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HISTÓRIA E

HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS E O ENSINO DE CIÊNCIAS II


AUTORES FILOSOFIA DAS
Ana Maria de Andrade Caldeira
Andrea Berardi
CIÊNCIAS E O
Ângela Maria Zanon
Antonio Albérico Oliveira de Andrade
ENSINO DE CIÊNCIAS II
Antonio Fernandes Nascimento Junior Os textos apresentados representam
O livro “História e Filosofia da Ciência e o Ensino de Ciências II” apre-
Carlos Alberto Rufatto um valioso material de pesquisa em En-
Carlos Roberto Senise Júnior
senta múltiplas perspectivas de estudo e pesquisa, valendo-se da variedade
de objetos, métodos e recursos de investigação para o Ensino de Ciências. sino de Ciências, desenvolvidos sobre
Daniele Cristina de Souza
Danilo Rothberg O leitor terá acesso a um conjunto de textos que significa uma con- e através das temáticas da História, da
Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa tribuição para a pluralidade de teorias e práticas de Ensino de Ciências, Sociologia e da Filosofia da Ciência, que
João José Caluzi característica que pode tornar essa área mais capaz de trazer respostas con-
certamente significa uma contribuição
José Bento Suart Júnior sistentes a questões centrais do conhecimento.
Marcelo Carbone Carneiro ao enriquecimento de teorias e práticas
Moacir Pereira de Souza Filho
desta área de pesquisa e ensino.
Nádia Cristina Guimarães Errobidart
Osleane Patrícia Gonçalves Pereira Sobrinho
Renato da Fonseca Lima
Sergio Luiz Bragatto Boss
Shirley Takeco Gobara
Thais Benetti de Oliveira
Vera de Mattos Machado

MARCELO CARBONE CARNEIRO


JOÃO JOSÉ CALUZI
DANILO ROTHBERG
(Orgs.)
HISTÓRIA E
FILOSOFIA DAS
CIÊNCIAS E O
ENSINO DE CIÊNCIAS II
HISTÓRIA E
FILOSOFIA DAS
CIÊNCIAS E O
ENSINO DE CIÊNCIAS II

Marcelo Carbone Carneiro


João José Caluzi
Danilo Rothberg
(Orgs.)

São Paulo - 2014


1ª Edição
Comissão Editorial

Ana Maria de Andrade Caldeira


Danilo Rothberg
João José Caluzi
Jonas Gonçalves Coelho
Marcelo Carbone Carneiro

P9742 História e filosofia das ciências e ensino de ciências II. Marcelo


Carbone Carneiro; João José Caluzi; Danilo Rothberg (organiza-
dores). - São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.
292 p. ; 23 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7983-525-4

1. Ciências – História e filosofia. 2. Ciências – Estudo e ensino. 3.


Educação. 4. Filosofia. I. Titulo.
CDD: 370.71

Copyright© Cultura Acadêmica, 2014

Editora Unesp
Praça da Sé, 108
01001-900 – São Paulo - SP
www.editoraunesp.com.br
feu@editora.unesp.br
Sumário

Apresentação..................................................................................................................... 7

CAPÍTULO 1
As contribuições da epistemologia e psicologia genéticas de Piaget
ao ensino de ciências....................................................................................................... 11
Marcelo Carbone Carneiro

CAPÍTULO 2
Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
contexto da História da Ciência e da educação................................................................ 37
Vera de Mattos Machado

CAPÍTULO 3
Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia............... 59
Danilo Rothberg, Andrea Berardi e Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa

CAPÍTULO 4
Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem
significativa de conceitos de eletrostática a partir de textos históricos e
experimentos em aulas de física no ensino médio........................................................... 81
Antonio Albérico Oliveira de Andrade, Sergio Luiz Bragatto Boss,
Moacir Pereira de Souza Filho e João José Caluzi

CAPÍTULO 5
Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica no
ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som.................................... 107
Shirley Takeco Gobara, Nádia Cristina Guimarães Errobidart e
Renato da Fonseca Lima
CAPÍTULO 6
A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma
tradução comentada de dois comunicados feitos por François Arago à
Academia de Ciências de Paris...................................................................................... 129
Moacir Pereira de Souza Filho, João José Caluzi e Sérgio Luiz Bragatto Boss

CAPÍTULO 7
Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia.................147
Thais Benetti de Oliveira e Ana Maria de Andrade Caldeira

CAPÍTULO 8
A teoria da seleção de parentesco e os valores cognitivos: o juízo científico de
uma teoria biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey...........................................167
Daniele Cristina de Souza e Antonio Fernandes Nascimento Júnior

CAPÍTULO 9
A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências........179
Osleane Patrícia Gonçalves Pereira Sobrinho e Ângela Maria Zanon

CAPÍTULO 10
Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições
para o ensino de ciências............................................................................................... 195
Carlos Roberto Senise Júnior e José Bento Suart Júnior

CAPÍTULO 11
A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências............................. 221
Carlos Alberto Rufatto e Marcelo Carbone Carneiro

CAPÍTULO 12
A crítica do conceito de verdade em Karl Popper.......................................................... 255
Carlos Alberto Rufatto e Marcelo Carbone Carneiro
APRESENTAÇÃO

Situada sob a Grande Área Multidisciplinar e a Área de Ensino na visão da


Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), a Subárea
de Ensino de Ciências e Matemática possui, desde sua origem, o caráter de diá-
logo entre as diferentes perspectivas de estudo e pesquisa. Esta característica se
justifica em função da afinidade entre múltiplos objetos, dos métodos cognitivos
aplicados e dos recursos instrumentais desenvolvidos ou aperfeiçoados para o en-
frentamento de desafios teóricos e empíricos trazidos por contextos sociopolíticos
diferenciados.
Neste sentido, a produção científica no âmbito da subárea, para fazer jus às
suas propriedades inerentes, requer a afirmação de especificidades notáveis, essen-
cialmente em três direções. Deve, em primeiro lugar, apresentar-se policêntrica, ou
seja, conter vários centros em torno dos quais vão orbitar preocupações diversifi-
cadas a respeito das exigências do saber. Em segundo lugar, é preciso que os diver-
sos centros de estudo e pesquisa sejam, ao mesmo tempo, autônomos e solidários,
isto é, desdobrem-se de acordo com sua coerência interna, de forma independente,
mas considerem as demandas dos polos correlatos e busquem abrangê-las. Em ter-
ceiro lugar, as vantagens decorrentes da disposição de produção científica devem
estar visíveis aos vários centros integrantes, de maneira que todos se beneficiem
do pertencimento ao grupo, e a singularidade da subárea se traduza na ampliação
efetiva de possibilidades de compreensão da realidade enfocada e proposição de
meios para a solução de seus problemas.
Este livro, segundo volume de um projeto da trajetória de expansão do Grupo
de Pesquisa em Educação Científica: História, Sociologia e Filosofia das Ciências,
do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciências da Unesp (Univer-
sidade Estadual Paulista), propôs atender àquelas três especificidades. O conjunto
de 12 textos ora apresentados significam uma contribuição vigorosa para a plura-
lidade de teorias e práticas de Ensino de Ciências, característica que pode tornar
8 | Apresentação

essa subárea mais capaz, na atualidade, para trazer respostas consistentes a ques-
tões centrais do conhecimento.
No percurso aqui oferecido, os autores empreendem arranjos originais como
contribuição ao aperfeiçoamento do Ensino de Ciências.
Marcelo Carbone Carneiro, docente do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação para a Ciência da Unesp (Universidade Estadual Paulista), analisa possíveis
contribuições ao Ensino de Ciências da epistemologia e psicologia genéticas de
Piaget, e ainda permite reflexões e referenciais importantes para a área.
Aspectos da inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro
são caracterizados por Vera de Mattos Machado, docente do Programa de Pós-
-Graduação em Ensino de Ciências da UFMS (Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul).
Perspectivas de pesquisa teórica e empírica para a Semana Nacional de Ci-
ência e Tecnologia são apontadas por Danilo Rothberg, docente do Programa de
Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp, Andrea Berardi, docente da
Open University (Reino Unido), e Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa, mestran-
do do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp.
Antonio Albérico Oliveira de Andrade, licenciando em Física na UFRB (Uni-
versidade Federal do Recôncavo da Bahia), Sergio Luiz Bragatto Boss, docente da
UFRB, Moacir Pereira de Souza Filho, docente do Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Física da Unesp, e João José Caluzi, docente do Programa de Pós-
-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp, elucidam o valor de textos his-
tóricos e experimentos em aulas de Física no Ensino Médio para a aprendizagem
de conceitos de eletrostática.
Shirley Takeco Gobara e Nádia Cristina Guimarães Errobidart, docentes do
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da UFMS, e Renato da Fon-
seca Lima, professor da Aliança Francesa em Campo Grande (MS), apresentam
a tradução de texto de relevância historiográfica e o situam como recurso para a
contextualização histórica no ensino.
Textos históricos essenciais que retratam o processo de descoberta da indução
de correntes elétricas em metais são revisitados por Moacir Pereira de Souza Filho,
docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física da Unesp, João José
Caluzi, docente do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da
Unesp, e Sergio Luiz Bragatto Boss, docente da UFRB.
Thais Benetti de Oliveira, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação para a Ciência da Unesp, e Ana Maria de Andrade Caldeira, docente do
Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp, analisam a
Apresentação | 9

importância de discussões epistemológicas sobre o conceito de evolução biológica


para o Ensino de Biologia.
Daniele Cristina de Souza, doutora em Educação para a Ciência pela Unesp, e
Antonio Fernandes Nascimento Junior, docente da UFLA (Universidade Federal
de Lavras), contextualizam os fundamentos epistemológicos da teoria de seleção
de parentesco.
Ângela Maria Zanon, docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), e Osleane Patrí-
cia Gonçalves Pereira Sobrinho, mestranda no mesmo programa, reconstroem a
história de Moisés Bertoni e sua relevância na História das Ciências.
Carlos Roberto Senise Júnior, docente da Unifesp (Universidade Federal de
São Paulo), e José Bento Suart Júnior, docente da UTFPR (Universidade Tecnoló-
gica Federal do Paraná), traçam reflexões filosóficas sobre o teleporte quântico.
A análise da relevância de Karl Popper para o ensino e a crítica do conceito
de verdade nesse autor são realizadas por Carlos Alberto Rufatto, docente da ITE
(Instituição Toledo de Ensino), e Marcelo Carbone Carneiro, docente do Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Unesp.
Na totalidade, estes textos representam esforços dos autores no desenvolvi-
mento de novas reflexões para o Ensino de Ciências, em reconhecimento às exi-
gências de avanço do conhecimento na subárea e ao fato de que, para dar conta
dos desafios mais relevantes, os projetos de pesquisa poderão ser mais eficazes e
efetivos se articularem-se em grupo.

Os organizadores
Março de 2014
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
11
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

CAPÍTULO 1

As contribuições da epistemologia e psicologia


genéticas de Piaget ao ensino de ciências

Marcelo Carbone Carneiro1

Introdução

Jean Piaget (1896-1980) pode ser considerado um dos mais importantes au-
tores do século XX, sobretudo no que se refere ao impacto de suas pesquisas na
Educação e na Psicologia. É considerado interacionista, pois define o desenvol-
vimento humano como processo e resultado de interações entre sujeito e meio e,
dessa forma, o desenvolvimento humano não ocorre somente por meio de traços
hereditários, inatos, e nem devido exclusivamente às pressões do meio físico e so-
cial, mas em uma interação entre estes fatores.
Piaget possui uma vasta publicação de livros e artigos2 que tratam de inúmeras
questões que interessam em geral à educação, sendo sua preocupação central com-
preender como o conhecimento é produzido pela mente humana. Por essa razão,
procurou ao longo de sua obra fundamentar a discussão sobre o desenvolvimento
dos conhecimentos no sujeito e na história. Piaget construiu uma Epistemologia3

1 Professor Livre-Docente em Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da FAAC


– Bauru e do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência – UNESP – Bau-
ru. Realizou, de janeiro até agosto de 2012, pesquisa de Pós-Doutorado nos Archives
“Jean Piaget” em Genéve sob a supervisão da Profa. Dra. Silvia Parrat-Dayan (Université
de Genève - Suisse). Bolsista FAPESP (processo 2010/17634-4).
2 Piaget e colaboradores.
3 O termo Epistemologia caracteriza certo domínio do conhecimento humano que discute
os elementos do conhecimento em seus aspectos científicos e como elaboração realizada
pelo sujeito. Podemos dizer que temos duas tradições que definem epistemologia; uma
primeira, mais próxima de Comte e do positivismo a define, a partir do divórcio entre
filosofia e ciência, como Filosofia das Ciências. No livro Curso de Filosofia Positiva,
12 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

original que investiga como o conhecimento é elaborado progressivamente por um


sujeito histórico e na relação com os objetos que se encontram no mundo. Investiga-

de Auguste Comte, realiza-se uma crítica do conhecimento metafísico e, consequente-


mente, uma desqualificação total das especulações filosóficas e a valorização das ciências
particulares. Temos, a partir de Comte, a ciência constituída como saber emancipado. No
conhecimento humano, não há mais uma verdade que proceda da razão, e cada ciência
é considerada em seu aspecto singular que se oferece como tema possível de reflexão
(exame histórico e das argumentações internas). Além disso, com a crítica positivista e
a nova configuração da ciência, no final do século XIX e início do XX, a epistemologia
passou a ser um estilo ou forma de falar sobre o conhecimento das diversas ciências. As
epistemologias discutem os métodos das ciências, os instrumentos necessários para o
conhecimento objetivo, o papel da teoria, a importância da experiência, o trabalho do
cientista e o que faz ele quando faz ciência etc. Portanto, as questões centrais da epis-
temologia entendida como filosofia das ciências gravitam em torno da discussão e dos
problemas colocados pelas ciências e certamente representam muito mais o sinal de uma
separação do que a promoção da união entre ciência e filosofia. Uma segunda tradição,
mais próxima de Piaget, define o termo como Teoria do Conhecimento, isto é, busca
compreender como o sujeito conhece as coisas. Nesse sentido, a epistemologia é o ramo
da filosofia preocupado com a relação entre sujeito e objeto. Seu principal problema é
estabelecer a forma como o conhecimento é construído pelo sujeito na sua relação com os
objetos, isto é, compreender o papel da percepção, do corpo, da memória, da inteligência,
dos hábitos e da mente na construção e organização dos objetos. Portanto, as questões
principais que a teoria do conhecimento tenta responder gravitam em torno do sujeito de
conhecimento que elabora formas de apreensão e conhecimento das coisas. Trata-se de
compreender essas formas elaboradas. O conhecimento é uma elaboração ou construção
que o sujeito elabora na relação com as coisas. Nessa perspectiva, trata-se de entender
como conhecemos as coisas, o que é esse conhecimento e o que é mundo exterior. Se é
possível duvidar (atitude cética) dos sentidos e dos processos racionais que levam ao co-
nhecimento, o conhecimento é representação? A mente organiza os objetos, mas sob que
forma? Qual o papel da memória na construção do conhecimento? Os dados perceptivos
desempenham algum papel na formação do conhecimento? Portanto, a epistemologia
centra-se na relação entre sujeito e objeto e busca os elementos envolvidos nessa relação,
que leva ao conhecimento. A epistemologia seria, então, uma elaboração pós-cartesiana
ou pós-kantiana que visa a explicação do conhecimento a partir das formas (ou pensa-
mento) que o sujeito elabora para organização dos objetos. Em teoria do conhecimento,
temos a relação entre um sujeito que, dependendo do referencial filosófico, é definido
como pensamento, entendimento, espírito, razão, intelecto, mente etc e o objeto, que ca-
racteriza os elementos exteriores (que tocam os nossos sentidos). Na relação entre o sujei-
to e o mundo exterior, serão construídos os elementos que constituem o conhecimento.
Entender a epistemologia como teoria do conhecimento significa tratar as ciências como
construções de um sujeito e entender quais os processos de organização envolvidos. A
Epistemologia Genética de Piaget busca a compreensão dos processos envolvidos na
construção das formas que o sujeito elabora para assimilar e conhecer os objetos.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
13
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

