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Disciplina
Educação para Jovens e Adultos
Prof. Victor Martins
2016
Em 1995, o Datafolha fez o mais completo solução foi ler aqueles mesmos números "às
levantamento sobre o preconceito de cor avessas": em vez de perguntar a quantidade
jamais realizado no Brasil. Durante seis de negros pobres, quis saber se já havia
meses, mais de 700 profissionais foram negros com poder aquisitivo suficiente para
envolvidos num projeto ambicioso: comprar supérfluos -revistas, por exemplo.
descobrir se o brasileiro é racista e que tipo A surpresa: cruzando dados demográficos
de racismo seria esse. Publicado em um de população e idade do IBGE, conclui que
caderno especial deste jornal em junho do há 5,4 milhões de negros e mulatos adultos
ano passado e depois transformado em com renda familiar acima de 20 salários
livro, o estudo provou que o brasileiro é mínimos. É uma cifra gigantesca, pois, entre
racista, sim, só que esse racismo é "cordial". os brancos, esse número não passa de 7,1
O resultado mais emblemático dessa milhões. Silenciosamente, os negros
"cordialidade" é o fosso existente entre os brasileiros chegaram à classe média e já
que consideram haver racismo (89% dos ocupam alguns postos no topo da sociedade.
brasileiros) e os que admitem ser, eles Pode ser que ainda não comprem iates ou
próprios, racistas (10%). frequentem campos de golfe. Mas e daí?
Num país rigorosamente cego em números, Aprendemos a ver o Brasil dividido entre
a tarefa foi grandiosa. O livro em questão brancos ricos e negros pobres, e o que
("Racismo Cordial", editora Ática) foi surgiu foi muito diferente: um país
particularmente útil e decisivo quando a composto por um oceano de pobreza
direção da editora Símbolo me incumbiu de "bicolor" (90% dos negros e 83% dos
medir o público potencial da primeira brancos têm renda familiar abaixo dos 20
revista de grande porte voltada para os salários mínimos) e uma ilhota de consumo
negros, "Raça Brasil". A revista foi lançada também repartida.
em setembro, com uma venda em bancas Não se trata de comemorar o fim da
inesperada para o mundo do marketing desigualdade racial. Tudo o que "Racismo
brasileiro, que sempre alimentou o dogma Cordial" detectou também é verdade. A
de que o negro brasileiro não tem orgulho "democracia racial brasileira" é uma falácia,
da própria raça, e que, portanto, seria inútil a desigualdade existe, só que não mais tão
fazer uma revista para eles. profunda quanto era 20 ou 30 anos atrás.
Em minucioso levantamento, a pesquisa do Todas essas informações estavam em
Datafolha mostra a desigualdade social "Racismo Cordial", mas a descoberta de
entre brancos e negros, fruto de séculos de uma classe média negra numerosa e sólida
escravidão e décadas de discriminação, escapou aos próprios analistas da pesquisa,
além de desvendar sutilezas no que mantiveram seu olhar fixo na missão
comportamento preconceituoso brasileiro. prioritária -desvendar o racismo entre nós.
Mas eu tinha um problema prático: Escapou a todos, pois aprendemos a ser
estabelecer a tiragem inicial da revista. A racistas, mesmo tentando não sê-lo. No dia
em que eu, um branco, fui encarregado de "a revista dos negros brasileiros" quando
quantificar o público leitor negro, tentei não há uma "revista dos brancos
lembrar se havia negros fazendo compras brasileiros". Ora, há cerca de 1.900 títulos
em shopping centers. Minha memória disse em circulação no país. Exceção feita a
que não. Na primeira oportunidade, fui poucas e corajosas publicações para negros,
conferir "in loco". Eles estavam lá! Nas de tiragem e recursos modestos, as demais
praças de alimentação, nas lojas de roupas e ignoram 59% da população. Quando surge
discos, nos cinemas. Consumindo, como uma que resolve prestar esse serviço, então
qualquer cidadão. esta é racista?
