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“Ao redor do fogo” encontraremos também os estudiosos que há décadas fazem lenha para a
Eu aprendi e fui ensinada que se a gente entendesse as feras fogueira do debate das histórias e culturas dos povos indígenas, identidades, memórias, e
elas iriam nos entender. 1
educação, a exemplo de CARNEIRO DA CUNHA (1992); MONTEIRO (1994); OLIVEIRA
Estudante e caçador.
O texto é uma floresta na qual o leitor é um caçador. FILHO (ano); BESSA FREIRE (ano); VIVEIROS DE CASTRO ( ), BRANDÃO (...).
Rumores na floresta: a ideia - a presa arisca; a citação -
uma peça do quadro.
(nem todo leitor consegue encontrar a ideia). 2 Na reflexão com os teóricos canônicos será imprescindível a articulação e o diálogo, co o
anunciado antes, com autores e pesquisadores indígenas advindos das diferentes formações
disciplinares e dos diversos povos e lugares por onde andaram, “caçadores” e “navegadores”
de diferentes florestas e mares, “batedores” de diferentes tempos e contextos, a exemplo de
Os relatos nos impelem a compreender e refletir a história indígena como “rumores na
Ailton KRENAK; Davi KOPENAWA (2015); Daniel MUNDURUKU (2012); Gersen
floresta”. 3 Uma ideia que se deixa perseguir - “a presa arisca”, não se deixa agarrar para “a
Luciano BANIWA; Celia XAKRIABÁ (2018); Sandra Benites GUARANI (2018), Eliane
citação” - a peça do quadro, que corre o risco de ser emoldurada e perder fluidez, por meio de
5
POTIGUARA, Sonia GUAJAJARA, entre outros/as.
uma escrita e um arcabouço teórico metodológico adequado ao discurso. Como tentativa de
compensar essa sensação e fazer uma interlocução mais horizontalizada possível,
Nessa perspectiva do dialogo situamos o alerta de Benjamin, sobre a disposição que deve ter
dialogaremos com os/as autores/as e pensadores/as indígenas, convidados a conversar sobre
alguém que se sente desafiada a seguir um rastro, uma pegada, pois, destaca o autor, “não
diversos equívocos grosseiros que lhes são atribuídos desde a chegada do “home branco” .
apenas deve estar atento, mas precisa já ter prestado muita atenção em tudo, por onde andou.”
(BENJAMIN, 2006. p. 841). E muitos caminhos foram trilhados por outros/outras que
Esta ressalva nos parece importante porque não queremos repetir a exaustão o que já foi dito
assumiram a questão indígena como causa de honra para a nossa história, o nosso país, a
sobre a sanha do colonizador, mas confrontar as práticas narrativas dos indígenas com novos
nossa sociedade.
significados que advém de uma longa trajetória de relação com os ancestrais.
Participar nessa roda exige paciência e atenção para observar os rostos iluminados pelo
Nesse sentido, o diálogo sobre memória, cultura, história, fontes e historiografias propõe uma
4 crepitar da lenha - indígenas e não indígenas, com suas constelações conceituais, trazendo a
espécie de “simbiose” com as reflexões e preocupações dos protagonistas indígenas que
memória à consciência histórica do “momento do perigo”, enriquecendo as significações
atribuídas as perseguição e ação de “um povo que luta para não deixar de existir”.
(BRANDÃO, 2018).
1
Fala de uma estudante indígena referindo-se ao mundo acadêmico.
2
Benjamin, 2006. p. 841. Todavia, o percurso dessa conversa requer perceber, especialmente, o protagonismo daqueles
3
As expressões que comparecem com aspas foram retiradas das anotações de Benjamin. (Passagens, 2002, p. que perseguem incansáveis “o fio e os rastros” (GINZBURG) da sua própria “história e
841).
