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A DISCIPLINA MÉDICA E A PERMANÊNCIA DE FOUCAULT

José Pedro Rodrigues Gonçalves1

A – A HISTÓRIA

Este trabalho busca refletir sobre o disciplinamento que a Medicina tenta e, na maioria
das vezes, acaba impondo à sociedade na medida em que estabelece normas protocolares de
direcionamento e ordenamento da vida social. Seu pressuposto teórico se ancora na Teoria
Social Contemporânea, especialmente em Michel Foucault, que mapeou o caminho
metodológico e epistemológico do que ficou conhecido como genealogia e arqueologia do
saber.
Primeiramente um pouco de história. Fomos buscar em Luc Boltanski (1979, p. 28) a
compreensão que “... o usuário da medicina familiar hoje não esquece nunca o caráter ilegal
que executa ou pelo menos, que só tem o direito de executá-los por procuração”, diferente do
usuário antigo, que desconhecia a origem científica do conhecimento médico. Esse fato
implica que, antes, não havia a compreensão de que a utilização de um conhecimento da
medicina, sem a devida autorização, poderá sofrer algum tipo de sanção. Boltanski lembra
que “ninguém tem o direito de ignorar a lei” da mesma forma que ninguém pode ignorar a
existência de uma ciência médica, e completa – “conhecimento de especialista submetido à lei
do progresso que a instituição escolar é a única com direito de transmitir”. Trata-se de uma
defesa do chamado ato médico e, provavelmente, uma forma de garantir o seu espaço de
atuação.
Eis a primeira questão – o saber médico só pode ser transmitido através de uma escola,
mas o autor esclarece que a medicina não é um objeto de ensinamento em escola primária,
onde é ensinada somente a introdução das ciências naturais e da higiene, garantindo a não
divulgação do conhecimento médico. Para ser mais preciso no foco de tudo isso, Boltanski
enfatiza que a escola primária

[...] inculca nos membros das classes populares o respeito pela ciência, o respeito
por aquilo que é, e ficar-lhes-á para sempre, inacessível, respeito que deve se
manifestar pela recusa da pretensão, ou seja, por uma clara consciência de sua
própria ignorância, pela submissão aos detentores legítimos do conhecimento
médico, os médicos, aos quais se delega até o direito de falar do próprio corpo e
dos males que o atingem. (BOLTANSKI-1979, p. 29).

Para este autor, o disciplinamento da medicina tornou-se uma prática social


incorporada na cultura como um dos seus componentes indissociáveis e, pelo que se viu,
também foi incorporado na política educacional.
Costa (1983) vai mais além, afirma que a medicina social, através de sua prática
higienista, reduziu a família a um estado de dependência, argumentado que, dessa forma, os
indivíduos seriam salvos do caos em que se encontravam. Dentre outras críticas de Costa,
destacamos que, para ele

A educação física defendida pelos higienistas do século XIX criou, de fato, o corpo
saudável. Corpo robusto e harmonioso, organicamente oposto ao corpo relapso,
flácido e doentio do indivíduo colonial. Mas, foi esse corpo que, eleito
representante de uma classe e de uma raça, serviu para incentivar o racismo e os
preconceitos sociais a ele ligados. (COSTA – 1983. p. 13).

1
Médico Cardiologista, Mestre em Sociologia Política e Doutor em Ciências Humanas.
A afirmação anterior de que o disciplinamento da medicina foi incorporado na política
educacional do Estado é confirmada por Costa quando explica que a visão caritativa
assistencial da religião reduzia a assistência médica a uma atividade marginal e supérflua, mas
que durante o Império a ética leiga dos higienistas fez coincidir a saúde da população e a
saúde do Estado. A saúde passou a ser parte da política do Estado e a higienização da família
foi incrementada acompanhando o desenvolvimento urbano, fato que foi muito mais visível
no Rio de Janeiro, por ser, à época, o centro político do Brasil. Em função disso, foram
exigidas de seus habitantes muitas mudanças descritas como efeitos da urbanização:

[...] secularização dos costumes, racionalização das condutas, funcionalidade nas


relações pessoais, maior esfriamento das relações afetivas interpessoais, etc.
[...] o dispositivo médico foi uma das peças fundamentais desse equipamento. A
tarefa dos higienistas era a de converter os sujeitos à nova ordem urbana. (COSTA
– 1983, p. 35).

