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PAIDEIA
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PAIDEIA
A Formação do Homem Grego
ΛΙΜΗΝ ΠΕΦΥΚΕ ΠΑΣΙ ΠΑΙ∆ΕΙΑ ΒΡΟΤΟΙΣ
Werner Jaeger
Tradução
ARTUR M. PARREIRA
Tradução
ARTUR M. PARREIRA
09-10537 CDD-938
Índices para catálogo sistemático:
1. Civilização helênica 938
2. Cultura helênica 938
3. Grécia antiga : Civilização 938
Agradecimento
O Tradutor
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SUMÁRIO
LIVRO PRIMEIRO
A PRIMEIRA GRÉCIA
LIVRO SEGUNDO
APOGEU E CRISE DO ESPÍRITO ÁTICO
LIVRO TERCEIRO
À PROCURA DO CENTRO DIVINO
Prólogo.................................................................................... 473
Século IV ................................................................................. 481
Época clássica da paideía. A prosa na literatura. As es-
colas superiores.
Sócrates................................................................................... 492
Nietzsche e Sócrates.
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LIVRO QUARTO
O CONFLITO DOS IDEAIS DE CULTURA
NO SÉCULO IV
PRÓLOGO
XVIII PAIDEIA
INTRODUÇÃO
XXII PAIDEIA
Φιλ´´
ολογος ο¸ ϕιλωª ν λόγους καὶ σπουδάζων περὶ παιδείαν.
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2 INTRODUÇÃO
4 INTRODUÇÃO
6 INTRODUÇÃO
8 INTRODUÇÃO
10 INTRODUÇÃO
3. Para isto a fonte clássica é CÍCERO, Or. 7-10, que, por sua vez, ba-
seia-se em fontes gregas.
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12 INTRODUÇÃO
14 INTRODUÇÃO
16 INTRODUÇÃO
18 INTRODUÇÃO
Livro Primeiro
A Primeira Grécia
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Nobreza e areté
22 A PRIMEIRA GRÉCIA
NOBREZA E ARETÉ 23
24 A PRIMEIRA GRÉCIA
3. ρ. 322.
olhos, areté dos deuses: I, 498.
NOBREZA E ARETÉ 25
26 A PRIMEIRA GRÉCIA
NOBREZA E ARETÉ 27
αÓλλων8.
Nessa frase o poeta condensou, de modo breve e certeiro,
a consciência pedagógica da nobreza. Quando Glauco enfrenta
Diomedes no campo de batalha, e quer mostrar-se adversário
digno dele, enumera, à moda homérica, os seus antepassados
ilustres e prossegue: Hipóloco me gerou, a ele devo a minha ori-
gem. Quando me enviou a Troia, advertiu-me insistentemente
de que lutasse sem cessar por alcançar o poder da mais alta vir-
tude humana e sempre fosse, entre todos, o primeiro. Não é pos-
sível exprimir de modo mais belo como o sentimento de nobre
emulação informava a juventude heroica. Para o poeta do livro
XI da Ilíada, esse verso já era uma palavra alada. À saída de
8. Z 208.
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9. Λ 784.
10. Como se vê na fonte grega de CÍCERO, De Orat., 3, 57, onde o ver-
so (I, 443) é citado nesse sentido. Toda a passagem é interessantíssima como
primeira tentativa de uma história da formação.
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NOBREZA E ARETÉ 31
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trata, pois, se assim fosse, a comparação que ele faz com a are-
té dos gregos primitivos seria indubitavelmente errônea. Aristó-
teles, ao defender e aderir com especial predileção a um ideal
de autoestima plenamente justificado, em consciente oposição
ao juízo comum do seu século esclarecido e “altruísta”, desco-
bre uma das raízes originais do pensamento moral dos gregos.
A sua elevada apreciação da autoestima, bem como a sua valo-
rização da ânsia de honra e da altivez, deriva do aprofundamen-
to filosófico plenamente fecundo das instituições fundamentais
da ética aristocrática.
Entenda-se bem que o eu não é o sujeito físico, mas o mais
alto ideal de Homem que o nosso espírito consegue forjar e que
todo nobre aspira a realizar em si próprio. Só o mais alto amor
deste eu, em que está implícita a mais elevada areté, é capaz de
“fazer sua a beleza”. Essa frase é tão genuinamente grega, que é
difícil vertê-la para um idioma moderno. Aspirar à “beleza” (que
para os gregos significa ao mesmo tempo nobreza e eleição) e
fazê-la sua é não perder nenhuma ocasião de conquistar o prê-
mio da mais alta areté.
Que significado tem para Aristóteles esta “beleza”? Nosso
pensamento volta-se logo para o refinado culto da personalidade
de tempos posteriores, para a aspiração, característica do Hu-
manismo do século XVIII, à livre formação moral e ao enrique-
cimento espiritual da própria personalidade. Mas as próprias pa-
lavras de Aristóteles mostram, ao contrário, sem sombra de dúvi-
da, que aquilo que ele tem diante dos olhos são, acima de tudo,
as ações do mais alto heroísmo moral. Quem estima a si próprio
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NOBREZA E ARETÉ 35
19. Ver o meu Aristóteles (Berlim, 1923), p. 118. (Ed. esp. F.C.E., México,
1946.)
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Cultura e educação
da nobreza homérica
Odisseia, quem, com Aristarco, as separa do resto como νεω§ τερον, não pode
“Quem em questões de linguagem, religião ou costumes mistura a llíada e a
38 A PRIMEIRA GRÉCIA
3. Ver o meu ensaio Solons Eunomie, Sitz. Berl. Akad., 1926, pp. 73 ss.
Também F. JACOBY (op. cit., p. 160) aduz argumentos simples que nos le-
vam a um terminus ante quem ainda mais recuado.
4. Wilamowitz, op. cit., p. 178.
5. Wilamowitz, op. cit., p. 182, supõe (contra a sua opinião em Home-
rische Untersuchungen, p. 27) que a “Telamaquia” nasce na península e fala
de um “círculo cultural coríntio”. Não me convencem as suas razões. (Cf.,
também contra, JACOBY, op. cit., p. 161.)
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ção nova. Acho que posso oferecê-la, embora não aqui. Con-
quanto a Ilíada dê no conjunto uma impressão de maior antigui-
dade que a Odisseia, isso não pressupõe necessariamente que
tenha surgido na sua forma atual, como grande epopeia, numa
época muito distante da época da Odisseia na sua forma defini-
tiva. A Ilíada, nessa forma, foi naturalmente o grande modelo
de toda a épica posterior, mas as linhas da grande épica fixam-
-se numa época determinada e imprimem-se de preferência em
outra matéria. Aliás, é preconceito derivado do Romantismo e da
sua concepção característica da poesia popular considerar artis-
ticamente superior a poesia épica mais primitiva. É nesse pre-
conceito contra as “redações” surgidas no termo da evolução
épica (as quais foram poeticamente subestimadas e propositada-
mente diminuídas, em vez de se tentar compreender o seu senti-
do artístico) que se fundam, em grande parte, a desconfiança do
“homem de são entendimento” em relação à crítica, e o cepticis-
mo que em todas as épocas brota das contradições nos resulta-
dos da investigação. Mas essa desconfiança não pode ter a última
palavra num problema tão decisivo, em que a própria ciência
precisa rever constantemente os seus próprios fundamentos, mes-
mo porque não podemos mais nos manter tão distantes do nos-
so objetivo, como o fez a crítica, por tão longo tempo.
O mais antigo dos dois poemas mostra-nos o predomínio
absoluto do estado de guerra, tal como devia ser no tempo das
grandes migrações das tribos gregas. A Ilíada fala-nos de um
mundo situado num tempo em que domina exclusivamente o
espírito heroico da areté, e corporifica esse ideal em todos os
seus heróis. Junta numa unidade ideal indissolúvel a imagem
tradicional dos antigos heróis, transmitida pelas sagas e incor-
porada aos cantos, e as tradições vivas da aristocracia do seu
tempo, que já conhece a vida organizada da cidade, como pro-
vam principalmente as pinturas de Heitor e dos troianos. O va-
lente é sempre o nobre, o homem de posição. A luta e a vitória
são para ele a distinção mais alta e o conteúdo próprio da vida.
A Ilíada descreve sobretudo esse tipo de existência, condiciona-
da, evidentemente, pela sua matéria. A Odisseia, ao contrário,
tem poucas ocasiões para descrever o comportamento dos he-
róis na luta. Porém, se há alguma coisa definitivamente certa so-
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10. Λ, 830-832.
9. Pyth., VI, 19 ss.
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16. Assim WILAMOWITZ, op. cit.; ver, porém, R. PFEIFFER, DLZ: 1928,
2368. Parece-me que se trata menos da norma divina da educação aristocrá-
tica do que da condução divina da vida e obras pessoais de Telêmaco. O
seu sentido peculiar, mais pedagógico neste caso, não é posto em dúvida
pelo fato de Atena intervir também constantemente na Odisseia, sendo aqui
“também” um simples meio de técnica épica, como F. JACOBY, op. cit., p. 169,
objeta a Pfeiffer. O divino atua na vida sob formas muito diferentes.
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19. α 298.
18. I 524-27.
20. α 32-47.
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58 A PRIMEIRA GRÉCIA
21. γ 195-200.
22. γ 306-316.
23. Proponho-me estudar a evolução dessa forma mental numa inves-
tigação à parte.
24. Robert OEHLER estuda este assunto na primitiva poesia grega,
Mythologische Exempla in der älteren griechischen Dichtung, Diss. Basileia,
1925. Partiu de uma sugestão do livro de G. W. Nietzsch, Sagenpoesie der
Griechen (1852), mas não deu a devida atenção à ligação entre o apareci-
mento do estilo e os paradigmas mentais da velha ética aristocrática.
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Conta Platão que era opinião geral no seu tempo ter sido
Homero o educador de toda a Grécia1. Desde então, a sua in-
fluência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem
a apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu
domínio, quando buscou limitar o influxo e o valor pedagógico
de toda a poesia. A concepção do poeta como educador do seu
povo – no sentido mais amplo e profundo da palavra – foi fa-
miliar aos gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua
importância. Homero foi apenas o exemplo mais notável dessa
concepção geral e, por assim dizer, a sua manifestação clássica.
Convém levarmos a sério, o mais possível, essa concepção, e
não restringirmos a nossa compreensão da poesia grega com a
substituição do juízo próprio dos gregos pelo dogma moderno
da autonomia puramente estética da arte. Embora esta caracteri-
ze certos tipos e períodos da arte e da poesia, não deriva da
poesia grega ou de seus grandes representantes, nem é possível
aplicá-la a eles.
A não separação entre a estética e a ética é característica do
pensamento grego primitivo. O procedimento de separá-las sur-
ge relativamente tarde. Para Platão, ainda, a limitação do con-
teúdo de verdade da poesia homérica acarreta imediatamente
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da, fazer dessa concepção uma lei estética geral. Existe e existiu
sempre uma arte que prescinde dos problemas centrais do ho-
mem e tem de ser compreendida apenas pela sua ideia formal.
E mais: existe uma arte que despreza os chamados assuntos ele-
vados ou fica indiferente perante o conteúdo do seu objeto. É
claro que essa frivolidade artística deliberada tem por sua vez
efeitos “éticos”, pois desmascara sem nenhuma consideração os
valores falsos e convencionais, e atua como uma crítica purifi-
cadora. Mas só pode ser propriamente educativa uma poesia
cujas raízes mergulhem nas camadas mais profundas do ser hu-
mano e na qual viva um éthos, um anseio espiritual, uma ima-
gem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever.
A poesia grega nas suas formas mais elevadas não nos dá ape-
nas um fragmento qualquer da realidade; ela nos dá um trecho
da existência, escolhido e considerado em relação a um ideal
determinado.
Por outro lado, os valores mais elevados ganham, em geral,
por meio da expressão artística, significado permanente e força
emocional capaz de mover os homens. A arte tem um poder ili-
mitado de conversão espiritual. É o que os gregos chamaram
psykhagogía. Só ela possui ao mesmo tempo a validade universal
e a plenitude imediata e viva, que são as condições mais impor-
tantes da ação educativa. Pela união dessas duas modalidades
de ação espiritual, ela supera ao mesmo tempo a vida real e a
reflexão filosófica. A vida possui a plenitude de sentido, mas as
suas experiências carecem de valor universal. Sofrem demais a
interferência dos sucessos acidentais para que a sua impressão
possa alcançar sempre o grau máximo de profundidade. A filo-
sofia e a reflexão atingem a universalidade e penetram na essên-
cia das coisas. Mas atuam somente naqueles cujos pensamentos
chegam a adquirir a intensidade de uma vivência pessoal. Daqui
resulta que a poesia tem vantagem sobre qualquer ensino inte-
lectual e verdade racional, assim como sobre as meras expe-
riências acidentais da vida do indivíduo. É mais filosófica que a
vida real (se nos é lícito ampliar o sentido de uma conhecida
frase de Aristóteles), mas é, ao mesmo tempo, pela concentra-
ção de sua realidade espiritual, mais vital que o conhecimento
filosófico.
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se revela, por assim dizer, uma educação objetiva que nada tem
a ver com o propósito do poeta, mas se baseia na própria essên-
cia do canto épico. Isto nos conduz aos tempos relativamente
primitivos onde se encontra a origem do gênero.
Homero oferece-nos múltiplas descrições dos antigos ae-
dos, de cuja tradição artística nasceu a épica. O propósito des-
ses cantores é manter vivos na memória do mundo futuro os
“feitos dos homens e dos deuses”2. A glória e a sua manutenção
e aumento constituem o sentido próprio dos cantos épicos. As
antigas canções heroicas eram frequentemente denominadas
“glórias dos homens”3. O cantor do Canto I da Odisseia recebe
do poeta, que ama os nomes significativos, o nome de Fêmio,
isto é, portador da fama, anunciador da glória. O nome do can-
tor feace Demódoco contém a referência à publicidade da sua
profissão. O cantor, como mantenedor da glória, tem uma posi-
ção firme na sociedade dos homens. Platão enumera o êxtase
poético entre as belas ações do delírio divino e descreve em co-
nexão com ele o fenômeno original que se manifesta no poeta4.
A possessão e o delírio das musas apoderam-se de uma alma sen-
sível e consagrada, despertam-na e extasiam-na em cantos e em
toda a sorte de criações poéticas; e ela, enquanto glorifica os
inúmeros feitos do passado, educa a posteridade. Tal é a con-
cepção helênica original. Parte da união necessária e insepará-
vel de toda a poesia com o mito – o conhecimento das grandes
ações do passado – e daí deriva a função social e educadora do
poeta. Para Platão, essa função não consiste em nenhuma espé-
cie de desígnio consciente de influenciar os ouvintes. O simples
fato de manter viva a glória através do canto é, por si só, uma
ação educadora.
Devemos recordar aqui o que já dissemos antes sobre o sig-
nificado do exemplo para a ética aristocrática de Homero. Fala-
mos então do valor educativo dos exemplos criados pelo mito –
por exemplo, as advertências ou estímulos de Fênix a Aquiles e
de Atena a Telêmaco. O mito contém em si esse significado nor-
2. α 337.
3. κλε¿α α©νδρω̃ ν, I 189, 524; Θ 73.
4. PLATÃO, Fedro, 245 A.
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6. Σ 478 ss.
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tros países e povos mais ricos1: A Grécia foi sempre um país po-
bre, mas baseia nisso a sua areté. Alcança-a pelo engenho e pela
submissão a uma lei austera. É por ela que a Hélade se defende
da pobreza e da servidão. O seu solo é formado de múltiplos
vales estreitos e paisagens cortadas por montanhas. Quase não
tem as vastas planícies, fáceis de cultivar, do norte da Europa, o
que obriga a uma luta incessante com o solo para arrancar dele
o que só assim ele consegue dar. A agricultura e o pastoreio fo-
ram sempre as ocupações mais importantes e mais característi-
cas dos gregos. Só no litoral prevaleceu, mais tarde, a navega-
ção. Nos tempos mais remotos predominou em absoluto a ativi-
dade agrícola.
Mas Hesíodo não nos põe ante os olhos só a vida do cam-
po como tal. Também nele descortinamos a ação da cultura no-
bre e do seu fermento espiritual – a poesia homérica – nas ca-
madas mais profundas da nação. O processo da formação grega
não se consuma pela simples imposição ao resto do povo das
maneiras e formas espirituais criadas por uma classe superior.
Todas as classes dão a sua contribuição. O contato com a for-
mação mais elevada da classe dominante desperta nos campo-
neses rudes e toscos a mais viva reação. Naquele tempo, os
arautos dessa vida superior eram os rapsodos que recitavam os
poemas de Homero. Hesíodo conta no conhecido proêmio da
Teogonia como despertou para a vocação de poeta: era um sim-
ples pastor e guardava os seus rebanhos no sopé do Hélicon,
quando um dia recebeu a inspiração das musas, que lhe puse-
ram nas mãos o bastão do rapsodo. Mas o poeta de Ascra não
se contentou em difundir somente o esplendor e a pompa dos
versos de Homero diante das turbas que o ouviam nas aldeias.
O seu pensamento estava profundamente enraizado no solo fe-
cundo da existência campesina e, dado que a experiência pes-
soal o conduzia para além da vocação homérica e lhe outorga-
va uma personalidade e uma força próprias, foi-lhe concedido
pelas musas desvendar os valores próprios da vida do campo e
acrescentá-los ao tesouro espiritual da nação inteira.
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nos deixa concebê-la como uma unidade, não passa de uma sé-
rie de “Cantos de Admoestação a Perses”, separados no decurso
do tempo. É a transposição para o poema didático de Hesíodo
da teoria dos cantos homéricos de Lachmann2. Dificilmente se
pode conciliar com essa interpretação a existência, no poema,
de extensas partes de natureza puramente didática, as quais
nada têm a ver com o processo e, no entanto, são também diri-
gidas a seu irmão Perses e consagradas à sua instrução, como os
calendários para camponeses e navegantes, e as duas coleções
de máximas morais que os acompanham. E que influência po-
deriam ter tido no decurso de um processo real as doutrinas ge-
rais, de caráter moral e religioso, sobre a justiça e a injustiça,
conservadas na primeira parte do poema? Na realidade, o caso
concreto do processo desempenhou evidentemente papel im-
portante na vida de Hesíodo, mas não foi para o poema senão a
forma artística com que vestiu o discurso para torná-lo mais efi-
caz. Sem isso não teria sido possível a forma pessoal da exposi-
ção nem o efeito dramático da primeira parte. Essa forma torna-
va-se, assim, natural e necessária, uma vez que o poeta experi-
mentava, realmente, a íntima tensão da luta pelos próprios di-
reitos. É essa a razão por que não nos conta o processo até o
fim, dado que o fato concreto não afeta a finalidade didática do
poema.
Assim como Homero descreve o destino dos heróis que lu-
tam e sofre como sendo um drama dos deuses e dos homens,
Hesíodo apresenta o simples acontecimento civil da ação judicial
como uma luta entre os poderes do Céu e da Terra pelo triunfo
da justiça. Desse modo, eleva à nobre categoria e à dignidade
de uma verdadeira epopeia um caso real da sua vida, por si
mesmo sem importância. Naturalmente, não pode transportar os
seus ouvintes para o céu, como faz Homero, porque nenhum
mortal pode conhecer as decisões de Zeus a seu respeito e a
respeito das suas coisas. Só pode rogar-lhe que defenda a justi-
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ça. Por isso o poema começa com hinos e preces. Zeus, que hu-
milha os poderosos e exalta os humildes, deve fazer com que
seja justa a sentença dos juízes. O próprio poeta se encarrega,
na Terra, do papel ativo de dizer a verdade ao irmão extraviado
e afastá-lo do caminho funesto da injustiça e da contenda. É cer-
to que Éris é uma divindade a quem os homens têm de pagar
tributo, mesmo contra sua vontade. Mas ao lado da Éris ruim há
uma boa, que não fomenta a guerra, mas sim a emulação. Zeus
atribui-lhe a morada nas raízes da Terra. Induz no preguiçoso a
cobiça em face do êxito do vizinho e assim o move ao trabalho
e ao esforço honesto e fecundo. O poeta dirige-se a Perses pre-
venindo-o contra a Éris ruim. Só o ricaço, que tem os celeiros
cheios e não está apertado pelo cuidado da própria subsistên-
cia, pode entregar-se à inútil mania das disputas. Ele pode fazer
maquinações contra a fazenda e os bens dos outros, e desperdi-
çar o tempo no mercado. Hesíodo exorta o irmão a não envere-
dar outra vez por esse caminho e a reconciliar-se com ele sem
processo, pois já há tempo dividiram a herança paterna e Perses
ficou com mais do que lhe pertencia, por suborno dos juízes.
Insensatos, não sabem quão verdadeira é a máxima que diz que
a metade é maior que o todo e qual é a bênção contida na erva
mais humilde que a terra faz crescer para o homem, a malva e o
asfódelo3. O poeta passa assim do caso concreto à sua formula-
ção geral, quando dirige a sua exortação ao irmão. Já de início
se deixa entrever a ligação da advertência contra as contendas e
a injustiça, e da fé inquebrantável na proteção do direito pelas
forças divinas, com a segunda parte do poema, ou seja, as dou-
trinas sobre o trabalho dos camponeses e marinheiros, e as má-
ximas relativas ao que o Homem deve fazer ou omitir. A única
força terrena que se pode opor ao domínio da inveja e das dis-
putas é a Éris boa, com a sua pacífica emulação no trabalho. O
trabalho é, de fato, uma necessidade dura para o Homem, mas
uma necessidade. E quem por meio dele provê sua modesta
subsistência recebe bênçãos maiores do que aquele que cobiça
injustamente os bens alheios.
3. Erga, 40.
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a Perses”, está imitado, na sua forma típica, de ου¹χ αãρα µουªνον ε¹ηªν dos dis-
cursos homéricos. Mas é precisamente disso que depende a compreensão
da forma de todo o poema; é um único “discurso” emancipado e ampliado
até converter-se em epopeia, de caráter exortativo. O longo discurso de Fê-
nix, no livro IX da Ilíada, está bastante próximo dele.
5. Erga, 106.
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6. Erga, 202.
7. Erga, 274. Nómos ainda não significa “lei” nesse contexto.
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15. O mais destacado paralelo desta parte dos Erga são as máximas de
Teógnis (ver, adiante, p. 243).
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9. Ver o meu trabalho Tyrtaios Über die Wahre Arele, Sitz. Berl. Akad.,
1932, em que as ideias destes capítulos foram tratadas a fundo.
10. PLATÃO, Leis, 629 A.
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11. Não creio que seja fundada a dúvida formulada por Eduard MEYER,
Forschungen zur alten Geschichte, vol. I, p. 226, quanto à autenticidade da
Eunomia de Tirteu.
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dade. Desse modo, os reis são o único elo legítimo entre o Esta-
do atual e o ato de doação divina que no passado o fundou. O
oráculo de Delfos fundamentou para sempre a posição legítima
dos reis.
A Eunomia de Tirteu busca dar uma interpretação autênti-
ca ao fundamento jurídico do cosmo espartano. Saída de um
pensamento em parte racional e em parte mítico, a sua constru-
ção pressupõe a intensa realeza das guerras messênias. Como se
vê no seu poema sobre as virtudes cívicas, Tirteu não foi, de
maneira nenhuma, um reacionário. Ao procurar estabelecer uma
ética do Estado frente à ética dos nobres e ao propugnar a
união, dentro do Estado, de todos os cidadãos considerados
como guerreiros, ele surge antes como um revolucionário. Está
longe da democracia, no entanto. Como a Eunomia mostra, o
povo é a comunidade do exército. Vota SIM ou NÃO às propos-
tas do Conselho, mas não usufrui a liberdade de falar. Provavel-
mente, foi difícil manter, depois da guerra, esse estado de coisas.
Mas é evidente que as autoridades se serviram da autoridade
popular conseguida por Tirteu, como chefe espiritual da guerra,
para firmarem a “ordem jurídica” perante as crescentes reclama-
ções do povo.
O Tirteu da Eunomia pertence a Esparta. O Tirteu das ele-
gias guerreiras pertence à Grécia inteira. A imagem de um novo
heroísmo citadino que, a partir do perigo e da guerra, se infil-
trou nas lutas sociais de um mundo menos heroico ateou a cha-
ma de uma poesia nova e autêntica. Nascida numa ocasião de
sério perigo para o destino do Estado, conquistou uma posição
firme ao lado dos ideais da epopeia homérica. Possuímos outra
elegia guerreira, do poeta Calino de Éfeso, não muito anterior a
Tirteu. Pela sua forma e pelo seu conteúdo, convida a uma com-
paração entre os dois poetas. A relação entre eles não é perfei-
tamente clara e pode ser que sejam completamente indepen-
dentes um do outro. Calino exorta os seus concidadãos a resis-
tirem corajosamente ao inimigo; um fragmento de outro poema
permite concluir que se trata das hordas bárbaras dos cimérios,
que tinham invadido a Ásia Menor e já penetravam no reino da
Lídia. Na mesma situação e em condições análogas, aparece uma
criação poética afim. Quanto à forma, descobrimos em Calino a
Paideia06:Cartas00 19.02.13 22:48 Página 127
fendidas por Tirteu e a antiga forma que ele, nos seus poemas,
empresta à verdadeira virtude impregnaram as novas exigências
e os novos ideais. É a autêntica ideia grega da “formação”. Uma
vez modelada, a forma conserva o seu valor mesmo em estágios
posteriores e mais elevados e qualquer novidade precisa con-
frontar-se com ela. Assim, o filósofo Xenófanes de Cólofon15,
cem anos após Tirteu, aplica-se em transformar aquelas ideias e
sustenta que só à força espiritual cabe, no Estado, a mais alta
posição; e Platão, continuando a evolução, põe a justiça ao lado
e acima da valentia no Estado ideal que advoga nas Leis16. É nes-
se sentido que ele reelabora a poesia de Tirteu, a fim de colocá-
-la de acordo com o espírito de tal Estado.
A crítica de Platão dirige-se menos contra Tirteu que contra
os excessos de força do Estado espartano da época, cujo funda-
mento encontra nos poemas guerreiros daquele. Nem mesmo
os seus maiores admiradores poderiam descobrir naquela Es-
parta inflexível e unilateral qualquer vestígio de espírito musical
e poético. Nesse sentido, são eloquentes o silêncio de Xenofon-
te e os esforços fracassados de Plutarco para preencherem aque-
la lacuna. Não precisamos fazer dessa falta uma virtude. Feliz-
mente, apesar da fragmentação das nossas tradições e documen-
tos, podemos provar que a antiga Esparta dos tempos heroicos
do século VII tinha uma vida mais rica e estava totalmente livre
da pobreza espiritual que a sua imagem histórica nos apresenta
de modo tão vigoroso. Embora Tirteu dê maior valor à habilidade
guerreira que à formação ginástica do corpo, a lista dos vence-
dores dos Jogos Olímpicos nos séculos VII e VI, sobretudo após
as guerras messênias, atesta bem, pelo predomínio de nomes de
Esparta sobre nomes dos outros Estados participantes, o grande
valor que atribuíam a essas lutas amigáveis.
Nem quanto à arte e à música se opõe a antiga Esparta, com
o sombrio rigor que foi considerado a essência da vida esparta-
na, à vida alegre das demais cidades gregas. As escavações re-
velaram vestígios de uma arquitetura viva e de uma arte inten-
O Estado jurídico
e o seu ideal de cidadão
1. Σ 504.
2. Σ 556.
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curar derivar δι¿κη de δικειªν (= arremessar, lançar) e daí atribuir o seu signi-
um valioso esquema da evolução histórica da ideia. Parece-me um erro pro-
bém nos mais altos bens da vida criados pela cultura nobre e
que se convertiam agora em patrimônio comum a todos os ci-
dadãos.
A gigantesca influência da pólis na vida dos indivíduos ba-
seava-se na ideal idade do pensamento dela. O Estado conver-
teu-se num ser especificamente espiritual que reunia em si os
mais altos aspectos da existência humana e os repartia como
dons próprios. A esse propósito, pensamos hoje sobretudo na
pretensão do Estado em ministrar a educação aos seus cidadãos
jovens. A educação pública dos jovens é, porém, uma exigência
que a filosofia do século IV foi a primeira a formular. Esparta é
o único dos Estados mais antigos a exercer influência imediata
na formação da juventude. Não obstante, na época do desen-
volvimento da cultura da pólis, foi o Estado que, mesmo fora de
Esparta, foi o educador dos seus cidadãos, pois considerou os
concursos ginásticos e musicais, celebrados em honra dos deu-
ses, uma espécie de autorrepresentação ideal, e os colocou a
seu serviço. São estas as mais altas representações da formação
ja-se com a lei uma corrente nova e apertada que mantém uni-
das as forças e os impulsos divergentes e os centraliza, como a
antiga ordem social jamais teria podido fazer. O Estado expres-
sa-se objetivamente na lei, a lei converte-se em rei, como os
gregos disseram posteriormente14, e este senhor invisível não só
subjuga os transgressores do direito e impede as usurpações dos
mais fortes, como introduz as suas normas em todos os capítu-
los da vida anteriormente reservados ao arbítrio de cada um. Até
nos assuntos mais íntimos da vida privada e da conduta moral
dos cidadãos traça limites e caminhos. Desse modo, o desenvol-
vimento do Estado leva, através da luta pela lei, à criação de nor-
mas de vida novas e mais diferenciadas.
É esta a significação do novo Estado na formação do Ho-
mem. Platão afirma, com razão, que cada forma do Estado im-
plica a formação de um tipo de Homem definido, e tanto ele
como Aristóteles exigem que a educação do Estado perfeito im-
prima em todos a marca do seu espírito15. “Educado no éthos da
lei”, reza a fórmula constantemente repetida pelos grandes teó-
ricos áticos do Estado do século IV16. Ressalta dela com clareza a
imediata significação educativa da criação de uma norma jurídi-
ca, tornada universalmente válida através da lei escrita. A lei re-
presenta o marco mais importante no caminho que, desde a for-
mação grega segundo o puro ideal aristocrático, leva à ideia do
Homem formulada e defendida sistematicamente pelos filóso-
fos. E a ética e a educação filosóficas enlaçam-se, pelo conteú-
do e pela forma, com as mais antigas legislações. Não desabro-
cham no espaço vazio do pensamento puro, mas sim por meio
da elaboração conceitual da substância histórica da nação –
como já a própria filosofia da Antiguidade o reconheceu. A he-
rança de normas jurídicas e morais do povo grego encontrou na
lei a sua forma mais universal e permanente. Platão culmina a
14. A frase foi forjada por Píndaro (frag. 169, Schröder) e possui na li-
teratura uma longa história que E. STIER seguiu, nómos Basileús. Berl. Diss.,
17. Ver meu trabalho Solons Eunomie, Litz. Berl. Akad., 1926, 70. O le-
gislador como “escritor” no Fedro de PLATÃO, 257 D, e seu paralelo com o
poeta, 278 C s.
18. HERÁCLITO, frag. 44 Diels.
19. ANAXIMANDRO, frag. 9 (pp. 159 s.).
Paideia07:Cartas00 19.02.13 22:48 Página 144
A autoformação do indivíduo
na poesia jônio-eólica
1. ARQUÍLOCO, frag. 1.
Paideia08:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 152
Αι¹σιµι¿δης, Αι¹σχυλι¿δης.
3. Frag. 2.
4. Frag. 6.
Paideia08:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 153
5. Ω 602.
Paideia08:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 154
prio da moral burguesa que influi na épica mais recente. HESÍODO, Erga,
763, faz da Fama (pheme) uma deusa.
7. Frag. 9.
8. Frag. 64. Cf. CALINO, frag. I, 17; TIRTEU, 9, 23 s.
9. Frag. 65.
Paideia08:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 155
Studi ltaliani, 1933). Nos versos 7 s., parece-me haver uma referência à com-
paração da alma, do Fedro platônico, com uma parelha de cavalos, para
descrever as paixões violentas.
20. Frag. 88.
21. Frag. 79.
Paideia08:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 159
ε¨ϕ’ ηàπατι frag. 96, de acordo com HOR., Sat., I, 9, 66 (também em Or., I 13, 4).
24. Cf. Aristóteles, frag. 80 Rose, onde se encontram recolhidas, de Sê-
neca, Filodemo e Cícero, as passagens que contêm essa opinião de Aristóte-
les. Não tem fundamento a sua atribuição ao diálogo perdido Politikós (cf.
Rose, Arist. Pseudep., 114).
25. Frags. 7, 8 e 58.
Paideia08:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 160
1. Cf. o meu tratado Solons Eunomie, Sitz. Berl. Akad., 1926, pp. 67-71,
no qual procuro fundamentar as ideias expostas neste capítulo.
Paideia09:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 174
3. Frag. 3.
4. Cf. Solons Eunomie, op. cit., p. 79.
Paideia09:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 180
7. Frag. 8.
8. Frag. 3.
Paideia09:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 182
10. Frag. 1.
Paideia09:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 184
14. Frags. 5, 24, 27 e 25, 8. Para estabelecer o texto, cf. o meu trabalho
Hermes 64 (1929), pp. 30 ss.
15. Frag. 24.
Paideia09:Cartas00 19.02.13 22:47 Página 187
O pensamento filosófico
e a descoberta do cosmo
vel e o seu próprio eu, que constitui sua vocação plena. Basta
pensar num filósofo como Empédocles, impregnado da concep-
ção órfica da divindade, para atestar a profunda e persistente
afinidade da nova religião com os problemas do pensamento fi-
losófico, a qual é visível em Pitágoras, pela primeira vez. Empé-
docles exalta Pitágoras no seu poema órfico, Purificações. Inter-
penetram-se em Empédocles as crenças órficas da alma e a filo-
sofia jônica da natureza. A sua síntese mostra-nos de modo mui-
to significativo como as duas doutrinas se unem e se completam
numa mesma pessoa. É símbolo dessa união complementar a
imagem da alma, balançada de lá para cá no turbilhão dos ele-
mentos: o ar, a água, a terra e o fogo empurram-na e atiram-na
de uns para os outros, incessantemente. Assim sou eu, como um
exilado de Deus, que vagueia daqui para ali 24. A alma não tem
no mundo da filosofia naturalista um lugar adequado. Salva-se,
porém, mediante a certeza religiosa de si própria. É só quando
se liga ao pensamento filosófico do cosmo, como em Herácli-
to, que essa necessidade metafísica do homem religioso encon-
tra satisfação.
Com Xenófanes de Cólofon, o segundo dos grandes emi-
grados jônicos que estabeleceram o seu campo de ação no Oci-
dente do mundo helênico, deixamos a linha dos pensadores ri-
gorosos. A filosofia milesiana da natureza nasce da investigação
pura. Quando Anaximandro torna acessível, na forma de livro, a
sua doutrina, destina a sua especulação à publicidade. Pitágoras
funda uma sociedade cujo fim é a realização dos preceitos do
mestre. Ambos representam um esforço educativo muito afasta-
do da pura teoria filosófica. As suas críticas, porém, penetraram
tão profundamente em todas as concepções geralmente aceites,
que era impossível separá-las do resto da vida espiritual. A filo-
sofia da natureza recebeu dos movimentos políticos e sociais da
época os incitamentos mais fecundos, e devolveu de múltiplas
formas o recebido. Xenófanes é um poeta. Com ele, o espírito
filosófico apoderou-se da poesia. Isso é sinal inequívoco de que
o espírito filosófico começa a tornar-se uma força educativa,
30. Frag. 7.
31. Frag. 1 Diehl.
Paideia10:Cartas00 19.02.13 22:46 Página 216
32. Frag. 2.
Paideia10:Cartas00 19.02.13 22:46 Página 217
E, por maior que seja a sua alegria pela vitória, nem por isso en-
cherá os seus celeiros.
