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Classe em Farrapos 
Acumulação integral e expansão do 
lumpemproletariado 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


 
 
 


Lisandro Braga 
 
 
 
 
 
 
 

 
Classe em Farrapos 
Acumulação integral e expansão do 
lumpemproletariado 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Copyright © do autor 
 
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida 
ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor. 
 
 
Lisandro Braga 
 
Classe em Farrapos. Acumulação integral e expansão do lumpemproletariado. 
São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 222p. 
 
ISBN 978‐85‐7993‐???‐? 
 
1. Lumpemproletariado. 2. Acumulação de capital. 3. Desemprego. I. Título.  

CDD – 410 
 
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira 
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito  
 
 
 
 
 
Conselho Científico da Pedro & João Editores: 
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. 
Gurgel  do  Amaral  (UNIR/Brasil);  Maria  Isabel  de  Moura  (UFSCar/Brasil); 
Maria  da  Piedade  Resende  da  Costa  (UFSCar/Brasil);  Rogério  Drago 
(UFES/Brasil). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Pedro & João Editores 
www.pedroejoaoeditores.com.br 
13568‐878 ‐ São Carlos – SP 
2013 


SUMÁRIO (CORRIGIR) 
 
 
 
 
Prefácio  
Introdução
Acumulação capitalista e lumpemproletariado
A dinâmica da produção capitalista de mercadorias
A produção de mais-valor e classes fundamentais
O processo de lumpemproletarização
Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado
A expansão do lumpemproletariado no regime de
acumulação integral
A teoria do regime de acumulação integral
Expansão e criminalização do lumpemproletariado nos
EUA
Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina
Lumpemproletarização na era da acumulação integral
no Brasil
Mudanças nas relações de trabalho e toyotismo
Neoimperalialismo e capitalismo subordinado
Desemprego e intensificação da lumpemproletarização
Conclusões
Referências

 
 


 
 


A classe em farrapos:  
elementos para uma teoria do lumpemproletariado 
 
Lucas Maia∗ 
 
A  discussão  sobre  as  classes  sociais  é  algo  recorrente  no  conjunto 
das  ciências  humanas.  De  diferentes  maneiras,  a  partir  de  diversos 
métodos  de  abordagem,  discute‐se  esse  fenômeno  óbvio,  que  em  não 
raras  oportunidades  é  tão  mal  compreendido.  Desde  as  diversas 
ideologias da estratificação social, até as mais diversas leituras a partir 
da  teoria  marxista,  bem  como  das  derivadas  da  deformação  do 
marxismo  (bolchevismo,  socialdemocracia  etc.),  que  as  classes  sociais 
vem sendo interpretadas e reinterpretadas. 
Fazer  aqui  uma  antologia  de  tais  interpretações  é  algo 
completamente  contraproducente.  Contudo,  para  situar,  tanto  no 
campo teórico metodológico, quanto no campo político a presente obra 
de  Lisandro  Braga,  faz‐se  necessária  uma  breve  digressão  acerca  das 
principais linhas de abordagem das classes sociais.  
Uma  primeira  linha  de  interpretação,  ligada  à  ideologia  da 
estratificação social, apresenta a leitura das classes sociais, do ponto de 
vista metodológico, como algo completamente arbitrário. Uma vertente 
é a que divide a sociedade em classe alta, média e baixa. Esta maneira 
de  compreender  a  questão  apresenta  vários  inconvenientes.  Em 
primeiro lugar, homogeneíza classes e grupos que, de per si, apresentam 
pouca  semelhança.  Nesta  maneira  de  conceber  a  questão,  entraria  na 
classe  alta,  por  exemplo,  altos  executivos  de  empresas,  grandes 
burocratas  estatais,  grandes  capitalistas  (industriais,  banqueiros  etc.). 
Nas  classes  médias,  poderia‐se  colocar:  intelectuais  (médicos, 
advogados  etc.),  burocratas  de  grandes  partidos  políticos,  professores 
universitários etc. Nas classes baixas, por exemplo, poderia ser colocado 
num  mesmo  bloco  desempregados,  operários,  trabalhadores 
domésticos,  camponeses  etc.  Ou  seja,  o  primeiro  inconveniente  desta 
interpretação acerca das classes sociais é o de se precisar com exatidão a 


 Professor do Instituto Federal de Goiás, campus Anápolis. Autor das obras Comunismo 
de  conselhos  e  autogestão  social.  Pará  de  Minas,  MG:  Virtual  Books,  2010  e  As  classes 
sociais em O capital. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2011. 
colocação  de  um  ou  outro  grupo  ou  classe  social  na  mesma 
classificação.  
Desta primeira dificuldade, surge outra: como definir os limites que 
separam uma classe da outra? Qual o limite ou quais os critérios para se 
definir  o  que  é  classe  baixa,  média  e  alta?  Cada  pesquisador,  neste 
particular, pode inventar o seu: status, modo de vida, renda etc. Pode‐se 
ainda  acrescentar  mais  um  elemento  a  este  conjunto  de  dificuldades 
metodológicas: como se relaciona ou qual a natureza do relacionamento 
entre estes estratos sociais? Como é possível compreender a relação da 
classe alta, com a média e com a baixa? Se esta concepção homogeneíza 
o  que  é  heterogêneo,  se  não  consegue  definir  com  precisão  os  limites 
que  separam  um  estrato  do  outro,  muito  menos  terá  condições  de 
estabelecer  a  plêiade  complexa  de  relações  que  as  classes  estabelecem 
entre si. 
Deste  modo,  esta  maneira  de  compreender  a  divisão  da  sociedade 
em  classes  é  bastante  limitada.  Estes  três  estratos  não  são  capazes  de 
abarcar  o  conjunto  de  classes,  frações  de  classes  e  grupos  sociais  que 
compõem a teia de relações sociais que constitui as sociedades de classe.  
Uma  outra  técnica  ou  metodologia,  fundada  na  ideologia  da 
estratificação social, é que tenta, a partir da análise da renda, definir as 
classes sociais. Geralmente, quando se utiliza desta concepção, divide‐se 
a sociedade em classes A, B, C, D, E e assim por diante. Dependendo do 
critério,  dos  objetivos  do  pesquisador,  pode‐se  identificar  quantas 
classes  for  necessário.  Esta  forma  de  analisar  a  questão  padece  das 
mesmas  dificuldades  da  anterior:  coloca  em  uma  mesma  classe  social 
grupos, classes e frações de classe distintos, a delimitação de uma classe 
para outra é algo completamente arbitrário, pois reduz‐se a situação de 
classe ao rendimento. Assim, por exemplo, num mesmo estrato (A, B, C 
etc.)  pode‐se  ter  indivíduos  com  mesmo  rendimento,  mas  com 
atividades,  modo  de  vida  etc.  completamente  distintos.  Da  mesma 
forma que a postura anterior, também esta não consegue compreender a 
natureza do relacionamento entre as classes, pois ao estratificar, a partir 
de  critérios  arbitrários,  as  classes  sociais,  não  se  consegue  incluir  na 
análise a relação entre um estrato e outro. Como o estrato A se relaciona 
com  o  C,  o  B  com  o  D  etc.?  Impossível  definir  isto  a  partir  deste 
procedimento. 


Duas  constatações  são  graves  com  relação  à  ideologia  da 
estratificação social: a) as classes não são algo real, mas sim resultado de 
criação  arbitrária,  variando  as  classes  de  acordo  com  os  critérios, 
objetivos  de  cada  pesquisador;  b)  não  há  história,  nem  historicidade 
nestas  interpretações,  ou  seja,  as  classes  são  naturalizadas.  Resta  ao 
pesquisador,  de  forma  neutra,  somente  identificá‐las.  Vê‐se,  deste 
modo, a natureza conservadora desta abordagem. 
Esta  abordagem,  embora  faça  parte  da  vulgata  sobre  as  classes 
sociais,  povoando  o  imaginário  da  população,  não  é,  em  hipótese 
alguma,  a  única  maneira  de  conceber  a  questão.  Uma  outra,  também 
muito disseminada, é a feita a partir da interpretação leninista da obra 
de Marx. Lênin, um dos principais ideólogos da burocracia  do Partido 
Comunista  Russo,  bem  como  um  dos  principais  responsáveis  pela 
deformação  do  pensamento  original  de  Marx,  tem  também  sua 
ideologia das classes sociais. O interesse em resgatar este ideólogo deve‐
se  à  sua  importância  na  difusão  de  uma  caricatura  da  obra  de  Marx. 
Lênin, ao tentar analisar as classes sociais, afirma aprofundar as teses de 
Marx.  Contudo,  analisando‐se  os  dois  pensadores  percebe‐se  grandes 
diferenças: em primeiro lugar, a interpretação de Lênin é fundada num 
economicismo  que  não  se  verifica  em  Marx.  Lênin  define  as  classes 
sociais  a  partir  de  sua  posição  frente  às  relações  de  produção  e  aos 
meios  de  produção.  Portanto,  de  acordo  com  Lênin,  as  classes  se 
definem somente a partir do modo de produção, ficando o conjunto da 
população,  que  não  está  diretamente  vinculado  ao  processo  produtivo 
fora das classes sociais. Nesta maneira pobre de compreender as classes, 
define‐se  a  burguesia,  o  proletariado,  o  campesinato  etc.  Mas  é  difícil 
encontrar um lugar nesta definição para, por exemplo, os trabalhadores 
domésticos, intelectuais, burocratas etc. Por isto é comum na literatura 
leninista  as  expressões:  camadas  sociais,  pequena  burguesia,  classes 
médias etc.  
O  uso  da  expressão  camada  social  é  algo  recorrente  na  literatura 
leninista,  geralmente  utilizada  para  qualificar  os  intelectuais  e  os 
burocratas, que segundo Lênin e os leninistas não são classes, mas sim, 
camadas  sociais.  Com  este  artifício  ideológico,  consegue‐se  de  uma 
tacada  só  eliminar  a  posição  privilegiada  e  de  dominação  que  estas 
classes exercem sobre as classes exploradas e oprimidas da sociedade. A 
grande  questão,  do  ponto  de  vista  leninista,  é  justamente  isentar  a 


burocracia e a intelectualidade de sua posição de classe, transformando‐
a  em  camada  social.  Muda‐se  a  palavra,  mas  o  conteúdo  que  ambas 
expressam  é  o  mesmo,  ou  seja,  de  que  a  burocracia  é  uma  classe  que 
exerce atividade de controle e domínio dentro das instituições típicas da 
sociedade  burguesa.  Ao  fazer  isto,  Lênin  e  os  demais  leninistas 
buscavam camuflar o fato de o Partido Comunista Russo ter‐se tornado 
uma instituição dominante dentro da Rússia e posteriormente na União 
Soviética. 
Várias  outras  interpretações,  oriundas  de  concepções  claramente 
burguesas,  sobre  as  classes  sociais  poderiam  aqui  ser  elencadas: 
Raimond Aron, Georges Gurvich, Antony Giddens etc., mas tornariam 
este texto por demais extenso. Só retomamos as duas leituras anteriores, 
dada  sua  importância  na  divulgação  de  concepções  errôneas  sobre  as 
classes,  bem  como  sua  influência  sobre  as  demais  interpretações. 
Ademais, a existência de todas estas ideologias só demonstra uma coisa, 
o  debate  em  torno  das  classes  sociais  é  algo  premente  e  necessita 
sistematização.  Uma  grande  contribuição  a  este  propósito  foi  dada 
recentemente pela excelente obra de Nildo Viana, publicada em 2012: A 
Teoria  das  Classes  Sociais  em  Karl  Marx.  Diferentemente  das 
interpretações  anteriores,  Viana  faz  uma  reconstituição  fidedigna  e 
complexa acerca da leitura de Marx das classes sociais. Marx não partia, 
em  sua  análise  das  classes,  como  fazem  os  ideólogos  da  estratificação 
social, ou seja, de critérios arbitrários para definir e identificar as classes 
sociais.  Nem  muito  menos  reduzia  sua  leitura  a  um  economicismo 
empobrecedor,  tal  como  Lênin.  E,  de  forma  alguma,  reduziu  a 
sociedade  capitalista  a  duas  classes,  tal  como  interpretaram  Marx  os 
sociólogos e economistas de matriz ideológica burguesa.   
Sua  interpretação  buscava  expressar,  no  campo  do  pensamento,  as 
classes  existentes  concretamente.  Este  procedimento  metodológico 
permite,  analisando‐se  a  divisão  social  do  trabalho,  identificar  uma 
quantidade razoável de classes, portanto, completamente antagônica às 
interpretações  burguesas  de  Marx  (Aron,  Gurvich  etc.)  que  viam  na 
obra  de  Marx  somente  duas  classes.  Qualquer  leitura  séria  da  obra  de 
Marx resultará em conclusão oposta. Também, qualquer leitura rigorosa 
perceberá o  equívoco de Lênin e os leninistas em geral em restringir a 
definição  de  classes  em  Marx  ao  processo  produtivo  e  à  propriedade 
dos meios de produção.  

10 
A leitura de Marx, como demonstra Viana, é bem mais complexa e 
parte da divisão social do trabalho, da oposição de interesses, da luta de 
classes,  do  modo  de  vida,  modo  de  atividade,  valores,  concepções  etc. 
Assim, uma classe social não se define por sua posição diante dos meios 
de  produção.  Este  procedimento  define  somente  as  classes 
fundamentais do capitalismo, ou seja, burguesia e proletariado. A estas 
classes fundamentais relaciona‐se um conjunto de outras, denominadas 
por Viana de classes subsidiárias, ou seja, que se apropriam de uma ou 
outra  maneira  do  mais‐valor  produzido  a  partir  da  relação  entre  as 
classes  fundamentais.  Entre  as  classes  subsidiárias,  pode‐se  citar: 
burocracia,  intelectualidade,  lumpemproletariado,  trabalhadores 
domésticos etc.  
Cada uma destas classes comporta também um conjunto de frações 
de  classes.  A  burguesia,  por  exemplo,  fraciona‐se  em  burguesia 
comercial,  financeira,  industrial,  agrária.  O  proletariado  em  industrial, 
agrário,  de  minas,  da  construção  civil.  A  burocracia  em  partidária, 
eclesial,  empresarial,  sindical  etc.  A  intelectualidade  em  artistas, 
cientistas  etc.  Cada  uma  destas  classes  e  frações  define‐se  por  um 
determinado  modo  de  atividade,  por  sua  posição  na  divisão  social  do 
trabalho,  por  determinado  modo  de  vida  e  rendimentos,  por 
determinados valores e interesses. O que, por definição, coloca uma em 
relação  com  as  outras  e,  por  consequência,  as  coloca  em  situação  de 
conflito ou de aliança.  
Vê‐se, deste modo, que a concepção de Marx é bem mais complexa 
do  que  se  apresenta  à  primeira  vista.  É  a  partir  desta  abordagem  que 
Lisandro  Braga  trás  sua  contribuição  ao  discutir  como  o 
lumpemproletariado  se  constitui  e  evolui  ao  longo  da  história  do 
capitalismo. O título da obra é bastante expressivo de seu conteúdo. A 
Classe  em  Farrapos  é  uma  alusão  ao  significado  etimológico  da  palavra 
lumpemproletariado, ou seja, proletariado em farrapos. 
A pesquisa histórica e teórica desenvolvida por Braga é uma grande 
contribuição  à  teoria  marxista  das  classes  sociais.    Sua  análise  da  obra 
de  Marx  no  que  concerne  ao  lumpemproletariado  é  uma  marca 
importante  do  presente  livro.  Demonstra  como  este  “proletariado” 
esfarrapado  pertence  ao  capitalismo  tanto  quanto  a  burguesia  e  o 
proletariado.  Contudo,  o  grande  elemento  definidor  do 
lumpemproletariado, diferentemente das demais classes subsidiárias, é 

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o fato de estar fora da divisão social do trabalho. Assim, como destaca o 
autor,  não  existe  exclusão  social,  o  que  implicaria  em  dizer  que  o 
lumpemproletariado está fora da sociedade, algo impossível. Esta classe 
está,  na  verdade,  excluída  da  divisão  social  do  trabalho.  O  que  Braga 
demonstra, a partir das obras de Marx e Engels é que a constituição da 
relação‐capital,  ou  seja,  da  burguesia  e  do  proletariado  implica, 
ontologicamente, na criação do lumpemproletariado.  
O  livro  está  dividido  em  três  capítulos.  No  Capítulo  1:  Acumulação 
Capitalista  e  Lumpemproletariado,  o  autor  demonstra  a  relação 
inextrincável  entre  modo  de  produção  capitalista  e  formação  do 
lumpemproletariado. A partir da análise de Marx acerca da “Lei Geral 
da  Acumulação  Capitalista”,  Braga  demonstra  como  a  produção  da 
riqueza  enquanto  capital  implica  necessariamente  no  crescimento  do 
lumpemproletariado.  Segundo  Marx,  o  aumento  da  composição 
orgânica do capital implica necessariamente num crescimento absoluto 
da  população  trabalhadora,  bem  como  em  seu  decréscimo  relativo  em 
relação ao conjunto do capital investido. Assim, o desenvolvimento do 
capital  reside  num  crescente  aumento  do  investimento  em  capital 
constante  em  oposição  ao  capital  variável.  Ambos  crescem  em  fatores 
absolutos,  mas  o  capital  constante  cresce  relativamente  mais  que  o 
capital variável. Esta relação “natural” do capital cria aquilo que Marx 
denominou  exército  industrial  de  reserva  ou  superpopulação  relativa. 
Em  O  Capital,  Marx  refere‐se  aos  estratos  mais  inferiores  desta 
superpopulação  relativa  como  sendo  o  lumpemproletariado 
(prostitutas,  incapacitados  para  o  trabalho,  desempregados  crônicos 
etc.).  Braga  propõe  uma  “ressignificação”  do  termo 
lumpemproletariado, passando a compor esta classe todo o conjunto do 
exército  industrial  de  reserva.  Após  demonstrar  a  essência  do 
Lumpemproletariado,  discute  seu  processo  de  formação  histórica,  seu 
modo de vida, condições de existência etc. desde a origem do modo de 
produção  capitalista  até  finais  do  século  XIX,  período  analisado  por 
Marx. 
A  segunda  grande  contribuição  de  Braga  para  uma  teoria  do 
lumpemproletariado  está  presente  no  Capítulo  2:  Expansão  do 
Lumpemproletariado  no  Regime  de  Acumulação  Integral.  Sua  pesquisa, 
portanto, não se restringe a afirmar o que Marx disse, o que demonstra 
o  caráter  não‐dogmático  do  autor  e  de  sua  obra.  Marx  desenvolveu  os 

12 
elementos essenciais da análise do modo de produção capitalista e das 
classes  sociais,  mas  não  fez  tudo  e  nem  poderia  fazê‐lo.  Também,  o 
capitalismo  contemporâneo  não  é  mais  o  do  século  XIX.  É  com  base 
nesta  premissa,  que  Braga  se  apropria  da  teoria  dos  regimes  de 
acumulação  tal  como  desenvolvida  por  Nildo  Viana  nas  obras  Estado, 
Democracia  e  Cidadania  e  O  Capitalismo  na  Era  da  Acumulação  Integral  e 
discute  o  desenvolvimento  do  lumpemproletariado  a  partir  do 
desenvolvimento mesmo do modo de produção capitalista. A sociedade 
moderna  passou  por  cinco  regimes  de  acumulação:  extensivo  (da 
revolução  industrial  até  finais  do  século  XIX);  intensivo  (de  finais  do 
século  XIX  até  a  Segunda  Guerra  Mundial);  conjugado  (da  Segunda 
Guerra Mundial até a década de 1980); e integral (da década de 1980 até 
os dias atuais). Braga analisa dois regimes de acumulação e demonstra 
como  o  lumpemproletariado  se  comporta,  como  classe  em  cada  um 
deles. Analisa o regime de acumulação extensivo, o discutido por Marx, 
debate  realizado  no  primeiro  capítulo.  No  segundo  capítulo,  discute  o 
lumpemproletariado  na  contemporaneidade,  ou  seja,  no  regime  de 
acumulação integral. A conclusão a que chega o autor é que a tendência 
à  lumpemproletarização  cada  vez  mais  radical  da  sociedade  se  afirma 
na  etapa  atual  do  capitalismo.  E  isto  ocorre  tanto  nos  países 
imperialistas  (Estado  Unidos,  Europa  Central  etc.)  quanto  nos  de 
capitalismo  subordinado  (América  Latina,  África  etc.).  Para  os  países 
imperialistas,  cunha  o  termo  “lumpemproletarização  expansiva”,  para 
os países subordinados “lumpemproletarização intensificada”.  
A  grande  contribuição  desta  parte  da  obra  é  demonstrar:  a)  o 
lumpemproletariado,  ou  seja,  miséria,  desemprego  etc.  são  uma 
realidade  no  mundo  inteiro,  inclusive  no  centro  do  capitalismo 
mundial, os EUA; b) o lumpemproletariado não é necessariamente uma 
classe reacionária, contrariando com esta tese várias abordagens, como 
a  de  Alberto  Passos  Guimarães  em  seu  livro  As  Classes  Perigosas. 
Continuando  a  reflexão  que  já  havia  feito  no  capítulo  1,  quando 
demonstrou que o lumpemproletariado foi ativo em vários processos de 
luta  durante  o  regime  de  acumulação  extensivo,  durante  o  regime  de 
acumulação  integral,  suas  lutas  levaram  a  uma  radicalização  beirando 
as raias do processo revolucionário na Argentina. Analisa, neste ponto, 
a ação política do Movimento Piqueteiro na Argentina e demonstra que 
o  lumpemproletariado  não  é  essencialmente  contra‐revolucionário.  A 

13 
experiência na Argentina, durante a década de 1990 e os primeiros anos 
da década de 2000 o demonstram. 
Finaliza  o  livro  com  o  Capítulo  3:  Lumpemproletarização  na  Era  da 
Acumulação  Integral  no  Brasil.  Demonstra,  como  rigor  analítico,  o 
processo de estabelecimento da acumulação integral no Brasil, ou seja, 
da reestruturação produtiva fundada no toyotismo, no estabelecimento 
do Estado neoliberal iniciado com o governo Collor em 1990, processo  
continuado até os dias atuais e na relação subordinada do Brasil com os 
países  imperialistas,  onde  os  ajustes  estruturais  propostos  pelo  Fundo 
Monetário  Internacional  –  FMI,  Banco  Mundial  etc.  arrebentaram  as 
poucas  políticas  sociais  e  garantias  trabalhistas  que  existiam  no  país. 
Este conjunto de processos agravou uma situação que já era por demais 
crônica. Tal como no caso argentino, a lumpemproletarização no Brasil 
foi drástica ou como define e autor,  “intensificada” durante os anos de 
1990  e  2000.  Isto,  contudo,  não  implicou  na  criação  de  um  movimento 
social radical como na Argentina. 
Assim,  a  presente  obra,  que  agora  o  leitor  tem  em  mãos,  é  uma 
preciosa contribuição à teoria marxista das classes sociais. Seu enfoque 
está  centrado  em  uma  classe  social  específica,  o  lumpemproletariado, 
sendo outras classes marginalmente analisadas no livro. Esta obra tem, 
portanto,  vários  méritos:  a)  interpretar  de  maneira  correta  a  teoria  de 
Marx  das  classes  sociais  em  geral  e  especificamente  sua  concepção  de 
lumpemproletariado;  b)  refundir  e  ressignificar  alguns  elementos  da 
teoria  de  Marx  acerca  do  lumpemproletariado;  c)  analisar  o 
desenvolvimento do lumpemproletariado a partir da teoria dos regimes 
de acumulação; d) analisar o desenvolvimento do lumpemproletariado 
no  capitalismo  contemporâneo,  ou  seja,  no  regime  de  acumulação 
integral;  e)  analisar  o  significado  da  luta  política  desenvolvida  pelo 
lumpemproletariado,  demonstrando  que  esta  classe,  devido  suas 
condições  de  vida  e  existência,  pode  se  aliar  ao  proletariado  e 
protagonizar processos radicais de luta. É, portanto, obra indispensável 
para  quem  quer  compreender  a  dinâmica  das  classes  sociais  no 
capitalismo  contemporâneo,  além  de  ser,  do  ponto  de  vista 
metodológico,  um  importante  indicativo  do  estudo  do 
lumpemproletariado. 
 
 

14 
 
INTRODUÇÃO 
 
 
Os estudos que versam sobre o modo de produção capitalista e suas 
classes sociais tendem, geralmente, a priorizar em suas análises apenas 
as  classes  fundamentais  do  capitalismo,  isto  é,  a  burguesia  e  o 
proletariado,  a  luta  de  classes  derivada  da  relação  estabelecida  entre 
essas  classes  na  produção,  suas  organizações,  modos  de  vida  etc..  A 
partir  da  década  de  1940  começaram  a  surgir  estudos  interessados  em 
compreender outras classes sociais no capitalismo, tal como os estudos 
sobre  a  burocracia  (RIZZI,  1983;  DJILLAS,  1971)  ou,  como  prefere 
alguns  teóricos,  os  gestores  (BERNARDO,  2009).  No  entanto,  outras 
classes  sociais  permaneceram  marginalizadas  não  só  na  realidade 
material  concreta,  mas  também  nas  análises  teóricas.  Possivelmente  a 
classe  social  que  mais  nitidamente  se  encontra  nessa  situação  seja  o 
lumpemproletariado.  
O  foco  central  desse  trabalho  consiste  em  analisar  o  processo  de 
lumpemproletarização  no  Brasil  no  período  de  vigência  do  regime  de 
acumulação  integral  (de  1990  aos  dias  atuais).  Nossa  motivação  nasce 
da  necessidade  intelectual  de  compreender  as  determinações  que 
envolvem  o  crescimento  espantoso  no  Brasil  de  indivíduos 
desempregados  e  empobrecidos,  vivendo  em  situação  de  rua  (sem‐
tetos),  subempregados,  prostitutas,  mendigos  etc.  Trataremos  esse 
conjunto  de  grupos  sociais  que  compõe  a  totalidade  do  “exército 
industrial de reserva” como uma classe social: o lumpemproletariado. 
O  lumpemproletariado  insurge  das  ruínas  do  modo  de  produção 
feudal  e  das  próprias  necessidades  do  modo  de  produção  capitalista 
nascente,  pois  com  o  processo  de  ruptura  com  a  tradição  feudal  da 
propriedade  comum  da  terra  e  o  surgimento  de  propriedades  privadas, 
fruto  dos  cercamentos,  destinadas  a  funcionarem  segundo  a  lógica 
mercantil  incipiente,  milhares  de  camponeses  foram  expulsos  de  suas 
terras e obrigados a migrarem para os recentes centros urbanos industriais. 
Porém, tais centros urbanos não se encontravam habilitados a incorporar 
na  nova  divisão  social  do  trabalho  toda  essa  gigantesca  massa  popular. 
Pelo  contrário,  parcela  significativa  dessa  massa  se  encontrará 

15 
marginalizada  da  divisão  social  do  trabalho  e  formará  o 
lumpemproletariado.  
Posteriormente,  o  próprio  desenvolvimento  da  produção  capitalista 
de mercadorias e toda a sua dinâmica alimentarão o desenvolvimento de 
um  lumpemproletariado  que  tende  a  crescer  assustadoramente  na 
sociedade capitalista. No fundo, essa classe social, após a consolidação do 
capitalismo,  deriva  da  luta  de  classes  estabelecida  entre  burguesia  e 
proletariado  na  produção  e  formará  aquilo  que  Marx  denominou  de 
“exército  industrial  de  reserva”  e  cumprirá  duas  funções  essenciais  no 
capitalismo que consiste em pressionar os salários para baixo e manter a 
classe  trabalhadora  dividida  e  enfraquecida  na  disputa  por  espaço  no 
mercado  de  trabalho.  A  totalidade  desse  exército  industrial  compõe  a 
classe social aqui denominada de lumpemproletariado e a mesma passa a 
ser  parte  integrante  da  lógica  reprodutora  do  modo  de  produção 
capitalista,  tendendo  a  crescer  assustadoramente  em  períodos  de  crise 
econômica.  
A  importância  de  se  compreender  o  lumpemproletariado  à  luz  de 
uma  teoria marxista  das  classes  sociais  se  justifica  pela  necessidade  de 
apreendê‐lo  enquanto  uma  classe  social  formada  pela  totalidade  do 
exército  industrial  de  reserva,  isto  é,  toda  gama  de  desempregados, 
subempregados,  mendigos,  sem‐tetos  etc.  que  se  encontram 
marginalizados  da  divisão  social  do  trabalho  e  que  na  atual 
configuração  do  capitalismo  tende  a  se  encontrar  cada  vez  mais,  e  em 
maior  número,  nessa  situação.  O  capitalismo  ao  longo  de  seu 
desenvolvimento  conviveu  com  a  lumpemproletarização  e  dela 
dependeu,  porém  a  condição  de  lumpemproleatariado  em  diversos 
momentos históricos era acompanhada pela possibilidade de retorno à 
condição  de  classe  operária  e/ou  trabalhadora  em  geral.  Na 
contemporaneidade, a possibilidade dessa massa enorme de indivíduos 
se  proletarizarem  novamente  é  cada  vez  mais  difícil,  apesar  de  ainda 
ocorrer,  pois  aquilo  que  anteriormente  representava  uma  fase  de 
transição  ‐  lumpemproletariado↔proletariado  –  tem  se  tornado, 
durante  a  vigência  do  regime  de  acumulação  integral,  num  “modo  de 
vida”  de  milhares  de  indivíduos  em  todo  o  mundo  (MARTINS,  1997). 
Conseqüentemente,  o  enfrentamento  à  condição  de 
lumpemproletariado, assim como a condição de proletariado, depende 

16 
intimamente da destruição da sociedade que lhes possibilita a existência 
e delas depende para existir, isto é, o capitalismo. 
Além disso, torna‐se de fundamental importância discutir o que há 
por  de  trás  dos  constructos  ideológicos  inclusão/exclusão  social  que, 
desde  aproximadamente  a  década  de  80  e  90  na  Europa, 
especificamente  na  França,  se  tornaram  dominantes  nos  discursos 
acadêmico‐científicos  e  governamentais,  pois  tentar  compreender  a 
totalidade  das  relações  sociais  no  capitalismo  a  partir  de  uma  visão 
dualista  abstrata  que  mais  obscurece  tais  relações  do  que  a  esclarece, 
acaba  por  revelar  a  tentativa  das  classes  dominantes  de  ocultar  um 
processo  que  acompanha  o  desenvolvimento  histórico  do  modo  de 
produção  capitalista:  a  lumpemproletarização  expansiva  (capitalismo 
imperialista) e intensificada (capitalismo subordinado).  
Ao  falar  de  exclusão  social  deve  se  questionar  de  onde  se  está 
excluído,  pois  ninguém  está  excluído  socialmente  uma  vez  que  não 
existem  indivíduos  excluídos  da  pertença  de  classe  social.  Todo 
indivíduo pertence a uma ou outra classe social. O que acontece é que o 
lumpemproletariado, uma classe social inerente ao capitalismo tal como a 
burguesia  e  o  proletariado,  encontra‐se  marginalizado  da  divisão  social 
do  trabalho  e  não  da  sociedade  como  um  todo,  pois  isso  é  impossível. 
Além disso, a ideologia da inclusão social não explica em que condições e 
para onde se pretende incluir os tais indivíduos “excluídos”, ou seja, não 
demonstra  que  se  houvesse  a  possibilidade  da  inclusão,  algo  bastante 
contestável  e  duvidável,  essa  se  daria  no  reino  do  trabalho  alienado, 
precarizado e intensificado que nega a multiplicidade da potencialidade 
física e espiritual do ser humano e, consequentemente, a positividade da 
inclusão estaria ameaçada. 
Em  escala  mundial  é  possível  perceber  que  o  processo  de 
lumpemproletarização passa por uma fase de expansão na Europa, EUA 
e  Ásia,  a  partir  da  década  de  1980,  com  a  consolidação  do  regime  de 
acumulação integral. Nosso problema de pesquisa incide em saber se no 
Brasil,  país  de  capitalismo  subordinado,  que  convive,  desde  o  final  do 
século  XIX,  com  um  alto  índice  de  indivíduos  lumpemproletarizados 
houve  uma  intensificação  desse  processo?  Se  houve,  quais  são  suas 
especificidades,  ou  seja,  qual  a  relação  entre  o  regime  de  acumulação 
integral no Brasil e a intensificação da lumpemproletarização nesse país?  

17 
Responder a esse problema central e a outros dele derivados, possui 
importância acadêmica e social fundamental, pois pode contribuir com 
a  reconstrução  de  uma  teoria  das  classes  sociais  no  Brasil  que  ofereça 
ferramentas  mais  eficazes  para  a  compreensão  da  dinâmica  social 
brasileira  e  possibilite,  também,  um  combate  à  ideologia  dominante 
que,  a  partir  dos  seus  constructos  ideológicos  (marginalidade  social, 
inclusão  e  exclusão  social,  ações  afirmativas,  igualdade  de 
oportunidades  etc.),  camuflam  a  realidade  social  e,  conseqüentemente, 
reproduz  o  status  quo,  dificultando  a  construção  de  uma  concreta 
alternativa  social,  fundada  na  autogestão  da  sociedade,  que  sirva  ao 
enfrentamento  incisivo  contra  a  manutenção  e  reprodução  da  barbárie 
capitalista.  
Com  o  intuito  de  compreender  a  Acumulação  integral  e  expansão  do 
lumpemproletariado,  nosso  trabalho  será  dividido  em  três  capítulos.  O 
primeiro  capítulo  intitulado  Acumulação  capitalista  e  lumpemproletariado 
trará  uma  discussão  teórica  acerca  da  acumulação  capitalista,  suas 
classes  fundamentais,  a  relação  entre  a  acumulação  e  o 
lumpemproletariado  e  a  formação  e  desenvolvimento  dessa  classe 
social  no  regime  de  acumulação  extensivo.  Nesse  capítulo  buscamos 
compreender o lumpemproletariado como uma classe social inerente ao 
modo  de  produção  capitalista  e  que  tende,  assim  como  no  regime  de 
acumulação  extensivo,  a  se  ampliar  e  se  intensificar  no  regime  de 
acumulação integral.  
Para  dialogar  com  a  hipótese  de  que  no  regime  de  acumulação 
integral  a  lumpemproletarização  sofre  um  processo  de  expansão, 
discutiremos  no  segundo  capítulo  A  expansão  do  lumpemproletariado  no 
regime de acumulação integral com o intuito de demonstrar que mesmo em 
países  de  capitalismo  imperialista,  como  o  norte‐americano,  é  possível 
visualizar  um  amplo  processo  de  lumpemproletarização  e  de 
criminalização  do  lumpemproletariado.  Nesse  capítulo,  discutiremos, 
também,  o  processo  de  lumpemproletarização  e  luta  de  classes  na 
Argentina. Para isso, discutiremos a situação argentina que, nos últimos 
anos  da  década  de  1990  até  os  dias  atuais,  vem  experimentando  um 
intenso  processo  de  lumpemproletarização  derivado  das  conseqüências 
do  regime  de  acumulação  integral  e  da  adoção  irrestrita  à  cartilha 
neoliberal.  O  propósito  de  discutir  a  situação  argentina  se  justifica  pelo 
fato  de  que  a  intensificação  da  lumpemproletarização  nesse  país 

18 
provocou  uma  radicalização  da  luta  de  classes,  demonstrando  que,  no 
regime  de  acumulação  integral,  a  postura  política  do 
lumpemproletariado  pode  ser  marcada  por  um  caráter  fortemente 
contestador  que  ameaça  a  permanência  da  ordem  capitalista.  Dessa 
forma,  a  tese  segundo  a  qual  a  postura  política  do  lumpemproletariado 
na contemporaneidade apresenta‐se como uma possibilidade real de uma 
aliança revolucionária com o proletariado se confirma e o mito segundo o 
qual a postura política do lumpemproletariado é sempre passível de ser 
cooptada e utilizada a serviço de tramóias reacionárias é desmentida. 
No  terceiro  e  último  capítulo,  discutiremos  o  processo  de 
lumpemproletarização  no  Brasil.  Nosso  objetivo  é  demonstrar  a 
singularidade  desse  processo  em  um  país  de  capitalismo  subordinado. 
Para isso, discutiremos as principais mudanças ocorridas nas relações de 
trabalho  e  o  toyotismo  no  Brasil,  a  relação  entre  neoimperialismo, 
capitalismo  e  neoliberalismo  subordinado.  Por  fim,  realizaremos  uma 
discussão  sobre  desemprego  e  intensificação  da  lumpemproletarização 
com o intuito de evidenciar que no capitalismo subordinado o processo 
de lumpemproletarização tende a ser intensificado. Para demonstrar essa 
intensificação,  iremos  analisar  as  condições  de  existência  de  uma  das 
frações  de  classe  do  lumpemproletariado  mais  degradadas  no 
capitalismo:  os  sem‐tetos  ou  população  em  situação  de  rua  (PSR).  Para 
essa  análise,  contaremos  com  as  informações  fornecidas  pelos  estudos 
realizados  por  Maria  Lucia  Silva  e  que  resultaram  na  obra  Trabalho  e 
população em situação de rua no Brasil (2009). 

19 
20 
ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E LUMPEMPROLETARIADO 
 
 
A  proposta  central  desse  trabalho  é  compreender  o 
lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, analisando‐
o  como  uma  classe  social  composta  pela  totalidade  do  exército 
industrial  de  reserva  (desempregados,  sem‐teto,  mendigos, 
subempregados,  prostitutas  etc.).  Constata‐se  que  o  processo  de 
lumpemproletarização, que emerge concomitantemente ao processo de 
proletarização,  no  período  de  consolidação  do  capitalismo,  vem  se 
expandindo  no  regime  de  acumulação  integral,  tanto  nos  países 
imperialistas  quanto  nos  países  subordinados,  de  uma  forma  jamais 
vista  em  outros  períodos  do  capitalismo,  exceto  no  período  de 
emergência desse modo de produção. Com o propósito de elucidar tal 
constatação  analisaremos  o  processo  de  lumpemproletarização  no 
regime  de  acumulação  extensivo  (da  Revolução  industrial  até 
aproximadamente  1871)  e,  posteriormente,  no  regime  de  acumulação 
integral  para,  a  partir  daí,  buscar  constatar  que  esse  processo  vem 
sofrendo  uma  expansão  na  contemporaneidade  semelhante  à  épocado 
primeiro regime de acumulação capitalista, dominante em quase todo o 
século XIX1.  
Para  melhor  compreender  a  dinâmica  da  acumulação  capitalista, 
suas  leis,  tendências  e  contra  tendências,  assim  como  a  formação  do 
lumpemproletariado e seu papel no processo de acumulação de capital, 
realizaremos,  nesse  capítulo,  uma  discussão  acerca  das  múltiplas 
determinações  que  envolvem  o  modo  de  produção  capitalista,  a 
produção  e  extração  de  mais‐valor  (sua  determinação  fundamental),  a 
lei  geral  da  acumulação  capitalista  e  o  processo  de 
lumpemproletarização derivado dela.  Visando, também, compreender 
as mudanças históricas pelas quais o capitalismo sofre em suas formas 
(processo  de  valorização,  formas  estatais  e  relações  internacionais),  a 
história  do  capitalismo  será  apresentada  aqui  enquanto  uma  sucessão 
de regimes de acumulação, demonstrando as especificidades do regime 

1 Para uma análise pormenorizada do regime de acumulação extensivo, passando pelo 
intensivo  e  intensivo‐extensivo,  até  chegar  ao  regime  de  acumulação  integral,  cf. 
VIANA (2009). 

21 
de acumulação integral e suas implicações no processo de ampliação do 
lumpemproletariado na contemporaneidade (VIANA, 2009). 

A dinâmica da produção capitalista de mercadorias


 
A  sociedade  capitalista,  como  já  afirmara  Marx,  se  caracteriza  por 
uma  “imensa  coleção  de  mercadorias”,  porém  não  haveria  nenhuma 
novidade  histórica  nessa  sociedade  se  a  forma  como  se  produz  tais 
mercadorias  não  fosse  absolutamente  inédita  na  história  da 
humanidade,  pois  é  verdade  que  a  análise  da  mercadoria  por  ela 
mesma não revela o segredo da exploração capitalista. Por conseguinte, 
poderíamos,  então,  questionar  sobre  as  razões  que  levaram  Marx  a 
iniciar sua obra sobre o modo de produção capitalista (O capital, vol. 1, 
1867)  com  a  análise  sobre  a  mercadoria  e  porque,  ainda  hoje,  vários 
autores, críticos da economia política, continuam a iniciar suas análises 
sobre  tal  modo  de  produção,  também,  pela  mercadoria,  ao  invés  de 
irem  direto  ao  processo  de  produção  e  exploração  dos  trabalhadores 
pelo capital?  
O  essencial  no  modo  de  produção  capitalista  não  se  encontra 
simplesmente  no  fato  desse  modo  de  produção  se  caracterizar  como 
uma “imensa coleção de mercadorias”, mas sim no fato de tal produção 
de  mercadorias  se  equivaler  à  produção  e  extração  de  mais‐valor.  No 
entanto, 
 
este  essencial  não  poderia  ser  estudado  se  não  tivesse  previamente  mostrado 
que  a  mercadoria  é  a  forma  social  que  tem  de  revestir  qualquer  bem  na 
economia  capitalista.  A  mercadoria  é  o  fenômeno  concreto  da  produção 
capitalista;  enquanto  fenômeno,  ela  não  basta  para  caracterizar  o  capitalismo, 
mas  impõe  a  sua  forma  particular  a  todos  os  fatores  e  produtos  do  trabalho 
efetuado  nas  condições  capitalistas.  A  primeira  condição  da  compreensão  do 
capital  (e,  como  se  verá,  do  seu  devir)  é  ver  bem,  nos  elementos  do  processo 
econômico  capitalista,  não  apenas  objetos,  bens  de  produção  e  de  consumo, 
forças  de  trabalho,  produtos  materiais  desempenhando  uma  função  técnica 
determinada, mas mercadorias que possuem valor (BARROT, 1977, p. 54). 
 
É exatamente por conta dessa novidade que Marx inicia sua obra O 
Capital  (1967)  com  a  análise  sobre  a  mercadoria.  Ele  foi  o  primeiro 
teórico  a  elaborar  uma  teoria  sistematizada  do  modo  de  produção 
capitalista,  por  isso  é  a  partir  dele  que  buscaremos  compreender  as 

22 
determinações desse modo de produção. O propósito de Karl Marx na 
sua obra O Capital (1967) consiste em revelar a exploração da sociedade 
capitalista  que  possui  seu  fundamento  na  extração  de  mais‐valor  no 
processo de produção de mercadorias. Visando compreender a essência 
(no  sentido  ontológico)  da  mercadoria,  Marx,  a  partir  do  “método  da 
abstração”,  procura  descobrir  suas  múltiplas  determinações  e  sua 
determinação fundamental.  
No  capítulo  A  mercadoria  do  volume  I  de  O  capital,  o  autor  inicia 
questionando o que determina o valor da mesma. Para responder a essa 
questão, primeiramente, torna‐se necessário, segundo Marx, saber o que 
há de comum em todas as mercadorias. Ele acaba afirmando que o que 
há de comum é que as mesmas são produtos do trabalho humano e que 
o tempo de trabalho socialmente necessário gasto em sua produção está 
diretamente relacionado com a determinação do seu valor.  
No  entanto,  cabe  indagar:  como  Marx  chega  a  tal  conclusão?  A 
mercadoria é ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca. Enquanto 
valor  de  uso  a  mercadoria  deve  possuir  utilidade  para,  enfim,  ser 
consumida.  Tais  valores  de  uso  são  portadores  materiais  do  valor  de 
troca,  ou  seja,  são  mercadorias.  Tomemos  os  seguintes  exemplos  para 
melhor  compreender  a  questão  dos  valores.  Se  01  determinado 
caminhão equivale a 03 determinados automóveis ou 02 determinados 
tratores,  logo  03  desses  automóveis  valem  o  mesmo  que  02  desses 
tratores  ou  01  desse  caminhão.  Por  conseguinte,  possuem  a  mesma 
expressão  do  seu  conteúdo.  Sendo  assim,  pode‐se  concluir  que  03 
automóveis  e  02  tratores,  assim  como  01  caminhão,possuem  algo  de 
comum e da mesma grandeza, mesmo sendo, enquanto valores de uso, 
coisas distintas. Percebe‐se, então, que há uma “terceira coisa” além dos 
valores  de  uso  e  de  troca  nas  quais  eles  se  reduzem.  Em  que  consiste 
essa “terceira coisa”? 
As  mercadorias  enquanto  valores  de  uso  possuem  diferenças 
qualitativas  e  enquanto  valores  de  troca  possuem  apenas  diferenças 
quantitativas.  Enquanto  valores  de  troca,  as  mercadorias  possuem 
apenas  uma  “propriedade  comum”:  são  produtos  do  trabalho 
humano.Assim,  Marx  descobre  em  que  consiste  a  “terceira  coisa”  e 
afirma: 
 

23 
deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a ela 
apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o 
produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se abstraímos 
o  seu  valor  de  uso,  abstraímos  também  os  componentes  e  formas  corpóreas 
que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer 
outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram. Também já 
não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou 
de  qualquer  outro  trabalho  produtivo  determinado.  Ao  desaparecer  o  caráter 
útil  dos  produtos  do  trabalho,  desaparece  o  caráter  útil  dos  trabalhos  neles 
representados,  e  desaparecem  também,  portanto,  as  diferentes  formas 
concretas  desses  trabalhos,  que  deixam  de  diferenciar‐se  um  do  outro  para 
reduzir‐se  em  sua  totalidade  a  igual  trabalho  humano,  a  trabalho  humano 
abstrato (1985, p. 47). 
 
Dessa forma, o que se pode perceber é que as mercadorias possuem 
como  “propriedade  comum”  o  fato  de  serem  produtos  do  trabalho 
humano,  “uma  simples  gelatina  de  trabalho  humano  indiferenciado”, 
trabalho humano abstrato. Conclui‐se, então, que é o tempo de trabalho 
socialmente  necessário  para  produzir  uma  mercadoria  que  determina 
seu  valor.  Vale  destacar  que  o  autor  está  tratando  do  tempo  médio 
social de trabalho e não do tempo de trabalho efetivo, e trata‐se do valor 
da mercadoria e não do seu preço. A diferença de um valor em relação a 
outro  é  meramente  quantitativa.  A  grandeza  quantitativa  do  valor  é 
medida  através  do  tempo  de  trabalho  gasto  na  sua  produção  que,  por 
sua  vez,  é  medido  pela  sua  duração  (horas,  dias  etc.).  Porém,  esse 
trabalho  é  “trabalho  abstrato”,  ou  seja,  trabalho  social  médio  e  não 
“trabalho concreto”. Sendo assim, 
 
é portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo 
de  trabalho  socialmente  necessário  para  produção  de  um  valor  de  uso  o  que 
determina a grandeza de seu valor. A mercadoria individual vale aqui apenas 
como  exemplar  médio  de  sua  espécie.  Mercadorias  que  contêm  as  mesmas 
quantidades  de  trabalho  ou  que  podem  ser  produzidas  no  mesmo  tempo  de 
trabalho,  têm,  portanto,  a  mesma  grandeza  de  valor.  O  valor  de  uma 
mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim como 
o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de 
trabalho necessário para a produção de outra (MARX, 1985, p. 48). 
 
O  trabalho  humano  utilizado  na  produção  de  uma  mercadoria 
possui  duplo  caráter:  trabalho  concreto  e  trabalho  abstrato. 
Primeiramente, o trabalho é produtor de valor de uso, produz para ser 

24 
útil a determinadas necessidades. Por outro lado, tal trabalho é abstrato, 
produz mais valor, acrescenta valor à mercadoria.  Tal duplicidade do 
trabalho se reproduz na mercadoria como valor de uso e valor de troca. 
A  mercadoria  enquanto  coisa  de  valor  é  imperceptível.  Somente 
representa valor quando expressa trabalho social e, consequentemente, 
o  seu  valor  só  pode  ser  expresso  numa  relação  sócio  mercantil  de 
mercadorias para mercadorias. 
Marx  compreende  o  concreto  (real)  como  sendo  “síntese  de 
múltiplas  determinações”,  mas  que  possui  uma  determinação 
fundamental.  De  acordo  com  o  “método  da  abstração”  desenvolvido 
por ele, o concreto‐dado é ponto de partida, visto que antes da pesquisa 
ele  se  encontra  no  nível  das  “representações  cotidianas”,  “senso 
comum” e não se apresenta de imediato em sua “essência”, mas a partir 
das  abstrações  atingimos  o  concreto‐determinado,  pensado.  Isto  é,no 
início, temos o concreto‐dado, a representação cotidiana do fenômeno a 
ser  estudado,  ou  seja,  a  aparência.  Depois  de  pesquisar,  através  da 
abstração  chegamos  ao  concreto‐pensado,  determinado.  Por 
conseguinte,  o  concreto‐dado  é  transpassado  para  o  concreto‐pensado, 
possibilitando  expressá‐lo,  teoricamente,  em  sua  totalidade(VIANA, 
2006).  
Dessa maneira, é que podemos afirmar que o preço da mercadoria é 
o  concreto‐determinado,  e  o  processo  de  abstração  possibilitou  chegar 
ao  valor,  sua  determinação  fundamental.  Portanto,  o  que  Marx  busca 
fazer  no  capítulo  A  mercadoria  é  superar  o  concreto‐dado,  a  aparência, 
através da abstração, chegando à essência – determinação fundamental 
‐  para  assim  chegar  ao  concreto‐determinado,  que  é  a  mercadoria  em 
suas múltiplas determinações. 
Resta, agora, sabermos que relações sociais concretas existem entre a 
produção de mercadorias e a definição do valor das mesmas, ou seja, de 
que  forma  se  define  o  valor  de  uma  mercadoria  na  sociedade 
capitalista?  
 
2.1.1 – A produção de mais-valor e classes fundamentais
 
Creio não ser necessário realizar grandes análises para concluirmos 
que a produção capitalista só ocorre se a mesma for geradora de lucro, 
ou  seja,  se  a  classe  capitalista  detentora  dos  meios  de  produção 

25 
necessita, ao produzir mercadorias, vendê‐las no mercado por um valor 
superior aos custos da sua produção, consequentemente o valor final da 
comercialização  deve  ser  maior  do  que  os  gastos  com  maquinaria, 
matérias‐primas e salários. Desse modo, todo capitalista 
 
quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores 
das  mercadorias  exigidas  para  produzi‐la,  os  meios  de  produção  e  a  força  de 
trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir 
não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e 
não só valor, mas também mais‐valia (MARX, 1985, p. 155). 
 
Tanto  as  máquinas  quanto  as  matérias‐primas  apenas  repassam 
seus valores no processo produtivo, por conseguinte o trabalho deve ser 
processo de valorização, pois “como a própria mercadoria é unidade de 
valor  de  uso  e  valor  de  troca,  seu  processo  de  produção  tem  de  ser 
unidade  de  processo  de  trabalho  e  processo  de  formação  de  valor” 
(MARX,  1985,  p.  155).  Então,  devemos  questionar  de  onde  e  de  que 
maneira vem o acréscimo de valor? 
Anteriormente  já  foi  adiantado  que  o  valor  de  uma  mercadoria  é 
determinado  pelo  tempo  de  trabalho  socialmente  necessário  para 
produzi‐la,  portanto  é  a  força  de  trabalho  (capital  variável)  o  único 
elemento que acrescenta valor à mercadoria. Dessa maneira, 
 
a força de trabalho é uma mercadoria particular, completamente diferente dos 
meios  de  trabalho.  Enquanto  que  estes  últimos  fornecem  ao  produto  o  seu 
valor,  a  força  de  trabalho  não  só  fornece  o  seu  próprio  valor  como  também 
acrescenta  o  valor  do  trabalho  que  ela  realiza.  É  criadora  de  trabalho;  e, 
portanto,  de  valor.  O  seu  consumo  é  produtivo:  dá  mais  do  que  custou 
(BARROT, 1977, p. 58). 
 
O  processo  de  constituição  do  valor  de  determinado  produto  é 
composto por diferentes determinações envolvidas na produção. De um 
lado temos aquilo que Marx denominou de capital constante, ou seja, “a 
parte  do  capital  que  se  converte  em  meios  de  produção”  –  matérias‐
primas,  maquinaria  e  meios  de  trabalho  em  geral.  Do  outro  lado 
encontra‐se  o  capital  variável,  isto  é,  a  força  de  trabalho  que  além  de 
reproduzir  seus  custos  adiciona  mais‐valor,  gera  excedente  (MARX, 
1985). Neste sentido, percebe‐se que o capital constante apenas repassa 
seus custos durante o processo de produção enquanto o capital variável, 

26 
além  de  repassar  seus  custos,  consiste  no  único  elemento  presente  no 
processo  produtivo  capaz  de  agregar  mais‐valor  à  mercadoria.  Marx 
chama esse conjunto (capital constante + capital variável) de composição 
orgânica do capital (MARX, 1985a).  
A  composição  orgânica  do  capital  expressa,  consequentemente,  a 
tendência  declinante  da  taxa  de  lucro  médio,  pois  com  o  intuito  de 
garantir  a  reprodução  ampliada  do  capital,  a  classe  capitalista  investe 
cada  vez  mais  em  meios  de  produção  (trabalho  morto),  que  apenas 
repassa  seus  custos,  e  cada  vez  menos  em  força  de  trabalho  (trabalho 
vivo)  que  é  o  único  elemento  gerador  de  mais‐valor.  Portanto,  se  o 
elemento que apenas repassa custos amplia em detrimento do elemento 
que gera mais‐valor, desenvolve‐se a tendência declinante da taxa de lucro 
médio2. Tal tendência é de extrema importância para a compreensão da 
dinâmica do capitalismo e de suas transformações históricas, pois revela 
uma das potencialidades fundamentais causadora da crise capitalista.  
A  relação  que  se  estabelece  entre  as  duas  classes  fundamentais  do 
capitalismo,  ou  seja,  entre  a  burguesia  e  o  proletariado,  é  uma  relação 
de  compra  e  venda,  pois  a  burguesia  compra  no  mercado  tanto 
matérias‐primas, maquinaria e outros meios de trabalho, assim como a 
força  de  trabalho.  Porém,  essa  última,  ao  contrário  dos  meios  de 
trabalho,  não  apenas  é consumida  durante  a  produção,  mas  também é 
geradora,  pois  o  acréscimo  de  valor  que  a  força  de  trabalho  realiza 
possibilita ao capitalista acumular capitais uma vez que a reposição dos 
custos  e  o  dispêndio  com  força  de  trabalho  –  salários  ‐  equivalem 
apenas a uma parcela do mais‐valor produzido. Já, “o valor do capital 
constante  reaparece  no  valor  do  produto,  mas  não  entra  no  novo 
produto‐valor criado” (MARX, 1985, p. 241). 
Esse  é  o  segredo  da  exploração  capitalista:  a  existência  do  mais‐
valor  só  é  possível  quando  o  proletariado  se  encontra  completamente 
separado do resultado do seu trabalho, que passa a ser substituído por 
um  salário  equivalente  apenas  a  uma  parcela  infinitamente  menor  do 
que o realmente produzido. Desta forma, percebe‐se que a relação entre 

2 “Esta tendência é constituída devido ao desenvolvimento das forças produtivas, pois 
quanto  mais  desenvolvida  é  a  tecnologia  e  quanto  mais  esta  entra  no  processo  de 
produção, menos se utiliza a força de trabalho, que é a fonte geradora de mais‐valor” 
(VIANA, 2009, p. 93). 

27 
capitalista  e  proletariado  é  fundada  na  exploração  de  uma  classe  não 
produtora, mas que apropria do resultado de trabalho alheio não pago, 
sobre a classe produtora. Nesse sentido,  
 
a  chave  do  aumento  do  lucro  é  o  aumento  da  parte  não‐paga  do  dia  de 
trabalho  em  relação  à  parte  paga,  aumento  do  produto  excedente  em  relação 
ao  produto  necessário  para  fornecer  os  meios  de  subsistência  do  trabalhador, 
ou aumento da taxa de mais‐valia (EATON, 1965, p. 99). 
 
