Há muitas lendas sobre a escravidão brasileira. Uma das
mais duradouras é a de que Rui Barbosa teria mandado destruir os arquivos da escravidão, nos impedindo de estudá- la. A lenda é da mesma natureza da que negava uma história ao continente africano. Em primeiro lugar, a história não se faz apenas com documentos. Em segundo, a escravidão nos legou inúmeros tipos de documentos não escritos, orais (canções, autos populares, contos e poemas, ditos folclóricos, causos, chistes, anedotas etc.), rituais religiosos, obras de arte (pinturas, esculturas, charges, ilustrações de jornais e revistas), fotografias e edificações, sem falar de uma abundante literatura culta de ficção. A lista de objetos materiais e “imateriais” que contam a história da escravidão é infinita. São várias vozes, insuspeitas para o senso comum. Mesmo documentos em papel nunca faltaram, como por exemplo no caso de Palmares, sobre o qual se reuniram nos últimos anos mais de sete mil documentos, no Brasil, na África, em Portugal, na Espanha, na Inglaterra, na França, na Holanda e, até mesmo, na Dinamarca. Mesmo que a história se fizesse somente com papéis, o pobre Rui estaria absolvido. Seu decreto, assinado enquanto exercia o cargo de Ministro da Fazenda do primeiro governo provisório (1889-1890), mandava queimar “todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério da Fazenda” (o grifo é meu). Adiante, o decreto especifica que também serão incinerados, depois de remetidos à capital, as matrículas dos ingênuos (menores de idade), filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários. No parágrafo final, Rui Barbosa nomeia uma comissão para supervisionar a queima, da maneira que achasse melhor. Poucas repartições fazendárias, afundadas em burocracia e negligência, cumpriram o decreto. E, se todas cumprissem, ainda assim o dano seria pequeno, pois a esmagadora maioria dos documentos oficiais sobre a escravidão não se encontravam nas repartições do Ministério da Fazenda, mas em registros de polícia, tribunais, igrejas, cartas e diários de particulares etc. Portanto, a simples leitura atenciosa do decreto – apoiado, aliás, pelos abolicionistas mais radicais – desfaz a lenda. As lendas históricas são, em geral, um misto de ignorância inadvertida e esperteza intencional. Lideranças de movimento negro atual em geral supervalorizam a decisão de Rui: a lenda, nesse caso, vive da repetição. Caíram no ardil da história oficial – que valoriza unilateralmente a história dos vencedores – ao repetirem ser impossível levantar a história da escravidão por “falta de fontes”. Essas considerações não esgotam, contudo, a questão. Por que teria Rui Barbosa mandado incinerar documentos das suas repartições? A resposta se encontra nos últimos meses antes da Lei Áurea. Consciente de que o fim da escravidão chegara, a liderança escravocrata pressionou, como já fizera no caso da Lei do Ventre Livre e na dos Sexagenários, para receber do Estado uma indenização pelos escravos que perderia. Esse lobby, como hoje se diz, encontrou resistência nos abolicionistas, a começar por Rui Barbosa, Antônio Bento (aquele fazendeiro fundador dos caifases), Raul Pompeia, André Rebouças e outros, que achavam o contrário: se alguém merecia indenização era o ex-escravo. Rebouças, engenheiro negro de prestígio, não abria mão de uma abolição com “reforma agrária”, que garantisse aos libertos um lote de terra. Nesse clima, Rui acabou com a pretensão dos senhores indenizenistas por meio da destruição de documentos que comprovassem aquele direito à indenização pretendida. Se haviam pago impostos alfandegários, registros de compra e venda e taxas correspondentes, poderiam comprovar o seu direito à indenização. Para os abolicionistas, era melhor destruir esses documentos. Para alguns, é verdade, o decreto de Rui se justificava por uma razão moral: apagar a “mancha negra do cativeiro que nos envergonhava como nação”. Para esses, o que se esconde não existe.