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VIOLÊNCIA E POLÍTICA

Desafios contemporâneos

JUNIELE RABELO DE ALMEIDA


RENATA SCHITTINO
TATIANA POGGI
(Organização)
VIOLÊNCIA E POLÍTICA
Desafios contemporâneos
Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi
(orgs)

1ª Edição - Copyright© 2016 Editora Prismas


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Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz
Bibliotecária CRB 9-626

Nome do Autor
XXXX Nome do Livro
2015 / Nome do Autor. – X. ed. – Curitiba : Editora Prismas, 2015. XXX p. ; 21 cm
ISBN: XXX-XX-XXXXX-XX-X
1.XXX. 2. XXX. 3. XXX. 4. XXX. 5. XXX. I. Título.

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Sumário

VIOLÊNCIA E POLÍTICA........................................................................7
Referências bibliográficas:............................................................20
PARTE 1
Manifestações, Polícia e Ação Coletiva............................................21
Exceção e desobediência civil - violência e Estado de direito......23
Renata Schittino

A cidadania em movimento.........................................................39
Daniel Aarão Reis

Mobilização, redes sociais e sociabilidade agonística nas manifes-


tações de junho de 2013..............................................................51
Marcus Dezemone

A imagem militante......................................................................67
Silvana Louzada

A Estetização das Manifestações: ativismos e a virtualização da


política..........................................................................................87
Maria da Conceição Francisca Pires

Cidadania e desmilitarização: as reivindicações dos policiais mili-


tares de baixa patente no limiar do século XXI..........................105
Juniele Rabêlo de Almeida

PARTE 2
Violência política e resistência no mundo contemporâneo..........131
Notas sobre o debate relativo ao estado, ao poder e à violência
na França: tradição revolucionária e ancoragens do discurso
político.......................................................................................133
Daniel Wanderson Ferreira
Tempos de Desencanto: as raízes profundas do ódio e da violên-
cia no tempo presente...............................................................167
Tatiana Poggi

A violência na narrativa da “questão palestina”.........................209


Bernardo Kocher

Os desafios do processo de paz entre israelenses


e palestinos................................................................................239
Flávio Limoncic

O jardim das flores secas: o que esperar da chamada Primavera


Árabe?........................................................................................257
Julia Ruiz di Giovanni e Murilo Sebe Bon Meihy
Notas sobre o debate relativo ao
estado, ao poder e à violência na
França: tradição revolucionária e
ancoragens do discurso político
Daniel Wanderson Ferreira54

Os motins e a violência iniciada em Paris no 14 de ju-


lho de 1789 apareceram como o ponto do corte historiográfico
que nos lança na contemporaneidade. Em agosto do mesmo
ano, recrudesceram os debates na Assembleia Nacional sobre
as concepções de Estado e do funcionamento do poder, o que
impuseram um reposicionamento inicial para a cena política
francesa. Dando continuidade aos movimentos de reforma que
precederam o 14 de julho, aos motins e à instituição de uma As-
sembleia Constituinte naquele verão, assistiu-se à composição
da ideia do Antigo Regime como um dos elementos centrais de
uma identidade que se quer negar e da Revolução como uma
nova fase da vida social.55
Debates semelhantes emergiram a partir daí em uma
nova forma, haja vista que a nova França passou a ser vis-
ta como uma negação da forma política e social presente até
aquele verão. Mesmo que reconheçamos os sentidos fluidos e
insuficientes desses marcos históricos, eles se constituem em
ícones do movimento revolucionário e do mundo contempo-

54  Professor do Departamento de História UNIRIO.


55  Sobre as investigações sobre os sentidos do 14 de julho, ver BRANCOURT;
BRANCOURT, 2010. Sobre a formação da ideia do Antigo Regime, ver FURET;
HALÉVI, 1989. Sobre as reformas ocorridas ao longo do século XVIII, ver o
clássico livro de TOCQUEVILLE, 2009.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 133
râneo, amplamente reatualizado e recuperado pela sociedade
francesa em momentos de comemoração ou crise.56
Entretanto, os impasses e as incertezas dos movimen-
tos de massas iniciados em julho 1789 constituem apenas mar-
cos da Revolução e da construção dos novos fundamentos para
a dinâmica sociopolítica na França. A questão que se impõe,
assim, refere-se à natureza da aproximação dessa discussão e
desses marcos históricos ocorridos no verão de 1789 ou das
análises empreendidas posteriormente por Robespierre, pon-
tos centrais de nossa análise aqui. Não os vemos como exempla-
res e com isso, capazes de explicar o movimento revolucionário
em uma condensação de propostas. Pelo contrário, a aposta na
contingência do debate político e das práticas sociais leva-nos a
pensar o tema do Estado e da violência na França em um sen-
tido modelar, portanto, insuficiente em si mesmo. Trata-se de
uma tentativa de construir balizas para compreender a identi-
dade política na França em longa duração. Isso implica, inclusi-
ve, em articular as questões do presente, quando se recorre ao
passado para encontrar parâmetros de análise, e também as do
passado revolucionário e aqueles elementos de construção da
monarquia e centralidade do poder na França moderna.
Nesse sentido, apresentamos, primeiramente, a dis-
cussão relativa à centralidade e à unidade do poder real na
França, em seus parâmetros mais gerais. Colocar em perspec-
tiva as balizas desse debate é de grande auxílio para se com-
preender que, mesmo que não haja um discurso monolítico so-
bre a unidade do poder político na cultura francesa e nem uma

56 Estes marcos são constantemente retomados e em janeiro de 2015, em


virtude dos ataques ocorridos em Paris, com destaque para os relacionados
ao Jornal Charlie Hebdo, há uma intensa mobilização pautada sobre a noção
da laicização da imprensa e da política, inclusive retomando os debates
ocorridos ao longo do século XVIII.
134 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
inevitabilidade histórica, há uma certa referência à unidade da
realeza. Esse aspecto constituiu um dos traços fundamentais da
cultura política na França Moderna.
É a partir dessas questões iniciais que vemos a Revo-
lução em sua profusão de discursos sobre o poder político e
seus impasses na composição de uma nova tradição. Se ela se
constitui como um marco fundamental para a reconfiguração
da dinâmica sócio-política, não o fez a partir de um recomeço,
e sim em virtude da cultura política do século XVIII.57 Daí ana-
lisarmos alguns debates políticos, vendo-os como ancoragem
de novas práticas. Como eles se produziram nos primeiros anos
revolucionários e como traziam ainda as aberturas de indefini-
ção da Revolução e também as próprias incertezas de gestos e
vocábulos que passaram a constituir o mundo contemporâneo,
esse é o nosso tema de estudo.58
Por fim, é a partir do confronto dessas balizas, vistas
como elementos para pensarmos modelos iniciais de análise
e investigação, que tentamos um esforço de reflexão sobre o
tema do Estado, a violência e o poder na contemporaneidade.
Se, por um lado, nosso olhar volta-se preferencialmente para
a dinâmica da historicidade francesa, por outro, retomamos a
França em sua vocação universal, tanto no sentido de que a Re-
volução de 1789 fez-se como elemento fundamental da histo-
ricidade ocidental, quanto em formas que tentam discutir mais
diretamente os dilemas atuais da política francesa.

