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Ficha Técnica

Título original: L’AMANT


Capa: Panóplia®
Imagem da capa: Films A2/Grai Phang Film Studio/
Renn Productions/Timothy Burrill Productions
ISBN: 9789892317571
Edições ASA II, S.A.
uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
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Para Bruno Nuytten
Um dia, já eu era velha, um homem dirigiu-se-me à entrada de um lugar
público. Apresentou-se e disse-me: – «Conheço-a desde sempre. Toda a
gente diz que você era bonita quando era nova, vim dizer-lhe que, para mim,
acho-a mais bonita agora do que quando era jovem, gostava menos do seu
rosto de mulher jovem do que daquele que tem agora, devastado.»

Penso frequentemente nesta imagem que sou a única a ver ainda e de que
nunca falei. Está sempre aí no mesmo silêncio, deslumbrante. É, de todas, a
que me agrada de mim própria, onde me reconheço, onde me encanto.

Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde
de mais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa
direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda
a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do
tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens,
mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos
meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos
maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas
profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu
rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura.
Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o
seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos
aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me
voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo
rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente
menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a
pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou
os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto
destruído.

Tenho ainda a dizer-vos que tenho quinze anos e meio.


É a passagem de uma barcaça no Mékong.
A imagem dura toda a travessia do rio.
Tenho quinze anos e meio e não há estações nesta região, estamos numa
estação única, quente, monótona, estamos na longa zona quente da terra, não
há primavera, não há renovação.

Estou num pensionato do Estado em Saigão. Durmo e como lá, nesse


pensionato, mas vou às aulas fora, ao liceu francês. A minha mãe, professora,
quer o curso secundário para a sua filhinha. Para ti, tem de ser o secundário.
O que era suficiente para ela já não é para a pequena. O secundário e depois
um bom curso de matemática. Ouvi sempre esta ladainha desde os primeiros
anos de escola. Nunca imaginei que pudesse escapar ao curso de matemática,
sentia-me feliz em fazê-lo esperar. Vi sempre a minha mãe fazer todos os dias
o futuro dos filhos e o seu. Um dia, já não estava em condições de fazer
futuros grandiosos para os filhos, fez então outros, futuros colados com cuspo
mas que mesmo assim desempenhavam a sua função, faziam uma barreira ao
tempo à sua frente. Lembro-me dos cursos de contabilidade para o meu irmão
mais novo. A escola Universal, todos os anos, em todos os níveis. É preciso
recuperar, dizia a minha mãe. Durava três dias, nunca quatro, nunca.
Deixava-se a escola Universal quando se mudava de posto. Recomeçava-se
no seguinte. A minha mãe aguentou dez anos. Sem resultado. O irmãozinho
tornou-se um pequeno contabilista em Saigão. Como não havia escola Violet
na colónia, devemos-lhe a partida do meu irmão mais velho para França.
Durante alguns anos ficou em França para tirar o curso da escola Violet. Não
tirou. A minha mãe não se devia deixar iludir, mas não tinha alternativa, era
preciso separar aquele filho dos outros dois. Durante alguns anos deixou de
fazer parte da família. Foi na sua ausência que a minha mãe comprou a
concessão. Terrível aventura, mas para nós, os filhos que ficavam, menos
terrível do que teria sido a presença do assassino dos filhos da noite, da noite
do caçador.

Muitas vezes me disseram que era o sol demasiado forte durante toda a
infância. Mas não acreditei. Disseram-me também que era a reflexão em que
a miséria mergulhava as crianças. Mas não, não é isso. As crianças-velhas da
fome endémica, sim, mas nós, não, nós não tínhamos fome, nós tínhamos
vergonha, nós vendíamos os móveis, mas não tínhamos fome, nós tínhamos
um boy e comíamos por vezes, é certo, porcarias, aves pernaltas, pequenos
jacarés, mas essas porcarias eram cozidas por um boy e servidas por ele e por
vezes até as recusávamos, dávamo-nos ao luxo de não querer comer. Não,
passou-se qualquer coisa quando tinha dezoito anos que fez este rosto
acontecer-me. Devia ser de noite. Tinha medo de mim, tinha medo de Deus.
De dia, tinha menos medo e a morte parecia menos grave. Mas o medo não
me deixava. Queria matar, o meu irmão mais velho, queria matá-lo, queria
vencê-lo uma vez, uma vez só e vê-lo morrer. Era para tirar da frente da
minha mãe o objeto do seu amor, esse filho, castigá-la por o amar tanto, tão
mal, e sobretudo para salvar o meu irmão mais novo, acreditava que era
também isso, o meu irmão mais novo, o meu filho, da vida viva desse irmão
mais velho a pesar sobre a dele, desse véu negro sobre o dia, dessa lei
representada por ele, ditada por ele, um ser humano, e que era uma lei animal,
e que a cada instante de cada dia da vida daquele irmão mais novo trazia o
medo a essa vida, medo que uma vez atingiu o seu coração e o fez morrer.

Escrevi muito sobre estas pessoas da minha família, mas quando o fazia
eles ainda eram vivos, a mãe e os irmãos, e escrevi à volta deles, à volta
destas coisas sem ir ao centro delas.

A história da minha vida não existe. Isso não existe. Nunca há um centro.
Não há caminho, nem linha. Há vastos lugares onde se faz crer que havia
alguém, não é verdade, não havia ninguém. A história de uma pequeníssima
parte da minha juventude, escrevi-a já mais ou menos, enfim, quero dizer, dei
uma ideia, falo justamente desta, da travessia do rio. O que faço aqui é
diferente, e semelhante. Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam
iluminados. Aqui falo dos períodos ocultos dessa mesma juventude, de certas
dissimulações que teria operado sobre certos factos, sobre certos sentimentos,
sobre certos acontecimentos. Comecei a escrever num meio que me impelia
ao pudor. Escrever, para eles, era ainda moral. Escrever, agora, dir-se-ia que
muitas vezes já não é nada. Por vezes sei isto: que a partir do momento em
que escrever não é, todas as coisas confundidas, ir à vacuidade e ao vento,
escrever não é nada.
Que a partir do momento em que escrever não é, todas as vezes, todas as
coisas confundidas numa só, por essência inqualificável, escrever não passa
de publicidade. Mas a maior parte das vezes não tenho opinião, vejo que
todos os campos estão abertos, que não haveria mais paredes, que o escrito já
não saberia onde se meter para se esconder, se fazer, se ler, que a sua
inconveniência fundamental deixaria de ser respeitada, mas já não penso
nisso antes.

Agora vejo que muito jovem, aos dezoito anos, aos quinze anos, tive esse
rosto premonitório daquele que ganhei depois com o álcool na meia-idade da
minha vida. O álcool preencheu a função que Deus não teve, teve também a
de me matar, de matar. Este rosto do álcool veio-me antes do álcool. O álcool
veio confirmá-lo. Tinha em mim o lugar para aquilo, soube-o como os outros
mas, curiosamente, antes da hora. Tal como tinha em mim o lugar do desejo.
Tinha aos quinze anos o rosto do prazer e não conhecia o prazer. Este rosto
via-se muito. Mesmo a minha mãe devia vê-lo. Os meus irmãos viam-no.
Tudo começou para mim desta maneira, por este rosto clarividente,
extenuado, estes olhos pisados adiantados ao tempo, aos factos.

Quinze anos e meio. É a travessia do rio. Quando volto a Saigão, estou em


viagem, sobretudo quando apanho o autocarro. E nessa manhã apanhei o
autocarro em Sadec onde a minha mãe dirige a escola das raparigas. É o fim
das férias escolares, já não sei quais. Fui passá-las na pequena casa de posto
da minha mãe. E nesse dia regresso a Saigão, ao pensionato. O autocarro para
os indígenas saiu da praça do mercado de Sadec. Como habitualmente, a
minha mãe acompanhou-me e confiou-me ao motorista, confia-me sempre
aos motoristas dos autocarros de Saigão, para o caso de um acidente, de um
incêndio, de uma violação, de um ataque de piratas, de um desastre mortal da
barcaça. Como habitualmente, o motorista pôs-me junto dele à janela, no
lugar reservado aos viajantes brancos.

É no decurso desta viagem que a imagem se teria destacado, que teria sido
roubada ao conjunto. A imagem poderia ter existido, uma fotografia poderia
ter sido tirada, como outra, algures, noutras circunstâncias. Mas não foi. O
objeto era demasiado insignificante para a provocar. Quem se teria lembrado
disso? Só poderia ser tirada se alguém pudesse ter previsto a importância
deste acontecimento na minha vida, esta travessia do rio. Ora, enquanto esta
se dava, ignorava-se até a sua existência. Só Deus a conhecia. É por isso que
esta imagem, e não podia ser de outra maneira, não existe. Foi omitida. Foi
esquecida. Não foi destacada, retirada ao conjunto. É a este não ter sido feita
que deve a sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamente o seu
autor.

É, portanto, durante a travessia de um braço do Mékong na barcaça que


está entre Vinhlong e Sadec, na grande planície de lama e de arroz do sul da
Cochinchina, a das Aves.
Desço do autocarro. Vou à amurada. Olho o rio. A minha mãe dizia-me às
vezes que nunca, em toda a minha vida, voltarei a ver rios tão belos como
aqueles, tão grandes, tão selvagens, o Mékong e os seus braços que descem
para os oceanos, estes territórios de água que vão desaparecer nas cavidades
dos oceanos. Na planura a perder de vista, estes rios vão depressa, escorrem
como se a terra se inclinasse.
Desço sempre do autocarro quando chegamos à barcaça, mesmo à noite,
porque tenho sempre medo, tenho medo que os cabos cedam, que sejamos
arrastados para o mar. Na corrente terrível olho o último momento da minha
vida. A corrente é tão forte, levaria tudo, pedras, uma catedral, uma cidade.
Há uma tempestade que sopra no interior das águas do rio. Vento que se
debate.

Trago um vestido de seda natural, usado, quase transparente. Antes, foi um


vestido da minha mãe, um dia ela deixou de o pôr porque o achava
demasiado claro, deu-mo. É um vestido sem mangas muito decotado. É desse
tom amarelado que a seda natural ganha com o uso. É um vestido de que me
lembro. Acho que me fica bem. Pus um cinto de couro à cintura, talvez um
cinto dos meus irmãos. Não me lembro dos sapatos que usava nesses anos,
mas apenas de certos vestidos. A maior parte do tempo ando sem meias e de
sandálias de lona. Falo do tempo que precedeu o colégio de Saigão. A partir
daí, evidentemente, calcei sempre meias. Nesse dia, devo trazer esse famoso
par de saltos altos de lamé dourado. Não vejo mais nada que pudesse usar
nesse dia, por isso uso-os. Um saldo que a minha mãe me comprou. Calço
esses lamés dourados para ir ao liceu. Vou ao liceu de sapatos de noite
enfeitados de pequenos desenhos em strass. É a minha vontade. Não me
suporto senão com aquele par de sapatos e ainda agora me quero assim, estes
saltos altos são os primeiros da minha vida, são bonitos, eclipsaram todos os
sapatos que os precederam, os de correr e brincar, de lona branca.

Não são os sapatos o que há de insólito, de extraordinário, nesse dia, na


aparência da garota. O que há nesse dia é que a menina traz na cabeça um
chapéu de homem de abas direitas, um feltro mole cor de pau-rosa com uma
fita preta larga.
A ambiguidade determinante da imagem está neste chapéu.
Como ele chegou até mim, esqueci. Não vejo quem mo teria dado. Creio
que foi a minha mãe que mo comprou e a meu pedido. Única certeza, eram
saldos saldados. Como explicar esta compra? Nenhuma mulher, nenhuma
rapariga, usa um chapéu de feltro de homem nesta colónia, nesta época. Nem
nenhuma mulher indígena. Isto é o que deve ter acontecido, experimentei este
chapéu a brincar, olhei-me no espelho do vendedor e vi: sob o chapéu de
homem, a magreza ingrata, esse defeito de infância, tornou-se outra coisa.
Deixou de ser um dado brutal, fatal, da natureza. Tornou-se, ao contrário,
uma escolha que a contrariava, uma escolha do espírito. Subitamente, essa
magreza era escolhida. De repente vejo-me outra, como outra seria vista, lá
fora, posta à disposição de todos, à disposição de todos os olhares, na
circulação das cidades, das estradas, do desejo. Fico com o chapéu, já não me
separo dele, tenho isto, este chapéu que me faz só por si inteira, não o largo
mais. Quanto aos sapatos, deve ter sido mais ou menos a mesma coisa, mas
depois do chapéu. Contradizem o chapéu, como o chapéu contradiz o corpo
frágil, logo são bons para mim. Também já não os deixo, vou para todo o
lado com estes sapatos, este chapéu, para a rua, com qualquer tempo, em
todas as ocasiões, vou para a cidade.

Encontrei uma fotografia do meu filho aos vinte anos. Está na Califórnia
com as suas amigas Erika e Elisabeth Lennard. É magro, tão magro, dir-se-ia
um ugandês branco. Também ele. Achei-lhe um sorriso arrogante, um pouco
o ar de quem se está nas tintas. Quer dar de si uma imagem desleixada de
jovem vagabundo. É assim que gosta de si, pobre, com esta expressão de
pobre, este andar desmanchado de jovem magro. É esta fotografia a que está
mais próxima da que não foi tirada à rapariga da barcaça.

A que comprou o chapéu cor-de-rosa de abas direitas e fita preta larga é


ela, essa mulher duma certa fotografia, é a minha mãe. Reconheço-a melhor
ali do que em fotografias mais recentes. E o pátio duma casa sobre o Pequeno
Lago de Hanói. Estamos juntos, ela e nós, seus filhos. Tenho quatro anos. A
minha mãe está no centro da imagem. Bem vejo como ela está mal sentada,
como não sorri, como espera que a fotografia acabe. Pelas suas feições
cansadas, por uma certa desordem da sua aparência, pela sonolência do seu
olhar, sei que faz calor, que está extenuada, que se aborrece. Mas é pela
maneira como estamos vestidos, nós, seus filhos, como uns infelizes, que
reencontro um certo estado em que a minha mãe por vezes caía e de que já,
na idade que temos na fotografia, conhecemos os sinais prenunciadores, essa
maneira, justamente, que ela tinha, de repente, de já não conseguir lavar-nos,
de já não nos vestir, e por vezes mesmo de já não nos alimentar. Este grande
desencorajamento de viver, atravessava-o a minha mãe todos os dias. Às
vezes perdurava, às vezes desaparecia com a noite. Tive esta sorte de ter uma
mãe desesperada de um desespero tão puro que mesmo a felicidade da vida,
por mais viva que fosse, às vezes, não chegava a distraí-la completamente. O
que ignorarei sempre é o género de factos concretos que a faziam todos os
dias deixar-nos assim. Desta vez, talvez seja aquele disparate que acaba de
fazer, esta casa que acaba de comprar – a da fotografia – de que não tínhamos
qualquer necessidade e isto quando o meu pai está já muito doente, tão perto
de morrer, a poucos meses. Ou talvez tenha acabado de saber que está
também ela doente com a doença de que ele vai morrer? As datas coincidem.
O que ignoro, como ela devia ignorar, é a natureza das evidências que a
trespassavam e faziam surgir-lhe aquele desencorajamento. Era a morte do
meu pai já presente, ou a morte do dia? As dúvidas sobre aquele casamento?
Aquele marido? Aqueles filhos? Ou outra, mais geral, de tudo isto?
Era todos os dias. Disto tenho a certeza. Devia ser brutal. A um dado
momento do dia este desespero mostrava-se. Depois seguia-se a
impossibilidade de continuar a avançar, ou o sono, ou por vezes nada, ou por
vezes ao contrário as compras de casas, as mudanças, ou por vezes este
humor, só este humor, este abatimento ou por vezes, uma rainha, tudo o que
lhe pediam, tudo o que lhe ofereciam, esta casa sobre o Pequeno Lago, sem
qualquer razão, o meu pai já moribundo, ou este chapéu de abas direitas,
porque a pequena o queria tanto, ou estes sapatos de lamé dourado ou idem.
Ou nada, ou dormir, morrer.
Nunca vi nenhum filme com essas índias que usam estes mesmos chapéus
de aba direita e tranças caídas para o peito. Nesse dia também tenho tranças,
não as prendi ao alto como habitualmente faço, mas não são as mesmas.
Tenho duas longas tranças caídas para o peito como essas mulheres do
cinema que nunca vi, mas são tranças de menina. Desde que tenho o chapéu,
para poder pô-lo, já não apanho o cabelo ao alto. Há já algum tempo que
estico o cabelo com força, penteio-o para trás, gostaria que fosse liso, que se
visse menos. Todas as noites o penteio e refaço as tranças antes de me deitar
como a minha mãe me ensinou. Os meus cabelos são pesados, flexíveis,
dolorosos, uma massa acobreada que me chega aos rins. Dizem muitas vezes
que é o que tenho de mais bonito e eu acho que isso significa que não sou
bonita. Estes cabelos tão vistosos hei de mandá-los cortar aos vinte e três
anos em Paris, cinco anos depois de ter deixado a minha mãe. Disse: corte.
Ele cortou. Tudo num único gesto, para desbastar, a tesoura fria roçou a pele
do pescoço. Caíram no chão. Perguntaram-me se os queria, que os
embrulhavam. Disse que não. Depois disso já não disseram que tinha um
cabelo bonito, quer dizer nunca mais o disseram com tanto ênfase, como
antes me diziam, antes de o cortar. Depois, diziam: tem um belo olhar. O
sorriso também não está mal.

Na barcaça, olham para mim, ainda o tenho. Quinze anos e meio. Já me


pinto. Ponho creme Tokalon, tento esconder as sardas que tenho nas maçãs
do rosto, por baixo dos olhos. Sobre o creme Tokalon ponho pó cor de carne,
marca Houbigan. Este pó é da minha mãe que o põe para ir às festas da
Administração-Geral. Nesse dia também pus bâton vermelho-escuro como
então se usava, cerise. Não sei como o arranjei, talvez tenha sido Hélène
Lagonelle que o roubou à mãe dela para mim, já não sei. Não tenho perfume,
em casa da minha mãe é água-de-colónia e sabonete Palmolive.

Na barcaça, ao lado do autocarro, há uma grande limusina preta com um


motorista fardado de algodão branco. Sim, é o grande automóvel fúnebre dos
meus livros. É o Morris Léon-Bollée. O Lancia preto da embaixada de França
em Calcutá não fez ainda a sua entrada na literatura.

Entre os motoristas e os patrões há ainda vidros de correr. Há ainda


banquetas. Ainda é grande como um quarto.
Na limusina há um homem muito elegante que me olha. Não é um branco.
Está vestido à europeia, usa o fato de seda claro dos banqueiros de Saigão.
Olha-me. Já estou habituada a que me olhem. Olha-se as brancas nas
colónias, e as rapariguinhas brancas de doze anos também. Desde há três
anos que os brancos também me olham nas ruas e os amigos da minha mãe
convidam-me amavelmente para ir lanchar a casa deles à hora em que as
mulheres jogam ténis no Clube Desportivo.

Poderia enganar-me, julgar que sou bonita como as mulheres bonitas, como
as mulheres olhadas, porque realmente me olham muito. Mas sei que não é
uma questão de beleza mas doutra coisa, por exemplo, de espírito. O que
quero parecer, pareço, bela também, se é o que querem que seja, bela ou
bonita, bonita por exemplo para a família, mas só para a família, posso ser
tudo o que quiserem de mim. E acreditam que sou. Acreditar que também sou
encantadora. Desde que acredite, que isso se torna verdade para quem me vê
e quer que eu seja segundo o seu gosto, também o sei. Assim, em plena
consciência posso ser encantadora mesmo se estou obcecada pela execução
do meu irmão. Para a morte, uma única cúmplice, a minha mãe. Digo a
palavra encantadora como a diziam à minha volta, à volta das crianças.

