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Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7983-525-4
Editora Unesp
Praça da Sé, 108
01001-900 – São Paulo - SP
www.editoraunesp.com.br
feu@editora.unesp.br
Sumário
Apresentação..................................................................................................................... 7
CAPÍTULO 1
As contribuições da epistemologia e psicologia genéticas de Piaget
ao ensino de ciências....................................................................................................... 11
Marcelo Carbone Carneiro
CAPÍTULO 2
Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
contexto da História da Ciência e da educação................................................................ 37
Vera de Mattos Machado
CAPÍTULO 3
Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia............... 59
Danilo Rothberg, Andrea Berardi e Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa
CAPÍTULO 4
Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem
significativa de conceitos de eletrostática a partir de textos históricos e
experimentos em aulas de física no ensino médio........................................................... 81
Antonio Albérico Oliveira de Andrade, Sergio Luiz Bragatto Boss,
Moacir Pereira de Souza Filho e João José Caluzi
CAPÍTULO 5
Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica no
ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som.................................... 107
Shirley Takeco Gobara, Nádia Cristina Guimarães Errobidart e
Renato da Fonseca Lima
CAPÍTULO 6
A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma
tradução comentada de dois comunicados feitos por François Arago à
Academia de Ciências de Paris...................................................................................... 129
Moacir Pereira de Souza Filho, João José Caluzi e Sérgio Luiz Bragatto Boss
CAPÍTULO 7
Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia.................147
Thais Benetti de Oliveira e Ana Maria de Andrade Caldeira
CAPÍTULO 8
A teoria da seleção de parentesco e os valores cognitivos: o juízo científico de
uma teoria biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey...........................................167
Daniele Cristina de Souza e Antonio Fernandes Nascimento Júnior
CAPÍTULO 9
A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências........179
Osleane Patrícia Gonçalves Pereira Sobrinho e Ângela Maria Zanon
CAPÍTULO 10
Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições
para o ensino de ciências............................................................................................... 195
Carlos Roberto Senise Júnior e José Bento Suart Júnior
CAPÍTULO 11
A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências............................. 221
Carlos Alberto Rufatto e Marcelo Carbone Carneiro
CAPÍTULO 12
A crítica do conceito de verdade em Karl Popper.......................................................... 255
Carlos Alberto Rufatto e Marcelo Carbone Carneiro
APRESENTAÇÃO
essa subárea mais capaz, na atualidade, para trazer respostas consistentes a ques-
tões centrais do conhecimento.
No percurso aqui oferecido, os autores empreendem arranjos originais como
contribuição ao aperfeiçoamento do Ensino de Ciências.
Marcelo Carbone Carneiro, docente do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação para a Ciência da Unesp (Universidade Estadual Paulista), analisa possíveis
contribuições ao Ensino de Ciências da epistemologia e psicologia genéticas de
Piaget, e ainda permite reflexões e referenciais importantes para a área.
Aspectos da inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro
são caracterizados por Vera de Mattos Machado, docente do Programa de Pós-
-Graduação em Ensino de Ciências da UFMS (Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul).
Perspectivas de pesquisa teórica e empírica para a Semana Nacional de Ci-
ência e Tecnologia são apontadas por Danilo Rothberg, docente do Programa de
Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp, Andrea Berardi, docente da
Open University (Reino Unido), e Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa, mestran-
do do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp.
Antonio Albérico Oliveira de Andrade, licenciando em Física na UFRB (Uni-
versidade Federal do Recôncavo da Bahia), Sergio Luiz Bragatto Boss, docente da
UFRB, Moacir Pereira de Souza Filho, docente do Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Física da Unesp, e João José Caluzi, docente do Programa de Pós-
-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp, elucidam o valor de textos his-
tóricos e experimentos em aulas de Física no Ensino Médio para a aprendizagem
de conceitos de eletrostática.
Shirley Takeco Gobara e Nádia Cristina Guimarães Errobidart, docentes do
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da UFMS, e Renato da Fon-
seca Lima, professor da Aliança Francesa em Campo Grande (MS), apresentam
a tradução de texto de relevância historiográfica e o situam como recurso para a
contextualização histórica no ensino.
Textos históricos essenciais que retratam o processo de descoberta da indução
de correntes elétricas em metais são revisitados por Moacir Pereira de Souza Filho,
docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física da Unesp, João José
Caluzi, docente do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da
Unesp, e Sergio Luiz Bragatto Boss, docente da UFRB.
Thais Benetti de Oliveira, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação para a Ciência da Unesp, e Ana Maria de Andrade Caldeira, docente do
Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp, analisam a
Apresentação | 9
Os organizadores
Março de 2014
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
11
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências
CAPÍTULO 1
Introdução
Jean Piaget (1896-1980) pode ser considerado um dos mais importantes au-
tores do século XX, sobretudo no que se refere ao impacto de suas pesquisas na
Educação e na Psicologia. É considerado interacionista, pois define o desenvol-
vimento humano como processo e resultado de interações entre sujeito e meio e,
dessa forma, o desenvolvimento humano não ocorre somente por meio de traços
hereditários, inatos, e nem devido exclusivamente às pressões do meio físico e so-
cial, mas em uma interação entre estes fatores.
Piaget possui uma vasta publicação de livros e artigos2 que tratam de inúmeras
questões que interessam em geral à educação, sendo sua preocupação central com-
preender como o conhecimento é produzido pela mente humana. Por essa razão,
procurou ao longo de sua obra fundamentar a discussão sobre o desenvolvimento
dos conhecimentos no sujeito e na história. Piaget construiu uma Epistemologia3
ção criativa e intensa, na medida em que descreve e explica os vários conceitos que
caracterizam o conhecimento humano desde sua gênese (em um processo de inven-
ção e criação contínuas de novidades) e sua estruturação operatória. Sua obra trata
de uma extensa variedade de temas. Entre eles, destacamos: a linguagem, o espaço,
o tempo, o objeto, a causalidade, a velocidade, a Matemática, a Biologia, a Física, a
noção de substância, a inteligência, a moralidade, a imagem, o sonho e o símbolo
mental, entre outras, explicando o domínio do conhecimento e suas estruturas de
percepção, vivência, pensamento, representação, simbolismo e operação.
No entanto, destacamos que Piaget jamais propôs a aplicação de sua teoria à
educação (domínio escolar). Dessa forma, a passagem da teoria à prática acaba por
implicar em interpretações, apropriações e distorções inevitáveis. Por esta e outras
razões, sua teoria não poderia e nem deseja responder todas as questões educa-
cionais e apresenta-se, assim, como uma valiosa leitura suscetível de assimilações
variadas. O que propomos neste texto é que devemos pensar com ele e não como
ele, pois a obra de Piaget é uma construção monumental, impressionante e aberta.
Vale lembrar, também, que há um elemento complicador nem sempre levado em
consideração: a tendência de fazer referências a uma parte da obra e não ao todo,
em função da complexidade, dificuldade e intensa produção do autor. A dinâmica
da teoria de Piaget possibilitou que fossem explicitados conceitos, reelaboradas as
teses em um processo de construção contínua de novidades que a caracteriza. No
Brasil e em algumas teorias que utilizam Piaget, muitos se aferram a um pequeno
período da sua produção ou somente aos estádios de desenvolvimento para falar
da sua obra. É uma forma de ler que apresenta problemas e pode levar a interpreta-
ções parciais e equivocadas (na teoria dinâmica e complexa de Piaget).
Neste capítulo propomos retomar a teoria elaborada por Piaget e analisar as
possíveis e variadas contribuições à Educação e ao Ensino de Ciências Naturais4
que esta obra pode oferecer e, além disso, argumentar que esta construção teórica
ainda coloca importantes reflexões para o debate acadêmico no Brasil.
O estudo das possíveis implicações da teoria de Piaget ao Ensino de Ciências
abre possibilidades que acreditamos merecerem uma investigação mais detalhada,
constituindo, portanto, o objetivo fundamental da reflexão proposta.
Portanto, pretendemos explicitar as várias contribuições que a teoria de Piaget
possibilita ao Ensino de Ciências Naturais (nos vários pontos propostos a seguir)
4 Entendemos como Ciências Naturais a Física, a Biologia e a Química (entre outras que
estão nesta interface, mas sobretudo não trataremos do conhecimento próprio da Mate-
mática – o que pede outra reflexão).
14 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Piaget discute intensamente, ao longo da sua longa obra, a formação das no-
ções científicas (número, espaço, tempo, velocidade, causalidade etc). Conceitos
que são objeto de estudos desde a década de 1930, mas que a partir da década de
1950 articulam-se ao objetivo daquele período, que é a construção de uma Epis-
temologia Genética. Em seguida, seus estudos centraram-se nos mecanismos for-
madores do conhecimento (abstração reflexionante, empírica etc), que interessam
àqueles preocupados em discutir os mecanismos de criação contínua de novidades
e as formas que possibilitam progressivamente o conhecimento mais estrutura-
do das coisas (PIAGET, 1995). Na “Introdução à Epistemologia Genética”, Piaget
assinala a importância das discussões epistemológicas para a análise do desen-
volvimento dos conhecimentos científicos do ponto de vista histórico e de outra
parte para a compreensão dos mecanismos do conhecimento sob a perspectiva do
desenvolvimento.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
15
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências
Sem dúvida, a teoria de Piaget representou uma novidade, pois procurou dis-
cutir os mecanismos do desenvolvimento do pensamento através da construção
das noções, da lógica, da Física, das Matemáticas etc. Veja só o que faz Piaget (e
não é pouco!): pesquisa as muitas noções científicas do ponto de vista da elabo-
ração cognitiva no sujeito (em intensa relação com o social) e na ciência daquele
momento histórico e procura estabelecer correlações e implicações. É evidente que
ao considerar o conhecimento como construção contínua de novidades abre a pos-
sibilidade para as transformações que, certamente, ocorrerão com as ciências e o
homem e as reinterpretações que deverão ocorrer deste devir e da história (como
tão bem assinalam Piaget e Garcia no livro “Psicogênese e História da Ciência”).
Portanto, esta teoria contribui significativamente não para responder em defini-
tivo o que são os conceitos, mas para problematizá-los e investigá-los de forma
epistemológica, cognitiva e científica. Por exemplo, há muito que aprender sobre o
que é o tempo lendo as obras “Introdução à Epistemologia Genética: o pensamento
físico”, “Psicogênese e História da Ciência”, “A Construção do Real na Criança”, “O
Desenvolvimento da Noção de Tempo na Criança” e “A Epistemologia do Tempo”.
Aprende-se que o tempo na história da ciência significou construções teóricas bem
formuladas e articuladas, tais como as de Aristóteles, Newton e Einstein (entre
outras explicações que são retomadas, tematizadas e discutidas por Piaget). É pos-
sível, também, acompanhar a interpretação de Piaget sobre o desenvolvimento da
cognição humana na construção de ferramentas indispensáveis para construção
do real ou dos objetos (ou do universo perceptivo humano), tal como a organiza-
ção espaço-temporal. A nossa cognição está e é construída no tempo. O tempo, no
entanto, não é um dado a priori, mas construído na relação com o mundo vivido.
Será que contribuiria para a formação dos professores de Ensino de Ciências se
dominasse a discussão histórica e epistemológica sobre os conceitos científicos?
Penso que sim! E mais: que merece pesquisa e estudo sobre o desenvolvimento dos
conceitos na História da Ciência.
Portanto, a primeira contribuição que propomos é que a intensa produção de
Piaget, que ultrapassa a psicologia, centra-se nas questões epistemológicas clássi-
cas como a discussão sobre os conceitos científicos, as teorias, o conhecimento e a
ciência. O Ensino de Ciências não deve desconsiderar esta discussão. Há muito que
aprender e problematizar a partir da obra de Piaget sobre os conceitos na história
da ciência e no desenvolvimento do sujeito.
16 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
É bem mais fácil falar durante aulas inteiras sobre um assunto teó-
rico e artificial do que fazer penetrar no próprio espírito do ensino
uma única idéia elementar, quando essa idéia vincula-se a uma
atitude profunda e essencial ao espírito. (PIAGET, 1995, p. 85)
7 No caso brasileiro um elemento estrutural que deve ser levado em conta nas discussões
educacionais é a desigualdade social e as condições de produção do conhecimento na
escola. Pensamos que a escola que não possibilita o acesso ao conhecimento colabora
para a manutenção das desigualdades e injustiças sociais.
18 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Durante muito tempo a escola teve por única tarefa transmitir à criança os
conhecimentos adquiridos pelas gerações precedentes e exercitá-las nos conteúdos
dos adultos. Povoar a memória e treinar o aluno na ginástica intelectual pareciam,
pois, ser as únicas coisas necessárias, uma vez que se concebia a estrutura mental
da criança como idêntica à do homem feito e que, portanto, parecia inútil formar
um pensamento já plenamente constituído que apenas exigia ser exercitado. Nessa
concepção, a escola por certo supõe uma relação social indispensável, mas apenas
o professor e os alunos: sendo o professor detentor dos conhecimentos exatos e o
perito nas técnicas a serem adquiridas, o ideal é a submissão do aluno à sua autori-
dade, e todo contato intelectual dos alunos entre si nada mais é que perda de tempo
e risco de deformações ou de erros (PIAGET, 1995, p. 138).
O Ensino de Ciências centrado na transmissão autoritária de conteúdos (for-
malizações matemáticas e fórmulas prontas) não deveria ser mais aceitável. Quan-
tos de nós possuem na sua lembrança as aulas de Física ou de Química em que me-
morizávamos a fórmula, buscávamos no enunciado reconhecer as formalizações
e chegávamos as respostas sem nada compreender das questões científicas impli-
cadas e dos conceitos desenvolvidos? Pensamos que uma das principais tarefas da
educação em ciências parece ser cada vez mais a de formar o pensamento e não a
de povoar a memória de conteúdos que um dia faça sentido para o aluno. Não se
trata de abandonar a memória, mas não reduzir todo o conhecimento na escola ao
ato de memorizar sem nada compreender.
Na escola, assim como na vida em geral, aprende-se na relação com os outros,
mas, como todo bem moral, só é conquistada pelo esforço livre, e o esforço livre
na criança tem por condição natural a colaboração e a ajuda recíproca (PIAGET,
1995, p. 140). Diz Piaget:
supõe, portanto, a liberdade e não o trabalho sob coerção e repetição verbal (PIA-
GET, 1995, p. 154).
Portanto, a partir dos estudos de Epistemologia e Psicologia Genéticas enten-
demos o sujeito como ativo na elaboração dos conhecimentos científicos, o que
pede ao educador uma postura e um método que considerem a atividade livre,
criativa e transformadora do sujeito. Essa concepção considera que o conhecimen-
to adquirido é reinventado ativamente pelo aluno e não simplesmente transmitido.
O problema não está na transmissão em si, mas na transmissão que desconsidera
o aluno como ativo no processo de construção, assimilação e reinvenção do co-
nhecimento. Neste método, é evidente que o educador continua indispensável e
possui conteúdos fundamentais para a educação, mas deve organizá-los com con-
tra-exemplos que levem à reflexão e não à mera aquisição automática, dogmática
e acrítica dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. Esta
proposta educacional considera que o professor deixe de ser apenas um conferen-
cista e que estimule a pesquisa, a curiosidade e o esforço, ao invés de se contentar
com soluções prontas (deve ensinar conteúdos, mas que sejam assimilados ativa-
mente pelos alunos 8).
Esta teoria permite qualificar um Ensino de Ciências em que os alunos são
colocados em situações de aprendizagem escolar9 nas quais possam experimentar,
façam leituras e discutam assuntos de interesse e não ajam simplesmente por en-
comenda e sem interesse. Esta perspectiva em educação, que encontra nos textos
de Piaget um referencial importante, caracteriza-se como a defesa da liberdade e
do espírito democrático – sem desconsiderar o conteúdo, como foi muitas vezes
equivocadamente associada.
8 Obviamente, há conteúdos que pedem memorização para compreensão, o que não inva-
lida a tese geral proposta da atividade do sujeito.
9 Há variáveis no complexo processo ensino-aprendizagem que devem ser consideradas:
contexto social, interesse, alunos desmotivados, atitude do professor, conteúdo a ser en-
sinado, material didático disponível etc.
20 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
10 Livros que - em função de sua morte - Vigotski não leu (portanto, a crítica radical de
Vigotski a Piaget é a crítica parcial deste autor).
11 O estudo das teorias da causalidade reuniu epistemólogos como Kuhn, Bunge, Rosen-
feld, Halbawachs e Garcia.
12 Sobre esta questão, ver o texto “A função do dogma na ciência”, de Thomas Kuhn.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
21
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências
ra das experiências nos alunos (PIAGET, 1998, p. 179). Nesta segunda hipótese o
professor terá uma postura que considera o aluno e o processo de construção do
conhecimento, provocando e instigando a curiosidade e a busca do entendimento
da experiência. Neste sentido, os dispositivos experimentais não levam indutiva-
mente ao conhecimento. Ao contrário: é levantando problemas, procurando hi-
póteses, investigando atentamente e de forma intensa e curiosa e interagindo com
as respostas dos outros (há uma imperativa necessidade da interação social), que
somos levados à interminável busca do conhecimento.
Piaget discute, também, um aspecto central, mas que se restringe essencial-
mente aos níveis secundários e universitários, o aspecto cada vez mais interdisci-
plinar que assume necessariamente a pesquisa em todos os domínios. Piaget é um
dos primeiros que coloca como indispensável para a formação dos professores e
dos alunos a História e Filosofias das Ciências (especialmente nos textos “Sobre a
Pedagogia” e “Psicogênese e História da Ciência”). O Ensino de Ciências Naturais
forma mal seus alunos quando é fragmentado e não fornece a possibilidade da for-
mação de conteúdos sólidos na ciência e reflexões epistemológicas sobre a ciência
do seu tempo e da história que a constituiu.
14 Além das condutas próprias desse estágio de desenvolvimento, marcadas pela constru-
ção da função semiótica ou simbólica.
15 Piaget é um crítico do empirismo, que entende o conhecimento como cópia das impres-
sões. O conhecimento é assimilação. Com relação à crítica de Bergson à inteligência,
dizendo que esta opera de forma cinematográfica, ele estaria correto no que se refere à
imagem, desconsiderando totalmente a operação e o processo de criação de novidades
próprias da inteligência humana.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
25
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências
Referências Bibliográficas
AGUIAR JR., O. O papel do Construtivismo na Pesquisa em Ensino de Ciências.
Investigações em Ensino de Ciências, v. 3, n. 2, p. 107-120, 1998.
FERREIRO, E. Vigência de Jean Piaget. Siglo xxi editores: Buenos Aires, 1999.
PIAGET, J. La régle morale chez l’enfant. IN: Zweiter Sommerkurs fur Psychologie
in Luzern, 30. Jul ibis 3. August,1928. Ed. Stiftung Lucerna, 1928. P. 32-45.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
31
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências
PIAGET, J. Les réalités morales dans la vie des enfants. IN: La nouvelle
éducation. 1931, no. 10, p. 3-7.
PIAGET, J. The idea of immanent justice. IN: Readings in child psychology – ed.
By Wayne Dennis. New York: Prentice-Hall, cop. 1951. P. 312-314.
PIAGET, J. Piaget takes a teacher’s look. IN: Learning: the magazine for creative
teaching. October 1973, p. 22-27.
PIAGET, J. Para Onde Vai a Educação? Rio de Janeiro: José Olympo editora.1976.
Bibliografia Complementar:
HAWKING, S. O Universo Numa Casca de Noz. São Paulo: Mandarin Ed., 2001.
HAWKING, S. Uma Breve História do Tempo. Rio de Janeiro: Ed. Rocco. 1988.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1987, (Os Pensadores).
ZENÃO. Fragmentos sobre Zenão São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Os
Pensadores).
CAPÍTULO 2
Introdução
mostrar como os saberes e as atividades dessa área foram aos poucos se inserindo
na rotina escolar, desde a época da colônia até os dias de hoje.
Conforme estudos históricos de Alfonso-Goldfarb (1994, p.8), “a História da
Ciência, que se desenvolveu no interior da Ciência, sempre esteve mais próxima da
Filosofia (Lógica, Epistemologia, Filosofia da Linguagem), do que da História”. E
sem utilizar os métodos e procedimentos da História, permaneceu por muito tempo.
É compreensível, então, que não basta, apenas, juntar as palavras História e
Ciência, para se compreender o significado e o movimento desse campo de co-
nhecimento, conforme se pensava até o século passado (século XX). Foi preciso a
História da Ciência transformar sua concepção (o que ocorreu aos poucos e lenta-
mente), trazendo para si elementos da História em consonância com subsídios da
Sociologia, da Antropologia e das Ciências Humanas (ALFONSO-GOLDFARB,
1994), abrindo espaço, desse modo, às contribuições de outras sociedades e cultu-
ras, e não somente à ocidental. O movimento real da História da Ciência é múlti-
plo, entrelaçado e conectado.
