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2010

Rompendo o século:
uma aventura entre vanguardas literárias
no Brasil, México, Portugal e Espanha

Resumo: Este texto analisa comparativamente poemas brasileiros,


mexicanos, portugueses e espanhóis da transição do século XIX para o XX,
buscando compreender continuidades e rupturas, e reavaliar conceitos
clássicos no estudo das vanguardas ibero-americanas, tais como o de
“modernismo”.
Resumé: Ce document analyse comparativement plusieurs poèmes de
Brésil, Mexique, Portugal et Espagne de la transition du XIXe au XXe,
cherchant à comprendre les continuités et les ruptures, et réévaluer des
concepts classiques de l'étude des avant-gardes d'Amérique-ibérique; par
exemple, “modernisme”.
Palavras-chave: modernismo; vanguarda; Ibero-América, produção poética,
estudos comparados.
Mots-clés: modernisme, avant-gard, Amérique-ibérique, production
poétique, études comparatives.

Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira – analod@gmail.com


Historiadora – Doutoranda pelo PROLAM/USP
2010
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Introdução
O presente texto corresponde a um esforço comparativo inicial entre
produções poéticas brasileiras, portuguesas, mexicanas e espanholas (1) no
final do século XIX, e (2) no início do século XX. Tem-se estes momentos,
respectivamente, como (1) antecedente direto, e (2) desabrochar das ditas
“vanguardas”, nos mais diversos países do mundo. A intenção aqui é perceber
através da análise de poemas, em que medida os “novos poetas” rompem com
os “velhos”, na Ibero-América (especialmente no Brasil e no México) e na
Península Ibérica.
Em minha dissertação de Mestrado abordei tal objeto tangencialmente,
porque buscava compreender o universo intelectual em que se haviam formado
dois dos mais importantes ensaístas ibero-americanos – Sérgio Buarque de
Holanda, autor de Raízes do Brasil (1936); e Samuel Ramos, autor de El perfil
del hombre y la cultura en México (1934). Naquele momento pude identificar
que ambos viveram a gestação e os primeiros passos dos ditos “movimentos
vanguardistas” em seus países. Esbocei, pois, um panorama das versões
apresentadas pelos mais diversos historiadores acerca das maneiras como se
relacionaram (intelectual e socialmente) artistas, pensadores e pesquisadores
brasileiros e mexicanos que, nas décadas de 1920-1930, compartilharam ideais
e posturas de vanguarda.i
Era meu propósito perceber que tipo de visão nossos literatos e
ensaístas ligados às vanguardas apresentavam acerca da herança legada
pelos colonizadores ibéricos (portugueses, no caso do Brasil; e espanhóis, no
caso do México) para a constituição de modos de vida outros (americanos).
Assim, analisei manifestos de Oswald de Andrade e Manuel Maples Arce;
poemas de Manuel Bandeira e Xavier Villaurrutia; Raízes... e El perfil.., porque
pretendia perceber ali construções e juízos que seus autores estariam
conferindo ao papel de lusos e hispânicos nas experiências históricas
vivenciadas/ pensadas por brasileiros e mexicanos.
No texto que ora apresento, a proposta é dar início a uma abordagem
um tanto distinta: agora pretendo perceber possíveis relações entre a poesia de
vanguarda brasileira e a poesia de vanguarda de Portugal... assim como entre
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a poesia de vanguarda mexicana e a poesia de vanguarda da Espanha


(sempre comparativamente). Parto do princípio de que tais relações podem não
ter ocorrido às claras; então aponto semelhanças e diferenças na forma de
abordar e em temas abordados em poesias do Brasil e do México, de Portugal
e Espanha.
Mais uma diferença deve ser notada entre o presente texto e as
reflexões que apresentei em minha dissertação: aqui me debruço sobre um
conjunto de poemas consideravelmente maior.
Ao longo deste texto o leitor pode atentar para o fato de que seria de
grande interesse desdobrar minha abordagem e investigar, por exemplo, em
hoje relativamente acessíveis epistolários dos ícones da vanguarda em nosso
continente e no além-mar, as redes e contatos estabelecidas “efetivamente”
entre eles. Outras fontes possíveis seriam: diários, exemplares de revistas e
jornais publicados na época, registros cartoriais (como matrículas em cursos,
documentos de extradição, da experiência de um ou outro como diplomata).
Essa é justamente uma de minhas intenções; isto é, as reflexões que
apresento aqui hão de servir de base para novas apreciações e novos artigos.
Que fique bem claro, portanto: considero que minhas proposições
esboçadas no presente artigo são proposições ainda “iniciais”, e por isso
mesmo pouco pretensiosas. Porém, creio que, aos olhos de todo e qualquer
brasileiro interessado na literatura, na história e nos modos de viver e sentir
ibero-americanos, este trabalho será tomado como relevante. O inventário de
“grupos”, de “grandes nomes”, e de “grandes obras” que aqui proponho
construir, sobretudo as extensões para as literaturas do México e da Espanha,
tende a ser pouco explorado e conhecido no Brasil.
Inspira-me, aqui, o clássico trabalho de Antonio Candido – Formação da
literatura brasileira: momentos decisivos. É claro que meu objeto é distinto
daqueles tomados pelo crítico paulista (como é sabido, os dois volumes do
referido livro dedicam-se ao Arcadismo e ao Romantismo brasileiros).
Evidentemente meu instrumental teórico é também menos articulado, e minhas
reflexões menos ambiciosas. Porém, a paixão que nos move é a mesma – num
dos famosos prefácios a Formação..., Candido escreve: “o presente livro é
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sobretudo um estudo de obras; a sua validade deve ser encarada em função


do que traz ou deixa de trazer a este respeito” (p. 15); noutro, declara: “este
livro (...), embora fiel ao espírito crítico, é cheio de carinho e apreço [por nossas
letras], procurando despertar o desejo de penetrar nas obras como em algo
vivo, indispensável para formar nossa sensibilidade e visão de mundo”
(CANDIDO: p. 10).
Neste diapasão, devo dizer que é por perceber o comparativismo como
um método que nos viabiliza uma maior criticidade e complexidade
interpretativa que dele me sirvo. Tomo então como referência o célebre artigo
de Richard Morse, Quatro poetas americanos: uma cama-de-gatos, no qual são
contrapostos Mário de Andrade e T. S. Eliot, Oswald de Andrade e Willian
Carlos Willians; e no qual o autor propõe que a poesia de vanguarda foi e é
“referência básica para a tomada de consciência latino-americana em nosso
século” (MORSE: 34).
E o fato é que o inventário que aqui apresento nos permite repensar
significados e valores atribuídos de maneira mecânica a noções acadêmicas
tão correntemente usadas, tais como “parnasianismo”, “simbolismo”,
“vanguarda”, e sobretudo “modernismo”. Trabalhando inúmeros poemas,
escritos por autores de nacionalidades distintas, poderemos perceber tais
conceitos de maneira mais complexa e menos esquemática.
Por fim, parafraseando o filósofo Roberto Machado diria que: em nossas
universidades, “defende-se o rigor, mas ousa-se pouco. O que mais se precisa
na [academia] brasileira é de coragem. Esse [artigo] é [em contraposição] mais
temático do que monográfico. (...) Não é um [artigo] de especialista. (...)
Certamente [é] incômodo saber que [falo] sobre [poetas] que um colega meu
estuda há 40 anos. Mas foi uma opção que fiz. Minha ambição intelectual [por
ora] é ser mais extensa do que profunda. Porque senão você aprofunda muito
um detalhe e perde a dimensão geral, tornando-se incapaz de fazer inter-
relações conceituais”.ii

1. Revisando as produções parnasiana e simbolista na língua


portuguesa
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Ao se estudar as vanguardas é preciso, antes de mais, delimitar o que


se compreende por tal termo. Uma maneira comum de defini-las é por sua
radicalidade; então, para se compreender os movimentos literários
vanguardistas, de certa maneira faz-se mister conhecer as concepções
poéticas contra as quais estariam lutando.
Sabe-se que no Brasil da segunda década do século XX o grupo de
escritores que se dedicou a apresentar novas concepções para a Literatura
autodenominou-se “modernista”. É comum se dizer que muitos desses
intelectuais haviam sido, em determinado momento de sua formação,
seguidores dos princípios “simbolistas”, e que, nutrindo uma perspectiva mais e
mais radical (em termos de escrita, e de visão crítica sobre a sociedade
brasileira), teriam vindo a irromper-se contra os “parnasianos”.
Talvez por isso – ainda que, como veremos, em muitos pontos as
poesias escritas por um e outro grupo coincidam – os movimentos literários
“simbolismo” e “parnasianismo” sejam correntemente vistos, por nós
brasileiros, como antitéticos. De um lado estariam os responsáveis por uma
produção sensível, crítica, boêmia e, em alguns casos, debochada (portanto,
mais autêntica, mais “abrasileirada”); de outro, o mau-gosto, a alienação, o
elitismo característico dos expoentes da Academia Brasileira de Letras.
Pode-se dizer que nos poemas de Olavo Bilac (1865-1918) iii, expoente
máximo do parnasianismo brasileiro, há lugares-comuns que se repetem de
maneira exaustiva: os movimentos das folhas das árvores ou das asas dos
pássaros; o desabrochar das flores; a noite, o luar, o cosmo, a trilha seguida
pelos astros; a aurora e o crepúsculo; as estações do ano – tudo isso
interferindo num sutil fluxo natural da vida. As paisagens bilacianas sempre são
apresentadas com ênfase em aspectos exóticos, mas pouco “brasileiros”;
tampouco Bilac aborda as cidades, no Brasil daquele período em franco
crescimento.
O passado é referência de felicidade, de bem estar, de um tempo em
que o eu movia-se por sentimentos profundos e delicados. Esta atmosfera
idílica é descrita muitas vezes por meio de contrastes, por oposições: diz-se
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que ali, naqueles instantes, não estariam presentes a tristeza, a angústia, o