ção criativa e intensa, na medida em que descreve e explica os vários conceitos que
caracterizam o conhecimento humano desde sua gênese (em um processo de inven-
ção e criação contínuas de novidades) e sua estruturação operatória. Sua obra trata
de uma extensa variedade de temas. Entre eles, destacamos: a linguagem, o espaço,
o tempo, o objeto, a causalidade, a velocidade, a Matemática, a Biologia, a Física, a
noção de substância, a inteligência, a moralidade, a imagem, o sonho e o símbolo
mental, entre outras, explicando o domínio do conhecimento e suas estruturas de
percepção, vivência, pensamento, representação, simbolismo e operação.
No entanto, destacamos que Piaget jamais propôs a aplicação de sua teoria à
educação (domínio escolar). Dessa forma, a passagem da teoria à prática acaba por
implicar em interpretações, apropriações e distorções inevitáveis. Por esta e outras
razões, sua teoria não poderia e nem deseja responder todas as questões educa-
cionais e apresenta-se, assim, como uma valiosa leitura suscetível de assimilações
variadas. O que propomos neste texto é que devemos pensar com ele e não como
ele, pois a obra de Piaget é uma construção monumental, impressionante e aberta.
Vale lembrar, também, que há um elemento complicador nem sempre levado em
consideração: a tendência de fazer referências a uma parte da obra e não ao todo,
em função da complexidade, dificuldade e intensa produção do autor. A dinâmica
da teoria de Piaget possibilitou que fossem explicitados conceitos, reelaboradas as
teses em um processo de construção contínua de novidades que a caracteriza. No
Brasil e em algumas teorias que utilizam Piaget, muitos se aferram a um pequeno
período da sua produção ou somente aos estádios de desenvolvimento para falar
da sua obra. É uma forma de ler que apresenta problemas e pode levar a interpreta-
ções parciais e equivocadas (na teoria dinâmica e complexa de Piaget).
Neste capítulo propomos retomar a teoria elaborada por Piaget e analisar as
possíveis e variadas contribuições à Educação e ao Ensino de Ciências Naturais4
que esta obra pode oferecer e, além disso, argumentar que esta construção teórica
ainda coloca importantes reflexões para o debate acadêmico no Brasil.
O estudo das possíveis implicações da teoria de Piaget ao Ensino de Ciências
abre possibilidades que acreditamos merecerem uma investigação mais detalhada,
constituindo, portanto, o objetivo fundamental da reflexão proposta.
Portanto, pretendemos explicitar as várias contribuições que a teoria de Piaget
possibilita ao Ensino de Ciências Naturais (nos vários pontos propostos a seguir)

4 Entendemos como Ciências Naturais a Física, a Biologia e a Química (entre outras que
estão nesta interface, mas sobretudo não trataremos do conhecimento próprio da Mate-
mática – o que pede outra reflexão).
14 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

e a importância e interesse que ainda possui no contexto educacional contempo-


râneo no Brasil.

Pesquisa sobre as contribuições do pensamento


de Piaget para a Educação e o Ensino de Ciências
Naturais

Comecemos com a formulação da seguinte questão: a Psicologia e Epistemo-


logia Genéticas de Piaget têm alguma importância e podem servir de referencial
para o Ensino de Ciências Naturais? A resposta é sim, mas procuramos articular
várias possibilidades abertas por uma obra tão complexa, dinâmica e difícil.
A partir das considerações até aqui propostas, pensamos que os dados da psi-
cogênese, da psicologia e epistemologia genéticas podem auxiliar a elaboração de
estratégias e metodologias de ensino e, também, possibilitar importantes reflexões
para a formação dos alunos e professores de ciências. Dessa forma, desenvolvere-
mos (ainda que de forma introdutória) diferentes e complexas possibilidades aber-
tas pela teoria de Piaget ao Ensino de Ciências Naturais, que dividimos em seis
partes:

1. Pesquisa sobre a construção das noções científicas

Piaget discute intensamente, ao longo da sua longa obra, a formação das no-
ções científicas (número, espaço, tempo, velocidade, causalidade etc). Conceitos
que são objeto de estudos desde a década de 1930, mas que a partir da década de
1950 articulam-se ao objetivo daquele período, que é a construção de uma Epis-
temologia Genética. Em seguida, seus estudos centraram-se nos mecanismos for-
madores do conhecimento (abstração reflexionante, empírica etc), que interessam
àqueles preocupados em discutir os mecanismos de criação contínua de novidades
e as formas que possibilitam progressivamente o conhecimento mais estrutura-
do das coisas (PIAGET, 1995). Na “Introdução à Epistemologia Genética”, Piaget
assinala a importância das discussões epistemológicas para a análise do desen-
volvimento dos conhecimentos científicos do ponto de vista histórico e de outra
parte para a compreensão dos mecanismos do conhecimento sob a perspectiva do
desenvolvimento.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
15
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

Sem dúvida, a teoria de Piaget representou uma novidade, pois procurou dis-
cutir os mecanismos do desenvolvimento do pensamento através da construção
das noções, da lógica, da Física, das Matemáticas etc. Veja só o que faz Piaget (e
não é pouco!): pesquisa as muitas noções científicas do ponto de vista da elabo-
ração cognitiva no sujeito (em intensa relação com o social) e na ciência daquele
momento histórico e procura estabelecer correlações e implicações. É evidente que
ao considerar o conhecimento como construção contínua de novidades abre a pos-
sibilidade para as transformações que, certamente, ocorrerão com as ciências e o
homem e as reinterpretações que deverão ocorrer deste devir e da história (como
tão bem assinalam Piaget e Garcia no livro “Psicogênese e História da Ciência”).
Portanto, esta teoria contribui significativamente não para responder em defini-
tivo o que são os conceitos, mas para problematizá-los e investigá-los de forma
epistemológica, cognitiva e científica. Por exemplo, há muito que aprender sobre o
que é o tempo lendo as obras “Introdução à Epistemologia Genética: o pensamento
físico”, “Psicogênese e História da Ciência”, “A Construção do Real na Criança”, “O
Desenvolvimento da Noção de Tempo na Criança” e “A Epistemologia do Tempo”.
Aprende-se que o tempo na história da ciência significou construções teóricas bem
formuladas e articuladas, tais como as de Aristóteles, Newton e Einstein (entre
outras explicações que são retomadas, tematizadas e discutidas por Piaget). É pos-
sível, também, acompanhar a interpretação de Piaget sobre o desenvolvimento da
cognição humana na construção de ferramentas indispensáveis para construção
do real ou dos objetos (ou do universo perceptivo humano), tal como a organiza-
ção espaço-temporal. A nossa cognição está e é construída no tempo. O tempo, no
entanto, não é um dado a priori, mas construído na relação com o mundo vivido.
Será que contribuiria para a formação dos professores de Ensino de Ciências se
dominasse a discussão histórica e epistemológica sobre os conceitos científicos?
Penso que sim! E mais: que merece pesquisa e estudo sobre o desenvolvimento dos
conceitos na História da Ciência.
Portanto, a primeira contribuição que propomos é que a intensa produção de
Piaget, que ultrapassa a psicologia, centra-se nas questões epistemológicas clássi-
cas como a discussão sobre os conceitos científicos, as teorias, o conhecimento e a
ciência. O Ensino de Ciências não deve desconsiderar esta discussão. Há muito que
aprender e problematizar a partir da obra de Piaget sobre os conceitos na história
da ciência e no desenvolvimento do sujeito.
16 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

2. Pesquisa sobre o papel ativo do sujeito para o conhe-


cimento

Piaget se interroga sobre a relação entre a criança e o adulto e o real na cons-


trução do conhecimento e os mecanismos de interação entre o sujeito e o objeto
(sobretudo nos trabalhos da década de 1930 e nos textos sobre questões pedagó-
gicas5).
O ensino consiste em um ato de intervenção institucionalizado, e a escola es-
tabelece um modelo de conhecimento para o aluno e determina as modalidades de
intervenção (programa, método, didática etc) para que este conhecimento possa
ser adquirido. Dessa forma, são socialmente estabelecidos o que, o para que e o
como deve ser ensinado.
A teoria da ação de Piaget6 destaca a importância da atividade do sujeito na
construção do saber, por exemplo, podemos considerar o erro dos alunos como a
possibilidade de obtermos as significações cognitivas deles sobre as questões es-
tudadas em Ensino de Ciências, ao invés de chegarmos com verdades e formali-
zações prontas (patrimônio cultural da humanidade) que devem ser transmitidas
àqueles que nada ou quase nada sabem e aceitam passivamente (sem grande inte-
resse e reflexão).
A escola impõe com frequência conhecimentos prontos em vez de estimular
a pesquisa: mas isso quase não se nota porque, nesses casos, o aluno que simples-
mente repete o que lhe ensinaram parece apresentar um rendimento positivo, sem
que se suspeite quantas atividades espontâneas ou curiosidades fecundas foram
sufocadas. (PIAGET, 1995, p. 189)
Segundo Piaget,

A educação não pode, menos que qualquer outra forma de edu-


cação, contentar-se na transmissão e na aceitação passiva de uma
verdade ou de um ideal já elaborado: a beleza, como a verdade, só
vale quando recriada pelo sujeito que a conquista. (PIAGET, 1995,
p. 190).

5 Piaget, J. Sobre a Pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.


6 As considerações de Piaget aparecem no contexto da defesa da “escola nova”, tal como se
configurou em Genebra, sobretudo no Instituto Jean Jacques Rousseau, criado por Cla-
parède. As idéias de Piaget sobre a educação colocam-se a favor dos ideais democráticos
e participativos da vida social e política, opondo-se a qualquer forma totalitária.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
17
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

A escola ainda está centrada na autoridade do Professor que impede os alunos


de descobrir as coisas de forma ativa e transformadora. Piaget argumenta que a
escola deva respeitar e estimular a atividade livre e criadora da criança e afastar-se
do verbalismo (mera transmissão de conteúdos que são pouco ou nada assimilados
pelos alunos) e ligada à realidade vivida para buscar as transformações necessárias
(co-operação) do cotidiano. Diz Piaget que:

É bem mais fácil falar durante aulas inteiras sobre um assunto teó-
rico e artificial do que fazer penetrar no próprio espírito do ensino
uma única idéia elementar, quando essa idéia vincula-se a uma
atitude profunda e essencial ao espírito. (PIAGET, 1995, p. 85)

A escola deveria ser o espaço da criação de instrumentos que permitam com-


preender o mundo e transformá-lo7.
Consideramos que, numa personalidade ativa, tudo está inter-relacionado, e
o processo racional que liberta o indivíduo do seu eu para convertê-lo à vida do
espírito, por intermédio da cooperação ativa e da coordenação reflexiva, é um pro-
cesso tanto intelectual quanto moral, e que dura, sem nenhuma descontinuidade,
do nascimento até a morte (PIAGET, 1995, p. 85).
O modelo de educação fundamentado na coerção e imposição de regras parece
estar ligado a um modelo de manutenção do status quo e das relações de domina-
ção. A postura conteudista e reacionária (que está ligada a uma defesa da escola
tradicional e de transmissão de conteúdos) da educação centra-se na defesa da
formação de hábitos ditados pelo social (à maneira do Behavorismo Radical). Mas
o que é uma regra? Não é um simples hábito individual, pois o hábito, se não for
coercitivo em diferentes graus, nunca se apresentará, enquanto hábito, como obri-
gatório. Diz Piaget:

Podemos supor que seja esse hábito adquirido em classe de repetir


e de obedecer, de dobrar-se sem refletir às opiniões morais e inte-
lectuais dos grandes, que faz com que tenhamos tanto trabalho,
uma vez adultos, para nos livrarmos das coações que os grupos
impõem à nossa irreflexão. (PIAGET, 1995, p. 106 e 107)

7 No caso brasileiro um elemento estrutural que deve ser levado em conta nas discussões
educacionais é a desigualdade social e as condições de produção do conhecimento na
escola. Pensamos que a escola que não possibilita o acesso ao conhecimento colabora
para a manutenção das desigualdades e injustiças sociais.
18 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Durante muito tempo a escola teve por única tarefa transmitir à criança os
conhecimentos adquiridos pelas gerações precedentes e exercitá-las nos conteúdos
dos adultos. Povoar a memória e treinar o aluno na ginástica intelectual pareciam,
pois, ser as únicas coisas necessárias, uma vez que se concebia a estrutura mental
da criança como idêntica à do homem feito e que, portanto, parecia inútil formar
um pensamento já plenamente constituído que apenas exigia ser exercitado. Nessa
concepção, a escola por certo supõe uma relação social indispensável, mas apenas
o professor e os alunos: sendo o professor detentor dos conhecimentos exatos e o
perito nas técnicas a serem adquiridas, o ideal é a submissão do aluno à sua autori-
dade, e todo contato intelectual dos alunos entre si nada mais é que perda de tempo
e risco de deformações ou de erros (PIAGET, 1995, p. 138).
O Ensino de Ciências centrado na transmissão autoritária de conteúdos (for-
malizações matemáticas e fórmulas prontas) não deveria ser mais aceitável. Quan-
tos de nós possuem na sua lembrança as aulas de Física ou de Química em que me-
morizávamos a fórmula, buscávamos no enunciado reconhecer as formalizações
e chegávamos as respostas sem nada compreender das questões científicas impli-
cadas e dos conceitos desenvolvidos? Pensamos que uma das principais tarefas da
educação em ciências parece ser cada vez mais a de formar o pensamento e não a
de povoar a memória de conteúdos que um dia faça sentido para o aluno. Não se
trata de abandonar a memória, mas não reduzir todo o conhecimento na escola ao
ato de memorizar sem nada compreender.
Na escola, assim como na vida em geral, aprende-se na relação com os outros,
mas, como todo bem moral, só é conquistada pelo esforço livre, e o esforço livre
na criança tem por condição natural a colaboração e a ajuda recíproca (PIAGET,
1995, p. 140). Diz Piaget:

Mas é preciso compreender que a liberdade, oriunda da coopera-


ção, não é anomia ou anarquia: ela é autonomia; ou seja, a submis-
são do indivíduo a uma disciplina que ele mesmo escolhe e para a
constituição da qual ele colabora com toda sua personalidade. (...)
Não é livre o indivíduo que está submetido à coerção da tradição
ou da opinião dominante, que se submete de antemão a qualquer
decreto da autoridade social e permanece incapaz de pensar por si
mesmo. (PIAGET, 1995, p. 154).

