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A – A HISTÓRIA
Este trabalho busca refletir sobre o disciplinamento que a Medicina tenta e, na maioria
das vezes, acaba impondo à sociedade na medida em que estabelece normas protocolares de
direcionamento e ordenamento da vida social. Seu pressuposto teórico se ancora na Teoria
Social Contemporânea, especialmente em Michel Foucault, que mapeou o caminho
metodológico e epistemológico do que ficou conhecido como genealogia e arqueologia do
saber.
Primeiramente um pouco de história. Fomos buscar em Luc Boltanski (1979, p. 28) a
compreensão que “... o usuário da medicina familiar hoje não esquece nunca o caráter ilegal
que executa ou pelo menos, que só tem o direito de executá-los por procuração”, diferente do
usuário antigo, que desconhecia a origem científica do conhecimento médico. Esse fato
implica que, antes, não havia a compreensão de que a utilização de um conhecimento da
medicina, sem a devida autorização, poderá sofrer algum tipo de sanção. Boltanski lembra
que “ninguém tem o direito de ignorar a lei” da mesma forma que ninguém pode ignorar a
existência de uma ciência médica, e completa – “conhecimento de especialista submetido à lei
do progresso que a instituição escolar é a única com direito de transmitir”. Trata-se de uma
defesa do chamado ato médico e, provavelmente, uma forma de garantir o seu espaço de
atuação.
Eis a primeira questão – o saber médico só pode ser transmitido através de uma escola,
mas o autor esclarece que a medicina não é um objeto de ensinamento em escola primária,
onde é ensinada somente a introdução das ciências naturais e da higiene, garantindo a não
divulgação do conhecimento médico. Para ser mais preciso no foco de tudo isso, Boltanski
enfatiza que a escola primária
[...] inculca nos membros das classes populares o respeito pela ciência, o respeito
por aquilo que é, e ficar-lhes-á para sempre, inacessível, respeito que deve se
manifestar pela recusa da pretensão, ou seja, por uma clara consciência de sua
própria ignorância, pela submissão aos detentores legítimos do conhecimento
médico, os médicos, aos quais se delega até o direito de falar do próprio corpo e
dos males que o atingem. (BOLTANSKI-1979, p. 29).
A educação física defendida pelos higienistas do século XIX criou, de fato, o corpo
saudável. Corpo robusto e harmonioso, organicamente oposto ao corpo relapso,
flácido e doentio do indivíduo colonial. Mas, foi esse corpo que, eleito
representante de uma classe e de uma raça, serviu para incentivar o racismo e os
preconceitos sociais a ele ligados. (COSTA – 1983. p. 13).
1
Médico Cardiologista, Mestre em Sociologia Política e Doutor em Ciências Humanas.
A afirmação anterior de que o disciplinamento da medicina foi incorporado na política
educacional do Estado é confirmada por Costa quando explica que a visão caritativa
assistencial da religião reduzia a assistência médica a uma atividade marginal e supérflua, mas
que durante o Império a ética leiga dos higienistas fez coincidir a saúde da população e a
saúde do Estado. A saúde passou a ser parte da política do Estado e a higienização da família
foi incrementada acompanhando o desenvolvimento urbano, fato que foi muito mais visível
no Rio de Janeiro, por ser, à época, o centro político do Brasil. Em função disso, foram
exigidas de seus habitantes muitas mudanças descritas como efeitos da urbanização:
E Costa enfatiza que a medicina tomou posse do espaço urbano por meio dessas
noções e de suas ações, demarcando o seu espaço de poder.
Também Donnangelo (1976), baseada em Foucault e Boltanski concluiu que a
medicina pode ser comparada à instituição escolar na medida que busca uma estruturação
simbólica, para toda a sociedade, das representações de saúde e doença e empreende a tarefa
de regular a vida privada, principalmente das camadas sociais inferiores.
Ainda hoje, percebe-se claramente a assunção, pelos médicos, do papel de “professor”
na medida em que determinam cotidianamente o como se deve levar a vida a fim de se ter
saúde.
