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Francisco Braga - concertos sinfônicos

A Lanterna | 1º de dezembro de 1900.

O nosso caro Rio de Janeiro não é absolutamente um meio artístico – é o


que temos ouvido dizer desde que nos entendemos, é o que vemos a cada passo
demonstrado nas tentativas, que se sucedem e malogram, de educação do gosto
público e incremento às artes nacionais.

Entretanto, poucos países novos foram favorecidos do bom Deus por uma
floração tão brilhante de músicos, pintores, poetas, de tal sorte que a matéria-pri-
ma, o talento, não nos falta para a larga produção; mas a clássica e santa indiferen-
ça do povo estiola, pelo desânimo, os rebentos que de vez em quando apontam.
Na música, qual o país americano que apresenta um grande morto como
C. Gomes, a uma plêiade esplêndida como a que compõem Miguez, Nepo-
muceno, Mesquita, Braga, Napoleão, Araújo Viana, Faulhaber, Queirós,
Delgado, Milanez, e tantos compositores de real talento, e o número conside-
rável de virtuosi ilustres, que nos temos habituado a aplaudir?

Mas a indiferença a todos esses tem aos poucos entregue ao desânimo e à


inação o professorado, que acaba de amortecer a vibração juvenil d’arte que trou-
xeram do berço.

Vimos domingo último, pela centésima vez, um magnífico e interessante


concerto sinfônico, tendo um auditório ínfimo para esta cidade de oitocentos
mil habitantes...

Mais um que as musas protegem, o talentoso Francisco Braga, artista bem


brasileiro e amante de seu país, sofreu a dura decepção de ver, depois de estron-
dosas ovações a uma sua partitura, que lhe não rendeu um real, reunido para o
seu primeiro concerto sinfônico um resumido grupo de dilettanti, entusiasta, é
verdade, mas representando um capital ínfimo, para um artista que precisa de
imediatos auxílios.

Um programa inteligente e de gosto, o desse primeiro concerto. Peças sin-


fônicas dos grandes Beethoven, Mozart e Lizt, ainda não ouvidas entre nós, au-
mentavam o atrativo da primeira audição de Marabá, Cauchemar, Pro Patria e do
Episódio sinfônico, quatro excelentes páginas do aclamado sinfonista brasileiro.

As palavras que vieram naturalmente aos nossos lábios, ouvindo os primei-


ros compassos das composições de F. Braga, foram: “Temos boa musica” e foi esta
a impressão total do auditório, aplaudindo com calor o maestro brasileiro.

Boa, excelente música. Um encanto natural, espontâneo, parte de toda a


complicada e primorosa harmonização, para os ouvidos capazes de compreender
as belezas extraordinárias de um poema em que todos os segredos da técnica são
requintadamente explorados, a fim de formar um esplendoroso bouquet, que,
se não nos deixa nos ouvidos o suave dulçor de uma melodia distinta, dá-nos o
momentâneo gozo puramente intelectual de exuberante floração de ritmos, ca-
dências, escalas, fugas, magistralmente trabalhadas e sabiamente combinadas.
Eis o característico notável da música de F.Braga: harmonia rica, brilhante; me-
lodia sóbria, leve, tímida, sem arroubos, perfeitamente ao gosto da escola francesa.
Os seus motivos, alguns perfeitamente achados, iniciam-se, palpitam um
instante, mas não se desdobram, não se definem, formando uma melodia distinta,
destas que ficam vibrando em todos os ouvidos e cantando em todas as bocas.
Francisco Braga, parece-me, nunca será um compositor popular, o que é
talvez uma qualidade de primeira ordem. A sua técnica rigorosa, o seu desenho
orquestral filigranado, as suas melodias que nos acariciam deliciosamente, sem
nos tocar com arrebatamento, agradarão sempre, somente, à restrita massa dos
intelectuais, dilettanti e profissionais.

É talvez mais sinfonista que operista, o que só em subseqüentes provas se


poderá discernir. Mas não só ao talentoso autor de Jupira, como ao magistral
harmonista de Marabá e Episódio sinfônico, saudamos mais uma vez como um
formoso talento musical que se evidencia, à força de extraordinária cultura, e
honrará a pátria, mesmo quando os ecos das aclamações de estímulo se tiverem
dissipado e olvidado.
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[Sem título]

A Lanterna | 20-11-1902.

Há no perfil do grande morto, cuja perda ora lastimamos, uma feição que
por demais o realça; é aquela ânsia de tudo aprender, é aquela necessidade para
seu espírito de tudo saber.

Médico e economista, crítico de arte e sabedor de línguas; nestes vários as-


pectos do seu conhecer ele se nos apresenta grande e homogêneo.

Não precisa ser homem desses tempos de especialidade, e muito menos um


político; nas variegadas nuances de seu talento havia qualquer cousa dos pró-ho-
mens do Renascimento: Leonardo da Vinci ou Pico de Mirandola com mais cer-
teza. Talvez que, por essa sua universalidade de saber, das suas impressões de
viagens, que foram muitas, transparecesse nele um examinador consciencioso,
um indulgente filósofo para os costumes e hábitos. Quer examinando as grande-
zas da nova gare de Orléans, quer estudando naquele magistral artigo do Correio
da Manhã as cançonetas e os cabarets de Paris, ele se revelava um fino observador
e um perspicaz estudioso das cousas dos povos e das nações.

E ele, com os hábitos científicos da comparação e observação, via com certe-


za o quanto é certo o cá e lá más fadas há; o que sem nos dar a primazia entre os
povos, nos absolve, entretanto, de tal condenação ao desaparecimento tão falada
e prevista pelos nossos extraordinários filósofos.

E, talvez, daí lhe vieram o vigor, paixão e a força com que na tribuna ou na
imprensa combatia os nossos erros e faltas de povo e de nação.

Observação: Este texto trata da morte de Manuel Vitorino. Este fato por ser comprovado
pelos vários depoimentos publicados no mesmo dia, todos voltados para o mesmo tema.
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Vendo a Brigada Stegomya

Tagarela | 9-7-1903.