É preciso ensinar os alunos a pensar, e é impossível aprender a pensar sob um


regime autoritário, que não possibilita a crítica livre e autônoma. O pensamento
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
19
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

supõe, portanto, a liberdade e não o trabalho sob coerção e repetição verbal (PIA-
GET, 1995, p. 154).
Portanto, a partir dos estudos de Epistemologia e Psicologia Genéticas enten-
demos o sujeito como ativo na elaboração dos conhecimentos científicos, o que
pede ao educador uma postura e um método que considerem a atividade livre,
criativa e transformadora do sujeito. Essa concepção considera que o conhecimen-
to adquirido é reinventado ativamente pelo aluno e não simplesmente transmitido.
O problema não está na transmissão em si, mas na transmissão que desconsidera
o aluno como ativo no processo de construção, assimilação e reinvenção do co-
nhecimento. Neste método, é evidente que o educador continua indispensável e
possui conteúdos fundamentais para a educação, mas deve organizá-los com con-
tra-exemplos que levem à reflexão e não à mera aquisição automática, dogmática
e acrítica dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. Esta
proposta educacional considera que o professor deixe de ser apenas um conferen-
cista e que estimule a pesquisa, a curiosidade e o esforço, ao invés de se contentar
com soluções prontas (deve ensinar conteúdos, mas que sejam assimilados ativa-
mente pelos alunos 8).
Esta teoria permite qualificar um Ensino de Ciências em que os alunos são
colocados em situações de aprendizagem escolar9 nas quais possam experimentar,
façam leituras e discutam assuntos de interesse e não ajam simplesmente por en-
comenda e sem interesse. Esta perspectiva em educação, que encontra nos textos
de Piaget um referencial importante, caracteriza-se como a defesa da liberdade e
do espírito democrático – sem desconsiderar o conteúdo, como foi muitas vezes
equivocadamente associada.

8 Obviamente, há conteúdos que pedem memorização para compreensão, o que não inva-
lida a tese geral proposta da atividade do sujeito.
9 Há variáveis no complexo processo ensino-aprendizagem que devem ser consideradas:
contexto social, interesse, alunos desmotivados, atitude do professor, conteúdo a ser en-
sinado, material didático disponível etc.
20 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

3. Pesquisa sobre os mecanismos perceptivos e a causa-


lidade física (relação sujeito e objeto)

Uma parte significativa da obra de Piaget sobre as representações do real, os


mecanismos perceptivos e a causalidade física possibilita reflexões importantes
sobre conteúdos e mecanismos cognitivos e as características do mundo físico.
A questão filosófica, psicológica e física sobre a existência do mundo exterior
é problematizado por Piaget em diversas obras (“A construção do Real na Criança”,
“O Nascimento da Inteligência na Criança”, “A Formação do Símbolo na Criança”,
“Lógica e Conhecimento Científico”, “Psisogênese e História da Ciência”, “Mecanis-
mos Perceptivos” etc10). E mais, o autor procurou, ao longo de sua obra, estudar
a construção do mundo exterior e a existência de um pensamento organizador
no curso da vida (do nascimento à morte). No Ensino de Ciências podemos, por
exemplo, estudar esta questão, que envolve a percepção e a causalidade física11. O
que é o mundo percebido? Existe uma forma de representação ou de apresentação
do mundo físico que seja a expressão mesma das coisas?
É possível trabalhar nas aulas de Filosofia da Ciência, experimentação em Fí-
sica ou Química, História da Ciência, entre outras, esta questão do papel que a
experiência ou a percepção tem para a construção da teoria e da compreensão
dos fenômenos estudados. Por exemplo, podemos investigar dispositivos ou ex-
perimentos que surpreendam a percepção imediata e problematizar como seria a
explicação para aquilo que ocorreu. Explorar esta questão no Ensino de Ciências
é uma fonte inesgotável para ensinar conceitos e teorias. Podemos, também, nos
questionarmos sobre o fato de os experimentos estarem ligados à teoria e compro-
varem aquilo que desde o início estava aceito como verdadeiro12 . Este estudo pode
desdobrar-se numa investigação interessante sobre a relação entre a experiência
e o papel que os fatores dedutivos ou racionais têm para a construção das expli-
cações nas Ciências Naturais, sobretudo – para os objetivos desta pesquisa – na
Física e na Química. Podemos estabelecer um diálogo da explicação formulada
por Piaget com as construídas por T. Kuhn (que participou de debates com Piaget),
Karl Popper, Paul Feyrabend, Imre Lakatos, Gaston Bachelard (que trabalhou com
Piaget na Sorbonne) e outros.

10 Livros que - em função de sua morte - Vigotski não leu (portanto, a crítica radical de
Vigotski a Piaget é a crítica parcial deste autor).
11 O estudo das teorias da causalidade reuniu epistemólogos como Kuhn, Bunge, Rosen-
feld, Halbawachs e Garcia.
12 Sobre esta questão, ver o texto “A função do dogma na ciência”, de Thomas Kuhn.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
21
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

O que propomos é a importante reflexão e discussão no Ensino de Ciências


sobre a relação sujeito-mundo exterior e as possíveis implicações de posturas em-
piristas, racionalistas, construtivistas etc. para ciência e seu ensino.
Em especial, o estudo do livro “Psicogênese e História da Ciência”, de Jean Pia-
get e Roland Garcia, pode contribuir para a formação dos alunos e para reflexões
no Ensino de Ciências. Os autores não procuraram descrever correspondências
termo a termo entre filogênese e ontogênese, nem possíveis recapitulações de uma
pela outra. A obra procura investigar as estruturações dos mecanismos de passa-
gem de um período ao seguinte e as possíveis analogias com os estádios genéticos.
A utilização da História da Ciência e da psicogênese permite mostrar que aquilo
que consideramos verdadeiro está num processo contínuo de construção de no-
vidades (que caracteriza a teoria de Piaget, que sofreu forte influência das ideias
bergsonianas).
A Ciência que estudamos é esta que foi construída no Ocidente e, se o cami-
nho (de construção histórica que envolve interesses, ideologia etc.) fosse outro,
teríamos outros conhecimentos (PIAGET e GARCIA, 1995).
Outra questão que a leitura e discussão do livro suscitam, e que interessa ao
Ensino de Ciências, é a compreensão sobre o que é um fato científico. Um fato
jamais existe em estado puro (como já demonstraram Duhem, Poincaré e outros),
pois é sempre solidário com uma interpretação. Para Piaget, não é possível a aná-
lise do conhecimento em estado puro (leis constatadas empiricamente), pois o co-
nhecimento é um produto da observação dos fatos à luz de uma interpretação.
Na observação de um fato na cooperação científica, deve haver um acordo
para aproximação da verdade:

(...) um exame honesto dos fatos, junto a uma elaboração em parte


formalizada das interpretações, podem conduzir epistemólogos
em desacordo inicial a uma revisão e a uma precisão de suas hipó-
teses até a um acordo aproximado, em todo caso bem superior às
oposições iniciais (PIAGET, 1983, p. 90).

A elaboração do conhecimento necessita da cooperação científica que permite


a coordenação de diferentes pontos de vista, pois a discussão das diferentes teorias
pode conduzir a elaboração de uma explicação que se aproxime mais da verdade
do que aquelas que se fecham paradigmaticamente em sistemas incomensuráveis.
O livro de Piaget e Garcia (1995) apresenta, também, uma discussão interes-
sante sobre a distinção positivista do “contexto da descoberta” e o “contexto da
justificativa”, separação que procura colocar a discussão epistemológica tradicional
22 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

como ligada exclusivamente ao contexto da justificativa e alheia ao processo histó-


rico e psicológico, como tão bem defendem Piaget e Garcia como indispensáveis ao
entendimento da Ciência. Não há Ciência neutra. A Ciência sempre foi e será pro-
duzida num contexto histórico, político e ideológico que lhe dá forma e a alavanca
(ver em especial o último capítulo de “Psicogênese e História da Ciência”, de Piaget
e Garcia, 1995).

4. Pesquisa sobre o papel da experimentação e da His-


tória e Filosofia das Ciências na formação dos alunos em
Ciências Naturais

Piaget analisa o Ensino das Ciências experimentais e observa um problema


das escolas tradicionais da época: o fato de negligenciarem a experimentação na
formação dos alunos. Não que se aprenda meramente pelas experimentações, pois
há uma atividade do sujeito que constrói o conhecimento (conforme desenvolvido
no item 2 desta pesquisa). Uma experiência que não seja realizada pela própria
pessoa, com plena liberdade de iniciativa, deixa de ser uma experiência, trans-
formando-se em simples adestramento, destituído de valor formador por falta da
compreensão suficiente. Lembremos que o princípio fundamental dos métodos
ativos é a compreensão ativa e a reinvenção constante do conteúdo ensinado.
Neste sentido, cabe a iniciação às Ciências Naturais favorecer a livre ativida-
de do aluno através (entre outras formas) da experimentação (na medida em que
as diferenciemos do aspecto dedutivo ou matemático). A educação científica deve
oferecer meios propícios para estimular a curiosidade e a pesquisa ativa, e a expe-
rimentação é um caminho interessante.
É interessante perceber o papel que a experimentação tem nas Ciências Natu-
rais e as contribuições de Piaget para este debate (levantando no caso brasileiro as
experiências educacionais que utilizaram esta ideia, sobretudo no Ensino de Física
e Química).
Há uma distinção entre pensamento verbal (contemplado de fora) que se ca-
racteriza como discurso alheio e a experimentação ativa, que por ocasião de ma-
nipulações ou experiências se expressa em operações que organizam os objetos.
No próprio terreno da experimentação concreta, há duas maneiras de conceber a
relação do professor com os alunos e destes com os objetos. Uma é preparar tudo,
de tal forma que a experiência consista numa leitura compulsória e totalmente
regulada de fora. Outra é provocar a capacidade de invenção e criação da leitu-
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
23
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

ra das experiências nos alunos (PIAGET, 1998, p. 179). Nesta segunda hipótese o
professor terá uma postura que considera o aluno e o processo de construção do
conhecimento, provocando e instigando a curiosidade e a busca do entendimento
da experiência. Neste sentido, os dispositivos experimentais não levam indutiva-
mente ao conhecimento. Ao contrário: é levantando problemas, procurando hi-
póteses, investigando atentamente e de forma intensa e curiosa e interagindo com
as respostas dos outros (há uma imperativa necessidade da interação social), que
somos levados à interminável busca do conhecimento.
Piaget discute, também, um aspecto central, mas que se restringe essencial-
mente aos níveis secundários e universitários, o aspecto cada vez mais interdisci-
plinar que assume necessariamente a pesquisa em todos os domínios. Piaget é um
dos primeiros que coloca como indispensável para a formação dos professores e
dos alunos a História e Filosofias das Ciências (especialmente nos textos “Sobre a
Pedagogia” e “Psicogênese e História da Ciência”). O Ensino de Ciências Naturais
forma mal seus alunos quando é fragmentado e não fornece a possibilidade da for-
mação de conteúdos sólidos na ciência e reflexões epistemológicas sobre a ciência
do seu tempo e da história que a constituiu.

5. Pesquisa sobre o papel que as imagens mentais pos-


suem para o ensino de conceitos científicos

Piaget construiu uma explicação epistemológica e psicológica sobre a imagem


mental e suas relações com o desenvolvimento da cognição e os processos de cons-
trução do conhecimento.
Piaget descreve de forma muito intensa e interessante a construção dos esque-
mas e esquematismo das ações sensório-motoras13, que significa um entendimento
das ações do corpo como produzindo uma intencionalidade própria que possibilita
(através de continuidades e descontinuidades) a representação simbólica − forma
de conhecimento que é construída na passagem do período sensório-motor para
o pré-operatório − marcada pela construção de certas estruturas que permitem a
relação do sujeito com os objetos através de imagens, símbolos, imaginação, dese-
nhos diferidos, linguagem verbal etc.
No entanto, o sujeito deste período tem que reconstruir, nesse novo estádio (in-
tuitivo ou simbólico), aquilo que fora conquistado no estádio anterior (prático ou

13 Sobretudo nos livros “O Nascimento da Inteligência na Criança” e a “Construção do Real


na Criança”.
24 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

sensório-motor). Por não possuir ainda estruturas operatórias que possibilitem as


relações com as coisas de maneira mais objetiva (organizar o real em estruturas re-
versíveis e de conservação, dada uma transformação), a criança fica presa ao simbo-
lismo da imagem e ao caráter estático dos elementos perceptivos. Portanto, uma das
características marcantes das imagens mentais é o fato de, a princípio, não possuí-
rem instrumentos operatórios que conduzam ao conhecimento. No entanto, existe
uma relação próxima e estreita entre a formação dos conceitos e as imagens mentais
e gráficas, que Piaget procurou desenvolver em várias obras, sobretudo na “Imagem
Mental na Criança”, na “Formação do Símbolo na Criança” e “Psicologia da Criança”.
No Ensino de Ciências Naturais, a utilização de imagens gráficas e o papel que
as imagens mentais possuem na construção de conceitos científicos são funda-
mentais para pensar a aprendizagem em Física e Química. A Química, sobretudo,
é muito iconográfica e trabalha com modelos que são representados em desenhos e
imagens. Sabemos que as imagens gráficas, as metáforas e as imagens mentais po-
dem conter equívocos ou dificultar a aprendizagem de conceitos científicos, mas
por outro lado apresentam condições de potencializar e auxiliar a compreensão na
Ciência e no ensino de conceitos muito distantes da compreensão por seu caráter
puramente conceitual e matemático.
A obra de Piaget voltou-se bastante e com muita consistência aos mecanismos
formadores do conhecimento, em especial, a relação entre imagens e operações.
Ao nascer, percebemos a criança relacionar-se com as coisas com a ausência
de imagens mentais (esta é uma das teses centrais de Piaget sobre o assunto). So-
mente com a construção de uma inteligência prática e bem estruturada, o sujeito
relaciona-se com objetos através de representações imagéticas.
No período pré-operatório, a criança utiliza-se do simbolismo da imagem14 ,
característica desse estágio de desenvolvimento do sujeito.
A imagem cumpre papel fundamental para os atos de conhecer, sobretudo
em seu aspecto simbólico, embora o pensamento não seja um “amontoado” de
imagens15.

14 Além das condutas próprias desse estágio de desenvolvimento, marcadas pela constru-
ção da função semiótica ou simbólica.
15 Piaget é um crítico do empirismo, que entende o conhecimento como cópia das impres-
sões. O conhecimento é assimilação. Com relação à crítica de Bergson à inteligência,
dizendo que esta opera de forma cinematográfica, ele estaria correto no que se refere à
imagem, desconsiderando totalmente a operação e o processo de criação de novidades
próprias da inteligência humana.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
25
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

Ora, a hipótese do conhecimento-cópia tem a seu favor o fato de


pôr diretamente a tônica sobre as propriedades do objeto e são,
com efeito, estas que se trata de atingir, enquanto que, se quiser-
mos assimilar o real às estruturas do sujeito, arriscamo-nos a não
atingir o objeto. Simplesmente, o objeto não é mais que um ins-
tantâneo recortado no fluxo contínuo das relações de causalida-
de e o real aparece, mais cedo ou mais tarde, como consistindo,
para além das aparências, em sistemas de transformações. Copiar
essas transformações não é então possível senão reproduzindo-as
ativamente e prolongando-as, o que se resume em dizer que já não
há, no verdadeiro sentido da palavra, cópia e que, para conhecer
os objetos, é preciso agir sobre eles de maneira a decompô-los e a
recompô-los (PIAGET, 1977, p. 7 e 8).

Uma característica da relação da criança com as coisas no período pré-ope-


ratório16 é o pensamento figurativo, pois a criança, quando raciocina, fica presa à
imagem e à percepção, por ausência de pensamento operatório que permita racio-
cínios coerentes e reversíveis, que possibilitem composições de diferentes elemen-
tos em sistemas de classes e relações. Portanto, a relação entre o sujeito e o objeto,
nesse período, caracteriza-se pela reprodução das coisas sem as transformações
que estas comportam.
Qual é o papel da imagem neste processo?
Para o empirismo (associacionismo), a imagem é considerada:
1. Como um produto da percepção e da sensação (cópia imperfeita das per-
cepções e sensações);
2. Elemento principal do pensamento, e a conexão das imagens ocorrem por
associação.
3. Como uma cópia, ainda que imperfeita, dos objetos e não um símbolo
subordinado a operações do pensamento.