Já sei muito. Sei uma coisa. Sei que não são os vestidos que fazem as
mulheres mais ou menos bonitas, nem os cuidados de beleza, nem o preço
dos cremes, nem a raridade, o preço dos enfeites. Sei que o problema está
algures. Não sei onde. Sei só que não está onde as mulheres julgam. Olho as
mulheres nas ruas de Saigão, nos postos do mato. Há-as muito belas, muito
brancas, têm um cuidado extremo com a sua beleza, sobretudo nos postos do
mato. Não fazem nada, guardam-se apenas, guardam-se para a Europa, os
amantes, as férias em Itália, as longas licenças de seis meses, de três em três
anos; quando poderão finalmente falar do que se passa aqui, desta existência
colonial tão particular, do serviço desta gente, destes boys, tão perfeitos, da
vegetação, dos bailes, destas vivendas brancas, grandes a ponto de nos
perdermos nelas, onde estão alojados os funcionários nos postos afastados.
Esperam. Vestem-se para nada. Olham-se. Na sombra dessas vivendas,
olham-se para mais tarde, julgam viver um romance, têm já longos armários
cheios de vestidos a que não sabem que fazer, colecionados como o tempo, a
longa sequência dos dias de espera. Algumas ficam loucas. Algumas são
trocadas por uma jovem criada que se cala. Abandonadas. Ouve-se esta
palavra atingi-las, o barulho que faz, o barulho da bofetada que ele dá.
Algumas matam-se.
Esta falta das mulheres a si próprias, por si próprias perpetrada, apareceu-
me sempre como um erro.
Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não
existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou então nunca existira. Era a
inteligência imediata da relação de sexualidade ou então não era nada. Isso
soube-o eu antes do experiment.

Só Hélène Lagonelle escapava à lei do erro. Demorada na infância.

Estou muito tempo sem ter vestidos meus. Os meus vestidos são uma
espécie de saco, feitos de antigos vestidos da minha mãe que são por sua vez
uma espécie de saco. À exceção dos que a minha mãe manda a Dô fazer-me.
É a governanta que nunca deixará a minha mãe mesmo quando ela voltar para
França, mesmo quando o meu irmão mais velho a tentar violar na casa do
posto de Sadec, mesmo quando já não lhe pagarem. Dô foi educada pelas
freiras, borda e faz pregas, cose à mão como já não se cose há séculos, com
agulhas finas como cabelos. Como ela borda, a minha mãe manda-a bordar
lençóis. Como ela faz pregas, a minha mãe manda-a fazer-me vestidos com
pregas, vestidos com folhos, uso-os como sacos, estão fora de moda, sempre
infantis, duas filas de pregas à frente e gola redonda ou nervuras na saia, ou
folhos bordados em viés para armar à alta costura. Uso estes vestidos como
sacos, com cintos que os deformam, tornam-se então eternos.

Quinze anos e meio. O corpo é delgado, quase frágil, seios de criança


ainda, pintada de rosa-pálido e vermelho. E depois esta vestimenta que podia
fazer rir e de que ninguém ri. Bem vejo que tudo se joga aí. Tudo se joga aí e
nada está ainda jogado, vejo-o nos olhos, tudo está já nos olhos. Quero
escrever. Já o disse à minha mãe: o que eu quero é isso, escrever. Não há
resposta da primeira vez. E depois pergunta: escrever o quê? Digo livros,
romances. Ela diz asperamente: depois do curso de matemática escreves o
que quiseres, já não tenho nada com isso. Ela é contra, não é digno, não é
trabalho, é uma brincadeira – dir-mo-á mais tarde: uma ideia de criança.
A garota do chapéu de feltro está na luz lodosa do rio, só, na coberta da
barcaça, encostada à amurada. O chapéu de homem tinge de rosa toda a cena.
É a única cor. Ao sol brumoso do rio, o sol do calor, as margens apagaram-se,
o rio parece colar-se ao horizonte. O rio corre surdamente, sem ruído, o
sangue no corpo. Não há vento fora da água. O motor da barcaça, único ruído
da cena, o de um velho motor desconjuntado de bielas soldadas. De vez em
quando, por rajadas leves, ruídos de vozes. E depois os latidos dos cães vêm
de toda a parte, de trás da bruma, de todas as aldeias. A garota conhece o
barqueiro desde criança. O barqueiro sorri-lhe e pede-lhe notícias da Senhora
Diretora. Diz-lhe que a vê passar muitas vezes à noite, que ela vai com
frequência à concessão do Camboja. A mãe vai passando bem, diz a garota.
À volta da barcaça o rio está cheio, as suas águas em marcha atravessam as
águas estagnantes dos arrozais, não se misturam. Arrebanhou tudo o que
encontrou desde o Tonlésap, a floresta cambojana. Leva tudo o que aparece,
palhotas, florestas, incêndios extintos, pássaros mortos, cães mortos, tigres,
búfalos, afogados, homens afogados, engodos, ilhas de jacintos-de-água
aglutinados, tudo em direção ao Pacífico, nada tem tempo de se escoar, tudo
é arrastado pela tempestade profunda e vertiginosa da corrente interior, tudo
fica suspenso à superfície da força do rio.

Respondi-lhe que o que eu queria antes de tudo era escrever, mais nada,
nada. Está ciumenta. Não há resposta, um olhar breve logo desviado, o ligeiro
encolher dos ombros, inesquecível. Seria a primeira a partir. Será preciso
esperar ainda alguns anos para que ela me perca, para que perca esta, esta
filha. Quanto aos filhos não havia que temer. Mas esta, um dia, ela bem o
sabia, partiria, conseguiria sair. Primeira em francês. O reitor diz-lhe: a sua
filha, minha senhora, é a primeira em francês. A minha mãe não diz nada,
nada, descontente porque não são os seus filhos que são os primeiros em
francês, que chatice, minha mãe, meu amor, pergunta: e em matemática?
Dizem: ainda não é, mas há de lá chegar com o tempo. A minha mãe
pergunta: mas quando? Respondem: quando ela quiser, minha senhora.
Minha mãe meu amor, meu incrível andar desengonçado com as meias de
algodão passajadas por Dô, nos trópicos e ainda julga que se tem de usar
meias para ser a senhora diretora da escola, os seus vestidos lamentáveis,
disformes, remendados por Dô, vem ainda direta da sua quinta da Picardia
povoada de primas, usa tudo até ao fim, julga que é preciso merecer, merecer
tudo, os sapatos, os sapatos estão cambados, anda de lado, com uma dor de
cão, os cabelos esticados e apertados num carrapito de chinesa, faz-nos
vergonha, faz-me vergonha na rua diante do liceu, quando chega no seu B 12
diante do liceu toda a gente olha, ela nunca se apercebe de nada, nunca, boa
para meter no manicómio, bater, matar. Olha-me, diz: talvez te consigas
safar. Dia e noite essa ideia fixa. Não é que seja preciso chegar a qualquer
coisa, o que é preciso é sair da situação em que se está.

Quando a minha mãe retoma alento, quando sai do desespero, descobre o


chapéu de homem e os sapatos de lamé dourado. Pergunta-me o que é aquilo.
Digo-lhe que não é nada. Olha-me, gosta, sorri. Não é feio, diz, não te fica
mal, é uma variante. Não pergunta se foi ela que os comprou, sabe que foi
ela. Sabe que é bem capaz disso, que certas vezes, essas vezes a que me
referia, fazemos dela o que queremos, que não pode nada contra nós. Digo-
lhe: não foi caro, não te preocupes. Ela pergunta onde foi. Digo-lhe que foi na
Rua Catinat, saldos saldados. Ela olha-me com simpatia. Deve achar que é
um sintoma reconfortante esta imaginação da pequena, inventar vestir-se
desta maneira. Não só admite esta palhaçada, esta inconveniência, ela bem
comportada como uma viúva, vestida de escuro como uma freira, mas esta
inconveniência agrada-lhe.

O elo com a miséria está também no chapéu de homem porque lá terá de


ser que o dinheiro entre em casa, duma maneira ou de outra, terá de entrar. À
volta dela é o deserto, os filhos são o deserto, não farão nada, as terras
salgadas também, o dinheiro continuará perdido, acabou de vez. Resta aquela
pequena que cresce e que saberá talvez um dia como fazer entrar dinheiro
naquela casa. É por esta razão, embora não o saiba, que a mãe deixa a sua
filha sair naquela figura de criança prostituta. E é por isso também que a
criança sabe já muito bem como fazer para desviar a atenção que lhe dão a
ela para a que ela dá ao dinheiro. Isso faz sorrir a mãe.

A mãe não a impedirá de o fazer quando ela procurar dinheiro. A filha dirá:
pedi-lhe quinhentas piastras para o regresso a França. A mãe dirá que está
bem, que é quanto é preciso para se instalar em Paris, dirá: com quinhentas
piastras já te governas. A filha sabe que o que ela faz é o que a mãe teria
escolhido que a sua filha fizesse, se tivesse ousado, se tivesse força para tal,
se o mal que essa ideia lhe fazia não estivesse presente dia após dia,
extenuante.

Nas histórias dos meus livros que se relacionam com a minha infância, já
não sei de repente o que evitei dizer, o que disse, creio ter dito o amor que
tínhamos pela nossa mãe mas não sei se disse o ódio que também lhe
tínhamos e o amor que tínhamos uns pelos outros e o ódio também, terrível,
nesta história comum de ruína e de morte que era a desta família em todos os
casos, no do amor como no do ódio e que escapa ainda ao meu completo
entendimento, que me é ainda inacessível, escondida no mais profundo da
minha carne, cega como um recém-nascido no primeiro dia. Ela é o lugar à
entrada do qual o silêncio começa. O que aí se passa é justamente o silêncio,
este lento trabalho para toda a minha vida. Ainda estou lá, diante destas
crianças possessas, à mesma distância do mistério. Nunca escrevi, julgando
fazê-lo, nunca amei, julgando amar, nunca fiz nada senão esperar diante da
porta fechada.

Quando estou na barcaça do Mékong, nesse dia da limusina preta, a


concessão da barragem não foi ainda abandonada pela minha mãe. De vez em
quando metemo-nos ainda a caminho, como dantes, à noite, ainda lá vamos
os três, vamos lá passar alguns dias. Ficamos ali à varanda do bungalow, face
à montanha do Sião. E depois partimos. Ela não tem nada a fazer ali, mas
volta lá. O meu irmão pequeno e eu estamos junto dela na varanda face à
floresta. Já somos crescidos, já não tomamos banho no rio, já não vamos à
caça da pantera negra nos pântanos dos estuários, já não vamos nem à
floresta nem às aldeias das plantações de pimenta. Tudo cresceu à nossa
volta. Já não há crianças nem em cima dos búfalos nem em parte alguma.
Somos atingidos por uma sensação de estranheza e a mesma lentidão que se
apoderou da minha mãe apoderou-se também de nós. Não aprendemos nada,
a não ser a olhar a floresta, a esperar, a chorar. As terras baixas estão
definitivamente perdidas, os criados cultivam as parcelas de cima, deixamos-
lhes o arroz com casca, e eles ficam lá sem salário, aproveitam as boas
palhotas que a minha mãe mandou construir. Amam-nos como se fôssemos
membros da sua família, fazem como se guardassem o bungalow e guardam-
no. Não falta nenhuma peça do pobre serviço de louça. O telhado apodrecido
pelas chuvas continua a desaparecer. Mas os móveis estão limpos. E a forma
do bungalow continua inalterável como um desenho, visível da estrada. As
portas são abertas todos os dias para que o vento passe e seque a madeira. E
fechadas à noite, aos cães vadios, aos contrabandistas da montanha.

Como veem, não é pois na cantina de Réam, como tinha escrito, que
encontro o homem da limusina preta, é depois do abandono da concessão,
dois ou três anos mais tarde, nesta luz de bruma e de calor.

É um ano e meio depois deste encontro que a minha mãe regressa a França
connosco. Venderá todos os seus móveis. Depois irá uma última vez à
barragem. Sentar-se-á na varanda face ao poente, olharemos ainda uma vez
para o Sião, uma última vez, nunca mais, mesmo quando ela deixar de novo a
França, quando mudar outra vez de ideias e voltar mais uma vez à Indochina
para se reformar em Saigão, nunca mais ela irá diante daquela montanha,
diante daquele céu amarelo e verde por cima daquela floresta.

Sim, dir-vos-ei ainda, já tarde na sua vida, ela recomeçou. Abriu uma
escola de língua francesa, a Nouvelle École Française, que lhe permitirá
pagar uma parte dos meus estudos e sustentar o filho mais velho enquanto
viveu.

O irmãozinho morreu em três dias de uma broncopneumonia, o coração


não aguentou. Foi nesse momento que deixei a minha mãe. Era durante a
ocupação japonesa. Tudo acabou nesse dia. Nunca mais lhe fiz perguntas
sobre a nossa infância, sobre ela. Ela morreu para mim com a morte do meu
irmãozinho. Tal como o meu irmão mais velho. Nunca ultrapassei o horror
que de repente me inspiraram. Já não me importam. Não sei nada deles desde
esse dia. Não sei ainda como é que ela conseguiu pagar as dívidas aos
chettys. Um dia deixaram de vir. Vejo-os. Estão sentados no pequeno salão
de Sadec, vestidos de panos brancos, ficam ali sem uma palavra, meses, anos.
Ouve-se a minha mãe que chora e os insulta, está no quarto, não quer sair de
lá, grita que a deixem, eles são surdos, calmos, sorridentes, ficam. E depois
um dia já lá não estão. Estão mortos agora, a mãe e os dois irmãos. Também
para as recordações é tarde de mais. Agora já não os amo. Já não sei se os
amei. Deixei-os. Já não tenho na cabeça o perfume da sua pele nem nos meus
olhos a cor dos seus olhos. Já não me lembro da voz, exceto talvez da voz da
doçura com o cansaço da noite. O riso, já não o oiço, nem o riso, nem os
gritos. Acabou, já não me lembro. É por isso que agora escrevo tão
facilmente sobre ela, tão longamente, tão pormenorizadamente; ela tornou-se
escrita corrente.

Teve de ficar em Saigão de 1932 a 1949, aquela mulher. É em dezembro de


1942 que o meu irmão mais novo morre. Ela já não pode sair de lado
nenhum. Ficou ainda lá, perto da sepultura, diz. E depois acabou por voltar a
França. O meu filho tinha dois anos quando voltámos a ver-nos. Era tarde de
mais para nos reencontrarmos. Compreendemo-lo desde o primeiro olhar. Já
não havia nada a reencontrar. Salvo para o filho mais velho, acabara para
tudo o resto. Foi viver e morrer no Loir-et-Cher no falso castelo Luís XIV.
Vivia com Dô. Tinha ainda medo da noite. Tinha comprado uma espingarda.
Dô fazia de sentinela nas mansardas do último andar do castelo. Tinha
comprado também uma propriedade ao filho mais velho, perto de Amboise.
A propriedade tinha bosques. Ele mandou cortar as árvores. Foi jogar o
dinheiro num clube de bacará em Paris. Perdeu os bosques numa noite. Onde
a recordação subitamente cede, onde o meu irmão me faz talvez vir as
lágrimas aos olhos, é depois da perda do dinheiro destes bosques. O que sei é
que o encontram deitado no carro, em Montparnasse, em frente da Coupole,
que quer morrer. Depois, já não sei. O que ela tinha feito do seu castelo é
realmente inimaginável e sempre por causa do filho mais velho que não sabe,
ele, criança de cinquenta anos, ganhar dinheiro. Compra incubadoras
elétricas, instala-as no grande salão do rés do chão. De súbito tem seiscentos
pintainhos, quarenta metros quadrados de pintainhos. Tinha-se enganado a
regular os infravermelhos, nenhum pinto consegue alimentar-se. Os
seiscentos pintos têm o bico que não coincide, que não fecha, morrem todos
de fome, ela não repete a experiência. Vim ao castelo durante a eclosão dos
pintainhos, era uma festa. Em seguida, o fedor dos pintos mortos e o da ração
é tal que já não posso comer no castelo da minha mãe sem vomitar.

Morreu entre Dô e aquele a quem chama o seu filho no grande quarto do


primeiro andar, o mesmo onde punha carneiros a dormir, quatro a seis
carneiros à volta da cama nos períodos de geada, durante vários invernos, os
últimos.

É aqui, na última casa, a do Loire, quando tiver acabado o seu vaivém


incessante, no fim das coisas desta família, é lá que vejo claramente a loucura
pela primeira vez. Vejo que a minha mãe é indubitavelmente louca. Vejo que
Dô e o meu irmão tiveram sempre acesso a essa loucura. Que eu, não, nunca
a tinha visto. Que nunca tinha visto a minha mãe como uma louca. Ela era-o.
De nascença. No sangue. Não era doente da sua loucura, vivia-a como a
saúde. Entre Dô e o filho mais velho. Ninguém mais além deles a pressentira.
Ela tivera sempre muitos amigos, mantinha os mesmos durante longos anos e
sempre fizera novos, por vezes muito jovens, entre os recém-chegados dos
postos do mato, ou mais tarde entre as pessoas da Touraine entre as quais
havia reformados das colónias francesas. Conservava as pessoas junto dela, e
isto em qualquer idade, por causa da sua inteligência, diziam, tão viva, da sua
alegria, daquela natureza incomparável que nunca cansava.

Não sei quem tirara a fotografia do desespero. É o pátio da casa de Hanói.


Talvez o meu pai uma última vez. Dentro de alguns meses será repatriado
para França por razões de saúde. Antes, mudará de posto, será nomeado para
Pnom-Penh. Ficará lá algumas semanas. Morrerá em menos de um ano. A
minha mãe terá recusado acompanhá-lo a França, terá ficado ali onde estava,
ali parada. Em Pnom-Penh. Naquela residência admirável que fica sobre o
Mékong, o antigo palácio do rei do Camboja, no meio daquele parque
assustador, hectares e hectares, onde a minha mãe tem medo. A noite faz-nos
medo. Dormimos os quatro na mesma cama. Ela diz que tem medo da noite.
É nesta residência que a minha mãe saberá da morte do meu pai. Irá sabê-lo
antes da chegada do telegrama, na véspera, por um sinal que só ela vira e
entendera, por essa ave que em plena noite chamara, aflita, perdida no
escritório da ala norte do palácio, o do meu pai. É também lá, a alguns dias da
morte do marido, também em plena noite, que a minha mãe se encontrou face
a face com a imagem do seu pai, do pai dela. Acende a luz. Ele está ali. Está
junto à mesa, de pé, no grande salão octogonal do palácio. Olha-a. Lembro-
me de um grito, de um apelo. Acordou-nos, contou-nos a história, a maneira
como ele estava vestido, com o seu fato dos domingos, cinzento, como ele
estava de pé, e o seu olhar, diretamente sobre ela. Ela diz: chamei-o como
quando era pequena. Ela diz: não tive medo. Correu para a imagem
desaparecida. Tinham morrido os dois nas datas e às horas das aves, das
imagens. Daí sem dúvida a admiração que tínhamos pelo saber da nossa mãe,
em todas as coisas, incluindo as da morte.