E Costa enfatiza que a medicina tomou posse do espaço urbano por meio dessas
noções e de suas ações, demarcando o seu espaço de poder.
Também Donnangelo (1976), baseada em Foucault e Boltanski concluiu que a
medicina pode ser comparada à instituição escolar na medida que busca uma estruturação
simbólica, para toda a sociedade, das representações de saúde e doença e empreende a tarefa
de regular a vida privada, principalmente das camadas sociais inferiores.
Ainda hoje, percebe-se claramente a assunção, pelos médicos, do papel de “professor”
na medida em que determinam cotidianamente o como se deve levar a vida a fim de se ter
saúde.
Prosseguindo em sua análise, Donnangelo explica as raízes dessa medicalização,
termo emprestado de Ilich, como ela mesma afirma em seu trabalho, como uma redefinição da
medicina a partir do século XVIII. E explica:

Não é cuidado médico que então se generaliza e sim o que poderia considerar, de
maneira aproximada, uma extensão do campo de normatividade da medicina
através da definição de novos princípios referentes ao significado da saúde e da
interferência médica na organização das populações e de suas condições gerais de
vida. Essa medicalização e a especificidade de suas relações com a estrutura
econômica e político-ideológica pode ser identificada através da emergência de
novos conceitos referentes à saúde e à prática médica bem como de novas formas
de controle da medicina pela sociedade e de novos usos da medicina no controle e
organização social. (DONNANGELO-1976, p, 47).

A autora ainda enfatiza que as medidas que se referem ao enquadramento da


população no processo de reorganização social durante o mercantilismo constituíram-se no
elemento mais imediato da reestruturação na medicina. Donnangelo cita uma conferência feita
por Foucault no Instituto de Medicina Social da, então, Universidade do Estado da Guanabara
– UEG, hoje UERJ, em 1974, quando este pensador afirmou que

Com a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão


médica, a subordinação dos médicos a uma Administração Central e, finalmente, a
integração de vários médicos em uma organização médica estatal, tem-se uma série
de fenômenos inteiramente novos que caracterizam o que pode ser chamada a
medicina do Estado (...). Não é o corpo que trabalha, o corpo do operário que é
assumido por essa administração estatal da saúde, mas o próprio corpo dos
indivíduos enquanto constituem globalmente o Estado: é a força, não do trabalho,
mas estatal, a força do Estado em seus conflitos, econômicos certamente, mas
igualmente políticos, com vizinhos (...) é essa força estatal que a medicina deve
aperfeiçoar e desenvolver2. (DONNANGELO-1976, p, 51).

Percebe-se aqui uma dupla dependência, ou subordinação. O médico que se subordina


aos ditames do Estado para atender os interesses do poder, interesses de toda natureza,
especialmente político-ideológicos, por um lado. Por outro, os médicos aperfeiçoando e
desenvolvendo essa força estatal de que fala Foucault, mas, também, utilizam esse processo
em benefício da corporação médica, já que a ingenuidade não faz parte do repertório de
virtudes de nenhuma corporação. Uma maior dependência das populações aos cuidados da
medicina pode significar a construção de um mercado cativo para os interesses médicos.

B – A DISCIPLINA

“A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos e de utilidade) e


diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra:
ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma
“capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a
exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a
coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão
aumentada e uma dominação acentuada“. (FOUCAULT – 1977, p. 127).

Assim Foucault apresenta aquilo que ele chamou de uma nova anatomia política,
processos múltiplos muitas vezes mínimos, de origens diversas, de localizações esparsas, que
se repetem ou se imitam. Decodificando os vários aspectos do processo de disciplinamento do
corpo para cumprir uma determinada função ou atividade, Foucault apresenta sua tese em
seus livros3, onde relata a história do disciplinamento do corpo, primeiramente com os
militares que deveriam ter eficiência durante a guerra, por isso havia necessidade de um corpo
disciplinado, pois cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula
são definidas pela disciplina.
Manipular bem uma arma era necessário para uma vitória nas lutas. Era preciso
estabelecer amarras entre o corpo e o objeto manipulado para se constituir um complexo
corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-máquina.
O que é(ra) um corpo-máquina? A narrativa de Foucault fala do soldado que havia se
tornado em algo que se poderia fabricar, isto é, transformar um corpo inapto na máquina que
se precisa. Era através da correção da postura, uma coação calculada sobre cada parte do
corpo para torná-la “perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, mo automatismo
dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”“.
De certa forma podemos perceber a presença de Pavlov neste adestramento
permanente que, ainda, existe em nossa sociedade atual e se manifesta de muitas formas. É
importante e necessário reproduzir aqui o que fala Foucault.

