRECK; ZITKOSKI,
2010, p. 337). A dialogicidade pressupõe:

Fé na vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito
dos homens. [...] O homem dialógico, que é crítico sabe que, se o poder de
fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que
podem eles, em situação concreta, alienados, ter este poder prejudicado
(FREIRE, 2008, p. 93 e 94).

Este ímpeto, a busca por construir significados, sentido para a sua


existência, emana do querer que gera força, vigor, que faz mover os

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corpos na esperança da concretude de um ideal. O ser humano sempre
está em busca de algo mais, de um motivo que estimule a razão de sua
existência. Este sentimento que o impele a ir além, sem, às vezes, saber
para onde, que o inquieta, o faz sair do lugar e mover-se em direção a…
é algo que contagia todo o seu ser. É o querer pulsando o ser.
O ser humano é movido pelo querer, desejar. O querer antecede
toda ação. A própria razão, reflexão, traz consigo o elemento desejante
e esse é o fator decisório no processo de escolha. Por ser o desejo a
mola propulsora da ação, e a ação promotora da experiência, e a expe-
riência uma forma de conhecimento, o desejo carrega em si a dimensão
educativa, tem em seu bojo a dimensão epistemológica.
Assim, o ser humano nasce com potência de querer bem e querer ser
mais. O querer é pressuposto essencial para ser mais, porém é na inter-
face, na interação com outros pressupostos, como a motivação-estímulo,
oportunidade, possibilidade e principalmente por meio da educação que ele
se potencializa e se manifesta. Tendo em vista que se o ser humano nasce
com o ímpeto de ser mais, porém, sem rumo pré-definido subentende-se
que o querer não é proveniente da ação individual, mas coletiva. Neste
sentido, as ações humanas não são meramente ações isoladas ou es-
tanques. São produtos de um sistema interativo bio-psico-social e político
que determina formas de comportamento e posicionamentos regados pela
esperança e o sonho de um outro mundo possível.
Mas de que mundo se está falando? “Para o homem, o mundo é
contexto de sua existência (ex-sistência), e ele transforma, com sua ação,
este contexto, fazendo dele um mundo da cultura e da história” (STRECK;
ZITKOSKI, 2010, p. 283). Esta categoria de mundo está intrinsecamente
ligada à natureza, cultura, história, existência, consciência, trabalho, ação
transformadora, palavra e práxis (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 283).
Segundo Freire a “visão de mundo” reflete a “situação no mundo” em que
as pessoas vivem (FREIRE, 2008, p. 100). Desta maneira, o mundo, para
um grupo de pessoas, pode ter um significado que não o mesmo para
outro grupo, em razão de cada contexto social e que influencia a maneira
de pensar, de agir, o jeito de ser. Então, qual visão de mundo é a melhor,
ou como determinar a visão de mundo mais adequada? Essa questão
passa fundamentalmente pela escolha do tipo de mundo desejado e do
perfil de ser humano que se deseja construir para habitar nele. Ao almejar
um mundo em que caibam todas as pessoas, a abertura, a flexibilidade
e a sinceridade para coexistir com pessoas e com o ecossistema são
quesitos primordiais. Para tanto, é preciso conviver com o mundo e no
mundo. É preciso estar por dentro dos acontecimentos, conviver. Desta
convivência, emana a capacidade de superação das situações-limite,
emana o inédito viável:

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O “inédito viável” é, na realidade, pois, uma coisa que era inédita, ainda não
claramente conhecida e vivida, mas quando se torna um “percebido desta-
cado” pelo que pensam utopicamente, o problema não é mais um sonho, ele
pode se tornar realidade (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 225).

Ana Maria Freire introduz o termo “inédito-viável” como alternativa


construída coletivamente a partir da vivência crítica do sonho almejado.
Sonhar coletivamente, na perspectiva da construção do “inédito-viável”, ocor-
re, principalmente, por meio da educação (FREIRE, A. M., 2001a, p. 29).
Como referência à concepção de educação, Ana Maria Freire trans-
creve o pensamento de Freire de “re-ad-mirar agora a educação mesmo
como um fazer dos homens e das mulheres, um que fazer que se dá no
domínio da cultura e da história” (FREIRE, A. M., 2001a, p. 45); enfatiza
a educação como “... processo de conhecimento, formação política, ma-
nifestação ética, procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a
educação é prática indispensável aos seres humanos e deles específica
na História, como movimento, como luta” (FREIRE, 2001b, p. 10). É
prática indispensável aos seres humanos e deles, específica na História.
Nesse aspecto, Freire aborda a história como movimento, luta como
possibilidade, como liberdade e sua demanda; como espaço em que se
criam processos de emancipação, a partir do comprometimento na qua-
lidade de sujeitos-objetos da História; como possibilidade não fixada ou
predeterminada cujo critério é histórico-social e não individual (FREIRE,
2001b, p. 19), e acrescenta::

Pensar a História como possibilidade é reconhecer a educação também


como possibilidade. É reconhecer que se ela, a educação, não pode tudo,
pode alguma coisa. Sua força, como costumo dizer, reside na sua fraqueza.
Uma de nossas tarefas, como educadores e educadoras, é descobrir o que
historicamente pode ser feito no sentido de contribuir para a transformação
do mundo, de que resulte um mundo mais “redondo”, menos arestoso, mais
humano, e em que se prepare a materialização da grande Utopia: Unidade
na Diversidade.

Porém, para que o ser humano resgate sua humanização, na supera-


ção das situações-limite com o inédito viável em busca do ser mais e na
construção de um mundo possível, faz-se necessária a promoção de uma
educação que estimule a conscientização, que “não é apenas conheci-
mento ou reconhecimento, mas a opção, decisão, compromisso” (FREIRE,
2008, p. 9). É engajamento numa causa que dá sentido à existência, é a
concepção da educação como práxis, “reflexão e ação dos homens sobre
o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2008, p. 42). E, ao transformar o
mundo, o ser humano transforma-se a si mesmo, pois: “Ninguém educa

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ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si,
mediados pelo mundo” (FREIRE, 2008, p. 78).
Ana Maria Freire destaca a percepção de Freire quanto a neces-
sidade de se considerar a educação como um dos meios prioritários
do processo de mutação cultural; porém, tem sido um instrumento de
manutenção do status quo. A educação pode vir a ser, realmente, um
fator de transformação, no sentido da libertação de homens e de mu-
lheres, mas ela é, ao mesmo tempo, promotora e expressão da cultura
(FREIRE, A. M., 2001a, p. 45). E este é um dilema constante. Em sua
trajetória educativa, Freire revela um profundo respeito pela autonomia
total do/a educador/a; respeito pela identidade cultural dos/as educandos/
as – respeito pela linguagem, pela cor, gênero, classe, orientação sexual,
capacidade intelectual – por fim, a habilidade para estimular a criativida-
de da outra pessoa. E acrescenta que a prática educacional pode trazer
uma contribuição inestimável à luta política, principalmente pela criação
de estruturas pedagógicas que promovam a autonomia do/a educando/a
(FREIRE, A. M., 2001a, p. 260 e 265).
Ela acrescenta, que a prática educacional “não é o único caminho
para a transformação social necessária à conquista dos direitos humanos,
contudo, sem ela, jamais haverá a transformação social”, pois a educação
propicia às pessoas maior clareza para “lerem o mundo”, e essa clareza
abre a possibilidade de intervenção política (FREIRE, 2001a, p. 36). Este,
pois, é um princípio que expressa potencialidades práticas da Pedagogia
dos Sonhos Possíveis, sendo um dos seus princípios fundamentais a
máxima: “Mudar é difícil, mas possível e urgente” (FREIRE, 2001a, p. 31).
No entanto, há que se destacar que uma educação que promova a
transformação da realidade depende do processo de ensino e aprendi-
zagem que a sustenta, pois estão intrinsecamente conectados e não é
possível o ato de ensinar sem aprender, pois “não há docência sem dis-
cência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os
conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2010,
p. 23). Essa dinâmica consiste em um ato político formador de consciência
crítica em que a leitura da palavra implica a leitura crítica da realidade,
leitura do mundo em que ambos, educador/a e educando/a, são sujeitos
do ato de conhecer. Esse processo de formação política tem como ponto
fundante o diálogo, como norte a realidade e possibilita a aprendizagem
significativa, em que a pessoa interage-intervém nas situações do coti-
diano com vistas a modificá-lo, numa constância da ação, reflexão, ação,
enfim, a práxis educativa. Assim, no contexto da educação libertadora, o
ensino-aprendizagem consiste numa relação recíproca na construção do
conhecimento, para Ser mais, Ser mais humano.

94 Renilda Martins Garcia: “Ser mais”: um princípio educativo

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Referências bibliográficas
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São Paulo: Unesp, 2001a (Série Paulo Freire).
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_____. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 42.
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_____. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São
Paulo: UNESP, 2000.
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_____. Política e Educação. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001b (Coleção: Questões
da nossa época, vol. 23).
STRECK, Danilo, R. e ZITKOSKI, Jaime, J. (org.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

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O telejornalismo global e suas relações
discursivas a partir de Foucault
Global tv-jornalism and its discursive relations in
the perspective of Foucault

El periodismo de la televisión mundial y sus rela-


ciones discursivas según Foucault
Hideíde Brito Torres

Resumo
Este artigo aborda as relações discursivas entre telejornalismo, religião e ciência,
a partir dos enunciados contidos na série especial “Os evangélicos”, levada ao
ar pela rede Globo, no Jornal Nacional, entre os dias 26 a 29 de maio de 2009,
à luz das obras “A ordem do discurso” e “Arqueologia do Saber”, de Michel Fou-
cault. Temos como método a Análise de Discurso tal como Foucault a propõe.
Algumas questões que nos instigam na reflexão são: quais as relações entre o
saber religioso e outros saberes em sociedade? Como o discurso jornalístico
aborda o saber religioso? Como a voz dos especialistas ganha roteiro neste
discurso jornalístico?
Palavras-chave: Discurso; Foucault; telejornalismo; evangélicos; Jornal Na-
cional.

Abstract
This article discusses the discursive relations between TV journalism, religion
and science,based on the statements contained in the special series “The Protes-
tants,” produced by Rede Globo and exhibited at the Jornal Nacional, between the
26th and 29th of May 2009, in the light of the books: “The order of Discourse” and
“Archaeology of Knowledge”, by Michel Foucault. Our method is the Discourse
Analysis suggested by Foucault. Some issues that are compelling in this reflec-
tion are: what are the relations between religious knowledge and other forms
of knowledge in society? How approaches the journalistic discourse religious
knowledge?  How the voices  of the experts  are transformed into the  script of
the journalistic discourse?
Keywords: Discourse; Foucault; TV journalism; Protestants; Jornal Nacional.

Resumen
Este artículo analiza las relaciones discursivas entre el periodismo de televisiEste
artículo trata las relaciones entre periodismo televisivo, religión y ciencia, a partir
de los enunciados contenidos en la serie especial “Los evangélicos”, emitida por
la Cadena Globo, en el telenoticiero Jornal Nacional, entre los días 26 a 29 de
Mayo de 2009, a partir de las obras “El Orden del discurso” y “Arqueología del
saber”, de Michel Foucault. Tenemos como método, el análisis del discurso, tal
como Foucault lo propone. Algunas cuestiones que nos instigan en la reflexión
son: ¿Cuáles son las relaciones entre el saber religioso y las otras áreas del
saber en la sociedad? ¿Cómo la voz de los especialistas se impone en este
discurso religioso?
Palabras clave: Discurso; Foucalt; periodismo; evangélicos; Jornal Nacional.

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O telejornalismo global e suas relações discursivas a partir
de Foucault
Nos estudos de comunicação, a palavra “discurso” ocupa lugar privi-
legiado. Tanto destaque, porém, não facilita o entendimento do conteúdo
do conceito. Entre as diversas abordagens possíveis, tomaremos aqui,
como referencial teórico, o intelectual francês Michel Foucault e, como
método, a Análise de Discurso tal como ele a propõe. A partir destas
referências, procuraremos verificar as relações discursivas (CASTRO,
2009, p. 178) entre o telejornalismo, a religião e a ciência na série espe-
cial “Os evangélicos”, levada ao ar pela rede Globo, no Jornal Nacional,
entre os dias 26 a 29 de maio de 2009, e produzida por Flávio Fachel
e Tyndaro Menezes. As matérias na íntegra encontram-se disponíveis
para consulta e visualização no site da emissora Globo, com os res-
pectivos textos.
Iremos, num primeiro momento, expor algumas linhas de pensa-
mento de Foucault, especialmente nas obras “A ordem do discurso” e “A
arqueologia do saber”, postulando possíveis interações com o discurso
jornalístico. A seguir, passaremos a refletir sobre as relações discursi-
vas propostas, a partir dos enunciados contidos na série especial em
análise. Para tanto, poderão nos auxiliar as reflexões foucaultianas
acerca de como se dá a ordem do discurso, como operam as práticas
discursivas em dado momento histórico e quais são as suas condições
de existência.

O discurso (tele)jornalístico: fundamentos teóricos em Foucault


Correia e Vizeu (2008, p. 11) afirmam que os brasileiros acreditam
mais na mídia do que no Governo. Segundo eles, uma pesquisa realizada
no país aponta que 56% dos brasileiros têm a televisão como principal
fonte de informação. Desta forma, para os autores, o telejornalismo re-
presenta “um lugar de referência, muito semelhante ao da família, dos
amigos, da religião e do consumo” (CORREIA e VIZEU, 2008, p. 12,
grifos dos autores).
Esta relevância do jornalismo, especialmente em sua versão televi-
siva, traz à tona, de imediato, a reflexão sobre a circulação dos saberes
(que, em Foucault, é um conceito distinto de ciência) e a luta pelos pode-
res na sociedade. O discurso jornalístico, por sua natureza, transita numa
interseção de saberes (estético, religioso, científico, etc.). Embora utilize
outras categorias, Resende comenta algo similar, quando afirma que
O campo dos media vive um processo de correlação de forças com
vários campos sociais — políticos, econômicos, culturais, religiosos, entre
outros —, já que ele se faz estrutural na constituição e composição desses
lugares. Tendo em vista o fato de que ao jornalismo, mais especifica-

98 Hideíde Brito Torres: O telejornalismo global e suas relações discursivas a partir de Foucault...

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mente, cabe a tarefa de dizer sobre e para as demais instâncias sociais,
havemos de considerar que um dos lugares possíveis em que se instala
a correlação de forças, com todas as suas assimetrias e fragmentações,
é o campo do discurso (RESENDE, 2007, p. 81-82).
Para analisar essas correlações de forças, entendidas por Foucault,
no plano discursivo, como lutas pelo poder, o intelectual francês não se
interessa pela macroestrutura, nem pela ideologia ou pelo Estado, mas
pelo discurso em si mesmo. Sua busca é “pelo projeto de uma descrição
dos acontecimentos discursivos” (FOUCAULT, 2000, p. 30). Para ele, o
discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar” (FOUCAULT, 1999, p. 10). O discurso, portanto, não
é “transparente ou neutro” como se pretende no jornalismo, mas é um
dos lugares onde o poder pode ser exercido das formas mais temíveis
(FOUCAULT, 1999, p. 9-10). Desta forma, ao abordar o discurso jornalís-
tico na perspectiva foucaultiana, faz-se necessário abrir mão de alguns
conceitos caros ao exercício profissional do jornalista, tais como a isenção
e a imparcialidade, para compreender o discurso nas condições históricas
que o fazem possível.
Existe no jornalismo uma pretensão de tradução do mundo. Este
caráter se dá pela percepção dos “noticiários como um lugar de media-
ção entre o mundo dos fatos, dos acontecimentos (...) e a sociedade”
(CORREIA e VIZEU, 2008, p. 17, grifos meus). Desta forma, percebe-se,
na leitura do jornalista, uma necessidade de “explicar/traduzir o mundo” e
não apenas, como inicialmente pretende, reportar um acontecimento. Isso
porque, na medida em que se produz um discurso sobre o acontecimento,
gera-se um domínio, um poder sobre o que é dito, como é dito e também
sobre aquilo que se opta em não dizer.
Esta prerrogativa aproxima-se daquilo que Foucault define como “di-
reito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala” (FOUCAULT, 1999, p. 9).
Ela é perceptível nos enunciados dos jornalistas sobre si mesmos, como,
por exemplo: “a imagem que a mídia constrói da realidade é resultado
de uma atividade profissional de mediação vinculada a uma organização
que se dedica basicamente a interpretar a realidade social (...) a mídia
não só transmite, mas prepara e apresenta uma realidade dentro das
normas e regras do campo jornalístico (CORREIA e VIZEU, 2008, p. 13,
grifos meus). As expressões em destaque demonstram que tal discurso
é proferido por sujeitos autorreferidos como profissionais, organizados,
portadores do conhecimento e dos rituais de normas e regras pelas quais
elaboram os seus enunciados. É desta forma que o discurso jornalístico
se torna restrito, não sendo possível a qualquer pessoa pronunciá-lo,
senão aquela que se enquadra no

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ritual que define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam
(e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar
determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os
gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de signos
que devem acompanhar o discurso (...) que determina para os sujeitos que
falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos
(FOUCAULT, 1999, p. 39).

“É a “ordem do discurso” que estabelece, para Foucault (1996), as


possibilidades de organização do real. Esta ordenação, além de possuir
uma função normativa e reguladora, age por meio da “produção de saber,
de estratégias de poder e de práticas discursivas” (AGUIAR, 2007, p. 2).
Desta forma, pode-se depreender que o jornalismo exerce esta “ordem”
por meio de “um conjunto de procedimentos de controle, seleção, orga-
nização e distribuição do discurso midiático que lhes são inerentes e que
lhe conferem poder na sua interface” (SANTOS, 2008, p. 2) com outras
esferas de saberes, como a religião, a política, a economia, etc. Por
conta deste conjunto de procedimentos, o discurso jornalístico é atingido
pelos sistemas de exclusão pontuados por Foucault: “a palavra proibida,
a segregação e a vontade da verdade” (FOUCAULT, 1999, p. 19).
A palavra proibida refere-se ao fato de que nem tudo pode ser dito.
No jornalismo em geral e no telejornalismo em particular, “qualquer um
não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 1999, p. 9). Tal interdição
dá, por exemplo, na edição, onde o que não possui valor-notícia é des-
cartado, ou ainda pela posição do sujeito falante no roteiro da matéria (se
seu nome e profissão são citados, o tempo que lhe é destinado, o status
com que é apresentado, etc.), o que determina o seu lugar de fala.
Além disso, existe no discurso jornalístico a impressionante força
daquilo que Foucault chama de vontade da verdade. Os discursos, para
o pensador francês, não são nem falsos, nem verdadeiros em si mesmos,
mas, na constituição das práticas discursivas existe um componente
efetivo, que é o “regime da verdade”. “Seguindo essas proposições fou-
caultianas, podemos entender a ‘verdade’ como um conjunto de proce-
dimentos regulados para a produção, distribuição e funcionamento dos
discursos” (AGUIAR, 2007, p. 4). Esta vontade da verdade se apoia num
suporte institucional, isto é, há uma gama de estruturas/instituições que
a reforçam e reconduzem. Foucault cita a pedagogia, o sistema de livros,
as sociedades de sábios de outrora e os laboratórios hoje. A própria mí-
dia ocupa, na sociedade contemporânea, a condição de instituição, pois
também regula os discursos e fornece condições para sua existência,
circulação e desaparecimento.
Mas Foucault acrescenta que o modo como o saber é aplicado na so-
ciedade, como é “valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”

100 Hideíde Brito Torres: O telejornalismo global e suas relações discursivas a partir de Foucault...

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(FOUCAULT, 1999, p. 17-18) é, igualmente, de fundamental importância
neste processo de estabelecimento da vontade de verdade. O fato de ter
um suporte e uma distribuição institucional faz com que esta vontade de
verdade exerça pressão e poder de coerção sobre outros discursos.

Interfaces do discurso jornalístico e do discurso religioso/evangélico


nas matérias analisadas
A “disciplinarização dos saberes” (por meio da “seleção de saberes,
institucionalização do conhecimento e, consequentemente, o desapare-
cimento do sábio-amateur”, cf. CASTRO, 2009, p. 110-117) coloca aos
saberes existentes na sociedade a necessidade de comprovação empírica
para que alcancem a condição de ciência. No que tange à noção positivis-
ta, a religião, embora constituindo um saber em circulação na sociedade,
não possui o status de ciência ou de verdade, mas situa-se na esfera do
que é comumente entendido como crença.
Conquanto não deixem de circular, tais saberes sofrem o que Fou-
cault chama de segregação. Neste caso, o discurso da religião, em de-
terminados contextos, “não pode circular como os outros: pode ocorrer
que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo
verdade nem importância” (FOUCAULT, 2000, p. 10). Em relação ao dis-
curso jornalístico, isso ocorre de modo bastante evidente, por exemplo,
quando representantes da religião se manifestam publicamente acerca de
temas tidos como científicos, como o aborto, a clonagem e as pesquisas
com células-tronco, etc.
Há outros momentos, no entanto, em que a segregação ocorre de
modo inverso, sendo-lhe atribuídos “estranhos poderes, o de dizer uma
verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda
ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber” (FOU-
CAULT, 2000, p. 11). Na série “Os evangélicos”, esta relação discursiva
entre a religião e o jornalismo se dá, por exemplo, na forma como o re-
pórter abordou a capacidade da religião de dar sentido, de transcender
ao problema do indivíduo, de levá-lo a alguma posição melhor de vida.
De qualquer modo, o lugar de fala da pessoa religiosa nas matérias
analisadas é sempre testemunhal, particular, subjetivo. Isso explica, ainda,
a fala da alteridade que os especialistas consultados expressam, uma vez
que, na acepção científica, os religiosos não teriam ‘mérito’ em falar por
si mesmos e o fazem somente ao nível da experiência, do emocional, no
sentido de possibilitar a aproximação entre o telejornal e seu telespectador.
Assim, mantém-se uma identidade evangélica calcada na alteridade, a partir
das falas de autoridade dos portadores do saber legitimado e, portanto,
detentor do poder de discurso sobre esses grupos. Fica, ainda, preservada a
objetividade, categoria fundamental da projeção identitária do jornalista.

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O discurso jornalístico opera, aqui, na fronteira do discurso religioso/
evangélico. Na primeira reportagem, sobre a presença evangélica numa
tribo indígena, Flávio Fachel deixa a “confissão de fé” para a entrevistada,
uma índia atendida na missão presbiteriana. Entretanto, a fala do repór-
ter conduz a narrativa: “Ensinar, aprender, proteger e ajudar. Na missão
evangélica encravada no cerrado, são os próprios índios os primeiros a
reconhecer...” e entra a fala da entrevistada: “Foi Deus que mandou a
missão, tanto os caciques, os rezadores falam disso também”. O repórte
assume com a entrevistada o discurso religioso como fundamento da
realidade experimentada por ela.
Na segunda reportagem, sobre o trabalho dos metodistas junto aos
moradores de rua de São Paulo, Fachel faz uso de expressões como: “De
ex-detento, o antigo capitão passou a ser salvador de almas”. A expressão
“salvador de almas” vem do discurso dos missionários norte-americanos
que primeiramente aportaram no Brasil, desde o início do século 19 e
seu sentido está ligado ao proselitismo, ou seja, a conversão de pessoas
à fé evangélica.
Na terceira matéria, sobre as crianças atendidas em um abrigo, Fachel
afirma: “o abençoado pão de cada dia vem pelas mãos dos integrantes
da Igreja Batista”, numa clara alusão à oração do Pai Nosso, citada por
Cristo nos evangelhos da Bíblia e repetida nos cultos cristãos. Também
diz: “seguidores do Evangelho viraram pescadores de crianças”. Essas
expressões também encontram-se no discurso evangélico, baseadas em
citações atribuídas a Jesus na Bíblia, chamando-os de “pescadores de
homens”. Outra fala do repórter (“quem vive na prática os ensinamentos de
Jesus”) utiliza-se do jargão religioso para descrever os integrantes da Igreja.
Acrescente-se ainda a entonação de voz como fator agregador de emoção
e certa postura reverencial de quem fala, evocando a ideia do ritual.
Na quarta matéria, sobre os luteranos e seu trabalho junto aos
agricultores pomeranos, uma expressão típica do evangélico: “Uma bên-
ção que ecoa há 15 décadas”. E ainda: “Nos corações, traziam uma fé
incomum no Evangelho”, evangelho aqui como referência à pregação e
à Bíblia, outra expressão bastante encontrada em falas e textos cristãos
em geral. Talvez para os não iniciados na religiosidade evangélica, as
expressões nada tenham de extraordinário, mas, para esses grupos
religiosos, são termos de uso constante, enraizados tanto nas tradições
religiosas quanto na própria Bíblia, seu livro sagrado.

Interfaces do discurso jornalístico e do discurso científico acerca da


religião nas matérias analisadas
Se o repórter chega a enunciados próprios do discurso religioso
evangélico, em contraparte, ele se resguarda na busca da objetividade,

102 Hideíde Brito Torres: O telejornalismo global e suas relações discursivas a partir de Foucault...

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apoiando-se no conhecimento científico, pela presença dos especialistas
na constituição das matérias.
Tais participações “muitas vezes se prestam apenas para reiterar o
enquadramento do Jornal, criar maior identificação com o público teles-
pectador ou abrir a possibilidade de que aquele tema possa ser visto sob
outra perspectiva” (ROCHA, ALBUQUERQUE e OLIVEIRA, 2008, p. 10-11).
Esses especialistas são entrevistados, sendo sua imagem acompanhada
pela legenda de seus nomes e profissões, “donde podemos inferir que
elas recebem uma espécie de ‘autorização’ para falar” acerca do tema
proposto (ROCHA, ALBUQUERQUE e OLIVEIRA, 2008, p. 8).
Um dos procedimentos citados por Foucault para o controle dos
discursos é a determinação das “condições de seu funcionamento, de
impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras... Ra-
refação dos sujeitos que falam: ninguém entrará na ordem do discurso
se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado
para fazê-lo” (FOUCAULT, 1999, p. 36-37). Esta é uma possibilidade de
análise da inserção do especialista no discurso jornalístico, nas matérias
da série especial “os evangélicos”. Quando se trata de falar acerca da
religião a partir do ponto de vista do discurso da verdade (ou seja, neste
caso, da ciência) e não do discurso da crença, requer-se o especialista.
A partir dele, se legitimam certos enunciados do jornalismo.
Na primeira matéria, logo após a informação sobre a origem histórica
do Protestantismo, temos a palavra da especialista, a socióloga Maria
das Dores Machado. É a partir da palavra da Sociologia que é explicada
a religião protestante nos seguintes termos: “Com o Lutero, você vai ter
toda uma nova teologia muito calcada na interpretação, na leitura da
Bíblia. Você tem que assumir para você que está tudo ali na Bíblia. As
suas orientações estão na Bíblia para a sua vida”.
Neste ponto, a restrição do discurso se manifesta pelo “ritual” descrito
por Foucault: quem fala é um sujeito qualificado, do ambiente acadêmico,
que faz uma recitação acerca do tema proposto. Há uma série de gestos,
comportamentos, circunstâncias e signos que acompanham o discurso
científico: a postura professoral, os livros ao fundo, a legenda que tanto
identifica quanto atribui autoridade ao sujeito falante (diferentemente do
chamado “fala povo”, muito usado no telejornalismo, no qual o povo não
tem nome nem profissão).
Na segunda matéria, a especialista é a antropóloga Christina Vital
da Cunha, do Instituto de Estudos da Religião. Ela afirma que a fé é
“uma crença importante porque acaba tendo uma interferência na vida
dos indivíduos”. Embora os enunciados apresentados possam ser enqua-
drados naquilo que se entende como “senso comum” (ou seja, poderiam
ser ditos por qualquer um, não possuem linguagem especializada nem

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códigos que necessitem ser explicitados ao telespectador), eles se tornam
autorizados e revestidos de verdade porque a Antropologia e a Sociologia
são ciências sociais (embora com um grau de certeza ainda inferior às
ciências entendidas como exatas, porém, mais qualificadas que outros
saberes sociais). Suas vozes são autorizadas porque os âmbitos institu-
cionais que circundam os falantes são os da academia, os da ciência, e
também a própria mídia, capaz de dar visibilidade à verdade e, portanto,
outorgadora de condições, rituais e circunstâncias nos quais os discursos
podem ou não circular.
Mesmo assim, tais enunciados poderiam não passar de “comentá-
rios”, pois não “fazem outra coisa senão repetir e retomar o que se diz
nos textos primários, a fim de trazer à luz uma pretensa verdade originária
que permaneceu oculta” (CASTRO, 2009, p. 119). Mas aqui também se
manifesta, tanto nos enunciados do repórter quanto nos dos especialistas,
a luta pelo poder e pelo saber – uma espécie de “quem dará a última
palavra”, “quem exercerá o controle final do discurso?”
Ao indagar acerca de como o sujeito pode situar-se a respeito de
determinados objetos ou grupos de objetos, Foucault faz-nos pensar, em
relação ao telejornalismo, na possibilidade de este espaço atuar, também,
num regime de exclusividade e de divulgação. Percebe-se que os sujeitos
que pronunciam outros discursos, como, neste caso, os especialistas,
devem adequar seus enunciados, de forma consciente ou não, às formas
de difusão e de circulação propostas pelo discurso jornalístico, mesmo
que este pretenda-se isento de censura. Nas matérias analisadas, as falas
dos especialistas retomam o que foi anteriormente dito pelo repórter ou
ele, logo depois, apresenta uma evidência que as corroboram.

Considerações finais
Pudemos perceber que o telejornalismo, ao falar acerca da religião,
produz enunciados que gravitam, ao menos, em torno de duas posições
possíveis. Primeiramente, são uma fala de fronteira: jornalismo e religião
por vezes se tocam, o repórter chega a aproximar-se do lugar de fala da
pessoa religiosa, absorve palavras e enunciados que geram um sentido
de identidade para com o telespectador daquela religião. Mas, ao mesmo
tempo, são uma fala de alteridade e, neste ponto, contam com a figura
do especialista, proporcionando ao jornalista um lugar de fala relacionado
com uma postura de profissionalismo e objetividade – marcas de verdade
do discurso científico.
Outro aspecto do discurso que ainda vale aprofundar em outras
pesquisas: quais são condições históricas atuais que favorecem os enun-
ciados que compõem o discurso jornalístico sobre a religião evangélica
encontrado nesta série? Como bem lembram os apresentadores do Jornal

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Nacional, ao início da apresentação da série, o IBGE aponta um grande
crescimento deste segmento na sociedade brasileira. Este é um fator a
ser levado em conta, uma vez que já houve outros momentos em que o
discurso jornalístico sobre a religião evangélica no Brasil não se manifes-
tava da forma como o encontramos nas matérias em análise. Ao abordar
este aspecto, coloca-se em evidência a necessidade de considerar as
situações históricas que possibilitam a emergência dos discursos, como
pontua Foucault.
Consideramos, aqui, a figura do especialista e sua inserção no discur-
so jornalístico na série analisada. Verificamos que o discurso jornalístico
busca no científico um reforço de sua vontade de verdade; uma referência
aos seus próprios enunciados. De fato, o que se verifica é que

é dada ao campo do jornalismo a tarefa de produzir saber acerca dos


acontecimentos do mundo, tarefa que lhe é outorgada tanto porque detém
a tecnologia — uma força maquínica incomensurável — como também
porque outras instituições produtoras de saber — estas, de caráter pedagó-
gico — conferem aos que proferem os discursos da mídia o direito da fala
(RESENDE, 2007, p. 83).