4 5
‘A simbiose metafórica da colaboração envolve mais do que observarmos os outros fazerem o que fazem: “É Os nomes que se encontram datados são acadêmicos indígenas, os demais são lideranças indígenas não
preciso aprender o suficiente para procurar pelas emergências produtivas” (Tsing, 2019, p. 115). Observamos acadêmicas de expressão regional/nacional. Os quatro últimos citados são indígenas acadêmicos das aldeias de
esse aspecto na questão que tratamos, pois os indígenas de diferentes grupos observam e criam suas políticas a Aracruz/ES que concluíram estudos de mestrado/doutorado em universidades federais em outros Estados,
partir de múltiplas referencias de resistência. conforme pode ser verificado no Quadro de publicações em anexo.
memória” (LE GOFF), com o propósito de identificar as “identidades” dos interesses em jogo. mais índios, isto é, aqueles indivíduos indígenas que “já” não apresentassem
“mais” os estigmas de indianidade estimados necessários para o
Como analisa Ailton Krenak (1984, p.29): “Os interesses têm identidades, e só quando essa reconhecimento de seu regime especial de cidadania (o respeito a esse
regime, bem entendido, era e é outra coisa).6
identidade estiver claramente estabelecida é que podemos conversar e construir esta nação”.
Ora, se nem a origem e nem as cifras da população indígena são seguras, muito menos o que
Para permanecer atenta e sensível ao fracionamento que resultou de processos de embates realmente aconteceu com eles. Entretanto, devemos reconhecer que “hoje está bem mais claro
com a colonização requer-se uma etnografia que possibilite a atenção para o que a extensão do que não se sabe sobre os indígenas”, observa Carneiro da Cunha (2000, p.1).
frequentemente é desconsiderado no debate da educação. Enfim, que traga à visibilidade os
indígenas e faça emergirem as situações que os faz saltar no palco de uma história local e O que se sabe não permite incorrer mais na armadilha da “pureza” ou dos “essencialismos”.
nacional, e, no seu âmago, os seus processos de articulação da política externa com a política Diferente dessa perspectiva a história continua presente, “moldando unidades e culturas
interna naquele contexto social. novas cuja homogeneidade reside em grande parte numa trajetória compartilhada”,
continua Carneiro da Cunha. Acrescentamos que permanecem também nos fracionamentos
Carece discorrer sobre os episódios que se insurgem para desconstruir noções simplistas e étnicos dos grupos e na perda da diversidade cultural, como um prolongamento, como um
redutoras que interessam a diferentes grupos na sociedade e manter-se atenta aos rastros e continuum da colonialidade. (BENJAMIN, 2000).
sinais emergidos no momento de desconstrução de estereótipos na escrita etnográfica, e
sinalizar para as formas de resistências dos sujeitos em suas territorialidades. Desse modo, Na década de oitenta antropólogos insurgiram-se contra o esvaziamento que estava ocorrendo
fazemos um exercício de captar os sentidos atribuídos pelos indígenas as suas lutas, aos com história local, (CARNEIRO DA CUNHA, 2000, p. 24) e a partir desse período foram
seus eventos, as suas memórias e histórias. Para tanto, propomos desenvolver uma etnografia desenvolvidas pesquisas como os estudos de Turner que apresentam uma descrição densa
densa, o que não quer dizer que a descrição/interpretação que realizamos aqui encontre demonstrando como essa política interna acontece entre o grupo indígena, e em diferentes
equivalência, de fato, à interpretação dos sujeitos que executam as próprias ações, como épocas, a exemplo do povo Kayapó. (citado por Cunha, p. 18). A autora reconhece que estes
requer Geertz. (1989, p. 1. A interpretação das culturas). trabalhos são extremamente necessários para compreender uma história local, um aspecto
importante do conhecimento etnográfico.
Expressamos um esboço teórico com o qual adentramos o campo de pesquisa, além de nossa
própria biografia e proximidade com esse grupo com o qual partilho
Os diálogos interdisciplinares e críticas que aconteceram no campo da História Social e da
conhecimentos/trajetórias/história.
Antropologia deram origem a resultados profícuos e desde então algumas novas tendências
Empilhando a lenha da fogueira tem se desenvolvido na História. No meio acadêmico italiano desenvolveu-se uma tendência
historiográfica conhecida como Micro-História (GINZBURG)7 . Essa tendência se dedica a
Desde o século passado a questão de “ser ou não ser índio” não cessou de reaparecer em
paralelo ao projeto de “emancipação” que o Estado tentou impor aos povos indígenas. Para
6
Viveiros de Castro, tratava-se de um projeto “associado ao processo de ocupação induzida No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Viveiros de Castro, pesquisador e professor de antropologia
do Museu Nacional (UFRJ) e sociofundador do ISA. file:///C:/Users/Usuário/Downloads/ . Acesso 17 set 2019.
(invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia [e] consistia na
criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio de quem não era 7
Henrique Espada Lima reporta à construção das principais premissas da micro história e traz uma
índio”. O antropólogo analisa os objetivos de tal “emancipação”: reconstituição historiográfica a partir do conjunto de debates que aconteceram na Itália do pós-guerra à década
de 1970. (Doutor em História Social-UNICAMP). A Micro História começou a desabrochar com um grupo
muito específico de historiadores italianos, que até os dias de hoje apresenta publicação própria (os Quaderni
O propósito era emancipar, isto é, retirar da responsabilidade tutelar do storici), e por isto não é raro que se confunda a Micro História – enquanto nova possibilidade de abordagem
Estado os índios que se teriam tornado não-índios, os índios que não eram historiográfica – com este grupo.
compreensão da complexidade das relações sociais, partindo de contextos micro analíticos Entretanto, elas demandam que fiquemos atento/a as suas diferentes intensidades, as suas
para análises de conjunturas mais amplas. No presente estudo a consideramos como política que atualizam velhas e antigas questões não resolvidas, ativam memórias, mas não as
abordagem (e não corrente historiográfica), que segundo Barros caberia “ser tratada de mesmas lutas nem as mesmas recordações, pois estas se reposicionam a cada “momento do
maneira mais ampla, como um novo âmbito de possibilidades historiográficas, e não como perigo”, assumindo diferentes política de circulação de conhecimentos e memória, nos
uma corrente ou escola dentro da historiografia” (2007, p. 167). O autor lembra que “o olhar embates nas “demarcações territoriais” em curso.
micro historiográfico pode ser conectado aos mais distintos aportes teóricos”, e dessa forma
ele tem aparecido na historiografia brasileira das últimas décadas. 8 Controlar da memória coletiva é a ambição do poder, observa Le Goff (1989, p. 460). Mas
ele alerta que a memória “não é somente uma conquista é [também] um instrumento e um
Nesse sentido, buscamos manter um olhar “micro historiográfico” para proceder a “análise objetivo de poder, [na] luta pela dominação da recordação e da tradição”. São situações que
intensiva, incisiva, atenta tanto aos pequenos pormenores como às grandes conexões [tirando podem ser compreendidas, especialmente, onde a manifestação da memoria poderia melhor
partido das ambiguidades] e não contra elas” (BARROS, 2007, p. 183). A riqueza das fontes ser observada. O historiador indica que essas conjunturas sobrevêm e são melhor
se encontra precisamente na natureza das versões das testemunhas, na leitura de relatos compreendidas “nas sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral ou que estão em vias
(“depoimentos”) de peças jurídicas, jornalísticas e empresariais e essa diversidade mostra-se de constituir uma memória coletiva escrita [...]”. (LE GOFF, 1984, p.46). 10
fundamental para a compreensão das narrativas, não com objetivo de testar sua veracidade ou
“descobrir” o que “realmente aconteceu”, mas sim para compreender como se produzem, Desde essa perspectiva compreendemos que o objeto de pesquisa instituído para este estudo
como se elucidam as versões que os sujeitos envolvidos apresentam para os acontecimentos nos coloca frente a um embate pela memória, uma memória ativada frente a circunstancias
em pauta. que pretendia mantê-la “sob controle”, ou, que almejava conquista-la. As culturas indígenas,
portadoras de uma lógica distinta (DUSSEL, 1993), como fruto e raiz de processos
Brandão (1985) observa que diferentes compreensões estão em circulação na esfera dos específicos simbólicos e materiais de produção e de reprodução guardam seu aspecto
conhecimentos, sejam elas acadêmicas e ou populares. Requerem que sejam abertos canais político de memória e resistência às práticas e instituições que invadem seus territórios
ou pontes de comunicação com essas esferas culturais distintas, diferenciadas, mas atentarmos geográficos e simbólicos. 11
9
para não hierarquizá-las.
