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Como construir uma religião em 7 passos

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Frederico Mattos

Listas

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Escrito em coautoria com Rodolfo Viana

Carla Bruni poderia ser Deus.

Com dê maiúsculo mesmo. Não um deus qualquer, mas o Deus, criador do céu, da terra, do
homem, da mulher, dos mares, dos ventos, do Rivotril... Se Carla Bruni fosse Deus, talvez
"Quelqu'un m'a dit" ganhasse status de oração, apesar de ser uma música bobinha.

Megan Fox também poderia ser Deus.

Laerte, idem.

Alberto Brandão também.


Quiçá Deus pudesse ser uma negra sapeca.

"Deus professorinha", de Rafael Campos Rocha

Cada um tem seu Deus particular. Ou não tem Deus algum.

Não quero criticar religião alguma (o que seria, inclusive, incoerente da parte de um espírita
praticante como eu, Rodolfo) ou ofender quem crê em algo, mas sim levantar um ponto:
qualquer pessoa ou coisa pode ser objeto de louvor. Seja esta pessoa ou coisa Carla Bruni,
Megan Fox, Laerte, Alberto Brandão, a negra de Rafael Campos Rocha ou o espaguete. Mas mais
do que o objeto de adoração, o que intriga é a constituição da seita. Por mais absurda que seja
uma ideia – digamos, Deus é uma samambaia –, ela terá adeptos.

Como isso é possível?

Este texto não é sobre Deus ou fé. É sobre a criação de religiões, algo que é muito mais humano
do que divino – e sempre há confusão entre o que é do homem e o que é do divino.

Como fazer uma religião

Há um passo a passo simples para você inventar ou fomentar uma seita ou religião. Tais etapas
são comuns a todas elas e demonstram um padrão não apenas de comportamento na sua
criação, como também na mentalidade dos seus seguidores. Tomem o manual abaixo como a
planta baixa das religiões.

1. Escolha uma ideia poderosa – quase megalomaníaca – e de difícil acesso ao público leigo.

Pessoas costumam ser movidas por idealizações. Dificilmente você entregaria sua vida por algo
que não tivesse uma expressividade em especial ou soasse grandioso. Provavelmente gastaria
seu dinheiro com o carro do ano ou investiria seu tempo numa viagem dos sonhos.

O pensamento de seita precisa despertar um anseio maior – a felicidade eterna, a paz de


espírito, o paraíso.

2. Eleja um inimigo comum.

A mente humana, no funcionamento mais básico e primitivo, opera sob os influxos do sistema
cerebral reptiliano que rastreia potenciais perigos à integridade física e psicológica do sistema
como um todo.
Este sistema só reconhece inimigos e aliados. Não há meio termo.

Os marqueteiros sabem muito bem como ativar o desejo de escassez das pessoas anunciando
que um produto vai acabar, por exemplo. Assim, o consumidor vai lutar 1) contra a escassez e 2)
contra o tempo. Hitler sabia muito bem como dar um direcionamento ao caos social, financeiro
e político da decadência alemã na década de 20: o povo judeu. Qualquer desconfiança pessoal
teria fim sob a alegação de uma raça intrusa e que despertasse um sentimento comum a todos
(neste caso, o sentimento de se sentir ameaçado). Isso redirecionou as desconfianças em relação
ao amigo preguiçoso e à esposa safadinha a outros "inimigos". Seus olhos tinham um alvo certo
e bastava atacar numa só direção.

3. Coloque uma meta altamente utópica, mas que seja um desejo de aspiração coletiva.

Se eu prometer a você aumento de salário, um braço mais musculoso ou uma viagem para Nova
York, serei cobrado por isso entre três e seis meses. Se o resultado não for entregue no prazo,
vou virar as costas para você dizer que é um embuste, que sou tratante.

Mas e se eu prometer algo impalpável, abstrato e com definição duvidosa? Isso é perfeito!
Você correrá por anos a fio atrás daquilo e, caso não atinja o alvo, eu posso dizer que foi você
que não mirou direito ou que colocou pouca vontade.

Com o passar do tempo, você realmente vai acreditar que a falha é sua. Afinal, sua auto-estima
estará balançada e seu sentimento de culpa dominará suas próximas ações. Prato cheio para
criar uma nova meta dentro da grande meta.

4. Crie uma comunidade em torno dessa ideia.

Uma pessoa que tem razoável bom senso sabe direcionar sua vida com ações ponderadas e com
relativo controle para manter corpo saudável, finanças em ordem e vida familiar decente. Ela
entenderá que parte dos desajustes naturais têm uma causalidade conhecida, afinal gastou
demais, deu pouca atenção para os filhos ou exagerou nos doces. Qualquer mudança vai passar
por reorientar sua vontade, ainda que sofridamente, naquela direção original. Outras pessoas (a
maioria) costumam atribuir seus problemas a causas que estão além do seu controle, que vão de
caos político a mágoa de Deus, por terem se portado mal naquela semana. Essas pessoas são
muito vulneráveis a promessas espetaculares, pois são alimentadas pelo imediatismo, pelo
desejo de resultados em curto prazo e de preferência sem esforço.