No Brasil tudo é grande, assegurava Tobias Barreto, exceto o homem, o que


ele corroborava com a imagem feliz que bem parecíamos um moço com cabelos
brancos. Fora verdade o que sentenciara o tudesco da Escada.

Tudo definha sob o nosso céu de fogo: as auras embalsamadas das florestas
parecem trazer sobre as nossas cidades o letárgico veneno da mancenilha; os eflú-
vios ardentes do nosso sol derramam sobre nós o princípio entorpecedor do ópio;
a natureza esmaga-nos – pensamento e corpo.

Que são entre nós as grandes instituições dos Argus?

A filosofia – um bimbalhar de frases ocas e campanudas ou um citar pasmo-


so de autores estrangeiros de quarta ordem.

A nossa literatura e arte são planetas mortos que gravitam para intermiten-
tes e variáveis sões da estranja.

A política resume-se num descaroçar de atas falsas, na expressão de um profissional,


ou numa discurseira vazia de inteligência mas cheia de palavrões e sentenças acacianas.
As grandes obras do pensamento humano, chindo nos nossos intelectos,
não proliferam em outros maiores – estiolam-se: o Plutarco, por exemplo,
foi lido pelo Sr. Pelino Guedes para afirmar que “a biografia é a história da
vida de um homem” ou que “a idéia de Deus não é incompatível com o amor
à pátria”; o que dá padrão para imaginarmos o que dirá ele se conseguir por
milagre ler a Crítica da razão pura ou a Política de Aristóteles.

Somos uma gente que definha e decresce como aquele cadáver conservado
à Índia, que vai, com o tempo, diminuindo, encarquilhando até ficar reduzido a
proporções diminutas...

E vieram-me vindo essas idéias, ao ver nas ruas, às calhas trepadas, os roda-
mentos da Diretoria de Saúde.

Tinham todos o ar galhardo de campeões em batalha; nas suas faces havia a


satisfação sadia de um hiplita que venceu em Maratona, as de Aquiles, garanto,
não exprimiriam tão feroz júbilo, após ter arrastado sete vezes, em torno de Íon,
os despojos sagrados de Heitor vencido.

E o chefe?... Que belo estava! Jovial e sorridente, manifestava, nos largos


gestos em que sublinhava as ordens dadas em voz alta ao adjudante o contenta-
mento feliz do estratego de cujos planos dependera o ganho da batalha mortífe-
ra. Era como um Napoleão vencedor dos mosquitos; parecia um Alexandre que
viesse de esmagar pernilongos em Arbelles.

E se, porventura, alguma dor n’alma lhe vier ter, provinda da perda de pe-
leja, a badine delgada, que transporta, abrirá entre dous tijolos de uma cimalha a
brecha de Roncesvales.
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Ao começo vendo aquela fúria sagrada e aquele garbo no guerrear mosqui-


tos – pensei com Frei Luís de Sousa vendo a carantonha hedionda de um leão a
escorrer as fauces límpidas e tranqüilas águas: “é de ver aquele rosto feio coberto
de guedelhas crespas e medonhas, que ameaça sangue e morte, feito ministro de
mansas águas”.
É de ver...

Mas, por fim, fazendo as considerações expendidas e convencido que a nos-


sa exuberante natureza custa-nos o pensamento e nos comprime o corpo, desco-
bri que já tempo era nesse estiolar e definhar sem fim, de estarmos reduzidos à
proporção de mosquitos zumbidores. Desse modo era bem razoável que, com os
chefes e soldados da Brigada Stegomya, houvesse aquele contentamento e aquele
furor de guerrear pernilongos, pois, se poetas por poetas sejam lidos, mais razoá-
vel será que mosquitos sejam [por] mosquitos combatidos.
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Memórias de um stegomya fasciata

Tagarela | 16/7-1903.

Nasci pelas bandas da Saúde, nos fundos de uma lavanderia em um vas-


to lameiro em que proliferam milhares de irmãos meus.

Aí cresci e fiz-me homem, quero dizer, fiz-me mosquito e esvoacei, ares


em fora, a zumbir e a cavar honradamente a vida, como qualquer engenheiro
desempregado ou médico sem clínica.

Pousei num queijo de Minas, no nariz de uma senhora, nas chagas de


um mendigo, que nesse tempo ainda os havia pelas soleiras das portas, e de pouso
em pouso transpus os umbrais de uma casa nobre e oculto a um canto do dor-
mitório, esperei pacientemente que a noute chegasse e que buscasse os lençóis o
chefe da casa, para zumbir-lhe aos ouvidos, impertinente como um candidato.
Seria meia-noute quando um moço de grandes melenas, tipo da Renas-
cença, despiu a sobrecasaca solene, o colete branco, as calças negras, a camisa de
linho, e enfiou o roupão de dormir, persignou-se e deitando-se puxou sobre as
pernas o cobertor vermelho, que a noute estava fria e um vento sibilante cantava
lá fora a prometer influenzas.

Um sopro rápido de pulmões fortes, extinguira a chama indecisa da


vela de estearina pousada num castiçal art nouveau, sobre o criado-mudo.
Esgueirei-me então do meu esconderijo e de manso, contendo o vôo,
aproximei-me do leito em que, deitado, o moço de melenas bastas erigia castelos
de glória, planos de nomeada e fama enquanto o sono não lhe cerrasse as pálpe-
bras e os sonhos bons não lhe viessem povoar as horas de descanso e calma.
Pousei então sobre o seu nariz aristocrata, procurando sugar-lhe o san-
gue novo, para alimento do meu corpo débil.

Ele com um movimento brusco de mãos enxotou-me; voltei; palmas so-


aram fortes e por um triz não fiquei esmagado entre as suas mãos de princês,
recendentes a “Coeur de Jannette”.

E então por vingança, que nisto muito se parecem os mosquitos com os


homens, jurei aos meus deuses persegui-lo a noute inteira com o mesmo zumbido
contínuo e azucrinador.

E durante as oito horas de repouso o moço de grandes melenas não pregou


os olhos, mercê da peça que eu lhe estava pregando e de quando em vez profanava
a severidade e compostura do aposento do jovem de cabeleira as sílabas ferinas e
acutangulares de uma ameaça ou de uma praga!