Por isso, em se tratando de abordagens históricas sobre a Ciência, há que se ter
outra percepção dessa relação, diferentemente da percepção de séculos passados
(linear e positivista), em que os fatos notáveis eram escolhidos, descritos e registra-
dos com base no pensamento de filósofos e/ou historiadores das Ciências que per-
tenciam, em grande parte, a uma sociedade específica (ocidental), e que possuíam
interesses pessoais e/ou coletivos (econômicos, políticos, religiosos, entre outros)
no desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia da forma que lhes convinha.
É pertinente observar que a realidade da sociedade ocidental europeia, no sé-
culo XVII, era de profunda transformação quanto aos modos de produção. Ela
passou do sistema feudalista para o sistema capitalista, uma exigência do desen-
volvimento comercial da época, que culminou em grandes avanços das pesquisas
científicas. O resultado dessas transformações foi um amplo desenvolvimento tec-
nológico, que alterou os rumos da história da sociedade humana (PONCE, 1995;
GASPARIM, 1994; CAMBI, 1999).
Gasparin (1994) revela que o novo modo de produção influenciou de tal modo
a sociedade da época, que deslocou o centro de explicações das ações do homem,
de Deus para o próprio homem, gerando o antropocentrismo, pensamento em que
o homem se colocava como centro da criação.
É importante ressaltar que as reflexões aqui contidas partem da premissa de
que a História da Ciência constituiu-se de uma cadeia de acontecimentos entrela-
çados, com diferentes formas de determinação da sociedade, dependendo do viver
de cada cultura e de cada época (LÉVI-STRAUSS, 1976; ALFONSO-GOLDFARB,
1994), com continuidades e descontinuidades, as quais permitiram que ocorres-
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
39
contexto da História da Ciência e da educação
Conforme a citação acima, chama atenção a questão dos ‘pontos sobre gêneros
e espécies’ que poderiam ser ensinados, segundo o Ratium Studiorum. Durante o
período colonial, do século XVI ao XVIII, chamava muita a atenção de naturalis-
tas da corte, de vários países além de Portugal (França, Inglaterra e Espanha, entre
outros), a variedade de espécies animais e vegetais que o Brasil possuía. A curio-
sidade por conhecê-los fez com que várias expedições trouxessem ao país natura-
listas e cronistas2 , ao longo dos séculos citados (LEITÃO, 1937; PRESTES, 2000).
Inicialmente, no século XVI, os cronistas eram mais requisitados pela corte
para vir ao Brasil, para desenhar e descrever suas observações sobre a flora e a
fauna local, levando-as de volta à corte para catalogação e exposição. Na realidade,
o grande interesse sobre a fauna e flora do Brasil residia em saber o que poderia ser
aproveitado em termos econômicos para a corte.
Posteriormente, a partir de meados do século XVII, vários naturalistas vieram
pessoalmente, já com o interessse científico mais aflorado. Entre os naturalistas
famosos que aportaram no Brasil colônia, podemos citar, de acordo com as pes-
quisas de Leitão (1937) e de Prestes (2000): Henry Bates, Charles Darwin, Alfred
Wallace, Jean Louis Rodolphe Agassiz e Carl Philippe Von Martius, entre outros.
Não podemos nos furtar de citar dois importantes naturalistas brasileiros que, de
acordo com Prestes (2000), muito contribuíram com descobertas e catalogações
de espécies animais e vegetais brasileira: Alexandre Rodrigues Ferreira e Manoel
Arruda Câmara.
Com certeza, essas pesquisas dos naturalistas em terras brasileiras não colo-
caram em risco a proposta educacional da Companhia de Jesus, que mesmo após
mais de 200 anos, já no limiar do século XVIII para o XIX, nunca escondeu sua
intenção de defender os interesses da Igreja e da Corte Portuguesa, em detrimento
da ascensão da burguesia local, que ansiava por uma Educação mais moderna e
que atendesse aos seus interesses comerciais e econômicos (VEIGA, 1989; ROMA-
NELLI, 1997).
Traçando um panorama da Europa, com o Brasil, no mesmo período, veri-
ficamos o fortalecimento da Escola Moderna. Esse fato se deu pela ascensão da
burguesia e pelas transformações sociais ocorridas. Na Europa, modificaram-se
os modos de produção (século XVII) com o estabelecimento das relações de pro-
dução capitalista, conforme vimos anteriormente, que se alicerçou nas propostas
educacionais da Reforma Protestante, que tinha em sua essência um caráter uni-
versal e moderno, que se contrapôs com a proposta de ensino da Igreja Católica.
De acordo com Azevedo (1996), na Europa, somente Espanha e Portugal resisti-
ram às mudanças propostas pela escola moderna, permanecendo fiéis às doutrinas
católicas, puramente espirituais.
Ganha força, então, na maior parte do continente europeu, a proposta educa-
cional de Comenius, que também era religioso, mas que refletindo as necessidades
e o movimento histórico de sua época (modos de produção capitalista) aparece
com a proposta pedagógica de ‘ensinar tudo a todos, totalmente’, objetivo princi-
pal da sua Didática Magna (COMENIUS, 2001). Para Comenius, a educação era
o instrumento apropriado para realizar as reformas sociais necessárias que o mo-
mento turbulento e conflituoso exigia.
A Didática Magna foi considerada o limite da passagem da escola antiga para a
escola moderna, “como contribuição e como resposta à necessidade de construção
dessa nova sociedade” (GASPARIN, 1994, p. 56). Se diferenciava do Ratium Stu-
diorum, dos jesuítas, na tentativa de democratização da Educação, uma vez que, na
época, o ensino era privilégio de poucos na Europa.
Mesmo contrário ao sistema educacional da Igreja Católica, Comenius nunca
abandonou suas bases religiosas, pois em todas as suas iniciativas sempre deixou
transparecer um profundo e forte sentimento religioso. Podemos verificar isso
em uma passagem de sua Didática Magna, que enfoca o Ensino Científico, quase
sempre considerado pela Igreja Católica como blasfemo, pois se contrapunha ao
caráter dogmático das explicações religiosas sobre as Ciências, no Capítulo XX -
“Método para Ensinar as Ciências em Geral”:
Todavia, o ensino sofreu uma reforma muito superficial, tanto que a pedago-
gia jesuítica ainda perdurou por algum tempo nas escolas brasileiras, apesar do
esforço de se imprimir um caráter moderno. Jovens pertencentes à aristocracia
brasileira, que estudaram nas escolas europeias, principalmente na Universida-
de de Coimbra, trouxeram ideias liberais, anticlericais e democráticas junto aos
conhecimentos de várias áreas, incluindo as Ciências Físicas e Naturais (PONCE,
1995).
Com a vinda de D. João VI para o Brasil, em 1808, uma nova organização do
sistema de ensino se concretizou, de forma que suprisse as necessidades da Corte
Portuguesa, que ali se estabeleceu. Para tanto, carecia de um Estado forte para se
manter. Havia a necessidade de qualificação de profissionais aptos à nova buro-
cracia, ou seja, de profissionais para atuar no campo do comércio e da indústria.
Segundo Noronha (1998, p. 44), “o novo modelo de ensino, burguês, incluía
a adoção de disciplinas técnicas, tais como estatística, hidrostática, hidráulica, ar-
quitetura civil e militar”, conhecimentos considerados importantes para as novas
linhas de produção a serem implantadas na colônia.
Essa estrutura de ensino favorecia mais o acesso da classe dominante, cuja
demanda de atendimento era para o ensino superior, pois o ensino secundário
funcionava muito precariamente dentro de uma perspectiva estreita de Ciência,
deixando para segundo plano a elevação social e cultural do povo. A formação
profissional dava-se quase que exclusivamente no nível superior, e dentro da visão
humanista-literária, pois as pesquisas científicas estavam restritas a ações indivi-
duais, conforme expõe Holanda (1985, p. 375):
O Brasil em 1822 torna-se Império, e vários debates acerca das futuras diretri-
zes do ensino são promovidos, [...] “quanto ao currículo nas escolas secundárias; a
ampliação das escolas elementares; a liberdade de ensino e pesquisa no ensino su-
perior e a implantação de escolas livres ou particulares” (NORONHA, 1998, p. 49).
Importantes passos foram dados nesse sentido, uma vez que o sistema educacional
do Brasil estava paralisado havia algum tempo.
Nesse contexto começaram as discussões sobre Educação nas Constituintes
Brasileiras (em 1823). Surgiram propostas educacionais que foram sendo imple-
mentadas com o passar do tempo, conforme nos mostra Noronha (1998):
3 A opção pelo recorte deve-se ao fato da amplitude das informações contidas sobre a
inserção no currículo escolar das áreas que compõem as Ciências da Natureza: Biologia,
Física e Química, e pelo interesse pessoal sobre as Ciências Biológicas.
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
47
contexto da História da Ciência e da educação
Como destacado por Vechia e Lorens (1998), dos programas citados na pesqui-
sa, “quinze deles foram elaborados para o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Os
outros três foram expedidos pelo Ministério da Educação para serem implementa-
dos em nível nacional”. De acordo com os autores, os programas elaborados para
o Colégio Pedro II funcionavam como “modelo secundário oficial” brasileiro, e
serviam de modelo para outras instituições de ensino secundário. Aquelas insti-
tuições, públicas ou privadas, que quisessem ter os privilégios do Colégio Pedro
II deveriam se submeter ao mesmo programa e a fiscalizações do poder central da
Educação.
Nesse sentido, foi elaborada uma Tabela contendo a seguinte organização cur-
ricular para o Ensino de Ciências Biológicas, no período de 1850 a 1951: ano em
que entraram em vigor as reformas; nível de ensino em que foram colocadas as
disciplinas; nome da disciplina.
Ano do
Nível de ensino Nome da disciplina
programa
-Septimo anno -Zoologia Philosophica
1850
-Quinto anno -Zoologia e Botânica
-Segundo anno -Zoologia e Botanica
1856 -Terceiro anno -Sciencias Naturaes
-Quarto anno -Sciencias Naturaes
-Quarto anno -Zoologia e Botanica
1858
-Quinto anno -Zoologia e Botanica
-Historia Natural: Zoologia e
1862 -Sétimo anno
Botância
1877 -Setimo anno -História Natural
1879 -Sexto anno -História Natural
1882 -Sexto anno -História Natural e Hygiene*
1892 -Sexto anno -História Natural
1893 -Sexto anno -História Natural
1895 -Sexto anno -História Natural
-Botanica e Zoologia (8ª
-Quarto anno Curso Realista
1898 Cadeira)
-Quinto anno Curso Realista
-Biologia (8ª Cadeira)
Ano do
Nível de ensino Nome da disciplina
programa
1915 -5º anno -História Natural
-4º anno -Historia Natural
1926
-2º anno -Historia Natural
-4º anno -Historia Natural
1929 -5º Anno -Historia Natural
-6º Anno -Historia Natural
-2ª Série - Os Seres Vivos
-3ª Serie - História Natural
1931
-4ª Serie -Historia Natural
-5ª Série -Historia Natural
4. Conclusão
Referências Bibliográficas
ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria. O que é história da ciência. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
GASPARIN, João Luiz. Comênio ou a arte de ensinar tudo a todos. São Paulo:
Ed. Papirus, 1994.
___. Formação de professores e ensino de ciências: tendências nos anos 90. In:
MENEZES, Luis Carlos (org.) Coleção formação de professores: formação
continuada de professores de ciências – no âmbito ibero- americano.
Campinas/SP: Autores Associados, São Paulo: NUPES, 1996.
LEITÃO, C. de Mello. A Biologia no Brasil. Série 5ª. Vol. 99. Biblioteca Pedagógica
Brasileira - Brasiliana. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional, 1937.
Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. 1ª ed. São Paulo, SP: Victor Civita, 1976.
(Coleção os Pensadores, L)
Danilo Rothberg1
Andrea Berardi2
Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa3
Introdução
dessa visão o grupo emissor e o grupo receptor negociam significados e fatos (SAN-
DEN & MEIJMAN, 2008).
Nesse sentido, as ações de popularização da ciência podem ser praticadas se-
gundo sua conformidade aproximada com modelos teóricos que diferem entre si
em suas motivações e desafios, de forma a ampliar em escala crescente a compre-
ensão do público acerca dos fatores sociais implícitos na produção de ciência e tec-
nologia. Em muitos países europeus, a governança do setor tem incluído cada vez
mais, em alguns casos como requisito legal, a participação pública na formulação
de políticas (FELT & WYNNE, 2007). No Brasil, a participação social em instân-
cias decisórias, embora ainda incipiente, sugere que o país já assimila eventual-
mente a disseminação de instrumentos de compartilhamento da decisão política
(PIOLLI & COSTA, 2008).
Os modelos teóricos de popularização da ciência se colocam em uma escala de
crescente interatividade com os diversos públicos (LEWENSTEIN, 2003; BROS-
SARD & LEWENSTEIN, 2010). O modelo de déficit propõe que existe uma lacu-
na de conhecimento na população leiga, como uma tábula rasa, a ser preenchida
pela transmissão de conhecimentos. A principal crítica a esse modelo é quanto à
falta de contextualização do conhecimento a ser transmitido, uma vez que a real
compreensão de um determinado conceito é facilitada quando as teorias possuem
sentido prático nas vidas pessoais dos aprendizes. Esse modelo reforçaria também
as relações de poder entre os detentores do conhecimento específico e os que não
possuem, bem como na desvalorização do conhecimento adquirido através da vi-
vência do indivíduo.
O modelo contextual, uma das três respostas ao modelo de déficit, reconhece
que os indivíduos não possuem simplesmente um espaço vazio a ser preenchi-
do pelas informações, mas sim processam informações de acordo com esquemas
sociais e psicológicos moldados por experiências anteriores, contexto cultural e
circunstâncias pessoais. O modelo contextual reconhece a capacidade de as re-
presentações de mídia atenuarem ou amplificarem a preocupação pública sobre
questões específicas.
O modelo de experiência leiga (também chamado expertise leiga), por sua vez,
incentiva a apropriação do conhecimento local, de modo a valorizar as vivências
comunitárias, tais como as práticas de subsistência, assumindo, assim, que o saber
local pode ser tão relevante para a resolução de problemas quanto o conhecimento
técnico. Tal modelo denota o compromisso político de empoderamento das comu-
nidades.
Já sob o modelo de participação pública (também chamado modelo democrá-
tico de engajamento público), seriam visadas atividades como conferências de con-
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 63
2. Ciência e sustentabilidade
papel e não se desvia dele. Cada indivíduo que ocupa uma função especializada
age como um autômato. O sistema “X” é, por assim dizer, complexo, mas somente
no sentido de que abriga muitas partes complicadas em funcionamento, suscetí-
veis ao domínio de especialistas, capazes de compreender exatamente o que ocorre
em seu subsistema. A cadeia de comando é hierárquica, com poucos indivíduos
exercendo o controle superior. O papel dos cientistas designados para lidar com a
sustentabilidade do sistema “X” é certificar-se de que outros papéis não se desviem
dos padrões de exploração de recursos e impacto ambiental especificados pelas
posições de comando superiores do sistema.
Aeroportos, por exemplo, podem ser geridos como sistemas “X”. Alguns dos
cientistas são especialistas em pesquisa, monitoramento e controle de emissões de
substâncias poluentes. Outros lidam com poluição sonora, e outros ainda com ge-
renciamento do descarte de resíduos. Quando as coisas dão errado, pode-se tanto
culpar um autômato alegadamente com mau funcionamento, ou os gerentes no
topo da hierarquia por alguma falha supostamente estrutural, tal como legisla-
ção inadequada, especificação inapropriada de tarefas, recursos insuficientes para
pesquisa e assim por diante. Os erros precisam ser facilmente identificados, já que
existiria um único jeito certo de proceder. Como componentes de uma máquina,
indivíduos desviantes devem ser prontamente pegos e punidos, ou dispensados e
rapidamente substituídos. Da mesma forma, o sucesso deve poder ser facilmente
atribuído a determinados indivíduos. Aquelas pessoas que em tese apresentam ele-
vada performance podem desenvolver rapidamente áreas específicas de expertise
e ganhar reconhecimento sempre crescente por seu papel e sua especialidade. A
ética do trabalho é marcada pela competitividade, já que é simples separar os in-
divíduos falhos dos eficientes. O dever de compromisso profissional dos cientistas
assume precedência sobre outras áreas de sua existência, já que eles passam a ser
rigorosamente avaliados por sua mais recente produção. Eles não podem, assim,
confundir seus interesses e aspirações pessoais com sua missão laboral. Se um
cientista pertence a determinado gênero, idade, cor da pele e atua em um setor
altamente valorizado, torna-se possível justificar que receba uma remuneração
muitas vezes acima de outras pessoas de diferente gênero, cor da pele e área de
atuação. A comunicação dentro do sistema “X” é neutra, livre de valores e objetiva,
altamente técnica, característica de um dado setor e comumente associada com
valores numéricos, inspirada em uma visão de mundo na qual o valor monetário
é tido em alta consideração.
A ética do sistema “X”, sob um prisma geral, é dada pela realização de tarefas
da forma mais eficiente possível: deve-se maximizar a produção com o mínimo de
insumos. Inovação e crescimento econômico se tornam as palavras de ordem cen-
66 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Relacional; causalidade
Sequencial, linear e mecânico: mútua e simultânea, foco
Processo foco sobre componentes. O todo é em propriedades emergen-
igual à soma de suas partes tes. O todo é maior que a
soma de suas partes
Exploração de relações;
Foco em distinções; independên- pensamento em rede; foco
Atitude mental
cia; categorização e rotulagem em aspectos compartilha-
dos; interdependência
Continua
68 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Pragmáticas. Ecocêntricas.
O aprendizado se dá com a
Perfeccionistas. Tecnocêntricas.
ação. Complementaridade:
Considera-se que existe somente
não existe necessariamente
uma solução correta. Orientadas
Soluções uma resposta certa e uma
a objetivos. Cultura de metas e
resposta errada. Soluções
soluções corretivas: os resultados
adaptativas e reativas ao
esperados são fixos.
contexto. O design é orien-
tado à prevenção.
Ética da sustentabilidade e
Ênfase no trabalho Redução de custos e eficiência
justiça social
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 69
ciência
Para que o discordante fundamente uma nova pesquisa, não basta que monte
um laboratório de pesquisa; é necessário que estruture um melhor que seus con-
correntes. A concorrência gera um jogo de poder que pode envolver o aliciamento
de aliados e a autonomização dos chefes de laboratório, forçados a se dedicar à
resolução de questões burocráticas do próprio laboratório. Os empecilhos impos-
tos pelo jogo de poder e as dificuldades na obtenção de recursos tendem tornar a
ciência uma atividade restrita a um pequeno número de pessoas, nações e profis-
sionais que são capazes de custeá-la, tornando-a sujeita a uma rede cada vez mais
poderosa e centralizada (LATOUR, 2000; LATOUR & WOOLGAR, 1997).
Assim, para autores como Bourdieu (2004) e Latour (2000), a visão da socio-
logia da ciência comporta a exigência de compreensão não somente de como o
conhecimento científico é gerado e distribuído pela sociedade, mas também sobre
como sua produção é decidida pelos pares da comunidade científica. Coloca-se
em questão de que forma se estrutura tal comunidade e como se relaciona com os
diversos setores sociais, econômicos e políticos.
Cabe, ao fim deste percurso teórico, apontar que as ações de popularização da
ciência encerram determinadas concepções em torno da produção científica, de-
sencadeando o surgimento de considerações específicas sobre o lugar dos diversos
agentes sociais na formulação das políticas da área.
7. Considerações finais
Referências Bibliográficas
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and implementation sciences in the academy. In: Proceedings of the Critical
Management Studies Conference 2003. Lancaster, Reino Unido, 2003.
BLOM, B.; SUNDERLAND, T.; MURDIYARSO, D. Getting REDD to work
locally: lessons learned from integrated conservation and development projects.
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CEREZO, J. A. L. Ciência, Tecnologia e Sociedade: o estado da arte na Europa e
nos Estados Unidos. In: SANTOS, L. W. (org.). Ciência, tecnologia e sociedade:
78 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
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SCOONES, I.; LEACH, M.; SMITH, A.; STAGL, S.; STIRLING, A.;
THOMPSON, J. Dynamic systems and the challenge of sustainability. STEPS
Working Paper 1. STEPS Centre, Brighton, 2007.
Introdução
Diante do que foi discutido aqui, entendemos que textos históricos (i.e., tra-
duções de fontes primárias) e experimentos, quando trabalhados por meio de pro-
9 Cabe pontuar que neste texto o autor Marco A. Moreira faz uma ressalva: “[...] costuma-
-se pensar que o [referido] problema pode ser resolvido com os chamados organizadores
prévios, solução proposta até mesmo por Ausubel, mas que, na prática, muitas vezes não
funciona” (MOREIRA, 2011, p. 30).
