mala cheio de medicamentos. Todo marinheiro acha que conhece o suficiente de medicina para poder usá-los até que algo acontece. Aí ele abre o armário na esperança de encontrar alguma coisa que resolva o seu problema e depara-se com uma mixórdia de frascos, pílulas, prazos de validade vencidos e nomes desconhecidos. A solução (que temos dificuldade em aplicar no nosso próprio veleiro Bikini) é a organização por patologias básicas dentro de um sistema em que o próprio interessado tenha mais conhecimentos. Por exemplo, um profissional de saúde pode classificar sua farmácia por patologias: diabetes, angina, etc... Uma outra pessoa com conhecimentos mais básicos classificaria por sintomas tipo dor de barriga, febre ou corrimento vaginal. Muitas vezes me procuraram durante a volta ao mundo para organizar uma farmácia. Os barcos me surpreendem com a quantidade e qualidade dos medicamentos a bordo e se pergunto como tratam uma dor de cabeça vejo que não sabem usar nem uma aspirina. Um dos lugares onde encontrei uma medicina mais básica foi no arquipélago do Reino de Tonga. Fazia dois anos que estava sem trabalho hospitalar. Havia deixado a UTI do hospital onde trabalhava e cruzado o Pacífico com calma e em solitário. Ao ancorar em Vavau, a grande ilha ao norte de Tonga, estava disposto a fazer algo que me tirasse daquela rotina de céu estrelado, mar azul transparente e ventos favoráveis. De início pareceu que tudo ia continuar igual, estávamos tranqüilos. Um grupo de espanhóis tinha um restaurante onde a animação era diária. Ali conheci Tony, um médico italiano estabelecido em Vavau há dois anos. Ele tinha uma formação como dermatologista e agora tinha de fazer clínica geral. Vavau é um lugar regulando em tamanho e aspecto com Porto Seguro da Bahia, só que cercada por cerca de duzentas pequenas ilhas quase todas habitadas. Enquanto que na sede da vila havia um hospital com equipamentos e pessoal médico, nas ilhas não havia nada. Quando me conheceu Tony percebeu que poderia ajudá- lo na montagem de uma ambulância marítima que prestaria socorro aos ilhéus. Dispúnhamos de uma lancha de madeira cabinada com cerca de oito metros. Faltava organizar a farmácia de bordo e os equipamentos que transportaria. Neste caso organizamos por ordem alfabética a partir do nome genérico do produto. Simples para médicos, mas para o leigo uma fonte de dúvidas e raciocínios errôneos na maior parte das vezes. Alguns meses antes seu auxiliar kanaca havia classificado tudo por cores das embalagens e tamanho dos frascos e era difícil convencê-lo a mudar, pois havia tratado com sucesso uma criança que estava vermelha e muito quente – escarlatina - com o remédio da caixa vermelha, uma cefalosporina indicada para o tratamento! Depois disso organizei em vários barcos um esquema simples e abrangente e com ele mantive minha saúde e de minha família durante os dez anos de viagem com paradas para tratamento de saúde apenas em casos de vacinação e visitas ao dentista.
Nos antigos veleiros, o "chest", o baú de medicina era
abastecido com ungüentos, láudano (ópio) e purgativos que variavam de acordo com a cultura do porto de origem. O Rum era usado como revigorante, mas muitos veleiros em uma certa época eram secos, ou seja, a porção de rum era substituída pelo café ou pelo chá. Havia ainda os ferros para cauterizar e fio de cânhamo para suturar. No Bikini levo vários instrumentos. O estetoscópio para auscultar corpos humanos, mas também para o bater das válvulas do motor ou o casco que reverbera. Deveria estar presente em qualquer farmácia bem equipada. Já o esfigmanômetro para medir a pressão arterial é frágil no ambiente marítimo e necessita de maior treinamento para sua utilização. Uso mais a avaliação do sistema circulatório através da palpação dos pulsos periféricos. É recurso da maior validade e na Medicina Tradicional Oriental amplamente usado para diagnóstico.Além disso, a tomada do pulso é o contato físico que estabelece a relação médico-paciente. Carregamos também um AMBU (respirador manual) que pode assegurar uma ventilação adequada, sempre lembrando que em uma emergência a respiração boca a boca dever ser iniciada pois é salvadora de vidas. O laringoscópio para intubação e remoção de corpo estranho, o oftalmoscópio para exame do fundo do olho e o otoscópio são ferramentas do médico. O otoscópio para exame do ouvido é o que considero mais útil devido ao grande número de vezes que o utilizei. Infelizmente a técnica de uso é dificilmente adquirida o que limita sua utilização ao profissional experiente. O termômetro é necessário. Serve para diagnóstico e monitorização das hipo e das muito mais freqüentes hipertermias. Nas crianças devido a sua grande variação termal deve sempre ser usado. Monitora o uso de antitérmicos (o grupo de drogas mais usado) e antibióticos (o mais mal usado)! Como o objetivo final de qualquer farmácia são as drogas normalmente levo a quantidade necessária para um tratamento completo. Tento observar os prazos de validade (a validade normal é de apenas um a três anos), mas uma volta ao mundo dura no mínimo esse tempo e a maioria dos velejadores fica muito mais tempo a bordo. Como os medicamentos são frágeis e se deterioram fácil com a água salgada molhando tudo com o abrir e fechar da farmácia devemos carregar medicamentos que se substituam ou se complementem entre si.