O homem elegante saiu da limusina, fuma um cigarro inglês. Olha a


rapariga com o chapéu de homem e sapatos de ouro. Vem lentamente na sua
direção. É visível que está intimidado. Não sorri logo. Primeiro oferece-lhe
um cigarro. A mão treme-lhe. Há esta diferença de raças, ele não é branco,
tem de a superar, é por isso que treme. Ela diz-lhe que não fuma, não
obrigada. Ela não diz mais nada, não diz deixe-me em paz. Então ele sente
menos medo. Então ele diz que lhe parece estar a sonhar. Ela não responde.
Não vale a pena responder, que lhe havia de responder? Espera. Então ele
pergunta-lhe: de onde é que vem? Ela diz que é filha da professora da escola
feminina de Sadec. Ele pensa e depois diz-lhe que ouviu falar dessa senhora,
sua mãe, da sua pouca sorte com essa concessão que teria comprado no
Camboja, é isso, não é verdade? Sim, é isso.
Ele repete que é extraordinário encontrá-la naquela barcaça. De manhã tão
cedo, uma jovem bonita como ela é, não imagina, é completamente
inesperado, uma rapariga branca num autocarro indígena.
Diz-lhe que o chapéu lhe fica bem, muito bem mesmo, que é… original…
um chapéu de homem, porque não? Ela é tão bonita que se pode permitir
tudo.
Ela olha-o. Pergunta-lhe quem ele é. Ele diz-lhe que regressa de Paris onde
fez os seus estudos, que vive também em Sadec, justamente junto ao rio, a
grande casa com grandes terraços de balaustradas de cerâmica azul. Ela
pergunta-lhe o que é que ele é. Ele diz-lhe que é chinês, que a sua família é
originária da China do Norte, de Fu-Chuen. Permite-me que a leve a sua casa,
em Saigão? Ela concorda. Ele diz ao motorista que tire as bagagens da
rapariga do autocarro e as ponha no automóvel preto.
Chinês. Pertence a essa minoria financeira de origem chinesa que detém
todo o imobiliário popular da colónia. Ele é aquele que passava no Mékong
nesse dia em direção a Saigão.

*
Ela entra no automóvel preto. A porta fecha-se. Um sentimento de opressão
vagamente pressentido invade-a de repente, uma fadiga, a luz sobre o rio que
se embacia, mas só ligeiramente. Uma surdez muito ligeira também, um
nevoeiro, por todo o lado.

Não voltarei a fazer a viagem no autocarro dos indígenas. Doravante, terei


uma limusina para ir ao liceu e voltar ao pensionato. Jantarei nos sítios mais
elegantes da cidade. E estarei sempre a lamentar tudo o que faço, tudo o que
deixo, tudo o que agarro, o bom e o mau, o autocarro, o motorista do
autocarro com quem me ria, as velhas que mascavam tabaco nos lugares de
trás, as crianças no porta-bagagens, a família de Sadec, o horror da família de
Sadec, o seu silêncio genial.

Ele falava. Dizia que tinha saudades de Paris, das adoráveis parisienses, das
estúrdias, das farras, isso é que era vida, da Coupole, da Rotonde, eu da
Rotonde prefiro as boîtes, dessa vida «espantosa» que levara durante dois
anos. Ela ouvia, atenta às referências da conversa que podiam informá-la
quanto à sua riqueza, que teriam podido dar-lhe uma indicação sobre o
montante dos milhões. Ele continuava a contar. A mãe morrera, era filho
único. Só lhe restava o pai detentor do dinheiro. Mas sabe como é, vive
agarrado ao cachimbo de ópio frente ao rio há dez anos, gere a sua fortuna da
cama. Ela diz que está a ver.
Ele recusará o casamento do filho com a pequena prostituta branca do
posto de Sadec.

A imagem começa muito antes de ele ter abordado a menina branca junto
da amurada, no momento em que saiu da limusina preta, quando começou a
aproximar-se dela, e que ela, ela sabia, sabia que ele tinha medo.
Desde o primeiro instante ela sabe qualquer coisa deste género, ou seja, que
ele está à sua mercê. Logo, que outros além dele poderiam ficar também à sua
mercê, se a oportunidade surgisse. Sabe também outra coisa, que doravante
chegou sem dúvida o tempo em que não pode escapar a certas obrigações que
tem para consigo própria. E que a mãe não deve saber nada disso, nem os
irmãos, sabe-o também nesse dia. Desde que entrou no automóvel preto,
soube-o, está à margem daquela família pela primeira vez e para sempre. A
partir daqui não devem mais saber o que vier a ser dela. Que lha tirem, que
lha levem, que lha magoem, que lha estraguem, já não devem sabê-lo. Nem a
mãe nem os irmãos. A partir daqui cada um seguirá o seu destino. É já razão
para chorar na limusina preta.
A criança agora tem de se haver com este homem, o primeiro, o que surgiu
na barcaça.

Aconteceu muito depressa nesse dia, uma quinta-feira. Ele veio todos os
dias buscá-la ao liceu para a levar ao pensionato. E depois, uma vez, veio
uma quinta-feira à tarde ao pensionato. Levou-a no automóvel preto.
É em Cholen. É do lado oposto às avenidas que ligam a cidade chinesa ao
centro de Saigão, essas grandes estradas à americana percorridas pelos
elétricos, os riquexós, os carros. É logo no começo da tarde. Ela escapou ao
passeio obrigatório das raparigas do pensionato.
É um apartamento no sul da cidade. O sítio é moderno, dir-se-ia que
mobilado de qualquer maneira, com móveis a atirar para o modern style. Ele
diz: não escolhi os móveis. Está escuro no estúdio, ela não lhe pede que abra
as persianas. Não tem um sentimento muito definido, nem ódio, nem
repugnância, então é sem dúvida já desejo. Não sabe. Concordou em vir logo
que ele lhe pediu na véspera à noite. Está ali onde tem de estar, deslocada ali.
Sente um leve medo. Dir-se-ia com efeito que isso deve corresponder não só
ao que ela espera, mas ao que deveria acontecer precisamente no seu caso.
Está muito atenta ao exterior das coisas, à luz, ao barulho da cidade em que o
quarto está imerso. Ele, treme. Olha-a primeiro como se esperasse que ela
fale, mas ela não fala. Então ele também não faz qualquer gesto, não se
despe, diz que a ama como um louco, di-lo muito baixo. Depois cala-se. Ela
não lhe responde. Poderia responder-lhe que não o ama. Não diz nada. De
repente sabe, ali, nesse instante, sabe que ele não a conhece, que nunca a
conhecerá, que não tem maneira de conhecer tanta perversidade. E ao fazer
tantos e tantos desvios para a agarrar, não poderá nunca. Cabe-lhe a ela saber.
Sabe. A partir da ignorância dele, ela sabe de repente; já na barcaça ele lhe
agradava. Ele agrada-lhe, a coisa só dependia dela.

Ela diz-lhe: preferia que não me amasse. Mesmo que me ame gostaria que
fizesse como habitualmente faz com as mulheres. Ele olha-a como que
apavorado, pergunta: é isso que quer? Ela diz que sim. Ele começou a sofrer
ali, no quarto, pela primeira vez, já não mente acerca disso. Diz-lhe que já
sabe que ela não o amará nunca. Ela deixa-o dizer. Primeiro diz que não sabe,
depois deixa-o dizer.
Ele diz-lhe que está só, atrozmente só, com esse amor que tem por ela. Ela
diz-lhe que também ela está só. Não diz com quê. Ele diz: seguiu-me até aqui
como teria seguido outro qualquer. Ela responde que não pode saber, que
nunca seguiu ninguém a quarto nenhum. Ela diz que não quer que ele lhe
fale, o que ela quer é que ele faça como habitualmente faz com as outras
mulheres que leva àquele apartamento. Pede-lhe que o faça assim.

Ele arrancou o vestido, arrancou as calcinhas de algodão branco e leva-a


assim nua até à cama. E depois volta-se para o outro lado na cama e chora. E
ela, lenta, paciente, vira-o para si e começa a despi-lo. De olhos fechados,
despe-o. Lentamente. Ele quer fazer gestos para a ajudar. Ela pede-lhe que
não se mexa. Deixe-me. Ela diz que quer ser ela a fazê-lo. Fá-lo. Despe-o.
Quando ela lhe pede ele desloca o corpo na cama, mas muito levemente,
como para não a acordar.

A pele é duma sumptuosa suavidade. O corpo. O corpo é frágil, sem força,


sem músculos, poderia ter estado doente, estar em convalescença, é imberbe,
sem outra virilidade que a do sexo, é muito fraco, parece à mercê de um
insulto, débil. Ela não o olha no rosto. Não o olha. Toca-o. Toca a doçura do
sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a desconhecida novidade. Ele geme,
chora. Está num estado de amor abominável.
E a chorar fá-lo. Primeiro há a dor. E depois esta dor é por sua vez
possuída, transformada, lentamente arrancada, levada até ao gozo, abraçada a
ela. O mar, sem forma, simplesmente incomparável.

Já na barcaça, antes de chegar a sua hora, a imagem teria participado


daquele instante.

A imagem da mulher com as meias passajadas atravessou o quarto.


Aparece enfim como criança. Os filhos já o sabiam. A filha, ainda não.
Nunca falarão da mãe, deste conhecimento que têm e que os separa dela,
deste conhecimento decisivo, derradeiro, o da infância da mãe.
A mãe não conhecera o prazer.
Não sabia que se deitava sangue. Ele pergunta-me se me doeu, digo-lhe que
não, ele diz ainda bem.
Ele limpa o sangue, lava-me. Olho-o enquanto o faz. Insensivelmente ele
torna a ser desejável. Pergunto a mim própria como é que tive forças para ir
contra a proibição ditada pela minha mãe. Com esta calma, esta
determinação. Como consegui ir «até ao fim da ideia».
Olhamo-nos. Ele beija-me o corpo. Pergunta-me porque vim. Eu digo que
tinha de ser, que era como uma obrigação. É a primeira vez que falamos.
Falo-lhe da existência dos meus dois irmãos. Digo-lhe que não temos
dinheiro. Nada. Ele conhece o irmão mais velho, encontrou-o nas casas de
ópio do posto. Digo que esse irmão rouba a minha mãe para ir fumar, que
rouba os criados, e que por vezes os donos das casas de ópio vêm exigir
dinheiro à minha mãe. Falo-lhe das barragens. Digo que a minha mãe vai
morrer, que aquilo não pode durar mais. Que a morte próxima da minha mãe
deve estar também em correlação com o que me aconteceu hoje.
Apercebo-me de que o desejo.
Ele lamenta-me, eu digo-lhe que não, que não sou de lamentar, que
ninguém o é, exceto a minha mãe. Ele diz-me: vieste porque tenho dinheiro.
Digo-lhe que o desejo assim com o seu dinheiro, que quando o vi ele já
estava naquele carro, naquele dinheiro, e que portanto não posso saber o que
teria feito se fosse de outra maneira. Ele diz: gostaria de te levar, partir
contigo. Digo-lhe que não poderia ainda deixar a minha mãe sem morrer de
desgosto. Ele diz que decididamente não teve sorte comigo, mas que de
qualquer modo me dará dinheiro, que não me preocupe. Deitou-se de novo.
De novo nos calamos.
O ruído da cidade é muito forte, na recordação é o som dum filme que
estivesse excessivamente alto, que ensurdece. Lembro-me bem, o quarto está
escuro, não falamos, está cercado pelo barulho contínuo da cidade,
embarcado na cidade, no torvelinho da cidade. Não há vidros nas janelas, há
estores e persianas. Vemos nos estores as sombras das pessoas que passam no
sol dos passeios. Estas multidões são sempre enormes. As sombras são
regularmente estriadas pelas riscas das persianas. O matraquear dos tamancos
de madeira martela na cabeça, as vozes são estridentes, o chinês é uma língua
que se grita como imagino sempre as línguas dos desertos, é uma língua
incrivelmente estrangeira.
Lá fora o dia está no fim, sabemo-lo pelo barulho das vozes e pelos passos
cada vez mais numerosos, cada vez mais misturados. É uma cidade de prazer
que atinge o auge à noite. E a noite começa agora com o pôr do Sol.
A cama está separada da cidade por estas persianas, por este estore de
algodão. Nenhum material duro nos separa das outras pessoas. Eles, ignoram
a nossa existência. Nós, captamos qualquer coisa da sua, a soma das suas
vozes, dos seus movimentos, como uma sirena que lançasse um apelo
quebrado, triste, sem eco.
Um cheiro de caramelo invade o quarto, o cheiro dos amendoins torrados,
das sopas chinesas, das carnes assadas, das ervas de cheiro, do jasmim, do pó,
do incenso, do lume de carvão, o fogo transporta-se aqui em cestos, vende-se
na rua, o cheiro da cidade é o das aldeias do mato, da floresta.

Vi-o subitamente com um roupão preto. Estava sentado, bebia um whisky,


fumava.
Disse-me que eu tinha dormido, que ele tomara um duche. Mal sentira o
sono vir. Ele acendeu um candeeiro numa mesa baixa.
É um homem de hábitos, penso nele de repente, deve vir com relativa
frequência a este quarto, é um homem que deve fazer amor muitas vezes, é
um homem que tem medo, deve fazer amor muitas vezes para lutar contra o
medo. Digo-lhe que me agrada a ideia de que tenha muitas mulheres, a ideia
de estar entre essas mulheres, com elas confundida. Olhamo-nos. Ele
compreende o que acabo de dizer. O olhar de repente alterado, falso, preso no
mal, na morte.
Digo-lhe que venha, que deve possuir-me de novo. Ele vem. Cheira bem a
cigarro inglês, a perfume caro, cheira a mel, à força a sua pele apanhou o
cheiro da seda, da seda aromática do tussor de seda, do ouro, desejo-o. Digo-
lhe este desejo dele. Ele diz-me que espere um pouco. Fala-me, diz que soube
logo, desde a travessia do rio, que eu seria assim com o primeiro amante, que
amaria o amor, diz que sabe já que o hei de enganar e também que hei de
enganar todos os homens com quem virei a estar. Diz que, no seu caso, foi
ele o instrumento da sua própria infelicidade. Estou feliz por tudo o que ele
me anuncia e digo-lho. Ele torna-se brutal, está desesperado, deita-se a mim,
come os seios de criança, grita, insulta. Fecho os olhos àquele prazer tão
forte. Penso: ele está habituado, é o que ele faz na vida, amor, só isso. As
mãos são experientes, maravilhosas, perfeitas. Tenho muita sorte, é evidente,
é como uma profissão que ele tivesse, sem o saber teria o saber exato do que
se deve fazer, do que se deve dizer. Chama-me puta, porca, diz que sou o seu
único amor, e é isso que ele deve dizer e é isso que diz quando deixamos o
dizer fazer-se, quando deixamos o corpo fazer e procurar e encontrar e
agarrar o que ele quer, e aí tudo é bom, não há desperdícios, os desperdícios
são cobertos de novo, vai tudo na torrente, na força do desejo.

O ruído da cidade está tão próximo, tão perto, que o ouvimos roçar contra a
madeira das persianas. Ouvimos como se eles atravessassem o quarto.
Acaricio o seu corpo neste ruído, nesta passagem. O mar, a imensidade que
reagrupa, se afasta, regressa.
Tinha-lhe pedido que o fizesse mais e mais. Que me fizesse aquilo. Fizera-
o. Fizera-o na untuosidade do sangue. E isso fora de morrer. Foi de morrer.

Ele acendeu um cigarro e deu-mo. E muito baixo contra a minha boca


falou-me.
Falei-lhe também muito baixo.
Porque ele não sabe digo-lho por ele, em vez dele, porque ele não sabe que
traz em si uma elegância cardinal, digo-o por ele.

É a noite que chega agora. Diz-me que me lembrarei toda a vida desta
tarde, mesmo quando tiver esquecido até o seu rosto, o seu nome. Pergunto se
me lembrarei da casa. Ele diz-me: olha-a bem. Digo-lhe que é como qualquer
outra. Ele diz-me que sim, que é isso, como sempre.

Revejo ainda o rosto, e lembro-me do nome. Vejo ainda as paredes caiadas,


o estore de lona que dá para a fornalha, a outra porta em arcada que leva ao
outro quarto e a um jardim a céu aberto – as plantas morreram de calor –
rodeado de balaustradas azuis como o grande palacete de Sadec com terraços
em degraus que dá para o Mékong.
É um lugar de abandono, naufragado. Pede-me que lhe diga em que penso.
Digo-lhe que penso na minha mãe, que ela me matará se souber a verdade.
Vejo que ele faz um esforço e depois di-lo, diz que compreende o que a
minha mãe quer dizer, di-lo: esta desonra. Diz que não poderia suportar essa
ideia em caso de casamento. Olho-o. Ele olha-me por sua vez, desculpa-se
com orgulho: sou um Chinês. Sorrimos. Pergunto-lhe se é costume estar-se
triste como nós estamos. Ele diz que é porque fizemos amor durante o dia, no
momento em que o calor é maior. Diz que é sempre terrível depois. Sorri.
Diz: quer nos amemos, quer não, é sempre terrível. Diz que há de passar com
a noite, assim que ela chegar. Digo-lhe que não é só por ter sido durante o
dia, que está enganado, que estou numa tristeza que já esperava e que só vem
de mim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza também nas fotografias
em que sou muito pequena. Que hoje esta tristeza, reconhecendo-a embora
como a que sempre tive, poderia quase dar-lhe o meu nome, de tal modo se
me assemelha. Hoje digo-lhe que é um bem-estar esta tristeza, o de ter
finalmente caído numa desgraça que a minha mãe me anuncia desde sempre
quando grita no deserto da sua vida. Digo-lhe: não percebo muito bem o que
ela diz, mas sei que este quarto é o que eu esperava. Falo sem esperar
resposta. Digo-lhe que a minha mãe grita aquilo em que crê como os
enviados de Deus. Grita que não se deve esperar nada, nunca, nem de pessoa
alguma, nem de Estado algum, nem de Deus algum. Ele vê-me falar, não tira
os olhos de mim, olha a minha boca enquanto falo, estou nua, ele acaricia-
me, talvez não me ouça, não sei. Eu digo que não faço da desgraça em que
me encontro uma questão pessoal. Conto-lhe como era simplesmente tão
difícil comer, vestir, viver em suma, só com o ordenado da minha mãe.
Tenho cada vez mais dificuldade em falar. Ele diz: como é que faziam? Digo-
lhe que estávamos fora, que a miséria fizera ruir os muros da família e que
nos tínhamos encontrado todos fora de casa, cada um a fazer o que queria.
Estávamos desonrados. É assim que estou aqui contigo. Ele está em cima de
mim, abisma-se mais uma vez. Ficamos assim, pregados, a gemer no clamor
da cidade ainda exterior. Ainda o ouvimos. E depois deixamos de o ouvir.

Os beijos pelo corpo fazem chorar. Dir-se-ia que consolam. Em família não
choro. Neste dia neste quarto, as lágrimas consolam do passado e também do
futuro. Digo-lhe que um dia me separarei da minha mãe, que mesmo para a
minha mãe um dia já não terei amor. Choro. Ele põe a cabeça sobre mim e
chora de me ver chorar. Digo-lhe que na minha infância a desgraça da minha
mãe ocupou o lugar do sonho. Que o sonho era a minha mãe e nunca as
árvores de Natal, sempre só ela, quer seja a mãe em carne viva da miséria ou
a outra, fora de si, que fala no deserto, quer seja a que tenta arranjar comida
ou a outra que interminavelmente conta o que lhe aconteceu a ela, Marie
Legrand de Roubaix, fala da sua ingenuidade, das suas economias, da sua
esperança.