Vinha a Aurora, serena e docemente esbatendo as sombras da noute,


dando ao quadro matinal a finura de nuances de uma aquarela do João Ribeiro,
“artista notável” e notável filólogo desta incomparável terra de filólogos, artistas,
sapateiros e encadernadores.

O jovem de melenas bastas saltou do leito, deu um bocejo e estirando os


braços numa delícia gritou:
– Os mosquitos hão de pagar-me caro a noite mal-dormida! Adão pecou
e a humanidade ainda hoje lhe expia o crime feio; pois bem, este mosquito é o
Adão da sua raça! Por ele pagarão todos! Serei inexorável – guerra de morte e de
extermínio! Delenda est mosquitos!

Ópera ou circo?

Tagarela | 23-7-1903.

Não deixarei que saia de entre nós o Sr. Antoine com semelhante dúvida
aos lábios. Tanto mais que me é fácil aclarar-lha, porquanto o mesmo perguntei
quando, vez primeira, fui ao teatro da Guarda Velha.

Deveras, a princípio aquelas barras hercúleas de ferro, que atravessam a


sala, lado a lado, surpreenderam-me e, na flagrante adaptação aos trapézios que
se adivinham nelas, lobriguei perceber um circo; mas, ao mesmo tempo, aquele
ar petulante e faustoso da sala; aqueles heráldicos dragões sopesando o espadagão
da república que tão bem se justapôs à esfera armilar do Império; as lojas presi-
denciais; deram-me a impressão de ópera.

Ao colega que tão espontaneamente me guiava pelas grandezas do Rio, sub-


meti a minha dúvida, ao que tornou breve e seco – é o Lírico!

Satisfeito fui para casa sabendo que aquele tapume engalanado a ópera,
faustoso e soberbo era o Lírico.

Que é o Lírico? É circo... É opera...

Nada disto. É tudo isto dosado e combinado, adaptado ao final às exigências


da nossa civilização.

Creio que me expliquei mal. Naturalmente acham os períodos acima nebu-


losos por demais; mas exemplificar-me-ei para melhor compreensão.
Supondo: largo do Machado, num barracão de quintal, canta-se a Marcha de
Cadis, se está o high-life de casaca – que é? É o Lírico.

Mas por que é Lírico? Porque... Porque... Porque se está de casaca...

Imaginai: no bonde (de ceroula ou não), viajam uma senhora e cavaleiro,


ambos trajando vestuários de preço, a soberba capa da senhora faz pendant ao
elegante sobretudo do senhor; ao vê-los perguntareis:

– Que diabo! Tão ricamente vestidos em bonde de 200 rs.! Que diabo!

Que será?

– É o Lírico, respondo eu.

Compreenderam?

É o Lírico sob o aspecto... diga-se... sob o aspecto subjetivo. Sob o aspecto


objetivo o símile é perfeito; vejamos: em começo é pleno capinzal, ao depois umas
paredes adelgaçam-se formando o barracão de circo, mais depois uma fachada
pretensiosa acaba a edificação – eis o Lírico.

É circo e é opera.

Para última existe sempre o canto, quer represente a Della Guardia, quer
seja Réjane ou mesmo a Darclée, está sempre virtual na inteligência da platéia,
tanto assim que certa vez na Gioconda de D’Annunzio, senti na fisionomia de um
espectador a mágoa de ouvir desafinar uma nota.
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E o circo? Existe sempre. Em estando a sala cheia, existem lá: malabaristas


de câmbio, acrobatas dos códigos (francês, inglês, etc.) écuyers gentis, no patri-
mônio, equilibristas da corda bamba da vida, e por fim, uma coleção de animais
exóticos: papagaios parlamentares; macacos velhos que não metem mão em cum-
buca; hidras da oposição; serpentes da intriga; patativas do norte (vulgo meninos
prodígios); uniolho biográfico (animal da Polinésia onde o mar toca piston); etc.
Assim o Sr. Antoine poderá dizer em Paris onde representou no Rio e lá
explicará convenientemente o sentido do título.
Ruy de Pina é um dos pseudônimos já seguramente identificados.
O manuscrito desta crônica está na Biblioteca Nacional – gaveta I – 6,36. (pasta 967)
Tagarela era uma publicação feita em São Paulo, pelos estudantes de Direito.

Uma coisa puxa a outra... I

A Estação Teatral | Rio, 8-4-1911.

A leitura do folhetim do Senhor Eugênio de Lemos, na Notícia, de 30 do


mês último, sugeriu-me escrever algumas considerações sobre o “Teatro Munici-
pal” e o contrato do seu arrendamento ao Senhor Rosa.

São considerações à margem, para anotações, porque, do contrato, eu nada


sei, nem mesmo aquilo que os jornais têm publicado.

Sou avesso ao teatro, isto é, ao teatro-ribalta; julgo, contudo, que, como


gênero literário, se não vive sempre, pelo menos os seus grandes monumentos
passados hão de sempre merecer o respeito e a admiração de todos. A música
sacra pode ser grande, mesmo para quem não é mais católico e não as ouve
nas igrejas.

Demais, visto-me mal, lamentavelmente mal, quase mendicante; nunca te-


nho roupas – de modo que jamais estou em estado sofrivelmente binocular, para
acotovelar as elegâncias que se premem nos nossos teatrinhos.

Não julgo que amo a piedade; não sofro miséria, não, e vivo bem. É um
feitio esse de ser; é a minha pose...

Houve momentos que quis penetrar nos teatros, quando descarnados, em


horas de ensaio; mas – meu Deus! – as atrizes têm tanto medo de serem violadas
que eu não levei a cousa avante.

Não que eu seja alguma cousa como um Golleiland, mas é que ninguém se
livra de acusações geradas pelo medo.
Para mim eu tenho que, se fosse proibido às mulheres aparecer em cena,
como nos áureos tempos do teatro, ele ganharia muito em nobreza, desinteresse,
pureza artística e não assustaria aos tímidos e aos gauches.

Acontece também que, logo que me meti em cousas de letras, vim dar de cara
com essa sabedoria transcendente e assustadora: “entender de teatro”.
Eu acabava de abandonar uma escola de matemática e não queria mais
enfronhar-se em cousas difíceis, amofinar-me com caceteações para minha du-
vidosa inteligência.