Antibióticos:
Durante uma viagem longa como foi a do Bikini troquei
meu arsenal medicamentoso algumas vezes. Os antibióticos causaram uma revolução na medicina a partir dos anos 50 e tem um poder curativo salvador de vidas como poucos outros. Sabemos que muitas espécies podem infectar o homem. Quase tantas drogas quanto àquelas espécies seriam necessárias. Felizmente as bactérias que são as mais numerosas se dividem em dois grandes grupos a partir de sua coloração ao microscópio e várias propriedades em comum. São as gram positivas e as gram negativas. Para elas dois grupos diferentes de antibióticos devem ser usados a partir de algumas características e sinais das infecções. No Bikini tinha um estoque de penicilina e cloranfenicol no inicio da viagem, e cefalotina e gentamicina mais para o final. São antibióticos de uso intramuscular, de poucos efeitos colaterais se bem manuseados, e que cobrem praticamente todas as infecções bacterianas. Hoje transporto a ceftriaxona, cefalosporina de terceira geração cuja dose de uma grama intramuscular por dia trata quase todas as infecções. A gentamicina também é usada em injeção intramuscular e se aplica em infecções do trato urinário, digestivas e associada à ceftriaxona em todas as infecções graves.O metronidazol em comprimidos está indicado em gastrenterites e diarréias do viajante e em casos de infecções por protozoários em vaginites da mulher. A sulfa, o primeiro antibiótico descoberto na Alemanha ainda é usada amplamente e aparece na forma de pomadas e associações em cápsulas conhecidas por Bactrim. São úteis no tratamento de infecções urinárias, diarréias e bronquites.
Analgésicos:
A cefaléia ou dor de cabeça é a dor mais comum dos
navegadores. Pode ter muitas causas, podem ser graves, mas comumente apenas refletem situações sistêmicas. Talvez a ressaca pós-alcoólica seja o melhor exemplo, além da tensional, do jejum, das pequenas intoxicações. Creio que a bordo podemos levar três diferentes tipos que devem ser usados em situações diferentes: - AAS, a aspirina sempre muito usada. Como tem contra indicações pode ser substituída pela dipirona ou pelo acetaminofen. Serve para alívio de mialgias e cefaléias. Muitas vezes têm apresentações interessantes, embalagens práticas, associação com vitamina C, dosagem pediátrica. - Antiinflamatórios não hormonais: São chamados assim para diferenciá-los dos corticóides. Ainda o mais comum, com várias apresentações é o diclofenaco muito útil em traumas e em situações que se queira inibir uma inflamação ou edema. - Opióides: Em casos extremos de dor o navegador deve providenciar o embarque deste tipo de droga. É a única maneira de superar dores intensas já que além do efeito analgésico, tem a propriedade de colocar um indivíduo num torpor em que qualquer tipo de problema se torna menor, possibilitando então agir de maneira mais racional sem pânico. A codeína e a morfina podem ser tomadas via oral, e a própria morfina e outros derivados sintéticos podem ser injetados no subcutâneo, no músculo ou nas veias. A associação com os outros dois tipos de drogas acima também é possível a fim de evitar overdoses.
Antieméticos:
As medicações que evitam as náuseas e vômitos são
extremamente úteis para o velejador. Além de usá-las no caso do enjôo marinho, podem ser administradas em uma variedade de casos. A clorpropramida (Plasil®) tem sido utilizada há muitos anos e pode ser injetada ou usada em gotas pediátricas. Se usar gotas procure usá-la pura e utilizá-la o mais precocemente possível senão não será absorvida e pode ser regurgitada. O uso intramuscular é adequado e sem contra-indicações. Leva a uma leve sonolência. O dimenidrinato (Dramin®) tem efeito similar.