Através das persianas a noite chegou. O clamor aumentou. É mais


estridente, menos surdo. Os lampadários de luzes avermelhadas acenderam-
se.
Saímos do apartamento. Voltei a pôr o chapéu de homem com a fita preta,
os sapatos de ouro, o vermelho-escuro dos lábios, o vestido de seda.
Envelheci. Sei-o de repente. Ele também vê; diz: estás cansada.
No passeio, a multidão vai em todos os sentidos, lenta ou viva, abre
passagem, é peganhenta como os cães abandonados, é uma multidão da
China, revejo-a ainda nas imagens da prosperidade de hoje, na maneira que
eles têm de caminhar juntos sem impaciência, nunca, de estarem na multidão
como se estivessem sós, sem felicidade dir-se-ia, sem curiosidade,
caminhando sem ter o ar de ir, sem intenção de ir, mas somente de avançar
aqui em vez de ali, sós, e na multidão, nunca sós ainda por si mesmos,
sempre sós na multidão.
Vamos a um desses restaurantes chineses com vários andares, ocupam
prédios inteiros, são grandes como grandes armazéns, quartéis, abrem para a
cidade em varandas, terraços. O barulho que vem desses prédios é
inconcebível na Europa, é o das encomendas gritadas pelos criados e
repetidas e gritadas nas cozinhas. Ninguém fala nestes restaurantes. Nos
terraços há orquestras chinesas. Vamos para o andar mais calmo, o dos
Europeus, as ementas são as mesmas mas grita-se menos. Há ventiladores e
pesadas tapeçarias contra o ruído.
Peço-lhe que me diga como é que o pai é rico, de que maneira. Ele diz que
o aborrece falar de dinheiro, mas que se eu insisto ele está disposto a dizer-
me o que sabe da fortuna do pai. Tudo começou em Cholen, com os
compartimentos para indígenas. Mandou construir trezentos. Várias ruas lhe
pertencem. Fala francês com um sotaque parisiense ligeiramente forçado, fala
do dinheiro com uma desenvoltura sincera. O pai tinha prédios que vendeu
para comprar terrenos de construção, ao sul de Cholen. Foram também
vendidos arrozais, julga ele, em Sadec. Faço-lhe perguntas sobre as
epidemias. Digo-lhe que vi ruas inteiras de compartimentos interditos, de um
dia para o outro, portas e janelas pregadas, por causa da epidemia da peste.
Ele diz-me que há menos aqui, que as desratizações são muito mais
frequentes do que no mato. De repente conta-me uma grande história sobre os
compartimentos. O seu custo é muito menos elevado do que o dos prédios ou
das moradias individuais e respondem muito melhor às necessidades dos
bairros populares do que as habitações separadas. A população aqui gosta de
estar junta, sobretudo esta população pobre que vem do campo e também
gosta de viver ao ar livre, na rua. Não se deve destruir os hábitos dos pobres.
O pai acaba justamente de fazer uma série de compartimentos com galerias
cobertas que dão para a rua. Isso torna as ruas muito claras, muito aprazíveis.
As pessoas passam os dias nessas galerias exteriores. Também lá dormem
quando faz muito calor. Digo-lhe que eu também teria gostado de morar
numa galeria exterior, que quando era criança isso me parecia ideal, dormir
ao ar livre. Subitamente tenho uma dor. Mal a sinto, é muito leve. É o bater
do coração deslocado para ali, para a ferida viva e fresca que ele me fez, ele,
aquele que me fala, aquele que fez o prazer desta tarde. Já não ouço o que ele
diz, já não escuto. Ele vê, cala-se. Digo-lhe que continue a falar. Assim faz.
Escuto de novo. Diz que pensa muito em Paris. Acha que sou diferente das
parisienses, muito menos delicada. Digo-lhe que aquele negócio dos
compartimentos não deve ser assim tão rentável. Ele já não me responde.

Durante todo o tempo da nossa história, durante um ano e meio falaremos


desta maneira, não falaremos nunca de nós. Desde os primeiros dias que
sabemos que um futuro comum não é previsível, por isso nunca falamos do
futuro, teremos conversas como que jornalísticas, e, a contrario, e de igual
teor.
Digo-lhe que a sua estada em França lhe foi fatal. Ele concorda. Diz que
em Paris comprou tudo, as mulheres, os conhecimentos, as ideias. Tem mais
doze anos do que eu e isso assusta-o. Ouço como ele fala, como se engana,
como me ama também, numa espécie de teatralidade simultaneamente
convencional e sincera.
Digo-lhe que o vou apresentar à minha família, ele quer fugir e eu rio-me.
Ele não pode exprimir os seus sentimentos a não ser por imitação.
Descubro que ele não tem força de me amar contra o seu pai, de ficar comigo,
de me levar. Chora muitas vezes porque não encontra forças para amar para
além do medo. O seu heroísmo sou eu, o seu servilismo é o dinheiro do pai.
Quando falo dos meus irmãos cai logo nesse medo, fica como que
desmascarado. Julga que toda a gente à minha volta espera o seu pedido de
casamento. Sabe que está já perdido aos olhos da minha família, que para ela
não pode senão perder-se ainda mais e perder-me a mim em consequência.
Diz que foi tirar um curso comercial a Paris, diz finalmente a verdade, que
não fez nada, que o pai lhe cortou a mesada, que lhe mandou o bilhete de
regresso, que foi obrigado a deixar a França. Este regresso é a sua tragédia.
Não acabou o curso dessa escola comercial. Diz que pensa acabá-lo aqui com
lições por correspondência.

Os encontros com a família começaram com grandes jantares em Cholen.


Quando a minha mãe e os meus irmãos vêm a Saigão, digo-lhe que os deve
convidar para os grandes restaurantes chineses que eles não conhecem, onde
nunca foram.
Estas noites passam-se todas da mesma maneira. Os meus irmãos nunca lhe
dirigem a palavra. Nem sequer para ele olham. Não podem olhá-lo. Não
seriam capazes de o fazer. Se pudessem fazer isso, o esforço de o ver, seriam
capazes também de fazer os seus estudos, de se vergar às regras elementares
da vida em sociedade. Durante estes jantares só a minha mãe fala, fala muito
pouco, sobretudo nos primeiros tempos, diz algumas frases sobre os pratos
que trazem, sobre o seu preço exorbitante, e depois cala-se. Ele, das duas
primeiras vezes, atira-se de cabeça, tenta abordar o tema das suas aventuras
de Paris, mas em vão. É como se ele não tivesse falado, como se não
tivessem ouvido. Os meus irmãos continuam a devorar. Devoram como
nunca vi ninguém devorar em parte alguma.
Paga. Conta o dinheiro. Pousa-o no pires. Toda a gente olha. Da primeira
vez, lembro-me, alinha setenta e sete piastras. A minha mãe está prestes a ter
um ataque de riso. Levantamo-nos para sair. Não há um obrigado, de
ninguém. Nunca se diz obrigado pelo ótimo jantar, nem adeus até qualquer
dia, nem como está, nunca se diz nada.
Os meus irmãos nunca lhe dirigem a palavra. É como se não o vissem,
como se não fosse suficientemente denso para ser percetível, visto, ouvido
por eles. Isso porque ele está aos meus pés, que parte do princípio de que não
o amo, que estou com ele por dinheiro, que não posso amá-lo, que é
impossível, que ele poderia suportar tudo de mim sem chegar nunca ao limite
desse amor. E isso porque é um chinês, não é um branco. A maneira que
aquele irmão mais velho tem de se calar e de ignorar a existência do meu
amante deriva de uma tal convicção que é exemplar. Seguimos todos o
exemplo do irmão mais velho face àquele amante. Também eu, à frente deles,
não falo com ele. Na presença da minha família não devo nunca dirigir-lhe a
palavra. Salvo quando lhe transmito um recado da parte deles, então sim. Por
exemplo depois do jantar, quando os meus irmãos me dizem que querem ir
beber e dançar à Source, sou eu que lhe digo que queremos ir à Source beber
e dançar. Primeiro faz como se não tivesse ouvido. E eu, na lógica do meu
irmão mais velho, não devo repetir o que acabo de dizer, reiterar o meu
pedido, se o fizesse, seria um erro, condescenderia com a sua queixa. Acaba
por me responder. Em voz baixa que pretenderia ser íntima, diz que gostaria
muito de estar só comigo por um momento. Di-lo para pôr fim ao suplício.
Nessa altura, devo ouvi-lo ainda mal, como uma traição mais, como se assim
ele quisesse acusar o golpe, denunciar a conduta do meu irmão mais velho a
seu respeito, portanto, devo continuar a não lhe responder. Ele continua
ainda, diz-me, atreve-se: a sua mãe está cansada, olhe para ela. Com efeito a
nossa mãe cai de sono no fim dos jantares fabulosos dos chineses de Cholen.
Continuo a não responder. É então que ouço a voz do meu irmão mais velho,
ele diz uma frase muito curta, cortante, definitiva. A minha mãe dizia dele:
dos três, é ele o que melhor fala. Tudo para: reconheço o medo do meu
amante, é o mesmo do meu irmão mais novo. Ele não resiste. Vamos à
Source. A minha mãe também vai à Source, vai adormecer na Source.

Na presença do meu irmão mais velho ele deixa de ser meu amante. Não
deixa de existir mas já não é nada. Torna-se terra queimada. O meu desejo
obedece ao meu irmão mais velho, rejeita o meu amante. Sempre que os vejo
juntos, julgo nunca mais poder suportar essa visão. O meu amante é negado
justamente no seu corpo fraco, nessa fraqueza que me arrebata de prazer.
Perante o meu irmão ele torna-se um escândalo inconfessável, um motivo de
vergonha que é preciso esconder. Não posso lutar contra aquelas ordens
mudas do meu irmão. Posso, quando se trata do meu irmão mais novo.
Quando se trata do meu amante não posso nada contra mim própria. Só de
falar nisso agora me vem à lembrança a hipocrisia da expressão, do ar
distraído de alguém que olha para outro sítio, que tem mais em que pensar
mas que, no entanto, vê-se pelos maxilares ligeiramente cerrados, está
irritado e sofre por ter de suportar aquilo, aquela indignidade, só para comer
bem, num restaurante caro, o que deveria ser perfeitamente natural. À volta
da recordação, a claridade lívida de noite do caçador tem um som estridente
de alerta, de grito de criança.

Na Source, também ninguém fala com ele.


Mandamos todos vir Martel Perrier. Os meus irmãos bebem o deles
imediatamente e mandam vir outro. A minha mãe e eu damos-lhes os nossos.
Os meus irmãos depressa ficam bêbados. Nem por isso falam com ele, mas
caem na recriminação. Sobretudo o meu irmão mais novo. Queixa-se de que
o sítio é triste e não tem pegas. Há muito pouca gente nos dias de semana na
Source. Danço com ele, com o meu irmão mais novo. Danço também com o
meu amante. Nunca danço com o meu irmão mais velho, nunca dancei com
ele. Sempre impedida pela sensação perturbante de um perigo, o dessa
atração maléfica que ele exerce sobre todos, o da aproximação dos nossos
corpos.
Parecemo-nos de uma maneira impressionante, sobretudo na cara.
O Chinês de Cholen fala-me, está à beira das lágrimas, diz: o que é que eu
lhes fiz. Digo-lhe que não se deve preocupar, que é sempre assim, também
entre nós, em todas as circunstâncias da vida.

Explico-lhe quando nos voltarmos a encontrar no apartamento. Digo-lhe


que aquela violência do meu irmão mais velho, fria, insultuosa, acompanha
tudo o que nos acontece. O seu primeiro movimento é matar, riscar da vida,
dispor da vida, desprezar, perseguir, fazer sofrer. Digo-lhe para não ter medo.
Que ele não corre qualquer risco. Porque a única pessoa que o irmão mais
velho teme, perante quem curiosamente se intimida, sou eu.

Nunca bom dia, boa noite, bom ano. Nunca obrigado. Nunca falar. Nunca
necessidade de falar. Tudo fica mudo, longe. É uma família de pedra,
petrificada numa espessura sem qualquer acesso. Todos os dias tentamos
matar-nos, matar. Não só não nos falamos como não nos olhamos. A partir do
momento em que somos vistos, não podemos olhar. Olhar é ter um
movimento de curiosidade para, por, é descer. Nenhuma pessoa olhada vale o
olhar sobre ela. É sempre desonroso. A palavra conversa é banida. Creio que
é ela que melhor aqui reflete a vergonha e o orgulho. Qualquer comunidade,
seja ela familiar ou outra, é-nos odiosa, degradante. Estamos juntos numa
vergonha de princípio que é ter de viver a vida. É aí que estamos no mais
profundo da nossa história comum, a de sermos os três filhos daquela pessoa
de boa fé, a nossa mãe, que a sociedade assassinou. Estamos do lado dessa
sociedade que reduziu a minha mãe ao desespero. Por causa do que fizeram à
nossa mãe tão simpática, tão confiante, odiamos a vida, odiamo-nos.

A nossa mãe não previa aquilo em que nos tornámos a partir do espetáculo
do seu desespero, falo sobretudo dos rapazes, dos filhos. Mas tivesse-o ela
previsto, como poderia ter calado o que se tornara a sua própria história?
Fazer mentir o seu rosto, o seu olhar, a sua voz? O seu amor? Poderia ter
morrido. Suprimir-se. Dispersar aquela comunidade invivível. Fazer com que
o mais velho fosse completamente separado dos dois mais novos. Não o fez.
Foi imprudente, inconsequente, irresponsável. Foi tudo isso. Viveu. Amámo-
la os três para além do amor. Por isso mesmo, por ela não ter podido, porque
não podia calar-se, esconder, mentir, por muito diferentes que tenhamos sido
os três, amámo-la da mesma maneira.

Foi muito tempo. Durou sete anos. Começou tínhamos dez anos. E depois
fizemos doze anos e depois treze anos. E depois catorze anos, quinze anos. E
depois dezasseis anos, dezassete anos.
Durou todo este tempo, sete anos. E depois finalmente a esperança foi
deixada. Foi abandonada. Abandonadas também as tentativas contra o
oceano. À sombra da varanda olhamos a montanha de Sião, muito escura em
pleno sol, quase negra. A mãe está finalmente calma, emparedada. Nós
somos crianças heroicas, desesperadas.

O irmãozinho morreu em dezembro de 1942 sob a ocupação japonesa. Eu


deixara Saigão após o meu segundo bacharelato em 1931. Ele escreveu-me
uma única vez em dez anos. Sem que eu alguma vez saiba porquê. A carta era
convencional, copiada, sem erros, a caligrafia cuidada. Dizia-me que estavam
bem, que a escola estava a funcionar. Era uma longa carta de duas páginas.
Reconheci a sua letra de criança. Dizia-me também que tinha um
apartamento, um carro, dizia a marca. Que voltara a jogar ténis. Que estava
bem, que estava tudo bem. Que me beijava tanto como gostava de mim,
muito. Não falava da guerra nem do nosso irmão mais velho.

Falo frequentemente dos meus irmãos como de um conjunto, como ela o


fazia, a nossa mãe. Digo: os meus irmãos, também ela fora da família dizia:
os meus filhos. Ela falou sempre da força dos filhos de maneira provocante.
Para o exterior, não entrava em pormenores, não dizia que o filho mais velho
era muito mais forte do que o segundo, dizia que ele era tão forte como os
irmãos dela, os agricultores do Norte. Sentia orgulho da força dos filhos
como sentira da dos irmãos. Tal como o filho mais velho, ela desprezava os
fracos. Do meu amante de Cholen dizia o mesmo que o irmão mais velho.
Não escrevo essas palavras. Eram palavras que tinham que ver com as
carcaças de animais mortos que se encontram nos desertos. Eu digo: os meus
irmãos, porque era assim que eu própria dizia. Foi mais tarde que disse de
outra maneira, quando o irmãozinho cresceu e se tornou mártir.

Nenhum aniversário se festeja na nossa família, como nenhuma árvore de


Natal, nenhum lenço bordado, nenhuma flor, nunca. Mas também nenhum
morto, nenhuma sepultura, nenhuma memória. Só ela. O irmão mais velho
continuará a ser um assassino. O irmão mais novo morrerá por causa desse
irmão. Eu parti, arranquei-me. Até à sua morte, o irmão mais velho teve-o só
para ele.

Nessa época, de Cholen, da imagem, do amante, a minha mãe teve um


sobressalto de loucura. Não sabe nada do que aconteceu em Cholen. Mas
vejo que me observa, que desconfia de qualquer coisa. Conhece a sua filha,
essa criança, à volta dessa criança paira, há algum tempo, um ar de
estranheza, uma reserva, dir-se-ia, recente, que desperta a atenção, a sua fala
é mais lenta ainda que de costume, e ela, tão curiosa de tudo está distraída, o
seu olhar mudou, tornou-se espectadora da sua mãe, da desgraça da sua mãe,
dir-se-ia que assiste ao seu próprio acontecimento. O súbito terror na vida da
minha mãe. A sua filha corre o maior dos perigos, o de nunca se casar, de
nunca se estabelecer na sociedade, de ficar desamparada perante aquela
sociedade, perdida, solitária. Nas suas crises a minha mãe deita-se a mim,
fecha-me no quarto, dá-me murros, esbofeteia-me, despe-me, aproxima-se de
mim, cheira-me o corpo, a roupa, diz que sente o perfume do homem chinês,
vai mais longe, vê se há manchas suspeitas na roupa interior e grita, a cidade
a ouvi-la, que a filha é uma prostituta, que a vai pôr fora de casa, que só quer
vê-la morta e que ninguém vai querê-la, que está desonrada, é pior que uma
cadela. E chora perguntando o que é que pode fazer senão pô-la fora de casa
para não a empestar mais.
Por detrás das paredes do quarto fechado, o irmão.
O irmão responde à mãe, diz-lhe que tem razão em bater na criança, a voz
dele é velada, íntima, acariciadora, diz-lhe que têm de saber a verdade seja a
que preço for, que têm de saber para impedir que essa menina se perca, para
impedir que a mãe fique desesperada com essa perdição. A mãe bate com
toda a força. O irmão mais novo grita à mãe que a deixe em paz. Vai para o
jardim, esconde-se, tem medo que eu morra, tem medo, tem sempre medo
desse desconhecido, o nosso irmão mais velho. O medo do irmãozinho
acalma a minha mãe. Chora pelo desastre da sua vida, pela sua filha
desonrada. Choro com ela. Minto. Juro pela minha vida que não me
aconteceu nada, nem sequer um beijo. Como é que tu queres, digo eu, com
um chinês, como é que tu queres que eu faça isso com um chinês, tão feio,
tão enfezado? Sei que o irmão mais velho está colado à porta, escuta, sabe o
que a minha mãe está a fazer, sabe que a miúda está nua, e espancada,
gostaria que durasse mais e mais até ao perigo. A minha mãe não ignora esse
desejo do meu irmão mais velho, obscuro, aterrador.

Ainda somos muito pequenos. Regularmente rebentam batalhas entre os


meus irmãos, sem pretexto aparente, salvo o clássico do irmão mais velho,
que diz ao pequeno: sai daí, estás a estorvar. Assim que o diz, bate. Lutam
sem uma palavra, ouve-se-lhes apenas a respiração, os gemidos, o ruído
surdo das pancadas. A minha mãe, como em todas as circunstâncias,
acompanha a cena com uma ópera de gritos.
São dotados da mesma capacidade de cólera, dessas cóleras negras,
assassinas, que nunca se viram senão entre irmãos, irmãs, mães. O irmão
mais velho sofre por não fazer livremente o mal, por não reger o mal, não só
aqui mas em todo o lado. O mais novo, por assistir impotente a este horror, a
esta disposição do irmão mais velho.
Quando lutavam, tínhamos um medo igual da morte por um e por outro; a
mãe dizia que eles tinham lutado sempre, que nunca tinham brincado juntos,
nem falado um com o outro. Que a única coisa que tinham em comum era
ela, a mãe deles, e, sobretudo, aquela irmãzinha, nada a não ser o sangue.
Creio que só do filho mais velho a minha mãe dizia: o meu filho. Chamava-
lhe algumas vezes assim. Dos outros dois dizia: os mais novos.
De tudo isto não dizíamos nada lá fora, cedo tínhamos aprendido a
calarmo-nos sobre o principal da nossa vida, a miséria. E depois, também,
sobre tudo o resto. Os primeiros confidentes, a palavra parece desmedida, são
os nossos amantes, os nossos encontros fora dos postos, nas ruas de Saigão
primeiro e depois nos navios de carreira, nos comboios, e depois em todo o
lado.

