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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ


CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

LIA MONNIELLI FEITOSA COSTA

CULTURA E CARTOGRAFIAS DE MEMÓRIAS: TRABALHO E MIGRAÇÃO DE


CEARENSES PARA ENTRERIOS (PI) - 1940-1970

FORTALEZA
2018
2

LIA MONNIELLI FEITOSA COSTA

CULTURA E CARTOGRAFIAS DE MEMÓRIAS: TRABALHO E MIGRAÇÃO DE


CEARENSES PARA ENTRERIOS (PI) - 1940-1970

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História Social da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em História
Social. Área de concentração: Trabalho e
Migração.
Orientador: Prof. Dr. Eurípedes Antônio
Funes.

FORTALEZA
2018
3
4

LIA MONNIELLI FEITOSA COSTA

CULTURA E CARTOGRAFIAS DE MEMÓRIAS:TRABALHO E MIGRAÇÃO DE


CEARENSES PARA ENTRERIOS (PI) - 1940-1970

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História Social da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestrado em História
Social. Área de concentração: Trabalho e
Migração.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________
Prof. Dr. Cristiana Costa da Rocha
Universidade Estadual do Piauí (UESPI)

_________________________________________
Prof. Dr. Kênia Sousa Rios
Universidade Federal do Ceará (UFC)

________________________________________
Prof. Dr. Eurípedes Antônio Funes (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

________________________________________
Prof. Dr. Adelaide Maria Gonçalves
Universidade Federal do Ceará (UFC)
5

A Deus.
Aos meus pais, Francisco e Neves.
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, que me permitiu realizar este sonho e que me


ajudou cada vez mais em cada etapa desta jornada confirmar minha missão e paixão pelo que
faço. Agradeço a Ele por me ter presenteado com uma família tão acolhedora que me apoiou
em todos os instantes desta realização cada um à sua maneira. Ao meu pai, Francisco, por aos
poucos acreditar que a minha vontade era real; à minha mãe Maria das Neves, mulher forte
que me ajudou a fazer das minhas fraquezas a força e a superar como pudesse as
adversidades; à Lílian Cibelli pelos muitos sorrisos que só uma irmã mais velha pode te
provocar; a Tiago, cunhado querido e solícito; ao outro Francisco da minha vida, por todos os
instantes de compreensão. À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico- FUNCAP por me dar esta oportunidade de me dedicar à pesquisa com afinco.
Mas Deus não me presenteou apenas com a família que eu deixava em Teresina
para morar pela primeira vez distante de casa em busca do meu sonho; para me ajudar a
enfrentar todos os meu medos e receios de viver em um lugar que eu conhecia muito pouco,
ele selecionou as melhores pessoas com quem aprendi a compartilhar os instantes do
Mestrado, e tornaram essa caminhada antes tão nebulosa aos poucos acolhedora e preciosa.
Bruno, Diego Estevão, Diego Belfante, Pedro, Jonas, Alexandre, meu conterrâneo. Eu não
conseguiria reproduzir nestas linhas tudo que vocês fizeram por mim, mas saibam que todos
os momentos que nós estivemos juntos, ficarão marcados para sempre como aprendizado,
amizade, alegrias e muita gratidão. Vocês me ajudaram a sufocar a saudade da minha terra
lembrando que o Ceará é sim lugar de gente hospitaleira com pessoas de corações enormes.
Lembro aqui em poucas linhas, mas igualmente importantes no meu coração, Leila, Sandra e
Larissa Jorge pelas palavras amigas.
A realização deste trabalho não seria possível sem a presença em minha vida de
Eurípedes Funes, que eu tive o prazer de conhecer e conviver nestes dois anos. Obrigada por
me fazer ser uma historiadora melhor e, acima de tudo, um ser humano melhor, e uma amante
cada vez maior de livros. Se for para falar de livros, agradeço também à professora Adelaide,
por reacender em mim a vontade de ter meu próprio “cantinho” de leitura, que mesmo não
sendo tão rico de obras quanto o Plebeu, mas que seja tão gostoso quanto é visitar aquele
7

lugar maravilhoso. Obrigada, professora Adelaide, por me ensinar a olhar para a prosa da vida
com mais poesia.
Agradeço aos meus narradores primeiros, Vô Damião, que me despertou as
primeiras inquietações sobre a vida na roça, e ao vô “de baixo”, Vô Cosme, por seu exemplo
de vida; e a todos os outros que dispuseram uma parte do seu tempo para me ajudar a compor
este objeto de pesquisa. Espero que através deste trabalho tenha respeitado suas trajetórias de
luta.
Agradeço a Cristiana Costa da Rocha pela confiança, carinho e amizade sincera,
por sua determinação que me inspiraram desde a graduação e me inspiram até hoje, para
continuar nesta caminhada. A Marcelo Aleff, pelas “quebradas de galho” nos pegue-pagues
do Mestrado, e por me presentear com mais uma amizade vindoura. Às minhas colegas do
pensionato que colaboraram com as suas amizades lindas, Bia e Ana Larissa. A Jorge pela
acolhida terna e precisa nos dias de seleção. A todos os professores e colaboradores do
Programa de Pós-Graduação em História Social pelo apoio. Aos meus colegas e gestores das
escolas onde trabalho pela compreensão e ter contribuído para a conclusão desta etapa na
minha vida: Patrícia, Jairy, Gisele e Nenzão.
A todos que de alguma maneira participaram da realização deste sonho, muito
obrigada, e que Deus nos abençoe!
8

““Sertão: é dentro da gente.”


Grande Sertão Veredas, João Guimarães Rosa
9

RESUMO
O presente estudo tem como objetivo analisar narrativas de migrantes cearenses para o
EntreRios Piauiense, ocorridas no período de 1940 a 1970. Os deslocamentos dessas famílias
condicionados pelas consequências da seca, por desarranjos familiares ou outras questões, foi
influenciada, também, pelas expectativas de melhoria de vida. Secas, escapar da fome e da
miséria, buscar outras possibilidades de relações de trabalho no campo, mesmo sem o acesso
à terra, são sentimentos que moveram estes cearenses a empreender travessias em busca de
uma “terra melhor”. São trabalhadores que no Ceará viviam do cultivo dos roçados em terras
alheias, sob o sistema de pagamento de renda. Nesse sentido, a migração para o Piauí, em
pouco alterou sua condição de campesino, no entanto, revelou-se como um caminho plausível,
em contraste às agruras do sertão cearense. A região do EntreRios entra na rota de
possibilidades do bem-viver, por suas terras férteis, boas para o cultivo e ricas em água, rios
Parnaíba e Poti, que cortam aquelas terras e as matas extensas de babaçuais, que vicejaram
aos olhos dos sertanejos após longas travessias. Nesta espacialidade, cartografada pelas
trajetórias dos narradores, percebemos que nas relações de trabalho, firmadas com base em
contratos verbais, as estratégias de sobrevivências se fundamentam cada vez mais, tendo
como suporte redes de solidariedade estabelecidas entre as famílias e vizinhanças, e
combinação de forças de todo o núcleo familiar. Quando essas obtenções dos meios de vida
são afetadas, prejudicando a sobrevivência, famílias deslocam novamente, em busca de
melhores condições de vida ao sabor de expectativas que são reformuladas. Um destes
destinos foi Teresina, onde trabalhadores campesinos pobres passam a pobres urbanos,
marcando trajetórias de lutas cotidianas que configura na memória a vivência do campo como
um espaço de saudade. Neste trabalho nos guiamos por narrativas orais de homens e
mulheres, à espreita de suas experiências de vida, e como suporte à história oral, Relatórios
Governamentais, periódicos do período estudado, dentre outros registros escritos.

Palavras-chave: trabalho; migrações; narrativas; Piauí.


10

ABSTRACT

The present study has as objective to analyze the narrative of migrants from Ceará to the
EntreRios in Piauí, which happened from 1940 to 1970. The movements of these families,
conditioned by the consequences of the dry, familiar derangements or other issues, were
influenced, also, by an improvement of life expectation. Dry times, escaping hunger and
misery, searching other possibilities of relations of field work, even without access to the
land, are feelings that moved these people from Ceará to engage in travels searching a “better
land”. These are workers who, while living in Ceará, lived of cultivations of “rootings” in
stranger lands, under the system of payment of a rent. In this sense, the migration to Piauí,
altered only a little the field worker condition, however, it was revealed as a plausible way, in
contrasts to the roughness of “Ceará’s sertão”. The region known as EntreRios gets in the
route of well living possibilities, because of its fertile lands, very good to cultivation and the
fact of being rich in waters, Parnaiba and Poti rivers which cut those lands and woods, which,
are full of “babaçuais”, that thrived the eyes of the people from sertão after long travelings. In
this specialty, charted by the trajectories of narrators, notice that the work’s relation, firmed
based in verbal contracts, the survival strategies were more and more fundamented, having as
support the solidarity networks established among families, neighborhood, and combinations
of strength of all the family core. When these life mean’s achievements are affected,
disturbing the survival, families move again, searching better life conditions tasting flavors
that are reformulated. One of these destinies was Teresina, where poor workers from the field
become poor people from the city, marking trajectories of daily fights which configure, in the
memories the ones living in the field as a space that is missed. We are guided in this work by
oral narratives of men and women, on the look-out of their life experiences, and as a support
to oral history, Governmental Accounts, studied periodics of the time, among other written
registries.

Keywords: works; migrations; narratives; Piauí.


11

LISTA DE MAPAS, GRÁFICOS E TABELAS

Mapa 01  Trajetórias de migrantes cearenses para o EntreRios ..................................... 53

Mapa 02  Território EntreRios.................................................................................... 54


Gráfico 01  União zona urbana e rural 1940-1964.......................................................84

Mapa 03 – Mapa Parcial da zona leste de Teresina..........................................................101


Tabela 01 – Custo da Ração Essencial Mínima de Teresina Dez/1978.............................114
12

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABHO Associação Brasileira De História Oral


ARENA Aliança renovadora Nacional
AGESPISA Águas e Esgotos do Piauí S.A
CEPRO Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí
COHAB Companhia de Habitação do Piauí
CODESE Comissão de Desenvolvimento Econômica
COMVAP Companhia Agro-Industrial Vale do Parnaíba
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA Instituto Nacional de Reforma Agrária
FRIPISA Frigorífico do Piauí S.A
PEA População Economicamente Ativa
epub. Electronic Publication
13

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14
2 PONTOS E PARTIDA E HORIZONTES DE
CHEGADA......................................................................................................... 31
2.1 Terra, trabalho e migração: processo migratório de cearenses para o
Piauí ............................................................................................................... 33
2.2 “O Ceará é uma terra boa, mas não chovia”.............................................. 43
2.3 “Roubar a idade”: o enredar familiar nas travessias.................................... 47
2.4 Travessias, veredas e o “mar de fogo”........................................................ 52
3 VIVER NO ENTRERIOS .................................................................. 58
3.1 Interpretações a cerca da agricultura de autoconsumo no Piauí............ 59
3.2 Construindo redes de solidariedade: “no interior toda terra tem patrão”... 64
3.3 Resistência e discursos ocultos dos narradores migrantes............................. 69
3.4 Algumas observações sobre a “fartura” camponesa....................................... 81
3.5 Cultura e Cartografias de Memória.......................................................86
4.0 ECOS DE UMA VIDA CAMPONESA NA CAPITAL............................97
4.1 Periferia e expectativas.................................................................................100
4.2 Viver na cidade: “profissão de operário” e outras sociabilidades............109
4.3 Cartografias de Saudade: “Tem dia que eu choro quando eu vejo
chover”............................................................................................................120
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................124
REFERÊNCIAS............................................................................................129
14

1 INTRODUÇÃO

O Bairro Satélite, situado na Zona Leste de Teresina, já foi um reduto de


cearenses. O que hoje sabemos sobre os que ali moraram e viveram deve-se a histórias
contadas pelos que se mantiveram ali, ou por seus descendentes, vivendo o resto de suas vidas
e sobrevivendo à velhice, às doenças, bem como às adversidades familiares. Ao lhes escutar
com atenção, surpreende o constatar naquelas conversas, onde tudo parecia aprazível ─ o
espaço, o trabalho, os patrões ao longo da vida ─, que permanece indissolúvel o caráter de
luta pela sobrevivência. Além disso, é patente a vontade ainda de viver dos “costumes” do
campo, o esforço em zelar pelos laços construídos ao longo da experiência de migrar e deixá-
los se puder, abertos e possíveis para que as próximas gerações não se desamparem.
Esta percepção fundamenta a centralidade deste estudo, que consiste na análise de
movimentos migratórios do Ceará para o Piauí, no período de 1940-1970, tendo como veículo
de ideias e aportes teóricos o testemunho oral de trabalhadores campesinos. A partir dos
moradores do bairro Satélite fomos determinando o nosso objeto de estudo, conferindo-lhes
espacialidade e delimitando sua temporalidade. Foram aquelas primeiras narrativas, de
Damião Feitosa da Silva e Cosme Feitosa da Silva1, que apontaram o EntreRios Piauiense
como destino de migrantes cearenses nessas décadas e foram a partir destas histórias que
entendemos as complexidades pertinentes de serem estudadas e que possam enriquecer o
universo de uma cultura rural.
O que sugere estas falas ou que quebra de expectativa elas provocam? O senso
comum espera do homem do campo o comportamento passivo e obediente, o trabalhador que,
ao chamado do patrão, retira o chapéu em sinal de cumprimento. Estas narrativas mostram
que ocorre exatamente o contrário. O camponês explora várias habilidades de trabalhar o jogo
de tensões com os patrões, desfiando seus atos em múltiplas resistências, que variam desde
gestos, pequenos atos, fofocas, compreendidos num discurso oculto2, até o enfrentamento
direto. Entretanto, cada camponês ou grupo de camponeses não pode ser enquadrado em um

1
Algumas conversas informais com Seu Damião e Seu Cosme foram feitas até realizarmos as entrevistas
oficiais. A primeira entrevista com Damião Feitosa da Silva ocorreu em 06.09.2015. Com Cosme Feitosa da
Silva ocorreu em 18.01.2018. Os pronomes de tratamento utilizados no decorrer da pesquisa, para homens e
mulheres, justifica-se pelo uso popular nas formas de chamar estes senhores e senhoras no cotidiano do lugar em
que vivem, sendo mantidas em nossa escrita.
2
Ver SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência. Discursos Ocultos. Lisboa: Letra Livre;
Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura editorial, 2013.
15

ou outro viés de comportamento, uma interpretação cara para pesquisadores que às vezes
consideram que só alguns se rebelam e outros não. Outrora personagem perdido no
esquecimento, marginalizado frente à história contada pelas elites, o seu “resgate” ou
recuperação se realizou de maneira equivocada, “esquecendo-se que não se trata de um grupo
homogêneo, de uma classe, sendo necessário considerar suas divisões internas e estudá-lo
nas interrelações com a sociedade urbana” 3. Para uma melhor reflexão a respeito do papel
destes trabalhadores e seus comportamentos coletivos partilhamos da noção de classe
enquanto experiência social tal como é proposta por E. P. Thompson:

Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos
díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência
como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe
como uma ‘estrutura’, nem como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre
efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações humanas) (sic).4

O fazer-se classe não tem um marco inicial, mas sim se constitui num processo de
lutas constantes e trocas de experiências entre trabalhadores, fundamentando a lógica
camponesa. Ao se pensar o camponês como um sujeito homogêneo, de experiências
previsíveis, leva-se a crer que estão sempre a espera de uma salvação para sua produção,
parca, e tecnologia rudimentar; algo que apenas seria possível com a tutela do Estado,
possuidor tanto do poder científico (centros de pesquisa especializados em melhorias do
campo) como também do poder ideológico modernizante. Diante do fundamento deste Estado
tecnoburocrata, a lógica camponesa se apequena, figurando-se como aquilo que popularmente
denominamos de “ignorância”, ou seja, a persistência em continuar produzindo naqueles
meios de vida.
Mas as questões que envolvem esse processo de lutas não põem em jogo apenas
embates materiais. “Os valores que os pobres estão defendendo são na maioria, sem exceção,
vinculados aos seus interesses materiais como uma classe. Nós estaríamos, entretanto,
equivocados quanto à natureza total da luta se nos limitássemos apenas aos efeitos
materiais”5. O conflito entre a lógica do Estado e a lógica camponesa desnuda essa ideia-valor
da autonomia, muito forte no espaço do trabalho de roças, aspecto percebido por Alf

3
FONTANA, Josep. Por uma história de todos. In: A história dos homens. São Paulo: EDUSC,2004, p.442.
4
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol.I: Árvore da liberdade. 1987, p.9. apud
MENEZES, Marilda Aparecida de. Experiência Social e Identidades: trabalhadores migrantes na plantation
canavieira. In: História Oral, São Paulo: ABHO, Nº3, Junho de 2000, p.52
5
SCOTT, James. Weapons of the Weak Everyday Forms of Peasant Resistance. Maassachusetts: Yale
University, 1985, p.235 apud MENEZES. Op. Cit., p.53.
16

Schwarz6,e que abre caminhos para que nos tornemos sensíveis também às experiências
relatadas.
Para assegurar a autonomia na obtenção dos meios de vida desenvolvem-se
múltiplas práticas cotidianas de resistência, possíveis de serem observadas sob um olhar
cuidadoso voltado para abordagens da cultura, bem como relações entre grupos subordinados
e dominantes, conforme propõe James Scott. Dessa forma, podemos observar “a comunidade
camponesa, parentesco, vizinhança, facção, rituais como espaço de identidade humana e
solidariedade” 7 compondo as experiências que formam a classe.
No seio desta vivência de formas de dominação homens e mulheres se constroem
como sujeitos ativos que lutam pela sobrevivência e dignidade no campo. As narrativas
costuram-se em torno da premissa de um espaço que se desenha a partir das trajetórias
migratórias, englobando duas fronteiras: Ceará – Piauí e a Piauí−Maranhão. Cada um desses
espaços se constitui com características significativas para entender o porquê destes caminhos
trilhados, pontuados, sobretudo, nas suas particularidades físico-ambientais e
socioeconômicas.
Apesar de migrarem por mais de uma vez, isso não os impede de construir nos
espaços estabelecidos uma mínima ligação identitária, onde, mesmo numa relação de trabalho
livre, estes campesinos não escaparam à subordinação para com o fazendeiro, que os colocava
em um cativeiro sutil, embasado em contratos verbais que revelam a dependência do
trabalhador em relação à terra. No esforço de garantir suas condições elementares de
produção ─ chamadas por Antônio Candido8 de mínimos sociais e vitais ─, a economia moral
dos pobres é o que lhes permitia experienciar através do cotidiano práticas de resistência e
negociação no discurso público do poder. (Re)compondo suas teias de vida a cada migração,
cearenses se projetam em futuros em prol do bem-viver da família, de modo que não se
enfraqueça o núcleo familiar, faz-se necessário que todos migrem. A realização de migrações
cearenses em todos os aspectos, seja dentro do próprio Estado ou para fora dele, é uma
“manifestação fenomênica fundamental da sua sociabilidade”9.
Para dar inteligibilidade ao estudo migratório de cearenses, foi necessário
conhecer o contexto socioeconômico e ambiental do Ceará nos anos 30 e adentrar no

6
SCHWARZ, Alf. Lógica do desenvolvimento do Estado e lógica camponesa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
São Paulo, 2(1): 75-114, 1.sem. 1990.
7
MENEZES.Marilda Aparecida de. Op. Cit., p.52.
8
CÂNDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus
meios de vida. 4. ed. São Paulo: Livaria Duas Cidades, 1977, p.27.
9
FERREIRA Assuério. Determinantes Estruturais das migrações cearenses. In: SALES, Celecina de Maria
Veras et al. (org). Terra, sujeitos e condição agrária. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p.49.
17

cotidiano daqueles narradores que à época eram crianças, ou relembram fragmentos de


memórias contadas pelos parentes. Estes fragmentos de memória repassados compõem
também a própria história de vida do narrador, tendo a forma de preservação e retenção do
tempo. Nesse sentido, “história e memória, por meio de uma inter-relação dinâmica, são
suporte das identidades individuais e coletivas” 10.
Este movimento de partir da macro para a microhistória é pensado por Jadir de
Moraes Pessoa, ao analisar pesquisas do âmbito da antropologia e sociologia, e se apresenta
como um traço comum a estes trabalhos. Mediatizado dessa forma, o cotidiano

deixa de ser apenas uma dimensão de localidade, de sincronia, de relações sociais


simplificadamente horizontais e circulares. Em outras palavras, apresenta não apenas
uma dimensão microestrutural, mas também, macroestrutural11.

O cotidiano dos trabalhadores rurais e suas potencialidades são pensados à luz do


conceito de experiência histórica e cultural proposto por E. P. Thompson ─ como um
catalisador de ação social, que se expressava em sistemas de parentesco e de costumes12 ─,
um universo de práticas possíveis desses sujeitos e seus movimentos concretos formadores de
uma consciência social. A maneira encontrada para observar de perto essas experiências
ocorreu por meio de testemunhos orais de agricultores e ex-agricultores cearenses que
migraram em fins dos anos 1940 para o Piauí, comumente ressaltado em estudos sobre a seca
como uma área de parada para os retirantes, ou um corredor de passagem para outros destinos,
tais como a Amazônia.
A naturalização da pobreza não destrava o óbvio, apenas o confirma,
corroborando a perspectiva assinalada por E. P. Thompson ao lembrar que “qualquer
historiador do trabalho conhece bem os interesses e as desculpas de classe que sempre
podem encontrar razões para que os pobres continuem sendo pobres” 13. Reconhecendo essa
miríade de significados, buscamos entender não apenas a maneira como o poder público
equaciona seu papel para com os pobres e o que estes camponeses consideram como pobreza
em suas vidas. Os sentidos múltiplos se espelham nas formas de trabalho pois, de acordo com

10
NEVES. Lucilia de Almeida. Memória, História e Sujeito: Substratos da identidade. In:
História Oral, São Paulo: ABHO, No 3, Junho de 2000, p. 109.
11
PESSOA, Jadir de Morais. Cotidiano e história: para falar de camponeses ocupantes. Goiânia: Ed. da
UFG,1997, p.14.
12
Ver THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 9.ed.1998.
13
Idem. Ibidem, p. 23.
18

André Gunder Frank, “a realidade brasileira é que as mil e uma variações e combinações do
trabalho agrícola misturam-se em todas as regiões” 14.
Os motivos dos trabalhadores cearenses se deslocarem para o Piauí podem ser
elencados em três razões, como fluxos migratórios, que se iniciam na década de 1930 e,
conforme os projetos de vida são reformulados, outros deslocamentos ocorrem.
Através das narrativas dos entrevistados, chegamos aos deslocamentos para o
Piauí ocasionados por conta da seca e seus reflexos: prejuízo às colheitas e morte de criações.
Este é o caso de Seu Damião e Seu Cosme, irmãos gêmeos de 86 anos, que saem em 1942 da
cidade de Nova Russas junto com a família rumo ao município de Miguel Alves, na
localidade Matões, margeado pelo rio Parnaíba, guiado pelas expectativas de melhores
condições de vida alimentadas por parente que lá residia. As histórias evocam do passado um
futuro promissor contrastando com as paisagens desérticas da travessia.
Cristina Frota15, 72 anos, contribuiu com suas reminiscências de menina e,
posteriormente, de mulher adulta para entender as dificuldades da travessia, vindo do interior
de Sobral, com 8 anos, e instalando-se em Miguel Alves. Podemos dizer que a sua trajetória
de deslocamentos no interior daquelas espacialidades, somada à carga de sofrimento pessoal
que lhe marcou, formaram o combustível que a impulsiona a lutar, ainda hoje, pelo seu
pedaço de terra na localidade “Baixão 2”, situada na fazenda Olho D’Água, entre o município
de Miguel Alves e Porto. “Com a mediação da memória, as vivências passadas instruem ações
16
e representações sociais no presente vivido de maneira inequívoca” . Hoje Dona Cristina
manifesta desejo de justiça pela terra onde morou criou seus filhos e enterrou sua mãe.
Outras migrações ocorreram em virtude de desarranjos familiares nos quais alguns
membros se desentenderam, geralmente, por questões de herança e partilha de bens,
resultando no movimento migratório. Este é o caso de Isídio Pereira Farias, 78 anos17, que
saiu do interior de Ipu no Ceará em 1949 com pais e irmãos, morando quase dois anos na
capital piauiense para depois retornar ao interior de José de Freitas, e de lá voltar
definitivamente para Teresina mais de 30 anos depois. À sua experiência de trabalhador

14
FRANK, André Gunder. A agricultura brasileira: capitalismo e mito do feudalismo-1964. In: STEDILE, João
Pedro (org) A questão agrária no Brasil 2: o debate de esquerda (1960-1980). São Paulo: Expressão Popular,
2005, p.51.
15
CRISTINA Frota, entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de Miguel
Alves-PI.
16
SANTANA Charles d’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia
1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998, p.17.
17
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.11.2016, na cidade de
Teresina-PI.
19

agregado em fazendas somaram-se os ofícios de carpinteiro, vassoureiro. Hoje é aposentado


residente no bairro Piçarreira.
Francisco Manoel de Assis, 78 anos18, ainda era rapazote quando tentou fugir sem
sucesso de sua terra natal São Benedito, em virtude de uma injustiça vivida e sentida. A
revolta contra o proprietário que também era tio convence o pai e a família migra para o Piauí,
em 1954. Continuou trabalhando, de roça e como vaqueiro, em cidades distintas do
EntreRios, José de Freitas, Altos, migrando novamente, já casado, para Teresina, na década de
60. O trabalho de roça continuou em propriedades próximas, só parando por motivos de
doença e insistência das filhas.
Outros depoimentos revelaram deslocamentos motivados por não haver aparente
situação conflituosa no lugar de origem, mas tão somente por melhorias de vida
proporcionadas no Piauí, ou também o isolamento, quando os familiares vão-se deslocando
gradativamente. A fala de Ana Gomes de Azevedo Lima, 67 anos 19, demonstra bem como
ocorreram esses deslocamentos da família, cujos primeiros membros saíram do interior do
município de Mucambo (CE), em 1942, e instalaram-se no município piauiense de Matias
Olímpio. Dez anos depois seus pais migraram e instalaram-se no interior do município de
Esperantina (PI). As terras herdadas do avô foram repartidas entre os irmãos e quando chegou
sua “hora e vez” o pai de dona Ana resolveu ir, em busca de um bem-viver. No Piauí ele
viveu na condição de agregado até poucos anos antes de ir para Teresina, para junto dos
filhos, e vir a falecer.
O motivo da migração de Antônia Portela, 87 anos20, está relacionado à vinda de
um irmão que se casou com uma teresinense e veio “fazer a vida” aqui. Posteriormente, ele
convenceu seu pai e a ela Dona Antônia de vir para Teresina. Ela, recém-casada com um
tropeiro pernambucano, veio para Teresina, em 1954 com promessas de auxiliar o marido na
profissão de pedreiro. As desilusões dos meios de vida os fizeram voltar a Crateús e,
posteriormente, retornar para o interior de Altos no Piauí. De todos do grupo estudado, Dona
Antônia é a única que experienciou o retorno para o Ceará e a volta para o Piauí na
perspectiva de projetos prósperos naquela localidade.

18
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
19
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
20
ANTÔNIA Portela de Sousa. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.02.2018 na cidade de
Teresina-PI.
20

A migração sofrida marcou a trajetória dos pais de Seu Paulo Furtado de Melo, 76
21
anos , que vinham de cidades cearenses distintas. O pai viera de Tianguá e a mãe de Sobral,
ainda crianças, por volta de 1932. Em Miguel Alves, conheceram-se e casaram-se. Seu Paulo,
assim como o pai, trabalhou de roça a vida inteira. Sem filhos, em 1997, aventurou-se para
Brasília, trabalhando 7 meses em uma horta que fornecia alimentos para escolas. Em 1998, a
ausência da esposa o faz retornar, realizando seu sonho de ter seu próprio terreno e passar o
fim dos seus dias plantando.
Em função das agruras da seca, os avós de Seu Domingos Gomes da Silva22, 81
anos, viúvo, migraram do sertão piauiense para o município de União-PI, em período
concernente à seca de 1932. Ele mantém vivos alguns fragmentos de memória que lhe são
preciosos sobre trabalho, migração e luta.
Esse também é o caso de José Domingos da Costa,72 anos,23 mais conhecido
como “Seu Zé Novecentos”, nome pelo qual nos autorizou chamá-lo na pesquisa. A bisavó de
Seu Zé enfrentou as agruras da seca no início do século XX saindo do interior do sertão
cearense para José de Freitas, onde seus desejos de melhorias de vida arruinaram-se ao
encontrar-se no mesmo quadro de penúria e miséria.
Todos os relatos orais se costuram em prol de uma perspectiva: a melhoria das
condições de vida, tecidas não apenas na promessa de parentes, mas também no “ouvir
contar”, histórias sobre melhores patrões, água disponível, mais chuvas, menos estiagens e um
“mar verde” de babaçuais e carnaubais, possíveis fontes de rendas para famílias. Estes dizeres
vão delineando no imaginário dos migrantes a ideia de que ir para o Piauí, apesar de ser um
estado pobre sem grandes economias de ciclo, como a Bahia e a zona canavieira, ou o
Maranhão e suas terras ainda devolutas, oferecia oportunidades plausíveis para estas famílias.
Este processo de “fabricação” da entrevista, que se faz no campo dialógico, é um
exercício de alteridade no intuito de fazer com que o próprio narrador reconheça elementos
importantes na sua trajetória de vida. Assim, “os entrevistadores podem contribuir para
revelar a história desprezada – até aquela ignorada e suprimida na história de vida do
próprio contador de histórias”24.

21
PAULO Furtado de Melo. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de
Miguel Alves-PI.
22
DOMINGOS Gomes da Silva. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em
27.01.2018 na cidade de União-PI.
23
JOSÉ Domingos da Costa, Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 26.01.2018, na cidade de
Teresina-PI.
24
HARRITS; SHARNBERG, Kirsten Folke Ditte. Encontro com o contador de História: um processo de
aprendizado mútuo. In: História Oral, São Paulo: ABHO, Nº3, junho de 2000, p.27.
21

Segundo Kênia Rios

Nesse encontro com o outro da voz, aquele som preso na garganta não deseja
simplesmente despejar uma gama de informações sobre um período ou um
acontecimento. Ele deseja ser dono da voz, impor seus desejos, denunciar suas
dores, vomitar seus infortúnios, convencer o pesquisador a fazer parte de sua luta, do
entendimento do dito como lugar que deve ser respeitado e ecoado 25.

As narrativas são elaboradas na temporalidade comum de saídas, travessias,


fixações nos novos espaços e, em alguns casos, novas migrações, em especial para Teresina,
um processo que marca mais profundamente a vida dos sujeitos, posto que a obtenção dos
meios de vida muda radicalmente. Entender essas trajetórias de vida e suas peculiaridades só
se torna possível através do estudo das narrativas destes personagens, pois “a história oral
abre alternativas de captar o vivido no interior de uma cultura predominantemente marcada
pela oralidade”26. Ela abre outras dimensões de pesquisa para o historiador, servindo para
atentar aos diversos indicativos de migração.
Durante as décadas de 40, 50 e 60 os fluxos migratórios destes sujeitos rumo ao
Piauí (re)formulam seus projetos e sonhos, fazendo com que novas migrações acontecessem
no interior do Estado, em particular nas décadas seguintes, quando estes traçam aquela que
parece ser sua última travessia, desta vez rumo à Teresina. Esta nova mudança é fundamental
para perceber nas marcas da memória a confirmação de novas redes de solidariedade,
construídas em meio urbano e nos costumes gerados nos meios de vida que foram subtraídos
no campo; a vida na cidade desvela continuidades mas também rupturas; os subúrbios que
acentuam a subalternidade do sujeito que, de campesino, passa à condição de trabalhador
pobre urbano. Questões se ramificam da função primordial de sobrevivência da família, tais
como a escola para os filhos e a obtenção de uma moradia digna.
Como compreender essas constantes buscas por esses desejos? Como mergulhar
no cotidiano dessas pessoas e enxergar um mundo de experiências e tensões que compunham
o tecido de muitas vidas? Os sujeitos com os as quais dialogamos e buscamos entender seus
cotidianos não se caracterizam por deixar amplos registros, realidade que se agrava quando se
tratam de trabalhadores que nunca participaram de sindicatos27. A chave para esta questão
está no testemunho oral, fonte de uma cultura marcada predominantemente pela oralidade. O
relato pessoal é também catalisador de lembranças e fragmentos de um grupo, posto que

25
RIOS, Kenia. Quando novos personagens continuam entrando em cena. O encontro com a voz do outro e
com o outro da voz. Palestra de Encerramento do ERHH – Nordeste, p.6.
26
SANTANA.Charles d’Almeida. Op. Cit., p.41.
27
Ver HAHNER, June E. Pobreza e Política: os pobres urbanos no Brasil (1870/1920). Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1993.
22

“deixou de ser visto como exclusivo do autor, tornando-se capaz de transmitir uma
experiência coletiva, uma visão de mundo tornada possível em determinada configuração
histórica-social”28.
De acordo com Rios

Não se trata de heroicizar ou vitimizar os indivíduos implicados no texto. Nossa


participação deve ser capaz de abrigar as formas que também os narradores
produzem para editar suas histórias de vida. Enfim, a imaginação a serviço do
encontro com um mundo mais complexo. Para os pobres, um mundo desejado,
sonhado a exemplo do país de são saruê, onde os rios são de mel e as pedras de
cuscuz; lugar fantástico que dá forma narrativa à grande utopia na luta por terra e
comida.29

Os relatos da vida nos oferecem visões de mundo capazes de se mostrarem como


novos horizontes de perspectiva na medida em que confrontam generalizações. Viver de roça
não se restringe a contar histórias sobre escassez e fartura, mas todo o campo possível de
práticas de sobrevivência que vem a acontecer na espacialidade que ele vive, seja no sítio, na
fazenda, no bairro rural. Sobre condições de trabalho diversas, “a oralidade provoca
relativizações de qualquer verdade pronta, acabada e universal”30, como as expostas
anteriormente, de um homem do campo “passivo”, que estão mais para sujeitos que “sofrem a
história”. Para confrontar esta versão, temos em mente que

é necessário examinar as realidades concretas e complexas das vidas dos


trabalhadores brasileiros: as dimensões precisas de sua pobreza, as formas
específicas de exploração a que eram submetidos e as maneiras pelas quais
demonstravam seu sofrimento31.