Junte no mesmo lugar várias pessoas que pensam assim e terá uma bela amostragem do que é
o caos. Todas elas estão alimentando as ilusões umas das outras; afinal, se eu desencorajar o
sonho dos outros, é o meu que está em risco.

A lógica é: eu não quero naufragar, então vou remar bem forte para que os outros alcancem os
objetivos comigo.

5. Use métodos de controle dessa comunidade que regulem a integridade física, psicológica ou
moral dos seus participantes e os diferencie do inimigo comum.

Geralmente, esses métodos se apresentam na forma de livros reveladores ou textos sagrados.


Na prática, isso pode tomar formatos mais humilhantes, como testemunhos com exposição de
fragilidades pessoais, coerção em relação a comportamentos inapropriados e até entrega de
bens materiais.

Essa etapa é especialmente importante para diluir a identidade pessoal do seguidor na


mentalidade de seita. Tal identidade não existe mais como vontade pessoal, mas como parte de
um grupo. É aqui que podemos nos despedir do senso crítico e do livre-arbítrio.

Pense em termos de futebol: se eu fizer parte da Gaviões da Fiel, por exemplo, qualquer grande
conquista do meu time será a minha, pois este é um mecanismo natural de associação de
imagens. Os meus gostos definem quem eu sou e acho que, se meu artista favorito ganhar o
Oscar, eu também fui premiado. Ser um pessoa diferenciada entre as outras é o que alimenta o
mercado de consumo de luxo AAA. Ali não existe uma pessoa comum, só a fina nata dos
endinheirados. Já imaginou aquela cena clássica nos Vigilantes do Peso? Se um gordinho perde
os quilos necessários, ele é aplaudido; se ganhou peso, surge um silêncio de reprovação velada.
Ninguém quer ficar perto do gordinho falido. O mesmo acontece numa seita, quando o fiel
seguidor não se realizou ou obedeceu os comandos do líder em questão, pois surge uma
reprovação a qual ninguém quer se submeter.

6. Invente um evento "cataclísmico" contra o qual todos devem estar preparados.

O sentimento de que algo vai acabar faz aumentar o desejo por aquilo. Afinal, a ideia de escassez
valoriza o produto E quanto mais ameaçador for o evento, mais intenso é o treinamento e maior
será o nível de sacrifício a ser realizado. O aguardo da ameaça cria na mente das pessoas um
sentimento de coletividade associado com urgência e fragilidade. Isso diminui o valor que as
pessoas têm e faz aumentar o passe do líder, pois ele conhece o método para apaziguar as
sequelas do problema.

Se o mundo vai acabar, o líder tem o kit salvador; se é o juízo final, ele tem um acordo especial
para preservar os seus prediletos, a fim de que o grupo que está sob sua guarda seja poupado de
toda a catástrofe.

Mesmo no caso de Jim Jones, em que 900 seguidores cometeram suicídio, havia uma garantia:
aqueles que se matassem seriam os escolhidos e quem fosse covarde e ficasse vivo queimaria no
fogo do inferno. Funcionou.

7. Mostre-se como alguém que anteviu ou superou as barreiras que os demais terão que
superar.

A força do líder vem do fato de que ele teve uma revelação única e que deverá ser passada aos
poucos. O argumento é que nem todos estão preparados para tamanho impacto de tudo aquilo
que vem pela frente.

O líder teve a visão de algo especial que lhe outorgou uma autoridade suprema: um teste de
como decifrar algo, uma provação física, um dilema moral e até fenômenos inimagináveis. Vale
tudo.

Aquilo é repetido à exaustão pelos seguidores, raras vezes pelo líder – afinal, ele não pode se
autoproclamar "o enviado". Os privilegiados serão aqueles que fazem um sacrifício maior que os
demais para receber os ensinamentos da própria fonte superior. Essa mentalidade de
informação secreta já foi utilizada pela realeza e, até hoje, é utilizada por partidos políticos ou
empresas – informação privilegiada custa bem caro. Além disso, cria uma pirâmide de interesse
autorrenovável. Os que estão na base querem subir um pouco; os que subiram um pouco mais
também até chegar ao líder. Os imediatos, se forem corajosos e espertos, sacam qual é a
brincadeira e criam sua própria comunidade. Por isso é importante ter também uma hierarquia
de sub-líderes, o que fará com que os seguidores comuns desejem "subir de carreira" espiritual
com mais afinco e cedendo tudo de si.

***

"Deus, essa gostosa #1", de Rafael Campos Rocha


O ponto é que essa fórmula mágica pode ser usada por seitas, religiões, partidos políticos, times
de futebol, empresas e, pasmem, sua família. É um modelo generalizado que se difundiu e que
funciona porque é baseado nos sentimentos de culpa, medo, mérito e sacrifício. Enquanto nós
vivermos baseados neste paradigma, será difícil alcançar uma visão alternativa de
funcionamento social. Democracia legítima e co-construção de ideias que façam avançar de
verdade são coisas trabalhosas. Não tenho uma ideia do que seria algo realmente saudável, mas
posso dizer que qualquer sujeito com um pouco de disposição pode causar mais prejuízo do que
benefício ao arrastar pessoas vulneráveis num caminho de alienação e pouco entendimento da
vida.

publicado em 03 de Abril de 2012, 21:01

Como a lavagem cerebral funciona (mentalidade de seita, por que acontece e quais os
antídotos?)