A minha mãe, aquilo dá-lhe de repente, para o fim da tarde, sobretudo na


estação seca, manda lavar a casa de ponta a ponta, para limpar diz ela, para a
pôr asseada, para a refrescar. A casa está construída num terraplano que a
isola do jardim, das serpentes, dos escorpiões, das formigas vermelhas, das
inundações do Mékong, as que se seguem aos grandes tornados das monções.
Esta elevação da casa acima do solo permite lavá-la com grandes baldes de
água, banhá-la toda como um jardim. Todas as cadeiras estão em cima das
mesas, a casa toda escorre, o piano do salão pequeno tem os pés dentro de
água. A água desce pelos patamares, invade o pátio em direção às cozinhas.
Os pequenos boys estão muito contentes, estamos com os pequenos boys,
atiramos água uns aos outros, e depois ensaboa-se o chão com sabão amarelo.
Estamos todos descalçados, a mãe também. A mãe ri. A mãe não tem de que
se queixar. Toda a casa está perfumada, tem o cheiro delicioso da terra
molhada depois da tempestade, é um cheiro que nos põe loucos de alegria,
sobretudo quando se mistura com outro cheiro, o do sabão amarelo, o da
pureza, da honestidade, da roupa branca, da brancura, da nossa mãe, da
imensidão da candura de nossa mãe. A água desce até aos carreiros do
jardim. As famílias dos boys chegam, os visitantes dos boys também, as
crianças brancas das casas da vizinhança. A mãe está muito contente com
esta desordem, a mãe pode ser muito muito feliz às vezes, o tempo de
esquecer, o tempo de lavar a casa pode convir à felicidade da mãe. A mãe vai
até à sala, senta-se ao piano, toca as únicas árias que sabe de cor, que
aprendeu na Escola Normal. Canta. Às vezes toca, ri. Levanta-se e dança, a
cantar. E todos pensamos e ela também, a mãe, que se pode ser feliz nesta
casa desfigurada que de repente se transforma num charco, num campo à
beira dum rio, um vau, uma praia.
São as duas crianças mais novas, a menina e o irmãozinho, os primeiros a
lembrar-se. Param de rir subitamente e vão para o jardim onde a noite chega.

Lembro-me, no próprio instante em que escrevo, de que o nosso irmão


mais velho não estava em Vinhlong quando se lavava a casa. Estava com o
nosso tutor, um padre de aldeia no Lot-et-Garonne.
A ele também lhe acontecia rir, às vezes, mas nunca tanto como nós.
Esqueço tudo, esqueço-me de dizer isso, que éramos crianças risonhas, o meu
irmãozinho e eu, gostávamos de rir até perder o fôlego, a vida.

Vejo a guerra com as mesmas cores que a minha infância. Confundo o


tempo da guerra com o reinado do meu irmão mais velho. É também sem
dúvida porque é durante a guerra que o meu irmão mais novo morre: o
coração, como já disse, cedera, abandonado. O irmão mais velho, julgo nunca
o ter visto durante a guerra. Já não me importava saber se estava vivo ou
morto. Vejo a guerra como ela era, a espalhar-se por todo o lado, penetrar em
todo o lado, roubar, meter na prisão, estar em toda a parte, sempre ali,
misturada com tudo, enredada, presente no corpo, no pensamento, na vigília,
no sono, o tempo todo, presa da paixão embriagante de ocupar o território
adorável do corpo da criança, do corpo dos menos fortes, dos povos vencidos,
isto porque o mal está aí, à porta, contra a pele.

Voltamos ao apartamento dele. Somos amantes. Não podemos parar de


amar.
Às vezes não vou dormir ao pensionato, durmo junto dele. Não quero
dormir nos seus braços, no seu calor, mas durmo no mesmo quarto, na
mesma cama. Às vezes falto ao liceu. Vamos comer à cidade à noite. Ele dá-
me banho com o chuveiro, lava-me, enxagua-me, adora, pinta-me e veste-me,
adora-me. Sou a favorita da sua vida. Vive no pânico de que eu encontre
outro homem. Eu não tenho medo de nada do género, nunca. Tem também
outro medo, não porque eu seja branca, mas porque sou tão nova, tão nova
que ele poderia ser preso se descobrissem a nossa história. Diz-me que
continue a mentir à minha mãe e sobretudo ao meu irmão mais velho, que
não diga nada a ninguém. Continuo a mentir. Rio-me do seu medo. Digo-lhe
que somos demasiado pobres para que a mãe possa sequer pôr um processo,
que além disso todos os processos que ela moveu, perdeu-os, contra o
cadastro, contra os administradores, contra os governadores, contra a lei, ela
não sabe conduzi-los, manter a calma, esperar, esperar mais, não pode, grita e
deita a perder as suas possibilidades. Com este seria a mesma coisa, não vale
a pena ter medo.

Marie-Claude Carpenter. Era americana, era, julgo lembrar-me, de Boston.


Os olhos eram muito claros, cinzento-azulados. 1943. Marie-Claude
Carpenter era loira. Perdera ligeiramente a frescura. Bastante bonita, acho eu.
Com um sorriso breve que se fechava muito depressa, desaparecia num
relâmpago. Com uma voz de que me lembro de repente, baixa, um tanto
discordante nos agudos. Tinha quarenta e cinco anos, já a idade, aquela idade.
Vivia no seizième, junto da Alma. A casa ocupava o último e vasto andar de
um prédio que daria para o Sena. Íamos jantar a casa dela no inverno. Ou
almoçar, no verão. As refeições eram encomendadas nos melhores
fornecedores de Paris. Sempre decentes, quase, mas só quase, insuficientes.
Nunca a vimos a não ser em casa dela, nunca fora. Também havia lá, por
vezes, um mallarmeano1. E frequentemente também, um ou dois ou três
literatos, vinham uma vez e nunca mais os víamos. Nunca soube onde é que
ela os encontrava, onde os tinha conhecido, nem porque os convidara. Nunca
ouvi falar de nenhum deles nem li ou ouvi falar das suas obras. As refeições
duravam pouco tempo. Falava-se muito da guerra, era a época de
Estalinegrado, era no fim do inverno de 42. Marie-Claude Carpenter ouvia
muito, informava-se muito, falava pouco, muitas vezes admirava-se que
tantos acontecimentos lhe escapassem, ria-se. Logo a seguir às refeições
pedia desculpa por ter de se ir embora tão depressa, mas tinha que fazer, dizia
ela. Nunca dizia o quê. Quando éramos em número suficiente, ficávamos
uma ou duas horas depois de ela se ir embora. Dizia-nos: fiquem o tempo que
quiserem. Na sua ausência, ninguém falava dela. Aliás creio que ninguém
teria podido, porque ninguém a conhecia. Saíamos, e voltávamos sempre a
casa com esse sentimento de ter atravessado uma espécie de pesadelo branco,
de acabar de passar algumas horas com desconhecidos, na presença de
convidados que estavam na mesma situação, e igualmente desconhecidos, de
ter vivido um momento sem qualquer futuro, sem qualquer motivação
humana ou outra. Era como ter atravessado uma terceira fronteira, ter feito
uma viagem de comboio, ter esperado na sala de espera de médicos, em
hotéis, em aeroportos. No verão, almoçávamos num grande terraço que
olhava o Sena e tomávamos café no jardim que ocupava todo o telhado do
prédio. Havia uma piscina. Ninguém tomava banho. Olhávamos Paris. As
avenidas vazias, o rio, as ruas. Nas ruas vazias, as orquídeas em flor. Marie-
Claude Carpenter. Eu olhava muito para ela, quase o tempo todo, ela ficava
constrangida mas eu não me podia conter. Olhava-a para descobrir, descobrir
quem era, Marie-Claude Carpenter. Porque estava ali e não noutro lado,
porque era também de tão longe, de Boston, porque era rica, porque
ignorávamos rigorosamente tudo sobre ela, ninguém, nada, porquê essas
receções como que forçadas, porquê, porquê nos seus olhos, dentro, muito ao
longe, no fundo da vista essa partícula de morte, porquê? Marie-Claude
Carpenter. Porque tinham os seus vestidos todos em comum um não sei quê
que escapava, que os fazia não exatamente seus, mas que poderiam ter
vestido da mesma maneira um outro corpo. Vestidos neutros, estritos, muito
claros, brancos como o estio no coração do inverno.

Betty Fernandez. A recordação que se tem dos homens nunca se produz


nesse clarão iluminante que acompanha a das mulheres. Betty Fernandez.
Também ela estrangeira. Pronunciado que é o nome, ei-la numa rua de Paris,
é míope, vê muito pouco, franze os olhos para reconhecer completamente,
cumprimenta com mão ligeira. Bom dia, tem passado bem? Agora, morta há
muito tempo. Talvez há trinta anos. Lembro-me da graça, agora é tarde de
mais para que eu esqueça, ainda nada atingiu a sua perfeição, nada alcançará
alguma vez a sua perfeição, nem as circunstâncias, nem a época, nem o frio,
nem a fome, nem a derrota alemã, nem a revelação do Crime. Passa sempre a
rua por cima da História dessas coisas, por mais terríveis que sejam. Também
aqui os olhos são claros. O vestido cor-de-rosa é antigo, e cheia de pó a
capelina negra ao sol da rua. É magra, alta, desenhada a tinta da China, uma
gravura. As pessoas param e olham maravilhadas a elegância desta
estrangeira que passa sem ver. Soberana. Não se percebe logo de onde ela é.
E depois dizemo-nos que não pode ser senão de fora, senão daí. É bela, bela
por esta incidência. Veste-se com os velhos trapos da Europa, com restos de
brocados, com velhos saia-e-casaco fora de moda, com velhos cortinados,
com velhos restos, velhos retalhos, velhos farrapos de alta costura, velhas
raposas roídas pelas traças, velhas lontras, a sua beleza é assim, rasgada,
friorenta, soluçante, e de exílio, nada lhe fica bem, tudo é grande de mais para
ela, e é bonito, ela boia, demasiado magra, nada se lhe ajusta e, no entanto, é
bonito. É feita assim, na cabeça e no corpo, de modo que cada coisa que a
toca participa desde logo, indefetivelmente, dessa beleza.
Betty Fernandez recebia, tinha um «dia». Fomos lá umas vezes. Uma vez
estava Drieu la Rochelle. Sofria visivelmente de orgulho, falava pouco para
não condescender, numa voz dobrada, numa língua como que traduzida,
incómoda. Talvez também lá estivesse Brasillach, mas não me lembro, tenho
muita pena. Nunca estava Sartre. Havia poetas de Montparnasse, mas já não
sei nenhum nome, nem nada. Não havia alemães. Não se falava de política.
Falava-se de literatura. Ramon Fernandez falava de Balzac. Tê-lo-íamos
escutado até ao fim das noites. Falava com um saber quase completamente
esquecido, de que não devia ter ficado quase nada de completamente
verificável. Dava poucas informações, dava antes opiniões. Falava de Balzac
como o faria de si próprio, como se tivesse uma vez experimentado ser, ele
também, isso mesmo, Balzac. Ramon Fernandez tinha uma civilidade
sublime até no saber, um modo ao mesmo tempo essencial e transparente de
se servir do conhecimento, sem nunca fazer sentir a sua obrigação, o peso.
Era uma pessoa sincera. Era sempre uma festa encontrá-lo na rua, no café,
ficava contente por nos ver, e era verdade, cumprimentava-nos com prazer.
Bom dia tem passado bem? Isto à inglesa, sem vírgula, num riso e no tempo
desse riso a própria guerra se tornava uma brincadeira assim como todo o
sofrimento forçado que decorria dela, tanto a Resistência como a
Colaboração, a fome como o frio, o martírio como a infâmia. Ela só falava
das pessoas, Betty Fernandez, das que via na rua ou das que conhecia, de
como estavam, das coisas que ainda havia para vender nas montras, das
distribuições dos suplementos de leite, de peixe, das soluções que mitigavam
as faltas, o frio, a fome constante, estava sempre no pormenor prático da
existência, mantinha-se ali, sempre com uma amizade atenta, muito fiel e
muito terna. Colaboradores, os Fernandez. E eu, dois anos depois da guerra,
membro do PCF. A equivalência é absoluta, definitiva. É a mesma coisa, a
mesma piedade, o mesmo pedido de socorro, a fraqueza de julgamento, a
mesma superstição, digamos, que consiste em acreditar na solução política do
problema pessoal. Também ela, Betty Fernandez, olhava as ruas vazias da
ocupação alemã, olhava Paris, as praças de orquídeas em flor como essa outra
mulher, Marie-Claude Carpenter. Tinha também os seus dias de receber.
Ele acompanha-me ao pensionato na limusina preta. Para um pouco antes
da entrada para que não o vejam. É de noite. Ela desce, corre, não se volta
para ele. Logo passado o portão, vê que o grande pátio de recreio ainda está
iluminado. Assim que desemboca do corredor vê-a, a ela, que a esperava, já
preocupada, direita, sem nenhum sorriso. Pergunta-lhe: onde estiveste? Ela
diz: não vim dormir. Não diz porquê e Hélène Lagonelle não lhe pergunta.
Tira o chapéu cor-de-rosa e desfaz as tranças para se deitar. Também não
foste ao liceu. Também não. Hélène diz que telefonaram, é por isso que ela
sabe, que tem de ir falar com a vigilante-chefe. Há muitas raparigas na
sombra do pátio. Todas vestem de branco. Há grandes candeeiros nas
árvores. Algumas salas de estudo ainda estão com a luz acesa. Há alunas que
ainda trabalham, outras que ficam nas salas de aula para conversar, ou jogar
às cartas, ou cantar. Não há hora de deitar para as alunas, o calor é tal durante
o dia, deixa-se correr o serão um pouco como se quiser, como querem as
jovens vigilantes. Somos as únicas brancas do pensionato do Estado. Há
muitas mestiças, a maior parte delas foram abandonadas pelo pai, soldado ou
marinheiro ou pequeno funcionário da alfândega, dos postos, das obras
públicas. A maioria vem da Assistência. Também há algumas cabritas.
Hélène Lagonelle acredita que o Governo francês as educa para fazer delas
enfermeiras nos hospitais ou então vigilantes nos orfanatos, nas leprosarias,
nos hospitais psiquiátricos. Hélène Lagonelle acha que também as mandam
para os lazaretos de coléricos e atacados de peste. É o que Hélène Lagonelle
acredita e chora porque não quer nenhum desses empregos, fala sempre em
fugir do pensionato.
Fui falar com a vigilante de serviço, também ela uma jovem mestiça, que
olha muito para nós, para Hélène e para mim. Diz: não foi ao liceu e não
dormiu aqui a noite passada, vamos ser obrigados a informar a sua mãe.
Digo-lhe que não pude fazer outra coisa mas que a partir dessa noite, daqui
para o futuro, tentarei vir dormir todas as noites ao pensionato, que não vale a
pena informar a minha mãe. A jovem vigilante olha-me e sorri-me.
Voltarei a fazê-lo. A minha mãe será informada. Virá falar com a diretora
do pensionato e pedir-lhe-á que me deixe livre à noite, que não controle as
horas a que entro, e que também não me obrigue a ir passear ao domingo com
as pensionistas. Diz: é uma criança que sempre foi livre, sem isso fugiria, eu
própria, sua mãe, não posso nada contra isso, se quero que ela fique comigo
tenho de a deixar livre. A diretora aceitou porque eu sou branca e que por
causa da reputação do pensionato, na massa de mestiças tem de haver
algumas brancas. A minha mãe disse também que eu trabalhava bem no liceu
mesmo sendo tão livre e que o que lhe acontecera com os seus filhos era tão
terrível, tão grave, que os estudos da pequena eram a única esperança que lhe
restava.
A diretora deixou-me viver no pensionato como num hotel.

Em breve terei um diamante no dedo do noivado. Então as vigilantes não


me farão mais observações. Hão de suspeitar que eu não estou noiva, mas o
diamante é muito caro, ninguém duvidará que é verdadeiro e ninguém dirá
mais nada por causa do preço do diamante que deram à rapariguinha tão
nova.

Volto para junto de Hélène Lagonelle. Está deitada num banco e chora
porque julga que vou deixar o pensionato. Sento-me no banco. Estou
extenuada com a beleza do corpo de Hélène Lagonelle estirado contra o meu.
Este corpo é sublime, livre debaixo do vestido, ao alcance da mão. Os seios
são como nunca vi nenhuns. Nunca os toquei. Ela é impudica, Hélène
Lagonelle, não se dá conta disso, passeia-se toda nua pelos dormitórios. O
que há de mais belo, de todas as coisas dadas por Deus, é este corpo de
Hélène Lagonelle, incomparável, este equilíbrio entre a estatura e a maneira
como o corpo oferece os seios, fora dele, como coisas separadas. Nada é mais
extraordinário que esta rotundidade exterior dos seios oferecidos, esta
exterioridade estendida para as mãos. Mesmo o corpo de pequeno coolie do
meu irmãozinho desaparece perante este esplendor. Os corpos dos homens
têm formas avaras, fechadas. Também não se estragam como as de Hélène
Lagonelle que, essas, nunca duram, talvez apenas um verão, quando muito, é
tudo. Ela vem dos altos planaltos de Dalat, Hélène Lagonelle. O seu pai é
funcionário dos postos. Chegou em pleno ano escolar há pouco tempo. Tem
medo, põe-se ao nosso lado, deixa-se ali estar sem dizer nada, muitas vezes a
chorar. Tem a pele rosada e morena da montanha, reconhecemo-la sempre
aqui onde todas as crianças têm a palidez esverdeada da anemia, do calor
tórrido. Hélène Lagonelle não vai ao liceu. Não sabe ir à escola, Hélène L.
Não aprende, não retém. Frequenta os cursos primários do pensionato mas
não serve de nada. Chora contra o meu corpo, e eu faço-lhe festas no cabelo,
nas mãos, digo-lhe que ficarei com ela no pensionato. Ela não sabe que é
muito bela, Hélène L. Os pais não sabem o que hão de fazer dela, procuram
casá-la o mais depressa possível. Ela teria todos os noivos que quisesse,
Hélène Lagonelle, mas não os quer, não se quer casar, quer voltar para o pé
da mãe. Ela. Hélène L. Hélène Lagonelle. Acabará por fazer o que a mãe
quiser. É muito mais bonita do que eu, do que esta do chapéu de palhaço,
calçada de lamé, infinitamente mais casável do que ela, Hélène Lagonelle,
ela, pode-se casá-la, estabelecê-la na conjugalidade, assustá-la, explicar-lhe o
que lhe faz medo e ela não compreende, ordenar-lhe que se deixe estar ali,
que espere.
Hélène Lagonelle, ela, não sabe ainda o que eu sei. No entanto, tem
dezassete anos. É como se eu adivinhasse, ela nunca há de saber o que eu sei.

O corpo de Hélène Lagonelle é pesado, ainda inocente, a suavidade da sua


pele como a de certos frutos, está à beira de não ser percebida, um pouco
ilusória, é demasiado. Hélène Lagonelle dá vontade de a matar, faz tomar
forma o sonho maravilhoso de a matarmos com as nossas próprias mãos.
Essas formas de flor de farinha, oferece-as, sem nenhum saber, mostra essas
coisas para as mãos as amassarem, para a boca as comer, sem as reter, sem
consciência delas, nem consciência do seu fabuloso poder. Quereria comer os
seios de Hélène Lagonelle como ele come os meus seios no quarto da cidade
chinesa onde vou todas as noites aprofundar o conhecimento de Deus. Ser
devorada por esses seios de flor de farinha que são os seus.

Estou extenuada do desejo de Hélène Lagonelle.


Estou extenuada de desejo.
Quero levar comigo Hélène Lagonelle, àquele lugar em que todas as noites
de olhos fechados deixo que me deem o gozo que faz gritar. Quereria dar
Hélène Lagonelle a esse homem que faz isso em mim para que o faça, por
sua vez, nela. Isto na minha presença, que ela o faça de acordo com o meu
desejo, que ela se dê aí onde me dou. Seria pelo desvio do corpo de Hélène
Lagonelle, pela travessia do seu corpo que o gozo me chegaria dele, então
definitivo.
De morrer.