Portanto,  a  produção  capitalista  de  mercadorias  corresponde  à 
produção  de  mais‐valor  e  esse  pode  ser  obtido  de  duas  formas.  A 
primeira forma, denominada de mais‐valor absoluto, é produzida pelo 
prolongamento  das  jornadas  de  trabalho.  A  segunda  forma, 
denominada de mais‐valor relativo, decorre da ampliação da produção 
no  mesmo  período  de  tempo  ou  até  mesmo  em  jornadas  de  trabalho 
reduzidas. Cabe, por conseguinte, indagar: Como isso é possível? Como 
os operários podem produzir mais no mesmo período de tempo?  
Historicamente  a  burguesia  vem  utilizando  duas  principais  formas 
de  ampliação  da  produtividade.  Uma  forma  é  a  organização 
racionalizada do processo de produção a qual os operários passam a ser 
minuciosamente  controlados,  fiscalizados,  rigidamente  disciplinados, 
cronometrados  e  vigiados  pelos  especialistas  nessa  função, espécies  de 
“agentes  carcerários  da  produção”  (BRAGA,  2009).  Os  horários  para 
utilização do banheiro, realização de refeições e para saída de fumantes 
do local da produção vem sofrendo uma significativa diminuição. 
Além  dessas  formas,  ainda  existe  o  sistema  de  multas  por  atraso, 
por destruição de ferramentas, por descuido com as máquinas, etc. Com 
isso,  a  classe  capitalista  objetiva  evitar  o  desperdício  de  tempo 
necessário para a produção de mais‐valor, pois “o capital personificado, 
o  capitalista,  cuida  de  que  o  trabalhador  execute  seu  trabalho 
ordenadamente e com o grau adequado de intensidade” (MARX, 1985, 
p.  244).Outra  forma  consiste  no  constante  aperfeiçoamento tecnológico 
utilizado para o desenvolvimento de máquinas cada vez mais eficientes 
e  produtivas.  Dessa  forma,  os  capitalistas  garantem  a  ampliação  da 
produtividade operária. 
John Eaton, em sua obra Manual de economia política (1965), ainda nos 
apresenta  outra  estratégia  capitalista  que  consiste  na  forma  de 
pagamento de salários. Segundo ele,  

28 
as  formas  de  pagamento  de  salários  constituem  uma  batalha  entre  o 
empregador e os sindicatos. Salário‐tarefa, ou seja, salário pago de acordo com 
a  produção  proporciona  ao  capitalista  um  meio  de  obrigar  o  trabalhador  a 
fazer  mais  durante  o  dia  de  trabalho,  já  que  disso  depende  quanto  o 
trabalhador leva para casa. À primeira vista, pode parecer que o pagamento de 
salários‐tarefa  contradiz  o  que  dissemos  anteriormente  sobre  os  salários  e  o 
valor  da  força  de  trabalho,  como  correspondendo  aproximadamente  ao  valor 
dos meios de subsistência do trabalhador. O pagamento “por peça”, ou seja, de 
acordo  com  a  produção,  sugere  que  quando  esta  se  eleva,  os  salários  se 
elevarão  de  forma  correspondente.  Isso  só  ocorre  a  prazo  muito  curto.  A 
experiência  de  muitas  décadas  mostrou  aos  trabalhadores  que  os  salários‐
tarefa  são,  no  final,  fixados  em  preços  baseados  em  salário‐tempo,  e  na  soma 
de artigos que o trabalhador deve comprar para viver. Se a produção aumenta 
acentuadamente, então o preço pago unitariamente é logo reduzido. O salário‐
tarefa de todo um dia de trabalho pode, é certo, ser um pouco mais do que o 
salário‐tempo do dia, mas a isso se contrapõe o fato de que a maior intensidade 
de trabalho aumenta as necessidades do trabalhador. Para o capitalista, porém, 
é  compensador  pagar  pelo  trabalho  executado,  já  que  essa  produção  extra 
aumenta  o  volume  de  mais‐valia  numa  proporção  que  excede 
consideravelmente qualquer extra pago em salários (EATON, 1965, p. 101). 
 
A pedra angular da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia 
Marx,  gira  em  torno  da  disputa  pelo  controle  do  tempo  de  trabalho, 
pois  se  de  um  lado  a  burguesia  visa  ampliar  a  extração  de  mais‐valor 
sobre  o  tempo  de  trabalho  do  proletariado,  esse  visa  diminuí‐lo  e 
devido  aos  interesses  antagônicos  dessas  classes,  o  processo  de 
valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por isso, a burguesia se 
vê  coagida  a  desenvolver  formas  cada  vez  mais  eficazes  de  controle 
sobre  o  trabalho  operário,  enquanto  esse  se  vê  também  coagido  a 
desenvolver formas de lutas que avancem em direção à diminuição do 
tempo de trabalho para extração de mais‐valor. Consequentemente, 
 
isto  ocorre  devido  ao  fato  de  que  é  no  próprio  processo  de  trabalho, 
simultaneamente processo de valorização, que se dá a produção de mais‐valor. 
Desta  forma,  o  trabalhador,  ao  resistir  em  utilizar  toda  a  sua  capacidade  de 
trabalho, tende a diminuir a extração de mais‐valor. É por isso que surge uma 
luta nas unidades de produção, em que o capitalista busca controlar a força de 
trabalho  para  que  ela  nãodesperdice  tempo  e,  por  conseguinte,  faça  decair  o 
seu lucro (VIANA, 2009, p. 49). 
 
A  determinação  fundamental  da  organização  do  trabalho  na 
sociedade capitalista é a luta de classes entre burguesia e proletariado, 

29 
porém  é  necessário  compreender,  de  forma  pormenorizada,  como  se 
relaciona burguesia e proletariado no processo de produção, como se dá 
a luta de classes e como a mesma interfere na organização do trabalho e 
na alteração dos regimes de acumulação.  
O  ser  humano  se  humaniza  ao  realizar  atividades  essencialmente 
humanas, interferindo na natureza a partir do trabalho em cooperação 
com  outros  seres  humanos,  objetivando,  dessa  maneira,  reproduzir  as 
condições  materiais  da  sua  existência.  Essa  é  a  essência  do  trabalho 
autônomo, ou seja, a garantia da reprodução do próprio ser e sua auto 
realização total.Já o trabalho alienado é a negação da essência humana 
existente  no  trabalho,  pois,  com  a  divisão  social  do  trabalho  e  a 
instauração do controle do processo de produção pelo não trabalhador, 
se  institui  a  total  separação  entre  o  produtor  e  o  produto  e  com  isso  o 
homem  não  produz  mais  as  garantias  das necessidades  humanas,  mas 
sim mercadorias que não lhe pertence (MARX, 2004).  
A  afirmação  do  capital  realiza‐se  na  negação  do  proletariado  uma 
vez que este, no processo de produção, desempenha atividades alheias 
às  suas  necessidades,  não  atinge  através  de  suas  potencialidades  sua 
auto  realização  total,  encontra‐se  completamente  separado  dos 
produtos do seu trabalho e, dessa forma, aliena‐se. Segundo Marx,  
 
otrabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto a si fora do 
trabalho e fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando 
trabalha,  não  está  em  casa.  O  seu  trabalho  não  é,  portanto,  voluntário,  mas 
forçado,  trabalho  obrigatório.  O  trabalho  não  é,  por  isso,  a  satisfação  de  uma 
carência,  mas  somente  um  meio  para  satisfazer  necessidades  fora  dele.  Sua 
estranheza  evidencia‐se  aqui  tão  pura  que,  tão  logo  inexista  coerção  física  ou 
outra qualquer, foge‐se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o 
trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto sacrifício, de 
mortificação.  Finalmente,  a  externalidade  do  trabalho  aparece  para  o 
trabalhador  como  se  não  fosse  seu  próprio,  mas  de  outro,  como  se  não  lhe 
pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a outro 
(2004, p. 83).  
 
Por conta desse caráter alienado do trabalho, o proletariado procura 
incessantemente  encontrar  formas  que  garantam  o  mínimo  da  sua 
integridade  física  no  trabalho  e  isso  se  evidencia  nas  inúmeras 
possibilidades  e  maneiras  de  resistência  e  luta  contra  a  exploração  do 
capital.  Essas  atitudes  de  resistência  ocorrem  de  diversas  formas,  tais 

30 
como  as  mais  pacíficas  e  camufladas  como  a  “operação  tartaruga”,  o 
absenteísmo,  o  atraso  nos  locais  de  trabalho,  a  destruição  de  peças  e 
ferramentas  que  emperram  o  desenrolar  da  produção,  as  constantes 
idas ao banheiro e sua demora etc. 
Vale  lembrar  que  a  luta  operária  pelo  controle  e  diminuição  do 
tempo  de  trabalho  destinado  à  produção  de  mais‐valor  representa 
apenas o primeiro momento da luta operária, ou seja, essa luta equivale 
ao momento imediato da luta de classes. Contudo, o interesse histórico 
do proletariado se funda na tendência em eliminar a existência do mais‐
valor na sua totalidade3. Além dessas formas imediatas, as lutas contra 
a exploração do trabalho tendem a adquirir em momentos de crise e de 
radicalidade,  uma  postura  mais  nitidamente  política4,  tal  como  é 
perceptível  nos  processos  de  realização  de  greves  que  atingem  caráter 
geral, com a ocupação de fábricas e  auto‐organização da produção, no 
qual o proletariado deixa de ser uma “classe em si” para se tornar uma 
“classe  para  si”.  Essa  dinâmica  acompanha  o  desenvolvimento 
capitalista  desde  o  seu  nascimento  até  os  dias  atuais  e  inúmeros 
exemplos  históricos  poderiam  ser  citados:  As  revoluções  de  1848  na 
Europa, a Comuna de Paris em 1871, as experiências russas a partir dos 
sovietes  em  1905  e  1917,  a  revolução  alemã  nas  décadas  de  1920,  a 
ocupação  de  fábricas  na  Argentina  do  final  da  década  de  1990  até 

3 “Quais são os interesses históricos do proletariado? Abolir a relação‐capital, ou seja, as 
relações de produção capitalistas, o que significa abolir a classe capitalista, a si mesmo 
enquanto  classe  e  a  todas  as  demais  classes.  Mas  os  interesses  históricos  do 
proletariado não se limitam a esse trabalho destrutivo, pois, ao mesmo tempo em que 
deve  abolir  o  modo  de  produção  capitalista,  ele  deve  construir  um  novo  modo  de 
produção.  O  processo  de  destruição  é,  aqui,  ao  mesmo  tempo,  um  processo  de 
construção.  E  como  podemos  apreender  esse  processo  de  construção,  ou  seja,  a 
formação  de  um  novo  modo  de  produção.  Isto  só  pode  ser  descoberto  através  da 
experiência  histórica  do  movimento  operário.  Portanto,  a  compreensão  do  modo  de 
produção capitalista em sua historicidade e a prática histórica da classe operária é o 
que  nos  permite  descobrir  quais  são  os  interesses  históricos  desta  classe.  São  destes 
interesses históricos que derivam os interesses imediatos” (VIANA, 2008, p. 87). 
4O  termo  política  empregado  aqui  é  derivado  da  idéia  de  luta  de  classes  em  sentido 

amplo  e  não  no  sentido  comumente  adotado  que  resume  a  luta  política  às  lutas 
parlamentares, eleitorais ou através de golpe armado visando à conquista do Estado. 
Uma vez que, para Marx, o fundamental para a compreensão de uma sociedade são 
suas  relações  de  produção,  logo  este  é  por  essência  o  local  privilegiado  da  luta  de 
classes e todas as demais lutas políticas derivam daí. 

31 
aproximadamente  2004  e  assim  por  diante.  Essa  é  uma  tendência 
intrínseca ao modo de produção capitalista.  
Um amplo debate sociológico já existe em torno dessa mudança de 
postura  do  proletariado,  porém  não  é  nosso  interesse  resgatar  tal 
debate,  mas  tão  somente  apresentá‐lo  segundo  a  perspectiva  do 
proletariado,  ou  seja,  procurando  compreender  quem  é  essa  classe 
social, como se relaciona com a sociedade capitalista e como enxerga tal 
sociedade  a  partir  da  experiência  que  mantém  com  a  mesma.  Em 
síntese,  “essa  perspectiva,  segundo  Marx,  marcaria  a  unidade  entre  o 
que é visto e a forma como se vê” (Viana, 2007, p. 75).  
A  análise  que  Marx  realiza  sobre  o  proletariado  consiste  em  uma 
análise sobre a ontologia do proletariado, sobre sua essência e não sua 
aparência.  Sendo  assim,  é  possível  encontrar  na  teoria  de  Marx  uma 
análise  sobre  o  ser‐do‐proletariado,  conforme  explicitado  na  seguinte 
passagem: “não se trata de saber que objetivo este ou aquele proletário, 
ou até o proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata‐se de saber 
o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer 
de acordo com este ser” (Marx & Engels, 1979, p. 55). 
Nesse  sentido,  a  resistência  implementada  pelo  proletariado  não 
visa  apenas  adquirir,  de  imediato,  melhores  condições  de  trabalho  e 
vida,  mas,  também,  a  abolição  do  trabalho  alienado  e  da  extração  de 
mais‐valor  que  é  seu  fundamento.  Nesse  processo  histórico  de 
enfrentamento o proletariado forma sua consciência de classe ao negar 
o trabalho alienado e a consciência heterodeterminada derivada dele, e 
busca afirmar na prática (trabalho autônomo) e, consequentemente, na 
consciência,  sua  autodeterminação.  Portanto,  constrói  suas  estratégias 
de lutas, abandona estratégias ultrapassadas e forja novos mecanismos 
de  resistência  e  avanço  da  luta  em  direção  à  construção  daquilo  que 
Marx denominou de “livre associação de produtores”.   
A  luta  de  classes  entre  burguesia  e  proletariado,  assim  como  a 
produção de mais‐valor, representa dois dos principais fundamentos do 
modo  de  produção  capitalista.  O  processo  de  trabalho  na  sociedade 
capitalista é marcado por duas características centrais que consistem no 
fato  do  proletariado  trabalhar  sobre  o  controle  da  burguesia  (trabalho 
heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do produto do 
trabalho  ser  apropriado  pela  burguesia,  via  extração  de  mais‐valor. 

32 
Percebe‐se  então  que  o  trabalho  é  processo  de  valorização  (MARX, 
1985).  
A  luta  de  classes  no  processo  de  produção  é  mediada  por  um 
conjunto de relações que existem tanto dentro quanto fora do processo 
diretamente  produtivo.  Tal  luta  em  torno  do  processo  de  produção  de 
mais‐valor  é  a  determinação  fundamental  do  enfrentamento  entre  a 
classe  capitalista  e  a  classe  operária  no  processo  de  produção  de 
mercadorias  (VIANA,  2009).  No  entanto,  esse  enfrentamento  se 
expande para outras esferas das relações sociais. Basta percebermos que 
o  conflito  que  se  inicia  no  século  XIX  entre  capitalistas  e  operários  em 
torno da diminuição da jornada de trabalho operária (aproximadamente 
de  16  horas  diárias)  resulta  numa  alteração  jurídico‐institucional  que 
possibilita sua redução para 10 horas diárias e, posteriormente, 08 horas 
diárias.  É  nesse  contexto  que  se  inicia  a  reação  burguesa  para  evitar  a 
redução  da  taxa  de  mais‐valor,  respondendo  com  a  “organização 
científica  do  trabalho”  elaborada  por  Friedrich  Taylor  em  sua  obra 
Princípios da Administração Científica (1987). 
É  importante  destacar  que  burguesia  e  proletariado  compõem  as 
classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista, mas que, 
no  entanto,  coexistem  outras  classes  sociais  que,  inclusive,  derivam  da 
complexa  relação  que  se  estabelece  entre  essas  classes  fundamentais  e 
da luta de classes no processo de produção. Uma dessas classes sociais, 
e que é objeto central desse estudo, é o lumpemproletariado. Conclui‐se 
que  o  modo  de  produção  capitalista  engendra  tanto  um  processo  de 
proletarização quanto um processo de lumpemproletarização, ou, como 
prefere  Offe,  uma  proletarização  ativa  e  uma  proletarização  passiva 
(OFFE,  1984).  É  sobre  a  dinâmica  formadora  do  lumpemproletariado 
que, a partir de agora, prestaremos nossa análise. 
 
2.1.2 O processo de lumpemproletarização
 
Para compreender a formação do lumpemproletariado no regime de 
acumulação  extensivo5,  recorreremos,  fundamentalmente,  à  análise  de 

5 “Predominante desde a revolução industrial até o final do século XIX, caracterizava‐se 
pelo  predomínio  da  extração  de  mais‐valor  absoluto,  pelo  Estado  liberal  e  pelo 
neocolonialismo” (VIANA, 2009, p. 95). 

33 
Marx contida na sua obra O Capital, vol. 2 (1985a). No capítulo XXIII do 
volume  2  de  O  Capital  ‐  A  lei  geral  da  acumulação  capitalista  ‐  Marx 
procurou  demonstrar  que  no  processo  capitalista  de  produção  de 
mercadorias  há  uma  tendência  em  promover  uma  acumulação 
ampliada  de  capital  por  um  lado  e  por  outro  lado,  há,  também,  uma 
tendência simultânea em promover o crescimento ampliado da miséria 
da classe trabalhadora. Segundo ele,  
 
a  acumulação  de  riqueza  num  pólo  é,  portanto,  ao  mesmo  tempo,  a 
acumulação  de  miséria,  tormento  de  trabalho,  escravidão,  ignorância, 
brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que 
produz seu próprio produto como capital (MARX, 1985a, p. 210). 
 
A  discussão  teórica  que  Karl  Marx  realiza  nesse  capítulo,  busca 
compreender a lei geral da acumulação capitalista, suas tendências e contra 
tendências. Aqui ela será utilizada para pensar o processo histórico de 
formação  do  lumpemproletariado  e  sua  dinâmica  no  regime  de 
acumulação extensivo. Para isso, analisaremos o lumpemproletariado à 
luz de uma teoria das classes sociais, considerando‐o uma classe social 
composta pela totalidade do exército industrial de reserva. Desse modo, 
o  conceito  de  lumpemproletariado  equivale  à  classe  social  formada 
pelos indivíduos que se encontram marginalizados na divisão social do 
trabalho e alijados do mercado de consumo, e que compõem os setores 
mais empobrecidos de desempregados, mendigos, sem‐teto, prostitutas, 
delinquentes, subempregados etc. da sociedade capitalista. 
Sendo  assim,  nossa  análise  se  distancia  de  algumas  análises 
dominantes  e  presentes  nos  discursos  acadêmicos  e  científicos  que 
busca compreender a sociedade a partir de uma dualidade abstrata que 
afirma a existência dos incluídos/excluídos sociais e que, no fundo, não 
consegue  explicar  muita  coisa,  pelo  contrário,  obscurece  a  totalidade 
das relações sociais ao ocultar toda a complexidade envolta no processo 
de lumpemproletarização que acompanha o desenvolvimento histórico 
de produção e reprodução do capitalismo e de suas classes sociais.  
Nesse primeiro momento, o objetivo é resgatar a discussão realizada 
por  Karl  Marx  sobre  o  processo  de  acumulação  de  capital  e  sua 
dinâmica  geradora  de  uma  superpopulação  relativa  ou  do 
lumpemproletariado.  Na  primeira  parte  deste  capítulo  intitulada 

34 
Demanda  crescente  da  força  de  trabalho  com  a  acumulação,  com  composição 
constante  do  capital,  o  autor  já  apresenta  o  assunto  geral  da  sua 
discussão,  ou  seja,  da  influência  que  o  crescimento  do  capital  exerce 
sobre  o  destino  da  classe  trabalhadora.  Marx  considera  que  a 
composição  do  capital  e  suas  modificações  constituem  os  fatores  mais 
importantes nessa investigação.  
Intentando melhor compreender essa análise, trilharemos o mesmo 
caminho do autor, reconstituindo seu pensamento. De acordo com ele, a 
composição  do  capital  deve  ser  entendida  a  partir  de  uma  dupla 
perspectiva: primeiramente ele faz uma análise da perspectiva do valor 
na  qual  afirma  que  a  composição  orgânica  do  capital  é  determinada 
pela  proporção  em  que  ele  se  reparte  em  capital  constante  (valor  dos 
meios de produção) e capital variável (valor da força de trabalho), soma 
global  dos  salários.  Posteriormente,  ele  apresenta  a  perspectiva  da 
matéria,  ou  seja,  como  ela  funciona  no  processo  de  produção.  Nessa 
análise Marx afirma que cada capital se reparte em meios de produção 
(composição  valor)  e  força  de  trabalho  viva  (composição 
técnica)(MARX, 1985a). 
A  produção  de  capital  é  formada  por  dois  componentes  existentes 
no  processo  de  produção  denominado  de  trabalho  morto  (matéria‐
prima,  maquinaria  e  tecnologia  em  geral)  e  trabalho  vivo  que  consiste 
na  força  de  trabalho  operária.  Como  vimos  anteriormente,  o  primeiro 
não tem capacidade de gerar valor e apenas repassa seus custos durante 
o processo produtivo, já o segundo é a única força geradora de capital, 
ou  seja,  acrescenta  à  mercadoria  mais  do  que  o  valor  gasto  na  sua 
produção.  Por  isso  esse  capital  extra  é  denominado  mais‐valor.  Sendo 
assim, após um ciclo gerador de mais‐valor, a burguesia tende a aplicar 
parte  desse  na  expansão  da  produção  o  que  implica  necessidade  de 
ampliação  do  mercado  consumidor  e  maior  demanda  por  força  de 
trabalho.  
Nesse sentido, o 
 
crescimento do capital implica crescimento de sua parcela variável convertida 
em  força  de  trabalho.  Uma  parcela  da  mais‐valia  transformada  em  capital 
adicional  precisa  ser  sempre  retransformada  em  capital  variável  ou  fundo 
adicional de trabalho (MARX, 1985a, p. 187).  
 

35 
No  século  XIX,  com  o  passar  dos  anos  o  número  de  trabalhadores 
ocupados cresceu em relação aos anos anteriores e com isso chegou‐se 
ao  ponto  das  necessidades  da  acumulação  crescer  além  da  costumeira 
oferta de trabalho e assim tendeu a ocorrer um aumento salarial. Porém, 
independentemente,  do  aumento  salarial  e  da  geração  de  condições 
mais favoráveis para a classe operária e sua multiplicação, isso em nada 
modificou o caráter básico da produção capitalista. Em outras palavras, 
a  exploração  do  proletariado  em  sua  totalidade  mantém‐se  a  mesma, 
visto  que  essa  exploração  revela‐se  na  extração  de  mais‐valor  (sua  lei 
absoluta) e não no preço do salário, seja ele qual for. É válido ressaltar 
que  o  aumento  salarial  implica  apenas  na  diminuição  quantitativa  de 
trabalho  não  pago  (mais‐valor)  que  o  trabalhador  “concede”  ao 
capitalista, no entanto, “essa diminuição nunca pode ir até o ponto em 
que  ela  ameace  o  próprio  sistema”  (MARX,  1985a,  p.  192).  A 
acumulação capitalista promove na mesma escala a ampliação da classe 
trabalhadora, visto que 
 
a reprodução da força de trabalho, que incessantemente precisa incorporar‐se 
ao  capital  como  meio  de  valorização,  não  podendo  livrar‐se  dele  e  cuja 
subordinação ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais 
a  que  se  vende  constitui  de  fato  um  momento  da  própria  reprodução  do 
capital.  Acumulação  do  capital  é,  portanto,  multiplicação  do  proletariado 
(MARX, 1985a, p. 188).  
 
Marx  demonstra  que  esse  processo,  no  entanto,  tende  a  promover 
um decréscimo na acumulação. Isso significa que a partir do momento 
em  que  ocorre  uma  diminuição  na  acumulação,  ocorre,  do  mesmo 
modo, uma diminuição da necessidade por força de trabalho, ou seja, a 
desproporção  que  existia  entre  capital  e  força  de  trabalho  ‐  razão  do 
aumento  salarial  ‐  desaparece  (momentaneamente)  e  assim  o  processo 
de  acumulação  capitalista  elimina  seus  próprios  obstáculos.  Logo,  o 
salário  volta  a  decrescer.  Adverte‐se,  no  entanto,  que  até  aqui  Marx 
analisava somente uma fase particular desse processo, ou seja, “aquela 
em  que  o  crescimento  adicional  de  capital  ocorre  com  composição 
técnica  do  capital  constante.  Mas  o  processo  ultrapassa  essa  fase” 
(MARX, 1985a, 193).  

36 
O crescimento absoluto do capital durante seu transcurso histórico é 
reflexo  da  sua  capacidade  de  ampliar  o  desenvolvimento  da 
produtividade do trabalho social tornando‐a sua principal alavanca de 
acumulação. A principal expressão desse crescente desenvolvimento da 
produtividade  do  trabalho  advém  do  volume  crescente  dos  meios  de 
produção  em  comparação  com  a  força  de  trabalho,  ou  seja,  “no 
decréscimo da grandeza do fator subjetivo do processo de trabalho, em 
comparação  com  seus  fatores  objetivos”  (MARX,  1985a,  p.  194).  Nesse 
momento Marx já está tratando da mudança que a composição técnica 
do capital (força de trabalho viva) sofre no decurso do desenvolvimento 
do modo de produção capitalista. Se na primeira fase de acumulação a 
multiplicação  do  capital  representava  multiplicação  do  proletariado, 
agora essa relação tende a se inverter, pois 
 
essa  mudança  na  composição  técnica  do  capital,  o  crescimento  da  massa  dos 
meios  de  produção,  comparada  à  massa  da  força  de  trabalho  que  os  vivifica, 
reflete‐se em sua composição em valor, no acréscimo da componente constante 
do valor do capital à custa de sua componente variável (MARX, 1985, p. 194). 
 
Aqui  já  é  possível  perceber  que  no  processo  de  desenvolvimento 
capitalista,  a  parte  do  mais‐valor  reconvertida  na  ampliação  da 
produção via aumento do trabalho morto (maquinaria e tecnologia em 
geral)  tende  a  ultrapassar  significativamente  o  trabalho  vivo  ou  o 
componente  variável  do  capital  orgânico  (força  de  trabalho)  e, 
consequentemente,  diminui  a  demanda  por  força  de  trabalho 
aumentando o desemprego. Portanto,  
 
esse  movimento  no  sentido  de  acrescer  a  parte  das  máquinas  em  relação  à 
força‐de‐trabalho, a aumentar a produtividade do trabalho, tende a diminuir a 
intensidade  da  demanda  de  força‐de‐trabalho  pelos  capitalistas,  tende,  por 
conseguinte,  a  criar  desemprego,  no  caso  em  que  oferta  de  força‐de‐trabalho 
pelos  trabalhadores  diminua  também.  O  progresso  técnico,  realizado  em 
condições capitalista de produção, é assim um fator de expulsão de empregos 
pelo capital (SALAMA & VALIER, 1975, p. 86).  
 
Com  essa  mudança  o  capitalismo  contrai  uma  tendência  a  tornar 
supérflua  ou  subsidiária  uma  parcela  populacional  significativa  da 
classe  trabalhadora  que  passa  a  ampliar  o  lumpemproletariado. 
Vejamos melhor esse processo.  

37 
 Inicialmente  a  acumulação  de  capital  aparece  apenas  como  uma 
ampliação  quantitativa,  porém,  percebe‐se  que  ela  realiza‐se  também 
numa  alteração  qualitativa  ininterrupta  de  sua  composição  com 
ampliação  crescente  dos  meios  de  produção,  tais  como  maquinaria  e 
tecnologia  em  geral,  em  detrimento  da  força  de  trabalho  empregada 
numa velocidade infinitamente maior do que a anteriormente existente. 
O resultado dessa alteração qualitativa apresenta‐se da seguinte forma:  
 
a  acumulação  capitalista  produz  constantemente  –  e  isso  em  proporção  à  sua 
energia  e  às  suas  dimensões  ‐  uma  população  trabalhadora  adicional 
relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos concernentes às necessidades 
de aproveitamento por parte do capital (...) A população trabalhadora produz, 
portanto, em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa. 
Essa  é  uma  lei  populacional  peculiar  ao  modo  de  produção  capitalista,  assim 
como,  de  fato,  cada  modo  de  produção  histórico  tem  suas  leis  populacionais 
particulares, historicamente válidas (MARX, 1985, p. 199‐200).  
 
Marx  denominou  essa  população  trabalhadora  supérflua  de 
“superpopulação relativa” e a compreendeu como parte imprescindível 
do funcionamento do modo de produção capitalista, pois 
 
ela  constitui  um  exército  industrial  de  reserva  disponível,  que  pertence  ao 
capital  de  maneira  tão  absoluta,  como  se  ele  o  tivesse  criado  à  sua  própria 
custa. Ela proporciona às suas mutáveis necessidades de valorização o material 
humano  sempre  pronto  para  ser  explorado,  independente  dos  limites  do 
verdadeiro acréscimo populacional (MARX, 1985, p. 200).  
 
Além da função de mão‐de‐obra disponível para as necessidades do 
capital,  porém  nem  sempre  utilizada,  e  em  grande  quantidade  na 
reserva, o exército industrial de reserva cumpre outra função essencial 
no  capitalismo  que  é  a  de  pressionar  os  salários  para  baixo.  Ele 
transforma‐se,  assim,  numa  das  principais  alavancas  da  acumulação 
capitalista  uma  vez  que  a  oscilação  dos  salários  passa  a  ser  regulada 
pelo  movimento  de  expansão  e  contração  desse  contingente 
populacional formado pelo exército industrial de reserva. Ao contrário 
da  ideologia  populacional  malthusiana6  que  possui  uma  concepção 

6“A lei da população de Malthus se fundamenta na relação entre ‘meios de subsistência’ 
e  ‘aumento  populacional’  (e  isto  gera  sua  explicação  sobre  as  causas  da  fome  e  da 
miséria).  Segundo  Malthus,  a  população  cresce  em  progressão  geométrica  (2,  4,  8, 

38 
abstrata  e  ligada  aos  interesses  de  classe  da  burguesia,  a  teoria  da 
população em Marx busca analisar a dinâmica populacional no interior 
do modo de produção capitalista, pois 
 
a  dinâmica  populacional  não  pode  ser  compreendida  se  extraída,  arrancada 
para fora, do conjunto das relações sociais nas quais emerge. Este pressuposto 
metodológico  será  seguido  por  Marx  na  sua  teoria  da  população,  que  é,  na 
verdade,  uma  teoria  da  dinâmica  populacional  sob  o  capitalismo  (VIANA, 
2006, p.1011).  
 
Segundo  Marx,  o  exército  industrial  de  reserva  existe  em  diversas 
ocasiões possíveis e todo trabalhador o compõe durante todo o tempo em 
que  está  desempregado  parcial  ou  inteiramente.  Esse  exército  de  reserva 
ou superpopulação relativa possui três formas: líquida, latente e estagnada. 
Nos grandes centros industriais modernos do século XIX os trabalhadores 
constantemente eram ora repelidos, ora atraídos em maior proporção. Isso 
ocorre  de  tal  forma  que,  mesmo  em  proporção  decrescente  em  relação  à 
ampliação  da  produção,  o  número  de  trabalhadores  ocupados  crescia. 
Nesse caso a superpopulação existe em forma líquida (fluente).  
É certo que a acumulação capitalista exige um número crescente de 
força de trabalho, porém em proporção cada vez menor em relação ao 
capital constante. Por isso a indústria necessita de trabalhadores até sua 
idade adulta, todavia atingida tal idade o trabalhador se encontrava de 
tal forma exaurido que somente uma pequena parcela continuava sendo 
empregada  enquanto  maior  parte  é  demitida,  pois  “está  constitui  um 
elemento  da  superpopulação  fluente,  que  cresce  com  o  tamanho  da 
indústria.  Parte  emigra  e,  de  fato,  apenas  segue  atrás  o  capital 
emigrante” (Marx, 1985, p. 207). Portanto, o capital necessita de massas 
maiores de trabalhadores em idade jovem e massas menores em idade 
adulta.  Por  conta  dessa  realidade  é  que  mesmo  existindo  uma  grande 
parcela  da  população  desocupada  havia  milhares  de  queixas 
reclamando a necessidade de braços para o trabalho. É preciso lembrar 
que  além  da  baixa  expectativa  de  vida  entre  os  trabalhadores,  o 

16...)  e  a  produção  de  alimentos  (meios  de  subsistência)  em  progressão  aritmética 
(1,2,3,4...), o que geraria a escassez, a fome. Marx é um severo crítico dessa concepção, 
opondo‐lhe  tanto  a  questão  metodológica  quanto  os  seus  equívocos  teóricos 
derivados  de  sua  concepção  metafísica,  ligada  a  determinados  interesses  de  classe” 
(VIANA, 2006, p. 1011).  

39 
desgaste  da  força  de  trabalho  era  tão  grande  que  mal  o  trabalhador 
atinge a idade mediana “ele cai nas fileiras dos excedentes ou passa de 
um escalão mais alto para um mais baixo”. A solução encontrada pelo 
capital  para  esse  problema  era  a  promoção  de  casamentos  precoces 
entre  a  classe  trabalhadora  e  a  premiação  para  as  famílias  que 
oferecessem seus filhos para a exploração.  
A  segunda  forma  de  superpopulação  relativa  ‐  latente  ‐  apontada 
por Marx é proveniente da consolidação do capitalismo na agricultura e 
que tende a promover  uma demanda decrescente absoluta de força de 
trabalho.  Deste  modo,  a  população  trabalhadora  rural  sofre  uma 
repulsão não acompanhada de maior atração e, consequentemente,  
 
parte da população rural encontra‐se, por isso, continuamente na iminência de 
transferir‐se  para  o  proletariado  urbano  ou  manufatureiro  e  à  espreita  de 
circunstâncias  favoráveis  a  essa  transferência.  Essa  fonte  da  superpopulação 
flui,  portanto,  continuamente.  Mas  seu  fluxo  constante  para  as  cidades 
pressupõe  uma  contínua  superpopulação  latente  no  próprio  campo,  cujo 
volume  só  se  torna  visível  assim  que  os  canais  de  escoamento  se  abalam 
excepcionalmente  de  modo  amplo.  O  trabalhador  rural  é,  por  isso,  rebaixado 
para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo 
(MARX, 1985, p. 207‐208).  
 
A  terceira  forma  de  superpopulação  relativa  denominada  de 
estagnada é composta por parcela do exército ativo de trabalhadores, no 
entanto ocupada de forma bastante irregular. Essa categoria fornece ao 
capital fonte inesgotável de força de trabalho “disposta” a ser explorada 
uma  vez  que  sua  condição  de  vida  encontra‐se  muito  abaixo  do  nível 
normal  médio  da  classe  trabalhadora  e  que,  portanto,  faz  dessa 
população  uma  “[...]  base  ampla  para  certos  ramos  de  exploração  do 
capital. É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de 
salário [...] Seu volume se expande na medida em que, com o volume e 
a energia da acumulação, avança a ‘produção da redundância’” (MARX, 
1985, p. 208).  
Finalmente  a  camada  mais  miserável  da  superpopulação  relativa  e 
que reside na desgraça do pauperismo. Conforme afirma Bellon,  
 
o último resíduo da superpopulação relativa habita o inferno do pauperismo. 
Abstraindo dos vagabundos, dos criminosos, das prostitutas, dos mendigos e 
de  todo  esse  mundo  a  que  se  chama  as  classes  perigosas,  esta  camada  social 

40 
compõe‐se de três categorias: os desempregados capazes de trabalhar; os filhos 
dos  órfãos;  enfim  as  vítimas  da  indústria:  doentes  estropiados,  viúvas, 
trabalhadores idosos e trabalhadores desqualificados (1975, p. 44).  
 
Portanto,  aqui  reside  a  lei  geral  da  acumulação  capitalista:  quanto 
maior a riqueza social e a grandeza absoluta do proletariado e sua força 
produtiva,  tanto  maior  o  exército  industrial  de  reserva  ou,  conforme 
definido por nós, o lumpemproletariado. Nesse sentido, portanto,  
 
quanto  maior,  finalmente,  a  camada  lazarenta  da  classe  trabalhadora  e  o 
exército  industrial  de  reserva,  tanto  maior  o  pauperismo  oficial.  “Essa  é  a  lei 
absoluta  geral  da  acumulação  capitalista.  Como  todas  as  outras  leis,  é 
modificada  em  sua  realização  por  variadas  circunstâncias”  (MARX,  1985,  p. 
209).  
 
Ao  encerrar  o  resgate  da  análise  de  Marx  sobre  A  lei  geral  da 
acumulação capitalista concluímos que essa análise corrobora a afirmação 
e  percepção  que  esse  autor  possuía  desde  o  início  dos  seus  trabalhos 
germinais, escritos em Paris em 1844, e que em determinado momento 
assim protestava:  
 
o  trabalhador  se  torna  tanto  mais  pobre  quanto  mais  riqueza  produz,  quanto 
mais  a  sua  produção  aumenta  em  poder  e  extensão.  O  trabalhador  se  torna 
uma  mercadoria  tão  mais  barata  quanto  mais  mercadorias  cria.  Com  a 
valorização  do  mundo  das  coisas  aumenta  em  proporção  direta  a 
desvalorização  do  mundo  dos  homens.  O  trabalho  não  produz  somente 
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e 
isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (MARX, 2004, 
p. 80).  
 
O  conceito  de  lei  a  que  se  refere  Karl  Marx  no  XXIII  capítulo  do 
volume  2  de  O  Capital  deve  ser  entendido  aqui  como  equivalente  a 
tendência.  Nesse  sentido,  sua  reflexão  aponta  para  uma  tendência 
existente  no  capitalismo  de  gerar  tanto  riqueza,  quanto  miséria  em 
proporções  diretas  ao  avanço  das  potencialidades  produtivas.  Isto 
significa que o lumpemproletariado é resultado da própria dinâmica do 
modo de produção capitalista e que, portanto, essa classe social, assim 
como  suas  classes  fundamentais  ‐  a  burguesia  e  o  proletariado  ‐  são 
intrínsecas a esse modo de produção. 

41 
Antes  de  iniciarmos  a  discussão  do  próximo  subtítulo  gostaríamos 
de  melhor  explicitar  nosso  debate  acerca  do  lumpemproletariado 
enquanto classe social. Apesar de Marx não ter promovido uma análise 
pormenorizada do lumpemproletariado, do mesmo modo como ele não 
elaborou  de  forma  sistematizada  uma  teoria  das  classes  sociais,  ainda 
sim é possível encontrar ao longo de sua vasta obra elementos que nos 
possibilitem recuperar alguns pontos essenciais para a reconstrução de 
uma  teoria  das  classes  sociais  em  Karl  Marx.  O  próprio 
lumpemproletariado  em  diversos  momentos  e  obras  discutidas  por 
Marx7  aparece  como  compondo  uma  classe  social.  No  entanto  tal 
aparecimento  não  ocorre  de  forma  aprofundada  e  teorizada 
sistematicamente (VIANA, 2011).  
Aliado à falta de uma teoria explícita das classes sociais na obra de 
Marx,  outro  problema  nos  impossibilita  de  recorrer  completamente  a 
esse  autor  para  compreender  o  lumpemproletariado  no  capitalismo 
contemporâneo.  O  principal  problema,  nesse  caso,  seria  o  que  Viana 
denomina  de  senectudes,  ou  seja,  “os  aspectos  inatuais  devido  às 
mudanças históricas, nas quais as mudanças nas relações de produção e 
desenvolvimento  capitalista  promoveram  emergência  e  alteração  na 
divisão de classes e no interior delas [...]” (VIANA, 2011, p. 08).  
Sendo assim, não é possível analisar o lumpemproletariado somente 
a partir do que Marx escreveu, pois devido a tais senectudes e limites das 
próprias  análises  realizadas  por  ele  sobre  essa  classe  social,  torna‐se  de 
extrema  importância  ressignificar  o  conceito  de  lumpemproletariado 
para  que  esse  dê  conta  da  realidade  concreta  na  contemporaneidade. 
Nossos  esforços  caminham  nesse  sentido  e  seguem  as  contribuições 
realizadas por Viana na sua obra A teoria das classes sociais em Karl Marx 
(2011).  
Em  nossa  análise,  o  lumpemproletariado  é  ressignificado  na 
contemporaneidade a partir de uma teoria marxista das classes sociais. 

7 Para constatar o que aqui está sendo afirmado, basta recorrer às análises realizadas por 
Marx sobre o lumpemproletariado e perceber que as mesmas estão inseridas em uma 
discussão mais ampla sobre as classes sociais e suas lutas. Logo, é possível perceber 
que o lumpemproletariado entra nessa discussão enquanto uma dessas classes sociais 
envolvida na dinâmica da luta de classes. Para isso ver as seguintes obras de Marx: O 
Manifesto comunista (1998); O dezoito brumário (1997); As lutas de classes na França – de 
1848 a 1850 (2008). 

42 
No entanto, não ficamos presos à análise que Karl Marx realiza sobre o 
lumpemproletariado,  o  que  não  significa  que  abandonamos  as 
contribuições desse autor para pensar tal classe social, mas tão somente 
que  procuramos  ir  além  dele  sem  necessariamente  abandoná‐lo.  Em 
outras palavras, utilizamos as contribuições existentes ao longo de sua 
vasta  obra  para  pensar  o  conceito  de  classes  sociais.  Dessa  forma, 
afirmamos  que  o  lumpemproletariado  é  composto  pela  totalidade  do 
exército  industrial  de  reserva  (desempregados,  subempregados, 
mendigos,  sem‐teto,  prostitutas  etc.)  uma  vez  que  os  indivíduos  que 
compõem  essa  totalidade  possuem  características  em  comum  e  que 
possibilitam  sua  definição  como  classe,  da  mesma  forma  divisões 
apontadas  pelo  conceito  de  frações  de  classe.  Assim  como  as  demais 
classes sociais do capitalismo, é o seu modo de vida que possibilita sua 
unificação  como  classe.  No  entanto,  ao  contrário  das  demais  classes 
sociais  que  são  unificadas  a  partir  da  sua  posição  na  divisão  social  do 
trabalho  capitalista,  o  lumpemproletariado  se  unifica  pela  condição  de 
marginalidade na divisão social do trabalho e tal condição o torna uma 
classe social (VIANA, 2012). 
Como já foi dito, nenhum indivíduo encontra‐se fora da divisão das 
classes  sociais,  isto  é,  todos  os  indivíduos  pertencem  à  determinada 
classe social. Sendo assim, resta então responder as seguintes questões: 
A que classe social pertencem aqueles que se encontram marginalizados 
da  divisão  social  do  trabalho,  ou  seja,  a  que  classe  social  pertencem 
desempregados, subempregados, sem‐tetos, mendigos, prostitutas etc.? 
Uma vez que os termos exército industrial de reserva e superpopulação 
relativa  não  expressam  nenhuma  classe  social,  torna‐se  necessário 
encontrar  a  classe  social  na  qual  a  totalidade  desse  exército  e  dessa 
superpopulação  pertence.  Segundo  nossa  análise,  tal  classe  social  é  o 
lumpemproletariado  e  o  que  nos  possibilita  essa  afirmação  é  o  fato  de 
que  toda  essa  gama  heterogênea  de  frações  de  classe  que  compõe  o 
lumpemproletariado  pode  ser  unificada  em  torno  de  um  elemento 
comum a todas elas: a condição de marginalidade na divisão social do 
trabalho.  
Trata‐se  de  um  grande  equívoco  considerar  os  desempregados 
como  pertencentes  à  classe  trabalhadora  conforme  fazem  diversos 

43 
teóricos8. Esse é o caso da autora Maria Lucia Lopes da Silva que em sua 
obra Trabalho e população em situação de rua no Brasil considera que  
 
os  desempregados  de  longa  duração  e  a  população  em  situação  de  ruanão 
constituem  uma  classe  isoladamente.  Mas  é  certo  também  que  têm  uma 
vinculação de classe. A não propriedade de meios de produção e a subsistência 
pela  venda  de  sua  força  de  trabalho  são  condições  que  os  caracterizam  como 
parcelas da classe trabalhadora, embora, na situação em que se encontram, não 
estejam  conseguindo  realizar  nem  a  venda  da  sua  força  de  trabalho  (2009,  p. 
129‐130). 
 
Ora,  como  alguém  pode  pertencer  à  classe  trabalhadora  ou  ao 
proletariado,  como  nós  preferimos  denominar  os  trabalhadores  que 
produzem  mais‐valor,  sem  estar  empregada  em  alguma  atividade 
laboral,  sem  produzir  mais‐valor?  Para  nós,  os  indivíduos  antes 
pertencentes  à  classe  trabalhadora  em  geral  ou  ao  proletariado 
compõem  o  lumpemproletariado  durante  todo  o  tempo  em  que  estão 
desempregados  parcial  ou  inteiramente,  independente  do  período  em 
que se encontram nessa condição, seja uma semana, um mês, um ano ou 
o tempo que for.  
 
Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado
 
Com  o  propósito  de  responder  a  um  dos  problemas  centrais  desse 
trabalho,  ou  seja,  as  determinações  da  expansão  do 
lumpemproletariado  na  contemporaneidade,  analisaremos, 
primeiramente,  a  formação  e  desenvolvimento  dessa  classe  social  no 
regime de acumulação extensivo para, no próximo capítulo, analisar as 
multiplicidades  de  determinações  que  envolvem  a  expansão  dessa 
classe no regime de acumulação integral e suas consequências, tanto no 

8  Alguns  casos  são  ilustrativos  dessa  interpretação.  Recentemente  em  uma  mesa‐
redonda  ocorrida  durante  o  I  Simpósio  Trabalhadores  e  a  Produção  Social,  promovido 
pelo Centro de Memória Operária (CEMOP), entre os dias 19 a 21 de outubro de 2011, 
na  cidade  de  Sumaré/SP,  todos  os  palestrantes  (Andréia  Galvão/UNICAMP,  Jair 
Pinheiro/UNESP,  Maria  Orlanda/UNESP,  Marcelo  Badarós/UFF)  deram  a  mesma 
resposta  à  minha  pergunta  que  questionava  se  os  desempregados  argentinos  que 
compunham  o  movimento  piquetero  eram  membros  da  classe  trabalhadora  ou  do 
lumpemproletariado?  A  resposta  foi  que  tais  desempregados  pertenciam  à  classe 
trabalhadora. 

44 
capitalismo  imperialista  quanto  no  capitalismo  subordinado 
(especificamente na Argentina e no último capítulo no Brasil).  
Dessa  forma,  objetivamos  apreender  as  mudanças  e  permanências, 
tanto formais, quanto essenciais, das tendências histórico‐sociais  que o 
lumpemproletariado  possui  na  contemporaneidade.  Para  isso, 
analisaremos  o  lumpemproletariado  enquanto  uma  classe  social  que  é 
determinada historicamente e que, portanto, seu comportamento social 
e político tende a ser determinado de forma diferenciada em contextos 
históricos  distintos.  Por  conseguinte,  o  lumpemproletariado  e  suas 
tendências  não  serão  tratados  aqui  de  forma  estanque,  como  se 
possuísse  uma  essência  no  seu  ser‐de‐classe  que  sempre  o  coagisse  a 
adotar posturas políticas conservadoras e reacionárias, estando passivo 
de  ser  frequentemente  cooptado  como  sugere  diversos  teóricos  que  o 
analisaram (GUIMARÃES, 2008; FREITAS, 2010). 
A transformação de dinheiro, mercadorias, meios de produção e de 
subsistência em capital só pode ocorrer em determinadas circunstâncias 
que se apresenta da seguinte maneira. A existência no mercado de duas 
espécies  de  possuidores  de  mercadorias  é  essencial,  pois  de  um  lado 
estão  os  possuidores  de  dinheiro,  meios  de  produção  e  subsistência  e 
que  tem  como  finalidade  valorizar  o  montante  de  dinheiro  que  possui 
através  da  compra  de  força  de  trabalho  alheia,  do  outro  lado 
“trabalhadores  livres”  dispostos  a  venderem  sua  única  mercadoria,  a 
força  de  trabalho  (MARX,  1985a).  “Com  essa  polarização  do  mercado 
estão  dadas  as  condições  fundamentais  da  produção  capitalista” 
(MARX, 1985a, p. 262). 
 Para  os  nossos  intentos  cabe  indagar:  qual  é  a  origem  desses 
indivíduos possuidores unicamente da mercadoria força de trabalho na 
sociedade capitalista? Na sociedade capitalista que emerge a partir daí, 
todos os indivíduos “dispostos” a venderem sua força‐de‐trabalho terão 
a venda da sua mercadoria garantida nesse mercado? Ou  uma parcela 
significativa  desses  indivíduos  irá  compor  outra  classe  social  e 
contribuirão  com  o  processo  de  produção  capitalista  de  outras 
maneiras,  assim  como  podem,  enquanto  classe,  contribuir  com  sua 
destruição?  E  dessa  forma  podemos,  então,  acreditar  que  tal  classe 
pertence  à  modernidade  e,  consequentemente,  só  poderá  ser  abolida 
com a abolição do capitalismo? 

45 
A  partir  do  final  da  segunda  metade  do  século  XIV  a  servidão  se 
encontra  praticamente  abolida  na  Inglaterra.  O  grosso  da  população 
rural  inglesa  era  constituído  nessa  época,  e  principalmente  no  século 
XV, de camponeses livres e economicamente autônomos, que nos seus 
momentos livres trocavam sua força de trabalho por um assalariamento 
nas  grandes  propriedades  fundiárias.  Além  dos  salários  esses 
camponeses  recebiam  um  terreno  arável  de  aproximadamente  quatro 
acres e possuíam o direito de usufruir das propriedades comunais, nas 
quais  criavam  seu  gado  e  extraíam  os  elementos  necessários  para 
aquecer seus lares e preparar seus alimentos, tais como a lenha e a turfa. 
O  desenvolvimento  dos  grandes  centros  industriais  ingleses, 
juntamente  com  o  crescimento  paulatino  da  sua  população,  está 
diretamente  relacionado  com  as  grandes  transformações  que  veio 
ocorrendo, desde aproximadamente o século XIV até o século XVIII, na 
propriedade da terra. De forma geral, esse processo ficou denominado 
de  cercamentos  (enclosures)9  e  foi  caracterizado  por  uma  intensa  e 
violenta onda de desapropriação camponesa de suas propriedades e das 
terras comunais, acompanhada da expulsão de milhares de camponeses 
para as nascentes cidades.  
Em diversos momentos em toda a história inglesa desse período, a 
população  camponesa  foi  violentamente  desapropriada  e  obrigada  a 
migrar  para  os  grandes  centros  urbanos  industriais.  Dessa  forma  era 
fornecido  à  indústria  capitalista  aquilo  que  ela  necessitava  para 
transformar dinheiro, maquinaria e matérias‐primas em capital, ou seja, 
a  indústria  necessitou  de  indivíduos  completamente  despojados  dos 
meios materiais garantidores da sua existência e sobrevivência para que 
assim  pudessem  “livremente”  vender  sua  força  de  trabalho  aos 
capitalistas. Aqui reside, sinteticamente, portanto, a fórmula encontrada 
pela  nascente  burguesia  inglesa  para  dar  início  à  produção  capitalista 
de mercadorias. 

9  O  cercamento  consistiu  na  prática  adotada  pelos  grandes  latifundiários  de  cercar  os 
campos, acompanhado da expulsão dos camponeses que ali residiam e trabalhavam, 
com o intuito de utilizar a terra visando à obtenção de maiores lucros. A prática mais 
comum  era  a  de  cercar  os  campos  para  a  criação  de  ovelhas,  que  passava  a 
representar uma possibilidade de maiores lucros na venda da sua lã para as nascentes 
indústrias  têxteis.  Essa  prática  se  inicia  ainda  no  final  do  século  XV,  mas  adquire 
fôlego e intensidade a partir do século XVI.  

46 
O  resultado  direto  dessa  expropriação/expulsão  cruel  e  violenta 
consiste  no  processo  de  proletarização  da  mão‐de‐obra  camponesa 
migrada para as cidades e a formação de um mercado urbano interno. 
Porém,  a  capacidade  de  absorção  dessa  mão‐de‐obra  pelas  nascentes 
indústrias  possuía  uma  velocidade  infinitamente  menor  do  que  o 
crescimento do número de camponeses expulsos do campo. Isso acabou 
por promover, também, um processo de lumpemproletarização que está 
na origem do capitalismo e, como veremos adiante, possui a tendência 
de  acompanhar  seu  desenvolvimento  histórico.  E  assim,  as  cidades 
inglesas  passaram  a  conviver  com  um  grande  número  de  operários 
empregados  na  indústria,  mas  também  com  um  número  crescente  e 
assustador  de  lumpemproletários  que  “se  converteram  em  massas  de 
esmoleiros,  assaltantes,  vagabundos,  em  parte  por  predisposição  e  na 
maioria dos casos por força das circunstâncias” (MARX, 1985a, p. 275). 
Uma  passagem  extraída  do  subtítulo  Gênese  do  capitalista  industrial 
do  capítulo  XXIV  do  volume  II  de  O  Capital  sintetiza  muito  bem  todo 
esse processo: 
 
Tanto  esforço  fazia‐se  necessário  para  desatar  as  “eternas  leis  naturais”  do 
modo  de  produção  capitalista,  para  completar  o  processo  de  separação  entre 
trabalhadores  e  condições  de  trabalho,  para  converter,  em  um  dos  pólos,  os 
meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa 
do  povo  em  trabalhadores  assalariados,  em  “pobres  laboriosos”  livres,  essa 
obra  de  arte  da  história  moderna.  Se  o  dinheiro,  segundo  Augier,  “vem  ao 
mundo  com  manchas  naturais  de  sangue  sobre  uma  de  suas  faces”,  então  o 
capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos pés 
(MARX, 1985a, p. 292). 
 
Durante a segunda metade do século XIX a Europa experimenta um 
fenômeno  fascinante  e  ao  mesmo  tempo  amedrontador,  o 
extraordinário crescimento das cidades industriais e de sua população. 
As  indústrias  recrutavam  cada  vez  mais  operários  fabris  e  com  isso 
ocorria  um  desenfreado  crescimento  das  cidades.  Na  passagem  do 
século  XVIII  para  o  século  XIX,  a  Inglaterra  tem  seus  campos 
despovoados e um grande afluxo de migrantes corre para as cidades: 
 
Londres,  que  em  1750  contava  com  676  mil  habitantes,  já  em  1820  chegava  a 
contar quase o dobro, ou 1.274 milhão. Mais de uma terça parte da população 
da Inglaterra residia em cidades de mais de 5 mil habitantes à altura da metade 

47 
do  século  XIX,  quando  no  meio  do  século  XVIII  não  passava  de  uma  quinta 
parte.  Na  década  1821‐1831,  o  crescimento  de  cidades  como  Liverpool, 
Manchester,  Birmingham  e  Leeds  ultrapassou  quarenta  por  cento 
(GUIMARÃES, 2008, p. 48). 
 
