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FORTALEZA
2018
2
FORTALEZA
2018
3
4
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Dr. Cristiana Costa da Rocha
Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
_________________________________________
Prof. Dr. Kênia Sousa Rios
Universidade Federal do Ceará (UFC)
________________________________________
Prof. Dr. Eurípedes Antônio Funes (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
________________________________________
Prof. Dr. Adelaide Maria Gonçalves
Universidade Federal do Ceará (UFC)
5
A Deus.
Aos meus pais, Francisco e Neves.
6
AGRADECIMENTOS
lugar maravilhoso. Obrigada, professora Adelaide, por me ensinar a olhar para a prosa da vida
com mais poesia.
Agradeço aos meus narradores primeiros, Vô Damião, que me despertou as
primeiras inquietações sobre a vida na roça, e ao vô “de baixo”, Vô Cosme, por seu exemplo
de vida; e a todos os outros que dispuseram uma parte do seu tempo para me ajudar a compor
este objeto de pesquisa. Espero que através deste trabalho tenha respeitado suas trajetórias de
luta.
Agradeço a Cristiana Costa da Rocha pela confiança, carinho e amizade sincera,
por sua determinação que me inspiraram desde a graduação e me inspiram até hoje, para
continuar nesta caminhada. A Marcelo Aleff, pelas “quebradas de galho” nos pegue-pagues
do Mestrado, e por me presentear com mais uma amizade vindoura. Às minhas colegas do
pensionato que colaboraram com as suas amizades lindas, Bia e Ana Larissa. A Jorge pela
acolhida terna e precisa nos dias de seleção. A todos os professores e colaboradores do
Programa de Pós-Graduação em História Social pelo apoio. Aos meus colegas e gestores das
escolas onde trabalho pela compreensão e ter contribuído para a conclusão desta etapa na
minha vida: Patrícia, Jairy, Gisele e Nenzão.
A todos que de alguma maneira participaram da realização deste sonho, muito
obrigada, e que Deus nos abençoe!
8
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo analisar narrativas de migrantes cearenses para o
EntreRios Piauiense, ocorridas no período de 1940 a 1970. Os deslocamentos dessas famílias
condicionados pelas consequências da seca, por desarranjos familiares ou outras questões, foi
influenciada, também, pelas expectativas de melhoria de vida. Secas, escapar da fome e da
miséria, buscar outras possibilidades de relações de trabalho no campo, mesmo sem o acesso
à terra, são sentimentos que moveram estes cearenses a empreender travessias em busca de
uma “terra melhor”. São trabalhadores que no Ceará viviam do cultivo dos roçados em terras
alheias, sob o sistema de pagamento de renda. Nesse sentido, a migração para o Piauí, em
pouco alterou sua condição de campesino, no entanto, revelou-se como um caminho plausível,
em contraste às agruras do sertão cearense. A região do EntreRios entra na rota de
possibilidades do bem-viver, por suas terras férteis, boas para o cultivo e ricas em água, rios
Parnaíba e Poti, que cortam aquelas terras e as matas extensas de babaçuais, que vicejaram
aos olhos dos sertanejos após longas travessias. Nesta espacialidade, cartografada pelas
trajetórias dos narradores, percebemos que nas relações de trabalho, firmadas com base em
contratos verbais, as estratégias de sobrevivências se fundamentam cada vez mais, tendo
como suporte redes de solidariedade estabelecidas entre as famílias e vizinhanças, e
combinação de forças de todo o núcleo familiar. Quando essas obtenções dos meios de vida
são afetadas, prejudicando a sobrevivência, famílias deslocam novamente, em busca de
melhores condições de vida ao sabor de expectativas que são reformuladas. Um destes
destinos foi Teresina, onde trabalhadores campesinos pobres passam a pobres urbanos,
marcando trajetórias de lutas cotidianas que configura na memória a vivência do campo como
um espaço de saudade. Neste trabalho nos guiamos por narrativas orais de homens e
mulheres, à espreita de suas experiências de vida, e como suporte à história oral, Relatórios
Governamentais, periódicos do período estudado, dentre outros registros escritos.
ABSTRACT
The present study has as objective to analyze the narrative of migrants from Ceará to the
EntreRios in Piauí, which happened from 1940 to 1970. The movements of these families,
conditioned by the consequences of the dry, familiar derangements or other issues, were
influenced, also, by an improvement of life expectation. Dry times, escaping hunger and
misery, searching other possibilities of relations of field work, even without access to the
land, are feelings that moved these people from Ceará to engage in travels searching a “better
land”. These are workers who, while living in Ceará, lived of cultivations of “rootings” in
stranger lands, under the system of payment of a rent. In this sense, the migration to Piauí,
altered only a little the field worker condition, however, it was revealed as a plausible way, in
contrasts to the roughness of “Ceará’s sertão”. The region known as EntreRios gets in the
route of well living possibilities, because of its fertile lands, very good to cultivation and the
fact of being rich in waters, Parnaiba and Poti rivers which cut those lands and woods, which,
are full of “babaçuais”, that thrived the eyes of the people from sertão after long travelings. In
this specialty, charted by the trajectories of narrators, notice that the work’s relation, firmed
based in verbal contracts, the survival strategies were more and more fundamented, having as
support the solidarity networks established among families, neighborhood, and combinations
of strength of all the family core. When these life mean’s achievements are affected,
disturbing the survival, families move again, searching better life conditions tasting flavors
that are reformulated. One of these destinies was Teresina, where poor workers from the field
become poor people from the city, marking trajectories of daily fights which configure, in the
memories the ones living in the field as a space that is missed. We are guided in this work by
oral narratives of men and women, on the look-out of their life experiences, and as a support
to oral history, Governmental Accounts, studied periodics of the time, among other written
registries.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14
2 PONTOS E PARTIDA E HORIZONTES DE
CHEGADA......................................................................................................... 31
2.1 Terra, trabalho e migração: processo migratório de cearenses para o
Piauí ............................................................................................................... 33
2.2 “O Ceará é uma terra boa, mas não chovia”.............................................. 43
2.3 “Roubar a idade”: o enredar familiar nas travessias.................................... 47
2.4 Travessias, veredas e o “mar de fogo”........................................................ 52
3 VIVER NO ENTRERIOS .................................................................. 58
3.1 Interpretações a cerca da agricultura de autoconsumo no Piauí............ 59
3.2 Construindo redes de solidariedade: “no interior toda terra tem patrão”... 64
3.3 Resistência e discursos ocultos dos narradores migrantes............................. 69
3.4 Algumas observações sobre a “fartura” camponesa....................................... 81
3.5 Cultura e Cartografias de Memória.......................................................86
4.0 ECOS DE UMA VIDA CAMPONESA NA CAPITAL............................97
4.1 Periferia e expectativas.................................................................................100
4.2 Viver na cidade: “profissão de operário” e outras sociabilidades............109
4.3 Cartografias de Saudade: “Tem dia que eu choro quando eu vejo
chover”............................................................................................................120
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................124
REFERÊNCIAS............................................................................................129
14
1 INTRODUÇÃO
1
Algumas conversas informais com Seu Damião e Seu Cosme foram feitas até realizarmos as entrevistas
oficiais. A primeira entrevista com Damião Feitosa da Silva ocorreu em 06.09.2015. Com Cosme Feitosa da
Silva ocorreu em 18.01.2018. Os pronomes de tratamento utilizados no decorrer da pesquisa, para homens e
mulheres, justifica-se pelo uso popular nas formas de chamar estes senhores e senhoras no cotidiano do lugar em
que vivem, sendo mantidas em nossa escrita.
2
Ver SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência. Discursos Ocultos. Lisboa: Letra Livre;
Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura editorial, 2013.
15
ou outro viés de comportamento, uma interpretação cara para pesquisadores que às vezes
consideram que só alguns se rebelam e outros não. Outrora personagem perdido no
esquecimento, marginalizado frente à história contada pelas elites, o seu “resgate” ou
recuperação se realizou de maneira equivocada, “esquecendo-se que não se trata de um grupo
homogêneo, de uma classe, sendo necessário considerar suas divisões internas e estudá-lo
nas interrelações com a sociedade urbana” 3. Para uma melhor reflexão a respeito do papel
destes trabalhadores e seus comportamentos coletivos partilhamos da noção de classe
enquanto experiência social tal como é proposta por E. P. Thompson:
Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos
díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência
como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe
como uma ‘estrutura’, nem como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre
efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações humanas) (sic).4
O fazer-se classe não tem um marco inicial, mas sim se constitui num processo de
lutas constantes e trocas de experiências entre trabalhadores, fundamentando a lógica
camponesa. Ao se pensar o camponês como um sujeito homogêneo, de experiências
previsíveis, leva-se a crer que estão sempre a espera de uma salvação para sua produção,
parca, e tecnologia rudimentar; algo que apenas seria possível com a tutela do Estado,
possuidor tanto do poder científico (centros de pesquisa especializados em melhorias do
campo) como também do poder ideológico modernizante. Diante do fundamento deste Estado
tecnoburocrata, a lógica camponesa se apequena, figurando-se como aquilo que popularmente
denominamos de “ignorância”, ou seja, a persistência em continuar produzindo naqueles
meios de vida.
Mas as questões que envolvem esse processo de lutas não põem em jogo apenas
embates materiais. “Os valores que os pobres estão defendendo são na maioria, sem exceção,
vinculados aos seus interesses materiais como uma classe. Nós estaríamos, entretanto,
equivocados quanto à natureza total da luta se nos limitássemos apenas aos efeitos
materiais”5. O conflito entre a lógica do Estado e a lógica camponesa desnuda essa ideia-valor
da autonomia, muito forte no espaço do trabalho de roças, aspecto percebido por Alf
3
FONTANA, Josep. Por uma história de todos. In: A história dos homens. São Paulo: EDUSC,2004, p.442.
4
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol.I: Árvore da liberdade. 1987, p.9. apud
MENEZES, Marilda Aparecida de. Experiência Social e Identidades: trabalhadores migrantes na plantation
canavieira. In: História Oral, São Paulo: ABHO, Nº3, Junho de 2000, p.52
5
SCOTT, James. Weapons of the Weak Everyday Forms of Peasant Resistance. Maassachusetts: Yale
University, 1985, p.235 apud MENEZES. Op. Cit., p.53.
16
Schwarz6,e que abre caminhos para que nos tornemos sensíveis também às experiências
relatadas.
Para assegurar a autonomia na obtenção dos meios de vida desenvolvem-se
múltiplas práticas cotidianas de resistência, possíveis de serem observadas sob um olhar
cuidadoso voltado para abordagens da cultura, bem como relações entre grupos subordinados
e dominantes, conforme propõe James Scott. Dessa forma, podemos observar “a comunidade
camponesa, parentesco, vizinhança, facção, rituais como espaço de identidade humana e
solidariedade” 7 compondo as experiências que formam a classe.
No seio desta vivência de formas de dominação homens e mulheres se constroem
como sujeitos ativos que lutam pela sobrevivência e dignidade no campo. As narrativas
costuram-se em torno da premissa de um espaço que se desenha a partir das trajetórias
migratórias, englobando duas fronteiras: Ceará – Piauí e a Piauí−Maranhão. Cada um desses
espaços se constitui com características significativas para entender o porquê destes caminhos
trilhados, pontuados, sobretudo, nas suas particularidades físico-ambientais e
socioeconômicas.
Apesar de migrarem por mais de uma vez, isso não os impede de construir nos
espaços estabelecidos uma mínima ligação identitária, onde, mesmo numa relação de trabalho
livre, estes campesinos não escaparam à subordinação para com o fazendeiro, que os colocava
em um cativeiro sutil, embasado em contratos verbais que revelam a dependência do
trabalhador em relação à terra. No esforço de garantir suas condições elementares de
produção ─ chamadas por Antônio Candido8 de mínimos sociais e vitais ─, a economia moral
dos pobres é o que lhes permitia experienciar através do cotidiano práticas de resistência e
negociação no discurso público do poder. (Re)compondo suas teias de vida a cada migração,
cearenses se projetam em futuros em prol do bem-viver da família, de modo que não se
enfraqueça o núcleo familiar, faz-se necessário que todos migrem. A realização de migrações
cearenses em todos os aspectos, seja dentro do próprio Estado ou para fora dele, é uma
“manifestação fenomênica fundamental da sua sociabilidade”9.
Para dar inteligibilidade ao estudo migratório de cearenses, foi necessário
conhecer o contexto socioeconômico e ambiental do Ceará nos anos 30 e adentrar no
6
SCHWARZ, Alf. Lógica do desenvolvimento do Estado e lógica camponesa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
São Paulo, 2(1): 75-114, 1.sem. 1990.
7
MENEZES.Marilda Aparecida de. Op. Cit., p.52.
8
CÂNDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus
meios de vida. 4. ed. São Paulo: Livaria Duas Cidades, 1977, p.27.
9
FERREIRA Assuério. Determinantes Estruturais das migrações cearenses. In: SALES, Celecina de Maria
Veras et al. (org). Terra, sujeitos e condição agrária. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p.49.
17
10
NEVES. Lucilia de Almeida. Memória, História e Sujeito: Substratos da identidade. In:
História Oral, São Paulo: ABHO, No 3, Junho de 2000, p. 109.
11
PESSOA, Jadir de Morais. Cotidiano e história: para falar de camponeses ocupantes. Goiânia: Ed. da
UFG,1997, p.14.
12
Ver THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 9.ed.1998.
13
Idem. Ibidem, p. 23.
18
André Gunder Frank, “a realidade brasileira é que as mil e uma variações e combinações do
trabalho agrícola misturam-se em todas as regiões” 14.
Os motivos dos trabalhadores cearenses se deslocarem para o Piauí podem ser
elencados em três razões, como fluxos migratórios, que se iniciam na década de 1930 e,
conforme os projetos de vida são reformulados, outros deslocamentos ocorrem.
Através das narrativas dos entrevistados, chegamos aos deslocamentos para o
Piauí ocasionados por conta da seca e seus reflexos: prejuízo às colheitas e morte de criações.
Este é o caso de Seu Damião e Seu Cosme, irmãos gêmeos de 86 anos, que saem em 1942 da
cidade de Nova Russas junto com a família rumo ao município de Miguel Alves, na
localidade Matões, margeado pelo rio Parnaíba, guiado pelas expectativas de melhores
condições de vida alimentadas por parente que lá residia. As histórias evocam do passado um
futuro promissor contrastando com as paisagens desérticas da travessia.
Cristina Frota15, 72 anos, contribuiu com suas reminiscências de menina e,
posteriormente, de mulher adulta para entender as dificuldades da travessia, vindo do interior
de Sobral, com 8 anos, e instalando-se em Miguel Alves. Podemos dizer que a sua trajetória
de deslocamentos no interior daquelas espacialidades, somada à carga de sofrimento pessoal
que lhe marcou, formaram o combustível que a impulsiona a lutar, ainda hoje, pelo seu
pedaço de terra na localidade “Baixão 2”, situada na fazenda Olho D’Água, entre o município
de Miguel Alves e Porto. “Com a mediação da memória, as vivências passadas instruem ações
16
e representações sociais no presente vivido de maneira inequívoca” . Hoje Dona Cristina
manifesta desejo de justiça pela terra onde morou criou seus filhos e enterrou sua mãe.
Outras migrações ocorreram em virtude de desarranjos familiares nos quais alguns
membros se desentenderam, geralmente, por questões de herança e partilha de bens,
resultando no movimento migratório. Este é o caso de Isídio Pereira Farias, 78 anos17, que
saiu do interior de Ipu no Ceará em 1949 com pais e irmãos, morando quase dois anos na
capital piauiense para depois retornar ao interior de José de Freitas, e de lá voltar
definitivamente para Teresina mais de 30 anos depois. À sua experiência de trabalhador
14
FRANK, André Gunder. A agricultura brasileira: capitalismo e mito do feudalismo-1964. In: STEDILE, João
Pedro (org) A questão agrária no Brasil 2: o debate de esquerda (1960-1980). São Paulo: Expressão Popular,
2005, p.51.
15
CRISTINA Frota, entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de Miguel
Alves-PI.
16
SANTANA Charles d’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia
1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998, p.17.
17
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.11.2016, na cidade de
Teresina-PI.
19
18
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
19
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
20
ANTÔNIA Portela de Sousa. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.02.2018 na cidade de
Teresina-PI.
20
A migração sofrida marcou a trajetória dos pais de Seu Paulo Furtado de Melo, 76
21
anos , que vinham de cidades cearenses distintas. O pai viera de Tianguá e a mãe de Sobral,
ainda crianças, por volta de 1932. Em Miguel Alves, conheceram-se e casaram-se. Seu Paulo,
assim como o pai, trabalhou de roça a vida inteira. Sem filhos, em 1997, aventurou-se para
Brasília, trabalhando 7 meses em uma horta que fornecia alimentos para escolas. Em 1998, a
ausência da esposa o faz retornar, realizando seu sonho de ter seu próprio terreno e passar o
fim dos seus dias plantando.
Em função das agruras da seca, os avós de Seu Domingos Gomes da Silva22, 81
anos, viúvo, migraram do sertão piauiense para o município de União-PI, em período
concernente à seca de 1932. Ele mantém vivos alguns fragmentos de memória que lhe são
preciosos sobre trabalho, migração e luta.
Esse também é o caso de José Domingos da Costa,72 anos,23 mais conhecido
como “Seu Zé Novecentos”, nome pelo qual nos autorizou chamá-lo na pesquisa. A bisavó de
Seu Zé enfrentou as agruras da seca no início do século XX saindo do interior do sertão
cearense para José de Freitas, onde seus desejos de melhorias de vida arruinaram-se ao
encontrar-se no mesmo quadro de penúria e miséria.
Todos os relatos orais se costuram em prol de uma perspectiva: a melhoria das
condições de vida, tecidas não apenas na promessa de parentes, mas também no “ouvir
contar”, histórias sobre melhores patrões, água disponível, mais chuvas, menos estiagens e um
“mar verde” de babaçuais e carnaubais, possíveis fontes de rendas para famílias. Estes dizeres
vão delineando no imaginário dos migrantes a ideia de que ir para o Piauí, apesar de ser um
estado pobre sem grandes economias de ciclo, como a Bahia e a zona canavieira, ou o
Maranhão e suas terras ainda devolutas, oferecia oportunidades plausíveis para estas famílias.
Este processo de “fabricação” da entrevista, que se faz no campo dialógico, é um
exercício de alteridade no intuito de fazer com que o próprio narrador reconheça elementos
importantes na sua trajetória de vida. Assim, “os entrevistadores podem contribuir para
revelar a história desprezada – até aquela ignorada e suprimida na história de vida do
próprio contador de histórias”24.
21
PAULO Furtado de Melo. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de
Miguel Alves-PI.
22
DOMINGOS Gomes da Silva. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em
27.01.2018 na cidade de União-PI.
23
JOSÉ Domingos da Costa, Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 26.01.2018, na cidade de
Teresina-PI.
24
HARRITS; SHARNBERG, Kirsten Folke Ditte. Encontro com o contador de História: um processo de
aprendizado mútuo. In: História Oral, São Paulo: ABHO, Nº3, junho de 2000, p.27.
21
Nesse encontro com o outro da voz, aquele som preso na garganta não deseja
simplesmente despejar uma gama de informações sobre um período ou um
acontecimento. Ele deseja ser dono da voz, impor seus desejos, denunciar suas
dores, vomitar seus infortúnios, convencer o pesquisador a fazer parte de sua luta, do
entendimento do dito como lugar que deve ser respeitado e ecoado 25.
25
RIOS, Kenia. Quando novos personagens continuam entrando em cena. O encontro com a voz do outro e
com o outro da voz. Palestra de Encerramento do ERHH – Nordeste, p.6.
26
SANTANA.Charles d’Almeida. Op. Cit., p.41.
27
Ver HAHNER, June E. Pobreza e Política: os pobres urbanos no Brasil (1870/1920). Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1993.
22
“deixou de ser visto como exclusivo do autor, tornando-se capaz de transmitir uma
experiência coletiva, uma visão de mundo tornada possível em determinada configuração
histórica-social”28.
De acordo com Rios
28
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. 2ª
ed. São Paulo: Contexto, 2006, p.163.
29
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.7.
30
SANTANA. Charles d’Almeida Op. Cit., p.21.
31
HAHNER, June. Op. Cit., p.10.
23
tem sua importância subjetiva, “e pode tornar-se particularmente relevante quando tomamos
a própria parcimônia do discurso como objeto de reflexão”32.
