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RICARDO ABRAMOVAY

PARADIGMAS DO CAPITALISMO
AGRÁRIO EM QUESTÃO

SEGUNDA EDIÇÃO

EDITORA DA
UNICAMP
EDITORA DA UNICAMP
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

R eiior: Hermano Tavares EDITORA HUCITEC


Cfioixlenador Garni da Uníverxidada: Fernando Galembeck EDITORA DA UNICAMP
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Prêmio "Melhor Tese de Doutorado"


VII Concurso ANPOCS de Teses Universitárias
e Obras Literárias, 1991.
CAPÍTULO 3

A MICROECONOMIA DO
COMPORTAMENTO CAMPONÊS
"H á sem dúvida grande perigo na aplicação de métodos modernos a condições
primitivas: é mais fácil aplicá-los erroneamente que com acerto. Mas a asserção que
se tem feito às vezes, de que não podem em absoluto ser utilmente aplicados, parece
basear-se numa concepção dos objetivos, métodos e resultados da análise que tem
. pouco em comum com a apresentada neste e em outros tratados modernos"
(Marshall, 1890/1982:249).

a) A p r esen ta ç ã o

Na Introdução ao Peasant Farm Organisation, Chayanov de­


fende-se da "acusação" — cujas consequências no interior da jovem
República Soviética ultrapassavam perigosamente o estrito campo
da luta de idéias — de ser um partidário da escola austríaca da
utilidade marginal. Basicamente, seu argumento é que não compar­
tilha da teoria neoclássica para o estudo dos grandes agregados
econômicos. Entretanto, para analisar o comportamento de unidades
econômicas individuais, os fatores de natureza macrossocial são
insuficientes, como o próprio Marx já havia percebido;
"No primeiro volume d '0 Capitai, K. Marx reconhece a possibili­
dade de uma avaliação de benefícios por parte do consumidor,
mas afirma que não se pode deduzir daí o fenômeno social do
preço. De maneira análoga, eu descobri a presença de um balanço
trabalho-consumo na prática econômica da unidade camponesa e
sua grande influência na determinação do volume da atividade
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80 A Microeconomia do Comportamento Camponês A Microeconomia do Comportamento Camponês 81

econômica da família, mas eu não considero, absolutamente, que Turquia, Nigéria, índia e Indonésia guardam similaridades mar­
se possa deduzir disso todo um sistema de economia nacioruir cantes com os que estavam na ordem do dia na Rússia desde a
(Ghayanov, 1925/1986:46). emancipação dos servos em 1861 até a coletivização da agricul­
tura no final dos anos 1920 (...)" (Thorner, 1986:xi).
De fato, como vimos acima, Chayanov distancia-se das teorias
marginalistas, tanto no sentido de que evita imputar ao campesinato Quais eram esses problemas? Basicamente, eles se concentravam
categorias estranhas a sua existência econômica, como também por na questão dos motivos do subdesenvolvimento e das perspectivas
não preconizar qualquer modelo macroeconômico baseado nestas e políticas necessárias para sua superação. O importante aqui — e é
categorias específicas à produção familiar. Tudo indica que esta o que aproxima a abordagem dos economistas neoclássicos do tema
declaração não é apenas um meio de escapar ao "patrulhamento" antecipado pelo pensamento precursor de Chayanov — é que du­
(ver o box 4, no Capítulo 2) a que fatalmente a Escola da Organização rante os anos 1960 foi elaborada uma qucmtidade significativa de
da Produção estava sujeita. Ela reflete antes a convicção de que é modelos microeconômicos sobre o comportamento camponês. A
impossível entender a unidade de produção familiar sem que a preocupação prática subjacente a estes modelos é também bastante
lógica que preside seu processo de escolha econômica tenha sido próxima à de Chayanov; não se podem implementar políticas do
destrinchada. E para isso — bem como para qualquer teoria a modernização da agricultura sem a compreensão dos fatores que
respeito do comportamento do consumidor, por exemplo — a presidem a tomada de decisão por parte dos agricultores.
escola austríaca fornece instrumentos de análise dos quais a econo­ O objetivo deste capítulo é apresentar resumidamente algumas
mia política clássica e marxista encontram-se totalmente desprovidas. destas contribuições para que possamos, no Capítulo 4, nos pergun-
Não é à toa então que, quarenta anos após a publicação da obra tcir a respeito daquilo que a abordagem "morfológica" de Chayanov
de Chayanov, autores de formação estritamente neoclássica, e com deliberadamente ignorou: quais são as condições sociais de existên­
base nos métodos fornecidos por esta escola de pensamento, re­ cia do campesinato ou, para usar os termos de Georgescu-Roegen
tomam e desenvolvem as preocupações do economista russo: existe (1969), qual a "fisiologia" da produção camponesa?
um comportamento específico do campesinato? É possível uma O terreno da presente exposição não poderia ser mais vasto.
teoria que coloque em relevo os motivos fundamentais que presidem Inúmeros economistas debruçaram-se sobre o tema propondo mo­
suas escolhas econômicas? Mais que isso, será que, entre campone­ delos importantes e freqüentemente baseados em relevantes tra­
ses, condutas aparentemente paradoxais com relação à poupança, balhos de campo. Uma apresentação completa de todos eles nos
ao investimento e ao consumo não encontrem explicação num uso distanciaria do objetivo básico desta parte do trabalho, que é a
estritamente racional dos fatores dos quais dispõem? E será que a compreensão e a tentativa de uma definição concisa e operacional
compreensão desta racionalidade não é capaz de fornecer subsídios do que é camponês. Entretanto é possível — cometendo uma enorme
importantes a políticas de desenvolvimento econômico? É exata­ quantidade de omissões, sem dúvida — expor uma síntese das mais
mente num contexto em que os próprios economistas colocam-se significativas tentativas de estudo dos fatores determinantes das
estas questões que a obra de Chayanov é traduzida para o inglês opções econômicas do campesinato que a teoria neoclássica produziu.
(1966) vindo ao encontro de lima das preocupações mais marcantes Vou seguir, para tanto, as sugestões contidas na recente e decisiva
da época, como mostrou Thorner: contribuição de Frank Ellis (1988). Três modelos serão aqui resu­
midos. Primeiramente, o de Théodore Schultz (1964/1965), onde a
"Muitos dos que hoje procuram compreender o comportamento família camponesa opera em moldes tais que nada a diferencia de
econômico do campesinato parecem não ter consciência do quanto -uma empresa moderna, no que se refere a sua racionalidade econômi­
estão atravessando vários dos caminhos trilhados, de 1860 em ca. Já Lipton (1968) vê na lógica econômica da família camponesa o
diante, por gerações de economistas russos. Os problemas que contrário do encontrado por Schultz: não a busca do lucro, mas a
estão hoje afligindo economistas em países como Brasil, México, aversão ao risco. Por fim, Mellor (1963), Sen (1966) e Nakagima
82 A Microeconomia do Comportamento Camponês A Microeconomia da Comportamento Camponês 83
(1969) retomam e desenvolvem os termos em que Chayanov colo­ cultores. Mesmo em situações em que a moeda praticamente inexis-
cou o problema da especificidade do processo de tomada de de­ te, do ponto de vista da relação entre os insumos dos quais dispõem
cisões no interior da família’. e os resultados econômicos atingidos, eles se conduzem de maneira
equivalente a empresas modernas. É perfeitamente legítimo que se
faça abstração de todo o conteúdo cultural e até psicológico envol­
b ) o m a x im iz a d o r de lu cro vendo a ação dos indivíduos: seu resultado traduz a conduta maxi-
Poucas teorias sobre a agricultura tiveram repercussão práti­ mizadora de lucros. O agricultor não só é capaz de utilizar seus
ca tão significativa quanto a celebrizada por Theodore Schultz na insumos de maneira a obter a maior quantidade possível de pro­
expressão "pobres, mas eficiéntes". Com efeito, publicado em 1964, duto, mas, mais que isso, essa operação leva em conta o nível
o livro deste professor da Universidade de Chicago e prêmio Nobel relativo dos preços, de maneira a minimizar os custos e/ou maximi­
de Economia — Transformando a Agricultura Tradicional — exerceu zar os resultados da produção. Isso quer dizer que o agricultor
enorme influência na formação de intelectuais e técnicos respon­ comporta-se de maneira eficiente não só sob o ângulo técnico, mas
sáveis pela implantação, em países do Terceiro Mundo, de centros também alocativo. Eficiência econômica é um conceito bem determi­
de extensão e pesquisa nos quais boa parte da Revolução Verde se nado na microeconomia: trata-se da capacidade de utilizar os fato­
enraizou. Aqui, o que mais interessa na obra de Schultz é a apresen­ res produtivos de maneira a encontrar a maior quantidade possível
tação da agricultura "tradicional" não como expressão de indolên­ de produtos e também (sem o que não há eficiência) escolher entre
cia, atavismos culturais retrógrados etc., mas, ao contrário, como os fatores — por definição — escassos, aqueles que correspondam
um sistema coerente e racional de uso dos fatores cuja compreensão ao menor preço e/ou que propiciem a maior renda. Plantar mais,
econômica é perfeitamente possível e cujo funcionamento é pratica­ por exemplo, é uma decisão que leva em conta fundamentalmente a
mente perfeito. produtividade marginal dos fatores: o investimento no recurso bási­
A raiz desta perfeição está numa dupla inseparável: eficiência e co do qual dispõe a agricultura tradicional (o trabalho) é feito com
maximização de lucro. Nada mais distante da realidade da agricul­ base na melhor combinação possível dos fatores de forma que um
tura tradicional que a imagem do Jeca Tatu: contrariamente a uma trabalho adicional e que represente esforço com retorno insuficiente
importante vertente do pensamento econômico do início dos anos não será realizado; da mesma forma, é impensável que o agricultor
1960 (Georgescu-Roegen,1960, por exemplo), Schultz refuta a noção deixe de esforçar-se para alcançar a situação ótima que, no quadro
de que a produtividade marginal do trabalho no meio rural dos dos recursos por ele disponíveis, pode atingir.
países pobres é igual a zero, ou, em outras palavras, que existe uma Por mais que a teoria de Schultz se baseie em pressupostos
parte da população ativa cujo trabalho não contribui em absoluta­ facilmente contestáveis — a começar pelo fato de que a noção de
mente nada com a elevação do produto. Caso as unidades produti­ eficiência econômica é inconcebível fora de um mercado competiti­
vas deixem de contar com qualquer dos membros ativos que as vo, o que não existe naquilo que ele define como agricultura tradi­
compõem, o resultado será uma inevitável queda do produto: não há cional, como veremos no próximo capítulo — ela tem um mérito
população sobrante na agricultura tradicional. inegável. Num momento em que não eram poucas as teses que
É exatamente daí que Schultz deduz a racionalidade destes agri- atribuíam a pobreza à preguiça^ ou à ignorância, Schultz aponta
para um comportamento absolutamente racional.
’ Ellis trabalha na verdade com cinco modelos. Na presente exposição não abordo Nada mais distante, entretanto, do pensamento de Schultz que
um caso importante, mas que não modificaria qualitativamente os resultados aqui uma visão romanticamente apologética dos povos onde a agricultu­
alcançados que é a situação de parceria, meação e arrendamento: os camponeses ra tradicional é praticada. Ao contrário, do outro lado da moeda do
siiarccroppring. Por outro lado fundi numa só exposição aquilo que o rigor de Ellis
exigiu que fosse objeto de tópicos distintos: em sua exposição sobre os modelos de
equilíbrio trabalho/cotxsumo ele separa os casos em que não existe mercado de tra­ ^Boserup (1970/1983:18), por exemplo, fala da importância nas políticas coloniais
balho daqueles onde o assalariamento e o pagamento de salários são supostos. do mito do homem africano preguiçoso.
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comportamento eficiente, encontra-se, inseparavelmente, a pobreza. mais conservadores, no que se refere aos problemas agrários. Michael
Não se pode alcançar eficiência aloca tiva melhor que aquela ensina­ Lipton, cujo pensamento examinaremos logo abaixo, é de opinião
da por séculos de experiência aos produtores tradicionais. Sua eman­ que as idéias de Schultz, de certa forma, jogam fora o bebê junto com
cipação da miséria depende, antes de tudo, que sejam alterados os a água do banho, quando se trata de modernização e neste sen­
meios com que trabalham. Caso contem com máquinas e insumos tido classifica-as como "a doutrina do pessimismo revolucionário"
modernos, os agricultores sabtvão encontrar uma razão tal entre (Lipton, 1968).
seus custos e resultados econômicos que seu comportamento maxi- E importante assinalar, porém, que na ortodoxia schultziana um
mizador se traduza por substancial aumento do produto. Não há papel importante cabe ao Estado no desenvolvimento da agricultu­
conservadorismo no comportamento do camponês tradicional: se ra: 0 estímulo seja à produção interna seja à importação dos insumos
ele não investe mais — explicar esta atitude era um dos principais que compõem a agricultura moderna, a implantação de centros de
desafios dos economistas nos anos 1960 — é exatamente porque o pesquisa capazes de adaptar os progressos técnicos da agronomia
lucro é seu móveP e, partindo somente de terra, trabalho, enxada e ao meio ambiente nacional e local (pesquisas com variedades de alto
estrume, não adianta trabalhar mais com retornos permanente­ rendimento, por exemplo) e a difusão deste conjunto de inovações
mente decrescentes. É igualmente ilusória — e subestima a ca­ através de um amplo sistema de extensão.
pacidade racional dos invidívuos — a perspectiva de que uma
combinação diferente destes fatores poderia resultar num aumento
do produto. Somente máquinas e insumos de origem industrial, Podemos resumir a cinco pontos básicos o essencial no
combinados com um sistema de pesquisa e extensão (voltados pre­ pensamento de Schultz:
cisamente para este tipo de modernização) podem elevar a produ­ 1. Não existe um conceito de camponês como categoria econômi­
tividade do trabalho e também permitir a liberação de mão-de-obra ca provida de uma lógica de conduta diferente de outros segmentos
do campo para as cidades, sem que isso se traduza numa queda no produtivos da sociedade. É exatamente com base nesta premissa
nível da oferta agrícola. que Schultz aponta para a racionalidade da agricultura tradicional.
2. Entre a agricultura tradicional e a moderna, a dicotomia é
completa, não por qualquer tipo de racionalidade própria a cada
Esta constatação traz uma conseqüência no mínimo am­ uma — já que suas motivações econômicas são idênticas — mas
bígua: por um lado, ela sugere a mudança nas condições materiais porque não há evolução lenta e gradual que leva uma à outra: se
em que vive o agricultor já que é impossível, com os recursos de que depender da própria agricultura, se não houver intervenção estimu­
dispõe, que ele consiga elevar sua produtividade. Por outro lado, ladora do Estado, a agricultura tradicional é incapaz de sair do
porém, esta mudança é tamanha, que na maior parte dos casos será marasmo secular que a caracteriza.
inacessível à grande massa dos agricultores, já que, por definição, 3. Não se pode aprimorar ou melhorar a agricultura tradicional
ela é realizada nos parâmetros institucionais de uma economia de com base nos fatores que ela costumeiramente emprega. O que
mercado. É bem possível, neste sentido, que o preço da "transfor­ caracteriza os países pobres não é a má utilização dos fatores exis­
mação da agricultura tradicional" seja o sacrifício social de uma tentes, mas sim a sua baixa produtividade.
grande quantidade de agricultores tradicionais. E é exatamente por 4. Do ponto de vista social, os resultados da aplicação das teorias
esta razão que Schultz costuma ser classificado entre os economistas de Schultz a países do Terceiro Mundo podem ser extremamente
perversos.
’ É exalamente porque o lucro é uma aspiração universal dos agentes econômicos
5. Cabe ao Estado tomar a iniciativa de implantar centros de
que "em princípio o pensamento econômico básico é tão aplicável a países pobres
como a países ricos" (apiid Salomon, 1977:16). Da mesma forma, a aspiração ao lucro é experimentação e de difusão que permitam aos agricultores o acesso
o priirdpio que permite a compreensão das mudanças fundamentais no curso da às modernas tecnologias.
história da agricultura (Schultz, 1968:56-58).
86 A Microeconomia do Comportamento Camponês A Microeconomia do Comportamento Camponês 87

