Sunteți pe pagina 1din 58

Leg A LOGOTERAPIA

CLAUDIO GARCIA' PINTOS


rwícmww
GARCIA' PINTOS

A LOGOTERAPIA
EM CONTOS
O livro como recurso terapêutico

çâ
PAULUS
Título original
La Iogoterapia en cuentos
© San Pablo. Buenos Aires. Argentina. 1996.

Tradução
Thereza Christina F. Stummer

Revisão
Iranildo B. Lopes

Ãymadedamd
A Iamara, Elizabeth, Antonio Carlos, GabrieL Elisabeth,
por me haverem permitido publicar os seus trabalhos.
Ao meu amigo Luiz Falcão, porque, com essa mescla
de m'ocência e genialidade, alegra 0 meu espín'to
com tudo o que escreve.
\ A Coco, pela sua nobreza.
A Doutora Martha Iglesia, por tudo.

A Fátima, porque no seu coração sempre encontro


amparo e luz.
AAgustín e Federico, que enchem a minha vída de amor,
alegria e projetos.
AJavier e Macarena, meus ñlhos do coração.
A Graciela, porque nela sempre
encontro o calor de que necessito para ser feliz.

© PAULUS - 1999
Rua Francisco Cru2, 229
04117~091 São Paulo (Brasi|)
Fax (011) 570-3627
Tel. (011) 5084-3066
httpzllwww.paulus.org.br
dir.editon'al@paulus.org.br

ISBN 85-349-1343-9
ISBN 950~861-256-8 (ed. original)
quuwe este livro na parte
doente do paciente e a cura
pode ser milagrosa. ”

Leopoldo MARECHAL
Escñlor argentino (l9001970)

INTRODUÇÃO

Sobre a biblíoterapia

A dor, a pena, o sofrimento, são alternativas cotidíanas e


comuns à natureza e à realidade humana. Constituem pressu-
postos básicos da exístência do homem, de tal modo que negá-
los ou crer que podem ser erradicados e', em última análise,
uma utopia que, caso se concretizasse, de1x'aria a existência
mesma sem sustento. Não se trala de uma apologia do sofri-
mento, mas de añrmar a sua inegável realidade e a sua inevitáv
vel presença no honz'0nte humano. Cada dia somos mais hom-
bardeados com a idéia e a suposta solução de uma vida pra-
zerosa, hedonista, livre de sofrimento e pesar. Se você dirige
determinado automóveL ou se toma determinada bebida ou
fuma aquele Cigarro, se usa este creme contra 0 envelhecimen-
to ou viaja para aquela praia da moda, enñm, parece haver tan-
tas maneiras de se chegar a experimentar a “plenitude do pra-
zer” terreno “isento” de sofrimento que é uma tolice sofrer,
fazêlç como se a pessoa realmente fosse um ser humano.
E que curiosamente esquecemos a nossa própria reali-
dade humana, a eSVdZ'ÍamOS, ou acabaremos por esvaz'ia'-la,
daquilo que a redime ou que a eleva, lhe dá identidade como
humana. Nós a esvaziamos de valores.
A vida humana é uma realidade dinam^ica, vale dlz'er, em soais (proñssão, posição socioeconômica e cultural etc.), cres-
movimento, em permanente mudança. Mas se desenvolve em ciment0, participação em grupos de diversos tipos etc.;
um honz'onte de valores que se mamf'estam como realidades per- c) da sua dimensão espiritual surge o apetite da pessoa,
manentes e estáveis, eternas. O amor será sempre 0 amor; a s<› orientado especial e especmcamente para a descoberta e a
lidariedade, o respeito, a famüia, et cetera, sempre representa- posse de valores (“alimento” ou objeto de satisfação especíñ-
rão um mesmo conteúdo. Mas não é verdade que vão mudando co e concreto deste apetite espiritual).
como passardo tempo? Por exemplo, os meus avósv1v'eram o amor Assim como não posso satisfazer a necessidade concre-
de forma d1f°erente daquela que o viveram os meus pais e am'da ta de pão com um valor, porque o apetite do corpo reclama
muito mais d1f'erente de como o vivo hoje. E então, os valores são um objeto concreto de satisfação (fome = comida), não posso
estáveisP Os valores são permanentes como bensem~si. O que satisfazer as necessídades concretas do espírito com pão,
tem mudado ou mod1íi'cadoé a manelra' de encarálos ou m'terpretá- quando na realidade elas são satísfeitas com valores.2
los. E isso ocorre não somente de época para época ou de ge- De modo que este esvaziamento de valores tem um efei-
ração em geração, ocorre também de m'dívíduo para m'dív1'duo. to trágico e duplo:
Quando escolho um valor, um bem.em-sí, o constituo algo a) por um lado, substitui as necessidades reais e pes-
meu, um bem-em-si-para-mim, e ele adquire então matxz' pes- soais dos indivíduos por necessídades implantadas, enxerta-
soa1, m'dividual, sm'gular.A351m', ele conclama somente a mun'. das e un1f'0rmlz'adas. Deste m0d0, todos nós necessítamos da
Desta maneira, os meus valores constituem o fundamento mesma coisa ao mesmo tempo e, quando acreditamos que
mais estável, continente da dinâmica vital. Esta saída ao en- chegamos à “plenitude do prazer”, nos apresentam nova ne-
contro do va10r, esse pressuposto fundamental e básícol é cessidade, e assim a hístória continua. A conseqüência mais
estimulada pela minha natural necessidade de descobrir sen- imediata é de nos manter então em estado permanente de
tido em tudo aquilo que devo viver. Vale dlz'er que palpita em insatisfaça'o. Sempre aparecerá algo novo de que necessita-
mim uma necessidade, uma verdadeíra fome de sentido tão mos Ie que não temos.
natural à minha humanidade quanto a minha fome de alimen- E como se vivêssemos em cultura peculiar que fez do
to, de conhecnm'ento, de afeto, e assim por diante. consumo valor traiçoeiro. Eu 0 defmo como “traiçoeiro" por-
Talvez não seja necessário, mas mesmo assím torna-se que, muíto embora consumír nos faça sentir mais (p0r exem~
indispensável recordar agora a defmição do homem enuncia- plo, mais status), nos oculta que nessa corrida consumista na
da por Frankl, apresentando-o como “buscador de sentido”. realidade nos consumimos a ponto de viver esse próprio con-
A partir da sua própria realidade tñdímensionaL convivem sumo com angústia e insatisfaçã0. A teoria do marketing, com
no homem três apeütes fundamentaisz
2 Cerlamenle poderíamos recordar aqui diversas teorias conhecidas subre as
a) da suad1m'ensão biológica surge o apetíte do corpo, orien- necessidades. Poderíamos igualmente cilar as próprias reflexões de Frankl a respei~
tado para o abrig0, o al1m'ent0, a sexuah'dade, 0 movimento etc. to da vivência nos campos de concentração relatando históñas dele próprio e de
companhciros que u'raram - Iiteralmente - o pão da boca para dá~lo ao compa-
b) da sua dimensão psicossocial surge o apetite do Eu, nheiro doenle. Mas o que qucro dizer é que, muito embora em função de um valor
orientado para a obtenção de vínculos estáveis (casal, ami- supen'or eu possa ürar o pão da boca para dá-lo a outra pessoa. mesmo estando
faminto - como aconteceu reiteradas vezcs nos relatos cilados -, isso não sng'mñ'-
gos, familia, Deus), ao conhecimento, ao saber, êxitos pes- ca que a fome desapareça ou que o corpo ñque mtisíeita As necessidades básicas de
alimento permanecem inmüsfeitas 0 homem ou a pessoa na sua unidade integrada
e em função da sua natureza espiritual pode redimir esm necessidade insaüsfeita do
lSegundo Karl Jaspers. o homem acaba sendo tal homem conforme a causa que corpo, dar-1he uma intcnção, dar-lhe ou descobrir-lhc um senlido; mas em si mes-
abraçar na vida. ma, enquanto taL a fome se satisfaz com pa'0.

8
as suas estratégias de venda agressiva, parte de fazer o com- alguma coisa ou de alguém) por um automóveL um perfume,
prador potencial (isto é, todos nós) ter uma sensação de inse- uma lavadora elétrica ou qualquer quínquilharia. Mais ainda,
gurança, deslocamento, ansiedade e marginalização. Slogans porém, esse amor não apenas é “pequeno" em função do sig-
tais como: “Como, você ainda não 0 experimentou? Se não niñcado (peq,ueno) do seu objeto, mas, porque dura pouco, é
dirigiu este automóvel, não sabe o que é dirigir. Não pode muito frágiL E muito intenso quando surge, mas no momen-
delx'ar passar esta oportunidade de te-^lo, por sorte, agora pode to de ter esse automóveljá pensamos e olhamos com carinho
te~^lo” etc., conseguem nos fazer sentir à beira de ñcar fora da o novo modelo que acaba de sair, diminuindo sensivelmente
nova cultura do mçvimento ou da “onda”, como se costuma a pos,51'b1'lidade de desfrutar deste que temos.
dxz'er atualmente. E assim que me esforço para “experimen- E assim que, quando os valores perdem o seu poder sim-
tar” o que quer que seja, “dirigir” este automóvel e “ter” o gular de apelo e em seu lugar aparecem substitutos padro-
que tiver de ter, embora não saiba muito bem para que fazer nizados, perco este princípio de coerência. Deste modo, ago-
aquilo. E tudo isso serve para vender desde um lote em cemi- ra à insatisfação vem se somar a “falta de integridade”, aque-
tério particular até uma semana de tempo compartilhado em la que me concede presença na vída para viver, cncarar e su-
Miami ou Cancún, passando por guloseímas, roupa de ba1x'o, perar, transcender os pressupostos básicos da própria exis-
automóveis, e a Bíblia. te^ncia.
Cria-se assim uma cultura de insatisfeitos, que nunca Este duplo efeito (ínsatisfação e falta de integridade) é
verão “preenchidas” as suas necessídades. Nos nossos dias “trágico”, porque concerne sensivelmente à vida do homem,
temos o exemplo dos telefones celulares: quanta gente que afastando-o da possibilidade de descobrír o senüdo singular
os ostenta na realidade precísa deles? Andando pela cídade, da própría existência. Surge a partir daí um vazío que muitas
vi um homem parado numa esquina falando ao mesmo tem- vezes é “preenchido" com neuroses, desespero, desesperan~
po em dois telefones celulares, e algumas vezes os ouvi tocar ça, dloença.
em lugares inesperados, c0m0, por exemplo, no meio de uma E freqüente encontrar na prática clínica índeuos doen-
missa. Isso responde a uma necessidade real ou criada? Será tes por causa da frustração da vontade de sentido. Muito
esta a cultura do “homem un1'dimensional” de Marcuse? embora isso seja associado conceitualmente e de maneira ime~
b) Acredito que 0 sentido pode ser defmido como algo diata a Viktor Emil FrankL vale recordar que outros autores
semelhante a um “princípio de coerência". Quero dizer, mar- e pesquisadores também conseguiram vislumbra'-lo e até
ca uma orientação e umñ'ca os meus esforços em direção do mesmo sistematizá-lo como entidade nosológica. Tomemos,
desenvolvimento e interpretação desse valor sigmñ'cativo. por exemplo, Karl Gustav Jung, 0 qual defmia que aproxima~
Primeiro se gera a vivência de ínsatisfação, mas é insa- damente um terço dos seus casos não sofria de nenhuma
tisfação que não tem a possibilidade nem o destino de ser neurose clinicamente defmíveL e sim mais exatamente da fal-
saüsfeita, muito pelo contrário. O esvaziamento ou desloca- ta de propósito na sua vida; assinalaremos também Nicolau
mento dos valores por esses “subsütutos padronizados” que Hobbs, Salvatore Maddi ou Benjamín Wolman, que falam de
pretendem umf'ormlz'ar as nossas necessidades, resta-nos a uma “d0ença existencial” ou de uma “neurose existencial”,
possibilidade m'dividual e pessoal de orientar sigmñ'cat1'vamen- derivada da incapacidade de responder à pergunta sobre o
te a nossa própria exístência. Cria-se assim uma cultura dos sentído da vida. Somemos a estes exemplos a obra de auto-
“pequenos amores”, porque faz com que nos apa1x'onemos res como Allport, May, Rogers, Fromm, Jaspers, Adler, entre
(isto é, disponhamos de toda a nossa existência em função de outros.

10 11
Neste ponto das reflexões, me pergunto então: como o
terapeuta desempenha 0 seu papel nestes casos? Que fmali-
dade ou sentido adquire então a terapia? Quais os elementos
que podem constituir recursos terapêuticos?
Na contínuidade destas reflexões não se pretende dar
respostas acabadas a essas perguntas. Talvez se consiga m'cor-
porar no leitor um espaço novo e aberto de inquietudes, mais
do que um círculo fechado de respostas e fórmulas. Focaliza-
rei especialmente a letra, o livro como um possível recurso
terapêutico e apresentarei exemplos concretos de prosa e
poesia, que não esgotam a projeção maravilhosa de todo o 1a PARTE
material que pode ser usado neste sentido. Viktor Frankl fa-
lou e insistiu nas suas Reflexões a respeito do valor do livro A LOGOTERAPIA EM CONTOS
como recurso terapêutico, assentando as bases de uma ver-
dadeira bíbliotempía. Nestas reflexões pretende se particula-
rizar uma biblioterapia aplicada, em ação, uma “10goterapia
em contos”.
O ser humano é um ser sempre “incompleto”, que vive e
luta para se completar. Vai alcançando 0 seu objetivo ao longo
da vida, de muitas maneiras, muito especialmente através e a
partir dos vínculos que vai constituindo. Assim, as relações
familiares, sociais, de trabalho e os seus vínculos com a cul-
tura o vão “integrando” como se fossem abraços que, ao
apertá-lo, o unem cada vez mais nas suas próprias partes
constitutivas.
Dentro desta trama de relações, a relação terapêutica
adquire tonalidade muito especial. Ela se insere no grupo das
relações de ajuda assumindo características próprias entre
todas elas.
Muitas vezes se propôs o papel do terapeuta como uma
espécie de observador analítico, aquele que, tomando dis-
tância, observa o paciente e sua situação daquela perspec-
tiva e a analisa na sua estrutura e na sua dinâmica. Desse
1ugar, funciona como uma espécie de intermediário entre
os seus aspectos não conhecidos e a possibilidade de co-
nhece-^los e 0 cumpre fundamentalmente através da interpre-
tação. A realidade do processo de interpretação assume al-
12
13
guns traços que, evídentemente, não bastam para invalida'- seria poder funcionar, em tal caso, como um fe1x'e de luz que
lo como recurso e técnica. De qualquer forma, vale a pena assi- o ajude a ver os contornos do seu dever ser com boa ñdelida-
nalar esses traços, Clr'cunstan^cia que resumo no seguintez mui~ de, estimulando a descoberta da sua intencionalidade, pro-
tas vezes os conteúdos inconscientes do paciente nada mais movendo a “conscie^ncía do dever”, e não a “consciência da
são do que a projeção das teorias conscientes do terapeu- 0br1',cgaç.al”o”.3
ta. Vale dizer, ñltro os meus próprios conteúdos pela trama Poderíamos chamar esta modalidade de terapeuta
das minhas teorias e acabo sem poder deñnir Claramente o facilitad0r. Mas, é claro, a ñm de evítar confusões, cabe escla-
que realmente está acontecendo com ele e aquilo que a minha recer que falamos de “facilitador” não no sentido de fazer as
teon'a d12' que deve acontecer com ele. Como ocorre com toda coisas mais fáceis para o paciente, mas no de prover (facili-
“interpretação”, a ñdelidade da coísa interpretada está sujeita tar). Como terapeuta, deve procurar lhe dar os meios para
à subjetividade daquele que interpreta. Torno a repetir que que possa se conectar com o seu dever ser e desenvolver a
com isso não estou depreciando nem invalidando a prática da sua consciência do dever, para garantir o seu cumprimento,
interpretação; aponto o que na minha opinião são os seus para seguir a sua orientaçã0.
riscos. Lembremos que “terapia” deriva do latim therapeu-
No outro extremo talvez do exercícío do pape1, temos a ticaorum (tratado de medicina) e do adjetivo derivado thera-
proposta do terapeuta como modelo que praticamente se insti- peutiko's, que sigmñ°ca serviça1, que cuida de algo ou de alguém
tui um “educador” que impõe uma atitude de vida ou respos- Do mesmo modo se segue 0 verbo therapeutes, que signiñca
ta. Ora, o rísco de imposição exemplar ou paradigmática é “eu cuido”. Do grego também temos a acepção therapeuo, que
modelar com umf'ormidade as respostas dos outros como se signiñca servidor. Quer dizer que o nosso papel como tera-
fossem iguaís, e obrigados a responder de maneira idêntica. peutas é estar a serviço dessa tarefa pessoal do paciente, facili-
Em ambos os casos se perde a individualidade do outro. Em tando, provendo as situações e os recursos que lhe podem
um ou em outro extremo é possível que encontremos tera- servir para esse ñm.
peutas que, dando diariamente muitas consultas, parecem Ora, para muitos, esta defmição do papel do terapeuta
estar dando uma só, pois terminam todas elas dando a mes- o põe em posição secundáría ou de menor peso dentro da
ma resposta padronizada. relação terapêutica. Para responder a esta questão devería-
Agindo assim, no meu entender, posso não cumprír com
a intenção terapêutica de que 0 paciente descubra 0 “seu de-
3 Entendo por consciência da 0bn'gação aquele caso em que a lei está fora de
ver ser" para seguí-lo e cumpri-lo. Se corro o risco da primei- m¡m, ao passo que a consciência do dever é introjetada. Por exemplo, quando impo-
ra modalidade, acabarei devolvendo a ele um dever ser relati- nho ao meu ñlho pequeno que não ponha os dedos na tomada. ele não o faz, obedccen-
do a esla lei, que está fora dcle. Não o faz porque é “obn'gado" a se absten Quando
vamente certo, algo assim como o reflexo distorcido que nos cresce. se dá conta do dever de faze-^lo. circunstâncía diante da qual decide se abs-
devolvem os espelhos truncados dos parques de diversões, ter; mas esse “se dar conta", essa consc*íência o lcva a se apropñar do direito de
legislm e e' então que não o fu porque uma “lci pr0'pn'a” aSSim o indica. Evolu-
nos quais chego a me ver mais gordo, mais magro, mais alto üvamentc, então, primeiro aparece a consciência da obrigação e posteñormente a
ou mais cambaio. Esta distorção se produziria quando se c0n- consciência do dever, sendo esta u'1u'ma. em termos de matun'dade, mais elaborada.
0 apwecimenlo da segunda não invalida a primeira, mas esta ñca sob o domínio
funde o seu conteúdo com a minha teoria. ou suprcmacia daquela. A consciência do deven ass¡m. marca o canünho que resol-
No segundo caso, o “seu dever ser” se vê substituído ve, ñnalmente, a tensão entre o ser e o dever ser. 0 grau de contato ou de conexão
com essa consciência termina sendo um indicador de saúde. Como teslemunha o
por uma forma obrigada ou imposta de ser que até pode se generalJosé de San Martín à sua nela através de uma das suas máxímas, bem pode-
mamf'estar contrar1"a à sua própria intencionalidade. O ideal n'amos recordar aquela de que você será o que deve ser ou não será nada.

14 15
Êz
mos nos deter na seguinte perguntaz quem cura e quem
sara?
Talvez, entre os principais defeitos que nós, terapeutas,
devamos superar, um deles seja, por assim d12°er, a onipotên-
cia. Este espaço do poder que é em parte atribuído pela pró-
pria cultura apresenta algo parecido com o feiticeiro da tribo. _› EU TE
MÉDICO / CURO
Por outro lado, o manejo da verdade (neste caso, a verdade TERAPEUTA
pessoal do paciente) sempre confere certo atributo de poder. ENFERMO

Essa idéia generalizada de que o terapeuta conhece mais do


paciente do que este conhece de si mesmo, e, pior ainda, que
somente chegará a se conhecer à medida que o considere
oportuno, acentuou esta posição privilegiada e poderosa. Ambos os processos (curar + sarar) se complementam
Obviamente a compartilho apenas relativamente e com reser~ no ato perfeito do restabelecimento da saúde, física ou psí-
vas, e preñro partlr' da certeza de que quem mais conhece o quica. Vale d12'er que os médicos/terapeutas curam, mas que
paciente e a sua círcunstan^cia é o próprio paciente, ao passo o próprio indivíduo é que sara a si mesm0. A possibilidade
que o terapeuta acaba por acompanhá-lo no caminho de des- de curar chama o proñssional à responsabilidadc de reallzar'
coberta de si mesmo, mas não lhe dizendo quem é, mas, o diagnóstico adequado e ordenar os meios e recursos mais
que é melhor, por onde pode chegar a sabe-^10. Não vamos expeditivos em função da recuperação do paciente A possibí-
fechando respostas, mas abrindo caminhos. Por qualquer ra- lidade de sanar chama o indivíduo ao desdobramenlo do po-
zão que seja, é um defeito que muitos de nós precisamos su- der desañador do espírito a ñm de se opor à desordcm que a
perar. E, em virtude disso, muitas vezes temos d1ñ'culdade sua doença implica. Na complemcnlação de ambas as respos-
em d1f'erenciar duas coisas: “curar” e “sarar”. tas, repit0, reside a possibilidade de reslabelecimento. Mu¡-
“Curar”, do latim cura, signiñca dar assistência a um tas tentativas terapêuticas de cura fracassam por falta da von-
doente. Dar-1he os meios e recursos adequados para que pos- tade de sarar do indivíduo doente e, muitas vezes. mornos ou
sa recuperar a saúde. Mas “sarar”, do latim sanus, signiñca vagos esforços terapêuticos alcançam resultados surpreen-
recuperar o juízo, 0 critério, a sensatez. A partir daqui, pare- dentes em função de um poderoso desaño à adversidade mo-
ce ñcar bastante claro o seguinte: com relação ao indivíduo bilizado pelo doente.
doente, curar é um processo ou prlocedimento que se origi- Daí, seguese que a principal responsabilídade do proñs~
na e se dirige de fora para dentro. E ordenado e conduzido sional é certamente ordenar ns recursos e meios terapêuticos
por terceüo (0 médico ou terapeuta), que assume o papel de não pensando somente no quadro clínico, mas também csti-
agente e se sustenta ou desenvolve com relação ao indivíduo, mulando e promovendo que se ponha em marc11a, use esse
que assume o papel de paciente. Este ato de “curar” se comple poder desañador. Contar com essa energia é fundmnental para
menta necessariamente com 0 de “sarar”, que, como processo que o ato seja plen0, mas é o próprio doenle quem deve trazê
la. Quantas situações de doença acabam se resolvcndo lanlo
e com relação ao indivíduo doente, se produz e se concretüa
ou mais por causa do temperamento do paciente do que pelo
de dentro para fora. Neste caso, é ordenado e conduzido pelo
plano ou pela perícia do terapeula? Quantas outras fracaswm
própn°0 indivíduo, que acaba sendo, entã0, o agente e o pacien-
pelo mesmo motiv0?
te do mesmo processo. Vejamos:
17
16
Nesta linha de pensamento, acabamos por compreender
0 que é então que ali se defende? O valor terapéuüco do
que são muitos os meios e recursos que podemos utilizar
livro. Pois bem, como se deve entender isso? Vejamos:
como terapêuticos. Tantos quantos nos lembrarmos. Tantos
quantos possam servir para estimular ou promover essa vonta- 1) o QUÊ?
de de sarar do indivídua Nessa ótica podemos então colocar
Por “biblioterapia” devemos entender, então, n utiliza-
0 livro como um desses recursos válidos.
ção terapêutica do 1ivr0, mas tomando por tal (livro) não só e
estritamente “um 1ivro”, mas estendendo a idéia a toda letra
Para uma biblioterapia escrita, seja ela prosa, poesia, canções, aforismos, reñexões.
Nós, terapeutas, conhecemos muito bem o valor da palavra;
No ano de 1977, o professlor doutor Viktor Emil Frankl assinalo particularmente três elementos que acemuam o seu
m'augur0u a Feira do Livro da Austria com uma conferência valor:
sobre o livro como recurso terapêutico na qual defendeu a
m O próprio peso da palavra, vista sob os aspectos do
possibilidade de cura através da leitura. Na oportunidade assi-
ético e do estético, da mensagem e da forma.
nalou, até casuisticamente com histórias nas quais um livro
pode mudar a vida do leitor, casos nos quais um livro salvou a Quando esta palavra é dila por alguém investido com
uma vida, fazendo o leitor desistir da idéia de se suicidar, 0u~ certo valor, conta com acentuação do seu peso. A palavra de
tros em que pessoas no seu leito de doente se viram reconfor- vizinho, por exemplo, não é a mesma coisa que a palavra do
tadas pela leitura. Comenta igualmente 0 caso de pessoas que, terapeuta.
estando presas, melhoram a sua atitude de vida por intermé~ => A permeabilidade com que geralmente recebe a pa-
dio de um livro. Cita, por exemplo, o caso de Mitchell, um lavra quem está necessitando dela, quem está à procura de
preso de San Quentin, em San Francisco, sentenciado à pena respostas.
de morte na cam^ara de ga's. Intekado de tal circunstância por
Em função disso, se resgala a palavra escrita, como for-
ocasião de uma palestra para presidiários, Frankl 0 convida a
midável recurso terapêutico.
descobrir o sentido da sua vida, mesmo estando às vésperas
Não devemos pensar em escritos realizados especmca~
certas da sua morte. Até 0 alenta de alguma maneira a leitura
mente para ñm terapêutico, mas também em obras que nun-
da obra de TolstoiA morte de Ivan Illitch.
ca foram intencionalmente destinadas para esse efeito. Por
A personagem de Tolstoi vive uma circunstância seme-
0utr01ado, o seu valor terapêutico é ordenado segundo a dis-
lhante à do presidiário. Tempos depois, Mitchell foi condu-
tinção precedente entre curar e sarar, e segundo a caracten's-
zido à câmara de gás e a condenação foi executada. Lendo
tica de cada caso e situação.
uma entrevista que concedeu ao Chronícle de San Francisco,
alguns dias antes do cumprimento da sentença, podia-se per- 2) COMO?
ceber que a mensagem de Tolstoi havia sido captada por aque-
A ulilízação do livro não se pode estabelecer como pres-*
le homem que, embora não tivesse podido evitar a condena-
crição obrigatória nem especiñcamente indicada em algum
ção, pôde evitar recebê-1a em meio ao vazio e ao desespero.4
quadro clínico concret0. Tudo dependerá, 0bviamente, do
caso peculiar do paciente, do seu perñl de personalidade e
4 FrankL Viktor E., Psicoterapia y Humam'smo, Fondo de Cultura Económica,
México, 1984, pp. 100~10L interesses, das suas circunstâncias concretas etc. O valor do