57  Esse ponto de vista é largamente defendido, principalmente a partir das


pesquisas que ocorreram próximas às comemorações do bicentenário da
Revolução. Um texto esclarecedor dessas questões pode ser lido em BAKER,
1993, p. 09-44.
58  Sobre os vocabulários e gestuários revolucionários, ver: HUNT, 2007;
OEHLER, 1999.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 135
I. A realeza e o poder na França Moderna:
molduras e debates da identidade política

As formas de construção da identidade política fran-


cesa antes de 1789 devem considerar o sentido sagrado e tam-
bém ritual da realeza. Embora a ideia de uma unidade ininter-
rupta de poder não se mostre tão sólida e inevitável, devendo
ser percebida em suas inflexões e escolhas históricas próprias,
a construção de uma imagem da realeza a partir da conversão
de Clóvis e de seu desdobramento num imaginário forneceram
um sentido místico para o Reino de França. Os reis franceses
em uma dimensão teológico-política constituem-se como peças
fundamentais para uma investigação da genealogia do reposi-
cionamento da vida política a partir do verão de 1789.59
Na Época Moderna, a lógica de organização do poder e
da violência na França estruturava-se a partir da centralidade e
da extensão do poder real. Segundo Foucault, os discursos con-
flituosos que ancoravam essa amplitude da presença da realeza
mantiveram-se até a virada do século XVIII para o século XIX. O
imperativo da ideia do rei possuiria um sentido mais amplo, já
que indicava uma capacidade dessa figura em se espraiar pela
sociedade, em uma espécie de irradiação tentacular do poder.
Embora não existisse uma unidade simples desse poder, os ele-
mentos múltiplos de composição da realeza — presença do rei
como imagem que se remete a Deus, ideia de Justiça, noção
de coparticipação no poder real, dentre outros elementos —
se revelavam em diversas práticas sociais. A realeza era, desse
modo, visível como presença imediata. Sua autoridade era tam-
bém um elemento fundamental que reatualizava a força da tra-

59  Sobre a importância da conversão de Clóvis para a composição da


imagem cristã e mística da realeza francesa, ver SILVA, 2008. Ver BLOCH,
1989.
136 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
dição política e, sobretudo, o respeito à ordem de organização
do mundo (FOUCAULT, 2005).
Essa compreensão extensiva do poder veio se produ-
zindo em associação com a própria formação da realeza no Oci-
dente. Kantorowicz explica que se trata de um processo amplo
que foi se constituindo em desdobramentos a partir de uma
conjugação de fatores jurídicos, sociais e teológicos que dupli-
cavam na imagem do rei ora a figura de Deus Pai ora a de Cristo.
Até mesmo a noção de Justiça, compreendida como categoria
transcendente e vinculada a Deus, aparecia como um ponto
de ancoragem da lógica teológico-política da Época Medieval e
que se manteve ao longo do Mundo Moderno (KANTOROWICZ,
1998). A ausência de unidade de sentido para a Inglaterra e a
França ou ainda uma forma histórica coesa e indiscutível não
invalidam as referências místicas que participavam do pensa-
mento político ocidental e que estabeleceram bases para a con-
solidação do Estado.
A noção de matrizes ou mesmo de um imaginário po-
lítico-teológico funcionava como uma forma de organização
mental e uma espécie de moldura que fornecia à realeza possi-
bilidades de ampliar seu sentido social e político no Ocidente.
Isso se dava porque o rei apresentava-se em uma relação com a
divindade na Terra e exercia um poder que era tanto temporal
quanto espiritual. Daí essa natureza mística que ligava a realeza
ao sentido de ordem do mundo. Como afirma Duby, os conflitos
relativos aos papéis da realeza e do papado explicitaram a con-
flituosa ancoragem de uma noção mais ampla de poder e or-
dem. Nem o Estado nem a Igreja punham-se indiscutivelmente
em um papel de simplesmente de governar o mundo comum e
cuidar da moral e ética cristãs. Ambos, quer pela figura da rea-
leza mística quer pelo papado, ligavam-se a uma ideia de ordem
que remetia a Deus. Daí que a construção do sistema de igual-
dade entre os homens na Revolução aparecia como um enfren-

VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 137


tamento desse imaginário que dispunha os homens em lugares
e posições sociais, portanto, indicavam uma relação de compro-
missos que ajudavam o mundo a funcionar (DUBY, 1994).
Outra linha de força que pode ser vista como parti-
cipante dessa noção de poder político no Ocidente estava re-
laciona à ideia do Estado como elemento que constrangia os
homens em composturas, elementos centrais ao processo ci-
vilizador. Nesse caso, o processo de secularização e a compo-
sição de novos mecanismos sociais nos quais se ancoravam a
força do rei não terminavam por anular a centralidade da re-
aleza e da sociedade de corte, principalmente na França onde
ela se desenvolveu amplamente a partir do fim do século XVI
e, sobretudo, com Luís XIV, entre 1643 e 1715. Segundo Elias, a
realeza relacionava-se com uma forma social própria denomi-
nada sociedade de corte. Como uma organização sócio-históri-
ca específica, a sociedade de corte ancorava seus vínculos em
sistemas hierárquicos, afetivos e racionais próprios, produzidos
pela orquestração do poder segundo uma relação que envolvia
os nobres, os burgueses e a plebe. A figura real apresentava-se
como centro da sociabilidade e dispunha os atores sociais em
uma hierarquia de equilíbrio instável cujo jogo teatral, ou seja, a
forma dos papeis a serem representados uns diante dos outros
era constante. A ordem do mundo estava, assim, equilibrada
pela segurança da hierarquia e pela possibilidade de ascensão e
declínio de certos atores sociais.60
A partir da associação da imagem do teatro com a do
destino, dada pelo equilíbrio instável da Fortuna, que recolo-
cava uns e outros em uma posição inferior ou superior a que
ocupavam pelos desígnios e vontades do soberano, podemos

60  Sobre o papel civilizador em sua relação com o papel do Estado como
um dos elementos novos do processo de secularização, ver ELIAS, 1993-
1994. Sobre a forma da sociedade de corte e o papel rei nessa sociedade,
destacamos principalmente os capítulos 5 e 6, ELIAS, 2001.
138 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
compreender melhor como se dava a sociabilidade do Antigo
Regime. O elemento fundamental dessa percepção, para Ladu-
rie, é a ideia da realeza como eixo que tanto denota o sentido
e a ordem social, quanto participa imediatamente da ordem,
uma vez que ele não se posiciona nem acima nem abaixo, mas
inserido nessa forma de mundo. Se o rei se submetia ao regime
da etiqueta e da compostura, isso se dava porque ser ele no-
bre como os demais, muito embora destacado em relação aos
outros (LADURIE, 2004). Segundo Elias, o arranjo da sociedade
de corte compunha uma teia de interdependência que permi-
tiu, pela composição da etiqueta e da noção de civilidade, uma
ampliação dos elementos seculares da realeza. Nesse caso, a
ênfase recai sobre a simbologia dos sistemas de hierarquia e
o funcionamento da ordem social apresentava-se segundo um
novo jogo de relações rituais. Tendiam a se organizar menos em
função de relações místicas e mais em virtude das interdepen-
dências sociais, principalmente a partir do governo de Henrique
IV, entre 1589 e 1610, quando o rei deixou de ser um guia da
guerra para ser um estrategista, e, com Luís XIV, quando Versail-
les passou a ocupar um lugar central no sistema social.61
Ao mesmo tempo, entretanto, ordem e hierarquia
como princípios regentes da corte de Luís XIV não significavam
necessariamente uma imutabilidade da distribuição dos favo-
res e do acesso ao rei. Tal aspecto era justamente o ponto ne-
vrálgico do sistema, segundo Saint-Simon. Ele era de linhagem
nobiliária antiga e defendia que a sociedade de corte devia se
compor em um mecanismo de manutenção da pureza, princi-
palmente quando a emergência de novos atores parecia balan-
çar os esquemas mais tradicionais de funcionamento da hierar-
quia.62 Já Molière, em sua peça de teatro O burguês fidalgo (Le