Para Piaget (1977), a imagem é de aparecimento tardio. Só aparece com a cons-


trução da função simbólica que permite dissociar significante e significado (carac-
terizado pelas seguintes condutas: linguagem, jogo simbólico, imitação diferida,
desenho etc). Segundo o autor:

16 De aproximadamente dois anos até sete ou oito anos de idade.


26 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Ora, se o aparecimento das imagens parece assim ligado à consti-


tuição da função simbólica, na sua qualidade de diferenciação dos
significantes e dos significados permitindo a evocação dos objetos
ou acontecimentos não atualmente percebidos, é sem dúvida, como
foi desenvolvido na mesma obra porque a imitação assegura a tran-
sição entre o sensório-motor e o representativo e porque a própria
imagem constitui imitação interiorizada. (PIAGET, 1977, p. 11)

A imagem seria, portanto, imitação interiorizada. O caráter sensível desta es-


taria numa imitação da percepção (cópia símile-sensível). Assim:

Na hipótese, que será a nossa, de um conhecimento-assimila-


ção, o objeto só é conhecido enquanto conceitualizado em graus
diversos. A imagem é sempre o produto de um esforço de cópia
concreta e mesmo símile-sensível do objeto, mas esta cópia per-
manece fundamentalmente simbólica, pois o significado efetivo
só se encontra no conceito. Encontramo-nos neste caso diante da
mesma dificuldade com que deparamos ao querer compreender
as ‘palavras’ da linguagem, cujo aspecto semântico é solidário de
toda conceptualização. (PIAGET, 1977, p. 15).

Consideramos que a teoria de Piaget tem muito a contribuir na reflexão sobre


o papel que as imagens possuem para o ensino de conceitos científicos.

6. Pesquisa sobre “A Representação do Mundo na Crian-


ça” (descrições fenomenológicas) e a importância para o
ensino de conceitos científicos

Piaget contribui, também, para pensar as descrições fenomênicas (mundo vivi-


do) que as pessoas (crianças e adultos) fazem do mundo físico, químico e biológico.
Uma forma interessante que o Ensino de Ciências tem de abordar a questão
do conhecimento é investigar a representação que os alunos fazem do mundo para
depois (ou ao mesmo tempo) articular aos conceitos já elaborados pela ciência.
O que fazer se a representação dos alunos for errada ou falsa, segundo a Ciência
atual, acerca de um determinado conhecimento? O professor pode utilizar estas
explicações para construir suas aulas de ciências.
CAPÍTULO 1 - As contribuições da epistemologia e
27
psicologia genéticas de Piaget ao ensino de ciências

Nos livros “A Representação do Mundo na Criança”, “O Desenvolvimento das


Quantidades Físicas na Criança” e “O origem da idéia de Acaso na Criança”, Piaget
discorre sobre as representações que as crianças fazem do mundo físico, biológico e
químico, buscando compreender os mecanismos presentes nestas representações.
A tese piagetiana é que há uma modificação das explicações formuladas pelo
sujeito ao longo da vida e mecanismos cognitivos presentes nesta descrição. Prin-
cipia nas explicações das crianças uma forma de representação muito ligada aos
dados imediatos e perceptivos e sem muita estruturação operatória (composição
dedutiva e reversível).
Por exemplo, na pesquisa sobre a conservação da substância, peso e volume o
sujeito (da criança que se utiliza de imagens ao adulto) elabora explicações sobre a
fragmentação da substância17 do açúcar (atomismo).
As representações que as crianças fazem da transformação do açúcar são: 1-
transformação do açúcar em água; 2- pulverização com liquefação; 3- atomismo:
o pedaço de açúcar se divide em grãos invisíveis, que perdem seu peso e volume.
Segundo os estudos de Piaget, essas representações estão estreitamente ligadas
ao processo de construção dos mecanismos operatórios que levam à conservação.
A elaboração de uma composição atomística consiste em coordenações das ope-
rações de fracionamento com as de deslocamentos, enquanto que a liquefação e a
pulverização com liquefação caracterizam a transformação qualitativa do açúcar.
É possível, no Ensino de Ciências, utilizarmos as teses interessantes e instigan-
tes de Piaget sobre o retorno ao “mundo vivido”, sua compreensão e relação com
o universo do pensamento, da ciência, da moral, da arte, da afetividade e da vida.
Esse retorno implica em uma compreensão do humano como inacabado e em de-
senvolvimento. Para Piaget, a inteligência deriva da ação, não na acepção de meras
respostas associativas, mas no sentido muito mais profundo da associação do real
com as coordenações necessárias e gerais da ação (assimilação). Conhecer é, pois,
assimilar o real às estruturas do sujeito.

17 Precedida por uma representação do desaparecimento da substância (aniquilamento


completo da substância).
28 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

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CAPÍTULO 2

Inserção das Ciências Naturais no currículo


escolar brasileiro: contexto da História da
Ciência e da educação
Vera de Mattos Machado1

Introdução

É ponto pacífico, atualmente, a necessidade de se conhecer a História da Ci-


ência e da Educação como ponto de partida para a compreensão do surgimento de
disciplinas escolares, bem como sobre os saberes científicos veiculados na escola.
A escolha de conteúdos, de atividades de ensino e da forma de estudá-las passa pela
compreensão das dimensões que compõem esses campos. Conhecer a evolução e/
ou a transformação das áreas de conhecimento, ao longo do tempo e do espaço, e
a sua contribuição para a vida da sociedade humana é igualmente imprescindível
nesta sociedade moderna, capitalista, industrial, tecnológica e globalizada.
Nessa perspectiva, entender a História da Ciência como forma de associar os
conhecimentos científicos produzidos pela humanidade, com os problemas que
originam e impulsionam a construção de novos saberes, e como eles são transpor-
tados para a sala de aula, nas escolas, é um desafio para qualquer docente.
Nesse sentido, as concepções epistemológicas docentes têm sido alvo de estu-
dos para diversos pesquisadores no Brasil, no sentido de melhorar o desempenho
das aulas de Ciências (KRASILCHICK, 2000; WERTHEIN E CUNHA, 2009; AL-
VES e FORSBEY, 2009; BRINCKMANN e DELIZOICOV, 2009; NASCIMENTO
et al., 2010; PIRES FERREIRA e FERREIRA, 2010; DELIZOICOV et al., 2011).
Porém, neste texto não abordaremos esse tema.
A finalidade deste texto é contribuir com os docentes e pesquisadores da edu-
cação diante de algumas reflexões sobre a inserção das Ciências da Natureza no
currículo escolar brasileiro, no contexto da História da Ciência e da Educação, e

1 Professora Adjunta da UFMS, Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, Programa


de Pós-graduação Mestrado em Ensino de Ciências.
38 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

mostrar como os saberes e as atividades dessa área foram aos poucos se inserindo
na rotina escolar, desde a época da colônia até os dias de hoje.
Conforme estudos históricos de Alfonso-Goldfarb (1994, p.8), “a História da
Ciência, que se desenvolveu no interior da Ciência, sempre esteve mais próxima da
Filosofia (Lógica, Epistemologia, Filosofia da Linguagem), do que da História”. E
sem utilizar os métodos e procedimentos da História, permaneceu por muito tempo.
É compreensível, então, que não basta, apenas, juntar as palavras História e
Ciência, para se compreender o significado e o movimento desse campo de co-
nhecimento, conforme se pensava até o século passado (século XX). Foi preciso a
História da Ciência transformar sua concepção (o que ocorreu aos poucos e lenta-
mente), trazendo para si elementos da História em consonância com subsídios da
Sociologia, da Antropologia e das Ciências Humanas (ALFONSO-GOLDFARB,
1994), abrindo espaço, desse modo, às contribuições de outras sociedades e cultu-
ras, e não somente à ocidental. O movimento real da História da Ciência é múlti-
plo, entrelaçado e conectado.
Por isso, em se tratando de abordagens históricas sobre a Ciência, há que se ter
outra percepção dessa relação, diferentemente da percepção de séculos passados
(linear e positivista), em que os fatos notáveis eram escolhidos, descritos e registra-
dos com base no pensamento de filósofos e/ou historiadores das Ciências que per-
tenciam, em grande parte, a uma sociedade específica (ocidental), e que possuíam
interesses pessoais e/ou coletivos (econômicos, políticos, religiosos, entre outros)
no desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia da forma que lhes convinha.
É pertinente observar que a realidade da sociedade ocidental europeia, no sé-
culo XVII, era de profunda transformação quanto aos modos de produção. Ela
passou do sistema feudalista para o sistema capitalista, uma exigência do desen-
volvimento comercial da época, que culminou em grandes avanços das pesquisas
científicas. O resultado dessas transformações foi um amplo desenvolvimento tec-
nológico, que alterou os rumos da história da sociedade humana (PONCE, 1995;
GASPARIM, 1994; CAMBI, 1999).
Gasparin (1994) revela que o novo modo de produção influenciou de tal modo
a sociedade da época, que deslocou o centro de explicações das ações do homem,
de Deus para o próprio homem, gerando o antropocentrismo, pensamento em que
o homem se colocava como centro da criação.
É importante ressaltar que as reflexões aqui contidas partem da premissa de
que a História da Ciência constituiu-se de uma cadeia de acontecimentos entrela-
çados, com diferentes formas de determinação da sociedade, dependendo do viver
de cada cultura e de cada época (LÉVI-STRAUSS, 1976; ALFONSO-GOLDFARB,
1994), com continuidades e descontinuidades, as quais permitiram que ocorres-
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
39
contexto da História da Ciência e da educação

sem grandes revoluções e mudanças em seu interior (KUHN, 1978; BACHELARD,


1996), influenciando totalmente a Educação científica através dos tempos.
Por meio dos estudos historiográficos sobre a Ciência, desenvolvida por Tho-
mas Kuhn, na década de 1960, verificamos que a mudança de pensamento nesse
campo ocorreu a partir de nova forma de se estudar essa história, ou seja, a partir
da contribuição dos estudos sociológicos. Partindo de estudos históricos e socioló-
gicos, Kuhn (1978) defendeu a ideia de que os avanços da Ciência não resultaram
de continuidade, mas sim da ruptura de estruturas científicas consolidadas. Se-
gundo o mesmo teórico, uma Ciência evolui por etapas, que em alguns momentos
são de evolução normal, em outros momentos de ruptura revolucionária, sendo
esses momentos, os revolucionários, os que mais contribuem para o desenvolvi-
mento da Ciência.
Como exemplo do que foi dito acima, apresentamos as palavras de Galileu
Galilei para Andrea, filho de sua governante (século XVII), traduzido da peça de
Bertold Brecht (1938/1939):

Em Siene, quando moço, vi uma discussão de cinco minutos so-


bre a melhor maneira de mover blocos de granito, em seguida, os
pedreiros abandonaram uma técnica milenar e adotaram uma
disposição muito mais inteligente das cordas. Naquele lugar e na-
quele minuto fiquei sabendo: o tempo antigo passou, e agora é um
tempo novo. Logo a humanidade terá uma ideia clara de sua casa,
do corpo celeste que ela habita. O que está nos livros antigos não
lhes basta mais. (BRECHT, 1991, p. 57)

Esse diálogo demonstra que a descontinuidade científica já existia em séculos


passados, e a mudança de paradigma também. Mas isso não era levado em consi-
deração pelos filósofos e historiadores da Ciência, que na realidade eram, na sua
maioria, os próprios cientistas da época, sendo a História da Ciência um artefato
que servia para justificar os feitos da própria Ciência. A contribuição de Galileu,
contada por ele próprio, e por meio da historiografia, tornou-o um dos precursores
da Ciência Moderna, junto a outros notáveis (ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p.43).
Ressalta-se que a forma linear e descontextualizada de contar essa História
da Ciência, por muitos historiadores, retira a totalidade de feitos científicos (ações
humanas), e muitos dos fatos considerados menos importantes, mas de grande
contribuição para a revolução da Ciência, foram desconsiderados. Acrescentamos,
a essa observação, a visão positiva da Ciência, que entende que o seu desenvolvi-
mento é cumulativo e contínuo, como se cada advento fosse resultado de aprimo-
40 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

ramento de técnicas e teorias sucessivas, foi sendo substituída, ao longo do tempo,


e finalmente superada, a partir do século XX.
Desse modo, a partir do referido século, se estabeleceu um novo rumo para
interpretação e narração da História da Ciência, com importantíssima colabora-
ção de Thomas Kuhn, como já foi dito, considerado por muitos estudiosos como
divisor de águas nesse campo de estudo. A linearidade cronológica e positivista
dos feitos científicos da sociedade ocidental, da qual faziam parte a maioria dos
cientistas e filósofos que narrava essa história, é transformada em múltiplas histó-
rias, onde as diferentes culturas humanas em diferentes épocas puderam aparecer
e mostrar suas contribuições (ALFONSO-GOLDFARB, 1994).
Essa é a História da Ciência que os professores precisam descobrir para abor-
darem os fatos e conceitos das Ciências (Físicas, Químicas e Biológicas) em suas
aulas, com o objetivo de mostrar que ela é uma produção humana, e por isso su-
jeita a acertos e erros, continuidades e rupturas/descontinuidades, e, que em todos
os casos, podem ocorrer consequências benéficas e/ou maléficas para a própria so-
ciedade humana e para a natureza. É importante lembrar que o objeto de desejo da
Ciência (ou seja, do ser humano que a produz) sempre foi o de dominar a natureza,
por meio da compreensão dos seus fenômenos e da melhor forma de controlá-los
ou alterá-los.
Durante muito tempo, os cursos de formação de professores de Ciências no
Brasil ignoraram por completo as abordagens históricas, limitando-se apenas a
uma formação teórica e técnica (linear e positivista), na qual o que importava era
apreender a(s) técnica(s) de experimentos, que confirmassem as teorias de suporte,
bem como os seus resultados. Esse processo contribuiu, durante muito tempo, para
que os docentes trabalhassem os conteúdos da área (no ensino básico e superior)
de forma desvinculada das dimensões que compõem a relação homem-natureza.
Constatamos esse pensamento em pesquisa realizada por Carvalho e Gil-Pé-
rez (2001), que observam ser a falta de conhecimentos científicos o principal mo-
tivo para que os docentes não se envolvam em atividades inovadoras. E ainda, de
posse destes conhecimentos, os professores podem entender qual é o seu papel no
contexto educacional e perante a sociedade, e conscientes responderem o porquê e
para que ensinar Ciências, e mais ainda, podem promover rupturas ou revoluções
em seu próprio fazer pedagógico.
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
41
contexto da História da Ciência e da educação