Para os segmentos chamados minoritários, é possível que o poder se relacione a
O autor analisa que o saber, especialmente o popular, se produz e circula “por meio de permanência de certa categoria de memória, sobre a qual discorre com um arcabouço
relações sociais cujos sujeitos, no interior de uma mesma coletividade, são múltiplos: São teórico/prático. Daniel Munduruku (2012, p. 71) explicita sobre com a seguinte formulação:
grupos domésticos (núcleo familiar), família extensa, cadeias estáveis e provisórias de “Para a nossa cultura ter sorte na vida é morrer velho. E querer-se morrer velho. O motivo é
trabalho coletivo, grupos e corporações de trabalho ritual [...]”. (p.132-165). Adverte, por fim, simples: cabe a ele ou a ela o privilégio de manter a memória viva através das histórias que
que as relações sociais por meio das quais transita o saber estão incontestavelmente ligados a carregam consigo, contadas também, por outros antepassados, numa teia sem fim que se une
uma “rede de poder”. ao princípio de tudo”. Eis, talvez, um sentido profundo dos povos procurarem garantir as
8
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professor de História nos Cursos de
Graduação e Mestrado da Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras. Autor dos livros O Campo da 10
LE GOFF. Enciclopédia Enaudi. Porto: Imprensa Nacional, casa da Moeda, 1984.
história (2004), O projeto de pesquisa em história (2004) e Cidade e história (2007). Editora Vozes.
11
Segundo Dussel (1993), o “descobrimento” do continente latino americano nos coloca diante de um
9
BRANDÃO. 1985. “Estructuras sociales de reproducion popular”, p. 132-165 in Gajardo (comp.). 1985. acontecimento decisório e que não pode ser considerado irrelevante para a constituição da Modernidade
relações entre as memórias dos vivos com seus ancestrais, da forma como se mostra Silva (2000) observou que os “novos” e os “velhos” estabeleceram uma espécie de
possível no “momento do perigo” (Benjamin). “cronologia precisa” e análoga dos acontecimentos das lutas. Desse modo, eles expressam um
pensamento narrativo no qual o lugar da memória coletiva procede selecionando, e se
Não eram suficientes aos colonizadores europeus somente terras, era necessário “tomar fortalece dos mesmos acontecimentos narrados. Dessa forma, eles outorgam
posse” do outro (DUSSEL, 1993) e, com um arsenal teórico reduzi-lo a si mesmo, destruindo- inteligibilidade/produção ao mundo em que vivem. Os indígenas Tupinikim, “velhos” e
o em sua diferença. Nesse sentido, controlar a memória coletiva tornou-se uma tática de poder “novos”, moradores das aldeias, continuam relatando minuciosamente os acontecimentos que
do colonialismo duradouro, uma vez que aquele que resguarda a memória é o sujeito antecederam a disputa pela terra protagonizada por eles, ou sobre as quais ouviram falar,
histórico marginal, o sujeito exposto, vulnerável, e, no entanto, com potência para agir porque posteriormente, seja como participantes e ou testemunhas. Por essa via, refletem, analisam,
as recordações tem a propriedade de se recomporem, (ou “remexerem do lugar”, como emitem juízo de valor e impressões sobre cada situação e a condução dos protagonistas das
explicou Ariobaldo, personagem de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosas). lutas.
Ailton Krenak (2015, p. 19) referindo-se aos avanços da Constituição brasileira de 1988 É preciso descolar, por assim dizer, o núcleo do passado de um involucro
de imagens pré-fabricadas que nos impedem de percebê-lo em sua
analisa que, se houve uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500, também houve uma
verdade. Essa verdade não é, na filosofia benjaminiana, a luminosidade
“descoberta do Brasil pelos índios na década de 1970 e 1980. A que está valendo é a última. ofuscante das origens, como se fosse possível remontar a uma fonte tanto
mais pura quanto mais distanciada no tempo. Tal concepção postula uma
Os índios descobriram que apesar de eles serem simbolicamente os donos do Brasil eles não
verdade para além da história, como se esta fosse apenas a degradação
têm lugar nenhum para viver nesse país. Terão que fazer esse lugar existir dia a dia.” progressiva de uma origem sem mácula. Não, a verdade do passado reside
antes no leque dos possíveis que ele encerra, tenham eles se realizado ou
não. A tarefa da crítica materialista será justamente revelar esses
Isso ilustra o que escreveu Viveiros de Castro sobre “voltar a virar índio”. As comunidades possíveis esquecidos, mostrar que o passado comportava outros futuros
começaram a perceber que, “[...] retomar o processo incessante de virar índio – podia ser além deste que realmente ocorreu. (Gagnebin 2018, p. 60).