Via o Antônio, via o meu amigo Castro Lopes, via o estimável J. Brito, via
o meu amigo e antigo colega Júlio Tapajós falarem misteriosamente sobre a tal
cousa de entender de teatro que fugi dele, como tenho fugido à mecânica e como
ainda hoje fujo às ciências ocultas.

Por fim, porém, tomei ânimo e comecei a examinar as cousas. Não só li


autores, como também passei cerca de dez dias mergulhado e interessado pelo
que se passava em um modesto “mambembe”, onde, como maestro, figurava um
parente meu, muito da minha estima e consideração.
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Lá vi ensaiar, marcar, representar uma série de peças, peças que não vêm
mais ao cartaz aqui, mas cujo preparo para serem levadas à cena mostrou-me o
que a tal sabedoria teatral é e vale. Fui mesmo bilheteiro quando a companhia
foi dar espetáculo numa pequena povoação dos arredores de Juiz de Fora. Voltei,
se não empenhado no saber teatral, pelo menos com conhecimento bastante para
julgá-lo em juízo.

No “mambembe” levou-me o método que tenho seguido nessas cousas de


letras: ver eu fazer a cousa em pequenas proporções, tateando, para depois lan-
çar-me de vez e com segurança nos tentamens mais avultados.
Não se assustem. Continuo a ter medo das atrizes e nada tentarei
no palco. Adiante...

Concluí então que aquilo que os meus amigos consideravam sabedoria tea-
tral, quando não eram vagas teorias muito discutíveis, em preceitos cabíveis a to-
das as artes: conhecimento do público, óptica do gênero, intuição de efeitos, etc.;
era simplesmente técnica de cenógrafo, de contra-regra e de ator, propriamente
destes, técnica que nada tinha a ver com a arte de escrever para teatro.

É ingênuo supor que um cidadão que se propõe a escrever um drama, não


pense logo nos efeitos, na extensão das cenas e seu incremento, e não saiba pela
leitura dos grandes autores e dos mestres de que maneira mais ou menos deve
tratar do assunto para pô-lo no quadro do gênero que vai tentar. De resto, ele tem
os ensaios e por aí pode julgar.

E, entretanto, tudo isso pode ser vão, porque uma peça nunca é feita para o
espectador, mas para espectadores, havendo reações múltiplas de um sobre outro,
que não são passíveis de previsão e de medida. Mas voltemos à sabedoria teatral...
Imaginem os senhores que o meu vizinho quer tentar a literatura, o romance,
a novela, o conto, e vem pedir-me conselhos. A minha autoridade é pouca;
o melhor seria ele dirigir-se a Coelho Neto, cuja glória repousa sobre a
biblioteca de Alexandria; mas... o menino vem... Estou próximo e sou mais ve-
lho – circunstância que muitas vezes forma um conselheiro. Vem, e eu, em vez
de dizer-lhe: escreva muito, a todo o momento, narre as suas emoções, os seus
pensamentos, descubra a alma dos outros, tente ver as cousas, o ar, as árvores e
o mar, de modo pessoal, procure o invisível no visível, aproxime tudo em um só
pensamento; em vez de dizer-lhe tudo isso e mais, digo-lhe: aprenda tipografia,
xilografia, zincografia, etc.

Pois assim são as tais pessoas que se convenceram que há uma sabedoria
teatral, à parte da arte geral de escrever.

Propondo-me a fazer peças, dramas, comédias, eu nada tenho com o mé-


tier de ator, ou mesmo de atriz, de cenógrafo, etc.; eu nada tenho a ver com
“comprimentos, esquerdas altas ou baixas”; o que tenho a fazer é desenhar ca-
racteres, pintar as paixões, pôr uns e outros em conflitos, observar costumes,
fazer rir, comover, isso tudo em língua literária e adequada ao gênero da peça
que quero representar.
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É isto; o mais, meus amigos, é com os outros, o ensaiador, o ponto, o mar-


cador, o cenógrafo, o contra-regra, o carpinteiro, o gasista e os atores também,
tendo cada um deles a sua glória e o seu mérito próprios.

Se assim não fosse, os atores e as atrizes, pois os há instruídos e que julgo


capazes, aqui e além-mar, seriam os melhores autores deste mundo; entretanto,
isso não se dá e de há muito que os Shakespeares e os Molières não se repetem.
Eu daria estas explicações, porque nunca me imiscuí em cousas teatrais e
mesmo não entro em teatro há cousa de três anos, passando, às vezes, noites se-
guidas em claro; e as dou de bom coração porquanto julgo ter imigrado de algum
modo um preconceito que domina por aí.

E o Municipal? Não se aprovou.

Chegará a vez de falar nele e de pesar o Senhor João Luso. Tenho em casa
uma balança resistente e de boa fábrica...

Uma coisa puxa a outra... II

A Estação Teatral | Rio, 22-4-1911

O Teatro Municipal! É inviável. A razão é simples: é muito grande e luxu-


oso. Supondo que uma peça do mais acatado dos nossos autores provoque uma
enchente, repercuta sobre a opinião, haverá no Rio de Janeiro e arredores, inclusive
o Méier e Petrópolis, gente suficientemente encasacada para enchê-lo dez, vinte ou
trinta vezes? Decerto, não. Se ele não se encher pelo menos dez vezes, por peça, a
receita dará para custear a montagem, pagar o pessoal, etc.? Também não.
De antemão, portanto, pode-se afirmar, deixando de apelar para números
exatos, que aquilo não é muito prático, é inviável. Bem: há adianto à educação
artística da população em representações para platéias vazias? Isso estimula au-
tores que não são nem pateados nem aplaudidos? Até os próprios atores quando
olham as platéias vazias e indiferentes, perderão o passo, o gesto, o entusiasmo, ao
declamarem lindas tiradas e tiverem de jogar um diálogo vivo.

Hão de concordar, pois, que isso de representar para duas dúzias de ca-
deiras simplesmente ocupadas e três camarotes abarrotados, não constitui coisa
alguma e não merece sacrifício nenhum dos poderes públicos.