61  Idem, ibidem, p. 44 e 189, respectivamente.


62  Ladurie destaca a leituras das Memórias de Saint-Simon deve estar
atenta a isso, o que evita tomar a defesa de purismo de certa parcela da
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 139
bourgeois gentilhomme), encenada pela primeira vez em 1670,
produziu uma fina ironia sobre essa noção das purezas de san-
gue e da nobreza destacada em seus costumes como um dado
natural e próprio às linhagens de espada, ao mostrar um bur-
guês enriquecido que contrata um nobre como professor a fim
de aprender a etiqueta e os modos de se portar. A personagem
principal, o burguês M. Jourdain, podia servir de piada à corte,
dado o sucesso de Molière em seu próprio tempo, sendo um in-
dício do caráter frágil processo de ascensão social. A ironia dos
diálogos encenados, no entanto, revelava também a fragilidade
das distinções e a patetice desse tutor cuja nobreza sustentava-
-se apenas no nome e nos hábitos adquiridos irrefletidamente
pelo cultivo próprio de sua origem.63
Se esses elementos reforçam o argumento da extensão
do poder real e de sua centralidade, apresentam, em contra-
partida, o dinamismo da sociedade francesa do Grande Século,
o que serve de indício para argumentarmos que as relações de
poder da realeza não podem ser vistas como rígidas e a-histó-
ricas. Segundo Jouanna, alguns fatores permitiam uma amplia-
ção do poder real na França, traço previsto no ordenamento
jurídico e costumeiro desde o século XII. Porém, é somente com
o estado de guerra gerado pela Reforma que a vida e sociabili-
dade ordinárias deram as condições para o fortalecimento cres-
cente do poder absolutista. Mesmo assim, dificilmente se pode
identificar um sistema absolutista a partir do século XVI, uma
vez que o crescimento da esfera política real advinha da crise e
da compreensão não-unânime de que à ordem opunha-se o po-
der absoluto do rei. Assim, no século XVI, até para os defenso-
res do poder absolutista, o caso era explicado por uma natureza

nobreza como uma opinião geral ou a predominante. Ver LADURIE, 2004,


p. 131-167.
63  MOLIÈRE, p. 69-142, 2014.
140 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
de exceção, além de não por fim ao debate sobre a importância
dos conselhos de juízes como participantes da vontade real.64
Essa rede de poder crescente da realeza como princípio
ordenador manteve-se, assim, instável e provisória, tal como a
compreensão do crime um ato simbólico de violência contra o
próprio rei. Por isso era necessário agir sobre a ação criminosa
em um sentido exemplar que fosse capaz de encobrir o delito
e a afronta, sobrepujando-lhe em força e apresentando a gran-
diosidade do poder real, elemento chave da vida jurídica na
França Moderna. Como cabeça da sociedade e como elemento
simbólico estruturante da lei, a rebelião ao ordenamento jurí-
dico era tanto uma afronta ao rei quanto ao corpo de juízes e
legisladores do costume, grupos que representavam a ordem
de alguma maneira e trabalhavam para manter e reconduzir o
corpo social saudável. A ideia de ordem de mundo, tão logo
constatada como rompida, convocaria a um chamamento para
ser refeita, emendada e a pena aconteceria como um gesto de
emenda, em um esforço de suprimir o caos e reestabelecer a
ordem social.65 Pode-se ainda pensar como esse ato punitivo
restabelecia o poder da realeza como ancoragem do Estado e
da Lei, permitindo a recuperação de qualquer falta ou mácula
que o crime teria produzido na ordem.66

64 Ver JOUANNA, 2013, p. 52 et seq. Ver BAKER, op. cit., p. 36-37.)Esse tipo
de argumento parece-nos pouco sensível ao movimento de opiniões dos
atores sociais, crítica que também fazemos a Koselleck. KOSELLECK, 1999.
65  Este argumento é apresentado por Foucault e, mais recentemente,
Jouanna analisa a relação conturbada e conflituosa segundo a qual tanto
o rei quanto os legisladores e juristas compunham-se como elementos da
ordem, principalmente a partir da Reforma. O aspecto fundamental das
duas análises é a descontinuidade das opções históricas, apresentadas como
uma capacidade dos atores sociais em se posicionar e escolher segundo
contingências políticas, bem como a partir de debates de opiniões diversas
e heterogêneas.
66  Um aspecto que nos parece ainda insuficientemente respondido
relaciona-se ao caráter místico da autoridade do poder político ocidental e
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 141
II. A Revolução e uma nova profusão de
discursos sobre o poder

A partir do verão de 1789, intensificaram-se as ações


para redesenhar o poder na França, principalmente com a
emergência de novos movimentos que pressionaram os entes
e formas administrativas do Estado a assumir novas configura-
ções. Esses elementos novos constituíram a Revolução em um
processo aberto, contingencial e imprevisível cujas posturas po-
líticas passaram, acima de tudo, por uma intensa revisão em
suas formas retóricas. Isso não significou necessariamente uma
emergência de novas posturas, mas uma indefinição dos carac-
teres organizadores da vida sociopolítica. Com isso, os grupos
sociais direcionaram seus esforços para construir práticas, ajus-
tes e novos vocabulários que fossem capazes de dar conta das
proposições emergentes.67
Esse elemento permite ver a Revolução em um deline-
amento de práticas retóricas e também segundo os mecanis-
mos de um reposicionamento conflituoso do poder na França,
no fim do século XVIII. Ao mesmo tempo, ele nos proporciona
uma aproximação mais pontual da Revolução e da dinâmica dos

da realeza francesa. Essas questões escapam aqui a nosso objetivo, inclusive


por não podermos apontar mais do que direções para pensá-las. Parece-
nos, entretanto, que muito embora o processo de secularização tenha se
ampliado, certa moldura mística ainda orienta a compreensão do poder
político ocidentais, dando certo sentido de unidade e destacamento aos
poderes dirigentes da realeza ou do executivo, principalmente em debates
mais gerais de opinião pública popular.
67  Novamente ressaltamos a importância das pesquisas produzidas em
torno do bicentenário da Revolução, em 1989. Embora seja fundamental o
trabalho de François Furet, destacamos a análise de Lynn Hunt, originalmente
publicada em 1984, justamente porque se mantém dentro da tradição
marxista e ao mesmo tempo busca enfrentar os automatismos segundo os
quais o marxismo vinha explicando a Revolução. Ver HUNT, 2007. p. 34-35.
142 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
impasses relacionados ao papel da realeza como ponto de an-
coragem do poder político. Por fim, permite discutir, a partir de
determinados momentos desse debate, algumas percepções
relativas aos reposicionamentos da política francesa revolucio-
nária, verificando as interconexões entre as questões emergen-
tes em torno de 1789 e as anteriores.68
Um dos pontos de partida mais consagrados para li-
dar com a Revolução, nesse sentido, é o panfleto “O que é o
Terceiro estado?” (Qu’est-ce que le Tiers état?), de Emmanuel
Joseph Sièyes, publicado em janeiro de 1789 e cuja importância
é fundamental para os debates nos Estados Gerais, reunidos em
Versalhes, em 5 de maio de 1789. Segundo o abade Sieyès,

“O plano deste texto é bem simples. Nós temos três


questões a fazer: 1° O que é o Terceiro estado? –
TUDO. 2° O que ele foi até agora na ordem política?
– NADA. 3° O que ele quer? – SER ALGO”.