18 19
livro ñca condensado no seguinte: cada história, cada linha formado, francamente alegre. “O que aconteceu com você?”,
reflete maneira pessoal de encarnar um valor ou uma atitude perguntou ela, surpreendida e assombrada. Rindo, ele lhe deu
diante de situação concreta de vida. Deste modo poderíamos um exemplar da tradução em hebraico de “O homem em bus-
falar até de verdadeira solidariedade entre autor e 1eitor. A ca de sentido"e1he díssez “Este livro aconteceu em mim". Ao
literatura moderna não precísa continuar a ser tão-somente que parece, há algo assim como uma autobiblioterapia e, ao
mazs' um sintoma das neuroses de massa de hoje em dia. Pode que parece, a logoterapia é especíalmente apropn'ada para
contríbuír também para a terapêutíca. 05 esm'tores que atra- isto.7
uessaram 0 infemo da desesperança e que experimentaram a A relação de intimidade que se estabelece entre leitor e
aparente carência de sentído da vida podem oferecer o seu so- leitura é de tamanha magnítude que a letra ganha peso e rele-
frímento, como um sacrzfí'cz'o, no altar do gênero humano. As vo muitas vezes insuspeitados. Assim o seu poder de pene-
suas revelações ajudarão o leítor que sofra estado idêntíco a tração é admirável e seu efeito catalisador, muíto efetjva A
su_t)erá-lo.5 mensagem chega quase com surpresa e mobiliza no indiví-
O leitor pode se aproximar de testemunho vivencial que duo o seu poder de resiste^ncia, o que nele resta de são, a sua
estimule, promova e alente 0 indivíduo para a descoberta do possibilidade de superação de adversidades. Quantas vezes
sentido da sua própria situação de vida. Apresentando situa- nos encontramos retratados em um conto ou em uma can-
ções de vida resolvida de maneira peculiar que possam dispa- çã0? Quantas vezes recorremos a uma personagem de ñcção
rar no leitor respostas próprias. Muito embora esta funciona- ou a uma poesia para dar resposta a uma situação? Quantas
lidade terapêutica não seja a primeira intenção do autor, seria vezes apelamos para uma história para compreender uma Cir-
interessante que, no momento de escrever uma linha, cada cunstância da vida? Em última ana'1ise, quantas vezes senti-
um assumisse a projeção que pode alcançar em relação a mos que tal livro “aconteceu” em nós? Aí, como elemento
quem o ler. Assumisse a responsabilidade deste compromis- catalisador, como circunstância que me permite me “perce-
so solidan"o reconhecendo que cada letra implica uma meu- ber”, como encarnação de um va10r, ali mesmo encontramos
sagem, cada linha encarna um valor. Se o escritor não é capaz resposta ao “para quê” da biblioterapia.
de imunizar o leitor contra o desespero, deve pelo menos evi-
tar inocular nele 0 desespero.6
A leítura terapêuüca do livro
3) PARA QUÊ?
Quando falamos de bibliolerapia, pensamos em recurso
Frankl cita um episódio que bem pode nos servir para terapêutico que pode ser implementado de diversas manei-
responder a esta pergunta. Diz que a presidenta do Instituto ras. Muitas vezes será oportuno que o paciente leia um texto
Alfred Adler de Te1-Aviv, por ocasião de uma conferência pú- para logo reflet1r' sobre 0 que leu e a mobilização que isso
blica, cítou 0 caso de um jovem soldado israelense que per- originou; outras vezes essa mobilização será espontânea em
deu as duas pernas na guerra do Iom Kippur. Não houve meio virtude de uma leitura que não foi indicada pelo terapeuta,
de tirá-lo da sua depressão -- ele mesmo chegou a pensar mas que o paciente traz para a consulta; mas em algumas
em suicídio. Até que um dia ela o encontrou como que trans- oportunidades - a meu ver 0 mais apropriado - a leitura

5Frankl. Viklor 0p. cit.. p. 100.


5 FrankL Viklor E.. op. ciL, p. 100. 7 FrankL Viktor La voluntad de sentído. Barcelona, Herden 1988. pp. 63-64.

20 21
pode ser realizada no âmbíto da consulta. Nestes casos o pro-
bom, isso é com certeza o que este conto está dizendo, ñque
cesso biblioterápico orientado e sustentado pela presença do
com isso etc. Desta maneira, añrmamos a díreção da medita-
terapeuta. Vejamos. ção e pomos o acento sobre a mensagem a ser lembrada.
A leitura terapêutica do livro: Produz-se assim uma espécie de “aprendizagem direta", isto
é, que não passa por ñltros de autocensura. Dc alguma ma-
O terapeuta escolhe um relato que se relaciona com as neira, o paciente foí surpreendido nas suas defesas e resis-
inquietudes remotas do paciente -- vale dizer, não plenamen- tências.
te conscientes -, mas com os temas que deseja enfocar dire- Já me aconteceu muitas vezes que os pacientes recor-
tamente. A própría leitura vai introduzindo 0 paciente em es- dem coisas que lhes disse há tempo e que evocam esponta-
tado de meditação, para lhe dar algum nome, no qual certas neamente em algum momento, dizendo sempre me lembro de
vivências m'teriores e percepções vão adquirindo maior m'tensi- que uma vez você me dis'se... Na maioría dos casos, recordam
dade. Nestas circunstan^cias os pacientes acabam compreen- palavras, comenta'rios, reñexões feitas por mim ao ñnal de
dendo intuitivamente o conteúdo da mensagem que a narrati- uma entrevista ou mesmo quando me despedia deles no um-
va encerra, até sem necessidade de intervenção do terapeuta, bral da porta - mesmo comentários tr¡v¡w's sem intenção
que, ao faze-'lo, conduz a atenção do paciente para si mesmo. terapêutica especíñca - e recordam textualmente. Quase
Neste momento, o paciente se aproxima de si mesmo de ma- nunca se trata de coisas ditas ao recebe-^lo ou no início da
neira mais relaxada e efetiva. Pois bem, a leitura de um relato sessão. Isso me fez pensar que é assim porque, à medida que
pode ser verdadeiramente proveitosa para o consulente? Sim. o encontro avança, 0 paciente vai entrando numa espécie de
Ela atua do mesmo modo que o impacto que exerce sobre transe leve - por assim dizer - e, nesse estado, as palavras
nós um ñlme que nos emociona, se identiñca conosco, nos têm um impacto maíor e são assimiladas inconscientemente
de1x'a pensativos. Alia's, essa mobillz'ação permanece durante com nitidez surpreendente. Isso de modo algum signiñca que
dias. No cinema, a atmosfera ou clima (por exemplo, escu- seja hipnotizado como nos espetáculos de ilusionismo, onde
ridão, silêncio, som etc.) nos dispõe a absorver este impacto se acredita que 0 sugestionador pode submeter à sua vonta-
de maneira totaL ñcando abertos a viver este feitíço - que de o controle dos atos do paciente Em certa ocasião, um co-
tecnicamente poderíamos deñnir como estado muito leve ou lega me ouviu do seu consultório ao lado do meu. enquanto
ligeiro de alteração da consciência. No caso da bibliotera- eu estava me despedindo de um paciente. Aproximou-se qua-
pia, esse clima deve ser criado pelo terapeuta a partir da sua se imediatamente e perguntou como eu o havia cumprimen-
inüexão de voz, ritmo de 1eitura, conteúdo da narrativa etc., tado. Em princípio ñquei surpreendido com a sua pergunta e
gerando, promovendo, facilitando ou estimulando essa dis- o seu interesse pela minha maneira de me despedir daquele
posição no paciente. Muito embora o impacto do cínema pos- paciente. E respondi como o havia feito, isto é. com um até a
sa ser mais ou menos duradouro, a intenção agora é que seja próxima... passe uma boa semana...
assimilado para ñns de ser incorporado na sua conduta, re- Ele me pergumou cntão se eu cslava conscienle de que,
sultando em comportamentos mais construtivos e ñrmes. me despedindo dele assim, o estava condicionando a passm
Quando 0 terapeuta descobre que o paciente assimilou o im- uma boa semana. Primeiro me senti como se houvesse sido
pacto do conto ou da narrativa, circunstan^cia que se pode infe- “pego” surpreendido cometendo alguma falta grave, porque
rir das suas expressões, gestos, verbalizações, é eflciente re- o meu colega insistia que se, na semana seg1n'nte, aquele ho-
forçar o sucesso com alguma frase como, por exemplo, isso é mem vollasse tendo vivido uma boa semanzL isso seria um

22 23
produto da minha despedida, e não êxito pessoal em conse- Mas isso não seria mera sugestão? Não. Funcionaña
qüência de haver resolvido o seu conñito de fundo. Tentei como “mera sugestão" se 0 paciente não eslivesse consc*ien-
convencélo de que na realidade se tratava de costume meu te daquilo que está acontecendo. A instfumentalização tera-
de cumprimentar assim todas as pessoas, procurando me pêutica implica que o paciente. comojá foi dito, alua de manei-
desculpar ou me justiñcar. Passados alguns dias, durante os ra determinante na intençào de cum. Procuramos aproximá-lo
quais me senti envergonhado e culpad0, cumprimentando de elementos que o 1'nspirem, que 0 instiguem a mudar, e não
rigidamente os meus pacientes para não cometer novos er- somente a atenuar um pouco uma condula.
ros, eu me propus a comprovar o impacto do cumprimento Retornemos agora à bib11'oterapia. Eu dizia que este cli-
sobre eles. Tratei entào de ver de que maneira cumprimen- ma favorável ao impacto através da narraüva deve ser moüva-
tar, nem rotineira nem rigidamente os meus pacientes, e sim do pelo próprio terapeuta. Vale acrescenlar que é particular-
terapeuticamente, isto é, personalizando o cumprimento de mente efetívo ler a narrativa acentuando ou marcando espe
acordo com a necessidade de cada um, e fazendo isso de cialmente a parte que nos imcressa em função do objeüvo
maneira concisa e efetíva, usando uma u'nica palavra, incluin- buscad0. Muitas vezes uma mesma narraüva deve ser lida de
do uma brincadeira. maneira diferente depcndendo de qucm seja a pessoa que
Assim, comecei a introduzir, ao me despedir na porta do temos diante de nós e 0 objetivo perseguido.
consultóri0, expressões tais como cuíde-se, passe uma boa se- A biblioterapia nos oferece, fundamentalmente, os se-
mana, nos veremos na semana que vem se Deus quise,r divir- guintes benefíciosz
ta-se etc. As respostas foram formidáveis. Algumas se mani- 1) Não constítui risco, isto é, as narraüvas sâo aceitas
festaram ímediatamente através de gestos 0u aínda de habitualmente como inlervenção não inlrusiva, como pode-
verbalizações que acusam 0 recebimento da mensagem en- riam ser vívidas outras formas de assinar ou de inlerprelan
quanto outras são mediatas, isto é, são reconhecidas por aquilo Nesse sentido, nos permitcm chegar ao interior do outro com
que 0 paciente comenta no encontro seguinte, às vezes até maior liberdade. Alia's, muitos pacientcs goslam que se lciam
fazendo referência direta ao cumprimento como, por exem- para eles contos ou histórias a pomo dc se cntusiasmarem e
p10,jiquez' pensando no que 0 senhor me dísse quandofui embo- trazerem eles próprios novos textos.
ra, como você dísse, fiz tal coisa etc. Dali em diante compreen- 2) Pelo que foí dito anlcr1'orn1cnlc, se reduz o m'vel de
dí que essa circunstância pode ser efetiva se for utilizada como resistência dos pacientes às nossas intcrvençõcs c sc agilim o
apoio da mobilização que pudemos motivar durante o encon- processo de troca.
tro, dando uma orie~..tação ou intenção. Além disso, conf1r- 3) Identzjí'ca a idéia e a dircçào da troca com uma ima-
mei 0 que pensava a respeito do estado de transe leve que se gem que permanece no indivíduo e que sc rcmemora com
consegue com 0 paciente e que o torna permeável a suges- valor terapêutico dali em diante, estzlbelecendwse novo recur-
tões que ele assimila diretamente e reñete nos seus compor- so para 0 próprio paciente.
tamenlos concretos. 4) Oferece novos modelos deflexíbílidade aponhwdo 0u-
De modo que, conseguído esse estado, as intervenções tros esquemas de resposta possíveis cm situaçóes similares
terapêuticas se orientam concretamente para facilítar ou pro- às próprias.
porcionar ao paciente elementos para que ele se descubra 5) Estimula a independência do paciente e assegura a sua
com a oportunidade de desenvolver melhores respostas às valiosíssima parücipação no proccsso terapêuüco (“eu me
suas situações concretas. curo”) ao ter de receber e 1'nferir, ou melhor. descobrir a men-

24 25
sagem da narratíva, chegando às suas próprias conclusões e leitura, Lanto quanto as conclusõcs a que chega. Deven'a. de
não seguindo interpretações do terapeutzL Nesse sentido, é acordo com cada caso, escolher a narraüva que mais sc adap-
muito ímportante fortalecélo nesse papel ativo se pretender- te às suas necessídades de diagnóstico e lrabalhar sobrc o
mos que logo ele possa passar dessa mensagem descoberta conjunto de respostas obtidas. Desdejá. assim como a bibl¡0-
à ação. Poder-se-ía dizer, talvez, que as interpretações típicas terapia se reconhece imersa como técnica em um conjunlo
fecham a metáfora - por assim dizer - ao atribuir “um” sen- ou arsenal terapêutico, atuando somente em conjunção com
tido ao fato, ao passo que neste caso a própria aproxímação outros modos de abordagem, o bibliodiagnóstico será conce-
do paciente abre um universo pessoal ríquíssimo, a ñm de bído somente como mais uma técnica projetiva em colabora-
descobrir o “seu" sentído, que acaba sendo o verdadeiro e ção com 0utras, integradas em função de um processo de
u'nico. Atribui-se a Milton Eríkson a idéia de que as interpre- psicodiagnóstico.
tações são reducíom'stas, como se pretendessem resumir uma
obra de Shakespeare em uma frase. Exemplos
Apresento a seguir uma séñe de histórias através das
Da biblioterapia ao bibliodiagnóstíco quais pretendo exempliñcar o uso concreto do escñto com
uma fmalidade terapêutica. Trzúa~se de três casos nos quais
Basícamente a partir da abordagem logoterapêutíca, e
enxerto a utilízação da biblíoterapia na prátíca índividual ou
das idéias e tentativas mais ou menos sistemáticas de outros
grupaL de acordo com a dinâmica própria dc cada circuns-
autores, propôs-se a chamada “biblioterapia”, com a intenção
tância. Vejam0s.
de utilizar 0 lívro como recurso terapêulíco.
Considerando 0 valor testemunhal e referencial do 1ivro, Caso 1 . Tra1a-se de João, um rapaz dc 37 anos. casado com
podemos facílmente compreender que a sua implementação Maria (32) e pai de dois ñlhos, Robcrto, dc 6 anos, c I'*crnanda.
terapêutíca pode ser válida e efetíva. Muitas vezes, como se de 3. João é funcionário público. O relato da sun vida eslá re
pleto de fatos dramá1ic05. como a morlc prcnmlura da mãc, o
tem dito, atua de maneira espontânea quando o paciente che-
falecimento posteríor do pai, as suas diñculdadcs pma scr al-
ga à consulta mobilizado pelo que leu ou está 1end0. Mas, guém na vida, até que conhcceu Maria c a parlir daí as coisas
entã0, se falamos de biblioterapia, não poden'amos falar de começaram a se apresentar um poucu mclhon Nasccram os
bibliodiagnóstico? Sim. De fato, o livro também pode ser usa- ñlhos sadios, e agora vivc as diñculdudcs cconómicas dc lodo
do como recurso de díagnóstico. Obvíamente não podería- empregado cujo salar'i0 não é suñcicntc para uma vida trnn~
qu"ila. Mais além do carálcr dramálico dos falos. Joào assumiu
mos estabelecer convalidações estatísticas nern pautas
diante da vida uma atitudc francamcme pcssímism POdüSO
psicométricas, e sim concebe-^10 como recurso projetívo a ser- dizer que vive certo derrolismo, agravadq obv1'zu¡1mtc. pelas
viço do diagnóstic0. suas atuaís condiçõcs dc vida. Muito cmbora scja vcrdadc que
Certamente como método de conhecimento do pacien- 0 dinheiro é cscasso, e que suas prclonsõos não sào corrw
te não reconhece param^etros convencíonais, mas se apresenta pondidas ncm um pouco na realidade, podosc dizcr que a vida
de João é uma vida fcliz. A sua mulhcr o anm, os scus ñlhos
como excelente recurso para 0 conhecimento intuítivo do
têm saúde e elc lem a possibílidadc dc tmbalhar c muntcr a
outro. Claro, dizer “intuitivo” não signiñca inventar nada, mas sua casa d1'gnamente. De qualqucr maneirm a sua atitudc lhe
praticar um minucioso processo de observação das respos- pcsa, Lransformando a sua vida cm pesnda carga. 0 vazio mui-
tas do paciente à narrativa, isto é, os seus comentários a res- tas vczes toma conla e com clc a descspcrança. o dcscspcro, a
peito do conteúdo, assim como as suas mudanças durante a angu'stia.

26 27
Um dia, João comenta que no domingo, segum'd0 uma sugestão
pediu para levar a letra dc “PIPA”. obviamentc a idéia on'ginal
minha, foi com a famüia ao parque que ñca ao lado de uma auto
era que ele a levasse Na scmana seguinte. quando nos rccn~
estmda. Era um dia ensolarado e muita gente já havia ocupado contramos, Comenta Comigo que a Colocou embaixo do vidro
o lugar. Enquanto Maria caminhava Com Fernanda, João come~
da sua mesa de Cabeceira, e que Cada manhã, quando se le-
çou ajogar bola com Robcrto. Todos se divertiram muito, com vanta, a lê; aprendeu an1elod1'a,c durante 0 dia a assobia. muito

-_ .-~_,
exceçã0, é clar0, de Joã0. “Enquanto jogava Com Roberto, olha-
especialmente quando sente que 0 pessimismo vem surgino
va toda aquela gente... todos parecíam tão felizes, como se
do, e parece lhe ser muito útíl pma “espantá~lo". Refleümos
não livessem problemas... tive de fazer um grande esforço para sobre isso e descobñmos juntos que a leítura dc “PIPA" pcla
sair com as crianças e com Maria e, acredítc, cles se diver- manhã lhe dá algo parecido com uma “prime¡ra ccrteza" ou
tiram bastante, mas eu contínuei sofrendo por dentro... Eu me como ele prefere chama'-la, “a certeza do dia", que lhe recorda
perguntava como essas pessoas farão para não ter problemas...”
que ele pode ser protagonista e nào vítima daquilo que lhe
Evidentemente o discurso de João era tão pessímísta como acontecer nesse dia que se inicia. Depois de passadas várias
sempre. Continuava a dar às circunstâncias um Caráter deter- semanas, então, um dia João me faz 0 seguinte Comemán'o:
minante que o “obrigava" a viver mal, sofrendo. Em certo mo~ No domíngo passado voltei ao parque com Maria e as crianças
mento faz o seguinte comentan"o: “Sabe que... eu estava olhan- e passamos muito bem porquefez um dia bonito e cstava cheío
do as cn'anças que estavam fazendo pipas e pensava nas pipas. .. de gente, e, sabe de uma coisa, comecei a pensar nas pipas que
lá em cu'na, livres, fazendo 0 que querem... como seria lindo ser estavam subindo e me deí conta de uma cots'a que não me hauia
uma pipa, ou um avião, ou um pássaro e poder voar, como se ocom'do. As pipas não somente se movem com líberdade apesar
estivesse apagando os problemas e ser Iivre...” Naquele preci- do fío que as amarra, como diz a canção, mas também se, o fío
so momento recordei uma canção escríta por um grande ami- for cortado, já não podem voar... Então pensei naquilo que m-
go meu, um poeta popular brasileiro,8 que se chama “Pipa". tas vezes o senhor me disse acerca de descobrír o sentido das
Disse então aJoão que queria fazer Com que ele ouvisse aque- coisas e que deuia me perguntar mais sobre a para quê do que
la cançã0. A melodia é muito símples, mas muito bonita, e a sobre o porquê e tudo ísto... e creío que neste domingo me deí
letra, em porluguês, mesmo para quem, como eu, fala espa- conta do que 0 senhor quería me dizer... Se talvez não houves-
nhol, é fácil de entender. João a ouviu duas vezes e logo lhe sem me acontecido as coisas que me acontecemnu eu não sen'a
dei a letra por escrito.9 Eis o ñnal da canção: o que sou agora, ou se tivesse muito dinheiro, não desfrutaria
...voar com líberdade... tanto das crianças, porque com o dinheiro acreditaría poder
ser livre é um desaño dar a elas tudo de que necessitam e não como agora, que não
quando se tem a vida posso dar a elas um computador de presente para eIas bn'nca-
sempre presa por um ño. rem sozinhas ou coisas assim,' me preocupo em bríncar com elas,
em sair com elas, nem que seja para jogar bola no parque ou
João leu e releu a letra var'ias vezes. Em determinado ma andar de velocípede e estou com elas...
mento me olha e me d1'z:sabe que é certo... nunca havia pensa- Ev1'dentemente, João descobriu muitas coisas, e essa certe
do que a pípa, que voa tão alto e parece tão Iívre, está amarm- za com a qual começa cada dia vcm lhe permitjndo se abrir
da... a letra é boa... A parür dali Começamos a reñetir juntos para uma comprcensão divcrsa das Circunslâncias. e modiñ-
sobre o caráter condicionante - não determinante - das cír- car assim a sua atitude de vida, passando vcrdadeiramente dc
cunstâncias e do espaço de liberdade que sempre podemos vítima a protagonista. Como frisa o próprio FrankL lembran~
encontrar mesmo na situação maís adversa. Abordamos a sua do a expressão daquelc soldad0, João também poderia dizer
alitude de se sentir “vítima” e nos propusemos a assumír a de que essa poesia havia acontecido ncle.
protagonista da sua própria existência. Finalmente João me
Caso 2: Neste caso, trata~se dc um grupo; concretumenlc um
grupo dejovens esportislas que formam uma equipe proñssia
8'I'r2¡la-se de Lutz' Falcão, um carioca que víve em Flon'anópoljs, autor de nume-
rosas peças. nal. Sou chamado pelo técnico, porque ele detectou que 0 bai-
9 O leilor pode encontrar a letra de “P¡pa”, na 3' parle desle livro. xo desempenho do üme sc deve fundamcntalmcnte em ques~

28 29
tões anímícas mais do que em aspectos ou déñcits técnicos ou tiram ao grupo prosseguir 0 trabalho sobre essas questões,
ta'ticos. Em uma entrevista com a equipe, se detectam sérios modiñcar a sua atitude e renovar a sua disposição para o jogo.
problemas no tocante à motivação do time, particularmente signiñcando uma sensível melhoria para o seu rendimento.
assocíados com uma autoestima muito ba1x'a, um limíar mui- Também neste caso a bíblioterapia abriu terrenos e esu'mu-
to ba1x'o de tolerância de frustraçã0, e uma vivêncía de medo lou o grupo de maneira efetiva, de modo que pudesse prota~
no tocante ao enfrentamento com 0 adversário que bloqueava gonizar uma modiñcação necessária para o seu crescimento
sensivelmente os potenciais técnicos dos jogadores. Resumin- individual e grupaL
do, a vivência da equipe era a seguintez considerava~se uma
equipe muito pequena que não conñava nos própños recur- Caso 3: Nesta oportunídade, trata-se da utilização da bíblio-
sos no momento de enfrentar o rivaL terapía em um workshop de convivência. Ele faz parte de uma
Em uma das entrevístas com a equipe, trabalhei com um con- série de atividades que são realizadas com um grupo de ap0-
to de Mamerto Menapace que se chama “Morrer no Bando sentados recentes e pessoas que estão próximas da aposenta-
de Perus". A narrativa é uma versão semelhante à íradícional don'a. Eles receberam através de díferentes palestras e apre
históría do patinho feio, mas conta a história de um condor sentações assessoria previdcncían"a, legal e fmanceira. Mas
que é criado por uma perua choca e cresce “no bando de pe ainda não enfrentaram o mais importante neste momento para
rus", pensando que é um peruzinh0, e olhando com admira- elesz preparar-se emocionalmente para viver como aposenta-
ção 0 vôo dos condores nas alturas. Assim, acaba “morrendo dos, para enfrentar uma crise vilal 1ão importante como a que
no meio do bando de perus”, quando na realidade havia nasci- se desenvolve nesta etapa da vida. Evídenlemente, a chave para
do para ser aquilo que tanto admirava. Evídentemente, se faz superar - ou começar a fazélo - 0 pico críüco (e também
um jogo de palavras, jogando com a contundência das expres- para preveni-lo) é poder responder à pergunta a respeito de
sões “viver no meio do bando de perus” e “morrer no meío do qual é 0 sentido da vida a partir desse momenlo. E essa res-
bando de perus". O díretor técnico da equípe me havia adian- posta não poderá ser obtida a partír da assessoria prevíden-
tado que se tratava de um grupo com o qual era d1f1"cil manter ciária, legal e fmanccira. E assim quc se prctendc mobilizar o
detalhes e reuniões de reflexão que durassem mais de 25 a 30 grupo em torno da questão do sentido da vida na nova etapa

w_- ._- E_-


minutos. “São rapazes que não estão acostumados com zs'so: que se ínicia para eles. Organiza-se este encontro workshop
depozs' de 15 ou 20 minutosjá se díspersam efícam muito inquíe- em torno da leitura e posteñor elaboração de um conto, Quebm-
tos", foi a apreciação com a qual antecipou 0 meu enconlro cabeça,1° escrito especialmente para ser utilizado em biblio-
com o time. Certamente existe um mito em torno de alguns terapia.
ambientes de esportistas proñssionaís no sentido de que ca- Reu'ne-se 0 grupo no salão onde habilualmcnte sc realiza 0
recem de cultura, e também de interesse em adquin'-la. Mes- ciclo de atividades. Os membros sào dispostos em círculo e a
mo assim, se levou adíante a experiência, por certo inédita tarefa é apresentada a eles. A ordcm recebida indíca que sc
para este grupo, de reuní-los nos momentos anteriores a uma trabalhará sobre a leitura de uma história que reílctc a alitude
partida e ler um conto para eles. No princípio, quando im'cia- de diversas personagens diante de dcterminada situação. Eles
mos a ativídade, houve algumas bn°ncadeiras entre eles e uma deverão ouvir a história com atenção. Le-“se emão Quebra-ca-
mínima resistência diante dist0, que parecia “dever de escola” beça. Terminada a leitura, espcra-se um momento cm silên~
ou uma “infantilidade”. Mas, logo depois de iniciada, todos a cio, e se pede que resumam em uma frase a vivência que a
aceítaram e responderam à convocação com atenção e particí- história mobilizou neles, isto é, a própria vivência. Recolhem-
pação em uma atividade que se estendeu ñnalmente por 80 se os cartões com as frases que escreveran1, que são cm se-
mínutos. Terminada a leitura, houve um momento de silêncio guida repartidas entre os participantes. Cada um receberá
e logo se abriu a reflexão, breve, sobre a semelhança da nar- então a frase escríta por outro dos pdr't1'cipantes, desconheL
rativa com a sua própña história. Este conto sign1f1'cou para o cendo quem era o autor. Se algum delcs por acaso recebia a
time uma espécie de palavra de ordem tácita ou de “b0rdão”: sua própria frase, devia devolvéla e pegar outra. Estabelece
“Não morrer no meio do bando de perus”. A partir dali começa-
ram a aparecer d1f'erentes elementos que rapidamente permi- '° 0 leitor pode encontrar o lcxto de Quebraiabeça na 3' pwte dcste Iivro.