O fato de 200 mil exemplares se esgotarem Essa atitude revela medo de saber que os
em poucos dias, obrigando a uma negros estão paulatinamente ocupando
reimpressão de mais 100 mil, mostrou que, espaço. Neo-racistas do Brasil, relaxem! Os
além de poder de consumo, os negros negros querem apenas ser tratados como
brasileiros têm orgulho da raça ou, pelo consumidores. Pedem produtos específicos
menos, passaram a ter. para sua pele, seu cabelo, seu gosto e sua
O que dizem os brancos sobre tudo isso? A cultura. Querem se ver bem-sucedidos,
primeira reação à notícia de que haveria viver com auto-estima. O racismo cordial,
uma revista de grande tiragem foi vaticinar que aqui se instituiu como uma maneira
seu fracasso, com base nos argumentos de quase "preguiçosa" de excluir, se converte
sempre. Depois do lançamento, a última em racismo amedrontado. Tomara que seja
moda entre os racistas tem sido dizer que sua última face.
"Raça Brasil" é racista, pois se define como
O Datafolha mobilizou cerca de 700 pessoas para realizar a mais ampla pesquisa sobre
preconceito racial no Brasil.
A pesquisa foi realizada em todas as unidades da Federação, ouvindo 5.081 pessoas maiores de
16 anos em entrevistas pessoais, em 121 cidades, de 4 a 6 de abril.
Esse número de entrevistas permite um detalhamento pormenorizado nos cruzamentos. É
possível analisar opiniões, por exemplo, de cada grupo étnico segundo a faixa etária ou região
de moradia.
Há dois conceitos presentes em todo levantamento feito por amostragem: são a margem de erro
e o intervalo de confiança.
A margem de erro define variação dos resultados da pesquisa. Neste estudo, a margem de erro
é de dois pontos percentuais. Assim, quando se diz que 89% dos brasileiros afirmam que os
brancos têm preconceito de cor em relação aos negros, numa leitura rigorosa o correto seria
afirmar que de 87% a 91% têm essa opinião.
O intervalo de confiança serve para se saber o número de vezes que a pesquisa poderia ser
realizada sem que o resultado ficasse fora da margem de erro. Neste estudo, o intervalo de
confiança é de 95%.
Um intervalo de confiança de 95% significa que se fossem feitos 100 levantamentos
simultâneos com a mesma metodologia, em 95 os resultados ficariam na margem de erro de
dois pontos percentuais.
Todas as projeções foram baseadas no número de brasileiros acima de 16 anos (97.659.740
habitantes) divulgado pelo IBGE a partir do Censo de 1991, aplicadas as taxas de crescimento
para 1994.
Também foi baseado em conceitos do IBGE o critério de classificação por etnia. Essa
classificação foi feita de três formas distintas:
1) Antes de cada entrevista os pesquisadores anotavam a cor observada dos entrevistados
segundo os critérios do IBGE (branca, preta, parda, amarela e indígena);
2) Os entrevistados classificavam-se espontaneamente de acordo com a nomenclatura que
habitualmente utilizam;
3) Os entrevistados eram solicitados a se auto-classificarem de acordo com os critérios do
IBGE.
Esta pesquisa foi realizada a partir de um processo de amostragem estratificada por sexo e
idade, com sorteio aleatório dos entrevistados. O conjunto da população adulta do país é
tomado como universo da pesquisa e dividido inicialmente em quatro subuniversos que
representam as regiões.
Em cada subuniverso os municípios são agrupados de acordo com a localização geográfica e o
nível socioeconômico.
Dentro de cada grupo são sorteados municípios estratificados pelo porte correspondente.Num
processo de sorteios sucessivos chega-se ao bairro e ao indivíduo.