1. A Educação Científica no Brasil Colônia

Alguns pontos da História da Educação brasileira relacionam-se com a Histó-


ria da Ciência e merecem destaque, pois é necessário que o professor da área com-
preenda o contexto de inserção do Ensino das Ciências da Natureza no currículo
da Educação formal.
Com a chegada dos Jesuítas ao Brasil, por volta de 1549, o panorama socioeco-
nômico era o seguinte: “uma economia agrário-exportadora dependente, explora-
da pela Corte Portuguesa, sem diversidade nas relações de produção; e a Educação
não era vista como valor social importante” (VEIGA, 1989, p. 40). Os Jesuítas, logo
de início, implantaram e desenvolveram o seu pensamento pedagógico, por meio
de seminários ou colégios.
Apesar da Educação propagada pela Igreja Católica já ser considerada inade-
quada e ultrapassada aos novos tempos da Europa (século XVI), ou seja, aos modos
de produção capitalistas em ascensão, ela foi implantada rapidamente no Brasil.
De modo óbvio, o Ensino jesuítico obedecia aos seus interesses e aos da nobreza
(principalmente de Portugal e da Espanha), exercitando uma Educação dogmática
e dualista. A doutrina educacional da Igreja Católica e, consequentemente, dos
jesuítas tinha nos recursos metodológicos uma forma de domínio e pressão, para
que nada interferisse na soberania dos senhores feudais e da própria Igreja. Na
época, não se via com bons olhos o desenvolvimento da Ciência (PONCE, 1995).
Romanelli (1997), nesta mesma direção, afirma que o desinteresse pela Ciên-
cia foi uma grande característica da Educação no Brasil colônia, implantada pelos
jesuítas. Eram quase totalmente desconsideradas a análise crítica, a pesquisa e a
experimentação. Convém aqui uma breve referência ao Ratium Studiorum, o Pla-
no de Estudos da Companhia de Jesus, publicado em 1599, que tinha como ideal
a formação do homem universal, humanista e cristão, que se preocupava com o
ensino humanista de cultura geral e enciclopédico, e alicerçada na Summa Theoló-
gica, de São Tomás de Aquino (VEIGA, 1989).
O Ratium Studiorum, traduzido das Obras Completas do Padre Leonel Franca
(1952), era dividido em três níveis: “Os Estudos Superiores”, “Os Estudos Inferio-
res” e “Os Estudos Acadêmicos (médios)”, descritos da seguinte forma:

[...] educação elementar para a população índia e branca em geral


(salvo as mulheres), educação média para os homens de classe do-
minante, parte da qual continuou nos colégios preparando-se para
o ingresso na classe sacerdotal, e educação superior religiosa só
para esta última (ROMANELLI, 1997, p. 35).
42 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

E, como já pontuado anteriormente, o Ensino Científico aparecia muito pouco


no plano de ensino dos jesuítas, apenas nos Estudos Superiores, inseridos no curso
de Filosofia, e de forma superficial, conforme citado abaixo nas Regras do Profes-
sor de Filosofia, item 9, parágrafo segundo do Ratium Studiorum:

9. O que se deve ensinar ou omitir no primeiro ano. [...] §2. Nos


prolegômenos da lógica discuta somente se é ciência, qual o seu
objeto, e alguns pontos sobre os gêneros e as espécies; a discussão
completa sobre as idéias Universais remeta-as para a metafísica,
contentando-se aqui de noções elementares (OBRAS DO PADRE
LEONEL FRANCO, 1952, p. 31).

Conforme a citação acima, chama atenção a questão dos ‘pontos sobre gêneros
e espécies’ que poderiam ser ensinados, segundo o Ratium Studiorum. Durante o
período colonial, do século XVI ao XVIII, chamava muita a atenção de naturalis-
tas da corte, de vários países além de Portugal (França, Inglaterra e Espanha, entre
outros), a variedade de espécies animais e vegetais que o Brasil possuía. A curio-
sidade por conhecê-los fez com que várias expedições trouxessem ao país natura-
listas e cronistas2 , ao longo dos séculos citados (LEITÃO, 1937; PRESTES, 2000).
Inicialmente, no século XVI, os cronistas eram mais requisitados pela corte
para vir ao Brasil, para desenhar e descrever suas observações sobre a flora e a
fauna local, levando-as de volta à corte para catalogação e exposição. Na realidade,
o grande interesse sobre a fauna e flora do Brasil residia em saber o que poderia ser
aproveitado em termos econômicos para a corte.
Posteriormente, a partir de meados do século XVII, vários naturalistas vieram
pessoalmente, já com o interessse científico mais aflorado. Entre os naturalistas
famosos que aportaram no Brasil colônia, podemos citar, de acordo com as pes-
quisas de Leitão (1937) e de Prestes (2000): Henry Bates, Charles Darwin, Alfred
Wallace, Jean Louis Rodolphe Agassiz e Carl Philippe Von Martius, entre outros.
Não podemos nos furtar de citar dois importantes naturalistas brasileiros que, de
acordo com Prestes (2000), muito contribuíram com descobertas e catalogações
de espécies animais e vegetais brasileira: Alexandre Rodrigues Ferreira e Manoel
Arruda Câmara.
Com certeza, essas pesquisas dos naturalistas em terras brasileiras não colo-
caram em risco a proposta educacional da Companhia de Jesus, que mesmo após

2 Cronista: s m+f (crono2+ista) 1 O que escreve crônicas; cronógrafo, historiógrafo.


(http://michaelis.uol.com.br/)
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
43
contexto da História da Ciência e da educação

mais de 200 anos, já no limiar do século XVIII para o XIX, nunca escondeu sua
intenção de defender os interesses da Igreja e da Corte Portuguesa, em detrimento
da ascensão da burguesia local, que ansiava por uma Educação mais moderna e
que atendesse aos seus interesses comerciais e econômicos (VEIGA, 1989; ROMA-
NELLI, 1997).
Traçando um panorama da Europa, com o Brasil, no mesmo período, veri-
ficamos o fortalecimento da Escola Moderna. Esse fato se deu pela ascensão da
burguesia e pelas transformações sociais ocorridas. Na Europa, modificaram-se
os modos de produção (século XVII) com o estabelecimento das relações de pro-
dução capitalista, conforme vimos anteriormente, que se alicerçou nas propostas
educacionais da Reforma Protestante, que tinha em sua essência um caráter uni-
versal e moderno, que se contrapôs com a proposta de ensino da Igreja Católica.
De acordo com Azevedo (1996), na Europa, somente Espanha e Portugal resisti-
ram às mudanças propostas pela escola moderna, permanecendo fiéis às doutrinas
católicas, puramente espirituais.
Ganha força, então, na maior parte do continente europeu, a proposta educa-
cional de Comenius, que também era religioso, mas que refletindo as necessidades
e o movimento histórico de sua época (modos de produção capitalista) aparece
com a proposta pedagógica de ‘ensinar tudo a todos, totalmente’, objetivo princi-
pal da sua Didática Magna (COMENIUS, 2001). Para Comenius, a educação era
o instrumento apropriado para realizar as reformas sociais necessárias que o mo-
mento turbulento e conflituoso exigia.
A Didática Magna foi considerada o limite da passagem da escola antiga para a
escola moderna, “como contribuição e como resposta à necessidade de construção
dessa nova sociedade” (GASPARIN, 1994, p. 56). Se diferenciava do Ratium Stu-
diorum, dos jesuítas, na tentativa de democratização da Educação, uma vez que, na
época, o ensino era privilégio de poucos na Europa.
Mesmo contrário ao sistema educacional da Igreja Católica, Comenius nunca
abandonou suas bases religiosas, pois em todas as suas iniciativas sempre deixou
transparecer um profundo e forte sentimento religioso. Podemos verificar isso
em uma passagem de sua Didática Magna, que enfoca o Ensino Científico, quase
sempre considerado pela Igreja Católica como blasfemo, pois se contrapunha ao
caráter dogmático das explicações religiosas sobre as Ciências, no Capítulo XX -
“Método para Ensinar as Ciências em Geral”:

[...] Se todas as coisas podem ser apresentadas aos sentidos. [...]


11. Se alguém duvidasse que todas as coisas, mesmo as espiritu-
ais e ausentes (as quais se encontram ou acontecem no céu ou nos
44 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

abismos, ou nas regiões ultramarinas), podem, deste modo, ser


submetidas aos sentidos, lembre-se que, por obra da divina pro-
vidência, todas as coisas foram feitas com perfeita harmonia, de
modo que as coisas superiores podem ser representadas por meio
das inferiores, as ausentes por meio das presentes, e as invisíveis
por meio das visíveis, como o demonstram com suficiente clareza
o Macromicrocosmos de Roberto Fluttus, o qual mostra artifi-
cialmente como se geram os ventos, as chuvas e os trovões. E não
há dúvida que tais coisas podem ainda reduzir-se a maior evidên-
cia e a maior facilidade (COMENIUS, 2001).

Conforme o exemplo da citação, Comenius explicava que tudo que está ao


alcance ou fora dos sentidos é “obra da divina providência”. Ainda assim, devido
a sua proposta educacional universal de “ensinar tudo a todos” e não ocultar aná-
lises e experimentações, foi considerado o articulador da reforma didática, que
substituiu a organização do trabalho didático artesanal pelo projeto educacional
coletivo, substituindo o ensino preceptoral defendido pela Igreja Católica por um
ensino mais democrático.
Porém, nesse período (século XVII/XVIII) a Igreja continuava vigilante e
atenta, defendendo seu dogmatismo religioso (e seu espaço político e econômico),
fazendo, por exemplo, com que “Descartes desistisse de publicar o seu livro sobre
o mundo” (PONCE, 1995, p. 130). Mesmo com o nascer da Idade Moderna, “ainda
se faziam sentir as penumbras feudais”, como ressalta Gasparin (1994, p. 35): “a
afirmação do próprio Galileu de que o telescópio fora construído de acordo com os
mais científicos e cristãos princípios [...] revela a submissão em que a Ciência ainda
se encontrava em relação às forças eclesiásticas”.
Nessa época, alguns países europeus que estavam na vanguarda das discus-
sões científicas já elaboravam políticas bem definidas para a Educação. Segundo
Delizoicov e Angotti (1990, p. 23), “os países com longa tradição científica como
a Inglaterra, Alemanha e Itália, definiram cada um, com suas prioridades e incli-
nações, o que, e como se deve ensinar Ciências, do nível elementar até o superior”.
Enquanto isso, o Brasil, à margem das transformações educacionais europeias
e, ao mesmo tempo, buscando a mesma evolução para a Educação expulsa os Jesuí-
tas, em 1759, por determinação do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho
e Melo, que havia sido embaixador português em Londres no período de 1738 a
1745. O ensino, antes monopolizado pelos padres da companhia, passou, com a
instituição de “aulas régias”, para a administração do Estado (VILLA e FURTA-
DO, 1997).
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
45
contexto da História da Ciência e da educação

Todavia, o ensino sofreu uma reforma muito superficial, tanto que a pedago-
gia jesuítica ainda perdurou por algum tempo nas escolas brasileiras, apesar do
esforço de se imprimir um caráter moderno. Jovens pertencentes à aristocracia
brasileira, que estudaram nas escolas europeias, principalmente na Universida-
de de Coimbra, trouxeram ideias liberais, anticlericais e democráticas junto aos
conhecimentos de várias áreas, incluindo as Ciências Físicas e Naturais (PONCE,
1995).
Com a vinda de D. João VI para o Brasil, em 1808, uma nova organização do
sistema de ensino se concretizou, de forma que suprisse as necessidades da Corte
Portuguesa, que ali se estabeleceu. Para tanto, carecia de um Estado forte para se
manter. Havia a necessidade de qualificação de profissionais aptos à nova buro-
cracia, ou seja, de profissionais para atuar no campo do comércio e da indústria.
Segundo Noronha (1998, p. 44), “o novo modelo de ensino, burguês, incluía
a adoção de disciplinas técnicas, tais como estatística, hidrostática, hidráulica, ar-
quitetura civil e militar”, conhecimentos considerados importantes para as novas
linhas de produção a serem implantadas na colônia.
Essa estrutura de ensino favorecia mais o acesso da classe dominante, cuja
demanda de atendimento era para o ensino superior, pois o ensino secundário
funcionava muito precariamente dentro de uma perspectiva estreita de Ciência,
deixando para segundo plano a elevação social e cultural do povo. A formação
profissional dava-se quase que exclusivamente no nível superior, e dentro da visão
humanista-literária, pois as pesquisas científicas estavam restritas a ações indivi-
duais, conforme expõe Holanda (1985, p. 375):

As realizações mais importantes foram feitas no campo das Ci-


ências Naturais, em particular da Botânica e da Zoologia. Cabe
salientar que as contribuições nestes domínios (foram) oferecidas
pelos cientistas estrangeiros que desde princípios do século passa-
do, vieram ao Brasil atraídos pelas nossas riquezas naturais. Por
outro lado, algumas instituições criadas por D. João VI também ti-
veram papel relevante no desenvolvimento das Ciências Naturais:
Museu Real, Jardim Botânico, escolas de Medicina.

As bases culturais continuaram se espelhando na filosofia europeia, influen-


ciando, de certa maneira, a formação da ideologia burguesa brasileira, com as
ideias propagadas pelas instituições de ensino superior. Essas ideias originaram-se
com o Iluminismo, o Enciclopedismo e o Liberalismo, e reforçavam a supremacia
das classes mais abastadas.
46 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

2. A Educação Científica no Brasil do Império (1822)


à República (1951)

O Brasil em 1822 torna-se Império, e vários debates acerca das futuras diretri-
zes do ensino são promovidos, [...] “quanto ao currículo nas escolas secundárias; a
ampliação das escolas elementares; a liberdade de ensino e pesquisa no ensino su-
perior e a implantação de escolas livres ou particulares” (NORONHA, 1998, p. 49).
Importantes passos foram dados nesse sentido, uma vez que o sistema educacional
do Brasil estava paralisado havia algum tempo.
Nesse contexto começaram as discussões sobre Educação nas Constituintes
Brasileiras (em 1823). Surgiram propostas educacionais que foram sendo imple-
mentadas com o passar do tempo, conforme nos mostra Noronha (1998):

Em 1841, a Reforma Antônio Carlos cria a orientação predominan-


temente literária. O Regulamento de 1854 (Reforma Couto Ferraz)
vai opor-se a esta orientação, propondo a introdução de discipli-
nas científicas à semelhança das escolas alemãs (Realschulen). A
orientação literária volta com grande força com uma nova Reforma
em 1862. Uma outra reforma, em 1870 — Projeto Paulino de Souza
—, volta a imprimir a orientação científica ao ensino secundário.

O embate entre um ensino de bases humanísticas e literárias, e outro de ba-


ses científicas, ocorreu simultaneamente ao conflito das institucionalizações. Em
determinado momento o ensino humanista sobrepujava o científico, e em outros
momentos ocorria o inverso, conforme mostra a citação anterior.
Conforme o nosso interesse em buscar o surgimento do Ensino das Ciências
da Natureza no currículo escolar brasileiro, elaboramos um quadro evolutivo,
porém com um recorte sobre o Ensino das Ciências Biológicas3, nesse período,
tomando por base a pesquisa de Vechia e Lorenz (1998) sobre o “Programa de En-
sino da Escola Secundária Brasileira: 1850-1951, com o intuito de verificar a inser-
ção dessa área no currículo da Educação formal. Como foi verificado, a pesquisa
aborda dezoito propostas educacionais e suas aplicações, sendo onze colocadas em
prática nos cinquenta anos finais do século XIX, e sete aplicadas nos primeiros
cinquenta anos do século XX.

3 A opção pelo recorte deve-se ao fato da amplitude das informações contidas sobre a
inserção no currículo escolar das áreas que compõem as Ciências da Natureza: Biologia,
Física e Química, e pelo interesse pessoal sobre as Ciências Biológicas.
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
47
contexto da História da Ciência e da educação

Como destacado por Vechia e Lorens (1998), dos programas citados na pesqui-
sa, “quinze deles foram elaborados para o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Os
outros três foram expedidos pelo Ministério da Educação para serem implementa-
dos em nível nacional”. De acordo com os autores, os programas elaborados para
o Colégio Pedro II funcionavam como “modelo secundário oficial” brasileiro, e
serviam de modelo para outras instituições de ensino secundário. Aquelas insti-
tuições, públicas ou privadas, que quisessem ter os privilégios do Colégio Pedro
II deveriam se submeter ao mesmo programa e a fiscalizações do poder central da
Educação.
Nesse sentido, foi elaborada uma Tabela contendo a seguinte organização cur-
ricular para o Ensino de Ciências Biológicas, no período de 1850 a 1951: ano em
que entraram em vigor as reformas; nível de ensino em que foram colocadas as
disciplinas; nome da disciplina.

