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O nome dado à planta "Brasil" (2) (Caesalpinia echinata Lam., Caesalpinianceae) serviu
em seguida para batizar terras ocupadas pelos portugueses em 1500.
Uma outra planta, a "Jurema", representa até hoje, na polissemia deste termo, um ponto
de vista e uma resistência étnica dos nordestinos autóctones.
A dimensão histórica de nossa pesquisa revela a Jurema como um fio condutor de um
traço cultural, distintivo do componente indígena da cultura popular, regional e nacional.
Numa primeira fase da colonização, a resistência dos povos indígenas no Nordeste, não
permitiu que a Jurema, enquanto árvore sagrada, fosse conhecida, em seus usos e
significados, não sendo assim documentada pelos colonizadores e estrangeiros.
Numa segunda fase histórica a Jurema representa um elemento ritual ligado à própria
resistência armada dos povos indígenas ou à guerra empreendida contra inimigos inclusive
em suas alianças.
Ainda nesta fase na qual a Jurema começa a ser documentada, seu significado ainda não
é entendido, mas seu uso já é motivo de repressão, prisão e morte de índios, como
veremos a seguir.
Da pré-história à história
Se bem que dispomos de fontes documentais sobre esta planta, já do século XVI (3),
Câmara Cascudo (4) refere-se a um primeiro registro oficial - registro de óbito do índio
Antônio, da cidade de Natal (RGN), de 2/6/1758: "Sabia-se que este estava preso por
razões do sumário que se fez contra os índios de Mopibu, os quais fizeram adjunto de
jurema, que se diz supersticioso".
Ainda do século XVII e XVIII, registros disponíveis dão conta que a Jurema, enquanto
vinho alucinógeno, foi também usado na região amazônica. Além de movimentos
migratórios, como o movimento messiânico de época cabralina dos guaranis em busca da
terra sem mal - Lima (5) apela também para o envio de índios juremeiros do Nordeste
para combaterem os invasores franceses no Maranhão, como hipótese explicativa da
expansão deste uso sagrado da Jurema, para além do Nordeste.
Constatamos por um lado que o uso primordial e cerimonial da Jurema sagrada passou
desapercebido ou não pode ser observado e descrita por colonialistas viajantes,
naturalistas e outros estudiosos nestas terras, numa primeira fase considerada diabólica,
mágica ou bruxaria pelos colonizadores católicos ou mesmo pelos inquisidores, tudo o que
fizesse parte do sistema médico-religioso autóctone, parece, entretanto que a Jurema foi
tolerada e aceita, quando canalizada pela lógica da guerra de portugueses contra
franceses, no Brasil colonial.
Quanto ao uso do vinho da Jurema, entre indígenas no Nordeste, não apenas pelos
chefes religiosos, ou velhas cantadeiras, como também pelos guerreiros, Pereira de
Alencastre em suas Memórias de 1857, confirma que isto era feito "especially before going
to war" (apud Lewie, R.). (6)
"... cantos e danças em trajes especificados como indígenas (pena, arco e flecha, colares,
máscaras), e acompanhados do uso de grande quantidade de tabaco e da ingestão de
Jurema, bebida alucinógena preparada com entrecasca da Juremeira" (Oliveira, 1937,
Hohental Jr., 1954, Pinto, 1956, Martins, 1985).
Até final dos anos sessenta, quando tivemos oportunidade de visitar algumas das áreas
indígenas - sobretudo do estado de Pernambuco e limites dos Estados de Sergipe, Alagoas
e Bahia, em pesquisa sobre a Música Popular Religiosa - a situação dos índios parecia de
franca decadência, com situações deploráveis e estado de miséria, mendicância, abandono
e progressiva situação de violência, cada vez mais isolados ou dispersos no histórico
contexto de exploração e invasões da economia e sociedade nacional.
3) Povos não "reconhecidos" - pelos menos até bem recentemente - pelo Estado brasileiro
e com presença marcante de mobilização do tipo referido: todos "emergentes", Xokó,
Pankararé, Tingui-Botó, Wasu, Kapinawá, e mais recentemente, Tapaba, Karapató.
4) Povos não "reconhecidos" e que afirmam muito tenuemente uma etnicidade, não a
mobilizando como expressão política: os Trenembé do litoral Norte do Ceara (Seraine, 1956,
os Akroá no Piauí, os Arikobé no Oeste da Bahia, os Payaku de Caraúbas no
Novo, 1967),
Rio Grande do Norte (Carvalho, 1984), e certamente muitos outros.
O líder indígena - e indigenista, técnico da FUNAI, Sr. José Heleno, filho do pajé da aldeia
Kariri-Xoko, teve que consultar primeiro seu pai quanto às informações que nos poderiam
ser transmitidas.
Para ele a aldeia dos Kariri-Xoko é a única que guardou o segredo do preparo e uso
cerimonial da Jurema, havendo também este uso entre os Xokó, na Ilha de S. Pedro.
