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O Milagre da Solidão

Lima Barreto foi, com Cruz e Sousa e Machado de Assis, um dos meus heróis
carlylianos de juventude — “the hero as man of letters” —, o tipo do sujeito que pela
força da auto-educação se eleva acima do meio opressivamente burro e se torna um
educador de seus opressores.

Que os três fossem pretos era coisa que não me comovia especialmente. A
discriminação que você sofre como parte de um grupo tem sempre o contrapeso da
solidariedade entre a multidão de coitados: quanto mais o expelem de um grupo, tanto
mais você se sente integrado no outro, e sempre resta a esperança coletiva de que os
oprimidos de soje sejam os opressores de amanhã. Ruim, mesmo, é a discriminação que
você sofre sozinho, sem o consolo da palavra nós e das ideologias salvadoras, rejeitado,
graças ao estima da diferença, mesmo pelos seus companheiros de raça, de religião, de
bairro, de geração. Aí você não tem para onde correr. Você é o próprio Cristo na cruz,
abandonado por todos, desprovido de semelhantes. Nenhuma ONG vai fazer lobby em
seu favor, nenhuma assembléia da Unesco vai denunciar que você é vítima de uma
grossa sacanagem, a rainha da Inglaterra não vai estipendiar nenhuma fundação para
socorrê-lo, nenhum editorial do The New York Times vai dizer que você é lindo e
maravilhoso como o João Pedro Stédile. Para todos os efeitos, você está excluído até
mesmo da classe dos discriminados. Você é aquela mancha de meio milímetro no canto
de uma foto do Sebastião Salgado.

Só o sujeito que passou por essa situação sabe que existe, no mundo, um tipo de mal
que supera tudo o que a mídia denuncia, e que pensando bem, é a raiz da porcaria
universal.

Explico-me. O herói do primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão


Isaías Caminha, não sofre somente porque é preto e pobre. Ele sofre porque é um sujeito
honesto num meio de vigaristas, um autêntico homem de letras num meio de farsantes,
um gentleman no meio de carreiristas vorazes e grosseiros. Enquanto preto e pobre,
consolava-se olhando a multidão de seus companheiros de infortúnio. Mas quantos
semelhantes teria ele nas qualidades excelsas que o destacavam e o isolavam? Quantos
irmãos tinha Cristo na cruz? A parte de Isaías que mais dói não é sua inferioridade
social: é sua superioridade moral.

Mas Isaías traz ainda a marca do ressentimento racial. Ao escrevê-lo, Lima Barreto
sente-se ainda o membro de uma determinada comunidade excluída e fala em nome
dela. O livro resvala às vezes para o desabafo direto e, quanto mais se aproxima de uma
cópia literal da realidade empírica, mais perde em altitude. O próprio Isaías também é
de pouca estatura: ele é melhor que os outros, não mais forte: débil e tímido, reduz-se a
uma vítima passiva das circunstâncias, tudo se resolve numa horizontalidade deprimente
e, como dizia Antonio Machado, “cuán dificil es/ cuando todo baja/ no bajar también”!

No romance seguinte, Lima Barreto abdica de toda referência a uma injustiça social
presente. O major Quaresma não pertence a nenhum grupo discriminado.
Não tem nenhum handicap que o identifique a esta ou àquela multidão de vítimas. Ele é
auto-suficiente na luta pela vida. É mais forte, mais inteligente e mais valente que seu
antagonista, o presidente Floriano. Quaresma não é discriminado porque algo lhe falte,
mas porque tem força de sobra e a generosidade de querer ajudar a seu povo. Este
segundo herói de Lima Barreto adquire assim uma altitude que faltava a Isaías. Ele já
não é o personagem de um mero drama social, mas o herói de uma tragédia. Segundo
Aristóteles, é essencial que o herói trágico seja um homem poderoso e especial: fora
disso suas desventuras assinalariam apenas uma conjunção acidental de circunstâncias,
suprimível e sem o alcance de uma fatalidade cósmica inexplicável.

Mas a derrota do major ainda é parcialmente explicável. Ele é um gênio criativo, mas,
convenhamos, suas idéias são bem esquisitas. Ele tem esse resíduo de fraqueza, a meia
loucura que o coloca a meio caminho entre o herói e o anti-herói. É por esse flanco que
o inimigo consegue feri-lo. A morte de Quaresma nos deprime, mas não nos escandaliza
como um absurdo completo. Há nela algo de razoável: o ideal do reformador era
incompatível não só com o ambiente mesquinho da República florianista, mas com a
realidade tout court.