Ano do
Nível de ensino Nome da disciplina
programa
-Septimo anno -Zoologia Philosophica
1850
-Quinto anno -Zoologia e Botânica
-Segundo anno -Zoologia e Botanica
1856 -Terceiro anno -Sciencias Naturaes
-Quarto anno -Sciencias Naturaes
-Quarto anno -Zoologia e Botanica
1858
-Quinto anno -Zoologia e Botanica
-Historia Natural: Zoologia e
1862 -Sétimo anno
Botância
1877 -Setimo anno -História Natural
1879 -Sexto anno -História Natural
1882 -Sexto anno -História Natural e Hygiene*
1892 -Sexto anno -História Natural
1893 -Sexto anno -História Natural
1895 -Sexto anno -História Natural
-Botanica e Zoologia (8ª
-Quarto anno Curso Realista
1898 Cadeira)
-Quinto anno Curso Realista
-Biologia (8ª Cadeira)

-5ª Serie -História Natural - -Hygiene


1912
- 6ª série -Historia Natural
Continua
48 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Ano do
Nível de ensino Nome da disciplina
programa
1915 -5º anno -História Natural
-4º anno -Historia Natural
1926
-2º anno -Historia Natural
-4º anno -Historia Natural
1929 -5º Anno -Historia Natural
-6º Anno -Historia Natural
-2ª Série - Os Seres Vivos
-3ª Serie - História Natural
1931
-4ª Serie -Historia Natural
-5ª Série -Historia Natural

-3ª Série Curso Ginasial -Ciências Naturais


-4ª Série Curso Ginasial -Ciências Naturais
1942/1946 -3ª série Curso Clássico Secundário -História Natural
-2ª série Curso Científico Secundário -História Natural
-1ª série Curso Científico Secundário -História Natural

-2ª Série Curso Científico -História Natural


-3ª Série Curso Científico -História Natural
1951 -3ª Série Curso Clássico -História Natural
-3ª Série Curso Ginasial -Ciências Naturais
4ª Série Curso Ginasial -Ciências Naturais
Quadro elaborado pela pesquisadora em 2008, tendo por base o estudo de
Vechia e Lorenz (1998)

É interessante observar as inúmeras nomenclaturas que a disciplina possui ao


longo do período citado, e como ela foi gradativamente sendo incorporada ao currí-
culo escolar. O motivo para tal acontecimento residiu, pelo que se pode verificar nos
textos pesquisados, na necessidade de fazer com que o Brasil tomasse impulso rumo
ao desenvolvimento econômico e social, o que necessitaria muito de um desenvol-
vimento científico e tecnológico consolidado, o que já ocorria na Europa há muito
tempo (pelo menos trezentos anos), para que a produção industrial e o comércio no
país fossem erguidos e, dessa forma, pudessem se tornar independente de fato.
Nesse mesmo período, a pesquisa no Brasil demonstra alguns sinais de de-
senvolvimento apenas na área da saúde. Como as doenças tropicais são ameaças
constantes à população local, pesquisas nessa área cresceram significativamente,
como por exemplo, no início do século XX, 1900, época em que uma violenta pes-
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
49
contexto da História da Ciência e da educação

te assustava a população do país, a peste bubônica, quando Campo Sales criou o


Instituto de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de fabricar
vacinas para combater esse mal.
E, ainda, um fato de suma importância para o mundo mudou completamente
as relações do homem com o desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia, ainda
nas duas primeiras décadas do século XX: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Segundo Veiga (1989), os reflexos dessa guerra mundial, para o Brasil, geraram
perspectivas de uma nova situação econômica, política e educacional do país.
Basta pensarmos no Brasil do início do século XX, um país sem muita tradição
científica, como dissemos, somente algumas pesquisas na área de saúde, com uma
política educacional calcada nas ideologias das classes dominantes, ainda sob forte
influência da pedagogia jesuítica, com uma educação humanística. Nesse período,
segundo mandato presidencial do século XX, o paulista Campos Sales (1898-1902)
comandava o país e tinha a difícil missão de consolidar o poder das oligarquias.
Avançando mais no tempo, outro episódio, a Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), fez com que crescessem a industrialização e a corrida espacial no mundo.
Esse fato influenciou de forma decisiva a Educação Científica e o Ensino das Ci-
ências da Natureza nas escolas na escolas brasileiras. Verificamos isso por meio da
pesquisa de Vechia e Lorenz (1998), conforme já abordamos.
O Ensino Científico tomou um grande impulso no Brasil nesse período. Pre-
cisava-se de uma Educação voltada para aquisição de aptidões, no sentido de me-
lhorar os níveis de produção e o desempenho tecnológico do país, logo fazia-se o
necessário à formação de mão de obra especializada para essa finalidade. O En-
sino de Ciências (Físicas, Químicas e Biológicas) deveria suprir essa necessidade.
Conforme pesquisa de Krasilchik sobre o ensino de Ciências: “As teorias, ex-
periências, métodos, investigações, estudos que ocorreram na Europa e na Amé-
rica do Norte influíram fortemente sobre as concepções educacionais vigentes no
Brasil” (KRASILCHIK apud MENEZES, 2001, p. 138).
Isso justifica o discurso de que a escola deveria preparar o indivíduo para de-
sempenhar as suas funções sociais, e de acordo com competências individuais.
Assim, nessa época, foram implantadas as escolas profissionalizantes, que reforça-
vam a educação como meio para formação profissional, subsidiando a indústria e
o comércio com mão de obra qualificada, para o mercado em expansão. (FRACA-
LANZA et al., 1986).
Essa formação profissionalizante tinha por base de ensino a tendência peda-
gógica denominada tradicional, que orientava o ensino de Ciências a se processar
por meio do método de exposição oral ou pela demonstração de experimentos, em
que o professor expunha os conteúdos propostos, geralmente de forma descritiva,
50 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

neutra, fechada e descontextualizada e que em geral reforçava as características


positivistas da Ciência e da Tecnologia. Os alunos decoravam o conteúdo ensinado
e o repetiam de forma mecânica, através de exercícios de memorização, sendo a
avaliação uma repetição deste procedimento. Esta forma de ensino tinha por meta,
desde a escola primária, capacitar o estudante, orientando-o a prosseguir seus es-
tudos até sua formação superior.
A partir do final da década de 1950, a referência em Educação para o Brasil
passa a ser, quase que exclusivamente, os Estados Unidos da América (EUA), sendo
postos de lado os modelos educacionais dos países europeus. Como nos EUA sur-
giram várias propostas para reformulação do ensino, entre as quais os métodos ati-
vos, nos quais a participação do aluno se fazia necessária no processo de aprendiza-
gem, logicamente o Brasil aderiu à ideia, porém, com alguma defasagem temporal.
Não podemos deixar de ressaltar essa pequena mudança nas relações pedagó-
gicas, que influenciou muito o sistema educacional brasileiro. Nesse novo cenário
educacional, a vivência do aluno deveria ser levada em consideração, frente a de-
safios cognitivos e situações problemas. A aplicação desse método tinha em seu
bojo a ideia de aprender fazendo, valorizando as atividades práticas. O Ensino de
Ciências tornava-se não mais estático, com a transmissão do conhecimento pro-
fessor-aluno, e sim vivenciado através de resultados de experiências reproduzidas
(KRASILCHIK, 1987; FRACALANZA et al., 1986).

3. A Educação Científica no Brasil República: de


1960 até os dias atuais

A partir da década de 1960, o Brasil aderiu aos chamados “Projetos de Ensi-


no de Ciências”, nos moldes dos EUA, destinados mais fortemente para o 2° grau
(atual Ensino Médio), nas áreas de Física, Química, Biologia, Geociências e Mate-
mática.
Esses projetos, inicialmente, foram implantados nas escolas brasileiras sem
preocupação com a adaptação à realidade do nosso país. Entre esses projetos po-
demos citar: “Introductory Physical Science (IPS), em nível introdutório; Physical
Science Study Committee (PSSC), de Física; Chemical Bond Approach (CBA), de
Química; e Biological Science Curriculum Study (BSCS), de Biologia” (DELIZOI-
COV e ANGOTTI, 1990; KRASILCHIK, 2001; FRACALANZA, 2002).
A princípio, segundo Fracalanza et al. (1986), no Brasil esses projetos foram
estabelecidos pelas seguintes instituições: Instituto Brasileiro de Educação, Ciên-
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
51
contexto da História da Ciência e da educação

cia e Cultura (IBECC), Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino


de Ciências (FUNBEC), ambos de São Paulo, e pelos centros de treinamentos de
professores de ciências, em vários estados brasileiros.
Conforme o mesmo autor, a solução encontrada para equacionar os problemas
educacionais, por meio desses projetos, foi a de mesclar várias tendências pedagó-
gicas, na tentativa de preencher a lacuna, que havia na época, para o desenvolvi-
mento científico e tecnológico na formação dos alunos.
O sinal de alerta com relação a essa lacuna no Ensino de Ciências foi a Guerra
Fria entre os Estados Unidos da América (EUA) e a então União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), que determinou a reformulação do método educa-
cional, primeiramente nos EUA, pois os encaminhamentos educacionais não satis-
faziam as necessidades de desenvolvimento científico e tecnológico da sociedade
americana (FRACALANZA et al., 1986), que não valorizava, devidamente, a for-
mação de cientistas. Isso ficou óbvio com a corrida espacial, tendo os soviéticos
saído à frente.
Como esses projetos eram frutos da competição entre EUA e URSS pelo do-
mínio científico e tecnológico, podemos concluir o motivo pelo qual no Brasil não
houve correspondência das expectativas no processo de ensino e de aprendizagem.
Em primeiro lugar, a realidade sócio-histórico-cultural do Brasil era completa-
mente diferente da realidade americana e russa, e, em segundo lugar, a maior parte
dos professores das escolas não conseguiu incorporar tais propostas em seu fazer
pedagógico, pois não havia ainda a consolidação do Ensino de Ciências nas escolas
da época.
É importante enfatizar, nesse momento, que até o ano de 1961 “o ensino de
Ciências ocorria somente nas duas últimas séries do antigo curso ginasial” (BRA-
SIL, 1998, p. 19), o que corresponderia hoje aos “dois últimos anos” dos anos finais
do ensino fundamental atual, quando então foi promulgada a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação n° 4.024/61, que tornava obrigatório esse ensino em todas as
séries do antigo ginásio (cursado em quatro anos).
Podemos dizer que foi nesse período que os livros didáticos começaram a fa-
zer parte da nossa realidade educacional, com mais consistência. Os chamados
livros-curso traziam toda a proposta de conteúdo e de metodologia, juntamente
com o guia do professor, para que este pudesse desenvolver a sua aula conforme a
ideologia estabelecida nesses textos.
O ano de 1964 é marcado na história brasileira pela tomada do poder pelos
militares. A partir desta data, as relações do Brasil com os EUA se estreitaram,
uma vez que estes subsidiaram, por meio de treinamentos e verbas, os militares
brasileiros. Intensificou-se a dependência brasileira a este país, que, além disso,
52 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

abre as portas ao capital internacional e à importação de tecnologias produzidas


nos países do bloco ocidental, inclusive e sobretudo as ideologias desenvolvidas na
pesquisa e no processo de ensino e aprendizagem.
O início da década de 1970 foi palco de várias mudanças no cenário educacio-
nal brasileiro. O Ensino de Ciências incorporou algumas mudanças, com a unifi-
cação do currículo de formação docente em Ciências, incluindo o Ensino de Física,
Química e Biologia ao longo das oito séries do primeiro grau (atual ensino fun-
damental), em substituição ao antigo ginásio. Essa transformação foi solidificada
com a promulgação da lei 5.692/71, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, como
fartamente comentado em pesquisas e livros de História da Educação brasileira.
Por essas razões, professores de Ciências tinham o seu processo de formação –
generalista – voltado para a dimensão técnica. A experimentação, racionalização,
exatidão e planejamento tornaram-se as questões principais na formação docente
(PEREIRA, 2000; LEMGRUBER, 2000; DELIZOICOV e ANGOTTI, 1990; KRA-
SILCHIK, 1987 e 2001).
Segundo as pesquisas consultadas, foram três as principais tendências em
que se amparou o Ensino de Ciências nesse período: tecnicista, escolanovista e
ciência integrada. Oficialmente, o modelo tecnicista é implantado através da LDB
5.692/71, que reorganizou os ensinos de 1° e 2° graus (atuais ensinos fundamental
e médio, ou, de forma geral, o ensino básico). Nessa mesma época, tem início “um
movimento de oposição e de rejeição aos enfoques técnico e funcionalista que pre-
dominou na formação de professores até esse momento” (PEREIRA, 2000, p. 17),
o que contribuiria para o deslocamento da concepção de ensino como uma prática
neutra para a concepção de ensino como prática transformadora.
Nessa direção, a década de 1980 foi marcada por intensas discussões acerca das
relações entre Educação e Sociedade, e essas reflexões levaram à organização de
correntes ditas progressistas, que influenciaram muito o Ensino de Ciências. Essas
discussões se aprofundaram, e quando se realizou a I Conferência Brasileira de Edu-
cação, ocorreu proposta de mudanças para o cenário educacional (VEIGA, 1989).
Face ao exposto, as reflexões educacionais passaram a dar ênfase às propos-
tas pedagógicas humanizadoras, que demonstravam um novo olhar para os edu-
candos, sendo estes vistos como seres concretos, reais e situados dentro de um
contexto sócio-histórico-cultural. Os alunos deveriam ser valorizados em seus
conhecimentos e experiências de vida, possibilitando-lhes a aquisição e reelabo-
ração de conhecimentos, com o sentido de melhorar ou mudar a sua realidade.
Iniciam-se as primeiras abordagens direcionadas por pressupostos da Pedagogia
histórico-crítica que, de acordo com Veiga, “procura superar o intelectualismo do
enfoque tradicional e evitar os efeitos do espontaneísmo escolanovista, combater a
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
53
contexto da História da Ciência e da educação

orientação desmobilizadora do tecnicismo e recuperar as tarefas especificamente


pedagógicas, desprestigiadas a partir do discurso reprodutivista” (1989, p. 75).
Dessa forma, o processo educacional passou a ter como foco a construção do
conhecimento pelo educando, sendo endossada por teóricos em psicologia, princi-
palmente pelas teorias piagetiana e vygotskyniana, que demonstraram a existên-
cia de conceitos intuitivos, espontâneos, alternativos ou pré-concepções sobre os
fenômenos naturais, salientando uma visão mais humana da Ciência, retirando de
cena o enfoque positivista que lhe era dado.
Nesse momento, as pesquisas educacionais direcionadas ao Ensino de Ciên-
cias estreitaram laços com as Ciências Humanas e Sociais, o que reforça o entendi-
mento da Ciência como uma construção humana, e não como “verdade natural”,
tendo que ser comprovada cientificamente (fruto do pensamento positivista). Des-
te modo, se estabelece um processo de valorização da História e da Filosofia da
Ciência no processo educacional (BRASIL, 1998).
No início da década de 1990, propostas curriculares são elaboradas pelas Se-
cretarias de Educação dos estados e dos municípios brasileiros, com o intuito de
inserir em suas discussões teórico-metodológicas o desenvolvimento da Ciência
e da Tecnologia. Pretendia-se um processo de ensino e de aprendizagem signifi-
cativo, crítico social dos conteúdos propostos e de construção do conhecimento
pelo educando, embora, inicialmente, não contasse com a adesão da maioria dos
docentes das escolas.
No contexto da reforma educacional, ocorreu também a promulgação da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
considerada por muitos como a Constituição do Ensino. Não podemos negar que
essa LDB abriga em seu seio avanços importantes para a Educação, como, por
exemplo, a obrigatoriedade de graduação – formação inicial – para todos docentes
do ensino básico, o que, teoricamente, contribuiu muito para a qualificação pro-
fissional docente.
Cabe salientar que a LDB 9394/96, em seu artigo 9º, inciso IV, estabelece a
elaboração de diretrizes que “em colaboração com os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios propicie competências e diretrizes para a educação infantil, o en-
sino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos
mínimos, de modo a assegurar formação básica e comum” para todas as escolas
brasileiras (BRASIL, 1997).
Como consequência da globalização acelerada, o Brasil, por meio do Ministé-
rio da Educação (MEC), realizou uma reforma educacional ampla, com a elabora-
ção de uma proposta curricular nacional denominada de Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), lançados em 1998, para as escolas e docentes, baseada na experi-
54 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