Além  de  indivíduos  prestes  a  se  proletarizar,  as  cidades  atraíam 
uma  infinidade  de  pessoas  que  não  encontrariam  condições  materiais 
garantidoras  da  sua  sobrevivência  e,  consequentemente,  o  processo  de 
lumpemproletarização  crescia  vertiginosamente  e  tais  cidades 
passavam  a  serem  habitadas  por  um  grande  número  de  mendigos, 
prostitutas,  jovens  desempregados,  ladrões,  desabrigados, 
subempregados,  e  todo tipo  de  desempregados etc.  A  constituição  das 
primeiras  cidades  industriais  do  século  XIX  revela  um  dos  processos 
migratórios mais brutais que a história ocidental já conheceu. Milhares e 
milhares  de  pessoas  perderam  todo  o  vínculo  com  um  modo  de  vida 
secular,  costumes,  tradições,  solidariedades,  enfim  toda  uma  habitual 
forma  de  se  viver  foi  quase  que  completamente  destruída  e  suas 
principais  vítimas  foram  relegadas  a  um  mundo  sombrio  e 
desconhecido  marcado  pelo  frio,  pela  fome,  por  todo  tipo  de  doença, 
imundice,  criminalidade,  pela  violência  cotidiana,  tanto  na  esfera  do 
trabalho,  quando  se  tem  um,  quanto  na  esfera  da  vida  privada. 
Indubitavelmente  a  sociedade  capitalista  nasce  e  se  reproduz  sob  a 
marca da completa desumanização de milhões de seres humanos. 
A  rotina  do  proletariado  inglês  era  marcada  por  uma  jornada  de 
trabalho  de  aproximadamente  16  horas  diárias,  nas  quais  toda  a  sua 
família, desde as crianças de 04 anos de idade até os idosos ainda com 
condições físicas, era obrigada pelas circunstâncias a trabalhar. Essa era 
uma  condição  imposta  pelos  miseráveis  salários  para  que  uma  família 
operária  pudesse  ter  o  mínimo  suficiente  para  garantir  sua 
sobrevivência e, consequentemente, sua força de trabalho para valorizar 
o capital.  
Além das extensas jornadas de trabalho, da exploração do trabalho 
infantil,  do  trabalho  idoso  e  feminino  (esses  recebiam  salários 
inferiores),  as  condições  de  trabalho  eram  as  piores  possíveis,  pois  as 
fábricas  não  possuíam  condições  mínimas  de  higiene.  Caracterizadas 
por  serem  lugares  pouco  arejados,  com  ar  poluído,  sem  nenhuma 
preocupação  com  a  saúde  operária,  sem  nenhum  sistema  de  proteção 

48 
no  trabalho,  o  proletariado  se  via  constantemente  ameaçado  pelo 
desemprego  e  pela  fome,  pois  a  inexistência  de  legislação  trabalhista 
fazia  com  que  qualquer  acidente  ou  doença  que  o  impossibilitasse  a 
trabalhar resultasse em demissão sumária. E os acidentes de trabalho ou 
até  mesmo  a  morte  de  milhares  de  operários,  principalmente  as 
crianças, eram elevadíssimos10.  
Nesse  aspecto  o  lumpemproletariado  crescente,  derivado  do 
processo de cercamento de terras, cumpre um papel importantíssimo na 
acumulação  de  capital,  isto  é,  quanto  maior  for  o  contingente 
lumpemproletário,  maior  será  a  pressão  sobre  o  proletariado  para 
aceitar  suas  condições  de  trabalho  e  salários  miseráveis.  Portanto,  é 
possível  perceber  que  o  proletariado  do  século  XIX  se  via  muito 
facilmente  ameaçado  pela  lumpemproletarização.  O  proletariado  vivia 
constantemente a ponto de lumpemproletarizar‐se. E assim a existência 
de  um  grande  contingente  lumpemproletário  cumpria  uma  das  suas 
principais  funções  no  capitalismo:  promover  uma  alavanca  de 
acumulação  via  pressionamento  dos  salários  e  divisão  da  classe 
trabalhadora na disputa por emprego. 
Não  só  as  condições  de  trabalho  possibilitavam  uma  vida 
degradante  para  o  proletariado,  mas  sim  todas  as  esferas  da  sua  vida 
representavam  um  profundo  contato  com  a  degradação  física  e  moral. 
Sua  condição  de  moradia  é,  nesse  sentido,  reveladora  de  tal 
deterioração.  É  preciso  compreender  que  em  uma  sociedade  marcada 
pela  completa  mercantilização  da  vida,  o  acesso  da  classe  operária  a 
determinados  bens  primários,  tais  como,  moradia,  alimentação, 
vestuário,  saúde,  etc.  passa  pelo  valor  do  seu  salário  e  das 
possibilidades  derivada  dele.  E  uma  vez  que  o  salário  operário  é 

10  “As  estatísticas  da  mortalidade  revelam  níveis  altíssimos,  principalmente  por  causa 
da morte entre as crianças pequenas da classe operária. O delicado organismo de uma 
criança é o que oferece a menor resistência aos efeitos deletérios de um modo de vida 
miserável;  o  abandono  a  que  frequentemente  se  vê  expostas  quando  os  pais 
trabalham, ou quando um deles morre, logo faz sentir seu impacto – e, portanto, não 
pode  ser  sem  razão  de  espanto  se,  por  exemplo,  em  Manchester,  conforme  um 
relatório  que  já  citamos,  mais  de  57%  dos  filhos  de  operários  morrem  antes  de 
completar 5 anos, ao passo que essa taxa é de 20% para os filhos das classes mais altas 
e, nas zonas rurais, a média é de 32%” (ENGELS, 2008, p. 147). 

49 
miserável,  consequentemente,  o  acesso  a  tais  bens  se  dá  de  forma 
bastante precária.  
Toda  grande  cidade  industrial  no  século  XIX,  assim  como  hoje, 
revela  na  arquitetura  diferenciada  dos  seus  bairros,  nas  condições  de 
suas  ruas,  na  sua  limpeza,  no  seu  odor,  etc.  a  divisão  entre  classes 
sociais. Em outras palavras, a divisão entre exploradores e explorados. 
Na  Inglaterra  desse  período  os  bairros  operários  eram  chamados  de 
“bairros de má fama” (ENGELS, 2008). De acordo com Engels,  
 
na  Inglaterra,  esses  “bairros  de  má  fama”  se  estruturam  mais  ou  menos  da 
mesma  forma  que  em  todas  as  cidades:  as  piores  casas  na  parte  mais  feia  da 
cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois 
andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira 
irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam‐
se  cottages  e  normalmente  constituem  em  toda  Inglaterra,  exceto  em  alguns 
bairros  de  Londres,  a  habitação  operária.  Habitualmente,  as  ruas  não  são 
planas  nem  calçadas,  são  sujas,  tomadas  por  detritos  vegetais  e  animais,  sem 
esgotos  ou  canais  de  escoamento,  cheias  de  charcos  estagnados  e  fétidos.  A 
ventilação  na  área  é  precária,  dada  a  estrutura  irregular  do  bairro  e,  como 
nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do 
ar  que  se  respira  nessas  zonas  operárias  –  onde,  ademais,  quando  faz  bom 
tempo,  as  ruas  servem  aos  varais  que,  estendidos  de  uma  casa  a  outra,  são 
usados para secar roupa (2008, p. 70). 
 
Os  bairros  operários,  no  geral,  possuem  as  mesmas  características 
em  todo  o  território  inglês.  São  marcados  pela  existência  de  ruas 
estreitas,  geralmente  imundas,  tanto  por  conta  do  ineficaz  sistema  de 
limpeza  urbana  quanto,  pela  inexistência  de  rede  de  saneamento  e 
esgoto, fazendo com que os dejetos das “residências” sejam lançados ao 
ar  livre  nas  ruas.  Nesses  bairros  era  comum  encontrar  em  suas  ruas  a 
instalação de um mercado aberto que vendia legumes e frutas, todos de 
péssimas  qualidades  e  de  cheiro  horripilante.  Juntamente  com  essas 
frutas e legumes, a carne que era vendida e consumida pelos operários 
quase sempre se encontrava em estado putrefato.  
A alimentação operária era extremamente minguada e isso, é claro, 
se  deve  aos  péssimos  salários  recebidos  e,  consequentemente,  da 
limitada possibilidade de se consumir bons alimentos. Com frequência 
o  proletariado  “optava”  por  consumir  nas  feiras  e  mercados  os 
produtos  que  durante  todo  o  dia  as  “classes  médias”  se  recusaram  a 

50 
comprar devido a sua má qualidade. Portanto, o grosso da alimentação 
operária era formado por alimentos de escassa qualidade, muitas vezes 
já  em  estado  de  decomposição.  Assim  se  encontrava,  também,  a  carne 
consumida. Os açougues dos bairros operários eram lotados de carne de 
todo  tipo  de  animal  (ganso,  boi,  porco,  presunto  etc.),  mas  geralmente 
em  estado  impróprio  para  o  consumo.  O  jornal  Manchester  Guardian, 
fundado em Manchester por J. E. Taylor em 1821, constantemente trazia 
denúncias sobre processos e condenações de diversos açougueiros que, 
abusando  da  miséria  operária,  ofertava  diariamente  carnes  putrefatas 
(ENGELS, 2008). 
O  periódico  inglês  The  Artizan  (outubro  de  1843),  nos  possibilita 
visualizar, de forma geral, as condições sanitárias dos bairros operários: 
 
Essas  ruas  são  em  geral  tão  estreitas  que  se  pode  saltar  de  uma  janela  para 
outra da casa em frente e as edificações têm tantos andares que a luz mal pode 
penetrar  nos  pátios  ou  becos  que  as  separam.  Nessa  parte  da  cidade  não  há 
esgotos, banheiros públicos ou latrinas nas casas; por isso, imundice, detritos e 
excrementos  de  pelo  menos  50  mil  pessoas  são  jogados  todas  as  noites  nas 
valetas,  de  sorte  que,  apesar  do  trabalho  de  limpeza  das  ruas,  formam‐se 
massas  de  esterco  seco  das  quais  emanam  miasmas  que,  além  de  horríveis  à 
vista e ao olfato, representam um enorme perigo para a saúde dos moradores. 
É de espantar que não se encontre aqui nenhum cuidado com a saúde, com os 
bons  costumes  e  até  com  as  regras  elementares  da  decência?  Pelo  contrário, 
todos  os  que  conhecem  bem  a  situação  dos  habitantes  podem  testemunhar  o 
ponto  atingido  pelas  doenças,  pela  miséria  e  pela  degradação  moral.  Nesses 
bairros, a sociedade chegou a um nível de pobreza e de aviltamento realmente 
indescritível.  As  habitações  dos  pobres  são  em  geral  muito  sujas  e 
aparentemente nunca são limpas; a maior parte das casas compõe‐se de um só 
cômodo  que,  embora  mal  ventilado,  está  quase  sempre  muito  frio,  por  causa 
da  janela  ou  da  porta  quebrada;  quando  fica  no  subsolo,  o  cômodo  é  úmido; 
frequentemente,  a  casa  é  mal  mobiliada  e  privada  do  mínimo  que  a  torne 
habitável:  em geral,  um  monte  de  palha serve  de cama  a uma  família  inteira; 
ali  deitando‐se,  numa  promiscuidade  revoltante,  homens,  mulheres,  velhos  e 
crianças. Só há água nas fontes públicas e a dificuldade para buscá‐la favorece 
naturalmente a imundice (Apud ENGELS, 2008, p. 79). 
 
Em suma, a condição material do proletariado inglês o condenava a 
viver  na  miséria,  em  condições  habitacionais  horripilantes,  tendo  uma 
dieta alimentar muito carente, vestindo‐se de poucos trapos, possuindo 
restritas condições de se higienizar, perseguido pelo frio e por diversos 

51 
tipos  de  doenças11.  Essas  últimas  se  apresentam  como  uma  das  portas 
de entrada para uma vida lumpemproletária, pois, devido à dura rotina 
de  trabalho  nas  indústrias  aliada  a  uma  alimentação  precária  e  uma 
moradia  insalubre,  o  operário  chefe  da  família  corria  o  risco  constante 
de ter seus músculos e órgãos falidos e de adoecer seriamente, ficando 
impossibilitado  para  o trabalho.  “E é  então  que  se  manifesta,  agora  de 
forma mais aguda, a brutalidade com a qual a sociedade abandona seus 
membros  justamente  quando  mais  precisam  de  sua  ajuda”  (MARX, 
2008, p. 115). 
Desde  pelo  menos  a  segunda  metade  do  século  XVIII  e  de  todo  o 
século XIX, predomina no imaginário coletivo europeu, especificamente 

11   “Testemunhos  provindos  de  fontes  as  mais  diversas  confirmam  que  as  habitações 
operárias  nos  piores  bairros  urbanos,  somadas  às  condições  gerais  de  vida  dessa 
classe, provocam numerosas doenças (...) as doenças pulmonares são a conseqüência 
inevitável desta condição habitacional e, por isso, são particularmente freqüente entre 
os operários. A aparência de tísicos de tantas pessoas que se encontram pelas ruas é 
claro  indicativo  de  que  a  péssima  atmosfera  de  Londres,  em  especial  nos  bairros 
operários, favorece ao extremo o desenvolvimento da tuberculose (...) Além de outras 
doenças  respiratórias  e  da  escarlatina,  o  grande  rival  da  tuberculose,  causador  de 
devastações entre os operários, é o tifo. Segundo relatórios oficiais sobre as condições 
sanitárias da classe operária, esse flagelo universal é provocado pelo péssimo estado 
das habitações operárias, a má ventilação, a umidade e a sujeira. Nessas informações, 
preparadas – é bom recordá‐lo – pelos melhores médicos da Inglaterra, com base em 
relatos de outros médicos, afirma‐se que um único pátio mal arejado, um único beco 
sem  rede  de  esgoto,  sobretudo  quando  os  operários  vivem  amontoados  e  nas 
proximidades existem matérias orgânicas em decomposição, pode provocar a febre, e 
quase sempre a provoca” (ENGELS, 2008, p. 138).  
De acordo com Dejours, as condições de existência e saúde do lumpemproletariado, ou 
subproletariado  como  ele  denomina,  também  são  as  piores  possíveis  e,  devido  a  suas 
condições  de  existência,  não  poderia  ser  diferente:  “A  título  de  exemplo  significativo, 
podemos  citar  a  incidência  importante  de  doenças  infecciosas,  particularmente  nas 
crianças,  e  da  tuberculose,  que  continua  a  ser  ainda  um  flagelo  na  população  adulta. 
Pode‐se  notar  também  a  importância  das  seqüelas  de  acidentes  e  doenças:  elas  são 
testemunhas  de  tratamentos  mal  conduzidos  ou  incompletos  e,  no  conjunto,  de  uma 
menor  eficácia  das  técnicas  médico‐cirúrgicas  sobre  uma  população  que  não  pode 
aproveitar  delas  como  o  resto  da  população,  por  razões  de  ordem  não  só 
socioeconômica  e  cultural,  mas  por  razões  de  ordem  material  (impossibilidade  de 
acesso  às  convalescenças,  aos  cuidados  pós‐operatórios  e  à  reeducação  fisioterápica,  à 
assistência médica subseqüente a uma doença grave ou um acidente (DEJOURS, 1992, 
p. 28). 
 

52 
na  Inglaterra  e  França,  o  crescente  temor  e  pânico  das  classes 
dominantes  diante  das  inúmeras  possibilidades  de  sublevações  das 
classes  miseráveis,  quer  dizer,  do  lumpemproletariado  em  geral.  Tal 
estado  de  pânico  coletivo  não  é  gratuito,  basta  perceber  em  que 
condições viviam a maioria da população pobre das principais cidades 
industriais  européias,  Londres  e  Paris  por  exemplo,  para  constatarmos 
que as condições materiais degradantes e desumanas eram mais do que 
suficientes para alimentar protestos, sublevações, saques, roubos e todo 
tipo de motins populares violentos.  
Não é à toa que diversos questionamentos da época apontavam para 
esse  risco.  Dentre  eles,  e  o  mais  citado,  encontra‐se  o  realizado  por 
Friedrich  Engels  no  prefácio  à  edição  inglesa  de  O  Capital,  que  assim 
indagava:  “Entrementes,  em  cada  inverno,  renova‐se  a  pergunta:  O  que 
fazer com os desempregados? Enquanto se avoluma, cada ano, o número 
deles, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos 
prever  o  momento  em  que  os  desempregados  perderão  a  paciência  e 
encarregar‐se‐ão  de  decidir  seus  destinos  com  suas  próprias  forças”. 
Assim  como  Engels,  diversos  outros  teóricos  e  romancistas  da  época  já 
alertavam  para  o  perigo  do  crescimento  absoluto  dessa  massa  faminta. 
Balzac colocava a questão da seguinte forma:  
 
Há necessidades invencíveis, porque, enfim a sociedade não dá o pão a todos 
os que têm fome; e quando estes não tem nenhum meio de ganhar a vida, que 
quereis que eles façam? A política terá previsto que no dia em que a massa dos 
infelizes  for  mais  forte  que  a  dos  ricos,  o  estado  social  estará  estabelecido  de 
outra  maneira?  No  presente  momento,  a  Inglaterra  está  ameaçada  por  uma 
revolução  desse  gênero.    O  imposto  para  os  pobres  tornou‐se  exorbitante  na 
Inglaterra; e no dia em que sobre 30 milhões de pessoas houver 20 milhões que 
morrem  de  fome,  a  infantaria,  os  canhões  e  a  cavalaria  nada  poderão  fazer 
(Apud GUIMARÃES, 2008, p. 88). 
 
Além dessa postura temerosa diante das possíveis e previsíveis ações 
que o lumpemproletariado se via coagido a realizar, as classes capitalistas 
e  suas  classes  auxiliares,  inspiradas  nos  seus  valores  e  perspectivas  que 
lhes  são  próprios,  construíram  diversas  representações  pejorativas  dos 
míseros proletários e, principalmente, lumpemproletários e das sensações 
e sentimentos que a existência, comportamentos e hábitos dessas classes 
vos  geravam.  Dentre  os  principais  termos  alguns  se  destacam  pela 

53 
repulsa  que  os  mesmos  provocavam  e  que  nos  possibilita  apreender  a 
forma como tal classe era expressa pelos  valores aristocrático‐burgueses 
da  época.  Dentre  vários  podemos  citar:  vagabundos,  mendigos,  vadios, 
maltrapilhos, esfarrapados, escória, ralés, desajustados sociais etc. 
Se essas eram as condições nas quais se encontravam o proletariado, 
em  que  condições  viviam  então  o  proletariado  em  farrapos12,  isto  é  o 
lumpemproletariado?  Se  vendendo  sua  força  de  trabalho  por  salário  o 
proletariado vivia na miséria absoluta, como diferenciar as condições de 
vida dos que se encontram à margem da divisão social do trabalho? É 
possível  que  exista  uma  classe  social  vivendo  em  condições  abaixo  da 
miséria?    Como  viviam  o  lumpemproletariado  das  principais  cidades 
industriais europeias e como reagiam diante dessa realidade a ponto de 
gerar  tanto  temor?  A  busca  por  respostas  a  essas  questões  nortearam 
todo  o  desenvolvimento  da  discussão  em  torno  da  formação  e 
desenvolvimento  do  lumpemproletariado  no  período  de  vigência  do 
regime de acumulação extensivo. 
De  início  gostaríamos  de  enfatizar  que  o  lumpemproletariado  é 
considerado  por  nós  uma  classe  social  composta  pela  totalidade  do 
exército  industrial  de  reserva  (superpopulução  relativa)  e  não  apenas 
pelos  extratos  mais  baixos  dessa  superpopulação  relativa,  conforme 
exposto  por  Marx  no  capítulo  XXIII  do  volume  2  de  O  Capital  –  A  lei 
geral  da  acumulação  capitalista.  Concordamos  com  Viana  (2011) 
quando  o  mesmo  destaca  a  importância  de  ressignificar  o 
lumpemproletariado  para  melhor  compreendê‐lo  no  interior  da 
dinâmica do modo de produção capitalista. De acordo com ele, 
 
o  primeiro  ponto  é  ressignificar  o  lumpemproletariado,  que  não  pode  ser 
considerado apenas os extratos mais baixos da superpopulação relativa e sim 
ela  em  sua  totalidade.  Assim,  o  lumpemproletariado  abarca  o  conjunto  do 
exército  industrial  de  reserva.  É  composto,  portanto,  pelos  trabalhadores 
potenciais do capitalismo, com suas subdivisões, e pelos subempregados e em 
trabalhos precários, não produtores direto de mais‐valor. Ou seja, inclui tanto 
aqueles  que  estão  na  fronteira  com  o  proletariado  (desempregados 
temporários,  subempregados,  etc.)  quanto  os  que  sobrevivem  sob  outras 
formas (prostituição, mendicância, etc.) (VIANA, 2011). 
 

12 Tradução ao pé da letra do termo lumpemproletariado. 

54 
É  válido  ressaltar  que  devido  à  nossa  compreensão  do  que  seja  o 
lumpemproletariado,  consideraremos,  nas  análises  de  diversos  outros 
autores,  como  frações  do  lumpemproletariado  ou  o 
lumpemproletariado  em  sua  totalidade,  as  análises  referentes  aos 
marginais,  à  multidão,  às  classes  perigosas,  aos  miseráveis,  excluídos 
sociais, novos pobres etc. Consideramos que nessas análises, apesar da 
denominação diferenciada da nossa, os indivíduos que a compõe são os 
mesmos  que  compõe  o  exército  industrial  de  reserva,  logo,  de  acordo 
com  nossa  definição,  equivale  ao  lumpemproletariado.  Mais  adiante 
entraremos  em  detalhes  sobre  o  lumpemproletariado  nos  escritos  de 
Marx. 
A  existência  de  um  proletariado  miserável  nos  países 
industrializados  da  Europa  do  século  XIX  subentende  a  existência  de 
um  vasto  contingente  lumpemproletário  que  possibilite  a  manutenção 
de baixos salários, disputa por empregos, divisão e enfraquecimento da 
classe trabalhadora. Portanto, no capitalismo um não existe sem o outro. 
Se  no  modo  de  produção  capitalista  existe  de  um  lado  riqueza  e  do 
outro pobreza, abaixo da pobreza existe um miséria extrema que tende 
a  crescer  concomitante  ao  crescimento  de  produção  da  riqueza.  Aliás, 
não é essa a lei geral da acumulação capitalista?  
Nesse sentido, podemos adiantar desde já que os bairros operários 
europeus  estavam  abarrotados  de  indivíduos  que  compunha  o 
lumpemproletariado  e  que  boa  parte  dessa  classe,  na  Inglaterra,  é 
composta por imigrantes irlandeses. 
 
Aqui vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos, 
todos  misturados  com  ladrões,  escroques  e  vítimas  da  prostituição.  A  maior 
parte  deles  são  irlandeses,  ou  seus  descendentes,  e  aqueles  que  ainda  não 
submergiram completamente do turbilhão da degradação moral que os rodeia 
a cada dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos influxos 
aviltantes da miséria, da sujeira e do ambiente malsão (ENGELS, 2008, p. 71). 
 
Em diversas passagens de jornais e periódicos da época, assim como 
na  excelente  pesquisa  realizada  por  Engels  e  que  resulta  em  1845  na 
extraordinária obra sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, é 
possível  identificar  uma  grande  quantidade  de  lumpemproletários 
sobrevivendo  nas  ruas  das  principais  cidades  industriais  inglesas. 

55 
Segundo o Times – principal diário inglês de cunho conservador – de 12 
de outubro de 1843: 
 
Nossa seção policial publicada ontem indica que dormem nos jardins, todas as 
noites,  cerca  de  cinquenta  pessoas,  sem  outra  proteção  contra  as  intempéries 
que  árvores  e  tocas  escavadas  em  muros.  Em  sua  maioria,  são  moças  que, 
seduzidas por soldados, vieram do campo e, abandonadas neste vasto mundo 
à  degradação  de  uma  miséria  sem  esperança,  tornaram‐se  vítimas 
inconscientes e precoces do vício. 
Na realidade, isso é assustador. Os pobres estão em toda parte. Por toda parte, 
a indigência avança e insere‐se, com toda a sua monstruosidade, no coração de 
uma  grande  e  florescente  cidade.  Nos  milhares  de  becos  e  vielas  de  uma 
populosa  metrópole  sempre  haverá  –  dói  dizê‐lo  –  muita  miséria  que  fere  o 
olhar e muita que não será vista. 
Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da elegância, 
junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do esplêndido palácio de 
Bayswater,  onde  se  encontra  o  velho  e  os  novos  bairros  aristocráticos,  numa 
área  da  cidade  onde  o  requinte  da  arquitetura  moderna  prudentemente 
impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza, numa área que 
parece  consagrada  ao  desfrute  da  riqueza,  é  assustador  que  exatamente  aí 
venham  instalar‐se  a  fome  e  a  miséria,  a  doença  e  o  vício,  com  todo  o  seu 
cortejo  de  horrores,  destruindo  um  corpo  atrás  de  outro,  uma  alma  atrás  de 
outra!  
É  uma  situação  verdadeiramente  monstruosa.  O  máximo  prazer 
proporcionado  pela  saúde  física,  a  atividade  intelectual,  as  mais  inocentes 
alegrias dos sentidos lado a lado com a miséria mais cruel! A riqueza que, do 
alto dos seus salões luxuosos, gargalha indiferente diante das obscuras feridas 
da  indigência!  A  alegria  que  inconsciente,  mas  cruelmente,  zomba  do 
sentimento  que  geme  ali  embaixo!  Todos  os  contrastes  em  luta,  tudo  em 
oposição, exceto o vício que conduz à tentação e aqueles que se deixam tentar... 
Que todos reflitam: na área mais luxosa da cidade mais rica do mundo, noite a 
noite,  inverno  a  inverno,  vivem  mulheres,  jovens  em  idade  e  envelhecidas 
pelos pecados e pelo sofrimento, expulsas da sociedade, atoladas na fome, na 
doença e na sujeira (...) (Apud ENGELS, 2008, p. 75‐76). 
 
Como  qualquer  outra  mercadoria,  a  força‐de‐trabalho  está  inserida 
na lógica da oferta e da procura no mercado. Portanto, quanto maior for 
a  oferta  de  mão‐de‐obra  disponível  para  ser  empregada,  tanto  maior 
será  o  rebaixamento  dos  salários  e  tanto  maior  será  o  número  da 
população  “supérflua”  –  o  lumpemproletariado.  Além  disso,  é 
importante  destacar  que  o  capitalismo  do  século  XIX,  assim  como  o 
atual, é caracterizado pela existência de crises constantes e a cada crise a 
situação tende a esmagar, ainda mais, os setores frágeis da sociedade e, 

56 
nesses  períodos,  o  proletariado  tende  a  ter  seus  salários  rebaixados 
profundamente, uma vez que o lumpemproletariado tende a ampliar‐se 
e,  consequentemente,  a  ampliar,  também,  a  pressão  sobre  os  operários 
empregados.  Assim,  o  proletariado  ainda  empregado,  mas  que  se  vê 
ameaçado constantemente pelo desemprego, tende a se submeter, a não 
ser  em  períodos  de  radicalização  da  sua  luta,  a  condições  ainda  mais 
precárias de trabalho e vida, pois, 
 
no  pior  dos  casos,  o  operário,  para  subsistir,  preferirá  renunciar  ao  grau  de 
civilidade a que estava habituado: preferirá morar numa pocilga a não ter teto, 
aceitará  farrapos  para  não  andar  desnudo,  comerá  batatas  para  não  morrer  de 
fome.  Preferirá,  na  esperança  de  dias  melhores,  aceitar  metade  do  salário  a 
sentar‐se silenciosamente numa rua e morrer na frente de todo mundo, como já 
aconteceu com tantos desempregados. É esse pouco, quase nada, que constitui o 
mínimo  salário.  E  se  há  mais  operários  que  aqueles  que  à  burguesia  interessa 
empregar,  se,  ao  término  da  luta  concorrencial  entre  eles,  ainda  resta  um 
contingente  sem  trabalho,  esse  contingente  deverá  morrer  de  fome,  porque  o 
burguês só lhe oferecerá emprego se puder vender com lucro o produto de seu 
trabalho (ENGELS, 2008, p. 119). 
 
Tarefa  difícil  é  a  de  precisar  a  linha  que  separa  o  proletariado  do 
lumpemproletariado  em  relação  à  habitação,  vestimenta,  alimentação, 
saúde, hábitos etc. em todo o século XIX, pois o que percebemos é que, 
nesse  período,  a  exploração  e  miséria  são  generalizadas  e  que  tanto  o 
proletariado quanto o lumpemproletariado são suas maiores vítimas. O 
lumpemproletariado  assim  como  qualquer  outra  classe  social  no 
capitalismo,  precisa  acessar,  mesmo  que  em  condições  extremamente 
desiguais,  alguns  bens  básicos  para  sobreviver.  Para  isso  ele  se  vê 
coagido  a  obter  dinheiro,  seja  de  qual  forma  for:  mendigando, 
prostituindo‐se,  roubando,  varrendo  ruas  e  recolhendo  imundices, 
transportando  esterco  e  pequenos  objetos,  realizando  comércio 
ambulante ou biscates, cometendo crimes diversos etc.13 

13  “São  espantosos  os  expedientes  a  que  esses  indivíduos  recorrem  para  ganhar 
qualquer  coisa.  Os  varredores  de  rua  (crosssweeps)  de  Londres  são  conhecidos  em 
todo  o  mundo;  mas  até  pouco  tempo  atrás,  também  as  ruas  e  calçadas  de  outras 
grandes  cidades  eram  limpas  por  desempregados,  contratados  para  esse  fim  pelas 
repartições  encarregadas  da  assistência  ou  pelas  autoridades  responsáveis  pela 
conservação das ruas; hoje existe uma máquina que, diária e ruidosamente, limpa as 
ruas,  tirando  daqueles  desempregados  até  mesmo  esse  meio  de  sobrevivência.  Nas 

57 
É  impressionante  a  grande  quantidade  de  lumpemproletários  que 
ocupam  as  ruas,  principalmente,  dos  bairros  operários  ingleses.  É 
exatamente  nesses  locais  que  o  lumpemproletariado  encontra  alguma 
solidariedade e consegue a partir de algumas esmolas, concedidas pelos 
próprios  operários,  garantir  a  sua  existência  paupérrima.  Por  isso 
milhares  de  famílias  se  instalam  nessas  ruas  nos  horários  de  maior 
circulação  dos  operários,  pois  geralmente  “só  contam  com  a 
solidariedade dos operários, que sabem, por experiência, o que é a fome e 
que a todo momento podem encontrar‐se na mesma situação” (ENGELS, 
2008, p. 128). 
De acordo com os relatórios de inspetores para a lei sobre os pobres, 
na  Inglaterra  e  no  País  de  Gales,  o  número  de  lumpemproletários  (os 
ditos  “supérfluos”)  representa  em  média  1,5  milhões.  Porém  esse 
número  poderia  ser  bem  maior  visto  que  nesse  1,5  milhões  só  estão 
compreendidos  aqueles  indivíduos  que  oficialmente  recebem  alguma 
assistência  pública,  estando  excluídos  desse  número  os  milhares  de 
lumpemproletários que sobrevivem sem essa assistência. 
Em períodos de crise econômica, a miséria atinge graus alarmantes e 
acirra o descontentamento e o ódio das classes miseráveis que declaram 
guerra a toda sociedade civil, obrigando‐o a sobreviver do banditismo. 
Os  anos  de  1842  e  1847  são  reveladores  do  peso  que  sobrecai  no 
proletariado  e  em  alguns  setores  das  “classes  médias”  e  que  os 
vitimizam  com  a  lumpemproletarização  (desgraça  ainda  maior  que  a 
proletarização) em períodos de crise: 
 
Um relatório sobre a situação das áreas industriais em 1842, baseado em dados 
fornecidos  pelos  industriais  e  preparado  em  janeiro  de  1843  pelo  Comitê  da 
Liga contra a Lei dos Cereais, informa que o imposto para os pobres era então 
duas  vezes  maior  que  em  1839,  mas  que,  no  mesmo  período  de  tempo,  o 
número  de  necessitados  havia  triplicado  ou  até  quintuplicado;  que  agora 
muitos postulantes à assistência pública pertenciam a classes sociais que antes 
jamais  haviam  solicitado  ajuda;  que  os  meios  de  subsistência  de  que  a  classe 
operária podia dispor eram no mínimo dois terços a menos em relação aos que 

grandes vias que ligam as cidades e nas quais há muito movimento, encontra‐se uma 
quantidade  de  indivíduos  empurrando  carrinhos  de  mão  que,  sob  o  risco  de 
atropelamento, circulam entre carroças e outros veículos de tração animal, recolhendo 
o  esterco  fresco  dos  cavalos  para  vendê‐lo  depois  –  para  o  que  ainda  pagam 
semanalmente alguns shillings à administração das estradas” (ENGELS, 2008, p. 126). 

58 
dispunha  em  1834‐1836;  que  o  consumo  de  carne  havia  caído  muito,  20%  em 
alguns  locais,  60%  em  outros;  que  artesãos,  ferreiros,  pedreiros  etc.,  que  até 
então,  mesmo nos  períodos de  crise  mais  grave,  encontravam  trabalho,  agora 
também sofriam muito com a falta de trabalho e com os baixos salários; e que, 
ainda  em  janeiro  de  1843,  os  salários  continuavam  caindo.  E  essas  são 
informações dos industriais! (ENGELS, 2008, p. 129). 
 
Promovendo  essas  condições  de  subexistência  para  milhares  de 
seres  humanos,  a  sociedade  inglesa  favorecia  a  eclosão  de  uma 
verdadeira  guerra  social,  pois  boa  parte  dos  operários  pobres  e  do 
lumpemproletariado  passam  a  promover  diversos  motins  e  rebeliões, 
além  de  buscar  a  sobrevivência  a  partir  da  pilhagem,  do  roubo  e,  até 
mesmo,  do  assassinato.  As  últimas  décadas  do  século  XIX 
experimentaram o crescente temor de ver renascido o velho espectro da 
multidão  amotinada  (a  mob),  disposta  a  ver  seus  interesses  e 
necessidades garantidos através da ação direta, provocada pelos motins 
e  de  todo  tipo  de  movimentos  promovidos  pelos  desempregados 
enfurecidos, e que tanto risco à propriedade e à vida eles representam. 
Elementos  típicos  de  uma  sociedade  que  se  afirma  na  utilização  do 
trabalho social para produzir riquezas de forma ampliada, mas que são 
negadas para seus próprios produtores que são relegados e forçados a 
viver no “pântano do pauperismo”. No entanto, ninguém acreditava de 
fato  que  tal  multidão  desempregada  e  faminta  aguardaria  de  braços 
cruzados  que  algum  auxílio  caísse  do  céu,  ou  que  algum  messias  as 
socorresse,  pelo  contrário,  em  períodos  de  crise  e  miséria  social,  as 
ideologias (religiosas) costumam cair por terra e o lumpemproletariado, 
por diversos momentos, partiu para a ação. Segundo Bresciani, 
 
coincidentemente,  os  homens  que  agitam  Londres  em  fevereiro  de  1866  e 
tentam  de  início  resolver  o  problema  do  desemprego  num  inverno  rigoroso 
através  das  vias  legais,  pedindo  trabalho‐público  e  auxílio‐desemprego,  são 
trabalhadores. Em  Trafagal  Square,  a  assembléia  que  dá  início  ao  movimento 
compõe‐se  de  20  000  homens  desempregados  das  docas  e  da  construção. 
Contudo,  bastaram  algumas  provocações  para  que  a  marcha  pacífica  em 
direção  ao  Hyde  Park  se  transformasse  num  ataque  a  todas  as  formas  de 
propriedade,  riqueza  e  privilégio:  janelas  e  vitrinas  foram  quebradas, 
carruagens  foram  quebradas  e  seus  ocupantes  assaltados;  em  suma  na 
observação do Times, “o West End (bairro rico de Londres) esteve por algumas 
horas  nas  mãos  da  multidão”.  O  pânico  tomou  conta  da  cidade;  notícias 
desencontradas sobre multidões avançando em direção à City ou ao West End 

59 
e  destruindo  tudo  no  seu  avanço  mantêm  os  proprietários,  o  governo  e  as 
tropas em prontidão durante mais dois dias que, nas palavras do historiador S. 
Jones  se  assemelharam  ao  Grande  Medo  (“Grande  Peur”)  da  Revolução 
Francesa (1990, p. 47). 
 
O que esperar dessa classe social que durante toda a sua existência 
convive  com  todo  tipo  de  infortúnio?  É  possível  aguardar  de  seres 
desumanizados e famintos atitudes que prezem pela vida e propriedade 
alheia?  O  século  XIX  inaugura  o  século  do  banditismo  social 
generalizado. As ruas que, durante o dia, eram infestadas de mendigos, 
subempregados  e  todo  tipo  de  desempregados  procurando  alguma 
forma  de  garantir  sua  sobrevivência,  pela  noite,  se  encontrava  repleta 
de  todo  tipo  de  ladrão  e  criminoso.  Nascia,  assim,  um  dos  termos 
pejorativos  mais  utilizados  para  classificar  o  lumpemproletariado: 
Classes perigosas. 
Na introdução da sua obra As classes perigosas – banditismo urbano e 
rural  (2008),  Alberto  Passos  Guimarães  afirma  o  seguinte  em  relação  à 
origem da palavra classes perigosas (dangerous classes): 
 
O  dicionário  mais  importante  da  língua  inglesa,  o  Oxford  EnglishDictionary, 
registrou  o  uso  da  expressão  em  1859,  mas  dez  anos  antes  ela  já  figurava  no 
título  de  uma  obra  (Reformatoryscholls  for  thechildrenoftheperishinganddangerous 
classes,  and  for  juvenileoffenders)  de  autoria  de  Mary  Carpenter,  escritora  bem 
conhecida por seus trabalhos sobre matéria criminal. Na conceituação de Mary 
Carpenter,  as  classes  perigosas  eram  formadas  pelas  pessoas  que  houvessem 
passado  pela  prisão  ou  as  que,  por  ela  não  tendo  passado,  já  vivessem 
notoriamente  da  pilhagem  e  que  se  tivessem  convencido  de  que  poderiam, 
para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais praticando furtos do que 
trabalhando (2008, p. 21). 
 
É  visível  que  o  termo  classes  perigosas  é  criado  e,  posteriormente, 
desenvolvido  por  vários  intelectuais  do  século  XIX  e  expressa, 
nitidamente, um preconceito em relação às classes pobres e miseráveis 
formadas  tanto  pelo  proletariado,  quanto  pelo  lumpemproletariado, 
pois, no entender de alguns desses intelectuais, a prática do roubo e do 
crime  em  geral  era  fruto  da  escolha  individual  e  não  resultado  das 
míseras  condições  sociais  em  que  se  encontrava  uma  multidão  de 
indivíduos.  
Dessa  forma,  empregar  o  termo  classes  perigosas,  assim  como 
vários outros termos preconceituosos, ao invés de lumpemproletariado 

60 
‐  o  que  na  época  exigia  uma  ampla  análise  teórica  sobre  as  classes 
sociais  e  a  dinâmica  de  sua  constituição  e  desenvolvimento  no 
capitalismo  –  possibilitou  a  expansão  de  olhares  pejorativos  e 
preconceituosos  sobre  o  lumpemproletariado  e  que,  ainda  hoje,  é 
comumente  praticado  por  alguns  intelectuais  ditos  marxistas.  Tanto 
Karl  Marx  quanto  Friedrich  Engels  acabam  sendo  influenciados  por 
esse  preconceito  dominante  na  época  e,  em  alguns  escritos,  também, 
adotaram    termos  preconceituosos  para  classificar  o 
lumpemproletariado.  Mais  adiante  entraremos  em  detalhes  sobre  tais 
escritos. 
Nesse  momento  de  nossa  análise  já  é  possível  visualizar  que  a 
expansão do lumpemproletariado e da criminalidade em diversas regiões 
industrializadas,  principalmente,  da  Inglaterra  e  da  França,  são 
resultados  da  própria  dinâmica  da  produção  e  reprodução  do 
capitalismo  (conforme  expresso  no  item  1.1.2  desse  capítulo)  e  que 
tendem a se intensificar em períodos de carestia, fome e crise, ou seja, em 
períodos  com  fortes  tendências  ao  crescimento  generalizado  do 
desemprego.  A  prática  do  roubo  como  forma  garantidora  da 
sobrevivência de uma multidão urbana ganha o século XIX: 
 
O roubo reina sozinho em meados do século, atingindo seu máximo correcional 
entre 1851‐1855 (24.000 casos, 42.000 indiciados). Enquanto diminuem os roubos 
nas igrejas e nas grandes estradas, estes, apanágios de jovens que ainda sonham 
com Mandrin,  crescem todas  as formas de  roubos urbanos: roubos domésticos, 
severamente  reprimidos,  fantasma  dos  burgueses  de  Balzac  ou  de  Pot‐Bonille, 
rivalizados a partir de 1850 pelo roubo do balcão, que recrudesce com o fascínio 
exercido  pelos  Grandes  Magazines  sobre  o  público  feminino;  miúdos  furtos  de 
objetos – a vitrine cobiçada inaugura muitas carreiras delinquentes – mas, cada 
vez  mais,  roubos  de  dinheiro,  pequenas  somas  surrupiadas,  as  únicas  que 
estejam ao alcance da mão [...] Entretanto, a “gatunice de alimentos”, na origem 
de tantas inculpações decrianças ou vagabundos, esboça o horizonte medíocre de 
uma sociedade de penúria, a existência de uma fome marginal, mas persistente 
(PERROT, 1988, p. 250‐251). 
 
Constata‐se que nesses períodos a expansão do lumpemproletariado 
e  de  suas  práticas  ameaçadoras  da  ordem  social  (rebeliões,  atos  de 
violência generalizada etc.) e dos bens das classes privilegiadas (roubos, 
saques  etc.)  veio  acompanhada  da  expansão  de  diversas  instituições 
nascidas  para  amenizar  as  crescentes  perturbações  sociais  promovidas 

61 
por essa massa imensa formada por diversas frações que compunham o 
lumpemproletariado  (mendigos,  assaltantes,  prostitutas, 
subempregados,  ex‐operários  desempregados  etc.)  da  época.  Dentre 
essas instituições destacam‐se: os asilos, os hospitais e as prisões. 
Para  toda  essa  gama  de  problemas  sociais  inaugurada,  já  de  forma 
intensificada,  pelo  modo  de  produção  capitalista,  não  há  resolução 
concreta nos limites das fronteiras do capital. Pelo contrário, a manutenção 
do  capitalismo  depende,  e  ao  mesmo  tempo  representa  sua  ameaça,  da 
conservação de sua essência produtora de toda essa problemática. Aqui me 
refiro,  principalmente,  ao  processo  de  lumpemproletarização  e  de 
criminalização  do  lumpemproletariado,  existente  desde  a  origem  do 
capitalismo e que remonta ao processo de cercamento de terras: 
 
Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e violenta 
expropriação  da  base  fundiária,  esse  proletariado  livre  como  pássaros  não 
podia  ser  absorvido  pela  manufatura  nascente  com  a  mesma  velocidade  com 
que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados 
de  seu  modo  costumeiro  de  vida  não  conseguiam  enquadrar‐se  de  maneira 
igualmente  súbita  na  disciplina  da  nova  condição.  Eles  se  converteram  em 
massas  de  esmoleiros,  assaltantes,  vagabundos,  em  parte  por  predisposição  e 
na  maioria  dos  casos  por  força  das  circunstâncias.  Daí  ter  surgido  em  toda 
Europa  Ocidental,  no  final  do  século  XV  e  durante  todo  o  século  XVI,  uma 
legislação  sanguinária  contra  a  vagabundagem.  Os  ancestrais  da  atual  classe 
trabalhadora  foram  imediatamente  punidos  pela  transformação,  que  lhes  foi 
imposta,  em  vagabundos  epaupers.  A  legislação  os  tratava  como  criminosos 
“voluntários” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando 
nas antigas condições, que já não existiam (MARX, 1985a, p. 275)14.  
 
O  próprio  processo  de  criminalização  do  lumpemproletariado 
revela,  tanto  no  século  XIX,  quanto  na  contemporaneidade,  a 
impossibilidade  da  construção  de  uma  solução  eficaz  para  essa  ampla 
marginalização de milhares de indivíduos da divisão social do trabalho. 
Afinal,  a  raiz  da  expansão  da  criminalidade  se  encontra  na  própria 
dinâmica da produção capitalista de mercadorias que para promover a 
reprodução  ampliada  do  capital  depende  da  existência  de  um 

14 Nos primeiros parágrafos após essa citação, na obra de Karl Marx (1985a) encontra‐se 
as  diversas  leis  que  foram  criadas  com  o  intuito  de  criminalizar  o 
lumpemproletariado  e  castigá‐lo  pela  sua  condição  social  e  mendicância. 
Parafraseando Marx: “Que cruel ironia!”. 

62 
contingente,  cada  vez  maior,  de  indivíduos  marginalizados  na  divisão 
social  do  trabalho.  A  criminalização  via  aprisionamento  do 
lumpemproletariado tende a reproduzir, ainda  de forma mais extensa, 
sua  condição  de  marginalizado  do  trabalho,  pois  sua  vida  após  o 
cumprimento da pena carrega a “marca da detenção” e essa gera uma 
enorme repulsa social que facilita ainda mais sua condição de lumpem. 
Nesse sentido, 
 
todos  os  testemunhos  concordam:  há  extrema  dificuldade  em  se  conseguir 
trabalho.  “A  partir  do  momento  em  que  o  véu  que  encobria  sua  condição  de 
liberto é rompido, todos os evitam ou fogem dele; se trabalha numa oficina, os 
que  um  momento  antes  tratavam‐no  como  camarada  não  toleram  mais  sua 
presença em meio a eles a não ser com impaciência e aflição; não só não é mais 
seu  companheiro  de  trabalho,  como  também  não  é  mais  seu  igual,  seu 
semelhante. Não haverá ordem e harmonia na oficina, enquanto não tiver sido 
expulso”, escreve Frégier. E mais: “Como se sabe, existe na França uma repulsa 
inveterada  em  todas  as  classes  da  população  em  relação  aos  ex‐detentos” 
(PERROT, 1988, p. 270).  
 
Antes  mesmo  do  século  XIX,  ainda  nas  décadas  finais  do  século 
XVIII, o lumpemproletariado já era um dos alvos principais do sistema 
carcerário.  Na  França,  em  diversos  momentos  de  crise  econômica  e 
crescimento  acelerado  do  desemprego,  a  criminalização  do 
lumpemproletariado  foi  a  principal  arma  utilizada  pelas  classes 
dominantes  para  conter  a  desordem  social  derivada  da  pobreza 
generalizada que atingia essa classe: 
 
as  manufaturas  a  que  estávamos  tão  apegados  caem  de  todos  os  lados;  as  de 
Lyon  vieram  abaixo:  há  mais  de  12  000  operários  mendigando  em  Rouen, 
outro  tanto  em  Tours,  etc.  Contam‐se  mais  de  20  000  desses  operários  que 
abandonaram o reino desde três meses atrás para ir para o exterior, Espanha, 
Alemanha,  etc.,  onde  são  acolhidos  e  onde  o  governo  é  econômico 
(ARGENSON apud FOUCAULT, 1997, p. 401). 
 
Na  tentativa  de  combater  esse  movimento  expansivo  de 
lumpemproletarização, decreta‐se o aprisionamento de todos os mendigos: 
“Foi dada a ordem de prender todos os mendigos do reino; os marechais 
atuam nesse sentido no interior, enquanto a mesma coisa é feita em Paris, 
para onde se tem certeza que eles não refluirão, estando cercado por todos 
os  lados”  (ANGERSON  apud  FOUCAULT,  1997,  p.  402).  Na  segunda 

63 
metade  do  século  XVIII  na  França  esse  processo  de  criminalização  do 
lumpemproletariado é permanente: 
 
De  um  lado  e  do  outro,  responde‐se  à  crise  com  o  internamento.  Cooper 
publica  em  1765  um  projeto  de  reforma  das  instituições  de  caridade;  propõe 
que  se  criem,  em  cada  hundred,  sob  a  dupla  vigilância  da  nobreza  e  do  clero, 
casas  que  teriam  uma  enfermaria  para  os  doentes  pobres,  oficinas  para  os 
indigentes válidos e centros de correção para os que se recusassem a trabalhar. 
Inúmeras casas são fundadas no interior a partir desse modelo, inspirado por 
sua  vez  na  workhouse  de  Carlford.  Na  França,  um  édito  real  de  1764  prevê  a 
abertura de depósitos para mendigos, mas a decisão só começará a ser aplicada 
após  uma  deliberação  do  conselho  de  21.09.1767:  “Que  se  preparem  e 
estabeleçam,  nas  diferentes  generalidades  do  reino,  casas  suficientemente 
fechadas  para nelas  receber  pessoas  vagabundas  ...  Os  que  forem  detidos  nas 
ditas casas serão alimentados e mantidos às custas de Sua Majestade [...]”. No 
ano seguinte abrem‐se 80 depósitos de mendigos em toda a França. Têm quase 
a mesma estrutura e o mesmo destino que os hospitais gerais; o regulamento 
do depósito de Lyon, por exemplo, prevê que ali serão recebidos vagabundos e 
mendigos condenados ao internamento por decisão do preboste, “as mulheres 
de  má  vida  detidas  pelas  tropas”,  “os  particulares  mandados  por  ordem  do 
rei”,  “os  insensatos,  pobres  e  abandonados,  bem  como  aqueles  pelos  quais  se 
paga pensão” (Art. 1 do título do regulamento do depósito de Lyon 1783, cit. In 
LALLEMAND,  IV,  p.  278).  Mercier  dá  uma  descrição  desses  depósitos  que 
mostram  como  eles  diferem  pouco  das  velhas  casas  do  Hospital  Geral:  a 
mesma miséria, a mesma mistura, a mesma ociosidade (FOUCAULT, 1997, p. 
403). 
 
O  século  XIX,  conforme  afirma  Perrot,  inaugura  a  era  do 
aprisionamento  permanente.  Depois  do  asilo,  a  prisão,  “gêmea  sua, 
torna‐se o objeto de uma história cada vez mais assombrada pelo lado 
sombrio  das  sociedades:  doença,  loucura,  delinqüência  [...]”  (PERROT, 
1988, p. 235). Como era de se esperar o lumpemproletariado passa a ser 
a visita prioritária desse novo e assustador estabelecimento, ou melhor, 
depósito de infelizes seres humanos. 
Para  finalizar  esse  capítulo,  passaremos  a  discutir  o 
lumpemproletariado  nos  escritos  de  Marx.  O  termo 
lumpemproletariado tem origem nos escritos de Karl Marx, porém esse 
autor  não  chegou  a  desenvolvê‐lo  de  forma  sistematizada  e  em  várias 
obras (O Manifesto Comunista, A luta de classes na França, O 18 Brumário e 
O capital) o termo é mencionadocom diferenças de significado. Na obra 

64 
O  manifesto  do  partido  comunista  (1998),  Marx  e  Engels  assim  comenta 
sobre o lumpemproletariado:  
 
O  lumpemproletariado,  essa  putrefação  passiva  dos  estratos  mais  baixos  da 
velha  sociedade,  pode,  aqui  e  ali,  ser  arrastado  ao  movimento  por  uma 
revolução proletária; no entanto, suas condições de existência o predispõe bem 
mais a se deixar comprar por tramas reacionárias (1988, p. 76). 
 
Nessa  passagem  é  possível  perceber  alguns  aspectos  que 
consideramos  limitados  e  ao  mesmo  tempo  um  pouco  taxativo  na 
análise  de  Marx  e  Engels,  pois  quando  ele  afirma  que  o 
lumpemproletariado  representa  essa  “putrefação  passiva  dos  setores 
mais  baixos  da  velha  sociedade”  ele  acaba  por  exagerar  na  postura 
passiva  dessa  classe,  pois  não  é  bem  isso  que  a  história  do  século  XIX 
mostra.  Em  diversos  momentos  o  lumpemproletariado  reagiu  à  sua 
condição  material  de  existência  através  de  ações  contra  a  propriedade, 
contra  a  vida  aristocrática  e  burguesa,  assim  como  participou  de 
diversos  motins  e  rebeliões.  É  claro  que  essas  ações  não  vinham 
acompanhadas  de  nenhum  projeto  político,  nem  tão  pouco  possuía 
nenhuma radicalidade que ameaçasse a sociedade vigente, todavia, sua 
postura não era exatamente passiva.  
Por  outro  lado,  há  um  aspecto  importante  nessa  citação  sobre  a 
postura política do lumpemproletariado e de suas possibilidades. Trata‐
se do seguinte trecho: “pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por 
uma revolução proletária”. Ora, essa passagem nos possibilita perceber 
que,  ao  contrário  do  que  afirma  alguns  teóricos,  Marx  e  Engels,  pelo 
menos  nessa  obra,  mostravam  que,  apesar  das  condições  materiais  de 
existência  dessa  classe  social  que  tendia  a  predispô‐la  “bem  mais  a  se 
deixar  comprar  por  tramas  reacionárias”,  como  ocorreu  na  luta  de 
classes  na  França  (um  episódio  histórico  concreto),  o 
lumpemproletariado  poderia  ‐  e  pode  ‐  contribuir  com  a  revolução 
proletária.  Esse  detalhe  é  importante,  pois  demonstra  que  a  postura 
política do lumpemproletariado não resulta de uma espécie de essência 
do seu ser‐de‐classe que sempre o arrasta para um papel conservador e 
reacionário na luta de classes, pelo contrário, apresenta que essa classe, 
também, possui outras possibilidades e que tudo depende da dinâmica 
da  luta  de  classes  e  de  sua  correlação  de  forças  em  determinados 
contextos históricos.  

65 
Além  dessa  passagem  presente  na  obra  O  manifesto  do  partido 
comunista,  outras  passagens  são  importantes  para  compreendermos  a 
visão  de  Marx  sobre  essa  classe  social  e  a  influência  que  a  mesma 
exerceu em teóricos posteriores que discutiram o lumpemproletariado. 
Nas  suas  duas  principais  obras  históricas,  O  18  Brumário  (1997)  e  As 
lutas  de  classes  na  França  –  de  1848  a  1850  (2008),  Marx  analisa  os 
interesses  de  classes  envolvidos  nas  lutas  que  se  desenvolveram  nesse 
contexto histórico francês e as estratégias que as classes sociais em luta 
utilizaram  para  garantir  tais  interesses.  Para  compreendermos  um 
pouco  esse  processo,  utilizaremos  de  algumas  extensas  citações.  Em  A 
luta de Classes na França, Marx assim descrevia: 
 
A revolução de fevereiro tinha atirado o exército para fora de Paris. A Guarda 
Nacional, isto é, a burguesia nas suas diferentes gradações, constituía a única 
força.  Contudo,  não  se  sentia  suficientemente  forte  para  enfrentar  o 
proletariado.  Além  disso,  fora  obrigada,  ainda  que  opondo  a  mais  tenaz  das 
resistências  e  levantando  inúmeros  obstáculos,  a  abrir,  pouco  a  pouco,  e  em 
pequena  escala,  as  suas  fileiras  e  a  deixar  que  nelas  entrassem  proletários 
armados. Restava, portanto, apenas uma saída: opor uma parte do proletariado 
à outra. 
Para  esse  fim,  o  governo  provisório  formou  24  batalhões  de  guarda  móveis, 
cada  um  deles  com  mil  homens,  cuja  idades  iam  de  15  aos  20  anos.  Na  sua 
maioria pertenciam ao lumpemproletariado, que em todas as grandes cidades 
constituiu  uma  massa  rigorosamente  distinta  do  proletariado  industrial,  um 
centro de recrutamento de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem da 
escória  da  sociedade,  gente  sem  ocupação  definida,  vagabundos,  gente  sem 
pátria  e  sem  lar,  variando  segundo  o  grau  de  cultura  da  nação  a  que 
pertencem,  não  negando  nunca  o  seu  caráter  de  Lazzaroni  capazes,  na  idade 
juvenil  em  que  o  governo  provisório  os  recrutava,  uma  idade  totalmente 
influenciável, dos maiores heroísmos e dos sacrifícios mais exaltados como do 
banditismo mais repugnante e da corrupção mais abjeta. O governo provisório 
pagava‐lhes 1 franco e 50 centavos por dia, isto é, comprava‐os. Dava‐lhes um 
uniforme próprio, isto é, distinguia‐os exteriormente dos homens de blusa de 
operário.  Para  seus  chefes  eram‐lhe  impostos,  em  parte,  oficiais  do  exército 
permanente,  em  parte,  eram  eles  próprios  que  elegiam  jovens  filhos  da 
burguesia que os cativavam com suas fanfarronadas sobre a morte pela Pátria 
e a dedicação à república (p. 84‐85). 
 