Cultos, seitas religiosas, esquemas de pirâmide... Como funcionam? Por que tem gente que
ainda cai nisso?

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Frederico Mattos

Relações, Mente e atitude

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Ver o documentário no Netflix “Wild Wild Country” sobre as controvérsias da comunidade criada
em nome de Bhagwan Rajneesh (Osho) trouxe de volta o desejo de seguir num assunto que
havia começado junto com o Rodolfo Viana nos textos Como Construir uma Religião em 7 Passos
e Sofri Abuso Espiritual.
O que nos faz abdicar de nossa capacidade de arbitrar decisões importantes, refletir de forma
lúcida, tomar consciência de nossas virtudes e contradições e seguir uma ideia/pessoa/mito de
forma cega a ponto de colocar a nossa vida e de pessoas que amamos em risco?

A descoberta de métodos de lavagem cerebral foi uma obsessão no século passado. As práticas
de guerra, espionagem e contra-espionagem abriram um interesse bizarro sobre como podemos
moldar a mente das pessoas de um modo que ela se torne um servo passivo de nossas vontades.

O que vou descrever aqui não se resume a uma religião ou seita específica e está longe de ser
um método aplicado somente em meios religiosos ou de táticas de guerra. Em muitas medidas,
o que nos faz cair nesses esquemas nasce em nossas casas, nas maneiras autoritárias de famílias
disfuncionais que plantam as sementes que mais adiante servirão de base para o fanatismo.

Empresas, movimentos políticos, família e até campanhas de publicidade que vemos todos os
dias na TV, fazem uso de mecanismos de lavagem cerebral muito mais do que gostaríamos de
acreditar. Afinal, ao anular a autonomia e capacidade crítica de uma ou de centenas de pessoas,
pode proporcionar poder pessoal e, na maior parte dos casos, vantagens financeiras
abundantes.

O preparo

Quando olhamos uma seita pelo lado de fora, pode parecer muito fácil identificar uma série de
problemas e comportamentos bizarros, como ofertas financeiras, oferendas de qualquer ordem
ou simplesmente o tempo integral dedicado para uma causa.

Porém, nenhuma lavagem cerebral acontece do dia para a noite, existem condições prévias que
colocam uma pessoa numa condição de vulnerabilidade psicológica e social e a faz reconhecer
uma nova morada num agrupamento desses.

Condição vulnerável

Uma pessoa que está se sentindo sozinha, social ou emocionalmente, provavelmente está
reprimindo um instinto básico que temos de afiliação, de pertencer a um grupo que nos proteja
e dê referências sobre o que somos e podemos ser.
Essa falta de critérios claros sobre o que é uma boa vida pode ser asfixiante para a maior parte
das pessoas, pois o hábito de comparação é quase irresistível. Até mesmo para chegar à
conclusão de que somos inferiores aos demais, precisamos de outras pessoas.

Alguém que venha de uma família disfuncional, com pais permissivos ou abusivos, oferece as
condições para que uma filosofia ou mestre de pretensões absolutas do tipo "eu salvo você" caia
como uma luva. Para quem não tem convicções mais sólidas sobre sua importância, o guia vem
como uma voz na escuridão da vida. Para quem passou a vida toda reprimindo e anulando as
suas próprias vontades, o mentor se transforma numa figura com aparência amorosa que surge
como alternativa ao domínio previamente sofrido. No final, a mentalidade de submissão acaba
reproduzindo o mesmo modelo abusivo anterior.

Períodos de crise, de transição, de perdas abruptas ou, enfim, de enfraquecimento da


identidade, facilitam a conversão justamente porque seitas proporcionam um senso de
identidade renovada, a promessa de uma vida incomum.

Todas as emoções e problemas emocionais que originaram ou foram consequência dessas crises
parecem encontrar um lugar quentinho para proliferar as "infecções emocionais" da lavagem
cerebral. A lógica é que quando o problema é grande, a aposta precisa ser gigantesca.

Os elementos

É preciso ter os jogadores certos para que a jornada se perpetue pelo maior tempo possível. As
peças do xadrez de uma seita são: o líder, os seguidores, a ideologia e os métodos de controle.

Explico.

O líder

Se ele é uma figura real ou não, isso acaba sendo o menos relevante. O importante é que ele
tenha sido alguém comum como nós que fez a travessia completa do mar da ignorância para um
lugar de luz absoluta. O conteúdo da luz dependerá da seita, pode ser dinheiro, sabedoria,
poderes sobrenaturais, divindade, o importante é que ele seja o portador dessa nova verdade.
Jim Jones

Normalmente, a figura de poder costuma ser possuída de um narcisismo muito sofisticado, que
não é identificável com facilidade, pois vem embalado numa aura de beatitude. É possível
entrever as contradições nos momentos em que surgem grandes frustrações no projeto superior,
quando a comunidade cresce ou quando surgem opositores — externos ou internos — ao
círculo. Não raro, é possível presenciar fúria, desprezo, acusação, manipulação de interesse e o
jogo do "me traíram", "fiquem vigilantes uns com os outros" ou "há uma mal que tenta nos
dividir que precisamos destruir".