Surpreende-nos esta fundamentação do valor do conheci-
mento filosófico. Mas ela mostra com clareza nova e poderosa
que a pólis e a sua felicidade continuavam a ser a medida de to-
dos os valores. Era nesse ponto que Xenófanes devia apoiar-se
no caso de querer obter o reconhecimento da superioridade do
homem filosófico sobre o ideal humano tradicional. Recorda-nos
aquele poema em que Tirteu proclama a superioridade eviden-
te da virtude espartana – a coragem bélica – em face das outras
excelências humanas, especialmente as virtudes agonísticas das
Olimpíadas. “Este é um bem comum a toda cidade”, afirma, e
ergue, pela primeira vez, o espírito da ética da pólis contra o anti-
go ideal cavaleiresco. Mais tarde, quando o Estado jurídico subs-
titui o antigo, é em nome da pólis que se avalia a justiça pela vir-
35. Frag. 1, 3. Muitas vezes tem sido feita a observação de que o ca-
Por mais longe que vás, não encontrarás os limites da alma: tão
profundo é o seu lógos. É a primeira vez que aparece o senti-
mento da dimensão da profundeza do lógos e da alma, caracte-
rístico do seu pensamento. É dessa nova fonte de conhecimento
que dimana a totalidade da sua filosofia.
aos versos de Teógnis aqueles que lhe são estranhos. Mas a sua
coleção de máximas apresenta uma unidade interna. Apesar da
independência exterior das máximas, observa-se nelas o pro-
gresso de uma ideia, e elas têm um prólogo e uma conclusão,
que as separam nitidamente das que as seguem2. Para reconhe-
cer a autenticidade desse velho livro de Teógnis, ajuda-nos mui-
to não só a totalidade inconfundível da sua rude aristocracia,
como também a forma constantemente repetida dos discursos
do poeta ao amado jovem a quem dedica a sua doutrina, Cimo,
filho de Polipaides, vergôntea de nobre ascendência. Encontra-
mos discursos análogos já no poema didático de Hesíodo a Per-
ses, nos versos iâmbicos e na lírica de Safo e de Alceu. O fato
de expor a sua doutrina em forma de máximas dá-lhe ocasião
de repetir frequentemente a invocação a “Cimo” ou ao “filho de
Polipaides”, embora não em todas as máximas. Na velha poesia
proverbial dos nórdicos deparamos também com a mesma for-
ma. Também nela se repete periodicamente o nome da pessoa
a que se dirige. O nome de Cimo serve-nos de fio condutor para
destacar a obra autêntica de Teógnis do resto da coleção.
Esse nome, porém, não se encontra apenas nos poemas ori-
ginais e na conclusão que encerra o antigo livro de máximas,
mas deparamos com ele também nas partes que foram acres-
centadas. Simplesmente, enquanto no livro de máximas de Teóg-
nis aparece com muita frequência, nas outras partes aparece ra-
ras vezes e em trechos próximos uns dos outros. Devemos, por-
tanto, supor que os lugares em que surge são, quando autênti-
cos, citações do que foi o livro original e completo de Teógnis.
E, dado que em parte são fragmentos que também descobrimos
no texto do antigo livro de máximas e não é possível que se en-
contrem repetidos na mesma coleção de poemas, é evidente que
a última parte da coleção constituía originariamente uma cole-
ção independente, que incluía fragmentos de Teógnis ao lado
dos fragmentos de outros poetas. Era um florilégio recolhido
numa data em que Teógnis se havia já tornado um clássico, isto
é, em fins do século V ou princípios do IV. Platão atesta nas Leis
2. Versos 237-254.
Paideia11:Cartas00 19.02.13 22:52 Página 235
6. JACOBY, op. cit., p. 31; cf. M. POHLENZ, Gött. Gel. Nachr., 1933. Só
recebi essa obra depois de ter terminado a elaboração deste capítulo.
Paideia11:Cartas00 19.02.13 22:52 Página 238
8. Versos 39-52.
Paideia11:Cartas00 19.02.13 22:52 Página 242
9. Versos 53-68.
Paideia11:Cartas00 19.02.13 22:52 Página 243
A fé aristocrática de Píndaro
mação dos hinos triunfais que lhe permite dar nova validade
àqueles ideais, numa época totalmente adversa; e, ao ser anima-
da pela autêntica fé aristocrática, a nova forma do canto alcança
a sua “verdadeira natureza”. Em relação ao vencedor, longe de
sentir uma dependência indigna de um poeta ou de se colocar a
serviço dos seus desejos como um artífice, ignora o orgulho es-
piritual da condescendência e situa-se ao mesmo nível do ven-
cedor, seja ele rei, nobre ou simples cidadão. O poeta e o ven-
cedor estão intimamente unidos para Píndaro, que renova, as-
sim, por meio desta relação insólita no seu tempo, o sentido ori-
ginal dos primitivos cantores, consagrados à glorificação dos
grandes feitos.
Píndaro devolve assim a poesia ao espírito heroico de onde
ela brotou nos tempos primitivos, e exalta-a, acima da mera nar-
ração dos acontecimentos ou da expressão bela dos sentimen-
tos pessoais, até o elogio do exemplar. A maior força da sua poe-
sia é a vinculação à circunstância passageira, e aparentemente
exterior e fortuita. O vencedor exige o canto. É essa ideia nor-
mativa o fundamento da poesia de Píndaro. É para ela que se vol-
ta constantemente, “quando pega na lira dórica” e lhe faz res-
soar as notas; mas a vitória prefere o canto, o companheiro mais
próprio das coroas e das virtudes másculas. Afirma que louvar o
nobre é “a flor da justiça”. Mais: o canto é frequentemente con-
siderado a “dívida que o poeta tem para com o vencedor”. A
areta – devemos escrever a palavra na forma severa e na dórica
ressonância da língua pindárica –, a areta que triunfa na vitória
não quer “esconder-se silenciosa no seio da terra”, mas pede
que a eternizem nas palavras do poeta. Píndaro é o autêntico
poeta, ao contato do qual todas as coisas deste mundo cotidia-
no e banal recobram, como por mágica, o frescor e o sentido da
sua fonte de origem. A palavra – diz no seu canto ao egineta Ti-
masarco, vencedor na luta de infantis – sobrevive aos fatos, quan-
do a língua, com o sucesso concebido pelas Carites, a bebe no
mais profundo do coração.
Conhecemos pouco da antiga lírica coral para determinar-
mos com segurança o lugar de Píndaro no curso da sua história,
mas parece que ele criou algo de novo e não é possível “deri-
var” dela a sua poesia. A elaboração da epopeia e a sua trans-
Paideia11:Cartas00 19.02.13 22:52 Página 256
(παραδει¿γµατα), 472 D.
rar também com 361 D; para a comparação com o pintor de figuras ideais
Paideia11:Cartas00 19.02.13 22:52 Página 259
duos que constituem a série das gerações. Não se pode pois en-
cará-la de um ponto de vista meramente individual, pois é o
sangue divino que realiza tudo o que é grande. Assim, toda a
glorificação de um herói desemboca rapidamente em Píndaro
no elogio do seu sangue, dos seus antepassados. O elogio tem
um lugar firme nos epinícios. É pelo ingresso neste coro que o
vencedor se situa ao lado dos deuses e dos heróis. A que deus,
a que herói, a que homem celebrarei? – começa o segundo poe-
ma olímpico. Ao lado de Zeus, para quem Olímpia é sagrada,
ao lado de Héracles, fundador das Olimpíadas, coloca ele Te-
rão, senhor de Agrigento, vencedor da corrida de carros de qua-
tro cavalos, mantenedor da glória da raça de seu pai e da nobre
ressonância do seu nome. Naturalmente, nem sempre é possível
proclamar os bens e a fortuna da estirpe do herói. É quando, so-
bre as altas virtudes dos homens, cai a sombra das desgraças
enviadas pelos deuses, que a liberdade humana e a profundida-
de religiosa do poeta surgem em todo o seu esplendor. Quem
vive e age tem de sofrer. Tal é a crença de Píndaro, e tal é, de
modo geral, a crença grega. A ação, nesse sentido, está reserva-
da aos grandes. Só deles se pode dizer, em sentido pleno, que
verdadeiramente sofrem. Assim, o Aion concedeu à família de
Terão e de seu pai, como prêmio da sua autêntica virtude, Plu-
to e Cáris. Mas cercou-os também de culpa e de aflições. O tem-
po não pode desfazer o que está feito; mas pode, em parte, sobre-
vir com o esquecimento, Latha, quando um homem daímon in-
tervém no seu destino. Apesar da sua tenaz repugnância, a afli-
ção morre dominada pela nobre alegria, quando a moira de
Deus concede a rica prosperidade de uma ventura superior.
São os deuses que outorgam não só a felicidade e a fortu-
na de uma estirpe, mas também a sua areta. Daí resulta para
Píndaro um grave problema: explicar como é possível que, após
uma longa sucessão de homens famosos, uma família desapare-
ça repentinamente. Isso aparece como uma ruptura inexplicável
na cadeia de testemunhos da força divina de uma estirpe, que
une aos tempos heroicos a atualidade do poeta. Os novos tem-
pos, que já não conhecem a areta do sangue, devem ter apon-
tado esses indignos representantes da sua família. Píndaro fala
dessa interrupção da areta humana no sexto hino nemeu. A raça
Paideia11:Cartas00 19.02.13 22:52 Página 262
tempo, mas que ele situa no mundo dos mitos. Isso significa
para Píndaro colocá-los num mundo de modelos ideais, cujo es-
plendor se derrama sobre eles e cujo elogio deve movê-los a
elevar-se a uma altura semelhante e despertar as suas melhores
forças. É isso que dá ao uso dos mitos o seu sentido e valor pe-
culiares. A censura tal qual o grande Arquíloco a praticou nos
seus poemas, parece-lhe ignóbil17. Conta-se que os seus detrato-
res fizeram saber a Hierão, rei de Siracusa, que o poeta o tinha
denegrido. Píndaro, consciente dos seus deveres de gratidão, re-
pele essa acusação, na dedicatória do segundo Canto pítico. Po-
rém, embora persevere no elogio, mostra igualmente ao rei que,
ao dar ouvidos às sugestões deles, não lhe mostrou, do alto da
sua dignidade, um modelo que ele pudesse imitar. Poupa ao se-
nhor a necessidade de ver algo mais alto do que ele, mas, como
poeta, tem de lhe dizer qual é o seu verdadeiro eu, perante o
qual nunca deve recuar. É nesse ponto que a ideia do modelo,
em Píndaro, atinge a maior profundidade. A máxima “torna-te
quem és” oferece a suma da sua educação inteira. É esse o sen-
tido de todos os modelos míticos que propõe aos homens. Re-
vela-se neles a imagem mais alta do próprio ser. Uma vez mais
se patenteia quanto é profunda a vinculação social, espiritual e
histórica dessa paideía dos nobres com espírito educador da fi-
losofia das ideias de Platão. É nela que está enraizado, sendo,
por outro lado, alheia à filosofia natural dos Jônios com a qual
a história da filosofia a pôs em conexão, de modo unilateral e
quase exclusivo. Não se diz uma palavra sobre Píndaro nas in-
troduções às nossas edições de Platão. Em contrapartida, sem-
pre nelas surgem, como eterna doença e na forma de incrusta-
ções estranhas, as matérias-primas dos hilozoístas.
O elogio pindárico, tal como foi exercido perante o rei Hie-
rão, não requer menos liberdade de espírito e obriga muito
mais. Para esclarecer esta afirmação não é preciso senão tomar
o exemplo mais singelo do elogio educador de Píndaro: a sexta
Ode pítica. É dedicada a Trasibulo, filho de Xenócrates, irmão
do tirano Terão de Agrigento; é um jovem que chegou a Delfos
zar o seu alegre sapateiro do que declarar que ele não aspira-
va à tirania. Os gregos achavam que o domínio de um homem
só de bondade realmente incomum, estava “de acordo com a
natureza” (Aristóteles) e submetiam-se a ele de melhor ou pior
grado.
A antiga tirania é intermediária entre a realeza patriarcal dos
tempos primitivos e a demagogia do período democrático. Em-
bora conservando a forma exterior do Estado aristocrático, o ti-
rano procurava reunir, tanto quanto possível, todos os poderes
nas suas mãos e nas do círculo dos seus partidários. Para isso
apoia-se numa força militar não muito grande, mas eficiente. Es-
tados incapazes de estabelecer por si próprios uma ordem efi-
caz e legal, de acordo com a vontade da comunidade ou de
uma grande maioria, só podiam ser governados por uma mino-
ria armada. A impopularidade desta pressão, que nem sequer o
hábito foi capaz de suavizar, obrigou os tiranos a contrabalançá-
la por meio da cuidadosa manutenção das formas exteriores de
eleição para os cargos, pelo cultivo sistemático da lealdade e
pela busca de uma política econômica favorável ao público. Pi-
sístrato compareceu algumas vezes perante os tribunais de justi-
ça, quando estava implicado em alguma demanda, para provar
o domínio ilimitado do direito e da lei. Isso produzia no povo
uma forte impressão. As antigas famílias aristocráticas eram sub-
jugadas por todos os meios. Os nobres que podiam converter-se
em rivais perigosos eram desterrados ou eram encarregados de
tarefas honrosas em outros lugares do país. Assim, Pisístrato
apoiou Milcíades na sua importante campanha para conquistar
e colonizar o Quersoneso. Mas ele não queria que o povo se
encontrasse na cidade e se convertesse em força organizada e
perigosa. Razões políticas e econômicas concorreram para levá-
lo a proteger os distritos rurais, pelo que estes lhe dedicavam
uma viva afeição. A tirania foi por muitos chamada “o reino de
Cronos”, isto é, a idade de ouro, e contava-se todo tipo de his-
tórias sobre as visitas pessoais do senhor aos campos e suas
conversas com o povo simples e trabalhador, cujo coração ga-
nhava com a sua afabilidade e com a diminuição das contribui-
ções. Mesclavam-se intimamente nesta política a prudência, o
Paideia12:Cartas00 19.02.13 22:51 Página 276
Livro Segundo
Apogeu e crise do
espírito ático
Paideia13:Cartas00 19.02.13 22:51 Página 282
Paideia13:Cartas00 19.02.13 22:51 Página 283
O drama de Ésquilo
mem. É nas suas grandes elegias, nas quais se focaliza esse pro-
blema, que pela primeira vez aparecem as ideias que impreg-
nam as tragédias de Ésquilo6. Na concepção épica, a cegueira, a
Ate, engloba numa unidade a causalidade divina e humana em
relação com a desventura: os erros que arrastam o Homem para
a ruína são efeito de uma força daimônica à qual ninguém pode
resistir. É ela que induz Helena a abandonar a casa do marido
para fugir com Páris, e é ela que endurece o coração de Aquiles
perante a embaixada que o exército lhe envia para dar explica-
ções para reparação da sua honra ultrajada, e perante as ad-
moestações do seu velho preceptor. O desenvolvimento da au-
toconsciência humana realiza-se no sentido da progressiva auto-
determinação do conhecimento e da vontade em face dos pode-
res superiores. Daí a participação do Homem no próprio destino
e a sua responsabilidade perante ele.
Já na parte mais recente da epopeia homérica, no Canto I
da Odisseia, o poeta procura delimitar a participação do divino
e do humano na desventura dos homens e declara que o gover-
no divino do mundo se encontra livre de culpa quanto às des-
graças que sucedem ao Homem, por agir contra os ditames do
juízo mais perfeito. Sólon aprofundou essa ideia, através da sua
grandiosa fé na justiça. A “justiça” é para ele um princípio divi-
no imanente ao mundo, cuja violação deve ser vingada neces-
sariamente, e independentemente de toda a justiça humana.
Desde o instante em que adquire plena consciência disto, o Ho-
mem participa, em grande medida, na responsabilidade da sua
desventura. Aumenta na mesma medida a grandeza moral da di-
vindade, que se converte em guardiã da justiça que governa o
mundo. Mas que homem pode conhecer realmente os desígnios
de Deus? Num caso e no outro poderá julgar que atinge as suas
razões; mas como é frequente a divindade dar sucessos aos in-
sensatos e aos maus, e permitir que fracassem os esforços dos
justos, ainda quando são norteados pelas melhores ideias e in-
tenções! É indiscutível a presença dessa “infelicidade imprevisí-
vel” no mundo. É o resíduo irredutível da velha Ate de que fala
7. Os persas, 819.
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8. Os persas, 93.
9. Prom. 1071. Cf. Solons Eunomie, Sitz. Berl. Akad., 1926, p. 75.
10. Sete contra Tebas, 952.
11. Ilíada, 83; HERÁCLITO, frag. 119.
Paideia13:Cartas00 19.02.13 22:51 Página 306
monia com que viveu na Terra. É difícil dizer até que ponto essa
eudaimonía se deveu ao tempo favorável que o destino lhe assi-
nou e à feliz natureza, ou à arte consciente com que realizou a
sua obra e ao mistério da sua silenciosa sabedoria que, com um
gesto de perfeita modéstia, sem ajuda nem esforço, traduz-se por
vezes em criações geniais. A cultura autêntica é sempre obra da
confluência dessas três forças. Foi e continua a ser um mistério o
seu fundamento mais profundo. O que nela há de mais maravi-
lhoso é não ser possível explicá-la. A única coisa que se pode fa-
zer é apontar com o dedo e dizer: aí está.
Ainda que nada mais soubéssemos da Atenas de Péricles,
poderíamos concluir da vida e da figura de Sófocles que foi no
seu tempo que apareceu, pela primeira vez, a formação cons-
ciente do Homem. Orgulhosa dessa nova forma das relações hu-
6. Athen., I, 22 a-b.
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7. SIMÔNIDES, frag. 4, 2.
8. PLATÃO, Prot., 326 B.
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Os sofistas
OS SOFISTAS 337
OS SOFISTAS 339
2. TUCÍDIDES, I, 138, 3.
3. HESÍODO, Teóg., 96.
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OS SOFISTAS 341
OS SOFISTAS 343
OS SOFISTAS 345
OS SOFISTAS 347
13. PLATÃO, no Hípias Maior (281 C), salienta a oposição entre a ten-
dência prática dos sofistas e a antiga filosofia separada da vida.
Paideia15:Cartas00 19.02.13 22:50 Página 349
OS SOFISTAS 349
dos animais, que se comem uns aos outros16. Em todo caso, a ela-
boração de Protágoras é original. Enquanto o dom de Prometeu,
o saber técnico, só pertence aos especialistas, Zeus infundiu em
todos os homens o sentido da justiça e da lei, pois sem ele o Es-
tado não subsistiria. Existe ainda, porém, um grau mais alto de
intelecção do direito do Estado. É o que a tékhne política dos so-
fistas ensina, e que é, para Protágoras, a verdadeira educação e
o vínculo espiritual que conserva unidas a comunidade e a civi-
lização humanas.
Nem todos os sofistas atingiram tão elevado conceito da
sua profissão. O sofista mediano dava-se por satisfeito em trans-
mitir a sabedoria. Para avaliar com justiça a totalidade do movi-
mento é preciso estudar os seus representantes mais vigorosos.
A posição central que Protágoras atribui à educação do Homem
caracteriza o propósito espiritual da sua educação como “huma-
nismo”, no sentido mais explícito. Este consiste na ordenação
da educação humana por sobre todo o reino da técnica, no sen-
tido moderno da palavra, isto é, da civilização. Essa separação
clara e fundamental entre o poder e o saber técnico e a cultura
propriamente dita converte-se no fundamento do humanismo.
Convém evitar a identificação da tékhne com o sentido moderno
do conceito de “vocação”, cuja origem cristã o distingue do con-
ceito de tékhne17. Ora, a obra do homem de Estado, para a qual
Protágoras quer educar o homem, é também vocação, no nosso
sentido. É ousadia, portanto, dar-lhe o nome de tékhne, no sen-
tido grego; e isso só se justifica porque a língua grega não tem
outra palavra para exprimir o poder e o saber que o político ad-
quire por meio da ação. E é perfeitamente visível que Protágo-
ras se esforça por distinguir esta tékhne das técnicas profissio-
nais, em sentido estrito, e por lhe dar um sentido de totalidade
e de universalidade. É pela mesma razão que ele tem grande
cuidado em distinguir a ideia de educação “geral” da educação
dos outros sofistas, vista como educação realista sobre objetos
particulares. A seu ver, “com isso estragam a juventude”. Embo-
OS SOFISTAS 351
18. PLATÃO, Prot., 318 E. Protágoras inclui aqui nestas τε¿χναι, com es-
pecial referência, a Hípias, a aritmética, a astronomia, a geometria e a músi-
ca, no sentido da teoria musical.
19. Ver, acima, pp. 142 ss.
Paideia15:Cartas00 19.02.13 22:50 Página 352
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44. Ver, acima, p. 202. Para o que se segue, cf. a minha conferência
“Die griechische Staarsethik im Zeitalter des Plato”, in Humanistische Reden
und Aufsätze (Berlim, 1937).
45. EURÍPIDES, Fen., 535 ss.; cf. Suf., 395-408.
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2. PLATÃO, Menon, 91 C.
Paideia16:Cartas00 19.02.13 22:49 Página 395
respeito pela forma mítica, não podia fazer crer aos seus ouvin-
tes que a tendência para a modernização progressiva das figuras
do mito, em que ele se aventurava, era só uma nova fase num
processo de evolução gradual. Deram-se conta de que se trata-
va de uma temeridade revolucionária. Foi por isso que os seus
contemporâneos sentiram-se profundamente perturbados ou
dele se afastaram com apaixonada aversão. É evidente que con-
vinha mais à consciência grega a projeção do mito num mundo
fictício e idealizado, convencional e estético, como o da lírica co-
ral do século VI e dos últimos tempos da epopeia, do que a sua
adaptação à realidade comum, que, comparada ao mito, corres-
pondia para o espírito grego ao que nós entendemos por profa-
no. Nada caracteriza com tanta exatidão a tendência naturalista
dos novos tempos como o esforço realizado pela arte no senti-
do de retirar o mito do seu alheamento e da sua vacuidade, cor-
rigindo-lhe a exemplaridade por meio do contato com a realida-
de vivida e desprovida de ilusões. Foi Eurípides quem empreen-
deu essa tarefa ingente, não a sangue-frio, mas com o ânimo
apaixonado de uma forte personalidade artística e com tenaz
perseverança contra longos anos de fracasso e desenganos, pois
a maior parte do povo tardou muito em apoiar o seu esforço.
No entanto, acabou por vencer e conquistar não só o palco de
Atenas, mas todo o mundo de língua grega.
Não vamos estudar aqui em detalhe cada uma das obras de
Eurípides, nem fazer a análise da sua forma artística. Só nos in-
teressa ponderar as forças que cooperam na formação da nova
arte. Deixaremos de lado as que estão condicionadas pela tradi-
ção. É certo que o estudo cuidadoso desses elementos é o pres-
suposto indispensável para se conseguir compreender bem o
processo da sua formação artística. No entanto, nós o daremos
por suposto e nos limitaremos a pôr em relevo as tendências
dominantes que colaboraram na harmonia de cada uma das
suas obras. Como em toda a poesia grega verdadeiramente viva,
a forma surge em Eurípides organicamente de um conteúdo de-
terminado, é inseparável dele e é por ele condicionada na pró-
pria formação linguística da palavra e na estrutura da frase. Os
novos conteúdos não transformam só o mito, mas também a lin-
guagem e as formas tradicionais da tragédia, que Eurípides aliás
Paideia16:Cartas00 19.02.13 22:49 Página 399
A comédia de Aristófanes
5. Os cavaleiros, 535.
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6. Os cavaleiros, 539.
7. As nuvens, 537.
8. As nuvens, 549.
Paideia17:Cartas00 19.02.13 22:49 Página 421
4. Ver p. 128.
5. TUCÍDIDES, I, 138, 3.
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6. TUCÍDIDES, I, 22, 1.
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convicção de que nessas lutas cada atitude tinha a sua lógica in-
violável e de que aquele que contemplava as coisas de uma cer-
ta altura era capaz de desenvolvê-la corretamente. Apesar da
sua subjetividade, era esta para Tucídides a verdade objetiva
dos seus discursos. Só o poderemos compreender se, por trás
do historiador, repararmos no pensador político. A linguagem
destas representações ideais têm um estilo idêntico em todos os
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7. TUCÍDIDES, I, 23, 6.
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8. I, 89-118.
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9. I, 66-88.
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12. CF. 1, 77, 6. A passagem só pode ter sido escrita depois de termi-
nada a guerra. A referência a Pausânias é evidentemente um paralelo com a
política de força de Lisandro.
13. I, 23, 6; V, 25, 3.
Paideia18:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 456
ele faz aquela afirmação. Essa ideia forma uma grande unidade
com a concepção da inevitável necessidade da guerra, exposta
na etiologia. Pertencem ambas à última fase da sua concepção
política.
Com o problema da unidade da guerra já passamos das
causas à própria guerra. A sua exposição revela a mesma pene-
tração dos fatos pelas ideias políticas. Assim como a tragédia
grega se distingue do drama posterior pelo coro, cujas emoções
refletem sem cessar o curso da ação e lhe acentuam a importân-
cia, também a narração histórica de Tucídides distingue-se da
história política dos seus sucessores pelo fato de o assunto vir
constantemente acompanhado de uma elaboração intelectual
que o explica, mas sem se apresentar sob a forma de grandes
argumentações: converte os fatos em acontecimentos espirituais
e por meio de discursos torna-os patentes ao leitor. Os discursos
são uma fonte inesgotável de ensinamentos. Mas não podemos
pretender dar aqui uma ideia da riqueza das suas concepções
políticas. Expõe-nas em parte através de máximas, em parte por
meio de deduções ou discussões sutis. E compraz-se em opor
dois ou mais oradores na mesma questão, tal como os sofistas o
faziam na chamada antilogia. Assim, nos discursos do rei Arqui-
damo e do éforo Estenelau, põe frente a frente as duas corren-
tes da política espartana antes da declaração da guerra. Sucede
o mesmo em Atenas, nos discursos de Nícias e Alcibíades antes
da expedição da Sicília: ambos devem participar no comando,
mas opõem-se diametralmente no que se refere à política da
guerra. A revolta de Mitilene dá a Tucídides oportunidade para
explorar o ponto de vista da orientação radical e moderada na
política da liga ateniense, no duelo oratório de Cléon e Diodoto
perante a assembleia do povo, e para expor a enorme dificulda-
de em tratar os aliados com justiça durante a guerra. A incom-
patibilidade da guerra e da justiça são evidenciadas por Tucídi-
des nos discursos dos plateios e dos tebanos perante a comissão
executiva de Esparra, após a conquista da infeliz Plateias: para
defenderem o seu prestígio, os espartanos oferecem ali o espe-
táculo de um debate judicial em que os aliados dos acusadores
são ao mesmo tempo os juízes.
A obra de Tucídides é rica em contribuições para os proble-
mas das lutas políticas e das relações entre a ideologia e a reali-
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14. V, 85-115.
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15. I, 36, 2.
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solta que dizia que, sob o seu governo, Atenas era “uma demo-
cracia só de nome” ganha na oração fúnebre e na boca do “ho-
mem preeminente” a forma de uma doutrina geral. Embora em
Atenas todos sejam iguais perante a lei, na vida política é a aris-
tocracia da habilidade que governa. Isso implica o reconheci-
mento do indivíduo superior como o primeiro e, nessa qualida-
de, como governante livre. Essa concepção supõe que a ativida-
de de cada indivíduo tem um valor para a totalidade. Todavia
como até o demagogo radical, Cléon, reconhece –, na obra de
Tucídides o povo como tal não pode exercer o governo de um
império tão grande e tão difícil de dirigir. Assim, na Atenas de
Péricles, está resolvido de forma satisfatória o problema das re-
lações entre a individualidade superior e a sociedade política,
tão difícil num Estado de liberdade e igualdade, isto é, onde go-
verna a massa.
A História ensinou que essa solução depende da existência
de um indivíduo genial – o que sucede tão raramente na demo-
cracia como em qualquer outra forma de governo – e que nem
sequer a democracia tem qualquer segurança quanto ao perigo
de vir a ter falta de chefes. A um dirigente como Péricles a de-
mocracia ateniense oferecia infinitas possibilidades de aprovei-
tar as iniciativas dos cidadãos, que ela tanto prezava, e de colo-
cá-las em ação como forças políticas ativas. Foi por não ter con-
seguido achar novos processos de resolução desse problema,
além dos que o Estado democrático oferecia a Péricles, que a ti-
rania dos séculos seguintes fracassou. A tirania de Dionísio de
Siracusa não conseguiu incorporar os cidadãos na vida do Esta-
do, de modo a poderem, como exigia Péricles, repartir a sua
vida entre as duas esferas da sua profissão e dos seus deveres
políticos. Isso não era possível sem uma certa medida de inte-
resse ativo e uma compreensão autêntica da vida do Estado.
A politeía no sentido grego não significa só, como atual-
mente, a constituição do Estado, mas sim a vida inteira da pólis,
na medida em que aquela a determina. E, ainda que em Atenas
não existisse, como existia em Esparta, uma disciplina que regu-
lasse o curso integral da vida dos cidadãos, o influxo da pólis,
como espírito universal, penetrava profundamente a orientação
total da vida humana; como um último reflexo daquela antiga
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Livro Terceiro
À procura do
centro divino
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Prólogo
PRÓLOGO 475
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Século IV
SÉCULO IV 483
SÉCULO IV 485
político. Não era uma receita útil para a grande massa do povo;
mas, por isso, mais profundamente a ideia se infiltrava na fanta-
sia das individualidades dirigentes no campo do espírito. Na li-
teratura do século IV deparamos com todos os matizes da reali-
zação dessa ideia, desde a admiração simplista e superficial do
princípio espartano da educação coletiva até a sua recusa abso-
luta e a sua substituição por um ideal novo e superior de for-
mação humana e de ligação do indivíduo à coletividade. Outros,
em contrapartida, não buscam o modelo da própria conduta nem
nas exóticas ideias políticas do adversário vitorioso nem num
ideal filosófico de construção pessoal. O que fazem é voltar os
olhos para o passado do seu próprio Estado, isto é, de Atenas, e
começar a pensar e a alimentar aspirações retrospectivas, de tal
modo que não raras vezes a sua vontade política presente re-
veste a forma do seu antecedente histórico. Grande parte dessas
ideias restauradoras tem caráter romântico, mas não se pode ne-
gar que a esse romantismo se mistura uma nota realista dada pela
crítica, geralmente acertada, do presente e das suas perspecti-
vas; é essa crítica que serve de ponto de partida a todos aqueles
sonhos, que vestem sempre as roupagens de uma tendência edu-
cativa, as roupagens da paideía.
Todavia, se nesse século são enfocadas de modo tão cons-
ciente as relações entre o Estado e o indivíduo, não é só por se
pretender de novo fundamentar o Estado, a partir do indivíduo
moral. Não é com menor clareza que igualmente impera a cons-
ciência de que a existência humana individual está também con-
dicionada pelo social e pelo político, ideia esta muito natural
num povo com o passado da Grécia. A educação por meio da
qual se pretendia melhorar e fortalecer o Estado constituía um
problema mais adequado que outro qualquer para trazer à cons-
ciência o condicionalismo recíproco do indivíduo e da comuni-
dade. Sob esse ponto de vista, o caráter privado de toda a ante-
rior educação de Atenas aparecia como um sistema fundamen-
talmente falso e ineficaz, que devia ceder o passo ao ideal da
educação pública, embora o próprio Estado não soubesse fazer
o mínimo uso dessa ideia. Mas a mesma ideia abriu largo cami-
nho através da filosofia, que a assimilou; e a derrocada da inde-
pendência política da cidade-estado grega veio sublinhar com
Paideia19:Cartas00 19.02.13 22:55 Página 486
SÉCULO IV 487
SÉCULO IV 489
SÉCULO IV 491
Sócrates
SÓCRATES 493
SÓCRATES 495
SÓCRATES 497
co” (pp. 283 ss.). Foi sobre esse fundo, nessa encruzilhada do
tempo, que a história colocou Sócrates. No entanto, não é por se
adotar uma atitude histórica de princípio que se exclui o equí-
voco, nem por sombras. Demonstra-o o grande número de ima-
gens de Sócrates que nos tempos modernos germinaram nesse
terreno. Em nenhum setor da história do espírito na Antiguida-
de verificam-se tantas hesitações. Por isso, é imprescindível que
comecemos pelos dados mais elementares.
O problema socrático
7. PLATÃO, Apol., 39 C.
8. Assim o interpreta acertadamente H. MAIER, op. cit., p. 106.
9. Cf. I. BRUNS, Das literarische Porträt der Griechen (Berlim, 1896),
pp. 231 ss.; R. HIRZEL, Der Dialog, I (Leipzig, 1895), p. 86.
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 499
SÓCRATES 499
10. Cf. R. HIRZEL, op. cit., pp. 2 ss., sobre o desenvolvimento anterior
do diálogo, e pp. 83 ss. sobre as formas dos diálogos socráticos e seus re-
presentantes literários.
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 501
SÓCRATES 501
13. Creio que K. von FRITZ (Rheinisches Museum, t. 80, pp. 36-38)
aduz novas e concludentes razões contra a autenticidade da Apologia de Xe-
nofonte.
14. H. MAIER, op. cit., pp. 20-27.
15. Seguindo H. MAIER (op. cit., pp. 22 ss.) e outros, aplicamos esse
nome aos dois primeiros capítulos das Memoráveis de XENOFONTE (I, 1-2).
SÓCRATES 503
SÓCRATES 505
20. Esse era o ponto de vista crítico de ZELLER no seu modo de tratar
o problema de Sócrates, em Die Philosophie der Griechen; t. II, 15, pp. 107 e
126.
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 506
SÓCRATES 507
24. Cf. principalmente a crítica de MAIER, op. cit., pp. 77-102, e TAY-
LOR, Varia Socratica (Oxford, 1911), p. 40.
25. Cf. a obra de H. MAIER, várias vezes citada, e, em sentido diame-
tralmente oposto, A. E. TAYLOR, Varia Socratica e Socrates (Edimburgo,
1932). Taylor coincide com os pontos de vista de Burnet que desenvolve e
elabora. Cf. J. BURNET, Greek Philosophy (Londres, 1924) e “Socrates”, em
Hastings Encyclopaedia of Religion and Ethics, vol. XI. Entre os que negam
o valor dos testemunhos aristotélicos conta-se também C. RITTER, Sokrates
(Tubing, 1931).