Em O 18 Brumário podemos ler: 
 
Nessas  excursões,  que  o  grande  Moniteur  oficial  e  os  pequenosMoniteurs 
privados  de  Bonaparte  tinham  naturalmente  que  celebrar  como  triunfais,  o 

66 
presidente  era  constantemente  acompanhado  por  elementos  filiados  à 
Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade originou‐se em 1849. A pretexto 
de  fundar  uma  sociedade  beneficente  o  lumpemproletariadode  Paris  fora 
organizado  em  facções  secretas,  dirigidas  por  agentes  bonapartistas  e  sob  a 
chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com roués decadentes, de 
fortuna  duvidosa  e  de  origem  duvidosa,  lado  a  lado  com  arruinados  e 
aventureiros  rebentos  da  burguesia,  havia  vagabundos,  soldados  desligados 
do  exército,  presidiários  libertos,  forçados  foragidos  das  galés,  chantagistas, 
saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos 
de  bordéis,  carregadores,  soldadores,  mendigos  –  em  suma,  toda  essa  massa 
indefinida e desintegrada, atirada de ceca em Meca, que os franceses chamam 
La bohème; com esses elementos afins Bonaparte formou o núcleo da Sociedade 
de 10 de Dezembro. “Sociedade beneficente” no sentido de que todos os seus 
membros,  como  Bonaparte,  sentiam  necessidade  de  se  beneficiar  às  expensas 
da  nação  laboriosa;  esse  Bonaparte,  que  se  erige  em  chefe  do 
lumpemproletariado,  que  só aqui  reencontra,  em  massa,  os  interesses  que  ele 
pessoalmente  persegue,  que  reconhece  nessa  escória,  nesse  refugo,  nesse 
rebotalho  de  todas  as  classes  a  única  classe  em  que  pode  apoiar‐se 
incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sansphrase(MARX, 
p. 78‐79). 
 
O  que  Marx  nos  apresenta  com  tais  passagens?  O  que  é  possível 
apreender dessas passagens e o que pode ser interpretado como exagero 
dogmático nas releituras de outros autores sobre o lumpemproletariado? 
Nessas  passagens,  extraídas  de  duas  obras  de  caráter  histórico,  isto  é, 
obras  que  analisaram  determinados  acontecimentos  em  contextos 
históricos  específicos,  Marx  descreve  como  o  lumpemproletariado  – 
reenfatizando:  naquele  contexto  –  foi  cooptado  pelo  Estado  francês,  sob 
comando de Luís Bonaparte, e utilizado na luta contra o avanço das lutas 
proletárias.  Ou  seja,  nesse  episódio  a  possibilidade  do 
lumpemproletariado  ser  cooptado  e  utilizado  como  “ferramenta 
subornada da intriga reacionária” se confirmou.  
A  obra  As  classes  perigosas  –  banditismo  urbano  e  rural  (2008)  de 
Alberto  Passos  Guimarães  se  apresenta  como  uma  interpretação 
tipicamente dogmática da análise que Marx e Engels realizaram sobre o 
lumpemproletariado. Nessa obra, seu autor transforma as afirmações de 
Marx  e  Engels  sobre  o  lumpemproletariado,  do  século  XIX,  em  “leis 
naturais e universais” e que podem ser aplicadas a qualquer situação e 
contexto histórico, pois para esse autor:  
 

67 
Tanto Marx quanto Engels sempre tiveram essa posição contrária à utilização 
de elementos do lumpemproletariado na ação revolucionária, por considerá‐lo 
instrumentos  mobilizáveis  pela  reação,  em  todos  os  tempos,  como  havia 
mostrado a experiência histórica (2008, p. 24). 
 
E, posteriormente, ele continua com suas ênfases dogmáticas: 
 
Mas  em  nenhum  momento  Marx  e  Engels  deixaram  de  considerar  as 
peculiaridades  de  cada  uma  das  formas  e  categorias  da  superpopulação 
relativa,  de  seu  papel  e  de  suas  funções  na  economia  e  na  sociedade.  Nunca 
deixaram  de  salientar  o  antagonismo  entre  o  caráter  revolucionário  da  classe 
operária  e  a  tendência  contrarrevolucionária  do  lumpemproletariado 
(GUIMARÃES, 2008, p. 28). 
 
Porém,  é  necessário  compreender  que  a  postura  política  do 
lumpemproletariado  não  é  uma  “lei  natural  e  universal”  que  pode  ser 
aplicada  para  qualquer  situação,  em  qualquer  contexto  histórico.  No 
entanto,  foi  isso  que  diversos  autores  ditos  “marxistas”  fizeram: 
interpretaram  essas  passagens  de  Marx  sob  o  lumpemproletariado  de 
forma dogmática, tornando‐as espécies de “verdades reveladas” (assim 
disse o Senhor Marx no capítulo x, versículo y, amém). Postura essa que 
não possui nada de marxista, pois trata a ação de uma classe social de 
forma  estanque,  desconsidera  as  especificidades  das  condições 
materiais de existência, o desenvolvimento da correlação de forças e as 
tendências  próprias  da  dinâmica  da  acumulação  capitalista 
fundamentalmente  constituída  pela  luta  de  classes  em  contextos 
históricos distintos. Nesse sentido, 
 
a  vulgarização  e  deformação  da  teoria  de  Marx    promoveram  uma 
simplificação e, aliado com determinados interesses e situações, transformou o 
lumpemproletariado  em  puramente  reacionário  (e  deixando  de  lado  o  que 
Marx  denominou  “condições  de  existência”,  como  numa  espécie  de 
maniqueísmo  que  transforma  essa  parte  da  sociedade  em  “representante  do 
mal”.  Porém,  além  de  resgatar  o  que  Marx  realmente  disse,  é  necessário 
perceber  a  evolução  do  lumpemproletariado  e  sua  relação  com  o 
desenvolvimento  capitalista  e,  assim,  compreender  melhor  seu  papel  político 
contemporaneamente (VIANA, 2011). 
 
Em  nossa  análise  o  lumpemproletariado  é  considerado  uma  classe 
social  intrínseca  ao  modo  de  produção  capitalista  e  que, 
conseqüentemente,  vem  se  desenvolvendo  e  se  ampliando 

68 
quantitativamente  com  o  desenvolvimento  desse  modo  de  produção. 
No  entanto,  não  acreditamos  que  o  lumpemproletariado  seja,  em  sua 
essência,  contrarrevolucionário,  assim  como  o  proletariado  é 
revolucionário na sua essência, pois acreditamos ser possível constatar 
que na contemporaneidade, especificamente no período de vigência da 
acumulação  integral,  o  lumpemproletariado  tende  a  se  aliar  ao 
proletariado,  em  momentos  de  crise  e  enfrentamento,  contra  o  capital 
econsequentementeauxiliar o avanço da luta pela transformação social.  
Percebe‐se,  então,  que  ao  contrário  dos  teóricos  que  analisaram  o 
lumpemproletariado de forma estanque e dogmática, aqui buscaremos 
analisar  o  lumpemproletariado  na  sua  evolução  histórica,  intentando 
buscar  respostas  que  confirmem  a  tendência  dessa  classe  em  adquirir 
um caráter cada vez mais contestador e uma aliança revolucionária com 
o  proletariado.  Esse  é  o  objetivo  do  próximo  capítulo:  analisar  a 
expansão  do  lumpemproletariado  no  regime  de  acumulação  integral  e 
toda a complexa dinâmica que envolve esse processo. 

69 
70 
A Expansão do Lumpemproletariado no Regime de Acumulação 
Integral 
 
 
Ao  invés  de  realizarmos  um  amplo  e  profundo  debate  sobre  os 
diversos teóricos que se dedicaram a analisar os regimes de acumulação 
(BENAKOUCHE,  1980;  LIPIETZ,  1991;  BRAGA,  1996,  HARVEY,  2008 
etc.)  e  o  desenvolvimento  capitalista  (ROSTOW,  1974;  SWEEZY,  1982 
etc.)  optamos  por  adotar  a  concepção  e  definição  de  regime  de 
acumulação  desenvolvida  pelo  sociólogo  Nildo  Viana  em  sua  obra  O 
capitalismo na era da acumulação integral (2009) e analisarmos nosso objeto 
de  estudo  a  partir  desse  referencial  teórico.  Isto,  no  entanto,  não  nos 
impossibilita de ora ou outra, de acordo com as necessidades de nossa 
análise,  recorrer  a  esse  ou  aquele  teórico  com  o  intuito  de  enriquecer 
nosso  trabalho  a  partir  das  suas  diversas  contribuições,  assim  como 
debater e discordar, quando necessário, dos mesmos.  
Karl  Marx  ao  analisar  a  história  da  humanidade  com  o  intuito  de 
compreender  o  capitalismo  constatou  que  a  mesma  é  marcada  pela 
sucessão  dos  modos  de  produção.  A  superação  de  um  modo  de 
produção  significa  uma  ruptura  histórica  profunda  e  o  surgimento  de 
sociedades  radicalmente  diferentes,  oriundas  de  um  processo 
revolucionário.  Essa  constatação  e  sua  teorização  foram  realizadas  por 
Marx  e  está  contida  no  “Prefácio  à  Crítica  da  Economia  Política”,  que 
assim afirma:  
 
(...)  Em  uma  certa  etapa  de  seu  desenvolvimento,  as  forças  produtivas 
materiais  da  sociedade  entram  em  contradição  com  as  relações  de  produção 
existentes ou, o que nada mais é que a sua expressão jurídica, com as relações 
de  propriedade  dentro  das  quais  aquelas  até  então  tinham  se  movido.  De 
formas  de  desenvolvimento  das  forças  produtivas  essas  relações  se 
transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. 
Com  a  transformação  da  base  econômica,  toda  a  enorme  superestrutura  se 
transforma com maior ou menor rapidez [...] (1983, p. 24‐25).  
 
Ao  contrário  do  que  ocorre  em  um  contexto  de  revolução  social,  a 
mudança de um regime de acumulação para outro não representa uma 
transformação,  mas  tão  somente  mudanças  no  interior  de  um  mesmo 
modo de produção, portanto o que ocorre é 
 

71 
uma  mudança  no  interior  de  uma  permanência,  o  que  significa  que,  em  sentido 
amplo, não há ruptura e nem radicalidade no processo de mudança. A sucessão de 
regimes de acumulação explicita a manutenção do modo de produção capitalista e 
de seus elementos característicos fundamentais, e a substituição de um regime por 
outro  é  marcada,  no  fundo,  pela  realização  do  objetivo  de  manter  as  relações  de 
produção capitalistas e pelo aprofundamento de tendências já existentes no regime 
anterior, seguindo a dinâmica da acumulação de capital (VIANA, 2009, p. 15). 
 
O  termo  “regime  de  acumulação”  não  é  um  termo  antigo  e  muito 
menos  consensual  entre  os  diversos  teóricos  que  o  utilizaram  em  suas 
análises  sobre  o  desenvolvimento  do  capitalismo.  No  entanto,  para  os 
propósitos  desse  trabalho,  utilizaremos  a  definição  e  sequência  de 
regimes de acumulação teorizada por Viana (2003; 2009). Para ele,  
 
um  regime  de  acumulação  é  um  determinado  estágio  do  desenvolvimento 
capitalista,  marcado  por  determinada  forma  de  organização  do  trabalho 
(processo de valorização), determinada forma estatal e determinada forma de 
exploração internacional (2009, p. 30). 
 
Em linhas gerais essa é a compreensão que o autor tem de um regime 
de  acumulação.  Segundo  ele,  o  que  é  fundamental  na  compreensão  de 
um regime de acumulação é a existência da luta de classes nas suas três 
formas  constituintes.  A  luta  de  classes  permanece  “relativamente 
estável”,  pois  apesar  da  vitória  parcial  da  burguesia,  a  luta  histórica  do 
proletariado, nos diversos regimes de acumulação, 
 
não permite a intensificação da exploração e mantêm avanços e recuos dentro 
de  uma  relação  relativamente  estável  e  estabelecida  [...]  Se  não  houvesse  a 
resistência operária e de outras classes sociais, a exploração seria intensificada 
continuamente (VIANA, 2009, p. 30). 
 
A  resistência  operária,  portanto,  impossibilita  que  a  exploração 
adquira  um  caráter  mais  violento  do  que  o  já  existente,  pois,  do 
contrário,  a  intensificação  e  precarização  do  trabalho  atingiria  níveis 
ainda  mais  insuportáveis  para  a  integridade  física  e  psíquica  do 
proletariado.  
Deste  modo,  o  regime  de  acumulação  é  a  forma  que  o  capitalismo 
adquire,  em  momentos históricos  específicos,  para  promover  sua  meta 
essencial:  a  produção  de  mais‐valor.  A  maior  parte  do  mais‐valor 
convertido  em  capital  é  utilizado  pela  burguesia  para  expansão 

72 
ampliada  dos  seus  lucros  e  isso  desdobra‐se  em  acumulação, 
concentração  e  centralização  de  capital.  Na  busca  permanente  pela 
ampliação  da  acumulação,  os  capitalistas  expandem  seus  capitais 
mundialmente e isso os leva a programarem uma forma de exploração 
internacional.  Nesse  processo  o  estado  age  visando  a  garantir  a 
satisfação  de  tais  necessidades  a  partir  de  sua  regularização.  Aqui  se 
encontram  os  três  elementos  constituintes  de  um  regime  de 
acumulação. 
É importante destacar que além dos desdobramentos acima citados, 
o  processo  de  acumulação  gera  outros  desdobramentos  importantes  e 
essenciais  para  a  sua  compreensão.  A  acumulação  capitalista,  como  já 
foi  mencionada,  é  realizada  através  de  uma  relação  entre  burguesia  e 
proletariado  e  essa  relação  é  fundamentalmente  marcada  pelo  conflito 
de classes.  
A  burguesia  devido  aos  seus  interesses  de  classe  deve, 
necessariamente,  desenvolver  formas  cada  vez  mais  eficazes  para  a 
extração de mais‐valor, ou seja, para a exploração do trabalho. Por outro 
lado, o proletariado se vê coagido a lutar contra o capital uma vez que 
seu  ser‐de‐classe,  como  já  dizia  Marx,  é  essencialmente  aquele  que 
quanto mais eficaz torna seu trabalho, quanto mais riqueza é capaz de 
produzir, mais miserável se encontra e, por conta disso, se vê obrigado 
a desenvolver formas de luta que se afirmem na busca pela destruição 
do capitalismo.  
É  na  luta  de  classes  que  o  proletariado  acaba  por  criar  dificuldades 
para  a  acumulação  de  capital  e,  em  determinados  momentos,  sua  luta 
radicaliza e tende a apontar para a superação da sociedade capitalista. Por 
mais  que  a  ideologia  burguesa  e  de  suas  classes  auxiliares  tente 
desacreditar essa possibilidade histórica, não há como negar essa tendência 
na  luta  de  classes.  Tanto  assim  que  a  burguesia  e  o  estado  estão  sempre 
procurando  meios  de  atenuar  os  efeitos  das  crises  que  ameaçam  a 
continuidade  do  processo  de  reprodução  do  capital  em  escala  ampliada. 
Nesses  períodos  de  enfraquecimento  é  que  um  novo  regime  de 
acumulação tende a aparecer em substituição ao antigo. Porém, isso não é 
uma lei natural e o que se pode perceber é que a dificuldade em acumular 
capital, a cada novo regime, é crescente.  
É certo que a tese aqui defendida aponta para a constatação de que a 
“história  do  capitalismo  é  a  história  da  sucessão  dos  regimes  de 

73 
acumulação”,  porém  tal  tese  não  coisifica  o  capitalismo  e  sua 
capacidade de se recuperar das crises, pelo contrário, ela contribui para 
pensar  na  existência  de  “limites  humanos  e  naturais  que  tornam  o 
capitalismo  um  período  transitório  na  história  da  humanidade.  A 
própria dinâmica do capitalismo, revelada na produção de mais‐valor, 
expressa sua finitude” (VIANA, 2009, p. 32). 
De acordo com Viana, a sucessão dos regimes de acumulação e suas 
características  centrais  existentes  na  Europa  ocidental  e  nos  demais 
países imperialistas (após o regime de acumulação primitiva de capital) 
são:  a)  regime  de  acumulação  extensivo  –  da  revolução  industrial  até  o 
final  do  século  XIX  ‐,  marcado  pela  extração  de  mais‐valor  absoluto, 
pelo  domínio  do  Estado  liberal  e  do  neocolonialismo;  b)  regime  de 
acumulação  intensivo  –  do  final  do  século  XIX  até  a  segunda  guerra 
mundial ‐, caracterizava‐se pela busca de aumento da extração de mais‐
valor relativo, através do taylorismo, pelo Estado liberal‐democrático e 
pelo  imperialismo  financeiro;  c)  regime  de  acumulação  intensivo‐
extensivo ‐ do pós‐segunda guerra mundial até aproximadamente 1980 ‐, 
através  da  organização  fordista  do  trabalho  procurou  ampliar  a 
extração  de  mais‐valor  nos  países  imperialistas  e  a  extração  de  mais‐
valor  absoluto  dos  países  subordinados,  sendo  complementado  pelo 
“Estado  do  Bem‐Estar  Social”  e  pela  expansão  oligopolista 
transnacional e c) o regime de acumulação integral ‐ do final do século XX 
até os dias atuais – que busca ampliar concomitantemente a extração de 
mais‐valor  relativo  e  mais‐valor  absoluto  via  “reestruturação 
produtiva”,  tendo  o  Estado  neoliberal  como  agente  garantidor  desse 
processo e o neoimperialismo. 

A teoria do regime de acumulação integral


 
O  regime  de  acumulação  integral  é  fruto  da  resposta  capitalista  à 
crise do final da década de 1960 e início da década de 1970, provocada 
pela tendência declinante da taxa de lucro e marcada pela radicalização 
das lutas estudantis e operárias na França, Alemanha e Itália, bem como 
pelo movimento de contracultura e pelo movimento pacifista nos EUA 
que foram responsáveis por promover a primeira rachadura no regime 
de  acumulação  intensivo‐extensivo  que,  já  no  início  da  década  de  80, 
entra em colapso (VIANA, 2003, 2009; HARVEY, 2008).  

74 
Com a contínua queda na taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 
1970, o capitalismo precisou encontrar soluções para a crise e isso levou 
ao  engendramento  de  um  novo  regime  de  acumulação  marcado  pelo 
aumento da exploração interna nos países imperialistas e, também, nos 
países  subordinados,  tanto  no  aumento  da  extração  de  mais‐valor 
relativo  (avanço  tecnológico  na  produção,  reestruturação  produtiva 
etc.),  assim  como  na  extração  de  mais‐valor  absoluto  (expansão  das 
jornadas de trabalho via hora‐extras). Ou seja, tal regime se afirmará em 
um processo de acumulação de capital integral. 
O regime de acumulação extensivo que prevaleceu desde a revolução 
industrial  até  fins  do  século  XIX  foi  marcado  pelo  predomínio  da 
extração de mais‐valor absoluto15, presente nas prolongadas jornadas de 
trabalho,  na  exploração  de  trabalho  infantil  e  feminino,  nas  péssimas 
condições de trabalho e moradia e nos míseros salários. Em resposta a 
essas  péssimas  condições  de  trabalho  e  vida,  o  proletariado  radicaliza 
suas  lutas  multisseculares  e  pressiona  a  burguesia  a  fazer  algumas 
concessões. Tais concessões resultam, principalmente, em uma drástica 
redução das jornadas de trabalho (MARX, 1985).  
O resultado negativo disso para o processo de acumulação é visível, 
pois a redução da jornada de trabalho significa a redução da extração de 
mais‐valor absoluto e, consequentemente, a burguesia se vê obrigada a 
reagir.  A  partir  desse  momento  é  que  a  classe  capitalista  sente 
necessidade de elaborar de forma consciente e racionalizada uma forma 
de se combater a tendência declinante da taxa de lucro. Destarte, 
 
a  obra  de  Friedrich  Taylor  representa  a  tentativa  de  realizar  um  aumento  da 
produtividade,  ou  seja,  de  extração  de  mais‐valor,  através  da  organização  do 

15 “A mais‐valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais‐
valia  absoluta;  a  mais‐valia  que,  ao  contrário,  decorre  da  redução  do  tempo  de 
trabalho  e  da  correspondente  mudança  da  proporção  entre  os  dois  componentes  da 
jornada  de  trabalho  chamo  de  mais‐valia  relativa”  (MARX,  1985,  p.  251);  “O 
desenvolvimento da força produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista, tem 
por finalidade encurtar a  parte da jornada de trabalho durante a qual o trabalhador 
tem de trabalhar para si mesmo, justamente para prolongar a outra parte da jornada 
de  trabalho  durante  a  qual  pode  trabalhar  gratuitamente  para  o  capitalista.  Até  que 
ponto pode‐se alcançar ainda esse resultado sem baratear as mercadorias, mostrar‐se‐
á nos métodos particulares de produção da mais‐valia relativa (...)” (MARX, 1985, p. 
255). 

75 
trabalho.  A  chamada  ‘organização  científica  do  trabalho’,  ou  simplesmente 
taylorismo,  é  o  primeiro  passo  para  se  conseguir  combater  a  tendência  da 
queda da taxa de lucro médio (VIANA, 2009, p. 65). 
 
A  proposta  de  Taylor  visa  aumentar  a  produtividade  do  trabalho 
mesmo  com  a  redução  das  jornadas  e  para  isso  foi  necessário  uma 
intensificação  do  controle  e  vigilância  sobre  os  operários  a  partir  de 
diversas  artimanhas,  entre  as  quais  podemos  destacar:  produção 
rigidamente  cronometrada,  divisão  entre  elaboração  e  execução  de 
tarefas,  premiação  individual  por  produtividade,  formação  de 
especialistas para a gerência etc. (TAYLOR, 1987). 
Como  todo  processo  de  produção  de  mercadorias  é  marcado  pelo 
confronto entre as classes antagônicas, é claro que a ação de uma gera a 
reação da outra, assim, o proletariado tendeu a reagir ao taylorismo. O 
próprio  Taylor  afirma  em  sua  obra  que  por  diversas  vezes  recebeu 
ameaça  de  morte.  Desse  modo,  constata‐se  que  o  taylorismo 
representou  a  tentativa  da  burguesia  ampliar  a  extração  de  mais‐valor 
relativo,  recorrendo  à  racionalização  do  processo  produtivo  num 
período  histórico  em  que  o  desenvolvimento  tecnológico  é  incipiente. 
Assim  como  Viana,  reconhecemos  que  o  taylorismo  fornecerá  a  base 
para  as  demais  formas  de  organização  do  trabalho  em  períodos 
posteriores  e  não  visualizamos  nenhuma  mudança  significativa  nessas 
demais formas, pois 
 
as  alterações  implantadas  pelo  fordismo,  por  exemplo,  referem‐se  a  questões 
superficiais  e  são  provocadas  pelo  desenvolvimento  histórico  do  capitalismo. 
O contexto histórico do fordismo remete ao aceleramento de desenvolvimento 
tecnológico em relação ao período anterior (VIANA, 2009, p. 67). 
 
Mesmo  entre  o  toyotismo  e  as  formas  de  organização  do  trabalho 
que o antecederam não há nenhuma ruptura, pois o toyotismo segue a 
mesma  lógica  dos  anteriores  e  as  diferenças  existentes  são  meramente 
secundárias. A organização do trabalho arquitetada por Taylor pode ser 
concebida da seguinte forma: 
 
caracteriza‐se  por  um  processo  de  controle  da  força  de  trabalho  realizado 
segundo uma forma “racionalizada”, ou seja, calculada, medida, normatizada, 
objetivando  o  aumento  da  produtividade,  isto  é,  de  extração  de  mais‐valor 
relativo,  e  isto  pressupõe  a  “gerência  científica”,  o  que  significa  não  só  a 

76 
aplicação  do  conhecimento  técnico‐científico  ao  processo  de  produção, 
conhecimento este extraído em parte do próprio saber operário, como também 
a  existência  dos  gerentes,  ou  seja,  conjunto  de  especialistas  encarregados  em 
planejar  a  execução  das  tarefas.  Em  outras  palavras,  o  taylorismo  pressupõe 
uma camada de burocratas: a burocracia empresarial. O fordismo e as demais 
formas de organização do trabalho também possuem a mesma razão de ser e 
por isso não são nada mais do que extensões e adaptações do sistema Taylor às 
necessidades históricas de determinado estágio de desenvolvimento do modo 
de produção capitalista (VIANA, 2009, p. 68).  
 
A diferença essencial entre fordismo e toyotismo consiste no fato de 
que o primeiro era marcado pela rigidez enquanto o segundo funda‐se 
na sua capacidade flexível. Mas isto não é suficiente para contradizer as 
características  fundamentais  que  estão  presentes  no  fordismo.  No 
fundo,  a  grande  mudança  apresentada  pelo  toyotismo  está  no  fato  da 
sua produção se encontrar submetida à demanda do mercado, enquanto 
no fordismo a produção era uma produção em massa.  
 
Na  verdade  o  que  ocorre  é  que  a  produção  estandardizada  do  fordismo  se  vê 
substituída por uma produção personalizada , ou seja, a produção em massa ou 
em série de um mesmo produto é substituída por uma produção variada. Isso 
não  impede  a  produção  em  massa,  pois  apenas  personaliza  os  produtos  por 
cotas, ou seja, a produção em massa deixa de ser de apenas um produto para ser 
de vários produtos (VIANA, 2009, p. 68‐69). 
 
Uma  reflexão  importante  levantada  por  Viana  na  sua  obra  O 
capitalismo  na  era  da  acumulação  integral  (2009)  trata  da  sua  crítica  à 
expressão “flexível” e/ou “flexibilização”. Para ele, o conceito “flexível” 
não  expressa  a  realidade  concreta  a  qual  ele  propõe  expressar. 
Primeiramente,  tal  conceito  possui  inúmeros  significados  nos 
dicionários (“aptidão para variadas coisas ou aplicação” ou “submissão 
e docilidade”, por exemplo). Esse duplo sentido da palavra é suficiente 
para percebermos que sua utilização também revela ambiguidades tais 
como  falar  em  “especialização  flexível”,  “acumulação  flexível”  e 
“flexibilização  dos  trabalhadores”.  O  termo  flexibilização  “se  refere  na 
maioria dos casos, a aptidão múltipla” (VIANA, 2009, p. 70). 
Não  seria  o  caso  de  questionarmos  se  ao  contrário  do  que  é 
comumente  afirmado  e  aceito,  ou  seja,  da  existência  de  uma 
“flexibilização” do aparato produtivo e dos trabalhadores, na verdade o 
que existe não seria uma inflexibilidade, pois tanto o aparato produtivo 

77 
quanto  os  trabalhadores  são  submetidos  “inexoravelmente”  e 
“implacavelmente”  ao  objetivo  de  aumentar  a  extração  de  mais‐valor 
relativo? (VIANA, 2009). 
Segundo  Viana,  várias  podem  ser  as  razões  que  explicam  esta 
confusão  na  linguagem  e  uma  das  principais  apontam  para  a  carência 
de uma teoria sobre a atual fase do capitalismo mundial e das formas de 
organização  do  trabalho  assumidas  na  contemporaneidade.  Mas,  em 
outros  casos  essa  confusão  revela  um  discurso  ideológico  que  através 
da suavização com as palavras acaba por facilitar que um véu nebuloso 
desça  e  ofusque  a  possibilidade  de  uma  consciência  correta  da 
realidade.  Nesse  sentido,  portanto,  percebe  o  quanto  o  discurso  da 
“flexibilização” serve aos interesses das classes capitalistas uma vez que 
a  existência  de  trabalhadores  moldáveis  e  mercados  flexíveis 
contribuem para essas novas exigências da acumulação integral. Já para 
o  proletariado  tal  “flexibilização”  representa  exatamente  uma 
exploração integral. 
Para  quem  conhece  o  rigor  teórico‐metodológico  presente  no 
pensamento  desse  autor,  e  que  pode  ser  compreendido  de  forma 
aprofundada  nas  suas  principais  obras  que  levantam  preocupações 
desse  cunho  (A  consciência  da  História  –  ensaios  sobre  o  materialismo 
histórico‐dialético,  2007;  Escritos  metodológicos  de  Marx,  2007a),  logo 
perceberá  que  essa  crítica  ao  termo  “flexibilização”  não  é  secundária, 
pois se existe apenas uma realidade (nesse caso a acumulação capitalista 
na  contemporaneidade),  o  conceito  que  busca  expressá‐la  não  deveria 
ser equivalente a ela? Para Viana, assim como para nós, a resposta é só 
uma:  sim,  todo  conceito  deve  ser  expressão  da  realidade,  pois  “a 
expressão  mais  adequada  a  qualquer  relação  ou  fenômeno  social  deve 
ser compatível com seu ‘ser’ que expressa” (VIANA, 2009, p. 70). Aqui, 
portanto,  reside  o  fundamento  da  sua  teoria  do  regime  de  acumulação 
integral, isto é, o regime de acumulação dominante a partir da década de 
1980 se baseia numa acumulação capitalista integral. Mas, deixemos que 
o próprio autor apresente sua tese: 
 
no caso da acumulação, o que se busca é concretizar uma acumulação integral, 
simultaneamente  intensiva  e  extensiva  através  da  extensão  do  processo  de 
mercantilização  das  relações  sociais  e  da  busca  de  ampliação  do  mercado 
consumidor,  mesmo  que  esta  busca  se  caracterize,  em  parte,  pela  produção 
personalizada,  e  também  pelo  aumento  da  intensificação  da  exploração  da 

78 
força  de  trabalho  através  do  aumento  de  extração  de  mais‐valor  relativo  e 
absoluto.  No  caso  da  especialização  ou  do  que  alguns  chamam  de  pluri‐
especialização(Coriat), trata‐se de uma especialização ampliada, onde ao invés do 
trabalhador  se  dedicar  a  apenas  uma  atividade  passa  a  se  dedicar  a  várias, 
embora  se  mantenha  afastado  do  controle  do  processo  de  trabalho,  o  que 
significa  especialização  no  processo  de  execução,  e  continue  não  executando 
certas funções práticas que ficam a cargo de outros trabalhadores. No caso dos 
trabalhadores,  o  que  ocorre  é  uma  intensificação  da  exploração  com  a  retirada 
de  seus  direitos  já  conquistados  e  da  formação  de  um  mercado  de  trabalho 
inflexível,  onde  os  trabalhadores  se  submetem  a  subcontratação,  ao 
desemprego,  etc.  No  caso  da  subcontratação  (bem  como  no  caso  das  horas 
extras),  o  que  se  vê  é  um  aumento  disfarçado  da  jornada  de  trabalho,  o  que 
significa  aumento  de  extração  de  mais‐valor  absoluto.  Aliás,  mais‐valor 
relativo  e  mais‐valor  absoluto  andam  juntos  no  período  de  acumulação 
integral,  embora  isto  seja  constante  no  capitalismo,  mas  agora  assume 
proporções  intensas,  tal  como  não  ocorria  há  muito  tempo  na  história  do 
capitalismo (VIANA, 2009, p. 70‐71). 
 
Como já foi dito, não visualizamos nenhuma diferença significativa 
entre taylorismo e toyotismo, pois a suposta “flexibilização” da empresa 
com  o  objetivo  de  subordinar‐se  à  demanda  do  mercado  “se  revela 
numa mudança no quanto se produzir, e não no que e como se produzir. 
Pensar o contrário só seria possível imaginando que o consumidor iria 
idealizar  um  produto  ainda  inexistente  e  depois  iria  solicitá‐lo  à 
empresa” (VIANA, 2009, p. 72).A produção personalizada representa a 
forma  que  as  empresas  encontraram  para  ampliar  e  conquistar  o 
mercado  consumidor  através  de  suas  agendas  de  publicidade  e 
marketing,  pois  “para  manter  a  reprodução  ampliada  do  capital  é 
preciso garantir a reprodução ampliada do mercado consumidor, e isto 
implica  produzir  necessidades  fabricadas,  já  que  estas  realizam  esta 
ampliação” (VIANA, 2009, p. 72). 
Em  síntese  o  toyotismo  representa  uma  adaptação  do  taylorismo  à 
nova  fase  do  capitalismo,  no  período  de  vigência  do  regime  de 
acumulação  integral,  expressando  uma  ofensiva  do  capital  contra  a 
tendência  declinante  da  taxa  de  lucro,  e  isto  tem  representado  para  a 
classe  trabalhadora  um  processo  de  exploração  integral  visto  que,  no 
processo  de  produção,  e  derivado  da  sua  condição  atual,  tem 
promovido uma extensão das jornadas de trabalho, uma intensificação 
alucinante  do  ritmo  de  trabalho,  ampliação  da  psicopatologia  do 
trabalho  etc.  Isso  para  mencionarmos  apenas  as  consequências  diretas 

79 
da produção de mais‐valor, fora as demais consequências, tais como, o 
crescente  processo  de  lumpemproletarização  (comprovado  com  o 
crescimento  generalizado  do  desemprego  em  escala  global  e  de  um 
empobrecimento  de  parcela  crescente  da  população  mundial)  e  a 
criminalização  de  suas  vítimas  pelo  Estado  Penal  etc.  (WACQUANT, 
2001; BRAGA, 2010; 2013).  
Todavia,  a  acumulação  integral  não  soluciona  os  problemas  do 
capitalismo, pois se por um lado ela combate a tendência declinante da 
taxa  de  lucro,  por  outro  lado,  aumenta  a  exploração  e  promove  um 
amplo  processo  de  lumpemproletarização.  Assim,  tal  regime  de 
acumulação tende a possibilitar o crescimento da radicalização das lutas 
sociais  que  acaba  colaborando  para  o  enfraquecimento  da  hegemonia 
burguesa  na  sociedade  civil.  “Nesse  sentido,  a  acumulação  integral  é 
contraditória e só se mantém enquanto perdurar a hegemonia burguesa, 
com  toda  a  sua  fragilidade  em  períodos  como  este”  (VIANA,  2009,  p. 
76). 
Antes  de  iniciarmos  a  discussão  sobre  a  emergência  do  Estado 
neoliberal  e  sua  dinâmica,  gostaríamos  de  apresentar  brevemente  a 
singularidade da análise de Viana sobre o papel do Estado como agente 
regularizador das relações sociais na sociedade capitalista. Para Viana, é 
emergencial  a  construção  de  um  conceito  adequado  que  dê  conta  de 
expressar  teoricamente  a  complexa  relação  que  existe  entre  modo  de 
produção  e  Estado.  Tradicionalmente,  a  corrente  “marxista”  adota  a 
metáfora  do  “edifício  social”  –  infra‐estrutura  e  superestrutura  –  para 
analisar  essa  relação,  no  entanto,  tal  metáfora  não  é  satisfatória,  pois 
segundo a perspectiva do materialismo histórico‐dialético tanto o termo 
infraestrutura  quanto  o  termo  superestrutura  não  consistem  em 
conceitos, ou seja, não expressam nenhuma realidade16.   

16  Karl  Marx  “utilizou  o  par  conceitual  infra‐estrutura  e  superestrutura,  ao  que  tudo 
indica,  apenas  uma  vez,  num  prefácio  que  ele  mesmo  qualificou  de  ‘resumo  geral’ 
que serviu de ‘fio condutor’ para suas pesquisas. Toda uma tradição posterior, auto‐
intitulada  ‘marxista’,  transformou  este  par  conceitual  em  ‘esquema  básico’  do 
‘materialismo histórico’. Coube a Karl Korsch, uma rara exceção, o mérito de romper 
com esse esquematismo. Ele afirmou que o materialismo histórico é um ‘instrumento 
heurístico’  e,  assim,  superou,  implicitamente,  a  tese  da  relação  esquemática  entre 
‘base’  e  ‘superestrutura’  (VIANA,  2007,  p.  69);  “Essa  tendência  de  transformação  da 
metáfora  ilustrativa  em  metáfora  normativa  é  reforçada  pela  não  elaboração  de  um 

80 
Em nossa análise adotamos o conceito de formas de regularização das 
relações  sociais17que  engloba,  assim  como  na  concepção  de  Marx,  o 
estado,  as  instituições  estatais  e  privadas,  as  normas  legais,  a 
sociabilidade,  as  ideologias  e  a  cultura  em  geral  etc.  que  procuram 
tornar regular, além da produção, as relações sociais oriundas do modo 
de produção capitalista. Nesse sentido, afirmamos que todo regime de 
acumulação vem acompanhado de determinadas formas de regularização 
das relações sociais e da produção que lhe são próprias. É a partir dessa 
compreensão  que  analisaremos  a  principal  forma  de  regularização  das 
relações  sociais  do  regime  de  acumulação  integral  que,  nesse  caso, 
consiste no Estado neoliberal. 
Um equívoco comumente cometido por vários autores que discutem 
o  neoliberalismo  consiste  em  confundir  a  emergência  da  ideologia 
neoliberal  com  a  emergência  do  próprio  Estado  neoliberal.  Em  1944 
surge  a  ideologia  neoliberal  com  a  obra  Os  caminhos  da  Servidão  de  F. 
Hayek,  no  entanto  a  forma  estatal  dominante  nesse  período  até 
aproximadamente  a  década  de  1980  é  o  Estado  do  “bem‐estar  social”, 
portanto,  ao  contrário  do  que  acreditam  determinados  autores 
(ANDERSON, 2000), não seria possível que o neoliberalismo enquanto 
forma  estatal  pudesse  ter  surgido  com  tal  obra,  nem  sequer  pode‐se 
afirmar  que  o  neoliberalismo  consistiu  meramente  na  aplicação  de  tal 
ideologia na prática. 
O  Estado  neoliberal,  que  emerge  a  partir  da  década  de  1980,  é 
resultado  de  um  “conjunto  de  transformações  no  modo  de  produção 
capitalista,  expressando  uma  alteração  no  seu  regime  de  acumulação” 
(VIANA,  2009).  Para  compreender  o  neoliberalismo  além  de  suas 
características  aparentes  é  preciso  inseri‐lo  na  totalidade  das  relações 

conceito que expresse o referente material da noção de superestrutura. A construção 
do  texto  de  Marx  deixa  claro  as  relações  existentes  entre  as  duas  noções:  elevação, 
constituição, correspondência, condicionamento, determinação, contradição, alteração 
etc.,  e  outras  no  interior  delas:  correspondência,  desenvolvimento,  contradição, 
transformação etc. Isto comprova a existência de uma relação concreta entre as duas 
noções,  mas  estas  não  podem  possuir  uma  relação  verdadeiramente  concreta, 
porquanto  não  são  conceitos  e  sim  noções  ou  constructos  que  não  manifestam 
nenhuma  realidade,  apenas  ilustram  uma  relação  entre  elementos  desta”  (VIANA, 
2007, p. 71). 
17 Sobre a teoria das formas de regularização das relações sociais Cf. (VIANA, 2007). 

81 
sociais,  analisar  sua  determinação  fundamental  no  atual  momento 
histórico,  o  desenvolvimento  capitalista  e  a  luta  de  classes  que  vêm  se 
desenvolvendo nas últimas décadas. Vale ressaltar que a luta de classes 
é a determinação fundamental das mudanças ocorridas nos regimes de 
acumulação e que a mesma está presente nas três partes constituintes de 
tais regimes. 
A  emergência  do  neoliberalismo  só  pode  ser  compreendida  se 
inserida nas transformações ocorridas a partir da década de 1960/70 nos 
países capitalistas imperialistas (EUA e algumas nações europeias). Na 
década  de  1950  surge  no  Japão  o  sistema  Toyota18,  isto  é,  a  forma  de 
organização  do  trabalho  necessária  para  combater  a  tendência 
declinante  da  taxa  de  lucro  e  promover  uma  nova  fase  de  valorização 
do capital. O processo baseado nessa forma de organização foi chamado 
de  “reestruturação  produtiva”  e  se  generalizou  mundialmente  nos 
países  capitalistas  imperialistas.  Com  isso  é  engendrado  um  novo 
regime de acumulação que exige outra formação estatal que regularize 
as novas necessidades do capital. Assim nasce o neoliberalismo. 
Uma questão nos parece instigante, pois para que um novo regime 
de acumulação possa emergir é necessário que o anterior entre em crise, 
portanto em que consiste essa crise, ou seja, qual o significado da crise 
do  regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo  para  a  emergência  do 
regime  de  acumulação  integral  e,  consequentemente,  do  Estado 
neoliberal? As décadas de 60 e 70 do século XX são marcadas por uma 
crise  do  regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo  derivada  da 
tendência declinante da taxa de lucro médio. Tal tendência foi expressa 
em  diversas  dificuldades  encontradas  para  a  reprodução  capitalista, 
pois 
 
o  sucesso  deste  regime  de  acumulação  dependia  do  alto  grau  de  exploração 
dos  trabalhadores  do  capitalismo  subordinado,  da  constante  reprodução 

18 “O sistema Toyota teve sua origem na necessidade particular em que se encontrava o 
Japão  de  produzir  pequenas  quantidades  de  numerosos  modelos  de  produtos;  em 
seguida  evoluiu  para  tornar‐se  um  verdadeiro  sistema  de  produção.  Dada  sua 
origem,  este  sistema  é  particularmente  bom  na  diversificação.  Enquanto,  o  sistema 
clássico  de  produção  de  massa  planificado  é  relativamente  refratário  à  mudança,  o 
sistema Toyota, ao contrário, revela‐se muito plástico; ele adapta‐se bem às condições 
de  diversificação  mais  difíceis.  É  porque  ele  foi  concebido  para  isso”  (OHNO  apud 
CORIAT, 1995, p. 30). 

82 
ampliada  do  mercado  consumidor  e  da  integração  da  classe  operária  no 
capitalismo  oligopolista  transnacional,  elemento  que  dependia  dos  dois 
anteriores. A partir do final da década de 60, estes três elementos encontraram 
dificuldades crescentes em se reproduzir (VIANA, 2003, p. 92). 
 
Juntamente  com  essas  dificuldades  passavam  a  crescer  as  ondas  de 
greves operárias, destaque para as francesas e italianas que atingiram grau 
elevadíssimo  de  radicalidade,  e  várias  tensões  sociais  derivadas  da 
organização e manifestação de diversos grupos, tais como o movimento de 
contracultura, o movimento hippie, o pacifismo, o movimento negro norte‐
americano, o movimento feminista, o movimento estudantil etc., além dos 
conflitos ocorridos nos países de capitalismo subordinado. Esse quadro de 
tensões sociais contribuiu para o agravamento da crise de acumulação do 
regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo  que  desde  a  década  de  60  se 
encontrava com sérias dificuldades.  
Outras  abordagens  acrescentam  a  esse  quadro  a  contribuição  que 
outros fatores deram para o agravamento da crise, entre eles destacam‐
se 
 
os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e da decisão 
árabe  de  embargar  as  exportações  de  petróleo  para  o  Ocidente  durante  a 
guerra  árabe‐israelense  de  1973.  Isso  mudou  o  custo  relativo  dos  insumos  de 
energia  de  maneira  dramática,  levando  todos  os  segmentos  da  economia  a 
buscarem  modos  de  economizar  energia  através  da  mudança  tecnológica  e 
organizacional [...] (HARVEY, 2008, p. 136). 
 
A  necessidade  da  burguesia  em  engendrar  um  novo  regime  de 
acumulação  vem  acompanhada  da  necessidade  de  uma  nova  forma 
estatal  que  o  torne  regular.  É  nesse  sentido,  portanto,  que  o  Estado 
neoliberal emerge, ou seja, como um complemento que atenda as novas 
necessidades do capital, pois o combate à tendência declinante da taxa 
de lucro passa pela criação de condições para o aumento da extração de 
mais‐valor e isto só seria possível ampliando a extração tanto em escala 
nacional  quanto  em  escala  internacional,  ou  seja,  ampliando  a 
exploração  de  forma  integral.  Desse  modo,  o  Estado  neoliberal 
complementa  o  processo  de  “reestruturação  produtiva”  criando  as 
condições institucionais indispensáveis para o aumento da acumulação 
capitalista. 

83 
A partir da década de 1980 diversos governos neoliberais chegaram 
ao poder. A eleição de Margareth Tatcher em 1979 na Inglaterra, Ronald 
Reagan em 1980 nos EUA e Helmuth Kohl em 1982 na Alemanha. Daí 
por  diante,  paulatinamente,  diversos  outros  países  adotaram  políticas 
neoliberais  e,  por  conseguinte,  surge  um  período  de  expansão  das 
privatizações,  de  desregulamentação  dos  mercados  e  das  relações  de 
trabalho,  ajustes  fiscais  e  monetários,  precarização  e  intensificação  do 
trabalho, expansão do lumpemproletariado e da repressão etc.  
Em  suma,  o  Estado  neoliberal  chega  para  varrer  os  direitos 
trabalhistas,  precarizar  as  condições  de  trabalho  possibilitando 
contratos  temporários,  terceirização,  subcontratação,  aumento  do 
desemprego,  exploração  do  trabalho  infantil,  cortes  drásticos  nas 
políticas  sociais,  aumento  da  insegurança  social  com  a  expansão  da 
criminalidade e da repressão pelo “Estado Penal” e um amplo processo 
de  empobrecimento  em  escala  global  via  processo  de 
lumpemproletarização.  Por  conseguinte,  o  Estado  neoliberal  cria  as 
condições “legais” para a construção de um mundo de “exploração sem 
limites”  (BOURDIEU,  1998),  uma  vez  que  substitui  o  Estado  do  Bem‐
Estar  Social  pelo  Estado  do  Bem‐Estar  Corporativo  (HARVEY,  1998a).  
Neste sentido, 
 
podemos  dizer  que  o  Estado  neoliberal  está  atingindo  seus  propósitos,  pois 
vem contribuindo para o aumento da exploração e recuperação da acumulação 
capitalista, tanto a nível nacional quanto a nível internacional. Podemos dizer, 
resumidamente, que o neoliberalismo é uma nova forma estatal que surge nos 
anos  80,  sendo  produto  do  regime  de  acumulação  integral,  e  que  busca 
diminuir  os  gastos  estatais,  desregulamentar  o  mercado,  subsidiar  o  capital 
oligopolista  e  aumentar  a  política  repressiva,  facilitando  assim  o 
desenvolvimento  da  reestruturação  produtiva  e  da  instauração  de  novas 
relações internacionais. As consequências do neoliberalismo são o aumento da 
pobreza e miséria, da desigualdade, da criminalidade e dos conflitos sociais. O 
mundo neoliberal é um mundo marcado por contradições crescentes (VIANA, 
2009, p. 91). 
 
Todo  processo  de  valorização  expressa  uma  correlação  de  forças 
entre a burguesia e o proletariado em determinado momento histórico, 
isto  é,  expressa  certo  estágio  da  luta  de  classes.  É  claro  que  tal  luta  de 
classes tem apontado, até então, para a preeminência da dominação da 
burguesia,  pois  caso  contrário,  as  relações  de  produção  capitalistas 

84 
estariam  abolidas  ou  prestes  a  serem  abolidas.  Todavia,  tal 
preeminência  não  é  absoluta,  pois  a  luta  cotidiana  e  espontânea  do 
proletariado  tende  a  criar  obstáculos  e  recuos  para  o  desenvolvimento 
de  uma  exploração  cada  vez  maior  no  processo  de  acumulação.  Dessa 
forma,  a  luta  de  classes  no  capitalismo  se  apresenta  relativamente 
estável  já  que  a  ofensiva  operária,  apesar  de  vários  momentos  de 
radicalidade na história, não conseguiu, até então, abolir as relações de 
produção capitalistas.  
As  formas  estatais  que  a  sociedade  capitalista  conheceu  também 
expressa  uma  correlação  de  forças  entre  as  duas  classes  fundamentais 
do  capitalismo,  assim  como  de  outras  classes  sociais,  em  períodos 
históricos  específicos.  Isso  pode  ser  percebido,  por  exemplo,  nas 
conquistas  operárias  e  camponesas  que  possibilitaram  alterações  nas 
legislações  capitalistas,  criação  de  leis  trabalhistas,  indenizações  etc. 
Mas  nesse  caso  a  luta  de  classes  também  se  expressa  de  forma 
relativamente  estável.  Do  mesmo  modo,  a  exploração  internacional  se 
apresenta  como  expressão  da  luta  de  classes  mediada  pelos  Estados 
Nacionais.  Ela  aponta,  em  cada  estado‐nação,  a  correlação  de  forças 
entre  as  classes  sociais  internas  que  influenciam  as  relações 
internacionais  e  define  determinadas  características  de  uma  nação 
nessas relações (VIANA, 2009). 
 
O  regime  de  acumulação,  portanto,  é  a  forma  que  o  capitalismo  assume 
durante  o  seu  desenvolvimento.  O  desenvolvimento  capitalista,  no  entanto, 
possui  uma  tendência,  determinada  em  sua  própria  essência:  a  produção  de 
mais‐valor.  O  desdobramento  da  produção  de  mais‐valor  é  a  acumulação  de 
capital  e  este,  por  sua  vez,  gera  a  reprodução  ampliada  e  a  centralização  e 
concentração  do  capital,  gerando  a  expansão  mundial  do  capitalismo  e  a 
exploração  internacional,  ao  lado  da  ação  estatal  no  sentido  de  garantir  todo 
este processo (VIANA, 2009, p. 31). 
 
Antes  de  tecermos  nossos  últimos  comentários  sobre  a  teoria  do 
regime  de  acumulação  integral,  gostaríamos  de  mencionar  que  sua 
forma  composta  pela  exploração  internacional,  ou  seja,  o 
neoimperialismo,  será  analisada  no  próximo  capítulo  quando 
destacaremos  a  condição  brasileira  de  capitalismo  subordinado  aos 
interesses das potências neoimperialistas. 

85 
 As tensões sociais derivadas da exploração capitalista promovem a 
eclosão de diversas lutas e resistências das classes operárias e de outras 
classes  sociais  que  ameaçam  a  existência  do  modo  de  produção 
capitalista  e  contribui  para  o  agravamento  da  crise  social,  pois  diante 
desse perigo as classes capitalistas e suas classes auxiliares (burocracia 
estatal e partidária, por exemplo) são coagidas a recuarem e realizarem 
diversas  concessões  que  acabam  por  emperrar  o  desenvolvimento  do 
capital em busca de sua meta essencial que é a extração, cada vez maior, 
de  mais‐valor.  Além  disso,  existe  a  tendência  geral  e  espontânea  da 
acumulação capitalista de gerar o declínio da taxa de lucro médio, que, 
por  sua  vez,  obriga  a  classe  capitalista  a  ampliar  a  exploração  com  o 
intuito de combater essa queda. 
As  crises  capitalistas  são  resultados  da  radicalidade  desses  dois 
desdobramentos que se reforçam mutuamente, pois 
 
as conquistas do proletariado interferem na extração de mais‐valor, reforçando 
a  tendência  de  queda  da  taxa  de  lucro  e  esta  tendência,  realizando‐se  e 
provocando  a  ação  reativa  da  classe  burguesa  no  sentido  de  aumentar  a 
exploração para compensar tal queda, reforça o descontentamento e a luta do 
proletariado.  Assim,  um  tende  a  reforçar  o  outro  e  proporcionar  uma  crise. 
Esta  crise  ou  gera  um  processo  revolucionário  e  abolição  do  capitalismo  ou 
então  proporciona  um  mudança  no  interior  do  capitalismo,  isto  é,  uma 
mudança no regime de acumulação (VIANA, 2009, p. 31‐32). 
 
Os  regimes  de  acumulação,  portanto,  são  formas  assumidas  pelo 
desenvolvimento  capitalista  e  que  expressam  as  configurações 
derivadas da luta de classes em determinado contexto histórico e que se 
configuram  em  formas  específicas  de  processo  de  valorização  do 
capital,  formas  estatais  e  determinadas  relações  internacionais.  Esses 
são  seus  principais  elementos  definidores.  No  entanto,  a  expressão  da 
luta de classes não se resume nessas formas, uma vez que outras esferas 
como  a  cultural,  ideológica,  científica,  cotidiana  etc.,  também 
caracterizam relações, valores e perspectivas de classes antagônicas que 
são  próprias  dessa  atual  configuração  do  capitalismo  na  era  da 
acumulação integral. 
É  importante  destacar  que  apesar  da  história  do  capitalismo  ser 
marcada  pela  sucessão  dos  regimes  de  acumulação,  isto  não  deve  nos 
levar  a  crer  que  o  modo  de  produção  capitalista  tende  a  solucionar 

86 
infinitamente  os  problemas  derivados  de  sua  própria  dinâmica,  pois  o 
que se percebe é que a cada novo regime de acumulação a dificuldade 
em promover a extração de mais‐valor, combater a tendência declinante 
da  taxa  de  lucro  e  reprimir  as  crescentes  lutas  sociais  e  sua  disposição 
cada  vez  maior  em  se  radicalizar  se  torna  mais  difícil.  A  cada  crise  de 
um regime de acumulação a possibilidade de uma transformação social 
se abre e mesmo essa não ocorrendo e um novo regime de acumulação 
surgindo, o processo de exploração e as dificuldades de reprodução do 
capitalismo se tornam mais complicadas (VIANA, 2009).  

Expansão e criminalização do lumpemproletariado nos EUA.


 
Como já vimos toda forma estatal expressa determinada correlação 
de  forças  na  luta  de  classes.  O  neoliberalismo  é  expressão  de  uma 
violenta  ofensiva  do  capital  contra  o  proletariado  e  outras  classes 
exploradas e suas conquistas sociais históricas, visando proporcionar a 
retomada da acumulação capitalista. Dessa maneira, o Estado neoliberal 
se  apresenta  como  um  complemento  de  toda  essa  mudança  estrutural, 
necessária para a emergência do novo regime de acumulação, atuando 
no campo da regularização das novas relações sociais imprescindíveis à 
efetivação  da  acumulação  integral  de  capital  e,  consequentemente,  da 
restauração do poder de classe da burguesia.  
Com a vitória de Ronald Reagan à presidência dos Estados Unidos 
em  1980,  inicia‐se  a  era  da  liberalização  econômica,  da  nova 
regulamentação dos mercados e das relações trabalhistas, dos cortes de 
impostos para as corporações capitalistas, cortes orçamentários públicos 
e  dos  ataques  à  classe  operária  e  a  outras  classes  exploradas  em  geral. 
Um caso exemplar dessa nova ofensiva do capital sobre o trabalho nos 
Estados  Unidos  pode  ser  percebida  no  duro  golpe  aplicado  contra  os 
sindicatos  dos  controladores  de  vôo  (PATCO)  no  ano  de  1981  e  do 
impacto  negativo  que  os  salários  sofreriam  a  partir  desse  ano.  De 
acordo com Harvey, a derrota desse sindicato para Reagan, na greve de 
1981, marcou 
 
um  ataque  generalizado  aos  poderes  do  trabalho  organizado  no  próprio 
momento  em  que  a  recessão  inspirada  em  Volcker  produzia  altas  taxas  de 
desemprego  (de  ao  menos  10%)  [...]  O  efeito  global  sobre  a  condição  do 
trabalho foi dramático – talvez melhor captado pelo fato de o salário mínimo 

87 
federal,  que  era  paritário  ao  nível  de  pobreza  em  1980,  ter  caído  para  30% 
abaixo  desse  nível  por  volta  de  1990.  Iniciou‐se  assim,  com  vigor,  o  longo 
declínio sobre os níveis dos salários reais (2008a, p. 34). 
 