86 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
10 Destes seis professores, três deles lecionavam no Ensino Médio, dois lecionavam conco-
mitantemente no Ensino Médio e no Superior (área de Física), e um lecionava no Ensino
Superior (área de Instrumentação e Estágio Supervisionado para Licenciatura em Física).
11 Utilizamos: computador, projetor multimídia (com slides previamente preparados e
considerando as concepções mapeadas na primeira etapa), demonstração de experi-
mentos e excertos traduzidos para o português a partir de fontes primárias.
88 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
O terceiro passo consistia em atritar um canudinho com papel (canudo “A”) e outro
com borracha dura (canudo “B”), em seguida aproximar um deles (A) do pêndulo
e, após ocorrer a sequência “atração-contato-repulsão”, aproximar o segundo canu-
dinho (B) do pêndulo. Este procedimento revela um fenômeno não previsto pelo
primeiro princípio: a atração entre corpos eletrizados. A partir disso, a atividade
consistia em propor hipóteses e um modelo para explicar aquele novo fenômeno.
Iniciamos a quarta etapa com uma revisão/síntese das etapas anteriores, por
meio de questões que formulamos e utilizamos para fomentar a discussão entre
aluno-aluno e aluno-professor. Neste momento, fizemos a discussão e problemati-
zação dos modelos e hipóteses propostos pelos alunos na atividade anterior. Desta
forma, a turma foi percebendo, em conjunto e de forma dialogada com o auxílio
dos pesquisadores presentes, a “inconsistência” que há no primeiro princípio frente
ao experimento realizado por eles e, a partir disso, os estudantes chegaram a uma
conclusão parecida com o segundo princípio de Du Fay. Então, os pesquisadores
promoveram uma síntese final e uma sistematização de tudo que fora discutido
até aquele momento, objetivando que os alunos organizassem melhor suas ideias
e entendessem como Du Fay resolveu o problema que surgiu a partir dos experi-
mentos que ele fez posteriormente à proposição do primeiro princípio. Em seguida,
cada aluno recebeu um impresso com um trecho traduzido da Quarta Memória
em que Du Fay (1733) descreve seu segundo princípio. Então, foi feita sua leitura
e discussão. Para finalizar a atividade, foi aplicado um questionário, composto de
duas questões bem específicas, que tratava dos dois princípios de Du Fay.
90 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
4. Dados e Resultados15
Questionário 1
Pergunta 1 - Encosta-se um canudinho de plástico esfregado com papel em
uma bolinha de cortiça. Depois de alguns instantes observa-se que o canudinho e a
bolinha se distanciam. Como você explica esse distanciamento (chamado de repul-
são) que ocorre entre o canudo e a bolinha.16
15 Nos dados desta seção, a soma do número de categorias em cada gráfico pode ser maior
do que o total de alunos (i.e., 29 - número total inicial de sujeitos da pesquisa), pois há
respostas que expressam mais de uma categoria. Também pode ser menor do que 29,
devido à ausência de alguns alunos. A categoria “BR” significa “resposta em branco”; a
categoria “N.A.O.” significa “não atingiu o objetivo”, pois são respostas genéricas que
não permitiram a categorização.
16 Adaptada de Furió; Guisasola (1998, p. 145).
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
91
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio
que mais apareceu é força, constando nas respostas de 8 alunos. O termo campo
magnético consta na resposta de 5 alunos. A expressão aumento de temperatura ou
o aquecimento foi mencionada por 4 alunos. É interessante observar que alguns
alunos atribuem à explicação do referido fenômeno conceitos físicos que não estão
diretamente relacionados a ele, tais como energia, temperatura e campo magnéti-
co. A expressão carga elétrica apareceu apenas 4 vezes. Destes quatro alunos, dois
deles mencionaram em suas respostas a palavra energia, isto é, ora disseram que o
atrito gerava acúmulo de carga e ora disseram que gerava acúmulo de energia no
corpo. Dois desses quatro alunos disseram que cargas diferentes se repelem e car-
gas iguais se atraem, ou seja, expressaram a propriedade de atração/repulsão entre
cargas de forma equivocada.
O objetivo era avaliar as ideias que os alunos tinham a respeito de a matéria ser
elétrica, ou seja, ser constituída de cargas elétricas (FURIÓ; GUISASOLA, 1998, p.
132-3), e sobre o fato destas serem transferidas de um corpo para outro. O gráfico
de frequência apresenta oito categorias extraídas das respostas dos alunos. Somen-
te dois deles mencionaram o termo carga, categorias 5 e 6. Oito alunos disseram
que o atrito aumenta a temperatura do canudo e atribuem à atração este fenômeno,
18 Quatro alunos disseram, apenas, que o atrito gera uma força de atração, outros três
alunos mencionaram a causa desta força: i) o aquecimento; ii) a gravidade; iii) a energia.
19 Optamos por citar neste comentário os três verbos (i.e., aumentar, dar e gerar) que en-
contramos nas respostas que mencionavam a energia como responsável pela atração
dos papeizinhos pelo canudo.
20 Baseada nos trabalhos Furió; Guisasola (1998; 1999) e Furió; Guisasola; Zubimendi
(1998).
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
93
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio
Marque o SIM ou NÃO na Figura abaixo e procure explicar sua resposta com deta-
lhes. Se necessário cite exemplos.
b) Um pêndulo elétrico carregado positivamente é repelido por um canudo de
plástico carregado positivamente. Esta afirmação está correta? Marque o SIM ou
NÃO na Figura abaixo e procure explicar sua resposta com detalhes. Se necessário
cite exemplos.
Nesta etapa não foi realizada coleta de dados, pois tinha como objetivo contex-
tualizar a temática, iniciar a problematização de algumas concepções prévias dos
alunos e discutir o primeiro princípio.
princípio de Du Fay e explicar a resposta dada (PR2); iii) diante do fenômeno ob-
servado, e caso observassem alguma discordância com o primeiro princípio, deve-
riam propor hipóteses e um modelo para explicar aquele novo fenômeno (PR3).21
Foram tabulados e analisados apenas os dados do terceiro passo, já que os dois
primeiros consistiram em uma preparação para o terceiro. As respostas dos alunos
às perguntas PR1 e PR2 foram analisadas e categorizadas como Satisfatória (S),
Parcialmente Satisfatória (PS), ou Insatisfatória (I). Apenas os alunos que tiveram
respostas satisfatória e/ou parcialmente satisfatória nas perguntas PR1 e PR2 teriam
como fazer a PR3. Pois, de outra forma, não identificariam a inconsistência com o
primeiro princípio e o fenômeno que deveria ser alvo do novo modelo. Dos 20 sujei-
tos que participaram desta etapa, 16 tiveram a PR1 e a PR2 classificadas como S-S;
2 alunos foram classificados como S-PS; e 2 alunos como PS-S, respectivamente.
Estes 20 alunos fizeram os experimentos de “forma correta” e perceberam que
havia uma inconsistência e um fenômeno não explicado pelo primeiro princípio.
Portanto, tinham condições de fazer a PR3 e propor um novo modelo. Destes, 6
alunos deixaram a PR3 em branco, sendo quatro alunos do grupo G6, um do G1 e
um do G7. Dois alunos não propuseram o modelo, apenas comentaram o fenôme-
no observado, sendo um do G7 e um do G1. Um dos alunos (Al9) teve a PR1 e PR2
classificadas como I-I, entretanto, na PR3 ele descreveu e explicou tais perguntas
de forma satisfatória e propôs um modelo, fato que não foi verificado nos outros
membros do seu grupo (G2). Desta forma, houve um total de 13 alunos que pro-
puseram um modelo explicativo de forma satisfatória para o fenômeno observado
no experimento.
Dos 13 alunos que propuseram um modelo, 11 deles (3 do G5; 4 do G4; 3 do
G3; 1 do G2) propuseram modelos com base na ideia de que a atração entre os cor-
pos eletrizados ocorre porque um deles tem uma quantidade menor de eletricidade
do que o outro. Destes, os 4 alunos do G4 atribuíram a diferença na quantidade de
eletricidade ao fato de os canudinhos terem sido atritados com materiais diferen-
tes. Dois alunos do G7 (Al 27; Al 28) propuseram um modelo com base na ideia
de que ao atritar os canudos com materiais diferentes (papel e borracha) ocorre
a aquisição de eletricidades distintas, sendo este o fator responsável pela atração
entre corpos eletrizados.
Nesta etapa, foram feitas uma revisão das atividades desenvolvidas nas etapas
anteriores e a discussão e problematização dos modelos e hipóteses propostos pe-
los alunos anteriormente. Em seguida, procedemos à leitura e à discussão de um
trecho traduzido em que Du Fay descreve o seu segundo princípio. Ao final, foi
aplicado um questionário que tinha como objetivo avaliar se houve algum conhe-
cimento adquirido pelos alunos, entre aqueles trabalhados por nós. Os resultados
desse questionário são apresentados no gráfico da Figura 4. Classificamos as res-
postas dos alunos para as duas perguntas nas seguintes categorias: Satisfatória (S),
Parcialmente Satisfatória (PS) e Insatisfatória (I).
Questionário 3
1. Descreva e explique o Primeiro Princípio de Du Fay. Cite exemplos.
2. Descreva e explique o Segundo Princípio de Du Fay. Cite exemplos.
forma surge o princípio empírico. Entendemos que esta é uma ideia importante
para a aprendizagem significativa do conceito de carga elétrica.
Tendo em vista os dados, relatados na Figura 4, a maioria dos alunos respon-
deu a Q2 de forma Parcialmente Satisfatória (PS). Classificamos como PS as res-
postas que apresentaram elementos importantes do segundo princípio, mas que
não o descreveram de forma completa.
balhar o segundo princípio, na quarta etapa, é interessante que se tenha mais tem-
po, para que os alunos possam realizar novamente o experimento da terceira etapa,
discutindo-o de forma minuciosa com base na proposta de Du Fay e refletindo sobre
as hipóteses e modelos que propuseram na terceira etapa. Isso tudo com o auxílio e
participação do professor. Outras alterações podem e devem ser feitas, deixamos aqui
duas sugestões com base na nossa experiência em aplicar e analisar a proposta.
Discutimos neste trabalho algumas concepções prévias apresentadas pelos sujei-
tos da pesquisa e os modelos que eles propuseram na terceira etapa. Também mostra-
mos os conhecimentos adquiridos pelos estudantes a partir das atividades realizadas.
Concluímos, então, que a intervenção feita em sala de aula possibilitou que parte dos
alunos adquirisse ideias relevantes que podem servir de ancoradouro para a apren-
dizagem significativa de alguns conceitos de eletrostática, mas a proposta deve ser
ajustada para que um número maior de aprendizes adquira tais ideias.
Referências Bibliográficas
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de aula no ensino médio - a construção de subsunçores para aprendizagem
significativa do conceito de carga elétrica. 2012. 57 f. Monografia (Conclusão
de Curso de Licenciatura em Física) – Centro de Formação de Professores –
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Amargosa/BA, 2012.
METZ, D.; STINNER, A. A role for historical experiments: capturing the spirit
of the itinerant lecturers of the 18th century. Science & Education, 2006. DOI:
10.1007/s11191-006-9016-z.
Introdução
professor é o elemento chave para romper com essa assimetria. O terceiro desafio
proposto por Freire Jr. (2002, p. 26-27) parte de uma evidência observada: a po-
larização nas pesquisas em História da Ciência, uma que prioriza o caráter social
da ciência e, outra, o caráter conceitual. E a questão que, naturalmente, decorre
desse desafio é qual desses enfoques interessa à educação científica. Entretanto,
a questão a ser discutida para contribuir para o debate, na perspectiva de formar
um cidadão crítico, é se o enfoque permite trazer elementos da História da Ciência
que contribuam para a apropriação e reflexão dos conhecimentos científicos, suas
implicações e consequências no contexto atual.
Para contribuir para com esse debate, Boss (2011, p.19-20) sugere adicionar
um outro elemento: “a preocupação quanto à maneira como os aspectos históricos
têm sido veiculados e divulgados em materiais voltados para o ensino, indepen-
dente do enfoque historiográfico”, pois o autor, ao analisar os trabalhos que suge-
rem o uso da História da Ciência para o ensino de ciências, chama a atenção para
os cuidados que devem ser tomados ao realizar uma abordagem histórica para não
produzir uma visão distorcida do trabalho científico.
A História da Ciência, ao apresentar-se nessa perspectiva, esbarra em muitos
problemas, entre os quais se destaca a visão distorcida da ciência, evidenciada em
materiais didáticos e na compreensão da natureza da ciência concebida pelos pro-
fessores e que é transmitida aos alunos (SILVA e MARTINS, 2003; ROSA e MAR-
TINS, 2007; BOSS e CALUZI, 2009; BOSS, 2011, ERROBIDART e GOBARA, 2011).
Os livros didáticos, um dos principais materiais utilizados por alunos e profes-
sores, muitas vezes, apresentam a história da ciência de forma caricata e anacrôni-
ca, levando a visões distorcidas da natureza da ciência e que em nada contribuem
para a contextualização do ensino de ciências. Os aspectos históricos reforçam
mitos e concepções errôneas, provavelmente porque não são provenientes de estu-
dos acadêmicos e fontes primárias (BOSS, 2011).
Entretanto, há uma carência de recursos didáticos que possibilitem “[...] re-
tomar os contextos originais da criação e evolução de significados dos conceitos
científicos, pela leitura e análise de textos originais [...]” (MATTOS e HAMBUR-
GER, 2004, p. 478). Geralmente nos textos didáticos e/ou paradidáticos, aparecem
informações provenientes de fontes históricas secundárias, realizando o que Mar-
tins (2005) denominou apudismo historiográfico.
Este artigo apresenta uma tradução de um texto histórico que trata da comu-
nicação de Cassini de Thury à Academia Real de Ciências (Académie Royale des
Sciences) da França sobre a determinação da velocidade do som, realizada em 1783.
Para suprir a necessidade de textos históricos originais, realizamos uma pesquisa
bibliográfica sobre a gênese e construção do conceito de velocidade do som, em
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
109
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som
Embora tenhamos sempre percebido que o som demora mais ou menos tempo
para propagar-se até nós, dependendo de estarmos mais ou menos distantes do
lugar onde ele é produzido, não parece que tenhamos determinado com toda pre-
cisão necessária o espaço que ele percorre em um intervalo de tempo dado, e que
tenhamos feito todas as experiências necessárias para comprovar se sua velocidade
é sempre uniforme tanto nas pequenas como nas grandes distâncias, e se ocorrem
variações relacionadas com as diferentes circunstâncias do clima, do dia e da noite,
do tempo calmo ou da chuva, da força e da direção dos ventos.
Entre as observações mais precisas que foram feitas até agora, encontramos
aquelas relatadas nas Memórias da Academia del Cimento de Florença, e nas
Transactions Philosophiques do mês de Janeiro de 1708 pelo Sr. Derham.
Ao considerá-las, parece que ainda não existia consenso sobre o tempo que o
som emprega para percorrer um determinado espaço, uma vez que pelos resulta-
dos das experiências feitas por vários autores, que são relatadas nesses documen-
tos, são encontradas diferenças bastante consideráveis, atribuídas, com razão, ao
fato de que não havíamos, até então, empregado distâncias suficientemente gran-
des para determinar a velocidade do som com a precisão necessária.
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
111
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som
4 Unidade de medida em vigor antes do sistema métrico: 1(uma) toise ≈ 1,95 metros.
5 Caixa de culatra é a tradução usada para a palavra boîte, uma espécie de caixa de ferro
ou de fonte (liga de cobre e estanho, podendo conter ainda zinco ou chumbo), que é
carregada com pólvora e um tampão, com a qual se realizam disparos nas festividades.
Fonte: Nouveau Dictionnaire Militaire, publicado em Paris em 1801 e disponível em
versão digitalizada no endereço http://books.google.com.br/books?id=cClEAAAAY
AAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=on
epage&q&f=false Acesso em 12 de fevereiro de 2013
112 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Eis a regra e a ordem que nós nos prescrevemos para fazer essas experiências
e talvez seja útil descrevê-las aqui para que se possa julgar a exatidão esperada.
No primeiro dia, havíamos colocado, em Mont-lehery, em Montmartre, no
Moinho de Fontenay e no Observatório, dois observadores, em cada um desses
lugares, com pêndulos e relógios com precisão de segundos, a fim de marcar o mo-
mento em que seria vista a luz do canhão, e contar o intervalo de tempo decorrido
entre essa luz e o som que deveria sucedê-la, pois para distâncias como estas de-
vemos desprezar o tempo da propagação da luz, tendo calculado que ela gastaria
aproximadamente dois segundos para vir da Lua à Terra.
Às 9 horas e 25 minutos, devíamos fazer do Observatório um disparo de uma
caixa de culatra de uma libra de pólvora para servir de sinal, que devia ser seguido
de dois tiros de canhão disparados em Montmartre: um às 9 horas e 30 minutos e
outro às 9 horas e 50 minutos.
Em seguida devíamos lançar outros dois disparos de canhão em Mont-lehery,
o primeiro às 10 horas e o outro às 10 horas e 20 minutos.
Cada um desses observadores contava separadamente as vibrações do pêndulo
que havia sido colocado num lugar de onde se via o fogo do canhão, à exceção de
Mont-lehery, onde fui obrigado a colocá-lo dentro da torre, onde eu fazia contar
as vibrações escutando-as do lugar de onde eu observava, que estava distante de 4
a 5 toises.
Desde a primeira observação, que foi realizada em 13 de Março, o procedi-
mento executado foi exatamente esse; o vento era norte6 e forte, os dois tiros de
canhão disparados de Montmartre foram escutados em Mont-lehery, o primeiro
1’ 22” ½ e o segundo 1’ 23” após a visualização da luz.
Do Observatório, foram ouvidos 16 segundos após o fogo. O disparo da caixa
de culatra feito do Observatório foi escutado em Fontenay 18” ¾ após a luz, e os
dois tiros de canhão disparados em Montmartre 32” ¼ após o fogo.
No que diz respeito ao canhão que foi disparado em seguida à Mont-lehery, o
fogo foi visto muito claramente, mas não foi possível escutar o barulho de nenhum
dos três outros lugares, por causa do vento que estava contrário à direção do som.
Obtivemos desta observação, por meio do som, as dimensões de um triângu-
lo com vértices no Observatório, em Montmartre e no Moinho de Fontenay-aux-
-Roses, e cujos lados estão na proporção de 16”, 18” ¼ e 32” ¼ muito próximo das
distâncias que nós havíamos determinado entre estes lugares por operações trigo-
nométricas, 3268 toises do Moinho de Fontenay ao Observatório, do Observatório
6 O vento que sopra de Sul para Norte é chamado vento Sul, já aquele que venta de Norte
para Sul é conhecido como vento Norte (CUNHA, 2003)
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
113
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som
O fogo do canhão apareceu, não obstante a chuva que continuava sempre, com
uma intensidade extraordinária, bem mais forte que no dia anterior, fato que con-
sideramos proveniente da noite extremamente escura.
De acordo com essas observações, determina-se que de Mont-lehery até Lay o
intervalo de tempo entre o som e a luz foi de 48”, de Lay até o Observatório de 20”, e
do Observatório até Montmartre de 16” ½, com os eventuais erros compensando-
-se mutuamente. Considerando-se o conjunto dos tempos, teremos 1’24” ½, de
onde é preciso subtrair aproximadamente ½ segundo, porque esses quatro lugares
não estão exatamente na mesma direção, e teremos, então, o tempo de 1’24” que
o som gastou para percorrer toda essa distância, somente um segundo a menos
do que aquele observado diretamente de uma extremidade a outra, o que poderia
levar a conclusão que a velocidade do som diminui a medida que ele distancia-se
do lugar que o produziu, se pudéssemos assegurar a precisão de um segundo para
as quatro observações.
Essa observação é ainda notável ao considerarmos que escutamos, na mesma
noite, no Observatório e em Mont-lehery, reciprocamente, o barulho que foi pro-
duzido nesses dois lugares, o que ainda não havia sido executado, e que era, no
entanto, necessário para assegurar o valor exato da velocidade do som, pois a mé-
dia entre as duas observações deve dar a medida exata da velocidade do som, haja
vista que as mesmas causas que podem acelerá-la ou retardá-la agiram em sentidos
contrários nas duas direções diferentes, resultando 1’ 8” no espaço de 11.756 toises,
o que corresponde a 173 toises por segundo.
Dois dias depois, 16 de Março, o vento estava fraco, oeste-noroeste, numa di-
reção perpendicular àquela de Montmartre à Mont-lehery, e o céu estava sereno.
As 9h25’, fez-se um disparo do Observatório, que não fez tanto barulho quan-
to no dia anterior: ele foi escutado em Montmartre 16” ½; em Lay, 20”; e em Mont-
-lehery 1’ 8” ½ após a luz.
Os tiros de canhão que foram disparados na sequência de Montmartre foram
ouvidos, todos os dois, no Observatório, 16” ½; em Lay, 36” ½; e em Mont-lehery
1’24” ½, depois da luz.