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 509
SÓCRATES 509
26. Como fontes históricas sobre o Sócrates real, H. MAIER, op. cit., pp.
104 ss., considera sobretudo os escritos “pessoais” de Platão: a Apologia e o
Críton; ao lado destes, reconhece como relatos de livre criação, mas no fun-
do fiéis à verdade, uma série de diálogos menores de Platão, tais como o La-
ques, o Cármides, o Lísis, o Íon, o Eutífron e os dois Hípias.
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 510
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Sócrates, educador
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SÓCRATES 521
vivo dos seus diálogos, que o pintou repetidas vezes com as co-
res mais amáveis. O seu meio não é o vazio, abstrato e separa-
do do tempo, dos lugares escolásticos. Sócrates move-se no mo-
vimento da escola ateniense de atletismo, o ginásio, onde cedo
se torna uma figura indispensável ao lado do ginasta e do mé-
dico52a. Isso não quer dizer que os participantes daqueles diálo-
gos famosos na cidade se enfrentassem em nudez espartana,
aliás em uso nos exercícios atléticos (ainda que frequentemente
isso acontecesse). No entanto, não era o ginásio o único palco
ocasional daqueles dramáticos torneios do pensamento, que en-
cheram a vida de Sócrates. Há uma certa analogia interior entre
o diálogo socrático e o ato de se desnudar para ser examinado
pelo médico ou pelo ginasta, antes de se lançar no combate, na
arena. Platão põe essa comparação na boca do próprio Sócra-
tes53. O ateniense daqueles tempos sentia-se mais no seu meio
no ginásio do que entre as quatro paredes da sua casa, onde
dormia e comia. Era ali, sob a transparência do céu da Grécia,
que diariamente se reuniam novos e velhos para se dedicarem
ao cultivo do corpo54. Os pedaços de lazer dos intervalos eram
dedicados à conversa. Não sabemos se era banal ou elevado o
nível médio daquelas conversas; o que é certo, porém, é que as
mais famosas escolas filosóficas do mundo, a Academia e o Li-
ceu, têm os nomes de dois famosos ginásios de Atenas. Quem
tinha para dizer ou para perguntar alguma coisa que considera-
va de interesse geral, mas para a qual não eram locais adequa-
dos nem a assembleia do povo nem o tribunal, corria ao ginásio
para dizê-la aos seus amigos e conhecidos. Era um encanto
constante a tensão espiritual, que se tinha certeza de ali encon-
trar. Para variar, frequentavam-se diversos estabelecimentos des-
se tipo, e em Atenas havia muitos ginásios grandes e pequenos,
públicos e privados55. Um visitante assíduo deles, como Sócra-
tes, cujo interesse era o homem como tal, conhecia todo mun-
do; e, sobretudo entre os jovens, era difícil aparecer uma cara
nova que não lhe despertasse logo a atenção e sobre a qual não
se informasse. Ninguém o igualava em perspicácia na observa-
ção dos passos da mocidade que ia desabrochando. Era o gran-
de conhecedor de homens, cujas perguntas certeiras serviam de
pedra de toque para descobrir todos os talentos e todas as for-
ças latentes, e a quem iam pedir conselho, para a educação dos
filhos, os cidadãos mais respeitados.
Só os banquetes se podem comparar aos ginásios, pelo seu
significado espiritual e por uma tradição antiga. É por isso que
Platão e Xenofonte situam nesses dois locais os diálogos de Só-
crates56. Todas as outras situações neles mencionadas eram mais
ou menos fortuitas, como quando Sócrates aparece mantendo
uma engenhosa conversa nos salões de Aspásia, cavaqueando
junto das lojas do mercado, onde os amigos se costumavam jun-
tar para conversar, ou intervindo na conferência de um famoso
sofista, em casa de um rico mecenas. Os ginásios eram locais
mais importantes do que quaisquer outros, pois era neles que as
pessoas se reuniam de maneira regular. À parte a sua peculiar fi-
nalidade, a intensidade do comércio espiritual que fomentavam
entre as pessoas levava a desenvolverem-se neles certas quali-
dades que constituíam o terreno mais propício a qualquer se-
menteira de novos pensamentos e aspirações. Reinava neles o
lazer e a tranquilidade. Nada de especial podia florescer neles
durante muito tempo, nem era possível lá dedicar-se aos negó-
cios. Em contrapartida, era para os problemas humanos de cará-
ter geral que a atenção se voltava. Mas não interessava apenas o
conteúdo: podia ali expandir-se, em toda a sua força flexível e
suave elasticidade, o espírito, certo de deparar com o interesse
de um círculo de ouvintes em tensão crítica. Surgiu assim uma
ginástica do pensamento que logo teve tantos partidários e ad-
miradores como a do corpo, e não tardou a ser reconhecida
como o que esta já vinha sendo havia muito: como uma nova
forma da paideía. A “dialética” socrática era uma planta indí-
gena peculiar, a antítese mais completa do método educativo
56. Sobre os banquetes como foco intelectual, cf., adiante, cap. VIII.
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 523
SÓCRATES 523
SÓCRATES 525
58. Entre os que defendem esse critério acerca da Apologia figura prin-
cipalmente Erwin WOLF, com o seu “Platos Apologie” (em Neue Philologis-
che Untersuchungen, dir. por W. JAEGER, T. VI). Com uma fina análise da
forma artística da obra, pôs em relevo, plasticamente e de modo impressio-
nante, que aquela contém uma autocaracterização de Sócrates, modelada li-
vremente por Platão.
Μου¿σαις συγκαταµειγνυ¿ς
α¸δi¿σταν συζυγι¿αν
Cf. PLATÃO, Apol., 29 D: εàωσπερ αÐν ε¹µπνε¿ω καιì οιªο¸ ¿ς τε ω̃, ου̃ µηì
, ,
παυ¿σοµαι ϕιλοσοϕωªν.
60. Em PLATÃO, Prot., 311 B ss., figura à cabeça um diálogo elênctico
de Sócrates com o jovem Hipócrates, em seguida ao qual vem o diálogo
protréptico, 313 A s.
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 526
SÓCRATES 527
com o seu corpo e com a sua fortuna, mas antes com a perfei-
ção da sua alma61.
A “filosofia” que Sócrates aqui professa não é um simples
processo teórico de pensamento: é ao mesmo tempo uma exor-
tação e uma educação. A serviço desses objetivos estão ainda o
exame e a refutação socrática de todo o saber aparente e de toda
a excelência (areté) meramente imaginária. Esse exame não é
mais que uma parte do processo total, como Sócrates o descre-
ve. Uma parte que parece ser, sem dúvida, o aspecto mais origi-
nal daquele processo. Mas, antes de penetrarmos na essência
desse dialético “exame do Homem”, que costuma ser considera-
do o essencial da filosofia socrática por encerrar o seu elemen-
to teórico mais vigoroso, devemos deter-nos nas palavras de
exortação preliminares. A comparação estabelecida entre o con-
teúdo material da vida do homem de negócios, ávido de di-
nheiro, e a superior exigência de vida proclamada por Sócrates
baseia-se na ideia da preocupação ou do cuidado consciente do
Homem em relação aos bens que mais aprecia. Sócrates exige
SÓCRATES 529
68. Erwin ROHDE (Psique, ed. F. C. E., p. 240) apenas nos sabe dizer de
Sócrates, na única passagem da sua obra em que o cita, que ele não acredi-
tava na imortalidade da alma.
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SÓCRATES 531
SÓCRATES 533
76. ARISTÓTELES (frag. 15, ed. Rose) descreve acertadamente esse tipo
παϑειªν (cf. o meu Aristóteles, pp. 178 s.). Ao contrário da religião oficial,
de experiência religiosa, característica da religião dos mistérios, como um
(δια¿ϑεσις) de ânimo.
afeta a personalidade humana e provoca uma determinada disposição
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SÓCRATES 535
SÓCRATES 537
SÓCRATES 539
84. XENOFONTE, Mem., IV, 7: ε¹δι¿δασκε δεì καιì µε¿χρι οÁτου δε¿οι εàµπειρον
Metaf., A 2, 982b, 28 ss.
86. PLATÃO, Leis, 818 A: ταυªτα δεì συ¿µπαντα ου¹χ ω¸ς α¹κριβει¿ας
85. PLATÃO, Rep., 522 C ss.
SÓCRATES 541
exame das α¹ρεται¿ (que devem ser interpretadas como virtudes cívicas,
94. XENOFONTE, Mem., IV, 6, 12. Cf. também I, 1, 16, onde, além do
SÓCRATES 543
SÓCRATES 545
SÓCRATES 547
117. XENOFONTE, Mem., II, 1, 13. οι¸ ει¹ς τηìν βασιλικηìν τε¿χνην
παιδευο¿µενοι, ηÓν δοκειªς, µοι συì (Sócrates) νοµι¿ζειν ευ¹δαιµονι¿αν ει¹ναι. A
“arte real” aparece também como objetivo da paideía socrática no diálogo
com Eutidemo, IV, 2, 11.
uma etapa importante na senda percorrida pelo herói, rumo à sua grandeza.
Cf. XENOFONTE, Mem., II, 1, 21 ss. Sobre o título e o estilo da obra de Pró-
dico, cf. XENOFONTE, Mem., II, 1, 34. Apesar do espírito moralista e so-
briamente racional dessa alegoria, ainda se nota nela uma certa compreen-
são da essência do mito de Héracles. Cf. WILAMOWITZ, Herakles, t. I, p.
101, que estabelece um paralelo entre essa obra e a história da formação do
herói no conto sobre Héracles por Heródoto, proveniente da mesma época.
119. Cf., acima, pp. 373 ss., sobre a dissolução da autoridade da lei. Na
SÓCRATES 549
SÓCRATES 551
mem autárquico. Sobre a autarquia do sábio, cf. Et. Nic., X, 7, 1177 b I. So-
bre o desenvolvimento, pelos cínicos e pelos cirenaicos, do conceito socrá-
tico da ausência de necessidade, cf. ZELLER, Philosophie der Griechen, II, 15,
p. 316, e ver H. Gomperz, op. cit., pp. 112 ss.
129. Cf. as observações de WILAMOWITZ, Euripides; Herakles, I2, pp.
41 e 102.
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SÓCRATES 553
IV, 4, 16. Cf. também III, 5, 16. Cooperação dos membros da família: II, 3; as
partes do organismo humano como exemplo de cooperação: II, 3, 18 ss.
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SÓCRATES 555
ter “convivência” (συνουσι¿α, cf. συνο¿ντες) com os homens, seja qual for a
de ser “mestre” de quem quer que seja: PLATÃO, Apol., 33 A. Limita-se a man-
sua idade, e “conversa” (διαλε¿γεσϑαι) com eles. Por isso, ao contrário dos so-
fistas, não recebe nenhum dinheiro: Apol., 33 B (cf. sobre a sua pobreza 23 C).
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144. PLATÃO, Apol., 19 D-E: ου¸δε¿ γε ειÓ τινος α¹κηκο¿ατε ω¸ς ε¹γωì ταιδευ¿ειν
gias, Pródico e Hípias: PLATÃO, Apol., 19 E.
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SÓCRATES 567
com os deuses, mas que seja injusto para com os seus seme-
lhantes e desmedido no seu ódio e fanatismo, não será verda-
deiramente piedoso171. Os estrategos Nícias e Laques ficam as-
sombrados ao verem como Sócrates lhes revela a essência da
autêntica bravura e reconhecem que nunca haviam cavado a
fundo esse conceito nem o tinham captado em toda a sua gran-
deza, nem, muito menos, o tinham conseguido encarnar em si
próprios. E o piedoso e severo Eutífron vê desmascarada a infe-
rioridade da sua piedade orgulhosa de si e cheia de fanatismo.
O que os homens chamam geralmente suas “virtudes” vem a
ser, nessa análise, um mero conglomerado dos produtos de di-
versos processos unilaterais de domesticação e, ainda por cima,
um conglomerado entre cujas partes integrantes existe uma con-
tradição moral irredutível. Sócrates é ao mesmo tempo justo e
moderado, valente e piedoso. A sua vida é combate e serviço de
Deus a um tempo. Não descuida dos deveres do culto dos deu-
ses, o que lhe permite dizer a quem só é piedoso nesse sentido
externo que há um temor de Deus mais alto do que este. Lutou
e distinguiu-se em todas as campanhas da sua pátria; isso o au-
toriza a fazer compreender aos mais altos chefes do exército
ateniense que não são as vitórias obtidas com a espada na mão
as únicas que o Homem pode alcançar. É por isso que Platão
distingue as virtudes comuns do cidadão e a elevada perfeição
filosófica172. Sócrates é para ele a personificação desse super-ho-
mem moral; o que Platão diria, no entanto, era que só ele pos-
suía a “verdadeira” areté humana.
Se examinarmos a paideía socrática da narração de Xeno-
fonte, como fizemos acima para lançar um primeiro olhar na va-
riedade do seu conteúdo173, ela nos parecerá formada por uma
multidão de problemas práticos concretos da vida humana. Se,
ao contrário, a encararmos à luz da concepção platônica, reve-
SÓCRATES 569
consciência da situação de fato (ταì καϑ’ εàκαστα ε¹ν οιª¸ς η¿ πραξις). Segundo
conduta cujo princípio reside na própria pessoa que age e em que esta tem
em cada caso, mas sobre o “porquê” (ου ª¸ εàνεκα) que o leva a agir.
PLATÃO, Górg., 467 C. A vontade não versa sobre aquilo que o homem faz
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182. Cf. a sutil valorização desse diálogo feita por R. HARDER em Pla-
tos Kriton (Berlim, 1934), p. 66.
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SÓCRATES 579
e foi ali ou nas suas viagens que escreveu as suas primeiras obras
socráticas. Devia sentir dúvidas quanto ao próprio regresso à pá-
tria. Isto instila na narração que ele faz da perseverança de Só-
crates, até o momento de este cumprir o seu último dever de ci-
dadão – beber o cálice da cicuta –, um surdo acento pessoal.
Sócrates é um dos últimos cidadãos no sentido da antiga
pólis grega, e ao mesmo tempo a encarnação e suprema exalta-
ção da nova forma da individualidade moral e espiritual. Ambas
as coisas nele unidas sem compromissos. A primeira aponta para
um grande passado, a segunda para o futuro. É, de fato, um fe-
nômeno único e peculiar na história do espírito grego198. É da
comunidade e da dualidade de aspirações desses dois elemen-
tos integrantes do seu ser que dimana a sua ideia ético-política
da educação. É isso que lhe dá a sua profunda tensão interior, o
realismo do seu ponto de partida e o idealismo da sua meta fi-
nal. Aparece pela primeira vez no Ocidente o problema Estado-
-Igreja, que se irá arrastar ao longo dos séculos posteriores. É que
esse problema, como prova o caso de Sócrates, não é de modo
nenhum um problema especificamente cristão. Não está vincu-
lado a uma organização eclesiástica nem a uma fé revelada, mas
surge também, numa fase correspondente, no desenvolvimento
do “homem natural” e da sua “cultura”. Não aparece aqui como
conflito entre duas formas comunitárias conscientes da sua for-
ça, mas antes como a tensão entre a consciência que o indiví-
duo tem de pertencer a uma comunidade terrena e a sua cons-
ciência de estar interior e diretamente unido a Deus. Esse Deus,
a serviço do qual Sócrates realiza a sua obra de educador, é um
Deus diferente dos “deuses em que a pólis acreditava”. Se era
principalmente nesse ponto que a acusação contra Sócrates in-
198. Cf., acima, pp. 511 ss. Sócrates encontra-se profundamente arrai-
gado no ser ateniense e na comunidade dos seus concidadãos, aos quais di-
rige, em primeiro lugar, a sua mensagem (cf., acima, p. 526). E, apesar de
tudo, tem de implorar aos juízes que permitam que lhes fale na sua lingua-
gem e não na deles. Compara-se aqui diretamente com um estrangeiro, ao
qual, obrigado a defender-se perante um tribunal ateniense, não se negaria
o direito de usar a própria língua.
Paideia20:Cartas00 19.02.13 22:55 Página 581
SÓCRATES 581
zindo para a sua época esta figura que já pairava acima do tem-
po, e desenhou os traços nítidos e firmes da sua personalidade
histórica concreta.
É certo que o problema apresentado por Platão à com-
preensão da posteridade revelava-se como um dos mais difíceis
colocados pelos escritos da Antiguidade. Até agora tentara-se re-
construir a sua filosofia à maneira do século XVIII, esforçando-se
por abstrair dos seus diálogos o conteúdo dogmático, quando o
tinham. Depois, com base nas teses assim estabelecidas e to-
mando como modelo as filosofias posteriores, procurava-se pe-
netrar na metafísica e na ética platônicas, e edificar com todas
essas disciplinas um sistema, já que só se concebia a existência
de um pensador sob essa forma. O mérito de Schleiermacher
consiste em ter visto bem, com certeiro golpe de vista que os ro-
mânticos tinham para desentranharem a forma como expressão
da individualidade espiritual, que aquilo que a filosofia platôni-
ca tinha de característico era precisamente não tender para a
forma de um sistema fechado, mas sim manifestar-se por meio
do diálogo filosófico inquisitivo. Schleiermacher não ignorava,
ao mesmo tempo, a diferença de grau existente entre os diver-
sos diálogos, quanto ao seu rendimento de conteúdo constituti-
vo. É que o movimento da dialética platônica é aproximação de
uma meta ideal absoluta. Fiel a esse critério, dividiu as obras de
Platão em obras de caráter filosófico, sobretudo construtivo ou
preparatório, e em obras de caráter formal. E, ainda que deste
modo estabelecesse um nexo interno dos diversos diálogos en-
tre si e com um todo ideal que se manifestava, de modo mais ou
menos completo, nos seus traços gerais, não deixava de julgar
que o que caracterizava Platão era o fato de lhe interessar mais
expor a filosofia e a sua essência através do movimento vivo da
dialética do que sob a forma de um sistema dogmático acabado.
Ao mesmo tempo, Schleiermacher captava nas diversas obras a
atitude do autor em face dos seus contemporâneos e adversá-
rios, e mostrava como o pensamento de Platão se entrelaçava
de múltiplas maneiras com a vida filosófica da época. E era as-
sim que do problema repleto de hipóteses, colocado ao exege-
ta pelas obras de Platão, brotava um conceito de interpretação
novo e mais elevado do que aquele que até ali servira de base
Paideia21:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 586
14. Cf. Apol., 36 C, em que Sócrates resume de novo a sua ação total
numa breve fórmula sintética. Nessa passagem, referindo-se a si mesmo, diz
que procurava convencer todo mundo a não se preocupar com os próprios
não velar mais pelos assuntos da pólis do que pela própria pólis (αυìτηªς της
assuntos antes de ter procurado ser o melhor e o mais sábio possível, e a
πο¿λεως). Com essa distinção que se estabelece entre o cuidado pelos as-
suntos da pólis e o cuidado pela própria pólis, para conseguir que seja a me-
lhor e a mais sábia possível, foca-se ao mesmo tempo a diferença funda-
mental que existia entre a política em sentido socrático e a política em sen-
tido comum. A referência à missão de Sócrates relativa à pólis, nós a encon-
tramos também em PLATÃO, Apol., 30 E, 31 A etc. Cf., acima, p. 540.
15. Críton, 50 A.
16. Laques, 179 C ss. O tema e a sua relação com a paideía em Laques,
180 C, 184 E, 185 A e E, 186 D, 187 C, 189 D, 200 C.
17. Cárm., 161 B (cf. 161 C).
Paideia22:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 607
dicina é comparada à “ciência do bem” (η¸ περιì τοì α¹γαϑοìν εìπιστη¿µν), mas
citadas conjuntamente, como no Górgias, na República e no Político; a me-
sujeita a esta.
21. Prot., 319 A. O estudo da essência dessa tékhne política conduz
também diretamente, no Protágoras, à investigação das quatro virtudes cí-
vicas.
Paideia22:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 608
22. Isso não foi levado em conta por WILAMOWITZ, vol. I, pp. 122 ss.,
na sua imagem de Platão como poeta.
Paideia22:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 609
uma das suas obras, Platão diz tudo o que sabe e pensa23. O efei-
to incomparavelmente profundo que até o menor diálogo exer-
ce sobre o leitor obedece precisamente a que a investigação de
um problema isolado e delimitado, que nele se desenvolve em
conceitos exatos e que por si parece algo de sóbrio e modesto,
aponta sempre, por cima dessa investigação, para o amplo hori-
zonte filosófico no qual se projeta.
Já o próprio Sócrates considerava uma missão política a
educação na areté que ele preconizava, pois aquilo com que ele
se preocupava era a “virtude cívica”. Nesse sentido, Platão não
precisava dar feição nova à dialética de Sócrates; ao contrário,
quando desde as suas primeiras obras encarava a sua tarefa mo-
ral de educador como um trabalho de edificação do próprio Es-
tado, não fazia mais do que seguir diretamente a senda da con-
cepção do mestre. Na Apologia, esse labor é apresentado como
um serviço prestado à cidade pátria de Atenas24, e no Górgias é
igualmente a grandeza de Sócrates como estadista e educador
que nos dá a pauta pela qual se devem medir as realizações dos
políticos de Atenas25. Platão, porém, segundo o seu próprio tes-
temunho exarado na Carta VII – que tem a esse respeito um va-
lor inestimável para nós –, já nessa primeira fase havia chegado
à conclusão radical de que as aspirações de Sócrates não se po-
diam vir a realizar plenamente em nenhum dos Estados existen-
tes26. Platão e seus irmãos Gláucon e Adimanto, que ele, de
modo muito significativo, apresenta precisamente na República
como discípulos e interlocutores de Sócrates, pertenciam eviden-
temente, como Crítias e Alcibíades, àquela juventude da antiga
nobreza ática que, de acordo com as tradições familiares, sentia-
-se chamada a dirigir o Estado e buscava em Sócrates o mestre
da virtude política. Era de bom grado que os jovens aristocratas,
criados num ambiente de crítica severa à forma da democracia
vigente em Atenas, davam ouvidos a uma mensagem que, como
para o qual ele vivia e agia era uma ordem ideal puramente éti-
ca31. E essa ordem só se podia impor por si própria. Platão tinha
de si o autêntico instinto político, e a nova feição imprimida por
Sócrates ao seu pensamento e à sua vontade não foi nunca tal
que chegasse a embotar o seu sentido político inato. Sócrates
absteve-se de agir na vida política, porque a sua capacidade para
ajudar o Estado assentava num campo diferente32. Platão afas-
tou-se do Estado porque compreendeu que não dispunha do
poder necessário para pôr em prática o que a sua consciência
lhe ditava como sendo bom33. Mas a sua aspiração continuou
sempre a visar o objetivo de realizar de qualquer modo o me-
lhor dos Estados e conjugar duas coisas que na Terra estão ge-
ralmente divorciadas: o poder e a sabedoria34. Foi isto e a sua
experiência vivida do choque de Sócrates com o Estado o que
cedo lhe inspirou a ideia política fundamental da sua vida: a de
que nem o Estado nem a vida da sociedade humana melhora-
riam, enquanto os filósofos não se fizessem governantes ou os
governantes não se convertessem em filósofos.
Segundo o testemunho da Carta sétima, em que Platão, já
em idade avançada, descreve a sua própria evolução político-fi-
losófica, foi ainda antes de empreender a sua primeira viagem ao
Sul da Sicília, isto é, antes do começo da década de 80 do sécu-
lo IV, que ele foi levado a abraçar esta teoria e à formulou35. Esse
30. Carta VII, 325 E, 326 B. Cf. a famosa passagem em Rep., 473 D. Que
essa concepção não é precisamente resultado da sua evolução posterior,
mas sim que já vivia nele desde o princípio, prova-o a Apol., 31 E, e a reca-
pitulação dos mesmos pontos em Apol., 36 B.
31. Apol., 36 C.
32. Apol., 36 B.
33. Carta VII, 325 E ss.
34. Carta VII, 325 E, 326 A. Na República, 499 C, insiste também na
possibilidade de chegar a realizar o melhor Estado possível, ainda que de
momento faltasse o kairós para ele.
35. Carta VII, 326 B.
Paideia22:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 612
mon, vol. IV, p. 9, afirmei que essas palavras da Carta VII, 326 A, λε¿γειϖ τε
39. Na minha nota crítica sobre o livro de Taylor, publicada em Gno-
η¹ναγκα¿σθην etc., que TAYLOR, Plato, p. 20, aplica a toda a República, de-
Paideia22:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 614
51. Eutífron, 6 E. Cf. a lista de exemplos das palavras eîdos e idéa que
CRITER dá em Neue Untersuchungen über Platon (Munique, 1910), pp.
228-326.
Paideia22:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 621
O Protágoras
O PROTÁGORAS 625
καλοιì κα¹γαϑοι¿ com Protágoras estudam só ε¹πιì παιδει¿α (321 B), quer dizer,
para a própria educação. ¸
Paideia23:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 627
O PROTÁGORAS 627
O PROTÁGORAS 629
rece contraditório que Platão, por sua vez fundador de uma es-
cola, manifeste-se tão violentamente contra o profissionalismo
O PROTÁGORAS 631
O PROTÁGORAS 633
39. Em Prot., 319 C 7, Sócrates chama de ταì ε¹ν τε¿χνη οÓντα o campo
do acessível à formação intelectual. Cf. também Górgias, 455 B, e Laques,
185 B. A característica desse tipo de saber e de cultura é a existência de pro-
fessores e exames. Cf. Górgias, 313 B E ss.
40. É a objeção principal que Sócrates alega antes e depois do discur-
so de Protágoras: Prot., 319 B 2 e 328 E.
Paideia23:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 635
O PROTÁGORAS 635
O PROTÁGORAS 637
O PROTÁGORAS 639
O PROTÁGORAS 641
como as mais poderosas de todas as forças humanas, esse homem sou eu.
Mas vê-se claramente que aquilo que o leva a admitir as palavras de Só-
crates não é tanto uma certeza interior, como o medo da vergonha que
significaria para ele, representante da paideía, duvidar da força do saber.
Sócrates, que se apercebe muito bem disso, utiliza-o para enredar o ad-
333 C; Górg., 461 B e sobretudo 482 D ss., em que Calicles põe a desco-
berto esse “ardil” de Sócrates.
Paideia23:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 642
O PROTÁGORAS 643
faz com que Protágoras concorde mais facilmente, pois, de outro modo, te-
meroso do choque com a sociedade, seria certamente levado a responder no
próprio nome.
69. Prot., 353 C ss.
O PROTÁGORAS 645
O PROTÁGORAS 647
tido socrático, como erro em relação aos verdadeiros valores (ε¹ψευªσϑαι περιì
93. Prot., 361 B 2. Cf. 358 C 5, em que a “ignorância” é definida, em sen-
O PROTÁGORAS 649
crates não designa como fim em si, mas apenas como meio para
ilustrar a importância do saber para a reta conduta do Homem,
partindo da suposição de ser certa a opinião popular que consi-
96. Prot., 361 C. Até que ponto esse problema agitou o pensamento dos
contemporâneos de Sócrates é o que revela não só o testemunho de um so-
fista da mesma época, o autor das chamadas Dialexeis (cf. o cap. 6 dessa
obra em DIELS, Vorsokratiker, t. II, 5.ª ed., pp. 405 ss.), mas também, por
exemplo, uma discussão como a prova em As suplicantes de EURÍPIDES (v.
911-917), segundo a qual a virtude da valentia pode ser ensinada exatamen-
te como se ensina uma criança a falar, a escutar e a dizer o que não sabe.
Daqui Eurípides tira a conclusão de que tudo depende de se empregar ou
não a paideía adequada.
Paideia23:Cartas00 19.02.13 22:56 Página 651
O PROTÁGORAS 651
ciência (τε¿χνη καιì εìπιστηµη) seja esta arte da medida, Sócrates a reserva,
97. A investigação a fundo sobre que espécie de conhecimento e de
O Górgias
O GÓRGIAS 653
O GÓRGIAS 655
O GÓRGIAS 657
22. A “arte da medida” encontra-se em Prot., 356 D-357 B. Isso vem li-
mitar a pretensão apresentada em Prot., 319 A, da paideía de Protágoras a
ser a “tékhne política”.
23. Cf. a tese de doutoramento por mim sugerida de F. JEFFRÉ, Der
Begriff der Techne bei Plato (1922). A tese está inédita, mas o manuscrito exis-
te na biblioteca da Universidade de Kiel.
24. Górg., 462 B-D.
Paideia24:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 659
O GÓRGIAS 659
γον πρα¿γµα que mereça ser chamado tékhne. Nessa definição dos traços fun-
damentais que determinam a estrutura de uma tékhne, é importante não
perder de vista que toda a tékhne tende para o melhor; por conseguinte, in-
dica a sua relação em ordem a um valor e, em última instância, ao mais alto
de todos os valores. Serve para a realização do valor supremo no campo da
realidade sobre a qual incidem as suas atividades. O modelo que Platão
apresenta nessa análise da essência de uma verdadeira tékhne é a Medicina.
O GÓRGIAS 661
O GÓRGIAS 663
37. Em Górg., 466 B 11 ss., toma-se como base essa definição do con-
o conceito de poder nesse sentido era δυ¿ναµις, µε¿γα δυ¿νασϑαι. Cf. 466 B 4,
ceito do poder por Polo, que Sócrates refuta. O termo grego para expressar
O GÓRGIAS 665
com o contrário à natureza (παραì ϕυ¿σιν) é Rep., 444 C-E. A areté é a saúde
da alma; é portanto o estado normal, a verdadeira natureza do Homem. É
nesse ponto decisiva a concepção médica que Platão possui da natureza
como uma realidade que traz em si mesma a própria norma.
49. Górg., 466 C.
50. Sobre o que se segue, cf. Górg., 466 B ss., especialmente 467 A.
Paideia24:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 666
no discurso da paz, 33. Cf., adiante, liv. IV. E foi tomada do Górgias e da Re-
pública de Platão, com toda a argumentação da parte 31-35 desse discurso.
52. Górg., 472 E.
O GÓRGIAS 667
O GÓRGIAS 669
O GÓRGIAS 671
pouco viril e como servil, uma vez que o escravo não se pode
defender a si próprio. No conceito de Calicles, poder defender-
-se a si próprio constitui o critério do verdadeiro homem e uma
espécie de justificação ética da tendência ao poder, como se o
Estado primitivo se prolongasse até o presente67. Mas, enquanto
o forte usa por natureza a sua força e se faz valer, a lei cria um
estado de coisas artificial que o embarga no uso espontâneo da
sua força. As leis, a massa é quem faz, quer dizer, os fracos, que
são os que concedem louvores e censuras segundo o padrão
das suas conveniências. Por meio das leis do Estado e da moral
vigente, exercem contra os fortes, que por natureza querem ter
mais que os fracos, uma política de intimidação, e declaram in-
justa e perniciosa aquela pleonexía. O ideal de igualdade é o
ideal da massa, que se dá por satisfeita quando ninguém tem
mais do que os outros68. E Calicles, invocando os exemplos da
natureza e da história, declara como lei da natureza o forte usar
o seu poder em relação aos fracos69. Impede-o, porém, a lei dos
homens; põe entraves ao forte, infunde-os nele desde a infância
por meio da cultura e do ensino e, para dominá-lo, inculca-lhe
ideais que favorecem o fraco. Mas, quando entra em cena um
homem verdadeiramente forte, pisa em todo aquele amontoado
de letras que são as nossas leis e instituições contrárias à natu-
reza, e imediatamente volta a brilhar a chama do direito natural.
Calicles cita a frase de Píndaro sobre o nómos, rei de todos os
mortais e imortais, que com mão vigorosa eleva à categoria de
direito a suprema violência, como Héracles que, ao roubar os
bois de Gerião, demonstrou que os bens do fraco são por natu-
reza presa do fone. Interpreta, pois, o nómos da poesia pindári-
ca no sentido da sua “lei da natureza”70.
67. Quem não puder defender-se (αυ¹το¿ς αυ¸τωª βοηϑειªν) quando so-
¸ B. Mais adiante, 485
frer uma injustiça, mais lhe valerá morrer. Cf. Górg., 483
C 5, vê-se que a capacidade do forte para defender-se é a suma e compên-
dio da liberdade para Calicles (cf., adiante, nota 77).
68. Górg., 483 B-C.
69. Górg., 483 C 8-D. Nessa época racional, o exemplo da experiência
aparece ocupando o lugar do paradigma mítico da antiga poesia parenética.
70. Górg., 483 E-484 C. Sobre a teoria sofística do direito do mais for-
te, cf. A. MENZEL, Kallikles (1923).
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O GÓRGIAS 673
reza, Calicles coincide com o sofista Antifonte e com a sua teoria do nómos
e da phýsis. O sofista Hípias, em PLATÃO, Prot., 337 C, diz também que a lei
é o tirano do homem. É certo que nenhum desses dois sofistas faz derivar
daqui o direito do mais forte, como Calicles, mas orientam-se na direção
contrária. Cf., acima, pp. 379 ss.
73. Górg., 484 C.
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O GÓRGIAS 675
tado, sob a forma de que o agradável é o moralmente bom (ταì η¿δεìα καλαì),
a ilha de Melos, a exporem o princípio do natural egoísmo de poder do Es-
O GÓRGIAS 677
O GÓRGIAS 679
95. Fédon, 69 A.
96. Górg., 498 D.
tes virtudes (α¹ρεται¿) possuíam cada qual uma essência própria (ιÓδιος ου¹σι¿α)
97. Já em Prot., 349 B, tinha colocado o problema sobre se as diferen-
ou designavam uma única coisa (ε¹πι¹ ε¸νιì πρα¿γµατι¿ ε¹στιν). Este εàν πρα¿γµα,
ου¹σι§α comum é (como se assinala em Górg., 499 A) o Bem (τοì α¹γαϑο¿ν) que
constitui o télos de toda a vontade e de toda a conduta humanas.
98. Górg., 451-0.
99. Górg., 462 C, 463 B.
100. Górg., 500 A.
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O GÓRGIAS 681
ferência para pôr ordem (τα¿ξις) no seu objeto, ou seja, na alma humana, é o
107. Górg., 503 E-505 B. O eîdos, que serve ao estadista de ponto de re-
O GÓRGIAS 683
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O GÓRGIAS 689
próprio eu, é o contrário daquilo que Calicles ¸ entende pela força que salva
o eu físico; cf., acima, p. 671. Se o saber de Sócrates, idêntico à própria are-
té, constitui um meio de defender-se a si próprio (num sentido elevado do
eu), compreendemos, a partir daí, por que é que Sócrates insiste, já no Pro-
curar o Homem e lhe devolver a saúde. Cf., adiante, liv. IV, cap. I, nota 11.
Paideia24:Cartas00 19.02.13 22:54 Página 691
O GÓRGIAS 691
144. Górg., 513 C. Platão chama a isso o efeito habitual (τοì τωª ν πολλωª ν
πα¿ϑος) da mensagem socrática.
145. Cf., acima, p. 526.
146. Górg., 523 A ss.
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148. Górg., 523 E: αυ¹τηª τηª ψυχηª αυ¹τηìν τηìν ψυχηìν ϑεωρουªντα. Os
orfismo a maior parte da filosofia de Platão.