Para  melhor  compreendermos  as  lutas  de  classes  como  o  motor 
propulsor  das  mudanças  nas  formas  estatais  e  nas  tentativas  de 
reconstrução  do  poder  de  classe  da  burguesia  e  de  suas  classes 
auxiliares  nos  Estados  Unidos,  resgataremos  as  batalhas  urbanas  dos 
anos  de  1960  na  cidade  de  Nova  York  e  seus  principais 
desdobramentos. Segundo Harvey (2008a), há décadas a reestruturação 
capitalista  e  o  processo  de  deslocamento  industrial  vinha  corroendo  a 
base  econômica  de  Nova  York  e  promovendo  um  amplo  processo  de 
suburbanização e empobrecimento da população residente no centro da 
cidade.  Em  resposta  a  esse  empobrecimento,  uma  onda  explosiva  de 
revoltas sociais dominou a cidade dando origem ao episódio que ficou 
conhecido  como  “crise  urbana”.  No  primeiro  momento,  o  governo 
federal  procurou  resolver  a  crise  com  a  promoção  da  expansão  do 
emprego  e  serviços  públicos,  no  entanto  diante  das  crises  fiscais 
federais,  o  presidente  Nixon  se  vê  obrigado  a  abandonar  essa  prática 
sob  a  alegação  de  que  o  problema  da  “crise  urbana”  não  mais  existia. 
No fundo isso significaria que os recursos federais não mais chegariam 
à Nova York.  
Com  o  avanço  da  recessão,  as  distâncias  entre a  receita  e  os  gastos 
da  cidade  se  ampliaram  e  no  primeiro  momento  as  instituições 
financeiras  conseguiram  contornar  a  situação,  mas  a  partir  de  1975,  os 
principais  banqueiros  se  recusam  a  rolar  a  dívida  e  Nova  York  foi  à 
bancarrota  técnica.    Após  a  bancarrota,  diversas  novas  instituições 
foram criadas para administrar o orçamento da cidade e a maneira pela 
qual  a  mesma  passou  a  ser  administrada  (congelamento  de  salários, 
cortes  drásticos  no  emprego  público  e  na  manutenção  de  serviços 
sociais  –  educação,  saúde  pública,  serviços  de  transporte  –  etc.)  nos 
oferece  um  cardápio  do  receituário  neoliberal  que  se  tornaria 
dominante daí pra frente nos EUA: 
 
a  administração  da  crise  fiscal  de  Nova  York  abriu  pioneiramente  o  caminho 
para  as  práticas  neoliberais,  tanto  domesticamente,  sob  Reagan,  como 
internacionalmente  por  meio  do  FMI  na  década  de  1980.  Estabeleceu  o 
princípio  de  que,  no  caso  de  um  conflito  entre  a  integridade  das  instituições 

88 
financeiras  e  os  rendimentos  dos  detentores  de  títulos,  de  um  lado,  e  o  bem‐
estar dos cidadãos, de outro, os primeiros devem prevalecer. Acentuou que o 
papel  do  governo  é  criar  um  clima  de  negócios  favorável  e  não  cuidar  das 
necessidades  e  do  bem‐estar  da  população  em  geral.  A  política  do  governo 
Reagan nos anos 1980, conclui Tabb, foi “apenas o cenário de Nova York” dos 
anos 1970 “bastante ampliado” (HARVEY, 2008a, p. 58). 
 
Em poucos anos quase todas as conquistas do proletariado de Nova 
York  foram  destruídas,  as  infraestruturas  sociais  e  físicas  da  cidade  (o 
metrô,  por  exemplo)  foram  sucateadas  e  o  próprioproletariado  foi 
novamente  lançado  a  uma  condição  de  vida  precária,  quando  não 
lumpemproletarizada:  reflexo  da  luta  de  classes  marcada  por  uma 
contraofensiva do capital. 
 Em  nome  dos  “negócios  favoráveis”  a  população  empobrecida  do 
centro  de  Nova  York  foi  expulsa  pela  especulação  imobiliária  e 
obrigada a sobreviver da “economia ilegal das ruas” nos subúrbios, que 
passaram  a  experimentar  um  alto  índice  de  lumpemproletarização, 
mortalidade juvenil, consumo de crack entre jovens lumpemproletários, 
crescimento  da  população  sem‐teto  e  da  criminalização  do 
lumpemproletariado (HARVEY, 2008a). Dessa maneira, 
 
a  redistribuição  de  renda  através  da  violência  criminosa  se  tornou  uma  das 
poucas opções reais para os pobres, e as autoridades reagiram criminalizando 
comunidades  inteiras  de  pessoas  empobrecidas  e  marginalizadas.  As  vítimas 
foram  consideradas  culpadas  e  [Rudolf]  Giuliani,  o  então  prefeito,  ficou 
famoso  pela  vingança  que  promoveu  em  favor  de  uma  burguesia  cada  vez 
mais abastada de Manhattan, cansada de ter de enfrentar na porta de casa os 
efeitos dessa devastação (HARVEY, 2008a, p. 57‐58). 
 
A partir da década de 1970, e principalmente com a neoliberalização 
da  economia  norte‐americana  na  década  de  1980,  as  consequências 
sociais  do  que  ocorreu  em  Nova  York  pôde  ser  percebida  em  diversas 
outras  cidades  do  país,  que  passaram  a  conviver  com  altas  taxas  de 
desemprego,  subemprego,  trabalhos  precários,  salários‐miséria,  alto 
índice  de  criminalidade,  tráfico  de  drogas  e  toxicomania  juvenil, 
violência  generalizada,  crescimento  do  número  de  sem‐tetos, 
mendicância  etc.  Percebe‐se  que  sob  a  vigência  do  regime  de 
acumulação  integral,  tais  índices  (anti)sociais  não  são  mais  exclusivos 
de países de capitalismo subordinado, mas passa a fazer parte também 

89 
da  realidade  social  de  países  de  capitalismo  imperialista  tal  como  os 
Estados Unidos, que vem experimentando um processo de expansão da 
lumpemproletarização. As análises de Wacquant, assim como de outros 
autores19, comprovam esse processo:  
 
entre 1978 e 1990, o condado de Los Angeles perdeu cerca de 200 mil postos de 
trabalho, dos quais a maior parte era de empregos industriais sindicalizados e 
de  salários  altos,  ao  mesmo  tempo  que  recebia  um  influxo  de  1  milhão  de 
imigrantes. Muitos desses postos foram perdidos para vizinhos de minorias na 
área  de  South  Central  e  para  comunidades  de  innercities,  onde  programas  e 
investimentos  públicos  estavam  sendo  simultaneamente  cortados  de  forma 
drástica  (Johnson  et  al.,1992).  Como  consequência,  o  desemprego  em  South 
Central ultrapassa 60% entre os jovens latinos e negros e a economia ilegal da 
droga  tornou‐se  a  fonte  mais  confiável  de  emprego  para  muitos  deles 
(WACQUANT, 2005, p. 32). 
 
A obra Cidade de Quartzo (1993), de Mike Davis, fornece um quadro 
assolador  sobre  o  abandono  e  miséria  em  que  se  encontrava  o 
proletariado,  formado  majoritariamente  por  negros,  nos  subúrbios  de 
Los Angeles a partir da década de 1970. Segundo Davis, entre 1978‐1982 
a economia industrializada de Los Angeles  entra em colapso, pois não 
suporta  a  concorrência  gerada  pelas  importações  japonesas.  Das  doze 
maiores  fábricas  do  setor  espacial  existentes  na  região  da  Califórnia 
Meridional  dez  se  tornarão  inativas  a  partir  da  concorrência  asiática. 
Nas  regiões  onde  as  fábricas  e  depósitos  não  sucumbiram,  foram 

19 Já no final da década de 1980 os Estados Unidos inaugura seus refúgios alucinógenos 
para  a  população  lumpemproletária,  espécie  de  “cracolândia  norte‐americana”:  “No 
Condado  de  Los  Angeles,  onde  a  mortalidade  infantil  está  em  franca  ascensão,  e  a 
rede de tratamento de traumas do Condado entrou em colapso, não é de surpreender 
que a assistência médica para os viciados em crack – que os especialistas concordam 
que  exige  um  tratamento  a  longo  prazo  numa  instituição  terapêutica  –  geralmente 
não esteja em disponibilidade. Assim, a região do submundo, o pesadelo do “Nickle” 
no  Centro,  possui  a  maior  concentração  unitária  de  viciados  em  crack  –  velhos  e 
novos, mas nem um  único posto de tratamento. A rica Pasadena está enfrentando a 
atividade das gangues com base no crack, localizadas no seu gueto do Noroeste, com 
sua  própria  versão  do  HAMMER,  inclusive  com  revistas  humilhantes  de 
desnudamento na rua e uma política de despejo de inquilinos ligados a drogas, sem 
gastar  um  só  centavo  em  reabilitação  de  viciados.  Os  exemplos  poderiam  ser 
depressivamente  multiplicados,  à  medida  em  que  o  tratamento  para  viciados  é 
abandonado  na  mesma  última  gaveta  que  os  preceitos  liberais  esquecidos,  como  o 
emprego para os jovens ou o aconselhamento para as gangues” (DAVIS, 1993, p. 278). 

90 
transferidas,  em  número  aproximado  de  321  firmas  desde  1971,  para 
outros parques industriais com oferta de mão‐de‐obra mais atrativa. O 
resultado  catastrófico  para  a  população  local  foi  apresentado  por  um 
comitê  de  investigação  do  Legislativo  da  Califórnia  em  1982  que 
confirma “a destruição econômica resultante nos bairros do Centro‐Sul: 
o  desemprego  cresceu  em  quase  cinquenta  por  cento  desde  o  começo 
dos anos setenta, enquanto o poder aquisitivo da comunidade caiu em 
um  terço”  (DAVIS,  1993,  p.  269).  Com  a  chegada  da  década  de  1980  é 
possível  perceber  uma  escalada  surpreendente  da 
lumpemproletarização  juvenil  da  população  negra  dos  guetos  de  Los 
Angeles, pois 
 
o desemprego entre os negros jovens do condado de Los Angeles – a despeito 
do  crescimento  regional  ininterrupto  e  de  uma  nova  explosão  de  consumo 
acelerado  –  permaneceu  num  assustador  45  por  cento  no  decorrer  dos  anos 
oitenta.  Uma  pesquisa  de  1985  sobre  projetos  de  habitação  pública  no  gueto 
descobriu que havia apenas 120 trabalhadores empregados em 1060 domicílios 
em NickersonGardens, setenta em quatrocentos em Pueblo del Rio, e cem em 
setecentos  em  Jordan  Downs.  A  escala  de  demanda  reprimida  por  empego 
manual  decente  foi  vividamente  demonstrada  há  poucos  anos,  quando 
cinqüenta  mil  jovens,  predominantemente  negros  e  chicanos,  fizeram  uma  fila 
de quilômetros para se candidatar a umas poucas vagas na estiva de San Pedro 
[...]  Correlacionada  ao  posicionamento  periférico  dos  negros  da  classe 
trabalhadora na economia está a dramática juvenilização da pobreza entre todos 
os  grupos  étnicos  do  gueto.  Em  termos  estaduais,  a  percentagem  da  pobreza 
dobrou  (de  11  por  cento  para  23  por  cento)  em  relação  à  última  geração.  No 
Condado  de  Los  Angeles,  durante  os  anos  oitenta,  tristes  quarenta  por  cento 
das crianças viviam abaixo ou logo acima do limite de pobreza oficial. As áreas 
mais  pobres  do  condado,  além  disso,  são  invariavelmente  as  mais  jovens:  de 
sessenta e seis domicílios do censo (em 1980) com rendas familiares médias de 
menos de 10 mil dólares, mais de 70% possuíam uma idade média de apenas 
20‐24 anos (o restante, 25‐29). (DAVIS, 1993, p. 270). 
 
Realidade  semelhante  foi  experimentada  pelo  “hipergueto”  da 
cidade  de  Chicago  nesse  mesmo  período.  Além  das  razões 
fundamentais  que  levaram  à  transição  do  regime  de  acumulação 
intensivo‐extensivo  para  o  regime  de  acumulação  integral,  já 
mencionadas  anteriormente,  existem  outras  determinações  específicas 
da  realidade  norte‐americana  e  que  explicam  a  expansão  do 
lumpemproletariado  na  cidade  de  Chicago.  Dentre  elas,  merece 
destaque  a  saturação  dos  mercados  internos,  a  partir  de  meados  da 

91 
década  de  1960,  provocada  pela  competição  internacional,  pela  busca 
por uma maior mobilidade do capital visando encontrar condições mais 
atrativas  para  o  processo  de  acumulação,  pela  ampla  redução  de 
proteções  aos  assalariados  etc.  A  partir  do  momento  em  que  uma 
economia  baseada  na  produção  industrial,  no  consumo  de  massa  e  na 
existência  de  sindicatos,  que  garantiam  aos  trabalhadores  estabilidade 
no emprego, salários altos etc. foi sendo substituída por uma economia 
predominantemente apoiada nas ocupações de serviços, fundamentada 
no  capital  financeiro  e  no  sucateamento  das  economias  regionais,  uma 
gigantesca  transformação  atingiu  as  relações  trabalhistas,  os  mercados 
de trabalho e os níveis salariais (WACQUANT, 2005). 
Por  conta  dessas  mudanças  no  mercado  de  trabalho,  juntamente 
com  a  política  de  extermínio  generalizado  de  todo  e  qualquer  tipo  de 
assistência  pública,  as  contradições  sociais  no  gueto  tem  se  ampliado 
rapidamente.  O  crescimento  acentuado  do  desemprego  e  do 
subemprego  tem  sido  acompanhado  pelo  aumento  incrível  da 
criminalidade,  do  assassinato  e  do  tráfico  e  consumo  de  drogas.  Isso 
tem  promovido  uma  crescente  fuga  das  classes  auxiliares  que  levam 
consigo as redes de comércio e parcela da renda que possibilitava uma 
movimentação  econômica  mínima  na  região.  Dessa  forma,  o  gueto 
tende a se tornar um espaço típico do “salve‐se quem puder e da forma 
como puder”, pois, 
 
além da economia da droga e do mercado informal – cujo desenvolvimento é 
visível  em  outros  setores  da  economia  norte‐americana,  inclusive  os  mais 
avançados  –  o  coração  do  gueto  assistiu  a  uma  proliferação  de  pequenos 
‘negócios’  subproletários  [lumpemproletários,  LB]  típicos  das  cidades  do 
Terceiro  Mundo:  comerciantes  de  rua,  vendedores  de  jornais,  cigarros  ou 
refrigerantes por unidade, carregadores, manobristas, diaristas etc. Não existe 
área do South Side sem táxi clandestinos, mecânicas ilegais, clubes noturnos e 
meninos  que  oferecem  para  carregar  sacolas  na  saída  do  supermercado  local 
ou encher o tanque do carro no posto de gasolina, em troca de alguns trocados. 
Tudo  pode  ser  comprado  ou  vendido  nas  ruas,  desde  bolsa  Louis  Vuitton 
falsificadas  (a  25  dólares  cada),  até  carros  roubados,  armas  (trezentos  dólares 
por  uma  ‘arma  limpa’,  em  geral,  ou  a  metade  por  uma  ‘suja’),  roupas  com 
defeito,  comida  caseira  e  bijuterias.  A  economia  dos  jogos  de  azar  –  bingos, 
loterias,  loto,  jogos  ilegais  de  cartas  e  dados  –  não  conhece  recessão” 
(WACQUANT, 2008, p. 42‐43). 
 

92 
 Com o crescimento vertiginoso do desemprego e do subemprego, a 
partir  da  década  de  1970,  em  várias  cidades20  dos  Estados  Unidos, 
outras  frações  do  lumpemproletariado  se  expandiram  por  todo  o  país. 
Dentre  elas  ganha  destaque  a  fração  composta  por  sem‐tetos.  Um 
estudo realizado por Snow e Anderson (1998) nos possibilita apreender 
a expansão dessa fração do lumpemproletariado após a década de 1980, 
na  cidade  de  Austin  (Texas).  A  pesquisa  demonstra  que  a  partir  dessa 
década,  ocorre  uma  gigantesca  proliferação  de  sem‐tetos  em  quase 
todas  as  cidades  norte‐americanas.  De  acordo  com  o  Exército  da 
Salvação  (Entidade  cristã‐protestante  beneficente)  de  Austin,  o 
atendimento  a  moradores  de  rua  cresceu  mais  de  100%  em  1985  se 
comparado com o ano de 1979 (SNOW & ANDERSON, 1998). 
Que  multiplicidade  de  determinações  envolve  o  crescimento 
acelerado  do  número  de  sem‐tetos  em  diversas  cidades  norte‐
americanas? Antes mesmo do regime de acumulação integral se tornar 
uma  realidade  nos  EUA,  já  havia  uma  quantidade  significativa  de 
desempregados  que  sobreviviam,  em  grande  parte,  à  custa  de  algum 
programa federal de assistência social. Isso possibilitava que essa fração 
do lumpemproletariado tivesse acesso há alguns bens básicos, tais como 
alimentação,  moradia  (de  baixa  renda)  etc.  e,  consequentemente,  isso 
camuflava  e  contornava  esse  problema  social.    Porém,  a  partir  da 
década de 1970 essa realidade já não é mais a mesma, pois junto com a 

20    Apesar  de  termos  utilizado  apenas  as  cidades  de  Los  Angeles  e  Chicago  para 
demonstrar  a  expansão  do  lumpemproletariado  via  crescimento  generalizado  do 
desemprego, no regime de acumulação integral, outras pesquisas demonstram que o 
desemprego em massa tornara‐se uma realidade nacional: “Um estudo que descobriu 
que 30% das fábricas existentes nos EUA em 1969 haviam fechado por volta de 1976, 
estimou  que  ‘fugas  [transferências  de  fábricas  para  outros  locais],  encerramento  de 
atividades, e cortes físicos permanentes beirando o fechamento podem ter custado ao 
país algo como 38 milhões de empregos’. Um outro estudo concluiu que mais de 16 
milhões  de  empregos  industriais  foram  perdidos  entre  1976  e  1982  devido  a 
fechamento  de  fábricas,  e  um  exame  congressual  das  conseqüências  desse 
desemprego  estrutural  relatou  que  ‘nos  últimos  anos,  milhões  de  trabalhadores 
americanos  perderam  seus  empregos  devido  a  mudanças  estruturais  nas  economias 
norte‐americana e mundiais. Alguns deles ‐ especialmente trabalhadores mais jovens 
com  qualificações  em  demanda  ou  com  formação  educacional  certa  –  têm  pouca 
dificuldade  de  achar  novos  empregos.  Outros  –  centenas  de  milhares  por  ano  – 
permanecem  sem  emprego  por  semanas  ou  meses,  ou  até  mesmo  anos”  (SNOW  & 
ANDERSON, 1998, p. 398). 

93 
expansão  do  lumpemproletariado,  visível  através  do  crescimento  do 
desemprego,  o  Estado  Neoliberal  irá  promover  um  corte  drástico  em 
diversas  políticas  de  assistência  social,  inclusive  na  diminuição  da 
assistência à moradia: 
 
o  desaparecimento  de  quantidade  cada  vez  maiores  de  unidades  habitacionais 
de  baixa  renda  –  2.5  milhões  de  unidades  desde  1980,  de  acordo  com  algumas 
estimativas  –  pode  ser  atribuído  essencialmente  à  conjunção  de  indiferenças 
governamental  e  de  forças  de  mercado  tais  como  o  aburguesamento  e  o 
abandono.  A  primeira  se  refletia  claramente  na  diminuição  do  apoio 
governamental  a  programas  habitacionais  para  os  pobres  durante  a 
administração  Reagan.  Quando  as  iniciativas  habitacionais  para  todos  os 
programas  habitacionais  de  baixa  renda  do  HousingandUrbanDevelopment 
(HUD) diminuíram de cerca de 183.000 unidades em 1980 para cerca de 28.000 
em  1985,  um  observador  argumentou  que  não  apenas  a  administração  Reagan 
estava  declarando  guerra  contras  os  programas  habitacionais  para  os  pobres, 
mas estava também procurando reverter “o compromisso de 50 anos do governo 
federal para com esses programas” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 381). 
 
Aliado  a  essa  política  de  diminuição  de  investimentos  federais  em 
programas  habitacionais  para  a  população  de  baixa  renda,  outros 
fatores  somam‐se  como  determinantes  no  aumento  da  população  de 
sem‐tetos nos EUA. O grande número de desempregados nas principais 
cidades  americanas,  juntamente  com  o  crescimento  acelerado  da 
pobreza nos EUA e das desigualdades sociais em geral21, provocaram o 
aumento  pela  procura  de  habitações  de  baixa  renda  e, 
consequentemente,  a  diminuição  da  oferta  desse  tipo  de  habitação22. 

21  Segundo  “os  relatórios  publicados  pelo  U.S.  Bureau  oftheCensus  desde  meados  da 
década  de  80  mostram  um  acentuado  aumento  da  pobreza  na  América  (Center 
ofBudgeandPolicyPriorities, 1985, 1988) e uma onda de ‘desigualdade’ geral (Thurow, 
1987)” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 378). 
22  “Os  levantamentos  sobre  habitação  do  governo  federal,  os  relatórios  publicados  por 

grupo  de  defesa  dos  moradores  de  rua  e  os  pesquisadores  de  habitação 
independentes,  todos,  relatam  praticamente  a  mesma  conclusão:  o  estoque  de 
habitação de baixa renda da nação foi liquidado ao longo dos últimos vinte anos. Só 
entre  1973  e  1979,  91%  de  quase  um  milhão  de  unidades  habitacionais  que  eram 
alugadas por $ 200 por mês ou menos em toda a nação desapareceram do mercado de 
aluguel.  Estima‐se  que,  só  na  cidade  de  Nova  Iorque,  mais  de  310.000  unidades 
habitacionais de baixa renda foram perdidas entre 1970 e 1983. Como essa dizimação 
do  mercado  de  aluguel  de  baixa  renda  aumentou  progressivamente  ao  longo  da 
década  de  80,  a  Nacional  Coalition  for  theHomeless  estimou  que  cerca  de  meio 

94 
Esse  conjunto  de  fatores,  aliado  ao  boom  do  mercado  inflacionário 
imobiliário de diversas cidades americanas, apertava ainda mais o cerco 
contra a população lumpemproletarizada, ampliando e muito o número 
de sem‐tetos que passava a ocupar locais de maior visibilidade pública 
–  parques,  pontos  de  ônibus,  porta  de  lojas,  bares  e  restaurantes, 
banheiros  públicos,  bibliotecas  etc.  (SNOW  &  ANDERSON,  1998; 
DAVIS, 1993).  
Outra determinação que contribuiu para a expansão do número de 
sem‐teto  é  o  crescimento  elevadíssimo  do  subemprego  nos  EUA. 
Milhares de pessoas que foram atingidos pelo desemprego, geralmente 
quando  retornam  ao  mercado  de  trabalho  passam  a  receber  salários 
menores  do  que  os  anteriores.  Não  é  pequeno  o  número  de  salários 
abaixo  do  nível  de  pobreza  oficialmente  estabelecido  nos  país  e  que, 
portanto, obriga essa fração do lumpemproletariado a trabalhar em dois 
ou três subempregos, mas que, ainda assim, não consegue obter renda 
suficiente para pagar um quarto sequer para morar. Segundo a Coalizão 
Nacional  para  os  Sem‐Teto23,  em  1998  seria  necessário  um  salário  de 
8,89 dólares por hora para pagar um quarto e sala. Outra entidade não 
governamental  (Centro  de  Preâmbulo  para  Políticas  Públicas)  estima 
que a possibilidade de um indivíduo assistido pelo seguro‐desemprego 
encontrar um emprego que pague esse salário era de mais ou menos 01 
chance  em  97  (EHRENREICH,  2004).  Isso  sem  contar  o  número  de 

milhão de unidades de baixa renda estavam sendo perdidas anualmente por volta da 
segunda metade da década” (Ibid, 1998, p. 379). 
23  “A  Coalizão  Nacional  para  os  Sem‐Teto  é  uma  rede  nacional  de  pessoas,  que  estão 

experimentando  atualmente  a  falta  de  moradia  ou  que  já  a  tenham  experimentado, 
ativistas, advogados e outros prestadores de serviços, baseados na comunidade e na fé, 
comprometidos com uma única missão. Essa missão, o nosso elo comum, é acabar com 
a falta de moradia. Estamos empenhados em criar as mudanças sistêmicas e atitudinais 
necessárias  para  prevenir  e  acabar  com  a  condição  de  sem‐teto.  Ao  mesmo  tempo, 
trabalhamos para atender às necessidades imediatas das pessoas que estão atualmente 
na condição de sem‐teto ou que correm esse risco. Tomamos como primeiro princípio 
da prática que as pessoas que estão experimentando atualmente a condição de sem‐teto 
ou que já experimentou tal condição devem ser envolvidas em todo o nosso trabalho. 
Para  este  fim,  a  Coalizão  Nacional  para  os  Sem‐teto  (NCH  –  sigla  em  inglês  para 
Nacional  CoalitionHomeless)  se  engaja  na  educação  pública,  defesa  de  políticas,  e 
organizações  de  base.  Focamos  nosso  trabalho  nas  seguintes  quatro  áreas:  moradia 
justa,  justiça  econômica,  saúde  e  direitos  civis”  (IN:  http://www. 
nationalhomeless.org/about_us/index.html ‐ tradução nossa). 

95 
pessoas  e  famílias  que  moram  nos  seus  próprios  automóveis.  Em  sua 
obra  Miséria  à  americana  –  vivendo  de  subemprego  nos  Estados  Unidos 
(2004), Ehrenreich constata: 
 
não consegui encontrar estatísticas sobre o número de pessoas empregadas que 
moram  em  carros  ou  vans,  mas  segundo  um  relatório  de  1997  da 
NationalCoalition for theHomeless intitulado “MythsandFactsaboutHomeless” 
(Mitos e fatos sobre a falta de moradia), quase um quinto de todos os sem‐teto, 
em  vinte  e  nove  cidades  de  todo  o  país,  tem  emprego  em  tempo  integral  ou 
meio expediente (2004, p. 36).  
 
Assim  como  ocorreu  nas  principais  cidades  industrializadas  do 
século  XIX,  a  presença  cada  vez  maior  do  número  de 
lumpemproletários  nos  espaços  públicos  passava  a  gerar  grandes 
incômodos às classes ricas de diversas cidades americanas, que buscou 
declarar  guerra  a  tal  presença.  Diversas  foram  as  armas  e  estratégias 
elaboradas  pelo  poder  público  e  pela  iniciativa  privada,  a  serviço  da 
propriedade  burguesa  e  do  seu  conforto  visual.  Em  Los  Angeles,  a 
forma  encontrada  para  conter  os  sem‐tetos  foi  confinando‐os  no 
submundo.  Ao  longo  da  Rua  50, a leste  da  Broadway,  criaram‐se  uma 
verdadeira “favela a céu aberto” que, na década de 1990, representava 
um dos dez quarteirões mais perigosos do mundo (DAVIS, 1993): 
 
nesta  zona  do  submundo,  todas  as  noites  são  sexta‐feira  13,  de  modo  nada 
surpreendente,  muitos  dos  sem‐teto  tentam  a  todo  custo  escapar  do  “Nickle” 
durante  a  noite,  procurando  por  malocas  mais  seguras  em  outras  partes  do 
Centro.  A  cidade  em  resposta  aperta  o  laço  com  crescente  intervenção  da 
polícia e com engenhoso design urbano de vocação dissuasiva. 
Um dos mais comuns, mas embrutecedor, destes estorvos é o banco de ponto 
de  ônibus  em  forma  de  barril,  que  oferece  uma  superfície  mínima  para  um 
sentar desconfortável, enquanto torna completamente impossível dormir sobre 
ele.  Tais  bancos  “à  prova  de  vagabundos”  estão  sendo  amplamente 
introduzidos  na  periferia  do  submundo  [...]  restaurantes  e  mercados 
responderam  aos  sem‐teto  com  a  construção  de  ambientes  cercados  e 
ornamentados  para  proteger  sua  recusa.  Embora  ninguém  em  Los  Angeles 
tenha  ainda  proposto  colocar  cianeto  no  lixo,  como  aconteceu  em  Phoenix  há 
poucos  anos  atrás,  um  popular  restaurante  de  frutos  do  mar  gastou  12  mil 
dólares para construir uma lata de lixo definitivamente à prova de mendigos: 
ela  é  confeccionada  com  chapas  de  aço  de  2centrímentos  de  espessura  e 
equipada com cadeados blindados e mórbidas pontas espetadas para fora, de 

96 
modo a salvaguardar cabeças de peixe de preço inestimável em decomposição 
e batatas fritas bolorentas (p. 213‐214). 
 
Com  o  objetivo  claro  de  evitar  a  presença  do  lumpemproletariado 
em  algumas  regiões  da  cidade  de  Los  Angeles,  os  banheiros  públicos, 
assim  como  as  fontes  de  águas,  utilizados  por  sem‐tetos  para  tomar 
banho,  foram  deliberadamente  destruídos.  Se  comparada  com  outras 
cidades  importantes  de  toda  a  América  do  Norte,  Los  Angeles  era  a 
cidade que possuía o menor índice de banheiros públicos na década de 
1990. Diante de toda essa política repressiva, os lumpemproletários da 
“cidade  dos  anjos”  foram  transformados  em  espécies  de  “beduínos 
urbanos”,  
 
visíveis  em  todos  os  lugares  do  Centro,  empurrando  seus  poucos  e  patéticos 
pertences  em  carrinhos  de  supermercados  roubados,  sempre  fugitivos  e  em 
movimento,  espremidos  entre  a  política  oficial  de  conteção  e  o  sadismo 
progressivo das ruas do Centro (DAVIS, 1993, p. 215). 
 
Uma das consequências sociais diretas e inevitáveis da promoção do 
Estado  neoliberal  é,  sem  sombra  de  dúvidas,  o  aumento  das  tensões 
sociais  e  da  criminalidade  derivadas  dos  cortes  em  políticas  de 
assistência  social,  da  diminuição  drástica  da  oferta  de  empregos,  dos 
salários‐miséria,  da  fome,  do  desabrigo  e  da  opressão  em  geral,  tanto 
nos  países  subordinados,  quanto  nos  países  imperialistas.  Por  conta 
desse quadro é que esse Estado será caracterizado por uns como sendo 
“mínimo e forte” (Bobbio, 2009) e por outro como sendo uma espécie de 
“Estado Penal” (Wacquant, 2001), uma vez que o mesmo se vê coagido 
a dar uma resposta positiva (para os interesses das classes dominantes) 
ao  espetáculo  da  insegurança  social,  à  imundice  visual  causada  pela 
presença  do  lumpemproletariado  nos  centros  comerciais  e  à 
criminalidade crescente, através da expansão das práticas repressivas e 
do encarceramento em massa dessa classe social. 
Nesse sentido, o Estado penal apresenta‐se como um complemento 
nas  mudanças  das  relações  de  trabalho  contemporâneas,  pois  busca 
substituir  as  políticas  sociais  por  medidas  de  criminalização  do 
lumpemproletariado. Porém, ele deve fazer isto contendo seus próprios 
gastos e buscando diminuir o crescimento da dívida pública, pois dessa 
maneira ele garante os interesses do capital oligopolista. Por outro lado, 

97 
a  miséria  tende  a  aumentar,  assim  como  o  desemprego  e  a 
criminalidade,  então  o  estado  deve  optar  por  aumentar  o  aparato 
repressivo  ou  ampliar  os  gastos  sociais,  mas  faz  opção  pelo  primeiro 
por ser menos dispendioso, ou seja, mesmo investindo em aumento da 
repressão  –  que  não  é  tanto  assim,  já  que  em  parte  apenas  aumenta  o 
uso  do  aparato  repressivo  já  existente,  ao  invés  de  políticas  de 
assistência social e, ainda permite a ampliação do lumpemproletariado 
que barateia a força de trabalho em certos setores, diminuindo os gastos 
do capital. 
É nesse contexto que surge em Nova York, e tende a se tornar uma 
prática  mundial  via  importação,  a  política  da  “tolerância  zero”  e, 
juntamente com ela,  
 
a retórica militar da ‘guerra’ e da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila 
os delinquentes (reais ou imaginários), sem‐teto, mendigos e outros marginais 
a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com a imigração, sempre 
rendoso eleitoralmente (WACQUANT, 2001, p. 30). 
 
LoicWacquant  apresenta  em  diversas  obras  a  absurda  escalada  do 
Estado  Penal  e  sua  prática  de  encarceramento  em  massa  dos  setores 
mais  pobres  da  sociedade  norte‐americana,  demonstrando  uma  íntima 
relação entre o neoliberalismo, a ampliação do lumpemproletariado e a 
expansão  das  práticas  de  criminalização  dessa  classe  social  no  regime 
de acumulação integral. De acordo com ele, 
 
a  reviravolta  da  demografia  carcerária  americana  depois  de  1973  será  tão 
brutal  quanto  espetacular.  Contra  qualquer  expectativa,  a  população 
penitenciária do país começa a aumentar em uma velocidade vertiginosa: fato 
sem  precedentes  em  uma  sociedade  democrática,  ela  “dobra  em  dez  anos  e 
quadruplica  em  vinte”.  Partindo  de  menos  de  380  mil  em  1975,  o  número  de 
pessoas  encarceradas  beira  os  500  mil  em  1980.  E  continua  a  inchar  no  ritmo 
infernal  de  9%  ao  ano  em  média  (ou  seja,  2  mil  detentos  suplementares  por 
semana  durante  a  década  de  90,  de  maneira  que  em  30  de  junho  de  1997  a 
América  contava  com  1.855.575  prisioneiros,  dos  quais  637.319  nas  casas  de 
detenção dos condados e 1.218.256 nas prisões federais e estaduais. Se estivesse 
em  uma  cidade,  a  população  carcerária  estadunidense  seria  a  sexta  maior 
metrópole do país (2003, p. 57). 
 
 
 

98 
Expansão da população carcerária nos Estados Unidos 
 (1975‐1995) 
      1975      1980      1985      1990      1995 
Casas de  138.800  182.288  256.615  405.320  507.044 
detenção 
(cidades e 
condados) 
Penitenciárias  240.593  315.974  480.568  739.980  1.078.357 
Estaduais e 
federais 
Total  379.393  498.262  737.183  1.145.300  1.585.401 
encarcerado 
Crescimento em      ‐     31,3%    47,9%     55,4%     38,4% 
05 anos 
 

Fonte:  Bureau  of  Justice  and  Statistics,  Correctional  Populacion  in  United  States,  1995, 
Washington,  U.S.  Government  Printing  Office,  1996:  Jail  and  jail  inmates  1993‐1994, 
idem, 1994, apud WACQUANT, 2003, p. 57. 
 
A  emergência  do  regime  de  acumulação  integral  e  de  suas 
contradições/tensões  sociais  nos  EUA  provocou  uma  verdadeira  ruína 
dos  espaços  sociais  habitados  pelo  conjunto  da  população 
empobrecida24,  que  foi  a  maior  vítima  de  todas  essas 
contradições/tensões,  em  especial  o  processo  expansivo  da 
lumpemproletarização. Para milhares de pessoas a simples garantia da 
sobrevivência  diária  tornou‐se  uma  verdadeira  guerra  cotidiana,  pois 
marginalizados  na  divisão  social  do  trabalho,  estigmatizados  pela  cor 
da  pele  (o  lumpemproletariado  norte‐americano  é  formado 
majoritariamente  pela  população  negra)  e  pelo  endereço  residencial, 
essa classe social só consegue visualizar duas “opções” (WACQUANT, 
2001, 2003, 2005, 2008): ou se submeter ao trabalho precário, temporário 
e de salários‐miséria ou entrar para a vida bandida do tráfico de drogas 

24 LoicWacquant  denominou  esse  processo  de  desertificação  organizacional  do  gueto:  “ao 
mesmo tempo causa e efeito da erosão do espaço público, o declínio das instituições 
locais (comércio, igrejas, associações de bairro e serviços públicos) chegou a um grau 
quase  equivalente  ao  de  um  deserto  organizacional.  A  origem  da  espantosa 
degradação  do  tecido  institucional  e  associativo  do  gueto  é  encontrada,  mais  uma 
vez, no recuo repentino do Estado do bem‐estar social, o que solapou a infra‐estrutura 
que  permitia  às  organizações  públicas  e  privadas  desenvolver‐se  e  subsistir  nos 
bairros estigmatizados e marginalizados” (WACQUANT, 2008, p. 39). 

99 
e do roubo a mão armada, que apesar de altamente arriscado, tanto pelo 
conflito  com  a  polícia  quanto  pelo  conflito  entre  traficantes  rivais, 
possibilita  uma  renda  infinitamente  maior  que  a  do  subemprego.  A 
segunda opção tem sido, sem sombra de dúvidas, a principal “escolha” 
da  maior  parte  da  juventude  lumpemproletária,  habitante  dos  guetos 
norte‐americanos, que a partir daí tem se tornado, consequentemente, a 
clientela favorita do sistema carcerário norte‐americano: 
 
evidencia‐se  imediatamente  que  o  meio  milhão  de  reclusos  que  abarrotam  as 
quase 3.300 casas de detenção do país – e os 10 milhões que passam por seus 
portões  a  cada  ano  –  são  recrutados  prioritariamente  nos  setores  mais 
deserdados  da  classe  operária,  e  notadamente  entre  as  famílias  do 
subproletariado  de  cor  nas  cidades  profundamente  abaladas  pela 
transformação, que, reelaborando sua missão histórica, o encarceramento serve 
bem  antes  à  regulação  da  miséria,  quiçá  à  sua  perpetuação,  e  ao 
armazenamento  dos  refugos  do  mercado  [...]  Consequência  de  sua  posição 
marginal  no  mercado  de  emprego  desqualificado,  dois  terços  dos  detentos 
viviam com menos de mil dólares por mês (e 45% com menos de 600 dólares), 
ou  seja,  uma  renda  inferior  à  metade  do  limiar  de  pobreza  oficial  para  uma 
família  de  três  pessoas  naquele  ano  –  isto  embora  dois  terços  deles  declarem 
ter recebido um salário. É dizer que a grande maioria dos internos dos cárceres 
municipais  provém  seguramente  das  categorias  dos  “workingpoor”,  esta 
fração  da  classe  operária  que  não  consegue  subtrair‐se  da  miséria  embora 
trabalhe, mas que é mantida à distância da cobertura social porque trabalha em 
empregos de miséria: apesar de sua penúria pecuniária, apenas 14% recebiam 
uma  ajuda  pública  (auxílio  a  pais  desamparados,  cupons  alimentares, 
programa  de  assistência  nutricional  para  as  crianças)  nas  vésperas  de  sua 
prisão (WACQUANT, 2003, p. 33‐34). 
 
Toda  essa  bárbara  situação  em  que  se  encontra  a  população 
lumpemproletária  norte‐americana  revela  no  fundo  a  incapacidade  do 
capitalismo de resolver suas próprias contradições. A própria expansão 
vertiginosa  da  população  carcerária  é  expressão  dessa  incapacidade, 
pois, ao contrário do que diz a ideologia da exclusão social, essa massa 
de  indivíduos  que  se  encontram  marginalizados  na  divisão  social  do 
trabalho  não  é  resultado  de  uma  forma  política  ineficaz  de 
administração social e que, portanto, a solução para a exclusão social se 
dá com adoção de políticas públicas e sociais que garantam a inclusão 
ou  com  a  construção  de  uma  espécie  de  Estado  Social,  como  sugere 

100
LoicWacquant25.  Pelo  contrário,  pois  de  forma  geral  nem  se  quer 
poderíamos  afirmar  que  tal  população,  formada  pelo 
lumpemproletariado, encontra‐se excluída socialmente (algo impossível 
de  acontecer),  pois  no  fundo  o  capitalismo  não  sobrevive  sem  a 
totalidade  do  exército  industrial  de  reserva,  formado  por  essa  classe 
social. Nesse sentido, é mais correto afirmar que o lumpemproletariado 
é  parte  integrante  da  sociedade  capitalista,  que  definitivamente 
depende  da  sua  existência  para  sobreviver,  pois  tal  classe  representa 
uma das alavancas fundamentais do processo de acumulação capitalista 
e,  consequentemente,  não  pode  ser  abolida  sem  a  abolição  do 
capitalismo.  
O  que  o  Estado  norte‐americano  vem  tentando  fazer  é  retardar  ao 
máximo  a  ameaça  gerada  pelo  crescimento  generalizado  do 
lumpemproletariado,  criminalizando‐o  para  não  ter  que  ampliar  seus 
gastos com assistência social e, consequentemente, emperrar o processo 
de  acumulação  capitalista.  No  entanto,  com  o  crescimento  vertiginoso 
dessa população e de sua criminalização, essa prática já não mais atende 
a expectativa de redução dos gastos públicos, uma vez que o orçamento 
carcerário  vem  atingindo  cifras  alarmantes26.  Por  isso,  outro  desafio  se 

25  Segundo  Wacquant,  discutindo  a  possibilidade  do  Estado  Penal  não  se  tornar  uma 
realidade  na  Europa,  tal  como  vem  ocorrendo  nos  EUA,  “para  uma  verdadeira 
alternativa  que  nos  afaste  da  penalização  (suave  ou  dura)  da  pobreza,  é  preciso 
construir um Estado europeu que seja digno desse nome. O melhor meio de diminuir 
o papel da prisão, é uma vez mais e sempre, fortalecer e expandir os direitos sociais e 
econômicos” (2008, p. 105). Tal afirmação revela os limites da análise do autor e sua 
visão  fetichista  do  Estado,  pois  em  momento  algum  de  sua  análise  Wacquant 
apresenta  a  gênese  e  a  determinação  fundamental  de  toda  essa  complexa  realidade 
contemporânea, ou seja, não analisa as necessidades atuais do regime de acumulação 
integral (Forma de valorização do capital expressa no toyotismo, forma estatal capaz 
de  regularizar  as  relações  sociais  necessárias  para  tal  valorização  (neoliberalismo)  e 
forma de exploração internacional ‐ neoimperialismo), nem tão pouco menciona que 
as contradições sociais que levam ao engendramento do “Estado Penal” resultam do 
predomínio da ofensiva capitalista sob a classe trabalhadora, localizando todas essas 
mudanças  no  campo  de  correlação  de  forças  no  interior  da  luta  de  classes  na 
contemporaneidade. 
26“Entre 1982 e 1993, os orçamentos das administrações penitenciárias aumentaram em 

254%, enquanto as somas destinadas às funções de justiça em seu conjunto cresceram 
172%  e  as  despesas  globais  dos  estados  em  140%.  Em  fim  de  período,  a  América 
despende  50%  a  mais  em  suas  prisões  do  que  em  sua  administração  judiciária  (32 

101
impõe  à  acumulação  capitalista  norte‐americana:  como  combater  as 
tensões  sociais  via  encarceramento  generalizado  do 
lumpemproletariado, sem comprometer os cofres públicos? A resposta, 
ao que tudo indica, vem da privatização do sistema penitenciário e da 
transferência dos custos carcerários para o próprio preso ou sua família, 
como  já  vem  ocorrendo  em  diversos  estados  e/ou  tornando  o  cárcere 
uma indústria lucrativa que passa a ser cotada inclusive nas principais 
bolsas  de  valores  norte‐americanas27.  Nesse  sentido,  Gans  está  correto 
ao  concluir  que  o  Estado  norte‐americano  tem  optado  em  combater  os 
pobres e não mais a pobreza (1995). 
 
Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina
 
O  processo  de  lumpemproletarização  traduz  a  principal 
consequência  social  do  regime  de  acumulação  integral  em  todo  o 
mundo, no entanto esse processo possui suas singularidades segundo o 
modelo  de  capitalismo  vigente  em  cada  nação,  isto  é,  apesar  de 

bilhões  de  dólares  contra  21  bilhões),  enquanto  10  anos  antes  as  dotações  das  duas 
administrações eram similares (em torno de 7 bilhões cada uma). A função carcerária 
absorve hoje em dia um terço do orçamento da justiça contra um quarto na primeira 
metade  da  década  de  80.  As  somas  engolidas  pelo  país  só  para  a  construção  de 
penitenciárias e cadeias disparam entre 1979 e 1989: mais 612%, ou seja, três vezes o 
ritmo  de  crescimento  dos  gastos  militares  em  nível  nacional,  os  quais,  no  entanto, 
gozaram de favores absolutamente excepcionais durante as presidências de Reagan e 
Bush.  A  construção  de  prisões  conhece  uma  explosão  tal  que  vários  condados  e 
estados  se  vêem  às  voltas  com  faltas  de  fundos  para  contratar  o  pessoal  necessário 
para  a  abertura  dos  estabelecimentos  que  constroem.  Foi  assim  na  Carolina  do  Sul, 
em  1996,  onde  duas  penitenciárias  de  “alta  tecnologia”  não  puderam  entrar  em 
operação  por  falta  de  créditos  necessários  para  cobrir  suas  despesas  de 
funcionamento;  ou  em  Los  Angeles,  onde  a  “casa  de  detenção  do  século  XXI”  ficou 
vazia durante um ano depois da construção” (WACQUANT, 203, p. 80‐81). 
27  “No  ano  passado,  o  dividendo  médio  das empresas  que  figuram  na  lista  da  Fortune 

Magazine  era  de  75%,  praticamente  o  dobro  do  índice  das  empresas  listadas  no 
Standard  andPoor’s.  Se  recuarmos  um  pouco  mais,  as  cifras  de  seu  desempenho  são 
decididamente  assombrosas:  em  três  anos,  as  ações  de  MacAfee  Associates  (em  15º 
lugar  em  nossa  lista),  que  fabrica  softwares  antivírus,  subiu  1.967%;  as  dos 
computadores  Dell  (em  47º  lugar)  aumentaram  em  1.912%;  e  as  da  Corrections 
Corporation  ofAmerica  (na  67ª  posição),  que  administra  prisões  privadas,  foram 
valorizadas em 746%. Isso faz um monte enorme de prata” (FORTUNE MAGAZINE 
apud WACQUANT, 2001, p. 92). 

102
constatarmos que durante a vigência do regime de acumulação integral 
o lumpemproletariado tende a crescer, tal crescimento ocorre de forma 
diferenciada, pois nos países de capitalismo imperialista vem ocorrendo 
uma  expansão  do  lumpemproletariado  enquanto  nos  países  de 
capitalismo  subordinado  tal  expansão  tende  a  ocorrer  de  forma 
intensificada.  A  lumpemproletarização  vem  acompanhada  da  luta  de 
classes  que,  também,  atinge  coeficientes  diferenciados  de  uma  região 
para  outra.  Acreditamos  que  esse  seja  o  caso  argentino  e,  também,  o 
brasileiro. Vejamos o primeiro. 
Seguindo  as  análises  de  Maristella  Svampa  (2010),  é  possível 
perceber  que  durante  décadas  a  Argentina  foi  dominada  por  um 
modelo  de  integração  nacional‐popular  cuja  máxima  expressão  foi  a 
primeira fase do peronismo (1946‐1955). Esse modelo se constituía por 
três  grandes  características:  No  plano  econômico  tal  modelo  se 
caracterizava  por  uma  concepção  de  desenvolvimento  inspirada  na 
substituição  de  importações  e  por  uma  estratégia  voltada  para  o 
desenvolvimento  do  mercado  interno.  No  plano  político  o  Estado  se 
apresentava  como  o  agente  garantidor  da  coesão  social  através  dos 
gastos  públicos  sociais.  Essa  política  se  traduzia  na  ampliação  da 
cidadania  burguesa28  através  do  reconhecimento  dos  direitos  sociais. 
Em  terceiro  lugar,  havia  uma  tendência  a  promover  a  homogeneidade 
social  visível  na  incorporação  de  parcela  significativa  da  classe 
trabalhadora,  assim  como  na  expansão  das  classes  auxiliares  da 
burguesia29.  Em  linhas  gerais,  a  Argentina  se  diferenciava  dos  demais 
países  latino‐americanos  por  possuir  um  Estado  que,  dentro  das 

28 “O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é 
aquele  que  respeita  a  propriedade  privada,  a  liberdade  de  imprensa  etc.,  paga  os 
impostos,  legitima  o  estado  capitalista  reconhecendo  o  processo  eleitoral  etc.  O 
cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, 
a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não‐
estatais)  e  o  estado  capitalista.  A  cidadania,  por  conseguinte,  é  a  concretização  dos 
direitos  do  cidadão  e,  portanto,  significa  a  integração  do  indivíduo  na  sociedade 
burguesa por intermédio do estado” (VIANA, 2003, p. 69). 
29 Utilizamos o conceito de classes auxiliares em substituição ao constructo ideológico de 

“classes  médias”.  A  garantia  e  manutenção  dos  interesses  dessas  classes  estão 


intimamente vinculadas à sociedade capitalista, portanto, “o que se deve ressaltar é que 
as classes auxiliares, devido às necessidades de sua própria reprodução, bem como sua 
inserção social, auxiliam a dominação burguesa [...]” (VIANA, 2003, p. 72). 

103
limitações típicas de um capitalismo subordinado, conseguia promover 
uma maior distribuição de renda e serviços públicos de qualidade para 
a maioria da população. 
O desmantelamento desse modelo social percorreu diversas etapas, 
no  entanto  não  ocorreu  de  forma  linear  nem  tão  pouco  numa  única 
sequência. A substituição da sociedade fordista para uma sociedade de 
acumulação integral conheceu diversos momentos.  
 
De  maneira  esquemática,  poderíamos  afirmar  que  as  mudanças  na  ordem 
econômica  se  iniciaram  durante  a  década  de  70,  a  partir  da  instalação  de 
regimes militares no cone sul da América Latina; as transformações operadas 
na estrutura social começariam a tornar‐se visíveis na década de 80, durante os 
primeiros  anos  de  retorno  à  democracia;  por  último,  podemos  situar  as 
maiores mudanças no final dos anos 80 e princípio dos anos 90, com a gestão 
menemista (SVAMPA, 2010, p. 22).  
 
Assim como em vários países da América Latina, a ditadura militar 
que  chegou  ao  poder  na  Argentina  no  dia  24  de  março  de  1976  tinha 
como  principais  objetivos  programar  uma  rígida  política  de  repressão, 
assim  como  refundar  as  bases  materiais  da  sociedade.  Por  um  lado,  o 
terrorismo  de  Estado  promoveu  o  extermínio  e  disciplinamento  de 
amplos setores sociais mobilizados e, por outro lado, colocou em prática 
um  programa  de  reestruturação  econômica  que  produziria  profundas 
repercussões  na  estrutura  social  e  produtiva  do  país.  Tais  mudanças 
estavam  assentadas  na  importação  de  bens  e  capitais  e  na  abertura 
financeira. Isso implicou uma interrupção na política de substituição de 
importações  e  um  grande  endividamento  dos  setores  públicos  e 
privados,  visíveis  no  extraordinário  aumento  da  dívida  externa30  que 

30  Já há algumas décadas, diversos estudos vêm sendo realizados sobre a dívida externa 
dos  países  da  América  Latina  e  vários  deles  apontam  para  o  seu  caráter  ilegal.  De 
acordo  com  estudos  realizados  por  pesquisadores  do  Observatório  da  Dívida  na 
Globalização (Catalunha, Espanha), “no caso argentino, durante o mandato de Carlos 
Ménen  (1989‐1999),  se  ampliou  o  número  de  juízes  da  Corte  Suprema  de  Justiça  (o 
máximo  tribunal  de  justiça),  e  o  executivo  designou,  com  apoio  de  um  senado 
majoritariamente menemista, cortesias a dependentes do regime. Com isso, o governo 
de Ménen assegurava a ratificação de todos os seus atos sem que fossem impugnados 
por  via  judicial.  Na  mesma  época  se  revisou  a  Constituição  Nacional  (1994).  A 
reforma  da  Carta  Magna  não  só  permitiu  a  reeleição  de  Ménen,  mas,  além  disso, 
facultou o presidente a tomar decisões próprias do Parlamento (delegação do poder 

104
passou  de  13  milhões  para  46  milhões  de  dólares  no  período  de  1976‐
1983.  Dessa  forma,  a  lógica  da  acumulação  imposta  pela  valorização 
financeira  sustentou  as  bases  de  dominação  centradas  nos  grandes 
grupos  nacionais  e  nos  capitais  transnacionais  (SVAMPA,  2010; 
BASUALDO, 2002). 
Os  efeitos  dessa  reestruturação  econômica  podem  ser  percebidos 
nas  diversas  mudanças  geradas  na  estrutura  social  argentina.  Dentre 
elas  se  destaca  a  enorme  transferência  da  mão‐de‐obra  empregada  na 
indústria para o setor terciário e autônomo, assim como a formação de 
uma incipiente mão‐de‐obra marginalizada do mercado de trabalho ‐ o 
lumpemproletariado. Além disso, houve uma significativa deterioração 
dos  salários  reais  que  aliada  com  a  baixa  produtividade  causou  a 
contração  da  demanda  interna  na  qual  foi  acompanhada  por  um  forte 
incremento  das  disparidades  intersetoriais.  A  distribuição  de  renda 
também  sofreu  impactos  negativos  com  a  eliminação  das  negociações 
coletivas e com a queda salarial. Dessa maneira, 
 
até  o  final  dos  anos  80,  envolvido  em  uma  série  de  conflitos  econômicos  e 
institucionais,  o  país  se  afundava  cada  vez  mais  em  uma  grave  crise 
econômica, refletida na importante queda da inversão interna e estrangeira, na 
crescente  fuga  de  capitais  e  no  recorde  inflacionário,  que  em  1987  alcançaria 
175% e, em 1988, 388% (SVAMPA, 2010, p. 25). 
 
Diante dessa nova realidade, nascia na Argentina da década de 1990 
uma sociedade empobrecida e atravessada por um intenso processo de 
lumpemproletarização.  O  país  experimentava  o  declínio  estrutural  do 
modelo  nacional‐popular  sem  contar  com  nenhuma  chave  para 
reencontrar  a  integração  social  de  amplos  setores  populares  e  médios 
empobrecidos31  (KESSLER  &  MINUJÍN,  1995;  KESSLER  &  DI 

legislativo  ao  poder  executivo)  [...]  Esse  foi  o  marco  político  que  possibilitou  que 
durante  o  ‘menemismo’  a  dívida  externa  da  Argentina  crescera  150%  e,  em 
cumprimento  as  exigência  do  FMI,  se  privatizaram  todas  as  empresas  de  serviços 
públicos e as que controlavam os recursos estratégicos do país” (RAMOS, 2006, p. 32‐
33).  
31“Uma das conseqüências de grande peso econômico e sócio‐culturais mais inesperadas 

que  os  setores  médios  têm  sofrido  na  Argentina  foi  a  de  dar  origem  a  um  tipo  de 
pobreza  com  traços  particulares,  uma  vez  iniciado  o  intenso  processo  de 
empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e 1990 
os  trabalhadores  em  seu  conjunto  perderam  em  torno  de  40%  do  valor  de  suas 

105
VIRGILIO, 2008). No entanto, as conseqüências mais drásticas estavam 
por  vir,  visto  que  a  consolidação  da  nova  ordem  neoliberal  argentina 
ocorreria durante os governos de Carlos Menen. 
Recém  saída  de  uma  ditadura  militar,  a  Argentina  se  encontrava 
extremamente  endividada  e  presa  a  um  modelo  de  governabilidade 
corporativo, autoritário e corrupto. A partir de 1992, com Carlos Menen 
no  poder,  inicia‐se  um  período  de  neoliberalização  da  economia  com 
vistas  a  obter  auxílio  dos  Estados  Unidos,  assim  como  recuperar  sua 
credibilidade  perante  a  comunidade  internacional.  Para  isso,  Menen 
promoveu  uma  abertura  comercial  aos  fluxos  de  capital  externo, 
garantiu  maior  flexibilidade  nos  mercados  de  trabalho,  reformou  a 
legislação  trabalhista,  realizou  uma  ampla  reforma  tributária, 
privatizou empresas estatais, equiparou o peso ao dólar com o objetivo 
de  combater  a  inflação  e  garantir  segurança  aos  investimentos 
estrangeiros.  
Uma das principais consequências da neoliberalização da economia 
argentina, sem sombra de dúvidas, foi a geração de milhares de postos 
de  trabalho  precarizados,  subempregos,  empregos  temporários  e 
milhões de desempregados. O índice de desemprego que na década de 
1980  variava  entre  4%  e  6%,  nos  primeiros  anos  da  década  de  1990 
chegam a 18,4%. Apesar da singela recuperação no final dessa década, 
tais  índices  voltam  a  crescer  de  forma  assustadora  a  partir  de  2001: 
dependendo da região, o índice de desemprego chegou a atingir a cifra 
de  50%  da  população  economicamente  ativa  (VITULLO,  2008; 
SVAMPA, 2010).  
A  intensidade  com  que  a  pobreza  foi  atingindo  amplos  setores  da 
classe  trabalhadora  foi  proporcionalmente  acompanhada  pela 
intensidade  das  tensões  sociais  derivadas  de  tal  pobreza,  pois  para 
amplos  setores  da  classe  trabalhadora  argentina,  o  processo  de 
privatização  representou  o  fim  de  uma  estabilidade  no  emprego  e  o 
início de um caminho, muitas vezes sem volta, ao desemprego e à vida 

rendas,  e  logo  após  certa  recuperação  em  1991  devido  à  estabilidade,  voltaram  a 
perder  em  torno  de  20%  entre  1998  e  2001,  com  importantes  oscilações  até  hoje.  A 
profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970 fizeram 
com  que  milhares  de  famílias  de  classe  média  e  de  pobres  de  longa  data,  que  no 
passado  conseguiam  escapar  da  miséria,  visualizassem  suas  rendas  declinar  abaixo 
da “linha de pobreza” (KESSLER & DI VIRGILIO, 2008, p. 32). 

