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Penso frequentemente nesta imagem que sou a única a ver ainda e de que
nunca falei. Está sempre aí no mesmo silêncio, deslumbrante. É, de todas, a
que me agrada de mim própria, onde me reconheço, onde me encanto.
Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde
de mais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa
direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda
a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do
tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens,
mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos
meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos
maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas
profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu
rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura.
Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o
seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos
aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me
voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo
rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente
menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a
pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou
os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto
destruído.
Muitas vezes me disseram que era o sol demasiado forte durante toda a
infância. Mas não acreditei. Disseram-me também que era a reflexão em que
a miséria mergulhava as crianças. Mas não, não é isso. As crianças-velhas da
fome endémica, sim, mas nós, não, nós não tínhamos fome, nós tínhamos
vergonha, nós vendíamos os móveis, mas não tínhamos fome, nós tínhamos
um boy e comíamos por vezes, é certo, porcarias, aves pernaltas, pequenos
jacarés, mas essas porcarias eram cozidas por um boy e servidas por ele e por
vezes até as recusávamos, dávamo-nos ao luxo de não querer comer. Não,
passou-se qualquer coisa quando tinha dezoito anos que fez este rosto
acontecer-me. Devia ser de noite. Tinha medo de mim, tinha medo de Deus.
De dia, tinha menos medo e a morte parecia menos grave. Mas o medo não
me deixava. Queria matar, o meu irmão mais velho, queria matá-lo, queria
vencê-lo uma vez, uma vez só e vê-lo morrer. Era para tirar da frente da
minha mãe o objeto do seu amor, esse filho, castigá-la por o amar tanto, tão
mal, e sobretudo para salvar o meu irmão mais novo, acreditava que era
também isso, o meu irmão mais novo, o meu filho, da vida viva desse irmão
mais velho a pesar sobre a dele, desse véu negro sobre o dia, dessa lei
representada por ele, ditada por ele, um ser humano, e que era uma lei animal,
e que a cada instante de cada dia da vida daquele irmão mais novo trazia o
medo a essa vida, medo que uma vez atingiu o seu coração e o fez morrer.
Escrevi muito sobre estas pessoas da minha família, mas quando o fazia
eles ainda eram vivos, a mãe e os irmãos, e escrevi à volta deles, à volta
destas coisas sem ir ao centro delas.
A história da minha vida não existe. Isso não existe. Nunca há um centro.
Não há caminho, nem linha. Há vastos lugares onde se faz crer que havia
alguém, não é verdade, não havia ninguém. A história de uma pequeníssima
parte da minha juventude, escrevi-a já mais ou menos, enfim, quero dizer, dei
uma ideia, falo justamente desta, da travessia do rio. O que faço aqui é
diferente, e semelhante. Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam
iluminados. Aqui falo dos períodos ocultos dessa mesma juventude, de certas
dissimulações que teria operado sobre certos factos, sobre certos sentimentos,
sobre certos acontecimentos. Comecei a escrever num meio que me impelia
ao pudor. Escrever, para eles, era ainda moral. Escrever, agora, dir-se-ia que
muitas vezes já não é nada. Por vezes sei isto: que a partir do momento em
que escrever não é, todas as coisas confundidas, ir à vacuidade e ao vento,
escrever não é nada.
Que a partir do momento em que escrever não é, todas as vezes, todas as
coisas confundidas numa só, por essência inqualificável, escrever não passa
de publicidade. Mas a maior parte das vezes não tenho opinião, vejo que
todos os campos estão abertos, que não haveria mais paredes, que o escrito já
não saberia onde se meter para se esconder, se fazer, se ler, que a sua
inconveniência fundamental deixaria de ser respeitada, mas já não penso
nisso antes.
Agora vejo que muito jovem, aos dezoito anos, aos quinze anos, tive esse
rosto premonitório daquele que ganhei depois com o álcool na meia-idade da
minha vida. O álcool preencheu a função que Deus não teve, teve também a
de me matar, de matar. Este rosto do álcool veio-me antes do álcool. O álcool
veio confirmá-lo. Tinha em mim o lugar para aquilo, soube-o como os outros
mas, curiosamente, antes da hora. Tal como tinha em mim o lugar do desejo.
Tinha aos quinze anos o rosto do prazer e não conhecia o prazer. Este rosto
via-se muito. Mesmo a minha mãe devia vê-lo. Os meus irmãos viam-no.
Tudo começou para mim desta maneira, por este rosto clarividente,
extenuado, estes olhos pisados adiantados ao tempo, aos factos.
É no decurso desta viagem que a imagem se teria destacado, que teria sido
roubada ao conjunto. A imagem poderia ter existido, uma fotografia poderia
ter sido tirada, como outra, algures, noutras circunstâncias. Mas não foi. O
objeto era demasiado insignificante para a provocar. Quem se teria lembrado
disso? Só poderia ser tirada se alguém pudesse ter previsto a importância
deste acontecimento na minha vida, esta travessia do rio. Ora, enquanto esta
se dava, ignorava-se até a sua existência. Só Deus a conhecia. É por isso que
esta imagem, e não podia ser de outra maneira, não existe. Foi omitida. Foi
esquecida. Não foi destacada, retirada ao conjunto. É a este não ter sido feita
que deve a sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamente o seu
autor.
Encontrei uma fotografia do meu filho aos vinte anos. Está na Califórnia
com as suas amigas Erika e Elisabeth Lennard. É magro, tão magro, dir-se-ia
um ugandês branco. Também ele. Achei-lhe um sorriso arrogante, um pouco
o ar de quem se está nas tintas. Quer dar de si uma imagem desleixada de
jovem vagabundo. É assim que gosta de si, pobre, com esta expressão de
pobre, este andar desmanchado de jovem magro. É esta fotografia a que está
mais próxima da que não foi tirada à rapariga da barcaça.
Poderia enganar-me, julgar que sou bonita como as mulheres bonitas, como
as mulheres olhadas, porque realmente me olham muito. Mas sei que não é
uma questão de beleza mas doutra coisa, por exemplo, de espírito. O que
quero parecer, pareço, bela também, se é o que querem que seja, bela ou
bonita, bonita por exemplo para a família, mas só para a família, posso ser
tudo o que quiserem de mim. E acreditam que sou. Acreditar que também sou
encantadora. Desde que acredite, que isso se torna verdade para quem me vê
e quer que eu seja segundo o seu gosto, também o sei. Assim, em plena
consciência posso ser encantadora mesmo se estou obcecada pela execução
do meu irmão. Para a morte, uma única cúmplice, a minha mãe. Digo a
palavra encantadora como a diziam à minha volta, à volta das crianças.