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de
poder. Encontramos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada ao corpo – ao
corpo que se manipula, se modela, se treina, se obedece, responde, se torna hábil
ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito
simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas
haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o
outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares,

2
Idem. Este trecho faz parte do livro Microfísica do Poder, de Michel Foucault.
3
Especialmente Microfísica do Poder e Vigiar e Punir.
escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou
corrigir as operações do corpo. (FOUCAULT – 1977, p. 125/126).

Acredito não haver maior clareza do que essa. A presença de Foucault permanece de
modo enfático em nosso cotidiano. E isto continua sendo reproduzido, especialmente na
medicina de nossos dias.
Para Polack4,

La medicina plagia en sus “relaciones de producción” un modelo político


fundamental que, más allá de las especificaciones de las cosas de la salud, la rige.
Por el contrario, en el academicismo obsequioso y disciplinado del cursus médico,
una concepción política completa de la división de tareas, obstáculos y privilegios,
intereses y obediencia, oscurece su camino. (POLACK- 1974, p. 103).

Polack sintetiza o que Foucault explica com mais detalhes, e começa com o
estabelecimento de regras, de normas, para os hospitais, desde a sua estrutura física, até na
organização e separação dos doentes em áreas específicas. São os dispositivos, esse conjunto
de regras e normas, entre outros, os elementos essenciais para o exercício e a manutenção do
poder. Para Foucault poder é

uma relação assimétrica que institui a autoridade e a obediência, e não como um


objeto preexistente em um soberano, que o usa para dominar seus súditos. [...]
Assim, em vez de coisas, o poder é um conjunto de relações; em vez de derivar de
uma superioridade, o poder produz a assimetria; em vez de se exercer de forma
intermitente, ele se exerce permanentemente; em vez de agir de cima para baixo,
submetendo, ele se irradia de baixo para cima, sustentando as instâncias de
autoridade; em vez de esmagar e confiscar, ele incentiva e faz produzir.
(ALBUQUERQUE – 1955, p. 105-110).

Outros autores, como Dreyfus & Rabinow (1995) também apresentam ainda algumas
reflexões de Foucault a respeito do poder:

[...] as relações de poder são “desiguais e móveis”. O poder não é uma mercadoria,
uma posição, uma recompensa ou uma trama ; é a operação de tecnologias políticas
através do corpo social. O funcionamento destes rituais políticos de poder é
exatamente o que estabelece as relações desiguais e assimétricas. É a expansão
destas tecnologias e sua operação cotidiana, espacial e temporalmente localizada,
que Foucault se refere ao descrevê-la como “moveis”. (DREYFUS-1995, p. 203).

Para Foucault, o poder não está restrito às instituições políticas. Ele representa um
papel produtivo, vem de baixo, é multidirecional, funcionando de cima para baixo ou de baixo
para cima.
O disciplinamento marca o fato de se assumir um poder não ostensivo, onde a arma se
torna quase desnecessária, pois possui uma arma muita mais terrível e poderosa, o controle da
sociedade através da normatização.
Foucault (1984) esclarece de forma contundente esse modo de controlar a sociedade.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela


consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade

4
Polack, Jean-Claude. La Medicina del Capital. Madri, Espanha: Editorial Fundamentos, 1974.
capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia
biopolítica. (FOUCAULT- 1984, p. 80).

Para Foucault, “biopolítica”

[...] designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar, entre o fim do
século XVIII e o começo do século XlX, a fim de governar não somente os
indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares, mas o
conjunto dos viventes constituídos em população: a biopolítica - por meio dos
biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da
alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram
preocupações políticas. (REVEL-2005, p. 26).