Às 10 h, o primeiro tiro de canhão disparado de Mont-lehery foi escutado em
Lay 49”; e no Observatório, 1’ 8” após a luz.
O segundo tiro de canhão foi escutado em Lay, 48” ½, após o fogo, mas nós
não conseguimos escutá-lo nem no Observatório nem em Montmartre, fato que
consideramos proveniente de um murmúrio escutado nesse momento em Paris,
causado, principalmente, pelo vento que se refletia contra os edifícios dessa ci-
dade, o que foi confirmado pela observação anterior, durante a qual reinava uma
grande calma depois que o vento tivesse cessado.
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
115
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som
7 1 toise = 6 pés
116 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
havia sido determinado pelos Srs. Flamsteed e Halley, e que o Sr. Newton deduziu
em sua obra Princípios, na sua segunda edição, usando as equações que ele julgou
adequadas desde sua primeira edição, onde ele havia suposto um valor de 968 pés
por segundo.
Convertendo essa medida para a nossa, segundo a proporção entre o pé do
Rei e o de Londres, que o Sr. Picard havia suposto, como 144 a 135, mas que pelas
últimas medidas feitas com grande apuro, que nos foram comunicadas pela Socie-
dade Real de Londres, é mais precisamente de 864 a 811, teremos a velocidade do
som observada na Inglaterra de 1072 pés por segundo, que mesmo sendo a menor
de todas as medidas que haviam sido determinadas até o presente, é ainda 34 pés
maior que aquela que resultou das nossas observações, que têm não somente a
vantagem de terem sido feitas em distâncias maiores, mas também de terem sido
executadas reciprocamente de um lugar a outro no mesmo dia, o que ainda não
tinha sido experimentado até o momento.
Essa diferença de 34 pés entre nossas observações e aquelas da Inglaterra teria
produzido uma variação de aproximadamente 3 segundos sobre todo o intervalo
de Mont-lehery a Montmartre, o que não se pode atribuir a erros de observação,
porque em nossas observações jamais foram encontradas diferenças de mais de
meio segundo.
A respeito da velocidade do som em relação às diferentes direções do vento,
parece, pelas observações que acabamos de relatar, que ela é maior quando o vento
está na direção do lugar onde o som é produzido, que quando ela está numa dire-
ção transversal, ou quando o tempo está calmo, porque, na observação de 13 de
Março, o vento estando norte, o barulho do canhão de Montmartre foi escutado
2” antes que nas observações seguintes de 14 e 16 do mesmo mês, o que está de
acordo com as experiências do Sr. Derhan, e, considerando-se que as observações
feitas na França não haviam encontrado nenhuma diferença na velocidade do som,
qualquer que fosse a direção do vento, era ainda mais necessário verificar.
Para melhor esclarecer a questão, foi preciso esperar que o vento estivesse
numa direção oposta àquela do dia 13 de Março, o que nos fez retardar nossas
observações até 19 do mesmo mês, quando o vento virou para direção sul e nós
mandamos disparar o canhão de Mont-lehery.
Começamos pelo sinal ordinário, disparando uma caixa de culatra às 9h 25’
no Observatório, que foi escutada em Montmartre 16” depois de percebido o fogo,
mas em Lay e em Mont-lehery, apenas foi vista a luz.
Às 9h 30’ e às 9h 50’, disparamos o canhão em Montmartre, do qual vimos
o fogo, mas não escutamos o barulho em Mont-lehery, em Lay, e nem mesmo no
Observatório, embora a distância fosse de apenas 2.931 toises, por causa do vento
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
117
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som
Sul, que era muito forte, e numa direção contrária aquela do lugar onde o som foi
produzido.
Com relação aos dois disparos de canhão realizados em Mont-lehery, eles fo-
ram escutados muito claramente nos três lugares, obtivemos em Lay, 46’ ½; no
Observatório, 1’ 4” ¾; e em Montmartre, 1’ 20” ¼ entre a luz e o barulho; nos
dias 14 e 15, com um tempo calmo e um vento transversal, havíamos obtido como
diferença entre a luz e o barulho do canhão disparado de Mont-lehery, 48’ ½, em
Lay; e 1’ 8” no Observatório; e escutamos, em Mont-lehery, o canhão de Montmar-
tre, 1’ 24” ½ depois da luz. Assim, é evidente por essa observação, onde se obteve
uma diferença de 4” na propagação do som sobre o intervalo entre Montmartre
e Mont-lehery, que as diferentes direções do vento mudam consideravelmente a
velocidade do som.
Às 10h o termômetro estava 6° acima do ponto de congelação da água, e a
altura do barômetro era de 27 polegadas.
Continuamos as mesmas experiências no dia seguinte para um vento menos
forte, mas na mesma direção que no dia anterior.
O disparo do Observatório foi escutado em Montmartre 16’ ½ depois da luz, e
dessa posição [Montmartre] contamos entre o barulho e o fogo dos canhões dispa-
rados em Mont-lehery, 1’ 21”, na primeira vez, e 1’ 21” ½ , na segunda vez.
No Observatório, os dois tiros de canhão disparados, em Montmartre, foram
escutados 17” ½ depois da luz e anotamos 1’ 6” entre o fogo e os tiros de canhão
disparados de Mont-lehery, cujo barulho era mais forte que aquele que vinha de
Montmartre, que está a uma distância 4 vezes menor.
Em Lay, não escutamos nem a caixa de culatra nem os canhões de nenhum
desses lugares, por causa do barulho causado por um vento muito impetuoso, que,
no Observatório, apresentava-se bastante fraco, o que demonstra que, para asse-
gurar-se da exatidão da medida do som, é necessário escolher um tempo calmo e
que ele esteja presente em toda a extensão do percurso por onde o som transmite-
-se, como nós conseguimos obter na observação do dia 14 de março, ou, o que dá
no mesmo, escutar reciprocamente o som produzido nas duas extremidades, nas
mesmas condições climáticas, e utilizar a média das duas determinações, pois,
dessa forma, a mesma causa que acelera em um sentido deve retardar no sentido
contrário.
Vemos por essa última experiência que o som propagava-se com uma veloci-
dade maior que quando o ar estava calmo, mas que ele tinha ficado mais lento que
no dia precedente, como seria de se esperar, porque o vento, embora na mesma di-
reção, estava menos forte na maior parte dos lugares onde nós havíamos feito essa
observação. Vemos também uma diferença entre a velocidade recíproca do som de
118 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
consideramos que a velocidade do som foi retardada pela ação do vento em 6’’, que
é aproximadamente um doze avos da velocidade total.
Tomando uma média entre essas diferentes velocidades, teremos a velocidade
do som, no percurso entre o Observatório e Mont-lehery, de 1’7’’ ¾, com uma dife-
rença de um quarto de segundo daquela que foi determinada com um tempo bom.
Em relação a Dammartin, durante os quatros dias que lá permaneci para es-
cutar os disparos dos canhões de Montmartre e de Mont-lehery, o vento que esta-
va quase sempre norte, desviando para noroeste e, por consequência, numa dire-
ção pouco favorável, apenas me permitiu escutar aquele tiro que foi disparado de
Montmartre no dia 25 de março, o vento estando na direção norte, desviando em
direção a leste, mais fraco que no dia anterior, mas numa direção quase contrária
àquela de Dammartin a Montmartre, e diferente daquela do Observatório, onde
ele estava na direção noroeste.
Um turbilhão de vento impediu de escutar o barulho do primeiro tiro de ca-
nhão, mas os dois outros foram escutados claramente, o primeiro a 1’ 34’’, e o
segundo a 1’ 34’’ e um pouco mais depois da luz.
A Mont-lehery, os mesmos tiros de canhão foram escutados 1’ 23’’ depois da
luz; no mesmo intervalo de tempo, escutou-se o barulho do disparo em Montmar-
tre, ainda que ele tenha sido carregado com apenas meia libra de pólvora.
Segundo essas observações, a velocidade do som no percurso entre a Pirâmide
de Montmartre e o sino de Dammartin, que é de 16.079 toises, seria somente de 170
toises por segundo, ao passo que ela foi, nas mesmas condições climáticas, de 176
toises e ½ no percurso entre Mont-lehery e Montmartre, diferença explicada pela
direção do vento, que estava mais favorável num sentido que no outro.
Tomando a média das duas medições, teremos a velocidade média da velocida-
de do som de 173 toises e ¼, aproximadamente a mesma que havíamos encontrado
em um tempo calmo.
Nessas observações, tivemos o cuidado de marcar a altura do termômetro e
do barômetro; a do termômetro esteve sempre entre 4 e 6 graus acima do ponto
de congelamento. Em relação ao barômetro, a sua maior variação foi observada de
8 linhas8 e ¾, o mercúrio estando, em 16 de março, a uma altura de 27 polegadas
e 11 linhas, e no dia 21 de mesmo mês, a 27 polegadas 2 linhas e ¼; e, entretanto,
nas duas observações feitas, a primeira no momento em que o vento estava numa
direção transversal, e a segunda em um tempo calmo, a velocidade do som encon-
trada foi a mesma.
8 Uma linha é igual a uma polegada dividida por 12, sendo que a polegada francesa media
2,707 cm, ligeiramente maior que a inglesa, que era de 2,52 cm.
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
121
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som
cidade; donde se conclui que ele comunica-se em linha reta sem fazer
desvios, como alguns haviam pensado.
9. Que a diferença de densidade do ar não produz nenhuma diferença
sensível na velocidade do som, pois, em 21 de março, o barômetro es-
tando na altura de 27 polegadas 2 linhas e ¼, com um tempo calmo, o
intervalo entre a luz e o barulho do canhão disparado de Mont-lehery
foi registrado no Observatório com o mesmo valor que em 16 do mes-
mo mês, quando o barômetro estava na altura de 27 polegadas e 11
linhas, com um vento transversal, que, como nós já observamos, não
aumenta a velocidade do som.
uma bola suspensa por um fio de 3 pés 8 linhas e ½ de comprimento desde o ponto
de suspensão deste fio até o centro da bola.
Esse método, de maneira muito útil, também poderá ser empregado para de-
terminar a largura de um rio próximo à sua foz, de um lago, de um pântano, e
mesmo a distância entre ilhas e entre elas e a terra firme.
Mesmo com o tempo fechado, fazendo disparos da borda do mar, será possível
salvaguardar navios do naufrágio, que vendo o fogo e escutando o barulho, pode-
rão reconhecer a que distância estão do lugar que querem evitar ou abordar.
Não é nem mesmo necessário que os dois lugares sejam reciprocamente visí-
veis para determinar a distância entre eles, será suficiente fazer um disparo de um
desses lugares, seja de canhão ou de qualquer outra arma de fogo, e alertar que,
no momento em que ele for escutado ou alguns segundos após ele ser percebido,
dispara-se um outro, que será escutado reciprocamente no primeiro lugar de onde
foi disparado, o intervalo entre a luz do primeiro disparo, e o barulho do segundo
é o dobro do tempo que o som empregou para ir ou voltar, logo a metade, por con-
sequência, medirá a distância entre estes dois lugares.
Um observador que se encontrasse num terceiro lugar, do qual veria os dois
primeiros, poderia, mesmo sem escutar os barulhos, estimar suas distâncias con-
tando o intervalo da luz do primeiro disparo e do segundo, onde seria necessário
apenas acender a pólvora ao ar livre, o que demonstra que, em certos casos, pode-
-se determinar as distâncias apenas pelo barulho sem ajuda da luz, e que em outros
temos necessidade apenas da luz sem escutar o barulho.
Nesse momento, não será fora de propósito relatar algumas experiências que
nós realizamos sobre a luz da pólvora, assim que ela é acesa, seja ao ar livre, seja
que a tenhamos encerrado em um canhão ou em uma caixa de culatra.
Esta luz jamais pareceu diminuir na proporção das distâncias e, frequente-
mente, o fogo do canhão disparado de Mont-lehery foi visto no Observatório com
a mesma vivacidade que o de Montmartre, ainda que a distância seja quatro vezes
maior.
Eu vi muito claramente de Dammartin a luz do canhão disparado em Mont-
-lehery a uma distância de 28.500 toises, quase tão grande quanto a de Montmar-
tre, que dista apenas 16.000.
Uma libra de pólvora acendida em Mont-lehery ao ar livre foi também vista
no Observatório muito claramente, e nenhuma diferença sensível foi percebida
quando a quantidade de pólvora foi dobrada.
Os tempos de chuva, durante os quais de dia não podíamos perceber os objetos
distantes, não impediam de distinguir a luz da pólvora e do canhão que era dispa-
124 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
rado nestes lugares, e há dias em que ela foi vista ainda com mais vivacidade que
quando o tempo estava calmo.
Esta observação pode ser de grande utilidade para a segurança de navios
durante a noite, porque o mesmo não ocorre com as lanternas comuns que são
acessas no litoral, elas não são percebidas facilmente em tempo de chuva a uma
distância medíocre, e há muitos exemplos de navios que se perderam por não ter
conseguido percebê-las; a luz produzida por apenas uma libra de pólvora serviria
para fazê-los perceber, e um tiro de canhão seria ainda de maior utilidade para
saber a que distância estão da costa.
Pode-se utilizar o método, também, para determinar a diferença em longitude
entre dois lugares que estão aproximadamente sobre o mesmo paralelo; mas nós
não nos estenderemos mais aqui sobre todas as utilizações que se pode fazer das
experiências que nós acabamos de relatar sobre a luz e o som. O que nós dissemos
é suficiente para provar que não é um destes conhecimentos estéreis e de simples
especulação, mas do qual se pode retirar diversas vantagens, principalmente para
o progresso da geografia e da segurança da navegação.
3. Considerações Finais
Nota 1- Localidades usadas para realizar as medidas para determinar a velocidade do som, de
acordo com o mapa da época. Fonte: http://vieux-marcoussis.pagesperso-orange.fr/Chroni-
ques/scientifique_clip_image002.jpg
Referências Bibliográficas
BOSS, S. L. B. Ensino de eletrostática: a história da ciência contribuindo para
a aquisição de subsunçores. 136 f. Dissertação (Mestrado em Educação para
a Ciência). Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru/SP,
2009.
Introdução
O século XIX foi um período marcado por diversos trabalhos científicos rela-
cionados ao eletromagnetismo. Logo nas primeiras décadas, o cientista dinamar-
quês Hans Christian Ørsted (1777-1851) realizou um experimento mostrando a
interação entre a corrente elétrica, que percorre um fio condutor, e a agulha iman-
tada de uma bússola colocada nas suas proximidades (ØRSTED, 1820)4 .
O cientista francês Dominique François Jean Arago (1786-1853), após assistir,
em Genebra, a realização do experimento feito por Ørsted, comunica à Academia
de Ciências de Paris a “grande descoberta”5 e repete esse experimento, em 11 de
6 Segundo Ampère, “os fenômenos magnéticos são produzidos unicamente pela eletrici-
dade, e de que não há nenhuma outra diferença entre dois pólos de um ímã, a não ser a
sua posição em relação às correntes que compõem o ímã [...]” (AMPÈRE, 1820, p. 76).
7 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: CHAIB, J. P. M. C.;
ASSIS, A. K. T. Sobre os efeitos das correntes elétricas – Tradução comentada da primei-
ra obra de Ampère sobre eletrodinâmica, Revista da SBHC, v. 5, n. 1, p. 85-102, 2007.
8 “Descobri diferenças mais notáveis ainda dispondo, em direções paralelas, duas partes
retilíneas de dois fios condutores que se ligam à extremidade de duas pilhas voltaicas.
Uma parte era fixa, e a outra, suspensa sobre as pontas e tornada altamente móvel por
um contrapeso, que podia se aproximar ou se afastar [da primeira parte] conservando o
seu paralelismo em relação à primeira parte. Observei, então que, passando ao mesmo
tempo uma corrente elétrica em cada uma destas partes, elas se atraíam mutuamente
quando as duas correntes estavam no mesmo sentido e que se repeliam quando fluíam
em direções opostas” (AMPÈRE, 1820, p. 69).
9 Uma montagem didática deste experimento pode ser obtida em: SOUZA FILHO, M. P.;
CHAIB, J. P. M. C.; CALUZI, J. J.; ASSIS A. K. T. Demonstração didática da interação entre
correntes elétricas, Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 4, n. 29, p. 605-612, 2007.
10 Os Srs. Biot e Savart foram conduzidos ao seguinte resultado que exprime rigorosamen-
te a ação experimentada por uma molécula de magnetismo austral ou boreal colocada a
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 131
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris
1820)11. Portanto, eram criados modelos explicativos consistentes para tentar des-
vendar a relação entre esses dois ramos da Física, que, até então, eram considera-
dos distintos.
Em 1820, François Arago publicou nos Anais de Química e Física um trabalho
intitulado “Experiências relativas à imantação do ferro e do aço pela ação da cor-
rente voltaica”, onde ele mostra que um fio enrolado no formato de hélice no qual
passa uma corrente elétrica se comporta semelhantemente a uma barra de ímã co-
mum, atraindo materiais ferromagnéticos. Ele observou que, se fosse introduzido
um núcleo no interior da espira ou solenóide, o efeito se intensificava. O tipo de
polos criados pelas espiras dependia do sentido em que elas eram enroladas e da
posição dos polos da bateria elétrica conectados aos terminais das espiras, ou seja,
do sentido no qual a corrente circulava pelo fio12 (ARAGO, 1820)13.
Na tentativa de explicar o que ocorria nas adjacências dos corpos interagentes,
o cientista inglês Michael Faraday (1791-1867), que era um excelente físico e quími-
co experimental, trouxe diversas contribuições para o eletromagnetismo. Faraday
foi adepto da concepção da existência do chamado “conflito elétrico” proposto por
Ørsted e “visualizou”, no entorno dos corpos, a presença de linhas físicas de for-
ça, o que hoje conhecemos e denominamos por “campo magnético” (FARADAY,
1935)14 . Além disso, o trabalho de Arago que trata da indução de correntes elétricas
uma distância qualquer de um fio cilíndrico muito fino e indefinido, tornado magnético
pela corrente voltaica (BIOT, SAVART; 1820).
11 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: ASSIS, A. K. T.;
CHAIB, J. P. M. C., Nota sobre o Magnetismo da Pilha de Volta – Tradução Comentada
do Primeiro Artigo de Biot e Savart sobre o Eletromagnetismo. Cadernos de História e
Filosofia da Ciência, v. 16, n. 2, p. 303-306, 2006.
12 O fio enrolado em hélice, após ser ligado aos polos de uma bateria voltaica, apresentava
polaridades e produzia os efeitos atrativos e repulsivos. Esta forma de utilizar a corrente
elétrica e utilizar um cilindro de aço como ímã ficou conhecida como solenóide ou ele-
troímã e está presente em uma infinidade de equipamentos modernos (SOUZA FILHO,
2009, p. 86-7).
13 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: SOUZA FILHO, M. P.;
CALUZI, J. J. Sobre as experiências relativas à imantação do ferro e do aço pela ação da
corrente voltaica: uma tradução comentada do atigo escrito por François Arago. Revista
Brasileira de Ensino de Física, v. 31, n. 1, 1603, 2009.
14 Faraday idealizou linhas físicas de força fechadas existentes no interior e no exterior dos
ímãs, que, segundo ele, são “aquelas representadas ao olhar, pelo uso de filas de limalhas
de ferro pulverizadas nas proximidades de um ímã” (FARADAY, 1935, p. 507).
132 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
15 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: FARADAY, M. Pes-
quisas experimentais em Eletricidade. Tradução: A.K.T. Assis e L.F. Harana. Cad. Bras.
Ens. Fís., v. 28, n. 1 p. 152-204, 2011.
16 Como veremos aqui, esses fenômenos descobertos mais tarde por Faraday foram forte-
mente influenciados pelo trabalho de Arago.
17 “Arago observou que certas substâncias metálicas produzem um efeito de amorteci-
mento sobre a agulha imantada. Embora o significado desta observação não tenha ocor-
rido a Arago naquele momento, o relato dessa observação o conduziu, posteriormente,
a receber a medalha de ouro “Copley Gold Medal” da Royal Society em 1825, por essa
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 133
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris
descoberta de que uma agulha magnética poderia ser afetada pela rotação de uma subs-
tância metálica não magnética - “disco de Arago”. Em 1831, Faraday explicou o efeito em
termos de indução” (HOWARD-DUFF, 1986, p. 28).
134 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
A primeira observação feita por Arago sobre o fenômeno que iremos tratar
parece ter sido em um trabalho relacionado à determinação do Meridiano de Gre-
enwich18 . Uma agulha magnética oscilando próximo a um metal apresenta uma
diminuição no seu arco de vibração e para mais rapidamente do que se ela estives-
se próxima de outro tipo de material qualquer19. Arago percebeu que o movimento
é relativo, pois, se ao invés da agulha oscilar nós tivermos uma placa se moven-
do, como, por exemplo, um disco de cobre girando, ele é capaz de tirar a agulha
magnética do repouso e fazê-la entrar em oscilação. Vamos deixar que o próprio
Arago, por meio dos dois comunicados que ele apresentou à Academia de Ciências
sobre o assunto, e os referenciais utilizados neste artigo, nos conte os detalhes do
fenômeno observado.