“Le plan de cet écrit est assez simple. Nous avons


trois questions à nous faire. 1° Qu’est-ce que le Tiers
état? – TOUT. 2° Qu’a-t-il été jusqu’à présent dans
l’ordre politique? – RIEN. 3° Que demande-t-il? — À
ÊTRE QUELQUE CHOSE”.69

68  Como já dito, selecionamos alguns discursos e textos como forma de


nos aproximarmos da Revolução. Este esquema alinha-se a postura inicial
em defesa de balizas de análises. Inspiram-se ainda em Gumbrecht, na sua
análise sobre a retórica parlamentar, muito embora nosso objetivo aqui
caminhe em outra direção. O ponto de concordância reside, então, muito
mais na compreensão de nossa insuficiente capacidade de apreender a
Revolução de forma geral e ampla, e mais em um esforço de aproximação
modelar, que também não pode ser confundido com uma análise de fatos
exemplares. Ver GUMBRECHT, 2003.
69 SIÈYES, Emmanuel. Qu’est-ce que le Tiers état?Editions Norph-Nop,
edição Kindle, Plan.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 143
Logo de início, Sièyes deixava uma defesa do Terceiro
estado, o que não significava outra perspectiva particularista do
poder centrada no terceiro estado. Se os privilégios eram vistos
como “verdadeiramente imperium in imperio”, em oposição,

“Deve-se compreender pelo terceiro estado o con-


junto dos cidadãos que participam de uma ordem
comum. Tudo o que é privilégio pela lei, de qualquer
maneira que seja, sai da ordem comum, faz exceção
à lei comum, e, consequentemente, não participa do
terceiro estado. Já o dissemos, uma lei comum e uma
representação comum, eis o que é faz uma nação”.

“C’est veritablement imperium in imperio. (…) Il faut


entendre par le tiers état l’ensemble des citoyens qui
appartiennent à l’ordre commun. Tout ce qui est pri-
vilégié par la loi, de quelque manière qu’il soit, sort
de l’ordre commun, fait exception à la loi commune,
et, par conséquent, n’appartient point au tiers état.
Nous l’avons dit, une loi commune et une représenta-
tion commune, voilà ce qui fait une nation”.70

Assim, para os debates abriam os Estados Gerais em


maio, retomava-se como urgente pensar o corpo da nação e
as proposições mais amplas de participação política, sobretudo
porque a lógica que implícita nessa defesa era também ligada à
tradição e aos costumes.

“Aqueles que invocam, contra o terceiro estado, a au-


toridade dos fatos, podiam ler, se fossem de boa-fé,
a regra de sua conduta. Foi suficiente a existência de
um pequeno número de boas cidades para formar,
sob Felipe o Belo, uma Câmara dos Comuns nos Es-

70  Idem, ibidem, fim cap. I - começo cap. II.


144 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
tados Gerais. Desde esse tempo, a servidão feudal
desapareceu e as campanhas ofereceram uma popu-
lação numerosa de novos cidadãos. As cidades mul-
tiplicaram e cresceram. (...) Não se ousa pensar tão
desarrazoadamente em relação a uma outra sorte de
crescimento pelo qual passou a França; quero falar
das novas províncias que se uniram ao Estado desde
os últimos Estados Gerais. Ninguém ousa dizer a es-
sas novas províncias que não devem ter representan-
tes, porque não estavam nos estados de 1614”.

“Ceux mêmes qui invoquent, contre le tiers, l’autorité


des faits pourraient y lire, s’ils étaient de bonne foi,
la règle de leur conduite. Il a suffi de l’existence d’un
petit nombre de bonnes villes, pour former, sous Phi-
lippe Le Bel, une Chambre des communes aux états
généraux. Depuis ce temps, la servitude féodale a
disparu, et les campagnes ont offerts une popula-
tion nombreuse de nouveaux citoyens. Les villes se
sont multipliées, se sont agrandies. (…) On n’ose pas
se montrer aussi déraisonnable à l’égard d’une autre
sorte d’accroissement survenu à la France

; je veux parler des nouvelles provinces qui y ont été


unies depuis les derniers états généraux. Personne
n’ose dire que ces nouvelles provinces ne doivent pas
avoir des représentants à elles, par de là ceux qui éta-
ient aux états de 1614”.71

Se o argumento de Sièyes em prol da ordem comum


e da abolição dos privilégios parecia constituir uma novidade,
e certamente o era em seu resultado final, sua força estava an-
71  Idem, ibidem, cap. III. Filipe o Belo foi monarca da França entre 1285
e 1314. Já a referência a 1614 se dá por se o ano em que houve a última
convocação dos Estados Gerais antes de 1789.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 145
corada, em primeiro lugar, na recorrência ao passado histórico
da França. Isso era compreendido como um alicerce que fazia
das cortes instrumentos reguladores da vontade real,72 o que
enfraquecia o olhar segundo o qual o poder absolutista era vis-
to. De igual maneira, sendo o povo um juiz apto para separar os
“murmúrios do monarca dos motores do poder”, a proposição
em prol do terceiro estado ampliava sua atuação histórica. Daí
a recorrente referência de Sièyes à restituição do poder, e não a
construção de nova outra ordem.73
A partir desse alicerce, a cultura do contrato social e o
debate sobre o poder civil tão discutidos nos salões, no século
XVIII, apareciam com uma possibilidade mais ampla, embora
ainda em ambivalências e contradições bastante evidentes. De
um lado, esses elementos de instabilidade conceitual decorriam
da própria linguagem emergente no Iluminismo, uma vez que
ela buscava reposicionar um conjunto de práticas nem sempre
evidentes. De outro, a cultura de direitos, no século XVIII, era
vista como um produto da razão, e por ser percebida em ter-
mos de empatia, era normalmente tomada como autoevidente,
mesmo quando se tratava de conceitos complexos, por vezes
inovadores e não-testados como experiência social.74