106
lumpemproletária.  A  resposta  popular  a  essa  condição  não  tardou  a 
aparecer, pois a história argentina conheceria novas ondas de protestos 
sociais  e  um  novo  sujeito  histórico,  formado  essencialmente  pelo 
lumpemproletariado: o movimento piqueteiro.  
A  emergência  do  movimento  piqueteiro  está  diretamente 
relacionada  com  o  amplo  processo  de  privatização  neoliberal, 
principalmente  com  a  privatização  da  empresa  estatal  petrolífera  YPF 
(Yacimientos  Petrolíferos  Fiscales),  localizada  nas  províncias 
patagônicas  de  Neuquén,  especificamente  em  Cutral‐Có  e  Plaza 
Huincul,  entre  os  anos de  1991  e  1993.  Logo  após  a  privatização  dessa 
empresa,  milhares  de  trabalhadores  foram  demitidos.  No  primeiro 
momento buscaram sobreviver como autônomos e “micro‐empresários” 
que  prestavam  pequenos  serviços  para  a  petrolífera,  no  entanto  essas 
tentativas  resultaram  em  verdadeiros  fracassos32  e  esses  ex‐
trabalhadores  passaram  a  se  encontrar  isolados  frente  á  frente  com  o 
desemprego  aberto  e  sem  nenhuma  possibilidade  de  sustentarem  a  si 
mesmo e os seus familiares. Foi a partir daí que em junho de 1997 um 
grupo de desempregados convocaram seus familiares, vizinhos e vários 
outros setores sociais locais para bloquear a estrada nacional 22, “artéria 
chave na economia da região” (VITULLO, 2008; SVAMPA & PEREYRA, 
2009; ALVAREZ, 2009).  
Daí  por  diante,  várias  outras  regiões  afetadas  pelos  ajustes 
neoliberais conheceriam manifestações de desempregados e de diversos 
grupos  de  trabalhadores  precarizados  que  passaram  a  adotar  a 
estratégia  dos  piquetes  e  cortes  de  estradas  como  forma  principal  de 
protestos que se espalharam por diversas regiões da Argentina: General 
Mosconi e Tartagal (Salta), Libertador General San Martín (Jujuy), Cruz 

32    Um  conjunto  de  obstáculos  e  dificuldades  possibilitou  que  a  maior  parte  dessas 
experiências  resultasse  em  fracasso.  Svampa  e  Pereyra  apresentam  alguns  desses 
obstáculos: “Por causa da ausência de uma verdadeira política de recursos humanos, 
muitas  das  empresas  naufragaram  rapidamente,  atravessadas  por  dificuldades 
ligadas ao reconhecimento da autoridade, à tomada de decisões, a escassa capacidade 
negociadora,  a  impossibilidade  de  obter  contratos  por  causa  do  não  cumprimento 
com  obrigações  impositivas,  a  carência  de  edifício  próprio  e  a  impossibilidade  de 
acesso ao crédito, por falta de garantias de pagamento ou hipoteca; por último, pelos 
problemas associados ao elevado nível de endividamento” (2009, p. 109). 

107
Del  Eje  (Córdoba),  Capitan  Bermúdez  (Santa  Fe),  Buenos  Aires  e 
Conurbano Bonaerense e outras regiões mais.  
É  no  ano  de  2000  que  a  prática  piqueteira  atinge  o  Conurbano 
Bonaerense, alcançando um caráter nacional e permanente, deixando de 
ser  um  fenômeno  localizado  e  fragmentado  e  tornando‐se uma  prática 
de resistência aos ditames neoliberais com caráter nacional. 
 Em resposta à intensa lumpemproletarização de diversas regiões do 
conurbano,  a  prática  dos  piquetes  e  cortes  de  ruas/estradas  se 
generalizam  e  se  prolongam  por  semanas  em  vários  municípios  em 
torno de Buenos Aires. Com isso o governo De La Rua se vê obrigado a 
reconhecer  esse  movimento  e  iniciar  negociações  que  apontem  para  a 
solução do desemprego em massa. Concomitante a esses cortes de ruas 
locais,  se  espalham,  no  mesmo  período,  cortes  de  estradas  por  todo  o 
país.  A  repressão  se  intensifica  e  a  reação  popular  cresce 
assustadoramente após o assassinato de alguns militantes piqueteiros (o 
assassinato de Aníbal Verón, Maximiliano Kosteki e Darío Santillán são 
casos exemplares). De acordo com Vitullo, 
 
segundo  um  estudo  realizado  pela  consultora  Centro  de  Estudios  Nueva 
Mayoría(2004a)  divulgado  pelo  Jornal  La  Nacion,  os  cortes  de  estradas 
realizados em todo o território nacional foram 140 em 1997, 51 em 1998, 252 em 
1999, 514 em 2000, 1383 em 2001 e 2336 em 2002 (o que representa uma média 
superior  aos  6  bloqueios  diários,  sendo  este  o  ano  recorde  em  matéria  de 
cortes) e, em 2003, verificaram‐se 1278 interrupções à circulação de veículos e 
mercadorias” (2008, p. 115).  
 
Nesse  período,  insurge  um  ciclo  ascendente  de  lutas  sociais  e  de 
enfrentamento  popular  contra  as  forças  policiais  que  tomará  conta  da 
cena  política  e  social  argentina  até  aproximadamente  o  ano  de  2003, 
período  em  que  as  lutas  sociais  iniciam  seu  refluxo.  Em  diversos 
períodos  a  tensão  social  adquire  elevado  grau  de  radicalidade  e, 
consequentemente, a repressão do “Estado penal” tendeu a ampliar‐se a 
ponto de iniciar um verdadeiro processo de criminalização do protesto 
social (WACQUANT, 2001; KOROL, 2009). 
Esse  novo  ator  social,  composto  majoritariamente  pelo 
lumpemproletariado,  denominado  de  movimento  piqueteiro,  assim 
como  a  dinâmica  de  suas  lutas  firmadas  na  ação  coletiva,  na 
organização  solidária,  com  tomadas  de  decisões  pautadas  em 

108
assembleias  horizontais  e  adotando  o  corte  de  ruas  e  estradas  como 
principal ferramenta de luta, possui de acordo com vários autores uma 
dupla  filiação.  Portanto,  para  que  se  compreenda  a  emergência  e 
desenvolvimento  do  movimento  piqueteiro  torna‐se  necessário 
apresentar essa dupla filiação.  
Uma  das  principais  e  mais  complexa  obra  sobre  o  assunto, 
elaborada  por  Maristella  Svampa  e  Sebastián  Pereyra  e  denominada 
Entre  la  ruta  y  El  barrio  –  La  experiencia  de  las  organizaciones  piqueteras 
(2009) afirma que 
 
não  é  possível  compreender  a  gênese  nem  o  posterior  desenvolvimento  do 
movimento piqueteiro se não estabelecermos sua dupla filiação: por um lado, a 
vertente que apresenta a brusca separação dos marcos sociais e trabalhistas que 
configuraram a vida cotidiana de gerações e povos inteiros; separação violenta 
que,  no  limite,  revela  tanto  uma  relação  mais  próxima  com  o  mundo  do 
trabalho  formal,  como  reflete  a  opção  por  um  tipo  de  ação  sindical  não‐
institucionalizada; ligado a um modelo de ação confrontativo; por outro lado, a 
vertente  que  assinala  a  importância  da  matriz  especificamente  territorial  da 
ação  coletiva,  e  que  da  conta  tanto  de  uma  distância  maior  com  o  mundo  do 
trabalho  formal  como,  no  extremo,  da  continuidade  de  uma  relação  mais 
pragmática com os poderes públicos, na luta nada fácil pela sobrevivência (p. 
20). 
 
A  primeira  filiação  está  intimamente  relacionada  com  as 
consequências  sociais  que  as  reformas  e  “ajustes”  neoliberais 
provocaram  no  mundo  do  trabalho  a  partir  da  implementação  de  um 
novo projeto econômico orientado para a eliminação de déficits fiscais, 
nova  regulamentação  dos  mercados  e  privatização  acelerada  de 
empresas públicas. Juntamente com esses ajustes foi aprovado o Plano 
de Convertibilidade de 1991 que estabelecia a paridade entre o peso e o 
dólar, reduzindo as tarifas alfandegárias, liberação do comércio exterior 
e aumentando a pressão fiscal. Os principais mecanismos de controle do 
Estado foram suprimidos a favor das regras do mercado. 
As consequências sociais foram drásticas, pois a queda na qualidade 
dos serviços públicos foi extrema, milhares de pequenos investimentos 
se viram falidos, milhares de lumpemproletários que além de perderem 
seus  salários,  perderam  o  seguro‐desemprego  e  se  encontravam 
extremamente  endividados.  Nesse  novo  contexto,  as  mudanças  no 
mundo do trabalho modificaram‐se bruscamente, pois 

109
o  processo  privatizador  deixou  uma  importante  quantidade  de  trabalhadores 
desempregados  com  diferentes  trajetórias  ocupacionais.  No  caso  dos 
trabalhadores  empregados  se  modificaram  as  condições  de  contrato  de 
trabalho,  de  uma  situação  de  quase  garantia  de  estabilidade  no  emprego  se 
passa a uma situação de incerteza e precarização das condições de trabalho e 
possibilidades de associação sindical (BONIFACIO, 2011, p. 73). 
 
Como  foi  dito  anteriormente,  o  impacto  mais  extremo  dessas 
reformas  veio  em  consequência  da  privatização  de  uma  das  empresas 
públicas  mais  lucrativas  e  estratégicas  da  Argentina,  a  YPF.  Vale 
lembrar  que  a  YPF  consistia  em  uma  das  maiores  empresas  estatais 
argentina e seus trabalhadores formavam uma espécie de “aristocracia 
operária” visto que possuíam uma ampla gama de garantias e direitos 
sociais  (saúde,  moradia,  educação  para  os  filhos,  creches,  espaços 
recreativos  etc.)  oferecidos  pelo  Estado  social  argentino,  usufruíam  de 
estabilidade no emprego e de excelentes salários. Com a privatização da 
empresa  no  ano  de  1993‐1995,  em  pouco  tempo  todas  essas  garantias 
desapareceram e o processo de intensificação da lumpemproletarização 
insurgiu: 
 
a  empresa,  que  em  1990  contava  com  51  mil  empregados,  logo  após  um 
acelerado  processo  de  reestruturação,  que  inclui  demissões  voluntárias  e 
arbitrárias, passou a ter 5.600 trabalhadores. As baixas contabilizadas de 1990 e 
1997  foram  as  seguintes:  para  a  região  saltenha,  3.400;  na  região  neuquina, 
4.246; no vale austral, 1.660; em Comodoro Rivadavia, 4.402 e, finalmente, em 
Santa  Fe  (San  Lorenzo),  1.177.  Enfim,  a  reorganização  do  trabalho  esteve 
marcada  por  uma  forte  flexibilização  que  incluiu  a  descentralização  e 
desregulação  dos  setores,  a  redução  sistemática  de  pessoal,  a  limitação  no 
pagamento  das  horas‐extras,  a  intensificação  do  tempo  de  trabalho  e  a 
incorporação  de  novas  tecnologias  (ROFMAN  apud  SVAMPA  &  PEREYRA, 
2009, p. 107). 
 
É  nesse  contexto  que  nasce  na  Argentina  o  movimento  piqueteiro 
que, em resposta aos efeitos desintegradores das políticas neoliberais e 
seus  ajustes  estruturais,  busco  uauto‐organizar  e  mobilizar  o 
lumpemproletariado  composto  por  desempregados  e  outros  setores 
empobrecidos  da  sociedade.  O  movimento  piqueteiro  adquiriu  um 
caráter  de  protagonista  nas  manifestações  contra  o  neoliberalismo 
argentino  e  seus  métodos  de  resistência  popular  ocuparam  um  lugar 

110
destacado  na  política  nacional.  Os  explosivos  cortes  de  estradas  e  as 
enérgicas puebladas de Neuquém, Salta e Jujuy entre 1996 e 1997 
 
representam  o  ponto  inicial  no  qual  uma  nova  identidade  –  os  piqueteiros  – 
um  novo  formato  de  protesto  ‐  o  corte  de  estrada  ‐,  uma  nova  modalidade 
organizativa – a assembléia – e um novo tipo de demanda – o trabalho – ficam 
definitivamente  associados,  originando  uma  importante  transformação  nos 
repertórios  de  mobilização  da  sociedade  argentina    (SVAMPA  &  PEREYRA, 
2009, p. 25). 
 
A  segunda  filiação  do  movimento  piqueteiro  é  marcada  por  uma 
modalidade  de  ação  coletiva  de  caráter  territorial,  pois  diferentemente 
das manifestações ocorridas nas longínquas províncias patagônicas que 
sofreram  com  as  privatizações  das  empresas  estatais,  os  protestos  que 
ocorreram  na  região  do  Conurbano  Bonaerense  remete  a  um  longo 
processo  econômico  e  social  ligado  à  redução  da  produção  industrial 
local  e  deterioração  crescente  das  condições  de  vida  das  classes 
exploradas e setores das classes auxiliares, iniciados ainda na década de 
1970.  O  processo  de  redução  da  produção  industrial  na  região  afetou 
uma  parcela  importante  dos  setores  assalariados.  De  acordo  com  os 
dados  para  a  região  da  Grande  Buenos  Aires,  entre  1980  e  1990  o 
desemprego aumentou de 2,3 a 6%, a subocupação duplicou, passando 
de 4,5 a 8,1% da população economicamente ativa. O emprego informal 
que  era  de  42,1%  em  1980  foi  para  48,5%  em  1991  e  terminou  por 
adquirir  características  próprias  de  outros  países  latino‐americanos 
(SVAMPA & PEREYRA, 2009). 
As  ocupações  ilegais  de  terra  na  região  do  Conurbano  Bonaerense 
são reveladoras do processo de pauperização social que atinge a região 
desde  o  período  da  ditadura  militar.  Esse  processo  de  ocupação  de 
terras  às  margens  dos  grandes  centros  urbanos  argentinos  foi,  muitas 
vezes,  resultado  de  uma  ampla  organização  territorial  que  contaram 
com  o  apoio  de  organizações  eclesiásticas  de  base  e  organização  de 
direitos  humanos.  De  acordo  com  as  análises  de  Merklen  (2005),  os 
assentamentos  de  terras  demonstram  a  emergência  de  uma  nova 
configuração social que manifesta o processo de inscrição territorial das 
classes  populares,  relacionada  com  a  luta  pela  sobrevivência  e  pelos 
serviços públicos básicos. Por conseguinte, 
 

111
tais ações foram construindo um novo marco e, por sua vez, um emaranhado 
relacional próprio cada vez mais desvinculado do mundo do trabalho formal. 
Uma das principais consequências dessa inscrição territorial é que o bairro foi 
surgindo  como  espaço  natural  de  ação  e  organização,  e  se  converteu  em  um 
lugar de interação entre diferentes atores sociais reunidos em refeitórios, posto 
de saúde, organizações de base, formais e informais, comunidades eclesiásticas 
de  base,  em  alguns  casos  apoiadas  por  organizações  não‐governamentais. 
Enfim,  o  surgimento  de  novos  espaços  organizativos  dentro  do  bairro 
conheceu  um  novo  impulso,  ainda  que  fugaz,  durante  os  dois  episódios 
hiperinflacionários  de  1989  e  1990,  visíveis  na  proliferação  de  refeitórios 
populares (SVAMPA, 2005, p. 106). 
 
Entre 1990 e 1998 sucessivas ondas de deslocamentos das indústrias 
atingiram  a  região  do  Conurbano  Bonaerense  como  resultado  das 
privatizações  e  ajustes  neoliberais.  Consequentemente,  ocorreu  um 
acelerado processo de expulsão do mercado de trabalho acompanhado 
de  uma  maior  instabilidade  no  emprego.  Vale  lembrar  que  boa  parte 
dos  sindicatos  argentinos  foram  cooptados  e  aceitaram  prontamente 
esse conjunto de reformas e ajustes neoliberais. Dessa maneira, parcela 
significativa  dos  trabalhadores  do  conurbano  passou  a  se  sentir 
completamente  desorientados  politicamente.  No  entanto,  as 
consequências  políticas  e  sociais  para  as  instituições  burocráticas  e 
clientelistas do Partido Justicialista também foram enormes, assim como 
o debilitamento do peronismo no mundo popular. 
 Diante  da  ausência  de  respostas  efetivas  do  poder  público  e  das 
suas  instituições  para  os  problemas  sociais  que  afetavam  o 
lumpemproletariado da região, emergiram organizações populares nos 
bairros  que  passaram  a  se  organizar  por  fora  das  estruturas 
burocráticas, tais como partidos políticos e sindicatos. É nesse contexto 
que  emerge  as  organizações  de  desempregados  e  um  novo  modelo  de 
militância  territorial  na  região  do  conurbano.  Portanto,  entre  1990  e 
1995 alguns bairros começaram a se organizar para reclamar das tarifas 
dos serviços públicos privatizados. Em 1995 surge a primeira comissão 
de  desempregados  no  município  de  La  Matanza,  porém  somente  em 
1996 inicia as primeiras manifestações exigindo auxílio à alimentação.  
Tais  manifestações  ocorrem  em  maio  de  1996  quando  vários 
vizinhos  dos  bairros  María  Elena  e  Villa  Unión  realizam  uma 
manifestação  na  Praça  São  Justo  com  uma  importante  participação 
feminina.  Logo  em  seguida,  no  dia  06  de  setembro  de  1996  se  realiza 

112
uma  importante  “Marcha  contra  a  fome,  a  repressão  e  o  desemprego” 
até a Praça de Maio, que reuniu aproximadamente duas mil pessoas. A 
marcha  foi  um  pontapé  inicial  para  a  emergência  de  diversas 
organizações  de  desempregados  em  vários  municípios  do  conurbano 
(SVAMPA & PEREYRA, 2009). 
La  Matanza  é  um  município  vizinho  à  capital  da  República,  com 
aproximadamente 1.500.000 habitantes, população que supera de longe 
à  de  18  das  23  províncias  argentinas  (ISMAN,  2004).  Trata‐se  de  um 
enorme  aglomerado  urbano  com  grande  quantidade  da  população 
vivendo  abaixo  da  linha  da  pobreza.  Segundo  o  Jornal  Clarin  de  22  de 
outubro de 2001: 
 
La  Matanza  é  um  dos  maiores  e  mais  difíceis  municípios  do  conurbano 
bonaerense: calcula‐se que o 50% de seu um milhão e meio de habitantes vive 
abaixo da linha da pobreza e que o índice de desemprego chega a 30%. Viver, 
nesse  contexto,  se  torna  mais  complicado  a  cada  dia.  As  pessoas  não  têm 
dinheiro,  não  tem  teto  seguro,  não  tem  comida,  não  tem  roupa,  não  tem 
remédios. E não tem esperança (Apud ISMAN, 2004, p. 18). 
 
As condições de deterioração pelas quais vem sofrendo o município 
de  La  Matanza  se  inicia  em  1976  com  o  golpe  militar  e  vêm  se 
ampliando continuamente até atingir sua fase mais acentuada durante o 
período menemista (1989‐1999). As ocupações ilegais de terra na região 
do  Conurbano  Bonaerense  são  reveladoras  do  processo  de 
pauperização  social  que  atinge  a  região  desde  o  período  da  ditadura 
militar.  
Durante  o  período  marcado  pela  substituição  de  importações,  o 
setor fabril carregava consigo o restante das atividades econômicas em 
termos  de  produção  e  gerava  diversos  postos  de  trabalho,  porém  nos 
anos noventa o coeficiente de empregabilidade se encontrava na ordem 
de ‐3,7% e demonstrava que o setor industrial foi o grande responsável 
pela expulsão da mão‐de‐obra na região (BASUALDO, 2002; BARRERA 
&  LÓPEZ,  2010).  Nesse  contexto,  La  Matanza  deixou  de  ser  um  dos 
grandes pólos industriais do conurbano para se converter numa região 
que  apresenta  altos  índices  sociais  negativos.  E  essa  realidade  não  era 
exclusividade  desse  município,  pois  diversas  outras  regiões  do  país 
também  passaram  a  experimentar  um  intenso  processo  de 
lumpemproletarização. 

113
De  acordo  com  uma  nota  de  Ismael  Bermudez,  contida  no  jornal 
Clarin  de  19  de  setembro  de  2001,  exemplifica  a  situação  geral  do 
Conurbano Bonaerense: 
 
O desemprego cresceu quatro vezes mais (subiu de 5,7% para 22,9%) e entre os 
chefes de família se multiplicou por cinco (de 3,3% a 17,2%). Como resultado 
direto dessa situação, nesses municípios quase 40% das residências é formada 
por  pessoas  que  recebe  apenas  20%  da  renda  da  região.  Isso  explica  a  razão 
pela  qual  a  pobreza  atinge  quase  50% da  população, o  que  significa  que  seus 
habitantes ou famílias da região não possuem renda suficiente para custear as 
compras dos bens e serviços básicos (Apud ISMAN, 2004, p. 17).  
Contra  essa  situação  de  desemprego,  condições  de  vida  precária  e 
inexistência de serviços públicos básicos de qualidade (creches, escolas, 
postos  de  saúde,  moradia,  asfalto,  rede  de  esgotos  etc.),  ou  seja,  por 
conta  desse  completo  quadro  de  abandono  gerado  pelo  descaso  dos 
poderes  públicos  (municipal,  estadual  e  federal)  é  que  nascem,  na 
região de La Matanza, diversas organizações de bairros que darão início 
a  uma  onda  de  protestos  sociais  que  resultara  em  1995  nas  primeiras 
tentativas  de  organização  do  lumpemproletariado  na  região.  É  nesse 
contexto  que  emerge  as  organizações  lumpemproletárias  e  um  novo 
modelo de militância territorial na região do conurbano.  
O  que  vem  ocorrendo  na  Argentina  da  década  de  1990  é  parte  do 
que já vinha acontecendo em quase toda a sociedade moderna a partir 
da  década  de  1980,  isto  é,  a  sociedade  moderna  passa  a  sofrer 
importantes  transformações  nas  suas  formas  de  valorização  do  capital 
(toyotismo), assim como nas suas formas de regularização das relações 
sociais  garantidoras  do  mesmo.  A  principal  forma  regularizadora 
dessas  relações  consiste  no  Estado  Neoliberal.  Esse  emerge  com  o 
objetivo  de  proporcionar  melhores  condições  para  a  acumulação 
capitalista  através  de  novas  regulamentações  do  mercado,  do 
“afastamento”  do  Estado  das  obrigações  sociais  (saúde,  educação, 
segurança, emprego etc.) e de sua transferência para a iniciativa privada 
via privatização dessas obrigações e de alguns setores estratégicos antes 
sob o controle estatal (energia, água, gás, petróleo, transportes coletivos, 
telefonia etc.).  
Juntamente com a emergência de um movimento lumpemproletário 
que  passou  a  construir  estratégias  de  enfrentamento  ao  processo  de 
lumpemproletarização  e  empobrecimento  generalizado,  e  que 

114
dificultaram  a  expansão  das  conquistas  necessárias  à  acumulação 
integral, emergiu também a face mais autoritária e repressiva do Estado 
Neoliberal  que,  juntamente  com  ocapital  comunicacional33, 
transformaram a luta pelos direitos sociais em delitos contra a ordem e 
os  manifestantes  como  delinqüentes  dignos  de  serem  aprisionados  ou 
quando não executados sumariamente pelo Estado Penal, como ocorreu 
e ainda ocorre nos diversos casos de “gatilho fácil”34.  
A  análise  que  Wacquant  vem  realizando  em  suas  diversas  obras 
sobre  o  Estado  Penal  e  seu  processo  de  criminalização  do 
lumpemproletariado e de diversos movimentos sociais (tanto nos EUA, 
quanto  na  Europa)  também  serve  para  compreender  a  realidade 
Argentina,  pois  em  todos  os  rincões  em  que  o  neoliberalismo  se 
implantou  enquanto  forma  estatal,  se  implantaram  também  suas  faces 
penais da pobreza e do protesto social: criminalização, aprisionamento 
e extermínio. Segundo ele, 
 
mais  do  que  mera  medida  repressiva,  a  criminalização  dos  que  defendem  os 
direitos sociais e econômicos integra uma agenda política mais ampla, que tem 
levado à criação de um novo regime que pode ser caracterizado como “liberal‐
paternalismo”.  Ele  é  liberal  no  topo,  para  com  o  capital  e  as  classes 
privilegiadas,  produzindo  o  aumento  da  desigualdade  social  e  da 
marginalidade;  e  paternalista  e  punitivo  na  base,  para  com  aqueles  já 
desestabilizados  seja  pela  conjunção  da  reestruturação  do  emprego  com  o 
enfraquecimento  da  proteção  do  Estado  de  bem‐estar  social,  seja  pela 
reconversão de ambos em instrumentos para vigiar os pobres (WACQUANT, 
2008, p. 94). 
 
O  processo  de  criminalização  do  lumpemproletariado  e  de  outras 
classes sociais afetadas pelo neoliberalismo inicia aproximadamente no 

33  Para  maiores  informações  sobre  o  conceito  de  capital  comunicacional  ver  (VIANA, 
2007b).  
34“Gatilho Fácil é o nome utilizado na Argentina para denominar os episódios de abuso 

de poder no uso de armas de fogo por parte da polícia. Em geral, as vítimas de gatilho 
fácil  são,  sobretudo,  jovens  militantes  dos  bairros  pobres,  vítimas  de  processos  de 
disciplinamento  compulsivo  realizados  pelas  forças  policiais.  A  Correpi 
(Coordenadoria  contra  a  repressão  policial  e  institucional)  tipifica  esses  métodos 
como  execução  sumária  aplicada  pela  polícia  e  que  geralmente  são  acobertas  sob  a 
alegação  de  mortes  oriundas  do  enfrentamento.  Esta  pena  de  morte  ‘extralegal’  se 
distingue  por  duas  etapas:  o  fuzilamento  e  o  acobertamento  (KOROL  &  LONGO, 
2009, p. 106). 

115
ano de 1993 quando a Argentina foi tomada por distintas manifestações 
populares  contra  os ajustes neoliberais,  nas  principais  cidades  do  país. 
Em  diferentes  momentos  tais  manifestações  atingiram  níveis  de 
enfrentamento e violência que assustaram os poderes estabelecidos que, 
em resposta, procuraram ampliar a repressão policial e a criminalização 
dos militantes dos mais variados movimentos sociais.  
Nos dias 16 e 17 de dezembro de 1993 ocorre em Santiago del Estero 
o  que  ficou  conhecido  como  “El  Santiagazo”.  A  pueblada,  como 
também  ficou  conhecida  as  grandes  manifestações  populares,  foi 
iniciada  por  trabalhadores  estatais  demitidos  ou  que  tiveram  seu 
salários  reduzidos  e  atrasados  por  vários  meses.  Seus  participantes 
invadiram  e  incendiaram  simultaneamente  inúmeros  prédios  dos 
poderes  legislativo,  judiciário,  executivo  e  vários  outros  edifícios 
públicos,  assim  como  algumas  residências  de  políticos  e  sindicalistas 
locais.  Na  noite  do  dia  16,  o  governador  Juárez  foi  destituído  e  o 
Congresso  Nacional  realizou  uma  intervenção  nos  três  poderes 
provinciais após aprovar um projeto do poder executivo que autorizava 
o  envio  de  tropas  do  exército  e  da  Gendarmeria  para  a  província  de 
Santiago  del  Estero  (KOROL  &  LONGO,  2009).  Segundo  Vitullo,  foi 
nesse dia que a pueblada experimentou elevado nível de conflitividade, 
pois 
 
os  choques  entre  as  forças  repressivas  e  os  manifestantes  deixaram  um  saldo 
de quatro mortos e mais de cem feridos e uma forte impressão no restante da 
sociedade  argentina,  que,  através  da  televisão,  assistia  azoada  a  estes  fatos. 
Além deste saldo e como consequência da mobilização popular, o justicialista 
Fernando  Lobo,  governador  da  província  em  substituição  de  Carlos  Mijuca  – 
quem tinha deixado o cargo escassos 50 dias antes sem sequer alcançar metade 
do  seu  mandato  devido  a  uma  forte  crise  política,  também  viu‐se  obrigado  a 
renunciar, o que acabou precipitando o já assinalado processo de intervenção 
federal à província (VITULLO, 2008, p. 112).  
 
Após  o  Santiagazo  começaram  a  explodir  em  diversas  localidades 
do país vários protestos sociais que passaram a desenvolver formas de 
mobilização  popular  pautadas  pela  ação  direta.  A  somatória  dos 
protestos e tensões sociais que assolavam todo o país desde a sua fase 
mais  aguda  entre  os  anos  de  1996  e  1997,  explode  nos  dias  19  e  20  de 
dezembro de 2001 na grande rebelião generalizada.  

116
Por  todo  o  país  eclodiam  tensões  sociais,  movimento  de 
desempregados,  mulheres  agropecuaristas  em  luta,  greves  de 
professores, ocupação de fábricas e vários outros setores sociais em luta 
contra  aquilo  que  era  considerado  por  eles  os  responsáveis  por  toda  a 
gama  de  dificuldades,  lumpemproletarização  e  empobrecimento  e 
diversas  outras  humilhações  sociais.  Dentre  os  eleitos  responsáveis 
destacam‐se:  os  governantes,  os  partidos  políticos,  o  próprio  Estado,  a 
burocracia  estatal,  partidária  e  sindical,  suas  hierarquias,  o  sistema 
financeiro nacional e internacional, o FMI e o Banco Mundial e, para os 
setores  mais  radicalizados,  todas  as  relações  sociais  pautadas  pela 
obrigatoriedade  capitalista  da  exploração  do  homem  em  troca  da 
obtenção de lucros. Por essas razões o lema central dessas jornadas foi 
expresso na frase “Que se vayan todos, que no quede ni uno solo!” 35. 
Cont.O  caráter  massivo  dos  protestos  sociais  promovido  pelos 
diversos  movimentos  piqueteiros  argentinos,  juntamente  com  seus 
métodos  de  bloqueios  de  estradas  que  impossibilitava  a  circulação  de 
veículos,  pessoas  e,  principalmente  mercadorias,  assim  como  a 
construção de formas de participação e decisões políticas pautadas por 
uma  espécie  de  democracia  direta,  decisões  coletivas  e  horizontais  em 
assembléias  etc.  consistiram  nas  principais  razões  que  levaram  os 
poderes  governamentais  a  temerem  a  expansão  dessas  formas  de 
organização e da consciência de classe derivada das mesmas.  
Por  esses  motivos  é  que  desde  o  início  dos  primeiros  levantes  de 
desempregados,  o  governo  argentino  procurou  criminalizar  as  lutas 
sociais. No primeiro momento com a ampliação da repressão policial – o 
deslocamento  da  Gendarmería  (tropas  militares),  que  originalmente  foi 
criada  para  defender  as  fronteiras  nacionais,  para  as  províncias 
patagônicas  tomadas  pelas  puebladas  é  um  sinal  demonstrativo  da 
mudança  na  política  repressiva.  Com  o  avanço  das  lutas  e  das 
mobilizações  populares  o  governo  inicia  um  intenso  processo  de 
judicialização  dos  militantes  de  diversos  movimentos  sociais, 
principalmente  dos  integrantes  de  movimentos  piquteros.  Segundo 
Korol& Longo, 
 

35 “Que todos vão embora, que não fique nenhum sequer” (tradução nossa). 

117
algumas  das  formas  em  que  se  manifesta  a  criminalização  dos  movimentos 
populares  é  o  avanço  do  processo  de  judicialização  dos  conflitos,  visível  na 
multiplicação  e  no  agravamento  das  figuras  penais,  na  maneira  em  que  estas 
são  aplicadas  por  juízes  e  promotores,  no  número  de  processos  contra 
militantes  populares,  na  estigmatização  de  populações  e  grupos  mobilizados, 
no  incremento  das  forças  repressivas  e  na  criação  especial  de  tropas  de  elite, 
orientadas para a repressão e militarização das zonas de conflito (2009, p. 84). 
 
Outra estratégia adotada pelo governo argentino para criminalizar o 
movimento  piqueteiro  se  deu  através  do  uso  excessivo  do  capital 
comunicacional  com  o  objetivo  de  criar  uma  imagem  negativa  dos 
militantes.  Dessa  forma,  o  capital  comunicacional  apresentava  os 
manifestos  por  direitos  sociais  como  delitos  contra  a  ordem  e  os 
manifestantes  como  delinquentes  violentos,  assim  como  ocultando  as 
motivações populares e apresentando apenas os episódios de violência 
popular,  com  isso  gerando  o  medo,  fragmentando  a  sociedade  e 
impossibilitando o crescimento do apoio às lutas por direitos sociais36. 
O  regime  de  acumulação  integral  é  marcado  por  contradições 
crescentes, pois se de um lado é necessário, para manter a acumulação 
capitalista,  realizar  cortes  drásticos  em  políticas  sociais,  corroer  os 
direitos  trabalhistas,  precarizar  e  intensificar  as  relações  de  trabalho, 
expandir  e  intensificar  a  lumpemproletarização  para  alimentar  o 
exército  industrial  de  reserva  e  seu  papel  na  manutenção  de  baixos 
salários  e  etc.,  por  outro  lado  ela  se  vê  obrigada  a  intensificar  a 
repressão,  pois,  em  consequência  de  tais  práticas,  cresce  a  violência 
contra  a  propriedade  privada,  os  protestos  sociais  se  radicalizam  e  a 
criminalidade  tende  a  se  generalizar.  No  entanto,  o  Estado  neoliberal 
não pode ser mantido às custas da não redução da dívida pública e da 
poupança de recursos, e por isso tal Estado opta por ampliar o aparato 
repressivo  e  criminalizar  o  movimento  piqueteiro  e  diversos  outros 
movimentos  sociais.  É  exatamente  isso  que  vem  ocorrendo  na 
Argentina contemporânea e em diversas outras regiões do globo. 

36  Para  saber  mais  sobre  o  processo  de  criminalização  da  pobreza  e  dos  movimentos 
sociais  na  Argentina  Cf.  KOROL,  Claudia  (org.).  Criminalización  de  la  pobreza  y  de  La 
protesta  social.  Buenos  Aires:  El  coletivo/America  libre,  2009);  CARDOZO,  Fernanda. 
“Protestar  não  é  delito”.  A  criminalização  dos  movimentos  sociais  na  Argentina 
contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997‐2007). 2008. Dissertação (mestrado 
em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 130 p. 

118
O movimento piqueteiro nos fornece um excelente exemplo de que 
a postura política do lumpemproletariado não é a mesma em todos os 
contextos  históricos,  pois  se  na  França  do  século  XIX,  o 
lumpemproletariado  foi  cooptado  pelo  Estado  francês  e  utilizado  na 
repressão  contra  o  avanço  das  lutas  operárias,  na  argentina 
contemporânea,  as  lutas  dessa  classe  social  desenvolveu‐se  de  forma 
autônoma, inicialmente desvinculada das instituições burocráticas, tais 
como sindicatos e partidos políticos, resgatando práticas do movimento 
operário revolucionário (assembleias coletivas e horizontalizadas, auto‐
organização  dos  bairros  e  de  algumas  atividades  produtivas  etc.)  e 
adquirindo  elevados  níveis  de  radicalidade,  que  o  tornou  o  principal 
ator em luta contra a intensificação da lumpemproletarização, típica da 
acumulação integral subordinada.  
Portanto,  não  é  possível  afirmar  que  o  lumpemproletariado  é,  e 
sempre  será  politicamente  reacionário  e  cooptável,  pois  sua  postura 
política se altera dependendo do contexto, das singularidades regionais 
e  da  correlação  das  forças  sociais,  podendo  a  representar  uma 
importantíssima  aliança  com  o  proletariado  em  torno  de  um  bloco 
revolucionário.  Na  contemporaneidade,  a  postura  contestadora  do 
lumpemproletariado  tende  a  crescer  e,  consequentemente,  a  se 
apresentar como uma ameaça cada vez maior à existência da sociedade 
capitalista. 
O  processo  de  lumpemproletarização,  respeitando  as 
particularidades  nacionais,  atinge  com  maior  ou  menor  intensidade 
todo  o  mundo,  pois  como  foi  dito  nesse  trabalho,  a 
lumpemproletarização é um processo inerente à dinâmica de produção 
capitalista.  Constata‐se  que  esse  processo  tende  a  se  expandir  na 
contemporaneidade.  Apenas  para  reforçar  essa  tese,  gostaríamos  de 
mencionar  o  processo  de  universalização  da  lumpemproletarização, 
demonstrando‐o,  rapidamente,  em  outras  regiões:  México,  Suécia  e 
China. 
Em linhas gerais, o processo de lumpemproletarização no México se 
assemelha  ao  ocorrido  em  outras  nações  de  capitalismo  subordinado, 
tal  como  no  Brasil  e  Argentina.  O  processo  de  privatização  realizou, 
entre os anos de 1988 e 1994, a demissão de metade dos trabalhadores 
dos setores públicos. Visando regularizar a estrutura social segundo os 
interesses da acumulação integral, diversas alterações foram realizadas 

119
na Constituição promulgada pela Revolução Mexicana de 1917. Dentre 
elas, a que mais serve aos nossos propósitos, foi a alteração realizada no 
ano de 1991 que aprovou a lei de reforma que autorizava e  estimulava 
a  privatização  de  terras  sob  o  sistema  ejido  (terra  de  uso  e  posse 
coletiva).  Desprotegidos,  milhares  de  indígenas  passaram  a  perder  a 
base  de  sua  segurança  coletiva,  antes  garantida  pelo  sistema  ejido,  e 
migraram  para  as  principais  cidades  mexicanas,  expandindo,  dessa 
forma,  o  exército  industrial  de  reserva  composto  pelo 
lumpemproletariado (HARVEY, 2008a). 
Mesmo  a  Suécia,  país  de  capitalismo  imperialista  com  uma  forte 
política de “bem‐estar social”, não esteve isenta de sofrer o processo de 
lumpemproletarização.  Com  o  objetivo  de  combater  a  tendência 
declinante  da  taxa  de  juros,  a  partir  da  década  de  1970,  diversas 
medidas  adotadas  demonstravam  que  as  preocupações  sociais  haviam 
se  transferido  para  as  preocupações  financeiras.  O  pleno  emprego  foi 
substituído  pelo  combate  à  inflação.  Segundo  Harvey  (2008a),  “o 
colapso  da  bolha  especulativa  nos  preços  dos  ativos  que  se  seguiu  ao 
aumento  dos  preços  do  petróleo  de  1991  levou  à  fuga  de  capitais  e  a 
falências  internas  que  custaram  muito  ao  governo  sueco”  (p.  124). 
Seguindo,  quase  irrestritamente,  a  cartilha  neoliberal,  a  Suécia  sofreu 
uma  forte  depressão  que  resultou  no  aumento  dobrado  das  taxas  de 
desemprego em apenas dois anos. 
Desde o final da década de 1970 e início da década de 1980 a China 
vem  passando  por  uma  série  de  reformas  econômicas  que  visavam  o 
estabelecimento  de  forças  de  mercado  em  sua  economia,  bem  como 
estimular a competição entre as empresas estatais a fim de promover a 
inovação e o crescimento. Além disso, e 
 
para  complementar  esse  esforço,  também  se  promoveu  a  abertura  da  China, 
ainda  que  sob  a  estrita  supervisão  do  Estado,  ao  comércio  e  ao  investimento 
externos,  acabando‐se  assim  com  o  isolamento  chinês  do  mercado  mundial 
(HARVEY, 2008a, p. 132). 
 
Diversas medidas internas foram tomadas para assegurar o sucesso 
dessas reformas. Dentre elas, destacaremos as mudanças ocorridas nas 
comunas  agrícolas.  De  acordo  com  Harvey  (2008a),  estabeleceu‐se  na 
China  uma  economia  de  mercado  mais  aberta  em  volta  das  principais 
Empresas  de  Propriedade  do  Estado  (EPEs),  através  da  dissolução  das 

120
comunas agrícolas em favor de um sistema de “responsabilidade social” 
individualizado,  no  qual,  inicialmente,  era  permitido  aos  camponeses 
vender os excedentes no mercado livre ao invés de serem tabelados pelo 
Estado.  No  entanto,  no  final  da  década  de  1980,  todas  as  comunas 
haviam sido completamente dissolvidas. 
Apesar  de  não  serem  proprietários  formais  das  terras,  os 
camponeses  podiam  arrendá‐las,  pagar  outros  trabalhadores  para 
produzir na terra e vender seus produtos a preço de mercado etc.. Entre 
1978  e  1984,  as  rendas  rurais  se  elevaram  e  atingiram  um  espantoso 
crescimento  de  14%  ao  ano,  porém  a  partir  de  1984  esse  crescimento 
começa  a  cair  até  atingir  uma  estagnação  completa,  principalmente  a 
partir de 1995, em quase todas as áreas de produção. Juntamente com o 
declínio  das  rendas  rurais,  os  camponeses  perderam  diversos  direitos 
sociais. 
 
A  disparidade  entre  rendas  rurais  e  rendas  urbanas  aumentou 
acentuadamente.  Estas,  que  eram  em  média  80  dólares  anuais  em  1985, 
dispararam  para  1.000  em  2004,  ao  passo  que  aquelas  passaram  de  mais  ou 
menos 50 dólares para cerca de 300 nesse mesmo período. Além disso, a perda 
de direitos sociais coletivos antes estabelecidos no âmbito das comunas – por 
poucas que pudessem ter sido – implicara para os camponeses o ônus de pagar 
altas  taxas  de  uso  por  escolas,  assistência  médica  etc.  Não  era  isso  o  que 
acontecia  com  boa  parte  dos  residentes  urbanos  permanentes,  que  também 
foram favorecidos a partir de 1995, quando uma lei de propriedade imobiliária 
urbana  assegurou  o  direito  de  propriedade  de  imóveis  a  residentes  urbanos, 
que  puderam  então  especular  com  os  preços  daqueles.  A  diferença  entre  os 
ambientes rural e urbano quanto a nível de renda real é hoje, segundo algumas 
estimativas, maior de que em qualquer outro país do mundo (HARVEY, 2008a, 
p. 137). 
 
Não  é  difícil  imaginar,  devido  às  proporções  gigantescas  do 
contingente  populacional  rural  chinês,  o  tamanho  do  êxodo  rural 
experimentado no país a partir da década de 1990 e, consequentemente, 
a  expansão  do  processo  de  lumpemproletarização  nas  principais 
cidades  do  país.  No  ano  de  2005,  a  China  experimentava  o  maior 
processo de migração em massa já ocorrido em todo o mundo e que já 
ultrapassa ilimitadamente as migrações ocorridas para a América e para 
todo mundo ocidental moderno.  
 

121
Segundo  estatísticas  oficiais, há  “114  milhões  de  trabalhadores  migrantes  que 
deixaram  áreas  rurais,  temporariamente,  ou  para  sempre,  a  fim  de  trabalhar 
nas  cidades”,  e  especialistas  do  governo  “prevêem  que  esse  número  vai  se 
elevar  a  300  milhões  até  2020,  e  até  mesmo  a  500  milhões.  Só  Xangai  “tem  3 
milhões de trabalhadores migrantes; em comparação, considera‐se que toda a 
migração  irlandesa  para  a  América  entre  1820  e  1930  envolveu  talvez  4,5 
milhões de pessoas” (HARVEY, 2008a, p. 138). 
 
Esse  processo  de  migração  em  massa  formou  um 
lumpemproletariado  colossal  e,  por  conseguinte,  possibilitou  uma 
superexploração  da  mão‐de‐obra  nas  cidades.  O  maior  exemplo  dessa 
relação  entre  lumpemproletariado  colossal  e  superexploração  da  mão‐
de‐obra se revela nos abundantes casos de trabalho escravo no país37.  
 

37 “Na China, as condições em que trabalham jovens mulheres que migraram das áreas 
rurais não são menos que horrendas: ‘um número insuportavelmente longo de horas 
de  trabalho,  comida  bem  ruim,  dormitórios  apertados,  gerentes  sádicos  que  as 
espancam  e  se  aproveitam  sexualmente  delas  e  o  pagamento  que  só  vem  meses 
depois, quando vem’” (HARVEY, 2008a, p. 182). 

122
LUMPEMPROLETARIZAÇÃO NA ERA DA ACUMULAÇÃO 
INTEGRAL NO BRASIL 

4.1 MUDANÇAS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO E TOYOTISMO 
 
O processo de “reestruturação produtiva” se inicia no Brasil a partir 
da década de 1990, no entanto, para que possamos compreender todas 
as  mudanças  ocorridas  nas  relações  de  trabalho  a  partir  dessa  década, 
torna‐se necessário, mesmo que brevemente, resgatarmos uma série de 
políticas  de  ajuste  e  de  modernização  tecnológica  pelas  quais  diversas 
empresas passaram desde o final da década de 1970, período no qual se 
inicia  o  declínio  do  regime  de  acumulação  sob  o  qual  se  estruturou  a 
fase anterior de nosso desenvolvimento econômico.  
Ainda  na  década  de  1956,  a  economia  nacional  verifica  um 
crescimento  intenso  da  capacidade  produtiva  do  setor  de  bens  de 
produção  e  de  bens  de  consumo  duráveis.  Tal  crescimento  é  derivado 
da consolidação de um parque industrial de significativas proporções e 
que  adquire  níveis  importantíssimos  de  complementaridade  entre  os 
diversos  setores  a  partir  do  “processo  de  industrialização  pesada” 
(LEITE, 1994, 2003). De acordo com Suzigan (1988), 
 
a  estrutura  industrial  avançou  no  sentido  de  incorporar  segmentos  da 
indústria pesada, da indústria de bens de consumo duráveis e da indústria de 
bens  de  capital,  substituindo  importações  de  insumo  básicos,  máquinas  e 
equipamentos,  automóveis,  eletrodomésticos  etc.  Essa  estrutura  seria  a  base 
sobre  a  qual  se  apoiaria  o  rápido  crescimento  da  produção  industrial  na 
primeira fase do ciclo expansivo 1968 a 1973, 1974 (Apud LEITE, 1994, p. 126). 
 
Portanto, a década de 1970 é marcada por um processo industrial de 
grande  expansão,  caracterizado  tanto  pela  aceleração  da  produção  e 
emprego  industrial  quanto  pelo  crescimento  acelerado  da  força 
produtiva  dos  ramos  de  bens  de  produção  e  de  bens  de  consumo 
duráveis.  Conforme  analisam  Gitahy,  Leite  e  Rabelo  (apud  LEITE, 
2003), esse processo se dá em um contexto de concorrência direcionada 
a  um  mercado  interno  em  expansão  e  protegido  por  políticas  de 
proteção e controle de importações, assim como pelo desenvolvimento 
do  setor  de  bens  de  capital  que  visava  atender  à  demanda  do  setor 

123
público  e  à  do  setor  de  bens  de  consumo  duráveis,  que  também  se 
encontrava em expansão.  
Com o avanço tecnológico experimentado por inúmeras indústrias a 
partir  de  1956,  diversas  técnicas  e  princípios  tayloristas/fordistas  de 
organização do trabalho se difundem pelo país. É claro que tais técnicas 
e princípios foram introduzidos de forma a se adequarem à realidade e 
possibilidades  nacionais,  pois  não  há  homogeneidade  na  aplicação  de 
tais  formas  de  organização  do  trabalho  no  mundo.  Porém,  mesmo 
contendo  diferenças  expressivas  em  relação  ao  modelo  existente  nos 
países  imperialistas,  é  possível  perceber  a  presença  de  características 
tipicamente fordistas na produção brasileira do período, tais como uma 
expressiva mecanização acompanhada de uma expansão dos mercados 
de  bens  de  consumo  duráveis.  No  geral,  as  diferenças  se  mostram  em 
relação  à  qualidade  na  fabricação  e  na  tecnologia  de  engenharia  na 
produção  de  mercadorias,  bem  como  nas  singularidades  do  mercado 
brasileiro que é 
 
formado  por  uma  combinação  específica  entre  o  consumo  das  classes  médias 
modernas  locais,  com  o  acesso  parcial  dos  operários  dos  setores  de  ponta  da 
economia  aos  bens  de  consumo  popular  duráveis,  e  as  exportações  destes 
mesmos  produtos  manufaturados  a  baixos  preços  para  os  países  centrais.  O 
crescimento  da  demanda  não  é,  dessa  forma,  regulado  numa  base  nacional, 
como no caso dos países centrais, mas se encontra, pelo contrário, acoplado ao 
mercado  internacional,  ainda  que  o  conceito  se  restrinja  aos  países  onde  o 
crescimento  do  mercado  interno  cumpriu  um  papel  importante  no  regime  de 
acumulação nacional (LEITE, 1994, p. 128). 
 
Esse  regime  de  acumulação  entrou  em  crise  a  partir  do  final  da 
década  de  1970  quando  inúmeros  fatores  promoveram  o  seu 
enfraquecimento.  Dentre  eles  poderíamos  mencionar  as  contradições 
internas  derivadas  das  pressões  demográficas,  a  dificuldade  de 
expansão  do  mercado  interno  (devido,  principalmente,  à  política  de 
desvalorização  salarial),  as  lutas  operárias  que  irão  promover  uma 
constante  resistência  e  obstáculo  ao  aumento  da  exploração  capitalista 
desse período e a crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo no 
capitalismo  imperialista  (EUA  e  Europa  Ocidental)  que  a  partir  da 
década de 1980 provocará uma retração no mercado mundial.  
Antes  de  avançarmos  no  desenvolvimento  das  lutas  operárias, 
principal  força  enfraquecedora  da  acumulação  capitalista,  voltaremos 

124
um pouco na história, pois para compreendermos as condições de vida 
e  trabalho  da  classe  operária  brasileira  durante  a  vigência  da  ditadura 
militar é imprescindível apresentarmos a razão de ser de tal ditadura e 
a  dinâmica  do  processo  de  acumulação  subordinada,  característica  do 
Brasil. Sendo assim, que fatores explicam a eclosão do golpe militar de 
1964  e  que  relação  os  mesmos  possuem  com  a  resistência  promovida 
pela classe operária entre os anos de 1964 e 1984? 
Já no final da década de 1950 é possível percebermos a mobilização 
crescente  de  diversos  setores  sociais  (operariado,  campesinato, 
movimento  estudantil  etc.)  na  luta  contra  o  Estado  populista.  Nesse 
período  o  movimento  operário  começa  a  dar  sinais  de  grande 
descontentamento  com  a  política  salarial  e  com  a  escalada  vertiginosa 
da inflação no país. Os anos seguintes também conviverão com diversas 
lutas operárias (VIANA, 2005).  Segundo Castro, 
 
a  escalada  inflacionária  leva  a  uma  escalada  das  greves.  Anos  após  anos  os 
recordes de horas perdidas são batidos. Em 1958, destaca‐se a paralisação por 7 
dias da marinha mercante em todo o país, com a participação de centenas de 
milhares  de  marinheiros.  Malgrado  a  ilegalidade  da  greve,  JK  acabou 
concedendo  à  maioria  das  reivindicações.  Nos  transportes  urbanos,  a  greve 
dos  carris  do  Rio  de  Janeiro,  apoiada  por  fortes  e  violentas  manifestações 
estudantis,  também  termina  vitoriosa  [...]  Em  1959,  não  somente  as  greves  se 
intensificaram,  como  a  desasperação  pela  contínua  erosão  dos  salários 
provocou a multiplicação de manifestações de ruas com choques violentos com 
as  forças  policiais.  Protestos  contra  a  alta  dos  preços  seguiam‐se 
frequentemente de pilhagens de armazéns. Em vários casos as forças policiais 
utilizaram  armas  de  fogo  ou  baionetas  para  reprimir  os  manifestantes, 
provocando  ferimentos  e  a  morte  de  dezenas  destes  (Apud  VIANA,  1980,  p. 
69‐70). 
 
Os  primeiros  anos  da  década  de  1960  são  marcados  pela  expansão 
do  movimento  grevista  para  diversas  categorias  de  trabalhadores.  A 
cidade de Santos atinge a marca de 01 milhão e meio de trabalhadores 
em  greve  e  a  decretação  de  uma  greve  geral  apresenta‐se  como  o 
momento máximo das lutas operárias. Com a expansão da mobilização 
de  diversos  setores  (ferroviário,  marítimo,  portuário,  aeroviários, 
estivadores)  o  governo  João  Goulart  se  vê  obrigado  a  realizar 
concessões e aumentos salariais.  
 

125
Em  outubro  de  1962,  700  mil  operários  entram  em  greve  em  São  Paulo  e 
conseguem  aumentos  salariais.  Assim,  o  movimento  operário,  bem  como  o 
movimento  estudantil  e  dos  trabalhadores  rurais,  realizam  uma  ascensão  em 
suas  lutas  que  dificultava  a  concretização  dos  interesses  da  classe  capitalista 
que era aumentar a taxa de exploração (VIANA, 2005, p. 24). 
 
De acordo com Viana (2005), esse processo de ascensão e expansão 
das  lutas  dos  trabalhadores  promovia  temor  nas  forças  políticas 
conservadoras e levavam os populistas a “radicalizarem” seus discursos 
na  tentativa  de  se  aproximarem  mais  dos  setores  populares  com  o 
intuito  de  ganharem  maior  apoio  político.  Os  níveis  de  pressão  dos 
trabalhadores  determinavam,  de  certa  forma,  a  política  salarial  do 
período que, ora apontava para uma maior exploração do trabalho, ora 
apontava  para  sua  diminuição.  No  entanto,  os  primeiros  anos  da 
década de 1960 foram marcados por uma maior radicalização e pressão 
dos  trabalhadores  sobre  a  classe  capitalista  e  suas  classes  auxiliares  e 
isso acabava por gerar obstáculos ao processo de acumulação nacional, 
por conseguinte dificultando a acumulação nos países imperialistas, por 
dificultar o aumento da extração de mais‐valor internacional.  
Nesse  sentido,  a  lutas  dos  trabalhadores,  sem  sombra  de  dúvidas, 
foi  fundamental  para  obstaculizar  a  tentativa  de  intensificação  da 
exploração do capital sobre o trabalho que, diga‐se de passagem, já era 
elevadíssima,  porém,  outra  determinação  também  deve  ser  levada  em 
conta  nesse  processo.  Trata‐se  da  condição  brasileira  de  capitalismo 
subordinado  ao  capitalismo  imperialista  (principalmente  o  norte‐
americano).  
O  contexto  no  qual  estamos  tratando  equivale,  em  nível 
internacional,  ao  período  de  crise  do  regime  de  acumulação  intensivo‐
extensivo  e  que,  portanto,  levava  os  países  imperialistas  a  buscar 
soluções para a crise de acumulação pelas quais passavam. Contudo, as 
soluções  apontavam  para  a  busca  pelo  aumento  da  extração  de  mais‐
valor  sobre  o  trabalho  ainda  no  interior  desse  mesmo  regime  de 
acumulação  e  “isto  significava  buscar  aumentar  o  processo  de 
exploração  sem  criar  grandes  alterações  no  regime  de  acumulação” 
(VIANA, 2005, p. 26). Dessa forma, as lutas operárias se apresentavam 
como  um  obstáculo  não  só  para  a  acumulação  nacional,  mas,  também 
para  a  acumulação  imperialista  norte‐americana  no  Brasil  e,  assim 
sendo,  os setores conservadores (capital transnacional, capital nacional 

126
e  suas  classes  auxiliares)  se  uniram  na  tentativa  de  remover  tais 
obstáculos  combatendo  a  resistência  das  classes  trabalhadoras  com  o 
intuito  de  promover  a  intensificação  da  exploração  do  capital  sobre  o 
trabalho, tal como ocorreu no período pós‐golpe de 1964, bem como no 
contexto  internacional  que  já  anunciava  a  possibilidade  de  uma 
transição para outro regime de acumulação. 
O  apoio  norte‐americano  ao  golpe  de  1964  revela,  entretanto,  os 
interesses desse país em garantir em território brasileiro uma saída para 
a  crise  na  qual  se  encontrava  por  meio  do  aumento  da  exploração  e, 
consequentemente,  de  uma  maior  extração  de  mais‐valor  através  de 
suas empresas transnacionais. Dessa forma, 
 
o  golpe  de  64  foi  produto  da  ofensiva  capitalista  realizada  pelas  potências 
imperialistas (principalmente os EUA) e, com o apoio da burguesia brasileira e 
outros  setores,  consegue  produzir  um  amplo  aparato  repressivo  e  ao  mesmo 
tempo  desalojar  do  governo  setores  populistas  e  reformistas  que  tinham 
dificuldades em atacar diretamente os trabalhadores e aumentar o processo de 
exploração [...] permitindo aumentar o processo de acumulação capitalista no 
Brasil para sustentar as necessidades da burguesia brasileira e a transferência 
de  mais‐valor  para    sustentar  as  necessidades  dos  países  imperialistas, 
principalmente  dos  Estados  Unidos.  Em  síntese,  é  a  ascensão  das  lutas 
operárias e de outros setores sociais que promoveu a necessidade de transição 
da  democracia  burguesa  para  a  ditadura,  pois  somente  esta  possibilitaria  a 
ampliação da taxa de exploração naquele contexto, o que era uma necessidade 
vital do capital neste período (VIANA, 2005, p. 27). 
 