Já sei muito. Sei uma coisa. Sei que não são os vestidos que fazem as
mulheres mais ou menos bonitas, nem os cuidados de beleza, nem o preço
dos cremes, nem a raridade, o preço dos enfeites. Sei que o problema está
algures. Não sei onde. Sei só que não está onde as mulheres julgam. Olho as
mulheres nas ruas de Saigão, nos postos do mato. Há-as muito belas, muito
brancas, têm um cuidado extremo com a sua beleza, sobretudo nos postos do
mato. Não fazem nada, guardam-se apenas, guardam-se para a Europa, os
amantes, as férias em Itália, as longas licenças de seis meses, de três em três
anos; quando poderão finalmente falar do que se passa aqui, desta existência
colonial tão particular, do serviço desta gente, destes boys, tão perfeitos, da
vegetação, dos bailes, destas vivendas brancas, grandes a ponto de nos
perdermos nelas, onde estão alojados os funcionários nos postos afastados.
Esperam. Vestem-se para nada. Olham-se. Na sombra dessas vivendas,
olham-se para mais tarde, julgam viver um romance, têm já longos armários
cheios de vestidos a que não sabem que fazer, colecionados como o tempo, a
longa sequência dos dias de espera. Algumas ficam loucas. Algumas são
trocadas por uma jovem criada que se cala. Abandonadas. Ouve-se esta
palavra atingi-las, o barulho que faz, o barulho da bofetada que ele dá.
Algumas matam-se.
Esta falta das mulheres a si próprias, por si próprias perpetrada, apareceu-
me sempre como um erro.
Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não
existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou então nunca existira. Era a
inteligência imediata da relação de sexualidade ou então não era nada. Isso
soube-o eu antes do experiment.
Estou muito tempo sem ter vestidos meus. Os meus vestidos são uma
espécie de saco, feitos de antigos vestidos da minha mãe que são por sua vez
uma espécie de saco. À exceção dos que a minha mãe manda a Dô fazer-me.
É a governanta que nunca deixará a minha mãe mesmo quando ela voltar para
França, mesmo quando o meu irmão mais velho a tentar violar na casa do
posto de Sadec, mesmo quando já não lhe pagarem. Dô foi educada pelas
freiras, borda e faz pregas, cose à mão como já não se cose há séculos, com
agulhas finas como cabelos. Como ela borda, a minha mãe manda-a bordar
lençóis. Como ela faz pregas, a minha mãe manda-a fazer-me vestidos com
pregas, vestidos com folhos, uso-os como sacos, estão fora de moda, sempre
infantis, duas filas de pregas à frente e gola redonda ou nervuras na saia, ou
folhos bordados em viés para armar à alta costura. Uso estes vestidos como
sacos, com cintos que os deformam, tornam-se então eternos.
Respondi-lhe que o que eu queria antes de tudo era escrever, mais nada,
nada. Está ciumenta. Não há resposta, um olhar breve logo desviado, o ligeiro
encolher dos ombros, inesquecível. Seria a primeira a partir. Será preciso
esperar ainda alguns anos para que ela me perca, para que perca esta, esta
filha. Quanto aos filhos não havia que temer. Mas esta, um dia, ela bem o
sabia, partiria, conseguiria sair. Primeira em francês. O reitor diz-lhe: a sua
filha, minha senhora, é a primeira em francês. A minha mãe não diz nada,
nada, descontente porque não são os seus filhos que são os primeiros em
francês, que chatice, minha mãe, meu amor, pergunta: e em matemática?
Dizem: ainda não é, mas há de lá chegar com o tempo. A minha mãe
pergunta: mas quando? Respondem: quando ela quiser, minha senhora.
Minha mãe meu amor, meu incrível andar desengonçado com as meias de
algodão passajadas por Dô, nos trópicos e ainda julga que se tem de usar
meias para ser a senhora diretora da escola, os seus vestidos lamentáveis,
disformes, remendados por Dô, vem ainda direta da sua quinta da Picardia
povoada de primas, usa tudo até ao fim, julga que é preciso merecer, merecer
tudo, os sapatos, os sapatos estão cambados, anda de lado, com uma dor de
cão, os cabelos esticados e apertados num carrapito de chinesa, faz-nos
vergonha, faz-me vergonha na rua diante do liceu, quando chega no seu B 12
diante do liceu toda a gente olha, ela nunca se apercebe de nada, nunca, boa
para meter no manicómio, bater, matar. Olha-me, diz: talvez te consigas
safar. Dia e noite essa ideia fixa. Não é que seja preciso chegar a qualquer
coisa, o que é preciso é sair da situação em que se está.
A mãe não a impedirá de o fazer quando ela procurar dinheiro. A filha dirá:
pedi-lhe quinhentas piastras para o regresso a França. A mãe dirá que está
bem, que é quanto é preciso para se instalar em Paris, dirá: com quinhentas
piastras já te governas. A filha sabe que o que ela faz é o que a mãe teria
escolhido que a sua filha fizesse, se tivesse ousado, se tivesse força para tal,
se o mal que essa ideia lhe fazia não estivesse presente dia após dia,
extenuante.
Nas histórias dos meus livros que se relacionam com a minha infância, já
não sei de repente o que evitei dizer, o que disse, creio ter dito o amor que
tínhamos pela nossa mãe mas não sei se disse o ódio que também lhe
tínhamos e o amor que tínhamos uns pelos outros e o ódio também, terrível,
nesta história comum de ruína e de morte que era a desta família em todos os
casos, no do amor como no do ódio e que escapa ainda ao meu completo
entendimento, que me é ainda inacessível, escondida no mais profundo da
minha carne, cega como um recém-nascido no primeiro dia. Ela é o lugar à
entrada do qual o silêncio começa. O que aí se passa é justamente o silêncio,
este lento trabalho para toda a minha vida. Ainda estou lá, diante destas
crianças possessas, à mesma distância do mistério. Nunca escrevi, julgando
fazê-lo, nunca amei, julgando amar, nunca fiz nada senão esperar diante da
porta fechada.
Como veem, não é pois na cantina de Réam, como tinha escrito, que
encontro o homem da limusina preta, é depois do abandono da concessão,
dois ou três anos mais tarde, nesta luz de bruma e de calor.