Ao mesmo tempo, porém, ocorre uma restrição do discurso científico,


tanto no sentido de que os sujeitos falantes apresentam seus enunciados
sob a égide do comentário, isto é, repousam sobre o já-dito, quanto no
sentido de que é o jornalismo a instância que determina as condições em
que o discurso científico se apresenta. É possível, portanto, refletir sobre
as condições nas quais se dá o discurso jornalístico em suas relações
discursivas tanto com a religião quanto com o próprio discurso científico.
Cabe a ressalva apontada pó r Resende, de que não basta saber o que se
passa em relação àquilo de que o discurso jornalístico fala, “mas também
dos modos que sobre [eles] se fala, instâncias nas quais várias vozes e
vários sentidos podem, por vezes, revelar-se” (RESENDE, 2007, p. 92).
É claro que as reflexões aqui propostas podem ainda aprofundar-se e
estender-se muito mais, considerando-se a densidade teórica de Foucault
e a complexidade dos acontecimentos discursivos desde sua perspectiva.
Não se pode correr o risco de deixar a análise estabelecer-se apenas
na superfície dos discursos, pois, da forma como propõe Foucault, esta
análise de discurso não é simples em sua efetivação. Entretanto, este é
um exercício válido, no sentido de analisar o discurso como prática, de
fugir às simplificações e essencializações, às universalizações do sentido,
na tentativa de buscar compreender e evidenciar as condições tanto de
surgimento e circulação quanto de controle do discurso a partir de seu
momento, de sua concretude histórica.

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Silêncio-crítica-aprendizado: uma
análise teológica introdutória
ao tema do mal
Silence-critique-learning: a theological
introductory analyses of the theme of evil

Silencio-crítica-aprendizaje: un análisis teológico


introductorio al tema del mal
Claudio de Oliveria Ribeiro

Resumo
O texto apresenta implicações para o tema do mal oriundas do encontro da
teologia com o pensamento moderno, tanto o que se consolidou no final do
século 19, fortemente marcado pelo racionalismo e pelo iluminismo, como o que
resultou das críticas vindas das filosofias da existência já nas primeiras décadas
do século 20. Trata também da relação entre o mal e o pecado e do mal e do
sofrimento como fragilidades originais do ser humano. A referência interpretativa
é a de evitar as visões de uma “teologia da retribuição”, meritória, capaz de
em seu extremo gerar a ideia de um deus cruel. O mal é visto, sobretudo, por
aquilo que prejudica ou fere a vida e a felicidade do humano e do mundo. Como
decorrência da vocação prática da teologia, são indicadas posturas consideradas
adequadas frente ao mal.
Palavras-chave: Mal; pecado; teologia contemporânea; antropologia.

Abstract
The paper presents implications for the issue of evil arising from the encounter
of theology with modern thought, which were consolidated both, in the late nine-
teenth century, strongly influenced by rationalism and the Enlightenment, and the
first decades of the twentieth century, by the criticism of existentialist philosophy.
It also addresses the relationship between evil and sin and evil and suffering
as a unique human frailty. The interpretive reference is to avoid the visions of a
“theology of retribution,” worthy, capable of generating at its extreme the idea of​​
a cruel god. Evil is seen above all by what harms or injures life and happiness
of the human and the world. As a result of the practical nature of theology, are
indicated attitudes considered appropriate against the evil.
Keywords: Evil; sin; contemporary theology; anthropology.

Resumen
El texto presenta las implicaciones para el tema del mal oriundas de la intersección
de la teología con el pensamiento moderno, tanto el que se consolidó al final del
siglo XIX, fuertemente influenciado por el racionalismo y la Ilustración, como el
que resultó de las críticas provenientes de las filosofías existenciales ya en las
primeras décadas del siglo XX. También trata de las relaciones entre el mal y el
pecado y entre el mal y el sufrimiento como fragilidades inherentes al ser humano.
La referencia en interpretación es evitar el enfoque de la "teología de la retribu-

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ción," basada en el mérito, capaz de generar en su extremo la idea de un dios
cruel. El mal está representado sobre todo por lo que perjudica o daña la vida y
la felicidad del ser humano y del mundo. Como resultado de la naturaleza práctica
de la teología, se indican las actitudes consideradas apropiadas contra el mal.
Palabras clave: Mal; pecado; teología contemporánea; antropología.

Introdução
A realidade do mal, presente na vida humana, sempre desafiou os
grupos religiosos e os círculos teológicos. Isso se deu sobretudo pelo
questionamento da concepção de justiça na célebre pergunta “se Deus é
bom por que há o mal no mundo?”. As pessoas e grupos ao enfrentarem a
realidade do mal, marcada pelas mais distintas formas de sofrimento, por
tragédias, por violências e pela morte sempre indagaram sobre a origem
do mal que lhes acometia e se há um sentido a ser descoberto em todas
essas experiências negativas da vida. Ao mesmo tempo, as representa-
ções do mal, como as imagens do Diabo, do inferno e similares sempre
fascinaram as pessoas e mobilizaram a atenção delas, quer seja pelo
medo, ou pela disposição em combatê-los com rituais e práticas religiosas,
ou pela crítica racional e ética. O mal sempre desafiou a humanidade.
A teologia moderna e atual percebeu logo de início que era impres-
cindível que a realidade do mal, em especial suas origens, fosse analisada
com as mediações do conhecimento científico, sobretudo o das ciências
humanas e sociais. Isso se deu pelo próprio método teológico moderno,
que requer tais mediações para abordar qualquer realidade ou questão.
No caso do mal, a mediação científica para as abordagens teológicas
ganharam relevância, especialmente em função da roupagem medieval
que o tema possuía e ainda possui. O diabo, como personificação do mal,
ainda assusta muito as pessoas nos dias de hoje!
As reflexões que propomos a seguir são introdutórias ao tema. Elas
pressupõem todos os esforços que vêm das ciências sociais e antropoló-
gicas especialmente, mas também da história, para compreender as repre-
sentações sociais do mal e como elas foram e são utilizadas ideologica-
mente para reforçar processos repressivos, excludentes e inquisitoriais.
Nosso modesto objetivo é fazer uma primeira aproximação ao tema,
situando a questão do mal em perspectiva teológica. O ponto mais des-
tacado de nossa reflexão é o balanço em relação às implicações que o
pensamento teológico moderno, marcado pelo racionalismo e pelos ideais
iluministas, conferiu à questão do mal, especialmente as dificuldades de
ressignificação das imagens que o representam, como o diabo, o inferno,
e outras, como a do pecado, por exemplo, que ganharam um perfil bem
determinado no mundo medieval e que hoje são de difícil abordagem.
Além disso, desejamos mostrar que o século 21 foi denso de contribuição
no campo teológico em vários aspectos e, especificamente no tocante ao

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tema do mal, foram criadas melhores condições de abordagem especial-
mente pela revisão e recriação teológica diante do contexto de sofrimento
e de destruição vivenciados nos escombros das guerras mundiais, cujos
efeitos não ficaram restritos à Europa, e pelo contexto socioeconômico
de pobreza e de desigualdades sociais que marcou a vida e a morte de
massas consideráveis da população em vários continentes. O mal e o
diabo ganharam nomes próprios como o nazismo, o neoliberalismo eco-
nômico, os totalitarismos ‘à direita e à esquerda’. Mas, o mal continua
presente para além dessas forças e atinge as pessoas com doenças cuja
origem não é facilmente explicada, com mortes súbitas, tragédias e uma
lista enorme de situações que se tornam misteriosas e enigmáticas para
a razão humana. Portanto, as reflexões sobre o mal, seja a de caráter
filosófico, histórico, sociológico, antropológico, psicológico ou teológico
cada vez mais se tornam relevantes.
Nessa abordagem teológica, temos como referência o universo que se
consagrou denominar como civilização cristã ocidental. Reconhecemos que
outros enfoques precisariam ser dados para uma abordagem mais consis-
tente e abrangente em relação ao tema do mal. Nossa trajetória será a de
apresentar em um primeiro momento, as implicações, em linhas gerais, para
o tema do mal oriundas do encontro da teologia com o pensamento moderno,
tanto o que se consolidou no final do século XIX, fortemente marcado pelo
racionalismo e pelo iluminismo, como o que resultou das críticas vindas das
filosofias da existência já nas primeiras décadas do século XX.
Na sequncia, por considerarmos inevitável, por diferentes razões,
tratar da relação entre o mal e o pecado e por entendermos ser relevante
olhar o mal e o sofrimento como fragilidades originais do ser humano,
vamos apresentar tais questões, em síntese, buscando a contribuição de
diferentes autores. Nossa referência interpretativa é de evitar as visões
de uma “teologia da retribuição”, meritória, capaz de em seu extremo
gerar a ideia de um deus cruel. O mal é visto, sobretudo, por aquilo que
prejudica ou fere a vida e a felicidade do humano e do mundo. Dentro
da tradição teológica judaico-cristã será a referência do profetismo que
melhor caracterizará essa visão.
Como decorrência da vocação teológica, desejamos ao final também
indicar posturas que consideramos adequadas frente ao mal. Não se trata
de “receitas prontas” ou de um manual nos velhos esquemas de “o que
fazer” da política ou da apologética, mas é que a teologia também se
transforma diante do mal e dos sofrimentos conseqüentes dele. E isso in-
terpela a todos: os que sofrem e buscam uma explicação e os que refletem
e sofrem junto, pois a teologia é um corte profundo na alma! Ela requer
revisão de vida, recriação de valores, busca de significados profundos.
Assim como a fé, ela também é “aquilatada no sofrimento”.

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A teologia diante do pensamento moderno: implicações para o tema
do mal
No campo da experiência judaico-cristã, as tensões entre a fé e
a razão estão presentes desde os primórdios. Tais tensões marcam o
contexto existencial de pessoas e grupos na longa jornada de busca de
explicações sobre o mal no mundo. 1 As teodicéias, entendidas como “a
justificação da bondade de Deus contra os argumentos tirados da exis-
tência do mal no mundo e, por conseqüência, a refutação das doutrinas
atéias ou dualistas que se apóiam sobre esses argumentos” (LALANDE,
1996, p. 1124), surgem e são recriadas dentro de diferentes épocas,
culturais e realidade sociais.
Cada momento histórico expressou formas diferenciadas das referidas
tensões entre fé e razão, mas foi, sobretudo, no século XIX, após os impac-
tos do racionalismo e do iluminismo na civilização ocidental que a teologia
precisou enfrentar mais detidamente as questões relativas ao método cien-
tífico e isso implicou incisivamente nas reflexões (ou ausência delas) sobre
o mal no mundo. No referido século, o liberalismo teológico de Friedrich
Schleiermacher (1768-1834), Albrecht Ritschl (1822-1899), Adolf Harnach
(1851-1930) e outros foi a expressão que mais fortemente demonstrou
o interesse pela articulação entre fé e ciência e entre teologia e história.
Esta corrente, forte nos Estados Unidos e na Europa, especialmente no
século XIX, está presente no Brasil, embora um tanto quanto desfigurada
em relação às suas bases teóricas. De alguma forma o “Evangelho Social”,
inspirado nas ideias de Walter Rauschenbusch (1861-1918) indicava, no
Brasil, desde o início do século XX, suas pautas pastorais.
As ênfases da Teologia Liberal e os aspectos metodológicos principais
dessa corrente formaram um criativo amálgama no qual houve uma dupla
interação e influência mútua. Diante disso, houve certa desvalorização das
reflexões em torno das imagens do Diabo, do inferno e similares, devido
ao desgaste dessas imagens diante do pensamento moderno.
Entre as ênfases do liberalismo teológico podem ser listadas: a bus-
ca de aproximação entre teologia e ciências e entre fé e racionalidade
moderna; visão antropológica positiva, com forte expectativa em relação
à educação como possibilidade de promoção humana; relativização das
perspectivas cristocêntricas e eclesiocêntricas com vistas à perspectivas
universalistas e seculares; abertura para as questões próprias da rela-
ção entre Igreja e sociedade e a valorização do mundo como espaço
do Reino de Deus; valorização da exegese bíblica e uma consequente
visão histórico-crítica da Bíblia; aceitação dos valores culturais modernos;
reforço das dimensões da individualidade e da subjetividade reduzindo a
1
Sobre a temática do mal vista na perspectiva teológica há uma boa bibliografia. Veja em
português, entre outros títulos: Evans (1995), Gebara (2000), Gesché (2003), Soares
(2003), Sanford (1988), Estrada (2004, 2007), Queiruga (2007; 2011).

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religião à esfera dos sentimentos; interpretação predominantemente ética
do Cristianismo, em especial em relação ao dado salvífico.
O liberalismo teológico foi encantador, porque pregava o futuro que
se avizinhava do presente. Acreditou-se que, de fato, “o Reino de Deus
está próximo”. Era possível construí-lo, ver sinais cada vez mais nítidos
e crescentes da implantação do Reino. Nessa concepção, o ser humano
é bom, é realizador, e o mundo caminha para a paz tão sonhada; a edu-
cação, uma vez propiciada a todos, possibilitará evolução social, cons-
cientização ética e justiça social. Orquestrando todo este projeto utópico,
estava a razão iluminista. O mal, dentro desse quadro, portanto, fica sem
o enfoque e a ênfase necessários. De forma mais aguda, “saem de cena”,
o Diabo, o inferno, o purgatório e outros símbolos religiosos afins.
As análises sobre o ser moderno e autônomo indicaram que o ser
humano tem-se tornado inseguro em sua autonomia, devido à fragmenta-
ção da visão de mundo que outrora lhe concedia sustentação existencial.
As diferentes correntes filosóficas que submeteram todas as referências
humanas à crítica – em especial os pensamentos de Marx, Nietzsche e
Freud – destruíram a antiga visão de mundo que o ser humano possuía.
Por outro lado, pouco fizeram no sentido de construir outra visão, uma
vez que encontram, justamente nesta perspectiva, os próprios objetivos.
O ser humano moderno progressivamente passa a deixar de possuir uma
visão integral do mundo e por isso considera-se mais perto da realidade e
sente-se confrontado mais profundamente com os aspectos problemáticos
de sua existência do que aqueles que escondem esses aspectos sob a
proteção de uma visão geral do mundo.
Juan Antônio Estrada (2007, p. 205-206), ao analisar o desenvolvi-
mento das visões sobre Deus e o mal, afirma que no contexto da moder-
nidade, que busca a autonomia da razão humana,

... a teodicéia abre passagem para a antropodicéia. Deus deixa de ser o


ponto de referência a partir do qual se compreende o mundo e o homem.
Por isso, o problema do mal desaparece enquanto problema teológico para
transformar-se em problema antropológico e histórico. A única desculpa que
Deus tem é a de não existir; conseqüentemente é preciso voltar ao homem
e à sua práxis para abordar o sem-sentido do mal. O desencantamento
do mundo está unido à morte de Deus; com isso a resposta ao problema
do mal é o humanismo que busca curar os males e pôr as bases de uma
sociedade emancipada, nome secularizado que substitui a ideia cristã do
reinado de Deus.

Em contraposição ao liberalismo, que poderíamos chamar de uma


teologia moderna de cunho racionalista, a conhecida neo-ortodoxia te-

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ológica ou Teologia Dialética, de Karl Barth (1886–1968), Emil Brunner
(1889–1966) e Dietrich Bonhoeffer (1906–1945) e outros, realçou, no sé-
culo XX, outra metodologia teológica. Ao mesmo tempo as contribuições
filosóficas e teológicas de Paul Tillich (1886-1965), de Karl Rahner (1904-
1984) e de Hans Küng (1928 - ) e toda a teologia católica moderna vão
oferecer de maneira incisiva elementos teológicos que podem, em boa
medida, refletir mais adequadamente sobre o mal e suas representações.
Poderíamos denominar muito genericamente todo esse bloco de teologia
moderna de cunho existencialista.
As ênfases dessas visões não podem ser facilmente resumidas,
mas em síntese revelam a inovação que a reflexão teológica vivenciou
ao levar em conta, seguindo Pascal, que ‘a razão tem razões que a
própria razão desconhece’. Entre as principais características que se
contrapõem à visão liberal-moderna destacam-se: o esforço em não
aprisionar a reflexão teológica aos limites da razão, destacando para
isso os elementos da fé, da graça e do absoluto em permanente corre-
lação com a vida humana; a visão antropológica negativa, baseada na
corrupção humana resultante dos processos socioculturais; um destaque
para o caráter cristológico e eclesiológico da reflexão teológica cristã,
em abertura e conexão com a dimensão ecumênica; avaliação teológica
permanente dos problemas sociais e políticos e as implicações deles
para a fé cristã e para a Igreja; defesa da centralidade da Bíblia na vida
da Igreja e na reflexão teológica, considerando os avanços da pesquisa
e da exegese bíblica e os desafios hermenêuticos oriundos do contexto
da vida; crítica aos valores da sociedade a partir de uma correlação
com a fé cristã, com ênfase nos desafios que os agrupamentos empo-
brecidos oferecem; distinção entre fé e religião, destacando a primeira
como elemento fundamental da vida, que chega ao ser humano como
dádiva graciosa de Deus.
Cada um desses elementos constitui possibilidades de se pensar o
mal, sem nos tornarmos refém do racionalismo cientificista que caracteri-
zou o pensamento teológico liberal. A partir da crítica à essa visão, ainda
na primeira década do século 21, variadas correntes teológicas e pensa-
dores surgiram, cada qual com especificidades metodológicas, incluindo aí
as teologias políticas européias e latino-americanas, as de corte cultural
como feminista, negra e indígena e a teologia das religiões.
Obviamente, não podemos nos pautar por idealizações ou mesmo
generalizações sobre o mal. Cada pessoa, comunidade ou agrupamento
que sofre o mal, ou mesmo a estigmatização de suas representações
o sofre concretamente. É o que nos chamou a atenção a teóloga Ivone
Gebara (2000, p. 241)., em sua obra Rompendo o Silêncio: uma fenome-
nologia feminista do mal. Ela indica que

114 Claudio de Oliveria Ribeiro: Silêncio-crítica-aprendizado

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... falar dos males das mulheres é abrir uma brecha nos discursos univer-
salizantes de nossas teologias, é retomar experiências de proximidade, de
lágrimas, de sofrimentos de pequenas alegrias como matéria de reflexão.
É também fazer entrar a vida cotidiana, as relações breves, as paixões
amorosas, a morte e o luto como vivência capaz de equilibrar a frieza das
cifras, das estatísticas, dos discursos teológicos bem estruturados segundo
normas preestabelecidas. Os discursos das mulheres, discursos literários,
poéticos, teológicos, ou simplesmente gritos de aflição ou de alegria na vida
rotineira de cada dia, dão um novo corpo à pesquisa teológica.

Essa mesma interpelação também surge de situações concretas de


sofrimento vividas pelos setores pobres da sociedade e pelos grupos que
sofrem discriminações de variadas procedências – étnica, de orientação
sexual, sociocultural, religiosa, etc. – na maioria das vezes estigmatizados
como representantes do mal.
Quais são, portanto, as possibilidades de uma interpretação teológica
para o problema do mal no contexto atual? Destacaremos três pólos de
reflexão: a relação com o pecado, o mal e o sofrimento vistos como fragili-
dade original do ser humano, e as posturas que, do ponto de vista teológico,
consideramos adequadas para nos situarmos frente à realidade do mal.

O mal e o pecado
O termo “mal”, como se sabe, pode ser usado em sentido amplo e em
um sentido estrito. Para o teólogo Paul Tillich, “o sentido mais amplo cobre
tudo o que é negativo e inclui tanto destruição como alienação – a condi-
ção existencial do homem em todas as suas características. Se a palavra
é usada neste sentido, o pecado é visto como um mal ao lado de outros”
(TILLICH, 1984, p. 291). Nesse sentido, as estruturas de auto-destruição
existencial permitem-nos apenas dar um primeiro passo para a compreen-
são daquilo que freqüentemente é descrito como sendo “o mal”
Se seguirmos os arquétipos míticos de interpretação do mal, apre-
sentados por Paul Ricoeur em sua famosa obra A Simbólica do Mal não
poderemos nos isentar em refletir sobre o pecado humano se desejarmos
pensar sobre o mal. Os referidos arquétipos são: a) O drama cósmico,
quando o mal vem do embate de dois poderes; b) O mito trágico, quando
o mal resulta da ação de deuses vingativos; c) Os mitos gnósticos ou pu-
rificação da alma, nos quais o mal é visto como um meio para se alcançar
o bem; e d) O mito adâmico, onde o mal é visto como decorrência da
rebelião humana (pecado) contra os preceitos divinos.
O teólogo Vitor Westhelle, que sintetiza o mal como “uma imperfeição
da natureza, uma distorção de um estado de integridade, ou a privação
do bem”, nos indica que “na tradição judaico-cristã encontramos, em di-
ferentes teologias, a predominância de uma ou outra das três acepções

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básicas dos termos (imperfeição, distorção, ou a privação de bens) em
combinação variada com os arquétipos míticos sobre a origem do mal,
com clara predominância, mas não exclusividade, do mito adâmico”
(WESTHELLE, 2008, p. 606). Mais uma vez, estamos diante da relação
entre mal e pecado humano, ainda que realcemos que as situações de
sofrimento e de mal no mundo não podem ser interpretadas meramente
como resultado de pecado daquele que as enfrenta. O mal possui dimen-
sões mais amplas e complexas, sendo que boa parte delas expressa de
forma enigmática.
Pecado e salvação ganharam correlação na história do pensamento
teológico, independentemente dos conteúdos e enfoques de cada um
dos termos. Na visão da teologia cristã, o pressuposto da concepção
de salvação é que o ser humano é justificado. A justificação introduz um
“apesar de” no processo de salvação. Apesar das ambigüidades e das
limitações, o ser humano é aceito por Deus (graça) e este também aceita
essa situação (fé), na medida em que se abre para Deus. Tal abertura
se baseia no reconhecimento de seu caráter de alienação e de pecado
que o faz deixar de olhar a si mesmo em sua condição autodestrutiva,
voltada para o mal e para o diabólico, para valorizar o ato salvífico e
justificador de Deus. Trata-se da afirmação neotestamentária de que “não
há distinção, pois todos pecaram e carecem da graça de Deus, sendo
justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há
em Cristo Jesus” (Rm 3. 23-24).
O pecado representa a ambigüidade, pessoal e coletiva, na vocação
humana em não orientar-se para o Reino (= vontade) de Deus. Ao não
reconhecer a sua finitude, o ser humano encontra-se na condição de pe-
cador (cf. Gn 3). Portanto, ao não se compreender como finito, e, assim,
desejoso de conhecer o bem e o mal, o ser humano intenta ser igual a
Deus, o que o torna pecador.2
O reconhecimento do pecado faz com que o ser humano vislumbre a
graça de Deus. Isso elimina a possibilidade, conforme indicou Juan Luis
Segundo, de que o receio humano ao pecado transforme-se em angústia,
falta de fé e falsa religiosidade. A ação criadora do ser humano é dom de
Deus e objetivo da Criação, mas “é sempre uma mistura do amor com
egoísmo e o pecado”. Nesse sentido, a impossibilidade de auto-salvação
do ser humano, como defendemos, não se converte em inércia, despreo-
cupação social, visão fatalista ou em apatia frente ao mal. Para o referido
autor, “pelo contrário, se esquecemos nossa responsabilidade de criar
um mundo que foi entregue (parcialmente) em nossas mãos ‘artesanais’,
e preferimos esquecer nossa responsabilidade criadora para contabilizar
2
Além das obras gerais de antropologia, veja, para a discussão sobre o pecado, as se-
guintes obras: Berkouwer (1970), Bingemer E Yunes (2001), Hofstätter (2003), Libânio
(1975; 1999), Thévenot (2003), Newbigin (1963), Scherzberg (1997), Moser (1996).

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nossos méritos diante de Deus, por mais que cumpramos todos os pre-
ceitos de todos os decálogos, estaremos pecando. Porque não fomos
criados para isso. E se, apesar de tudo, a isso pretendêramos chegar,
estaríamos – como também disse Paulo – falhando para com a intenção
criadora de Deus a nosso respeito, estaríamos deixando sua criação
condenada à inutilidade” (SEGUNDO, 1995, p. 528-529).
Essa participação na graça (regeneração) e aceitação do amor de
Deus pela fé (justificação) gera um novo estado de ser, uma transfor-
mação (santificação). Assim se caracteriza, por exemplo, para Tillich, o
caráter tríplice da salvação, apresentado por ele na segunda parte de
seu sistema teológico intitulado A Existência e a Pergunta por Cristo (Cf.
TILLICH, p. 380-383).
O aspecto da salvação como transformação adquire substancial re-
levância se forem considerados o contexto latino-americano opressivo de
exclusão social, de pobreza e de sofrimento e as intuições presentes em
todo o processo de elaboração da Teologia Latino-Americana da Liber-
tação. O ser humano não está simplesmente determinado pela bondade
essencial ou pela alienação existencial, ele encontra-se determinado
pelas ambigüidades da vida e da história e se abate sobremaneira na
vida cotidiana especialmente a das pessoas pobres. O mal está à vista
de todos. Analisar e compreender esse quadro complexo da existência
humana, assim como extrair todas as conseqüências dele, permite que
as reflexões presentes deixem de ser abstratas. O mal e os demônios
possuem nomes completos e expressões concretas e tem sido difícil nos
livrarmos deles. Tal perspectiva nos remete, então, à noção de pecado
original, recorrente na história do Cristianismo.
As reflexões bíblicas sobre o pecado original indicam a realidade
iníqua do ser humano. Não se trata de algo referente a um passado lon-
gínquo, mas de algo profundamente relacionado à existência humana no
aqui–e–agora. Aliás, a palavra “original” nos dá um bom caminho para a
reflexão. “Original” é quando somente nós temos ou possuímos algo. Se
considerarmos os relatos bíblicos sobre Adão, veremos que o pecado é
algo original do ser humano; tem a ver com a sua marca; com a sua con-
dição existencial. Mesmo em termos de pecado pessoal, veremos que o
pecado concreto cometido somente pode ter sido cometido por alguém.
Uma perspectiva teológica mais substancial expressa que a preocu-
pação prático-pastoral não deve ser, como nas interpretações literalistas,
sobre um ‘autor’ do primeiro pecado. O que nos leva a ter uma preocu-
pação maior é se o pecado tem sido uma influência marcante na vida
humana, produtora e reprodutora do mal, a ponto de querermos sempre
depender dele. John Haught (2001, p. 143) traduz essa perspectiva ao
afirmar que

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... o pecado original, de acordo com a interpretação teológica contemporâ-
nea, não se refere a um acto específico cometido por um par progenitor num
passado remoto, mas sim ao presente estado geral do nosso afastamento de
Deus, uns dos outros e também do nosso mundo natural. Todos nascemos
num mundo que é já profundamente imperfeito, devido em grande medida
à ganância humana e à violência. “Herdamos” de facto ambientes, culturas,
hábitos e maneiras de ser que misturam o bom e o mal. Assim, a noção
de pecado “original” indica-nos que, pelo simples facto de termos nascidos
neste mundo ambíguo, somos condicionados não apenas por tudo aquilo
que é promotor da vida, mas também por toda uma história de mal e de
oposição à vida.

O pecado original, portanto, aponta para a situação negativa em


que se encontra todo ser humano nesse mundo. Todavia, o amor e a
providência de Deus são suficientes para superar esta situação negativa.
Assim, a reflexão sobre o pecado original (e não inicial) é de fundamental
importância para que o ser humano tenha a consciência de sua natureza
pecadora, geradora do mal, e de que ele depende sempre da redenção
que vem de Deus. O ser humano alcançado pela graça de Deus obtém o
dom gratuito da fé e vive a sua vida simultaneamente como justo e peca-
dor, como já indicava perspectivas teológicas desde Martinho Lutero.

O mal e o sofrimento como fragilidade original humana3


Na atualidade, as novas formas religiosas, substitutivas das tradi-
cionais, em certo sentido, por possuírem propostas globalizadoras e de
resultados práticos e imediatos, respondem mais adequadamente ao mito
moderno do progresso ilimitado (prosperidade). Elegem com nitidez inimi-
gos e adversários, reais ou imaginários (como, por exemplo, a “Nova Era”
e os desenhos de Walt Disney, para alguns grupos evangélicos), e com
isso mobilizam a atenção de muitos com a sedução de que é possível
tornar o futuro presente, que podem acabar com o mal e vencer Satanás,
e de que o ser humano pode salvar-se a si mesmo e livrar-se do mal ao
cumprir as práticas religiosas indicadas.
No campo cristão, mas não somente, é a proposta de saúde e de
riqueza pessoais, a explicação religiosa das vicissitudes da vida, especial-
mente a partir das imagens dos demônios e das tentações e a da vitória
sobre o mal e sobre Satanás, e a melhoria (suposta) da qualidade de vida
pessoal que têm marcado mais substancialmente o cotidiano das igrejas e
segmentos religiosos afins Parece óbvio afirmar que o crescimento desta
proposta se dá no Brasil, em meio a um contexto de crescente exclusão
e desigualdade social e de decréscimo dos índices de qualidade de vida.
3
Abordagens peculiares sobre o sofrimento podem ser vistas em: Barbarin (1997), Fernando
e Rezende (2002), Gerstenberger E Schrage (1987), Gutierrez (1987), Varone (2001).

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São muitos os traços e nuances desta perspectiva, o que dificulta enorme-
mente as sínteses. No entanto, sob o nome de Teologia da Prosperidade
podem se agrupar visões como a “Confissão Positiva” (não aceitação da
fragilidade humana), o “Rhema” (poder direto de Deus concedido pesso-
almente aos crentes), a “Batalha Espiritual” (deslocamento religioso para
explicações dos projetos históricos) e a “Vida na Bênção” ou “na Graça”
(transferência da escatologia para a vida terrena). Em todas essas visões
a vitória sobre o mal e sobre os poderes vistos como diabólicos e malignos
está em evidência.
O fato é que esta perspectiva religiosa encontra-se em sintonia com
o estágio de desenvolvimento do sistema econômico capitalista. Se consi-
derarmos o fato de que o socialismo real no final do século passado ruiu,
entre outros fatores, pela incapacidade de prover o bem-estar social que
estava no bojo de suas promessas utópicas e que o capitalismo, em sua
face neoliberal, reforça as ideias de que é possível a satisfação pessoal
a partir do consumo, as propostas religiosas de prosperidade reúnem as
melhores condições para alargar as margens do seu rio. Nesse sentido,
uma reflexão teológica sobre o mal e uma análise criteriosa sobre as
formas com as teodicéias são recriadas, devidamente articuladas com
as demais áreas do conhecimento, especialmente as ciências sociais,
antropológicas, psicológicas e econômicas, ganham cada vez mais rele-
vância e urgência.
A realidade do mal reside na esfera complexa do mistério da vida.
Não é fácil refletir sobre ele. Um caminho pode ser o de respostas rápi-
das e simplistas (como na linguagem comum que atribui meramente a
responsabilidade do mal ao diabo). A pressuposição elementar é que em
relação ao tema do mal, a teologia precisa ajudar a fé a se despir das
vestimentas medievais que inibiam o ser humano a pensar sobre si mesmo
e sobre o mundo e, dessa forma, entrar mais profundamente nos mistérios
de Deus. A teologia, como interpretação de todas as realidades da vida,
necessita identificar a ação diabólica no mundo. Ela precisa cumprir tal
tarefa de forma robusta, não superficial ou ingênua, em diálogo profun-
do e interpelador com as fontes do saber – fruto das dádivas de Deus
ao mundo. Satanás está presente no mundo como tentador, dividindo
(dia-bólico = o que divide), acusando, desintegrando a vida humana e a
criação. Todavia, na maioria das vezes não o reconhecemos, por que o
procuramos com a roupagem mitológica do mundo medieval.
Além da crítica moderna, tanto a de caráter racionalista quanto a de
caráter existencialista, às formas medievais de pensamento – que, incrivel-
mente, ganham espaço no mundo religioso atual, devido ao esgarçamento
da razão moderna – faz-se necessário um olhar teológico, igualmente
crítico, ao que se convencionou se chamar condição pós-moderna.