Antialérgicos:
Os antialérgicos são drogas eficazes em alguns tipos de
alergias. Muitas vezes um alimento, uma picada de inseto ou produto químico causam reações como eritema (vermelhidão da pele) edema (inchaço) e prurido (coceira). Nestes casos a tradicional prometazina (fenergan®) deve ser usada principalmente em sua apresentação liquida para crianças.
Corticóides:
Mais uma categoria de drogas das mais importantes da
farmacopéia universal e da farmácia de bordo. São derivados do cortisol um hormônio natural do corpo humano que esta indicado na inibição da resposta inflamatória do organismo. Deve ser usado em casos de alergias graves e choque anafilático
Pomadas ou ungüentos:
São sempre muito usados. As extremamente polivalentes
com antifúngico, antibiótico, e cortisona para o efeito antiinflamatório são muito encontradas e podem ser usadas. As pomadas podem ser usadas em grandes quantidades. Assim carrego comido um tubo de pomada de hidrocortisona, outro de antibiótico (neomicina ou tetraciclina) além de creme nívea, com isso manipulo as pomadas e cremes o mais adaptados às situações.
O principal é não termos grandes paranóias em relação
às doenças. E o capitão antes de sair do porto, deve conhecer as propensões ás doenças que sua tripulação tem. Com estas informações ele talvez possa se safar melhor de possíveis problemas de saúde durante sua viagem. Não adianta ter uma quantidade enorme de medicamentos e kits de primeiros socorros a bordo. Apenas um kit prático e o mais completo possível.
Um caso interessante de mau uso de farmácia ocorreu
com um velejador francês que conhecemos na polinésia. Quando se encontrava na Papua New Guinea nativos foram a bordo perguntar se ele tinha algum remédio para a mãe que estava passando mal. Sem jeito de recusar acabou fornecendo algumas drogas de que dispunha. Passado algum tempo os caras voltaram a bordo e passaram a espancá-lo por que a mãe tinha morrido após tomar seus remédios. Só pararam quando sua mulher disparou uma arma e fugiram. Ele ficou muito mal e tiveram dificuldades para manobrar o barco. Isto ilustra como os remédios podem ser perigosos para quem não souber usá-los.
Limpeza e esterilização:
Para prevenir infecção em feridas, queimaduras e outras
condições todos os instrumentos e curativos devem ser estéreis. Muitos curativos podem ser embalados já estéreis e só devem ser abertos no momento do uso. Os instrumentos ou também já estão em pacotes descartáveis pré-esterilizados e são muito convenientes para o uso. Instrumentos que não são descartáveis devem ser esterilizados instantes antes do uso com produtos químicos ou fervidos em água por no mínimo dez minutos. Quando usá-lo a parte que irá tocar na ferida não deve ser tocada nem pelo doente nem pelo operador. As mãos, pulsos e antebraços devem ser lavadas com água e sabão e após imersas em álcool.
Procedimentos:
Injeções:
No mar, a injeção de um medicamento pode ter muito
valor já que o enjôo é a doença mais freqüente e as pessoas não conseguem reter nada no estomago e também porque os inconscientes não conseguem engolir. Elas podem ser feitas sob a pele ou dentro de um músculo. Não se esquece de perguntar antes da injeção se esta pessoa não é alérgica ao medicamento. O local para uma injeção intramuscular é na nádega logo abaixo da espinha ilíaca (osso do quadril) na linha entre essa e o inicio da prega divisória das nádegas. A agulha deve ser colocada no local certo para evitar ossos artérias e veias. A agulha é inserida num ângulo de 90° por cerca de três centímetros no terço superior da linha entre a espinha ilíaca e o início das nádegas. Até poucos anos aceitava-se a injeção no músculo deltóide no braço, mas a massa muscular é muito menor contra-indicando este local. Na subcutânea a pele deve ser limpa com uma solução alcoólica e pinçada entre os dedos formando uma prega sendo a agulha inserida perpendicularmente na camada gordurosa abaixo da pele cerca de um centímetro. O máximo efeito se consegue em cerca de 30 minutos. Na injeção intramuscular o medicamento é absorvido mais rapidamente e fará efeito na metade do tempo. Em doses sucessivas devem-se alternar os lados. Tenha muito cuidado antes de injetar qualquer droga. Se tiver dúvidas não use e sempre leia as informações com o nome, dosagem e data de validade.
Lembre-se que a limpeza é essencial. Jamais toque na
agulha com seus dedos antes de injetá-la para dentro de uma pessoa. Quebre a ponta da ampola e coloque a agulha na seringa. Aspire o conteúdo da ampola e injete a droga no local certo.
