Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Quem eram as Sereias, tentadoras e funestas, a cujo canto não resistia os humanos e,
correndo a elas, eram irremediavelmente devorados? As Sereias pertencem ao grupo
das divindades da morte, como as Harpias e Eumênides. Moravam, segundo a lenda,
no litoral do sul da Itália, à entrada do estreito da Sicilia. Com seu canto maravilhoso e
irresistível, atraíam os navegantes para os escolhos, onde encontravam a morte, ao invés
da felicidade prometida. Possuíam o corpo de pássaro com busto de mulher. Viviam nos
prados floridos, entre montes de ossos de suas vítimas.
A Sereia, na cultura ocidental dos tempos modernos, é bem diferente das Sereias
metade pássaro, metade mulher da antiguidade homérica. A metade pássaro de seu
corpo foi substituída pela cauda de peixe. Na antiguidade, o mito ligava-se também ao
culto dos mortos. Eram as Sereias invocadas no momento da morte. Mas esse aspecto
do mito desapareceu e apenas o documentam as estátuas de Sereias nos sepulcros.
Que é um mito? Uma forma particular de conto, envolvendo seres sobrenaturais. Em
sua origem grega, mythos significa fábula, conto relativo aos deuses. Por força de sua
transmissão oral através dos povos, o mito adquire em cada região particularidades
especiais (variantes), decorrentes da adaptação aos costumes e crenças locais. Daí a
existência de versões diferentes de um mesmo mito: as Sereias, no Mediterrâneo; as
Mouras encantadas, em Portugal; a Loreley, na Alemanha; Kianda, em Angola;
Iemanjá, no Brasil. Ele configura se, pois, através dessas versões ou lendas. Claude
Lévi Strauss considera o mito uma história contada e ao mesmo tempo um esquema
lógico criado pelo homem para resolver problemas que se apresentam em planos
diferentes, integrando-os numa construção sistemática.
Sereias no Brasil?
Conhecido em todos os quadrantes, sob nome e formas diversas, como se apresenta no
Brasil o mito da Sereia? Que possuíam de semelhante os nossos primitivos? Nada que
lembrasse a Sereia européia, mas fantasmas que habitavam os rios e matavam os
indígenas.
A Sereia nos veio com o colonizador português, já na forma de mulher peixe, registrada
no fabulário ibérico do século 15: formosa, cabelos longos, voz maviosa e cauda de
peixe. O sincretismo operou-se facilmente entre o que possuíam os índios e o que
conheciam os colonizadores, surgindo a mãe d'água, como uma das muitas mães da
concepção indígena, espalhando-se por todo o país. Luís da Câmara Cascudo formula a
hipótese da identificação dos mitos: "Chegando ao Brasil, o europeu encontrou uma
estória vaga em que se falava de um fantasma marinho, afogador de índio, espantando
curumim. Imediatamente o português diagnosticou: "É uma Sereia!”
Mesmo assim, os registros da mãe d'água não são muito antigos; não foram
encontrados nos cronistas do período colonial. Cascudo afirma não conhecer no
documentário brasileiro "a mãe d'água cantando, moça bonita do cabelo loiro e olhos
azuis, senão na segunda metade do século 19". Daí para cá, são inúmeros os relatos da
mãe d'água atraindo e destruindo pescadores.
A memória popular
Em Portugal, de onde nos veio o mito, há duas designações para essa personagem
mítica: no litoral do continente, Sereia; e no arquipélago dos Açores, Feiticeira
Marinha ou simplesmente Marinha. As cantigas populares fazem referência a uma e
outra:
E nos Açores:
Entre nós, a mãe d'água apresenta-se sob nome e formas variadas e até mesmo sexo
diferente: Iara; Boto; Iemanjá.
A Iara vive no fundo dos rios, à sombra das florestas virgens, de tez morena, olhos e
cabelos pretos - informa Barbosa Rodrigues.
A crença neste mito é tão grande que, pelos lugares em que mora a Iara, segundo a
tradição, ninguém se arrisca a passar em determinada hora da tarde.
Mas a presença da Sereia na literatura não ocorre somente sob forma mitológica. Curzio
Malaparte, em seu famoso romance 'A Pele', nos apresenta uma sereia ao natural, criada
em aquário e servida num jantar oferecido a oficiais americanos, durante a ocupação da
Itália. Malaparte descreve em tons verídicos o espanto dos comensais à visão da
pequena sereia, semelhante a uma'menina.