ódio, o fel, o mal, o pecado.
A religião é outro recanto de paz e conforto ao qual recorre o poeta:
preces, arcanjos povoam muitos dos versos de Bilac.
Quer dizer: a insatisfação parnasiana/brasileira em geral não insufla
ânimos; desanima e gera fuga. Serão os simbolistas que, queixosos, se
sentirão motivados a questionar e problematizar seus sentimentos mais
profundos. O poema Incontentado, de título ambíguo, e o poema Noite de
inverno expressam bem claramente um certo conformismo bilaciano: um sofrer
sem jamais buscar suprir o desejo contrariado. Deve ser em parte por isso que
no Brasil em geral interpretamos o parnasianismo como um movimento
alienado, desinteressado, a-crítico. Interessante notar que a postura de Bilacao
escrever poemas contrasta com sua postura enquanto cidadão brasileiro. É
sabido que participou ativamente da Academia Brasileira de Letras, contestou
fervorosamente as críticas a esta instituição, e esteve em contato com
pensadores que primavam por uma visão crítica da sociedade brasileira tal
como Manoel Bomfim (1868-1932), com o qual escreveu um livro para crianças
e jovens de nosso país, sobre a história nacional – Através do Brasil (1910).
A análise de poemas portugueses de fins do século XIX nos faz
perceber, todavia, que qualquer bem-delimitado estereótipo do que viria a ser
“autor parnasiano” é necessariamente reducionista.
Os principais expoentes do parnasianismo português são João Penha
(1838- 1919) e António Feijó (1859-1917). Em Nova musa o primeiro deles
afirma ter abandonado a maneira com que antes compunha seus versos,
sensual e alegremente. Agora, tal como um santo, dedicar-se-ia a uma poesia
“grave”, comportada, pura, “celeste” – quer dizer: parnasiana, intangível, atenta
à forma e a questões abstratas. No poema Bucólica, apresenta a descrição de
um passado rural; constrói uma paisagem, em que figuram um casal de
namorados, um jumento, grilos, cabras e nada mais. Quer dizer: Penha teria
abdicado de ser livre criativamente ao comprar o pacote “parnasiano”; de ser
emocional para ser descritivo.
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No que diz respeito às aflições da paixão, tal como Bilac, Penha fala
sobre o impossível; em Consolação, pontua: “O varão forte vence a dor, não
chora;/ Volta ao violão jucundo, às tuas rimas.” Contudo, seus versos são
consideravelmente mais sensuais e então tal poeta se revela bem mais
incomodado, insatisfeito. São bons exemplos os poemas Lamúria (no qual diz:
“E assim tão bela... durmo só! Que pena!”) e Eterno feminino (no qual diz:
“ninguém vive sem amor”).
É também dito “parnasiano”, em Portugal, o escritor Cesário Verde. De
fato, nele repete-se a rigidez da forma, versos bem medidos e, variavelmente, a
estrutura dos sonetos. Mas, no que diz respeito ao conteúdo, me parece um
tanto mais solto, criativo.
Em Sentimento dum ocidental, descreve a cidade de Lisboa moderna,
com suas ruas escuras, neblina, maresia, edifícios altos, hotéis, tascas e cafés,
brasseries e padarias, tendas e lojas, tecidos estrangeiros e plantas
ornamentais, igrejas, arsenais, oficinas, chaminés, carros, vias-férreas, o cais,
gatos, peixes podres na peixaria, cães que se parecem com lobos, e diversas
categorias de trabalhadores como carpinteiros, dentistas, lojistas, costureiras,
floristas, ourives, prostitutas, guardas, além de criminosos e um mendigo, que
ele reconhece como seu velho professor de Latim. Tudo isso é descrito de
maneira relativamente objetiva, mas desperta nele o “desejo de sofrer” e o
poeta não o reprime. “Tudo cansa!”
Em dois momentos, porém, nesta mesma composição ele rompe com o
“real”. Primeiramente, falando de um passado medieval, no qual figura uma
região lisboeta que ainda não havia sido destruída pelo terremoto de 1755, com
bancos de namoro vazios, doentes de cólera e um palácio em chamas. Note-se
que ele não escapa para um universo sereno e feliz – o onírico de Bilac, ou a
fazenda de Penha, tipicamente parnasianos –, e sim para um tempo de miséria
e dor profundas, que lhe arrancam a frase: “Triste cidade! Eu temo que me
avives/ Uma paixão defunta!” Esse expressar anseios obscuros, pode-se dizer,
já é mais característico das poesias simbolistas.
Mais adiante, no mesmo poema, Cesário Verde projeta para o futuro um
desejo de ser “eterno”, universal (“explorar todos os continentes”) e “perfeito”.
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Interessante destacar que em muitas das poesias de Cesário Verde é


trabalhado o elemento “livro” (a Bíblia ou não) associado à emoção (da
coragem, do amor). Em Sentimento dum ocidental, diz: “e eu medito um livro
que exacerbe”. No poema Manias! aborda a paixão de um rapaz por uma moça
pedante; ela o trata com desdém, e ele, submisso, sente-se comovido por
simplesmente carregar “o livro com que a amante ia ouvir a missa!.”
Em Eu e ela, o amor novamente aparece como tema, e novamente aqui
(atende-se, diferentemente de Penha) não se fala de desejo carnal. Ainda que
o casal descrito, namorando num jardim, se abrace e se goste, permanecem ali
unidos “Sem gozos sensuais, sem más idéias”. A comunhão entre eles, mais
íntima, é o ato da leitura (livros sobre “mistérios que estão para além das
lousas”; “romances galhofeiros”; a antologia moral de título Flos-Sanctorum,
escrita no século XIV pelo espanhol Alonso de Villegas; e Cavalheiro de
Faublas, livro escrito no século XVIII pelo francês Louvet de Couvray, sobre o
legendário italiano Giacomo Casanova).
No Brasil, o simbolista Cruz e Souza (1861-1898)iv, tal como os
parnasianos Bilac e Penha, apresentava descrições nas quais não se definia
precisamente tempo e espaço. Além disso, retomava lugares-comuns como a
lua e o sol, a neve, os lírios e as rosas, o ouro, os astros; a pureza, a brancura
e o frescor. Mas no caso específico de seus versos, tudo quanto é descrito
contrasta com quimeras, anseios, estremecimentos do poeta. Além disso, há
pairando no ar o mistério do mundo. Antífona ilustra bem essa idéia: ali o
referido autor pede aos “espíritos dispersos” da natureza que “fecundem” a sua
poesia, ali o poeta afirma que o verso não tem apenas forma, mas “alma”; e
deseja uma rima não apenas “clara”, mas “ardente”.
Em seus poemas o simbolista português Camilo Pessanha (1867-1926)v
também fala de pássaros, de flores murchando; das alterações do céu, do dia;
do inverno, a estação que antecede o brotar das madressilvas; aborda temas
místicos e religiosos. Contudo, a referência a tais elementos da natureza e a
tais clichês literários não visa a construção de um universo irreal,
transcendente; corresponde à tentativa de construir simbologias, por meio das
quais o autor manifesta os sentimentos que lhe inundam a alma. Destarte, nos
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versos de Pessanha o crepúsculo anuncia o desenrolar da dor; a neve cai


sobre o casal cuja paixão esfria, esmorece.
Leitor de Cruz e Souza, Augusto dos Anjos (1884-1914) veio acrescentar
novos elementos ao simbolismo brasileiro. Tal como Verde em Portugal,
ampliou o cardápio temático ao falar da doença, dos vícios, da morte, da
criminalidade – temas um tanto menos abstratos do que aqueles que
costumavam ser abordados tanto por parnasianos como por simbolistas.
Interessante notar que em inúmeros poemas simbolistas repetem-se
reflexões sobre o significado do termo “amor”, o que revela, neles, uma visão
nova acerca da linguagem como construção. Por isso pode-se dizer que, se o
parnasianismo se preocupara com a beleza da linguagem, com a forma dos
poemas, com a perfeição dos versos, o simbolismo tratou de explorar os usos e
significados das palavras. Em Versos de amor, Augusto dos Anjos fala de
diversos tipos de sentimento amoroso, e pontua que cada ser tem sua própria
visão do que vem a ser o amor-ideal (nas palavras do poeta, “substância
fluida”). Angustiado, afirma pois que desejaria inventar, por si mesmo, um
conceito de amor que comovesse a todos, e que pudesse ser por todos
compreendido. O português Camilo Pessanha, no poema Interrogação, diz:
“não sei se isso é amor”, e declara, em seguida, não sentir incontrolável desejo
sexual, não sentir a angústia da dúvida, nem ansiar por um futuro, juntos; o que
nutre pela namorada, conta ele, é um sentimento terno, sereno. Essa ternura
preocupa os simbolistas, porque aproxima-se da apatia, sintoma claro de crise
dos tempos modernos.
A dissimulação dos sentimentos (natural ou programada), característica
da modernidade, era imensamente temida pelos autores cujas obras se pode
considerar características do simbolismo. Este desconforto frente à placidez,
aos temperamentos fleumáticos (nosso, ou daquelas pessoas com as quais
convivemos) aparece no poema Acrobata da dor, de Cruz e Souza, sobre a
figura do palhaço que é o próprio poeta, e que é o próprio leitor, quando se
identifica. Para Pessanha, em Floriram por engano as rosas bravas, a mulher
amada há tempos se dizia insatisfeita; porém, o que agora atormenta o coração
do poeta é o fato de que ela se cala, impassível.
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2. Outra versão (misturada) acerca do parnasianismo e do


simbolismo: a produção em língua espanhola
A perspectiva segundo a qual simbolismo e parnasianismo seriam
modos de produção literária por princípio contrários e contrastantes cai por
terra quando se mergulha nas poesias de língua espanhola produzidas na
virada dos oitocentos para os novecentos. Ainda que fosse nicaragüense – e
não espanhol ou mexicano – preciso abordar a obra de Ruben Darío. Darío
(1867-1916) bebeu tanto da obra do expoente máximo do simbolismo, Charles
Baudelaire (1821-1867), quanto da de outros nomes que publicaram em Le
Parnaise Contemporain, tal como Théophile Gautier (1811-1872), criador da
expressão “arte pela arte” e principal nome do parnasianismo francês.
Conforme Susana Zanetti, Ruben Darío inaugurou uma nova concepção
de intelectualidade. Autor não apenas de poemas e contos, mas de inflamados
artigos jornalísticos, Darío fazia uso da palavra como arma política, crítica e
livre, tanto das sociedades ibero-americanas das últimas décadas do século
XIX quanto da maneira como os escritores locais vinham expressando seus
pontos de vista; quer dizer, como eles vinham usando a língua espanhola. Em
jornais e revistas, seus textos destacavam-se, segundo a autora, por contestar
o modo de vida estadunidense, que já naquele período passava a ser tomado
como referência de modernidade; mas Darío também escreveu um ou outro
poema sobre a difícil vida em centros do Velho Mundo, como Paris (ZANETTI:
passim).
No que diz respeito à forma de seus versos, não se pode dizer que
foram bruscas as alterações que Darío promoveu. Porém, ainda de acordo com
a análise de Zanetti, neste quesito específico intentou ser imensamente criativo
em suas historietas e crônicas publicadas em periódicos: lançava mão de
“coloquialismos, (...) simbologias clássicas e modernas, (...) citações em língua
estrangeira” (ZANETTI: p. 28).
Em sua poesia, transparece o incômodo frente à sociedade
contemporânea, burguesa, técnica, científica, positivista; e um desejo de
escapar, por meio do sonho, ou por meio da valorização de um passado idílico
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(daí a forte presença de uma natureza exótica, e de referências a um mundo