É um ano e meio depois deste encontro que a minha mãe regressa a França
connosco. Venderá todos os seus móveis. Depois irá uma última vez à
barragem. Sentar-se-á na varanda face ao poente, olharemos ainda uma vez
para o Sião, uma última vez, nunca mais, mesmo quando ela deixar de novo a
França, quando mudar outra vez de ideias e voltar mais uma vez à Indochina
para se reformar em Saigão, nunca mais ela irá diante daquela montanha,
diante daquele céu amarelo e verde por cima daquela floresta.
Sim, dir-vos-ei ainda, já tarde na sua vida, ela recomeçou. Abriu uma
escola de língua francesa, a Nouvelle École Française, que lhe permitirá
pagar uma parte dos meus estudos e sustentar o filho mais velho enquanto
viveu.
*
Ela entra no automóvel preto. A porta fecha-se. Um sentimento de opressão
vagamente pressentido invade-a de repente, uma fadiga, a luz sobre o rio que
se embacia, mas só ligeiramente. Uma surdez muito ligeira também, um
nevoeiro, por todo o lado.
Ele falava. Dizia que tinha saudades de Paris, das adoráveis parisienses, das
estúrdias, das farras, isso é que era vida, da Coupole, da Rotonde, eu da
Rotonde prefiro as boîtes, dessa vida «espantosa» que levara durante dois
anos. Ela ouvia, atenta às referências da conversa que podiam informá-la
quanto à sua riqueza, que teriam podido dar-lhe uma indicação sobre o
montante dos milhões. Ele continuava a contar. A mãe morrera, era filho
único. Só lhe restava o pai detentor do dinheiro. Mas sabe como é, vive
agarrado ao cachimbo de ópio frente ao rio há dez anos, gere a sua fortuna da
cama. Ela diz que está a ver.
Ele recusará o casamento do filho com a pequena prostituta branca do
posto de Sadec.
A imagem começa muito antes de ele ter abordado a menina branca junto
da amurada, no momento em que saiu da limusina preta, quando começou a
aproximar-se dela, e que ela, ela sabia, sabia que ele tinha medo.
Desde o primeiro instante ela sabe qualquer coisa deste género, ou seja, que
ele está à sua mercê. Logo, que outros além dele poderiam ficar também à sua
mercê, se a oportunidade surgisse. Sabe também outra coisa, que doravante
chegou sem dúvida o tempo em que não pode escapar a certas obrigações que
tem para consigo própria. E que a mãe não deve saber nada disso, nem os
irmãos, sabe-o também nesse dia. Desde que entrou no automóvel preto,
soube-o, está à margem daquela família pela primeira vez e para sempre. A
partir daqui não devem mais saber o que vier a ser dela. Que lha tirem, que
lha levem, que lha magoem, que lha estraguem, já não devem sabê-lo. Nem a
mãe nem os irmãos. A partir daqui cada um seguirá o seu destino. É já razão
para chorar na limusina preta.
A criança agora tem de se haver com este homem, o primeiro, o que surgiu
na barcaça.
Aconteceu muito depressa nesse dia, uma quinta-feira. Ele veio todos os
dias buscá-la ao liceu para a levar ao pensionato. E depois, uma vez, veio
uma quinta-feira à tarde ao pensionato. Levou-a no automóvel preto.
É em Cholen. É do lado oposto às avenidas que ligam a cidade chinesa ao
centro de Saigão, essas grandes estradas à americana percorridas pelos
elétricos, os riquexós, os carros. É logo no começo da tarde. Ela escapou ao
passeio obrigatório das raparigas do pensionato.
É um apartamento no sul da cidade. O sítio é moderno, dir-se-ia que
mobilado de qualquer maneira, com móveis a atirar para o modern style. Ele
diz: não escolhi os móveis. Está escuro no estúdio, ela não lhe pede que abra
as persianas. Não tem um sentimento muito definido, nem ódio, nem
repugnância, então é sem dúvida já desejo. Não sabe. Concordou em vir logo
que ele lhe pediu na véspera à noite. Está ali onde tem de estar, deslocada ali.
Sente um leve medo. Dir-se-ia com efeito que isso deve corresponder não só
ao que ela espera, mas ao que deveria acontecer precisamente no seu caso.
Está muito atenta ao exterior das coisas, à luz, ao barulho da cidade em que o
quarto está imerso. Ele, treme. Olha-a primeiro como se esperasse que ela
fale, mas ela não fala. Então ele também não faz qualquer gesto, não se
despe, diz que a ama como um louco, di-lo muito baixo. Depois cala-se. Ela
não lhe responde. Poderia responder-lhe que não o ama. Não diz nada. De
repente sabe, ali, nesse instante, sabe que ele não a conhece, que nunca a
conhecerá, que não tem maneira de conhecer tanta perversidade. E ao fazer
tantos e tantos desvios para a agarrar, não poderá nunca. Cabe-lhe a ela saber.
Sabe. A partir da ignorância dele, ela sabe de repente; já na barcaça ele lhe
agradava. Ele agrada-lhe, a coisa só dependia dela.
Ela diz-lhe: preferia que não me amasse. Mesmo que me ame gostaria que
fizesse como habitualmente faz com as mulheres. Ele olha-a como que
apavorado, pergunta: é isso que quer? Ela diz que sim. Ele começou a sofrer
ali, no quarto, pela primeira vez, já não mente acerca disso. Diz-lhe que já
sabe que ela não o amará nunca. Ela deixa-o dizer. Primeiro diz que não sabe,
depois deixa-o dizer.
Ele diz-lhe que está só, atrozmente só, com esse amor que tem por ela. Ela
diz-lhe que também ela está só. Não diz com quê. Ele diz: seguiu-me até aqui
como teria seguido outro qualquer. Ela responde que não pode saber, que
nunca seguiu ninguém a quarto nenhum. Ela diz que não quer que ele lhe
fale, o que ela quer é que ele faça como habitualmente faz com as outras
mulheres que leva àquele apartamento. Pede-lhe que o faça assim.
O ruído da cidade está tão próximo, tão perto, que o ouvimos roçar contra a
madeira das persianas. Ouvimos como se eles atravessassem o quarto.
Acaricio o seu corpo neste ruído, nesta passagem. O mar, a imensidade que
reagrupa, se afasta, regressa.
Tinha-lhe pedido que o fizesse mais e mais. Que me fizesse aquilo. Fizera-
o. Fizera-o na untuosidade do sangue. E isso fora de morrer. Foi de morrer.
É a noite que chega agora. Diz-me que me lembrarei toda a vida desta
tarde, mesmo quando tiver esquecido até o seu rosto, o seu nome. Pergunto se
me lembrarei da casa. Ele diz-me: olha-a bem. Digo-lhe que é como qualquer
outra. Ele diz-me que sim, que é isso, como sempre.