Seguidores

Os convertidos são essenciais para dar veracidade ao que o mestre visualizou, eles oferecem o
seu tempo e energia para obter o mesmo tipo de benefício do mestre. Com o tempo, se tornam
submestres que representam fielmente a vontade do superior supremo. Acabam sendo os olhos
dos líderes para que nada saia do lugar. Todos os não-seguidores podem ser potenciais
convertidos, por isso, a postura com eles é geralmente amistosa.

Com o tempo e a dedicação, o medo de admitir que se está desperdiçando recursos acaba
dominando a mente do seguidor, mesmo que ele veja gritantes contradições na seita. Deve ser
difícil mudar quando se passou tanto tempo convertendo, gastando dinheiro, energia e
convencendo as pessoas próximas de que se é uma pessoa diferenciada (leia-se: "superior").
Uma identidade baseada em premissas totalitárias não oferece muita chance de
arrependimento sem causar um abismo emocional. A sensação é de completo desamparo, como
mudar para um país estranho sem saber a língua e os costumes e sem garantia de um futuro
melhor.

Até mesmo quem abandona a seita ainda pode seguir com uma espécie de Síndrome de
Estocolmo, defendendo o mestre e atribuindo a decepção a alguma outra instância do processo
que não dizia respeito a eles. Um dos sintomas mais fortes da mentalidade de seita é que os
seus seguidores jamais se consideram como parte de uma seita. Mesmo após deixar o grupo, tal
afirmação soaria até ofensiva ou desonrosa, como se estivessem sendo acusados de estar
levando na brincadeira uma coisa que é muito séria.

Esse é o pulo do gato que mantém a adesão: a falta de autocrítica para além da própria bolha.
A ideologia

A vida tão carregada de paradoxos incompreensíveis e com tantas incertezas e ambiguidades nos
deixa aturdidos. Quem nunca sentiu saudade da inocência da infância, quando os pais garantiam
toda a segurança e acolhimento do mundo e bastava viver um dia depois do outro? Essa
proteção existencial é metaforicamente proporcionada pela ideologia do guru.

A principal característica dos métodos de lavagem cerebral é a criação de uma noção clara da
existência de dois grupos muito distintos entre si: os que aceitam as novas regras do jogo da
seita versus aqueles que ainda não encontraram a verdade. Nessa ideia bem primitiva já é
possível ver os gatilhos do medo e do desejo de afiliação bem acesos. Quem não quer pertencer
ao clube supremo dos bem-sucedidos financeiros, espirituais e sociais? Quem não quer ter
acesso à informações privilegiadas que o distinguirão dos demais?

As metas, de modo geral são sempre muito difusas e quase inatingíveis para grande parte das
pessoas da seita e, supostamente, visíveis em seus líderes e sub-líderes. É preciso usar uma
linguagem compreensível como o amor, a paz, o patriotismo, a fé e a virtude de modo geral, mas
de um modo idiossincrático, com uma textura particular e linguagem própria, quase
criptografada com o selo do guia. Para abrir essas chaves o seguidor precisa se submeter a uma
série de rituais concretos ou simbólicos que o qualifiquem a ter determinado privilégio.

Nesse quesito, vale tudo, até criar comprovações pseudocientíficas para sustentar a fantasia
coletiva. Porém, isso nunca é mostrado como algo antirracional, mas como verdades
desconhecidas, ignoradas ou até invejadas pela ciência, "eles nunca admitirão isso, afinal, vão
perder muito poder/dinheiro/influência se isso vier a tona".

Os métodos

Não é possível manter uma estrutura mental e social de seita sem algumas engrenagens
concretas, pois sem isso, ela perde efeito muito rápido. Normalmente, incluem práticas
específicas, um molde comportamental, mecanismos de controle e gerenciamento de
debandada.

1. Práticas: as práticas tem como principal objetivo afastar o recém convertido do seu núcleo
original problemático, sustentar uma postura menos analítica e manter o seguidor entretido pelo
máximo de tempo possível nos "produtos de evolução" que são vendidos ao longo do processo.

As boas vindas são práticas essenciais, pois todo o protocolo da conversão acontece no impacto
inicial, na dissonância cognitiva entre o que a pessoa vê "lá fora" versus "dentro" do culto. É
ideal que a primeira impressão faça a pessoa se perguntar como viveu até aquele momento sem
saber que um lugar tão especial existia. Os novatos são tratados com todo o mimo possível. É o
bombardeio inicial de amor. Quem pode dizer não depois de ser tão presenteado
emocionalmente com coisas lindas? O gatilho de reciprocidade exerce fundamental influência,
afinal, é muito difícil resistir depois de ser tão bem recebido.

Pouco a pouco um tipo de vocabulário novo é introduzido. Termos em outras línguas são
comuns, até para desconfigurar a lógica habitual e oferecer um senso de importância e exotismo
ao processo, como se viesse de longe. Esses novos jargões dão um tipo de identidade ao grupo e
facilita o reconhecimento de quem está dentro ou fora do círculo.

Os rituais internos costumam ser muito eficientes, pois mobilizam energia entre as pessoas,
trazem relaxamento e um senso de pertencimento e integração, mas o principal disso é mover as
emoções fragilizantes e deixar o senso crítico cada vez mais distante.