clássico – cisnes, rosas, etc – e um mundo militar-aristocrático-católico-
medieval).
A primeira parte de seu livro mais famoso, Azul, é composta pelo poema
El año lírico, dividido em quatro partes: Primaveral, Estival, Autumnal e
Invernal. Em cada uma delas podemos perceber uma certa regularidade na
métrica dos versos, e uma lógica própria para a composição (tamanho e rimas)
das estrofes.
No que diz respeito à primeira e à terceira partes do poema, não se pode
dizer que Darío esteja escrevendo sobre a primavera e outono de sua terra
natal, a Nicarágua, ou de qualquer dos outros países onde viveu. Compõe,
tanto em uma como na outra, a descrição de um universo onírico, identificável
por homens e mulheres cultos de todo o mundo; em determinado momento de
Primaveral, pontua: “de la lira universal/ el ave pulsa uma cuerda.”.
Em Primaveral, convida a Amada a, junto a ele, entrar num universo de
sabores, cores, perfumes, músicas e sensações (fala de mel, flores, bosque,
pássaros, abelhas, libélulas, ervas aromáticas, árvores enormes, folhas verdes,
vento, luz, as mãos sedosas da namorada, os lábios úmidos dela, suas
canções de poeta). Há também referência a temas “clássicos”, como rouxinóis,
rosas, pérolas, ouro, ninfas, musas e deuses helenos, cálices de vinho com
adornos gregos.
Na terceira parte do poema, Auntumnal, apresenta um cenário pálido,
tranqüilo, suspirante. Fala, ali, de uma luz dourada, delicadas rosas, uma suave
harpa tocando ao longe, e de uma fada amiga, a quem ele pede que o leve ao
reino da mais pura e vívida inspiração poética; ela, então, o apresenta primeiro
uma noite estrelada, depois a aurora, flores, e, por fim, o vento (repleto de
rumores, ecos de gargalhadas e de músicas); a fada lhe pergunta se deseja
conhecer mais prazeres, e o poeta permanece atônito, encantado, com os
olhos perdidos no “azul”.
A segunda e a quinta partes do poema são um tanto distintas, e
trabalham a temática das estações mais à maneira simbolista. Mantêm um
certo padrão formal, e muitas figuras e lugares-comuns da poesia ocidental
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então difundidos, mas apresentam um conteúdo novo, criativo, e abordagem


surpreendente.
Em Estival, Darío aborda o aspecto físico e o comportamento de um
casal de tigres de bengala: sua força, sua agilidade, sua ferocidade e sua
paixão selvagem, sob “el sol, inmensa llama”. Para descrever os dois animais,
estabelece algumas interessantes associações, como quando, por exemplo,
denomina a fera-fêmea “reina que exige vassallaje”, ou a fera-macho “don Juan
felino”; quando fala da importância da morada do tigre – “la caverna” – como
elemento constituinte de sua identidade, de sua figura, de seu significado,
apresenta os siguintes pares de relação como equivalentes: “caimán” e
“tranquilas aguas”, “elefante” e “estepa”, “víbora” e “juncos”, “ave dulce” e
“árbol”.
Importante destacar: sobre o verão, Darío opta por abordar ícones de
uma das localidades do planeta mais quentes: “la selva africana”; porém, ao
final introduz um terceiro personagem, “el príncipe de Gales”, e mais uma vez
embaralha qualquer possibilidade de definição geográfica precisa. O nobre
caçador irá atirar e tirar a vida da fêmea, fazendo fugir o macho, que,
atordoado, longe, sonha um sonho interessantíssimo, de vingança: “que
enterraba las garras y los dientes/ en vientres sonrosados/ y pechos de mujer;
y que engullía/ por postres delicados/ de comidas y cenas,/ - como tigre goloso
entre golosos -/ unas cuantas docenas/ de niños tiernos, rubios y sabrosos”.
Na última parte do poema, Invernal, Darío apresenta um quadro mais
contemporâneo, fala de seu estado de espírito na estação mais fria do ano, e
no ambiente que ele provavelmente considerava o mais frio, a cidade moderna.
Ainda assim, cita vento, brisas glaciais, chuva, neve, ombros e gargantas
cobertos, fogareiros e chaminés acesos, tremores, e também carros,
vendedores que oferecem, nas ruas, aos berros, suas mercadorias; e não nos
permite saber ao certo de que cidade está falando.
Uma nova concepção de “sonho” se projeta, em seguida: não mais Darío
recorre à construção de paisagens paradisíacas, ou ao inconsciente, mais à
elaboração de um ideal de mulher. O poeta desenha o perfil físico, psicológico,
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comportamental, da mulher cujos beijos aplacariam o frio desta noite de


inverno.
Salvador Rueda, um dos grandes representantes espanhóis da poesia
de fins dos oitocentos e inícios dos novescentos vi, inspirado em postulados
parnasianos teria proposto a estética do “colorismo”. Há, em meio a sua
trajetória poética, versos sobre a brancura e perfeição dos cisnes (El cisne), o
canto da cigarra (La cigarra) e sobre o corpo feminino ideal, formoso e
generoso (Discurso de Afrodita).
Mais tarde, vivendo na América e dialogando com os autores locais,
imprimiu a seus poemas um tom caracteristicamente simbolista. No poema
Coplas (em português, “quadras” – nele estão contidos 50 agrupamentos de
quatro versos), tece uma série de associações entre fenômenos da natureza e
relações amorosas. Por exemplo: a amendoeira que se fortalece quando
podada, tal como a paixão que arde quando há dor. As folhas das árvores
cairiam todas, como se chorassem, por ocasião da morte de sua namorada;
mas, se ela saudável cruza o campo, as ramagens balançam ao vento, como
se, alegres, batessem palmas. Lembrando o conhecido poema do simbolista
brasileiro Alphonsus de Guimaraens, Ismália, em Coplas Rueda fala sobre o
reflexo da lua na lagoa, e afirma que se sua amada é a lua, ele é o cisne que
flutua sobre a imagem dela refletida.

3. O parnasianismo e o simbolismo no México


No México, inauguraram uma literatura semelhante (dialogando
parnasianismo e simbolismo) os poetas Manuel Gutiérrez Najera (1859-1895),
Salvador Díaz Mirón (1853-1928) e Manuel Puga y Acal (1860-1930).
Creio que a poesia de Najera sofreu grande influência do parnasianismo;
seus versos têm a métrica perfeita, suas rimas são ricas, o vocabulário é
erudito, e eles são quase sempre sobretudo descritivos. No poema De blanco
Najera lista lírios, círios, flores de laranjeira, acácias, açucenas, neblina, névoa,
neve, pombos, ovelhas, cisnes, plumas, espumas, catedrais e altares góticos
de mármore, as velas dos oratórios, hóstias, as velas latinas de uma
embarcação, pentes árabes de marfim, a asa dos anjos, o manto que envolve a
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criança quando nasce e que cobre o rosto da mulher amada no dia do


casamento, o rosto de sua namorada.
Entretanto, Najera quase sempre é puro sentimento, que explode em
exclamações e em metáforas belíssimas). Em Madre naturaleza, fala do desejo
de retornar a um universo bucólico, onde residem o ar puro, as planícies
verdes, a “virtud”; afastado da “ansia inmensa que [al poeta le] consume”.
Trata-se de uma natureza “atemporal”, sem história e imperecível, e por isso
acolhedora. Mas neste lugar encantado não existiria apenas gozo e alegria. Na
realidade, é também onde o poeta crê poder chorar com sinceridade, ter fé,
esquecendo, assim, “el tedio [!] abrumador de las ciudades”, que faria com que
os homens se tornassem apáticos, impassíveis. Tal caracterísitca da poesia de
Najera, como vimos em análise da literatura em português das últimas décadas
dos oitocentos, é típica da vertente simbolista.
Seu poema Ondas muertas aborda nascentes de água, cachoeiras,
riachos caudalosos, mares. As costas litorâneas são pintadas com tintas de
sonho: há flores, ninfas, terra fértil, e o barulho agradável das marolas. Lindas
imagens pipocam aqui e acolá: compara fontes de água a uma “traviesa” “niña
que en régio palacio/ sus collares de perlas desgrana”, e fala dos rios como “un
espejo movile de plata,/ [que] va copiando los astros del cielo/ o los pálidos
tintes del alba”.
Porém, nas últimas estrofes toma como tema as águas submersas, que
habitam regiões que nem a luz nem qualquer tipo de vida alcançam. Estas
águas, diz o poeta, não soluçam de tristeza nem cantam em razão de qualquer
felicidade. São como sua alma, que habita o mais fundo de si, desconhecida e
intocada.
Deste poema, deve-se destacar ainda a maneira alternativa com que
seus versos rimam.
Díaz Mirón, em Pinceladas, apresenta uma bela paisagem, por sobre a
qual sua alma (“el ala parnáside”) anseia alçar vôo: três casebres, rosas,
vegetação abundante, um poço, montes, um vulcão, neve, nuvens, o mar, a lua
e o brilho do planeta Vênus. Há uma atmosfera mística, religiosa, bem ao gosto
parnasiano.
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Já em A una araucária, tal poeta mexicano descreve a enorme árvore


típica das regiões frias (sua alta ponta, suas folhagens, o melro que vem nela
pousar). Contudo, diferentemente do poema anterior, neste Mirón intercala as
referências à planta com considerações sobre seu estado de espírito: trata-se
de um homem orgulhoso, rancoroso, mas firme. Passa um vento forte,
carregando folhas em direção às nuvens do céu, enquanto ele sente a dor da
ofensa sofrida, a dor que ele, forte, não permite que ninguém perceba. Quando
a chuva cai, sobre a copa da árvore, o poeta deseja que seja uma mensagem
de Deus.
Num segundo momento, já na virada do século XIX ao XX, destacam-se
no México, em uma linhagem poética semelhante à de Najera e Mirón, os
nomes de Enrique González Martínez (1871-1952), Amado Nervo (1870-1919),
Ramón López Velarde (1888-1925), e José Juan Tablada (1871-1945). vii
Entretanto, nota-se nestes autores uma série de inovações importantes, tanto
na forma como nos temas e no tom.
González Martínez é autor de um dos poemas mais analisados da
História da Literatura no México: Tuércele el cuello al cisne. Para nós
brasileiros, a despeito de se apresentar em forma de soneto e em métrica
perfeita, pela crítica à geração de poetas mexicanos mais claramente
inspirados pelo parnasianismo lembra-nos Os sapos, de Manuel Bandeira
(1886-1968).
Importante destacar que, no caso deste poema mexicano, a escolha do
símbolo não é aleatória: a beleza, a perfeição, a brancura, a graciosidade, a
pureza de tais aves era sempre reverenciada em poemas classificados
“parnasianos”. Mas vale pontuar que o poeta aqui também destaca
características subjetivas dos cisnes: são impassíveis, “no sienten el alma de
las cosas ni la voz del paisaje”. Então a coruja é exaltada como novo símbolo
poético: ela não é bela, vive na escuridão das florestas, na noite, mas está
sempre buscando mistérios a desvendar ao seu derredor. Quer dizer: pode-se
argumentar que nesse segundo momento, no México, vai-se abrindo mais
claramente caminho para a gestação de alguns elementos que, poucos anos
mais tarde, serão bastante característicos da vanguarda literária.
16