30 31
se um momento para que cada um leia inteñormente e procu-
re compreender a frase que recebeu. Posteriormente, se abre
a reflexão em grupo em torno das frases e vivências que f(›
ram surgindo.
A mobilização gerada pela históña se reñete naquelas frases,
que man1f'estam temores, fantasías, decepções, ilusões, pro-
jetos, expectativas, desesperança, desorientação, negação, de
pressã0, otimísmo..., isto e', um leque de alternativas que no
seu conjunto revelam o panorama complexo que o aposenta-
do enfrenta. A elaboração em grupo, possibílídade de empregá-
las em âmbíto diferente, se apresenta como uma boa oportuni-
dade para começar a transitar nele com maior certeza. A mo-
2“ PARTE
bilização não pode aparecer nem conseguiu se manifestar em
momentos pre'vios, mas sim por meio da imrospecção propicía-
AS DUVI'DAS
da pela leitura do conto. Nessas personagens conseguimos
nos idennf1'car e descobrimos d1f'erentes opções para encarnar
ou interpretar os camínhos de resolução da crise que estamos
vivendo. Como din'a Buytendijk em Psicologia da novela, encon-
tramos no outro o Dasein de todos, todas as possibilidades
humanas e ao mesmo tempo a líberdade humana.
Reiteradas vezes, na universídade, em palestras ou co-
Poderíamos cítar muítíssimos casos de aplicação da municações, quando se aborda o tema da biblioterapia, cos-
biblioterapia, tanto em modalidade individual como em gru- tuma-se propor algumas perguntas. Isso porque o adjetivo
p0, na prática psicoterapêutica como psicoproñlática ou “terapêutic0” vem sendo utilizado indiscriminadamente na
psicagógica. E, do mesmo modo, é va'lida a utilização deste lm'guagem comum. Muito possívelmente nenhum outro viu
recurso na prática docente, em todos os níveis. Muitas vezes, populanz'ado 0 seu discurso técnico, como aconteceu com a
acontece que a partir de uma narrativa, idéias teóricas que o P51'cologia. Em alguns aspectos, isso é benéñco, mas em
aluno não conseguia assimilar a partir do texto especíñco, muitos outros atenta contra a própria disciplina à medida que
pode faze-'10 desde uma narrativa de ñcção, que mostra mais distorce sensivelmente o conteúdo dos conceitos. Acontece
imediatamente o seu conteúdo. Neste sentid0, cito a utiliza- o mesmo com “terapêutico”. Na atualidade, diversas coisas
ção do conto de Edgar Allan Poe “William Wilson” como ex- parecem ser, ou pretendem ser, terapêuticas. Desde um pas~
celente recurso para estudar e compreender 0 conceito: cons- seio, uma visita a uma exposição, fazer aula de teatro etc.
ciêncía/c0nsciência, por exemplo. Embora possam chegar a ser recursos ou instrumentos com
fmalidade terapêutica, não são circunstâncías sístematizadas
nem ordenadas enquanto tal.
Então, quando se fala de “bib1ioterapia", se interpreta que
é ou uma ocorrência lingüística daquele que a menciona ou
uma denoxmn'ação equívoca ou equivocada do hábito de ler. De
fato, trata-se de uma técnica ordenada em torno de um recur-
so potencialmente terapêutico que é o livro e, por extensão,

32 33
toda letra escn'ta. De toda forma, mesmo explicando a essêncía m 0 que acontece com o paciente depozs' de vivero
dessa tec'nica, surge sempre uma série de dúvidas que preten- impacto da leituraP
dem deñnir alguns dos seus aspectos ínteressantes. Acredito
que seja interessante selecionar e apresentar ao leitor alguns Em princípío devemos nos propor duas situações possí-
deles que por um lado se reiteram e, por 0utro, permitem resol- veis: a primeira é quando o paciente leu um livro por indica-
ver um pouco mais as dúvidas sobre o que reñetimos até aquí. ção ou sugestão do terapeuta, e a segunda é quando o paciente
vem para a consulta ou traz para a consulta a mobilização
gerada a partir da leitura do livr0. Mas vamos por partes.
As dúvidas
Em primeiro lugar, a utilização do livro como recurso
LLJ Olivro substituioterapeuta? terapêutico participa das mesmas indicações que a implemen-
tação de qualquer outro recurso como pode ser 0 desenho, a
Muitas vezes a apresentação enfática do valor da biblio- pintura, a música etc. Vale dizer, não existe uma indicação
terapia leva a essa inquietude. A resposta é “não”. De manei- universalmente válída a respeito da musicoterapia; seña ilo-'
ra nenhuma podemos pensar que algum recurso poderia subs° gico pensar que se deve recomendar ou ¡ndicar a musicote~
tituir 0 terapeuta diante de uma verdadeira necessídlade rapia a todo paciente, considerando que cada pessloa apre-
terapêutica. Esta resposta está baseada no “encontro”. E o senta uma circunstância e necessidades individuais. E assim
am^bito enriquecedor e insubstituível de reunião de duas pes- que, no momento de usar a música como recurso terapêuüco,
soas, ambas comprometidas na busca da verdade pessoaL avaliamos a sua conveníência, escolhemos a música mais apro-
Uma delas participa pela necessidade de descobrir sentidos priada para o seu caso, objetivamos a sua implemenlação Gsto
na sua vida, ao passo que a outra o faz pela possibílidade de é, a assocíamos com um “para quê”) e estamos prevenidos
acompanha'-1a nesse m'tento, proporcionando-lhe recursos que no que diz respeito às áreas e aos recursos que pretendemos
lhe facilitem a empreitada. Ainda que conte com uma variada mobilizar no paciente. Obviamente, essa resposta absoluta-
gama de técnicas e métodos, o seu principal argumento é a mente não pode ser prevista, de modo que, sabendo que va-
sua própría presença. Isto é, 0 aporte pessoaL a sua palavra, o mos mobilizá-la, manteremos um acompanhamento lógico
seu olhar, 0 seu cumprimento. O terapeuta em si mesmo é o desta manobra terapêutica. Com o caso do livro se alua exa-
principal recurso do processo terapêuüco, nunca substituível tamente da mesma maneira. Nào se pode pensar na bi-
por nenhum materiaL seja da natureza que for. blioterapia como tendo validade universaL de modo que ha-
Em algumas oportunidades, encontramos referências, verá casos nos quais desaconselharemos a sua implemen-
ou tomamos conhecimento de casos em que se gestou uma taçã0, assim como outros nos quais a sustentaremos como
verdadeira “autobiblioterapia", isto é, circunstan^cias nas quais um recurso excelente. Nestes últimos, a incluiremos em uma
a leitura de um livro sigmñ'cou uma renovação pessoal evi- estratégia terapêutica já prevista, em complementação com
dente nesta ou naquela pessoa. Nestes casos, 0 fato ocorreu outros recursos, reconhecendo um “para quê” defmido. Esco-
espontaneamente, sem a participação da presença de nenhum lhemos o material de leitura de acordo com aquilo que pre
terapeuta. Não podemos absolutamente duvidar, ou diminuir tendermos elaborar e acompanharemos de perto a mobi-
a veracidade de sucessos desta ordem, o que não impede de lização que este passo, dentro do processo terapêuüco, possa
aflrmar que, de modo geral, a presença do terapeuta não pode gerar. A ordem não é simplesmente “leia” nem sequer “leía
ser substituída pela presença de um lívro. isto”, e ponto ñnaL Sempre buscamos depois da imple-

34 35
mentação do recurso um movimento em grande parte previs- descoberto através dessa leitura, e que gosto de chamar “cer-
t0, esperado, alentado e fundamentalmente contido. tezas cotidianas”. Trata-se de uma frase que possa servir ao
Ora, o que acontece quando o paciente é mobilizado pela paciente de lembrete daquilo que expeñmentou e descobriu.
Ieitura espontânea de um livro, fora do contexto do plano No caso um, João elabora a partir do trabalho com a letra da
terapêutic0? Obviamente os pacientes, por estarem fazendo canção Pipa uma palavra de ordem que ele resolveu chamar
terapía, não de1x'am de víver normalmente sua vida, nem de- “a certeza do dia”, e que lia ou recordava toda manhã quando
vem pedir permissão para ler tal livro, ou para ir ao cinema se levantava. A partír dela, interpretava ou enfrentava diver-
ver tal ñlme. Seria ridículo pensar- terapeuticamente lamen- sas situações com uma atitude renovada. Trata-se de verda-
tável e equivocado - que assim deveria ser. Portanto, é deiro catalisador, que detona a reação mais sadia e sn'gnnñ'cat1'-
factível que venham à consulta mobilizados pela leitura de va diante do cotidiano.
determinado livro; mesmo por algum livro que por ñns tera-
pêuticos lhe havíamos recomendado não ler. Nestes casos, Lu
l l Existem livros ”contraproducentes”?
devemos atuar como faríamos diante de mobilizações ocorri-
De perspectiva de crítica literária, poden'amos falar de
das por qualquer outro fato da vida do paciente. De toda for- livros bem escritos e mal escritos, de histórias acabadas ou
ma, considero que é conveniente conhecer os hábitos de vida
errátícas, de equilíbrios rítmicos e harmonia estética ou não.
do paciente, que tipo de leitura prefere, que tipo de passeio Porém da perspectiva terapêutica, a avaliação do livro é dife~
costuma fazer, os ñlmes que gosta de ver, os programas de rente. Mais ainda: pode aconlecer que algum material tecni-
televisão a que assiste etc. Este conhecimento nos permitirá camente sem importância seja excelente neste sentid0; se
descobrir muitas vezes tanto hábitos prejudiciais quanto po- recordarmos que por extensão ao falar de biblioterapia in-
tenciais recursos terapêuticos que poderemos implementar cluía “toda palavra escríta”, até um texto pubh'cita'n'o pode
à medida que seja necessa'rio. cumprir tais 0bjetivos. Realmente, existem livros que, pelo
Em linhas geraís, da elaboração do impacto que segue à seu conteúdo humanista e seu perñl testemunhaL se pres-
leitura, considero que o que devemos fazer é “colocar” - por tam à prática biblioterápica, ao passo que outros podem dif1-
assim dizer - o paciente dentro da história lida, e fazer com cultar (seja pelo estilo literári0, seja pelo conleúdo etc.) a sua
que ele “desempenhe" essa históría desde o lugar da letra ímplementação para esse f1m. De qualquer forma, não pode-
escrita, levandtyo a transitar por caminhos que na vida real ríamos defmir maneira deñnitiva que tais livros são terapêu-
talvez não transitasse, cumprir com aquílo que assinalava ticos e outros são contraproducentes, pretendendo dar a estas
Buytendijk, de la' encontrarmos todas as possíbilidades hu- defmições validade universaL
manas diante de determinada circunstância. E, desde este De toda forma, existem reservas por parte de algumas
ponto, permitir que ele aceda à descoberta do seu caminho, pessoas em relação a certos livros e gêneros lilerán'os. Um
da sua história. Em certo sentid0, eu dm"a que poderíamos día, um paciente comentou comigo a idéia ou 0 ensinamento
ver a biblioterapia como uma espécie de “desreñexão”, à que desde sempre lhe haviam transmitido na sua igreja (pelo
medida que nos leva a focalízar a atenção na situação de ou- menos, era essa a interpretação que ele acabou fazendo da-
tro, que logo internalizamos como “ja' experimentada”. quilo que lhe foi ensinado), no tocante aos romances. Segun-
Ora, a partir desta experiência, acredito que é conve- do essa oríentação, a leitura destc lipo de livros é contrapro
niente elaborar com o paciente uma espécie de palavra de ducente, porque afasta a pessoa da realidade, levandoa ao
0rdem, uma frase que resuma a conclusão daquílo que foi plano das ñcções e fantasias. Por outro lad0, seria inoportuno

36 37
gastar com coisas tão pouco ediñcantes energia que poderia conceber que esta ou aquela obra ou ainda que este ou aque-
ser dedicada à meditação, à oração ou à leitura de lívros de le gênero não é parücularmenle oporluno ou conveniente na
doutn'na, ou de vidas exemplares. Foi assim que esta pessoa sua atual circunstância. Daí a importância de se ter m'forma-
havia censurado desde sempre a leitura de outros livros que ção a este respeito, a ñm de poder sugen'r a cada um o que
não fossem aqueles estritamente sugeridos pela sua igreja. mais convém na sua necessidade ou sítuação concreta e do
Mas estas posições, que no fundo nos lembram a história de objetivo terapêutico que pretendemos abordar.
0 nome da rosa, de Umberto Ec0, não são as únicas. Durante
muito tempo se defendeu que a leitura das hístórias em qua- Lu Isto s¡'gnzjí'ca que qualquer livro pode servir pam
drinhos não era boa para as crianças; entretanto, nos últimos osjíns da biblioterapiaP
anos, pesquisadores da lingüística e da pedagogia do hábito Consíderando 0 que já dissemos, a resposta é aürmaü-
da leitura e do estudo em geral reconheceram na leitura des- va. Entretanto, poderíamos especiñcar 0 serviço que prestam
tas histórias em quadrinhos um excelente recurso para se especíalmente “alguns” livros.
iniciar as crianças nesta atividade. Parece que o conjunto gra'- Nos últimos anos, vêm proliferando os Chamados livros
ñco (text0 mais ilustração), a sua estrutura, a agilidade da de “auto-ajuda". A história deste gênero é longa e antiga. A
linguagem, a possibilidade de concluir a história (em função mentalidade prática da cultura amen'cana (o famoso self-made
da menor extensão em comparação com a de um conto, por man) trouxe muitos autores neste senüd0. Nos anos 50, fo-
exemplo), entre outras caracten'sücas, fazem delas um recurso ram muito vendidos os Iívros de Dale Carnegie. por cxem-
muíto produtivo.H plo, que ofereciam soluções pautadas e imedialas para a reso-
Isto é, existem várias avaliações deste estilo que qua11f1'- lução de situações tais como vencer a timidez, encarar empre-
cam como contraproducentes algumas produções Iiterárias. sas de venda, fazer amigos etc. Embora essa modalidade te-
Nem é preciso dízer que isso acontece já não com gêneros, nha se burílado, perdendo a caractcñslica de decálogo para
mas com obras em particular. passar a contar com uma modalidadc mais vivenciaL inümista
O que é certo, do meu ponto de vísta, é que não pode- e testemunhaL livros desse tipo no fundo continuam a ser
mos determinar de maneira taxativa 0 que foi dito anterior- oferecidos como alternativas voltadas para gerar mudanças
mente. Diante de cada pessoa concreta podemos chegar a nas condutas dos leitores. Muitos deles apontam para as apti-
dões do indivíduo, cujo contato e cxercício se propõem a esü~
“ Eu me animaria a ínterpretar a parlir das Icis de fechamcmo e proximidade da
mular, dispondaas de maneira mais operacional em relação
Gestalt de Wertheímer, Kõhler e Koíka. que o falo de a ilustração ser predominanle ao ñm buscad0. Não 0bstante, uma nova linha de livros de
e de o texto ñcar imerso no desenho, quase como se fosse apenas um detalhe a mais
auto-ajuda, mais humanizada lalvez, aponta cspecialmente
desse texto, permite à criança - ao leilor de hislórías em quadrinhos em geral -- se
habituar com a mensagem escñta sem se dar conta. adquirindo assim o hábito da para as atitudes do leitor, para 0 modo pessoal de encamr
leitura. Por outro lado, o tipo de apresentação que dispõe em cada página uma se alternativas de vida, lanlo no cotidiano quanto no acidemaL
qu"ência inlcira a pmjr da sucessào de quadros facilita e olimiza a caplação da ilação
do relato. Isso não acontece nos contos ínfanüs, nos quais em cada págína sc estabe~ no ordinário como no extraordinário. de modo mais signiñca-
lece um momcnto da seqüéncia, cortando - por assím dlz'er - a ilação do relato. tiv0. Dentro dessa linha encontramos livros como os de Harold
Estes elementos, entre 0qu05, demonstraran1. segundo estatísücas realizadas nes-
tes úllímos anos, especialmente na Inglatcrra, que cn'zmças com antecedentes de Kushner (por exemplo, Quando wisas ruins arontecem com
Ieilura de históñas em quadrinhos têm menos dmculdades em desenvolver o hábito gente boa, entre outros títulos) ou a obra tão difundida de
da Ieílura, lcndo com menos erros de dicção e cnlonaçâo e oümimdo a compreensão
do que foi lido, em comparação com grupos de crianças sem esses antecedentes, Louise Hay, que aborda especialmento a circunstância de
mesmo quando estes haviam lido contos. adoecer, vísta da sua própria experiência de doente de cân-

38 39
cer. É claro que poderíamos destacar maís autores nesta 1i- diante dos quais haviam manifestado certa resistência a abor-

._-<
nha, mas o aspecto imporlante que deve ser sublinhado é: dar dentro do processo terapêuüco. Certamenle isso nos leva

.-
estes livros de auto-ajuda podem ser considerados recursos a pensar que o terapeuta deveria se manter informado pelo
especialmente válidos para a biblioterapia. São escritos e pen- menos a este respeito das novidades de livraña e dos best-
sados, de alguma maneíra e de posíções distintas, como se sellers de atualidade. que são os títulos que chegam mais fa-
estivessem a serviço desta metodologia. cilmente às mãos do leitor comum.
Outro tipo de bibliograña muito útil são os livros que po- Com esta distinção quase elementar em Lrês rubricas
deríamos denominar de reflexãa Neste sentido, contamos com (de auto-ajuda, de reñexão, geraD quero responder à pergun-
autores muito d1fu'ndidos em nosso meio, de Leo Buscagüa até ta inicialz na realidade qualquer livro pode servir para os fíns
Anthony de Mello, passando por um número infmito de no- de implementação da biblioterapia: especíalmente adequados
mes entre os quais podemos recordar entre nós os de René costumam ser os livros de auto-ajuda, os de reflexão e os m-
Juan Tossero, Mamerto Menapace,Ju1í0 Cesar Labaké e ou- mances de atualidade, à medida que interpretam de maneira
tros. Estes livros, muitas vezes escritos em poesia, em forma próxima ao indivíduo circunstáncias afíns com a sua própria
de fábulas, contos, aforismos etc., têm a virtude de nos levar condíçãa
do entendimento de uma idéia até a sua compreensão viven-
ciaL quero dizer, não nos falam dos valores essenciais em ter- Lu Pode-se implementar a biblioterapia no trabalho
mos puramente abstratos; vão nos levando à sua descoberta com as crianças?
encarnada no cotidiano e próxima de nós. Ainda que não nos Responder a essa preocupação pode nos servir ao mes-
dêem a íórmula para sermos fehz'es, vencer a ünn"dez, nos comu- mo tempo para dar resposta a outras duas, com certeza mais
nicarmos melhor com o marido/a mulher, vão nos fazendo pe- profundas, ligadas à Logoterapia em geraL Reñro-me ao se-
netrar no mundo signiñcativo dos valores e vão nos acompa- guintez para muitos críüc0s, a Logoterapia é um enunciado
nhando na descoberta desse sign1ñ'cad0 no nosso cotidian0. mais fllosóñco do que psicológíco, que na realidade não pode
Finalmente colocaria nesta distinção, muito ampla, o res- ser concebido como verdadeira psicoterapia, e ainda se o fos-
tante da biblíograña disponível no mercad0, destacando espe- se, seria aplicável somente a pessoas dotadas de certa capaci-
Cialmente uma nova linha de romances que incorporou cer- dade de raciocínio e de reflexão sobre questões morais, espi~
tos condimentos dos livros de autoajuda, bem como dos livros rituais, étícas, religiosas e ñlosóñcasx De modo que considero
de reñexã0. TraLa-se de histórias em cuja trama sucedem fa- oportuno e interessante me deter muito sucintamente nestas
tos que são resolvidos de maneira tal que levam o leitor a re duas questões antes de dar uma resposta prátíca à pergunta
fletir sobre o mundo dos valores, incorporando muitas vezes enunciada:
várias páginas de reflexão sobre o sentido das atitudes dos
1) A Logoterapia é uma verdadeíra psícoterapiaP
protagonislas Recentemente apareceu entre nós com carac-
terística de best-seller o livro de James Redfíeld A Nona reve- 2) Caso a resposta seja afirmativa, é aplícável somente a
lação, que, dentro desta línha, chegou a muitas pessoas com pessoas dotadas de capacidade reflexiva para esses assuntosP
um impacfo verdadeiramente revelador no tocante a ques- Muito já foi dito a respeilo da primcira questão. A reftL
tões vivencíais e existenciais. Muitos pacientes chegaram ao rência mais recente que conheço é aqucla publicadu no u'lti-
consultório comovídos pelo que haviam lído, e mobilizados mo número do journal des Víktor Frankl Instituts, na qual
pelo conteúdo da obra, até se questionando sobre aspectos aparece a resposta da doutora Elisabeth Lukas a uma nota da

40 41
revista “Der Spiegel” (n. 30 de 25 de julho de mTàúw
que, co- fazer a si mesmo e por si mesmo pessoa. Aparece novamente
mentando a conferêncía “A evolução da Psicoterapia”, feita a referência ao sefl-made man, que em lermos do humanismo
em Hamburgo, nega à Logoterapia o status de psicoterapia, e acaba alimentando a idéia do autodesenvolvimenm, o auto~
denuncia uma suposta falta de fundamentação cientíñca12 desenvolvimento como ñm últim0. Em conseqüência dos
0 artigo da revista alemã añrma que a Logoterapia ain- movímentos que se produziram em virlude da “Grande Guer-
da não conseguiu provar ou demonstrar nem a sua eñciência ra”, muitos existencialistas europeus acabaram emigrando
nem a sua aplicabílidade prática em campos de necessidade para a América e a partir dali começaram a contatar uns aos
especíñca. Lukas responde de maneira enérgíca e fundamenta- outros. Dessa mistura vai se gerando paulaünamenle o que
da que não é assim e ainda resenha a título de exemplo algu- acabaria sendo o movimçnto humanista existenciaL enn'que
mas das diversas experiências e trabalhos concretos que es- cendo-se mutuamente. assim que autores como Gordon
tão sendo desenvolvidos em várias partes do mundo aplican- Allport, que já havia escrito um livro sobre a personalidade.
do a Logoterapia como psicoterapía. De qualquer maneira, reedita a obra depois deste encontro, notando-se nela forle
apesar de a trajetória percorrida pela Logoterapia ser bastan- inñuência do pensamento existenciaL Mas não somente ele.
te ampla, e bem-sucedida, muitos ainda continuam a discutir encontramos reelaborações em outros pensadores importan-
a sua entidade como prática terapêutica. tes como o próprio Abraham Maslow, que, junlamente com
Creío que esta discussão está assocíada às raízes mes- Allport, foi um dos pioneíros no desenvolvimento e na 0rga-
mas da Logoterapia Vamos procurar nos localizar de forma nização do movímento na América nos anos 50. Mas não são
rápida e sucinta na história recente. Quase simultaneamenle somente os americanos que se enriquecem com os funda-
vã0-se gestando na Europa e na América dois movímentos, mentos que os europeus lhes dão a conhecer, mas estes tam-
que, sem terem contato nem conexão entre si, começam a ama- bém se enriquecem com o pragmatismo dos americanos.
durecer idéias semelhantes. De um lad0, os existencialistas Neste sentido, eu diria que Rollo May é muito possivelmente
europeus e, de outro, os humanistas americanos. De marcos o mais existencialista dos humanistas (valc lembrar o seu
históricos e perspectivas d1f'erentes e de situações históricas maravilhoso livro Existência, ao passo que Viktor Frankl con-
e existenciais distintas, começam a renovar as suas idéias tinua a ser o mais humanista dos existencialistas (levzmdo-se
sobre o homem. Talvez a característica mais representativa em conta que é 0 único que ba1x'a 0 nívcl de abstmção do fun~
- entre outras - dos europeus seja a sua forte fundamenta- damento ñlosóflco e inícia uma psicoterapia, com metodologia
ção ñlosóñca. Não podemos negar que a ñlosoña moderna própria, alimentada com essa on'entaçã0). Na atualidade. como
vem«se nutrindo maravilhosamente dos ñlósofos europeus, e expoentes reconhecidos dessa complementação de fundamen-
neste clima e ambiente culturais o existencialismo emerge tação cient1f1'ca e pragmatism0, podcríamos lembrar, por exem-
como lm'ha de pensamento renovadora. Por sua vez, ñel à idios- p10, James Crumbaugh e Elisabeth Lukas.
sincrasia cultural do povo american0, uma nota característica Ora, a Logoterapia conseguiu “tirar dos ombros" a apa-
do humanismo - entre outras -- poderia ser o seu pragma- rência de ser mais uma ñlosoña do que uma psicoterakaP Os
tismo. Daí se seguem enunciados com pouca fundamentação críticos puderam reconhecer esse processo de instrumcnta~
cientíñca e um forte acento na possibilidade de o indivíduo llz'ação técnica do ñlosóñco a serviço de uma terapêuüca psi-
colo'gica? Evidentemente, essa ótica do cn'u'co, que não lhe per~
12Trala-se do arügo Wer 1s't der GlaukerP Einspruch gegen eine thfamíerung der
logotlterap¡e, escrilo pela doutora Elisabeth Lukas,pub1ícado nojournaldes Víktor
mite descobrir a maneira de operacionalizar os fundamentos
Frankl Instituts (vol. 2; nu'm. 2; 1994), pp. 89~93. ñlosóñcos, me faz pensar que, se olhássemos com essa mes-

42 43
ma ótica estreita a psicanálise freudiana, concluir-se-ia que uma população infantil sem nenhum tipo de impedun'ento nem
não se trata de uma psicoterapía, e sim de uma teoria física. de restrição e alcançando resultados com o mesmo sucesso.