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Dentre os aspectos da vida que precisam ser repensados, uma das
características da condição pós-moderna, como nos lembra Juan Antonio
Estrada (2007, p. 206), é que

... a ideia linear do tempo, de inspiração cristã, foi substituída pela ideia de
um presente absolutizado, que perde referências tradicionais e utópicas.
Dessa forma, o mal está consumado e não há espaço para a pergunta pelo
sofrimento das gerações passadas. A única que se deve fazer é lutar por
um mal menor nas gerações futuras, não havendo nenhuma fundamentação
última que responda a pergunta sobre porque lutar contra o mal, muito menos
à referente ao sacrificar-se em função das gerações vindouras.

Tal perspectiva não elimina o imperativo de que o sofrimento humano


deva ser compreendido dentro das contradições e das vulnerabilidades
humanas. Ele é a conseqüência normal da fragilidade física e moral da
humanidade e do mundo e, por isso, deve ter o seu sentido encontrado
na imanência dos acontecimentos e das causas destes. Um exemplo
comum são as doenças e demais fragilidades humanas. Elas não podem
ser interpretadas meramente como resultado de pecado daquele que a
contraiu. A doença está relacionada à condição da limitação humana; e
essa possui, por mais que as análises científicas tenham se desenvolvido,
incluindo a psicanálise, uma dimensão enigmática e misteriosa. Quem
já não ficou perplexo ou mesmo atordoado ao se deparar com a jovem
amiga que falece por ser vítima de um câncer que surge não sabemos
bem de onde?
Assim, tanto o sofrimento humano como o mal podem ser explicados
a partir das injunções intra-mundanas, que inclui a fragilidade original
da humanidade. Ressaltando, como nos adverte Paul Ricoeur, em seu
texto O Mal: um desafio à teologia e à filosofia, que “existe uma fonte de
sofrimento fora da ação injusta dos homens, uns em relação aos outros,
catástrofes naturais (...), doenças e epidemias (pensemos nos desastres
demográficos gerados pela peste, a cólera e, ainda hoje, pela lepra, para
não falar do câncer), envelhecimento e morte. A questão, desde então,
torna-se não mais ‘por quê?’, mas ‘por que eu?’. A resposta prática não
é mais suficiente” (RICOEUR, 1988, p. 49).
Não é preciso dizer que o fortalecimento de perspectivas fundamen-
talistas e maniqueístas no campo religioso se dá, em geral, em contextos
de crescimento do sofrimento humano e da degradação da vida resultante
da inadequação de políticas públicas que gerem o bem-estar social, a
sustentação e a dignidade da vida. Diante de quadros muitas vezes de-
soladores emergem com intensidade as perguntas pela realidade do mal
e do sofrimento. As respostas de caráter unívoco e imediatas, especial-

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mente as que destacam o papel e o poder do diabo, em geral são melhor
acolhidas nesses momentos. O que fazer diante disso? Como a teologia
poderia ser ao mesmo tempo consistente e relevante para as massas da
população que enfrentam as crises, os males sociais e a morte?
Obviamente, não temos respostas acabadas para tais questões.
Mesmo porque, se assim fizéssemos estaríamos incorrendo no mesmo
equívoco que criticamos nas posturas de caráter fundamentalista. Toda-
via, por intuição, consideramos que há pressuposições antropológicas
que relativizariam as convicções fundamentalistas e, com isso, dariam
uma base mais profunda e permanente para as respostas advindas das
inquietações humanas. Um desses pressupostos é o ‘desejo de futuro’
que encontra guarida na existência humana. É o que nos indica John
Haught (2009, p. 17):

No entanto, mesmo na melhor das circunstâncias, em alguma instância de


nosso ser, ainda anelamos por um novo futuro, mesmo quando nos apega-
mos ao passado ou ao presente. Um senso do porvir (adventus) de Deus
nos atravessa, nos faz ansiar por uma liberdade mais profunda, por um
horizonte existencial mais amplo. Não obstante, a exemplo dos bem esta-
belecidos, permanecemos ligados àquilo que é ou foi, e não ao que será.
Os destituídos, aqueles que agora não têm em que se amparar, são mais
abertos à promessa de um mundo radicalmente novo. São seus ouvidos que
o fogo do Evangelho primeiramente queima com as novas pertubadoras do
advento de Deus.

Tais perspectivas revelam um forte otimismo, com o qual comunga-


mos, diante da vida e também diante das possibilidades de superação
do mal no mundo. Elas estão em sintonia com as visões que emergiram
no contexto teológico latino-americano desde os anos de 1960, pois elas
traduzem, de certa forma, a força histórica dos pobres. Elas também nos
ajudam a olhar a vida de tantas comunidades religiosas, especialmente
as do mundo popular pentecostal, tanto no universo evangélico como no
católico, com a distinção necessária entre o vivido de fato e o visto su-
perficialmente por nós. Pode ser que nem todas as realidades tachadas
de fundamentalistas sejam de fato assim; ou, pelo menos, que possam ter
elementos libertadores que gerem a sua própria superação. Além disso,
é bom lembrar que as formas inclusivas e solidárias de relacionamento
humano – e o mundo religioso pentecostal está repleto delas – possuem
razões que a nossa própria razão calculista desconhece.
Também há outro aspecto antropológico que não pode ser esquecido.
Trata-se da tendência humana ao mistério. Se o naturalismo, entendido
como reducionismo científico, e o fundamentalismo são filhos da verdade

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“pronta e acabada”, o mesmo não se dá com a ciência, em sentido amplo
e com a religião. Elas são filhas do mistério. O mesmo Haught (2009, p.
42), ao interpretar Pannenberg, nos mostra que

... a tendência ao mistério é traço fundamental da existência humana, e não


apêndice alternativo, próprio dos retardatários pré-científicos. As pessoas são
naturalmente abertas não só ao mundo, mas também à alteridade transcen-
dente, muito antes de qualquer convicção efetiva de que são destinatárias
de uma palavra reveladora.

Futuro e mistério não são, em geral, duas palavras muito freqüentes


nos ‘dicionários teologicos’ atuais. Talvez, devêssemos reconhecer esse
fato e fazer uma autocrítica. É fato que muitos outros fatores interferem
nos processos da vida e da religião: o pecado como ambigüidade original
do ser humano, a incapacidade de articulação da dimensão extática da
razão humana com a que é cognitiva, os interesses presentes nas formas
de exercício do poder, especialmente os que geram o mal, a violência e o
sofrimento humano e tantas outras situações que abrem as margens para
o rio cada vez mais caudaloso dos fundamentalismos. Mas, eles podem
ser interpelados. Uma antropologia teológica e uma teologia da criação
substancialmente bíblicas e em diálogo crítico com as perspectivas cien-
tíficas representam um caminho frutífero e desafiador.

Na busca de uma conclusão: Posturas filosóficas e teológicas diante


do mal
A posição teológica que advogamos leva-nos a entender que os ma-
les que se abatem sobre o ser humano, para serem compreendidos, quer
seja no seu sentido ou origem, devem primeiramente passar pela crítica
racional e científica, não obstante ainda restar o caráter de mistério para
as realidades negativas do ser humano que não encontram explicações
racionais. A abertura ao mistério não é e nem pode ser uma negação da
lógica racional e moderna de se compreender as vicissitudes da vida e
as manifestações do mal no mundo. Mas, o reconhecimento das impos-
sibilidades de explicação sobre o mal é também uma resposta plausível.
Nas palavras de Juan Antonio Estrada: “O não-saber é também a resposta
cristã diante do mal, por que o cristianismo não é uma gnose, nem uma
nova forma de sabedoria como pretendem os gregos, mas põe em primeiro
plano a loucura da cruz, a fim de afirmar que Deus está nas vítimas e
que o mal é a ante-sala da ressurreição, e oposição à concepção grega
da divindade” (ESTRADA, 2007, p. 212).
Do ponto de vista da teologia cristã, há uma diferença crucial entre
o contexto de “satisfação compensatória” da experiência da cruz e o de

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“revelação divina” dessa mesma experiência. A diferença se dá, funda-
mentalmente, na dimensão adquirida pelo sofrimento quando, pleno de
sentido, refere-se ao seguimento de Jesus e às suas conseqüentes rela-
ções e pressões. A experiência de seguimento revela, ao mesmo tempo,
o aspecto (sofrido) da cruz e o sentido (prazeroso) da ressurreição. A
revelação divina possibilita a liberação do desejo humano de liberdade
e realização, sem se confundir com a visão religiosa que interpreta o
sofrimento e o mal como ações meritórias. O sofrimento humano não é
conseqüência direta e mecânica de um pecado original/inicial, não pos-
sui para Deus qualquer valor compensatório ou reparador e tampouco é
causado ou permitido por Deus como advertência ou castigo.
Portanto, ante ao sofrimento e ao mal, as pessoas assumem, den-
tro da perspectiva teológica cristã, a tríplice atitude de silêncio-crítica-
aprendizado, articulada intrinsecamente com a cruz de Jesus. Trata-se
de assumir a cruz, com todos os seus riscos e com o reconhecimento da
inevitabilidade do sofrimento deles derivados. Não se trata de assumir a
cruz pela cruz, como mera identificação com a cruz/sofrimento de Jesus
e sim de responder livre e positivamente ao chamado ao seguimento dele
e de viver a vida dentro dos referenciais utópicos que antevêem a supe-
ração do mal na sinergia divino-humana regida pelos valores da paz, da
justiça e da integridade da criação, identificada na tradição cristã como
sendo a vontade (= Reino) de Deus.
Em linhas gerais, a antropologia teológica indica que, diante do mal,
as pessoas ou as comunidades não devem estar imobilizadas frente a
qualquer situação, mas devem:

(a) procurar uma compreensão possível para as realidades em questão,


levando em conta os aspectos mínimos da racionalidade humana. Isso se
conecta ao que Paul Ricoeur chamou de “plano de pensamento”, em seu
texto O Mal: um desafio à teologia e à filosofia, já referido.
(b) reconhecer que a racionalidade possui limites e que as situações marca-
das pelo mal, nem sempre apresentam explicações facilmente encontradas.
Isso está associado, ainda que indiretamente, ao que Ricoeur no mesmo
texto denominou de “transformação espiritual de sentimentos”.
(c) transformar a apatia comum em situações marcadas pelo mal em atitude
ativa e concreta de superação do mal e busca do bem-estar das pessoas e
de toda a criação. Ou nas palavras de Ricoeur: “antes de acusar Deus ou
de especular sobre a origem demoníaca do mal no próprio Deus, atuemos
ética e politicamente contra o mal” (RICOEUR, 1988, pp. 48-49).

Diante dessas posturas, a resposta existencial e teológica, firmada


no plano dos sentimentos, requer ainda três outros posicionamentos,

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como indicou Ricoeur, que, a nosso ver, são substanciais e significativos
para a vida. São eles:

1. Reconhecimento da ignorância em relação aos mistérios profundos do


mal. Trata-se de saber dizer: “não sei por que isso ocorreu”. Juan Antonio
Estrada corrobora com essa visão ao afirmar que o postulado da fé cristã
“não é uma explicação teórica do porquê e do para quê do mal, subsistindo
ainda questões não resolvidas para as quais não há respostas convincentes.
[A escatologia cristã] permite que o cristanismo seja acolhido não como uma
gnose que oferece salvação pelo conhecimento, mas a partir de uma her-
menêutica de sentido que parte da vida e da morte de Jesus e do anúncio
da ressurreição” (ESTRADA, 2007, p. 214).
2. Postura não passiva, baseada na aliança divino-humano, que justifica
uma “teologia do protesto” contra a ideia de ‘permissão’ divina do mal.
Trata-se, nesse caso, de poder dizer: “Até quando, Senhor?”. Seguindo
ainda J.A. Estrada, vemos que a escatologia cristã “defende que a criação
não é como deve ser (contra os que legitimam o mal porque é inerente a um
mundo imperfeito, por ter sido criado), mas afirma que pode ser possível um
mundo sem mal e que a esperança cristã é dirigida para essa utopia. É uma
crença na salvação que dá sentido e gera o compromisso transformador”
(ESTRADA, 2007, p. 214).
3. Fundamentação da fé em Deus independentemente do sofrimento e de
suas causas. Ou seja, desejar dizer: “Eu creio em Deus apesar do mal”. O
mesmo Estrada (2007, p. 213) afirma que “uma coisa é crer em Deus, afirmar
que na mensagem bíblica há fundamento para a esperança e para a ânsia
de sentido, e outra é pensar que há uma explicação racional para todas as
dimensões do mal e que a partir de Deus poderíamos explicar tudo” (Tal
perspectiva de fé encontra na esperança escatológica cristã a visão de que
o mal venha a não mais ter poder na história, como expresso no Evangelho
de Mateus que apresenta a oração de Jesus pela libertação de todo o mal
e de suas formas de representações condenatórias como a do inferno, es-
pecialmente quando afirma: “livra-nos do mal” (Mt 6.13).

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Edith Stein: Concepções de Ser finito e
Ser Eterno, significados e manifestações
Edith Stein: Design of be finite and be Eternal,
expressions and meanings

Edith Stein: Diseño de Ser finito y Ser Eterno,


significados y los expresiones
Jéferson Luis Azeredo

RESUMO
O contexto filosófico na qual viveu Edith Stein reflete em seu pensamento na
reflexão do Ser finito e do Ser Eterno (Deus). A partir da concepção de Ser
finito, como ser dotado de essência e existência numa unidade temporal, ela
constrói sua reflexão fenomenológica-antropológica. Cada ser humano é singu-
lar, possui uma consciência que vai se revelando (se descobrindo) na medida
em que se relaciona com o Outro (indivíduo), que lhe vem como um “espelho”
de seu próprio eu. Mas, ao refletir sobre si mesmo, surgem perguntas que lhe
causa angústia: De onde vim? Para onde vou? Quem sou? Com esses ques-
tionamentos, o Ser humano, descobre sua situação-limite, sua finitude, abrindo
possibilidade à uma existência capaz de lhe sustentar o Ser. Nesta abertura,
que se chama filosofia religiosa ou filosofia cristã na qual Edith Stein contribui,
é que se torna possível o manifestar-se de Deus, esta, numa abertura de fé do
Ser humano, em que Deus o busca numa experiência mística, confortando-o e
dando-lhe novo sentido à sua vida.
Palavras-chave: Ser finito; Ser eterno; situação-limite; fenomenologia.

ABSTRACT
The philosophical context in which Edith Stein lived in his thinking reflects the
thinking of Being finite, the Eternal Being (God). From conception to be finite,
as being endowed with essence and existence in a unit time, she builds her
anthropological-phenomenological reflection. Every human being is unique,
has a consciousness that reveals itself (if discovered) in so far as it relates to
other (individual), it comes as a “mirror” of his own self. But, reflecting on itself,
questions which causes him anguish: Where did I come? Where am I going?
Who am I? With these questions, the human being discovers their situation limit
their finitude, opening the possibility of a life can you sustain this opening Ser,
which is called philosophy of religion or Christian philosophy in which Edith Stein
contributes is that it is possible the manifestation of God, that, in an opening of
faith of the human being, where God seeks a mystical experience, comforting
him and giving new meaning to his life.
Keywords: Finite being; Eternal Being; situation limit; phenomenology.

RESUMEN
El contexto filosófico en el que Edith Stein vivió se refleja en su forma de pensar
la idea de ser finito y del Ser Eterno (Dios). A partir de la concepción de ser finito,
como ser dotado de esencia y existencia dentro de una unidad de tiempo, ella
construye su reflexión fenomenológica-antropológica. Cada ser humano es único,

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tiene una conciencia que se va revelando (dando a conocer) en la medida en
que establece relación con los demás, quienes lo ven como un "espejo" de su
propio Yo. Sin embargo, al reflexionar sobre sí mismo, surgen preguntas que le
causan angustia: ¿De dónde vengo? ¿A dónde voy? ¿Quién soy yo? Con estas
preguntas, el ser humano descubre su situación límite, su finitud, abriendo la
posibilidad a una vida que pueda ser capaz de sostenerle el Ser. Es en esta
apertura, que se llama filosofía religiosa o filosofía cristiana y a la cual Edith
Stein aporta, que se hace posible la manifestación de Dios, así, en la apertura
de fe del ser humano, es donde Dios lo busca en una experiencia mística, con-
fortándolo y dándole nuevo sentido a su vida.
Palabras clave: Ser finito; Ser Eterno; situación límite; fenomenología.

Introdução
Relações entre o ser humano, o Outro (enquanto indivíduo), o mundo
e Deus são desde os primórdios do pensar humano discussão inquietante,
pois trata-se de conceitos ligados a perguntas fundamentais da existência
e do próprio agir humano (ALVES, 1999). Propõem-se Edith Stein – como
fenomenóloga – para esta reflexão, pois todo leque de correntes filosóficas
que a ela se apresentaram, a influenciaram de algum modo (destaca-se a
influência de Edmund Husserl e o Círculo de Göttingen). Com efeito, ela
não só sofreu influência de sua época, mas também trouxe originalidade
para o mundo cultural moderno.
O ser humano em sua situação-limite (que é a consciência de
suas próprias limitações) retoma questões de sua existência. Estas
encontram não só horizontes que lhe fazem “movimentar-se” para sair
dessa situação angustiante, mas, também, o faz buscar Deus. É aí que
o manifestar-se de Deus encontra alvo (a abertura do Ser humano) e
o olhar do homem apreensivo encontra conforto, reavendo a razão de
ser, existir, encontrando sustentação.
O objetivo não é exclusivamente analisar a prova da existência de
Deus, mas a manifestação Dele: atributos, temporalidade, atualidade e
potencialidade.
Tem-se, segundo Stein, o ser humano não em “estado de solidão”,
largado a existir até morrer; não é vazio, senão habitado por uma alma,
regida por um eu, em cujo centro está a sede da liberdade, o ponto de
união com Deus. Acha um meio, componentes, dinamismo e princípios;
tudo o quanto permite que a aspiração à união com Deus não seja vis-
ta, nem em privilégio do alto, nem mesmo como aventura arriscada das
criaturas. A mesma natureza humana não só possibilita, senão que esti-
mula este desejo: “Deus cria as almas para si. Deus quer uni-las a Si e
comunicar-lhes a incomensurável plenitude e a incompreensível felicidade
de sua própria vida divina” (STEIN, 1987, p. 33). A esta missão deve o
Ser humano a sua existência.

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O Ser Finito1 em Edith Stein
A busca do sentido do Ser é visto na história por meio de vários
pensadores, (Platão, Aristóteles… Tomás de Aquino). Com “olhar” feno-
menológico, Stein procura assumir sua posição a tradição tomista do ato
e potência do Ser finito (Ser humano) e do Ser eterno (Deus).
O Ser humano – finito, para ela tem um lugar especial concebido
como uma criação, é “o espírito criado é uma imagem limitada de Deus,
e enquanto imagem é semelhante a Deus, enquanto limitado é o oposto
de Deus enquanto infinito” (SCIADINI, 1999, p. 43), também este tendo
participação no plano divino. Ele é constituído de uma tríplice estrutura,
tendo uma singular interioridade, que é posta em reflexão constante pela
sua situação-limite. Mas a singularidade do Ser humano não pode ser
entendida como isolamento, pois está em relação com o Outro, numa
atitude empática (que o leva a descobrir coisas que sozinho não conse-
guiria, sobre si e sobre o existente), e em relação com o mundo (pois é
o mundo que lhe garante uma existência corpórea).
A observação atenta do fenômeno humano, a longa caminhada da
reflexão que o Ser humano suscita, conduz a um ponto onde se vê cruzar
em uma resposta de extraordinária amplitude o Finito e o Infinito. O Ser
humano vive como consciência (das coisas), mas, evidentemente, como
consciência de si. Faz de sua própria existência o objeto maior de sua
reflexão, sob o impulso mesmo de seu ser conhecedor e de sua inteligên-
cia inquieta. Numerosas são as interrogações que o Ser humano acumula
nesse esforço visando conhecer-se inteiramente, e descobrir a arquitetura
de sua existência. Pergunta-se o que significa ‘ser’, e por que ele ‘é’.
Sabendo que é conhecedor, procura apreender o fenômeno do co-
nhecimento e, de pergunta em pergunta, de resposta em resposta, adquire
uma consciência cada vez mais viva de sua capacidade e de seus limites.
Sente assim sua própria natureza simultaneamente e paradoxalmente
como uma riqueza: a do saber.
Em sua tese Empatia (“Einfühlung”), – sua primeira produção filosó-
fica (1916), Stein uni-se com as contribuições de Husserl sobre o mundo
intersubjetivo, questão básica para superar o eterno problema do solipsis-
mo. Essa obra está centrada na aplicação da “redução fenomenológica”,
a esse momento em que dois sujeitos são capazes de convergir tanto
que a vivência de um é integrada na experiência do outro. Trata-se do
fenômeno da empatia: este vai mais além do que o simples acordo de
sintonia entre as criaturas (nível da simpatia), pois afeta o núcleo mais
íntimo da pessoa.
1
Edith Stein usa em seus escritos as expressões: Ser finito ou Ser humano, para referir-
se ao homem (ou mulher), não possuindo uma distinção das duas expressões e nem
prevalecendo o uso de uma ou de outra. São sempre usadas com a primeira letra em
maiúscula não seguida por hífen para separar as duas palavras da expressão.

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Nesta capacidade de compreensão da experiência alheia estaria a
base da sociabilidade humana, ou seja, porque podemos compreender,
conviver e estabelecer relações pessoais, comunitárias. O elemento que
vincula esta experiência é a capacidade empática; ou seja, não é o “Kör-
per”, mas o “Leib”2.

O método fenomenológico numa concepção Steiniana


Os resultados alcançados por Stein dão continuidade aos estudos
e pesquisas de Husserl. Assim como o mestre, ela discute e esclarece
a relação entre o mundo, a questão da sua existência e o sujeito: uma
relação que é analisada de uma forma peculiar pela fenomenologia (CA-
PALBO, 1996, p. 40).
Há uma consideração essencial das coisas, “cada fenômeno é
assumido como base exemplar para fins de uma consideração sobre a
essência” (BELLO, 2000, p. 84). Coloca-se a questão referente a quem
realiza tal operação, o sujeito psicológico (o eu-consciente), deve ser
colocado entre parênteses, mas mesmo assim, permanece sempre o
sujeito da experiência vivencial, quer dizer: “… eu considero o mundo e
a minha pessoa como fenômenos, razão pela qual não é possível que
sejam apagados ou colocados em dúvida tanto o eu como tão pouco a
própria experiência…” (STEIN, 1987, p. 140).
O eu (indivíduo) identifica-se com o inteiro fluir das vivências e nisso
consiste a sua vida, e o seu viver está no tempo, no sentido que procede
de momento para momento. Pode-se observar que a operação teórica
realizada por Stein consiste em ancorar tanto o tema da existência, como
também os resultados da análise fenomenológica da subjetividade… “no
grande cenário metafísico do ser” (BELLO, 2000, p. 90).
Sendo que se trata de descobrir o sentido do ser, deve-se colocar a
questão de sua essência, que para ela é inútil aceitar somente a análise
essencial que Husserl propusera. Pois, a pesquisa sobre o ser não pode
reduzir-se a uma mera busca do seu significado, permanecendo num ní-
vel exclusivamente gnosiológico. É nisso que se revela um momento de
profundo contato, e ao mesmo tempo de profunda distinção entre Husserl
e Stein, para qual as essências tem uma existência.
Todavia, no que diz respeito à análise das estruturas dos sujeitos,
tomados na sua individualidade ou analisados coletivamente, ela sempre
permaneceu fiel à fenomenologia husserliana. Mas seu olhar se ampliou
para investigações da realidade nos seus múltiplos aspectos (verdadeira
atitude realista), tais como: natureza, sociedade, moral e Deus, mas em
especial o Ser humano, pois foi neste que mostrou originalidade com

2
Na língua alemã Körper se refere ao corpo material e Leib ao corpo animado.

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suas diversas manifestações: espiritual, comunitária e intrapessoal. “O
estudo do Ser humano, das suas experiências e da sua interioridade
fascina a fenomenóloga, que prossegue as suas pesquisas…” (BELLO,
2000, p. 314).

O problema do Ser
O confronto entre o pensamento tomista e o pensamento fenome-
nológico é tratado de maneira objetiva. É Stein mesma quem indica seu
objetivo: “delinear uma exposição sistemática de uma doutrina do Ser,
não um sistema filosófico” (STEIN, 1996, p. 33).
Stein recorda a tríplice subdivisão tomista do ente em: ente mate-
rial, ente espiritual e Ente primeiro (Deus), acenando a importância dos
conceitos de potência e ato para definir a natureza dos entes criados por
Deus. Ela começa o primeiro capítulo, de sua principal obra de filosofia,
Ser finito y Ser eterno, tratando do problema do Ser: “Introduccíon, la
cuestión del ser” (STEIN, 1994, p.19). Ela faz uma distinção clara entre os
dois (o Ser eterno, ver-se-á no segundo capítulo deste trabalho), também
chamados de criatura e criador, ou ainda Ser humano e Deus.
Seguindo uma tradição tomista, Stein afirma que no Ser finito a
potência se difere do ato (sendo este o coração da filosofia tomista). O
ato das criaturas é uma “ação ou atividade que começa, termina e supõe
como fundamento uma potência passiva” (Idem, p. 20). Já para o Ser
eterno, que é Deus, diz: “A ação de Deus não tem nem princípio nem fim;
subsiste desde a eternidade, até a eternidade, repousa na imutabilidade
mesma de seu ser: (…) é ato puro. Não tem necessidade de nenhuma fa-
culdade passiva que exija ser posta em movimento” (Idem). Sendo assim,
sua faculdade e seu poder, repercute no ato: potência ativa e faculdade
ativa, sua potência é com o ato, não existe em Deus uma potência não
atualizada, “e no ato a potência está inteiramente atualizada” (Idem).
Para Stein o Ser finito possui uma experiência vital que é um todo
que se constrói na vida consciente do eu com certa duração3. “O pensa-
mento que atualmente vive é uma unidade de experiência vital diferente
do meu pensamento de algumas horas atrás em relação à mesma coisa”
(STEIN, 1987, p. 60-61). A vida do eu vai do passado ao futuro. Assim,
o que está em potência se converte constantemente em atual e o que
é atual volta a cair em potencialidade (não interpretado aqui como uma
circularidade perfeita que não tem “escapes” ou uma mudança a cada
atualidade e potencialidade).

3
Como diz Edith: “… el pensamiento forma un todo que se construye en el tiempo” (STEIN,
1994, p. 60), ou seja, nosso pensamento, como consequência nossa vida possui um
tempo de duração, que acaba com a morte.

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A tríplice estrutura humana
Em relação às inquietudes existencialistas, Stein entende a vida
do ser humano como um projeto, algo inacabado, em aperfeiçoamento,
porém, pertencente ao ser humano mesmo. O fato de o ser humano vi-
ver em comunidade, não significa esquivar-lhe de sua singularidade. A
liberdade humana possui um potencial suficiente para conseguir fazer a
passagem a um indivíduo, à uma pessoa singular na busca de sua intei-
ra subjetividade, como diz Stein (1996, p. 134): “o homem é chamado a
viver em seu íntimo e, consequentemente, a governar-se a si próprio…”.
O mesmo processo de crescimento (corporal, intelectual e espiritual) é
também uma autocriação. Somos responsáveis por nós mesmos “… a
pessoa é portadora de sua vida, no sentido de que a têm em sua mão”
(Idem, p. 342).
A principal crítica de Stein ao seu tempo consiste em colocar o Ser
humano como um ‘modelado’ de sua exterioridade, do ambiente que o
circunda. Ao invés, ela o tem como um Ser livre, um Ser que está aberto
ao mundo, que se comunica com o outro e se encontra consigo mes-
mo. “Negar a liberdade é diminuir a capacidade do ser do homem ser
racional” (Idem, p. 339), modo intrinsecamente humano, que é elemento
indispensável à sua antropologia, pois segundo ela: “razão e liberdade,
são distintivos essenciais das pessoas” (Idem, p. 341). Assim, para ela,
a razão agrega-se à liberdade, que faz do interior do Ser humano uma
forma de escolha em suas decisões diárias à sua vida. Somente o Ser
humano tem em suas mãos o transformar da natureza, que se apresenta
a ele trazendo uso de seus privilégios.
Essa inquietude humana, de sempre buscar novas metas e respostas
a tão variados “porquês” e essa liberdade de poder buscar seu sujeito, é
que leva a pensar no que constitui o Ser humano, para entender essas
duas características. Para Stein, é uma estrutura composta de três ele-
mentos: corpo, alma, e espírito. “[…] alma, espírito, corpo, estão com toda
evidência ligados estreitamente” (STEIN, 1994, p. 389). O Ser humano é
composto de três partes que não podem ser pensadas individualmente
sem ligação umas com as outras, para o entender. Sendo assim, não
se trata só de uma alma que vive num corpo, senão de uma unidade do
corpo, alma e espírito.

A alma é o espaço em meio do total que está formado pelo corpo, a alma e
o espírito. Enquanto alma sensível, habita em todos os membros e partes do
corpo, recebe dele e opera sobre ele formando-o e mantendo-o. Enquanto
princípio espiritual ele transcende-o ‘de lá’ de si mesma e olha um mundo
situado mais ‘para lá’ de seu próprio eu: um mundo de coisas, de pessoas,
de fatos; comunica-se com ele inteligentemente, e dele recebe impressões;

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enquanto alma no sentido própria habita em si mesma e nela o eu pessoal
está como na sua própria casa (STEIN, 1994, p. 388).

Para compreender o Ser humano é necessário levar em conta esta


complexa realidade. Enquanto o homem é por sua própria essência,
espírito que é dado por Deus e dá as características (da singularidade),
ultrapassa a si mesmo com sua vida espiritual, entra em um novo mundo
sem se perder. “O espírito criado é uma imagem limitada de Deus… sendo
imagem é semelhante a Ele; sendo limitado é reflexo Dele” (STEIN, 1996,
p. 128). A alma humana se eleva na vida espiritual acima dela mesma 4.

A alma é algo em si: tal como Deus a colocou no mundo. E esse algo tem
natureza própria, à qual impõe caráter próprio na vida toda, na qual desa-
brocha… Ela sente aquilo que a acolhe em si é compatível com o seu ser
próprio, se é proveitoso ou não e se aquilo que faz é próprio para o seu ser
ou não. E aquilo corresponde à natureza, na qual ele se encontra a cada
contato e reencontro conflitivo com o mundo (STEIN, 1987, p. 56).