Folha Imagem
FERNANDO RODRIGUES
DA REPORTAGEM LOCAL
DA REPORTAGEM LOCAL
A idéia de uma legislação que assegure estão há dois anos discutindo o assunto.
vagas para os negros nas escolas e no ``Temos que lutar primeiro para que haja um
trabalho é apoiada pelos entrevistados. Entre reconhecimento de que discriminação
os negros, 55% deles disseram concordar existe", diz Ivair Augusto Alves dos Santos,
totalmente ou em parte com a militante negro.
obrigatoriedade de quotas. Já para Vicentinho, presidente da CUT, ``as
Outros 44% discordaram da idéia. À medida quotas não seriam necessárias se houvesse
que aumenta o nível de escolaridade, cresce oportunidades para todos". ``Mas diante de
o número de negros que discorda do sistema tantas diferenças, seria interessante que a
de vagas. sociedade garantisse mecanismos de
Para Carlos Eduardo Uchoa Fagundes, um igualdade."
dos diretores da Fiesp -Federação da Fulvia Rosemberg, pesquisadora da
Indústria do Estado de São Paulo-, mais Fundação Carlos Chagas e professora de
importante do que quotas seria dar psicologia social da PUC de São Paulo e a
oportunidades a todos. socióloga Regina Pahim Pinto, pesquisadora
No seu conceito, não há discriminação racial da mesma fundação, afirmam que as
no país, mas uma diferença cultural e de crianças pretas e pardas começam a perder a
aptidão: corrida para as brancas já na pré-escola.
``os japoneses são mais hábeis em coisas Em São Paulo, 50% das crianças em creches
pequenas e delicadas, os negros têm mais são negras, duas vezes mais que a proporção
facilidade no serviço pesado." de pretos e pardos da cidade. Para
A comunidade negra e o movimento sindical Rosemberg, ``a política social brasileira é de
pobre para pobre. Escola para pobre é pobre, pobre."
ônibus para pobre é pobre, equipamento é
O preconceito racial está presente na vida do ``O que supera as barreiras é a capacidade do
piloto negro Alexandre Dias desde a sua homem, não a sua cor", replica Alexandre.
infância, mas há uma diferença fundamental Formado piloto profissional em 1973,
entre ele e sua irmã, a pedagoga Tereza Dias Alexandre, 42, foi trabalhar em uma empresa
Lindolfo: ``Ela vê racismo até em janela", de táxi aéreo em Cuiabá. Único piloto negro
diz. da empresa, era também o único não
Essa diferença é facilmente notada no dia-a- autorizado a voar no melhor avião da
dia das duas famílias. companhia.
``Faço militância dentro de casa. Cultivo a Voltou para São Paulo, depois trabalhou na
auto-estima das minhas filhas. Conto a Taba (Amazônia) e na Rio Sul, antes de ser
história da Branca de Neve dizendo que era aprovado em um teste para a Varig. Dentro
uma pretinha linda, uma estrelinha da noite", da maior empresa de aviação brasileira,
diz Tereza. passou por vários estágios, até chegar a
comandante de Boeing 767. Tereza precisou de dez anos e um curso de
Em 1985, ainda era co-piloto, quando uma teatro para recuperar a coragem de falar em
passageira de classe executiva cismou de público. ``Na faculdade rompi o medo.
viajar na primeira classe. Depois de discutir Percebi que o racismo está presente em
com as comissárias, a passageira invadiu a todos os momentos da nossa vida", diz.
cabine de comando para reclamar. Deu de Casada com um militante negro, o sociólogo
cara com Alexandre e exclamou: ``O quê? João Lindolfo Filho, 37, Tereza sonha com o
Um crioulo sentado aí?" Era a cantora Eliana dia em que sua duas filhas, Cintia e Taís,
Pitman, negra. terão professores negros. Em casa, as duas
``Ri. A melhor forma de enfrentar o racismo brincam com bonecas negras e recortam
é ser superior a ele", ensina. fotos de negros, em revistas estrangeiras,
Casado com Silvana, que é branca, para os trabalhos escolares.