O GÓRGIAS 693
O GÓRGIAS 695
O GÓRGIAS 697
O GÓRGIAS 699
O GÓRGIAS 701
modo de ver de Platão, o Estado não pode ficar para trás em face
desta evolução moral e tem de encetar o caminho de se conver-
ter em educador e médico de almas ou então resignar-se, caso
não queira assumir esta missão, a ser considerado um organis-
mo degenerado e indigno da sua autoridade. No Górgias de Pla-
tão põe-se em relevo a decisão de sacrificar a esta missão de
educador moral todas as outras funções que constituem a vida
do Estado.
Contudo, além da elevada concepção tradicional da impor-
tância da pólis para a vida do indivíduo, havia ainda outro moti-
vo que determinava esta nova e peculiar atitude de Platão em
face do Estado. Esse segundo motivo residia na própria teoria
socrática da virtude. Desde o momento em que Platão, coinci-
dindo com Sócrates, baseia a conduta reta do Homem no co-
nhecimento dos valores supremos, a realização desses valores
deixa de ser tarefa das meras opiniões e sentimentos subjetivos
e se converte em missão do supremo conhecimento a que o es-
pírito humano se pode erguer. O próprio Sócrates patenteara,
com a irônica confissão da sua ignorância, que o conhecimento
do Bem a que aspirava não estava ao alcance de todas as pes-
soas. Por conseguinte, prestar justiça à importância da liberdade
perante a tradição, personificada em Sócrates, não é interpretá-
-la no sentido moderno de independência recém-conquistada da
consciência pessoal. Ao encarar o conceito desse saber socráti-
co no sentido estrito da sua “tékhne política”, Platão acentua do
modo mais enérgico o seu caráter objetivo. Longe de se opor ao
saber profissional, é deste que ele tira o seu ideal. Não é um sa-
ber acessível à massa, mas sim matéria para o conhecimento fi-
losófico supremo. É precisamente ao chegar ao ponto da evolu-
ção em que esperamos deparar com o moderno conceito de
consciência pessoal e de livre decisão moral do indivíduo, que
nós vemos esse conceito ser de novo eliminado e em seu lugar
instaurada uma verdade filosófica objetiva que reivindica para si
o direito de dominar toda a vida da comunidade humana e tam-
bém, portanto, a do indivíduo. Segundo Platão, se porventura a
ciência socrática existe, é só dentro do âmbito da vida de uma
nova comunidade, por ele representada, à maneira tradicional,
como civitas, que ela pode desenvolver a sua plena eficácia.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 702
O Mênon
O MÊNON 703
1. Prot., 357 B.
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2. Mên., 70 A.
3. Mên., 71 A. Do ponto de vista científico, essa ordem aparece como
a única lógica e evidente; mas os antigos poetas estavam muito longe de
apresentar o problema da essência da areté sob essa forma tão geral, mesmo
quando pensavam que deviam dar preferência a uma areté sobre todas as
outras, como faziam Tirceu, Teógnis e Xenófanes. Quando Sócrates condi-
ciona a aquisição da areté à solução do problema da sua essência, ou seja,
a um difícil e complexo processo intelectual, isso significa que a areté passa
a ser algo problemático para ele e para a sua época.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 705
O MÊNON 705
4. Mên., 71 D-E.
O MÊNON 707
Platão fala, não é outra coisa senão essa concepção do bem “em
O MÊNON 709
O MÊNON 711
28. Mên., 74 E. O círculo não é figura em grau mais alto (ου¸δεìν µαλ
ª λον)
27. Mên., 74D.
31. Mên., 74 B.
32. Sobre o método da hipótese, cf. Mên., 86 E-87 A. Também no Pro-
tágoras se tinha demonstrado que, se a areté constituía um saber, tinha de
ser necessariamente suscetível de ensinamento.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 713
O MÊNON 713
36. Mên., 86 B.
37. É isto a queda, no Fédon.
37a. Cf., adiante, pp. 904 s.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 715
O MÊNON 715
38. Mên., 80 A.
39. Mên., 80 C.
39a. Mên., 84 C.
39b. Mên., 81 C, 81 D, 81 E, 82 B, 82 E, 84 A, 85 D, 86 B.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 716
40. Mên., 85 C, 86 B.
41. Mên., 86 B-C. A procura da verdade aparece aqui não só como a
verdadeira essência da “filosofia” socrática, mas também como a essência da
natureza humana em geral.
42. Mên., 84 C 6.
O MÊNON 717
46. Mên., 86 C 5.
47. Cf. acima, p. 702.
48. Mên., 78 B-C.
49. Mên., 78 D ss.
50. Mên., 79 A-B.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 718
51. Mên., 87 B.
52. Mên., 87 D ss.
53. Mên., 88 C 5.
54. Rep., 618 C. Nós “devemos pôr de lado todas as outras espécies de
nhecimento (ει¹δε¿ναι) que nos torna capazes de fazer a reta opção entre o
conhecimento e escolher esta” que ele descreve em 618 C 8-E 4 como o co-
O MÊNON 719
and ϑει¿α τυ¿χη down to and including Plato (Chicago, 1940), em que é ci-
tada também a bibliografia anterior. Cf. ainda, adiante, pp. 857 s.
59. Mên., 98 A.
60. Prot., 361 B. Cf., acima, p. 650.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 720
O MÊNON 721
62. Fédon, 64 B.
63. Fédon, 67 C, 83 A.
64. Fédon, 85 B.
Paideia25:Cartas00 19.02.13 22:53 Página 722
O Banquete
Éros
ciona como meta (τε¿λος) de todos os atos o bem, e define este como aquilo
5. Lísis, 219 C-D. A formulação lembra Górg., 499 E, onde Platão men-
O BANQUETE 725
O BANQUETE 727
os banquetes o lugar para µνηµοσυ¸νη α¹µϕ’ α¹ρετηªς, para manter viva a lem-
8. XENÓFANES, frag. 1 Diehl, e acima, pp. 215 s. O poeta diz que são
mes de Problemas das syssitias. As Leis reais (νο¿µοι βασιλικοι¿), que ATE-
(citadas também com o título de Sobre as syssitias ou simpósios) e três volu-
NEU, I, 3 ss., menciona juntamente com estas, são, sem dúvida alguma, as
O BANQUETE 729
O BANQUETE 731
178 D.
24. Banq., 184 D-E. Cf. os conceitos de areté e da paideusis como meta
O BANQUETE 733
por isso que Pausânias acredita que, com a sua interpretação dos
imponderáveis políticos e éticos, conseguirá fazer compreender
melhor à culta Atenas o seu éros pedagógico idealizado.
Tem a sua importância o fato de Pausânias não considerar
Atenas separadamente, mas sim em união com Esparta. A rigo-
rosa Esparta parece ser um testemunho muito valioso em ques-
tão de moral. No entanto, o seu testemunho tem na realidade
um valor muito duvidoso, pois a opinião defendida por Pausâ-
nias procede essencialmente da própria Esparta, como também
acontece com a prática da pederastia como tal. Esse costume,
derivado da vida nos acampamentos militares da época das mi-
grações das tribos – época muito mais próxima entre os dórios
que entre os demais gregos e que se prolongava no modo de
vida da casta guerreira espartana –, fora-se transplantando aos
tempos subsequentes e, embora se tivesse estendido também a
outras regiões da Grécia, era Esparta que no mundo helênico
continuava a ser a sua sede mais importante. Quando Esparta
caiu e a sua influência específica desapareceu, o que sucedeu
pouco depois da época em que nasceu o Banquete, a pederas-
tia declinou rapidamente, pelo menos como ideal ético, e só
perdurou nos séculos posteriores da Antiguidade como prática
viciosa e desprezível dos cinaedi. Na Ética e na Política de Aris-
tóteles já não desempenha nenhum papel positivo, e o velho
Platão das Leis repudia-a pura e simplesmente como contrária à
natureza27. O ponto de vista da história comparada que Pausâ-
nias segue no seu discurso revela que o Banquete é uma espé-
cie de marco na linha divisória entre a sensibilidade da Grécia
antiga e a da Grécia posterior. A Platão, acontece-lhe com o éros
o mesmo que com a pólis e com a fé da velha Grécia, na qual se
baseava: como poucos espíritos daquela época de transição,
sente de maneira forte e pura todas aquelas ideias, mas transmi-
te ao novo mundo, em cujo centro metafísico a projeta, apenas
a imagem transfigurada da essência ideal delas. O compromisso
para “conciliar” o antigo com o novo aparece débil demais. Pla-
tão não pode parar no conceito do éros de Pausânias.
O BANQUETE 735
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O BANQUETE 743
tão opõe, por conseguinte, uma imagem que tira os seus traços
da essência do amante58. Ao ser imóvel, que em si mesmo re-
pousa, perfeito e bem-aventurado, opõe ele o que eternamente
anseia e jamais repousa, numa luta incessante pela sua perfei-
ção e felicidade eterna.
Com isso, Diotima deixou de examinar a natureza do éros
para passar à análise da sua utilidade para o Homem59, embora
já se deixe ver claramente que essa utilidade não se deve preo-
cupar com nenhum tipo de efeitos sociais, como os que em par-
te os discursos dos outros convidados atribuíam a Eros, por
exemplo, no incitamento ao amor honesto e ao sentimento do
pudor (Fedro), ou na tendência do amante a lutar pela educa-
ção do amado (Pausânias). Embora não sejam falsas, essas ob-
servações não esgotam o problema, como em seguida veremos.
Diotima explica a ânsia de beleza (que segundo já vimos cons-
tituía o éros) de um modo genuinamente socrático, como a as-
piração do Homem à felicidade, ou eudaimonía60. É a ela que
deve ser referido todo o anseio da nossa natureza que seja forte
e profundamente enraizado em nós, e é nesse sentido que ele
se deve orientar e modelar com toda a consciência. Implica a re-
ferência e a esperança de uma derradeira posse suprema, de um
bem perfeito, pois é sabido que, segundo Sócrates, toda a von-
tade humana tende, de per si, necessariamente ao bem. Dessa
forma, de um simples caso específico da vontade, o éros passa a
ser a expressão mais visível e mais convincente do que constitui
o dado mais fundamental de toda a ética platônica, a saber: que
o Homem nunca pode desejar o que não considera seu bem. O
fato de que, apesar de tudo, a linguagem não chame de éros ou
erân toda vontade, mas reserve aquele nome e aquele verbo
para exprimir certos anseios, tem, segundo Platão, o seu parale-
lo em outras palavras, como poíesis, “poesia”, a qual, embora
signifique apenas “criação”, foi no entanto reservada pelo uso
para um determinado tipo de atividade criadora. Na realidade,
essa nova consciência de quanto há de arbitrário nessa “delimi-
63. Banq., 206 A: εãοτιν αäρα ο¸ εãρως τουª τοì α¹γαϑοìν αυ¸τωª ει¹ναι α¹ει¿.
62. Banq., 205 E.
O BANQUETE 745
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O BANQUETE 749
O BANQUETE 751
98. Esse último passo tinha sido preparado pelo discurso de Diotima,
O BANQUETE 753
105. Alcibíades encarna o tipo que melhor podia servir a Platão para
ilustrar que era aquele tipo que realmente Sócrates queria: é o jovem de as-
contudo preocupar-se consigo mesmo (α¹µελειª), embora isso lhe fosse tão ne-
pirações geniais que toma nas suas mãos os assuntos dos atenienses, sem
A República
lntrodução
A REPÚBLICA – I 757
A REPÚBLICA – I 759
A REPÚBLICA – I 761
exigia entre outras coisas uma educação igual para todos os ci-
dadãos, vendo nisso o vínculo comum que asseguraria a coesão
interna da comunidade16. Era o problema da virtude cívica e da
autoridade das leis do Estado o que um sofista desconhecido,
que escrevia depois de terminada a guerra do Peloponeso, co-
locava no centro de uma obra dedicada à reconstrução do Esta-
do17. O seu ponto de vista difere muito daquele da República de
Platão, pois encara tudo pelo prisma da economia, até mesmo o
problema da moral e da autoridade do Estado. Segundo o seu
modo de ver, é desses fatores que dependem a confiança e o
crédito tanto no interior como nas relações com os súditos de
outros Estados; e a incapacidade do Estado para impor pela sua
própria força esse tipo de autoridade conduz à tirania. Como se
vê, este autor orienta-se fundamentalmente para fins práticos que
de antemão julga sólidos, e que deviam corresponder essencial-
mente às ideias imperantes nas democracias gregas, ao findar
aquela guerra devastadora. Essa obra é, contudo, significativa,
pois nos indica o ambiente em que surgiu a teoria de Platão so-
bre o Estado perfeito.
Platão não se limita a dar conselhos ao Estado a partir da
premissa de uma determinada forma de Governo ou, como os
sofistas, a estabelecer polêmica sobre o valor das diferentes for-
mas de Estado18, mas aborda o assunto de modo radical, toman-
do como ponto de partida o problema genérico da justiça. A
sinfonia da República começa, no mesmo plano dos anteriores
diálogos platônicos, com o tema socrático da areté, já familiar
para nós. A princípio não nos diz nada do Estado, como já na-
queles nada nos dizia. Aparentemente, Sócrates parte novamen-
te do exame de uma virtude concreta, mas esta tem um fundo
A REPÚBLICA – I 763
e ϕυ¿σει. Nela se opõe o que é justo por natureza ao que só o é por obra da¸
convenção humana. Cf., acima, pp. 377-82.
23. Cf., acima, pp. 671 s.
24. Cf., acima, pp. 662-3.
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A REPÚBLICA – I 767
A REPÚBLICA – I 769
a sua tarefa própria (τα¿ ε¸αυτουª πρα¿ττειν), está para Platão rela-
Esse princípio, de acordo com o qual cada um tem de executar
A REPÚBLICA – I 771
guerreiro ser um bom guardião dos seus, a sua alma tem de reu-
nir, como os bons cães, duas qualidades aparentemente contra-
ditórias: doçura para com os seus e agressividade contra os es-
tranhos. E a ironia de Platão vê nessa qualidade um traço filosó-
fico, já que tanto os cães como os “guardiões” avaliam a dife-
rença entre as pessoas conhecidas e as desconhecidas, como
critério do que julgam seu e do que reputam estranho51.
Após essa seleção, é o problema da educação, da paideía
dos “guardiões”, que Platão aborda52. Esse ponto, ao ser desen-
volvido por ele, adquire as proporções de um extenso estudo,
que logo desemboca em investigações ainda mais extensas, so-
bre a educação da mulher e dos governantes no Estado perfei-
to. Platão fundamenta o seu minucioso tratamento da educação
dos “guardiões”, afirmando que assim ilustrará o tema sobre o
qual incide a investigação fundamental, ou seja, a posição da jus-
tiça e da injustiça dentro do Estado, afirmação à qual o seu jo-
vem interlocutor dá caloroso assentimento. Todavia, ainda que
não ponhamos em dúvida essa utilidade, quanto mais entramos
nos pormenores da paideía dos “guardiões”, tanto mais nos pe-
netra a sensação de irmos perdendo completamente de vista a
chamada investigação fundamental sobre a justiça. É certo que,
numa obra que se apresenta na forma de um diálogo tão ramifi-
cado como a República, temos de aceitar como impostas de cer-
to modo pelo tipo de composição muitas coisas que submetem
a dura prova o nosso sentido sistemático da ordem; porém apa-
rece, a tal ponto como um fim em si esta tríplice investigação
sobre a educação dos “guardiões”, da mulher e dos governan-
tes, e é ventilada de maneira tão breve e tão de passagem a so-
lução do problema da justiça e da felicidade do justo, que só
podemos tomar a intenção global do artista como razão para
justificar essa relação de equilíbrio, aparentemente perturbada,
entre as duas investigações intimamente entrelaçadas. É, sem
dúvida, a inquirição a respeito da justiça que constitui o tema
central da investigação, visto que toda a obra se desenrola sobre
A REPÚBLICA – I 773
A REPÚBLICA – I 775
culca no leitor, com uma clareza de visão genial, a função essencial da poesia
e da música, tal como a utilizava a paideía da antiga Grécia. Nem neste caso
estamos diante de algo absolutamente novo, mas sim diante da assimilação
consciente que já existia e da sua importância comprovada havia muito.
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se sentido.
72. Rep., 379 C.
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A REPÚBLICA – I 783
A REPÚBLICA – I 785
74. Primeiro vem a crítica dos hinos aos deuses, que nasce das exi-
gências da verdadeira eusebeia (377 E até ao fim do livro II). Com o livro III
começa a crítica das passagens dos poetas que são contrárias aos preceitos
da valentia, à qual, em 389 D, se junta a crítica que parte do ponto de vista
do domínio de si mesmo. Ambas as partes da crítica referem-se ao modo de
apresentar os heróis na poesia. Parecia que a isto devia seguir-se imediata-
mente a exposição do Homem, examinando-se antes de tudo a sua coinci-
dência com os preceitos da verdadeira justiça (392 A e 392 C), já que essa
virtude é a única que fica de pé. Mas Platão desvia essa parte da crítica, pois
falta ainda esclarecer a verdadeira essência da justiça.
75. Cf., adiante, liv. IV.
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A REPÚBLICA – I 787
A REPÚBLICA – I 789
dade, não a sua essência. E apesar de tudo isso, porém, nem se-
quer passa pela cabeça de Platão que a poesia, considerada po-
tência educadora, possa ser substituída pelos conhecimentos
abstratos da Filosofia. Pelo contrário, a raivosa tenacidade com
que ele trava o combate tem a sua mais profunda razão de ser
na convicção de que a força educadora das imagens poéticas e
musicais provadas pelos séculos é insubstituível. Segundo Pla-
tão, mesmo que a filosofia fosse capaz de descobrir o conheci-
mento redentor de uma norma suprema de viver, a sua missão
educacional só seria cumprida pela metade, enquanto não se in-
fundisse, como alma, às figuras plasmadas e plasmadoras de uma
nova poesia essa nova verdade.
Não é só no conteúdo, mas sobretudo na forma, que se
apoia o efeito da obra das musas. Isso justifica a estrutura da crí-
tica platônica da cultura musical anterior e a sua divisão em duas
partes fundamentais: uma sobre os mitos e outra sobre o estilo
84. O estudo dos mitos termina em Rep., 392 C. A ele se liga a crítica
do estilo da linguagem.
86. Rep., 392 D. O conceito da imitação que Platão toma como base
nesta classificação dos gêneros da arte poética não é a imitação de quaisquer
A REPÚBLICA – I 791
94. Cf. Rep., 397 A-B e a descrição das duas espécies (ειäδη) ou tipos
93. Rep., 396 B-D.
97. Cf. Rep., 398 B-C. O conteúdo e a forma são αÁ τε λεκτε¿ον καιì ω¸ς
96. Rep., 396 E.
λεκτε¿ον. O primeiro (αÁ) coincide com a exposição por extenso dos mitos, a
segunda (ω¸ς) com a do estilo (λε¿ξις). A terceira parte do estudo da poesia,
a música (τεριì ω¹δηªς τρο¿που καιì µελωªν), começa com 398 C. Essa classifica-
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A REPÚBLICA – I 793
A REPÚBLICA – I 795
dadeiramente extraordinários nele. Por detrás deles não se pode ver tanto o
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A REPÚBLICA – I 797
caso de Sócrates ser discípulo de Dámon – uma antiga tradição urdida pro-
vavelmente à base dessa passagem da República – como a comprovação de
que Dámon era o verdadeiro autor da teoria do éthos na música que Platão
toma como base da sua paideía dos “guardiões”.
111. ARISTÓTELES, Pol., VIII, 5.
112. ARISTÓTELES, Pol., VIII, 5, 1340 a 18-30.
113. ARISTÓTELES, Pol., VIII, 5, 1340 a 30 s.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 798
A REPÚBLICA – I 799
122. Παιδει¿α e τροϕη¿ são inicialmente termos quase sinônimos. Cf. ÉS-
121. Cf. adiante, pp. 858 ss.
124. Rep., 401 C: ωÁσπερ αυãρα ϕε¿ρουσα α¹ποì χρηστων το¿πωªν υ¸γι¿ειαν.
125. Rep., 401 D: κυριωτα¿τη ε¹ν µουσικηª τροϕη¿. De modo semelhan-
te, chama-se ao verdadeiro Ser a verdadeira realidade: η¸ κυριωτα¿τη ου¹σι¿α,
τοì κυρι¿ωςοªν.
126. Rep., 402 A.
127. Rep., 402 A.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 801
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A REPÚBLICA – I 803
A REPÚBLICA – I 805
A REPÚBLICA – I 807
devida (κραªσις), de acordo com a doutrina médica grega. Ver adiante, liv.
IV: A harmonia da paideía musical e atlética é a educação sã. Cf. também
Rep., 444 C. Mas Platão pensa na totalidade da saúde da natureza humana,
não apenas na saúde do corpo.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 808
159. Na parte final da seção sobre a ginástica (412 B), Platão recorda
expressamente, uma vez mais, o seu princípio metódico sobre a estrutura da
gênero só pode traçar as linhas gerais da paideía (τυ¿ποι τηªς παιδει¿ας), nas
educação: 1) põe constantemente em relevo que qualquer exposição desse
A REPÚBLICA – I 809
166. Rep., 416 A-B. A palavra grega para “garantia” é aqui ευ¹λα¿βεια.
165. Rep., 414 D-415 D.
A REPÚBLICA – I 811
A REPÚBLICA – I 813
A REPÚBLICA – I 815
o Estado lhe seria mais fácil ilustrar a sua essência e a sua ação
dentro da alma. E agora vemos que foi precisamente a sua con-
cepção orgânica do Estado que levou Platão a estabelecer esse
paralelo. Para ele, a justiça dentro do Estado baseia-se no prin-
cípio em virtude do qual cada membro do organismo social
deve cumprir, com a maior perfeição possível, a sua função pró-
pria183. Tanto os “guardiões” como os “governantes” e os “indus-
triais” têm a sua missão estritamente delimitada, e, se cada um
desses três grupos se esforçar por fazer da melhor maneira pos-
sível o que lhe compete, o Estado resultante da cooperação des-
ses elementos será o melhor Estado concebível. Cada um desses
grupos se caracteriza por uma virtude específica: os “governan-
A REPÚBLICA – I 817
197. Rep., 443 D-E. A areté é, por isso, a “harmonia” das potências da
alma, como no Fédon.
198. Cf. acima, pp. 658 s.
200. Rep., 443 C-E. O conceito médico da εàξις corre ao longo de toda
199. Em Rep., 444 C-E, a areté é a saúde da alma.
A REPÚBLICA – I 819
conceitos médicos do καταì ϕυ¿σιν e do παραì ϕυ¿σιν, cf. Rep., 444 D. O mo-
202. A respeito da importantíssima e transcendente aplicação dos dois
delo da saúde como estado normal (areté) da natureza física permite a Pla-
tão conceber o fenômeno moral da justiça como verdadeira natureza da
alma, e como seu estado normal. A objetivação, pelo conceito médico da
phýsis, daquilo que é aparentemente subjetivo converte-se ao mesmo tempo
em conhecimento do normativo.
203. Rep., 445 A.
204. Rep., 445 C.
205. Rep., 449 A.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 820
A REPÚBLICA – I 821
nica e musical da mulher (cf. 452 E-456 C). O postulado da comunidade das
esposas examina-se principalmente a partir do ponto de vista daquilo que é
desejável, pondo-se reiteradamente de lado tudo o que se refere à viabilida-
de de semelhante instituição. Esse problema é protelado diversas vezes em
458 B e 466 D, por exemplo; em 471 C é aparentemente abordado, dissol-
vendo-se, porém, dentro do problema geral da viabilidade de todo o ideal
do Estado platônico no seu conjunto.
210. Não se deve esquecer que Platão apenas faz alusão àqueles pou-
cos indivíduos chamados a governar e a defender o Estado.
211. ARISTÓTELES, Pol., II, 9, 1269 b 12 s.
213. Rep., 416 E. A palavra συσσι¿τια na, que Platão emprega nesta pas-
212. ARISTÓTELES, Pol., II, 9, 1269 b 37.
sagem para as refeições públicas, prova que está adotando o costume es-
partano.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 822
A REPÚBLICA – I 823
217. HERÓDOTO, I, 8.
218. Rep., 452 C. O sentimento moral dos gregos da Ásia Menor reve-
la-se na sua arte do século VI, que, sob esse aspecto, é muito diferente da
arte do Peloponeso.
219. O segundo tema fundamental são os deuses. Esse tema é, por ve-
zes, exposto de um modo falso, como se as artes plásticas dos gregos tives-
sem tomado o atleta como tema simplesmente porque só na palestra se po-
dia contemplar o corpo humano na sua nua beleza. Esse erro é típico de um
certo conceito moderno do artista como especialista do nu. É um conceito
que aparece já nos últimos tempos da Antiguidade. A figura do atleta grego
primitivo é a encarnação da suprema areté gímnica do jovem, da sua figura
plástica perfeita. Platão limita-se a exprimir a concepção geral dos gregos
quando define a areté do corpo como força, saúde e beleza.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 824
A REPÚBLICA – I 825
A REPÚBLICA – I 827
α¹γαθοι¿; porém α¹γατο¿ς e κακο¿ς são termos que neste poeta da nobreza têm
232. Também Teógnis tinha pensado, de modo natural, na seleção dos
sempre o significado daquilo que é nobre e daquilo que é ignóbil (num sen-
tido social). Cf, acima, pp. 243 ss.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 828
A REPÚBLICA – I 829
A REPÚBLICA – I 831
A REPÚBLICA – I 833
Liga esta à criação (τροϕη¿) dos filhos, que logo desde pequenos
é que ele passa a falar da educação guerreira dos “guardiões”.
A REPÚBLICA – I 835
A REPÚBLICA – I 837
preende-se que Platão enlace com ela toda uma ética da arte da
guerra, na qual se dão leis para a conduta dos guerreiros uns em
relação aos outros e em face do inimigo. A maior das infâmias é
abandonar as fileiras, jogar fora as armas e incorrer por covardia
em qualquer outra falta desse tipo. O guerreiro que a comete,
castiga-o Platão degradando-o para o escalão dos indivíduos de-
dicados ao lucro e converte-o em artífice ou camponês. Esse
tipo de castigo, em lugar da atimia, ou perda de todos os direi-
tos cívicos, que se costumava aplicar na Grécia, corresponde à
posição ocupada pelos guerreiros no “Estado ideal”271. Os indiví-
269. Rep., 467 C: θεωρειªν ταì περιì τοìν πο¿λεµον, θεωρουìς πολε¿µου τουìς,
παιªδας ποιειªν.
teu sobre a contemplação de ϕο¿νον αι¸µατο¿εντα é citado duas vezes por Pla-
270. TIRTEU, frags. 7,31; 3,21; 9,16. Cf. acima, pp. 121-2. O verso de Tir-
A REPÚBLICA – I 839
A REPÚBLICA – I 841
A REPÚBLICA – I 843
296. De iure belli ac pacis, 557 (ed. Molhuysen, Leiden 1919). Para Hugo
Grócio, o capítulo da República de Platão sobre o direito da guerra consti-
tuía, naturalmente, um documento da maior autoridade.
297. Rep., 471 C-E.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 844
(ψυχηªς ε¹πιµελεια). Quem vela pela alma vela também, ao mesmo tempo,
302. Cf., acima, pp. 559 s.; 658 s. A política socrática é “cuidado da alma”
A REPÚBLICA – I 845
308. Cf. Rep., 472 B-C, onde a justiça e o homem justo aparecem um
ao lado do outro. É a ética aristotélica que desenvolve principalmente esse
método de tipificação dos conceitos éticos gerais, colocando o megalopsykhos
ao lado da megalopsykhía, o homem liberal ao lado da liberalidade etc.
309. Cf., acima, pp. 663 ss.
310. Rep., 473 C-D.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 847
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319. Rep., 484 C. Cf. 540 A, onde o paradigma se define mais de perto
como a ideia do Bem.
320. Rep., 484 D.
321. Rep., 493 A-C.
322. Rep., 493 A 7 e 493 C 8.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 23:00 Página 851
A REPÚBLICA – I 851
328. Górg., 485 Α: οιàον παιδει¿ας χα¿ριν. Em Rep., 486 A, Platão respon-
327. Rep., 487 D ss.
A REPÚBLICA – I 853
330. Cf., por exemplo, Rep., 499 A, onde a procura da verdade pelo amor
do conhecimento se apresenta como a característica da Filosofia.
331. Cf., adiante, livro IV.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 23:00 Página 854
A REPÚBLICA – I 855
A REPÚBLICA – I 857
filosofia como paideía, é importante saber que o filósofo platônico não é se-
não a forma do kaloskagathos, quer dizer, a forma do ideal supremo de cul-
tura do período grego clássico, renovada num sentido socrático.
344. Rep., 490 D ss.
345. Rep.,491 B. Cf. a enumeração das diferentes virtudes em 487 A e
acima, pp. 806 ss.
346. Rep., 491 C.
347. Rep., 491 D.
348. Rep., 491 E.
349. Rep., 492 A, 492 E.
de E. BERRY, The History of the Concept of θει¿α µοιªρα e θει¿α τυ¿χη down to
350. Cf. a dissertação de doutoramento, na Universidade de Chicago,
A REPÚBLICA – I 859
A REPÚBLICA – I 861
367. Cf. a enumeração dos indivíduos salvos para a Filosofia pelo fato
de terem caído na solidão e permanecido livres de contágio, Rep., 496 B-C.
368. Teages, um discípulo de Sócrates, a quem só a debilidade física im-
pede de se lançar na política, é até mencionado pelo nome. Deixar-se-ia ao
leitor daqueles tempos que adivinhasse os nomes dos demais; atualmente já
não os conhecemos.
369. Rep., 496 C 5-E 2.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 23:00 Página 863
A REPÚBLICA – I 863
A REPÚBLICA – I 865
373. Cf. a minha obra Aristóteles, p. 120. J. L. Stocks fez uma tentativa
para salvar a historicidade da tradição contida em CÍCERO, Tusc. Disp., V, 3,
8, segundo a qual foi Pitágoras quem empregou e reivindicou para si a pa-
lavra filósofo. Eu, porém, nunca pude aceitar os argumentos do meu exce-
lente amigo cuja morte prematura foi uma perda considerável para os estu-
dos clássicos.
374. Carta VII, 331 B-D.
Paideia27:Cartas00 19.02.13 23:00 Página 866
A REPÚBLICA – I 867
A REPÚBLICA – I 869
homem” (α¹νδρεικελον)390.
epopeia, mas sim uma imagem adequada a eles, “semelhante ao
A República
II
necessidade de lhes dar uma cultura especial figura em 416 C: οàτι δειª αυ¹του¹ς
1. Seleção dos melhores “guardiões”, Rep., 412 C. A primeira alusão à
τηªς ο¹ρθηªς τυχειªν παιδει¿ας ηÓτις ποτε¿ ε¹στιν. No que se segue está implícita,
de antemão, a concepção de que essa cultura não é idêntica à paideía dos
“guardiões” descrita acima. Platão faz alusão, desde o primeiro momento, à
cultura dos governantes, tal como se descreve nos livros VI e VII.
2. Rep., 499 C ss.
3. A discussão sobre a educação dos “governantes” começa em Rep.,
502 C-D.
Paideia28:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 872
A REPÚBLICA – II 873
Fala-se aqui pela primeira vez de uma µακροτε¿ρα ο¹δοìς, que em 504 B se
9. Rep., 503 E- 504 B. Esta referência retroativa remete-se a Rep., 435 D.
11. Não se deve passar por alto que a noção fixa da cultura dialética
como um “desvio necessário” para o estadista futuro figura também no Fe-
dro. Platão trata também de demonstrar aqui que a dialética (que adversá-
rios como Isócrates consideravam alheia à vida ou inútil) é indispensável ao
político e ao retórico. Cf., adiante, livro IV. Isócrates costuma opor a sua
própria paideía verdadeiramente política à ginástica platônica do espírito.
12. Rep., 504 E.
13. Rep., 505 A.
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A REPÚBLICA – II 875
A REPÚBLICA – II 877
29. Rep., 507 A. Cf. antes 476 A ss. As palavras αÓλλοτε ηÓοη πολλακις
remetem aos diálogos em que Platão tinha examinado a teoria das ideias
com maior amplitude, com o Fédon, o Banquete, etc. Na República, onde ela-
bora a sua paideía como um todo, não tem tempo para tais detalhes.
30. Rep., 507 C.
31. Cf. Rep., 505 B.
32. Rep., 508 A.
33. Sobre o que se segue, cf. Rep., 508 B ss.
Paideia28:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 879
A REPÚBLICA – II 879
37. Segundo Rep., 509 B. O Bem fica mais além do Ser (εÃτι ε¹πε¿κεινα
36. Rep., 509 A.
τη̃ς ου¹σι¿ας). Mas cf. 532 C, onde a contemplação da ideia do Bem se desig-
na como contemplação do melhor no seio daquilo que existe (του̃ α¹ρι¿στου
ε¹ν τοι̃ς ου̃σι θε¿α). Por isso é ao mesmo tempo o supremo Ser e dá o sentido
ao que conhecemos. O mesmo se diz de Deus em ARISTÓTELES (Dial. frag.,
ção: é “ou o espírito ou algo que está ainda além do espírito (ε¹πε¿κεινα του̃
edição WALZER, p. 100, frag. 49 ROSE), num fragmento do livro sobre a ora-
ca das relações entre o Bem e o Ser nas duas passagens acima citadas não
implicam por isso nenhuma contradição em sentido platônico, mas antes uma
alternativa, ou seja, duas afirmações coincidentes com a verdade.
38. Rep., 509 D.
39. Este aspecto da filosofia pré-socrática foi tratado em detalhe por
mim nas minhas Gifford Lectures, pronunciadas em 1936 na Universidade
de St. Andrews. Essas conferências serão publicadas brevemente em livro
com o título: The Theology of the Early Greek Philosophers (La teologia de los
primeros filósofos griegos, F C E, 1952). Tenho a intenção de seguir essa ou-
tra linha fundamental do pensamento grego, decisiva quanto à orientação da
influência que viriam a ter os pensadores antigos até se chegar a Platão, em
cuja filosofia se entrecruza com a linha da paideía nesse ponto decisivo. Pla-
tão reconheceu que todo o esforço para formar um homem superior (quer
dizer, toda a paideía e toda a cultura) converge no problema da natureza do
divino.