12
interessante”. Desde então as etapas como suas lutas são elaboradas são modos marcantes A memória, portanto, comparece como noção importante neste estudo, amparada na
e, certamente, se encontram inscritas na memória e na tradição indígena e permeiam muitos fundamentação dos clássicos, Benjamin ( ), Le Goff (2012), entretanto, aberta ao diálogo
de seus saberes, ações e organizações, na contemporaneidade. com indígenas e seus tempos/ lugares organizadores de existência em relação com os outros
existentes, que não necessariamente humanos. O trabalho, assim desenhado, converge para a
Os saberes aprendidos das relações/narrações nos/dos movimentos das lutas territoriais estão
questão da memória e do esquecimento, na luta para tirar do silencio um passado que a
sendo reinscritos desde a eclosão da primeira retomada da terra tupiniquim. Reafirmando o
história não conta, conforme Benjamim em sua tese II.
caráter educativo das lutas, conforme discutimos neste trabalho. Contudo, o seu poder
encontra-se em viabilizar que os seus arranjos/rearranjos mantenham sua aparente unidade e 3. Terra/território/territorialidade; memória/cultura/ identidade
vinculo com as lutas. Isso faz com que seja possível a emergência e reprodução da sua
política de existência ao longo do tempo, conforme veremos no decorrer do trabalho. .13 - O povo de vocês gostaria de receber informações sobre como cultivar a
terra?
- Não. O que eu desejo obter é a demarcação de nosso território. 14
12
VIVEIROS DE CASTRO. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.
14
Conversa entre o Gen. B. Denys (Secretario da casa civil de do governo Jose Sarney) e Davi Kopenawa
13
Uma politica do existente e de existência será discutida no capitulo III. (Liderança Yanimami). (A queda do céu, 2015, p. 35.)
Pensar dialético tem a ver com a maneira como as velas são içadas “[...] ruptura ou descontinuidade (Sprung). – Existe uma tradição que é catástrofe.
significa ter o vento da história nas velas. E decisivo é a arte de posiciona- [N 9, 4].
las. O modo como são dispostas transforma-as em conceitos. [ N 9, 6]. (
2005, p. 515)
17
Sobre essa questão de “socialidade mais que humanas” retomaremos nos capítulos II e IV quando
apresentamos nossa pesquisa e observações etnográficas.
16
Ou, outras-que-humanos, conforme terminologia empregada por Tsing (2019). 18
Ocorreram três ápices nas lutas pela terra as quais chamamos “autodemarcação”, nos anos de 1978; 1988,
2005.
outras, que não só fundiárias. A partir dessa perspectiva são insurgidas demandas relativas à academia se volta para a interface entre esses povos, seu território e a educação conforme
esfera da educação, que se manifestam especialmente a partir do final década de 1990.. apresentamos no “inventário” realizado para este estudo (Ver. Cap. II).
Desde a Constituição Federal Brasileira de 1988 19 um conjunto de dispositivo legal passou a Compreendemos que realizar uma construção colaborativa, como escreve Tsing (2019, p,
regulamentar e fixar diretrizes do funcionamento das escolas e do campo da educação
171) requer, óbvio, interações: “a sabedoria se desenvolve em colaboração – não em torres de
indígena20, no que se refere à formação e a participação destes enquanto responsáveis pela homens ungidos/purificados.” Nesse sentido, a atividade desta pesquisa acadêmica abrange e
educação de seus povos. Constatou-se que essas demandas, entretanto, se apoiavam nos
encontra-se no campo das relações, a partir de onde consideramos que ela se apresenta como
avanços obtidos por meios das lutas territoriais.
um modo de relação e colaboração com teóricos canônicos e os “praticantes da cultura”.