Prosseguindo em sua análise, Donnangelo explica as raízes dessa medicalização,
termo emprestado de Ilich, como ela mesma afirma em seu trabalho, como uma redefinição da
medicina a partir do século XVIII. E explica:
Não é cuidado médico que então se generaliza e sim o que poderia considerar, de
maneira aproximada, uma extensão do campo de normatividade da medicina
através da definição de novos princípios referentes ao significado da saúde e da
interferência médica na organização das populações e de suas condições gerais de
vida. Essa medicalização e a especificidade de suas relações com a estrutura
econômica e político-ideológica pode ser identificada através da emergência de
novos conceitos referentes à saúde e à prática médica bem como de novas formas
de controle da medicina pela sociedade e de novos usos da medicina no controle e
organização social. (DONNANGELO-1976, p, 47).
B – A DISCIPLINA
Assim Foucault apresenta aquilo que ele chamou de uma nova anatomia política,
processos múltiplos muitas vezes mínimos, de origens diversas, de localizações esparsas, que
se repetem ou se imitam. Decodificando os vários aspectos do processo de disciplinamento do
corpo para cumprir uma determinada função ou atividade, Foucault apresenta sua tese em
seus livros3, onde relata a história do disciplinamento do corpo, primeiramente com os
militares que deveriam ter eficiência durante a guerra, por isso havia necessidade de um corpo
disciplinado, pois cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula
são definidas pela disciplina.
Manipular bem uma arma era necessário para uma vitória nas lutas. Era preciso
estabelecer amarras entre o corpo e o objeto manipulado para se constituir um complexo
corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-máquina.
O que é(ra) um corpo-máquina? A narrativa de Foucault fala do soldado que havia se
tornado em algo que se poderia fabricar, isto é, transformar um corpo inapto na máquina que
se precisa. Era através da correção da postura, uma coação calculada sobre cada parte do
corpo para torná-la “perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, mo automatismo
dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”“.
De certa forma podemos perceber a presença de Pavlov neste adestramento
permanente que, ainda, existe em nossa sociedade atual e se manifesta de muitas formas. É
importante e necessário reproduzir aqui o que fala Foucault.
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de
poder. Encontramos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada ao corpo – ao
corpo que se manipula, se modela, se treina, se obedece, responde, se torna hábil
ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito
simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas
haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o
outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares,
2
Idem. Este trecho faz parte do livro Microfísica do Poder, de Michel Foucault.
3
Especialmente Microfísica do Poder e Vigiar e Punir.
escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou
corrigir as operações do corpo. (FOUCAULT – 1977, p. 125/126).
Acredito não haver maior clareza do que essa. A presença de Foucault permanece de
modo enfático em nosso cotidiano. E isto continua sendo reproduzido, especialmente na
medicina de nossos dias.
Para Polack4,
Polack sintetiza o que Foucault explica com mais detalhes, e começa com o
estabelecimento de regras, de normas, para os hospitais, desde a sua estrutura física, até na
organização e separação dos doentes em áreas específicas. São os dispositivos, esse conjunto
de regras e normas, entre outros, os elementos essenciais para o exercício e a manutenção do
poder. Para Foucault poder é
Outros autores, como Dreyfus & Rabinow (1995) também apresentam ainda algumas
reflexões de Foucault a respeito do poder:
[...] as relações de poder são “desiguais e móveis”. O poder não é uma mercadoria,
uma posição, uma recompensa ou uma trama ; é a operação de tecnologias políticas
através do corpo social. O funcionamento destes rituais políticos de poder é
exatamente o que estabelece as relações desiguais e assimétricas. É a expansão
destas tecnologias e sua operação cotidiana, espacial e temporalmente localizada,
que Foucault se refere ao descrevê-la como “moveis”. (DREYFUS-1995, p. 203).