39a. Já Santo Agostinho, o mais importante teólogo cristão do Ociden-
te na Antiguidade, acertadamente o reconheceu, e ninguém mais competen-
te que ele para reconhecê-lo. No livro VIII da Cidade de Deus, que elaborou
conscientemente para enfrentar a República de Platão, entrega a este o cetro
de toda a teologia anterior ao Cristianismo. A teologia cristã dos Padres da
Paideia28:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 881
A REPÚBLICA – II 881
sição de Sol que Platão atribui à ideia do Bem como rei do mun-
do inteligível confere-lhe uma dignidade divina, concebida à ma-
neira grega, embora Platão não empregue expressamente a pa-
lavra Deus40. Abstém-se de empregá-la aqui, e deliberadamente
ao que parece, por achar que o leitor por si próprio se encarre-
gará de se representar essa ideia e, além disso, porque certamen-
te lhe interessava que o seu princípio não se confundisse com a
divindade da religião popular 41. No entanto, segundo os princí-
entre os quais figuram eruditos como Shorey e Gilson. Parece-me difícil acei-
tar que Platão abordasse inicialmente o problema central da sua filosofia éti-
ca e política – Deus – ou qualquer outro problema a partir do ponto de vis-
ta da filosofia natural e do movimento físico, como virá a fazer no Timeu e
nas Leis. É certo que acabou por acreditar, cada vez com maior convicção,
que esse aspecto era muito importante: Deus – pensava ele – era necessário
para pôr as estrelas em movimento. Mas a sua abordagem primária do pro-
blema era a socrática e não a pré-socrática. Podemos vê-lo a seguir essa di-
reção nos diálogos desde o Eutífron até a República. A pergunta socrática
sobre qual é a natureza e unidade da areté revela-se finalmente como pro-
blema do Bem divino, a “medida de todas as coisas” (como se define Deus
nas Leis). Em Platão não existe apenas mais de uma abordagem do proble-
ma divino; há dele mais de um aspecto: Deus é o bem absoluto pelo qual
tudo luta; Deus é a alma do mundo; Deus é o Demiurgo ou Criador; Deus é
a razão, o noûs; há além disso os deuses visíveis, o Sol, a Lua, os planetas
etc. Foi essa diversidade de aspectos e formas do divino na filosofia de Pla-
tão que desorientou os críticos helenísticos, e não só eles, mas ainda mais
A REPÚBLICA – II 883
por essência bom (α¹γαθοìς τωª οäντι), é a expressão platônica para designar o
Rep., 397 a. O axioma fundamental dessa teologia (379 B), o de que Deus é
ser da Ideia. ¸
43. Segundo o sentido da filosofia grega, Deus é, sem dúvida, uma de-
signação que corresponde ao supremo bem universal, com mais direito a
ela que nenhuma outra das muitas potências do mundo que os gregos ado-
ram como deuses. Mas, como é natural, filosoficamente, o essencial para Pla-
tão é a contribuição que traz à verdadeira concepção do divino, quando de-
fine o principio universal como o Bem em si.
44. Leis, 716 C. A tese de Platão, nas Leis, segundo a qual Deus é a me-
dida de todas as coisas, é formulada, naturalmente, em oposição consciente
à famosa tese de Protágoras, onde se diz ser o homem a medida de todas as
coisas.
Paideia28:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 884
A REPÚBLICA – II 885
τουª οÓντος). Com isso refere-se à própria ideia do Bem. Paul Shorey tira o
mar ao bem τοì αÓριστον ε¹ν τοιªς ουÓσι. Rep., 532 C 6; cf. nota 37.
valor a essa descrição como “retórica”; mas, estritamente, corresponde a cha-
48. Em Rep., 484 C, até aqui dizia-se apenas que aqueles que não pos-
suem o conhecimento daquilo que existe, que não albergam na sua própria
alma nenhum paradigma claro, são pouco diferentes dos cegos, já que não
têm um ponto fixo de referência, para o qual possam levantar os olhos em
pensamento e com o qual possam em tudo orientar-se. Como veremos mais
adiante, o reverso disso é formado pelos governantes-filósofos do Estado
platônico, que ordenam (κοςµειª) a si próprios e à pólis, orientando a parte
clara da sua alma para aquilo que infunde a luz a todas as coisas e que con-
templam o Bem-em-si em toda a sua pureza, para logo o empregarem como
o paradigma (Rep., 540 A). Esse paradigma supremo é a “medida de todas
49. Teet., 176 B: ει¹ς οÓσον δυνατοìν α¹νθρω¿πω ο¸µοιουªσθαι θεωª. Se Deus
as coisas”, da qual Piarão (716 C) fala nas Leis e ali identifica com Deus.
to que isso parece estar em contradição com o fato, por nós as-
sinalado mais acima, de Platão apresentar à entrada da paideía
superior a imagem do “humano”, como objetivo e missão do
pintor filosófico50. No entanto, já ali estabelece um paralelo entre
esse caráter “humano” e o caráter “divino” do homem homérico,
e observa que essa nova imagem do Homem deve ser uma mes-
cla de traços reais e ideais, o mais grata possível a Deus51. Por-
tanto, ainda aqui não é o Homem, no seu ser fortuito individual,
a norma última, como quer a paideía dos sofistas, que faz do Ho-
mem a medida de todas as coisas. A humanidade plena só pode
existir ali onde o Homem aspira a assemelhar-se ao divino, quer
dizer, à medida eterna52.
Mas essas reflexões já nos levaram a nos adiantar ao nosso
propósito. De momento, Platão parece deter-se apenas no as-
pecto metafísico da ideia do Bem. Parece ter perdido completa-
mente de vista a relação que ela tem com a missão da cultura do
Homem. É isso que leva constantemente os intérpretes a arranca-
rem a comparação do solo em que está enraizada e a encará-la
como um símbolo autossuficiente da metafísica ou da teoria do
conhecimento de Platão, sobretudo quando têm em conta que ela
forma o final do livro VI, aparecendo assim (contra a intenção
platônica) como o remate da sua exposição e desligada do que
vem a seguir. Contudo, o saber, cuja aparição na alma essa ale-
goria explica, é precisamente o conhecimento do Bem e está re-
51. Rep., 501 B: τοì θεοειδε¿ς τε καιì θεοει¿κελον, e 501 C: ει¹ς οàσον
ε¹νδε¿χεται θεοϕλη ποιειªν (isto é, α¹νθρω¿πεια ηÓθη).
52. Cf., acima, nota 44 deste cap.
Paideia28:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 887
A REPÚBLICA – II 887
A // B
Por sua vez, cada uma das suas partes se subdivide na mes-
ma proporção que a linha total53:
A1/ A2 / / B1/ B2
A REPÚBLICA – II 889
cada uma delas representa. Por σαϕη¿νεια deve-se entender tanto a clareza
como a materialidade real. Cf. 510 A 9: α¹ληθει¿α.
62. Ει¹κω¿ν é imagem refletida, não só no sentido de repetição, mas tam-
A REPÚBLICA – II 891
67. Rep., 516 C 9. É evidente que Platão põe aqui em contraste a polí-
tica no sentido de conhecimento das ideias, que culmina na contemplação
terística do método empírico da Medicina, cf. o meu estudo Diokles von Ka-
rystos, p. 31. Sobre o seu emprego na política, veja-se o meu estudo “The
Date of Isocrates Areopagiticus and the Athenian Opposition”, em Athenian
Studies presented to W. S. Ferguson (Cambridge, 1940), p. 432.
Paideia28:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 893
A REPÚBLICA – II 893
não conseguiria ver nada nas sombras e lhe diriam que arruina-
ra os olhos ao sair para a luz. E, se procurasse libertar qualquer
dos outros e arrancá-lo das trevas, correria o risco de o matarem,
caso pudessem apoderar-se da sua pessoa.
O próprio Platão se encarrega de interpretar essa alegoria.
Para saber o que significa, é só relacioná-la com o que precede,
isto é, com a alegoria do Sol e com a proporção matemática das
gradações do Ser 68. A caverna corresponde ao mundo do visível
e o Sol é o fogo cuja luz se projeta dentro dela. A ascensão para
o alto e a contemplação do mundo superior é o símbolo do ca-
minho da alma em direção ao mundo inteligível. É como sua
“esperança” pessoal que Sócrates, já que Gláucon lhe pediu,
apresenta isso. Sabe Deus se será certo, mas é assim que ele o
vê69. O conceito de esperança é aqui empregado com especial
referência à expectativa que o iniciado nos mistérios experimen-
ta em relação ao além. A ideia da passagem do terreno à outra
vida é aqui transferida para a passagem da alma do reino do vi-
sível ao reino do invisível69a. O conhecimento do verdadeiro Ser
representa ainda a passagem do temporal ao eterno. A última
coisa que na região do conhecimento puro a alma aprende a
ver, “com esforço”, é a Ideia do Bem. Mas, uma vez que apren-
de a vê-la, tem necessariamente de chegar à conclusão de que
essa ideia é a causa de tudo o que no mundo existe de belo e
de justo, e de que forçosamente deve tê-la contemplado quem
quiser agir racionalmente tanto na vida privada como na públi-
ca70. A repugnância do verdadeiro filósofo em se ocupar dos as-
suntos humanos e a sua ânsia de permanecer nas alturas nada
tem de surpreendente, se essa comparação corresponde à reali-
dade; e é perfeitamente compreensível que o filósofo tenha de
cair por força no ridículo, ao regressar desse espetáculo divino
às misérias do mundo dos homens, pois os seus olhos, deslum-
69a. Ver a palavra ε¹λπις, Rep., 331 A, nas reflexões do velho Céfalo so-
69. Rep., 517 B 6.
A REPÚBLICA – II 895
73. Rep., 514 A: α¹πει¿κασον τοιου¿τω πα¿θει τηìν η¿µετε¿ραν ϕυ¿σιν παιδει¿ας,
72. Rep., 504 E, 505 A.
A REPÚBLICA – II 897
injustiça e do perfeito injusto. Já mais acima (veja-se nota 49) fazíamos notar
que o conceito da areté como “semelhança de Deus”, com que deparamos
A REPÚBLICA – II 899
A REPÚBLICA – II 901
seu próprio valor, ou é objeto de piedade (simplesmente) por ser amado pe-
los deuses? O problema gira em torno da equiparação do divino com aqui-
lo que é bom.
95. Eutífron, 6 D.
96. Cf., acima, pp. 783 ss.
97. Cf., acima, nota 30.
98. Cf., acima, pp. 832-4.
Paideia28:Cartas00 19.02.13 22:59 Página 902
que vive sem orientação para qualquer meta fixa101, então os es-
tadistas a que ele se refere são a personificação mais clara des-
se tipo de homens, uma vez que, segundo Platão, não merece o
nome a “meta” subjetiva que a ambição ou a ânsia de poder lhes
traçam. Se, coincidindo com Platão, consideramos que o fato de
possuir finalidade absoluta constitui o critério supremo que ha-
bilita o homem a exercer o cargo de governante, não resta dú-
vida de que, segundo a sua paideía, são os filósofos as únicas
pessoas com capacidade para tanto. Mas como convencê-los a
deixarem as suas “ilhas de bem-aventurança” e a atirarem aos
ombros uma carga que os impedirá como nenhuma outra de con-
99. Rep., 519 C. Platão tinha dito já, no livro I da República, 347 B-D,
que o homem melhor não deseja governar.
100. Rep., 516 C ss. Cf., acima, pp. 890 ss.
101. Rep., 519 B 8-C 2. Desde o princípio do livro VI, onde Platão
opõe os governantes filosóficos (484 C) às “pessoas que não têm na alma
culto como aquele que carece de uma meta concreta (σκοποìν εàνα) na vida.
nenhum paradigma claro”, tudo gira em torno desta definição do homem in-
A REPÚBLICA – II 903
102. Rep., 519 C 5. Cf. 540 B, onde, no entanto, “ir para as Ilhas dos Bem-
-Aventurados e morar lá” significa a verdadeira separação do filósofo deste
mundo, e a sua vida depois da morte. É a vida do herói que, uma vez cum-
prida a sua obra, desfruta a bem-aventurança nesse lugar escolhido. Num sen-
“nesta vida”, sentido que Aristóteles recolheu. Cf. o meu Aristóteles, p. 120. A
imagem palpita ainda, de modo sensível, na descrição da bem-aventurança
da vida contemplativa que se faz na Ética a nicomaqueia, X, 7.
102a. Cf. o meu Aristóteles, pp. 91 s.
103. Rep., 519 D-520 A.
104. Cf. o meu estudo “Ueber Ursprung und Kreislauf des philoso-
phischen Lebensideals”, em Berichte der Berliner Akademie, 1928, p. 414.
Demonstra-se nesse estudo que uma parte dos antigos historiadores da Filoso-
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ca são ciências gêmeas120. Isso nos faz suspeitar que a união des-
sas duas disciplinas com a aritmética e a geometria tinha tam-
bém origem pitagórica ou era habitual entre os pitagóricos. Pro-
blema diverso é o de saber se há razões para ir mais longe e
atribuir à escola pitagórica agrupada em torno de Arquitas a ori-
gem de todas as ciências verdadeiramente exatas conhecidas
dos gregos; o que é provável é não existirem tais razões, embo-
ra essa escola tenha com certeza imprimido um impulso funda-
mental ao desenvolvimento das máthemata e seja provável tam-
bém que Platão tenha mantido com ela estreitas relações121. As
suas manifestações a respeito da razão de ser dos estudos mate-
máticos dentro do âmbito da sua paideía filosófica tornam mui-
to plausíveis as suas relações com os pitagóricos, pois os cita
como a principal autoridade nesse ramo do saber. Critica-os, no
entanto, por outro lado por se aferrarem ao sensível e não se
elevarem até ao pensar puro121a. Os pitagóricos são também es-
pecialistas na matéria e, nesse sentido, por mais que lhes deva,
tem de ser ele próprio a pôr em relevo o ponto de vista que jul-
ga decisivo. Assim o afirma expressamente ao tratar da música,
pela qual não se deve entender o ensino puro e simples da mú-
sica, mas sim a teoria da harmonia. Os pitagóricos medem as
harmonias e os tons audíveis entre si e buscam neles o núme-
ro122, mas a sua missão termina onde começam os “problemas”123
cuja investigação o nosso filósofo considera a verdadeira meta
da sua cultura e que põe igualmente em relevo, ao tratar da
geometria e da Astronomia124. Refere-se à formulação de proble-
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139. Sobre o Teeteto como fonte do livro XIII dos Elementos de Eucli-
des, cf. Eva SACHS, “Die fünf platonischen Körper” (em Philologische Unter-
suchungen, ed. por Kiessling e Wilamowitz, t. XXIV), p. 112, e T. L. HEATH,
A Manual of Greek Mathematics (Oxford, 1931), p. 134.
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151. Cf., adiante, livro IV, o cap. “Isócrates defende a sua paideía”.
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A formação dialética
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156. Rep., E.
157. ARISTÓTELES, Metaf., M 4, 1078 b 25, tem consciência, sem dú-
vida, de que a dialética platônica deriva dos diálogos socráticos, mas esta-
belece uma distinção entre essas origens e a “energia dialética” (διαλεκτικηì)
altamente desenvolvida, referindo-se à fase posterior de Platão ou ao seu
próprio método, que naquela época ainda não existia.
158. Rep., 536 D.
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ram, e assim tudo o mais que faz parte das matemáticas está
O curriculum do filósofo
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rada por esse prisma, a teoria platônica das formas de Estado re-
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252. Cf. 547 D. Ainda mais importante, a este respeito, é a crítica dire-
ta do Estado espartano, nas Leis, livros I-II. Cf., adiante, liv. IV.
253. Rep., 547 B.
254. Rep., 547 C.
255. Rep., 547 B-C.
256. Rep., 547 D.
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nais. A esta interessa mais o espírito (ηÓθος) que a mecânica das instituições
trutura jurídica positiva do Estado para a sua função e essência educacio-
A REPÚBLICA – II 945
de Estado. Com efeito, não eram novidade para ninguém, no seu tempo, as
diferenças entre os tipos de constituição, como tais. Era por isso que Platão
podia renunciar totalmente a descrever as instituições constitucionais do
Estado.
265a. Como se sabe, é assim que Aristóteles define as relações entre o
Estado e o indivíduo. Pol., I, 2, 1253 a 19; 1253 a 25.
266. Segundo Platão, a justiça interna do Estado exige que cada um
cumpra da melhor maneira a missão que lhe cabe, a sua função social; con-
ao acaso (ou, como diz Platão com reminiscências homéricas, não nas-
cem simplesmente do carvalho e da rocha), mas brotam dos caracteres que
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homens que vivem nas cidades, que as palavras ε¹κ τωªν ηìθωªν τωªν εìν ταιªς
outro sentido. Não é ao éthos da constituição, mas sim aos caracteres dos
seada não na convicção, mas na violência (ουìχ υìποì πειθουªς α¸λλ’ υ¸ποì βι¿ας
resumido nas suas próprias palavras da Rep., 548 B 7: uma educação ba-
πεπαιδευµε¿νου).
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273. Cf. Aristóteles, Pol., II, 9 ss.; onde se faz clara referência às lições
de Leuctra e à época subsequente. Sobre Isócrates, cf. adiante, livro IV.
274. Cf., acima, pp. 108 ss., a parte intitulada “O ideal espartano do sé-
culo IV e a tradição”.
275. A sua atitude sofre certas modificações nas Leis, cf., adiante, livro IV.
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à qual teme bem mais do que ao inimigo. Mas teme também re-
velar esse receio e ainda a falta de disposição dos ricos de con-
tribuírem para os encargos da guerra.
3) Outro aspecto que nesse tipo de Estado choca com o
princípio do Estado platônico é a dispersão a que obriga os ci-
dadãos, visto que nele a agricultura, os negócios lucrativos e o
serviço militar têm de ser exercidos pelas mesmas pessoas, em
vez de se confiar a cada indivíduo uma missão específica287.
4) Numa oligarquia, todo o mundo pode vender o que lhe
pertence e comprar o que é dos outros; mas, quem se tiver des-
feito de tudo e tiver deixado de ser, realmente, membro do Es-
tado, uma vez que não é comerciante nem artífice, nem cavalei-
ro nem hoplita, mantém, apesar disso, o direito de continuar a
residir no Estado, como indigente288.
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323. Cf. todo o cap. da Carta VII sobre a atitude de Platão em face do
Estado existente, 330 D-331 D, especialmente 331 C 6 ss., sobre a atitude
que se deve adotar para com a própria pólis. Também nesse ponto o mode-
lo médico é decisivo para o educador filosófico. Cf. 330 D.
324. O fator da paideía como causa neste processo de desenvolvi-
mento: Rep., 558 D 1, 559 B 9, 559 D 7, 560 B 1, 560 E 5, 561 A 3.
325. Rep., 558 D 9 ss.
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331. TUCÍDIDES, III, 82, 4, cf., acima, p. 228. Tal como aqui Platão, tam-
bém ISÓCRATES no Areopagítico, 20, está evidentemente influenciado pela
análise das crises políticas e dos seus sintomas em Tucídides. Essa teoria das
crises adaptava-se magnificamente à concepção médica que Platão tinha
dos fenômenos que se processavam no Estado e na alma dos indivíduos. Já
acima, p. 451 s., mostramos, à luz do exemplo do problema da causa da
guerra, o quanto estava o próprio pensamento de Tucídides fortemente in-
fluenciado pelo modelo da Medicina. Um novíssimo rebento do ponto de
vista de Tucídides é a teoria das crises políticas que Jacob BURCKHARDT
sustenta nas suas “Weltgeschichtlichen Betrachtungen”.
332. Rep., 561 A.
333. Rep., 561 C-D.
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nea357. Costuma-se passar por alto o fato de, tanto nesse caso como
no problema da origem dos outros três tipos patológicos da per-
sonalidade, dos quais provêm as três formas fundamentais de
Estado, ser nas relações entre pais e filhos que Platão descobre
o primeiro germe da degenerescência progressiva. O exemplo
que nos quatro casos apresenta para pôr em destaque a deterio-
ração da fase seguinte é o de um jovem que forma as suas opi-
niões e os seus ideais em oposição com os do pai358. E mais uma
vez admiramos a perspicácia do educador e do psicólogo que,
ao falar da degenerescência da alma devida a uma falsa educa-
ção, não pensa principalmente nos ensinamentos que a escola
ministra ao homem. São as relações educacionais entre o pai e
o filho que ele tem fundamentalmente presentes. É sempre esse,
segundo a tradição grega, o modelo natural que o filho deve
imitar. É a transplantação da areté, encarnada pelo pai, para a
sua descendência que é o sentido da paideía, na sua forma mais
simples e clara359. Ao atingir uma fase superior da cultura educa-
cional incorpora-se a essa relação estabelecida pela natureza a
pessoa do educador, e por fim todo um sistema gradual de edu-
cação, em que o pai é completamente colocado de lado ou ape-
nas conserva uma função de ordem elementar. Num certo as-
pecto, porém, ele continua a ser o protótipo do educador, visto
que de certo modo o ideal aparece nele aos olhos do filho como
uma vida vivida, e mensurável, consequentemente, pelos seus
efeitos. À medida que o pai exagera unilateralmente a sua ten-
dência para o ideal que persegue, tendência legítima dentro de
certos limites, a resistência natural da juventude perante os ve-
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O Estado em nós
A REPÚBLICA – II 975
vez mais, como o “que impera sobre si próprio” (βασιλευ¿ων αυ¹τουª). Do-
389. Rep., 580 B-C. O “homem real” é aqui definido concisamente, uma
A REPÚBLICA – II 977
homens. É por isso que Platão procura pôr em relevo o seu re-
sultado a partir de outro ponto de vista, focalizando a própria
essência do prazer397. Nesse capítulo, o seu objetivo é atingir po-
sições a partir das quais seja possível avaliar comparativamente
as diversas sensações de prazer. Em última instância, tanto aqui
como no Filebo, o seu modo de tratar essa matéria, que parece
esquivar-se mais do que nenhuma outra à ação do pensamento
e da medida racionais, reduz-se à questão de saber se todas as
sensações de prazer terão como tais igual valor, ou se existirá
algo como prazeres falsos e verdadeiros e o que é que os dis-
tingue uns dos outros. Não vamos reproduzir aqui em detalhe
a argumentação. O argumento principal apoia-se nisto: a maio-
ria das nossas ditas sensações de prazer é apenas a sensação de
nos vermos livres de algo desagradável, isto é, é uma coisa pu-
ramente negativa398. Se atentarmos bem, veremos que as “maio-
res” sensações de prazer por nós experimentadas emanam des-
sa fonte negativa, quer dizer, nascem do alívio gerado, ao de-
saparecer a angústia causadora de um estado ou de uma situa-
ção que provocava dor ou desassossego399. Esse fenômeno, em
que se sente como algo positivamente agradável o alívio situa-
do num lugar intermédio entre o prazer e a dor, Platão compa-
ra à ilusão dos sentidos por nós sofrida, quando, ao subirmos
uma montanha, no meio do caminho temos a sensação de já
nos encontrarmos no cume400. Ilusão semelhante é a que expe-
rimentamos ao percorrer com o olhar uma escala de cores,
quando na passagem gradual do preto ao branco julgamos já
ter chegado a essa cor, e na realidade apenas estamos no cin-
zento401. Toda sensação de prazer e de dor é sempre relativa;
como mais tarde Platão destaca no Filebo, depende da maior
ou menor quantidade de prazer a que aspiramos em cada mo-
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414. Rep., 589 B. Este passo esclarece ao mesmo tempo a diferença en-
tre qualquer tipo de educação que pretenda formar o homem como Homem
e a mera “domesticação dos leões”. No entanto, encarada de um ponto de
vista oficial, essa última não é menos necessária que a primeira, já que a pura
cultura do Homem não se pode estender a todos os membros do Estado,
mas apenas pode existir como cultura dos “governantes”.
415. Rep., 590 E. Cf. 589 D, 590 D.
416. Rep., 500 D.
417. Rep., 591 E-592 A.
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A República
III
4. Rep., 595 B 9.
595 C ss.
Paideia29:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 990
8. Cf. XENÓFANES, frag. 9 Diehl: ε¹ξ α¹ρχης καθ ¹ Ο Á µηρον ε¿πειì µε−
7. Cf. a crítica a Homero como educador, em Rep., 598 E ss.
µαθη¿κασι πα¿ντες.
τε¿χνη, isto é, num saber especializado; e, segundo ele, outro tanto se pode
Em 533 E-534 C, põe em dúvida que esse saber do poeta se apoie numa
dizer dos intérpretes do poeta, que, tal como o próprio poeta, só falam por
inspiração divina. O aguilhão desse pensamento é dirigido contra a teoria so-
fística de que o espírito educativo de Homero assenta sobre o seu saber uni-
606 D 4, indica de que maneira tão direta essa ação da poesia determina a
cultura do Homem, uma vez que para Platão (cf., acima, pp. 627 s., 896-
-901), toda a paideia é um fenômeno de alimentação, no sentido espiritual
do termo.
36. Cf., acima, pp. 982 ss.
37. Rep., 605 B 7.
Paideia29:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 996
Paideía e escatologia
47. Cf. Rep., 607 E-608 B. Temos de atentar nesta frase η¸ τοιαυ¿τη
ποι¿ησις, que aparece duas vezes e que significa: toda a poesia desse gêne-
ro (mimética): fica assim aberta a porta a outros tipos de poesia. Cf. 607 A 4.
Uma referência renovada ao “Estado em nós”, como meta e norma por que
se deverá medir a admissibilidade da poesia, vem em 608 B 1, como já vi-
nha antes em 605 B 7.
48. Cf., acima, pp. 981 ss.
Paideia29:Cartas00 19.02.13 22:58 Página 999
ato de opção política. No sentido moral de uma decisão interior, esse con-
ceito aparece pela primeira vez em Platão na Apol., 39 A, e no Críton, 52 C.
Sócrates como modelo é tratado ali a partir de uma decisão vital interior. Esta
aparece como algo mais que problema filosófico geral, pela primeira vez em
Prot., 356 E, e Górg., 499 E. Nesse último passo é sinônimo de ação em sen-
que o Homem culpa; Rep., 619 C: ου¹ γαìρ ε¸αυτοìν αι¹τιαªσθαι τωªν κακωªν
o velho problema de não ser a si próprio, mas antes à týkhe e ao daímon
Livro Quarto
Ainda que não tivesse chegado até nós nada da antiga lite-
ratura médica dos gregos, seriam suficientes os juízos laudató-
rios de Platão sobre os médicos e a sua arte para concluirmos que
o final do século V e o IV a.C. representaram na história da pro-
fissão médica um momento culminante do seu contributo social
e espiritual. O médico aparece aqui como representante de uma
cultura especial do mais alto grau metodológico e é, ao mesmo
tempo, pela projeção do saber num fim ético de caráter prático,
a personificação de uma ética profissional exemplar, a qual por
isso é constantemente invocada para inspirar confiança na fe-
cundidade criadora do saber teórico para a edificação da vida
humana. Pode-se afirmar sem exagero que sem o modelo da
Medicina seria inconcebível a ciência ética de Sócrates, a qual
ocupa o lugar central nos diálogos de Platão. De todas as ciências
humanas então conhecidas, incluindo a Matemática e a Física, é
a Medicina a mais afim da ciência ética de Sócrates1. Todavia, não
é só como antecedente da filosofia socrática, platônica e aristo-
télica na história do espírito que a Medicina grega merece ser
considerada; merece-o, além disso, porque é a primeira vez que
a ciência médica, sob a forma que então revestia, ultrapassa as
fronteiras de uma simples profissão para se converter numa for-
ça cultural de primeira ordem na vida do povo grego. A partir
daí, embora não sem contestações, a Medicina vai-se tornan-
6. Cf. adiante, pp. 699 ss. Anteriormente, ao contrário, era de Tales que
se fazia partir a história da Medicina grega, de acordo com a teoria de CEL-
SO (I Proem., 6), segundo a qual a filosofia onicientífica abarcava primitiva-
mente todas as ciências. Isso é uma construção histórica romântica da época
helenística. Nos seus inícios, a Medicina era uma arte puramente prática, ain-
da que fortemente atraída pela nova concepção da natureza dos investiga-
dores jônicos. A literatura médica dos gregos chegada até nós parte da rea-
ção gerada contra essa influência.
7. Cf. J. H. BREASTED, The Edwin Smith Surgical Papyrus publisched
in Facsimile and Hieroglyphic Transliteration with Translation and Com-
mentary (2 vols., Chicago, 1930). Cf. Abel REY, La Science Orientale avant
les Grecs (Paris, 1930), pp. 314 ss. Sobre a literatura acerca do caráter cientí-
fico dessa fase da Medicina, cf. MEYERHOF, “Ueber den Papyrus Edwin
Smith, das älteste chirurgiebuch der Welt” in Deutsche Zeitschrift für Chirur-
gie, t. 231 (1931), pp. 645-90.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1015
(α¸ρµο¿ττον) nos médicos, cf. adiante, pp. 1065 ss. e o meu livro Diokles von
10. Cf. SÓLON, frags. 14,6 e 19,9. Sobre o conceito do adequado
Karystos, Die Griechische Medizin und die Schule des Aristoteles (Berlim,
1938), pp. 47 ss.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1016
pp. 169 ss.). Dentro do possível, deve ajudar-se (τιµωρειªν) aquele contra
entende-se por analogia com a ideia jurídica, como remuneração (cf., acima,
16. O mais recente ensaio crítico que visa deslindar os escritos que
se possam atribuir ao círculo hipocrático da primeira geração da escola
(K. DEICHGRAEBER, “Die Epidemien und das Corpus Hippocraticum”, in
Abhandlungen der Berliner Akademie, 1933) toma como ponto de partida
as partes mais antigas da obra sobre as epidemias, às quais se pode, de cer-
to modo, atribuir uma data. Esse autor renuncia a atribuir ao próprio Hipó-
crates certos escritos. Essa via, se é seguida com prudência, pode levar a al-
guns resultados relativamente seguros. O principal problema é abrir à com-
preensão, na sua forma filosófica e espiritual, as obras existentes. Esse pro-
blema ainda mal foi abordado.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1021
deiras palavras são (οι¸ υÐστερον διασκευα¿σαντες). Por conseguinte, esse li-
vro, como o de Hipócrates sobre as epidemias, não era obra de um indiví-
duo só, mas de toda uma escola.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1023
21. Cf. J. ILBERG, “Die Aerzteschule von Knidos”, in: Berichte der
Sächsischen Akademie (1924), e recentemente L. EDELSTEIN, op. cit., p. 154,
que dentro do Corpus hipocrático reduz consideravelmente o número dos
escritos procedentes “de Cnido”. Ver Max WELLMANN, Die Fragmente der
Sikelischen Aerzte (Berlim, 1902), que comete o erro de atribuir também
Díocles à escola da Sicília; e, contra ele, o meu livro Diokles von Karystos
(Berlim, 1938).
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1024
22. Sobre ι¹διωτης (= leigo), cf. De Victu Sal., 1; De aff., I, 33, 45; De
Victu, III, 68. ∆ηµο¿της e δηµιουργο¿ς como termos opostos em De Flatibus,
1; De Vet. med., 1-2. ’Ιδιω¿της e δηµο¿της usados como sinônimos em De
Victu ac., 6: χειρωναξι¿α em De Victu ac., 8. ÉSQUILO, Prom., 45, chama
χειρωναξι¿α à arte do ferreiro.
23. CMG, I, 1, 8.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1025
ricos, em prosa retórica (como περιì τε¿χνης e περιì ϕυσωªν) dos escritos redi-
24. Importa distinguir as conferências iatrossofistas sobre temas gené-
25. PLATÃO, Leis, 857 C-D: ου¹κ ι¹ατρευ¿εις τοìν νοσουªντα α¹λλαì σχεδο¹ν
παιδευ¿εις. Cf. Leis, 720 C-D, onde Platão faz uma descrição idêntica dos
dois tipos.
26. De Vet. Med., 2. Outro exemplo em De Aff., I. Ver, adiante, pp.
1048 ss.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1027
36. ARISTÓTELES, Pol., VIII, 2, 1337 b 15: ÄΕστι δεì καιì τω̃ν ε¹λευθερι¿ων
ε¹πιστηµω̃ν µε¿χρι µεìν τινοì ς ε¹νι¿ων µετε¿χειν ου̃κ α¹νελευ¿ θερον, τοÜ δεì προσε−
δρευ¿ ειν λι¿αν προÜς α¹κρι¿βειαν εÓνοχον ται̃ς ειìρηµε¿ναις βλα¿βαις. (Cf. o que
diz em 1337 b 8 sobre a eficácia do “trabalho banal”.)
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1031
41. Op. cit., 9: ∆ειª γαìρ µετρου τινοìς οτοχα¿σασθαι, µε¿τρον δεì ουÓτε
40. 0p. cit., 8-9.
α¹ριθµοìν ουÓτε σταθµοìν αÓλλον προìς οà α¹ναϕε¿ρων ειÓση το α¹κριβε¿ς, ου¹κ αÓν.
Também ali se estabelece a comparação entre o médico ¸ e o navegante.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1034
42. Cf. De Vet. Med., 20. Manifesta-se por toda a literatura o erro de
pensar que essa polêmica é especialmente dirigida contra Empédocles e a
sua escola. Com igual razão se podiam apontar os nomes de Anaxágoras ou
lavra ϕιλοσοϕι¿η (anseio espiritual, estudo), cuja acepção é vaga ainda nessa
de Diógenes. É de forma parecida com a que Empédocles aqui explica a pa-
época, que Aristóteles transcreve (Prot., frag. 5 b, ed. Walzer; 52, ed. Rose)
o conceito de metafísica (para o qual ainda não existia termo técnico) com
(ε¹πιδηµειªν) não era só a forma de atuação dos sofistas e literatos, mas tam-
45. Daí o título ’Επιδηµιαι, isto é, visitas a cidades estrangeiras. Visitar
bém a maneira de agir dos médicos ambulantes. Cf. PLATÃO, Prot., 309 D,
315 C; Parm., 127 A, e a obra autobiográfica do poeta Íon de Quio, com o
mesmo título. Sobre a obra hipocrática, cf. agora K. DEICHGRAEBER, “Die
Epidemien und das Corpus Hipocraticum” in: Abhandlungen der Berliner
Akademie (1938). Os autores dessa obra e da que se intitula Da medicina
antiga têm espírito afim; mas dificilmente podem ser idênticos.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1036
49. Cf. o final do cap. XV; o quente não tem tanta força (δυ¿ναµις) como
se lhe atribui. E no cap. XIV (II parte): as forças que atuam no corpo, o seu
número, tipo, sua composição adequada e suas alterações.
50. ALCMÉON, frag. 4 Diels.
51. Já a teoria do “número infinito” das forças que atuam no corpo o
prova. Cf. no cap. XV a sua polêmica contra o isolamento e a hipóstase das
qualidades – frio, quente, seco e úmido –, comuns naquele tempo.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1038
53. PLATÃO, Fedro, 270 C-D. Cf. em W. CAPELLE, Hermes, t. 57, p. 247,
a literatura, antiga sobre esse passo. Não podemos demorar-nos aqui a exa-
minar a maneira como L. EDELSTEIN, op. cit. (cf., acima, nota 15 deste cap.),
pp. 118 ss., trata o problema da maneira que acho acertada em todos os
seus aspectos.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1040
tro eîdos (µηδενιì αÓλλω ειÓδει κοινωνε¿ον). Cf. PLATÃO, Sof., 257 A ss., que
de si quente ou frio, seco ou úmido, sem estar em relação com nenhum ou-
também fala de uma κοινωνι¿α dos γε¿νη ou dos ειÓδη (cf. 259 E). .
57. Por exemplo, PLATÃO, Rep., 299 C; ARISTÓTELES, Et. Nic., II, 2,
1104 a 9; III, 5, 1112 b 5 e De Vet. Med., 9, segunda metade.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1043
67. Cf., por exemplo, De Vet. Med., 5 (final), 9; De Victu, III, 69, e a ge-
neralidade das prescrições dietéticas.