_. V-.
De qualquer maneira, a Logoterapia é, evidente e deñni- As crianças podem chegar a se “meter” na históña lída até,
tivamente, uma psicoterapia com clara fundamentação üloso-' com menos resistência, e participam da trama com um prota-
ñca, uma deñnida antropologia de base e uma concreta cosmo- gonismo muitas vezes maior do que os adultos. Existem mu1-'
visão que atua como moldura do trabalho terapêutico, o qual tos livros, histo'n'as, fábulas e histón'as em quadrinhos que po
não somente se defme pela própria metodologia de diagnós- dem ser utilizados em um trabalho dessa natureza com as

~__.
tico (por exemplo, o Logotest de Lukas, ou 0 PILTest e 0 SONG crianças. Podemos ainda assinalar que alguns logoterapeulas
Test de Crumbaugh, entre muitos outros) e terapêutica (por brasileiros vêm trabalhando especialmente escrevendo con-
exemplo, as técnicas de desreflexã0, intenção paradoxal etc.), tos para serem utilizados com ñnalidade biblioterapéuüca. e
mas pela sua intenção (não é um catecismo leig0, nem preten- muitos deles, como, por exemplo. Iamara M. Porcelh', Elisa-
de fazer adeptos para certa orientaça'o), trajetóría e êxitos. beth Kipman Cerqueira e Eloísa Míguez (entre outros) vém
Pois bem, dada resposta añrmativamente à primeira se ocupando especiñcamente da literatura infzmtiLl3
questão, devemos passar à segunda: ela e' aplicável somente Porém, mesmo quando se trata de obras escritas es-
a pessoas dotadas de capacidade retlexiva para estas temáticas pecíalmente para fms terapêuticos, a maioria dos livros m'-
ligadas à cosmovisão e à ñlosoña? Esse perñl ñlosóñco que se fantis apresenta narratjvas que encarnam valores dos quais a
atribui à Logoterapía tem levado muita gente a crer que a tem- criança pode se aproximar e apreende-“los, incorporáJos solida-
pia consiste em reñetir sobre ñlosoña, abordando conceitos mente.14
abstratos tais como valor e sentido. Sendo assim, é lógico su- Tanto para fms biblioterapêuticos quanto para ñns b¡-'
por que se pode empregar esta terapia com pessoas que alcan~ bliodiagnósticos, são muito úteís aqueles livros que m'iciam uma
çam nível de reflexão de acordo com a complexidade do con- aventura e vão denx°and0 a criança escolhcr a conünuação.
ceit0. Mas nada é mais errado do que pensar assim. Eviden- Propõe-se uma situação e se dão ao leitor várias possibilida~
temente, a Logoterapia não implíca conduzír um processo de des para resolve-^la; dependendo de qual seja a sua escolha, a
reñexão, e sim um processo de descoberta. Não se trata de hístória continuará em uma ou outra dirlgvão e assim se pode
círculos fllosóñcos, e sim de encontros vivenciais em torno chegar a diversos fmais. Nestes casos podemos utihza"-los para
de questões existenciais. Em Logoterapia o paciente não se ñns diagnósticos, por exemplo, descobrindo que. dianle de
questiona sobre a vida, équestionado por ela, é ele o questiona- certas circunstâncias, o paciente habitualmente evita enfrentá-
do por cada círcunstância que lhe cabe víver. Em outras pala- las ou o faz desta ou daquela maneira, ou instrumentalizá-lo
vras, 0 paciente não se questíona sobre a vida, mas lhe dá terapeuticamente, permitindo precisamente que ele supere
respostas. Sendo assim, absolutamente não existe a necessi- os seus temores e inibição e tome a decimro de resolve~^las.
dade de que o pacíente seja versado em questões ñlosóñcas
nem sequer que tenha escolaridade. Mais do que isso, ela po- “ Durante as sessões do ll Enconlro Brusileiro dc lngotcmpín urgaluza"tio pela
de ser aplicada no trabalho com deñcientes físicos, idosos, pa- SOBRAL (bo“cicdade Brasileira de lngolcrapim cm São Paulo (l995) Í01'oücw'lm'do
0 ínicio dc um movimenlo lileran"o dentro da logutempx'a. prumovido pela DnL Mnr~
cientes psícótícos etc. Não existem restrições neste sentido. tha G. de lglesia, e efetivado por Antonio C. Giampietro, lva Folino. lnmara PomellL
Agora, tendo esclarecído estas duas questões, vamos Elisabeth K. Cerqueira. Eloísa M1'gucz,enlrc oulros.
" Na terceira parte deste livro apremnlmnos à considemção do lcilor uma sele
responder à dúvida iniciaL A biblioterapia, como qualquer ção de maleñzús que podem ser uülimdos em bibliolcmpia. incluindo malcñal que
outra técníca logoterapêutica, pode ser ímplementada com foi escn'to para ser especiñcamente tmbalhado com um público infanüL

44 45
Lu A bíblioterapia tem aplicabilidade quando se ca se animaram etc. Também se ulilizam, no trabalho com
trabalha com dejícientesñsicos? essa mesma população, em geragogia, esquemas de promo-
ção, prevenção e aprend12'agem para o adulto mais velho. No
Complementando a resposta à questão anterior, podería
nosso meio, há alguns anos o PAMI reahz'ou uma experién~
dizer que não somente tem aplicabilidade, como também pos-
cia bem-sucedida convocando os avós a um concurso literá~
sivelmente seja um dos recursos mais eñcientes neste terre-
rio de contos curtos. Uma vez selecionados os ganhadores,
no. Evidentemente, não de1x'ando de contemplar as caracterís-
foram convocadas as crianças para um concurso de manchas
ticas próprías de cada deñciência e as parücularidades de cada
ilustrativas de alguns dos contos selecionados. O resullado
pessoa deñciente, podese ajustar a seleção de material (exten-
da experiência é um belo livro que se chama Contos e cora.
sa'o, nível de abstração, grau de complexidade conceitual etc.)
no qual se resumem os resultados.15
obtendo resultados formidáveis. A narrativa gera um efeito
Como parte da mesma iniciaüva, foram percorñdas d-
focalizador da atenção que amplia a possibilídade de captação
dades e cidadezinhas do inten'0r da província dc Buenos A1r'es,
e assimilação da mensagem, resultando na modíñcação de
convocando os habitantes maís idosos a escrever sobre a his-
atitudes. Pessoalmente, acho que o trabalho biblioterapêutico
tória do 1ugar.16
com deñcientes é ideal para levar a mudanças de conduta',
Em outra ordem, Jaspers soube defender a validade de
porque a persistêncía do conteúdo da narrativa na consciên-
se considerar o registro da biograña do paciente como um
cia da pessoa deñciente atua como uma imagem permanente
elemento altamente revelador. 70'da vida psíquica é um todo
de referência e continência, gerando palavras de ordem que
comoforma temporal (Zeitgestalt). Captar um homem é cozs'a
permitem imrojetar normas de convivência, de trabalho etc.
que exige a contemplação da sua vída, do nascimento até a
morte. A enfermidade psíquica se enraíza no todo da vida e
LLJl Ler e escrever são a mesma coísa?
para a sua captação não pode ser isolado dele. Esse todo se
Evidentemente são atividades diferentes. Quando nos chama bios do homem, e a sua descrição ou relato, biografía.17
referimos expressamente à bíblíoterapia, estamos falando do Embora não nos proponha que 0 registro biográñco seja
trabalho com a leitura, e não com a criação de material escrito. revelado pelo próprio paciente (dando uma série de Íunda-
De qualquer m0d0, vale a pena aproveitar a 0portunida- mentos e explicações a respeito do valor desse regislro e de
de para propor que “escrever” também pode ter valor tera- como 0 profxssional deve realizá-lo, podemos elaborar a idéia
pêutico. Muitas vezes já foram propostos em diversos tipos da importância de que seja escrita por clc mesmo com a con-
de trabalho terapêutico modalidades que instrumentam o fato dução e as sugestões que 0 terapeuta possa dar. Neste senü~
de escrever a procura de mobiüzar certos conteúdos e pór em do, contamos também com a conlribuição da doutom Elisa~
funcionamento recursos genuínos até agora inibidos ou não beth Lukas, que nos assinala que quem está íntercssado em
utilizados, que são reconhecidos como polencíalmente noci- uma ampla regeneração espz'n'tual-am'mica de si mesmo en-
vos à saúde. Neste sentido devemos lembrar os trabalhos que contrará muitos métodos e ofertas dzferentes no psicomercado
vêm sendo realizados há alguns anos na Chamada lzfe'-review
'5 Cuentos y calares é uma publicação do lnslitulo Nncional de Serviços Socuu"s
therapy, aplicada na terapía de pacientes idosos. Ela utílíza para Aposcnlados c Pension|'stas, realiudo cm 1994 (95 páginns).
este recurso estimulando alguns pacientes a escrever a sua m Trala-se da colcção Contares de los grandes. publicada pclo mesma inslilulo
cntre 1993 e 1994.
própria biograña, lembranças da sua cidade natal, a históría ”Jaspers, KarL Psícopatolugia generaL Fundo dc Cullum Económicm Mx'xJ"co.
do seu bairro, a poesia que sempre quiseram escrever e nun- 1993, p. 743.

46 47
atual: sérios e não séríos, saudáveis e não saudáveis. Dentre os isto? Como o elaboro? Convidado pelo acompanhamento do
sérios e sauda'vets' se tomará e descobrirá aqui um método que terapeuta a dar respostas que Ihe permitam se reconhecer e
se baseia na abordagem frankleamg a elaboração de uma au- se assumir como “sendo” com essa histón'a. Como aprende-
tobiografía logoterapeuticamente guiadzL18 mos de Viktor Emíl Frankl, a exislência humana sempre tem a
Ela nos assinala reiteradamente a importância do acom- característica de resposta e dar resposta é como um documento
panhamento proñssional no transcorrer de um trabalho que de identidade com o qual nos damos a conhecer21
exigirá tempo, perseverança, dedicação, mas que terminará
sendo mais valioso e revelador do que os projetos habituaís
para a auto-expen'êncz'a. w Vale dizer que a prálica de escrever
pode ser em alguns pacientes um recurso altamente revelador
e potencíalmente terapêutic0, sem que isso sigmñ'que conver-
ter o âmbito da terapia em uma oñcina literária ou algo pare-
cido.
Isto é, não se trata da qualidade narrativa escrita nem
sequer de implementar esta técnica exclusívamente com pes-
soas que escrevam bem; a partir de indicações que vão
estruturando a autobiograf1a, vai-se guiando o paciente para
que o produto do seu trabalho termine sendo uma explicação
temporal da pessoa em seu tempo próprio, ao mesmo tempo
que uma conñontação da existência com o logos no aqui e ago-
ra, o que permite elaboração incrivelmente densa e intensi-
va, no d12'er da autora. Esta densidade do estar-consigo-mes-
mo não deve serperdida, por isso é necessário dezx'arp0rescríto
tudo o que foi elaborado: os sinais do rolo de papíro aberto
devem ser traçados novamente com a própria letra para que
não percam nitidez na vida diária dofútum Desta maneira, a
autobiografía realizada se converte em document humain, que
ocupa 0 seu lugar entre a certidão de nascimento e o atestado
de óbito de uma pessoa como uma constâncía do seu ser-pessoa
com vida.2U
No desenvolvimento do relato autob1'ograñ'co, 0 pacien-
te se vê sempre confrontado na lembrança com tripla per-
guntaz O que sinto acerca de tudo ísto? O que penso de tudo

"' Lukas Elisabelh, Una m'dafascinante, “Colecção Noesis", Ediloñal San Pablo,
Buenos Aires, 1994, p, 182.
'90p. ciL, p. 182.
m Op. cit., p. 184. 21 Op. cit., p. 189.

48 49
3° PARTE
MATERIAL

Nesta 3a parte apresentamos à aprecíação do leitor uma


série de escritos que podem ser utíhz'ados como b1'bh'oterapia.
Alguns são escrítos especialmente para esse fím por
logoterapeutas, e outros são obras que, embora não tenham
sido escritas com esta ñnalidade, pelo seu conteúdo podem
se ajustar perfeitamente para tal ñm. Esclareço que não se
trata de lista exaustiva de materíaL mas de apresenlação para
orientação que possa sugerir ao leitor a descoberta de outro
material que se ajuste em Cada caso à aplicação desejada.
Em todos os Casos, introduzimos a obra Com breve su-
gestão referente à temática que ela aborda ou que poderia
ser abordada a partir de sua utilízação como detonadon

MATERIAL Ng 12

“Quebra-cabeça", de Claudio García Pintos

“Quebra-cabeça" nos apresenta a história de quatro tolos


que, diante da circunstância de resolver a travessia de um bos-
que, assumem atitudes diferentes. Basicamente se propõe a

51
alternativa de quais atitudes assumimos quando temos de com as mãos e ñcou tranqu"i10, porque, assim pensou, os duen-
enfrentar uma cn'se ou qualquer circunstan^cia de travessia des já não existem
de determinada sítuação. As d1f1'culdades que essa travessia Outro deles descobriu entre as sombras cerradas do
signmca e a alternativa de dois elementos fundamentais para bosque presenças estranhas que 0 seguiam e o olhavam Eram
faze~^lo: a descoberta do sentido (tratado aquí como “princí- curiosos seres cujas formas se modiñcavam à medida que ele
pio de coerêncía” - é o botão da ñcha que arma o quebra- se aproximava ou se afastava deles e que surgiam da escun'-
cabeça) e a coragem que exige de nós assumir a tarefa de dão como personagens ameaçadoras. Também senüu medo.
segu1r' 0 caminho proposto pelo sentido descoberto. Também quis fugir desse círculo no qual fora apanhado pe
las sombras e seus temores. Logo reagiu e, como aconteCeu
com o outro tolo, descobriu o que fazerz tapou os olhos com
Zuhawaáeça as mãos e ñcou tranqüilo, porque, assim pensou, as sombras
ameaçadoras já não existem
Era uma aldeia de tolos. Uma aldeia habitada por pessoas O terceiro tolo, que gostava de cantarolar enquanto ca-
acostumadas a viver assim, buscando a maneira de evitar pro minhava, começou a sentir personagens invisíveis que, com
blemas, não resolvendo situações, mantendo relações super- vozes estranhas, lânguidas, e muitas vezes também graves,
ñciais e passageíras. .. Ninguém conhecia bem o seu vizínho repetiam os seus cantos com melodia diferente, talvez mais
e alguns nem sabiam se alguém vívia na porta ao Iad0. profunda. Sentiu medo. Quem seriam essas personagens que
Um dia, um grupo de quatro tolos organiza uma excur- repetiam invariavelmente as suas vozes com um tom que o
são. Tratava-se de passeío por bosque que ñcava próximo da assustava, com uma sonoridade inquietante? Quis fugir de-
aldeía. Assim, sem previsões nem provisões, os tolos saíram les, mas não conseguiu. Aonde ia, elas o perseguiam, rep&
da aldeía. Chegando à entrada do bosque, descobriram que tindo espantosamente os seus cantos. Logo reagiu, e como
tinham diante dos olhos a obscura maravilha de sendas capri- aconteceu com os tolos anteriores, ele também pensou no
chosas e galerias desenhadas por árvores de frondosa pre- que fazer: tapou a boca e parou de cantar, e ñcou tranqüilo,
sença e úmida acolhida. Escolheram uma clareira como entra- porque, assim pensou, as vozes ameaçadoras já não exis-
da e se m'troduziram nessa cativante imagem. tem.
Uma vez dentro, facilmente foram enganados por ma- O quarto tolo, que gostava de caminhar e percorrer to-
ravilhosa manhã tão espetacular que confundiram os seus pas- dos os atalhos do bosque, logo descobriu que por mais que
sos e os flzeram perder a referência da entrada escolhida. caminhasse e camm'hasse, sempre chegava ao mesmo lugar.
Sem mais o que decidir, seguiram adiante certos de encon- Acelerava o passo como se isso lhe permiüsse sair mais de-
trar a qualquer momento, por acaso, uma saída, porque as- pressa do labirinto verde~escuro em que havia se meüdo. Mas
sim devia acontecer. Logo, muito logo, tiveram de enfrentar nada adiantava; por mais que corresse, sempre Chegava ao
riscos de todo o tipo. Um deles começou a perceber sons, mesmo 1ugar. Sentiu-se apanhado pela própria impossibilida-
ruídos estranhos, desconhecidos. Em seguida, pensou que de de encontrar a saída. Quis fugír, mas não pôde. Aonde quer
se tratava dos duendes do bosque, fantasmas que habita~ que caminhasse, os atalhos invariavelmente o levavam ao
vam aquela úmida escuridão e perseguiam os intrusos que mesmo lugar, sempre. Logo reagiu, e como aconteceu com
ousavam invadi-la. Sentiu med0, vacílou um momento, quis os outros três tolos, descobriu o que fazerz ñcou parado, por-
fugir, mas logo reagiu e achou 0 que fazerz tapou os ouvidos que, assim pensou, os caminhos não se cruzariam, impedin-

52 53
._,_. 1
dcro de sair do lugar. Mas logo sentiu que não havia resolvi- peça... e como se alguma coisa denlro dele o impulsionasse.
do o problema. Permaneceu parado ali um momento... e tam- apertou o botão.
bém não havia saído do labirinto, que contínuava a existir ao No mesmo instante, presenciou um fato maravilhosoz

_. “-,A
seu redor, cerrado, enigmátic0, e verdeescura Pensou um na mesma hora todas as peças começaram a se juntar auto~

_
instante e disse consigo que, se exístia uma entrada, devia

_-
maticamente umas com as outras, de mane1r'a precisa e muito

4.
exisür' uma saída que só acharia buscand0a, e, apesar do medo cuidadosa, até formarem a ¡magem perfeíta e acabada do
e do temor, decidiu encontrá-la. Pegou uma pedra, amarrou-a quebra-cabeça. Ainda sob o efeíto da surpresa, percebeu que
a uma corda que fez com raízes e a lançou para a frente em se tratava do desenho de uma porta tão vividamente pintada
meio à espessura verde do bosque Logo, seguindo a corda que parecia reaL Tão real parecia que teve vontade de segurar
como atalho, se encaminhou de maneira pausada, mas deci- a maçaneta e abri-la. Foi o que fez, e a sua surpresa foi ainda
dida. maior porque a porta se abriu, e assim, fmalmente. ele pôde
Assim, inventando atalhos através do verde espesso do sair do bosque.
bosque, chegou à presença do duende do bosque. Era uma Passou assim para uma paisagem espetaculan intensa,
pequena e muito simpática personagem, que o recebeu com ]uminosa, com vales regados por sinuosos regatos e enfeita~
curiosa afetividade. 0 tolo se assustou, mas não tentou fugir dos por pomares coloridos, percorridos por pessoas que can-
dele, porque percebeu que era bem recebído. O duende o tavam sem tapar a boca, que olhavam com um brilho especial
guiou até a saída mais próxima do bosque. Ao chegar a ela, que não ocultavam e que desfrutavam ouvindo com atenção
deparou curiosa montanha formada por milhares de peças cada som, cada canto, cada silêncio. Enquanto ele desfrulava
de quebracabeça gigante. Então lhe disse que a única condi- caminhando por ali, mesclado, integrado na sua nova paisa-
ção para sair do bosque pela única saída que o bosque tinha gem, certo de nunca mais retornar à aldeia de onde havia
era armar m'teiramente a ñgura do quebra-cabeça. O nosso saíd0, os outros tolos permancciam com os olhos tapados e a
tolo se sentiu decepcionado por ter de encarar tarefa tão ár- boca fechada, acreditando tolamente que. assim, os fantas-
dua levando em conta aquela enorme quantidade de peças. mas do medo e do temorjá não cxistiam
Mas o duende do bosque o animou dizendo que devia tentar,
ou então voltar ao centro do 1abirinto, e ñcar parado lá, como
já havia experimentado antes. MATERIAL N° 2
0 duende o de1x'0u sozm'ho para que decidisse o que
“A estrada que não tomei” (1916), de Roberl Frost22
fazer e, desejand0-lhe sorte, se perdeu na espessura do bos-
que. O tolo íniciou a tentativa. Trabalhou muitas horas ten-
Que caminho devo t0mar? Essa é a pergunla que nos
tando armar a ñgura em questão. Teve de enfrentar desâni-
fazemos freqüentemenle quando deparamos a alternativa
m0s, frustrações, desesperança, o desesper0. Teve algum
humana de cscolher. Essa pergunla revela que a cscolha não
sucesso e conseguiu armar parcialmente algumas áreas do
desenho. Procurando, tentando, armando, encontrou em meio 22 Robcrl Frosl é um dos muis inumruInlcs poclas norlomncñcnnos. Muitns
à montanha uma peça curiosa. Era semelhante às demais, mas das suas produções rcvulam a sua proÍunda rclação com a nulurcza. scndo clc um
desmcado cantor das pa1'›u'gclls da Novu lnglulcrm Frusl nusccu em ba""o anciwo
tinha uma partícularidadez no canto da peça havia alguma no ano de 1875. c morreu em Boslon cm l9b$". A pocsiu aqui aprcscnlndn Íui cuñu
coisa que parecia um botão vermelh0. Ele a de1x'ou de lado e em 1916, ganhando certa populan"dadc a parlir da suu inclusào no ñlme 'Socicdadc
dos poetas mortos". com a qual o protagonisla. o proíeswr Kcuu'ng. prctcndc csu-'
continuou tentando. Passado um moment0, voltou àquela mular nos seus alunos o excrcício da deciúo pessoaL

54 55
é simples. Por um lado, queremos optar por camínho fácil e duas estradas, num bosque, divergiam; e eu
tomei a menos frequ"cntada;
cômodo, aquele que todos seguem; mas por outro lado, se
e foi isso a razão de toda a diferençal23
nos apresenta outro, pouco transitado, mas que nos oferece
alternativa de crescimento pessoa1. Sabemos que a opção nos
levará dali em diante por direção que não tem volta, diñcil- MATERIAL N° 3
mente poderemos tomar esse caminho assim que tomarmos
a decisão que temos diante de nós. Sempre contamos com a ,,24
“O sapateiro
possibilidade de escolher, e ali onde se abrem dois caminhos

. _r-
a opção que se apresenta a nós é o caminho mais fácil e cômo- 0 sapateiro nos remete à experiência do ínconformismo
d0, o conhecido e transítado, ou aquele outra, d1f'erente, que e da insatisfação. Relala o caso de que aqueles que não che
nos impele a crescer. A decisão depende de nós, das nossas gam a ter valores, o que possuem e vivem é a eterna insatisfa-
atitudes, dos nossos projetos, da nossa aspiração, da nossa ção por causa daquilo que não têm. A história, em linguagem
coragem para assumir o risco de transitar pelo nosso cami- simples, nos introduz profundamente na reflexão sobre o va-
nho. Nesta poesía de Robert Frost está proposto esse momen- lor das coisas, mesmo aquele das pequelms fortunas cotidia~
to de decisão consciente de que do caminho escolhido depen- nas, aquelas que habitualmente desconsideramos. Esta cur-
de a orientação de uma vida. ta narrativa se associa a expressões tais como “n'co não é
aquele que mais tem, e sim aquele que menos necessita" ou
“somente o barato se compra com dinheiro”.
Ámdammmm
Duas estradas num bosque amarelo divergiam;
tríste por não poder seguir as duas amceow
sendo um só viajante, muito tempo parei
olhando uma delas, até onde podia alcançar, Deus tomou forma de mendigo e um dia desceu a uma
pois por trás das moítas ela dobrava. aldeia. Procurou então a casa do sapateiro e lhe dissez Irmão,
Então tomei a outra que me pareceu de ígual beleza. sou muito pobre... não tenho nem uma única moeda na minha
Uma vantagem talvez oferecendo bolsa e estas são as minhas únicas sandálias... e estão rotas...
por ser cheia de grama, querendo ser pisada. se mefízesses o fav0r... 0 sapateiro lhe respondeuz bs'tou can-
Embora neste ponto o estado fosse o mesmo sado: todos vêm pedir e ninguém vem dar...
e uma, como a outra, tívesse sido usada. O Senhor lhe disse: Posso dar-te o que necessitas. O sapa-
teiro, desconñado, vendo um mendig0, pergunlou se ele po-
E naquela manhã todas duas tinham
folhas ainda não escurecidas pelos passos. deria lhe dar o milhão de dólares de que necessitava para ser
feliz. E o Senhor lhe dissc: Posso dar-te dez uezes mais do que
Ora! Guardei a primeira para outro dia! zs'so... mas em troca de alguma coisa. 0 sapateiro, interessa~
Mas, sabendo como uma estrada leva a outra,
duvidei poder um dia voltar!
23 Poemas Escolidos de Robert FrosL lradução de Man'sa Murmy. Editora
Lidadon Rio dc Janciro, 1969, p. 39.
Contarei esta história suspírand0. z' Sobre um relato do espeláculo Lo Cortéz no quita lo Cabml (Albert0 Cortéz/
Daqui a séculos e séculos em algum outro lugarz Facundo Cabral).