Caponi (2004, p. 447) explica que biopolítica designa “o que faz com que a vida e seus
mecanismos possam entrar no domínio de cálculos explícitos, e o que transforma o saber-
poder num agente de transformação da vida humana”.
Então, e pela primeira vez na história, o biológico ingressa no registro da política: a
vida passa a entrar no espaço do controle de saber e da intervenção do poder. O sujeito, na
qualidade de sujeito de direitos, passa a ocupar um segundo plano em relação à preocupação
política por maximizar o vigor e a saúde das populações.
Caponi enfatiza que uma das características do biopoder é dar uma crescente
importância da norma sobre a lei. A definição de normalidade torna-se importante para que se
destaque o que é a sua contraposição, o anormal. O que não é normal é incorporado à
categoria de degeneração e passa a ser inscrito nas margens do jurídico.
Embora seja importante, aqui, apresentar como nasce essa normalização da sociedade,
não é, entretanto, o foco deste trabalho. Assim, apresentaremos alguns tópicos a respeito do
tema para introduzir o como isso aconteceu – o disciplinamento da sociedade, especialmente
pelos médicos.
Durante o mercantilismo, a França, a Inglaterra e a Áustria, começaram a calcular a
força ativa de sua população, onde a preocupação sanitária era apenas a contabilidade dos
nascimentos, mortes e verificar os índices de saúde e de aumento da população, sem nenhuma
intervenção efetiva ou organizada para elevar o seu nível de saúde. A preocupação da
Alemanha era diferente, pois buscou desenvolver uma prática médica centrada na melhoria do
nível de saúde da população. Assim foram criados programas de melhoria da saúde da
população, que foram chamados de política médica, pela primeira vez em um Estado.
Essa política médica, ou polícia médica, como o autor se refere em seguida, consistia
em: primeiro - um sistema de observação de morbidade, mais efetivo e mais completo do que
simplesmente uma contabilidade de nascimentos e mortes; segundo - normalização da prática
e do saber médico. A medicina e o médico são os primeiros a serem normalizados e o Estado
passa a controlar os programas de ensino e a atribuição dos diplomas. Terceiro – Criou-se
uma organização administrativa para controlar as atividades médicas, subordinando a prática
médica a um poder administrativo do Estado, por fim, o quarto item desse processo de
controle – a nomeação de médicos, funcionários do governo, com responsabilidade sobre uma
determinada região, onde exerceria seu poder ou a autoridade de seu saber.
Eis a medicina de Estado que ia além da formação de uma força de trabalho adaptada
às necessidades das indústrias que se desenvolviam. Para Machado (FOUCAULT-1977, p.
XXI) “não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também,
reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder”. Neste caso, o campo de saber,
que instituiu um poder, foi a Medicina.
Outras formas de saber também participam deste disciplinamento da sociedade em
suas várias instâncias. Veiga-Neto (1995) mostra a diferença entre as várias formas de
disciplinamento

A fábrica - enquanto aparelho de produção, sobretudo material - disciplina os


indivíduos para a economia. A escola - enquanto aparelho de transmissão de
saberes - disciplina para a formação, conformadora de atitudes, percepções,
esquema de respostas e, também, disciplinam para a normalização. O hospital, etc.
- enquanto aparelhos para a correção do físico e da conduta - disciplinam para a
normalização. (VEIGA-NETO-1995, pp. 9-56).

Além da Medicina, outros profissionais da saúde participam deste disciplinamento,


como apontaram Barreto e Moreira (2001). Para eles, o que Foucault entende como modo de
sujeição indica que esse poder foucaultiano é caracterizado por uma relação vertical entre o
cliente e o profissional de saúde, mas que há também um poder bioquímico e tecnológico,
produzido pela ação do medicamento e suas consequências. Esta modalidade de poder produz
uma nova mecânica de controle e sujeição baseada no saber da prescrição desses fármacos e
na utilização de equipamentos que também produzem afirmação desse poder e submissão do
cliente/paciente.
Illich (1975) chama de “iatrogênese social o efeito social não desejado e danoso do
impacto social da medicina, mais do que sua ação direta”. Este autor enfatiza que

O controle institucional da população pelo sistema médico retira progressivamente


do cidadão o domínio da salubridade no trabalho e o lazer, a alimentação e o
repouso, a política e o meio. Esse controle representa um fator essencial da
inadaptação crescente do homem ao meio. (ILLICH – 1975, p. 44).

Outra forma de controle social exercido pela medicina é aquele promovido pelo
diagnóstico, conforme Illich, e resulta da medicalização de categorias sociais, o que ele chama
de etiquetagem iatrogênica das diferentes idades da vida humana. É importante repetir aqui o
que fala este autor.

Esta etiquetagem acaba fazendo parte integrante da cultura popular quando o leigo
aceita como coisa “natural” e banal o fato de que as pessoas têm necessidade de
cuidados médicos de rotina simplesmente porque estão em gestação, são recém-
nascidas, crianças, estão no climatério, ou porque são velhas. (ILLICH–1975, p.
56).