72 “C’est la cour qui a régné et non le monarque. C’est la cour qui fait et
défait, qui appelle et renvoie les ministres, qui crée et distribue les places,
etc. Et qu’est-ce que la cour, sinon la tête de cette immense aristocracie qui
couvre toutes les parties de la France, qui, par ses membres, atteint à tout
et exerce partout ce qu’il y a d’essentiel dans toutes les parties de la chose
publique? Aussi le peuple s’est-il accoutumé à séparer dans ses murmures le
monarque des moteurs du pouvoir
”. Idem, ibidem, cap.II.
73 “Ainsi je reclame, non la perte d’un droit, mais as restitution”; “L’empire
de la raison s’étend tous les jours davantage; il nécessite de plus en plus la
restitution des droits”; “Inutilement, le tiers état attendait-il du concours de
toutes les classes, la restitution de ses droits politiques et la plénitude de ses
droits civils”. Idem, ibidem, cap. II, IV e VI, respectivamente.
74  Sobre a linguagem de Sièyes, ver BAKER, p. 195-205. Disponível em:
<http://www.library.vanderbilt.edu/Quaderno/Quaderno2/Q2.C11.
146 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
As referências ao contrato social, ao corpo da nação,
ao voto por cabeça e às possibilidades de a França aprender
com a história inglesa porque os princípios da ordem comum
haviam sido uma realidade no passado apareciam a Sièyes
como parte de sua lógica argumentativa.Delineava-se, assim,
uma segunda ancoragem para a defesa do terceiro estado. À
retomada do passado associava-se ao vocabulário emergente,
a fim de que se produzisse uma nova identidade política. Para
Sieyès, o argumento da justiça, que convencionalmente forne-
cia as bases para a monarquia e os privilégios, virava um ponto
de apoio para uma nova restauração, o que representava, fi-
nalmente, um avanço significativo nas proposições políticas a
serem discutidas pelos Estados Gerais de 1789.75
Após as jornadas de julho, mas ainda no verão de 1789,
os impasses presentes no sistema político ampliaram-se, o que
levou Nicolas Bergasse, jurista de origem nobre, a discursar na
Assembleia Nacional, em 17 agosto de 1789. Nesse momento,
já se delineava tanto à composição da identidade do Antigo Re-
gime quanto, por oposição, à definição do Estado e do poder
político revolucionários. Daí, também, o esforço de Bergasse em
apresentar uma proposta sobre o poder judiciário e seu papel
para a compreensão do poder político. Era um tempo bastante
oportuno para a apresentação de um discurso intitulado “Rela-
tório sobre a organização do poder judiciário” (Rapport sur l’or-
ganisation du pouvoir judiciaire), em que se fazia uma defesa da
monarquia. Isso explica ainda certa aceitação da proposição jun-

Baker.pdf >. Consultado em 11 mai 2015; Idem, op. cit., p. 36-44. Sobre
os problemas inerentes à constituição de conceitos relativos aos direitos
humanos, ver HUNT,2009.
75  Retomando Baker, ressaltamos que as insuficiências da argumentação
de Sièyes se manteriam por algum tempo, uma vez que ainda em 1791 havia
dúvidas sobre como construir em sistema representativo os mecanismos de
contrato e de valorização da vontade da nação, vista como terceiro estado.
Ver BAKER, p. 203 et seq.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 147
to à plenária, o que seria diferente algumas semanas depois. O
próprio Bergasse revisaria alguns de seus argumentos, voltando
a discursar, novamente em defesa da monarquia, mas pensan-
do-a a partir de limitações do poder legislativo e do executivo, à
moda de parâmetros discutidos em Montesquieu.76
Nesse primeiro discurso de 17 de agosto, entretanto,
Bergasse defendeu que uma Justiça ancorada na cidadania im-
plicava, necessariamente, em uma descentralização do poder
real e na constituição de uma força mais ampla, vista como par-
te da coletividade. O poder judiciário era dito como um dos fun-
damentos principais da ideia de justiça, sendo uma peça chave
para a compreensão dos cidadãos e de suas ações.

“A influência do poder judiciário não tem limites; to-


das as ações do cidadão devem ser observadas, de
qualquer maneira, como de seu domínio, pois, por
pouco que se reflita, destaca-se que não há nenhu-
ma ação do cidadão que não possa ser considerada
como legítima ou ilegítima, como permitida ou proi-
bida, segundo ela seja conforme ou não à lei”.

“L’influence du pouvoir judiciaire n’a point de bornes


; toutes les actions du citoyen doivent être regardées,
en quelque sorte, comme de son domaine

; car, pour peu qu’on y réfléchisse, on remarquera qu’il


n’est aucune action du citoyen qu’il ne faille considé-
rer comme légitime ou illégitime, comme permise ou
défendue, selon qu’elle est conforme ou non à la loi.77

76 FURET; HALÉVI, 1989, p. 1210-1211.


77 BERGASSE, 1750-1832, p. 104.
148 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
A importância do poder judiciário aparecia, assim,
como o ponto de apoio para o entendimento do exercício da
cidadania. Aparentemente, supunha-se que o Estado e a ordem
estavam resguardados por esse poder, sendo ele mesmo apto
para defender o direito da cidadania. Os exemplos do passado
serviam justamente de indícios disso, sobretudo Roma, onde o
sistema judiciário teria mudado diversas vezes como uma for-
ma de nunca se perder seu papel de importância nos destinos
do Império.78
Outro aspecto fundamental da discussão de Bergasse
era a negação de uma possibilidade de existência da sociedade
sem leis. Nesse caso, o problema da anarquia e a necessidade
de um corpo jurídico que não mais fosse um empecilho à ideia
coletiva do poder político era-lhe fundamental. A lei aparecia,
portanto, como o símbolo de garantia da liberdade do cidadão,
principalmente nesse verão tão conturbado:

“o grande objeto das leis em geral é a garantia da


liberdade e nesse sentido de colocar o cidadão em
possibilidade de usufruir de todos os direitos que lhe
são declarados pela Constituição”.

“le grand objet des lois en général étant de garantir


la liberté et de mettre ainsi le citoyen en état de jouir
de tous les droits qui sont déclarés lui appartenir par
la Constitution”.79

A defesa do novo poder era feita como a própria defe-


sa do Estado, o que evitava o caos e restabelecia a ordem. Em
78 “Rome où le système judiciaire a tant de fois changé, et où il n’a jamais
changé qu’il n’en soit résulté une révolution constante dans les destinées de
l’Empire”. Idem, ibidem. p. 104.
79  Idem, ibidem. p. 106.

VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 149


contrapartida, o poder constituinte deveria ser outro, pois as
liberdades política e civil eram condições necessárias ao poder
e ao Estado, vistos como formas de garantia da cidadania.
Os efeitos das questões produzidas por Sièyes, assim
como os debates resultantes dos movimentos produzidos a par-
tir de 14 de julho já se faziam presentes mesmo nos discursos
em prol da monarquia. O triunfo do panfleto havia dado o ritmo
dos debates do Terceiro estado, fato que o fizera constituir-se
em Assembleia Nacional em 17 de julho.80 Segundo Furet, é na
plataforma do abade Sièyes que se pode ler o motivo mais pro-
fundo da Revolução Francesa: o ódio à nobreza. Assim, na noite
de 4 de agosto, a vitória do espírito nacional com a abolição de-
finitiva do regime feudal não pode ser vista senão em uma rela-
ção com essas propostas que desde o fim do ano de 1788, mas
principalmente a partir de janeiro de 1789, avolumava-se.81
É desse modo que se pode ver alguma semelhança en-
tre um monarquista como Bergasse e aqueles que combatiam
em defesa dos sistemas mais equilibrados de poder. A grande di-
ferença do discurso de Bergasse, em 17 de agosto, em relação a
“O que é o Terceiro estado?”, de Sièyes, era a ancoragem jurídica
como um dos grandes eixos de defesa. A fala sobre a nação e a
cidadania já apareciam como vocabulários comuns, porém, em
Bergasse, todo cidadão devia estar contemplado na capacidade
de contribuir com a formação da lei, sendo-lhe, inclusive, possível
fazer tudo aquilo que não estava proibido por ela. Se essa lógica
podia produzir impasses em Sièyes, em virtude das contradições
de como conjugar a representação, o contrato e a unidade do
corpo nacional, em Bergasse, a instabilidade era resolvida com
o argumento de que a lei era sempre expressão da vontade ge-
ral. Por não ser nunca um produto de vontades particulares, era