A hesitação ou a vontade de falar a respeito de determinado contexto peculiariza
cada entrevista, aonde novos detalhes vão aparecendo ou a mesma história é contada de outro
modo, indicando que a cada maneira na vida das pessoas se apresentam destinos possíveis, as
memórias mudam ao serem (re)contadas. Dessa forma os diálogos se constroem não no
sentido de apenas informar às perguntas feitas pelo entrevistado, mas no sentido de contar
histórias, que fluem à medida que o passado é evocado, uma distinção importante conforme
assinala Benjamim: “Hoje em dia, quase nada que acontece beneficia o contador de
histórias; quase tudo beneficia a informação. Na verdade, metade da arte de contar histórias
consiste em manter uma história livre de explicações quando a reproduzimos”.33
A cautela com as entrevistas orais revela um primor metodológico que permite
entrever gêneros da expressão oral, facilmente despercebidos em outros tipos de entrevista.
Dessa forma, anedotas e causos, como as contadas por Seu Damião, são territórios seguros na
demarcação da linguagem do discurso. Vidas que se postam significativas, a magia da
sobrevivência diante das dificuldades recorrentes na exploração da terra, no sucesso ou
insucesso do pagamento da renda, o esforço em retirar o necessário para a família e gerar o
excedente.
Sensibilidades permeiam o imaginário de escritores e contistas, refletindo os
sentimentos de miséria e solidão próprios do cenário da seca. Em O Quinze, de Raquel de
Queiroz34, saltam aos olhos, como em um quadro comparativo, a fala dos narradores e as
cenas vividas por Chico Bento e sua família, as paisagens desoladoras que desnudam pastos e
gretas, o sentimento da longa travessia. Em um trabalho acurado, Queiroz escreve sobre a
seca de 1915 e nos revela sensações táteis que coroam também os relatos, deixando-os mais
vivos.
A obra O Casarão do Olho D’Água dos Azevedos, de Maria Francisca Azevedo35,
retrata a vida campestre de uma fazenda no município de União, mas bem poderia se encaixar
na descrição das propriedades onde agricultores moraram e trabalharam. A perspectiva
romântica pincela a relação entre os patrões com seus empregados em uma fazenda de nome
tão singular que sugere o seu povoamento e sujeição às situações diversas de trabalho, afinal o
32
ALBERTI, Verena. Op. Cit., p.173.
33
BENJAMIM.Walter. Op. Cit., p.89 apud HARRITS, SHARNBERG. Op. Cit., p.29.
34
QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,105.ed. 2016.
35
AZEVEDO, Maria Francisca. O Casarão do Olho d’Água dos Azevedos. 2ª edição. Teresina: COMEPI,
1992.
24
“olho d’água” está na terra dos Azevedos, demarcando o ponto-chave para a concentração e
conexões de pessoas naquela localidade, a água. O “patrão benevolente” é uma figura
constante na memória da autora, bem como a “passividade” de seus empregados. No entanto,
as narrativas mostram que esta obediência é explorada pelos trabalhadores para obtenções
posteriores de ganhos ou vantagens, revelando que seus gestos e ações operam em um
discurso oculto que potencializa os camponeses como sujeitos ativos e capazes de lutar pela
sua dignidade.
O apadrinhamento é a característica do aparato colonial que se desdobra nas
relações, na medida em que o trabalho livre só encontrava terreno fértil em relações de
dependência dos mais diversos graus. Com a crise do escravismo, ele se configura de uma
maneira diferenciada, e o termo “assalariado” não cabe para definir esse regime de produção
direta dos meios de vida com base na unidade familiar, pois destrói a possibilidade de
remuneração, posto que entrega seu excedente de forma direta36 . Ainda assim, o capitalismo
redefine essas relações, subordinando-as ao capital (neste caso, o excedente é vendido e
utilizado para a compra de produtos que o trabalhador não pode produzir), engendrando
também relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à produção37. Com o
valor agregado a terra, esta se torna cativa, e o cativeiro se desdobra nas mais diversas
relações pessoais, onde a figura do proprietário configura-se para estes sujeitos como alguém
de boa índole, que cede uma rede de favores em troca de prestação de serviços ao lavrador e à
sua família.
A história social do campesinato brasileiro tem voltado suas pesquisas nos últimos
anos para o estudo cultural. A constituição do campesinato, suas pequenas táticas e estratégias
de resistência, sua capacidade de formular projetos de vida são apenas alguns dos temas
resultantes do movimento de desconstruir a figura do camponês de atraso, de fragilidade
política e de dependência. Conforme assinala Maria Yeda Linhares, abordar o mundo rural no
Brasil é “estudar as ações de homens de vários grupos sociais, e a suas múltiplas maneiras
de agir e pensar” 38. Dessa forma, estudar a vida de camponeses migrantes cearenses de 1940
a 1970 no Piauí contribui para elucidar estas questões, problematizando experiências de um
campesinato que se deslocou de municípios cearenses próximos da fronteira com o Piauí.
Localizados em regiões com características naturais distintas, São Benedito, Ipu e Tianguá, na
36
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec,6.ed. 1996, p.19.
37
Idem. Ibidem, p.20.
38
LINHARES, Maria Yeda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira. História da Agricultura Brasileira – combates
e controvérsias. São Paulo :Editora Brasiliense, 1981.
25
região serrana mais úmida da Ibiapaba relatam motivos diversos dos narradores vindos de
Nova Russas e Sobral, no sertão cearense, que migraram por motivos de seca, mas todos em
busca de condições melhores de sobrevivência e relações de trabalho mais dignas. Ao longo
dessas três décadas, guiados pelas suas narrativas, pontilhamos o locus da pesquisa no intuito
de compreender como a trajetória desses homens e mulheres se entrelaçam com seu cotidiano
de trabalho, revelando uma pluralidade de experiências que devem ser problematizadas.
Na esteira de estudos sobre o campesinato piauiense que versam sobre cotidiano,
trabalho e processos de luta, demonstramos interesse pela trajetória de sujeitos que em seus
gostos e costumes simples entrevê-se uma série de experiências notadamente (re)conhecidas
por sujeitos migrantes que viveram do cultivo da roça, a constituição de redes de
solidariedade e o desejo que fomenta o deslocamento sempre em direção de uma vida melhor.
Instalando-se em municípios piauienses, adequando-se àquele novo contexto de buscar por
uma melhoria de vida contida no espaço do campo, o campesinato do qual estamos à espreita
vive dos seus meios de subsistência, inserindo-se no mercado quando o produto da safra do
trabalho gera um excedente, e seu espaço de comercialização é restringido por influência
direta do proprietário (ou pela tentativa deste de cercear o comércio de excedentes gerados).
Nesse sentido, os narradores e suas famílias não se inseriram na lógica
desenvolvimentista que arregimentou várias comunidades em cooperativas agrícolas cuja
produtividade era definida pelo Estado, e das quais o Piauí, em consonância com o projeto
agrário destinado ao país, implantava em seus municípios. Em nossos relatos não
encontramos testemunho em cooperativas, somente experiência de vida de homens e mulheres
em sua maioria na condição de agregado em terras de fazendeiros, ou seja, práticas de um
campesinato marginal em relação ao projeto desenvolvimentista e tecnocrata do Estado que já
rendia seus frutos.
A trajetória percorrida pelos narradores nos permitiu delinear o espaço a ser
estudado. O recorte espacial “EntreRios” proposta pelo PLANAP39 (Plano de Ação para o
Desenvolvimento Integrado da Bacia do Parnaíba) promove um agrupamento de municípios
necessário com o qual é possível estabelecer conexões com a espacialidade dos narradores.
Nesta busca por água, terra e comida, discurso de Relatórios e Mensagens de Governantes
39
O Planap está sintetizado em 16 volumes com todas as informações referentes ao estudo realizado durante o
ano de 2005. Os territórios em análise são o da Planície Litorânea, dos Cocais, dos Carnaubais, EntreRios; do
vale do Sambito, do rio Guaribas, do rio Canindé, dos rios Piauí e Itaueiras; da Serra da Capivara; Tabuleiros do
Alto Parnaíba e Chapada das Mangabeiras. O Território EntreRios subdivide-se em outros 4 aglomerados, onde
o Aglomerado nº 7 engloba os municípios de Miguel Alves, União, José de Freitas, Teresina, Altos, Coivaras e
Alto Longá.
26
40
COSTA, Lia Monnielli F. “O mesquinho pão das mil e uma dificuldades”: imigrantes, abastecimento e
tensões políticas no discurso do jornal piauiense “A Época” (1878). Revista Vozes, Pretérito e Devir. Ano III,
v. IV, p. 25-41.
41
RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2011, p.22.
42
O uso deste termo não se refere aos estudos de Gilles Deleuze,sendo empregado somente no seu sentido
etimológico, de uma ideia central que leva a outros questionamentos.
27
as rupturas e permanências possibilitadas pela vivência em outro lugar, por uma nova moradia
obedecendo a novos patrões, onde os costumes assumem a característica da teia condutora
que permite a estas pessoas reconfigurarem seus espaços sociais.
O movimento migrante é central para observar como o processo de rupturas e
permanências desnudam as práticas de trabalhadores migrantes. Nesse intuito, cuidaremos
aqui de cearenses que tenham migrado para o Piauí a partir da década de 1940 e se instalado
nos municípios já mencionados anteriormente; não olvidando que o recorte, partindo de 1930,
faz-se necessário para o entendimento da estrutura paternalista e dar a ver como ela penetra
nas relações de trabalho no campo. No cruzamento de relatos de migrantes muitas vezes não
se encontram motivos que em outras ocasiões seriam indubitáveis para se sair da terra natal,
como a seca. Daí porque, consideramos que o que move essas famílias é primordialmente o
desejo por uma vida melhor.
As entrevistas se iniciaram em 2015 e se estenderam até o presente ano de 2018,
constando neste trabalho o resultado do diálogo partilhado com os narradores, vindos de
diferentes municípios do Ceará que compartilham a experiência do “viver de roça”. Para
montar a colônia de narradores, buscamos não só laços familiares, mas também vizinhos e
amigos que porventura viviam com essas pessoas e que possam enriquecer com suas
experiências a escrita deste texto; estes homens e mulheres nos dão pistas, através dos seus
relatos, sobre os passos seguintes, retomando a nova abordagem proposta por Alistair
Thomson: o foco da entrevista é não somente a busca pelo conteúdo, mas a forma como essas
lembranças são afloradas, tornando-se desse modo a chave para entender significados
subjetivos silenciados nas fontes escritas43.
O resultado da construção deste objeto de pesquisa organizou-se nos itens a
seguir. O segundo capítulo intitulado “Pontos de partida e horizontes de chegada” trata de
discutir as razões pelas quais esses migrantes se deslocaram com suas famílias rumo ao Piauí,
destacando suas perspectivas de melhoria de vida e a função da parentela como elemento de
atração para o novo espaço. O entendimento das relações de trabalho que se desenvolveram
no Ceará possibilita entendermos pelo prisma do paternalismo dos anos 30 as migrações de
cearenses a partir dos anos 40 para o Piauí, abordado no tópico 2.1: “Terra, trabalho e
migração: processo migratório de cearenses para o Piauí”. Naturais de diversas localidades,
algumas delas próximas com a fronteira do Piauí, estes migrantes deslocam-se para o
43
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias.
In: Projeto História, São Paulo, abril de 1997, p.56.
28
EntreRios em prol de uma vida melhor, por um convite de alguém da família, ou por
desentendimentos familiares. Os motivos das saídas e as expectativas das travessias, além de
percepções da mudança de paisagens são perscrutados em narrativas orais de homens e
mulheres.
No tópico 2.2 “O Ceará é uma terra boa, mas não chovia”, abordam-se sobre as
famílias que se deslocaram em virtude das agruras da seca, evidenciando ao mesmo tempo
motivos pelos quais escolheram municípios do EntreRios como novo lugar para viver e
morar.
O tópico 2.3 “‘Roubar a idade’ e o enredar familiar nas travessias” trata das
migrações motivadas por desarranjos familiares, partilha de heranças ou busca por outros
lugares enquanto parte da família quer ficar, fomentando algumas querelas que resultaram na
migração. A unidade da família também era um elemento muito importante de deslocamento,
uma vez que era importante para o camponês mantê-la coesa.
O tópico 2.4 “Travessias, veredas e o ‘mar de fogo’” trata do processo de travessia
das famílias até chegar ao Piauí elegendo como ponto alto para que esses deslocamentos
acontecessem as sociabilidades possíveis e teias de solidariedade ao longo das trajetórias,
abordando também a relação entre as mudanças no bioma e as implicações de melhoria de
vida.
O terceiro Capítulo “Viver no EntreRios” destaca como foi a chegada e o processo
de acomodação destas pessoas em território piauiense, destacando como foram-se construindo
as redes e trabalho e se as expectativas ao migrar foram alcançadas. A vivência no EntreRios
se configura em um processo de lutas cotidianas pela sobrevivência, onde o trabalhador rural
se esforça para, através de contratos verbais com o proprietário, manter os costumes e
experiências que traduzem sua dignidade. Também estamos à espreita de significações do
universo rural, como a fartura, bem como entender os percalços da memória para o
trabalhador campesino.
O tópico 3.1 “Interpretações a cerca da agricultura de autoconsumo no Piauí”
relembra as visões sobre a agricultura de subsistência no Piauí à luz da historiografia
produzida na perspectiva econômica. O tópico 3.2 trata da formação de novas redes de
trabalho e de solidariedade, além de compreender se as expectativas ao migrar foram
alcançadas, à luz dos depoimentos orais que revelam também características das relações de
trabalho dos municípios piauienses em que vivem/viveram.
29
trajetória de lutas cotidianas: a sua voz. Através não somente do que é dito, mas também da
sua performance, é “a marca dos sem escrita, manifestada com a força do corpo, como desvio
sem margem, sem linha. O som que só poderia ser entendido a partir do seu suporte vocal: o
corpo do falante”44. É nesse misto de evocação, sons e silêncios, diálogo e escuta que
perscrutamos a história social do campesinato piauiense.
44
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.2.
31
48
MELO, Pe. Cláudio. A pobreza piauiense :um tema para reflexão. Trabalho apresentado aos Dirigente da
província Eclesiástica do Piauí com vistas a uma Pastoral com os Pobres. São Raimundo Nonato,1976, p. 30.
33
49
PORTELLI, Alessandro. A entrevista de história oral e suas representações literárias. In: Ensaios de história
oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p.13.
34
Dessa forma, os Campos eram uma maneira de lidar com esse curioso
antagonismo como uma válvula de escape. O controle de corpos através do racionamento de
alimentos e da higienização contrastava com a vida dessas pessoas que sobreviviam nestes
espaços, sem conseguirem nem o básico, nem o necessário para pagar a renda ao patrão. O
cenário que acontecia em 1930 já ocorrera em 1877 e se repetia há vários anos. De acordo
com Neves, a partir deste período, os deslocamentos mudam de rumo, em lugar da procura
por locais úmidos ou currais abandonados, a migração acontecia no sentido campo-cidade.
A seca delineia algo mais do que apenas os contornos desnudos das serras sem
pastos; há revelações das estruturas de trabalho agrárias, relações de negociação entre
proprietários de terras e lavradores que se deterioram frente à impossibilidade de produção e,
portanto, o não pagamento da renda. A “tradição de apadrinhamento” para com os pobres
subjugava os estereótipos de “ladrões e saqueadores”, que porventura os flagelados da seca
seriam, caso não fossem devidamente “atendidos” pelos mais ricos; posto que a culpa fosse
dedicada aos fenômenos climáticos, ao céu, aos santos, e mesmo com a ação tectônica dos
Andes52.
O plantio de roçado depende da relação tecida entre agricultor e proprietário de
terra; fora dela é como se as fragilidades adquirissem corpo. Neves53 ressalta que a Revolução
de 30 não quebra esse modelo paternalista, apesar do desalojamento de oligarquias
tradicionais em lugar de políticos revolucionários comungados com os ideais da Aliança
Liberal. Há uma continuidade deste sistema, por um lado, por parte dos proprietários de
50
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.15.
51
NEVES, Frederico. Op. Cit., p.53.
52
Na edição 6 da Revista do Instituto do Ceará, Álvaro Fernandes em seu texto Etiologia physiographica das
Secas- Summa meteórica, aponta como uma das possíveis causas para a seca e 1932 “as chaminés vulcânicas da
Cordilheira dos Andes” que teriam desempenhado seu papel de “aspiradores hidrostáticos”, tudo de acordo com
as leis da “Physica Geral”. Dados técnicos e geográficos seguem para explicar que após o equinócio de Março,
“é que está declarada a secca (sic), sem esperança e sem apelo”, algo a que o sertanejo já está ciente e aprende
desde pequeno, demarcando a data das possíveis e tão esperadas chuvas desde o dia de São José (19 de março).
53
NEVES. Frederico. Op. Cit., p.135.
35
terras, agentes da chamada “cultura do apadrinhamento”. Prática esta que, para Rios54, possui
uma rede de desdobramentos, oscilantes entre táticas de sobrevivência das mais variadas. Por
outro lado, tem-se o próprio Estado, numa outra instância, que age intervindo na política
econômica e no mercado de trabalho, deixando de lado, por ora, o liberalismo em prol da
manutenção de relações de trabalho que perpetuem a dependência e a submissão.
Os jornais não tardam a noticiar que a aclamada “revolução” nas bases
institucionais não passava de mera falácia. Em notícia de Outubro de 1936, do Jornal
piauiense “A Gazeta”, intitulada “A lavoura atirada ao esquecimento” lia-se: “Vemos assim,
com grande pesar, que a revolução de 30 não livrou o brasileiro de um velho vício: a
politicalha”. E acrescenta, “tudo continua a girar em torno dos nomes que irão ou não irão
para o Palácio do Catete”55·. Os nomes nas cadeiras mudaram, cumprindo o objetivo de
quebrar o poder das velhas oligarquias, mas as estratégias continuam as mesmas. Esse
“caudilhismo” que condenou o “progresso na América” teria também provocado a crise de
mão de obra para as “lavouras nacionais”, por conseguinte, lavouras monocultoras, para as
quais faltavam braços. A chamada era também uma crítica à tentativa do governo de
diversificar a industrialização do país alternando o estereótipo de “país agrário”.
O projeto político agrário brasileiro calcado numa ideia de desenvolvimento é
endossado nesse período, colocando como argumento antagônico a ideia de “atraso” que
prevalecia no campo, o que empacava tão esperada modernização com suas relações de
trabalho rudimentares, o clientelismo. Seriam estes entraves convencedores de que o Estado
era o único capaz de tomar as rédeas de conduzir este processo de modo gradual e tangível
nas lavouras do país, englobando a mão de obra que se adequasse aos seus parâmetros, e
acuando cada vez mais trabalhadores e famílias que não conseguissem adequar seus projetos
de vida às novas leis do mercado. Portanto, tratou-se de um período de projetos de nação que
estavam em disputa.
A visão predominante sobre esses pobres mesclava a ideia de oprimido com
potencialmente perigoso diante das amarguras da seca, justificando episódios tristes,
conforme o registrado no periódico cearense “O Jornal” em 5 de fevereiro de 1933, acerca de
um crime ocorrido em 6 de janeiro daquele mesmo ano, na cidade de São Benedito:
54
RIOS, Kênia. Op. Cit., p. 32.
55
“A lavoura atirada ao esquecimento”. In: Jornal “A Gazeta”, Teresina, 10 de outubro de 1936, n°1.156, local
de guarda Arquivo Público Casa Anísio Brito.
36
Segundo consta, o motivo do crime teria sido uma pequena faca de viagem,
instrumento indispensável para qualquer trabalhador rural, mas que foi visto como ameaçador
pelo soldado que tentou prontamente desarmá-lo; resistindo, o trabalhador acabou alvejado
com vários tiros na cabeça. O episódio causou muita revolta na população provocando
ameaças de linchamento que foram sufocadas diante da pontaria de fuzis. O jornal enfatiza
que os autores do crime, aqueles que estariam encarregados de proteger a população,
atentavam contra a vida dos mais desfavorecidos. Uma confusão que finda com morte,
descontentamento e muita raiva refletindo o clima de tensão envolvendo poder público e os
mais pobres.
Esta reação estava impregnada pela maneira como o Governo enxergava os
famélicos. Gravitava entre o desdém – posto que se acreditasse que as reivindicações destes
seriam atendidas sumariamente pela capacidade do mercado de se reequilibrar – e o temor,
referente às possíveis revoltas populares57. As manifestações das massas poriam em xeque os
laços de dependência e submissão do homem ao campo, fragilizando toda uma subalternidade
estruturada à qual a Revolução de 1930 não pretendia acabar. A morte do trabalhador rural
Manoel Matias evidenciou este clima de instabilidade que envolvia autoridades e camponeses.
Dessa forma:
56
“Bárbara cena de sangue em S. Benedito”. In: “O Jornal”, Ceará-Sobral, 05 de fevereiro de 1933, n°10. Local
de guarda: Hemeroteca digital Biblioteca Nacional.
57
NEVES, Frederico. Op. Cit., p.140.
58
Idem. Ibidem, p.141.
37
cultivada a ideia de que Deus fez o rico para proteger o pobre. Em troca, o pobre
deve obediência ao rico59.