Concordamos em parte com este ponto de vista, mas não é isso o foco deste trabalho.
O que fica evidente é o controle exercido pela medicina sobre a população, especialmente
aquelas menos informadas. Disto deriva uma outra conclusão: com a falta de informação clara
por parte dos médicos, pela excessiva linguagem técnica utilizada e pelo pouco diálogo com
os pacientes, quem realmente tem uma boa informação sobre as questões de saúde?
Illich percebe o homem encaixotado num meio feito para os membros de sua
categoria, conforme é concebido por algum especialista burocrático encarregado da gerência
desse setor.

Em cada um desses lugares, o indivíduo é instruído para seguir o comportamento


que convém a uma administração de pedagogos, de pediatras, de ginecologistas, de
geriatras e às suas diversas classes de servidores. [...] O homem domesticado entra
em estabulação permanente para se fazer gerir numa sequência de celas
especializadas. (ILLICH – 1975, p. 57).
Mesmo com uma dose maior de tinta em sua descrição, Illich retrata o que se passa no
interior da medicina. A divisão técnica do trabalho médico, em múltiplas especialidades,
fragmenta de tal forma o ser humano que, de algum modo, a caricatura illichiana representa
muito bem a realidade. A necessidade, real ou aceita como tal, de se submeter à exames
obrigatórios em função de critérios aplicados em grupos etários certamente não atende à uma
necessidade concreta de tratamento. Um exemplo claro disso é o que se passa com os
chamados exames periódicos para trabalhadores de empresas públicas ou privadas. Disso não
resulta, na grande maioria das vezes, nenhuma orientação ou educação para a saúde, já que se
trata de atender a uma exigência de uma lei cujo efeito prático só favorece os chamados
“médicos do trabalho”. Cumpre-se a lei de uma forma burocrática e autoritária, pois a recusa
pode significar alguma sanção sobre quem não atendeu à convocação para o exame.

C – A DISCIPLINA SUB-REPTÍCIA

A proposta deste trabalho foi tentar demonstrar que Foucault está presente na forma de
suas idéias, proposições e outras características marcantes de sua obra, nos processos
educacionais que definem a formação profissional no Brasil, aqui realçada a formação
médica. Esta educação assumiu a condição de adestramento na medida em que adotou como
relevante a inculcação de um saber técnico em detrimento de um saber que permite pensar,
pois através do pensamento é possível construir um novo e outro saber que realmente possa
ser libertador. Mais do que isso, o saber médico enquanto poder normatizador da vida em
sociedade, como foi visto em Boltanski, Costa, Donnangelo e outros autores, demarcam o
campo médico como um espaço de articulação de saberes dotados de uma ambiguidade clara,
pois os saberes da medicina, onde uma ideologia própria se impõe, ao mesmo tempo em que
domestica, também é domesticada.
Ao assumir a defesa dos interesses do capital, o médico, na maioria das vezes,
desconhece este seu papel, que chamo de “boia-fria de multinacional”, pois cumpre a função
de ampliar a demanda pelo consumo de bens e serviços de eficácia duvidosa. Polack enfatiza
este papel quando afirma que

No domínio da doença e da medicina existe um campo ilimitado para a exploração


dos consumidores, que só pode ser limitado pela educação sanitária e ambiental,
que é tergiversada por meio da vulgarização e da distorção dos conhecimentos
destinados a ampliar as normas de alimentação, de higiene, corporais, estéticas ou
rítmicas que favoreçam a expansão da demanda individual dos diversos produtos
industriais. (POLACK-1974, p. 127 - tradução minha).