Para Foucault, o poder não está restrito às instituições políticas. Ele representa um
papel produtivo, vem de baixo, é multidirecional, funcionando de cima para baixo ou de baixo
para cima.
O disciplinamento marca o fato de se assumir um poder não ostensivo, onde a arma se
torna quase desnecessária, pois possui uma arma muita mais terrível e poderosa, o controle da
sociedade através da normatização.
Foucault (1984) esclarece de forma contundente esse modo de controlar a sociedade.
4
Polack, Jean-Claude. La Medicina del Capital. Madri, Espanha: Editorial Fundamentos, 1974.
capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia
biopolítica. (FOUCAULT- 1984, p. 80).
[...] designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar, entre o fim do
século XVIII e o começo do século XlX, a fim de governar não somente os
indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares, mas o
conjunto dos viventes constituídos em população: a biopolítica - por meio dos
biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da
alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram
preocupações políticas. (REVEL-2005, p. 26).
Caponi (2004, p. 447) explica que biopolítica designa “o que faz com que a vida e seus
mecanismos possam entrar no domínio de cálculos explícitos, e o que transforma o saber-
poder num agente de transformação da vida humana”.
Então, e pela primeira vez na história, o biológico ingressa no registro da política: a
vida passa a entrar no espaço do controle de saber e da intervenção do poder. O sujeito, na
qualidade de sujeito de direitos, passa a ocupar um segundo plano em relação à preocupação
política por maximizar o vigor e a saúde das populações.
Caponi enfatiza que uma das características do biopoder é dar uma crescente
importância da norma sobre a lei. A definição de normalidade torna-se importante para que se
destaque o que é a sua contraposição, o anormal. O que não é normal é incorporado à
categoria de degeneração e passa a ser inscrito nas margens do jurídico.
Embora seja importante, aqui, apresentar como nasce essa normalização da sociedade,
não é, entretanto, o foco deste trabalho. Assim, apresentaremos alguns tópicos a respeito do
tema para introduzir o como isso aconteceu – o disciplinamento da sociedade, especialmente
pelos médicos.
Durante o mercantilismo, a França, a Inglaterra e a Áustria, começaram a calcular a
força ativa de sua população, onde a preocupação sanitária era apenas a contabilidade dos
nascimentos, mortes e verificar os índices de saúde e de aumento da população, sem nenhuma
intervenção efetiva ou organizada para elevar o seu nível de saúde. A preocupação da
Alemanha era diferente, pois buscou desenvolver uma prática médica centrada na melhoria do
nível de saúde da população. Assim foram criados programas de melhoria da saúde da
população, que foram chamados de política médica, pela primeira vez em um Estado.
Essa política médica, ou polícia médica, como o autor se refere em seguida, consistia
em: primeiro - um sistema de observação de morbidade, mais efetivo e mais completo do que
simplesmente uma contabilidade de nascimentos e mortes; segundo - normalização da prática
e do saber médico. A medicina e o médico são os primeiros a serem normalizados e o Estado
passa a controlar os programas de ensino e a atribuição dos diplomas. Terceiro – Criou-se
uma organização administrativa para controlar as atividades médicas, subordinando a prática
médica a um poder administrativo do Estado, por fim, o quarto item desse processo de
controle – a nomeação de médicos, funcionários do governo, com responsabilidade sobre uma
determinada região, onde exerceria seu poder ou a autoridade de seu saber.
Eis a medicina de Estado que ia além da formação de uma força de trabalho adaptada
às necessidades das indústrias que se desenvolviam. Para Machado (FOUCAULT-1977, p.
XXI) “não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também,
reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder”. Neste caso, o campo de saber,
que instituiu um poder, foi a Medicina.
Outras formas de saber também participam deste disciplinamento da sociedade em
suas várias instâncias. Veiga-Neto (1995) mostra a diferença entre as várias formas de
disciplinamento
Outra forma de controle social exercido pela medicina é aquele promovido pelo
diagnóstico, conforme Illich, e resulta da medicalização de categorias sociais, o que ele chama
de etiquetagem iatrogênica das diferentes idades da vida humana. É importante repetir aqui o
que fala este autor.
