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Classe em Farrapos
Acumulação integral e expansão do
lumpemproletariado
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Lisandro Braga
Classe em Farrapos
Acumulação integral e expansão do
lumpemproletariado
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Copyright © do autor
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida
ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor.
Lisandro Braga
Classe em Farrapos. Acumulação integral e expansão do lumpemproletariado.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 222p.
ISBN 978‐85‐7993‐???‐?
1. Lumpemproletariado. 2. Acumulação de capital. 3. Desemprego. I. Título.
CDD – 410
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito
Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F.
Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil);
Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Rogério Drago
(UFES/Brasil).
Pedro & João Editores
www.pedroejoaoeditores.com.br
13568‐878 ‐ São Carlos – SP
2013
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SUMÁRIO (CORRIGIR)
Prefácio
Introdução
Acumulação capitalista e lumpemproletariado
A dinâmica da produção capitalista de mercadorias
A produção de mais-valor e classes fundamentais
O processo de lumpemproletarização
Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado
A expansão do lumpemproletariado no regime de
acumulação integral
A teoria do regime de acumulação integral
Expansão e criminalização do lumpemproletariado nos
EUA
Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina
Lumpemproletarização na era da acumulação integral
no Brasil
Mudanças nas relações de trabalho e toyotismo
Neoimperalialismo e capitalismo subordinado
Desemprego e intensificação da lumpemproletarização
Conclusões
Referências
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A classe em farrapos:
elementos para uma teoria do lumpemproletariado
Lucas Maia∗
A discussão sobre as classes sociais é algo recorrente no conjunto
das ciências humanas. De diferentes maneiras, a partir de diversos
métodos de abordagem, discute‐se esse fenômeno óbvio, que em não
raras oportunidades é tão mal compreendido. Desde as diversas
ideologias da estratificação social, até as mais diversas leituras a partir
da teoria marxista, bem como das derivadas da deformação do
marxismo (bolchevismo, socialdemocracia etc.), que as classes sociais
vem sendo interpretadas e reinterpretadas.
Fazer aqui uma antologia de tais interpretações é algo
completamente contraproducente. Contudo, para situar, tanto no
campo teórico metodológico, quanto no campo político a presente obra
de Lisandro Braga, faz‐se necessária uma breve digressão acerca das
principais linhas de abordagem das classes sociais.
Uma primeira linha de interpretação, ligada à ideologia da
estratificação social, apresenta a leitura das classes sociais, do ponto de
vista metodológico, como algo completamente arbitrário. Uma vertente
é a que divide a sociedade em classe alta, média e baixa. Esta maneira
de compreender a questão apresenta vários inconvenientes. Em
primeiro lugar, homogeneíza classes e grupos que, de per si, apresentam
pouca semelhança. Nesta maneira de conceber a questão, entraria na
classe alta, por exemplo, altos executivos de empresas, grandes
burocratas estatais, grandes capitalistas (industriais, banqueiros etc.).
Nas classes médias, poderia‐se colocar: intelectuais (médicos,
advogados etc.), burocratas de grandes partidos políticos, professores
universitários etc. Nas classes baixas, por exemplo, poderia ser colocado
num mesmo bloco desempregados, operários, trabalhadores
domésticos, camponeses etc. Ou seja, o primeiro inconveniente desta
interpretação acerca das classes sociais é o de se precisar com exatidão a
∗
Professor do Instituto Federal de Goiás, campus Anápolis. Autor das obras Comunismo
de conselhos e autogestão social. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2010 e As classes
sociais em O capital. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2011.
colocação de um ou outro grupo ou classe social na mesma
classificação.
Desta primeira dificuldade, surge outra: como definir os limites que
separam uma classe da outra? Qual o limite ou quais os critérios para se
definir o que é classe baixa, média e alta? Cada pesquisador, neste
particular, pode inventar o seu: status, modo de vida, renda etc. Pode‐se
ainda acrescentar mais um elemento a este conjunto de dificuldades
metodológicas: como se relaciona ou qual a natureza do relacionamento
entre estes estratos sociais? Como é possível compreender a relação da
classe alta, com a média e com a baixa? Se esta concepção homogeneíza
o que é heterogêneo, se não consegue definir com precisão os limites
que separam um estrato do outro, muito menos terá condições de
estabelecer a plêiade complexa de relações que as classes estabelecem
entre si.
Deste modo, esta maneira de compreender a divisão da sociedade
em classes é bastante limitada. Estes três estratos não são capazes de
abarcar o conjunto de classes, frações de classes e grupos sociais que
compõem a teia de relações sociais que constitui as sociedades de classe.
Uma outra técnica ou metodologia, fundada na ideologia da
estratificação social, é que tenta, a partir da análise da renda, definir as
classes sociais. Geralmente, quando se utiliza desta concepção, divide‐se
a sociedade em classes A, B, C, D, E e assim por diante. Dependendo do
critério, dos objetivos do pesquisador, pode‐se identificar quantas
classes for necessário. Esta forma de analisar a questão padece das
mesmas dificuldades da anterior: coloca em uma mesma classe social
grupos, classes e frações de classe distintos, a delimitação de uma classe
para outra é algo completamente arbitrário, pois reduz‐se a situação de
classe ao rendimento. Assim, por exemplo, num mesmo estrato (A, B, C
etc.) pode‐se ter indivíduos com mesmo rendimento, mas com
atividades, modo de vida etc. completamente distintos. Da mesma
forma que a postura anterior, também esta não consegue compreender a
natureza do relacionamento entre as classes, pois ao estratificar, a partir
de critérios arbitrários, as classes sociais, não se consegue incluir na
análise a relação entre um estrato e outro. Como o estrato A se relaciona
com o C, o B com o D etc.? Impossível definir isto a partir deste
procedimento.
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Duas constatações são graves com relação à ideologia da
estratificação social: a) as classes não são algo real, mas sim resultado de
criação arbitrária, variando as classes de acordo com os critérios,
objetivos de cada pesquisador; b) não há história, nem historicidade
nestas interpretações, ou seja, as classes são naturalizadas. Resta ao
pesquisador, de forma neutra, somente identificá‐las. Vê‐se, deste
modo, a natureza conservadora desta abordagem.
Esta abordagem, embora faça parte da vulgata sobre as classes
sociais, povoando o imaginário da população, não é, em hipótese
alguma, a única maneira de conceber a questão. Uma outra, também
muito disseminada, é a feita a partir da interpretação leninista da obra
de Marx. Lênin, um dos principais ideólogos da burocracia do Partido
Comunista Russo, bem como um dos principais responsáveis pela
deformação do pensamento original de Marx, tem também sua
ideologia das classes sociais. O interesse em resgatar este ideólogo deve‐
se à sua importância na difusão de uma caricatura da obra de Marx.
Lênin, ao tentar analisar as classes sociais, afirma aprofundar as teses de
Marx. Contudo, analisando‐se os dois pensadores percebe‐se grandes
diferenças: em primeiro lugar, a interpretação de Lênin é fundada num
economicismo que não se verifica em Marx. Lênin define as classes
sociais a partir de sua posição frente às relações de produção e aos
meios de produção. Portanto, de acordo com Lênin, as classes se
definem somente a partir do modo de produção, ficando o conjunto da
população, que não está diretamente vinculado ao processo produtivo
fora das classes sociais. Nesta maneira pobre de compreender as classes,
define‐se a burguesia, o proletariado, o campesinato etc. Mas é difícil
encontrar um lugar nesta definição para, por exemplo, os trabalhadores
domésticos, intelectuais, burocratas etc. Por isto é comum na literatura
leninista as expressões: camadas sociais, pequena burguesia, classes
médias etc.
O uso da expressão camada social é algo recorrente na literatura
leninista, geralmente utilizada para qualificar os intelectuais e os
burocratas, que segundo Lênin e os leninistas não são classes, mas sim,
camadas sociais. Com este artifício ideológico, consegue‐se de uma
tacada só eliminar a posição privilegiada e de dominação que estas
classes exercem sobre as classes exploradas e oprimidas da sociedade. A
grande questão, do ponto de vista leninista, é justamente isentar a
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burocracia e a intelectualidade de sua posição de classe, transformando‐
a em camada social. Muda‐se a palavra, mas o conteúdo que ambas
expressam é o mesmo, ou seja, de que a burocracia é uma classe que
exerce atividade de controle e domínio dentro das instituições típicas da
sociedade burguesa. Ao fazer isto, Lênin e os demais leninistas
buscavam camuflar o fato de o Partido Comunista Russo ter‐se tornado
uma instituição dominante dentro da Rússia e posteriormente na União
Soviética.
Várias outras interpretações, oriundas de concepções claramente
burguesas, sobre as classes sociais poderiam aqui ser elencadas:
Raimond Aron, Georges Gurvich, Antony Giddens etc., mas tornariam
este texto por demais extenso. Só retomamos as duas leituras anteriores,
dada sua importância na divulgação de concepções errôneas sobre as
classes, bem como sua influência sobre as demais interpretações.
Ademais, a existência de todas estas ideologias só demonstra uma coisa,
o debate em torno das classes sociais é algo premente e necessita
sistematização. Uma grande contribuição a este propósito foi dada
recentemente pela excelente obra de Nildo Viana, publicada em 2012: A
Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Diferentemente das
interpretações anteriores, Viana faz uma reconstituição fidedigna e
complexa acerca da leitura de Marx das classes sociais. Marx não partia,
em sua análise das classes, como fazem os ideólogos da estratificação
social, ou seja, de critérios arbitrários para definir e identificar as classes
sociais. Nem muito menos reduzia sua leitura a um economicismo
empobrecedor, tal como Lênin. E, de forma alguma, reduziu a
sociedade capitalista a duas classes, tal como interpretaram Marx os
sociólogos e economistas de matriz ideológica burguesa.
Sua interpretação buscava expressar, no campo do pensamento, as
classes existentes concretamente. Este procedimento metodológico
permite, analisando‐se a divisão social do trabalho, identificar uma
quantidade razoável de classes, portanto, completamente antagônica às
interpretações burguesas de Marx (Aron, Gurvich etc.) que viam na
obra de Marx somente duas classes. Qualquer leitura séria da obra de
Marx resultará em conclusão oposta. Também, qualquer leitura rigorosa
perceberá o equívoco de Lênin e os leninistas em geral em restringir a
definição de classes em Marx ao processo produtivo e à propriedade
dos meios de produção.
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A leitura de Marx, como demonstra Viana, é bem mais complexa e
parte da divisão social do trabalho, da oposição de interesses, da luta de
classes, do modo de vida, modo de atividade, valores, concepções etc.
Assim, uma classe social não se define por sua posição diante dos meios
de produção. Este procedimento define somente as classes
fundamentais do capitalismo, ou seja, burguesia e proletariado. A estas
classes fundamentais relaciona‐se um conjunto de outras, denominadas
por Viana de classes subsidiárias, ou seja, que se apropriam de uma ou
outra maneira do mais‐valor produzido a partir da relação entre as
classes fundamentais. Entre as classes subsidiárias, pode‐se citar:
burocracia, intelectualidade, lumpemproletariado, trabalhadores
domésticos etc.
Cada uma destas classes comporta também um conjunto de frações
de classes. A burguesia, por exemplo, fraciona‐se em burguesia
comercial, financeira, industrial, agrária. O proletariado em industrial,
agrário, de minas, da construção civil. A burocracia em partidária,
eclesial, empresarial, sindical etc. A intelectualidade em artistas,
cientistas etc. Cada uma destas classes e frações define‐se por um
determinado modo de atividade, por sua posição na divisão social do
trabalho, por determinado modo de vida e rendimentos, por
determinados valores e interesses. O que, por definição, coloca uma em
relação com as outras e, por consequência, as coloca em situação de
conflito ou de aliança.
Vê‐se, deste modo, que a concepção de Marx é bem mais complexa
do que se apresenta à primeira vista. É a partir desta abordagem que
Lisandro Braga trás sua contribuição ao discutir como o
lumpemproletariado se constitui e evolui ao longo da história do
capitalismo. O título da obra é bastante expressivo de seu conteúdo. A
Classe em Farrapos é uma alusão ao significado etimológico da palavra
lumpemproletariado, ou seja, proletariado em farrapos.
A pesquisa histórica e teórica desenvolvida por Braga é uma grande
contribuição à teoria marxista das classes sociais. Sua análise da obra
de Marx no que concerne ao lumpemproletariado é uma marca
importante do presente livro. Demonstra como este “proletariado”
esfarrapado pertence ao capitalismo tanto quanto a burguesia e o
proletariado. Contudo, o grande elemento definidor do
lumpemproletariado, diferentemente das demais classes subsidiárias, é
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o fato de estar fora da divisão social do trabalho. Assim, como destaca o
autor, não existe exclusão social, o que implicaria em dizer que o
lumpemproletariado está fora da sociedade, algo impossível. Esta classe
está, na verdade, excluída da divisão social do trabalho. O que Braga
demonstra, a partir das obras de Marx e Engels é que a constituição da
relação‐capital, ou seja, da burguesia e do proletariado implica,
ontologicamente, na criação do lumpemproletariado.
O livro está dividido em três capítulos. No Capítulo 1: Acumulação
Capitalista e Lumpemproletariado, o autor demonstra a relação
inextrincável entre modo de produção capitalista e formação do
lumpemproletariado. A partir da análise de Marx acerca da “Lei Geral
da Acumulação Capitalista”, Braga demonstra como a produção da
riqueza enquanto capital implica necessariamente no crescimento do
lumpemproletariado. Segundo Marx, o aumento da composição
orgânica do capital implica necessariamente num crescimento absoluto
da população trabalhadora, bem como em seu decréscimo relativo em
relação ao conjunto do capital investido. Assim, o desenvolvimento do
capital reside num crescente aumento do investimento em capital
constante em oposição ao capital variável. Ambos crescem em fatores
absolutos, mas o capital constante cresce relativamente mais que o
capital variável. Esta relação “natural” do capital cria aquilo que Marx
denominou exército industrial de reserva ou superpopulação relativa.
Em O Capital, Marx refere‐se aos estratos mais inferiores desta
superpopulação relativa como sendo o lumpemproletariado
(prostitutas, incapacitados para o trabalho, desempregados crônicos
etc.). Braga propõe uma “ressignificação” do termo
lumpemproletariado, passando a compor esta classe todo o conjunto do
exército industrial de reserva. Após demonstrar a essência do
Lumpemproletariado, discute seu processo de formação histórica, seu
modo de vida, condições de existência etc. desde a origem do modo de
produção capitalista até finais do século XIX, período analisado por
Marx.
A segunda grande contribuição de Braga para uma teoria do
lumpemproletariado está presente no Capítulo 2: Expansão do
Lumpemproletariado no Regime de Acumulação Integral. Sua pesquisa,
portanto, não se restringe a afirmar o que Marx disse, o que demonstra
o caráter não‐dogmático do autor e de sua obra. Marx desenvolveu os
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elementos essenciais da análise do modo de produção capitalista e das
classes sociais, mas não fez tudo e nem poderia fazê‐lo. Também, o
capitalismo contemporâneo não é mais o do século XIX. É com base
nesta premissa, que Braga se apropria da teoria dos regimes de
acumulação tal como desenvolvida por Nildo Viana nas obras Estado,
Democracia e Cidadania e O Capitalismo na Era da Acumulação Integral e
discute o desenvolvimento do lumpemproletariado a partir do
desenvolvimento mesmo do modo de produção capitalista. A sociedade
moderna passou por cinco regimes de acumulação: extensivo (da
revolução industrial até finais do século XIX); intensivo (de finais do
século XIX até a Segunda Guerra Mundial); conjugado (da Segunda
Guerra Mundial até a década de 1980); e integral (da década de 1980 até
os dias atuais). Braga analisa dois regimes de acumulação e demonstra
como o lumpemproletariado se comporta, como classe em cada um
deles. Analisa o regime de acumulação extensivo, o discutido por Marx,
debate realizado no primeiro capítulo. No segundo capítulo, discute o
lumpemproletariado na contemporaneidade, ou seja, no regime de
acumulação integral. A conclusão a que chega o autor é que a tendência
à lumpemproletarização cada vez mais radical da sociedade se afirma
na etapa atual do capitalismo. E isto ocorre tanto nos países
imperialistas (Estado Unidos, Europa Central etc.) quanto nos de
capitalismo subordinado (América Latina, África etc.). Para os países
imperialistas, cunha o termo “lumpemproletarização expansiva”, para
os países subordinados “lumpemproletarização intensificada”.
A grande contribuição desta parte da obra é demonstrar: a) o
lumpemproletariado, ou seja, miséria, desemprego etc. são uma
realidade no mundo inteiro, inclusive no centro do capitalismo
mundial, os EUA; b) o lumpemproletariado não é necessariamente uma
classe reacionária, contrariando com esta tese várias abordagens, como
a de Alberto Passos Guimarães em seu livro As Classes Perigosas.
Continuando a reflexão que já havia feito no capítulo 1, quando
demonstrou que o lumpemproletariado foi ativo em vários processos de
luta durante o regime de acumulação extensivo, durante o regime de
acumulação integral, suas lutas levaram a uma radicalização beirando
as raias do processo revolucionário na Argentina. Analisa, neste ponto,
a ação política do Movimento Piqueteiro na Argentina e demonstra que
o lumpemproletariado não é essencialmente contra‐revolucionário. A
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experiência na Argentina, durante a década de 1990 e os primeiros anos
da década de 2000 o demonstram.
Finaliza o livro com o Capítulo 3: Lumpemproletarização na Era da
Acumulação Integral no Brasil. Demonstra, como rigor analítico, o
processo de estabelecimento da acumulação integral no Brasil, ou seja,
da reestruturação produtiva fundada no toyotismo, no estabelecimento
do Estado neoliberal iniciado com o governo Collor em 1990, processo
continuado até os dias atuais e na relação subordinada do Brasil com os
países imperialistas, onde os ajustes estruturais propostos pelo Fundo
Monetário Internacional – FMI, Banco Mundial etc. arrebentaram as
poucas políticas sociais e garantias trabalhistas que existiam no país.
Este conjunto de processos agravou uma situação que já era por demais
crônica. Tal como no caso argentino, a lumpemproletarização no Brasil
foi drástica ou como define e autor, “intensificada” durante os anos de
1990 e 2000. Isto, contudo, não implicou na criação de um movimento
social radical como na Argentina.
Assim, a presente obra, que agora o leitor tem em mãos, é uma
preciosa contribuição à teoria marxista das classes sociais. Seu enfoque
está centrado em uma classe social específica, o lumpemproletariado,
sendo outras classes marginalmente analisadas no livro. Esta obra tem,
portanto, vários méritos: a) interpretar de maneira correta a teoria de
Marx das classes sociais em geral e especificamente sua concepção de
lumpemproletariado; b) refundir e ressignificar alguns elementos da
teoria de Marx acerca do lumpemproletariado; c) analisar o
desenvolvimento do lumpemproletariado a partir da teoria dos regimes
de acumulação; d) analisar o desenvolvimento do lumpemproletariado
no capitalismo contemporâneo, ou seja, no regime de acumulação
integral; e) analisar o significado da luta política desenvolvida pelo
lumpemproletariado, demonstrando que esta classe, devido suas
condições de vida e existência, pode se aliar ao proletariado e
protagonizar processos radicais de luta. É, portanto, obra indispensável
para quem quer compreender a dinâmica das classes sociais no
capitalismo contemporâneo, além de ser, do ponto de vista
metodológico, um importante indicativo do estudo do
lumpemproletariado.
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INTRODUÇÃO
Os estudos que versam sobre o modo de produção capitalista e suas
classes sociais tendem, geralmente, a priorizar em suas análises apenas
as classes fundamentais do capitalismo, isto é, a burguesia e o
proletariado, a luta de classes derivada da relação estabelecida entre
essas classes na produção, suas organizações, modos de vida etc.. A
partir da década de 1940 começaram a surgir estudos interessados em
compreender outras classes sociais no capitalismo, tal como os estudos
sobre a burocracia (RIZZI, 1983; DJILLAS, 1971) ou, como prefere
alguns teóricos, os gestores (BERNARDO, 2009). No entanto, outras
classes sociais permaneceram marginalizadas não só na realidade
material concreta, mas também nas análises teóricas. Possivelmente a
classe social que mais nitidamente se encontra nessa situação seja o
lumpemproletariado.
O foco central desse trabalho consiste em analisar o processo de
lumpemproletarização no Brasil no período de vigência do regime de
acumulação integral (de 1990 aos dias atuais). Nossa motivação nasce
da necessidade intelectual de compreender as determinações que
envolvem o crescimento espantoso no Brasil de indivíduos
desempregados e empobrecidos, vivendo em situação de rua (sem‐
tetos), subempregados, prostitutas, mendigos etc. Trataremos esse
conjunto de grupos sociais que compõe a totalidade do “exército
industrial de reserva” como uma classe social: o lumpemproletariado.
O lumpemproletariado insurge das ruínas do modo de produção
feudal e das próprias necessidades do modo de produção capitalista
nascente, pois com o processo de ruptura com a tradição feudal da
propriedade comum da terra e o surgimento de propriedades privadas,
fruto dos cercamentos, destinadas a funcionarem segundo a lógica
mercantil incipiente, milhares de camponeses foram expulsos de suas
terras e obrigados a migrarem para os recentes centros urbanos industriais.
Porém, tais centros urbanos não se encontravam habilitados a incorporar
na nova divisão social do trabalho toda essa gigantesca massa popular.
Pelo contrário, parcela significativa dessa massa se encontrará
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marginalizada da divisão social do trabalho e formará o
lumpemproletariado.
Posteriormente, o próprio desenvolvimento da produção capitalista
de mercadorias e toda a sua dinâmica alimentarão o desenvolvimento de
um lumpemproletariado que tende a crescer assustadoramente na
sociedade capitalista. No fundo, essa classe social, após a consolidação do
capitalismo, deriva da luta de classes estabelecida entre burguesia e
proletariado na produção e formará aquilo que Marx denominou de
“exército industrial de reserva” e cumprirá duas funções essenciais no
capitalismo que consiste em pressionar os salários para baixo e manter a
classe trabalhadora dividida e enfraquecida na disputa por espaço no
mercado de trabalho. A totalidade desse exército industrial compõe a
classe social aqui denominada de lumpemproletariado e a mesma passa a
ser parte integrante da lógica reprodutora do modo de produção
capitalista, tendendo a crescer assustadoramente em períodos de crise
econômica.
A importância de se compreender o lumpemproletariado à luz de
uma teoria marxista das classes sociais se justifica pela necessidade de
apreendê‐lo enquanto uma classe social formada pela totalidade do
exército industrial de reserva, isto é, toda gama de desempregados,
subempregados, mendigos, sem‐tetos etc. que se encontram
marginalizados da divisão social do trabalho e que na atual
configuração do capitalismo tende a se encontrar cada vez mais, e em
maior número, nessa situação. O capitalismo ao longo de seu
desenvolvimento conviveu com a lumpemproletarização e dela
dependeu, porém a condição de lumpemproleatariado em diversos
momentos históricos era acompanhada pela possibilidade de retorno à
condição de classe operária e/ou trabalhadora em geral. Na
contemporaneidade, a possibilidade dessa massa enorme de indivíduos
se proletarizarem novamente é cada vez mais difícil, apesar de ainda
ocorrer, pois aquilo que anteriormente representava uma fase de
transição ‐ lumpemproletariado↔proletariado – tem se tornado,
durante a vigência do regime de acumulação integral, num “modo de
vida” de milhares de indivíduos em todo o mundo (MARTINS, 1997).
Conseqüentemente, o enfrentamento à condição de
lumpemproletariado, assim como a condição de proletariado, depende
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intimamente da destruição da sociedade que lhes possibilita a existência
e delas depende para existir, isto é, o capitalismo.
Além disso, torna‐se de fundamental importância discutir o que há
por de trás dos constructos ideológicos inclusão/exclusão social que,
desde aproximadamente a década de 80 e 90 na Europa,
especificamente na França, se tornaram dominantes nos discursos
acadêmico‐científicos e governamentais, pois tentar compreender a
totalidade das relações sociais no capitalismo a partir de uma visão
dualista abstrata que mais obscurece tais relações do que a esclarece,
acaba por revelar a tentativa das classes dominantes de ocultar um
processo que acompanha o desenvolvimento histórico do modo de
produção capitalista: a lumpemproletarização expansiva (capitalismo
imperialista) e intensificada (capitalismo subordinado).
Ao falar de exclusão social deve se questionar de onde se está
excluído, pois ninguém está excluído socialmente uma vez que não
existem indivíduos excluídos da pertença de classe social. Todo
indivíduo pertence a uma ou outra classe social. O que acontece é que o
lumpemproletariado, uma classe social inerente ao capitalismo tal como a
burguesia e o proletariado, encontra‐se marginalizado da divisão social
do trabalho e não da sociedade como um todo, pois isso é impossível.
Além disso, a ideologia da inclusão social não explica em que condições e
para onde se pretende incluir os tais indivíduos “excluídos”, ou seja, não
demonstra que se houvesse a possibilidade da inclusão, algo bastante
contestável e duvidável, essa se daria no reino do trabalho alienado,
precarizado e intensificado que nega a multiplicidade da potencialidade
física e espiritual do ser humano e, consequentemente, a positividade da
inclusão estaria ameaçada.
Em escala mundial é possível perceber que o processo de
lumpemproletarização passa por uma fase de expansão na Europa, EUA
e Ásia, a partir da década de 1980, com a consolidação do regime de
acumulação integral. Nosso problema de pesquisa incide em saber se no
Brasil, país de capitalismo subordinado, que convive, desde o final do
século XIX, com um alto índice de indivíduos lumpemproletarizados
houve uma intensificação desse processo? Se houve, quais são suas
especificidades, ou seja, qual a relação entre o regime de acumulação
integral no Brasil e a intensificação da lumpemproletarização nesse país?
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Responder a esse problema central e a outros dele derivados, possui
importância acadêmica e social fundamental, pois pode contribuir com
a reconstrução de uma teoria das classes sociais no Brasil que ofereça
ferramentas mais eficazes para a compreensão da dinâmica social
brasileira e possibilite, também, um combate à ideologia dominante
que, a partir dos seus constructos ideológicos (marginalidade social,
inclusão e exclusão social, ações afirmativas, igualdade de
oportunidades etc.), camuflam a realidade social e, conseqüentemente,
reproduz o status quo, dificultando a construção de uma concreta
alternativa social, fundada na autogestão da sociedade, que sirva ao
enfrentamento incisivo contra a manutenção e reprodução da barbárie
capitalista.
Com o intuito de compreender a Acumulação integral e expansão do
lumpemproletariado, nosso trabalho será dividido em três capítulos. O
primeiro capítulo intitulado Acumulação capitalista e lumpemproletariado
trará uma discussão teórica acerca da acumulação capitalista, suas
classes fundamentais, a relação entre a acumulação e o
lumpemproletariado e a formação e desenvolvimento dessa classe
social no regime de acumulação extensivo. Nesse capítulo buscamos
compreender o lumpemproletariado como uma classe social inerente ao
modo de produção capitalista e que tende, assim como no regime de
acumulação extensivo, a se ampliar e se intensificar no regime de
acumulação integral.
Para dialogar com a hipótese de que no regime de acumulação
integral a lumpemproletarização sofre um processo de expansão,
discutiremos no segundo capítulo A expansão do lumpemproletariado no
regime de acumulação integral com o intuito de demonstrar que mesmo em
países de capitalismo imperialista, como o norte‐americano, é possível
visualizar um amplo processo de lumpemproletarização e de
criminalização do lumpemproletariado. Nesse capítulo, discutiremos,
também, o processo de lumpemproletarização e luta de classes na
Argentina. Para isso, discutiremos a situação argentina que, nos últimos
anos da década de 1990 até os dias atuais, vem experimentando um
intenso processo de lumpemproletarização derivado das conseqüências
do regime de acumulação integral e da adoção irrestrita à cartilha
neoliberal. O propósito de discutir a situação argentina se justifica pelo
fato de que a intensificação da lumpemproletarização nesse país
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provocou uma radicalização da luta de classes, demonstrando que, no
regime de acumulação integral, a postura política do
lumpemproletariado pode ser marcada por um caráter fortemente
contestador que ameaça a permanência da ordem capitalista. Dessa
forma, a tese segundo a qual a postura política do lumpemproletariado
na contemporaneidade apresenta‐se como uma possibilidade real de uma
aliança revolucionária com o proletariado se confirma e o mito segundo o
qual a postura política do lumpemproletariado é sempre passível de ser
cooptada e utilizada a serviço de tramóias reacionárias é desmentida.
No terceiro e último capítulo, discutiremos o processo de
lumpemproletarização no Brasil. Nosso objetivo é demonstrar a
singularidade desse processo em um país de capitalismo subordinado.
Para isso, discutiremos as principais mudanças ocorridas nas relações de
trabalho e o toyotismo no Brasil, a relação entre neoimperialismo,
capitalismo e neoliberalismo subordinado. Por fim, realizaremos uma
discussão sobre desemprego e intensificação da lumpemproletarização
com o intuito de evidenciar que no capitalismo subordinado o processo
de lumpemproletarização tende a ser intensificado. Para demonstrar essa
intensificação, iremos analisar as condições de existência de uma das
frações de classe do lumpemproletariado mais degradadas no
capitalismo: os sem‐tetos ou população em situação de rua (PSR). Para
essa análise, contaremos com as informações fornecidas pelos estudos
realizados por Maria Lucia Silva e que resultaram na obra Trabalho e
população em situação de rua no Brasil (2009).
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ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E LUMPEMPROLETARIADO
A proposta central desse trabalho é compreender o
lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, analisando‐
o como uma classe social composta pela totalidade do exército
industrial de reserva (desempregados, sem‐teto, mendigos,
subempregados, prostitutas etc.). Constata‐se que o processo de
lumpemproletarização, que emerge concomitantemente ao processo de
proletarização, no período de consolidação do capitalismo, vem se
expandindo no regime de acumulação integral, tanto nos países
imperialistas quanto nos países subordinados, de uma forma jamais
vista em outros períodos do capitalismo, exceto no período de
emergência desse modo de produção. Com o propósito de elucidar tal
constatação analisaremos o processo de lumpemproletarização no
regime de acumulação extensivo (da Revolução industrial até
aproximadamente 1871) e, posteriormente, no regime de acumulação
integral para, a partir daí, buscar constatar que esse processo vem
sofrendo uma expansão na contemporaneidade semelhante à épocado
primeiro regime de acumulação capitalista, dominante em quase todo o
século XIX1.
Para melhor compreender a dinâmica da acumulação capitalista,
suas leis, tendências e contra tendências, assim como a formação do
lumpemproletariado e seu papel no processo de acumulação de capital,
realizaremos, nesse capítulo, uma discussão acerca das múltiplas
determinações que envolvem o modo de produção capitalista, a
produção e extração de mais‐valor (sua determinação fundamental), a
lei geral da acumulação capitalista e o processo de
lumpemproletarização derivado dela. Visando, também, compreender
as mudanças históricas pelas quais o capitalismo sofre em suas formas
(processo de valorização, formas estatais e relações internacionais), a
história do capitalismo será apresentada aqui enquanto uma sucessão
de regimes de acumulação, demonstrando as especificidades do regime
1 Para uma análise pormenorizada do regime de acumulação extensivo, passando pelo
intensivo e intensivo‐extensivo, até chegar ao regime de acumulação integral, cf.
VIANA (2009).
21
de acumulação integral e suas implicações no processo de ampliação do
lumpemproletariado na contemporaneidade (VIANA, 2009).
22
determinações desse modo de produção. O propósito de Karl Marx na
sua obra O Capital (1967) consiste em revelar a exploração da sociedade
capitalista que possui seu fundamento na extração de mais‐valor no
processo de produção de mercadorias. Visando compreender a essência
(no sentido ontológico) da mercadoria, Marx, a partir do “método da
abstração”, procura descobrir suas múltiplas determinações e sua
determinação fundamental.
No capítulo A mercadoria do volume I de O capital, o autor inicia
questionando o que determina o valor da mesma. Para responder a essa
questão, primeiramente, torna‐se necessário, segundo Marx, saber o que
há de comum em todas as mercadorias. Ele acaba afirmando que o que
há de comum é que as mesmas são produtos do trabalho humano e que
o tempo de trabalho socialmente necessário gasto em sua produção está
diretamente relacionado com a determinação do seu valor.
No entanto, cabe indagar: como Marx chega a tal conclusão? A
mercadoria é ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca. Enquanto
valor de uso a mercadoria deve possuir utilidade para, enfim, ser
consumida. Tais valores de uso são portadores materiais do valor de
troca, ou seja, são mercadorias. Tomemos os seguintes exemplos para
melhor compreender a questão dos valores. Se 01 determinado
caminhão equivale a 03 determinados automóveis ou 02 determinados
tratores, logo 03 desses automóveis valem o mesmo que 02 desses
tratores ou 01 desse caminhão. Por conseguinte, possuem a mesma
expressão do seu conteúdo. Sendo assim, pode‐se concluir que 03
automóveis e 02 tratores, assim como 01 caminhão,possuem algo de
comum e da mesma grandeza, mesmo sendo, enquanto valores de uso,
coisas distintas. Percebe‐se, então, que há uma “terceira coisa” além dos
valores de uso e de troca nas quais eles se reduzem. Em que consiste
essa “terceira coisa”?
As mercadorias enquanto valores de uso possuem diferenças
qualitativas e enquanto valores de troca possuem apenas diferenças
quantitativas. Enquanto valores de troca, as mercadorias possuem
apenas uma “propriedade comum”: são produtos do trabalho
humano.Assim, Marx descobre em que consiste a “terceira coisa” e
afirma:
23
deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a ela
apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o
produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se abstraímos
o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas corpóreas
que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer
outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram. Também já
não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou
de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o caráter
útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles
representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas
concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar‐se um do outro para
reduzir‐se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano
abstrato (1985, p. 47).
Dessa forma, o que se pode perceber é que as mercadorias possuem
como “propriedade comum” o fato de serem produtos do trabalho
humano, “uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado”,
trabalho humano abstrato. Conclui‐se, então, que é o tempo de trabalho
socialmente necessário para produzir uma mercadoria que determina
seu valor. Vale destacar que o autor está tratando do tempo médio
social de trabalho e não do tempo de trabalho efetivo, e trata‐se do valor
da mercadoria e não do seu preço. A diferença de um valor em relação a
outro é meramente quantitativa. A grandeza quantitativa do valor é
medida através do tempo de trabalho gasto na sua produção que, por
sua vez, é medido pela sua duração (horas, dias etc.). Porém, esse
trabalho é “trabalho abstrato”, ou seja, trabalho social médio e não
“trabalho concreto”. Sendo assim,
é portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo
de trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso o que
determina a grandeza de seu valor. A mercadoria individual vale aqui apenas
como exemplar médio de sua espécie. Mercadorias que contêm as mesmas
quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de
trabalho, têm, portanto, a mesma grandeza de valor. O valor de uma
mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim como
o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de
trabalho necessário para a produção de outra (MARX, 1985, p. 48).
O trabalho humano utilizado na produção de uma mercadoria
possui duplo caráter: trabalho concreto e trabalho abstrato.
Primeiramente, o trabalho é produtor de valor de uso, produz para ser
24
útil a determinadas necessidades. Por outro lado, tal trabalho é abstrato,
produz mais valor, acrescenta valor à mercadoria. Tal duplicidade do
trabalho se reproduz na mercadoria como valor de uso e valor de troca.
A mercadoria enquanto coisa de valor é imperceptível. Somente
representa valor quando expressa trabalho social e, consequentemente,
o seu valor só pode ser expresso numa relação sócio mercantil de
mercadorias para mercadorias.
Marx compreende o concreto (real) como sendo “síntese de
múltiplas determinações”, mas que possui uma determinação
fundamental. De acordo com o “método da abstração” desenvolvido
por ele, o concreto‐dado é ponto de partida, visto que antes da pesquisa
ele se encontra no nível das “representações cotidianas”, “senso
comum” e não se apresenta de imediato em sua “essência”, mas a partir
das abstrações atingimos o concreto‐determinado, pensado. Isto é,no
início, temos o concreto‐dado, a representação cotidiana do fenômeno a
ser estudado, ou seja, a aparência. Depois de pesquisar, através da
abstração chegamos ao concreto‐pensado, determinado. Por
conseguinte, o concreto‐dado é transpassado para o concreto‐pensado,
possibilitando expressá‐lo, teoricamente, em sua totalidade(VIANA,
2006).
Dessa maneira, é que podemos afirmar que o preço da mercadoria é
o concreto‐determinado, e o processo de abstração possibilitou chegar
ao valor, sua determinação fundamental. Portanto, o que Marx busca
fazer no capítulo A mercadoria é superar o concreto‐dado, a aparência,
através da abstração, chegando à essência – determinação fundamental
‐ para assim chegar ao concreto‐determinado, que é a mercadoria em
suas múltiplas determinações.
Resta, agora, sabermos que relações sociais concretas existem entre a
produção de mercadorias e a definição do valor das mesmas, ou seja, de
que forma se define o valor de uma mercadoria na sociedade
capitalista?
2.1.1 – A produção de mais-valor e classes fundamentais
Creio não ser necessário realizar grandes análises para concluirmos
que a produção capitalista só ocorre se a mesma for geradora de lucro,
ou seja, se a classe capitalista detentora dos meios de produção
25
necessita, ao produzir mercadorias, vendê‐las no mercado por um valor
superior aos custos da sua produção, consequentemente o valor final da
comercialização deve ser maior do que os gastos com maquinaria,
matérias‐primas e salários. Desse modo, todo capitalista
quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores
das mercadorias exigidas para produzi‐la, os meios de produção e a força de
trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir
não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e
não só valor, mas também mais‐valia (MARX, 1985, p. 155).
Tanto as máquinas quanto as matérias‐primas apenas repassam
seus valores no processo produtivo, por conseguinte o trabalho deve ser
processo de valorização, pois “como a própria mercadoria é unidade de
valor de uso e valor de troca, seu processo de produção tem de ser
unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor”
(MARX, 1985, p. 155). Então, devemos questionar de onde e de que
maneira vem o acréscimo de valor?
Anteriormente já foi adiantado que o valor de uma mercadoria é
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para
produzi‐la, portanto é a força de trabalho (capital variável) o único
elemento que acrescenta valor à mercadoria. Dessa maneira,
a força de trabalho é uma mercadoria particular, completamente diferente dos
meios de trabalho. Enquanto que estes últimos fornecem ao produto o seu
valor, a força de trabalho não só fornece o seu próprio valor como também
acrescenta o valor do trabalho que ela realiza. É criadora de trabalho; e,
portanto, de valor. O seu consumo é produtivo: dá mais do que custou
(BARROT, 1977, p. 58).
O processo de constituição do valor de determinado produto é
composto por diferentes determinações envolvidas na produção. De um
lado temos aquilo que Marx denominou de capital constante, ou seja, “a
parte do capital que se converte em meios de produção” – matérias‐
primas, maquinaria e meios de trabalho em geral. Do outro lado
encontra‐se o capital variável, isto é, a força de trabalho que além de
reproduzir seus custos adiciona mais‐valor, gera excedente (MARX,
1985). Neste sentido, percebe‐se que o capital constante apenas repassa
seus custos durante o processo de produção enquanto o capital variável,
26
além de repassar seus custos, consiste no único elemento presente no
processo produtivo capaz de agregar mais‐valor à mercadoria. Marx
chama esse conjunto (capital constante + capital variável) de composição
orgânica do capital (MARX, 1985a).
A composição orgânica do capital expressa, consequentemente, a
tendência declinante da taxa de lucro médio, pois com o intuito de
garantir a reprodução ampliada do capital, a classe capitalista investe
cada vez mais em meios de produção (trabalho morto), que apenas
repassa seus custos, e cada vez menos em força de trabalho (trabalho
vivo) que é o único elemento gerador de mais‐valor. Portanto, se o
elemento que apenas repassa custos amplia em detrimento do elemento
que gera mais‐valor, desenvolve‐se a tendência declinante da taxa de lucro
médio2. Tal tendência é de extrema importância para a compreensão da
dinâmica do capitalismo e de suas transformações históricas, pois revela
uma das potencialidades fundamentais causadora da crise capitalista.
A relação que se estabelece entre as duas classes fundamentais do
capitalismo, ou seja, entre a burguesia e o proletariado, é uma relação
de compra e venda, pois a burguesia compra no mercado tanto
matérias‐primas, maquinaria e outros meios de trabalho, assim como a
força de trabalho. Porém, essa última, ao contrário dos meios de
trabalho, não apenas é consumida durante a produção, mas também é
geradora, pois o acréscimo de valor que a força de trabalho realiza
possibilita ao capitalista acumular capitais uma vez que a reposição dos
custos e o dispêndio com força de trabalho – salários ‐ equivalem
apenas a uma parcela do mais‐valor produzido. Já, “o valor do capital
constante reaparece no valor do produto, mas não entra no novo
produto‐valor criado” (MARX, 1985, p. 241).
Esse é o segredo da exploração capitalista: a existência do mais‐
valor só é possível quando o proletariado se encontra completamente
separado do resultado do seu trabalho, que passa a ser substituído por
um salário equivalente apenas a uma parcela infinitamente menor do
que o realmente produzido. Desta forma, percebe‐se que a relação entre
2 “Esta tendência é constituída devido ao desenvolvimento das forças produtivas, pois
quanto mais desenvolvida é a tecnologia e quanto mais esta entra no processo de
produção, menos se utiliza a força de trabalho, que é a fonte geradora de mais‐valor”
(VIANA, 2009, p. 93).
27
capitalista e proletariado é fundada na exploração de uma classe não
produtora, mas que apropria do resultado de trabalho alheio não pago,
sobre a classe produtora. Nesse sentido,
a chave do aumento do lucro é o aumento da parte não‐paga do dia de
trabalho em relação à parte paga, aumento do produto excedente em relação
ao produto necessário para fornecer os meios de subsistência do trabalhador,
ou aumento da taxa de mais‐valia (EATON, 1965, p. 99).
Portanto, a produção capitalista de mercadorias corresponde à
produção de mais‐valor e esse pode ser obtido de duas formas. A
primeira forma, denominada de mais‐valor absoluto, é produzida pelo
prolongamento das jornadas de trabalho. A segunda forma,
denominada de mais‐valor relativo, decorre da ampliação da produção
no mesmo período de tempo ou até mesmo em jornadas de trabalho
reduzidas. Cabe, por conseguinte, indagar: Como isso é possível? Como
os operários podem produzir mais no mesmo período de tempo?
Historicamente a burguesia vem utilizando duas principais formas
de ampliação da produtividade. Uma forma é a organização
racionalizada do processo de produção a qual os operários passam a ser
minuciosamente controlados, fiscalizados, rigidamente disciplinados,
cronometrados e vigiados pelos especialistas nessa função, espécies de
“agentes carcerários da produção” (BRAGA, 2009). Os horários para
utilização do banheiro, realização de refeições e para saída de fumantes
do local da produção vem sofrendo uma significativa diminuição.
Além dessas formas, ainda existe o sistema de multas por atraso,
por destruição de ferramentas, por descuido com as máquinas, etc. Com
isso, a classe capitalista objetiva evitar o desperdício de tempo
necessário para a produção de mais‐valor, pois “o capital personificado,
o capitalista, cuida de que o trabalhador execute seu trabalho
ordenadamente e com o grau adequado de intensidade” (MARX, 1985,
p. 244).Outra forma consiste no constante aperfeiçoamento tecnológico
utilizado para o desenvolvimento de máquinas cada vez mais eficientes
e produtivas. Dessa forma, os capitalistas garantem a ampliação da
produtividade operária.