Na relação dialógica entre entrevistado e entrevistador encontramos também a


subjetividade expressa em gestos, expressões no próprio silêncio, sobressaltos e reviravoltas.
A montanha-russa das temporalidades exige da história oral paciência e honradez; os ritmos
acelerados revelam narradores ávidos para contar sobre suas vidas, mas muitos ainda
necessitam do instigar das perguntas. Insistem em apequenar e resumir os longos anos de
labuta, “é só isso que eu tenho pra dizer”, afirmava Seu Isídio Farias, na tentativa sem sucesso
de resumir sua travessia até chegar à Teresina. Na construção da entrevista mesmo o silêncio

28
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. 2ª
ed. São Paulo: Contexto, 2006, p.163.
29
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.7.
30
SANTANA. Charles d’Almeida Op. Cit., p.21.
31
HAHNER, June. Op. Cit., p.10.
23

tem sua importância subjetiva, “e pode tornar-se particularmente relevante quando tomamos
a própria parcimônia do discurso como objeto de reflexão”32.
A hesitação ou a vontade de falar a respeito de determinado contexto peculiariza
cada entrevista, aonde novos detalhes vão aparecendo ou a mesma história é contada de outro
modo, indicando que a cada maneira na vida das pessoas se apresentam destinos possíveis, as
memórias mudam ao serem (re)contadas. Dessa forma os diálogos se constroem não no
sentido de apenas informar às perguntas feitas pelo entrevistado, mas no sentido de contar
histórias, que fluem à medida que o passado é evocado, uma distinção importante conforme
assinala Benjamim: “Hoje em dia, quase nada que acontece beneficia o contador de
histórias; quase tudo beneficia a informação. Na verdade, metade da arte de contar histórias
consiste em manter uma história livre de explicações quando a reproduzimos”.33
A cautela com as entrevistas orais revela um primor metodológico que permite
entrever gêneros da expressão oral, facilmente despercebidos em outros tipos de entrevista.
Dessa forma, anedotas e causos, como as contadas por Seu Damião, são territórios seguros na
demarcação da linguagem do discurso. Vidas que se postam significativas, a magia da
sobrevivência diante das dificuldades recorrentes na exploração da terra, no sucesso ou
insucesso do pagamento da renda, o esforço em retirar o necessário para a família e gerar o
excedente.
Sensibilidades permeiam o imaginário de escritores e contistas, refletindo os
sentimentos de miséria e solidão próprios do cenário da seca. Em O Quinze, de Raquel de
Queiroz34, saltam aos olhos, como em um quadro comparativo, a fala dos narradores e as
cenas vividas por Chico Bento e sua família, as paisagens desoladoras que desnudam pastos e
gretas, o sentimento da longa travessia. Em um trabalho acurado, Queiroz escreve sobre a
seca de 1915 e nos revela sensações táteis que coroam também os relatos, deixando-os mais
vivos.
A obra O Casarão do Olho D’Água dos Azevedos, de Maria Francisca Azevedo35,
retrata a vida campestre de uma fazenda no município de União, mas bem poderia se encaixar
na descrição das propriedades onde agricultores moraram e trabalharam. A perspectiva
romântica pincela a relação entre os patrões com seus empregados em uma fazenda de nome
tão singular que sugere o seu povoamento e sujeição às situações diversas de trabalho, afinal o

32
ALBERTI, Verena. Op. Cit., p.173.
33
BENJAMIM.Walter. Op. Cit., p.89 apud HARRITS, SHARNBERG. Op. Cit., p.29.
34
QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,105.ed. 2016.
35
AZEVEDO, Maria Francisca. O Casarão do Olho d’Água dos Azevedos. 2ª edição. Teresina: COMEPI,
1992.
24

“olho d’água” está na terra dos Azevedos, demarcando o ponto-chave para a concentração e
conexões de pessoas naquela localidade, a água. O “patrão benevolente” é uma figura
constante na memória da autora, bem como a “passividade” de seus empregados. No entanto,
as narrativas mostram que esta obediência é explorada pelos trabalhadores para obtenções
posteriores de ganhos ou vantagens, revelando que seus gestos e ações operam em um
discurso oculto que potencializa os camponeses como sujeitos ativos e capazes de lutar pela
sua dignidade.
O apadrinhamento é a característica do aparato colonial que se desdobra nas
relações, na medida em que o trabalho livre só encontrava terreno fértil em relações de
dependência dos mais diversos graus. Com a crise do escravismo, ele se configura de uma
maneira diferenciada, e o termo “assalariado” não cabe para definir esse regime de produção
direta dos meios de vida com base na unidade familiar, pois destrói a possibilidade de
remuneração, posto que entrega seu excedente de forma direta36 . Ainda assim, o capitalismo
redefine essas relações, subordinando-as ao capital (neste caso, o excedente é vendido e
utilizado para a compra de produtos que o trabalhador não pode produzir), engendrando
também relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à produção37. Com o
valor agregado a terra, esta se torna cativa, e o cativeiro se desdobra nas mais diversas
relações pessoais, onde a figura do proprietário configura-se para estes sujeitos como alguém
de boa índole, que cede uma rede de favores em troca de prestação de serviços ao lavrador e à
sua família.
A história social do campesinato brasileiro tem voltado suas pesquisas nos últimos
anos para o estudo cultural. A constituição do campesinato, suas pequenas táticas e estratégias
de resistência, sua capacidade de formular projetos de vida são apenas alguns dos temas
resultantes do movimento de desconstruir a figura do camponês de atraso, de fragilidade
política e de dependência. Conforme assinala Maria Yeda Linhares, abordar o mundo rural no
Brasil é “estudar as ações de homens de vários grupos sociais, e a suas múltiplas maneiras
de agir e pensar” 38. Dessa forma, estudar a vida de camponeses migrantes cearenses de 1940
a 1970 no Piauí contribui para elucidar estas questões, problematizando experiências de um
campesinato que se deslocou de municípios cearenses próximos da fronteira com o Piauí.
Localizados em regiões com características naturais distintas, São Benedito, Ipu e Tianguá, na

36
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec,6.ed. 1996, p.19.
37
Idem. Ibidem, p.20.
38
LINHARES, Maria Yeda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira. História da Agricultura Brasileira – combates
e controvérsias. São Paulo :Editora Brasiliense, 1981.
25

região serrana mais úmida da Ibiapaba relatam motivos diversos dos narradores vindos de
Nova Russas e Sobral, no sertão cearense, que migraram por motivos de seca, mas todos em
busca de condições melhores de sobrevivência e relações de trabalho mais dignas. Ao longo
dessas três décadas, guiados pelas suas narrativas, pontilhamos o locus da pesquisa no intuito
de compreender como a trajetória desses homens e mulheres se entrelaçam com seu cotidiano
de trabalho, revelando uma pluralidade de experiências que devem ser problematizadas.
Na esteira de estudos sobre o campesinato piauiense que versam sobre cotidiano,
trabalho e processos de luta, demonstramos interesse pela trajetória de sujeitos que em seus
gostos e costumes simples entrevê-se uma série de experiências notadamente (re)conhecidas
por sujeitos migrantes que viveram do cultivo da roça, a constituição de redes de
solidariedade e o desejo que fomenta o deslocamento sempre em direção de uma vida melhor.
Instalando-se em municípios piauienses, adequando-se àquele novo contexto de buscar por
uma melhoria de vida contida no espaço do campo, o campesinato do qual estamos à espreita
vive dos seus meios de subsistência, inserindo-se no mercado quando o produto da safra do
trabalho gera um excedente, e seu espaço de comercialização é restringido por influência
direta do proprietário (ou pela tentativa deste de cercear o comércio de excedentes gerados).
Nesse sentido, os narradores e suas famílias não se inseriram na lógica
desenvolvimentista que arregimentou várias comunidades em cooperativas agrícolas cuja
produtividade era definida pelo Estado, e das quais o Piauí, em consonância com o projeto
agrário destinado ao país, implantava em seus municípios. Em nossos relatos não
encontramos testemunho em cooperativas, somente experiência de vida de homens e mulheres
em sua maioria na condição de agregado em terras de fazendeiros, ou seja, práticas de um
campesinato marginal em relação ao projeto desenvolvimentista e tecnocrata do Estado que já
rendia seus frutos.
A trajetória percorrida pelos narradores nos permitiu delinear o espaço a ser
estudado. O recorte espacial “EntreRios” proposta pelo PLANAP39 (Plano de Ação para o
Desenvolvimento Integrado da Bacia do Parnaíba) promove um agrupamento de municípios
necessário com o qual é possível estabelecer conexões com a espacialidade dos narradores.
Nesta busca por água, terra e comida, discurso de Relatórios e Mensagens de Governantes

39
O Planap está sintetizado em 16 volumes com todas as informações referentes ao estudo realizado durante o
ano de 2005. Os territórios em análise são o da Planície Litorânea, dos Cocais, dos Carnaubais, EntreRios; do
vale do Sambito, do rio Guaribas, do rio Canindé, dos rios Piauí e Itaueiras; da Serra da Capivara; Tabuleiros do
Alto Parnaíba e Chapada das Mangabeiras. O Território EntreRios subdivide-se em outros 4 aglomerados, onde
o Aglomerado nº 7 engloba os municípios de Miguel Alves, União, José de Freitas, Teresina, Altos, Coivaras e
Alto Longá.
26

piauienses do período em estudo apontavam as terras do EntreRios como muito


“uberosíssimas”, destacando-as como propensas para diversos tipos de cultivos, fator que
visava atrair investimentos e indiretamente tornou-se destino de muitos migrantes, ainda que o
objetivo das propagandas estivesse associado ao cooperativismo.
A produção de um artigo sobre agricultura e abastecimento no Piauí em fins do
século XIX40 me estimulou a pensar este objeto de estudo, à luz de pesquisas na historiografia
piauiense e sua prioridade por aspectos econômicos. A inteligibilidade construída em torno da
inserção da economia piauiense no mercado nacional e internacional tomou a forma de uma
linha do tempo que conduzia a evolução da economia piauiense de vaqueiros e criadores de
gado ao período áureo do extrativismo. Através de dados e estatísticas, tentaram recompor um
quadro econômico eivado de grande influência de algumas interpretações a respeito do Brasil.
O término da escravidão conduziu a um novo olhar sobre as relações de trabalho que se
ressignificaram, e assim, a partir da década de 30, pesquisadores aprofundaram sua análise e
perspectivas. Com isso, “as monografias sobre temas específicos, vão progressivamente
ocupando seu espaço”41, problematizando outros temas que se encontravam olvidados pelo
debate político e cultural conduzido no século anterior.
Tais ideias impulsionaram o debruçar-se sobre o não dito por detrás do que era
chamado de pequena produção ou mesmo agricultura de subsistência. O interesse partiu da
necessidade de entender como questão-rizoma42 os deslocamentos desses camponeses (e em
alguns casos, pequenos proprietários) para o Piauí movidos pelo desejo de uma melhoria de
vida, mas continuando com o mesmo status social de camponês pobre. A economia moral
desenvolvida por eles desdobra-se em estratégias de sobrevivência que possibilitam conviver
com a pobreza, definindo os passos da família, seus medos, expectativas e sonhos. A
insegurança alimentar, o medo do não-pagamento da renda, promessas de melhor vida na
cidade, escolarização dos filhos, produzem uma marca indelével de resistência do agricultor
pobre no seu trabalho com a terra, determinando as condições que o levem a permanência em
determinada propriedade ou a uma nova migração.
“Viver de roça” era a fonte de trabalho também de muitos piauienses, mas o
movimento migratório é a chave para elucidar aspectos do trabalho como agregado, tais como

40
COSTA, Lia Monnielli F. “O mesquinho pão das mil e uma dificuldades”: imigrantes, abastecimento e
tensões políticas no discurso do jornal piauiense “A Época” (1878). Revista Vozes, Pretérito e Devir. Ano III,
v. IV, p. 25-41.
41
RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2011, p.22.
42
O uso deste termo não se refere aos estudos de Gilles Deleuze,sendo empregado somente no seu sentido
etimológico, de uma ideia central que leva a outros questionamentos.
27

as rupturas e permanências possibilitadas pela vivência em outro lugar, por uma nova moradia
obedecendo a novos patrões, onde os costumes assumem a característica da teia condutora
que permite a estas pessoas reconfigurarem seus espaços sociais.
O movimento migrante é central para observar como o processo de rupturas e
permanências desnudam as práticas de trabalhadores migrantes. Nesse intuito, cuidaremos
aqui de cearenses que tenham migrado para o Piauí a partir da década de 1940 e se instalado
nos municípios já mencionados anteriormente; não olvidando que o recorte, partindo de 1930,
faz-se necessário para o entendimento da estrutura paternalista e dar a ver como ela penetra
nas relações de trabalho no campo. No cruzamento de relatos de migrantes muitas vezes não
se encontram motivos que em outras ocasiões seriam indubitáveis para se sair da terra natal,
como a seca. Daí porque, consideramos que o que move essas famílias é primordialmente o
desejo por uma vida melhor.
As entrevistas se iniciaram em 2015 e se estenderam até o presente ano de 2018,
constando neste trabalho o resultado do diálogo partilhado com os narradores, vindos de
diferentes municípios do Ceará que compartilham a experiência do “viver de roça”. Para
montar a colônia de narradores, buscamos não só laços familiares, mas também vizinhos e
amigos que porventura viviam com essas pessoas e que possam enriquecer com suas
experiências a escrita deste texto; estes homens e mulheres nos dão pistas, através dos seus
relatos, sobre os passos seguintes, retomando a nova abordagem proposta por Alistair
Thomson: o foco da entrevista é não somente a busca pelo conteúdo, mas a forma como essas
lembranças são afloradas, tornando-se desse modo a chave para entender significados
subjetivos silenciados nas fontes escritas43.
O resultado da construção deste objeto de pesquisa organizou-se nos itens a
seguir. O segundo capítulo intitulado “Pontos de partida e horizontes de chegada” trata de
discutir as razões pelas quais esses migrantes se deslocaram com suas famílias rumo ao Piauí,
destacando suas perspectivas de melhoria de vida e a função da parentela como elemento de
atração para o novo espaço. O entendimento das relações de trabalho que se desenvolveram
no Ceará possibilita entendermos pelo prisma do paternalismo dos anos 30 as migrações de
cearenses a partir dos anos 40 para o Piauí, abordado no tópico 2.1: “Terra, trabalho e
migração: processo migratório de cearenses para o Piauí”. Naturais de diversas localidades,
algumas delas próximas com a fronteira do Piauí, estes migrantes deslocam-se para o

43
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias.
In: Projeto História, São Paulo, abril de 1997, p.56.
28

EntreRios em prol de uma vida melhor, por um convite de alguém da família, ou por
desentendimentos familiares. Os motivos das saídas e as expectativas das travessias, além de
percepções da mudança de paisagens são perscrutados em narrativas orais de homens e
mulheres.
No tópico 2.2 “O Ceará é uma terra boa, mas não chovia”, abordam-se sobre as
famílias que se deslocaram em virtude das agruras da seca, evidenciando ao mesmo tempo
motivos pelos quais escolheram municípios do EntreRios como novo lugar para viver e
morar.
O tópico 2.3 “‘Roubar a idade’ e o enredar familiar nas travessias” trata das
migrações motivadas por desarranjos familiares, partilha de heranças ou busca por outros
lugares enquanto parte da família quer ficar, fomentando algumas querelas que resultaram na
migração. A unidade da família também era um elemento muito importante de deslocamento,
uma vez que era importante para o camponês mantê-la coesa.
O tópico 2.4 “Travessias, veredas e o ‘mar de fogo’” trata do processo de travessia
das famílias até chegar ao Piauí elegendo como ponto alto para que esses deslocamentos
acontecessem as sociabilidades possíveis e teias de solidariedade ao longo das trajetórias,
abordando também a relação entre as mudanças no bioma e as implicações de melhoria de
vida.
O terceiro Capítulo “Viver no EntreRios” destaca como foi a chegada e o processo
de acomodação destas pessoas em território piauiense, destacando como foram-se construindo
as redes e trabalho e se as expectativas ao migrar foram alcançadas. A vivência no EntreRios
se configura em um processo de lutas cotidianas pela sobrevivência, onde o trabalhador rural
se esforça para, através de contratos verbais com o proprietário, manter os costumes e
experiências que traduzem sua dignidade. Também estamos à espreita de significações do
universo rural, como a fartura, bem como entender os percalços da memória para o
trabalhador campesino.
O tópico 3.1 “Interpretações a cerca da agricultura de autoconsumo no Piauí”
relembra as visões sobre a agricultura de subsistência no Piauí à luz da historiografia
produzida na perspectiva econômica. O tópico 3.2 trata da formação de novas redes de
trabalho e de solidariedade, além de compreender se as expectativas ao migrar foram
alcançadas, à luz dos depoimentos orais que revelam também características das relações de
trabalho dos municípios piauienses em que vivem/viveram.
29

O tópico 3.3 “Resistência e discursos ocultos dos narradores migrantes” esforça-


se para entender os diversos tipos de resistência cotidiana empreendidas pelos camponeses no
seu processo de luta e negociações com os proprietários. Neste ponto, compreendemos como
os discursos ocultos dos subordinados são partilhados em torno dos direitos comuns.
Nos tópicos 3.4 “Algumas observações sobre a ‘fartura’ camponesa” e 3.5
“Cultura e Cartografias de Memórias” são abordados aspectos presentes nas narrativas de
migrantes que chamam a atenção para suas significações no universo da cultura rural, bem
como meandros da memória no processo de relembrar o passado, tendo como suporte a
oralidade.
O Capítulo 4 “Ecos de uma vida camponesa na capital” se define dos migrantes
que realizam um novo deslocamento desta vez para Teresina, em virtude da continuidade da
busca por melhores condições de vida, e surgimento de outros desejos. O capítulo trata da
mudança da subalternidade estrutural do sujeito campesino para pobres urbanos, desdobrando
os desafios e obstáculos da vida na cidade, bem como a maneira como os narradores se
utilizam de estratégias de sobrevivência na luta cotidiana para morarem na cidade. Após
muitos anos e desligados do campo, eles revelam que os costumes que endossam a economia
moral não se descolam, criando para si um espaço de saudade.
No tópico 4.1 “Um cenário modernizante: ‘Teresina acontecendo’” buscamos
entender a espacialidade vivida por esses sujeitos e como as famílias se arranjam no espaço
urbano. A condição de vida na cidade mostra a necessidade de habitar em bairros periféricos,
contribuindo para o processo de suburbanização.
A dificuldade para reproduzir a cultura camponesa e a busca por outros ofícios são
as questões centrais do tópico 4.2 “Viver na cidade: ‘profissão de operário’ e outras
sociabilidades”. Consolidando a passagem da sua condição subalterna de sujeito campesino
para pobre urbano, estes trabalhadores constroem outras teias de sociabilidades, além dos
vínculos mantidos com pessoas que ficaram no outro município piauiense.
O tópico 4.3 “Cartografias de Saudade: ‘Tem dia que eu choro quando eu vejo
chover’” é centrado no sentimento de saudade que retoma o elemento do Ceará como fio
condutor dessa economia moral, o que os identifica mais no território EntreRios.
Evidenciamos que estas narrativas evocam um tempo ausente- o tempo da fartura,
das redes de solidariedade com os parentes e com a vizinhança, que no presente dá lugar para
a saudade, daquilo que lhes toca. Nesse sentido, as experiências destes contadores de histórias
somam-se a de tantos outros trabalhadores que carregam consigo o único registro dessa
30

trajetória de lutas cotidianas: a sua voz. Através não somente do que é dito, mas também da
sua performance, é “a marca dos sem escrita, manifestada com a força do corpo, como desvio
sem margem, sem linha. O som que só poderia ser entendido a partir do seu suporte vocal: o
corpo do falante”44. É nesse misto de evocação, sons e silêncios, diálogo e escuta que
perscrutamos a história social do campesinato piauiense.

44
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.2.
31

2 PONTOS DE PARTIDA E HORIZONTES DE CHEGADA

Para nos aproximarmos das estratégias de sobrevivência destes migrantes


devemos analisar a década de 30 e a maneira como aquele contexto político-econômico
influenciou seus projetos de vida. O cenário da seca recorrente no Ceará revela as relações de
dependência entre proprietários e agricultores, como uma ramificação do paternalismo
oligárquico assegurado pelo Estado e que não se extirpa com a Revolução de 3045.
A importância da manutenção da rede de favores traduz uma preocupação que
surge à medida que cada vez mais pessoas saem do interior dos municípios assolados pela
estiagem rumo à capital cearense ou outros Estados. Havia um medo de que aquelas
populações famintas começassem a agir “contra a civilidade”, resultando em saques em
reação ao período de escassez, mantendo dessa forma as chamadas frentes de emergência,
capazes de conter a multidão nos seus municípios de origem, evitando deslocamentos de
pessoas rumo à capital, que já se ressentia com o dissabor de ver os pobres esmolando nas
calçadas das ruas46.
Na interface da relação entre proprietário e agricultor está uma gama de costumes
potenciais de significados, onde a submissão, frequentemente associada ao homem do campo
como uma característica indelével da figura patética do jeca, adquire outros matizes,
tornando-se um instrumento de negociação, onde o agricultor possa também se beneficiar.
Entretanto, o apadrinhamento não induz necessariamente a uma completa aceitação de todas
as negociações que beneficiem aos patrões. Pode haver conflitos, conforme pontua Rios:
“mesmo a submissão é uma forma de se conseguir certos objetivos, mas caso contrário os
pobres costumam desenvolver suas rebeldias de modo mais explícito”47.
Os narradores que contribuem com suas experiências para entender a
sobrevivência no cultivo de roçados viveram este momento. Basicamente as condições nos
municípios cearenses de onde partiram não representavam mais um sustentáculo para a
família, tampouco o proprietário da terra onde moram oferece outras opções. Alguns migram
por conta de reflexos da seca, parca produção que força à saída. Outros vieram pelo interesse
45
Ver NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de
Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000.
46
Ver RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: isolamento e poder na seca de 1932.
Fortaleza: museu do Ceará/Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006.
47
Idem. Ibidem, p.42.
32

genuíno de mudar de vida, sair da situação de “muito pouco” em que se encontravam.


Desentendimentos familiares também poderiam selar o destino como migrante.
Assim, o Piauí desponta como a terra que de fato a vida poderia melhorar, onde se
sabe, continuaria o trabalho em terras alheias, mas na espera de que a produção familiar colha
êxitos. Outros sertões figuram como possíveis destinos, tais como o Médio-Mearim
Maranhense e Oeste Amazônico, seringais e castanhais, para onde cearenses migravam não
apenas por conta de seca, mais iam “de bonito”. O teor de aventura revelaria sua face negra, a
última fronteira do Brasil é selada com o suor e sangue de homens que nunca voltariam para
suas famílias.
Demarcar, apontar localização exata é tarefa difícil. O mapa dos narradores é
desenhado passo a passo no rastro deixado pelos pés, em cada parada da travessia. Identificar
o “por onde veio”, revela a mesma dificuldade do “onde morou pela primeira vez”. A
confusão está na própria ideia de sertão, fluida, posto que ainda haja um pouco deste sertão
místico reminiscente do século XIX. Essa característica é também encontrada no Piauí ao se
tentar delimitar o espaço a ser estudado em virtude de mudanças na cartografia dos interiores;
uns foram englobados a outros, outros mudaram de município ou deixaram de existir. O
sertão que pretendemos investigar é este construído pelo trabalho, laços de convivência e
família.
Miguel Alves, José de Freitas, União, Esperantina e Altos foram palco de
(re)construção de vidas e organização de novos projetos. Constituíram-se redes vicinais, tão
caras para a sobrevivência destes migrantes. Plantou-se e colheram-se com júbilo muitas
quartas de arroz, feijão, milho, das quais pagavam renda. Mas essa passividade aparente
oculta todo o jogo de tensões que permeiam estas relações de trabalho não capitalistas.
Amargou-se na saudade momentos tristes, perda dos parentes, perda das lavouras. Tomado
como mais um tema generalizado em seu estudo, o pobre é naturalizado com facilidade. Por
exemplo, Pe. Cláudio Melo, tentando entender a pobreza piauiense afirma:

Do ponto de vista de sua natureza indivídua, o pobre é uma multiplicidade de


carências, formando um verdadeiro emaranhado, de modo a logo se perceber que o
seu estado de vida, muito mais que circunstância, é uma verdadeira estrutura.
Queremos dizer com isto que o pobre é assim, por um complexo de fatores tão
estreitamente unidos e interdependentes, que dificilmente se pode explicar
satisfatoriamente o porquê de sua condição 48.

48
MELO, Pe. Cláudio. A pobreza piauiense :um tema para reflexão. Trabalho apresentado aos Dirigente da
província Eclesiástica do Piauí com vistas a uma Pastoral com os Pobres. São Raimundo Nonato,1976, p. 30.
33

Nesse ponto de vista, o difícil emaranhar de causas legitima a explicação simplista


das classes dominantes, algo que mesmo num contexto de uma agricultura tão frágil, ainda é
possível falar de fartura e de “enriquecer”, potenciais em seus significados.
As narrativas desses agricultores e agricultoras caracterizam-se como histórias de
vidas. A preocupação não reside unicamente no tema, mas na trajetória do entrevistado.
Nestas experiências, detectamos uma ética de subsistência que é evocada em cada impasse na
relação entre agregados e proprietários; estratégias de resistência com base numa economia
moral que são cotidianamente testadas.
Diante destas questões, entendemos que a entrevista se traduz numa “experiência
de igualdade na qual dois sujeitos escancaram suas desigualdades e as anulam, fazendo
delas território de suas trocas”49. Para chegar ao cotidiano destes trabalhadores, ficamos
atentos às falas, principalmente àquelas que mais lhes marcaram.

2.1 Terra, trabalho e migração: processo migratório de cearenses para o Piauí

A década de 30 selou o destino de muitos cearenses e suas sobrevivências em


meio ao flagelo da seca. Prenunciada em 1931, ela se confirma em 1932 após a ansiosa espera
pelas chuvas que viriam no dia 19 de março, dia de São José. Legitima-se o longo período de
estiagem e centenas de migrantes se deslocam para as estações ferroviárias rumo não só à
Fortaleza, mas a diversos outros cantos do país, que em suma seriam destinos possíveis onde
se pudesse melhorar de vida. Assim, figuraram-se, por exemplo, os seringais do Amazonas e
o “Eldorado Maranhense”, na região do Médio Mearim naquele Estado, para onde pessoas
migraram com ideias e desejos de um futuro promissor.
Em decorrência da seca no Ceará, pelas estradas de ferro de Baturité e de Sobral
saíam trens apinhados, recolhendo gente e mais gente, dos municípios que atravessavam e de
outros mais distantes. Mesmo com a suspensão de passagens em algumas cidades em fins de
1932, os trens ainda partiam lotados de flagelados.
Enquanto isso, Campos de Concentração procuravam manter as famílias no
Sertão, evitando a migração para Fortaleza via trilhos, que eram antes de tudo o símbolo de
progresso da “Capital da Luz” causando curiosa confusão, pois:

49
PORTELLI, Alessandro. A entrevista de história oral e suas representações literárias. In: Ensaios de história
oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p.13.
34

Criava-se, então, um paradoxal desejo sobre a construção e o alongamento das


Estradas de Ferro: o interesse da burguesia industrial e comercial era consolidar cada
vez mais o capitalismo em Fortaleza; no entanto a estrada de ferro trazia, também, a
miséria que se queria longe da capital50.

Dessa forma, os Campos eram uma maneira de lidar com esse curioso
antagonismo como uma válvula de escape. O controle de corpos através do racionamento de
alimentos e da higienização contrastava com a vida dessas pessoas que sobreviviam nestes
espaços, sem conseguirem nem o básico, nem o necessário para pagar a renda ao patrão. O
cenário que acontecia em 1930 já ocorrera em 1877 e se repetia há vários anos. De acordo
com Neves, a partir deste período, os deslocamentos mudam de rumo, em lugar da procura
por locais úmidos ou currais abandonados, a migração acontecia no sentido campo-cidade.

Assim ao primeiro sinal de seca, as estradas em direção à Fortaleza se enchem de


famílias inteiras de agricultores cujas terras- na maioria dos casos, lembre-se
arrendadas em parceria- se tornaram imprestáveis para a agricultura de
subsistência.51

A seca delineia algo mais do que apenas os contornos desnudos das serras sem
pastos; há revelações das estruturas de trabalho agrárias, relações de negociação entre
proprietários de terras e lavradores que se deterioram frente à impossibilidade de produção e,
portanto, o não pagamento da renda. A “tradição de apadrinhamento” para com os pobres
subjugava os estereótipos de “ladrões e saqueadores”, que porventura os flagelados da seca
seriam, caso não fossem devidamente “atendidos” pelos mais ricos; posto que a culpa fosse
dedicada aos fenômenos climáticos, ao céu, aos santos, e mesmo com a ação tectônica dos
Andes52.
O plantio de roçado depende da relação tecida entre agricultor e proprietário de
terra; fora dela é como se as fragilidades adquirissem corpo. Neves53 ressalta que a Revolução
de 30 não quebra esse modelo paternalista, apesar do desalojamento de oligarquias
tradicionais em lugar de políticos revolucionários comungados com os ideais da Aliança
Liberal. Há uma continuidade deste sistema, por um lado, por parte dos proprietários de

50
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.15.
51
NEVES, Frederico. Op. Cit., p.53.
52
Na edição 6 da Revista do Instituto do Ceará, Álvaro Fernandes em seu texto Etiologia physiographica das
Secas- Summa meteórica, aponta como uma das possíveis causas para a seca e 1932 “as chaminés vulcânicas da
Cordilheira dos Andes” que teriam desempenhado seu papel de “aspiradores hidrostáticos”, tudo de acordo com
as leis da “Physica Geral”. Dados técnicos e geográficos seguem para explicar que após o equinócio de Março,
“é que está declarada a secca (sic), sem esperança e sem apelo”, algo a que o sertanejo já está ciente e aprende
desde pequeno, demarcando a data das possíveis e tão esperadas chuvas desde o dia de São José (19 de março).
53
NEVES. Frederico. Op. Cit., p.135.
35

terras, agentes da chamada “cultura do apadrinhamento”. Prática esta que, para Rios54, possui
uma rede de desdobramentos, oscilantes entre táticas de sobrevivência das mais variadas. Por
outro lado, tem-se o próprio Estado, numa outra instância, que age intervindo na política
econômica e no mercado de trabalho, deixando de lado, por ora, o liberalismo em prol da
manutenção de relações de trabalho que perpetuem a dependência e a submissão.
Os jornais não tardam a noticiar que a aclamada “revolução” nas bases
institucionais não passava de mera falácia. Em notícia de Outubro de 1936, do Jornal
piauiense “A Gazeta”, intitulada “A lavoura atirada ao esquecimento” lia-se: “Vemos assim,
com grande pesar, que a revolução de 30 não livrou o brasileiro de um velho vício: a
politicalha”. E acrescenta, “tudo continua a girar em torno dos nomes que irão ou não irão
para o Palácio do Catete”55·. Os nomes nas cadeiras mudaram, cumprindo o objetivo de
quebrar o poder das velhas oligarquias, mas as estratégias continuam as mesmas. Esse
“caudilhismo” que condenou o “progresso na América” teria também provocado a crise de
mão de obra para as “lavouras nacionais”, por conseguinte, lavouras monocultoras, para as
quais faltavam braços. A chamada era também uma crítica à tentativa do governo de
diversificar a industrialização do país alternando o estereótipo de “país agrário”.
O projeto político agrário brasileiro calcado numa ideia de desenvolvimento é
endossado nesse período, colocando como argumento antagônico a ideia de “atraso” que
prevalecia no campo, o que empacava tão esperada modernização com suas relações de
trabalho rudimentares, o clientelismo. Seriam estes entraves convencedores de que o Estado
era o único capaz de tomar as rédeas de conduzir este processo de modo gradual e tangível
nas lavouras do país, englobando a mão de obra que se adequasse aos seus parâmetros, e
acuando cada vez mais trabalhadores e famílias que não conseguissem adequar seus projetos
de vida às novas leis do mercado. Portanto, tratou-se de um período de projetos de nação que
estavam em disputa.
A visão predominante sobre esses pobres mesclava a ideia de oprimido com
potencialmente perigoso diante das amarguras da seca, justificando episódios tristes,
conforme o registrado no periódico cearense “O Jornal” em 5 de fevereiro de 1933, acerca de
um crime ocorrido em 6 de janeiro daquele mesmo ano, na cidade de São Benedito:

BÁRBARA CENA DE SANGUE EM S. BENEDITO- Dois policiais fuzilam


perversamente a um pobre agricultor- S. BENEDITO- a populosa cidade Ibiapaba,

54
RIOS, Kênia. Op. Cit., p. 32.
55
“A lavoura atirada ao esquecimento”. In: Jornal “A Gazeta”, Teresina, 10 de outubro de 1936, n°1.156, local
de guarda Arquivo Público Casa Anísio Brito.
36

presenciou no dia 6 de janeiro passado, monstruosa cena de sangue, perpetrada por


dois milicianos, por dois mantenedores da ordem, por dois homens que fazem parte
de uma instituição criada e manutenida (sic) para garantir a lei, para assegurar as
liberdades públicas.
Na manhã daquele dia, no movimentado pátio do mercado público, dois policiais,
fuzilam perversa e friamente ao trabalhador rural de nome Seu Manoel Matias
Filho56.

Segundo consta, o motivo do crime teria sido uma pequena faca de viagem,
instrumento indispensável para qualquer trabalhador rural, mas que foi visto como ameaçador
pelo soldado que tentou prontamente desarmá-lo; resistindo, o trabalhador acabou alvejado
com vários tiros na cabeça. O episódio causou muita revolta na população provocando
ameaças de linchamento que foram sufocadas diante da pontaria de fuzis. O jornal enfatiza
que os autores do crime, aqueles que estariam encarregados de proteger a população,
atentavam contra a vida dos mais desfavorecidos. Uma confusão que finda com morte,
descontentamento e muita raiva refletindo o clima de tensão envolvendo poder público e os
mais pobres.
Esta reação estava impregnada pela maneira como o Governo enxergava os
famélicos. Gravitava entre o desdém – posto que se acreditasse que as reivindicações destes
seriam atendidas sumariamente pela capacidade do mercado de se reequilibrar – e o temor,
referente às possíveis revoltas populares57. As manifestações das massas poriam em xeque os
laços de dependência e submissão do homem ao campo, fragilizando toda uma subalternidade
estruturada à qual a Revolução de 1930 não pretendia acabar. A morte do trabalhador rural
Manoel Matias evidenciou este clima de instabilidade que envolvia autoridades e camponeses.
Dessa forma:

Os governantes do regime autoritário pós-30 não pensavam diferente. Entre eles


também predominava a “visão espasmódica”; mas, ao contrário do que acontecia
antes, não hesitavam no momento de intervir na ordem econômica, pois o
desequilíbrio social significava, para eles, ameaça à ordem política, ao regime, à
segurança nacional58.

Era preciso garantir que as relações sociais que subordinassem o homem do


campo fossem mantidas. Uma das maneiras eram as relações de compadrio. Em uma relação
onde há uma “conformidade de classes”, há em certo sentido

uma aceitação da existência de ricos e pobres, fortes e fracos, na medida em que o


potentado é visto como aquele que tem a obrigação de proteger o despossuído. É

56
“Bárbara cena de sangue em S. Benedito”. In: “O Jornal”, Ceará-Sobral, 05 de fevereiro de 1933, n°10. Local
de guarda: Hemeroteca digital Biblioteca Nacional.
57
NEVES, Frederico. Op. Cit., p.140.
58
Idem. Ibidem, p.141.
37

cultivada a ideia de que Deus fez o rico para proteger o pobre. Em troca, o pobre
deve obediência ao rico59.

Nesta “cultura tradicional”, o apadrinhamento revela sinais de tensão quando esta


“função” não é cumprida da parte dos “padrinhos”, que podem ser vistos não só como os
proprietários de terras, mas também o próprio poder público. A rebeldia que caracteriza
roubos e saques não nega os costumes, “ao contrário, a tradição é evocada com veemência
para, em certo sentido, legitimar tal ação. Nesse caso a relação de apadrinhamento é
colocada em questão e cobrada pelos pobres” 60.
Nas lembranças de sua infância, Dona Cristina recordou sobre a alimentação:
“Nós comia palma no lugar da carne, palminha cozinhada viu? Pra passar, pra poder
61
passar, pra num poder roubar né” . A substituição da proteína da carne por outras
combinações é apontada por Josué de Castro como “iguarias utilizadas para enganar por
mais algumas horas a fome devoradora, enchendo o saco do estômago com um pouco de
celulose”. São elas:

Farinha de macambira, de xiquexique, de parreira-brava, de macaúba e de mucunã;


palmito de carnaúba nova, chamada de guandu, raízes de umbuzeiro, de pau-pedra,
de serrote ou de mocó, maniçoba e maniçobinha; sementes de fava-brava, de
manjerioba, de mucunã; beijus de catolé, de gravatá e de macambira mansa.

A possibilidade do roubo era uma realidade na iminência de acontecer para a


família, pois essas relações de compadrio com o dono da terra já mostravam sinais de
esgotamento. Para não cometer o ato, a família ia passando, comendo palma cozida em lugar
da carne, “comida exótica” que faz parte de um universo peculiar:

Quando o sertanejo lança mão destes alimentos exóticos é que o martírio da seca já
vai longe e que sua miséria já atingiu os limites de sua resistência orgânica. É a
última etapa de sua permanência na terra desolada, antes de se fazer retirante e
descer aos magotes, em busca de outras terras menos castigadas pela inclemência do
clima62.

Se para os agricultores pobres a manutenção dessas relações de compadrio


estavam se tornando cada vez mais difíceis de manter, o Estado paternalista penetrava no
trabalho efetivo nas lavouras e propunha uma política agrícola que ofertava um apoio restrito
aos pequenos proprietários e não aos sem-terra conforme é explicitado nessa notícia:

59
RIOS, Kênia. Op. Cit., p.31.
60
Idem. Ibidem, p.31.
61
CRISTINA Frota, entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de Miguel
Alves-PI.
62
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011, p. 202-203.
38

O Ministério da Agricultura, depois de se aparelhar convenientemente para poder


satisfazer aos interessados, acaba de anunciar uma série de favores aos pequenos
agricultores, procurando, por esta maneira, desenvolver e aperfeiçoar a agricultura
do País.
Anuncia o governo federal que, a todos os agricultores cujas propriedades estiverem
em zonas de produção servida por estradas de ferro ou de rodagem; tiverem uma
área mínima de 25 hectares (5 alqueires); não tiveram formiga saúva e não tenham
cabeceiras de morros ou coroas derrubadas ou queimadas, a estes proprietários, o
Mistério da Agricultura
facilitará a aquisição de destocadores, arados, capinadeiras, ceifadeiras,
debulhadores, secadores, estufas ,etc. por preços de custo e a prestações. 63

O governo toma para si a responsabilidade de gerenciar a produção agrícola nas


mais diversas circunstâncias, ofertando equipamentos bastante necessários e caros para o bom
cultivo de roçados. As trajetórias de vida das quais estamos à espreita não fazem parte deste
grupo seleto, mas é interessante perceber que mesmo para pequenos proprietários era difícil se
encaixar nestes ideais agrários.
O possível uso destes “favores” por apenas pequenos proprietários não eliminava
a assistência que as demais famílias necessitavam nos seus roçados. A convivência com
pragas como as formigas saúvas é algo muito comum para o homem do campo; desde cedo
meninos e meninas aprendem que insetos podem danificar plantações inteiras, prejudicando
seriamente a produção e comprometendo o pagamento da renda. Não é à toa que Auguste de
Saint-Hilaire (1779-1853), botânico francês, dispara sua célebre frase ambígua e tão atual:
“ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”, capturada mais tarde por
Lima Barreto e politizada na voz do inconformado e patriótico Policarpo Quaresma.
“O Ubajara”, jornal da cidade homônima, em sua edição de 18 de abril de 1933
atentou os cearenses para o fato de que a Ibiapaba estava sendo devastada por um verdadeiro
exército, “combatentes em armas”, que não reconheciam nenhum governo, apenas o seu, no
qual o cronista José Vasconcelos chamou em seu artigo de “República Unida das Formigas”.
A preocupação se estende para as lavouras e para o abastecimento da região:

E a Ibiapaba, que era o antigo celeiro de nossos sertões, nas épocas calamitosas, já
começa a importar os gêneros de primeira necessidade, por que assim entendeu e
decidiu o conselho marcial das Republicas Unidas das formigas, que proibiu sob
pena de completa destruição, em toda a extensão da grande serra, o plantio da
mandioca, do milho do feijão, das fruiteiras, etc. 64

63
“Favores do governo à pequena lavoura”. In: “A Gazeta”, Teresina ,4 de março de 1936. Local de guarda
Arquivo Público Casa Anísio Brito.
64
“Não é fantasia, é verdade”. In: “Ubajara”, Ubajara 18 de abril de 1933.Local de Guarda: Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional.
39

Em 1934, o drama se repetia, e o cronista José de Vasconcelos se lamentou: “A


classe mais desprezada, mais esquecida, e deslembrada é essa dos agricultores cearenses”. O
que ele intitula de “maldição cearense”, além de “toda a companhia trágica das pragas
egípcias que de roldão nos assoberbam e nos dominam e nos abatem”, também correspondia
às agruras da seca “calcinando os campos e searas”, e aos agentes do fisco, “que com uma
usura de Sherlock65, vão carregando disfarçadamente as nossas magras economias”66. Fora
as pragas, mais um desafio, desta vez uma atividade entranhada aos costumes roceiros da qual
portugueses e índios compartilharam uma prática comum: limpar a terra através da técnica de
coivara, onde a retirada da mata e em sequência a queimada destrói nutrientes e a sua
constância torna o solo pobre. O acesso à modernidade e a técnicas avançadas de manejo do
solo era restrito, pois nem todos moravam em localidades próximas de estradas ou ferrovias;
mesmo municípios como Ipu, onde existia uma estrada de ferro, havia a dificuldade de
locomoção dos povoados, que contavam muitas vezes apenas com lombos de burros e bois
como transporte e força motriz. Ainda assim, a postura técno-burocrata assumida pelo Estado
modernizante impingia uma série de novos procedimentos de trabalho nas lavouras, conforme
reporta a notícia:

Além disto, dentro dessas possibilidades de quadros do funcionário do Ministério, o


Governo dará assistência técnica, ensinando a preparar o terreno, escolher as
sementes ou mudas, determinando os processos de cultura, adubação, trato, colheita
e beneficiamento.67

Há uma preocupação pungente por parte do governo de “doutrinamento” em


técnicas de cultivo e melhoria de produção para estes agricultores clivados no processo acima.
O registro de nome e propriedade fez-se necessário no Ministério da Agricultura, para que o
agricultor “goze de todos esses favores ou regalias”, e que ainda fosse contemplado
periodicamente com material educativo, “folhetos, boletins, revistas, informações de caráter
prático não só para a lavoura como para o comércio”. Dessa forma, governo e agricultores
“caminhariam juntos” rumo a “uma nova fase que promete grande desenvolvimento”68. Dessa
forma, a documentação lida materializava através de seu discurso este sertão “atrasado e
lerdo” que se arrastava com uma “lentidão bovina”, incomodando aos defensores do

65
Referência ao famoso investigador, personagem de ficção da literatura britânica criado pelo médico e escritor
Arthur Conan Doyle.
66 .
“A agricultura e a maldição cearense”. In: O Jornal”, Sobral-CE, 06 de outubro de 1934 Local de guarda:
Hemeroteca digital Biblioteca Nacional.
67
“A Gazeta”, Teresina, março de 1936, p.01. Local de guarda: Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional.
68
Idem, p.01.
40

imperativo desenvolvimentista que desejavam acolher, com máxima urgência, as técnicas


inovadoras e o maquinismo agrário, conforme demonstra a notícia a seguir:

No apogeu da civilização, com o rádio e suas maravilhas, os aviões e o cinema-


falado, a nossa agricultura ainda é praticada com a irrisória e obsoleta ENXADA, tal
como a praticavam os nossos bisavós! E por que não acabar com isso?!Concertemos
um plano de ação-conjugada, renovadora. Façamos um congresso agrícola, em que
figurem grandes e pequenos agricultores. Discutam-se ideias. A presença de um
especialista nele pra instruir, para traçar nos novos rumos, não é uma ideia de grande
alcance e proveito? O governo estadual não poderia nos facilitar a obtenção de
algumas máquinas? Na terra em que a produção agrícola tem que ser redobrada para
o imprevisto das secas, esta produção é ínfima! porque a ENXADA é ainda todo o
seu MAQUINISMO agrário69.