Armaram um teatro, cheio de mármores, de complicações luxuosas, um te-


atro que exige casaca, altas toilettes, decotes, penteados, diademas, adereços, e que-
rem com ele levantar a arte dramática, apelando para o povo do Rio de Janeiro.
Não se tratava bem de povo, que sempre entra nisso tudo como Pilatos no
Credo. Eternamente ele vive longe desses tentamens e não é mesmo nele que os
governantes pensam quando cogitam dessas cousas; mas vá lá; não foi bem para o
povo; foi para o chefe de seção, o médico da higiene, o engenheiro da prefeitura,
gente entre seiscentos mil réis mensais e cento e pouco. Pelo amor de Deus! Os
senhores vêem logo que essa gente não tem casaca e não pode dar todo o mês uma
toilette a cada filha, e também à mulher!

Para que o tal teatro se pudesse manter era preciso que tivéssemos vinte
mil pessoas ricas, verdadeiramente ricas, e magníficas, interessadas por cousas do
teatro em português, revezando-se anualmente em representações sucessivas de
cinco ou seis peças nacionais.

Ora, isso não há. Não vejo que haja vinte mil pessoas ricas; mas há ricos e ricos.
Não me convém, entretanto, alongar tais considerações, porque entraria no cam-
po do folhetim França Júnior, e isso está desde muito no patriotismo do João Foca.
Há duas ou três mil pessoas abnegadas, que têm grande desejo de animar
essas cousas, mas ou não são ricas ou não são suficientemente para virem to-
das as noites ao Municipal, pagando altos preços pelos seus lugares, gastando
toilettes, carros, etc.

Como querem, então, que um teatro daqueles, cheio de mármore, sa-


nefas, veludos, vitraux e dourados, tendo ainda por cima (vá lá) o tal Assírio,
interesse a população pela literatura dramática, atraída às representações?
Se o governo municipal tivesse sinceramente o desejo de criar o teatro, a sua
ação, para ser eficaz, devia seguir outro caminho.

Vamos ver como. Primeiro: criar na Saúde, na Cidade Nova, no Engenho


de Dentro, em Botafogo, pequenos teatros; entregava-os a pequenas empresas,
que, mediante módica subvenção, se obrigassem a representar, para a população
local (em Botafogo era só para os criados, empregados, etc.), Os sete degraus do
crime, O remorso vivo, Os dois garotos, além de mágicas, pequenas revistas e outras
trapalhadas. Nesse primeiro ciclo teatral, devia entrar o Circo Spinelli, o único
atestado vivo do nosso espontâneo gosto pelo teatro.

Bem: agora o segundo. Construía a edilidade um pequeno teatro cômodo,


mas sem luxo no centro da cidade e entregava-o a uma companhia mais esco-
lhida que tomasse a peito representar Dona Júlia Lopes, João Luso, Roberto
Gomes, Oscar Lopes, isto é, a troupe de autores verdadeiramente municipal,
sem esquecer alguns autores portugueses e traduções de outros de França e
alhures. Este teatro também receberia a sua subvenção, é claro.

Tenhamos desse modo o ensino primário e secundário teatral; então com o


tempo, depois de ter assim este mudado o gosto pelo palco, poderíamos criar o en-
sino superior, porque não só as vocações iriam aparecendo, como também o hábito
de ir ao teatro espalharia o gosto pela casaca. O superior consistiria no ensino da
arte de representar, de cenografar, e nas representações de Shakespeare, de Racine,
de Ibsen, de Calderón, de Goldoni e os Dumas nacionais que aparecessem.
Não acham justo o programa? Pode ser que tenha defeitos, mas uma quali-
dade tem: pretende esquecer o edifício pelos alicerces.

Por aqui fico, e proximamente falarei dos autores e da melhor maneira de


escrever as peças, tendo em vista o último concurso.

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A mulher brasileira

Gazeta da Tarde | Rio, 27-4-1911.


Vida urbana, p. 49.

É de uso que, nas sobremesas, se façam brindes em honra ao aniversariante,


ao par que se casa, ao infante que recebeu as águas lustrais do batismo, conforme
se tratar de um natalício, de um casamento ou batizado. Mas, como a sobremesa
é a parte do jantar que predispõe os comensais a discussões filosóficas e morais,
quase sempre, nos festins familiares, em vez de se trocarem idéias sobre a imorta-
lidade da alma ou o adultério, como observam os Goncourts, ao primeiro brinde
se segue outro em honra à mulher, à mulher brasileira.

Todos estão vendo um homenzinho de pince-nez, testa sungada, metido nu-


mas roupas de circunstâncias, levantar-se lá do fim da mesa; e, com uma mão
ao cálice, meio suspenso, e a outra na borda do móvel, pesado de pratos sujos,
compoteiras de doce, guardanapos, talheres e o resto – dizer: “Peço a palavra”;
e começar logo: “Minhas senhoras, meus senhores”. As conversas cessam; Dona
Lili deixa de contar a Dona Vivi a história do seu último namoro; todos se apru-
mam nas cadeiras; o homem tosse e entra em matéria: “A mulher, esse ente subli-
me...” E vai por aí, escachoando imagens do Orador familiar, e fazendo citações de
outros que nunca leu, exaltando as qualidades da mulher brasileira, quer como
mãe, quer como esposa, quer como filha, quer como irmã.
A enumeração não foi completa; é que o meio não lhe permitia completá-la.
É uma cena que se repete em todos os festivos ágapes familiares, às ve-
zes mesmo nos de alto bordo.

Haverá mesmo razão para tantos gabos? Os oradores terão razão? Vale a
pena examinar.

Não direi que, como mães, as nossas mulheres não mereçam esses gabos; mas
isso não é propriedade exclusiva delas e todas as mulheres, desde as esquimós até às
australianas, são merecedoras dele. Fora daí, o orador estará com a verdade?
Lendo há dias as Memórias, de Mme d’Épinay, tive ocasião de mais uma vez cons-
tatar a floração de mulheres superiores naquele extraordinário século XVIII francês.
Não é preciso ir além dele para verificar a grande influência que a mulher
francesa tem tido na marcha das idéias de sua pátria.