Os beijos pelo corpo fazem chorar. Dir-se-ia que consolam. Em família não
choro. Neste dia neste quarto, as lágrimas consolam do passado e também do
futuro. Digo-lhe que um dia me separarei da minha mãe, que mesmo para a
minha mãe um dia já não terei amor. Choro. Ele põe a cabeça sobre mim e
chora de me ver chorar. Digo-lhe que na minha infância a desgraça da minha
mãe ocupou o lugar do sonho. Que o sonho era a minha mãe e nunca as
árvores de Natal, sempre só ela, quer seja a mãe em carne viva da miséria ou
a outra, fora de si, que fala no deserto, quer seja a que tenta arranjar comida
ou a outra que interminavelmente conta o que lhe aconteceu a ela, Marie
Legrand de Roubaix, fala da sua ingenuidade, das suas economias, da sua
esperança.
Na presença do meu irmão mais velho ele deixa de ser meu amante. Não
deixa de existir mas já não é nada. Torna-se terra queimada. O meu desejo
obedece ao meu irmão mais velho, rejeita o meu amante. Sempre que os vejo
juntos, julgo nunca mais poder suportar essa visão. O meu amante é negado
justamente no seu corpo fraco, nessa fraqueza que me arrebata de prazer.
Perante o meu irmão ele torna-se um escândalo inconfessável, um motivo de
vergonha que é preciso esconder. Não posso lutar contra aquelas ordens
mudas do meu irmão. Posso, quando se trata do meu irmão mais novo.
Quando se trata do meu amante não posso nada contra mim própria. Só de
falar nisso agora me vem à lembrança a hipocrisia da expressão, do ar
distraído de alguém que olha para outro sítio, que tem mais em que pensar
mas que, no entanto, vê-se pelos maxilares ligeiramente cerrados, está
irritado e sofre por ter de suportar aquilo, aquela indignidade, só para comer
bem, num restaurante caro, o que deveria ser perfeitamente natural. À volta
da recordação, a claridade lívida de noite do caçador tem um som estridente
de alerta, de grito de criança.
Nunca bom dia, boa noite, bom ano. Nunca obrigado. Nunca falar. Nunca
necessidade de falar. Tudo fica mudo, longe. É uma família de pedra,
petrificada numa espessura sem qualquer acesso. Todos os dias tentamos
matar-nos, matar. Não só não nos falamos como não nos olhamos. A partir do
momento em que somos vistos, não podemos olhar. Olhar é ter um
movimento de curiosidade para, por, é descer. Nenhuma pessoa olhada vale o
olhar sobre ela. É sempre desonroso. A palavra conversa é banida. Creio que
é ela que melhor aqui reflete a vergonha e o orgulho. Qualquer comunidade,
seja ela familiar ou outra, é-nos odiosa, degradante. Estamos juntos numa
vergonha de princípio que é ter de viver a vida. É aí que estamos no mais
profundo da nossa história comum, a de sermos os três filhos daquela pessoa
de boa fé, a nossa mãe, que a sociedade assassinou. Estamos do lado dessa
sociedade que reduziu a minha mãe ao desespero. Por causa do que fizeram à
nossa mãe tão simpática, tão confiante, odiamos a vida, odiamo-nos.
A nossa mãe não previa aquilo em que nos tornámos a partir do espetáculo
do seu desespero, falo sobretudo dos rapazes, dos filhos. Mas tivesse-o ela
previsto, como poderia ter calado o que se tornara a sua própria história?
Fazer mentir o seu rosto, o seu olhar, a sua voz? O seu amor? Poderia ter
morrido. Suprimir-se. Dispersar aquela comunidade invivível. Fazer com que
o mais velho fosse completamente separado dos dois mais novos. Não o fez.
Foi imprudente, inconsequente, irresponsável. Foi tudo isso. Viveu. Amámo-
la os três para além do amor. Por isso mesmo, por ela não ter podido, porque
não podia calar-se, esconder, mentir, por muito diferentes que tenhamos sido
os três, amámo-la da mesma maneira.
Foi muito tempo. Durou sete anos. Começou tínhamos dez anos. E depois
fizemos doze anos e depois treze anos. E depois catorze anos, quinze anos. E
depois dezasseis anos, dezassete anos.
Durou todo este tempo, sete anos. E depois finalmente a esperança foi
deixada. Foi abandonada. Abandonadas também as tentativas contra o
oceano. À sombra da varanda olhamos a montanha de Sião, muito escura em
pleno sol, quase negra. A mãe está finalmente calma, emparedada. Nós
somos crianças heroicas, desesperadas.
Volto para junto de Hélène Lagonelle. Está deitada num banco e chora
porque julga que vou deixar o pensionato. Sento-me no banco. Estou
extenuada com a beleza do corpo de Hélène Lagonelle estirado contra o meu.
Este corpo é sublime, livre debaixo do vestido, ao alcance da mão. Os seios
são como nunca vi nenhuns. Nunca os toquei. Ela é impudica, Hélène
Lagonelle, não se dá conta disso, passeia-se toda nua pelos dormitórios. O
que há de mais belo, de todas as coisas dadas por Deus, é este corpo de
Hélène Lagonelle, incomparável, este equilíbrio entre a estatura e a maneira
como o corpo oferece os seios, fora dele, como coisas separadas. Nada é mais
extraordinário que esta rotundidade exterior dos seios oferecidos, esta
exterioridade estendida para as mãos. Mesmo o corpo de pequeno coolie do
meu irmãozinho desaparece perante este esplendor. Os corpos dos homens
têm formas avaras, fechadas. Também não se estragam como as de Hélène
Lagonelle que, essas, nunca duram, talvez apenas um verão, quando muito, é
tudo. Ela vem dos altos planaltos de Dalat, Hélène Lagonelle. O seu pai é
funcionário dos postos. Chegou em pleno ano escolar há pouco tempo. Tem
medo, põe-se ao nosso lado, deixa-se ali estar sem dizer nada, muitas vezes a
chorar. Tem a pele rosada e morena da montanha, reconhecemo-la sempre
aqui onde todas as crianças têm a palidez esverdeada da anemia, do calor
tórrido. Hélène Lagonelle não vai ao liceu. Não sabe ir à escola, Hélène L.