A enxada, sinônimo da pequena produção familiar, (re)afirmadora da condição


camponesa era refutada em detrimento das grandes máquinas, que iria acabar com “essa
produção ínfima”, arrastando consigo não apenas os utensílios rudimentares, mas também
relações de sobrevivência campesinas, abrindo portas para agroindústrias, um movimento que
em nada favorece ao pequeno proprietário, muito menos ao sem terra, em todos os contextos.
O periódico sobralense “O Jornal” relatou em seu editorial denominado “Crônicas
de Viagem” uma observação semelhante, dessa vez voltada para a ausência de roçados em
determinadas localidades cearenses, apontando as possíveis causas desta vista desoladora:

NOTAS DE VIAGEM- Em toda a extensão entre o Sobral e o Cariri, não vimos à


margem da entrada, um único roçado! Até parece que o Brasil não é um país
essencialmente agrícola... É lamentável. E tanta terra desocupada. Tanto campo
aberto reclamando a atividade de seus donos.
Se ao menos o governo estimulasse o nosso povo a desenvolver a agricultura...
Outra situação seria a nossa não há dúvida. Mas o que vemos é o descaso absoluto
da parte dos nossos governantes e a preguiça característica do sertanejo numa
progressão assombrosa70.

Verificamos aqui mais uma vez a culpa pela ausência de lavouras recai não apenas
para o governo e para os donos das terras improdutivas, mas também para o sertanejo,
“indolente”, como se de fato a terra lhe fosse acessível para que a qualquer momento fizesse
brotar roçados. Na conjuntura econômica do capitalismo, a “preguiça” do lavrador pobre é
realçada em detrimento das relações de trabalho e compadrio imbricadas, que ocultam o seu
espaço real de trabalho e de sobrevivência. O jornal se resguarda num discurso que se
configura como uma estratégia de controle social, uma vez que a terra não pertence ao

69
“É uma vergonha!” In: O Jornal, Sobral-CE, 12 de fevereiro de 1933. Local de guarda: Hemeroteca Digital
Biblioteca Nacional.
70
“Notas de viagem” In: O Jornal, Sobral-CE 01 de Abril de 1934. Local de guarda: Hemeroteca Digital
Biblioteca Nacional.
41

camponês, como poderia “botar roçados”? Tais aspectos evidenciam a antítese que orquestra a
história agrária brasileira, seja reforçando-a, seja problematizando-a.
O dualismo entre novo e arcaico no Nordeste determinou o rumo das
interpretações acerca dos estudos rurais nesta região, evidenciando este campesinato familiar
espalhado nos “brasis”. Nesse sentido, de acordo com Delma Pessanha Neves71

Qualquer interpretação assim comprometida pressupunha de imediato a


transformação modernizante dos produtores familiares, comumente anunciada ou
legitimada pela valoração e formas de integração definidas como inovadoras:
alfabetização, higienismo, produtivismo, desenvolvimentismo, associativismo,
comunitarismo, coletivismo etc.

Na contrapartida da ideia de moderno descrita acima, a produção de base familiar


é caracterizada por termos como subsistência, minifúndio, clientelismo, próprios de uma
relação não capitalista que se reproduziu nas fazendas endossando o paternalismo oligárquico,
na rede de troca de favores e benefícios pessoais, baluartes em um momento de ruptura
institucional. O liberalismo característico do Estado era um divisor de águas das ações
direcionadas para os flagelados das secas; havia a crença de autorregulação do mercado de
alimentos, mas também havia o interesse em manter as rotinas de emergência em períodos de
extrema escassez a fim de evitar os “espasmos”, “a reação instintiva à fome”, uma
interpretação que perdura no Estado inclusive após a instauração do Estado Novo72.
O medo das reações instintivas traz à tona não apenas reflexões sobre a inércia de
alguns sertanejos em detrimento dos que reagem de modo mais explícito, mas também
algumas considerações sobre as justificativas climáticas e sua ligação com essas relações de
força guarnecidas por proprietários de terra e pelo governo.
Particularmente, a pretensa inércia é assim expressa comparando-se a
manifestações sociais coletivas. Isto prova que “não podemos aceitar apenas o que a
estrutura de dominação delimitada como resistência”73. Quando a situação se inscreve em um
contexto complexo de práticas não reflexivas, no sentido de não necessariamente ligadas a
maiores atos de rebeldia, “verifica-se o limite das relações existentes, ver com que se pode
sair à margem e incluir essa margem como parte do território aceito”74, ou seja, dentro do

71
NEVES, Delma Pessanha. Constituição e Reprodução do Campesinato no Brasil: legado dos cientistas sociais.
In: _____ (org). Processos de Constituição e Reprodução do Campesinato no Brasil. Vol II- Formas
dirigidas de constituição do campesinato. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários
e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 304.
72
Idem. Ibidem, p.140.
73
SCOTT, James. Op. Cit., p.29.
74
Idem. Ibidem, p.21.
42

campo de possibilidades de ações, há “adequação” das resistências possíveis frente ao poder


dominante coercitivo.
Estas resistências possíveis configuram-se em gestos e atos como roubos, saques,
fofocas, e práticas de submissão visando outros ganhos. Alguns grupos subordinados como
estes de que estamos à espreita não exploram de seus laços de solidariedade a tentativa de
manifestações coletivas contra dominantes, como rebeliões e motins.
Amotinar-se não está no raio de ação de alguns indivíduos; para Thompson é uma
forma sofisticada de comportamento coletivo, que põe em risco apadrinhamentos. Entendendo
estes trabalhadores como agentes históricos, suas ações fazem parte de um conjunto de
reciprocidades que encontram respaldo nos costumes e compõem o modo de viver de homens
e mulheres. Nessa esteira de pensamento, Antônio Candido, em Os Parceiros do Rio Bonito,
utiliza a expressão “sociologia dos meios de subsistência” para pensar a organização social à
qual o grupo deve submeter-se para lidar com a fome. Na relação do grupo com o meio, a
alimentação é um fator de solidariedade profunda, “na medida em que consiste numa
incorporação ao homem de elementos extraídos da Natureza, é o seu primeiro e mais
constante mediador, lógica e por certo historicamente anterior à técnica” 75. Estas formas de
solidariedade primordiais confronta-se com esta modernização, que modifica suas estruturas
profundamente, em processos de rupturas reveladores de características singulares desta
economia moral, aproximando-nos do conceito elaborado por Thompson para refletir a
maneira como a multidão evocava a reinterpretação de um passado de tradições para
confrontar as obrigações impostas pelas elites dominantes, na Inglaterra do século XVIII.
Nesse sentido, pensando no conjunto de práticas e costumes vivenciados por estes
trabalhadores rurais, entendemos que se tornou muito difícil continuar vivendo nos
municípios cearenses, pois para além do fator climático, a seca condiciona os sujeitos a
situações de subalternidade cada vez mais severas. No contraponto da ideia de que há carestia
de alimentos porque não tem “disponibilidade para todos” ou que os camponeses não plantam
porque “tem preguiça” está o próprio consumo e produção de alimentos, que desconsidera as
capilaridades dos sistemas de poder, propriedade e direito.

A escassez, portanto, não seria um fato natural, mesmo se relacionada a um


fenômeno climático, mas resultado de uma dada forma de relações sociais que
perpetuam as desigualdades e baseiam-se na produção de conflitos generalizados de
interesses76.

75
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.28.
76
NEVES.Frederico. Op. Cit., p.154.
43

Nas narrativas a seguir, entenderemos como estas relações de desigualdade se


evidenciam, somando aos fatores climáticos e ao motivo que é o combustível para o
deslocamento das famílias, a melhoria de vida. A coesão da família tem o papel crucial não só
na tomada da decisão de migrar, como também na efetivação da ação migratória77.

2.2 “O Ceará é uma terra boa, mas não chovia”

À guisa de elucidação, e num esforço de qualificarmos os narradores cujas falas


encorpam o estudo, apresentamos a problemática de delimitar os sujeitos como camponeses.
Não se trata de uma condição fixa que permeou toda a vida trabalhadora destas pessoas, posto
que estudamos exatamente os caminhos e descaminhos que os fizeram não só migrar, mas no
caso de alguns, mudar sua condição campesina para a de trabalhador pobre urbano. Tratando-
se, pois, de uma questão pertinente, consideramos camponês como um indivíduo que trabalha
e mora no campo, e que explora a terra em caráter familiar, dela retirando seu sustento. Este
grau de autonomia se combina às redes de solidariedade, essencial para a sobrevivência seja
em relação ao patrão, ou a outros camponeses. Tais trocas, materiais e simbólicas, traduzem-
se num sentimento de pertença em relação à terra. Assumimos hoje que o melhor caminho é
não fechar um conceito em relação ao campesinato que ao invés de abrir novas possibilidades
de entendimento, seja uma camisa-de-força que não dê conta das complexidades reais78.
A história desses camponeses se inicia com as suas rememorações de infância.
Em suas relações com a espacialidade constroem ideias imagens de um tempo de agruras e
fome; mesmo as memórias que foram contadas para as gerações que nasceram já em território
piauiense, não se descolam das sensações táteis do sofrimento. As narrativas de Seu Damião e
Seu Cosme demonstram isso, assim chamados por serem gêmeos, não por terem nascido no
dia dos santos médicos. O sertão cearense para eles é exatamente isso; uma memória truncada
de tempos difíceis. Notamos que nas entrevistas, todas as vezes em que pedíamos para Seu
Damião contar como era a vida no Ceará ele chorava; quando lembrava de situações difíceis
já vivendo no Piauí, tornava a chorar novamente. Um comportamento emotivo em
consequência da idade? Talvez, não. No caso de Seu Damião, percebemos que o exercício da
memória anda comprometido. Ele não conta com frequência estas passagens da família, por

77
FERREIRA, Assuério. Determinantes estruturais das migrações cearenses. In: VERAS, Celecina de Maria et
al (org). Terra, sujeito e condição Agrária. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p.55.
78
GRYNSZPAN, Mario. “Campesinato”. In: MOTTA, Márcia (org). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p.73.
44

lhe faltarem bons ouvintes, ou por serem lembranças muito difíceis de acionar, porque
dolorosas.
Seu Damião construiu a memória da seca enfrentada no município de Nova
Russas através de sensações, texturas: “Não, não dava de ficar não que a seca foi feroz. As
palhas de milho dava pra enrolar cigarro”. O ano de 1942 foi um ano marcado por mais uma
grande seca cearense e com isso retirantes migraram para diversos destinos. Nas terras
herdadas por seu pai estava difícil manter a sobrevivência. A fala dele demonstra que a
decisão de migrar não é peremptória; antes disso, as possibilidades de se manter no lugar de
origem se esgotam, a longa espera pelo inverno que não chega: “De três em três dias, de
quatro em quatro dias matando um animal, tá é longe de passar o verão lá. Aí o papai
arribou para cá”.
A matança dos animais nesses intervalos curtos e durante a travessia
emocionaram Seu Damião, uma vez que a criação de gado tem um significado dentro da
cultura rural; o agricultor com o fruto de seu trabalho e negociações conquistou algumas
cabeças. Criar bodes, ovelhas, cabras, vacas, gado cavalar e galináceos é uma pequena
melhoria de vida que as estiagens vão aos poucos engolindo; um rebanho razoável poderia se
acabar em questão de dias.
Seu Cosme narrou de forma semelhante como era a vida no Ceará. Desde muito
cedo as crianças já trabalhavam em roçados, pescavam, ou praticavam alguma atividade
extrativista:

Apanhando algodão nos pés de serra do Ceará. Era tão pequeno que quando chegava
pra puxar um pé de algodão maior que não podia puxar, vinha uma pessoa grande
derrubava e a gente apanhava o algodão até acabar aquele, aí vinha tombar outro,
procurar outro pra gente ficar... Que de um é de algodão só dava pra gente trabalhar
de manhã pra meio dia79.

A coleta de algodão ao pé da serra foi uma rememoração recorrente em sua fala.


Logo em seguida ele mistura as temporalidades em uma operação muito comum aos
narradores. As reminiscências do passado são construídas a partir de um presente que não se
descola das intenções que se deseja evidenciar. A postura assumida por Seu Cosme e Seu
Damião é consoante com a dos demais narradores, a de um contador de história reflexivo. Ao
mesmo tempo em que narra trabalha sua própria história de vida como historiador, pois

79
COSME Feitosa da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 18.01.2018 na cidade de
Teresina-PI.
45

vinculada a esta existem as sensações da experiência. “A imagem é a matéria substantiva do


narrador reflexivo” 80.
Ao responder o porquê de terem vindo para o Piauí ele apenas responde: “viemos
em 42 por necessidade, aí hoje me considero um homem bem forte, sadio, graças a Deus, com
esse tanto de idade e me sinto bem e tenho muito a agradecer a Deus por ter essa idade”. Para
Cosme, apesar do sofrimento vivenciado em Nova Russas, a sua saúde é a prova de que
“venceu”. Aqui evidenciamos o caráter performático da entrevista. Seu Cosme se mostra mais
agitado e mais “urgente” em chegar à temporalidade onde ele não passou mais necessidades.
Dos dois irmãos ele foi o que sempre veio “na frente” após migrar do Ceará. Suas
expectativas de vir para o Piauí se projetam ao longo da entrevista; um melhor lugar pra viver
e trabalhar.
A seca de 1942 expulsou camponeses de seus lugares, mesmo aqueles que não
pagavam renda e tinham terras partilhadas com outros irmãos, herdadas do avô. Mas
conforme explicitado anteriormente, o desapego à origem é um processo doloroso e em certos
casos a família se divide, e os membros exploram os vários destinos: ficar no Ceará, migrar
para o Piauí, ir para o Sul, ou para o Maranhão atraídos pela disponibilidade de terras. Dona
Ana tem 67 anos de idade e nasceu já no Piauí. Para chegar até ela localizamos seus dois
irmãos, moradores do bairro Satélite e comerciantes. Em ambos os casos os irmãos
destacaram Dona Ana para recontar esse passado vivido. Apesar da possibilidade das
memórias terem sido compartilhadas com todos os filhos através de histórias contadas por
pais, tios e outros parentes, Dona Ana é apontada como a “guardiã de memórias” dentro do
grupo familiar. Este é o poder que os velhos têm de tornar presente as coisas que se
ausentaram no discurso81. Ela nos contou que os tios saíram do interior do município de
Mucambo em 1942, porque “na época eles que ele venderam a terra, vieram comprar terra
aqui, casaram aqui, criaram família aqui, morreram aqui”. O pai de Dona Ana ficou até
1951, “porque ele casou, gostava, foi criado lá... porque o cearense morre mas nunca
esqueceu o Ceará... sabia, ele não voltava mas não esqueceu o Ceará, tu acredita, ele nunca
esqueceu o Ceará”82.

80
HARRITS, HARNBERG. Op. Cit., p.30.
81
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p.
74.
82
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida à Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
46

Nesta fala de Dona Ana destacamos alguns pontos importantes. Primeiro como
vai se montando a rede familiar de relações que continuam mantêm a conexão aberta entre
todos os membros; este primeiro grupo que se deslocou para o Piauí se instalou, ampliou suas
redes de relações e através dessa via aberta de comunicação fomentou a expectativa em torno
do possível deslocamento dos membros que ficaram. Em suma, o peso da decisão de migrar é
partilhado entre todos, os que ficam e os que vão, porque aí estão entremeados todos os
futuros.
A maneira como Dona Ana evoca este passado com “orgulho do pai cearense”
remete à preservação da cultura tradicional na família, que não se esgarça com os
deslocamentos. Por ser o último a vir, o pai dela estabeleceu essa ideia de origem que não
deve ser olvidada e perpassou para a geração seguinte. Dona Ana não descola as lembranças
do pai da sua trajetória pessoal; ela também significa os vestígios dessa cultura.
A espacialidade para os narradores também é um ponto importante da história.
Nem todos se recordam exatamente de qual localidade vieram dentro dos municípios
cearenses, mas todas perpassam pela categoria de “interior”. Assim é explicada esta categoria
de espaço por Dona Cristina: “É... um interior do Ceará, num tem? Um interiorzinho, viu?
Porque tem a cidade e tem os interior da pessoa morar”83. Ela não se lembrou exatamente de
qual localidade partiu em Sobral, por volta de 1955, mas conseguiu delimitá-la neste termo. A
construção da entrevista de maneira mútua permite entender aos poucos significados próprios
da cultura rural. Algo semelhante acontece quando pedimos esclarecimento a Seu Isídio sobre
as localidades onde morou em José de Freitas, já no Piauí. Povoado ou interior? “Interior!” ele
nos conserta em tom exortativo. Buscando entender melhor como se desenham estas
espacialidades rurais para os nossos narradores, entendemos que as fronteiras políticas nem
sempre coincidem com as fronteiras imaginárias, já que cidades, interiores, povoados, vão
mudando de nome, metamorfoseando-se em outros lugares; “é uma categoria que se situa na
metade do caminho entre ficção e realidade”84.
É destas fronteiras fluídas de Sertão que partiram os pais de Seu Paulo, pai de
Sobral e mãe de Tianguá, por volta de 1932. Esquecimentos também marcam a fala de Seu
Domingos, que não se recordou quando os pais vieram do Ceará, nem quando. Neste tipo de
investigação sobre trajetórias migrantes é válido estabelecer uma linha do tempo do narrador
em função da sua data de nascimento e a dos pais, mediatizando uma temporalidade

83
CRISTINA, 2017.
84
LEONARDI, Victor. Entre Árvores e Esquecimentos: História Social nos sertões do Brasil. Brasília:
Paralelo 15 Editores,1996, p.310.
47

específica. Para as que estão aqui apresentadas, as famílias vivenciaram períodos esvaziadores
do campo.
Para estes migrantes, a condição da seca impossibilitou viver no Ceará. A seca é
uma realidade com a qual o sertanejo se resignava a cada ano, estabelecida como o dia 19 de
março85. Consideramos que os dizeres de Dona Ana sintetizam as razões pelas quais as
famílias de Seu Cosme e Seu Damião, Seu Paulo, Seu Domingos e Dona Cristina migraram,
ao mesmo tempo em que demonstra o principal motivo que qualificou o Piauí como destino
plausível:

Olha, quando foi na era de 32,42,45 era seca de botar os cearenses tudinho pra
viajar, tem cearense no mundo todo, porque lá é uma terra boa, mas num chovia.
Mas num chovia, tinha muita seca, e aqui não tinha... Sempre choveu, sempre tinha
água... O que trouxeram eles [os parentes] pra cá foi do chover, porque senão eles
nunca tinham vindo, Ceará era terra boa, minha mãe morreu falando que o Ceará era
terra boa86.

O “senão” dito por Dona Ana diz respeito à própria ideia do Piauí como destino
migratório. Um Estado vizinho pobre, com dificuldades de abastecimento interno, pouco se
integrando no mercado nacional, geração de empregos limitados. O elemento água em maior
quantidade seja na forma de lagos, rios, açudes, ou se caracterizando com invernos mais
chuvosos ou períodos de estiagens menos desastrosas atraiu estas famílias, que buscam todas
as melhorias de vida que a abundância de água oferece. Mas esta procura não era o único
motivo pelos quais, em períodos de secas calamitosas, pessoas migravam para continuar
vivendo na condição de camponeses. Questões familiares e desejos por terras melhores
ditavam também os porquês de sair.

2.3 “Roubar a idade” e o enredar familiar nas travessias

Querelas familiares também punham em xeque continuar vivendo em solo


cearense. Conforme percebemos, a família de alguns narradores morava e trabalhava em
terras próprias, frutos de heranças repartidas. Possivelmente, essa fragmentação de terras
fragilizava o grupo familiar ocasionando os deslocamentos. O processo de partilha gerava
conflitos e indefinições próprias da medição. Acontecimento semelhante causou a migração
da família de Seu Isídio:

85
Dia de São José, até esta data são esperadas chuvas, caso não acontecesse, era decretada oficialmente a seca no
Ceará
86
ANA, 2018.
48

Rapaz, nós num viemos num foi por visto de seca não, nós viemos porque a minha
mãe mais meu avô, o pai dela, veio embora pra cá, e o meu avô era cego e aleijado”
(..). “A mamãe tinha um terreno, mas era misturado, era dividido... Ela trabalhava
num terreno, num pagava renda, mas não morava no terreno 87.

O descaso com a terra pertencente à mãe de Seu Isídio rapidamente gerou a


querela familiar com seu irmão, pois “tiveram um nhenhenhém” que, segundo Seu Isídio, foi
resolvido com a mudança de sua mãe para outro local: “ela pulou dum terreno, veio pra
outro”. A limitação física do pai preocupou a família, que decide sair do interior do município
de Ipu, da localidade de Santo Isídio88, em direção ao Piauí, em 1949, não somente pela
necessidade de manter a parentela coesa, mas também por desentendimentos envolvendo
terras entre membros da própria família.
A opção encontrada pela mãe de seu Isídio para não brigar com o tio foi sair do
terreno e mais tarde, migrar. Estas realidades servem para nos lembrar de que apesar da
família ser o elemento mantenedor das sociabilidades necessárias para os sujeitos migrantes,
conflitos são muito possíveis de acontecer, interesses se chocam e tensões inflamam. A
família aqui infere “laços de consanguinidade que se mantêm desde que se nasceu até a
morte. A solidariedade familiar, por exemplo, não se esgota na solidariedade entre os
membros de um mesmo grupo doméstico” 89.
Outra situação de desentendimento familiar ocorreu com Seu Manoel em sua
adolescência na cidade de São Benedito, onde nasceu. Por meio deste relato, percebemos que
viver de roça e pagando renda em período de própria unidade doméstica, composta de pai,
mãe e filhos, poderia originar conflitos donde importantes decisões eram tomadas:

O papai fez uma roça lá, ai nós fizemos a roça ai não deu legume né? Deu uma praga
de milho numa espiguinha pequeninha, ai o papai chamou o homem pensando que
ele ia dar o milho pra ele, pra dar pras galinhas, aí homem pegou uma espiga pra
90
uma, pra uma, uma pra outra, uma pra outra, fez como a música do Luiz Gonzaga ,
até que ficou num jacá ai eu... já tava sabidim né? Eu fiquei invocado e vou embora,
vou roubar minha idade e vou-me embora pro Rio de Janeiro91.

87
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2016, na cidade de
Teresina-PI.
88
Interessante perceber como o nome da localidade inspirou o nome do filho mostrando que a família mantivera
laços de identidade fortes com a comunidade.
89
GARCIA JR, Afrânio. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983, p.116.
90
A referência à música a Triste Partida, com letra composta por Patativa do Assaré e cantada por Luís Gonzaga,
evoca as cenas de tristeza próprias das situações difíceis agravadas com a seca, no caso, a má colheita do milho
resultou na parca divisão, onde se subtraindo a parte do proprietário, ainda teve que ser divida entre todos da
unidade familiar.
91
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
49

Na lida do campo, os camponeses deveriam enfrentar como desafio ainda um


inimigo feroz e invisível; a própria genética das plantas, mais um infortúnio da natureza. Esse
é o caso do milho, que Josué de Castro92 elenca como componente fundamental da dieta do
sertanejo, alimento de baixo teor proteico, portanto incompleto, mas que se constitui como
base calórica da dieta sertaneja devido à sua junção com outros alimentos, compensando a
deficiência de nutrientes, em pratos típicos da nossa culinária, como angu, canjica e cuscuz.
A desinformação e a crença de que a seleção de semente de uma boa safra
coletada anteriormente geraria a repetição de uma boa colheita provocava o efeito contrário,
pois, resultava em uma má safra, praticamente improdutiva; haja vista que seja fato
biologicamente comprovado o de que a segunda geração do milho é defeituosa. Mais uma vez
o sucesso nas lavouras esbarra na precariedade das técnicas empregadas. Embora em
contratos de parceria fosse comum o proprietário de terra fornecer as sementes para o plantio,
em arrendamentos já não funcionava dessa forma, e para o caso do jovem Seu Manoel e sua
família, que viviam nas condições de agregados, a má sorte poderia vir dos dois.
Ainda assim, o acerto da renda deveria ser entregue ao proprietário. O pai
considerou que o “homem” iria entender as razões da má produção, mas isso não ocorreu. A
divisão do pouco que a família produziu depois de tanto esforço foi o estopim para a revolta
do jovem Seu Manoel. Já com idade suficiente para entender as relações de dependência entre
proprietários e agregados, já “sabidim”, vê a ida para o Rio de Janeiro como única forma de se
livrar de toda aquela situação, onde a única parte que lhe coube foram “espigas desdentadas”.
Cidade grande que se avolumava como um veio aberto de oportunidades, trabalhos novos
poderiam surgir e o risco valia a pena. Ele estava disposto a “roubar a idade”, conseguir um
documento de maioridade a qualquer custo.
O plano teria dado certo, não fosse a esperteza ingênua de Seu Manoel em
conseguir o importante documento por alguém tão próximo da única pessoa que não deveria
saber:

Vou pedir aí fui logo... Abestado, não sabia de nada, pedi logo um tio meu pra tirar
meus documentos, como maior de idade com 18 anos. Aí foi, ele contou pro papai aí
o papai se invocou ficou assim imaginando. Aí eu já tinha dito a ele: “papai, vamos
caçar um lugar pra nós morar porque aqui não dá não”93.

92
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011, p.177.
93
MANOEL, 2017.
50

Depois da tentativa malograda de fuga para o Rio de Janeiro, o pai se viu na


iminência de importantes decisões que selariam o destino de toda a família. Ficar já estava
bastante difícil, permanecer com toda a parentela unida, a mulher e cinco filhos, todos já
debilitados em virtude da necessidade de alimentar muitas bocas e a produção parca, tão
dependente do êxito das chuvas, da nutrição dos solos, da boa vontade dos patrões. Um novo
projeto de vida deveria ser feito. O fantasma da fome rondava a família de Seu Manoel:

Tem um terreno de meu avô aí, mas não servia é ruim de trabalhar, nós não tem
condição de nada, acabemos tudo em 1952. Em 1951 nós acabemos tudo que tinha:
animal, gado, tudo, tudo, tudo, ficou tudo sem nada, o objeto que ficou foi uma
cabra, assim mesmo o papai adoeceu eu matei pra ele comer e vendi o couro pra
comprar de remédio pra ele. Aí, o papai se invocou e pediu um dinheirinho velho
que eu tinha escondido, ele disse: “Tu tá escondido”. Eu era o mais velho, quem
trabalhava pra dar de comer pra eles, os mais novos que o papai vivia muito
adoentado aí eu era quem trabalhava94.

Do pouco que tinha juntado, o filho ainda teve que entregar para suportar os
apertos. Os primeiros de que se livraram foram os animais. Nessas condições, mantiveram-se
até migrarem em 1954, para além da seca, em busca de uma vida melhor.
Nesta fala, percebemos uma marca importante da narrativa. É exatamente a
demarcação do momento em que se insere outro diálogo lembrado da memória. Em outros
momentos, o rememorar de diálogos inteiros, às vezes, acontece sem demarcações, na
velocidade que as lembranças vão escoando na entrevista, ao sabor das provocações do
entrevistador.
No caso de Seu Manoel, a baixa produção se torna mais parca ainda com a
obrigatoriedade do pagamento em renda, legitimando a perspectiva de migração para a família
diante da impossibilidade de sobrevivência naquela localidade.
Um elemento comum entre estas narrativas é o membro que na família sugere a
saída, num discurso de convencimento para migrar. Em determinadas ocasiões, as gerações
seguintes vão se “arranjando” construindo matrimônio e tendo filhos, saindo de casa, primeiro
e indo morarem em outros lugares. O esvaziamento da casa é prejudicial para a família
campesina. Quando filhos migram, sejam solteiros ou casados, indo trabalhar em grandes
cidades e integrando parte da economia doméstica, há uma grande perda no rendimento da
terra, para trabalhadores rurais que vivem de contratos verbais, sejam parceiros, meeiros ou
agregados. Menos mão de obra, as obtenções dos meios de vida tornam-se seriamente
comprometidas, não apenas nas roças, mas em outras atividades básicas de uma economia

94
MANOEL, 2017.
51

familiar, mesmo quando no extrativismo. Alguns sofriam mais com a solidão e em breve
fome; o mau trabalhador, a viúva, o doente, o inepto. Cândido, em sua análise do município
de Bofete, pôde constatar a presença da fome por vários motivos, em sistemas de trabalho
semelhantes ao caso estudado.

É o caso, por exemplo, do parceiro ou sitiante que foi obrigado a gastar mais
semente do que esperava, e alimenta a família apenas de arroz, ou apenas de feijão,
até que venha a colheita. É o caso, ainda, do parceiro que chegou atrasado para o
início do ano agrícola e obtém colheita insuficiente. É o caso, também, do lavrador
que tem muitos filhos pequenos e conta com pouco auxílio da mulher na lavoura,
95
conseguindo dificilmente o necessário para rações mínimas e afinal insatisfatórias .

Em O Quinze, encontramos o personagem Vicente partilhando da angústia de ter


de migrar e deixar os pais sozinhos:

Mas logo lhe veio a lembrança dos pais, tão velhinhos, que tudo esperavam dele;
evocou o que seria o desamparo da fazenda, vazia de seu esforço; o gado
abandoando, tudo paralisado e morto; e pensou no seu isolamento na terra
longínqua, no vácuo doloroso de afeições em que se iria debater o seu coração
96
exilado .

Esta razão é encontrada também na fala de Dona Antônia Portela, que saiu da
localidade Corno, no interior do município de Crateús, para viver em Teresina, em 1954. As
terras eram do pai. A família vivia de roça e criação de animais. Por que migrar? O chamado
para morar em Teresina veio de um filho que se casou e trabalhou desde sempre na cidade. A
experiência de trabalho na cidade e a melhoria de vida atraíram os irmãos de Dona Antônia, e
ela mesma, já casada. A fala dela também sintetiza um dos motivos de migração que se
costura nos testemunhos orais de todos os narradores:

Lia: o pessoal [no Ceará] falava muito em ir embora?


Dona Antônia: a maioria, mas num tinha condição de sair... nós também num
tinha...e assim, quem sabe onde tá a família quer ficar tudo ali perto né, ninguém
quer ficar plantando nada sozinho. 97

A solidão, o desentendimento por questões de renda e terra, despertam desejos nas


pessoas de migrarem em busca de melhores expectativas, e confrontarem a família e até
mesmo de “roubarem a idade”. Seu Manoel nos contou um dizer curioso de seu avô, “ele
[avô] não vinha pro Piauí, por quem piasse lá piava aqui”. Deste ditado também partilhava o
jovem Manoel que sonhava ir para o Rio de Janeiro, arranjar um emprego e viver com uma

95
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.157.
96
QUEIROZ, Raquel. O Quinze. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 105.ed.2016, p. 54.
97
ANTÔNIA Portela de Sousa. Entrevista concedida ao Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.02.2018 na cidade de
Teresina-PI.
52

tia. Mas se as redes de solidariedade no seu “plano” já estavam articuladas para que a fuga
desse certo, seu pai também se mobilizou para garantir que as suas expectativas em relação à
migração não fossem quebradas. Assim, quando a notícia da fuga “pôs nos ouvidos do papai,
ele deu um jeitinho veio aqui pro Piauí... com 15 dias ele chegou lá (...) ‘Meu filho nós vamos
embora’, aí eu fiquei assim imaginando, Rapaz num vou não, embora logo pro Piauí”98.
Mesmo desconfiando da ideia a migração aconteceu. Nestes 15 dias o pai de Seu
Manoel planejou toda a vinda da família. Chegava a hora de enfrentar a travessia.

2.4 Travessias, veredas e o “mar de fogo”

A travessia de migrantes para o Piauí, mesmo se tratando de um movimento


interno à própria região, era cuidadosamente pensada. Acompanhamos nas narrativas
anteriores os motivos e as expectativas desses homens e mulheres que precisaram sair
daqueles municípios cearenses. Sobre isso Paulo Fontes acrescenta:

A imagem da migração como um movimento desordenado, ‘irracional’, feito às


pressas, não corresponde à experiência de grande parte dos migrantes. A mudança,
decisiva para a vida dos envolvidos, era, na maior parte das vezes, meticulosamente
pensada e preparada da melhor forma possível tanto no âmbito familiar como no da
comunidade99.

Dessa forma procedeu na família de Seu Manoel no depoimento anteriormente


citado. O que nos leva aos seguintes questionamentos: como vão se desenhando a teias
migratórias e de que forma despontam estes municípios piauienses como possíveis melhoras
de vida? A cartografia das espacialidades e dos caminhos percorridos por estes migrantes
podem ser percebidas no Mapa 01:

98
MANOEL, 2018.
99
FONTES, Paulo. “Terra de Nordestinos”: História oral e experiências de migrantes em São Miguel Paulista na
década de 1950. In: MAGALHÃES, Valéria Barbosa de (org). História oral e migrações: Método, memória,
experiências. São Paulo: Letra e Voz, 2017, p.88.
53

Mapa01: Trajetórias de migrantes cearenses para o EntreRios

Fonte: Freitas.A.L.R; Costa,L.M.F (2017).

Conforme podemos acompanhar na legenda, as setas vermelhas conectam os


municípios cearenses aos respectivos municípios de chegada piauienses. Percebemos que as
migrações aconteceram não somente de municípios que fazem fronteira com o Piauí (Tianguá,
São Benedito, Crateús), mas de municípios mais distantes, como Nova Russas, Sobral e Ipu,
ressaltando mais uma vez o quanto o processo migratório deve ser planejado.
A região desses municípios possuem características morfoclimáticas bastante
semelhantes entre si; o clima predominante semiárido condiciona a vegetação de caatinga, que
nos períodos de inverno é verdejante e robusta, trazendo esperança para o sertanejo e para seu
trabalho, expressa na fala de Dona Ana ao destacar que o “Ceará é uma terra boa”; mas estas
paisagens tornam-se mais rarefeitas com os longos períodos de estiagem, com um “inverno
54

seco e quase sem chuva, com duração de cinco a oito meses, e verão chuvoso, com quatro a
sete meses de precipitações pluviais, irregulares no tempo e no espaço”100.
A realidade vivenciada pelos cearenses moldaram as expectativas projetadas para
os destinos escolhidos pelas famílias. No contraponto das imagens que se tornavam caóticas
na seca, despontava a espacialidade de EntreRios101, um espaço delineado por estes
narradores, que buscam em seus municípios melhorias de vida, considerando prováveis
relações de trabalho mais instigantes e favorável obtenção dos meios de vida. O mapa a seguir
evidencia que elementos importantes podem ter alimentado os desejos dos migrantes:

Mapa 02: Território EntreRios

─ Territórios EntreRios
percorrido pelos narradores

FONTE: Deus,A.C.B.(adaptado)

Os mapas 01 e 02 demonstram que os destinos dos narradores fazem parte dos


cursos dos rios Parnaíba e Poti, contribuindo com diversos afluentes, que geram a
concentração de pessoas em povoados e “interiores”. Um marco desse processo de ocupação
em decorrência da água é o nome das localidades onde se instalaram os migrantes; Matões,

100
AB’SÁBER, Aziz Nacib. Dossiê Nordeste Seco. Estudos Avançados, São Paulo, 13(36), 1999, p. 10.
101
O território ora abordado não é consoante com o Projeto Político de EntreRios pensado para a região do
Médio Parnaíba, proposto pelo PLANAP, e por outras instituições de pesquisa como a fundação CEPRO
(Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí).
55

Aprazível, Açudinho, Água Boa, traduzindo a criatividade das pessoas em demonstrar a


disponibilidade de água, bem como as expectativas de trabalho nos babaçuais.
A água é um dos elementos responsáveis por criar uma imagem bastante positiva
sobre a experiência migratória. Dona Ana relembrou que “Aqui sempre choveu... aqui sempre
tinha água”. A fartura de água significa também a presença de terras férteis, próprias para
diversos plantios. Ainda assim, o processo de sair da terra natal e atravessar a fronteira não
era fácil, seja pela dor física, para aqueles grupos de retirantes que caminhavam longos
trajetos a pé, seja a natureza psicológica da saída, o sentimento de desterritorialização. Sobre
fronteira, Martins pontua que:

Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada


pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de
mundo, sobretudo, fronteira do humano. Nesse sentido, a fronteira tem um caráter
litúrgico e sacrificial, porque nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a
existência de quem o domina, subjuga e explora. É nessa dimensão, propriamente
sociológica e antropológica, que investigo o tema da fronteira e os desafios que
propõe em relação à sociedade em que vivemos e em relação à nossa própria
condição humana”102.