John Eaton, em sua obra Manual de economia política (1965), ainda nos
apresenta outra estratégia capitalista que consiste na forma de
pagamento de salários. Segundo ele,
28
as formas de pagamento de salários constituem uma batalha entre o
empregador e os sindicatos. Salário‐tarefa, ou seja, salário pago de acordo com
a produção proporciona ao capitalista um meio de obrigar o trabalhador a
fazer mais durante o dia de trabalho, já que disso depende quanto o
trabalhador leva para casa. À primeira vista, pode parecer que o pagamento de
salários‐tarefa contradiz o que dissemos anteriormente sobre os salários e o
valor da força de trabalho, como correspondendo aproximadamente ao valor
dos meios de subsistência do trabalhador. O pagamento “por peça”, ou seja, de
acordo com a produção, sugere que quando esta se eleva, os salários se
elevarão de forma correspondente. Isso só ocorre a prazo muito curto. A
experiência de muitas décadas mostrou aos trabalhadores que os salários‐
tarefa são, no final, fixados em preços baseados em salário‐tempo, e na soma
de artigos que o trabalhador deve comprar para viver. Se a produção aumenta
acentuadamente, então o preço pago unitariamente é logo reduzido. O salário‐
tarefa de todo um dia de trabalho pode, é certo, ser um pouco mais do que o
salário‐tempo do dia, mas a isso se contrapõe o fato de que a maior intensidade
de trabalho aumenta as necessidades do trabalhador. Para o capitalista, porém,
é compensador pagar pelo trabalho executado, já que essa produção extra
aumenta o volume de mais‐valia numa proporção que excede
consideravelmente qualquer extra pago em salários (EATON, 1965, p. 101).
A pedra angular da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia
Marx, gira em torno da disputa pelo controle do tempo de trabalho,
pois se de um lado a burguesia visa ampliar a extração de mais‐valor
sobre o tempo de trabalho do proletariado, esse visa diminuí‐lo e
devido aos interesses antagônicos dessas classes, o processo de
valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por isso, a burguesia se
vê coagida a desenvolver formas cada vez mais eficazes de controle
sobre o trabalho operário, enquanto esse se vê também coagido a
desenvolver formas de lutas que avancem em direção à diminuição do
tempo de trabalho para extração de mais‐valor. Consequentemente,
isto ocorre devido ao fato de que é no próprio processo de trabalho,
simultaneamente processo de valorização, que se dá a produção de mais‐valor.
Desta forma, o trabalhador, ao resistir em utilizar toda a sua capacidade de
trabalho, tende a diminuir a extração de mais‐valor. É por isso que surge uma
luta nas unidades de produção, em que o capitalista busca controlar a força de
trabalho para que ela nãodesperdice tempo e, por conseguinte, faça decair o
seu lucro (VIANA, 2009, p. 49).
A determinação fundamental da organização do trabalho na
sociedade capitalista é a luta de classes entre burguesia e proletariado,
29
porém é necessário compreender, de forma pormenorizada, como se
relaciona burguesia e proletariado no processo de produção, como se dá
a luta de classes e como a mesma interfere na organização do trabalho e
na alteração dos regimes de acumulação.
O ser humano se humaniza ao realizar atividades essencialmente
humanas, interferindo na natureza a partir do trabalho em cooperação
com outros seres humanos, objetivando, dessa maneira, reproduzir as
condições materiais da sua existência. Essa é a essência do trabalho
autônomo, ou seja, a garantia da reprodução do próprio ser e sua auto
realização total.Já o trabalho alienado é a negação da essência humana
existente no trabalho, pois, com a divisão social do trabalho e a
instauração do controle do processo de produção pelo não trabalhador,
se institui a total separação entre o produtor e o produto e com isso o
homem não produz mais as garantias das necessidades humanas, mas
sim mercadorias que não lhe pertence (MARX, 2004).
A afirmação do capital realiza‐se na negação do proletariado uma
vez que este, no processo de produção, desempenha atividades alheias
às suas necessidades, não atinge através de suas potencialidades sua
auto realização total, encontra‐se completamente separado dos
produtos do seu trabalho e, dessa forma, aliena‐se. Segundo Marx,
otrabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto a si fora do
trabalho e fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando
trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas
forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma
carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua
estranheza evidencia‐se aqui tão pura que, tão logo inexista coerção física ou
outra qualquer, foge‐se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o
trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto sacrifício, de
mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o
trabalhador como se não fosse seu próprio, mas de outro, como se não lhe
pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a outro
(2004, p. 83).
Por conta desse caráter alienado do trabalho, o proletariado procura
incessantemente encontrar formas que garantam o mínimo da sua
integridade física no trabalho e isso se evidencia nas inúmeras
possibilidades e maneiras de resistência e luta contra a exploração do
capital. Essas atitudes de resistência ocorrem de diversas formas, tais
30
como as mais pacíficas e camufladas como a “operação tartaruga”, o
absenteísmo, o atraso nos locais de trabalho, a destruição de peças e
ferramentas que emperram o desenrolar da produção, as constantes
idas ao banheiro e sua demora etc.
Vale lembrar que a luta operária pelo controle e diminuição do
tempo de trabalho destinado à produção de mais‐valor representa
apenas o primeiro momento da luta operária, ou seja, essa luta equivale
ao momento imediato da luta de classes. Contudo, o interesse histórico
do proletariado se funda na tendência em eliminar a existência do mais‐
valor na sua totalidade3. Além dessas formas imediatas, as lutas contra
a exploração do trabalho tendem a adquirir em momentos de crise e de
radicalidade, uma postura mais nitidamente política4, tal como é
perceptível nos processos de realização de greves que atingem caráter
geral, com a ocupação de fábricas e auto‐organização da produção, no
qual o proletariado deixa de ser uma “classe em si” para se tornar uma
“classe para si”. Essa dinâmica acompanha o desenvolvimento
capitalista desde o seu nascimento até os dias atuais e inúmeros
exemplos históricos poderiam ser citados: As revoluções de 1848 na
Europa, a Comuna de Paris em 1871, as experiências russas a partir dos
sovietes em 1905 e 1917, a revolução alemã nas décadas de 1920, a
ocupação de fábricas na Argentina do final da década de 1990 até
3 “Quais são os interesses históricos do proletariado? Abolir a relação‐capital, ou seja, as
relações de produção capitalistas, o que significa abolir a classe capitalista, a si mesmo
enquanto classe e a todas as demais classes. Mas os interesses históricos do
proletariado não se limitam a esse trabalho destrutivo, pois, ao mesmo tempo em que
deve abolir o modo de produção capitalista, ele deve construir um novo modo de
produção. O processo de destruição é, aqui, ao mesmo tempo, um processo de
construção. E como podemos apreender esse processo de construção, ou seja, a
formação de um novo modo de produção. Isto só pode ser descoberto através da
experiência histórica do movimento operário. Portanto, a compreensão do modo de
produção capitalista em sua historicidade e a prática histórica da classe operária é o
que nos permite descobrir quais são os interesses históricos desta classe. São destes
interesses históricos que derivam os interesses imediatos” (VIANA, 2008, p. 87).
4O termo política empregado aqui é derivado da idéia de luta de classes em sentido
amplo e não no sentido comumente adotado que resume a luta política às lutas
parlamentares, eleitorais ou através de golpe armado visando à conquista do Estado.
Uma vez que, para Marx, o fundamental para a compreensão de uma sociedade são
suas relações de produção, logo este é por essência o local privilegiado da luta de
classes e todas as demais lutas políticas derivam daí.
31
aproximadamente 2004 e assim por diante. Essa é uma tendência
intrínseca ao modo de produção capitalista.
Um amplo debate sociológico já existe em torno dessa mudança de
postura do proletariado, porém não é nosso interesse resgatar tal
debate, mas tão somente apresentá‐lo segundo a perspectiva do
proletariado, ou seja, procurando compreender quem é essa classe
social, como se relaciona com a sociedade capitalista e como enxerga tal
sociedade a partir da experiência que mantém com a mesma. Em
síntese, “essa perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o
que é visto e a forma como se vê” (Viana, 2007, p. 75).
A análise que Marx realiza sobre o proletariado consiste em uma
análise sobre a ontologia do proletariado, sobre sua essência e não sua
aparência. Sendo assim, é possível encontrar na teoria de Marx uma
análise sobre o ser‐do‐proletariado, conforme explicitado na seguinte
passagem: “não se trata de saber que objetivo este ou aquele proletário,
ou até o proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata‐se de saber
o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer
de acordo com este ser” (Marx & Engels, 1979, p. 55).
Nesse sentido, a resistência implementada pelo proletariado não
visa apenas adquirir, de imediato, melhores condições de trabalho e
vida, mas, também, a abolição do trabalho alienado e da extração de
mais‐valor que é seu fundamento. Nesse processo histórico de
enfrentamento o proletariado forma sua consciência de classe ao negar
o trabalho alienado e a consciência heterodeterminada derivada dele, e
busca afirmar na prática (trabalho autônomo) e, consequentemente, na
consciência, sua autodeterminação. Portanto, constrói suas estratégias
de lutas, abandona estratégias ultrapassadas e forja novos mecanismos
de resistência e avanço da luta em direção à construção daquilo que
Marx denominou de “livre associação de produtores”.
A luta de classes entre burguesia e proletariado, assim como a
produção de mais‐valor, representa dois dos principais fundamentos do
modo de produção capitalista. O processo de trabalho na sociedade
capitalista é marcado por duas características centrais que consistem no
fato do proletariado trabalhar sobre o controle da burguesia (trabalho
heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do produto do
trabalho ser apropriado pela burguesia, via extração de mais‐valor.
32
Percebe‐se então que o trabalho é processo de valorização (MARX,
1985).
A luta de classes no processo de produção é mediada por um
conjunto de relações que existem tanto dentro quanto fora do processo
diretamente produtivo. Tal luta em torno do processo de produção de
mais‐valor é a determinação fundamental do enfrentamento entre a
classe capitalista e a classe operária no processo de produção de
mercadorias (VIANA, 2009). No entanto, esse enfrentamento se
expande para outras esferas das relações sociais. Basta percebermos que
o conflito que se inicia no século XIX entre capitalistas e operários em
torno da diminuição da jornada de trabalho operária (aproximadamente
de 16 horas diárias) resulta numa alteração jurídico‐institucional que
possibilita sua redução para 10 horas diárias e, posteriormente, 08 horas
diárias. É nesse contexto que se inicia a reação burguesa para evitar a
redução da taxa de mais‐valor, respondendo com a “organização
científica do trabalho” elaborada por Friedrich Taylor em sua obra
Princípios da Administração Científica (1987).
É importante destacar que burguesia e proletariado compõem as
classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista, mas que,
no entanto, coexistem outras classes sociais que, inclusive, derivam da
complexa relação que se estabelece entre essas classes fundamentais e
da luta de classes no processo de produção. Uma dessas classes sociais,
e que é objeto central desse estudo, é o lumpemproletariado. Conclui‐se
que o modo de produção capitalista engendra tanto um processo de
proletarização quanto um processo de lumpemproletarização, ou, como
prefere Offe, uma proletarização ativa e uma proletarização passiva
(OFFE, 1984). É sobre a dinâmica formadora do lumpemproletariado
que, a partir de agora, prestaremos nossa análise.
2.1.2 O processo de lumpemproletarização
Para compreender a formação do lumpemproletariado no regime de
acumulação extensivo5, recorreremos, fundamentalmente, à análise de
5 “Predominante desde a revolução industrial até o final do século XIX, caracterizava‐se
pelo predomínio da extração de mais‐valor absoluto, pelo Estado liberal e pelo
neocolonialismo” (VIANA, 2009, p. 95).
33
Marx contida na sua obra O Capital, vol. 2 (1985a). No capítulo XXIII do
volume 2 de O Capital ‐ A lei geral da acumulação capitalista ‐ Marx
procurou demonstrar que no processo capitalista de produção de
mercadorias há uma tendência em promover uma acumulação
ampliada de capital por um lado e por outro lado, há, também, uma
tendência simultânea em promover o crescimento ampliado da miséria
da classe trabalhadora. Segundo ele,
a acumulação de riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a
acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância,
brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que
produz seu próprio produto como capital (MARX, 1985a, p. 210).
A discussão teórica que Karl Marx realiza nesse capítulo, busca
compreender a lei geral da acumulação capitalista, suas tendências e contra
tendências. Aqui ela será utilizada para pensar o processo histórico de
formação do lumpemproletariado e sua dinâmica no regime de
acumulação extensivo. Para isso, analisaremos o lumpemproletariado à
luz de uma teoria das classes sociais, considerando‐o uma classe social
composta pela totalidade do exército industrial de reserva. Desse modo,
o conceito de lumpemproletariado equivale à classe social formada
pelos indivíduos que se encontram marginalizados na divisão social do
trabalho e alijados do mercado de consumo, e que compõem os setores
mais empobrecidos de desempregados, mendigos, sem‐teto, prostitutas,
delinquentes, subempregados etc. da sociedade capitalista.
Sendo assim, nossa análise se distancia de algumas análises
dominantes e presentes nos discursos acadêmicos e científicos que
busca compreender a sociedade a partir de uma dualidade abstrata que
afirma a existência dos incluídos/excluídos sociais e que, no fundo, não
consegue explicar muita coisa, pelo contrário, obscurece a totalidade
das relações sociais ao ocultar toda a complexidade envolta no processo
de lumpemproletarização que acompanha o desenvolvimento histórico
de produção e reprodução do capitalismo e de suas classes sociais.
Nesse primeiro momento, o objetivo é resgatar a discussão realizada
por Karl Marx sobre o processo de acumulação de capital e sua
dinâmica geradora de uma superpopulação relativa ou do
lumpemproletariado. Na primeira parte deste capítulo intitulada
34
Demanda crescente da força de trabalho com a acumulação, com composição
constante do capital, o autor já apresenta o assunto geral da sua
discussão, ou seja, da influência que o crescimento do capital exerce
sobre o destino da classe trabalhadora. Marx considera que a
composição do capital e suas modificações constituem os fatores mais
importantes nessa investigação.
Intentando melhor compreender essa análise, trilharemos o mesmo
caminho do autor, reconstituindo seu pensamento. De acordo com ele, a
composição do capital deve ser entendida a partir de uma dupla
perspectiva: primeiramente ele faz uma análise da perspectiva do valor
na qual afirma que a composição orgânica do capital é determinada
pela proporção em que ele se reparte em capital constante (valor dos
meios de produção) e capital variável (valor da força de trabalho), soma
global dos salários. Posteriormente, ele apresenta a perspectiva da
matéria, ou seja, como ela funciona no processo de produção. Nessa
análise Marx afirma que cada capital se reparte em meios de produção
(composição valor) e força de trabalho viva (composição
técnica)(MARX, 1985a).
A produção de capital é formada por dois componentes existentes
no processo de produção denominado de trabalho morto (matéria‐
prima, maquinaria e tecnologia em geral) e trabalho vivo que consiste
na força de trabalho operária. Como vimos anteriormente, o primeiro
não tem capacidade de gerar valor e apenas repassa seus custos durante
o processo produtivo, já o segundo é a única força geradora de capital,
ou seja, acrescenta à mercadoria mais do que o valor gasto na sua
produção. Por isso esse capital extra é denominado mais‐valor. Sendo
assim, após um ciclo gerador de mais‐valor, a burguesia tende a aplicar
parte desse na expansão da produção o que implica necessidade de
ampliação do mercado consumidor e maior demanda por força de
trabalho.
Nesse sentido, o
crescimento do capital implica crescimento de sua parcela variável convertida
em força de trabalho. Uma parcela da mais‐valia transformada em capital
adicional precisa ser sempre retransformada em capital variável ou fundo
adicional de trabalho (MARX, 1985a, p. 187).
35
No século XIX, com o passar dos anos o número de trabalhadores
ocupados cresceu em relação aos anos anteriores e com isso chegou‐se
ao ponto das necessidades da acumulação crescer além da costumeira
oferta de trabalho e assim tendeu a ocorrer um aumento salarial. Porém,
independentemente, do aumento salarial e da geração de condições
mais favoráveis para a classe operária e sua multiplicação, isso em nada
modificou o caráter básico da produção capitalista. Em outras palavras,
a exploração do proletariado em sua totalidade mantém‐se a mesma,
visto que essa exploração revela‐se na extração de mais‐valor (sua lei
absoluta) e não no preço do salário, seja ele qual for. É válido ressaltar
que o aumento salarial implica apenas na diminuição quantitativa de
trabalho não pago (mais‐valor) que o trabalhador “concede” ao
capitalista, no entanto, “essa diminuição nunca pode ir até o ponto em
que ela ameace o próprio sistema” (MARX, 1985a, p. 192). A
acumulação capitalista promove na mesma escala a ampliação da classe
trabalhadora, visto que
a reprodução da força de trabalho, que incessantemente precisa incorporar‐se
ao capital como meio de valorização, não podendo livrar‐se dele e cuja
subordinação ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais
a que se vende constitui de fato um momento da própria reprodução do
capital. Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado
(MARX, 1985a, p. 188).
Marx demonstra que esse processo, no entanto, tende a promover
um decréscimo na acumulação. Isso significa que a partir do momento
em que ocorre uma diminuição na acumulação, ocorre, do mesmo
modo, uma diminuição da necessidade por força de trabalho, ou seja, a
desproporção que existia entre capital e força de trabalho ‐ razão do
aumento salarial ‐ desaparece (momentaneamente) e assim o processo
de acumulação capitalista elimina seus próprios obstáculos. Logo, o
salário volta a decrescer. Adverte‐se, no entanto, que até aqui Marx
analisava somente uma fase particular desse processo, ou seja, “aquela
em que o crescimento adicional de capital ocorre com composição
técnica do capital constante. Mas o processo ultrapassa essa fase”
(MARX, 1985a, 193).
36
O crescimento absoluto do capital durante seu transcurso histórico é
reflexo da sua capacidade de ampliar o desenvolvimento da
produtividade do trabalho social tornando‐a sua principal alavanca de
acumulação. A principal expressão desse crescente desenvolvimento da
produtividade do trabalho advém do volume crescente dos meios de
produção em comparação com a força de trabalho, ou seja, “no
decréscimo da grandeza do fator subjetivo do processo de trabalho, em
comparação com seus fatores objetivos” (MARX, 1985a, p. 194). Nesse
momento Marx já está tratando da mudança que a composição técnica
do capital (força de trabalho viva) sofre no decurso do desenvolvimento
do modo de produção capitalista. Se na primeira fase de acumulação a
multiplicação do capital representava multiplicação do proletariado,
agora essa relação tende a se inverter, pois
essa mudança na composição técnica do capital, o crescimento da massa dos
meios de produção, comparada à massa da força de trabalho que os vivifica,
reflete‐se em sua composição em valor, no acréscimo da componente constante
do valor do capital à custa de sua componente variável (MARX, 1985, p. 194).
Aqui já é possível perceber que no processo de desenvolvimento
capitalista, a parte do mais‐valor reconvertida na ampliação da
produção via aumento do trabalho morto (maquinaria e tecnologia em
geral) tende a ultrapassar significativamente o trabalho vivo ou o
componente variável do capital orgânico (força de trabalho) e,
consequentemente, diminui a demanda por força de trabalho
aumentando o desemprego. Portanto,
esse movimento no sentido de acrescer a parte das máquinas em relação à
força‐de‐trabalho, a aumentar a produtividade do trabalho, tende a diminuir a
intensidade da demanda de força‐de‐trabalho pelos capitalistas, tende, por
conseguinte, a criar desemprego, no caso em que oferta de força‐de‐trabalho
pelos trabalhadores diminua também. O progresso técnico, realizado em
condições capitalista de produção, é assim um fator de expulsão de empregos
pelo capital (SALAMA & VALIER, 1975, p. 86).
Com essa mudança o capitalismo contrai uma tendência a tornar
supérflua ou subsidiária uma parcela populacional significativa da
classe trabalhadora que passa a ampliar o lumpemproletariado.
Vejamos melhor esse processo.
37
Inicialmente a acumulação de capital aparece apenas como uma
ampliação quantitativa, porém, percebe‐se que ela realiza‐se também
numa alteração qualitativa ininterrupta de sua composição com
ampliação crescente dos meios de produção, tais como maquinaria e
tecnologia em geral, em detrimento da força de trabalho empregada
numa velocidade infinitamente maior do que a anteriormente existente.
O resultado dessa alteração qualitativa apresenta‐se da seguinte forma:
a acumulação capitalista produz constantemente – e isso em proporção à sua
energia e às suas dimensões ‐ uma população trabalhadora adicional
relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos concernentes às necessidades
de aproveitamento por parte do capital (...) A população trabalhadora produz,
portanto, em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa.
Essa é uma lei populacional peculiar ao modo de produção capitalista, assim
como, de fato, cada modo de produção histórico tem suas leis populacionais
particulares, historicamente válidas (MARX, 1985, p. 199‐200).
Marx denominou essa população trabalhadora supérflua de
“superpopulação relativa” e a compreendeu como parte imprescindível
do funcionamento do modo de produção capitalista, pois
ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao
capital de maneira tão absoluta, como se ele o tivesse criado à sua própria
custa. Ela proporciona às suas mutáveis necessidades de valorização o material
humano sempre pronto para ser explorado, independente dos limites do
verdadeiro acréscimo populacional (MARX, 1985, p. 200).
Além da função de mão‐de‐obra disponível para as necessidades do
capital, porém nem sempre utilizada, e em grande quantidade na
reserva, o exército industrial de reserva cumpre outra função essencial
no capitalismo que é a de pressionar os salários para baixo. Ele
transforma‐se, assim, numa das principais alavancas da acumulação
capitalista uma vez que a oscilação dos salários passa a ser regulada
pelo movimento de expansão e contração desse contingente
populacional formado pelo exército industrial de reserva. Ao contrário
da ideologia populacional malthusiana6 que possui uma concepção
6“A lei da população de Malthus se fundamenta na relação entre ‘meios de subsistência’
e ‘aumento populacional’ (e isto gera sua explicação sobre as causas da fome e da
miséria). Segundo Malthus, a população cresce em progressão geométrica (2, 4, 8,
38
abstrata e ligada aos interesses de classe da burguesia, a teoria da
população em Marx busca analisar a dinâmica populacional no interior
do modo de produção capitalista, pois
a dinâmica populacional não pode ser compreendida se extraída, arrancada
para fora, do conjunto das relações sociais nas quais emerge. Este pressuposto
metodológico será seguido por Marx na sua teoria da população, que é, na
verdade, uma teoria da dinâmica populacional sob o capitalismo (VIANA,
2006, p.1011).
Segundo Marx, o exército industrial de reserva existe em diversas
ocasiões possíveis e todo trabalhador o compõe durante todo o tempo em
que está desempregado parcial ou inteiramente. Esse exército de reserva
ou superpopulação relativa possui três formas: líquida, latente e estagnada.
Nos grandes centros industriais modernos do século XIX os trabalhadores
constantemente eram ora repelidos, ora atraídos em maior proporção. Isso
ocorre de tal forma que, mesmo em proporção decrescente em relação à
ampliação da produção, o número de trabalhadores ocupados crescia.
Nesse caso a superpopulação existe em forma líquida (fluente).
É certo que a acumulação capitalista exige um número crescente de
força de trabalho, porém em proporção cada vez menor em relação ao
capital constante. Por isso a indústria necessita de trabalhadores até sua
idade adulta, todavia atingida tal idade o trabalhador se encontrava de
tal forma exaurido que somente uma pequena parcela continuava sendo
empregada enquanto maior parte é demitida, pois “está constitui um
elemento da superpopulação fluente, que cresce com o tamanho da
indústria. Parte emigra e, de fato, apenas segue atrás o capital
emigrante” (Marx, 1985, p. 207). Portanto, o capital necessita de massas
maiores de trabalhadores em idade jovem e massas menores em idade
adulta. Por conta dessa realidade é que mesmo existindo uma grande
parcela da população desocupada havia milhares de queixas
reclamando a necessidade de braços para o trabalho. É preciso lembrar
que além da baixa expectativa de vida entre os trabalhadores, o
16...) e a produção de alimentos (meios de subsistência) em progressão aritmética
(1,2,3,4...), o que geraria a escassez, a fome. Marx é um severo crítico dessa concepção,
opondo‐lhe tanto a questão metodológica quanto os seus equívocos teóricos
derivados de sua concepção metafísica, ligada a determinados interesses de classe”
(VIANA, 2006, p. 1011).
39
desgaste da força de trabalho era tão grande que mal o trabalhador
atinge a idade mediana “ele cai nas fileiras dos excedentes ou passa de
um escalão mais alto para um mais baixo”. A solução encontrada pelo
capital para esse problema era a promoção de casamentos precoces
entre a classe trabalhadora e a premiação para as famílias que
oferecessem seus filhos para a exploração.
A segunda forma de superpopulação relativa ‐ latente ‐ apontada
por Marx é proveniente da consolidação do capitalismo na agricultura e
que tende a promover uma demanda decrescente absoluta de força de
trabalho. Deste modo, a população trabalhadora rural sofre uma
repulsão não acompanhada de maior atração e, consequentemente,
parte da população rural encontra‐se, por isso, continuamente na iminência de
transferir‐se para o proletariado urbano ou manufatureiro e à espreita de
circunstâncias favoráveis a essa transferência. Essa fonte da superpopulação
flui, portanto, continuamente. Mas seu fluxo constante para as cidades
pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo, cujo
volume só se torna visível assim que os canais de escoamento se abalam
excepcionalmente de modo amplo. O trabalhador rural é, por isso, rebaixado
para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo
(MARX, 1985, p. 207‐208).
A terceira forma de superpopulação relativa denominada de
estagnada é composta por parcela do exército ativo de trabalhadores, no
entanto ocupada de forma bastante irregular. Essa categoria fornece ao
capital fonte inesgotável de força de trabalho “disposta” a ser explorada
uma vez que sua condição de vida encontra‐se muito abaixo do nível
normal médio da classe trabalhadora e que, portanto, faz dessa
população uma “[...] base ampla para certos ramos de exploração do
capital. É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de
salário [...] Seu volume se expande na medida em que, com o volume e
a energia da acumulação, avança a ‘produção da redundância’” (MARX,
1985, p. 208).
Finalmente a camada mais miserável da superpopulação relativa e
que reside na desgraça do pauperismo. Conforme afirma Bellon,
o último resíduo da superpopulação relativa habita o inferno do pauperismo.
Abstraindo dos vagabundos, dos criminosos, das prostitutas, dos mendigos e
de todo esse mundo a que se chama as classes perigosas, esta camada social
40
compõe‐se de três categorias: os desempregados capazes de trabalhar; os filhos
dos órfãos; enfim as vítimas da indústria: doentes estropiados, viúvas,
trabalhadores idosos e trabalhadores desqualificados (1975, p. 44).
Portanto, aqui reside a lei geral da acumulação capitalista: quanto
maior a riqueza social e a grandeza absoluta do proletariado e sua força
produtiva, tanto maior o exército industrial de reserva ou, conforme
definido por nós, o lumpemproletariado. Nesse sentido, portanto,
quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o
exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. “Essa é a lei
absoluta geral da acumulação capitalista. Como todas as outras leis, é
modificada em sua realização por variadas circunstâncias” (MARX, 1985, p.
209).
Ao encerrar o resgate da análise de Marx sobre A lei geral da
acumulação capitalista concluímos que essa análise corrobora a afirmação
e percepção que esse autor possuía desde o início dos seus trabalhos
germinais, escritos em Paris em 1844, e que em determinado momento
assim protestava:
o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto
mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna
uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a
valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e
isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (MARX, 2004,
p. 80).
O conceito de lei a que se refere Karl Marx no XXIII capítulo do
volume 2 de O Capital deve ser entendido aqui como equivalente a
tendência. Nesse sentido, sua reflexão aponta para uma tendência
existente no capitalismo de gerar tanto riqueza, quanto miséria em
proporções diretas ao avanço das potencialidades produtivas. Isto
significa que o lumpemproletariado é resultado da própria dinâmica do
modo de produção capitalista e que, portanto, essa classe social, assim
como suas classes fundamentais ‐ a burguesia e o proletariado ‐ são
intrínsecas a esse modo de produção.
41
Antes de iniciarmos a discussão do próximo subtítulo gostaríamos
de melhor explicitar nosso debate acerca do lumpemproletariado
enquanto classe social. Apesar de Marx não ter promovido uma análise
pormenorizada do lumpemproletariado, do mesmo modo como ele não
elaborou de forma sistematizada uma teoria das classes sociais, ainda
sim é possível encontrar ao longo de sua vasta obra elementos que nos
possibilitem recuperar alguns pontos essenciais para a reconstrução de
uma teoria das classes sociais em Karl Marx. O próprio
lumpemproletariado em diversos momentos e obras discutidas por
Marx7 aparece como compondo uma classe social. No entanto tal
aparecimento não ocorre de forma aprofundada e teorizada
sistematicamente (VIANA, 2011).
Aliado à falta de uma teoria explícita das classes sociais na obra de
Marx, outro problema nos impossibilita de recorrer completamente a
esse autor para compreender o lumpemproletariado no capitalismo
contemporâneo. O principal problema, nesse caso, seria o que Viana
denomina de senectudes, ou seja, “os aspectos inatuais devido às
mudanças históricas, nas quais as mudanças nas relações de produção e
desenvolvimento capitalista promoveram emergência e alteração na
divisão de classes e no interior delas [...]” (VIANA, 2011, p. 08).
Sendo assim, não é possível analisar o lumpemproletariado somente
a partir do que Marx escreveu, pois devido a tais senectudes e limites das
próprias análises realizadas por ele sobre essa classe social, torna‐se de
extrema importância ressignificar o conceito de lumpemproletariado
para que esse dê conta da realidade concreta na contemporaneidade.
Nossos esforços caminham nesse sentido e seguem as contribuições
realizadas por Viana na sua obra A teoria das classes sociais em Karl Marx
(2011).
Em nossa análise, o lumpemproletariado é ressignificado na
contemporaneidade a partir de uma teoria marxista das classes sociais.
7 Para constatar o que aqui está sendo afirmado, basta recorrer às análises realizadas por
Marx sobre o lumpemproletariado e perceber que as mesmas estão inseridas em uma
discussão mais ampla sobre as classes sociais e suas lutas. Logo, é possível perceber
que o lumpemproletariado entra nessa discussão enquanto uma dessas classes sociais
envolvida na dinâmica da luta de classes. Para isso ver as seguintes obras de Marx: O
Manifesto comunista (1998); O dezoito brumário (1997); As lutas de classes na França – de
1848 a 1850 (2008).
42
No entanto, não ficamos presos à análise que Karl Marx realiza sobre o
lumpemproletariado, o que não significa que abandonamos as
contribuições desse autor para pensar tal classe social, mas tão somente
que procuramos ir além dele sem necessariamente abandoná‐lo. Em
outras palavras, utilizamos as contribuições existentes ao longo de sua
vasta obra para pensar o conceito de classes sociais. Dessa forma,
afirmamos que o lumpemproletariado é composto pela totalidade do
exército industrial de reserva (desempregados, subempregados,
mendigos, sem‐teto, prostitutas etc.) uma vez que os indivíduos que
compõem essa totalidade possuem características em comum e que
possibilitam sua definição como classe, da mesma forma divisões
apontadas pelo conceito de frações de classe. Assim como as demais
classes sociais do capitalismo, é o seu modo de vida que possibilita sua
unificação como classe. No entanto, ao contrário das demais classes
sociais que são unificadas a partir da sua posição na divisão social do
trabalho capitalista, o lumpemproletariado se unifica pela condição de
marginalidade na divisão social do trabalho e tal condição o torna uma
classe social (VIANA, 2012).
Como já foi dito, nenhum indivíduo encontra‐se fora da divisão das
classes sociais, isto é, todos os indivíduos pertencem à determinada
classe social. Sendo assim, resta então responder as seguintes questões:
A que classe social pertencem aqueles que se encontram marginalizados
da divisão social do trabalho, ou seja, a que classe social pertencem
desempregados, subempregados, sem‐tetos, mendigos, prostitutas etc.?
Uma vez que os termos exército industrial de reserva e superpopulação
relativa não expressam nenhuma classe social, torna‐se necessário
encontrar a classe social na qual a totalidade desse exército e dessa
superpopulação pertence. Segundo nossa análise, tal classe social é o
lumpemproletariado e o que nos possibilita essa afirmação é o fato de
que toda essa gama heterogênea de frações de classe que compõe o
lumpemproletariado pode ser unificada em torno de um elemento
comum a todas elas: a condição de marginalidade na divisão social do
trabalho.
Trata‐se de um grande equívoco considerar os desempregados
como pertencentes à classe trabalhadora conforme fazem diversos
43
teóricos8. Esse é o caso da autora Maria Lucia Lopes da Silva que em sua
obra Trabalho e população em situação de rua no Brasil considera que
os desempregados de longa duração e a população em situação de ruanão
constituem uma classe isoladamente. Mas é certo também que têm uma
vinculação de classe. A não propriedade de meios de produção e a subsistência
pela venda de sua força de trabalho são condições que os caracterizam como
parcelas da classe trabalhadora, embora, na situação em que se encontram, não
estejam conseguindo realizar nem a venda da sua força de trabalho (2009, p.
129‐130).
Ora, como alguém pode pertencer à classe trabalhadora ou ao
proletariado, como nós preferimos denominar os trabalhadores que
produzem mais‐valor, sem estar empregada em alguma atividade
laboral, sem produzir mais‐valor? Para nós, os indivíduos antes
pertencentes à classe trabalhadora em geral ou ao proletariado
compõem o lumpemproletariado durante todo o tempo em que estão
desempregados parcial ou inteiramente, independente do período em
que se encontram nessa condição, seja uma semana, um mês, um ano ou
o tempo que for.
Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado
Com o propósito de responder a um dos problemas centrais desse
trabalho, ou seja, as determinações da expansão do
lumpemproletariado na contemporaneidade, analisaremos,
primeiramente, a formação e desenvolvimento dessa classe social no
regime de acumulação extensivo para, no próximo capítulo, analisar as
multiplicidades de determinações que envolvem a expansão dessa
classe no regime de acumulação integral e suas consequências, tanto no
8 Alguns casos são ilustrativos dessa interpretação. Recentemente em uma mesa‐
redonda ocorrida durante o I Simpósio Trabalhadores e a Produção Social, promovido
pelo Centro de Memória Operária (CEMOP), entre os dias 19 a 21 de outubro de 2011,
na cidade de Sumaré/SP, todos os palestrantes (Andréia Galvão/UNICAMP, Jair
Pinheiro/UNESP, Maria Orlanda/UNESP, Marcelo Badarós/UFF) deram a mesma
resposta à minha pergunta que questionava se os desempregados argentinos que
compunham o movimento piquetero eram membros da classe trabalhadora ou do
lumpemproletariado? A resposta foi que tais desempregados pertenciam à classe
trabalhadora.
44
capitalismo imperialista quanto no capitalismo subordinado
(especificamente na Argentina e no último capítulo no Brasil).
Dessa forma, objetivamos apreender as mudanças e permanências,
tanto formais, quanto essenciais, das tendências histórico‐sociais que o
lumpemproletariado possui na contemporaneidade. Para isso,
analisaremos o lumpemproletariado enquanto uma classe social que é
determinada historicamente e que, portanto, seu comportamento social
e político tende a ser determinado de forma diferenciada em contextos
históricos distintos. Por conseguinte, o lumpemproletariado e suas
tendências não serão tratados aqui de forma estanque, como se
possuísse uma essência no seu ser‐de‐classe que sempre o coagisse a
adotar posturas políticas conservadoras e reacionárias, estando passivo
de ser frequentemente cooptado como sugere diversos teóricos que o
analisaram (GUIMARÃES, 2008; FREITAS, 2010).
A transformação de dinheiro, mercadorias, meios de produção e de
subsistência em capital só pode ocorrer em determinadas circunstâncias
que se apresenta da seguinte maneira. A existência no mercado de duas
espécies de possuidores de mercadorias é essencial, pois de um lado
estão os possuidores de dinheiro, meios de produção e subsistência e
que tem como finalidade valorizar o montante de dinheiro que possui
através da compra de força de trabalho alheia, do outro lado
“trabalhadores livres” dispostos a venderem sua única mercadoria, a
força de trabalho (MARX, 1985a). “Com essa polarização do mercado
estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista”
(MARX, 1985a, p. 262).
Para os nossos intentos cabe indagar: qual é a origem desses
indivíduos possuidores unicamente da mercadoria força de trabalho na
sociedade capitalista? Na sociedade capitalista que emerge a partir daí,
todos os indivíduos “dispostos” a venderem sua força‐de‐trabalho terão
a venda da sua mercadoria garantida nesse mercado? Ou uma parcela
significativa desses indivíduos irá compor outra classe social e
contribuirão com o processo de produção capitalista de outras
maneiras, assim como podem, enquanto classe, contribuir com sua
destruição? E dessa forma podemos, então, acreditar que tal classe
pertence à modernidade e, consequentemente, só poderá ser abolida
com a abolição do capitalismo?
45
A partir do final da segunda metade do século XIV a servidão se
encontra praticamente abolida na Inglaterra. O grosso da população
rural inglesa era constituído nessa época, e principalmente no século
XV, de camponeses livres e economicamente autônomos, que nos seus
momentos livres trocavam sua força de trabalho por um assalariamento
nas grandes propriedades fundiárias. Além dos salários esses
camponeses recebiam um terreno arável de aproximadamente quatro
acres e possuíam o direito de usufruir das propriedades comunais, nas
quais criavam seu gado e extraíam os elementos necessários para
aquecer seus lares e preparar seus alimentos, tais como a lenha e a turfa.
O desenvolvimento dos grandes centros industriais ingleses,
juntamente com o crescimento paulatino da sua população, está
diretamente relacionado com as grandes transformações que veio
ocorrendo, desde aproximadamente o século XIV até o século XVIII, na
propriedade da terra. De forma geral, esse processo ficou denominado
de cercamentos (enclosures)9 e foi caracterizado por uma intensa e
violenta onda de desapropriação camponesa de suas propriedades e das
terras comunais, acompanhada da expulsão de milhares de camponeses
para as nascentes cidades.
Em diversos momentos em toda a história inglesa desse período, a
população camponesa foi violentamente desapropriada e obrigada a
migrar para os grandes centros urbanos industriais. Dessa forma era
fornecido à indústria capitalista aquilo que ela necessitava para
transformar dinheiro, maquinaria e matérias‐primas em capital, ou seja,
a indústria necessitou de indivíduos completamente despojados dos
meios materiais garantidores da sua existência e sobrevivência para que
assim pudessem “livremente” vender sua força de trabalho aos
capitalistas. Aqui reside, sinteticamente, portanto, a fórmula encontrada
pela nascente burguesia inglesa para dar início à produção capitalista
de mercadorias.
9 O cercamento consistiu na prática adotada pelos grandes latifundiários de cercar os
campos, acompanhado da expulsão dos camponeses que ali residiam e trabalhavam,
com o intuito de utilizar a terra visando à obtenção de maiores lucros. A prática mais
comum era a de cercar os campos para a criação de ovelhas, que passava a
representar uma possibilidade de maiores lucros na venda da sua lã para as nascentes
indústrias têxteis. Essa prática se inicia ainda no final do século XV, mas adquire
fôlego e intensidade a partir do século XVI.
46
O resultado direto dessa expropriação/expulsão cruel e violenta
consiste no processo de proletarização da mão‐de‐obra camponesa
migrada para as cidades e a formação de um mercado urbano interno.
Porém, a capacidade de absorção dessa mão‐de‐obra pelas nascentes
indústrias possuía uma velocidade infinitamente menor do que o
crescimento do número de camponeses expulsos do campo. Isso acabou
por promover, também, um processo de lumpemproletarização que está
na origem do capitalismo e, como veremos adiante, possui a tendência
de acompanhar seu desenvolvimento histórico. E assim, as cidades
inglesas passaram a conviver com um grande número de operários
empregados na indústria, mas também com um número crescente e
assustador de lumpemproletários que “se converteram em massas de
esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na
maioria dos casos por força das circunstâncias” (MARX, 1985a, p. 275).
Uma passagem extraída do subtítulo Gênese do capitalista industrial
do capítulo XXIV do volume II de O Capital sintetiza muito bem todo
esse processo:
Tanto esforço fazia‐se necessário para desatar as “eternas leis naturais” do
modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre
trabalhadores e condições de trabalho, para converter, em um dos pólos, os
meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa
do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres, essa
obra de arte da história moderna. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao
mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”, então o
capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos pés
(MARX, 1985a, p. 292).
Durante a segunda metade do século XIX a Europa experimenta um
fenômeno fascinante e ao mesmo tempo amedrontador, o
extraordinário crescimento das cidades industriais e de sua população.
As indústrias recrutavam cada vez mais operários fabris e com isso
ocorria um desenfreado crescimento das cidades. Na passagem do
século XVIII para o século XIX, a Inglaterra tem seus campos
despovoados e um grande afluxo de migrantes corre para as cidades:
Londres, que em 1750 contava com 676 mil habitantes, já em 1820 chegava a
contar quase o dobro, ou 1.274 milhão. Mais de uma terça parte da população
da Inglaterra residia em cidades de mais de 5 mil habitantes à altura da metade
47
do século XIX, quando no meio do século XVIII não passava de uma quinta
parte. Na década 1821‐1831, o crescimento de cidades como Liverpool,
Manchester, Birmingham e Leeds ultrapassou quarenta por cento
(GUIMARÃES, 2008, p. 48).
Além de indivíduos prestes a se proletarizar, as cidades atraíam
uma infinidade de pessoas que não encontrariam condições materiais
garantidoras da sua sobrevivência e, consequentemente, o processo de
lumpemproletarização crescia vertiginosamente e tais cidades
passavam a serem habitadas por um grande número de mendigos,
prostitutas, jovens desempregados, ladrões, desabrigados,
subempregados, e todo tipo de desempregados etc. A constituição das
primeiras cidades industriais do século XIX revela um dos processos
migratórios mais brutais que a história ocidental já conheceu. Milhares e
milhares de pessoas perderam todo o vínculo com um modo de vida
secular, costumes, tradições, solidariedades, enfim toda uma habitual
forma de se viver foi quase que completamente destruída e suas
principais vítimas foram relegadas a um mundo sombrio e
desconhecido marcado pelo frio, pela fome, por todo tipo de doença,
imundice, criminalidade, pela violência cotidiana, tanto na esfera do
trabalho, quando se tem um, quanto na esfera da vida privada.
Indubitavelmente a sociedade capitalista nasce e se reproduz sob a
marca da completa desumanização de milhões de seres humanos.
A rotina do proletariado inglês era marcada por uma jornada de
trabalho de aproximadamente 16 horas diárias, nas quais toda a sua
família, desde as crianças de 04 anos de idade até os idosos ainda com
condições físicas, era obrigada pelas circunstâncias a trabalhar. Essa era
uma condição imposta pelos miseráveis salários para que uma família
operária pudesse ter o mínimo suficiente para garantir sua
sobrevivência e, consequentemente, sua força de trabalho para valorizar
o capital.
Além das extensas jornadas de trabalho, da exploração do trabalho
infantil, do trabalho idoso e feminino (esses recebiam salários
inferiores), as condições de trabalho eram as piores possíveis, pois as
fábricas não possuíam condições mínimas de higiene. Caracterizadas
por serem lugares pouco arejados, com ar poluído, sem nenhuma
preocupação com a saúde operária, sem nenhum sistema de proteção
48
no trabalho, o proletariado se via constantemente ameaçado pelo
desemprego e pela fome, pois a inexistência de legislação trabalhista
fazia com que qualquer acidente ou doença que o impossibilitasse a
trabalhar resultasse em demissão sumária. E os acidentes de trabalho ou
até mesmo a morte de milhares de operários, principalmente as
crianças, eram elevadíssimos10.