Nervo, de sua parte, apresentava rimas que seguiam uma estrutura


muito pessoal, e versos exortatórios, envolventes, carregados de sentimento
(tal como o farão, mais tarde, expoentes das vanguardas literárias). No poema
Oremus, lamenta que as novas gerações sejam tão apáticas; e declara sua
admiração e ao mesmo tempo preocupação com a gente que enfrenta com
firmeza as dificuldades da vida (a multidão de camponeses submetida a
arbitrários poderes, o remador que investe contra a força do mar). Lamenta a
geração de “neuróticos”/“nostálgicos de sombra” que contestam a existência de
Deus; e declara sua admiração e ao mesmo tempo preocupação com os
sábios, artistas, miseráveis e enfermos, que suportam, esperançosos e com
fervor, cada qual o seu destino.
A la católica Majestad de Paul Verlaine (que Nervo dedica a Ruben
Darío), tal como Oremos, tem uma estrutura que remete a preces, rezas,
orações; seu último verso termina com a expressão “Así sea.”. Aqui Nervo fala
sobre a importância do referido simbolista francês para sua poesia. Começa
por descrever-lhe fisicamente: o rosto envelhecido e sorumbático; o ar distante,
nobre, altivo. Em seguida, evocando-o como “pai”, como guia (“tu que hallaste
por fin el sendero”), fala da inspiração que tem-lhe sido na busca por uma
poesia elevada, pura, radiosa (que dissesse respeito à “alma”) e ainda sábia,
humana (que dissesse respeito à “carne”).
Velarde também inovou consideravelmente. O poema Las desterradas,
por exemplo, é composto ora por quadras, ora por tercetos, ora por estrofes de
dois, cinco, sete, seis, oito versos.
Há também um quê de “desordem” na maneira como Velarde se
expressa. Fala de Rut e Rebeca, duas camponesas que partiram para viver e
trabalhar em uma grande cidade (onde há “caducas avenidas”), depois de
terem passado por diversas regiões mexicanas historicamente célebres.
Velarde cita a capital de Michoacan (Morelia, à Oeste do território mexicano), a
capital do estado de México (Toluca, no coração do país), o estado de Durango
(ao Norte) e de San Luis (pouco mais ao Sul); como se pode perceber, não
traça uma rota muito precisa, ordenada... a lista de locais pelos quais teriam
passado Rut e Rebeca não compõe uma seqüência muito lógica.
17

Estrofes mais adiante, propõe imagens belas, bastante ousadas, através


da associação de elementos aparentemente desconexos. Filhas de grandes
proprietários rurais, Rut e Rebeca hão de ter abandonado a terra natal por
ocasião da Revolução Mexicana. Transitariam entre o velho e o novo sem
apresentar uma postura muito clara, de reação ou tampouco de adequação.
Usariam roupas antiquadas e brincos enormes, dormiriam em hospedagens
miseráveis e trabalhariam vendendo frutas e flores em uma tenda improvisada.
O tumulto da vida urbana, da miséria e as manifestações populares descritos
nos versos acima referidos, ainda que às desterradas lhes tenha transformado
a vida, não lhes causa sobressaltos. A vida segue.
As estrofes finais são menos herméticas: o poeta expressa a
identificação com Rut e Rebeca; por essas duas mulheres, que foram expulsas
de seus lares, de suas vidas, o poeta nutre sentimentos fraternais, solidários,
“hospitalarios”. Eis uma outra visão da “mulher”: bastante distinta daquela que
Bilac desejava mas que mantinha sensualmente inalcançável, para que
servisse de alimento para sua poesia; e também diferente daquela típica da
obra dos simbolistas brasileiros e dos primeiros simbolistas mexicanos.
No poema La niña del retrato Velarde também aborda o elemento
feminino não em face de um apelo sexual ou por desejo de culto respeitoso de
sua figura. Velarde aqui, como em Las desterradas, contempla e divaga.
Observa o rosto da menina que reza em uma fotografia antiga; nota sua
expressão, suas sobrancelhas, seus olhos, sua testa, sua boca; fala de suas
mãos, dos ombros, do cotovelo. Não a descreve: como ele mesmo pontua no
poema, a “lê”, quer dizer, busca “interpretá-la”.

4. O modernismo hispano-americano e o modernismo brasileiro


Neste momento é preciso estar-se atento. Essa literatura – inspirada no
parnasianismo e depois mais claramente no simbolismo – de Ruben Darío e de
tantos outros poetas hispano-americanos e, posteriormente, espanhóis, foi
denominada “modernista”. Corresponde, então, a uma produção
consideravelmente distinta daquela realizada pelo modernismo brasileiro – que
equivale a um movimento de vanguarda no Brasil.
18

Por ora, dedico-me a perceber de que maneira poemas tidos como


caracteristicamente vanguardistas, no Brasil, se diferenciam ou se aproximam
do “modernismo” hisplanohablante há pouco analisado.
Oficialmente, diz-se que a crítica vanguardista iniciou suas
manifestações no Brasil com a Semana da Arte Moderna, no ano de 1922. viii
Este evento caracterizou-se pela postura de radical condenação aos padrões
literários vigentes em nosso país. É deste período o já citado “poema-piada”
Os sapos, de Manuel Bandeira.
Costuma-se dizer que Bandeira foi leitor assíduo de Baudelaire, mas a
principal influência em Os sapos talvez tenha vindo de outro simbolista francês
– Tristan Corbière (1845-1872), autor do poema El crapaud. El crapaud fala do
luar, do sombrio, de tons prateados e esverdeados na noite, dos barulhos da
noite sufocados e repetitivos, da umidade, da pedra fria onde um casal
descobre um animal que desperta pavor, medo: o sapo. Este animal, que antes
insistia em cantar, agora, diante dos dois presentes, se esconde. Ele é o
próprio poeta: “Ce crapaud-lá c’est moi”, diz um último verso da composição,
separado do restante por uma linha pontilhada. Diz-se que Corbière era
horrendo e vestia-se de maneira esdrúxula, e sentia-se, como revela aqui,
como um “rossignol de la boue” (“rouxinol do lodo”), um “poète tondu, sans aile”
(“poeta tosquiado, sem asa”). São versos bem tipicamente simbolistas:
obscuros, emocionais.
Assim, pode-se propor que, a despeito deles terem possivelmente
inspirado Bandeira na composição de Os sapos, o brasileiro acabou por
construir uma alegoria bem mais complexa. Dirige-se à geração de
parnasianos designando-os “sapo-boi”, “sapo-tanoeiro”, e “sapos-pipas”. Eles
todos, atentos ao ritmo, à métrica, às rimas ricas, a um vocabulário erudito,
acabariam por apresentar uma literatura “aguada”, patética; além disso (através
dos versos “–Sei! –Não sabe! –Sabe!”) Bandeira expressa sua indignação com
o poder que os representantes do parnasianismo no Brasil, integrantes da ABL,
tinham de determinar o que seria correto ou incorreto para a poesia nacional.
Atento a este cenário, o “sapo-cururu” (o próprio eu lírico), tal como a coruja de
González, esconde-se na escuridão, triste, solitário e desconfiado.
19

Os poemas publicados neste momento, no Brasil, pelos expoentes da


vanguarda, também trouxeram como tema as cidades, os conflitos sociais, a
modernidade. É em homenagem à cidade de São Paulo que Mário de Andrade
publica, em 1922, o livro Paulicéia desvairada.
Mas tal grupo, dantes aparentemente coeso, com o passar dos anos foi
revelando conflitos de idéias e ações – Mário de Andrade (1893-1945) e
Oswald de Andrade (1890-1954) romperam com Graça Aranha (1868-1931);
depois, Mario e Oswald romperam entre si; Oswald lançou dois manifestos
literários com concepções um tanto diversas (Pau-brasil, em 1924, e
Antropófago, em 1928); os integralistas Plínio Salgado (1895- 1975), Menotti
del Picchia (1892- 1988) e Cassiano Ricardo (1895 – 1974) fundaram o grupo
Anta/Verde-amarelo.
Todos esses grupos entregavam-se à abordagem e problematização de
uma Literatura brasileira, em “língua brasileira”, sobre a história e a gente
brasileira. Questão conflituosa, em relação a qual muitos ousaram se
posicionar de maneira pouco flexível, e que por isso fez romper antigos
vínculos de amizade.
Mas havia também aqueles que decidiram não privilegiar a questão da
“brasilidade”. São exemplo disso artigos e poesias publicadas nas revistas
Estética (1924) e Festa (1927)ix, para as quais contribuíram os poetas cariocas
Ronald de Carvalho (1893 -1935) e Cecília Meireles (1901-1964), o paulista
Ribeiro Couto (1898-1934), o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968), os
mineiros Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Murilo Mendes (1901-
1975). Esses escritores entendiam que podiam sim falar do nacional (não
estavam mais presos ao estigma do europeísmo), mas que, como cidadãos do
mundo, tinham o direito de falar de qualquer coisa: do passado e do presente,
de nós e dos outros, ou de um eu profundo.
Tomemos a obra de Murilo Mendes como representativa. Murilo se
interessou pelos mais variados temas, e nos oferta livros tais como História do
Brasil, de 1932, no qual brincava com acontecimentos marcantes de nossa
realidade nacional, desde a descoberta até os dias de então: aborda a
Inconfidência Mineira, Canudos, a Revolução de 1930, e hábitos que se
20

mantém ao longo dos tempos, como a bur(r)ocacria contra-producente


característica de nossos governos, desde a colonização até os dias de hoje
(“Um presidente resolve/ Construir uma boa escola/ Numa vila bem distante./
Mais ninguém vai nessa escola:/ Não tem estrada para lá./ Depois ele
resolveu/Construir uma estrada boa/ Numa outra vila do Estado./ Ninguém se
muda para lá/ Porque lá não tem escola”). Em versos cômicos e ricos em
intertextualidade, fazia lembrar os poemas-piadas que nos primeiros tempos
modernistas, no Brasil, haviam causado tanta polêmica. Um bom exemplo é o
poema Homo brasiliensis.
Porém, pode-se dizer que sua obra é bastante representativa do dito
segundo momento do modernismo brasileiro, no qual a contestação pura e
simples da literatura tradicional foi substituída por um desejo de criar o novo.
Esta idéia aparece em Nortuno resumido, de seu primeiro livro publicado,
Poemas (1930). Ali Murilo parece incomodado com o fato de que os
vanguardistas acabavam por incorrer no mesmo equívoco que condenavam
nas gerações anteriores: o estabelecimento de quais seriam os melhores
modos de se trabalhar a Literatura. Destarte, escreve que “A lua e os
manifestos de arte moderna/ brigam no poema em branco.” E que “pensar no
cubismo”, assim como “andar de automóvel” corresponderiam a empecilhos ao
“namorar”, ao amor, à beleza, à poesia. O eu lírico deseja, assim, ser livre para
construir, fazer, sonhar o que tiver vontade.
Em 1935 publicou Tempo e eternidade, em que explorava um tema que
lhe foi bastante caro – a fé católica. Em alguns poemas, abordava os
misteriosos desígnios divinos, e o desejo de, através da poesia, alcançá-los.
Em outros, ansiava que sua Poesia, tal como a fé, fosse elemento integrador,
num “mundo mutilado”. E falava do mundo em que vivia, o mundo “concreto”:
capitalista, tecnológico e socialmente fragmentado. Em Salmos, por exemplo,
enumera benesses criadas por Deus, tais como o sol, as estrelas, os frutos do
campo, as flores, o mar e os animais e plantas marinhos... e inclui na lista
cinemas, locomotivas e submarinos. Nos versos de Meu novo olhar, percorre
sentimentos caracteristicamente modernos: o pessimismo, a angústia frente à
21