C) O MINIMIZADOR DE RISCOS apóiem numa média previsível de situações naturais, com base na
A ortodoxia schultziana não foi a única meineira de a econo­ qual em alguns anos se ganharia mais e em outros menos. Isso
mia neoclássica voltar-se para o campesinato. A idéia de que a meta porque a privação dos agricultores é de tal magnitude que eles não
dos agentes econômicos é a maximização de seu bem-estar e que, de podem nunca se permitir obter uma quantidade de produtos abaixo
forma geral, os indivíduos são racionais no sentido de definirem do mínimo necessário a sua sobrevivência. Neste sentido, é claro
meios a seu alcance e levarem em conta o conjunto da situação em que eles não optam por maximizar seus lucros em situações em que
que 6e inserem para atingir este objetivo, esta idéia não resulta ganhos adicionais seriam eventualmente possíveis, se houver em
necessariamente no comportamento maximizador de lucros. Ao torno destes ganhos adicionais o risco de perdas que impliquem a
contrário, a microeconomia dos anos 1960 mostra que é perfeita­ redução do produto aquém da subsistência. Assim, a competição
mente possível a montagem de modelos de maximização alternati­ neoclássica perfeita, em que os custos dos investimentos são estima­
vos ao de Schultz. dos em função de seu produto marginal não se aplica: mesmo numa
Um dos mais importantes fatores que Schultz não leva em con­ situação em que uma empresa moderna opte por correr riscos — já
sideração ao postular a identidade de comportamentos entre os que o que fosse perdido neste ano poderia ser recuperado num ano
agricultores tradicionais e as empresas econômicas modernas é a de melhor sorte — isso não é possível para o agricultor tradicional:
significativa diferença de riscos existente entre ambas. E evidente
que em qualquer sociedade mercantil existe um grau de incerteza "Um ou dois anos ruins numa sequência de políticas ótimas, não
ligado às atividades econômicas. Entretanto, nos países subdesen­ impedirão o agricultor ocidental de guardar sua terra e outros
volvidos, mais que incerteza, lida-se com a idéia de riscos'* e estes ativos de maneira a permanecer na atividade; eles arruinarão o
são significativamente maiores do que no capitalismo avançado. agricultor indiano. Sua primeira obrigação com sua família
É exatamente por possuírem o discernimento de levar em conta o é prevenir tal ruína; com o aumento população, cada vez me­
fator risco que os agricultores tradicionais não podem nortear-se pelo nos terra é deixada para experiências otimizantes subsequentes"
comportamento maximizador de lucros; é com esta contestação que, (Lipton, 1968:335).
em 1968, Michael Lipton publica um artigo marcante, contestando
diretamente o livro de Schultz. A partir de então, Lipton torna-se o Além deste fator natural, existem aspectos sociais e institucionais
autor mais expressivo de uma vertente no pensamento econômico que bloqueiam a conduta de maximização de lucros®. A preca­
que define o agricultor tradicional baseando-se na ai^ersão ao risco. riedade da informação sobre os preços reflete um mercado alta­
Vale a pena examinar seus argumentos. mente imperfeito em que os elementos materiais da produção não
É importamte destacar, de início, que Lipton também vê no agri­ são simplesmente fatores produtivos passíveis de uma equivalência
cultor tradicional um maximizador: não de lucros, mas de oportu­ mercantil;
nidades de sobranvência. E para tanto o essencial é levar em conta um
ambiente ecológico e social hostil a esta sobrevivência.
^Ponto tíe vista idêntico é defendido porGaIbraith (1979:56):
Em primeiro lugar as oscilações climáticas são muito mais violen­
tas no mundo tropical que no temperado. Estas mudanças não "Toda inovação envolve, ou supõe-se cpie envolva, um certo risco (...). Mas o risco,
permitem que as decisões de investimento dos agricultores se no presente contexto, tem um caráter especial de premência. Para o agricultor
próspero do Ocidente um prejuízo na colheita significa perda de renda, Isso é
desagradável, mas nem sempre acarreta perda física e, certamente, nunca da
■*"Nessas condições, portanto, não é surpresa encontrar um grande número de própria vida (...). Para a família, entretanto, que vive dentro do limite estreito da
pequenos agricultores para os quais prevalece um critério de decisão sobre o uso de subsistência, o prejuízo na colheita significa a fome, possivelmente a morte. Assim
recursos, em que a garantia de um nível mínimo de resultado econômico, suficiente encarado, o ri.sco não é coisa que deva ser aceita casualmente. Entre os muito
para a subsistência da família, vem em primeiro lugar", afirma Homem de Mello pobres, a aversão ao risco, como é denominada pelos economistas, é muito forte —
(1982:96-97), citando importantes estudos que corroboram a idéia da avers,lo no risco. e por motivos perfeitamente razoáveis".
88 A Microeconowin do Comportamento Camponês A Microeconomin do Comportamento Camponês 89
"O mercado de trabalho (mesmo tornando-se menos imperfeito tes em solos empobrecidos, mistura adequada de legumes em
na medida ein que o contato urbano e a pressão populacional terrenos pantanosos — sao, igualmente, sempre indicadas" (Lip­
enfraquecem as determinações hereditárias das atividades) é ain­ ton, 1968:334).
da dominado por casta. Em algumas partes da índia, um brâmane
não pode cirar" (Lipton, 1968:336). Em suas conferências na BBC Lipton traduziu esta idéia de ma­
neira simples e lapidar;
Da mesma forma, as regras sociais ligadas à herança refletem
mais a busca de segurança que de rentabilidade. A divisão das' "(...) se um homem está maximizando sua eficiência lavando seu
terras entre os filhos responde ao critério de que as parcelas férteis e rosto com uma de suas mãos amarrada nas costas, é mais barato
as inférteis são atribuídas equanimemente fazendo com que a neces­ soltar sua mão que comprar-lhe um esponja" (Lipton, 1968/
sidade de assegurar a sobrevivência de cada um acabe prejudican­ 1988:260).
do, evidentemente, o rendimento de todos.
Incertezas climáticas, imperfeições de mercado, regras sociais Toda a questão está nos aspectos institucionais que impedem a
impedindo o funcionamento das mais elementares normas da com­ melhor utilização destes fatores. Mas o traço decisivo do campesinato é
petição perfeita, tudo isso faz com que fustamente o constrangimento a uma permanente subutilizaçâo de stiti
potencialidade produtiva com o objetwo de eintar o risco. E exatamente
"(...) um camponês otimizador busque algoritmos de sobrevi­ por isso, desde que alguns destes fatores sejam eliminados, épossível
vência e não de maximização" (Lipton, 1968:331). no (juadro dos meios ntateriais da agricultura tradicional promover políti­
cas de desenvolvimento.
Temos aí, portanto, uma imagem da racionalidade e da capacidade Não é muito clara a posição de Lipton sobre a maneira de vencer
maximizadora do camponês bastante distante da universalidade estes fatores que provocam o comportamento de aversão ao risco, e
schultziana. E é claro que as consequências práticas do camponês por vezes fica-se com a impressão de que ele, na verdade, não
avesso ao risco só poderiam ser diametralmente opostas àquelas preconiza a sua eliminação*. Essa impressão é reforçada quando em
contidas na idéia do agricultor maximizador de lucros. trabalhos posteriores ele define o "viés urbano" (Lipton, 1977) que
Se o comportamento econômico é regido pela aversão ao risco, preside as decisões sobre o cj’escimento econômico como o motivo
existirá, evidentemente, um espaço técnico’’ no interior do qual é fundamental do próprio subdesenvolvimento.
possível uma alocação dos próprios fatores da agricultura tradicio­ Podemos resumir o essencial do pensamento de Lipton aos
nal de forma a promover seu crescimento: seguintes pontos;
1. É perfeitamente possível compreender o campesinato basean­
"Tudo isso não implica que o agricultor tropical não possa orga- do-se na idéia de comportamento otimizador: existe uma conduta
nizar-se racionalmente. A alternativa ao camponês otimizador não racional, no sentido da adequação de meios a fins determinados,
precisa ser o optante "pessimizador"’. Algumas práticas (...) considerando-se o contexto em que esta adequação opera.
produzem mais (...) com praticamente nenhum aumento nos
insumos. Algumas decisões alocativas — maiores taxas de semen- *"os jTiereados imperfeitos de fatores, em muitos países pobres, não são relíquias de
ignorância e coirservadorismo, prontas a entrar em colapso sob o mais tênue incentivo
^ A idéia de que pode haver progresso no quadro dos recursos existentes na (ou ordem executiva). Eles preenchem uma função precisa numa estrutura social
"agricultura tradicional" está presente em dois trabalhos que marcaram época na rigidamente fechada. A função é permitir que se herde a segurança do acesso tanto à
literatura a respeito: Boserup (1965/1970) e Sahlins (1974). terra como ao traballio. A estrutura é uma ecologia sócio-religiosa na qual somente a
’ Pessimising opimit: pessimising n.ão existe em inglês (ao menos no W ebster’s Un­ tolerância diante do uso dos fatores tradicionais preserva a harmonia entre opressores
abridged Dictioiwanj) e é empregado para contrastar com optimizing: daí nossa opção e oprimidos — e portanto a aceitação de alguma responsabilidade residual pelo
por "pessimizador", igualmente inexistente em nosso idioma. opressor" (Lipton, 1968:337).
90 A Microeconomia do Comportamento Camponês A Microeconomia do Comportamento Camponês 91

2. É exatamente essa racionalidade que impede a idéia de maxi­ produto para o lar. A conseqüência desta hibridização institucio­
mização de lucros de tornar-se explicativa do comportamento cam­ nal é que os modelos da firma doméstica têm também que ser
ponês. Ao contrário, o essencial na racionalidade camponesa é a híbridos da teoria da firma produtiva e da teoria do consumidor
conduta de aversão ao risco. doméstico" (Krisl-ma, 1969:185).
3. Nesse sentido, existe especificidade no tipo de cálculo econômico
realizado pelo camponês, quando comparado com empresas capi­ A relação entre as necessidades de consumo da família e o tra­
talistas, por exemplo. balho necessário a que sejam atingidas é a base para o estabele­
4. O desenvolvimento econômico não passa, no essencial, pela cimento de um equilíbrio microeconômico em torno do qual o campesi­
incorporação à agricultura tradicional dos meios técnicos caracterís­ nato se define. Esta idéia rigorosamente chayanovista é o ponto de
ticos dos progressos científicos recentes. Ao contrário, exatamente partida de três entre os mais importantes modelos sobre o compor­
por terem um comportamento de aversão ao risco, é possível que tamento camponês dos anos 1960: o de Mellor (1963), o de Sen (1966)
uma realocação dos fatores ao alcance dos camponeses seja propi­ e o de Nakagima (1969). Não se trata aqui de expô-los detalhada­
ciadora de crescimento, desde que se eliminem as condições institu­ mente, mas apenas de indicar que é nos moldes mesmo em que
cionais que bloqueiam sua melhor utilização. Chayanov constrói seu objeto de estudo que a questão é retomada
5. Existe em Lipton elementos que fazem suspeitar de uma posição por estes autores nos anos 1960, e apontar alguns desdobramentos.
marcadamente conservadora no que se refere às condições sociais e Nestas abordagens, é em termos subjetivos que se define o equihínio
institucionais que determinam o comportamento camponês de econômico da família camponesa. Isso significa que, da mesma forma
aversão ao risco. que em Chayanov, são fatores internos que determinarão seu desem-
penlio produtivo, fundamentalmente a contraposição entre o produto
marginal do trabalho e seu custo. Este dilema neoclássico básico
d) a a v er sã o a pen o sid a d e entre trabalho e ócio — entre o prazer derivado do produto do
Nos dois itens anteriores, não foi feita qualquer observ^ação esforço, diante da satisfação propiciada pelo descanso — assume,
significativa com relação ao nível de consumo da família. No modelo no caso da produção camponesa, entretanto, uma fisionomia parti­
de maximização do lucro, este é um fator irrelevante: as decisões são cular. Enquanto as necessidades básicas da família não forem atingi­
tomadas em função da produtividade marginal dos fatores. Já em das, haverá disposição a um grande sacrifício em trabalho — embo­
Lipton, a família visa atingir um mínimo de subsistência, mas esse ra com retorno econômico muito baixo. Uma vez alcançadas estas
patamar é um dado invariável da análise econômica. necessidades elementares, a estimativa feita em torno da utilidade
Ora, o que caracteriza o campesinato é exatamente a fusão entre a de bens adicionais cai e aumenta a aversão à penosidade do tra­
unidade de produção e a de consumo. É perfeitamente possível balho. Não é, como em Schultz, a produtividade marginal dos
portanto que a análise microeconômica se volte para cada um destes fatores que orienta as decisões de investimento dos agricultores. Na
aspectos constitutivos do campesinato: o trabalho fornecido pela verdade, esta produtividade marginal é objeto de uma avaliação
família e a renda (monetária ou não) daí derivada. Mais que isso, se subjetiva cuja base não são os preços de mercado, mas sim o imenso
na microeconomia estes dois elementos são objeto de tópicos distin­ esforço despendido para se atingir a produção de subsistência e,
tos (a teoria da produção e a teoria do consumidor), um dos desafios portanto, a tendência à renúncia a este esforço, tão logo as neces­
básicos que a existência do campesinato lança para a teoria é exata­ sidades básicas tenham sido encontradas. Em seu importante artigo,
mente a elaboração de um modelo unificado desta dupla dimensão. Mellor (1963:519-520) explica o problema:
Ou nas palavras de um importante economista:
"Universalmente, a utilidade marginal dos bens adicionais e das
"(...) a firma doméstica simplesmente transfere em espécie uma rendas de serviço é muito alta, até que as necessidades de sub­
parte do insumo familiar potencial para a firma e parte de seu sistência tenharn sido alcançadas. Para atingir a subsistência, os
92 A Microeconomia do Comportamento Camponês A Microeconomia do Comportamento Camponês 93

