Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Rompendo o século:
uma aventura entre vanguardas literárias
no Brasil, México, Portugal e Espanha
Introdução
O presente texto corresponde a um esforço comparativo inicial entre
produções poéticas brasileiras, portuguesas, mexicanas e espanholas (1) no
final do século XIX, e (2) no início do século XX. Tem-se estes momentos,
respectivamente, como (1) antecedente direto, e (2) desabrochar das ditas
“vanguardas”, nos mais diversos países do mundo. A intenção aqui é perceber
através da análise de poemas, em que medida os “novos poetas” rompem com
os “velhos”, na Ibero-América (especialmente no Brasil e no México) e na
Península Ibérica.
Em minha dissertação de Mestrado abordei tal objeto tangencialmente,
porque buscava compreender o universo intelectual em que se haviam formado
dois dos mais importantes ensaístas ibero-americanos – Sérgio Buarque de
Holanda, autor de Raízes do Brasil (1936); e Samuel Ramos, autor de El perfil
del hombre y la cultura en México (1934). Naquele momento pude identificar
que ambos viveram a gestação e os primeiros passos dos ditos “movimentos
vanguardistas” em seus países. Esbocei, pois, um panorama das versões
apresentadas pelos mais diversos historiadores acerca das maneiras como se
relacionaram (intelectual e socialmente) artistas, pensadores e pesquisadores
brasileiros e mexicanos que, nas décadas de 1920-1930, compartilharam ideais
e posturas de vanguarda.i
Era meu propósito perceber que tipo de visão nossos literatos e
ensaístas ligados às vanguardas apresentavam acerca da herança legada
pelos colonizadores ibéricos (portugueses, no caso do Brasil; e espanhóis, no
caso do México) para a constituição de modos de vida outros (americanos).
Assim, analisei manifestos de Oswald de Andrade e Manuel Maples Arce;
poemas de Manuel Bandeira e Xavier Villaurrutia; Raízes... e El perfil.., porque
pretendia perceber ali construções e juízos que seus autores estariam
conferindo ao papel de lusos e hispânicos nas experiências históricas
vivenciadas/ pensadas por brasileiros e mexicanos.
No texto que ora apresento, a proposta é dar início a uma abordagem
um tanto distinta: agora pretendo perceber possíveis relações entre a poesia de
vanguarda brasileira e a poesia de vanguarda de Portugal... assim como entre
3
No que diz respeito às aflições da paixão, tal como Bilac, Penha fala
sobre o impossível; em Consolação, pontua: “O varão forte vence a dor, não
chora;/ Volta ao violão jucundo, às tuas rimas.” Contudo, seus versos são
consideravelmente mais sensuais e então tal poeta se revela bem mais
incomodado, insatisfeito. São bons exemplos os poemas Lamúria (no qual diz:
“E assim tão bela... durmo só! Que pena!”) e Eterno feminino (no qual diz:
“ninguém vive sem amor”).
É também dito “parnasiano”, em Portugal, o escritor Cesário Verde. De
fato, nele repete-se a rigidez da forma, versos bem medidos e, variavelmente, a
estrutura dos sonetos. Mas, no que diz respeito ao conteúdo, me parece um
tanto mais solto, criativo.
Em Sentimento dum ocidental, descreve a cidade de Lisboa moderna,
com suas ruas escuras, neblina, maresia, edifícios altos, hotéis, tascas e cafés,
brasseries e padarias, tendas e lojas, tecidos estrangeiros e plantas
ornamentais, igrejas, arsenais, oficinas, chaminés, carros, vias-férreas, o cais,
gatos, peixes podres na peixaria, cães que se parecem com lobos, e diversas
categorias de trabalhadores como carpinteiros, dentistas, lojistas, costureiras,
floristas, ourives, prostitutas, guardas, além de criminosos e um mendigo, que
ele reconhece como seu velho professor de Latim. Tudo isso é descrito de
maneira relativamente objetiva, mas desperta nele o “desejo de sofrer” e o
poeta não o reprime. “Tudo cansa!”