18 “Enquanto estava envolvido com o meu amigo Alexander von Humboldt, em 1822, sobre
a inclinação do Meridiano de Greenwich, em deteminar a intensidade da força magné-
tica, eu percebi que a agulha horizontal, depois de posta em movimento, pára muito
mais rapidamente quando colocada em sua caixa, do que quando era suspensa a uma
distância de corpos estranhos” (ARAGO, 1855, p. 290).
19 Veremos que existe uma controvérsia a esse respeito. Porém, Arago afirma que isso
ocorre na presença de qualquer substância, seja ela sólida ou líquida.
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 135
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris
20 Na época era comum o escritor narrar citando seu próprio nome. Arago utiliza a conju-
gação na terceira pessoa do singular (ele) citando como sujeito o “Sr. Arago” ao se referir
a si próprio.
21 Procés-verbaux dês séances de l’académie tenus depuis La fondation de l’Institut
jusqu’au móis d’août 1835. Publiès conformément à une décission de l’Académie M.M.
les secrétaires perpétuels. Tome VIII, annèes 1824 – 1827. Publication faite avec Le con-
cours de l’Institut de France – Fondations Debrousse ET Gas. Hendaye (Basses-Pyré-
nées). Imprimerie de l’Observatoire d’Abbadia. 1918. p. 158 – 159.
22 “O Sr. Arago comunicou verbalmente os resultados de alguns experimentos que ele fez
sobre a influência que metais, e muitas outras substâncias, exercem sobre a agulha
magnética, o efeito no qual se produz uma rápida diminuição do arco de vibração da
agulha, sem afetar sensivelmente seu tempo de vibração” (ARAGO, 1855, p. 290).
23 Nesta descrição verificamos que Arago relata que as amplitudes das oscilações depen-
dem do tipo de material: cobre vermelho, outro anel de cobre e a madeira. No entanto,
ele revelou ter recebido críticas: “existe uma memória Messrs. Leopold Nobili e Bacelli
de Modena, que contêm vários experimentos em direção oposta a minha, e que tenderia
admitir que não é verdade que todos os corpos na natureza exercem uma ação parti-
cular e muito intensa sobre a agulha magnética em movimento. O mérito do conheci-
mento daqueles cavalheiros, impõe a mim o dever de não deixar suas afirmações sem
respostas. Eu refutei seus experimentos no trigéssimo segundo volume dos “Anais de
Química e Física” (p. 213, 1826)”. Arago reconhece que os cientistas (como ele) devem
estar preparados para as críticas: “aqueles que decobriram um fato novo na ciência da
136 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Relato das seções da Academia real de Ciências. [...] Seção de segunda – fei-
ra, 21 de fevereiro de 182524 .
M. Arago apresenta à Academia um aparelho que mostra uma nova forma de
ação mútua entre os corpos imantados e aqueles que não o são25.
Em suas primeiras experiências (ver caderno de dezembro de 1824, página
363), M. Arago provou que uma placa de cobre (ou de todas outras substâncias
sólidas, ou líquidas), colocada abaixo de uma agulha imantada, exerce sobre ela
uma ação que tem por efeito imediato alterar a amplitude das oscilações, sem al-
terar sensivelmente sua duração. O fenômeno, o qual ele tratou hoje na Academia,
podemos assim dizer, é o inverso do anterior. Já que uma agulha em movimento
é parada por uma placa em repouso, M. Arago pensou daí que uma agulha em re-
pouso seria influenciada por uma placa em movimento. Se fizéssemos girar, efeti-
vamente, uma placa de cobre, por exemplo, com uma determinada velocidade, sob
uma agulha imantada dentro de um vasilhame todo fechado, a agulha não se po-
sicionaria mais em sua posição normal: ela iria para fora do meridiano magnético,
observação deve esperar, em princípio, ter a sua afirmação negada, ou seja, a importân-
cia e utilidade da sua descoberta contestada” (ARAGO, 1855, p. 291).
24 Annales de chimie et de physique, par MM. Gay-Lussac ET Arago. Tome 28, p. 325 – 326.
À Paris, Chez Crochard, Libraire, cloître Saint-Benoît, nº 16, près la rue des Mathurins,
1825.
25 Esse trecho aparece assim em Arago (1855, p. 290): “O Sr. Arago apresentou à Academia
um aparelho que mostra, de um modo completamente novo, a ação mútua que corpos
magnéticos e não magnéticos exercem uns sobre os outros” (ARAGO, 1855, p. 291, tra-
dução nossa).
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 137
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris
e iria tanto mais longe deste plano quanto o movimento de rotação da placa seria
mais rápido. Se este movimento de rotação é suficientemente rápido, a agulha, a
toda distância da placa, gira, ela mesma, de uma maneira contínua, em torno do
fio no qual ela está suspensa 26 , 27. Nós retornaremos em breve sobre as leis deste
fenômeno singular.
26 Esse trecho aparece assim em Arago (1855, p. 290): “Em seus mais recentes experimen-
tos, o Sr. Arago mostrou que uma placa de cobre, ou outra substância qualquer, sólida
ou líquida, colocada embaixo de uma agulha magnética, exerce sobre ela uma ação, cujo
efeito imediato é reduzir o arco de vibração da agulha sem alterar sensivelmente seu
tempo de vibração. O fenômeno que ele noticiou agora à Academia é, por assim dizer, o
inverso do precedente. Desde que uma agulha em movimento é trazida ao repouso por
uma placa que esteja em repouso, o Sr. Arago concluiu, por analogia, que o movimento
de uma placa afetaria uma agulha previamente em repouso. Ele encontrou, que se uma
placa de cobre, for girada, com uma determinada velocidade, debaixo de uma agulha
magnética encapsulada ao seu redor, por todos os lados, a agulha, mantida em sua po-
sição normal por um determinado tempo, adquire uma posição diferente do meridiano
magnético; e será tanto mais rápida [sua oscilação] quanto [mais rápido] for o movi-
mento de rotação. Se este movimento de rotação da placa for suficientemente rápido,
a agulha, embora esteja um pouco distante da placa, também gira continuamente ao
redor do seu ponto ou centro de suspensão”. (Tradução nossa).
27 Como veremos, outros cientistas fizeram experimentos movendo a placa metálica para
verificar sua ação sobre a agulha imantada.
28 Disponível em: www. lngs.infn.it.
138 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Depois que Arago publicou esses comunicados sobre a sua descoberta, ele re-
petiu este experimento a vários físicos ingleses, suíços e italianos, que passaram a
estudar o fenômeno observado por Arago. Segundo ele, a maioria dessas pesquisas
corroborou os seus resultados.
Porém, um problema enfrentado por Arago diz respeito a “prioridade da
descoberta”29, principalmente por algumas memórias apresentadas à Royal Society
de Londres e algumas publicações feitas pelo “Edinburgh Journal”30. Segundo ele,
isto foi gerado pelos trabalhos do Sr. Barlow31 e do Sr. Christie32 apresentados nas
datas de 05 de maio e 12 de maio de 182533, respectivamente. Além disso, o Sr. Bar-
low anunciou ter iniciado seus trabalhos sobre o efeito da rotação em uma esfera
de ferro34 no mês de dezembro de 182435.
34 “Os curiosos experimentos do Sr. Arago, descritos por Gay Lussac durante sua visita em
Londres, na primavera deste ano, no qual placas de cobre ou outras substâncias coloca-
das em rápida rotação, abaixo de uma agulha magnética, causando nela o desvio em sua
direção, e finalmente arrastando-a com elas, naturalmente excitaram muita atenção e
investigação de suas circunstâncias e suas conexões com os efeitos observados pelo Sr.
Barlow em dezembro, ao produzir a rotação de massas de ferro, e que foi descrito por ele
em um artigo lido à Sociedade, tornou-se um objeto de grande interesse” (BABBAGE;
HERSCHEL, 1825).
35 “O Sr. Barlow disse que ele tinha apenas começado a se ocupar com o fenômeno produ-
zido pela rotação do ferro em Dezembro; este foi um verdadeiro vexame, uma vez que
Novembro foi a data da minha primeira publicação!” Segundo Arago (1855, p. 294) é
certamente uma palavra que ele nunca escreverá no futuro.
140 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Uma das primeiras tentativas de explicar o fenômeno foi feita por Messrs No-
bili e Bacelli. A hipótese desses físicos foi de uma interação puramente magnética,
semelhante à explicação de Biot-Savart para o experimento de Ørsted, a qual ci-
tamos na introdução deste trabalho39. Segundo Arago, sua suposição inicial ou o
seu modelo explicativo para o fenômeno se assemelhou a este, mas ele considerou
irrelevante explicar somente a direção em que a agulha magnética era deslocada,
pois para ele não havia uma explicação satisfatória para o fenômeno que era ob-
servado40.
42 Ampère escreve ao amigo Arago: “deveria o sucesso desse experimento, aderir a minha
teoria como a verdadeira explicação para esses fenômenos. Em consideração a esse efei-
to, com todo o resto que eu publiquei, eu não vejo como alguém pode continuar encon-
trando objeções para ele” (ROSS, 1915).
144 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Para Steinle (1994, p. 295), Faraday foi atraído pelo experimento de Arago e
suas hipóteses são claramente dirigidas pela ideia de explicar o efeito por correntes
elétricas induzidas pelo magneto. A origem desta ideia pode ser somente especu-
lada pela teoria das correntes moleculares de Ampère, como causa do magnetis-
mo. Ele derivou desta teoria uma especulação da presença de correntes induzidas
fluindo na forma de vórtices, na mesma direção das supostas correntes molecula-
res amperianas, existentes nos polos magnéticos43.
Segundo Ross (1915), a distribuição das correntes circulares no disco de ro-
tação44 foi elucidada por Leopoldo Nobili (1784-1835), e o próprio experimento se
tornou, nas mãos habilidosas de Faraday, a base do primeiro gerador eletromagné-
tico de corrente contínua.
8. Considerações finais
Referências Bibliográficas
AMPÈRE, A. M. sur les effets des courants électriques Annales de Chimie et
de Physique, v.15, p. 59-76, 1820. Disponível em: <http://www.ampere.cnrs.fr>
Acessado em 22/nov/2007.
Dessa forma, entre os anos de 1930 e 1940, são acrescidas, ao quadro teórico
da biologia evolutiva, a construção e a fundamentação das ideias de Fisher, Hal-
dane e Wright no âmbito da genética de população, as quais foram cristalizadas
na Síntese Moderna. Embora vários autores e livros sejam usualmente citados em
consonância com a Síntese Moderna, para Pigliucci (2007), as três maiores contri-
buições foram as de Dobzhansky, Mayr e Simpson. O livro do primeiro e a sua fa-
mosa série de artigos “genética de populações naturais” traduziam as novas ideias
da genética de população para uma prática empírica, subjacente à demonstração
da existência de uma ampla variação genética na natureza. O livro de Mayr (1942)
trouxe uma sistematização das novas ideias, principalmente no que concerne ao
conceito biológico de espécie a estruturação de um pensamento evolutivo centrado
na população. Finalmente, Simpson (1944) argumentou que o tempo e o modo
da evolução entendidos na genética de populações eram compatíveis com o que
os paleontologistas chamavam de escala geológica e, assim, eliminavam qualquer
distinção controvérsia entre micro e macro evolução, com conotação saltacionista
(PIGLIUCCI, 2007).
Assim, após a estruturação da síntese evolutiva — o movimento de fusão do
mendelismo e do darwinismo realizado a partir da década de 1920 e concretizado
nos anos 1940,
bar nenhuma das fundamentações anteriores. Mas muitos autores insistem que,
mudança de paradigma ou não, a Síntese Modera (MS), cujo quadro conceitual
perdura desde 1940, precisa de uma extensão significativa (PIGLIUCCI, 2007).
Para Pigliucci (2007), a teoria evolutiva mudou de uma teoria das formas para
uma teoria de genes e, agora, há necessidade novamente de referências consistentes
relativas à teoria da forma, coerente aos avanços de pesquisas que possibilitaram a
consolidação do campo de estudo da Evo-Devo.
explicação plena do fenômeno evolutivo requer coordenadas teóricas que não po-
dem ser definidas em termos da própria teoria da seleção natural.
Dessa forma, faz-se necessário conceder espaço para uma nova categoria de
fatores causais que, ao lado da seleção natural, também estariam pautando o ca-
minho da evolução (CAPONI, 2011).
Para Piglucci (2007), a segunda peça que está faltando parece difícil de ser co-
locada: embora alguns autores têm recentemente proposto o termo eco-evo-devo,
é a perspectiva ecológica. Obviamente, a ecologia estava implícita na SM, mas,
até hoje, há uma desconfiança entre ecologistas e biólogos evolutivos e, as vezes,
dicotomias são estabelecidas, como por exemplo o frequente ditado “escala ecoló-
gica” e “escala evolutiva”. Considerando que a seleção natural (que é o resultado de
fatores ecológicos) afeta a população de uma geração para uma muito próxima, é
difícil sondar o que as pessoas pensam em relação à distinção da escala ecológica e
evolutiva. Talvez, o mais importante, é que a teoria ecológica dificilmente aparece
nos estudos de evolução, a não ser como um pano de fundo.
Considere o exemplo da seleção natural (BELL, 1997): dado que a mesma é o pilar
central da teoria evolutiva desde Darwin, deveríamos ter uma compreensão muito
melhor desse mecanismo do que temos. Ao invés disso, muitos estudos sobre seleção
natural tendem a focar em estatísticas preliminares de uma avaliação da covariância
da característica adaptável, mesmo que isso seja lamentavelmente inadequado pelo
seu próprio padrão interno de replicação e poder estatístico. Estudos sobre seleção
natural incluindo as interações ecológicas são difíceis de encontrar, e nós temos qua-
se nenhum entendimento de como essas interações/relações atuam na evolução das
novidades fenotípicas ou durante as principais transições na evolução.
É preciso explicar, por exemplo, em quais situações ecológicas organismos
muito diferentes da média morfológica de suas populações podem levar vantagem,
relativamente a outros organismos, tendo mais sucesso na obtenção de recursos e,
assim, na sobrevivência e reprodução (ALMEIDA e EL-HANI, 2010). Nesse senti-
do, atribuído o papel do ambiente (com todo arcabouço ecológico) na participação
dos traçados evolutivos dos organismos, Almeida e El-Hani (2010) apontam como
a evo-devo deve evoluir naturalmente para uma eco-evo-devo.
Laland, Odling-Smee e Gilbert (2008) ressaltam essa falta de espaço teórico e
empírico para a área da ecologia na Síntese Moderna, argumentando sobre a exis-
tência de uma lacuna na biologia evolutiva, traçada pela não abordagem do papel
desempenhado pelo ambiente na evolução orgânica. Essa participação do ambien-
te, o qual estabelece uma relação de influência mútua com os organismos, para
muitos autores, pode ser traduzida por meio da “Teoria de Construção do Nicho”.
156 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Com base nesse questionamento, ficou claro que uma das dificuldades con-
ceituais expostas pelos alunos nas reuniões está centrada na afirmação de que os
162 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
4. Considerações finais
preensão de que o conhecimento, embora vigente por muitos anos, está sujeito a
embates constantes. É importante ressaltar que esses embates não culminam, ne-
cessariamente, com a obliteração ou abandono de um paradigma, mas com refle-
xões imanentes a uma nova estruturação que, na maioria das vezes, ainda mantém
os “pilares” desse paradigma inalterados. A manutenção desse diálogo deve ser
uma constante entre pesquisadores e professores, uma vez que as pesquisas devem
atingir a formação inicial.
As reuniões do GPEB situam os alunos em um espaço de formação cujo ob-
jetivo vai além das modulações conceituais consensuais e bem estabelecidas nos
currículos ou bem descritas nos materiais didáticos, propondo uma organização
que solidifica a relação entre o fazer científico e o conhecimento engendrado nos
ambientes de formação (no caso, de ensino superior). Assim, discussões contem-
porâneas acerca de configurações conceituais são debatidas com os alunos, de
forma a auxiliá-los a pensar epistemologicamente, expondo dificuldades, as quais
podem ser indicadores de artefatos necessários para subsídios didáticos.
O recorte apresentado aqui faz referência a conceitos discutidos em artigos
publicados atualmente sobre biologia evolutiva e procura investigar qual o posi-
cionamento argumentativo dos alunos perante a essa abordagem atual. Os dados
indicam que os participantes do grupo não têm acesso a leituras ou discussões
dessa natureza nas disciplinas do curso de graduação. Esse contexto reitera a ne-
cessária articulação entre a epistemologia e a didática, uma vez que a consolidação
das abordagens epistemológicas no ensino pode ocorrer por meio de produções
didáticas, sejam elas textos, diagramas ou esquemas.
Assim, nosso intuito foi enfatizar a importância da inserção de discussões
atuais no Ensino de Biologia, bem como configurar direcionamentos construções
de uma Didática da Biologia que seja orientada por pressupostos epistemológicos.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, A.M.R.; EL-HANI, C.N. Um exame histórico-filosófico da biologia
evolutiva do desenvolvimento. scientiæ zudia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9-40,
2010.
LALAND, K.N.; ODLING- SMEE, J.; GILBERT, S.F. Evo-Devo and Niche
Construction: Building Bridges. J. Exp. Zool. (Mol. Dev. Evol.) 310B, p. 549–
566, 2008.
Introdução
Os valores cognitivos são critérios que a teoria deve contemplar para que seja
aceita pela comunidade cientifica. Lacey nos apresenta a seguinte lista trazida aqui
de forma resumida, embora ressalta que estes não são os únicos, mas os mais re-
presentativos:
1. Adequação empírica – aspectos que tratam da relação entre a teoria pro-
posta e os dados empíricos a ela relacionada.
2. Consistência – nos argumentos estruturantes da teoria, em sua relação
com outras teorias aceitas e com as concepções dominantes em torno do
objeto de estudo.
3. Simplicidade – da própria teoria (harmonia, clareza conceitual, elegância).
4. Fecundidade – potencial para fomentar a atividade cientifica.
5. Poder explicativo – capacidade de explicação do fenômeno proposto a es-
clarecer, assim como a capacidade em unificar outros fenômenos e teo-
rias, e possibilitar uma argumentação em torno do que é infundado em
teorias anteriores.
6. Verdade; certeza – a veracidade dos argumentos teóricos em relação a
princípios fundamentais e aos dados.
Dessa forma, o autor divide a sua discussão em três níveis: o primeiro é aquele
em que se selecionam as questões, os dados a serem investigados e se restringem
as teorias a serem consideradas (momento em que os valores sociais estão envol-
vidos, portanto é não neutro e não autônomo); outro nível é aquele da aceitação
da teoria no qual somente os valores cognitivos devem ser suficientes (visando a
imparcialidade); e um terceiro nível, que corresponde à apropriação e aplicação
do conhecimento científico (em tecnologia, por exemplo, que envolve também os
valores sociais).
A filosofia do materialismo científico possui uma formulação em torno do
que é a lei, a teoria, como elas se constituem, qual sua estrutura, função, valida-
ção e abrangência explicativa. Assim, de forma simplificada, as leis representam
relações entre quantidades. As teorias, por sua vez, expressam uma imagem das
coisas em termos de leis e quantidades. Nas teorias, os fenômenos são apresentados
abstraindo-se de qualquer relação com as questões relativas a valores sociais, por-
tanto estes últimos são irrelevantes para a representação teórica. Tais teorias são
comprovadas a partir de sua relação com os dados empíricos selecionados, estes que
são submetidos a critérios intersubjetivos de replicabilidade. Neste âmbito, os dados
que possuem maior destaque são os quantitativos, os que descrevem os fenômenos
abstraindo-os de seus contextos de valor, e o mais importante, os dados obtidos por
observação dos fenômenos produzidos pela experimentação (LACEY, 1998).
Neste sentido, “o objetivo da ciência é representar (em teorias racionalmente
aceitáveis), as estruturas, processos e leis subjacentes aos fenômenos e, a partir
disso, descobrir novos fenômenos” (LACEY, 1998, p. 69), ainda de acordo com este
objetivo “a teoria cientifica representa objetos [...] simplesmente em termos de suas
estruturas e seus componentes que interagem entre si segundo leis formuláveis
matematicamente” (LACEY, 1998, p. 70).
Considerando esta caracterização, a teoria escolhida para tal exercício foi a
teoria da seleção de parentesco, entendendo-a como coerente com a filosofia ma-
terialista discutida por Lacey (1998), e sendo fortemente reconhecida dentro da
comunidade científica das ciências biológicas.