Quando o sertanejo lança mão destes alimentos exóticos é que o martírio da seca já
vai longe e que sua miséria já atingiu os limites de sua resistência orgânica. É a
última etapa de sua permanência na terra desolada, antes de se fazer retirante e
descer aos magotes, em busca de outras terras menos castigadas pela inclemência do
clima62.
59
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.31.
60
Idem. Ibidem, p.31.
61
CRISTINA Frota, entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de Miguel
Alves-PI.
62
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011, p. 202-203.
38
E a Ibiapaba, que era o antigo celeiro de nossos sertões, nas épocas calamitosas, já
começa a importar os gêneros de primeira necessidade, por que assim entendeu e
decidiu o conselho marcial das Republicas Unidas das formigas, que proibiu sob
pena de completa destruição, em toda a extensão da grande serra, o plantio da
mandioca, do milho do feijão, das fruiteiras, etc. 64
63
“Favores do governo à pequena lavoura”. In: “A Gazeta”, Teresina ,4 de março de 1936. Local de guarda
Arquivo Público Casa Anísio Brito.
64
“Não é fantasia, é verdade”. In: “Ubajara”, Ubajara 18 de abril de 1933.Local de Guarda: Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional.
39
65
Referência ao famoso investigador, personagem de ficção da literatura britânica criado pelo médico e escritor
Arthur Conan Doyle.
66 .
“A agricultura e a maldição cearense”. In: O Jornal”, Sobral-CE, 06 de outubro de 1934 Local de guarda:
Hemeroteca digital Biblioteca Nacional.
67
“A Gazeta”, Teresina, março de 1936, p.01. Local de guarda: Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional.
68
Idem, p.01.
40
Verificamos aqui mais uma vez a culpa pela ausência de lavouras recai não apenas
para o governo e para os donos das terras improdutivas, mas também para o sertanejo,
“indolente”, como se de fato a terra lhe fosse acessível para que a qualquer momento fizesse
brotar roçados. Na conjuntura econômica do capitalismo, a “preguiça” do lavrador pobre é
realçada em detrimento das relações de trabalho e compadrio imbricadas, que ocultam o seu
espaço real de trabalho e de sobrevivência. O jornal se resguarda num discurso que se
configura como uma estratégia de controle social, uma vez que a terra não pertence ao
69
“É uma vergonha!” In: O Jornal, Sobral-CE, 12 de fevereiro de 1933. Local de guarda: Hemeroteca Digital
Biblioteca Nacional.
70
“Notas de viagem” In: O Jornal, Sobral-CE 01 de Abril de 1934. Local de guarda: Hemeroteca Digital
Biblioteca Nacional.
41
camponês, como poderia “botar roçados”? Tais aspectos evidenciam a antítese que orquestra a
história agrária brasileira, seja reforçando-a, seja problematizando-a.
O dualismo entre novo e arcaico no Nordeste determinou o rumo das
interpretações acerca dos estudos rurais nesta região, evidenciando este campesinato familiar
espalhado nos “brasis”. Nesse sentido, de acordo com Delma Pessanha Neves71
71
NEVES, Delma Pessanha. Constituição e Reprodução do Campesinato no Brasil: legado dos cientistas sociais.
In: _____ (org). Processos de Constituição e Reprodução do Campesinato no Brasil. Vol II- Formas
dirigidas de constituição do campesinato. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários
e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 304.
72
Idem. Ibidem, p.140.
73
SCOTT, James. Op. Cit., p.29.
74
Idem. Ibidem, p.21.
42
75
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.28.
76
NEVES.Frederico. Op. Cit., p.154.
43
77
FERREIRA, Assuério. Determinantes estruturais das migrações cearenses. In: VERAS, Celecina de Maria et
al (org). Terra, sujeito e condição Agrária. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p.55.
78
GRYNSZPAN, Mario. “Campesinato”. In: MOTTA, Márcia (org). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p.73.
44
lhe faltarem bons ouvintes, ou por serem lembranças muito difíceis de acionar, porque
dolorosas.
Seu Damião construiu a memória da seca enfrentada no município de Nova
Russas através de sensações, texturas: “Não, não dava de ficar não que a seca foi feroz. As
palhas de milho dava pra enrolar cigarro”. O ano de 1942 foi um ano marcado por mais uma
grande seca cearense e com isso retirantes migraram para diversos destinos. Nas terras
herdadas por seu pai estava difícil manter a sobrevivência. A fala dele demonstra que a
decisão de migrar não é peremptória; antes disso, as possibilidades de se manter no lugar de
origem se esgotam, a longa espera pelo inverno que não chega: “De três em três dias, de
quatro em quatro dias matando um animal, tá é longe de passar o verão lá. Aí o papai
arribou para cá”.
A matança dos animais nesses intervalos curtos e durante a travessia
emocionaram Seu Damião, uma vez que a criação de gado tem um significado dentro da
cultura rural; o agricultor com o fruto de seu trabalho e negociações conquistou algumas
cabeças. Criar bodes, ovelhas, cabras, vacas, gado cavalar e galináceos é uma pequena
melhoria de vida que as estiagens vão aos poucos engolindo; um rebanho razoável poderia se
acabar em questão de dias.
Seu Cosme narrou de forma semelhante como era a vida no Ceará. Desde muito
cedo as crianças já trabalhavam em roçados, pescavam, ou praticavam alguma atividade
extrativista:
Apanhando algodão nos pés de serra do Ceará. Era tão pequeno que quando chegava
pra puxar um pé de algodão maior que não podia puxar, vinha uma pessoa grande
derrubava e a gente apanhava o algodão até acabar aquele, aí vinha tombar outro,
procurar outro pra gente ficar... Que de um é de algodão só dava pra gente trabalhar
de manhã pra meio dia79.
79
COSME Feitosa da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 18.01.2018 na cidade de
Teresina-PI.
45
80
HARRITS, HARNBERG. Op. Cit., p.30.
81
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p.
74.
82
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
46
Nesta fala de Dona Ana destacamos alguns pontos importantes. Primeiro como
vai se montando a rede familiar de relações que continuam mantêm a conexão aberta entre
todos os membros; este primeiro grupo que se deslocou para o Piauí se instalou, ampliou suas
redes de relações e através dessa via aberta de comunicação fomentou a expectativa em torno
do possível deslocamento dos membros que ficaram. Em suma, o peso da decisão de migrar é
partilhado entre todos, os que ficam e os que vão, porque aí estão entremeados todos os
futuros.
A maneira como Dona Ana evoca este passado com “orgulho do pai cearense”
remete à preservação da cultura tradicional na família, que não se esgarça com os
deslocamentos. Por ser o último a vir, o pai dela estabeleceu essa ideia de origem que não
deve ser olvidada e perpassou para a geração seguinte. Dona Ana não descola as lembranças
do pai da sua trajetória pessoal; ela também significa os vestígios dessa cultura.
A espacialidade para os narradores também é um ponto importante da história.
Nem todos se recordam exatamente de qual localidade vieram dentro dos municípios
cearenses, mas todas perpassam pela categoria de “interior”. Assim é explicada esta categoria
de espaço por Dona Cristina: “É... um interior do Ceará, num tem? Um interiorzinho, viu?
Porque tem a cidade e tem os interior da pessoa morar”83. Ela não se lembrou exatamente de
qual localidade partiu em Sobral, por volta de 1955, mas conseguiu delimitá-la neste termo. A
construção da entrevista de maneira mútua permite entender aos poucos significados próprios
da cultura rural. Algo semelhante acontece quando pedimos esclarecimento a Seu Isídio sobre
as localidades onde morou em José de Freitas, já no Piauí. Povoado ou interior? “Interior!” ele
nos conserta em tom exortativo. Buscando entender melhor como se desenham estas
espacialidades rurais para os nossos narradores, entendemos que as fronteiras políticas nem
sempre coincidem com as fronteiras imaginárias, já que cidades, interiores, povoados, vão
mudando de nome, metamorfoseando-se em outros lugares; “é uma categoria que se situa na
metade do caminho entre ficção e realidade”84.
É destas fronteiras fluídas de Sertão que partiram os pais de Seu Paulo, pai de
Sobral e mãe de Tianguá, por volta de 1932. Esquecimentos também marcam a fala de Seu
Domingos, que não se recordou quando os pais vieram do Ceará, nem quando. Neste tipo de
investigação sobre trajetórias migrantes é válido estabelecer uma linha do tempo do narrador
em função da sua data de nascimento e a dos pais, mediatizando uma temporalidade
83
CRISTINA, 2017.
84
LEONARDI, Victor. Entre Árvores e Esquecimentos: História Social nos sertões do Brasil. Brasília:
Paralelo 15 Editores,1996, p.310.
47
específica. Para as que estão aqui apresentadas, as famílias vivenciaram períodos esvaziadores
do campo.
Para estes migrantes, a condição da seca impossibilitou viver no Ceará. A seca é
uma realidade com a qual o sertanejo se resignava a cada ano, estabelecida como o dia 19 de
março85. Consideramos que os dizeres de Dona Ana sintetizam as razões pelas quais as
famílias de Seu Cosme e Seu Damião, Seu Paulo, Seu Domingos e Dona Cristina migraram,
ao mesmo tempo em que demonstra o principal motivo que qualificou o Piauí como destino
plausível:
Olha, quando foi na era de 32,42,45 era seca de botar os cearenses tudinho pra
viajar, tem cearense no mundo todo, porque lá é uma terra boa, mas num chovia.
Mas num chovia, tinha muita seca, e aqui não tinha... Sempre choveu, sempre tinha
água... O que trouxeram eles [os parentes] pra cá foi do chover, porque senão eles
nunca tinham vindo, Ceará era terra boa, minha mãe morreu falando que o Ceará era
terra boa86.
O “senão” dito por Dona Ana diz respeito à própria ideia do Piauí como destino
migratório. Um Estado vizinho pobre, com dificuldades de abastecimento interno, pouco se
integrando no mercado nacional, geração de empregos limitados. O elemento água em maior
quantidade seja na forma de lagos, rios, açudes, ou se caracterizando com invernos mais
chuvosos ou períodos de estiagens menos desastrosas atraiu estas famílias, que buscam todas
as melhorias de vida que a abundância de água oferece. Mas esta procura não era o único
motivo pelos quais, em períodos de secas calamitosas, pessoas migravam para continuar
vivendo na condição de camponeses. Questões familiares e desejos por terras melhores
ditavam também os porquês de sair.
85
Dia de São José, até esta data são esperadas chuvas, caso não acontecesse, era decretada oficialmente a seca no
Ceará
86
ANA, 2018.
48
Rapaz, nós num viemos num foi por visto de seca não, nós viemos porque a minha
mãe mais meu avô, o pai dela, veio embora pra cá, e o meu avô era cego e aleijado”
(..). “A mamãe tinha um terreno, mas era misturado, era dividido... Ela trabalhava
num terreno, num pagava renda, mas não morava no terreno 87.
O papai fez uma roça lá, ai nós fizemos a roça ai não deu legume né? Deu uma praga
de milho numa espiguinha pequeninha, ai o papai chamou o homem pensando que
ele ia dar o milho pra ele, pra dar pras galinhas, aí homem pegou uma espiga pra
90
uma, pra uma, uma pra outra, uma pra outra, fez como a música do Luiz Gonzaga ,
até que ficou num jacá ai eu... já tava sabidim né? Eu fiquei invocado e vou embora,
vou roubar minha idade e vou-me embora pro Rio de Janeiro91.
87
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2016, na cidade de
Teresina-PI.
88
Interessante perceber como o nome da localidade inspirou o nome do filho mostrando que a família mantivera
laços de identidade fortes com a comunidade.
89
GARCIA JR, Afrânio. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983, p.116.
90
A referência à música a Triste Partida, com letra composta por Patativa do Assaré e cantada por Luís Gonzaga,
evoca as cenas de tristeza próprias das situações difíceis agravadas com a seca, no caso, a má colheita do milho
resultou na parca divisão, onde se subtraindo a parte do proprietário, ainda teve que ser divida entre todos da
unidade familiar.
91
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
49
Vou pedir aí fui logo... Abestado, não sabia de nada, pedi logo um tio meu pra tirar
meus documentos, como maior de idade com 18 anos. Aí foi, ele contou pro papai aí
o papai se invocou ficou assim imaginando. Aí eu já tinha dito a ele: “papai, vamos
caçar um lugar pra nós morar porque aqui não dá não”93.
92
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011, p.177.
93
MANOEL, 2017.
50
Tem um terreno de meu avô aí, mas não servia é ruim de trabalhar, nós não tem
condição de nada, acabemos tudo em 1952. Em 1951 nós acabemos tudo que tinha:
animal, gado, tudo, tudo, tudo, ficou tudo sem nada, o objeto que ficou foi uma
cabra, assim mesmo o papai adoeceu eu matei pra ele comer e vendi o couro pra
comprar de remédio pra ele. Aí, o papai se invocou e pediu um dinheirinho velho
que eu tinha escondido, ele disse: “Tu tá escondido”. Eu era o mais velho, quem
trabalhava pra dar de comer pra eles, os mais novos que o papai vivia muito
adoentado aí eu era quem trabalhava94.
Do pouco que tinha juntado, o filho ainda teve que entregar para suportar os
apertos. Os primeiros de que se livraram foram os animais. Nessas condições, mantiveram-se
até migrarem em 1954, para além da seca, em busca de uma vida melhor.
Nesta fala, percebemos uma marca importante da narrativa. É exatamente a
demarcação do momento em que se insere outro diálogo lembrado da memória. Em outros
momentos, o rememorar de diálogos inteiros, às vezes, acontece sem demarcações, na
velocidade que as lembranças vão escoando na entrevista, ao sabor das provocações do
entrevistador.
No caso de Seu Manoel, a baixa produção se torna mais parca ainda com a
obrigatoriedade do pagamento em renda, legitimando a perspectiva de migração para a família
diante da impossibilidade de sobrevivência naquela localidade.
Um elemento comum entre estas narrativas é o membro que na família sugere a
saída, num discurso de convencimento para migrar. Em determinadas ocasiões, as gerações
seguintes vão se “arranjando” construindo matrimônio e tendo filhos, saindo de casa, primeiro
e indo morarem em outros lugares. O esvaziamento da casa é prejudicial para a família
campesina. Quando filhos migram, sejam solteiros ou casados, indo trabalhar em grandes
cidades e integrando parte da economia doméstica, há uma grande perda no rendimento da
terra, para trabalhadores rurais que vivem de contratos verbais, sejam parceiros, meeiros ou
agregados. Menos mão de obra, as obtenções dos meios de vida tornam-se seriamente
comprometidas, não apenas nas roças, mas em outras atividades básicas de uma economia
94
MANOEL, 2017.
51
familiar, mesmo quando no extrativismo. Alguns sofriam mais com a solidão e em breve
fome; o mau trabalhador, a viúva, o doente, o inepto. Cândido, em sua análise do município
de Bofete, pôde constatar a presença da fome por vários motivos, em sistemas de trabalho
semelhantes ao caso estudado.
É o caso, por exemplo, do parceiro ou sitiante que foi obrigado a gastar mais
semente do que esperava, e alimenta a família apenas de arroz, ou apenas de feijão,
até que venha a colheita. É o caso, ainda, do parceiro que chegou atrasado para o
início do ano agrícola e obtém colheita insuficiente. É o caso, também, do lavrador
que tem muitos filhos pequenos e conta com pouco auxílio da mulher na lavoura,
95
conseguindo dificilmente o necessário para rações mínimas e afinal insatisfatórias .
Mas logo lhe veio a lembrança dos pais, tão velhinhos, que tudo esperavam dele;
evocou o que seria o desamparo da fazenda, vazia de seu esforço; o gado
abandoando, tudo paralisado e morto; e pensou no seu isolamento na terra
longínqua, no vácuo doloroso de afeições em que se iria debater o seu coração
96
exilado .
Esta razão é encontrada também na fala de Dona Antônia Portela, que saiu da
localidade Corno, no interior do município de Crateús, para viver em Teresina, em 1954. As
terras eram do pai. A família vivia de roça e criação de animais. Por que migrar? O chamado
para morar em Teresina veio de um filho que se casou e trabalhou desde sempre na cidade. A
experiência de trabalho na cidade e a melhoria de vida atraíram os irmãos de Dona Antônia, e
ela mesma, já casada. A fala dela também sintetiza um dos motivos de migração que se
costura nos testemunhos orais de todos os narradores:
95
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.157.
96
QUEIROZ, Raquel. O Quinze. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 105.ed.2016, p. 54.
97
ANTÔNIA Portela de Sousa. Entrevista concedida ao Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.02.2018 na cidade de
Teresina-PI.
52
tia. Mas se as redes de solidariedade no seu “plano” já estavam articuladas para que a fuga
desse certo, seu pai também se mobilizou para garantir que as suas expectativas em relação à
migração não fossem quebradas. Assim, quando a notícia da fuga “pôs nos ouvidos do papai,
ele deu um jeitinho veio aqui pro Piauí... com 15 dias ele chegou lá (...) ‘Meu filho nós vamos
embora’, aí eu fiquei assim imaginando, Rapaz num vou não, embora logo pro Piauí”98.
Mesmo desconfiando da ideia a migração aconteceu. Nestes 15 dias o pai de Seu
Manoel planejou toda a vinda da família. Chegava a hora de enfrentar a travessia.
98
MANOEL, 2018.
99
FONTES, Paulo. “Terra de Nordestinos”: História oral e experiências de migrantes em São Miguel Paulista na
década de 1950. In: MAGALHÃES, Valéria Barbosa de (org). História oral e migrações: Método, memória,
experiências. São Paulo: Letra e Voz, 2017, p.88.
53
seco e quase sem chuva, com duração de cinco a oito meses, e verão chuvoso, com quatro a
sete meses de precipitações pluviais, irregulares no tempo e no espaço”100.
A realidade vivenciada pelos cearenses moldaram as expectativas projetadas para
os destinos escolhidos pelas famílias. No contraponto das imagens que se tornavam caóticas
na seca, despontava a espacialidade de EntreRios101, um espaço delineado por estes
narradores, que buscam em seus municípios melhorias de vida, considerando prováveis
relações de trabalho mais instigantes e favorável obtenção dos meios de vida. O mapa a seguir
evidencia que elementos importantes podem ter alimentado os desejos dos migrantes:
─ Territórios EntreRios
percorrido pelos narradores
FONTE: Deus,A.C.B.(adaptado)
100
AB’SÁBER, Aziz Nacib. Dossiê Nordeste Seco. Estudos Avançados, São Paulo, 13(36), 1999, p. 10.
101
O território ora abordado não é consoante com o Projeto Político de EntreRios pensado para a região do
Médio Parnaíba, proposto pelo PLANAP, e por outras instituições de pesquisa como a fundação CEPRO
(Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí).
55
O caráter litúrgico é passagem para uma nova vida, não tão diferente, posto que
camponeses migrem para continuarem camponeses, mas que ainda assim gera no imaginário
desejos de vida melhor. É sacrificial porque não são migrações do tipo “bate-volta”, onde uma
parte da família migra em busca de trabalho e retorna para o lugar, mas uma migração que se
pretende definitiva, mesmo considerando a possiblidade de retorno, quando nenhuma
daquelas expectativas em relação ao novo lugar são atendidas.
O sentimento é de desgarramento, de esperança e ao mesmo tempo de medo.
Estas impressões estão imbricadas na memória de Dona Antônia ao contar como foi a vinda
de Crateús para Teresina:
Dona Antônia: pegamos o tremem Crateús, viemos pra cá, era um mar de fogo
queimando a gente você lembra?
Lia: diga aí como era andar num trem. Entrar num trem sabendo que estava indo
embora de casa...
Dona Antônia: tocar no mundo, sem saber da vida o que vai viver né? Num é bom
não. Comoção ruim, a gente e pega uma comoção doida...queimada, queima roupa,
queima tudo... Mas era o jeito nós num tinha outro transporte. 103
As impressões táteis dessa viagem que ocorreu em 1954 ainda permanecem vivas
na memória de Dona Antônia porque é o seu ritual de passagem. Neste ponto é importante o
102
MARTINS. José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. 2ªed. São Paulo:
Contexto, 2014 ,p.11.
103
Estrada de ferro que percorria as cidades de Crateús, São Luís e Teresina.
56
caráter dialógico da entrevista, onde as perguntas funcionam como provocações para que
essas lembranças sensoriais venham à tona. Migrar é viver, mas também tem algo de
deambulante, ainda que as rotas migratórias estejam traçadas, o que espera é sempre uma
surpresa.