ência de alguns países ibero-americanos, recebendo, inclusive, assessoramento da


Espanha e de alguns Estados e Municípios brasileiros que já possuíam propostas
curriculares.
Dessa forma, justificou-se a elaboração dos PCN, para os três níveis do ensino
básico – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio – dando a visibili-
dade necessária aos conteúdos mínimos à formação dos estudantes.
Com relação ao Ensino de Ciências, os PCN de Ciências Naturais (para o en-
sino fundamental), em suas orientações pedagógicas, apontam para a valorização
das concepções prévias do educando, relacionando-as aos fenômenos naturais e
com conceitos científicos (BRASIL, 1998).
Estas propostas inserem o educando no processo de construção do conheci-
mento, de acordo com as propostas de décadas anteriores, devendo ter acesso a
mecanismos tais que lhe permitirão maior articulação entre teoria e prática, facili-
tando, dessa forma, a realização de uma análise crítica do ambiente. Assim sendo,
providos de subsídios teóricos e práticos, teriam condições de discernir, com mais
nitidez, os caminhos que os levarão a soluções para os problemas reais existentes
em nossa sociedade.
Analisando o exposto acima, segundo a concepção dos PCN, os jovens te-
riam a oportunidade de empreender uma leitura ampla do mundo, tendo como
parâmetro um processo histórico e dinâmico, no qual são atores da construção e
transformação desse contexto.
Podemos acrescentar, ainda, que, visivelmente, esse discurso tem como pano
de fundo vincular a formação do educando e do docente ao mundo do trabalho,
preparando e qualificando mão de obra para o trabalho. Atualmente (século XXI),
encontramo-nos ainda nesse patamar, segundo pesquisas educacionais gerais e,
particularmente, voltadas ao Ensino de Ciências da Natureza.

4. Conclusão

Ao retomar o objetivo inicial deste texto é possível verificar a importância de


realizar essa viagem ao passado, para entendermos melhor os acontecimentos con-
temporâneos relacionados à inserção do Ensino de Ciências no currículo escolar
brasileiro.
Por essa razão, redimensionar um trabalho pedagógico requer, por parte do
professor, fundamentação histórica e teórica, sobre a Ciência e a Educação, para
que não haja possibilidade de manipulações ideológicas nos direcionamentos das
CAPÍTULO 2 - Inserção das Ciências Naturais no currículo escolar brasileiro:
55
contexto da História da Ciência e da educação

aulas, e consequentemente na formação dos alunos, e com isso se crie um obstácu-


lo à possibilidade de inserção social deles.
Chegamos ao século XXI e, apesar de todos os avanços da Ciência e da Tec-
nologia e das pesquisas educacionais, ainda vivemos impasses e dilemas sobre os
encaminhamentos sobre os processos de ensino e aprendizagem.
Nesse contexto, o Ensino de Ciências tem um papel fundamental na formação
geral dos estudantes, em todos os níveis e modalidades da escolaridade, por pos-
sibilitar leitura e compreensão ampla do mundo. Logo, a importância do conheci-
mento ser apresentado a eles, inserido em um processo histórico e dinâmico, pro-
picia reconhecerem que, no mundo real, o homem situado em toda a sua dimensão
produziu e produz interpretações sobre a realidade. Dessa forma, a Ciência e o
Ensino de Ciências contribuem para a formação da cidadania.

Referências Bibliográficas
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CAPÍTULO 3

Por uma agenda de pesquisa para a Semana


Nacional de Ciência e Tecnologia

Danilo Rothberg1
Andrea Berardi2
Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa3

Introdução

Ações e programas de popularização da ciência requerem a definição de obje-


tivos e resultados esperados, entre os quais pode ser incluída a preparação dos ci-
dadãos para compreender os aspectos envolvidos nas decisões dos governos sobre
políticas e investimentos públicos em ciência e tecnologia (C&T).
Este sentido de formação científica para a cidadania se fortalece no âmbito dos
campos da Sociologia da Ciência e da Filosofia da Ciência, sob as quais o conhe-
cimento científico é tido como produto humano e social, em que elementos como
valores morais, convicções religiosas, interesses políticos e pressões econômicas
desempenham papel decisivo em sua criação e utilização. Neste contexto, torna-
-se fundamental o estudo aprofundado dos usos das descobertas científicas, das
suas implicações éticas e dos riscos das novas tecnologias para a saúde humana e
o meio ambiente. E mostra-se relevante promover a compreensão pública do papel
da ciência e tecnologia no desenvolvimento social e na sustentabilidade ambiental.

1 Doutor em Sociologia pela Unesp – Universidade Estadual Paulista. Docente do Progra-


ma de Pós-Graduação em Educação para Ciência da Unesp (Bauru, São Paulo, Brasil).
E-mail: danroth@uol.com.br
2 PhD em Geografia pela University College London. Lecturer − Faculty of Mathema-
tics, Computing and Technology, The Open University (Milton Keynes, Reino Unido).
E-mail: a.berardi@open.ac.uk
3 Mestrando em Educação para Ciência pela Unesp – Universidade Estadual Paulista
(Bauru, São Paulo, Brasil). E-mail: felipe_fiani@hotmail.com
60 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

No Brasil, na esfera do governo federal, a popularização da ciência foi assumi-


da pelo Departamento de Difusão e Popularização da Ciência e Tecnologia, do Mi-
nistério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que criou em 2004 a Semana Nacional
de Ciência e Tecnologia (SNCT). O evento passou a ser uma das principais ações
oficiais a envolver instituições de ensino dos níveis básico, médio e supe­rior de Es-
tados e municípios na realização, com periodicidade anual, de atividades diversas,
tanto para o público escolar quanto para o público em geral.
Em 2004, a SNCT registrou a participação de 257 instituições, distribuídas
por 252 municípios do país, que promoveram um total de 1.848 atividades. Em
2012, na sua nona edição, a Semana contou com 28.134 atividades cadastradas, em
912 instituições de 723 cidades brasileiras. No Estado de São Paulo, em 2012 foram
741 atividades promovidas por 76 instituições em 31 cidades (BRASIL, 2012).
O crescimento se deve em parte ao estabelecimento crescente de parcerias en-
tre escolas públicas e privadas com universidades e instituições de pesquisa, fun-
dações estaduais de apoio à pesquisa, parques ambientais, jardins botânicos e zo-
ológicos, secretarias estaduais e municipais de ciência e tecnologia e de educação.
Atividades de educação informal destinadas a fomentar a compreensão pú-
blica de ciência, como aquelas promovidas no âmbito da SNCT, encontram na
contemporaneidade exigências de corte sociológico, que colocam a relevância de
situar a ciência e a tecnologia sob uma perspectiva de formação para a cidadania,
especificamente em relação aos fatores sociais, políticos e econômicos envolvidos
em sua produção e aos impactos sociais e ambientais resultantes de sua utilização.
Mas as concepções de ciência que têm historicamente lastreado as atividades
de compreensão pública de ciência e tecnologia podem não favorecer, necessa­
riamente, a formação científica para a cidadania. Isso porque persistem na educa-
ção imagens de neutralidade e superioridade absoluta da ciência sobre as instân-
cias sociais e políticas, o que tende a confrontar as exigências contemporâneas de
fomentar o debate democrático e a compreensão pública em torno das prioridades
de pesquisa científica e tecnológica.
Daí advém a importância de verificar, de forma sistemática, os significados
difundidos por um dos maiores eventos de popularização científica no Brasil, ava-
liando-os inclusive em contraste com iniciativas correlatas desenvolvidas no âmbi-
to da União Europeia que acentuam o caráter social da produção no conhecimento
e promovem a compreensão pública de políticas de ciência e tecnologia, conforme
indica a literatura especializada.
Neste contexto, sustentamos que, mesmo após dez anos de realização con-
tínua, a SNCT permanece pouco estudada em sua contribuição à popularização
do conhecimento científico dirigida ao público em geral. Este artigo propõe uma
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 61

agenda de pesquisa da SNCT, a ser realizada através da investigação de princípios,


diretrizes e linhas de ação das atividades de popularização do conhecimento cien-
tífico adotadas atualmente no Brasil. Sugerimos a relevância da busca de conheci-
mento sobre a contextualização das ações de popularização da ciência em relação
às possíveis referências aos impactos sociais e ambientais das aplicações tecnoló-
gicas e às condições sociais de produção do conhecimento científico, como rela-
cionamento entre agentes sociais (governo, indústria, universidades e agências de
fomento) e formulação de prioridades de pesquisa. A contribuição do pensamento
sistêmico crítico para a formulação da agenda proposta também é caracterizada.
No percurso aqui adotado, em primeiro lugar são revisados aspectos teóricos
fundamentais em cinco eixos, a saber: compreensão pública de ciência e tecnologia
na contemporaneidade; ciência e sustentabilidade; natureza da ciência e ensino de
ciências; sociologia do conhecimento e educação para ciência; popularização da
ciência e participação política. Em segundo lugar, são delineadas questões para
uma agenda de pesquisa da SNCT. Considerações finais sintetizam a contribuição
do artigo.

1. Compreensão pública de ciência e tecnologia na


contemporaneidade

Os estudos de compreensão pública de ciência e da tecnologia buscam conhe-


cer fenômenos complexos, ligados a fatores como as perspectivas com as quais a
sociedade percebe os impactos de C&T, como reage aos riscos de novas tecnolo-
gias, como vê a aplicação do conhecimento produzido no meio científico e qual a
confiança depositada nos cientistas (VOGT, 2005).
A dinâmica das interações entre ciência, tecnologia e sociedade se tornou
não somente um importante objeto de estudo e insumo de apoio à formulação
de políticas públicas para o setor, mas também tem mostrado seu potencial como
subsídio para a democratização do conhecimento e para o avanço em direção a
um modo de gestão e de controle social mais democrático no campo da ciência e
tecnologia (MOREIRA, 2006; VOGT, 2005; CEREZO, 2002).
Neste contexto, a popularização da ciência deve ser entendida como um pro-
cesso de comunicação de duas vias, ou seja, não focado unicamente na transmiss­ão
unidire­cional do conhecimento, mas caracterizado por uma troca de informações,
através da interação interpessoal. Essa nova visão mais dinâmica mudou, conse-
quentemente​​, o objetivo da própria popularização da ciência, uma vez que a partir
62 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

dessa visão o grupo emissor e o grupo receptor negociam significados e fatos (SAN-
DEN & MEIJMAN, 2008).
Nesse sentido, as ações de popularização da ciência podem ser praticadas se-
gundo sua conformidade aproximada com modelos teóricos que diferem entre si
em suas motivações e desafios, de forma a ampliar em escala crescente a compre-
ensão do público acerca dos fatores sociais implícitos na produção de ciência e tec-
nologia. Em muitos países europeus, a governança do setor tem incluído cada vez
mais, em alguns casos como requisito legal, a participação pública na formulação
de políticas (FELT & WYNNE, 2007). No Brasil, a participação social em instân-
cias decisórias, embora ainda incipiente, sugere que o país já assimila eventual-
mente a disseminação de instrumentos de compartilhamento da decisão política
(PIOLLI & COSTA, 2008).
Os modelos teóricos de popularização da ciência se colocam em uma escala de
crescente interatividade com os diversos públicos (LEWENSTEIN, 2003; BROS-
SARD & LEWENSTEIN, 2010). O modelo de déficit propõe que existe uma lacu-
na de conhecimento na população leiga, como uma tábula rasa, a ser preenchida
pela transmissão de conhecimentos. A principal crítica a esse modelo é quanto à
falta de contextualização do conhecimento a ser transmitido, uma vez que a real
compreensão de um determinado conceito é facilitada quando as teorias possuem
sentido prático nas vidas pessoais dos aprendizes. Esse modelo reforçaria também
as relações de poder entre os detentores do conhecimento específico e os que não
possuem, bem como na desvalorização do conhecimento adquirido através da vi-
vência do indivíduo.
O modelo contextual, uma das três respostas ao modelo de déficit, reconhece
que os indivíduos não possuem simplesmente um espaço vazio a ser preenchi-
do pelas informações, mas sim processam informações de acordo com esquemas
sociais e psicológicos moldados por experiências anteriores, contexto cultural e
circunstâncias pes­soais. O modelo contextual reconhece a capacidade de as re-
presentações de mídia atenuarem ou amplificarem a preocupação pública sobre
questões específicas.
O modelo de experiência leiga (também chamado expertise leiga), por sua vez,
incentiva a apropriação do conhecimento local, de modo a valorizar as vivências
comunitárias, tais como as práticas de subsistência, assumindo, assim, que o saber
local pode ser tão relevante para a resolução de problemas quanto o conhecimento
técnico. Tal modelo denota o compromisso político de empoderamento das comu-
nidades.
Já sob o modelo de participação pública (também chamado modelo democrá-
tico de engajamento público), seriam visadas atividades como conferências de con-
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 63

senso, júris de cidadãos, avaliações deliberativas de tecnologias, feiras de ciências,


consultas, audiências públicas e outras formas similares de engajamento cívico e
participação política. As atividades tendem a ser conduzidas com o compromisso
de democratizar a ciência, o que implica o compartilhamento do controle de polí-
ticas científicas entre elites de cientistas, políticos e setores sociais.
Apesar de serem apresentados isoladamente, deve-se salientar que, na prática,
as atividades de comunicação da ciência combinam elementos destes diferentes
modelos. O que se nota é a necessidade de refinamento de abordagens e a crescente
demanda de pesquisas que contribuam para um melhor conhecimento de como a
ciência opera na sociedade e sobre aspectos normativos da comunicação pública
da ciência e da tecnologia (LEWENSTEIN, 2003).
Em relação a estes modelos, Dagnino, Lima e Neves (2008) assinalam que a
comunicação de ciência e tecnologia destinada à popularização do saber deve as-
sumir a existência de três distintos níveis de ausência de conhecimento, a serem
supridos por ações diversas:
1. A ignorância de base, entendida como a falta de conceitos fundamentais
sobre C&T, ligados à educação básica.
2. A ignorância do que está acontecendo, que é a falta de informações sobre
assunto atuais, sobre as instituições que fazem ciência no Brasil e sobre
cientistas.
3. A ignorância das implicações, que ocorre quando o indivíduo não con-
segue contextualizar os assuntos científicos em suas dimensões política,
legal, ética e social.

Um dos principais desafios das estratégias de popularização da ciência é de-


senvolver as habilidades de comunicação dos próprios cientistas, que devem ser
incentivados a socializar os resultados de suas pesquisas através de formatos di-
versificados de discussões e exposições públicas a fim de suprir os três níveis de ig-
norância acima indicados (SANTOS & ICHIKAWA, 2004; SILVEIRA & BAZZO,
2006).

