Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
1 Introdução
De modo geral, a área da educação infantil no Brasil tem obtido conquistas e importantes
avanços nas últimas décadas como campo de conhecimento científico, de atuação docente e de
políticas educacionais. Concebe-se a criança no tempo presente como sujeito e produtora
cultural, portadora de voz no cenário sócio-histórico em que está inserida (FARIA; FINCO,
2011). Em que pese outras considerações, cabe, ainda, garantir que experiências essenciais para
as crianças façam parte de um planejamento bem estruturado (ANGOTTI, 2010), com
fundamentação sociológica, histórica, cultural, filosófica e científica.
Nos novos contornos que se delineiam para esse campo, superando o aspecto do
assistencialismo para configurar-se como processo educativo, emerge repensar a formação
docente para atuação com as crianças pequenas. Para tanto, a universidade pública, com as
funções de formação, pesquisa e extensão, exerce papel fundamental para a socialização (e
construção) dos conhecimentos científicos de diferentes áreas que fundamentam o
desenvolvimento infantil pleno, como a Sociologia, Antropologia, Educação Física, Artes,
Psicologia, a própria Ciências da Educação, entre outras.
Buscamos, há cerca de seis anos, a parceria entre a Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” e a Secretaria Municipal de Bauru, por meio da promoção de programas de
formação continuada de professores, cujo objetivo macro assenta-se em (re)construir,
permanente e coletivamente, a intervenção pedagógica dos conhecimentos da cultura corporal
de movimento na educação básica, mediante saberes profissionais e estudos filosóficos,
históricos, científicos e metodológicos.
No decorrer de tal atuação, que nos propiciou compartilhar experiências com
professoras pedagogas e de educação física, atuantes na educação infantil e anos iniciais do
ensino fundamental, pudemos constatar possibilidades, dificuldades e desafios para o trabalho
pedagógico com a cultura corporal com as crianças.
Nesse sentido, dentro das manifestações que integram a cultura corporal de movimento,
ressaltamos o potencial de trabalho com os conteúdos do yoga na infância, uma prática capaz
de estimular o autoconhecimento e o autocuidado, orientar e conscientizar as crianças sobre
suas emoções, orientar a formação de valores (yamas e nyamas), proporcionar saúde e bem-
estar por meio de posturas físicas (ásanas) e respiratórias (pranayamas), além de técnicas de
atenção e concentração. A prática de yoga apresenta potencial para ser adaptada à infância e ao
contexto escolar, sobretudo mediante o reconhecimento da dimensão lúdica da infância para
integrá-lo ao cotidiano educacional por meio jogos e brincadeiras, imitação de animais,
contação de histórias, ao som de músicas diversas etc.
Com esse propósito, propomos no âmbito dos projetos do Núcleo de Ensino da Pró-
Reitoria de Graduação da Unesp, construir coletivamente com professoras pedagogas da
educação infantil da rede pública municipal de Bauru, material didático-pedagógico para
subsidiar o ensino do conteúdo yoga com as crianças. Para tanto, o projeto que encontra-se em
andamento neste ano de 2015, pretende: - Investigar os saberes e as concepções que as
professoras possuem acerca do yoga; - Identificar as dificuldades e as possibilidades de trabalho
com o conteúdo yoga na educação infantil; - Planejar, organizar e produzir material didático-
pedagógico para o ensino do yoga e técnicas de respiração, de relaxamento e automassagem,
na educação infantil, articuladamente à Proposta Pedagógica do Sistema Municipal de Ensino
de Bauru-SP para a área de Cultura Corporal. Entendemos que o alcance desses objetivos
contribuirá com a formação continuada das professoras pedagogas da educação pública e a
prática pedagógica relacionada à área do movimento corporal na infância.
A produção coletiva justifica-se por meio da necessidade de construir um material
didático-pedagógico elaborado e adaptado em conjunto com as professoras de acordo com a
realidade e necessidade de suas turmas, de modo a possibilitar e subsidiar a inserção e
desenvolvimento do yoga com as crianças na educação infantil. O processo terá suas bases nas
vivências das professoras no cotidiano escolar, valorizando os saberes da experiência, em
diálogo com as produções teóricas sobre a temática. A questão está em articular dialeticamente
as dimensões teoria e prática e promover aprendizagens para todos os envolvidos
(professores(as), estudantes, pesquisadores(as)). Como bem diz Freire (1996, p. 22) “a reflexão
crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode
ir virando blablablá e a prática, ativismo”.
Para efetivar tal propósito, no processo de construção desse material consideramos a
necessidade de inicialmente realizar vivências de yoga com as crianças da educação infantil,
como forma de avaliação diagnóstica, para fundamentar uma proposta baseada na realidade
concreta das escolas, vivida pelas crianças e pelas professoras no processo educativo. Tal
avaliação diagnóstica foi possível considerando que se trata de uma pesquisa-ação, na qual as
professoras pedagogas são protagonistas da construção de todo o processo. Nesse
encaminhamento, são realizados encontros de formação nos quais as professoras participantes
do projeto vivenciam as práticas de yoga (posturas, respirações, relaxamento, valores éticos e
morais) e o grupo (professoras, pesquisadores e estudantes de graduação) promove estudos e
discussões sobre as possibilidades de inserção dessa prática com as crianças.