O caráter litúrgico é passagem para uma nova vida, não tão diferente, posto que
camponeses migrem para continuarem camponeses, mas que ainda assim gera no imaginário
desejos de vida melhor. É sacrificial porque não são migrações do tipo “bate-volta”, onde uma
parte da família migra em busca de trabalho e retorna para o lugar, mas uma migração que se
pretende definitiva, mesmo considerando a possiblidade de retorno, quando nenhuma
daquelas expectativas em relação ao novo lugar são atendidas.
O sentimento é de desgarramento, de esperança e ao mesmo tempo de medo.
Estas impressões estão imbricadas na memória de Dona Antônia ao contar como foi a vinda
de Crateús para Teresina:

Dona Antônia: pegamos o tremem Crateús, viemos pra cá, era um mar de fogo
queimando a gente você lembra?
Lia: diga aí como era andar num trem. Entrar num trem sabendo que estava indo
embora de casa...
Dona Antônia: tocar no mundo, sem saber da vida o que vai viver né? Num é bom
não. Comoção ruim, a gente e pega uma comoção doida...queimada, queima roupa,
queima tudo... Mas era o jeito nós num tinha outro transporte. 103

As impressões táteis dessa viagem que ocorreu em 1954 ainda permanecem vivas
na memória de Dona Antônia porque é o seu ritual de passagem. Neste ponto é importante o

102
MARTINS. José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. 2ªed. São Paulo:
Contexto, 2014 ,p.11.
103
Estrada de ferro que percorria as cidades de Crateús, São Luís e Teresina.
56

caráter dialógico da entrevista, onde as perguntas funcionam como provocações para que
essas lembranças sensoriais venham à tona. Migrar é viver, mas também tem algo de
deambulante, ainda que as rotas migratórias estejam traçadas, o que espera é sempre uma
surpresa.
As caminhadas a pé até a terra desejada acentuavam este caráter, renovando mais
ainda as esperanças ao finalmente alcançar o destino. A fala de Dona Cristina evidencia bem
isso:

Por causa da precisão, vinha embora tocando jumento e comendo coisa velha no
caminho. Comendo jatobá, chegava nos pezão de jatobá derrubava e enchia os
bolsos, e botava nos braços e roía, porque vinha precisado de fome. Tocando
jumento. E era muitos dias de viagem, ai na hora que chegava no interior criava
outras asas viu? Porque olha o coco logo.104

A fala de Dona Cristina é permeada de ideias e imagens que nos fazem captar a
sua sensibilidade ao avistar os babaçuais característicos da região Meio Norte. Na divisa entre
o Maranhão e o Piauí predomina a vegetação de transição entre Cerrado piauiense e a Mata
dos Cocais.

Quanto aos tipos de vegetação original e ao regime dos rios, pode-se reconhecer
novas diferenças. No Meio Norte ocorrem os decantados cocais de babaçu
(Maranhão), e os palmares de carnaúba, no Piauí, e os cerrados, contrastando com a
caatinga do sertão semiárido105.

O extrativismo é um meio de vida de muitos homens e mulheres no Nordeste.


Cristina lembra que o vislumbre dos cocais compensava a longa travessia, cheia de agruras. A
amêndoa do coco babaçu era uma possiblidade complementar a renda obtida nos roçados, era
uma possibilidade de melhorar a vida. É possível que essa ideia já estivesse no imaginário de
Dona Cristina e sua família, alimentada pelas histórias que o parente contava sobre Miguel
Alves. Em suma por meio da interpretação dessas narrativas entendemos como

A “subjetividade” − conhecimento, sentimentos, fantasias, esperanças e sonhos ─ de


indivíduos, famílias e comunidade informa e molda a experiência da migração em
todos os seus estágios, e é por sua vez transformada por essa experiência 106.

Mas só o sonho não bastava, era preciso um planejamento médio que só se


realizava mediante redes sociais estabelecidas pelos migrantes. Estas redes consistiam em

104
CRISTINA, 2017.
105
FERREIRA, Jurandyr Pires; FAISSOL, Speridião; Dyrno Pires Ferreira, et al. Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros: Maranhão e Piauí. III Volume. Rio de Janeiro: 1BGE, 1957, p 23.
106
THOMSON, Alistair. Histórias (co) movedoras: História Oral e estudos de migração. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 22, nº44. 2002, p.349.
57

pontos de paradas, barracões, pousos e fazendas que acolhiam as famílias após as caminhadas
exaustivas, permitindo que se restaurassem para a trajetória do dia seguinte. Podiam ser
carona em boleias de caminhões, previamente acordadas pelos pais ou conseguidas
aleatoriamente na beira da estrada. Viajar com grupos variados permite também dividir cargas
e crianças em lombo de burros e bois, criações eram tocadas para alimentação no caminho ou
para servir de permuta por outro alimento necessário; estes traços de sociabilidades presentes
na travessia foram bem pontuais para que a chegada até o município de Altos se tornasse
possível, revelado na fala de Seu Manoel:

Manoel: Nós fomos deixados num povoado que tem que chamam de Pacujá, aí ficou
ali eu vim deixar os animais alheio que era alheio os animais, aí voltei cheguemos lá
pegamos o carro quando deu 9 horas. Nós estávamos pertinho de Sobral lá no
Aprazível… aí nós descemos do carro, ficamos lá esperando. Aí chegou um
caminhoneiro da Paraíba, aí papai jogou nós tudinho viemos pra cá… dia 29 de
setembro de 1954 (…). Aí nós chegamos aqui em Altos 11 horas da noite…aí
chegamos, papai falou lá com uma velha, arranjou um barracão, deitou todo mundo,
dormiu no chão…
Lia: Aonde?
Manoel: Lá em Altos... Aí quando o dia amanheceu papai procurou uma casa duma
velha lá que ele tinha, conhecida dele, de vista, quando ele veio pra cá, e agente
ficou lá… quando foi no dia 4 de outubro nós cheguemos lá no interior pra onde nós
viemos107.

Com estas palavras, Seu Manoel exemplifica o quanto estas redes de relações
eram vitais para que o processo migratório acontecesse, contribuindo para a fixação do
trabalhador e sua família na nova espacialidade. Essa construção identitária, conforme
veremos, gravita em torno de relações de trabalho definidoras dos caminhos no EntreRios, ora
legitimando as expectativas da mudança, ora criando as ideias de novas migrações.

107
MANOEL, 2018.
58

3 VIVER NO ENTRERIOS

Neste capítulo trata-se do processo de acomodação destes migrantes e construção


de suas principais redes de trabalho e sociabilidades. Em consonância com as narrativas,
construímos um paralelo com as principais interpretações da historiografia piauiense com
relação à economia de autoconsumo no Piauí, atentando para os aspectos salientados, como
sua rudimentariedade e frugalidade, correlacionando com a visão de atraso direcionada ao
trabalhador campesino.
Seguindo a tônica dos demais Estados brasileiros, o Piauí se esforça para entrar no
cenário agroexportador através do extrativismo da borracha da maniçoba e cera da carnaúba, e
a historiografia piauiense contribui com pesquisas primorosas sobre a economia do Estado e
seus desdobramentos políticos, elencando a agricultura dita “de subsistência” para a categoria
de complementaridade, sem grandes enfoques sobre os meios de vida das pessoas que ali
construíam suas estratégias de sobrevivência.
Os contratos orais estabelecidos no Piauí com os fazendeiros orquestram estas
estratégias de sobrevivência que se constituem numa combinação de forças entre o trabalho de
pais e filhos nos roçados, o trabalho doméstico, a extração e venda do coco babaçu, entre
outras atividades. Sob o sistema de pagamento de renda muitas famílias conseguiam morada
em localidades do EntreRios, e as redes vicinais contribuíram para a fixação nestes espaços.
Entretanto, as lutas pela obtenção dos meios de vida não se anularam, e as
narrativas evidenciam a pluralidade de resistências cotidianas que predominavam o trabalho,
onde o sentimento de coletividade se construía a cada dia no contato com outras famílias,
constituindo o próprio fazer-se classe.
As narrativas também evidenciam que apesar destes trabalhadores rurais não
terem se articulado em sindicatos ou em prol de revoltas maiores em defesa do direito à terra e
à propriedade, considerando o debate efervescente das décadas de 60 e que aos poucos atingia
zonas rurais da capital108, enfrentavam desafios na relação de agregação, construindo para si e
entre si um discurso oculto que se processa de diversas formas. Diante da benevolência do
patrão, também um instrumento de controle social, o camponês se utiliza de uma postura
submissa e de uma decantada amizade para obter alguns ganhos para si, melhorias para a
família e um sentimento de proteção em relação aos outros vizinhos e fazendeiros. Entretanto,

108
SOUSA, Ramsés E. P. M. “Uma reforma agrária de baixo para cima”: as Ligas Camponesas e o
questionamento do Latifúndio em Teresina. In: XXVII Simpósio Nacional de História, Anais Eletrônicos...,
ANPUH, Natal,2013.
59

esta aparente passividade mais uma vez é posta em xeque quando negociações pré-acordadas
falham, prejudicando a sobrevivência da família.
As falas demonstram que por motivos variados, o núcleo familiar se tornava
vulnerável, sejam pelo isolamento de outros parentes, obrigatoriedade do pagamento de renda
mesmo diante de más colheitas, uma produção além do esperado que desperta a cobiça do
patrão, episódios esporádicos de enfrentamento direto na forma de ações.
Tais razões motivaram aquelas pessoas a reorganizar seus projetos de vida e
engajarem-se em novos deslocamentos no interior do EntreRios ou de volta para o Ceará,
tentando atender suas expectativas e reconstruir suas redes de solidariedade.
Nesse percurso de diálogos, percebemos que certas significações ganham corpo e
adquiriram um peso simbólico, como, por exemplo, “a fartura” para o trabalhador rural, o “ir
além da expectativa” da produção para sobrevivência. A memória se revela não apenas como
depositário de lembranças, mas se renova e adquire potência à medida que os velhos restituem
sua função de repassar experiências para as gerações mais novas.

3.1 Interpretações a cerca da agricultura de autoconsumo no Piauí

As terras férteis do EntreRios já foram chamadas de “uberosíssimas” – constante


nos Relatórios Governamentais da década de 1940 – e consideradas como destinadas às
cooperativas, produtoras dos gêneros que seriam exportados para outras regiões do país e para
o estrangeiro, destacando-se seu potencial para produtos de origem extrativista, cultivares, e
de origem animal, como couro e peles109. Tal adjetivação visava a atrair as atenções de
investidores para aquela região, que já tinha ocupantes cujos planos estavam destinados à
implantação de cooperativas.
A implantação de colônias agrícolas não apenas no Piauí, mas em diversos pontos
estratégicos do país orquestravam-se no sentido de fixar o homem no campo de uma maneira
racional, sob controle constante que não condizia, ainda, com uma reforma agrária, utilizando
par isto também como estímulo o extrativismo. Daí a ênfase em relatórios e mensagens

109
As cooperativas se iniciaram no ano de 1937 apenas em 3 municípios piauienses com 23 campos e em 1939já
constavam 127 campos em 13 municípios. Os produtos exportados eram de origem extrativista, tais como a cera
da carnaúba e o babaçu, cultivados (arroz, milho e mandioca), e de origem animal (couro e peles), além do
estímulo à fruticultura, principalmente plantações de citrus. FONTE: Piauí. Interventor, 1940, Leônidas de
Castro Melo. Relatório apresentado ao Exmo Snr. Presidente da República pelo Interventor Leônidas de Castro
Melo em 1940. Teresina: Imprensa Oficial, 1940.
60

governamentais da década de 1940 em mostrar os resultados satisfatórios de tais colônias, e,


em contrapartida, entregar à revelia daqueles que ainda permaneciam de fora, “à margem da
margem”, posto que continuassem praticando agricultura itinerante e em seminomadismo. É
devido a esses rótulos que conseguimos captar algo que se aproxima das características de
nossos sujeitos, pra entender como o governo enxergava o lavrador pobre:

Prosseguiu o Governo, no correr de 1937, nos trabalhos de incentivo à produção


agrícola, por melhorá-la em qualidade e quantidade. Paria isso, além de ampliar a
área dos campos de demonstração e sementes, de alguns municípios, resolveu,
mediante administração direita, ou em cooperação com particulares e com a União,
preparar novos campos de cultura, nas mesmas ou noutras localidades, afim de
patentear, pelo exemplo, na melhor e mais convincente das comprovações, as
vantagens dos métodos racionais sobre os rotineiros, tanto em relação ao rendimento
da terra, por unidade de superfície, quanto de referência ao valor do produto obtido.
Certo, não poderia obter, como não se deverá esperar, no curso de rápidos dias, a
transformação radical que, é de desejar, se opere nas nossas atividades agrárias. Não
seria possível anular ou substituir, de súbito, velhíssima convicção que se há
transmitido, através de gerações sucessivas, aos nossos lavradores. Para alcançá-lo,
faz se indispensável, sobretudo, persistência. As ideias errôneas irão, aos poucos,
cedendo à evidência dos benefícios colhidos com a adoção, continuada, dos
processos de cultura intensiva110.

Este discurso de “velhíssima convicção” não se descola de outras tantas


caricaturas, como a “indolência” construídas em torno do lavrador rural pobre e consoante
com a política de governo dos anos 30 abordada anteriormente. Mais que isso, havia certa
desesperança na lavoura de subsistência no Piauí, pois era vista como um entrave para
empreendimentos agrícolas de grande extensão. Conforme vimos no relatório, era necessária a
ampliação sobre outras diversas localidades de União, contando, pois, com um campesinato
articulado e com um certo grau de organização. É forçoso afirmar isso em relação aos sujeitos
campesinos de que estamos à espreita. Por mais que estabelecessem redes vicinais de
solidariedade responsáveis por eles se enraizarem cada vez mais na região, migrar novamente
era uma prática possível.
Para se ter uma ideia, só a família de S. Cosme e S. Damião migrou duas vezes
dentro do município de União, entre as localidades chamadas de Milagres e de Santiago.
Esses fatos apontam que viver em cooperativas era levar uma vida coletiva e diferenciada, da
qual nossos narradores, por não construírem elemento de identidade com a localidade,
naquele momento, não quiseram ou não tomaram parte. Vale ressaltar que esta prática de

110
Piauí. Interventor, 1940, Leônidas de Castro Melo. Relatório apresentado ao Exmo Snr. Presidente da
República pelo Interventor Leônidas de Castro Melo em 1940. Teresina: Imprensa Oficial, 1940.
61

cooperativismo implicava na ideia de serem donos da terra, mesmo quando na forma de


pequenos proprietários.
Não queremos propor aqui uma cartografia minuciosa de como estes sujeitos e o
trabalho produzidos por eles foram abordados pela historiografia piauiense ao longo dos anos,
mas vamos pinçar algumas leituras à guisa de elucidação para ver como discursos entram em
consonância quando o assunto é a dita agricultura de subsistência e o lavrador pobre.
Memória cronológica, histórica e corográfica da Província do Piauí, do
historiador baiano José Martins Pereira de Alencastre, escrita em 1855 e publicada na Revista
do IHGB, em 1857, é uma obra central para historiadores que se dispuseram a discutir
economia piauiense e trataram, em poucas linhas, a respeito de um braço da economia que
representava pouco sustentáculo. Lembremos que a história agrária, durante muito tempo,
propôs entender a economia da colônia, a produtividade, o papel de determinados sujeitos no
contexto da produção, subsumida na importância da economia do Estado para o país.
Justificando o definhar da cultura de algodão após 1700, Alencastre lançou a hipótese do
fracasso das lavouras ter sido o germe para que agricultores se tornassem criadores,
reforçando que:

Geralmente há no Piauí grande repugnância para a lavoura, e se fazem a lavoura de


primeira necessidade, é porque sem ela morreriam de fome; o instinto, pois da
própria conservação é quem aconselha os filhos do Piauí a plantarem milho, feijão,
arroz e mandioca111.

A literatura memorialista ora apresentada revelava que o cultivo de lavouras se


dava apenas por necessidade. Alencastre, jovem funcionário do Império e aspirante a visões
reformistas e veementes contra o clientelismo político que carcomia o Estado112, entendia o
cultivo dos gêneros de primeira necessidade apenas para satisfazer a fome, em função do
instinto. Este era o motivo que, segundo o autor, justificava o porquê de camponeses lavrarem
a terra. Para alimentar as bocas e continuar sobrevivendo, aceitavam as condições impostas e
se tornavam criadores. Em uma análise circunscrita aos séculos XIX e XX, destacamos duas
obras para perceber como a “visão espasmódica desse tipo de agricultura” se cristaliza na
historiografia piauiense.

111
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Memória cronológica, histórica e corográfica da Província do
Piauí. Teresina: COMEPI, 1981, p. 82-83.
112
Para mais informações sobre José Martins Pereira de Alencastre e sua trajetória historiográfica, ver SOUZA,
Paulo Gutemberg de Carvalho. História e identidade: as narrativas da piauiensidade. Dissertação (Mestrado em
História do Brasil) – Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2008.
62

Raimundo Nonato Monteiro de Santana propôs em seu estudo “Evolução


Histórica da Economia Piauiense”113, publicado originalmente em 1964, uma ampla
caracterização da formação e evolução do sistema econômico piauiense, mencionando
agricultura de subsistência e retomando não somente Alencastre, mas também relatos de
viajantes do século de XVIII, para moldar a ideia de rudimentariedade. Essas considerações
revelam atenção apenas a técnicas e capital empregado nas lavouras e ao ritmo de trabalho
consoante com o tempo da natureza, caracterizando o universo da cultura rural como
rudimentar.
De fato, a prática de roça diz respeito ao terreno da pequena lavoura, e da qual
muitas famílias tiravam seus sustentos. Mas é uma economia pobre, não apenas por técnicas
empregadas, mas porque a terra trabalhada não pertence ao trabalhador, e uma parte de sua
produção ─ acordada nos contratos verbais de trabalho do campo ─, será destinada ao
proprietário, o que caracteriza o caráter espoliativo dessa subsistência e própria de
camponeses pobres que nada têm de indolentes, pelo contrário, trabalham ferozmente para
obter um ganho real.
Por sua vez, Queiroz114 em “Economia Piauiense; da pecuária e extrativismo”
evidencia a importância do abastecimento de autoconsumo para o de gêneros na capital. Em
ambos os casos, há o interesse em dar conta de como a economia piauiense evoluiu das
fazendas e povoados esparsos para um projeto agroexportador mais complexo, integrando a
economia nordestina, com o país e para o exterior. A autora qualifica a implantação da
máquina empresarial extrativa da borracha da maniçoba, matéria-prima essencial para a
industrialização naquele período, e os desafios enfrentados pela produção, caracterizadas pelo
nomadismo que impedia a realização de investimentos. Também ocasionada por demandas
industriais, a produção da cera da carnaúba foi incrementada, mas altamente dependente do
mercado externo, caracterizando seu caráter cíclico, marcante também para o caso da extração
do babaçu. Os agentes da produção se ocultam na narrativa para dar lugar a números e
estatísticas necessárias para o entendimento desse processo.
Tais explicações se inserem no bojo das discussões sobre interpretações do Brasil,
que viviam a aurora das reflexões econômicas mais profundas após o fim da escravidão, como

113
A obra de Raimundo N. Monteiro de Santana se entrelaça com sua trajetória profissional, como assessor e
secretário-executivo da Comissão de Desenvolvimento Econômico do Governo do Estado do Piauí, criada em
1956. O contexto da elaboração, calcado na necessidade do planejamento para promoção de desenvolvimento do
Estado, refletiu a necessidade de uma nova interpretação da formação e situação das regiões a fim de possibilitar
uma discussão e formulação de políticas públicas.
114
QUEIROZ, Teresinha. Economia Piauiense: da pecuária ao extrativismo. Teresina: EDUFPI, 2006, p.31-50.
63

no caso de Celso Furtado e Caio Prado Jr, autores, respectivamente, de Formação Econômica
do Brasil e História Econômica do Brasil, leituras que deixaram suas marcas também na
historiografia piauiense. Voltadas para o exercício de compreensão da complexidade da
economia brasileira, tais interpretações convergem para um ponto em comum:

(...) devem, antes, ser tratadas como elementos importantes para a articulação de
forças sociais que operam no desenho da sociedade, que contribuem para movê-la
em determinadas direções.115.

Os caminhos escolhidos por Raimundo Nonato Monteiro de Santana na


historiografia piauiense contribuem para futuras políticas públicas no Estado, focando em
entender a dinâmica econômica e os principais desafios de um Estado pobre para desenvolver
uma economia minimante forte, que possa gerar riquezas convertidas em melhorias sociais.
Entretanto, essas análises são construídas de maneira que se descolam do social, à medida que
apontam aquelas economias de autoconsumo como entrave para o desenvolvimento.
Esta sistematização herdada de Caio Prado Jr coloca as demais atividades
desarticuladas com a produção voltada para o mercado externo como inorgânicas, conferindo-
lhe um tom caótico, dado que:

Encontrariam-se nessas condições, tanto atividades econômicas voltadas para o


mercado interno, como a pecuária e a produção de determinados gêneros agrícolas,
caso, por exemplo, da mandioca, como toda uma multidão de atividades de difícil
classificação ou inclassificáveis. Os dois tipos de atividades teriam, porém,
basicamente, um mesmo papel; seriam meros apêndices da grande exploração116.

Desta perspectiva também partilhava o Estado, visto que considerava o trabalho


no campo promissor quando integrado às engrenagens econômicas nacionais.
Nos jornais os agricultores pobres eram apresentados como “elementos naturais”
da paisagem sertaneja, de maneira caricata. A notícia intitulada “Roteiro das Sete Cidades”
relata o lançamento do livro de nome homônimo no Salão da Casa Anísio Brito em julho de
1954. Muitos Jornalistas estavam lá para prestigiar a leitura feita pelo próprio autor e
confrade, Vitor Gonçalves Neto. Com uma percepção “de Tomé” o escritor enveredou-se
pelas rochas de arenito, colheu documentários, relatos e impressionou-se com a quantidade de
lendas que se abrigavam no recôndito das rochas com formas misteriosas. Em sua jornada
folclórica visitou Sete Cidades pajeado por dois “companheiros curiosos”, mais para
intérpretes, “o poeta Assunção e o sertanejo Antonino”.

115
BOTELHO, André. Prefácio. In: RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São
Paulo: Alameda, 2011, p.15.
116
RICUPERO, Bernardo. Ibidem, p.141.
64

O jornal se esmerou evidentemente em explorar esses dois tipos que já são


apresentados pelo próprio autor de uma maneira caricata. O poeta é apresentado como um
misantropo que “bebe para esquecer os problemas da vida”. Mas prestemos atenção na
caracterização do sertanejo.

Por outro lado, o Antonino conta histórias mal assombradas, de homens em guerra
que por ali aparecem de quinta para sexta, com bandeiras vermelhas à frente do
Exército. Que cavalgam córceis fogosos em cujas testas reluzem estrelas vermelhas.
Ora também Antonino lamenta a sua miséria de homem da roça. Só uma vez, pelas
mãos de um turista, veio às suas uma coruja de quinhentos bagos. No mais, tem sido
de miséria em miséria a sua miserável vida de lavrador. Ajunta todas as rendas de
sua colheita, para trocá-las, no mercado da cidade, por bagatelas, bugigangas e
ninharias117.

O sertanejo pobre ocupa seu lugar de sujeito anedótico, contador de causos, a


ignorância que leva à crença em lendas fantasiosas, mas também aos olhos do escritor ele
lamenta de sua vida miserável que segue no mesmo ritmo lento de plantar, juntar e trocar, sem
novidades e só as têm quando veem turistas. O confrade também se toma do discurso público
sobre os pobres, o enaltece em seu livro porque é o que lhe dá o status de romance. Esta visão
não se descolava da visão progressista do Estado e em alguns pontos no testemunho oral
destes narradores. Um discurso que se revela à medida que vamos conhecendo as redes de
trabalho que estabeleceram.

3.2 Construindo redes de solidariedade – “no interior toda terra tem patrão”

Depois da chegada, a forma de trabalho na qual boa parte dos migrantes se


estabeleceu se deu por meio de contratos verbais de agregação, em condições semelhantes às
do Ceará. De acordo com Marina Machado, “agregado” é:

Um trabalhador livre que mora nas terras do proprietário, mas que não faz parte da
família nem do quadro de trabalhadores, estabelecendo com o proprietário uma
relação de trabalho na qual cultiva as terras mediante acordos pré-fixados, como por
exemplo, dar alguns dias de trabalho ao dono das terras ou mesmo uma parte de sua
produção como pagamento em troca da utilização das terras. Por meio desses
acordos, esses trabalhadores conseguem uma oportunidade de trabalho e
subsistência. Em suma, o agregado é uma pessoa livre, residindo em domicílio de
terceiros que fornece mão-de-obra em troca de um pagamento não-salarial.118

117
ROTEIRO DAS SETE CIDADES.In: Jornal Opinião, Teresina, julho de 1954. Local de guarda: Arquivo
Público Casa Anísio Brito.
118
MACHADO, Marina. Agregado. In: MOTTA, Márcia. Op. Cit., p.20.
65

O fato de ser mão de obra livre não elimina o caráter espoliativo desse tipo de
relação de trabalho. Como bem pontua D. Cristina, em uma de suas falas, “no interior, toda
terra tem patrão”. A relação de trabalho que se estabelece, por ser “de boca”, está sujeita às
alterações que podem vir a prejudicar o agricultor, mas não esgotam rigidez e cobrança.
Devido ao parco uso da palavra escrita, os “testemunhos na voz assumiam um estatuto de
verdade e perenidade como os contratos orais de meação e as dívidas nos armazéns, embora
sujeitos à dialética da realidade”119.
O pedido de morada mediado por um parente submete o trabalhador a aceitar não
apenas um trabalho, mas um conjunto de regras “interiorizadas por ambos, agregado e
fazendeiro, fundado numa oposição inconciliável entre duas formas de trabalho e que só uma
forma de dominação específica pode conciliar”120. Na obra memorialista “O Casarão do
Olho D’Água dos Azevedos”, é perceptível como ocorre essa forma de dominação: “Na
fazenda se via de tudo, em contato direto com o povo bom que serve a gente e com a própria
natureza, que dá suavidade, leveza, tranquilidade e poupa o corre-corre das grandes
cidades”121.
Esta descrição no livro aparece após o tópico denominado “Criadagem”.
Descrevendo os empegados da casa em sua maioria descendente de escravos, remetendo à
herança colonial, a autora Maria Francisca Azevedo julga natural a subordinação do “povo”.
Ela evoca o coletivo para falar dos trabalhadores rurais como se fosse uma massa homogênea
conformada com o viver no campo, em contraste aos flashs de progresso das grandes cidades.
A “natureza” para ela, própria destas pessoas que são fruto da desagregação de
mão de obra escrava naquela região, é servir, atestando uma das características da exploração
deste tipo de trabalho, o controle dos movimentos, “entendido como seu deslocamento pelo
espaço da fazenda, e seu tempo social, mesmo quando ele não incide a atividade
produtiva”122. Em suma, estes trabalhadores estavam sempre à disposição do fazendeiro.
Na interface deste conjunto de regras que delimitavam o raio de ação dos
trabalhadores rurais, estavam as estratégias de sobrevivência implícitas nos conjuntos e
práticas comuns nas fazendas. Quando o migrante chega e se estabelece nas terras onde algum

119
SANTANA Charles d’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia
1950-1980. São Paulo: Annablume, p.108.
120
MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra: a lógica costumeira e judicial dos processos de
expulsão e invasão da terra camponesa no sertão de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1988, p.81.
121
AZEVEDO, Maria Francisca. O Casarão do Olho d’Água dos Azevedos. 2ª edição. Teresina: COMEPI,
1992, p.92.
122
MOURA, Margarida Maria. Op. Cit., p.82.
66

membro da família havia indicado, começa a construir sua rede de sociais tão caras para a
obtenção dos meios de vida.
Geralmente, as famílias residiam próximas umas às outras, com o devido cercado,
para que as criações não se misturassem; dessa forma, pontilhamos os fundamentos desse
sistema de pagamento e seus limites, pois ao agricultor pobre não era dado o direito de
“enriquecer”, no sentido de acúmulo de produção para outros objetivos que não o comércio,
comumente realizado em armazéns que também pertenciam aos proprietários.
Não era permitida a construção de casas de tijolos, apenas de barro e teto de
palha; e, em alguns casos, somente de taipa, assim como era proibido, também, plantar
árvores frutíferas. Portanto, eram negados elementos de fixação efetiva naquele espaço. A
expectativa de gerar um excedente que possa ser tranquilamente armazenado dá lugar à
habitual característica desta relação de trabalho, a gradual espoliação do trabalhador pelo
sujeito dominante, privando-o de projetar anseios para além do necessário.
O sistema de “quartas por linha” era o predominante no pagamento de renda, e
variava com relação à quantidade de quartas que era paga ao proprietário no final da colheita
e quanto aos tipos de culturas que eram cultivadas, podendo variar entre milho, arroz ou outro
cereal. O camponês produzia junto com a sua família. Retirava uma parte para o pagamento
de renda, a parte que restava tinha dois destinos: alimentação própria e geração de excedentes,
necessários para a compra de artigos e produtos, cuja feitura pela família era impossível.
Assim, o pai conseguia na venda do excedente dinheiro necessário para a compra de roupas,
calçados, cigarro, fósforos e carne, onde, dependendo do grau de intimidade ou “créditos” do
agricultor com o proprietário, poderia ser vendido “fiado”.
A maior parte dessas negociações e cobranças de renda, bem como outros
serviços de fiscalização, era realizada pelos “encarregados”, uma vez que esses patrões não
eram somente fazendeiros, mas exerciam outras ocupações. Seu Damião lembra bem do dono
das primeiras terras onde morou em Matões (Miguel Alves). Antônio Gomes de Sousa, que,
além de fazendeiro, era comerciante de tecidos e cereais. Seu Manoel, que viera com a família
primeiramente para o município de Altos, conta que se instalou na propriedade São Mateus,
posse de Antônio Doca, que era “proprietário, fazendeiro, naquela época ele era ainda até
delegado” 123. Seu Isídio recobra o nome de seu patrão no povoado Harvre de Graça, ainda no

123
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
67

interior do município de José de Freitas: “Francisco Alberto Almenda Gayoso124, era


advogado, era advogado de Direito aqui, Juiz de Direito”125.
Eram comerciantes, fazendeiros, autônomos e poderiam exercer ofícios mais
urbanos como magistrados e militares. O absenteísmo é uma marca indelével no Piauí, do
qual relacionamos imediatamente e tão somente com a figura do vaqueiro, quando a presença
rarefeita do patrão afeta as negociações construídas com as comunidades que se dispõem a
trabalhar no cultivo de roçados em suas terras, evidenciando a importância do “encarregado”,
uma espécie de capataz administrativo.
O paternalismo ultrapassa os limites da fazenda e chega ao campo da política,
conforme revela Maria Cecília Nunes, ao elaborar quadro comparativo de parlamentares
estaduais do Piauí com três e mais Legislaturas, de 1892 a 1930. Neste quadro126, verificamos
que pouco mais da metade dos nomes constam com a profissão de fazendeiro e, em segundo
lugar, comerciantes. O entrelaçamento com a política não permanece apenas na primeira
República, mas dá a tônica de todos os processos eleitorais subsequentes. Mas, independente
de serem fazendeiros ou comerciantes, a organização do trabalho se orquestrava de uma só
maneira: pagamento de renda.
Seu Damião quando se instalou na localidade Matões, no município de Miguel
Alves, contou que vendia toda a produção para o armazém do fazendeiro e ressaltou que sua
lavoura era “grande, fazia 350 quartas de farinha, 150 de goma” 127. As expectativas em
relação às experiências migratórias iam sendo atendidas. Os invernos eram bons e as estiagens
não surpreendiam o agricultor pobre submetendo-o à fome e miséria característica dos sertões
cearenses. No “pedaço” que lhe era destinado, configurado como casa/quintal/roça, o
agricultor ia prosperando, nas expectativas possíveis. A criação de animais é o patamar
seguinte a ser alcançado e contribui para incrementar as sociabilidades: “(...) dava pra
trabalhar, pra criar: porco, galinha, bode, ovelha... lugar bom, lugar criador que a pessoa
até enrica” 128!

124
Observamos aqui uma provável confusão dos sobrenomes. O referido proprietário provavelmente tem algum
parentesco com o General Jacob Gayoso e Almendra, que além de advogado era latifundiário e proprietário da
fazenda Meruoca, em José de Freitas. Consideramos que a extensão das propriedades extrapolava as fronteiras
dos municípios.
125
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2016 na cidade de
Teresina-PI.
126
Para conferir quadro comparativo, ver NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida. Oligarquia Pires Ferreira:
família e poder político no Piauí (1889-1920). Teresina: Academia Piauiense de letras, 2016, p.33-34.
127
DAMIÃO Feitosa da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.08.2016 na cidade de
Teresina-PI.
128
CRISTINA Frota. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de Miguel
Alves-PI.
68

Seu Isídio, que morou em dois “interiores”, como ele mesmo nos corrigiu várias
vezes para evitar chamar “povoado”, Cadoz e Harvre de Graça, situados no mesmo município
de José de Freitas, também nos explicou a matemática do sistema de quartas por linhas:

(...) era separado, a roça de arroz era um a renda, e a de milho era outra (...) o tanto
que você pagava da renda de milho como pagava de arroz, duas quartas 129 de renda.
Era linha! De cada linha você tinha que tirar duas quartas. E se tivesse quatro linha
de roça de arroz você pagava 8 quarta de arroz... se você tivesse quatro linha pra
milho e mandioca, você pagava 8 quarta também...era assim. Cada linha você tinha
de pagar duas quarta... pois é, também foi só ai... num morei em outro lugar, foi só
esse...trabalhando direto, de roça(..)130

As culturas variavam de uma fazenda para a outra, mas geralmente se mantinha


no grupo dos cereais. Complementava a renda do trabalhador “um coquinho pra vender,
mantinha um legume, quando a mandioca tava no ponto pra fazer farinha, agente arrancava
pra se arrumar” 131. A farinha também era utilizada como pagamento de renda.
A atividade extrativista de coco babaçu complementava a renda das famílias e
permitia inclusive que os filhos reservassem uma parte dos ganhos para si. Seu Manoel nos
conta que após chegar em José de Freitas o “cocalão”, como ele chamava a mata densa de
babaçuais, era-lhe significativo:

Manoel: Nós fazia o seguinte: quando dava sábado, papai liberava nós pra quebrar
coco, pra vender pra ir da festa. Era... Aí nós aprendemos a quebrar coco... quebrava
12 pratos, 15 pratos.
Lia: O que você ganhava era seu ou para a família?
Manoel: Era ali era nosso, nós ia vender lá na casa do patrão. Nós vendia aí ficava
132
com aquele dinheiro pra nós.

Nesta fala percebemos o controle exercido pelo patrão por toda a produção
comercializada pelo agregado e sua família. O dinheiro da venda do coco proporcionava
momentos de lazer para os jovens lavradores, em festas onde o patrão aparecia, pagava
bebidas e arrematava em leilões, cultivando relações de compadrio que consistiam numa
forma expressiva de sociabilidade na cultura rural. A ideia era de proteção, mas ao mesmo
tempo de controle social, conforme percebemos na fala de Seu Manoel:

Manoel: Nós era (sic) 20 rapaz solteiro na vizinhança, quando dava o dono do
terreno, o filho do velho do dono do terreno, quando dava sábado ele juntava aquela
rapaziada todinha. “Quem é que tem dinheiro? Quem é que não tem? quem tem

129
Uma quarta equivale aproximadamente a 60kg, no caso duas quartas seriam 120 kg. FONTE; “médias e pesos
de nosso meio rural, disponível em: http://www.sfimoveis.com.br/site/conteudo.php?tc=5.
130
ISÍDIO, 2016.
131
ISÍDIO, 2016.
132
MANOEL, 2017.
69

dinheiro? Quem não tem?” Aí aqueles que não tinha ele levava pra festa aí chegava
lá ele pagava a conta de todo mundo.
Lia: Aqueles que não tinham?
Manoel: Aqueles que não tinham.
Lia: Ele levava vocês pra festa?
Manoel: Nós ia todo mundo junto, todo mundo junto, também tinha uma vantagem,
ninguém mexia um com o outro não. Um de fora assim de outro bairro fosse mexer
já estava era com a turma do Saco133.

Este grau de proximidade entre proprietários e agregados, tão caro para a


sobrevivência desses camponeses pobres, fundamenta-se na relação público-privado; se no
público o patrão é o bom moço, que bebe “pinga” com os empregados e dá conselhos, assim
como o agregado revela-se submisso e conformado com a sujeição, no privado o lugar social
é bem delimitado, tanto com relação às tarefas incumbidas, como também expectativas
restringidas. O discurso público esconde jogos de intenções de dominantes e sujeitos
subordinados. A “benevolência” do patrão se destrincha para revelar perdas e ganhos para os
camponeses.