Destarte,  a  ditadura  militar  tinha  como  objetivo  fundamental 
garantir  aquilo  que  a  “democracia”  populista  não  conseguia  realizar 
naquele  momento,  isto  é,  uma  dura  ofensiva  em  nome  do  capital 
(nacional  e  transnacional)  contra  a  classe  trabalhadora.  Foi  exatamente 
essa  a  política  de  estado  implementada  pelos  militares  no  poder.  A 
ditadura  militar  e  o  regime  de  acumulação  desenvolvido  no  país 
estavam em harmonia com as transformações que vinham ocorrendo na 
divisão  internacional  do  trabalho,  e  que  gestavam  novas  formas  de 
valorização  do  capital  por  parte  dos  países  imperialistas,  nas  quais  o 
aumento  de  extração  de  mais‐valor  fora  de  suas  fronteiras  nacionais 
adquiria  importância  fundamental.  Tais  formas  de  valorização  do 
capital  iam  ao  encontro  dos  interesses  dos  setores  conservadores  que, 
há  tempos  se  vinculavam  ao  capital  internacional  e,  por  conseguinte, 

127
viam  com  bons  olhos  uma  maior  abertura  da  economia  ao  capital 
estrangeiro (Costa, 1997). 
Nesse  sentido,  a  política  de  Estado  consumada  no  Brasil  buscou 
construir  um  regime  de  acumulação  que  se  afirmava  numa  intensa 
extração de mais‐valor absoluto aliada a uma constante depreciação da 
força  de  trabalho  buscando  ampliar  a  taxa  de  lucro  das  grandes 
empresas e promover um acelerado processo de acumulação de capital. 
Esse  novo  regime  de  acumulação  acabou  por  promover  também,  uma 
enorme desigualdade social, uma vez que promoveu uma intensificação 
da lumpemproletarização ‐ que já era enorme no país –, pois as taxas de 
desemprego  se  elevaram  e,  consequentemente,  como  é  regra  no 
capitalismo,  a  exploração  das  classes  trabalhadoras  e  a  depreciação  do 
valor da sua força de trabalho. Com o intuito de ilustrar o que acabamos 
de  afirmar,  recorremos  às  análises  de  Edmilson  Costa  na  sua  obra  A 
política salarial no Brasil (1997) que assim diz: 
 
Em  termos  concretos,  em  1984  os  trabalhadores  da  faixa  de  salário  mínimo 
foram  obrigados  a  trabalhar  cerca  de  60%  de  horas  a  mais  para  adquirir  os 
mesmos  bens  da  cesta  básica  de  1963,  o  que  revela,  por  um  lado,  uma  brutal 
desvalorização  do  preço  da  força  de  trabalho  e,  por  outro,  um  grau  de 
exploração  perverso,  traduzido  num  aumento  da  mais‐valia  absoluta  [...] 
Como  o  salário  mínimo  funciona  como  um  farol  para  a  grande  maioria  dos 
salários,  estrutura‐se  um  mercado  de  trabalho  de  baixos  salários,  ou  seja,  um 
mercado de trabalho com salários pagos abaixo do valor da força de trabalho 
(p. 41‐42). 
 
Em  relação  ao  aumento  da  extração  de  mais‐valor  absoluto,  ele 
continua afirmando: 
 
Esse  panorama  torna‐se  mais  crítico  se  a  essas  informações  acrescentarmos  o 
fato  de  que  ocorreu,  no  auge  do  “milagre”,  um  prolongamento  excessivo  da 
jornada de trabalho. As horas extras se transformaram num fato cotidiano em 
praticamente  todas  as  categorias  operárias  e  podem  ser  entendidas  como  um 
instrumento  compensatório  à  desvalorização  do  preço  da  força  de  trabalho. 
Não  seria  exagero  afirmar  que  a  jornada  de  trabalho  no  país  retroagiu  para 
algo próximo dos patamares da primeira revolução industrial, tanto em setores 
onde  esse  fato  é  tradicional  (construção  civil),  quanto  em  setores  de  ponta, 
situando‐se entre 10‐12 horas de trabalho (p. 43‐44). 
 

128
As  relações  de  trabalho  dominantes  na  época  da  ditadura  militar 
eram  marcadas,  essencialmente,  por  práticas  autoritárias  de  cunho 
paternalista  e  corporativista  que  dificultavam  qualquer  tentativa  de 
representação  dos  interesses  do  proletariado.  O  amplo  processo  de 
desenvolvimento  industrial  que  contribuiria  para  a  emergência  de  um 
novo  regime  de  acumulação  capitalista  não  veio  acompanhado  de 
melhorias  nas  condições  de  vida  e  trabalho  da  classe  operária.  Pelo 
contrário, pois o controle da força de trabalho caracterizou‐se por uma 
imensa  parcelização  das  tarefas,  pelo  extenso  uso  de  força  de  trabalho 
não‐qualificada,  por  elevadas  taxas  de  rotatividade,  pela  adoção  de 
complexas  estruturas  de  cargos  e  salários  que  objetivavam  promover 
uma  maior  divisão  e  controle  sobre  a  classe  operária  (LEITE,  2003). 
Portanto, 
 
no  período  da  ditadura  militar,  a  superexploração  do  trabalho  no  Brasil  iria 
assumir  sua  maior  perversidade  histórica,  articulando  uma  jornada 
prolongada  de  trabalho  com  uma  intensidade  extenuante  do  processo 
produtivo,  e  uma  tendência  persistente  à  depreciação  salarial,  à  constante 
subtração  do  quantum  referente  à  remuneração  do  trabalho,  em  benefício  do 
mais‐valor  apropriado  pelo  capital  monopólico.  Outro  aspecto  da 
superexploração do trabalho sob a ditadura militar era o despotismo do capital 
no local de trabalho e a utilização de operários não qualificados com alto grau 
de rotatividade na linha de produção (ALVES, 2005, p. 109). 
 
Seguindo  a  tendência  intrínseca  ao  capitalismo,  em  todo  o  período 
governado  pelos  militares,  as  articulações  do  capital  para  ampliar  a 
extração de mais‐valor vieram acompanhadas de diversas tentativas do 
movimento  operário  de  reduzir  o  tempo  de  trabalho  utilizado  na 
extração  de  mais‐valor,  através  de  diversas  estratégias  (absenteísmo, 
“operação  tartaruga”,  paralizações  temporárias  da  produção  etc.), 
porém a principal ferramenta utilizada pelo movimento operário, e por 
diversas  outras  categorias  profissionais  que  compunham  a  classe 
trabalhadora,  e  que  gerava  uma  maior  consciência  política,  foi  a 
realização  de  greves.  Entre  os  anos  de  1964  e  1984  eclodiram  em 
diversas regiões do país greves e outras formas de resistência da classe 
trabalhadora.  
Mesmo  vivendo  sob  uma  ditadura  militar  que  impunha  uma 
repressão  violentíssima  a  toda  e  qualquer  tentativa  de  mobilização  e 
organização  da  classe  trabalhadora,  ora  a  resistência  avançava  e 

129
acumulava forças para pressionar o capital e seus representantes, ora a 
resistência entrava em refluxo38.  
O  que  é  importante  destacar  é  que  a  luta  de  classes  que 
acompanhou  toda  a  ditadura  militar  no  Brasil  foi  fundamental  não 
apenas para promover uma maior abertura política, mas, também, por 
dificultar  a  estratégia  do  capital  (nacional  e  transnacional)  em  garantir 
uma  maior  extração  de  mais‐valor.  Aliado  a  isso  temos  em  nível 
internacional a crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo que 
irá  coagir  a  burguesia  dos  países  imperialistas  a  pressionar  os  países 
subordinados  com  vistas  a  promoverem  melhores  condições  para  um 
novo ciclo de acumulação dos seus capitais.  
Consequentemente,  um  novo  regime  de  acumulação  se  torna 
necessário e a procura pelo mesmo voltou a ser o objetivo da burguesia 
internacional  que  reinicia  uma  nova  ofensiva  capitalista,  tanto 
internamente,  a  partir  da  década  de  1980,  quanto  fora  das  suas 
fronteiras. No caso do Brasil, esse novo regime de acumulação passa a 
ser engendrado ainda na década de 1980, porém de forma embrionária, 
representando  uma  fase  de  transição  para  o  regime  de  acumulação 
integral,  que  só  se  tornaria  uma  realidade  na  década  de  1990,  quando 
novas  formas  organizacionais  das  relações  de  trabalho,  inspiradas  no 
“modelo  Toyota”,  começaram  a  ser  implementadas  aqui,  assim  como 
seu braço direito regularizador, a política neoliberal.  
Aproximadamente a partir de 1973, o “milagre brasileiro” começa a 
dar  sinais  de  esgotamento  do  seu  regime  de  acumulação,  que  dentre 
suas várias determinações, destaca‐se pela sua condição de dependência 
“à  lógica  do  capital  internacional,  de  acesso  aos  circuitos  do  capital 
financeiro  internacional”  (ALVES,  2005,  p.  110),  pois  tal  regime  gerou 
seus  próprios  limites  de  crescimento  ao  desenvolver  de  forma 
desproporcional a produção de bens de consumo duráveis e a produção 
de  bens  de  produção,  uma  vez  que  nesse  período  há  um  enorme 
crescimento  das  importações  de  bens  de  produção  não  acompanhado 
pela  produção  interna  que  ocasionou  uma  crise  na  balança  de 
pagamentos.  Da  mesma  forma  e  na  mesma  proporção,  houve  um 
incremento  da  remessa  de  lucros,  dividendos,  direitos  de  assistência 

38Sobre o cotidiano das greves no período da ditadura militar (1964‐1984) Cf. (COSTA, 
1997). 

130
técnica, juros de empréstimos que proporcionou uma crise na conta de 
serviços.  A  solução  para  esse  quadro  deficiente  era,  mais  uma  vez, 
recorrer  ao  capital  financeiro  internacional  com  o  intuito  de  suprir  o 
crescente déficit da balança comercial (ALVES, 2005). 
De  acordo  com  Alves  (2005),  os  anos  80  foram  marcados  por  um 
cenário  de  maior  deterioração  da  economia  brasileira,  caracterizado 
pela  instabilidade  macroeconômica  –  hiperinflação,  recessão,  ciranda 
financeira.  A  reprodução  interna  de  capital  se  encontrava 
completamente  comprometida  uma  vez  que  somado  à  crise  da  dívida 
externa  existia  uma  crise  estrutural  do  balanço  de  pagamentos  e  o 
estrangulamento  das  contas  externas.  Diante  desse  conjunto  foi 
colocado à economia brasileira a necessidade imediata e desesperada de 
adquirir  novos  saldos  na  balança  comercial  com  o  objetivo  de  contrair 
meios  de  pagamentos  internacionais  para  cumprir  o  serviço  da  dívida 
externa.  É  essa  relação  de  dependência  ao  capital  financeiro 
internacional  e,  consequentemente,  o  proveito  que  esse  tira  de  tal 
dependência que irá caracterizar o Brasil, desde o início do seu processo 
de  industrialização,  como  um  modelo  de  capitalismo  subordinado  aos 
ditames e interesses das potências imperialistas. 
É diante desse quadro de crise do regime de acumulação no Brasil, 
aliado aos interesses imperialistas em ampliar a produção e extração de 
mais‐valor  através  de  suas  empresas  transnacionais,  que  se  inicia  um 
surto  de  “reestruturação  produtiva”  que  caracterizará  o  regime  de 
acumulação integral no país, pois 
 
a deterioração das contas externas do país debilitou ainda mais as condições de 
reprodução  do  capitalismo  industrial  no  Brasil.  Sob  inspiração  do  Fundo 
Monetário Internacional (FMI), adotou‐se uma política recessiva, que contraiu, 
de  modo  brutal,  o  mercado  externo  (e  as  importações  de  bens  e  serviços)  e 
incentivou  as  exportações  para  o  mercado  internacional.  É  a  partir  daí  que 
surgiu  um  primeiro  “choque  de  competitividade”,  que  obrigou  as  grandes 
empresas,  principalmente  a  indústria  automobilística,  a  adotarem,  ainda  que 
de  modo  incipiente  (e  restrito),  novos  padrões  organizacionais‐tecnológicos 
(ALVES, 2005, p. 120). 
 
 A  retração  do  mercado  interno,  juntamente  com  o  incentivo  às 
exportações,  conduziram,  cada  vez  mais,  as  indústrias  de  ponta, 
principalmente  a  automobilística,  a  adotarem  novas  tecnologias 
microeletrônicas  na  produção,  assim  como,  novas  formas 

131
organizacionais  de  relações  de  trabalho  e  valorização  do  capital 
inspirada  no  “modelo  toyota”.  Era  de  extrema  importância  para  a 
produção  nacional,  garantir  maior  competividade  no  mercado  externo 
atingindo novos padrões de competitividade internacionais. 
A  necessidade  de  ampliar  as  exportações  devido  à  retração  do 
mercado interno, bem como as necessidades de incrementar o superávit 
da  balança  comercial  para  pagamento  das  dívidas  externas,  alteraram 
completamente  os  patamares  de  competitividade  industrial,  exigindo, 
dessa forma, novos padrões de qualidade. De acordo com Leite (2003), 
tais necessidades é que foram responsáveis 
 
ao mesmo tempo pela busca de inovações tecnológicas que visavam aumentar 
a eficiência das empresas e pela substituição de políticas repressivas de gestão 
do  trabalho  por  formas  menos  conflituosas  que  permitissem  às  empresas 
contar  com  a  colaboração  dos  trabalhadores  na  busca  de  qualidade  e 
produtividade (LEITE, p. 69). 
 
É  nesse  contexto  que  diversas  empresas  passam  a  adotar  algumas 
técnicas  japonesas  de  produção,  como  os  Círculos  de  Controle  de 
Qualidade  (CCQ),  assim  como  novos  equipamentos  de  base 
microeletrônica, que dentre eles podemos mencionar: os Controladores 
Lógico  Programáveis  (CLPs),  robôs,  Máquinas‐Ferramenta a  Comando 
Numérico  (MFCNs),  acompanhados  de  inovações  nos  produtos  e 
processos (utilização de sistemas CAD/CAM, just in time, celularização 
da  produção,  tecnologia  de  grupo,  sistemas  de  qualidade  total  com 
utilização de CEP39.  

39 “Os sistemas CAD/CAM (Computer Aided Design/Computer Aided Manufacturing) 
permitem  a  elaboração  de  desenhos  por  computador,  bem  como  o  monitoramento 
computadorizado  do  processo  de  manufatura;  O  just  in  time  é  um  instrumento  de 
controle da produção que busca atender à demanda da maneira mais rápida possível 
e  minimizar  os  vários  tipos  de  estoque  da  empresa  (intermediários,  finais  e  de 
matéria‐prima).  O  sistema  pode  abarcar  tanto  a  relação  da  empresa  com  seus 
fornecedores  e  consumidores  (Just  in  time  externo)  como  apenas  os  vários 
departamentos e setores que compõem uma mesma empresa (justi in time interno); As 
células  de  fabricação  consistem  na  organização  das  máquinas  a  partir  do  fluxo  da 
produção,  permitindo  uma  sensível  diminuição  do  lead  time  (tempo  total  de 
fabricação  de  uma  peça)  e  dos  estoques  intermediários  (tendo  em  vista  que  a 
integração entre as várias máquinas de cada célula elimina o tempo em que as peças 

132
Conforme  mencionam  diversas  pesquisas  sobre  o  assunto,  não  há 
homegeneidade na implementação desse processo em diversos setores e 
regiões  do  país,  no  entanto,  é  possível  levantarmos  alguns  traços 
comuns e determinadas tendências existentes nele. Leite (2003) destaca 
duas  características  importantes  presentes  a  partir  dessa  análise: 
Primeiramente,  ela  destaca  que  apesar  das  estratégias  utilizadas  por 
diversas empresas se diferenciarem, existe um elemento comum a todas 
elas, trata‐se do seu caráter limitado e reativo, ainda que alguns setores 
mais  competitivos,  tal  como  o  automobilístico,  venha  se  destacando 
com  uma  maior  sistematização  desse  processo.  Em  segundo,  vale 
destacar que, ao contrário dos estudos iniciais  sobre o assunto, quanto 
mais  esse  processo  se  consolida,  mais  nocivos  se  mostram  suas 
consequências  sociais.  Dentre  elas  destacaremos,  fundamentalmente,  a 
intensificação  da  lumpemproletarização  via  crescimento  acelerado  do 
desemprego. 
Os  primeiros  sinais  de  aplicação  de  técnicas  japonesas  de 
valorização  do  capital,  maior  controle  e  disciplinamento  da  prática 
operária  são  vistos  entre  o  final  da  década  de  1970  e  início  de  1980, 
quando algumas empresas passam a adotar os Círculos de Controle de 
Qualidade  (CQCs)  sem,  necessariamente,  modificar  as  formas  de 
organização  do  trabalho  ou  investir  mais  sistematicamente  em  novos 
equipamentos  microeletrônicos.  “O  caráter  parcial  e  reativo  dessa 
estratégia foi detectado por vários estudos” (LEITE, 2003, p. 71). 
Em  sua  obra  Trabalho  e  sociedade  em  transformação  –  mudanças 
produtivas  e  atores  sociais  (2003),  Márcia  Leite  comenta  alguns  dos 
principais  estudos  realizados  sobre  as  mudanças  nas  relações  de 
trabalho no Brasil desse período e comenta algumas de suas conclusões. 
Em 1983, Hirata já chamava a atenção para as adaptações da experiência 
japonesa  no  Brasil.  Ela  ressaltava  que  aqui  existia  uma  grande 

tem    normalmente  que  aguardar  nas  prateleiras  antes  de  serem  usinadas  por  cada 
máquina); a tecnologia de grupo consiste no agrupamento das peças a partir de sua 
similaridade  geométrica  e  sequência  de  operações  e  na  destinação  do mesmo  grupo 
de peças ás mesmas máquinas, permitindo uma significativa diminuição no tempo de 
preparação  das  máquinas;  O  Controle  Estatístico  de  Processo  (CEP)  caracteriza‐se 
pela  integração  do  controle  de  qualidade  à  produção,  por  meio  da  utilização  de 
conceitos  básicos  de  estatística  na  inspeção  das  peças,  que  passa  a  ser  feita  pelos 
próprios operadores de máquina” (LEITE, 2003, p. 70). 

133
resistência  por  parte  da  gerência  empresarial  em  delegar  decisões  aos 
operários.  
 
A  autora  sublinhava  que  a  maior  parte  dos  círculos  se  restringia  aos 
trabalhadores  mais  qualificados,  técnicos  e  supervisores,  e  enfatizava  a 
possibilidade  de  que  os  objetivos  primeiros  dos  CQCs  estivessem  sendo 
deformados nas empresas brasileiras (HIRATA apud LEITE, 2003, p. 71). 
 
Salerno  (Apud  Leite,  2003)  destacava  a  pequena  abrangência  das 
questões  tratadas  pelos  círculos,  destacando  a  predominância  de 
assuntos  tratados  a  respeito  dos  custos  da  produção,  assim  como 
alertou  para  a  utilização  dos  círculos  como  forma  de  disciplinar  a 
iniciativa operária, destacando a resistência dos engenheiros em aceitar 
as  propostas  de  alteração  no  método  de  trabalho  proposto  pelos 
próprios trabalhadores. 
Vale  relembrar  que  toda  alteração  nas  formas  organizacionais  das 
relações de trabalho derivam da luta de classes, ou seja, estão inseridas 
na  clássica  disputa  entre  burguesia  e  proletariado  pelo  controle  do 
tempo de produção de mais‐valor. Dessa forma, a adoção de estratégias 
japonesas de formas organizacionais das relações de trabalho, tal como 
os CQCs, são, também, uma resposta à luta operária do final da década 
de 1970 e sua tentativa de, a partir das comissões de fábricas, definirem 
a  forma  de  organização  da  força  de  trabalho  no  interior  das  fábricas40. 
“Nesse  sentido,  os  CQCs  foram  introduzidos  em  muitas  empresas  a 
partir da preocupação gerencial em desviar o ímpeto participativo dos 
trabalhadores  para  formas  alternativas  de  organização  que  contasse 
com maior controle gerencial” (LEITE, 2003, p. 72). 
Outra forma organizacional que passa a ser difundida no Brasil é o 
just  in  time,  no  entanto  até  1985  tal  forma  organizacional  possui  um 
caráter  bastante  restrito,  e  isso  se  dava,  sobretudo,  em  razão  dos 
problemas  que  se  estabelecia  entre  as  empresas  consumidoras  e  os 
fornecedores.  Já  o  just  in  time  interno  se  propagou  rapidamente  em 
diversas empresas brasileiras que “passaram a integrar as várias etapas 
da  produção  a  partir  das  necessidades  colocadas  pelas  vendas, 
diminuindo  consideravelmente  os  estoques”  (LEITE,  2003,  p.  73). 

40  Sobre o desenvolvimento da luta operária no Brasil na década de 1978 e as comissões 
de fábricas Cf. MARONI, 1982; ANTUNES, 1988. 

134
Inúmeros autores vão destacar a grande diferença existente na aplicação 
das  formas  organizacionais  de  inspiração  Toyota  no  Japão  e  em 
diversos  outros  países  e  a  maneira  como  tais  formas  organizacionais 
eram aplicadas no Brasil. Salerno (1985) irá sublinhar que a aplicação do 
just  in  time  no  Brasil,  longe  de  promover  a  especialização  ampla  do 
trabalhador estaria promovendo uma padronização do trabalho: 
 
O  operário  faz  durante  sua  jornada  uma  sequência  limitada  de  operações 
padronizadas e  repetitivas;  a  polivalência  significa  a  capacidade de  alimentar 
mais  de  um  tipo  de  máquina,  antes  de  ser  o  operário  especializado  em  cada 
uma delas; o grupismo se refere a um grupo de máquinas e não a um grupo de 
trabalhadores (Apud LEITE, p. 74). 
 
O  que  se  pode  perceber  é  que  no  Brasil  algumas  formas 
organizacionais do trabalho, inspiradas no toyotismo, se mesclavam ou, 
até  mesmo,  eram  inibidas  por  tradicionais  formas  de  organização  de 
cariz  taylorista  e  fordista,  o  que  acabava  por  demonstrar  as  condições 
materiais  e  sua  singularidade  no  Brasil.  Tal  constatação  permite 
enfatizar nossa interpretação, segundo a qual, não há grandes rupturas 
e  diferenças  entre  taylorismo,  fordismo  e  toyotismo,  mas  sim 
aprofundamento e melhoramento que seguem os avanços tecnológicos 
ou  não,  quando  inexiste  os  mesmos,  e  o  aprendizado  de  experiências 
históricas com a gestão das relações de trabalho. 
 Carvalho e Schmitz (Apud LEITE, 2003), por exemplo, enfatizaram o 
aprofundamento  de  princípios  fordistas  no  processo  de  modernização 
das  empresas  automobilísticas  brasileiras  que  optavam  por  uma 
automação  restrita  e  seletiva,  direcionada  para  a  integração  e 
sincronização das operações de manufatura. Seguindo essa estratégia ‘“as 
tarefas  tornaram‐se  mais  ritmadas  pela  máquina  do  que  antes”  e  o 
fordismo, em vez de ser superado, foi intensificado’. Já para Humphrey, 
os processos de modernização e reestruturação pelos quais passavam as 
empresas brasileiras poderiam ser denominados de uma espécie de “just 
in  time  taylorizado”  no  qual  a  gerência  tenderia  a  administrar  a  fábrica 
como se fosse uma máquina, utilizando uma estratégia que “careceria de 
envolvimento e compromisso, dependendo mais da coerção e da pressão 
sobre os trabalhadores” (Apud LEITE, 2003, p. 76). 
A  década  de  1990  assiste  uma  maior  sistematização  do  processo  de 
“reestruturação produtiva” em diversas empresas brasileiras e tal fato se 

135
deve,  ao  aprofundamento  da  crise  econômica  do  início  dessa  década,  a 
retração  do  mercado  interno,  a  uma  maior  abertura  dos  mercados 
nacionais  e  à  necessidade  das  empresas  locais  fazerem  frente  à 
concorrência internacional (LEITE, 2003; OLIVEIRA, 2004). 
A principal consequência desse conjunto de mudanças implantadas 
nas  principais  empresas  brasileiras,  principalmente  na  automobilística, 
é  uma  ampla  precarização  do  trabalho  acompanhada  daquilo  que 
denominaremos  de  mais‐violência  para  o  proletariado,  pois  aqui,  assim 
como em todas as regiões do globo em que o toyotismo foi implantado, 
o  operário  se  vê  obrigado  a  trabalhar  de  forma  pluriespecializada, 
dedicando‐se  a  várias  funções  no  interior  da  fábrica,  manobrando, 
simultaneamente,  várias  máquinas  em  ritmo  alucinante.  Funções  que 
antes  eram  executadas  por  mais  de  dois  ou  três  operários,  hoje  é 
exercida  intensamente  por  apenas  um  operário.  O  resultado  mais 
drástico  dessa  mais‐violência  no  trabalho  foi  denominado  no  Japão  de 
Karoshi, ou seja, morte por overdose de trabalho. Nesse país, fundador 
do  modelo  Toyota  de  organização  do  trabalho,  milhares  de  operários 
morrem  ao  ano  vitimados  pelo  excesso  de  trabalho,  por  jornadas  que 
vão  de  15  a  16  horas  diárias,  pela  ausência  de  férias,  pelas  moradias 
minúsculas  etc. Essa realidade nasce no Japão, se expande para outros 
países  imperialistas  e  chega  ao  Brasil,  principalmente,  nas  montadoras 
de automóveis. De acordo com Antunes, 
 
o  processo  de  produção  de  tipo  toyotista,  por  meio  dos  teamwork,  supõe, 
portanto  uma  intensificação  da  exploração  do  trabalho,  quer  pelo  fato  de  os 
operários  trabalharem  simultaneamente  com  várias  máquinas  diversificadas, 
quer pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva dada pelos sistemas de luzes. 
Ou  seja,  presencia‐se  uma  intensificação  do  ritmo  produtivo  dentro  do  mesmo 
tempo  de  trabalho  ou  até  mesmo  quando  este  se  reduz.  Na  fábrica  Toyota, 
quando  a  luz  está  verde,  o  funcionamento  é  normal;  com  a  indicação  da  cor 
laranja, atinge‐se uma intensidade máxima, e quando a luz vermelha aparece, é 
porque  houve  problemas,  devendo‐se  diminuir  o  ritmo  produtivo.  A 
apropriação das atividades intelectuais do trabalho, que advém da introdução de 
maquinaria  automatizada  e  informatizada,  aliada  à  intensificação  do  ritmo  do 
processo  de  trabalho,  configura  um  quadro  extremamente  positivo  para  o 
capital,  na  retomada  do  ciclo  de  acumulação  e  na  recuperação  da  sua 
rentabilidade (2005, p. 56). 
 

136
A  acumulação  integral  objetivada  pelo  modelo  toyotista  busca 
extrair  mais‐valor  de  forma  intensiva  e  extensiva  e  para  isso  promove 
uma  intensificação  do  processo  de  trabalho  e  um  controle  rigoroso 
sobre  todo  o  tempo  de  trabalho,  gerando  mais‐violência  para  o 
trabalhador.  No  entanto,  resta  explicar  o  que  se  entende  por  mais‐
violência  no  trabalho.  O  caráter  central  do  trabalho  na 
contemporaneidade é a superexploração marcada pela intensificação do 
trabalho,  pelo  assédio  moral,  pela  pressão  psicológica,  pelo 
desenvolvimento  da  síndrome  da  culpa,  síndrome  do  pânico,  pelo 
estresse,  depressão,  medo  e  várias  outras  formas  de  (mais)  violência 
derivadas  do  trabalho  (BERNARDO,  2009;  DAL  ROSSO,  2008).  Nesse 
sentido,  o  que  denominamos  aqui  de  mais‐violência  caracteriza‐se  por 
uma sobre‐violência intensificada no trabalho e que atinge o operário tanto 
física  quanto  psiquicamente,  podendo  levá‐lo  à  morte.  Segundo  o 
psiquiatra  e  psicanalista  especialista  em  medicina  do  trabalho 
Christophe Dejours, 
 
ao lado do medo dos ritmos de trabalho, os trabalhadores falam sem disfarces 
dos  riscos  à sua  integridade  física  que  estão  implicados  nas  condições  físicas, 
químicas  e  biológicas  de  seu  trabalho.  Sabem  que  apresentam  um  nível  de 
morbidade  superior  ao  resto  da  população  [...]  A  grande  maioria  tem  a 
impressão  de  ser  consumida  interiormente,  desmanchada,  degradada, 
corroída,  usada  ou  intoxicada.  Este  medo  patente  é  expresso  desta  maneira 
direta pela maioria dos trabalhadores das indústrias (1992, p. 74). 
 
De acordo com alguns dicionários, o medo pode ser entendido como 
uma perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente e no 
caso  concreto  dos  operários  de  indústrias  que  funcionam  segundo  o 
modelo  japonês  (Toyota)  ele  apresenta‐se  como  uma  constante  no 
cotidiano  tanto  interno  quanto  externo  à  fábrica.  Os  trabalhadores, 
devido  ao  acúmulo  de  funções  e  ao  ritmo  exorbitante  da  produção, 
temem  errar  no  processo  de  trabalho  e  serem  constrangidos 
publicamente  pelos  seus  gerentes  (espécies  de  agentes  carcerários  na 
produção), temem adoecer e serem humilhados por executarem, mesmo 
doentes,  trabalhos  mal‐vistos  tal  como  promover  a  coleta  do  lixo  da 
fábrica,  temem  as  ameaças  de  desemprego  e  o  próprio  desemprego, 
temem  falir  fisicamente  e  não  mais  conseguirem  executar  todo  o 
trabalho que sobre‐pesa seus músculos e cérebro.  

137
Em  sua  obra  Trabalho  duro,  discurso  flexível  –  uma  análise  das 
contradições  do  toyotismo  a  partir  da  vivência  de  trabalhadores  (2009), 
Bernardo  fornece  vários  depoimentos  de  trabalhadores  de  duas 
montadoras  de  automóveis  no  Brasil41  que  funcionam  segundo  o 
modelo Toyota de produção e que nos permite constatar, de acordo com 
nossa  definição,  a  mais‐violência  a  que  estão  submetidos  os 
trabalhadores  dessas  montadoras  e  que  nos  possibilita,  também, 
generalizar  para  outras  indústrias  que  funcionam  sob  a  égide  do 
toyotismo:  
 
Rogério  (trabalhador  da  Tamaru)  –  Assédio  moral  lá  (na  Tamaru)  acontece 
praticamente  com  100%  dos  funcionários,  porque,  quando  um  erra,  no  dia 
seguinte,  na  reunião  [...]  [o  chefe]  vai  chamar  atenção  de  todo  mundo.  Todo 
mundo se sente humilhado, entendeu? O cara vai trabalhar cedo. O cara já vai 
com  pique  de  trabalhar  e  ele  já  começa  ouvir  essas  coisas  logo  cedo,  o  cara 
desanima, entendeu? E você pode ver que quando acontece isso aí lá [...] aí que 
é o dia mais ruim para trabalhar. Faz serviço errado. Fica naquele medo “não 
posso errar, não posso errar, não posso errar” (2009, p. 140).  
 
Fabiano (dirigente sindical na Assan) – Então, é um negócio [...] uma loucura 
[...] é um desespero. É nego correndo pra tomar água. O outro deu problema 
na peça lá, tem que correr pra trocar o bico da pontiadera. Corre lá porque não 
pode  perder  tempo!  [...]  é  um  ritmo  totalmente  [...]  desesperador.  Tanto  que 
[...]  na  hora  de  almoçar,  eles  querem  que  o  pessoal  vá  andando,  não  pode 
correr,  mas  os  caras  falam:  “trabalhei  correndo  o  dia  inteiro  porque  para 
almoçar tenho que ir andando?!”. É uma loucura (2009, p. 144). 
 
Silvio (trabalhador da Assan) – [...] é desumano o que você faz. Na sexta‐feira, 
nós fizemos 122 carros. Era para ser 120 e foi 122. Passou do horário e você é 
obrigado a ficar depois do horário e foi 122 carros sem hora extra. Com  mais 
meia  hora,  a  gente  fez  129  carros!  E  você,  naquela  pressão!  Putz  é  muita 
correria!  E  os  caras  passam  do  horário  ainda,  sabe?  Horário  de  refeição,  eles 
não respeitam, eles passam do horário. Horário de café [...] (2009, p. 147). 
 
Vitor (trabalhador da Assan) – O problema (da pressão) não é só [...] só o seu 
corpo [...] é sua mente também: A hora que você vai ver, você tá ficando meio 
lélé!  [...]  Se  você  for  levar  tudo  ao  pé  da  letra,  tudo  certinho  assim,  que  eles 

41    Com  o  intuito  de  impossibilitar  a  identificação  dos  trabalhadores  que  contribuíram 
com  a  pesquisa  que  possibilitou  a  produção  de  sua  obra  –  Trabalho  e  população  em 
situação  de  rua  (2009)  –  Bernardo  optou  por  utilizar  nomes  fictícios  tanto  para  os 
trabalhadores  entrevistados quanto  para  as  montadoras  de  automóveis  nas  quais  os 
mesmos trabalhavam: Tamaru e Assan. 

138
falam tem que ser assim e assim, se você seguir a pressão bate mesmo [...] você 
fica lélé (2009, p. 151). 
 
Cristiano (trabalhador da Tamaru) – Tem um fato também que é do estresse. 
Eu  chegava  a  sonhar  a  noite  que  estava  montando  carro. Sonhava!  Tinha  vez 
que eu ia dormir, sonhava que tava montando carro. Quando eu acordava pra 
ir trabalhar, parecia que eu não tinha dormido nada, entendeu? Parecia que eu 
tinha  trabalhado.  Saía  cansado  já!  Psicologicamente  eu  saía  cansado  pra 
trabalhar. [...] a gente fica muito estressado! Vai estressando, vai estressando e 
aí dá os problemas (2009, p. 152). 
 
Aliado  a  esse  conjunto  de  transformações  nas  relações  de  trabalho 
no Brasil, a partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, 
fase  de  transição  para  o  regime  de  acumulação  integral,  que  se 
consolida  na  década  de  1990,  existem  outras  determinações  que  nos 
auxiliarão  na  compreensão  do  processo  de  intensificação  da 
lumpemproletarização que atinge o país desde esse período até os dias 
atuais.  Dentre  essas  determinações,  destacaremos  a  condição  de 
capitalismo  subordinado  brasileiro  que,  sobre  os  ditames  do 
neoimperialismo, aliado ao neoliberalismo promoverá, para milhares de 
trabalhadores,  uma  intensa  marginalização  no  mercado  de  trabalho.  É 
sobre isso que discorreremos no próximo item. 

4.2. Neoimperalismo e capitalismo subordinado


 
Nesse  item  discutiremos  a  terceira  e  última  parte  constituinte  do 
regime de acumulação integral, isto é, o neoimperialismo, sua relação com 
o  Brasil  que  compõe  o  bloco  subordinado,  o  Estado  neoliberal 
subordinado  e  uma  de  suas  principais  consequências  sociais  para  esse 
país, a intensificação da lumpemproletarização.  
O  capitalismo  só  existe  em  expansão,  pois  vimos  que  a 
sobrevivência  dos  capitalistas  individuais  depende  da  capacidade 
desses  de  concorrer  no  mercado  e  essa  depende  da  habilidade  de 
desenvolver as forças produtivas, de combater a tendência à queda da 
taxa de lucro, da concentração e centralização de capitais que possibilita 
a  formação  dos  verdadeiros  oligopólios,  que  passam  a  dominar  os 
mercados  mundiais.  Aqui  reside  a  “marcha  global  do  capitalismo” 
(VIANA,  2009).  Contudo,  como  já  foi  mencionado,  esse  processo  é 
marcado  pela  luta  de  classes  em  sua  totalidade  e  pela  tendência 

139
declinante  da  taxa  de  lucro,  que  historicamente  tem  obrigado  a  classe 
capitalista  a  encontrar  novas  estratégias  de  combater  esses  dois 
impasses  para  o  desenvolvimento  dessa  marcha.  Isso  tem  gerado  o 
desenvolvimento  e  sucessão  dos  regimes  de  acumulação  que  há  cada 
novo regime encontra dificuldades cada vez maiores para reproduzir o 
capitalismo.  É  nesse  sentido,  que  Viana  afirma  que  o  regime  de 
acumulação  integral  necessita,  como  seu  próprio  nome  diz,  da 
ampliação da exploração em escala cada vez mais intensa. 
O  regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo  que  antecedeu  ao 
regime  de  acumulação  integral  garantia  uma  relativa  estabilidade  no 
bloco  dos  países  imperialistas  graças  à  superexploração  existente  no 
bloco  dos  países  subordinados,  através  de  uma  acumulação  extensiva, 
transferência de mais‐valor para os países imperialistas, endividamento 
externo,  da  “troca  desigual”  etc.  Porém,  a  situação  já  não  é  mais  a 
mesma, visto que para garantir a reprodução do capitalismo no regime 
de acumulação integral, que entra em vigor a partir da década de 1980, 
não basta aumentar a já intensa exploração no capitalismo subordinado, 
até  mesmo  porque  as  resistências  provavelmente  atingiriam  níveis  de 
radicalidade  não  desejado  pelas  classes  capitalistas.  Portanto,  para  se 
manter, o novo regime de acumulação necessita aumentar a exploração 
no  bloco  subordinado,  que  a  partir  da  queda  do  capitalismo  estatal 
russo se amplia com os países do leste europeu, mas também no bloco 
imperialista  como  demonstramos  anteriormente  no  caso  norte‐
americano. 
É  neste  contexto,  que  emerge  o  neoimperialismo,  ou  seja,  o 
imperialismo  do  regime  de  acumulação  integral  que  tem  como  função 
promover  de  forma  generalizada  a  acumulação  integral  de  capital  em 
todo  o  mundo.  Dessa  forma,  o  neoimperialismo  busca  reproduzir  o 
processo  de  exploração  integral  através  das  relações  internacionais, 
visando  aumentar  a  exploração  que,  consequentemente,  representa 
maior quantidade de mais‐valor produzido e maiores transferências de 
valor dos países subordinados para os países imperialistas. 
Deste  modo,  há  uma  tendência  em  aumentar  a  já  elevada  taxa  de 
exploração nos países subordinados. Nesse sentido, a política neoliberal 
cumpre seu papel ao promover uma corrosão dos direitos trabalhistas e 
estabelecimento de estratégias para promover o aumento da extração de 
mais‐valor relativo (maior controle do trabalho, novas tecnologias etc.), 

140
uma  vez  que  a  extração  de  mais‐valor  absoluto  já  existe  e  tende  a 
ampliar. Por conseguinte, 
 
o  neoimperialismo  produz  um  Estado  neoliberal  subordinado,  que  executa  o 
papel  de  aumentar  a  exploração  interna  e,  ao  mesmo  tempo,  permitir  o 
aumento da exploração externa. A proeminência de organismos internacionais 
na  elaboração  das  políticas  nacionais  dos  estados  subordinados  (FMI,  Banco 
Mundial  etc.)  apenas  revela  esta  subordinação  e  alguns  dos  mecanismos 
utilizados pelo bloco imperialista (e pelo capital oligopolista transnacional por 
detrás dele). O bloco subordinado realiza uma política neoliberal que revela a 
debilidade  do  capital  nacional  e,  por  conseguinte,  das  burguesias  nacionais, 
subordinadas ao mesmo tempo associadas ao capital oligopolista transnacional 
(a  reprodução  subordinada  dos  capitalismos  nacionais  permite  sua 
reprodução. O fato de o nível da exploração dos trabalhadores locais ser maior 
não lhes interessa) (VIANA, 2009, p. 105). 
 
Uma das principais características do capitalismo subordinado é ter 
seu  capital  nacional  e  o  Estado  submetido  ao  domínio  do  capital 
transnacional,  já  nos  Estados  imperialistas  o  capital  nacional  exerce 
proeminência  sobre  o  capital  transnacional.  No  capitalismo 
subordinado  seus  capitais  são  limitados,  exercendo  de  forma  bastante 
tímida qualquer domínio fora de suas fronteiras nacionais. Já nos países 
de  capitalismo  imperialista  o  capital  nacional  é  transnacional  e 
sobrepuja o mundo inteiro (VIANA, 2009). 
É importante destacar que os organismos internacionais compõem o 
processo  de  regularização  da  exploração  internacional  e  que  com  a 
mudança para o regime de acumulação integral suas estratégias sofrem 
alterações.  O  Banco  Mundial  nos  fornece  um  exemplo  claro  de  tais 
alterações,  pois  enquanto  no  regime  de  acumulação  anterior  ele 
cumpria  o  papel  de  providenciar  investimentos,  no  regime  de 
acumulação  integral  ele  passa  a  exercer  o  papel  de  “‘guardião  dos 
interesses  dos  grandes  credores  internacionais,  responsável  por 
assegurar  o  pagamento  da  dívida  externa  e  por  empreender  a 
reestruturação e abertura’ do capitalismo subordinado” (SOARES apud 
VIANA,  2009,  p.  111).  No  fundo,  o  que  as  organizações  internacionais 
têm  promovido  é  a  coação  dos  países  subordinados  no  sentido  dos 
mesmos  aprofundarem  seu  neoliberalismo,  sua  reestruturação 
produtiva e suas políticas internacionais em direção à construção de um 
“livre comércio”, para o capital transnacional, é claro. Assim sendo,  

141
 
o neoimperialismo é, tal como o regime de acumulação que lhe gerou, integral, 
buscando aumentar a transferência de mais‐valor do capitalismo subordinado 
através  de  várias  formas,  além  das  tradicionais.  E desloca  investimentos  para 
locais onde a força de trabalho é mais barata e busca criar nichos exclusivos de 
mercado consumidor (veja, no caso dos EUA, a NAFTA, o projeto ALCA etc.), 
o  que  faz  acirrar  a  competição  interimperialista.  Também  há  o 
aprofundamento  da  estratégia  de  emperrar  o  desenvolvimento  das  forças 
produtivas,  desviando  os  investimentos  para  bens  de  consumo,  indústria 
bélica  etc.  Assim,  a  dinâmica  do  neoimperialismo  é  marcada  por  uma  busca 
desenfreada  de  aumentar  a  exploração  imperialista,  buscando  combater  a 
tendência declinante da taxa de lucro (VIANA, 2009, p. 111). 
 
O  capitalismo  brasileiro,  desde  o  início  do  seu  processo  de 
industrialização,  sempre  esteve  subordinado  e  dependente  dos 
investimentos  estrangeiros,  no  entanto,  ao  que  tudo  indica,  sob  a 
vigência  do  regime  de  acumulação  integral  tal  subordinação  tem  se 
tornado,  como  afirma  Biondi  (2000),  “um  negócio  escandalosamente 
escandaloso”  (p.  33).  Tal  constatação  se  observa,  principalmente,  nas 
posturas que os principais agentes governamentais, pós‐década de 1990, 
tem  adotado  diante  dos  interesses  neoimperialistas  de  grandes 
corporações  oligopólicas  transnacionais  (empresas,  instituições 
financeiras,  bancos  etc.)  que  vem  sendo  marcada  por  uma  entrega 
irrestrita  do  patrimônio  estatal  via  processo  de  privatização,  por  um 
crescimento alucinante da dívida pública, tanto interna quanto externa, 
e por uma descontrolada política de remessa de lucros, jamais vista na 
história  do  país,  praticada  pelas  grandes  empresas  transnacionais  aqui 
instaladas.  
Além  dessas  questões,  tal  processo  de  desmonte  do  Estado  vem 
acompanhado  por  uma  intensa  precarização  dos  serviços  públicos 
fornecidos pelas empresas privatizadas e por uma escalada vertiginosa 
dos preços cobrados pelos serviços oferecidos. Grosso modo, toda essa 
complexa  questão  que  envolve  uma  maior  abertura  comercial  para  os 
capitais  transnacionais,  aliada  a  uma  política  de  venda  das  principais 
empresas  públicas  a  “preço  de  banana”  e  a  utilização  de  dinheiro 
público  para  o  financiamento  de  iniciativas  realizadas  pelo  capital 
transnacional etc. é o que nos possibilita caracterizar o Estado brasileiro, 
da década de 1990 até os dias atuais, como um típico Estado neoliberal 
subordinado. 

142
Apesar  de  o  Brasil  se  apresentar  como  o  país  que  mais  resistência 
ofereceu  às  políticas  de  desregulamentação  financeira  e  abertura 
comercial  na  década  de  1980,  na  década  seguinte  toda  essa  resistência 
ofertada  fora  recompensada  com  grande  intensidade  e  num  período 
muito  curto  pela  adoção  irrestrita  de  um  modelo  neoliberal 
absolutamente  subordinado  aos  interesses  neoimperialistas  expresso 
pelo “Consenso de Washington”: 
 
Em  1990,  o  economista  John  Williamson  sistematizou  uma  série  de 
“recomendações”  feitas  aos  países  periféricos  pelas  instituições  financeiras 
internacionais (sobretudo o FMI e o Banco Mundial) a partir da crise da dívida 
externa.  Essas  “recomendações”  estavam  centradas  em  dois  eixos:  na 
estabilização  macroeconômica,  mediante  a  adoção  de  políticas  monetárias 
restritivas, e no incentivo à iniciativa privada, mediante a adoção de reformas 
estruturais,  “orientadas  para  o  mercado”.  A  denominação  “Consenso”  se 
explica:  esse  conjunto  de  medidas  adquiriu  status  de  pensamento  único,  ao 
qual não haveria alternativa (GALVÃO, 2007, p. 39). 
 
Nos  anos  oitenta,  o  esgotamento  do  regime  de  acumulação 
brasileiro  se  expressou,  também,  na  crise  financeira  do  Estado  devido 
ao  processo  crescente  de  endividamento  externo  e  interno.  Esse 
processo  resultou  na  perda  do  controle  da  moeda  e  das  finanças  por 
parte  do  Estado,  assim  como  da  sua  capacidade  estruturacional,  visto 
que  o  mesmo  sofreu  não  apenas  com  uma  forte  redução  dos  gastos  e 
investimentos  públicos,  mas  também  pela  ausência  quase  completa  de 
políticas  de  desenvolvimento.  Nesse  contexto,  portanto,  o  Brasil  se 
encontrava  extremamente  fragilizado  econômica  e  politicamente  a 
ponto  de  não  contar  com  os  recursos  necessários  para  implementar  os 
ajustes neoliberais que se impunham naquele período (SOARES, 2009). 
Segundo Fiori (Apud SOARES, 2009), o país enfrenta 
 
um  processo  circular  e  crônico  de  instabilização  macroeconômica  e  política: 
instabilidade da moeda; instabilidade do crescimento; instabilidade na condução 
das  políticas  públicas  etc.  A  política  econômica  terminou  por  submeter‐se  à 
própria  volatilidade  do  processo  econômico  e  político,  ambos  movendo‐se  em 
direção opostas. Foram contabilizados nesse período oito planos de estabilização 
monetária, quatro diferentes moedas (uma a cada trinta meses), onze índices de 
cálculo inflacionário, cinco congelamentos de preços e salários, catorze políticas 
salariais,  dezoito  modificações  nas  regras  de  câmbio,  cinquenta  e  quatro 
alterações nas regras de controle de preços, vinte e uma propostas de negociação 
da dívida externa e dezenove decretos sobre a autoridade fiscal (p. 36). 

143
 
Após anos de ditadura militar, a transição política para um governo 
“democrático” no Brasil foi realizada sob o controle direto dos credores 
e das instituições financeiras sediadas em Washington. Aproveitando‐se 
do escândalo que envolvia diretamente o presidente Fernando Collor de 
Melo  a  um  processo  milionário  de  extorsão  de  dinheiro  público  e  da 
ampla  campanha  midiática  em  torno  do  seu  pedido  de  impeachment, 
em  1992  foi  negociada  uma  transação  multibilionária  entre  o  ministro 
da  economia  de  Collor,  Marcílio  Marques  Moreira,  e  os  credores 
internacionais  do  Brasil.  A  partir  daí  o  capitalismo  brasileiro 
intensificaria  sua  condição  de  subordinado  aos  interesses 
neoimperialistas, pois a “agenda oculta” do FMI 
 
consistia  em  apoiar  os  credores  e,  ao  mesmo  tempo,  enfraquecer  o  governo 
central.  Já  haviam  sido  pagos  US$  90  bilhões  referentes  aos  juros  da  dívida 
durante  os  anos  80,  um  valor  bastante  próximo  ao  do  total  do  principal  (US$ 
120 bilhões). Cobrar a dívida, todavia, não era o principal objetivo. Os credores 
internacionais  do  Brasil  queriam  se  assegurar  de  que  o  país  permaneceria 
endividado por muito tempo e de que a economia nacional e o Estado seriam 
reestruturados  em  benefício  deles  (credores)  por  meio  da  contínua  pilhagem 
dos  recursos  naturais  e  do  meio  ambiente,  da  consolidação  da  economia  de 
exportação baseada na mão‐de‐obra barata e da aquisição de empresas estatais 
mais lucrativas pelo capital estrangeiro (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 171). 
 
Iniciado em 1990, o plano Collor previa a promoção de uma política 
monetária  intervencionista,  uma  ampla  privatização  de  acordo  com  os 
planos do FMI, demissão de milhares de funcionários públicos, além de 
diversos outros cortes nos gastos públicos e salários. Tudo isso visando 
a  liberação  de  dinheiro  destinado  ao  pagamento  da  dívida  interna  e 
externa.  No  entanto,  mesmo  seguindo  todas  as  determinações  de 
Washington  o  governo  brasileiro  continuava  na  lista  negra  do  Fundo 
Monetário  Internacional.  A  nova  política  adotada  pelos  organismos 
internacionais no regime de acumulação integral era marcada por uma 
maior  rigidez  visando  a  garantia  do  cumprimento  dos  acordos 
realizado  com  os  credores  e  “qualquer  falha  no  cumprimento  das 
exigências  dos  credores  podia  se  tornar  facilmente  um  pretexto  para 
represálias  ulteriores  e  a  inclusão  do  país  na  lista  negra” 
(CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 173).  

144
De  acordo  com  Galvão  (2007),  durante  o  governo  Collor  a  tese  da 
crise  fiscal  do  Estado  foi  amplamente  utilizada  como  justificativa  para 
atacar  o  funcionalismo  público  e  privatizar  as  principais  empresas 
estatais  (lucrativas,  claramente),  responsáveis  diretos,  segundo  essa 
tese,  pela  crise  fiscal.  O  governo  Collor,  poderíamos  dizer,  deu  o 
pontapé inicial para que as reformas neoliberais ganhassem volume nos 
próximos governos de FHC. Nesse sentido, 
 
embora  tenha  promovido  a  abertura  do  mercado  interno,  dado  início  ao 
processo  de  privatização,  realizando  uma  reforma  ministerial  e  colocado 
servidores  públicos  em  disponibilidade,  Collor  não  avançou  nas  reformas 
tributária, administrativa, previdenciária e trabalhista, frustrando a expectativa 
das  classes  dominantes  em  relação  à  adoção  das  reformas  “orientadas  para  o 
mercado”.  Assim,  se  Collor  inaugurou  a  década  de  governos  neoliberais  no 
Brasil,  foi  no  governo  FHC  que  o  neoliberalismo  se  consolidou,  pois  a 
estabilidade monetária lhe proporcionou as condições necessárias para aprovar 
várias das reformas almejadas (GALVÃO, 2007, p. 65). 
 
O projeto neoliberal brasileiro, colocado em prática após a eleição de 
Fernando  Henrique  Cardoso  para  presidente,  tem  como  receituário 
fundamental  o  combate  à  inflação,  através  do  plano  de  estabilização, 
considerado  pré‐requisito  para  o  retorno  da  acumulação  de  capital, 
principalmente  dos  capitais  transnacionais,  vale  ressaltar.  A 
desregulamentação  da  economia  torna‐se  palavra  de  ordem,  pois  a 
defesa da abolição da regulação do Estado sobre a economia e sobre a 
relação  capital‐trabalho  passa  a  ser  defendida  como  a  responsável  por 
todo tipo de distorções e, portanto, deve ser substituída pelo “livre jogo 
do  mercado”,  garantindo,  dessa  forma,  uma  distribuição  de  recursos  e 
investimentos mais racionais. 
Portanto, a retirada do Estado como agente econômico e empresarial 
assume papel importantíssimo no engendramento dessa nova ofensiva 
do capital a partir de um “Estado mínimo”, ou seja, de um estado que 
minimamente  cumpra  algumas  funções  sociais  básicas,  tais  como 
garantia  apenas  de  educação  pública  básica,  saúde  pública  –  se  é  que 
hoje  podemos  falar  da  existência  de  tal  “garantia”  ‐,  construção  e 
manutenção de infraestrutura para a reprodução do capital etc. A ideia 
central  dessa  ideologia  neoliberal,  para  não  dizer  dessa  mentira 
descarada,  é  que  com  a  privatização  e  a  redução  do  Estado  de  forma 
geral,  estaria  garantida  a  redução  dos  gastos  públicos  e, 

145
consequentemente,  do  déficit  público,  principal  responsável  pela 
elevação da inflação no país (SOARES, 2009).  
A  maneira  pela  qual  se  conduziu  o  processo  de  privatização  de 
empresas  públicas  nesse  período  nos  fornece  a  principal  característica 
do  capitalismo  subordinado,  qual  seja  a  de  proporcionar  excelentes 
condições  para  uma  maior  produção  e  extração  de  mais‐valor  para  os 
grandes  complexos  empresarias  transnacionais,  em  detrimento  dos 
interesses e das necessidades populares.  
A obra O Brasil privatizado – um balanço do desmonte do Estado (2000), 
de  Aloysio  Biondi,  consiste  numa  excelente  denúncia  da  gigantesca 
entrega  de  “mãos  beijadas”  de  todo  o  patrimônio  público,  isto  é, 
patrimônio construído com o mais‐valor extraído dos trabalhadores via 
pagamento  de  impostos  e  tributos,  para  milhares  de  empresas 
transnacionais  que  passaram  a  acumular  cifras  bilionárias  de  capital.  
Antes  mesmo  de  realizar  a  venda  de  diversas  empresas  estatais 
(telefonia, energia, bancos, redes ferroviárias, estradas, siderúrgicas etc.) 
o  governo  de  FHC  investiu  bilhões  na  reestruturação  das  mesmas, 
promoveu  o  aumento  exorbitante  das  tarifas  cobradas  ao  público, 
assumiu  o  ônus  de  milhares  de  indenizações  e  aposentadorias,  ao 
realizar  demissão  em  massa  de  trabalhadores,  tornando  ainda  mais 
atrativa  a  “venda”  dessas  ao  capital  transnacional.  Somado  a  isso,  o 
governo  ainda  concedeu  milhares  de  empréstimos  com  juros 
privilegiados  às  empresas  privatizadas  e,  ainda,  entregou  várias 
empresas  com  altas  cifras  em  dinheiro  no  caixa.  Para  exemplificar 
podemos  utilizar  o  caso  da  Vale  do  Rio  Doce  que  ao  ser  entregue  a 
Benjamim  Steinbruch,  contava  com  aproximadamente  700  milhões  em 
caixa. O mesmo ocorreu na venda da Telesp à transnacional espanhola 
Telefônica (BIONDI, 2000). 
Ao  contrário  do  que  afirmava  o  governo  ao  justificar  tamanho 
desmonte do Estado, a privatização não foi capaz de atrair dólares para 
os  cofres  públicos  e  nem  tampouco  serviu  para  diminuir  a  dívida 
interna e externa do país, uma vez que 
 
as  vendas  foram  um  “negócio  da  China”  e  o  governo  “engoliu”  dívidas  de 
todos os tipos das estatais vendidas; isto é, a privatização acabou por aumentar 
a dívida interna. Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais ou brasileiras 
que  “compraram”  as  estatais  não  usaram  capital  próprio,  dinheiro  delas 
mesmas,  mas,  em  vez  disso,  tomaram  empréstimos  lá  fora  para  fechar  os 

146
negócios.  Assim,  aumentaram  a  dívida  externa  do  Brasil.  É  o  que  se  pode 
demonstrar,  na  ponta  do  lápis,  neste  “balanço”  das  privatizações  brasileiras, 
aceleradas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (BIONDI, 2000, p. 
06). 
 