Esse último pretexto da injustiça é enfim abolido num romance seguinte de Lima
Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Gonzaga é um Policarpo Quaresma sem
demência, um Isaías sem o handicap da juventude e da timidez. É um grande homem
em toda a extensão da palavra — e sua vida termina no isolamento e na resignação, mas
não na derrota. Solitário entre seus livros, o sábio desenganado observa o mundo com
um olhar sem ressentimento nem sentimentalismo, cheio de uma compreensão serena
que lembra, por mais de um aspecto, a do conselheiro Aires, mas livre daquele resíduo
de negativismo schopenhaueriano que foi até o fim a marca registrada de Machado de
Assis.

A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor,


retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o
combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de
pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma progressiva
depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação empírica imediata
para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma medida, se desliga de
todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma vida não na vingança, mas
no perdão.

O perdão, aqui, não deve ser entendido na acepção beata e sentimental, mas no sentido
etimoçógico de per-donare, completar o dom: o mundo não nos persegue porque é mais
forte que nós, mas porque é mais fraco. Ele nos persegue porque algo lhe falta: a
sabedoria. Como no verso de Santayana: “O world, thou choosest not the better part!” .
Ao superar o ressentimento coletivo, o sábio “escolhe a melhor parte” e é o único que,
no fim das contas, é rico o bastante para ter o que dar. Gonzaga não é verdadeiramente
derrotado. Expelido do mundo, prossegue a busca da verdade, sempre disposto a
compartilhá-la com o discípulo que o procure. “The hero as man of letters”: o oprimido
tornou-se educador do mundo opressor.

Juntas, as três obras maiores de Lima Barreto formam um poderoso Bildungsroman —


o romance da vitória de uma alma sobre si mesma e, por meio disto, sobre o mundo(*).
A transfiguração do oprimido em benfeitor é um milagre que se repete incessantemente
na história. Raramente houve um sábio, um santo, um mestre cujos prodígios de
generosidade não brotassem dos extremos de discriminação e solidão padecidos na
infância, vencidos e superados pela alquimia da maturidade. É a mensagem final do Rei
Lear: “Ripeness is all”.

Mas isso só acontece àqueles que sofreram a discriminação sozinhos, sem ter uma raça,
um partido, uma ideologia, uma ONG e fundações internacionais a que se agarrar.
Quem tem essas coisas não precisa atravessar o caminho da ascese interior. Pode
encontrar alívio e reconforto na ilusão de que o ódio dos vencidos é um sentimento
moralmente superior ao orgulho dos vencedores. Pode escapar da solidão fundindo-se
na massa vociferante dos companheiros de partido, sonhando morticínios justiceiros que
serão, na sua cabecinha imunda, a apoteose do bem. Foi dessa ilusão sangrenta que a
leitura da trilogia de Lima Barreto me libertou, mais de trinta anos atrás.

A diferença entre povo opressor e povo oprimido é apenas questão de ocasião, e a


“solidariedade com os oprimidos” é apenas o véu ideológico que bsuca embelezar e
legitimar, de antemão, os massacres de amanhã. Esse reconforto “ético” é, no fundo,
uma fuga da consciência: todo povo oprimido esconde os lances vergonhosos de sua
própria história, para poder acreditar-se melhor que os opressores. Não há um só
movimento de libertação e de direitos que não se funde nessa mentira essencial, em que
se afiam os espetos de futuros holocaustos. Durante um milênio faraós negros
arrancaram sangue do lombo semita, para terminar sendo vendidos como escravos e
hoje tentar comover o mundo com seu discurso contra os judeus comerciantes de
escravos. Os alemães encontraram na humilhação coletiva a inspiração para perseguir os
judeus, e a fumaça do holocausto ainda santifica o fuzil israelense a cada tiro que
dispara sobre um palestino armado de pedras.

Reihold Niebuhr assinalava a diferença de nível ético, estrutural e intransponível, entre


o indivíduo e a comunidade. Para o indivíduo, o sofrimento pode ser o princípio da
sabedoria. Para a comunidade, é o motor da violência, que puxa o carro da história na
direção da fornalha ardente em cuja beirada um cartaz anuncia: “Justiça e Paz”. Em face
disso, a serenidade de M. J. Gonzaga de Sá é a resposta final aos padecimentos do
jovem Isaías Caminha, e o heroísmo semilouco de Policarpo é uma etapa, a ser vencida,
no caminho do entendimento.

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–Cide Mafamede Abraão, ou OLAVO DE CARVALHO

(*) É a única obra desse gênero na nossa literatura, se descontarmos a novela de


Guimarães Rosa A Hora e Vez de Augusto Matraga, a que o filme de Roberto Santos
deu interpretação inversa, injetando-lhe aquela mistura de negativismo brasileiro e
marxismo de botequim que torna a redenção de Matraga um gesto inútil por não se
enquadrar, como ato isolado, na estratégia geral do Partido.

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