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O campo teórico das “escritas de si” tem esboçado um território vasto, no qual, a despeito da
centralidade dos estudos literários, se podem observar inflexões nos domínios de diversas outras
linguagens, tais como o cinema, o teatro, a dança, a performance. Interessa-nos, no escopo deste
trabalho, resgatar dois conceitos relacionados a esse campo teórico: o conceito de espaço biográfico,
como proposto por Leonor Arfuch (ARFUCH, 2010) e o conceito de autoficção, resgatado por Diana
Klinger, em diálogo com as contribuições do crítico e romancista Sergue Doubrouvsky (KLINGER,
2007).
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Pesquisadora em Saúde Pública do Laboratório de Iniciação Científica na Educação Básica da Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, Brasil.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Em sua obra O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea, Leonor Arfuch dedica-
se a refazer um percurso histórico-crítico das narrativas autobiográficas, procurando compreender as
múltiplas facetas desses discursos ao longo dos tempos, no intuito de refletir sobre a presença
ostensiva desse modo narrativo na contemporaneidade. Para além de esmiuçar as sutilezas das
narrativas em primeira pessoa nesse processo histórico-cultural – notadamente no universo da
literatura -, Arfuch amplia a compreensão acerca desse tipo de estrutura discursiva, estabelecendo o
conceito de espaço biográfico para tentar mapear as expressões do eu nas sociedades
contemporâneas, fortemente marcadas pela espetacularização, propiciada por diferentes redes
midiáticas. Nas palavras da autora,
Deve-se observar que o conceito de espaço biográfico amplia a perspectiva da visada subjetiva em
primeira pessoa, centrada nos relatos em si mesmos, para uma compreensão dos "momentos
biográficos", reconhecíveis, segundo Leonor Arfuch, nas "diversas narrativas, particularmente nas
midiáticas". O destaque conferido a esses momentos, em um mundo marcado pela espetacularização
do eu, favorecido pela avalanche de imagens visuais, quase sempre conectadas em rede, permite que
possamos pensar, também, na narratividade autobiográfica para além de suas formas consagradas na
linguagem literária ou em formas afins. Trata- se - como também sublinha Arfuch - da "busca da
plenitude da presença - corpo, rosto, voz - como proteção inequívoca da existência, da mítica
singularidade do eu".
Desdobrando essa reflexão, de maneira ainda mais precisa, no que se refere às "tecnologias da
presença" (Arfuch, 2010, p. 75), a ensaísta explicita a força da explicitação do vivido a necessidade
imperativa de sublinhar a existência, amplificando os efeitos da presença, em escala maximizada.
Segundo Arfuch,
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ocorrido, experimentado, padecido, suscetível de ser atestado por protagonistas,
informantes, câmeras ou microfones, gravações, entrevistas, paparazzi,
desdunamentos, confissões... (ARFUCH, 2010, p.75)
Antes de pensarmos a performance como uma linguagem artística, a qual tensiona diferentes tipos
de fronteira, radicalizando a expressão do artista enquanto sujeito, em sua história de vida, é
importante recuperar um conceito fundamental, tomado no campo das escritas de si, para pensar a
subjetividade contemporânea manifesta, entre outras formas artísticas, na performance. Estamos
falando, aqui, do conceito de autoficção, criado pelo crítico Segue Doubrovsky e reapresentado por
Diana Klinger, em seu livro Escritas de si, escritas do outro - o retorno do autor e a virada
etnográfica (2007), no qual a autora busca compreender os modos de operação da autoficção e da
escrita etnográfica, em suas intersecções e singularidades. Deve-se esclarecer, de antemão, que,
embora a autora tenha como corpus narrativas literárias contemporâneas, os conceitos desenvolvidos
na primeira parte da obra, ainda que aplicados à esfera da literatura, parecem-nos bastante profícuos
na condução de um pensamento acerca das marcas expressivas autobiográficas presentes em outras
linguagens artísticas, sobretudo se considerarmos a noção de espaço biográfico, acima desenvolvida.