As caminhadas a pé até a terra desejada acentuavam este caráter, renovando mais
ainda as esperanças ao finalmente alcançar o destino. A fala de Dona Cristina evidencia bem
isso:
Por causa da precisão, vinha embora tocando jumento e comendo coisa velha no
caminho. Comendo jatobá, chegava nos pezão de jatobá derrubava e enchia os
bolsos, e botava nos braços e roía, porque vinha precisado de fome. Tocando
jumento. E era muitos dias de viagem, ai na hora que chegava no interior criava
outras asas viu? Porque olha o coco logo.104
A fala de Dona Cristina é permeada de ideias e imagens que nos fazem captar a
sua sensibilidade ao avistar os babaçuais característicos da região Meio Norte. Na divisa entre
o Maranhão e o Piauí predomina a vegetação de transição entre Cerrado piauiense e a Mata
dos Cocais.
Quanto aos tipos de vegetação original e ao regime dos rios, pode-se reconhecer
novas diferenças. No Meio Norte ocorrem os decantados cocais de babaçu
(Maranhão), e os palmares de carnaúba, no Piauí, e os cerrados, contrastando com a
caatinga do sertão semiárido105.
104
CRISTINA, 2017.
105
FERREIRA, Jurandyr Pires; FAISSOL, Speridião; Dyrno Pires Ferreira, et al. Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros: Maranhão e Piauí. III Volume. Rio de Janeiro: 1BGE, 1957, p 23.
106
THOMSON, Alistair. Histórias (co) movedoras: História Oral e estudos de migração. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 22, nº44. 2002, p.349.
57
pontos de paradas, barracões, pousos e fazendas que acolhiam as famílias após as caminhadas
exaustivas, permitindo que se restaurassem para a trajetória do dia seguinte. Podiam ser
carona em boleias de caminhões, previamente acordadas pelos pais ou conseguidas
aleatoriamente na beira da estrada. Viajar com grupos variados permite também dividir cargas
e crianças em lombo de burros e bois, criações eram tocadas para alimentação no caminho ou
para servir de permuta por outro alimento necessário; estes traços de sociabilidades presentes
na travessia foram bem pontuais para que a chegada até o município de Altos se tornasse
possível, revelado na fala de Seu Manoel:
Manoel: Nós fomos deixados num povoado que tem que chamam de Pacujá, aí ficou
ali eu vim deixar os animais alheio que era alheio os animais, aí voltei cheguemos lá
pegamos o carro quando deu 9 horas. Nós estávamos pertinho de Sobral lá no
Aprazível… aí nós descemos do carro, ficamos lá esperando. Aí chegou um
caminhoneiro da Paraíba, aí papai jogou nós tudinho viemos pra cá… dia 29 de
setembro de 1954 (…). Aí nós chegamos aqui em Altos 11 horas da noite…aí
chegamos, papai falou lá com uma velha, arranjou um barracão, deitou todo mundo,
dormiu no chão…
Lia: Aonde?
Manoel: Lá em Altos... Aí quando o dia amanheceu papai procurou uma casa duma
velha lá que ele tinha, conhecida dele, de vista, quando ele veio pra cá, e agente
ficou lá… quando foi no dia 4 de outubro nós cheguemos lá no interior pra onde nós
viemos107.
Com estas palavras, Seu Manoel exemplifica o quanto estas redes de relações
eram vitais para que o processo migratório acontecesse, contribuindo para a fixação do
trabalhador e sua família na nova espacialidade. Essa construção identitária, conforme
veremos, gravita em torno de relações de trabalho definidoras dos caminhos no EntreRios, ora
legitimando as expectativas da mudança, ora criando as ideias de novas migrações.
107
MANOEL, 2018.
58
3 VIVER NO ENTRERIOS
108
SOUSA, Ramsés E. P. M. “Uma reforma agrária de baixo para cima”: as Ligas Camponesas e o
questionamento do Latifúndio em Teresina. In: XXVII Simpósio Nacional de História, Anais Eletrônicos...,
ANPUH, Natal,2013.
59
esta aparente passividade mais uma vez é posta em xeque quando negociações pré-acordadas
falham, prejudicando a sobrevivência da família.
As falas demonstram que por motivos variados, o núcleo familiar se tornava
vulnerável, sejam pelo isolamento de outros parentes, obrigatoriedade do pagamento de renda
mesmo diante de más colheitas, uma produção além do esperado que desperta a cobiça do
patrão, episódios esporádicos de enfrentamento direto na forma de ações.
Tais razões motivaram aquelas pessoas a reorganizar seus projetos de vida e
engajarem-se em novos deslocamentos no interior do EntreRios ou de volta para o Ceará,
tentando atender suas expectativas e reconstruir suas redes de solidariedade.
Nesse percurso de diálogos, percebemos que certas significações ganham corpo e
adquiriram um peso simbólico, como, por exemplo, “a fartura” para o trabalhador rural, o “ir
além da expectativa” da produção para sobrevivência. A memória se revela não apenas como
depositário de lembranças, mas se renova e adquire potência à medida que os velhos restituem
sua função de repassar experiências para as gerações mais novas.
109
As cooperativas se iniciaram no ano de 1937 apenas em 3 municípios piauienses com 23 campos e em 1939já
constavam 127 campos em 13 municípios. Os produtos exportados eram de origem extrativista, tais como a cera
da carnaúba e o babaçu, cultivados (arroz, milho e mandioca), e de origem animal (couro e peles), além do
estímulo à fruticultura, principalmente plantações de citrus. FONTE: Piauí. Interventor, 1940, Leônidas de
Castro Melo. Relatório apresentado ao Exmo Snr. Presidente da República pelo Interventor Leônidas de Castro
Melo em 1940. Teresina: Imprensa Oficial, 1940.
60
110
Piauí. Interventor, 1940, Leônidas de Castro Melo. Relatório apresentado ao Exmo Snr. Presidente da
República pelo Interventor Leônidas de Castro Melo em 1940. Teresina: Imprensa Oficial, 1940.
61
111
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Memória cronológica, histórica e corográfica da Província do
Piauí. Teresina: COMEPI, 1981, p. 82-83.
112
Para mais informações sobre José Martins Pereira de Alencastre e sua trajetória historiográfica, ver SOUZA,
Paulo Gutemberg de Carvalho. História e identidade: as narrativas da piauiensidade. Dissertação (Mestrado em
História do Brasil) – Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2008.
62
113
A obra de Raimundo N. Monteiro de Santana se entrelaça com sua trajetória profissional, como assessor e
secretário-executivo da Comissão de Desenvolvimento Econômico do Governo do Estado do Piauí, criada em
1956. O contexto da elaboração, calcado na necessidade do planejamento para promoção de desenvolvimento do
Estado, refletiu a necessidade de uma nova interpretação da formação e situação das regiões a fim de possibilitar
uma discussão e formulação de políticas públicas.
114
QUEIROZ, Teresinha. Economia Piauiense: da pecuária ao extrativismo. Teresina: EDUFPI, 2006, p.31-50.
63
no caso de Celso Furtado e Caio Prado Jr, autores, respectivamente, de Formação Econômica
do Brasil e História Econômica do Brasil, leituras que deixaram suas marcas também na
historiografia piauiense. Voltadas para o exercício de compreensão da complexidade da
economia brasileira, tais interpretações convergem para um ponto em comum:
(...) devem, antes, ser tratadas como elementos importantes para a articulação de
forças sociais que operam no desenho da sociedade, que contribuem para movê-la
em determinadas direções.115.
115
BOTELHO, André. Prefácio. In: RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São
Paulo: Alameda, 2011, p.15.
116
RICUPERO, Bernardo. Ibidem, p.141.
64
Por outro lado, o Antonino conta histórias mal assombradas, de homens em guerra
que por ali aparecem de quinta para sexta, com bandeiras vermelhas à frente do
Exército. Que cavalgam córceis fogosos em cujas testas reluzem estrelas vermelhas.
Ora também Antonino lamenta a sua miséria de homem da roça. Só uma vez, pelas
mãos de um turista, veio às suas uma coruja de quinhentos bagos. No mais, tem sido
de miséria em miséria a sua miserável vida de lavrador. Ajunta todas as rendas de
sua colheita, para trocá-las, no mercado da cidade, por bagatelas, bugigangas e
ninharias117.
3.2 Construindo redes de solidariedade – “no interior toda terra tem patrão”
Um trabalhador livre que mora nas terras do proprietário, mas que não faz parte da
família nem do quadro de trabalhadores, estabelecendo com o proprietário uma
relação de trabalho na qual cultiva as terras mediante acordos pré-fixados, como por
exemplo, dar alguns dias de trabalho ao dono das terras ou mesmo uma parte de sua
produção como pagamento em troca da utilização das terras. Por meio desses
acordos, esses trabalhadores conseguem uma oportunidade de trabalho e
subsistência. Em suma, o agregado é uma pessoa livre, residindo em domicílio de
terceiros que fornece mão-de-obra em troca de um pagamento não-salarial.118
117
ROTEIRO DAS SETE CIDADES.In: Jornal Opinião, Teresina, julho de 1954. Local de guarda: Arquivo
Público Casa Anísio Brito.
118
MACHADO, Marina. Agregado. In: MOTTA, Márcia. Op. Cit., p.20.
65
O fato de ser mão de obra livre não elimina o caráter espoliativo desse tipo de
relação de trabalho. Como bem pontua D. Cristina, em uma de suas falas, “no interior, toda
terra tem patrão”. A relação de trabalho que se estabelece, por ser “de boca”, está sujeita às
alterações que podem vir a prejudicar o agricultor, mas não esgotam rigidez e cobrança.
Devido ao parco uso da palavra escrita, os “testemunhos na voz assumiam um estatuto de
verdade e perenidade como os contratos orais de meação e as dívidas nos armazéns, embora
sujeitos à dialética da realidade”119.
O pedido de morada mediado por um parente submete o trabalhador a aceitar não
apenas um trabalho, mas um conjunto de regras “interiorizadas por ambos, agregado e
fazendeiro, fundado numa oposição inconciliável entre duas formas de trabalho e que só uma
forma de dominação específica pode conciliar”120. Na obra memorialista “O Casarão do
Olho D’Água dos Azevedos”, é perceptível como ocorre essa forma de dominação: “Na
fazenda se via de tudo, em contato direto com o povo bom que serve a gente e com a própria
natureza, que dá suavidade, leveza, tranquilidade e poupa o corre-corre das grandes
cidades”121.
Esta descrição no livro aparece após o tópico denominado “Criadagem”.
Descrevendo os empegados da casa em sua maioria descendente de escravos, remetendo à
herança colonial, a autora Maria Francisca Azevedo julga natural a subordinação do “povo”.
Ela evoca o coletivo para falar dos trabalhadores rurais como se fosse uma massa homogênea
conformada com o viver no campo, em contraste aos flashs de progresso das grandes cidades.
A “natureza” para ela, própria destas pessoas que são fruto da desagregação de
mão de obra escrava naquela região, é servir, atestando uma das características da exploração
deste tipo de trabalho, o controle dos movimentos, “entendido como seu deslocamento pelo
espaço da fazenda, e seu tempo social, mesmo quando ele não incide a atividade
produtiva”122. Em suma, estes trabalhadores estavam sempre à disposição do fazendeiro.
Na interface deste conjunto de regras que delimitavam o raio de ação dos
trabalhadores rurais, estavam as estratégias de sobrevivência implícitas nos conjuntos e
práticas comuns nas fazendas. Quando o migrante chega e se estabelece nas terras onde algum
119
SANTANA Charles d’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia
1950-1980. São Paulo: Annablume, p.108.
120
MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra: a lógica costumeira e judicial dos processos de
expulsão e invasão da terra camponesa no sertão de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1988, p.81.
121
AZEVEDO, Maria Francisca. O Casarão do Olho d’Água dos Azevedos. 2ª edição. Teresina: COMEPI,
1992, p.92.
122
MOURA, Margarida Maria. Op. Cit., p.82.
66
membro da família havia indicado, começa a construir sua rede de sociais tão caras para a
obtenção dos meios de vida.
Geralmente, as famílias residiam próximas umas às outras, com o devido cercado,
para que as criações não se misturassem; dessa forma, pontilhamos os fundamentos desse
sistema de pagamento e seus limites, pois ao agricultor pobre não era dado o direito de
“enriquecer”, no sentido de acúmulo de produção para outros objetivos que não o comércio,
comumente realizado em armazéns que também pertenciam aos proprietários.
Não era permitida a construção de casas de tijolos, apenas de barro e teto de
palha; e, em alguns casos, somente de taipa, assim como era proibido, também, plantar
árvores frutíferas. Portanto, eram negados elementos de fixação efetiva naquele espaço. A
expectativa de gerar um excedente que possa ser tranquilamente armazenado dá lugar à
habitual característica desta relação de trabalho, a gradual espoliação do trabalhador pelo
sujeito dominante, privando-o de projetar anseios para além do necessário.
O sistema de “quartas por linha” era o predominante no pagamento de renda, e
variava com relação à quantidade de quartas que era paga ao proprietário no final da colheita
e quanto aos tipos de culturas que eram cultivadas, podendo variar entre milho, arroz ou outro
cereal. O camponês produzia junto com a sua família. Retirava uma parte para o pagamento
de renda, a parte que restava tinha dois destinos: alimentação própria e geração de excedentes,
necessários para a compra de artigos e produtos, cuja feitura pela família era impossível.
Assim, o pai conseguia na venda do excedente dinheiro necessário para a compra de roupas,
calçados, cigarro, fósforos e carne, onde, dependendo do grau de intimidade ou “créditos” do
agricultor com o proprietário, poderia ser vendido “fiado”.
A maior parte dessas negociações e cobranças de renda, bem como outros
serviços de fiscalização, era realizada pelos “encarregados”, uma vez que esses patrões não
eram somente fazendeiros, mas exerciam outras ocupações. Seu Damião lembra bem do dono
das primeiras terras onde morou em Matões (Miguel Alves). Antônio Gomes de Sousa, que,
além de fazendeiro, era comerciante de tecidos e cereais. Seu Manoel, que viera com a família
primeiramente para o município de Altos, conta que se instalou na propriedade São Mateus,
posse de Antônio Doca, que era “proprietário, fazendeiro, naquela época ele era ainda até
delegado” 123. Seu Isídio recobra o nome de seu patrão no povoado Harvre de Graça, ainda no
123
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
67
124
Observamos aqui uma provável confusão dos sobrenomes. O referido proprietário provavelmente tem algum
parentesco com o General Jacob Gayoso e Almendra, que além de advogado era latifundiário e proprietário da
fazenda Meruoca, em José de Freitas. Consideramos que a extensão das propriedades extrapolava as fronteiras
dos municípios.
125
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2016 na cidade de
Teresina-PI.
126
Para conferir quadro comparativo, ver NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida. Oligarquia Pires Ferreira:
família e poder político no Piauí (1889-1920). Teresina: Academia Piauiense de letras, 2016, p.33-34.
127
DAMIÃO Feitosa da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.08.2016 na cidade de
Teresina-PI.
128
CRISTINA Frota. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de Miguel
Alves-PI.
68
Seu Isídio, que morou em dois “interiores”, como ele mesmo nos corrigiu várias
vezes para evitar chamar “povoado”, Cadoz e Harvre de Graça, situados no mesmo município
de José de Freitas, também nos explicou a matemática do sistema de quartas por linhas:
(...) era separado, a roça de arroz era um a renda, e a de milho era outra (...) o tanto
que você pagava da renda de milho como pagava de arroz, duas quartas 129 de renda.
Era linha! De cada linha você tinha que tirar duas quartas. E se tivesse quatro linha
de roça de arroz você pagava 8 quarta de arroz... se você tivesse quatro linha pra
milho e mandioca, você pagava 8 quarta também...era assim. Cada linha você tinha
de pagar duas quarta... pois é, também foi só ai... num morei em outro lugar, foi só
esse...trabalhando direto, de roça(..)130
Manoel: Nós fazia o seguinte: quando dava sábado, papai liberava nós pra quebrar
coco, pra vender pra ir da festa. Era... Aí nós aprendemos a quebrar coco... quebrava
12 pratos, 15 pratos.
Lia: O que você ganhava era seu ou para a família?
Manoel: Era ali era nosso, nós ia vender lá na casa do patrão. Nós vendia aí ficava
132
com aquele dinheiro pra nós.
Nesta fala percebemos o controle exercido pelo patrão por toda a produção
comercializada pelo agregado e sua família. O dinheiro da venda do coco proporcionava
momentos de lazer para os jovens lavradores, em festas onde o patrão aparecia, pagava
bebidas e arrematava em leilões, cultivando relações de compadrio que consistiam numa
forma expressiva de sociabilidade na cultura rural. A ideia era de proteção, mas ao mesmo
tempo de controle social, conforme percebemos na fala de Seu Manoel:
Manoel: Nós era (sic) 20 rapaz solteiro na vizinhança, quando dava o dono do
terreno, o filho do velho do dono do terreno, quando dava sábado ele juntava aquela
rapaziada todinha. “Quem é que tem dinheiro? Quem é que não tem? quem tem
129
Uma quarta equivale aproximadamente a 60kg, no caso duas quartas seriam 120 kg. FONTE; “médias e pesos
de nosso meio rural, disponível em: http://www.sfimoveis.com.br/site/conteudo.php?tc=5.
130
ISÍDIO, 2016.
131
ISÍDIO, 2016.
132
MANOEL, 2017.
69
dinheiro? Quem não tem?” Aí aqueles que não tinha ele levava pra festa aí chegava
lá ele pagava a conta de todo mundo.
Lia: Aqueles que não tinham?
Manoel: Aqueles que não tinham.
Lia: Ele levava vocês pra festa?
Manoel: Nós ia todo mundo junto, todo mundo junto, também tinha uma vantagem,
ninguém mexia um com o outro não. Um de fora assim de outro bairro fosse mexer
já estava era com a turma do Saco133.
Ainda hoje mantém o respeito com que meus avós acostumaram os moradores da
fazenda. A responsabilidade dos patrões por eles, na doença e na morte, continua
como no tempo antigo e eles cumprem o dever de trabalhar para o patrão quando
solicitada e dentro de sua circunstância, paga sua diária e pelo preço atual; (...)
vender a safra para os patrões pelo preço corrente não podendo retirar seus produtos
134
para vender a outros proprietários .
133
Consideramos que o nome faz referência à Serra do Saco, localizada na região Sudoeste de José de Freitas.
MANOEL, 2017.
134
AZEVEDO.Maria Francisca. Op. Cit., p.21.
135
Em “A invenção das tradições” Eric Hobsbawn aponta que o termo “tradição inventada” é utilizado num
sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e
formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período
70
limitado e determinado do tempo ─às vezes poucos anos apenas─ e se estabelecem com enorme rapidez.
HOBSBAWN,Eric. RANGER, Terence (orgs). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.p.9.
136
CRISTINA, 2017.
137
SCOTT, James. A dominação e a arte da resistência. Discursos Ocultos. Lisboa: Livraria Letra Livre,
Plebeu Gabinete de Leitura, 2013.
71
O discurso público, portanto, tem uma natureza incompleta, onde sua análise
unicamente levará a uma interpretação superficial de que patrões e trabalhadores entendem-se
através de uma rede de mentiras e enganações, bem como interpretar que os subordinados
aceitam passivamente essas relações de forças. O discurso público, realizado tanto pelas elites
quanto pelos subordinados é o visível, e diz respeito ao conjunto de gestos, práticas,
comportamentos que previnem o cumprimento de regras pré-estabelecidas “de cima”, ou seja,
práticas que gravitam em torno do que as elites normatizam.
Já o termo discurso oculto é usado
Para caracterizar o discurso que “tem lugar nos bastidores”, fora do campo de
observação direta dos detentores do poder. O discurso oculto é, pois, conotativo no
sentido em que consiste em enunciados, gestos e práticas que, tendo lugar fora de
cena, confirmam, contraditam ou infletem aquilo que aparece no discurso público 140.
138
SCOTT, James. Op. Cit., p.18.
139
Idem, p.28.
140
Ibidem, p.31.
141
MENEZES. Marilda Aparecida de. Op. Cit., p.53.
72
Antônio Gomes de Sousa. “Ele não implicava com nada, tô (sic) dizendo, o velho era mesmo
que ser meu pai, amigo do papai”, amizade essa que rendia boas concessões: “nós trabalhava
onde queria”. Uma relação de trabalho promissora após longos instantes de fome.
O patrão reforçava uma ideia de paternidade através de práticas e de gestos
mesmo em situações que aparentavam exigir dele cautela mediante sua desautorização frente
a outros moradores. Seu Damião conta que ao final do ano se algum morador não conseguisse
pagar a renda aí “o homem não queria renda não: ‘rapaz não deu nada fica por nada’, ele era
bom. Ele tinha a história: não deu nada e fica por nada. Agora nós pagava todos os anos a
renda dele, feijão, milho, arroz, muita farinha, muita goma”. Em contrapartida, a “boa
vontade do patrão” era inversamente proporcional a quanto mais tempo o agricultor
demorasse para pagar a renda. Mas se demorasse mais de um ano:
Ele dizia: “Rapaz você não serve, não me serve eu nem lhe sirvo, você caia fora, vá
embora, procure um lugar pra você passar sem pagar a renda, eu não tenho esse
terreno não, de você trabalhar e não pagar renda posso não, tem que pagar os
impostos e tirar a correia do couro”. Ele alegava tanta coisa, que o terreno dava
muita despesa, que os impostos eram baratinhos, mas tempo era caro demais142.