Suturas:
Se você decidir que uma sutura é necessária porque
uma ferida não pode ser bem fechada usando apenas esparadrapo, você irá necessitar fio e agulha, normalmente encontrados na farmácia de bordo em embalagens fechadas e estéreis que devem estar fechadas até o momento de uso. Uma pinça e tesoura estéreis também serão necessárias. Use a esterilização por álcool nesses materiais ou ferva por no mínimo 10 minutos. Primeiro decida exatamente o que você quer fazer. Por exemplo, se o corte for linear quantos pontos serão necessários? Se o corte tiver o formato de estrela como você juntará os diferentes retalhos. Lave apenas com água corrente o interior da ferida e na pele em volta sabão e uma solução de álcool iodado para fazer assepsia. Lave novamente suas mãos e use um anestésico local injetável no subcutâneo ou em spray. Abra o pacote estéril e tire a agulha com a pinça. Aproxime as bordas e faça o primeiro ponto na região central assim progredindo até fechar a ferida. Após cada ponto dê um nó triplo e corte o que sobrou da linha.
Cuidados gerais com doentes:
Quando uma pessoa fica doente o primeiro passo é
tentar um diagnóstico, saber a causa do problema. Algumas vezes é tudo muito evidente. Outras podem ser muito difíceis. Uma metodologia adequada e fazer varias anotações ajudam. Você pode precisar transmitir informações e buscar auxílio pelo rádio ou quando encaminhar o doente para um hospital ao chegar ao porto. De inicio pergunte e anote o que a pessoa esta sentindo e quando começou. Pergunte sobre doenças passadas e lembre-se que a situação pode piorar e a fonte de informações falhar. Observe sua aparência geral e anote se esta suando, pálido ou azulado, ictérico ou ansioso. Depois, se possível retire as roupas e examine o corpo. Procure por lesões, erupções ou hematomas. Meça a temperatura, o pulso e a freqüência em que respirar e anote estes dados de tempos em tempos. Se houver catarro, vômitos ou outros líquidos expelidos anote o aspecto e a quantidade. Esta será a ficha médica do paciente e como nos hospitais e consultórios é o documento legal sobre o doente. Lembre-se também que os cuidados de enfermagem são vitais para a recuperação de todos os doentes. Atenção aos detalhes e ao conforto aliviam o sofrimento de uma pessoa doente. As atitudes morais também são importantes. Carinho, ajuda e procedimentos bem feitos podem ter grande influência para a melhora de um doente. E o inverso também é verdadeiro. Quando for possível ao doente deve ser reservada uma cabine bem ventilada e iluminada com o mínimo possível de acessórios a fim de evitar deposição de poeira e bactérias e permitir a circulação de ar ambiente assim como evitar o contato com o resto da tripulação.
Curativos:
Um curativo comum consiste de uma grossa camada de
gaze presa por uma atadura ou faixa de pano limpo. O curativo deve ser estéril, ou seja, sem bactérias, assim, quando abrir um pacote de gaze não se deve tocar na superfície a ser aplicada sobre o ferimento. Na nossa farmácia devemos levar ataduras elásticas e esparadrapo para fixar curativos feitos com gaze ou panos limpos.
No veleiro Bikini, há alguns anos atrás a farmácia
dividia-se entre um armário com espelho, onde guardávamos o mais usado: Pílulas, xaropes, gaze e esparadrapo; Numa caixa plástica estanque, forte para manter seu conteúdo limpo e seco ficavam os materiais que nunca gostaríamos de ter de usar mas que considero como o mínimo para termos possibilidade de intervir no curso da doença se ela aparecer.
1- Anestésicos locais injetáveis ou spray (lidocaína)
2- Sedativos (diazepam) comprimido e injetável 3- Antibióticos. a) cefalosporina comprimidos e injetável, b) aminoglicosídeo injetável. c) metronidazol comprimidos). d) Sulfametoxazol/trimetropina em comprimidos. 4- Medicação antihistamínica para reações alérgicas. (fenergan xarope) serve também como tranqüilizante. 5- Material cirúrgico: 6- a) pinça. b) fio com agulha. c) tesoura. 7- Seringas e agulhas para as drogas injetáveis. 8- Adrenalina ampola para ressuscitação 9- Analgésicos a)dipirona gotas, acido acetilsalicílico comprimidos. b) antiinflamatório não hormonal para traumas c) morfina ou similar 10- Corticóide comprimido e injetável 11- Antiemético injetável e gotas: 12- escopolamina ou metoxilato para enjôo. 13- Vitaminas B e C em cápsulas. 14- Pomada com antimicótico e antibiótico . 15- Pomada de corticóide. 16- Atadura elástica e esparadrapo. 17- Gotas otológicas. 18- ungüento oftálmico e colírio estéril.