Alexandre tem um filho, Otavio, que sonha ``Não basta dedicação ao trabalho. É preciso
ser astronauta. ``As mulheres brancas que uma enorme capacidade de resistência", diz
me interessavam só tinham interesse por João, defensor do sistema de reserva de
brancos", diz. vagas para negros no trabalho e nas
Sua irmã Tereza, hoje com 37 anos, viveu universidades. ``Seria um tratamento
um trauma pesado quando tinha 14. diferenciado para quem sempre foi
Única aluna negra em sua classe, foi também diferenciado", diz.
a única a tirar dez na primeira prova de João defende a tese que as diferenças entre
francês. ``Quando a professora chamou meu brancos e negros têm que ser aprofundadas -
nome para entregar a prova, ela ficou e não acobertadas. ``Para depois, eles
chocada ao ver que a melhor nota era da caminharem juntos, reconhecendo a
negra. A partir daí, começou a me diferença e respeitando um ao outro".
perseguir."
Até réu tem preconceito contra juiz negro
MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL
Os tons da cor da pele variam, mas há um consenso: os brasileiros não gostam de ser chamados
de pardos e preferem a denominação de morenos.
A pesquisa do Datafolha mostra que 43% dos entrevistados se auto-atribuem a cor morena e
suas variações -moreno claro e moreno escuro- contra 6% que se autodefinem como pardos e 1%
como mulatos.
O total de morenos, morenos claros e morenos escuros é até mesmo maior do que o de brancos.
Na resposta espontânea -onde cada um pode se dizer da cor que achar mais adequada- apenas
39% se consideram brancos.
Quando se compara a resposta espontânea com a cor observada pelos pesquisadores, a rejeição
ao termo pardo fica mais visível.
Setenta e um por cento dos que se classificaram como morenos são vistos como pardos pelos
pesquisadores.
Há também o outro lado da moeda. Dos que se consideram morenos, 24% foram vistos como
brancos pelos pesquisadores.
``Moreno é a cor do Brasil. Ninguém gosta de ser chamado de neguinho ou de branquinho",
sintetiza Ézio San, vocalista do grupo de pagode Os Morenos.
Todo brasileiro sabe que a mulata é a tal. Ela sexualmente atraente e esse foi um ponto
é considerada a ``melhor de cama" pela forte da nossa proximidade", diz.
maioria dos entrevistados: 32% do total, Mas Conceição nunca se deixou pegar pelo
contra um empate técnico entre brancas estereótipo da mulata: para começar, não
(12%) e negras (13%). sabe dançar samba. ``Por incrível que
Casada com Anselmo, branco de origem pareça, não danço samba. Acho super
portuguesa, Conceição Aparecida Simão, 39, bonito, super legal, mas não sai. Minha mãe
sabe que é atraente. ``Acho que sou sempre dançou, meu irmão dança super bem,
s eu fiquei de fora dessa", diz. diz Conceição, que trabalha como analista de
Sua beleza cultuada, Conceição só foi sistemas.
descobrir há alguns anos, depois de enfrentar A pesquisa Datafolha mostra que as
o divã. mulheres preferem seus iguais no que diz
``Eu não me achava bonita, vivia de rabo-de- respeito à cor da pele. Caetana Dultra Britto
cavalo e não usava nem batom. Meu não fugia a essa regra até conhecer Antonio
terapeuta reforçou muito minha feminilidade Luiz dos Santos, com quem vive há sete
e a partir daí comecei a me arrumar mais", anos.
A população negra brasileira aparece como bastante orgulhosa de sua imagem na pesquisa
realizada pelo Datafolha: 77% dos entrevistados não querem mudar nada em sua aparência.
Mas entre os que querem mudar algo, o cabelo, eterno alvo de piadas e preconceito, vem em
primeiro lugar. Segundo a pesquisa, 8% dos entrevistados gostariam de mudar o cabelo, índice
que vai a 12% entre as mulheres.
Nos salões especializados em cabelos afro, um ``boom" de cosméticos importados mostra que os
profissionais já perceberam o mercado ávido por produtos nessa área.
Os cosméticos nacionais para cabelos de negros se limitaram a desenvolver as fórmulas caseiras
que usavam soda cáustica para alisar. Estão sendo desbancados pelo ``relaxamento", uma técnica
que, além de não agredir o couro cabeludo, valoriza os cachos e a aparência natural.