3.3 Resistência e discursos ocultos dos narradores migrantes

Observemos os textos a seguir. O primeiro é um trecho da obra “O Casarão do


Ollho D’Água dos Azevedos”, narrativa sobre a fazenda extensa que em sua grande maioria se
encontra no município de Miguel Alves, mas também tem hectares no município vizinho de
Porto.

Ainda hoje mantém o respeito com que meus avós acostumaram os moradores da
fazenda. A responsabilidade dos patrões por eles, na doença e na morte, continua
como no tempo antigo e eles cumprem o dever de trabalhar para o patrão quando
solicitada e dentro de sua circunstância, paga sua diária e pelo preço atual; (...)
vender a safra para os patrões pelo preço corrente não podendo retirar seus produtos
134
para vender a outros proprietários .

Aqui a memorialista e herdeira desta família traduz o olhar do fazendeiro


“benevolente” que enxerga relações de trabalho naturalizadas em garantir a submissão dos
empregados, mesmo após aquele que as instituiu já ter morrido, evocando a força de uma
tradição135 “inquestionável”. Ela externaliza a ideia de ter sempre o agregado na condição
consciente dos seus patrões.

133
Consideramos que o nome faz referência à Serra do Saco, localizada na região Sudoeste de José de Freitas.
MANOEL, 2017.
134
AZEVEDO.Maria Francisca. Op. Cit., p.21.
135
Em “A invenção das tradições” Eric Hobsbawn aponta que o termo “tradição inventada” é utilizado num
sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e
formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período
70

O segundo trecho que destacamos é da fala de Cristina Frota, agricultora


aposentada, narrando o que aconteceria se uma pessoa não pudesse pagar renda naquela
localidade. Uma fala evocada a partir de um presente marcado pelo direito à posse da terra:
“Vixe Maria, se não desse a renda corria já já com a gente, com a pessoa, pra desocupar
porque não queria pagar”136.
Os dois testemunhos se comunicam. Aproximam-se no que diz respeito à
temporalidade e à espacialidade (a Fazenda Olho D’Água), e se distanciam sobre a visão que
cada uma – a dona e a moradora – constroem a partir de suas vivências na fazenda. Os
escritos de Maria Francisca Azevedo partem de suas lembranças de juventude, fazendo parte
de uma memória coletiva (re)contada através de gerações. É um registro escrito de matriz oral
e que se faz necessário no tempo presente.
Já o presente de Cristina lhe permite visualizar as relações de exploração que
dominaram e dominam aquela região; ela espera que o processo de compra de terras pelo
INCRA se resolva logo; tem pressa, porque quer vender os hectares aos quais tem direito para
viver com a filha na cidade. Episódios narrados por migrantes (e filhos de migrantes) revelam
que, mesmo em tempos e lugares distintos, as experiências são semelhantes, permitindo que
entendamos os discursos públicos e ocultos de patrões e trabalhadores, tais como descritos na
literatura de Maria Francisca e nos relatos de Cristina, para a partir daí entender as
potencialidades das ações, gestos e práticas dos sujeitos migrantes fora de cena.
As categorias de pensamento discurso público e discurso oculto são propostas por
James Scott137 como um estudo alternativo para as relações de poder entre classes dominantes
e subordinadas em sociedades e momentos distintos, com o objetivo de revelar possibilidades
plausíveis onde a resistência possa germinar.
Estas formas de pensar partiram da análise de alguns modelos gerais de relações
institucionalizadas de poder (escravatura na América do Norte, brahmanis e intocáveis na
Índia, entre outros) para estudar de modo mais sistemático o que elas podem ensinar sobre o
poder, a hegemonia, a resistência e a subordinação.
O interesse para ele é identificar e interpretar experiências que se assemelham ou
se repetem, desconsiderando, neste caso, as peculiaridades de cada relação de poder, uma vez
que “a escravatura, a servidão, o sistema de castas, o colonialismo e o racismo geram

limitado e determinado do tempo ─às vezes poucos anos apenas─ e se estabelecem com enorme rapidez.
HOBSBAWN,Eric. RANGER, Terence (orgs). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.p.9.
136
CRISTINA, 2017.
137
SCOTT, James. A dominação e a arte da resistência. Discursos Ocultos. Lisboa: Livraria Letra Livre,
Plebeu Gabinete de Leitura, 2013.
71

rotineiramente práticas e rituais de denegrimento, de insulto, de ofensas corporais que


parecem ocupar grande parte dos discursos ocultos de suas vítimas”138.
Esta análise é bastante pertinente à compreensão da conduta política pouco
conhecida de grupos subordinados, a salvo os momentos em que propriamente ocorre a
ascensão da teia discursiva infrapolítica dos dominados. Quando então, a tensão discursiva
deixa de manifestar apenas ensaios fora de cena para haver o desnudar do afrontamento direto
– tema recorrente nas pesquisas. O termo “discurso público” é utilizado por Scott

Como forma abreviada de designar as relações explícitas entre os subordinados e os


detentores do poder. Mesmo quando é ostensivamente enganador, o discurso público
dificilmente nos dá conta de tudo que se passa na relação de poder139.

O discurso público, portanto, tem uma natureza incompleta, onde sua análise
unicamente levará a uma interpretação superficial de que patrões e trabalhadores entendem-se
através de uma rede de mentiras e enganações, bem como interpretar que os subordinados
aceitam passivamente essas relações de forças. O discurso público, realizado tanto pelas elites
quanto pelos subordinados é o visível, e diz respeito ao conjunto de gestos, práticas,
comportamentos que previnem o cumprimento de regras pré-estabelecidas “de cima”, ou seja,
práticas que gravitam em torno do que as elites normatizam.
Já o termo discurso oculto é usado

Para caracterizar o discurso que “tem lugar nos bastidores”, fora do campo de
observação direta dos detentores do poder. O discurso oculto é, pois, conotativo no
sentido em que consiste em enunciados, gestos e práticas que, tendo lugar fora de
cena, confirmam, contraditam ou infletem aquilo que aparece no discurso público 140.

Este discurso é também realizado pelas classes dominantes. Em espaços distintos


e direcionados para públicos específicos, os discursos ocultos presentes nas narrativas de
migrantes são as pistas necessárias para entender as artes da resistência camponesa e aspectos
da economia moral praticadas nessas vivências, ou seja, permite uma alternativa “para outras
abordagens que atribuem características de passividade, conformismo, fatalismo, imobilismo,
aos camponeses ou trabalhadores que não estão envolvidos em revoluções ou mobilizações
abertas”141.
O primeiro lugar onde Seu Damião viveu, o povoado Matões, foi também onde o
pai e a família estabeleceram uma decantada amizade com o proprietário e comerciante

138
SCOTT, James. Op. Cit., p.18.
139
Idem, p.28.
140
Ibidem, p.31.
141
MENEZES. Marilda Aparecida de. Op. Cit., p.53.
72

Antônio Gomes de Sousa. “Ele não implicava com nada, tô (sic) dizendo, o velho era mesmo
que ser meu pai, amigo do papai”, amizade essa que rendia boas concessões: “nós trabalhava
onde queria”. Uma relação de trabalho promissora após longos instantes de fome.
O patrão reforçava uma ideia de paternidade através de práticas e de gestos
mesmo em situações que aparentavam exigir dele cautela mediante sua desautorização frente
a outros moradores. Seu Damião conta que ao final do ano se algum morador não conseguisse
pagar a renda aí “o homem não queria renda não: ‘rapaz não deu nada fica por nada’, ele era
bom. Ele tinha a história: não deu nada e fica por nada. Agora nós pagava todos os anos a
renda dele, feijão, milho, arroz, muita farinha, muita goma”. Em contrapartida, a “boa
vontade do patrão” era inversamente proporcional a quanto mais tempo o agricultor
demorasse para pagar a renda. Mas se demorasse mais de um ano:

Ele dizia: “Rapaz você não serve, não me serve eu nem lhe sirvo, você caia fora, vá
embora, procure um lugar pra você passar sem pagar a renda, eu não tenho esse
terreno não, de você trabalhar e não pagar renda posso não, tem que pagar os
impostos e tirar a correia do couro”. Ele alegava tanta coisa, que o terreno dava
muita despesa, que os impostos eram baratinhos, mas tempo era caro demais142.

Nesta fala de Damião observemos bem o encontro dos discursos públicos do


fazendeiro com o discurso do morador. O fazendeiro cobra a paga todos os anos, e a família
de Damião se orgulha de conseguir pagar a sua cota sem ter passado um ano de carência.
Talvez, diante deste primeiro objetivo exploratório alcançado, a família de Damião tenha
eliminado qualquer ideia de subversão, além da vontade de permanecer cultivando os valores
da dignidade e da autonomia, o orgulho do homem do campo em conseguir entregar ao dono
da terra, o que lhe é pedido, conseguir manter-se e, ainda, gerar fartura. Ao passo que,
contando o que acontecia com outros moradores, a família que não entregasse renda
suficiente, que não botasse roçado, era mandada embora, para que a boa vontade do patrão
diante dos demais não fosse convertida em dormência. Observemos também que os múltiplos
serviços realizados pelo trabalhador na fazenda – peão, vaqueiro e conservação de bens de uso
comum – não dispensava da obrigatoriedade de destinar uma parte da sua produção para o
proprietário, evidenciando o caráter bastante espoliativo da relação de agregação.
A fartura, o acúmulo de produção era permitido, mas até que ponto e em que
circunstâncias? Damião conta que:

Comercializava tudo nos Matões... Tecido, e comprava muitos cereais, tinha o


Gervásio Costa do Novo Nilo, nós vendia toda a produção nossa pra lá... O velho

142
DAMIÃO, 2017.
73

Antônio Gomes pra lá tinha rixa, muita rixa, muita raiva de nós porque a nossa
lavoura era grande, fazia 350 quartas de farinha e 150 de goma, 120, Antônio
Gomes não podia comprar, liberava pra nós vender no Armazém do velho Gervásio
Costa... Ele comprava 10 cargas de farinha, três de goma, feijão, arroz, farinha...
levava tudo pra lá...

O fato de o pai de Seu Damião ter a opção de vender sua produção para outro
comerciante revoltava seu patrão. Lembremo-nos do trecho inicial da obra memorialista O
Casarão. Nos contratos verbais entre patrões e agregados, em regras implícitas ou não, era
negada a permissão de venda para outro fazendeiro, mas nos costumes próprios do meio rural
armazenar a produção quando se precisa do seu valor monetário para outras coisas não
funciona. O proprietário via nessa prática de venda para outros uma fuga do seu controle.
Talvez essa rixa fosse incrementada por algo de cunho pessoal entre os dois comerciantes, que
desconhecemos, ou o fato da possibilidade de estocar ser permitida apenas para o proprietário,
mas a tensão existia ao se quebrar um círculo de compromisso com os moradores que
produziam e vendiam para o patrão. Não concluir essa etapa final era um desvio caro.
Enquanto no Ceará, mesmo a terra sendo da família de Damião, a produção era
parca, no Piauí, ele conseguiu fazer fartura a ponto de despertar ressentimentos do patrão, que
reagia por não ter outro meio de explorá-lo ainda mais.
A própria estrutura comercial das pequenas cidades no EntreRios, que podemos
dizer constituíam-se em manchas urbanas, rodeadas de uma extensa zona rural, era tímida.
Sobre isso, o coronel Pedro Freitas, importante expoente do patriciado rural parnaibano,
comenta em entrevista concedida a Manuel Domingos Neto a respeito da estrutura comercial
da cidade de Livramento no início do século:

Manoel Domingos: E além de carne, tinha sempre arroz, feijão, farinha para vender?
Coronel: Tinha! Meu Pai, na Casa Almendra, tinha grandes caixões para depósito
de cereais para vender depois. Comprava na safra para vender no varejo, depois,
para o pessoal da cidade do interior que quisesse comprar. Em pratos e litros. Não
tinha feira. Foi ter prédio mesmo de feira de 1920 a 1924. Antônio de Freitas, meu
irmão, eleito prefeito, fez o prédio da feira143.

O sistema de venda por cargas, pratos e litros também existia em outras


localidades, e as feiras eram escassas tornando o monopólio das vendas disputado. Ainda
assim, havia certa mobilidade que permitia ao patrão ensaiar trejeitos paternais, daqueles que
são amigos da família e sentam-se em roda de pessoas para prosear. Assim também era no
cotidiano de Seu Manoel:

143
DOMINGOS NETO, Manoel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale
do Parnaíba. São Paulo: Annablume, 2010, p.120.
74

Lia: Como é que ele era como patrão?


Seu Manoel: Rapaz, ele era pra nós assim como um irmão. O patrão mesmo era
bom, que era o velho pai dele, agora ele era assim como um irmão ele chegava lá nas
casas dos moradores, tinha bondade com ele, só tinha uma coisa com ele
desvantajosa?
Lia: Qual era?
Seu Manoel: Que ele era mulherengo e gostava de ir nas cumbuca alheia sem
precisão, sem precisão porque eles aceitava né?144

Vemos mais uma vez o tratamento paternal dos patrões, que envolve a todos numa
“grande família”: iam à festa juntos, bebiam juntos, e até testemunharam seus galanteios pela
vizinhança. Bem diferente do que aconteceu no Ceará onde Seu Manoel, ainda rapazote,
diante da famigerada divisão de parca renda, resolve ir embora. O ato de “roubar a idade” e ir
para o Sul foi interpretado pelo pai como momento máximo; ali o discurso oculto ganha força
no gesto de Seu Manoel, e se significa mais na sua tentativa de fazer tudo escondido.
Importante salientar que para os patrões, o aparente desleixo com a representação é
justificado, pois “o poder significar não ter de representar, ou, mais precisamente ter a
possibilidade de ser mais negligente ou informal em qualquer representação particular”145.
Em 1962, já casado, Seu Manoel encara um novo projeto: ser vaqueiro. O
casamento gerava uma nova organização de vida e era algo necessário na vida do sertanejo.
Em seus estudos sobre a comunidade de Bofete, Antônio Cândido assim considera:

Casar é na verdade necessário não apenas dentro das condições de trabalho, como
das de vida sexual que prevalecem no meio rural. Sem companheira, o lavrador
pobre não tem satisfação do sexo, nem auxílio na lavoura, nem alimentação regular.
Em princípio, os dois últimos problemas não se colocam enquanto os pais vivem,
pois a solidariedade familiar os remedeia e a mãe faz as vezes da mulher
economicamente requerida. Mas considerando que os pais acabam antes dos filhos,
é necessário a estes tomar estado e assumir iniciativa econômica. 146

Para sustentar a família, tornou a paixão de menino em “profissão de gado”, como


ele mesmo chamou e passou por uma gradativa evolução, pois “até uns 18 anos eu trabalhei
aqui, ali, acolá, um chamava eu ia, outro chamava eu ia (...) uma pessoa queria amansar um
animal eu ia amansar um animal” e o trabalho em uma fazenda em Demerval Lobão
consolidou sua profissão, onde trabalhou por 10 anos. “Morar na fazenda é assumir através
de um código oral, há muito inculcado e sabido, tarefas que garantem a caraterização da
fazenda econômica e socialmente”147.

144
MANOEL, 2017.
145
SCOTT, James. Op. Cit., p. 62.
146
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.230.
147
MOURA. Margarida Maria. Op. Cit., p.82
75

O trabalho com o gado impedia que Seu Manoel voltasse a botar roçados como
antigamente, mesmo com as filhas e a mulher ajudando, não era o suficiente. Mas a profissão
de gado lhe renderia surpresas. Ele nos contou episódio de quando o patrão contratou um
empregado gaúcho que chegou lá “com frescura”, e opinou no serviço do outro, gerando
animosidade e antipatia. Seu Manuel julgou que o outro funcionário queria prejudicar suas
possibilidades de ganho junto ao patrão. A peleja ficou séria e Seu Manoel invocou uma
ameaça:

Um dia eu estava conversando com o meu patrão, aí ele chegou “a conversa aqui é
pra nós três”, aí eu “rapaz nós estamos conversando aqui é sobre os bicho, num é
sobre outra coisa não, que aqui num tem frescura de roubo, aqui não tem frescura de
nada, aqui o negócio aqui comigo é honesto... o pior homem que tem na Teresina
passa de mês aqui mais eu aqui, brincando com minhas filhas, vai deixar no colégio,
vai buscar, e chega, vai pro rio pescar de anzol, vai pedir peixe aos meninos, e você
não é ele não, digo” o Correia Lima é pior de que você”... e o Correia Lima é
acostumado passar esse tempo aqui de mês aqui, de semana aqui, e num tem
frescura não, quando eu dou fé o Correia Lima chega no carro, esconde o carro dele,
fica escondido aí dentro das casas, ninguém sabe, procura pelo Correia Lima se ele
passou aqui assim, em Demerval Lobão assim, despencando assim no rumo de
Beneditinos na beira do rio148....

A ameaça era real. O homem a quem ele se refere e com quem estabelece contatos
de compadrio se trata de José Viriato Correia Lima, natural de Iguatu-CE, oficial da Polícia
Militar do Piauí e chefiou durante muitos anos o crime organizado no Estado, em um esquema
que estendia influência sobre os mais diversos funcionários do governo coordenando diversos
crimes, mas o filão mais rico era o desvio de verbas públicas. Correia Lima só foi investigado
e preso em 1999, mas a sua fama se espraiou por vários municípios de Ceará, Maranhão e
Piauí.
Seu Manoel se apropriou do mito (a má fama da referida autoridade), ancorado
nas suas práticas ilícitas para enfrentar seus desafetos. Fato este aparentemente ignorado pelo
forasteiro que desavisado, não sabia que estava pelejando com alguém que hospedava em sua
casa o maior bandido de todas as redondezas. Isso faz de Seu Manoel uma pessoa de má
índole? Não, mesmo. Conforme insiste Scott149: “A relação entre as elites dominantes e os
subordinados é, mais do que qualquer outra coisa, uma luta material em que ambas as partes
procuram constantemente detectar fragilidades e explorar pequenas vantagens”.
Correia Lima tirava vantagem de seu prestígio pessoal para se esconder nos
interiores das cidades limítrofes à Teresina, mas Seu Manoel também extraía dessa relação
perigosa seu prestígio que lhe permitia usá-lo como escudo em momentos oportunos. Tal
148
MANOEL, 2017.
149
SCOTT, James. Op. Cit., p.254.
76

prática também se configura como arte da resistência, e faz parte daquilo que Scott chama
infrapolítica150, é a luta discreta de todos os dias dos grupos subordinados; são as táticas e
estratégias sutis que assim se fazem em função da prudência diante do equilíbrio do poder.
Este é o respaldo que faz com que Seu Manoel conserve a sua dignidade mesmo diante da sua
aparente cumplicidade com o policial criminoso.
Mas tudo sofreu um grande risco de ir por água abaixo. Seu Manoel conta um
pouco do que o empregado gaúcho fazia e lhe provocava revolta, “quase ia dando em morte
porque ele iria matar aquele filho duma égua”:

Ele pegava e aproveitava os bichos que morriam - eu não, coitava, morria uma
novilha de vaca, ou com fome ou de qualquer coisa, morria uma ovelha, morria um
bode- já aproveitava, aquele animal que morria ele aproveitava, ele não vendia lá pra
nós porque a gente sabia que aquele animal tinha morrido, e eu pegava aqueles
animais quando eu estava sozinho lá mais meu filhos, e outras pessoas, nós arrastava
pro mato pros urubus comer. E ele não, trazia era pro Planalto pra vender151.

Havia público alvo para o consumo de carne de procedência duvidosa. Seu


Manoel e outros moradores próximos não reprovavam porque ele conseguia vender, mas
porque ele realizava um ato que feria o conjunto de costumes semelhantes, acordados e
praticados entre os sertanejos. Não se trata de suprir a necessidade de terceiros de uma
maneira honesta, mas de alcançar este objetivo através da esperteza, e não uma esperteza
jocosa que traduz um momento de superação dos fracos diante dos fortes como nas histórias
de Pedro Malasartes152, mas a esperteza maldita porque não acordada e reprovativa.
Após ter se instalado com a família em um lugar chamado “Quem Quiser”, no
município de Miguel Alves, Cristina recorda que o pai se viu novamente na iminência de
outro deslocamento, desta vez motivado pelo medo, não mais da seca, mas da cobiça dos
patrões:

Foi que os patrões era só dizendo “Gabriel tá rico”... “eu vou derrubar a Igreja do
Gabriel”... a Igreja, pra quem não entende, era botar pra fora...aí meu pai sabia das
charadas, meu pai “pois eu vou me embora de lá, vou sair de lá”, por que meu pai
tinha legume, meu pai tinha criação a valer nós passava muito bem, aí ele saiu da
terra deles, mas eles já morreram esses caras lá, o homem e a mulher já morreram,
não tão mais vivos não...153

A prosperidade não estava ao alcance de todos em se tratando desse sistema de


trabalho. Ela poderia ser alcançada, mas era malvista; significava a elevação da autonomia em

150
Idem, p. 253
151
MANOEL, 2017.
152
Personagem da cultura portuguesa e brasileira, caracterizado como muito esperto, astucioso e cínico.
153
CRISTINA, 2017.
77

detrimento da dependência. O grau de subordinação de seu Gabriel poderia estar diminuindo,


seu paiol cada vez mais cheio. Na fala percebemos que a ameaça de despejo não foi
totalmente declarada, mas havia charadas que a pequena Cristina também passou a
compreender muito cedo. O pai dela não gostava de vender o que sobrava, só vendia com uma
“precisão muito grande”, geralmente relativo à doença.
Prosperar ou não prosperar? Na chave desta questão, apenas uma negativa: não
enriquecer. Pois

É evidente que a fronteira entre os discursos públicos e ocultos é um terreno de luta


constante entre dominadores e subordinados. (...) A luta incessante que se trava em
torno destas fronteiras constitui, porventura, a mais importante arena dos conflitos
ordinários e das diferentes formas que as lutas de classes assumem no dia a dia154 .

Em várias vezes tentamos abordar os narradores com perguntas sobre participação


em sindicatos ou motins, levantes, brigas sérias, mas as respostas foram nulas. Até nos
darmos conta do objetivo certo na pergunta errada. É nos momentos de ruptura, nos
momentos de nova migração de um interior para outro, mesmo para outra cidade, que se
afloram as formas de resistências cotidianas camponesas. Este o momento de conflito em que
a família, diante de vários fatores, desloca-se novamente. O cotidiano que desvela as
bricolagens, inventividade dos sujeitos ordinários, é o universo de possiblidades para a prática
dos discursos ocultos, é onde através das experiências semelhantes, o grupo se faz classe,
posto que esta consciência de classe não foi estruturada pela economia política, “mas foi
também herdada, construída e adaptada pelos indivíduos que desejam dar significado e
ordem às suas vidas”155.
O poder deste discurso público, neste caso, estava no devir desconhecido para
Gabriel, Cristina e sua família, portanto, imprevisível, mas implacável; ele sabe que vai
embora, mas não sabe em que circunstâncias. Ele não se revolta, mas em casa junto à família,
pondera e resolve ir embora para a fazenda Olho D’Água.
A ameaça de expulsão das terras pode ser iniciada de maneira simbólica, como
supressão de etiqueta verbal (cumprimentos, xingamentos), e avançam gradativamente numa
escala de terror, para ameaças físicas. Margarida Maria Moura identificou no antigo sistema
de agregação no Vale do Jequitinhonha, que além de ameaças com armas de fogo, a morte do

154
SCOTT, James. Op. Cit., p.43.
155
HARRIES, P. Work. Culture and Identity: Migrant Laborers in Mozambique and South Africa, c.1860-1910.
Portsmouth: Heinemann, Johannnesburg: Witwatersrand University Press, 1994, p. 223 apud MENEZES. Op.
Cit., p.53.
78

cachorro156 era entendida como a passagem das ameaças simbólicas para físicas. A ausência
de contratos judiciais deixa o trabalhador em uma situação de vulnerabilidade, conforme o
ocorrido na família de Seu Paulo, que tinha terras próprias em Miguel Alves, porém “teve que
vender”:

Lia: Por que ele teve que vender?


Paulo: Por que ele foi obrigado a vender nesse tempo aqui não tinha justiça foi
obrigado a ele vender pra aumentar o terreno lá dum cidadão. Ele vendeu, ele
vendeu...157

Quando os costume e códigos articulados entre os subordinados e com os patrões


sofrem radicais mudanças, os discursos ocultos tomam corpo e contam com os laços de
solidariedade para que fortaleçam suas reivindicações, no enfrentamento aos dominantes.
“Nenhuma prática ou discurso de resistência pode existir sem uma coordenação e uma
comunicação tácita ou explícita entre os elementos do grupo subordinado” 158. Sobre isso, D.
Ana nos contou um acontecimento interessante ocorrido no Açudinho, localidade em que a
família morou no interior de Esperantina:

Ana: No tempo das rendas, os empregados funcionários faltava esganar o dono, meu
pai ficava tranquilo. Por que ele tinha paciência.
Lia: E por que os outros tinham vontade de esganar o dono?
Ana: Por que o dono não conhecia queria às vezes mais do que os que ele ganhava!
Do que eles faziam na roça. Ás vezes eles queriam aquele tanto que não tinha dado,
e eles não queriam dar, por que ficavam quase sem nada né. Aí não tinham assim, aí
ficavam batendo boca e meu pai tranquilo, depois meu pai chamava ele e dizia “Ó,
deu tanto e tanto, e só posso lhe dar tanto”, pronto! Que agente recebe as coisas,
resolve as coisas é no amor.159

Nesta fala percebemos a força da solidariedade no sentido de mobilizar os


trabalhadores na luta pelos direitos comuns, e vemos também outro tipo de resistência,
ocasionada pela submissão na qual o subordinado retira algum proveito. Os acordos
antepostos a este novo dono, entre proprietários e agregados, foram descumpridos, gerando
insatisfação expressiva nos agricultores, dentro da perspectiva de elementos subsumidos
próprios da luta de classes, caracterizada por Dona Ana como “vontade de esganar”. Se o
sentimento de ódio tomava parte dos agregados os levando a rediscutir os acordos verbais
como o novo patrão, Dona Ana dizia que seu pai “resolvia as coisas no amor”.

156
MOURA. Margarida Maria Op. Cit., p.103.
157
PAULO Furtado de Melo. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 22.01.2017 na cidade de
Miguel Alves-PI.
158
SCOTT, James. Op. Cit., p.171.
159
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida em 25.01.2018 na cidade de Teresina-PI, grifo nosso.
79

A paciência e a obediência para ela eram as estratégias de seu pai (“era uma
pessoa que não tinha malquerença com ninguém, nunca caçou conversa com ninguém, o
patrão gostava muito dele”)160 para não se indispor com os patrões. Sua postura não era de
passividade, mas de alguém que defendia as renegociações com os ânimos acalmados. O
motivo das reinvindicações era partilhado por todos os trabalhadores daquela localidade,
inclusive o pai de dona Ana:

Tem gente que não tem paciência né? Aí muitos não tinham paciência assim. Ele
não entendia, por que ele nasceu e se criou na cidade, estudado, lá sabia o que diabo
era renda nem nada, o que ficou que era dono? Quem sabia era quem trabalhava, o
que tinha dado ali pra ele basear pra poder dar… Só que muitos não tinha aquele
acordo de conversar de dizer “olhe deu tanto, tanto, eu não posse lhe dar o tanto que
você quer” por que é bom você receber uma coisa já só no ponto ,né? Livre de tudo,
aí às vezes tinha contenda, mas com meu pai não 161.

O “estudado” consiste em justificativa para o novo patrão cobrar acima do que os


trabalhadores poderiam dar. Este conhecimento faz parte de uma ótica de progresso capitalista
aonde estes contratos verbais vão perdendo gradativamente potência. Mas essas resistências
cotidianas, reclamações, contendas guardam possiblidades de serem os primeiros passos de
grandes movimentos no campo. Não podemos nos esquecer de que contendas como essas
entre trabalhadores e descendentes de patrões, impregnados desses interesses geralmente
calcados no agronegócio, foram o germe para os primeiros conflitos possessórios em
municípios próximos, como Barras. A permanência na terra foi assimilada por aqueles
trabalhadores como um direito natural que se legitima com o trabalho nela exercido162,
fortalecendo as lutas.
Em relação de trabalho como a que foram submetidos esses narradores, o discurso
oculto pode aflorar. Primeiramente, é pertinente destacar que o discurso oculto não se refere
apenas a verbalizações, mas também a práticas diversas, tais como furto, sabotagem, “corpo-
mole”, entre outras, exercidas por camponeses. É com este detalhe em mente que
interpretamos um episódio macabro da vida de Seu Isídio, ainda no povoado Harvre de Graça,
em José de Freitas. Debilitado em virtude de uma dor na perna que o impossibilitava de andar
e o deixou quase aleijado, ele não pode tratar da roça por muitos dias. Bichos alheios

160
ANA, 2018.
161
ANA, 2018.
162
ROCHA, Cristiana Costa da. Narrativas dos sentidos, desejos e imaginação sobre o direito à posse de terras.
In: ROCHA, Cristiana Costa da; FERRERAS, Norberto O; FERREIRA, Márcia Milena Galdez (orgs.).
Histórias Sociais do Trabalho: usos da terra, controle e resistência. São Luís: Café &Lápis; Editora UEMA,
2015, p. 28.
80

entraram, destruíram, restando apenas uma capoeira de mandioca, atacada por vacas.
Reproduzimos aqui a fala do narrador sobre o desfecho desse acontecimento:

Cuma foi? Menina, é porque eu passei os pés diante das mãos... (...) Muita raiva, e
passei os pés diante das mãos… deixei uma vaca estirada dentro da roça, veio nas
cargas, saiu da roça, de dentro da roça, nas carga...(..) por causa dessa vaca nós
andemos um bocado de... fizeram chafurdar meu juízo bastante. Ainda troquei
palavra com o encarregado, diabo, aí quando o dono soube... Acabaram...
Protestando.... Aí ele disse, que vinha representado um morador no terreno dele, que
eu era operário dele, meu irmão, ele só...eu trabalhava no campo porque eu queria
trabalhar, não desobedecia a ordem, mode que (sic) a nossa ordem de trabalhar era
quando ele mandava chamar... Nós trabalhava na profissão do que ele precisava.163

Primeiramente, notemos o diálogo interrompido de Seu Isídio, que intercalou


pausas raciocínios quebrados para tentar contar o que aconteceu. A repetição de termos é
significativa na oralidade, assinalam um momento de nervosismo, de desespero rememorando
aquela situação. A raiva de Seu Isídio diante da roça destruída pelos animais é traduzida já
com a sua consequência na seguinte frase; “eu meti os pés pelas mãos”. Ele sabia que se não
fosse a intercessão de seu patrão, os seus dias de liberdade estariam contados. Na fala abaixo
se esclarece melhor como ele se vingou dos animais:

Ela comeu a roça não foi só de um não... Era muito gado que tinha dentro da roça ...
Eu fui botar pra fora, e ai eu abri a porteira da roça, o gado passou três vezes
olhando assim pra porteira da roça e não saía... ai eu endoidei de raiva!!! Dentro da
roça... Endoidei aí...ganhei o mundo... Atrás do gado... Onde eu encostei num cortei
pipoca não... Deixei de coto... As duas pernas cortada... foi...as duas perna cortada...
aí eu endoidei... dentro da roça...164

Vemos que Seu Isídio justificou o seu ato alegando que o gado não comeu apenas
a sua roça; um bom ponto, para ganhar apoio dos outros moradores. Ainda assim, o discurso
oculto é declarado abertamente, e o ato de cortar as pernas das vacas é a explosão diante da
impotência que já vinha de antes. A raiva é um sentimento que leva a uma resposta motora,
difícil de conter em um cenário de exploração, e é minimamente atenuada nos discursos fora
de cena, nas conversas secretas com outros moradores. O que aconteceu com Seu Isídio pode
ser interpretado como uma recusa a manter as aparências hegemônicas ─ não, ele não
permitiria mais que animais de outra pessoa destruíssem a sua roça, da qual estava tirando
cada vez menos rendimento. Ainda que o sentimento de afronta estivesse direcionado para as
vacas que pastavam sem a menor noção de pertença, sabemos que o risco de cadeia que o
narrador sofreu se deu porque o dono do gado foi tomar satisfação.

163
ISÍDIO, 2016.
164
ISÍDIO, 2016.
81

Quando fala da maneira como o caso foi resolvido, Seu Isídio delega
primeiramente a Jesus, porque “Jesus é poderoso, num tem quem possa com ele não”.
Sabemos, pela sua narrativa, que ele não trabalhava exatamente de roça, mas na “profissão”
que o patrão precisasse, ou seja, em qualquer função que ele lhe exigisse. Isto foi utilizado
com argumento pelo patrão, que era juiz, para liberar seu empregado do quiproquó, além do
seguinte argumento: “olha meu gado é preso, o gado que eu tenho aqui é preso, não come
roça de ninguém, nem de morador de ninguém, pode o gado dos outros invadir a roça do meu
próprio morador?” Este é um bom ponto para elucidar aspectos da economia moral
camponesa.
A dignidade e a autonomia são valores honrosos que são colocados a toda prova
na vida do sertanejo. Na luta eterna dos discursos públicos de dominantes e de subordinados,
estes valores se traduzem em práticas e costumes que são compartilhados e configuram uma
cultura de sobrevivência entre os pobres, regras e códigos comungados sem os quais é difícil
manter-se. “Viver na Terra é conformar-se com os desígnios de Deus”165, mas na justiça dos
homens Deus se faz carne, e quando o produto do trabalho sofrido é destruído, indiretamente
por culpa da expropriação, abre-se espaço para a loucura; a loucura de ousar levantar-se voz e
“perder as estribeiras”. Mas Seu Isídio, mesmo com o caso resolvido, sente a iminência do
perigo, e realiza novo deslocamento com a família, desta vez para Teresina. Neste caso, o
apoio do patrão não eliminou a apreensão, as necessidades se reformularam.
A cultura enquanto elemento de sobrevivência se desdobra em diversos aspectos,
outro aspecto relevante nas entrevistas e que guardam semelhanças entre si diz respeito à
maneira como se fala de escassez e fartura. Tais aspectos foram pinçados das narrativas e não
têm tanta relação com ordem de perguntas, mas tão somente através da observação
percebemos que algumas características se repetem. Este é o objetivo do próximo tópico.

3.4 Algumas observações sobre a “fartura” camponesa

Quando finda o mês das festas


e entra o mês de janeiro
quem tem roçado, destoca
e encoivara, ligeiro
cada um quer ter a glória
de ouvir o trovão primeiro

Dá milho, feijão

165
GARCIA JR., Afrânio Raul. Terra de trabalho. Trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1983, p.94.
82

tem fruta, tem cana,


melão e banana
arroz, algodão
as melancias dão
tantas como areia
o jerimum campeia,
nas roças faz lodo...
Vive o povo todo
de barriga cheia!166

Os versos acima de Antonio Batista Guedes retratam a fartura da vida sertaneja,


quando as chuvas molham a terra e o produto de meses de trabalho é retirado. Para chegar a
esse estado de fartura, onde as frutas multiplicam-se em profusão (“melancia dão tantas como
areia/ o jerimum campeia”) o sertanejo empreende um esforço “titânico”, e segundo Josué de
Castro, é o que lhe impede de cuidar de outras coisas da vida. É interessante observar a
maneira como os sujeitos constroem subjetividades em torno da fartura.
Apesar de não ser uma pergunta direta, este tema foi recorrente nas falas dos
entrevistados. Aos poucos, a vida no Piauí ia descortinando um leque de possiblidades não
apenas no cotidiano da roça, mas para além de suas dependências. O agregado é livre em
autonomia condicionada ao fazendeiro, e é neste universo de autonomia que ele se realiza.
Mas se considerando que a condição camponesa e pobre continua, que significados
constituem essas ideias? Seria algo ensaiado, proposital, no sentido de construir uma memória
dotada de sucessos, ou está associado a uma representatividade coletiva de trabalho?
As formas como se configuram estes significados de pobreza só podem ser
captadas pela sua subjetividade. O olhar do presente é o que constrói essas narrativas, com
essas reminiscências, que ora se complementam, confirmam-se, ora se contraditam, a cada
entrevista. As narrativas operam em temporalidades mistas, em uma mesma pergunta vários
tempos se misturam. A fartura que contrastava com as agruras anteriores se configurou como
um espaço de saudade. Para Seu Damião, este espaço se identifica com as farinhadas. Os
demais moradores se impressionavam com a produção de farinha e goma, que também eram
revendidas no mercado:

Ahh, mas nós não tinha seca não... Foi ter seca (no Piauí)167 em 51 e 2 e 3, foi três
anos de seca mas papai já tinha morrido, ele morre em 48, nós quase enrica nesse
tempo, farinha deu dinheiro monstro) (...) nós vendemos carga de farinha de 80 real,
nesse tempo era mil reis, 80 mil reis, 100 cargas de farinha por 8, era um conto de

166
“A vida sertaneja”, Poema de Antônio Batista Guedes, poeta e cantador popular, disponível em CASCUDO,
Luís da Câmara. História de vaqueiros e cantadores para jovens. São Paulo: Global, 2015.
167
Grifo nosso.
83

reis, 800 mil reis, nós fizemos uma farinhada grande em 51, em 52 nós vendemos
todinha no Novo Nilo... deu muita renda pra nós.168.