Neste ponto, é provocativo o alerta para quem persegue “rastros”. Walter Benjamin chama (BRANDÃO, ano).
atenção para um tipo particular de experiências, ‘as que não possuem nem sequência, nem
Corroborando Brandão (ano), a pesquisa exige que os/as pesquisadores/as se envolvam com
sistema” porque “São produtos do acaso e carregam em si a marca do essencialmente
as realidades dos/as pesquisados/as na criação de filosofias, assim como de categorias, coisas
inacabável [...]. Nessa categoria de experiência entendemos que se inscrevem as lutas
e redes. Não podemos esquecer a crítica implícita à figura do “heroico pesquisador
territoriais indígenas nas décadas aqui abordadas.
individual”, do qual muitas vezes nos investimos na academia, conforme Tsing (2019, p.
171), ainda mais quando refletir e dialogar sobre educação indígena requer tencionar
relações entre cultura e interculturalidade, desde uma perspectiva prática e teórica, se faz
Educação indígena própria, cultura e interculturalidade indispensável considerar outros campos de conhecimentos.
“O acúmulo fundamentalmente interminável de tudo que é digno de ser conhecido cuja Dessa forma, observamos situações onde os novos territórios retomados atuam como
utilidade depende do acaso tem o seu protótipo no estudo” (BENJAMIN, 2006, p. 841). Nesse elementos de reinserção e reelaboração da cultura e identidade, restabelecendo memórias do
sentido as lutas territoriais abrigam um cenário pelo qual o interesse institucional da que ocorre/ocorreu nesse espaço- de- vidas, ou seja, o território retomado como lugar de
memórias.
19
Nos artigos 210, 215, 231 e 232, reconhece aos povos indígenas suas culturas, línguas e tradições e lhes garante o direito à
educação escolar, respeitando os processos próprios de ensino e aprendizagem e a língua materna como meio de
A reflexão em torno de interculturalidade, segundo Walsh (2007, p. 7-8) deve ser uma
comunicação e aprendizagem. construção de e desde os grupos/comunidades que tem sofrido uma história de submissão e
20
A lei de “Diretrizes e Bases da Educação Nacional” (LDB), Lei nº 10.172/1996; O Referencial Curricular Nacional para a subalternização. “Se trata de uma proposta de um projeto político que também pode implicar
Escola Indígena (RCNEI) de 1998; o Parecer 14/99, do Conselho Nacional; a “Resolução 3/99”; o Plano Nacional de
Educação, Lei nº 10.172/2001; o Parecer 10/2002, do Conselho Nacional de Educação; os Referenciais para a Formação de alianças com pessoas e grupos que, de igual forma, buscam alternativa à globalização
Professores Indígenas de 2002; o Decreto Presidencial nº 5.051 (19/04/2004), que promulgou a Convenção 169 da OIT; a
Resolução nº 6/CD/FNDE, de 17/03/2009. neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto para a transformação social como
21
Tsing (2019, p, 171). para criar condições de poder, saber e ser muito diferentes. E, desta forma, não é pensada
22
Viveiros de Castro, 2015, p. 40. Prefácio ao livro “A queda do Ceu”. como um projeto étnico, nem um projeto da diferença, mas um projeto de vida plena para
todos e todas.”
Essa reflexão deve ser adensada por uma perspectiva de interculturalidade que, a nosso ver, “comovente”, no sentido atribuído por Viveiros de Castro, “isto é, capaz de nos por em movimento junto com
não foi assumida suficientemente no debate da educação. Ao narrarem sobre a sua existência ela..” 23(Prefacio do livro A queda do céu ( 2015, p. 40).
os protagonistas explicitam uma relação peculiar que foi (e nem sempre é) um modo de
Os sentidos aqui relacionados à palavra interculturalidade contraem outros significados.
conviver com os existentes que habitam/habitaram o mesmo território. Eles relatam sobre uma
Pois é nas práticas indígenas que ela adquire um sentido de relação entre forças e sujeitos
interação humana que se desdobra e interage com outros modos de vidas “não humanas”.