68. Cf. De Vet. Med., 14 (segunda metade); De aere, XII; De Nat. Hom.,
8-9. Cf. o meu livro Diokles von Karystos, p. 47, sobre α¹ρµο¿ττον, µε¿τριον,
4; De Locis in Hom., 26, e outros. Sobre o conceito de harmonia, De Victu, I,
συ¿µµετρον.
coisa, com a sua definição de saúde como ordem (τα¿ξις) do corpo. Cf.
69. PLATÃO, Fédon, 93 E; Leis, 773 A, e Górg., 504 C, aludem à mesma
ϕυσις εκουσα, ουì µαθουªσα, ταì δε¿οντα ποιειª. É certo que no texto
da edição de Hipócrates por Littré (pouco satisfatória de um
ponto de vista crítico, mas extraordinariamente meritória para o
seu tempo e que ainda hoje temos de utilizar, à falta de outras
edições melhores de muitas das obras daquele autor) se diz, ao
contrário, que a natureza, embora seja inculta e não tenha
aprendido nada, faz o que deve ser feito. Uma ideia negativa se-
melhante, encontramo-la no autor da obra, rica em aforismo, Da
felicidade, escrita posteriormente: As naturezas das coisas não
tiveram mestre algum79. Dá quase a impressão de ter conhecido
e plagiado a variante da nossa passagem do livro Das epide-
mias. Nesse caso, porém, deixou-se conduzir por caminho erra-
do, pois para o pensamento da época seria por demais parado-
xal a ideia de se poder fazer o que se devia, sem nenhuma pai-
deía. Por conseguinte, se a natureza faz por si própria o neces-
cala mais fundo que a prova dos sofistas, que também achava
eco no pensamento médico, segundo a qual era na agricultura e
na domesticação de animais que a formação da natureza huma-
na pela paideía tinha a sua analogia81. Com efeito, a paideía é
aqui concebida como uma disciplina e uma domesticação pura-
mente exteriores, ao passo que na concepção hipocrática a pai-
deía tem já o seu caminhar inconsciente e espontâneo na pró-
pria natureza e na sua ação teleológica. Esse ponto de vista espi-
ritualiza o natural e naturaliza o espiritual. É dessa raiz que brota
o uso genial de analogias espirituais para explicar o físico e de
analogias materiais para interpretar o espiritual. É valendo-se de
tais analogias que o autor do livro Das epidemias cunha expres-
sões tão lapidares e impressionantes como esta: O esforço físico é
alimento para os membros e para os músculos, o sono o é para as
entranhas. Pensar é para o Homem o passeio da alma 82.
À luz dessa imagem da natureza como força espontânea e
inconscientemente teleológica, podemos compreender a tese do
autor da obra Da dieta: A natureza basta a todos em todas as
coisas83. Mas, assim como o médico facilita com a sua arte a obra
da natureza, quando se altera o equilíbrio dela, também é essa
mesma concepção que incute a esse autor o dever de prevenir
o perigo que espreita e de velar pela conservação do estado
normal. O médico antigo, como o moderno ainda até há poucas
81. Cf., acima, pp. 251 ss. Como ecos precoces do paralelo sofístico en-
tre a paideía e a agricultura, de que se fala aqui, devemos acrescentar HIP.,
Nomos, 3, onde o conceito da cultura em geral é transposto para a cultura
especial dos médicos, e PLATÃO, Timeu, 77 A, onde a comparação é enge-
nhosamente invertida e a agricultura apresentada como paideía da natureza.
O mais provável é que ambas as variantes provenham do século IV.
82. Epid., VI, 5,5. DIEHGRAEBER, op. cit. (acima, nota 16 deste cap.), in-
ficar isso. Também em De Victu, II, 61, o pensar (µε¿ριµνα) se inclui entre os
“exercícios”. A nota nova consiste em tornar os “exercícios” extensivos do
corpo à alma.
83. De Alim., 15.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1052
gicos é mais tarde elaborada com precisão por Aristóteles. Isso constitui um
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1056
92. Sobre Heródico, cf. PLATÃO, Rep., 406 A-B; ARISTÓTELES, Ret., 1,
5, 1361 b 5; HIP., VI, 3, 18.
93. De Victu, I, 2 (t. VI, p. 470, ed. Littré).
94. Ibid.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1058
95. De Victu, I, 2 (t. VI, p. 472, ed. Littré), onde também aparece o con-
ceito da prodiagnose. Profilaxia é um termo posterior, mas que define bas-
tante bem a intenção do autor, que se propõe unir as duas coisas.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1059
96. Cf., acima, pp. 1033 ss. De Victu, II, 51, refere-se a De Vet. Med., 20.
97. De Victu, I, 2 (t. VI, p. 470, ed. Littré). Cf. sobre isso De Aere, I-II.
Deparamos ali com os seguintes fatores, examinados pela mesma ordem
que no autor de Da dieta: a estação do ano, os ventos, a situação da cidade,
as doenças próprias do verão e do inverno, o curso dos astros, a transfor-
mação das doenças. A única coisa omitida pelo dietético, ao copiar excertos
do escrito que tomou como base, foi o que se referia às águas.
98. Epid., VI, 55.
99. De Victu, II, 61.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1060
124. Cf. sobre o que se segue, DÍOCLES, frag. 141 (ed. Wellmann).
125. Cf., acima, pp. 1058-60.
Paideia30:Cartas00 19.02.13 22:57 Página 1069
A retórica de Isócrates
e o seu ideal de cultura
1. H. Von ARMIN, Leben und Werke des Dion von Prusa (Berlim, 1898),
pp. 4-114, faz um resumo histórico bastante completo da evolução dessa
polêmica.
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1073
4. Cf. sobre isso o meu ensaio “Platos Stellung in Aufbau der Griechis-
chen Bildung” (Berlim, 1928), publicado pela primeira vez em Die Antike,
vol. IV, 1928, n.ºs 1-2.
5. Sobre esse ponto de vista, a Filosofia, e essencialmente a filosofia
grega, tem uma importância decisiva na estrutura do humanismo moderno.
Sem ela, esse humanismo ficaria despojado da sua força de choque e nem
sequer se poderia explicar. Na realidade, as investigações sobre o aspecto fi-
losófico da cultura antiga ocupam um lugar cada vez mais amplo não só no
campo da Filosofia moderna, mas também no da Filologia moderna, e exer-
ceram profunda influência na evolução dos objetivos e dos métodos dos es-
tudos filológicos. Também a história do humanismo parece mudar, quando
encarada por esse prisma. A habitual construção histórica do humanismo,
com as rígidas divisões de Idade Média e Renascimento, escolasticismo e
humanismo, torna-se insustentável, quando nos acostumamos a encarar o
renascimento da filosofia grega na alta Idade Média como um dos grandes
episódios da influência póstuma da paideía grega. Essa influência da pai-
deía grega, ao longo da história da Idade Média e dos tempos modernos, re-
vela uma linha de continuidade. Non datur saltus in historia humanitatis.
6. A filosofia grega só pode ser avaliada na sua importância como mem-
bro do organismo da cultura, desde que seja ligada, da maneira mais íntima,
à história da cultura grega.
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1075
Sof., 9-10, e Antíd., 178, provam que Isócrates concebia como τε¿χνη a sua ϕι−
critores de temas técnicos ou de manuais retóricos. Todavia, passagens como
λοσοϕι¿α.
19. Sobre a vida de Isócrates, cf. F. BLASS, op. cit., pp. 8 ss.; R. JEBB,
Attic Orators, vol. II (Londres, 1876), pp. 1 ss., e o extenso artigo de MUENS-
CHER na Realenzyklopädie der Klassischen Altertumswiss., de Pauly-Wisso-
wa, t. IX, pp. 2150 ss. Sobre a voz fraca de Isócrates e a sua timidez, cf. Fil.,
81 e Panat., 10.
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1081
26. Cf. PLATÃO, Górg., 499 D, 451 A, 453 B-E, 455 D. Essa mesma cen-
sura repete-a mais tarde Platão, no Fedro.
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1085
NASSO, De Isocr., 18 e CÍCERO, Bruto, 48, que utiliza como fonte a συναγωγη¿
28. Acerca das suas atividades de logógrafo, cf. DIONÍSIO DE HALICAR-
que Isócrates começou por dirigir uma escola em Quio (σχοληªς δεì η¸γειªτο,
32. A afirmação do PSEUDO-PLUTARCO em Vit. X Orat., 837 B, de
ωàς τινε¿ς ϕασιν, πρωªτον ε¹πι¸ Χι¿ου) não aparece confirmada em parte ¸ algu-
ma, e a locução ε¹πιì ?ιου é rara em vez de εìν Χι¿ω. Esperava-se que depois
de ε¹πι¿ viesse o nome do arconte sob o qual Isócrates começou a professar
o ensino; se, porém, o nome aparece corrompido, a corrupção é difícil de
[Μυστι] χι¿δου, isso situava-nos no ano de 386-5, data que parece bastante
tardia para a fundação da escola de Isócrates.
33. Que o discurso Contra os sofistas se deva situar no início da sua
atividade docente, o próprio Isócrates é quem o afirma em Antíd., 193. A
abundante bibliografia existente sobre o problema das suas relações com
Platão vem citada no artigo de MUENSCHER na Realenziklopädie de Pauly-
-Wissowa, vol. IX, p. 2171. Toda essa bibliografia se tornaria subitamente
antiquada se fosse falsa a hipótese, geralmente aceita nela, de que o diálo-
go fundamental de Platão sobre a retórica – o Fedro – data dos primeiros
tempos ou do período intermédio do autor. É também desse último pressu-
posto que Muenscher parte no seu artigo, magnífico como orientação. Nes-
se ponto, a investigação viu-se forçada a mudar de perspectiva, nesses últi-
mos tempos. Sobre as origens tardias do Fedro, cf. adiante o capítulo sobre
o Fedro, notas 5 ss. Por outro lado, julgo impossível evitar a conclusão de
que o discurso Contra os sofistas também ataca violentamente Platão, além
de outros socráticos. Como obras suas anteriores, pressupõe já o Protágo-
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1087
ras e o Górgias, e talvez também o Mênon (cf. adiante, pp. 1088 ss., o exa-
me desse problema). A concepção de Muenscher, expressa na Realenziklo-
pädie de Pauly-Wissowa, t. IX, p. 2175, segundo a qual Isócrates, na época
do discurso Contra os sofistas, se achava ainda identificado com Platão
quanto ao essencial, não se fundamenta no próprio discurso e talvez cada li-
nha dele a refute. Esse falso ponto de vista deriva exclusivamente da locali-
zação demasiado remota do Fedro, onde Platão vê com melhores olhos Isó-
crates do que os retóricos do tipo de Lísias. A hipótese da sua origem ime-
diatamente posterior ao discurso Contra os sofistas levar-nos-ia necessaria-
mente a interpretar esse discurso como pró-Platão, o que forçaria a verdade.
34. ISÓCRATES, Sof., 1.
35. Como é natural, a palavra “filósofo” não designa exclusivamente
os representantes da paideía que hoje denominaríamos “filósofos”, isto é, os
do círculo socrático. Abrange ainda todas as pessoas que afirmam dedicar-se
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1088
36. Sof., 2: οι¸ περιì ταìς εÓριδας διατρι¿βοντες οιà προσποιουªνται τηìν
não só, como alguns sustentaram, à Aletheia de Antístenes.
α¹ληθειαν ζητειªν, Antid., 261: οιÐ ε¹ν τοιªς ε¹ριστικοιªς λο¿γοις δυναστευ¿οντες.
São relegados para último lugar, juntamente com os que se dedicam aos es-
tudos da Geometria e Astronomia. Ambas as coisas se aplicavam à Acade-
mia platônica. A inconsequente hipótese de Muenscher de que na Antídosis,
mas não no Discurso contra os sofistas, Isócrates inclui Platão entre os erísti-
cos, deriva também da localização demasiado primitiva do Fedro e do con-
sequente corolário da amizade entre Isócrates e o jovem Platão.
37. Segundo a maior probabilidade, foi a confusão entre a sua dialéti-
ca e a erística – que na polêmica de Isócrates era firmemente mantida – o
que levou Platão a traçar no Eutidemo uma linha divisória nítida entre Só-
crates e os espadachins erísticos. Na República, 409 A, queixa-se igualmen-
te de ninguém conhecer o verdadeiro filósofo, e procura pô-lo a salvo da
confusão com o mero polemista. Aqui retrata o filósofo como o homem que
não acha prazer em debates e polêmicas oratórias engenhosas, mas despro-
vidas de finalidade, e busca o conhecimento pelo próprio conhecimento.
38. Protágoras vê-se repetidas vezes impossibilitado de assentir às con-
clusões lógicas de Sócrates e está visivelmente sob a impressão de que o
seu adversário procura ludibriá-lo e armar-lhe ciladas. Platão expõe isso de
um modo totalmente objetivo, sugerindo assim espontaneamente como pôde
nascer contra a dialética socrática a suspeita de erística. Também Calicles,
no Górg., 482 E ss., se vira contra o “truque” de Sócrates empregar o mesmo
conceito com acepções diferentes, dentro da mesma argumentação. Acerca
disso, cf. pp. 671 s.
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1089
39. Sof., 2.
40. Sof., 2-4.
41. A virtude total opõe-se em Platão às virtudes concretas, como a
42. Sof., 5.
43. Cf. Górg., 456 E-457 C, 460 D-461 A.
44. Em Antíd., 215 ss., Isócrates procura livrar os mestres de retórica
da censura de que os seus discípulos aprendem deles o mal. Cf. também
Nic., 2 ss.
45. Essa relação cronológica entre as duas obras é, também por razões
de ordem geral, a mais provável. O Górgias é agora unanimemente situado,
e por motivos convincentes, na segunda metade da primeira década do sé-
culo IV, época em que mal teria sido fundada a escola de Isócrates, pois po-
demos seguir as suas atividades de logógrafo até o ano de 390, aproximada-
mente. O discurso Contra os sofistas, que representa o programa da sua es-
cola, é assim deslocado também para a década de 80. Alguns estudiosos pro-
curaram fixar a relação cronológica entre o Discurso contra os sofistas e o
(Górg., 463 A) e Isócrates de uma ψυχηì δοξαστικη¿ (Sof., 17), isso não pro-
va que Platão esteja imitando Isócrates. Também δοξαστικη¿ é uma expres-
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1091
são platônica. Platão despreza a mera δο¿ξα, ao passo que aqui, como em
49. Sof., 7.
50. Sof., 8.
51. Devia ser mais aplicável a Antístenes do que a Platão a censura re-
ferente aos escassos honorários que os filósofos recebiam dos seus alunos;
é, porém, muito pouco o que sabemos acerca dessas coisas, para podermos
emitir um juízo seguro. É possível que também os discípulos da Academia
tivessem de pagar alguma taxa sem caráter de honorários, mas considerada
como tal por Isócrates, o que, portanto, o levava a interpretá-la como um ar-
dil de concorrência. Na Helena, I, ataca de novo Platão e Antístenes: cf. adian-
te, nota 89 deste cap. Sobre os honorários dos socráticos, ver DIÓGENES, II,
62, 65, 80 e VI, 14.
52. A censura de micrologia faz-se também em Antíd., 262. Aqui essa
censura visa, como todos reconhecem, Platão. Por que será então que se lhe
não há de referir também no discurso Contra os sofistas?
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1093
54. Sobre o cuidado da alma (ψυχηªς ε¹πιµε¿λεια) como termo para de-
os que não haviam tido acesso a ela72. É com muita cautela que
Isócrates se pronuncia acerca da utilidade da educação. Reco-
nhece que o fator decisivo são os dons naturais e confessa fran-
camente que as pessoas de talento e sem cultura chegam fre-
quentemente mais longe que as pessoas cultas, mas sem talen-
to, isso supondo que se possa realmente falar de cultura sem
algo que valha a pena cultivar. O segundo fator, por ordem de
importância, é a experiência, a prática73. Dá a impressão de que
os retóricos, embora reconhecendo, em teoria, a trindade dos
dons naturais, do estudo e da prática, colocavam até então pra-
ticamente em primeiro plano a cultura e o estudo. Isócrates re-
lega modestamente a paideusis para a terceira posição. Ela pode
chegar a grandes resultados, com a ajuda dos outros fatores, o
trabalho e a experiência. Dá aos homens consciência da sua arte,
desenvolve a inventiva e poupa muitos tateamentos e buscas inú-
teis. Pode inclusive estimular e desenvolver espiritualmente ho-
mens pouco dotados, mas sem nunca chegar a fazer deles ora-
dores ou escritores eminentes74.
A cultura retórica pode ensinar a penetrar nas “ideias” ou
formas fundamentais de que todo discurso se compõe. Isócrates
parece indicar que esse aspecto da formação do Homem, o úni-
co até então cultivado, é, sem dúvida, suscetível de grande de-
senvolvimento. Gostaríamos de saber mais da sua nova teoria
das ideias, para podermos compará-las com a dos antigos retó-
ricos. Todavia, não é aqui que reside a verdadeira dificuldade, a
qual é tanto menor quanto maior for a perfeição com que a en-
sinarem. Ela está, pelo contrário, na boa seleção, combinação e
colocação das “ideias” em cada um dos temas tratados, na esco-
lha do momento apropriado, no sentido da medida para ador-
nar o discurso com entimemas, e na combinação rítmica e mu-
sical das palavras75. Para tudo isso é necessário possuir um espí-
rito vigoroso e lúcido. Essa fase suprema da formação pressupõe
por parte de quem aprende o conhecimento pleno das ideias do
72. Sof., 1 e 8.
73. Sof., 14.
74. Sof., 15.
75. Sof., 16.
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1099
92. Helena, 5.
93. Helena, 6.
94. Helena, 7.
95. Helena, 8.
96. Helena, 9.
Paideia31:Cartas00 19.02.13 23:03 Página 1106
Educação política
e ideal pan-helênico
9. Paneg., 1.
10. Cf., acima, pp. 216 s., acerca da elegia em que Xenófanes compa-
ra a areté dos vencedores dos ágones olímpicos aos méritos espirituais do
sábio, que ele próprio representa.
11. A concepção que Isócrates tem da sua missão e que se exprime na
escolha desse fundo espiritual para as suas promessas liga-se, naturalmente,
ao exemplo de Górgias e do seu Olímpico: o representante da areté espiri-
tual tem de competir publicamente com os representantes da areté física,
atletas e corredores, no tribunal da Hélade inteira. A profunda mudança que
em Isócrates sofre o conceito que ele tem de si próprio transparece em An-
tíd., 1 e Fil., 12, onde se desvia da sua antiga eloquência panegírica, porque
já não daria nenhum resultado “na Grécia daquele tempo”. No Filipe, já fala
apenas a um único indivíduo, em quem vê o futuro dominador de todos os
gregos.
12. XENÓFANES, frag. 2, 15-22.
Paideia32:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1113
13. Paneg., 2.
14. Paneg., 3.
16. Cf. Paneg., 17, onde ele usa ιìσοµοιρηªωαι e ταìς η¸γεµονι¿ας διε−
15. Paneg., 10-14.
pírito tenham surgido nessa cidade; quer dizer, sim, que se con-
centram nela como no seu foco, de onde irradiam com força re-
dobrada. Vai se formando um sentimento cada vez mais acen-
tuado a favor dessa atmosfera, necessária ao florescimento da
delicada planta da cultura, Temos na Medeia de Eurípides a nar-
ração poética disso e na República de Platão a sua análise filo-
sófica34. A imagem esplendorosa que Isócrates tem diante dos
olhos não deixa margem para a problemática trágica em que Pla-
tão, com grande sutileza, penetra os perigos do meio. Foi essa
universal aspiração a alcançar riqueza espiritual, saber e cultura,
que formou os atenienses e lhes infundiu o tom característico
de moderação e suavidade, em que se reconhece a civilização.
Essa força soube eliminar aos poucos do número das dores hu-
manas as que não nasciam da necessidade, mas simplesmente
da ignorância, e ensinou-nos, ao mesmo tempo, a suportar dig-
40. Já Tucídides, na oração fúnebre de Péricles (II, 36, 4), tratava esse
assunto com brevidade maior do que tinham por hábito, nessa ocasião, fazer
os oradores, e destacava em primeiro plano a importância cultural de Atenas.
41. Paneg., 51 ss.
Paideia32:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1121
42. Sobre esse ideal de síntese na descrição que Tucídides faz de Ate-
nas, cf., acima, pp. 466 ss.
43. O capítulo sobre os méritos guerreiros de Atenas abrange Paneg.,
51-99. Com ele se relaciona 100 ss., a defesa do primeiro domínio marítimo
ateniense.
Paideia32:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1122
49. É digno de nota que na última luta travada pela cidade-Estado con-
tra a opressão estrangeira – luta dirigida por Demóstenes – foi ainda a ideia
pan-helênica que mais uma vez serviu, nitidamente, de base ideológica. Cf.
o meu Demóstenes, pp. 170-5.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1124
A educação do príncipe
1. R. JEBB, Attic. Orators, vol. II, p. 88, considera “possível” que Nico-
cles, como príncipe, fosse discípulo de Isócrates, mas as palavras de Isócra-
tes em Antíd., 40, indicam, sem lugar para dúvidas, a existência de uma re-
lação de mestre a discípulo; igual sentido tem o final do Evágoras, que tem
o tom, não de um empregado para o seu chefe, mas sim de um mestre para
o seu discípulo íntimo. Em Evag., 80, Isócrates fala também das suas pala-
vras estimulantes e das de outros amigos.
2. DIODORO, 15, 17, situa a morte de Evágoras no ano de 374, mas os
modernos investigadores não são unânimes nesse ponto. O discurso A Nico-
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1125
até agora em celebrar homens de alta areté. O termo ω¹δαι¿ em Evág., 11, alu-
com a poesia. Com efeito, a missão da poesia em forma de hinos consistira
13. Nic., 11: τοìν µεìν ου̃ν εÓτερον (λο¿γον), ω¸ςχρηì τυραννειν
ª , ’Ισοκρα¿τους
12. Cf. acima, pp. 497, s.
tivo é πραªος. Cf. A Nic., 8 e 23, Nic., 16-17, 32 e 55. Dídimo informa também,
no seu comentário às Filípicas de Demóstenes (col. 5, 52, ed. Diels-Schubart),
que Hermias, tirano de Atarneu, “transformou” o seu regime “numa forma de
governo mais suave”, sob a influência educativa dos filósofos platônicos Co-
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1129
ticos”). Cf. em PLATÃO, Rep., 566 D, a imagem do jovem tirano que se es-
força por parecer benigno; e também ÉSQUILO, Prom., 35.
16. Nic., 24 ss. É através de passagens como a citada que se vê clara-
mente por que motivo Isócrates, cidadão de um Estado democrático, não
podia proferir em seu próprio nome esse discurso sobre a monarquia, ven-
do-se obrigado a pô-lo nos lábios de Nicocles, por meio de uma ficção. É
também em idêntica ficção que se baseia o discurso que Isócrates atribui ao
rei de Esparta, Arquidamo.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1130
17. Areop., 11-12. Cf. o cap. seguinte. Cf. também Antíd., 103-139 e o
cap. “Isócrates defende a sua paideía”, da presente obra.
18. Nic., 62.
19. Justiça: Nic., 31; domínio de si próprio: 36 s.
20. Nic., 47.
21. Nic., 43-47.
22. Nic., 48-62.
23. Nic., 1.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1131
24. Nic., 1.
25. Nic., 2. Os “bens” a que Isócrates aqui se refere como fruto da are-
te são evidentemente o êxito e o bem-estar burguês. Isso sublinha com es-
pecial clareza a diferença entre o seu acentuado moralismo e o que os so-
cráticos entendem por bens. Cf., acima, pp. 686 ss.
26. Nic., 3-4.
27. Nic., 5.
28. Paneg., 47-50.
29. Cf. Paneg., 48 e Nic., 6.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1132
que vem a seguir. Não sei se já se terá notado que estamos pe-
rante um hino em prosa inflamada, totalmente composto no ri-
goroso estilo da poesia. O exame pormenorizado dos diversos
testemunhos aduzidos por Isócrates acerca do caráter e dos efei-
tos do discurso prova logo, pela própria forma da linguagem,
que estamos em presença de toda uma série de predicados de
um ser contemplado e personificado deus30. O seu nome vem,
por fim, mencionado no decorrer desse elogio: é o lógos, o cria-
dor de toda a cultura31. Com efeito, os restantes dons que possuí-
mos não nos tornam superiores aos animais; pelo contrário, so-
mos até inferiores a muitos destes em rapidez, em força e em to-
das as demais qualidades. Mas a capacidade, em nós deposita-
da, de nos convencermos uns aos outros e de chegarmos a mútuo
entendimento acerca de tudo o que queremos, não só nos liberta
do tipo de vida dos animais, mas permite agruparmo-nos para
vivermos em comum, fundarmos Estados, criarmos leis e inven-
tarmos artes. Foi o lógos que nos permitiu realizar quase tudo o
que criamos em matéria de civilização. Foi ele que estabeleceu
normas sobre o justo e o injusto, o belo e o feio, sem a ordenação
das quais seríamos incapazes de conviver com os outros. É ele
que nos permite acusar os maus e reconhecer os bons. É graças
a ele que educamos os ignorantes e conhecemos os inteligentes.
A capacidade discursiva é, pois, o sinal mais importante da ra-
zão humana. O emprego verdadeiro, justo e legal da palavra é a
imagem de uma alma boa e digna de confiança. É com o auxí-
lio do lógos que discutimos o duvidoso e investigamos o desco-
nhecido. É que na nossa deliberação conosco próprios necessita-
mos das mesmas razões de convicções com que persuadimos os
outros; mas chamamos retóricos aos homens em condições de
34. Nic., 8.
35. Isócrates diz no c. 8: chamamos retórico a um homem, quando ele
sabe se exprimir nas assembleias. A quem sabe aconselhar a si próprio em
qualquer tema discutível denominamos homem de bom conselho. Com isso
quer dizer que a essência da questão é nos dois casos a mesma, ainda que
usemos expressões diferentes.
lítico (ϕιλοσοϕι¿α) de Isócrates. Cf., por exemplo, De Pace, 19, onde expres-
37. É o conceito de eudaimonía que serve de base ao pensamento po-
39. A Nic., 1.
40. A Nic., 2-3.
41. A Nic., 4. Desde muito cedo estas dúvidas começam a se manifes-
tar na literatura grega. Cf. em Arquíloco (frag. 22, acima, p. 274-5) o carpin-
teiro filósofo, que não aspira ao trono do tirano; ou a renúncia de Sólon ao
domínio absoluto (frag. 23). Contudo, é visivelmente aos socráticos que Isó-
crates aqui alude. Já na Helena, 8, troçara dos que se atreviam a escrever
que a vida dos mendigos e fugitivos era mais invejável que a dos restantes
homens. Era natural que essa ideia se desdobrasse com mais amplitude num
discurso como o dirigido a Nicocles, em que se procurava infundir um con-
teúdo novo ao bíos do monarca.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1136
53. Sobre a “obra” (εÓργον) do bom cidadão, cf. PLATÃO, Górg., 517 C.
52. A Nic., 9.
Mas em vez de τολι¿του deve ler-se πολιτικουª, pois não se trata da missão
do estadista. Tornar os cidadãos os melhores possível é o fim da paideía po-
lítica: Górg., 502 C; cf. 465 A.
54. A Nic., 6, no fim.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1138
71. Cf. A Nic., 12 (final): ω¸ς... τηςª παιδευ¿σεως... µα¿λιστα δυναµε¿νης τηìν
η¸µετε¿ραν ϕυ¿σιν ευ¹εργετειªν.
72. A Nic., 13. Para os próprios ideais, cf. c. 9. sobre o εÓργον do mo-
narca.
73. A Nic., 14.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1143
toramento (Leipzig, 1914). A. BURK, Die Pädagogik des Isokrates, p. 208, de-
riva unilateralmente desse conceito grego de filantropia o conceito romano
de humanitas. Já AULO GÉLIO, Noct. Att., XIII, 17, emitia a esse respeito um
juízo correto ao distinguir humanitas – paideía. O conceito de filantropia
não tem nenhuma acepção central em Isócrates; o fulcro do seu pensamen-
to é o conceito de paideía, que serve de base ao seu “humanismo”. Isso, po-
rém, de modo nenhum exclui a filantropia.
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1144
77. TUCÍDIDES, II, 65, 8-9. A expressão υ¸βρι¿ζειν, empregada por Isó-
76. A Nic., 16.
guem vitórias que só lhes servem de prejuízo. Não tenhas por gran-
de o soberano que estenda a mão para coisas maiores do que as
que pode alcançar, mas sim quem, aspirando a coisas elevadas,
saiba levar a cabo o que empreende 88. Não tomes por modelo
quem possui o maior poder, mas sim quem melhor sabe usar o
poder que tem89. Não concedas a tua amizade a todos quantos
desejem ser teus amigos, mas só a quem for digno da tua nature-
za. Não escolhas, para tal, os homens cujo convívio mais te agra-
de, mas antes os que te ajudem a governar melhor o Estado. Exa-
mina cuidadosamente aqueles com quem convives, sabendo que
todos quantos não tiverem acesso pessoal junto de ti te julgarão
pelos que te rodeiam. Escolhe os chamados a tratarem dos as-
suntos públicos de que não te possas ocupar pessoalmente, com a
consciência de que serás o responsável por todos os seus atos 90.
Não dês a tua confiança a quem louve tudo quanto digas ou fa-
ças, mas sim a quem te censure os erros. Deixa exprimirem-se li-
vremente os que têm o coração no seu lugar e assim terás ho-
mens que te ajudarão a ver claro onde tiveres dúvidas 91.
A paideía do monarca culmina na exigência do domínio de
si próprio. A essência do poder real não suporta que o seu titu-
lar seja escravo dos seus próprios apetites. Tem de ser esse o pon-
to de partida do governo sobre os restantes homens92. Tudo
quanto se diz sobre a maneira como o rei deve escolher os que
o rodeiam depende em última análise da importância que as re-
lações com os outros têm para a sua própria formação. É segun-
do o mesmo ponto de vista que se devem apreciar também os
atos do soberano e as tarefas que se atribui, considerando a me-
dida em que contribuem para o desenvolvimento do seu cará-
ter. A verdadeira norma para medir a atitude do povo para com
o seu soberano e a sua areté não é o respeito que publicamen-
mo socrático ε¹γκρατη¿ς.
domínio sobre si, é socrática. Cf., acima, pp. 546 s. Em Nic., 39, aparece o ter-
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1148
104. A partir daqui, vê-se claramente que tal influência não podia con-
tinuar a ser, de modo nenhum, uma mera influência da forma retórica, mas
tinha de se estender também aos critérios internos da paideía retórica, isto é,
às ideias políticas e à descrição da areté humana ou do seu contrário.
ele a fonte de toda a experiência política (εìµπειρι¿α), cf. A Nic., 35. Ver o meu
105. Isócrates acentua na História principalmente esse lado, que é para
und Vorbild der ‘Vorlahren’ bei den attischen Rednern und Geschichte-
schreibern bis Demosthenes”, in: Rhetorische Studien, ed. por E. Drerup,
vol. XIX (Paderborn, 1936).
Paideia33:Cartas00 19.02.13 23:02 Página 1153
Autoridade e liberdade
na democracia radical
4. Areop., 1-2.
5. Areop., 3.
6. Areop., 4-5.
Paideia34:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1159
7. Areop., 6-7.
8. Fil., 47; De Pace, 100; Panat., 56 ss.
9. Areop., 5 e 8.
10. Areop., 7 (final).
Paideia34:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1160
παιδευ¿ειν. Isto prova que estava absolutamente convencido de que não era
formadora ou, antes, deformadora do Homem, Isócrates escolhe o termo
25. Areop., 24. É interessante que este mesmo lema trabalhar e poupar –
pois se trata visivelmente de um lema muito comum nascido da luta dos par-
tidos no século IV – apareça em PLATÃO, Rep., 553 C, para caracterizar o ho-
mem oligárquico. Dificilmente Isócrates teria tirado dessa caricatura as cores
para pintar a sua imagem ideal: é por isso que é tanto mais interessante a sua
coincidência com Platão nesse ponto. Sobre a inclinação de Isócrates para as
concepções políticas da camada dominante, cf. o resto do capítulo.
26. Areop., 25.
28. Areop., 27, cf. as palavras τουìς... δυνατωτα¿τους ε¹πιì ταìς πρα¿ξεις
27. Areop., 26.
96. Paneg., 119: αàµα γαìρ η¸µειªς τε¿ τηªς α¹ρχηªς α¹πεστερου¿µεθα καιì τοιªς
ÁΕλλησιν α¹ρχηì κακωªν ε¹γι¿γνετο (cf. a partir do § 100).
97. De Pace, 101 ss.: ‘τοτε την αρχην αυτοις (τοις ’A.) γεγενηªσθαι τωªν
συµϕορωªν, οàτε τηìν α¹ρχηìν τηªς θαλα¿ττης παρελα¿µβανον.
98. Cf. JAEGER, Areopagiticus, p. 429.
99. Paneg., 120-121.
Paideia34:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1187
100. De Pace, 16. Não quero aqui esgrimir contra aqueles que, apesar
desta contradição manifesta entre o Panegírico e o De Pace, consideram idên-
tica a opinião sustentada por Isócrates nas duas obras. Confesso, porém, que
não entendo a sua lógica. Creio que nesses intérpretes o desejo de traçar
uma imagem harmônica é mais forte do que a sua capacidade para ajustar
essa imagem aos dados reais.
101. A moral privada e a pública não devem contradizer uma à outra:
De Pace, 4, 133.
102. Sobre a distinção entre domínio e hegemonia, concebida nesse
sentido, cf. De Pace, 142 ss. Cf. ainda a tese de doutoramento pela Universi-
dade de Berlim, a qual foi por mim sugerida: Die Synonymische Unterschei-
dung bei Thukydides und den politischen Rednern der Griechen (Würzburg,
1937), da autoria de W. WÖSSNER, que investiga o uso dessa distinção no
arrazoado político.
Paideia34:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1188
o seu tipo (τρα¿πος), a sua forma de vida (βι¿ος) e a sua paideía (à qual em
visados nesta obra: segundo afirma, pretende com ela expor o seu caráter e
29. Cf., acima, pp. 1187-8. Compare-se De Pace, 64, onde se exige a
renúncia ao domínio marítimo, com De Pace, 142, onde se recomenda uma
hegemonia baseada na submissão voluntária.
30. Antíd., 62 ss.
31. Cf., acima, pp. 1185 ss. É escusado dizer que os objetivos imperia-
listas do Panegírico não correspondem de modo algum ao programa do par-
tido pacifista ateniense, no ano de 355, cujas concepções se refletem no De
Pace. É principalmente a estas que Isócrates quer fazer honra na Antídosis.