Vejo-a como sendo da mesma carne que esse homem de Cholen, mas num
presente irradiante, solar, inocente, numa eclosão repetida dela própria, em
cada gesto, em cada lágrima, em cada uma das suas falhas, em cada uma das
suas ignorâncias. Hélène Lagonelle, ela é a mulher desse moço de fretes que
me torna o gozo tão abstrato, tão duro, esse homem obscuro de Cholen, da
China. Hélène Lagonelle. Não esqueci esse moço de fretes. Quando parti,
quando o deixei, fiquei dois anos sem me aproximar de nenhum outro
homem. Mas essa misteriosa fidelidade devia ser a mim mesma.

Ainda estou nesta família, é aí que habito com exclusão de todos os outros
lugares. É na sua aridez, na sua terrível dureza, na sua maleficência que estou
mais profundamente segura de mim, no mais profundo da minha certeza
essencial, a saber, que mais tarde escreverei.

É esse o lugar a que me hei de agarrar mais tarde, uma vez abandonado o
presente, à exclusão de qualquer outro lugar. As horas que passo no
apartamento de Cholen fazem aparecer esse lugar sob uma luz fresca, nova. É
um lugar irrespirável, paredes-meias com a morte, um lugar de violência, de
dor, de desespero, de desonra. É assim o lugar de Cholen. Do outro lado do
rio. Uma vez atravessado o rio.

Nunca soube o que aconteceu a Hélène Lagonelle, se morreu. Foi ela a


primeira a deixar o pensionato, muito antes da minha partida para França.
Voltou para Dalat. Fora a mãe que lhe pedira que voltasse para Dalat. Creio
lembrar-me que era para a casarem, que ela devia conhecer alguém recém-
chegado da metrópole. Talvez me engane, confunda o que eu achava que iria
acontecer a Hélène Lagonelle com a partida forçada reclamada pela sua mãe.

Quero dizer-vos também o que era, como era. É isto: ele rouba aos boys
para ir fumar ópio. Rouba à nossa mãe. Rebusca nos armários. Rouba. Joga.
O meu pai comprara uma casa em Entre-deux-Mers antes de morrer. Era o
nosso único bem. Ele joga. A minha mãe vende-a para pagar as dívidas. Não
basta, nunca basta. Em nova, tenta vender-me a clientes da Coupole. É por
ele que a minha mãe ainda quer viver, para que ele coma ainda, que durma no
quente, que ainda ouça chamar o seu nome. E a propriedade que ela lhe
comprou perto de Amboise, dez anos de economias. Hipotecada numa noite.
Ela paga os juros. E o produto todo do corte dos bosques que vos contei.
Numa noite. Roubou a minha mãe moribunda. Era uma pessoa que revistava
os armários, que tinha faro, que sabia procurar bem, descobrir as boas pilhas
de lençóis, os esconderijos. Roubou as alianças, esse tipo de coisas, muitas,
as joias, a comida. Roubou a Dô, os boys, o meu irmãozinho. A mim, muito.
Era capaz de a ter vendido, a ela, à sua mãe. Quando ela morre manda
imediatamente chamar o notário, na emoção da morte. Sabe aproveitar-se da
emoção da morte. O notário diz que o testamento não é válido. Que ela
beneficiou de mais o seu filho mais velho à minha custa. A diferença é
enorme, risível. É preciso que, com inteiro conhecimento de causa, eu aceite
ou recuse. Certifico que aceito: assino. Aceitei. O meu irmão, de olhos
baixos, obrigado. Chora. Na emoção da morte da nossa mãe. É sincero. Na
libertação de Paris, sem dúvida perseguido por atos de colaboração no Sul, já
não sabe para onde ir. Vem para minha casa. Nunca soube muito bem, ele
foge de um perigo. Talvez tenha entregue pessoas, judeus, tudo é possível.
Está muito afável, afetuoso como sempre depois dos seus assassínios ou
quando precisa dos nossos serviços. O meu marido está deportado. Ele
lamenta. Fica três dias. Esqueci-me, quando saio não fecho nada. Ele faz uma
busca. Guardo, para o regresso do meu marido, o açúcar e o arroz das minhas
senhas. Faz uma busca e apanha-os. Revista ainda um armário do meu quarto.
Encontra. Leva a totalidade das minhas economias, cinquenta mil francos.
Não deixa uma única nota. Abandona a casa, com os roubos. Quando o voltar
a ver, não lhe falarei nisto, a vergonha por ele é tão grande, não serei capaz.
Depois do falso testamento, o falso castelo Luís XIV é vendido por dez réis
de mel coado. A venda foi falsificada, como o testamento.
Depois da morte da minha mãe, ele fica só. Não tem amigos, nunca teve
amigos, teve algumas vezes mulheres que fazia «trabalhar» em
Montparnasse, às vezes mulheres que não fazia trabalhar, pelo menos ao
princípio, às vezes homens mas que, esses, lhe pagavam. Vivia numa grande
solidão. Esta aumentou com a velhice. Era apenas um vadio, as suas causas
eram fracas. Fez medo à sua volta, mais nada. Connosco perdeu o seu
verdadeiro império. Não era um gangster, era um patife familiar, um tipo que
revistava os armários, um assassino sem armas. Não se comprometia. Os
patifes assim vivem como ele vivia, sem solidariedade, sem grandeza, no
medo. Ele tinha medo. Depois da morte da minha mãe leva uma existência
estranha. Em Tours. Só conhece os empregados de café para as «dicas» das
corridas e a clientela alcoólica dos pôqueres nas salas das traseiras. Começa a
parecer-se com eles, bebe muito, fica com os olhos injetados, a boca mole.
Em Tours já não tem nada. As duas propriedades liquidadas, mais nada.
Durante um ano vive num armazém de móveis alugado pela minha mãe.
Dorme durante um ano num sofá. Fazem o favor de o deixar entrar. Aí fica
um ano. E depois é posto fora.
Durante um ano deve ter tido esperança de voltar a comprar a sua
propriedade hipotecada. Jogou um a um os móveis da minha mãe no
armazém, os budas de bronze, os cobres e depois as camas, e depois os
armários, e depois os lençóis. E depois um dia não tinha mais nada, isso
acontece-lhes, um dia tem o fato que traz vestido, mais nada, nem um lençol,
nem um talher. Está só. Num ano, ninguém lhe abriu a porta. Escreve a um
primo de Paris. Terá um quarto de criado em Malesherbes. E, com mais de
cinquenta anos, terá o seu primeiro emprego, o primeiro salário da sua vida, é
contínuo numa companhia de seguros marítimos. Isto durou, creio eu, quinze
anos. Foi para o hospital. Não morreu lá. Morreu no quarto dele.

A minha mãe nunca falou desse filho. Nunca se queixou dele. Nunca falou
a ninguém daquele que revistava os armários. Viveu essa maternidade como
um delito. Tinha-a escondida. Devia achá-la ininteligível, incomunicável a
quem quer que não conhecesse o seu filho como ela o conhecia, diante de
Deus e apenas diante Dele. Dizia a seu respeito pequenas banalidades,
sempre as mesmas. Que, se tivesse querido, teria sido o mais inteligente dos
três. O mais «artista». O mais esperto. E também o que tinha amado mais a
sua mãe. O que, em definitivo, a tinha compreendido melhor. Eu não sabia,
dizia ela, que se pudesse esperar isto de um rapaz, uma tal intuição, uma
ternura tão profunda.

Voltámos a ver-nos uma vez, ele falou-me do irmãozinho morto. Disse: que
horror aquela morte, é abominável, o nosso irmãozinho, o nosso pequeno
Paulo.
Fica esta imagem do nosso parentesco: é uma refeição em Sadec. Estamos
os três a comer à mesa da sala de jantar. Eles têm dezassete, dezoito anos. A
minha mãe não está connosco. Ele está a ver-nos comer, ao irmãozinho e a
mim, e depois pousa o garfo, olha só para o meu irmão. Olha-o durante muito
tempo e depois diz de repente, muito calmo, algo terrível. A frase é sobre a
comida. Diz-lhe que deve ter cuidado, que não deve comer tanto. O
irmãozinho não responde nada. Ele continua. Lembra-lhe que os bocados
grandes de carne são para ele, que não se deve esquecer disso. Senão, diz ele.
Eu pergunto: porquê para ti? Ele diz: porque é assim mesmo. Eu digo: queria
que tu morresses. Não consigo comer. O irmãozinho também não. Ele espera
que o irmãozinho se atreva a dizer uma palavra, uma única palavra, os seus
punhos fechados já estão prontos em cima da mesa para lhe esmurrarem a
cara. O irmãozinho não diz nada. Está muito pálido. Entre as pestanas, o
começo do choro.

Quando ele morre, está um dia sombrio. Creio que de primavera, de abril.
Telefonam-me. Nada, não dizem mais nada, foi encontrado morto, no chão,
no quarto. A morte adiantava-se ao fim da sua história. Em vivo já tudo
estava consumado, era tarde de mais para morrer, estava morto desde a morte
do irmãozinho. As palavras definitivas: tudo está consumado.
Ela pediu que aquele filho fosse enterrado com ela. Já não sei em que sítio,
em que cemitério, sei que é na região do Loire. Estão os dois na cova. Só eles
dois. É justo. A imagem é de um intolerável esplendor.

O crepúsculo caía à mesma hora todo o ano. Era muito curto, quase brutal.
Na estação das chuvas, durante semanas, não se via o céu, estava envolto
num nevoeiro uniforme que nem a luz da Lua atravessava. Na estação seca,
em contrapartida, o céu estava nu, descoberto na sua totalidade, cru. Até as
noites sem Lua eram iluminadas. E as sombras estavam igualmente
desenhadas no chão, nas águas, nos caminhos, nas paredes.

Lembro-me mal dos dias. A luz solar embaciava as cores, esmagava. Das
noites, lembro-me. O azul estava mais longe que o céu, estava atrás de todas
as espessuras, recobria o fundo do mundo. O céu, para mim, era esse rasto de
puro brilho que atravessa o azul, essa fusão fria para além de toda a cor. Às
vezes, era em Vinhlong, quando a minha mãe estava triste, mandava
aparelhar o tilburi e íamos para o campo ver a noite da estação seca. Tive essa
sorte, para essas noites, aquela mãe. A luz caía do céu em cataratas de pura
transparência, em trombas de silêncio e de imobilidade. O ar era azul,
apanhávamo-lo na mão. Azul. O céu era essa palpitação contínua da
brilhância da luz. A noite iluminava tudo, todos os campos de cada margem
do rio até onde a vista alcançava. Cada noite era particular, cada uma podia
chamar-se o tempo da sua duração. O som das noites era o dos cães do
campo. Uivavam ao mistério. Respondiam uns aos outros de aldeia em aldeia
até à consumação total do espaço e do tempo da noite.

Nas áleas do pátio as sombras das macieiras-caneleiras são de tinta escura.


O jardim está todo inteiro fixo numa imobilidade de mármore. A casa
também, monumental, fúnebre. E o meu irmãozinho que caminhava ao pé de
mim e que agora olha com insistência o portão aberto sobre a avenida
deserta.

Uma vez ele não está em frente do liceu. O motorista está só no automóvel
preto. Diz-me que o pai está doente, que o senhor voltou para Sadec. Que ele,
o motorista, recebeu ordem de ficar em Saigão para me levar ao liceu e
conduzir-me de volta ao pensionato. O jovem patrão regressou ao fim de
alguns dias. Estava de novo no banco de trás do automóvel preto, o rosto
desviado para não ver os olhares, sempre com medo. Beijámo-nos, sem uma
palavra, beijámo-nos ali, tínhamo-nos esquecido, em frente do liceu, beijámo-
nos. No beijo ele chorava, o pai ainda viveria. Ía-se a sua última esperança.
Tinha-lhe pedido. Tinha-lhe suplicado que o deixasse manter-me ainda com
ele, contra o seu corpo, tinha-lhe dito que devia compreendê-lo, que devia ele
próprio ter vivido pelo menos uma vez uma paixão como esta no decurso da
sua longa vida, que era impossível que não fosse assim, tinha-lhe rogado que
lhe permitisse viver por sua vez, uma só vez, uma paixão assim, aquela
loucura, esse amor louco pela rapariguinha branca, tinha-lhe pedido que lhe
desse tempo para a amar ainda antes de a mandar para França, que a deixasse
ainda ficar com ele, mais um ano talvez, porque não lhe era possível
abandonar já esse amor, era novo de mais, ainda muito forte, ainda muito na
sua violência nascente, que era ainda horrível de mais separar-se do seu
corpo, sabendo ainda por cima, ele sabia-o bem, ele, o pai, que aquilo nunca
mais se reproduziria.
O pai repetira-lhe que preferia vê-lo morto.
Tomámos banho juntos com a água fresca das talhas, beijámo-nos,
chorámos, e ainda foi de morrer, mas desta vez já de um gozo inconsolável. E
depois disse-lhe. Disse-lhe que não lamentasse nada, lembrei-lhe o que ele
tinha dito, que eu me havia de ir embora de todo o lado, que eu não podia
decidir sobre o meu comportamento. Ele disse que mesmo isso agora já não
tinha importância para ele, que tudo estava ultrapassado. Então eu disse-lhe
que era da opinião do pai dele. Que me recusava a ficar com ele. Não dei
razões.

É uma das longas avenidas de Vinhlong que termina no Mékong. É uma


avenida que está sempre deserta à noite. Nessa noite, como quase todas as
noites, há uma avaria na eletricidade. Tudo começa por aí. Assim que chego à
avenida, que o portão se fecha atrás de mim, falta a eletricidade. Corro. Corro
porque tenho medo do escuro. Corro cada vez mais depressa. E de repente
parece-me que oiço alguém correr atrás de mim. E de repente tenho a certeza
que atrás de mim alguém corre no meu rasto. Sempre a correr, volto-me e
vejo. É uma mulher muito alta, muito magra, magra como a morte e que ri e
que corre. Está descalça, corre atrás de mim para me agarrar. Reconheço-a, é
a louca do posto, a louca de Vinhlong. Ouço-a pela primeira vez, fala de
noite, de dia dorme, e muitas vezes ali naquela avenida, diante do jardim.
Corre gritando numa língua que não conheço. O medo é tal que não consigo
chamar ninguém. Devo ter oito anos. Oiço o seu riso uivante e os seus gritos
de alegria, tenho a certeza que deve estar a divertir-se à minha custa. A
recordação é a de um medo central. Dizer que esse medo ultrapassa o meu
entendimento, a minha força, é dizer pouco. O que se pode avançar, é a
lembrança dessa certeza de todo o ser, a saber, que se a mulher me toca,
mesmo ligeiramente, com a mão, passarei por minha vez a um estado bem
pior que o da morte, o estado da loucura. Cheguei ao jardim dos vizinhos, à
casa, subi as escadas e caí à entrada. Nos dias seguintes fico sem poder contar
de todo o que me aconteceu.

Tarde na minha vida, ainda tenho medo de ver agravar-se um estado da


minha mãe – ainda não nomeio esse estado – o que a poria na situação de ser
separada dos filhos. Acho que me caberia saber quando o dia chegasse, e não
aos meus irmãos, porque os meus irmãos não saberiam avaliar esse estado.

Foi a alguns meses da nossa separação definitiva, foi em Saigão, ao fim da


tarde, estávamos na grande varanda da casa da Rua Testard. Dô também
estava. Olhei para a minha mãe. Tive dificuldade em reconhecê-la. E depois,
numa espécie de apagamento súbito, de queda, brutalmente, deixei
absolutamente de a reconhecer. Havia, de súbito, ali, ao pé de mim, uma
pessoa sentada no lugar da minha mãe, não era a minha mãe, tinha a sua
aparência, mas nunca tinha sido a minha mãe. Tinha um ar ligeiramente
embrutecido, olhava para o parque, para um certo ponto do parque, espiava
ao que parece a iminência de um acontecimento de que eu não me apercebia.
Havia nela uma juventude das feições, do olhar, uma felicidade que ela
reprimia por um pudor a que deveria estar habituada. Era bela. Dô estava a
seu lado. Dô parecia não se ter dado conta de nada. O horror não tinha a ver
com o que eu estou a dizer dela, das suas feições, do seu ar de felicidade, da
sua beleza, mas vinha do facto de ela estar sentada ali mesmo onde a minha
mãe estivera sentada quando a substituição se produzira, de saber que mais
ninguém ali estava no seu lugar, ninguém senão ela mesma, mas que
justamente esta identidade que não era substituível por nenhuma outra tinha
desaparecido e que eu não tinha maneira nenhuma de fazer com que ela
voltasse, que ela começasse a voltar. Já nada se propunha para habitar a
imagem. Enlouqueci em plena razão. O tempo de gritar. Gritei. Um grito
fraco, um pedido de socorro, para que se quebre esse vidro em que se
imobilizava mortalmente toda a cena. A minha mãe voltou-se.

Povoei a cidade toda com aquela mendiga da avenida. Todas as mendigas


das cidades, dos arrozais, as dos caminhos que orlavam o Sião, as das
margens do Mékong, povoei-a com todas elas, ela que me fez medo. Veio de
todo o lado. Chegou sempre a Calcutá, donde quer que tivesse vindo. Sempre
dormiu à sombra das macieiras-caneleiras do pátio de recreio. A minha mãe
esteve sempre lá junto dela, a tratar-lhe do pé roído pelos vermes, cheio de
moscas.
A seu lado, a rapariguinha da história. Trá-la consigo há dois mil
quilómetros. Já não a quer para nada, dá-a, vá, toma. Já não tem filhos. Não
tem filho. Todos mortos ou deitados fora, faz uma grande quantidade no fim
da vida. Esta que dorme debaixo das macieiras-caneleiras ainda não está
morta. É a que há de viver mais tempo. Morrerá dentro de casa, num vestido
de renda. Será chorada.
Ela está no declive dos arrozais que orlam o caminho, grita e ri a bandeiras
despregadas. Tem um riso de ouro, de fazer acordar os mortos, de fazer
acordar quem quer que oiça rir as crianças. Posta-se diante do bungalow dias
e dias, há brancos no bungalow, ela lembra-se, eles dão de comer aos
mendigos. Depois uma vez, enfim, acorda de manhãzinha e põe-se a
caminhar, um dia vai-se embora, vá-se lá saber porquê, obliqua para a
montanha, atravessa a floresta e segue os carreiros que seguem ao longo das
cristas da cadeia do Sião. À força de ver, talvez, de ver um céu amarelo e
verde do outro lado da planície, atravessa-a. Começa a descer para o mar,
para o fim. Desce na sua grande passada magra as encostas da floresta. Ela
atravessa, atravessa. São as florestas pestilenciais. As regiões muito quentes.
Não há o vento salubre do mar. Há a algazarra estagnante dos mosquitos, as
crianças mortas, a chuva todos os dias. E depois os deltas. São os maiores
deltas da terra. São de lodo negro. Para os lados de Chittagong. Deixou os
caminhos, as florestas, as rotas do chá, os sóis vermelhos, e percorre sempre
em frente a abertura dos deltas. Toma a direção do redemoinho do mundo,
essa sempre longínqua, envolvente, do leste. Um dia está em frente do mar.
Grita, ri no seu cacarejar miraculoso de pássaro. Por causa do riso, encontra
em Chittagong um junco que a leva ao outro lado, os pescadores querem
levá-la, atravessa em companhia o golfo de Bengala.
Começa-se, começa-se depois a vê-la junto das lixeiras nos arredores de
Calcutá.
E depois perdemo-la. E depois encontramo-la outra vez. Está atrás da
Embaixada de França daquela mesma cidade. Dorme num parque, saciada de
um alimento infinito.
Aí fica durante a noite. Depois no Ganges ao romper do dia. O humor
risonho e trocista, sempre. Já não se vai embora. Aqui ela come, dorme, é
calmo de noite, fica ali no parque de loureiros-rosa.
Um dia chego, passo por lá. Tenho dezassete anos. É o bairro inglês, os
parques das embaixadas, é a monção, os ténis estão desertos. Ao longo do
Ganges os leprosos riem.
Estamos em escala em Calcutá. Uma avaria no navio. Visitamos a cidade
para passar o tempo. Partimos no dia seguinte ao fim do dia.