Finalizando esta apresentação, ressalta-se que, ao utilizar a abordagem de La-
cey, se exige o conhecimento sobre a história da construção da teoria. O autor
chega a sugerir alguns dos critérios relevantes durante uma reconstrução racional
da aceitação de uma teoria. Segundo o autor:
Sendo assim, é trazida uma síntese da teoria com os pontos considerados mais
relevantes para a identificação dos valores cognitivos envolvidos e, por fim, a lista
de valores cognitivos é elaborada e discutida.
Além disso, afirmava-se que havia a competição entre os indivíduos para que
eles pudessem ter um maior sucesso reprodutivo e, para isso, eles investiam suas
capacidades neles próprios e não em quaisquer outros, buscando maximizar seu
sucesso ecológico (MAIA, 2005). Tais afirmações fazem sentido e explicam vários
fatos na natureza. Contudo, como se explica a organização social das abelhas, em
que apenas uma fêmea (rainha) se reproduz e os demais integrantes da sociedade
172 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
soma da aptidão própria do indivíduo e todos os efeitos que causam às aptidões das
partes relacionadas de todos seus parentes.
No contexto de questionamentos apresentados anteriormente, surgidos prin-
cipalmente por observações empíricas de comportamentos altruístas dos animais
que não eram explicados pelas teorias existentes e estavam em descompasso com a
ideia de seleção natural, questiona-se: como tais comportamentos evoluíram? Em
outros termos, como eles conseguiram se manter nas populações mediante a ação
da seleção natural?
Uma resposta é que os animais comportam-se altruisticamente somente em
relação a seus parentes (irmãos, primos, pais e filhos) que possuem alguns genes
em comuns entre si.
A aptidão abrangente é um termo usado por Hamilton (1964) como uma ma-
neira de calcular as condições sob as quais um gene poderia se disseminar numa
população, levando em conta o efeito que portadores deste gene poderiam ter em
diferentes tipos de parentes. A proposição de Hamilton teve muito êxito e se ba-
seou no tipo de reprodução dos hymenoptera (insetos sociais – formigas, vespas,
abelhas), a qual tem um ciclo haplo-diplóide, isto é uma fase do ciclo reproduti-
vo é assexuado (haplóide: n), em que se originam os filhos sem a contribuição do
cromossomo do macho, e outra parte do ciclo é sexuada (diplóide: 2n), em que há
a junção dos cromossomos masculinos e femininos n+n que originam as fêmeas
(DEAG, 1981; SMITH, 1984). Neste sentido, este pesquisador é considerado apa-
rentemente o primeiro a apreciar a síntese da genética mendeliana com a teoria da
seleção natural de Darwin, tendo uma profunda implicação na teoria social (TRI-
VERS e HARE, 1976).
174 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Para incluir um valor na lista é necessário que o item satisfaça duas condições:
“1) que seja necessário para explicar (mediante reconstrução racional) as escolhas
da teoria efetivamente realizadas pela comunidade científica; e 2) que sua signifi-
cação cognitiva ou racional seja bem sustentada” (LACEY, 1998, p. 65).
A partir da literatura consultada sobre a teoria, percebeu-se que um dos valo-
res mais ressaltados pelos autores foi a consistência necessária dentro da própria
teoria e de sua consonância em relação a outras teorias e leis aceitas (como seleção
natural, genética mendeliana e genética da população).
A adequação empírica é o segundo valor, mas também poderia ser o primeiro,
pois, dentro da estratégia materialista, se não houver uma forte relação entre te-
oria e o fenômeno, a teoria não é aceita. Porém, por ter notado que um dos fortes
pressupostos para a consolidação da teoria foi sua consonância principalmente
com a seleção natural, então é coerente a adequação estar em segundo lugar. To-
davia fica uma dúvida em relação a tal escolha, pois Lacey coloca como aspecto
da adequação empírica a teoria estar de acordo com o conteúdo não refutado das
teorias anteriores. Então, se percebe uma ambiguidade neste aspecto, pois estar de
acordo e estar em consonância com a teoria soam com o mesmo sentido e valem
tanto para um valor quanto para o outro. A adequação empírica diz respeito a
alguns fatos, visto que o modelo matemático de Hamilton demonstrou-se eficaz
ao explicar como a frequência do gene que expressa o comportamento altruísta se
mantém dentro da população e como ele pode fornecer uma vantagem seletiva.
Mas tal explicação diz respeito somente ao altruísmo em relação a parentes, mas
em relação a não-parentados foram necessárias outras teorias para explicar (teoria
dos jogos e teoria do altruísmo recíproco).
O terceiro valor cognitivo valorizado é a simplicidade da teoria: com um mo-
delo simples e explicitando os conceitos, ela é clara e facilmente aplicável.
O poder explicativo (considerado característico de sua adequação empírica,
consistência e simplicidade) encontra-se em quarto lugar, pois forneceu a explica-
ção para a evolução do comportamento altruísta apresentado de diferentes formas
em diferentes espécies.
A fecundidade é o quinto valor, mas não menos importante que os anterio-
res, pois com a resolução do problema em torno da evolução do comportamen-
to altruísta tornaram-se possíveis o esclarecimento em torno do comportamento
social, um fortalecimento da teoria da seleção natural e uma contribuição para a
constituição da etologia e a sociobiologia. Unida a outras teorias como a teoria da
176 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
4. Considerações finais
Referências Bibliográficas
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II. Journal of Theoretical Biology 7(1): 1–52, 1964.
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EISENBERG, J. F.; DILLON, W. S. (eds.) Man and beast: comparative social
behavior, p. 57-91, 1971b
LACEY, Hugh. Valores e atividades científicas. São Paulo: Discurso Editorial, 1998.
___. Existe uma distinção relevante entre valores cognitivos e sociais? Scientiae
Studia, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 121-149, 2003.
MAIA, Antonio Carlos do Amaral. Bases evolutivas do comportamento
humano. (Artigo referente a uma conferência). 2005. p. 1-36. Disponível
em: <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAqjgAA/as-bases-evolutivas-
comportamento-humano>. Acesso em 3/10/2011
MARTINEZ, Maximiliano. La evolución del altruísmo. Revista Colombiana de
Filosofia de la Ciencia. v.4, nº 8-9, p. 27-42, 2003. Disponível em: <http://redalyc.
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SMITH, John. Maynard. La teoria de la evolución. 1 ed. Trad. RESINES,
Antônio. Madri: Unigraf, S.A Paredes 20, 1984, 372p.
TRIVERS, Robert L.; HARE, H. Haploidploidy and the evolution of the social
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Acesso em 3 de outubro de 2011.
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as ciências biológicas e as ciências sociais. Estudos avançados [on-line] v. 22,
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v22n63a19.pdf>. Acesso em 3 de novembro de 2011.
CAPÍTULO 9
Introdução
3 Jean Jacques Élisée Reclus (1830-1905) foi um dos fundadores da Geografia Humana.
Refugiou-se na Suíça depois de ser expulso da França, devido à participação na Comuna
de Paris (1871). Na Suíça, em Clarens, Vaud, se encontrou com Bertoni. Ao mesmo tem-
po, Peter Kröpotkin (1842-1921), de volta à Suíça, com Reclus funda o jornal Le Revolte.
Eles convidam Bertoni, que havia abandonado os estudos em Direito, para trabalhar no
jornal, aflorando-se neste, mediante discussões com os colegas, o interesse por criar
uma comunidade agrícola socialista (com base na ideia de ajuda mútua).
182 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Pelo que parece, à primeira vista, Bertoni, sabendo das expedições realizadas
por Humboldt4 , escolhe Misiones, mantendo, além de aspectos visionários polí-
ticos, interesse pelas pesquisas científicas que poderiam ser realizadas nas matas
não exploradas, para ele, um verdadeiro museu a céu aberto (RAZERA, 2003).
Seus estudos, descritos ao longo deste trabalho, diferenciam-se dos desenvolvi-
dos por Humboldt e Darwin5, expedicionários que também tiveram empenho no
âmbito científico, porém, pelo que se conhece, sem os interesses políticos que, de
maneira análoga à ciência, moveram Bertoni.
Em meados do século XIX, a América do Sul passou a ser um grande atrativo
para os europeus que buscavam concretizar suas utopias em contraposição à socie-
dade moderna europeia, onde já não havia muitos atrativos econômicos, políticos
e nem religiosos. A América do Sul amparava os imigrantes europeus que deseja-
vam estabelecer-se no território, com o objetivo de ocupar a grande quantidade de
terras, potencializando a economia, além de, em alguns casos, promover o que se
chamava de “branqueamento da raça” (JARA, 2005-2008).
Neste contexto histórico, Moisés Bertoni chega ao território de Misiones com
sua família e cerca de 40 agricultores que, com ele, tinham o objetivo de fundar
uma colônia agrícola. Na região de Santa Ana, inicia seus trabalhos experimen-
tais nas áreas agrícolas, botânicas, zoológicas, meteorológicas e etnográficas. En-
tretanto, devido a conflitos políticos, decide mudar-se em 1887 para o Paraguai,
fundando em 1891, sobre as margens do rio Paraná, num perímetro de cerca de
12.500 km², a colônia Guillermo Tell, conhecida posteriormente como Puerto Ber-
toni, a moradia definitiva da família Bertoni, onde se dedica, com afinco, às suas
investigações e análises científicas. Devido às adversidades encontradas em fun-
dar a colônia agrícola, conforme Jara (2005-2008), os ideais políticos de Bertoni
são substituídos pelo nacionalismo, sobretudo no estudo dos indígenas da região
como uma “raça superior”, constituindo forte influência para a formação cultural
do Paraguai, assunto tratado adiante.
4 Alexandre Von Humboldt (1769-1859), explorador alemão, trouxe, por meio de suas pesquisas,
importantes contribuições para as áreas da Geografia, Geologia, Climatologia e Oceanografia.
Realizou viagens exploratórias pelas Américas Central e do Sul (1799-1804) e pela Ásia Cen-
tral (1829), que o tornaram mundialmente conhecido ainda antes da sua morte.
5 Charles Robert Darwin (1809-1882) foi co-fundador da teoria da Evolução das Es-
pécies a partir da Seleção Natural, com Alfred Russel Wallace (1823-1912). Em 1848,
realizou uma expedição no Brasil ao lado do entomologista inglês Henry Walter Ba-
tes (1825-1872), conhecendo a região Amazônica. No período de 1854-1862 realizou
uma nova expedição, dessa vez ao Arquipélago Malaio, situado entre o continente
do Sudeste Asiático e a Austrália, entre os oceanos Índico e Pacífico.
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
183
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências
Bertoni, em meio à vida na mata, elabora mais de 500 trabalhos, dos quais 107
foram identificados na Suíça, 28 na Argentina e 389 no Paraguai. Polivalente, em
seus estudos se ocupa da agricultura, com estudos sobre práticas agrícolas e dados
meteorológicos voltados ao cultivo das plantas, e à etnologia, com estudos entre
as comunidades Mby’a e Avá Guarani. Monta um laboratório e uma imprensa (Ex
Sylvis), um correio postal, um porto comercial e uma estação agrônoma.
3. A Civilização Guarani
Afirmações errôneas
presentes na litera- Observações de Moisés Bertoni
tura da época
Guaranis não tinham Os guaranis transformavam suas aldeias em verdadeiros
animais domésticos abrigos, acolhendo as mais diversas espécies de animais.
Guaranis não
Tinham conhecimento de prata, ouro, zinco e ferro.
conheciam os metais
Guaranis viviam na A maioria era monogâmica, apenas um número limitado
poligamia optava pela poligamia.
Guaranis viviam em As crenças do povo Guarani eram fundamentadas princi-
profunda feitiçaria palmente pela ausência de feitiçaria.
Guaranis utilizavam
flechas envenenadas Para os guaranis, o arco e a flecha eram símbolo da paz. Con-
para a produção de sideravam deplorável matar seus semelhantes com flechas.
feridas mortais
Guaranis eram cani- Esse costume não existia nas principais nações guaranis,
bais, principalmente apesar de algumas nações indígenas, em ritual, consumirem
no Brasil a carne dos inimigos após serem mortos.
Moisés Bertoni, em suas análises, vai além dos estudos sobre as característi-
cas dos povos Guaranis enquanto civilização, diferenciando-os de outros povos
indígenas da América Latina e de outras partes do mundo. Trata de estudos em
linguística, elaborando um glossário comparativo entre os vocábulos guaranis e de
186 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Entre os estudos sobre os aspectos culturais dos guaranis presentes nas obras
de Moisés Bertoni, são sinalizados em seu segundo livro os primeiros delineamen-
tos sobre informações de caráter botânico, com a menção do uso de plantas como
alternativas medicinais, ou mesmo alucinógenas, em rituais religiosos:
[...] não só os Guarani, mas quase todos os índios, tem o tabaco como
meio para amortecer a sensibilidade e não sentir dor. Também uti-
lizam para provocar visões, mas esta de forma menos eficaz do que
com a kurupá. Externamente eles usam doses pesadas em forma de
emplastos, conseguem um efeito local, mais sensível se o tabaco for
misturado com kurupá (p. 37 do livro Religião e Moral, trad.).
Também pode ser notada, em seu segundo livro, a importância atribuída aos
hábitos de higiene guaranis, relacionando-os à saúde: “A boa higiene, contribui,
sem dúvida, para que os anciãos conservem a memória e o espírito limpos” (p. 222
do livro Religião e Moral, trad.).
6 Moisés Bertoni produz outros materiais envolvendo os estudos sobre a Língua Guarani,
com aspectos gramaticais e ortográficos, sendo dois importantes a Ortografia Guarani
(1927) e La Lengua Guarani (1940, obra póstuma).
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
187
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências
Conforme pode ser visto, o pesquisador suíço afirma neste trecho que os indí-
genas que adotavam hábitos de higiene e alimentares adequados atingiam a longe-
vidade. Ao observar a alimentação desses indígenas, ele a relaciona com os estudos
realizados na área da Medicina. Em suas palavras: “Há muito tempo atrás, muitos
médicos higienistas vem alertando que o homem pode viver muito mais tempo,
tendo métodos de alimentação mais racional, ou melhor, mais natural” (BERTO-
NI, 1927, Religião e Moral, trad).
Ainda sobre os hábitos alimentares, Bertoni pondera que os indígenas não se
alimentavam em excesso, nem bebiam ao mesmo tempo, lavando-se várias vezes
ao dia, principalmente ao levantar e antes das refeições, que eram preparadas após
a lavagem dos alimentos, hábitos que os europeus não tinham e que julgava neces-
sários para a manutenção da boa saúde. Nesta linha de raciocínio, cita, ainda, o
cuidado dos indígenas em relação aos excrementos:
Bertoni dedica dois capítulos deste terceiro livro ao levantamento das espécies
de plantas, tendo como base de estudos botânicos as observações da cultura dos
povos guaranis, elencando o merecimento de maiores análises de suas proprieda-
des terapêuticas, sendo assinaladas para a comunidade científica internacional,
por meio de suas publicações. Entre as espécies mencionadas pelo pesquisador su-
íço, será exemplificada a erva-mate (Ilex paraguarienses), utilizada nos dias atuais
na forma de bebida quente ou fria em alguns países da América do Sul. Em relação
a esta, discorre sobre a necessidade de serem conhecidos os resultados de estudos
científicos e experimentação.
São apontadas as potencialidades econômicas da planta, dedicando-se logo em
sequência um capítulo do livro à apresentação de suas propriedades, com a des-
crição de seus componentes (um deles a mateína), bem como suas prováveis ações
no organismo: “[...] A ação principal é sem dúvida, o despertar geral de forças e
funções vitais”, (p. 469, Conhecimentos, 1927, trad.).
Outro ponto interessante a destacar é que o pesquisador Bertoni revela, em
sua visão científica, em vários pontos de suas obras sobre o povo guarani, a po-
sição em relação às crenças indígenas, ressaltando o caráter da ciência em seus
estudos, como se visualiza neste último trecho a ser mencionado aqui, em relação
à Ilex paraguaienses. Podem também ser observados comparativos em relação ao
preparado da planta, em detrimento do café e chá (este último não especificado).
Como pode ser visto, Bertoni, ao realizar seus estudos antropológicos sobre
a civilização Guarani, contribui muito com os estudos em botânica. Realiza, em
1899, uma análise e descrição de uma planta mencionada pelos guaranis em 1887:
a ka’a he’e, hoje conhecida como Stevia rebaudiana bertoni, da família das asterá-
ceas, a “erva doce” (hierba dulce), em uma tradução do guarani, muito apreciada
pelos indígenas devido às suas propriedades edulcorantes, utilizada para amenizar
o sabor amargo da erva-mate.
Fato interessante é que somente em 1899 consegue realizar os estudos, devido
ao estreitamento de suas relações com os índios, que, conforme seus registros, for-
necem amostras da planta para suas pesquisas.
Em 1900, realiza, com o apoio de um amigo paraguaio, Ovídio Rebaudi (resi-
dente na época na Argentina), a análise e identificação de dois compostos quími-
190 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
cos na planta sacarífera ka’a he’e, mais adiante chamados de esteviosideo e rebau-
diosideo, estáveis ao calor e que não fermentam (LANDÁZURI; TIGRERO, 2009).
Nomeada a princípio como Rebaudianum eupatorium, em 1905, a planta re-
cebe o nome científico definitivo de Stevia rebaudiana bertoni, sendo referenciada
por Moisés Bertoni ao longo de seu artigo Le kaá he-é: a natureza de suas proprie-
dades (BERTONI, 1905).
Conforme tratam Buttura e Niemeyer (2011, p.54), a Stevia rebaudiana bertoni,
em comparação com as propriedades da sacarose, tem as seguintes características:
5. Considerações finais
Estudos como este são de grande importância para a promoção de uma re-
flexão no campo do Ensino de Ciências, em detrimento da necessidade em espe-
cial que se tem de abranger-se o caráter científico da natureza do conhecimento,
proporcionando aos educandos a desvinculação da visão simplista de saber pre-
viamente elaborado, entendendo-se que a gênese da ciência envolve um processo
histórico, em que há a aceitação, modificação ou mesmo a rejeição de teorias, evi-
denciando assim, a relação existente entre o saber científico e o contexto social em
que se desenvolve.
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
193
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências
Referências Bibliográficas
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do Iguaçu: Epígrafe. 2011.
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GOERZEN et.al. El sorprendente legado que nos dejó el sabio Moisés Bertoni:
el Ka’a He’ê. Memórias do Instituto de Investigação em Ciências da Saúde: v.9
n.1. p.60-63, Assunção, Paraguai. 2011.
Introdução
na teoria, entre eles, o famoso Experimento EPR, através do qual denota a incomple-
tude da MQ, ou seja, a necessidade de variáveis ocultas. Para Einstein, objetos quân-
ticos que provêm de uma origem comum, ou seja, que interagiram anteriormente,
deveriam ter independência. Além disso, uma medida interferir em outra espacial-
mente afastada consistiria em um tipo de ação fantasma a distância, que violaria a
relatividade, já que esta interferência seria dada instantaneamente. A exemplo disso,
pode-se citar a medição do spin de dois elétrons que inicialmente interagiram local-
mente. Após sua separação, segundo Einstein, não seria concebível que uma medida
interferisse na outra, de tal forma que os spins tivessem sentidos opostos. A resposta
de Bohr foi de que as condições propostas no experimento eram conflitantes, deter-
minando então a “totalidade” essencial da MQ.
A ideia de estados emaranhados concebendo uma ação fantasma a distância
com velocidade superior à da luz foi o cerne das questões levantadas por Einstein,
Podolsky e Rosen. Assim, questões de quase um século atrás, referentes à natureza
do conhecimento e aos limites da descrição total da realidade, ainda permanecem
atuais. Porém, as concepções de senso comum acerca do teleporte encontram-se
desprovidas tanto de natureza conceitual quanto filosófica. Um esclarecimento
acerca destas questões faz-se necessário, tendo em vista a riqueza do assunto para
abordagens de conceitos físicos, assim como de elementos de Filosofia da Ciência.
Faremos, assim, um breve apanhado3 sobre algumas questões históricas refe-
rentes a alguns aspectos da MQ, em especial o emaranhamento quântico e, através
de uma consequência direta deste conceito – o teleporte quântico – discutir algu-
mas interpretações e implicações filosóficas da MQ.
Mostraremos, ainda, como as questões levantadas pelo paradoxo EPR ao lon-
go da construção da MQ mantêm-se dentro do quadro conceitual do teleporte
e como diferentes interpretações filosóficas nos levam a diferentes ideários em
relação à “busca da Ciência”.
3 Para uma abordagem histórica e filosófica mais completa da MQ, reportamos o leitor a
JAMMER (1974).
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 197
A Mecânica Quântica (MQ) é considerada uma das teorias (ou “a” teoria) de
maior sucesso na história das Ciências, tanto do ponto de vista teórico quanto
do ponto de vista experimental. Seu formalismo matemático elegante e profun-
damente sólido permite a previsão teórica qualitativa e quantitativa de efeitos que
vão desde o espectro atômico e taxas de decaimento até a pressão eletrônica em
estrelas de nêutrons e a nucleossíntese primordial em eras remotas do Universo e,
admiravelmente, estas previsões são confirmadas experimentalmente, com uma
precisão espantosa4 . Assim, é notório o sucesso da MQ em descrever e prever fenô-
menos naturais que ocorrem em tubos de televisão, nos laboratórios das Universi-
dades e nas regiões mais distantes do Cosmo.