agricultores escolhem converter seu trabalho em bens e serviços, mais com base no trabalho no interior da unidade produtiva, mas da
mesmo a uma baixa taxa marginal de retorno. Segue-se que a venda da força de trabalho. Da mesma forma, a compra de trabalho
utilidade ligada ao aumento de bens e serviços será menor, uma por parte da família camponesa torna-se possível, o que indica
vez alcançada a subsistência". também um elemento externo à família na obtenção de seu equilíbrio
econômico:
A pobreza, por um lado, e a fusão entre a unidade de consumo e
a de produção, por outro, determinam então um nível de equilíbrio "Fora de um mercado de trabalho, como é assumido aqui, a
particular à economia camponesa’. Aliás é nestes termos, muito produtividade marginal do trabalho, no equilíbrio subjetivo, tende
mais que em função de razões culturais ou psicológicas, que pode a variar de uma unidade familiar para outra. Em geral, as princi­
ser explicado o fato de que pais causas serão as diferenças: (a) nas quantidade de recursos não
derivados do trabalho que as unidades produtivas têm; (b) no
"(...) os agricultores, em países de baixa renda têm aspirações número de trabalhadores nas unidades produtivas; e (c) no núme­
limitadas de bens materiais e de serviços" (Mellor, 1963:519)., ro de dependentes nas unidades produtivas" (Nakagima, 1969:169).

Esse equilíbrio é inalterável enquanto o comportamento da família A suposição da existência de um mercado de trabalho porém
for determinado por causas fundamentalmente endógenas. É claro torna insuficientes estas causas internas. O equilíbrio deixa de ser
que o ponto em que o aumento da desutilidade marginal do tra­ estritamente subjetivo. Não que o objetivo da família se altere: trata-
balho encontra a queda na utilidade marginal da renda varia em se sempre de "maximizar a utilidade". A introdução do mercado de
função do tamanho da família, da relação entre consumidores e trabalho introduz, entretanto, uma variável exógena à determinação
trabalhadores no seu interior, dos meios técnicos com que trabalha, do nível de equilíbrio. E perfeitamente concebível que a família opte
da quantidade de terra disponível, dos preços agrícolas e da renda que alguns de seus membros trabalhem como assalariados e, por­
trazida por atividades não agrícolas (artesanais, por exemplo). Esses tanto, que sua produção caia, encontrando no mercado de trabalho
fatores, como bem mostra Nakagima (1969:166-176) e como já apon­ um meio de obter suas necessidades de subsistência. Isso significa,
tara anteriormente Chayanov, podem alterar o ponto de equilíbrio, em outras palavras, que a introdução do mercado de trabalho no
mas não sua natureza, isto é, sua determinação subjetiva. modelo de equilíbrio entre a desutilidade marginal do trabalho e a
Há um elemento entretanto capaz de alterar significatwamente a utilidade marginal da renda (o famoso balanço chayanovista entre
racionalidade camponesa: é a existência de um mercado de trabalho. trabalho e consumo) faz com que as decisões a respeito do uso do
Neste caso, o esforço familiar passa a ser comparado iião apenas trabalho sejam separadas daquelas tomadas com relação ao consu­
com a renda obtida no estabelecimento agrícola, mas adquire outro mo. Neste sentido, uma vez admitida a existência do mercado de
parâmetro que é o custo de oportunidade oferecido pelo mercado de trabalho, a unidade de produção camponesa deixa de ser exclusiva­
trabalho. As necessidades básicas podem então ser alcançadas não mente a fusão entre o empreendimento produtivo e a família con­
sumidora.
^Sen (1966:425-427) e Nakagima (1969) oferecejii demonstrações matemAticas e
gráficas destas proposições. Nakagima declara, logo na introdução de seu trabalho,
ter-se inspirado em Chayanov. Quanto à especifidade teórica do estudo do campesinato O aprofundamento destas idéias exigiria necessariamente
no quadro da economia neoclássica, é interessante a proposição de Sen, comentando sua elaboração algébrica e gráfica, o que escapa aos objetivos deste
um estudo segundo o qual as unidades de produção familiares trabalhavam com trabalho. O importante aqui é a formulação, no quadro mesmo da
prejuízo: "Isto ilustra o perigo de analisar o equilíbrio camponês em termos de idéias economia neoclássica, de uma lógica (isto é, de objetivos e de meios
emprestadas de uma economia capitalista" (Sen, 1966:443). O trabalho mais recente de
racionais para atingi-los) da urüdade de produção familiar diferente
Barlett (1984:139) mostra a importância de "...metodologias alternativas de custo-
benefício..." no estudo das realidades agrárias no Terceiro Mundo. da maximização do lucro e da minimização dos riscos. E da mesma
94 A Microeconomia do Comportamento Camponês A Microeconomia do Comportamento Camponês 95
forma que fizemos nos dois itens anteriores, vejamos rapidamente pitalista equivoca-se por um ineficiente mecanismo de mercado"
as conseqüências políticas dos modelos de aversão à penosidade. É (Sen, 1966:443).
preciso ter em mente que estes modelos pretendem fundamental­
mente responder a uma questão prática: como promover a maior Sen não deduz desta hipótese a superioridade da produção cam­
integração das unidades de produção familiares ao mercado de ponesa sobre a capitalista. Mesmo porque, como vimos na estudo
produtos e insumos, de maneira a elevar sua renda e, presumivel­ ;'do pensamento de Tepicht, não é evidente que, dado o nível de
mente, seu bem-estar, assim como a disponibilidade de produtos pobreza no interior do qual as famílias estarão "prontas a substituir
agrícolas na sociedade como um todo? Note-se que esta questão é trabalho por produto", isso represente verdadeiramente uma vanta­
bastante semelhante à que norteava a preocupação de Chayanov e à gem social...
qual ele respondia preconizando a organização cooperativa da Já Nakagima (1969:178-179) contesta diretamente a solução pro­
produção familiar. posta por Mellor perguntando se a introdução brusca deste conjunto
A resposta de Mellor (1963:523) ao problema é inequívoca: deve- de mudanças nos padrões de produção e de consumo não provocará
se introduzir um conjunto de estímulos em termos de tecnologia, uma elevação na "pobreza sentida" por parte dos agricultores. O
gerência e conhecimentos que elevem a " transformação de tempo de que Nakagima preconiza, em suma, é um certo gradualismo nas
trabalho em produto agrícola". Além disso, novos bens devem ser políticas de modernização.
oferecidos para que desapareçam as limitações às aspirações de
consumo. Também as inovações tecnológicas são indispensáveis e
neste sentido a localização de "indivíduos inovadores" desempenha Podemos resumir os principais aspectos expostos neste item
função importante. O que Mellor preconiza, em suma, é que sejam aos seguintes pontos:
introduzidos no interior da economia camponesa um conjunto de 1. A principal virtude da idéia de "camponês avesso à peno­
condições que forcem a ruptura de seu equilíbrio que, endoge- sidade" é a integração num modelo único da produção familiar e do
namente, tende a ser estático. Suas conclusões práticas portanto consumo doméstico. As decisões sobre o consumo têm especial
aproximam-no assim das teses schultzianaS. influência sobre a produção. Em outras palavras, há um tipo espe­
Sen e Nakagima parecem bem mais prudentes a respeito. O cial de motivação característico do campesinato que efetivamente
trabalho de Sen não chega a oferecer propostas de políticas. Ele faz dele uma forma social particular. Colocando a ênfase nestes
mostra entretanto que nem sempre a modernização corresponde a aspectos, Mellor, Sen e Nakagima podem ser vistos como continua-
uma verdadeira vantagem social. Ao contrário, é provável que, dores do trabalho de Chayanov.
socialmente, a existência de unidades produtivas marcadas pelo 2. Neste modelo as decisões econômicas da família dependem
típico equilíbrio camponês permita a oferta de bens agrícolas em estritamente de seu equilíbrio subjetivo: o valor do trabalho e dos
condições em que a terra e o trabalho sejam utilizados com resulta­ bens de consumo variam em virtude de se ter ou não atingido a
dos melhores que em empresas capitalistas. E que o "custo do satisfação das necessidades básicas de subsistência. O importante é
trabalho" camponês (dado pela sua apreciação subjetiva determina­ o caráter endógeno da determinação do comportamento econômico.
da pelas necessidades de se atingir o nível de subsistência) é inferior 3. Esse equilíbrio subjetivo pode ser alcançado em situações
ao nível salarial pago pelos empresários capitalistas. Uma de suas extremamente diversificadas quanto ao tamanho da família, à idade
hipóteses (que lembra consideravelmente a idéia chayanovista de de seus membros, ao nível dos preços, à extensão cultivada, à
auto-exploração) é que tecnologia disponível, e à participação de elementos não agrícolas
na formação da renda. Essas variações não alteram a natureza do
"a família camponesa é guiada de fato por seu cálculo do custo equilíbrio sujetivo.
real do trabalho, refletindo as taxas às quais os membros estão 4. A suposição da existência do mercado de trabalho, porém, põe
prontos a substituir trabalho por produto, mas o fazendeiro ca- abaixo a determinação subjetiva das opções econômicas da família.
96 A Mkroeconomin do Comportamento Camponês A Microeconomia do Comportamento Camponês 97

O custo de oportunidade do trabalho torna-se um parâmetro decisi­ econômico. A exposição destes três casos permite também que se
vo nas decisões produtivas da unidade de produção familiar. Neste mostre, por um lado, a importância histórica do trabalho precursor
caso, para usar a expressão de Chayanov, o camponês não é mais de Alexander Chayanov, mas, por outro, a possibilidade de que a
uma "unidade subjetiva teleológica". "morfologia" da unidade de produção camponesa seja construída
com base em parâmetros que não são exatamente aqueles com que o
economista russo trabalhou.
e) R e su m o e c o n c l u sõ e s 3. Ao se voltar para o campesinato, os economistas neoclássicos
É evidente que os ceisos expostos aqui não esgotam, nem de procuram fundamentar respostas ao problema prático do desen­
longe, os modelos explicativos a respeito do comportamento micro- volvimento econômico. Não só não existe homogeneidade nas pro­
econômico do camponês. Não é este o objetivo do presente capítulo. posições de políticas, como nem sempre a mesma compreensão
Espero ter apontado três problemas que me parecem importantes; teórica da família camponesa conduz a resultados políticos idênti­
1. Na economia contemporânea a questão da racionalidade cam­ cos. A noção de equilíbrio econômico subjetivo produz tanto pro­
ponesa possui um peso significativo. O fato de terem por base postas de modernização acelerada quanto a recomendação de ex­
teórica conceitos derivados fundamentalmente da sociedade capi­ trema prudência nas transformações da vida agrária.
talista não impediu aos economistas neoclássicos a construção de
importantes modelos explicativos a respeito do comportamento
econômico camponês. Sob esse ponto de vista ainda, é preciso
assinalar que a contribuição da economia neoclássica é significati­
vamente mais importante que a dos autores de orientação marxista:
é que os neoclássicos procuram razões endógenas de um deter­
minado comportamento, enquanto no marxismo as determinações
de natureza social aparecem freqüentemente como necessárias e sufi­
cientes^'’. Assim, a extração de sobretrabalho e a dominação política
tornam-se fatores explicativos: compreender o campesinato é exa­
minar fundamentalmente as funções que ele desempenha na re­
produção de um determinado sistema global. Já os neoclássicos,
centrados no problema da tomada de decisões, procuram na própria
família camponesa os elementos determinantes de sua conduta.
2. Tentou-se aqui apontar a diversidade das lógicas can\ponesas
estudadas. O importante é que as três vertentes expostas apóiam-se
na premissa de uma racionalidade definida em moldes estritamente
econômicos: a busca de lucros, a minimização dos riscos e a aversão
à penosidade são objetivos cuja realização supõe a mobilização de
certos meios que, nos três casos, podem ser objetivados num cálculo

’“Coube ao chamado marxismo analítico enfrentar o problema das opções em torno


da ação imUvhUial. Mas esta parece a única corrente que, inspirada no marxismo,
inclínou-se nesta direção, como mostram Elster, 1986 e Przeworski 1988. Procurei
apontar algumas limitações desta abordagem, quanto à análise do campesinato, em
Abramovay (1990b).
CAPITULO 4

OS LIMITES DA RACIONALIDADE
ECONÔMICA

“a unidade familiar de produção (...) não é apenas uma forma de produzir safras e
criações; é uma forma de produzir gente — boa gente" (Paarlberg, 1976).