Basta-nos, para isso, aquele maravilhoso século, onde não só há aquelas


que se citam a cada passo, como essa Mme d’Épinay, amiga de Grimm, de
Diderot, protetora de Rousseau, a quem alojou na famosa “Ermitage”, para
sempre célebre na história das letras; e Mme du Deffant, que, se não me falha
a memória, custeou a impressão do Espírito das leis. Não são unicamente essas.
Há mesmo um pululamento de mulheres superiores que influem, animam, en-
caminham homens superiores do seu tempo. A todo o momento, nas memó-
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rias, correspondências e confissões, são apontadas; elas se misturam nas intrigas


literárias, seguem os debates filosóficos.

É uma Mme de Houdetot; é uma marechala de Luxemburgo; e até, no fundo da Sa-


bóia, na doce casa de campo de “Charmettes”, há uma Mme de Warens que recebe, educa
e ama um pobre rapaz maltrapilho, de quem ela faz mais tarde Jean-Jacques Rousseau.
E foi por ler Mme d’Épinay e recordar outras leituras, que me veio pensar
nos calorosos elogios dos oradores de sobremesas à mulher brasileira. Onde é que
se viram no Brasil essa influência, esse apoio, essa animação das mulheres aos seus
homens superiores?

É raro; e todos que o foram, não tiveram com suas esposas, com suas irmãs,
com suas mães essa comunhão nas idéias e nos anseios, que tanto animam, que
tantas vantagens trazem ao trabalho intelectual.

Por uma questão qualquer, Diderot escreve uma carta a Rousseau que o faz
sofrer; e logo este se dirige a Mme d’Épinay, dizendo: “Se eu vos pudesse ver um
momento e chorar, como seria aliviado!” Onde é que se viu aqui esse amparo,
esse domínio, esse ascendente de uma mulher; e, entretanto, ela não era nem sua
esposa, nem sua mãe, nem sua irmã, nem mesmo sua amante!

Como que adoça, como que tira as asperezas e as brutalidades, próprias ao


nosso sexo, essa influência feminina nas letras e nas artes.

Entre nós, ela não se verifica e parece que aquilo que os nossos trabalhos
intelectuais têm de descompassado, de falta de progressão e harmonia, de po-
breza de uma alta compreensão da vida, de revolta clara e latente, de falta de
serenidade vem daí.
Não há num Raul Pompéia influência da mulher; e cito só esse exemplo que
vale por legião. Se houvesse, quem sabe se as suas qualidades intrínsecas de pen-
sador e de artista não nos poderia ter dado uma obra mais humana, mais ampla,
menos atormentada, fluindo mais suavemente por entre as belezas da vida?
Como se sente bem a intimidade espiritual, perfeitamente espiritual, que há
entre Balzac e a sua terna irmã, Laura Sanille, quando aquele lhe escreve, numa
hora de dúvida angustiosa dos seus tenebrosos anos de aprendizagem: “Laura,
Laura, meus dois únicos desejos, ‘ser célebre e ser amado’, serão algum dia satis-
feitos?” Há disso aqui?

Se nas obras dos nossos poetas e pensadores passa uma alusão dessa or-
dem, sentimos que a coisa não é perfeitamente exata, e antes o poeta quer
criar uma ilusão necessária do que exprimir uma convicção bem-estabeleci-
da. Seria melhor talvez dizer que a comunhão espiritual, que a penetração de
idéias não se dá; o poeta força as entradas que resistem tenazmente.
É com desespero que verifico isso, mas que se há de fazer? É preciso ser
honesto, pelo menos de pensamento...

É verdade que os homens de inteligência vivem separados do país; mas se há


uma pequena minoria que os segue e acompanha, devia haver uma de mulheres
que fizesse o mesmo.
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Até como mães, a nossa não é assim tão digna dos elogios dos oradores infla-
mados. A sagacidade e agilidade de espírito fazem-lhes falta completamente para
penetrar na alma dos filhos; as ternuras e os beijos são estranhos às almas de cada
um. Sonho do filho não é percebido pela mãe; e ambos, separados, marcham no
mundo ideal. Todas elas são como aquela de que fala Michelet:

“Não se sabe o que tem esse menino”. “Minha Senhora, eu sei: ele nunca
foi beijado”.

Basta observar a maneira de se tratarem. Em geral, há jeitos cerimoniosos,


escolhas de frases, ocultações de pensamentos; o filho não se anima nunca a dizer
francamente o que sofre ou o que deseja e a mãe não o provoca a dizer.

Sem sair daqui, na rua, no bonde, na barca, poderemos ver a maneira


verdadeiramente familiar, íntima, sem morgue nem medo, com que as mães
inglesas, francesas e portuguesas tratam os filhos e estes a elas. Não há sombra
de timidez e de terror; não há o “senhora” respeitável; é “tu”, é “você”.

As vantagens disso são evidentes. A criança habitua-se àquela confidente;


faz-se homem e, nas crises morais e de consciência, tem onde vazar com con-
fiança as suas dores, diminuí-las, portanto, afastá-las muito, porque dor confes-
sada é já meia dor e tortura menos. A alegria de viver vem e o sorumbatismo, o
mazombo, a melancolia, o pessimismo e a fuga do real vão-se.

Repito: não há tenção de fazer uma mercurial desta crônica; estou a ex-
primir observações que julgo exatas e constato com raro desgosto. Antes, o
meu maior desejo seria dizer das minhas patrícias aquilo que Bourget disse da
missão de Mme Taine, junto a seu grande marido, isto é, que elas têm cercado e
cercam o trabalho intelectual de seus maridos, filhos ou irmãos de uma atmos-
fera na qual eles se movem tão livremente como se estivessem sós, e onde não
estão de fato sós.

Foi, portanto combinando a leitura de uma mulher ilustre com a recorda-


ção de um caso corriqueiro da nossa vida familiar que consegui escrever estas
linhas. A associação é inesperada; mas não há do que nos surpreender com as
associações de idéias.

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Maio

Gazeta da Tarde | Rio, 4-5-1911.

Feiras e mafuás, p. 255.

Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem
emoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições
desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu
signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês
sagrado me traz se misturam recordações da minha meninice.

Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea,
meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus
anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.
Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje
repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e lá de uma das janelas
eu vejo um homem que acena para o povo.

Não me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo
o grande Patrocínio.

Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do ve-
lho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de
pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos
com lenço, vivas...

Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era
geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-
me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.

Houve missa campal no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu
pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vi-
nha aos olhos a “Primeira Missa”, de Vítor Meireles. Era como se o Brasil tivesse
sido descoberto outra vez... Houve o barulho de bandas de música, de bombas
e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e houve também préstitos cí-
vicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas
ruas. Construíram-se estrados para bailes populares; houve desfile de batalhões
escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura,
cercada de filhos, assistindo àquela fieira de numerosos soldados desfiar devagar.
Devia ser de tarde, ao anoitecer.

Ela me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado.
Nunca mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles
enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados
e um criado à traseira.

Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe ima-
ginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma
pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rarea-
vam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir
bem os aspectos hediondos.

Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo
país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça
originária da escravidão.

Quando fui para o colégio, um colégio público, à Rua do Resende, a alegria


entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria
ambiente nos tinha tomado.

A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteli-


gente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da
coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!
Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não
havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.

Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega


meu, depois de um castigo, me disse: “Vou dizer a papai que não quero voltar
mais ao colégio. Não somos todos livres?”

Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas
teias dos preceitos, das regras e das leis!

Dos jornais e folhetos distribuídos por aquela ocasião, eu me lembro de


um pequeno jornal, publicado pelos tipógrafos da Casa Lombaerts. Estava bem-
impresso, tinha umas vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses,
dois eram dedicados a José do Patrocínio e o outro à princesa. Eu me lembro, foi
a minha primeira emoção poética a leitura dele. Intitulava-se “Princesa e Mãe” e
ainda tenho de memória um dos versos:

Houve um tempo, senhora, há muito já passado...


São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com
que sintamos a eternidade do tempo.
Oh! O tempo! O inflexível tempo, que como o Amor, é também irmão da
Morte, vai ceifando aspirações, tirando presunções, trazendo desalentos, e só nos
deixa na alma essa saudade do passado às vezes composta de coisas fúteis, cujo
relembrar, porém, traz sempre prazer.
Quanta ambição ele não mata! Primeiro são os sonhos de posição: com os
dias e as horas e, a pouco e pouco, a gente vai descendo de ministro a amanuense;
depois são os do Amor – oh! como se desce nesses! Os de saber, de erudição, vão
caindo até ficarem reduzidos ao bondoso Larousse. Viagens... Oh! As viagens!
Ficamos a fazê-las nos nossos pobres quartos, com auxílio do Baedecker e outros
livros complacentes.

Obras, satisfações, glórias, tudo se esvai e se esbate. Pelos trinta anos, a gente
que se julgava Shakespeare, está crente que não passa de um “Mal das Vinhas”
qualquer; tenazmente, porém, ficamos a viver, esperando, esperando... o quê? O
imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois. Esperando os milagres do
tempo e olhando o céu vazio de Deus ou deuses, mas sempre olhando para ele,
como o filósofo Guyau.

Esperando, quem sabe se a sorte grande ou um tesouro oculto no quintal?


E maio volta... Há pelo ar blandícias e afagos; as coisas ligeiras têm mais
poesia; os pássaros como que cantam melhor; o verde das encostas é mais macio;
um forte flux de vida percorre e anima tudo...

O mês augusto e sagrado pela poesia e pela arte, jungido eternamente à


marcha da Terra, volta; e os galhos da nossa alma que tinham sido amputados
– os sonhos, enchem-se de brotos muito verdes, de um claro e macio verde de
pelúcia, reverdecem mais uma vez, para de novo perderem as folhas, secarem,
antes mesmo de chegar o tórrido dezembro.

E assim se faz a vida, com desalentos e esperanças, com recordações e sau-


dades, com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, à espera da morte,
da doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados...
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O caso do mendigo

Gazeta da Tarde | Rio, 26-5-1911.

Bagatelas, p. 67.

Os jornais anunciaram, entre indignados e jocosos, que um mendigo, preso


pela polícia, possuía em seu poder valores que montavam à respeitável quantia
de seis contos e pouco.

Ouvi mesmo comentários cheios de raiva a tal respeito. O meu amigo X,


que é o homem mais esmoler desta terra, declarou-me mesmo que não dará mais
esmola. E não foi só ele a indignar-se. Em casa de família de minhas relações, a
dona da casa, senhora compassiva e boa, levou a tal ponto a sua indignação, que
propunha se confiscasse o dinheiro ao cego que o ajuntou.

Não sei bem o que fez a polícia com o cego. Creio que fez o que o Código
e as leis mandam; e, como sei pouco das leis e dos códigos, não estou certo se ela
praticou o alvitre lembrado pela dona da casa de que já falei.

O negócio fez-me pensar e, por pensar, é que cheguei a conclusões diame-


tralmente opostas à opinião geral.

O mendigo não merece censuras, não deve ser perseguido, porque tem to-
das as justificativas a seu favor. Não há razão para indignação, nem tampouco
para perseguição legal ao pobre homem.

Tem ele, em face dos costumes, direito ou não a esmolar? Vejam bem
que eu não falo de leis; falo dos costumes. Não há quem não diga: sim.
Embora a esmola tenha inimigos, e dos mais conspícuos, entre os quais,
creio, está M. Bergeret, ela ainda continua a ser o único meio de mani-
festação da nossa bondade em face da miséria dos outros. Os séculos a
consagraram; e, penso, dada a nossa defeituosa organização social, ela tem
grandes justificativas. Mas não é bem disso que eu quero falar. A minha
questão é que, em face dos costumes, o homem tinha direito de esmolar.
Isto está fora de dúvida.

Naturalmente ele já o fazia há muito tempo, e aquela respeitável quantia de


seis contos talvez represente economias de dez ou vinte anos.

Há, pois, ainda esta condição a atender: o tempo em que aquele dinheiro
foi junto. Se foi assim num prazo longo, suponhamos dez anos, a coisa é assim de
assustar? Não é. Vamos adiante.