fugacidade das coisas, a dissimulação das pessoas, as superficialidades, os


conflitos sociais.
E creio que é de sua obra Poemas, de 1930, uma de suas composições
mais expressivas: Mapa. Murilo define sua personalidade poética como
multifacetada, fluida, dinâmica, angustiada, porém ardente e contagiante – bem
ao modo de tantos outros poetas vanguardistas. Diz: “estou no ar,/ (...) no
pensamento dos homens que movem o mundo,/ nem triste nem alegre, chama
com dois olhos andando/ sempre em transformação.”
Aborda sua infância e convenções (seu próprio corpo, o medo, a religião,
a formação familiar e escolar) que “limitavam” seu desejo de expressão e
desde então iam definindo seu caráter e seu inconformismo. Quando se torna
homem maduro, têm de aprender a lidar com situações ambíguas, o riso que
se confunde com o choro, o gostar e não-gostar do Outro, o bem e o mal.
Também julga importante falar de sua família fincada em origens rurais; assim
como de um passado que antecede a ele próprio, de uma ancestralidade
espanhola que talvez explique esse impulso (quixotesco) de lutar contra o
“irreal”, contra um inimigo impalpável.
É indispensável refletir, aqui, sobre uma questão que remete à análise
de poemas parnasianos e simbolistas, acima desenvolvida por mim. Como
disse anteriormente, sob o rótulo do parnasianismo e do simbolismo muitos
autores, ainda que dedicando-se à mera descrição de paisagens, optaram por
não delinear espaço e tempo – eles quase sempre falavam de um
idílico/abstrato/indeterminável. No poema O filho do século Murilo lamenta o
fato de que “tempo e espaço firmes” o haviam “abandonado” – o passeio de
bicicleta, as conversas no portão, as tardes preguiçosas ou mesmo o “puro
amor”. Enfim, uma vida mais “real” teria perdido a vez para o urgente debater
das questões sociais (a fome, a miséria) ou teria sido silenciada pela
irracionalidade da guerra. Como se pode notar, a ausência de referências mais
precisas acerca do espaço e do tempo, conforme o entendimento deste último
autor, não se daria em face de um escape ou de uma alegoria – tal como um
parnasiano-típico, tal como um simbolista típico. Se daria em face da maneira
como o vanguardista percebe a “realidade” e a recria, poeticamente.
22

Em Mapa a perda das referências espaço-temporais, tão característica


da atualidade, reaparece. O eu declara ao final que está escrevendo de seu
quarto, na praia de Botafogo, tal como também o faz Drummond no poema A
bruxa. Mas a despeito desta informação precisa, o poeta está confuso. A
facilidade com que temos acesso a informações sobre países de qualquer um
dos cantos do planeta (“me desespero porque não posso estar presente a
todos os atos da vida”), os contatos que ocorrem de maneira cada vez mais
corriqueira e veloz, e com uma intensidade, uma profundidade cada vez menor
(“o mundo vai mudar de cara”), tudo isso faz com que o autor declare: “Viva eu,
que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente”. A própria
maneira com que constrói os versos deste poema nos ajuda a penetrar seus
sentimentos, sua sensação de viver o indefinido; dados supostamente
incongruentes aparecem lado a lado, separados por uma enxurrada de
vírgulas.
Assim, o poeta deseja não um mundo mais “verdadeiro”, e sim um
mundo mais “delicado”. Não confia em nenhuma técnica e não se inscreve em
qualquer linha teórica, detesta os homens práticos, porque sabe da
impossibilidade de se formular respostas únicas, planos perfeitos, para
remediar os males da sociedade contemporânea. Na contra-mão, ama os
desesperados, os insatisfeitos, os amantes, os suicidas, os derrotados, os
transfigurados, os criminosos.
Faz-se mister atentar para o fato de que uma visão trágica do mundo,
uma abordagem angustiada de questões tais como justiça social, fraternidade e
realização pessoal, um interesse pelo “real” que se confronta e se mistura com
o “sonho”, aparece também em poemas de Carvalho, Meireles, Couto,
Bandeira e Drummond.
É momento de perceber se também aparece na poesia de vanguarda de
Portugal.

5. Modernismo português, em Portugal


É comum se dizer que o vanguardismo “português” (digo, nascido em
Portugal) surgiu com o lançamento da revista Orpheu, em 1915, por Mario de
23

Sá-Carneiro (1890-1916). O desenvolvimento inicial das propostas estéticas


apresentadas pelos poetas associados a esta revista, x classificados então
como orphistas, foi marcado por críticas severas e debates acirrados, mas
terminou por logo abrandar-se, após o suicídio do referido fundador e
responsável pelos custos da dita publicação, que foi, então, encerrada.
Mesmo tento sido breve, contudo, é de fundamental importância
destacar o esforço de atualização da literatura portuguesa impingido pelos
autores ligados a Orpheu. Vivendo em um Portugal caracterizado por
constantes reviravoltas políticas desde 1910 (ano de proclamação da
república), problemas econômicos e desenvolvimento científico e tecnológico
precários, tais expoentes da intelectualidade lusa pontuavam a importância de
se relembrar que os portugueses são também europeus, e que por isso não se
deveriam negar a um diálogo maduro com as propostas de “rompimento”
estético-literário apresentadas, então, nas mais diversas nações da Europa
(BARRETO: p. 58, 61, 62).
Daí se poder observar em território luso uma realidade de certa forma
semelhante à brasileira, de então: críticos em relação a uma burguesia
reacionária e conformista com força aparentemente inquebrantável em
Portugal, estes pensadores e escritores de vanguarda foram subestimados por
alguns dos nomes de maior expressão no universo intelectual português do
período, tal como Julio Dantas, cuja apreciação acerca da importância do
primeiro número de Orpheu apresento a seguir:
Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor,
publicaram, há dias, uma revista literária em Lisboa. Essa revista
tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de algumas,
senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa
diária? Com o silêncio que merecia? (...) Não. A imprensa recebeu
essa revista com artigos de duas colunas – na página primeira. (...)
[Sendo assim] é justo confessar que os loucos não são precisamente
os poetas, mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos e
comprados; quem não tem juízo é quem os lê, quem os discute e
quem os compra (Apud. BARRETO, 60).

Em Manifesto Anti-Dantas, lançado em 1917, o poeta Almada Negreiros


(1893-1970) criticou tais apreciações, defendo a necessidade de uma ruptura
brusca com o passado da literatura portuguesa, da qual Julio Dantas foi figura
emblemática. Pode-se dizer, assim, com base no trabalho do brasileiro
24

Eduardo José Paz Ferreira Barreto e na leitura do referido manifesto, que os


argumentos de Negreiros correspondiam à inovadora defesa orphista de um
“ódio transformador” (BARRETO: P. 68). Senão, vejamos:
Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é
uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indígnos e de
cegos! É uma resma de charlatões e de vendidos, e só pode partir
abaixo de zero!
(...)
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá
fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única
coisa que ele faz!
(...)
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é a
meta da decadência mental!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
(...)
Morra o Dantas! Morra! Pim!

Após o encerramento da divulgação de Orpheu, algumas novas revistas


foram criadas com o objetivo de incorporar este primeiro projeto vanguardista
português, e estampar textos de autores interessados na renovação dos
paradigmas estético-literários em Portugal; são exemplos: Centauro (1916),
Exílio (1916), Ícaro (1917) e Portugal Futurista (1917). Contudo, ainda que
tenham revelado nomes hoje tidos como importantes para a Literatura lusitana,
tais como Aquilino Ribeiro (1885-1963) e Florbela Espanca (1894-1930), estas
publicações não alcançaram uma significativa projeção, nem nacional e muito
menos internacional.
A vanguarda literária de Portugal intentará ainda compor um grupo de
relevo com o lançamento de Presença (1927). Mas um movimento mais
ordenado, com propósitos mais bem definidos, apenas apareceu na década de
1940, sob a liderança de Alexandre O’Neil (1924-1986) e inspiração surrealista.
Note-se: 25 anos depois do lançamento do manifesto de André Breton, 1896-
1966, na França; e quase 15 anos após o lançamento do Manifesto Pau-Brasil.
25

Pode-se dizer, portanto, que, da vanguarda portuguesa, a obra poética


mais característica não é a de um grupo, mas a de uma “personalidade”:
Fernando Pessoa (1888-1935). Pessoa iniciou sua carreira publicando versos e
artigos de Crítica Artística e Literária em Águia, uma revista ligada a setores
portugueses tradicionais, e atenta a uma percepção do nacionalismo voltada à
valorização do passado, dos grandes feitos lusitanos do século XVI. Entretanto,
com o passar dos anos o autor renovou seu estilo, desenvolveu outras facetas
estéticas, e passou a integrar o corpo de colaboradores das mais diversas
revistas com propostas diversas. Como é sabido, assinava com diversos
heterônimos, dentre os quais se destacam Ricardo Reis, Alberto Caeiro e
Álvaro de Campos.
Associados na imprensa de então a biografias, descrições físicas e
personalidades específicas, cada um desses nomes correspondia a um corpo
de publicações bastante particular: o primeiro era monarquista e trabalhava
com referências à Literatura clássica greco-romana, o segundo exaltava a
natureza e as formas simples de viver, e o terceiro refletia sobre a modernidade
e foi classificado “futurista”. O que nos leva a pensar que, ainda que poemas de
alguns de seus ditos “heterônimos” não apresentem forma e conteúdos típicos
da vanguarda, o ser plural, confuso, irônico e multi-facetado de Pessoa é
expressão clara do vanguardismo do século XX.
Interessante atentar para o fato de que, no ano de lançamento da revista
Orpheu, Pessoa fez chegar a público a notícia de que Ricardo Reis, desiludido
com a política em Portugal, migrou para o Brasil, desaparecendo da cena
literária portuguesa; Alberto Caeiro teria falecido; de seus três mais
significativos heterônimos, logo, restou atuante apenas Álvaro de Campos, o
poeta futurista, autor de versos mais identificáveis às proposições de
vanguarda difundidas internacionalmente, como revela o seguinte trecho de
sua sempre-referida Ode triumphal, em que percebemos a temática das
técnicas, do novo, dos sons incômodos e ao mesmo tempo inebriantes e tão
característicos da vida moderna: “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!/
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!/ E fúria fora e dentro de mim,/
Por todos os meus nervos dissecados fora,/ Por todas as papilas fora de tudo
26