Barbosa Rodrigues narra um fato ocorrido pouco antes de sua chegada a Itaituba (Pará),
segundo o testemunho e relato de várias pessoas:
"Havia uma tapuia que vivia só numa palhoça, e que de repente começou a emagrecer
e a tornar se pálida, sem aparentar moléstia. Desconfiaram que seriam artes de Boto e
fizeram uma emboscada. Uma noite viram chegar ao porto uma montaria (canoa),
saltar dela um branco que não era do lugar e dirigir se para a choupana.
Acompanharam no, e quando ele entrou, de manso abriram a palha da parede e viram
no querer deitar se na mesma rede da tapuia. Então, um tiro o prostrou, e arrastado
para a barranca do rio, neste o atiraram, porque atiravam um boto. A autoridade não
fez corpo de delito, porque matar um boto não é crime previsto na lei".
Acrescenta ainda que um vigário, em Silves (Amazonas), lhe assegurou que os botos
lavavam roupa, ficando muito irritado diante de sua incredulidade. Como se vê, a crença
no mito não se manifesta apenas no nível da população folk, penetra as camadas de
maior índice cultural, como fato da realidade cotidiana.
"Não é sempre que uma mulher, avistando um boto, adoece: há uma época no mês em
que ela, quando é nervosa, não o pode ver, e, coisa notável, eles pressentem o seu
estado menstrual e, em bandos, em volta da canoa, a seguem. O meio de afugentá-los é
lançar-se ao rio um alho machucado".
"O grande corpo da deusa, com uma lira descansando num dos braços, dominava tudo.
Era uma boneca de louça cor de rosa, de feições brancas, de formas robustas, peitos
fartos e rabo de peixe. Tinha cabelos castanhos e lisos, que lhe caíam pelas costas,
cuidadosamente penteados e presos numa tiara de diamante; entre os grandes seios, via
se um colar de brilhantes verdes".
Os grandes seios de Iemanjá prendem se às origens do mito pela linha africana; aliás ela
já nos chegou como resultado da fusão da Kianda angolense (deusa do mar) e Iemanjá
(deusa dos rios). Os cabelos compridos e lisos prendem se à linha ameríndia, "uma
singela contribuição da Iara dos tupis", como diz Edison Carneiro. Durante as festas de
Iemanjá, entoam se cantos, em que ela é evocada por vários nomes:
Eh, a Sereia!
A Sereia brinca na areia!
Sereia do mar levantou,
Sereia do mar quer brincá.
Iemanjá vem
Vem do mar.
De acordo com a região do culto, Iemanjá adquire nomes diversos: Janaína, Princesa
do Mar, Oloxum, Princesa do Aiocá, Sereia do Mar, Dona Maria, Rainha do Mar,
Sereia Mucunã, Inaê, Dandalunda e ainda outros, resultantes da identificação com a
liturgia católica: Nossa Senhora do Rosário, Virgem Maria, Nossa Senhora da
Piedade, Nossa Senhora da Conceição da Praia, Nossa Senhora das Candeias,
Nossa Senhora dos Navegantes.
Do mesmo modo que varia o nome, variam também as formas de culto. A festa em sua
homenagem na Bahia é a 2 de fevereiro, dia de Nossa Senhora das Candeias. No Rio
de Janeiro, a 31 de dezembro, na passagem do ano.
Diferente é a entrega das oferendas. Na Bahia, por exemplo, saem os saveiros em busca
de águas profundas e calmas; aí reúnem se em círculo e nesse espaço lançam se os
presentes, que, se voltam à superfície, denunciam a recusa da deusa. Nas praias cariocas
e fluminenses, os fiéis entram n'água e atiram suas dádivas flores, pentes, velas,
sabonetes, pós de arroz, espelhos etc. sem a preocupação da recusa, pois as ondas
invariavelmente trazem os mais leves de volta às areias; outros as colocam em pequenos
barcos de madeira que impelem para o alto mar. Outros, ainda, preferem a barca de
horário especial que faz a travessia Rio Niterói, nas proximidades da meia noite, para as
oferendas a Iemanjá em plena bafa.
Grande foi o caminho percorrido pelo mito da divindade das águas. Das Sereias do
Mediterrâneo, que tentaram baldadamente atrair Ulisses, às Mouras portuguesas, à
Mãe d'água dos iorubanos, ao nosso primitivo Igpupiara, às Iaras, ao Boto, até
Iemanjá. E, nesse longo caminhar, o próprio caráter da divindade, ligada à morte, na
antiguidade, foi mudado em protetora dos pescadores garantidora de boa pesca e,
sempre evoluindo, transformou se em deusa propiciadora de Ano Bom para os
brasileiros e outros povos que integram a nossa comunidade.