Klinger (2010, p.51) apresenta o conceito de autoficção, tal como cunhado por Segue Doubrovsky,
de modo a sublinhar a dimensão criadora do sujeito, ao escrever seu "relato biográfico".
Compreendendo esse conceito em um contexto pós-freudiano, Doubrovsky afirma que
(...) A (auto)biografia que se põe no lugar da cura é a "ficção" que conta para o
paciente como a história de sua vida. Quer dizer que o sentido de uma vida não se
descobre e depois se narra, mas se constroi na própria narração: o sujeito da
psicanálise cria uma ficção de si. E essa ficção não é verdadeira nem falsa, é apenas
a ficção que o sujeito cria para si próprio. (KLINGER, 2007, pp.51-52)
É importante enfatizar que a autoficção opera com um engendramento discursivo por meio do qual o
sujeito vai se constituindo como um ser de linguagem e na linguagem, tornando por vezes
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A arte da performance supõe uma exposição radical de si mesmo, do sujeito
enunciador assim como do local da enunciação, a exibição dos rituais íntimos, a
encenação de situações autobiográficas, a representação das identidades como uma
trabalho de constante restauração sempre inacabado (RAVETTI, 2002, p.47). No
texto de autoficção, entendido neste sentido, quebra-se o caráter naturalizado da
autobiografia (...) numa forma discursiva que ao mesmo tempo exibe o sujeito e o
questiona, ou seja, que expõe a subjetividade e a escritura como processos em
construção. Assim a obra de autoficção é comparável à arte da performance na
medida em que ambos se apresentam como textos inacabados, improvisados, work
in progress, como se o leitor assistisse "ao vivo" ao processo da escrita. (KLINGER,
2007, pp. 55-56)
A comparação proposta por Diana Klinger, nos termos acima transcritos, põe em evidência dois tipos
de tangenciamentos entre essa "encenação de si" e a performance como linguagem: a expressão de
uma experiência subjetiva em que o artista se apresenta mais como indivíduo do que como
personagem e o caráter inacabado dessa construção de si mesmo. Esses dois aspectos serão retomados
quando da discussão específica do trabalho escolhido para análise, proposto pela performer Orlan -
"A reencarnação de Santa Orlan" -, na medida em que esses traços se revelam bastante presentes e
expressivos nessas performances.
corpo da artista e o entrecruzamento entre os domínios da arte e da ciência, nas dobras da ética e da
política.
A performance, entre tantas possibilidades desafiadoras que coloca como linguagem artística, tem na
exposição do corpo um de seus traços constitutivos mais centrais. O corpo, na arte da performance,
além de apresentar, na grande maioria dos trabalhos, como elemento decisivo de sua expressão,
justapõe as figuras do performer e do espectador, tensionando-os em uma corrente estética e
sinestésica, no processo mesmo de construção da obra. A performance pode ser pensada como um
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território deslizante e fronteiriço, no qual são friccionadas as artes plásticas e as artes cênicas, a vida
e a arte, o sujeito criador e o sujeito espectador - co-construtores da experiência performática.
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performances, mas que fabrica obras realizadas por meio das cirurgias – “eu venho
da pintura e da escultura e retorno a elas sem cessar” (ORLAN, 1998).
(...) Orlan concebe um “retrato” feito com o nariz da escultura de Diana, da boca de
Europa, de Boucher, a testa de Mona Lisa, de Da Vinci, o queixo da Vênus, de
Botticelli e os olhos de Psychê, de Gerome. A seleção de cada uma das personagens
tem uma razão: não foram escolhidas pela beleza artística consagrada pelo cânone
ou pelo fato de serem mundialmente conhecidas, mas, sim, por sua história.
(FALBO, 2000, p.270-271) (COUY, 2008, p.7)
Arte carnal não está interessada no resultado da cirurgia estética, mas no processo
da cirurgia, o espetáculo e discurso do corpo modificado que se tornou o lugar do
debate público. (...)
Observando as palavras de Orlan, acima transcritas, pode-se verificar que a arte carnal aponta para
diferentes aspectos, potencializando fecunda discussões acerca dos mesmos. Por exemplo, ao
mencionar o "autorretrato", Orlan estabelece uma relação com a tecnologia, interface que abre um
campo de debates acerca das mídias, dos suportes, da ciência, no diálogo com a dimensão estética.