Em dois momentos, porém, nesta mesma composição ele rompe com o
“real”. Primeiramente, falando de um passado medieval, no qual figura uma
região lisboeta que ainda não havia sido destruída pelo terremoto de 1755, com
bancos de namoro vazios, doentes de cólera e um palácio em chamas. Note-se
que ele não escapa para um universo sereno e feliz – o onírico de Bilac, ou a
fazenda de Penha, tipicamente parnasianos –, e sim para um tempo de miséria
e dor profundas, que lhe arrancam a frase: “Triste cidade! Eu temo que me
avives/ Uma paixão defunta!” Esse expressar anseios obscuros, pode-se dizer,
já é mais característico das poesias simbolistas.
Mais adiante, no mesmo poema, Cesário Verde projeta para o futuro um
desejo de ser “eterno”, universal (“explorar todos os continentes”) e “perfeito”.
8
com que eu sinto!/ Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,/ De vos
ouvir demasiadamente de perto,/ E arde-me a cabeça de vos querer cantar
com um excesso/ De expressão de todas as minhas sensações,/ Com um
excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!”
Porém, é importante ter-se em mente que o futurismo de Campos não é
esquemático como muitas vezes se supõe. Em um de seus primeiros poemas,
dedicado a Sá-Carneiro, Opiário – lembrando a opção muriliana por definir o
local em que estaria locado ao escrever o poema –, compõe como se estivesse
dentro de um navio, como se já houvesse passado por diversos lugares do
mundo, tal como Escócia e Irlanda, China, Índia, e percorresse agora o Canal
de Suez, em direção à sua terra natal.
A viagem de navio é um símbolo, é uma metáfora da vida. Na
modernidade, tem-se contato com todo tipo de gente, mas tudo é fugaz e
superficial. Daí afirmar que “embora a gente se divirta às vezes”, “a vida a
bordo é uma coisa triste”... ou que “Enjoa-me o Oriente. É uma esteira/ Que a
gente enrola e deixa de ser bela.”
Fala de si, de sua origem portuguesa, mas logo em seguida arremata
que seu modo de “ver” e os objetos que possui (monóculo, casaca) fazem de si
um “tipo universal”. Por isso declara: “Não tenho personalidade alguma”, e,
logo em seguida: “Hoje, afinal, não sou senão, aqui,/ Num navio qualquer um
passageiro”, “a minha Pátria é onde não estou.”
Tais questões tocam a todo e qualquer sensível homem contemporâneo,
desde o simbolismo; homem eternamente insatisfeito. Ali, Campos confessa
estar doente da alma, estar viciado na dor. A referência ao tema da
enfermidade, ao uso de morfina, ópio e álcool expressa a sua relação com a
vida: monótona e desconfortável. “Sou um convalescente do momento”, “Meu
coração é uma avozinha que anda/ Pedindo esmolas às portas da Alegria”, diz.
Campos, assim, segue cambaleante; não tem firmeza nos passos, porque está
doente e porque pisa o chão instável da embarcação, mas também porque não
tem firmeza nas idéias, nos sentimentos.
Numa fase seguinte, esse “horror à vida” é substituído por um desejo
intenso de sentir, pensar, intervir; porém, o poeta encara o fato de que ele
27
próprio é o seu maior obstáculo, é aquilo que em sua vida mais empecilhos cria
à alegria de “realizar”.
Campos não é como Penha, que falara de uma natureza bucólica. Não é
como Pessanha, que construíra mundos-alegóricos pra falar de emoções. Em
Tabacaria, tal como Cesário Verde, observa a cidade em que vive; contudo, a
imagem que desenha não transparece sensações, mas desencadeia uma série
de questionamentos (lembrando Velarde). É como se exacerbasse o interesse
de um Augusto dos Anjos pelo mistério, e olhasse pela janela do quarto a rua,
com a profunda impressão de que não a pode compreender. As coisas, as
pedras do calçamento, os passeios, as carruagens, os carros, os cães, a loja
de tabaco do outro lado, o mundo todo, para Campos, é indecifrável. Assim
como as pessoas (“gente” ou “entes vestidos que se cruzam”), e ele próprio,
daí dizer que “não sou nada/ nunca serei nada/ não posso ser nada.” Por isso
tudo o deixa perplexo, admirado; “tudo isso me pesa como uma condenação ao
degredo”; “e tudo isto é estrangeiro”.