Isto posto, um raciocínio óbvio que se pode ter com respeito a essa teoria é que,
dado seu enorme sucesso previsivo e seu poderoso aparato matemático, é claro que
ela é completamente entendida, desde seus pressupostos e conceitos mais básicos
até suas consequências mais complexas e intrigantes. Porém, como veremos ao
longo do texto, esta conclusão está muito longe de ser verdade. Desde o princípio
da construção da MQ, no início do século passado, seus conceitos primitivos e suas
consequências, juntamente com o poderoso mas “estranho” formalismo matemá-
tico usado para descrevê-los, vêm sendo alvo de reflexões, consternamento, críti-
cas, estupefação e, até os dias atuais, muitos (para não dizer todos) destes ainda
não são totalmente compreendidos.
Olhando para os dois parágrafos anteriores, que transmitem ideias tão opostas
em relação à MQ, uma pergunta logo vem à tona: “Por que não consegue-se enten-
der uma teoria com tanto sucesso teórico e experimental?”. É neste sentido que faz-
-se importante uma reflexão filosófica mais aprofundada sobre a MQ e seus obje-
tos. A MQ foi (e ainda é) construída através de uma ruptura com a visão de mundo
clássica, determinista, Lagrangiana, onde podia-se interferir com a Natureza sem
afetá-la – pelo menos em princípio. Nesta visão de mundo, a intuição desempenha
um papel fundamental, pois pode-se interagir com a Natureza através dos sentidos
(ou no máximo através de aparatos experimentais com efeitos macroscópios). Ou
Como visto na seção anterior, várias formulações da MQ, com diferentes pres-
supostos e “objetos fundamentais”, foram desenvolvidas entre as décadas de 1920
e 1950. A partir delas, e também dos vários experimentos realizados à época com
resultados surpreendentes do ponto vista intuitivo, várias interpretações diferen-
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 201
Foi somente com a teoria quântica que pudemos aprender que uma
ciência exata é possível sem que se aceite o realismo dogmático.
Quando Einstein criticou a teoria quântica, ele o fez com base no
realismo dogmático. Essa é uma atitude natural. Todo cientista
que faça trabalho de pesquisa sente estar procurando por algo que
é objetivamente verdadeiro.
Mas o que seria esta nova visão de mundo? De onde ela surgiu? Para responder
a esta questão, devemos olhar para como os vários formalismos da MQ levaram a
diferentes interpretações da Natureza microscópica5. E por que uma mesma teoria
(mesmo que com formulações diferentes) leva a várias interpretações de mundo?
Por que necessita-se “interpretar” os dados que obtemos nos experimentos? Nas
palavras de Rubem Alves (ALVES, 2007):
5 Para uma análise detalhada das várias interpretações, além do livro de Jammer, já ante-
riormente citado, uma ótima referência é PESSOA JR. (2003).
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 203
Einstein, por outro lado, concordava com Bohr em que a função de onda não
representava uma realidade objetiva, dando-a uma interpretação apenas epistêmi-
ca. Todavia, Einstein tinha uma postura filosófica realista e acreditava que a MQ
deveria fornecer meios de entendermos a realidade objetiva do mundo microscópi-
co, independentemente do observador. O fato de a função de onda de Schrödinger
(o “objeto” principal na formulação ondulatória da MQ) fornecer apenas um co-
nhecimento probabilístico a respeito de uma realidade mais profunda o incomo-
dava, e isto o levou a concluir que a MQ deveria ser modificada em algum limite
mais fundamental.
Nesta mesma linha que defende uma ideia epistêmica da função de onda
(estado quântico), mas levemente diferente, algumas interpretações baseadas na
formulação dos ensembles estatísticos também surgiram (BALLENTINE, 1970).
Na interpretação estatística, o estado quântico em si representa um conhecimen-
to apenas estatístico, ligado à montagem experimental (preparação). Um estado
quântico representaria então uma média estatística das posições de um grande
conjunto (ensemble) de partículas, evidenciando também uma visão corpuscular -
porém incompleta - dos “objetos” quânticos.
As três interpretações descritas acima possuem em comum o fato de inter-
pretarem a função de onda, ou estado quântico, de maneira epistêmica, ou seja,
a descrição quântica de um sistema forneceria apenas o conhecimento acerca dos
processos quânticos, e não um elemento real objetivo sobre estes. Outras interpre-
tações, que atribuem uma visão realista à função de onda, também foram constru-
ídas no desenvolvimento da MQ.
Em 1957, o físico americano Hugh Everett propôs uma nova e excêntrica in-
terpretação da MQ (EVERETT, 1957), que atualmente é chamada de interpretação
dos muitos mundos (DEWITT, 1973). A função de onda por si só constitui a reali-
dade, porém, não existe colapso de onda ou interferência descontínua do observa-
dor. Para Everett, “a realidade física é a própria função de onda do universo como
um todo”. Quando uma medida é realizada pelo observador, todos os resultados
possíveis de fato ocorrem, cada um em uma “história de mundo” específica, parti-
cular e consistente. O mundo que o observador percebe é apenas um dos “muitos
mundos” possíveis, e todos coexistem em diferentes ramificações do Universo. É
neste sentido que não há colapso da função de onda: esta apenas vai se dividindo
em diferentes ramos (cada medida a divide), e o que chamamos de realidade é ape-
nas um destes ramos, entre uma infinidade de outros ramos (realidades).
Uma interpretação menos excêntrica, mas que também atribui realidade à
função de onda, é a interpretação de variáveis ocultas, desenvolvida por David
Bohm (BOHM, 1952). Esta interpretação é uma consequência direta da formula-
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 205
ção da onda piloto, desenvolvida pelo próprio Bohm. As variáveis ocultas seriam
as posições e momentos das partículas, ou seja, suas trajetórias, que seriam deter-
minísticas (mas desconhecidas). A função de onda seria então a onda piloto, real,
que guiaria as partículas. Assim, a descrição do sistema só seria completa com
estas duas entidades complementares: as variáveis ocultas e a função de onda. Para
Bohm, “a realidade fundamental é a inseparável interconexão quântica de todo o
Universo”.
A interpretação de Bohm, fazendo uso de variáveis ocultas, teve um papel fun-
damental no estudo de estados emaranhados e nas consequentes confirmações ex-
perimentais da correteza da MQ. Como veremos, a busca por variáveis ocultas que
pudessem fornecer uma visão mais intuitiva e determinista da realidade levou a
importantes resultados acerca dos fundamentos conceituais da MQ e, mais adian-
te, da possibilidade de realizar teorética e experimentalmente o teleporte quântico.
6 Para uma análise detalhada do paradoxo EPR, tanto da formulação original quanto da
formulação de Bohm considerando partículas com spin, ver PESSOA JR. (2006).
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 207
2. O teleporte quântico
7 Quantum bit, em alusão aos bits clássicos 0 e 1. Note que um qubit representa uma
superposição dos estados quânticos |0 > e |1 >, devido ao princípio de superposição
quântico. Estes estados são autoestados de um sistema quântico no espaço de Hilbert
bidimensional, como uma partícula de spin ½, polarizacões horizontal e vertical de um
fóton, etc. Classicamente, esta superposição não é possível.
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 209
Para ilustrar a separação conceitual entre as duas áreas, Greca e Santos (2005,
p. 43) usam os modelos atômicos:
Labarca (2005) aponta duas razões pelas quais a Filosofia da Química é tardia
em relação à Filosofia Física: 1) a adoção de um realismo ingênuo segundo o qual
existe uma única ontologia que constitui o objeto de nosso conhecimento; 2) o
pressuposto de que a Química pode ser reduzida à física fundamental. Ou seja,
dois pontos fundamentais que já distinguem as duas ciências como visto.
A segunda razão tem em Dirac (personagem da história da Ciência de grande
influência) um de seus precursores, tendo em vista sua afirmação de que a MQ
teria matematicamente as leis de uma grande parte da Física e de toda a Química.
Uma visão utilitarista da Química ainda tem contribuído para a visão supraci-
tada. No entanto, em se tratando de uma ciência capaz de “manipular as entidades
estruturais da matéria”, a partir da análise proposta aqui, uma Filosofia da Quími-
ca faz-se pertinente para a interpretação de fenômenos aqui estudados.
A ideia de uma identidade molecular traz à tona questões referentes à natu-
reza metafísica das entidades estruturais, objeto de estudo da Química. Seriam
as estruturas moleculares irredutíveis? Ou seja, tendo em vista a teoria quântica,
qual o sentido de uma estrutura molecular? Para a grande maioria dos Químicos,
uma visão epistemológica das entidades moleculares é incrédula, dado que a visão
utilitarista da Química está assentada na natureza ontológica das proposições me-
cânicas das reações químicas. Técnicas como a espectroscopia e a difração de raio
X estão assentadas e corroborariam uma visão ontológica . O que ainda é passível
de crítica, pois aqui tem-se um aspecto “fenomenotécnico”, em que os aparatos
experimentais são projeções carregadas de pressupostos teóricos .
O Realismo das entidades químicas é uma extensão das questões metafísicas
propostas anteriormente.
No entanto, o que parece uma questão um tanto quanto bem resolvida para
o filósofo francês não é aqui a perspectiva de físicos e químicos. Ou seja, como já
anteriormente citado, a existência das entidades de estudo da MQ apresenta natu-
rezas distintas para físicos e químicos.
216 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Labarca (2005), remontando a Vemulapalli e Byerly, nos traz que uma redução
epistemológica da Química à Física é falha, pois as propriedades de um sistema
químico não podem ser explicadas através das propriedades das microentidades
físicas. Para tal, suposições adicionais são requeridas, relacionadas com os fenô-
menos macroscópicos.
A conclusão nos leva a admitir a coexistência de múltiplas ontologias, nas
quais as entidades e regularidades de cada teoria podem ser consideradas legíti-
mas e reais.
As questões acima podem parecer distantes de uma realidade referente ao En-
sino de Química, contudo, para Labarca (2005), a redução da Química à mecânica
quântica tem um grande impacto em relação ao ensino, já que há um uso crescente
de princípios fundamentais da Física para explicar a estrutura atômica e o sistema
periódico dos elementos.
Como tudo isto implica questões filosóficas ao teleporte quântico?
Se realidade tem sua natureza, aqui determinada por duas Ciências, a organi-
zação energética proposta pela Física recairia sobre a realidade natural, Química,
dos compostos que definem o “mundo objetivo”. Deste ponto de vista, é possível
questionar a correlação entre as propostas epistemológica da Física e ontológica da
Química a partir da análise colocada acima. A questão da transmissão de infor-
mação na proposta epistemológica da Física recai sobre uma questão de natureza
ontológica da Química, ou seja:
1) Se, no futuro, pudermos utilizar o TQ para teleportar sistemas macroscópi-
cos ou em escalas “semi-clássicas”, a identidade (ontologia) física/objetiva destes
sistemas será reconstruída com perfeição, dado que o teleporte é a transmissão da
informação epistemológica? A Física transmitida construiria a mesma Química
do estado inicial?
Aqui, percebe-se que, afastadas de início, as duas Ciências se reencontram na-
quilo que é de interesse do conhecimento humano. Poderia a Química ser reduzida
à Física e seria o teleporte quântico a prova cabal deste reducionismo?
Porém, de um ponto de vista da construção de conhecimento como embate
entre as escolas empirista e inatista, o presente problema nos coloca outras duas
questões, sendo uma o aprofundamento da primeira:
2) Caso possamos fazer mais de uma cópia idêntica do sistema original e pos-
samos reconstruir mais de uma cópia de um ser humano, qual será o ser humano
“verdadeiro”?
3) Caso pudermos um dia teleportar um ser humano, todas as suas caracterís-
ticas subjetivas (mentais, morais, etc) serão idênticas após a destruição e recons-
trução?
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 217
Referências Bibliográficas
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the eighth-order QED contribution to the anomalous magnetic moment of the
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PLANCK, M.. Entropy and Temperature of Radiant Heat. Annalen der Physik,
v.1, n.4, p. 739-737, 1900.
Introdução
3 GIL PÉREZ, D. et al. Tiene sentido seguir distinguiendo entre aprendizaje de conceptos,
resolución de problemas de lápiz e papel y realización de prácticas de laboratorio? En-
señanza de las Ciencias, v. 17, n.2, p.311-320, 1999b.
224 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
4 Ver, por exemplo, o quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da
Ciência, realizado em Londres em 1965 (LAKATOS; MUSGRAVE, 1979).
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 227
po em que se desenvolvia uma percepção mais adequada dos vários fatores que
estariam presentes e influenciando o processo de mudança teórica. Muitos desses
fatores foram denominados de extra-científicos.
Em relação ao questionamento do falseacionismo a partir de um ponto de
vista intra-científico, Kuhn e Lakatos (LAKATOS, 1979) acabam confluindo para
um posicionamento em que se entende que a mudança teórica, quando ocorre, é
em razão de um certo esgotamento do programa de pesquisa5 vigente. Lakatos fala
em programas de pesquisa regressivos ou mudanças degenerativas de problemas,
para caracterizar situações em que não há um real aumento de conteúdo:
6 Laplace, Exposition du Système du Monde, 1796, livro IV, capítulo ii (NOTA DO AUTOR)
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 229
Pode-se sintetizar que o debate que ocorreu após a publicação da obra A lógica
da pesquisa científica, de Popper, resultou, principalmente pela colaboração de Kuhn,
Lakatos, Feyerabend, Toulmin e Laudan, na percepção de que o que se conhece como
ciência é algo complexo e rico, resultado da ação extremamente variada de inúmeros
cientistas, que concebem suas explicações utilizando um processo criativo pessoal (e
não exclusivamente por observação paciente, detalhada e objetiva como supunham
os positivistas) e que se comportam em relação às suas criações (quando elas são lan-
çadas na arena do debate da comunidade científica) de uma maneira também bastan-
te variada, e não necessariamente como Popper propugnava.
Tudo isso representou um avanço em relação à compreensão do que tem sido
o fazer ciência, e tem sido algo que tem escapado a determinações muito rígidas,
a métodos muito restritivos, a prescrições limitadoras. No entanto, pode-se per-
guntar se restou algo que pudesse dar alguma identidade ao processo, ou seja, o
fazer ciência suporia determinadas condições ou atitudes? Ou seria algo tão diver-
sificado e livre que diluiria seus limites em outras formas de se tentar entender a
realidade? Essas questões serão abordadas, com mais detalhe, adiante; antes disso,
no entanto, seria interessante se traçar um paralelo entre o que foi exposto acima
a respeito de como se tem feito ciência e como se tem ensinado ciência. O Ensino
de Ciências tem sido algo homogêneo, que segue padrões determinados e consen-
suais? Ainda mais, no contato com os conteúdos de Ciências, os alunos reagem e
desenvolvem processos semelhantes?
mento dos alunos passaria por um processo de construção, ou seja, seria algo que
se daria ao longo do tempo — e não automaticamente ou por memorização passi-
va, no ato da apresentação de novos conhecimentos — conduziu às reflexões sobre
como isto de fato aconteceria. A partir de então, abriu-se todo um leque de inves-
tigações que tinha por objetivo principal entender esse processo de construção do
conhecimento pelo aluno, não somente a partir da interação de elementos internos
e externos à sua mente (seus conhecimentos e o ambiente a ser conhecido), mas
também a partir das inter-relações entre os conhecimentos que ele já possuía com
aqueles que deveriam ser “transmitidos” em sala de aula.
Com base no trabalho de Osborne & Wittrock, Bastos e colaboradores sin-
tetizam algumas das questões que impulsionavam as pesquisas sobre o tema da
mudança conceitual:
Acreditamos que não, por uma série de razões: (a) a idéia de que
os conhecimentos (cotidianos, científicos, filosóficos etc.) repre-
sentam construções, produções ou elaborações da mente humana
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 233
7 SOLOMON, J. The rise and fall of constructivism. Studies in Science Education, v.23,
p.1-19. 1994.
8 CACHAPUZ, A. F. (Org.). Perspectivas de ensino. Porto: Centro de Estudos de Educa-
ção em Ciência, 2000.
9 GIL PÉREZ, D. et al. Puede hablarse de consenso constructivista en la educación cientí-
fica? Enseñanza de las Ciencias, v.17, n.3, p.503-12, 1999a.
234 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
O autor esclarece, na sequência, que não acredita em uma lei histórica do pro-
gresso, ou seja, esse progresso do conhecimento científico não seria algo pré-deter-
minado, uma necessidade histórica; mas sim algo que tem ocorrido em razão da ati-
tude intelectual das pessoas envolvidas no processo. A respeito desta postura, diz:
mina a busca, um objetivo não atingível, mas que deve ser perseguido, pode ser
entendido como uma tentativa de garantir as condições para uma escolha e um
debate racional na ciência.
O apoio fundamental para Popper continuar se referindo ao conceito de ver-
dade (na forma do conceito de verossimilitude: aproximação da verdade) foram as
idéias de Alfred Tarski, cuja teoria defendia o livre uso da ideia intuitiva da ver-
dade como correspondência com os fatos. Segundo Popper, o caráter “altamente
intuitivo” das idéias de Tarski torna-se mais claro ao se considerar o conceito de
“verdade” como um sinônimo de “correspondência com os fatos”, então, para me-
lhor compreensão, se deixaria o conceito de “verdade” de lado, para se explicar a
ideia de “correspondência com os fatos”:
com os fatos. Desse modo, a escolha racional estaria supondo a preferência pelas
teorias com maior conteúdo corroborado. Dessa forma, a ideia de verdade (mais
precisamente de aproximação da verdade) estaria funcionando como um princípio
regulador, um critério que possibilitaria o debate e a escolha racional, permitindo-
-se falar em progresso do conhecimento. Nas palavras de Popper:
grupos identificados com certas ideias. Como Kuhn procurou demonstrar, isto, de
fato, pode ocorrer. Mas seria isso o que se espera da ciência? Foi sob os signos da
imposição de ideias via retórica, recursos de proteção de certas teorias a qualquer
preço, motivados por interesses variados, que a ciência moderna se constituiu? Ao
se aceitar, sem questionamento, a influência de muitos fatores não racionais na
atividade científica, não se estaria, mesmo que involuntariamente, abrindo espaço
para uma modificação extremamente relevante em alguns pontos — procura da
verdade, estabelecimento de critérios mais objetivos de avaliação e debate das te-
orias, consideração crítica de todas as ideias não apoiadas nos fatos e em uma boa
lógica interna — que estavam estabelecidos desde sua origem?
Uma das contribuições mais importantes de Popper consistiu em chamar a
atenção para os riscos que se corria ao não atentarmos para a influência de po-
sicionamentos que ele via como uma ameaça: o subjetivismo, o relativismo e o
irracionalismo. Todos eles se constituindo em obstáculos para uma troca de ideias,
na qual os interlocutores entrariam com suas teorias preferidas e estariam dispos-
tos a ouvir e considerar sinceramente as ideias alheias, assim como a avaliar as
consequências dessa confrontação com isenção, a partir de critérios previamente
estabelecidos.
Mas, no âmbito do Ensino de Ciências, quais seriam os riscos?
Primeiramente, pode-se pensar nas consequências de uma apresentação da
ciência em que os aspectos racionais que Popper preza não são valorizados. Que
tipo de imagem os alunos estariam formando de uma atividade em que o mais
relevante para a consolidação de uma teoria seriam fatores como apoio político
ou econômico, número de defensores dogmatizados e disposição de salvar a teoria
preferida a qualquer custo? Mais uma vez, cabe enfatizar, não se trata de ignorar
a influência desses fatores; eles estão presentes, são relevantes e, muitas vezes, de-
cisivos. No entanto, o fato de que o fazer ciência tenha se tornado algo tão variado
não desobriga aqueles que com ela estão envolvidos em buscar o que seria o mais
adequado para a sua preservação e desenvolvimento; evidentemente, a partir de
certos valores e posicionamentos específicos.
No caso de Popper, esses valores seriam todos aqueles, já abordados aqui, que
guardam relação com o caráter racional da ciência. Por sua vez, eles conduziriam
a um posicionamento em que a liberdade e o regime democrático seriam valori-
zados, pois seriam a garantia para os debates livres, nos quais o predomínio da
racionalidade seria meta principal.
A ciência é fruto da atividade humana consciente (embora alguns aspectos
inconscientes possam, por vezes, prevalecer, como a identificação absoluta de um
cientista com suas ideias, com a consequente postura errônea de encarar as críticas
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 247
como algo pessoal, o que, muitas vezes, conduz a uma postura dogmática), sendo,
portanto, responsabilidade daqueles que a ela se dedicam, a sua caracterização
principal e o delineamento de seus aspectos mais importantes.