(humanos e não humanos), tornando-se uma perspectiva contextual que abraça o pensar, o
(TSING, 2019).
sentir, as relações e ações entre grupos, pessoas e demais seres. Interculturalidade, então,
não como qualidade ou uma condição por acontecer, mas um substantivo, marcador das
Nesse sentido, a memória do território compartilha e ilumina noções próprias da cultura
condições para distintas coexistências: Base para as relações para o buen vivir ?.
indígena e, por isso, consideramos se essa concepção que envolve relações de vidas, expressa
pelos sujeitos indígenas, distendem e demarcam a reflexão sobre interculturalidade e Não consideramos essa perspectiva como uma variação de um conceito liberal “qualidade de
educação intercultural, sob nova perspectiva. vida”, como tem sido interpretada de modo simplificador. Mais do que “viver bem”,
fundamentalmente, trata-se de “coexistir”, de viver como comunidade. Noções como
É de nosso interesse avançar na abrangência e elaboração quando discutimos educação
interculturalidade e descolonização estão relacionadas ao bem viver, assim como outras
intercultural, educação indígena própria, oriundas e ou alinhadas com os movimentos das
questões que não foram ainda suficientemente consideradas, segundo César Augusto Baldi
lutas territoriais indígenas, categoria central desta pesquisa. Fornet-Betancourt (2000, p 72-
(2013). 24 Os conceitos de sumak kawsay e suma qamaña, da tradição quíchua-aimará, estão
73) afirma que avançar para um diálogo intercultural é uma exigência e um imperativo ético
localizados dentro de uma cosmologia indígena baseada nos seguintes princípios:
“Ante a catástrofe da opressão e do submetimento, do encobrimento e da exclusão das
diferenças [...] uma alternativa para reparar a injustiça”. (a) a relação do todo como a força vital pela qual ele existe; (b) correspondência, onde
os diferentes aspectos, regiões e campos da realidade correspondem harmoniosamente
entre si; (c) complementaridade, no sentido de que nenhum ser ou ação existe apenas
Para além, o debate da interculturalidade indígena pode se manifestar “como exercício para si isoladamente, mas sempre em coexistência com seu igual e oposto; (d)
reciprocidade, de modo que seres distintos se moldam e, portanto, um esforço de um
prático e teórico, de vida e de interpretação da própria cultura”, e se mostra como mais lado é equilibrado por um esforço da mesma magnitude do outro. [...] na compreensão
de outras visões do mundo, o interculturalismo anda de mãos dadas com a
descolonização do conhecimento, da natureza, dos colonizados e dos
um fundamento para realizar uma educação distinta das praticadas em outros territórios. colonizadores. Mais do que apenas uma descolonização do passado, ainda estamos
falando em descolonizar o presente. 25
Ao mesmo tempo, contestar a relação predatória com esse mesmo território fazendo
contraponto, portanto, ao princípio de dominar e explorar as pessoas, e outros existentes. Os conceitos se fortalecem construindo práticas e sentidos comuns a ponto de serem incluídos
na Constituição do Equador (2008) e na Bolivia, com a Lei da Mãe Terra, que afirmou o vivir
Essa reflexão deve se dirigir pela observação e tentativa de compreensão dos modos de
bien (viver bem) e a plurinacionalidade como conceitos fundantes do Estado.26
relação estabelecidos com e no território que envolve vidas humanas e não humanas. Aventar
tais questões só é possível se aceitarmos a preposição que compreende que as categorias de A percepção das diferentes relações e modos de experienciar o lugar, de se relacionar com os
vida não se prestam a hierarquizações, e que o universo indígena apresenta uma relação “recursos disponíveis”, o que faz emergir os meios como organizam/organizaram o território e
profunda entre elas, não inferiorizando uma à outra e, tampouco, as separa do que sustenta a marcam/marcaram sua cultura e identidade. Dessa forma, entendemos algumas situações em
vida na terra. (KOPENAWA;ALBERT, 2015). Trata-se de uma narrativa que deve ser
23
Viveiros de Castro, 2015, p. 40. Prefacio do livro “A queda do ceu”.