O espírito humano está condicionado pela alma e pelo corpo. “En-


quanto instrumento de meus atos, o corpo pertence à unidade de minha
pessoa. O eu humano não é um eu puro, nem só um eu espiritual, mas
também um eu corporal” (GARCIA, 2003, p. 59). O corpo do Ser humano
não é simplesmente corpo, massa corporal, afirma Stein, é corpo animado
(não Körper, mas Leibe). O Leib (corpo) não pode ser considerado uma
espécie de ‘prisão’ da alma, como afirmava Platão5, que lhe coloca obs-
táculo impedindo que se eleve; mas, é como o seu ‘espelho’, no qual a
vida interior se reflete e através do qual a alma entra no mundo visível. O
homem tem alma e esta se manifesta, não só nos atos vitais, que exer-
ce a semelhança dos animais. A vida do “eu” está constituída pelo jogo
de estímulos e respostas, e é aí que a alma exerce sua função peculiar
como mediadora entre corpo e espírito, participando tanto da vida sen-
sível, quanto da vida espiritual. A alma é como o espaço interior no qual
o eu se move livremente. É a tríplice estrutura, em: acima o espírito, no
lado de fora o corpo e no centro a alma, tendo esta, um significado muito
próximo a de Platão6 que tinha a “função mediadora entre as idéias e a
4
A alma eleva-se acima dela mesma, na experiência mística, que se verá no terceiro
capítulo: 3.1 Mística e Atualidade Espiritual.
5
A alma para Platão está presa no corpo humano como em prisão, “… decaiu do mundo
das idéias (que é seu lugar natural) e está condenada ao mundo material em particular
ao corpo humano” (PADOVANI, 1970, p. 139).
6
Para Platão “… a alma tem uma função mediadora entre as idéias e a matéria, a que
comunica ordem e vida. Platão distingue duas espécies de alma: concupiscível (vegeta-
tiva), racional (inteligente), que são próprias, respectivamente, da planta e do homem…”
(PADOVANI, 1970, p. 139-140).

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matéria, a que comunica ordem e vida.” Só que mediando entre o corpo
e o espírito e fazendo assim, essa ligação. [em verde: favor verificar se
grafia do original tem acento]

O Ser humano como indivíduo em relação com o outro


Não é por acaso que Stein, no momento de escolher sua tese de
formatura7 se orientasse para tratar desse tema, isto é, para a descrição
fenomenológica da forma em que os sujeitos humanos se reconhecem
mutuamente tais como são (Seres humanos), isto é, sujeitos e não obje-
tos, como as coisas do mundo físico ou os produtos manufaturados, bem
como diferente dos animais. Já na sua experiência na guerra, percebe-se
que ela tem grande atenção pela comunidade, pelo outro… “A análise da
Empatia quer responder à pergunta: o que significa “tomar conhecimento
da experiência vivencial alheia?” (BELLO, 2000, p. 160). Stein por vezes,
serviu-se de exemplos tirados da sua vida cotidiana. Como o exemplo de
sua amiga Anna Reinach, sentia ela dor pela perda do marido, essa dor
pode ser “entendida” por outra pessoa, mas não vivida, é preciso esfor-
ço para entender a dor alheia é um tomar consciência do sentimento do
outro. “… é possível distinguir o ato originário de eu tomar consciência
que o outro sente dor a partir da dor experimentada pelo outro que se
torna para mim um conteúdo do meu ato de sentir, sem contudo tê-lo
vivido originariamente” (Idem, p. 161). Essa é a experiência da empatia
propriamente dita. É por essa via que constitui-se o Ser humano, mediante
atos de empatia.
Stein diz: “A matéria enquanto é naturalmente, não é nenhum modo
comunicável; para consigo e ao de fora de si não há nenhum sentido e
eficiência, em qualquer coisa à poder comunicar, nem há força de comu-
nicar, essa há tem que recebe, participa, e tem que é divisível” (BELLO,
2004). O fundamento da individualidade deve-se encontrar antes na for-
ma. É ela quem declara esta posição vizinha àquela de Duns Scoto que
considera como ‘principium individuationis’ uma qualidade positiva do ente
que separa a forma essencial individual daquela universal. Por individuum,
entende-se, não somente uma coisa numericamente una e diferente de
todas as outras, mas, antes de tudo, uma coisa que se distingue de outra
pelo seu conteúdo.
O indivíduo para Stein é um membro do todo, do universo do qual
faz parte. Que o homem seja um membro é um dado de fato. Para com-
preender a humanidade como um todo que circunda e sustenta a todos,
é importante conhecer os elementos comuns que une, não obstante todas
as diferenças, aos seres humanos de todos os tempos.

7
Zum Problem der Einfühlung.

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O outro, neste todo, é um mistério para o indivíduo8, porque quando
se apresenta num primeiro momento não é conhecido, apenas se conhece
esse outro após inúmeros relacionamentos, e assim, o indivíduo (meu-eu)
vai também se ‘revelando’, ou construindo-se. O outro vai se revelando
assim como ele é e o indivíduo vai existindo:

De fato, a constituição do indivíduo fora de mim é a constituição do indivíduo


em si mesmo; pois, quando capto o corpo de um outro como meu seme-
lhante, capto também a mim mesmo como igual a ele, desse modo a nível
psíquico me situo no seu ponto de vista para olhar a minha vida psíquica,
adquirindo a imagem que o outro tem de mim. [referências]

O nome que o outro carrega é um segundo momento para conhecer-


lhe, o que está por detrás do nome é um mistério a ser desvendado. E
pelo contato com o outro que posso conhecer realidades até então não
entendidas ou manifestas à mim. Acontece qual uma identificação, o
indivíduo identifica em si dimensões/características vistas no outro (AL-
VES, 1999b). O outro leva a descobrir coisas que sozinho o indivíduo
não perceberia.
Assim, Stein afirma:

está na essência do homem, que cada um individualmente e toda a huma-


nidade, para a qual são determinados pela sua natureza, devam tornar-se
primeiro um desabrochar temporal e permanente e que esse evoluir esteja
intimamente ligado à livre colaboração de cada um individualmente e à co-
operação comum de todos (STEIN, 1987, p. 57-58).

Cada ser humano é membro de um todo, que se realiza como uni-


dade vital e que não pode desenvolver-se a não ser no conjunto vital
constituído pelo todo com a participação dos outros membros.
Esse outro, afirma Stein, é um Ser de essência e não só de existên-
cia, que leva o indivíduo a tomar conhecimento de sua essência. Tomar
conhecimento dessa realidade essencial permite conduzir o indivíduo a
ver-se não como fragmentado, mas sim, como uma articulação de es-
sência e existência. Na medida em que o outro fala de sua existência
é que o indivíduo começa a refletir mais sobre o seu próprio interior. É
um processo de revelação da própria interioridade, sendo assim, da es-
sência. Mas, essa revelação por ser constante nunca se esgota. Quanto
mais o indivíduo é levado para dentro da interioridade do outro, mais o
indivíduo se conhece, ou seja, quanto mais empatia mais conhecimento
do Ser humano, vai afirmando-se. Mas não significa que todo encontro
será somente para chegar à interioridade e que o outro ou só o outro
8
Indivíduo: refere-se aqui, ao sujeito: “outro”.

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determina o indivíduo, mas sim, num nível de comparação, onde há uma
percepção exterior (do outro) permitindo uma reflexão interior, assim,
nessa perspectiva quanto mais relacionamento (que seja de “qualidade”)
maior o conhecimento do indivíduo.
Em sua filosofia, que se fundamenta na empatia, o encontro é a
possibilidade de revelação que só acontece se ambos quiserem. “… de
onde parte a reflexão sobre os atos e sobre a constituição dos seres hu-
manos? Pelo encontro concreto desses seres, no qual não se privilegia
um ponto de partida subjetivo” (BELLO, 2000, p. 162). Se apenas um
deles revela-se, não há encontro, mas apenas presença de um e reve-
lação de outro.

O Ser Eterno
Um dos mais perturbadores enigmas que envolvem o Ser finito é
a existência de Deus. A filosofia [“o lugar da reflexão humana” (Idem,
p. 229)], não pretende forçar um convencimento, mas sim, fornecer evi-
dências e reflexões, que se sustentam numa busca da “certeza” diversa
daquela oferecida pela fé religiosa.
Superpõem-se dois mistérios, que o olhar atento sobre o Ser finito
revela: o mistério do homem e o mistério de Deus (este vem esclarecer
o primeiro). Frente ao mistério, que é a maravilhosa dúvida que propicia
percorrer os limites humanos: de sua inteligência, de seu poder criativo,
de sua autonomia, de sua capacidade de amor etc; a fé para quem a
vive pode ser um importante movente e estímulo de humanização e
busca da “verdade”.
Em sua situação-limite o Ser humano, no Outro, encontra sua singu-
laridade afirmada, mas não, uma explicação à sua existência e essência.
A dúvida e as incertezas ainda se encontram bem presentes. No encontro
com o mistério, nasce a filosofia, que consiste em uma atividade elabo-
radora de raciocínio, como Carvalho ressalta:

… traduz em palavras a realidade de um mundo que o homem cria, de um


mundo que realiza projetando e exteriorizando valores, mas um mundo nunca
perfeitamente descritível. A filosofia gira, mais ou menos explicitamente, em
torno das questões que procuram traduzir algo que não possui uma tradução
perfeita (CARVALHO, 1998, p. 214).

O homem ‘cria’ um mundo e nele as dúvidas se tornam problemas. É


preciso permitir que os problemas sempre possam emergir, não se deve
repudiá-los de antemão.
Quando a fé se propõe a resolver o “mistério”, tanto no plano huma-
no (em sua situação-limite), como no plano divino, ela é senão apelo a

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uma inteligência superior. Por essa razão a fé não tem nada a ver com
antirracional, ela é ao contrário, um impulso potente que impele a razão
além da razão. E por consequência, longe de destruir a razão, ela a
completa e lhe confere uma força que lhe dá um tal alcance que ela se
põe, até mesmo, em condições de desvendar, ao mesmo tempo o sentido
misterioso da existência, quanto o da presença misteriosa de Deus na
vida humana e do mundo.

O ato e a potência do Ser Eterno


A respeito de Deus se pode e se deve falar de potência, e esta não
contradiz ao ato e nem O reduz em forma ou simplificação de seu Ser.
Pode-se dizer que há duas espécies de potência: a passiva que nenhum
modo existe em Deus, pois tem o princípio de sofrer uma ação exterior,
e a ativa, que Lhe pode-se atribuir soberanamente. A potência de Deus é
ativa. Da mesma maneira, o ato de Deus não é um ato no mesmo sentido
que os das criaturas. “O ato da criatura, segundo um dos significados,
difere ainda muito, relacionado com o sentido profundo do termo, quer
dizer ação ou atividade que começa, termina e supõe como fundamento
uma potência passiva” (STEIN, 1994, p. 54). Os Seres finitos, quanto mais
participarem da atualidade do Ser eterno, mais atuais se tornam, ou seja,
há graus de ser, e este é de acordo com a proximidade ao Ser eterno,
mas nunca chegam a ser eternos ou totalmente ato puro.

Todo o que existe é, enquanto existe, uma coisa enquanto o modo do ser
divino. Porém todo ser, a exceção de ser divino, contém um pouco de não-
ser. Esta união de ser e não ser tem suas conseqüências em tudo o que é.
Quanto mais participa uma criatura do ser, maior é sua atualidade. Sempre
que um ser é, do que é, é atual, porém não é jamais inteiramente. Pode ser
mais ou menos atual, e o que é atual pode ser em maior ou menor grau. A
atualidade traz consigo várias diferenças segundo sua extensão e seu grau.
O que existe sem ser atual é potencial… (Idem, p. 58-59).

A ação de Deus não tem nem princípio nem fim, subsiste desde a
eternidade até a eternidade, repousa na imutabilidade mesma de seu ser,
como afirma Stein “Deus está necessariamente no ato” (idem, p. 59). Não
existe nada em que não seja ato: é ato puro. Por isso o ato de Deus não
pressupõe nenhuma potência prévia, não tem necessidade de nenhuma
faculdade passiva que exija ser posta em movimento. No entanto, tão
pouco a potência ativa que possui Deus subsiste separadamente ou fora
do ato: suas faculdades e seu poder repercutem no ato. Certamente
sem a relação com o mundo exterior – na criação e na conservação e
a organização do mundo criado – na realidade a potência não é maior

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que o ato, não existe potência não atualizada, porque a autolimitação da
potência em seu efeito tinha o exterior e em si um ato e é a explicação
do poder. “A potência de Deus é una, seu ato é uno, e no ato a potência
está eternamente atualizada” (Idem, p. 20).

Relação entre finitude e infinitude


Como visto, Stein afirma que um ser temporal (Ser humano) é movi-
mento existencial9 com início e fim no tempo. Assim, se tem definido um
dos significados da finitude; o ser das coisas seria então: finito.
Se o ser Eterno for realmente conservado sem fim em seu ser, não
seria infinito no verdadeiro sentido da palavra, “É verdadeiramente infinito
o que não pode acabar e que está em posição de ser, é dono do ser, e
em verdade é o ser mesmo” (STEIN, 1994, p. 78), é pois, “infinito”, num
sentido bem mais amplo, de não ter nem começo e por isso não simples-
mente um não fim “é um brotar de atualidade contínuo e perpétuo” (Idem,
p. 78). E este, então, chama-se: o Ser Eterno. Não tem necessidade do
tempo, pois é também o dono do tempo. O ser temporal é finito. O ser
Eterno é infinito. Porém a finitude significa mais que a temporalidade, e
a eternidade significa mais que a impossibilidade de um fim no tempo.
O que é finito tem a necessidade do tempo para chegar a ser o que é.
É algo materialmente limitado: aquele que recebe o ser o recebe como
algo; algo que não é nada, porém que não é, tampouco, todo. De acordo
com esse sentido, a eternidade enquanto plena posição de ser, significa
não ser nada, é dizer, ser todo (NABUCO, 1955, p. --).

O Ser Eterno em relação ao Ser Finito


Deus é o fundamento do ser. É preciso compreender o Ser humano
como uma unidade de essência e existência para poder chegar a essa
conclusão, de forma que, não exclua a relação com o mundo e com o
Outro, uma vez que é também por meio destes que Deus se revela ao
Ser humano e o convida à encontrá-Lo no mais íntimo de si.

Stein fundamenta a angústia metafísica do homem na existência inata de


segurança que ele experimenta. Esta segurança ela a encontra tão somente
no repouso em Deus. Refutando o pessimismo, cuja concepção do mundo
está ligado ao nada (Dasein), ela abre para si e para quem desejar segui-
la, sem preconceitos, o caminho do otimismo de uma filosofia cheia de fé
(GARCIA, 2003, p. 24).

Uma vez encontrado com Deus, que é o amor e por meio desse
amor faz vínculo com a eternidade, o Ser humano/Ser finito, encontra o
sentido da vida: em Deus o Ser eterno.
9
Ou seja, é uma potência passiva.

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A análise fenomenológica se apresenta como um ótimo instrumento
de elucidação da mística. Sabe-se que a elucidação das experiências
vivenciais caracteriza a investigação fenomenológica. As experiências
próprias da experiência mística são dirigidas à atenção da fenomenólo-
ga, que capta a peculiaridade das mesmas por uma sutil distinção entre
aquelas vivências que constituem o momento intelectual da dimensão
afetiva. Tal descrição permite facilmente

[…] uma “visita” ao interior humano, em primeiro lugar porque a interiori-


dade é o terreno privilegiado da investigação fenomenológica, como já se
constata em Husserl, em segundo lugar porque, certamente, o objetivo é
interpretar, mas no sentido de “seguir”, ou “acompanhar” as experiências do
mundo interior sem sobrepor qualquer espécie de intelectualismo (BELLO,
2000, p. 240-241).

Stein está convencida de que, quem melhor experimentou o mundo


interior, e que com maior claridade têm conseguido relatar-nos estas
experiências, são os místicos. Não estamos vazios, senão habitados por
uma alma, regida por um eu, e em cujo centro está a sede da liberdade
e o ponto de união com Deus. A entrar no reino do espírito o ser humano,
acha uma estrutura, componentes, dinamismo e princípios; tudo o quan-
to permite que a aspiração à união com Deus não resulte nem só num
privilégio do alto nem numa aventura arriscada do Ser finito. A mesma
natureza humana não só possibilita, senão que estimula este desejo.

Deus tem criado as almas para si. Deus queria uni-las a Si e comunicar-lhes
a incomensurável plenitude e a incompreensível felicidade de sua própria
vida divina, e isto, já aqui na terra. Esta é a meta para a que as orienta e
à que devem tender com todas suas forças. O fim natural – originário – do
homem é a amizade com Deus; a esta sublime missão deve a existência o
Ser humano (STEIN, 1996, p. 133).

Conclusão
Buscou-se acentuar de forma clara e sucinta, na concepção filo-
sófica de Edith Stein, (como desenvolvimento na área de antropologia
fenomenológica), baseado principalmente na obra Ser eterno y Ser finito;
un ensayo de una ascensión al sentido del ser, o problema do Ser finito,
como se manifesta, qual sua temporalidade e atualidade; do Ser Eterno
(Deus); e a relação dos dois.
Stein entende o Ser humano primeiramente como um Ser finito, que
se encontra num tempo e num espaço determinado, constituíndo-se de
três partes (a tríplice estrutura humana) que embora possuam funções

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diferentes e determinadas, não o torna divisível, mas caracteriza-se de
uma única forma: Ser humano.
É a partir dessa estrutura que ele se faz único, ou seja, com uma
interioridade que lhe é singular, própria. Essa interioridade que é carac-
terizada pela consciência de si mesmo e do mundo em que vive, é com-
provada (vista) no relacionamento com o Outro, no qual lhe é possível
analisar sua própria maneira de ser e existir. Mas, mesmo encontrando
no Outro uma consciência esclarecedora, fica ainda uma questão sem
resposta clara: qual é sua fonte de sustentação inicial, vendo no Outro,
também, uma finitude? Ou seja, o questionamento da existência primeira,
da procedência do existir humano e, em consequência, da vida, e de seu
fim. Essa situação de questionamento, que gera uma angústia, é compre-
endida como situação-limite, que lhe abre novos horizontes na busca de
respostas de si e sobre o mundo, por vezes difíceis de ser esclarecidas
pela reflexão racional, somente.
Stein, a partir de sua conversão ao cristianismo, abre sua vida a
uma nova fonte de conhecimento: a fé. Para alcançar verdades, da vida,
do existir humano e de Deus, é imprescindível a contribuição da fé. Esta
é entendida como um caminhante ao lado da razão que, por si só, tam-
bém não se sustenta e fica à beira do caminho, presa por suas próprias
limitações. É a fé que sustenta a razão e a razão que dá sustento à fé.
Uma não é maior que a outra.
É pela via da fé que se chega ao encontro com Deus. Na tríplice
estrutura humana observa-se que a alma é a ligação entre o homem e
Deus, é por ela que se dá esse encontro. E a partir daí, surge a experi-
ência religiosa. Deus é infinito, existente por si só, antes do início e do
fim, sem tempo nem espaço: o Eterno. Aquele que é antes de tudo.
O grau máximo dessa experiência é a contemplação de Deus, Ver-
dade máxima. Esta se dá pela ascese, pela experiência mística. Mas, é
Deus quem privilegia o Ser humano, e não por força humana que alcança
a contemplação suprema de Deus. Analogicamente, é o Pai que leva a
seu colo o filho pequeno, que sozinho não consegue fazê-lo. A força do
filho está em abrir seus braços e pedir carinho.
Novamente volta-se ao Outro, que agora é visto não só com os olhos
da razão, mas é interpretado com os olhos da fé, como sendo uma mani-
festação de Deus, em virtude da descoberta do eu e (do existir humano),
sendo assim, o Outro um “espelho” da existência concreta do indivíduo
que com ele convive.

Referências bibliográficas
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In: Grande Sinal, Petrópolis, vol. 41, n. 2, p. 133-150 (mar./abril. 1999).

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CAPALBO, C. Fenomenologia e ciências humanas. 3. ed. Londrina: UEL, 1996.
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CARVALHO, J. M. O homem e a filosofia: pequenas meditações sobre existência
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NABUCO, M. A. Edith Stein. Petrópolis: Vozes, 1955.
PADOVANI, H. História da filosofia antiga à medieval. Petrópolis: Jorge Zahar,
1970.
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Os dois caminhos: uma investigação
dos fundamentos das atitudes do
metodismo brasileiro conservador
na crise da década de sessenta
The two paths: an investigation of the foundations
of the attitudes of the conservative Brazilian
Methodism in the crisis of the sixties

Los dos caminos: una investigación de los


fundamentos de las actitudes conservadoras
brasileñas del Metodismo en la crisis de los
años sesenta
Daniel Augusto Schmidt

RESUMO
Este artigo estuda uma crise vivida pela Igreja Metodista na segunda metade
da década de sessenta. Influenciado pelo ambiente político da ditadura militar,
o metodismo brasileiro foi campo de um embate entre as alas liberais e conser-
vadoras da denominação. Palco deste embate foi a Faculdade de Teologia e o
II Concílio Geral Extraordinário, em 1968, além de uma série de eventos que a
ele se seguiram durante os anos de 1969 e 1970. A pesquisa problematiza os
fundamentos teológicos e ideológicos que fundamentaram as atitudes das alas
conservadoras do metodismo neste conflito, um aspecto pouco considerado pela
historiografia sobre o tema. A principal suspeita é a de que as posturas conserva-
doras decorreram de uma tradição centenária, trazida pelos missionários norte-
americanos, quando da implantação do Protestantismo no Brasil. Esta tradição
transformou-se numa espécie de Ethos do protestantismo brasileiro, entre o
final do século XIX e meados do XX. A postura dos conservadores configura-se,
assim, numa reação ao Ethos ameaçado por novos atores do campo religioso
e pelas demandas da sociedade em conflito.
Palavras-chave: Protestantismo; Igreja Metodista; década de sessenta; con-
servadorismo; crise.

ABSTRACT
This article studies the crisis experienced by the Methodist Church of Brazil in the
second half of the 1960’s.  Influenced by the political environment of the military
dictatorship, Brazilian Methodism was a space of collision between liberal and
conservative groups of the denomination.   The principle space of this collision
was the School of Theology and the II Extraordinary General Council, in 1968,
as well as a series of events that followed during the years 1969 and 1970.  The
research raises questions regarding the theological and ideological foundations
that provided the bases for the attitudes of the conservative groups of Methodism

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in this conflict, which is an aspect rarely considered by historical studies regarding
the theme.  The principle suspicion is that the conservative positions originated
from a centuries old tradition, brought by North American missionaries during the
implantation of Protestantism in Brazil.  This tradition was transformed into an
Ethos of Brazilian Protestantism between the end of the XIX and the middle of
the XX century.  The conservative position was configured, as such, in reaction
to the Ethos threatened by new actors in the religious field and by the demands
of a society in conflict.
Keywords:  Protestantism; Methodist Church; decade of the sixties; conserva-
tism; crisis.     

Resumen
Este trabajo estudia una crisis vivida por la Iglesia Metodista durante la segunda
mitad de los años sesenta. Influenciado por el entorno político de la dictadura mi-
litar, el metodismo brasileño fue campo de un enfrentamiento entre las alas liberal
y conservadora de la denominación. El palco de este embate fue la Facultad de
Teología y la II Asamblea General Extraordinaria, en 1968, además de una serie
de sucesos que le siguieron durante los años de 1969 y 1970. La investigación
problematiza los fundamentos teológicos e ideológicos que cimentaron las actitudes
del ala conservadora del metodismo en este conflicto, un aspecto poco considerado
por la historiografía sobre el tema. Se sospecha, principalmente, que las actitudes
conservadoras fueron consecuencia de una tradición centenaria traída por los
misioneros estadounidenses, en la época de la implantación del Protestantismo
en el Brasil. Esta tradición se convirtió en una especie Ethos del protestantismo
brasileño, entre fines del siglo XIX y mediados del XX. Así, la postura de los
conservadores, se configura en una reacción a ese Ethos amenazado por nuevos
actores en el campo religioso y por las demandas de la sociedad en conflicto.
Palabras clave: Protestantismo brasileño; Iglesia Metodista; años sesenta;
conservadurismo religioso; crisis.

Um período de rupturas

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos... em suma, o perí-
odo era de tal maneira semelhante ao presente que algumas de suas mais
ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o
mal, apenas no grau superlativo de comparação.

Com estas palavras, Charles Dickens (1812- 1870) inicia um de seus


mais conhecidos romances: Um Conto de Duas Cidades, escrito em 1859
(Dickens, 2002, p.15). Apesar de a obra se referir a um período- chave da
História Ocidental- o final do séc. XVIII na Europa- atrevo- me a adaptar
suas linhas iniciais a outro período histórico, igualmente chave e também
“recebido para o bem e para o mal, no grau superlativo de comparação”:
a década de sessenta.
Os anos sessenta foram um período de rupturas, de contestação. Na
França, vivia- se o Maio de 68: é proibido proibir! Nos Estados Unidos, a
Guerra do Vietnã, protestos juvenis e a luta do doutor Martin Luther King
(1929- 1968) pelos Direitos Civis. No Caribe, Cuba fazia a Revolução e
se tornava socialista.

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O Brasil dos anos sessenta viu a ressaca da maré desenvolvimentista,
o Golpe Civil e Militar de 1964 e o recrudescimento da ditadura em 1968.
O Catolicismo mundial buscava um aggiornamento com o Concílio
Vaticano II. E colocava-se ao lado dos pobres na Conferência de Medellín.
No Brasil, surgia o clero progressista em protesto contra a ditadura. No
Protestantismo internacional, era o momento do Movimento Ecumênico. No
Protestantismo brasileiro, aqueles eram tempos de um forte engajamento
social e renovação teológica através da obra do missionário presbiteriano
Richard Shaull (1917-2002).

O metodismo brasileiro nos anos sessenta


E no meio de todo este ambiente estava a Igreja Metodista do Bra-
sil. Na primeira metade da década, embalada pelo momento de apelo ao
engajamento, ela assumiu uma postura de forte conscientização social.
Porém, na segunda metade dos anos sessenta (logo após o Golpe
Civil e Militar de 1964), grupos de tendência conservadora chegaram ao
poder na Igreja. Começaram aí os atritos entre a liderança conservadora e
os defensores do engajamento social. Estes atritos chegaram a seu auge
no ano de 1968 com a Crise da Faculdade de Teologia, o II Concílio Geral
Extraordinário e em todo um clima de perseguição político- ideológica nos
anos de 1969 e 1970.
A crise da Faculdade de teologia foi motivada pelo fechamento da ins-
tituição- por ordem da liderança conservadora- em resposta a uma greve
iniciada pelos alunos no primeiro semestre de 1968. O Segundo Concílio
Geral Extraordinário foi realizado em setembro daquele ano para resolver
a questão. Porém, ele acabou servindo apenas para ratificar as decisões
já tomadas pela liderança. O que se seguiu foi todo um clima de “caça
às bruxas” na denominação entre 1969 e 1970. Refletindo o momento
de endurecimento político vivido pelo país, estes setores conservadores
acirraram ainda mais seu atrito com as lideranças defensoras do enga-
jamento social da Igreja. Representantes destas últimas foram acusados
de comunismo, retirados de seus cargos e por vezes até delatados aos
órgãos de repressão do regime militar.

Um questionamento
A questão motivadora de meu trabalho (que resultou em minha dis-
sertação de mestrado em Ciências da Religião defendida em 20081) surgiu

1
Cf. SCHMIDT, Daniel Augusto. Herdeiros de uma Tradição: uma investigação dos fun-
damentos teológico-ideológicos do conservadorismo metodista na crise da década de
sessenta. 2008. 216 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Ciências da Religião)-
Curso de Pós Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, 2008.

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da leitura da obra historiográfica metodista sobre o período. Percebi que
existe uma tradição entre os autores de se interessar unicamente pelos
fundamentos teológicos e ideológicos das alas que defendiam um enga-
jamento social da Igreja. Porém nada é dito a respeito dos fundamentos
teológicos e ideológicos das atitudes das alas conservadoras. Não esta-
riam elas vinculadas a toda uma tradição teológico- doutrinária centenária
trazida pelos missionários norte-americanos no século XIX? Esta tradição
foi interpretada no Brasil como o Ethos do Protestantismo. Tais atitudes
seriam então uma forma de defesa da identidade herdada.
Porém, para falar do conservadorismo metodista eu necessitava de
uma leitura da mentalidade conservadora protestante. Ela foi- me fornecida
no pensamento do teólogo brasileiro Rubem Alves. Mais especificamente
em sua obra Religião e Repressão2.
No capítulo VII de seu livro, Alves trabalha a questão da Identidade
Protestante. Segundo o autor, quando um grupo define quem são seus
inimigos, define também sua identidade (Alves, 2005, p.285): ”Sei quem
sou quando sei contra quem me oponho. Ao me afirmar estou implicita-
mente negando tudo aquilo que me nega e que me ameaça de dissolução.
Identidade pressupõe conflito. E, inversamente, conflito cria identidade.”
Porém, no caso do Protestantismo brasileiro (e mais especificamente
do Metodismo) optei por inverter esta afirmação. Quando ele assumiu
uma identidade, determinou quem eram os “inimigos”. A identidade criou
o conflito.

A identidade do Protestantismo Brasileiro


E que identidade era esta? A meu ver esta identidade era a tradi-
ção centenária do Pietismo, trazida ao Brasil pelos missionários norte-
americanos. Foi a defesa desta herança que fundamentou as atitudes
do conservadorismo metodista quando seus valores começaram a ser
questionados na década de sessenta.
Mas o que era o Pietismo? Explicando de uma forma mais didática,
pode-se dizer que este movimento religioso surgido dentro do ambiente
luterano alemão do séc. XVIII era um mix de aspectos do Luteranismo
e do Puritanismo. Tendo a figura do pastor Phillip Jacob Spener (1635-
1705) como sua maior expressão, o Pietismo foi levado aos Estados
Unidos pelo grupo dos Morávios, liderado pelo conde alemão Nicolaus
von Zinzendorf (1700- 1760). E ali, imprimiu suas características ao Pro-
testantismo que já existia desde os Pais Peregrinos. No caso específico
do Metodismo, a influência pietista se deu através do contato de seu

2 Cf. ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Edições Loyola, 2005. Publicada em
1979 com o título inicial de Protestantismo e Repressão, esta foi a obra básica. Porém,
em outros momentos, utilizei- me também da introdução de seu livro Da Esperança.

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fundador, John Wesley (1703- 1791) com a missão morávia na colônia
norte- americana da Geórgia.
E quais eram as características do Pietismo?
A primeira delas é um profundo sentimentalismo, influência da dou-
trina luterana da Ordo Salutis. Esta doutrina -pouco lembrada no período
da Ortodoxia que se seguiu à morte de Lutero- dizia que a fé na justi-
ficação só viria depois de uma união mística do fiel com o Senhor. Ela
ressurgiu no Pietismo, que passou a dar uma forte ênfase à experiência
sentimental e mística da conversão, ou do encontro pessoal com Cristo.
A experiência deveria fundamentar a certeza. Este tom sentimental pode
ser encontrado, por exemplo, na narrativa da conversão do próprio John
Wesley (op. cit. Heitzenrater, 2006, p. 80):

À noite, fui de muito má vontade à Sociedade da Rua Aldersgate, onde


alguém estava lendo o prefácio de Lutero para a Epístola aos Romanos.
Cerca de um quarto para as nove, enquanto ele estava descrevendo a mu-
dança que Deus opera no coração pela fé em Cristo, eu senti meu coração
estranhamente aquecido, senti que acreditava em Cristo, apenas em Cristo
para a salvação...