Não aprende, não retém. Frequenta os cursos primários do pensionato mas
não serve de nada. Chora contra o meu corpo, e eu faço-lhe festas no cabelo,
nas mãos, digo-lhe que ficarei com ela no pensionato. Ela não sabe que é
muito bela, Hélène L. Os pais não sabem o que hão de fazer dela, procuram
casá-la o mais depressa possível. Ela teria todos os noivos que quisesse,
Hélène Lagonelle, mas não os quer, não se quer casar, quer voltar para o pé
da mãe. Ela. Hélène L. Hélène Lagonelle. Acabará por fazer o que a mãe
quiser. É muito mais bonita do que eu, do que esta do chapéu de palhaço,
calçada de lamé, infinitamente mais casável do que ela, Hélène Lagonelle,
ela, pode-se casá-la, estabelecê-la na conjugalidade, assustá-la, explicar-lhe o
que lhe faz medo e ela não compreende, ordenar-lhe que se deixe estar ali,
que espere.
Hélène Lagonelle, ela, não sabe ainda o que eu sei. No entanto, tem
dezassete anos. É como se eu adivinhasse, ela nunca há de saber o que eu sei.
Vejo-a como sendo da mesma carne que esse homem de Cholen, mas num
presente irradiante, solar, inocente, numa eclosão repetida dela própria, em
cada gesto, em cada lágrima, em cada uma das suas falhas, em cada uma das
suas ignorâncias. Hélène Lagonelle, ela é a mulher desse moço de fretes que
me torna o gozo tão abstrato, tão duro, esse homem obscuro de Cholen, da
China. Hélène Lagonelle. Não esqueci esse moço de fretes. Quando parti,
quando o deixei, fiquei dois anos sem me aproximar de nenhum outro
homem. Mas essa misteriosa fidelidade devia ser a mim mesma.
Ainda estou nesta família, é aí que habito com exclusão de todos os outros
lugares. É na sua aridez, na sua terrível dureza, na sua maleficência que estou
mais profundamente segura de mim, no mais profundo da minha certeza
essencial, a saber, que mais tarde escreverei.
É esse o lugar a que me hei de agarrar mais tarde, uma vez abandonado o
presente, à exclusão de qualquer outro lugar. As horas que passo no
apartamento de Cholen fazem aparecer esse lugar sob uma luz fresca, nova. É
um lugar irrespirável, paredes-meias com a morte, um lugar de violência, de
dor, de desespero, de desonra. É assim o lugar de Cholen. Do outro lado do
rio. Uma vez atravessado o rio.
Quero dizer-vos também o que era, como era. É isto: ele rouba aos boys
para ir fumar ópio. Rouba à nossa mãe. Rebusca nos armários. Rouba. Joga.
O meu pai comprara uma casa em Entre-deux-Mers antes de morrer. Era o
nosso único bem. Ele joga. A minha mãe vende-a para pagar as dívidas. Não
basta, nunca basta. Em nova, tenta vender-me a clientes da Coupole. É por
ele que a minha mãe ainda quer viver, para que ele coma ainda, que durma no
quente, que ainda ouça chamar o seu nome. E a propriedade que ela lhe
comprou perto de Amboise, dez anos de economias. Hipotecada numa noite.
Ela paga os juros. E o produto todo do corte dos bosques que vos contei.
Numa noite. Roubou a minha mãe moribunda. Era uma pessoa que revistava
os armários, que tinha faro, que sabia procurar bem, descobrir as boas pilhas
de lençóis, os esconderijos. Roubou as alianças, esse tipo de coisas, muitas,
as joias, a comida. Roubou a Dô, os boys, o meu irmãozinho. A mim, muito.
Era capaz de a ter vendido, a ela, à sua mãe. Quando ela morre manda
imediatamente chamar o notário, na emoção da morte. Sabe aproveitar-se da
emoção da morte. O notário diz que o testamento não é válido. Que ela
beneficiou de mais o seu filho mais velho à minha custa. A diferença é
enorme, risível. É preciso que, com inteiro conhecimento de causa, eu aceite
ou recuse. Certifico que aceito: assino. Aceitei. O meu irmão, de olhos
baixos, obrigado. Chora. Na emoção da morte da nossa mãe. É sincero. Na
libertação de Paris, sem dúvida perseguido por atos de colaboração no Sul, já
não sabe para onde ir. Vem para minha casa. Nunca soube muito bem, ele
foge de um perigo. Talvez tenha entregue pessoas, judeus, tudo é possível.
Está muito afável, afetuoso como sempre depois dos seus assassínios ou
quando precisa dos nossos serviços. O meu marido está deportado. Ele
lamenta. Fica três dias. Esqueci-me, quando saio não fecho nada. Ele faz uma
busca. Guardo, para o regresso do meu marido, o açúcar e o arroz das minhas
senhas. Faz uma busca e apanha-os. Revista ainda um armário do meu quarto.
Encontra. Leva a totalidade das minhas economias, cinquenta mil francos.
Não deixa uma única nota. Abandona a casa, com os roubos. Quando o voltar
a ver, não lhe falarei nisto, a vergonha por ele é tão grande, não serei capaz.
Depois do falso testamento, o falso castelo Luís XIV é vendido por dez réis
de mel coado. A venda foi falsificada, como o testamento.
Depois da morte da minha mãe, ele fica só. Não tem amigos, nunca teve
amigos, teve algumas vezes mulheres que fazia «trabalhar» em
Montparnasse, às vezes mulheres que não fazia trabalhar, pelo menos ao
princípio, às vezes homens mas que, esses, lhe pagavam. Vivia numa grande
solidão. Esta aumentou com a velhice. Era apenas um vadio, as suas causas
eram fracas. Fez medo à sua volta, mais nada. Connosco perdeu o seu
verdadeiro império. Não era um gangster, era um patife familiar, um tipo que
revistava os armários, um assassino sem armas. Não se comprometia. Os
patifes assim vivem como ele vivia, sem solidariedade, sem grandeza, no
medo. Ele tinha medo. Depois da morte da minha mãe leva uma existência
estranha. Em Tours. Só conhece os empregados de café para as «dicas» das
corridas e a clientela alcoólica dos pôqueres nas salas das traseiras. Começa a
parecer-se com eles, bebe muito, fica com os olhos injetados, a boca mole.
Em Tours já não tem nada. As duas propriedades liquidadas, mais nada.
Durante um ano vive num armazém de móveis alugado pela minha mãe.
Dorme durante um ano num sofá. Fazem o favor de o deixar entrar. Aí fica
um ano. E depois é posto fora.