Mais um ponto importante: existe em Tabacaria não apenas uma
reflexão acerca da maneira como construímos nossas idéias de mundo ou de
nós, mas também especificamente acerca da criação poética. O poeta sabe
que a Literatura é perecível (“depois de certa altura morrerá a rua onde esteve
a tabuleta [da tabacaria],/ e a língua em que foram escritos os versos.”) e
confessa que é de um mundo bem prosaico que brotam suas densas
proposições “metafísicas” (“Mas um homem entrou na Tabacaria (pra comprar
tabaco?)/ E a realidade plausível cai de repente em cima de mim./ Semiergo-
me enérgico, convencido, humano,/ E vou tencionar escrever estes versos em
que digo o contrário.”)
Outro aspecto interessante da poesia de Álvaro de Campos é a
presença da mulher. Em muitos de seus poemas uma figura feminina aparece,
e então o autor repensa a si, seus próprios interesses, suas críticas, suas
indefinições. No caso de Tabacaria, fala da jovem comendo chocolates, quer
dizer, simplesmente agindo, vivendo, enquanto ele racionaliza, interpreta,
classifica e se perde (“mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha
de estanho,/ deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida”). Mais adiante,
28
uma “deusa grega”, uma “deusa romana”, uma “princesa de trovadores”, uma
“marquesa do século dezoito”, uma “cocote” são conclamadas a inspirar-lhe
vigor. Na última estrofe deste poema, enfim, ele declama: “Se eu casasse com
a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz.”
mais um elemento da pintura escrita por Huidobro, e não sob um viés místico,
de anunciação ou guia – elas que no céu brilham, mas já não estão lá.
No que diz respeito à concepção de “temporalidade” implícita nos
poemas de Huidobro: o poema se desenha dentro de uma moldura de tempo,
que fixa o momento; mas ele permanece latente, prismal, e multifacetado. Esse
momento, em geral, é um ponto determinado no movimento da vida, do mundo,
do universo, os quais no desenho do poeta têm um funcionamento mecânico,
ainda que não cumpram estágios lineares de desenvolvimento. Focando no
poema, portanto, vemos um instante dinâmico; ampliando o olhar, entendemos
que, para o poeta, tudo se move confusamente, e tudo está pronto para
recomeçar.
Na composição Arte poética, todas estas questões aparecem mais
evidentes. Ali Huidobro conclama outros escritores a darem vida às palavras,
através da criação de jogos associativos sem regras pré-estabelecidas. Ali ele
deixa bem claro que sua preocupação não é falar das “coisas em si” (Elas
existem? Vivem?), mas dar vida às palavras. Ele deseja é elaborar “figuras”
que causem impressões na mente do leitor, justamente pelo fato de a mente do
leitor nunca as ter concebido. Note: “Que el verso sea como una llave/ Que
abra mil puertas./ Una hoja cae; algo pasa volando;/ Cuando miren los ojos
creado sea,/ Y el alma del oyente quede temblando./ Inventa mundo nuevo y
cuida tu palabra;/ El adjetivo, cuando no da vida, mata./ Estamos en el ciclo de
los nervios./ El músculo cuelga,/ Como recuerdo, en los museos;/ Mas no por
eso tenemos menos fuerza:/ El vigor verdadero/ Reside en la cabeza./ Por qué
cantáis la rosa, ¡oh Poetas!/ Hacedla florecer en el poema;/ Sólo para nosotros/
Viven todas las cosas bajo el Sol./ El poeta es un pequeño Dios.”
No que tange aos aspectos formais, Huidobro também não parece se
importar com qualquer tipo de convenção. Além de não compor versos ou
estrofes com medidas precisas, as rimas por vezes não chegam a ocorrer, e
por vezes ocorrem no meio dos versos. Pode-se dizer, em alguns casos, que o
autor parece menos preocupado com os padrões de escritura do que com o
ritmo dos poemas e do que com as imagens que eles compõem.
34
Entretanto, como é sabido, isso não deve ser entendido como mero
descaso, e sim como experimentação. Huidobro é por muitos considerado um
dos criadores do cubismo literário, que ganharia força e expressão nos
trabalhos de Guillaume Apollinaire (1880-1918). Em seus poemas, o chileno já
explorava medidas distintas de parágrafos, espaços entre estrofes, espaços em
branco entre determinadas palavras, frases inteiras em maiúsculas, colunas,
enfim, os aspectos gráficos. O francês, de sua parte, é o dito criador dos
“caligrames”.