A segunda é uma visão bastante negativa do mundo (influência pro-


vável do Puritanismo): o cristão deveria morrer para o mundo, manter- se
afastado dele. Um exemplo desta visão negativa pode ser encontrado nas
paredes de alguns antigos templos protestantes, inclusive metodistas: o
famoso quadro “Os dois Caminhos”. Sua origem é alemã e vinculada a
círculos pietistas3. O assunto da tela é o destino eterno dos seres humanos.
No topo de algumas cópias desta pintura vê-se o olho de Deus. Porém é na
base inferior do quadro que a ação realmente acontece. Do lado esquerdo,
ladeado por uma estátua de Baco e de Vênus, aparece o Caminho Largo.
Ele é encimado por uma grande placa em que está escrito “Bem-vindo!”.
Neste caminho, que retrata um ambiente urbano, são representadas todas
as fontes de pecado para o Protestantismo. A primeira imagem é a de
um grupo de pessoas bebendo vinho. Logo acima, um salão de baile. Do
outro lado do caminho, um teatro. Mais acima, um cassino. No meio do
caminho, são mostrados todos os tipos de perversão: brigas, roubos, as-
sassinatos etc. E no canto superior esquerdo da tela é retratado o destino
a que aqueles que trilham o Caminho Largo vão chegar: a destruição com
labaredas e fumaça. Porém, no canto direito da tela a paisagem é bastante
diferente: o clima é rural e bucólico. A primeira imagem que aparece são

3
O desenho original foi feito por uma diaconisa da Igreja Luterana, Charlotte Reihlen
(1805-1868), no ano de 1862 na cidade de Stuttgart. Cf. http://www.britishmuseum.org.
Acesso em: 15 de maio de 2008.

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as tábuas do Decálogo. Logo acima, um grupo de pessoas com roupas
modestas se dirige a uma porta, atendendo ao convite de um pregador. O
caminho retratado deste lado do quadro é estreito e íngreme. De um lado,
uma fonte debaixo de um cruzeiro faz jorrar a Água da Vida. De outro,
aparece uma igreja protestante com um prédio de Escola Dominical. Não
existe uma única construção dedicada ao prazer. Ao contrário do que se
vê no Caminho Largo, as cenas ao longo do Caminho Estreito são pias:
benevolência, cultos ao ar livre, serviço cristão. O caminho termina numa
Cidade Dourada situada no céu. Mas um olhar sobre esta pintura permite
a visão de outras características do Pietismo.

O quadro Os dois Caminhos

Uma delas é a Ética cristã estrita. A influência aqui é da Doutrina da


Predestinação calvinista. Para Calvino, a questão se o indivíduo estava
predestinado ou não à Salvação se resolvia de forma bastante simples:
o Eleito era aquele que simplesmente aceitava a doutrina e perseverava
em sua fé apesar das perseguições. Porém, para as gerações que o
seguiram, a dúvida começou a pairar. Como era possível garantir que se
pertencia ao grupo dos salvos? Vendo que a questão provocava verda-

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deiro tormento na vida de muitos paroquianos, os cura d’almas definiram
que a prática de uma vida cristã absolutamente ética e regrada serviria
para garantir a eleição. Surgiu aqui aquilo que Max Weber chamou em
seu livro A ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo de ascese in-
tramundana (Weber, 2004, p.110) 4. A vida metódica e correta no mundo
era uma maneira de agradar a Deus. E a ética cristã pietista, herdeira
que era do Puritanismo, também deveria ser rigorosa. O crente deveria
se afastar de coisas “mundanas” como teatro, baile, vícios.
Outra característica do Pietismo presente em Os Dois Caminhos
é um certo individualismo (influência também da Doutrina da Predes-
tinação): a Salvação era um assunto individual. A Porta para entrar
no caminho da direita é estreita, cabendo uma única pessoa. Diz Max
Weber (Weber, 2004, 95):

Ora, em sua desumanidade patética, esta doutrina não podia ter outro efeito
sobre o estado de espírito de uma geração que se rendeu à sua formidável
coerência, senão este, antes de mais nada: um sentimento de inaudita so-
lidão interior do indivíduo. No assunto mais decisivo da vida nos tempos da
Reforma- a bem- aventurança eterna- o ser humano se via relegado a traçar
sozinho sua estrada de encontro ao destino fixado desde toda a eternidade.
Ninguém podia ajudá-lo.

A fé puritana era, então, um caminho solitário. Um exemplo pode ser


encontrado em O Peregrino, de John Bunyan (1628-1688), obra literária
que serviu de inspiração na composição da tela. Depois de falar a sua
família do desejo divino de destruir sua cidade, Cristão (o protagonista)
é dado como louco e inicia sua viagem solitária com destino à Cidade
Celestial (Bunyan, 1992, pp. 20-21): “Ao ouvir estas palavras, grande
foi o susto que se apoderou daquela família, não porque julgasse que o
vaticínio viesse a realizar-se, mas por se persuadir de que o seu chefe
não tinha em pleno vigor as suas faculdades mentais”
No Pietismo, este individualismo se exacerbou. Ele se manifestava
não só na conversão, como também nas práticas de piedade: leitura in-
dividual da Bíblia, devocionários, culto familiar etc.
Porém, existem outras características do movimento pietista que
não estão presentes no quadro. Características estas que foram deter-

4
Segundo Weber, na Idade Média o asceta por excelência era o monge que vivia uma vida
cristã absolutamente racionalizada dentro das celas dos mosteiros. Era o que ele chama
de ascese extramundana, ou seja, fora do mundo. Porém, depois da Reforma, esta postura
se transforma. Iniciando em Lutero e se exacerbando no puritanismo, esta ascese passa
a ser vivida dentro da vida cotidiana. Cada cristão agora seria um monge.

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minantes para a crise que se estabeleceu no metodismo brasileiro dos
anos sessenta.
Uma delas é o forte desinteresse pelas questões sociais. Aqui ocor-
re talvez um desvirtuamento das raízes puritanas do Pietismo. O crente
puritano se via como instrumento divino para impor a Vontade de Deus
no meio social. Porém, quando o movimento pietista chegou aos Esta-
dos Unidos, a experiência pessoal com Jesus passou a assumir uma
feição cada vez mais individualista e desconectada da realidade. Alguns
fatores podem ser elencados para este desvirtuamento. Um deles está
ligado especificamente ao Metodismo norte- americano. Transformado
em uma denominação de classe média ele passou a resumir a Doutrina
da Santificação de Wesley a uma mera experiência subjetiva. Outro fator
foi a Escola Dispensacionalista de interpretação bíblica, encabeçada por
Cyrus Ingerson Scofield (1843-1921). Segundo esta linha de interpretação,
a História da Salvação poderia ser dividida em sete etapas ou “Dispen-
sações.” Na etapa atual, a sexta, cabia unicamente à Igreja a pregação
do Evangelho. Para Scofield somente a pregação era a solução para as
questões sociais. Um último fator é específico do ambiente religioso do
Sul dos Estados Unidos, região de onde veio boa parte dos missionários
que atuaram no Brasil. Para dar uma resposta à questão da legitimidade
cristã da escravidão, surgiu por ali a Teologia da Igreja Espiritual. Criada
por James Henley Thornwell (1812-1862) esta doutrina dizia, baseada
em textos como o do Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículo 21 da
Bíblia Sagrada, que à Igreja cabia unicamente a jurisdição sobre assuntos
espirituais. Questões sociais, como a libertação dos escravos, estavam
unicamente sob a alçada do Estado.
A outra é a sacralização da ordem política (influência tanto do Lute-
ranismo como do Calvinismo), fruto de uma interpretação literal de alguns
textos bíblicos como o da Epístola de Paulo aos Romanos capítulo 13,
versículos 1 a 5: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores,
por que não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades
que existem foram por ele instituídas.”
O nome da doutrina luterana para a relação entre a Igreja e o Estado
era a Doutrina dos Dois Reinos. Segundo o reformador alemão, estes
dois reinos estariam nas mãos de Deus: a Igreja seria o Reino da Mão
Direita e o Estado, o da mão esquerda. Para Lutero, este último havia
sido estabelecido pela vontade de Deus. Sua função era estabelecer a
ordem, a paz, proteger a Igreja e reprimir o pecado através da espada. Os
governantes eram representantes de Deus, através dos quais Ele atuaria
de forma disfarçada. Lutero diz em Da Autoridade Secular, até que ponto
se lhe deve obediência (Lutero, 1996, pp.79-114):

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Ao reino do mundo ou sob a lei pertencem todos os não-cristãos. Pois, visto
que são poucos os crentes e somente a minoria age como cristãos... Deus
criou para esses, ao lado do estado cristão e do reino de Deus, outro regime
e os submeteu à espada, a fim de que, ainda que o queiram, não possam
praticar a maldade e, caso a praticarem, não o possam fazer sem temor e em
paz e felicidade. Do mesmo modo como se domina com correntes e cordas
um animal feroz, para que não possa morder e dilacerar, como é próprio de
sua raça, mesmo que o quisesse: um animal manso e dócil, ao contrário
não precisa disso. É inofensivo mesmo sem correntes e peias.

A Doutrina da Providência calvinista tinha visão semelhante. Em


suas Institutas da Religião Cristã, o reformador francês dedicou boa
parte do tratado sobre a liberdade cristã à administração do Estado.
Levando sempre em conta a Providência Divina, Calvino acreditava que
a organização política era fruto da vontade de Deus (Calvino, 1958, vol.
II p. 177): “Mas se tal é a vontade de Deus, de que peregrinemos sobre
a terra ainda que aspiremos à verdadeira pátria, e se tais auxílios nos
são necessários para nosso caminho, aqueles que os querem tirar aos
homens, lhes tiram o ser homem.”
Estas idéias podem ser encontradas também no líder do movimento
metodista, John Wesley. Em pleno Século das Luzes, o reverendo angli-
cano era um ferrenho monarquista. Teve de igual forma extrema dificul-
dade em aceitar a Guerra de Independência das Treze Colônias. Para o
fundador do Metodismo, ao contrário de Rousseau, o poder civil emanava
de Deus e não do povo. Ele diz em seu sermão 130 5:

... Eu tenho ouvido destes que estão vigilantes que, em nossas colônias, mui-
tos têm feito as pessoas beberem, tão largamente, do mesmo vinho mortal,
milhares dos quais são, por meio disto, mais e mais inflamados, até que suas
mentes estejam completamente mudadas... A razão se perde na violência;
suas vozes ainda pequenas sucumbem no clamor popular... Aqui está a es-
cravidão... Nem mesmo a liberdade de imprensa é permitida... Ninguém se
atreve a imprimir uma página, ou uma linha, a menos que seja exatamente
em conformidade com os sentimentos de nossos senhores, o povo... Ninguém
se atreve a proferir uma palavra quer em favor do rei George, ou em desfavor
do ídolo que eles estabeleceram- um governo novo, ilegal, inconstitucional,
extremamente desconhecido para nós, e de nossos antepassados6.

5
Cf. RENDERS, Helmut e outros (ed.). Sermões de Wesley: texto inglês com duas tra-
duções em português. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2006. CD- ROM.
6
A República, provavelmente.

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Porém, as colônias se tornaram independentes. E a sacralização da
ordem continuou a acontecer, agora não mais com uma face monarquista.
Nos Estados Unidos do séc. XIX, devido à Doutrina do Destino Manifesto, a
ordem política republicana e protestante foi vista como a vontade suprema
de Deus. Cabia aos norte- americanos levá-la ao restante do mundo.
E foi com estas características que o Protestantismo foi transplantado
para o Brasil pelos missionários estadunidenses em meados do século
XIX. Aqui, elas passaram a definir a identidade protestante.

Uma identidade sob ataque


Porém, na década de sessenta, esta tradição centenária começou
a ser contestada. O desejo por um Protestantismo nacional (e por um
metodismo nacional) mais engajado na realidade social levava a uma
necessidade de romper o dualismo Igreja-Mundo. Pedia a quebra da ética
individualista e da experiência com Jesus subjetiva e desconectada da
História. Levava também à visão de que a situação de extrema pobreza
e dependência do país estava ligada não à vontade de Deus, mas sim a
uma ordem política e social que deveria ser modificada. Era o que dizia
Caio Navarro de Toledo nas páginas de Cruz de Malta (o principal órgão
informativo da juventude metodista da época) em março de 1961:

Nossa tarefa, pois, como cristãos do século XX é estar presentes a tudo


o que se passa; jamais nos alhearmos da política, participar do crescente
movimento sindical, lutar por uma educação mais acessível e humana, com-
bater a torpe exploração do homem pelo homem que se vem fazendo, não
somente no setor econômico, como também no campo cultural e político. 7

Aos olhos dos conservadores, a identidade, o Ethos, do Metodismo


brasileiro estava em risco. Era preciso defendê-lo. E como se deu esta
defesa da identidade?
A defesa da identidade do Protestantismo Conservador se dá segun-
do Rubem Alves, através de dois instrumentos: a Disciplina Eclesiástica
e a Delação.
A Disciplina Eclesiástica tem o propósito de exercer o controle sobre
a ética individual pietista, que é vista pelo Protestantismo Conservador
como a face externa do crente, o seu retrato perante o mundo. É ela que
define os padrões e condiciona a participação do fiel no grupo à obedi-
ência a estes padrões (Alves, 2004, pp. 205-206).

7
Cf. TOLEDO, Caio N. Igreja, consciência do mundo. Cruz de Malta, São Paulo, pp. 5 e
6, março de 1961.

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Disciplina Eclesiástica se define como um conjunto de mecanismos, regula-
mentados por um texto universalmente aceito dentro dos limites da Igreja, que
cataloga as faltas passíveis de punição, recebe queixas e denúncias contra
os transgressores, julga-os e pune-os com penas que podem ser admoesta-
ções, afastamento da participação nos sacramentos e exclusão, pela qual o
faltoso é eliminado da comunhão da Igreja. Mediante a institucionalização da
disciplina eclesiástica, a Igreja afirma que o conhecimento ético é monopólio
seu. Afirma, ainda mais, que a condição para a participação do indivíduo na
comunidade é a sua conformidade com este conhecimento.

No caso do Metodismo, os dois grandes exemplos desta disciplina


foram a Crise da Faculdade de Teologia e o Concílio Geral Extraordiná-
rio. Jovens seminaristas foram excluídos do grupo por ferirem o retrato
externo do crente: eles dançavam, bebiam e fumavam.
Porém, nos dois anos que se seguiram ao Concílio Geral Extraor-
dinário o conflito assumiu um teor político. Aqueles que defendiam uma
Igreja mais engajada na realidade social brasileira se aproximavam das
esquerdas. Por vê- los como perigosos “comunistas”8, representantes do
conservadorismo optaram então pela Delação aos órgãos da repressão.
Segundo Alves, a Delação tem uma função bastante semelhante à da
Disciplina Eclesiástica: faz a separação entre os “verdadeiros” e os “fal-
sos” crentes (Alves, 1987, pp.9-44). A identidade herdada precisava ser
mantida a qualquer custo.

A delação é também parte desta liturgia de separação. Delatar é dizer ao


carrasco quem é que deve ser sacrificado. E, com isto, uma nova operação
matemática: sou diferente dele, separo-me do inimigo, entrego-o ao sacrifício,
e assim afirmo-me como membro do corpo sacerdotal. A delação faz isto:
ela afirma a pertinência a um grupo através do estabelecimento prático do
ódio a um outro. Delatar, portanto não é transgredir a ética; é enunciar uma
metafísica e confessar uma lealdade.

Metodologia
A metodologia utilizada na realização deste trabalho foi basicamente
a análise de documentação. Neste ponto foi importante a pesquisa em
bibliotecas, arquivos institucionais e pessoais.
A Biblioteca da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista apresenta
coleções (infelizmente não tão completas) de dois materiais imprescin-
8
O termo é colocado entre aspas por que uma análise mais acurada de textos da época
permite perceber que muito do que era visto como comunismo pelas alas conservadoras
nada mais era do que um fruto da histeria da Guerra Fria. O que havia, muitas vezes,
era uma aproximação funcional com o Marxismo. Mas isso nem sempre significou uma
adesão à doutrina comunista.

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díveis para a pesquisa sobre a denominação no período em estudo: o
Expositor Cristão (órgão informativo oficial da Igreja) e a revista Cruz de
Malta (o já citado informativo oficial dos grupos de juventude metodistas).
Neles ficam patentes as diferentes orientações do Metodismo brasileiro
na década de sessenta.
A pesquisa em material de arquivo também teve importante papel. E
foi de um destes arquivos, o do CEPEME9, que foi extraída a sua principal
fonte primária: os diários do bispo metodista Isaías Fernandes Sucasas
(1896-1972) 10. Eles acabaram se tornando a voz conservadora de que
eu necessitava11.

Os diários do velho bispo


Os diários são formados por vinte e três cadernos escolares. Aparen-
temente a motivação de sua escrita era a de uma leitura e análise pelas
futuras gerações. O bispo disse ao final da entrada de 7 de maio de 1970
(Sucasas, 1970, p. 382): “Aqui encerro mais este caderno em que tenho
escrito o meu diário... Um dia, quando eu morrer, alguém poderá ler este
diário e ver ou sentir alguma inspiração.” O período coberto pelas notas vai
de 1948 a 1971. Porém, por motivos de delimitação, resumi meu interesse
aos diários dos anos de 1968, 1969 e 1970, época em que o reverendo
Sucasas já era bispo emérito e testemunhou a crise vivida pela Igreja.
Neles há espaço para todo tipo de anotação. Contém, por exemplo,
referências típicas do dia-a-dia de um homem de setenta e dois anos:
a anotação minuciosa de preços de compras, considerações sobre seu
estado de saúde, referências aos seus gostos pessoais como televisão
e futebol e às suas práticas espirituais fortemente influenciadas pelo Pie-
tismo. Esta anotação é de 11 de abril de 1969 (Sucasas, 1969, p.180):
”Levantei-me às 6 horas, após ter feito o culto doméstico com a Jacira
no No Cenáculo12...”
Porém, o diário também reserva espaço para outro tipo de anotação,
que foi de grande importância para meu trabalho. Por vezes, as páginas
revelam o profundo conservadorismo presente na personalidade do velho
bispo. Optei por defini-lo em dois aspectos: o religioso-doutrinário e o
político. O primeiro caso aparece claramente na entrada de 26 de junho

9
Centro de Estudos e Pesquisas sobre Metodismo e Educação, vinculado à Universidade
Metodista de Piracicaba.
10
O reverendo Isaías Sucasas ocupou este cargo entre os anos de 1946 e 1965
11
Em princípio, minha intenção não era trabalhar com a figura do bispo Isaías Sucasas.
Meu interesse recaia sobre uma das figuras mais interessantes e menos pesquisadas
do Metodismo brasileiro: a do reverendo Nathanael Innocêncio do Nascimento. Porém, a
dificuldade de encontrar material sobre o reverendo Nathanael forçou-me a uma mudança
de rumos.
12
No Cenáculo é o nome de um conhecido devocionário metodista.

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de 1968, já durante a Crise da Faculdade de Teologia, quando ele se
refere às atitudes que tomaria em relação a professores e alunos caso
ainda fosse bispo ativo. Os professores seriam inquiridos quanto a suas
posições teológicas e doutrinárias. E os alunos também. A ética pietista
estava presente (Sucasas, 1968, p. 135): “... O mesmo faria com cada
aluno- submetendo a um interrogatório severo, quanto às suas convicções
em relação à vocação... seu amor ao metodismo, suas convicções sobre
o vício do fumo, do álcool, da dança e do jogo...”
Com relação ao conservadorismo político pode-se dizer que se ele
não levou a um adesismo explícito ao regime militar 13, pelo menos fez
com que existisse uma aproximação ideológica. Esta aproximação ideo-
lógica vai num crescendo que culmina com a delação. A anotação de 31
de março de 1969 diz (Sucasas, 1969, pp. 159-160):

... aprontei-me e fui juntamente com o Rev. Sucasas 14 até o Círculo Militar
do 2º Exército em Birapuera (sic). O culto que se realizou foi de Ação de
Graças pelo 5º aniversário da revolução de 1964...O salão estava repleto -
Uma assistência seleta de civis e militares de todas as patentes 15.

Em 25 de março daquele ano a aproximação se tornou ainda maior


(Sucasas, 1969, p. 149):

... Então eu e o Rev. Sucasas fomos até o quartel do DOPS. Lá estivemos


das 3:30 às 4:30 da tarde. Conseguimos o que queríamos, de maneira que
recebemos o documento que nos habilita aos serviços secretos desta orga-
nização nacional da alta polícia do Brasil.

E tudo culminou na delação do jovem metodista Anivaldo Padilha


aos órgãos de repressão da ditadura militar: “Encaminhe-se com os
termos de declarações de José Sucasas Filho (sic) e seu irmão Izaías
(sic) Fernandes Sucasas ao ‘SS’16 do DOPS. São Paulo, 28/08/6917.” O
motivo da denúncia foi a publicação de um jornal clandestino, o UNIDADE
III, que divulgava informações censuradas pelas autoridades da igreja.

13
Em algumas anotações do diário, quando lhe convinha, o bispo tecia críticas ao regime.
Cf. Sucasas, 1969, pp. 226- 229.
14
Seu irmão mais novo, José Sucasas Júnior.
15
Este não é o único culto militar narrado no diário. A entrada do dia 5 de Junho de 1969
narrou um culto militar realizado na Igreja Metodista Central de São Paulo. O púlpito
ficou ao cargo do reverendo Sucasas e do Capelão Evangélico do 2° Exército. O bispo
participou representando a Igreja Metodista do Brasil. Cf. Idem, pp. 263-264.
16
Serviço Secreto, provavelmente.
17
São Paulo, UNIDADE III, novembro de 1968. Cópia parcial pertencente ao arquivo do
Sr. Anivaldo Padilha.

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A seguir, reproduzo algumas de suas páginas. Notem-se os comentários
escritos a mão, talvez pelos próprios irmãos Sucasas: “é preciso ‘apertar
‘os jovens que respondem por este jornal... subversivo”, ”é um insulto,
um desrespeito”, “ex-padre revoltado”... O nome do delatado também
aparece grifado várias vezes.

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Mas o trabalho com os diários requereu alguns cuidados.
Fruto do surgimento da idéia de individualidade no séc. XVIII, o diário
é um documento histórico bastante específico. Diz a historiadora Angela
de Castro Gomes: ”Existe um certo consenso, na literatura que trata da

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escrita de si, segundo o qual sua prática dataria, grosso modo, do século
XVIII quando indivíduos “comuns” passaram a produzir, deliberadamente,
uma memória de si18.”
E por ser uma escrita de si, o trabalho com diários requer um cuidado
especial. Principalmente quando se trata de uma documentação recente
como as anotações do reverendo Sucasas. O diário é uma exposição, por
vezes tremendamente franca, de opiniões não apenas relativas a fatos
como também a pessoas. Pessoas estas que por vezes não gostariam
de ser expostas. Isso me levou a manter em sigilo o nome de certos
personagens presentes em suas páginas.
A realização deste trabalho acabou resultando também em algumas
percepções e em novos questionamentos.
Ela me permitiu uma compreensão, ainda que limitada, da mentali-
dade do Protestantismo Conservador. Fez- me perceber também o quanto
ela estava impregnada do ideário do Pietismo. E o quanto a defesa desta
identidade serviu para fundamentar atitudes autoritárias, como no caso
do Metodismo da década de sessenta.
Este trabalho fez-me perceber também a existência um novo nicho
de pesquisa: o olhar sobre a Igreja Metodista do período sob um novo
ângulo, o das alas conservadoras. Ele permitiu também a percepção de
que a História, de tempos em tempos, muda de mãos. A memória muda
de donos. E que este processo é, ao mesmo tempo, positivo e negativo.
Positivo porque faz com que a memória daqueles que foram oprimidos
seja recuperada. Memórias convenientemente esquecidas vêm à tona.
Negativo porque neste processo, novos esquecimentos convenientes são
criados. E a compreensão da História prossegue truncada.
A elaboração deste trabalho serviu também para que questões fossem
levantadas. E destas questões surgem novas propostas de pesquisa.
Uma pergunta que surgiu foi a do papel ocupado pela defesa da tra-
dição. No mundo pós- moderno e globalizado em que vivemos, a defesa
da tradição vem ligada à idéia de identidade. O que é positivo. Porém, a
partir de quando esta defesa da identidade se transforma em algo des-
trutivo? Em qual momento deve haver uma abertura da tradição para a
realidade exterior? É possível uma relação de equilíbrio? Como se dá o
processo de estabelecimento de uma tradição?
Outra questão surge a respeito da figura do jovem protestante que
se revoltou contra as autoridades eclesiásticas na década de sessen-
ta. Na historiografia metodista sobre o tema, o jovem daquele período
ainda é retratado de uma forma ainda um tanto mitificada. Ele é visto
apenas como o herói. Não tem “corpo”. Porém, existem questões que

18
Cf. GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Revista de História da
Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 9, p. 98, abril de 2006.

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não foram respondidas. Qual era o perfil deste jovem, por exemplo?
Qual a sua origem social? Qual era a sua formação cultural? Até que
ponto esta formação não representou um perigo para as lideranças da
denominação? Nota-se também a carência de trabalhos que vinculem
de forma mais nítida esta juventude com tudo o que ocorria a sua volta.
A Crise da Faculdade de Teologia não poderia ser inserida dentro do
ambiente de rebelião do Movimento Estudantil no Brasil e no Mundo? A
rediscussão da ética pietista não estaria de certa maneira relacionada
também a toda uma mudança de costumes ocorrida naquele período?
O campo ainda é muito vasto.

Referências Bibliográficas
Fontes Primárias (Documentos)
UNIDADE III, novembro de 1968. Cópia parcial pertencente ao arquivo pessoal
do Sr. Anivaldo Padilha.
SUCASAS, Isaías Fernandes. Diário de 1968.
_______________________ Diário de 1969.
_______________________ Diário de 1969-1970.

Fontes Secundárias
ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
_____________. Da Esperança. Campinas: Papirus, 1987.
BUNYAN, John. O Peregrino (ou a Viagem do Cristão à Cidade Celestial). São
Paulo: Imprensa Metodista, 1992.
CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. Buenos Aires: Editorial La
Aurora, 1958.2v.
DICKENS, Charles. Um Conto de Duas Cidades. São Paulo: Nova Cultural,
2002.
HEITZENRATER, Richard P. Wesley e o Povo Chamado Metodista. São Bernardo
do Campo: São Paulo: EDITEO; Editora Cedro, 2006.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2004.

Artigo
GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Revista de História
da Biblioteca Nacional, n° 09, Rio de Janeiro, 2006, pág. 98.
TOLEDO, Caio N. Igreja, consciência do mundo. Cruz de Malta, São Paulo, março
de 1961, pp. 5 e 6.

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Séries e coleções
Ética: Fundamentação da Ética Política. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre:
Concórdia: 1996. (Coleção Martinho Lutero Obras selecionadas, vol. VI).
Documento eletrônico
RENDERS, Helmut e outros (ed.). Sermões de Wesley: texto inglês com duas
traduções em português. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2006. CD- ROM.

Dissertação
SCHMIDT, Daniel Augusto. Herdeiros de uma Tradição: uma investigação dos
fundamentos teológico-ideológicos do conservadorismo metodista na crise da
década de sessenta. 2008. 216 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Ciências
da Religião)- Curso de Pós Graduação em Ciências da Religião, Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2008.

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Centros de treinamento: entre o ades-
tramento religioso e a educação cristã
Training Centers: between religious formation
and Christian education

Centros del formación: entre la formación


religiosa e la educación Cristiana
Edemir Antunes Filho

RESUMO
Apresenta-se no artigo um modelo norte-americano de educação cristã marcado
pelo pragmatismo e eficiência de ações missionárias, seus reflexos em igrejas
evangélicas brasileiras, as lacunas que facilitaram a adesão deste no Brasil e
os desafios que ele levanta para a práxis cristã hoje.
Palavras-chave: Centros de treinamento; educação cristã; pragmatismo; missão;
igrejas evangélicas; Brasil.

ABSTRACT
This article presents an American model of Christian education characterized by
pragmatism and efficiency of its missionary action, its effects on Brazilian Evan-
gelical churches, the gaps that facilitated its success in Brazil and the challenges
it poses to the Christian practice today.
Keywords: Training Centers, Christian education, pragmatism, a mission, pro-
testant churches, Brazil.

RESUMEN
El artículo muestra un modelo estadounidense de educación cristiana caracteri-
zado por el pragmatismo y la eficiencia de la acción misionera, sus efectos las
iglesias evangélicas brasileñas, las brechas que facilitaron la adhesión del Brasil
a este modelo y los desafíos que este plantea para la práctica cristiana de hoy.
Palabras clave: Educación cristiana; pragmatismo; misión; iglesias evangélicas;
Brasil.

Introdução
Neste texto discutir-se-á sobre o ensino cristão em algumas igrejas
evangélicas brasileiras. Mais especificamente um modelo educacional
desenvolvido nos EUA no final dos anos 1980 e que se estabelece no
Brasil na década de 1990 como uma solução para as comunidades cristãs
históricas e pentecostais que pretendiam edificar os/as irmãos/ãs, aumen-
tar o número de membros e ampliar o seu domínio e influência social.
É certo que não foram todas as igrejas que implantaram este mode-
lo, mas houve um diálogo sobre a temática em diversas congregações e
círculos teológicos. Propunha-se com este uma reestruturação da forma

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com que se geriam os negócios eclesiásticos. Tal reformulação tocava
também na maneira como a igreja promovia a educação cristã, as formas
de ensino e os propósitos educacionais.
Feitas estas considerações, inicialmente falar-se-á sobre os Centros
de Treinamento adotados pelo mundo corporativo e a sua influência no
meio evangélico norte-americano. Em seqüência, apresentar-se-á o impac-
to deste em igrejas brasileiras. Num terceiro momento, será apresentado
o ensino na Bíblia. Posteriormente, avaliar-se-á aquilo que fora anunciado
e o artigo será concluído.