142
DAMIÃO, 2017.
73
Antônio Gomes pra lá tinha rixa, muita rixa, muita raiva de nós porque a nossa
lavoura era grande, fazia 350 quartas de farinha e 150 de goma, 120, Antônio
Gomes não podia comprar, liberava pra nós vender no Armazém do velho Gervásio
Costa... Ele comprava 10 cargas de farinha, três de goma, feijão, arroz, farinha...
levava tudo pra lá...
O fato de o pai de Seu Damião ter a opção de vender sua produção para outro
comerciante revoltava seu patrão. Lembremo-nos do trecho inicial da obra memorialista O
Casarão. Nos contratos verbais entre patrões e agregados, em regras implícitas ou não, era
negada a permissão de venda para outro fazendeiro, mas nos costumes próprios do meio rural
armazenar a produção quando se precisa do seu valor monetário para outras coisas não
funciona. O proprietário via nessa prática de venda para outros uma fuga do seu controle.
Talvez essa rixa fosse incrementada por algo de cunho pessoal entre os dois comerciantes, que
desconhecemos, ou o fato da possibilidade de estocar ser permitida apenas para o proprietário,
mas a tensão existia ao se quebrar um círculo de compromisso com os moradores que
produziam e vendiam para o patrão. Não concluir essa etapa final era um desvio caro.
Enquanto no Ceará, mesmo a terra sendo da família de Damião, a produção era
parca, no Piauí, ele conseguiu fazer fartura a ponto de despertar ressentimentos do patrão, que
reagia por não ter outro meio de explorá-lo ainda mais.
A própria estrutura comercial das pequenas cidades no EntreRios, que podemos
dizer constituíam-se em manchas urbanas, rodeadas de uma extensa zona rural, era tímida.
Sobre isso, o coronel Pedro Freitas, importante expoente do patriciado rural parnaibano,
comenta em entrevista concedida a Manuel Domingos Neto a respeito da estrutura comercial
da cidade de Livramento no início do século:
Manoel Domingos: E além de carne, tinha sempre arroz, feijão, farinha para vender?
Coronel: Tinha! Meu Pai, na Casa Almendra, tinha grandes caixões para depósito
de cereais para vender depois. Comprava na safra para vender no varejo, depois,
para o pessoal da cidade do interior que quisesse comprar. Em pratos e litros. Não
tinha feira. Foi ter prédio mesmo de feira de 1920 a 1924. Antônio de Freitas, meu
irmão, eleito prefeito, fez o prédio da feira143.
143
DOMINGOS NETO, Manoel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale
do Parnaíba. São Paulo: Annablume, 2010, p.120.
74
Vemos mais uma vez o tratamento paternal dos patrões, que envolve a todos numa
“grande família”: iam à festa juntos, bebiam juntos, e até testemunharam seus galanteios pela
vizinhança. Bem diferente do que aconteceu no Ceará onde Seu Manoel, ainda rapazote,
diante da famigerada divisão de parca renda, resolve ir embora. O ato de “roubar a idade” e ir
para o Sul foi interpretado pelo pai como momento máximo; ali o discurso oculto ganha força
no gesto de Seu Manoel, e se significa mais na sua tentativa de fazer tudo escondido.
Importante salientar que para os patrões, o aparente desleixo com a representação é
justificado, pois “o poder significar não ter de representar, ou, mais precisamente ter a
possibilidade de ser mais negligente ou informal em qualquer representação particular”145.
Em 1962, já casado, Seu Manoel encara um novo projeto: ser vaqueiro. O
casamento gerava uma nova organização de vida e era algo necessário na vida do sertanejo.
Em seus estudos sobre a comunidade de Bofete, Antônio Cândido assim considera:
Casar é na verdade necessário não apenas dentro das condições de trabalho, como
das de vida sexual que prevalecem no meio rural. Sem companheira, o lavrador
pobre não tem satisfação do sexo, nem auxílio na lavoura, nem alimentação regular.
Em princípio, os dois últimos problemas não se colocam enquanto os pais vivem,
pois a solidariedade familiar os remedeia e a mãe faz as vezes da mulher
economicamente requerida. Mas considerando que os pais acabam antes dos filhos,
é necessário a estes tomar estado e assumir iniciativa econômica. 146
144
MANOEL, 2017.
145
SCOTT, James. Op. Cit., p. 62.
146
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.230.
147
MOURA. Margarida Maria. Op. Cit., p.82
75
O trabalho com o gado impedia que Seu Manoel voltasse a botar roçados como
antigamente, mesmo com as filhas e a mulher ajudando, não era o suficiente. Mas a profissão
de gado lhe renderia surpresas. Ele nos contou episódio de quando o patrão contratou um
empregado gaúcho que chegou lá “com frescura”, e opinou no serviço do outro, gerando
animosidade e antipatia. Seu Manuel julgou que o outro funcionário queria prejudicar suas
possibilidades de ganho junto ao patrão. A peleja ficou séria e Seu Manoel invocou uma
ameaça:
Um dia eu estava conversando com o meu patrão, aí ele chegou “a conversa aqui é
pra nós três”, aí eu “rapaz nós estamos conversando aqui é sobre os bicho, num é
sobre outra coisa não, que aqui num tem frescura de roubo, aqui não tem frescura de
nada, aqui o negócio aqui comigo é honesto... o pior homem que tem na Teresina
passa de mês aqui mais eu aqui, brincando com minhas filhas, vai deixar no colégio,
vai buscar, e chega, vai pro rio pescar de anzol, vai pedir peixe aos meninos, e você
não é ele não, digo” o Correia Lima é pior de que você”... e o Correia Lima é
acostumado passar esse tempo aqui de mês aqui, de semana aqui, e num tem
frescura não, quando eu dou fé o Correia Lima chega no carro, esconde o carro dele,
fica escondido aí dentro das casas, ninguém sabe, procura pelo Correia Lima se ele
passou aqui assim, em Demerval Lobão assim, despencando assim no rumo de
Beneditinos na beira do rio148....
A ameaça era real. O homem a quem ele se refere e com quem estabelece contatos
de compadrio se trata de José Viriato Correia Lima, natural de Iguatu-CE, oficial da Polícia
Militar do Piauí e chefiou durante muitos anos o crime organizado no Estado, em um esquema
que estendia influência sobre os mais diversos funcionários do governo coordenando diversos
crimes, mas o filão mais rico era o desvio de verbas públicas. Correia Lima só foi investigado
e preso em 1999, mas a sua fama se espraiou por vários municípios de Ceará, Maranhão e
Piauí.
Seu Manoel se apropriou do mito (a má fama da referida autoridade), ancorado
nas suas práticas ilícitas para enfrentar seus desafetos. Fato este aparentemente ignorado pelo
forasteiro que desavisado, não sabia que estava pelejando com alguém que hospedava em sua
casa o maior bandido de todas as redondezas. Isso faz de Seu Manoel uma pessoa de má
índole? Não, mesmo. Conforme insiste Scott149: “A relação entre as elites dominantes e os
subordinados é, mais do que qualquer outra coisa, uma luta material em que ambas as partes
procuram constantemente detectar fragilidades e explorar pequenas vantagens”.
Correia Lima tirava vantagem de seu prestígio pessoal para se esconder nos
interiores das cidades limítrofes à Teresina, mas Seu Manoel também extraía dessa relação
perigosa seu prestígio que lhe permitia usá-lo como escudo em momentos oportunos. Tal
148
MANOEL, 2017.
149
SCOTT, James. Op. Cit., p.254.
76
prática também se configura como arte da resistência, e faz parte daquilo que Scott chama
infrapolítica150, é a luta discreta de todos os dias dos grupos subordinados; são as táticas e
estratégias sutis que assim se fazem em função da prudência diante do equilíbrio do poder.
Este é o respaldo que faz com que Seu Manoel conserve a sua dignidade mesmo diante da sua
aparente cumplicidade com o policial criminoso.
Mas tudo sofreu um grande risco de ir por água abaixo. Seu Manoel conta um
pouco do que o empregado gaúcho fazia e lhe provocava revolta, “quase ia dando em morte
porque ele iria matar aquele filho duma égua”:
Ele pegava e aproveitava os bichos que morriam - eu não, coitava, morria uma
novilha de vaca, ou com fome ou de qualquer coisa, morria uma ovelha, morria um
bode- já aproveitava, aquele animal que morria ele aproveitava, ele não vendia lá pra
nós porque a gente sabia que aquele animal tinha morrido, e eu pegava aqueles
animais quando eu estava sozinho lá mais meu filhos, e outras pessoas, nós arrastava
pro mato pros urubus comer. E ele não, trazia era pro Planalto pra vender151.
Foi que os patrões era só dizendo “Gabriel tá rico”... “eu vou derrubar a Igreja do
Gabriel”... a Igreja, pra quem não entende, era botar pra fora...aí meu pai sabia das
charadas, meu pai “pois eu vou me embora de lá, vou sair de lá”, por que meu pai
tinha legume, meu pai tinha criação a valer nós passava muito bem, aí ele saiu da
terra deles, mas eles já morreram esses caras lá, o homem e a mulher já morreram,
não tão mais vivos não...153
150
Idem, p. 253
151
MANOEL, 2017.
152
Personagem da cultura portuguesa e brasileira, caracterizado como muito esperto, astucioso e cínico.
153
CRISTINA, 2017.
77
154
SCOTT, James. Op. Cit., p.43.
155
HARRIES, P. Work. Culture and Identity: Migrant Laborers in Mozambique and South Africa, c.1860-1910.
Portsmouth: Heinemann, Johannnesburg: Witwatersrand University Press, 1994, p. 223 apud MENEZES. Op.
Cit., p.53.
78
cachorro156 era entendida como a passagem das ameaças simbólicas para físicas. A ausência
de contratos judiciais deixa o trabalhador em uma situação de vulnerabilidade, conforme o
ocorrido na família de Seu Paulo, que tinha terras próprias em Miguel Alves, porém “teve que
vender”:
Ana: No tempo das rendas, os empregados funcionários faltava esganar o dono, meu
pai ficava tranquilo. Por que ele tinha paciência.
Lia: E por que os outros tinham vontade de esganar o dono?
Ana: Por que o dono não conhecia queria às vezes mais do que os que ele ganhava!
Do que eles faziam na roça. Ás vezes eles queriam aquele tanto que não tinha dado,
e eles não queriam dar, por que ficavam quase sem nada né. Aí não tinham assim, aí
ficavam batendo boca e meu pai tranquilo, depois meu pai chamava ele e dizia “Ó,
deu tanto e tanto, e só posso lhe dar tanto”, pronto! Que agente recebe as coisas,
resolve as coisas é no amor.159
156
MOURA. Margarida Maria Op. Cit., p.103.
157
PAULO Furtado de Melo. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de
Miguel Alves-PI.
158
SCOTT, James. Op. Cit., p.171.
159
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida em 25.01.2018 na cidade de Teresina-PI, grifo nosso.
79
A paciência e a obediência para ela eram as estratégias de seu pai (“era uma
pessoa que não tinha malquerença com ninguém, nunca caçou conversa com ninguém, o
patrão gostava muito dele”)160 para não se indispor com os patrões. Sua postura não era de
passividade, mas de alguém que defendia as renegociações com os ânimos acalmados. O
motivo das reinvindicações era partilhado por todos os trabalhadores daquela localidade,
inclusive o pai de dona Ana:
Tem gente que não tem paciência né? Aí muitos não tinham paciência assim. Ele
não entendia, por que ele nasceu e se criou na cidade, estudado, lá sabia o que diabo
era renda nem nada, o que ficou que era dono? Quem sabia era quem trabalhava, o
que tinha dado ali pra ele basear pra poder dar… Só que muitos não tinha aquele
acordo de conversar de dizer “olhe deu tanto, tanto, eu não posse lhe dar o tanto que
você quer” por que é bom você receber uma coisa já só no ponto ,né? Livre de tudo,
aí às vezes tinha contenda, mas com meu pai não 161.
160
ANA, 2018.
161
ANA, 2018.
162
ROCHA, Cristiana Costa da. Narrativas dos sentidos, desejos e imaginação sobre o direito à posse de terras.
In: ROCHA, Cristiana Costa da; FERRERAS, Norberto O; FERREIRA, Márcia Milena Galdez (orgs.).
Histórias Sociais do Trabalho: usos da terra, controle e resistência. São Luís: Café &Lápis; Editora UEMA,
2015, p. 28.
80
entraram, destruíram, restando apenas uma capoeira de mandioca, atacada por vacas.
Reproduzimos aqui a fala do narrador sobre o desfecho desse acontecimento:
Cuma foi? Menina, é porque eu passei os pés diante das mãos... (...) Muita raiva, e
passei os pés diante das mãos… deixei uma vaca estirada dentro da roça, veio nas
cargas, saiu da roça, de dentro da roça, nas carga...(..) por causa dessa vaca nós
andemos um bocado de... fizeram chafurdar meu juízo bastante. Ainda troquei
palavra com o encarregado, diabo, aí quando o dono soube... Acabaram...
Protestando.... Aí ele disse, que vinha representado um morador no terreno dele, que
eu era operário dele, meu irmão, ele só...eu trabalhava no campo porque eu queria
trabalhar, não desobedecia a ordem, mode que (sic) a nossa ordem de trabalhar era
quando ele mandava chamar... Nós trabalhava na profissão do que ele precisava.163
Ela comeu a roça não foi só de um não... Era muito gado que tinha dentro da roça ...
Eu fui botar pra fora, e ai eu abri a porteira da roça, o gado passou três vezes
olhando assim pra porteira da roça e não saía... ai eu endoidei de raiva!!! Dentro da
roça... Endoidei aí...ganhei o mundo... Atrás do gado... Onde eu encostei num cortei
pipoca não... Deixei de coto... As duas pernas cortada... foi...as duas perna cortada...
aí eu endoidei... dentro da roça...164
Vemos que Seu Isídio justificou o seu ato alegando que o gado não comeu apenas
a sua roça; um bom ponto, para ganhar apoio dos outros moradores. Ainda assim, o discurso
oculto é declarado abertamente, e o ato de cortar as pernas das vacas é a explosão diante da
impotência que já vinha de antes. A raiva é um sentimento que leva a uma resposta motora,
difícil de conter em um cenário de exploração, e é minimamente atenuada nos discursos fora
de cena, nas conversas secretas com outros moradores. O que aconteceu com Seu Isídio pode
ser interpretado como uma recusa a manter as aparências hegemônicas ─ não, ele não
permitiria mais que animais de outra pessoa destruíssem a sua roça, da qual estava tirando
cada vez menos rendimento. Ainda que o sentimento de afronta estivesse direcionado para as
vacas que pastavam sem a menor noção de pertença, sabemos que o risco de cadeia que o
narrador sofreu se deu porque o dono do gado foi tomar satisfação.
163
ISÍDIO, 2016.
164
ISÍDIO, 2016.
81
Quando fala da maneira como o caso foi resolvido, Seu Isídio delega
primeiramente a Jesus, porque “Jesus é poderoso, num tem quem possa com ele não”.
Sabemos, pela sua narrativa, que ele não trabalhava exatamente de roça, mas na “profissão”
que o patrão precisasse, ou seja, em qualquer função que ele lhe exigisse. Isto foi utilizado
com argumento pelo patrão, que era juiz, para liberar seu empregado do quiproquó, além do
seguinte argumento: “olha meu gado é preso, o gado que eu tenho aqui é preso, não come
roça de ninguém, nem de morador de ninguém, pode o gado dos outros invadir a roça do meu
próprio morador?” Este é um bom ponto para elucidar aspectos da economia moral
camponesa.
A dignidade e a autonomia são valores honrosos que são colocados a toda prova
na vida do sertanejo. Na luta eterna dos discursos públicos de dominantes e de subordinados,
estes valores se traduzem em práticas e costumes que são compartilhados e configuram uma
cultura de sobrevivência entre os pobres, regras e códigos comungados sem os quais é difícil
manter-se. “Viver na Terra é conformar-se com os desígnios de Deus”165, mas na justiça dos
homens Deus se faz carne, e quando o produto do trabalho sofrido é destruído, indiretamente
por culpa da expropriação, abre-se espaço para a loucura; a loucura de ousar levantar-se voz e
“perder as estribeiras”. Mas Seu Isídio, mesmo com o caso resolvido, sente a iminência do
perigo, e realiza novo deslocamento com a família, desta vez para Teresina. Neste caso, o
apoio do patrão não eliminou a apreensão, as necessidades se reformularam.
A cultura enquanto elemento de sobrevivência se desdobra em diversos aspectos,
outro aspecto relevante nas entrevistas e que guardam semelhanças entre si diz respeito à
maneira como se fala de escassez e fartura. Tais aspectos foram pinçados das narrativas e não
têm tanta relação com ordem de perguntas, mas tão somente através da observação
percebemos que algumas características se repetem. Este é o objetivo do próximo tópico.
Dá milho, feijão
165
GARCIA JR., Afrânio Raul. Terra de trabalho. Trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1983, p.94.
82
Ahh, mas nós não tinha seca não... Foi ter seca (no Piauí)167 em 51 e 2 e 3, foi três
anos de seca mas papai já tinha morrido, ele morre em 48, nós quase enrica nesse
tempo, farinha deu dinheiro monstro) (...) nós vendemos carga de farinha de 80 real,
nesse tempo era mil reis, 80 mil reis, 100 cargas de farinha por 8, era um conto de
166
“A vida sertaneja”, Poema de Antônio Batista Guedes, poeta e cantador popular, disponível em CASCUDO,
Luís da Câmara. História de vaqueiros e cantadores para jovens. São Paulo: Global, 2015.
167
Grifo nosso.
83
reis, 800 mil reis, nós fizemos uma farinhada grande em 51, em 52 nós vendemos
todinha no Novo Nilo... deu muita renda pra nós.168.
Seu Damião: vendia a produção, com dois anos de seca, 52 e 53, nós tinha paiol de
farinha que e encostava em cima da palha não sei como não queimava, encostando
em cima da paia, paiol como daqui naquela parede...feito de cimento, fazia aqueles
paredão de cimento... acabar forrava com esteira de palha de carnaúba e jogava
farinha... feito na massa do cimento... ai nos só vendia quando dava pra nós, quando
não dava, não vendia...
Lia: da outra vez você me disse que vocês até começaram a criar gado... mas você
falou que gado comprado com dinheiro de farinha torrada....
Seu Damião: deu pra trás, não era pra ir pra frente não.... nós compramos dez
novilhas de vaca, com dinheiro de goma ai foi mais feliz, o meu avô que dizia que
tudo q eh comprado com farinha por que a massa é torrada, não tem progresso
nenhum...meu avô sempre dizia isso,...
Lia: mas era a troca direta de farinha por gado, revendia pra poder comprar?
168
DAMIÃO, 2017.
169
Um engenho rústico, acionado pela roda, impulsionada por dois homens, que fica a alguns metros de
distância, unida por uma imensa correia, utilizado para triturar as mandiocas já descascadas.
84
Seu Damião: nós revendia e comprava com o dinheiro, mas era apurado de
farinha...é mais feliz quando é apurado com goma e algodão...o milho também era
bom ...mas a farinha não 170.
FONTE: CODESE. Estatísticas Básicas- União. 1968. Local de guarda: Arquivo Público “Casa Anísio Brito.
170
DAMIÃO, 2017.
171
CODESE (Comissão de Desenvolvimento Econômico).
85
172
DAMIÃO, 2016.
173
SANTANA,Charles d’Almeida. Op. Cit., p. 42.
86
Cristina: nós fazia a nossa rocinha era pequena, e uma linha, linha e meia. Uma linha
era uma carga, que é dois, chamavam nesse tempo paneiro viu? Dois paneiros que é
pra ser a carga. Levava no animal, uma paneiro de um lado e outro do outro. Ai ele
deixava pro dois, que era linha e meia, nós não podia fazer grande não que era
mulher.
Lia: Mas vocês, mulheres, você conseguiam tirar muita coisa da sua posse?
Cristina: É, as coisinhas que dava nós tirava tudinho. Nós tirava nosso feijãozinho,
nosso arrozinho, quando o milho secava nós quebrava pra dar pras galinhazinhas,
dar pra uma porca, e ai nós, dava nosso arrozinho ali pra ir comendo, debulhava
nosso feijãozinho pra ir comendo. Não dava muito não, mas nós comia até acabar
pra poder comprar, quando não tinha mais nós ia comprar.
menos fugazes. Entretanto, alguns dos nossos entrevistados não conseguiram integrar em suas
histórias pessoais alguns detalhes da vida de seus pais em solo cearense. Mas com júbilo
lembram-se do trabalho paterno que durante muitos anos guiou seus trabalhos na roça já no
Piauí.