É neste contexto em que se insere a pesquisa apresentada neste trabalho, cujo objetivo
consistiu em identificar as possibilidades e desafios da mediação pedagógica do conteúdo yoga
na educação infantil.
3 Metodologia
A pesquisa fundamentou-se na abordagem qualitativa, considerando que nesse tipo de
investigação, pesquisador e participante estão em constante contato, buscando uma construção
social por meio da interação entre as partes (ALVES, 1991). No repensar da formação de
professores sobressai a relevância da pesquisa-ação, envolvendo pesquisa e intervenção, em
busca de resultados mais eficazes. Como enfatiza Gómez (1998, p. 101),
[...] a intencionalidade e o sentido de toda investigação educativa é a
transformação e o aperfeiçoamento da prática. A dissociação habitual entre a
teoria e a prática desvirtua o caráter educativo da investigação, já que impede
ou dificulta o vínculo enriquecedor entre o conhecimento e a ação, para
desenvolver uma ação informada e reflexiva ao mesmo tempo que um
conhecimento educativo, comprometido com opções de valor e depurado nas
tensões e resistências da prática.
Pesquisadores da área de Educação Física, como Bracht et al. (2002) e Betti (2009),
facultam que a metodologia da pesquisa-ação apresenta-se como a mais relevante para produzir
conhecimentos e buscar soluções para as questões da prática pedagógica na área de
conhecimento da Educação Física. Para Betti (2009) a pesquisa-ação apresenta-se como a
melhor alternativa (ainda que não deva ser considerada como a única possibilidade de pesquisa
e formação docente) para articular o projeto de Educação Física na escola – a apropriação crítica
da cultura corporal de movimento – com a meta da ciência, que consiste em produzir
conhecimento no confronto com o mundo. Os pressupostos desta metodologia permitem
romper com as tradicionais relações de poder entre pesquisador e pesquisado, na busca de
superar o autoritarismo do discurso científico que se pretende superior aos outros
saberes/conhecimentos. Ainda, baseia-se no diálogo permanente com a realidade, com a prática
pedagógica e seus atores, descentralizando o papel de solucionadores possivelmente atribuído
aos pesquisadores.
Nesta pesquisa-ação participaram 29 professoras com formação em Pedagogia, atuantes
na Educação Infantil da rede pública municipal de ensino de Bauru-SP.
O desenrolar das ações ocorreu da seguinte forma:
- os agentes formadores (professores-pesquisadores da universidade e estudantes de
graduação em Educação Física) propuseram atividades lúdicas com os conteúdos de yoga, as
quais foram vivenciadas pelas professoras nos encontros de formação. As brincadeiras
apresentavam como objetivos a vivência de ásanas (posturas), o desenvolvimento dos valores
éticos e morais do yoga (yamas e nyamas) associando-os ao dia a dia, auxiliar a estabilização
do ritmo da respiração, ampliar a flexibilidade de pescoço, ombros e coluna, melhorar o
movimento articular e fortalecer os músculos dos braços e punhos. Após as vivências houve
debate e reflexão sobre as possibilidades de desenvolvimento das brincadeiras com as crianças.
- No segundo momento, as professoras desenvolveram tais atividades com seus grupos
de crianças da educação infantil e produziram, por escrito, os relatos das experiências e as
adaptações necessárias, considerando as características das crianças, como interesses e faixa
etária, por exemplo.
- No retorno aos encontros de formação, em sessão de grupo focal foram relatadas as
intervenções com as crianças. A relevância da técnica de grupo focal para esta pesquisa está em
permitir “emergir uma multiplicidade de pontos de vista e processos emocionais, pelo próprio
contexto de interação criado, permitindo a captação de significados que, com outros meios,
poderiam ser difíceis de manifestar” (GATTI, 2005, p. 9).
A análise dos dados coletados com as narrativas escritas e o grupo focal emergiu em
eixos de análise relacionados às experiências positivas e desafios postos para o trabalho
didático-pedagógico do yoga com as crianças na educação infantil.
Precisamos superar a ideia que, por vezes, permeia a escola: a dicotomia corpo e mente,
sendo predominante a supervalorização dos conhecimentos dito intelectuais em detrimento de
outras linguagens da criança. Kishimoto (2001, p. 7), pensando no contexto da educação
infantil, questiona a participação do corpo e do movimento na educação, enfatizando que “a
fragmentação e compartimentalização de aspectos do desenvolvimento infantil (físico,
intelectual, psicológico, social) espelham-se nas concepções dos profissionais, na organização
do espaço físico, materiais e práticas pedagógicas”. Tem de se romper com a ideia de que “na
sala de aula ocorre o desenvolvimento intelectual e psicológico, no pátio, o físico e social”.