Privar do sono, mudar alimentação, trazer muitas informações de tal modo que confundam o
sujeito e diminuam a atenção de forma geral. Isso desgasta o corpo e, em especial a mente, para
que ela se torne a depositária de novas e "virtuosas" informações. Músicas e cânticos também
mobilizam energia, gritos de guerra, tom de voz alterado (muito alto ou muito calmo). Roupas ou
objetos abençoados também são práticas complementares no processo de renovação.

Osho

Qualquer coisa que distraia o seguidor pode ser uma ameaça à integridade do grupo, por isso, é
importante impor uma agenda pesada de compromissos com a seita. Quanto mais restrições
pessoais, maior será a submissão. Sem alertas externos, não há disputa. O grupo passa a ser a
nova morada em detrimento dos que estão do lado de fora.

Se quer simular uma jornada especial, é preciso muitos degraus, muitas chaves e muitos
comportamentos pré-requisitados para que cada fase seja ultrapassada. É como jogar Pitfall: não
tem fim.

A Cientologia, por exemplo, é expert nessa prática. São tantos níveis a serem atingidos que nem
o seu criador conseguiu inventar tantas histórias que confirmassem seu sistema de evolução
intergaláctica. Controle as informações e terá pessoas obcecadas por merecer, fazendo tudo o
que for preciso para obter atalhos evolutivos.

O que seria mais confortante do que ouvir várias pessoas abrindo o coração sobre as suas
fraquezas? Sei bem do benefício disso em terapias de grupo. Mas e se esses testemunhos forem
usadas para obter algum tipo de constrangimento moral sobre o pecador? Quanto se pode obter
com esses pontos frágeis nas mãos? As seitas sabem bem o que fazer: constrangem, jogam com
a culpa, humilham e expõem a pessoa diante dos outros para que saibam quem está no
controle.

Nenhuma evolução pessoal pode ser próspera se o aprendiz não puder colher os benefícios em
tempo breve. Essa sensação de urgência e escassez de tempo como se o mundo estivesse
entrando em colapso é uma fórmula muito sugestiva de correr mais rápido e fazer votos cada
vez mais altos de entrega.

O essencial do método é: anule o quanto puder a capacidade analítica e, se a usar, que seja em
função do "coração". É válido saber usar a voz subliminar que pode ser doce (para provocar
suspense e quietude) ou enérgica (para acionar as forças primitivas) de forma a conduzir as
emoções para um lugar de acolhimento ou temor conforme o efeito desejado.

2. Molde comportamental: Nenhum fanático se transformou da noite para o dia. Ele se submeter
a etapas sutis, pequenos movimentos em que a lagarta foi criando um casulo até se tornar uma
borboleta "livre". Esse pacto gradual é apropriado para não criar uma dissonância cognitiva tão
grande ao ponto de fazer o neófito desconfiar de si mesmo. Esses mecanismos de defesa
operariam contra a conversão, o desejo pela zona de conforto soaria o alarme.

Conforme o processo avança, o doce começo vai cedendo espaço para uma oscilação de euforia
e culpa pela incapacidade de evoluir mais rápido. As exigências externas aumentam, o servo
precisa dar mais e mais, em demandas infinitas, até que toda a sua identidade desapareça e se
transforme em mais uma câmara de eco da voz do mestre.

O ponto alto é criar um portal de transformação, deixar "claro" o que seria o lugar de realização
final. É aí que todo o processo de anulação posterior será apoiado, pois é na nova identidade
idealizada que o ego irá lentamente criar uma guerra interna, da alma contra o ego.

Mostrar ao recém convertido a existência de uma dimensão maligna que pode ser anulada pela
transformação é o caminho das pedras para uma jornada sem volta de auto-repúdio. A pessoa
começará a odiar o seu passado, sua história e suas relações anteriores como maneira criar um
divórcio interior: eu não sou mais aquele eu. Desse modo, o que se vende é que se poderia
acabar com a dimensão destrutiva e egocêntrica da personalidade para criar uma personalidade
limpa, dissidente do passado. Dali pra frente não é raro que o sujeito ganhe um novo nome de
iniciado e comece a reescrever o seu passado, retratando-o como deplorável.

Daqui para frente, é uma manutenção continuada, mas sempre reforçando a ideia de que o bem
está dentro da comunidade e o mal está lá fora, de um lado a cura e do outro a queda.

3. Mecanismos de controle psicológico: Nessa longa jornada você precisa de muita vigilância. É o
que dizem: vi-gi-lân-cia. É preciso dormir com um olho aberto e outro fechado, tanto para dentro
quanto para fora. Absolutamente tudo e todos precisam ser vistos com desconfiança. Não caia
em tentação. A própria pessoa é encorajada a ser uma espiã de si mesma, de forma a deixar o
controle de sua própria consciência nas mãos dos guias.

O bode expiatório está bem delineado: qualquer um que faça algum contraponto, mesmo que
simpático à causa. A dúvida passa a ser parte constante da convivência com quem não pertence
ao clube. Elas tem inveja, não compreendem a luz atual e no fundo são ingratas, costumam ser
os lamúrios ressentidos de quem se converteu.