Os centros de treinamento: parte da proposta de expansão


corporativa
Nas grandes corporações, especialmente nos EUA as transformações
político-econômicas do capitalismo ocorridas entre os anos 1965 a 1973
(HARVEY, 1992, p. 135-162), a busca por outros mercados, a expansão
dos comércios, a utilização adequada dos recursos, a gestão eficaz dos
negócios e das pessoas, levou pesquisadores a proporem novas estru-
turas, conceitos e ações a fim de corresponderem a estes anseios. Den-
tre as diversas ações corporativas se encontrava o aprimoramento dos
Centros de Treinamento nas empresas outrora pensados por estudiosos
como Taylor (1990) e Fayol (1994).
Em resposta à necessidade de aperfeiçoamento corporativo, nas
equipes de profissionais em treinamento procurava-se: dar instruções
sobre o trabalho, inculcar uma efetivação habitual de instruções, desen-
volver uma consciência crítica, desestimular e impedir a acomodação dos
funcionários, corrigir vícios, e ajustar performances e comportamentos
divergentes em relação àqueles adotados pela empresa.
O êxito de diversas empresas foi notório. A mudança radical se fez
em decorrência do investimento em conscientização, propaganda da
ideologia empresarial, novos modelos de atuação e reflexão viabiliza-
das, dentre outros meios, pelos Centros de Treinamento. Nos EUA, para
exemplificar, estes feitos repercutiram em vários setores sociais. Líderes
evangélicos entusiasmados passaram a reestruturar as igrejas que pas-
toreavam na linha de gestão eficaz.
A cultura norte-americana era muito marcada pelo capitalismo, pela
competição e pela eficiência. Estes elementos construídos socialmente
se difundiam de tal maneira que a grande maioria apenas os reproduzia e
atualizava-os sem tantas crises e tensões. Conseqüentemente, reformular
as maneiras de atuação e reflexão de comunidades evangélicas segundo
os padrões do mundo corporativo não era tão complexo.
Pastores de igrejas diversas passaram a tomar como exemplo os
modelos empresariais em vigência, e a consultarem e estudarem as obras

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de grandes estudiosos, administradores e gestores como Drucker, Welch,
Collins, Hamel e Branson. Para exemplificar, Rick Warren e Bill Hybels,
clérigos norte-americanos, passaram a aplicar os ensinos sobre Gestão por
Objetivos de Drucker (2001) associados à Bíblia. Estes pastores forjaram
um modelo que concilia índice de desempenho empresarial, avaliação e
investimento em ações missionárias eficazes e vida de santidade.
Neste artigo não há espaço nem intenção de fazer uma análise pro-
funda deste mix entre negócios, gestão e igrejas evangélicas. Cabe pontuar
apenas que, com esta mistura, tais igrejas passaram a ensinar a Bíblia de
modo prático, treinar pessoas, formar e acompanhar líderes, e a expansão
religiosa ocorreu. Indica-se, tão somente, que igrejas aumentaram sua
membresia pela adoção deste modelo de gestão,1 tendo como chamariz os
cultos regados a diversas expressões artísticas, utilização da tecnologia,
uso de imagens e sermões com orientações práticas e motivacionais.

Os centros de treinamento no Brasil: crescimento e reducionismo


Com o passar dos anos parte do meio evangélico brasileiro cedeu à
proposta que visava uma atuação das igrejas mais focada em objetivos
e enérgica a fim de conquistarem mais pessoas. Para tanto, anunciava-
se que o treinamento dos/as irmãos/ãs alavancaria o tão pretendido
crescimento numérico. Com isso, as Escolas Dominicais destas comuni-
dades cristãs que acolheram o modelo estrangeiro se enfraqueceram e
os Grupos ou Centros de Treinamento passaram a se multiplicar com os
nomes “Escola de Líderes”, “Escola de Profetas”, “Escola de Adoradores”
e “Escola Bíblica Avançada”.
O problema é que o Brasil tem poucas semelhanças com os EUA
(LESSA, 2008). As culturas e produções culturais são diferentes, as men-
talidades variáveis e a maneira com que se vivencia a fé cristã também é
outra. Desta forma, em solo brasileiro, o treinamento deixou de ter a fun-
ção pela qual foi inicialmente pensada e utilizada nas empresas e igrejas
norte-americanas. Aqui, boa parte das comunidades cristãs que adotaram
os Grupos de Treinamento, cometeu um grande reducionismo.
Os Grupos Brasileiros de Treinamento não conseguiram atuar segun-
do o modelo de treinamento empresarial e eclesiástico norte-americano.
Se no exterior o Treinamento era um dos braços do ensino cristão, no
Brasil se tornou o principal. Porém, aqui, longe de ter uma função de
promover a melhoria nas formas de preparação e execução do trabalho,
transformou-se em Escolas que impunham e formatavam os procedimentos
dos/as irmãos/ãs e o conteúdo da fé intencionando sedimentar práticas

1
A configuração e proposta do Centro de Treinamento “Crotonville” (Ossining – EUA) da
General Electric Company, fundado em 1956, exerceu forte influência no desenvolvimento
da gestão eclesiástica.

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que dessem resultados expansionistas e tocassem de algum modo nas
demandas cotidianas dos membros das igrejas.
Algumas igrejas batistas, presbiterianas e pentecostais cresceram de
maneira vertiginosa e se tornaram as vitrines deste modelo importado de
gestão e ação missionária. Ao invés de Escolas Dominicais e Estudos Bí-
blicos, adotaram-se Escolas de Treinamento marcadas pelo pragmatismo.
Estudava-se majoritariamente a doutrina eclesiástica correta, a aplicação
de elementos práticos que fizesse mais sentido para a vida e culminasse
com o crescimento numérico das igrejas.
Nos Grupos de Treinamento do mundo corporativo procurava-se
estimular e ensinar os/as funcionários/as a refletirem, a analisarem critica-
mente, a discutirem sobre as ações e melhorá-las, a criarem e aprenderem
a manter-se em contínuo aprendizado. Por outro lado, no Brasil, parte das
igrejas reduziram suas atividades a uma formação pragmática promovida
pelas Escolas de Treinamento e reforçadas em cultos impactantes, teste-
munhos pessoais e coletivos, encontros nos lares e acampamentos.
É inegável que os Centros de Treinamento alavancaram o crescimen-
to de algumas comunidades cristãs. Estes se instalaram em igrejas, sem
tantas tensões, porque, junto ao mote expansionista, anunciavam uma vida
devocional emotiva, intimista e individual; propunham um diálogo entre
fé cristã e o cotidiano dos indivíduos; procuravam dar respostas práticas
e fórmulas prontas para uma melhor vivência na igreja, na família, no
trabalho, na escola e nos círculos de amizade.
Uma influência sofrida pelos Centros de Treinamento no Brasil e que
culminou com a restrição do ensinamento em igrejas e transformação do
modelo importado vem da própria realidade brasileira. Esta é marcada por
um ensino público deficiente; pela falta de qualificação profissional; por uma
minoria de empresas que leva a sério os Centros de Treinamento; por uma
visão expansionista religiosa que se mostrava superior ao investimento numa
educação cristã integral; pela busca do sucesso de qualquer maneira.

O ensino na Bíblia
Diante do quadro acima, antes de prosseguir, é necessário avaliar
brevemente o ensino no Antigo e Novo Testamentos. Na Bíblia as formas
de ensino adotadas objetivavam estimular a reflexão, e transformar os
pensamentos, as emoções, os comportamentos e as ações das pessoas
conforme o padrão aprovado por Deus. Internalizando os conteúdos e
por eles se movendo, a pessoa teria condições de analisar criticamente
o mundo à sua volta, se realizaria como indivíduo e integrante da coleti-
vidade, também como se tornaria agente do Senhor na história.
Os lares das pessoas eram propícios para se ensinar sobre Deus e
espiritualidade. O ensino muitas vezes se deu pela via oral e no contexto

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familiar. Em Deutereonômio 5,1 está escrito: “Chamou Moisés a todo o
Israel e disse-lhe: Ouvi, ó Israel, os estatutos e juízos que hoje vos falo
aos ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os cumprirdes. E em
Deutereonômio 6.1-2: “Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e
os juízos que mandou o Senhor, teu Deus, se te ensinassem, para que
os cumprisses na terra a que passas para possuir; para que temas ao
Senhor (...) e que teus dias sejam prolongados.”
No processo ensino-aprendizagem havia espaço para perguntas.
Exemplificando, em Êxodo 12.25-27, quando são dados os direcionamen-
tos sobre a celebração da Páscoa os pais são orientados a responderem
o questionamento dos filhos sobre o rito. Mas não cabia apenas à família
o ensino religioso. Os sacerdotes também tinham a função de ensinar.
Isto se evidencia no livro de Samuel. O sacerdote Eli cuidou da formação
de Samuel ensinando, tirando dúvidas e preparando-o para ser um líder
religioso no meio do povo.
Jesus Cristo, segundo o evangelista Mateus (28.18-20), após a
ressurreição se apresenta aos discípulos e lhes ordena que discipulem
pessoas ensinando-as a serem fiéis ao Senhor. Talvez por isso Paulo
em sua Carta aos Efésios (4.11-12) destaca que algumas pessoas foram
vocacionadas para ensinarem, contudo todas as funções exercidas na
igreja visavam a edificação e aperfeiçoamento dos membros para que
cada um pudesse desempenhar bem o seu serviço.
Ao ensinar era comum a utilização de exemplos e testemunhos pes-
soais para facilitar a apreensão dos conteúdos e estimular os/as apren-
dizes a se permitirem conduzir pela vida de Jesus Cristo. Ao escrever
uma carta à igreja em Colossos (3.12-17), Paulo estimula os/as irmãos/
ãs a instruírem-se e aconselharem-se mutuamente fundamentando-se na
vida do Mestre. Na II Carta a Timóteo (2.2,25) há uma exortação para
que Timóteo traga a memória os ensinamentos de Cristo, os exemplos
de pessoas fiéis, ensine outras pessoas disciplinando-as com mansidão
ao ensinar a outros.
O ensino cristão além da via oral e testemunhal se fazia por meio
de textos e pesquisas. Nas considerações iniciais do Evangelho segundo
Lucas (1.1-4), o escritor ressalta que ele fez uma investigação acurada
sobre Jesus Cristo, seus discípulos e outras testemunhas, e preparou
um texto ordenado para que Teófilo, receptor deste, se certificasse das
verdades outrora recebidas por meio de instruções.
O ensino bíblico, portanto, acontecia através da Palavra, do testemu-
nho, de exemplos, de diálogos, de questionamentos, das correções, das
festas, dos cultos públicos, do treinamento, da leitura e reflexão sobre um
texto das Escrituras, da memorização, da repetição, da auto-avaliação,
de poesias e canções, e das caminhadas nas estradas da vida. Para di-

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namizar o processo educacional, em Gálatas 4.1-2 encontra-se menção
aos tutores que acompanhavam e instruíam os novos convertidos. Em
suma, o ensino religioso parecia ser dinâmico e abrangente.

Os Grupos de Treinamento à luz das Escrituras


A impressão que se tem ao fazer uma análise do ensino na Bíblia é
que as pessoas tinham tempo e disposição para vivenciar amplamente a
educação cristã. A realidade contemporânea brasileira traz muitas dife-
renças em relação ao mundo bíblico. O ensino cristão continua ocorren-
do, mas diferente. Há quem aproveite o tempo que fica no trânsito para
ouvir palestras e mensagens cristãs. Em casa assistem-se pela TV, pelo
DVD ou pela internet a cultos, debates e conferências. Se por um lado
o acesso à informação está melhor, por outro se nota o crescimento da
impessoalidade e do individualismo.
Uma vez que o egoísmo se proliferou (Bauman: 2008), os relaciona-
mentos arrefeceram e a educação cristã enfraqueceu-se, tornou-se mais
difícil motivar as pessoas à prática de evangelização, ao investimento nos
relacionamentos e às mudanças de comportamento segundo princípios e
valores cristãos. Neste contexto, inserir na agenda da igreja um momento
para o desenvolvimento dos dons e serviços é desafiador e necessário.
Mas este deve ser uma, dentre várias frentes, de ensino cristão.
Resgatar o valor do “treino” é imprescindível. Aqui não se trata de
reproduzir um modelo empresarial, tampouco criar um centro cristão de
treinamento para adestrar os/as irmãos/ãs. Fora pontuado que as motiva-
ções e propósitos de certas igrejas, ao criarem Escolas de Treinamento,
estavam equivocados. 2 Entretanto, além dos alvos expansionistas de
líderes religiosos, é preciso destacar que tal implementação visava sanar
lacunas no contexto das comunidades cristãs. Como exemplo: um discur-
so religioso que ajudasse os membros das igrejas a aplicarem o ensino
cristão em suas realidades.
Quando se usa a expressão “treino”, o fundamento bíblico desta
encontra-se em algumas recomendações apresentadas no texto de I Ti-
móteo 4,6-16. Timóteo foi exortado a permanecer firme e desenvolver o
seu ministério. Uma vez que ele era o pastor da igreja cabia-lhe manter
ativa sua vida devocional, estudar as Escrituras, ensinar, estimular os/as
irmãos/ãs, exercitar o amor, dar bom testemunho, cuidar de si, não abrir
mão do Evangelho e melhorar as ações que executava.
Só é possível aprimorar os atos se há uma observação profunda des-
tes para corrigir os erros, fortalecer os acertos e buscar novas ações. Desta
forma, a sugestão que se faz é compreender os “Centros de Treinamento”
2
Uma tentativa de amenizar os efeitos negativos experimentados no Brasil foi a fundação
em 2002 do Ministério Propósito Brasil, que tem mais de quinhentas igrejas associadas,
e está ligado ao Purpose Driven Ministries dirigido por Rick Warren.

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ou “Grupos de Treinamento” como “Classes de desenvolvimento dos dons
e serviços”. Juntamente com este nome mais apropriado ao ambiente da
igreja o objetivo destas Classes (ou Centros) seria a melhoria dos serviços
em harmonia com os dons dos membros das comunidades cristãs.
O que se faria, então, com as “Escolas de Líderes”, “Escolas de
Profetas”, “Escolas de Adoradores” e “Escolas Bíblicas Avançadas” não
afinadas ao objetivo especificado neste artigo? Uma medida radical seria
acabar com elas. Outra mais salutar e trabalhosa seria valer-se de todo
potencial que elas possuem e reestruturá-las com a proposta de desen-
volver dons e serviços.

Conclusão
Não se pretendeu com as sugestões “inventar a roda”. Considerando
o que fora pontuado sobre os Centros de Treinamentos nos EUA e Brasil,
a proposta foi mudar o espírito que move a educação cristã em algumas
igrejas brasileiras, isto é, abandonar a tentativa de adestramento religioso
e adotar uma reflexão profunda das Escrituras com vistas à promoção
integral dos/as irmãos/ãs.
Atualmente há Centros de Treinamento em diversos países. Poucos
têm o propósito de desenvolver os dons e os serviços.3 A maioria objetiva
a formatação religiosa. Se as Escrituras ainda dão o tom para a caminhada
cristã é importante que a igreja faça uma análise sobre o seu compromis-
so, as suas ações e as suas intenções com o ensino cristão.
Destacou-se que o treinamento também é importante se considera-
do como um elemento integrante do ensino cristão. Mas para evitar as
associações com o mundo corporativo ou com as distorções evangélicas,
foi sugerida a ressignificação das “Classes ou Centro de desenvolvimento
dos dons e serviços”. Os textos produzidos por pastores como Warren
e Hybels são muito interessantes e podem ampliar a visão sobre a vida
cristã, especialmente sobre o tema tratado neste artigo. Mas como se
faz com todas as obras lidas e estudadas: é importantíssimo fazer as
devidas ponderações.
As “Escolas de Líderes”, “Escolas de Profetas”, “Escolas de Adorado-
res” e “Escolas Bíblicas Avançadas” que ainda permanecem com o intento
de adestramento religioso podem mudar este objetivo. É necessário que
utilizem de seu potencial para melhor contribuírem com o Reino. Embora
existam barreiras e dificuldades para isso, é possível agir diferente.
É evidente que a área da Administração apresenta contribuições
para a vida da igreja. Os escritos e atuações de gestores como Peter

3
Duas instituições dignas de menção são as seguintes: Centro de Entrenamiento Cristiano
Internacional (Córdoba-Argentina) e o Centro de Treinamento para Plantadores de Igrejas
(Campinas, SP – Brasil).

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Drucker podem ajudar as comunidades cristãs. No entanto, não se pode
abrir mão das Escrituras e dos princípios evangélicos que são caros ao
povo cristão. A adoção de certos fundamentos e práticas pode colocar em
xeque a educação cristã. Por isso, a Palavra deve continuar iluminando a
vida da igreja para que esta permaneça sensível à voz de Deus, atente-
se às ocorrências sociais, promova o Reino e caminhe com esperança
na salvação.

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Educação para os novos tempos
Education for the new times

Educacíon antes de los nuevos tiempos


Elias Boaventura

RESUMO
Neste texto, o autor se propõe a examinar se a educação pode ser útil no comba-
te à violência onde quer que ela se manifeste. O autor entende que a educação,
como ministrada atualmente, é adequada a este combate e sugere a examinar a
possibilidade de uma mudança de paradigma e uma revisão do pensamento que
leve à prática da educação complexa, baseada na Teoria da Complexidade.
Palavras-chave: Violência; complexidade; educação.

ABSTRACT
In this paper the author proposes to examine whether education can be helpful
in combating violence wherever it manifests. The author dismisses the education,
as currently conducted, as suited to this purpose and suggests examining the
possibility of a paradigm change and a revision of the thought that leads to the
practice of the complex education, based on Complexity Theory.
Keywords: Violence; complexity; education.

RESUMEN
En este artículo el autor se propone examinar si la educación puede ser útil en
la lucha contra la violencia donde quiera que se manifieste. El autor rechaza que
la educación, tal como se imparte actualmente, sea apropiada para esa lucha y
sugiere examinar la posibilidad de un cambio de paradigma y una revisión del
pensamiento que nos lleve a la práctica de la educación compleja, basada en
la Teoría de la Complejidad.
Palabras clave: Violencia; complejidad; educación.

Introdução
Em outro texto, intitulado “Violência, uma visão complexa” 1 trabalha-
mos com algumas premissas que embasam também este artigo e que
rapidamente aqui esboçamos:

• Violência não pode ser tratada com os olhos voltados apenas
para o sujeito e o sítio onde ela se manifesta.
• As origens da violência encontram-se fincadas muito além de
onde comumente a detectamos como, por exemplo, na família.
• Devemos estar atentos, inicialmente, para o caráter instável de
nosso próprio planeta que, agônico, se revela agressivo contra
os seres vivos que o ocupam.

1
No prelo.

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• Esta condição planetária contamina o ser humano, o coloca
em situação de espreita e divide homens e mulheres em seres
expansivos ou agressivos e em outros acuados e defensivos.
• Ambos os grupos vivem necessariamente uma perspectiva de
morte sempre ameaçadora e presente.
• Diante deste quadro de ameaça de instabilidade, a questão que
se levanta é: há uma saída para que se consiga viver com algum
sentido, mesmo admitindo que somos seres para a morte?
• Descartamos como resposta a proposta de fuga, que só vislumbra
a solução com a saída para outra dimensão, que não se sabe qual
é e como seria, o que justificaria a afirmação de que aqui vivemos
o evangelho da perdição, “a vida é uma guerra sem tréguas, e
morre-se com as armas na mão” (SCHOPENHAUER, 1959, p. 7)

Com este caráter instável e agressivo, o Planeta penetra nos ho-
mens e mulheres, que passam a ser hospedeiros da violência. Queremos
examinar a possibilidade de se trabalhar o ser humano e prepará-lo para
uma vida que tenha sentido, mesmo que se admita um mundo que traga
a violência na sua própria estrutura.
Neste artigo, nos propomos a trabalhar a hipótese de ver na edu-
cação formal, como prática da instituição escolar, um instrumento que
nos permita dialogar com essa violência natural e perceber que posturas
teríamos que assumir, como educadores, para ajudar na amenização
do problema. Até este momento, a educação formal tem sido altamente
seletiva, extremamente agressiva, incentivadora da exclusão e da com-
petitividade desigual, bem como embasada em um tipo de conhecimento
pretensioso, autoritário, que imagina ser possível equacionar a questão,
tentando desprezar o erro e dispensar tratamento de ordenamento artificial
à realidade, o qual acaba por ser retilíneo e mutilador.

Infelizmente, a visão mutiladora e unidimensional paga-se cruelmente nos


fenômenos humanos: a mutilação corta a carne, deita sangue, espalha o
sofrimento. (MORIN, s/d, p. 19).
Daí a necessidade, para o conhecimento, de pôr ordem nos fenômenos ao
rejeitar a desordem, de afastar o incerto, isto é, de selecionar os elementos
de ordem e de certeza, de retirar a ambiguidade, de clarificar, de distinguir,
de hierarquizar... (MORIN, s/d, p. 20).

A violência, suas manifestações e a educação
Seria enfadonho insistir que o mundo vive um momento tomado por
extrema violência e sem nenhum sinal de saída. A violência aparece de
modo contundente, em primeiro lugar, na acelerada destruição do planeta,
mediante a qual vêm ocorrendo vários fenômenos:

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• Várias áreas incendiadas em todos os continentes como nunca
antes aconteceu.
• Grandes tempestades e inundações destruidoras, a exemplo do
Paquistão e da China , sem precedentes.
• Ao mesmo tempo, se vê crescer a desertificação e o número de
regiões avassaladas por secas intermináveis.
• Destruição acelerada de áreas florestais como acontece no Ama-
zonas, na África e em muitas outras regiões, com consequências
danosas para o meio ambiente, incluindo a acelerada extinção
de espécies.

Além disto, nunca ocorreram tantos tornados e furacões como nos


últimos tempos. Esta violência tem levado autores a se referirem à Terra
como “planeta agônico”, no qual, cada vez mais, se fazem visíveis os
sinais de morte e o homem existe como um ser acuado, que se torna
predador violento, causador e vítima da morte. Este estado de espírito
tem se revelado de vários modos, para os quais as mediações não têm
alcançado êxito, tais como:

• a existência de conflitos nacionais em vários continentes, que se


transformam em guerras.
• a acirrada luta pelo poder, nos mais altos escalões do Estado, na
qual os atores insistem em lançar mãos de iniciativas agressivas
sórdidas e corruptas.

Contudo, é no interior da família que vêm ocorrendo as mais estranhas
e detestáveis manifestações de violência, atingindo mais frequentemente
a mulher e as crianças. Mas sua explicação não se encontra aí. Talvez
porque é nela que ocorra o mais forte espaço de aproximação dos conflitos
vividos e reais. Enfim, a manifestação geral de violência, além dos fatores
mencionados, também nos parece ser fruto da má-distribuição das riquezas
uma vez que o desregramento da economia gera crises que enchem as
burras de alguns e violentam milhares que, atingidos pela fome, prosse-
guem trôpegos. As razões da violência que assolam a família não podem,
portanto, ser encontradas nela e explicadas por eventuais limitações, mas
em sítios distantes, onde deixam suas raízes mais profundas. Querer ex-
plicar a brutalidade existente como defeito de caráter, maldade imanente
ou, simplesmente, como as falhas da família constitui simplificação eivada
de crueldade, que pouco ajuda a solucionar a situação.
Considerar a educação formal, praticada em diferentes níveis,
como instrumento de ajuda à difícil tarefa de combater a violência pode
ser positivo. O que se pergunta, entretanto, é: qual seria a educação ne-
cessária para se obter êxito neste aspecto? Certamente não é esta que

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estamos praticando – competitiva, baseada no sistema de trocas, que já
traz em si a violência embutida contra os menos dotados, que são aque-
les que mais precisam. Esta educação é baseada em um conhecimento
que não se conhece, parcelado, retilíneo, mutilador e que, a rigor, só se
preocupa com os melhores. Wagner Rossi, referindo-se à educação que
atualmente se pratica na escola brasileira, esclarece:

A um nível individual, o trabalhador é levado a acreditar que a escola é a


via do seu acesso às classes dominantes. Essa crença pressupõe que ele
tenha aceito os valores veiculados e disseminados na sociedade capitalista,
através de todos os meios disponíveis: a escola, os meios de comunicação
de massa, as artes, etc. O trabalhador que é levado a querer “subir”, já
aceitou implicitamente a “competitividade” essencial do sistema. Competirá
com os companheiros de trabalho, para ele transfigurados em rivais. Aceitou
também a meritocracia que garante a vitória, a ascensão dos mais capazes,
numa triagem “justa”. E mais que isso, predispôs-se a aceitar as condições
existenciais desumanas a que são condenadas as classes trabalhadoras
como resultado da própria incapacidade (e ignorância) destas. Submete-se
à hegemonia da classe capitalista cujos pontos de vista endossa, muitas
vezes tentando identificar-se com aqueles que o convencem da própria in-
capacidade, inferioridade e ignomínia (ROSSI, 1943, p. 28-29).

O que repassam as agências de educação?



• Fazem crer que a escola é via de acesso.
• Incentivam a adesão a valores do sistema de troca, como a com-
petitividade, que reduz o companheiro de trabalho a rival.
• Reduzem os fracassos dos trabalhadores à incompetência pes-
soal, com fortes reflexos na autoestima.

Como pode se perceber nas análises de Rossi, a educação escolar


atual traz em si instrumentos da violência. Ele prossegue, referindo-se
ao modelo educacional vigente: “Não é, afinal, na educação que se en-
contrará a solução para os problemas da desigualdade e miséria, cuja
solução não se poderá obter sem se alterar a distribuição da riqueza e da
renda, pela alteração das relações sociais de produção” (ROSSI, 1943,
p.37). E, ainda: “Nos tempos históricos mais afastados, a dominação era
exercida, de modo mais aberto, pela predominância física ou militar do
dominante sobre o dominado que, vencido em combate, era reduzido à
coisa de propriedade do vencedor, através da escravidão” (ROSSI, 1943,
p. 39). Desses comentários se pode concluir que a educação formal atual,
como ministrada, estimula a dominação dos mais fortes sobre os mais

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fracos e os conduz à “violência justa”, que, por vezes, explode de modo
equivocado na família e na sociedade, como reação à discriminação.
Pierre Bordieu, examinando a situação na França (que, em muitos
aspectos, pode ser universalizada), faz uma afirmação interessante,
referindo-se aos “excluídos do interior”:

Se, até fins da década de 50, a grande clivagem se fazia entre, de um


lado, os escolarizados, e, de outro, os excluídos da escola, hoje em dia ela
opera, de modo bem menos simples, através de uma segregação interna ao
sistema educacional que separa os educandos segundo o itinerário escolar,
o tipo de estudos, o estabelecimento de ensino, a sala de aula, as opções
curriculares. Exclusão “branda”, “contínua”, “insensível”, “despercebida”.
A escola segue, pois, excluindo, mas hoje ela o faz de modo bem mais
dissimulado, conservando em seu interior os excluídos, postergando sua
eliminação, e reservando a eles os setores escolares mais desvalorizados
(BOURDIEU, 1998, p. 13).

Em outro texto, diz o mesmo autor:

É provável, por um efeito de inércia cultural, que continuemos tomando o


sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da
“escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um
dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência
de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o
dom social tratado como dom natural (BOURDIEU, 1998, p.41).

Desta forma, os autores apontam que a educação escolar, incen-


tivadora do individualismo, constitui um dos instrumentos produtores
de violência por ser discriminatória e cruelmente seletiva, dispensando
tratamento igual a pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades
e, por isto, são diferentes. Não pretendemos analisar as teorias de Bour-
dieu, mas aqui o invocamos no sentido de esclarecer nossa afirmação
de que a educação que praticamos, por trazer em si mesma as marcas
da violência, não é aquela de que precisamos.
Insistimos, portanto, em admitir que a educação tenha papel impor-
tante no combate à violência, mas o que desejamos continuar indagando
é: que tipo de educação precisamos para alcançar este fim, uma vez que,
aparentemente, as manifestações de violência que tudo atingiram?
Na educação atual formal praticada entre nós, não se vê sinais de
solidariedade entre homens e mulheres. Se a examinarmos mais de perto,
veremos que ela tenta simplificar o complexo sem levar em conta o tecido
que envolve o ser humano; trata-o de modo coercitivo e agressivo, fazendo

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dele um ser predisposto à violência para vencer a condição de acuado e
discriminado em que é colocado. Todo desvio educacional e seu conse-
quente fracasso estão ligados profundamente à natureza do conhecimento
com que se trabalha, mais do que a qualquer outra insuficiência, como a
falta de planejamento, de recursos financeiros ou de quadros preparados.
Vamos, para entender a questão, examinar o pensamento de Morin, um
dos brilhantes articuladores da teoria da complexidade, muito requisitado
pela Unesco para auxiliar na reflexão sobre a educação do futuro.
Em primeiro lugar, a constatação do crescimento da ignorância que
avança junto com o conhecimento e que este não consegue deter

... por toda a parte, o erro, a ignorância, a cegueira progridem ao mesmo


tempo que os nossos conhecimentos. Existe uma nova ignorância ligada
ao desenvolvimento da própria ciência; existe uma nova cegueira ligada ao
uso degradado da razão. As ameaças mais graves em que a Humanidade
incorre estão ligadas ao progresso cego e descontrolado do conhecimento...
(MORIN, s/d, p. 13 e 14).

E ele acrescenta: “Ignorâncias, cegueiras, perigos têm um caráter co-


mum que resulta de um modo mutilador de organização do conhecimento,
incapaz de reconhecer e aprender a complexidade do real” (MORIN, s/d,
p.14). Portanto, não se trata apenas de conhecer mais, de dominar mais
contundentemente o processo, mas de conhecer melhor o sentido de ser,
adquirir uma maior sensibilidade para a apreensão do sentido da vida.
Que características possui esse conhecimento que criticamos? Em
princípio, destacamos seu caráter cartesiano, que quer tratar a realidade
de modo separado e mutilador.

A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e redu-


cionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os
problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional.
É uma inteligência míope que acaba por ser normalmente cega. (MORIN,
2000, p. 43).

Este princípio disjuntivo, que examina tudo de modo isolado, separa o


sujeito do objeto e as disciplinas afins entre si. No problema em questão,
este princípio quer tratar a violência na família como se aquela se origi-
nasse e terminasse nesta. Esse mesmo princípio de disjunção, que almeja
ver na natureza uma ordem que não é dela, que não quer ver o todo na
parte e esta no todo, que é simplificador e mutilador do real, precisa ser
substituído para superar a educação que contribui como trincheira da vio-
lência neste mal-estar que, se percebe, avança em todas as direções.

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...existe hoje uma sensação vaga, mas generalizada, de que a violência
se instalou na vida social do país, atingindo até a intimidade dos espaços
reservados à vida privada, isso revela que a sociedade, enquanto ordena-
mento social e legal, está sendo corroída na sua base, o que constitui um
problema social sério (SANTOS, 2002, p. XV).

Percebe-se o equívoco da disjunção na dificuldade de convívio entre


as diversas ciências na própria universidade, como se fossem compar-
timentos estanques, independentes e isolados. Esse princípio de parce-
lamento e disjunção do saber também não consegue tratar a escola, a
família, a igreja como instituições que se complementam, especialmente
no ato de educar.
Em “Cabeça Bem-Feita”, Morin diz:

Todas as consequências sairiam da conscientização de que a História não


obedece a processos deterministas, não está sujeita a uma inevitável lógica
técnico-econômica, ou orientada para um progresso imprescindível. A Histó-
ria está sujeita a acidentes, perturbações e, às vezes, terríveis destruições
de populações ou civilizações em massa. Não existem “leis” da História,
mas um diálogo caótico, aleatório e incerto, entre determinações e forças
de desordem, e um movimento, às vezes rotativo, entre o econômico, o
sociológico, o técnico, o mitológico, o imaginário. Não há mais progresso
prometido; em contrapartida, podem advir progressos, mas devem ser in-
cessantemente reconstruídos. Nenhum progresso é conquistado para todo
o sempre. (MORIN, 2000, p. 42).

Ensinar a incerteza e tentar preparar o ser humano para conviver


com ela, evitando assim as frustrações desestabilizantes da falsa certeza,
que produzem violência, constituem o papel da nova educação, que se
pretende libertadora:

Grande conquista da inteligência seria poder, enfim, se libertar da ilusão


de prever o destino humano. O futuro permanece aberto e imprevisível.
(MORIN, 2000, p.79)
O devenir é doravante problematizado e o será para sempre. O futuro chama-
se incerteza. (MORIN, 2000, p.81).
O conhecimento é, pois, uma aventura incerta que comporta em si mesma,
permanentemente, o risco de ilusão e de erro. Uma vez mais repetimos: o
conhecimento é a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipé-
lagos de certezas. (MORIN, 2000, p. 86).