Mas mesmo essas memórias sobre lida no campo, os medos, os causos, as
anedotas, correm o risco de serem esquecidas para sempre. A era da informação desmotiva as
pessoas a se tornarem bons ouvintes, e aqueles que seriam os responsáveis por fornecer bons
conselhos e orientar o grupo na experiência da vida já não o fazem mais; são antes de tudo
“incômodos”. Para alguns as doenças lhes roubaram a capacidade de lembrar, falhas na
memória. Ao passo que para outros um projeto de vida próprio ainda sustenta sua importância
no grupo e um remédio contra os danos do tempo. Não raro em nossas entrevistas os
mediadores eram os filhos que ora auxiliavam no “contar histórias”, ora entravam de supetão
desconfiados174, e até meio surpresos, quando os velhos começavam a narrar fatos
desconhecidos.
O que está se perdendo? Nesse jogo de esquecimento e lembrança, a memória
precisa ser exercitada, contada e (re)contada, caso contrário vestígios de rememorações não
conseguem mais compor as narrativas.
Para chegar até a casa de Seu Domingos no município de União, precisamos da
mediação de uma neta dele, e sua amiga colega de trabalho. A maneira calorosa como nos
recebeu, já nos conduzindo para o interior da casa, nos chamou atenção para a possiblidade
de ele ter treinado sua fala. Ali, iam-se desenhando cartografias de histórias e memórias. Seus
gestos, trejeitos, as pausas nas falas, sua apresentação entusiasmada de um banner
confeccionado com o objetivo de compor uma árvore genealógica da família, tudo revelava
que a sua falta de estudos no passado foi recompensada com o dom de conversar com os
outros, conforme ele mesmo atesta:
Eu tenho orgulho, que tem pessoas que tem vergonha de dizer, mas eu não tenho,
porque eu digo agora, sou analfabeto, mas tenho a família alfabetizada… e aprendi
algum gesto, de andar, de coisa graças a Deus através da minha necessidade grande
de ter contato, de conversa com as pessoas (...) 175.
Como foi anunciada nossa vinda? Certamente, a ideia de entrevista que Seu
Domingos tinha o fez ter consciência da mediação entre pesquisador e escrita, com
174
O anúncio da entrevista foi previamente combinado com um mediador, às vezes um membro da família que
explicou brevemente de que se tratava, e depois o encontro com o entrevistado ocorria, geralmente na casa dele.
175
DOMINGOS Gomes da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2018 na cidade
de União-PI.
88
A entrevista de campo, por conseguinte, não pode criar uma igualdade que não
existe, mas ela pede por isso. A entrevista levanta em ambas as partes uma
consciência da necessidade por mais igualdade a fim de alcançar maior abertura nas
comunicações. Do mesmo modo que a hierarquia desigual de poder na sociedade
cria barreiras entre pesquisadores e o conhecimento que buscam, o poder será uma
questão central levantada, implícita ou explicitamente, em cada encontro entre o
pesquisador e o informante.176
Aos poucos, após a conversa começar a ser gravada percebemos que o suporte da
narrativa de Seu Domingos é a riqueza de detalhes, além disso, suas evocações estão repletas
de marcos de oralidade, tão caras, e sublimes, como só as boas histórias conseguem manter,
tal qual a maneira como ele demarca o tempo, quando interrogado a respeito de detalhes da
vida no Ceará: “não lembro porque era coisas de antepassados... meu avô era até cego,
quando chegou aqui que botou que trabalhou… meu avô era José e minha avó era Teresa…
mas não conheci, eles morreram a muitos e muito anos”.
A experiência mais importante para Seu Domingos é a odisseia de sua família
quando esta se firma em União, onde ele nasceu, e tendo no Amazonas o lugar que selaria o
destino das gerações vindouras. É também através deste que se desnudam elementos de uma
cultura tradicional, conservadora e profundamente eivada de elementos de sobrevivência, que
remodelam as necessidades ao sabor das mudanças circunstanciais.
Para entender como pensar a importância desta cultura tradicional destes sujeitos,
refletindo o mesmo incômodo de Thomson ao aprofundar seu contexto, para o qual
recomenda cautela:
Mesmo assim, não podemos esquecer que “cultura” é um termo emaranhado que, ao
reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode n verdade confundir ou
ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e
176
PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento de
igualdade. In: Projeto História. São Paulo (14) fev. de 1997, p.10.
89
examinar com mais cuidado seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos
da hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o
desenvolvimento dos costumes sob formas historicamente específicas das relações
sociais e de trabalho177.
Estes atenuantes nos são úteis para evitar generalizações como as incutidas nas
expressões “homem do campo”, bem como no próprio entendimento sobre as condições que
geram a pobreza, para o qual Thomson alerta acerca das desculpas de classe. Ou seja, as
táticas e estratégias do sujeito ordinário não encontram função e quando reconhecidas são
sinônimo de atraso, destruindo a autoridade dos mais velhos e esgotando o significado e a
importância de conhecimentos transmitidos de geração para geração. Entretanto, para Seu
Domingos contar histórias é apenas um aspecto das sociabilidades necessárias para viver no
campo e para ele não significa atraso, mas é uma virtude, que legitima seu poder de
transmissão de conhecimento dentro das famílias.
Entre recortes de temporalidades distintas, lembrando sempre com louvor que seu
aniversário de 82 anos está próximo e será comemorado em Manaus, Seu Domingos nos
relata um passado próspero que ele teve no Maranhão. Enquanto a família vivia de roça em
União, o pai e o avô de Seu Domingos trabalhavam no Amazonas, no extrativismo da
borracha. Com a morte do avô, o pai, José Amândio da Costa, veio embora em 1913, trazendo
consigo dinheiro suficiente (“três contos e pouco”) para construir uma casa de alvenaria.
Segundo ele, “meu pai veio embora em 1913 na tentativa de voltar para o
Amazonas, mas não voltou mais”. Casou-se, nasceram os filhos, a mãe adoeceu, e diante da
vulnerabilidade da família José Amândio foi ficando. Em 1955, Seu Domingos já rapaz
migrou junto com sua família para Caxias, cidade maranhense situada a 134km de União,
porque estavam enfrentando uma situação “aperriadíssima”. Vejamos um trecho:
177
THOMSON, Alistair. Op. Cit., p.22.
90
nós tinha assim uma inteligência de trabalho de tudo que eu quando me casei, me
casei com a filha do meu patrão, nós era agregado, nesse tempo, o morador de
qualquer propriedade, na década de 50, no interior, (…) aí então o morador nessas
épocas era útil era um tipo de escravidão.178
Nós fizemos umas roças maiores, e gastamos algumas coisas, fizemos paiol de
legumes (...) logo lá eu comprei um pedacinho de terra encostado... a minha é
desabitada porque é distante de água, fiz um açude mas só tem água no verão, é 4
km de onde é a minha propriedade pra onde é a propriedade do meu sogro. 179
Na fazenda Água Boa, sugestivo nome de regiões férteis do sertão, ele conseguiu
prosperar, comprar terra, “botava trabalhador pra trabalhar”, não pagava renda devido ao seu
matrimônio. A preocupação de Seu Domingos era outra; “o povo vivia com fome”. Em uma
região aparentemente tão próspera, por que fome? A reposta é dada pelo próprio narrador:
Seu Domingos: Uma diária era o valor de 1 quilo de carne, acho que o senhor 180 já
ouviu falar e sabe disso, uma diária pelo menos, era trocada por legumes, era 3
pratos, naquele tempo. 3 pratos, 3 e meio por dia de serviço. Hoje eu tenho um
trabalhador bem aqui. Hoje ele já tomou café, ele tem uma merenda, ele tem um
almoço. Pago 40 reais. Mas ele, pode deixar lá no serviço que ele faz. 40 reais
compra 20 quilos de arroz pilado. Que antigamente era mais se cobrasse três quilos,
o valor de uma diária era 1 kg de carne, hoje o valor de uma mão de vaca aqui é 8
reais, com uma diária dessas você compra 5 kg. O feijão era um preço absurdo, por
que o povo aqui , tinha um dizer, que aqui não dava feijão. Agora aí, o feijão a maior
parte era comprado do feijãozão vermelho que vinha do Ceará.
Lia: por que o povo não plantava?
Seu Domingos: O povo era preguiçoso.
A fome neste caso tem ligação com indisponibilidade terras para plantar os
gêneros mais importantes para a alimentação dos trabalhadores rurais, destinados às
178
DOMINGOS, 2018.
179
DOMINGOS, 2018.
180
A referência se faz ao mediador da entrevista que faz as vezes de interlocutor a quem o narrador se dirige para
confirmar informações ou temporalidades correspondentes entre ambos.
91
plantações de outras culturas. O feijão é um desses gêneros que garante junto a outros
elementos o equilíbrio da dieta.
O feijão dentre esses produtos se apresenta como uma cultura “fácil de plantar” e
cultivar, mas não nos enganemos. O solo precisa de técnica de manejo adequado, e talvez seja
pobre de nutrientes necessários, fatos desconhecidos para os trabalhadores de Caxias, mas
traduzidos na sua crença de que a terra não dava feijão. Para Seu Domingos, o povo era
“preguiçoso”.
Dois termos nos chamam atenção nesta justificativa; o termo “povo” num uso
consciente de sua coletividade e homogeneidade, para dar conta da forma das “massas” de
desprovidos e sem grandes expectativas, do ponto de vista de alguém que não está em
paridade de poder (no caso Seu Domingos, que já não era mais agregado, mas fazia parte da
família tornando-se proprietário), e apontar a preguiça como fator de improdutividade do
feijão. Esta fala demonstra a sua mudança na forma de ver o outro, agora de um patrão que
cobra serviço de seus empregados, mesmo diante das adversidades, encaixando-se numa ótica
de progresso que interpretava a quantidade e a maneira de produzir daqueles trabalhadores
como insatisfatória. Ainda assim, valores distintos podem acolher uma solidariedade vicinal:
É o que Seu Domingos revelou posteriormente em sua fala, contando como ele e
sua esposa acolhiam os trabalhadores, que mesmo subordinados a ele conquistaram alguns
ganhos que beneficiaram ao grupo como um todo:
181
CASTRO, Josué de. Op.Cit. p.173.
182
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.83.
183
Grifo nosso.
92
serviço que o povo trabalhava pra mim. A troco de serviço eu comprei moinho de
moer milho, o povo tinha vezes que saía pra trabalhar, você pode acreditar, verdade!
Com condição do jeito que levantava, sem tomar nada. E em casa quando ele
chegava cedo, e tinha aqueles que morava perto, que gostava de comer, vinha pra o
moinho. Tinha umas vacas, que quando comecei a viver lá comprei logo, que eu ia
tirar o leite e ele ia moer aquele milho, os trabalhadores quando vinha que nós saía
pra roça já tinha tomado café. Naquele tempo fazia aquele cuscuz, não era como
hoje fazia na cuzcuzeira, era um pano que botava com aquela coisa de fazer cuscuz,
a mulher tinha aquele coisa que botava, que o pai dela era cearense, era homem
trabalhador, e eles lá trabalhavam homens e mulheres. Fazia às vezes quando era
muito trabalhador botava era num quibanho 184, o senhor sabe o que é um
quibanho.185
ZÉ NOVECENTOS: Esse apelido ele veio de muito tempo a família toda né? E aí
então, começou por que a minha tataravó, bisavó? É? Que é a mãe do meu avô? Ela
era cearense. E ele chegou aí no município de José de Freitas em 900. (1900). E aí
ela trazia outros filhos maiores, depois ela teve esse último que era meu avô, neh?
Na era do 900…e aí ela muito pobre…
LIA: Ela veio morar em José de Freitas já nos 900?
ZÉ NOVECENTOS: É. Não diretamente em José de Freitas mas no município de
José de Freitas.
LIA: E ela era de onde, natural do Ceará de qual município?
ZÉ NOVECENTOS: Eu não sei minha filha. Eu não sei da onde era lá do Ceará que
ela era não. Certo que ela pobrezinha, não tinha nada, e o menino amanheceu
atentando um dia pra comer, e ela disse assim: “Eu não aguento mais, vou matar” e
aí ela…
LIA: Ela tinha quantos filhos?
ZÉ NOVECENTOS: Ela tinha uns 5, era 4, aí depois nasceu ele.. lá no município d
José de Freitas que ele é daqui…aí certo que ela disse que ia matar. Aí pegou pelo
pé e saiu andando com ele no meio da Baixa pra jogar dentro duma moita de tucum
que ela, num tinha coragem de matar com um pau assim uma coisa, aí ia jogar pra lá
pra morrer né. Aí o bichinho chorando, e o dono do terreno andavam olhando os
bicho dele de manhã, isso oito horas, oito e meia, aí escutou o choro do menino né?
Aí se aproximou, quando ele chegou lá ele vai jogando ele dentro da moita, ele deu
Um grito, ela parou, aí disse assim: “Parece que ia jogar o menino dentro da moita!
Ela disse: “É!”; “Mas por que você ia fazer isso?” porque ele amanheceu me
atentando pra dar de comer pra ele e eu não tenho nada, então eu vou jogar ele pra lá
184
Objeto arredondado feito de palha da palmeira, geralmente usado para catar/escolha e secar arroz.
185
DOMINGOS, 2018.
93
pra ele morrer pra lá! Aí ele disse: “Não, não faça isso não, não faça isso não…me
dê o e menino pra mim que eu levo pra mim! Aí ela disse: “Então pegue! Que eu
não quero mais nem ver! Pode levar pra la!” Cearense é bicho doido, neh! Muitos
deles… Aí deu um menino pra ele, ele andava com uns mocó, um no cela outro em
outro, aí botou ele num mocó daqueles ele ficou só com a carinha do lado de
fora…ai montou mundo saiu com ele gritando…chegou lá ele deu leite, ele era rico.
LIA: Ele era o que, fazendeiro?
ZÉ NOVECENTOS: Era fazendeiro, dono da propriedade lá…e aí ele criou o
menino! Dois meses o menino estava chato de gordo! Passando bem, né? Aí disse eu
vou mandar batizar agora. Caçar os padrinhos…e aí caçou os padrinhos e levou pra
José de Freitas. Aí quando chegou lá o padre perguntou que nome ele queria que
botasse nele. Disse “É, o nome dele é Domingos da Costa”. Aí o padre botou o
nome dele Domingos da Costa. Aí ele foi-se embora com os padrinhos e o menino ,
chegando lá perguntaram: “Como é o nome?” Disse “é Domingos da Costa, mas não
quero que chame nem sonhando…eu quero que chame é Novecentos. O nome dele é
Novecentos.” E assim ficou. Por que tinha acontecido aquele caso, né? Andou perto
de morrer, por que a mãe dele ia matar ele mesmo. Aí… ficou! Cresceu, casou, os
filhos “é filho do novecentos”… Antonio, José , Domingos… num tinha um que não
era Novecentos186.
A bisavó de Seu Zé migrou para o Piauí buscando melhorias de vida para si e para
os filhos, mas as condições para viver na região não estavam melhores e ela não quis ou não
pode voltar para o Ceará. Sobre o ano de 1900 no Piauí. O Coronel Pedro Freitas conta suas
impressões daquele cenário desolador ao historiador Manuel Domingos Neto:
A seca de 1900 foi uma seca muito forte. Os dois açudes que existem lá, um do lado
do nascente, a três quilômetros da cidade; o outro, do lado do poente, a uns quatro
quilômetros, que não secavam, na seca de 1900, todos dois secaram. Agora, o olho
d’água da cidade, que fica a uns quinhentos metros da igreja, esse olho d’água
mantinha a água a quase um quilômetro de distância. Meu pai era prefeito, toda
semana ia com dois homens e percorria o canal, que entupia e a água não dava até lá
em baixo. Então, os proprietários, que tinham gado bebendo nos açudes, puxavam
esse gado todo para um banho. Agora, no lago, tinha água, mas não tinha mais
comida. A mortandade de gado foi tão grande que o povo dizia: os urubus, para
irem de uma carniça para outra, não precisam voar, vão caminhando187.
Cenários como esse devem ter afligido a bisavó de Seu Zé, ao ver que a pobreza
não se restringia ao perímetro cearense, pois a migração não correspondeu à expectativa de
melhora. O episódio de salvação do menino ficaria eternizado pelo nome daquele início de
século macabro. Em seu nome José Domingos, o Zé Novecentos, ficou cravada uma primeira
lição de miséria, repassada de pai para filho. Este é um exemplo onde a vontade de lembrar
este acontecimento foi mais importante e mais forte que as poeiras do tempo. A narrativa de
Seu Zé Novecentos não foi arquitetada para ser um discurso fantasioso, com certeza existem
lacunas a respeito da vida que a avó distante tivera ainda em solo cearense. Observamos que
186
JOSÉ Domingos da Costa. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 26.01.2018 na cidade de
Teresina-PI.
187
NETO, Manuel Domingos. Op.Cit, p.116, grifo nosso.
94
provavelmente os nossos narradores a partir da década de 1940 fizeram o mesmo trajeto que a
bisavó de Seu Zé rumo ao Piauí.
Há um risco que ronda a memória dos velhos; a perda da importância para o
grupo, as “faculdades” que só se sustentam mediante algum projeto de vida. Quando as
experiências são (re) contadas, a importância se renova: “os feitos abstratos, as palavras dos
homens importantes só se revertem de significado para o velho e para a criança quando
traduzidos por uma grandeza na vida cotidiana” 188.
Esta grandeza da vida cotidiana foi experimentada por Seu Manoel, em um
curioso episódio ocorrido com seu neto que havia ingressado no Exército:
Ainda hoje eu estava falando aqui mais uma rapaz aqui...Tem um neto meu que
sentou praça, foram pra Beneditinos uma turma danada lá, foi fazer exercício pra
banda de lá. Aí ele saiu com um colega dele quando chegou lá na frente, que...
“Rapaz tô com sede, o cantil já secou” o outro disse; “o meu também”. Aí andando
por dentro dos matos, que eles andavam fazendo trabalho né, aí ele achou um olho
d’água lá, disse “olha aqui, cara! um olho d’água aqui, tá beleza! Dá pra gente
banhar e beber água. Disse; “aqui é de gente apanhar água”, aí bebeu, aí mais pra
frente acharam um poço onde o pessoal banhava, aí banharam, disse: “agora eu vou
sonho”, disse “agora eu vou tirar um palmito pra mim comer”, disse “tu é doido é?
Diabo de palmito é esse?” disse; “palmito de tucum”. Disse “e como é que tira esse
bicho de espinho , rapaz?”, “tira, meu avô me ensinou a tirar...” Aí tirou um palmito
assim, ele tirou com um facão, aí descascou bem descascado , aí disse; “tu quer?”,
“rapaz isso aí vai matar a gente “, “rum, tu num quer eu vou comer, eu tô com
fome”. Aí, partiu bem no meio, aí ele chegou provou disse: “Viii rapaz”... com
pouco o tenente chegou atrás deles; “Vocês tão comendo o que , menino? Que a
gente tá lascado de fome e não sabemos nem onde é que tá?” “Palmito de tucum” .
Aí o tenente foi e provou, disse “rapaz já ouvi falar em palmito de tucum” , comeu,
o menino tirou outro disse “Aaa bichinho, tu não morre de fome no mato não , né?”
disse , “se eu andar com a minha arma, isso aqui foi meu avô que amolou meu facão
bem amolado pra mim”...trabalhava aqui, aí chegou cm um facão, mandou amolar
digo “pra onde é que tu vai levar esse facão?” disse; “eu vou porque eu vou andar no
mato e tem que ser é cortando”...Aí o tenente disse, rapaz, pois é bom da gente
viver, mandou tirar 4 palmito pra mulher dele aqui em Teresina...Aí é como eu tô
dizendo, aqui num dava pra ninguém morrer de fome não. Eu que não gostava como
nunca gostei...189
Curiosa a maneira de falar de seu Manoel, sua narrativa não tem muito gestual
como de seu Domingos, mas nada que não possa ser recompensado com lembranças ricas de
diálogos inteiros, mesmo quando não esteve presente. As fabulações expressam seu júbilo de
ter ajudado o neto, como conhecimentos aparentemente simplórios, mas bastante
significativos em situações de sobrevivência experienciados por ele e pelo neto,
demonstrando que os saberes sertanejos ainda têm destaque no grupo familiar.
188
BOSI, Ecléa. Op. Cit., p.74.
189
MANOEL, 2018.
95
Como finaliza nesta fala, “num dava pra ninguém morrer de fome não”, numa
referência à fartura que poderia oferecer a terra piauiense em detrimento do Ceará, mas
apenas para quem estivesse disposto e encontrasse condições favoráveis para o trabalho. A
matéria linguística utilizada por Seu Manoel, a repetição de diálogos inteiros, revela uma
demarcação de território seguro do discurso ora em forma de música (“A Triste Partida”, de
Luís Gonzaga), ora em curiosas comparações (“o velho era metido a chifre de bode, chifre de
carneiro190”). Na família, ele é exemplo de ensinamentos.