com que eu sinto!/ Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,/ De vos
ouvir demasiadamente de perto,/ E arde-me a cabeça de vos querer cantar
com um excesso/ De expressão de todas as minhas sensações,/ Com um
excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!”
Porém, é importante ter-se em mente que o futurismo de Campos não é
esquemático como muitas vezes se supõe. Em um de seus primeiros poemas,
dedicado a Sá-Carneiro, Opiário – lembrando a opção muriliana por definir o
local em que estaria locado ao escrever o poema –, compõe como se estivesse
dentro de um navio, como se já houvesse passado por diversos lugares do
mundo, tal como Escócia e Irlanda, China, Índia, e percorresse agora o Canal
de Suez, em direção à sua terra natal.
A viagem de navio é um símbolo, é uma metáfora da vida. Na
modernidade, tem-se contato com todo tipo de gente, mas tudo é fugaz e
superficial. Daí afirmar que “embora a gente se divirta às vezes”, “a vida a
bordo é uma coisa triste”... ou que “Enjoa-me o Oriente. É uma esteira/ Que a
gente enrola e deixa de ser bela.”
Fala de si, de sua origem portuguesa, mas logo em seguida arremata
que seu modo de “ver” e os objetos que possui (monóculo, casaca) fazem de si
um “tipo universal”. Por isso declara: “Não tenho personalidade alguma”, e,
logo em seguida: “Hoje, afinal, não sou senão, aqui,/ Num navio qualquer um
passageiro”, “a minha Pátria é onde não estou.”
Tais questões tocam a todo e qualquer sensível homem contemporâneo,
desde o simbolismo; homem eternamente insatisfeito. Ali, Campos confessa
estar doente da alma, estar viciado na dor. A referência ao tema da
enfermidade, ao uso de morfina, ópio e álcool expressa a sua relação com a
vida: monótona e desconfortável. “Sou um convalescente do momento”, “Meu
coração é uma avozinha que anda/ Pedindo esmolas às portas da Alegria”, diz.
Campos, assim, segue cambaleante; não tem firmeza nos passos, porque está
doente e porque pisa o chão instável da embarcação, mas também porque não
tem firmeza nas idéias, nos sentimentos.
Numa fase seguinte, esse “horror à vida” é substituído por um desejo
intenso de sentir, pensar, intervir; porém, o poeta encara o fato de que ele
27

próprio é o seu maior obstáculo, é aquilo que em sua vida mais empecilhos cria
à alegria de “realizar”.
Campos não é como Penha, que falara de uma natureza bucólica. Não é
como Pessanha, que construíra mundos-alegóricos pra falar de emoções. Em
Tabacaria, tal como Cesário Verde, observa a cidade em que vive; contudo, a
imagem que desenha não transparece sensações, mas desencadeia uma série
de questionamentos (lembrando Velarde). É como se exacerbasse o interesse
de um Augusto dos Anjos pelo mistério, e olhasse pela janela do quarto a rua,
com a profunda impressão de que não a pode compreender. As coisas, as
pedras do calçamento, os passeios, as carruagens, os carros, os cães, a loja
de tabaco do outro lado, o mundo todo, para Campos, é indecifrável. Assim
como as pessoas (“gente” ou “entes vestidos que se cruzam”), e ele próprio,
daí dizer que “não sou nada/ nunca serei nada/ não posso ser nada.” Por isso
tudo o deixa perplexo, admirado; “tudo isso me pesa como uma condenação ao
degredo”; “e tudo isto é estrangeiro”.
Mais um ponto importante: existe em Tabacaria não apenas uma
reflexão acerca da maneira como construímos nossas idéias de mundo ou de
nós, mas também especificamente acerca da criação poética. O poeta sabe
que a Literatura é perecível (“depois de certa altura morrerá a rua onde esteve
a tabuleta [da tabacaria],/ e a língua em que foram escritos os versos.”) e
confessa que é de um mundo bem prosaico que brotam suas densas
proposições “metafísicas” (“Mas um homem entrou na Tabacaria (pra comprar
tabaco?)/ E a realidade plausível cai de repente em cima de mim./ Semiergo-
me enérgico, convencido, humano,/ E vou tencionar escrever estes versos em
que digo o contrário.”)
Outro aspecto interessante da poesia de Álvaro de Campos é a
presença da mulher. Em muitos de seus poemas uma figura feminina aparece,
e então o autor repensa a si, seus próprios interesses, suas críticas, suas
indefinições. No caso de Tabacaria, fala da jovem comendo chocolates, quer
dizer, simplesmente agindo, vivendo, enquanto ele racionaliza, interpreta,
classifica e se perde (“mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha
de estanho,/ deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida”). Mais adiante,
28

uma “deusa grega”, uma “deusa romana”, uma “princesa de trovadores”, uma
“marquesa do século dezoito”, uma “cocote” são conclamadas a inspirar-lhe
vigor. Na última estrofe deste poema, enfim, ele declama: “Se eu casasse com
a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz.”

6. Vanguardas na Espanha e relações com a Hispano-América


Na Espanha diz-se que os modernistas/parnasianos/simbolistas foram
sucedidos pela “generación del 1898”, pela “generación del 1914” e pela
“generación del 1927” (GULLÓN: passim).
O trabalho da boêmia e autodidata generación del 1898 esteve atento às
questões sociais, que trabalhou a linguagem campesina e das ruas das
cidades, dos homens e mulheres comuns. Radicais, rebeldes e esquerdistas,
críticos às correntes positivistas, seus expoentes repensaram a questão do “ser
de España”, valorizando uma supostamente espanhola moral cristã, sensível,
sonhadora, transformadora, solidária. Seus principais nomes são: os dos
ensaístas Ángel Ganivet García (1865-1898), Miguel de Unamuno y Jugo
(1864-1936), Ramiro de Maeztu y Whitney, (1875- 1936), e José Augusto
Trinidad Martínez Ruiz, o “Azorín” (1873-1967); e os dos poetas Enrique de
Mesa Rosales (1878-1929), Ramón María del Valle-Inclán (1866-1936), e
Antonio Machado (1875-1939).
Já a geração seguinte, denominada também novecentismo, preocupou-
se com o fato de que a Espanha vinha há séculos perdendo seu expressivo
papel de metrópole cultural; desejou, então, que seu país voltasse a ser sentido
como “europeu”, moderno e próspero filosoficamente, literariamente,
artisticamente. Foi, destarte, intelectualista, erudita e cosmopolita. Dela fizeram
parte os ilustres ensaístas José Ortega y Gasset (1883-1955) e Eugenio d’Ors
(1881-1954). No que diz respeito à criação poética, tal como os parnasianos,
valorizaram a forma; e, tal como simbolistas menos “sentimentais”, fizeram uso
de simbologias, metáforas, jogos de palavras. Seus poetas mais citados
comumente são: Ramón Gómez de la Serna (1888-1963), Rafael Cansinos-
Asséns (1882-1964), Juan Ramón Jiménez (1881-1958), Josep Carner (1884-
1970).
29

Não é comum classificar Gómez de la Serna como poeta vanguardista.


Porém, é possível argumentar que já apresentava uma poética bastante mais
“solta” que a dos modernistas hispanohablantes, tal como Salvador Rueda, já
aqui por mim analisado. Gómez de la Serna foi o criador das “greguerias”, que
ele dizia corresponderem a um novo gênero literário, e que definia como uma
mistura entre “humorismo” e “metáfora”. São, a bem da verdade, pequenas
sentenças cômicas – jogos de palavras, associação de imagens, e/ou
estruturação irreverentemente lógica de idéias – bem ao modo dos poemas-
piadas de nossos modernistas/vanguardistas brasileiros. Tomam como tema
não apenas a língua (escrita e falada) – o que é bastante típico da vanguarda,
auto-crítica por excelência –, mas elementos da natureza e as cidades, os
conflitos sociais e afetivos. Creio ser de grande valor citar alguns belos
exemplos:
Escribir con lápiz es marcar sólo la sombra de las palabras.
Ballena se escribe con elle por los dos surtidores líquidos que lanza a
lo alto por la nariz.
Lo peor al incendiarse el teatro es que se queme el cartelito de
Salida.
La media luna mete la noche entre paréntesis.
El arcoiris es la cinta que se pone la naturaleza después de haberse
lavado la cabeza.
Al mar le gusta la impunidad y por eso borra toda huella en la playa.
El viento es torpe: el viento no sabe cerrar una puerta.
¿Qué está haciendo en realidad la luna? La luna está tomando el sol.
En la noche de los vagones solitarios vamos con dos mujeres: la
nuestra y la que se refleja en el cristal.
Entre los carriles de la vía del tren crecen las flores suicidas.
Tenía orejas ideales para sostener el lápiz, y por eso hubo que
dedicarle al comercio.
Tenía tan mala memoria que se olvidó que tenía mala memoria y
comenzó a recordarlo todo.

Bom lembrar que há também greguerias que compõem quadros


absolutamente inesperados: “El poeta miraba tanto al cielo que le salió una
nube en un ojo.” e “El polvo está lleno de viejos y olvidados estornudos.” Neste
sentido, se relembrarmos a crítica de González Martínez aos lugares comuns
do modernismo/parnasianismo mexicano, no poema Tuércele el cuello al cisne,
vale a pena também transcrever uma gregueria na qual figuram as tais aves:
“De la nieve caída en los lagos nacen los cisnes.” Aqui o poeta não cria um
universo idílico, não manifesta sensações através de um símbolo; ele
30

simplesmente dá asas à sua imaginação, e exterioriza um universo que se cria


em sua mente, em seu coração.
Já Rafael Cansinos-Asséns, apesar de ser um dos mais comemorados
escritores espanhóis de princípios do século XX, não apresenta uma vasta obra
poética. Quer dizer: mesmo tendo sido o autor do primeiro manifesto de
vanguarda literária espanhol, o Manifiesto Ultraísta (1919)xi, não é reconhecido
por ter apresentado, em seguida, ousados (na métrica, na temática, na
composição) poemas, e sim por ser autor de um romance sobre as relações
profissionais e afetivas dos integrantes do referido movimento vanguardista –
El movimiento V.P., de 1921.
O principal poeta do ultraísmo é, na verdade, Guillermo de Torre (1882-
1914).xii Seus versos brancos não seguem qualquer padrão métrico e as
estrofes não obedecem a qualquer tipo de modelo tradicional. No mais, seus
poemas em geral são construções de imagens bastante curiosas, improváveis
mesmo. Por exemplo: em Naturaleza extática – bem distinto da referida
segunda parte do poema El año lírico, de Darío – podemos contemplar a
associação, por Torre, de diversas imagens, aleatoriamente, ilogicamente: “Un
segmento de luna/ sobre la bandeja/ El corazón de la granada/ es un abanico
del iris/ La guitarra la pipa el periódico/ disecados como loros/ Palpando entre
el mosaico/ el vidrio canta sus reflejos/ A través de la ventana bastidor
del sol/ el viento afina sus cordajes/ Desconsolada una guitarra/ con las
clavijas sueltas/ enmaraña su testa.”
Já em Pararrayos temos uma descrição um tanto mais convencional, de
uma noite de chuva. Ali Torre compara os relâmpagos intercalados a cada um
dos olhos de Argos, gigante da mitologia grega que possuía cem olhos, e que,
enquanto dormia, podia fechar alguns e manter outros abertos, atentos,
vigiando. Os trovões, nos versos de De Torre, são tiros de pistolas
automáticas. À luz sucede a sombra; ao silêncio, estrondos. O tempo passa,
veloz, sem que se possa perceber ao certo que horas são, até que, como trens
desgovernados, as horas se descarrilam: o poeta está parado, estático, na
contemplação de um momento trivial e encantador. Há, nos versos finais, a
31