a) A pr e se n t a ç ã o

Estudamos, nos Capítulos 2 e 3, alguns dos principais mo­


delos microeconômicos do equilíbrio camponês. A abordagem pri­
vilegiou fundamentalmente a unidade individual de produção e as
determinações básicas de suas escolhas econômicas. Esta é uma
característica da própria microeconomia (o primado do indivíduo e
a localização de elementos racionalmente discerníveis a nortearem
seu comportamento) e que, como vimos, respondia à preocupação
prática com a montagem de políticas adequadas para o desenvolvi­
mento. Com efeito, nada seria mais desastroso que fundamentar
orientações programáticas em pressupostos que não correspondem
ao estreito leque de opções que, de fato, o produtor tem pela frente
(Galbraith, 1977).
Assim, mesmo quando avesso à conduta que dele esperavam
agências de desenvolvimento e cientistas, o camponês procedia de
maneira racional: essa foi certamenle uma importante contribuição
da economia do anos 1960 à compreensão do problema agrário em
vários países do Terceiro Mundo.
Existe entretanto uma ambigüidade básica nesta contribuição. Na
99
100 Os Limites dn Racionalidade Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 101
maioria dos casos, os economistas não analisam de maneira mini­ O que entretanto os economistas absolutamente não colocam em
mamente satisfatória o ambiente social onde a vida camponesa questão são os limites desta racionalidade econômica e não o fazem
transcorre e suas leis operam. O próprio Chayanov, em sua obra por não estudarem a fundo o conjunto do ambiente social em que a
mais importante, nos diz pouquíssimo a respeito das condições vida camponesa se desenvolve.
exteriores que permitiam o funcionamento do "equilíbrio entre tra­ A idéia central do presente capítulo pode ser assim resumida; a
balho e consumo". Com exceção do último capítulo de seu livro, sua racionalidade econômica do campesinato é necessariamente incom­
obra transmite a impressão de que a unidade de produção familiar pleta porque seu ambiente social permite que outros critérios de
possui por si só a virtude de produzir as leis econômicas por ele tão relações humanas (que não os econômicos) sejam organizadores da
bem analisadas, independentemente do conjunto de circunstâncias exte­ vida. E por essa razão que não pode ser dispensada a contribuição
riores em que está envolvida. A família camponesa torna-se assim uma decisiva da antropologia clássica que via nos camponeses membros
entidade abstrata e sem história. Tudo se passa como se a economia de uma sociedade parcial, com uma cultura parcial. Parcialidade, no
camponesa fosse um produto necessário de qualquer forma de caso, não é isolamento, mas a capacidade de estruturar a vida em
organização familiar na agricultura, torno de um conjunto de normas próprias e específicas^. Vida em
Tepicht, de certa forma, tentou levar esta abstração ao seu limite comunidade, vínculos personalizados não só entre os indivíduos em
formulando o conceito de modo de produção camponês, que se iiicrus- geral, mas entre agentes sociais com lugares antagônicos na hierau-
taria nas mais diferente formações sociais e épocas históricas, sem quia social, regras coletivas determinantes do uso dos fatores pro­
com isso perder sua identid.3.de própria. Mesmo o uso do conceito dutivos e do consumo, mais que um tipo econômico, o camponês
marxista de modo de produção para caracterizar o campesinato representa, antes de tudo, um modo de vida, conforme será visto no
reforça a idéia de que seus traços fundamentais são independentes item b) deste capítulo. Nas sociedades camponesas, a economia não
das condições sociais e históricas em que se insere. O modo de existe como esfera institucional autônoma da vida social, para usar uma
produção é justamente, ele mesmo, uma certa unidade entre re­ expressão de Karl Polanyi (1944/1980). Além da personalização dos
lações sociais (família) e forças produtivas (forte peso do trabalho vínculos sociais, isso se traduz na ausência de uma contabilidade
manual) que gera um tipo de comportamento cujo eixo de determi­ racional, no envolvimento das operações produtivas e do próprio
nação é fundamentalmente interno. E nesse sentido preciso que o consumo familiar num conjunto de motivações que só se explicam
conceito de modo de produção camponês padece do paradoxo de
que, embora inspirado no materialismo histórico, é necessariamente "Finalmente uma observação geral. Este texto é basicamente uma tentativa de
uma categoria sem história: ele permanece igual a si mesmo no aplicar os postulados do comportamento racional aos detalhes das decisões aloca-
curso de sua secular existência. tivas em economias camponesas e duais. As diferenças entre os resultados alocati-
vos das economias camponesas e das outras são traçadas aqui enquanto diferenças
Já os autores neoclássicos procuram ressaltar a racionalidade
em circunstâncias objetivas. Vimos que as características especiais das economias
econômica do camponês. O próprio Lipton indica que a estratégia de camponesas e duais tornadas familiares por duas décadas de desenvolvimento
aversão ao risco é uma forma de maximização da utilidade, específi­ podem ser bem encaixadas numa estrutura de comportamento racional. Entretan­
ca a determinadas condições sociais. A pobreza do agricultor tradi­ to, vale a pena enfatizar, para os objetivos deste texto, que a racionalidade é uma
cional em Schultz não elimina sua racionalidade econômica, que pode suposição explorada e não uma hipótese testada" (Sen, 1966:448, grifos meus, R. A.).
ser estudada com os mesmos instrumentos e critérios dos que se A mesma precaução é tomada por Nakagima (1969:166):
aplicam a qualquer economia de mercado. Sen e Nakagimà, embora
"Nós economistas nada podemos dizer propriamente sobre a 'racionalidade' da
mais prudentes’, também põem em evidência a racionalidade função de utilidade ou da função de produção da unidade familiar, digamos, numa
econômica do campesinato. sociedade subdesenvolvida mesmo que ela pareça estranha do ponto de vista de
um observador de uma sociedade avançada".

^ O texto de Sen em que nos apoiamos no Capítulo 3 termina com a seguinte ^"As funções produtivas de uma familia camponesa tradicional ligam-se organica­
advertência; mente à totalidade de suas funções econômicas, sociais e culturais" (Galeski, 1968:265).
102 Os Limites da Racionalidade Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 103
pelo tipo de constrangimento que a unidade de produção individual damental para que o trabalho social se distribua de maneira não
sofre por sua completa submissão às regras comunitárias em que planejada entre os diferentes ramos da produção) e um nível de
está mergulhada. A família e a comunidade, de certa forma, empres­ agilidade e integração entre os diferentes mercados que justamente
tam sentido à atividade camponesa. Trabalho e vida não são duas não se encontram no ambiente característico das sociedades cam­
dimensões cindidas; as crianças, as mulheres, eirfim um organismo ponesas, fortemente marcado por vínculos pessoais, hierárquicos e
único produz com base no objetivo de gerar não só os meios de vida, pela fusão das operações mercantis com esferas não estritamente
mas sobretudo tan modo de vida. A unidade indissolúvel da existência econômicas da vida. Os mecanismos pelos quais as vendas de
está também no conjunto de significados vitais que os elementos produtos se confundem com um conjunto de prestações pessoais
básicos do trabalho incorporam: a terra não é um simples fator de (obrigação de vender a um comerciante, atendimento a membros da
produção, as outras unidades produtivas não são apenas concorren­ família em caso de doenças, obrigações comunitárias de natureza
tes e os comerciantes não são só sanguessugas. ritual etc.) indicam justamente a maneira incompleta, parcial com que os
Redfield, Kroeber, Mendras, Wolf, expressões mais relevantes da mecanismos de mercado atuam e, portanto, os limites da própria razão
literatura sociológica e antropológica dedicada ao assunto entre os econômica no funcionamento das sociedades camponesas*.
anos 1930 e 1960, viam nos camponeses grupos sociais de transição entre A característica constitutiva do campesinato, conforme ensinou
sociedades tribais primitivas e o universo urbano. Por mais que se possa Chayanov, é a fusão entre a unidade de produção e a de consumo®:
criticar como evolucionista a idéia de continuum rural-urbano, pre­ é então em torno da família que os modelos de equilíbrio camponês
sente sobretudo nos trabalhos de Redfield^ ela aponta para um operam, como vimos nos Capítulos 2 e 3. Porém é nos mercados em
traço importante do campesinato que é a existência de códigos que se insere que se constitui, sob o ângulo econômico, a socialidade
sociais específicos determinantes da conduta, mas ao mesmo tempo camponesa. É portanto na maneira como vende os produtos de seu
a constatação de que — diferentemente de sociedades tribais, por trabalho e compra os elementos necessários a sua reprodução, nas
exemplo — estes códigos só podem ser compreendidos na maneira como estruturas determinantes de suas relações mercantis, que reside o
0 camponês se insere na sociedade global em que xnvc. segredo de sua organização econômica "interna". Aí se encontram
A antropologia clássica percebeu e debruçou-se sobre a diferença os fatores socialmente explicativos das racionalidades camponesas.
essencial entre sociedades camponesas e tribais. A parcialidade da Em trabalho recente, apoiado por muitos anos de experiência de
sociedade camponesa vem exatamente de que, embora organizada campo e de atividade docente sobre o tema, o economista Frank Ellis
em torno de códigos sociais próprios — cuja organização escapa à (1988) traz uma contribuição simples, mas decisiva a respeito. Além
razão estritamente econômica — ela se relaciona com o mundo de seu caráter familiar, do ponto de vista econômico, o campesinato
exterior, também através dos vínculos econômicos dados pela venda se define por dois outros traços básicos:
de mercadorias. 1. a integração parcial aos mercados e
Qual a base econômica desta inserção? É com muita freqüência 2. o caráter incompleto destes mercados.
que se caracteriza o camponês como produtor de mercadorias e
mesmo com a ajuda do conceito marxista de produção simples de *"{...} uma economia de mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado"
(Polanyi, 1944/1980; 72).
mercadorias. Existe aí um mal-entendido fundamental. A idéia de
^Dos escritos que conheço de Chayanov e Weber, nfío encontrei qualquer referência
produção simples de mercadorias exige a constituição de um merca­ de um ao outro. Apesar disso, são inúmeros os pontos em que convergem quase
do competitivo que se encarrega de imprimir aos produtos um selo literalmente. Webei-, por exemplo, insiste em que a separação entre negócio e consumo
social (seus preços) pelos quais são reconhecidos como partes alí­ familiar (que justamente não existe no campesinato) é a condição básica do capita­
quotas da divisão do trabalho. O funcionamento deste mercado lismo tanto na Ética Protestante como em Economia c Sociedade. O exemplo citado
por Weber, na Ética Protestante, mostrando como, numa situação tradicional, o aumen­
supõe laços impessoais entre os agentes econômicos (condição fun-
to da remuneração do trabalho tinha como principal resultado a redução no esforço do
trabalhador (Weber, 1905:37 e 38) é exatamente a aplicação da idéia chayanovista de
’ Cf., por exemplo, Pahl, 1966. balanço trabalho/consumo, mas sob uma inspiração sociológica e não microeconômica.
104 Os Limites da Rncioimlidade Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 105
Essa dupla caracterização indica, por um lado a exposição per­ mento capitalista na agricultura minavam as bases do ambiente no
manente do campesinato a forças de mercado, sua existência como qual o campesinato pode subsistir. O mercado acaba por substituir o
parte de um conjunto social ao qual se subordina, mas ao mesmo código que orienta a vida camponesa e por aí solapa suas possibili­
tempo ela aponta para a particularidade da integração social cam­ dades de reprodução social. É a um breve comentário a respeito da
ponesa: ela é parcial, não só no sentido de que parte da subsistência posição de Marx e Weber com relação ao nosso tema que será
vem da autoprodução, mas também indica uma certa flexibilidade dedicado o item d) deste capítulo.
nestris relações com o mercado, do qual o camponês pode freqüente- Convém salientar que, sempre que possível, procurarei exempli­
mente se retirar, sem, com isso, comprometer sua reprodução social. ficar as conclusões teóricas aqui alcançadas com base em estudos de
Além disso, esta caracterização aponta para o caráter imperfeito ou caso, boa parte dos quais realizados por equipes das quais parti-
incompleto destes mercados. É bem verdade, como lembra Ellis cipei^
(1988:10), que