Esta etiquetagem acaba fazendo parte integrante da cultura popular quando o leigo
aceita como coisa “natural” e banal o fato de que as pessoas têm necessidade de
cuidados médicos de rotina simplesmente porque estão em gestação, são recém-
nascidas, crianças, estão no climatério, ou porque são velhas. (ILLICH–1975, p.
56).
Concordamos em parte com este ponto de vista, mas não é isso o foco deste trabalho.
O que fica evidente é o controle exercido pela medicina sobre a população, especialmente
aquelas menos informadas. Disto deriva uma outra conclusão: com a falta de informação clara
por parte dos médicos, pela excessiva linguagem técnica utilizada e pelo pouco diálogo com
os pacientes, quem realmente tem uma boa informação sobre as questões de saúde?
Illich percebe o homem encaixotado num meio feito para os membros de sua
categoria, conforme é concebido por algum especialista burocrático encarregado da gerência
desse setor.
C – A DISCIPLINA SUB-REPTÍCIA
A proposta deste trabalho foi tentar demonstrar que Foucault está presente na forma de
suas idéias, proposições e outras características marcantes de sua obra, nos processos
educacionais que definem a formação profissional no Brasil, aqui realçada a formação
médica. Esta educação assumiu a condição de adestramento na medida em que adotou como
relevante a inculcação de um saber técnico em detrimento de um saber que permite pensar,
pois através do pensamento é possível construir um novo e outro saber que realmente possa
ser libertador. Mais do que isso, o saber médico enquanto poder normatizador da vida em
sociedade, como foi visto em Boltanski, Costa, Donnangelo e outros autores, demarcam o
campo médico como um espaço de articulação de saberes dotados de uma ambiguidade clara,
pois os saberes da medicina, onde uma ideologia própria se impõe, ao mesmo tempo em que
domestica, também é domesticada.
Ao assumir a defesa dos interesses do capital, o médico, na maioria das vezes,
desconhece este seu papel, que chamo de “boia-fria de multinacional”, pois cumpre a função
de ampliar a demanda pelo consumo de bens e serviços de eficácia duvidosa. Polack enfatiza
este papel quando afirma que
O que Spengler afirma, também tem sido reforçado, através do nosso tempo, por
muitos autores que trabalham no paradigma do pensamento complexo e na
transdisciplinaridade, pois considerar o ser humano como uma amontoado de órgãos é, no
mínimo, desconsiderar a nossa capacidade de reflexão, algo que a excessiva presença da
técnica em nossas vidas tem influenciado negativamente.
Não se trata, aqui, de fazer uma crítica que negue a técnica, mas iluminar o ponto
central do debate sobre o uso da técnica e seu controle sobre a mente humana, tentando buscar
um equilíbrio entre o seu uso e o seu abuso perverso. Vide a dependência imoderada dos
smartphones em todo o mundo.
A dependência da técnica e da tecnologia na medicina fez parte de meus estudos em
minha Tese de Doutorado em Ciências Humanas na UFSC, de onde extraí um excerto:
Também Gadamer (2006, p. 16/17) afirma que “no atual estado técnico da civilização,
a ciência faculta para si o poder de fundamentar também a vida social em bases racionais e de
romper o tabu da inquestionável autoridade da tradição”. Ressalva, Gadamer, que esse fato
acontece especialmente pelo lado da crítica ideológica, que tenta transformar a consciência
social tentando uma emancipação da dominação econômica e social. E Gadamer esclarece
que:
Como essa crítica atinge qualquer pessoa, torna-se ainda mais efetiva a forma
silenciosa na qual esferas cada vez mais amplas da vida humana são submetidas ao
domínio técnico e a decisão pessoal de cada um do grupo é substituída por
automatismos racionais. (GADAMER-2006, p. 17).
D - BIBLIOGRAFIA