80  GODECHOT, 1989, p. 61.

81 Ver FURET, 2007, p. 275-276 e 296 et seq.


150 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
preciso administrar o conflito, resolver em prol do cidadão e sua
liberdade e, ao mesmo tempo, do contrato e do Estado.
O estatuto defendido por Bergasse, em 17 de agosto
de 1789, era justamente aquele de se compor um judiciário
que “não pusesse em perigo nem a liberdade civil nem a liber-
dade política (le pouvoir judiciaire soit organisé de manière à
ne mettre em danger ni la liberte civile ni la liberté politique)”.
82
Tratava-se, portanto, de um sistema organizado cujo poder
judiciário falasse pela nação, não manifestando a vontade de
corpos específicos da sociedade. A ideia chave dessa questão
era baseada na temperança do sistema do corpo jurídico, de
forma a conseguir organizar e dirimir os dilemas entre o amor
da dominação e o amor da liberdade. Isso também explica as
referências aos defeitos na organização do poder judiciário e as
formas de evitá-los por intermédio do corpo coletivo de juízes.
Essa proposta baseava-se, sobretudo, na substituição
da ideia de crime e de poder centrada na ordem e na realeza
por outra, cuja base estaria posta sobre um corpo político que,
à moda da Inglaterra, deveria perceber a ordem como parte de
um contrato e de uma experiência prática feita por um grupo de
cidadãos.Essa tópica tão comum, em alguns aspectos tão fluida,
no século XVIII, era aqui retomada em vocábulos que alinhavam
o contrato social, a razão natural que fez os homens viverem em
sociedade como meio de se protegerem aparece bem delinea-
da e uma construção ponderada do poder que operasse pela
confiança da nação.83 A ideia da pena capital, por sua vez, apa-
recia como recurso máximo a punir o cidadão, por isso mesmo,
era justificável apenas em casos de assassinato e alta traição.84
A partir dessa argumentação de Bergasse, a compre-
ensão do regime revolucionário aparecia como um desalinho

82 BERGASSE, 1750-1832; HALÉVI, 1750-1832, p. 107.


83  Idem, ibidem. p. 111 et seq.
84  Idem, ibidem. p. 127.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 151
entre a liberdade natural e aquela vivida em sociedade, sendo
necessário construir um caminho alternativo. Foi, então, dessa
necessidade que ele derivava alguma centralidade, posta sobre
o corpo judiciário. No fim do discurso, contudo, Bargasse sutil-
mente reintroduz a realeza em seu lugar simbólico fundamen-
tal, vendo no rei “o chefe desse império (...), o restaurador da
liberdade francesa (le chef de cet empire (...), le restaurateur
de la liberte francaise)”.85 Enfim, a lógica defendida retorna ao
ponto de restauração que fazia do novo regime um sistema
contratual ancorado no poder judiciário que, por sua vez, tinha
na figura da realeza um apoio justo e libertador.
Essa questão, de certo modo, manteve-se mais eviden-
te no horizonte de debates até pelo menos 1791, quando, entre
a manhã e a noite de 21 e 22 de junho, os gritos simétricos de
“o rei fugiu” e “o rei foi pego” irromperam na Assembleia. Essa
discussão já se evidenciava desde o inverno anterior, quando se
falava sobre a banalização do rei, mas também sobre a dificul-
dade de punir uma pessoa sagrada. O episódio de vacância da
presença real, segundo Ozouf, trazia à tona o questionamento
da ruptura entre o rei e a nação, fazendo avançar a radicalida-
de dos valores políticos novos, principalmente aqueles que es-
tabeleciam a Constituição como autoridade a não ser desau-
torizada. Se a inviolabilidade do rei havia sido unanimemente
defendida em setembro de 1789, os eventos do fim de junho
levaram a uma reconsideração da questão, com os avanços de
argumentos que tanto limitavam a realeza quanto enfatizavam
a ala republicana revolucionária.86
Se a partir daquele verão os rumos do republicanismo
francês já se mostravam mais previsíveis, no fim do inverno,

85  Idem, ibidem. p. 133


86  OZOUF, 2009, p.113 et seq. Destacamos o capítulo 8, p. 174-200, porque
nele Ozouf discute as duas maneiras segundo as quais a historiografia encara
a entrada do republicanismo na cena política no verão de 1791.
152 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
no entanto, a temática era incerta, de forma que a questão do
poder se punha como pauta a ser ainda melhor definida. Em
discurso proferido em 5 de fevereiro de 1791, Maximillien Ro-
bespierre retomou a ideia da ordem da magistratura à moda
inglesa proposta pelo Comité. Tanto a tópica da importância
da magistratura já era bastante defendida, quanto a inspiração
do sistema inglês havia produzido vasto debate em círculos de
filósofos ilustrados, ao longo do século.87 Em Robespierre, en-
tretanto, a discussão ganhava nuances bem particulares porque
o tom do discurso ia em outra direção. Em primeiro lugar, ele
defendia que

“as vantagens e os vícios de uma instituição depen-


dem quase sempre de suas relações com as outras
partes da legislação, com os usos, os costumes de um
país e um grande número de outas circunstâncias lo-
cais e particulares”.

“les avantages et les vices d’une institution dépen-


dent presque toujours de leurs rapports avec les
autres parties de la législation, avec les usages, les
moeurs d’un pays, et une foule d’autres circonstances
locales et particulières”.88

87  Sobre a importância da Inglaterra para o debate republicano na França,


ver: BIGNOTTO, 2010, principalmente cap. 1 p. 25-85; BIGNOTTO, 2013,
p.175-229; BIGNOTTO (org.), 2013; VENTURI, 2003.
88 ROBESPIERRE. Principes de réorganisation des jurés et réfutation
du système proposé par M, Duport au nom des Comités de judicature et
de constitution, par Maximilien Robespierre, député du Pas-de-Calais
à l’Assemblée nationale (5 février 1791). In Discours par Maximilien
Robespierre: 5 février 1791-11 janvier 1792. Texte en français moderne
établi par Charles Vellay. A Public Domain Book, edição Kindle. As citações
a seguir são retiradas desse discurso, exceto quando anotado algum outro.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 153
Assim, parecia-lhe fundamental destacar que a Fran-
ça revolucionária não se posicionasse facilmente em favor de
qualquer inspiração estrangeira, devendo pensar a si mesma. A
ideia de que se pudesse depositar em corpo de júri um meio de
constituir o julgamento pelos pares, parecia-lhe uma quimera:
“que os seus [dos cidadãos] direitos estejam ao abrigo do baru-
lho do despotismo judiciário (que leurs [citoyens] soient à l’abri
des coups du despotisme judiciaire)”. Para Robespierre, dirigin-
do-se à plenária como representante do povo,

“eis que vossos Comités ousam vos propor de recolo-


car indiretamente o Rei mesmo, ou seja, de recolocar à
Corte e ao Ministério a mais perigosa influência sobre o
destino dos cidadãos e dos mais zelosos defensores da
liberdade (...) para aviltar o povo mesmo, o soberano”.