Nesse aspecto o lumpemproletariado crescente, derivado do
processo de cercamento de terras, cumpre um papel importantíssimo na
acumulação de capital, isto é, quanto maior for o contingente
lumpemproletário, maior será a pressão sobre o proletariado para
aceitar suas condições de trabalho e salários miseráveis. Portanto, é
possível perceber que o proletariado do século XIX se via muito
facilmente ameaçado pela lumpemproletarização. O proletariado vivia
constantemente a ponto de lumpemproletarizar‐se. E assim a existência
de um grande contingente lumpemproletário cumpria uma das suas
principais funções no capitalismo: promover uma alavanca de
acumulação via pressionamento dos salários e divisão da classe
trabalhadora na disputa por emprego.
Não só as condições de trabalho possibilitavam uma vida
degradante para o proletariado, mas sim todas as esferas da sua vida
representavam um profundo contato com a degradação física e moral.
Sua condição de moradia é, nesse sentido, reveladora de tal
deterioração. É preciso compreender que em uma sociedade marcada
pela completa mercantilização da vida, o acesso da classe operária a
determinados bens primários, tais como, moradia, alimentação,
vestuário, saúde, etc. passa pelo valor do seu salário e das
possibilidades derivada dele. E uma vez que o salário operário é
10 “As estatísticas da mortalidade revelam níveis altíssimos, principalmente por causa
da morte entre as crianças pequenas da classe operária. O delicado organismo de uma
criança é o que oferece a menor resistência aos efeitos deletérios de um modo de vida
miserável; o abandono a que frequentemente se vê expostas quando os pais
trabalham, ou quando um deles morre, logo faz sentir seu impacto – e, portanto, não
pode ser sem razão de espanto se, por exemplo, em Manchester, conforme um
relatório que já citamos, mais de 57% dos filhos de operários morrem antes de
completar 5 anos, ao passo que essa taxa é de 20% para os filhos das classes mais altas
e, nas zonas rurais, a média é de 32%” (ENGELS, 2008, p. 147).
49
miserável, consequentemente, o acesso a tais bens se dá de forma
bastante precária.
Toda grande cidade industrial no século XIX, assim como hoje,
revela na arquitetura diferenciada dos seus bairros, nas condições de
suas ruas, na sua limpeza, no seu odor, etc. a divisão entre classes
sociais. Em outras palavras, a divisão entre exploradores e explorados.
Na Inglaterra desse período os bairros operários eram chamados de
“bairros de má fama” (ENGELS, 2008). De acordo com Engels,
na Inglaterra, esses “bairros de má fama” se estruturam mais ou menos da
mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da
cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois
andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira
irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam‐
se cottages e normalmente constituem em toda Inglaterra, exceto em alguns
bairros de Londres, a habitação operária. Habitualmente, as ruas não são
planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem
esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A
ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como
nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do
ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom
tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são
usados para secar roupa (2008, p. 70).
Os bairros operários, no geral, possuem as mesmas características
em todo o território inglês. São marcados pela existência de ruas
estreitas, geralmente imundas, tanto por conta do ineficaz sistema de
limpeza urbana quanto, pela inexistência de rede de saneamento e
esgoto, fazendo com que os dejetos das “residências” sejam lançados ao
ar livre nas ruas. Nesses bairros era comum encontrar em suas ruas a
instalação de um mercado aberto que vendia legumes e frutas, todos de
péssimas qualidades e de cheiro horripilante. Juntamente com essas
frutas e legumes, a carne que era vendida e consumida pelos operários
quase sempre se encontrava em estado putrefato.
A alimentação operária era extremamente minguada e isso, é claro,
se deve aos péssimos salários recebidos e, consequentemente, da
limitada possibilidade de se consumir bons alimentos. Com frequência
o proletariado “optava” por consumir nas feiras e mercados os
produtos que durante todo o dia as “classes médias” se recusaram a
50
comprar devido a sua má qualidade. Portanto, o grosso da alimentação
operária era formado por alimentos de escassa qualidade, muitas vezes
já em estado de decomposição. Assim se encontrava, também, a carne
consumida. Os açougues dos bairros operários eram lotados de carne de
todo tipo de animal (ganso, boi, porco, presunto etc.), mas geralmente
em estado impróprio para o consumo. O jornal Manchester Guardian,
fundado em Manchester por J. E. Taylor em 1821, constantemente trazia
denúncias sobre processos e condenações de diversos açougueiros que,
abusando da miséria operária, ofertava diariamente carnes putrefatas
(ENGELS, 2008).
O periódico inglês The Artizan (outubro de 1843), nos possibilita
visualizar, de forma geral, as condições sanitárias dos bairros operários:
Essas ruas são em geral tão estreitas que se pode saltar de uma janela para
outra da casa em frente e as edificações têm tantos andares que a luz mal pode
penetrar nos pátios ou becos que as separam. Nessa parte da cidade não há
esgotos, banheiros públicos ou latrinas nas casas; por isso, imundice, detritos e
excrementos de pelo menos 50 mil pessoas são jogados todas as noites nas
valetas, de sorte que, apesar do trabalho de limpeza das ruas, formam‐se
massas de esterco seco das quais emanam miasmas que, além de horríveis à
vista e ao olfato, representam um enorme perigo para a saúde dos moradores.
É de espantar que não se encontre aqui nenhum cuidado com a saúde, com os
bons costumes e até com as regras elementares da decência? Pelo contrário,
todos os que conhecem bem a situação dos habitantes podem testemunhar o
ponto atingido pelas doenças, pela miséria e pela degradação moral. Nesses
bairros, a sociedade chegou a um nível de pobreza e de aviltamento realmente
indescritível. As habitações dos pobres são em geral muito sujas e
aparentemente nunca são limpas; a maior parte das casas compõe‐se de um só
cômodo que, embora mal ventilado, está quase sempre muito frio, por causa
da janela ou da porta quebrada; quando fica no subsolo, o cômodo é úmido;
frequentemente, a casa é mal mobiliada e privada do mínimo que a torne
habitável: em geral, um monte de palha serve de cama a uma família inteira;
ali deitando‐se, numa promiscuidade revoltante, homens, mulheres, velhos e
crianças. Só há água nas fontes públicas e a dificuldade para buscá‐la favorece
naturalmente a imundice (Apud ENGELS, 2008, p. 79).
Em suma, a condição material do proletariado inglês o condenava a
viver na miséria, em condições habitacionais horripilantes, tendo uma
dieta alimentar muito carente, vestindo‐se de poucos trapos, possuindo
restritas condições de se higienizar, perseguido pelo frio e por diversos
51
tipos de doenças11. Essas últimas se apresentam como uma das portas
de entrada para uma vida lumpemproletária, pois, devido à dura rotina
de trabalho nas indústrias aliada a uma alimentação precária e uma
moradia insalubre, o operário chefe da família corria o risco constante
de ter seus músculos e órgãos falidos e de adoecer seriamente, ficando
impossibilitado para o trabalho. “E é então que se manifesta, agora de
forma mais aguda, a brutalidade com a qual a sociedade abandona seus
membros justamente quando mais precisam de sua ajuda” (MARX,
2008, p. 115).
Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII e de todo o
século XIX, predomina no imaginário coletivo europeu, especificamente
11 “Testemunhos provindos de fontes as mais diversas confirmam que as habitações
operárias nos piores bairros urbanos, somadas às condições gerais de vida dessa
classe, provocam numerosas doenças (...) as doenças pulmonares são a conseqüência
inevitável desta condição habitacional e, por isso, são particularmente freqüente entre
os operários. A aparência de tísicos de tantas pessoas que se encontram pelas ruas é
claro indicativo de que a péssima atmosfera de Londres, em especial nos bairros
operários, favorece ao extremo o desenvolvimento da tuberculose (...) Além de outras
doenças respiratórias e da escarlatina, o grande rival da tuberculose, causador de
devastações entre os operários, é o tifo. Segundo relatórios oficiais sobre as condições
sanitárias da classe operária, esse flagelo universal é provocado pelo péssimo estado
das habitações operárias, a má ventilação, a umidade e a sujeira. Nessas informações,
preparadas – é bom recordá‐lo – pelos melhores médicos da Inglaterra, com base em
relatos de outros médicos, afirma‐se que um único pátio mal arejado, um único beco
sem rede de esgoto, sobretudo quando os operários vivem amontoados e nas
proximidades existem matérias orgânicas em decomposição, pode provocar a febre, e
quase sempre a provoca” (ENGELS, 2008, p. 138).
De acordo com Dejours, as condições de existência e saúde do lumpemproletariado, ou
subproletariado como ele denomina, também são as piores possíveis e, devido a suas
condições de existência, não poderia ser diferente: “A título de exemplo significativo,
podemos citar a incidência importante de doenças infecciosas, particularmente nas
crianças, e da tuberculose, que continua a ser ainda um flagelo na população adulta.
Pode‐se notar também a importância das seqüelas de acidentes e doenças: elas são
testemunhas de tratamentos mal conduzidos ou incompletos e, no conjunto, de uma
menor eficácia das técnicas médico‐cirúrgicas sobre uma população que não pode
aproveitar delas como o resto da população, por razões de ordem não só
socioeconômica e cultural, mas por razões de ordem material (impossibilidade de
acesso às convalescenças, aos cuidados pós‐operatórios e à reeducação fisioterápica, à
assistência médica subseqüente a uma doença grave ou um acidente (DEJOURS, 1992,
p. 28).
52
na Inglaterra e França, o crescente temor e pânico das classes
dominantes diante das inúmeras possibilidades de sublevações das
classes miseráveis, quer dizer, do lumpemproletariado em geral. Tal
estado de pânico coletivo não é gratuito, basta perceber em que
condições viviam a maioria da população pobre das principais cidades
industriais européias, Londres e Paris por exemplo, para constatarmos
que as condições materiais degradantes e desumanas eram mais do que
suficientes para alimentar protestos, sublevações, saques, roubos e todo
tipo de motins populares violentos.
Não é à toa que diversos questionamentos da época apontavam para
esse risco. Dentre eles, e o mais citado, encontra‐se o realizado por
Friedrich Engels no prefácio à edição inglesa de O Capital, que assim
indagava: “Entrementes, em cada inverno, renova‐se a pergunta: O que
fazer com os desempregados? Enquanto se avoluma, cada ano, o número
deles, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos
prever o momento em que os desempregados perderão a paciência e
encarregar‐se‐ão de decidir seus destinos com suas próprias forças”.
Assim como Engels, diversos outros teóricos e romancistas da época já
alertavam para o perigo do crescimento absoluto dessa massa faminta.
Balzac colocava a questão da seguinte forma:
Há necessidades invencíveis, porque, enfim a sociedade não dá o pão a todos
os que têm fome; e quando estes não tem nenhum meio de ganhar a vida, que
quereis que eles façam? A política terá previsto que no dia em que a massa dos
infelizes for mais forte que a dos ricos, o estado social estará estabelecido de
outra maneira? No presente momento, a Inglaterra está ameaçada por uma
revolução desse gênero. O imposto para os pobres tornou‐se exorbitante na
Inglaterra; e no dia em que sobre 30 milhões de pessoas houver 20 milhões que
morrem de fome, a infantaria, os canhões e a cavalaria nada poderão fazer
(Apud GUIMARÃES, 2008, p. 88).
Além dessa postura temerosa diante das possíveis e previsíveis ações
que o lumpemproletariado se via coagido a realizar, as classes capitalistas
e suas classes auxiliares, inspiradas nos seus valores e perspectivas que
lhes são próprios, construíram diversas representações pejorativas dos
míseros proletários e, principalmente, lumpemproletários e das sensações
e sentimentos que a existência, comportamentos e hábitos dessas classes
vos geravam. Dentre os principais termos alguns se destacam pela
53
repulsa que os mesmos provocavam e que nos possibilita apreender a
forma como tal classe era expressa pelos valores aristocrático‐burgueses
da época. Dentre vários podemos citar: vagabundos, mendigos, vadios,
maltrapilhos, esfarrapados, escória, ralés, desajustados sociais etc.
Se essas eram as condições nas quais se encontravam o proletariado,
em que condições viviam então o proletariado em farrapos12, isto é o
lumpemproletariado? Se vendendo sua força de trabalho por salário o
proletariado vivia na miséria absoluta, como diferenciar as condições de
vida dos que se encontram à margem da divisão social do trabalho? É
possível que exista uma classe social vivendo em condições abaixo da
miséria? Como viviam o lumpemproletariado das principais cidades
industriais europeias e como reagiam diante dessa realidade a ponto de
gerar tanto temor? A busca por respostas a essas questões nortearam
todo o desenvolvimento da discussão em torno da formação e
desenvolvimento do lumpemproletariado no período de vigência do
regime de acumulação extensivo.
De início gostaríamos de enfatizar que o lumpemproletariado é
considerado por nós uma classe social composta pela totalidade do
exército industrial de reserva (superpopulução relativa) e não apenas
pelos extratos mais baixos dessa superpopulação relativa, conforme
exposto por Marx no capítulo XXIII do volume 2 de O Capital – A lei
geral da acumulação capitalista. Concordamos com Viana (2011)
quando o mesmo destaca a importância de ressignificar o
lumpemproletariado para melhor compreendê‐lo no interior da
dinâmica do modo de produção capitalista. De acordo com ele,
o primeiro ponto é ressignificar o lumpemproletariado, que não pode ser
considerado apenas os extratos mais baixos da superpopulação relativa e sim
ela em sua totalidade. Assim, o lumpemproletariado abarca o conjunto do
exército industrial de reserva. É composto, portanto, pelos trabalhadores
potenciais do capitalismo, com suas subdivisões, e pelos subempregados e em
trabalhos precários, não produtores direto de mais‐valor. Ou seja, inclui tanto
aqueles que estão na fronteira com o proletariado (desempregados
temporários, subempregados, etc.) quanto os que sobrevivem sob outras
formas (prostituição, mendicância, etc.) (VIANA, 2011).
12 Tradução ao pé da letra do termo lumpemproletariado.
54
É válido ressaltar que devido à nossa compreensão do que seja o
lumpemproletariado, consideraremos, nas análises de diversos outros
autores, como frações do lumpemproletariado ou o
lumpemproletariado em sua totalidade, as análises referentes aos
marginais, à multidão, às classes perigosas, aos miseráveis, excluídos
sociais, novos pobres etc. Consideramos que nessas análises, apesar da
denominação diferenciada da nossa, os indivíduos que a compõe são os
mesmos que compõe o exército industrial de reserva, logo, de acordo
com nossa definição, equivale ao lumpemproletariado. Mais adiante
entraremos em detalhes sobre o lumpemproletariado nos escritos de
Marx.
A existência de um proletariado miserável nos países
industrializados da Europa do século XIX subentende a existência de
um vasto contingente lumpemproletário que possibilite a manutenção
de baixos salários, disputa por empregos, divisão e enfraquecimento da
classe trabalhadora. Portanto, no capitalismo um não existe sem o outro.
Se no modo de produção capitalista existe de um lado riqueza e do
outro pobreza, abaixo da pobreza existe um miséria extrema que tende
a crescer concomitante ao crescimento de produção da riqueza. Aliás,
não é essa a lei geral da acumulação capitalista?
Nesse sentido, podemos adiantar desde já que os bairros operários
europeus estavam abarrotados de indivíduos que compunha o
lumpemproletariado e que boa parte dessa classe, na Inglaterra, é
composta por imigrantes irlandeses.
Aqui vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos,
todos misturados com ladrões, escroques e vítimas da prostituição. A maior
parte deles são irlandeses, ou seus descendentes, e aqueles que ainda não
submergiram completamente do turbilhão da degradação moral que os rodeia
a cada dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos influxos
aviltantes da miséria, da sujeira e do ambiente malsão (ENGELS, 2008, p. 71).
Em diversas passagens de jornais e periódicos da época, assim como
na excelente pesquisa realizada por Engels e que resulta em 1845 na
extraordinária obra sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, é
possível identificar uma grande quantidade de lumpemproletários
sobrevivendo nas ruas das principais cidades industriais inglesas.
55
Segundo o Times – principal diário inglês de cunho conservador – de 12
de outubro de 1843:
Nossa seção policial publicada ontem indica que dormem nos jardins, todas as
noites, cerca de cinquenta pessoas, sem outra proteção contra as intempéries
que árvores e tocas escavadas em muros. Em sua maioria, são moças que,
seduzidas por soldados, vieram do campo e, abandonadas neste vasto mundo
à degradação de uma miséria sem esperança, tornaram‐se vítimas
inconscientes e precoces do vício.
Na realidade, isso é assustador. Os pobres estão em toda parte. Por toda parte,
a indigência avança e insere‐se, com toda a sua monstruosidade, no coração de
uma grande e florescente cidade. Nos milhares de becos e vielas de uma
populosa metrópole sempre haverá – dói dizê‐lo – muita miséria que fere o
olhar e muita que não será vista.
Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da elegância,
junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do esplêndido palácio de
Bayswater, onde se encontra o velho e os novos bairros aristocráticos, numa
área da cidade onde o requinte da arquitetura moderna prudentemente
impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza, numa área que
parece consagrada ao desfrute da riqueza, é assustador que exatamente aí
venham instalar‐se a fome e a miséria, a doença e o vício, com todo o seu
cortejo de horrores, destruindo um corpo atrás de outro, uma alma atrás de
outra!
É uma situação verdadeiramente monstruosa. O máximo prazer
proporcionado pela saúde física, a atividade intelectual, as mais inocentes
alegrias dos sentidos lado a lado com a miséria mais cruel! A riqueza que, do
alto dos seus salões luxuosos, gargalha indiferente diante das obscuras feridas
da indigência! A alegria que inconsciente, mas cruelmente, zomba do
sentimento que geme ali embaixo! Todos os contrastes em luta, tudo em
oposição, exceto o vício que conduz à tentação e aqueles que se deixam tentar...
Que todos reflitam: na área mais luxosa da cidade mais rica do mundo, noite a
noite, inverno a inverno, vivem mulheres, jovens em idade e envelhecidas
pelos pecados e pelo sofrimento, expulsas da sociedade, atoladas na fome, na
doença e na sujeira (...) (Apud ENGELS, 2008, p. 75‐76).
Como qualquer outra mercadoria, a força‐de‐trabalho está inserida
na lógica da oferta e da procura no mercado. Portanto, quanto maior for
a oferta de mão‐de‐obra disponível para ser empregada, tanto maior
será o rebaixamento dos salários e tanto maior será o número da
população “supérflua” – o lumpemproletariado. Além disso, é
importante destacar que o capitalismo do século XIX, assim como o
atual, é caracterizado pela existência de crises constantes e a cada crise a
situação tende a esmagar, ainda mais, os setores frágeis da sociedade e,
56
nesses períodos, o proletariado tende a ter seus salários rebaixados
profundamente, uma vez que o lumpemproletariado tende a ampliar‐se
e, consequentemente, a ampliar, também, a pressão sobre os operários
empregados. Assim, o proletariado ainda empregado, mas que se vê
ameaçado constantemente pelo desemprego, tende a se submeter, a não
ser em períodos de radicalização da sua luta, a condições ainda mais
precárias de trabalho e vida, pois,
no pior dos casos, o operário, para subsistir, preferirá renunciar ao grau de
civilidade a que estava habituado: preferirá morar numa pocilga a não ter teto,
aceitará farrapos para não andar desnudo, comerá batatas para não morrer de
fome. Preferirá, na esperança de dias melhores, aceitar metade do salário a
sentar‐se silenciosamente numa rua e morrer na frente de todo mundo, como já
aconteceu com tantos desempregados. É esse pouco, quase nada, que constitui o
mínimo salário. E se há mais operários que aqueles que à burguesia interessa
empregar, se, ao término da luta concorrencial entre eles, ainda resta um
contingente sem trabalho, esse contingente deverá morrer de fome, porque o
burguês só lhe oferecerá emprego se puder vender com lucro o produto de seu
trabalho (ENGELS, 2008, p. 119).
Tarefa difícil é a de precisar a linha que separa o proletariado do
lumpemproletariado em relação à habitação, vestimenta, alimentação,
saúde, hábitos etc. em todo o século XIX, pois o que percebemos é que,
nesse período, a exploração e miséria são generalizadas e que tanto o
proletariado quanto o lumpemproletariado são suas maiores vítimas. O
lumpemproletariado assim como qualquer outra classe social no
capitalismo, precisa acessar, mesmo que em condições extremamente
desiguais, alguns bens básicos para sobreviver. Para isso ele se vê
coagido a obter dinheiro, seja de qual forma for: mendigando,
prostituindo‐se, roubando, varrendo ruas e recolhendo imundices,
transportando esterco e pequenos objetos, realizando comércio
ambulante ou biscates, cometendo crimes diversos etc.13
13 “São espantosos os expedientes a que esses indivíduos recorrem para ganhar
qualquer coisa. Os varredores de rua (crosssweeps) de Londres são conhecidos em
todo o mundo; mas até pouco tempo atrás, também as ruas e calçadas de outras
grandes cidades eram limpas por desempregados, contratados para esse fim pelas
repartições encarregadas da assistência ou pelas autoridades responsáveis pela
conservação das ruas; hoje existe uma máquina que, diária e ruidosamente, limpa as
ruas, tirando daqueles desempregados até mesmo esse meio de sobrevivência. Nas
57
É impressionante a grande quantidade de lumpemproletários que
ocupam as ruas, principalmente, dos bairros operários ingleses. É
exatamente nesses locais que o lumpemproletariado encontra alguma
solidariedade e consegue a partir de algumas esmolas, concedidas pelos
próprios operários, garantir a sua existência paupérrima. Por isso
milhares de famílias se instalam nessas ruas nos horários de maior
circulação dos operários, pois geralmente “só contam com a
solidariedade dos operários, que sabem, por experiência, o que é a fome e
que a todo momento podem encontrar‐se na mesma situação” (ENGELS,
2008, p. 128).
De acordo com os relatórios de inspetores para a lei sobre os pobres,
na Inglaterra e no País de Gales, o número de lumpemproletários (os
ditos “supérfluos”) representa em média 1,5 milhões. Porém esse
número poderia ser bem maior visto que nesse 1,5 milhões só estão
compreendidos aqueles indivíduos que oficialmente recebem alguma
assistência pública, estando excluídos desse número os milhares de
lumpemproletários que sobrevivem sem essa assistência.
Em períodos de crise econômica, a miséria atinge graus alarmantes e
acirra o descontentamento e o ódio das classes miseráveis que declaram
guerra a toda sociedade civil, obrigando‐o a sobreviver do banditismo.
Os anos de 1842 e 1847 são reveladores do peso que sobrecai no
proletariado e em alguns setores das “classes médias” e que os
vitimizam com a lumpemproletarização (desgraça ainda maior que a
proletarização) em períodos de crise:
Um relatório sobre a situação das áreas industriais em 1842, baseado em dados
fornecidos pelos industriais e preparado em janeiro de 1843 pelo Comitê da
Liga contra a Lei dos Cereais, informa que o imposto para os pobres era então
duas vezes maior que em 1839, mas que, no mesmo período de tempo, o
número de necessitados havia triplicado ou até quintuplicado; que agora
muitos postulantes à assistência pública pertenciam a classes sociais que antes
jamais haviam solicitado ajuda; que os meios de subsistência de que a classe
operária podia dispor eram no mínimo dois terços a menos em relação aos que
grandes vias que ligam as cidades e nas quais há muito movimento, encontra‐se uma
quantidade de indivíduos empurrando carrinhos de mão que, sob o risco de
atropelamento, circulam entre carroças e outros veículos de tração animal, recolhendo
o esterco fresco dos cavalos para vendê‐lo depois – para o que ainda pagam
semanalmente alguns shillings à administração das estradas” (ENGELS, 2008, p. 126).
58
dispunha em 1834‐1836; que o consumo de carne havia caído muito, 20% em
alguns locais, 60% em outros; que artesãos, ferreiros, pedreiros etc., que até
então, mesmo nos períodos de crise mais grave, encontravam trabalho, agora
também sofriam muito com a falta de trabalho e com os baixos salários; e que,
ainda em janeiro de 1843, os salários continuavam caindo. E essas são
informações dos industriais! (ENGELS, 2008, p. 129).
Promovendo essas condições de subexistência para milhares de
seres humanos, a sociedade inglesa favorecia a eclosão de uma
verdadeira guerra social, pois boa parte dos operários pobres e do
lumpemproletariado passam a promover diversos motins e rebeliões,
além de buscar a sobrevivência a partir da pilhagem, do roubo e, até
mesmo, do assassinato. As últimas décadas do século XIX
experimentaram o crescente temor de ver renascido o velho espectro da
multidão amotinada (a mob), disposta a ver seus interesses e
necessidades garantidos através da ação direta, provocada pelos motins
e de todo tipo de movimentos promovidos pelos desempregados
enfurecidos, e que tanto risco à propriedade e à vida eles representam.
Elementos típicos de uma sociedade que se afirma na utilização do
trabalho social para produzir riquezas de forma ampliada, mas que são
negadas para seus próprios produtores que são relegados e forçados a
viver no “pântano do pauperismo”. No entanto, ninguém acreditava de
fato que tal multidão desempregada e faminta aguardaria de braços
cruzados que algum auxílio caísse do céu, ou que algum messias as
socorresse, pelo contrário, em períodos de crise e miséria social, as
ideologias (religiosas) costumam cair por terra e o lumpemproletariado,
por diversos momentos, partiu para a ação. Segundo Bresciani,
coincidentemente, os homens que agitam Londres em fevereiro de 1866 e
tentam de início resolver o problema do desemprego num inverno rigoroso
através das vias legais, pedindo trabalho‐público e auxílio‐desemprego, são
trabalhadores. Em Trafagal Square, a assembléia que dá início ao movimento
compõe‐se de 20 000 homens desempregados das docas e da construção.
Contudo, bastaram algumas provocações para que a marcha pacífica em
direção ao Hyde Park se transformasse num ataque a todas as formas de
propriedade, riqueza e privilégio: janelas e vitrinas foram quebradas,
carruagens foram quebradas e seus ocupantes assaltados; em suma na
observação do Times, “o West End (bairro rico de Londres) esteve por algumas
horas nas mãos da multidão”. O pânico tomou conta da cidade; notícias
desencontradas sobre multidões avançando em direção à City ou ao West End
59
e destruindo tudo no seu avanço mantêm os proprietários, o governo e as
tropas em prontidão durante mais dois dias que, nas palavras do historiador S.
Jones se assemelharam ao Grande Medo (“Grande Peur”) da Revolução
Francesa (1990, p. 47).
O que esperar dessa classe social que durante toda a sua existência
convive com todo tipo de infortúnio? É possível aguardar de seres
desumanizados e famintos atitudes que prezem pela vida e propriedade
alheia? O século XIX inaugura o século do banditismo social
generalizado. As ruas que, durante o dia, eram infestadas de mendigos,
subempregados e todo tipo de desempregados procurando alguma
forma de garantir sua sobrevivência, pela noite, se encontrava repleta
de todo tipo de ladrão e criminoso. Nascia, assim, um dos termos
pejorativos mais utilizados para classificar o lumpemproletariado:
Classes perigosas.
Na introdução da sua obra As classes perigosas – banditismo urbano e
rural (2008), Alberto Passos Guimarães afirma o seguinte em relação à
origem da palavra classes perigosas (dangerous classes):
O dicionário mais importante da língua inglesa, o Oxford EnglishDictionary,
registrou o uso da expressão em 1859, mas dez anos antes ela já figurava no
título de uma obra (Reformatoryscholls for thechildrenoftheperishinganddangerous
classes, and for juvenileoffenders) de autoria de Mary Carpenter, escritora bem
conhecida por seus trabalhos sobre matéria criminal. Na conceituação de Mary
Carpenter, as classes perigosas eram formadas pelas pessoas que houvessem
passado pela prisão ou as que, por ela não tendo passado, já vivessem
notoriamente da pilhagem e que se tivessem convencido de que poderiam,
para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais praticando furtos do que
trabalhando (2008, p. 21).
É visível que o termo classes perigosas é criado e, posteriormente,
desenvolvido por vários intelectuais do século XIX e expressa,
nitidamente, um preconceito em relação às classes pobres e miseráveis
formadas tanto pelo proletariado, quanto pelo lumpemproletariado,
pois, no entender de alguns desses intelectuais, a prática do roubo e do
crime em geral era fruto da escolha individual e não resultado das
míseras condições sociais em que se encontrava uma multidão de
indivíduos.
Dessa forma, empregar o termo classes perigosas, assim como
vários outros termos preconceituosos, ao invés de lumpemproletariado
60
‐ o que na época exigia uma ampla análise teórica sobre as classes
sociais e a dinâmica de sua constituição e desenvolvimento no
capitalismo – possibilitou a expansão de olhares pejorativos e
preconceituosos sobre o lumpemproletariado e que, ainda hoje, é
comumente praticado por alguns intelectuais ditos marxistas. Tanto
Karl Marx quanto Friedrich Engels acabam sendo influenciados por
esse preconceito dominante na época e, em alguns escritos, também,
adotaram termos preconceituosos para classificar o
lumpemproletariado. Mais adiante entraremos em detalhes sobre tais
escritos.
Nesse momento de nossa análise já é possível visualizar que a
expansão do lumpemproletariado e da criminalidade em diversas regiões
industrializadas, principalmente, da Inglaterra e da França, são
resultados da própria dinâmica da produção e reprodução do
capitalismo (conforme expresso no item 1.1.2 desse capítulo) e que
tendem a se intensificar em períodos de carestia, fome e crise, ou seja, em
períodos com fortes tendências ao crescimento generalizado do
desemprego. A prática do roubo como forma garantidora da
sobrevivência de uma multidão urbana ganha o século XIX:
O roubo reina sozinho em meados do século, atingindo seu máximo correcional
entre 1851‐1855 (24.000 casos, 42.000 indiciados). Enquanto diminuem os roubos
nas igrejas e nas grandes estradas, estes, apanágios de jovens que ainda sonham
com Mandrin, crescem todas as formas de roubos urbanos: roubos domésticos,
severamente reprimidos, fantasma dos burgueses de Balzac ou de Pot‐Bonille,
rivalizados a partir de 1850 pelo roubo do balcão, que recrudesce com o fascínio
exercido pelos Grandes Magazines sobre o público feminino; miúdos furtos de
objetos – a vitrine cobiçada inaugura muitas carreiras delinquentes – mas, cada
vez mais, roubos de dinheiro, pequenas somas surrupiadas, as únicas que
estejam ao alcance da mão [...] Entretanto, a “gatunice de alimentos”, na origem
de tantas inculpações decrianças ou vagabundos, esboça o horizonte medíocre de
uma sociedade de penúria, a existência de uma fome marginal, mas persistente
(PERROT, 1988, p. 250‐251).
Constata‐se que nesses períodos a expansão do lumpemproletariado
e de suas práticas ameaçadoras da ordem social (rebeliões, atos de
violência generalizada etc.) e dos bens das classes privilegiadas (roubos,
saques etc.) veio acompanhada da expansão de diversas instituições
nascidas para amenizar as crescentes perturbações sociais promovidas
61
por essa massa imensa formada por diversas frações que compunham o
lumpemproletariado (mendigos, assaltantes, prostitutas,
subempregados, ex‐operários desempregados etc.) da época. Dentre
essas instituições destacam‐se: os asilos, os hospitais e as prisões.
Para toda essa gama de problemas sociais inaugurada, já de forma
intensificada, pelo modo de produção capitalista, não há resolução
concreta nos limites das fronteiras do capital. Pelo contrário, a manutenção
do capitalismo depende, e ao mesmo tempo representa sua ameaça, da
conservação de sua essência produtora de toda essa problemática. Aqui me
refiro, principalmente, ao processo de lumpemproletarização e de
criminalização do lumpemproletariado, existente desde a origem do
capitalismo e que remonta ao processo de cercamento de terras:
Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e violenta
expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como pássaros não
podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com
que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados
de seu modo costumeiro de vida não conseguiam enquadrar‐se de maneira
igualmente súbita na disciplina da nova condição. Eles se converteram em
massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e
na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda
Europa Ocidental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma
legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe
trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação, que lhes foi
imposta, em vagabundos epaupers. A legislação os tratava como criminosos
“voluntários” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando
nas antigas condições, que já não existiam (MARX, 1985a, p. 275)14.
O próprio processo de criminalização do lumpemproletariado
revela, tanto no século XIX, quanto na contemporaneidade, a
impossibilidade da construção de uma solução eficaz para essa ampla
marginalização de milhares de indivíduos da divisão social do trabalho.
Afinal, a raiz da expansão da criminalidade se encontra na própria
dinâmica da produção capitalista de mercadorias que para promover a
reprodução ampliada do capital depende da existência de um
14 Nos primeiros parágrafos após essa citação, na obra de Karl Marx (1985a) encontra‐se
as diversas leis que foram criadas com o intuito de criminalizar o
lumpemproletariado e castigá‐lo pela sua condição social e mendicância.
Parafraseando Marx: “Que cruel ironia!”.
62
contingente, cada vez maior, de indivíduos marginalizados na divisão
social do trabalho. A criminalização via aprisionamento do
lumpemproletariado tende a reproduzir, ainda de forma mais extensa,
sua condição de marginalizado do trabalho, pois sua vida após o
cumprimento da pena carrega a “marca da detenção” e essa gera uma
enorme repulsa social que facilita ainda mais sua condição de lumpem.
Nesse sentido,
todos os testemunhos concordam: há extrema dificuldade em se conseguir
trabalho. “A partir do momento em que o véu que encobria sua condição de
liberto é rompido, todos os evitam ou fogem dele; se trabalha numa oficina, os
que um momento antes tratavam‐no como camarada não toleram mais sua
presença em meio a eles a não ser com impaciência e aflição; não só não é mais
seu companheiro de trabalho, como também não é mais seu igual, seu
semelhante. Não haverá ordem e harmonia na oficina, enquanto não tiver sido
expulso”, escreve Frégier. E mais: “Como se sabe, existe na França uma repulsa
inveterada em todas as classes da população em relação aos ex‐detentos”
(PERROT, 1988, p. 270).
Antes mesmo do século XIX, ainda nas décadas finais do século
XVIII, o lumpemproletariado já era um dos alvos principais do sistema
carcerário. Na França, em diversos momentos de crise econômica e
crescimento acelerado do desemprego, a criminalização do
lumpemproletariado foi a principal arma utilizada pelas classes
dominantes para conter a desordem social derivada da pobreza
generalizada que atingia essa classe:
as manufaturas a que estávamos tão apegados caem de todos os lados; as de
Lyon vieram abaixo: há mais de 12 000 operários mendigando em Rouen,
outro tanto em Tours, etc. Contam‐se mais de 20 000 desses operários que
abandonaram o reino desde três meses atrás para ir para o exterior, Espanha,
Alemanha, etc., onde são acolhidos e onde o governo é econômico
(ARGENSON apud FOUCAULT, 1997, p. 401).
Na tentativa de combater esse movimento expansivo de
lumpemproletarização, decreta‐se o aprisionamento de todos os mendigos:
“Foi dada a ordem de prender todos os mendigos do reino; os marechais
atuam nesse sentido no interior, enquanto a mesma coisa é feita em Paris,
para onde se tem certeza que eles não refluirão, estando cercado por todos
os lados” (ANGERSON apud FOUCAULT, 1997, p. 402). Na segunda
63
metade do século XVIII na França esse processo de criminalização do
lumpemproletariado é permanente:
De um lado e do outro, responde‐se à crise com o internamento. Cooper
publica em 1765 um projeto de reforma das instituições de caridade; propõe
que se criem, em cada hundred, sob a dupla vigilância da nobreza e do clero,
casas que teriam uma enfermaria para os doentes pobres, oficinas para os
indigentes válidos e centros de correção para os que se recusassem a trabalhar.
Inúmeras casas são fundadas no interior a partir desse modelo, inspirado por
sua vez na workhouse de Carlford. Na França, um édito real de 1764 prevê a
abertura de depósitos para mendigos, mas a decisão só começará a ser aplicada
após uma deliberação do conselho de 21.09.1767: “Que se preparem e
estabeleçam, nas diferentes generalidades do reino, casas suficientemente
fechadas para nelas receber pessoas vagabundas ... Os que forem detidos nas
ditas casas serão alimentados e mantidos às custas de Sua Majestade [...]”. No
ano seguinte abrem‐se 80 depósitos de mendigos em toda a França. Têm quase
a mesma estrutura e o mesmo destino que os hospitais gerais; o regulamento
do depósito de Lyon, por exemplo, prevê que ali serão recebidos vagabundos e
mendigos condenados ao internamento por decisão do preboste, “as mulheres
de má vida detidas pelas tropas”, “os particulares mandados por ordem do
rei”, “os insensatos, pobres e abandonados, bem como aqueles pelos quais se
paga pensão” (Art. 1 do título do regulamento do depósito de Lyon 1783, cit. In
LALLEMAND, IV, p. 278). Mercier dá uma descrição desses depósitos que
mostram como eles diferem pouco das velhas casas do Hospital Geral: a
mesma miséria, a mesma mistura, a mesma ociosidade (FOUCAULT, 1997, p.
403).
O século XIX, conforme afirma Perrot, inaugura a era do
aprisionamento permanente. Depois do asilo, a prisão, “gêmea sua,
torna‐se o objeto de uma história cada vez mais assombrada pelo lado
sombrio das sociedades: doença, loucura, delinqüência [...]” (PERROT,
1988, p. 235). Como era de se esperar o lumpemproletariado passa a ser
a visita prioritária desse novo e assustador estabelecimento, ou melhor,
depósito de infelizes seres humanos.
Para finalizar esse capítulo, passaremos a discutir o
lumpemproletariado nos escritos de Marx. O termo
lumpemproletariado tem origem nos escritos de Karl Marx, porém esse
autor não chegou a desenvolvê‐lo de forma sistematizada e em várias
obras (O Manifesto Comunista, A luta de classes na França, O 18 Brumário e
O capital) o termo é mencionadocom diferenças de significado. Na obra
64
O manifesto do partido comunista (1998), Marx e Engels assim comenta
sobre o lumpemproletariado:
O lumpemproletariado, essa putrefação passiva dos estratos mais baixos da
velha sociedade, pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma
revolução proletária; no entanto, suas condições de existência o predispõe bem
mais a se deixar comprar por tramas reacionárias (1988, p. 76).
Nessa passagem é possível perceber alguns aspectos que
consideramos limitados e ao mesmo tempo um pouco taxativo na
análise de Marx e Engels, pois quando ele afirma que o
lumpemproletariado representa essa “putrefação passiva dos setores
mais baixos da velha sociedade” ele acaba por exagerar na postura
passiva dessa classe, pois não é bem isso que a história do século XIX
mostra. Em diversos momentos o lumpemproletariado reagiu à sua
condição material de existência através de ações contra a propriedade,
contra a vida aristocrática e burguesa, assim como participou de
diversos motins e rebeliões. É claro que essas ações não vinham
acompanhadas de nenhum projeto político, nem tão pouco possuía
nenhuma radicalidade que ameaçasse a sociedade vigente, todavia, sua
postura não era exatamente passiva.
Por outro lado, há um aspecto importante nessa citação sobre a
postura política do lumpemproletariado e de suas possibilidades. Trata‐
se do seguinte trecho: “pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por
uma revolução proletária”. Ora, essa passagem nos possibilita perceber
que, ao contrário do que afirma alguns teóricos, Marx e Engels, pelo
menos nessa obra, mostravam que, apesar das condições materiais de
existência dessa classe social que tendia a predispô‐la “bem mais a se
deixar comprar por tramas reacionárias”, como ocorreu na luta de
classes na França (um episódio histórico concreto), o
lumpemproletariado poderia ‐ e pode ‐ contribuir com a revolução
proletária. Esse detalhe é importante, pois demonstra que a postura
política do lumpemproletariado não resulta de uma espécie de essência
do seu ser‐de‐classe que sempre o arrasta para um papel conservador e
reacionário na luta de classes, pelo contrário, apresenta que essa classe,
também, possui outras possibilidades e que tudo depende da dinâmica
da luta de classes e de sua correlação de forças em determinados
contextos históricos.
65
Além dessa passagem presente na obra O manifesto do partido
comunista, outras passagens são importantes para compreendermos a
visão de Marx sobre essa classe social e a influência que a mesma
exerceu em teóricos posteriores que discutiram o lumpemproletariado.
Nas suas duas principais obras históricas, O 18 Brumário (1997) e As
lutas de classes na França – de 1848 a 1850 (2008), Marx analisa os
interesses de classes envolvidos nas lutas que se desenvolveram nesse
contexto histórico francês e as estratégias que as classes sociais em luta
utilizaram para garantir tais interesses. Para compreendermos um
pouco esse processo, utilizaremos de algumas extensas citações. Em A
luta de Classes na França, Marx assim descrevia:
A revolução de fevereiro tinha atirado o exército para fora de Paris. A Guarda
Nacional, isto é, a burguesia nas suas diferentes gradações, constituía a única
força. Contudo, não se sentia suficientemente forte para enfrentar o
proletariado. Além disso, fora obrigada, ainda que opondo a mais tenaz das
resistências e levantando inúmeros obstáculos, a abrir, pouco a pouco, e em
pequena escala, as suas fileiras e a deixar que nelas entrassem proletários
armados. Restava, portanto, apenas uma saída: opor uma parte do proletariado
à outra.
Para esse fim, o governo provisório formou 24 batalhões de guarda móveis,
cada um deles com mil homens, cuja idades iam de 15 aos 20 anos. Na sua
maioria pertenciam ao lumpemproletariado, que em todas as grandes cidades
constituiu uma massa rigorosamente distinta do proletariado industrial, um
centro de recrutamento de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem da
escória da sociedade, gente sem ocupação definida, vagabundos, gente sem
pátria e sem lar, variando segundo o grau de cultura da nação a que
pertencem, não negando nunca o seu caráter de Lazzaroni capazes, na idade
juvenil em que o governo provisório os recrutava, uma idade totalmente
influenciável, dos maiores heroísmos e dos sacrifícios mais exaltados como do
banditismo mais repugnante e da corrupção mais abjeta. O governo provisório
pagava‐lhes 1 franco e 50 centavos por dia, isto é, comprava‐os. Dava‐lhes um
uniforme próprio, isto é, distinguia‐os exteriormente dos homens de blusa de
operário. Para seus chefes eram‐lhe impostos, em parte, oficiais do exército
permanente, em parte, eram eles próprios que elegiam jovens filhos da
burguesia que os cativavam com suas fanfarronadas sobre a morte pela Pátria
e a dedicação à república (p. 84‐85).
Em O 18 Brumário podemos ler:
Nessas excursões, que o grande Moniteur oficial e os pequenosMoniteurs
privados de Bonaparte tinham naturalmente que celebrar como triunfais, o
66
presidente era constantemente acompanhado por elementos filiados à
Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade originou‐se em 1849. A pretexto
de fundar uma sociedade beneficente o lumpemproletariadode Paris fora
organizado em facções secretas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a
chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com roués decadentes, de
fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com arruinados e
aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados
do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas,
saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos
de bordéis, carregadores, soldadores, mendigos – em suma, toda essa massa
indefinida e desintegrada, atirada de ceca em Meca, que os franceses chamam
La bohème; com esses elementos afins Bonaparte formou o núcleo da Sociedade
de 10 de Dezembro. “Sociedade beneficente” no sentido de que todos os seus
membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar às expensas
da nação laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do
lumpemproletariado, que só aqui reencontra, em massa, os interesses que ele
pessoalmente persegue, que reconhece nessa escória, nesse refugo, nesse
rebotalho de todas as classes a única classe em que pode apoiar‐se
incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sansphrase(MARX,
p. 78‐79).
O que Marx nos apresenta com tais passagens? O que é possível
apreender dessas passagens e o que pode ser interpretado como exagero
dogmático nas releituras de outros autores sobre o lumpemproletariado?
Nessas passagens, extraídas de duas obras de caráter histórico, isto é,
obras que analisaram determinados acontecimentos em contextos
históricos específicos, Marx descreve como o lumpemproletariado –
reenfatizando: naquele contexto – foi cooptado pelo Estado francês, sob
comando de Luís Bonaparte, e utilizado na luta contra o avanço das lutas
proletárias. Ou seja, nesse episódio a possibilidade do
lumpemproletariado ser cooptado e utilizado como “ferramenta
subornada da intriga reacionária” se confirmou.
A obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural (2008) de
Alberto Passos Guimarães se apresenta como uma interpretação
tipicamente dogmática da análise que Marx e Engels realizaram sobre o
lumpemproletariado. Nessa obra, seu autor transforma as afirmações de
Marx e Engels sobre o lumpemproletariado, do século XIX, em “leis
naturais e universais” e que podem ser aplicadas a qualquer situação e
contexto histórico, pois para esse autor:
67
Tanto Marx quanto Engels sempre tiveram essa posição contrária à utilização
de elementos do lumpemproletariado na ação revolucionária, por considerá‐lo
instrumentos mobilizáveis pela reação, em todos os tempos, como havia
mostrado a experiência histórica (2008, p. 24).
E, posteriormente, ele continua com suas ênfases dogmáticas:
Mas em nenhum momento Marx e Engels deixaram de considerar as
peculiaridades de cada uma das formas e categorias da superpopulação
relativa, de seu papel e de suas funções na economia e na sociedade. Nunca
deixaram de salientar o antagonismo entre o caráter revolucionário da classe
operária e a tendência contrarrevolucionária do lumpemproletariado
(GUIMARÃES, 2008, p. 28).
Porém, é necessário compreender que a postura política do
lumpemproletariado não é uma “lei natural e universal” que pode ser
aplicada para qualquer situação, em qualquer contexto histórico. No
entanto, foi isso que diversos autores ditos “marxistas” fizeram:
interpretaram essas passagens de Marx sob o lumpemproletariado de
forma dogmática, tornando‐as espécies de “verdades reveladas” (assim
disse o Senhor Marx no capítulo x, versículo y, amém). Postura essa que
não possui nada de marxista, pois trata a ação de uma classe social de
forma estanque, desconsidera as especificidades das condições
materiais de existência, o desenvolvimento da correlação de forças e as
tendências próprias da dinâmica da acumulação capitalista
fundamentalmente constituída pela luta de classes em contextos
históricos distintos. Nesse sentido,
a vulgarização e deformação da teoria de Marx promoveram uma
simplificação e, aliado com determinados interesses e situações, transformou o
lumpemproletariado em puramente reacionário (e deixando de lado o que
Marx denominou “condições de existência”, como numa espécie de
maniqueísmo que transforma essa parte da sociedade em “representante do
mal”. Porém, além de resgatar o que Marx realmente disse, é necessário
perceber a evolução do lumpemproletariado e sua relação com o
desenvolvimento capitalista e, assim, compreender melhor seu papel político
contemporaneamente (VIANA, 2011).
Em nossa análise o lumpemproletariado é considerado uma classe
social intrínseca ao modo de produção capitalista e que,
conseqüentemente, vem se desenvolvendo e se ampliando
68
quantitativamente com o desenvolvimento desse modo de produção.
No entanto, não acreditamos que o lumpemproletariado seja, em sua
essência, contrarrevolucionário, assim como o proletariado é
revolucionário na sua essência, pois acreditamos ser possível constatar
que na contemporaneidade, especificamente no período de vigência da
acumulação integral, o lumpemproletariado tende a se aliar ao
proletariado, em momentos de crise e enfrentamento, contra o capital
econsequentementeauxiliar o avanço da luta pela transformação social.
Percebe‐se, então, que ao contrário dos teóricos que analisaram o
lumpemproletariado de forma estanque e dogmática, aqui buscaremos
analisar o lumpemproletariado na sua evolução histórica, intentando
buscar respostas que confirmem a tendência dessa classe em adquirir
um caráter cada vez mais contestador e uma aliança revolucionária com
o proletariado. Esse é o objetivo do próximo capítulo: analisar a
expansão do lumpemproletariado no regime de acumulação integral e
toda a complexa dinâmica que envolve esse processo.
69
70
A Expansão do Lumpemproletariado no Regime de Acumulação
Integral
Ao invés de realizarmos um amplo e profundo debate sobre os
diversos teóricos que se dedicaram a analisar os regimes de acumulação
(BENAKOUCHE, 1980; LIPIETZ, 1991; BRAGA, 1996, HARVEY, 2008
etc.) e o desenvolvimento capitalista (ROSTOW, 1974; SWEEZY, 1982
etc.) optamos por adotar a concepção e definição de regime de
acumulação desenvolvida pelo sociólogo Nildo Viana em sua obra O
capitalismo na era da acumulação integral (2009) e analisarmos nosso objeto
de estudo a partir desse referencial teórico. Isto, no entanto, não nos
impossibilita de ora ou outra, de acordo com as necessidades de nossa
análise, recorrer a esse ou aquele teórico com o intuito de enriquecer
nosso trabalho a partir das suas diversas contribuições, assim como
debater e discordar, quando necessário, dos mesmos.
Karl Marx ao analisar a história da humanidade com o intuito de
compreender o capitalismo constatou que a mesma é marcada pela
sucessão dos modos de produção. A superação de um modo de
produção significa uma ruptura histórica profunda e o surgimento de
sociedades radicalmente diferentes, oriundas de um processo
revolucionário. Essa constatação e sua teorização foram realizadas por
Marx e está contida no “Prefácio à Crítica da Economia Política”, que
assim afirma:
(...) Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes ou, o que nada mais é que a sua expressão jurídica, com as relações
de propriedade dentro das quais aquelas até então tinham se movido. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se
transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social.
Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se
transforma com maior ou menor rapidez [...] (1983, p. 24‐25).
Ao contrário do que ocorre em um contexto de revolução social, a
mudança de um regime de acumulação para outro não representa uma
transformação, mas tão somente mudanças no interior de um mesmo
modo de produção, portanto o que ocorre é
71
uma mudança no interior de uma permanência, o que significa que, em sentido
amplo, não há ruptura e nem radicalidade no processo de mudança. A sucessão de
regimes de acumulação explicita a manutenção do modo de produção capitalista e
de seus elementos característicos fundamentais, e a substituição de um regime por
outro é marcada, no fundo, pela realização do objetivo de manter as relações de
produção capitalistas e pelo aprofundamento de tendências já existentes no regime
anterior, seguindo a dinâmica da acumulação de capital (VIANA, 2009, p. 15).
O termo “regime de acumulação” não é um termo antigo e muito
menos consensual entre os diversos teóricos que o utilizaram em suas
análises sobre o desenvolvimento do capitalismo. No entanto, para os
propósitos desse trabalho, utilizaremos a definição e sequência de
regimes de acumulação teorizada por Viana (2003; 2009). Para ele,
um regime de acumulação é um determinado estágio do desenvolvimento
capitalista, marcado por determinada forma de organização do trabalho
(processo de valorização), determinada forma estatal e determinada forma de
exploração internacional (2009, p. 30).
Em linhas gerais essa é a compreensão que o autor tem de um regime
de acumulação. Segundo ele, o que é fundamental na compreensão de
um regime de acumulação é a existência da luta de classes nas suas três
formas constituintes. A luta de classes permanece “relativamente
estável”, pois apesar da vitória parcial da burguesia, a luta histórica do
proletariado, nos diversos regimes de acumulação,
não permite a intensificação da exploração e mantêm avanços e recuos dentro
de uma relação relativamente estável e estabelecida [...] Se não houvesse a
resistência operária e de outras classes sociais, a exploração seria intensificada
continuamente (VIANA, 2009, p. 30).
A resistência operária, portanto, impossibilita que a exploração
adquira um caráter mais violento do que o já existente, pois, do
contrário, a intensificação e precarização do trabalho atingiria níveis
ainda mais insuportáveis para a integridade física e psíquica do
proletariado.
Deste modo, o regime de acumulação é a forma que o capitalismo
adquire, em momentos históricos específicos, para promover sua meta
essencial: a produção de mais‐valor. A maior parte do mais‐valor
convertido em capital é utilizado pela burguesia para expansão
72
ampliada dos seus lucros e isso desdobra‐se em acumulação,
concentração e centralização de capital. Na busca permanente pela
ampliação da acumulação, os capitalistas expandem seus capitais
mundialmente e isso os leva a programarem uma forma de exploração
internacional. Nesse processo o estado age visando a garantir a
satisfação de tais necessidades a partir de sua regularização. Aqui se
encontram os três elementos constituintes de um regime de
acumulação.
É importante destacar que além dos desdobramentos acima citados,
o processo de acumulação gera outros desdobramentos importantes e
essenciais para a sua compreensão. A acumulação capitalista, como já
foi mencionada, é realizada através de uma relação entre burguesia e
proletariado e essa relação é fundamentalmente marcada pelo conflito
de classes.
A burguesia devido aos seus interesses de classe deve,
necessariamente, desenvolver formas cada vez mais eficazes para a
extração de mais‐valor, ou seja, para a exploração do trabalho. Por outro
lado, o proletariado se vê coagido a lutar contra o capital uma vez que
seu ser‐de‐classe, como já dizia Marx, é essencialmente aquele que
quanto mais eficaz torna seu trabalho, quanto mais riqueza é capaz de
produzir, mais miserável se encontra e, por conta disso, se vê obrigado
a desenvolver formas de luta que se afirmem na busca pela destruição
do capitalismo.
É na luta de classes que o proletariado acaba por criar dificuldades
para a acumulação de capital e, em determinados momentos, sua luta
radicaliza e tende a apontar para a superação da sociedade capitalista. Por
mais que a ideologia burguesa e de suas classes auxiliares tente
desacreditar essa possibilidade histórica, não há como negar essa tendência
na luta de classes. Tanto assim que a burguesia e o estado estão sempre
procurando meios de atenuar os efeitos das crises que ameaçam a
continuidade do processo de reprodução do capital em escala ampliada.
Nesses períodos de enfraquecimento é que um novo regime de
acumulação tende a aparecer em substituição ao antigo. Porém, isso não é
uma lei natural e o que se pode perceber é que a dificuldade em acumular
capital, a cada novo regime, é crescente.
É certo que a tese aqui defendida aponta para a constatação de que a
“história do capitalismo é a história da sucessão dos regimes de
73
acumulação”, porém tal tese não coisifica o capitalismo e sua
capacidade de se recuperar das crises, pelo contrário, ela contribui para
pensar na existência de “limites humanos e naturais que tornam o
capitalismo um período transitório na história da humanidade. A
própria dinâmica do capitalismo, revelada na produção de mais‐valor,
expressa sua finitude” (VIANA, 2009, p. 32).
De acordo com Viana, a sucessão dos regimes de acumulação e suas
características centrais existentes na Europa ocidental e nos demais
países imperialistas (após o regime de acumulação primitiva de capital)
são: a) regime de acumulação extensivo – da revolução industrial até o
final do século XIX ‐, marcado pela extração de mais‐valor absoluto,
pelo domínio do Estado liberal e do neocolonialismo; b) regime de
acumulação intensivo – do final do século XIX até a segunda guerra
mundial ‐, caracterizava‐se pela busca de aumento da extração de mais‐
valor relativo, através do taylorismo, pelo Estado liberal‐democrático e
pelo imperialismo financeiro; c) regime de acumulação intensivo‐
extensivo ‐ do pós‐segunda guerra mundial até aproximadamente 1980 ‐,
através da organização fordista do trabalho procurou ampliar a
extração de mais‐valor nos países imperialistas e a extração de mais‐
valor absoluto dos países subordinados, sendo complementado pelo
“Estado do Bem‐Estar Social” e pela expansão oligopolista
transnacional e c) o regime de acumulação integral ‐ do final do século XX
até os dias atuais – que busca ampliar concomitantemente a extração de
mais‐valor relativo e mais‐valor absoluto via “reestruturação
produtiva”, tendo o Estado neoliberal como agente garantidor desse
processo e o neoimperialismo.
74
Com a contínua queda na taxa de lucro entre as décadas de 1960 e
1970, o capitalismo precisou encontrar soluções para a crise e isso levou
ao engendramento de um novo regime de acumulação marcado pelo
aumento da exploração interna nos países imperialistas e, também, nos
países subordinados, tanto no aumento da extração de mais‐valor
relativo (avanço tecnológico na produção, reestruturação produtiva
etc.), assim como na extração de mais‐valor absoluto (expansão das
jornadas de trabalho via hora‐extras). Ou seja, tal regime se afirmará em
um processo de acumulação de capital integral.
O regime de acumulação extensivo que prevaleceu desde a revolução
industrial até fins do século XIX foi marcado pelo predomínio da
extração de mais‐valor absoluto15, presente nas prolongadas jornadas de
trabalho, na exploração de trabalho infantil e feminino, nas péssimas
condições de trabalho e moradia e nos míseros salários. Em resposta a
essas péssimas condições de trabalho e vida, o proletariado radicaliza
suas lutas multisseculares e pressiona a burguesia a fazer algumas
concessões. Tais concessões resultam, principalmente, em uma drástica
redução das jornadas de trabalho (MARX, 1985).
O resultado negativo disso para o processo de acumulação é visível,
pois a redução da jornada de trabalho significa a redução da extração de
mais‐valor absoluto e, consequentemente, a burguesia se vê obrigada a
reagir. A partir desse momento é que a classe capitalista sente
necessidade de elaborar de forma consciente e racionalizada uma forma
de se combater a tendência declinante da taxa de lucro. Destarte,
a obra de Friedrich Taylor representa a tentativa de realizar um aumento da
produtividade, ou seja, de extração de mais‐valor, através da organização do
15 “A mais‐valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais‐
valia absoluta; a mais‐valia que, ao contrário, decorre da redução do tempo de
trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois componentes da
jornada de trabalho chamo de mais‐valia relativa” (MARX, 1985, p. 251); “O
desenvolvimento da força produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista, tem
por finalidade encurtar a parte da jornada de trabalho durante a qual o trabalhador
tem de trabalhar para si mesmo, justamente para prolongar a outra parte da jornada
de trabalho durante a qual pode trabalhar gratuitamente para o capitalista. Até que
ponto pode‐se alcançar ainda esse resultado sem baratear as mercadorias, mostrar‐se‐
á nos métodos particulares de produção da mais‐valia relativa (...)” (MARX, 1985, p.
255).
75
trabalho. A chamada ‘organização científica do trabalho’, ou simplesmente
taylorismo, é o primeiro passo para se conseguir combater a tendência da
queda da taxa de lucro médio (VIANA, 2009, p. 65).
A proposta de Taylor visa aumentar a produtividade do trabalho
mesmo com a redução das jornadas e para isso foi necessário uma
intensificação do controle e vigilância sobre os operários a partir de
diversas artimanhas, entre as quais podemos destacar: produção
rigidamente cronometrada, divisão entre elaboração e execução de
tarefas, premiação individual por produtividade, formação de
especialistas para a gerência etc. (TAYLOR, 1987).
Como todo processo de produção de mercadorias é marcado pelo
confronto entre as classes antagônicas, é claro que a ação de uma gera a
reação da outra, assim, o proletariado tendeu a reagir ao taylorismo. O
próprio Taylor afirma em sua obra que por diversas vezes recebeu
ameaça de morte. Desse modo, constata‐se que o taylorismo
representou a tentativa da burguesia ampliar a extração de mais‐valor
relativo, recorrendo à racionalização do processo produtivo num
período histórico em que o desenvolvimento tecnológico é incipiente.
Assim como Viana, reconhecemos que o taylorismo fornecerá a base
para as demais formas de organização do trabalho em períodos
posteriores e não visualizamos nenhuma mudança significativa nessas
demais formas, pois
as alterações implantadas pelo fordismo, por exemplo, referem‐se a questões
superficiais e são provocadas pelo desenvolvimento histórico do capitalismo.
O contexto histórico do fordismo remete ao aceleramento de desenvolvimento
tecnológico em relação ao período anterior (VIANA, 2009, p. 67).
Mesmo entre o toyotismo e as formas de organização do trabalho
que o antecederam não há nenhuma ruptura, pois o toyotismo segue a
mesma lógica dos anteriores e as diferenças existentes são meramente
secundárias. A organização do trabalho arquitetada por Taylor pode ser
concebida da seguinte forma:
caracteriza‐se por um processo de controle da força de trabalho realizado
segundo uma forma “racionalizada”, ou seja, calculada, medida, normatizada,
objetivando o aumento da produtividade, isto é, de extração de mais‐valor
relativo, e isto pressupõe a “gerência científica”, o que significa não só a
76
aplicação do conhecimento técnico‐científico ao processo de produção,
conhecimento este extraído em parte do próprio saber operário, como também
a existência dos gerentes, ou seja, conjunto de especialistas encarregados em
planejar a execução das tarefas. Em outras palavras, o taylorismo pressupõe
uma camada de burocratas: a burocracia empresarial. O fordismo e as demais
formas de organização do trabalho também possuem a mesma razão de ser e
por isso não são nada mais do que extensões e adaptações do sistema Taylor às
necessidades históricas de determinado estágio de desenvolvimento do modo
de produção capitalista (VIANA, 2009, p. 68).
A diferença essencial entre fordismo e toyotismo consiste no fato de
que o primeiro era marcado pela rigidez enquanto o segundo funda‐se
na sua capacidade flexível. Mas isto não é suficiente para contradizer as
características fundamentais que estão presentes no fordismo. No
fundo, a grande mudança apresentada pelo toyotismo está no fato da
sua produção se encontrar submetida à demanda do mercado, enquanto
no fordismo a produção era uma produção em massa.
Na verdade o que ocorre é que a produção estandardizada do fordismo se vê
substituída por uma produção personalizada , ou seja, a produção em massa ou
em série de um mesmo produto é substituída por uma produção variada. Isso
não impede a produção em massa, pois apenas personaliza os produtos por
cotas, ou seja, a produção em massa deixa de ser de apenas um produto para ser
de vários produtos (VIANA, 2009, p. 68‐69).
Uma reflexão importante levantada por Viana na sua obra O
capitalismo na era da acumulação integral (2009) trata da sua crítica à
expressão “flexível” e/ou “flexibilização”. Para ele, o conceito “flexível”
não expressa a realidade concreta a qual ele propõe expressar.
Primeiramente, tal conceito possui inúmeros significados nos
dicionários (“aptidão para variadas coisas ou aplicação” ou “submissão
e docilidade”, por exemplo). Esse duplo sentido da palavra é suficiente
para percebermos que sua utilização também revela ambiguidades tais
como falar em “especialização flexível”, “acumulação flexível” e
“flexibilização dos trabalhadores”. O termo flexibilização “se refere na
maioria dos casos, a aptidão múltipla” (VIANA, 2009, p. 70).
Não seria o caso de questionarmos se ao contrário do que é
comumente afirmado e aceito, ou seja, da existência de uma
“flexibilização” do aparato produtivo e dos trabalhadores, na verdade o
que existe não seria uma inflexibilidade, pois tanto o aparato produtivo
77
quanto os trabalhadores são submetidos “inexoravelmente” e
“implacavelmente” ao objetivo de aumentar a extração de mais‐valor
relativo? (VIANA, 2009).
Segundo Viana, várias podem ser as razões que explicam esta
confusão na linguagem e uma das principais apontam para a carência
de uma teoria sobre a atual fase do capitalismo mundial e das formas de
organização do trabalho assumidas na contemporaneidade. Mas, em
outros casos essa confusão revela um discurso ideológico que através
da suavização com as palavras acaba por facilitar que um véu nebuloso
desça e ofusque a possibilidade de uma consciência correta da
realidade. Nesse sentido, portanto, percebe o quanto o discurso da
“flexibilização” serve aos interesses das classes capitalistas uma vez que
a existência de trabalhadores moldáveis e mercados flexíveis
contribuem para essas novas exigências da acumulação integral. Já para
o proletariado tal “flexibilização” representa exatamente uma
exploração integral.
Para quem conhece o rigor teórico‐metodológico presente no
pensamento desse autor, e que pode ser compreendido de forma
aprofundada nas suas principais obras que levantam preocupações
desse cunho (A consciência da História – ensaios sobre o materialismo
histórico‐dialético, 2007; Escritos metodológicos de Marx, 2007a), logo
perceberá que essa crítica ao termo “flexibilização” não é secundária,
pois se existe apenas uma realidade (nesse caso a acumulação capitalista
na contemporaneidade), o conceito que busca expressá‐la não deveria
ser equivalente a ela? Para Viana, assim como para nós, a resposta é só
uma: sim, todo conceito deve ser expressão da realidade, pois “a
expressão mais adequada a qualquer relação ou fenômeno social deve
ser compatível com seu ‘ser’ que expressa” (VIANA, 2009, p. 70). Aqui,
portanto, reside o fundamento da sua teoria do regime de acumulação
integral, isto é, o regime de acumulação dominante a partir da década de
1980 se baseia numa acumulação capitalista integral. Mas, deixemos que
o próprio autor apresente sua tese:
no caso da acumulação, o que se busca é concretizar uma acumulação integral,
simultaneamente intensiva e extensiva através da extensão do processo de
mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado
consumidor, mesmo que esta busca se caracterize, em parte, pela produção
personalizada, e também pelo aumento da intensificação da exploração da
78
força de trabalho através do aumento de extração de mais‐valor relativo e
absoluto. No caso da especialização ou do que alguns chamam de pluri‐
especialização(Coriat), trata‐se de uma especialização ampliada, onde ao invés do
trabalhador se dedicar a apenas uma atividade passa a se dedicar a várias,
embora se mantenha afastado do controle do processo de trabalho, o que
significa especialização no processo de execução, e continue não executando
certas funções práticas que ficam a cargo de outros trabalhadores. No caso dos
trabalhadores, o que ocorre é uma intensificação da exploração com a retirada
de seus direitos já conquistados e da formação de um mercado de trabalho
inflexível, onde os trabalhadores se submetem a subcontratação, ao
desemprego, etc. No caso da subcontratação (bem como no caso das horas
extras), o que se vê é um aumento disfarçado da jornada de trabalho, o que
significa aumento de extração de mais‐valor absoluto. Aliás, mais‐valor
relativo e mais‐valor absoluto andam juntos no período de acumulação
integral, embora isto seja constante no capitalismo, mas agora assume
proporções intensas, tal como não ocorria há muito tempo na história do
capitalismo (VIANA, 2009, p. 70‐71).
Como já foi dito, não visualizamos nenhuma diferença significativa
entre taylorismo e toyotismo, pois a suposta “flexibilização” da empresa
com o objetivo de subordinar‐se à demanda do mercado “se revela
numa mudança no quanto se produzir, e não no que e como se produzir.
Pensar o contrário só seria possível imaginando que o consumidor iria
idealizar um produto ainda inexistente e depois iria solicitá‐lo à
empresa” (VIANA, 2009, p. 72).A produção personalizada representa a
forma que as empresas encontraram para ampliar e conquistar o
mercado consumidor através de suas agendas de publicidade e
marketing, pois “para manter a reprodução ampliada do capital é
preciso garantir a reprodução ampliada do mercado consumidor, e isto
implica produzir necessidades fabricadas, já que estas realizam esta
ampliação” (VIANA, 2009, p. 72).
Em síntese o toyotismo representa uma adaptação do taylorismo à
nova fase do capitalismo, no período de vigência do regime de
acumulação integral, expressando uma ofensiva do capital contra a
tendência declinante da taxa de lucro, e isto tem representado para a
classe trabalhadora um processo de exploração integral visto que, no
processo de produção, e derivado da sua condição atual, tem
promovido uma extensão das jornadas de trabalho, uma intensificação
alucinante do ritmo de trabalho, ampliação da psicopatologia do
trabalho etc. Isso para mencionarmos apenas as consequências diretas
79
da produção de mais‐valor, fora as demais consequências, tais como, o
crescente processo de lumpemproletarização (comprovado com o
crescimento generalizado do desemprego em escala global e de um
empobrecimento de parcela crescente da população mundial) e a
criminalização de suas vítimas pelo Estado Penal etc. (WACQUANT,
2001; BRAGA, 2010; 2013).
Todavia, a acumulação integral não soluciona os problemas do
capitalismo, pois se por um lado ela combate a tendência declinante da
taxa de lucro, por outro lado, aumenta a exploração e promove um
amplo processo de lumpemproletarização. Assim, tal regime de
acumulação tende a possibilitar o crescimento da radicalização das lutas
sociais que acaba colaborando para o enfraquecimento da hegemonia
burguesa na sociedade civil. “Nesse sentido, a acumulação integral é
contraditória e só se mantém enquanto perdurar a hegemonia burguesa,
com toda a sua fragilidade em períodos como este” (VIANA, 2009, p.
76).
Antes de iniciarmos a discussão sobre a emergência do Estado
neoliberal e sua dinâmica, gostaríamos de apresentar brevemente a
singularidade da análise de Viana sobre o papel do Estado como agente
regularizador das relações sociais na sociedade capitalista. Para Viana, é
emergencial a construção de um conceito adequado que dê conta de
expressar teoricamente a complexa relação que existe entre modo de
produção e Estado. Tradicionalmente, a corrente “marxista” adota a
metáfora do “edifício social” – infra‐estrutura e superestrutura – para
analisar essa relação, no entanto, tal metáfora não é satisfatória, pois
segundo a perspectiva do materialismo histórico‐dialético tanto o termo
infraestrutura quanto o termo superestrutura não consistem em
conceitos, ou seja, não expressam nenhuma realidade16.
16 Karl Marx “utilizou o par conceitual infra‐estrutura e superestrutura, ao que tudo
indica, apenas uma vez, num prefácio que ele mesmo qualificou de ‘resumo geral’
que serviu de ‘fio condutor’ para suas pesquisas. Toda uma tradição posterior, auto‐
intitulada ‘marxista’, transformou este par conceitual em ‘esquema básico’ do
‘materialismo histórico’. Coube a Karl Korsch, uma rara exceção, o mérito de romper
com esse esquematismo. Ele afirmou que o materialismo histórico é um ‘instrumento
heurístico’ e, assim, superou, implicitamente, a tese da relação esquemática entre
‘base’ e ‘superestrutura’ (VIANA, 2007, p. 69); “Essa tendência de transformação da
metáfora ilustrativa em metáfora normativa é reforçada pela não elaboração de um
80
Em nossa análise adotamos o conceito de formas de regularização das
relações sociais17que engloba, assim como na concepção de Marx, o
estado, as instituições estatais e privadas, as normas legais, a
sociabilidade, as ideologias e a cultura em geral etc. que procuram
tornar regular, além da produção, as relações sociais oriundas do modo
de produção capitalista. Nesse sentido, afirmamos que todo regime de
acumulação vem acompanhado de determinadas formas de regularização
das relações sociais e da produção que lhe são próprias. É a partir dessa
compreensão que analisaremos a principal forma de regularização das
relações sociais do regime de acumulação integral que, nesse caso,
consiste no Estado neoliberal.
Um equívoco comumente cometido por vários autores que discutem
o neoliberalismo consiste em confundir a emergência da ideologia
neoliberal com a emergência do próprio Estado neoliberal. Em 1944
surge a ideologia neoliberal com a obra Os caminhos da Servidão de F.
Hayek, no entanto a forma estatal dominante nesse período até
aproximadamente a década de 1980 é o Estado do “bem‐estar social”,
portanto, ao contrário do que acreditam determinados autores
(ANDERSON, 2000), não seria possível que o neoliberalismo enquanto
forma estatal pudesse ter surgido com tal obra, nem sequer pode‐se
afirmar que o neoliberalismo consistiu meramente na aplicação de tal
ideologia na prática.
O Estado neoliberal, que emerge a partir da década de 1980, é
resultado de um “conjunto de transformações no modo de produção
capitalista, expressando uma alteração no seu regime de acumulação”
(VIANA, 2009). Para compreender o neoliberalismo além de suas
características aparentes é preciso inseri‐lo na totalidade das relações
conceito que expresse o referente material da noção de superestrutura. A construção
do texto de Marx deixa claro as relações existentes entre as duas noções: elevação,
constituição, correspondência, condicionamento, determinação, contradição, alteração
etc., e outras no interior delas: correspondência, desenvolvimento, contradição,
transformação etc. Isto comprova a existência de uma relação concreta entre as duas
noções, mas estas não podem possuir uma relação verdadeiramente concreta,
porquanto não são conceitos e sim noções ou constructos que não manifestam
nenhuma realidade, apenas ilustram uma relação entre elementos desta” (VIANA,
2007, p. 71).
17 Sobre a teoria das formas de regularização das relações sociais Cf. (VIANA, 2007).
81
sociais, analisar sua determinação fundamental no atual momento
histórico, o desenvolvimento capitalista e a luta de classes que vêm se
desenvolvendo nas últimas décadas. Vale ressaltar que a luta de classes
é a determinação fundamental das mudanças ocorridas nos regimes de
acumulação e que a mesma está presente nas três partes constituintes de
tais regimes.
A emergência do neoliberalismo só pode ser compreendida se
inserida nas transformações ocorridas a partir da década de 1960/70 nos
países capitalistas imperialistas (EUA e algumas nações europeias). Na
década de 1950 surge no Japão o sistema Toyota18, isto é, a forma de
organização do trabalho necessária para combater a tendência
declinante da taxa de lucro e promover uma nova fase de valorização
do capital. O processo baseado nessa forma de organização foi chamado
de “reestruturação produtiva” e se generalizou mundialmente nos
países capitalistas imperialistas. Com isso é engendrado um novo
regime de acumulação que exige outra formação estatal que regularize
as novas necessidades do capital. Assim nasce o neoliberalismo.
Uma questão nos parece instigante, pois para que um novo regime
de acumulação possa emergir é necessário que o anterior entre em crise,
portanto em que consiste essa crise, ou seja, qual o significado da crise
do regime de acumulação intensivo‐extensivo para a emergência do
regime de acumulação integral e, consequentemente, do Estado
neoliberal? As décadas de 60 e 70 do século XX são marcadas por uma
crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo derivada da
tendência declinante da taxa de lucro médio. Tal tendência foi expressa
em diversas dificuldades encontradas para a reprodução capitalista,
pois
o sucesso deste regime de acumulação dependia do alto grau de exploração
dos trabalhadores do capitalismo subordinado, da constante reprodução
18 “O sistema Toyota teve sua origem na necessidade particular em que se encontrava o
Japão de produzir pequenas quantidades de numerosos modelos de produtos; em
seguida evoluiu para tornar‐se um verdadeiro sistema de produção. Dada sua
origem, este sistema é particularmente bom na diversificação. Enquanto, o sistema
clássico de produção de massa planificado é relativamente refratário à mudança, o
sistema Toyota, ao contrário, revela‐se muito plástico; ele adapta‐se bem às condições
de diversificação mais difíceis. É porque ele foi concebido para isso” (OHNO apud
CORIAT, 1995, p. 30).
82
ampliada do mercado consumidor e da integração da classe operária no
capitalismo oligopolista transnacional, elemento que dependia dos dois
anteriores. A partir do final da década de 60, estes três elementos encontraram
dificuldades crescentes em se reproduzir (VIANA, 2003, p. 92).
Juntamente com essas dificuldades passavam a crescer as ondas de
greves operárias, destaque para as francesas e italianas que atingiram grau
elevadíssimo de radicalidade, e várias tensões sociais derivadas da
organização e manifestação de diversos grupos, tais como o movimento de
contracultura, o movimento hippie, o pacifismo, o movimento negro norte‐
americano, o movimento feminista, o movimento estudantil etc., além dos
conflitos ocorridos nos países de capitalismo subordinado. Esse quadro de
tensões sociais contribuiu para o agravamento da crise de acumulação do
regime de acumulação intensivo‐extensivo que desde a década de 60 se
encontrava com sérias dificuldades.
Outras abordagens acrescentam a esse quadro a contribuição que
outros fatores deram para o agravamento da crise, entre eles destacam‐
se
os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e da decisão
árabe de embargar as exportações de petróleo para o Ocidente durante a
guerra árabe‐israelense de 1973. Isso mudou o custo relativo dos insumos de
energia de maneira dramática, levando todos os segmentos da economia a
buscarem modos de economizar energia através da mudança tecnológica e
organizacional [...] (HARVEY, 2008, p. 136).
A necessidade da burguesia em engendrar um novo regime de
acumulação vem acompanhada da necessidade de uma nova forma
estatal que o torne regular. É nesse sentido, portanto, que o Estado
neoliberal emerge, ou seja, como um complemento que atenda as novas
necessidades do capital, pois o combate à tendência declinante da taxa
de lucro passa pela criação de condições para o aumento da extração de
mais‐valor e isto só seria possível ampliando a extração tanto em escala
nacional quanto em escala internacional, ou seja, ampliando a
exploração de forma integral. Desse modo, o Estado neoliberal
complementa o processo de “reestruturação produtiva” criando as
condições institucionais indispensáveis para o aumento da acumulação
capitalista.
83
A partir da década de 1980 diversos governos neoliberais chegaram
ao poder. A eleição de Margareth Tatcher em 1979 na Inglaterra, Ronald
Reagan em 1980 nos EUA e Helmuth Kohl em 1982 na Alemanha. Daí
por diante, paulatinamente, diversos outros países adotaram políticas
neoliberais e, por conseguinte, surge um período de expansão das
privatizações, de desregulamentação dos mercados e das relações de
trabalho, ajustes fiscais e monetários, precarização e intensificação do
trabalho, expansão do lumpemproletariado e da repressão etc.
Em suma, o Estado neoliberal chega para varrer os direitos
trabalhistas, precarizar as condições de trabalho possibilitando
contratos temporários, terceirização, subcontratação, aumento do
desemprego, exploração do trabalho infantil, cortes drásticos nas
políticas sociais, aumento da insegurança social com a expansão da
criminalidade e da repressão pelo “Estado Penal” e um amplo processo
de empobrecimento em escala global via processo de
lumpemproletarização. Por conseguinte, o Estado neoliberal cria as
condições “legais” para a construção de um mundo de “exploração sem
limites” (BOURDIEU, 1998), uma vez que substitui o Estado do Bem‐
Estar Social pelo Estado do Bem‐Estar Corporativo (HARVEY, 1998a).
Neste sentido,
podemos dizer que o Estado neoliberal está atingindo seus propósitos, pois
vem contribuindo para o aumento da exploração e recuperação da acumulação
capitalista, tanto a nível nacional quanto a nível internacional. Podemos dizer,
resumidamente, que o neoliberalismo é uma nova forma estatal que surge nos
anos 80, sendo produto do regime de acumulação integral, e que busca
diminuir os gastos estatais, desregulamentar o mercado, subsidiar o capital
oligopolista e aumentar a política repressiva, facilitando assim o
desenvolvimento da reestruturação produtiva e da instauração de novas
relações internacionais. As consequências do neoliberalismo são o aumento da
pobreza e miséria, da desigualdade, da criminalidade e dos conflitos sociais. O
mundo neoliberal é um mundo marcado por contradições crescentes (VIANA,
2009, p. 91).
Todo processo de valorização expressa uma correlação de forças
entre a burguesia e o proletariado em determinado momento histórico,
isto é, expressa certo estágio da luta de classes. É claro que tal luta de
classes tem apontado, até então, para a preeminência da dominação da
burguesia, pois caso contrário, as relações de produção capitalistas
84
estariam abolidas ou prestes a serem abolidas. Todavia, tal
preeminência não é absoluta, pois a luta cotidiana e espontânea do
proletariado tende a criar obstáculos e recuos para o desenvolvimento
de uma exploração cada vez maior no processo de acumulação. Dessa
forma, a luta de classes no capitalismo se apresenta relativamente
estável já que a ofensiva operária, apesar de vários momentos de
radicalidade na história, não conseguiu, até então, abolir as relações de
produção capitalistas.
As formas estatais que a sociedade capitalista conheceu também
expressa uma correlação de forças entre as duas classes fundamentais
do capitalismo, assim como de outras classes sociais, em períodos
históricos específicos. Isso pode ser percebido, por exemplo, nas
conquistas operárias e camponesas que possibilitaram alterações nas
legislações capitalistas, criação de leis trabalhistas, indenizações etc.
Mas nesse caso a luta de classes também se expressa de forma
relativamente estável. Do mesmo modo, a exploração internacional se
apresenta como expressão da luta de classes mediada pelos Estados
Nacionais. Ela aponta, em cada estado‐nação, a correlação de forças
entre as classes sociais internas que influenciam as relações
internacionais e define determinadas características de uma nação
nessas relações (VIANA, 2009).
O regime de acumulação, portanto, é a forma que o capitalismo assume
durante o seu desenvolvimento. O desenvolvimento capitalista, no entanto,
possui uma tendência, determinada em sua própria essência: a produção de
mais‐valor. O desdobramento da produção de mais‐valor é a acumulação de
capital e este, por sua vez, gera a reprodução ampliada e a centralização e
concentração do capital, gerando a expansão mundial do capitalismo e a
exploração internacional, ao lado da ação estatal no sentido de garantir todo
este processo (VIANA, 2009, p. 31).
Antes de tecermos nossos últimos comentários sobre a teoria do
regime de acumulação integral, gostaríamos de mencionar que sua
forma composta pela exploração internacional, ou seja, o
neoimperialismo, será analisada no próximo capítulo quando
destacaremos a condição brasileira de capitalismo subordinado aos
interesses das potências neoimperialistas.
85
As tensões sociais derivadas da exploração capitalista promovem a
eclosão de diversas lutas e resistências das classes operárias e de outras
classes sociais que ameaçam a existência do modo de produção
capitalista e contribui para o agravamento da crise social, pois diante
desse perigo as classes capitalistas e suas classes auxiliares (burocracia
estatal e partidária, por exemplo) são coagidas a recuarem e realizarem
diversas concessões que acabam por emperrar o desenvolvimento do
capital em busca de sua meta essencial que é a extração, cada vez maior,
de mais‐valor. Além disso, existe a tendência geral e espontânea da
acumulação capitalista de gerar o declínio da taxa de lucro médio, que,
por sua vez, obriga a classe capitalista a ampliar a exploração com o
intuito de combater essa queda.
As crises capitalistas são resultados da radicalidade desses dois
desdobramentos que se reforçam mutuamente, pois
as conquistas do proletariado interferem na extração de mais‐valor, reforçando
a tendência de queda da taxa de lucro e esta tendência, realizando‐se e
provocando a ação reativa da classe burguesa no sentido de aumentar a
exploração para compensar tal queda, reforça o descontentamento e a luta do
proletariado. Assim, um tende a reforçar o outro e proporcionar uma crise.
Esta crise ou gera um processo revolucionário e abolição do capitalismo ou
então proporciona um mudança no interior do capitalismo, isto é, uma
mudança no regime de acumulação (VIANA, 2009, p. 31‐32).
Os regimes de acumulação, portanto, são formas assumidas pelo
desenvolvimento capitalista e que expressam as configurações
derivadas da luta de classes em determinado contexto histórico e que se
configuram em formas específicas de processo de valorização do
capital, formas estatais e determinadas relações internacionais. Esses
são seus principais elementos definidores. No entanto, a expressão da
luta de classes não se resume nessas formas, uma vez que outras esferas
como a cultural, ideológica, científica, cotidiana etc., também
caracterizam relações, valores e perspectivas de classes antagônicas que
são próprias dessa atual configuração do capitalismo na era da
acumulação integral.
É importante destacar que apesar da história do capitalismo ser
marcada pela sucessão dos regimes de acumulação, isto não deve nos
levar a crer que o modo de produção capitalista tende a solucionar
86
infinitamente os problemas derivados de sua própria dinâmica, pois o
que se percebe é que a cada novo regime de acumulação a dificuldade
em promover a extração de mais‐valor, combater a tendência declinante
da taxa de lucro e reprimir as crescentes lutas sociais e sua disposição
cada vez maior em se radicalizar se torna mais difícil. A cada crise de
um regime de acumulação a possibilidade de uma transformação social
se abre e mesmo essa não ocorrendo e um novo regime de acumulação
surgindo, o processo de exploração e as dificuldades de reprodução do
capitalismo se tornam mais complicadas (VIANA, 2009).
87
federal, que era paritário ao nível de pobreza em 1980, ter caído para 30%
abaixo desse nível por volta de 1990. Iniciou‐se assim, com vigor, o longo
declínio sobre os níveis dos salários reais (2008a, p. 34).
Para melhor compreendermos as lutas de classes como o motor
propulsor das mudanças nas formas estatais e nas tentativas de
reconstrução do poder de classe da burguesia e de suas classes
auxiliares nos Estados Unidos, resgataremos as batalhas urbanas dos
anos de 1960 na cidade de Nova York e seus principais
desdobramentos. Segundo Harvey (2008a), há décadas a reestruturação
capitalista e o processo de deslocamento industrial vinha corroendo a
base econômica de Nova York e promovendo um amplo processo de
suburbanização e empobrecimento da população residente no centro da
cidade. Em resposta a esse empobrecimento, uma onda explosiva de
revoltas sociais dominou a cidade dando origem ao episódio que ficou
conhecido como “crise urbana”. No primeiro momento, o governo
federal procurou resolver a crise com a promoção da expansão do
emprego e serviços públicos, no entanto diante das crises fiscais
federais, o presidente Nixon se vê obrigado a abandonar essa prática
sob a alegação de que o problema da “crise urbana” não mais existia.
No fundo isso significaria que os recursos federais não mais chegariam
à Nova York.
Com o avanço da recessão, as distâncias entre a receita e os gastos
da cidade se ampliaram e no primeiro momento as instituições
financeiras conseguiram contornar a situação, mas a partir de 1975, os
principais banqueiros se recusam a rolar a dívida e Nova York foi à
bancarrota técnica. Após a bancarrota, diversas novas instituições
foram criadas para administrar o orçamento da cidade e a maneira pela
qual a mesma passou a ser administrada (congelamento de salários,
cortes drásticos no emprego público e na manutenção de serviços
sociais – educação, saúde pública, serviços de transporte – etc.) nos
oferece um cardápio do receituário neoliberal que se tornaria
dominante daí pra frente nos EUA:
a administração da crise fiscal de Nova York abriu pioneiramente o caminho
para as práticas neoliberais, tanto domesticamente, sob Reagan, como
internacionalmente por meio do FMI na década de 1980. Estabeleceu o
princípio de que, no caso de um conflito entre a integridade das instituições
88
financeiras e os rendimentos dos detentores de títulos, de um lado, e o bem‐
estar dos cidadãos, de outro, os primeiros devem prevalecer. Acentuou que o
papel do governo é criar um clima de negócios favorável e não cuidar das
necessidades e do bem‐estar da população em geral. A política do governo
Reagan nos anos 1980, conclui Tabb, foi “apenas o cenário de Nova York” dos
anos 1970 “bastante ampliado” (HARVEY, 2008a, p. 58).
Em poucos anos quase todas as conquistas do proletariado de Nova
York foram destruídas, as infraestruturas sociais e físicas da cidade (o
metrô, por exemplo) foram sucateadas e o próprioproletariado foi
novamente lançado a uma condição de vida precária, quando não
lumpemproletarizada: reflexo da luta de classes marcada por uma
contraofensiva do capital.
Em nome dos “negócios favoráveis” a população empobrecida do
centro de Nova York foi expulsa pela especulação imobiliária e
obrigada a sobreviver da “economia ilegal das ruas” nos subúrbios, que
passaram a experimentar um alto índice de lumpemproletarização,
mortalidade juvenil, consumo de crack entre jovens lumpemproletários,
crescimento da população sem‐teto e da criminalização do
lumpemproletariado (HARVEY, 2008a). Dessa maneira,
a redistribuição de renda através da violência criminosa se tornou uma das
poucas opções reais para os pobres, e as autoridades reagiram criminalizando
comunidades inteiras de pessoas empobrecidas e marginalizadas. As vítimas
foram consideradas culpadas e [Rudolf] Giuliani, o então prefeito, ficou
famoso pela vingança que promoveu em favor de uma burguesia cada vez
mais abastada de Manhattan, cansada de ter de enfrentar na porta de casa os
efeitos dessa devastação (HARVEY, 2008a, p. 57‐58).