Fazer farinha era outra atividade complementar ao serviço nos roçados. A


farinhada era o espaço de sociabilidade onde favores podiam ser pagos, dívidas eram quitadas
e novas redes de solidariedades eram criadas. Os moradores organizavam um mutirão com
papéis definidos pelo gênero; mulheres raspavam a mandioca e homens moíam no caititu169.
Após a retirada do veneno (“manipueira”) na prensa, mulheres lavavam a massa para retirar a
goma, homens torravam o que sobrou para fazer a farinhada. Ao final da farinhada, além das
trocas de beijus, uma parte da goma era dada para o organizador, o morador que fornecia a
mandioca. O sucesso daquela farinhada ficou marcado na memória de Damião como
“dinheiro monstro”. Mas todos os equipamentos pertenciam ao fazendeiro, bem como o
armazém onde eram vendidos os produtos. E mesmo com a fartura, daquele ano de 1951, o
trabalho de múltiplas tarefas na fazenda continuava.
Observemos como Damião construiu em sua narrativa aos poucos a passagem
atropelada das agruras vivida sem resquícios de seca para o tempo em que, em virtude do
trabalho na roça, a família começa a prosperar, a ponto de ele falar com júbilo em
“enriquecer”. Entendemos que para os nossos narradores enriquecer significa potência, a
capacidade de superar as expectativas enquadradas naquele “pedaço” ou “canto”, e sob a
condição de subordinado. A venda de farinha e goma no mercado era a complementação mais
importante da renda familiar, combinada com o pagamento de quartas por linha nos roçados.
Bons créditos compravam o que a família não conseguia produzir e principalmente animais.
Ainda assim, haviam alguns “riscos” no caso da farinha:

Seu Damião: vendia a produção, com dois anos de seca, 52 e 53, nós tinha paiol de
farinha que e encostava em cima da palha não sei como não queimava, encostando
em cima da paia, paiol como daqui naquela parede...feito de cimento, fazia aqueles
paredão de cimento... acabar forrava com esteira de palha de carnaúba e jogava
farinha... feito na massa do cimento... ai nos só vendia quando dava pra nós, quando
não dava, não vendia...
Lia: da outra vez você me disse que vocês até começaram a criar gado... mas você
falou que gado comprado com dinheiro de farinha torrada....
Seu Damião: deu pra trás, não era pra ir pra frente não.... nós compramos dez
novilhas de vaca, com dinheiro de goma ai foi mais feliz, o meu avô que dizia que
tudo q eh comprado com farinha por que a massa é torrada, não tem progresso
nenhum...meu avô sempre dizia isso,...
Lia: mas era a troca direta de farinha por gado, revendia pra poder comprar?

168
DAMIÃO, 2017.
169
Um engenho rústico, acionado pela roda, impulsionada por dois homens, que fica a alguns metros de
distância, unida por uma imensa correia, utilizado para triturar as mandiocas já descascadas.
84

Seu Damião: nós revendia e comprava com o dinheiro, mas era apurado de
farinha...é mais feliz quando é apurado com goma e algodão...o milho também era
bom ...mas a farinha não 170.

As vacas compradas com dinheiro de farinha não seguravam, e o ensinamento do


avô repassou-se de pai para filho como um costume que mal não faria se fosse seguido. A
compra de animais, em todo caso, representava melhoria de vida, e o camponês poderia
desfrutar não apenas de um transporte (jumento, burro), mas também de reservas de
galináceos e gados diversos para alimentar a família.
Após a morte do pai, Seu Damião casou-se, teve dois filhos e se mudou
novamente para outro interior. A mudança de vida alcançou grandes desafios: cuidar de roça
sozinho, algo que ele sentiu profundamente; as plantações fraquejaram; ele começou a tomar
gosto pelo comércio, e ensaiou os primeiros passos para ser vendeiro. As localidades
guardavam semelhanças entre si, e mantinham hegemonia da zona rural sobre a zona urbana,
conforme evidencia este gráfico elaborado pela Comissão de Desenvolvimento – CODESE171
para o município de União:

Gráfico 1: União- Zona urbana e rural 1940-1964

FONTE: CODESE. Estatísticas Básicas- União. 1968. Local de guarda: Arquivo Público “Casa Anísio Brito.

A legenda indica que o espaço maior do gráfico corresponde à população rural e


permanece praticamente inalterado nos pouco mais de 20 anos analisado, destacando no
município a existência de uma mancha urbana circunscrita por uma extensa zona rural. Para
Damião, os deslocamentos, embora fossem em regiões tão parecidas dentro de um mesmo

170
DAMIÃO, 2017.
171
CODESE (Comissão de Desenvolvimento Econômico).
85

município, alteraram um pouco a realidade; a prática do comércio fora do permitido nos


contratos verbais não se conciliou com os roçados por questão de distância:

Seu Damião: trambicando com negócios, comprando e revendendo... levava rede,


calçado, roupa feita... vendia no interior a troco de cereais...
Lia: comprando de quem e revendendo pra quem?
Seu Damião: nas lojas de lá, arrumei logo crédito em três lojas ...uma de
confecção...uma calçadeira me vendia o que eu queria, ... ai trocava no interior por
farinha, goma, arroz, porco de matança, tudo.
Lia: porque você não quis continuar com a roça?
Seu Damião: não, ali os terreno de lavrar era longe. 172

Entendemos a partir da narrativa de Seu Damião que a fartura na roça era


circunstancial, ou seja, “embora houvesse “fartura”, a vida dos lavradores não era como eles
desejassem ou pudessem escolher”173. Por isso, estratégias de sobrevivência eram forjadas
para lidar com esta ventura, que era constante na vida dos trabalhadores rurais.
É perceptível em sua fala que as diversidades proporcionadas pelo comércio lhe
expandiram horizontes que ele não conhecia ou não podia ter. Quando as crianças fizeram 7
anos e já morando em outro povoado, Milagres, Seu Damião colocou-os para estudar. O
interesse dele pelo estudo dos filhos é o ponto de partida para impulsioná-lo a procurar um
lugar melhor como moradia, assim como outro elemento muito importante: seu irmão gêmeo,
Cosme Feitosa da Silva, já o chamava para Teresina.
A fartura, assim, ganha significado na forma de uma reflexão coletiva, ressaltando
contextos e experiências de trabalhadores rurais que se sujeitam à dominação, mas se tornam
agentes de sua própria luta. É o momento precioso em que o trabalhador supera as suas
expectativas, reafirmando o caráter paradoxal de uma autonomia subordinada e dela sabendo
tirar proveito, não apenas aguardando ansiosamente pelo sinal da natureza (“a glória de ouvir
o trovão primeiro”), mas trabalhando a terra “destocando e encoivarando ligeiro”, garantindo
de forma eficaz o seu sustento.
A fartura para D. Cristina também se associa a um contexto de saudade
relembrando a união da família. O pai conseguia encher o paiol, pagar a renda e reservar para
si. Mas quando o pai foi embora com sua outra família, Cristina e sua mãe entraram em um
período difícil. Com os irmãos já criados e alguns já se espalhando pelo mundo, ela assume a
lida na roça com a mãe. A partir desse ponto a sua narrativa começa a ficar marcada por
diminutivos que outrora representavam a fartura:

172
DAMIÃO, 2016.
173
SANTANA,Charles d’Almeida. Op. Cit., p. 42.
86

Cristina: nós fazia a nossa rocinha era pequena, e uma linha, linha e meia. Uma linha
era uma carga, que é dois, chamavam nesse tempo paneiro viu? Dois paneiros que é
pra ser a carga. Levava no animal, uma paneiro de um lado e outro do outro. Ai ele
deixava pro dois, que era linha e meia, nós não podia fazer grande não que era
mulher.
Lia: Mas vocês, mulheres, você conseguiam tirar muita coisa da sua posse?
Cristina: É, as coisinhas que dava nós tirava tudinho. Nós tirava nosso feijãozinho,
nosso arrozinho, quando o milho secava nós quebrava pra dar pras galinhazinhas,
dar pra uma porca, e ai nós, dava nosso arrozinho ali pra ir comendo, debulhava
nosso feijãozinho pra ir comendo. Não dava muito não, mas nós comia até acabar
pra poder comprar, quando não tinha mais nós ia comprar.

Entendemos desta maneira que a fartura é condicionada pelas relações de


solidariedade e constantes lutas cotidianas que marcam toda vida do trabalhador rural, que
busca na obtenção dos meios de vida além do mínimo para a sobrevivência. Se nestes casos
específicos encontramos registros de resistências cotidianas, a oralidade pode nos revelar
outros meandros da memória que contribuam para o entendimento dessa cultura rural no
EntreRios. São estórias, “causos”, que nos chamaram atenção para o lugar social dos
narradores e a maneira como eles nos contam essas reminiscências.

3.5 Cultura e Cartografias de Memórias

Memória e tempo se entrelaçam nas falas de nossos narradores; buscamos


entender a partir deste tópico em que medida contra a poeira implacável do tempo industrial, a
cultura, entendida por alguns como mero exotismo, folclorismo ou “coisa de elite” para
arregimentar as massas, se transforma em elemento chave para a sobrevivência; e como a
memória resiste ao descompasso do tempo e são reavivadas pelo poder do diálogo e da
escuta.
O tempo Industrial do relógio ataca as lembranças dos homens destitui os mais
velhos de detentores da sabedoria útil para o grupo elegendo outros estandartes de
informação. Tal qual as dobradiças das portas antigas, o passado enferruja-se, aqui e acolá
esburacam-se em pedaços de uma narrativa que por não ser praticada se perde.
Os costumes, as práticas e os ritos que unem uma comunidade à outra contra a
poeira do tempo e a finitude da memória. A cultura edifica as lembranças, fundamentando a
resistência dos grupos subordinados e ainda, criando significados.
A memória é falha e seletiva, lembramos daquilo que queremos lembrar, ou que
na resistência das recordações não se deve relegar ao esquecido. Mas como ocorre o processo
de recordação dos entes que formam o tronco familiar? A escuta é fundamental para que essas
pessoas e suas histórias de vida virem imagens que são construídas e se tornam mais vívidas e
87

menos fugazes. Entretanto, alguns dos nossos entrevistados não conseguiram integrar em suas
histórias pessoais alguns detalhes da vida de seus pais em solo cearense. Mas com júbilo
lembram-se do trabalho paterno que durante muitos anos guiou seus trabalhos na roça já no
Piauí.
Mas mesmo essas memórias sobre lida no campo, os medos, os causos, as
anedotas, correm o risco de serem esquecidas para sempre. A era da informação desmotiva as
pessoas a se tornarem bons ouvintes, e aqueles que seriam os responsáveis por fornecer bons
conselhos e orientar o grupo na experiência da vida já não o fazem mais; são antes de tudo
“incômodos”. Para alguns as doenças lhes roubaram a capacidade de lembrar, falhas na
memória. Ao passo que para outros um projeto de vida próprio ainda sustenta sua importância
no grupo e um remédio contra os danos do tempo. Não raro em nossas entrevistas os
mediadores eram os filhos que ora auxiliavam no “contar histórias”, ora entravam de supetão
desconfiados174, e até meio surpresos, quando os velhos começavam a narrar fatos
desconhecidos.
O que está se perdendo? Nesse jogo de esquecimento e lembrança, a memória
precisa ser exercitada, contada e (re)contada, caso contrário vestígios de rememorações não
conseguem mais compor as narrativas.
Para chegar até a casa de Seu Domingos no município de União, precisamos da
mediação de uma neta dele, e sua amiga colega de trabalho. A maneira calorosa como nos
recebeu, já nos conduzindo para o interior da casa, nos chamou atenção para a possiblidade
de ele ter treinado sua fala. Ali, iam-se desenhando cartografias de histórias e memórias. Seus
gestos, trejeitos, as pausas nas falas, sua apresentação entusiasmada de um banner
confeccionado com o objetivo de compor uma árvore genealógica da família, tudo revelava
que a sua falta de estudos no passado foi recompensada com o dom de conversar com os
outros, conforme ele mesmo atesta:

Eu tenho orgulho, que tem pessoas que tem vergonha de dizer, mas eu não tenho,
porque eu digo agora, sou analfabeto, mas tenho a família alfabetizada… e aprendi
algum gesto, de andar, de coisa graças a Deus através da minha necessidade grande
de ter contato, de conversa com as pessoas (...) 175.

Como foi anunciada nossa vinda? Certamente, a ideia de entrevista que Seu
Domingos tinha o fez ter consciência da mediação entre pesquisador e escrita, com

174
O anúncio da entrevista foi previamente combinado com um mediador, às vezes um membro da família que
explicou brevemente de que se tratava, e depois o encontro com o entrevistado ocorria, geralmente na casa dele.
175
DOMINGOS Gomes da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2018 na cidade
de União-PI.
88

documento, formalidade institucional. Havia um choque inicial entre o interesse real da


pesquisa e o que ele julgou ser mais importante pra descrever, demonstrar toda a sua família
de forma ilustrativa explicando com muito êxito sobre quem é cada um. Percebemos dois
pontos importantes: ter um quadro mostrando toda a sua genealogia a partir dele, Seu
Domingos, é o principal orgulho de ter chegados àquelas gerações e poder dizer para o
visitante quem são e por onde andam, ou se já foram; o segundo ponto pertinente é a
percepção de que a entrevista ainda não estava em um relação e igualdade, apesar do depoente
estar disposto a falar bastante, mas de certa forma a delimitar a maneira como queria ser
lembrado. Segundo, Portelli:

A entrevista de campo, por conseguinte, não pode criar uma igualdade que não
existe, mas ela pede por isso. A entrevista levanta em ambas as partes uma
consciência da necessidade por mais igualdade a fim de alcançar maior abertura nas
comunicações. Do mesmo modo que a hierarquia desigual de poder na sociedade
cria barreiras entre pesquisadores e o conhecimento que buscam, o poder será uma
questão central levantada, implícita ou explicitamente, em cada encontro entre o
pesquisador e o informante.176

Aos poucos, após a conversa começar a ser gravada percebemos que o suporte da
narrativa de Seu Domingos é a riqueza de detalhes, além disso, suas evocações estão repletas
de marcos de oralidade, tão caras, e sublimes, como só as boas histórias conseguem manter,
tal qual a maneira como ele demarca o tempo, quando interrogado a respeito de detalhes da
vida no Ceará: “não lembro porque era coisas de antepassados... meu avô era até cego,
quando chegou aqui que botou que trabalhou… meu avô era José e minha avó era Teresa…
mas não conheci, eles morreram a muitos e muito anos”.
A experiência mais importante para Seu Domingos é a odisseia de sua família
quando esta se firma em União, onde ele nasceu, e tendo no Amazonas o lugar que selaria o
destino das gerações vindouras. É também através deste que se desnudam elementos de uma
cultura tradicional, conservadora e profundamente eivada de elementos de sobrevivência, que
remodelam as necessidades ao sabor das mudanças circunstanciais.
Para entender como pensar a importância desta cultura tradicional destes sujeitos,
refletindo o mesmo incômodo de Thomson ao aprofundar seu contexto, para o qual
recomenda cautela:

Mesmo assim, não podemos esquecer que “cultura” é um termo emaranhado que, ao
reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode n verdade confundir ou
ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e

176
PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento de
igualdade. In: Projeto História. São Paulo (14) fev. de 1997, p.10.
89

examinar com mais cuidado seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos
da hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o
desenvolvimento dos costumes sob formas historicamente específicas das relações
sociais e de trabalho177.

Estes atenuantes nos são úteis para evitar generalizações como as incutidas nas
expressões “homem do campo”, bem como no próprio entendimento sobre as condições que
geram a pobreza, para o qual Thomson alerta acerca das desculpas de classe. Ou seja, as
táticas e estratégias do sujeito ordinário não encontram função e quando reconhecidas são
sinônimo de atraso, destruindo a autoridade dos mais velhos e esgotando o significado e a
importância de conhecimentos transmitidos de geração para geração. Entretanto, para Seu
Domingos contar histórias é apenas um aspecto das sociabilidades necessárias para viver no
campo e para ele não significa atraso, mas é uma virtude, que legitima seu poder de
transmissão de conhecimento dentro das famílias.
Entre recortes de temporalidades distintas, lembrando sempre com louvor que seu
aniversário de 82 anos está próximo e será comemorado em Manaus, Seu Domingos nos
relata um passado próspero que ele teve no Maranhão. Enquanto a família vivia de roça em
União, o pai e o avô de Seu Domingos trabalhavam no Amazonas, no extrativismo da
borracha. Com a morte do avô, o pai, José Amândio da Costa, veio embora em 1913, trazendo
consigo dinheiro suficiente (“três contos e pouco”) para construir uma casa de alvenaria.
Segundo ele, “meu pai veio embora em 1913 na tentativa de voltar para o
Amazonas, mas não voltou mais”. Casou-se, nasceram os filhos, a mãe adoeceu, e diante da
vulnerabilidade da família José Amândio foi ficando. Em 1955, Seu Domingos já rapaz
migrou junto com sua família para Caxias, cidade maranhense situada a 134km de União,
porque estavam enfrentando uma situação “aperriadíssima”. Vejamos um trecho:

Lia: O que aconteceu aqui? [Piauí]


Seu Domingos: Nada! Nós estávamos em condição de procurar uma profissão de ir
trabalhar… eu tinha um cunhado, Compadre Sebastião, que foi pra lá e trabalhando
na roça, e a gente tinha muita disposição e convidamos o papai e fomos pra lá…
Lia: E a roça que vocês trabalhavam aqui a terra era de vocês ou era de outra
pessoa?
Seu Domingos: Não, não, não… aqui não tinha terra… aqui no Piauí o papai
trabalhava tinha uma vazantezinha, ainda hoje tem um pedacinho de vazante e
trabalhava em algum pedacinho de roça ali no terreno do Seu Zé Ricardo, hoje aqui
é da COMVAPI, é aqui perto aqui na Catirina, era coisinha pouca, viu? Mas a gente
trabalhava… quando eu fui crescendo um pouquinho que nós fomos para Maranhão
em 1955, pelo menos eu completei 20 anos em 1956, em 57 eu me casei… aí nós
fomos pelo menos pra lá por que a coisa não ia bem, minha mãe tinha falecido em
49, meu pai administrava mas a maior inteligência era a minha mãe, a situação caiu
então nós fomos embora… quando nós chegamos lá que botamos nosso trabalho, e

177
THOMSON, Alistair. Op. Cit., p.22.
90

nós tinha assim uma inteligência de trabalho de tudo que eu quando me casei, me
casei com a filha do meu patrão, nós era agregado, nesse tempo, o morador de
qualquer propriedade, na década de 50, no interior, (…) aí então o morador nessas
épocas era útil era um tipo de escravidão.178

Ao qualificar o sistema de agregação como um “tipo de escravidão”, Seu


Domingos nos mostra uma descrição de servidão mais distante da obra memorialista O
casarão e mais perto da percepção do trabalhador rural como cativo à terra. A morte da mãe
de Seu Domingos deixou a situação da família frágil. Os muitos anos estando fora
trabalhando no Amazonas deixou o pai desabilitado? Talvez. O fato é que se tornou difícil
viver de roça em União. A convite de um parente a mudança ocorre para Caxias, lugar em que
é revelado ao jovem Domingos um horizonte de expectativas, onde sua inteligência de
trabalho foi elemento importante. A situação de exploração era a mesma; mas nesse ínterim,
casou-se com a filha do patrão e ameniza a situação de dependência. Conquistou o respeito do
sogro, dos outros agregados. Com o dinheiro da venda da casa em União

Nós fizemos umas roças maiores, e gastamos algumas coisas, fizemos paiol de
legumes (...) logo lá eu comprei um pedacinho de terra encostado... a minha é
desabitada porque é distante de água, fiz um açude mas só tem água no verão, é 4
km de onde é a minha propriedade pra onde é a propriedade do meu sogro. 179

Na fazenda Água Boa, sugestivo nome de regiões férteis do sertão, ele conseguiu
prosperar, comprar terra, “botava trabalhador pra trabalhar”, não pagava renda devido ao seu
matrimônio. A preocupação de Seu Domingos era outra; “o povo vivia com fome”. Em uma
região aparentemente tão próspera, por que fome? A reposta é dada pelo próprio narrador:

Seu Domingos: Uma diária era o valor de 1 quilo de carne, acho que o senhor 180 já
ouviu falar e sabe disso, uma diária pelo menos, era trocada por legumes, era 3
pratos, naquele tempo. 3 pratos, 3 e meio por dia de serviço. Hoje eu tenho um
trabalhador bem aqui. Hoje ele já tomou café, ele tem uma merenda, ele tem um
almoço. Pago 40 reais. Mas ele, pode deixar lá no serviço que ele faz. 40 reais
compra 20 quilos de arroz pilado. Que antigamente era mais se cobrasse três quilos,
o valor de uma diária era 1 kg de carne, hoje o valor de uma mão de vaca aqui é 8
reais, com uma diária dessas você compra 5 kg. O feijão era um preço absurdo, por
que o povo aqui , tinha um dizer, que aqui não dava feijão. Agora aí, o feijão a maior
parte era comprado do feijãozão vermelho que vinha do Ceará.
Lia: por que o povo não plantava?
Seu Domingos: O povo era preguiçoso.

A fome neste caso tem ligação com indisponibilidade terras para plantar os
gêneros mais importantes para a alimentação dos trabalhadores rurais, destinados às

178
DOMINGOS, 2018.
179
DOMINGOS, 2018.
180
A referência se faz ao mediador da entrevista que faz as vezes de interlocutor a quem o narrador se dirige para
confirmar informações ou temporalidades correspondentes entre ambos.
91

plantações de outras culturas. O feijão é um desses gêneros que garante junto a outros
elementos o equilíbrio da dieta.

O sertanejo é um plantador de produtos de sustentação para o próprio consumo. Um


semeador em pequena escala, de milho, feijão, fava, mandioca, batata-doce, abobra e
maxixe, plantando nos vales mais sumosos, nos baixios, nos terrenos de vazante,
como culturas de horas e jardins. 181

O feijão dentre esses produtos se apresenta como uma cultura “fácil de plantar” e
cultivar, mas não nos enganemos. O solo precisa de técnica de manejo adequado, e talvez seja
pobre de nutrientes necessários, fatos desconhecidos para os trabalhadores de Caxias, mas
traduzidos na sua crença de que a terra não dava feijão. Para Seu Domingos, o povo era
“preguiçoso”.
Dois termos nos chamam atenção nesta justificativa; o termo “povo” num uso
consciente de sua coletividade e homogeneidade, para dar conta da forma das “massas” de
desprovidos e sem grandes expectativas, do ponto de vista de alguém que não está em
paridade de poder (no caso Seu Domingos, que já não era mais agregado, mas fazia parte da
família tornando-se proprietário), e apontar a preguiça como fator de improdutividade do
feijão. Esta fala demonstra a sua mudança na forma de ver o outro, agora de um patrão que
cobra serviço de seus empregados, mesmo diante das adversidades, encaixando-se numa ótica
de progresso que interpretava a quantidade e a maneira de produzir daqueles trabalhadores
como insatisfatória. Ainda assim, valores distintos podem acolher uma solidariedade vicinal:

Com efeito os contatos intergrupais podiam ampliar a possibilidade de relações, mas


dificilmente significariam oportunizar experiências novas, como a difusão de traços
(...) Ora, semelhante homogeneidade favorece o isolamento cultural e a estabilização
das formas sociais, ao contrário das diferenças, que dão lugar a uma situação de
vasos comunicantes, onde o contato torna possível a passagem dos elementos
heterogêneos de um grupo a outro182.

É o que Seu Domingos revelou posteriormente em sua fala, contando como ele e
sua esposa acolhiam os trabalhadores, que mesmo subordinados a ele conquistaram alguns
ganhos que beneficiaram ao grupo como um todo:

Eu me vingava, nesse tratamento para os trabalhadores, saía pra fazer


tratamento[médico]183 com minha esposa primeira, que Deus é justo aquele que
merece ser, e ela trabalhava, tinha máquina de costura, eu ia a Teresina, comprava
retalho, aquele retalho de costura. Ela fazia porque naquele tempo não tinha
bermuda, era calção, calção e aquela blusa, eu vendia tudo, e era tudo a troco de

181
CASTRO, Josué de. Op.Cit. p.173.
182
CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., p.83.
183
Grifo nosso.
92

serviço que o povo trabalhava pra mim. A troco de serviço eu comprei moinho de
moer milho, o povo tinha vezes que saía pra trabalhar, você pode acreditar, verdade!
Com condição do jeito que levantava, sem tomar nada. E em casa quando ele
chegava cedo, e tinha aqueles que morava perto, que gostava de comer, vinha pra o
moinho. Tinha umas vacas, que quando comecei a viver lá comprei logo, que eu ia
tirar o leite e ele ia moer aquele milho, os trabalhadores quando vinha que nós saía
pra roça já tinha tomado café. Naquele tempo fazia aquele cuscuz, não era como
hoje fazia na cuzcuzeira, era um pano que botava com aquela coisa de fazer cuscuz,
a mulher tinha aquele coisa que botava, que o pai dela era cearense, era homem
trabalhador, e eles lá trabalhavam homens e mulheres. Fazia às vezes quando era
muito trabalhador botava era num quibanho 184, o senhor sabe o que é um
quibanho.185

A “vingança” dele reside no ato de não se comportar como os outros proprietários


com seus trabalhadores. Após abordar a prática do não cultivo do feijão em caráter exortativo,
Seu Domingos resguardou-se na prática e na capacidade de poder alimentar seus empregados
antes da lida no campo, resguardando-se nessa maneira em uma espécie de paternalismo.
No universo polissêmico da memória, histórias de vida constroem imagens de
sucesso e superação para o ouvinte, outras acionam lembranças mais traumáticas transferidas
para as gerações seguintes. Podemos perceber este aspecto na fala de José Domingos da
Costa, 72 anos, aposentado, tocador de sanfona e trompete, herança de seus anos na banda da
Polícia Militar de Teresina, ao contar a origem de seu curioso apelido, Novecentos, um tempo
que vira nome:

ZÉ NOVECENTOS: Esse apelido ele veio de muito tempo a família toda né? E aí
então, começou por que a minha tataravó, bisavó? É? Que é a mãe do meu avô? Ela
era cearense. E ele chegou aí no município de José de Freitas em 900. (1900). E aí
ela trazia outros filhos maiores, depois ela teve esse último que era meu avô, neh?
Na era do 900…e aí ela muito pobre…
LIA: Ela veio morar em José de Freitas já nos 900?
ZÉ NOVECENTOS: É. Não diretamente em José de Freitas mas no município de
José de Freitas.
LIA: E ela era de onde, natural do Ceará de qual município?
ZÉ NOVECENTOS: Eu não sei minha filha. Eu não sei da onde era lá do Ceará que
ela era não. Certo que ela pobrezinha, não tinha nada, e o menino amanheceu
atentando um dia pra comer, e ela disse assim: “Eu não aguento mais, vou matar” e
aí ela…
LIA: Ela tinha quantos filhos?
ZÉ NOVECENTOS: Ela tinha uns 5, era 4, aí depois nasceu ele.. lá no município d
José de Freitas que ele é daqui…aí certo que ela disse que ia matar. Aí pegou pelo
pé e saiu andando com ele no meio da Baixa pra jogar dentro duma moita de tucum
que ela, num tinha coragem de matar com um pau assim uma coisa, aí ia jogar pra lá
pra morrer né. Aí o bichinho chorando, e o dono do terreno andavam olhando os
bicho dele de manhã, isso oito horas, oito e meia, aí escutou o choro do menino né?
Aí se aproximou, quando ele chegou lá ele vai jogando ele dentro da moita, ele deu
Um grito, ela parou, aí disse assim: “Parece que ia jogar o menino dentro da moita!
Ela disse: “É!”; “Mas por que você ia fazer isso?” porque ele amanheceu me
atentando pra dar de comer pra ele e eu não tenho nada, então eu vou jogar ele pra lá

184
Objeto arredondado feito de palha da palmeira, geralmente usado para catar/escolha e secar arroz.
185
DOMINGOS, 2018.
93

pra ele morrer pra lá! Aí ele disse: “Não, não faça isso não, não faça isso não…me
dê o e menino pra mim que eu levo pra mim! Aí ela disse: “Então pegue! Que eu
não quero mais nem ver! Pode levar pra la!” Cearense é bicho doido, neh! Muitos
deles… Aí deu um menino pra ele, ele andava com uns mocó, um no cela outro em
outro, aí botou ele num mocó daqueles ele ficou só com a carinha do lado de
fora…ai montou mundo saiu com ele gritando…chegou lá ele deu leite, ele era rico.
LIA: Ele era o que, fazendeiro?
ZÉ NOVECENTOS: Era fazendeiro, dono da propriedade lá…e aí ele criou o
menino! Dois meses o menino estava chato de gordo! Passando bem, né? Aí disse eu
vou mandar batizar agora. Caçar os padrinhos…e aí caçou os padrinhos e levou pra
José de Freitas. Aí quando chegou lá o padre perguntou que nome ele queria que
botasse nele. Disse “É, o nome dele é Domingos da Costa”. Aí o padre botou o
nome dele Domingos da Costa. Aí ele foi-se embora com os padrinhos e o menino ,
chegando lá perguntaram: “Como é o nome?” Disse “é Domingos da Costa, mas não
quero que chame nem sonhando…eu quero que chame é Novecentos. O nome dele é
Novecentos.” E assim ficou. Por que tinha acontecido aquele caso, né? Andou perto
de morrer, por que a mãe dele ia matar ele mesmo. Aí… ficou! Cresceu, casou, os
filhos “é filho do novecentos”… Antonio, José , Domingos… num tinha um que não
era Novecentos186.

A bisavó de Seu Zé migrou para o Piauí buscando melhorias de vida para si e para
os filhos, mas as condições para viver na região não estavam melhores e ela não quis ou não
pode voltar para o Ceará. Sobre o ano de 1900 no Piauí. O Coronel Pedro Freitas conta suas
impressões daquele cenário desolador ao historiador Manuel Domingos Neto:

A seca de 1900 foi uma seca muito forte. Os dois açudes que existem lá, um do lado
do nascente, a três quilômetros da cidade; o outro, do lado do poente, a uns quatro
quilômetros, que não secavam, na seca de 1900, todos dois secaram. Agora, o olho
d’água da cidade, que fica a uns quinhentos metros da igreja, esse olho d’água
mantinha a água a quase um quilômetro de distância. Meu pai era prefeito, toda
semana ia com dois homens e percorria o canal, que entupia e a água não dava até lá
em baixo. Então, os proprietários, que tinham gado bebendo nos açudes, puxavam
esse gado todo para um banho. Agora, no lago, tinha água, mas não tinha mais
comida. A mortandade de gado foi tão grande que o povo dizia: os urubus, para
irem de uma carniça para outra, não precisam voar, vão caminhando187.

Cenários como esse devem ter afligido a bisavó de Seu Zé, ao ver que a pobreza
não se restringia ao perímetro cearense, pois a migração não correspondeu à expectativa de
melhora. O episódio de salvação do menino ficaria eternizado pelo nome daquele início de
século macabro. Em seu nome José Domingos, o Zé Novecentos, ficou cravada uma primeira
lição de miséria, repassada de pai para filho. Este é um exemplo onde a vontade de lembrar
este acontecimento foi mais importante e mais forte que as poeiras do tempo. A narrativa de
Seu Zé Novecentos não foi arquitetada para ser um discurso fantasioso, com certeza existem
lacunas a respeito da vida que a avó distante tivera ainda em solo cearense. Observamos que

186
JOSÉ Domingos da Costa. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 26.01.2018 na cidade de
Teresina-PI.
187
NETO, Manuel Domingos. Op.Cit, p.116, grifo nosso.
94

provavelmente os nossos narradores a partir da década de 1940 fizeram o mesmo trajeto que a
bisavó de Seu Zé rumo ao Piauí.
Há um risco que ronda a memória dos velhos; a perda da importância para o
grupo, as “faculdades” que só se sustentam mediante algum projeto de vida. Quando as
experiências são (re) contadas, a importância se renova: “os feitos abstratos, as palavras dos
homens importantes só se revertem de significado para o velho e para a criança quando
traduzidos por uma grandeza na vida cotidiana” 188.
Esta grandeza da vida cotidiana foi experimentada por Seu Manoel, em um
curioso episódio ocorrido com seu neto que havia ingressado no Exército:

Ainda hoje eu estava falando aqui mais uma rapaz aqui...Tem um neto meu que
sentou praça, foram pra Beneditinos uma turma danada lá, foi fazer exercício pra
banda de lá. Aí ele saiu com um colega dele quando chegou lá na frente, que...
“Rapaz tô com sede, o cantil já secou” o outro disse; “o meu também”. Aí andando
por dentro dos matos, que eles andavam fazendo trabalho né, aí ele achou um olho
d’água lá, disse “olha aqui, cara! um olho d’água aqui, tá beleza! Dá pra gente
banhar e beber água. Disse; “aqui é de gente apanhar água”, aí bebeu, aí mais pra
frente acharam um poço onde o pessoal banhava, aí banharam, disse: “agora eu vou
sonho”, disse “agora eu vou tirar um palmito pra mim comer”, disse “tu é doido é?
Diabo de palmito é esse?” disse; “palmito de tucum”. Disse “e como é que tira esse
bicho de espinho , rapaz?”, “tira, meu avô me ensinou a tirar...” Aí tirou um palmito
assim, ele tirou com um facão, aí descascou bem descascado , aí disse; “tu quer?”,
“rapaz isso aí vai matar a gente “, “rum, tu num quer eu vou comer, eu tô com
fome”. Aí, partiu bem no meio, aí ele chegou provou disse: “Viii rapaz”... com
pouco o tenente chegou atrás deles; “Vocês tão comendo o que , menino? Que a
gente tá lascado de fome e não sabemos nem onde é que tá?” “Palmito de tucum” .
Aí o tenente foi e provou, disse “rapaz já ouvi falar em palmito de tucum” , comeu,
o menino tirou outro disse “Aaa bichinho, tu não morre de fome no mato não , né?”
disse , “se eu andar com a minha arma, isso aqui foi meu avô que amolou meu facão
bem amolado pra mim”...trabalhava aqui, aí chegou cm um facão, mandou amolar
digo “pra onde é que tu vai levar esse facão?” disse; “eu vou porque eu vou andar no
mato e tem que ser é cortando”...Aí o tenente disse, rapaz, pois é bom da gente
viver, mandou tirar 4 palmito pra mulher dele aqui em Teresina...Aí é como eu tô
dizendo, aqui num dava pra ninguém morrer de fome não. Eu que não gostava como
nunca gostei...189

Curiosa a maneira de falar de seu Manoel, sua narrativa não tem muito gestual
como de seu Domingos, mas nada que não possa ser recompensado com lembranças ricas de
diálogos inteiros, mesmo quando não esteve presente. As fabulações expressam seu júbilo de
ter ajudado o neto, como conhecimentos aparentemente simplórios, mas bastante
significativos em situações de sobrevivência experienciados por ele e pelo neto,
demonstrando que os saberes sertanejos ainda têm destaque no grupo familiar.