b) S o c ied a d e s c a m po n e sa s
"em economia, a imperfeição de mercado é um conceito relativo
definido por comparação com um ideal hipotético, a competição O termo caiu em desuso e à primeira vista é até impróprio.
perfeita". Que as sociedades sejam capitalistas, socialistas, feudais, isso parece
indicar um conjunto de normas sociais, um certo nível de desen­
Por mais polêmica que seja a noção de competição perfeita em volvimento material, padrões de relação entre as pessoas e uma
plena época de economia mista, com o grau de intervenção do estrutura jurídica e política reveladora da dinâmica social. Mas
Estado em todos os setores da vida social, o particular às sociedades como é possível existirem sociedades camponesas se ninguém nun­
camponesas é que a transformação dos produtos em mercadorias ca ouviu falar, por exemplo, de um Estado camponês? Será que por
depende de vínculos, em geral personalizados, onde os preços são trás da expressão não se esconde uma imagem corporativa da vida
ditados por condições locais e as alternativas em torno da compra e social, como se pudessem existir sociedades metalúrgicas, bancárias,
venda praticamente inexistem^ como será demonstrado adiante, no ou até, de maneira mais geral, operárias, como se cada uma pos­
item c) deste capítulo. A natureza dos mercados é um dos atributos suísse regras próprias de funcionamento às quais se pudesse dar o
microeconômicos mais reveladores da vida social. Nos limites à nome de sociedade? Vejamos a questão mais de perto.
universalização dos mecanismos de formação dos preços reside E sobretudo a partir do trabalho do antropólogo norte-americano
uma particularidade essencial do campesinato. Robert Redfield que a expressão ganha estatuto científico no interior
Se o campesinato pode ser definido por sua integração parcial a das ciências sociais, no final dos anos 1940. Num estudo publicado
mercados imperfeitos, sua capacidade de sobreviver no interior de em 1956 (Redfield, 1956/1961a) ele mostra de maneira sugestiva
sociedades capitalistas será extremamente precária: o ambiente lhe como o camponês é convertido em legítimo objeto de estudo pela
será hostil. Sob ângulos distintos, tanto Marx como Weber perce­ antropologia. Vale a pena acompanhar seu raciocínio.
beram, neste sentido, a incompatibilidade entre campesinato e capi­
talismo, o fato de que as condições sociais geradas pelo desenvolvi- ^Entre 1977 e 1980 juntamente com Leilah Landim Assumpção, Maria Emília
Lisboa Pacheco, Jean-Pienv Leroy, Jorge Eduardo Saavedra Durão e Humberto Cunha
participei na FASE (Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional) de
"Naquele tempo, a produção era grande; o que não tinira era preço"; essa é uma uma equipe interdisciplinar que realizou uma pesquisa sobre a produção familiar em
observação recorrente dos agricultores por mim entrevistados, em pesquisa realizada regiões de fronteira agrícola, em áreas do Pará, do Maranhão e no sudoeste paranaense
no sudoeste do Paraná entre 1977 e 1980 (Abramovay, 1981), quando se referiam a seu (Convênio Finep/Inan/Fase, 1978a, 1978b, 1979a, 1979b). Não hesitarei em utilizar os
passado. Isso indica a inexistência, até o início dos anos 1960, de mecanismos de exemplos que o minucioso trabalho de campo realizado pela equipe trouxe à tona,
mercado nacionais ágeis e operantes. Produtos abundantes, mas que não chegavam a mesmo que as conclusões que hoje extraia destes casos não sejam exatamente aquelas a
ser vendidos, são a referência também de agricultores no norte do Paraná quando que chegamos dez anos atrás. Pessoalmente fui responsável pela pesquisa no sudoeste
falam dos anos 1940 e 1950 (Abramovay, 1984). do Paraná.
106 Os Limites cia Raciomlidadc Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 107
Em 1922, lembra Redfield (1956/1961a:7), Malinowski e Rad- É claro que no estudo, por exemplo, de uma comunidade de
cliffe-Brown publicam dois livros que se tomam "claramente o armênios morando em Boston, de pescadores malaios, ou da com­
padrão de pesquisa na antropologia social". Em que consiste este paração entre comunidades rurais norte-americanas e francesas, o
padrão? padrão de pesquisa é muito diferente daquele praticado por Mali-
"Cada antropólogo ia sozinho a um lugar remoto, morava numa nowski e Radeliffe-Brown. Há entretanto uma preocupação comum
que é, para usar a expressão de Margaret Mead, "o uso disciplinado
comunidade pequena e voltada para si própria (self-contained) e
da pequena sociedade primitiva como modelo conceituai"” .
retornava* para retratar uma cultura como um todo e como uma
O campesinato é um dos mais importantes casos aos quais este
totalidade que poderia ser compreendida como um sistema de
"modelo conceituai" se aplica, exatamente pelo fato de possuir
partes funcionalmente inter-relacionadas" (Redfield, 1956/1960a:7).
modos de vida que são específicos, mas por pertencer a um conjunto
Como bem ressalta da Matta (1983), Malinowski e Radcliffe- social onde é diretamente influenciado e mesmo dominado por
Brown inauguram na antropologia britânica a abordagem funciona- instituições nacionais e por elementos da vida urbana”. Quando os
lista, cujo traço básico residia na convicção de que as sociedades antropólogos norte-americanos estudavam tribos indígenas da
ditas "primitivas" possuíam racionalidade na sua organização so­ Califórnia ou das Grandes Planícies, não precisavam prestar muita
cial, que podia ser compreendida cientificamente como uma totali­ atenção, para compreender sua cultura, nas relações com as cidades
dade autodeterminada, onde cada manifestação material ou cultu­ modernas — a menos que estivessem interessados em explicar
ral tomava significado, relativamente ao papel por ela desempenha­ fenômenos como, por exemplo, a aculturação. Quando entram em
do na reprodução da sociedade em questão'’. contato com a América Latina, entretanto — e a primeira pesquisa
Esta abordagem — que contém não só um método, mas sobretu­ de Redfield (1930) foi realizada nos anos 1920 — os antropólogos
do uma teoria a respeito da vida social’“ — logo rompeu o confina- percebem conexões permanentes com a vida das cidades, ausentes
mento exclusivo das comunidades isoladas, prossegue Redfield entre os índios norte-americanos.
(1956/1960a:10):
"Na América Lativa, a antropologia mudou-se da tribo para o
" O antropólogo não estuda mais um primitivo isolado, não vê mais
campesinato" (Redfield, 1956/1960a;17).
somente comunidades que formam sistemas naturais voltados
para eles mesmos (self-contained) e não trabalha mais sozinho".
Mas é no quadro teórico e metodológico do funcionalismo que
esta mudança ocorre. Da mesma forma que os trobriandeses de
^Self-contained podería ser traduzido como autônoma ou também auto-suficiente, Malinowski ou os andamaneses de Radeliffe-Brown, os camponeses
Pi-eferi a formulação mais extensa "voltada para si própria" que evita a possível im­
pressão de isolamento com relação ao mundo exterior das outras duas traduções
formarão uma totalidade, provida de estrutura social, e, sobretudo.
aplicáveis ao termo.
’ "Estamos hoje muito longe da afirmação feita há muitos anos por uma célebre
autoridade que, ao responder a uma pergunta sobre as maneiras e os costumes dos ’Mpiííí Redfield, 1956/1960a:ll.
nativos, afirmou: 'nenhum costume, maneiras horríveis'. Bem diversa é a posição do "Com efeito, enquanto não existe a cidade, os camponeses também são inexis­
etnógrafo moderno que, armado com seus quadros de termos de parentesco, gráficos tentes; o que existem são os aborígines. Os camponeses são indivíduos rurais, autóc­
genealógicos, mapas, planos e diagramas, prova a existência de uma vasta organiza­ tones, que vivem na área de influência de uma cidade, com a qual mantêm relações
ção nativa, demonstra a constitutição da tribo, do clã e da família e apresenta-nos um econômicas e intelectuais. Ao contrário do aborígine, o camponês sabe que fora de seu
nativo sujeito a um código de comportamento e de boas maneiras tão rigoroso que, em grupo existem outros homens e os reconhece como tais. Os estrangeiros não são
comparação, a vida nas cortes de Versalhes e do Escoriai parece bastante informal" forçosamente encarados como inimigos; os povoados têm instituições específicas para
(Malinowski, 1922/1976:27). tratar com os estranhos ao grupo. Até uma data recente, os camponeses eram geral­
’“Procurei estudar as dimensões teóricas, metodológicas e epistemológicas domi­ mente iletrados (o aborígine, por sua vez, é um pré-letrado), mas cada aldeia dispunha
nantes na formação da sociologia rural como disciplina científica em Abramovay, sempre de especialistas sabendo ler e escrever, que asseguravam o contato com a
1990a. cidade e as autoridades" (Mendras, 1954/1969:34).
108 Os Limites dn Rnciomlidndc Econômica
Os Limites da Racionalidade Econômica 109
de uma cultura próprias. Seu envolvimento por um conjunto mais
amplo não elimina a natureza sistemicamente integrada de sua vida A aldeia, primeiramente, materializa o caráter comunitário da
social, mas faz dela uma totalidade parcial. É nesse sentido que, vida camponesa (Georgescu-Roegen, 1969). Assim como em torno
seguindo a orientação de Kroeber, Redfield (1956/1960a:18) coloca o da família forma-se a "morfologia" do campesinato, é na aldeia que
campesinato como sociedade parcial provida de uma cultura parcial e se define a sua "fisiologia" (Georgescu-Roegen, 1969). Apesar de a
define: organização econômica apoiar-se em unidades produtivas indivi­
duais, estas não estão isoladas nem se vinculam umas às outras
"Chamarei camponês quem tem ao menos estas características simplesmente através dos laços impessoais fornecidos pelo merca­
em comum: sua agricultura está voltada para a manutenção [their do. Por maiores que sejam as diferenças internas entre os campone­
agriculture is a Iwelihood] e é um modo de vida e não um negócio ses e outros agentes sociais fundamentais para a vida da aldeia
visando lucro (...) vê-se um camponês como um homem que tem (comerciante, padre, proprietário fundiário), é nos limites da comu­
o controle efetivo de um pedaço de terra ao qual se encontra ligado nidade que se opera o essencial da socialização camponesa:
há muito tempo por laços de tradição e sentimento".
"O camponês vive toda a sua vida e todos os aspectos desta em
Apesar do desmantelamento do paradigma funcionaiista nos uma coletividade local pouco numerosa que é uma sociedade de
anos 1960 (Gouldner, 1971), esta definição de Redfield permanece interconhecimento, isto é, ele ali conhece todo mundo e todos os
até hoje entre alguns dos mais importantes estudiosos da questão. aspectos da personalidade dos outros" (Mendras, 1974:15).
Num trabalho de grande influência, Shanin (1973:63-64), por exem­ A prática, tão típica em sociedades camponesas, de formas de
plo, resume: ajuda mútua no trabalho, por exemplo, é uma importante expressão
deste caráter personalizado das relações socitiis'^. Um caipira paulista
"Colocando num estilo telegráfico, delimitciremos campesinato entrevistado por Antônio Cândido (1964/1977:68) diz que
como uma entidade social com quatro facetas essenciais e interliga­
das: a unidade familiar comó a unidade básica multifuncional de "no mutirão não há obrigação para com as pessoas, e sim para com
organização social, trabalho na terra e normalmente com a criação Deus, por amor de quem serve o próximo; por isso, a ninguém é
de animais como o principal meio de subsistência, uma cultura dado recusar auxílio pedido. Um outro, referindo-se ao tempo de
tradicional específica diretamente ligada ao modo de vida das dantes, dizia que era o 'tempo da caridade' — justamente por essa
pequenas comunidades rurais e sujeição multidirecional a po­ , disposição urüversal de auxiliar na lavoura a quem solicitasse".
deres exteriores". Essas relações operam-se sempre num quadro de reciprocidade'^
cuja natureza nada tem a ver com a identidade objetiva envolvida na
O que há de especificamente camponês na definição de Shanin
reside em dois elementos básicos: a cultura tradicional e o modo de lúda
"Referindo-se ao município de Santo Antônio do Tauá, no Pará, os pesquisadores
de pequenas comunidades rurais^^. São estas as características que mar­ do Convênio Finep/Inan/Fase (19786:145-146) afirmam:
carão a particularidade do ambiente social no qual a economia
camponesa opera. Vejamos estas duas características, que na ver­ "Esses sistemas fundamentam-se em (e são fundamentadores de) redes de relações
dade funcionam em unidade indissolúvel. entre as unidades domésticas baseadas em laços familiares, de amizade e de
compadrio".

" Polanyi faz da reciprocidade um dos princípios estruturadores da vida social e


material em sociedades anteriores ao capitalismo. Ele abordou os comportamentos
"Estes dois aspectos foram abordados por Redfield no estudo da "pequena comu­ sociais que não obedecem às leis do mercado sob um ângulo histórico e não a partir de
nidade" (Redfield, 1956/19606), por um lado, e na oposição entre pequena e grande situações contemporâneas, embora cite exaustivamente Malinowski e Evans-Pritchard.
tradição, (1956/1960a). Apesar disso, suas reflexões sobre a questão da reciprocidade são essenciais:
110 Os Limites da Racionalidade Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 111
troca mercantil. É nesse sentido aliás que Firth (1969:23) propõe aos dorias. A ajuda, a reciprocidade e a caridade, para usar o termo do
economistas voltados ao problema do subdesenvolvimento, em im­ caipira entrevistado por Antônio Cândido, norteiam também as
portante conferência proferida nò final dos anos 1960, que se pense relações entre ricos e pobres: é nesse sentido, aliás, que Scott (1976)
sobre "...a matriz mstitucional da tomada de decisão econômica..." fala da "economia moral do camponês" que impõe aos poderosos
dos camponeses. Assim, para ele, obrigações com relação aos mais fracos cujo não cumprimento está
"trabalho familiar é um conceito de certa forma econômico [quasi- na raiz também de revoltas sociais. Um dos aspectos mais impor­
econontic] — só de certa forma porque os laços que unem os tantes por ele encontrado em seu estudo sobre sociedades campo­
membros da família num trabalho cooperativo não podem ser nesas do Sudeste Asiático é uma ética da subsistência onde a aldeia
compreendidos em termos de seus interesses econômicos comuns garcinte um sistema em que um mínimo de segurança para os mais
na produção e em seus resultados (...) economia camponesa é pobres tem como contrapartida uma certa estabilidade de sua su­
aquela que liga compradores e consumidores, alocação de recur­ jeição. Assim, direito à subsistência e reciprocidade são os dois princí­
sos e alocação de produtos numa rede de laços que são mais pios morais que regem a vida da aldeia’^.
pessoais, mais diretamente perceptíveis do que o seriam numa Também Redfield (1956/1960a:75) enxerga na comunidade cam­
economia complexa, desenvolvida" (Firth, 1969:25). ponesa papéis sociais agregadores de segmentos distintos:

Esta sociedade de interconhecimento funciona também no senti­ " (...) na história européia, até muito recentemente, nenhuma revol­
do vertical, não só entre camponeses, mas inclui todo o universo ta camponesa tinha a revolução como seu objetivo e (...) as relações
social com o qual se relacionam: o proprietário fundiário (em si­ prevalecentes entre o camponês e o seu senhorio não foram de
tuações de parceria), o comerciante, o emprestador de dinheiro’*, o opressor e oprimido mas antes (...) o camponês pensava que o rico
padre etc. Na verdade, só há especificamente campesinato onde um deveria ser generoso e o poderoso não deveria abusar de seu poder.
código de conduta partilhado comunitariamente, também por setores so­ O resentimento e o ódio ocasionais com relação a um homem rico
ciais antagônicos, seja estruturador da vida social. A pequena comu­ e poderoso parecem-me representar, globalmente, casos onde
nidade exige um comportamento cujas normas ultrapassam de mui­ alguém falhara em preservar a tradição e os papéis e estatutos
to as regras jurídicas envolvidas simplesmente na troca de merca- aceitos pelos senhores e pelos camponeses".