“voilà que vos Comités osent vous proposer de le re-


mettre indirectement au Roi lui-même, c’est-à-dire
de remettre à la Cour et au Ministère la plus dange-
reuse influence sur le sort des citoyens et des plus
zélés partisans de la liberté (…) pour avilir le peuple
lui-même, le souverain”.

Nesse sentido, a diferença entre os dois lados da Man-


cha devia ser realçada: “Na Inglaterra, o povo reclamou seus
direitos contra o governo e a aristocracia? (Em Angleterre, le
peuple a-t-il reclame ses droits contre le gouvernement et con-
tre l’aristocracie?)”. Robespierre assumia-se contrário a esses
argumentos que diziam ser o sistema revolucionário de

“assembleias (...) incômodas e fatigantes para o povo.


Eu sei bem que, desde o começo da revolução, busca-
-se propagar este princípio, mas ele apenas pode ser
acolhido por aqueles que querem sacrificar o povo

154 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)


e a liberdade a embaraços e a dificuldades que eles
amam criar. Tranquilizai-vos, o povo amará melhor se
reunir em assembleia de tempo em tempo para usar
seus direitos do que recair sob o jugo de seus tiranos”.

“les assemblées (…) incommodes et fatigantes pour le


peuple. Je sais bien que, dès le commencement de la
révolution, on cherche à propager ce principe; mais il
ne peut être accueilli que par ceux qui veulent sacrifier
le peuple et la liberté à des embarras et à des difficul-
tés qu’ils se plaisent à créer. Rassurez-vous, le peuple
aimera mieux s’assembler quelquefois pour user de
ses droits, que de retomber sous le joug de ses tyrans”.

A proposta, então, era claramente em prol de uma par-


ticipação republicana ativa, conduzida por assembleias nomea-
das anualmente, remuneradas a fim de evitar a recondução de
grupos mais ricos ao poder. A escolha e a proposta direciona-
vam-se para um corpo coletivo. A convocação dos cidadãos em
suas seções aparecia, nesse momento, como uma alternativa
política que conduzia a prática política republicana ao entendi-
mento da nação como uma espécie de somatório de pequenas
repúblicas, o que, de um lado, leva-nos a pensar em Rousseau e
sua crença de que o governo republicano só poderia ser uma ex-
periência localizada, e de outro, nas formas de autogestão que
perderam espaço, paulatinamente, no curso da Revolução.89
Em 30 maio do mesmo ano, Robespierre voltou à ple-
nária, somando ao seu primeiro discurso um enfático argumen-
to contra a pena de morte. Ancorando-se em exemplos histó-
ricos e de outros lugares do mundo, como o Japão, defendeu

89  A bibliografia sobre as leituras de Rousseau e sua importância para a


Revolução é imensa, daí nos isentarmos de citá-la exaustivamente. A título
de interesse da produção brasileira mais recente, sugerimos os dois títulos
já mencionados de Bignotto.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 155
a noção de um sistema mais brando de punição, dirigido para
uma ideia compartilhada do poder político. Se o poder devia
ser visto como contratual, o exercício legislativo não deveria re-
nunciar ao princípio de que o meio mais eficaz para repreender
o crime é aquele segundo o qual se adapta as penas ao caráter
das diferentes paixões.90 Desse modo, Robespierre pensava a
imagem da sociedade como resultado de uma variedade de in-
teresses e de paixões que tanto serviam ao bem quanto ao mal.
A aposta, por sua vez, era a de que novo legislador não devia
estar senão do lado do cidadão e a cura da paixão corrompida,
porque maculava o corpo social, não podia resultar em um pro-
cesso de exclusão, e sim, em uma recuperação.
A ideia do restabelecimento do corpo e a compreensão
da medicina segundo um princípio de normatização aparecia aí
como um meio de refazer os laços do cidadão com o coletivo.
De um lado, a tópica da transmutação do mal em remédio, vol-
tava à tona, evocando possibilidades de manutenção do todo
pelo simples desdobramento da paixão em seu inverso.91 De
outro, a ideia de um corpo coletivo, porém uno, avançava como
uma forma de compreender a nova França.
Segundo Biard, é fundamental ver na postura jacobina
um sentido mais amplo e menos centralista, mesmo que, não
se possa negar a defesa de certa força da unidade popular. Nes-
se momento, contudo, a centralidade do Estado como um ente
da vontade do cidadão, o que se produziria a partir do Diretório,
ainda não era realidade tão firme. (BIARD, 2010) Assim, se não
podemos perceber em Robespierre a força da violência, enten-

90 “Le législateur qui établit cette peine renonce à ce principe salutaire, que
le moyen le plus efficace de réprimer les crimes est d’adapter les peines au
caractère des différentes passions qui les produisent, et de les punir, pour
ainsi dire, par elles-mêmes”. Idem». Discours sur la peine de mort prononcé
à la tribune de l’Assemblée nationale le 30 mai 1791. In op.cit.
91  Acreditamos que aqui, novamente, faz-se alguma apropriação da tópica
dos princípios da cura em Rousseau. Ver STAROBINSKI, p. 162-230, 2001.
156 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
dido como um processo unificador e de exclusão da divergência
política, há nele, contudo, certo avanço na ideia de uma unida-
de de vontade que devia ser conjugada com o conceito de povo.

III. O poder político, a nova ordem e as


possibilidades da vida contemporânea

Havia ainda muitos impasses nas proposições revolu-


cionárias debatidas entre 1789 a 1791. Apesar disso, já se evi-
denciavam um conjunto de dispositivos que julgamos funda-
mentais para pensar tanto a cultura política contemporânea na
França em seus dilemas, quanto nossa própria sociedade oci-
dental em suas matrizes políticas. O eixo dessas questões pau-
ta-se pela discussão da suposta emergência de uma ancoragem
mais plural do exercício do poder. Assim, uma aproximação,
mesmo que modelar do Antigo Regime, revela uma existência
da centralidade da realeza como um suporte místico da auto-
ridade política. Os movimentos revolucionários, ao tomarem
forma, insistiam sobre o estabelecimento de algum centro ca-
paz de ser a orquestração das forças de autoridade política. No
mínimo, puseram em xeque o poder real, embora, somente em
1791, a realeza tenha se tornado passível de julgamento, o que,
também, não foi o suficiente para lhe apagar o papel que repre-
sentava para a França. As restaurações ocorridas ao longo do
século XIX constituem elementos chaves para o entendimento
desses dilemas e posturas mais realistas.
Isso pode, ainda, ser interpretado como parte do vín-
culo próprio do mundo ocidental em sua escolha pela política
como a base da mundanidade e pela capacidade dela de cons-
tituir tanto um espaço comum quanto um lugar de distinção

VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 157


entre os homens. A questão mais evidente, no entanto, reside
na percepção de que esse élan pauta-se pela manutenção de
um centro de poder. Seja de natureza mística ou secular, seja
centrado sobre um corpo único ou um ente coletivo que o re-
presente, esse traço vem sendo a forma segundo a qual a Fran-
ça, mas também o Ocidente, dá permanência e profundidade a
suas instituições. Não se trata de um elemento a-histórico, por-
que foi pelo reposicionamento das práticas sociais que a mo-
narquia francesa se fez absoluta, e pela Revolução, instituiu um
poder democrático centrado nas massas, na nação, no povo e
na vontade geral. Porém, apesar das divergências, evidenciam-
-se defesas da centralidade como um ele de ligação entre os
mundos anterior e posterior a 1789.
A emergência de um vocabulário capaz de afirmar a
ação política de massa ou democrática poderia ser, também,
identificada como um dos pontos de apoio da sociedade oci-
dental nessa virada revolucionária. O problema evidenciou-se
na Revolução e se desdobra na contemporaneidade, inscreven-
do-se na própria base da ancoragem da política contemporânea
e da compreensão da revolução como processo histórico dire-
cionado ao futuro.92
Arendt chama a atenção para a impossibilidade de cre-
ditar a alguma tradição revolucionária ou pré-revolucionária o
surgimento e ressurgimento do sistema de conselho. Seu argu-
mento enfatiza uma incapacidade de manutenção de alguma
ação que se mantenha supérflua assim como é a política em sua
capacidade de apenas colocar os homens em convívio uns com