Quinze anos e meio. A coisa sabe-se muito depressa no posto de Sadec.


Bastava aquela indumentária para dizer a desonra. A mãe não tem sentido
nenhum de nada, nem o da maneira de educar uma filha. A pobre criança.
Nem pensem, aquele chapéu não é inocente, nem o batôn, tudo aquilo
significa qualquer coisa, não é inocente, quer dizer, é para atrair os olhares, o
dinheiro. Os irmãos, uns malandros. Diz-se que é um chinês, o filho do
milionário, o palacete do Mékong, com cerâmicas azuis. Mesmo ele, em vez
de se sentir honrado, não a quer para o filho. Família de malandros brancos.

Chamávamos-lhe a Senhora, tinha vindo de Savannakhet. O marido


nomeado para Vinhlong. Durante um ano não a vimos em Vinhlong. Por
causa daquele rapaz, administrador-adjunto em Savannakhet. Já não podiam
amar-se. Então ele matara-se com um tiro de revólver. A história chegou até
ao novo posto de Vinhlong. No dia da partida dela de Savannakhet para
Vinhlong, uma bala no coração. Na grande praça do posto em pleno sol. Por
causa das filhas pequenas e do marido nomeado para Vinhlong ela dissera-lhe
que aquilo tinha de acabar.

Aquilo passa-se no bairro mal afamado de Cholen, todas as noites. Todas


as noites aquela pequena viciosa vai fazer-se acariciar o corpo por um porco
chinês milionário. Também está no liceu em que andam as raparigas brancas,
as pequenas desportistas brancas que aprendem o crawl na piscina do Clube
Desportivo. Um dia receberão ordens para deixarem de falar à filha da
professora primária de Sadec.
No recreio, ela olha para a rua, sozinha, encostada a um pilar do pátio. Não
conta nada disto à mãe. Continua a vir para as aulas na limusina preta do
Chinês de Cholen. Elas veem-na ir. Não haverá exceção. Nenhuma delas lhe
dirigirá mais a palavra. Este isolamento fez erguer-se a pura recordação da
Senhora de Vinhlong. Tinha feito, nessa altura, trinta e oito anos. E a criança,
dez. E depois, agora, dezasseis, ao recordar-se.
A senhora está na varanda do seu quarto, olha as avenidas ao longo do
Mékong, vejo-a quando venho do catecismo com o meu irmãozinho. O
quarto fica no centro de um grande palácio com varandas cobertas, o palácio
fica no centro do parque de loureiros-rosa e de palmeiras. A mesma diferença
separa a senhora e a rapariga do chapéu das outras pessoas do posto. Tal
como ambas olham as longas avenidas dos rios, ambas são. Isoladas ambas.
Sós, umas rainhas. A sua desgraça é evidente. Ambas votadas ao descrédito
pelo facto da natureza do corpo que têm, acariciado pelos amantes, beijado
por suas bocas, entregues à infâmia de um gozo de morrer, dizem elas, de
morrer dessa morte misteriosa dos amantes sem amor. É disso que se trata,
desse humor de morte. Aquilo evola-se delas, dos seus quartos, essa morte
tão forte que o facto é conhecido na cidade toda, nos postos do mato, nas
capitais, nas receções, nos bailes lentos das administrações-gerais.
A senhora acaba justamente de retomar essas receções oficiais, julga que já
está, que o rapaz de Savannakhet entrou no esquecimento. A senhora retomou
então os seus serões a que é obrigada para que as pessoas possam ainda ver-
se, de vez em quando, e de vez em quando também sair da solidão horrível
em que se mantêm os postos do mato perdidos nas extensões quadrilaterais
do arroz, do medo, da loucura, das febres, do esquecimento.

À tarde, à saída do liceu, a mesma limusina preta, o mesmo chapéu de


insolência e de infância, os mesmos sapatos de lamé e ela, ela vai, vai fazer-
se descobrir o corpo pelo milionário chinês, lavá-la-á muito tempo, como ela
fazia todas as noites em casa da mãe com a água fresca de uma talha que ele
guarda para ela, e depois há de levá-la molhada para a cama, pôr a ventoinha
a funcionar e beijá-la-á cada vez mais por todo o lado e ela pedir-lhe-á
sempre mais e mais, e depois voltará para o pensionato, e ninguém para a
castigar, para lhe bater, para a desconsiderar, para a insultar.

Fora ao fim da noite que ele se matara, na grande praça do posto cintilante
de luz. Ela dançava. Depois o dia chegara. Tinha feito o contorno do corpo.
Depois, com o passar do tempo, o sol tinha esmagado a forma. Ninguém
tinha ousado aproximar-se. A polícia fá-lo-á. Ao meio-dia, após a chegada
das lanchas da viagem, não haverá nada, a praça estará limpa.

A minha mãe disse à diretora do pensionato: não faz mal, nada disso tem
importância, já viu? Aqueles vestidinhos usados, o chapéu cor-de-rosa e os
sapatos dourados, como lhe ficam bem? A mãe fica louca de alegria quando
fala dos filhos e então o seu encanto é ainda maior. As jovens vigilantes do
pensionato ouvem a mãe apaixonadamente. Todos, diz a mãe, andam de roda
dela, todos os homens do posto, casados ou não, andam de roda daquilo,
querem a pequena, aquilo, ainda não muito definido, olhem, ainda uma
criança. Desonrada, dizem as pessoas? E eu digo: como é que a inocência se
poderia desonrar?
A mãe fala, fala. Fala da prostituição declarada, ri-se, do escândalo,
daquela palhaçada, daquele chapéu deslocado, dessa elegância sublime da
menina da travessia do rio, e ri-se dessa coisa irresistível aqui nas colónias
francesas, falo, diz ela, daquela pele branca, da criança que estivera até então
escondida nos postos do mato e que chega de repente em pleno dia e se expõe
na cidade à vista de todos, com a ralé do milionário chinês, diamante no dedo
como uma jovem banqueira, e chora.

Quando viu o diamante disse numa vozinha: faz-me lembrar um pequeno


solitário que tive no noivado com o meu primeiro marido. Digo: o senhor
Obscuro. Rimo-nos. Era o nome dele, diz ela, é mesmo verdade.
Olhámo-nos muito tempo e depois ela fez um sorriso muito meigo,
ligeiramente trocista, repleto de um conhecimento tão profundo dos seus
filhos e do que os esperaria mais tarde, que quase estive para lhe falar de
Cholen.
Não o fiz. Nunca o fiz.
Esperou muito tempo antes de me falar outra vez, depois fê-lo, com muito
amor: Sabes que acabou? Que nunca te poderás casar aqui na colónia?
Encolho os ombros, rio-me. Digo: posso casar-me em qualquer lado, quando
eu quiser. A minha mãe acena que não. Não. Diz: aqui sabe-se tudo, aqui já
não podes. Ela olha-me e diz-me coisas inesquecíveis: agradas-lhes?
Respondo: é isso, agrado-lhes mesmo assim. É então que ela diz: agradas-
lhes também por causa do que tu és.
Ainda me perguntou: é só pelo dinheiro que estás com ele? Hesito e depois
digo que é apenas pelo dinheiro. Ela olha-me ainda muito tempo, não acredita
em mim. Diz: eu não era como tu, tive mais dificuldades nos estudos e eu cá
era muito séria, fui-o durante tempo de mais, tarde de mais, perdi o gosto do
meu prazer.
Era um dia de férias em Sadec. Ela descansava numa cadeira de baloiço, os
pés em cima doutra cadeira, tinha feito uma corrente de ar entre as portas do
salão e da sala de jantar. Estava pacífica, tranquila, sem maldade. De súbito
tinha visto a sua menina, tinha-lhe apetecido falar com ela.
Não estávamos longe do fim, do abandono das terras da barragem. Não
longe da partida para França.
Eu via-a adormecer.

De vez em quando a minha mãe decreta: amanhã vamos ao fotógrafo.


Queixa-se do preço mas mesmo assim faz a despesa das fotografias de
família. As fotografias, olhamo-las, não olhamos uns para os outros mas
olhamos as fotografias, cada um separadamente, sem uma palavra de
comentário, mas olhamo-las, vemo-nos. Vemos os outros membros da
família um por um ou em conjunto. Revemo-nos quando éramos muito
pequenos em fotografias antigas e olhamo-nos nas fotografias recentes. A
separação ainda cresceu mais entre nós. Uma vez olhadas, as fotografias são
arrumadas com a roupa branca nos armários. A minha mãe leva-nos a tirar
fotografias para nos poder ver, ver se crescemos normalmente. Olha-nos
longamente como outras mães, outros filhos. Compara as fotografias entre si,
fala do crescimento de cada um. Ninguém lhe responde.
A minha mãe só tira fotografias aos filhos. A mais nada. Não tenho
fotografias de Vinhlong, nem uma, do jardim, do rio, das avenidas direitas,
orladas pelas tamareiras da conquista francesa, nem uma, da casa, dos nossos
quartos de asilo caiados, com as grandes camas de ferro pretas e douradas,
iluminados como salas de aula pelas lâmpadas avermelhadas das avenidas, os
quebra-luzes de chapa de ferro verde, nem uma, nem uma imagem desses
lugares incríveis, sempre provisórios, para além de toda a fealdade, de fugir,
onde a minha mãe acampava à espera, dizia ela, de se instalar
verdadeiramente, mas em França, nessas regiões de que falou a vida toda e
que se situavam, conforme o seu humor, a sua idade, a sua tristeza, entre o
Pas-de-Calais e Entre-deux-Mers. Quando ela parar para sempre, quando se
instalar no Loire, o seu quarto será a réplica do de Sadec, terrível. Ela terá
esquecido.

Nunca tirava fotografias aos lugares, às paisagens, só a nós, os seus filhos,


e a maioria das vezes, em grupo para que a fotografia fosse mais barata. As
poucas fotografias de amador que nos tiraram foram feitas por amigos da
minha mãe, colegas recém-chegados à colónia que tiravam fotografias à
paisagem equatorial, coqueiros e coolies, para mandarem à família.
Misteriosamente, a minha mãe mostra as fotografias dos filhos à família
dela, durante as férias. Nós não queremos ir com ela ver a família. Os meus
irmãos nunca a conheceram. A mim, a mais nova, dantes arrastava-me até lá.
E depois nunca mais fui, porque as minhas tias, por causa do meu
comportamento escandaloso, já não queriam que as filhas me vissem. Assim
não resta à minha mãe senão mostrar as fotografias, assim a minha mãe
mostra-as, logicamente, ajuizadamente, mostra às suas primas direitas os
filhos que tem. Tem para consigo mesma o dever de o fazer, então fá-lo, as
suas primas são o que resta da família, e assim mostra-lhes as fotografias da
família. Será que percebemos algo desta mulher através desta maneira de ser?
Através desta disposição que ela tem para ir até ao fim das coisas sem alguma
vez imaginar que poderia abandonar, deixar, as primas, o esforço, a chatice?
Acho que sim. É nessa coragem da espécie, absurda, que eu própria encontro
a graça profunda.

Quando ficou velha, de cabelos brancos, também foi ao fotógrafo, foi lá


sozinha, e fez-se fotografar com o seu belo vestido vermelho-escuro e as suas
duas joias, o cordão e o broche de ouro e jade, um pequeno cilindro de jade
embutido em ouro. Na fotografia está bem penteada, nem uma ruga, uma
imagem. Os indígenas endinheirados iam também eles ao fotógrafo, uma vez
na vida, quando viam que a morte se aproximava. As fotografias eram
grandes, todas do mesmo formato, encaixilhadas em belas molduras douradas
e penduradas junto ao altar dos antepassados. Todas as pessoas fotografadas,
e vi muitas, davam quase a mesma fotografia, a sua semelhança era
alucinante. Não é só que os velhos se assemelhem, é que os retratos eram
retocados, sempre, e de tal modo que as particularidades do rosto, se ainda as
havia, eram atenuadas. Os rostos eram preparados da mesma maneira para
enfrentar a eternidade, eram alisados, uniformemente rejuvenescidos. Era o
que as pessoas queriam. Essa semelhança – essa discrição – deveria vestir a
recordação da sua passagem pela família, testemunhar a um tempo a sua
singularidade e a sua efetividade. Quanto mais se pareciam, mais a pertença
às hostes da família devia ser patente. Além disso, todos os homens tinham o
mesmo turbante, as mulheres o mesmo carrapito, os mesmos penteados
esticados, os homens e as mulheres a mesma túnica de colarinho subido.
Tinham todos o mesmo ar que eu reconheceria ainda entre todos. E aquele ar
que a minha mãe tinha na fotografia do vestido vermelho era o deles, era esse
mesmo, nobre, dirão alguns, e alguns outros, apagado.
*

Nunca mais falam disso. É um caso arrumado que ele não tentará mais
nada junto do pai para casar com ela. Que o pai não terá piedade alguma do
filho. Não tem de ninguém. De todos os imigrantes chineses que detêm o
comércio do posto, o das varandas azuis é o mais terrível, o mais rico, aquele
cujos bens se estendem mais longe para lá de Sadec, até Cholen, a capital
chinesa da Indochina francesa. O homem de Cholen sabe que a decisão do
seu pai e a da menina são as mesmas e que são sem apelo. Em menor grau,
começa a compreender que a partida que o há de separar dela é a sorte da
história deles. Que esta não é das que se casam, que fugiria de todos os
casamentos, que será preciso abandoná-la, esquecê-la, voltar a dá-la aos
brancos, aos seus irmãos.
Desde que ele estava louco pelo corpo dela, a rapariguinha já não sofria
com ele, com a sua magreza e, também, estranhamente, a sua mãe já não se
preocupava como dantes, como se tivesse descoberto, ela também, que aquele
corpo era no fim de contas plausível, aceitável, tanto como qualquer outro.
Ele, o amante de Cholen, julga que o crescimento da rapariga branca sofreu
com o calor demasiado forte. Também ele nasceu e se desenvolveu nesse
calor. Descobre que tem com ela esse parentesco. Diz que todos os anos ali
passados, naquela intolerável latitude, fizeram com que ela se tornasse uma
jovem desse país da Indochina. Que tem a finura dos pulsos deles, os seus
cabelos espessos de que se diria que tomaram para si a força toda, compridos
como os deles e, sobretudo, aquela pele, aquela pele de todo o corpo que vem
da água da chuva que aqui se guarda para o banho das mulheres, das crianças.
Diz que as mulheres de França, ao lado destas, têm a pele do corpo dura,
quase áspera. Diz ainda que a alimentação pobre dos trópicos, feita de peixes,
frutos, também tem algo a ver com isso. E também os tecidos de algodão e as
sedas de que a roupa é feita, sempre largos esses fatos que deixam o corpo
longe deles, livre, nu.
O amante de Cholen habituou-se à adolescência da rapariga branca até se
perder nela. O gozo que tira dela todas as noites comprometeu o seu tempo, a
sua vida. Já quase não lhe fala. Talvez julgue que ela já não compreenderia o
que lhe diria dela, daquele amor que ele ainda não conhecia e de que não sabe
dizer nada. Talvez descubra que nunca se falaram ainda, salvo quando
chamam um pelo outro nos gritos do quarto à noite. Sim, acho que ele não
sabia, que descobre que não sabia.

Ele olha-a. Com os olhos fechados ainda a olha. Respira o rosto dela.
Respira a menina, de olhos fechados respira a sua respiração, esse ar quente
que sai dela. Distingue cada vez menos claramente os limites desse corpo,
aquele não é como os outros, não está acabado, cresce ainda no quarto, não
tem ainda formas definidas, faz-se a cada momento, não está apenas ali onde
ele o vê, está também algures, estende-se para lá da vista, para o jogo, a
morte, é elástico, parte inteiro para o gozo como se fosse grande, em idade,
sem malícia, duma inteligência assustadora.

Eu observava o que ele fazia de mim, como se servia de mim e nunca


pensara que se pudesse fazê-lo daquela maneira, ia além da minha esperança
e conforme com o destino do meu corpo. Assim tinha-me tornado sua filha.
Ele também se tinha transformado noutra coisa para mim. Começava a
reconhecer a suavidade inexprimível da sua pele, do seu sexo, para além dele
mesmo. A sombra dum outro homem também devia passar pelo quarto, a
dum jovem assassino, mas eu ainda não o sabia, nada disso aparecia ainda
aos meus olhos. A dum jovem caçador também devia passar pelo quarto mas
quanto a essa, sim, eu sabia-o, por vezes estava presente no gozo e eu dizia-
lho, ao amante de Cholen, falava-lhe do seu corpo e do seu sexo também, da
sua inegável suavidade, da sua coragem na floresta e nos rios de estuários de
panteras negras. Tudo ia ao encontro do seu desejo e o fazia possuir-me.
Tinha-me tornado sua filha. Era com a filha que fazia amor todas as noites. E
às vezes fica com medo, de repente preocupa-se com a sua saúde como se
descobrisse que ela era mortal e o trespassasse a ideia de que a podia perder.
Que ela seja tão magra, de repente, e também fica com medo às vezes,
brutalmente. E daquelas dores de cabeça também, que tantas vezes a põem
como morta, lívida, imóvel, com um pano húmido nos olhos. E também desse
enjoo que ela tem às vezes da vida, quando isso lhe dá, pensa na mãe e
subitamente grita e chora de cólera com a ideia de não poder mudar as coisas,
fazer a mãe feliz antes que ela morra, matar os que fizeram aquele mal. O
rosto contra o seu, ele toma as suas lágrimas, esmaga-as contra si, louco do
desejo das suas lágrimas, da sua cólera.

Possuía-a como possuiria a sua filha. Era assim que possuiria a sua filha.
Brinca com o corpo da filha, volta-a, cobre com ele o rosto, a boca, os olhos.
E ela, ela continua a abandonar-se na direção exata que ele tomou quando
começou a brincar. E de súbito é ela que lhe pede, não diz o quê, e ele, ele
grita-lhe que se cale, grita-lhe que já não a quer, que já não quer ter prazer
com ela, e ei-los de novo presos, aferrolhados entre si no horror, e eis que
esse horror se desfaz mais uma vez, que lhe cedem mais uma vez, em
lágrimas, no desespero, na felicidade.

Calam-se durante toda a noite. No automóvel preto que a leva ao


pensionato, encosta a cabeça ao ombro dele. Ele enlaça-a. Diz-lhe que é bom
que o barco de França chegue em breve e a leve e os separe. Calam-se
durante o trajeto. Às vezes ele pede ao motorista que guie ao longo do rio,
que dê uma volta. Ela adormece, extenuada, contra ele. Ele acorda-a com
beijos.