Durante um ano deve ter tido esperança de voltar a comprar a sua
propriedade hipotecada. Jogou um a um os móveis da minha mãe no
armazém, os budas de bronze, os cobres e depois as camas, e depois os
armários, e depois os lençóis. E depois um dia não tinha mais nada, isso
acontece-lhes, um dia tem o fato que traz vestido, mais nada, nem um lençol,
nem um talher. Está só. Num ano, ninguém lhe abriu a porta. Escreve a um
primo de Paris. Terá um quarto de criado em Malesherbes. E, com mais de
cinquenta anos, terá o seu primeiro emprego, o primeiro salário da sua vida, é
contínuo numa companhia de seguros marítimos. Isto durou, creio eu, quinze
anos. Foi para o hospital. Não morreu lá. Morreu no quarto dele.
A minha mãe nunca falou desse filho. Nunca se queixou dele. Nunca falou
a ninguém daquele que revistava os armários. Viveu essa maternidade como
um delito. Tinha-a escondida. Devia achá-la ininteligível, incomunicável a
quem quer que não conhecesse o seu filho como ela o conhecia, diante de
Deus e apenas diante Dele. Dizia a seu respeito pequenas banalidades,
sempre as mesmas. Que, se tivesse querido, teria sido o mais inteligente dos
três. O mais «artista». O mais esperto. E também o que tinha amado mais a
sua mãe. O que, em definitivo, a tinha compreendido melhor. Eu não sabia,
dizia ela, que se pudesse esperar isto de um rapaz, uma tal intuição, uma
ternura tão profunda.
Voltámos a ver-nos uma vez, ele falou-me do irmãozinho morto. Disse: que
horror aquela morte, é abominável, o nosso irmãozinho, o nosso pequeno
Paulo.
Fica esta imagem do nosso parentesco: é uma refeição em Sadec. Estamos
os três a comer à mesa da sala de jantar. Eles têm dezassete, dezoito anos. A
minha mãe não está connosco. Ele está a ver-nos comer, ao irmãozinho e a
mim, e depois pousa o garfo, olha só para o meu irmão. Olha-o durante muito
tempo e depois diz de repente, muito calmo, algo terrível. A frase é sobre a
comida. Diz-lhe que deve ter cuidado, que não deve comer tanto. O
irmãozinho não responde nada. Ele continua. Lembra-lhe que os bocados
grandes de carne são para ele, que não se deve esquecer disso. Senão, diz ele.
Eu pergunto: porquê para ti? Ele diz: porque é assim mesmo. Eu digo: queria
que tu morresses. Não consigo comer. O irmãozinho também não. Ele espera
que o irmãozinho se atreva a dizer uma palavra, uma única palavra, os seus
punhos fechados já estão prontos em cima da mesa para lhe esmurrarem a
cara. O irmãozinho não diz nada. Está muito pálido. Entre as pestanas, o
começo do choro.
Quando ele morre, está um dia sombrio. Creio que de primavera, de abril.
Telefonam-me. Nada, não dizem mais nada, foi encontrado morto, no chão,
no quarto. A morte adiantava-se ao fim da sua história. Em vivo já tudo
estava consumado, era tarde de mais para morrer, estava morto desde a morte
do irmãozinho. As palavras definitivas: tudo está consumado.
Ela pediu que aquele filho fosse enterrado com ela. Já não sei em que sítio,
em que cemitério, sei que é na região do Loire. Estão os dois na cova. Só eles
dois. É justo. A imagem é de um intolerável esplendor.
O crepúsculo caía à mesma hora todo o ano. Era muito curto, quase brutal.
Na estação das chuvas, durante semanas, não se via o céu, estava envolto
num nevoeiro uniforme que nem a luz da Lua atravessava. Na estação seca,
em contrapartida, o céu estava nu, descoberto na sua totalidade, cru. Até as
noites sem Lua eram iluminadas. E as sombras estavam igualmente
desenhadas no chão, nas águas, nos caminhos, nas paredes.
Lembro-me mal dos dias. A luz solar embaciava as cores, esmagava. Das
noites, lembro-me. O azul estava mais longe que o céu, estava atrás de todas
as espessuras, recobria o fundo do mundo. O céu, para mim, era esse rasto de
puro brilho que atravessa o azul, essa fusão fria para além de toda a cor. Às
vezes, era em Vinhlong, quando a minha mãe estava triste, mandava
aparelhar o tilburi e íamos para o campo ver a noite da estação seca. Tive essa
sorte, para essas noites, aquela mãe. A luz caía do céu em cataratas de pura
transparência, em trombas de silêncio e de imobilidade. O ar era azul,
apanhávamo-lo na mão. Azul. O céu era essa palpitação contínua da
brilhância da luz. A noite iluminava tudo, todos os campos de cada margem
do rio até onde a vista alcançava. Cada noite era particular, cada uma podia
chamar-se o tempo da sua duração. O som das noites era o dos cães do
campo. Uivavam ao mistério. Respondiam uns aos outros de aldeia em aldeia
até à consumação total do espaço e do tempo da noite.
Uma vez ele não está em frente do liceu. O motorista está só no automóvel
preto. Diz-me que o pai está doente, que o senhor voltou para Sadec. Que ele,
o motorista, recebeu ordem de ficar em Saigão para me levar ao liceu e
conduzir-me de volta ao pensionato. O jovem patrão regressou ao fim de
alguns dias. Estava de novo no banco de trás do automóvel preto, o rosto
desviado para não ver os olhares, sempre com medo. Beijámo-nos, sem uma
palavra, beijámo-nos ali, tínhamo-nos esquecido, em frente do liceu, beijámo-
nos. No beijo ele chorava, o pai ainda viveria. Ía-se a sua última esperança.
Tinha-lhe pedido. Tinha-lhe suplicado que o deixasse manter-me ainda com
ele, contra o seu corpo, tinha-lhe dito que devia compreendê-lo, que devia ele
próprio ter vivido pelo menos uma vez uma paixão como esta no decurso da
sua longa vida, que era impossível que não fosse assim, tinha-lhe rogado que
lhe permitisse viver por sua vez, uma só vez, uma paixão assim, aquela
loucura, esse amor louco pela rapariguinha branca, tinha-lhe pedido que lhe
desse tempo para a amar ainda antes de a mandar para França, que a deixasse
ainda ficar com ele, mais um ano talvez, porque não lhe era possível
abandonar já esse amor, era novo de mais, ainda muito forte, ainda muito na
sua violência nascente, que era ainda horrível de mais separar-se do seu
corpo, sabendo ainda por cima, ele sabia-o bem, ele, o pai, que aquilo nunca
mais se reproduziria.
O pai repetira-lhe que preferia vê-lo morto.