Este papel, desempenhado pelos médicos, se inscreve no campo da norma instituída


durante a graduação, o que foi chamada por Morin (1998) de “imprinting”.
Imprinting é um termo que Konrad Lorenz propôs para dar conta da marca
incontornável imposta pelas primeiras experiências do jovem animal, como o ganso que, ao
sair do ovo, segue como se fosse sua mãe o primeiro ser vivo ao seu alcance. Há um
“imprinting” cultural que marca o humano, desde o nascimento, com o selo da cultura,
primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão.
Mesmo que não haja uma intenção, e ela existe na realidade, mesmo que dissimulada,
o médico segue a “cultura” da medicina através deste “imprinting” e passa a seguir os
modelos com os quais conviveu na academia. Dentre estes modelos de prática médica, quero
destacar a necessidade, criada durante a formação, de solicitar exames complementares
indiscriminadamente, supostamente baseados na ética, conforme afirmam os defensores desta
prática. Na realidade trata-se de um deslizamento semântico, pois ética exige um cuidado
absolutamente respeitoso, incluindo aqui o respeito pela autonomia do sujeito que adoece,
jamais de uma suposição que “poderia haver algum problema detectável pelo exame”. Para
exemplificar isto, vamos nos reportar a uma pesquisa apresentada por Kenzler que aponta que
cerca de 85% dos exames solicitados por médicos apresentaram resultados negativos,
significando que foram absolutamente desnecessários e que os recursos aplicados para
execução desses exames foram desperdiçados. Embora esta pesquisa seja de 2001, é
importante realçar que de lá para cá esta prática foi ampliada consideravelmente. Pesquisa
realizada pela UNIMED de Cuiabá, da qual pessoalmente participamos, demonstrou que 30 %
dos exames realizados permanecem nos laboratórios sem nunca serem recolhidos pelas
pessoas que se submeteram a ele. Enfatizo que, nessa época, ainda não havia internet que,
hoje, permite acessar o resultado sem sair de casa. Ou seja, eram exames desnecessários.
O que queremos demonstrar é que a normatização, o disciplinamento, o poder médico
sobre a sociedade continua cada vez mais presente e realça a presença de Michel Foucault e
suas teorias no cotidiano de nossa vida, especialmente no chamado setor saúde.
A importância deste pensador deveria dar um significado relevante na academia para
que pudéssemos refletir sobre o nosso papel na história da sociedade e resgatar a importância
da ética como aquilo que funda e deve fundar, sempre, o conviver humano. Não apenas
cumprir o papel de (re)produtor de idéias, que muitas vezes não estão afinadas e sintonizadas
com os discursos que se exteriorizam, mas, principalmente, contextualizar esses discursos
com o que a sociedade espera da academia e de cada um de nós.
Quanto mais a medicina incorpora os artefatos produzidos pela técnica, mais ela se
afasta de seus objetivos essenciais, cuidar do ser humano na sua integralidade, mais ela se
torna predominantemente uma técnica em tratar doenças. Essa fragmentação da pessoa acaba
por produzir o que poderíamos chamar de esquecimento do Ser e a prevalência ou a adoção de
partes do corpo como elemento focal da ação médica.
Em seu livro “O médico na era da técnica”, Karl Jaspers, médico e filósofo alemão
explica que a

[...] especialização corresponde à remodelação do ensino. Um agregado de


disciplinas especializadas entra para o lugar da instrução no pensamento biológico
em geral. O tempo do estudante está tão ocupado pelos planos de estudo que uma
consciencialização mais profunda é impedida por causa da dispersão na variedade
do que há para aprender. (JASPERS-1998, p. 8).

Jaspers prossegue em seu raciocínio, esclarecendo que os impulsos espirituais desses


estudantes, carentes de liberdade, acabam paralisados pela condução dos estudos, no que ele
chama de “andadeiras” dos currículos que exigem enormemente a memória. Com isso, há
uma diminuição da capacidade de julgamento, que não é exercitada durante as aulas na
proporção necessária em função dessa enorme quantidade de conhecimentos.
Reforçando seu ponto de vista, Jaspers enfatiza que

Em todo o mundo, educam-se pessoas que sabem muito, adquiriram particular


habilidade, mas o seu juízo autônomo, o seu vigor para um aprofundamento
inquirido dos doentes é escasso. Estas tendências para a especialização e a
escolarização são gerais na época presente. [...] a nivelação em que os homens se
tornam partes de uma maquinária. A capacidade de juízo, a plenitude do poder-ver
e a espontaneidade pessoal são paralisadas na maquinização. (JASPERS-1998, p.
8/9). (grifo nosso).

Outros autores, estudiosos da influência da técnica, enquanto um saber fazer, também


reafirmam o que Jaspers apresentou. O primeiro autor a tratar da questão da técnica e sua
influência sobre o comportamento humano foi Oswald Spengler. Em seu livro “O Homem e a
Técnica”, onde, entre outras coisas, chama atenção para o fato de que a técnica não deve ser
interpretada em função do instrumento ou do utensílio, não se tratando de fabricação das
coisas, mas do seu manejo. E reforça essa afirmação: “não são as armas que contam, mas sim
a luta”. (SPENGLER-1993, p. 40).
No prólogo desta obra, Spengler chama atenção para o fato de que

[...] é necessário considerar comparativamente todas as esferas da sua ação, ao


mesmo tempo, não cometendo o erro de partir exclusivamente da política, da
religião ou da arte para os aspectos particulares da sua existência, na ilusão de ter,
com isso, descoberto o todo. (SPENGLER-1993, p. 31).