A partir da década de 1970, e principalmente com a neoliberalização
da economia norte‐americana na década de 1980, as consequências
sociais do que ocorreu em Nova York pôde ser percebida em diversas
outras cidades do país, que passaram a conviver com altas taxas de
desemprego, subemprego, trabalhos precários, salários‐miséria, alto
índice de criminalidade, tráfico de drogas e toxicomania juvenil,
violência generalizada, crescimento do número de sem‐tetos,
mendicância etc. Percebe‐se que sob a vigência do regime de
acumulação integral, tais índices (anti)sociais não são mais exclusivos
de países de capitalismo subordinado, mas passa a fazer parte também
89
da realidade social de países de capitalismo imperialista tal como os
Estados Unidos, que vem experimentando um processo de expansão da
lumpemproletarização. As análises de Wacquant, assim como de outros
autores19, comprovam esse processo:
entre 1978 e 1990, o condado de Los Angeles perdeu cerca de 200 mil postos de
trabalho, dos quais a maior parte era de empregos industriais sindicalizados e
de salários altos, ao mesmo tempo que recebia um influxo de 1 milhão de
imigrantes. Muitos desses postos foram perdidos para vizinhos de minorias na
área de South Central e para comunidades de innercities, onde programas e
investimentos públicos estavam sendo simultaneamente cortados de forma
drástica (Johnson et al.,1992). Como consequência, o desemprego em South
Central ultrapassa 60% entre os jovens latinos e negros e a economia ilegal da
droga tornou‐se a fonte mais confiável de emprego para muitos deles
(WACQUANT, 2005, p. 32).
A obra Cidade de Quartzo (1993), de Mike Davis, fornece um quadro
assolador sobre o abandono e miséria em que se encontrava o
proletariado, formado majoritariamente por negros, nos subúrbios de
Los Angeles a partir da década de 1970. Segundo Davis, entre 1978‐1982
a economia industrializada de Los Angeles entra em colapso, pois não
suporta a concorrência gerada pelas importações japonesas. Das doze
maiores fábricas do setor espacial existentes na região da Califórnia
Meridional dez se tornarão inativas a partir da concorrência asiática.
Nas regiões onde as fábricas e depósitos não sucumbiram, foram
19 Já no final da década de 1980 os Estados Unidos inaugura seus refúgios alucinógenos
para a população lumpemproletária, espécie de “cracolândia norte‐americana”: “No
Condado de Los Angeles, onde a mortalidade infantil está em franca ascensão, e a
rede de tratamento de traumas do Condado entrou em colapso, não é de surpreender
que a assistência médica para os viciados em crack – que os especialistas concordam
que exige um tratamento a longo prazo numa instituição terapêutica – geralmente
não esteja em disponibilidade. Assim, a região do submundo, o pesadelo do “Nickle”
no Centro, possui a maior concentração unitária de viciados em crack – velhos e
novos, mas nem um único posto de tratamento. A rica Pasadena está enfrentando a
atividade das gangues com base no crack, localizadas no seu gueto do Noroeste, com
sua própria versão do HAMMER, inclusive com revistas humilhantes de
desnudamento na rua e uma política de despejo de inquilinos ligados a drogas, sem
gastar um só centavo em reabilitação de viciados. Os exemplos poderiam ser
depressivamente multiplicados, à medida em que o tratamento para viciados é
abandonado na mesma última gaveta que os preceitos liberais esquecidos, como o
emprego para os jovens ou o aconselhamento para as gangues” (DAVIS, 1993, p. 278).
90
transferidas, em número aproximado de 321 firmas desde 1971, para
outros parques industriais com oferta de mão‐de‐obra mais atrativa. O
resultado catastrófico para a população local foi apresentado por um
comitê de investigação do Legislativo da Califórnia em 1982 que
confirma “a destruição econômica resultante nos bairros do Centro‐Sul:
o desemprego cresceu em quase cinquenta por cento desde o começo
dos anos setenta, enquanto o poder aquisitivo da comunidade caiu em
um terço” (DAVIS, 1993, p. 269). Com a chegada da década de 1980 é
possível perceber uma escalada surpreendente da
lumpemproletarização juvenil da população negra dos guetos de Los
Angeles, pois
o desemprego entre os negros jovens do condado de Los Angeles – a despeito
do crescimento regional ininterrupto e de uma nova explosão de consumo
acelerado – permaneceu num assustador 45 por cento no decorrer dos anos
oitenta. Uma pesquisa de 1985 sobre projetos de habitação pública no gueto
descobriu que havia apenas 120 trabalhadores empregados em 1060 domicílios
em NickersonGardens, setenta em quatrocentos em Pueblo del Rio, e cem em
setecentos em Jordan Downs. A escala de demanda reprimida por empego
manual decente foi vividamente demonstrada há poucos anos, quando
cinqüenta mil jovens, predominantemente negros e chicanos, fizeram uma fila
de quilômetros para se candidatar a umas poucas vagas na estiva de San Pedro
[...] Correlacionada ao posicionamento periférico dos negros da classe
trabalhadora na economia está a dramática juvenilização da pobreza entre todos
os grupos étnicos do gueto. Em termos estaduais, a percentagem da pobreza
dobrou (de 11 por cento para 23 por cento) em relação à última geração. No
Condado de Los Angeles, durante os anos oitenta, tristes quarenta por cento
das crianças viviam abaixo ou logo acima do limite de pobreza oficial. As áreas
mais pobres do condado, além disso, são invariavelmente as mais jovens: de
sessenta e seis domicílios do censo (em 1980) com rendas familiares médias de
menos de 10 mil dólares, mais de 70% possuíam uma idade média de apenas
20‐24 anos (o restante, 25‐29). (DAVIS, 1993, p. 270).
Realidade semelhante foi experimentada pelo “hipergueto” da
cidade de Chicago nesse mesmo período. Além das razões
fundamentais que levaram à transição do regime de acumulação
intensivo‐extensivo para o regime de acumulação integral, já
mencionadas anteriormente, existem outras determinações específicas
da realidade norte‐americana e que explicam a expansão do
lumpemproletariado na cidade de Chicago. Dentre elas, merece
destaque a saturação dos mercados internos, a partir de meados da
91
década de 1960, provocada pela competição internacional, pela busca
por uma maior mobilidade do capital visando encontrar condições mais
atrativas para o processo de acumulação, pela ampla redução de
proteções aos assalariados etc. A partir do momento em que uma
economia baseada na produção industrial, no consumo de massa e na
existência de sindicatos, que garantiam aos trabalhadores estabilidade
no emprego, salários altos etc. foi sendo substituída por uma economia
predominantemente apoiada nas ocupações de serviços, fundamentada
no capital financeiro e no sucateamento das economias regionais, uma
gigantesca transformação atingiu as relações trabalhistas, os mercados
de trabalho e os níveis salariais (WACQUANT, 2005).
Por conta dessas mudanças no mercado de trabalho, juntamente
com a política de extermínio generalizado de todo e qualquer tipo de
assistência pública, as contradições sociais no gueto tem se ampliado
rapidamente. O crescimento acentuado do desemprego e do
subemprego tem sido acompanhado pelo aumento incrível da
criminalidade, do assassinato e do tráfico e consumo de drogas. Isso
tem promovido uma crescente fuga das classes auxiliares que levam
consigo as redes de comércio e parcela da renda que possibilitava uma
movimentação econômica mínima na região. Dessa forma, o gueto
tende a se tornar um espaço típico do “salve‐se quem puder e da forma
como puder”, pois,
além da economia da droga e do mercado informal – cujo desenvolvimento é
visível em outros setores da economia norte‐americana, inclusive os mais
avançados – o coração do gueto assistiu a uma proliferação de pequenos
‘negócios’ subproletários [lumpemproletários, LB] típicos das cidades do
Terceiro Mundo: comerciantes de rua, vendedores de jornais, cigarros ou
refrigerantes por unidade, carregadores, manobristas, diaristas etc. Não existe
área do South Side sem táxi clandestinos, mecânicas ilegais, clubes noturnos e
meninos que oferecem para carregar sacolas na saída do supermercado local
ou encher o tanque do carro no posto de gasolina, em troca de alguns trocados.
Tudo pode ser comprado ou vendido nas ruas, desde bolsa Louis Vuitton
falsificadas (a 25 dólares cada), até carros roubados, armas (trezentos dólares
por uma ‘arma limpa’, em geral, ou a metade por uma ‘suja’), roupas com
defeito, comida caseira e bijuterias. A economia dos jogos de azar – bingos,
loterias, loto, jogos ilegais de cartas e dados – não conhece recessão”
(WACQUANT, 2008, p. 42‐43).
92
Com o crescimento vertiginoso do desemprego e do subemprego, a
partir da década de 1970, em várias cidades20 dos Estados Unidos,
outras frações do lumpemproletariado se expandiram por todo o país.
Dentre elas ganha destaque a fração composta por sem‐tetos. Um
estudo realizado por Snow e Anderson (1998) nos possibilita apreender
a expansão dessa fração do lumpemproletariado após a década de 1980,
na cidade de Austin (Texas). A pesquisa demonstra que a partir dessa
década, ocorre uma gigantesca proliferação de sem‐tetos em quase
todas as cidades norte‐americanas. De acordo com o Exército da
Salvação (Entidade cristã‐protestante beneficente) de Austin, o
atendimento a moradores de rua cresceu mais de 100% em 1985 se
comparado com o ano de 1979 (SNOW & ANDERSON, 1998).
Que multiplicidade de determinações envolve o crescimento
acelerado do número de sem‐tetos em diversas cidades norte‐
americanas? Antes mesmo do regime de acumulação integral se tornar
uma realidade nos EUA, já havia uma quantidade significativa de
desempregados que sobreviviam, em grande parte, à custa de algum
programa federal de assistência social. Isso possibilitava que essa fração
do lumpemproletariado tivesse acesso há alguns bens básicos, tais como
alimentação, moradia (de baixa renda) etc. e, consequentemente, isso
camuflava e contornava esse problema social. Porém, a partir da
década de 1970 essa realidade já não é mais a mesma, pois junto com a
20 Apesar de termos utilizado apenas as cidades de Los Angeles e Chicago para
demonstrar a expansão do lumpemproletariado via crescimento generalizado do
desemprego, no regime de acumulação integral, outras pesquisas demonstram que o
desemprego em massa tornara‐se uma realidade nacional: “Um estudo que descobriu
que 30% das fábricas existentes nos EUA em 1969 haviam fechado por volta de 1976,
estimou que ‘fugas [transferências de fábricas para outros locais], encerramento de
atividades, e cortes físicos permanentes beirando o fechamento podem ter custado ao
país algo como 38 milhões de empregos’. Um outro estudo concluiu que mais de 16
milhões de empregos industriais foram perdidos entre 1976 e 1982 devido a
fechamento de fábricas, e um exame congressual das conseqüências desse
desemprego estrutural relatou que ‘nos últimos anos, milhões de trabalhadores
americanos perderam seus empregos devido a mudanças estruturais nas economias
norte‐americana e mundiais. Alguns deles ‐ especialmente trabalhadores mais jovens
com qualificações em demanda ou com formação educacional certa – têm pouca
dificuldade de achar novos empregos. Outros – centenas de milhares por ano –
permanecem sem emprego por semanas ou meses, ou até mesmo anos” (SNOW &
ANDERSON, 1998, p. 398).
93
expansão do lumpemproletariado, visível através do crescimento do
desemprego, o Estado Neoliberal irá promover um corte drástico em
diversas políticas de assistência social, inclusive na diminuição da
assistência à moradia:
o desaparecimento de quantidade cada vez maiores de unidades habitacionais
de baixa renda – 2.5 milhões de unidades desde 1980, de acordo com algumas
estimativas – pode ser atribuído essencialmente à conjunção de indiferenças
governamental e de forças de mercado tais como o aburguesamento e o
abandono. A primeira se refletia claramente na diminuição do apoio
governamental a programas habitacionais para os pobres durante a
administração Reagan. Quando as iniciativas habitacionais para todos os
programas habitacionais de baixa renda do HousingandUrbanDevelopment
(HUD) diminuíram de cerca de 183.000 unidades em 1980 para cerca de 28.000
em 1985, um observador argumentou que não apenas a administração Reagan
estava declarando guerra contras os programas habitacionais para os pobres,
mas estava também procurando reverter “o compromisso de 50 anos do governo
federal para com esses programas” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 381).
Aliado a essa política de diminuição de investimentos federais em
programas habitacionais para a população de baixa renda, outros
fatores somam‐se como determinantes no aumento da população de
sem‐tetos nos EUA. O grande número de desempregados nas principais
cidades americanas, juntamente com o crescimento acelerado da
pobreza nos EUA e das desigualdades sociais em geral21, provocaram o
aumento pela procura de habitações de baixa renda e,
consequentemente, a diminuição da oferta desse tipo de habitação22.
21 Segundo “os relatórios publicados pelo U.S. Bureau oftheCensus desde meados da
década de 80 mostram um acentuado aumento da pobreza na América (Center
ofBudgeandPolicyPriorities, 1985, 1988) e uma onda de ‘desigualdade’ geral (Thurow,
1987)” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 378).
22 “Os levantamentos sobre habitação do governo federal, os relatórios publicados por
grupo de defesa dos moradores de rua e os pesquisadores de habitação
independentes, todos, relatam praticamente a mesma conclusão: o estoque de
habitação de baixa renda da nação foi liquidado ao longo dos últimos vinte anos. Só
entre 1973 e 1979, 91% de quase um milhão de unidades habitacionais que eram
alugadas por $ 200 por mês ou menos em toda a nação desapareceram do mercado de
aluguel. Estima‐se que, só na cidade de Nova Iorque, mais de 310.000 unidades
habitacionais de baixa renda foram perdidas entre 1970 e 1983. Como essa dizimação
do mercado de aluguel de baixa renda aumentou progressivamente ao longo da
década de 80, a Nacional Coalition for theHomeless estimou que cerca de meio
94
Esse conjunto de fatores, aliado ao boom do mercado inflacionário
imobiliário de diversas cidades americanas, apertava ainda mais o cerco
contra a população lumpemproletarizada, ampliando e muito o número
de sem‐tetos que passava a ocupar locais de maior visibilidade pública
– parques, pontos de ônibus, porta de lojas, bares e restaurantes,
banheiros públicos, bibliotecas etc. (SNOW & ANDERSON, 1998;
DAVIS, 1993).
Outra determinação que contribuiu para a expansão do número de
sem‐teto é o crescimento elevadíssimo do subemprego nos EUA.
Milhares de pessoas que foram atingidos pelo desemprego, geralmente
quando retornam ao mercado de trabalho passam a receber salários
menores do que os anteriores. Não é pequeno o número de salários
abaixo do nível de pobreza oficialmente estabelecido nos país e que,
portanto, obriga essa fração do lumpemproletariado a trabalhar em dois
ou três subempregos, mas que, ainda assim, não consegue obter renda
suficiente para pagar um quarto sequer para morar. Segundo a Coalizão
Nacional para os Sem‐Teto23, em 1998 seria necessário um salário de
8,89 dólares por hora para pagar um quarto e sala. Outra entidade não
governamental (Centro de Preâmbulo para Políticas Públicas) estima
que a possibilidade de um indivíduo assistido pelo seguro‐desemprego
encontrar um emprego que pague esse salário era de mais ou menos 01
chance em 97 (EHRENREICH, 2004). Isso sem contar o número de
milhão de unidades de baixa renda estavam sendo perdidas anualmente por volta da
segunda metade da década” (Ibid, 1998, p. 379).
23 “A Coalizão Nacional para os Sem‐Teto é uma rede nacional de pessoas, que estão
experimentando atualmente a falta de moradia ou que já a tenham experimentado,
ativistas, advogados e outros prestadores de serviços, baseados na comunidade e na fé,
comprometidos com uma única missão. Essa missão, o nosso elo comum, é acabar com
a falta de moradia. Estamos empenhados em criar as mudanças sistêmicas e atitudinais
necessárias para prevenir e acabar com a condição de sem‐teto. Ao mesmo tempo,
trabalhamos para atender às necessidades imediatas das pessoas que estão atualmente
na condição de sem‐teto ou que correm esse risco. Tomamos como primeiro princípio
da prática que as pessoas que estão experimentando atualmente a condição de sem‐teto
ou que já experimentou tal condição devem ser envolvidas em todo o nosso trabalho.
Para este fim, a Coalizão Nacional para os Sem‐teto (NCH – sigla em inglês para
Nacional CoalitionHomeless) se engaja na educação pública, defesa de políticas, e
organizações de base. Focamos nosso trabalho nas seguintes quatro áreas: moradia
justa, justiça econômica, saúde e direitos civis” (IN: http://www.
nationalhomeless.org/about_us/index.html ‐ tradução nossa).
95
pessoas e famílias que moram nos seus próprios automóveis. Em sua
obra Miséria à americana – vivendo de subemprego nos Estados Unidos
(2004), Ehrenreich constata:
não consegui encontrar estatísticas sobre o número de pessoas empregadas que
moram em carros ou vans, mas segundo um relatório de 1997 da
NationalCoalition for theHomeless intitulado “MythsandFactsaboutHomeless”
(Mitos e fatos sobre a falta de moradia), quase um quinto de todos os sem‐teto,
em vinte e nove cidades de todo o país, tem emprego em tempo integral ou
meio expediente (2004, p. 36).
Assim como ocorreu nas principais cidades industrializadas do
século XIX, a presença cada vez maior do número de
lumpemproletários nos espaços públicos passava a gerar grandes
incômodos às classes ricas de diversas cidades americanas, que buscou
declarar guerra a tal presença. Diversas foram as armas e estratégias
elaboradas pelo poder público e pela iniciativa privada, a serviço da
propriedade burguesa e do seu conforto visual. Em Los Angeles, a
forma encontrada para conter os sem‐tetos foi confinando‐os no
submundo. Ao longo da Rua 50, a leste da Broadway, criaram‐se uma
verdadeira “favela a céu aberto” que, na década de 1990, representava
um dos dez quarteirões mais perigosos do mundo (DAVIS, 1993):
nesta zona do submundo, todas as noites são sexta‐feira 13, de modo nada
surpreendente, muitos dos sem‐teto tentam a todo custo escapar do “Nickle”
durante a noite, procurando por malocas mais seguras em outras partes do
Centro. A cidade em resposta aperta o laço com crescente intervenção da
polícia e com engenhoso design urbano de vocação dissuasiva.
Um dos mais comuns, mas embrutecedor, destes estorvos é o banco de ponto
de ônibus em forma de barril, que oferece uma superfície mínima para um
sentar desconfortável, enquanto torna completamente impossível dormir sobre
ele. Tais bancos “à prova de vagabundos” estão sendo amplamente
introduzidos na periferia do submundo [...] restaurantes e mercados
responderam aos sem‐teto com a construção de ambientes cercados e
ornamentados para proteger sua recusa. Embora ninguém em Los Angeles
tenha ainda proposto colocar cianeto no lixo, como aconteceu em Phoenix há
poucos anos atrás, um popular restaurante de frutos do mar gastou 12 mil
dólares para construir uma lata de lixo definitivamente à prova de mendigos:
ela é confeccionada com chapas de aço de 2centrímentos de espessura e
equipada com cadeados blindados e mórbidas pontas espetadas para fora, de
96
modo a salvaguardar cabeças de peixe de preço inestimável em decomposição
e batatas fritas bolorentas (p. 213‐214).
Com o objetivo claro de evitar a presença do lumpemproletariado
em algumas regiões da cidade de Los Angeles, os banheiros públicos,
assim como as fontes de águas, utilizados por sem‐tetos para tomar
banho, foram deliberadamente destruídos. Se comparada com outras
cidades importantes de toda a América do Norte, Los Angeles era a
cidade que possuía o menor índice de banheiros públicos na década de
1990. Diante de toda essa política repressiva, os lumpemproletários da
“cidade dos anjos” foram transformados em espécies de “beduínos
urbanos”,
visíveis em todos os lugares do Centro, empurrando seus poucos e patéticos
pertences em carrinhos de supermercados roubados, sempre fugitivos e em
movimento, espremidos entre a política oficial de conteção e o sadismo
progressivo das ruas do Centro (DAVIS, 1993, p. 215).
Uma das consequências sociais diretas e inevitáveis da promoção do
Estado neoliberal é, sem sombra de dúvidas, o aumento das tensões
sociais e da criminalidade derivadas dos cortes em políticas de
assistência social, da diminuição drástica da oferta de empregos, dos
salários‐miséria, da fome, do desabrigo e da opressão em geral, tanto
nos países subordinados, quanto nos países imperialistas. Por conta
desse quadro é que esse Estado será caracterizado por uns como sendo
“mínimo e forte” (Bobbio, 2009) e por outro como sendo uma espécie de
“Estado Penal” (Wacquant, 2001), uma vez que o mesmo se vê coagido
a dar uma resposta positiva (para os interesses das classes dominantes)
ao espetáculo da insegurança social, à imundice visual causada pela
presença do lumpemproletariado nos centros comerciais e à
criminalidade crescente, através da expansão das práticas repressivas e
do encarceramento em massa dessa classe social.
Nesse sentido, o Estado penal apresenta‐se como um complemento
nas mudanças das relações de trabalho contemporâneas, pois busca
substituir as políticas sociais por medidas de criminalização do
lumpemproletariado. Porém, ele deve fazer isto contendo seus próprios
gastos e buscando diminuir o crescimento da dívida pública, pois dessa
maneira ele garante os interesses do capital oligopolista. Por outro lado,
97
a miséria tende a aumentar, assim como o desemprego e a
criminalidade, então o estado deve optar por aumentar o aparato
repressivo ou ampliar os gastos sociais, mas faz opção pelo primeiro
por ser menos dispendioso, ou seja, mesmo investindo em aumento da
repressão – que não é tanto assim, já que em parte apenas aumenta o
uso do aparato repressivo já existente, ao invés de políticas de
assistência social e, ainda permite a ampliação do lumpemproletariado
que barateia a força de trabalho em certos setores, diminuindo os gastos
do capital.
É nesse contexto que surge em Nova York, e tende a se tornar uma
prática mundial via importação, a política da “tolerância zero” e,
juntamente com ela,
a retórica militar da ‘guerra’ e da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila
os delinquentes (reais ou imaginários), sem‐teto, mendigos e outros marginais
a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com a imigração, sempre
rendoso eleitoralmente (WACQUANT, 2001, p. 30).
LoicWacquant apresenta em diversas obras a absurda escalada do
Estado Penal e sua prática de encarceramento em massa dos setores
mais pobres da sociedade norte‐americana, demonstrando uma íntima
relação entre o neoliberalismo, a ampliação do lumpemproletariado e a
expansão das práticas de criminalização dessa classe social no regime
de acumulação integral. De acordo com ele,
a reviravolta da demografia carcerária americana depois de 1973 será tão
brutal quanto espetacular. Contra qualquer expectativa, a população
penitenciária do país começa a aumentar em uma velocidade vertiginosa: fato
sem precedentes em uma sociedade democrática, ela “dobra em dez anos e
quadruplica em vinte”. Partindo de menos de 380 mil em 1975, o número de
pessoas encarceradas beira os 500 mil em 1980. E continua a inchar no ritmo
infernal de 9% ao ano em média (ou seja, 2 mil detentos suplementares por
semana durante a década de 90, de maneira que em 30 de junho de 1997 a
América contava com 1.855.575 prisioneiros, dos quais 637.319 nas casas de
detenção dos condados e 1.218.256 nas prisões federais e estaduais. Se estivesse
em uma cidade, a população carcerária estadunidense seria a sexta maior
metrópole do país (2003, p. 57).
98
Expansão da população carcerária nos Estados Unidos
(1975‐1995)
1975 1980 1985 1990 1995
Casas de 138.800 182.288 256.615 405.320 507.044
detenção
(cidades e
condados)
Penitenciárias 240.593 315.974 480.568 739.980 1.078.357
Estaduais e
federais
Total 379.393 498.262 737.183 1.145.300 1.585.401
encarcerado
Crescimento em ‐ 31,3% 47,9% 55,4% 38,4%
05 anos
Fonte: Bureau of Justice and Statistics, Correctional Populacion in United States, 1995,
Washington, U.S. Government Printing Office, 1996: Jail and jail inmates 1993‐1994,
idem, 1994, apud WACQUANT, 2003, p. 57.
A emergência do regime de acumulação integral e de suas
contradições/tensões sociais nos EUA provocou uma verdadeira ruína
dos espaços sociais habitados pelo conjunto da população
empobrecida24, que foi a maior vítima de todas essas
contradições/tensões, em especial o processo expansivo da
lumpemproletarização. Para milhares de pessoas a simples garantia da
sobrevivência diária tornou‐se uma verdadeira guerra cotidiana, pois
marginalizados na divisão social do trabalho, estigmatizados pela cor
da pele (o lumpemproletariado norte‐americano é formado
majoritariamente pela população negra) e pelo endereço residencial,
essa classe social só consegue visualizar duas “opções” (WACQUANT,
2001, 2003, 2005, 2008): ou se submeter ao trabalho precário, temporário
e de salários‐miséria ou entrar para a vida bandida do tráfico de drogas
24 LoicWacquant denominou esse processo de desertificação organizacional do gueto: “ao
mesmo tempo causa e efeito da erosão do espaço público, o declínio das instituições
locais (comércio, igrejas, associações de bairro e serviços públicos) chegou a um grau
quase equivalente ao de um deserto organizacional. A origem da espantosa
degradação do tecido institucional e associativo do gueto é encontrada, mais uma
vez, no recuo repentino do Estado do bem‐estar social, o que solapou a infra‐estrutura
que permitia às organizações públicas e privadas desenvolver‐se e subsistir nos
bairros estigmatizados e marginalizados” (WACQUANT, 2008, p. 39).
99
e do roubo a mão armada, que apesar de altamente arriscado, tanto pelo
conflito com a polícia quanto pelo conflito entre traficantes rivais,
possibilita uma renda infinitamente maior que a do subemprego. A
segunda opção tem sido, sem sombra de dúvidas, a principal “escolha”
da maior parte da juventude lumpemproletária, habitante dos guetos
norte‐americanos, que a partir daí tem se tornado, consequentemente, a
clientela favorita do sistema carcerário norte‐americano:
evidencia‐se imediatamente que o meio milhão de reclusos que abarrotam as
quase 3.300 casas de detenção do país – e os 10 milhões que passam por seus
portões a cada ano – são recrutados prioritariamente nos setores mais
deserdados da classe operária, e notadamente entre as famílias do
subproletariado de cor nas cidades profundamente abaladas pela
transformação, que, reelaborando sua missão histórica, o encarceramento serve
bem antes à regulação da miséria, quiçá à sua perpetuação, e ao
armazenamento dos refugos do mercado [...] Consequência de sua posição
marginal no mercado de emprego desqualificado, dois terços dos detentos
viviam com menos de mil dólares por mês (e 45% com menos de 600 dólares),
ou seja, uma renda inferior à metade do limiar de pobreza oficial para uma
família de três pessoas naquele ano – isto embora dois terços deles declarem
ter recebido um salário. É dizer que a grande maioria dos internos dos cárceres
municipais provém seguramente das categorias dos “workingpoor”, esta
fração da classe operária que não consegue subtrair‐se da miséria embora
trabalhe, mas que é mantida à distância da cobertura social porque trabalha em
empregos de miséria: apesar de sua penúria pecuniária, apenas 14% recebiam
uma ajuda pública (auxílio a pais desamparados, cupons alimentares,
programa de assistência nutricional para as crianças) nas vésperas de sua
prisão (WACQUANT, 2003, p. 33‐34).
Toda essa bárbara situação em que se encontra a população
lumpemproletária norte‐americana revela no fundo a incapacidade do
capitalismo de resolver suas próprias contradições. A própria expansão
vertiginosa da população carcerária é expressão dessa incapacidade,
pois, ao contrário do que diz a ideologia da exclusão social, essa massa
de indivíduos que se encontram marginalizados na divisão social do
trabalho não é resultado de uma forma política ineficaz de
administração social e que, portanto, a solução para a exclusão social se
dá com adoção de políticas públicas e sociais que garantam a inclusão
ou com a construção de uma espécie de Estado Social, como sugere
100
LoicWacquant25. Pelo contrário, pois de forma geral nem se quer
poderíamos afirmar que tal população, formada pelo
lumpemproletariado, encontra‐se excluída socialmente (algo impossível
de acontecer), pois no fundo o capitalismo não sobrevive sem a
totalidade do exército industrial de reserva, formado por essa classe
social. Nesse sentido, é mais correto afirmar que o lumpemproletariado
é parte integrante da sociedade capitalista, que definitivamente
depende da sua existência para sobreviver, pois tal classe representa
uma das alavancas fundamentais do processo de acumulação capitalista
e, consequentemente, não pode ser abolida sem a abolição do
capitalismo.
O que o Estado norte‐americano vem tentando fazer é retardar ao
máximo a ameaça gerada pelo crescimento generalizado do
lumpemproletariado, criminalizando‐o para não ter que ampliar seus
gastos com assistência social e, consequentemente, emperrar o processo
de acumulação capitalista. No entanto, com o crescimento vertiginoso
dessa população e de sua criminalização, essa prática já não mais atende
a expectativa de redução dos gastos públicos, uma vez que o orçamento
carcerário vem atingindo cifras alarmantes26. Por isso, outro desafio se
25 Segundo Wacquant, discutindo a possibilidade do Estado Penal não se tornar uma
realidade na Europa, tal como vem ocorrendo nos EUA, “para uma verdadeira
alternativa que nos afaste da penalização (suave ou dura) da pobreza, é preciso
construir um Estado europeu que seja digno desse nome. O melhor meio de diminuir
o papel da prisão, é uma vez mais e sempre, fortalecer e expandir os direitos sociais e
econômicos” (2008, p. 105). Tal afirmação revela os limites da análise do autor e sua
visão fetichista do Estado, pois em momento algum de sua análise Wacquant
apresenta a gênese e a determinação fundamental de toda essa complexa realidade
contemporânea, ou seja, não analisa as necessidades atuais do regime de acumulação
integral (Forma de valorização do capital expressa no toyotismo, forma estatal capaz
de regularizar as relações sociais necessárias para tal valorização (neoliberalismo) e
forma de exploração internacional ‐ neoimperialismo), nem tão pouco menciona que
as contradições sociais que levam ao engendramento do “Estado Penal” resultam do
predomínio da ofensiva capitalista sob a classe trabalhadora, localizando todas essas
mudanças no campo de correlação de forças no interior da luta de classes na
contemporaneidade.
26“Entre 1982 e 1993, os orçamentos das administrações penitenciárias aumentaram em
254%, enquanto as somas destinadas às funções de justiça em seu conjunto cresceram
172% e as despesas globais dos estados em 140%. Em fim de período, a América
despende 50% a mais em suas prisões do que em sua administração judiciária (32
101
impõe à acumulação capitalista norte‐americana: como combater as
tensões sociais via encarceramento generalizado do
lumpemproletariado, sem comprometer os cofres públicos? A resposta,
ao que tudo indica, vem da privatização do sistema penitenciário e da
transferência dos custos carcerários para o próprio preso ou sua família,
como já vem ocorrendo em diversos estados e/ou tornando o cárcere
uma indústria lucrativa que passa a ser cotada inclusive nas principais
bolsas de valores norte‐americanas27. Nesse sentido, Gans está correto
ao concluir que o Estado norte‐americano tem optado em combater os
pobres e não mais a pobreza (1995).
Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina
O processo de lumpemproletarização traduz a principal
consequência social do regime de acumulação integral em todo o
mundo, no entanto esse processo possui suas singularidades segundo o
modelo de capitalismo vigente em cada nação, isto é, apesar de
bilhões de dólares contra 21 bilhões), enquanto 10 anos antes as dotações das duas
administrações eram similares (em torno de 7 bilhões cada uma). A função carcerária
absorve hoje em dia um terço do orçamento da justiça contra um quarto na primeira
metade da década de 80. As somas engolidas pelo país só para a construção de
penitenciárias e cadeias disparam entre 1979 e 1989: mais 612%, ou seja, três vezes o
ritmo de crescimento dos gastos militares em nível nacional, os quais, no entanto,
gozaram de favores absolutamente excepcionais durante as presidências de Reagan e
Bush. A construção de prisões conhece uma explosão tal que vários condados e
estados se vêem às voltas com faltas de fundos para contratar o pessoal necessário
para a abertura dos estabelecimentos que constroem. Foi assim na Carolina do Sul,
em 1996, onde duas penitenciárias de “alta tecnologia” não puderam entrar em
operação por falta de créditos necessários para cobrir suas despesas de
funcionamento; ou em Los Angeles, onde a “casa de detenção do século XXI” ficou
vazia durante um ano depois da construção” (WACQUANT, 203, p. 80‐81).
27 “No ano passado, o dividendo médio das empresas que figuram na lista da Fortune
Magazine era de 75%, praticamente o dobro do índice das empresas listadas no
Standard andPoor’s. Se recuarmos um pouco mais, as cifras de seu desempenho são
decididamente assombrosas: em três anos, as ações de MacAfee Associates (em 15º
lugar em nossa lista), que fabrica softwares antivírus, subiu 1.967%; as dos
computadores Dell (em 47º lugar) aumentaram em 1.912%; e as da Corrections
Corporation ofAmerica (na 67ª posição), que administra prisões privadas, foram
valorizadas em 746%. Isso faz um monte enorme de prata” (FORTUNE MAGAZINE
apud WACQUANT, 2001, p. 92).
102
constatarmos que durante a vigência do regime de acumulação integral
o lumpemproletariado tende a crescer, tal crescimento ocorre de forma
diferenciada, pois nos países de capitalismo imperialista vem ocorrendo
uma expansão do lumpemproletariado enquanto nos países de
capitalismo subordinado tal expansão tende a ocorrer de forma
intensificada. A lumpemproletarização vem acompanhada da luta de
classes que, também, atinge coeficientes diferenciados de uma região
para outra. Acreditamos que esse seja o caso argentino e, também, o
brasileiro. Vejamos o primeiro.
Seguindo as análises de Maristella Svampa (2010), é possível
perceber que durante décadas a Argentina foi dominada por um
modelo de integração nacional‐popular cuja máxima expressão foi a
primeira fase do peronismo (1946‐1955). Esse modelo se constituía por
três grandes características: No plano econômico tal modelo se
caracterizava por uma concepção de desenvolvimento inspirada na
substituição de importações e por uma estratégia voltada para o
desenvolvimento do mercado interno. No plano político o Estado se
apresentava como o agente garantidor da coesão social através dos
gastos públicos sociais. Essa política se traduzia na ampliação da
cidadania burguesa28 através do reconhecimento dos direitos sociais.
Em terceiro lugar, havia uma tendência a promover a homogeneidade
social visível na incorporação de parcela significativa da classe
trabalhadora, assim como na expansão das classes auxiliares da
burguesia29. Em linhas gerais, a Argentina se diferenciava dos demais
países latino‐americanos por possuir um Estado que, dentro das
28 “O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é
aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa etc., paga os
impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral etc. O
cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja,
a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não‐
estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos
direitos do cidadão e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade
burguesa por intermédio do estado” (VIANA, 2003, p. 69).
29 Utilizamos o conceito de classes auxiliares em substituição ao constructo ideológico de
103
limitações típicas de um capitalismo subordinado, conseguia promover
uma maior distribuição de renda e serviços públicos de qualidade para
a maioria da população.
O desmantelamento desse modelo social percorreu diversas etapas,
no entanto não ocorreu de forma linear nem tão pouco numa única
sequência. A substituição da sociedade fordista para uma sociedade de
acumulação integral conheceu diversos momentos.
De maneira esquemática, poderíamos afirmar que as mudanças na ordem
econômica se iniciaram durante a década de 70, a partir da instalação de
regimes militares no cone sul da América Latina; as transformações operadas
na estrutura social começariam a tornar‐se visíveis na década de 80, durante os
primeiros anos de retorno à democracia; por último, podemos situar as
maiores mudanças no final dos anos 80 e princípio dos anos 90, com a gestão
menemista (SVAMPA, 2010, p. 22).
Assim como em vários países da América Latina, a ditadura militar
que chegou ao poder na Argentina no dia 24 de março de 1976 tinha
como principais objetivos programar uma rígida política de repressão,
assim como refundar as bases materiais da sociedade. Por um lado, o
terrorismo de Estado promoveu o extermínio e disciplinamento de
amplos setores sociais mobilizados e, por outro lado, colocou em prática
um programa de reestruturação econômica que produziria profundas
repercussões na estrutura social e produtiva do país. Tais mudanças
estavam assentadas na importação de bens e capitais e na abertura
financeira. Isso implicou uma interrupção na política de substituição de
importações e um grande endividamento dos setores públicos e
privados, visíveis no extraordinário aumento da dívida externa30 que
30 Já há algumas décadas, diversos estudos vêm sendo realizados sobre a dívida externa
dos países da América Latina e vários deles apontam para o seu caráter ilegal. De
acordo com estudos realizados por pesquisadores do Observatório da Dívida na
Globalização (Catalunha, Espanha), “no caso argentino, durante o mandato de Carlos
Ménen (1989‐1999), se ampliou o número de juízes da Corte Suprema de Justiça (o
máximo tribunal de justiça), e o executivo designou, com apoio de um senado
majoritariamente menemista, cortesias a dependentes do regime. Com isso, o governo
de Ménen assegurava a ratificação de todos os seus atos sem que fossem impugnados
por via judicial. Na mesma época se revisou a Constituição Nacional (1994). A
reforma da Carta Magna não só permitiu a reeleição de Ménen, mas, além disso,
facultou o presidente a tomar decisões próprias do Parlamento (delegação do poder
104
passou de 13 milhões para 46 milhões de dólares no período de 1976‐
1983. Dessa forma, a lógica da acumulação imposta pela valorização
financeira sustentou as bases de dominação centradas nos grandes
grupos nacionais e nos capitais transnacionais (SVAMPA, 2010;
BASUALDO, 2002).
Os efeitos dessa reestruturação econômica podem ser percebidos
nas diversas mudanças geradas na estrutura social argentina. Dentre
elas se destaca a enorme transferência da mão‐de‐obra empregada na
indústria para o setor terciário e autônomo, assim como a formação de
uma incipiente mão‐de‐obra marginalizada do mercado de trabalho ‐ o
lumpemproletariado. Além disso, houve uma significativa deterioração
dos salários reais que aliada com a baixa produtividade causou a
contração da demanda interna na qual foi acompanhada por um forte
incremento das disparidades intersetoriais. A distribuição de renda
também sofreu impactos negativos com a eliminação das negociações
coletivas e com a queda salarial. Dessa maneira,
até o final dos anos 80, envolvido em uma série de conflitos econômicos e
institucionais, o país se afundava cada vez mais em uma grave crise
econômica, refletida na importante queda da inversão interna e estrangeira, na
crescente fuga de capitais e no recorde inflacionário, que em 1987 alcançaria
175% e, em 1988, 388% (SVAMPA, 2010, p. 25).
Diante dessa nova realidade, nascia na Argentina da década de 1990
uma sociedade empobrecida e atravessada por um intenso processo de
lumpemproletarização. O país experimentava o declínio estrutural do
modelo nacional‐popular sem contar com nenhuma chave para
reencontrar a integração social de amplos setores populares e médios
empobrecidos31 (KESSLER & MINUJÍN, 1995; KESSLER & DI
legislativo ao poder executivo) [...] Esse foi o marco político que possibilitou que
durante o ‘menemismo’ a dívida externa da Argentina crescera 150% e, em
cumprimento as exigência do FMI, se privatizaram todas as empresas de serviços
públicos e as que controlavam os recursos estratégicos do país” (RAMOS, 2006, p. 32‐
33).
31“Uma das conseqüências de grande peso econômico e sócio‐culturais mais inesperadas
que os setores médios têm sofrido na Argentina foi a de dar origem a um tipo de
pobreza com traços particulares, uma vez iniciado o intenso processo de
empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e 1990
os trabalhadores em seu conjunto perderam em torno de 40% do valor de suas
105
VIRGILIO, 2008). No entanto, as conseqüências mais drásticas estavam
por vir, visto que a consolidação da nova ordem neoliberal argentina
ocorreria durante os governos de Carlos Menen.
Recém saída de uma ditadura militar, a Argentina se encontrava
extremamente endividada e presa a um modelo de governabilidade
corporativo, autoritário e corrupto. A partir de 1992, com Carlos Menen
no poder, inicia‐se um período de neoliberalização da economia com
vistas a obter auxílio dos Estados Unidos, assim como recuperar sua
credibilidade perante a comunidade internacional. Para isso, Menen
promoveu uma abertura comercial aos fluxos de capital externo,
garantiu maior flexibilidade nos mercados de trabalho, reformou a
legislação trabalhista, realizou uma ampla reforma tributária,
privatizou empresas estatais, equiparou o peso ao dólar com o objetivo
de combater a inflação e garantir segurança aos investimentos
estrangeiros.
Uma das principais consequências da neoliberalização da economia
argentina, sem sombra de dúvidas, foi a geração de milhares de postos
de trabalho precarizados, subempregos, empregos temporários e
milhões de desempregados. O índice de desemprego que na década de
1980 variava entre 4% e 6%, nos primeiros anos da década de 1990
chegam a 18,4%. Apesar da singela recuperação no final dessa década,
tais índices voltam a crescer de forma assustadora a partir de 2001:
dependendo da região, o índice de desemprego chegou a atingir a cifra
de 50% da população economicamente ativa (VITULLO, 2008;
SVAMPA, 2010).
A intensidade com que a pobreza foi atingindo amplos setores da
classe trabalhadora foi proporcionalmente acompanhada pela
intensidade das tensões sociais derivadas de tal pobreza, pois para
amplos setores da classe trabalhadora argentina, o processo de
privatização representou o fim de uma estabilidade no emprego e o
início de um caminho, muitas vezes sem volta, ao desemprego e à vida
rendas, e logo após certa recuperação em 1991 devido à estabilidade, voltaram a
perder em torno de 20% entre 1998 e 2001, com importantes oscilações até hoje. A
profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970 fizeram
com que milhares de famílias de classe média e de pobres de longa data, que no
passado conseguiam escapar da miséria, visualizassem suas rendas declinar abaixo
da “linha de pobreza” (KESSLER & DI VIRGILIO, 2008, p. 32).
106
lumpemproletária. A resposta popular a essa condição não tardou a
aparecer, pois a história argentina conheceria novas ondas de protestos
sociais e um novo sujeito histórico, formado essencialmente pelo
lumpemproletariado: o movimento piqueteiro.
A emergência do movimento piqueteiro está diretamente
relacionada com o amplo processo de privatização neoliberal,
principalmente com a privatização da empresa estatal petrolífera YPF
(Yacimientos Petrolíferos Fiscales), localizada nas províncias
patagônicas de Neuquén, especificamente em Cutral‐Có e Plaza
Huincul, entre os anos de 1991 e 1993. Logo após a privatização dessa
empresa, milhares de trabalhadores foram demitidos. No primeiro
momento buscaram sobreviver como autônomos e “micro‐empresários”
que prestavam pequenos serviços para a petrolífera, no entanto essas
tentativas resultaram em verdadeiros fracassos32 e esses ex‐
trabalhadores passaram a se encontrar isolados frente á frente com o
desemprego aberto e sem nenhuma possibilidade de sustentarem a si
mesmo e os seus familiares. Foi a partir daí que em junho de 1997 um
grupo de desempregados convocaram seus familiares, vizinhos e vários
outros setores sociais locais para bloquear a estrada nacional 22, “artéria
chave na economia da região” (VITULLO, 2008; SVAMPA & PEREYRA,
2009; ALVAREZ, 2009).