24
http://criticallegalthinking.com/2013/04/15/sumak-kawsay-interculturality-and-decolonialization
25
http://criticallegalthinking.com/2013/04/15/sumak-kawsay-interculturality-and-decolonialization. Acesso em 18. out
2019:
26
Para um aprofundamento da questão ver Raul PradaAlcoreza, Potencia, existência y plenitude: el caminho de
la guerra y el caminho de la sabiduria. Reflexiones em torno al sumak kausay/sumaj qamaña, disponível em;
http://www.rebelion.org/docs/178426.pdf. Acesso 29. agost.2019.
territórios recém retomados que estreiam como base/fundação para a reinserção da cultura e A noção “interculturalidade indígena” insurge, assim, “como exercício prático e teórico, de
identidade reelaboradas, restabelecem memórias do que ocorreu/ocorre nesse espaço-de-vida vida e de interpretação da própria cultura” (FORNET-BETTANCOURT), e se mostra
(dos existentes). Ou seja, o território retomado como lugar de memórias e relações com fundamento para a própria reelaboração cultural como coexistência, uma ampliação dos
outros existentes (outros-que-humanas, conforme Tsing) estabelecem outras conexões conceitos tradicionais de relações culturais e de suas variantes estritamente humanas.
culturais.
Propomos pensar e descrever outras percepções de existência/existentes para visibilizar o
Consideramos que são ações/reflexões complexas que estão em relação nessas lutas e que se fazer, o conhecimento e outros mundos possíveis a partir dos sujeitos de pesquisa para entar
simplificam, se tratadas exclusivamente como processos territoriais conflitivos, como já pensar interculturalidade. Nesse sentido, as experiências das educações próprias indígenas
discutimos em nossa dissertação (2011). Exige-se, portanto, que se considerem reflexões implicam em observar as experiências dos mais velhos e seus modos de fazer... Implica
sobre as sociabilidades indígenas, em tais práticas. Essa reflexão deve se dirigir pela aprender juntos, observando, fazendo e ouvindo. Realizar um movimento incessante de
observação e compreensão dos modos de relação estabelecidos com e no território envolvendo pesquisa e atuar sob um consentimento coletivo, na medida em que a comunidade se
vidas humanas e não humanas. reconhece a si mesmo e te reconhece.
Aventar tais questões só é possível se aceitarmos a preposição que compreende que as A despeito do estudo não remeter a um momento clássico/costumeiro da pesquisa em
categorias de vida não se prestam a hierarquizações, e que o universo indígena apresenta uma educação revela processos educacionais que permitem que noções e ou padrões de
relação profunda entre diferentes categorias, e não inferioriza uma à outra, e, tampouco, pensamentos culturais sejam revistos e ou adensados. Isso exige acompanhar e observar
entendem-nas separadas do que sustenta as existências na terra. arranjos feitos em diferentes espaços e dinâmicas e a aprender sobre nos mesmos e outros
grupos em ação; sobre as relações , os seus fundamentos e pertença cultural/identitária.
Portanto, requer um esforço para não operar com uma perspectiva epistemológica que separa,
e até mesmo opõe, natureza/cultura/humanidade e exige de nós, maneiras de se relacionar,
olhar e perceber outras possibilidades de mundos.
Ao conviver e escutar os sujeitos indígenas, in situ, encontramos pistas que indicam que há
conhecimentos advindos de um modo de aprender próprios, de uma relação experimentada no
cotidiano, no âmbito do território e da própria cultura implicadas nas ações do viver,
pescar, caçar, mariscar, plantar, coletar, banhar, tecer, pintar, comer, beber, conversar, trocar,
dançar, festejar, lutar e amar.
A partir dai outros entendimentos de palavras e conceitos surgem, os sentidos que atribuímos
a palavras como interculturalidade podem adquirir outros significados, como relação entre
forças e sujeitos (humanos e não humanos).
Trata-se de uma perspectiva contextual que abraça o pensar, o sentir, as relações e ações
entre grupos, pessoas e demais seres de vida. Interculturalidade não como uma condição por
acontecer, mas como substantivo. O intercultural, nesse caso, estaria marcado pelas distintas
maneiras de situar-se e coexistir com os demais seres de vida, como um princípio fundante
das relações e do bem viver no território.