Uma das táticas preferida de Hitler (o líder nazista, você sabe, né? ;) ), era oferecer a dois
membros da alta cúpula a mesma tarefa. Assim, um passava a abocanhar o outro pelas costas e
ele obtinha informação privilegiada de ambos os lados, como se todos estivessem protegendo-o
de um mal ou traição em potencial. A espionagem mútua se torna um excelente método de
controle.
O mérito de coisas boas que sucedem na vida do fiél é do grupo, mas os tropeços são
responsabilidade da pouca dedicação e fé do indivíduo. O combate à preguiça e desistência é
radical, afinal, seguidor preguiçoso não rende nada para a seita.

No processo já consolidado, o seguidor passa a ser os olhos e ouvidos do líder, bloqueando


qualquer informação crítica ao grupo e de todos é exigida uma entrega absoluta, sem qualquer
escrutínio, numa plena fé "cega".

4. Gerenciamento de debandada: Para impedir que qualquer pessoa queira arriscar a vida "lá
fora", ocorrem muitas ameaças de perdas de privilégios e vantagens sociais, emocionais e/ou
financeiras. Se alguém sair, é um traidor de uma causa santa e se torna um novo inimigo, para
reforçar aqueles que ficaram e evitar que outros também saiam da seita. Nada do que o
dissidente falar é levado em consideração, afinal, ele caiu em descrédito. Quem ousa questionar
o mestre e os seus métodos está ameaçado frontalmente com a perda de prestígio do grupo.

As sequelas

O que esse tipo de abuso espiritual pode acarretar na personalidade de um indivíduo? As


possibilidades são variadas, mas a mais evidente é um tipo de vazio existencial súbito
acompanhado de isolamento social, afinal, todos os laços emocionais giravam em torno da
comunidade anterior.

Hitler e o nacionalismo

O sentimento de desolamento, sujeira, culpa e inadequação são comuns. Como se uma aura
(nem é bom usar esse termo nesse contexto) de irrealidade se abatesse sobre a pessoa. "A vida
não tem muito sentido do lado de fora" é o que muitos relatam. Se a pessoa tinha sentimentos
ou problemas psicológicos camuflados, isso pode voltar à tona, pois não havia sido efetivamente
cuidado, mas convertido e diluído no contexto da seita.

É possível reverter?

Não é simples trazer um fanático à tona, mas certamente nenhuma abordagem radical e intensa
deve ser usada para reverter o quadro. Ter curiosidade, se aproximar, oferecer apoio, colo,
afetuosidade, enfim, compensar de maneiras mais saudáveis os fatores de fragilização anterior à
conversão podem funcionar como resgate. Mais importante do que tentar trazer de volta uma
identidade prévia é criar uma rede de apoio, especialmente no caso de a pessoa ter medo de
lidar com o isolamento pós-debandada. Uma boa dose de humor, curiosidade e silêncio amoroso
pode ajudar a criar uma nova base de segurança.

O fundamental é: nunca se combate fanatismo com fanatismo.

Leveza, abertura, alegria e paciência ainda são caminhos mais valiosos nessa trilha de nova
descoberta pessoal. Não é fácil tomar para si as responsabilidades pelos próprios atos e pelo
gerenciamento emocional da complexidade de uma vida adulta. É no espaço saudável para
ambiguidades emocionais que se pode abrir um diálogo de "volta" até que o "feitiço" quebre.

Depois de um tempo de distanciamento, readequação social e emocional, muitos se reabilitam.


Porém, podem carregar consigo um tipo de resistência absoluta a qualquer tipo de religiosidade
ou entrega emocional guiada por instituições ou gurus. Para alguns, a reabilitação se torna lenta
e quase inexistente, resultando num tipo de apatia pessoal. A verdade é que esse descompasso,
dependendo de quão funda foi a imersão, tem efeitos imprevisíveis sobre a personalidade de
alguém.

Uma sorte: não é tão fácil criar uma seita, não existe passo-a-passo infalível

Porque não é tão simples reunir condições históricas, sociais, pessoais e coletivas apropriadas
que sustentem esse tipo de alienação de si mesmo por tanto tempo. Muitos fenômenos dessa
espécie surgem e desaparecem, seja pela inconsistência ou morte do líder, pela pouca
expressividade da ideologia, ou até mesmo uma fraca implementação dos mecanismos de
controle.

Não é fácil produzir figuras como Hitler, Jim Jones, Osho, gurus de autoajuda e certas religiões
com igrejas em muitas esquinas do Brasil — é até difícil tocar em nomes sem causar uma ofensa
pessoal, por ainda serem muito aceitos por grandes grupos.

Algumas pessoas mais apocalípticas poderiam alegar que esse texto serviria de base para uma
mente sombria se apoderar e usar em benefício próprio. Sim, é verdade, mas nada do que falei
aqui é segredo. Há inúmeros líderes de grupos religiosos que, certamente, têm treinamentos
mais sofisticados que os aqui apresentados.

Porém, esse raio-x tem o intuito de clarear aqueles que em algum momento já se perguntaram o
quão atolados podem estar em suas próprias condutas de vida e convicções sociais, políticas,
psicológicas e espirituais.

Esse artigo é um alerta para que esse tipo de prática seja desfeita por dentro.