Daí por diante, várias outras regiões afetadas pelos ajustes
neoliberais conheceriam manifestações de desempregados e de diversos
grupos de trabalhadores precarizados que passaram a adotar a
estratégia dos piquetes e cortes de estradas como forma principal de
protestos que se espalharam por diversas regiões da Argentina: General
Mosconi e Tartagal (Salta), Libertador General San Martín (Jujuy), Cruz
32 Um conjunto de obstáculos e dificuldades possibilitou que a maior parte dessas
experiências resultasse em fracasso. Svampa e Pereyra apresentam alguns desses
obstáculos: “Por causa da ausência de uma verdadeira política de recursos humanos,
muitas das empresas naufragaram rapidamente, atravessadas por dificuldades
ligadas ao reconhecimento da autoridade, à tomada de decisões, a escassa capacidade
negociadora, a impossibilidade de obter contratos por causa do não cumprimento
com obrigações impositivas, a carência de edifício próprio e a impossibilidade de
acesso ao crédito, por falta de garantias de pagamento ou hipoteca; por último, pelos
problemas associados ao elevado nível de endividamento” (2009, p. 109).
107
Del Eje (Córdoba), Capitan Bermúdez (Santa Fe), Buenos Aires e
Conurbano Bonaerense e outras regiões mais.
É no ano de 2000 que a prática piqueteira atinge o Conurbano
Bonaerense, alcançando um caráter nacional e permanente, deixando de
ser um fenômeno localizado e fragmentado e tornando‐se uma prática
de resistência aos ditames neoliberais com caráter nacional.
Em resposta à intensa lumpemproletarização de diversas regiões do
conurbano, a prática dos piquetes e cortes de ruas/estradas se
generalizam e se prolongam por semanas em vários municípios em
torno de Buenos Aires. Com isso o governo De La Rua se vê obrigado a
reconhecer esse movimento e iniciar negociações que apontem para a
solução do desemprego em massa. Concomitante a esses cortes de ruas
locais, se espalham, no mesmo período, cortes de estradas por todo o
país. A repressão se intensifica e a reação popular cresce
assustadoramente após o assassinato de alguns militantes piqueteiros (o
assassinato de Aníbal Verón, Maximiliano Kosteki e Darío Santillán são
casos exemplares). De acordo com Vitullo,
segundo um estudo realizado pela consultora Centro de Estudios Nueva
Mayoría(2004a) divulgado pelo Jornal La Nacion, os cortes de estradas
realizados em todo o território nacional foram 140 em 1997, 51 em 1998, 252 em
1999, 514 em 2000, 1383 em 2001 e 2336 em 2002 (o que representa uma média
superior aos 6 bloqueios diários, sendo este o ano recorde em matéria de
cortes) e, em 2003, verificaram‐se 1278 interrupções à circulação de veículos e
mercadorias” (2008, p. 115).
Nesse período, insurge um ciclo ascendente de lutas sociais e de
enfrentamento popular contra as forças policiais que tomará conta da
cena política e social argentina até aproximadamente o ano de 2003,
período em que as lutas sociais iniciam seu refluxo. Em diversos
períodos a tensão social adquire elevado grau de radicalidade e,
consequentemente, a repressão do “Estado penal” tendeu a ampliar‐se a
ponto de iniciar um verdadeiro processo de criminalização do protesto
social (WACQUANT, 2001; KOROL, 2009).
Esse novo ator social, composto majoritariamente pelo
lumpemproletariado, denominado de movimento piqueteiro, assim
como a dinâmica de suas lutas firmadas na ação coletiva, na
organização solidária, com tomadas de decisões pautadas em
108
assembleias horizontais e adotando o corte de ruas e estradas como
principal ferramenta de luta, possui de acordo com vários autores uma
dupla filiação. Portanto, para que se compreenda a emergência e
desenvolvimento do movimento piqueteiro torna‐se necessário
apresentar essa dupla filiação.
Uma das principais e mais complexa obra sobre o assunto,
elaborada por Maristella Svampa e Sebastián Pereyra e denominada
Entre la ruta y El barrio – La experiencia de las organizaciones piqueteras
(2009) afirma que
não é possível compreender a gênese nem o posterior desenvolvimento do
movimento piqueteiro se não estabelecermos sua dupla filiação: por um lado, a
vertente que apresenta a brusca separação dos marcos sociais e trabalhistas que
configuraram a vida cotidiana de gerações e povos inteiros; separação violenta
que, no limite, revela tanto uma relação mais próxima com o mundo do
trabalho formal, como reflete a opção por um tipo de ação sindical não‐
institucionalizada; ligado a um modelo de ação confrontativo; por outro lado, a
vertente que assinala a importância da matriz especificamente territorial da
ação coletiva, e que da conta tanto de uma distância maior com o mundo do
trabalho formal como, no extremo, da continuidade de uma relação mais
pragmática com os poderes públicos, na luta nada fácil pela sobrevivência (p.
20).
A primeira filiação está intimamente relacionada com as
consequências sociais que as reformas e “ajustes” neoliberais
provocaram no mundo do trabalho a partir da implementação de um
novo projeto econômico orientado para a eliminação de déficits fiscais,
nova regulamentação dos mercados e privatização acelerada de
empresas públicas. Juntamente com esses ajustes foi aprovado o Plano
de Convertibilidade de 1991 que estabelecia a paridade entre o peso e o
dólar, reduzindo as tarifas alfandegárias, liberação do comércio exterior
e aumentando a pressão fiscal. Os principais mecanismos de controle do
Estado foram suprimidos a favor das regras do mercado.
As consequências sociais foram drásticas, pois a queda na qualidade
dos serviços públicos foi extrema, milhares de pequenos investimentos
se viram falidos, milhares de lumpemproletários que além de perderem
seus salários, perderam o seguro‐desemprego e se encontravam
extremamente endividados. Nesse novo contexto, as mudanças no
mundo do trabalho modificaram‐se bruscamente, pois
109
o processo privatizador deixou uma importante quantidade de trabalhadores
desempregados com diferentes trajetórias ocupacionais. No caso dos
trabalhadores empregados se modificaram as condições de contrato de
trabalho, de uma situação de quase garantia de estabilidade no emprego se
passa a uma situação de incerteza e precarização das condições de trabalho e
possibilidades de associação sindical (BONIFACIO, 2011, p. 73).
Como foi dito anteriormente, o impacto mais extremo dessas
reformas veio em consequência da privatização de uma das empresas
públicas mais lucrativas e estratégicas da Argentina, a YPF. Vale
lembrar que a YPF consistia em uma das maiores empresas estatais
argentina e seus trabalhadores formavam uma espécie de “aristocracia
operária” visto que possuíam uma ampla gama de garantias e direitos
sociais (saúde, moradia, educação para os filhos, creches, espaços
recreativos etc.) oferecidos pelo Estado social argentino, usufruíam de
estabilidade no emprego e de excelentes salários. Com a privatização da
empresa no ano de 1993‐1995, em pouco tempo todas essas garantias
desapareceram e o processo de intensificação da lumpemproletarização
insurgiu:
a empresa, que em 1990 contava com 51 mil empregados, logo após um
acelerado processo de reestruturação, que inclui demissões voluntárias e
arbitrárias, passou a ter 5.600 trabalhadores. As baixas contabilizadas de 1990 e
1997 foram as seguintes: para a região saltenha, 3.400; na região neuquina,
4.246; no vale austral, 1.660; em Comodoro Rivadavia, 4.402 e, finalmente, em
Santa Fe (San Lorenzo), 1.177. Enfim, a reorganização do trabalho esteve
marcada por uma forte flexibilização que incluiu a descentralização e
desregulação dos setores, a redução sistemática de pessoal, a limitação no
pagamento das horas‐extras, a intensificação do tempo de trabalho e a
incorporação de novas tecnologias (ROFMAN apud SVAMPA & PEREYRA,
2009, p. 107).
É nesse contexto que nasce na Argentina o movimento piqueteiro
que, em resposta aos efeitos desintegradores das políticas neoliberais e
seus ajustes estruturais, busco uauto‐organizar e mobilizar o
lumpemproletariado composto por desempregados e outros setores
empobrecidos da sociedade. O movimento piqueteiro adquiriu um
caráter de protagonista nas manifestações contra o neoliberalismo
argentino e seus métodos de resistência popular ocuparam um lugar
110
destacado na política nacional. Os explosivos cortes de estradas e as
enérgicas puebladas de Neuquém, Salta e Jujuy entre 1996 e 1997
representam o ponto inicial no qual uma nova identidade – os piqueteiros –
um novo formato de protesto ‐ o corte de estrada ‐, uma nova modalidade
organizativa – a assembléia – e um novo tipo de demanda – o trabalho – ficam
definitivamente associados, originando uma importante transformação nos
repertórios de mobilização da sociedade argentina (SVAMPA & PEREYRA,
2009, p. 25).
A segunda filiação do movimento piqueteiro é marcada por uma
modalidade de ação coletiva de caráter territorial, pois diferentemente
das manifestações ocorridas nas longínquas províncias patagônicas que
sofreram com as privatizações das empresas estatais, os protestos que
ocorreram na região do Conurbano Bonaerense remete a um longo
processo econômico e social ligado à redução da produção industrial
local e deterioração crescente das condições de vida das classes
exploradas e setores das classes auxiliares, iniciados ainda na década de
1970. O processo de redução da produção industrial na região afetou
uma parcela importante dos setores assalariados. De acordo com os
dados para a região da Grande Buenos Aires, entre 1980 e 1990 o
desemprego aumentou de 2,3 a 6%, a subocupação duplicou, passando
de 4,5 a 8,1% da população economicamente ativa. O emprego informal
que era de 42,1% em 1980 foi para 48,5% em 1991 e terminou por
adquirir características próprias de outros países latino‐americanos
(SVAMPA & PEREYRA, 2009).
As ocupações ilegais de terra na região do Conurbano Bonaerense
são reveladoras do processo de pauperização social que atinge a região
desde o período da ditadura militar. Esse processo de ocupação de
terras às margens dos grandes centros urbanos argentinos foi, muitas
vezes, resultado de uma ampla organização territorial que contaram
com o apoio de organizações eclesiásticas de base e organização de
direitos humanos. De acordo com as análises de Merklen (2005), os
assentamentos de terras demonstram a emergência de uma nova
configuração social que manifesta o processo de inscrição territorial das
classes populares, relacionada com a luta pela sobrevivência e pelos
serviços públicos básicos. Por conseguinte,
111
tais ações foram construindo um novo marco e, por sua vez, um emaranhado
relacional próprio cada vez mais desvinculado do mundo do trabalho formal.
Uma das principais consequências dessa inscrição territorial é que o bairro foi
surgindo como espaço natural de ação e organização, e se converteu em um
lugar de interação entre diferentes atores sociais reunidos em refeitórios, posto
de saúde, organizações de base, formais e informais, comunidades eclesiásticas
de base, em alguns casos apoiadas por organizações não‐governamentais.
Enfim, o surgimento de novos espaços organizativos dentro do bairro
conheceu um novo impulso, ainda que fugaz, durante os dois episódios
hiperinflacionários de 1989 e 1990, visíveis na proliferação de refeitórios
populares (SVAMPA, 2005, p. 106).
Entre 1990 e 1998 sucessivas ondas de deslocamentos das indústrias
atingiram a região do Conurbano Bonaerense como resultado das
privatizações e ajustes neoliberais. Consequentemente, ocorreu um
acelerado processo de expulsão do mercado de trabalho acompanhado
de uma maior instabilidade no emprego. Vale lembrar que boa parte
dos sindicatos argentinos foram cooptados e aceitaram prontamente
esse conjunto de reformas e ajustes neoliberais. Dessa maneira, parcela
significativa dos trabalhadores do conurbano passou a se sentir
completamente desorientados politicamente. No entanto, as
consequências políticas e sociais para as instituições burocráticas e
clientelistas do Partido Justicialista também foram enormes, assim como
o debilitamento do peronismo no mundo popular.
Diante da ausência de respostas efetivas do poder público e das
suas instituições para os problemas sociais que afetavam o
lumpemproletariado da região, emergiram organizações populares nos
bairros que passaram a se organizar por fora das estruturas
burocráticas, tais como partidos políticos e sindicatos. É nesse contexto
que emerge as organizações de desempregados e um novo modelo de
militância territorial na região do conurbano. Portanto, entre 1990 e
1995 alguns bairros começaram a se organizar para reclamar das tarifas
dos serviços públicos privatizados. Em 1995 surge a primeira comissão
de desempregados no município de La Matanza, porém somente em
1996 inicia as primeiras manifestações exigindo auxílio à alimentação.
Tais manifestações ocorrem em maio de 1996 quando vários
vizinhos dos bairros María Elena e Villa Unión realizam uma
manifestação na Praça São Justo com uma importante participação
feminina. Logo em seguida, no dia 06 de setembro de 1996 se realiza
112
uma importante “Marcha contra a fome, a repressão e o desemprego”
até a Praça de Maio, que reuniu aproximadamente duas mil pessoas. A
marcha foi um pontapé inicial para a emergência de diversas
organizações de desempregados em vários municípios do conurbano
(SVAMPA & PEREYRA, 2009).
La Matanza é um município vizinho à capital da República, com
aproximadamente 1.500.000 habitantes, população que supera de longe
à de 18 das 23 províncias argentinas (ISMAN, 2004). Trata‐se de um
enorme aglomerado urbano com grande quantidade da população
vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo o Jornal Clarin de 22 de
outubro de 2001:
La Matanza é um dos maiores e mais difíceis municípios do conurbano
bonaerense: calcula‐se que o 50% de seu um milhão e meio de habitantes vive
abaixo da linha da pobreza e que o índice de desemprego chega a 30%. Viver,
nesse contexto, se torna mais complicado a cada dia. As pessoas não têm
dinheiro, não tem teto seguro, não tem comida, não tem roupa, não tem
remédios. E não tem esperança (Apud ISMAN, 2004, p. 18).
As condições de deterioração pelas quais vem sofrendo o município
de La Matanza se inicia em 1976 com o golpe militar e vêm se
ampliando continuamente até atingir sua fase mais acentuada durante o
período menemista (1989‐1999). As ocupações ilegais de terra na região
do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de
pauperização social que atinge a região desde o período da ditadura
militar.
Durante o período marcado pela substituição de importações, o
setor fabril carregava consigo o restante das atividades econômicas em
termos de produção e gerava diversos postos de trabalho, porém nos
anos noventa o coeficiente de empregabilidade se encontrava na ordem
de ‐3,7% e demonstrava que o setor industrial foi o grande responsável
pela expulsão da mão‐de‐obra na região (BASUALDO, 2002; BARRERA
& LÓPEZ, 2010). Nesse contexto, La Matanza deixou de ser um dos
grandes pólos industriais do conurbano para se converter numa região
que apresenta altos índices sociais negativos. E essa realidade não era
exclusividade desse município, pois diversas outras regiões do país
também passaram a experimentar um intenso processo de
lumpemproletarização.
113
De acordo com uma nota de Ismael Bermudez, contida no jornal
Clarin de 19 de setembro de 2001, exemplifica a situação geral do
Conurbano Bonaerense:
O desemprego cresceu quatro vezes mais (subiu de 5,7% para 22,9%) e entre os
chefes de família se multiplicou por cinco (de 3,3% a 17,2%). Como resultado
direto dessa situação, nesses municípios quase 40% das residências é formada
por pessoas que recebe apenas 20% da renda da região. Isso explica a razão
pela qual a pobreza atinge quase 50% da população, o que significa que seus
habitantes ou famílias da região não possuem renda suficiente para custear as
compras dos bens e serviços básicos (Apud ISMAN, 2004, p. 17).
Contra essa situação de desemprego, condições de vida precária e
inexistência de serviços públicos básicos de qualidade (creches, escolas,
postos de saúde, moradia, asfalto, rede de esgotos etc.), ou seja, por
conta desse completo quadro de abandono gerado pelo descaso dos
poderes públicos (municipal, estadual e federal) é que nascem, na
região de La Matanza, diversas organizações de bairros que darão início
a uma onda de protestos sociais que resultara em 1995 nas primeiras
tentativas de organização do lumpemproletariado na região. É nesse
contexto que emerge as organizações lumpemproletárias e um novo
modelo de militância territorial na região do conurbano.
O que vem ocorrendo na Argentina da década de 1990 é parte do
que já vinha acontecendo em quase toda a sociedade moderna a partir
da década de 1980, isto é, a sociedade moderna passa a sofrer
importantes transformações nas suas formas de valorização do capital
(toyotismo), assim como nas suas formas de regularização das relações
sociais garantidoras do mesmo. A principal forma regularizadora
dessas relações consiste no Estado Neoliberal. Esse emerge com o
objetivo de proporcionar melhores condições para a acumulação
capitalista através de novas regulamentações do mercado, do
“afastamento” do Estado das obrigações sociais (saúde, educação,
segurança, emprego etc.) e de sua transferência para a iniciativa privada
via privatização dessas obrigações e de alguns setores estratégicos antes
sob o controle estatal (energia, água, gás, petróleo, transportes coletivos,
telefonia etc.).
Juntamente com a emergência de um movimento lumpemproletário
que passou a construir estratégias de enfrentamento ao processo de
lumpemproletarização e empobrecimento generalizado, e que
114
dificultaram a expansão das conquistas necessárias à acumulação
integral, emergiu também a face mais autoritária e repressiva do Estado
Neoliberal que, juntamente com ocapital comunicacional33,
transformaram a luta pelos direitos sociais em delitos contra a ordem e
os manifestantes como delinqüentes dignos de serem aprisionados ou
quando não executados sumariamente pelo Estado Penal, como ocorreu
e ainda ocorre nos diversos casos de “gatilho fácil”34.
A análise que Wacquant vem realizando em suas diversas obras
sobre o Estado Penal e seu processo de criminalização do
lumpemproletariado e de diversos movimentos sociais (tanto nos EUA,
quanto na Europa) também serve para compreender a realidade
Argentina, pois em todos os rincões em que o neoliberalismo se
implantou enquanto forma estatal, se implantaram também suas faces
penais da pobreza e do protesto social: criminalização, aprisionamento
e extermínio. Segundo ele,
mais do que mera medida repressiva, a criminalização dos que defendem os
direitos sociais e econômicos integra uma agenda política mais ampla, que tem
levado à criação de um novo regime que pode ser caracterizado como “liberal‐
paternalismo”. Ele é liberal no topo, para com o capital e as classes
privilegiadas, produzindo o aumento da desigualdade social e da
marginalidade; e paternalista e punitivo na base, para com aqueles já
desestabilizados seja pela conjunção da reestruturação do emprego com o
enfraquecimento da proteção do Estado de bem‐estar social, seja pela
reconversão de ambos em instrumentos para vigiar os pobres (WACQUANT,
2008, p. 94).
O processo de criminalização do lumpemproletariado e de outras
classes sociais afetadas pelo neoliberalismo inicia aproximadamente no
33 Para maiores informações sobre o conceito de capital comunicacional ver (VIANA,
2007b).
34“Gatilho Fácil é o nome utilizado na Argentina para denominar os episódios de abuso
de poder no uso de armas de fogo por parte da polícia. Em geral, as vítimas de gatilho
fácil são, sobretudo, jovens militantes dos bairros pobres, vítimas de processos de
disciplinamento compulsivo realizados pelas forças policiais. A Correpi
(Coordenadoria contra a repressão policial e institucional) tipifica esses métodos
como execução sumária aplicada pela polícia e que geralmente são acobertas sob a
alegação de mortes oriundas do enfrentamento. Esta pena de morte ‘extralegal’ se
distingue por duas etapas: o fuzilamento e o acobertamento (KOROL & LONGO,
2009, p. 106).
115
ano de 1993 quando a Argentina foi tomada por distintas manifestações
populares contra os ajustes neoliberais, nas principais cidades do país.
Em diferentes momentos tais manifestações atingiram níveis de
enfrentamento e violência que assustaram os poderes estabelecidos que,
em resposta, procuraram ampliar a repressão policial e a criminalização
dos militantes dos mais variados movimentos sociais.
Nos dias 16 e 17 de dezembro de 1993 ocorre em Santiago del Estero
o que ficou conhecido como “El Santiagazo”. A pueblada, como
também ficou conhecida as grandes manifestações populares, foi
iniciada por trabalhadores estatais demitidos ou que tiveram seu
salários reduzidos e atrasados por vários meses. Seus participantes
invadiram e incendiaram simultaneamente inúmeros prédios dos
poderes legislativo, judiciário, executivo e vários outros edifícios
públicos, assim como algumas residências de políticos e sindicalistas
locais. Na noite do dia 16, o governador Juárez foi destituído e o
Congresso Nacional realizou uma intervenção nos três poderes
provinciais após aprovar um projeto do poder executivo que autorizava
o envio de tropas do exército e da Gendarmeria para a província de
Santiago del Estero (KOROL & LONGO, 2009). Segundo Vitullo, foi
nesse dia que a pueblada experimentou elevado nível de conflitividade,
pois
os choques entre as forças repressivas e os manifestantes deixaram um saldo
de quatro mortos e mais de cem feridos e uma forte impressão no restante da
sociedade argentina, que, através da televisão, assistia azoada a estes fatos.
Além deste saldo e como consequência da mobilização popular, o justicialista
Fernando Lobo, governador da província em substituição de Carlos Mijuca –
quem tinha deixado o cargo escassos 50 dias antes sem sequer alcançar metade
do seu mandato devido a uma forte crise política, também viu‐se obrigado a
renunciar, o que acabou precipitando o já assinalado processo de intervenção
federal à província (VITULLO, 2008, p. 112).
Após o Santiagazo começaram a explodir em diversas localidades
do país vários protestos sociais que passaram a desenvolver formas de
mobilização popular pautadas pela ação direta. A somatória dos
protestos e tensões sociais que assolavam todo o país desde a sua fase
mais aguda entre os anos de 1996 e 1997, explode nos dias 19 e 20 de
dezembro de 2001 na grande rebelião generalizada.
116
Por todo o país eclodiam tensões sociais, movimento de
desempregados, mulheres agropecuaristas em luta, greves de
professores, ocupação de fábricas e vários outros setores sociais em luta
contra aquilo que era considerado por eles os responsáveis por toda a
gama de dificuldades, lumpemproletarização e empobrecimento e
diversas outras humilhações sociais. Dentre os eleitos responsáveis
destacam‐se: os governantes, os partidos políticos, o próprio Estado, a
burocracia estatal, partidária e sindical, suas hierarquias, o sistema
financeiro nacional e internacional, o FMI e o Banco Mundial e, para os
setores mais radicalizados, todas as relações sociais pautadas pela
obrigatoriedade capitalista da exploração do homem em troca da
obtenção de lucros. Por essas razões o lema central dessas jornadas foi
expresso na frase “Que se vayan todos, que no quede ni uno solo!” 35.
Cont.O caráter massivo dos protestos sociais promovido pelos
diversos movimentos piqueteiros argentinos, juntamente com seus
métodos de bloqueios de estradas que impossibilitava a circulação de
veículos, pessoas e, principalmente mercadorias, assim como a
construção de formas de participação e decisões políticas pautadas por
uma espécie de democracia direta, decisões coletivas e horizontais em
assembléias etc. consistiram nas principais razões que levaram os
poderes governamentais a temerem a expansão dessas formas de
organização e da consciência de classe derivada das mesmas.
Por esses motivos é que desde o início dos primeiros levantes de
desempregados, o governo argentino procurou criminalizar as lutas
sociais. No primeiro momento com a ampliação da repressão policial – o
deslocamento da Gendarmería (tropas militares), que originalmente foi
criada para defender as fronteiras nacionais, para as províncias
patagônicas tomadas pelas puebladas é um sinal demonstrativo da
mudança na política repressiva. Com o avanço das lutas e das
mobilizações populares o governo inicia um intenso processo de
judicialização dos militantes de diversos movimentos sociais,
principalmente dos integrantes de movimentos piquteros. Segundo
Korol& Longo,
35 “Que todos vão embora, que não fique nenhum sequer” (tradução nossa).
117
algumas das formas em que se manifesta a criminalização dos movimentos
populares é o avanço do processo de judicialização dos conflitos, visível na
multiplicação e no agravamento das figuras penais, na maneira em que estas
são aplicadas por juízes e promotores, no número de processos contra
militantes populares, na estigmatização de populações e grupos mobilizados,
no incremento das forças repressivas e na criação especial de tropas de elite,
orientadas para a repressão e militarização das zonas de conflito (2009, p. 84).
Outra estratégia adotada pelo governo argentino para criminalizar o
movimento piqueteiro se deu através do uso excessivo do capital
comunicacional com o objetivo de criar uma imagem negativa dos
militantes. Dessa forma, o capital comunicacional apresentava os
manifestos por direitos sociais como delitos contra a ordem e os
manifestantes como delinquentes violentos, assim como ocultando as
motivações populares e apresentando apenas os episódios de violência
popular, com isso gerando o medo, fragmentando a sociedade e
impossibilitando o crescimento do apoio às lutas por direitos sociais36.
O regime de acumulação integral é marcado por contradições
crescentes, pois se de um lado é necessário, para manter a acumulação
capitalista, realizar cortes drásticos em políticas sociais, corroer os
direitos trabalhistas, precarizar e intensificar as relações de trabalho,
expandir e intensificar a lumpemproletarização para alimentar o
exército industrial de reserva e seu papel na manutenção de baixos
salários e etc., por outro lado ela se vê obrigada a intensificar a
repressão, pois, em consequência de tais práticas, cresce a violência
contra a propriedade privada, os protestos sociais se radicalizam e a
criminalidade tende a se generalizar. No entanto, o Estado neoliberal
não pode ser mantido às custas da não redução da dívida pública e da
poupança de recursos, e por isso tal Estado opta por ampliar o aparato
repressivo e criminalizar o movimento piqueteiro e diversos outros
movimentos sociais. É exatamente isso que vem ocorrendo na
Argentina contemporânea e em diversas outras regiões do globo.
36 Para saber mais sobre o processo de criminalização da pobreza e dos movimentos
sociais na Argentina Cf. KOROL, Claudia (org.). Criminalización de la pobreza y de La
protesta social. Buenos Aires: El coletivo/America libre, 2009); CARDOZO, Fernanda.
“Protestar não é delito”. A criminalização dos movimentos sociais na Argentina
contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997‐2007). 2008. Dissertação (mestrado
em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 130 p.
118
O movimento piqueteiro nos fornece um excelente exemplo de que
a postura política do lumpemproletariado não é a mesma em todos os
contextos históricos, pois se na França do século XIX, o
lumpemproletariado foi cooptado pelo Estado francês e utilizado na
repressão contra o avanço das lutas operárias, na argentina
contemporânea, as lutas dessa classe social desenvolveu‐se de forma
autônoma, inicialmente desvinculada das instituições burocráticas, tais
como sindicatos e partidos políticos, resgatando práticas do movimento
operário revolucionário (assembleias coletivas e horizontalizadas, auto‐
organização dos bairros e de algumas atividades produtivas etc.) e
adquirindo elevados níveis de radicalidade, que o tornou o principal
ator em luta contra a intensificação da lumpemproletarização, típica da
acumulação integral subordinada.
Portanto, não é possível afirmar que o lumpemproletariado é, e
sempre será politicamente reacionário e cooptável, pois sua postura
política se altera dependendo do contexto, das singularidades regionais
e da correlação das forças sociais, podendo a representar uma
importantíssima aliança com o proletariado em torno de um bloco
revolucionário. Na contemporaneidade, a postura contestadora do
lumpemproletariado tende a crescer e, consequentemente, a se
apresentar como uma ameaça cada vez maior à existência da sociedade
capitalista.
O processo de lumpemproletarização, respeitando as
particularidades nacionais, atinge com maior ou menor intensidade
todo o mundo, pois como foi dito nesse trabalho, a
lumpemproletarização é um processo inerente à dinâmica de produção
capitalista. Constata‐se que esse processo tende a se expandir na
contemporaneidade. Apenas para reforçar essa tese, gostaríamos de
mencionar o processo de universalização da lumpemproletarização,
demonstrando‐o, rapidamente, em outras regiões: México, Suécia e
China.
Em linhas gerais, o processo de lumpemproletarização no México se
assemelha ao ocorrido em outras nações de capitalismo subordinado,
tal como no Brasil e Argentina. O processo de privatização realizou,
entre os anos de 1988 e 1994, a demissão de metade dos trabalhadores
dos setores públicos. Visando regularizar a estrutura social segundo os
interesses da acumulação integral, diversas alterações foram realizadas
119
na Constituição promulgada pela Revolução Mexicana de 1917. Dentre
elas, a que mais serve aos nossos propósitos, foi a alteração realizada no
ano de 1991 que aprovou a lei de reforma que autorizava e estimulava
a privatização de terras sob o sistema ejido (terra de uso e posse
coletiva). Desprotegidos, milhares de indígenas passaram a perder a
base de sua segurança coletiva, antes garantida pelo sistema ejido, e
migraram para as principais cidades mexicanas, expandindo, dessa
forma, o exército industrial de reserva composto pelo
lumpemproletariado (HARVEY, 2008a).
Mesmo a Suécia, país de capitalismo imperialista com uma forte
política de “bem‐estar social”, não esteve isenta de sofrer o processo de
lumpemproletarização. Com o objetivo de combater a tendência
declinante da taxa de juros, a partir da década de 1970, diversas
medidas adotadas demonstravam que as preocupações sociais haviam
se transferido para as preocupações financeiras. O pleno emprego foi
substituído pelo combate à inflação. Segundo Harvey (2008a), “o
colapso da bolha especulativa nos preços dos ativos que se seguiu ao
aumento dos preços do petróleo de 1991 levou à fuga de capitais e a
falências internas que custaram muito ao governo sueco” (p. 124).
Seguindo, quase irrestritamente, a cartilha neoliberal, a Suécia sofreu
uma forte depressão que resultou no aumento dobrado das taxas de
desemprego em apenas dois anos.
Desde o final da década de 1970 e início da década de 1980 a China
vem passando por uma série de reformas econômicas que visavam o
estabelecimento de forças de mercado em sua economia, bem como
estimular a competição entre as empresas estatais a fim de promover a
inovação e o crescimento. Além disso, e
para complementar esse esforço, também se promoveu a abertura da China,
ainda que sob a estrita supervisão do Estado, ao comércio e ao investimento
externos, acabando‐se assim com o isolamento chinês do mercado mundial
(HARVEY, 2008a, p. 132).
Diversas medidas internas foram tomadas para assegurar o sucesso
dessas reformas. Dentre elas, destacaremos as mudanças ocorridas nas
comunas agrícolas. De acordo com Harvey (2008a), estabeleceu‐se na
China uma economia de mercado mais aberta em volta das principais
Empresas de Propriedade do Estado (EPEs), através da dissolução das
120
comunas agrícolas em favor de um sistema de “responsabilidade social”
individualizado, no qual, inicialmente, era permitido aos camponeses
vender os excedentes no mercado livre ao invés de serem tabelados pelo
Estado. No entanto, no final da década de 1980, todas as comunas
haviam sido completamente dissolvidas.
Apesar de não serem proprietários formais das terras, os
camponeses podiam arrendá‐las, pagar outros trabalhadores para
produzir na terra e vender seus produtos a preço de mercado etc.. Entre
1978 e 1984, as rendas rurais se elevaram e atingiram um espantoso
crescimento de 14% ao ano, porém a partir de 1984 esse crescimento
começa a cair até atingir uma estagnação completa, principalmente a
partir de 1995, em quase todas as áreas de produção. Juntamente com o
declínio das rendas rurais, os camponeses perderam diversos direitos
sociais.
A disparidade entre rendas rurais e rendas urbanas aumentou
acentuadamente. Estas, que eram em média 80 dólares anuais em 1985,
dispararam para 1.000 em 2004, ao passo que aquelas passaram de mais ou
menos 50 dólares para cerca de 300 nesse mesmo período. Além disso, a perda
de direitos sociais coletivos antes estabelecidos no âmbito das comunas – por
poucas que pudessem ter sido – implicara para os camponeses o ônus de pagar
altas taxas de uso por escolas, assistência médica etc. Não era isso o que
acontecia com boa parte dos residentes urbanos permanentes, que também
foram favorecidos a partir de 1995, quando uma lei de propriedade imobiliária
urbana assegurou o direito de propriedade de imóveis a residentes urbanos,
que puderam então especular com os preços daqueles. A diferença entre os
ambientes rural e urbano quanto a nível de renda real é hoje, segundo algumas
estimativas, maior de que em qualquer outro país do mundo (HARVEY, 2008a,
p. 137).
Não é difícil imaginar, devido às proporções gigantescas do
contingente populacional rural chinês, o tamanho do êxodo rural
experimentado no país a partir da década de 1990 e, consequentemente,
a expansão do processo de lumpemproletarização nas principais
cidades do país. No ano de 2005, a China experimentava o maior
processo de migração em massa já ocorrido em todo o mundo e que já
ultrapassa ilimitadamente as migrações ocorridas para a América e para
todo mundo ocidental moderno.
121
Segundo estatísticas oficiais, há “114 milhões de trabalhadores migrantes que
deixaram áreas rurais, temporariamente, ou para sempre, a fim de trabalhar
nas cidades”, e especialistas do governo “prevêem que esse número vai se
elevar a 300 milhões até 2020, e até mesmo a 500 milhões. Só Xangai “tem 3
milhões de trabalhadores migrantes; em comparação, considera‐se que toda a
migração irlandesa para a América entre 1820 e 1930 envolveu talvez 4,5
milhões de pessoas” (HARVEY, 2008a, p. 138).
Esse processo de migração em massa formou um
lumpemproletariado colossal e, por conseguinte, possibilitou uma
superexploração da mão‐de‐obra nas cidades. O maior exemplo dessa
relação entre lumpemproletariado colossal e superexploração da mão‐
de‐obra se revela nos abundantes casos de trabalho escravo no país37.
37 “Na China, as condições em que trabalham jovens mulheres que migraram das áreas
rurais não são menos que horrendas: ‘um número insuportavelmente longo de horas
de trabalho, comida bem ruim, dormitórios apertados, gerentes sádicos que as
espancam e se aproveitam sexualmente delas e o pagamento que só vem meses
depois, quando vem’” (HARVEY, 2008a, p. 182).
122
LUMPEMPROLETARIZAÇÃO NA ERA DA ACUMULAÇÃO
INTEGRAL NO BRASIL
4.1 MUDANÇAS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO E TOYOTISMO
O processo de “reestruturação produtiva” se inicia no Brasil a partir
da década de 1990, no entanto, para que possamos compreender todas
as mudanças ocorridas nas relações de trabalho a partir dessa década,
torna‐se necessário, mesmo que brevemente, resgatarmos uma série de
políticas de ajuste e de modernização tecnológica pelas quais diversas
empresas passaram desde o final da década de 1970, período no qual se
inicia o declínio do regime de acumulação sob o qual se estruturou a
fase anterior de nosso desenvolvimento econômico.
Ainda na década de 1956, a economia nacional verifica um
crescimento intenso da capacidade produtiva do setor de bens de
produção e de bens de consumo duráveis. Tal crescimento é derivado
da consolidação de um parque industrial de significativas proporções e
que adquire níveis importantíssimos de complementaridade entre os
diversos setores a partir do “processo de industrialização pesada”
(LEITE, 1994, 2003). De acordo com Suzigan (1988),
a estrutura industrial avançou no sentido de incorporar segmentos da
indústria pesada, da indústria de bens de consumo duráveis e da indústria de
bens de capital, substituindo importações de insumo básicos, máquinas e
equipamentos, automóveis, eletrodomésticos etc. Essa estrutura seria a base
sobre a qual se apoiaria o rápido crescimento da produção industrial na
primeira fase do ciclo expansivo 1968 a 1973, 1974 (Apud LEITE, 1994, p. 126).
Portanto, a década de 1970 é marcada por um processo industrial de
grande expansão, caracterizado tanto pela aceleração da produção e
emprego industrial quanto pelo crescimento acelerado da força
produtiva dos ramos de bens de produção e de bens de consumo
duráveis. Conforme analisam Gitahy, Leite e Rabelo (apud LEITE,
2003), esse processo se dá em um contexto de concorrência direcionada
a um mercado interno em expansão e protegido por políticas de
proteção e controle de importações, assim como pelo desenvolvimento
do setor de bens de capital que visava atender à demanda do setor
123
público e à do setor de bens de consumo duráveis, que também se
encontrava em expansão.
Com o avanço tecnológico experimentado por inúmeras indústrias a
partir de 1956, diversas técnicas e princípios tayloristas/fordistas de
organização do trabalho se difundem pelo país. É claro que tais técnicas
e princípios foram introduzidos de forma a se adequarem à realidade e
possibilidades nacionais, pois não há homogeneidade na aplicação de
tais formas de organização do trabalho no mundo. Porém, mesmo
contendo diferenças expressivas em relação ao modelo existente nos
países imperialistas, é possível perceber a presença de características
tipicamente fordistas na produção brasileira do período, tais como uma
expressiva mecanização acompanhada de uma expansão dos mercados
de bens de consumo duráveis. No geral, as diferenças se mostram em
relação à qualidade na fabricação e na tecnologia de engenharia na
produção de mercadorias, bem como nas singularidades do mercado
brasileiro que é
formado por uma combinação específica entre o consumo das classes médias
modernas locais, com o acesso parcial dos operários dos setores de ponta da
economia aos bens de consumo popular duráveis, e as exportações destes
mesmos produtos manufaturados a baixos preços para os países centrais. O
crescimento da demanda não é, dessa forma, regulado numa base nacional,
como no caso dos países centrais, mas se encontra, pelo contrário, acoplado ao
mercado internacional, ainda que o conceito se restrinja aos países onde o
crescimento do mercado interno cumpriu um papel importante no regime de
acumulação nacional (LEITE, 1994, p. 128).
Esse regime de acumulação entrou em crise a partir do final da
década de 1970 quando inúmeros fatores promoveram o seu
enfraquecimento. Dentre eles poderíamos mencionar as contradições
internas derivadas das pressões demográficas, a dificuldade de
expansão do mercado interno (devido, principalmente, à política de
desvalorização salarial), as lutas operárias que irão promover uma
constante resistência e obstáculo ao aumento da exploração capitalista
desse período e a crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo no
capitalismo imperialista (EUA e Europa Ocidental) que a partir da
década de 1980 provocará uma retração no mercado mundial.
Antes de avançarmos no desenvolvimento das lutas operárias,
principal força enfraquecedora da acumulação capitalista, voltaremos
124
um pouco na história, pois para compreendermos as condições de vida
e trabalho da classe operária brasileira durante a vigência da ditadura
militar é imprescindível apresentarmos a razão de ser de tal ditadura e
a dinâmica do processo de acumulação subordinada, característica do
Brasil. Sendo assim, que fatores explicam a eclosão do golpe militar de
1964 e que relação os mesmos possuem com a resistência promovida
pela classe operária entre os anos de 1964 e 1984?
Já no final da década de 1950 é possível percebermos a mobilização
crescente de diversos setores sociais (operariado, campesinato,
movimento estudantil etc.) na luta contra o Estado populista. Nesse
período o movimento operário começa a dar sinais de grande
descontentamento com a política salarial e com a escalada vertiginosa
da inflação no país. Os anos seguintes também conviverão com diversas
lutas operárias (VIANA, 2005). Segundo Castro,
a escalada inflacionária leva a uma escalada das greves. Anos após anos os
recordes de horas perdidas são batidos. Em 1958, destaca‐se a paralisação por 7
dias da marinha mercante em todo o país, com a participação de centenas de
milhares de marinheiros. Malgrado a ilegalidade da greve, JK acabou
concedendo à maioria das reivindicações. Nos transportes urbanos, a greve
dos carris do Rio de Janeiro, apoiada por fortes e violentas manifestações
estudantis, também termina vitoriosa [...] Em 1959, não somente as greves se
intensificaram, como a desasperação pela contínua erosão dos salários
provocou a multiplicação de manifestações de ruas com choques violentos com
as forças policiais. Protestos contra a alta dos preços seguiam‐se
frequentemente de pilhagens de armazéns. Em vários casos as forças policiais
utilizaram armas de fogo ou baionetas para reprimir os manifestantes,
provocando ferimentos e a morte de dezenas destes (Apud VIANA, 1980, p.
69‐70).
Os primeiros anos da década de 1960 são marcados pela expansão
do movimento grevista para diversas categorias de trabalhadores. A
cidade de Santos atinge a marca de 01 milhão e meio de trabalhadores
em greve e a decretação de uma greve geral apresenta‐se como o
momento máximo das lutas operárias. Com a expansão da mobilização
de diversos setores (ferroviário, marítimo, portuário, aeroviários,
estivadores) o governo João Goulart se vê obrigado a realizar
concessões e aumentos salariais.
125
Em outubro de 1962, 700 mil operários entram em greve em São Paulo e
conseguem aumentos salariais. Assim, o movimento operário, bem como o
movimento estudantil e dos trabalhadores rurais, realizam uma ascensão em
suas lutas que dificultava a concretização dos interesses da classe capitalista
que era aumentar a taxa de exploração (VIANA, 2005, p. 24).
De acordo com Viana (2005), esse processo de ascensão e expansão
das lutas dos trabalhadores promovia temor nas forças políticas
conservadoras e levavam os populistas a “radicalizarem” seus discursos
na tentativa de se aproximarem mais dos setores populares com o
intuito de ganharem maior apoio político. Os níveis de pressão dos
trabalhadores determinavam, de certa forma, a política salarial do
período que, ora apontava para uma maior exploração do trabalho, ora
apontava para sua diminuição. No entanto, os primeiros anos da
década de 1960 foram marcados por uma maior radicalização e pressão
dos trabalhadores sobre a classe capitalista e suas classes auxiliares e
isso acabava por gerar obstáculos ao processo de acumulação nacional,
por conseguinte dificultando a acumulação nos países imperialistas, por
dificultar o aumento da extração de mais‐valor internacional.
Nesse sentido, a lutas dos trabalhadores, sem sombra de dúvidas,
foi fundamental para obstaculizar a tentativa de intensificação da
exploração do capital sobre o trabalho que, diga‐se de passagem, já era
elevadíssima, porém, outra determinação também deve ser levada em
conta nesse processo. Trata‐se da condição brasileira de capitalismo
subordinado ao capitalismo imperialista (principalmente o norte‐
americano).
O contexto no qual estamos tratando equivale, em nível
internacional, ao período de crise do regime de acumulação intensivo‐
extensivo e que, portanto, levava os países imperialistas a buscar
soluções para a crise de acumulação pelas quais passavam. Contudo, as
soluções apontavam para a busca pelo aumento da extração de mais‐
valor sobre o trabalho ainda no interior desse mesmo regime de
acumulação e “isto significava buscar aumentar o processo de
exploração sem criar grandes alterações no regime de acumulação”
(VIANA, 2005, p. 26). Dessa forma, as lutas operárias se apresentavam
como um obstáculo não só para a acumulação nacional, mas, também
para a acumulação imperialista norte‐americana no Brasil e, assim
sendo, os setores conservadores (capital transnacional, capital nacional
126
e suas classes auxiliares) se uniram na tentativa de remover tais
obstáculos combatendo a resistência das classes trabalhadoras com o
intuito de promover a intensificação da exploração do capital sobre o
trabalho, tal como ocorreu no período pós‐golpe de 1964, bem como no
contexto internacional que já anunciava a possibilidade de uma
transição para outro regime de acumulação.
O apoio norte‐americano ao golpe de 1964 revela, entretanto, os
interesses desse país em garantir em território brasileiro uma saída para
a crise na qual se encontrava por meio do aumento da exploração e,
consequentemente, de uma maior extração de mais‐valor através de
suas empresas transnacionais. Dessa forma,
o golpe de 64 foi produto da ofensiva capitalista realizada pelas potências
imperialistas (principalmente os EUA) e, com o apoio da burguesia brasileira e
outros setores, consegue produzir um amplo aparato repressivo e ao mesmo
tempo desalojar do governo setores populistas e reformistas que tinham
dificuldades em atacar diretamente os trabalhadores e aumentar o processo de
exploração [...] permitindo aumentar o processo de acumulação capitalista no
Brasil para sustentar as necessidades da burguesia brasileira e a transferência
de mais‐valor para sustentar as necessidades dos países imperialistas,
principalmente dos Estados Unidos. Em síntese, é a ascensão das lutas
operárias e de outros setores sociais que promoveu a necessidade de transição
da democracia burguesa para a ditadura, pois somente esta possibilitaria a
ampliação da taxa de exploração naquele contexto, o que era uma necessidade
vital do capital neste período (VIANA, 2005, p. 27).