A tomada de consciência de que as incertezas do viver não repre-


sentam fruto de erro e de incapacidade de gerenciar bem o próprio ser,

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mas se encontram na própria estrutura do universo, parece-nos antídoto
forte para auxiliar uma melhor compreensão de eventuais fracassos.
Por fim, convém anotar:

É nossa constante desgraça e também é nossa graça e nosso privilégio:


tudo que há de precioso na terra é frágil, raro e destinado a futuro incerto.
O mesmo acontece com a nossa consciência. Assim, quando conservamos
e descobrimos novos arquipélagos de certezas, devemos saber que nave-
gamos em um oceano de incertezas. Conhecer e pensar não é chegar a
uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza. (MORIN,
2000, p.59).

A educação que pretenda ser uma alavanca a favor do combate à


violência, além de evitar o parcelamento do conhecimento, deve também
propor o convívio com a incerteza como fenômeno próprio da vida, pre-
sente na própria estrutura do universo. O convívio com a incerteza como
parte da existência em hipótese alguma significa resignação diante dos
acontecimentos, mas sim, encarar com melhor compreensão o incerto, o
imprevisível e o acaso, presentes na complexidade do real.
De fato, “a cosmologia moderna mostra que o mundo não tem fun-
damento: ele saiu do ‘vazio’. Nosso mundo é um mundo onde existem
a imprevisibilidade e a desordem, ou seja, o incerto” (MORIN, 2000,
p.163). Imprevisibilidade e desordem não podem ser descartadas nos
currículos de uma educação que se pretende libertadora. A vida real é
um oceano de incerteza, complexo, um tecido e só pode ser entendida
no seu conjunto.

A educação para a superação da violência
A partir deste ponto, propomo-nos a examinar a possibilidade de ver
a educação contribuindo para solução da violência onde quer que ela
esteja, por meio de uma postura dialogal com a desordem, partindo do
pressuposto que ordem e desordem não podem ser tratadas separada-
mente, porque ao mesmo tempo em que se opõem, se complementam. Se
quisermos, de fato, buscar uma solução para o problema, não podemos
ser disjuntivos, tratar a ordem como o bem posto e a desordem como mal
inevitável, que se deve abandonar. A desordem se manifesta na própria
estrutura do universo que ora se desintegra, ora se expande, ora explode.
Os ventos, a morte de estrelas e tantas outras manifestações de desordem
revelam esse caráter instável do universo.

Nosso universo é catastrófico desde o início. Desde a deflagração formidável


que o fez nascer, ele é dominado pelas forças de deslocações, de desinte-
grações, de colisões, de explosões e de destruição. É constituído no e pelo

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genocídio da antimatéria pela matéria, e sua aventura aterradora prossegue
nas devastações, nos massacres e nas dilapidações singulares. A saída é
impiedosa. Tudo morrerá (MORIN, 1997, p.271).

Nosso planeta Terra, ora agônico, é originado também de uma de-


sintegração de movimentos desorganizadores e imprevisíveis.

Nossa crosta viveu e continua a viver uma aventura prodigiosa, feita de movi-
mentos dissociativos, reassociativos, verticais horizontais, de derivas, encontros,
choques (tremores de terra), curtos circuitos (erupções vulcânicas), quedas catas-
tróficas de grandes meteoritos, glaciações e aquecimentos (MORIN, 1995, p.50).

O autor radicaliza um pouco mais e indaga:

– o que é desordem? – estão as agitações, dispersões, colisões, ligadas ao


fenômeno calorífico; estão também as irregularidades e as instabilidades;
os desvios que aparecem num processo, que o perturbam e transformam;
os choques, os encontros aleatórios, os acontecimentos, os acidentes; as
desorganizações; as desintegrações; em termos de linguagem informacional,
os ruídos, os erros (MORIN, 1996, p. 199).

Do que temos até aqui trabalhado, fica difícil admitir a existência de


um universo sempre regular, cumulativo e contínuo que não dá lugar para
o imprevisível e para o incerto.

Pode-se dizer também que a desordem invadiu o universo; é certo que a


desordem não substituiu totalmente a ordem no universo, mas já não existe
nenhum setor em que não haja desordem (MORIN, 1966, p. 200).

Desordem semelhante se percebe na organização da vida humana


que, açoitada por forças imprevisíveis, corre perigo de ficar sem senti-
do e vazia. A prática revela que, em relação ao social, o tratamento de
punição como solução para o problema do desvio, da desordem e da
agressividade não funciona, por ser ele mesmo portador de violência. A
educação para os novos tempos tem que levar em conta de modo não
disjuntivo este dado: a desordem vem ganhando espaço e não pode ser
desconsiderada. Atentemos para esta afirmação:

Em outras palavras, a desordem pouco perceptível no nível planetário


traduz-se por efeitos absolutamente maciços que transformam o ambiente
e as condições de vida, e afetam todos os seres vivos; de fato, a idEia de
desordem é não só ineliminável do universo, mas também necessária para
concebê-lo em sua natureza e evolução. (MORIN, 1966, p. 200).

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Nesse contexto, vale a pena analisar o poema de Chico Buarque de
Holanda para compreender melhor o problema ordem-desordem.

O que será que será...


Que andam suspirando pelas alcovas?
Que andam sussurrando em versos e trovas?
Que andam combinando no breu das tocas?
Que anda nas cabeças, anda nas bocas?
Que andam acendendo velas nos becos?
Que estão falando alto pelos botecos?
Que gritam nos mercados, que com certeza
Está na natureza?
Será que será
O que não tem certeza nem nunca terá?
O que não tem tamanho?

O que será que será
Que vive nas ideias desses amantes?
Que cantam os poetas mais delirantes?
Que juram os profetas embriagados?
Que está na romaria dos mutilados?
Que está na fantasia dos infelizes?
Que está no dia-a-dia das meretrizes?
No plano dos bandidos, dos desvalidos?
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência nem nunca terá?
O que não tem censura nem nunca terá?
O que não faz sentido?

O que será que será


Que todos os avisos não vão evitar?
Porque todos os risos vão desafiar?
Porque todos os sinos irão repicar?
Porque todos os hinos irão consagrar?
E todos os meninos vão desembestar?
E todos os destinos irão se encontrar?
E o mesmo Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo.

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Devemos notar, em primeiro lugar, a existência de uma “ordem” au-
toritária que quer inibir a “desordem”, mas não consegue. A desordem,
inicialmente, apenas suspira e sussurra. Ganha as cabeças e as bocas.
Passa a uma contundência maior acendendo velas, falando alto nos bote-
cos e gritando. O poeta prossegue afirmando que seu avanço ocorre por
estar na ordem natural, embora não disponha de nenhuma certeza. Quem
são os sujeitos desse avanço? Os filhos da desordem: poetas delirantes,
profetas embriagados ou mutilados, infelizes, meretrizes, bandidos e
desvalidos. Para a ordem estabelecida esta ação subversiva não admite
censura, não tem decência e nunca terá.
Continua o poeta a afirmar que esta “desordem” com a qual a ordem
não dialoga ganha uma força que resiste aos avisos que a não poderão
evitar, faz movimentar os hinos, os risos e desembestar as crianças.
Como avanço desta luta, os destinos vão se encontrar, o Padre Eterno
vai abençoar o inferno que, embora não tenha vergonha nem governo,
tem sentido e abre espaço para o diálogo ordem-desordem, violentos-
violentados. Alguns analistas detectam fenômeno semelhante entre nós.
Há um projeto que indevidamente vamos chamar de projeto lum-
pensinato, mas que talvez melhor fosse considerado como projeto dos
marginalizados e dos desvalidos. Nesse projeto, andam todos aqueles
que, de algum modo, foram lesados em sua possibilidade de prosseguir,
foram roubados enquanto trabalhadores, desrespeitados em sua dignidade
e que em função desses fatores perderam o sentido da vida. Violentados
tornaram-se violentos até em relação àqueles que deveriam amar. Contra
esse exército de estropiados, a prática da punição não resolve, até porque
os repressores não conseguem ficar imunes à contaminação da dor do
oprimido e não possuindo a sua força de resistência, desestruturam-se e
passam a ter comportamentos fortemente geradores de mais violência. A
benção do Padre Eterno, pela nossa leitura, representa o início do diálogo
ordem-desordem e sem nenhuma imposição, porque a desordem, força
inovadora, certamente continuará não tendo governo, vergonha ou juízo.
Agarrar-se a estes fundamentos mencionados e preservados nas
circunstâncias seria simplesmente transformar-se numa ordem injusta; de
fato, uma verdadeira desordem, e abandonar a marcha do exército dos
estropiados que lutam contra as forças aviltantes sem nenhuma certeza,
mas na esperança de um dia serem abençoados. Neste momento, esta-
mos tentados a afirmar que desconhecer a força da desordem e tentar
prosseguir em um esforço de construir sem ela, constitui imprudência, não
funciona e acarretará maiores danos ainda. A punição da desordem – em
si mesma violenta – como método para equacionar o problema não só
não faz sentido como o agrava. A tomada de consciência deste fato pode
ser vista na cidade do Rio de Janeiro, onde a desordem resistiu, deteve

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o processo de repressão e avança sobre ele, como se pode perceber
nas constatações que seguem:

• A morte violenta vem aumentando significativamente.


• A criação de pelotões especializados como o COBE não se tem
mostrado eficaz, pois são hospedeiros de uma ação violenta.
De fato, a romaria dos mutilados, em função da necessidade de
viver com dignidade, está descendo os morros, ocupando espaços,
aumentando sua força, como resposta à agressão que sofre no mundo
do trabalho, na discriminação educacional, na falta de moradia e até na
fome aviltante que os dizima. Se a repressão continuar, não haverá peni-
tenciária e prisões de todos os tipos suficientes. Por força da demanda,
os presídios encontram-se superlotados e a voz oprimida já passa pelas
grades e desestabiliza as forças que a querem desconhecer e isolar;
como acontece com o PCC.
Neste momento já aparece uma luz no fim do túnel com a criação
da Polícia Pacificadora em muitas favelas cariocas e o crescimento de
ações de educação popular, a partir deles e para eles. É estimulante a
afirmação de um favelado: “Agora sentimos que o policial é um dos nossos
e que se encontra aqui para nos ajudar e não nos reprimir”. Encontra-se
ainda muito distante a solução do problema, mas já é um bom início do
diálogo desordem-ordem.

Considerações finais
Constata-se que há um acelerado aumento da violência que se ex-
pande e penetra na igreja, escola e família e as perturba. Está pressuposto
que a simples repressão não detém tal violência e até a amplia. Neste
artigo, buscamos responder à questão: Pode a educação formal atual,
como praticada no Brasil, contribuir para a solução deste problema?
Considerando que não se trata apenas de um problema educacional,
embora ele esteja presente, a resposta à questão seria negativa. Por quê?
Porque, de fato, ver e tratar a realidade com uma visão disjuntiva é não
entendê-la, agredi-la e concorrer para o aumento da violência.
Esse conhecimento também simplificador desconhece a natureza do
real, “destrói” os conjuntos e só chega à “inteligência cega”.
... esta nova, maciça e prodigiosa ignorância, é ela mesma ignorada pelos
sábios. Estes, que não dominam, praticamente, as consequências das suas
descobertas, também não controlam intelectualmente o sentido e a natureza
da sua pesquisa (MORIN, s/d., p. 18).

A educação atual oferece certezas e promessas que não são cumpri-


das e, por isto, gera frustrações e agressividade. Esta educação não ensina

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o convívio com a incerteza, é mutiladora e torna-se, ela mesma, violenta e
violentadora, sem possibilidade de auxiliar no combate à violência.
Por fim, a educação atual, com base em um conhecimento simplifi-
cador e disjuntivo, não dá conta de resolver o conflito ordem-desordem,
que não pode ser tratado com uma visão compartimentada. O que a
ordem e desordem podem representar para o combate à violência só
ganha sentido quando encaradas juntas e como parte do real, porque “a
desordem e a ordem crescem uma e outra no seio de uma organização
que se complexificou” (MORIN, s/d., p. 92). Se esta educação não resol-
ve, existe uma que pode ajudar? Estamos certos que sim. A Educação
Complexa é uma das possibilidades.

Referências bibliográficas
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
_______. Meus Demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997a.
_______. O Método – 1. A Natureza da Natureza. 3. ed. Publicações Europa-
América, 1997b.
______. Cabeça Bem-Feita; repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
______. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez/
Brasília: Unesco, 2000.
______. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
ROSSI, Wagner G. Capitalismo e Educação. 2. ed. São Paulo: Editora Moraes,
1982.
SANTOS, Sheila Daniela Medeiros dos. Sinais dos Tempos: marcas da violência
na escola. Campinas: Autores Associados, 2002 (Coleção Educação Contempo-
rânea).
SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do Mundo. A metafísica do amor, a morte, a arte,
a moral, o homem e a sociedade. 3. ed. São Paulo: Brasil Editora S.A., 1959.

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Resenhas
Books Reviews
Reseñas

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O Messias-Profeta e os pobres: desa-
fios do evangelho de Lucas
The Prophet-Messiah and the poor: challenges
of the Gospel of Luke

El Profeta-Mesías y los pobres: desafíos del


Evangelio de Lucas

Paulo Roberto Garcia

Resumo
Resenha do Livro Lockmann, Paulo Tarso de Oliveira. Jesus, o Messias Profeta.
São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2011. 220p.

Abstract
Book review of Lockmann, Paulo Tarso de Oliveira. Jesus, o Messias Profeta.
São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2011. 220p.

Resumen
Reseña del libro Lockmann, Paulo Tarso de Oliveira. Jesus, o Messias Profeta.
São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2011. 220p.

Introdução
O presente livro do Revmo Bispo Paulo Lockmann inaugura uma nova
série das publicações da EDITEO, a série “Teses”. O objetivo dessa série
é de resgatar e socializar o resultado de pesquisas doutorais. As teses de
doutorado no passado estavam relegadas às prateleiras dos programas
de pós-graduação e, em alguns casos, ganhavam espaço em algumas
bibliotecas de faculdades. Quando surgia a oportunidade de publicação,
para tornar o texto mais agradável à leitura, as teses sofriam mutilações
e adaptações. Com isso, uma parte significativa da pesquisa (em espe-
cial nas indicações das notas de rodapé) se perdiam. Com o surgimento
dessa nova série, temos acesso à pesquisa com toda a profundidade e
abrangência definida pelo pesquisador.
Jesus, o Messias Profeta é um olhar aprofundado que cobre pratica-
mente todo o evangelho de Lucas, tendo como ponto de partida os relatos
da grande viagem encontrados em Lucas 9.51-19.48. Esse estudo é o
resultado da tese de doutorado concluído pelo Bispo Lockmann, intitulada
“A marcha do Messias-Profeta: Um estudo do relato da viagem de Jesus
à Jerusalém no Evangelho de Lucas” defendida na PUC – Pontifícia Uni-
versidade Católica – do Rio de Janeiro.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 185-187, jul./dez. 2011 185

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O livro: uma visão geral
O livro está organizado em três capítulos que organizam a trajetória
de pesquisa.
O primeiro capítulo é intitulado: O Evangelho de Lucas e o Lugar do
Interlucano. Ele abre a discussão acerca do lugar e das inter-relações
do grande bloco da viagem de Jesus à Jerusalém, que o autor chama de
interlucano, com o conjunto do evangelho. Deste modo, ao mesmo tem-
po em que estabelece os vínculos entre a viagem e o evangelho, esse
capítulo mapeia os temas principais do início do evangelho, analisando
os relatos da infância, o ministério do Batista e, como não poderia deixar
de lado, um olhar sobre as bem-aventuranças de Lucas.
O segundo capítulo é intitulado: O Interlucano – A narrativa da via-
gem a Jerusalém – Lc 9.51-19.48. Nele temos o cerne da pesquisa e o
desenvolvimento da tese: o interlucano como organizador do conceito do
Messias-Profeta. Para isso o autor analisa e apresenta as ocorrências
do verbo poreuomai (caminhar/marchar) nesse grande bloco e o define
como o fio condutor dessa marcha do Messias-Profeta. Se a tese analisa
essa marcha, em cada etapa dela surge um tema corolário que são os
pobres como objeto dessa ação messiânica-profética. Esse é um tema
recorrente em todas as unidades.
O terceiro capítulo é intitulado: A Morte do Messias-Profeta (Lc
13.31-35). Esse capítulo encerra a pesquisa abordando essa perícope
central nessa marcha do Messias-Profeta e o confronto com Jerusalém,
a cidade que mata os profetas. A relação Messias-Profeta é fundante na
medida em que a esperança na Parusia do Filho do Homem une essas
duas categorias.
Finalmente, há um Anexo intitulado Status questiones que na tese
era o primeiro capítulo e onde encontramos um balanço geral das pes-
quisas realizadas no evangelho de Lucas. Nele encontramos uma vasta
bibliografia comentada e organizada que oferece uma visão da caminhada
da pesquisa em torno do evangelho de Lucas.

A pesquisa exegética – um caminho


A metodologia exegética, paixão de todos os pesquisadores da Bí-
blia, é sempre um ponto que chama a atenção em todas as investigações
científicas. O Método Histórico Crítico, que durante muito tempo foi quase
um dogma na pesquisa do texto bíblico, hoje passa por um período de
crítica. Há, inclusive, quem decrete a falência do método. Se por um lado
devemos concordar com a crítica de que os seus pressupostos, ao priori-
zarem a diacronia, tendem a se fixar nas tradições mais antigas, muitas
vezes desejando se aproximar ao máximo do Jesus Histórico, excluindo,
com isso, a memória de fé das diversas comunidades do cristianismo

186 Paulo Roberto Garcia: O Messias-Profeta e os pobres: desafios do evangelho de Lucas

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primitivo, por outro lado, essa posição crítica quanto ao método e seus
pressupostos, não invalida os seus diversos passos e a contribuição que
eles podem dar à pesquisa do texto. Aqui destacamos a contribuição
desse livro. A crítica da redação (um dos passos metodológicos do Mé-
todo Histórico Crítico) é base para reconstruir a intenção que formatou o
evangelho como o conhecemos hoje. Ao invés de identificar e destacar
o tipicamente lucano para, em um processo de exclusão da interferência
redacional, encontrar as tradições primitivas que foram recebidas pelo
evangelista, a pesquisa nesse livro valoriza e tem seu foco no tipicamente
lucano. A redação é o objeto da pesquisa. Nela encontramos o sentido.
O processo redacional aponta para, em uma percepção polissêmica, a
possibilidade de interpretação do relato/evangelho. Ao mesmo tempo,
uma vez que a redação é o objeto, a atenção recai sobre a realidade
da comunidade. A ênfase aos pobres é constante no texto. Com isso, a
abordagem exegética nos aproxima da realidade social da comunidade
lucana, seus desafios e sua fé.

O Messias-Profeta - desafio para a caminhada da comunidade


Ao final dessa apresentação, cabe destacar que na grande viagem de
Jesus à Jerusalém – bloco específico de Lucas e objeto dessa pesquisa
– encontramos um confronto de expectativas teológicas. Em um mundo
povoado pela fé em um Messias Rei, a viagem à Jerusalém, descrita
por Lucas, descreve um Messias Profeta, crítico da realidade social e
anunciador de um novo momento em que a sorte daqueles que sofrem é
assumida por Ele, Jesus, e na Sua marcha à Jerusalém o enfrentamento
dos poderes e a morte não são o último capítulo dessa história, e sim
apenas o ponto de partida da caminhada missionária dos participantes
dessa comunidade.

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O futuro da criação
The future of creation

El futuro de la creación
Leonardo Boff

RESUMO
Resenha do livro MOLTMANN, Jürgen; BASTOS, Levy. O futuro da criação. Com
prefácio de Leonardo Boff e posfácio de Luiz Longuini Neto. Rio de Janeiro:
Instituto Mysterium / Mauad X, 2011. 207p.

ABSTRACT
Review of the book MOLTMANN, Jürgen; BASTOS, Levy. O futuro da criação.
Com prefácio de Leonardo Boff e posfácio de Luiz Longuini Neto. Rio de Janeiro:
Instituto Mysterium / Mauad X, 2011. 207p.

RESUMEN
Reseña del libro MOLTMANN, Jürgen; BASTOS, Levy. O futuro da criação. Com
prefácio de Leonardo Boff e posfácio de Luiz Longuini Neto. Rio de Janeiro:
Instituto Mysterium / Mauad X, 2011. 207p.

Jürgen Moltmann, da Igreja Reformada alemã, talvez seja atualmente


o teólogo mais representativo da cristandade. Possui uma vasta obra que
recobre os tratados principais da teologia.
A importância dele se deriva de dois fatores principais: em primeiro
lugar, sabe redizer o legado da tradição cristã em geral e em sua versão
evangélica em especial, na linguagem do tempo atual, complexo e plu-
rivalente. Não apenas rediz em nova linguagem, mas alarga o horizonte
clássico e introduz correções quando necessárias. Prolonga a tradição
com grande conhecimento das fontes e, ao mesmo tempo, inova.
Em segundo lugar estabelece um bem fundado diálogo com as
correntes contemporâneas de pensamento seja humanístico seja científi-
co. Famosa é sua Teologia da Esperança surgida como reação positiva à
grandiosa obra de Ernst Bloch O Princípio Esperança. É um dos poucos
teólogos que dialoga, com conhecimento de causa, com a questão ecoló-
gica mostrando a cumplicidade do cristianismo com a crise ecológica e,
ao mesmo tempo, as contribuições positivas que pode trazer.
Foi um dos primeiros teólogos europeus a reconhecer a Teologia
da Libertação como uma contribuição original e positiva vinda da perife-
ria, mas direcionada a toda a Igreja. A causa dos pobres e da justiça é
inerente ao evangelho de Jesus.

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É neste contexto que Jürgen Moltmann reflete o tema clássico dos
reformadores, o da Justificação. Mas não se pense que faça um discurso
convencional de viés apologético. Ao contrário. Reconhece a importância
do tema para toda e qualquer teologia cristã mas que ganhou centralidade
com Lutero e com os demais reformadores. No processo da Justificação
emerge o mistério da Trindade, a situação real do ser humano, decaída
e necessitada de resgate, a gesta redentora do Crucificado e a ação do
Espírito no refazimento da nova criação.
A cruz é chave para entender a ação da Trindade. A cruz é expressão
do amor trinitário que, através do Filho, vai ao ponto de participar da dor
do mundo e ir até ao inferno da solidão e da morte por estar junto dos
seres humanos acorrentados pelo pecado e então libertá-los.
O pecado invadiu todas as dimensões da vida, a pessoal, a social e
a cósmica. Ele representa uma maneira de destruição da vida em todas
as suas formas, especialmente atualmente, como degradação da nature-
za. A Justificação se estende a todas estas áreas. Critica Lutero por ter
acentuado apenas o lado do sujeito e não ter percebido o social, a socie-
dade feudal em decomposição e a relevância da revolta dos camponeses.
A Justificação é reconciliação dos pecadores mas também das vítimas
que ele fizeram com seus pecados, dimensão que  a Teologia da Li-
bertação acentuou e da qual Moltmann fez uma recepção criativa. Sem
essa dimensão das vítimas a Justificação não aparece como reconci-
liação integral. Ela é universal e envolve a todos, os culpados e suas
vítimas. Somente assim se alcança o que a Justificação visa que é a
restituição da criação original de Deus. A integridade destruída é desta
forma restaurada. Aqui entra o perdão como categoria central, perdão
a partir do reconhecimento do pecado e da culpa. Ele não permite
que se fique preso ao passado, mas cria uma abertura para o futuro.
O presente livro – O futuro da criação – é uma pareceria entre Jürgen
Moltmann e um de seus discípulos e colaboradores, o teólogo brasileiro
Levy da Costa Bastos.
Moltmann reúne quatro estudos, cada um de grande atualidade. No
primeiro discute a teoria da evolução de Darwin. Aceitando sua visão
de fundo, afasta-se dela, no entanto, ao sustentar, como tantos o fazem
atualmente vindos das ciências da vida e da Terra, que a lei fundamental
do universo não é a vitória do mais apto, portanto, da competição, mas
a colaboração de todos com todos, garantindo assim a perpetuidade da
biodiversidade e a coevolução de todos.
No capítulo segundo aborda um tema espinhoso do Juízo final so-
bre o qual os teólogos têm pouco a dizer. Distancia-se da versão con-
vencional católica e medieval do dies irae e da moderna evangélica, da
aniquilatio mundi, para afirmar a instauração da justiça criativa de Deus

190 Leonardo Boff: O futuro da criação

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em favor das vítimas e de uma justiça reparadora para os causadores
das vítimas que serão transmutados pelo fato de serem redimidos junto
com suas vítimas.
No terceiro capítulo sobre a Teologia Política ressalta a responsa-
bilidade dos cristãos face à situação política deste mundo e se pergun-
ta em que medida se realizam ou não os bens do Reino e como são
tratados os pobres. Mostra os pontos de contato e de convergência
entre a Teologia Política e a Teologia da Libertação latino-americana.
Especial interesse ganha o quarto capítulo sobre o direito à resistência
face a um mundo marcado por injustiças, guerras e violência generalizada.
Aqui Moltmann revela grande coragem ao enfrentar diretamente as ques-
tões polêmicas da resistência, da não-violência ativa e da antiviolência
contra uma violência primeira. Face à tirania todo cidadão, afirma, tem o
dever da resistência ativa. Em casos extremos, por amor às vítimas e por
não fazer-se cúmplice dos crimes, às vezes, não lhe resta outra alternativa
senão a resistência violenta. É o “engajamento amargo” que, ao assassinar
o tirano, não dispensa o reconhecimento da culpa, pois tal ato não deixa
de ser um assassinato para o qual, no entanto, há a absolvição.
Diz claramente: nossa questão básica não é quanto podemos avançar
no progresso, mas em que medida nos é possível chegar a uma justiça
que seja maior que a violência reinante.
De sua experiência de guerra e de prisioneiro por três anos, tirou
as seguintes conclusões pessoais que cabe aqui referir por sua determi-
nação e sinceridade: “primeira: nunca mais serviço militar: ‘Viver a vida
sem armamentos’ (melhor é ser executado por ter rejeitado o serviço
militar, do que tombar em Stalingrado!); segunda: esteja preparado para
tirar a vida de um tirano, se você tiver forças e oportunidade para isso”.
Como se infere, estamos diante de um teólogo de primeira grandeza,
corajoso e determinado, cujo pensamento merece ser conhecido, pois é
inspirador para a nossa própria realidade.
A segunda parte, maior, é a contribuição de Levy Costa Bastos.
Talvez seja a melhor introdução ao pensamento de Jürgen Moltmann.
Passam em revista os grandes temas do autor alemão, sempre com muito
conhecimento da obra e com o rigor dos conceitos. Vai da Justificação,
da teologia da cruz, da Santíssima Trindade, da cristologia centrada no
Crucificado, do Espírito Santo como o motor da nova criação até culminar
no Reino da Trindade.
Somos gratos ao Levy Costa Bastos por iluminar nossos problemas
brasileiros e latino-americanos com as fecundas chaves de leitura de
Jürgen Moltmann. Todos saímos admirados e enriquecidos.

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Um olhar sobre a exclusão da
população em situação de rua
A look at the exclusion of the homeless

Una mirada a la exclusión de las personas sin hogar


Helmut Renders

RESUMO
Resenha do livro BARROS, Alcides Alexandre de Lima. População em situação
de rua: um olhar sobre exclusão. São Paulo: Arteliterária, 2011. 248 p.

ABSTRACT
Review of the book BARROS, Alcides Alexandre de Lima. População em situação
de rua: um olhar sobre exclusão. São Paulo: Arteliterária, 2011. 248 p.

RESUMEN
Reseña del libro BARROS, Alcides Alexandre de Lima. População em situação
de rua: um olhar sobre exclusão. São Paulo: Arteliterária, 2011. 248 p.

Nos últimos trinta anos tem-se falado mais e mais em pastoral urbana.
É o mérito de Alcides Alexandre de Lima Barros por ter contribuído para
esta discussão com um estudo inédito a partir das suas experiências no
trabalho com a população em situação de rua na cidade de São Paulo.
Em todas as partes da sua publicação, o autor conduz o/a leitor/a a
uma perspectiva a partir das particularidades dessa população e desenvolve
seu argumento em cinco capítulos. Em A problemática das ruas (p. 27-58),
o autor problematiza os conceitos usados para descrever esta população,
contextualiza o debate na história e especifica sua proposta através do
“mapa da exclusão” de São Paulo. Segue O poder público e o povo em
situação de rua (p. 59-86), capítulo importante para descrever o espaço
legal do trabalho proposto e desenvolvido. Destacamos a importância desse
capítulo para a construção da filosofia do trabalho junto à essa população:
a contribuição cristã ou eclesiástica é vista como parte de um esforço maior
da sociedade civil, tanto pelo poder governamental, como pela iniciativa
privada, inclusive pelas ONGs (p. 67-70). Explicitamente são mencionados
também os direitos da população em situação de rua (p. 75-79) e forma
e atuação da assistência social em São Paulo (p. 80-87). Com introdução
da questão dos direitos, o autor prepara a proposta de enfatizar no tra-
balho, em primeiro lugar, a promoção da cidadania, que vai além daquilo
que a assistência social oficial oferece. No próximo capítulo, A trajetória

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da exclusão: o circuito e as opções (p. 87-130), mostra-se mais uma vez
a capacidade do autor de se entender em rede com outras iniciativas,
desta vez, especificamente religiosas, tanto evangélicas como católicas e
espíritas, mas também municipais e comerciais. Em tudo se percebe que o
autor fala com profundo conhecimento do trabalho realmente desenvolvido
pelas instituições diversas. No quarto capítulo, O perfil da população em
situação de rua (p. 131-158), o mais curto, entretanto, para mim, o mais
tocante e alarmante, conhecemos o cotidiano dessa população a partir de
descrições e estatísticas; um trabalho minucioso e de grande valor para
propor ações e programas. Muito interessante também o quinto capítulo,
A religiosidade dentro de uma situação limite (p. 159-184), que mais uma
vez oferece perspectivas e dados valiosos especialmente para igrejas que
entendem o ser humano tanto como ser social e cidadão e também como
ser cultural e religioso, com direito de acesso à religião e, especialmente, no
momento do primeiro contato, o direito de acesso a uma oferta próxima do
seu jeito de viver. Segundo o nosso ver, o autor abre, especialmente com
este capítulo, o conceito da cidadania pelo aspecto do direito à religião,
contribuição única e raramente discutida quanto à população em situação
de rua. E não para por aí. Nos Anexos encontramos uma entrevista, o
texto da lei referente à população em situação de rua, exemplos da produ-
ção cultural (poesia) e religiosa (canções usadas nas celebrações) como
um mapeamento de lugares que oferecem alimentação, hospedagem e,
finalmente, um glossário, não dos termos teológicos da teologia urbana,
mas das palavras usadas pelos/as moradores/as em situação de rua. É
nesta combinação de relatos do cotidiano, do mapeamento de iniciativas,
de estatísticas e descrições da vida real dessa população e do trabalho
desenvolvido junto com ela que o livro representa um gênero próprio, mul-
tifacetário, prático e muito concreto.
Pela natureza dessa obra, não esperávamos muita ênfase numa
fundamentação bíblico-teológica, porém, gostaríamos de indicar o nosso
interesse numa continuação nessa direção. Quais são os eixos bíblicos
que dão sustento à proposta tão única e necessária de estar como igreja
ao lado do povo em situação de rua? Quais são as ênfases teológicas
que, eventualmente, impedem ou facilitam este tipo de ação? Quais são
os impulsos bíblico-teológicos que por sua vez possam aprofundar o “olhar
sobre a exclusão” (subtítulo do livro) por introduzir aspectos da existência
humana que até possam ir além das experiências especialmente consi-
deradas pelo autor?
Aconselhamos que todos que trabalham ou querem trabalhar com a
população em situação de rua estudem este livro e entendam a neces-
sidade da colaboração entre Estado, ONGs e Igreja para o bem dessa
população, sem perder de vista uma contribuição importante da Igreja

194 Helmut Renders: Um olhar sobre a exclusão da população em situação de rua

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em lembrar que a recuperação do ser humano passa, muitas vezes,
pelo atendimento adequado às suas necessidades religiosas. Que isso,
nesta proposta, é desenvolvido com uma ampla sensibilidade de não
ferir a dignidade humana e seu direito à escolha, representa um belo
testemunho cristão.