E num âmbito mais extenso, com base no estudo de seis re­


"A reciprocidade implica que os membros de um grupo agem com relação aos voluções camponesas contemporâneas, Wolf (1969) também encon­
membros de um outro grupo da mesma forma que os membros deste grupo, ou de tra a ética da subsistência como elemento básico da vida camponesa e
um terceiro, ou de um quarto, agem com relação a eles. Ela não envolve nenhuma
sua desagregação como fundamental para a explicação de movi­
idéia de igualdade, de justiça e não obedece a uma regra soberana. A reciprocidade
significa antes e unicamente que há um fluxo de dupla direção ou circular dq bens
mentos revolucionários.
(...). Os grupos provêem mutuamente suas necessidades no que se refere aos artigos É aliás em torno da ética da subsistência que tanto Wolf como
que entram nesta relação de reciprocidade" (Polanyi, 1957/1975:220). Scott concebem sociologicamente o elemento pelo qual Lipton ca­
racteriza a economia camponesa: a aversão ao risco’*. É exatamente
“ Na pesquisa realizada no sudoeste do Paraná, citada logo atrás constatei que os
agricultores referiam-se aos comerciantes, a quem no passado vendiam suas safras, a busca de segurança, num quadro compartido de obrigações de
sempre pelo nome. Eram muito freqüentes as situações em que o comerciante "ajuda­
va" o agricultor por uma doença e este retribuía tornando-se seu cliente. É claro que, "Estas elites deveriam assumir um papel idealmente protetor com relação aos
neste caso, a reciprocidade envolve provavelmente uma relação de dominação econô­ padrões comunitários de partilha" (Scott, 1976:41).
mica. O importante entretanto é o caráter personalizado e a sujeição desta relação a ’*No mesmo sentido, Forman (1975/1979:31) afirma:
normas de reciprocidade para que possa fimcionar. Em tempo: gerentes de banco ou
de cooperativas, no período atual, nunca eram tratados pelo nome, mas sim pela
"(...) o princípio básico organizador no setor camponês de economia é a maximiza­
função (Abramovay, 1981).
ção da segurança e a minimização do risco".
112 Os Limites cin Raciomiidnde Econômicn Os Limites dn Rncioimlidnde Econômiai 113
lealdade, dependência, reciprocidade, que explica a existência de
uma "renda alvo" [target income] para usar a expressão de Scott, Box 5 CONDE'
além da qual os camponeses tendem a limitar suas atividades pro­
dutivas e suas aspirações de consumo’'*. Em sua tipologia do Italp Çalv, esume çi clusão a que che
■wife'''
ceunpesinato latino-americano, Wolf (1955:458) concebe a comu­ dois anos^de pesquisas Ti origem ã coletânea “de
nidade rural como o elemento regulador^® de uma conduta contradi­ Táhuhis Itnhhnasf, por ele'c as e ’traduzidas d ^ v á r&
toriamente estabilizadora: rí 1 ne» vrm

"(...) a comunidade nivela (...) as diferenças de riqueza que pode­ e alimentada, consciências
riam intensificar as divisões de classe no interior da comunidade até nossos. ' ü i am2 .pilarinente a
em detrimento da estrutura corporativa e, simbolicamente, reasse­
gura a força e a integridade de sua estrutura aos olhos de seus
membros" ím^cbny4íB,„
ff^b''seu’’5aB^
A manutenção dos "...padrões tradicionais de consumo" (Wolf, tão realcaq|^ÎP< M fÍ9 5 6 / 1 9 9 i'
1955:460) exige até mesmo rituais de natureza reguladora entre os pacífico? Jnap podiam ip rá
quais se destaca a feitiçaria, atuando no sentido de evitar ostentação desesiierp.^Xoda? as:tar^ e| ;:^ g p ltà 'dp pasto.
de poder e riqueza que exerceriam um efeito disruptivo sobre a
comunidade local. derrubad.
com um soprò'.Ouímdq itcoîSaÿaxip encanto, o pobre

^depd o maia

implpmrap^iw 'foiYnflexivel: se^®e^^^-


a vocês meusspliíados par^im àr os Bosques, tenhò q^^êálr'*'
■ també'm junto, n in g u éS ^ erá^ '
à%J'feitS.%s-d
tfebs-caíyi^^esêlfe-
” Este é uiTi dos pontos básicos em que Firth (1951/1974:125) se separa da maioria
dos antropólogos de sua geração:
- decidem aatloí^am ai^ ^ único dos pocapãl
que apr,es^à% ^Ô ,her4ï
"uma observação mais cuidadosa conduz à opinião de que o camponês possui um se encontrava ria África ^
conjunto de necessidades altamente expansível. O que o tem impedido até agora de
satisfazê-las tem sido seus meios limitados".
syamírãútoria' do‘
\lciscn Aícircicil É?r<i ningiicn .qüe o próprio Coíi
Firth, na verdade, interessa-se muito mais pela mudança nas sociedades campone­ disfaiçava colocando sua i bacomocabeloídt
sas que na estabilidade de seu equilíbrio interno.
’“A comunidade é um fator decisivo na limitação às diferenças sociais no interior ^'b rj;èjte’env||Í
de uma sociedade camponesa para Eric Hobsbawn (1973:4): '.^teciqcyrl" -------------- '
u'Pfèso o C o u S ^ ^ ^ P
"(...) a característica dos camponeses tradicionais é um altíssimo grau de coleti­ ‘■*se.5'5v4
vidade formal ou informal localizada que tende tanto a inibir a diferenciação social
permanente dentro do campesinato, como a facilitar e até impor a ação comunal".
^íiinçhatmr p l j i r g e â 'Ï S é i a d e .ç ^ t í g a r - p ï
114 Os Limites dn Rndoimlidnde Ecoiiômicn Os Limites dn Rndoimlidnde Econômien 115
positiva; há ocasiões em que fatores étnicos, religiosos, são decisivos
em sua moldagem. Em outras — foi o que observei em meu estudo
sobre o sudoeste do Paraná (Abramovay, 1981) — a ética campo­
nesa é surpreendentemente secular. Mas sempre que se falar em
campesinato, a referência social determinante da conduta estará
numa pequena comunidade cuja reprodução material responde a
um conjunto de regras onde as ligações pessoais (e por vezes — mas
nem sempre — cerimoniais) são determinantes.
E sobre a base destes vínculos particulares à vida camponesa que
se estrutura a relação econômica que as unidades de produção
individuais mantêm com a sociedade como um todo. E o que será
visto a seguir.

C) A PARTICULARIDADE DOS MERCADOS


Nada mais distante da definição do modo de vida cam­
ponês que uma racionalidade fundamentalmente econômica. Ape­
sar disso, entretanto, o campesinato caracteriza-se não só por sua
organização social específica, mas pela forma como se insere na
sociedade global através de laços econômicos particulares. Esta é
Evidentemente, a universalidade do poder agregador da feitiça­ uma contradição própria a sua natureza social: embora a razão
ria é muito discutível. Apesar do valor empírico e heurístico dos econômica seja insuficiente para compreender seu modo de vida,
estudos citados acima, não há dúvida de que o funcionalismo — em como vimos acima, ele não é, sob o ângulo produtivo, auto-suficien­
que teoricamente se baseiam — estimula uma visão idealizada­ te. Neste sentido, o traço básico das sociedades camponesas é a
mente integrada da vida social. Não é difícil encontrar limites a esta integração parcial a mercados imcompleios. Examinemos estes dois
partilha de valores comuns por setores opostos; não é também tão aspectos.
óbvio que a ruptura desta partilha seja suficientemente explicativa Integração parcial ao mercado não é isolamente nem produção
de revoluções sociais. Da mesma forma, a condenação do consumo exclusiva de auto-subsistência. A idéia não envolve, tampouco, um
julgado supérfluo nem sempre é tão rígida como a pretendem Wolf gradualismo pelo qual o envolvimento com o mercado seria cada
e ScotF’ vez menos parcial até se tornar completo. O importante não é
O importante é que, quando se fala em campesinato, os dois simplesmente o autoconsumo que, no limite, existe em qualquer
elementos básicos apontados por Shanin estarão sempre presentes: unidade de produção agrícola^^, mesmo num estabelecimento capi­
a comunidade e a partilha de um conjunto de valores não decorren­ talista. O fundamental é a flexibilidade entre consumo e venda, em
tes simplesmente dos vínculos impessoais oferecidos pela objetivi­ função de circunstâncias ocasionais. A produção de mandioca no
dade das trocas mercantis. É difícil resumir estes valores de maneira Nordeste, por exemplo, responde a este critério de flexibilidade: o
Se Scott (1976) estudou o campesinato sob o ângulo da ética da subsistência, ^^Schlusselhuber (1989) constatou que na França contemporânea a produção auto-
Popkin (1979), ao contrário, procurou analisar os agricultores do Sudeste Asiático sob consumida representa dez por cento da produção comercializada. Quase quarenta por
o prisma do individualismo metodológico, inspirado fortemente na teoria da aç.ão cento do orçamento alimentar dos casais de agricultores é constituído por produtos
racional. Para uma exposição e um balanço da discussão entre eles, ver Abramovay, autoconsumidos. Praticamente todos os agricultores possuem uma horta, dois terços
1990b. dos suinocultores destinam seu produto ao consumo doméstico e a maioria da produção
francesa de coelhos é autoconsumida.
116 Os Limites da Raciomlidadc Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 117

agricultor pode "jogar" com as condições de mercado e optar pela A economia neoclássica identifica o "mercado perfeito" por al­
venda ou pelo consumo direto do produto em função da situação guns atributos básicos que Ellis (1988:10) resume:
momentânea e de sua expectativa com relação aos preços.
É claro que esta possibilidade, em princípio, se apresenta a "A concorrência perfeita enfatiza a neutralidade do mecanismo de
qualquer produtor mercantil, O que é característico do campesinato, preços e seu papel enquanto árbitro de todas as decisões econômi­
entretanto, é que sua opção não consiste simplesmente em escolher cas. Existem muitos compradores e vendedores tanto em merca­
o melhor momento para vender o produto — o que aliás, normal­ dos de insumos como de produtos. Nenhum consumidor ou
mente ele tiílo i>oiie fazer — mas sim no fato de que, caso o mercado produtor é capaz de influenciar o nível de preços por sua ação
não seja propício, o objeti\’o central de alimentar a família não estará individual. Há informação livre e precisa dos preços de mercado.
fatalmente comprometido. Esta flexibilidade explica assim a razão Há liberdade de entrada e saída em qualquer ramo da atividade e,
de a mandioca ocupar um espaço tão crucial na vida camponesa, em também, a competição assegura que os produ tores ineficientes são
detrimento, frequentemente, de produtos potencialmente mais ren­ eliminados da produção enquanto apenas os mais eficientes sobre­
táveis: como produto alimeirtar, ela amplia a margem de opção do vivem. Num modelo de concorrência perfeita nenhuma coerção,
camponês. Os estudos de Heredia (1979) e Garcia Jr. (1983) forne­ dominação ou exercício de poder econômico por alguns agentes
cem bons exemplos deste "cálculo camponês", por eles chamado de econômicos sobre outros, pode existir".
altemativiiiník. Comercializar a farinha de mandioca ou reservá-la
ao consumo familiar não significa que o mercado deixe de ser As sociedades camponesas são incompatíveis com o ambiente
levado em consideração, mas que o camponês atua segundo uma econômico onde imperam relações claramente mercantis. Tão logo
estratégia na qual o grau de sua integração ao mercado não é dado os mecanismos de preços adquiram a função de arbitrar as decisões
de antemão e é, neste sentido, parcial. referentes à produção, de funcionar como princípio aloca tivo do
O caráter parcial da integração ao mercado é permitido também trabalho social, a reciprocidade e a personalização dos laços sociais
pelo fato de que nem todos os meios de produção são comprados“ . perderão inteiramente o lugar, levando consigo o próprio caráter
Na maior parte das vezes, em sociedades camponesas, a relação do camponês da organização social.
agricultor com o mercado refere-se à compra de sua subsistência e à Por outro lado, uma das características centrais das sociedades
venda dos produtos de seu trabalho. Boa parte dos elementos mate­ camponesas é a formação localizada de monopólios na compra e
riais que entram no processo produtivo não foram convertidos em venda de produtos. A frequente existência de unidades comerciais
mercadorias, o que aumenta as chances da altemntividade. microscópicas no interior mesmo das comunidades camponesas
A alternatividade, entretanto, não é sinônimo de independência e nada têm a ver com a existência de "muitos compradores e vende­
soberania econômica por parte do produtor. Ao contrário, ela é a dores para insumos e produtos". Os "taberneiros", "bodegueiros",
reação a um ambiente econômico onde tudo leva o agricultor à mais "marreteiros", tão freqüentes em nossa paisagem rural, são, na
completa dependência pessoal daqueles pelos quais passa sua inserção verdade, prepostos de comerciantes mais poderosos que exercem,
na divisão social do trabalho. Nesse sentido, o caráter imperfeito dos eies sim, um poder de monopólio na compra e venda de produtos.
mercados é um elemento central na definição do campesinato. Exa­ O próprio estabelecimento destes microcomerciantes obedece tam­
minemos o problema com mais atenção. bém a um rígido esquema de patronagem. Ora, os comerciantes
maiores, com sua rede de prepostos locais, fazem o vínculo entre o
^"Lim itar as despesas em dinheiro com instrumentos e meios de trabalho é con­ agricultor e o mercado nacional: neste vínculo não há estrutura
dição básica de seu cálculo, para não depender a sua condição de pequeno produtor competitiva. O arroz do Maranlião é um exemplo típico: até o final
das flutuações do mercado dos produtos do seu trabalho" (Garcia, Jr., 1983:29). Esta é dos anos 1970, os pequenos produtores de arroz ligavam-se a usinei-
também uma característica que aponta como camponesa a sociedade existente no
ros locais que possuíam uma rede de microagentes comerciais no
sudoeste paranaense antes do inicio das politicas de modernização dos anos 1970: os
meios de produção não eram comprados (Abramovay, 1981). interior, capazes de captar-lhes o produto camponês. As próprias
118 Os Limites da Rnciomlidndc Econômica
Os Limites da Racionalidade Econômica 119
dificuldades de comunicações, transportes e informações propicia­ 2. Não é num quadro competitivo que os camponeses têm acesso
vam de fato um poder de monopólio àqueles que conseguiam abrir a irtsumos de origem industrial necessários a sua produção. Mais que
os caminhos por onde estes produtos integrariam os mercados isso, a obtenção de insumos passa pelos mesmos canais comerciais
nacionais^'*.
dos quais depende seu abastecimento em gêneros de primeira ne­
Isso significa que a integração dos camponeses ao mercado reali-
cessidade.
za-se em condições tais que, permanentemente, existe a influência
3. As informações sobre a situação de mercado são pobres e erráti­
individual de certos agentes econômicos sobre a formação dos preços,
cas, reforçando a dependência entre o camponês e os comerciantes
E é claro que os problemas de informação e infra-estrutura são
locais.
importantes na explicação do fenômeno. Mesmo numa situação de 4. Os critérios de ocupação e transferência de terras submetem-se a
relativa prosperidade dos agricultores, como encontrei na história regras estabelecidas no âmbito da comunidade local.
do sudoeste paranaense antes dos anos 1970 (Abramovay, 1981), os
5. As dificuldades de transporte e comunicação reforçam o poder
agricultores enti-egavam o produto ao comerciante e só tomavam
dos comerciantes locais sobre os camponeses.
conhecimento do preço depois que o comerciante voltava dos mer­
cados consumidores de Porto Alegre ou São Paulo.
O próprio caráter comunitário da vida camponesa, além da exis­ Vejamos alguns exemplos de cada um destes tópicos.
tência de fatores de natureza extra-econômica regendo o uso dos 1. Por maior que seja o monopólio de grandes grupos econômicos
recursos materiais de produção e consumo, bloqueiam a livre entra­
operando junto, por exemplo, a produtores de pequenos animais
da e saída dos produtores e não elevam a eficiência a critério
integrados à agroindústria contemporânea, o fato é que, normal­
importante de sobrevivência econômica. Aqui, muito mais impor­
mente.
tante que a capacidade competitiva típica em uma estrutura concor­
rencial de mercado, é a formação da cadeia de patronagem, clien-
"o crédito é ábundantemente disponível por parte de mercados
telismo e dependência em que a reprodução camponesa se apóia.
financeiros desenvolvidos (bancos, agências de crédito etc.) num
É claro que a noção de concorrência perfeita pode ser considera­ mercado competitivo de taxas de juros" (Ellis, 1988:11).
da uma construção utópica incompatível com a existência de fato,
nos dias de hoje, de um forte poder oligopolista de grandes gmpos As taxas de juros respondem tembém a critérios nacionais dados
econômicos. As estruturas e o funcionamento dos mercados em que por um conjunto de variáveis ligados à política macroeconômica, de
estes grupos se apóiam são porém radicalmente distintos daqueles maneira, portanto, completamente independente de circunstâncias
que caracterizam o ambiente em que vive o campesinato. Ellis cita locais.
cinco aspectos básicos para os quais é possível encontrar exemplos No ambiente econômico em que vive o campesinato, ao contrário,
bastante reveladores em estudos de caso brasileiros:
1. O mercado de capitais e crédito é fragmentário ou inexistente. O "os mercados de capitais são fragmentários ou não existentes, o
crédito é obtido de fontes locais e liga-se a condições pessoais de crédito é obtido dos senhores locais, dos comerciantes ou dos
dominação dos proprietários de terras e/ou dos comerciantes sobre emprestadores de dinheiro a taxas de juros que refletem as cir­
os camponeses. cunstâncias individuais de cada transação e não uma clara con­
dição de mercado" (Ellis, 1988:11).
Os usineiros de arroz são
Um dos exemplos mais claros desta situação é a prática até hoje
"provavelmente os agentes que mais se apropriam do excedente gerado, além de generalizada no nordeste e no norte do Brasil de venda "na palha"
serem os que definem algumas das condições vigentes no mercado local, principal­ ou "na folha": o comerciante compra antes mesmo da colheita — às
mente o preço de compra e o montante transacionado (Maluf, 1977:29).
vezes no momento do plantio — a produção do camponês por um
Os Limites da Racionalidade Econômica 121
120 O i Limites da Riiciaiialidadc Econômica