56 57
do, perguntou em troca de quê. Em troca das tuas pemas, Pópa
respondeu o Senhor. O sapateiro respondeu: Mas pam que de Luiz Falcão
quero dez milhões de dólares se não vou poder andarP Então 0 Pipa vai, pipa vem,
Senhor lhe disse: Posso dar-te cem milhões de dólares em tro- voa, voa me elcva também
ca... em troca dos teus braços. O sapateiro respondeu: Para Pipa vai, pipa vem,
que quero cem mílhões de dólares se nem sequer vou poder co- voa, voa até onde os olhos não véem.
mer sozinho... Depois de uma pausa, 0 Senhor lhe ofereceu Fazendo piruetas no ce'u.
novamente, dizendcrlhez Bom, posso dar-te mil milhões de d0-' lindas tão coloridas de papeL
lares em troca... em troca dos teus olhos... O sapateiro pensou, Voar por toda parte.
Umjogo feito arte.
pensou e fmalmente respondeu: Para que quero míl milhães
No ar, semprc alcgre como um passarinh0.
de dólares se não vou poder ver a minha mulhe,r nem os meus Voar em liberdade.
fílhos, nem os meus amigos... Ser livre é um desaño.
Então o Senhor lhe d1'sse:Ah... Irmá'0, irmão, quefortu- Com a vida sempre presa por um ño.
na tens e não te dás conta... Pipa vai, pipa vem,
voa, voa me eleva também
Pipa vai, pipa vem,
MATERIAL NQ 4 voa, voa até onde os olhos não vêem

“PIPA", de Luiz Falcão

Pipa, do poeta brasileiro Luíz Falcã0, nos apresenta de MATERIAL N° 5


maneira muito simples e bela a vivência da liberdade. A ima~
“O caminho da verdade"
gem de uma pipa brincando no ar, fazendo piruetas vistosas e
(Lenda dos Homens e da Vida), dc Elisabeth Kipman Cerquelra'
coloridas, se associa imediatamente com a idéia de liberda-
de. Voar, sub¡r, chegar até onde os olhos já não conseguem Esta história de Elisabeth Kipman Cerquoira nos inlrcr
ver, são circunstâncias que muitas vezes percebemos como duz em temáticas variadas, mas que giram fundamentalmen~
privilégios dos pássaros ou das pipas, especialmente quando te em torno da noção da consciência, aquela que incessanle
nos sentímos atados por diversas circunstan^cias da vida. Nessa mente vai nos guiando através de uma mensagem ñrme e
busca de liberdade, muitos de nós assumem papéis de vítima clara que muitas vezes nos recusamos a escutar e. por conse
ou de submissão algumas vezes acreditando que na nessa guinte, a seguir. Uma voz que por força de difcrentes circuns-
situação ser lívre é d1f'ícil. Mas a canção nos chama a atenção tâncias pode se manifestar em leve sussurr0, opuco ou oculto
sobre alg0, sobre a própria condição da pipa, que não denx'a por ansiedades, desassossegos ou falsas esperanças. lodos
de ser liv."e, não se submete nem assume 0 papel de vítima, eles vícios que afetam a vontade no momcmo de agir c dcci-
apesar de estar atada. E lá nos de1x'a a sua mensagemz ser dir. Essa mesma voz pode chegar a cxplodir como um grito
livre é um desaño quando se tem a vida sempre presa por um revelador que nos permitirá aceder, como no caso do conto.
ño. Da nossa atitude depende, pois, sermos vítimas ou prota- ao caminho da verdade. Muitos ângulos intcressantcs podem
gonistas das nossas circunstâncias, descobrir a verdadeira se abrir a partir da narrativa lanto para a tmefa em grupo
liberdade ou desistir da sua busca. quanto para a individual. O tempero da ilustração - realxz'a-

58 59
da especialmente para o conto -1he acrescenta atrativo que mundo e ouviram através do ventoz “Subam na montanha mais
o habilita para o trabalho com pacientes muito jovens. alta e toquem o céu com as mãos!”.
Carregando 0 menino, começaram a subir mesmo scm
ver os picos das montanhas. Caíam e se machucavam Sem-
Úmúzéodamdade pre que chegavam ao cume das montanhas, aparecia outra
mais alta. Mas cominuavam apesar do cansaço e da aflição,
...Conta a lenda que houve um tempo na terra em que porque a voz, mais forte do que a própria dor que parecia saír
tudo era frio, silencioso e escuro. Não havia sol. Não havia do coração deles, insisüaz “Sobe na montanha mais alta!”.
1uz. A Lua sempre pálida estava coberta pelas nuvens. Os Por ñm, exaustos, apoiando-se um no outro, chegaram
homens andavam pelo mundo sem saber bem por quê. Não ao ponto mais alto daquelas montanhas, e trataram de alcan-
conheciam as cores. Tudo estava rodeado de Cinzas. Não se çar 0 céu...
via nem sequer o cume das montanhas. Cercados pelo negro abismo, Marrau c Abaué. fen'dos,
gelados, no meio da borrasca, abraçando Yoasi para protegê
Era d1f°ícil plantan Era difícil comer. lo do frio, se perguntavamz “Será que a voz disse a verdade?".
Os homens eram calados. Desconñados, viviam sempre E ouviram novamente a voz, que diziaz “Sim! conñem, porque
armados e escondidos. Não se entendiam bem uns com os vocês me ouviram com 0 espírito dos fortes e dos valorosos!
,.
outros. Não se olhavam nos olhos. Os adultos estavam sem-
pre abatidos e as crianças não brincavam. Cada qual vivia para Eles então se abraçaram, e. trêmulo, Marrau levantou
si. Eram tristes e medrosos... alguns dizíam que nem sempre Abaué nos seus ombros. Chorando de emoção, Abaué, vitorio-
foi assim. Os mais velhos cochichavam indecisos e recorda- sa, levantou Yoasi, e diante do geslo milagroso dos bracinhos
vam vagamente 0 que seus bisavós contavamz “Quando a abertos, o céu, que parecia tão distante, se abriu e surgiu a luz.
O Sol também apareceu e se pôs a dançar com eles.
humanidade era jovem, em algum lugar, 0 céu era azu1”. Mas
A terra explodiu em cantos com a voz dos pássaros e dos
nem todos aceitavam esta situação...
Homens. Tudo se cobriu de folhas, de Hores e de írutos chcios
Havia um jovem guerreiro, Marrau, que buscava sem-
de vida que nascem do amor e se ah'mean da fé e da esperança
pre o caminho que o levaria até onde o céu era azuL Um dia,
Os amm'ais começaram a correr e os riachos procurm
se casou com Abaué, e tiveram um ñlh0, Yoasi. Eles sempre
também saciar as gramíneas sedentas.
conversavam e se que1x'avam de que a noite pesava sobre a
Na Terra, haviam encomrado 0 caminho da verdade e
aldeia. Talvez alguém, com coragem, pudesse livrá-los...
Quando Yoasi completou dois anos, começou a enfraque os Homens já podiam se olhar nos olhos.l
cer, como as outras cn'anças. Todas as criaturas começaram a
deñnhar, como brotos que não se abriam e logo morriam.
MATERIAL N° 6
Cheios dc añição por todas as crianças, Marrau e Abaué to-
maram Yoasi nos braços e part1r'am em busca da 1uz. De1x'a- “Aventuras em busca de am0r", de Iamara M. Porcellí
ram a única pequena segurança que tinham na aldeia, enfren~
taram as trevas. A narrativa de Iamara M. Porcelli possui um estilo que
Foram surpreendidos por víolentíssíma tempestade. a torna especialmente adequado para o trabalho com crian~
Cheios de desespero, invocaram a força que governava o ças, permitindo identiñcações imediatas a partir da apre-

60 61
sentação das personagens. De certa forma, lembra a temáti~ - Sempre ouvimos dizer que é grande e lindo, não é
ca tratada por outras histórias, como, por exemplo “A Len- mesmoPl
da do pássaro azul", nas quais a personagem saí desespera- - E sim, añrmaram com grande expectativa.
damente em busca de um bem que na realidade possui no - Sabemos que quem 0 encontra é feliz para sempre,
seu própn'o ínteri0r, mas com o qual não consegue entrar em não é mresmo?
contato. Aquí, o bem buscado é, genericamente, “0 am0r”, - E sim, é sim!
molivo das aventuras que este grupo de meninos vive, per- - Então lhes proponho uma aventura, uma aventura
correndo o mundo e superando episódios de diversos tipos. maravilhosa em busca do amor. E não vamos desisür até en-
A resistência em crer que o possuem e a alegria ao conñrmá- contrar 0 lugar onde ele se encontra.
lo constituem as emoções que habitualmente se dão no ou- Nesse momento, o olhar de todos tinha o mesmo brilhoz
tro quando tentamos fazê-lo descobrír que é possuidor do o brilho da aventura, do desejo de encontrar um tesouro mui-
bem almejado. A imagem do conto vale também para frisar to valioso. Melhor do que os encontrados em navios piratas
que, para 0 descobrimento e a apropriação desses bens, sem- naufragados ou nos castelos dos pn'ncipes.
pre é necessáría a presença do outro, como acompanhante Com os corações acelerados, gritavam em uma só voz:
e revelador. - Esta vai ser a aventura mais linda da nossa vida. Va~
mos lál
Começaram então a se preparar para a viagem Procura~
Áummmdem ram se lembrar de tudo aquilo que precisavam levar: mochi-
1a, 1anterna, cantil, comida, para que não desisüssem durante
Era uma vez... Parece que toda história começa assiml a viagem. Estavam dispostos a qualquer sacrifício porque sa-
...Um grupo de sete amígos que gostavam de se arríscar sem- biam que valeria a pena. E partiram para a grande aventura!
pre. Vamos apresentá-los: Pedrinh0, inteligente e travesso; Chegaram primeiro a uma grande cidade que na reali-
Kiko, observador; Lelé, sábío; Maria, muito sensível; Dri, ma- dade parecía uma “se1va de pedra". Pedrínho teve a brilhante
liciosa; Camila, indócíL e Viviana, conversadora. Com estas idéia de subirem ao edifícío mais alto, pois de lá, com segu-
características, juntos se completavam rança, conseguiriam localizar onde morava 0 amor.
Gostavam de conversar e investigar sobre qualquer Do terraço do edifício, todos procuravam olhar atenta-
assunto. mente. Olhavam, olhavam... Dri usava binóculos. Nada. Mas
Um dia, em uma dessas conversas, falaram da coisa mais não desistiram; passaram horas a observm a grande cidade.
linda e preciosa que existe no mund0: o amor.' Pelo menos, E nada encontraram. Finalmente Pedrinho disse:
sempre ouviram falar nele. - Bom, se o amor morava aquí, nesta cidade, acho que
Surgiu então a perguntaz se o amor é tão lindo e tão pre- se mudou. PareCe que tudo aqui é tão triste...
Cioso, por que não procuramos descobrir onde encontra'-lo? - Tudo aqui é pó, acho que ele não gostaria de viver
Todos se entusiasmaram com a idéía, mas se perguntaram aquí, concluiu Viviana imediatamente.
como fazer para consegui-lo. Pensaram, pensaram, pensa- - Acho que vocês têm razão, vamos para o mar, talvez
ram... E logo Lelé, com brilho especial nos olhos, dissez seja 1á... - disse Lelé, com 0 seu olhar sempre alent0.
- INós sabemos que 0 amor existe, não é mesm0? - Vamos passar mal se viajarmos de barc0! - disseram
- E sim, responderam todos. preocupadas Dri e Camila.

62 63
bem já prevendo problemas desse tip0, tratou de tran- - Outra vez a mesma coisa? - Não entendemos nada!
qüilizá-las: - disseram todos, menos Kiko, que preferiu observar calado.
- Eu trouxe no meu estojo de primeiros-socorros um Mesmo assim, não desistiram Foram indo em zigueza-
remédio contra enjôo. gue, percorrendo o mundo: Itália, França, Inglaterra. os paí-
- Que bom.l ses asiáticos e os afn'canos. As coisas foram ñcando mais d1fí'-
Partiram então com a esperança e a alegria de encontrar ceis, pois já estavam caminhando pelo deserlo.
no Grande Oceano a morada do amor. Navegaram muito. Mar Que calor insuporláveL que sede insaciável... E recorda~
revolt0, mar calmo, sol, chuva e ventos. Turbulências e golñ~ vam os momentos felizes na terra nataL Mas foi grande o sus-
nhos. Enñm, atravessaram os sete mares. to quando Maria, com muita sede, abriu o cantil e viu que
Kiko, que observava em silêncio tudo 0 que acontecia, restavam apenas algumas poucas gotas de água. Que momen-
disse chamando a atenção de todos: ' to d1f1"cil.' Lelé aproximou-se dela e disse, com voz suave e
- Não acho que 0 amor mora aqui. E melhor irmos para ñrme:
outros 1ugares. - Maria, não vamos desistir, não é verdade?
Lele', como chefe da expediçã0, pensou um pouco e E decidiu então repartir aquelas gotas de água entre to-
propôs: dos. Foi o que fez, e logo depois, olhou ao seu redor, d12'endo:
- Concordo com a sua observaçã0, Kiko. Vamos então --Acho que o amor não se encontra aqui, pois este é um
percorrer todos os países perguntando pelo amor. Todos se lugar muito quente e sem a'gua. Ele morrería de calor e de
olharam espantados, mas logo concordaram Primeiro foram sede, não é mesmo?
ao Japão. Dri, que já não agüentava mais de tanta vontade de Todos concordaram e partiram Foram para os bosques,
encontrar o tesouro, foi logo perguntando a um japonêsz dispostos a enfrentar todos os perigos. Caminharam durante
-- Moço, você sabe onde se encontra o amor? Por favor, horas e o desânimo começou a surgir de nov0. Que penaI
desejamos encontra'-lo. A noite chegou de repente e Lelé notou que todos come-
- Eunãossei. çavam a desanimar. Por isso, decidiram descansar e tratar de
- Mas na verdade, o que foi que ele disse? dormir para estarem bem e mais dispostos para o dia seguin-
- Eunãossei - foí só o que foi que ele me disse... te. Todos se acomodaram, mas estavam inquietos, pois duvi-
- Mas não dá para entenderl davam que iam encontrar o amor.
- Vamos continuar, disse Le1é, dando meia volta. Camila começou a Chorar de tristeza e dlz'ia entre sus-
Foram à Grécia. Viviana, com a certeza de que agora o piros:
encontrariam, foi correndo na frente e perguntou à primeíra - Procuramos em todos os lugares da terra e não o en-
pessoa que viu: contramos. Se ele existe, então que apareça para nós!...
- O senhor sabe onde se encontra 0 amor? Estou de- E acabaram adormecendo de tanta lrislezzL Na mesma
sesperada atrás dele.' hora, uma luz apareceu no céu e toda a zona do bosque ñcou
- Eunãossei - respondeu o ateniense, inclinando-se iluminada. Espantados e com muito medo, perguntavam uns
na díreção da menina. aos outros:
Todos chegaram perguntando com ansiedade qual a res- - 0 que será isso?
posta obtida. Com o olhar tríste, Viviana procurou repetirz - Será um sonho?
- Eunãossei. - Será uma estrela gigante que vai cair na terra?

64
- Será que o bosque está pegando fogo? cender encontrando o que procurava não em si mesmo. mas
Ouviu-se então uma voz forte, mas meiga, que vinha da no horizonte do interpessoaL Como dizia o lema fratcrno que
luz: unia os cavaleiros do lendário re1'Artur.serviraos outros para
- Vocês estão procurando fora aquilo que Vive dentro ser livre.
de cada um de vocês. Cuídem dele.I Realmente é a coisa mais
linda e preciosa que existe na terra.
Emtum ímpeto de alegria, todos começavam a gritarz Ómgaegmmmqu
-- E 0 amor, é 0 amor, nós 0 encontramos, ele vive den-
tro de nós... Vival Nós o encontramos.I Era uma vez um rei que, desde os remotos tempos da
Pedrinho dava cambalhotas. Os outros começavam a sua juventude, buscava a felicidade eterna. Em função disso,
cantar canções que falavam de am0r. Era uma grande festa, a trat0u, em todas as atitudes que tomava, de não se afastar do
festa do encontro! Lelé, emocionada, junto com os demais, seu objetívo.
concluiuz Os anos passavam e o rei, apesar dos seus esforços. não
- Devemos contar isto ao mundo inteiro...! Todo o mun- conseguia atingir a meta. Com freqüência se senüa amargu-
do precisa saber por que quem encontra o amor é feliz para rad0, entediado, sem inquietudes e sozinho. Resolveu com-
sempre...! sultar um sábio de muito prestígío que vivia nas proximida-
des. O sábio, ao ouvir as suas que1x'as, disselhez
- O homem sempre busca satisfazer os seus desejos
MATERIAL N° 7: mais íntimos, mais reprimidos. Somente quando consegue
“0 rei que queria ser fehz'”, de Antonio Carlos Giampietro realizá-los é que se sente livre para gozar da paz e da felicida-
de. Por isso, sào tão poucos os homens felizes. Vossm majes~
Com uma temática bastante añm àquela do conto ante- tade viveu ocultando os seus anseios com realúações que não
ri0r, mas com tratamento totalmente distinto, Antonio Carlos o satisfazem.
Giampietro nos propõe uma história na qual a busca da felici- O rei voltou ao palácio, refugiou-se nos seus aposentos e
dade e' 0 elx'o princípal, mas a busca da autotranscendência é procurou reíletin Depois de algum tempo se decidiu; in'a em
a façanha. Certamente, assim como a história de Iamara Por- busca de satisfazer os seus desejos e fantasias.
celli é ideal para o trabalho com crianças, esta história apre- Por algum tempo, viveu rodeado de prazeres. Nada lhe
senta características que a tornam adequada para adultos. era proibido, e para ele tudo era possível. Não obstante. ape~
0 caso deste rei é 0 daquela pessoa que busca a felicida- sar de tudo isso, a sensação de tédio não o delx'ava, nem a
de como meta e ofaz“cravar1do os olhos no próprio umbigo”, impressão de inutilidade da sua vida. E queria morrer. Foi
isto é, de si para si. A história o coloca ao lado de personagem então aconselhado a consultar oulro sábio que tinha grande
que o acompanha, proporcionado-lhe elementos plara que inñuência no reino. Foi o que fez. Contou-lhe a sua história,
possa ir se aproxímando da verdade da sua busca. E assim as suas que1x'as, as suas tentativas de se livrar do mal que o
que o erro de buscar a felicidade como meta -- quando na afligia e escutou 0 conselho do sábio:
realídade ela é efeito ou produto - e pretender encontrá-la - A satisfação dos prazeres é importante, majestade,
no próprio umbigo, vão dando lugar a elaboração e reñexões mas não é tudo. O homem nasce se sentindo pequeno e infe-
que lhe permitam “se curar" no momento de poder se trans- n'or. Para superar essa sensaçã0, deve se sentir bem e fehz',

66 67
precisa conquistar poderes que lhe permitam trocar esse sen- - Um amigo meu, Herman Hesse, em um livro chama-
LIm'ento de inferioridade pelo sentimento de ser poderoso. do Sidarta, d12' o seguintez Quando alguém busca muito, pode
0 rei voltou animado. Então era isso. Não lhe bastava facilmente suceder que seus olhos se concentrem exclusiva-
esse reino, precisava conquistar outras terras e melhores ri- mente no objeto buscado e que seja íncapaz de encontraraquilo
quezas. E se pôs em açã0. Chamou o comandante do seu exér- que realmente deseja, e que se torna inacessível porque só pen-
cito e lhe deu ordens. sa naquele objeto e porque tem meta que o cega totalmente.
Os anos passavam e agora o rei, além de gozar dos pra~ Procurarsigmfca ter meta. Mas encontrarsignjííca estaraberto
zeres, possuía o maior reino e as maíores riquezas então co- a tudo... Pode ser que você seja pessoa que busca, já que, pelo
nhecidas em todos os arredores. Nunca se ouviu falar de um seu afã de se aproximar da sua meta, você não percebe certas
soberano tão forte e tão poderoso. E, enquanto lutava para coisas que estão muito perto dos seus olhos.
atíngir essas metas, o rei parecia se sentir bem, mas logo ao - Muito perto dos meus olhos!... repeüu o rei pensativo.
alcançá-las, de novo o tédio, os dias monótonos e a sensação Em algumas semanas se produziu uma melhora física.
de frustração tomaram conta dele. O seu estado de ânimo foi O rei se alimentava bem, 0 seu peso aumentava e ele parecia
decaindo aceleradamente. Enfraqueceu e ñcava triste e cala- bem disposto. Mas o seu coração continuava angustiad0. 0
d0. Por ñm, se abandonou totalmente e ñcou na cama à espe- médico sugeriu então ao rei que, disfarçado de paisano, pas-
ra da morte. seasse por todo 0 hospital e conhecesse todos os seus su'di-
- Morte sem conhecer o prazer de viver! - repetia cons- tos doentes, sem que eles o reconhecessem O rei aceitou.
tantemente para si mesmo. No pnm°eir0 dia parou diante de um leito onde um mon'-
Os membros da sua família e toda a corte procuravam bundo era alimentado por outro paciente, gravemente enfer-
fazer alguma coisa para evitar 0 pi0r. Resolveram então cha- mo. Ambos pareciam irmanados naquela ação. A cena o como-
mar o médico rea1, um velhinho muito culto e com grande veu fortemente. Encontrou depois um jovem paraplégico que
experiência que gostava de citar os grandes autores, que, di~ procurava, na medida das suas possibilidades, ajudm a ou-
zía, eram amigos seus. Comentava~se pelo reino que esse tros companheiros. Durante todo aquele dia observou situa-
médico inventava histórias e era um tanto extravagante, mas ções semelhantes. Nos dias seg1u'ntes, tornou a repetü a expe~
todos concordavam em considerá-lo excelente médico e ho- riência. Pouco a pouco, foi conhecendo uma realidade que
mem muito bondoso. não parecia distante do seu mundo habitual.
O médico os aconselhou a internar o rei no hospital para Certa manha', ñcou tão distraído, que se atrasou para o
poder estudar melhor o seu caso e então tratar dele. almoç0. Como 0 hospital era pobre, apesar da n'queza do rei-
E assim f0i. O rei foi internado em um apartamento es- no, não encontrou comida para que lhe fosse servída fora de
pecial separado dos outros doentes. O médico conversou hora. Para sua surpresa, um jovem paciente, muito doente, o
muitas vezes longamente com e1e, e íniciou 0 tratamento. convidou para a sua mesa e repartiu com ele a sua comída.
-Acho que Deus se esqueceu de mim! - queixou- - Muito agradecido, meu jovem! Você é muito genero-
se 0 rei. so. Mas estou vendo que está muito fraco e que prccisa de
- Não se deve contar demais com Deus. Talvez Deus uma boa alimentação para se recuperar. Não pode ñcar sem a
deseje contar com a gente. parte da refeição que está me oferecendo.
- Mas, doutor, procuro tanto a felicidade, que oriento - Veja, senhor, o prazer de poder reparür 0 meu pão
tudo o que aprendo para conseguí-la. me fortalecerá. Sentese... por fav0r.

68 69
O rei aceitou. Sentou-se à mesa com o jovem e, durante O rei se sentia u'til, como nunca havia se sentido antes. Rea-

______1
a refeição, perguntou da vida de1e. Conheceu a sua pobreza, hz'ou atos de companheirismo, de amízade desinteressada,
ñcou sabendo dos ñlhos e da esposa, de quem ele tinha de de afeto, e enfrentou a dor com valentia. Por sua vez, sentia
cuidar e até dos pais idosos que víviam com ele. que, apesar de estar doente, conseguia dar um grande senu'-
- Como pode manter esse aparente bom humor com do à sua vida. E, embora ainda esüvesse magro, se sentia
essa situação difícil, com uma família que precísa de voce^, forte.
doente, longe dela? Passados alguns dias, voltou a falar com o médico. Sen›

__
- Veja o senhor, eu não abandono a minhafamí1ia. Es- tía-se curado. O seu coração palpitava alegremente e pela pn'-
tou me preparando para voltar a viver com eles. Esta doença meira vez sem amarguras.
foi uma fatalidade inevitáveL mas procuro fazer 0 que está ao - Doutor, em que lugar me encontro? Que milagre acon-

_ mM â
meu alcance para me recuperar e estou orgulhoso disso. Vou teceuP Enquanto procurava a felicidade, não a encontrei. e
estar bem assim que seja possíveL De qualquer maneira, pre- quando desisto de procurar, a encomro no lugar mais impre-
ciso ñcar bom para cuidar dos meus entes queridos. A 1em- visto.
brança desse agradável compromisso me dá forças e humor - Este é um lugar qualquer do mundo, majeslade. Nem
para sobrelevar cada dia que passo. sempre aguilo que se procura se encontra onde pensamos
O rei ñcou pensatív0. Como aquele pobre homem enfra~ que está. As vezes, depois de percorrer numerosos caminhos
quecido pela doença, sem bens materiaís, sem possibilida- e andar muitas 1éguas, descobrimos que aquilo que procurá-
des de gozar dos prazeres da vida, podia estar ali, apesar de vamos sempre esteve muito perto de nós. E ísso que nos en-
tud0, aparentemente feliz? Tudo 0 que via parecia contradi- sina o encantador conto 0 pássaro azul da felícidade. Outras
zer 0 que aprendera com os sábios. Intn'gad0, falou com o mé- vezes não notamos que, sem bússola, nos perdemos denlro
dico: de nós mesmos, e quanto mais procuramos prossegmr', mais
- Doutor, que lugar é este que me produziu sentimen- pn'sioneiros estamos. Rodando então até o mais profundo dos
tos ímprevisíveis? Que lugar é este onde me encontro que abismos. Lá emba1x'o, no escuro, sozinho. olhamos para o alto
me faz desejar participar das atividades que realizam os meus e vemos uma fendaz a nossa única saída. Alravés dessa estrei-
súditos mais pobres e doentes? ta abertura, entrevemos o céu e as estrelas. Os abismos nos
0 médico lhe respondeuz aproximam das alturas.
- Este é um lugar qualquer do mundo dos humanos. - Os abismos nos aproximam das alturas. .. - repetiu
Outro amigo meu, Gibran Khalil Gibran, escreveu um livro 0 rei pensativ0.
cujo título é Para'bolas. Em certo momeinto ele diz: “Deves - Vossa majestade buscava a felicidade gratu1'ta. Não é
ter ouvido falar da montanha sagrada. E a montanha mais assim que ela é encontrada. O bem-estar humano surge de
alta do mundo. Se chegas ao topo, nasce em ti um desejo de uma vida plena de sentid0. E quando o encontra, com a reali-
descer e viver com aqueles que vivem no vale mais profundo. zação de um traba1h0, com a experiência do amor. ou enfren-
Por isso, ela se chama montanha sagrada”. Pense nisso, ma- tando o sofrimento, o ser humano se realiza como ser auto-
jestade. transcendente que é.
Nos dias seguintes, o rei realizou todas as tarefas que - Autotranscendente?
surgiram E não eram poucas, com tantos doentes e tão p0u- - Sim, que se realiza fora de si mesmo, no encontro
ca gente para ajudá-los. Assim se passaram várias semanas. com outros, na realização de valores.