``Toda avó tem uma receita para deixar o cabelo `bom"', diz com ironia Clodoaldo Arruda, 22,
rapper e colaborador da revista ``Pode Crê!". ``Tem mãe que nem deixa a filha ir na festa se não
alisar o cabelo", acrescenta.
A idéia de ``cabelo ruim" é quase uma tradição. A maioria das negras sofreu quando menina nas
mãos de mães que alisavam seus cabelos com pente quente. A senadora Benedita da Silva e sua
cabeleireira Day lembram os tempos em que eram obrigadas a alisar os cabelos. ``Era um crime
passar soda cáustica na cabeça de uma criança", diz a cabeleireira.
``Poucos negros no Brasil têm síndrome de Michael Jackson, de querer mudar a cor da pele ou o
nariz. Mas o cabelo pega muito forte ainda", diz Arruda, rapper do Resumo do Jazz.
Hoje, uma nova estética que chega via rappers norte-americanos valoriza as diferenças, as
tranças, e o cabelo ``black power" volta às ruas na onda dos anos 70.
Orgulho é com os negros americanos. Um estudo realizado na Universidade de Arizona,
publicado pela revista ``Newsweek", mostra que 70% das adolescentes negras americanas estão
satisfeitas com sua aparência. Entra as garotas brancas, 90% gostariam de ser mais magras e
estão insatisfeitas.
No Brasil não é muito diferente: somente 8% das mulheres negras gostariam de mudar alguma
coisa no seu corpo.
``Já alisei, passei pasta, tudo para entrar no estereótipo da mulher bonita: de pele clara, cabelo
liso, feições finas. Agora já podemos assumir nossa negritude", diz a senadora Benedita da Silva.
Há quinze anos, Benedita, 53, cuida dos cabelos com Idalice M. Bastos, 45, a Day (lê-se Dái),
dona do salão AfroDay, no Rio.
A cabeleireira é tão importante na vida da senadora (PT-RJ) que foi sua convidada de honra na
cerimônia de posse no Senado.
Day conta que seu aprendizado foi longo. ``Cresci ouvindo que o cabelo dos negros era ruim",
diz a cabeleireira, que começou a trabalhar aos 14 anos.
Na época, ela usava ferros quentes, pasta e henê para alisar os cabelos -seus e de suas clientes.
Agora usa cremes naturais a base de pepino, cenoura, mamona e óleo de rícino.
Benedita acredita que a situação do negro consumidor já melhorou. Há alguns anos, era
impossível encontrar maquiagem para a pele negra, por exemplo.
Nilcéia, 33, filha de Benedita, compra os produtos da marca paulista Muene -caros, segundo a
senadora.
A pesquisa virou livro
Quando eu nasci, minha mãe, pedagoga, me deu duas bonecas exatamente iguais, uma negra e uma
branca. E para mim elas eram exatamente iguais. Na verdade, são até hoje. Eu fazia o jardim de
infância num colégio de freiras Montessori, onde as outras crianças tinham três babás e nos davam
brinquedos Waldorf e aulas de etiqueta. Na época eu acompanhava minha mãe, também professora em
escolas rurais da periferia, no Projeto Minerva e Projeto Rondon, onde as crianças não tinham sapatos
e brincávamos com vaquinhas feitas com manga verde que apanhávamos nas árvores das fazendas e
montávamos com gravetos.
Até então eu percebia e vivia ludicamente a diversidade entre crianças impecavelmente tratadas e
coercitivamente disciplinadas do colégio e aquelas remelentas e divertidas das escolas rurais e
extremas periferias, com quem eu aprendi a subir em árvore, fazer brinquedos com sucata e brincar em
rios.