188
BOSI, Ecléa. Op. Cit., p.74.
189
MANOEL, 2018.
95

Como finaliza nesta fala, “num dava pra ninguém morrer de fome não”, numa
referência à fartura que poderia oferecer a terra piauiense em detrimento do Ceará, mas
apenas para quem estivesse disposto e encontrasse condições favoráveis para o trabalho. A
matéria linguística utilizada por Seu Manoel, a repetição de diálogos inteiros, revela uma
demarcação de território seguro do discurso ora em forma de música (“A Triste Partida”, de
Luís Gonzaga), ora em curiosas comparações (“o velho era metido a chifre de bode, chifre de
carneiro190”). Na família, ele é exemplo de ensinamentos.
A vida no EntreRios desdobrou-se ao sabor das necessidades de reformulação dos
projetos de vida, conforme evidenciado nas narrativas. Alguns vão ficando, realizam outros
deslocamentos temporários, mas retornam posteriormente para os municípios onde seus
parentes se instalaram primeiramente.
Para Seu Paulo, filho de cearenses que peregrinaram fugindo da seca, a felicidade
é poder plantar no quintal de sua casa e em seu terreno. “Aquela ponta de chão ali...eu tô
cultivando o que é meu”. Sem rendas nem divisões, ele planta o que quiser, ele e a esposa
passam dias inteiros nos roçados, desfrutando finalmente da autonomia camponesa em sua
plenitude.
Seu Domingos mantém conexões constantes com parte da família em Manaus,
mas sua idas para lá são passeios e visitas. Seu espaço identitário é a cidade de União e
continuar morando na mesma casa que conseguiu reaver após a migração forçada da família
para Caxias, num outro período de sofrimentos.
Percebemos na fala de D. Cristina que as suas idas costumeiras às reuniões
promovidas pelo INCRA mudaram sua postura ao contar sobre sua história de vida; no
retorno para outra entrevista, movimento necessário para identificar as visões históricas com
mais detalhe191, percebemos uma fala mais engajada em contar sobre as dificuldades
enfrentadas pelo pai, sobre a desventura dela própria, Cristina, e de sua trajetória de luta pela
sobrevivência enquanto mãe e esposa abandonada pelo marido; e aos poucos acompanhamos
o germinar do que ela significa como direito à terra em que sempre viveu.
Outros narradores reformularam seus projetos de vida tendo como destino
Teresina a partir dos anos 1960. Motivados por expectativas de melhora de vida, procuravam

190
Faz referência ao tio que explorou a família durante a juventude de Seu Manoel e que se tornou o principal
motivo de sua tentativa de fuga para o Rio de Janeiro.
191
GRELE Ronald J.: “Ziellose Bewegung Methodologische und thoretische Probleme der Oral History” in: ed.
Lutz Niethammer: Lebensführung und kollektives Gedächtnis. Die Praxis der ‘Oral History’ Frankfurt am Main,
1980, p.155 apud. HARRITS, SHARNBERG, Op. Cit.p.31.
96

instrução escolar para os filhos, anseio por um trabalho com carteira assinada, reenlace
familiar ou ansiosos pelo que a capital poderia proporcionar.
97

4 ECOS DE UMA VIDA CAMPONESA NA CAPITAL

Ó Deus vos salve essa casa santa


Onde a gente janta com os nossos pais
Ó Deus vos salve essa mesa farta
Feijão, verdura, ternura e paz.192

A lembrança de família evocada pelo poeta piauiense Torquato Neto nestes


versos, escritos na década de 1940193, remete a momentos em que cada membro podia
compartilhar das situações cotidianas, especialmente, a refeição. Este um espaço para as
sociabilidades próprias do convívio familiar que permitem que a “a casa santa” se construa a
cada dia. Mas a música de Torquato pode também fazer parte de um passado que se foi
perdendo no dia a dia das famílias, devido a diversos fatores. Elementos como a fartura, a
reunião à mesa e a presença dos pais se esmaecem no cenário dos lares, daí a necessidade de
agradecer a Deus quando esses momentos acontecem.
Retratos como este se tornaram rarefeitos no cotidiano dos nossos narradores As
famílias aos poucos vão migrando de forma desagregada para a cidade. Membros que foram
na frente, instalaram-se e atraíram os que haviam ficado para trás, construindo a rede de
solidariedades tão necessárias para a vivência na capital. As possibilidades de trabalho
enquanto mão de obra barata e subempregada direcionam estes migrantes para os espaços que
ajudaram a construir, as periferias, que são resultantes do deslocamento de pessoas pobres
centros importantes da cidade ou de onde eram obstáculo para ampliação de obras de
infraestrutura.
Nestas moradias, os trabalhadores não abandonaram de vez o trabalho rural, uma
vez que conseguiram ainda viver de roça durante certo tempo, mas em uma relação de
agregação já descaracterizada comparando com a vivida nos municípios anteriores.
Paulatinamente, houve um redimensionamento da pobreza; de camponeses pobres passaram a
pobres urbanos, em um processo que não finda a luta pela sobrevivência no meio urbano.
As falas destes homens e mulheres desnudam as resistências cotidianas próprias
da vivência no meio suburbano; a busca por outros ofícios e o emprego com registros, a luta
pelos meios de vida no comércio ambulante, a lida doméstica; uma combinação de forças da
unidade familiar que caracterizam a economia moral bem expressa na linguagem oral. Ela se
apresenta “com a força do corpo, expressa nos sons que vem e vão. No corpo que fala e que

192
NETO, Torquato, “Ó Deus vos salve essa Casa Santa”. In: DUARTE, Ana Maria S. (org). Os últimos dias
de paupéria: do lado de dentro. 2.ed. revista e ampliada. São Paulo: Max Limonad,1982, p.60.
193
Posteriormente é criada a versão musical por Caetano Veloso e eternizada na voz de Nara leão em 1968.
98

escuta. Para esses personagens, a voz, gestos, histórias, contos, ganham sentido na
linguagem oral, e é principalmente com ela que a vida vai sendo enfrentada”194.
Os narradores e suas famílias que se deslocaram para Teresina trouxeram não
apenas experiências das vivências anteriores em outros municípios do EntreRios, mas também
anseios que aos poucos foram surgindo e tomando corpo ao sabor das necessidades. Para além
disso, está o desejo por alguns de recomeçar, de dar novos rumos e propiciar destinos diversos
aos filhos, que não seriam possíveis mais praticando roçados. Aquelas crianças que saíram do
Ceará, mesmo os que já nasceram em solo piauiense, projetam expectativas distintas. Que se
desdobram quando o horizonte de cidade desponta com um veio aberto de oportunidades para
que a família se enraíze tal qual a solidez das casas de alvenaria, eliminando a incerteza de
morar e plantar em propriedades alheias. Mas será mesmo que todas as expectativas foram
alcançadas ao chegar à capital? Que desafios estes narradores encontraram ao se deparar com
uma cidade em sua plenitude de mais um processo de modernização, embelezador, sanitarista
e excludente?
O cenário que se desdobrava na capital ainda estava longe do futurismo e da
velocidade das grandes cidades, mas matizada de elementos que mesclavam modernidade e
pobreza, a outra face das belas paisagens e edifícios descrita no trecho de crônica abaixo:

É isso mesmo [...] – Teresina acontecendo [...] um velho pobre pedindo-, leite sendo
pasteurizado-, criança tomando mingau de farinha-, uma faculdade formando
médicos-, uma doença mais grave despontando-, uma nova força de luz elétrica-, o
sol sempre brilhando mais-, aparece um canto novo no clube-, e o choro do pobre
aumenta-, é Teresina acontecendo-, um cursinho a mais na cidade-, um universitário
a menos na vida-, um jato rasgando o espaço-, número de viajantes terrestres
aumentando-, nova biblioteca pública-, uma universidade feita na teoria-, um
produto na vitrine-, um camelo na calçada-, é o feito sendo mostrado na praça-, é a
demagogia tomando pé-, mais um cabaré no caos-, pinta uma nova boate-, o parque
custando muito-, o indigente morrendo ligeiro-, é o artista por burro-, é o burro por
artista-, é Teresina acontecendo [...] 195

A linguagem utilizada nos passa a ideia de flashs de um olhar em movimento para


o que se vê lá fora. A construção inteligente de antíteses entre os eventos evidencia que o
acontecer na cidade – celebrado pelo movimento em contraste à inércia que para a época é
sinônimo do rural – carrega em si problemas sociais que não podem ser ignorados, porque
tudo compunha o cenário ao mesmo tempo, e são elementos que possibilitam que este

194
RIOS, Kênia Sousa. Quando novos personagens continuam entrando em cena. O encontro com a voz do
outro e com o outro da voz. Palestra de encerramento do ERHH- nordeste.p.4
195
“Teresina Acontecendo”, In: Jornal “O Estado”, Teresina-PI, fev. de 1972, p.2. Local de guarda Casa Anísio
Brito”.
99

movimento aconteça. A modernidade desfia-se Teresina, e traz consigo a fome, a doença, a


miséria, o mendigo, o sofrimento do pobre, elementos recorrentes no cotidiano da cidade.
Centelhados por um discurso pós-64, os governos piauienses de meados de 60 e
década de 70 se destacaram por pôr em prática a ideia de um Piauí Novo, urbanizado,
modernizado, e que seus reflexos pudessem ser percebidos na capital, seguindo a esteira de
desenvolvimento das demais capitais brasileiras. Estas mudanças que visavam o
melhoramento de infraestrutura e embelezamento urbanístico se chocavam com questões
sociais, uma vez que o aumento do fluxo migratório de pessoas para Teresina ocasionou um
processo de suburbanização, e com ele a necessidade de ampliação de saneamento básico,
instalação de luz elétrica, ampliação da malha viária, entre outros aspectos. De acordo com
Regianny Lima Monte, o crescimento da malha urbana esteve condicionado a essas
migrações, pois a expansão urbana de Teresina até 1950

Seguiu os limites topográficos, como os rios Poti e Parnaíba, este impedindo a


expansão em direção oeste por também delinear a divisão geopolítica entre o Piauí
e o Maranhão, estando a cidade maranhense de Timon sob área de influência na
demanda de serviços oferecidas na capital piauiense. A partir da década de 1960,
a cidade passou a experimentar um crescimento espacial intenso, proporcionado,
principalmente, pela pressão exercida com a chegada de um grande contingente de
migrantes que permaneceu, durante as décadas de 1970 e 1980, direcionando o
crescimento da capital196.

Os nossos narradores migrantes alteraram dessa forma sua configuração social, à


medida que as sociabilidades, a nova realidade do trabalho e os desafios do viver na cidade
reformulam as suas condições de camponeses para a condição de pobres urbanos, onde
mesmo mantendo práticas e costumes de trabalho próprios do campo, a espacialidade urbana
com seus códigos e regras somados às expectativas destes trabalhadores ao se deslocarem
novamente vão lhes conduzir a maneiras de viver distintas, dificuldade e obstáculos que
exigiram novos rearranjos para a família, e o primeiro deles, morar nas periferias.
Neste movimento, aos poucos, vão se configurando espaços de saudade na
memória destes narradores, ligados à vivência no EntreRios e às maneiras como foram
projetando suas vidas, no sentido de lembrar aquilo que lhes toca e que não volta mais,
evocando um passado marcante.

196
MONTE, Regianny Lima. A cidade esquecida: (res) sentimentos e representações dos pobres em Teresina na
década de 1970. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade
Federal do Piauí. p.98.
100

4.1 Periferia e expectativas

Na capital, esses migrantes junto a outras pessoas de baixa renda iam se


aglomerando nos espaços periféricos das cidades, ou se viam realocadas em outros lugares
distantes do centro ou que estivessem no caminho da ampliação da malha viária, ou de outros
grandes empreendimentos. Agindo de maneira excludente, a política modernizadora na capital
reflete a definição de subúrbio proposta por José de Sousa Martins que observou seu emprego
desde o século XVIII para:

designar os confins da cidade de São Paulo ou a zona rural que lhe era
imediatamente próxima. Ela já indica uma concepção da unidade da cidade e seu
contorno. Foi a categoria de morador que definiu o sujeito dessa espacialidade e o
núcleo do modo de pensar a cidade e seus arredores. Era o poder e seus agentes, os
homens bons, os limpos de sangue e sem mácula do ofício mecânico, e a hierarquia
estamental de seus privilégios que definiam o modo de ver e conceber a cidade e sua
gente e nela o lugar de cada um. A cidade o era a partir da ideia de que nela se
encontravam os que decidiam e mandavam197.

O autor refere-se ao caso de São Paulo, mas que se aplica a quaisquer outros
centros ou metrópoles. No nosso caso, o lugar de poder referente aos “que decidiam e
mandavam” era por excelência o centro de Teresina, mas aos poucos o perímetro urbano foi
redefinido de acordo com os anseios das elites. A ocupação e urbanização da zona leste da
capital também se inserem neste contexto, cenário para onde os nossos narradores foram
morar. Enquanto que “a mácula do ofício mecânico” se desfiava em diversos ofícios entre os
pobres urbanos, configurando-os como uma massa de subempregados e desempregados,
classes mais abastadas voltaram atenção para os terrenos além do Rio Poti, que até a década
de 1960 eram usados apenas para chácaras e lazer no fim de semana, havendo também alguns
casebres construídos de forma irregular. A ampliação da malha viária naquele sentido ocorre
através da abertura da Av. João XXIII, e da a Av. John Kennedy, que ligam Teresina aos
municípios do EntreRios bem como da Av. Nossa Senhora de Fátima, prolongada em 1974,
onde conjuntos habitacionais para pessoas de alto poder aquisitivo foram construídos. Novas
vias de trânsito também trouxeram outras possibilidades de ocupação para os mais pobres,
que diante da especulação imobiliária daquelas novas áreas, foram deslocando-se
paulatinamente para a periferia. Daí se originaram bairros como o Ininga, o Satélite,
Piçarreira. Conforme destacados no mapa abaixo. Nestes dois últimos, os narradores
construíram seus lares.

197
MARTINS. José de Souza. Subúrbio Vida Cotidiana e História no Subúrbio da cidade de São Paulo: São
Caetano do fim do Império ao fim da República Velha. São Paulo: HUCITEC, 1992, p.7.
101

Mapa 3: Mapa parcial da Zona Leste de Teresina

FONTE: Google Maps(2018)198.

Nesta imagem evidenciamos a proximidade dos bairros nobres do rio Poti, onde o
clima é mais ameno, e a distribuição espacial periférica dos demais bairros para a população
de baixo poder aquisitivo no entorno da estrada rural União-Piauí, uma das rotas de passagem
para alguns migrantes, somada a BR-343 e outras rotas possibilitaram o deslocamento de
pessoas para a capital por motivações variadas.
Seu Cosme, o mais “ousado” dos gêmeos, decidiu que a vida em União já não
estava mais correspondendo ao que ele queria. Os motivos que o levaram a se deslocar mais
uma vez veio da insatisfação, quando começou a perceber que a cidade de União não poderia
oferecer serviços maiores para alguém que estava determinado a viver de algo além do
pagamento de renda nas roças. “Os anos 60 encontraram o Piauí com uma população de
1.240.200 habitantes, com 76,59% ainda morando na zona rural, o que demonstra que a
estrutura produtiva do Estado muito pouco havia mudado desde o início do século”199. Sem
uma diversificação de estrutura produtiva, havia também uma oferta restrita de serviços, bem
como sua diversificação. Assim era a vida dos irmãos em União. A experiência de trabalhador

198
Acesso em 20 de Agosto de 2018.
199
TAJRA, Jesus Elias; TAJRA FILHO, Jesus Elias. O comércio e a indústria no Piauí In: SANTANA,
Raimundo Nonato Monteiro de. (Org.). Piauí: formação-desenvolvimento-perspectiva. Teresina: Halley,
1995.p.147
102

de Seu Cosme o permite se chamar de operário. Já casado e com filhos, assim como seu
irmão, Damião, ele empregou-se como pedreiro. O trabalho de construção civil segundo ele
era “mínimo”. Dali ele empregou-se em Teresina e selou o destino de uma nova migração:

Lia: Por que o senhor veio primeiro?


Seu Cosme: Eu vim primeiro porque eu arrumei serviço, vim trabalhar, passei 2
anos morando na União e trabalhando aqui e não me sentia muito bem porque era
ida e volta, agora, ai trouxe a família e depois que, graças a Deus, as coisas
começaram a melhorar.
Lia: O senhor veio em que ano morar aqui de vez?
Seu Cosme: Em 1974. É daí pra cá eu não acho nada ruim aqui não, não sei se é
porque não me lembro mais se passei alguma coisa ruim aqui, não me lembro.
(risos) Eu não acho nada ruim aqui não.200

A migração pendular de Seu Cosme estava sujeitando-o ao pouco convívio com a


família. Esse tempo em que se empregou em Teresina caracterizou-se como um período
intenso de construções civis, como abertura de vias urbanas, pavimentação, construção de
conjuntos habitacionais. É neste ínterim que ele passa de pedreiro a “encarregado de serviço”
ou mestre de obra. A última chance para ele estava em Teresina. Ele rememora com exatidão
o tempo que perdurou para tomar a decisão de deslocar-se novamente: “No dia que completou
5 anos e um dia nós viemos embora. Porque eu achei que lá não dá mais”201, demarcando
com exatidão o tempo em que viveu em União.
Quando seu Cosme se chama de operário, lembramos do que sinaliza Thomson202,
o processo de recordar para o sujeito é importante, porque diz respeito à maneira como ele se
enxerga no mundo e deseja ser visto. A sua rememoração em Miguel Alves se faz curta e
acelerada no intuito de agradecer a Deus: “eu vim para melhorar e hoje me considero um
homem feliz depois que tô aqui em Teresina”203. Entendemos que o seu ápice como
trabalhador se inicia com esta experiência primeira na capital, quando ainda morava em
União. Ao se ver como operário, ele mudou sua perspectiva em relação ao tempo, ao trabalho
e, sobretudo, em relação às suas expectativas. O tempo industrial aos poucos toma lugar no
tempo da natureza, e duas temporalidades ganham espaço definido ─ o tempo do trabalho e o
tempo do lazer, que também é o tempo do descanso. Refletindo sobre os caminhos que se
abriam com a chegada das indústrias nas cidades, Martins observa:

O operário, diferente do caipira e do escravo, não era um agente natural da ordem.


Ao contrário, trazia consigo o novo germe das mudanças históricas. Em princípio,

200
COSME Feitosa da Silva. Entrevista concedida em 18.01.2018 na cidade de Teresina-PI.
201
COSME, 2018.
202
THOMSON, Alistar. Op. Cit.
203
COSME, 2018.
103

anunciava uma nova modalidade de relacionamento social, a do contrato, e um novo


modo de acumulação da riqueza, o lucro baseado na produção fabril. Não mais o
tributo da renda fundiária e o lucro especulativo do comércio. Eram potencialmente
novos os fundamentos da vida social.204

Estas potencialidades próprias desta relação de trabalho estabelece uma ideia


sectária em detrimento do trabalho rural. O trabalhador sai de uma relação de trabalho pré-
capitalista – onde a família enquanto unidade produtiva descaracteriza a lógica de mercado,
com uma remuneração não assalariada – e passa a uma relação capitalista onde o lucro
provém unicamente de seu trabalho, e o domínio dos meios de produção é ainda mais
limitado. O trabalhador vende a força de trabalho em troca de um salário diário, semanal ou
mensal, o necessário ou não para sua sobrevivência. Esta mudança é crucial para entender a
fala de Seu Cosme, a partir do momento que se emprega na construção civil passa a se chamar
assim. O “ser operário” também é sua maior motivação para deslocar-se para a capital. Isto
seria seu instrumento para garantir uma vida melhor para si e para a família.
Em 01 de janeiro de 1977, Seu Damião deixa União rumo à Teresina
definitivamente seguindo seu irmão Cosme. A vida em União teve uma sensível melhora; a
compra da casa que, segundo Seu Damião, não fora comprada: “comprei não, me deram, por
110 mil reis... ô meu Deus, nesse tempo as coisas eram baratas, mas era mesmo que ser caro
hoje, porque o dinheiro era mais difícil que tirar leite de onça”205. A renda era o suficiente
para obter uma moradia, ainda que fosse uma construção de taipa e cobertura de palha. Outro
entrave eram a localização dos terrenos, distantes das casas, bem como o próprio rendimento
do solo, que segundo Seu Damião, “não prestava”. A dificuldade de manter-se vivendo de
roças e pagando rendas integrou Seu Damião no universo do comércio ambulante. Ganhando
dinheiro ou mesmo por meio de escambo, ele viveu “trambicando com negócios, comprando e
revendendo... Levava rede, calçado, roupa feita, vendia no interior a troco de cereais”206,
conforme já visto. Aos poucos ele foi tomando gosto e alcançando um discreto prestígio, que
lhe permitiu arrumar crédito em algumas lojas diversas. Mas a ida de seu irmão Cosme para a
capital diminuiu o que já era minguado, e sem a parentela mais próxima para lhe dar suporte
ele também se deslocou para Teresina, a fim morar no mesmo bairro que seu irmão gêmeo.
Um aspecto unia os dois irmãos como motivo para uma nova migração: a
educação dos filhos. De acordo com Seu Cosme, essa preocupação foi herdada do pai:

204
MARTINS, José de Souza,Op.Cit. p.8.
205
DAMIÃO Feitosa da Silva. Entrevista concedida em 14.08.2016 na cidade de Teresina-PI.
206
DAMIÃO, 2016.
104

Lia: E instrução, o senhor aprendeu a ler e escrever aonde?


Cosme: Não tô dizendo que foi no início, foi com 45 dias de... 45 dias de aulas
pagas particular que o papai pagou pra nós, que eu tinha 8 anos de idade...
Lia: Onde? Lá no Ceará?
Cosme: Lá no Ceará, em Nova Russas, município de Nova Russas...
Lia: Quem deu essas aulas? Quem era essa pessoa?
Cosme: Era um professor, já existia o professor particular, pra casa, pago pelos pais,
pra ensinar 4,5 filhos da gente ou mais, ou 10 ou 20 se quiser. Pra vir pro colégio,
agora, o pai da gente pagava a parte dele e os outros alunos que aparecessem era do
professor o dinheiro, já era diferente207.

O objetivo era muito claro: aprender a ler e escrever neste tempo restrito,
submetendo-se a certa rigidez. Assim Damião conta que mesmo sendo canhoto teve que
aprender forçosamente a partir dos 8 anos a ser destro, o que ele lamentou muito, mas lhe
rendeu a proeza de ser ambidestro. Isso nos revela dois aspectos importantes: a instrução
pública em Nova Russas era precária ou mesmo inexistente, induzindo a práticas de
alfabetização rudimentares como as que vivenciaram Seu Cosme e Seu Damião; a educação
dos filhos ocupou um papel de destaque nas motivações que os guiaram nas migrações desde
Miguel Alves até Teresina.
A situação educacional em União, por exemplo, ainda era tateante. O número de
escolas isoladas em relação ao grupo de escolhas reunidas era bem mais expressivo. Somente
no ano de 1966, registrou-se 7 grupos escolares reunidos e 36 escolas isoladas, somando
setores estadual, municipal e particular, de acordo com dados da Comissão de
Desenvolvimento Econômico (CODESE)208. Estas escolas isoladas espalhadas pelo perímetro
do município foram responsáveis por levar o letramento para as muitas comunidades e
interiores distantes.
Damião ressaltou a importância de morar no perímetro urbano de União porque
“os meninos já estudavam”; a cidade poderia oferecer uma instrução pública razoável. Seu
Cosme ressalta que “tudo quanto eu ganhei, foi construído, pra ajeitar os filhos pra ir pro
colégio, se não aprenderam porque não quiseram ou porque não deu”. O “não deu” acaba de
certa forma condicionando a entrada dos filhos nos empregos e subempregos da cidade,
seguindo geralmente os ofícios dos pais. Ao virem para Teresina na perspectiva de melhores
trabalhos, parte dos filhos homens de Seu Cosme e Seu Damião se tornaram pedreiros,
induzindo-os a deixarem os estudos incompletos.

207
COSME, 2018.
208
CODESE- Número de Unidades Escolares, professores e matrículas por setores. Município de União anos
1964/1965/1966. Ensino Primário. Local de guarda: Biblioteca do arquivo Público Casa Anísio Brito.
105

Outro narrador que migrou para a capital já insatisfeito com a situação em Altos
foi Seu Manoel. Após os desentendimentos com outro funcionário como já visto, ele decide
vir embora, não sem antes um colóquio com o proprietário que discordava da sua ida:

Lia: Lá em Altos quando o senhor falou assim que estava fraco a roça, mesmo
trabalhando de roça e sendo vaqueiro, por que não deu certo lá?
Seu Manoel: Eu faço que nem o menino sou cearense e tenho o sangue de Altos,
mas o Altos é fraco. Você tá trabalhando, faz uma roça monstra, aí bota tudo dentro
de casa, aí quando dá no fim dos negócios você precisa vender os legumes, vender o
milho o feijão , o arroz, a mandioca, pra sobreviver por outras coisas, às vezes, que
as doença hoje é em seguida, a gente pensa que a pessoa está boa com pouco está
doente, aí precisou a gente vender tudo isso pra poder viver, aí o negócio estava
ficando fraco mesmo, aí eu digo “rapaz”, aí ele disse: “Compadre você vai é matar
seus filhos” e eu digo: “não vou matar ninguém”. “Em Teresina ninguém dá uma
esmola pra ninguém”, eu digo “dá, compadre eu sou acostumado em Teresina, e
vender leite e vender tudo lá.209

Para chegar aos motivos que levaram Seu Manoel a ir embora para Teresina, é
preciso entender nesta fala a mistura de duas temporalidades. Primeiramente, ele fala de
Altos, seu “oásis”, que tempos depois se revelou insuficiente, “fraco”, os negócios não iam
bem e impeliam-no a vender os produtos que cultivava mais rapidamente, deixando o lavrador
em uma situação de vulnerabilidade, expondo-o a riscos sérios de decadência diante de
circunstâncias imprevisíveis como as doenças. Ao retomar a fala de um dos proprietários para
quem trabalhou, Seu Manoel revela que aquela conversa teve um caráter exortativo, não no
sentido de algo que ainda iria acontecer, mas que já estava acontecendo; afinal, Seu Manoel
perdera o medo e o receio da cidade através de andanças e vendas.
A mudança de percepção operou nele através da instrução escolar das filhas, que
se iniciou no município de Demerval Lobão, portanto, já no seu terceiro deslocamento,
referente à fala do proprietário descrita na passagem acima. Em virtude de uma vida melhor
proporcionada pelo ofício de vaqueiro, acabou lidando com algumas dificuldades, e
trabalhando para dois proprietários. Após sair da fazenda do primeiro proprietário, entregando
todos os compromissos plausíveis com a criação: “compadre eu vou sair da propriedade, aí
vou deixar seus bichos tudo com a barriga cheia e água pra beber até 3 dias se for possível”,
Seu Manoel foi abordado 15 dias depois pelo mesmo, que pedia sua volta para o ofício. Ele
respondeu:

Nam, aqui eu tô bem compadre, vou voltar não. As meninas pularam logo bem
acolá: ‘não, nós não vamos voltar não que nós vamos morrer de trabalhar e mesmo

209
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 04.03.2017 na cidade
de Teresina-PI.
106

nós estamos estudando aqui, e é pertinho, é mais perto’. E eu digo “nam, eu não vou
voltar não¹ Mesmo que vocês queiram eu não vou”.210

A narrativa contém um elemento de aproximação entre Seu Manoel e o primeiro


fazendeiro. O uso do termo “Compadre” estreita relações ao mesmo tempo em que aprofunda
laços de subordinações entre lavradores e fazendeiros. Entretanto, o caráter exploratório
sinalizava intensificação, uma vez que, com as filhas já crescidas, tornar-se-iam mãos de obra
somadas ao pai no trabalho do roçado, ou em afazeres domésticos. A expressão “morrer de
trabalhar” aponta que ficar naquela primeira fazenda não possibilitaria nenhum outro futuro
possível além de ajudar o pai a pagar rendas. As desavenças com o outro funcionário que
conduzia práticas erradas dentro do campo de negociações, considerando os costumes
vigentes em relação à criação de animais, também fez com que Seu Manoel não voltasse.
Depois, a instrução das filhas seria mais uma vez instrumento de mudança. Na fala abaixo,
Seu Manoel narra os “abusos de camaradagem” cometidos pelo primeiro patrão naquele
município:

Quando eu dava fé ele chegava bêbado lá em casa, passava 2, 3 dias lá com o carro
encostado, a gente dando de comer à ele, e mandando comprar cachaça e bebendo lá
debaixo dos pés de manga, era assim como um irmão, como um pai, uma coisa ele
era bom demais pra mim. Bom, bom mesmo...mas a gente se enrolava, quando a
gente dava fé ficava até cismado, com raiva... aí foi indo até que ele esqueceu. Foi o
momento em que as meninas começaram a trabalhar e estudar foi obrigado eu vim
embora pra cá.

Mesmo diante dos laços estreitos (“irmão, pai”), e das socializações em casa,
haviam limites para Seu Manoel não apenas como lavrador, mas também como anfitrião. O
custo de manutenção desse discurso público era manter a condescendência para com aquele
patrão, mas a raiva e a “cisma” indicam que a família nessa prática percebia fissuras em sua
dignidade, ao mesmo tempo em que a inserção das filhas no mercado de trabalho possibilitou
a sua decisão final. Ele mudou-se para Teresina em 1976.
A agregação da família também foi um motivo recorrente de deslocamentos para a
capital. Este é o caso de Dona Ana, cuja migração foi condicionada por casamento e
reencontro de tios. Já casada e com filhos ela mudou-se para Teresina na década de 70, e
somente quando se viu sem os filhos por perto, seu pai decidiu vir também. Ao abordar este
motivo ela diz: “Ele ia viver lá de que? Por que ele criava uma neta, a neta precisava

210
FRANCISCO Manoel de Assis. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 13.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
107

estudar, nós já tinha casado, cada qual tinha o seu lugar, aí ele veio e durou 12 anos aqui,
quando ela minha mãe faleceu, já tava com 2 anos aqui”211.
Esta fala evidencia mais uma vez que a coesão da parentela condicionava o
sucesso ou não da migração, neste caso, a solidão não era a melhor escolha para os pais, em
virtude de doenças, precisando de acompanhamentos médicos.
Seu Isídio desgostou-se após o episódio de mutilação das vacas. Mesmo com o
rearranjo feito pelo patrão, ele tinha medo do futuro que lhe reservava não só naquela fazenda,
mas nas demais propriedades onde fosse trabalhar em José de Freitas, conforme atesta em sua
fala: “eu me desgostei por causa disso, porque, você sabe, eu já tinha entrado numa boca
perigos né, aí eu era capaz de entrar em outra... aí eu me desgostei, você sabe, eu vou-me
embora para Teresina”212.
O medo de retaliação é produto de um discurso oculto que se exteriorizou através
de ação tornando aquele jogo das aparências, próprio do discurso público, frágil. Neste
discurso público no qual nossos narradores estavam familiarizados, valores como a dignidade
e a autonomia são considerados dispensáveis para os dominados.
Neste esboço cartográfico, desde memórias, Dona Antônia é a única que faz o
caminho de volta para Teresina. Um irmão casado com uma teresinense resolve vir morar na
capital, e, mais tarde, Dona Antônia casada e mãe de dois filhos, saiu de Crateús e se instalou
no bairro Primavera, Zona Sul da cidade, por volta de 1958.
Após dois anos, a família deslocou-se novamente para Crateús. O motivo da volta
para o Ceará é elucidado na fala a seguir de Raimundo da Silva Vieira213, 50 anos, filho de
Dona Antônia, que gentilmente nos auxiliou na rememoração de lembranças:

Raimundo: Meu pai trabalhava no dia a dia de pedreiro, com o trabalho e os dois
filhos pra criar, e eu cheguei também já, pra completar os três [nós somos 6 filhos],
aí já não teve mais como dar conta e conseguir trabalho, aí voltou pro Ceará de
novo.
Lia: E lá no Ceará ainda tinha família?
Raimundo: tinha meu avô ainda estava lá ainda... meu avô vivia de roça e de gado.

211
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
212
ISÍDIO Pereira Farias. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 27.01.2016, na cidade de
Teresina-PI.
213
A presença de Raimundo Vieira durante nossa entrevista foi algo imprevisto, mas se revelou necessário, pois
além de fazer apenas dois anos que a mãe mora com ele, também auxiliou no processo de rememoração antes da
nossa chegada. Dessa forma foi fundamental para a construção desta entrevista seu papel de mediador-narrador,
que ocupa um lugar central de aproximar entrevistador e entrevistado, reduzindo diferenças e traçando pontes de
compreensão.
108

Nem todos alcançam a prosperidade almejada quando chegam à capital. Em


virtude do aumento da prole, e na iminência de acentuar a condição de pobreza, a família
volta para o Ceará com vistas a reestruturar seus projetos de vida, até migrarem novamente
em 1964, para o interior do município de Altos, numa localidade chamada Lagoa dos Martins,
onde permaneceram vivendo de roça. O pai de Dona Antônia, em virtude da venda de suas
terras em Crateús, comprou terras no município piauiense e por lá continuou vivendo e
construindo bases para a parentela. Dona Antônia relembra a reação de seu pai sobre morar na
capital:

Ele nunca gostou. Ele num se acostumou não, chegou não achou bom. Ficou
reclamando que o filho tirou lá da terra dele, do terreninho dele e veio pra cá, ele não
gostou... Mas já estava aqui e num tinha jeito de voltar porque já tinha vendido o
terreno lá, já tinha comprado esse, aí tem que se acostumar mesmo. 214

Esta fala evidencia que os motivos para a família de Dona Antônia ter saído de
Crateús não foram seca ou desentendimentos, mas sim a união da família que estava se
distanciando em função da migração dos filhos. Mesmo a família não sendo uma unidade
produtiva coesa, mas a ideia de uma unidade familiar que produz para os seus permanece,
como atesta a própria fala d e dona Antônia: “quem sabe onde está a família quer ficar tudo
ali perto né, ninguém quer ficar plantando sozinho”.215
Dona Antônia gostava muito dos trabalhos de costura, ela se realizava neles.
Mesmo após a migração para Crateús e de volta para o Piauí, instalando-se em Altos, ela não
deixou de costurar, comprando uma máquina de costura e fazendo mais serviços. Fazendo
remendos, consertos e roupas, ela costurava também sua própria teia de vida, o que lhe
assegurou a sobrevivência e sociabilidades fecundas que fizeram ela e o marido ficar em
Altos por vários anos, até a separação conjugal, até o filho trazê-la de vez para Teresina, já
um pouco debilitada.
Dessa forma os narradores se acomodaram com suas famílias nos bairros
periféricos da cidade. Bairro Satélite, onde moram até hoje os irmãos Cosme e Damião, Dona
Ana Azevedo e Seu Francisco Manoel; e Bairro Piçarreira, lugar onde mora Seu Isídio. Que
estratégias e táticas estes narradores desenvolveram na experiência de viver na capital? Como
seus ofícios revelam as bricolagens do fazer e criar tão necessárias na condição de pobreza em
que se inseriram, a de pobres urbanos?

214
ANTÔNIA Portela de Sousa. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 14.02.2018 na cidade de
Teresina-PI.
215
ANTÔNIA, 2018.
109

4.2 Viver na cidade: “profissão de operário” e outras sociabilidades

A instalação destes narradores migrantes no perímetro da cidade foi condicionada


pelo delineamento do setor urbano onde residia as classes média e alta teresinenses. A
ocupação de casebres antecede à instituição do bairro, mas as práticas sociais que o
constituíram já se faziam experiência de organização. Dessa forma, produtos de uma
geografia excludente da cidade, eles se formaram e guardaram no nome a gênese do que
representavam. Piçarreira é um bairro cujo nome tem origem na exploração mineral, no caso
fabricação de piçarra. Satélite passou a ser assim chamado após sua criação por Jofre do Rego
Castelo Branco, prefeito de Teresina, em 1966, em uma referência às cidades satélites de
Brasília. Os dois bairros caracterizam-se pela significativa quantidade de morros bem
elevados, o que não impossibilitou a ocupação humana. A história destes bairros aqui é
contada pela experiência de vida de cada narrador, para que possamos entender por meio de
suas percepções o viver e o vivido na condição de pobres urbanos. Não podemos entendê-la
como um todo, posto que o vínculo entre o trabalhador e a cidade induz a certa alienação onde
ele conhece pouco o espaço produzido a partir do seu trabalho. Partilhamos do que é proposto
por Martins:

Por isso, é necessário pressupor que a história do subúrbio é diversa da História no


subúrbio. A reconstituição daquela se dá por meio dos fragmentos desta, pois no
subúrbio a História é fragmentária, incompleta e se manifesta ocasionalmente 216.

Estes fragmentos de narrativa nos ajudaram a entender o espaço que os narradores


escolheram para (re)constituir suas vidas. Assim também ao debruçar-se sobre o cotidiano, o
historiador pode entrever práticas de sobrevivência que resguardam algo da economia moral
que caracterizou o trabalho no campo e é trazida para a cidade, enraizando-se em espaços para
os quais confluem outros trabalhadores da mesma cultura, adaptando-se conforme as
necessidades deste complexo viver na cidade.
E como se caracterizou este “viver na cidade” naqueles anos 70 para as classes
baixas de Teresina? De que viviam e como viviam essas pessoas? Seguindo a tradição
familiar já bem conhecida entre os seus, Seu Cosme veio “na frente” para a capital, se
instalando com a família no Bairro Satélite. Os terrenos pertenciam à Universidade Federal do
Piauí, à Prefeitura ou a particulares conforme evidenciou Seu Damião: “O doutor Geovani
Prado doou pro Pedro Mendes Ribeiro, que era candidato a vereador que doou esse terreno

216
MARTINS,José de Souza. Op.Cit, p.11.
110

todinho, abriu mão pro povo marcar”. As negociações para demarcar os lotes
correspondentes às casas já funcionavam como instrumentos de conchavos políticos. Seu
Damião também conta sobre a relutância de seu irmão em manter as casas perto uma da outra,
uma vez que era expressiva a chegada de famílias buscando terrenos e agilizando medições,
“aí disse irmão dele não ia ficar por cima da terra não, ou ele ficava em terreno encostado a
ele ou então umas 6 a 8 casas era pra ele, aí eu vim ficar aqui, que pra trás tudo já tinha
dono”217. A mudança do campo para a cidade não desfaz a necessidade e a urgência em
manter a família reunida, pois na condição de pobreza na qual se (re)configuravam as
sociabilidades familiares que fortaleciam os laços de solidariedade vicinal, tão caros para a
sobrevivência suburbana.
Vieram “gentes” de outros municípios do EntreRios. Damião fala sobre seus
vizinhos que “tudo era gente conhecido, do município de Campo Maior, José de Freitas, de
todo lugar aqui tem gente de Altos (...) até de Porto Marruás tem gente aqui, de todo lugar
veio gente, da União veio demais, gente pobre de lá, o povo veio tudinho pra cá”218. As
experiências de nossos narradores se assemelhavam de alguma forma com a vida dessas
famílias pobres que se deslocaram para a capital em busca do bem viver, embora
condicionados pela situação de pobreza. As instalações eram precárias, casebres com paredes
de pau a pique cobertas de palha. A paisagem no geral “era só mato, ribanceira, barroca, era
uma vareda, não tinha rua, não tinha nada”. O “nada” ao qual Damião se refere pode ser
traduzido pela oferta rarefeita de serviços básicos para a população destes bairros. Sistemas
como transporte, abastecimento de água, hospitais, entre outros, eram precários, agravando-se
mais em se tratando do saneamento básico, onde 55,7% da população não possuía nenhum
equipamento sanitário219.
Se as situações nas periferias eram demasiado ruins, a classe baixa que aí morava
ainda tinha parca representatividade no cenário social. Segundo Antônio José Medeiros

Até 1979, existiam em Teresina, apenas 11 Associações de Moradores, 7 as quais


ligadas ao trabalho assistencial-eleitoral de um vereador da ARENA, 3 em conjuntos
habitacionais, orientados por assistentes sociais da COHAB – Companhia de
Habitação do Piauí e apenas uma numa favela, orientada pela Igreja220.

217
DAMIÃO, 2017.
218
DAMIÃO, 2017.
219
MONTE. Regianny. Op. Cit., p.68.
220
MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais. In: SANTANA, Raimundo.N.Monteiro(org).Piauí:
Formação-Desenvolvimento-Perspectivas. Teresina: Halley,1995, p.177.
111

A pouca mobilização no intuito de reivindicar melhorias para os bairros não


decorre somente da inaptidão para escolher lideranças, mas também porque as experiências
desses sujeitos campesinos neste espaço urbano é que geraram gradativamente expectativas e,
por conseguinte, necessidades de legitimar suas condições e anseios enquanto classe. Dessa
forma, elementos como a carteira de trabalho entram como instrumentos-chave para legitimar
suas situações de trabalhadores urbanos, o que trouxe orgulho para uns, desgosto para outros.
Verificamos que para alguns narradores trabalhar em ofícios urbanos não foram as primeiras
opções, mas que ao chegarem na capital encontraram condições propícias para continuarem os
trabalhos em roçados, em função de fatores diferenciados.
Assim nos contou Damião sobre seu trabalho com o fazendeiro Elesbão, onde
trabalhou na limpeza do terreno, cultivo e criação de animais:

O Elesbão esse homem que morreu meu ex-patrão, ele era muito bom pra mim.
Trabalhei com ele 90 dias e fiquei trabalhando como empregado aí ele me botou lá
pra gerenciar o terreno, gerenciar os trabalhadores tudo, aí ficou bom pra mim.
Nunca quando eu tive mais ele não soube o que foi precisão não221.