A vida no EntreRios desdobrou-se ao sabor das necessidades de reformulação dos
projetos de vida, conforme evidenciado nas narrativas. Alguns vão ficando, realizam outros
deslocamentos temporários, mas retornam posteriormente para os municípios onde seus
parentes se instalaram primeiramente.
Para Seu Paulo, filho de cearenses que peregrinaram fugindo da seca, a felicidade
é poder plantar no quintal de sua casa e em seu terreno. “Aquela ponta de chão ali...eu tô
cultivando o que é meu”. Sem rendas nem divisões, ele planta o que quiser, ele e a esposa
passam dias inteiros nos roçados, desfrutando finalmente da autonomia camponesa em sua
plenitude.
Seu Domingos mantém conexões constantes com parte da família em Manaus,
mas sua idas para lá são passeios e visitas. Seu espaço identitário é a cidade de União e
continuar morando na mesma casa que conseguiu reaver após a migração forçada da família
para Caxias, num outro período de sofrimentos.
Percebemos na fala de D. Cristina que as suas idas costumeiras às reuniões
promovidas pelo INCRA mudaram sua postura ao contar sobre sua história de vida; no
retorno para outra entrevista, movimento necessário para identificar as visões históricas com
mais detalhe191, percebemos uma fala mais engajada em contar sobre as dificuldades
enfrentadas pelo pai, sobre a desventura dela própria, Cristina, e de sua trajetória de luta pela
sobrevivência enquanto mãe e esposa abandonada pelo marido; e aos poucos acompanhamos
o germinar do que ela significa como direito à terra em que sempre viveu.
Outros narradores reformularam seus projetos de vida tendo como destino
Teresina a partir dos anos 1960. Motivados por expectativas de melhora de vida, procuravam
190
Faz referência ao tio que explorou a família durante a juventude de Seu Manoel e que se tornou o principal
motivo de sua tentativa de fuga para o Rio de Janeiro.
191
GRELE Ronald J.: “Ziellose Bewegung Methodologische und thoretische Probleme der Oral History” in: ed.
Lutz Niethammer: Lebensführung und kollektives Gedächtnis. Die Praxis der ‘Oral History’ Frankfurt am Main,
1980, p.155 apud. HARRITS, SHARNBERG, Op. Cit.p.31.
96
instrução escolar para os filhos, anseio por um trabalho com carteira assinada, reenlace
familiar ou ansiosos pelo que a capital poderia proporcionar.
97
192
NETO, Torquato, “Ó Deus vos salve essa Casa Santa”. In: DUARTE, Ana Maria S. (org). Os últimos dias
de paupéria: do lado de dentro. 2.ed. revista e ampliada. São Paulo: Max Limonad,1982, p.60.
193
Posteriormente é criada a versão musical por Caetano Veloso e eternizada na voz de Nara leão em 1968.
98
escuta. Para esses personagens, a voz, gestos, histórias, contos, ganham sentido na
linguagem oral, e é principalmente com ela que a vida vai sendo enfrentada”194.
Os narradores e suas famílias que se deslocaram para Teresina trouxeram não
apenas experiências das vivências anteriores em outros municípios do EntreRios, mas também
anseios que aos poucos foram surgindo e tomando corpo ao sabor das necessidades. Para além
disso, está o desejo por alguns de recomeçar, de dar novos rumos e propiciar destinos diversos
aos filhos, que não seriam possíveis mais praticando roçados. Aquelas crianças que saíram do
Ceará, mesmo os que já nasceram em solo piauiense, projetam expectativas distintas. Que se
desdobram quando o horizonte de cidade desponta com um veio aberto de oportunidades para
que a família se enraíze tal qual a solidez das casas de alvenaria, eliminando a incerteza de
morar e plantar em propriedades alheias. Mas será mesmo que todas as expectativas foram
alcançadas ao chegar à capital? Que desafios estes narradores encontraram ao se deparar com
uma cidade em sua plenitude de mais um processo de modernização, embelezador, sanitarista
e excludente?
O cenário que se desdobrava na capital ainda estava longe do futurismo e da
velocidade das grandes cidades, mas matizada de elementos que mesclavam modernidade e
pobreza, a outra face das belas paisagens e edifícios descrita no trecho de crônica abaixo:
É isso mesmo [...] – Teresina acontecendo [...] um velho pobre pedindo-, leite sendo
pasteurizado-, criança tomando mingau de farinha-, uma faculdade formando
médicos-, uma doença mais grave despontando-, uma nova força de luz elétrica-, o
sol sempre brilhando mais-, aparece um canto novo no clube-, e o choro do pobre
aumenta-, é Teresina acontecendo-, um cursinho a mais na cidade-, um universitário
a menos na vida-, um jato rasgando o espaço-, número de viajantes terrestres
aumentando-, nova biblioteca pública-, uma universidade feita na teoria-, um
produto na vitrine-, um camelo na calçada-, é o feito sendo mostrado na praça-, é a
demagogia tomando pé-, mais um cabaré no caos-, pinta uma nova boate-, o parque
custando muito-, o indigente morrendo ligeiro-, é o artista por burro-, é o burro por
artista-, é Teresina acontecendo [...] 195
194
RIOS, Kênia Sousa. Quando novos personagens continuam entrando em cena. O encontro com a voz do
outro e com o outro da voz. Palestra de encerramento do ERHH- nordeste.p.4
195
“Teresina Acontecendo”, In: Jornal “O Estado”, Teresina-PI, fev. de 1972, p.2. Local de guarda Casa Anísio
Brito”.
99
196
MONTE, Regianny Lima. A cidade esquecida: (res) sentimentos e representações dos pobres em Teresina na
década de 1970. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade
Federal do Piauí. p.98.
100
designar os confins da cidade de São Paulo ou a zona rural que lhe era
imediatamente próxima. Ela já indica uma concepção da unidade da cidade e seu
contorno. Foi a categoria de morador que definiu o sujeito dessa espacialidade e o
núcleo do modo de pensar a cidade e seus arredores. Era o poder e seus agentes, os
homens bons, os limpos de sangue e sem mácula do ofício mecânico, e a hierarquia
estamental de seus privilégios que definiam o modo de ver e conceber a cidade e sua
gente e nela o lugar de cada um. A cidade o era a partir da ideia de que nela se
encontravam os que decidiam e mandavam197.
O autor refere-se ao caso de São Paulo, mas que se aplica a quaisquer outros
centros ou metrópoles. No nosso caso, o lugar de poder referente aos “que decidiam e
mandavam” era por excelência o centro de Teresina, mas aos poucos o perímetro urbano foi
redefinido de acordo com os anseios das elites. A ocupação e urbanização da zona leste da
capital também se inserem neste contexto, cenário para onde os nossos narradores foram
morar. Enquanto que “a mácula do ofício mecânico” se desfiava em diversos ofícios entre os
pobres urbanos, configurando-os como uma massa de subempregados e desempregados,
classes mais abastadas voltaram atenção para os terrenos além do Rio Poti, que até a década
de 1960 eram usados apenas para chácaras e lazer no fim de semana, havendo também alguns
casebres construídos de forma irregular. A ampliação da malha viária naquele sentido ocorre
através da abertura da Av. João XXIII, e da a Av. John Kennedy, que ligam Teresina aos
municípios do EntreRios bem como da Av. Nossa Senhora de Fátima, prolongada em 1974,
onde conjuntos habitacionais para pessoas de alto poder aquisitivo foram construídos. Novas
vias de trânsito também trouxeram outras possibilidades de ocupação para os mais pobres,
que diante da especulação imobiliária daquelas novas áreas, foram deslocando-se
paulatinamente para a periferia. Daí se originaram bairros como o Ininga, o Satélite,
Piçarreira. Conforme destacados no mapa abaixo. Nestes dois últimos, os narradores
construíram seus lares.
197
MARTINS. José de Souza. Subúrbio Vida Cotidiana e História no Subúrbio da cidade de São Paulo: São
Caetano do fim do Império ao fim da República Velha. São Paulo: HUCITEC, 1992, p.7.
101
Nesta imagem evidenciamos a proximidade dos bairros nobres do rio Poti, onde o
clima é mais ameno, e a distribuição espacial periférica dos demais bairros para a população
de baixo poder aquisitivo no entorno da estrada rural União-Piauí, uma das rotas de passagem
para alguns migrantes, somada a BR-343 e outras rotas possibilitaram o deslocamento de
pessoas para a capital por motivações variadas.
Seu Cosme, o mais “ousado” dos gêmeos, decidiu que a vida em União já não
estava mais correspondendo ao que ele queria. Os motivos que o levaram a se deslocar mais
uma vez veio da insatisfação, quando começou a perceber que a cidade de União não poderia
oferecer serviços maiores para alguém que estava determinado a viver de algo além do
pagamento de renda nas roças. “Os anos 60 encontraram o Piauí com uma população de
1.240.200 habitantes, com 76,59% ainda morando na zona rural, o que demonstra que a
estrutura produtiva do Estado muito pouco havia mudado desde o início do século”199. Sem
uma diversificação de estrutura produtiva, havia também uma oferta restrita de serviços, bem
como sua diversificação. Assim era a vida dos irmãos em União. A experiência de trabalhador
198
Acesso em 20 de Agosto de 2018.
199
TAJRA, Jesus Elias; TAJRA FILHO, Jesus Elias. O comércio e a indústria no Piauí In: SANTANA,
Raimundo Nonato Monteiro de. (Org.). Piauí: formação-desenvolvimento-perspectiva. Teresina: Halley,
1995.p.147
102
de Seu Cosme o permite se chamar de operário. Já casado e com filhos, assim como seu
irmão, Damião, ele empregou-se como pedreiro. O trabalho de construção civil segundo ele
era “mínimo”. Dali ele empregou-se em Teresina e selou o destino de uma nova migração:
200
COSME Feitosa da Silva. Entrevista concedida em 18.01.2018 na cidade de Teresina-PI.
201
COSME, 2018.
202
THOMSON, Alistar. Op. Cit.
203
COSME, 2018.
103
204
MARTINS, José de Souza,Op.Cit. p.8.
205
DAMIÃO Feitosa da Silva. Entrevista concedida em 14.08.2016 na cidade de Teresina-PI.
206
DAMIÃO, 2016.
104
O objetivo era muito claro: aprender a ler e escrever neste tempo restrito,
submetendo-se a certa rigidez. Assim Damião conta que mesmo sendo canhoto teve que
aprender forçosamente a partir dos 8 anos a ser destro, o que ele lamentou muito, mas lhe
rendeu a proeza de ser ambidestro. Isso nos revela dois aspectos importantes: a instrução
pública em Nova Russas era precária ou mesmo inexistente, induzindo a práticas de
alfabetização rudimentares como as que vivenciaram Seu Cosme e Seu Damião; a educação
dos filhos ocupou um papel de destaque nas motivações que os guiaram nas migrações desde
Miguel Alves até Teresina.
A situação educacional em União, por exemplo, ainda era tateante. O número de
escolas isoladas em relação ao grupo de escolhas reunidas era bem mais expressivo. Somente
no ano de 1966, registrou-se 7 grupos escolares reunidos e 36 escolas isoladas, somando
setores estadual, municipal e particular, de acordo com dados da Comissão de
Desenvolvimento Econômico (CODESE)208. Estas escolas isoladas espalhadas pelo perímetro
do município foram responsáveis por levar o letramento para as muitas comunidades e
interiores distantes.
Damião ressaltou a importância de morar no perímetro urbano de União porque
“os meninos já estudavam”; a cidade poderia oferecer uma instrução pública razoável. Seu
Cosme ressalta que “tudo quanto eu ganhei, foi construído, pra ajeitar os filhos pra ir pro
colégio, se não aprenderam porque não quiseram ou porque não deu”. O “não deu” acaba de
certa forma condicionando a entrada dos filhos nos empregos e subempregos da cidade,
seguindo geralmente os ofícios dos pais. Ao virem para Teresina na perspectiva de melhores
trabalhos, parte dos filhos homens de Seu Cosme e Seu Damião se tornaram pedreiros,
induzindo-os a deixarem os estudos incompletos.
207
COSME, 2018.
208
CODESE- Número de Unidades Escolares, professores e matrículas por setores. Município de União anos
1964/1965/1966. Ensino Primário. Local de guarda: Biblioteca do arquivo Público Casa Anísio Brito.
105
Outro narrador que migrou para a capital já insatisfeito com a situação em Altos
foi Seu Manoel. Após os desentendimentos com outro funcionário como já visto, ele decide
vir embora, não sem antes um colóquio com o proprietário que discordava da sua ida:
Lia: Lá em Altos quando o senhor falou assim que estava fraco a roça, mesmo
trabalhando de roça e sendo vaqueiro, por que não deu certo lá?
Seu Manoel: Eu faço que nem o menino sou cearense e tenho o sangue de Altos,
mas o Altos é fraco. Você tá trabalhando, faz uma roça monstra, aí bota tudo dentro
de casa, aí quando dá no fim dos negócios você precisa vender os legumes, vender o
milho o feijão , o arroz, a mandioca, pra sobreviver por outras coisas, às vezes, que
as doença hoje é em seguida, a gente pensa que a pessoa está boa com pouco está
doente, aí precisou a gente vender tudo isso pra poder viver, aí o negócio estava
ficando fraco mesmo, aí eu digo “rapaz”, aí ele disse: “Compadre você vai é matar
seus filhos” e eu digo: “não vou matar ninguém”. “Em Teresina ninguém dá uma
esmola pra ninguém”, eu digo “dá, compadre eu sou acostumado em Teresina, e
vender leite e vender tudo lá.209
Para chegar aos motivos que levaram Seu Manoel a ir embora para Teresina, é
preciso entender nesta fala a mistura de duas temporalidades. Primeiramente, ele fala de
Altos, seu “oásis”, que tempos depois se revelou insuficiente, “fraco”, os negócios não iam
bem e impeliam-no a vender os produtos que cultivava mais rapidamente, deixando o lavrador
em uma situação de vulnerabilidade, expondo-o a riscos sérios de decadência diante de
circunstâncias imprevisíveis como as doenças. Ao retomar a fala de um dos proprietários para
quem trabalhou, Seu Manoel revela que aquela conversa teve um caráter exortativo, não no
sentido de algo que ainda iria acontecer, mas que já estava acontecendo; afinal, Seu Manoel
perdera o medo e o receio da cidade através de andanças e vendas.
A mudança de percepção operou nele através da instrução escolar das filhas, que
se iniciou no município de Demerval Lobão, portanto, já no seu terceiro deslocamento,
referente à fala do proprietário descrita na passagem acima. Em virtude de uma vida melhor
proporcionada pelo ofício de vaqueiro, acabou lidando com algumas dificuldades, e
trabalhando para dois proprietários. Após sair da fazenda do primeiro proprietário, entregando
todos os compromissos plausíveis com a criação: “compadre eu vou sair da propriedade, aí
vou deixar seus bichos tudo com a barriga cheia e água pra beber até 3 dias se for possível”,
Seu Manoel foi abordado 15 dias depois pelo mesmo, que pedia sua volta para o ofício. Ele
respondeu:
Nam, aqui eu tô bem compadre, vou voltar não. As meninas pularam logo bem
acolá: ‘não, nós não vamos voltar não que nós vamos morrer de trabalhar e mesmo
209
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
106
nós estamos estudando aqui, e é pertinho, é mais perto’. E eu digo “nam, eu não vou
voltar não¹ Mesmo que vocês queiram eu não vou”.210
Quando eu dava fé ele chegava bêbado lá em casa, passava 2, 3 dias lá com o carro
encostado, a gente dando de comer à ele, e mandando comprar cachaça e bebendo lá
debaixo dos pés de manga, era assim como um irmão, como um pai, uma coisa ele
era bom demais pra mim. Bom, bom mesmo...mas a gente se enrolava, quando a
gente dava fé ficava até cismado, com raiva... aí foi indo até que ele esqueceu. Foi o
momento em que as meninas começaram a trabalhar e estudar foi obrigado eu vim
embora pra cá.
Mesmo diante dos laços estreitos (“irmão, pai”), e das socializações em casa,
haviam limites para Seu Manoel não apenas como lavrador, mas também como anfitrião. O
custo de manutenção desse discurso público era manter a condescendência para com aquele
patrão, mas a raiva e a “cisma” indicam que a família nessa prática percebia fissuras em sua
dignidade, ao mesmo tempo em que a inserção das filhas no mercado de trabalho possibilitou
a sua decisão final. Ele mudou-se para Teresina em 1976.
A agregação da família também foi um motivo recorrente de deslocamentos para a
capital. Este é o caso de Dona Ana, cuja migração foi condicionada por casamento e
reencontro de tios. Já casada e com filhos ela mudou-se para Teresina na década de 70, e
somente quando se viu sem os filhos por perto, seu pai decidiu vir também. Ao abordar este
motivo ela diz: “Ele ia viver lá de que? Por que ele criava uma neta, a neta precisava
210
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 13.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
107
estudar, nós já tinha casado, cada qual tinha o seu lugar, aí ele veio e durou 12 anos aqui,
quando ela minha mãe faleceu, já tava com 2 anos aqui”211.
Esta fala evidencia mais uma vez que a coesão da parentela condicionava o
sucesso ou não da migração, neste caso, a solidão não era a melhor escolha para os pais, em
virtude de doenças, precisando de acompanhamentos médicos.
Seu Isídio desgostou-se após o episódio de mutilação das vacas. Mesmo com o
rearranjo feito pelo patrão, ele tinha medo do futuro que lhe reservava não só naquela fazenda,
mas nas demais propriedades onde fosse trabalhar em José de Freitas, conforme atesta em sua
fala: “eu me desgostei por causa disso, porque, você sabe, eu já tinha entrado numa boca
perigos né, aí eu era capaz de entrar em outra... aí eu me desgostei, você sabe, eu vou-me
embora para Teresina”212.
O medo de retaliação é produto de um discurso oculto que se exteriorizou através
de ação tornando aquele jogo das aparências, próprio do discurso público, frágil. Neste
discurso público no qual nossos narradores estavam familiarizados, valores como a dignidade
e a autonomia são considerados dispensáveis para os dominados.
Neste esboço cartográfico, desde memórias, Dona Antônia é a única que faz o
caminho de volta para Teresina. Um irmão casado com uma teresinense resolve vir morar na
capital, e, mais tarde, Dona Antônia casada e mãe de dois filhos, saiu de Crateús e se instalou
no bairro Primavera, Zona Sul da cidade, por volta de 1958.
Após dois anos, a família deslocou-se novamente para Crateús. O motivo da volta
para o Ceará é elucidado na fala a seguir de Raimundo da Silva Vieira213, 50 anos, filho de
Dona Antônia, que gentilmente nos auxiliou na rememoração de lembranças:
Raimundo: Meu pai trabalhava no dia a dia de pedreiro, com o trabalho e os dois
filhos pra criar, e eu cheguei também já, pra completar os três [nós somos 6 filhos],
aí já não teve mais como dar conta e conseguir trabalho, aí voltou pro Ceará de
novo.
Lia: E lá no Ceará ainda tinha família?
Raimundo: tinha meu avô ainda estava lá ainda... meu avô vivia de roça e de gado.
211
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
212
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2016, na cidade de
Teresina-PI.
213
A presença de Raimundo Vieira durante nossa entrevista foi algo imprevisto, mas se revelou necessário, pois
além de fazer apenas dois anos que a mãe mora com ele, também auxiliou no processo de rememoração antes da
nossa chegada. Dessa forma foi fundamental para a construção desta entrevista seu papel de mediador-narrador,
que ocupa um lugar central de aproximar entrevistador e entrevistado, reduzindo diferenças e traçando pontes de
compreensão.
108
Ele nunca gostou. Ele num se acostumou não, chegou não achou bom. Ficou
reclamando que o filho tirou lá da terra dele, do terreninho dele e veio pra cá, ele não
gostou... Mas já estava aqui e num tinha jeito de voltar porque já tinha vendido o
terreno lá, já tinha comprado esse, aí tem que se acostumar mesmo. 214
Esta fala evidencia que os motivos para a família de Dona Antônia ter saído de
Crateús não foram seca ou desentendimentos, mas sim a união da família que estava se
distanciando em função da migração dos filhos. Mesmo a família não sendo uma unidade
produtiva coesa, mas a ideia de uma unidade familiar que produz para os seus permanece,
como atesta a própria fala d e dona Antônia: “quem sabe onde está a família quer ficar tudo
ali perto né, ninguém quer ficar plantando sozinho”.215
Dona Antônia gostava muito dos trabalhos de costura, ela se realizava neles.