As raras e recentes referências escritas quanto ao uso cerimonial da jurema - Cf., por
exemplo, Torres (9) - não são aceitas como válidas pelo Heleno. Ele que teve freqüentes
oportunidades de discutir a este respeito com Torres, explica que pelo fato daquele autor
não acreditar na religião indígena, e nunca ter tido acesso aos segredos do uso da
Jurema e da comunicação com os mortos, seu diálogo ficou impossível, ficando, segundo
ele, o "dito pelo não dito... (os índios) a gente sabe como um morto está no outro
mundo!".
O índio Moacir Pires, outro informante autorizado pelo pajé, filho de um curandeiro Kariri-
Xoko, herdou de seu pai muitas receitas da medicina do índio. Em sua área "tem Jurema
de três qualidades: da roxa, da preta e da branca". A J. preta e a J. roxa têm flores e só a
preta tem espinho. A J. roxa é usada pelos Kariri-Xoko para "limpar o corpo", ou seja,
para "limpeza da matéria", fazendo-se para isto defumadores para se "livrar dos
espíritos". Segundo ele usa-se "para o branco, para expulsar espíritos malignos".
O índio Domingos Estevão Lima da área Geripancó, mora em um sítio afastado da aldeia,
que fica a seis quilômetros da sede no novo município de Pariconha (desmembrado do
Município de Água Branca - AL), em terras que estão ainda sendo demarcadas há anos.
"Os Geripancó têm os papéis, mas eles eram mais bobos, quer dizer eles tinham medo de
morrer", diante das constantes investidas e avanços dos brancos que iam invadindo aos
poucos as terras indígenas.
Quanto à Jurema para os Geripancó, explica o Senhor Domingos que há dois tipos: J.
preta, também chamada J. de caboclo, a que tem espinho; e a J. branca, que também
tendo espinho tem sua flor branca. A diferença é visível e mesmo em seu roçado há das
duas, encontrando-se "matas delas". A J. preta pela flor se conhece, é a que tem uma
"palma", um "pendão".
Continua nosso informante: "O pajé tira a casca da J. branca, que eu já vi ela
descascada. Mais nunca o vi tirando a Jurema. Ele é que tem a ciência dele para isto. Ele
vai (coletar) com mais um", (outro índio, seu auxiliar). No trabalho (cerimônia) se toma
um golinho. Todos ficam calados, sem poder fazer anarquia e cada um recebe o copo,
para beber um pouco. O pajé sabe fazer o remédio. "Tem gente que usa adoidado e bebe
dizendo que serve para dor de cabeça".
Saraiva, há quarenta anos casou-se com uma neta do pajé e juntamente com o índio José
Ferreira - mais conhecido como José Botó -, estão na origem da nova reserva Tingui-Botó
de Olho d'água, município de Feira Grande, no agreste alagoano. Pela importância de sua
liderança, tendo sido um elemento importante da ligação da população indígena local com
a FUNAI e com o movimento indígena, tornou-se há anos o cacique dos Tingui-Botó.
Segundo Saraiva, dentre as aldeias do Nordeste apenas três conhecem efetivamente o uso
cerimonial da Jurema: Os Tingui-Botó, sua aldeia; os Kariri-Xoko e os Funiô.
Heleno, nosso primeiro informante, complementa dizendo que os Funiô, mesmo não
sendo descendentes dos Kariri-Xoko, os que guardam a tradição cerimonial da Jurema,
aprenderam ou reaprenderam em sua aldeia, Porto Real de Colégio. Segundo sua versão,
foram dois irmãos Funiô, Luiz Cruz e José Álvares da Cruz, que inclusive já morreram, os
responsáveis pelo uso cerimonial da Jurema em Águas Belas (Funiô, de língua Iatê).
Retomaremos esta questão a seguir.
Saraiva, o cacique Tingui-Botó, distingue em sua área dois tipos de Jurema: a branca,
"sem espinho, como se fosse a fêmea; e vermelha, de espinho e que apresenta casca e
entrecasca de cor avermelhada, identificando-a ainda como sendo a mesma chamada J.
preta, em outras regiões, pois a "pelizinha" mais externa do caule desta planta é preta,
nem por isto sendo lá chamada de preta. Quanto à característica da J. preta como planta
tóxica, lembra que apenas "basta que o espinho atinja um vivente", para haver um grande
efeito nocivo. Mas que não existe deste tipo em sua área. Finalmente esclarece o
informante que "todas (as variedades da Jurema) têm prestígio", havendo ainda o que
também se chama de Jurema de caboclo - cuja folha parece com a do Mussambé - ou
ainda é chamada de Jurema de Nagô, que é cheirosa, sendo cultivada e com uso
cerimonial na Umbanda, o que ele faz questão de dizer que não quer saber.