Destarte, a ditadura militar tinha como objetivo fundamental
garantir aquilo que a “democracia” populista não conseguia realizar
naquele momento, isto é, uma dura ofensiva em nome do capital
(nacional e transnacional) contra a classe trabalhadora. Foi exatamente
essa a política de estado implementada pelos militares no poder. A
ditadura militar e o regime de acumulação desenvolvido no país
estavam em harmonia com as transformações que vinham ocorrendo na
divisão internacional do trabalho, e que gestavam novas formas de
valorização do capital por parte dos países imperialistas, nas quais o
aumento de extração de mais‐valor fora de suas fronteiras nacionais
adquiria importância fundamental. Tais formas de valorização do
capital iam ao encontro dos interesses dos setores conservadores que,
há tempos se vinculavam ao capital internacional e, por conseguinte,
127
viam com bons olhos uma maior abertura da economia ao capital
estrangeiro (Costa, 1997).
Nesse sentido, a política de Estado consumada no Brasil buscou
construir um regime de acumulação que se afirmava numa intensa
extração de mais‐valor absoluto aliada a uma constante depreciação da
força de trabalho buscando ampliar a taxa de lucro das grandes
empresas e promover um acelerado processo de acumulação de capital.
Esse novo regime de acumulação acabou por promover também, uma
enorme desigualdade social, uma vez que promoveu uma intensificação
da lumpemproletarização ‐ que já era enorme no país –, pois as taxas de
desemprego se elevaram e, consequentemente, como é regra no
capitalismo, a exploração das classes trabalhadoras e a depreciação do
valor da sua força de trabalho. Com o intuito de ilustrar o que acabamos
de afirmar, recorremos às análises de Edmilson Costa na sua obra A
política salarial no Brasil (1997) que assim diz:
Em termos concretos, em 1984 os trabalhadores da faixa de salário mínimo
foram obrigados a trabalhar cerca de 60% de horas a mais para adquirir os
mesmos bens da cesta básica de 1963, o que revela, por um lado, uma brutal
desvalorização do preço da força de trabalho e, por outro, um grau de
exploração perverso, traduzido num aumento da mais‐valia absoluta [...]
Como o salário mínimo funciona como um farol para a grande maioria dos
salários, estrutura‐se um mercado de trabalho de baixos salários, ou seja, um
mercado de trabalho com salários pagos abaixo do valor da força de trabalho
(p. 41‐42).
Em relação ao aumento da extração de mais‐valor absoluto, ele
continua afirmando:
Esse panorama torna‐se mais crítico se a essas informações acrescentarmos o
fato de que ocorreu, no auge do “milagre”, um prolongamento excessivo da
jornada de trabalho. As horas extras se transformaram num fato cotidiano em
praticamente todas as categorias operárias e podem ser entendidas como um
instrumento compensatório à desvalorização do preço da força de trabalho.
Não seria exagero afirmar que a jornada de trabalho no país retroagiu para
algo próximo dos patamares da primeira revolução industrial, tanto em setores
onde esse fato é tradicional (construção civil), quanto em setores de ponta,
situando‐se entre 10‐12 horas de trabalho (p. 43‐44).
128
As relações de trabalho dominantes na época da ditadura militar
eram marcadas, essencialmente, por práticas autoritárias de cunho
paternalista e corporativista que dificultavam qualquer tentativa de
representação dos interesses do proletariado. O amplo processo de
desenvolvimento industrial que contribuiria para a emergência de um
novo regime de acumulação capitalista não veio acompanhado de
melhorias nas condições de vida e trabalho da classe operária. Pelo
contrário, pois o controle da força de trabalho caracterizou‐se por uma
imensa parcelização das tarefas, pelo extenso uso de força de trabalho
não‐qualificada, por elevadas taxas de rotatividade, pela adoção de
complexas estruturas de cargos e salários que objetivavam promover
uma maior divisão e controle sobre a classe operária (LEITE, 2003).
Portanto,
no período da ditadura militar, a superexploração do trabalho no Brasil iria
assumir sua maior perversidade histórica, articulando uma jornada
prolongada de trabalho com uma intensidade extenuante do processo
produtivo, e uma tendência persistente à depreciação salarial, à constante
subtração do quantum referente à remuneração do trabalho, em benefício do
mais‐valor apropriado pelo capital monopólico. Outro aspecto da
superexploração do trabalho sob a ditadura militar era o despotismo do capital
no local de trabalho e a utilização de operários não qualificados com alto grau
de rotatividade na linha de produção (ALVES, 2005, p. 109).
Seguindo a tendência intrínseca ao capitalismo, em todo o período
governado pelos militares, as articulações do capital para ampliar a
extração de mais‐valor vieram acompanhadas de diversas tentativas do
movimento operário de reduzir o tempo de trabalho utilizado na
extração de mais‐valor, através de diversas estratégias (absenteísmo,
“operação tartaruga”, paralizações temporárias da produção etc.),
porém a principal ferramenta utilizada pelo movimento operário, e por
diversas outras categorias profissionais que compunham a classe
trabalhadora, e que gerava uma maior consciência política, foi a
realização de greves. Entre os anos de 1964 e 1984 eclodiram em
diversas regiões do país greves e outras formas de resistência da classe
trabalhadora.
Mesmo vivendo sob uma ditadura militar que impunha uma
repressão violentíssima a toda e qualquer tentativa de mobilização e
organização da classe trabalhadora, ora a resistência avançava e
129
acumulava forças para pressionar o capital e seus representantes, ora a
resistência entrava em refluxo38.
O que é importante destacar é que a luta de classes que
acompanhou toda a ditadura militar no Brasil foi fundamental não
apenas para promover uma maior abertura política, mas, também, por
dificultar a estratégia do capital (nacional e transnacional) em garantir
uma maior extração de mais‐valor. Aliado a isso temos em nível
internacional a crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo que
irá coagir a burguesia dos países imperialistas a pressionar os países
subordinados com vistas a promoverem melhores condições para um
novo ciclo de acumulação dos seus capitais.
Consequentemente, um novo regime de acumulação se torna
necessário e a procura pelo mesmo voltou a ser o objetivo da burguesia
internacional que reinicia uma nova ofensiva capitalista, tanto
internamente, a partir da década de 1980, quanto fora das suas
fronteiras. No caso do Brasil, esse novo regime de acumulação passa a
ser engendrado ainda na década de 1980, porém de forma embrionária,
representando uma fase de transição para o regime de acumulação
integral, que só se tornaria uma realidade na década de 1990, quando
novas formas organizacionais das relações de trabalho, inspiradas no
“modelo Toyota”, começaram a ser implementadas aqui, assim como
seu braço direito regularizador, a política neoliberal.
Aproximadamente a partir de 1973, o “milagre brasileiro” começa a
dar sinais de esgotamento do seu regime de acumulação, que dentre
suas várias determinações, destaca‐se pela sua condição de dependência
“à lógica do capital internacional, de acesso aos circuitos do capital
financeiro internacional” (ALVES, 2005, p. 110), pois tal regime gerou
seus próprios limites de crescimento ao desenvolver de forma
desproporcional a produção de bens de consumo duráveis e a produção
de bens de produção, uma vez que nesse período há um enorme
crescimento das importações de bens de produção não acompanhado
pela produção interna que ocasionou uma crise na balança de
pagamentos. Da mesma forma e na mesma proporção, houve um
incremento da remessa de lucros, dividendos, direitos de assistência
38Sobre o cotidiano das greves no período da ditadura militar (1964‐1984) Cf. (COSTA,
1997).
130
técnica, juros de empréstimos que proporcionou uma crise na conta de
serviços. A solução para esse quadro deficiente era, mais uma vez,
recorrer ao capital financeiro internacional com o intuito de suprir o
crescente déficit da balança comercial (ALVES, 2005).
De acordo com Alves (2005), os anos 80 foram marcados por um
cenário de maior deterioração da economia brasileira, caracterizado
pela instabilidade macroeconômica – hiperinflação, recessão, ciranda
financeira. A reprodução interna de capital se encontrava
completamente comprometida uma vez que somado à crise da dívida
externa existia uma crise estrutural do balanço de pagamentos e o
estrangulamento das contas externas. Diante desse conjunto foi
colocado à economia brasileira a necessidade imediata e desesperada de
adquirir novos saldos na balança comercial com o objetivo de contrair
meios de pagamentos internacionais para cumprir o serviço da dívida
externa. É essa relação de dependência ao capital financeiro
internacional e, consequentemente, o proveito que esse tira de tal
dependência que irá caracterizar o Brasil, desde o início do seu processo
de industrialização, como um modelo de capitalismo subordinado aos
ditames e interesses das potências imperialistas.
É diante desse quadro de crise do regime de acumulação no Brasil,
aliado aos interesses imperialistas em ampliar a produção e extração de
mais‐valor através de suas empresas transnacionais, que se inicia um
surto de “reestruturação produtiva” que caracterizará o regime de
acumulação integral no país, pois
a deterioração das contas externas do país debilitou ainda mais as condições de
reprodução do capitalismo industrial no Brasil. Sob inspiração do Fundo
Monetário Internacional (FMI), adotou‐se uma política recessiva, que contraiu,
de modo brutal, o mercado externo (e as importações de bens e serviços) e
incentivou as exportações para o mercado internacional. É a partir daí que
surgiu um primeiro “choque de competitividade”, que obrigou as grandes
empresas, principalmente a indústria automobilística, a adotarem, ainda que
de modo incipiente (e restrito), novos padrões organizacionais‐tecnológicos
(ALVES, 2005, p. 120).
A retração do mercado interno, juntamente com o incentivo às
exportações, conduziram, cada vez mais, as indústrias de ponta,
principalmente a automobilística, a adotarem novas tecnologias
microeletrônicas na produção, assim como, novas formas
131
organizacionais de relações de trabalho e valorização do capital
inspirada no “modelo toyota”. Era de extrema importância para a
produção nacional, garantir maior competividade no mercado externo
atingindo novos padrões de competitividade internacionais.
A necessidade de ampliar as exportações devido à retração do
mercado interno, bem como as necessidades de incrementar o superávit
da balança comercial para pagamento das dívidas externas, alteraram
completamente os patamares de competitividade industrial, exigindo,
dessa forma, novos padrões de qualidade. De acordo com Leite (2003),
tais necessidades é que foram responsáveis
ao mesmo tempo pela busca de inovações tecnológicas que visavam aumentar
a eficiência das empresas e pela substituição de políticas repressivas de gestão
do trabalho por formas menos conflituosas que permitissem às empresas
contar com a colaboração dos trabalhadores na busca de qualidade e
produtividade (LEITE, p. 69).
É nesse contexto que diversas empresas passam a adotar algumas
técnicas japonesas de produção, como os Círculos de Controle de
Qualidade (CCQ), assim como novos equipamentos de base
microeletrônica, que dentre eles podemos mencionar: os Controladores
Lógico Programáveis (CLPs), robôs, Máquinas‐Ferramenta a Comando
Numérico (MFCNs), acompanhados de inovações nos produtos e
processos (utilização de sistemas CAD/CAM, just in time, celularização
da produção, tecnologia de grupo, sistemas de qualidade total com
utilização de CEP39.
39 “Os sistemas CAD/CAM (Computer Aided Design/Computer Aided Manufacturing)
permitem a elaboração de desenhos por computador, bem como o monitoramento
computadorizado do processo de manufatura; O just in time é um instrumento de
controle da produção que busca atender à demanda da maneira mais rápida possível
e minimizar os vários tipos de estoque da empresa (intermediários, finais e de
matéria‐prima). O sistema pode abarcar tanto a relação da empresa com seus
fornecedores e consumidores (Just in time externo) como apenas os vários
departamentos e setores que compõem uma mesma empresa (justi in time interno); As
células de fabricação consistem na organização das máquinas a partir do fluxo da
produção, permitindo uma sensível diminuição do lead time (tempo total de
fabricação de uma peça) e dos estoques intermediários (tendo em vista que a
integração entre as várias máquinas de cada célula elimina o tempo em que as peças
132
Conforme mencionam diversas pesquisas sobre o assunto, não há
homegeneidade na implementação desse processo em diversos setores e
regiões do país, no entanto, é possível levantarmos alguns traços
comuns e determinadas tendências existentes nele. Leite (2003) destaca
duas características importantes presentes a partir dessa análise:
Primeiramente, ela destaca que apesar das estratégias utilizadas por
diversas empresas se diferenciarem, existe um elemento comum a todas
elas, trata‐se do seu caráter limitado e reativo, ainda que alguns setores
mais competitivos, tal como o automobilístico, venha se destacando
com uma maior sistematização desse processo. Em segundo, vale
destacar que, ao contrário dos estudos iniciais sobre o assunto, quanto
mais esse processo se consolida, mais nocivos se mostram suas
consequências sociais. Dentre elas destacaremos, fundamentalmente, a
intensificação da lumpemproletarização via crescimento acelerado do
desemprego.
Os primeiros sinais de aplicação de técnicas japonesas de
valorização do capital, maior controle e disciplinamento da prática
operária são vistos entre o final da década de 1970 e início de 1980,
quando algumas empresas passam a adotar os Círculos de Controle de
Qualidade (CQCs) sem, necessariamente, modificar as formas de
organização do trabalho ou investir mais sistematicamente em novos
equipamentos microeletrônicos. “O caráter parcial e reativo dessa
estratégia foi detectado por vários estudos” (LEITE, 2003, p. 71).
Em sua obra Trabalho e sociedade em transformação – mudanças
produtivas e atores sociais (2003), Márcia Leite comenta alguns dos
principais estudos realizados sobre as mudanças nas relações de
trabalho no Brasil desse período e comenta algumas de suas conclusões.
Em 1983, Hirata já chamava a atenção para as adaptações da experiência
japonesa no Brasil. Ela ressaltava que aqui existia uma grande
tem normalmente que aguardar nas prateleiras antes de serem usinadas por cada
máquina); a tecnologia de grupo consiste no agrupamento das peças a partir de sua
similaridade geométrica e sequência de operações e na destinação do mesmo grupo
de peças ás mesmas máquinas, permitindo uma significativa diminuição no tempo de
preparação das máquinas; O Controle Estatístico de Processo (CEP) caracteriza‐se
pela integração do controle de qualidade à produção, por meio da utilização de
conceitos básicos de estatística na inspeção das peças, que passa a ser feita pelos
próprios operadores de máquina” (LEITE, 2003, p. 70).
133
resistência por parte da gerência empresarial em delegar decisões aos
operários.
A autora sublinhava que a maior parte dos círculos se restringia aos
trabalhadores mais qualificados, técnicos e supervisores, e enfatizava a
possibilidade de que os objetivos primeiros dos CQCs estivessem sendo
deformados nas empresas brasileiras (HIRATA apud LEITE, 2003, p. 71).
Salerno (Apud Leite, 2003) destacava a pequena abrangência das
questões tratadas pelos círculos, destacando a predominância de
assuntos tratados a respeito dos custos da produção, assim como
alertou para a utilização dos círculos como forma de disciplinar a
iniciativa operária, destacando a resistência dos engenheiros em aceitar
as propostas de alteração no método de trabalho proposto pelos
próprios trabalhadores.
Vale relembrar que toda alteração nas formas organizacionais das
relações de trabalho derivam da luta de classes, ou seja, estão inseridas
na clássica disputa entre burguesia e proletariado pelo controle do
tempo de produção de mais‐valor. Dessa forma, a adoção de estratégias
japonesas de formas organizacionais das relações de trabalho, tal como
os CQCs, são, também, uma resposta à luta operária do final da década
de 1970 e sua tentativa de, a partir das comissões de fábricas, definirem
a forma de organização da força de trabalho no interior das fábricas40.
“Nesse sentido, os CQCs foram introduzidos em muitas empresas a
partir da preocupação gerencial em desviar o ímpeto participativo dos
trabalhadores para formas alternativas de organização que contasse
com maior controle gerencial” (LEITE, 2003, p. 72).
Outra forma organizacional que passa a ser difundida no Brasil é o
just in time, no entanto até 1985 tal forma organizacional possui um
caráter bastante restrito, e isso se dava, sobretudo, em razão dos
problemas que se estabelecia entre as empresas consumidoras e os
fornecedores. Já o just in time interno se propagou rapidamente em
diversas empresas brasileiras que “passaram a integrar as várias etapas
da produção a partir das necessidades colocadas pelas vendas,
diminuindo consideravelmente os estoques” (LEITE, 2003, p. 73).
40 Sobre o desenvolvimento da luta operária no Brasil na década de 1978 e as comissões
de fábricas Cf. MARONI, 1982; ANTUNES, 1988.
134
Inúmeros autores vão destacar a grande diferença existente na aplicação
das formas organizacionais de inspiração Toyota no Japão e em
diversos outros países e a maneira como tais formas organizacionais
eram aplicadas no Brasil. Salerno (1985) irá sublinhar que a aplicação do
just in time no Brasil, longe de promover a especialização ampla do
trabalhador estaria promovendo uma padronização do trabalho:
O operário faz durante sua jornada uma sequência limitada de operações
padronizadas e repetitivas; a polivalência significa a capacidade de alimentar
mais de um tipo de máquina, antes de ser o operário especializado em cada
uma delas; o grupismo se refere a um grupo de máquinas e não a um grupo de
trabalhadores (Apud LEITE, p. 74).
O que se pode perceber é que no Brasil algumas formas
organizacionais do trabalho, inspiradas no toyotismo, se mesclavam ou,
até mesmo, eram inibidas por tradicionais formas de organização de
cariz taylorista e fordista, o que acabava por demonstrar as condições
materiais e sua singularidade no Brasil. Tal constatação permite
enfatizar nossa interpretação, segundo a qual, não há grandes rupturas
e diferenças entre taylorismo, fordismo e toyotismo, mas sim
aprofundamento e melhoramento que seguem os avanços tecnológicos
ou não, quando inexiste os mesmos, e o aprendizado de experiências
históricas com a gestão das relações de trabalho.
Carvalho e Schmitz (Apud LEITE, 2003), por exemplo, enfatizaram o
aprofundamento de princípios fordistas no processo de modernização
das empresas automobilísticas brasileiras que optavam por uma
automação restrita e seletiva, direcionada para a integração e
sincronização das operações de manufatura. Seguindo essa estratégia ‘“as
tarefas tornaram‐se mais ritmadas pela máquina do que antes” e o
fordismo, em vez de ser superado, foi intensificado’. Já para Humphrey,
os processos de modernização e reestruturação pelos quais passavam as
empresas brasileiras poderiam ser denominados de uma espécie de “just
in time taylorizado” no qual a gerência tenderia a administrar a fábrica
como se fosse uma máquina, utilizando uma estratégia que “careceria de
envolvimento e compromisso, dependendo mais da coerção e da pressão
sobre os trabalhadores” (Apud LEITE, 2003, p. 76).
A década de 1990 assiste uma maior sistematização do processo de
“reestruturação produtiva” em diversas empresas brasileiras e tal fato se
135
deve, ao aprofundamento da crise econômica do início dessa década, a
retração do mercado interno, a uma maior abertura dos mercados
nacionais e à necessidade das empresas locais fazerem frente à
concorrência internacional (LEITE, 2003; OLIVEIRA, 2004).
A principal consequência desse conjunto de mudanças implantadas
nas principais empresas brasileiras, principalmente na automobilística,
é uma ampla precarização do trabalho acompanhada daquilo que
denominaremos de mais‐violência para o proletariado, pois aqui, assim
como em todas as regiões do globo em que o toyotismo foi implantado,
o operário se vê obrigado a trabalhar de forma pluriespecializada,
dedicando‐se a várias funções no interior da fábrica, manobrando,
simultaneamente, várias máquinas em ritmo alucinante. Funções que
antes eram executadas por mais de dois ou três operários, hoje é
exercida intensamente por apenas um operário. O resultado mais
drástico dessa mais‐violência no trabalho foi denominado no Japão de
Karoshi, ou seja, morte por overdose de trabalho. Nesse país, fundador
do modelo Toyota de organização do trabalho, milhares de operários
morrem ao ano vitimados pelo excesso de trabalho, por jornadas que
vão de 15 a 16 horas diárias, pela ausência de férias, pelas moradias
minúsculas etc. Essa realidade nasce no Japão, se expande para outros
países imperialistas e chega ao Brasil, principalmente, nas montadoras
de automóveis. De acordo com Antunes,
o processo de produção de tipo toyotista, por meio dos teamwork, supõe,
portanto uma intensificação da exploração do trabalho, quer pelo fato de os
operários trabalharem simultaneamente com várias máquinas diversificadas,
quer pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva dada pelos sistemas de luzes.
Ou seja, presencia‐se uma intensificação do ritmo produtivo dentro do mesmo
tempo de trabalho ou até mesmo quando este se reduz. Na fábrica Toyota,
quando a luz está verde, o funcionamento é normal; com a indicação da cor
laranja, atinge‐se uma intensidade máxima, e quando a luz vermelha aparece, é
porque houve problemas, devendo‐se diminuir o ritmo produtivo. A
apropriação das atividades intelectuais do trabalho, que advém da introdução de
maquinaria automatizada e informatizada, aliada à intensificação do ritmo do
processo de trabalho, configura um quadro extremamente positivo para o
capital, na retomada do ciclo de acumulação e na recuperação da sua
rentabilidade (2005, p. 56).
136
A acumulação integral objetivada pelo modelo toyotista busca
extrair mais‐valor de forma intensiva e extensiva e para isso promove
uma intensificação do processo de trabalho e um controle rigoroso
sobre todo o tempo de trabalho, gerando mais‐violência para o
trabalhador. No entanto, resta explicar o que se entende por mais‐
violência no trabalho. O caráter central do trabalho na
contemporaneidade é a superexploração marcada pela intensificação do
trabalho, pelo assédio moral, pela pressão psicológica, pelo
desenvolvimento da síndrome da culpa, síndrome do pânico, pelo
estresse, depressão, medo e várias outras formas de (mais) violência
derivadas do trabalho (BERNARDO, 2009; DAL ROSSO, 2008). Nesse
sentido, o que denominamos aqui de mais‐violência caracteriza‐se por
uma sobre‐violência intensificada no trabalho e que atinge o operário tanto
física quanto psiquicamente, podendo levá‐lo à morte. Segundo o
psiquiatra e psicanalista especialista em medicina do trabalho
Christophe Dejours,
ao lado do medo dos ritmos de trabalho, os trabalhadores falam sem disfarces
dos riscos à sua integridade física que estão implicados nas condições físicas,
químicas e biológicas de seu trabalho. Sabem que apresentam um nível de
morbidade superior ao resto da população [...] A grande maioria tem a
impressão de ser consumida interiormente, desmanchada, degradada,
corroída, usada ou intoxicada. Este medo patente é expresso desta maneira
direta pela maioria dos trabalhadores das indústrias (1992, p. 74).
De acordo com alguns dicionários, o medo pode ser entendido como
uma perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente e no
caso concreto dos operários de indústrias que funcionam segundo o
modelo japonês (Toyota) ele apresenta‐se como uma constante no
cotidiano tanto interno quanto externo à fábrica. Os trabalhadores,
devido ao acúmulo de funções e ao ritmo exorbitante da produção,
temem errar no processo de trabalho e serem constrangidos
publicamente pelos seus gerentes (espécies de agentes carcerários na
produção), temem adoecer e serem humilhados por executarem, mesmo
doentes, trabalhos mal‐vistos tal como promover a coleta do lixo da
fábrica, temem as ameaças de desemprego e o próprio desemprego,
temem falir fisicamente e não mais conseguirem executar todo o
trabalho que sobre‐pesa seus músculos e cérebro.
137
Em sua obra Trabalho duro, discurso flexível – uma análise das
contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores (2009),
Bernardo fornece vários depoimentos de trabalhadores de duas
montadoras de automóveis no Brasil41 que funcionam segundo o
modelo Toyota de produção e que nos permite constatar, de acordo com
nossa definição, a mais‐violência a que estão submetidos os
trabalhadores dessas montadoras e que nos possibilita, também,
generalizar para outras indústrias que funcionam sob a égide do
toyotismo:
Rogério (trabalhador da Tamaru) – Assédio moral lá (na Tamaru) acontece
praticamente com 100% dos funcionários, porque, quando um erra, no dia
seguinte, na reunião [...] [o chefe] vai chamar atenção de todo mundo. Todo
mundo se sente humilhado, entendeu? O cara vai trabalhar cedo. O cara já vai
com pique de trabalhar e ele já começa ouvir essas coisas logo cedo, o cara
desanima, entendeu? E você pode ver que quando acontece isso aí lá [...] aí que
é o dia mais ruim para trabalhar. Faz serviço errado. Fica naquele medo “não
posso errar, não posso errar, não posso errar” (2009, p. 140).
Fabiano (dirigente sindical na Assan) – Então, é um negócio [...] uma loucura
[...] é um desespero. É nego correndo pra tomar água. O outro deu problema
na peça lá, tem que correr pra trocar o bico da pontiadera. Corre lá porque não
pode perder tempo! [...] é um ritmo totalmente [...] desesperador. Tanto que
[...] na hora de almoçar, eles querem que o pessoal vá andando, não pode
correr, mas os caras falam: “trabalhei correndo o dia inteiro porque para
almoçar tenho que ir andando?!”. É uma loucura (2009, p. 144).
Silvio (trabalhador da Assan) – [...] é desumano o que você faz. Na sexta‐feira,
nós fizemos 122 carros. Era para ser 120 e foi 122. Passou do horário e você é
obrigado a ficar depois do horário e foi 122 carros sem hora extra. Com mais
meia hora, a gente fez 129 carros! E você, naquela pressão! Putz é muita
correria! E os caras passam do horário ainda, sabe? Horário de refeição, eles
não respeitam, eles passam do horário. Horário de café [...] (2009, p. 147).
Vitor (trabalhador da Assan) – O problema (da pressão) não é só [...] só o seu
corpo [...] é sua mente também: A hora que você vai ver, você tá ficando meio
lélé! [...] Se você for levar tudo ao pé da letra, tudo certinho assim, que eles
41 Com o intuito de impossibilitar a identificação dos trabalhadores que contribuíram
com a pesquisa que possibilitou a produção de sua obra – Trabalho e população em
situação de rua (2009) – Bernardo optou por utilizar nomes fictícios tanto para os
trabalhadores entrevistados quanto para as montadoras de automóveis nas quais os
mesmos trabalhavam: Tamaru e Assan.
138
falam tem que ser assim e assim, se você seguir a pressão bate mesmo [...] você
fica lélé (2009, p. 151).
Cristiano (trabalhador da Tamaru) – Tem um fato também que é do estresse.
Eu chegava a sonhar a noite que estava montando carro. Sonhava! Tinha vez
que eu ia dormir, sonhava que tava montando carro. Quando eu acordava pra
ir trabalhar, parecia que eu não tinha dormido nada, entendeu? Parecia que eu
tinha trabalhado. Saía cansado já! Psicologicamente eu saía cansado pra
trabalhar. [...] a gente fica muito estressado! Vai estressando, vai estressando e
aí dá os problemas (2009, p. 152).
Aliado a esse conjunto de transformações nas relações de trabalho
no Brasil, a partir do final da década de 1970 e início da década de 1980,
fase de transição para o regime de acumulação integral, que se
consolida na década de 1990, existem outras determinações que nos
auxiliarão na compreensão do processo de intensificação da
lumpemproletarização que atinge o país desde esse período até os dias
atuais. Dentre essas determinações, destacaremos a condição de
capitalismo subordinado brasileiro que, sobre os ditames do
neoimperialismo, aliado ao neoliberalismo promoverá, para milhares de
trabalhadores, uma intensa marginalização no mercado de trabalho. É
sobre isso que discorreremos no próximo item.
139
declinante da taxa de lucro, que historicamente tem obrigado a classe
capitalista a encontrar novas estratégias de combater esses dois
impasses para o desenvolvimento dessa marcha. Isso tem gerado o
desenvolvimento e sucessão dos regimes de acumulação que há cada
novo regime encontra dificuldades cada vez maiores para reproduzir o
capitalismo. É nesse sentido, que Viana afirma que o regime de
acumulação integral necessita, como seu próprio nome diz, da
ampliação da exploração em escala cada vez mais intensa.
O regime de acumulação intensivo‐extensivo que antecedeu ao
regime de acumulação integral garantia uma relativa estabilidade no
bloco dos países imperialistas graças à superexploração existente no
bloco dos países subordinados, através de uma acumulação extensiva,
transferência de mais‐valor para os países imperialistas, endividamento
externo, da “troca desigual” etc. Porém, a situação já não é mais a
mesma, visto que para garantir a reprodução do capitalismo no regime
de acumulação integral, que entra em vigor a partir da década de 1980,
não basta aumentar a já intensa exploração no capitalismo subordinado,
até mesmo porque as resistências provavelmente atingiriam níveis de
radicalidade não desejado pelas classes capitalistas. Portanto, para se
manter, o novo regime de acumulação necessita aumentar a exploração
no bloco subordinado, que a partir da queda do capitalismo estatal
russo se amplia com os países do leste europeu, mas também no bloco
imperialista como demonstramos anteriormente no caso norte‐
americano.
É neste contexto, que emerge o neoimperialismo, ou seja, o
imperialismo do regime de acumulação integral que tem como função
promover de forma generalizada a acumulação integral de capital em
todo o mundo. Dessa forma, o neoimperialismo busca reproduzir o
processo de exploração integral através das relações internacionais,
visando aumentar a exploração que, consequentemente, representa
maior quantidade de mais‐valor produzido e maiores transferências de
valor dos países subordinados para os países imperialistas.
Deste modo, há uma tendência em aumentar a já elevada taxa de
exploração nos países subordinados. Nesse sentido, a política neoliberal
cumpre seu papel ao promover uma corrosão dos direitos trabalhistas e
estabelecimento de estratégias para promover o aumento da extração de
mais‐valor relativo (maior controle do trabalho, novas tecnologias etc.),
140
uma vez que a extração de mais‐valor absoluto já existe e tende a
ampliar. Por conseguinte,
o neoimperialismo produz um Estado neoliberal subordinado, que executa o
papel de aumentar a exploração interna e, ao mesmo tempo, permitir o
aumento da exploração externa. A proeminência de organismos internacionais
na elaboração das políticas nacionais dos estados subordinados (FMI, Banco
Mundial etc.) apenas revela esta subordinação e alguns dos mecanismos
utilizados pelo bloco imperialista (e pelo capital oligopolista transnacional por
detrás dele). O bloco subordinado realiza uma política neoliberal que revela a
debilidade do capital nacional e, por conseguinte, das burguesias nacionais,
subordinadas ao mesmo tempo associadas ao capital oligopolista transnacional
(a reprodução subordinada dos capitalismos nacionais permite sua
reprodução. O fato de o nível da exploração dos trabalhadores locais ser maior
não lhes interessa) (VIANA, 2009, p. 105).
Uma das principais características do capitalismo subordinado é ter
seu capital nacional e o Estado submetido ao domínio do capital
transnacional, já nos Estados imperialistas o capital nacional exerce
proeminência sobre o capital transnacional. No capitalismo
subordinado seus capitais são limitados, exercendo de forma bastante
tímida qualquer domínio fora de suas fronteiras nacionais. Já nos países
de capitalismo imperialista o capital nacional é transnacional e
sobrepuja o mundo inteiro (VIANA, 2009).
É importante destacar que os organismos internacionais compõem o
processo de regularização da exploração internacional e que com a
mudança para o regime de acumulação integral suas estratégias sofrem
alterações. O Banco Mundial nos fornece um exemplo claro de tais
alterações, pois enquanto no regime de acumulação anterior ele
cumpria o papel de providenciar investimentos, no regime de
acumulação integral ele passa a exercer o papel de “‘guardião dos
interesses dos grandes credores internacionais, responsável por
assegurar o pagamento da dívida externa e por empreender a
reestruturação e abertura’ do capitalismo subordinado” (SOARES apud
VIANA, 2009, p. 111). No fundo, o que as organizações internacionais
têm promovido é a coação dos países subordinados no sentido dos
mesmos aprofundarem seu neoliberalismo, sua reestruturação
produtiva e suas políticas internacionais em direção à construção de um
“livre comércio”, para o capital transnacional, é claro. Assim sendo,
141
o neoimperialismo é, tal como o regime de acumulação que lhe gerou, integral,
buscando aumentar a transferência de mais‐valor do capitalismo subordinado
através de várias formas, além das tradicionais. E desloca investimentos para
locais onde a força de trabalho é mais barata e busca criar nichos exclusivos de
mercado consumidor (veja, no caso dos EUA, a NAFTA, o projeto ALCA etc.),
o que faz acirrar a competição interimperialista. Também há o
aprofundamento da estratégia de emperrar o desenvolvimento das forças
produtivas, desviando os investimentos para bens de consumo, indústria
bélica etc. Assim, a dinâmica do neoimperialismo é marcada por uma busca
desenfreada de aumentar a exploração imperialista, buscando combater a
tendência declinante da taxa de lucro (VIANA, 2009, p. 111).
O capitalismo brasileiro, desde o início do seu processo de
industrialização, sempre esteve subordinado e dependente dos
investimentos estrangeiros, no entanto, ao que tudo indica, sob a
vigência do regime de acumulação integral tal subordinação tem se
tornado, como afirma Biondi (2000), “um negócio escandalosamente
escandaloso” (p. 33). Tal constatação se observa, principalmente, nas
posturas que os principais agentes governamentais, pós‐década de 1990,
tem adotado diante dos interesses neoimperialistas de grandes
corporações oligopólicas transnacionais (empresas, instituições
financeiras, bancos etc.) que vem sendo marcada por uma entrega
irrestrita do patrimônio estatal via processo de privatização, por um
crescimento alucinante da dívida pública, tanto interna quanto externa,
e por uma descontrolada política de remessa de lucros, jamais vista na
história do país, praticada pelas grandes empresas transnacionais aqui
instaladas.
Além dessas questões, tal processo de desmonte do Estado vem
acompanhado por uma intensa precarização dos serviços públicos
fornecidos pelas empresas privatizadas e por uma escalada vertiginosa
dos preços cobrados pelos serviços oferecidos. Grosso modo, toda essa
complexa questão que envolve uma maior abertura comercial para os
capitais transnacionais, aliada a uma política de venda das principais
empresas públicas a “preço de banana” e a utilização de dinheiro
público para o financiamento de iniciativas realizadas pelo capital
transnacional etc. é o que nos possibilita caracterizar o Estado brasileiro,
da década de 1990 até os dias atuais, como um típico Estado neoliberal
subordinado.
142
Apesar de o Brasil se apresentar como o país que mais resistência
ofereceu às políticas de desregulamentação financeira e abertura
comercial na década de 1980, na década seguinte toda essa resistência
ofertada fora recompensada com grande intensidade e num período
muito curto pela adoção irrestrita de um modelo neoliberal
absolutamente subordinado aos interesses neoimperialistas expresso
pelo “Consenso de Washington”:
Em 1990, o economista John Williamson sistematizou uma série de
“recomendações” feitas aos países periféricos pelas instituições financeiras
internacionais (sobretudo o FMI e o Banco Mundial) a partir da crise da dívida
externa. Essas “recomendações” estavam centradas em dois eixos: na
estabilização macroeconômica, mediante a adoção de políticas monetárias
restritivas, e no incentivo à iniciativa privada, mediante a adoção de reformas
estruturais, “orientadas para o mercado”. A denominação “Consenso” se
explica: esse conjunto de medidas adquiriu status de pensamento único, ao
qual não haveria alternativa (GALVÃO, 2007, p. 39).
Nos anos oitenta, o esgotamento do regime de acumulação
brasileiro se expressou, também, na crise financeira do Estado devido
ao processo crescente de endividamento externo e interno. Esse
processo resultou na perda do controle da moeda e das finanças por
parte do Estado, assim como da sua capacidade estruturacional, visto
que o mesmo sofreu não apenas com uma forte redução dos gastos e
investimentos públicos, mas também pela ausência quase completa de
políticas de desenvolvimento. Nesse contexto, portanto, o Brasil se
encontrava extremamente fragilizado econômica e politicamente a
ponto de não contar com os recursos necessários para implementar os
ajustes neoliberais que se impunham naquele período (SOARES, 2009).
Segundo Fiori (Apud SOARES, 2009), o país enfrenta
um processo circular e crônico de instabilização macroeconômica e política:
instabilidade da moeda; instabilidade do crescimento; instabilidade na condução
das políticas públicas etc. A política econômica terminou por submeter‐se à
própria volatilidade do processo econômico e político, ambos movendo‐se em
direção opostas. Foram contabilizados nesse período oito planos de estabilização
monetária, quatro diferentes moedas (uma a cada trinta meses), onze índices de
cálculo inflacionário, cinco congelamentos de preços e salários, catorze políticas
salariais, dezoito modificações nas regras de câmbio, cinquenta e quatro
alterações nas regras de controle de preços, vinte e uma propostas de negociação
da dívida externa e dezenove decretos sobre a autoridade fiscal (p. 36).
143
Após anos de ditadura militar, a transição política para um governo
“democrático” no Brasil foi realizada sob o controle direto dos credores
e das instituições financeiras sediadas em Washington. Aproveitando‐se
do escândalo que envolvia diretamente o presidente Fernando Collor de
Melo a um processo milionário de extorsão de dinheiro público e da
ampla campanha midiática em torno do seu pedido de impeachment,
em 1992 foi negociada uma transação multibilionária entre o ministro
da economia de Collor, Marcílio Marques Moreira, e os credores
internacionais do Brasil. A partir daí o capitalismo brasileiro
intensificaria sua condição de subordinado aos interesses
neoimperialistas, pois a “agenda oculta” do FMI
consistia em apoiar os credores e, ao mesmo tempo, enfraquecer o governo
central. Já haviam sido pagos US$ 90 bilhões referentes aos juros da dívida
durante os anos 80, um valor bastante próximo ao do total do principal (US$
120 bilhões). Cobrar a dívida, todavia, não era o principal objetivo. Os credores
internacionais do Brasil queriam se assegurar de que o país permaneceria
endividado por muito tempo e de que a economia nacional e o Estado seriam
reestruturados em benefício deles (credores) por meio da contínua pilhagem
dos recursos naturais e do meio ambiente, da consolidação da economia de
exportação baseada na mão‐de‐obra barata e da aquisição de empresas estatais
mais lucrativas pelo capital estrangeiro (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 171).
Iniciado em 1990, o plano Collor previa a promoção de uma política
monetária intervencionista, uma ampla privatização de acordo com os
planos do FMI, demissão de milhares de funcionários públicos, além de
diversos outros cortes nos gastos públicos e salários. Tudo isso visando
a liberação de dinheiro destinado ao pagamento da dívida interna e
externa. No entanto, mesmo seguindo todas as determinações de
Washington o governo brasileiro continuava na lista negra do Fundo
Monetário Internacional. A nova política adotada pelos organismos
internacionais no regime de acumulação integral era marcada por uma
maior rigidez visando a garantia do cumprimento dos acordos
realizado com os credores e “qualquer falha no cumprimento das
exigências dos credores podia se tornar facilmente um pretexto para
represálias ulteriores e a inclusão do país na lista negra”
(CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 173).
144
De acordo com Galvão (2007), durante o governo Collor a tese da
crise fiscal do Estado foi amplamente utilizada como justificativa para
atacar o funcionalismo público e privatizar as principais empresas
estatais (lucrativas, claramente), responsáveis diretos, segundo essa
tese, pela crise fiscal. O governo Collor, poderíamos dizer, deu o
pontapé inicial para que as reformas neoliberais ganhassem volume nos
próximos governos de FHC. Nesse sentido,
embora tenha promovido a abertura do mercado interno, dado início ao
processo de privatização, realizando uma reforma ministerial e colocado
servidores públicos em disponibilidade, Collor não avançou nas reformas
tributária, administrativa, previdenciária e trabalhista, frustrando a expectativa
das classes dominantes em relação à adoção das reformas “orientadas para o
mercado”. Assim, se Collor inaugurou a década de governos neoliberais no
Brasil, foi no governo FHC que o neoliberalismo se consolidou, pois a
estabilidade monetária lhe proporcionou as condições necessárias para aprovar
várias das reformas almejadas (GALVÃO, 2007, p. 65).
O projeto neoliberal brasileiro, colocado em prática após a eleição de
Fernando Henrique Cardoso para presidente, tem como receituário
fundamental o combate à inflação, através do plano de estabilização,
considerado pré‐requisito para o retorno da acumulação de capital,
principalmente dos capitais transnacionais, vale ressaltar. A
desregulamentação da economia torna‐se palavra de ordem, pois a
defesa da abolição da regulação do Estado sobre a economia e sobre a
relação capital‐trabalho passa a ser defendida como a responsável por
todo tipo de distorções e, portanto, deve ser substituída pelo “livre jogo
do mercado”, garantindo, dessa forma, uma distribuição de recursos e
investimentos mais racionais.
Portanto, a retirada do Estado como agente econômico e empresarial
assume papel importantíssimo no engendramento dessa nova ofensiva
do capital a partir de um “Estado mínimo”, ou seja, de um estado que
minimamente cumpra algumas funções sociais básicas, tais como
garantia apenas de educação pública básica, saúde pública – se é que
hoje podemos falar da existência de tal “garantia” ‐, construção e
manutenção de infraestrutura para a reprodução do capital etc. A ideia
central dessa ideologia neoliberal, para não dizer dessa mentira
descarada, é que com a privatização e a redução do Estado de forma
geral, estaria garantida a redução dos gastos públicos e,
145
consequentemente, do déficit público, principal responsável pela
elevação da inflação no país (SOARES, 2009).
A maneira pela qual se conduziu o processo de privatização de
empresas públicas nesse período nos fornece a principal característica
do capitalismo subordinado, qual seja a de proporcionar excelentes
condições para uma maior produção e extração de mais‐valor para os
grandes complexos empresarias transnacionais, em detrimento dos
interesses e das necessidades populares.
A obra O Brasil privatizado – um balanço do desmonte do Estado (2000),
de Aloysio Biondi, consiste numa excelente denúncia da gigantesca
entrega de “mãos beijadas” de todo o patrimônio público, isto é,
patrimônio construído com o mais‐valor extraído dos trabalhadores via
pagamento de impostos e tributos, para milhares de empresas
transnacionais que passaram a acumular cifras bilionárias de capital.
Antes mesmo de realizar a venda de diversas empresas estatais
(telefonia, energia, bancos, redes ferroviárias, estradas, siderúrgicas etc.)
o governo de FHC investiu bilhões na reestruturação das mesmas,
promoveu o aumento exorbitante das tarifas cobradas ao público,
assumiu o ônus de milhares de indenizações e aposentadorias, ao
realizar demissão em massa de trabalhadores, tornando ainda mais
atrativa a “venda” dessas ao capital transnacional. Somado a isso, o
governo ainda concedeu milhares de empréstimos com juros
privilegiados às empresas privatizadas e, ainda, entregou várias
empresas com altas cifras em dinheiro no caixa. Para exemplificar
podemos utilizar o caso da Vale do Rio Doce que ao ser entregue a
Benjamim Steinbruch, contava com aproximadamente 700 milhões em
caixa. O mesmo ocorreu na venda da Telesp à transnacional espanhola
Telefônica (BIONDI, 2000).