70 71
- No encontro com outros... na realízação de valores... transcendência do ser humano e da capacidade do homem
- repetiu o rei, ainda pensativo. para conseguir valor mesmo diante do ínevitável sofn'mento.
- O bem é o encontro de tod0s os seres, 0 idioma com - A montanha mágica... o fundo do abismo... as estre
o qual todos se entendem, a aliança defmitiva dos corações. las... o valor do sofrimento... - murmurou o rei. Diga-me,
Como já lhe disse duas vezes, majestade, este é um lugar doutor, o doutor Frankl escapou com vida?
qualquer do mundo. Volte para o seu palácio e viva como ho- - Sim, escap0u.
mem pode víver, procurando dar 0 melhor de si para que o - Ele ainda vive? - perguntou, com grande bn'lho nos
mundo seja melhor. olhos.
- Tenho receio de que a minha contribuição seja so- - Longe, muito além destes mares. em um lugar muito
mente uma gota no oceano. distante deste reino, ele ainda vive. Está bastame velho, como
- Talvez seja assim, mas 0 oceano seria menos oceano eu também est0u, mas continua trabalhando todos os dias.
sem essa gota, como diria a minha amiga Madre Teresa de amorosamente para que o homem seja mais humano.
Calcutá. O rei respirou profundamente
0 rei, agradecido, despediu-se do me'd¡co. A ponto de - Para que o homem seja mais humano... homem...
sair, resolveu, pensativo, voltar-se e comentarz humano... homem-humano... agora estou começando a enten-
- Doutor, 0 senhor possui uma grande sabedoria. Pare- der... O mundo precisa de pessoas como o senhor, como esse
ce-me que, por modéstia, talvez, cita idéias de amigos seus seu amigo, como todos os seus amigos...
que na realidade são parte das suas próprias idéias. Notei, - E como vossa majeslade.
além disso, que, através das nossas conversas, me ajudou a, O rei sorríu emocionado.
pouco a pouco, dar senlido às minhas ações. Tudo foí muito - Gostaria de encontrá-lo outras vezes, doutor, para
proveitoso e inesquecíveL Mas tenho uma grande curiosida~ conversar sobre as nossas existências. Gostaria de conhecer
dez como aprendeu a ag1r' assim, como homem, como amigo e mais coisas relacionadas com esse grande amigo seu.
como médico? - Estou à sua disposiçã0.
- Agradecido, majestade, por suas generosas palavras. - Eu 0 consultarei várias vezes, se isso não o incomodzL
Aprendi na mm'ha vida, com meus pais, irmãos e amigos. Com - Cada encontro será um grande prazen Já estou dese-
meus mestres e pacientes, em meus acertos e em meus er- jando concretizá-lo.
ros... Muito tempo atrás, era um bom rapaz e em outras ter- O rei saiu do hospital e resolveu voltar para casa a pé.
ras em outro reino, durante uma guerra tem've1, fui feito pri- Respirava o ar puro daquela manhã como se fosse a primeira
síone1r'o injustamente. Comigo Lambém foram presos nume~ vez. Caminhou ñrme e segum Sabia o que buscar e para quê.
rosos companheiros e muito poucos conseguiram sair com O seu coraçã0, por ñm, eslava aliviado e na sua cszeça fervi-
vida. No cativeiro, durante anos, vivi as situações mais degra- lhavam idéías de novas e difercntes conquistas.
dantes para um ser humano. Entretanto, apesar disso, apren- Chegou ao palácio e todos notaram a difcrcnça. O reí
di muito daquilo que sei nessa dolorosa experiência. A prísão estava curado e alegre.
foi a minha montanha ma'gica... meu fundo do abismo... Foí - AfmaL perguntou a rainha. que doença você tinha?
então que conheci o meu eterno e grande amígo, 0 doutor - Ah, minha quen'da esposa, era uma doença muito sim-
Viktor FrankL Apesar da sua condição de prisioneiro, ele nos ples, mas muito grave. Eu tinha os olhos cravados no meu
falava com palavras e atitudes, do sentido da vida, da auto~ umbigo.|

72 73
Todos os presentes riram, na certeza de que o rei estava Zamda
fazendo uma piada.
Quando se añrma a fé, se desenvolvc a esperança.
Quando há esperança, se cultiva 0 amor.
Referénciasz Quando bn'lha o amor, se amplia a consdência.
FrankL V. E. 0 homem em busca de sentido, Editora Herder, 1991/ Sede de Quando se tem consciência. se dcscobre o sentid0.
vive,r Edilora Quadrante, Lisboa, 1986; Um sentido para a vida, Editora Com o conhecimento do sentido se alcança autonomia.
Santuário, Aparecida, 1989. Gíbran KhaliL G., Parábolas, Editora Vecchí. Com o uso da autonomia se conscgue auton'dade.
Rio de Janeiro, 1973. Hesse, Herman, Sidarta. Editora Civilízação Brasilei- Com 0 exercício da auloridade se assume a responsabilidade.
ra, Rio de Janeiro, 1974. Com o emprego da responsabilidade se desperta a coragem
Se se tem coragem, se aumenta o vigor.
Se se culliva 0 vigor, surgc a alcgn'a.
Se se vive com alegria, se aprende a correr n'scos.
MATERIAL N° 8: Se se sabe correr riscos, se cultiva a hum1'ldade.
Quando se é humilde, se incrementa a sabedon'a.
“Quando”, de Gabn'el Jorge Castellá Quando há sabedoria, se exercita a liberdade.
Quando se assume a liberdade, sc irradia paz.
Quando há paz, se consegue harmonizL
Nesta bela apresentação de Gabriel Castellá, a reflexão
Com a harmonia se pode dar o melhor de si mesmo.
vai nos levando a tomar contato com aütudes e valores que Com o melhor de si mesmo se atinge a plenitude.
constituem a bagagem necessária para encarar a vida em seu Se se tem plenitude, se alcança transccndôncia.
conjunto e particularmente as situações em que a existência Se se consegue transcender, se obtém fclicidade.
nos coloca. Com um engenhoso encadeamento de idéias e de Se há felicidade, se consegue cumprir a missào
que o Supremo Criador e a vida nos haviam dcsünado.
conceitos, partimos da fé chegando à felicídade, também
Quando se cumpre esta missã0, se está maís perto de Deus.
entendída aqui como o resultado, efeito ou conseqüência de
assumir certas atitudes voltadas para a autotranscendência e
à descoberta do Supra-sentido que responde às perguntas MATERIAL N“ 9:
sobre a orígem e o destino da vida humana.
Este material é ideal, na minha opinião, para o trabalho “P0esias”, de Elisabeth Lukas
em bibüoterapia pela sua dinâmica e pelo seu conteúdo, alta-
mente imbuído do pensamenio logoterapêutico. Esse enca- A doutora Elisabeth Lukas é reconhecida pelos seus
deamento vai nos levando, ou melhor dizend0, vai nos ac0m- trabalhos de pesqujsa e difusão da Logoterapia, aplicada em
panhando na idéia de uma aposta na nossa própria atitude - diversos âmbitos. E também aulora de uma técnica de diag-
paründo da fé - como ponto de partida, passando pela con- nóstic0, difundida e aplicada com sucesso em diferentes
secução de outras atitudes - por exemplo, coragem, autono- países. A leitura da obra de Lukas vai nos introduzindo ma-
mia, responsabiüdade, vigor etc. - que conduzem a busca ravilhosamente no mundo da Logoterapia, através de con-
da descoberta do sentido. ceitos claros, práticos, e especialmente nas últimas realiza-
Vale igualmente como exemplo da utílização do pôster, ções, esteticamente belos. Evi(lentcmente, o estilo desta au-
cartão postaL mm'ipôster, como material b1'bh'oterapêutico que tora vem nos mostrando matizes poéticos que não prejudi-
atue para a obtençâo de logotipos positivos. cam a ñrmeza conceitual, mas, pelo contrário, a aflrmam, a

74 75
enriquecem, a ilustram, dand0-1he um renovado poder de pe- Não posso renegar
netração no leitor. meus anceslrais.
Não posso desaparecer
Neste caso, desejo incluir nesta brevíssíma resenha de
do meu entom0.
material algumas poesias da doutora Lukas imbuídas obvia~
Não posso escapar
mente do pensamento logoterapêutico, que se prestam para do meu tempo.
o trabalho biblioterápico tal como foi apresentado neste tra-
Tu não és livre
balh0.
de tuas condições,
Estas poesias, ou reñexões poéticas, não têm título e são respondeu ele.
extraídas de um trabalho que, há alguns anos, a doutora Lukas Mas és livre
fez chegar às minhas mã0525 e no qual cada uma das proposi- para cscolher uma
ções apresentadas é encerrada com uma poesia que ilustra a atitude diante de
temática abordada. Nesta oportunidade, para que o leitor tuas condições.

possa se localizar no conteúdo e no sentído da poesia, dare- E isso é o máximo


mos o título da conferéncia a que corresponde, bem como que jamais concedL
uma resenha muíto rápída do conteúdo abordado em cada
caso. “Juventude. Uma contínua busca de sentido”
(1986)
“Introdução da pessoa à auto-responsab111"dade. Um
programa logoterapêuüco para a redução do índice das Neste caso. a autora aborda o tema da juventude e a re~
recaídas em psicoterapia” (1982) lação dos mais velhos, especialmente dos pais, com osjovens.
A circunstância de conñar neles e guiáJos ou condquos em
Nesta conferência a doutora Lukas apresenta um pro- meio a um mundo confuso e repleto de obstáculos procurdn'-
grama de trabalho elaborado com a ñnalidade de garantir que do não perder de vista a busca, e a descoberta, do senüdo.
os pacientes que tiveram alta não precisem, passado algum
tempo, voltar ao tratamento por causa de recaída. Encerra a 0 que é o homcm?
conferência dizendo que qualquer pessoa que realmente quez'- Não há resposla
ra curar-se, deve querer curar-se de uma vez e para sempra E porque há milhões
qualquerpessoa que rlealmente ame os seus pacientes deve lhes de resposlas.

facilitar aceder, fínalmente, à responsabilidade de si mesmos. É louco


e superinteligente.
Quão livre sou? E uma besta
Perguntou o homem e um santo.
ao seu Criador.
E tão primitivo como um animal
Não posso rechaçar e, ainda assim. um ser espirituaL
meu corpo. Então, 0 que é 0 homem?
Há uma resposta:
25Lukas, Elisabcth, Psícotempia en digm'dad, Apoyo pam la vida con oríentaciân é a criatura
al sentído según Víktor FrankL San Pablo. Buenos Aires, 1995. que se defme a si mesma.

76 77
“As aütudes pessoais e a preservação da vída” “Enfrentando a tríade trágica” (1985)
(1987) Agora Lukas nos leva ao terreno do sofrimenlo da culpa
Agora Lukas aborda o tema da decisão pessoal, colocan- e da morte e coloca modos testemunhais de encarar a supe
do-o em termos de poder dizer sím ou não às d1f'erentes alter- ração destas vivências a partir da descoberla do sentido en-
nativas de vida que vão surgindo. Mas ela os associa com as coberto em cada caso. Encerra a conferéncía dlz'endo que na
decísões cotidianas, mesmo com as pequenas, convidando- verdade, a vida tem e conserva um sentido com todas as nossas
nos desse modo a assumir 0 compromisso de ter permanen- perdas efracassos, apesar da sua transítan'edade. Não há ms'-
temente uma atitude e de ajudar os nossos ñlhos a crescer tência humana que não possa ser iluminada pelo sentido. Como
nessa postura, os nossos alunos a fazer 0 mesmo, os nossos dzs'se uma vez Martín Buber, todo serhumano determina o des-
pacientes a consegui-lo etc. Isto é, a preservação da vida de- tino do mundo. E ts'to inclui todas as pessoas que estão sofren-
pende fundamentalmente de assumir atitudes pessoais sig- do, lutando com as suas culpas e até mesmo com a morte.
niñcativas, não só diante do extraord1'nán'o, mas também dian-
te do ordinário, do cotidiano. Duas portas.
Por uma somos empurrados,
pela outra passamos.
Quisera ver
uma porção da realidade Se opõem entre si?
em todas as suas dimensões. Talvez, mas
se ligam por meio de nossos passos.
Tudo o que há ali: Uma se chama destíno;
noite e dia, a outra, liberdade.
proximidade e distância,
acerto e erro, Uma nos obriga a ir na dircção
pena e graça, que devemos; a outra nos permite
alegria e tristeza... escolher que caminho queremos tomar...
Enquanto caminhamos, podemos escolher,
Mas quem decidirá mas, ao escolher,
o que, de tudo isto, devemos continuar o caminho.
será para mim?
Duas portas, dois mundos c gcnte
na soleira,
Vi
vacilando entre 0 destino e a liberdadeP
uma porção da realidade
Nem tanto assim.
em todas as suas dimensões.
Porque ser cmpurrados
Tudo estava 1á: através da porta do destino
o bem e o mal, dexx'a 0 destino para trás dc nós,
a luz e a escun'da'o, mas, se escolhemos cntrar
a quíetude e o desassosseg0, pela porta da liberdade,
o ser e o não ser, enírentamos a nossa liberdade.
tu e eu.
Mas eu decidi Desta maneira,
0 que sería para mim. caminhamos eretos,

79
Com o destino por detrás de nós manentemente, de forma consciente ou subliminar, essa men~
para a liberdade.
sagem irá sendo assimilada a uma espécie de linguagem in-
“Da auto-atuahza'ção à responsabilidade” (1989) terior que pode chamá-10 na direção terapeuticamente pre~
Nesta conferência, a doutora Lukas nos convoca maravi- vista.'
lhosamente ao exercício da nossa responsabilidade, aquela E evidente que as possibilidadvs de material neste senü~
do são múltiplas. Seria impossível catalogar cilações ou fra-
que m'1plica a autotranscendência ao dar resposta à vida sain-
do de si mesmo. ses célebres de maneira absoluta; de qualquer forma, incluo
aqui algumas que me foram trazídas pelos própn'os pacientes
0 que esperamos no momento de abordar trabalhos do tipo do descn'to, e que
da vida? possuem um conteúdo enriquecedor. Vejamosz
A resposta é silêncio.
O que a vida
espera de nós?
- A pessoa mats'fácil de enganarsomos nós mesmos.
A resposta
Edward Lytton (1803-1873), romancista inglês.
aguarda na nossa língua
e na nossa mão. ° Ver é crer, mas sentír é me1h0r.
John Ray (162&1705), naturalista inglês.

0 A vida é uma longa lição de humildade.


MATERIAL N° 10:
James Barrie (18601937), dramaturgo britânico.
“Ref1exões”
° A liberdade é como o movímento: não se defíncz se mostm
Como já foi dito ao longo do trabalho, Consídero de gran- E'. de Girardin, (1806-1881), jornalista francês.
de utilidade todas as frases, citações, refrões, provérbios e
0 Aprendo enquanto vivo.
aforismos que encerram um conteúdo que possa ser assimila-
Provérbio indiano.
do como um conteúdo que interesse a pessoa que o recebe.
Muítas vezes, é altamente terapêutico que o pacíente traba- 0 A vida é aquilo que uai lhe acontecendo, enquanto você cuida
lhe com este tipo de material proporcionado pelo terapeuta de outros planos.
ou trazido por ele mesm0, até parafraseando frases célebres John Lennon (1940-1980), cantor e Compositor inglês.
ou expressões conhecidas, e elaborar para si mesmo uma es-
pécie de cartão ou minípôster com cuidado, isto é, que tenha 0 Nunca se desespere em meio às mais sombrias aflições da sua
o trabalho de faze-^lo “bonito”, por assím d12'er. Pode trabalhá- vida, p0w' das nuvens mais negras cai uma água limpa efe-
cunda.
lo em casa ou durante a sessão de terapia, para depois, tendo-
Provérbio chinês.
se apropriado e recreado do seu conteúdo - daí a importân-
cia de trabalhá~10 criativamente -, guardar esse cartão onde 0 Viuemos todos sob o mesmo céu, mas ninguém tem o mesmo
achar mclhor; pode leva'-lo na carteira, na agenda, pendurá-Io horizonte.
na parede do quarto, na pasta do colégio, na cozinha etc. Per- Konrad Adenauer (187('›1967), chanceler alemão.

80 81
0 Quem de nada duvida nada sabe.
Provérbio grcg0. No nosso próximo encontro, comenta a amargura de uma
semana na qual a sua tribulação maior é a proximidade dos
0 Se sentes amargura, levanta os olhos e olha o céu. exames parciais na faculdade. Desculpa~se por não haver cum~
Provérbio espanhoL prido com a tarefa combinada, por estar totalmcnte ocupado
com os seus estudos, ou melhor dizendo, com a sua angúsüa
0 Quando não se tem a coragem de viver como se pensa, acaba-
diante da iminêncía de um possível novo fracasso. Tratamos
se pensando como se m've.
de propor uma modalidade de estudo que resulte em maior
Victoria Ocampo (1891-1979), escritora argentina.
aproveitamento do tempo que lhe restava até lá. Eu o ajudo a
conceber e a decidir uma estratégia equilibrada que lhe per-
Evidentemente, repit0, poderíamos citar inúmeras fra-
ses ou reflexões célebres ou conhecidas; a idéia da refe- mita criar melhores condições para assumir a tarefa, especial-
mente tempos livres de recreação, lazer, esporte.
rência anterior é trazer alguns exemplos trabalhados por
Ao comprovar que a sua semana ücava estruturada com
pacientes de diferentes idades. Muitas vezes eles mesmos
tempos para o esludo e tempos para a dislração, me olha as»
parafraseíam ditados, refrões, ou expressões conhecidas,
adequando-as ao seu próprio caso. Tal é 0 exemplo de José, sombrado e perguntaz “Como vou ao clube correruma hora ou
sair um pouco à noíte com a minha noiva se tenho de estudar?”
um jovem que cresceu em um meío com uma ordem e uma
Começamos a reavaliar o peso do tempo, a necessidade
disciplina muíto severas, tanto em casa como no colégio onde
havia feíto, na qualidade de aluno semi-interno, toda a sua de continuar a viver mesmo quando tiver de estudar. a impor-
tância de conceber 0 tempo livre como um tempo reparador
escolaridade. Man1f'estava-se como rapaz muito rígid0, for-
para o momento do estudo, da produção etc.
temente controlado, amargo, com desproporcionado nível
de auto-exigência que atualmente o colocava, já na universi- Encerra a sessào com uma mistura de assombro, dúvi-
dade, diante de incompreensível fracasso. Não conseguia es- da e desconcerto a respeito do que foi falad0. Finalmente,
peço a ele que pense nisso como uma tentativa possíveL como
tudar, concentrar-se, prestar um exame, progredir na carrei-
uma experiência nova. Agora, sim, vai-se embora convencido
ra. Recordava permanentemente, como uma frase que o
de que se tratava de uma “receita" - por assim dizer - e
acompanhava sempre, uma espécie de Iema que circulava na
que tinha um caráter experimenlaL se aníman'a a tentar.
escola e que desde muito pequeno até a sua saída do secun~
Comparece ao nosso próximo encontro um pouco mais
dário ñcou na sua cabeça: Tudo é uma questão de excelêncía.
relaxado. Os exames parciais já terminaram. Em alguns foi
A sua vida era amarga, sem esperança, vivia desconcertado e
bem, em outros mais ou menos, mas foi aprovado. De toda a
com certo ar dramático. Nas primeiras entrevistas, proponho
forma, teve alguns êxitos interessantesz em pn'meiro lugar,
a ele trabalharmos com esta técnica das frases. Durante a
pôde começar aviver com menos dramatícidade e n'gidez incor~
mesma sessão em que combinamos a tarefa, começa a recor-
porando à sua vida o valor do tempo livre, dando a ela um tom
dar algumas que, considerando a sua formação escolar, bro-
muito mais vilal; em segundo lugar, pôde defmir a frase que
tavam-1iteralmente - da sua memória. Mas nenhuma de-
estava pendente. Com um tom de satisfação e muito humor
las 0 satisfazia como especialmente interessante para ele
comenta que já a havia encontrado e começou a trabalhar com
naquele momento. Fica então encarregado de resolver o pro-
e1a. Elaborou um cartão multicolorido com desenhos muito
blema durante a semana para trabalhar na sessão segum'te com
simples de meninos jogando bola, descansando embako de
aquela frase escolhida.
uma árvore, e em cima das letras do texto que, em maiu'scu-
82
83
Todos os Iivros podem
__i d12'ia:TUDO É UMA QUESTÃO DEEXCELÊNCIA E DE
ser divididos em duas dassm
PRAZER Finalmente havía começado acompreender que 0 Iivros do momento e
“ato perfeito” era aquele que não 0 afastava nem do melhor Iivros de todo momenla '
rendimento nem da vida. John Ruskin (18191900).
cscñlor e cñlico dc arle inglés.

4n PARTE
CONCLUSÃO: ÚLTIMA PÁGINA

Todos nós que abraçamos vocações agógicas (gogeín=


Conduzir; vocações de ajuda) contamos com o prívilégio de
ser observadores preferenciais do maravilhoso mistéño hu-
mano. Isso acontece porque compartilhamos muitas histó-
rias pessoais de indivíduos que conseguem superar~se,
redímir-se, transcender em relação às suas limítações e c0n-
dições, acedendo assím a maduras evoluções. Aquele que se
aproxima de nós abatido por sofñmentos concrelos e que con-
segue descobrir signiñcatívamente em caminho para a fclíci-
dade, sem negar 0 peso da sua carga; aquele outro que, de-
sesperançado reencontra a esperança em si mcsmo e na vida,
mesmo através de uma doença. Aqueles que, enñm, trzmsfor-
mam um Calvar'io em caminho de redenção e crescimento,
vão testemunhando para nós, encontro após encontro, o "p0-
der desañador do espírito”, o desdobramento da própria vida
abrindo caminho através das sombras. E esse nmr'avilhoso
espetáculo acontece díante dos nossos olhos.
Clar0, a nossa participaçào não se reduz a ser mero e
passivo espectador; a nossa intervenção é partícipe desse
espetáculo. Mas de que maneira?
Segum'do os ensinamentos sempre claros do profcssor
Comjá foi dit0, considero que a verdadeira equação que
doutor Pedro D'A1fonso, gostan'a de me refenr' muito sucinta-
redunda nesse desdobramento formidável é eu curo você, mas
mente ao conceito de logotípos. Segundo a sua deñnição, enten~
quem se sara é você. Desta maneira, o potencial pessoal do demos como tal aquelas verbalizações negativas que reforçam
paciente é de imprescindível presença e concurso fundamen- ou enfraquecem as decisões ou as tomadas de posição do sujei-
taL Assim o papel do terapeuta ñca defmido comofacílitador, t0.26 Ora, essas verbalizações consüluem al-go assim como men~
provedor de recursos e elementos que estimulem, detonem,
sagens m'ternas, m't1m'as, ou ordens que condicionam com mai-
dísponhm esse autêntico potencial em função da cura. Den- or ou menor força as nossas condulas ou comportamentos.
tre esses recursos, tomamos o livro como catalisador útil entre
D'A1fonso recorda outros autores C0m0, por exemplo, Roger
o ser e o dever ser do paciente. Resumindo as reHexões e t0-
Mucchie11i, que descreveu a existência destas ñases mentats'
mando por referentes os casos apresentados, eu defenderia que ñcam gravadas em cada m'div1'duo, tmn'sf0rmam'-se em man-
o valor da biblioterapia em dois sentidos fundamentais:
datos e, em geral, começam a regular nossos comporlamen-
tos. Constitui-se assun° uma espécie de linguagem interior ou de
DJ 0 lívro como espelho
endofasia, formada pela sislemaüza'ção de imagens do própño
Como foi assinalado pelo próprío professor doutor Frankl, Eu em torno desses 10gotipos. Como na maioria das vezes são
muitas vezes encontramos nas histórias lidas a chave de reso- de conteúdo negaüv0, acabam constituindo sério obstáculo para
lução das nossas próprias circunstâncias. A conhecida expres- a livre expressão da personah'dade. 0 sujeito, antes de atuar ou
são 0 lívro aconteceu dentro de mim ilustra claramente esse quando se decide a agir, fala consigo mesm0, e se estimula ou se
fatoz a partir do texto descubro diferentes formas de resolu- freia com estasfórmulas já estereotàbadas27
ção dos problemas ou encruzilhadas que a vída me apresen- Se, pelo contrário, são logotipos positivos, estimulam o
ta. Ele atua como se fosse espelho que me devolve armada indivíduo a executar a decisão.
uma imagem na qual posso descobrir a chave. Isso não signi- Seguindo por sua vez autores como Ferstcr ou Perr0t,
ñca que eu copie ou imite o vivido por esta ou aquela perso- chega a qualiñcar os logotipos de “reforçadores” - do mes-
nagem, aplicando a sua atuação ao meu caso, e sím que esta mo modo que os defme Skinner na sua teoria do condici0na-
palavra, aquela proposição que faz a trama da hístória, pode mento operante28 positivos ou negativos, isto é, como elemen-
me esclarecer para descobrir a minha palavra, a minha posi-
ção e a minha decisão. 26 D'Alfonso, Pedro; La personalidad humana. Eslrutura, formación y asesonr
mierto. Psicagogía, Buenos Aires, Editoñal Plus Ullra. 1979. p. 23.
u
M B A palavra como certeza 27 D'A1fonso, Pedro, op. cil., p. 41.
28 Skinner, teóñco pertencente à esL“oIa conexionista e cn'ador da leoria do cond¡-
cionamento operanle, introduz o conccilo dc reforço. entcndendo por lal o efeito que
Mas talvez o maior trunfo da biblioterapia, na minha signmca dar determinada resposta a dctcrminado csu'muk›. Como resultado dcmaw
opinião, é dado em função de poder aceder à elaboração de respostn scguese um cfeito que 1r'á atuar "ref0rçando" a conexño dcsse tslímulo com
essa resposta com caráter de m'equívoco, cn'dn'do um csquema de comportmento
mensagens pessoais (ou de validade pessoal) - para lhes que se insrreve no indivíduo. Desse modo, scmpre quc sc apreswnle detcrminado
dar um nome - que inspiram o que costumo chamar as cer- esllmulo, se' dará idônüca rcsposuL Sc essc cfcito conuqücntc com a rcsposta dada
for saüsfalón'o. o reforço scrá posítivo e a concxão se ñxará ñrmcnwntc; e. pclu cun.
tezas cotidianas. lrán'o, se 0 efeilo for insatísfalóño - ou porquo não resolve o que foi colocado pelo
Levando em conta que o que foi posto anteriormente (0 esümulo ou porque gern pcrturbação ou desppuzer - cssc reforço se'ra' negau'vo. islo
livro como espelho) é defa'cilentend1m'ent0, preñro me deter e', impedká que a conexão scja estabelecidzL lí assim que os “reforçadores" acabam
por deümr' a execução de delerminada ação ou a sua evilação.
por algumas linhas neste tema, especialmente interessante.
87
86
tos que sustentam ou inibem o comportamento. Ele também tanta presença tem nas nossas ações e decisões. Uma vez
os classmca da seguinte maneira: descobertos na sua participação e dinam^ica no am^bito da con-
duta, devemos desarticu1á-los para pôr ñm no seu efeito per-
Logotipos NEGATIVOSz Atuam como inibídores verbaísz turbadon A biblioterapia é precisamente um dos recursos mais
® NEGATIVOS: aumentam a atuação negativa ou ini- interessantes para conseguir isso, à mcdida que podemos fo-
bem a positiva, como, por exemp10: mmca vou conseguír, ou calizar em uma frase um conteúdo assertívo, energéüco ou
sempre me saio maL incentivador, por um lado, ou justiñcatívo, adversativo, por
outro, dependendo de pretendermos esümular ou inibir de-
® ADVERSATIVOSz opo'em-se à execução, como, por terminada ação ou decisão. Por ocasião da leitura, como sua
exemplo: mmca tive sorte para isso. conclusão, resgatada do texto, podemos formular uma frase
® JUSTIFICATIVOSz Afastam da execução, mas nos que, como costumo chamar, passe a ser uma certeza cotidiana.
justiñcam por agir assim ou por não agir, com0, por exemplo: Recordemos a história de João, o homem do Caso 1, que,
não tenho capacidade para essa tarefa, por isso não a faço, ou a partir do trabalho com a letra da canção “Pipa”, obteve uma
quem sou eu pam pedir tal coisa ao meu chefe. certeza com a qual inicia cada dia, dispondase a viver a sua
atualidade de maneíra d1f'erente. Recordo também o caso de
Rau1, paciente de 65 anos que chega ao consultório apresen-
Logotipos POSITIVOSz atuam como reforçadores posi-
tando uma sintomatologia depressiva posterior a um AVC que
tivos em três sentidos possíveis:
denx°a como seqüela a paralisia do membro superior esquer-
© ASSERTIVOS: Favorecem a açã0, como, por exem- do e uma ligeira diñculdade de marcha. Toda a sua vida, Raul
p10: possofazer isso, posso conseguir. havia sido estudioso, e tendo-se dedícado à advocacia dentro
© INCENTIVADORESz Estimulam a ação, como, por da carreira judiciaL chegou a ser juiz do trabalho. Durante
exemplo: vale a pena tentar. muitos anos - atualmente está aposentado - havia desíru-
tado do seu trabalho, o qual correspondia precisamente à sua
© ENERGETIICOS: São logotipos que revitalizam a vocação proñssionaL e da alternativa, sem vaidade, de ser nada
ação, como, por exemplo: as cozs'as estão dando certo para menos do que juiz. Um dia, sem antecedentes prévios, Raul
mz'm, estou conseguindo. sofre um acidente vascular cerebral e assim, em um momen-
Muito habitualmente estes logotipos estão inscritos em to, a sua vida muda completamente. Como seqüela do AVC,
nós desde a infância, idade em que somos especialmente per- teve de freqüentar uma clínica para fazer a sua recuperação
meáveis às avalíações de pais, professores, amigos etc. e vão f1'sica, que consegue com diñculdade, não em virtude da gra-
se cristahz'ando em torno do Eu, levando-nos a alimentar uma vidade do quadro, mas da sintomatologia depressiva que se
auto-estima afetada por essas palavras de ordem. Desta for- manifesta, diminuindo a sua energia, gdr'ra, intenção para a
ma, pomos o “crer ser” no lugar do “querer ser", e assim aca- reabilitação. Mesmo assim, ela somente se consegue com as
bamos agindo verdadeiramente de acordo com aquilo que seqüelas já comentadas. Quando realizamos a semiologia do
“cremos ser”. quadr0, se diagnostica uma reaçào depressiva em conseqüên-
Estes logotipos, então, podem ir se “inscrevendo” em cia do AVC e da mudança fundamental que introduz na vida
nós de maneira quase imperceptíveL de modo tal que não do paciente, gerando uma profunda alteração da sua vida co-
somos conscientes desta verdadeira linguagem interior que tidiana, e uma conseqüente crise de identidade. Começa o