construção de mais uma imagem “teogônica”: a tempestade seria como a ira de


Deus (“pirotécnico celeste”) contra os homens.
Em outra composição, Autorretrato, De Torre intercala a associação de
imagens inusitadas e o descritivo com a exploração do modo de ver e pensar
do artista de vanguarda. Apresenta ícones da cidade contemporânea, como
trens, arranha-céus, jornais, e os utiliza não para falar da cidade propriamente,
mas, de uma maneira muito peculiar, para descrever a si mesmo. Ali, seus
cabelos são como velozes trens em movimento, e seu rosto, de tão altivo,
parece se erguer à altura dos prédios mais altos da cidade; um biombo próximo
à sacada, parte de sua vida cotidiana, lembra um jornal aberto, “gigante”. Ele
utiliza, para falar de si, ainda, uma série de conceitos e lugares-comuns da
pintura cubista, nascida na Espanha e explorada por expoentes tanto de
centros culturais europeus, como a França, como da Hispano-América. Ele se
questiona “como” é (“¿Pero como soy yo?”) e apresenta possíveis respostas a
serem dadas por pintores cubistas como o francês Robert Delaunay, o
espanhol Vázquez Díaz, o uruguaio Rafael Barradas e, por fim, Norah Borges.
Norah Borges foi sua esposa – irmã de Jorge Luís Borges (1899-1986) – e,
segundo De Torre, o descreveria como “un paisaje de feria urbana”.
Neste mesmo poema fala ainda de aspectos subjetivos de sua
identidade: “Del barroquismo a lo jovial/ Un síncope de esdrujulos/ acelebra mi
vida mental”. Em outras palavras, o poeta se considera um misto de
sentimentos sombrios e de entusiasmos, o que é bastante característico das
vanguardas de todo mundo – críticas mas ativas.
Outros dois importantes expoentes do ultraísmo são o espanhol Gerardo
Diego (1896-1987), e o já citado (e sempre celebrado) Borges, poeta argentino.
Faz-se mister lembrar, aqui, que o movimento de vanguarda que mais
teria influenciado o ultraísmo não foi, como se pode imaginar, o cubismo (já
que este teve grande expressão entre as artes plásticas, na Espanha); nem o
futurismo ou o dadaísmo, tão aclamados internacionalmente. O movimento de
vanguarda que mais teria influenciado o ultraísmo foi concebido em língua
espanhola, mas não na Europa e denominava-se creacionismo. Foi inaugurado
em uma conferência no Ateneo de Buenos Aires, pelo poeta chileno Vicente
32

Huidobro (1893-1947), no ano de 1916. Como veremos através da leitura de


alguns de seus poemas mais expressivos, Huidobro (diferentemente dos
modernistas hispanohablantes) não foge do mundo ao redor em direção a um
passado glorioso (bem ao gosto parnasiano), nem tampouco à noite, ao sonho
(bem ao gosto do simbolista González Martínez). Simplesmente não crê que
este mundo lhe baste, e deseja inventar, com os elementos que se lhe
oferecem, um mundo inexistente. Não constrói simbologias: apresenta novos
elementos. Realiza, assim, uma fusão entre as “palavras” e as coisas
(matérias, idéias, sentimentos). Faz associações fortuitas que comumente os
pesquisadores têm denominado “humor branco”.
Em Primavera, por exemplo, – lembrando muitos dos poemas de De
Torre, a quem Huidobro certamente influenciou, e de maneira bastante distinta
do Primaveral de Darío – não apresenta sequer um dos elementos mais típicos
desta estação do ano, como o sol, as flores, a brisa quente. Trata de abordar
situações e/ou relações surpreendentes. Tomemos a título de exemplo três
imagens compostas ali por Huidobro, numa seqüência: primeiramente, refere-
se a um pássaro que antes cantava como um coágulo de sangue, mas que
agora cochila; depois, refere-se a um violinista morto “esta mañana”; por fim,
identifica os elementos violino e janela, e trata de abordar o canto produzido
por ele/ela. Apresenta, assim, um quadro bastante surpreendente, visual, de
uma maneira tal, que emociona quem lê.
Em Puerto trabalha com uma série de elementos típicos deste que é um
dos locais-ícones da modernidade: fala em velas, mastro, instrumentos de
pesca, naves, piloto, o ancorar, o naufragar, o flutuar. Mas aqui tampouco
apresenta uma descrição convencional. Falando do porto, o poeta aborda, em
última instância, mas especialmente, o aleatório, o desconhecido, o incerto; há
“el azar de los dados”, “una selva”, “un escojo”. Uma outra figura presente em
Puerto é recorrente em muitos outros poemas escritos por Huidobro, e, da
maneira como aparece, aqui, serve para reiterar este meu argumento: as
estrelas. Diferentemente do que pudemos observar nas composições
parnasianas, nesta composição específica do dito autor chileno surgem como
33

mais um elemento da pintura escrita por Huidobro, e não sob um viés místico,
de anunciação ou guia – elas que no céu brilham, mas já não estão lá.
No que diz respeito à concepção de “temporalidade” implícita nos
poemas de Huidobro: o poema se desenha dentro de uma moldura de tempo,
que fixa o momento; mas ele permanece latente, prismal, e multifacetado. Esse
momento, em geral, é um ponto determinado no movimento da vida, do mundo,
do universo, os quais no desenho do poeta têm um funcionamento mecânico,
ainda que não cumpram estágios lineares de desenvolvimento. Focando no
poema, portanto, vemos um instante dinâmico; ampliando o olhar, entendemos
que, para o poeta, tudo se move confusamente, e tudo está pronto para
recomeçar.
Na composição Arte poética, todas estas questões aparecem mais
evidentes. Ali Huidobro conclama outros escritores a darem vida às palavras,
através da criação de jogos associativos sem regras pré-estabelecidas. Ali ele
deixa bem claro que sua preocupação não é falar das “coisas em si” (Elas
existem? Vivem?), mas dar vida às palavras. Ele deseja é elaborar “figuras”
que causem impressões na mente do leitor, justamente pelo fato de a mente do
leitor nunca as ter concebido. Note: “Que el verso sea como una llave/ Que
abra mil puertas./ Una hoja cae; algo pasa volando;/ Cuando miren los ojos
creado sea,/ Y el alma del oyente quede temblando./ Inventa mundo nuevo y
cuida tu palabra;/ El adjetivo, cuando no da vida, mata./ Estamos en el ciclo de
los nervios./ El músculo cuelga,/ Como recuerdo, en los museos;/ Mas no por
eso tenemos menos fuerza:/ El vigor verdadero/ Reside en la cabeza./ Por qué
cantáis la rosa, ¡oh Poetas!/ Hacedla florecer en el poema;/ Sólo para nosotros/
Viven todas las cosas bajo el Sol./ El poeta es un pequeño Dios.”
No que tange aos aspectos formais, Huidobro também não parece se
importar com qualquer tipo de convenção. Além de não compor versos ou
estrofes com medidas precisas, as rimas por vezes não chegam a ocorrer, e
por vezes ocorrem no meio dos versos. Pode-se dizer, em alguns casos, que o
autor parece menos preocupado com os padrões de escritura do que com o
ritmo dos poemas e do que com as imagens que eles compõem.
34

Entretanto, como é sabido, isso não deve ser entendido como mero
descaso, e sim como experimentação. Huidobro é por muitos considerado um
dos criadores do cubismo literário, que ganharia força e expressão nos
trabalhos de Guillaume Apollinaire (1880-1918). Em seus poemas, o chileno já
explorava medidas distintas de parágrafos, espaços entre estrofes, espaços em
branco entre determinadas palavras, frases inteiras em maiúsculas, colunas,
enfim, os aspectos gráficos. O francês, de sua parte, é o dito criador dos
“caligrames”.
No que diz respeito à geração de intelectuais espanhóis de 1927,
também chamada “generación de la dictadura”, “generación de la Revista de
Occidente” e “nietos de 1898”, sabe-se que renovaram seus versos através de
um diálogo mais claro e plural com as propostas vanguardistas. Foram, então,
mais criativos e inventivos os poemas de: Frederico García Lorca (1898-1936)
e Luis Cernuda (1902-1963).xiii
Lorca foi poeta magistral, criativo. Tomou a seu dispor, ao longo da vida,
diversos tipos de construções poéticas: romances, noturnos, gazeis (poesias
árabes, em tom sensual-amoroso), canções, cantos e suítes (poesias curtas,
interligadas e interligáveis). Sua obra é marcada, inicialmente, por referências à
sua terra natal, a província de Granada; neste momento, descreve paisagens e
historietas populares e religiosas, nas quais figuram cavalos, vacas, touros,
prados, rosas, a lua, e, variavelmente, a coragem, a violência física, os
sentimentos humanos mais violentos. Numa segunda fase, após viver alguns
anos na capital espanhola e viajar à América (conheceu os Estados Unidos e
Cuba), passou a apresentar uma poesia ainda mais intensa, reflexiva, confusa,
atordoada, e a explorar o elemento “cidade”.
Tomemos para análise mais aprofundada o poema Ciudad sin sueño.
Aqui, Lorca usa também elementos díspares associados, como quando diz que
“Hay un muerto en el cementerio más lejano/ que se queja tres años/ porque
tiene un paisaje seco en la rodilla.”; ou quando diz que “caballos vivirán en las
tabernas/ y las hormigas furiosas/ atacarán los cielos amarillos que se refugian
en los ojos de las vacas”. Aqui, entretanto, diferentemente dos poemas de De
Torre e Huidobro, Lorca parece ter a intenção de falar do sonho, sono, os dois
35

significados da palavra espanhola “sueño”. O eu lírico parece insone, confuso,


(“No duerme nadie por el cielo.”, “No duerme nadie por el mundo.”), e em sua
mente, em sua escrita, surgem, saltam imagens desconexas. Sua percepção
de um dado “real” é também ilógica, é contraditória: em determinado momento,
pontua que os homens que não sonham serão punidos (“Vendrán las iguanas
vivas a morder a los hombres que no sueñan”); em outro, pontua que serão
punidos aqueles que dormem (“Pero si alguien cierra los ojos,/ ¡azotadlo, hijos
míos, azotadlo!”).
A temática da noite é bastante cara a Lorca e está presente em
inúmeros outros poemas compostos por ele, como, por exemplo, Noturno del
hueco. Aqui repete-se uma quase impossibilidade de falar do lógico, do
plausível. O poeta recorre, pois, a figuras confusas e inesperadas para falar do
vazio da existência humana, de sua vida vazia, do amor que torna a vida mais
leve e mais bonita (“Basta tocar el pulso de nuestro amor presente/para que
broten flores sobre los otros niños”), mas que também é vazio, porque a amada
vive uma vida vazia, e ela mesma é vazia, o mundo “real”, a natureza são
vazios (“las formas concretas”), porque não têm propriamente um sentido, um
significado.
No entanto, neste poema declara que sua vida lhe parece estar
“definitivamente anclada”. Em Ciudad sin sueño, uma dita “realidade” lateja,
como brutal, não esquece, não perdoa; para encará-la, é preciso estar
desperto: “No es sueño la vida. ¡Alerta! ¡Alerta! ¡Alerta!”
Em Luna y panorama de los insetos Lorca aborda a contraditória relação
entre o que vem a ser “irreal” e o que vem a ser “real”. Primeiramente, toma a
noção de “forma”, e propõe que determinadas coisas assumiriam sentidos e
significados distintos, dependendo da conjuntura: “Mi corazón tendría la forma
de un zapato/ si cada aldea tuviera una sirena”; “Si el aire sopla blandamente/
mi corazón tiene la forma de una niña./ Si el aire se niega a salir de los
cañaverales/ mi corazón tiene la forma de una milenaria boñiga de toro.”
Conclui, destarte, que “Son mentira las formas.”
O que, então, de fato “existe”? A resposta é sempre uma rua de mão
dupla, e Lorca vai e volta. Assim, para ele, a lua é e não é real. Seria então real
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talvez a função biológica da respiração... Mas para ele “Son mentira los aires.”
E os insetos? Ora, os insetos são como o amor, que não pode ser visto (“no es
un caballo ni una quemadura”), mas que de fato se sente.