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Documentos e Declarações
Document and Declarations
Documentos y Declaraciones

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Uma “mulher metodista pregadora”
em 1775: capaz de mobilizar uma
cidade inteira, mas – esquecida

A “woman Methodist preacher” in 1775: capable


of mobilizing an entire city, but – forgotten

Una “predicadora metodista” en 1775: capaz


de movilizar a toda una ciudad, pero – olvidada

Helmut Renders

A tarefa contínua de valorizar o ministério feminino, pastoral e leigo


A história do papel da mulher no movimento metodista passou por
três grandes fases: no século 18, acompanhamos a conquista do re-
conhecimento das suas atuações vanguardistas. Depois, no século 19,
somos confrontados pelo seu progressivo silencionamento nas igrejas
metodistas majoritárias, a Igreja Metodista Wesleyana da Inglaterra e
a Igreja Metodista Episcopal nos Estados Unidos e, a partir do início
do século 20, acontece uma reavaliação do seu papel fundamental e
finalmente seu reconhecimento pleno enquanto o ministério pastoral
feminino na década de 1930 do século passado.
Até 1930 a história do papel da mulher no metodismo brasileiro
acompanha estas tendências. Assim, a Igreja Metodista Episcopal che-
gou ao Brasil sem a bandeira da pastora metodista, mas, por outro lado,
com o modelo da professora metodista, inclusive, no papel da liderança
como diretoras de instituições de educação. Assim, já nas discussões
que levaram à autonomia em 1930 e a consequente criação da Igreja
Metodista do Brasil, ou seja, quando se formulava e discutia as carac-
terísticas da igreja nacional, o tema esteve presente e foi até a votação.
O que na época não ganhou a maioria necessária, passou pela criação
de uma escola de diaconisas na década de 1950 e tornou-se realidade
uma geração depois em 1970.
Entretanto, apesar desses avanços, houve paralelamente movimentos
de silencionamento da importância da mulher metodista (RIBEIRO, 2009),
ou seja, apesar do fato da existência do ministério pastoral feminino na

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 199-204, jul./dez. 2011 199

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Igreja Metodista desde 1970, precisa-se continuamente lembrar-se da sua
história1, explicar suas bases bíblico-teológicas2 e refletir sobre as suas
contribuições pastorais3.
Isso é por que as igrejas majoritárias brasileiras, como a Igreja Ca-
tólica, uma boa parte das igrejas da missão como as comunidades batis-
tas e a maioria das igrejas presbiterianas, inclusive as igrejas clássicas
pentecostais como a Igreja Assembleia de Deus, não institucionalizaram o
ministério pastoral feminino pleno. Para os metodistas isso deveria servir
como uma alerta e, consequentemente, ser assumido como sua vocação
contínua: o que não passa pela matriz religiosa do país, ou seja, o que
não é ancorado na cultura precisa ser assunto contínuo do discipulado,
da catequese e da educação cristã para se instalar (no caso de novos
membros, especialmente aqueles recebidos por assunção de votos) e
permanecer com convicção e firmeza.

O problema das fontes enquanto à participação da mulher metodista


nas obras do próprio Wesley
Há uma linha de pesquisa metodista que destaca o caráter “progres-
sivo” de John Wesley enquanto à participação da mulher metodista no
movimento. Mais correto seria dizer: Wesley apreendeu com as mulheres:
enquanto os homens leigos conquistaram seu espaço no movimento já
na década de 1740 do século 18, as mulheres precisavam esperar até a
década de 1770 (do século 18) 4. Em seguida documentamos o impacto
dessa decisão e – o silêncio de Wesley... Trata-se de uma notícia de
uma mulher metodista pregadora do ano 1775, numa revista não religiosa
inglesa chamada Gentleman’s Magazine:

Gentleman’s Magazine, 08-09-1775*


1
Perspectivas históricas veja Reily (1989; 2ª edição 1997), Mesquita (2001; 2002, p. 99-
105), Soares (2005, p. 35-50), Silva (2008, p. 25-37) e Ribeiro (2009).
2
Perspectivas teológicas veja Perreira (2003, p. 188-200), Boelher (2008, p. 107-122) e
Renders (2010b, p. 91-106; 2011, p. 100-115).
3
Perspectivas pastorais veja Coutinho (2005, p. 137-150), Paula (2005, p. 121-136);
Renders (2010a, p. 296-301), Ribeiro (2005, p. 151-160).
4
Isso se repetiu no metodismo brasileiro no século 20.

200 Helmut Renders: Uma “mulher metodista pregadora” em 1775

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Como tradução propomos: “Uma mulher pregadora, que acompanhou
o sr. John Wesley a Plymouth, foi até a [praça da] Parada, e juntou a
maior multidão de pessoas já vista lá. A novidade de uma pregadora-
-metodista [woman-Methodist-preacher] tinha atraído a metade [da popula-
ção] de Plymouth para escutá-la”. Quem procura comentário qualquer nas
obras de John Wesley sobre esta ocasião, especialmente na suas cartas
ou no seu diário, vai se descepcionar. Wesley documenta ter pregado no
respectivo dia duas vezes em Plymouth (WESLEY, [08/09/1775 Diário],
1983, p. 465)5, mas não menciona a certamente memorável cena – que
acabou ser tão inesquecível no imaginário inglês que foi capaz de fazer
seu caminho até nas crônicas da Inglaterra (!) - , nem o fato de ter sido
acompanhado por uma pregadora metodista neste dia. Isso surpreende,
por que naquela época ele já tinha defendido publicamente o ministério
pastoral feminino, visto por ele como extraordinário enquanto aos cos-
tumes anglicanos, mas, tão característico para os metodistas como o
ministério “extraordinário” da pregação leiga por homens. Assim afirma
numa carta para Mary Bosanquet, primeira pregadora metodista aceita
oficialmente por Wesley:

Creio que a força da causa repousa aí – no fato de teres um chamado extra-


ordinário. Estou convencido de que o tem cada um dos nossos pregadores
leigos; de outro modo não poderia aprovar sua pregação de modo algum.
É claro para mim que toda a obra de Deus chamada metodismo é uma dis-
pensação extraordinária da sua providência. Portanto, não me admiro que
diversas coisas aconteçam aí que não se encaixam nas regras habituais de
disciplina... (WESLEY, 1960, vol. 5 [13/071771], p. 257).

Há certa probabilidade que a pregadora que virou assunto nacional


era a própria Mary Bosanquet, mas, infelizmente, não sabemos disso...
E nós hoje? Reparei-me num encontro de mulheres da 6ª Região
Eclesiástica que precisamos de exercícios contra o esquecimento. Nesta
ocasião, mulheres contaram as histórias de mulheres importantes para as
suas vidas. Demorou até às 2h da madrugada... Tantas histórias, cheias
de vida, de drama, de atitude... tanto impacto... Com certeza há também
hoje em dia muitas histórias memóraveis de mulheres metodistas atuando
nas igrejas locais, em ministérios distritiais, regionais e nacionais, na igreja
e na vida pública, lembradas somente pelas pessoas que as diretamente
testemunharam. Estas testemunhas desaparecem em nossa memória, da

5
Eu agradeço Dr. Randy Maddox pela ajuda na a identificação da data no diário.
* Agradecemos pelo direito de reprodução a Bridwell Library da Perkins School of Theol-
ogy, Southern Methodist University, Dallas, Texas, EUA.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 199-204, jul./dez. 2011 201

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mesma forma como o impacto deixado pela mulher metodista pregadora
no dia 9 de setembro de 1775. Mas, não precisamos do seu exemplo de
fé, amor, esperança, discernimento, coragem e liderança para orientar
as futuras gerações?

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SILVA, E. M. “Gênero, religião, missionarismo e identidade protestante norte-
-americana no Brasil ao final do século XIX e inícios do XX”. In: Mandrágora, vol.
14, p. 25-37 (2008). Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistas-
-metodista/index.php/MA/article/view/694/695 >. Acesso em: 20 ago. 2011.
SIMONE, M. I. “A participação das mulheres no movimento metodista nascente:
as extraordinárias irmãs metodistas”. In: Caminhando, vol. 8, n. 2, p. 57-65 (jul./
dez. 2003). Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/
index.php/CA/article/view/1418/1441 >. Acesso em: 20 ago. 2011.
SOARES, Z. L. “Trinta anos de ministério pastoral feminino na Igreja Metodista”.
In: RENDERS, H. (org.). Vocação pastoral em debate: Inclusive reflexões sobre
30 anos do ministério pastoral feminino na Igreja Metodista. São Bernardo do
Campo: Editeo, 2005, p. 35-50.
S.N. “8.” In: Gentlemans´s Magazine, [secção: Historical Cronical]” vol. 9, p. 428c
(out. 1775).
WESLEY, J. The Letters of Rev. John Wesley, A.M., sometime fellow of Lincoln
College, Oxford. TELFORD, John (ed.), vol. 1-8. London: The Epworth Press,
1960. (1.ed.: London: The Epworth Press, 1931).
WESLEY, J. The Bicentennial Edition of Works of John Wesley, vol. 22 BAKER,
Frank (editor geral). Oxford: Clarendon Press, 1983.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. 199-204, jul./dez. 2011 203

17 helmut.indd 203 28/2/2012 08:31:42


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Registros

Records

Registros

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Relação de autores e autoras
Notes on contributors

Relación de autores y autoras

Dra. Blanches de Paula


Pastora da Igreja Metodista em Santa Isabel, SP. É professora da Univer-
sidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Teologia da
Igreja Metodista e sua coordenadora do Curso Teológico Pastoral
E-mail: blanches.paula@metodista.br

Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro


Pastor da Igreja Metodista em Vila Floresta, Santo André, SP. É professor
da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Teo-
logia da Igreja Metodista e no Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Religião.
E-mail: claudio.ribeiro@metodista.br

Ms. Daniel Augusto Schmidt


Doutorando em Ciências da Religião pela UMESP e professor no Instituto
Cristão de Estudos Contemporâneos.
E-mail: daniel34@uol.com.br

Dr. Edemir Antunes Filho


Pastor na Igreja Metodista em Vila Nivi, SP. Professor do Instituto Betel
de Ensino Superior, SP.
E-mail: edantfil@hotmail.com

Ms. Elena Alves Silva


Pastora Metodista na Igreja em Jardim Colorado - 3ª RE. Professora e
Coordenadora do Núcleo de Formação Cidadã da Universidade Metodista
de São Paulo (UMESP). Doutoranda em Ciências da Religião na UMESP.
E-mail: elena.alves@metodista.br

Dr. Elias Boaventura


Professor do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade
Metodista de Piracicaba, SP (UNIMEP).
E-mail: eboavent@unimep.br

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Ms. Elizabete Cristina Costa Renders
Pastora Metodista. Professora da Universidade Metodista de São Paulo
(UMESP) na Faculdade de Humanidades e Direito, responsável pela Coor­
denadoria de Extensão e Inclusão nesta mesma instituiçao.
E-mail: elizabete.renders@metodista.br

Dr. Helmut Renders


Pastor nomeado para a Igreja Metodista em Rudge Ramos, São Bernardo
do Campo, SP. Professor, Secretário do Centro de Estudos Wesleyanos e
Coordenador da Editora Editeo da Faculdade de Teologia da Universidade
Metodista de São Paulo (UMESP).
E-mail: helmut.renders@metodista.br

Ms. Hideíde Brito Torres


Pastora metodista, escritora, jornalista, mestre em Comunicação Social
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
E-mail: hideide@gmail.com

Ms. Jéferson Luis de Azeredo


Professor na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) e na
Universidade Barriga Verde (UNIBAVE).
e-mail: jeferson@unesc.net

Dr. Leonardo Boff


Teólogo e escritor.
E-mail: lboff@leonardoboff.com

Dra. Margarida Fátima Souza Ribeiro


Pastora da Igreja Metodista em Santa Isabel, SP. É professora da Univer­
sidade Metodista de São Paulo (UMESP) na Faculdade de Teologia da
Igreja Metodista e coordenadora do Centro Otília Chaves.
E-mail: margarida.ribeiro@metodista.br

Dr. Paulo Roberto Garcia


Pastor da Igreja Metodista em Campos do Jordão, SP. É reitor e professor
da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista da Universidade Metodista
de São Paulo (UMESP) e professor no Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da UMESP.
E-mail: paulo.garcia@metodista.br

Ms. Renilda Martins Garcia


Pastora da Igreja Metodista. Doutorando em Educação na Pontifícia Uni­
versidade Católica de São Paulo, PUC-SP.
E-mail: renilda@metodista.org.br

208 Helmut Renders: Registros

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Dra. Suely Xavier dos Santos
Pastora Metodista. Professora da Universidade Metodista de São Paulo
(UMESP) na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista.
E-mail: suely.santos@metodista.br

Ms. Vera Luci Machado Prates da Silva


Pastora da Igreja Metodista, Mestre em Teologia Prática e doutoranda em
Ciências da Religião pela UMESP.
E-mail: velups@uol.com.br

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 209

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Pareceristas em 2011

Reviewers in 2011

Revisores y revisoras em 2011

Dra. Blanches de Paula


Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro
Dra Débora Barbosa Agra Junker
Ms. Edson Pereira Lopes
Dr. Fernando Bortolleto Filho
Dr. Helmut Renders
Dr. James Reaves Ferris
Dr. João Batista Santos
Dr. Josué Adam Lazier
Dr. José Carlos de Souza
Dr. Júlio Adam
Dr. Levy de Souza Bastos
Ms. Luciano José de Lima
Dr. Luís Wesley de Souza
Dr. Luiz Carlos Ramos
Dra. Magali de Nascimento Cunha
Dra. Margarida Fátima Souza Ribeiro
Ms. Marcelo da Silva Carneiro
Dr. Marcos Paulo Bailão
Ms. Marcus Oliver Throup
Ms. Nicanor Lopes
Dr. Paulo Ayres Mattos
Dr. Paulo Dias Nogueira
Dr. Rosa Gitana Krob Meneghetti
Dr. Rui de Souza Josgrilberg
Dr. Saulo Baptista
Dra. Suely Xavier dos Santos
Dr. Tércio Bretanha Junker
Dr. Tércio Machado Siqueira

210 Helmut Renders: Registros

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Normas para colaboração

A Caminhando é uma revista científica publicada semestralmente pela


Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Ela está
aberta para pesquisadores/as e docentes/as da área da Teologia e das
Ciências da Religião que possuam o grau de doutor ou mestre ou
estejam prestes a obtê-lo.

Apresentação de artigos
O texto poderá ter no máximo 25.000 caracteres com espaços (digita-
das em espaço duplo, fonte Times New Roman Times 12 ou equivalente,
margem 2,5 cm) incluindo-se notas e bibliografia. Os artigos submetidos
à revista Caminhando deverão ser nacionalmente inéditos e não estar,
no momento, sendo objeto de apreciação por quaisquer outros meios de
publicação impressa. A página de rosto deverá conter o título do artigo,
nome do autor, um resumo em português e, se for possível, também em
inglês e espanhol (no máximo 250 caracteres com espaços). Como infor-
mações sobre o/a autor/a solicitamos a titulação, a ocupação e o e-mail
do/a autor/a. Os artigos serão encaminhados para um/a parecerista, com
base nos quais o editor tomará a sua decisão. A remessa do artigo poderá
deve ser feita via Internet no portal da revista Caminhando:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Normas para rodapé e referências bibliográficas


As citações devem ser inseridas no corpo do texto, seguindo as for-
mas (Autor, ano) ou (Autor, ano, página) como no exemplo (WEBER, 1991,
p. 95). Se houver, do mesmo autor, mais do que um título citado, deve-se
acrescentar uma letra após a data, tal como no exemplo: (WEBER, 1991b,
p. 32). As notas de rodapé estão reservadas para informações comple-
mentares. A bibliografia ou referências bibliográficas, quando houverem,
devem ser colocadas no final do texto e obedecer à norma NBR 6023 da
ABNT, 2002. Seguem alguns exemplos:

Livro:

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 211

18registros.indd 211 28/2/2012 08:31:32


SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. Título da obra: subtítulo.
Número da edição se não for a primeira, Local de publicação, estado:
editora, data.
RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na
tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São
Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.
Artigo:
SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do artigo”. In: Título
do periódico, número da edição, páginas (data).
PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11,
n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletânea:
SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do capítulo”. In:
iniciais do nome seguidas do sobrenome do organizador. Título da cole-
tânea. Número da edição quando não for a primeira. Local de publicação,
Estado: editora, data.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pós-
graduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil:
afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referências da Internet:
Acresce-se, depois da citação do livro ou do artigo: Disponível em:
< link >. Acesso em: dia[s]/mês/ano (somente números).
RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the
Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910.
Disponível em: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rau-
suoft >. Acesso em: 20/03/2009.

212 Helmut Renders: Registros

18registros.indd 212 28/2/2012 08:31:32


Guides for contributors

Caminhando is an scientific journal published semesterly by the Faculty


of Theology of the Methodist University of Sao Paulo. It is open to resear-
chers and professors in the area of Theology and Religious Studies who
have a doctor’s or master’s degree or who are about to acquire one.

The presentation of articles


The text may have a maximum of 25,000 characters including spa-
ces (typed in double line spacing, Times New Roman font or equivalent,
with a margin or 2.5 cm) notes and bibliography included. The articles
submitted to Caminhando must be unpublished nationally and cannot be
under appreciation by any means of press publication at the time. The
title page must contain the article title, name of the author, an abstract in
Portuguese and, if possible, in English and Spanish also (in a maximum
of 250 characters including spaces). As information about the author we
request the author’s academic degree, occupation and e-mail address. The
articles will be submitted to an analyzer, and based upon his/her evaluation
the editor shall decide. The article may be submitted by internet on the
website of the Journal Caminhando:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Criterions for quotations and bibliographical references


The quotations must be inserted in the text body following the format
(Author, year) or (Author, year, page), e.g. (WEBER, 1991, p. 95). Existing
more than one title quoted by the same author, a letter must be added
after the date, e.g. (WEBER, 1991b, p. 32). The footnotes are reserved
for complementary information. A few examples on the rules above:

Book:
AUTHOR’S SURNAME, first name. Title of the book: subtitle. Num-
ber of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing
house, date.
RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na
tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São
Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 213

18registros.indd 213 28/2/2012 08:31:32


Article:
AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: Title of
the periodical, number of edition, pages (date).
PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11,
n. 17, p. 105-114 (2006).

Collection of articles:
AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: name
initials followed by organizer’s surname. Title of the collection of texts.
Number of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing
house, date.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e
pósgraduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil:
afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Internet references:
After the quoting of the book or article add: Available in:<link>. Access
in: day[s]/month/year (only numbers).
RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the
Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910.
Available in: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rausuoft
>. Access in: 20/03/2009.

214 Helmut Renders: Registros

18registros.indd 214 28/2/2012 08:31:32


Normas para colaboradores

Caminhando es una revista cientifica publicada semestralmente por


la Facultad de Teología de la Universidad Metodista de São Paulo. Está
abierta para investigadores/as y docentes del área de Teología y Cien-
cias de la Religión que posean el grado de doctor o máster, o que estén
próximos de obtenerlo.

Presentación de artículos
El texto podrá tener como máximo 25.000 caracteres con espacios
(digitados a doble espacio, tipografía Times New Roman 12 o equivalente
y márgenes de 2,5 cm) incluyendo notas y bibliografía. Los artículos so-
metidos a la revista Caminhando deberán ser nacionalmente inéditos y no
estar, siendo objeto de apreciación por ningún otro medio de publicación
impreso. La portada deberá contener el título del artículo, nombre del
autor, un resumen en portugués y, caso sea posible, también en inglés y
español (con un máximo de 250 caracteres con espacios). Solicitamos,
como informaciones sobre el/la autor/a, la titulación, la ocupación y el
e-mail. Los artículos serán enviados a un/a parecerista, basado en el/la
cual el editor
tomará su decisión. La remesa del artículo se podrá hacer vía portal
de la revista on-line:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Normas para notas al pie y referencias bibliográficas


Las citaciones deben figurar en el cuerpo del texto, siguiendo las
formas (Autor, año) o (Autor, año: Página) como en el ejemplo (WEBER,
1991, p. 95). Caso haya más de un título citado del mismo autor, se debe
añadir una letra después de la fecha, tal como en el ejemplo: (WEBER,
1991b, p. 32). Se deben reservar las notas al pie para informaciones
complementarias.
La bibliografía o referencias bibliográficas, caso existan, se deben
colocar al fin del texto y seguir la norma NBR 6023 de la ABNT, 2002. A
continuación, algunos ejemplos:

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 215

18registros.indd 215 28/2/2012 08:31:33


Libro:
APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. Título de la obra:
subtítulo. Número de la edición en caso de no ser la primera, Lugar de
publicación, estado: editora, año.
RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na
tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São
Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Artículo:
APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del artí-
culo”. In: Título del periódico, número de la edición, páginas (año).
PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11,
n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletánea:
APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del capí-
tulo”. In: iniciales del nombre seguidas del apellido del organizador. Título
de la coletánea. Número de la edición en caso de no ser la primera. Lugar
de publicación, Estado: editora, año.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pós-
graduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil:
afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referencias de Internet:
Añádase, después de la citación del libro o del artículo: Disponible
en: < link >. Acezado a: día[s]/mes/año (solamente números).
RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the
Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910.
Disponible en: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rausuoft
>. Acezado a: 20/03/2009.

216 Helmut Renders: Registros

18registros.indd 216 28/2/2012 08:31:33


Relação de Permutas

Journals exchange

Intercambio de revistas
ACTUALIDAD LITÚRGICA
Boletín de La Comisón Episcopal para La Pastoral Litúrgica de México
– MEX.

ANÁLISE E SÍNTESE
Faculdade São Bento da Bahia – BRA.

THE ASBURY THEOLOGICAL JOURNAL


Asbury Theological Seminary – EUA.

CADERNOS DA ESTEF
Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, Porto Alegre,
RS – BRA.

CADERNOS DE TEOLOGIA PÚBLICA


UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos São Leopoldo -
BRA

CARTHAGINENSIA
Instituto Teológico de Murcia, Murcia – ESP.

CAMINOS: REVISTA CUBANA DE PENSAMIENTO SOCIOTELÓGICO


Centro Martin Luther King, Jr, La Habana – CUB.

CIÊNCIA DA RELIGIÃO, HISTÓRIA E SOCIEDADE


Instituto Presbiteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

COLETÂNEA
Instituto Filosofia e Teologia do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro,
RJ – BRA.

COMPARTILHAR PASTORAL – REMNE


Seminário Metodista Teológico do Nordeste – Região Missionária do Nor-
deste da Igreja Metodista – BRA.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 217

18registros.indd 217 28/2/2012 08:31:33


CONTANDO NOSSA HISTÓRIA
Instituto Teológico João Wesley, Centro Universitário Metodista IPA, Porto
Alegre, RS – BRA.

CUADERNOS DE TEOLOGIA
Instituto Universitário ISEDET – ARG.

DAVAR LOGOS
Associación Colégio Adventista Del Plata – ARG.

DESAFIOS DA REMA
Revista da Região Missionária da Amazônia da Igreja Metodista – BRA.

DIDASKALIA
Faculdade de Teologia de Lisboa / Universidade Católica Portuguesa –
POR.

ENCONTROS TEOLÓGICOS
Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, SC – BRA.

ESPAÇOS
Instituto São Paulo de Estudos Superiores, São Paulo, SP – BRA.

ESTUDOS TEOLÓGICOS
Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana
no Brasil, São Leopoldo, SP – BRA.

FIDES REFORMATA
Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper do Instituto Pres-
biteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

FRAGMENTOS DE CULTURA
Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO – BRA.

HERMENÊUTICA
Seminário Adventista Latino Americano de Teologia, Cachoeira, BA –
BRA.

HORIZONTE
Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, MG – BRA.

218 Helmut Renders: Registros

18registros.indd 218 28/2/2012 08:31:33


HORIZONTE TEOLÓGICO
Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos religiosos do Instituto
Santo Tomás de Aquino, Belo Horizonte, MG – BRA.

IGREJA LUTERANA
Seminário Concórdia, São Leopoldo, RS – BRA.

INICIAÇÃO CIENTÍFICA CESUMAR


Centro Universitário de Maringá-Cesumar, Maringá, PR – BRA.

KAIRÓS: REVISTA ACADÊMICA DA PRAINHA


Faculdade Católica da Prainha, Fortaleza, CE – BRA.

LITTERARIUS
Faculdade Palotina, Santa Maria, RS – BRA.

LOGOS: REVISTA DE FILOSOFIA


Universidad La Salle – MEX.

MAIÊUTICA DIGITAL: REVISTA DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS AFINS


Faculdade Batista Brasileira, Salvador, BA – BRA.

MIRADA
Centro Ignaciano de Espiritualidad de Guadalajara – MEX.

MISSIONEIRA
Instituto Missioneiro de Teologia, Santo Ângelo, RS – BRA.

OIKODOMEIN
Comunidad Teológica de México, Coyoacan – MEX.

PASSO A PASSO
Tear Fund.

PERSPECTIVA TEOLÓGICA
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – BRA.

PHRONESIS
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

PISTIS & PRÁXIS


Pontifícia Universidade Católica de Curitiba, PN – BRA.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 219

18registros.indd 219 28/2/2012 08:31:33


PRÁXIS EVANGÉLICA
Faculdade Teológica Sul Americana – BRA.

PREGAÇÃO & PREGADORES


OPBB - Ordem dos Pastores Batistas do Brasil – BRA.

RAZÃO E FÉ
Universidade Católica de Pelotas, RS – BRA.

REDES: REVISTA CAPIXABA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA


Instituto de Filosofia e Teologia, Vitória, ES – BRA.

REFLEXUS
Faculdade Unida de Vitória, ES – BRA.

REFLEXÃO E FÉ
Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, Recife, PE – BRA.

REFLEXÃO TEOLÓGICA: ESTUDOS E PESQUISAS EM TEOLOGIA E


MISSÕES
Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro, São Paulo, SP –
BRAS.

REFLEXUS
Faculdade Unida de Vitória, Vitória, ES – BRAS.

REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIA


Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rio de Janeiro, RJ –
BRA.

REVISTA DE EDUCAÇÃO DO COGEIME


Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação, São Paulo,
SP – BRA.

REVISTA 18
Centro de Cultura Judaica – Casa de cultura de Israel, São Paulo, SP
– BRA.

REVISTA DE CATEQUESE
Centro Universitário Salesiano de São Paulo – BRA.

220 Helmut Renders: Registros

18registros.indd 220 28/2/2012 08:31:33


REVISTA DE CULTURA TEOLÓGICA
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo,
SP – BRA.

REVISTA DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO UNICAP


Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE – BRA.

REVISTA DE FILOSOFIA
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

REVISTA IMPULSO
Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP – BRA.

REVISTA INCLUSIVIDADE
Centro de Estudos Anglicanos, Londrina, PR – BRA.

REVISTA TEOLÓGICA
Seminário Presbiteriano do Sul da Igreja Presbiteriana do Brasil, Campi-
nas, SP – BRA.

REVISTA REFLEXÃO
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

REVISTA REDES
Instituto Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Faculdade Sa-
lesiana de Vitória, ES – BRA.

REVISTA RELIGIÃO & CULTURA


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – BRA.

RHEMA-REVISTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA


Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antonio, Juiz de Fora, MG –
BRA.

TEAR: LITURGIA EM REVISTA


Centro de Recursos Litúrgicos da Escola Superior de Teologia, São Le-
opoldo, RS – BRA.

TEO-COMUNICAÇÃO
Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
RS – BRA.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 221

18registros.indd 221 28/2/2012 08:31:33


THEOPHILOS: REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA
Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS – BRA.

TEOLOGIA Y VIDA: ANALES DE LA FACULDAD DE TEOLOGÍA


Pontifícia Universidad Católica de Chile, Santiago – CHL.

THEOLOGIE FÜR DIE PRAXIS


Revista do Seminário Teológico da Igreja Metodista Unida na Alemanha,
Reutlingen – RFA..

TQ TEOLOGIA EM QUESTÃO
Faculdade Dehoniana, Taubaté, SP – BRA.

REVISTA UNICLAR
União das Faculdades Claretianas, São Paulo, SP – BRA.

VIA TEOLÓGICA
Faculdade Teológica Batista do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

VIDA Y PENSAMIENTO
Universidad bíblica Latino Americana, San Jose – CRI.

VISÃO TEOLÓGICA
Faculdade de Teologia Batista Ana Wollerman, Dourados, MS – BRA.

VOX SCRIPTURAE: REVISTA TEOLÓGICA BRASILEIRA


Faculdade Luterana de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Lute-
rana no Brasil, São Leopoldo, RS – BRA.

222 Helmut Renders: Registros

18registros.indd 222 28/2/2012 08:31:33


Bibliotecas parceiras
Partner libraries

Bibliotecas afiliadas

BIBLIOTECA DO CENTRO METODISTA DE CAPACITAÇÂO [CEMEC]


São Paulo, SP.

BIBLIOTECA DA ESCOLA DAS MISSÕES [INFORM]


Rio de Janeiro, RJ.

BIBLIOTECA DA FACULDADE DE TEOLOGIA CÉSAR DACORSO FILHO


Rio de Janeiro, RJ.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO METODISTA DA AMAZÔNIA [IMA]


Porto Velho, RO.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO TEOLÓGICO JOÃO WESLEY


Porto Alegre, RS.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO TEOLÓGICO METODISTA JOÃO RAMOS


Belo Horizonte, MG.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO METODISTA DE TEOLOGIA [CEMETRE]


Maringa, PE.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO METODISTA TEOLÓGICO DO NORDESTE


Recife, PR.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO REGIONAL SCILLA FRANCO


Campinas, SP.

Revista Caminhando v. 16, n. 2, p. , jul./dez. 2011 223

18registros.indd 223 28/2/2012 08:31:33


Diretórios e Indexações

Diretórios
Directories

Directorios

1. DOAJ – Directory of Open Access Journals [DOAJ]


2. Ibict – Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas
3. LivRE! – Portal para periódicos de livre acesso na Internet
4. Methodistische Kirche WELTWEIT
5. Online Wesleyan/Methodist Journals – Duke Center for Studies in the
Wesleyan Tradition

Indexações

Indexation

Indización

Nacional:
1. Sumários.org – Indexação de Revistas Eletrônicas Brasileiras
2. J-Gate [India] - Informatics (India) Ltd.
3. Portal de periódicos da CAPES
Internacional
4. DOAJ Content – Directory of Open Access Journals
5. Latinindex

224 Helmut Renders: Registros

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