Outra  realidade  que  demonstra  muito  bem  o  quanto  o  capital 
brasileiro  é  submetido  ao  capital  transnacional  é  o  fato  de  que  não 
houve,  além  de  meros  acenos,  nenhuma  imposição  do  governo  às 
transnacionais  no  sentido  de  coagi‐las  a  usarem  peças  e  componentes 
nacionais  na  fabricação  de  seus  produtos.  É  verdade  que  o  governo 
chegou a ensaiar a possibilidade de obrigar tais empresas a usarem pelo 
menos  35%  de  peças  e  componentes  nacionais,  no  entanto,  à  medida 
que  os  leilões  se  aproximavam  o  recuo  do  governo  se  ampliava  e 
diminuía  a  porcentagem  até  o  ponto  de  anular  tais  obrigações.  Tal 
realidade  gerava  um  rombo  enorme  visto  que  promovia  uma  enorme 
transferência  de  capitais  para  os  países  neoimperialistas  via  ampliação 
bilionária  das  importações  e  grandes  quantidades  de  falências  de 
empresas nacionais acompanhadas da elevação do desemprego.  
Na  prática  o  processo  de  privatização  não  promoveu  o  que  o 
governo havia prometido, ou seja, não atraiu dólares para o país, pois o 
que  de  fato  ocorreu  e  vem  ocorrendo  é  um  rombo  colossal  da  balança 
comercial e um incremento das remessas para o exterior. A maioria dos 
novos  donos  das  ex‐empresas  estatais  não  as  compraram  e  nem 
realizaram  os  investimentos  previstos  com  dinheiro  próprio.  Na 
verdade, o que ocorreu foi que nos leilões das estatais as compras eram 
realizadas com empréstimos realizados no exterior e tais empréstimos, 
acreditem  se  quiser,  eram  transferidos  para  a  dívida  externa  do  país, 
encorpando  os  juros  que  o  Brasil  deveria  pagar  aos  bancos 
internacionais. Tal prática ao contrário do que afirma Biondi (2000) não 
representa  uma  “contradição  total  por  parte  do  governo”,  mas  sim, 
demonstra o grau de subordinação aos ditames neoimperialistas. 
Como  era  de  se  esperar,  o  regime  de  acumulação  integral 
subordinado  trouxe  consequências  sociais  desastrosas  para  o  Brasil, 
bem  como  para  diversas  outras  nações  que  compõe  o  bloco 
subordinado na divisão internacional do trabalho. Mas o que se percebe 
até  aqui  é  que  nas  regiões  que  compõem  o  bloco  subordinado  as 
desigualdades  sociais  e  a  marginalização  de  parcela  significativa  dos 

147
trabalhadores  da  divisão  social  do  trabalho  tende  a  intensificar.  Isso 
decorre do fato de que historicamente tais sociedades acumularam por 
séculos um quadro sombrio de pobreza e desigualdade social oriundas 
dos  modos  de  produção  instalados  aqui  e  de  sua  correspondente 
contraface,  isto  é,  do  bloco  constituído  pelos  países  imperialistas  que 
assim  se  tornaram  devido  à  exploração  nas  quais  submeteu  boa  parte 
da população mundial.  
Em outras palavras, o regime de acumulação integral gera níveis de 
empobrecimento  diferenciados  entre  o  bloco  imperialista  e  o  bloco 
subordinado,  visto  que  a  condição  de  país  imperialista  sempre 
possibilitou  uma  maior  inserção  dos  trabalhadores  no  mercado  de 
trabalho,  melhores  acessos  a  bens  e  políticas  sociais  etc.  devido  à 
extração de mais‐valor dos países subordinados e da remessa de lucros 
para  os  países  imperialistas.    Portanto,  sendo  a  existência  de  um  pré‐
condição  para  a  existência  do  outro,  não  seria  possível  que  o  bloco 
subordinado  constituísse  as  mesmas  condições  sociais  em  seus 
territórios,  ou  seja,  só  existem  países  imperialistas  porque  existem 
países  subordinados  e  vice‐versa.  No  entanto,  tal  constatação  não 
significa  como  já  foi  demonstrado  anteriormente,  que  nos  países 
imperialistas  a  classe  trabalhadora  esteja  isenta  do  empobrecimento 
crescente,  mas  tão  somente  que  nos  países  subordinados  tal 
empobrecimento  ‐  via  lumpemproletarização  ‐    tende  a  ocorrer  de 
forma intensificada. É justamente com essa discussão que pretendemos 
finalizar nosso trabalho. 

4.3 Desemprego e intensificação da lumpemproletarização


 
Assim  como  em  todos  os  regimes  de  acumulação  que  o 
antecederam,  a  porta  de  entrada  para  o  processo  de 
lumpemproletarização  no  regime  de  acumulação  integral  é  o 
desemprego.  Porém,  além  dessa  constatação  comum  aos  regimes  de 
acumulação  capitalista,  no  caso  específico  do  brasileiro  esse  ainda 
possui  outra  característica  comum  ao  primeiro  regime  de  acumulação 
(extensivo): o crescimento generalizado do desemprego. Por essa razão 
partiremos da análise do fenômeno do desemprego para compreender, 
de forma geral, o processo de lumpemproletarização e, posteriormente 
a intensificação substancial do crescimento de uma de suas frações mais 

148
degradas:  os  sem‐tetos  ou,  como  preferem  denominar  alguns 
estudiosos, a população em situação de rua (SILVA, 2009; VIEIRA et al, 
2004). 
Uma das teses centrais desse trabalho e que merece ser mencionada 
aqui, consiste no seguinte: Tanto no capitalismo imperialista quanto no 
capitalismo  subordinado  –  especificamente  o  caso  brasileiro  –  ocorre 
uma  expansão  da  lumpemproletarização,  porém,  no  capitalismo 
subordinado, tal expansão ocorre em maior intensidade tanto numérica 
quanto em relação ao nível de degradação das condições de existência 
dessa classe social. Ao longo dessa discussão, pretendemos demonstrar 
essa  singularidade  do  processo  de  lumpemproletarização  no 
capitalismo subordinado. 
Acompanhando as análises de Pochmann (2005), toda nação possui 
um  contingente  de  pessoas  em  condições  de  participar  da  produção 
social,  tal  contingente  forma  aquilo  que  ficou  conhecido  como 
População Economicamente Ativa (PEA). No entanto, é válido lembrar 
que a PEA representa apenas expressão da potencialidade da produção 
social,  pois  somente  parcela  dela  acaba  por  ser  envolvida  diretamente 
pela produção capitalista. 
 Na  linguagem  marxista,  tal  realidade  seria  mais  bem  expressa  a 
partir  dos  conceitos  proletarização  e  lumpemproletarização,  pois  não 
somente  a  existência  de  uma  classe  produtora  de  mais‐valor  é 
imprescindível ao capitalismo, mas também o lumpemproletariado que 
exerce  a  função  fundamental  de  proporcionar  quantidades  cada  vez 
maiores  de  extração  de  mais‐valor,  visto  que  o  seu  crescimento 
possibilita  incrementar  a  pressão  dos  salários  para  baixo  e  a 
fragmentação  da  classe  trabalhadora,  que  vive  uma  disputa  altamente 
competitiva  no  mercado  de  trabalho,  além  de  ser  força  de  trabalho 
reserva  potencial,  na  qual  o  capital  pode  lançar  mão  dela  quando 
necessitar.  É  nesse  sentido,  portanto,  que  o  lumpemproletariado 
cumpre seu papel na dinâmica da acumulação capitalista de cada país. 
A  parte  mais  nítida  do  lumpemproletariado  é  identificada  pelo 
desemprego  aberto,  enquanto  a  parte  menos  nítida  é  expressa  pelas 
diversas  formas  de  subemprego,  trabalho  extremamente  precário  e 
outros meios garantidores da sobrevivência. Para Pochmann, 
 

149
[...]  o  desemprego  aberto,  que  corresponde  aos  trabalhadores  que  procuram 
ativamente  por  uma  ocupação,  estando  em  condições  de  exercê‐la 
imediatamente e sem desenvolver qualquer atividade laboral, indica o grau de 
concorrência no interior do mercado de trabalho em torno do acesso às vagas 
existentes.  O  subemprego  e  outras  formas  de  sobrevivência  respondem  pela 
parte  menos  visível  do  excedente  de  mão‐de‐obra  porque  envolvem  os 
trabalhadores  que  fazem  “bicos”  para  sobreviver  e  também  procuram  por 
trabalho,  assim  como  aqueles  que  deixam  de  buscar  uma  colocação  por  força 
de  um  mercado  de  trabalho  extremamente  desfavorável  (desemprego  oculto 
pelo trabalho precário e pelo desalento) (2005, p. 78‐79). 
 
Não  há  homogeneidade  nas  formas  utilizadas  por  diversos  países 
para  medir  o  excedente  de  mão‐de‐obra  existente  em  cada nação.  Pelo 
contrário,  o  que  há  é  uma  diversidade  enorme  de  formas,  conceitos  e 
procedimentos  utilizados  para  tal  fim.  Na  verdade,  concorrem  entre  si 
as  diversas  maneiras  (locais,  nacionais  e  internacionais)  de  se  medir  o 
excedente de mão‐de‐obra, que vão desde os registros de trabalhadores 
cadastrados  em  agências  de  emprego,  beneficiários  de  seguro 
desemprego,  cadastros  patronais  e  sindicais  e  diversos  outros 
levantamentos  promovidos  por  agências  particulares  de  investigação 
(GUIMARÃES,  2002;  POCHMANN,  2005).  Contudo,  em  um  aspecto 
essas  diversas  formas  de  contabilizar  o  excedente  de  mão‐de‐obra 
possuem  concordância:  nas  últimas  décadas  tal  excedente  (composto 
pelo  lumpemproletariado  ‐LB)tem  se  ampliado,  mesmo  que  em 
proporções  e  intensidades  diferenciadas,  dependendo  da  região,  em 
escala global (DEDECCA, 1999; SILVA, 2009a).  
De acordo com Pochmann (2005), é possível identificar pelo menos 
três tipos de desemprego no mundo: O primeiro encontra‐se nas nações 
com forte concentração nos setores agropecuários em que boa parte da 
população  é  absorvida  em  atividades  realizadas  no  campo  (produção 
alimentícia  para  auto‐suficiência  e  para  a  exportação).  Nesse  setor  há 
uma tendência do desemprego aberto ser menor.  
O  segundo  tipo  de  desemprego  concentra‐se  nas  nações 
industrializadas,  com  a  maior  parte  da  população  envolvida  em 
atividades essencialmente urbanas.  
O  terceiro  e  último  tipo  de  desemprego  encontra‐se  associado  às 
nações que após um forte processo de industrialização, concentram suas 
atividades  em  setores  mais  modernos  da  economia.  Em  tais  países,  há 
maiores  possibilidades  de  contenção,  mesmo  que  de  forma  bastante 

150
tímida,  do  desemprego  através  das  práticas  neoimperialistas  que 
amplia  a  extração  de  mais‐valor  fora  de  suas  fronteiras  nacionais  e 
possibilita  a  implementação  de  políticas  públicas  que  garantem  a 
manutenção  de  parcela  da  população  na  inatividade  sem  que  essa 
constitua  nichos  de  pobreza,  através  da  diminuição  da  jornada  de 
trabalho,  ou,  ainda,  para  o  redirecionamento  de  parcela  da  população 
desempregada  para  outros  setores  da  economia,  tais  como  serviços  de 
saúde,  educação,  entretenimento  etc.  Porém,  mesmo  nesses  países  o 
crescimento  do  desemprego  tem  se  elevado.  Aproximadamente  34 
milhões  de  pessoas  se  encontram  desempregadas  nos  países  que 
compõe  a  OCDE  e  para  o  século  XXI  não  são  esperadas  taxas  de 
desemprego abaixo dos 10% da PEA (OCDE apud POCHMANN, 1999). 
A década de 1990 no Brasil consolida uma ruptura, que veio sendo 
construída  desde  a  década  anterior,  com  o  modelo  de  estruturação  do 
mercado de trabalho dominante entre as décadas de 1930 e 1970, pois o 
mercado  de  trabalho  passou  a  se  caracterizar  por  uma  tendência  a 
redução dos empregos com registro e da expansão do desemprego e da 
informalidade.  Em  outras  palavras,  a  precarização  do  trabalho  se 
alavanca  a  partir  dessa  década,  visto  que  o  número  de  ocupações  não 
registradas,  ou  seja,  sem  nenhuma  garantia  trabalhista,  cresceu 
significativamente  em  detrimento  da  eliminação  de  diversos  postos  de 
trabalhos com registro42 (MATTOSO, 2001). Segundo Pochmann,  
 
em  1989,  o  total  de  assalariados  representava  64%  da  PEA  e  em  1995  havia 
passado para 58,2 %, refletindo uma taxa negativa de variação média anual do 
emprego  assalariado  com  registro  (‐1,4%).  Os  empregos  assalariados  sem 
registro apresentaram, por sua vez, taxa de crescimento médio anual de 3,12%. 

42    “Em  1980,  por  exemplo,  o  Brasil  possuía  cerca  de  23  milhões  de  trabalhadores 
assalariados com registro formal e, em 1989, havia passado para 25,5 milhões. No ano 
de  1999,  contudo,  a  quantidade  de  assalariados  com  carteira  assinada  havia  caído 
para  22,3  milhões  de  trabalhadores,  segundo  dados  do  Ministério  do  Trabalho” 
(POCHMANN,  2005,  p.  98);  Segundo  as  pesquisas  do  IBGE  ou  do  DIEESE‐SEADE, 
hoje  mais  de  50%  dos  ocupados  brasileiros  das  grandes  cidades  se  encontram  em 
algum  tipo  de  informalidade,  grande  parte  sem  registro  e  garantias  mínimas  de 
saúde,  aposentadoria,  seguro‐desemprego,  FGTS.  Ou  seja,  três  em  cada  cinco 
brasileiros ativos das grandes cidades estão ou desempregados (um em cinco) ou na 
informalidade  (dois  em  cada  cinco),  sendo  que  destes  últimos  uma  grande  parcela 
apresenta  evidente  degradação  das  condições  de  trabalho  e  de  seguridade  social” 
(MATTOSO, 2001, p. 16).  

151
Em  razão  disso,  ocorreu  uma  geração  média  anual  de  541,5  mil  empregos 
assalariados  sem  registro  no  mesmo  período  em  exame  e  uma  perda  total 
estimada em 350 mil empregos assalariados sem registro (1999, p. 75). 
 
Outro fenômeno que cresceu muito no mercado de trabalho brasileiro 
é  o  subemprego  ou  subutilização  da  força  de  trabalho.  Em  1989,  o 
subemprego  atingia  quase  32%  da  PEA  e  em  1995  ele  avança  para  um 
patamar  próximo  de  38%.  Sem  sombra  de  dúvidas,  tanto  o  crescimento 
vertiginoso do subemprego como do desemprego revelam o processo de 
intensificação da lumpemproletarização no Brasil, a partir da década de 
1990. O crescimento do desemprego, a partir dessa década, é assustador e 
representa  o  principal  fator  de  crescimento  do  subemprego.  Nesse 
mesmo período, o processo de lumpemproletarização atinge a média de 
16%  ao  ano,  ou  seja,  um  crescimento  de  aproximadamente  442  mil 
pessoas por ano (POCHMANN, 1999). 
Não seria exagero de nossa parte caracterizar o Brasil pós‐década de 
1990  como  um  país  essencialmente  lumpemproletarizado,  pois 
independente  das  distorções  que  as  metodologias  oficiais43  de 
identificação e medição do desemprego geram é incontestável que nesse 
período  o  país  sofre  uma  verdadeira  “epidemia  de  desemprego” 
(POCHMANN, 2005).  
Para  termos  uma  ideia  da  magnitude  de  tal  epidemia  basta 
percebermos que em 1999, por exemplo,  
 
o  Brasil  assumiu  a  terceira  posição  no  ranking  mundial  do  desemprego,  pois, 
possuía,  segundo  dados  da  PNAD  do  IBGE,  7,6  milhões  de  pessoas  sem 
trabalho.  No  total  do  desemprego,  o  Brasil  perdeu  apenas  para  Índia, 
Indonésia e Rússia (POCHMANN, 2005, p. 101).  
 
Se  comparado  com  os  dados  da  década  de  1980,  fica  nítido  que  o 
país  experimentou  uma  intensificação  da  lumpemproletarização,  pois 

43 “Como referencial metodológico oficial no Brasil considera‐se desempregado apenas e 
tão‐somente o trabalhador que, além de ter procurado emprego durante o período de 
referência  da  pesquisa,  se  encontrava  apto  para  o  exercício  imediato  de  uma  vaga, 
sem  ter  trabalhado  nem  mesmo  uma  hora  durante  a  semana  da  pesquisa,  há  uma 
subestimação  na  aferição  do  volume  de  desempregados”  (POCHMANN,  2005,  p. 
100).  Sendo  assim,  o  número  de  lumpemproletários  no  Brasil  deve  ser 
significativamente maior do que o oferecido pelas estatísticas oficiais e pesquisas que 
se baseiam única e exclusivamente em tais estatísticas e dados fornecidos. 

152
no  ano  de  1986  ocupávamos  a  décima  terceira  posição  no  ranking  do 
desemprego  mundial,  quase  uma  década  depois  constituíamos  os 
quatro  países  com  o  maior  índice  de  lumpemproletariado  no  mundo. 
Dessa  maneira,  nota‐se  que  o  desemprego,  que  na  década  de  1980  era 
relativamente  baixo,  torna‐se,  a  partir  dos  anos  90,  um  fenômeno  de 
massa,  uma  vez  que  não  mais  atinge  apenas  setores  específicos  da 
população,  mas,  pelo  contrário,  se  generaliza  por  quase  toda  a 
população economicamente ativa.  
A  intensificação  da  lumpemproletarização  no  Brasil  é  resultado 
direto  da  acumulação  integral  subordinada  e  do  neoliberalismo, 
também subordinado, que a torna regular a partir de suas  políticas de 
(des)ajustes  sociais.  Dentre  tais  políticas,  as  privatizações  de  empresas 
estatais  adquirem  importância  fundamental  para  a  compreensão  da 
expansão  do  desemprego  em  massa.  O  processo  de  privatização  de 
empresas  estatais  na  década  de  1990  converteu‐se  em  obrigatoriedade 
da  acumulação  integral  no  país,  uma  vez  que  a  geração  de  receitas 
públicas  adicionais  imprescindíveis  para  abater  parcela  das  dívidas 
originadas  por  juros  elevados  tornou‐se  fundamental  para  a 
estabilidade  monetária.  Tal  processo  concentrou‐se  inicialmente  nos 
setores  produtivos  estatais,  principalmente  naqueles  formados  pela 
indústria  de  transformação,  dentre  eles  o  setor  petroquímico, 
siderúrgico,  mineração,  fertilizantes  etc.  e  foi  responsável  pela 
destruição  de  aproximadamente  246  mil  postos  de  trabalho.  Na 
segunda fase do processo de privatização das estatais, a partir de 1995, 
diversos  outros  setores  (telecomunicações,  transportes,  energias, 
estradas,  bancos  etc.)  experimentaram  esse  processo  de  enxugamento 
de pessoal. Acredita‐se que o mesmo exterminou aproximadamente 300 
mil  postos  de  trabalho  entre  os  anos  de  1995  a  1999.  De  acordo  com 
Pochmann (2001), 
 
do  saldo  total  negativo  de  3,2  milhões  de  empregos  assalariados  formais 
destruídos  na  economia  brasileira  durante  a  década  de  1990,  17,1%  foi  de 
responsabilidade  direta  da  reformulação  do  setor  produtivo  estatal  [...]  Em 
síntese,  a  implementação  de  um  novo  modelo  econômico,  sustentado  no 
imperativo  do  enxugamento  do  papel  do  Estado  e  na  transferência  de 
atividades  produtivas  estatais  para  o  setor  privado,  implicou  significativo 
ajuste  do  nível  de  emprego.  Os  trabalhadores  do  setor  público  foram 

153
transformados na principal variável de ajuste do Estado no Brasil nos anos 90 
(p. 29‐30). 
 
No período de uma década (1989‐1999), o desemprego expandiu‐se 
de 1,8 milhões para 7,6 milhões, proporcionando uma elevação da taxa 
de  desemprego  aberto  de  3,0%  da  PEA  para  9,6%.  Aproximadamente 
3,2 milhões de trabalhadores perderam o emprego no mercado formal e 
desses  2  milhões  pertenciam  ao  setor  industrial.  Em  maio  de  1999,  a 
Folha  de  São  Paulo  indicava  em  uma  de  suas  manchetes  que  o 
desemprego  no  país  atingia  aproximadamente  10  milhões  de 
brasileiros.  Dependendo  da  região  metropolitana  o  desemprego 
superava 20% da PEA, ou seja, 2,4 vezes maiores ou 140% a mais que o 
ano  de  1989.  O  tempo  de  desemprego  médio  também  se  expandiu 
significativamente, pois em 1989 esse tempo era de 15 semanas e passou 
para 36 semanas em 1998 e atingiu a marca de 40 semanas no início de 
1999  (MATTOSO,  2001).  Em  linhas  gerais,  a  acumulação  integral  no 
Brasil promoveu uma intensificação da lumpemproletarização, pois 
 
ao  longo  dos  anos  90  foram  queimados  cerca  de  3,3  milhões  de  postos  de 
trabalho  formais  da  economia  brasileira,  sendo  que  desde  que  FHC  assumiu 
em  1995  foi  contabilizada  uma  queima  de  nada  menos  de  1,98  milhão  de 
empregos  formais,  segundo  os  dados  do  Cadastro  Geral  de  Empregados 
(CAGED),  do  Ministério  do  Trabalho.  Até  maio  de  1999  a  indústria  de 
transformação  reduziu  seus  empregos  formais  na  década  em  cerca  de  1,6 
milhão (cerca de 73% do que dispunha em 1989) e os subsetores mais atingidos 
foram  os  das  indústrias  têxtil  (‐  364  mil),  metalúrgica  (‐  293  mil),  mecânica  (‐ 
214 mil), química e produtos farmacêuticos (‐ 204 mil) e material de transporte 
(‐92  mil).  A  construção  civil  viu  desaparecerem  cerca  de  322  mil  empregos 
formais.  O  comércio  também  foi  duramente  atingido  (‐294  mil).  O  setor 
financeiro reduziu sua mão‐de‐obra em cerca de 354 mil. Apenas representou 
um  comportamento  positivo  o  heterogêneo  subsetor  Serviços,  compreendido 
por  alojamento,  alimentação,  reparação  e  diversos  (cerca  de  160  mil) 
(MATTOSO, 2001, p. 18). 
 
Os  anos  de  2001  e  2002  experimentaram  uma  pequena  redução  da 
taxa  de  desemprego  de  9,6  para  9,4,  todavia  é  a  partir  de  2003  que  se 
constata  uma  inversão  da  tendência  de  crescimento  do  desemprego, 
resultado  do  aumento  da  ocupação  total  da  força  de  trabalho  e  da 

154
redução significativa da taxa de desemprego (SILVA, 2009). De acordo 
com o Radar Social44 2006, 
 
o mercado de trabalho brasileiro foi marcado, no período entre 1995 e 2003, por 
um  significativo  crescimento  da  taxa  de  desemprego,  mesmo  num  ambiente 
onde  a  proporção  de  pessoas  que  participam  do  mercado  de  trabalho 
(empregadas  ou  à  procura  de  emprego)  variou  pouco.  Entretanto,  esta 
tendência foi revertida entre 2003 e 2004, quando houve redução generalizada 
do desemprego no país, tanto em regiões metropolitanas como para o total das 
regiões  não‐metropolitanas.  Esta  queda  também  foi  observada  em 
praticamente todas as faixas etárias e grupos selecionados, como mulheres e os 
negros (IPEA, apud SILVA, 2009, p. 209). 
 
Vale  ressaltar  que  apesar  de  várias  regiões  metropolitanas 
brasileiras  terem  experimentado  uma  redução  significativa  do 
desemprego,  isso  não  significa  que  todas  as  unidades  da  federação 
tenham vivenciado tal redução igualmente, pois ainda que tal redução 
tenha  ocorrido,  os  estados  com  região  metropolitana  ainda  são  os  que 
possuem  maior  taxa  de  desemprego  no  país,  segundo  constatação  do 
Radar Social 2006: 
 
O  resultado  positivo  observado  na  taxa  de  desemprego,  no  entanto,  não  se 
reproduziu  para  todas  as  unidades  da  federação  [...]  Houve  aumento  do 
desemprego  em  alguns  estados  do  Nordeste  (Maranhão,  Pernambuco, 
Alagoas,  Sergipe  e  Bahia),  no  Distrito  Federal  e  em  alguns  estados  da  região 
norte. Apesar disso, os estados com grandes regiões metropolitanas continuam 
a ser os que apresentam os maiores percentuais de desemprego, com destaque 
para São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (IPEA, apud SILVA, 2009, p. 
210). 
 
Com  o  intuito  de  melhor  apreender  o  caráter  intensificado  do 
processo  de  lumpemproletarização  no  Brasil,  pretendemos  analisar,  a 
partir de agora, uma das frações do lumpemproletariado historicamente 
mais degradadas: os sem‐tetos ou população em situação de rua (PSR). 
Para  isso,  nos  apropriaremos  dos  resultados  apontados  pela  pesquisa 

44 “O Radar Social é um instrumento de vigilância das condições de vida da população 
brasileira  estruturado  de  forma  a  oferecer  ao  leitor  um  panorama  dos  principais 
problemas  sociais  do  País.  É  elaborado  pelo  Instituto  de  Pesquisas  Econômicas 
Aplicadas  –  IPEA.  A  primeira  edição  foi  impressa  em  2005,  a  segunda,  em  2006” 
(SILVA, 2009, p. 208). 

155
realizada  por  Maria  Lucia  Silva,  e  que  resultou  na  obra  Trabalho  e 
população  em  situação  de  rua  no  Brasil  (2009).  Os  dados  e  informações 
utilizados  pela  autora  em  sua  pesquisa  foram  adquiridos 
prioritariamente  nos  Relatórios  de  Pesquisas  sobre  população  em 
situação  de  rua45,  realizadas  nas  cidades  de  Porto  Alegre,  Belo 
Horizonte,  São  Paulo  e  Recife.  Por  conta  disso,  nosso  estudo  também 
focará  apenas  essas  regiões.  Vale  ressaltar  que  não  há  concordância 
entre  nossa  interpretação  e  a  da  autora  em  relação  a  que  classe  social 
pertence  o  grupo  estudado,  pois  enquanto  para  a  autora  tal  segmento 
social  pertence  à  classe  trabalhadora,  para  nós  trata‐se  do 
lumpemproletariado. 
O  Estado  de  Pernambuco  e  São  Paulo  são  alguns  dos  estados  da 
federação que, segundo o Radar Social 2006, não sofreu redução na taxa 
de  desemprego,  pelo  contrário,  o  desemprego aumentou  entre  os anos 
de 2001 e 2004:  
 
Pernambuco  teve  taxa  de  desemprego  avaliada  em  10,8%  no  ano  de  2001; 
10,5%, em 2002; 11,5% em 2003 e 11,9% no ano de 2004. São Paulo, por sua vez, 
em 2001 teve taxa de desemprego avaliada em 11,1%, em 2002, em 11,4% e em 
2003  alcançou  a  mais  elevada  taxa  do  período,  12,4%,  que  se  reduziu  para 
11,2% em 2004 (Apud SILVA, 2009, p. 210). 
 
A  região  metropolitana  de  Recife  fornece  um  exemplo  claro  de 
intensificação  da  lumpemproletarização,  fundamentalmente  da  fração 
do  lumpemproletariado  composta  pela  população  em  situação  de  rua, 

45  “A  noção  do  sujeito,  que  constitui  o  público‐alvo,  independentemente  das 
terminologias usadas nas pesquisas (população em situação de rua, população de rua, 
moradores  de  rua,  pessoas  de  rua  ou  outra),  tem  como  núcleo  central  a  idéia  de 
indivíduos  ou  famílias  em  situação  de  pobreza  extrema,  sem  moradia  convencional 
regular,  que  utilizam  os  logradouros  públicos  (ruas,  praças,  marquises,  baixos  de 
viadutos, jardins, cemitérios), áreas degradadas (de prédios ocupados, ruínas, carcaça 
de  carros),  como  espaço  de  moradia  e  sustento,  por  contingência  temporária  ou  de 
forma  permanente,  usando,  ocasionalmente,  albergues  para  pernoitar,  abrigos, 
repúblicas  e  outras  formas  de  moradias  provisórias”  (SILVA,  2009,  p.  145).  As 
condições de existência expressa na caracterização da população em situação de rua 
reforçam  nossa  tese,  segundo  a  qual,  tal  população  constitui  uma  das  frações  que 
constitui  a  classe  social  que  é  composta  pela  totalidade  do  exército  industrial  de 
reserva.  Nesse  caso,  um  dos  setores  mais  degradados  do  lumpemproletariado:  os 
sem‐tetos. 

156
pois  o  crescimento  dessa  classe  social  sofreu  uma  grande  explosão 
demográfica, entre os anos de 2004 e 2005, revelada em um crescimento 
de 84,53%. Tal crescimento ainda pode ser bem maior, uma vez que nas 
pesquisas censitárias consultadas, apenas foram consideradas “as 1.205 
pessoas em situação de rua encontradas em logradouros e não as 1.390 
recenseadas,  em  2005,  incluindo  as  185  que  se  encontravam  em 
instituições  de  acolhida  temporária,  por  ocasião  da  pesquisa”  (SILVA, 
2009, p. 212). Entre os anos de 2000 e 2003, a população em situação de 
rua  passou  de  8.706  para  10.394  pessoas  na  cidade  de  São  Paulo.  Tal 
crescimento  revela  um  aumento  de  19,3%.  Na  capital  mineira  de  Belo 
Horizonte, o percentual de crescimento da PSR atingiu a média de 27% 
entre os anos de 1998 (916 pessoas) e 2005 (1.164 pessoas). 
De forma geral, diversas conclusões atingidas por essas pesquisas nos 
possibilitam  perceber  que  durante  a  vigência  do  regime  de  acumulação 
integral  no  Brasil  houve  uma  intensificação  da  lumpemproletarização. 
Dentre  as  conclusões  que  nos  respalda  a  fazer  tal  afirmação,  algumas, 
dentre várias outras, merecem destaque: o sem‐tetos estão envelhecendo 
nas  ruas,  o  número  de  sem‐tetos  com  maior  índice  de  escolaridade  está 
crescendo,  assim  como  tem  aumentado  absurdamente  o  tempo  de 
permanência  dessa  fração  de  classe  do  lumpemproletariado  nas  ruas 
(SILVA, 2009). 
Pesquisas  realizadas  no  decorrer  de  uma  década  revelam  uma 
elevação  da  faixa  etária  das  pessoas  que  compõe  essa  fração  de  classe 
do  lumpemproletariado  brasileiro,  tal  elevação  acompanha  a  mesma 
tendência  observada  na  composição  do  desemprego,  que  também  se 
revelou  crescente  nas  faixas  etárias  mais  elevadas,  isto  é,  entre  40  e  49 
anos  de  idade.  De  acordo  com  essas  pesquisas,  é  possível  afirmar  que 
em  termos  percentuais  a  PSR  “encontra‐se  sobretudo  na  faixa  etária 
entre 25 e 55 anos” (SILVA, 2009, p. 149). 
Especificamente  em  Porto  Alegre,  no  ano  de  1995,  a  PSR  se 
encontrava,  majoritariamente,  na  faixa  etária  entre  29  e  45  anos 
(52,25%), já no ano de 1999 a faixa etária majoritária era de 38 a 50 anos. 
De forma semelhante, em Belo Horizonte, a faixa etária de 18 a 35 anos 
equivalia a 52,82% da PSR, no ano de 1998, enquanto em 2005 a maior 
concentração desse público foi registrada na faixa etária de 25 a 40 anos. 
Em  São  Paulo,  a  PSR  concentrou‐se  em  faixas  etárias  próximas  às  de 
Porto  Alegre,  de  tal  forma  que  30,81%  das  pessoas  identificadas,  em 

157
2000, encontravam‐se na faixa etária de 26 e 40 anos e 33,57%, em 2003, 
situavam‐se na faixa etária de 41 a 55 anos. A cidade de Recife encontra‐
se em situação muito parecida com a de Belo Horizonte, pois no ano de 
2004  houve  um  predomínio  da  faixa  de  idade  entre  19  a  35  anos, 
enquanto  em  2005  a  maior  concentração  na  faixa  de  22  a  45  anos, 
correspondendo a 35,61% (SILVA, 2009). 
Outro  aspecto  observado  nas  pesquisas  e  que  configura  o  perfil 
contemporâneo  da  PSR  é  a  escolaridade.  De  acordo  com  Silva  (2009), 
todas  as  pesquisas  que  possuem  informações  relativas  ao  público  de 
PSR  que  sabe  ler,  com  ou  sem  grau  de  escolaridade,  revelam  que,  em 
média, 70,04% sabem ler. Nas cidades de Porto Alegre, São Paulo e Belo 
Horizonte  os  percentuais  dos  que  não  sabem  ler  ou  analfabetos  são 
menores que o percentual de Recife, que só em 2005 equivalia a 31,94% 
do total da PSR. 
 
Esse  percentual,  isoladamente,  é  superior  à  média  geral  das  quatro  cidades 
(incluindo Recife), cujas pesquisas servem de fontes neste estudo, que equivale 
a 13,47%. Em todas as cidades e em todas as pesquisas, contudo, a maioria dos 
recenseados encontra‐se em algum grau de escolaridade entre a 1ª e a 8ª série. 
Isso corresponde à média de 68,70% entre as cidades (SILVA, 2009, p. 151). 
 
Na  cidade  de  Belo  Horizonte,  o  percentual  de  pessoas  que  não 
sabem ler manteve‐se estável (de 8,73% para 8,76%), já o percentual das 
que possuem escolaridade entre a 1ª e a 8ª série diminuiu, enquanto o 
percentual  das  pessoas  com  escolaridade  no  ensino  médio  sofreu 
pequena  elevação  (de  6,66%  para  7,73%),  assim  como  as  que  possuem 
curso superior (de 1,31% para 1,98%). De certa forma, tais informações 
nos  possibilitam  crer  que  o  processo  de  lumpemproletarização  está  se 
expandindo para os indivíduos com maior escolaridade (SILVA, 2009). 
O Estudo dos usuários dos albergues  conveniados  com  a prefeitura  (2006), 
promovido  pela  Fundação  Instituto  de  Pesquisas  Econômicas  (FIPE), 
reforça a tendência do aumento da escolaridade dessa fração de classe do 
lumpemproletariado que vive nas ruas de São Paulo, pois, de acordo com 
a  pesquisa  realizada  em  2005,  das  631  pessoas  entrevistadas  constata‐se 
que a escolaridade é mais alta entre os jovens de até 30 anos e destes 33% 
chegaram a ingressar no ensino médio. Tal estudo também demonstrou 
que 5% dos entrevistados ingressaram no curso superior e somente 2% o 
completaram.  De  acordo  com  os  estudos  realizados  pelo  Ministério  do 

158
Trabalho  e  Emprego  –  Evolução  e  taxa  de  desemprego  estrutural  no  Brasil: 
Uma análise entre regiões e características dos trabalhadores (2002), é possível 
perceber um movimento semelhante em relação ao desemprego, ou seja, 
o  mesmo  tem  se  expandido  para  o  grupo  de  pessoas  com  maior 
escolaridade (Apud SILVA, 2009). 
Em  relação  ao  tempo  de  permanência  nas  ruas,  as  pesquisas 
realizadas entre os anos de 1995 e 2000 apontam maior concentração da 
permanência  do  lumpemproletariado  nas  ruas  no  primeiro  ano,  até  o 
quinto  ano  aproximadamente.  Já  as  pesquisas  realizadas  entre  2000  e 
2005  demonstram  que  houve  uma  elevação  do  tempo  de  permanência 
nas ruas para além dos cinco primeiros anos: 
 
Os percentuais que revelam esse tempo nas ruas, em Porto Alegre, no ano de 
1995,  correspondem  a  27,47%  até  um  ano  e  a  27,92%  entre  um  e  seis  anos, 
totalizando  55,39%  das  pessoas  em  situação  de  rua,  nessa  condição,  no 
máximo,  há  seis  anos.  Em  Belo  Horizonte,  em  1998,  a  predominância  desse 
intervalo de tempo é ainda mais acentuada, pois, das 916 pessoas recenseadas, 
65,17%  estavam  nas  ruas  pelo  período  de  até  cinco  anos,  sendo  que  423 
(46,17%) estavam até um ano nessa situação. A situação de São Paulo era mais 
gritante, pois, em 2000, dos 8.706 recenseados, 5.833 (67,00%) tinham até 5 anos 
de  permanência  nas  ruas,  sendo  que  3.744  (43,25%)  estavam  nessa  condição 
entre alguns dias e um ano. Já as pesquisas realizadas na segunda metade do 
intervalo entre 1995 e 2005 mostram que há uma diminuição do percentual de 
pessoas em situação de rua, com tempo de permanência nas ruas de até cinco 
anos e uma ligeira elevação dos percentuais das que se encontram na situação 
há mais de cinco anos. É o caso das pesquisas realizadas em Recife, em 2004 e 
2005, e da pesquisa realizada em Belo Horizonte em 2005. A pesquisa realizada 
em São Paulo, em 2003, não oferece esse dado. A primeira pesquisa realizada 
no  Recife  indicou  que  47,32%  dos  653  recenseados  já  estavam  na  rua  por  um 
período  de  até  cinco  anos,  sendo  que  apenas  111  pessoas,  ou  seja,  17,00%  se 
encontravam  na  situação  por  até  um  ano.  A  segunda  pesquisa,  realizada  em 
2005, indicou que 45,56% das 1.205 pessoas em situação de rua, localizadas em 
ruas e logradouros, estavam nessa condição no intervalo de tempo de até cinco 
anos, sendo que 19,67% já haviam completado até um ano de permanência nas 
ruas  e  25,89% entre  um  e  cinco  anos.  Em  2004,  o  percentual  das  pessoas  com 
mais de cinco anos em situação de rua no Recife era de 51,00%. Em 2005, esse 
percentual  foi  reduzido  para  44,48%,  observando  o  crescimento  de  1,68% 
(2004)  para  9,96%  (2005)  dos  que  não  sabem  ou  não  quiseram  informar  o 
tempo  de  rua.  No  caso  de  Belo  Horizonte,  a  pesquisa  de  2005  apontou 
acentuada queda no percentual de pessoas que estão na rua por um período de 
até cinco anos, comparativamente à pesquisa de 1998. O segundo censo (2005) 
demonstrou que, das 1.164 pessoas recenseadas, 48,03% estavam nas ruas até 5 

159
anos,  sendo  que  apenas  24,66%  tinham  trajetória  de  até  um  ano  nas  ruas.  O 
censo de 1998 indicou que 65,17% dos recenseados estavam com até cinco anos 
de tempo de rua. Enquanto isso, elevou‐se o percentual de pessoas que estão 
nas ruas há mais de 5 anos. Em 1998, esse percentual era de 27,29%; em 2005, 
nessa cidade, esse percentual passou a 30,75% (SILVA, 2009, p. 158‐159). 
 
Em suma, o que se pode apreender de todos esses resultados é que, 
durante  a  vigência  do  regime  de  acumulação  integral  subordinado  no 
Brasil,  a  intensificação  da  lumpemproletarização  tem  tornado  a 
condição  de  marginalizado  do  mercado  de  trabalho  em  um  modo  de 
vida  na  sociedade  capitalista  brasileira  contemporânea.  Nesse  sentido, 
ao  contrário  do  que  afirma  a  ideologia  da  exclusão/inclusão  social,  tal 
condição  não  deve  ser  apreendida  enquanto  uma  anomalia no  interior 
da sociedade do capital e que pode vir a ser eficazmente combatida com 
políticas  sociais  garantidoras  da  inclusão  social,  mas  sim  como  uma 
condição inerente ao processo de acumulação de capital na qual revela, 
essencialmente,  a  finitude,  que  se  alimenta  da  barbárie,  do  modo  de 
produção  fundamentado  na  extração  de  mais‐valor  e  que,  para  se 
manter  deve,  portanto,  constantemente  ampliar  o  trabalho  morto  em 
detrimento  do  trabalho  vivo.  Dessa  forma,  o  capitalismo  brasileiro 
promove a intensificação da lumpemproletarização como condição para 
o rebaixamento salarial, para a intensificação e precarização do trabalho 
e, consequentemente, ampliação da extração de mais‐valor.  
Para  finalizar,  discutiremos  um  pouco  mais  sobre  a  tentativa  de 
ocultar o processo de intensificação da lumpemproletarização no Brasil 
que  se  encontra  por  detrás  do  véu  ideológico  da  exclusão  social.  Pois 
bem,  de  acordo  com  Viana  (2009)  o  construto  ideológico46  exclusão 
social  revela,  primeiramente,  um  problema  de  cunho  teórico‐
metodológico,  pois  ao  se  fundamentar  numa  concepção  dualista  da 
sociedade (incluídos e excluídos socialmente), obscurece‐se a realidade 
concreta, que é constituída, como temos demonstrado ao longo de todo 
esse  trabalho,  pela  totalidade  das  classes  sociais  que  revela  sua 
dinâmica  na  luta  entre  classes.  Logo,  “na  concepção  dualista  da 
sociedade,  só  existiriam  os  incluídos  e  os  excluídos,  como  se  fossem 
independentes e separados, faltando aqui também a ideia de relação, no 
interior de uma totalidade” (VIANA, 2009, p. 248). 

46 Sobre construto e falso conceito Cf. VIANA, 2007. 

160
 Além  disso,  continua  a  análise  de  Viana,  a  ideologia  da 
inclusão/exclusão  social  desenvolve  uma  homogeneidade  fictícia  entre 
incluídos e excluídos, sem, no entanto, demonstrar quem seriam uns e 
outros.  Mas,  quem  seriam  os  incluídos  e  os  excluídos?  Os  primeiros 
seriam compostos pelos capitalistas, operários, burocratas, camponeses 
etc.  que  formariam  uma  totalidade  homogênea:  os  incluídos.  Já  os 
segundos,  seriam  formados  pelos  desempregados,  mendigos, 
moradores de rua, índios aculturados e empobrecidos etc., ou seja, “são 
todos  partes  de  uma  totalidade  homogênea,  oposta  e  não  relacionada 
com a primeira” (VIANA, 2009, p. 248). 
Dividindo  a  sociedade  entre  incluídos  e  excluídos,  a  ideologia 
dominante  revela  seus  valores  que  apontam  para  a  necessidade  de 
incluir os excluídos, pois, nesse discurso, o mundo dos incluídos passa a 
ser  encarado  como  a  única  saída  para  a  condição  de  excluído  social. 
Todavia, essa ideologia não deixa claro que mundo dos incluídos é esse 
que supostamente se pretende inserir os excluídos. Obviamente, não se 
pretende  incluí‐los  entre  os  privilegiados  da  sociedade  capitalista 
(capitalistas e suas classes auxiliares), mas sim nas classes exploradas.  
É  claro  que,  por  mais  que  a  classe  trabalhadora  esteja  submetida  à 
alienação  e  a  toda  mais‐violência  derivada  das  relações  de  trabalho 
dominantes  no  regime  de  acumulação  integral,  pertencer  ao 
lumpemproletariado,  que  no  mundo  fictício  da  ideologia  equivale  a 
estar excluído, representa desgraça ainda maior e, portanto, a inclusão 
se  apresenta  como  de  bom  tamanho.  No  entanto,  outro  interesse  de 
classes  se  obscurece  diante  de  tamanho  véu  ideológico.  Trata‐se  do 
interesse  em  evitar  que  esse  grande  contingente  de  “excluídos”, 
potencialmente  contestador,  represente  uma  ameaça  a  existência  da 
sociedade capitalista e, assim sendo, garantir a inclusão desses significa, 
por conseguinte, “que ele deixe de ser uma ameaça para a permanência 
dessa  sociedade.  A  ideologia  da  necessidade  de  inclusão  revela,  no 
fundo,  essa  preocupação  com  a  integração”  (VIANA,  2009,  p.  249). 
Como  toda  ideologia,  a  da  exclusão  social  não  pode  revelar  sua  raison 
d’être  e,  dessa  forma,  ela  deve  ser  meramente  descritiva  e  de  forma 
alguma explicativa, pois revelar o  que está por detrás dela alimentaria 
seu desejo oposto: a luta de classes. 
A  emergência  do  movimento  piquetero  argentino  e  a  radicalização 
que suas lutas atingiram, demonstram claramente como a intensificação 

161
da  lumpemproletarização  representa  uma  perigosa  ameaça  à 
reprodução  da  sociedade  capitalista,  pois  no  regime  de  acumulação 
integral  há  uma  tendência  do  lumpemproletariado  em  adquirir  uma 
maior  potencialidade  contestadora.  Tal  potencialidade,  se  aliada  ao 
movimento  operário  revolucionário  pode  construir  um  bloco 
revolucionário que aponte para a superação do capitalismo e construção 
de  uma  sociedade  verdadeiramente  humana,  fundada  na  autogestão 
social.  A  forma  organizacional  do  movimento  piquetero,  baseada  nas 
assembleias populares nos bairros, na horizontalidade das decisões, no 
caráter  autogerido  de  suas  ações  etc.  resgata  experiências 
organizacionais  revolucionárias,  desenvolvidas  pelos  conselhos 
operários  em  diversos  momentos  das  tentativas  de  revoluções 
operárias, ocorridas ao longo de todo o século XX, em diversas regiões 
do  mundo  e  contribui  para  o  avanço  da  consciência  de  classe.  Nesse 
sentido,  é  possível  afirmar  que  o  lumpemproletariado,  no  regime  de 
acumulação  integral  subordinado,  tende  a  adquirir  um  caráter  mais 
contestador e maior possibilidade de uma aliança revolucionária com o 
proletariado. 
No  Brasil,  apesar  da  intensidade  do  processo  de 
lumpemproletarização  no  regime  de  acumulação  integral,  não  se 
experimentou  nenhuma  ação  radicalizada  por  parte  do 
lumpemproletariado.  No  entanto,  diversas  organizações, 
majoritariamente  compostas  por  lumpemproletários,  começam  a 
emergir  e  lutar  por  reformas  e  mudanças  sociais.  Dentre  tais 
organizações,  poderíamos  citar  os  diversos  movimentos  de 
trabalhadores desempregados espalhados (MTDs) por várias regiões do 
país,  assim  como  os  movimentos  de  trabalhadores  sem  teto  (MTST). 
Esse  último  vem  promovendo  em  diversas  cidades  brasileiras  a 
ocupação  de  terras  urbanas  e  prédios  abandonados  e  lutando  contra  a 
especulação imobiliária nos centros urbanos. Assim como vários outros 
movimentos  sociais,  os  movimentos  sociais  compostos 
majoritariamente pelo lumpemproletariado, como é o caso dos MTDs e 
MTSTs,  também  vem  sofrendo  com  a  prática  de  criminalização  dos 
movimentos sociais e da pobreza no Brasil. 
Em síntese, a acumulação integral no Brasil, assim como em várias 
outras regiões, possui uma singularidade que se revela na sua condição 
de subordinado aos ditames dos países imperialistas. Tal singularidade 

162
reflete no processo de lumpemproletarização que, por sua vez, tende a 
se  intensificar,  visto  que  as  necessidades  neoimperialistas  geram  no 
bloco  subordinado  um  Estado  neoliberal  também  subordinado  que  se 
encarrega,  sem  cerimônias,  de  criar  as  condições  mais  favoráveis  para 
uma  acumulação  integral.  Dentre  tais  condições,  a 
lumpemproletarização  se  destaca  por  se  apresentar,  desde  sempre, 
como uma das grandes alavancas dessa acumulação capitalista integral 
subordinada. 
 

163
164
CONCLUSÕES 
 
 
Apontar  as  principais  determinações  do  processo  de  expansão  da 
lumpemproletarização  no  regime  de  acumulação  integral  e  suas 
particularidades  no  Brasil  foi  o  principal  objetivo  da  pesquisa  que 
realizamos. A trajetória cursada possibilitou as conclusões a seguir, que 
confirma a hipótese da qual partimos.  
Assim  como  o  proletariado  e  a  burguesia,  o  lumpemproletariado  é 
uma  classe  social  inseparável  do  modo  de  produção  capitalista  e, 
portanto,  esteve  presente  ao  longo  de  toda  a  história  desse  modo  de 
produção.  Contudo,  essa  classe  social  sofreu  alterações  quantitativas  e 
qualitativas  na  sua  composição  desde  o  século  XIX  aos  dias  atuais.  Se 
em  outros  contextos  históricos  a  condição  de  lumpemproletário  era 
acompanhada  pela  possibilidade  de  uma  nova  proletarização,  no 
regime  de  acumulação  integral  tal  possibilidade  tem  se  tornado  cada 
vez  mais  difícil  e  a  condição  de  marginalizado  da  divisão  social  do 
trabalho  tem  se  tornado  um  modo  de  vida  de  milhares  de  indivíduos 
em todo o mundo.  
Reconhecer  a  história  do  capitalismo  e  das  classes  sociais  que  o 
compõe como sendo a história da sucessão dos regimes de acumulação, 
que  tem  na  luta  de  classes  sua  força  propulsora,  representou  o  fio 
condutor  geral  desse  trabalho.  Nesse  sentido,  nossa  análise  procurou 
compreender  a  formação  e  desenvolvimento  do  lumpemproletariado 
como  consequência  fundamental  da  luta  de  classes  entre  burguesia  e 
proletariado  pelo  controle  sobre  o  tempo  de  trabalho  utilizado  para 
extração  de  mais‐valor.  Percebemos  que  no  regime  de  acumulação 
integral,  a  expansão  do  processo  de  lumpemproletarização  adquire 
níveis  vistos  somente  no  primeiro  regime  de  acumulação  (extensivo)  e 
isso decorre da dinâmica do regime de acumulação integral.  
Em  resposta  à  crise  capitalista  da  década  de  1960,  marcada  pela 
tendência  declinante  da  taxa  de  lucro  e  pela  radicalização  das  lutas 
sociais,  é  que  emerge  o  regime  de  acumulação  integral  como  uma 
contraofensiva  da  burguesia  aos  interesses  do  proletariado.  Essa 
contraofensiva  fundamenta‐se  nas  três  partes  constituintes  do  regime 
de acumulação integral: toyotismo, neoliberalismo e neoimperialismo.  

165
A  execução  de  um  conjunto  de  medidas  denominada  de 
“reestruturação produtiva”, acompanhada do neoliberalismo enquanto 
forma estatal que a tornasse regular representou as principais causas da 
expansão da lumpemproletarização na contemporaneidade.  
Mesmo  em  países  imperialistas  como  os  EUA  a 
lumpemproletarização  tem  se  expandido  significativamente  para 
diversas  outras  classes  sociais  e  não  apenas  para  o  proletariado.  Essa 
expansão tem promovido uma degradação geral nas condições de vida 
dos principais bairros da periferia de grandes cidades norte‐americanas 
e  vem  coagindo  a  população  local,  principalmente  os  jovens,  a 
sobreviverem,  essencialmente,  de  esmolas,  do  roubo  e  do  tráfico  de 
drogas. Em resposta a essas condições, o governo norte‐americano vem 
promovendo uma verdadeira guerra contra o lumpemproletariado que 
tem  resultado  numa  explosão  demográfica  carcerária  jamais  vista  na 
história da humanidade.  
Na  Argentina,  o  processo  de  lumpemproletarização  que  se  inicia 
ainda no início da década de 1980, sofre uma intensificação a partir da 
década  de  1990.  Tal  intensificação  se  revela  nos  elevados  índices  de 
desemprego  e  de  pobreza  que  atingiu  aproximadamente  metade  da 
população nacional. Devido a essa intensificação ocorrida em um curto 
prazo  de  tempo,  os  conflitos  sociais  também  se  intensificaram  e  o 
lumpemproletariado  organizado  (movimento  piquetero)  tornou‐se  um 
dos  principais  atores  sociais  em  luta  contra  as  drásticas  conseqüências 
impostas  pelo  regime  de  acumulação  integral  subordinado.  O 
protagonismo  e  radicalidade  adquirida  pela  luta  piquetera  comprova 
nossa  tese  segundo  a  qual  não  se  pode  afirmar  que  o 
lumpemproletariado é, por essência, conservador e reacionário, mas sim 
que sua postura política sofre alterações segundo o contexto histórico e 
a correlação de forças sociais existentes. Porém, constata‐se que há uma 
tendência  na  contemporaneidade  do  lumpemproletariado  se  tornar 
uma classe social mais contestadora e, por conseguinte, representar uma 
maior ameaça à manutenção da sociedade capitalista.  
O principal objetivo desse trabalho foi buscar respostas ao seguinte 
problema:  O  regime  de  acumulação  integral  subordinado  no  Brasil 
promoveu uma ampliação da lumpemproletarização? Para responder a 
essa questão central buscamos analisar as especificidades desse regime 
de  acumulação  no  Brasil  e  analisar  se  suas  consequências  sociais, 

166
principalmente  a  lumpemproletarização,  foram  intensificadas. 
Constatamos  que  a  condição  de  subordinação  aos  interesses 
neoimperialistas gerou um estado neoliberal também subordinado que 
promoveu uma devastação do patrimônio público através de um amplo 
processo  de  privatização  de  empresas  estatais,  da  demissão  em  massa 
de funcionários e de um aumento colossal do desemprego no Brasil. A 
intensificação  da  lumpemproletarização  pôde  ser  mais  bem  notada  na 
expansão de uma das frações de classes mais degradadas: a população 
em  situação  de  rua  ou  sem‐tetos.  A  situação  de  rua  dessa  fração  de 
classe  tem  se  tornado  um  modo  de  vida  de  milhares  de  pessoas  no 
Brasil. Isso pode ser apreendido no aumento do tempo de permanência 
nas ruas, no envelhecimento dessa classe social nas ruas e na expansão 
desse  fenômeno  para  pessoas  com  capital  cultural  cada  vez  mais 
elevado.  Portanto,  concluímos  que  o  Brasil,  na  era  da  acumulação 
integral, tornou‐se um país amplamente lumpemproletarizado. 
 
 
 
 
 

167
 
 
 
 
 
 
 

168
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Sobre o autor 
 
 
Lisandro  Braga  é  doutorando  em  sociologia  pela  Universidade  Federal  de 
Goiás/UFG, professor de Teoria Política e Movimentos Sociais da Universidade 
Federal  de  Mato  Grosso  do  Sul  e  autor  de  diversos  capítulos  de  livros,  assim 
como  organizador  das  obras  A  questão  da  organização  em  Anton  Pannekoek 
(BRAGA  &  VIANA,  2011)  e  Intelectualidade  e  luta  de  classes  (MARQUES  & 
BRAGA,  2013).  Atualmente  desenvolve  pesquisa  sobre  a  repressão  policial  e 
criminalização do movimento de desempregados na Argentina. 
 
 
 

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