Cabe atentar-se aos mal-entendidos existentes nos ambientes escolares ao designar os
trabalhos corporais, gestuais, de expressão, ludicidade e afetividade como específicos do
professor de educação física, uma vez que ao ingressar na educação infantil, a criança amplia
sua socialização, estabelece novas relações, constrói e apreende novos significados o tempo
todo. A pedagoga pode e deve promover conteúdos e vivências que propiciem o
desenvolvimento da linguagem corporal por meio de experiências formadoras, que podem ser
adquiridas nas relações ao trabalhar-se com o lúdico, jogos e brincadeiras, reflexões e
socializações das relações e valores que se estreitam nessas ações e que são formativas (VAZ,
2002).
O autor acima ressalta que atribui-se como especificidade da educação física as
“técnicas corporais e dos cuidados com o corpo em ambientes educacionais”, entretanto as
atividades e experiências que permeiam tais situações se dão também em momentos distintos,
como hábitos de higiene e alimentares, aprendizagem de conteúdos de linguagem escrita e oral,
por exemplo, relações de gênero, conflitos, diversos outros momentos do cotidiano escolar e
vão além dessas técnicas e cuidados (VAZ, 2002, p. 3). Isto implica em repensar a concepção
que fundamenta as práticas pedagógicas e de formação do docente, para não cair na
“disciplinarização de seus próprios corpos” (SAYÃO, 2002, p. 58). É necessário, portanto,
como afirma Rossi (2013), salientar que a formação da criança não deve ser desfragmentada, e
sim repensada de maneira coletiva entre os profissionais de diferentes áreas, não tornando o
movimento, a linguagem corporal, especificidade de uma única disciplina.
Considerações finais
No percurso de identificar as possibilidades e desafios da mediação pedagógica do
conteúdo yoga na educação infantil, constatamos a partir das primeiras intervenções realizadas
pelas professoras, o interesse das crianças em conhecer e vivenciar novas brincadeiras e
posturas distintas das quais estão habituadas e, por consequência, a participação efetiva e
cooperação nas brincadeiras propostas. Ainda, a satisfação e o entusiasmo das professoras
respalda os benefícios da prática de yoga tanto para as crianças como para elas próprias.
Entretanto, alguns desafios foram postos, tais como adequar as práticas e vivências a cada faixa
etária e às suas necessidades específicas, assim como ultrapassar as barreiras que deslocam o
trabalho do movimento corporal para os espaços e tempos reservados para as aulas de educação
física.
O alcance deste processo, caracterizado pela pesquisa-ação, ultrapassou a esfera dos
conhecimentos técnicos da área da Educação Física, pois as professoras associaram as
experiências positivas com as crianças também como resultado de seu envolvimento pessoal
com a prática de yoga nos encontros de formação. Isto demonstra que a formação continuada
abrange várias questões para além dos conteúdos específicos veiculados nas ações formativas.
Na Educação Física (mas não somente nela) a formação prescinde do caráter estético e criativo,
além do crítico, de modo a provocar a construção de significados profissionais e pessoais,
instaurando outras relações entre o professor, o conhecimento e a prática pedagógica. É o
movimento como deflagrador da reflexão e do sentir. É a formação do ser humano em sua
totalidade (ROSSI, 2013), assim como o yoga que proporciona a percepção da autoconsciência,
autoconfiança e corporeidade do indivíduo como um ser integral.
Concluímos, com esta pesquisa, relevante receptividade do conteúdo de yoga tanto por
parte das crianças como das professoras. Torna-se fundamental a conclusão do processo de
construção do material didático-pedagógico – articuladamente às ações de formação continuada
das professoras – como um elemento norteador e organizador das metodologias pedagógicas
do yoga, com vistas a ampliar as ricas possibilidades de movimentos corporais no contexto da
educação infantil. Essa construção ganha relevo ao contemplar a dimensão coletiva, envolvendo
as professoras que atuam com as crianças no cotidiano escolar, para que sejam protagonistas
tanto na produção do conhecimento como na sua socialização. Yoga significa união e, seguindo
esse princípio, a colaboração e coletividade no processo que estamos construindo têm o objetivo
de superar, como enfatiza Gómez (1997), a concepção de que à universidade cabe a produção
do conhecimento e aos profissionais do ensino básico a mera aplicação ou transposição didática.
REFERÊNCIAS
ANGOTTI, M. Educação infantil: para que, para quem e por quê. In: ______ (Org.).
Educação infantil: para que, para quem e por quê? 3. ed. Campinas, SP: Editora Alínea,
2010. p. 15-32.
BETTI, M. Educação Física e Sociologia: novas e velhas questões no contexto brasileiro. In:
CARVALHO, Yara Maria de; RUBIO, Katia. Educação Física e Ciências Humanas. Hucitec:
São Paulo, 2001.
______. Educação Física escolar: ensino e pesquisa-ação. Ijuí: Editora Unijuí, 2009.
BORELLA, A.; ROSE, A; BARBOSA, C.E.G.; TACCOLINI, M. Livro de ouro do Yoga. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2007.
FREIRE, P.Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
PRADO, G. A.O. O yoga educacional e suas contribuições para a atuação docente. 2014. 36f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação)-Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2014.
SILVA, J. A. IOGA: como disciplina na grade curricular das escolas. 2013. 82f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação)-Universidade de Brasília, Brasília, 2013.