No que diz respeito à geração de intelectuais espanhóis de 1927,
também chamada “generación de la dictadura”, “generación de la Revista de
Occidente” e “nietos de 1898”, sabe-se que renovaram seus versos através de
um diálogo mais claro e plural com as propostas vanguardistas. Foram, então,
mais criativos e inventivos os poemas de: Frederico García Lorca (1898-1936)
e Luis Cernuda (1902-1963).xiii
Lorca foi poeta magistral, criativo. Tomou a seu dispor, ao longo da vida,
diversos tipos de construções poéticas: romances, noturnos, gazeis (poesias
árabes, em tom sensual-amoroso), canções, cantos e suítes (poesias curtas,
interligadas e interligáveis). Sua obra é marcada, inicialmente, por referências à
sua terra natal, a província de Granada; neste momento, descreve paisagens e
historietas populares e religiosas, nas quais figuram cavalos, vacas, touros,
prados, rosas, a lua, e, variavelmente, a coragem, a violência física, os
sentimentos humanos mais violentos. Numa segunda fase, após viver alguns
anos na capital espanhola e viajar à América (conheceu os Estados Unidos e
Cuba), passou a apresentar uma poesia ainda mais intensa, reflexiva, confusa,
atordoada, e a explorar o elemento “cidade”.
Tomemos para análise mais aprofundada o poema Ciudad sin sueño.
Aqui, Lorca usa também elementos díspares associados, como quando diz que
“Hay un muerto en el cementerio más lejano/ que se queja tres años/ porque
tiene un paisaje seco en la rodilla.”; ou quando diz que “caballos vivirán en las
tabernas/ y las hormigas furiosas/ atacarán los cielos amarillos que se refugian
en los ojos de las vacas”. Aqui, entretanto, diferentemente dos poemas de De
Torre e Huidobro, Lorca parece ter a intenção de falar do sonho, sono, os dois
35
talvez a função biológica da respiração... Mas para ele “Son mentira los aires.”
E os insetos? Ora, os insetos são como o amor, que não pode ser visto (“no es
un caballo ni una quemadura”), mas que de fato se sente.
da morte – daí seus freqüentes noturnos, que têm muito pouco de sombrios;
são devaneios conceituais intrigantes e pouco claros (nos dois sentidos
correntes desta palavra).
Interessa-se pela noção de “fronteiras”, e as dissolve: o eu e o outro, a
vida e a morte, o sonho e a realidade aparecem confusos, misturados. É a
linguagem quem, muitas vezes arbitrariamente, determina que isto é isto e
aquilo é aquilo. A arte, na poesia, tudo aparece entrameado, complexificado,
interessante, vivo. Para ele, em Nocturno eterno, vida, grito, boca, solidão, céu
e fumaça “nada son sino sombras de palabras/ que nos salen al paso de La
noche.”
Villarrutia lembra, assim, a sensibilidade confusa e incomodada de
Murilo Mendes, Álvaro de Campos e Garcia Lorca. E com eles compartilha a
função do poeta de não mais construir versos perfeitos (Conforme qual
medida?), ou símbolos intrigantes (De acordo com que parâmetro?); mas de
construir percepções de real, explorando a linguagem e os símbolos.
Bibliografia:
BARRETO, Eduardo José Paz Ferreira. Tempo de Orpheu: Modernos Telestai.
In: --. Fernando Pessoa e Orpheu: Mitos da Modernidade - Gênese do
Real Através da Poesia. Tese de Doutorado defendida na PUC-Rio. Rio de
Janeiro, abril de 2004.
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Modernidade: vanguardas artísticas na
América Latina. São Paulo: Unesp, 1990.
BILAC, Olavo. A obra reunida de Olavo Bilac. S/L: Nova Aguilar, 1996.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. SP:
Martins Fontes, 1990.
GARCIA LORCA, Frederico. Antologia poética. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
GOMES, Ângela de Castro. Os intelectuais cariocas, o modernismo e o
nacionalismo: O caso de Festa. Luso-Brazilian Review. 41.1 (2004) 80-106.
GULLÓN, Ricardo. Direcciones del modernismo. Madrid: Gredos, 1963.
MENDES, Murilo. Historia do Brasil. S/l: Nova Fronteira, s/d.
39