Tomámos banho juntos com a água fresca das talhas, beijámo-nos,
chorámos, e ainda foi de morrer, mas desta vez já de um gozo inconsolável. E
depois disse-lhe. Disse-lhe que não lamentasse nada, lembrei-lhe o que ele
tinha dito, que eu me havia de ir embora de todo o lado, que eu não podia
decidir sobre o meu comportamento. Ele disse que mesmo isso agora já não
tinha importância para ele, que tudo estava ultrapassado. Então eu disse-lhe
que era da opinião do pai dele. Que me recusava a ficar com ele. Não dei
razões.
Fora ao fim da noite que ele se matara, na grande praça do posto cintilante
de luz. Ela dançava. Depois o dia chegara. Tinha feito o contorno do corpo.
Depois, com o passar do tempo, o sol tinha esmagado a forma. Ninguém
tinha ousado aproximar-se. A polícia fá-lo-á. Ao meio-dia, após a chegada
das lanchas da viagem, não haverá nada, a praça estará limpa.
A minha mãe disse à diretora do pensionato: não faz mal, nada disso tem
importância, já viu? Aqueles vestidinhos usados, o chapéu cor-de-rosa e os
sapatos dourados, como lhe ficam bem? A mãe fica louca de alegria quando
fala dos filhos e então o seu encanto é ainda maior. As jovens vigilantes do
pensionato ouvem a mãe apaixonadamente. Todos, diz a mãe, andam de roda
dela, todos os homens do posto, casados ou não, andam de roda daquilo,
querem a pequena, aquilo, ainda não muito definido, olhem, ainda uma
criança. Desonrada, dizem as pessoas? E eu digo: como é que a inocência se
poderia desonrar?
A mãe fala, fala. Fala da prostituição declarada, ri-se, do escândalo,
daquela palhaçada, daquele chapéu deslocado, dessa elegância sublime da
menina da travessia do rio, e ri-se dessa coisa irresistível aqui nas colónias
francesas, falo, diz ela, daquela pele branca, da criança que estivera até então
escondida nos postos do mato e que chega de repente em pleno dia e se expõe
na cidade à vista de todos, com a ralé do milionário chinês, diamante no dedo
como uma jovem banqueira, e chora.
Nunca mais falam disso. É um caso arrumado que ele não tentará mais
nada junto do pai para casar com ela. Que o pai não terá piedade alguma do
filho. Não tem de ninguém. De todos os imigrantes chineses que detêm o
comércio do posto, o das varandas azuis é o mais terrível, o mais rico, aquele
cujos bens se estendem mais longe para lá de Sadec, até Cholen, a capital
chinesa da Indochina francesa. O homem de Cholen sabe que a decisão do
seu pai e a da menina são as mesmas e que são sem apelo. Em menor grau,
começa a compreender que a partida que o há de separar dela é a sorte da
história deles. Que esta não é das que se casam, que fugiria de todos os
casamentos, que será preciso abandoná-la, esquecê-la, voltar a dá-la aos
brancos, aos seus irmãos.
Desde que ele estava louco pelo corpo dela, a rapariguinha já não sofria
com ele, com a sua magreza e, também, estranhamente, a sua mãe já não se
preocupava como dantes, como se tivesse descoberto, ela também, que aquele
corpo era no fim de contas plausível, aceitável, tanto como qualquer outro.
Ele, o amante de Cholen, julga que o crescimento da rapariga branca sofreu
com o calor demasiado forte. Também ele nasceu e se desenvolveu nesse
calor. Descobre que tem com ela esse parentesco. Diz que todos os anos ali
passados, naquela intolerável latitude, fizeram com que ela se tornasse uma
jovem desse país da Indochina. Que tem a finura dos pulsos deles, os seus
cabelos espessos de que se diria que tomaram para si a força toda, compridos
como os deles e, sobretudo, aquela pele, aquela pele de todo o corpo que vem
da água da chuva que aqui se guarda para o banho das mulheres, das crianças.
Diz que as mulheres de França, ao lado destas, têm a pele do corpo dura,
quase áspera. Diz ainda que a alimentação pobre dos trópicos, feita de peixes,
frutos, também tem algo a ver com isso. E também os tecidos de algodão e as
sedas de que a roupa é feita, sempre largos esses fatos que deixam o corpo
longe deles, livre, nu.
O amante de Cholen habituou-se à adolescência da rapariga branca até se
perder nela. O gozo que tira dela todas as noites comprometeu o seu tempo, a
sua vida. Já quase não lhe fala. Talvez julgue que ela já não compreenderia o
que lhe diria dela, daquele amor que ele ainda não conhecia e de que não sabe
dizer nada. Talvez descubra que nunca se falaram ainda, salvo quando
chamam um pelo outro nos gritos do quarto à noite. Sim, acho que ele não
sabia, que descobre que não sabia.
Ele olha-a. Com os olhos fechados ainda a olha. Respira o rosto dela.
Respira a menina, de olhos fechados respira a sua respiração, esse ar quente
que sai dela. Distingue cada vez menos claramente os limites desse corpo,
aquele não é como os outros, não está acabado, cresce ainda no quarto, não
tem ainda formas definidas, faz-se a cada momento, não está apenas ali onde
ele o vê, está também algures, estende-se para lá da vista, para o jogo, a
morte, é elástico, parte inteiro para o gozo como se fosse grande, em idade,
sem malícia, duma inteligência assustadora.
Possuía-a como possuiria a sua filha. Era assim que possuiria a sua filha.
Brinca com o corpo da filha, volta-a, cobre com ele o rosto, a boca, os olhos.
E ela, ela continua a abandonar-se na direção exata que ele tomou quando
começou a brincar. E de súbito é ela que lhe pede, não diz o quê, e ele, ele
grita-lhe que se cale, grita-lhe que já não a quer, que já não quer ter prazer
com ela, e ei-los de novo presos, aferrolhados entre si no horror, e eis que
esse horror se desfaz mais uma vez, que lhe cedem mais uma vez, em
lágrimas, no desespero, na felicidade.
Ninguém via claro senão eu. E a partir do momento em que acedi a esse
conhecimento, tão simples, a saber, que o corpo do meu irmãozinho era
também o meu, devia morrer. E morri. O meu irmão amalgamou-me a si,
puxou-me a si e morri.