32. Cf. Antíd., 62.
33. Já em Antíd., 40, se mencionava isso.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1197
48. Cf. acima, pp. 1137 ss., 1166 ss., e o meu Demóstenes, pp. 249 ss.
49. Cf. Sof., 21; Helena, 5. A pretensão que Isócrates tem (Paneg., 3-4)
de a retórica versar sobre as máximas coisas humanas, isto é, sobre os pro-
blemas de política atual, remonta ao seu mestre Górgias. Cf. PLATÃO, Gór-
gias, 451 D.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1202
61. Cf. acima, pp. 49 s., onde se aprecia a importância da cena de Fê-
nix para a paideía grega e a sua consciência trágica das limitações de toda a
educação. A insistência no problema e o reflexo do processo atual na ima-
gem da primitiva poesia é característica da mentalidade grega.
62. Antíd., 133.
63. Antíd., 134.
64. Antíd., 135.
65. Antíd., 136.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1206
corpo, o Homem precisa que se vele por ele nesse duplo senti-
do, e foi por isso que as gerações passadas criaram a dualidade
da ginástica e da formação do espírito84. Com essa segunda par-
te, não é à música, como de costume, que Isócrates aqui alude,
mas antes à Filosofia e ao amor pela verdade; é que para ele,
como bom grego, a relação da poesia e das outras artes “musi-
cais” com a formação do espírito não admite discussão85. Existe
Antíd., 184, acerca do συνει¿ρειν καθ’ εàν εàκαστον. O sentido desse método
a partir dos pontos de vista gerais descobertos no processo de análise. Cf.
89. Antíd., 194. O fragmento aqui citado é Sof., 14-18. Em Antíd., 195,
destaca-se expressamente a identidade da concepção exposta em ambas as
obras.
90. Antíd., 196 ss.
91. Antíd., 197.
92. Antíd., 198.
93. PLATÃO, Prot., 320 C ss.
94. Cf., acima, pp. 362-7.
95. Antíd., 209-214.
96. Antíd., 199-201.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1212
acha, todavia, perniciosa a sua influência. Cf. Antíd., 217 ss., acerca da mo-
tivação do educador.
100. Antíd., 220.
101. Antíd., 221-222.
102. Antíd., 223-224.
103. Cf., adiante, pp. 1284 ss.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1213
SEN, “Die Entwicklung der aristotelischen Logik und Rhetorik” in Neue Phi-
lol. Untersuchungen, eds. por W. Jaeger, vol. IV, pp. 196 ss. (Berlim, 1929).
112. Esta base é a dialética. Já no Fedro Platão examinava em novo
sentido a questão de saber se a retórica era ou não uma verdadeira tékhne,
o que no Górgias negara redondamente. (Cf. mais adiante o cap. “O Fedro”.)
Nessa obra pede que se lhe dê uma nova fundamentação, com base na dia-
lética. SOLMSEN, op. cit., no quadro que traça da evolução da primitiva re-
tórica aristotélica, apresenta um perfeito paralelo dessa mudança de atitude
de Platão perante a retórica, mas sem atribuir ao Fedro o lugar que lhe com-
pete. A mim o que parece mais verossímil é o Fedro ser posterior ao Grilo
de Aristóteles (pouco depois de 362), ainda que não muito posterior. Tanto
no Grilo como no Górgias, a retórica não é considerada tékhne, ao passo
que no Fedro pode-se converter em tal. O curso da retórica de Aristóteles
reflete esse processo nos seus diversos estratos. Em todo caso, creio que o
Fedro deve ser considerado anterior à Antídosis (ano de 353).
113. Cf. SOLMSEN, op. cit., p. 207. BLASS, op. cit., p. 452, continuava a
explicar os ataques de Cefisodoro à teoria platônica das ideias (numa obra
contra Aristóteles!), à maneira da sabedoria escolástica da baixa Antiguidade
pelo total desconhecimento do discípulo de Isócrates. Assim, situa essa obra
depois da morte de Isócrates, quando já era por força conhecida de todos –
pela fundação de uma escola própria e através dos seus ataques literários – a
secessão aristotélica da escola platônica. Ver o meu Aristóteles, pp. 50 s.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1216
acabem por cair nas ninharias dos antigos sofistas (termo com
que se refere aos que hoje designamos como pré-socráticos).
Com efeito, essas artes de prestidigitadores que só causam a ad-
miração dos ignorantes deviam ser arrancadas pela raiz e dester-
radas dos centros de cultura124. Precisamente por aqueles anos
dedicava a Academia redobrada atenção a esses estudos, como
o provam o Parmênides e o Teeteto de Platão, e as obras dos
seus discípulos. Conclui-se necessariamente, portanto, que essa
última estocada era também dirigida contra a Academia. Isócra-
tes consegue ainda reconhecer o valor da dialética platônica e
das ciências matemáticas, em conjunto, como ginástica do espí-
rito. No entanto, as especulações metafísicas sobre o Ser e a na-
tureza, ligadas aos nomes de Empédocles, Parmênides, Melisso
e outros, são por ele consideradas pura insensatez e provocam
a sua indignação125.
É aqui que Isócrates chega finalmente à determinação da
essência da verdadeira cultura e a opô-la ao conceito da cultura
mas Isócrates volta a colhê-las na sua totalidade, prova de que esse antago-
nismo entre os dois ideais de cultura é eterno. Cf. ainda panat., 27, 28.
124. Antíd., 268-269. Já na Helena, 2-3, Isócrates atacara os filósofos
pré-socráticos, Protágoras, Górgias, Zenão e Melisso, como simples rebusca-
dores de paradoxos, e prevenira contra a sua imitação. Na Antídosis critica
Empédocles, Íon, Alcméon, Parmênides, Melisso e Górgias. É claro que não
critica Górgias como retórico, mas sim como inventor do famoso argumento
o ser não é, que foi uma exageração dos paradoxos tão do gosto dos filóso-
fos eleatas.
125. No Parmênides e no Teeteto de Platão discutem-se vivamente os
problemas da escola eleata, de Heráclito e de Protágoras. Nas listas das
obras de Aristóteles são especialmente citadas obras de Xenófanes, Zenão,
Melisso, Alcméon, Górgias e dos pitagóricos. Esses estudos nasceram do con-
tato intensivo da Academia com os pensadores antigos, e os seus frutos já se
manifestaram nas partes mais antigas da Metafísica de Aristóteles, sobretudo
no livro I, que trata dos pensadores anteriores a ele. Xenócrates escreveu
sobre Parmênides e os pitagóricos; Espeusipo, sobre os pitagóricos; Herácli-
des do Ponto, sobre os pitagóricos, Demócrito e Heráclito. Não é, pois, in-
fundado considerar a polêmica de Isócrates contra os antigos filósofos parte
da sua crítica da paideía platônica. Esta contrariava-o também por esse re-
nascimento do estudo dos pré-socráticos (cf. Antíd., 285). Imagine-se o que
teria dito das formidáveis obras histórico-filosóficas que iriam surgir, mais tar-
de, a partir daqueles inícios da escola, do velho Aristóteles.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1219
138. Poderia provar-se, sem margem para dúvidas, que se trata de uma
réplica à censura platônica de que a retórica ensina aos homens a mera sa-
tisfação dos impulsos egoístas naturais. Já em Antíd., 275, Isócrates reco-
mendava aos adeptos da Filosofia que aplicassem melhor o seu eros à ora-
tória e se entregassem de alma e coração “à verdadeira pleonexía”, acerca da
qual se propunha falar dentro em breve. Era uma observação picante cujo
sentido se esclarece em Antíd., 281 ss. À essência da pleonexía (desejo de
mais), profundamente enraizada na natureza do Homem, como instinto de
posse, dedica ele aqui uma investigação especial, em que procura dar a esse
conceito um sentido positivo. É nesse ponto que Isócrates traça uma nítida
linha divisória entre si próprio e o Calicles de Platão. Essa linha divisória é a
da moral.
139. De Pace, 33. Já nessa obra, c. 31 ss., se vê claramente que Isócra-
tes é contrário ao amoralismo do Calicles platônico e à sua teoria do direito
do mais forte, à qual no Górgias Platão liga a retórica e os seus ideais polí-
tico-práticos de cultura. Na Antídosis, Isócrates procura separar nitidamente
as duas coisas.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1224
140. Antíd., 282 e 285. Em 283, Isócrates censura o abuso das palavras
em que incorrem os filósofos, ao transpô-las das coisas supremas para as
coisas piores e mais reprováveis. Na realidade, ele próprio muda o sentido
do termo pleonexia, de algo moralmente repugnante em algo ideal. Ao fazê-
-lo, segue sensivelmente o exemplo de Platão, que no Banq., 206 A, define
o éros idealizado como o impulso para a assimilação do mais belo e do me-
lhor (cf., acima, pp. 744 ss.), onde já se alude à análoga transmutação do
conceito de amor-próprio – ideal – por Aristóteles). No Górgias Platão ensi-
nava analogamente que o poder a que os homens ambiciosos de poder po-
lítico aspiram não é um poder real. Isócrates pretende provar pelos mesmos
meios que a sua retórica conduz a esse verdadeiro e superior enriquecimen-
to humano de si próprio. Isso quer dizer que alguma coisa aprendeu de tão
aborrecida dialética.
141. Antíd., 286-290. É perfeitamente socrática a pintura da ambiciosa
juventude da sua escola, pintura que culmina no ideal do autodomínio e da
preocupação de velar por si próprio (cf. 304). Isócrates aceita a moral práti-
ca dos socráticos, embora sem a dialética nem a ontologia platônicas, e fun-
de-a com a sua cultura retórico-política.
Paideia35:Cartas00 19.02.13 23:01 Página 1225
Xenofonte: o cavaleiro
e o soldado ideais
26. Acerca da paideía de Ciro, o Moço, cf. An., I, 9, 2-6. Xenofonte des-
creve-a tanto para caracterizar o seu herói como para caracterizar a si mes-
mo. Cf. adiante, pp. 1239 ss. A ingênua narração da nobreza dos persas em
Cirop., I, 2, 16, era talvez a mais adequada para dar uma ideia do que um
grego culto do tempo de Platão considerava nobre naquele povo. Entre os
persas considerava-se incorreto cuspir e assoar o nariz; era também incorre-
ção ser visto quando se ia ao local indicado fazer as suas necessidades. A
explicação médico-dialética que Xenofonte acrescenta e o realismo de toda
a passagem provam que esses pormenores foram todos tirados dos Persica
do médico Ctésias, que escreveu na corte do rei Artaxerxes e vem citado na
Anábare, I, 8, 27.
27. Sobre as ideias pan-helênicas de Ciro e o alto apreço em que tinha
a cultura grega, cf. a sua alocução às tropas gregas em An., I, 7, 3. Xenofon-
te faz-lhe dizer nessa obra que trouxera os gregos para essa campanha por-
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1238
ráter de Ciro nos aspectos que o interessavam: τι¿ς ποτ’ ωÓν γενεαìν καιì ποι¿αν
34. Cf. em Cirop., I, 6, as palavras de Xenofonte para descrever o ca-
τιναì ϕυ¿σιν εÓχων καιì ποι¿α. τινιì παιδευθειìς παιδει¿α ποσουªτον διη¿νεγκεν ει¹ς
τοì αÓρκειν α¹νθρω¿πων. Uma tão grande importância como a que aqui se atri-
bui à paideia entre os persas, assinala-a Xenofonte no sistema espartano:
Constituição dos lacedemônios, II. No entanto, a exposição da paideía de
Ciro limitava-se essencialmente ao cap. II do livro primeiro da Ciropedia.
Também a Anábase tira o título do I capítulo da obra, apesar de a parte prin-
cipal se consagrar à narração da retirada dos gregos, isto é, da katabasis.
Não faltam exemplos desse tipo de títulos na literatura grega.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1240
mãe Meda, I, 3, 16. Sobre o seu pai, persa, lemos em I, 3, 18: µε¿τρον αυ¹τωª
ουìχ η¸ ?υχη¿, α¹λλ’ ο¸ νο¿µος ε¹στι¿ν ?υχη¿; significa veleidades subjetivas, em
oposição à objetividade das normas da lei.
38. Com Péricles seu primeiro cidadão (πρωªτος α¹νη¿ρ). Atenas gerou
37. Hipparchicus, IX, 8.
46. Cirop., I, 2, 6.
47. Cirop., I, 2, 7.
48. Cf., acima, p. 548, nota 119; pp. 958-9, 1178 ss.
49. Cirop., I, 2, 7.
50. Cirop., I, 2, 8-9. Também ISÓCRATES, Areop., 43 e 50, proclama a
necessidade de velar melhor pelos efebos e pelos jovens.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1244
51. Cirop., I, 2, 10. Cf. Const. dos laced., IV, 7; VI, 3-4. Sobre o Cinegé-
tico, cf. adiante, pp. 1264 ss.
52. Oik., IV, 4 ss.
53. Cirop., I, 2,12 (final)-13.
54. Aos cidadãos espartanos com plenitude de direitos tinha, contudo,
de parecer estranho que até o rei dos persas e a alta nobreza se entregassem
fervorosamente à agricultura. Em Esparta eram considerados banais esses
trabalhos, como qualquer outra ocupação profissional. Cf. Const. dos laced.,
VII, 1. Xenofonte, que não coincide aqui com o seu próprio ideal espartano,
aponta expressamente em Oik., IV, 3, essa oposição entre Esparta e a Pérsia.
55. Cirop., I, 2, 5.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1245
64. Cf. PLATÃO, Leis, 626 A (cf. adiante o capítulo sobre as Leis). É em
termos semelhantes que o autor oligárquico da obra intitulada Constituição
dos atenienses (que chegou até nós atribuída a Xenofonte) admira a assom-
brosa coerência em todos os pormenores do sistema democrático, sem se
pronunciar quanto ao fundo da questão.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1249
72. Além da República e das Leis de Platão, onde esse princípio é acei-
to, cf. principalmente a exposição de ARISTÓTELES no Et. Nic., X, 10, 1180
a 25: O Estado espartano é o único em que o legislador vela pela educação e
pelo regime de vida dos homens; na maioria dos Estados essas coisas são to-
talmente desprezadas e cada qual vive como melhor lhe parece, imperando,
à maneira dos ciclopes, sobre mulheres e crianças.
73. Const. dos laced., XIV, 6; os espartanos são agora tão pouco queri-
dos na Grécia que os restantes gregos fazem frente comum para impedir o
ressurgimento do seu domínio.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1253
incultura. Cf. ARISTÓTELES, Retórica, III, 7, 1408 a 32, onde se opõe a πεπαι-
δευµε¿νος. Mais especificamente, a Et. Nic., II, 7, 1108 a 26, apresenta a palavra
como o oposto ao desembaraço (no trato social), à ευ¹τραπελι¿α. TEOFRASTO,
em Caracteres, IV, faz uma descrição do tipo do α¹γροι̃κος.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1255
cordam facilmente que não são as mais adequadas para tal fim
as profissões que os gregos chamam banais, além de não serem
tidas em alta estima em quase nenhum Estado. Essas profissões
debilitam o corpo pelo seu regime sedentário, prejudicial à saú-
de, e embotam o espírito85. Sócrates recomenda a profissão de
agricultor e revela no decurso do diálogo conhecimentos tão as-
sombrosos nessa matéria que Xenofonte se julga na obrigação
de esclarecer isso de modo especial. Para justificar o interesse
pela agricultura em geral e apresentá-la como um tipo de ativi-
dade merecedora do respeito social, Sócrates lembra o exemplo
dos reis persas, que só consideravam digna de se associar aos
deveres militares uma única paixão: o cultivo da terra, as ativi-
dades de lavrador e de jardineiro86. Ao dizer isso, Xenofonte apoia-
-se naturalmente no seu conhecimento direto das condições de
vida vigentes na Pérsia. Postos, porém, na boca de Sócrates, tor-
nam-se um tanto surpreendentes os pormenores que dá acerca
dos maravilhosos jardins de Ciro87. Xenofonte acrescenta a isso
uma recordação pessoal do chefe militar espartano Lisandro,
que por ocasião da sua visita a Sardes foi conduzido por Ciro
através dos seus jardins e ouviu dos lábios do próprio rei que
trabalhava neles todos os dias, tendo plantado pela própria mão
todas as árvores e arbustos do parque e traçado as suas linhas.
Lisandro confiara-o a um amigo em Megara, à casa do qual fora
convidado, e que por sua vez o dera a conhecer a Sócrates88.
Essa clara ficção quer indubitavelmente dar a entender que o
autor, pondo na boca do mestre palavras da sua lavra (como
também Platão costumava fazer), o soubera diretamente de Li-
sandro. Talvez Xenofonte lhe tivesse sido apresentado como o
valente oficial que chefiou os dez mil gregos, na sua retirada da
Ásia. Eram ambos amigos de Ciro e a ninguém mais do que Xe-
nofonte poderia Lisandro ter alegrado com as suas lembranças
do herói caído. Para ele, que também teve de se consagrar mais
tarde à agricultura, aquela associação, no regime de vida do prín-
89. Oik., IV, 4. Cf. também IV, 12, sobre a combinação de ambas as ati-
96. Oik., VII, 14. A mulher não espera chegar a ser colaboradora
(συµπραξαι) do seu marido.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1259
de. Por παιδευ¿ειν não se deve entender aqui tanto a preparação técnica
109. Cf. Oik., XII, 4 ss. até XIV, sobre a paideía do feitor da proprieda-
127. Cineg., I, 1.
128. Sobre a figura mítica de Quíron na antiga tradição da paideía, cf.
acima, pp. 48 ss.
129. Sobre Quíron como educador dos heróis, em Píndaro, cf., acima,
pp. 48, 264-5.
130. Cineg., I, 2.
131. Cineg., I, 5 ss.
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1265
III a.C. É com razão que Norden sublinha a insegurança dos argumentos me-
ramente estilísticos; e, embora não se atreva também a considerar Xenofonte
o autor da obra, põe corretamente a claro que a luta pela verdadeira paideía
a nenhum século se ajusta melhor que ao de Xenofonte. Por outro lado julga
que o estilo de preâmbulo só pode ser atribuído à chamada segunda sofís-
tica do Império Romano, pelo que o considera uma adição
Paideia36:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1266
posterior à obra. Essa tese esbarra contra o fato de o preâmbulo ser expres-
samente citado no começo da parte final do Cineg., XII, 18, o que Norden
não levou em conta. A obra forma uma unidade indivisível. O preâmbulo e
a conclusão servem para integrar a parte fundamental, puramente técnica da
obra, na discussão do século IV sobre a paideía, e para analisar o valor da caça
para a educação do Homem. Repugna-nos contradizer um especialista do es-
tilo, como Norden, mas é indubitável que o preâmbulo não difere substan-
cialmente de outras passagens à maneira retórica. É um problema que me
proponho analisar mais a fundo em outro lugar.
135. Cineg., XIII, 3 e 6.
136. Cineg., XII, 1.
138. Cineg., XII, 7-8: τοì ε¹ν τηª ηÓληθει¿α παιδευ¿εσθαι opõe-se à paideía
137. Cineg., XII, 2-6; cf. Anth. Pal., XIV, 17.
paideía existem agora peritos e leigos ( ι¹διωªται), ainda que neste campo o
142. Cineg., XIII, 4. É interessante notar que também em matéria de
leigo exerça com maior vigor que em nenhum outro a sua crítica. Xenofon-
te sublinha também o seu caráter de leigo no final da obra Da arte da equi-
143. A singeleza de que o autor se jacta ao escrever ιÓσως ου¹ν τοιªς µεìν
tação, XII, 14.
ο¹νο¿µασιν ου¹ σεσοϕισµε¿νως λε¿γω, ου¹δεì γαìρ ξητωì τουªτο não se deve tomar
muito ao pé da letra. Não são nada desprezíveis os recursos estilísticos que
exibe no preâmbulo e no final da obra, para aparecer como um escritor
“singelo”.
incultas do seu tempo a falta de quaisquer γνωµ ª αι (cf. acima, pp. 167 s.).
144. Cineg., XIII, 5. Este lembra-nos Teógnis, 60, que censura às pessoas
paramos com essa obra, que trata toda ela do problema do éros,
é fácil vermos no Fedro o segundo grande diálogo erótico de
Platão. Essa iluminação unilateral da fachada faz perder comple-
tamente nas sombras, ou então aparecer como puramente aces-
sório, o segundo corpo do edifício. A distância que o separa do
primeiro aumenta à medida que se tende a converter em fulcro
da parte II do diálogo o método platônico da dialética. Para sair
dessas dificuldades só um caminho existe: compreender a situa-
ção espiritual em que a obra surgiu e onde Platão quer expres-
samente situá-la.
É nas suas relações com o problema da retórica que reside
a unidade do Fedro. As duas partes da obra dedicam-se em igual
medida a esse problema. O desconhecimento desse vínculo que
as une explica a maior parte das perplexidades em que os intér-
pretes se veem. A chamada parte erótica, ou seja, a primeira, co-
meça com a leitura e a crítica de um discurso de Lísias, apre-
sentado como o dirigente da mais influente escola retórica de
Atenas, e que no tempo de Sócrates estava no apogeu do seu
prestígio7. Platão o confronta sucessivamente com dois discur-
sos de Sócrates sobre o mesmo tema, o valor do éros, para pro-
var uma destas duas coisas: como, a partir das falsas premissas
de Lísias sobre o éros, se pode tratar melhor do que ele o mes-
mo tema ou como deve essa questão ser exposta, quando se
sabe verdadeiramente o que ela é. De acordo com o anterior,
começa-se na parte II a expor de modo predominantemente ge-
nérico os defeitos da retórica e dos sistemas retóricos em vigor
no tempo de Sócrates, para em seguida se iluminarem os méri-
tos da dialética socrática como instrumento de uma autêntica re-
tórica. No fim, deixa sem solução o problema de saber se algu-
ma vez chegará a existir esse tipo de retórica. Apesar disso, Pla-
7. Segundo Platão, a única base comum sobre a qual seria possível es-
tabelecer um paralelo entre a sua própria pedagogia e a arte retórica de Lí-
sias era a pretensão de ambas as partes representarem a autêntica paideía
do seu tempo. Também Isócrates distinguiu, como as três formas principais
da paideía coeva: 1.º) os socráticos; 2.º) os mestres da eloquência política do
tipo de Alcídamas; e 3.º) os logógrafos e os autores de discursos à maneira
de Lísias (cf. ISÓCRATES, Sof., 1).
Paideia37:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1273
8. Fedro, 279 A.
9. Fedro, 228 A, 258 D.
10. Já CÍCERO, Or., 13, 42, diz acertadamente (e esse juízo provém de
fonte helenística): haec de adolescente Socrates auguratur at ea de seniore
scribit Plato et scribit aequalis. Quem examinasse com atenção as relações
literárias entre Platão e Isócrates, como é de crer que o fizessem os filólogos
de Alexandria, tinha por força de chegar a essa conclusão. Nunca se devia
ter tomado o testemunho de Diógenes Laércio por outra coisa diferente de
uma simples interpretação desse autor. Cf., acima, nota 2 deste capítulo.
Paideia37:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1274
17. Relação de DIÓGENES LAÉRCIO, n.º 71: θε¿σεις ε¹ρωτικαι¿; n.º 72,
16. Fedro, 228 B-E.
θε¿σεις ϕελικαι¿.
18. Também no Banquete o problema do éros, concretamente no início
do duelo oral e no discurso de Fedro, aparece como um tema nitidamente
retórico. Cf., acima, pp. 731 ss.
Paideia37:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1276
dro, 263 B, postula a divisão do eîdos (διαι¿ρεσις). Mais abaixo, figuram nu-
41. É esse o procedimento que adota em ambos os discursos. Em Fe-
51. Fedro, 269 B-C: ταì προì τηªς τε¿χνης αìναγκαιªα µαθη¿µατα.
50. Fedro, 269 D.
dos seus dotes naturais (ευϕυι¿α), principalmente o seu saber filosófico, que
se formule de modo expresso. Também no caso de Péricles se salienta, além
não é mais do que o esboço típico da teoria psicológica das ideias (ψυχηªς
67. Como sempre acontece no Fedro, o que Platão diz a esse respeito
A fala desse esforço como de uma µακραª περι¿οδοσ. Sobre o longo rodeio da
paideía platônica, cf. Rep., 504 B.
Paideia37:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1287
(χαρι¿ζεσθαι). Platão muda esse conceito para falar e agir a fim de agradar
a Deus (θεοιìς καρι¿ζεσθαι). Fedro, 273 E, bem como afirma nas Leis que não
é o Homem, e sim Deus, a medida de todas as coisas. Portanto, é naquele
ponto da retórica em que transparece a concepção do mundo própria do re-
lativismo de Protágoras e dos sofistas que se apoia um novo ideal da arte
oratória, cuja norma é o Bem eterno.
80. Fedro, 274 C ss.
81. Fedro, 275 A.
Paideia37:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1289
82. Carta VII, 341 C-D, 344 D-E. Cf., adiante, 1304-6.
83. Fedro, 275 E.
84. Fedro, 276 A.
85. Fedro, 275 D.
86. Cf., acima, pp. 362 ss.
87. Fedro, 276 B.
Paideia37:Cartas00 19.02.13 23:06 Página 1290
88. Rep., 498 A ss.; Teet., 186 C: ε¹ν χρο¿νω διαì πολλωªν πραγµα¿των καιì
παιδει¿ας παραγι¿γνηται οιª¸ς αÓν καιì παραγι¿γνηται.¸ Cf. Fedro, 273 E: ε¹ν... αÓνευ
πολληªς πραγµατει¿ας.
90. Cf. Teet., 186 C: οιª¸ς αÓν παραγι¿γνηται, e Carta VII, 341 E. São aque-
89. Carta VII, 341 C.
les que, com uma pequena orientação, possuem a força necessária para en-
contrar por si o conhecimento.
Paideia38:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1291
tradição. Cf. R. ADAM, Die Echtheit der platonischen Briefe (Berlim, 1906),
pp. 7 ss.
Paideia38:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1293
Platão diz na Carta sétima que Díon esperava que o seu parente
desse a Siracusa uma constituição e governasse o Estado de
acordo com as melhores leis5. Mas a situação da qual nascera em
Siracusa a ditadura não consentia, segundo o tirano, semelhante
política. Platão achava que só ela firmaria o verdadeiro reinado
de Dionísio na Sicília e na Itália, e lhe daria estabilidade e razão
de ser. Dionísio, ao contrário, estava convencido de que em pou-
co tempo daria cabo do seu reino, que se desintegraria em cida-
des-Estados que ficariam, outra vez, impotentes, à mercê da in-
vasão cartaginesa. Esse episódio é o prelúdio da tragédia que
mais tarde se desencadearia entre Platão, Díon e Dionísio II, fi-
lho e sucessor de Dionísio I. Platão regressou a Atenas, enrique-
cido com uma grande experiência, e ali fundou, pouco depois, a
sua escola. No entanto, as relações com Díon sobreviveram ao
fracasso que havia de fortalecer Platão na sua decisão de se abs-
ter de toda a política ativa, decisão proclamada já na Apologia.
Entre os dois homens firmou-se uma amizade que durou a vida
inteira. Mas, enquanto a partir daquela altura Platão se dedicou
inteiramente às tarefas próprias de um mestre de filosofia, Díon
continuava aferrado à sua ideia de reformar politicamente as tira-
nias sicilianas; e esperou que surgissem circunstâncias mais favo-
ráveis, as quais lhe permitiriam, talvez, pô-la em prática.
A ocasião para isso pareceu surgir quando Dionísio II, ain-
da jovem, assumiu o poder, com a morte de Dionísio I [367]. A
República de Platão saíra, entretanto, na década de 70. Essa obra
deve ter constituído um novo incitamento para as ideias de
Díon, pois nela apareciam formulados em forma clássica os pen-
samentos que tempos atrás ouvira exprimir ao seu autor. Poucos
anos depois de publicado, esse livro ocupava o centro das dis-
cussões. Platão focava repetidas vezes nele o problema da reali-
zação do seu Estado ideal, sem, porém, chegar a salientá-lo
como decisivo para a aplicação prática da sua paideía filosófica.
Talvez – escrevera6 – esse Estado perfeito só exista no céu como
protótipo ideal, sem nunca se chegar a converter em realidade,
ou então numa remota e ignorada lonjura, entre povos bárbaros,
7. Rep., 499 C.
8. Já nos primórdios da época helenística se começou a apontar o Egi-
to como analogia ou modelo da República de Platão. Cf. CRANTOR, no Com.
de Proclo ao Timeu, I, 75 D. Cf. ainda o meu Diokles von Karystos, pp. 128 e
134 s., e o meu ensaio “Greeks and Jews” in: Journal of Religion, 1938.
9. Rep., 591 E.
10. Rep., 501 A; Carta VII, 325 E s.
11. O Estado perfeito é um mito, Rep., 501 E. Mas um príncipe filósofo
podia torná-lo realidade, 502 A-B.
12. Leis, III, 691 C.
13. É possível que Platão tenha deixado essa porta aberta porque, já
na época em que escreveu a República, Díon depositasse grandes esperan-
ças no jovem Dionísio. A única evidência é que o filósofo só fala de um re-
bento de sangue real e não de um príncipe reinante, pois a primeira coisa a
fazer é educá-lo.
Paideia38:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1296
penhar esse papel, mas sim como um problema de paideía, que Platão ex-
põe na Carta VII o caso de Dionísio. É evidente que esses autores subesti-
mam a consciência que Platão tinha de si próprio.
54. Cf., acima, pp. 884 ss.
55. Carta VII, 341 C.
56. Cf., acima, pp. 746 s.
57. Timeu, 28 C.
58. Carta VII, 344 D.
59. Carta VII, 344 C.
60. Rep., 500 E.
Paideia38:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1308
da sua ruína)65.
Na realidade, o drama siciliano não foi tragédia só para os
dois membros da casa reinante de Siracusa, que dele foram víti-
mas; em certo sentido, também o foi para Platão, embora este ti-
vesse exteriormente permanecido à margem da catástrofe. Ape-
sar de todas as dúvidas que alimentava acerca do êxito da aven-
tura, empenhara todas as suas forças num empreendimento que
por esse mero fato convertera em coisa própria. Afirmou-se que
o erro de Platão provinha de uma absoluta carência de capaci-
dade para compreender as “condições” da vida e da ação políti-
ca, carência derivada do próprio caráter do ideal platônico do
Estado. Já Isócrates, no Filipe, falava com ironia daqueles que
traçavam normas políticas e leis absolutamente inaplicáveis à
vida real66. Isso, escrevia-o Isócrates no ano de 346, isto é, pouco
antes da morte de Platão, e sem dúvida pensava proferir com
isso a última palavra sobre os esforços de Platão para resolver a
questão do Estado. Sentia-se especialmente orgulhoso por as
suas ideias, apesar de transcenderem bastante o ponto de vista
dos políticos cotidianos, serem aplicáveis e fecundas no campo
da política realista. Mas na realidade não é a Platão que tal críti-
ca se pode fazer. Medeia um profundo abismo de princípio en-
tre o seu Estado perfeito e a realidade política, mas o filósofo
tem consciência disso e insiste nisso constantemente67. Só uma
espécie de milagre poderia associar ao poder terreno essa sabe-
doria. Sem dúvida o fracasso da empresa da Sicília, por ele aco-
metida com tão grandes reservas, tinha forçosamente de o fazer
desesperar da possibilidade de ver o seu ideal posto em prática,
durante a sua vida ou num futuro qualquer. Isso, porém, não
impedia que para ele continuasse a ser o ideal e a norma abso-
luta. É absurdo acreditar que só com um pouco mais de psicolo-
gia das multidões e de maleabilidade palaciana, Platão tivesse
conseguido tornar mais aceitável para o mundo (que ele olhava
¸
Paideia38:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1311
As Leis
AS LEIS 1313
xo nível da paideía (cultura). Cf. 740 A. Não é, pois, no seu ideal filosófico,
mas sim no diferente grau de paideia pressuposto, que a diferença entre as
duas obras reside.
7. Rep., 425 A-C.
8. Político, 294 A-297 C.
9. Não foi a meta absoluta que mudou, mas só a norma aplicada para
alcançá-la. Cf. acima, nota 6. É o baixo nível da paideía (Leis, 740 A) en-
contrado pelo diálogo platônico que torna necessária a vigência das leis, ao
passo que o da República permite prescindir delas.
10. Podia objetar-se que não se trata de modo algum de uma nova ati-
tude de Platão e que só o ponto de vista mudou. Mas é precisamente o fato
de Platão dedicar tanto interesse a esse ponto de vista, que revela uma efe-
AS LEIS 1315
AS LEIS 1317
15. Cf., acima, pp. 1024 ss. Leis, 857 D: ου¹κ ι¹ατρευ¿εις τοìν νοσουªντα
α¹λλαì σχεδοìν παιδευ¿εις.
16. Cf., acima, pp. 1062 ss.
17. Cf., acima, pp. 658 s.
18. Cf., acima, nota 7 deste cap.
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1318
AS LEIS 1319
pelo seu veloz ritmo psíquico (τα¿χος τηªς ψυχηªς), os intelectuais. (Sobre
eles, cf. também Rep., 500 B.) A linguagem de Platão nas Leis tem, entre ou-
tros, o propósito de situá-la acima desse tipo de cultura. Sobre o seu caráter
poético, cf., adiante, pp. 1381 ss.
23. Cf. acima, pp. 733 s.
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1320
sempre lhe atraíra a atenção: o Estado dórico. É por isso que ele
apresenta como interlocutores do seu diálogo dois representan-
tes desta estirpe grega: um espartano e um cretense. Era um
gesto feliz, não só porque constituía um bom exemplo de como
um forte caráter político pode influir nos detalhes materiais da
legislação, mas ainda porque se levantava ao mesmo tempo o
problema filosófico do melhor éthos do Estado. Com efeito, a
teoria política do tempo de Platão costumava reputar Esparta e
Creta os Estados gregos de melhor regime político24. Mas, ao lado
dessas duas típicas personagens dóricas que no espiritual pro-
cedem como irmãos gêmeos, introduz Platão no seu diálogo,
como terceira personagem e principal interlocutor, o estrangei-
ro de Atenas, personagem misteriosa e soberanamente superior,
que as outras reconhecem e respeitam de bom grado, apesar da
sua marcada aversão por todo ateniense médio. Com efeito, Me-
gilo está firmemente convencido que todo ateniense que por
acaso seja bom é quase sempre uma personalidade verdadeira-
mente excepcional25. Platão procura expressamente tornar ve-
rossímil nele, um espartano, esse grau de objetividade, apresen-
tando Megilo como cônsul ou próxenos ateniense na sua cidade
natal, o que lhe deu oportunidade de se ocupar com simpatia
desse problema, desde havia certo tempo26. É um espartano in-
fluenciado por Atenas, como o estrangeiro é, por seu turno, um
ateniense amigo de Esparta. A escolha dos personagens tem ca-
ráter simbólico. As Leis revelam numa forma mais concreta do
que qualquer das suas outras obras a tendência, em que Platão
se inspira desde o início, a fundir numa unidade superior a es-
sência dórica e a ática. É algo de comparável às tentativas dos
humanistas que séculos depois pretenderam unificar o espírito
da Grécia e o de Roma numa harmonia de contrários. É esse mes-
mo espírito histórico-filosófico que preside à síntese platônica
das Leis e que, a partir do historicamente dado e imperfeito, pre-
24. Sobre isto, ver Platão, Rep., 544 C 2; e ainda ARISTÓTELES, Protrép-
tico (diál. frag., p. 54, W. Walzer). Cf. em JAEGER, Aristóteles, p. 95, a prova
da origem aristotélica dos extratos.