Mesmo após a migração para Crateús e de volta para o Piauí, instalando-se em Altos, ela não
deixou de costurar, comprando uma máquina de costura e fazendo mais serviços. Fazendo
remendos, consertos e roupas, ela costurava também sua própria teia de vida, o que lhe
assegurou a sobrevivência e sociabilidades fecundas que fizeram ela e o marido ficar em
Altos por vários anos, até a separação conjugal, até o filho trazê-la de vez para Teresina, já
um pouco debilitada.
Dessa forma os narradores se acomodaram com suas famílias nos bairros
periféricos da cidade. Bairro Satélite, onde moram até hoje os irmãos Cosme e Damião, Dona
Ana Azevedo e Seu Francisco Manoel; e Bairro Piçarreira, lugar onde mora Seu Isídio. Que
estratégias e táticas estes narradores desenvolveram na experiência de viver na capital? Como
seus ofícios revelam as bricolagens do fazer e criar tão necessárias na condição de pobreza em
que se inseriram, a de pobres urbanos?
214
ANTÔNIA Portela de Sousa. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.02.2018 na cidade de
Teresina-PI.
215
ANTÔNIA, 2018.
109
216
MARTINS,José de Souza. Op.Cit, p.11.
110
todinho, abriu mão pro povo marcar”. As negociações para demarcar os lotes
correspondentes às casas já funcionavam como instrumentos de conchavos políticos. Seu
Damião também conta sobre a relutância de seu irmão em manter as casas perto uma da outra,
uma vez que era expressiva a chegada de famílias buscando terrenos e agilizando medições,
“aí disse irmão dele não ia ficar por cima da terra não, ou ele ficava em terreno encostado a
ele ou então umas 6 a 8 casas era pra ele, aí eu vim ficar aqui, que pra trás tudo já tinha
dono”217. A mudança do campo para a cidade não desfaz a necessidade e a urgência em
manter a família reunida, pois na condição de pobreza na qual se (re)configuravam as
sociabilidades familiares que fortaleciam os laços de solidariedade vicinal, tão caros para a
sobrevivência suburbana.
Vieram “gentes” de outros municípios do EntreRios. Damião fala sobre seus
vizinhos que “tudo era gente conhecido, do município de Campo Maior, José de Freitas, de
todo lugar aqui tem gente de Altos (...) até de Porto Marruás tem gente aqui, de todo lugar
veio gente, da União veio demais, gente pobre de lá, o povo veio tudinho pra cá”218. As
experiências de nossos narradores se assemelhavam de alguma forma com a vida dessas
famílias pobres que se deslocaram para a capital em busca do bem viver, embora
condicionados pela situação de pobreza. As instalações eram precárias, casebres com paredes
de pau a pique cobertas de palha. A paisagem no geral “era só mato, ribanceira, barroca, era
uma vareda, não tinha rua, não tinha nada”. O “nada” ao qual Damião se refere pode ser
traduzido pela oferta rarefeita de serviços básicos para a população destes bairros. Sistemas
como transporte, abastecimento de água, hospitais, entre outros, eram precários, agravando-se
mais em se tratando do saneamento básico, onde 55,7% da população não possuía nenhum
equipamento sanitário219.
Se as situações nas periferias eram demasiado ruins, a classe baixa que aí morava
ainda tinha parca representatividade no cenário social. Segundo Antônio José Medeiros
217
DAMIÃO, 2017.
218
DAMIÃO, 2017.
219
MONTE. Regianny. Op. Cit., p.68.
220
MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais. In: SANTANA, Raimundo.N.Monteiro(org).Piauí:
Formação-Desenvolvimento-Perspectivas. Teresina: Halley,1995, p.177.
111
O Elesbão esse homem que morreu meu ex-patrão, ele era muito bom pra mim.
Trabalhei com ele 90 dias e fiquei trabalhando como empregado aí ele me botou lá
pra gerenciar o terreno, gerenciar os trabalhadores tudo, aí ficou bom pra mim.
Nunca quando eu tive mais ele não soube o que foi precisão não221.
Seu Damião estabeleceu estreitos laços com este patrão que a despeito de livrá-lo
do pagamento de renda, encarregou-o de diversos serviços sem pagamento capital. Esta
situação poderia soar favorável nas localidades de onde esses narradores migraram, mas a
conjuntura nas cidades era diferente. Ainda que conseguisse produzir e levar consigo os frutos
do roçado (abóboras, melancias, jerimum), as relações de troca e venda de produtos nas
cidades poderiam estar prejudicadas por distância ou indefinição de redes de solidariedades.
No fio condutor da relação de trabalho expropriativa, o agricultor traz consigo os elementos
da economia moral que o permitem reconstruir redes de relações patrão-empregado de matriz
rural.
De forma semelhante sucedeu com Seu Manoel. Ao chegar em Teresina, paralelo
ao ofício de pedreiro, ele botou roçado no Povoado Ave Verde, situado na estrada rural que
vai para União. O pagamento de renda neste caso era uma carga de milho por ano. A venda
dos legumes e verduras para ele não era o mais importante:
221
DAMIÃO, 2017.
112
[...] Quando eu costurava, fazia crochê, fazia tapete, misturava tudo, aí eu num ei
quantos tempos eu passei costurando, gostava de fazer crochê, pra viver a vida quem
quer criar família faz é assim né, tem que trabalhar para ajudar. Num é só esperando
pelo homem pra ponto não, tem que ajudar223.
222
HAHNER, June. Op. Cit. p12.
223
ANTÔNIA, 2017.
113
entre os homens e indiciado muito cedo, acarretava sérias doenças no trato respiratório e
cardiovascular. Mais tarde, o vício cobraria o pesado soldo com sintomas agravantes,
conforme nos contou Seu Manoel:
224
MANOEL, 2018.
225
Ver MARTINS, Agenor de Sousa et al. Piauí: evolução, realidade e desenvolvimento. 2 ed. Teresina:
Fundação CEPRO, 2002.
226
MONTE,Regianny. Op.Cit, p.116.
114
Este total é apenas uma visão panorâmica do que constava na ração alimentar
mínima de uma pessoa adulta, considerando-se variantes como hábitos alimentares. Para
famílias numerosas como a dos nossos narradores, um salário mínimo na época com o valor
de Cr$1.111,20 não cobria os gastos com alimentação, fora os outros gastos para habitação,
vestuário, higiene, entre outros. Assim, o valor referente à alimentação “supera o orçamento
de 80% das famílias que ganhavam até cinco salários mínimos, demonstrando, pois, a
condição extremamente precária em que vive parte substancial da população residente na
zona urbana de Teresina”228.
O cultivo em roçados no perímetro urbano não foi a atividade principal exercida
por estes trabalhadores, mas complementava a renda obtida por meio de outros ofícios. Os
ofícios que mais empregavam a PEA (População Economicamente Ativa) do setor secundário
eram os de pedreiro e mestre de obras. Sobre isso:
A PEA do setor secundário, embora tenha apenas recuperado sua posição relativa,
em 1970, depois de sofrer até redução em termos absolutos de 1940 para 50, passou
por violenta redistribuição interna. A primeira grande mudança se deu na “explosão”
da construção civil. De 1% da PEA total, em 1940, passou a 4,3% em 1970. Se se
toma apenas a PEA do setor secundário, os trabalhadores da construção, no mesmo
período, aumentaram de 14,6% para 55,6%229.
227
MARTINS.Agenor de Sousa. Op. Cit, p.268.
228
Idem, p.269.
229
Ibidem, p.180.
115
Manoel: Aqui quando eu cheguei o negócio estava fraco, comecei arrancando pedra.
Lia: Aonde?
Manoel: Aqui, nessas serras aqui.
Lia: Qual era empresa?
Manoel: Empresa? Não tinha empresa não, nós trabalhava por conta própria.
Lia: Quebrando Pedra?
Manoel: Arrancando Pedra e quebrando. pra calçamento, pra baldrame.
230
CERTEAU,Michel de et al. A invenção do cotidiano.1: artes de fazer.3ªed. Petrópolis: Vozes, 1998, p.100.
231
O ofício de carpintaria funcionava como um subsetor da construção civil, uma vez que envolvia a fabricação
de ripas, telhados, andaimes, entre ouras estruturas, para além da fabricação de mobílias.
232
ISÍDIO, 2018.
117
clientes em potencial233. São Luís também propiciou para Seu Isídio o ganho além da
subsistência:
234
ISÍDIO, 2018.
235
ISÍDIO, 2018.
236
CERTEAU, Op.Cit. p.100, grifo nosso.
237
Frigorífico do Piauí S.A
238
Substância anafrodisíaca.
118
Enquanto sobram reses nos currais do FRIPISA, em Campo Maior, e o diretor desse
órgão já procura outros centros consumidores para a venda de carne bovina, o abate
de suínos também sofreu queda com o período da Quaresma e a prática de
magarefes que exploram a chamada "Carne de Moita" com o consequente aumento
da concorrência entre os profissionais clandestinos e os legalmente estabelecidos 240.
[vinha] do interior de Miguel Alves, meus conhecidos tudo lá. E aí souberam que eu
estava cortando carne quando vieram era de 2,3 pra cá dia de domingo, vendendo
bode, porco, gado. Não rapaz não quero...aí o Elesbão me deu uma chance, marcou
40 gados, condenou 40 gados de açougue, que ele tinha grande fazenda, aí apurei
tudinho pra ele, aí pronto fiquei conhecido242.
239
“Conheça a carne que você come”. In: Jornal “O Dia”, Teresina, p.03,06 de março de 1972. Local de Guarda:
Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
240
“Carne ‘da moita’ no Piauí prejudica abate no Fripisa”, In: Teresina, Jornal “O Dia”, p.02, 14 de março de
1972. Local de Guarda: Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
241
“Carne ‘da moita’ no Piauí prejudica abate no Fripisa”, In: Teresina, Jornal “O Dia”, p.02, 14 de março de
1872. Local de Guarda: Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
242
DAMIÃO Feitosa da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 28.12.2017 na cidade de
Teresina-PI.
119
semana, ele se tornou conhecido. O Jornal “O Dia” revelou que de fato os municípios
fornecedores da carne dita “de moita” correspondiam ao EntreRios: “está sendo registrado o
abate de pelo menos 60 animais nos municípios de Campo Maior, Altos, União, José de
Freitas, Água Branca, e Elesbão Veloso”243. A venda de carne disponibilizada mais perto de
potenciais compradores, não só nas periferias, mas também nos demais centros se tornou um
dado preocupante para o governo. Seu Damião nos contou que aos domingos botava “banda
de boi”, e as pessoas iam até ele com frequência “aquelas pessoas eram encegueiradas (sic)
mesmo, comigo”. A venda era sobre medida e quando sobrava tudo era posto no sal, pois não
havia geladeira. No caso da carne de porco em dias de feriados santos, evidenciava-se cada
vez mais o comércio clandestino, fato que geraria uma reação por parte do governo, noticiada
em 17 de março de 1972, pelo jornal “O Dia”:
direitos e vendi duas roças de mandioca pra ele Elesbão, uma mandioca nova e uma
farinheira”245. O que se vendia eram produtos não perecíveis ou de durabilidade prolongada,
lembrando um pouco a lista elaborada pelo Departamento de Estatística da Fundação CEPRO.
Mas as necessidades das pessoas mais pobres iam além da ração mínima. Vendiam-se ovos,
cigarros, fósforos, velas, rapadura, farinha “de puba”246, farinha branca, massa de milho,
doses de cachaça, bombom e petisco para crianças. Estas últimas além de serem as melhores
clientes eram as “leva-e-traz” de mercadorias e de recados.
Percebemos que a rede de relações construídas desde a sua chegada à capital foi
fundamental para que ele alcançasse patamar de autonomia, uma vez que três elementos o
edificaram: os direitos provenientes da primeira empresa que trabalhou, a venda de produtos
do trabalho na roça para o fazendeiro, gerando portanto capital necessário para as primeiras
compras, e um último fator muito importante a clientela já mobilizada na rua e no bairro, em
virtude das experiências anteriores. Vemos aqui não apenas a trajetória “empreendedora” de
Seu Damião, mas enxergamos como esses sujeitos foram construindo, dentro de suas
condições de subalternidade, oportunidades de autonomia, dando traços para esta dimensão de
pobreza. E como estas lembranças se definem a partir do hoje? O que toma lugar em suas
vidas como espaço de saudade de práticas e vivências campesinas?
4.3 Cartografias de Saudade: “Tem dia que eu choro quando eu vejo chover”
A vida no campo é marcante não apenas pelo sofrimento, mas pelos momentos
felizes relacionados à fartura, à relativa autonomia proporcionada pelo trabalho, pelas relações
vicinais. No turbilhão de vivências, ressentimentos, expectativas, a memória vai selecionando
aquilo que se depositou e se configurou como uma imagem de carinho e afeto com
determinada espacialidade. A convivência nas cidades vai moldando aos poucos o pobre
urbano que foi sujeito campesino, e este também vai-se adaptando ao conjunto de costumes
compartilhados coletivamente ao cotidiano urbano. Mas o olhar para trás liga essa relação de
identidade com alguma comunidade rural, contado a partir de um presente onde o trabalho em
roças já não é mais possível.
O presente é ponta de vida para muitos; as doenças comuns de pessoas com essa
faixa etária, já os impossibilitam de realizar trabalhos braçais. Para alguns a despedida da vida
245
DAMIÃO, 2017.
246
Farinha originada de um processo da mandioca puba, ou seja, é posta de molho na água até amolecer, depois
retirada, moída, peneirada e torrada em processo semelhante à farinha branca. Era consumida como
acompanhamento para peixe assado, rapadura, em como alimento para lavradores nos roçados.
121
nos roçados é bem recente. É o caso de Seu Manoel, que no momento da entrevista realizada
em 2017, faziam apenas 4 anos que ele tinha deixado de trabalhar de roça. Os motivos não
somavam grande peso para ele:
Nós viemos primeiro pra Altos que é a linha que vem direto né? A BR vem direto é
a que vem do Ceará vem pra cá...hoje não tem as PI prum lado, PI pro outro, de um
lado para outro...aí nesse tempo a BR era essa aí mesmo, aí na Fortaleza... aí a gente
veio se arranjemos em Altos...e a terra natal que agente chama é Altos, quando dá
saudade corre pra lá, tem irmão lá , tem tio , tem primo, tem tudo ali em Altos247.
também procede com Seu irmão Cosme, que mantém uma horta em terreno comunitário
cedido pela Prefeitura. O cultivo de hortaliças alimenta toda a família, e Seu Cosme se
reconecta a cada colheita com as práticas do campo.
Apesar de Dona Ana não ter nascido no Ceará seu lugar de saudade é justificado
pela função de “repositório de memórias” delegada a ela pela família, função que assume com
prazer. Ela acolheu para si uma missão da mãe “que morreu falando que o Ceará era terra
boa”248, conhecer as tias:
Eu o que eu mais tinha vontade era de localizar as parenta de lá do Ceará, por que
ela deixou 8 lá. Oito, elas eram oito irmãs, ela veio ficou 7, nunca vi um parente do
lado da minha mãe de lá do Ceará por que as que ficaram tão mortos a muitos anos,
os que ficaram tão broto num sabe mais de nada.
248
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
249
MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano,1995 p.83.
123
E num tenho nada hoje eu digo logo pra você…eu vivo sofrendo…o culpado fui eu..
mais ninguém não, o culpado fui eu que não soube trabalhar...eu pensei que aquilo
não se acabava, o que eu arranjei eu pensei que não se acabava, e hoje em dia
quando foi pra eu me casar não tinha nem com que comprar a roupa do casamento,
por que eu não soube trabalhar e só deu pra minha cabeça, eu vivo sofrendo,
passando precisão, por que fui eu que não joguei a minha felicidade pra frente,
joguei pra trás, mas pra frente não…camarada que bem souber repara o dia do
amanha que é o dia que é.
5 Considerações Finais
Migrar para outro lugar não necessariamente altera a condição de pobreza destes
narradores, todavia, não elimina as possibilidades de sempre buscar uma melhoria de vida à
qual, associada a desejos de não morrer de fome, busca por água, terra, comida, submete estes
sujeitos às andanças por outros sertões.
A questão é entendida paulatinamente, ao se enxergar nos motivos, na travessia, e
na escolha do novo lugar que as dimensões de pobreza no Piauí se delineiam de outra forma
diferindo do Ceará; onde antes havia brigas no seio familiar, fragmentam-se e buscam-se
novos rumos; onde antes existia seca sem esperança de chuva, a nova moradia se desvela
como espaço úmido, entrecortado de poços e afluentes que alimentam o grande Rio Parnaíba;
os babaçuais altos oferecem outra obtenção de meio de vida, os contatos feitos previamente
pelo parente que chama estabelecem a conexão necessária com outras famílias,
consubstanciando a comunidade vicinal.
O discurso dos camponeses que, neste caso, trabalham num sistema de agregação,
não se difere dos outros quando destinado a um interlocutor para o qual quer falar de sua
eficiência; sejam eles mesmos, ou filhos, netos e tios, orquestram-se no sentido de dizer que
eram bons trabalhadores, não faziam arruaça, não enfrentavam direto o patrão, o que não
significa ausência de resistências e enfrentamentos.
É na oralidade que se revelam a complexidade das ações desses sujeitos. Tomam-
se de um lado a caricatura de “atrasados”, por parte de um Estado tecnoburocrata, por outro,
são desconsiderados quanto aos estudos no campo por não se arregimentarem em torno de
sindicatos, organizações, corporações, ligas, ficando aí na penumbra da história camponesa.
Esquecemos que o início das grandes revoltas, a explosão do discurso oculto que leva ao
embate direto, fortalecido pelo pensamento coletivo, parte destas resistências cotidianas,
perpassando toda vida do trabalhador.
As relações de trabalho previamente estabelecidas nos contratos verbais entre
fazendeiros e agregados cobram uma relação de sujeição mais severa, onde o trabalhador
sente dificuldades para garantir o sustento da família e pagar pelo uso da terra, ao qual
permanece cativo pela renda. Nestes momentos de ruptura, ou de uma nova migração
evidencia-se que aquelas famílias vivenciavam uma economia moral, onde o somatório das
forças de trabalho nas roças, no cuidado doméstico, ou o trabalho extrativo nos babaçuais
125
REFERÊNCIAS
FONTES
Local de Guarda: Casa Anísio Brito
Mensagens e Relatórios de Governantes do Piauí (1930-1942)
1930- Mensagem do Governador João de Deus Pires Leal, a Câmara Legislativa, e 01.06
(caixa9-envelope 108- duplicada).
-1931 - 1935- Relatório do Interventor Federal, Landry Salles Gonçalves, ao Presidente da
República em 30.04.1935 (caixa 9- envelope 109).
-1936 - Mensagem do Governador, Leonidas de Castro Mello, a Câmara Legislativa, em
01.06 (caixa 9, envelope 110).
-1937 - Mensagem do Governador, Leonidas de Castro Mello, a Câmara Legislativa, e 01.06
(caixa 9, envelope 111).
-1938 - Relatório do Interventor Leonidas de Castro Mello, ao Presidente da República, em
ago – 1938 (caixa 10 - sem envelope, n.112- duplicada-fotocopia).
1940-Relatório do interventor, Leonidas de Castro Mello, ao presidente da República, em jul-
1940 (caixa 10-sem envelope, n. 113- duplicada).
-1942- Relatório do Interventor, Leonidas de Castro Mello, ao Presidente da República, em
jul-1942 (caixa 10- envelope 113- incompleto)
- CODESE (Comissão de Desenvolvimento Econômico). Estatísticas Básicas- União. 1968.
Em bom estado e disponível na biblioteca de apoio do Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
JORNAIS
Jornais piauienses:
-“A GAZETA”, (1937-1942)Local de Guarda: Disponível digitalizado em :
http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
- A UNIÃO (1948) Local de Guarda. Arquivo Público “Casa Anísio Brito”, Teresina-PI
- O DIA (1972) Local de Guarda. Arquivo Público “Casa Anísio Brito”, Teresina-PI
- OPINIÃO (1954) Local de Guarda. Arquivo Público “Casa Anísio Brito”, Teresina-PI
Jornais Cearenses
-O DEBATE (1931-1932). Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
-O JORNAL (1932-1935). Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
-O POVO (1936-1937). Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
-UBAJARA (1936-1937). Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
-Revista do Instituto do Ceará, ano 1797, nº 6. Disponível na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.
Fontes Orais:
ANA Gomes de Azevedo Lima, Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em
25.01.2018, na cidade de Teresina-PI.
ANTÔNIA Portela de Sousa, entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em
14.02.2018, na cidade de Teresina-PI.
COSME Feitosa da Silva, entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 18.01.2018,
na cidade de Teresina-PI.
CRISTINA Frota, Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017, na
cidade de Miguel Alves-PI.
CRISTINA Frota, concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 10.12.2018, na cidade de
Miguel Alves-PI.
DAMIÃO Feitosa da Silva, Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em
06.09.2015, na cidade de Teresina,PI.
DAMIÃO Feitosa da Silva, Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em
14.08.2016, na cidade de Teresina,PI.
129
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