Essa viagem durava vinte e quatro dias. Os navios das linhas eram já
cidades com ruas, bares, cafés, bibliotecas, salões, encontros, amantes,
casamentos, mortos. Formavam-se sociedades de acaso, eram forçadas,
sabíamo-lo, não o esquecíamos, e por isso mesmo tornavam-se vivíveis, e
mesmo, às vezes, de inesquecível encanto. Essas eram as únicas viagens das
mulheres. Para muitas delas sobretudo mas também para certos homens às
vezes, as viagens para chegarem à colónia eram a verdadeira aventura. Para a
mãe sempre tinha sido, com a nossa primeira infância, o que ela chamava «o
melhor da sua vida».
Ainda íamos todos os dias à casa de Cholen. Ele fazia como habitualmente,
durante toda uma época ele fazia como habitualmente, dava-me banho com a
água das talhas e levava-me ao colo para a cama. Chegava-se a mim, deitava-
se também mas tinha-se-lhe ido a força toda, impotente. A data da partida,
mesmo que ainda longínqua, uma vez fixada, ele já nada podia fazer com o
meu corpo. Tinha acontecido brutalmente, sem ele ter consciência disso. O
seu corpo já não queria esta que ia partir, trair. Dizia: já não posso possuir-te,
pensava que ainda podia, mas já não posso. Dizia que estava morto.
Desculpava-se com um sorriso muito meigo, dizia que talvez aquilo nunca
mais lhe voltasse. Eu perguntava-lhe se ele tinha querido que as coisas se
passassem assim. Ele quase ria, dizia: não sei, neste momento talvez sim. A
sua meiguice tinha ficado inteira na dor. Não falava dessa dor, nunca dissera
uma palavra sobre ela. Às vezes o seu rosto estremecia, fechava os olhos e
cerrava os dentes. Mas calava-se sempre sobre as imagens que via por trás
dos olhos fechados. Dir-se-ia que amava aquela dor, que a amava como me
amara, com muita força, talvez até morrer, e que agora a preferia a mim. Às
vezes dizia que queria acariciar-me porque sabia que me apetecia muito e que
queria olhar para mim quando o gozo viesse. Fazia-o, olhava para mim ao
mesmo tempo e chamava-me como sua filha. Tínhamos decidido não nos
vermos mais mas não era possível, não fora possível. Todas as noites o
encontrava diante do liceu no seu automóvel preto, a cabeça voltada da
vergonha.
Ela, também, fora quando o barco lançara o seu primeiro adeus, quando
tinham recolhido a passadeira e os rebocadores começado a puxá-lo, a afastá-
lo da terra, que tinha chorado. Tinha-o feito sem mostrar as suas lágrimas,
porque ele era chinês e não se devia chorar esse género de amantes. Sem
mostrar à mãe e ao irmãozinho que sofria, sem mostrar nada, como era
habitual entre eles. O grande automóvel dele estava lá, comprido e negro, no
banco da frente o motorista fardado de branco. Estava um pouco afastado do
parque para automóveis da Companhia Marítima, isolado. Ela tinha-o
reconhecido por esses sinais. Era ele na parte de trás, essa forma quase
invisível, que não fazia qualquer movimento, abatido. Ela estava encostada à
amurada como da primeira vez na barcaça. Sabia que ele olhava para ela. Ela
também o olhava, já não o via mas ainda olhava para a forma do automóvel
preto. E depois, por fim, tinha deixado de o ver. O porto apagara-se, e depois
a terra.
À sua volta as pessoas dormiam, cobertas pela música mas não acordadas
por ela, tranquilas. A rapariga pensava que acabava de ver a noite mais calma
que alguma vez existira no oceano Índico. Julga que foi nessa noite também
que viu chegar ao convés o seu irmãozinho com uma mulher. Ele tinha-se
encostado à amurada, ela tinha-o enlaçado e tinham-se beijado. A rapariga
escondera-se para ver melhor. Reconhecera a mulher. Ela e o irmãozinho
estavam já sempre juntos. Era uma mulher casada. Tratava-se dum casal
morto. O marido parecia não se aperceber de nada. Durante os últimos dias
da viagem o irmãozinho e essa mulher ficavam o dia todo no camarote, só
saíam à noite. Nesses mesmos dias o irmãozinho olhava a mãe, e a irmã sem
as reconhecer, dir-se-ia. A mãe tomara-se irritável, silenciosa, ciumenta. Ela,
a menina, chorava. Estava feliz, achava ela, e ao mesmo tempo tinha medo do
que aconteceria mais tarde ao irmãozinho. Acreditava que ele as abandonaria,
que se iria embora com essa mulher, mas não, tinha-se-lhes juntado à
chegada a França.
Ela não sabe quanto tempo depois da partida da rapariga branca ele
executou a ordem do pai, quando fez aquele casamento com a rapariga
designada pelas famílias há dez anos, também ela coberta de ouro, de
diamantes, de jade. Uma Chinesa, também ela oriunda do Norte, da cidade de
Fu-Chuen, que veio acompanhada pela família.
Deve ter ficado muito tempo sem poder estar com ela, sem conseguir dar-
lhe o herdeiro das fortunas. A recordação da menina branca devia estar ali,
deitada, o corpo, ali, atravessado na cama. Ela deve ter permanecido por
muito tempo a rainha do seu desejo, a referência pessoal à emoção, à
imensidão da ternura, à sombria e terrível profundidade carnal. Depois
chegou o dia em que isso deve ter sido possível. Justamente aquele em que o
desejo da pequena branca devia ser tal, insustentável a um ponto tal que ele
poderia ter reencontrado a sua imagem completa como numa febre grande e
forte e penetrar a outra mulher com esse desejo dela, da menina branca. Deve
ter-se reencontrado pela mentira, dentro dessa mulher, e pela mentira, fazia o
que as famílias, o Céu, os antepassados do Norte esperavam dele, a saber, o
herdeiro do nome.
Anos depois da guerra, depois dos casamentos, dos filhos, dos divórcios,
dos livros, ele veio a Paris com a mulher. Telefonara-lhe. Sou eu. Ela
reconhecera-o logo pela voz. Ele dissera: queria só ouvir a sua voz. Ela
dissera: sou eu, bom dia. Ele estava intimidado, tinha medo como dantes. A
sua voz tremia de repente. E com o tremor, de repente, ela voltara a encontrar
a pronúncia da China. Ele sabia que ela tinha começado a escrever livros,
soubera-o pela mãe dela que voltara a ver em Saigão. E depois dissera-lho.
Dissera-lhe que era como dantes, que ainda a amava, que nunca poderia
deixar de a amar, que a amaria até à morte.
Neauphle-le-Château – Paris
fevereiro-março de 1984.
1 Mallarméen, no original.