25. Leis, 642 C.
26. Leis, 642 B.
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1321
AS LEIS 1321
tende erguer-se até o absoluto e perfeito. É por isso que essa obra
suscita o interesse de todos os humanistas, mesmo que se pres-
cinda do problema da educação ideal, nela tratado. As várias es-
tirpes gregas encarnam numa forma unilateral, mas firme e vi-
gorosa por natureza, a força fundamental da nação grega. Platão
procura deter, com a invocação da sua origem comum, a sua
luta pela hegemonia e pela mútua destruição. Esse pan-helenis-
mo, porém, não é para ele um ideal de nivelamento de todas as
diferenças e da sua dissolução num vago e deslavado helenismo
médio, a fim de torná-las mais manejáveis. Segundo Platão, o pior
que podia acontecer seria misturarem-se e confundirem-se entre
si todas as estirpes gregas27. Isso seria para ele um mal compará-
vel à mistura de gregos e bárbaros.
O estrangeiro ateniense está de passagem em Creta e vê-se
arrastado pelos dois interlocutores dóricos a um diálogo sobre
as melhores leis, problema que para eles ganha foros de grande
atualidade, ante a iminência da fundação de uma colônia. Trata-
-se de dar à pólis cretense que vai ser fundada a melhor consti-
tuição, dentro das circunstâncias. É atual, portanto, que se parta
da essência do Estado e da areté humana e que, de acordo com
o ambiente dórico, se comecem por definir ambas as coisas no
sentido da concepção do Estado e da ética dórica. Esse ponto
de partida do diálogo tem de ser especialmente grato ao leitor
da República, onde já era tão sensível a nota espartana que se
desejava de Platão uma atitude franca em relação à ideia de “Es-
parta”. É certo que na República mal se menciona a Esparta his-
tórica, a propósito da edificação do Estado perfeito; é que Pla-
tão move-se ali totalmente no reino do ideal. Mas, na série das
constituições degeneradas, a timocracia espartana figura como o
tipo de constituição da realidade empírica que mais se aproxima
do ideal28. E muitos traços do Estado platônico são diretamente
tirados do modelo espartano ou revelam-se como instituições
espartanas transpostas pelo filósofo para uma força superior es-
piritualizada. Facilmente se poderia pensar, em face desse pro-
cedimento, que é relativamente curto o passo que vai da con-
29. O autor da presente obra precisa apenas dizer que nessa maneira
de Platão proceder nas Leis vê algo que pode servir de modelo para todos
os tempos.
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1323
AS LEIS 1323
AS LEIS 1325
37. Leis, 630 B. Cf., acima, pp. 130 ss., o cap. intitulado “O Estado jurí-
dico e o seu ideal de cidadão”, no qual é estudado o seu significado na his-
tória da areté humana.
38. Leis, 630 E.
39. Leis, 631 A.
40. Leis, 631 B.
41. Leis, 631 C.
42. Leis, 631 B.
43. Cf. TEÓGNIS, 147.
44. Leis, 631 C 6, 632 C 4.
45. Leis, 633 A s.
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1326
AS LEIS 1327
53. Leis, 640 B: συµποσι¿ου δεì ο¹ρθωςª , παιδαγωγηθε¿ντος τι¿ µε¿γα ιδιω¿ταις
ηÓ τη πο¿λει γι¿γνοιτ’ αÓν.
vitória, mas a vitória nem sempre gera a cultura; não poucas ve-
58. Leis, 641 C 2: παιδει¿α µεìν ου̃ν ϕε¿ρει καιì νι¿κην, νι¿κη δ’ ενι¿οτε καιì
,
α¹παιδευσι¿αν.
59. Leis, 641 C 5.
60. Leis, 641 C 8. O espartano das Leis exprime o seu assombro acerca
desta maneira de conceber a essência do banquete como uma forma da pai-
AS LEIS 1329
65. Leis, 646 C 8: κεϕα¿λαιον δηì παιδει¿ας λε¿γοµεν τηìν ο¹ρθηìν τροϕη¿ν.
Essa fase é aqui designada por κεϕα¿λαιον da paideía. No livro II, 653 B-C,
é também apresentada como a verdadeira paideía.
66. Cf., acima, pp. 76 ss.
67. Leis, 643 D 7-E 2.
68. Leis, 643 E 3. Platão procura definir conceitualmente a essência da
paideía em outras passagens das Leis, por exemplo em 654 B, 655 B e 659 D.
É digno de nota que a definição de paideía que ele dá nessa passagem tenda
muito mais à missão social do Homem do que, por exemplo, a longa defini-
ção descritiva dada por ISÓCRATES no Panatenaico, 30-2. Isócrates esforça-
-se principalmente por descrever a maneira de ser interior do homem culto e
a harmonia da sua personalidade, tal qual corresponde ao ideal do seu tem-
po. Platão, em contrapartida, integra o Homem dentro do Estado e traduz
todo o valor da sua educação na capacidade de cooperar com os outros.
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1330
cia à paideía, ou cultura) por exceder os seus limites. De igual modo proce-
de o dicionário de Liddell e Scott, na sua edição mais recente. Essa acepção
da palavra dificilmente encontrará qualquer ponto de apoio nas fontes. Na
realidade, o que se deve querer dizer é que a cultura expira, como do pe-
ríodo das sessões do Senado ou do cargo de um funcionário público, de um
mês ou de um ano, e ainda de certas doenças de determinada duração, se
diz que expiram, terminam. Isso pressupõe a ideia de que também na vida
da cultura existem períodos, e portanto uma atrofia da cultura, ideia que se
harmoniza muito bem com a concepção geral da periodicidade da História,
professada por Platão, e com o reatamento da evolução da cultura (Leis, liv.
III). Um tal estado de consciência só em tempos de violentas mudanças,
como aqueles em que Platão vivia, se podia formar. O problema da decadên-
cia da cultura ocupa inteiramente o seu espírito, desde o primeiro instante. A
decadência dos Estados, de que fala com frequência e que lhe servia de
ponto de partida, não é mais do que uma parte do problema.
Por areté deve aqui entender-se “a areté total”, de que tanto se fala nos pri-
meiros diálogos de Platão e que ele opõe nas Leis, 630 D, às virtudes pura-
mente guerreiras dos espartanos. Essa areté é a única norma verdadeira de
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AS LEIS 1331
73. Cf. Leis, 643 A 5-7, sobre o caminho da paideía para chegar à sua
meta, que é Deus.
74. Leis, 644 C s.
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neco movido por um fio (θαυ¿µατα) 804 B 3. Ambas as ideias têm uma ínti-
nas mãos de Deus repete-se no livro VII (803 C), e bem assim a ideia do bo-
AS LEIS 1333
(νουªς, ϕρο¿νησις). Cf. 631 C 6, 632 C, 645 A-B. A sua visão não brota do
qual recebe o conhecimento do divino não é outro senão a sua razão
se: quais foram as instituições criadas por Esparta para inculcar a virtude da
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sophrosýne (Leis, 635 D), em comparação com o que se sabe que acontecia
com a educação da bravura. Cf. 637 A s. e 638 C-E.
84. O problema do que em Esparta se fazia educar o homem na soph-
rosýne (Leis, 635 E) orientava-se, pois, para a concepção platônica da pai-
deía, divergente da espartana, e devia, assim, desembocar no problema ge-
ral da essência da paideía (634 A-644 B). O problema particular da atitude
adotada pela disciplina espartana para com o uso do álcool serve agora para
ilustrar psicologicamente, à luz de um exemplo concreto, esse conceito pla-
tônico de paideía.
85. Leis, 645 D-E.
86. Para a embriaguez como cura do espírito, cf. Leis, 645 C-D. Em 645
E, no final do livro II, Platão explica como, através do desencadeamento ar-
tificial dos impulsos da embriaguez, se deverão educar os jovens no temor à
falta de recursos inibitórios (o temor é chamado aidós).
87. Leis, 649 D.
88. Platão insiste expressamente nisso, no começo do livro II das Leis,
653 A s.
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AS LEIS 1335
89. Platão mostra também, nas Leis, certa predileção pelo termo παι−
δαγωγειªν. Assim como antes toda a aspiração do Homem à areté se conver-
tia para ele em paideía, assim agora a παιδαγωγι¿α se converte na medula da
leva o adulto à infância, torna-o de novo criança (παιªς), Leis, 646 A 4. Des-
paideía do adulto. A embriaguez tem um grande valor educativo porque
92. Diz-se nas Leis, 635 A, que a primeira sensação (πρω¿τη αιÓσθησις)
91. Cf., acima, pp. 923 ss.
aparecerem numa idade avançada (προìς τοì γηªρας). O homem só estará com-
pleto depois de ter alcançado isso. Mas Platão mostra-se agora perfeitamen-
te disposto a dar o nome de paideía à primeira fase da areté, já formada na
criança (653 B 1).
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AS LEIS 1337
sentido das belas danças98. Este traz na alma uma norma certei-
ra que lhe dá o sentido infalível para o belo e para o feio (nes-
se aspecto, Platão concebe como unidade indivisível o moral e
o esteticamente belo)99. Essa unidade do ético e do estético já
mal existia na arte do seu tempo. É por meio da corêutica, que
tem presente como modelo, que o filósofo se propõe restaurá-la.
Isso pressupõe uma norma absoluta do belo100 e constitui o
maior dos problemas para o educador que pretenda edificar
tudo sobre base artística. Quem vir a fonte de toda a cultura e
de toda a educação na assimilação do éthos da pólis inteira e da
sua juventude às melodias ouvidas e aos ritmos dançados não
pode deixar tudo ao capricho individual, como “hoje” se faz101.
Platão amplia a vista à procura de um país onde existam formas
sagradas e fixas da arte, libertas de toda ânsia de inovação e de
toda arbitrariedade. E só as encontra no Egito, onde a arte não
sofre, aparentemente, evolução e conserva com todo o rigor um
sentido espantoso para o que a tradição já consagrou. A partir do
seu ponto de vista, o filósofo julga adquirir uma nova com-
preensão desse estado de coisas, tal como em outro aspecto se
entusiasma com a situação em Esparta102.
98. Leis, 654 B: ο¸ µε¿ν α¹παι¿δευτος, α¹χο¿ρευτος η¸µιªν εÓσται, τοìν δεì
πεπαιδευµε¿νον ι¹κανωªς κεχορευκο¿τα θετε¿ον.
99. Leis, 654 B 6-E.
100. Leis, 654 E 9-655 B 6: são belos todo o movimento e todo o ritmo
que exprimam a areté da alma ou do corpo (literalmente: que a ela se cin-
jam com firmeza).
101. Leis, 655 D, 656 D 1.
102. Em Leis, 656 D s., Platão explica a persistência dos tipos na arte
egípcia, tanto nas artes plásticas como na música, como efeito de um ato le-
gislativo, comparável ao que ele agora propõe nas Leis, numa época primi-
tiva. A arte egípcia tinha por força de causar aos gregos, povo de sensibili-
ou evolução. Cf. 656 E 4: σκοπωªν δεì ευ¸ρη¿σεις αυ¹το¿θι ταì µυριοστοìν εÓτος
dade desperta e fugaz, a impressão de não haver nela nenhuma mudança
AS LEIS 1339
109. É a elegia que começa com as palavras: ουÓτ’ αÓν µνησαι¿µην ουÓτ’
108. Leis, 629 E-630 C.
ε¹ν λο¿γω αÓνδρα τιθει¿ην. Cf. Leis, 660 E 7 s. Cf. o meu estudo desta poesia em
Tyrtaios Über die Wahre Arete (Ber. Berl. Akad., 1932). Platão escolhe essa
poesia por ela não se limitar a cantar a bravura espartana e a mostrá-la plas-
ticamente na luta, como fazem outras poesias do mesmo Tirteu, mas exami-
nar de uma forma gera o problema do que seja a verdadeira virtude varonil.
Cf., acima, pp. 121 ss.
110. Leis, 661 B 5.
111. Leis, 661 D 5.
112. Leis, 660 E e 661 C 5-8, isto é, no princípio e no fim do comentá-
rio à elegia de Tirteu, sublinha-se expressamente esta identidade entre a poe-
113. Leis, 659 E-660 A. ωι¹δη¿ é paideía, porque é εìπωδη¿. É que, como
sia e a paideía.
Platão diz à guisa de introdução (659 D), a paideía é παι¿δ¨ ων ο¸λκη¿ τε καιì
α¹γωγηì προ¿ς τοìν υ¸ποì νο¿µου λο¿γον ο¹ρθοìν ει¹ρηµε¿νον. Essa força de atração
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AS LEIS 1341
(πλα¿στης) de almas117.
niso116. É assim que o legislador se torna forjador e modelador
do vinho (µε¿θη) e a sua importância para a paideía encontra aqui o seu ko-
119. Leis, 673 D 10, no fim do segundo livro. A digressão sobre o uso
AS LEIS 1343
AS LEIS 1345
Estados dóricos. Cf. também 686 A 7, onde Platão parece ridicularizar, como
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1346
Era em Esparta que ele via a melhor prova da capacidade dos dó-
rios para criar Estados; entendia, porém, que os messênios e os
argivos não estavam à mesma altura140.
A causa da sua decadência não fora a falta de valentia ou
tes141. Para Platão é essa profunda incultura que, hoje como ou-
trora, destrói os Estados e continuará a destruí-los também no
futuro142. Quem quiser saber em que consiste essa incultura será
remetido ao que ficou exposto nas longas investigações sobre a
essência da paideía. Esta baseia-se na verdadeira harmonia en-
tre os apetites e a razão143. Foi por seguirem no caminho dos
seus apetites, em vez de enveredarem pelo caminho designado
pela razão, que aqueles poderosos Estados dóricos caíram144. E
assim o reconhecimento dos erros políticos que a história dos
povos dóricos revela conduz-nos outra vez ao ponto de partida
do diálogo, ao problema do verdadeiro éthos do Estado, éth¿os
cujas raízes mergulham numa sã estrutura da alma individual. A
té, fruto da ο¹ρθηì παιδει¿α, é definida como a συµϕωνι¿α dos apetites com o
143. Leis, 643 C 8 s., 653 A s., e essencialmente 653 B 5, onde a are-
lógos.
144. Leis, 690 F-691 A.
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AS LEIS 1347
AS LEIS 1349
152. Leis, 690 A: α¹ξιω¿µατα τουª τε αÓρχειν καιì αÓρχεσθαι ποιªα ε¹στι καιì
πο¿σα. Reclama uma validade absoluta para esses axiomas: valem tanto nos
Estados grandes como nos pequenos, e até no governo da família e de casa.
154. ARISTÓTELES, Metaf., A 9, 992 a 32; Et. Eud., I, 6, 1216 b 40. Cf.
mocrático que diz: 7 ) o que é eleito por sorte deve imperar so-
bre aquele em que a eleição não tenha recaído. Nessa passagem,
como nas Leis em geral, Platão aceita a sorte como decisão divi-
na e não vê nela um mecanismo sem sentido, o que frequente-
mente fazia ao criticar a democracia nas obras anteriores157.
De acordo com esses axiomas, foi com justiça que os reis
da Messênia e de Argos perderam os seus reinos, pois estes de-
positavam um poder grande demais e irresponsável nas mãos
de um só indivíduo, que estava muito longe de se ajustar aos re-
feridos axiomas158. E, apesar de certas expressões da República e
do Político poderem levar à crença de que Platão se mostrava
partidário dessa forma de vida política, nas Leis ele mostra-se re-
solutamente contrário a essa unificação do poder e considera-a
uma degenerescência da ânsia de domínio, da pleonexía159, em
que também Isócrates, interpretando-a no sentido habitual, vê a
raiz de todos os males. O exemplo de Esparta prova que uma
constituição mista é a mais duradoura. A instituição da monar-
quia é limitada em Esparta tanto pelo regime dos reis como pela
intervenção dos gerontes e dos éforos160. Não é à Messênia e a
Argos, mas a Esparta, que a Grécia deve agradecer que os po-
vos gregos não se tenham misturado entre si e com os bárbaros,
emaranhando-se uns nos outros, como as multidões de povos
do Império Persa, mas se tenham mantido na sua pureza. Essa é
para Platão a mais alta manifestação da liberdade conquistada
nas guerras contra os persas161. O objetivo do legislador não
deve ser a acumulação de grandes concessões de poder, sem in-
terferências, nas mãos de um único indivíduo, mas antes a liber-
dade, a razão, a harmonia interna da pólis162. A Pérsia e Atenas
são os Estados que revelam, unilateralmente exaltados, os dois
elementos fundamentais da vida de qualquer Estado163. Na reali-
AS LEIS 1351
Dario não procedeu para com seu filho Xerxes melhor do que Ciro para
com Cambises: 695 D 7-E. Educação igual deu frutos iguais: 695 E 2.
171. É evidente que foi a existência de uma obra em que se louvava a
paideía dos persas que deu pretexto a Platão para se deter tão demorada-
mente nela. O seu autor não era senão Xenofonte. Assim já se reconheceu
na Antiguidade: cf. DIÓGENES LAÉRCIO, III, 34. Xenofonte quisera na Ciro-
pedia contrapor a disciplina persa ao destempero ateniense, da mesma ma-
neira que Tácito escreveu a Germania para projetar a sua luz crua nas som-
bras que essa comparação revelava na imoralidade e decadência de Roma.
Platão confronta a Pérsia com Atenas, os dois Estados politicamente mais
antagônicos, e prova que ambos se desmoronaram pelo mesmo vício: a au-
sência de uma autêntica paideía. Com isso rouba à crítica o seu ferrão polí-
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1352
tico partidário. Procurei provar acima, pp. 1259 ss., que é semelhante a críti-
ca que ele faz incidir sobre o escrito de Xenofonte acerca da caça. Mas talvez
devamos ir mais longe ainda e pôr em relação com as obras de Xenofonte
que glorificavam as instituições espartanas o debate sustentado sistematica-
mente nas Leis contra a tese de que a paideía e a politeía espartanas são as
melhores. Aquelas obras apareceram nos começos da década V do século IV.
Em essência, isso levaria a situar a redação das Leis na última década da vida
de Platão.
172. Leis, 698 A 9.
173. Leis, 698 B-699 A.
174. Leis, 700A.
175. Cf., acima, pp. 1162 ss. A esse respeito, Platão presta homenagem
literária indireta a Isócrates em Leis, 699 A, onde descreve os preparativos
AS LEIS 1353
α¹γνω¿µονες... περιì τοì δι¿καιον τηªς Μου¿σης καιì τοì νο¿µιµον. Γνω¿µη também
183. Leis, 700 D. Sobre o conteúdo normativo da música, cf. 700 D 4:
AS LEIS 1355
AS LEIS 1357
206. Leis, 710 C 7-D. Cf. Rep. 473 D e Carta VII, 326 A.
207. Nas Leis, 711 A 6, Platão refere expressamente (pela boca do es-
trangeiro ateniense) a experiência pessoal de um Estado governado por um
tirano. Sobre a influência transformadora que isso exerce nas ideias do
povo, cf. 711 B.
208. Leis, 711 D s.
209. Leis, 712 A.
210. Leis, 712 E 10-713 A 2. Cf. 714 B, onde Platão recorda a tese de
715 Bc, e os governantes desse Estado devem ser servidores da lei.
211. No Estado das Leis, nenhum grupo deve deter o poder total, Trasí-
maco no livro I da República – o qual afirma que em todo o mundo as leis se
promulgam em benefício da camada dominante no Estado – e 715 A, onde se
alude claramente ao discurso de Calicles (citação de Píndaro), que defende o
direito do mais forte. Como exceção a esse ponto de vista, limitado, Platão ad-
mite apenas a forma de Estado espartana, mistura de monarquia e democra-
cia, que na instituição dos éforos tem até uma espécie de elemento tirânico
(712 D-E). Cf. em 691 D-692 A (cf., acima, nota 197 deste cap.) as considerações
sobre a constituição sintética de Esparta, muito semelhantes a essas.
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217. O caminho para Deus é sempre καταì ϕυ¿σιν, 716 A I. Cf. a expo-
sição da República, onde a areté designa o estado que é καταì ϕυ¿σιν. En-
quanto na frase de Espinosa – Deus sive Natura – Deus se equipara à natu-
reza e é entendido a partir dela, em Platão, ao contrário, é a verdadeira na-
tureza que se equipara ao divino e ao Bem a que o mundo visível aspira,
sem, no entanto, chegar a alcançar.
218. Cf. a propósito o começo do livro V e sobretudo o livro X, onde
a sua teologia se edifica totalmente sobre essa teoria da alma e das suas re-
lações com o corpo.
219. O próprio texto literal da passagem (Leis, 716 C) prova que Pla-
tão, com a sua fórmula, quer evocar a famosa tese de Protágoras e expres-
sar o próprio princípio supremo em nítido contraste com ele. Portanto, Deus
deve ser para nós, mais do que qualquer outra coisa, muito mais do que
cf. 717 A. Isso lembra-nos a República e o Górgias, onde Platão ensina que
essencial entre o Deus das Leis e a forma do Bom em si (ι¹δε¿α τουª α¹γαθουª)
a meta de toda a aspiração deve ser o Bem ou o Bom em si. A coincidência
Platão, a mais alta realidade do que existe e que, portanto, a ideia do Bom
representa o grau de bem mais poderoso, e superior a qualquer outra coi-
sa do mundo.
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AS LEIS 1361
AS LEIS 1363
cidadãos naquela areté do τε¿λεος πολι¿της, que era exigida em 643 E como
sentido tradicional não bastam, com efeito, se realmente devem educar os
AS LEIS 1365
sente (καταì τηìν νυªν γε¿νεσιν καιì τροϕηìν καιì παι¿δευσινι ª¹).
A), a expressão de uma determinada fase da educação de cultura: a do pre-
AS LEIS 1367
783 B 2.
247. Leis, 783 D-E.
248. Leis, 784 A.
249. Leis, 784 B.
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256. Leis, 789 E. Platão não quer que as crianças andem antes dos 3
anos, com medo de que fiquem canejas. As amas têm de ser suficientemen-
te fortes para as carregarem no colo até aquela idade. Exagera sem dúvida;
todavia, o costume de fazer andar as crianças antes do tempo justifica o seu
receio.
257. Leis, 790 A-B.
258. Leis, 790 C-E.
259. Leis, 790 D.
260. Leis, 791 C.
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vel264. Não é como leis, mas como usos não escritos (αÓγραϕα
mente dominada pelas sensações do agradável e do desagradá-
AS LEIS 1371
numa obra que tem por título Leis. Se, apesar disso, tira muitas
coisas daquela fonte267, não é por não estabelecer uma distinção
nítida entre as duas classes de conceitos, mas sim pelas razões
que dão forma à sua paideía. É fundamentalmente educativo o
conceito que ele tem da legislação; por isso encara essa ideia
com a amplitude suficiente para que a sua obra (que não se des-
tina a figurar em tábuas de bronze nas muralhas da cidade, mas
é uma criação literária), abarque também em larga medida os
AS LEIS 1373
AS LEIS 1375
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AS LEIS 1383
mento exato (ω¸ς α¹κρι¿βει¿ας ε¹χο¿µενα) das matemáticas por uns poucos (τινες
338. Leis, 818 A, revela que também nas Leis Platão exige o conheci-
Não há, pois, nesse aspecto, nenhuma diferença entre a educação do gover-
nante exposta nas Leis e a exposta no livro VII da República. O que Platão
AS LEIS 1385
343. Leis, 818 B-819 D. Diz Platão que, quando numa idade relativa-
mente avançada aprendeu a esse respeito alguma coisa, tinha vergonha de
toda a Grécia: cf. 819 D 8, 820 A 9, B 3-4.
344. Leis, 819 E 10 s.
345. Sobre a estada de Eudoxo no Egito, para fins de estudo, cf. DIÓ-
GENES LAÉRCIO, VIII, 87.
346. Leis, 819 B 3.
347. Leis, 822 B-822 C.
348. T. L. HEATH, A Manual of Greek Mathematics, p. 188 (Londres,
1931). O chamado sistema “filolaico” do movimento da Terra, que se diz ter
Platão aceitado quando já ancião, não vem expressamente apontado nesse
passo das Leis.
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ser em eterno fluir (α¹ε¿ναος ου¹σι¿α). Cf. o meu Aristóteles, pp. 188 s. É certo
outra fonte é a experiência íntima da vida da alma dentro de nós como um
AS LEIS 1387
carar as suas relações com o resto do mundo. Por não ser cida-
de marítima, não desenvolverá um comércio digno de nota, mas
aspirará à autarquia econômica354. Mas também no campo espi-
ritual se deve isolar contra todas as influências ocasionais do ex-
terior que possam desviar a ação das suas leis perfeitas355. As
viagens ao estrangeiro só serão autorizadas aos mensageiros,
embaixadores e theoroi 356. Platão inclui na última categoria não
os embaixadores permanentes, acepção tradicional daquele ter-
mo, mas sim os homens em quem vive algo do espírito da in-
vestigação científica, isto é, verdadeiros “observadores” da cul-
tura e das leis de outros homens, dedicados a estudar serena-
mente a situação reinante no estrangeiro357. Sem um conhecimen-
to dos homens, bons e maus, nenhum Estado pode tornar-se
perfeito nem conservar as suas leis. A finalidade principal des-
sas viagens de estudo ao estrangeiro é levar os theoroi a trava-
rem relações com as poucas personalidades superiores, homens
divinos, que existem no meio da multidão e com as quais vale a
pena falar e chegar a um entendimento358. Poderia parecer que
isso de reconhecer no mundo, tanto nos Estados bem organiza-
dos como nos piores, a existência de tais homens representava
para Platão uma concessão nada fácil. No entanto, apesar de ser
o Estado melhor o terreno mais propício e mais fecundo para
esses homens surgirem e prosperarem, sabemos pela República
que a týkhe divina torna também possível, excepcionalmente, o
aparecimento desses homens num meio hostil. O próprio Platão
viveu muito tempo ausente de Atenas, e a lei sobre as viagens
ou missões ao estrangeiro dos homens espiritualmente mais no-
táveis provém, segundo todos os indícios, das suas experiências
pessoais. Os gregos sempre tinham empreendido viagens ao es-
trangeiro, para fins culturais. São um fenômeno especificamente
grego, tal como a própria cultura, assim concebida. Depois de
354. Leis, 949 E. Cf. 704 B s., onde se estabelece o caráter não maríti-
mo mas agrário da pólis.
355. Leis, 949 E 7.
356. Leis, 950 D.
357. Leis, 951 A.
358. Leis, 951 A-C.
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sempre muitos estrangeiros, seja para fins culturais (καταì παι¿δευσιν), seja
com objetivos relacionados com negócios (κατ’ αÓλλην τιναì χρει¿αν). É in-
dubitável que a primeira categoria de estrangeiros é, em parte, formada por
“estudiosos” vindos de fora (cf. ISÓCRATES, Antíd., 224; PSEUDO-HIPÓ-
CRATES, Demon, 19, refere também as longas viagens que tais estudiosos ti-
nham frequentemente de empreender para escutarem mestres famosos), e
começa muito cedo entre os gregos. Os exemplos mais famosos são ofereci-
dos por Sólon, Hecateu, Heródoto, Eudoxo e Platão.
360. Leis, 951 C 6. Também em Leis, 952 D-953 E, Platão dá normas
precisas sobre a admissão de estrangeiros e sobre as categorias que devem
ser admitidas. Além dos comerciantes, turistas e embaixadores, figuram, como
quarta categoria, os theoroi científicos, isto é, os sábios investigadores. Estes
têm livre acesso ao ministro da educação e aos sábios do país.
361. Leis, 951 D-E.
362. Leis, 951 E 5-952 A.
Paideia39:Cartas00 19.02.13 23:05 Página 1389
AS LEIS 1389
(παªσα α¹ρετη¿). Cf., acima, pp. 1322 ss. Essa definição do objetivo serve de
tuindo a valentia, que era o objetivo do Estado espartano, pela areté total
base a toda a legislação platônica, mas no final da obra, onde voltará a di-
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zer algumas palavras sobre a paideía dos governantes, Platão volta expres-
samente a dirigir o nosso olhar para esse objetivo.
368. A unidade das virtudes (963 A-964 C) é o velho problema de Só-
crates que já conhecemos dos primeiros diálogos de Platão. Cf. ROBIN, Pla-
ton, p. 272 (Paris, 1935). Essa “areté total” é idêntica ao conhecimento do
Bem-em-si. Cf. nota anterior.
371. Leis, 965 C: τοì προìς µι¿αν ι¹δε¿αν βλε¿πειν. Também ali se alude à
370. Assim, Jackson, Lutoslawki e outros.
AS LEIS 1391
em 505 A.
co ao Uno (τοì εàν) que em 962 D e 963 B 4 Platão define como objeto do sa-
378. O Deus medida de todas as coisas (cf. acima, pp. 1277 s.) é idênti-
ber dialético dos governantes. Estes são, pois, exatamente tão filósofos como
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AS LEIS 1393
17. Cf. K. ]OST, Das Beispiel und Vorbild der Vorfahren bei den altis-
chen Rednern und Geschichtschreibern bis Demosthenes (Raderborn, 1936).
18. Cf., acima, pp. 1191 ss. o que foi dito acerca dos postulados éticos
de Isócrates, no campo da política.
19. PLUTARCO, Demóstenes; PSEUDO-PLUTARCO, Vit. X orat., 1.
20. Cf., acima, pp. 447 ss.
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26. Sobre a questão da época em que foi escrito e sobre o fundo políti-
co partidário em que o Areopagítico de Isócrates se projeta, cf., acima, pp.
1156 ss. e o meu estudo ‘“The Date of Isocrates’ Areopagiticus and the
Athenian Opposition”, in: Harvard Studies in Classical Philology (vol. espe-
cial, 1941), pp. 409-50.
27. Entre os companheiros de luta do jovem Demóstenes encontrava-
-se também o orador Hipereides.
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nião pública como orador que agia por conta própria. É sobre
problemas de política externa que o seu interesse incide logo
desde o início, o que é muito significativo. Através dessas primei-
ras manifestações do futuro homem de Estado, seguimos com
grande emoção o rumo do seu destino. Vemos como vai abor-
dando um após outro, certeiramente, todos os problemas deci-
sivos da política externa de Atenas, até que, ao cabo de pouco
tempo, esses documentos juntos expõem diante dos nossos olhos
uma imagem completa da situação externa da Atenas daquele
tempo31.
Eram bem pequenas as possibilidades de uma política ex-
terna fecunda que nesse período de lenta e trabalhosa recupe-
ração se proporcionavam a Atenas. São por isso tanto mais sur-
preendentes os dotes de independência espiritual e de iniciativa
dinâmica que o jovem Demóstenes põe em ação a propósito de
cada um desses problemas, logo que ele aparece no campo vi-
sual da política. Dada a passividade a que Atenas estava conde-
nada em política externa, precisamente por causa da sua situa-
ção, isso dependia totalmente das ocasiões que se apresentas-
sem, as quais não deixavam completamente de se apresentar a
Atenas, numa época como essa, em que se vivia rapidamente e
em que se entrecruzavam os interesses mais heterogêneos. Cla-
ro está que nesse ponto tinha de ser cavado, com absoluta ne-
cessidade, um abismo que no decurso dos anos se tornaria cada
vez maior e insondável. A concepção política, representada no
campo literário por Isócrates, e no campo da política efetiva por
Eubulo, principal dirigente da corrente de oposição da classe
opulenta, rejeitava consequentemente toda atividade política ex-
terna por parte do Estado enfraquecido, e via o seu futuro na
sua limitação consciente aos problemas de uma prudente políti-
43. Cf. JAEGER, Demóstenes, pp. 145 s., acerca do repentino ataque de
Filipe no Helesponto, como presumida mudança de rumo na evolução polí-
tica de Demóstenes.
44. Na obra citada segue-se a evolução da inflamada retórica dos dis-
cursos de Demóstenes: no discurso Contra Andrócio, pp. 79 s.; no discurso
sobre os ródios, p. 119; no discurso Contra Aristócrates, pp. 132 s.; na Ter-
ceira Olíntica, p. 179. Sobre o tom completamente diverso do primitivo dis-
curso Sobre as Simorias, pp. 123 ss.
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54. FiI., I, 3.
55. FiI., I, 40.
56. Tal é a situação que Demóstenes descreve em Ol., III, 4. Cf. espe-
cialmente Fil., I, 10-11. Eduard SCHWARTZ, em Festschrift für Theodor Momm-
sen (Marburgo, 1893), situa bem mais tarde, na época da guerra de Olinto
(349-48), a Primeira Filípica; muitos investigadores modernos o seguem. Cf.
em Demóstenes, p. 153, as minhas razões em contrário. DIONÍSIO DE HALI-
CARNASSO, Ad. Ammi., 4, situa esse discurso, provavelmente com razão, por
volta dos anos 352-51.
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62. Cf., acima, nota 47 deste cap., sobre o discurso Περιì συντα¿ξεως e
61. Ol., II, 5 s.
69. Contra a sua crítica das condições da paz, ÉSQUINES, II, 14-15 e
56, argui que o próprio Demóstenes ajudou Filócrates a dar o primeiro passo
para concertar a paz com Filipe da Macedônia.
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plica que o único perigo real contra o qual os gregos se têm de unir é Fili-
conceito de “certo”, deriva, tal como este, da técnica da caça. Cf. Fil., II, 27.
82. Fil., II, 19 s.
83. Cf., acima, pp. 1408 ss.
84. No meu Demóstenes, pp. 114, 201, 219 e 230, expus a prova de
que desde o início Demóstenes se propôs como objetivo a aproximação com
Tebas. Mas a aliança com Tebas só à última hora, antes da batalha de Que-
roneia, foi levada a efeito: cf. o Discurso da Coroa, 174-179. Foi um triunfo
trágico para Demóstenes.
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tentava estabelecer o seu império e a sua tirania sobre a Hélade? Ou que ha-
via de dizer ou propor o homem que, como eu, se sentia conselheiro do povo
de Atenas, e que desde os seus começos até o dia em que subiu à tribuna dos
oradores não fez outra coisa senão lutar pela pátria e pelos supremos lauréis
da sua honra e da sua fama?
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cessário que ele se levantasse também pela última vez, para fa-
lar ao povo do que tinha querido e que tinha feito desde o pri-
meiro instante. Mais uma vez nos surge aqui como um destino
já consumado, e, abarcando o desfecho, tudo o que nas Filípi-
cas tínhamos vivido como uma luta atual: o peso da herança, a
grandeza do perigo, a gravidade da decisão. Demóstenes con-
fessa com espírito verdadeiramente trágico a verdade dos seus
atos e exorta o povo a não desejar ter tomado outra decisão se-
não a que o passado lhe impunha104. Volta de novo a brilhar o es-
plendor desse passado, e o desfecho, apesar de todo o seu amar-
gor, está em harmonia com ele.