Se eu puder deixar pelo menos uma pulga atrás da orelha, então, posso considerar que a missão
está cumprida.

publicado em 27 de Março de 2018, 00:00

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Frederico Mattos

Sofri abuso espiritual | ID #63

A vulnerabilidade de uns somada à ilusão de ocupar uma posição de poder são a conjuntura
perfeita para situações de abuso espiritual

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Frederico Mattos

Id, Mente e atitude, Relações

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comentários
"Fred,

minha história é um pouco diferente do que a coluna escreve, mas passei por um lance que foi
bem bizarro e até me sinto envergonhado em contar, então vou resumir a história.

Tenho 29 anos e me considero um cara bem sucedido, mas nem sempre foi assim. Na real foi
até o inverso. Eu passei uma fase bem desesperadora: minha mãe tinha falecido, eu estava com
sérios problemas financeiros, tinha tomado um pé na bunda. Enfim, todo cagado.

Foi então que uma amiga me sugeriu procurar ajuda espiritual e me indicou uma religião que
ela já tinha frequentado. Foi uma situação estranha para mim, mas naquela hora eu não estava
com muita moral para recusar ajuda então eu fui e contra minhas expectativas gostei do lugar.
Era bonito, aconchegante, gente motivada, receptiva, me trataram como uma criança
desamparada, com frases de apoio e me ofereceram um espaço para me sentir um derrotado
em paz.

O sacerdote teve um cuidado forte comigo (acho que todos pensam isso), me pareceu que viu
algo em mim e aquilo foi o fator fundamental para o motor engrenar, alguns meses se passaram,
minhas feridas estavam cicatrizando, e esse equilíbrio me ajudou a reerguer minha vida social,
profissional, financeira e até amorosa.

Nesse meio tempo, eu notei que haviam algumas coisas que não funcionavam tão bem na
estrutura e na logística do local religioso e me propus a ajudar. Quando me dei conta eu já estava
mais enfiado do que –hoje eu percebo – deveria. Parece que entrei numa espiral de doação
pessoal e financeira que parecia justa com tudo o que eu havia encontrado de ajuda e queria
que outros recebessem o mesmo.

O problema é que o sacerdote gostou da brincadeira e aquilo que era espontâneo começou
lentamente a ser chantageado. Quando comecei a colocar limites eu sentia que nos dias onde
assistíamos a fala dele em público algumas alfinetadas eram direcionadas à mim. Eu não quis
parecer tão importante e não dei muita bola, mas daí já surgiram fofocas e coisas que eu havia
dito em caráter de confissão espiritual estavam circulando na boca do povo. Fiquei puto e fui
confrontar o sacerdote que usou de todo discurso e cinismo (agora eu vejo) para me persuadir
de que eu estava enganado. Isso aconteceu por mais algumas semanas até que eu resolvi me
distanciar.

Depois de alguns meses notei uma tristeza em mim. Fiquei privado do convívio do pessoal que
conheci lá e confesso, uma grande descrença na religião de modo geral. Queria readquirir essa
força, mas não consigo me filiar a nenhum outro lugar religioso, peguei bode e certo desprezo
por isso tudo, e olha que eu tentei.

S.S"

Caro S.S., o que você parece ter atravessado foi uma experiência de abuso espiritual e esse é um
assunto bem sério e velado nos círculos religiosos.

Essa história também é muito delicada porque permite muitas distorções. É possível que
apareçam pessoas obcecadas em buscar conclusões distorcidas e simplistas sobre o ocorrido.
Uma delas é imaginar que determinadas religiões são mais propensas que outras a cometer
esses abusos. Outra é afirmar que religião e religiosidade são fatores que predispõem em si
mesmos o abuso de outras pessoas. Mas, só para constar, eu mesmo já testemunhei outras
histórias desse tipo em comunidades religiosas de todos os tipos: católicas, evangélicas,
umbandistas, hinduístas, budistas e, até, ateístas.

Esse tipo de abuso acontece onde existe uma estrutura de poder e pessoas em situações
particularmente vulneráveis – assim como numa empresa onde um funcionário está
constantemente ameaçado de perder o emprego. O termo abuso espiritual é mais apropriado
aqui porque o tipo de barganha se deu numa esfera de fé, onde o elemento da crença numa
força maior ou divina parece ser o gatilho para a situação problemática. Nem por isso podemos
dizer que a fé numa corporação, no emprego, num cargo ou no dinheiro também não sejam
abusivas.

Somos todos falíveis

Os sacerdotes, por mais que gostássemos de pensar que não, são pessoas e como qualquer
pessoa tem seus pontos frágeis que variam no mesmo espectro de contradições humanas que
qualquer outra sem um cargo de liderança. O problema é que pelo próprio carisma,
encantamento e contexto prodigioso eles gerenciam expectativas bem altas sobre a mente das
pessoas.

Parece estranho ver pessoas inteligentes, de bom coração ou com relativa boa capacidade
emocional adotarem posturas extremas, quase ingênuas, por conta de uma crença. A verdade é
que adultos são versões um pouco mais sofisticadas de crianças, mas não distantes
emocionalmente das mesmas tramas da infância o suficiente.

Assim como acreditávamos nos nossos pais cegamente, como seres perfeitos e inquestionáveis,
carregamos as sementes dessas estruturas de crenças para a vida adulta. Após a desilusão
própria da adolescência, em que vemos os pais serem contraditórios, menos admiráveis e até
menos confiáveis, acabamos seguindo órfãos emocionais. Nossa mente tem certa dificuldade de
se relacionar com o transcendente de uma maneira mais abstrata, sem carregar os ranços dos
condicionamentos emocionais. Por isso os sacerdotes assumem comumente esse papel
substituto dos pais idealizados.