Eu entendia e vivia a diversidade como igualdade. A diferença era riqueza, a possibilidade de várias
realidades a serem experienciadas onde o julgamento de valor das diferenças não era verticalizado pelo
etnocentrismo. Éramos diferentes, mas não éramos desiguais. Cada elemento da diversidade que o
Outro trazia não era visto como preconceito, era mágico! Eu trocava bonecas da Estrela por bonecas de
pano com cabelos de sabugo de milho e sentia que saía ganhando - e na verdade saía mesmo! Qualquer
criança com possibilidade econômica podia ter uma boneca da Estrela, mas só eu tinha a boneca feita
pela Dona Diassis, como era chamada Maria de Assis, merendeira da escola rural que confeccionava
bonecas para as filhas à mão.
Com o tempo percebi que os adultos configuravam a diferença que eu via como diversidade, sob o
estigma da desigualdade, onde aquelas crianças de pele mais escura, de pés descalços e roupas
esfarrapadinhas eram vistas e tratadas de forma diferente das crianças de tez mais clara, de cabelos
impecavelmente penteados, adornados com fitas e roupas que as impediam de brincar comigo na areia
do colégio, onde eu sempre me enfiava pra brincar como brincava com as crianças da escola rural e
onde comecei minha longa jornada de maus exemplos - que nunca abandonei vida afora. Eu não
entendia porque eu podia trazer as crianças negras e pobres para brincar em casa assim como eu trazia
as crianças do colégio e as mães dos meus colegas não deixavam essas crianças ir brincar em suas
casas. Só com o tempo eu entendi.
Entre as crianças da escola rural e da periferia, eu era a branquela, a gorda, a rolha de poço, a
italianinha e tinha o tiziu, o leitão, o japonês, a neguinha. Nossas diversidades eram razão de
brincadeira, de tiração de sarro, de jocosidade, a diferença era diversidade, horizontal, marcadores de
individualidades e não de desigualdades.
Esses mesmos adultos, dentre os quais os pais dos meus colegas do colégio de freiras, cujo
comportamento, em suas minúcias, expressava a desigualdade em relação aos meus amigos de
infância, criaram umas regras e hoje eu não posso chamar meubrother de fumaça, minha amiga de
neguinha, não posso fazer brincadeiras sobre as nossas diferenças como fazíamos quando éramos
crianças, pois segundo os politicamente corretos, esses chatos-hipócritas, qualquer referência jocosa a
cor da pele que não seja a branca é racismo, preconceito, visão pequena, burguesa de exclusão das
minorias, crime inafiançável e, acima de tudo, determina que você é DO MAL.
Mas enquanto eu não posso mais fazer aquelas brincadeiras de crianças com meusbrothers, grande
parte dos que não fazem brincadeira por que hoje é crime e 'pega mal' em círculos sociais, tem atitudes
discriminatórias veladas, associam negro a pobre - esse é o grande preconceito que perpetua o racismo
no Brasil e tratam crianças e adultos de 'outra' etnia com uma condescendência e 'compaixão
desigualitária' de madame que dá esmola ao filho de cego pedinte na rua.
O racismo é um grande problema em muitos países, gera guerras, mata e machuca muita gente. Razão
pela qual muitos alegam que no Brasil, como não ocorrem essas coisas em função da discriminação-
ativa, ele não exista, pois racismo mesmo é como os dos norte-americanos, que quando racistas nem
conversam com ou aceitam ser atendidos por negros ou a etnia a qual discriminam. Mas vejam, quando
este cidadão é racista de fato, ele expressa, expõe e sustenta seu racismo, por mais hediondo e
desumano que seja, ele é explícito.
No Brasil, um pais de 'homens cordiais', de homens e mulheres que pensam mas não expõem opiniões
para não afrontar o status quo, ou os círculos de poder, o pior dessa herança patriarcal rural - de um
quase-feudalismo emocional de senhores e vassalos, que 'abafam o caso', que sempre entram com um
'deixa disso' no meio de um debate acalorado - é que o fato da não exposição de idéias e sentimentos
em relação a algo gera esse preconceito enrustido, esse 'racismo que não ousa dizer o nome', que se faz
de politicamente correto e humanista e diz que "Ora, não sou racista, tenho amigos negros", mas que se
questionado sobre ter um genro ou nora negra e misturar o sangue, já declara "bem, aí muda tudo, aí já
é diferente...".