No dormitório, a luz é azul. Há um cheiro a incenso, queimam sempre


algum ao crepúsculo. O calor é estagnante, todas as janelas estão abertas de
par em par e não há uma aragem. Descalço os sapatos para não fazer barulho
mas estou sossegada, sei que a vigilante não se há de levantar, que agora é
coisa aceite que eu volte de noite à hora que quiser. Vou logo ver o lugar de
H. L., sempre com um pouco de inquietação, sempre com medo que ela tenha
fugido do pensionato durante o dia. Ela está ali. Dorme bem, H. L. Tenho a
lembrança dum sono obstinado, quase hostil. De recusa. Os seus braços nus
rodeiam a cabeça, abandonados. O corpo não está deitado com compostura
como o das outras raparigas, as pernas estão dobradas, não se lhe vê a cara, a
almofada escorregou. Adivinho que ela me deve ter esperado e depois
adormecido assim na impaciência, na cólera. Também deve ter chorado e
depois caído no abismo. Queria acordá-la e que conversássemos baixinho. Já
não falo com o homem de Cholen, ele já não fala comigo, preciso de ouvir as
perguntas de H. L. Ela tem essa atenção incomparável das pessoas que não
compreendem o que se lhes diz. Mas não é possível que eu a acorde. Uma
vez acordada assim, a meio da noite, H. L. não consegue voltar a adormecer.
Levanta-se, apetece-lhe sair, e fá-lo, desce as escadas, anda pelos corredores,
pelos grandes pátios vazios, corre, chama-me, está tão contente, não se pode
nada contra isso, e quando a privamos do passeio sabemos que era disso que
ela estava à espera. Hesito e afinal não, não a acordo. Debaixo do
mosquiteiro o calor é sufocante, quando o fechamos parece impossível de
suportar. Mas sei que é porque venho de fora, das margens do rio onde faz
sempre fresco de noite. Estou habituada, não me mexo, espero que passe.
Passa. Nunca adormeço logo de seguida, apesar daqueles novos cansaços na
minha vida. Penso no homem de Cholen. Deve estar numa boîte para os lados
da Source, com o motorista, devem beber em silêncio, é a aguardente de arroz
quando estão sós. Ou então voltou para casa, adormeceu na luz do quarto,
sempre sem falar com ninguém. Nessa noite já não aguento pensar no homem
de Cholen. Já não aguento pensar em H. L. Parecem ter uma vida preenchida,
que isso lhes vem do exterior deles mesmos. Parece que não tenho nada de
semelhante. A mãe diz: aquela nunca ficará satisfeita com coisa nenhuma.
Acho que a minha vida começou a mostrar-se-me. Acho que já sei dizer-mo,
tenho vagamente vontade de morrer. Esta palavra, já não a separo da minha
vida. Creio que me apetece vagamente estar sozinha, tal como me apercebo
de que já não estou só desde que deixei a infância, a família do Caçador. Vou
escrever livros. É o que vejo para além do instante, no grande deserto sob a
aparência do qual me surge a vastidão da minha vida.

Já não sei quais eram as palavras do telegrama de Saigão. Se diziam que o


meu irmãozinho tinha morrido ou se diziam: chamado a Deus. A evidência
trespassou-me: não era ela quem teria podido enviar o telegrama. O
irmãozinho. Morto. Primeiro é ininteligível e depois, bruscamente, por todo o
lado, do fundo do mundo, a dor chega, recobriu-me, levou-me, não
reconhecia nada, deixei de existir salvo a dor, qual, não sabia qual, se era a de
ter perdido um filho alguns meses antes que voltava ou se era uma dor nova.
Agora creio que era uma dor nova, o meu filho morto à nascença nunca o
conhecera e não tinha querido matar-me como agora queria.
Tínhamo-nos enganado. O erro que fizéramos, em alguns segundos,
alcançou o universo inteiro. O escândalo era à escala de Deus. O meu
irmãozinho era imortal e não tínhamos dado por isso. O corpo daquele irmão
fora depositário de imortalidade enquanto vivia e nós, nós não tínhamos visto
que era nesse corpo que acontecia habitar a imortalidade. O corpo do meu
irmão estava morto. A imortalidade tinha morrido com ele. E assim ia o
mundo agora, privado desse corpo visitado, e dessa visita. Tínhamo-nos
enganado completamente. O erro alcançou o Universo inteiro, o escândalo.
Uma vez que ele morreu, ele, o irmãozinho, tudo devia morrer a seguir a
ele. E por ele. A morte, em cadeia, partia dele; a criança.
O corpo morto da criança, esse, não se ressentia em nada desses
acontecimentos de que era a causa. A imortalidade que tinha abrigado durante
vinte e sete anos da sua vida, ele não lhe conhecia o nome.

Ninguém via claro senão eu. E a partir do momento em que acedi a esse
conhecimento, tão simples, a saber, que o corpo do meu irmãozinho era
também o meu, devia morrer. E morri. O meu irmão amalgamou-me a si,
puxou-me a si e morri.

Era preciso prevenir as pessoas destas coisas. Ensinar-lhes que a


imortalidade é mortal, que pode morrer, que já aconteceu, que ainda
acontece. Que não se anuncia enquanto tal, nunca, que é a duplicidade
absoluta. Que não existe no pormenor, mas apenas no princípio. Que certas
pessoas podem dela transportar a presença na condição de ignorarem que o
fazem. Tal como certas outras pessoas podem detetar-lhe a presença nessas
pessoas, na mesma condição, ignorarem que o podem fazer. Que é enquanto
se vive a vida que a vida é imortal, enquanto está viva. Que a imortalidade
não é uma questão de mais ou menos tempo, que não é uma questão de
imortalidade, que é questão de outra coisa que permanece ignorada. Que é tão
falso dizer que não tem começo nem fim, como dizer que começa e acaba
com a vida do espírito uma vez que é do espírito que ela participa e da
perseguição do vento. Vejam as areias mortas dos desertos, o corpo morto
das crianças: a imortalidade não passa por aí, detém-se e contorna.

Quanto ao irmãozinho, tratou-se de uma imortalidade sem falha, sem lenda,


sem acidente, pura, de um único impulso. O irmãozinho não tinha nada a
gritar no deserto, não tinha nada a dizer, algures ou mesmo aqui, nada. Não
tinha instrução, nunca tinha conseguido instruir-se no que quer que fosse.
Não sabia falar, quase não sabia ler, quase não sabia escrever, às vezes
julgávamos que nem sequer sabia sofrer. Era uma pessoa que não
compreendia e que tinha medo.
Este amor insensato que lhe tenho permanece para mim um insondável
mistério. Não sei por que o amava ao ponto de querer morrer da sua morte.
Estava separada dele há dez anos quando aconteceu e só raramente pensava
nele. Amava-o, parecia, para sempre, e nada de novo podia acontecer àquele
amor. Tinha-me esquecido da morte.

Falávamos pouco os dois, falávamos muito pouco do irmão mais velho, da


nossa infelicidade, da da mãe, da da planície. Falávamos antes da caça, de
carabinas, de mecânica, de automóveis. Irritava-se com o automóvel
estragado e contava-me, descrevia-me os carros que havia de ter mais tarde.
Eu conhecia todas as marcas de carabinas de caça e todas as dos carros.
Também falávamos, claro, de sermos devorados por tigres se não tivéssemos
cuidado ou de nos afogarmos no Mékong se continuássemos a nadar nas
correntes. Era dois anos mais velho do que eu.

O vento parou e há debaixo das árvores a luz sobrenatural que se segue à


chuva. Os pássaros gritam com todas as forças, dementes, aguçam o bico
contra o ar frio, fazem-no ressoar em todo o comprimento, de modo quase
ensurdecedor.

Os navios subiam o rio de Saigão, de motores parados, puxados por


rebocadores até às instalações portuárias que ficavam naquele cotovelo do
Mékong à altura de Saigão. Esse cotovelo, esse braço do Mékong, chama-se
o Rio, o Rio de Saigão. A escala era de oito dias. Assim que os barcos
atracavam, aí estava a França. Podia-se ir jantar a França, dançar, era
demasiado caro para a minha mãe e além disso, para ela não valia a pena,
mas com ele, o amante de Cholen, podíamos ter lá ido. Ele não ia porque
teria medo de ser visto com a menina branca tão nova. Ele não o dizia mas
ela sabia-o. Nessa época, e não é assim tão remota, apenas cinquenta anos,
não havia senão os barcos para se ir a qualquer lado do mundo. Grandes
frações dos continentes ainda não tinham estradas, nem caminhos de ferro.
Em centenas, milhares de quilómetros quadrados, só havia ainda os caminhos
da Pré-História. Eram os belos navios da Companhia Francesa dos
Transportes Marítimos, os mosqueteiros da linha, o Porthos, o D’Artagnan, o
Aramis, que ligavam a Indochina à França.

Essa viagem durava vinte e quatro dias. Os navios das linhas eram já
cidades com ruas, bares, cafés, bibliotecas, salões, encontros, amantes,
casamentos, mortos. Formavam-se sociedades de acaso, eram forçadas,
sabíamo-lo, não o esquecíamos, e por isso mesmo tornavam-se vivíveis, e
mesmo, às vezes, de inesquecível encanto. Essas eram as únicas viagens das
mulheres. Para muitas delas sobretudo mas também para certos homens às
vezes, as viagens para chegarem à colónia eram a verdadeira aventura. Para a
mãe sempre tinha sido, com a nossa primeira infância, o que ela chamava «o
melhor da sua vida».

As partidas. Eram sempre as mesmas partidas. Eram sempre as primeiras


partidas no mar. A separação da terra tinha-se feito sempre na dor e no
desespero, mas isso nunca impediria os homens de partir, os judeus, os
homens do pensamento e os puros viajantes apenas da viagem por mar, e isso
também nunca impediria as mulheres de os deixarem ir, elas que nunca iam,
que ficavam a guardar o lugar natal, a raça, os bens, a razão de ser do
regresso. Durante séculos, os navios fizeram com que as viagens fossem mais
lentas, também mais trágicas do que são nos nossos dias. A duração da
viagem cobria o comprimento da distância de forma natural. Estava-se
habituado àquelas lentas velocidades humanas na terra e no mar, àqueles
atrasos, àquele esperar pelo vento, pelas abertas, pelos naufrágios, pelo sol,
pela morte. Os navios que a menina branca conhecera estavam já entre os
últimos navios correios do mundo. Fora durante a sua juventude, de facto,
que se instituíram as primeiras linhas aéreas que deviam progressivamente
privar a humanidade das viagens através dos mares.

Ainda íamos todos os dias à casa de Cholen. Ele fazia como habitualmente,
durante toda uma época ele fazia como habitualmente, dava-me banho com a
água das talhas e levava-me ao colo para a cama. Chegava-se a mim, deitava-
se também mas tinha-se-lhe ido a força toda, impotente. A data da partida,
mesmo que ainda longínqua, uma vez fixada, ele já nada podia fazer com o
meu corpo. Tinha acontecido brutalmente, sem ele ter consciência disso. O
seu corpo já não queria esta que ia partir, trair. Dizia: já não posso possuir-te,
pensava que ainda podia, mas já não posso. Dizia que estava morto.
Desculpava-se com um sorriso muito meigo, dizia que talvez aquilo nunca
mais lhe voltasse. Eu perguntava-lhe se ele tinha querido que as coisas se
passassem assim. Ele quase ria, dizia: não sei, neste momento talvez sim. A
sua meiguice tinha ficado inteira na dor. Não falava dessa dor, nunca dissera
uma palavra sobre ela. Às vezes o seu rosto estremecia, fechava os olhos e
cerrava os dentes. Mas calava-se sempre sobre as imagens que via por trás
dos olhos fechados. Dir-se-ia que amava aquela dor, que a amava como me
amara, com muita força, talvez até morrer, e que agora a preferia a mim. Às
vezes dizia que queria acariciar-me porque sabia que me apetecia muito e que
queria olhar para mim quando o gozo viesse. Fazia-o, olhava para mim ao
mesmo tempo e chamava-me como sua filha. Tínhamos decidido não nos
vermos mais mas não era possível, não fora possível. Todas as noites o
encontrava diante do liceu no seu automóvel preto, a cabeça voltada da
vergonha.

Quando se aproximava a hora da partida, o barco lançava três apitos de


sirena, muito compridos, de uma força terrível, ouvia-se na cidade toda e para
os lados do porto o céu ficava negro. Então os rebocadores aproximavam-se
do barco e puxavam-no para o meio do rio. Depois, os rebocadores soltavam
as amarras e voltavam para o porto. Então o barco dizia adeus ainda mais
uma vez, lançava de novo os seus mugidos terríveis e tão misteriosamente
tristes que faziam as pessoas chorar, não só as da viagem, as que se
separavam, mas também as que tinham vindo ver, e as que estavam ali sem
uma razão precisa, que não tinham ninguém em quem pensar. O barco
depois, muito lentamente, com as suas próprias forças, embrenhava-se no rio.
Via-se durante muito tempo a sua forma alta avançar para o mar. Muita gente
ficava ali a olhá-lo, a acenar cada vez mais lentamente, cada vez mais
desencorajadamente, com as suas écharpes, os seus lenços. E depois, por fim,
a terra levava a forma do barco na sua curvatura. Em tempo claro, víamo-lo
afundar-se lentamente.

Ela, também, fora quando o barco lançara o seu primeiro adeus, quando
tinham recolhido a passadeira e os rebocadores começado a puxá-lo, a afastá-
lo da terra, que tinha chorado. Tinha-o feito sem mostrar as suas lágrimas,
porque ele era chinês e não se devia chorar esse género de amantes. Sem
mostrar à mãe e ao irmãozinho que sofria, sem mostrar nada, como era
habitual entre eles. O grande automóvel dele estava lá, comprido e negro, no
banco da frente o motorista fardado de branco. Estava um pouco afastado do
parque para automóveis da Companhia Marítima, isolado. Ela tinha-o
reconhecido por esses sinais. Era ele na parte de trás, essa forma quase
invisível, que não fazia qualquer movimento, abatido. Ela estava encostada à
amurada como da primeira vez na barcaça. Sabia que ele olhava para ela. Ela
também o olhava, já não o via mas ainda olhava para a forma do automóvel
preto. E depois, por fim, tinha deixado de o ver. O porto apagara-se, e depois
a terra.

Havia o mar da China, o mar Vermelho, o oceano Índico, o canal do Suez,


de manhã acordávamos e já estava, sabíamo-lo pela ausência de trepidações,
avançávamos pelas areias. Mas antes do mais havia aquele oceano. Era o
mais longínquo, o mais vasto, chegava ao polo Sul, o mais comprido entre
escalas, entre Ceilão e a Somália. Às vezes estava tão calmo e o tempo tão
puro, tão suave, que, quando o atravessávamos, parecia como que uma outra
viagem que não esta através do mar. Então o barco todo se abria, os salões, as
coxias, as vigias. Os passageiros evitavam as cabinas tórridas e dormiam ali
mesmo no convés.

No decorrer de uma viagem, durante a travessia desse oceano, alguém


morrera. Ela já não sabia muito bem se foi no decorrer dessa viagem ou
doutra viagem que aconteceu. Havia gente que jogava às cartas no bar da
primeira classe, entre os jogadores havia um jovem e, num dado momento,
esse jovem, sem uma palavra, tinha pousado as cartas, saíra do bar,
atravessara o convés a correr e atirara-se ao mar. O tempo de parar o barco
que ia com muita velocidade e o corpo tinha-se perdido.
Não, ao escrever isto, ela não vê o barco mas um outro lugar, o lugar em
que ouviu contar a história. Era Sadec. Era o filho do administrador de Sadec.
Ela conhecia-o, ele também andava no liceu de Saigão. Ela lembra-se dele,
muito alto, o rosto muito meigo, moreno, óculos de tartaruga. Não se tinha
encontrado nada na cabina, nenhuma carta. A idade ficou na memória,
aterrorizante, a mesma, dezassete anos. O barco voltara a pôr-se em
movimento ao alvorecer. O mais terrível era isso. O nascer do Sol, o mar
vazio, e a decisão de abandonar as buscas. A separação.
E outra vez, ainda no decorrer dessa mesma viagem, durante a travessia
desse mesmo oceano, a noite já começara também, aconteceu no grande salão
do convés principal a irrupção duma valsa de Chopin que ela conhecia de
modo secreto e íntimo porque tentara aprendê-la durante meses e nunca tinha
conseguido tocá-la corretamente, nunca, o que fizera com que depois a mãe
consentisse em deixá-la abandonar o piano. Essa noite, perdida entre noites e
noites, disso tinha ela a certeza, a rapariguinha tinha-a passado justamente
naquele barco e estava lá quando aquilo aconteceu, essa irrupção da música
de Chopin debaixo do céu iluminado de brilhos. Não havia uma aragem e a
música espalhara-se por todo o navio negro, como uma imposição do céu de
que não se sabia a que propósito vinha, como uma ordem de Deus de que se
ignorava o teor. E a rapariga endireitara-se como que para ir por sua vez
matar-se, atirar-se por sua vez ao mar e depois chorara porque pensara
naquele homem de Cholen e de súbito não tivera a certeza de não o ter amado
com um amor que não vira porque se perdera na história como a água na
areia e só agora o reencontrava nesse instante da música lançada através do
mar.
Como mais tarde a eternidade do irmãozinho através da morte.

À sua volta as pessoas dormiam, cobertas pela música mas não acordadas
por ela, tranquilas. A rapariga pensava que acabava de ver a noite mais calma
que alguma vez existira no oceano Índico. Julga que foi nessa noite também
que viu chegar ao convés o seu irmãozinho com uma mulher. Ele tinha-se
encostado à amurada, ela tinha-o enlaçado e tinham-se beijado. A rapariga
escondera-se para ver melhor. Reconhecera a mulher. Ela e o irmãozinho
estavam já sempre juntos. Era uma mulher casada. Tratava-se dum casal
morto. O marido parecia não se aperceber de nada. Durante os últimos dias
da viagem o irmãozinho e essa mulher ficavam o dia todo no camarote, só
saíam à noite. Nesses mesmos dias o irmãozinho olhava a mãe, e a irmã sem
as reconhecer, dir-se-ia. A mãe tomara-se irritável, silenciosa, ciumenta. Ela,
a menina, chorava. Estava feliz, achava ela, e ao mesmo tempo tinha medo do
que aconteceria mais tarde ao irmãozinho. Acreditava que ele as abandonaria,
que se iria embora com essa mulher, mas não, tinha-se-lhes juntado à
chegada a França.

Ela não sabe quanto tempo depois da partida da rapariga branca ele
executou a ordem do pai, quando fez aquele casamento com a rapariga
designada pelas famílias há dez anos, também ela coberta de ouro, de
diamantes, de jade. Uma Chinesa, também ela oriunda do Norte, da cidade de
Fu-Chuen, que veio acompanhada pela família.

Deve ter ficado muito tempo sem poder estar com ela, sem conseguir dar-
lhe o herdeiro das fortunas. A recordação da menina branca devia estar ali,
deitada, o corpo, ali, atravessado na cama. Ela deve ter permanecido por
muito tempo a rainha do seu desejo, a referência pessoal à emoção, à
imensidão da ternura, à sombria e terrível profundidade carnal. Depois
chegou o dia em que isso deve ter sido possível. Justamente aquele em que o
desejo da pequena branca devia ser tal, insustentável a um ponto tal que ele
poderia ter reencontrado a sua imagem completa como numa febre grande e
forte e penetrar a outra mulher com esse desejo dela, da menina branca. Deve
ter-se reencontrado pela mentira, dentro dessa mulher, e pela mentira, fazia o
que as famílias, o Céu, os antepassados do Norte esperavam dele, a saber, o
herdeiro do nome.

Talvez ela soubesse da existência da rapariga branca. Tinha criadas nativas


de Sadec que conheciam a história e que deviam ter falado. Ela não devia
ignorar o seu desgosto. Deveriam ser da mesma idade, dezasseis anos. Será
que nessa noite viu o seu esposo chorar? E, vendo-o, tê-lo-ia consolado?
Podia uma menina de dezasseis anos, uma noiva chinesa dos anos trinta, sem
cometer uma inconveniência, consolar aquele género de tristeza adúltera de
que ela era a vítima? Quem sabe? Talvez se enganasse, talvez ela tivesse
chorado com ele, sem uma palavra, o resto da noite. E depois teria vindo o
amor, depois das lágrimas.
Ela, a rapariga branca, nunca soube nada desses acontecimentos.

Anos depois da guerra, depois dos casamentos, dos filhos, dos divórcios,
dos livros, ele veio a Paris com a mulher. Telefonara-lhe. Sou eu. Ela
reconhecera-o logo pela voz. Ele dissera: queria só ouvir a sua voz. Ela
dissera: sou eu, bom dia. Ele estava intimidado, tinha medo como dantes. A
sua voz tremia de repente. E com o tremor, de repente, ela voltara a encontrar
a pronúncia da China. Ele sabia que ela tinha começado a escrever livros,
soubera-o pela mãe dela que voltara a ver em Saigão. E depois dissera-lho.
Dissera-lhe que era como dantes, que ainda a amava, que nunca poderia
deixar de a amar, que a amaria até à morte.
Neauphle-le-Château – Paris
fevereiro-março de 1984.

1 Mallarméen, no original.

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