Ao contrário do que afirmava o governo ao justificar tamanho
desmonte do Estado, a privatização não foi capaz de atrair dólares para
os cofres públicos e nem tampouco serviu para diminuir a dívida
interna e externa do país, uma vez que
as vendas foram um “negócio da China” e o governo “engoliu” dívidas de
todos os tipos das estatais vendidas; isto é, a privatização acabou por aumentar
a dívida interna. Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais ou brasileiras
que “compraram” as estatais não usaram capital próprio, dinheiro delas
mesmas, mas, em vez disso, tomaram empréstimos lá fora para fechar os
146
negócios. Assim, aumentaram a dívida externa do Brasil. É o que se pode
demonstrar, na ponta do lápis, neste “balanço” das privatizações brasileiras,
aceleradas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (BIONDI, 2000, p.
06).
Outra realidade que demonstra muito bem o quanto o capital
brasileiro é submetido ao capital transnacional é o fato de que não
houve, além de meros acenos, nenhuma imposição do governo às
transnacionais no sentido de coagi‐las a usarem peças e componentes
nacionais na fabricação de seus produtos. É verdade que o governo
chegou a ensaiar a possibilidade de obrigar tais empresas a usarem pelo
menos 35% de peças e componentes nacionais, no entanto, à medida
que os leilões se aproximavam o recuo do governo se ampliava e
diminuía a porcentagem até o ponto de anular tais obrigações. Tal
realidade gerava um rombo enorme visto que promovia uma enorme
transferência de capitais para os países neoimperialistas via ampliação
bilionária das importações e grandes quantidades de falências de
empresas nacionais acompanhadas da elevação do desemprego.
Na prática o processo de privatização não promoveu o que o
governo havia prometido, ou seja, não atraiu dólares para o país, pois o
que de fato ocorreu e vem ocorrendo é um rombo colossal da balança
comercial e um incremento das remessas para o exterior. A maioria dos
novos donos das ex‐empresas estatais não as compraram e nem
realizaram os investimentos previstos com dinheiro próprio. Na
verdade, o que ocorreu foi que nos leilões das estatais as compras eram
realizadas com empréstimos realizados no exterior e tais empréstimos,
acreditem se quiser, eram transferidos para a dívida externa do país,
encorpando os juros que o Brasil deveria pagar aos bancos
internacionais. Tal prática ao contrário do que afirma Biondi (2000) não
representa uma “contradição total por parte do governo”, mas sim,
demonstra o grau de subordinação aos ditames neoimperialistas.
Como era de se esperar, o regime de acumulação integral
subordinado trouxe consequências sociais desastrosas para o Brasil,
bem como para diversas outras nações que compõe o bloco
subordinado na divisão internacional do trabalho. Mas o que se percebe
até aqui é que nas regiões que compõem o bloco subordinado as
desigualdades sociais e a marginalização de parcela significativa dos
147
trabalhadores da divisão social do trabalho tende a intensificar. Isso
decorre do fato de que historicamente tais sociedades acumularam por
séculos um quadro sombrio de pobreza e desigualdade social oriundas
dos modos de produção instalados aqui e de sua correspondente
contraface, isto é, do bloco constituído pelos países imperialistas que
assim se tornaram devido à exploração nas quais submeteu boa parte
da população mundial.
Em outras palavras, o regime de acumulação integral gera níveis de
empobrecimento diferenciados entre o bloco imperialista e o bloco
subordinado, visto que a condição de país imperialista sempre
possibilitou uma maior inserção dos trabalhadores no mercado de
trabalho, melhores acessos a bens e políticas sociais etc. devido à
extração de mais‐valor dos países subordinados e da remessa de lucros
para os países imperialistas. Portanto, sendo a existência de um pré‐
condição para a existência do outro, não seria possível que o bloco
subordinado constituísse as mesmas condições sociais em seus
territórios, ou seja, só existem países imperialistas porque existem
países subordinados e vice‐versa. No entanto, tal constatação não
significa como já foi demonstrado anteriormente, que nos países
imperialistas a classe trabalhadora esteja isenta do empobrecimento
crescente, mas tão somente que nos países subordinados tal
empobrecimento ‐ via lumpemproletarização ‐ tende a ocorrer de
forma intensificada. É justamente com essa discussão que pretendemos
finalizar nosso trabalho.
148
degradas: os sem‐tetos ou, como preferem denominar alguns
estudiosos, a população em situação de rua (SILVA, 2009; VIEIRA et al,
2004).
Uma das teses centrais desse trabalho e que merece ser mencionada
aqui, consiste no seguinte: Tanto no capitalismo imperialista quanto no
capitalismo subordinado – especificamente o caso brasileiro – ocorre
uma expansão da lumpemproletarização, porém, no capitalismo
subordinado, tal expansão ocorre em maior intensidade tanto numérica
quanto em relação ao nível de degradação das condições de existência
dessa classe social. Ao longo dessa discussão, pretendemos demonstrar
essa singularidade do processo de lumpemproletarização no
capitalismo subordinado.
Acompanhando as análises de Pochmann (2005), toda nação possui
um contingente de pessoas em condições de participar da produção
social, tal contingente forma aquilo que ficou conhecido como
População Economicamente Ativa (PEA). No entanto, é válido lembrar
que a PEA representa apenas expressão da potencialidade da produção
social, pois somente parcela dela acaba por ser envolvida diretamente
pela produção capitalista.
Na linguagem marxista, tal realidade seria mais bem expressa a
partir dos conceitos proletarização e lumpemproletarização, pois não
somente a existência de uma classe produtora de mais‐valor é
imprescindível ao capitalismo, mas também o lumpemproletariado que
exerce a função fundamental de proporcionar quantidades cada vez
maiores de extração de mais‐valor, visto que o seu crescimento
possibilita incrementar a pressão dos salários para baixo e a
fragmentação da classe trabalhadora, que vive uma disputa altamente
competitiva no mercado de trabalho, além de ser força de trabalho
reserva potencial, na qual o capital pode lançar mão dela quando
necessitar. É nesse sentido, portanto, que o lumpemproletariado
cumpre seu papel na dinâmica da acumulação capitalista de cada país.
A parte mais nítida do lumpemproletariado é identificada pelo
desemprego aberto, enquanto a parte menos nítida é expressa pelas
diversas formas de subemprego, trabalho extremamente precário e
outros meios garantidores da sobrevivência. Para Pochmann,
149
[...] o desemprego aberto, que corresponde aos trabalhadores que procuram
ativamente por uma ocupação, estando em condições de exercê‐la
imediatamente e sem desenvolver qualquer atividade laboral, indica o grau de
concorrência no interior do mercado de trabalho em torno do acesso às vagas
existentes. O subemprego e outras formas de sobrevivência respondem pela
parte menos visível do excedente de mão‐de‐obra porque envolvem os
trabalhadores que fazem “bicos” para sobreviver e também procuram por
trabalho, assim como aqueles que deixam de buscar uma colocação por força
de um mercado de trabalho extremamente desfavorável (desemprego oculto
pelo trabalho precário e pelo desalento) (2005, p. 78‐79).
Não há homogeneidade nas formas utilizadas por diversos países
para medir o excedente de mão‐de‐obra existente em cada nação. Pelo
contrário, o que há é uma diversidade enorme de formas, conceitos e
procedimentos utilizados para tal fim. Na verdade, concorrem entre si
as diversas maneiras (locais, nacionais e internacionais) de se medir o
excedente de mão‐de‐obra, que vão desde os registros de trabalhadores
cadastrados em agências de emprego, beneficiários de seguro
desemprego, cadastros patronais e sindicais e diversos outros
levantamentos promovidos por agências particulares de investigação
(GUIMARÃES, 2002; POCHMANN, 2005). Contudo, em um aspecto
essas diversas formas de contabilizar o excedente de mão‐de‐obra
possuem concordância: nas últimas décadas tal excedente (composto
pelo lumpemproletariado ‐LB)tem se ampliado, mesmo que em
proporções e intensidades diferenciadas, dependendo da região, em
escala global (DEDECCA, 1999; SILVA, 2009a).
De acordo com Pochmann (2005), é possível identificar pelo menos
três tipos de desemprego no mundo: O primeiro encontra‐se nas nações
com forte concentração nos setores agropecuários em que boa parte da
população é absorvida em atividades realizadas no campo (produção
alimentícia para auto‐suficiência e para a exportação). Nesse setor há
uma tendência do desemprego aberto ser menor.
O segundo tipo de desemprego concentra‐se nas nações
industrializadas, com a maior parte da população envolvida em
atividades essencialmente urbanas.
O terceiro e último tipo de desemprego encontra‐se associado às
nações que após um forte processo de industrialização, concentram suas
atividades em setores mais modernos da economia. Em tais países, há
maiores possibilidades de contenção, mesmo que de forma bastante
150
tímida, do desemprego através das práticas neoimperialistas que
amplia a extração de mais‐valor fora de suas fronteiras nacionais e
possibilita a implementação de políticas públicas que garantem a
manutenção de parcela da população na inatividade sem que essa
constitua nichos de pobreza, através da diminuição da jornada de
trabalho, ou, ainda, para o redirecionamento de parcela da população
desempregada para outros setores da economia, tais como serviços de
saúde, educação, entretenimento etc. Porém, mesmo nesses países o
crescimento do desemprego tem se elevado. Aproximadamente 34
milhões de pessoas se encontram desempregadas nos países que
compõe a OCDE e para o século XXI não são esperadas taxas de
desemprego abaixo dos 10% da PEA (OCDE apud POCHMANN, 1999).
A década de 1990 no Brasil consolida uma ruptura, que veio sendo
construída desde a década anterior, com o modelo de estruturação do
mercado de trabalho dominante entre as décadas de 1930 e 1970, pois o
mercado de trabalho passou a se caracterizar por uma tendência a
redução dos empregos com registro e da expansão do desemprego e da
informalidade. Em outras palavras, a precarização do trabalho se
alavanca a partir dessa década, visto que o número de ocupações não
registradas, ou seja, sem nenhuma garantia trabalhista, cresceu
significativamente em detrimento da eliminação de diversos postos de
trabalhos com registro42 (MATTOSO, 2001). Segundo Pochmann,
em 1989, o total de assalariados representava 64% da PEA e em 1995 havia
passado para 58,2 %, refletindo uma taxa negativa de variação média anual do
emprego assalariado com registro (‐1,4%). Os empregos assalariados sem
registro apresentaram, por sua vez, taxa de crescimento médio anual de 3,12%.
42 “Em 1980, por exemplo, o Brasil possuía cerca de 23 milhões de trabalhadores
assalariados com registro formal e, em 1989, havia passado para 25,5 milhões. No ano
de 1999, contudo, a quantidade de assalariados com carteira assinada havia caído
para 22,3 milhões de trabalhadores, segundo dados do Ministério do Trabalho”
(POCHMANN, 2005, p. 98); Segundo as pesquisas do IBGE ou do DIEESE‐SEADE,
hoje mais de 50% dos ocupados brasileiros das grandes cidades se encontram em
algum tipo de informalidade, grande parte sem registro e garantias mínimas de
saúde, aposentadoria, seguro‐desemprego, FGTS. Ou seja, três em cada cinco
brasileiros ativos das grandes cidades estão ou desempregados (um em cinco) ou na
informalidade (dois em cada cinco), sendo que destes últimos uma grande parcela
apresenta evidente degradação das condições de trabalho e de seguridade social”
(MATTOSO, 2001, p. 16).
151
Em razão disso, ocorreu uma geração média anual de 541,5 mil empregos
assalariados sem registro no mesmo período em exame e uma perda total
estimada em 350 mil empregos assalariados sem registro (1999, p. 75).
Outro fenômeno que cresceu muito no mercado de trabalho brasileiro
é o subemprego ou subutilização da força de trabalho. Em 1989, o
subemprego atingia quase 32% da PEA e em 1995 ele avança para um
patamar próximo de 38%. Sem sombra de dúvidas, tanto o crescimento
vertiginoso do subemprego como do desemprego revelam o processo de
intensificação da lumpemproletarização no Brasil, a partir da década de
1990. O crescimento do desemprego, a partir dessa década, é assustador e
representa o principal fator de crescimento do subemprego. Nesse
mesmo período, o processo de lumpemproletarização atinge a média de
16% ao ano, ou seja, um crescimento de aproximadamente 442 mil
pessoas por ano (POCHMANN, 1999).
Não seria exagero de nossa parte caracterizar o Brasil pós‐década de
1990 como um país essencialmente lumpemproletarizado, pois
independente das distorções que as metodologias oficiais43 de
identificação e medição do desemprego geram é incontestável que nesse
período o país sofre uma verdadeira “epidemia de desemprego”
(POCHMANN, 2005).
Para termos uma ideia da magnitude de tal epidemia basta
percebermos que em 1999, por exemplo,
o Brasil assumiu a terceira posição no ranking mundial do desemprego, pois,
possuía, segundo dados da PNAD do IBGE, 7,6 milhões de pessoas sem
trabalho. No total do desemprego, o Brasil perdeu apenas para Índia,
Indonésia e Rússia (POCHMANN, 2005, p. 101).
Se comparado com os dados da década de 1980, fica nítido que o
país experimentou uma intensificação da lumpemproletarização, pois
43 “Como referencial metodológico oficial no Brasil considera‐se desempregado apenas e
tão‐somente o trabalhador que, além de ter procurado emprego durante o período de
referência da pesquisa, se encontrava apto para o exercício imediato de uma vaga,
sem ter trabalhado nem mesmo uma hora durante a semana da pesquisa, há uma
subestimação na aferição do volume de desempregados” (POCHMANN, 2005, p.
100). Sendo assim, o número de lumpemproletários no Brasil deve ser
significativamente maior do que o oferecido pelas estatísticas oficiais e pesquisas que
se baseiam única e exclusivamente em tais estatísticas e dados fornecidos.
152
no ano de 1986 ocupávamos a décima terceira posição no ranking do
desemprego mundial, quase uma década depois constituíamos os
quatro países com o maior índice de lumpemproletariado no mundo.
Dessa maneira, nota‐se que o desemprego, que na década de 1980 era
relativamente baixo, torna‐se, a partir dos anos 90, um fenômeno de
massa, uma vez que não mais atinge apenas setores específicos da
população, mas, pelo contrário, se generaliza por quase toda a
população economicamente ativa.
A intensificação da lumpemproletarização no Brasil é resultado
direto da acumulação integral subordinada e do neoliberalismo,
também subordinado, que a torna regular a partir de suas políticas de
(des)ajustes sociais. Dentre tais políticas, as privatizações de empresas
estatais adquirem importância fundamental para a compreensão da
expansão do desemprego em massa. O processo de privatização de
empresas estatais na década de 1990 converteu‐se em obrigatoriedade
da acumulação integral no país, uma vez que a geração de receitas
públicas adicionais imprescindíveis para abater parcela das dívidas
originadas por juros elevados tornou‐se fundamental para a
estabilidade monetária. Tal processo concentrou‐se inicialmente nos
setores produtivos estatais, principalmente naqueles formados pela
indústria de transformação, dentre eles o setor petroquímico,
siderúrgico, mineração, fertilizantes etc. e foi responsável pela
destruição de aproximadamente 246 mil postos de trabalho. Na
segunda fase do processo de privatização das estatais, a partir de 1995,
diversos outros setores (telecomunicações, transportes, energias,
estradas, bancos etc.) experimentaram esse processo de enxugamento
de pessoal. Acredita‐se que o mesmo exterminou aproximadamente 300
mil postos de trabalho entre os anos de 1995 a 1999. De acordo com
Pochmann (2001),
do saldo total negativo de 3,2 milhões de empregos assalariados formais
destruídos na economia brasileira durante a década de 1990, 17,1% foi de
responsabilidade direta da reformulação do setor produtivo estatal [...] Em
síntese, a implementação de um novo modelo econômico, sustentado no
imperativo do enxugamento do papel do Estado e na transferência de
atividades produtivas estatais para o setor privado, implicou significativo
ajuste do nível de emprego. Os trabalhadores do setor público foram
153
transformados na principal variável de ajuste do Estado no Brasil nos anos 90
(p. 29‐30).
No período de uma década (1989‐1999), o desemprego expandiu‐se
de 1,8 milhões para 7,6 milhões, proporcionando uma elevação da taxa
de desemprego aberto de 3,0% da PEA para 9,6%. Aproximadamente
3,2 milhões de trabalhadores perderam o emprego no mercado formal e
desses 2 milhões pertenciam ao setor industrial. Em maio de 1999, a
Folha de São Paulo indicava em uma de suas manchetes que o
desemprego no país atingia aproximadamente 10 milhões de
brasileiros. Dependendo da região metropolitana o desemprego
superava 20% da PEA, ou seja, 2,4 vezes maiores ou 140% a mais que o
ano de 1989. O tempo de desemprego médio também se expandiu
significativamente, pois em 1989 esse tempo era de 15 semanas e passou
para 36 semanas em 1998 e atingiu a marca de 40 semanas no início de
1999 (MATTOSO, 2001). Em linhas gerais, a acumulação integral no
Brasil promoveu uma intensificação da lumpemproletarização, pois
ao longo dos anos 90 foram queimados cerca de 3,3 milhões de postos de
trabalho formais da economia brasileira, sendo que desde que FHC assumiu
em 1995 foi contabilizada uma queima de nada menos de 1,98 milhão de
empregos formais, segundo os dados do Cadastro Geral de Empregados
(CAGED), do Ministério do Trabalho. Até maio de 1999 a indústria de
transformação reduziu seus empregos formais na década em cerca de 1,6
milhão (cerca de 73% do que dispunha em 1989) e os subsetores mais atingidos
foram os das indústrias têxtil (‐ 364 mil), metalúrgica (‐ 293 mil), mecânica (‐
214 mil), química e produtos farmacêuticos (‐ 204 mil) e material de transporte
(‐92 mil). A construção civil viu desaparecerem cerca de 322 mil empregos
formais. O comércio também foi duramente atingido (‐294 mil). O setor
financeiro reduziu sua mão‐de‐obra em cerca de 354 mil. Apenas representou
um comportamento positivo o heterogêneo subsetor Serviços, compreendido
por alojamento, alimentação, reparação e diversos (cerca de 160 mil)
(MATTOSO, 2001, p. 18).
Os anos de 2001 e 2002 experimentaram uma pequena redução da
taxa de desemprego de 9,6 para 9,4, todavia é a partir de 2003 que se
constata uma inversão da tendência de crescimento do desemprego,
resultado do aumento da ocupação total da força de trabalho e da
154
redução significativa da taxa de desemprego (SILVA, 2009). De acordo
com o Radar Social44 2006,
o mercado de trabalho brasileiro foi marcado, no período entre 1995 e 2003, por
um significativo crescimento da taxa de desemprego, mesmo num ambiente
onde a proporção de pessoas que participam do mercado de trabalho
(empregadas ou à procura de emprego) variou pouco. Entretanto, esta
tendência foi revertida entre 2003 e 2004, quando houve redução generalizada
do desemprego no país, tanto em regiões metropolitanas como para o total das
regiões não‐metropolitanas. Esta queda também foi observada em
praticamente todas as faixas etárias e grupos selecionados, como mulheres e os
negros (IPEA, apud SILVA, 2009, p. 209).
Vale ressaltar que apesar de várias regiões metropolitanas
brasileiras terem experimentado uma redução significativa do
desemprego, isso não significa que todas as unidades da federação
tenham vivenciado tal redução igualmente, pois ainda que tal redução
tenha ocorrido, os estados com região metropolitana ainda são os que
possuem maior taxa de desemprego no país, segundo constatação do
Radar Social 2006:
O resultado positivo observado na taxa de desemprego, no entanto, não se
reproduziu para todas as unidades da federação [...] Houve aumento do
desemprego em alguns estados do Nordeste (Maranhão, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia), no Distrito Federal e em alguns estados da região
norte. Apesar disso, os estados com grandes regiões metropolitanas continuam
a ser os que apresentam os maiores percentuais de desemprego, com destaque
para São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (IPEA, apud SILVA, 2009, p.
210).
Com o intuito de melhor apreender o caráter intensificado do
processo de lumpemproletarização no Brasil, pretendemos analisar, a
partir de agora, uma das frações do lumpemproletariado historicamente
mais degradadas: os sem‐tetos ou população em situação de rua (PSR).
Para isso, nos apropriaremos dos resultados apontados pela pesquisa
44 “O Radar Social é um instrumento de vigilância das condições de vida da população
brasileira estruturado de forma a oferecer ao leitor um panorama dos principais
problemas sociais do País. É elaborado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas – IPEA. A primeira edição foi impressa em 2005, a segunda, em 2006”
(SILVA, 2009, p. 208).
155
realizada por Maria Lucia Silva, e que resultou na obra Trabalho e
população em situação de rua no Brasil (2009). Os dados e informações
utilizados pela autora em sua pesquisa foram adquiridos
prioritariamente nos Relatórios de Pesquisas sobre população em
situação de rua45, realizadas nas cidades de Porto Alegre, Belo
Horizonte, São Paulo e Recife. Por conta disso, nosso estudo também
focará apenas essas regiões. Vale ressaltar que não há concordância
entre nossa interpretação e a da autora em relação a que classe social
pertence o grupo estudado, pois enquanto para a autora tal segmento
social pertence à classe trabalhadora, para nós trata‐se do
lumpemproletariado.
O Estado de Pernambuco e São Paulo são alguns dos estados da
federação que, segundo o Radar Social 2006, não sofreu redução na taxa
de desemprego, pelo contrário, o desemprego aumentou entre os anos
de 2001 e 2004:
Pernambuco teve taxa de desemprego avaliada em 10,8% no ano de 2001;
10,5%, em 2002; 11,5% em 2003 e 11,9% no ano de 2004. São Paulo, por sua vez,
em 2001 teve taxa de desemprego avaliada em 11,1%, em 2002, em 11,4% e em
2003 alcançou a mais elevada taxa do período, 12,4%, que se reduziu para
11,2% em 2004 (Apud SILVA, 2009, p. 210).
A região metropolitana de Recife fornece um exemplo claro de
intensificação da lumpemproletarização, fundamentalmente da fração
do lumpemproletariado composta pela população em situação de rua,
45 “A noção do sujeito, que constitui o público‐alvo, independentemente das
terminologias usadas nas pesquisas (população em situação de rua, população de rua,
moradores de rua, pessoas de rua ou outra), tem como núcleo central a idéia de
indivíduos ou famílias em situação de pobreza extrema, sem moradia convencional
regular, que utilizam os logradouros públicos (ruas, praças, marquises, baixos de
viadutos, jardins, cemitérios), áreas degradadas (de prédios ocupados, ruínas, carcaça
de carros), como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de
forma permanente, usando, ocasionalmente, albergues para pernoitar, abrigos,
repúblicas e outras formas de moradias provisórias” (SILVA, 2009, p. 145). As
condições de existência expressa na caracterização da população em situação de rua
reforçam nossa tese, segundo a qual, tal população constitui uma das frações que
constitui a classe social que é composta pela totalidade do exército industrial de
reserva. Nesse caso, um dos setores mais degradados do lumpemproletariado: os
sem‐tetos.
156
pois o crescimento dessa classe social sofreu uma grande explosão
demográfica, entre os anos de 2004 e 2005, revelada em um crescimento
de 84,53%. Tal crescimento ainda pode ser bem maior, uma vez que nas
pesquisas censitárias consultadas, apenas foram consideradas “as 1.205
pessoas em situação de rua encontradas em logradouros e não as 1.390
recenseadas, em 2005, incluindo as 185 que se encontravam em
instituições de acolhida temporária, por ocasião da pesquisa” (SILVA,
2009, p. 212). Entre os anos de 2000 e 2003, a população em situação de
rua passou de 8.706 para 10.394 pessoas na cidade de São Paulo. Tal
crescimento revela um aumento de 19,3%. Na capital mineira de Belo
Horizonte, o percentual de crescimento da PSR atingiu a média de 27%
entre os anos de 1998 (916 pessoas) e 2005 (1.164 pessoas).
De forma geral, diversas conclusões atingidas por essas pesquisas nos
possibilitam perceber que durante a vigência do regime de acumulação
integral no Brasil houve uma intensificação da lumpemproletarização.
Dentre as conclusões que nos respalda a fazer tal afirmação, algumas,
dentre várias outras, merecem destaque: o sem‐tetos estão envelhecendo
nas ruas, o número de sem‐tetos com maior índice de escolaridade está
crescendo, assim como tem aumentado absurdamente o tempo de
permanência dessa fração de classe do lumpemproletariado nas ruas
(SILVA, 2009).
Pesquisas realizadas no decorrer de uma década revelam uma
elevação da faixa etária das pessoas que compõe essa fração de classe
do lumpemproletariado brasileiro, tal elevação acompanha a mesma
tendência observada na composição do desemprego, que também se
revelou crescente nas faixas etárias mais elevadas, isto é, entre 40 e 49
anos de idade. De acordo com essas pesquisas, é possível afirmar que
em termos percentuais a PSR “encontra‐se sobretudo na faixa etária
entre 25 e 55 anos” (SILVA, 2009, p. 149).
Especificamente em Porto Alegre, no ano de 1995, a PSR se
encontrava, majoritariamente, na faixa etária entre 29 e 45 anos
(52,25%), já no ano de 1999 a faixa etária majoritária era de 38 a 50 anos.
De forma semelhante, em Belo Horizonte, a faixa etária de 18 a 35 anos
equivalia a 52,82% da PSR, no ano de 1998, enquanto em 2005 a maior
concentração desse público foi registrada na faixa etária de 25 a 40 anos.
Em São Paulo, a PSR concentrou‐se em faixas etárias próximas às de
Porto Alegre, de tal forma que 30,81% das pessoas identificadas, em
157
2000, encontravam‐se na faixa etária de 26 e 40 anos e 33,57%, em 2003,
situavam‐se na faixa etária de 41 a 55 anos. A cidade de Recife encontra‐
se em situação muito parecida com a de Belo Horizonte, pois no ano de
2004 houve um predomínio da faixa de idade entre 19 a 35 anos,
enquanto em 2005 a maior concentração na faixa de 22 a 45 anos,
correspondendo a 35,61% (SILVA, 2009).
Outro aspecto observado nas pesquisas e que configura o perfil
contemporâneo da PSR é a escolaridade. De acordo com Silva (2009),
todas as pesquisas que possuem informações relativas ao público de
PSR que sabe ler, com ou sem grau de escolaridade, revelam que, em
média, 70,04% sabem ler. Nas cidades de Porto Alegre, São Paulo e Belo
Horizonte os percentuais dos que não sabem ler ou analfabetos são
menores que o percentual de Recife, que só em 2005 equivalia a 31,94%
do total da PSR.
Esse percentual, isoladamente, é superior à média geral das quatro cidades
(incluindo Recife), cujas pesquisas servem de fontes neste estudo, que equivale
a 13,47%. Em todas as cidades e em todas as pesquisas, contudo, a maioria dos
recenseados encontra‐se em algum grau de escolaridade entre a 1ª e a 8ª série.
Isso corresponde à média de 68,70% entre as cidades (SILVA, 2009, p. 151).
Na cidade de Belo Horizonte, o percentual de pessoas que não
sabem ler manteve‐se estável (de 8,73% para 8,76%), já o percentual das
que possuem escolaridade entre a 1ª e a 8ª série diminuiu, enquanto o
percentual das pessoas com escolaridade no ensino médio sofreu
pequena elevação (de 6,66% para 7,73%), assim como as que possuem
curso superior (de 1,31% para 1,98%). De certa forma, tais informações
nos possibilitam crer que o processo de lumpemproletarização está se
expandindo para os indivíduos com maior escolaridade (SILVA, 2009).
O Estudo dos usuários dos albergues conveniados com a prefeitura (2006),
promovido pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE),
reforça a tendência do aumento da escolaridade dessa fração de classe do
lumpemproletariado que vive nas ruas de São Paulo, pois, de acordo com
a pesquisa realizada em 2005, das 631 pessoas entrevistadas constata‐se
que a escolaridade é mais alta entre os jovens de até 30 anos e destes 33%
chegaram a ingressar no ensino médio. Tal estudo também demonstrou
que 5% dos entrevistados ingressaram no curso superior e somente 2% o
completaram. De acordo com os estudos realizados pelo Ministério do
158
Trabalho e Emprego – Evolução e taxa de desemprego estrutural no Brasil:
Uma análise entre regiões e características dos trabalhadores (2002), é possível
perceber um movimento semelhante em relação ao desemprego, ou seja,
o mesmo tem se expandido para o grupo de pessoas com maior
escolaridade (Apud SILVA, 2009).
Em relação ao tempo de permanência nas ruas, as pesquisas
realizadas entre os anos de 1995 e 2000 apontam maior concentração da
permanência do lumpemproletariado nas ruas no primeiro ano, até o
quinto ano aproximadamente. Já as pesquisas realizadas entre 2000 e
2005 demonstram que houve uma elevação do tempo de permanência
nas ruas para além dos cinco primeiros anos:
Os percentuais que revelam esse tempo nas ruas, em Porto Alegre, no ano de
1995, correspondem a 27,47% até um ano e a 27,92% entre um e seis anos,
totalizando 55,39% das pessoas em situação de rua, nessa condição, no
máximo, há seis anos. Em Belo Horizonte, em 1998, a predominância desse
intervalo de tempo é ainda mais acentuada, pois, das 916 pessoas recenseadas,
65,17% estavam nas ruas pelo período de até cinco anos, sendo que 423
(46,17%) estavam até um ano nessa situação. A situação de São Paulo era mais
gritante, pois, em 2000, dos 8.706 recenseados, 5.833 (67,00%) tinham até 5 anos
de permanência nas ruas, sendo que 3.744 (43,25%) estavam nessa condição
entre alguns dias e um ano. Já as pesquisas realizadas na segunda metade do
intervalo entre 1995 e 2005 mostram que há uma diminuição do percentual de
pessoas em situação de rua, com tempo de permanência nas ruas de até cinco
anos e uma ligeira elevação dos percentuais das que se encontram na situação
há mais de cinco anos. É o caso das pesquisas realizadas em Recife, em 2004 e
2005, e da pesquisa realizada em Belo Horizonte em 2005. A pesquisa realizada
em São Paulo, em 2003, não oferece esse dado. A primeira pesquisa realizada
no Recife indicou que 47,32% dos 653 recenseados já estavam na rua por um
período de até cinco anos, sendo que apenas 111 pessoas, ou seja, 17,00% se
encontravam na situação por até um ano. A segunda pesquisa, realizada em
2005, indicou que 45,56% das 1.205 pessoas em situação de rua, localizadas em
ruas e logradouros, estavam nessa condição no intervalo de tempo de até cinco
anos, sendo que 19,67% já haviam completado até um ano de permanência nas
ruas e 25,89% entre um e cinco anos. Em 2004, o percentual das pessoas com
mais de cinco anos em situação de rua no Recife era de 51,00%. Em 2005, esse
percentual foi reduzido para 44,48%, observando o crescimento de 1,68%
(2004) para 9,96% (2005) dos que não sabem ou não quiseram informar o
tempo de rua. No caso de Belo Horizonte, a pesquisa de 2005 apontou
acentuada queda no percentual de pessoas que estão na rua por um período de
até cinco anos, comparativamente à pesquisa de 1998. O segundo censo (2005)
demonstrou que, das 1.164 pessoas recenseadas, 48,03% estavam nas ruas até 5
159
anos, sendo que apenas 24,66% tinham trajetória de até um ano nas ruas. O
censo de 1998 indicou que 65,17% dos recenseados estavam com até cinco anos
de tempo de rua. Enquanto isso, elevou‐se o percentual de pessoas que estão
nas ruas há mais de 5 anos. Em 1998, esse percentual era de 27,29%; em 2005,
nessa cidade, esse percentual passou a 30,75% (SILVA, 2009, p. 158‐159).
Em suma, o que se pode apreender de todos esses resultados é que,
durante a vigência do regime de acumulação integral subordinado no
Brasil, a intensificação da lumpemproletarização tem tornado a
condição de marginalizado do mercado de trabalho em um modo de
vida na sociedade capitalista brasileira contemporânea. Nesse sentido,
ao contrário do que afirma a ideologia da exclusão/inclusão social, tal
condição não deve ser apreendida enquanto uma anomalia no interior
da sociedade do capital e que pode vir a ser eficazmente combatida com
políticas sociais garantidoras da inclusão social, mas sim como uma
condição inerente ao processo de acumulação de capital na qual revela,
essencialmente, a finitude, que se alimenta da barbárie, do modo de
produção fundamentado na extração de mais‐valor e que, para se
manter deve, portanto, constantemente ampliar o trabalho morto em
detrimento do trabalho vivo. Dessa forma, o capitalismo brasileiro
promove a intensificação da lumpemproletarização como condição para
o rebaixamento salarial, para a intensificação e precarização do trabalho
e, consequentemente, ampliação da extração de mais‐valor.
Para finalizar, discutiremos um pouco mais sobre a tentativa de
ocultar o processo de intensificação da lumpemproletarização no Brasil
que se encontra por detrás do véu ideológico da exclusão social. Pois
bem, de acordo com Viana (2009) o construto ideológico46 exclusão
social revela, primeiramente, um problema de cunho teórico‐
metodológico, pois ao se fundamentar numa concepção dualista da
sociedade (incluídos e excluídos socialmente), obscurece‐se a realidade
concreta, que é constituída, como temos demonstrado ao longo de todo
esse trabalho, pela totalidade das classes sociais que revela sua
dinâmica na luta entre classes. Logo, “na concepção dualista da
sociedade, só existiriam os incluídos e os excluídos, como se fossem
independentes e separados, faltando aqui também a ideia de relação, no
interior de uma totalidade” (VIANA, 2009, p. 248).
46 Sobre construto e falso conceito Cf. VIANA, 2007.
160
Além disso, continua a análise de Viana, a ideologia da
inclusão/exclusão social desenvolve uma homogeneidade fictícia entre
incluídos e excluídos, sem, no entanto, demonstrar quem seriam uns e
outros. Mas, quem seriam os incluídos e os excluídos? Os primeiros
seriam compostos pelos capitalistas, operários, burocratas, camponeses
etc. que formariam uma totalidade homogênea: os incluídos. Já os
segundos, seriam formados pelos desempregados, mendigos,
moradores de rua, índios aculturados e empobrecidos etc., ou seja, “são
todos partes de uma totalidade homogênea, oposta e não relacionada
com a primeira” (VIANA, 2009, p. 248).
Dividindo a sociedade entre incluídos e excluídos, a ideologia
dominante revela seus valores que apontam para a necessidade de
incluir os excluídos, pois, nesse discurso, o mundo dos incluídos passa a
ser encarado como a única saída para a condição de excluído social.
Todavia, essa ideologia não deixa claro que mundo dos incluídos é esse
que supostamente se pretende inserir os excluídos. Obviamente, não se
pretende incluí‐los entre os privilegiados da sociedade capitalista
(capitalistas e suas classes auxiliares), mas sim nas classes exploradas.
É claro que, por mais que a classe trabalhadora esteja submetida à
alienação e a toda mais‐violência derivada das relações de trabalho
dominantes no regime de acumulação integral, pertencer ao
lumpemproletariado, que no mundo fictício da ideologia equivale a
estar excluído, representa desgraça ainda maior e, portanto, a inclusão
se apresenta como de bom tamanho. No entanto, outro interesse de
classes se obscurece diante de tamanho véu ideológico. Trata‐se do
interesse em evitar que esse grande contingente de “excluídos”,
potencialmente contestador, represente uma ameaça a existência da
sociedade capitalista e, assim sendo, garantir a inclusão desses significa,
por conseguinte, “que ele deixe de ser uma ameaça para a permanência
dessa sociedade. A ideologia da necessidade de inclusão revela, no
fundo, essa preocupação com a integração” (VIANA, 2009, p. 249).
Como toda ideologia, a da exclusão social não pode revelar sua raison
d’être e, dessa forma, ela deve ser meramente descritiva e de forma
alguma explicativa, pois revelar o que está por detrás dela alimentaria
seu desejo oposto: a luta de classes.
A emergência do movimento piquetero argentino e a radicalização
que suas lutas atingiram, demonstram claramente como a intensificação
161
da lumpemproletarização representa uma perigosa ameaça à
reprodução da sociedade capitalista, pois no regime de acumulação
integral há uma tendência do lumpemproletariado em adquirir uma
maior potencialidade contestadora. Tal potencialidade, se aliada ao
movimento operário revolucionário pode construir um bloco
revolucionário que aponte para a superação do capitalismo e construção
de uma sociedade verdadeiramente humana, fundada na autogestão
social. A forma organizacional do movimento piquetero, baseada nas
assembleias populares nos bairros, na horizontalidade das decisões, no
caráter autogerido de suas ações etc. resgata experiências
organizacionais revolucionárias, desenvolvidas pelos conselhos
operários em diversos momentos das tentativas de revoluções
operárias, ocorridas ao longo de todo o século XX, em diversas regiões
do mundo e contribui para o avanço da consciência de classe. Nesse
sentido, é possível afirmar que o lumpemproletariado, no regime de
acumulação integral subordinado, tende a adquirir um caráter mais
contestador e maior possibilidade de uma aliança revolucionária com o
proletariado.
No Brasil, apesar da intensidade do processo de
lumpemproletarização no regime de acumulação integral, não se
experimentou nenhuma ação radicalizada por parte do
lumpemproletariado. No entanto, diversas organizações,
majoritariamente compostas por lumpemproletários, começam a
emergir e lutar por reformas e mudanças sociais. Dentre tais
organizações, poderíamos citar os diversos movimentos de
trabalhadores desempregados espalhados (MTDs) por várias regiões do
país, assim como os movimentos de trabalhadores sem teto (MTST).
Esse último vem promovendo em diversas cidades brasileiras a
ocupação de terras urbanas e prédios abandonados e lutando contra a
especulação imobiliária nos centros urbanos. Assim como vários outros
movimentos sociais, os movimentos sociais compostos
majoritariamente pelo lumpemproletariado, como é o caso dos MTDs e
MTSTs, também vem sofrendo com a prática de criminalização dos
movimentos sociais e da pobreza no Brasil.
Em síntese, a acumulação integral no Brasil, assim como em várias
outras regiões, possui uma singularidade que se revela na sua condição
de subordinado aos ditames dos países imperialistas. Tal singularidade
162
reflete no processo de lumpemproletarização que, por sua vez, tende a
se intensificar, visto que as necessidades neoimperialistas geram no
bloco subordinado um Estado neoliberal também subordinado que se
encarrega, sem cerimônias, de criar as condições mais favoráveis para
uma acumulação integral. Dentre tais condições, a
lumpemproletarização se destaca por se apresentar, desde sempre,
como uma das grandes alavancas dessa acumulação capitalista integral
subordinada.
163
164
CONCLUSÕES
Apontar as principais determinações do processo de expansão da
lumpemproletarização no regime de acumulação integral e suas
particularidades no Brasil foi o principal objetivo da pesquisa que
realizamos. A trajetória cursada possibilitou as conclusões a seguir, que
confirma a hipótese da qual partimos.
Assim como o proletariado e a burguesia, o lumpemproletariado é
uma classe social inseparável do modo de produção capitalista e,
portanto, esteve presente ao longo de toda a história desse modo de
produção. Contudo, essa classe social sofreu alterações quantitativas e
qualitativas na sua composição desde o século XIX aos dias atuais. Se
em outros contextos históricos a condição de lumpemproletário era
acompanhada pela possibilidade de uma nova proletarização, no
regime de acumulação integral tal possibilidade tem se tornado cada
vez mais difícil e a condição de marginalizado da divisão social do
trabalho tem se tornado um modo de vida de milhares de indivíduos
em todo o mundo.
Reconhecer a história do capitalismo e das classes sociais que o
compõe como sendo a história da sucessão dos regimes de acumulação,
que tem na luta de classes sua força propulsora, representou o fio
condutor geral desse trabalho. Nesse sentido, nossa análise procurou
compreender a formação e desenvolvimento do lumpemproletariado
como consequência fundamental da luta de classes entre burguesia e
proletariado pelo controle sobre o tempo de trabalho utilizado para
extração de mais‐valor. Percebemos que no regime de acumulação
integral, a expansão do processo de lumpemproletarização adquire
níveis vistos somente no primeiro regime de acumulação (extensivo) e
isso decorre da dinâmica do regime de acumulação integral.
Em resposta à crise capitalista da década de 1960, marcada pela
tendência declinante da taxa de lucro e pela radicalização das lutas
sociais, é que emerge o regime de acumulação integral como uma
contraofensiva da burguesia aos interesses do proletariado. Essa
contraofensiva fundamenta‐se nas três partes constituintes do regime
de acumulação integral: toyotismo, neoliberalismo e neoimperialismo.
165
A execução de um conjunto de medidas denominada de
“reestruturação produtiva”, acompanhada do neoliberalismo enquanto
forma estatal que a tornasse regular representou as principais causas da
expansão da lumpemproletarização na contemporaneidade.
Mesmo em países imperialistas como os EUA a
lumpemproletarização tem se expandido significativamente para
diversas outras classes sociais e não apenas para o proletariado. Essa
expansão tem promovido uma degradação geral nas condições de vida
dos principais bairros da periferia de grandes cidades norte‐americanas
e vem coagindo a população local, principalmente os jovens, a
sobreviverem, essencialmente, de esmolas, do roubo e do tráfico de
drogas. Em resposta a essas condições, o governo norte‐americano vem
promovendo uma verdadeira guerra contra o lumpemproletariado que
tem resultado numa explosão demográfica carcerária jamais vista na
história da humanidade.
Na Argentina, o processo de lumpemproletarização que se inicia
ainda no início da década de 1980, sofre uma intensificação a partir da
década de 1990. Tal intensificação se revela nos elevados índices de
desemprego e de pobreza que atingiu aproximadamente metade da
população nacional. Devido a essa intensificação ocorrida em um curto
prazo de tempo, os conflitos sociais também se intensificaram e o
lumpemproletariado organizado (movimento piquetero) tornou‐se um
dos principais atores sociais em luta contra as drásticas conseqüências
impostas pelo regime de acumulação integral subordinado. O
protagonismo e radicalidade adquirida pela luta piquetera comprova
nossa tese segundo a qual não se pode afirmar que o
lumpemproletariado é, por essência, conservador e reacionário, mas sim
que sua postura política sofre alterações segundo o contexto histórico e
a correlação de forças sociais existentes. Porém, constata‐se que há uma
tendência na contemporaneidade do lumpemproletariado se tornar
uma classe social mais contestadora e, por conseguinte, representar uma
maior ameaça à manutenção da sociedade capitalista.
O principal objetivo desse trabalho foi buscar respostas ao seguinte
problema: O regime de acumulação integral subordinado no Brasil
promoveu uma ampliação da lumpemproletarização? Para responder a
essa questão central buscamos analisar as especificidades desse regime
de acumulação no Brasil e analisar se suas consequências sociais,
166
principalmente a lumpemproletarização, foram intensificadas.
Constatamos que a condição de subordinação aos interesses
neoimperialistas gerou um estado neoliberal também subordinado que
promoveu uma devastação do patrimônio público através de um amplo
processo de privatização de empresas estatais, da demissão em massa
de funcionários e de um aumento colossal do desemprego no Brasil. A
intensificação da lumpemproletarização pôde ser mais bem notada na
expansão de uma das frações de classes mais degradadas: a população
em situação de rua ou sem‐tetos. A situação de rua dessa fração de
classe tem se tornado um modo de vida de milhares de pessoas no
Brasil. Isso pode ser apreendido no aumento do tempo de permanência
nas ruas, no envelhecimento dessa classe social nas ruas e na expansão
desse fenômeno para pessoas com capital cultural cada vez mais
elevado. Portanto, concluímos que o Brasil, na era da acumulação
integral, tornou‐se um país amplamente lumpemproletarizado.
167
168
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Sobre o autor
Lisandro Braga é doutorando em sociologia pela Universidade Federal de
Goiás/UFG, professor de Teoria Política e Movimentos Sociais da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul e autor de diversos capítulos de livros, assim
como organizador das obras A questão da organização em Anton Pannekoek
(BRAGA & VIANA, 2011) e Intelectualidade e luta de classes (MARQUES &
BRAGA, 2013). Atualmente desenvolve pesquisa sobre a repressão policial e
criminalização do movimento de desempregados na Argentina.
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