Quem seria esse cego antes de ser mendigo? Certamente um operário, um


homem humilde, vivendo de pequenos vencimentos, tendo às vezes falta de tra-
balho; portanto, pelos seus hábitos anteriores de vida e mesmo pelos meios de que
se servia para ganhá-la, estava habituado a economizar. É fácil de ver por quê. Os
operários nem sempre têm serviço constante. A não ser os de grandes fábricas do
Estado ou de particulares, os outros contam que, mais dias, menos dias, estarão
sem trabalhar, portanto sem dinheiro; daí lhes vem a necessidade de economizar,
para atender a essas épocas de crise.

Devia ser assim o tal cego, antes de o ser. Cegando, foi esmolar. No primeiro
dia, com a falta de prática, o rendimento não foi grande; mas foi o suficiente para
pagar um caldo no primeiro frege que encontrou, e uma esteira na mais sórdida
das hospedarias da Rua da Misericórdia. Esse primeiro dia teve outros iguais
e seguidos; e o homem se habituou a comer com duzentos réis e a dormir com
quatrocentos; temos, pois, o orçamento do mendigo feito: seiscentos réis (casa e
comida) e, talvez, cem réis de café; são, portanto, setecentos réis por dia.

Roupa, certamente, não comprava: davam-lha. É bem de crer que assim fosse,
porque bem sabemos de que maneira pródiga nós nos desfazemos dos velhos ternos.
Está, portanto, o mendigo fixado na despesa de setecentos réis por dia. Nem
mais, nem menos; é o que ele gastava. Certamente não fumava e muito menos
bebia, porque as exigências do ofício haviam de afastá-lo da “caninha”. Quem dá
esmola a um pobre cheirando a cachaça? Ninguém.

Habituado a esse orçamento, o homenzinho foi se aperfeiçoando no ofício.


Aprendeu a pedir mais dramaticamente, a aflautar melhor a voz; arranjou um
cachorrinho, e o seu sucesso na profissão veio.

Já de há muito que ganhava mais do que precisava. Os níqueis caíam, e o que ele
havia de fazer deles? Dar aos outros? Se ele era pobre, como o podia fazer? Pôr fora?
Não; dinheiro não se põe fora. Não pedir mais? Aí interveio uma outra consideração.
Estando habituado à previdência e à economia, o mendigo pensou lá con-
sigo: há dias que vem muito; há dias que vem pouco, sendo assim, vou pedindo
sempre, porque, pelos dias de muito, tiro os dias de nada. Guardou. Mas a quan-
tia aumentava. No começo eram só vinte mil-réis; mas em seguida foram qua-
renta, cinqüenta, cem. E isto em notas, frágeis papéis, capazes de se deteriorarem,
de perderem o valor ao sabor de uma ordem administrativa, de que talvez não
tivesse notícia, pois era cego e não lia, portanto. Que fazer, em tal emergência,
daquelas notas? Trocar em ouro? Pesava, e o tilintar especial dos soberanos tal-
vez atraísse malfeitores, ladrões. Só havia um caminho: trancafiar o dinheiro no
banco. Foi o que ele fez. Estão aí um cego de juízo e um mendigo rico.

Feito o primeiro depósito, seguiram-se a este outros; e, aos poucos, como


hábito é segunda natureza, ele foi encarando a mendicidade não mais como
um humilhante imposto voluntário, taxado pelos miseráveis aos ricos e reme-
diados; mas como uma profissão lucrativa, lícita e nada vergonhosa.

Continuou com o seu cãozinho, com a sua voz aflautada, com o seu ar do-
rido a pedir pelas avenidas, pelas ruas comerciais, pelas casas de famílias, um
níquel para um pobre cego. Já não era mais pobre; o hábito e os preceitos da pro-
fissão não lhe permitiam que pedisse uma esmola para um cego rico.

O processo por que ele chegou a ajuntar a modesta fortuna de que falam os
jornais é tão natural, é tão simples, que, julgo eu, não há razão alguma para essa
indignação das almas generosas.
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Se ainda continuasse a ser operário, nós ficaríamos indignados se ele tivesse


juntado o mesmo pecúlio? Não. Por que então ficamos agora?

É porque ele é mendigo, dirão. Mas é um engano. Ninguém mais que um


mendigo tem necessidade de previdência. A esmola não é certa; está na depen-
dência da generosidade dos homens, do seu estado moral psicológico. Há uns que
só dão esmolas quando estão tristes, há outros que só dão quando estão alegres
e assim por diante. Ora, quem tem de obter meios de renda de fonte tão incerta
deve ou não ser previdente e econômico?

Não julguem que faço apologia da mendicidade. Não só não faço como
não a detrato.

Há ocasiões na vida que a gente pouco tem a escolher; às vezes mesmo


nada tem a escolher, pois há um único caminho. É o caso do cego. Que é que ele
havia de fazer? Guardar. Mendigar. E, desde que da sua mendicidade veio-lhe
mais do que ele precisava, que devia o homem fazer? Positivamente, ele pro-
cedeu bem, perfeitamente de acordo com os preceitos sociais, com as regras da
moralidade mais comezinha e atendeu às sentenças do Bom homem Ricardo, do
falecido Benjamin Franklin.

As pessoas que se indignaram com o estado próspero da fortuna do cego,


penso que não refletiram bem, mas, se o fizerem, hão de ver que o homem merecia
figurar no Poder da vontade, do conhecidíssimo Smiles.

De resto, ele era espanhol, estrangeiro, e tinha por dever voltar rico. Um
acidente qualquer tirou-lhe a vista, mas lhe ficou a obrigação de enriquecer. Era
o que estava fazendo, quando a polícia foi perturbá-lo. Sinto muito; e são meus
desejos que ele seja absolvido do delito que cometeu, volte à sua gloriosa Espa-
nha, compre uma casa de campo, que tenha um pomar com oliveiras e a vinha
generosa; e, se algum dia, no esmaecer do dia, a saudade lhe vier deste Rio de
Janeiro, deste Brasil imenso e feio, agarre em uma moeda de cobre nacional e
leia o ensinamento que o governo da República dá... aos outros, através dos seus
vinténs: “A economia é a base da prosperidade”.
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