88 89
trabalho terapéutico com Raul, passando primeiramente pela aquilo que a pessoa se propôs a ser. assumindo que, se não o
instan^cia de que ele aceite a terapia e 0 seu estado de neces- conseguir, a pessoa acaba não sendo nada. A partír de então,
sidade dela, até que, defmído o objetívo da consulta, aborda- sugíro a Raul que adote a máxima do seu admirado estadista,
mos a superação desta reação depressiva. Através dos diver- e a incorpore para si, que a assimile na sua vida diária, e se
sos encontros vai-se armando a história de Rau1, com base na lembre dela cada vez que tivcr de enfrentar as suas própn'as
técnica da reminiscência ou lzf'e review therapy, destacando- limitações atuais. Foi o que ele fez, conseguindo uma sensí-
se o profundo interesse do paciente pela história em geral e vel revitalização do seu estado anleríor. A cada dia, em diver-
pela história das instituições nacionais em particular. Recor- sos momentos, quando ele necessitava, a írase o convidava a
da a sua prática docente, particularmente nos ginásíos, onde “ser” ele mesmo apesar de tudo. Raul encontrou nesta frase
era responsável pela matéria História da Argentina, na sua uma certeza cotidiana.
juventude e acentua a sua admiração pelos pro-'homens, es- Um caso similar ao de Raul é o de Walter, operário uru-
pecialmente o general José de San Martín. Recorda que sem- guaio que participou de diferentes grupos políücos e síndi-
pre lia para os alunos d1f'erentes aspectos da vida do estadis- cais do seu país nos anos de juventude. Passado o momento
ta, procurando criar neles a admiração que ele próprio sentia do furorjuvenil e maís apaziguado pelos anos, estava em tra-
por este homem. Como parte do processo de reminiscência, tamento em virtude de d1f1'culdades de relacíonamento com
convid0-o a trazer na próxima entrevista material sobre San os ñlhos, com quem convivía haviajá alguns anos. depois de
Martín e compartilharmos alguns dos seus trechos favori- ter ñcado v¡u'vo. Eram dois ñlhos que haviam decidído sair
tos. Efetivamente, no encontro seguinte, veio trazendo um dos apartamentos que ocupavam - alugavam -- para ir mo-
velho livro com anotações nas margens e sublinhados anti- rar com mulher e ñlhos na casa do pai com a idéia inicial de
gos, do tempo em que ele mesmo 0 lera pela primeíra vez e “não de1x'ar o papai sozinho”. Na realidade, Walter se sentia
seleciona uns dois episódios que lemos e comentamos.29 deslocado na sua própria casa, pois o haviam desalojado, lite-
Logo, pego o livro e sugiro que eu mesmo escolha um ralmente, do seu quarto, para ali acomodar um dos casais e o
trecho para 1er. Detenho-me nas max1"mas que San Martín haviam instalado em um quarto localizado nos fundos da gran-
legou às netas, insistmdo especialmente na sentença: você será de casa. A vida diária era bastante difícil para ele que se seu-
o que deve ser ou não será nada. Como resultado da leítura tia sozinho e abandonado, com medo de dlz'er alguma coisa
reñetimos junto com Raul sobre o valor desse legado e a sua que aborrecesse os ñlhos, ou as noras, e convencido de que
importâncía testemunhaL considerando que, segundo conta era uma carga para eles. E preciso esclarecer que Walter. aos
a história, sintetlz'a com verdade a ética de vida do generaL 73 anos de idade, não sofria de nenhuma perturbaçãm doen-
Mas é o próprio Raul quem se volta para aquela máxima acen- ça ou alteração e recebia a sua aposentadoria e o aluguel de
tuada por mim, detendose no sentido do seu conteúdo. Ela- um local de sua propriedade. Mesmo assim, a situação o ha~
boramos as suas reflexões sobre 0 assunto, dado que Raul via confundido e ele vivía com receio de os ofender, o que
acaba reconhecendo nela um caráter de incentivo que convi- signmcaria que iriam embora da sua casa. 'I'ambém uso com
da cada pessoa a se esforçar para superar as suas próprias Walter uma estratégia terapêutica baseada na reminiscéncia
hm'itações, a ñm de conseguir aquilo que se propôs para si, e inevitavelmente aparecem as lembranças do seu tempo de
sindicalista e a sua luta para melhorar as condições de traba-
lho. No modo antigo, isto e', lutando por verdadeiros ideais
nTralase da Ilistaria de San Martín y Ia emancipacián sudamen'cana, de
Bartolomeu Mitre. solidários com o bem comum, Walter não somente arengava

90 91
com palavras de ordem políticas do moment0, mas também Ul'tima página
dava uma espécie de instrução cívica aos companheiros, a
Em últíma análise, 0 livro como recurso terapêuüco ma-
quem levava informação sobre as lutas da organização nacio~
naL a recuperação do sentimento pátrio e a valorização da liza um serviço formidável no momento de pretender desper-
tarefa dos grandes homens do seu país. Evidentemente, o tar no paciente uma resposta operacíonal pessoal c signiñca-
tiva díante do embate de situaçàn cn'tica que o inibe dc dccidir
perñl de Gervásio de Artigas aparecia nas suas representa-
ções da época tanto quanto nas suas lembranças atuais. Tra- e atuar intencionalmente. A letra escrita com toda a n'queza
balhando com material trazido pelo próprio paciente - tal encoberta do “na'o-escrito" se transforma em presença par-
como se propõe na técnica da reminiscência - resgato um manente que assume caracteñstícas dinam'icas especiais:
pôster muito velho, comemorativo da data nacional do Uru- a) esse texto interage conosc0; de certo modo se pode-
guai, que mostrava o rosto ñrme de Artigas como imagem de ria dizer que nos ouve e nos fala, dialoga incondicionalmente
fundo para a sua célebre frase “com a verdade, não temo nem com o leitor;
ofendo”. Descobri imediatamente 0 valor terapêutico deste b) no contexto desse díálog0, não de1x'a de nos dar res-
pôster para Walter. Resgatado do conjunto do material com 0 postas, não se furta a faze-'lo;
qual contávamos nesse encontro, começo a trabalhar com o c) compartilha conosco os nossos própños pensamen~
pôster, refletindo com Walter sobre o sentido desta expres- tos, e colabora na sua elaboração.
são. Falamos do valor desta palavra de ordem convidando os
uruguaios a se alinharem atrás de um valor - a verdade - Várías vezes já se defmiu 0 livro como uma boa compa-
para a partir dela agirem sem temor. Logo ao comentar a im- nhia; agora podemos deñnHo também como uma boa com-
portância desta atitude nos dirigentes para a sorte dos nos- panhia terapêutica que nos acompanha na busca dc respos-
sos países, pergunto a ele qual seria o valor de aplicá-la na tas novas para situações de vida. Dcsse mod0. bem poden'a-
vida privada de cada pessoa. Como conclusão, Walter decidiu mos estabelecer que 0 livro em ñnalidade biblioterapéuüca
adotá-la para si, a ponto de pendurar no seu quarto 0 velho nos revela tanto quanto nos rebelaz Quero dizer que em um
pôster 'p'ara não se esquecer dele, sabe... porque às vezes é bom primeíro momento nos faz vcr. nos ilumiua uma siluação, te-
lembmr dessas coisas, elas dão forças ou âm'mo... Quem diría veland0-nos aspectos, matizes, Circunslâncias. allcrnaüvas.
que depois de falar tanto de Artigas aos meus companheiros, giros que até então não eram vistos ou aprcciados por no's.
alguém ia falar dele comígo e ía descobrir para mím 0 que eu Log0, uma vez iluminado 0 panorama, clc nos sacodc, nos
queria mostrar aos outros?” Certamente ele também acedeu estimula e incentiva nas nossas gcnuínas possibilidudes de
a uma certeza cotidiana, que 0 animou a falar com os ñlhos e elaborar uma resposta própria c sign1'ñcaüva. nos rebclando
as noras com menos receio de ofende~^los, com mais ñrmeza no tocante à situação a ser resolvida, saindo do dcscspero, da
e melhor resultado, pois pude esclarecer uma série de cir- confusão ou da resignaçã0, c atuando em função de uma res~
cunstâncias próprias dessa convivência. posta nova e possível.
Para fms deste objetivo concreto, acredito que seja inte- Quando esta revelação e esta rebeldia se conjuganL o
ressante destacar também o valor dos cartões, cartões postais, indivíduo se apropria da situação de vida que tcm diante de si
pôsteres e minipôsteres, os quais, a partir de uma frase curta, e ñca numa posição invejável para resolvôla signiñcativamcn~
se ajustam precisamente à intenção terapêutica de obter essas te. Esse objetivo e', seguramentc, “o objelivo" fundzunenlal da
“certezas cotidianas”. psicoterapia, isto é, que o indivíduo acabe scndo cada vez mais

92 93
ele mesmo em função de descobrir o sentido do seu próprio
transcorrer; 0 lívro não é a única alternaüva para consegui-lo,
mas a biblioterapía se oferece como espaço nobre para que
toda pessoa possa acabar fazendo da sua biograña uma histó-
ria dotada de sentid0.

5' PARTE
SOBRE A CONSCIÊNCIA
EM UM CONTO DE POE

O conto: “William Wilson”

0 que dizer dela? 0 que dizer dessa turva conscíéncia,


desse espectro em meu camínhoP Com esta frase de Cham-
berlayne, o autor antecipa o Conteúdo de um maravilhoso
conto que nos põe de maneira prccisa no univcrso da conwiém
cia. Trata-se de WilliamWilson,(10 prolíñco Edgnr Allan Poc.30

30 Edgar Allan Poc (18091849). Por momcnlos. n vida dc Poc Íoi uágic4.- Hcou
óraFo muilu cedo. sendo adomdo pcla Íamilia Allan, da Virginia. Esludou cm csculns
inglesas e com professores parl¡"Lularcs, c cnlrou na Unívcrsidmk da Vügính -
onde esludou durante um ano - passando lambém por um curlo pcríodu pcln am
demia de Wcsl Poinl, dc onde foi cxpulso. lsw uumcnlou as bngn°s c auilos que Poc
vivia com o pai adotivo, provocandu o rompimcnto de rcl.¡'ç0c."s aus 23 nnos dc ¡dadc.
Forçado a viver com os seus própn'os rccursoax Puc comcçou a carrcvcr c a odilar as
suas 0bras, ascendcndo rapidamcnlc a ccrlo sucosso comu pocla. crílico lilcráño e,
muilo especn'alnlcnte, como aulor dc contos. Eslava convcncido dc que o conlo dL~
via produzir no Ieilor um impaclo cmocional muilo concrclo. dc lal modo que a
lrama, as caraclcñsücas das personagcns. as idéias. as palnvms, ludu dcvh vmr cmr
lhido a ñm dc conscgmir cssc impuclu. cvilzmdo dispcrsar o lcilor com oulms cmo
ções. Poucos autores conseguíram manejar csla íórmula dc forma lño mntundcnlc
quanto Poc, reflclida em obrus inlcrcssu'mlLs*simns ondc sc obwrvum d|'vcm›s Angu-
los da natureza humana.

94 95
Neste relato, Poe nos conta a hístória de uma persona- pais pouco ou nada jízeram para modzfi'car os maus instíntos
gem, Willíam Wílson, que tem um xará com quem compar- que eu tinha. (...) Desde então, passei a mandar em mínha
casa, ditando ordens numa idade vm quc poucas crianças pen-
tilha uma série de inquíetantes semelhançasz o seu nome é
sam em dezkar o regaço matcrno, entregue ao meu l¡'vre-arb¡'-
igual, têm a mesma data de nascímento e, por conseguinte, tri0, senhor absoluto de todas as minhas aço'es.
a mesma idade, entraram no mesmo colégio no mesmo dia,
e a parür dali irão se confrontand0, reiteradas vezes, seme- William Wílson freqüenta uma escola ínglesa, din'gida
1hanças, coincidéncías que fazem com que eles se cruzem ao por pastor, o reverendo doutor Bransby. com características
longo de toda a história de uma maneira surpreendente. O vitorianas. e, de acordo com a narrativa. organizada segundo
protagonista é um jovem pertencente a uma família econo- lezs' drac0m'anas, que acabavam sendo paradoxais. consideran-
micamente abastada, muito amigo de desregramentos e v1'- do-se o rosto sereno e benevolente do reverend0. 0h, imenso
cios. Nasceu e cresceu em meio bem pouco contido, em fa- paradoxo, monstruoso demaís para ter solução!
mília com pais que não souberam pôr límites na educação do No contexto do colégio, William -- assim chamarei ago-
ñlho. A história começa a ser narrada pelo próprío protago- ra a personagem central - era uma espécie de líder, seguido
nista com vísão retrospectíva no momento em que está mor- e bem consíderado pelos colegas, com a única exccção do
rendo (qua$e a transporo sombrio vale), começando porjustí- seu xará, o outro William Wílson, a quem de agora em diante
ñcar seus passos em aspectos em parte alheios a ele mesmo, chamarei Wilson. A ascendência que William rapidamenle
taís como características dos pais, a natureza da sua “raça” conseguiu ter sobre os colegas contrastava com a oposição
(aing1esa, com 0 seu típíco desvío imaginativo Ie fabulador) que Wílson representava.
e, fundamentalmente, o destino ou fatalidade. E assim que
nos d12': ...um ascendente poderoso sobre todos as que cram mazs' novas
ou da mesma idade que eu, exceto sobre um. Era este um aluno
Querería convencê-los de queñti arrastado porforças supen'o-
que, sem ter comigo nenhum parentesco, tinha o mesma nome
res â reszs'tência humana. Desejaria que descobn'ssem pam mim,
de batismo e o mesma nome defamília, fato este pauco noláveL
no vasto deserto de crime que vou descrever, um pequeno oászs' ms°to que 0 meu nome, apesar da sua nobre on'gem, em um
defatalídade. 31
nome vulgar, um destes nomes que, desde tempos ímemon'ats',
são também propriedade do povo. (...) Como já dzss'e, só um
Falando da sua críaçã0, refere-se à influência dos pais e
colega meu, o meu homôm'mo, rivalizava comigo nas lições, nos
a uma natureza constitucionalmenle afetada por algum su- jogos e nas lutas do recreio; não acreditava nas minhas afírmtb
posto defeito no qual descarrega parte da responsabílidade ções, assím como não recusava, enjím a suportara minha dita~
dos seus “erros”. dura e manzf'estava-o sempre que lhe era possíveL

Cresci me gouernando por mínha conta, entregue aos capri-


chos mazs' extravagantes e vítima daspazkões mazs' inconlrola'vets'. A rebeldia de William constituía para mim fonte de desgostos,
chos de espírito e sofienda além dzss'o, do mesma mal, meus tanto mats' que, apesar do desdém com que afetaua tratá-la e ás
suas pretensões, bem no fundo temia-0, e não conscguía poder
olhar a igualdade que ele tão facilmente mantinha comígo se-
não como uma prova de completa supen'on'dade, porque pela
3' Conlos de Edgar Alldn' Poe, lradução de Mañsa Murray. Cultnx', São Paulo. minha parte só conseguia conseruar-›ne à sua altura graças a
1985, pp. 10930. Na versão em ínglês do conto, nesta passagem, esta expressão é
grandes esforços. Mas eu era o úníco a reconhecer essa ígualda-
ainda maís conlundenle ao dlz'er “l want them to Iook ofr something in my story that
mgiht lessen Ihe shame afmy guilt”. ísto é, “...que buscassem algo na mínha históría de, ou melhor, essa supen'on'dade; os outros rapazes, inexpli-
que pudesse dimínuir a vergonha da mínha culpa". cavelmente, pareciam não dar por talfato.

96 97
Evidentemente, William tinha medo de Wilson à medi- ...Notava, no entanlo, que tínhamos a mrsma altura e thcguei
da que este último aparecia dianle dos seus olhos como supe até a descobrir certa semclhança dcfísionomia, o que muíto mc
ri0r, ao não se submeter ao seu domínio; não podia controlá- contrariava.
10.Apesar desse sentimento e procurando tentar submete-^lo,
Com tudo isso, a resposta de Wilson aos seus ataques
William era amigo inseparável de Wilson, tanto que os de-
irritava William ainda mais. Essa indignação que ele sentia
mais colegas acreditavam que - também pela questão do
em virtude das coincidências e pclo fato de os colegas pensa~
sobrenome -- os dois fossem irmãos.
rem que os dois fossem írmãos se acentua à medida que Wil-
Não obstante, William o atacava permanentemente com
son parecia tentar c0piá-lo ou imitá-lo ainda mais, só que em
piadas e brincadeiras pesadas e de mau gost0, o que não o
versão melhorada.
impedia de manter “boas relações”, especialmente em virtu-
de da °^grande dignidade” com que Wilson as suportava. Na Tendo, por 1ss'o, notado quanto essas semelhanças me dcsgostw
realidade, em muitos aspectos, William sentia grande afmi- vam, William tornavaus mais notadas, arremedandwne com
prodigiosa habilidade. Copíaua-me os gestos e as palavras, imí-
dade com Wilson, mas essa rivalidade que se havia gerado a
tava a minha maneim de vestir, o meu anda,r os meus modos e
partir dele mesmo, essa impossibilidade de dobrá-10 ou sub~ enfím nem a mínha voz lhe havía cscapado não obstante a seu
mete-^lo à sua vontade, se interpunha e evitava que se estabe- defeita Não podia ímítar o meu tom alto, mas o timbre c a
lecesse entre ambos mesmo uma relação de amizade. Tanto entonaçãa eram idêntícos. Quando eu falava bau'o, a voz dírL
assim que ele mesmo revela que nunca pôde manter franca se-ia um eco da minha.
hostilidade em relação ao xará. Felizmente para William, somente ele detectava essa
Na verdade, é-me dfíícíl defínir os verdadeiros sentimentos que imitaça'o, ñcando livre das piadas que geraria a sua descober-
nutría por ele. Eram uma mistura conñzsa e heterogênea: am'- ta por parte dos colegas. Ao que par0cia, Wilson lzunbém não
mosidade petulante, sem chegarao ódio, amízade, receío, gran- pretendia que os outros a dcscobrisscm e ücava satísfeito
de temor, e curíosidade imensa com muito de expectativa.
apenas com o fato de provocar nclo a humillmção com esw
No afã de subjugá-lo, William sofria porque, apesar de imitação.
seus ataques encobertos, nunca podia acertar o calcanhar de Apesar de tudo, reconhece ncle certo ar protetor que se
Aquiles de Wilson, que sempre respondia a todas as brinca- propunha fundamenlalmentc a interferir nos caminhos da
deiras de mau gosto com uma modesta e tranqüila austerida- minha vontade, vontade essa que era movida, principalmen-
de. Mas ñnalmente conseguíu encontrar nele um ponto vu1- te, por paixões desmcdidasx Essa protcçño se tmduzia em
nerávelz conselhos, que, muito embora cm princípio irn'lzlssem e in-
comodassem William, ele ñnalmentc concorda que, sc os u-
Meu rival tínha umafiaqueza nas cordas vocazs' que o impedía
vesse seguido ou 0uvido. a su.1'história pcs.s'o.1'lten'a evitado
de_a"lar alto. Quandofalava, a sua voz dz'r-se-ia um mumzúria E
desse defeito tírava eu as mínhas mesquinhas desfomz3. certos erros.

...e eu seria hoje lwmem molhur e por isso mesmu maisfelíL se


Esta relação de tirania se acentuava pelo irritante abor- houvesse seguido os tonselhos que essas sensatas sugestães cantí~
recimento que sigmñ'cava para William esse conjunto de sur~ nham e que, então, só me inspírauam raiva e dcspreza
preendentes coincidências entre ambos. Mais ainda quando
a partir da narrativa vão aparecendo novas e inquietantes se- Foi assim que os sentirncntos de William foram se incli-
melhançasz nando, pouco a pouc0, para 0 mais profundo ódio.