Sim, ninguém cria uma guerra pelo racismo no Brasil, mas é só ir numa delegacia na periferia de São
Paulo e ver a estatística de jovens trabalhadores e estudantes que são mortos constantemente pela
policia e a despeito das desculpas esfarrapadas de que foram confundidos com criminosos, foram
assassinados por uma única razão: são negros.
Me lembro até hoje, quando eu fazia doutorado na USP, do caso em que o grande geógrafo Milton
Santos foi dar uma palestra na ECA e foi barrado na entrada da universidade por seguranças que
queriam saber "o que ele ia fazer lá", despertando suspeitas porque ERA NEGRO, ao que o grande
virou as costas e foi embora, com toda a razão.
O racismo cordial, ou racismo à brasileira é uma mácula na nação. É aquele racismo que não se mostra
racista, que diz que aceita porque toma café junto mas não mistura o sangue, que diz que sempre tratou
bem aos negros porque deu sapatos usados para a empregada e que passa isso de forma atávica para os
filhos por meio das pequenas estruturas condicionantes de desigualdade que desqualificam a diferença.
A diferença é a melhor coisa que nós temos. A diferença é o traço do aumento de repertório, da inclusão
do novo, da ampliação do olhar para fora, de sair da caixinha, de ampliar horizontes ao perceber,
reconhecer e trazer o Outro para si. Mas a diferença não é desigualdade e enquanto o brasileiro não
entender os significados distantes destas duas palavras, o racismo cordial vai continuar ferindo a nós
todos enquanto nação.
14/11/2012 - 20h00
Negro no Brasil, episódio do programa Caminhos da Reportagem que venceu o prêmio Abdias Nascimento
2012, mostra a desiguladade entre raças e o preconceito – velado, muitas vezes – com o negro brasileiro.
Um dos pontos altos da reportagem é o depoimento do diretor do Instituto Análise, Alberto Carlos Almeida,
que escreveu o livro A Cabeça do Brasileiro. Nele, pesquisadores viajaram por todo o Brasil e mostraram a
pessoas comuns fotos de oito brasileiros de raças diferentes, vestidos de maneira igual. A cada uma, faziam
perguntas do tipo "qual o mais educado?", "qual o mais pobre?", "qual tem mais estudo?". Os números apontam
que o racismo é um fato.
– O resultado demonstra, com toda clareza, que o brasileiro é racista. O brasileiro vê negativamente as pessoas
com cor de pele mais escura e positivamente os brancos.
Pesquisadora da Universidade Cândido Mendes, Silvia Ramos também dá seu relato.
– 98% da população do país acham que existe racismo no Brasil, mas quando se pergunta a essas pessoas se
são racistas, 95% respondem que não. O Brasil é o país do "racismo cordial": todo mundo reconhece que existe
racismo, mas não reconhece o racismo em si mesmo – explicou
O episódio premiado ainda aborda temas como casamento inter-racial e trazem o relato de pessoas negras que
tiveram que superar o preconceito para alcançar seus objetivos.
De acordo com o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcelo Paixão, o casamento inter-
racial faz parte da agenda da luta antirracista:
– A luta pelo direito dos indivíduos se relacionarem livremente é parte de uma agenda histórica da humanidade
pela liberdade e de um direito inalienável de os indivíduos se encontrarem.
A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) também esteve representada no prêmio Abdias Nascimento pelo
episódio Quilombos – Luta e Resistência, também do Caminhos da Reportagem, pela Rádio Nacional do Rio
de Janeiro, na categoria Rádio, e pela Radioagência Nacional na categoria Internet. Cada um foi finalista em
sua respectiva categoria.
Links:
https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-
8#q=racismo+cordial+folha+pdf
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/25/caderno_especial/index.html
http://www.brasilpost.com.br/valeria-brandini/do-diferente-ao-desigual-o-racismo-cordial-
brasileiro_b_5315882.html