preço evidentemente muito inferior ao prevalecente no mercado. cortasse esse arroz, com mais tempo lá na frente entregar, não
Esta venda permite ao produtor financiar seu consumo até o mo­ sabe?" (Convênio Finep/Inan/Fase, 1979a:25).
mento da colheita, quando sua safra estará empenliada para este
comerciante. No Baixo Tocantins (Pará) a própria formação do circuito de
Na verdade, neste caso, as figuras do comerciante e do empresta- comercialização dos produtos depende de vínculos pessoais:
dor de dinheiro encontram-se fundidas num só personagem. Dada a
própria miséria do agricultor e sua necessidade vital do crédito para "O comerciante lá de Belém trava conhecimento com uma pessoa
sobreviver até o momento da colheita, não é difícil perceber que, que esteja por dentro da área, em geral uma pessoa de certa
nestas condições, ele não tem outra chance senão entregar-se nos influência nos povoados. Aí entrega a ele uma certa quantidade de
braços do comerciante/usurário. Mesmo aqueles que conseguem dinheiro para ele financiar a pimenta e depois receber, sendo que
escapar desta dependência, nela mergulham tão logo um problema o comerciante fixa o preço que quer receber pela pimenta. Por
de saúde — e portanto a necessidade de dinheiro — se abata sobre a exemplo, entrega o dinheiro e diz: na safra a pimenta será compra­
família. da a Cr$ 21,00. Aí esse preposto executa todo o processo e depois
E neste sentido que, referindo-se a Santo Antônio do Tauá, Pará, leva uma comissão. Agora ele pode, por sua vez, tentar comprar a
os pesquisadores do Convêflio Finep/Inan/Fase (1978b:156-157) pimenta por menos, por exemplo, por Cr$ 20,00). Então, além da
ressaltam comissão ainda fica com esse pequeno lucro, no caso de conseguir
comprar a pimenta por menos" (Convênio Finep/Inan/Fase,
"a importância do pequeno comerciante, como agente capaz de 1979a:39).
garantir-lhe (ao agricultor) o crédito de que possa vir a necessitar,
através não só do sistema de vendafiado, como também através do E claro, neste sentido, que o financiamento da produção cam­
fornecimento de pequenas somas de dinheiro. Observe-se que a ponesa não é uma operação que possa ser compreendida dentro de
precariedade de recursos em que vive o lavrador faz com que um mecanismo tipicamente de mercado. Em primeiro lugar, como
qualquer imprevisto que perturbe o andamento quotidiano de seu se vê pela entrevista acima, o preposto do comerciante é "uma
trabalho — como, por exemplo, uma doença — possa acarretar a pessoa de certa influência nos povoados": o mercado é personifica­
impossibilidade de suprir sua família dos bens de subsistência do em relações particulares. Além disso, o comerciante e o empres-
que lhe são necessários. Daí a importância do estabelecimento da tador de dinheiro são normalmente uma figura só. Esta fusão existe
relação d e freguesia com um comerciante: uma relação de patro- não só no Pará e no Maranhão, mas também — no período anterior
nagem baseada na fidelidade da compra, pelo lavrador, em deter­ à difusão das instituições vinculadas ao Sistema Nacional de Crédi­
minado estabelecimento comercial (sendo que a fidelidade tam­ to Rural — no sudoeste do Paraná, embora esta fosse uma região
bém na entrega de seu produto dependerá do interesse do comer­ bastante próspera.
ciante em que isso seja feito)". Neste sentido, é impossível saber exatamente quais eram as taxas
de juros“, mesmo porque o adiantamento de produtos não aparece
Os vínculos de pessoa a pessoa envolvidos na "venda na palha" explicitamente como empréstimo, mas como contrapartida a uma
ficam nítidos também neste trecho de entrevista realizada em Santa espécie de cessão de direito. Um traço também generalizado nestes
Luzia, Pindaré-Mirim, Maranhão, em que o agricultor explica por
0 usiirítrio pode aqui devorar todo o excedente, só deixando os mais neces-
que vende só para um comerciante:
siirios meios de subsistência (o montante que mais tarde constituir.i o salário) aos
produtores (o que mais tarde reapaiece como lucro e renda fundiária), sendo por isso
"Porque às vez o sujeito, é o seguirrte, aquilo depende daquele extremnmente absurdo comparar a grandeza desse juro ali onde ele abrange, com
que realmente serve a gente na hora de maior necessidade, não exceção do que cabe ao Estado, a mais-valia toda, com a magnitude da taxa de juros
sabe? E, foi o que comprou o arroz na folha. Para depois que eu moderna..." (Marx, 1894/1986:108).
122 Os Limites dn Racionalidade Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 123
casos — convém enfatizar — é que a "sociedade de interconheci- quando chega a safra aí entrega pro comércio, desconta o que
mento pessoal" (para usarmos a expressão de Mendras) é decisiva tirou e devolve o lucro" (Convênio Finep/Inan/Fase, 1979a:42).
no funcionamento deste sistema. As circunstâncias pessoais (neces­
sidade, doença etc.) e seu conhecimento minucioso por parte dos Nesta situação, convivem estruturas de mercado verdadeira­
agentes envolvidos na operação são básicas para que as relações de mente paralelas. É óbvio que o financiamento da pimenta é feito
dependência envolvidas nas situações de troca possam efetivamente também por agentes de um sistema financeiro estruturado segundo
aparecer como manifestações de reciprocidade. os moldes nacionalmente dominantes. Só que nem todos os agricul­
2. Para um estabelecimento agrícola operando numa "economia tores conseguem o acesso a este sistema, seja por não disporem da
industrial de mercado" (Ellis, 1988:11), insumos diversificados são propriedade da terra, seja por não despertarem nos bancos a con­
disponíveis em quantidades suficientes para a procura dos agricul­ fiança de que desfrutam agricultores de maior porte. Com isso
tores G por vendedores competitivos. Um exemplo disso, no sudoes­ formam-se até mesmo situações onde
te do Paraná, hoje, é a visita freqüente que os agricultores recebem
de vendedores de fertilizantes e pesticidas e as tentativas até mesmo "o comerciante recebe o adubo financiado pelo Banco para supos­
de "empurrar" o produto elevando seu uso acima até das neces­ tas plantações e o revende para o pequeno produtor, fiado, com
sidades das lavouras. Por mais que seja possível falar em estrutura juros altíssimos" (Convênio Finep/Inan/Fase, 1979a:43).
oligopolista nas indústrias petroquímicas e de fertilizantes em vá­
rios de seus segmentos, o fato é que, na comercialização do produto, Por mais que esse seja um caso extremo, o importante é a existên­
há uma prática de competitividade. cia, ao lado de uma agricultura funcionando segundo os mecanis­
É totalmente distinta a situação nas sociedades camponesas. Em mos nacionais de mercado, de uma ampla camada de produtores
primeiro lugar, o produto freqüentemente não está disponível e, cuja pobreza impede o acesso ao crédito, obriga o uso de emprésti­
quando existe, passa pelas mãos dos circuitos comerciais que aca­ mos junto a comerciantes locais e favorece a reprodução — neste
bamos rapidamente de descrever. Os insumos nãoformam um segmen­ caso, evidentemente, num processo de deterioração acelerada — da
to autônomo de mercado, mas compõem um conjunto de condições objeti­ estrutura econômica típica da sociedade camponesa. Os mecanismos
vas da reprodução material ao qual o camponês só tem acesso quando se de mercado característicos da vida camponesa alimentam-se assim, na
submete aos vínculos de dependência que o ligam ao comerciante/iisurário. maior parle dos casos, da pobreza dos agricultores, tanto quanto sua
Este ponto é importante porque o uso de insumos de origem reprodução miserável conta com as estruturas imperfeitas pelas quais seus
industrial não é incompatível com o campesinato. Em situações produtos se tornam mercadorias^'’. Isto é tanto mais verdadeiro quanto
típicas d e cash-crop os agricultores financiam, além de sua própria mais os mercados imperfeitos convivem ao lado de mecanismos
subsistência, parte dos meios de produção. Forma-se aí a situação mercantis nacionalmente e internacionalmente integrados.
paradoxal de agricultores produzindo para o mercado internacio­ 3. Um dos elementos cada vez mais importantes nas operações
nal, em condições porém em que sua existência econômica fica econômicas de uma sociedade moderna é a rapidez das informações.
inteiramente na dependência das circunstâncias locais em que vi­ Por maior que seja o poder manipulador sobre os preços de uma
vem. É típico, neste sentido, o caso da pimenta-do-reino na região agroindústria ou de uma cooperativa, há limites a esta prática dados
do Baixo Tocantins, no Pará, onde a venda "na folha" é praticada pela rapidez das informações; as cotações das principais connnodities
amplamente. O trecho de uma entrevista com um agricultor é re­ são divulgadas nos grandes meios de comunicação. Em trabalho de
velador, neste sentido: campo realizado em 1988 na Alta Araraquarense (SP), surpreendi-