E aquilo que Popper propõe como características principais da ciência leva,
aos estudantes, uma imagem de uma atividade intelectual na qual as escolhas entre
as propostas de explicação ocorrem em uma situação de debate racional: todas as
conjecturas são cuidadosamente apreciadas, as hipóteses são avaliadas com base
no seu potencial explicativo, há critérios convencionados de escolha, o objetivo
principal não seria fazer valer a qualquer custo uma teoria preferida, mas buscar,
com o auxilio das avaliações críticas mútuas, a melhor explicação. O efeito positi-
vo desta imagem, na formação dos alunos, não deveria ser menosprezada.
Seria uma oportunidade importante para levar aos alunos reflexões de grande
relevância no que diz respeito às regras de debates produtivos e consequências da
adoção, ou não, de certos valores. Seria interessante, por exemplo, que os alunos
avaliassem, até pela própria experiência, os resultados de um debate sem a preocu-
pação com os aspectos que Popper considera fundamentais em qualquer troca de
ideias. Seria um aprendizado esclarecedor, se tivessem a oportunidade de experi-
mentar as consequências de um debate sem critérios de escolha definidos, em que
o objetivo principal fosse fazer valer uma hipótese a qualquer custo.
Em um segundo momento, seria interessante avaliar as conseqüências de uma
postura como a de Popper para um debate relevante no Ensino de Ciências, como
aquele sobre as mudanças conceituais, mais particularmente, sobre a conveniência,
ou não, dos conflitos cognitivos. Foi observado aqui que alguns autores passaram
a questionar a conveniência de se apostar no conflito cognitivo como estratégia de
aprendizado dos conteúdos de ciência. Observou-se também que Bastos e colabo-
radores (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001), apesar de admitirem a pertinência de
algumas criticas à estratégia didática de conflitos cognitivos, procuraram enfatizar
a importância de se preservar, nas discussões e outras atividades realizadas em
sala de aula, um espaço para a explicitação de compreensões ou interpretações
equivocadas; o que se daria por meio de questionamentos, problematizações e um
debate bem conduzido. Existe a necessidade institucional das escolas em saber
se os alunos estão ou não compreendendo os conteúdos científicos que estão sendo
ensinados — que seriam, segundo a perspectiva popperiana, não teorias verda-
deiras, mas o que a comunidade científica considera como o mais adequado até
aquele momento — dessa forma, Bastos e colaboradores (BASTOS; NARDI; DI-
NIZ, 2001, p. 12-13) afirmam que os questionamentos assumem uma importância
central para a aprendizagem, pois oferecem condições para o aluno elaborar seus
conhecimentos.
248 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Referências Bibliográficas
AUSUBEL, D.P. ; NOVAK, J.D. ; HANESIAN, H. Psicologia educacional. Rio
de Janeiro: Interamericana, 1980.
BACON, F. Novum organum. Col. “Os pensadores”. São Paulo: Nova Cultural,
1999.
RUSSEL, T.L. What history of science, how much, and why? Science Education,
v.65, n.1, p.51-64, 1981.
Introdução
Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por
duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o
meu intuito tendia tão-somente a me certificar, e remover a terra
movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila (DESCAR-
TES, 1973, p.64).
3 Suspendendo os juízos (Epokhé) sobre todas as coisas que apresentarem a menor possi-
bilidade de erro ou falsidade.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 259
não passe de ilusões produzidas em meus sonhos. Este argumento duvida das cer-
tezas que tenho quando estou em vigília, pois há uma possibilidade de que tudo
aquilo que eu trato como o mais verdadeiro não passe de ilusões produzidas por
eu mesmo em meu sonho e que, portanto, devo suspender os meus juízos sobre a
verdade acerca de todas essas coisas que percebo quando estou acordado.
O argumento do sonho tem a função de estender e radicalizar a dúvida e de le-
var a uma impossibilidade nas afirmações que realizamos sobre todas as questões
sensíveis e aquelas que temos em nossa vivência ordinária.
No entanto, quer eu esteja sonhando quer eu esteja acordado, algumas ver-
dades não são afetadas por esses argumentos, sobretudo as verdades matemáticas
(que dois mais três sejam cinco etc).
Dentro dessa argumentação, será elaborado o terceiro argumento que esten-
de e radicaliza a dúvida, o argumento do Deus Enganador4 . A idéia fundamental
deste argumento é partir de certa opinião de que há um Deus que me criou e que
poderia ter me criado de tal forma que me enganasse sobre tudo o que penso.
Admitindo essa hipótese, chegamos ao argumento de que a minha natureza é tal
que me engana sobre tudo o que penso e, ainda mais, me dá a falsa impressão de
que tudo é verdadeiro. A dúvida torna-se generalizada e radical a partir desse ar-
gumento. Como diz Descartes (1973, p. 124), no começo da Segunda. Meditação:
4 Deus Enganador e Gênio Maligno possuem a mesma função, porém, o gênio maligno
possui uma função psicológica, isto é, o engano acontece por que ele produz as ilusões
no exato momento em que penso e a falsa impressão de que são verdadeiras.
260 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cui-
dadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por cons-
tante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verda-
deira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.
Eu tenho a certeza de que sou uma coisa que pensa, mas o que é uma coisa que
pensa? “É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que
não quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, 1973, p. 130).
É sobre este ponto fixo (que é o pensamento), que Descartes solidificará a
questão do conhecimento e da verdade.
O conhecimento das coisas é elaborado pelo pensamento, e a experiência não
fornece se não dados mutáveis e aparentes.
Na Segunda Meditação, portanto, Descartes revela a esperança de encontrar ao
menos uma coisa que seja “certa e indubitável”. E, ao longo da Meditação, isto é al-
cançado através da certeza do cogito, que é apresentado como uma proposição que “é
necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu
espírito” (DESCARTES, 1973, p.126). Após refletir sobre esta primeira certeza, Des-
cartes, mais à frente, conquista a segunda: a determinação da essência do Eu como
“coisa pensante” (DESCARTES, 1973, p.126-130). O restante da meditação é dedi-
cado a mostrar como essa “coisa pensante” é mais fácil de conhecer do que o corpo.
O caminho seguido na Terceira Meditação, onde são apresentados os argumen-
tos que procuram provar a existência de Deus, confirma a procura cartesiana por
um “porto seguro”, verdades claras e distintas que seriam indubitáveis e poderiam
servir de base sólida e segura para a construção do edifício da ciência. A Prova da
existência de Deus é condição necessária para que o conhecimento possa se referir a
algo, pois sem provar que Deus é bom e veraz não é possível falar em verdades sobre
as coisas – que poderiam ser ilusões causadas por um Deus Enganador.
Nas 4a, 5a e 6a Meditações, são elaboradas verdades claras e distintas que possi-
bilitarão explicar o fundamento do erro, do conhecimento das coisas materiais, da
distinção e união do pensamento com o corpo etc. Portanto, a filosofia de Descar-
tes elabora uma forma de pensar o conhecimento como trabalho subjetivo, pois o
cogito é a evidência e certeza que nenhuma suposição cética pode abalar.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 261
Este trecho, que nos fala sobre o acesso à verdade, se refere aos ídolos do
teatro, aqueles que “[...] foram abertamente incutidos e recebidos por meio das
fábulas dos sistemas e das pervertidas leis de demonstração”. Este ídolo, relacio-
nado à influência das teorias, “[...] mas também nos numerosos princípios e axio-
mas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da
negligência”(BACON, 1999, p.41), foi abordado por Bacon principalmente através
da análise do que chamou de três falsas filosofias: a sofística, a empírica e a su-
persticiosa5. Este ídolo seria um dos quatro tipos de obstáculos que bloqueariam
a mente humana.
Como exemplo mais importante do primeiro tipo de filosofia que irá criticar,
Bacon cita Aristóteles, que teria corrompido a filosofia natural com sua dialética,
ao impor distinções arbitrárias e inumeráveis à natureza das coisas, estando mais
preocupado em formular respostas e em apresentar algo de positivo através das
palavras do que em investigar as coisas com maior detalhe.
Neste sentido, Bacon afirma:
Para os objetivos que temos em mente neste artigo, é relevante notarmos que
Bacon se refere a um processo de purificação do intelecto, que levaria à superação
das influências deste tipo de ídolo, possibilitando o acesso à verdade. Trata-se,
portanto, como nos outros ídolos, de um processo em que a verdade é buscada e
alcançada pelo indivíduo, é um projeto subjetivo de busca da verdade, no qual se
pretende alcançar, ao final, algo certo, indubitável e válido para sempre.
Um dos outros ídolos seria o da tribo, que estaria fundado na própria natureza
humana. O exemplo mais claro seriam os obstáculos representados pelas limita-
ções de nossos sentidos. A esse respeito, Bacon afirma:
Tais são os ídolos a que chamamos de ídolos da tribo, que têm ori-
gem na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos
seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou na sua contínua
instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na
incompetência dos sentidos ou no modo de receber impressões
(grifos nossos) (BACON, 1999, p.44).
O outro ídolo seria o da caverna, que seria aquele dos homens enquanto in-
divíduos, “pois cada um – além das aberrações próprias da natureza humana em
geral – tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natu-
reza” (grifo nosso). Esses ídolos teriam sua origem “[...] na peculiar constituição
do corpo e da alma de cada um e também na educação e no hábito ou em eventos
fortuitos” (BACON, 1999, p.40).
No aforismo LIV, Bacon afirma que este tipo de ídolo levaria a distorções e
corrupções daquilo que estaria sendo estudado em favor de fantasias anteriores,
e cita novamente Aristóteles, que teria submetido sua filosofia natural à lógica,
os alquimistas, que teriam elaborado uma filosofia apoiada em alguns poucos ex-
perimentos, e Gilbert, que teria concebido toda uma filosofia de acordo com seus
interesses e se apoiado somente na observação do magneto.
Nos aforismos seguintes (LV a LVII), Bacon aborda a questão das diferenças
entre os engenhos (uns aptos a notar as diferenças das coisas, outros a semelhan-
ça), das diferenças de preferência entre o que é antigo e o que é novo e das diferen-
ças entre os que, no estudo da natureza, se dedicam aos elementos simples e os que
se preocupam só com as estruturas e composições. Em suas considerações, Bacon
se mantém fiel ao princípio aristotélico da justa medida e do caminho do meio.
É interessante se perceber, em relação aos ídolos da caverna, que na medida
em que se fala na influência da educação e do hábito, se teria que considerar, tam-
bém, os ídolos do teatro, pois o que estaria influenciando, através dos hábitos e da
educação, seriam as teorias, ou melhor, na expressão de Bacon, as falsas filosofias.
O quarto ídolo seria o do foro, a respeito do qual Bacon afirma: “com efeito, os
homens se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E
as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o
intelecto” (BACON, 1999, p.41). Bacon classifica esses ídolos em duas espécies: no-
mes de coisas que não existem (fortuna, primeiro móvel, órbitas planetárias [sic],
elemento fogo) e nomes de coisas que existem, mas que foram mal abstraídas das
coisas e por isso se apresentam confusos (como o conceito de “úmido”). Haveria
também palavras deficientes que designariam ação (gerar, corromper, alterar) e as
indicativas de qualidade (pesado, leve, tênue, denso).
De acordo com Bacon, as palavras exerceriam influência sobre o intelecto,
conduzindo a disputas “magnas e solenes” que acabariam em discussões sobre pa-
lavras e nomes, tornando com frequência a Filosofia e a Ciência sofísticas e inati-
vas (BACON, 1999, p.46).
O caminho para combater a influência desses ídolos, segundo Bacon, seria
“restaurar a ordem, começando pelas definições” (BACON, 1999, p.47). Mas logo
a seguir conclui que “palavras engendram palavras”, o que tornaria necessário ir
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 265
aos fatos particulares, “às suas próprias ordens e séries”. Vale notar que o ordena-
mento, segundo Bacon, e em oposição à concepção de Popper e de grande parte
da epistemologia atual, estaria na própria natureza, não sendo, e não devendo
ser, algo elaborado pelo homem.
Segundo Bacon, deveríamos estar atentos à influência desses ídolos: não per-
mitir as suas interferências seria o primeiro passo para se atingir a meta desejada.
E, a respeito desta meta, o autor afirma:
O caminho a ser seguido passa pelo uso da experiência, segundo Bacon, não a
experiência pura e simples, assistemática e de uso pelo senso comum, mas uma que
pudesse garantir os resultados almejados. A esse respeito, Bacon afirma:
7 O termo pode ser utilizado como Filosofia da Ciência ou certo modo de questionar o
fazer científico. No entanto, utilizamos, nesse momento, como teoria do conhecimento.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 269
A questão da verdade, em Karl Popper, está ligada de forma direta à sua abor-
dagem do problema da indução de David Hume. A apresentação das idéias de Po-
pper por seus comentaristas e aquelas feitas pelo próprio autor, tanto em A Lógica
da Pesquisa Científica (POPPER, 1974), como em Conhecimento Objetivo (PO-
PPER, 1975) e de uma forma um pouco modificada em Conjecturas e Refutações
(POPPER, 1972), são estruturadas a partir da abordagem popperiana do problema
apresentado por Hume. Os questionamentos apresentados por Hume, para aqueles
que se deram ao trabalho de considerá-los, abalaram algumas certezas (mais par-
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 273
Segundo Popper, tais resultados levaram Hume, “[...] umas das mentes mais
racionais que já houve [...]”, a transformar-se num cético e, ao mesmo tempo, num
crente em uma epistemologia irracionalista (POPPER, 1975, p.16).
O resultado das conclusões de Hume é que a repetição não pode servir de
argumento para as generalizações. E o fato de que isso ocorra com frequência, ou
seja, que acreditemos que exemplos de que não temos experiência conformar-se-ão
com aqueles de que temos experiência, apenas comprova que nosso conhecimento
é da natureza de uma crença, “[...]mas de crença racionalmente indefensável - de
uma fé irracional” (POPPER, 1975, p.16).
As consequências das idéias de Hume foram encaradas com preocupação por
cientistas, filósofos e intelectuais que julgavam que, no conhecimento humano, a
274 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Segundo Popper, Russel observa ainda que, se a indução for rejeitada, toda
tentativa para se estabelecer leis científicas gerais a partir de observações par-
ticulares será inválida. Portanto, de acordo com Russel, a resposta de Hume ao
problema da indução estaria em choque com a racionalidade, o empirismo e os
procedimentos científicos.
Essas conclusões são igualmente preocupantes para Popper, que apesar de não
se filiar às escolas do empirismo e do racionalismo tradicionais é, a seu modo, um
racionalista e um filósofo que absorveu muitas contribuições do empirismo. As
semelhanças e diferenças das ideias de Popper em relação ao racionalismo e ao
empirismo tradicionais aparecem com mais clareza quando o autor apresenta sua
solução para o problema de indução de Hume. A solução de Popper para este pro-
blema inclui sua reformulação, que teria em vista uma expressão objetiva e lógica
do problema. Popper afirma:
8 A esse respeito, ver A lógica da pesquisa científica, cap.X, especialmente itens 84 e 85,
e Conhecimento objetivo, primeira parte, especialmente itens 7,8 e 9.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 279
Mas como, afinal, poderíamos julgar qual é a melhor teoria? Este julgamento
depende diretamente da concepção de ciência que se tem em mente ou, mais parti-
cularmente, das regras metodológicas que definem o que seria o método científico.
Em Popper, o critério que define o campo da ciência é a falseabilidade
(POPPER, 1974, p.82). E é em função desse critério que são elaboradas as demais
regras. Essas regras metodológicas seriam convenções que teriam como objetivo
garantir a aplicabilidade do critério de demarcação.
De acordo com sua concepção de ciência, Popper oferece dois exemplos de
regras metodológicas:
Esta ideia de “maior resistência às provas” deve ser examinada com mais de-
talhe para que se entenda de forma mais clara a questão da escolha entre teorias
concorrentes.
De acordo com Popper, as teorias racionais não podem ser verificadas, no sen-
tido de se estabelecer qualquer teoria como definitivamente verdadeira, mas po-
dem ser “corroboradas”. Segundo o autor, a corroboração de uma teoria está ligada
aos testes a que foi submetida. Se uma teoria resiste bem aos vários testes a que é
submetida, pode-se dizer que até aquele momento ela está corroborada (POPPER,
1974, p.302).
A ideia de um “grau de corroboração” maior ou menor está relacionada tanto
à quantidade de testes pelo qual a teoria passou como por sua severidade. Em re-
lação à quantidade de testes, estará melhor corroborada aquela teoria da qual se
pode derivar uma maior quantidade de experimentos que coloquem em questão a
veracidade de seu conteúdo e de suas previsões. Em relação à severidade, Popper
afirma:
Para Popper, são estas atitudes de crítica severa, buscas de testes experimentais,
tentativas de refutação e espírito de aprimoramento que caracterizam a ciência.
Com esta postura, Popper procura se colocar em oposição aos autores que ele
qualifica como racionalistas e empiristas clássicos (POPPER, 1972, p.32). Autores
que, segundo ele, procuram definir a validade e o caráter científico das teorias a
partir de seu ponto de partida; e que buscam a tão sonhada “base sólida, segura
e inquestionável” a partir da qual as certezas definitivas da ciência pudessem ser
estabelecidas.
É devido a esta concepção de ciência que Popper julga pouco importan-
te a questão da origem das teorias. Para ele, deve-se avaliar uma teoria não pela
sua origem, mas pelo exame crítico de seu conteúdo. E esta atitude crítica é, para
Popper, uma das principais características da ciência. A esse respeito, o autor afirma:
mulação das teorias e pelo espírito crítico sejam importantes no processo de elabo-
ração teórica. Mesmo porque, para o autor, seria impossível isolarmos a teoria de
qualquer tipo de influência pessoal. A própria escolha de um tema de pesquisa ou
de um problema já supõe preferências e interesses de ordem pessoal.
A objetividade na ciência seria fruto de um esforço coletivo. Ela seria o resul-
tado da discussão intersubjetiva das teorias, seria fruto do debate crítico, aberto
e rigoroso. A objetividade das teorias científicas seria garantida pelo processo de
debate durante o qual elas se estabelecem como teorias merecedoras de atenção.
É neste processo de debate que é forjado o caráter objetivo das teorias, através da
discussão crítica, da apreciação objetiva dos resultados frente aos testes empíricos,
e da avaliação criteriosa dos inúmeros especialistas da área em questão.
A atitude crítica está, em Popper, bastante relacionada com a idéia de racio-
nalidade. Uma das características da atitude racional residiria na disposição de se
chegar a decisões através da reflexão sistemática e da argumentação consistente.
O racionalista se caracterizaria pela disposição em ouvir os argumentos do adver-
sário; e com sinceridade suficiente para aceitar a hipótese de se deixar convencer
(POPPER, 1972, p.388).
A atitude racional se caracterizaria pela ausência de dogmatismo, pelo res-
peito ao diálogo, pela disposição em ouvir e se deixar convencer, pelo exercício da
rigorosa análise crítica dos argumentos.
A respeito da relação entre racionalidade e atitude crítica, Popper afirma:
Em sua obra A filosofia de Karl Popper, Peluso (1995, p.94) afirma que a com-
preensão das questões epistemológicas mais importantes em Popper seria impos-
sível sem evidenciar suas ligações com a teoria da evolução, e relembra que Popper
argumentou que sua teoria do conhecimento científico não poderia ser dissociada
de uma teoria evolucionista.
No texto “A evolução e a árvore do conhecimento” (POPPER, 1975, p.234-
256), o autor nos apresenta alguns detalhes sobre esta relação. Ao observar que, em
relação à teoria do conhecimento, discorda de quase todos os autores, “[...] exceto
talvez Charles Darwin e Albert Einstein”, Popper afirma que o ponto principal do
debate é a relação entre observação e teoria.
284 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Para Popper, a teoria, mesmo que rudimentar, mesmo que apenas uma expec-
tativa, sempre vem primeiro. Todas as observações seriam feitas à luz de alguma
teoria ou expectativa. Sendo assim, não haveria “observações puras”, isentas de
qualquer influência, mas sempre observações impregnadas de teorias.
Mas Popper vai além e afirma:
congressos e publicações. Passando por essas fases, após mesmo os mais rigorosos
críticos não obterem êxito em sua refutação, a teoria seria aceita temporariamente
e experimentalmente, se incorporando ao conhecimento científico em vigor.
No sentido de enfatizar as características evolucionárias desse processo,
Popper afirma:
9. O critério de verossimilitude
Como podemos ver por essa citação, a busca da verdade, considerada como
“alvo geral” da atividade científica, desempenha um papel central na garantia de
um processo de discussão racional das teorias; condição fundamental para que
288 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II
Referências Bibliográficas
BACON, F. Novum organum. Col. “Os pensadores”. São Paulo: Nova Cultural,
1999.
RUSSEL, T.L. What history of science, how much, and why? Science Education,
v.65, n.1, p.51-64, 1981.
Impressão e acabamento
Gráfica Coelho
HISTÓRIA E