98 99
A partir dali, as suas relações foram mais tensas, che~ Ao deparar com o verdadciro rosto de Wilson. o seu pró-
gando alé 0 ponto de fazer Wilson perder a calma e respon- prio, Wílliam sofre um tremcndo horror, que 0 cspanla e o
der ñrmemente quando houve uma violenta altercação entre faz sair correndo. Dcpois de alguns meses, já em um novo
ambos. Nessa reação não habitual, William se mostrou sur- colégio - o de Eton -, renetia sobre o cpisódi0, atribuindo
preendido por notar em seu xará certa semelhança entre à extraordina'n'a ímagínação que hereditariamente possuía. o
ambos, quanto à veemência da reaçã0. fato do espanto daquela m0im.
Como mais uma das bríncadeiras de mau gosto com que De qualquer maneira, passado 0 espanlo. William se
fustigava Wilson, William responde à altercação e à reação entregou a uma vida desregrada e descontrolada, na preten-
do xará entrando uma noite no quarto dele. Descreve~o como são de superar essa experiêncía.
um quarto muito pequeno, sombrio e afastado.
Mergullzei num turbílhão de Ioucura. e de súbito todo o passa-
...além diss0, Izavia -- como era ínevítáveL num edzjí'cio tão do desapareceu, menos as sálídas e sc›'nas' impmsões que dtle
irregular - ínúmeros cantos e recantos - sobras e remates da me restavam.
construção que o talento econômíco do doutor Bransby transfor-
mara também em dormito'ríos; eram, porém, divisões tão pe- Foram trés anos de loucura durante os quais, como já
quenas que apenas comportavam uma pessoa Wilson ocupava havía sucedido na escola anlcrior, conquistou a admiração e
um desses quartos. a popularidade entre os colegas. Nesse clima, uma noite orga-
Nessa noite, deshz'a furüvamente na escuridão em dire~ nizou na sua casa uma orgia secreta para a qual convidou os
ção ao quarto de Wilson A sua intenção era levar a cabo a mais colegas. Excitado pelo álcooL no preciso inslanle em que se
pesada das bn'ncadeíras, para que 0 rival compreendesse o ta- dispunha a fazer um brinde blasfemo, a porta se abn'u violen-
manho da sua animosidade. Entrou no quarto iluminandose tamente, ao mesmo tempo que um dos criados anunciava que
uma pessoa queria vê-lo com urgência. William saiu camba-
com a fraca luz de um candeeiro. Abriu as espessas cortinas
leando do quarto e chegou ao veslíbulo, pobremente ilumi~
que cercavam a cama e, quando se dispunha a pôr em prátíca a
sua brincadeira, quando a luz bateu de chapa sobre 0 rosto do nad0. Logo reconheceu um jovem da sua idadc, vesüdo com
um fato de casimira branca absolulamente igual à que ele
rapaz adormecido, William teve uma sensação estranhaz
estava usand0.
“Sentz'-me penetrado por uma sensação defrío; 0 coração pul-
sava-me furiosamente no peít0, as pernas vacilavam-me, senti A luz fraca me permitiu distinguir tudo zss'o, mas não asfei-
uma sensação de horror ínexplicáveL Minha respiração tornou- ções do visitante. Mal me viu, veio para mim, agarr0u-me pelo
se commlsa quando aproxímei mais a qu do candeeím braço com um gesto imperativo e ¡'nzpacíente, d:'ss°e-me ao ouui-
Seríam realmente aquelas asfeíções de William Wilson? Sím, do: "William Wilson”. Como por encanto, a minha embn'aguez
eram! Que havia então de ertraordinánb no seu rosto para que eu dzss'ip0u-se completamente àquelas palavras.
me sentisse assím impressionado? Contemplez'-o durante algum
tempo, trêmulo, emocionad0; o meu cérebro agitaua-se, sob a Avida os havia cruzado nova111e11t0. Justamente no auge
ação de mil pensamentos sem nex0. Ele não era assím, nãol da sua embriaguez, ele tornou a aparecer, levmdo William a
Nunca fora assim nos momentos em que me contrariaval Seria uma violenta comoçã0.
humanamente possível, ou o que eu agora contemplava era o
resultado desse hábito de imitação sarcásticaP Apagueí o can- A importância e a solenidade que as suas palavras surdas e
deeiro, gelado de espanto, e, silenciosamente, saí do quarto, aban- sibilantes continham o mod0, o tz'mbre, a chave dcssas sílabas
donando pam sempre 0 ambiente de mzs°tério daquele velho e simples, familiares mas segredadas em mistérío fízerarn~rne
espantoso colégio. estremecer como se na minha alma se tivesse produzido a des-

100 101
carga de uma pillza galvâm'ca. Dumnte alguns momentos, o aposta ñnal para recuperar o que havia perdido. William ñn-
espanto e o terror paralísaram~me o cerebro; quando voltei a
giu duvidar, de modo que todos os colegas tralaram dc con-
mim, o estrangeiro desaparecera.
vence~^lo; fmalmente aceitou. Em meio a um clima de expec-
Este episódio quase fugaz tirou William da sua embria- tativa se desenvolveu a u'lt¡ma parlída, que obviamente
guez, e durante algumas semanas 0 manteve ocupado e preo- William acabou ganhando. Glindinning ñcou pálido, perdcn~
Cupado tratando de descobrir quem era 0 estranho visitante. do a vermelhidão que 0 vinho lhe dera. Fez-se um silêncio
Não pretendia ocultar a identidade dele, mas não podia dei- denso e um clima de tensão. Desconcerlado, William pro-
xar de duvidar daquela visita, de duvidar da sua veracidade. curou no olhar acusador dos colegas a respostaz Glindinníng
De qualquer maneira, tratou de averiguar a respeito de Wil- estava defmitivamente arruinado. William senüu uma opres-
son, e só conseguiu saber que um súbito acidente acontecido são no peito, gerada pelo clima de tensão, pela palidez do
na sua família o levara a abandonar a academia do doutor parceiro e pelos olhares dos colegas. Dc repcnte. houve uma
Bransby, na mesma tarde em que ele empreendeu a sua fuga. súbita interrupção que 0 aliviou daquela intolerável ansie~
Esse dado o perturbou por alguns dias, mas logo ele Come- dade.
çou a cuidar da sua incorporação a Oxford. Nessa nova etapa
As grandes e pesadas portas da sala se abriram de repente e de
da sua vida, a irrefletida atitude dos seus pais, que lhe desig- parem par, tom tal ímpeto que todas as velas se apagaram como
naram uma gorda pensão anual, lhe permítia se entregar ao par encanto. Antes, porém, que a luz se extingulss'e, pudemos ver
luxo e às dissipações, juntando-se aos altivos ricos da Grã- quem entrava. Era um índívíduo com a mínha estatura, apmxi-
Bretanha. madamente embuçado numa capa. Agora. porém. ímersos em
profunda escun'da'0, sentíamos a sua presença entre nós. Anta
Já instalado em 0xford, voltou a monopolizar a atenção
que pudéssemos nos recobrar do enorme espanto que ele provoca-
dos colegas, que o seguiam em seus excessos e loucuras. ra com a sua víolenta entrada, ouvímothe a voz: “Meu$ senho~
Acho sufíciente dizer que ultrapassei as extravagâncias de res", dzs'se ele com uma voz muito baúa ainda que sufícientr
Herodes. Inventei inúmeras loucuras, ajuntando assim um bem mente audíveL com uma voz ínesquccíveL que me causou
fomecido apêndice ao longo catálogo das vícíos que então reina- arrepios até a medula dos ossos: “Não vos pedirei desculpa de
vam na uníversidade mais devassa de toda a Europa. for-ma intempestiva como entrei, porque, procedendo assinL nada
mais fíz do que cumprír aquilo que considero um dcvet Por
Uma das principais atividades de William em Oxford foi certo não conheceis o caráter da pessoa que acaba de ganhar nu
jogar cartas, e ele acedeu rapidamente a todos os segredos écarté uma quantía enorme a Lorde Glindinning. Vou, pons',
da arte de trapacear. Convertido em um verdadeiro jogador indicar-vos um modofácil de adquirirdes esse conhecimenm Para
tss'0, rogtrvos que examinetk oforro do punho da sua manga es-
trapaceir0, tinha encontrado uma maneira de aumentar a sua
querda e alguns pequenos maços que encontrarets' nos Iargas
já grande fortuna à custa da fraqueza de caráter dos colegas. bolsos do seu casaco
Gozava de um apreço e de uma popularidade que o manti-
nham impune. Quem suspeitaria de William, aquele nobre, Era escutado em tão profundo silêncio que, sc um alñne-
liberal e alegre companheir0? te tivesse caído no chão, ter-se-ia ouvido 0 ruído. Assím que
Depois de dois anos de prática deste ofício, decidiu se disse a última palavra, a estranha personagem dcsapareceu,
aproveilar de um dos seus maís abastados Colegas. Reuni- e tão bruscamente Como emrara. (...) No forro da manga en-
dos no quarto de seu colega Prest0n, induzíu Glindinning a contraram as carlas principais do écarté e nos bolsos do
beber demais enquanto jogavam. Já bastante endividad0, jaquetã0, alguns baralhos de cartas. (...) Enxovalhado c hu-
Glindinning propôs aquílo que William esperava: dobrar a mílhado, foi convidado pelos compwlheims a abandonar a casa

102 103
e Oxford. Quando ele se retirava, Mr. Preston lhe estendeu a “Mts'erável exclamei com voz rouca de co'lera, cólera que cres-
capa que levantara do Chã0. “Vi com um espanto que melhor cia em mim a cada palavra que dizia. "Mts'erável! Embusteirol
Maldíto pat1f'e! Não voltarás mats' a pmeguir-me, a atonnen-
se diria terrorjá ter no braço a que me pertencia (...) peguei-a
tar-me! Acompanha-me, ou mato-te aqui mesmo!'
e a delx'ei sobre a minha". Perdido em um abísmo de espanto e Mal entrei, empurrei-o contra a paredefronteiriçm fechei a par-
vergonha, Willíam Wilson foge de Oxford, iniciando uma ta, ao mesmo tempo em que Iançava uma tremenda praga c
apressada viagem ao continente. Mas em qualquer lugar que ordenei-lhe que desembainhasse a espada.
estivesse, sempre aparecia Wilson sussurrando, e interp0n- 0 combate não durou muito. (...) Em poucos minutosjíJo n-
cuar até a parede e uma vez ali, vendw impotente para defen-
d0-se entre William e as suas ambições. Na realidade, Wilson
der-se, trespassei-lhe o peito repetidas vezes com selvagem feroa'-
sempre aparecia para frustrar planos que, se levados a cabo, dade.
por certo lhe acarretariam desgraças.
Nesse momento, sentiu um ruído que o distraiu ape-
Acaso poderia eu imaginar que no meu conselheiro de Eton, no
nas por um instante, mas, ao voltar os olhos para seu inimigo
destruidor da minha reputação em Oxfonk naquele que obstara a
realização das minhas ambições em Roma, a minha vingança agonízante, sentiu um horror tremend0.
em Pans', os meus amores em Nápoles e a minha cobiça no Egíto,
Alga havia mudado. Durante o curto momema em que eu me
que nesse ser, simultaneamente meu ínimigo e meu gênio mau,
afastara, o aposento mudara completamente nas suas dts'posí-
eu não reconhecia o William Wilson do colégio, o meu homôm'-
çõesl No lugar onde antes eu nada vira, havia agora um grande
mo, o meu camarada, 0 temído e odiado rival da casa do doutor
espelho (pelo menos assim me pareceu na minha axcitação). Apro-
Bransby? Era impossíveL Mas já é tempo de contar a terrível
ximei-me dele cheio de terror e vi caminhar para mím a minha
cena com que termínou este drama. (...)
própria imagem, com o rosto extremamente pâlido e todo sal-
Passou-se isto em Roma, no camaval (...), encontraua-me eu
picado de sangue, avançando com passos Ientos e vac¡'lantes.
num baíle de máscaras dado no palácio do duque Di Broglio.
Tratava-se do meu im'mígo, de William Wilson, que, agomz'an-
Nessa noíte, bebera mais do que de costume e sentz'a-me excepcio«
te, se erguía perante mim.
nalmente irritado pela atmosfera pesada dos salâes repletos de
Era Wilson, mas um Wilson que já não murmurava aofalarl
gente. Havia grande dzfí'culdade em passar por entre os pares, o
Pelo contra'n'o, falava de tal maneira alto que tive a impressão
que me exasperava sobremaneira: procurava ansiosamente (não
nítida de ouvir a minha própria voz dízendo:
confessei aqui o meu índígno propósit0) a jovem, alegre e bonita
- Venceste e eu pereça Mas daqui para o futuro também tu
esposa do duque, homem velho e excêntrico. Ela contara-me,
estarás mort0. Morreste para o mund0, para o céu e para a
imprudentemente, a maneira como uiria vestida ao baíle. Quan-
esperançal Exts'tías em mim. OIha bem agora para a minha
do, ñnalmente, a avistara no outro extremo e me dirigia para
morte, ealnessa ímagem - que é a tua - verás o teu próprio
ela, senti que alguém me tocava levemente no ombro e ouvi o suicídioV
bem conhecido, porque inesquecível murmúrío ao ouvíd0, mur-
múrio que eu tantas vezes já amaldiçoara!
A leitura

Furios0, voltou-se para 0 indívíduo que ousava distraí- O conto de Poe nos aproxima de maneira vivencial da
10 do seu ñm e violentamente segurou~0 pelos ombros. Ves- luta interior de um indivíduo com a própria consciência. Essa
tia, como era de prever, roupa absolutamente igual à delez dinâmica permanente entre o ser c o dever ser é alimentada
um manto de veludo (...) uma espada suspensa da cintura por
um talim vermelho. Tínha 0 rosto completamente oculto por 32 Na versão on'ginal, em inglês. do conto, o lexto parcce scr um pouco maís
uma máscara de seda preta. contundentez "You were a part ofme” ( Você cra uma parle de mím).

104 105
por uma tensão vital que, longe de ser relaxada, merece, deve dade. Quer dizer que ele entendia a presença do erro, e em
e está destinada a ser orientada signiñcativamente. Fazendo alguns episódios reconhece a intcnção de agir “mal" e ainda
um jogo de palavras, bem se poderia dizer que antes de pen- as conseqüências planejadas pelo erro (por exemplo, o episó-
sar em suprimir essa tensão, devemos pensar em lhe dar uma dio de Oxford), mas se submete a esse modo de agir, parado-
“intenção”. xal-mente, procurando fugir da “submissão à voz da cons-
A narrativa nos introduz na vida de William Wilson, um ciêncía”.
homem que luta procurando resolver essa dialética entre ser De alguma maneira nos leva a essa dislorcida idéia de
e dever ser, desde 0 princípio da sua história pondo as diñcul- “líberdade” entendida como o fato de fazer aquilo que tenho
dades com que muitas vezes deparamos no momento de to- vontade, quando na realidade isso não expressa mais do que
mar decisões e executá-las. uma verdadeira “escravidão das vontades"; a verdadeira li-
Evidentemente, as duas personagens centrais da obra, berdade signiñca, neste caso, ter vontade defazer aquilo que
William Wilson e seu xará, são a mesma pessoa; um deles, o devo fazer. Esta fórmula implica 0 livre compromisso com um
narrador - que na resenha Chamei de William - representa valor. William, cujas “ambições" sempre se lígavam a uma
o desregrament0, 0 excesso, a pa1x'ão sem limite, a expres- vontade movida pelas paixões, é expoente ñel dessa escravi~
são pura de tensões, a falta de signiñcado, o sem sentido, e dão, que o acaba levando a esse “deserto de erro".
como tal, a fonte de desesperança e desespero, desordem e Também não ñca isento da vívência de “Cu1pa", que está
dispersão. O outro - a quem chamei Wilson - representa, ligada fundamentalmente com a presença de Wilson, isto é.
por sua vez, “a voz da consciência”, os valores éticos, de atitu- da consciêncía. Isso então signiñca que a função da consciên-
de, a ordem - entendida não em termos concretos de cada cia é nos culpar em nossos erros? Claro que nãoz estañamos
coisa em seu lugar, mas antes de “ordenament0”, isto é, de desvirtuando a natureza da consciência se pensássemos que
orientação signíñcativa. é essa a sua íunçã0. A consciência se expressa como uma
Seguindo 0 ño da narrativa, podemos observar expres- mensagem ñrme ou ainda como um leve murmu'rio, mas 0
sões, perñs, às vezes muito sutis e outras muito explícitos faz sempre eml função de nos orientar rumo a um dever ser
que nos evocam imediata e claramente 0 conteúdo de signif1- signiñcativo. E Wilson que em Oxford diz: Não vos pedirei
cado de cada personagem Vejamos 0 seguintez desculpa pela minha conduta - ao entrar de surprem em um
Em um princípio aparece a idéia de William de declinar quarto ondejogavam cartas --porque, procedendo assim, nada
a responsabílidade dos seus atos em aspectos absolutamente maisfíz do que cumprír aquilo que considero um dever. Acons-
alheios ao âmbito da sua própria responsabilidade. Ele nos ciência nos faz ver, ilumina 0 caminho, marca rumos. aponta
fala do império da cultura “da sua raça”, como ele se refere à destinos; quando percebemos os nossos erros e desacertos,
sua nacionalidade, da cultura familiar e até da característica se manifestam vivências de todo 0 tipo, especialmente orienta~
de país que, ao longo da história, aparecem sempre como das para despertar a nossa responsabi11'dade, entendida como
pouco atentos ao crescimento do ñlho, pouco capazes de a capacidade de dar uma resposta àquele err0. Quando o de~
conte-^lo, distantes. Encontra nestes aspectos um princípio de certo foi grande, quando foi contra os nossos própños valo-
just1f1'cação, buscando até 0 alívio da própria consciência na res, aparece a culpa. No caso de uma vida muito dispersa,
idéia do destino ou da fatalidade. como a de William, a vivência geradora de culpa é uma pre-
Desejaria que descobrissem para mim, no vasto deser- sença quase permanente, cena a que se expõe 0 própño incli-
to de crime que vou descrever, um pequeno oásís de fatalí- víduo na sua busca.

106 107
Na narrativa, Wilson é o único que não se submete aos Por outro lado, não há fuga possível desta voz da cons-
enganos e manipulações de William; é insubornável e impos- ciência. Por mais que tentemos. William correu mundo pen-
sível de ser seduzido. Sempre parece saber as intenções ocul- sando que seria capaz, e não conseguiu. E se o tivesse per'
tas de William, circunstância que gera neste último um ver- corrido várías vezes, também nãu leria conseguido, pela
dadeiro tem0r. Assim é a nossa consciência. Assume exata- simples razão que ela vem do nosso interion Não é o eco da
mente as caracten'st1'cas de Wilson, com seus perñs proteto- moral ou da lei exterior, é a manifestação Ida nossa própn'a
res, admoestadores, pacientes, que servem para conte~^lo, inter- natureza, da nossa própn'a interioridade. E a voz éüca que
pretação ñel do nosso dever ser, aquele que nos realiza como nos alerta do nosso agir contrla os valores que dão sentido e
seres humanos. Sempre se faz presente no momento em que coerência à nossa existência. E a voz ética que nos alerta do
estamos agindo mal e nos faz perceber essa alternativa, desa- nosso agir contra nós mesmos, onde muitas vezes entmmos
parecendo depois, isto e', nos de1x'ando espaço para agir como sem perceber.
quiserm0s, mas sem podermos alegar desconhecimento ou William não se anima - ou não consegue - a ver o ros~
distração. to de Wilson em uma imagem que nos remete à situação da
Na nossa história, William descobre um defeito que tor- nossa atitude de evitar enfrentar a nossa própña consciência.
na Wilson vulnerável - ou 0 atribui a ele: a sua voz está afe- Quando não queremos olhá~la nos olhos, ou não temos a cora~
tada (por um problema constitucionaD e ele emíte apenas um gem para isso, estamos propensos ao erro. Qumdo não que-
murmúri0. Ao mesmo temp0, quando narra 0 episódio da remos ouvi-la, ou reduzimos o impacto da sua voz ao mínimo
escola do doutor Bransby, lhe atribui um quarto pequeno e sussurro possíveL estamos expostos a perder o rumo.
localizado em um lugar afastado. Além diss0, havía, como era Vítima das suas desordens e excessos, da díspersão ori-
inevitável num edtfí'cio tão z'rregular, uma quantidade de am- ginada nessa atítude de evitar a consciência. o nosso destíno
tos e recantos, sobras e arremates da construção, que 0 talento é o vazío. Quando perdemos de visla esse guia e nos fecha~
econômico do doutor Bransby transformara também em dor- mos para essa palavra, o resultado acaba sendo invariavel~
mit0'n'os; eram, pore'm, divisões tão pequenas que apenas c0m- mente o desespero e a desesperança. Quando nos negamos a
portavam uma pessoa. Wilson ocupava um desses quartos. Pre- esse elemento facililador do sentido e da coerência. a disper-
tende separar e minimizar a força da sua presença. Mesmo são, o desassossego e a escravidão se apoderam da nossa exis~
assim, é esse murmúrio que ele escuta nos momentos culmi- tência. Poe 0 narra extraordinariamente na u'ltima cena do
nantes, pois a voz da consciência sempre se faz ouvir, sempre relato. Embriagado por todos os excessos imagináveis, os da-
é reconhecida, mesmo entre outras vozes. quela noite somados à deterioração de todos os anten'ores.
A consciência cumpre uma função reveladora do dever William acaba aniquilando a sua consciência, matando Wil-
ser, nos lembra o caminho e a orientação, 0 sentido e o valor son, o que sign1ñ'ca se malar. Nesse momento é que Wilson
desta ou daquela atitude. William acusa Wilson de interferír lhe sentencia que na realidade ele se suicidou porque na cons-
nas suas ambições, ao passo que na realidade é resgatado ciência está a vida.
delas, evitando que as concretize, redundando em episódios
de prejuízo maior para ele e para os outros, ajudando-o, em
últíma análise, a retomar - pelo menos lhe facilita o acesso
aos meios para conseguir retomar - uma direção humani-
zante.

108 109
O ñnal: Caso Manuel A sua vida pessoal é totalmente dispersa. Dc dia traba~
lha, pratica esporte, come comída saudáveL mas à noite bebe
Quantas vezes agimos como William? Muito possivel- demais, e se permite todos os excessos que se apresentem E
mente não no extremo em que ele se localizava, mas quantas isso por entender que é muito jovem para se pn'var dessas
vezes agimos assimP Quantas vezes nós também queremos coisas. Tem apenas poucos amigos, mas inúmeros conheci~
nos livrar dessa voz que nos percebe, nos adverte, nos ap0n- dos da noite de todas as idades e caracten'stícas, freqüentan-
ta alg0? Quantas vezes vemos a consciência como um “espec- do por intermédio deles todos os ambientes, desde os mais
tro no nosso caminho” que se interpõe entre nós e nossas reconhecidos, os esnobes, até os mais desprestigiados.
ambições? Muitas, com certeza, mesmo sem acabar vivendo Manuel vem ao consultórío um ano maís tarde. O que
como William quero dízer? Um dia a mãe de Manuel pediu que eu marcas-
O que quero dlz'er e': esta narrativa de Poe não é pura se uma hora para o ñlho, em razão da sua diñculdadc para
ñcção, mas uma descrição contundente da nossa própria cons- progredir nos estudos. Ele conñrmou a consulta por lelefo-
ciência e da atitude que podemos assumir perante e1a. Ouvi- ne, o horário da consulta, mas nunca compareceu. Um ano
la, assumí-la, segui-la, sem que isso signiñque submissão a mais tarde, por volta da mesma data, voltou a se comunicar e
uma norma moral escrav12'ante; não lhe dar atenção, fazer com ñnalmente concretizou a entrev1'sta. O motivo da sua consul-
que se cale, ignorá-la, sem que isso signifxque se líbertar. ta também se referia ao estudo. Nenhum dos seus excessos
Neste conto encontramos matizes riquíssimos para abor- - a maioria dos quais punha em risco a sua vída, como, por
dar esta temáüca não somente no aspecto terapêutico, mas tam- exemp10, subír no teto de um aulomóvel que roda a grande
bém como recurso a serviço da sua aprendnz'agem. Em função velocidade por uma avenida de madrugada, beber demais,
bibüoterapêuüca, eu gostaria de recordar um caso. Trata-se de brigar para se divertir etc. - eram consíderados moüvo de
Manuel, umjovem de 23 anos, ñlho maís velho de uma família uma conversa sequer. Manuel não queria tomar conhecun'ento
econorrúcamente abastada. Se*u pai é funciondn"'0 público e cons- dessas coisas.
tituiu com a esposa uma famílía de tradicional orientação cat0-' Em um primeíro momento, o trabalho terapêuüco pre~
1ica. Manuel sempre foi um garoto muito inquieto, e foi muito tendeu ligá-lo a uma busca sadia de realização que o afastas-
d1f1"ci1 para os pais lídarem com ele. Como conseqüência de se desses excessos, que começaram a ser postos por cle mas-
reiterados episódios de fracasso escolar, terminou o curso de mo como vazios de signiñcado, e, mais, como geradorcs de
segundo grau como aluno m'terno em um estabelecun'ento lo- um vazio ainda maior. Nesse ponto, incorporo o conto de Poe.
cahz'ado a muitos quilômetros de distan^cia de sua casa. Ao ter- Com a sua voracidade típica, Manuel o leu em voz alta na
minar os estudos, retornou a Buenos Aires e m'icíou a sua car- sessão. Quando termin0u, me olhou com uma expressão de
reira un1°versitán"a na disciplina do pai, com a idéia de poder assombr0, surpresa e desconcerto.
usufruir 0 dia de amanhã com o bom nome, o prestígio e as O seu primeiro comentário foiz Mas o conto não termina
conexões dele para conseguir um bom emprego. bem... eu pensei que nofínal os doisfícassem amigos... A parür
Ao m'iciar os estudos, resolve morar sozinho em um apar- desse comentário começamos a nos perguntar sc, tendo tri-
tamento emprestado por um parente. Seu pai lhe consegue lhado caminhos tão diversos, era lógico pensar cm um reen-
trabalho, que ele realiza de maneíra responsáveL ao mesmo contro quando na realidade já se teriam dísmnciado muito
tempo que leva a sua carreira universitária com altos e bai- entre si. Nos perguntamos se nesse ponto de tal excitação na
xos, numa alternância de sucessos e fracassos. vida de William, este úllimo poderia repensar as intenções de

110 111
Wilson e entendélas como positivas. Recordamos a famosa
poesia de Frost, aquela que fala dos doís caminhos, um deles
muito tentador - que é o que todos Seguem - e o outro,
mais árduo talvez, que é aquele que conduz ao meu próprio
destino. Como resultado de tudo isto, Manuel concluiu a en-
trevista com o seguinte comentárioz Faço 0 quefaço porque
não sei, sempre pensei que em determinado momento ia parar
e não ia fazer mais e pront0, ponto jínaL mas não sei, no ano
passado quisfícar noivo e não pude porque estou acostumado a
saír com autro tipo de moças e com essas não se pode... mas ÍNDICE
talvez seja verdade que a pessoa dep013' não pode parar...
A partir do momento em que Manuel descobriu a exis-
tência de Wilson na sua vida, o processo terapêutico deu uma
volta admira'vel; alguma coisa aconteceu em Manuel para
Introdução
reacomodar a sua vida e orientar a sua busca pessoaL Aos
Sobre a biblioterapia
poucos, ele foi incorporando novos hábitos que foram substí-
tum'do velhos vícios, vivendo esta transformação afastado do
1” parte
perigo do tédio, de não gozar a vida.
13 A LOGOTERAPIA EM CONTOS
Manuel continua em terapia. Como díz Ortega y Gasset:
0 importante não é chegar, e sim ir, estar a caminh0. 18 Para uma biblioterapia
21 A leitura terapêutica do livro
26 Da biblioterapía ao bibliodiagnósüco
27 Exemplos
27 Caso 1: João (37 anos)
29 Caso 2: Grupo de jovens esporüslas
31 Caso 3: Ccntro dc convivência de idosos

2° parfte
33 AS DUVIDAS

34 O livro substitui 0 terapeuta?


35 O que acontece com 0 paciente depois de viver
0 impacto da leitura?
37 Existem livros “conlraproducentes"?
39 Isto signiñca que qualquer livro pode servir para
os ñns da biblioterapia?

112
41 Pode~se implementar a biblioterapia no trabalho

.
com as crianças?
46 A biblioterapia tem aplicabilidade quando se traba-
lha com deñcientes físicos?

_. _. _
46 Ler e escrever sào a mesma coisa?

3” parte
51 MATERIAL
51 “Quebra-cabeça”, de Claudio García Pintos
55 “A estrada que não tomei”, de Robert Frost
57 “O sapateir0”
58 “Pípa”, de Lulz' Falcão
59 “O carrun'h0 da verdade”, de E. Kipman Cerquei-
SHPPÚNH

ra
61 “Aventuras em busca de am0r”, de Iamara M.
95

Porcelli
66 “O rei que queria ser feliz”, de Antonio C.
Giampietro
74 8. “Quand0”, de Gabriel Jorge Castellá
75 9. “Poesias”, de Elisabeth Lukas
80 10. “Reflexões”, de vários autores

40parte ~ 1 l
85 CONCLUSAO: ULTIMA PAGINA

5“ parte A
95 SOBREA CONSCIENCIA EM UM CONTO DE POE

95 O contoz “William Wilson”


105 A leitura
110 O ñnalz Caso Manuel

S-ar putea să vă placă și