"Para arrumar patrão é só chegar e dizer: eu tenho tantas pi­


“ A usura "(...) não altera o modo de produção, mas suga-o como parasita, e o torna
menteiras, não tenho adubo, não devo pra ninguém, qualquer miserável. Ela o esgota, enerva e força a reprodução a prosseguir em condições cada
um dá o adubo, dá o dinheiro para ajudar nos serviços que falta. vez mais lastimáveis" (Marx, 1894/1986:108).
124 Os Limites cia Racionalidade Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 125
me ao perceber a atenção de um produtor familiar de laranja ao nacionalmente vigentes sobre as transferências de propriedades. Na
noticiário econômico na televisão e particularmente para as cotações verdade, as sociedades camponesas montam um sistema jurídico
do dólar norte-americano: sua safra já estava vendida antes mesmo próprio a reger suas operações econômicas, particularmente cons­
da colheita para uma grande indústria do ramo. Nada entretanto se trangedor no que se refere ao uso do solo. Referindo-se a produtores
assemelhava à venda na folha. O preço fora fixado de antemão em de arroz e babaçu no Maranhão, Soarés (1981:75) mostra que
dólar, protegendo o agricultor contra a desvalorização da moeda. A
"(...) apesar de as terras serem comunais, não só as roças são
indústria financiava exclusivamente os meios de produção do agri­
cultor, e não seu consumo familiar, respeitando, porém a situação 'direito' adquirido pelos lavradores que as cultivaram, como sua
existente no mercado de crédito. Não havia qualquer tipo de vínculo utilização lhes garante, uma vez abandonadas, o 'direito da ca­
poeira', isto é, o direito sobre as terras em descanso temporário. Ou
pessoal na operação e a indústria, no caso, não estava sequer sedia­
seja, lhes é reconhecida a prioridade no caso de se voltar a empregá-
da na região. E as informações com relação a tecnologias eram não
só abundantes, como o uso dos mais modernos métodos de produção las. Por suposto, este 'direito' depende da aquiescência coletiva e,
portanto, se sustenta nas relações que o interessado mantém com
estimulados.
os demais atores envolvidos".
Salta aos olhos a diferença com relação à situação tipicamente
camponesa onde as informações sobre preços e tecnologias são Num sentido semelhante, Marc Bloch (1968:201) revela que a
pobres, fragmentadas e ficam em grande parte à mercê dos comer­ desagregação das sociedades camponesas típicas do feudalismo
ciantes. francês passa pela eliminação de um conjunto de "servidões coleti­
4. A transformação da terra em equivalente de mercadoria é uma vas" que iam das pastagens comuns ao direito ao glanage (ato de
das características básicas da formação de uma agricultura capita­ recolher nos campos, após a colheita os grãos que escaparam aos
lista. Nas estruturas tipicamente capitalistas de mercado colhedores) e que, todos, limitavam a soberania do indivíduo sobre
o uso do solo.
"há um mercado livre dc terras de maneira a que exista potencial
É verdade que nos países capitalistas avançados — sobretudo na
para novos ingressantes iniciarem a atividade agrícola e os mal­
Europa Continental — os limites à soberania do indivíduo sobre o
sucedidos deixarem-na" (Ellis, 1988:11).
uso e a própria venda da terra fazem dela um bem que escapa às
Veremos na Parte II deste trabalho que é seguramente exagerada regras vigentes na comercialização das mercadorias em gercü, como
esta afirmação de Ellis: nos países capitalistas avançados, a inter- será visto no Capítulo 7 (item e ). A regulação destes limites porém
ferôiicia tanto do Estado como das organizações profissionais não — e esta é a diferença central com relação às sociedades camponesas
permite que se fale de um livre mercado de terras. Além disso, o — se faz com base em critérios nacionalmente estabelecidos, em
ingresso de novos agricultores na atividade passa por um conjunto discussões que extrapolam a comunidade local, passando não só
de regras que nem de longe se reduzem às cjue prevalecem normal­ pelas associações profissionais, como pelas municipalidades e o
mente na compra e venda de mercadorias. próprio poder central.
Apesar disso, entretanto, é nítida a diferença entre o processo de 5. Já apontamos a pobreza dos produtores como uma das bases
ocupação e transferência de terras numa sociedade capitalista e em sociais em que se apoiam os mercados imcompletos próprios às
situações onde é predominante o peso do campesinato. Os inúmeros sociedades camponesas. Há situações entretanto em que, mesmo no
casos estudados por Martins (1979; 1980:45-66) e condensados no quadro de uma certa abundância, no qual as necessidades funda­
termo terra dc. trabalho mostram bem como, numa sociedade cam­ mentais das famílias estão preenchidas, o capital mercantil e usurário,
ponesa, os critérios de uso do solo podem ser particulares. O uso da para usar os termos de Marx, domina a produção. Em geral, o
terra responde a um conjunto de normas sociais sobre as quais a isolamento das comunidades, a dificuldade de suas comunicações
comunidade tem um poder decisório superior ao do indivíduo com o exterior, favorecem situações em que operam com grandes
isoladamente e que extrapolam, freqüentemente, as próprias regras vantagens aqueles comerciantes que conseguem formar uma rede
126 Os Limites dn Rnciomlidnde Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 127
de compra e venda que rompa as barreiras que separam a comu­ círculo social em que se reproduzem e metamorfoseiam-se numa
nidade em questão da sociedade nacional. Detentor dos caminhos nova categoria social: de camponeses, tornam-se agricultores profissio­
pelos quais passa esta rede, é claro que o comerciante/usurário nais. Aquilo que era antes de tudo um modo de vida converte-se
exercerá o poder econômico decorrente de sua situação de monopólio. numa profissão, numa forma de trabalho^. O mercado adquire a
Um dos mais típicos exemplos, neste sentido, é o aviamento ca­ fisionomia impessoal com que se apresenta aos produtores numa
racterístico das regiões ribeirinhas da Amazônia. sociedade capitalista. Os laços comunitários perdem seu atributo de
condição básica para a reprodução material. Os códigos sociais
partilhados não possuem mais as determinações locais, por onde a
Com base nestas características, Ellis (1988:12) fornece uma conduta dos indivíduos se pautava pelas relações de pessoa a pes­
definição de camponeses que contribui para distingui-los não só de soa. Da mesma forma, a inserção do agricultor na divisão do tra­
capitalistas agrários e assalariados rurais, mas também daqueles balho corresponde à maneira universal como os indivíduos se so­
estabelecimentos familiares que operam em mercados de produtos e cializam na sociedade burguesa; a competição e a eficiência conver­
fatores plenamente desenvolvidos — a cujo estudo será dedicada a tem-se em normas e condições da reprodução social.
Parte II deste trabalho;
"Camponeses são unidades domésticas [peasants are farm house­ d) C a p it a l is m o e c a m pe sin a t o

holds] com acesso a seus meios de vida na terra, utilizando princi­ A incompatibilidade frontal entre o campesinato e o am­
palmente trabalho familiar na produção agropecuária, sempre biente social e econômico capitalista foi posta em evidência tanto
localizadas num sistema econômico global, mas fundamental- por Marx em suas rápidas anotações a respeito, como por Weber
mente caracterizadas pelo seu engajamento parcial em mercados (1906/1979) em sua célebre conferência nos Estados Unidos. A
que tendem a funcionar com alto grau de imperfeição". questão examinada por Ellis sob a expressão "mercado incompleto
Não é apenas a base técnica do processo produtivo que distingue ou imperfeito" tem estreita relação com a estudada por Marx em
o citricultor da Alta Araraquarense do camponês do Pindaré-Mirim. suas rápidas anotações, no Livro Kf d '0 Capital, sobre as "formas
O que mostra a definição de Ellis é que pela maneira como socializa antediluvianas do capital". Ellis coloca ênfase nos mecanismos de
o produto de seu trabalho é que o camponês se define enquanto formação de preços característicos destes mercados. Marx vai mos­
categoria específica. A ênfase no mercado não reduz a importância trar que as classes sociais que neles se apropriam do trabalho e do
das condições de produção do agricultor. Mesmo em situações onde produto excedente não são especificamente capitalistas e atuam
os mercados de produtos, fatores, crédito etc. se integram nacional­ sobre a base de um tipo de vínculo entre produtores e o mercado,
mente, nem todos os agricultores a eles conseguem acesso. Muitos incompatível com o desenvolvimento da sociedade burguesa. Neste
vêem-se empurrados pela própria miséria a perpetuar-se nos laços sentido, é importante assinalar que, mesmo não existindo em Marx
particulares de dependência que fazem de sua inserção na divisão uma teoria sobre a economia camponesa, há indicações fundamen­
social do trabalho o objeto de uma relação localizada de monopólio. tais sobre o ambiente social no qual ela pode se reproduzir:
É o caso dos produtores de pimenta do Baixo Tocantins, no Pará,
cujos produtos dirigem-se aos mercados internacionais e cujos insu- ^ Em 1969 Maria Isaura Pereira de Queiroz publicou uma coletânea na qual
mos são em grande parte de origem industrial, mas cuja reprodução apontava para esta questSo então central na sociologia rural dos países capitalistas
depende dos vínculos pessoais de patronagem e clientela caracterís­ avançados. Ela mostra, nestes casos, a decadência de um "gênero de vida": toma o
lugar do camponês
ticos do capital mercantil e usurário.
Outros, ao contrário — é o que ocorreu de maneira intensa no sul "(...) uma profissão, a do agricultor, que não produz mais cm primeiro lugar para
viver {como acontecia com o camponês), e sim para vender num mercado regional,
do Brasil — integram-se plenamente a estas estruturas nacionais do
nacional ou internacional" (Queiroz, 1969:9).
mercado, transformam não só sua base técnica, mas sobretudo o
128 Os Urnilcs da Racionalidade Econômica Os Limites da Racionalidade Econômica 129

sociais, a instauração do cálculo econômico racional como critério


"O capital usurário como forma característica do capital portador das relações materiais entre as pessoas não permitem que o caráter
de juros corresponde ao predomínio da pequena produção, dos localizado e tradicional do campesinato sobreviva. O capitalismo é
camponeses que trabalham para si mesmos e dos pequenos mes­ por definição aiwsso a qualquer tipo de sociedade e de cultura parciais.
tres-artesãos" (Marx, 1894/1986:108). Nesse sentido, a previsão de Marx de que a grande empresa
capitalista se generalizaria na agricultura, tanto quanto na indústria,
Por mais explorado que seja o produto de seu trabalho, mesmo possui ao menos uma virtude histórica: as formas de produção
que classes de não trabalhadores vivam dos resultados do seu familiar existentes em seu tempo exprimiam, antes de tudo, sobre­
esforço, e ainda quando se inserem em circuitos mercantis, não é vivências de um passado que o desenvolvimento capitalista se
possível que se tome o campesinato como um setor social sobre cuja encarregaria mais ou menos rapidamente, mas inelutavelmente, de
base possa ocorrer a acumulação capitalista. É claro que o capital remover.
mercantil e usurário prospera comprando a preços aviltados o produ-,' O que Marx não podia antever, que estava totalmente fora de sua
to do camponês. Mas ele realiza aí justamente o que Marx chamava perspectiva teórica, é que o extermínio social do campesinato não
de profit upon alicniition, forma de enriquecimento característica de significaria fatalmente a eliminação de qualquer forma de produção
um período histórico em que o capital não revolucionou o conjunto familiar como base para o desenvolvimento capitalista na agricultu­
da vida social. E é seu tipo específico de inserção mercantil — em ra. Sua concepção sobre a vida social, como vimos no Capítulo 1 —
que a universalidade impessoal das relações burguesas está ausente, bem como o horizonte histórico em que trabalhou, no qual pratica­
em que o processo de dominação é extra-econômico — que dá mente inexistia o fenômeno contemporâneo da produção familiar
possibilidade de existência desta categoria social que Marx raão totalmente integrada ao mercado e ao desenvolvimento capitalista,
hesitava em tratar como a "classe que representa a barbárie dentro que será nosso objeto nos capítulos a seguir — sua concepção teórica
da civilização". só permitia que estabelecimentos baseados na oposição entre capital
Neste sentido, a insistência de Marx e dos clássicos da questão e trabalho se encarregassem de imprimir universalidade à atividade
agrária que o sucederam na fatal desaparição do campesinato sob o agrícola, de integrá-la à divisão do trabalho e desenvolvê-la tecnica­
capitalismo é não apenas consistente com suas teorias, mas funda­ mente. O trabalho individual, familiar, representava, para ele, um
mentada historicamente. Tão logo os vínculos de mercado, as grandes estágio inicial, primitivo, no próprio avanço das relações de merca­
empresas e as instituições nacionais tomam conta da vida da aldeia, do. Tão logo o mercado tomasse conta do conjunto da vida social, a
as bases sociais da existência camponesa se esvanecem. Na pesquisa contradição embutida na mercadoria entre a natureza ao mesmo
que realizei no sudoeste do Paraná, isso era nítido. A chegada tempo social e privada do trabalho tomaria corpo em classes sociais
simultânea à região, no final dos anos 1960, dos bancos com o antagônicas. E nesse sentido, não havia qualquer razão a que a
crédito rural — cujas taxas eram determinadas nacionalmente — agricultura escapasse ao movimento geral cio capitalismo.
dos vendedores de máquinas e insumos — que abriam a possibili­ Max Weber também insistiu na diferença central entre o camponês
dade de transformações técnicas aceleradas e em larga escala — e europeu e o agricultor norte-americano; enquanto na Europa a de­
das cooperativas — que integravam o agricultor aos mercados pendência das decisões comunitárias e dos vínculos tradicionais
internacionais de produtos — com tudo isso, a vinculação clientelís- determinavam as possibilidades de ação, nos Estados Unidos im­
tica aos comerciantes, que fornecia um dos pilares da reprodução perava o mais absoluto individualismo econômico. Isso não se
camponesa, perdia sua base objetiva“ . A ampliação dos horizontes devia a qualquer traço atávico das culturas recíprocas destes povos,
“ Maluf (1988:274) também mostra a
mas ao fato de que

" redução do espaço de reprodução do capital usurário — via de regra associado ao


"na América, o agricultor produz para o mercado. O mercado é
capital comercial tradicional — substituído pelo crédito oficial". mais antigo do que ele na América (...) na Europa, o mercado é
mais novo do que o produtor" (Weber, 1906/1979:415).
130 >Os Limites da Racionalidade Econômica Os Liiiilles dn Racioiuilidnde Ecniwmicn 131
Tanto Marx quanto Weber então, com base em perspectivas diferença de natureza social entre o campesinato e a produção familiar
teóricas distintas, viram o abismo que separa o camponês do am­ característica dos países centrais e que será estudada na Parte II
biente econômico e social próprio ao capitalismo. Weber não foi tão deste trabalho. O ambiente no qual se desenvolve a agricultura
categórico quanto Marx no sentido de enxergar na oposição entro familiar contemporânea é exatamente aquele que vai asfixiar 0
trabalhadores assalariados e capitalistas rurais a forma dominante camponês, obrigá-lo a se despojar de suas características constituti­
de produção no campo. O que nem um nem outro poderiam porém vas, minar as bases objetivas e simbólicas de sua reprodução social.
adivinliar é que a paisagem rural do mundo capitalista contempo­ 4. Aí reside então a utilidade de uma definição precisa e específi­
râneo seria dominada por uma forma de produção baseada na ca de camponês. Sem ela é impossível entender o paradoxo de um
família, mas inteiramente despojada de seus traços camponeses sistema econômico que, ao mesmo tempo em que aniquila irreme­
ancestrais. A esta forma e seu futuro na sociedade moderna é diavelmente a produção camponesa, ergue a agricultura familiar
dedicada a Parte II deste trabalho. como sua principal base social de desenvolvimento.

e) R e su m o e c o n c l u sõ es

1. É impossível um conceito positivo e rigoroso de cam­


ponês no interior da teoria marxista, pelo que vimos no Capítulo 1.
O resultado alcançado até aqui mostra que se trata mais de um
limite da teoria que do próprio campesinato: nos Capítulos 2 e 3
foram expostos elementos teóricos explicativos do campesinato, sob
o ângulo principalmente das determinações internas à organização
da família. Agora pudemos estudar o ambiente em que a lógica
camponesa opera.
2. Não se pode compreender o campesinato com base na idéia de
comportamento econômico. A antropologia clássica voltada ao tema,
sob o termo de sociedades camponesas, revelou justamente a natureza
incompleta da racionalidade econômica do camponês. São sobretudo os
laços comunitários locais, os vínculos de natureza personalizada e o
caráter extra-econômico das próprias relações de dependência so­
cial que explicam as particularidades do campesinato. Os fatores
"internos" estudados nos Capítulos 2 e 3 só podem operar em um
ambiente social, cultural e econômico específico. Isso quer dizer que
a organização familiar é uma condição necessária, mas nem de longe
suficiente, para a existência das condutas que tanto Chayanov como
a economia neoclássica dos anos 1960 contribuíram para desvendar.
3. Em outras palavras, é possível e útil uma definição conceituai
rigorosa de camponês. Para isso, deve-se examinar com atenção a
maneira pela qual se dá a inserção das famílias no quadro da divisão
social do trabalho. Tanto a venda das safras, como a compra de
insumos passam por uma integração parcial a mercados incompletos,
para retomarmos os termos de Ellis (1988). Por aí se estabelece uma

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