Seu Damião estabeleceu estreitos laços com este patrão que a despeito de livrá-lo
do pagamento de renda, encarregou-o de diversos serviços sem pagamento capital. Esta
situação poderia soar favorável nas localidades de onde esses narradores migraram, mas a
conjuntura nas cidades era diferente. Ainda que conseguisse produzir e levar consigo os frutos
do roçado (abóboras, melancias, jerimum), as relações de troca e venda de produtos nas
cidades poderiam estar prejudicadas por distância ou indefinição de redes de solidariedades.
No fio condutor da relação de trabalho expropriativa, o agricultor traz consigo os elementos
da economia moral que o permitem reconstruir redes de relações patrão-empregado de matriz
rural.
De forma semelhante sucedeu com Seu Manoel. Ao chegar em Teresina, paralelo
ao ofício de pedreiro, ele botou roçado no Povoado Ave Verde, situado na estrada rural que
vai para União. O pagamento de renda neste caso era uma carga de milho por ano. A venda
dos legumes e verduras para ele não era o mais importante:

Lia: Mas o senhor chegava a vender? Trazia tudo pra casa?


Manoel: Vendia não, vendia não. Macaxeira, batata, quiabo, essas coisas que
plantava na roça era pra despesa de casa. Chegava aqui um jacá dois a mulher dava
pras vizinhanças, dava pra todo mundo. Eu não vendia não, era difícil eu vender um,
raiz de macaxeira.

221
DAMIÃO, 2017.
112

A necessidade de garantir o abastecimento familiar na cidade se fazia mais


urgente. Os gastos se multiplicaram, mesmo para um trabalhador pobre, havia outras
preocupações para além da principal, a alimentação. Vestuário, calçados, gastos com
condução. O fantasma da fome rondava as famílias, e Manoel preocupou-se em destinar os
produtos apenas para casa. Em casa, a mulher era responsável por re(constituir) as redes de
solidariedade com a vizinhança, através de uma prática muito conhecida até hoje: a troca de
alimentos. Por meio de troca de produtos não só de roçados, mas também processados (leite,
café, açúcar, fósforos, cigarros) as pessoas iam criando um laço de interdependência tão
fundamental para compor um bairro. Esta rede vicinal é o que edifica a necessidade de
organização e mobilização em associações de moradores par então reivindicar melhorias para
o bairro.
Eram as mulheres também que se sacrificavam para garantir a alimentação de
filhos e maridos; quando o número de gastos superava a receita, o que primeiro reduzia-se era
a alimentação222. A economia doméstica ministrada pelas mulheres era o verdadeiro fiel da
balança entre pobreza e miséria. Donas de casa como Dona Ana e Dona Antônia
racionalizavam a comida para que perdurasse até a vez que o dinheiro aparecesse para a
compra de mais mantimentos. Elas entravam também no orçamento da casa através de
serviços domésticos como costureiras, lavadeiras, babás. Sobre isso, Dona Antônia nos
contou:

[...] Quando eu costurava, fazia crochê, fazia tapete, misturava tudo, aí eu num ei
quantos tempos eu passei costurando, gostava de fazer crochê, pra viver a vida quem
quer criar família faz é assim né, tem que trabalhar para ajudar. Num é só esperando
pelo homem pra ponto não, tem que ajudar223.

Foram também essas mulheres quem estenderam redes de solidariedades não


apenas por permuta de produtos, mas pelas visitas a vizinhos, rodas de orações, rezas a santos
católicos. Benzedeiras eram muito procuradas para cura de males indecifráveis e
desconhecidos, todo o sortilégio de “quebrantos”, além de visíveis; eram as médicas, a
curandeiras e a conselheiras. Em bairros periféricos eram muito necessárias.
Mas nem tudo poderia ser resolvido pela capacidade das mães e esposas
regularem a alimentação. A subnutrição era um risco, pois viver na cidade era estar
constantemente exposto a uma série de doenças que se agravam mais quando o indivíduo vive
em ambiente precário. Outras condições já deixavam o corpo frágil. O fumo, principalmente

222
HAHNER, June. Op. Cit. p12.
223
ANTÔNIA, 2017.
113

entre os homens e indiciado muito cedo, acarretava sérias doenças no trato respiratório e
cardiovascular. Mais tarde, o vício cobraria o pesado soldo com sintomas agravantes,
conforme nos contou Seu Manoel:

Eu fumava demais. Aí ele atacou meus pulmões, aí eu caí lá no serviço, depois


tornei a cair de novo, depois a cair em casa mesmo lá dentro do cercado trabalhando,
aí me puxaram pra casa digo “é tu que vai querer me matar? Se eu num morrer dessa
vez tu num vai me ver te levar mais pra boca nunquinha”. Aí larguei tá com 26 anos
que larguei de fumar, eu fico doidinho quando fumaça bate na minha venta 224.

Mas não somente em virtude de carestias e doenças as redes de solidariedade iam


se fundamentando. A confluência de migrantes de municípios próximos, no território
EntreRios qualificou as relações, e a economia moral se restabeleceu adaptando-se às
conjecturas do espaço urbano, com práticas e costumes fomentando em possibilidades que
iam surgindo.
A continuidade de cultivos no perímetro urbano revelou uma realidade que se
estendia para todo o Estado. Até 1950 a população do Piauí alcançava 1.045.696 habitantes,
83,7% vivendo na zona rural225. A partir da segunda metade de 1970, alavancados pelo
“milagre econômico brasileiro”, a integração nacional nutriu o sonho de um país moderno e
industrializado; a população urbana superou a rural226. No entanto, percebeu-se que o
“milagre” operou mais para uns do que para outros, e as pessoas que eram pobres
continuaram tão pobres quanto antes.
Os custos de viver na cidade não condiziam com as remunerações. A tabela
abaixo evidencia gastos com a ração alimentar mínima em Teresina, baseado em dados do
Departamento de Estatística da Fundação CEPRO, para o período de dezembro de 1978.

224
MANOEL, 2018.
225
Ver MARTINS, Agenor de Sousa et al. Piauí: evolução, realidade e desenvolvimento. 2 ed. Teresina:
Fundação CEPRO, 2002.
226
MONTE,Regianny. Op.Cit, p.116.
114

Tabela 01: Custo da ração essencial mínima em Teresina Dez/ 1978


PRODUTOS QUANT. PREÇO QUANTIDADE X PREÇO MÉDIO
MÉDIO (Cr$)
Carne 6,00 kg 60,00 360,00
Leite 7,50l 6,00 45,00
Feijão 4,50 kg 16,50 74,25
Arroz 3,00 kg 9,00 27,00
Farinha de Mandioca 1,50 kg 3,50 5,25
Batata 6,00 kg 8,00 48,00
Tomate 9,00 kg 12,00 108,00
Pão 6,00 kg 1,50 9,00
Café (pó) 6,00 kg 70,00 420,00
Banana 7,50 kg 12,00 90,00
Açúcar 3,00 kg 9,00 27,00
Óleo 1,00l 21,00 21,00
Manteiga 0,75 kg 62,00 46,50
TOTAL 1.281,00
FONTE: Departamento de Estatística da Fundação CEPRO(2002).227

Este total é apenas uma visão panorâmica do que constava na ração alimentar
mínima de uma pessoa adulta, considerando-se variantes como hábitos alimentares. Para
famílias numerosas como a dos nossos narradores, um salário mínimo na época com o valor
de Cr$1.111,20 não cobria os gastos com alimentação, fora os outros gastos para habitação,
vestuário, higiene, entre outros. Assim, o valor referente à alimentação “supera o orçamento
de 80% das famílias que ganhavam até cinco salários mínimos, demonstrando, pois, a
condição extremamente precária em que vive parte substancial da população residente na
zona urbana de Teresina”228.
O cultivo em roçados no perímetro urbano não foi a atividade principal exercida
por estes trabalhadores, mas complementava a renda obtida por meio de outros ofícios. Os
ofícios que mais empregavam a PEA (População Economicamente Ativa) do setor secundário
eram os de pedreiro e mestre de obras. Sobre isso:

A PEA do setor secundário, embora tenha apenas recuperado sua posição relativa,
em 1970, depois de sofrer até redução em termos absolutos de 1940 para 50, passou
por violenta redistribuição interna. A primeira grande mudança se deu na “explosão”
da construção civil. De 1% da PEA total, em 1940, passou a 4,3% em 1970. Se se
toma apenas a PEA do setor secundário, os trabalhadores da construção, no mesmo
período, aumentaram de 14,6% para 55,6%229.

227
MARTINS.Agenor de Sousa. Op. Cit, p.268.
228
Idem, p.269.
229
Ibidem, p.180.
115

Os números expressivos do subsetor de construção civil se deram pelo incremento


de obras de infraestrutura, como ampliação da malha viária, construção de prédios, edifícios e
conjuntos habitacionais. Os pais de família empregavam-se e iniciavam seus filhos no
trabalho de construção. Mas os salários não eram satisfatórios. Seu Cosme e Seu Manoel
trabalharam na construção civil. Sobre isso, Seu Manoel comenta:

Manoel: Aqui quando eu cheguei o negócio estava fraco, comecei arrancando pedra.
Lia: Aonde?
Manoel: Aqui, nessas serras aqui.
Lia: Qual era empresa?
Manoel: Empresa? Não tinha empresa não, nós trabalhava por conta própria.
Lia: Quebrando Pedra?
Manoel: Arrancando Pedra e quebrando. pra calçamento, pra baldrame.

A expansão do perímetro urbano elevava o número de calçamentos de pedra, e,


por conseguinte o ofício se multiplicava. Havia hierarquias e um dos postos mais desejados
era o de mestre de obras, encarregado de supervisionar todos os passos da edificação. Este era
o ofício de Seu Cosme que trabalhou nele durante 20 anos. Percebemos a diferenciação de
status entre os artífices e demais empregados, para estes serviços empregavam-se o termo
“operário”, “profissão”, devido às experiências acumuladas. Trabalhar na construção civil,
apesar do boom registrado nos anos 70, ainda estava instável, pois o laissez-faire ocorria em
virtude de outros fatores, como tempo ruim e falta de materiais diminuíam o número de dias
e trabalho.
Dessa forma essas profissões iam se complementando com outras atividades, seja
empreitando obras como autônomo, comércio ambulante ou plantações em zonas afastadas.
Nestas narrativas entrevemos as dimensões da pobreza nas experiências de trabalho, que, ao
invés de limitar os movimentos e ações dos trabalhadores, possibilitou espaço para as
inventividades destes sujeitos. A necessidade de ter uma carteira de trabalho assinada era
anseio distante para estes trabalhadores de construção civil. Para redirecionar estas
expectativas, outras “maneiras de fazer” no espaço urbano surgiam, pois diante da concretude
de um emprego com carteira, postava-se a astúcia dos ofícios irregulares, “os bicos”, com os
quais os sujeitos deambulavam ampliando suas redes de solidariedade. Para entender melhor o
uso de táticas, partilhamos do que é proposto por Michel de Certeau:

Chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio.


Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática
não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é
imposto tal como o organiza alei de uma força estranha. Não tem meios pra se
manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de
116

convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”,


como dizia Bullov, e no espaço por ele controlado230.

No espaço que foi imposto aos sujeitos – a urbe – fomentavam-se outras


possiblidades de ganhar dinheiro e sustentar a família que não relacionadas a empresas e
firmas. Ao sair do interior do município de José de Freitas, Seu Isídio já havia aprendido a
profissão de carpinteiro. Ao chegar em Teresina, tentou sem sucesso viver do ofício de
carpintaria231, mas desgostou-se porque “a profissão que eu tinha não deu certo, trabalhei,
trabalhei, deixei tudo perdido o que era meu, nunca assinaram carteira, nunca assinaram
nada... eu trabalhei só avulso e descontaram o que era meu... até que me desgostei de firma e
não trabalhei mais”232. De acordo com ele, a firma detinha a carteira do trabalhador durante
três meses e depois dispensava. Tais tensões o levaram a outros caminhos. Foi quando ele
descobriu que poderia ganhar dinheiro como vassoureiro. Como mercador ambulante, Seu
Isídio fortaleceu a teia vicinal e viajou para o Maranhão vendendo vassouras:

Lia: só o senhor aqui no bairro que vendia vassouras?


Isídio: na casa do Edmar lá é o Chiquinho, por que os filhos dele não vendem. Mas
tem outro na casa do Pedro tem outro que mora na PiçarreiraII, mas tudinho foram
embora, o Zé da Vassoura, a mulher dele, uma cunhada dele, só os conhecidos
daqui, do finado Sebastião...
Lia: e o senhor pegava essa matéria de vassoura aonde pra fazer?
Isídio: Eu? Comprava nas quitandas, e na mão de outros vassoureiros que traziam de
Campo Maior. Também trabalhei muito no Maranhão.
Lia: Ia e Voltava?
Isídio: Ia e voltava. No Maranhão passava uns 15 dias. Eu nunca passei mais de 20
dias no Maranhão. Era de 20 pra baixo. Num chegava nem os 20 eu estava em casa.

A fala de Seu Isídio aponta alguns pontos interessantes sobre a própria


disseminação da ocupação de vassoureiro. As vassouras vendidas por ele e seus companheiros
não eram para limpeza de pisos e assoalhos, mas para limpeza de telhados. Eram feitas de
hastes longas de bambu e fiapos muito finos de palha de carnaúba. As boas vendas realizadas
em São Luís que motivou as viagens de Seu Isídio estão relacionadas aos anseios dos
compradores, pois somente por meio dessas vassouras longas era possível a limpeza de
telhados comuns ou de prédios altos, como igrejas. Se em Teresina nos bairros de periferia as
casas ainda eram de taipa, em bairros nobres ou em outras capitais poder-se-iam encontrar

230
CERTEAU,Michel de et al. A invenção do cotidiano.1: artes de fazer.3ªed. Petrópolis: Vozes, 1998, p.100.
231
O ofício de carpintaria funcionava como um subsetor da construção civil, uma vez que envolvia a fabricação
de ripas, telhados, andaimes, entre ouras estruturas, para além da fabricação de mobílias.
232
ISÍDIO, 2018.
117

clientes em potencial233. São Luís também propiciou para Seu Isídio o ganho além da
subsistência:

a vantagem de lá é porque com o dinheiro das vassouras aqui os vassoureiros usam


mesmo só pra comer. Ninguém pode ajuntar um trocado por que na hora que chega
já tá com mão estirada para comprar as coisas aí num junta...e lá não... todo
trocadinho que sobrava da despesa do dia a gente intocava num lugar 234.

A capacidade de economizar dinheiro suficiente para render em casa exigia


habilidade. Retirando o valor das despesas de ter que se manter em outra capital, ao chegar
em casa ele “pagava o que estava devendo. Comprava fiado pra deixar em casa pra família
comer e ia embora pra lá”235. O dinheiro adquirido com a venda das vassouras vestia e
calçava os filhos, sinal que o trabalho era incerto, pois condicionava inclusive débitos.
Refletindo sobre os usos da tática, entendemos que a venda de vassouras não permitia grandes
acumulações, mas fortalecia laços de dependência ao sabor dos processos de escolha, pois não
se pode dever para qualquer um, e só se empresta dinheiro para alguém que em tese, pretende
ou pode pagar. Tais práticas eram essenciais para a sobrevivência na cidade. Certeau aponta
que: “Ela [a tática] opera golpe a golpe, lance a lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas
depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que
ela ganha não se conserva”236.
O aproveitamento de ocasiões se revelava diante de códigos e restrições criados
para serem seguidos no ambiente da cidade. Um exemplo disso é criação do frigorífico
FRIPISA237, instalado em 28 de novembro de 1967 em Campo Maior e com sede comercial
em Teresina. Objetivava-se com a instalação deste estabelecimento deter matadouros
improvisados, que forneciam carnes “de moita” para os consumidores, em suma, uma política
de controle do abastecimento que sanasse o comércio ilegal desse produto, o mais caro na
dieta básica dos teresinenses. Pela importância deste alimento, o jornal “O Dia” fez a seguinte
recomendação:

Anafrodisíaco238,transforma na aparência, carnes quase deterioradas em frescas. E


embora a fiscalização seja rigorosa, principalmente nas cidades grandes, ainda existe

234
ISÍDIO, 2018.
235
ISÍDIO, 2018.
236
CERTEAU, Op.Cit. p.100, grifo nosso.
237
Frigorífico do Piauí S.A
238
Substância anafrodisíaca.
118

o abuso. Por isso é melhor adquirir a carne em um açougue que se conheça e se


possa confiar na honestidade do comerciante. 239

A notícia faz claramente recomendações para lugares confiáveis em detrimento do


alto consumo de carnes de origens desconhecidas que persistia mesmo com a criação do
FRIPISA. Como bem mencionado, uma fiscalização rigorosa era própria das cidades grandes,
não uma capital como Teresina, ainda modesta. Mas a preferência pela carne “de moita” era
tão grande que começou a causar prejuízos nos abatedouros em Campo Maior:

Enquanto sobram reses nos currais do FRIPISA, em Campo Maior, e o diretor desse
órgão já procura outros centros consumidores para a venda de carne bovina, o abate
de suínos também sofreu queda com o período da Quaresma e a prática de
magarefes que exploram a chamada "Carne de Moita" com o consequente aumento
da concorrência entre os profissionais clandestinos e os legalmente estabelecidos 240.

A queda no consumo da carne não ocorre apenas por conta do período da


Quaresma. O jornal evidencia que o FRIPISA tem um concorrente poderoso, “o magarefe”.
Seu Damião fazia parte deste grupo de pessoas que encontraram uma maneira astuciosa de
incrementar as rendas. Por que o consumo de carnes abatidas de forma irregular era
expressivo? O próprio órgão público evidencia: “os diretores do FRIPISA reconheceram que
estão lutando com um concorrente poderoso, que embora não disponha de capital pode
vender o quilo de carne por preço inferior ao cobrado no entreposto de Teresina”241.
Durante 4 anos Seu Damião complementou sua renda vendendo carne em casa
mesmo, burlando a fiscalização do governo através das redes de solidariedade que não se
desfizeram e garantiam o produto, mesmo com as migrações. Sobre isso ele contou:

[vinha] do interior de Miguel Alves, meus conhecidos tudo lá. E aí souberam que eu
estava cortando carne quando vieram era de 2,3 pra cá dia de domingo, vendendo
bode, porco, gado. Não rapaz não quero...aí o Elesbão me deu uma chance, marcou
40 gados, condenou 40 gados de açougue, que ele tinha grande fazenda, aí apurei
tudinho pra ele, aí pronto fiquei conhecido242.

A fala de Damião revela que junto às plantações de roça manteve também o


comércio de carne na cidade consorciado não só pelo seu patrão, mas também por amigos ou
parentes que lhes fornecia carne de diferentes animais. Apesar da venda ser apenas nos fins de

239
“Conheça a carne que você come”. In: Jornal “O Dia”, Teresina, p.03,06 de março de 1972. Local de Guarda:
Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
240
“Carne ‘da moita’ no Piauí prejudica abate no Fripisa”, In: Teresina, Jornal “O Dia”, p.02, 14 de março de
1972. Local de Guarda: Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
241
“Carne ‘da moita’ no Piauí prejudica abate no Fripisa”, In: Teresina, Jornal “O Dia”, p.02, 14 de março de
1872. Local de Guarda: Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
242
DAMIÃO Feitosa da Silva. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 28.12.2017 na cidade de
Teresina-PI.
119

semana, ele se tornou conhecido. O Jornal “O Dia” revelou que de fato os municípios
fornecedores da carne dita “de moita” correspondiam ao EntreRios: “está sendo registrado o
abate de pelo menos 60 animais nos municípios de Campo Maior, Altos, União, José de
Freitas, Água Branca, e Elesbão Veloso”243. A venda de carne disponibilizada mais perto de
potenciais compradores, não só nas periferias, mas também nos demais centros se tornou um
dado preocupante para o governo. Seu Damião nos contou que aos domingos botava “banda
de boi”, e as pessoas iam até ele com frequência “aquelas pessoas eram encegueiradas (sic)
mesmo, comigo”. A venda era sobre medida e quando sobrava tudo era posto no sal, pois não
havia geladeira. No caso da carne de porco em dias de feriados santos, evidenciava-se cada
vez mais o comércio clandestino, fato que geraria uma reação por parte do governo, noticiada
em 17 de março de 1972, pelo jornal “O Dia”:

Diminuiu muito o consumo de carne de porco, em Teresina, com a chegada da


Quaresma. Em consequência os magarefes que ainda se dedicam ao ofício de
talhadores de suínos estão tendo uma série de prejuízos decorrentes do baixo
consumo e da falta de condições de concorrência com os que estão ainda
abastecendo clandestinamente. para preservar o mercado consumidor e anular a ação
dos magarefes da "carne de moita" o Ministério da Agricultura instituiu o Governo
do Estado a entregar. A Divisão de Inspeção de Produtos de Origem Animal o
controle rigoroso nos abatedouros de gado nos municípios para reprimir o comércio
clandestino de carnes.

Após as medidas restritivas do governo mais uma forte campanha sobre a


qualidade das carnes vendidas fora de inspeção, as vendas reduziram, e para Seu Damião, os
dias de vender carnes aos fins de semana ficaram para trás: ele se empregou na COREMAS,
uma empresa terceirizada que prestou serviços para a AGESPISA244. O trabalho com carteira
assinada não eliminava sobremaneira os “bicos”, os serviços de fim de semana, ou seja, os
trabalhos possíveis; mas articulava mudanças de comportamento por parte do trabalhador
pobre e de origem campesina; dava um ofício fixo (ao contrário do trabalho nas fazendas que
se desfiava em inúmeras atividades para além do cultivo nos roçados) onde ele sabia o que
fazer e como fazer; o tempo fabril lhe permitia regularizar o seu tempo em várias dimensões
da sua existência, na convivência com a família e nas sociabilidades com os seus.
O trabalho com registro possibilitava o acúmulo – junto ao trabalho dos filhos e
da mulher – fundamental para a economia doméstica. E assim nasce o sonho de ter um
negócio próprio. Sobre isso, Seu Damião nos contou como montou sua quitandinha: “Ali foi
com dinheiro da COREMAS, que eu trabalhei 4 anos e 10 meses de COREMAS, ali tirei os
243
“CARNE ‘DA MOITA’ NO PIAUÍ PREJUDICA ABATE NO FRIPISA”, In: Teresina, Jornal “O Dia”,
p.02,14 de março de 1872. FONTE: Arquivo Público “Casa Anísio Brito”.
244
Águas e Esgotos do Piauí S/A.
120

direitos e vendi duas roças de mandioca pra ele Elesbão, uma mandioca nova e uma
farinheira”245. O que se vendia eram produtos não perecíveis ou de durabilidade prolongada,
lembrando um pouco a lista elaborada pelo Departamento de Estatística da Fundação CEPRO.
Mas as necessidades das pessoas mais pobres iam além da ração mínima. Vendiam-se ovos,
cigarros, fósforos, velas, rapadura, farinha “de puba”246, farinha branca, massa de milho,
doses de cachaça, bombom e petisco para crianças. Estas últimas além de serem as melhores
clientes eram as “leva-e-traz” de mercadorias e de recados.
Percebemos que a rede de relações construídas desde a sua chegada à capital foi
fundamental para que ele alcançasse patamar de autonomia, uma vez que três elementos o
edificaram: os direitos provenientes da primeira empresa que trabalhou, a venda de produtos
do trabalho na roça para o fazendeiro, gerando portanto capital necessário para as primeiras
compras, e um último fator muito importante a clientela já mobilizada na rua e no bairro, em
virtude das experiências anteriores. Vemos aqui não apenas a trajetória “empreendedora” de
Seu Damião, mas enxergamos como esses sujeitos foram construindo, dentro de suas
condições de subalternidade, oportunidades de autonomia, dando traços para esta dimensão de
pobreza. E como estas lembranças se definem a partir do hoje? O que toma lugar em suas
vidas como espaço de saudade de práticas e vivências campesinas?

4.3 Cartografias de Saudade: “Tem dia que eu choro quando eu vejo chover”

A vida no campo é marcante não apenas pelo sofrimento, mas pelos momentos
felizes relacionados à fartura, à relativa autonomia proporcionada pelo trabalho, pelas relações
vicinais. No turbilhão de vivências, ressentimentos, expectativas, a memória vai selecionando
aquilo que se depositou e se configurou como uma imagem de carinho e afeto com
determinada espacialidade. A convivência nas cidades vai moldando aos poucos o pobre
urbano que foi sujeito campesino, e este também vai-se adaptando ao conjunto de costumes
compartilhados coletivamente ao cotidiano urbano. Mas o olhar para trás liga essa relação de
identidade com alguma comunidade rural, contado a partir de um presente onde o trabalho em
roças já não é mais possível.
O presente é ponta de vida para muitos; as doenças comuns de pessoas com essa
faixa etária, já os impossibilitam de realizar trabalhos braçais. Para alguns a despedida da vida

245
DAMIÃO, 2017.
246
Farinha originada de um processo da mandioca puba, ou seja, é posta de molho na água até amolecer, depois
retirada, moída, peneirada e torrada em processo semelhante à farinha branca. Era consumida como
acompanhamento para peixe assado, rapadura, em como alimento para lavradores nos roçados.
121

nos roçados é bem recente. É o caso de Seu Manoel, que no momento da entrevista realizada
em 2017, faziam apenas 4 anos que ele tinha deixado de trabalhar de roça. Os motivos não
somavam grande peso para ele:

Falta de terreno pra trabalhar e um problemazinho no coração, elas ficaram com


medo um problemazinho desse tamaninho, que não faz medo a ninguém, que eu
vejo por aí deles pior de que eu. Eu não sinto nada, graças a Deus, aí elas não
querem que eu nem levante, nada, nada...

Observemos o esforço de Seu Manoel em tornar o problema no coração algo


dispensável. Mas o seu sentimento quando perguntamos se sente saudades, ele disse “sinto
saudade demais. Tem dia que eu choro quando eu vejo chover me lembro demais”; o
sofrimento dele pelo simples fato da natureza, não é apenas na condição física, na constante
vigilância das filhas e o fato de ser viúvo. É pelo fato de não poder vivenciar as mesmas
sociabilidades, os mesmos costumes, as festas, as farinhadas, em um tempo e lugar onde não
há mais espaços para essas manifestações. O lugar onde Seu Manoel ainda pode sentir e viver
um pouco destas lembranças é Altos; o mesmo lugar que ele apontou como “fraco”, e onde foi
acolhido primeiramente da viagem fatigada:

Nós viemos primeiro pra Altos que é a linha que vem direto né? A BR vem direto é
a que vem do Ceará vem pra cá...hoje não tem as PI prum lado, PI pro outro, de um
lado para outro...aí nesse tempo a BR era essa aí mesmo, aí na Fortaleza... aí a gente
veio se arranjemos em Altos...e a terra natal que agente chama é Altos, quando dá
saudade corre pra lá, tem irmão lá , tem tio , tem primo, tem tudo ali em Altos247.

Em Altos Seu Manoel revive um pouco daquelas sociabilidades próprias do


campo. A migração para Teresina não se traduz no sentido de arrependimento nestas
memórias de saudade, mas se configuram no sentido de conseguir reviver os valores e
costumes presentes naquele local. Com frequência, ele refere que as filhas não lhe deixam
fazer “nada” porque já fazem “tudo”.
Para Seu Damião o espaço de saudade é a cidade de União, onde os filhos
ingressaram na escola e ele descobriu outras formas de obtenção de vida além do cultivo nos
roçados. Trabalhar como vendedor ambulante naquelas redondezas lhe proporcionou
experiências e contatos necessários para montar sua quitanda na capital. Mas Seu Damião não
visita mais com frequência a cidade de União; para rememorar as lembranças do trabalho nos
roçados, ele planta no quintal árvores frutíferas, abóbora, feijão, e fica ansioso pela espera da
colheita. Mesmo ele não visitando a cidade, todos os anos é visitado por parte da família que
já reside, demonstrando que a ausência do contato físico não fratura a solidariedade. Assim
247
MANOEL, 2018.
122

também procede com Seu irmão Cosme, que mantém uma horta em terreno comunitário
cedido pela Prefeitura. O cultivo de hortaliças alimenta toda a família, e Seu Cosme se
reconecta a cada colheita com as práticas do campo.
Apesar de Dona Ana não ter nascido no Ceará seu lugar de saudade é justificado
pela função de “repositório de memórias” delegada a ela pela família, função que assume com
prazer. Ela acolheu para si uma missão da mãe “que morreu falando que o Ceará era terra
boa”248, conhecer as tias:

Eu o que eu mais tinha vontade era de localizar as parenta de lá do Ceará, por que
ela deixou 8 lá. Oito, elas eram oito irmãs, ela veio ficou 7, nunca vi um parente do
lado da minha mãe de lá do Ceará por que as que ficaram tão mortos a muitos anos,
os que ficaram tão broto num sabe mais de nada.

A vontade de realizar o desejo da mãe vem do desejo do migrante de manter a


parentela coesa, mesmo sabendo que os descaminhos e as condições de vida podem espalhar
as pessoas pelo mundo. Mas a reconexão dessas trajetórias demonstra para Dona Ana o
quanto é importante a unidade da família.
O espaço de saudade para seu Isídio é José de Freitas, lugar para onde ele alega
que “se minha vista tivesse boa eu voltava! Se minha tivesse boa eu num estava aqui não!”,
referindo-se aos “interiores” no qual morou em José de Freitas. É claro para Seu Isídio que
após tantos processos migratórios ele não conseguiu atender suas expectativas ao vir para
Teresina. O presente para seu Isídio lhe faz enxergar o campo como o lugar da prosperidade,
face à vida na cidade, cheia de impostos, despesas, vicissitudes. Sobre isso, Marina Maluf
aponta que:

Se a narrativa autobiográfica responde a uma necessidade presente do autor de


conferir uma significação ao seu passado e se em toda memória pessoal estão
inscritas as marcas da existência coletiva, cada indivíduo imprime na reconstituição
dos eventos de tempos pretéritos um significado a partir de seu enquadramento
sociais. O modo como se dá a mediação entre presente e passado feita pela memória
depende da situação e condição do sujeito memorizador assim como de suas ideias e
percepções no momento da relembrança.249

Hoje, já aposentado enxergando com apenas um olho, a família ainda não se


encontra estabilizada e ele continua a luta incessante pela sobrevivência. Tomado pelo
discurso do progresso, que incute a ideia de que “na vida está associado a trabalhar muito”,
ele se culpa por esta luta constante.

248
ANA Gomes de Azevedo Lima. Entrevista concedida a Lia Monnielli Feitosa Costa em 25.01.2018 na cidade
de Teresina-PI.
249
MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano,1995 p.83.
123

E num tenho nada hoje eu digo logo pra você…eu vivo sofrendo…o culpado fui eu..
mais ninguém não, o culpado fui eu que não soube trabalhar...eu pensei que aquilo
não se acabava, o que eu arranjei eu pensei que não se acabava, e hoje em dia
quando foi pra eu me casar não tinha nem com que comprar a roupa do casamento,
por que eu não soube trabalhar e só deu pra minha cabeça, eu vivo sofrendo,
passando precisão, por que fui eu que não joguei a minha felicidade pra frente,
joguei pra trás, mas pra frente não…camarada que bem souber repara o dia do
amanha que é o dia que é.

Em Teresina, em José de Freitas, ou em qualquer outro lugar, a pobreza é


estrutural e se dimensiona de diferentes formas, perdurando por muito tempo a situação de
carência, “precisão”. O redimensionamento da pobreza na capital faz se criar esse espaço de
saudade não apenas em relação a um passado de sociabilidades que não volta mais, mas
também por que no presente são difíceis de se reproduzir essas “cotidianidades”: ainda que os
laços de solidariedade tenham se firmado e contribuído para o viver na capital, “a casa Santa”,
a proximidade da família já não é mais possível; muitos moram longe um dos outros, parentes
mais velhos morrem sem que as gerações novas saibam de suas trajetórias de sobrevivência
desde o Ceará. Pensando neste sentido entendemos que as cartografias de saudade criadas por
estes contadores de história conectam-se a um tempo que as experiências repassadas por meio
de exemplos, ensinamentos, castigos e causos adquiriam valores preciosos, pontos marcantes
dos seus relatos de vida.
124

5 Considerações Finais

Migrar para outro lugar não necessariamente altera a condição de pobreza destes
narradores, todavia, não elimina as possibilidades de sempre buscar uma melhoria de vida à
qual, associada a desejos de não morrer de fome, busca por água, terra, comida, submete estes
sujeitos às andanças por outros sertões.
A questão é entendida paulatinamente, ao se enxergar nos motivos, na travessia, e
na escolha do novo lugar que as dimensões de pobreza no Piauí se delineiam de outra forma
diferindo do Ceará; onde antes havia brigas no seio familiar, fragmentam-se e buscam-se
novos rumos; onde antes existia seca sem esperança de chuva, a nova moradia se desvela
como espaço úmido, entrecortado de poços e afluentes que alimentam o grande Rio Parnaíba;
os babaçuais altos oferecem outra obtenção de meio de vida, os contatos feitos previamente
pelo parente que chama estabelecem a conexão necessária com outras famílias,
consubstanciando a comunidade vicinal.
O discurso dos camponeses que, neste caso, trabalham num sistema de agregação,
não se difere dos outros quando destinado a um interlocutor para o qual quer falar de sua
eficiência; sejam eles mesmos, ou filhos, netos e tios, orquestram-se no sentido de dizer que
eram bons trabalhadores, não faziam arruaça, não enfrentavam direto o patrão, o que não
significa ausência de resistências e enfrentamentos.
É na oralidade que se revelam a complexidade das ações desses sujeitos. Tomam-
se de um lado a caricatura de “atrasados”, por parte de um Estado tecnoburocrata, por outro,
são desconsiderados quanto aos estudos no campo por não se arregimentarem em torno de
sindicatos, organizações, corporações, ligas, ficando aí na penumbra da história camponesa.
Esquecemos que o início das grandes revoltas, a explosão do discurso oculto que leva ao
embate direto, fortalecido pelo pensamento coletivo, parte destas resistências cotidianas,
perpassando toda vida do trabalhador.
As relações de trabalho previamente estabelecidas nos contratos verbais entre
fazendeiros e agregados cobram uma relação de sujeição mais severa, onde o trabalhador
sente dificuldades para garantir o sustento da família e pagar pelo uso da terra, ao qual
permanece cativo pela renda. Nestes momentos de ruptura, ou de uma nova migração
evidencia-se que aquelas famílias vivenciavam uma economia moral, onde o somatório das
forças de trabalho nas roças, no cuidado doméstico, ou o trabalho extrativo nos babaçuais
125

proporcionava a sobrevivência da família, e a fragilidade de uma ou mais dessas forças levava


o camponês a deslocar-se novamente.
O novo destino destes trabalhadores migrantes poderia ser outro município no
EntreRios, demonstrando que o projeto migratório seguia seu curso de expectativas a serem
atendidas ainda em solo piauiense – ou poderiam retornar para a cidade de onde vieram no
Ceará, revelando que as dificuldades para sobreviver no Piauí foram maiores que as
expectativas geradas quando da vinda. Este é o caso de Dona Antônia que tentou junto ao
marido viver na capital, mas desistiram e decidiram voltar para o resto da família, migrando
novamente para o Piauí anos mais tarde.
Para aqueles que seguiram seu curso em outros municípios do EntreRios, vimos a
obtenção de meios de vida ganhando novos matizes para aquelas famílias; em outros lugares,
poderiam ser além de trabalhadores de roça, vaqueiros, como seu Manoel que trabalhou
durante cerca de 10 anos no interior de Altos nessa profissão; poderiam trabalhar como
vendedores ambulantes, caso de S. Damião, ou aventurar-se nos primeiros passos de uma
profissão que marcaria uma vida inteira e as gerações subsequentes, como Seu Cosme e sua
profissão de pedreiro/ mestre de obras que mais tarde encaminhou o rumo dos filhos.
Um elemento permanece como um chamariz vivo e costuram todas estas
trajetórias de vida: a família. É no intuito de manter a família coesa que o projeto de migração
é cuidadosamente pensado, não é realizado peremptoriamente. Assim, histórias como a de
Dona Ana, que traz o pai para perto em Teresina, e a de Cosme e Damião entrecruzam-se para
evidenciar que a família não apenas chama, mas legitima a expectativa da migração.
E assim chegamos aos seus destinos. Satélite e Piçarreira, bairros de periferia,
como tantos outros, em Teresina, forjado pelos deslocamentos de famílias pobres, forçadas a
sair do EntreRios, somando-se a este espaço vivências de migrantes que deslocam-se mais
uma vez em prol de uma melhoria de vida, talvez sua última jornada migratória, que não
descarta as experiências vividas nos outros cantos, tendo como ponto de partida o sertão
cearense, sempre na busca de momentos de “fartura”, onde a concretude da expectativa é
chamada de “riqueza” pelo homem do campo. Mas novas necessidades vão surgindo com o
tempo, e “o viver na cidade” mistura em seu discurso imagético não apenas a facilidade de
empregos, mas também uma melhoria de vida para os filhos, no que diz respeito à educação e
outras oportunidades.
Na cidade, o pobre do campo torna-se pobre urbano. A cidade cresce em sua
infraestrutura e paralelamente na pobreza, personificada nas centenas de famílias em bairros
126

periféricos onde vivem à custa de subempregos, em moradias insalubres, às vezes contando


como transporte apenas os pés.
Para a sobrevivência nesta nova realidade é vital (re)construir as teias de
solidariedade que fundamentam a economia moral dos pobres, e que proporcionam viver a
cada dia por meio de estratégias combinadas de pai, mãe, filhos, seja na permuta de alimentos,
seja na ajuda de conhecidos ou para estabelecer pequenos negócios na cidade.
A luta pela sobrevivência marca as narrativas destes sujeitos a partir do presente
que se desenha hoje, fazendo-os eleger em suas rememorações as lembranças que nos querem
contar e os espaços de saudade. A saudade remetendo a um lugar do EntreRios associa-se ao
período de “riqueza e fartura” e a um sentimento de posse da terra, onde o trabalhador
conseguia ir além das expectativas no meio rural, no universo que a autonomia camponesa é
capaz de assegurar. O presente ainda não finda esta luta, alguns tem consciência disto. As
resistências cotidianas que perpassam a vida destes sujeitos obliteram a ideia de um sujeito
camponês passivo, e enriquecem de experiências a história do campesinato no Piauí.
127

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