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Esse rebaixamento das vivências sensoriais, que nunca são convidadas para a festa
da produtividade tecno-instrumental, demasiadas vezes tem sido confundido com
depressão. Se pensarmos no sentido da palavra, depressão é uma queda, um
rebaixamento de nível de alguma coisa; falamos de depressão do terreno, de
depressão do nível do mar, etc.
Estaremos, de fato, todos deprimidos?
O homem sempre usou a linguagem não apenas para atribuir significado ao mundo,
mas também para gerar a ilusão de que tem controle sobre aquilo que nomeia. As
artimanhas do Ego para sentir-se no controle da situação são vastas e poderosas, e
a indústria farmacêutica se tornou milionária aproveitando nossa tendência de
preferir maus diagnósticos a termos de lidar com a incerteza e procedermos à
autoanálise.
Sabemos que depressão clínica existe sim e é coisa séria, mas muitas vezes temos
de nos perguntar se o que se está considerando depressão não é depressão neste
outro sentido, que proponho: não estamos de fato sofrendo de um rebaixamento dos
sentidos? De uma desvitalização generalizada por conta de um estilo de vida próprio
das grandes metrópoles, que nos reduz a funcionários de um sistema de produção
(no sentido que propunha V. Flusser), para depois nos oferecer em troca apenas os
maravilhosos privilégios do consumo?
O fato é que passamos praticamente todo nosso tempo livre conectados aos meios
de comunicação eletrônicos, num processo que faz as metáforas do filme Matrix
parecerem bem reais, principalmente uma das cenas iniciais em que os seres
humanos aparecem em cápsulas conectadas à Matrix, outro nome para a rede.
Recentemente, o termo "bolha" está sendo usado para se referir a esse ambiente de
conexões dentro do qual nos fechamos (ou pensamos nos fechar, enquanto de fato
somos presos).
O corpo não está apenas mortificado, ele está amortecido por um longo trabalho
histórico de sedação e abolição do tempo e do espaço da presença, trabalho que
serve a interesses econômicos e político-ideológicos muito claros, como já apontou
Max Weber (em Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), ou ainda Dietmar
Kamper (em O Trabalho como Vida). O processo é muito claro, mas ninguém dele
se conscientiza. Saber não é o mesmo que ter consciência; a consciência demanda
vivência, exatamente essa vivência da qual estamos abrindo mão cada vez mais.
Por isso, talvez precisemos alterar o foco de análise acerca dessa onda depressiva
que assola a sociedade contemporânea e ao invés de corrermos para a próxima
medicação ou para a inclusão de uma nova síndrome, que será devidamente
medicada, claro, devamos nos perguntar, seguindo a perspectiva de James Hillman,
sobre como anda a Anima Mundi, e sobre como anda nossa alma, se unida ou
apartada de nosso corpo. Destruir a conexão corpo e alma foi uma das piores
perversões herdadas das religiões monoteístas, geradora de uma situação na qual
nos espelhamos em corpos sem alma - zumbis -, ou em almas sem corpos,
fantasmagorias, nome mais adequado às imagens técnicas da mídia, muito
diferentes das imagens artísticas, das imagens de culto, das imagens oníricas,
potentes e mobilizadoras de energia psíquica, como afirmou C. G. Jung.
Será preciso entender que fantasmagorias midiáticas não têm o potencial das
imagens que nos ativam a imaginação (CONTRERA), o trabalho da alma. São
espectros que nos transformam aos poucos em espectros também, por meio do
corpo cortado, ferido, bulímico, anoréxico, do corpo ferido e oprimido de todos os
modos possíveis.