Orlan indica, também, a espetacularização do corpo, visibilizado em suas performances cirúrgicas,
permitindo ao espectador, conectado à sala de operações em tempo real, acompanhar todo o processo
de modificação do corpo da performer. Por fim, a artista tensiona as relações entre matéria e palavra,
evocando a potência do corpo como linguagem. Além da dimensão que vimos desenvolvendo até
aqui - a reinvenção do corpo como escrita de si -, o trabalho de Orlan opera com o entrecruzamento
entre arte, ciência, ética e política, a partir de uma reflexão acerca do corpo na contemporaneidade.
As performances-cirúrgicas de Orlan, por sua própria natureza, põem em cena as fronteiras entre a
arte, a ciência e a tecnologia, uma vez que suscitam discussões sobre limites e possibilidades entre
esses domínios. Se levarmos em conta, por exemplo, a referencialidade do universo médico, no qual
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as intervenções cirúrgicas se inscrevem, podemos por em questão como a arte é capaz de subverter a
lógica da necessidade do procedimento médico para uma lógica outra de tomar o procedimento como
um recurso discursivo a serviço das potências expressivas da arte.
Em seu artigo "O corpo pós-humano: notas sobre arte, tecnologia e práticas corporais
contemporâneas", Joana de Vilhena Novaes comenta acerca do lugar do corpo na contemporaneidade,
tomando o trabalho de Orlan como paradigmático para refletir acerca as transformações pelas quais
o corpo vem passando nos tempos de hoje:
A reflexão acima desenvolvida situa o trabalho de Orlan em um território híbrido, no qual a ciência
e a arte, a ética e a política estabelecem fricções potentes, com as quais é possível inscrever a obra
dessa performer em um universo múltiplo de questionamentos e proposições, inclusive, em processos
formativos nos mais diversos níveis. As intervenções radicais e transgressoras do processo criativo
de Orlan operam como dispositivos capazes de desafiar nossa humanidade comum, em um face a face
com nossa inelutável finitude.
Ao agir na própria carne, [Orlan] parece tentar dominar o desafio da carne, afastar-
se do risco e da ansiedade associados à decomposição do corpo. (Para fazer isso,
fornece uma imagem com a ideia de morte e desaparecimento do sujeito. Ao publicar
esta tentativa, Orlan nos oferece a oportunidade de ver para além do limite do corpo.
O que é um corpo que fala, se não uma encarnação divina? Orlan combina a figura
do cirurgião, cuja função parece ser a de um mestre da obra de arte, dono da natureza
e tenta postergar a morte por tempo indeterminado. (NOVAES, 2010, p.414)
Referências
COUY, Venus Brasileira. “Perdão se devo fazê-los sofrer” – A Arte Carnal de Orlan”. In: Travessias
Ed.03 Educação, Cultura, Linguagem e Arte. 2008. ISSN 1982-5935. Disponível em
www.unioeste.br/travessias. Acesso em: 29/06/17.
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GONÇALVES, Fernando do Nascimento. "Performance: um fenômeno de arte-corpo-comunicação".
In: Logos 20. Corpo, arte, comunicação. Ano 11, no.20, 1o. semestre de 2004.
GONZAGA, Ricardo Maurício. “O corpo como rascunho: Orlan, o verbo feito carne feito Imagem
feita verbo”. In: Anais do Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica
Genética, X Edição, 2012.
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica:
Bernardo Carvalho, Fernando Vallejo, Washington Cucurto, João Gilberto Noll, César Aira,
Silviano Santiago/Diana Irene Klinger. - Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
NOVAES, Joana de Vilhena. "O corpo põs-humano: notas sobre arte, tecnologia e práticas
corporais contemporâneas". Disponível em http://www.uva.br/trivium/edicao1-dez-2010/artigos-
tematicos/3-o-corpo-pos-humano.pdf. Acesso em 30/06/17.
Perfomance, body, art and science: writings of self in Orlan's aesthetic world
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