O que Spengler afirma, também tem sido reforçado, através do nosso tempo, por
muitos autores que trabalham no paradigma do pensamento complexo e na
transdisciplinaridade, pois considerar o ser humano como uma amontoado de órgãos é, no
mínimo, desconsiderar a nossa capacidade de reflexão, algo que a excessiva presença da
técnica em nossas vidas tem influenciado negativamente.
Não se trata, aqui, de fazer uma crítica que negue a técnica, mas iluminar o ponto
central do debate sobre o uso da técnica e seu controle sobre a mente humana, tentando buscar
um equilíbrio entre o seu uso e o seu abuso perverso. Vide a dependência imoderada dos
smartphones em todo o mundo.
A dependência da técnica e da tecnologia na medicina fez parte de meus estudos em
minha Tese de Doutorado em Ciências Humanas na UFSC, de onde extraí um excerto:

Este modo de atuação contrapõe-se ao encontrado em serviços tradicionais de


saúde, baseados na biomedicina e no uso intensivo da técnica e da tecnologia, que
levam a medicina a perder sua face arte e empobrecer sua dimensão humana.
(GONÇALVES-2013, p. 147).

Também Gadamer (2006, p. 16/17) afirma que “no atual estado técnico da civilização,
a ciência faculta para si o poder de fundamentar também a vida social em bases racionais e de
romper o tabu da inquestionável autoridade da tradição”. Ressalva, Gadamer, que esse fato
acontece especialmente pelo lado da crítica ideológica, que tenta transformar a consciência
social tentando uma emancipação da dominação econômica e social. E Gadamer esclarece
que:

Como essa crítica atinge qualquer pessoa, torna-se ainda mais efetiva a forma
silenciosa na qual esferas cada vez mais amplas da vida humana são submetidas ao
domínio técnico e a decisão pessoal de cada um do grupo é substituída por
automatismos racionais. (GADAMER-2006, p. 17).

Brüseke esclarece que “pensar tecnicamente significa, também, livrar-se da inexatidão,


do ilógico, do antinômico e do paradoxal”, o que é próprio do ser humano. Para este autor,
pensar tecnicamente é ser racional, na mesma linha proposta por Heidegger, para quem “o
pensar nesse sentido não é mais, apesar dos procedimentos tecnicamente corretos, um pensar
no seu sentido autêntico. (BRÜSEKE-2010, p. 50/51). Brüseke prossegue na sua reflexão:

[...] a própria técnica já é dominação (sobre a natureza e o homem), dominação


metódica, científica, calculada e calculadora. Certos fins e interesses de dominação
não são a posteriori e de fora impostas à técnica – eles já estão inseridos na
construção do próprio aparelho técnico; a técnica é sempre um produto histórico-
social; nela é projetado o que uma sociedade e os interesses que dominam
pretendem fazer com os homens e com as coisas. (BRÜSEKE-2001, p. 144).
Diante desses argumentos que demonstram, em apoio às teses de Foucault, a disciplina
e/ou o controle, muitas vezes involuntário, outras vezes por pura ausência de informações,
constituindo-se em obstáculos epistemológicos, tornam os médicos, em muitos casos,
disciplinados e disciplinadores, embora com a capacidade de decisão pessoal substituída pelo
automatismo racional, como ensina Gadamer ou, rememorando Eric Fromm, portadores de
um pensamento automático.
O escopo deste trabalho é chamar atenção para o fato de a formação médica ser
permeada por uma construção mental que dificulta a compreensão do seu papel sócio
histórico, da sua obrigação de natureza ética e da capacidade de trabalhar em uma profissão
que pode ser percebida como a ciência do raciocínio. Muitas vezes, sem perceber, torna-se
apenas um técnico em doenças.
É pertinente lembrar o que Carr-Saunders e Wilson destacam, que “[...] no caso da
Medicina britânica, os poderes disciplinares formais são usados somente para encorajar os
médicos a obedecer mais às normas éticas do que os padrões técnicos”. (FREIDSON-2009, p.
184). (Grifo nosso).
Como será entre nós?

D - BIBLIOGRAFIA

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