Somos todos filhos do padre.

O fanatismo devotado religioso (ou político – a estrutura é a mesma) é sempre proporcional à


fragilidade egoica. Esta, desamparada e menos estruturada, acaba criando um movimento
compensatório onde projeta a onipotência em uma pessoa externa quando não pode confiar nas
próprias habilidades. E o apelo é enorme: como não projetar nossa fragilidade-onipotente em
alguém que está num lugar que se pretende conectado com o espiritual ou o divino?

Não se iluda

A pessoa do sacerdote, por outro lado, empoderada desse legado também se vê iludida pelo
próprio papel. Envolta nessa bolha de onipotência, vendo as pessoas movimentarem suas vidas
sob o influxo de seu comando, acaba entrando num transe pessoal e investe-se dessa certeza.
Mas aí é que surge a fragilidade do papel. Nessa posição ela inevitavelmente encontra as
fragilidades emocionais da figura humana travestida de poder.

Os desejos sexuais, de controle e até destrutivos são auto justificados, já que são inaceitáveis
pelo viés espiritual. O aspecto predatório reside nessa dupla cegueira (seguidor e seguido) e
toda ação torpe ganha um colorido transpessoal que abafa a ação abusiva até que ela chegue a
extremos gritantes. É bem verdade que muitos psicopatas – carismáticos e capazes de mimetizar
o comportamento mais santo possível – existem nos meios religiosos como lobos em pele de
cordeiro. Mas essa auto-hipnose onipotente criada pelo contexto parece ser um fermento para
tanta arrogância misturada com abuso.

Explico isso não para abrandar ou diminuir a sua dor, mas para você tirar da cabeça que foi
ingênuo ou tolo por ter entrado numa experiência que até os mais preparados estariam
propensos a mergulhar. Ninguém está imune ao fanatismo, mesmo que não religioso, cada um
se protege dos medos da vida à sua moda.

A nossa confiança ainda é muito frágil e depende muito da credibilidade externa de uma figura
infalível que garanta que nossas dores jamais se repetirão. Mas fico me perguntando: e se nossa
confiança repousasse na entrega frente a realidade que nos cerca? Algo como ficar absorvido
por cada acontecimento cotidiano. Não seria lindo enxergar até no trânsito essa horda de
formigas humanas indo e vindo de seus trabalhos e lazer para tornar a vida de outros mais
abastada e feliz? Como não ver numa mãe aflita aquele esforço visceral por tornar a vida dos
filhos melhor? Ou ver no anseio corporativo aquele desejo asfixiante de se libertar da escassez
pessoal? Longe de ser uma aceitação passiva e permissiva, mas uma contemplação dos
movimentos sutis da humanidade como quando olhamos a delicadeza-agressiva de um
programa de Discovery Channel da selva africana.

Sou um apaixonado pelas belezas terríveis da contradição humana, inclusive quando elas me
assombram por dentro ou me espancam por fora. Esse tipo de confiança talvez pudesse nos
ajudar em momentos de sofrimento a olhar com menos exasperação e depositando, para quem
tem fé, menos responsabilidade sobre figuras humanas externas, buscando nelas sabedoria e
solidariedade e não uma salvação infalível a qual não podem cumprir. Os sacerdotes tem seus
limites e até o que eles falam merece ser ouvido com discernimento, ainda que seja por
compaixão da cegueira que eles mesmos estão envoltos.

Em nome do bem somos capazes das coisas mais arbitrárias e inimagináveis, afinal nossos
interesses se tornam absurdamente justificáveis sob o manto defensável da bondade. Como
pode ser ruim algo que promove o bem e tem tantos seguidores? É fácil responder, pessoas de
personalidade autocorrosivas e autodestrutivas (com vidas problemáticas) são as mais
vulneráveis a seguir em massa formas de pensamento estruturadas que reforçam esses traços de
culpa, submissão, renúncia e dependência cega. Insisto, grandes corporações fazem o mesmo.
Espero de coração que você encontre paz e confiança em você mesmo.

Para quem interessa, no Netflix tem um documentário que fala sobre Cientologia (aquela seita
que se pretende religião a qual o Tom Cruise é fiel defensor) chamado "Going Clear: Scientology
and the Prison of Belief". Ele retrata pessoas que sofreram abuso
espiritual/sexual/físico/financeiro. É angustiante ver como conseguimos ser autodestrutivos em
nomes de verdades amorosas e edificantes. Falo um pouco disso nesse outro texto.

***

Nota da edição: a coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É
apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma
proposta. Não espere precisão cirúrgica e não condene por generalizações. Sua vida não pode
ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.

A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão ampla, de ferocidade saudável.
Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta
possível.

Antes de enviar sua pergunta, leia as outras respostas da coluna ID e veja se sua questão é
parecida com a de outra pessoa. Se ainda assim considerar sua dúvida benéfica, envie para
id@papodehomem.com.br. A casa agradece.

publicado em 04 de Agosto de 2016, 20:18

File

Frederico Mattos

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