Os estudos de Pinto (10), realizados no início dos anos cinqüenta, entre os Funiô de Águas
Belas (PE) - que contou com a participação importante do lingüista Geraldo Lapenda - dão
conta da existência da Jurema, naquela região dentre as "plantas típicas dos terrenos
silicosos". Ele cita M.H. Boudin para afirmar que os índios de Porto Real de Colégio tomam
parte do ritual ouricuriano, incorporando-se à sipe dos Peixes. Ainda segundo Pinto:
"As festas ouricurianas de caráter secreto, com máscaras, só existem em Águas Belas, em
Porto Real de Colégio e Olho D’água do Meio (município de Arapiraca, AL.). Os Pankararú
mantém uma festa secreta... Na Serra de Umã, o toré começa debaixo de certos
"mistérios", tornando-se logo depois, público e acessível a todos. O "ouricuri" de Rodelas
já não tem segredos, e entre os Shucuru, não se pratica mais esse cerimonial, pelo menos
com as características do dos índios da Serra do Comunati. O segredo em torno do ritual
ouricuriano garante, como observa Dias de Silva, a "continuidade da tribo" e constitui um
dos elementos mais fortes de sua coesão social. Sabe-se que os infratores dessa
interdição correm riscos pessoais e, quando se trata de algum Funiô o resultado é sua
morte prematura ou misteriosa".
Finalmente, quanto ao uso cerimonial da Jurema, entre os Funiô de Águas Belas, único
grupo no Nordeste a preservar sua língua, diz Pinto (Op. Cit. p. 165):
"Cabe à gente dos grupos do Porco e do Pato a tarefa que se encarregam do preparo da
Jurema, que, posta nas coités, é dada a beber aos novos oficiantes. Após a bebida, os
mascarados fumam (antigamente a maconha) em cachimbo de pinhão-bravo.
Terminados, desse modo, as cenas privadas, repete-se as cerimônias da noite anterior...".
Observações finais:
Nosso objetivo nesse trabalho não é de tomar a jurema como uma explicação da
situação dos índios, ao contrário entender a jurema, sua origem e sua importância,
fazendo apelo para o contexto primordial de onde nasceu o 'culto da jurema'.
Mostramos como os índios utilizam a jurema na afirmação e reivindicações étnicas.
Mesmo havendo uma certa concorrência entre os índios, o importante é que há relações
entre os grupos indígenas, que se ajudam em sua identificação cultural; os que perderam
a tradição da jurema vão se refontizar para continuar a se identificarem como índios.
Notas:
1) Doutor em Antropologia, GERSULP, Strasbourg. Ming Anthony, CNRS URA 882, Muséum National d'Histoire Naturelle, Paris.
2) Cf. Bernardino J. de S: O Pau-Brasil na História Nacional, Ed. Nacional, São Paulo, 1939.
3) "Geremari é a mesma coisa que Jurema e Jeremari e Record nos dá como tais nomes Pithecolobium tortum Mart. (...) Na Fl. Br.
Encontramos registrado Jurema como aplicado a Mimosa verruca Benth"., Cf. Huehve F.C.: Botânica e Agricultura no Brasil, Ed.
Nacional, São Paulo, 1932.
4) Cascudo L. da C: Dicionário do Folclore Brasileiro. MEC, Rio de Janeiro, 1954. Meleagro, Agir, Rio de Janeiro, 1951.
5) Lima O.G. de: Observações sobre o "vinho da Jurema" utilizado pelos índios Pancararú de Tacaratú (Pe) - Investigações
complementares entre os Fulniô de Aguas Belas (Pe) e os remanescentes Tupi da Bahia da Traição (Pb). Nigerina: um alcalóide
isolado da Mimosa hostilis Benth. In Arquiv. Inst. Pesq. Agron. SAIC/PE, Vol. 4, Recife, 1946, p. 45-80.
Acerca dos movimentos messiânicos entre os índios de Pernambuco, Bahia, Maranhão, cf. Nimuendaju K. (1914), apud Queiroz M.I.P.
de: Réforme e Révolution dans les sociétés traditionnelles, Anthropos , Paris, 1968, p. 192-206.
6) Lewie R.: In Handbook of South American Indians. Ed. Steward J.H., Vol.I, p. 561.
7) Andrade J.M.T.: Approche Anthropologique de la Religiosité Populaire au Brésil ; CIDOC, Cuernavaca, 1973, p.3/59
8 )Sampaio J.A.L.: De caboclo a índio - Etnicidade e organização social e política entre povos indígenas contemporâneos
no Nordeste do Brasil, o caso Kapinawá, IFCH/UNICAMP, Campinas, 1986, p. 19-20 (projeto-inédito).
9) Torres L.B.: Os Índios Xukuru e Kariri em Palmeira dos Índios, IGASA, Maceió, 1984, p. 54-60.
10) Pinto E.: Etnologia Brasileira (Funiô - os últimos Tapuias). Ed. Nacional, São Paulo, 1956, pp.9 e 146.
11) Métraux A.: Une nouvelle langue tapuya de la région de Bahia (Brésil), in Journal de la Société des Américanistes n.s. XLI,
Paris, 1961, p.51.