7. Vanguardas poéticas no México


No México, uma ruptura mais brusca com os preceitos literários
arraigados deu-se com o estridentismo de Manuel Maples Arce (1898-1980).
Mas pode-se dizer que seus manifestos têm um tom um tanto diverso do de
seus poemas. Nos primeiros apresentava, exultante, altruísta, uma estrutura
fragmentária, dinâmica, confusa, repleta de referências a autores e temas
nacionais mexicanos e estrangeiros. Preocupava-se com o nacional, com a
crítica irônica de determinadas tradições (como o culto aos chefes) e com a
valorização de determinados temas (a revolução, a culinária, as vestimentas
típicas).
No que diz respeito à sua obra poética, faz lembrar as rimas
despreocupadas de Velarde; e a introspecção paralisada, próxima à do autor
de Las desterradas; e numa estrutura bem pouco articulada, quase ao modo de
De Torre, Huidobro e Lorca.
Um bom exemplo é o livro Andamios interiores: poemas radiográficos,
de 1922. Conforme se pode notar pela leitura de Prisma, o poema mais
famosos da referida obra, Maples-poeta faz uso de construções fragmentárias,
imagens dinâmicas, simultâneas, confusas, e toca a temática da cidade
modernizada para falar do homem, suas percepções e seus papeis naquele
novo mundo. Aborda o sentimento de solidão e abandono característicos da
sociedade capitalista individualista. O universo parece ser, para ele, a forma
dolorida como o sujeito percebe as novidades à sua volta: “Yo departi sus
manos/ pero em aquella hora/ gris de las estaciones,/ sus palabras mojadas me
echaron al cuelo/ y una locomotora/ sedienta de quilômetros la arrancó de mis
brazos.”
Outros poetas que se uniram ao estridentismo de Arce são: Angel Salas,
Germán Cueto, Fermín Revueltas, Leopoldo Méndez, Ramón Alva de la Canal,
Silvestre Revueltas.
37

Paralelamente ao estridentismo, dois grupos de “novos” poetas


começaram a definir-se no México. De um lado, estavam aqueles responsáveis
pela publicação da revista estudantil El Heraldo Ilustrado y Policromias, críticos
tanto dos estridentistas quanto dos poetas mexicanos mais “clássicos” e
consagrados – trata-se de: José Gorostiza (1901-1973), Salvador Novo (1904-
1974) e Xavier Villarrutia (1903-1950). De outro lado, estavam aqueles ligados
à Revista Nueva e ao ilustre poeta González Martínez; um grupo por tantos
denominado “o novo Ateneo” (em referência ao célebre Ateneo de la Juventud)
– trata-se de Carlos Pellicer (1899-1977) e Jaime Torre Bodet (1902-1974),
Enrique Gonzalez Rojo (1899-1939; filho de González Martínez). Com a partida
deste último para o Chile, puderam os dois núcleos associarem-se em torno da
revista Contemporáneos, sob a aprovação e acompanhados pelo já
consolidado ensaísta e poeta Alfonso Reyes (1889-1959). Diferentemente dos
seguidores de Maples Arce, estes poetas cuidaram de travar discussões
morais e eram profundos conhecedores das vanguardas européias.
Segundo Guillermo Scheridan, este não foi o caso específico de
Villarrutia. Em 1923 este que é por muitos considerado o mais expressivo dos
literatos mexicanos abandonou o curso de Direito sob influência de Reyes,
visando dedicar-se inteiramente à produção literária. Viveu, daí em diante, de
suas publicações, assim como de bolsas de estudo e incentivos
governamentais (mexicanos ou estrangeiros) (SCHERIDAN: passim).
Em Nocturnos, o livro mais famosos de Villarrutia, publicado em 1933, o
eu-lírico sente-se livre para abordar temas não necessariamente característicos
de sua terra natal. Não explora temáticas tais como a vegetação, o solo, o
clima mexicanos; mas a neve e à cidade de Los Angeles. Não há a
preocupação em contextualizar rigidamente o local geográfico a partir do qual
as reflexões poéticas são tecidas.
Influenciado por versos de Velarde (como vimos, ícone da segunda
geração modernista/parnasiana/simbolista mexicana), Villarrutia apresenta-nos
poemas marcados por uma atmosfera introspectiva, que tocam ao homem
universal. Fala-nos de fé, do sagrado, da noite, mas em seus versos não
aborda “fugas”; aborda os universos possíveis e incompreensíveis do sonho e
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da morte – daí seus freqüentes noturnos, que têm muito pouco de sombrios;
são devaneios conceituais intrigantes e pouco claros (nos dois sentidos
correntes desta palavra).
Interessa-se pela noção de “fronteiras”, e as dissolve: o eu e o outro, a
vida e a morte, o sonho e a realidade aparecem confusos, misturados. É a
linguagem quem, muitas vezes arbitrariamente, determina que isto é isto e
aquilo é aquilo. A arte, na poesia, tudo aparece entrameado, complexificado,
interessante, vivo. Para ele, em Nocturno eterno, vida, grito, boca, solidão, céu
e fumaça “nada son sino sombras de palabras/ que nos salen al paso de La
noche.”
Villarrutia lembra, assim, a sensibilidade confusa e incomodada de
Murilo Mendes, Álvaro de Campos e Garcia Lorca. E com eles compartilha a
função do poeta de não mais construir versos perfeitos (Conforme qual
medida?), ou símbolos intrigantes (De acordo com que parâmetro?); mas de
construir percepções de real, explorando a linguagem e os símbolos.

Bibliografia:
BARRETO, Eduardo José Paz Ferreira. Tempo de Orpheu: Modernos Telestai.
In: --. Fernando Pessoa e Orpheu: Mitos da Modernidade - Gênese do
Real Através da Poesia. Tese de Doutorado defendida na PUC-Rio. Rio de
Janeiro, abril de 2004.
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Modernidade: vanguardas artísticas na
América Latina. São Paulo: Unesp, 1990.
BILAC, Olavo. A obra reunida de Olavo Bilac. S/L: Nova Aguilar, 1996.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. SP:
Martins Fontes, 1990.
GARCIA LORCA, Frederico. Antologia poética. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
GOMES, Ângela de Castro. Os intelectuais cariocas, o modernismo e o
nacionalismo: O caso de Festa. Luso-Brazilian Review. 41.1 (2004) 80-106.
GULLÓN, Ricardo. Direcciones del modernismo. Madrid: Gredos, 1963.
MENDES, Murilo. Historia do Brasil. S/l: Nova Fronteira, s/d.
39

___ Melhores poemas de Murilo Mendes. S/l: Global Editora, 1995.


MORSE, R. A volta de McLuhanaíma: 5 estudos solenes e uma brincadeira
séria. SP: Cia das Letras, 1990.
PESSOA, Fernando. Eu profundo e outros eus. S/l: Nova Fronteira, s/d.
RICO CERVANTES, Araceli. El estridentismo: outra alternativa de la cultura
de la revolución mexicana. Tesis para obtener la maestria em Historia em
la faculdad de Filosof[ia y Letras, Universidad Autónoma de México, 1978.
SCHERIDAN, Guilhermo. “Los contenporáneos’ y la generación de 27:
documentando un desencuentro. In: Cuadernos Hispanoamericanos.
Madrid: abril-mayo de 1993.
ZANETTI, Susana. O intelectual modernista como artista: Ruben Darío. In:
Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1.

Sites que divulgam poesia hispano-americana e espanhola, sempre-


consultados pela autora deste artigo
http://www.los-poetas.com/
http://www.palabravirtual.com/
i
Tais reflexões foram parcialmente publicadas. Cf. FERREIRA, Ana L.O.D. Diálogo, crítica e diversidade
nas vanguardas literárias mexicanas e brasileiras. In: Revista Intellèctus. Ano 06. Vol I – 2007.
http://www.intellectus.uerj.br/Textos/Ano6n1/Texto%20de%20Ana%20Luiza.pdf
ii
Em entrevista a Rafael Cariello, publicada na Folha de São Paulo, em 14 de novembro de 2006, sobre seu
livro O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Jorge Zahar Editor), e sobre o trabalho do filósofo
brasileiro, hoje.
iii
Outros clássicos-parnasianos brasileiros são: Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho.
iv
Outros clássicos-simbolistas brasileiros são: Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimarães e Olegário
Mariano.
v
Outros poetas portugueses inspirados pelo simbolismo são: Eugênio de Castro e Antonio Nobre.
vi
Outros poetas espanhóis deste período são: Alvarez de Cienfuegos Cobos, Ramón de Valle-Inclén,
Francisco Villaespera, Manuel Machado, Eduardo Manquina, Emilio Carnère.
vii
Outros importantes literatos mexicanos do período são: Manuel José Othón, Francisco González
Martínez, Maria Enriqueta Camarillo de Pereya, Rafael López, Alfredo R. Placencia, Efrén Rebolledo, e
Porfírio Barba Jacob.
viii
Dentre os literatos presentes na Semana, estavam: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del
Picchia, Sérgio Milliet, Plínio Salgado, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Renato de Almeida, Ribeiro
Couto e Guilherme de Almeida.
ix
Os fundadores destas duas revistas foram, respectivamente: Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de
Morais; e Andrade Muricy e Tasso da Silveira.
x
Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoaes, António Ferro, Arnaldo
Pereira, Joshua Benoliel, Stuart Carvalhaes, Almada Megreiros.
xi
Assinado por: Guillermo de Torre, Xavier Bóveda, César A. Comet, Fernando Iglesias, Pedro Iglesias
Caballero, Pedro Garfias, J. Rivas Panedas y J. de Aroca.
xii
Como ensaísta e acadêmico (De Torre foi professor de Literatura na Universidad de Buenos Aires),
destacam-se seus estudos comparados.
xiii
Além de: Pedro Salinas, Jorge Guillén, Vicente Aleixandre, Damaso Alonso, Rafael Alberti, Emilio Prados,
Manuel Altolaguirr, Fernando Villalón, Rafael Laffón, Juan Larrea, José Maria Hinojosa, Juan Domenchina,
Antonio Oliver, Miguel Valdivieso, José Bergamín

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