92  Evitamos o termo modernidade, dada as discussões sobre a existência


ou não de uma ruptura no mundo contemporâneo com a pós-modernidade.
Também não nos propomos a usá-lo porque há debates sobre uma suposta
genealogia da modernidade. Nesse sentido, mantemos apenas o marco
clássico “contemporaneidade”. Sobre a interpenetração dos tempos
históricos e da modernidade, ver GUMBRECHT, 1998.
158 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)
os outros em franca e aberta liberdade. O resultado é a emer-
gência pontual e fugaz, que deixa pouco lastro em nossa cultura
política, de movimentos espontâneos e pautados em um esfor-
ço de constituir novas experiências, tal como os raros exemplos
dos conselhos da Revolução Francesa, daquelas experiências de
1848, 1871 e mais recentemente durante a Revolução Húngara.93
Também Lefort ressalta questões semelhantes. De um
lado, percebe que a partir do século XVI haveria uma associa-
ção entre revolução e Estado. Isso se justifica pelos laços entre
a revolta e a revolução, mas também pelo engendramento de
uma centralidade do Estado como forma política no Ocidente.
De outro, parece-lhe haver uma ruptura entre a Revolução e
sua história ou lembrança simbólica. Como um evento absolu-
to, perde-se de vista o acontecimento, que não tem nada de
uniforme, sendo antes de tudo plural. Nesse sentido, o traço da
experiência brota como o elemento fundamental da realidade,
o que permite a Lefort pensar a Revolução Húngara em parale-
lo com a Francesa, vendo-as como perpassadas por múltiplos
centros e pela espontaneidade. O fato, então, de que a procura
por um novo modelo político esteja presente não serve, para
o autor, como desculpa para invalidar a tendência final a es-
tabilidade, provavelmente ocasionada pela compreensão con-
temporânea de que democracia e representação andam juntas
(LEFORT, p. 159-164, 2011).
Nesse sentido, o traço que nos parece evidente é que a
cultura política antes e depois de 1789 parece atravessada, em
uma perspectiva mais longa, pela centralidade. Escapa a nosso
objetivo aqui discutir (se é que o poderíamos atualmente fa-
zer) os laços e a importância da França para o Ocidente, princi-
palmente por sua centralidade como recriação de Roma e pela
sua importância mais recente como uma instituição universal

93  Ver ARENDT, 2011, p. 328 et seq.; idem. Réflexions sur la Révolution
Hongroise, 2002.
VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 159
de valores humanos. Também não nos parece possível senão
enunciar um plano de hipóteses que tentem colocar em ques-
tão essa natureza da política ocidental e francesa em seus laços
mais essencialistas e centralizados. Esse fato que ainda precisa
ser melhor definido, porque tem como base a ideia de autori-
dade e da história como lugar de permanência, constitui a ala-
vanca que anularia a dispersão política, dito de outra forma, as
formas mais plurais de se compreender o mundo dos homens.
De igual maneira, acreditamos que as divergências en-
tre os discursos que apostam na força e na dispersão do poder,
negando, como o fez Donatien de Sade, a possibilidade de um
enfrentamento e punição senão aquele empreendido pelos pró-
prios homens entre si, tendem a ser normatizados de alguma
forma. Assim, embora novamente essa questão escape a nosso
objetivo aqui, parece que um apagamento nega aos homens
como corpos repletos de desejo e que compõem a sociedade
um lugar mais próprio e perdurável. Nesse sentido, lembramos
risco para a política de um chamado como aquele apresentado
pelo panfleto “Franceses, mais um esforço si vós quereis ser re-
publicanos (Français, encore um effort si vous voulez être répu-
blicains)”. Esse panfleto, de autoria de Sade e publicado em A
filosofia da alcova (La philosophie dans le boudoir), em 1795,
convocava os franceses a pensarem novamente a chance de
serem republicanos, porém, enfatizava um governo de força,
de liberdades inigualáveis que partiam da anulação da religião
como sistema, para avançar em um argumento que diminuía ao
mínimo os sistemas opressivos e morais. A verdadeira república
e o espaço político seriam o de homens em potência, o que, de
certo modo, assustava pela escolha da anulação do crime por-
que resultado de um jogo de força entre um homem e outro:

“como eu venho dizer oportunamente, nenhuma pai-


xão não é senão a necessidade de toda extensão da

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liberdade, nenhuma é sem dúvida despótica; é assim
que o homem ama comandar, ser obedecido e se cer-
car de escravos que o satisfaça; logo, todas as vezes
que vós não dais ao homem o meio secreto de exalar
a dose de despotismo que a natureza colocou no fun-
do de seu coração, ele se lançará para exercê-la sobre
os objetos que o cercam, ele perturbará o governo”.

“comme je viens de le dire tout à l’heure, aucune pas-


sion n’a plus besoin de toute extension de la liberté
(…), aucune sans doute n’est aussi despotique; c’est
là que l’homme aime à commander, à être obéi, à
s’entourer des esclaves contraints à le satisfaire; or,
toutes les fois que vous ne donnerez pas à l’homme
le moyen secret d’exhaler la dose de despotisme que
la nature mit au fond de son cœur, il se rejettera pour
l’exercer sur les objets qui l’entoureront, il troublera
le gouvernement” (SADE, 2001, p. 218).

A temática da república era comum naquele momen-


to, a publicação do texto, por sua vez, era oportuna, uma vez
que seguiu à queda de Robespierre, no 9 termidor do ano II (27
de julho de 1794). O elemento fundamental aqui é a falta de
unidade dessa perspectiva de república que se alicerça sobre
as paixões em sua natureza plural. Parece-nos que essa pers-
pectiva coloca em questão a própria centralidade do poder, e
desfaz os laços mais fortes de uma abstração política em uma
comunidade unida por vontade.
Enfim, a radicalidade desse discurso deveria ser uma
das chaves para se pensar os ataques mais recentes às nossas
estruturas de poder e a crise que vem se evidenciando no Oci-
dente. Como já dito, não é aqui nosso objetivo de responder
a essas questões, mas apenas enunciar de alguma forma que
esse processo de constituição a contemporaneidade vem afir-

VIOLÊNCIA E POLÍTICA - Desafios contemporâneos 161


mando um laço comum e um eixo central como um ponto de
apoio das identidades políticas e coletivas. Esse aspecto, por
sua, mascara de certa modo os meios de divisão e as formas
de opressão. Talvez na retomada de perspectivas mais plurais
encontremos algum caminho atual para lidar com a crise da po-
lítica e de nosso próprio mundo.

162 Juniele Rabelo De Almeida | Renata Schittino | Tatiana Poggi (orgs)


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