2. Ciência e sustentabilidade

A humanidade é crescentemente forçada a lidar com as consequências poten-


cialmente deletérias de suas intervenções sobre ecossistemas frágeis e imprevisí-
veis, em diferentes escalas, de habitats locais ao sistema global (WHO, 2005; RO-
64 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

CKSTRÖM et al., 2009). Até o presente momento, significativa parte da pesquisa


científica e as subsequentes políticas e ações têm sido dominadas por tentativas de
administrar os recursos disponíveis no planeta como um objeto idealizado, pre-
visível e estável (SCOONES et al., 2007). Nota-se uma abordagem de comando e
controle, nem sempre capaz de gerir e adaptar-se a surpresas e mudanças rápidas.
A pesquisa científica tem sido produzida no âmbito de estruturas de ampla escala
dadas por instituições nacionais eventualmente desatentas às realidades e as pers-
pectivas de unidades de menor escala como as comunidades locais (PESKETT et
al., 2008; MISTRY, 2013). No entanto, é justamente do nível socioecológico local
que emergem cada vez mais, em todo o mundo, mecanismos e soluções que pos-
sam dar conta da imprevisibilidade e permanente transformação (BLOM et al.,
2010; UNDP, 2012). O insucesso de abordagens impostas de cima para baixo para
o desenvolvimento sustentável e a gestão ambiental tem incentivado as comunida-
des a buscar abordagens diferenciadas, formuladas e geridas de baixo para cima,
cultural e ecologicamente sensíveis às demandas locais.
É neste contexto que podem ser investigados o papel e o impacto de ações
de engajamento e popularização do conhecimento científico como a SNCT, que
enfrenta o desafio de não apenas informar o público, mas também inspirar con-
fiança e envolvimento com os processos científicos de pesquisa e descoberta. Uma
perspectiva fértil para compreender a especificidade deste desafio é trazida pelo
pensamento sistêmico crítico, definida por Bammer (2003) como uma forma de
lidar com problemas “caracterizados por larga escala, complexidade, incerteza,
transitoriedade e imperfeição” através da investigação de propriedades emergentes
e construção de relações não lineares, independentemente de hierarquias e fron-
teiras previamente estabelecidas que, com frequência, impõem efeitos imprevistos
de exclusão e marginalização.
As ações de popularização da ciência desenvolvidas sem consideração às par-
ticulares de seus públicos-alvo e suas condições de vida podem não atender o ob-
jetivo de estimular o engajamento e o interesse pelo conhecimento científico, e re-
velam insuficiências que as abordagens do pensamento sistêmico crítico propõem
enfrentar.
A metáfora de duas visões de mundo – aqui representadas pelos sistemas hipo-
téticos “X” e “Y” – é útil para ajudar a identificação da contribuição de tal perspec-
tiva de análise de desafios e a proposta relacionada de meios para sua superação.
O sistema “X” encontra-se inserido em um ambiente estável e previsível: sur-
presas são raras, e poucos indivíduos têm acesso à informação que lhes permite
prever como o sistema irá operar normalmente no futuro. Esse ambiente pode
ser comparado a uma máquina: como em um relógio, cada parte desempenha seu
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 65

papel e não se desvia dele. Cada indivíduo que ocupa uma função especializada
age como um autômato. O sistema “X” é, por assim dizer, complexo, mas somente
no sentido de que abriga muitas partes complicadas em funcionamento, suscetí-
veis ao domínio de especialistas, capazes de compreender exatamente o que ocorre
em seu subsistema. A cadeia de comando é hierárquica, com poucos indivíduos
exercendo o controle superior. O papel dos cientistas designados para lidar com a
sustentabilidade do sistema “X” é certificar-se de que outros papéis não se desviem
dos padrões de exploração de recursos e impacto ambiental especificados pelas
posições de comando superiores do sistema.
Aeroportos, por exemplo, podem ser geridos como sistemas “X”. Alguns dos
cientistas são especialistas em pesquisa, monitoramento e controle de emissões de
substâncias poluentes. Outros lidam com poluição sonora, e outros ainda com ge-
renciamento do descarte de resíduos. Quando as coisas dão errado, pode-se tanto
culpar um autômato alegadamente com mau funcionamento, ou os gerentes no
topo da hierarquia por alguma falha supostamente estrutural, tal como legisla-
ção inadequada, especificação inapropriada de tarefas, recursos insuficientes para
pesquisa e assim por diante. Os erros precisam ser facilmente identificados, já que
existiria um único jeito certo de proceder. Como componentes de uma máquina,
indivíduos desviantes devem ser prontamente pegos e punidos, ou dispensados e
rapidamente substituídos. Da mesma forma, o sucesso deve poder ser facilmente
atribuído a determinados indivíduos. Aquelas pessoas que em tese apresentam ele-
vada performance podem desenvolver rapidamente áreas específicas de expertise
e ganhar reconhecimento sempre crescente por seu papel e sua especialidade. A
ética do trabalho é marcada pela competitividade, já que é simples separar os in-
divíduos falhos dos eficientes. O dever de compromisso profissional dos cientistas
assume precedência sobre outras áreas de sua existência, já que eles passam a ser
rigorosamente avaliados por sua mais recente produção. Eles não podem, assim,
confundir seus interesses e aspirações pessoais com sua missão laboral. Se um
cientista pertence a determinado gênero, idade, cor da pele e atua em um setor
altamente valorizado, torna-se possível justificar que receba uma remuneração
muitas vezes acima de outras pessoas de diferente gênero, cor da pele e área de
atuação. A comunicação dentro do sistema “X” é neutra, livre de valores e objetiva,
altamente técnica, característica de um dado setor e comumente associada com
valores numéricos, inspirada em uma visão de mundo na qual o valor monetário
é tido em alta consideração.
A ética do sistema “X”, sob um prisma geral, é dada pela realização de tarefas
da forma mais eficiente possível: deve-se maximizar a produção com o mínimo de
insumos. Inovação e crescimento econômico se tornam as palavras de ordem cen-
66 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

trais, desencadeando pressões por crescentes níveis de produção com decrescentes


patamares de insumos.
Em oposição, o sistema “Y” encontra-se inserido em um ambiente imprevisí-
vel e dinâmico. Não existe um entendimento claro de como as coisas funcionam,
e pessoas diferentes têm visões diferentes sobre a situação. Surpresas são comuns
e todos possuem o mesmo acesso à informação sobre certos aspectos do sistema,
mas uma compreensão completa sobre como ele funciona é impossível. As pesso-
as operam através de tentativa e erro, negociando umas com as outras o melhor
caminho adiante. Não há um grupo único no controle absoluto. A metáfora geral
para o sistema “Y” é um ecossistema, no qual os indivíduos operam autonoma-
mente, sem um controle centralizado. Mas, ainda assim, as coisas parecem ocor-
rer de forma a sustentar o sistema como um todo. Alguns cientistas possuem de
fato papéis altamente especializados, mas outros cientistas desempenham papéis
generalistas igualmente importantes, especialmente para facilitar, através inclusi-
ve da popularização da ciência, a compreensão compartilhada e a negociação em
torno do caminho a seguir. O sistema “Y” é complexo no sentido de que não está
disponível qualquer descrição clara sobre o que nele ocorre. A tomada de decisões
depende menos de correntes hierárquicas de comando e mais de estruturas or-
ganizacionais horizontais e grupos espontâneos de trabalho, que se formam e se
desintegram conforme a necessidade.
Os cientistas do sistema “Y” estão situados em sua maioria em um terreno
abrangente, auxiliando a mediação entre uma gama diversa de interesses e pers-
pectivas, a fim de alcançar o melhor resultado para o sistema como um todo, ao
invés de grupos particulares ou um propósito particular. Erros acontecem com
frequência e são tidos como oportunidades para aprendizado. Ações corretivas
focam o poder de recuperação do sistema “Y” como um todo. Os indivíduos não
são submetidos a punições e nem a promoções, já que há um número limitado
de oportunidades de promoção em estruturas horizontais de gestão. Todos são
incentivados a manter o equilíbrio entre sua vida pessoal e atuação profissional, e
a perseguir seus interesses e aspirações através do trabalho. A comunicação nesse
sistema favorece o acesso a uma diversidade de fontes, combinando uma variedade
de abordagens, nas quais a descrição dos fatos é acompanhada pela expressão de
visões pessoais. A ética do sistema “Y” se constrói através da realização de tarefas
que contribuem para o bem-estar geral de seus integrantes e seu ambiente. Uma
ampla gama de indicadores, inclusive de avaliações qualitativas, é empregada para
orientar o avanço, com sustentabilidade e justiça social.
Os conceitos e as técnicas subjacentes aos sistemas “X” e “Y” são sumarizados
na Tabela 1.
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 67

Tabela 1. Conceituação de sistemas hipotéticos de sustentabilidade


Características Sistema “X” Sistema “Y”
Como o ambiente é Complexo, dinâmico e
Estável, cognoscível e controlável
percebido imprevisível
Liderado por especialistas de cima Participativo; de baixo para
para baixo; elitista. O meio ambi- cima; emancipatório; local.
ente apresenta problemas difíceis O meio ambiente aparente-
que só podem ser enfrentados mente confuso é compreen-
Controle sobre
com recursos computacionais; dido de forma diferente por
tomada de decisões
complexidade típica das ciências pessoas diferentes; os avan-
duras, somente administrável por ços são obtidos mediante
especialistas com tempo e recur- entendimento compartil-
sos suficientes hado e negociação

Princípios Autonomia, igualdade e


Hierarquia
organizacionais consenso

Relacional; causalidade
Sequencial, linear e mecânico: mútua e simultânea, foco
Processo foco sobre componentes. O todo é em propriedades emergen-
igual à soma de suas partes tes. O todo é maior que a
soma de suas partes

Exploração de relações;
Foco em distinções; independên- pensamento em rede; foco
Atitude mental
cia; categorização e rotulagem em aspectos compartilha-
dos; interdependência

Especializado, fragmentado Multi, inter e transdiscipli-


O que é o e específico por disciplina. A reali- nar. Não existe algo como
conhecimento dade objetiva é priorizada sobre realidade objetiva. Todo
percepção e sensações subjetivas conhecimento é subjetivo

Epistemologia Positivista e reducionista Construtivista, holística

Continua
68 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Intuitiva, subjetiva, emoti-


Racional, objetiva, clínica, mas- va, feminina e sintética. Os
culina e analítica. Os questiona- questionamentos buscam o
Dimensão cognitiva mentos voltam-se aos detalhes. quadro geral. Pergunta-se
Pergunta-se ‘que tipo de doença ‘que tipo de pessoa em que
esta pessoa tem?’ tipo de ambiente tem esse
tipo de doença?’
Características Sistema “X” Sistema “Y”
O mundo funciona como uma O mundo funciona como
Metáfora essencial
máquina um ecossistema

Ética da cooperação: a so-


brevivência é possível por
Ética da competição: apenas os
meio de relações simbióti-
mais capazes sobrevivem. Mod-
Atitude em relação cas e igualitárias. Modelo
elo de déficit: as massas são, em
aos outros de expertise leiga: qualquer
geral, ignorantes e precisam ser
indivíduo possui conheci-
educadas
mento específico sobre seu
próprio contexto

Comunicação Escrita e numérica Oral e visual

Tudo está conectado entre


Instrumentais. Coisificação si, possui valor intrínseco e
e monetização em direção à não deve ser tratado como
integração em uma economia de mero meio a serviço de
Valores
mercado globalizada. Considera- uma finalidade humana.
se que não é possível administrar Considera-se que os fatores
o que não pode ser mensurado relevantes nem sempre são
mensuráveis

Pragmáticas. Ecocêntricas.
O aprendizado se dá com a
Perfeccionistas. Tecnocêntricas.
ação. Complementaridade:
Considera-se que existe somente
não existe necessariamente
uma solução correta. Orientadas
Soluções uma resposta certa e uma
a objetivos. Cultura de metas e
resposta errada. Soluções
soluções corretivas: os resultados
adaptativas e reativas ao
esperados são fixos.
contexto. O design é orien-
tado à prevenção.

Ética da sustentabilidade e
Ênfase no trabalho Redução de custos e eficiência
justiça social
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 69

Aqueles que, na comunidade científica, procuram transitar entre os conceitos,


a ética e as técnicas de popularização da ciência familiares ao sistema “X” têm
sido acusados de promover de forma preponderante os interesses de grupos de eli-
te (militares, industriais, corporações transnacionais, agrobusiness), produzindo
pesquisas e trazendo recomendações raramente preocupadas com comunidades
marginalizadas, e baseadas em uma cultura de desvinculação e ignorância em re-
lação aos contextos locais, limitando a criação de confiança e a adesão (BURKEY,
1993). Nos piores cenários, os cientistas que promovem o sistema “X” são ativa-
mente sabotados pelas comunidades marginalizadas, à medida que existe um sen-
timento generalizado de que eles atuam principalmente em benefício de grupos
dominantes em torno dos quais persiste uma profunda desconfiança (TUHIWAI
SMITH, 2012).
As diferentes visões sobre a organização da produção da ciência estão implíci-
tas no trabalho educativo, aspecto referido na próxima seção.

3. A natureza da ciência e a educação

A difusão do conhecimento científico abrange dois conjuntos de questões fun-


damentais: a) qual é a visão de ciência, cientista e de método científico que a popu-
larização visa transmitir ao público em geral? É possível falar uma visão correta de
ciência ou de um perfil do cientista a ser enfocado? b) quais são as concepções de
ciência, cientista e método científico já disseminadas pela sociedade? Como foram
criadas e quais são os processos de sua legitimação?
Gil-Pérez et al. (2001), por meio de uma revisão da literatura pertinente e um
estudo colaborativo entre grupos de docentes em workshops, detectaram que a
educação, tanto na dimensão formal quanto nas práticas informais, vem transmi-
tindo concepções e visões insuficientes do trabalho científico, a saber:
a) Concepção empírico-indutivista e ateórica: sob esta concepção, considera-
-se erroneamente que a observação e a experimentação científicas não são influen-
ciadas por ideias apriorísticas.
b) Visão rígida: visão algorítmica, exata e infalível da ciência, que supõe a exis-
tência de um método científico que apresenta etapas a serem seguidas de forma
mecânica.
70 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

c) Visão aproblemática e ahistórica: trata-se de uma compreensão dogmática e


fechada da ciência. Nessa perspectiva, o conhecimento é transmitido sem atenção
aos problemas que lhe deram origem, sua evolução, dificuldades encontradas etc.
d) Visão exclusivamente analítica: dá destaque à necessária divisão dos estu-
dos em parcelas, mas de forma limitada e simplificadora. Desconsidera os avanços
posteriores de unificação e de construção de corpos coerentes de conhecimentos
cada vez mais amplos.
e) Visão acumulativa de crescimento linear: caracteriza o desenvolvimento
científico como fruto de um crescimento linear, puramente acumulativo. Ignora
as crises e as profundas remodelações e interpreta, de forma simplista, a evolução
dos conhecimentos científicos.
f) Visão indutivista e elitista da ciência: os conhecimentos científicos apare-
cem como obras de gênios isolados, ignorando-se o papel do trabalho coletivo e
cooperativo.
g) Visão socialmente neutra da ciência: propaga uma imagem descontextuali-
zada que desconsidera as complexas relações entre ciência, tecnologia e sociedade
que envolvem fatores sociais, econômicos, políticos e ambientais. Representa os
cientistas como seres absolutos, acima da exigência de fazer opções.
Em contraste com estas visões, a literatura científica converge atualmente ao
reconhecimento de que não há um único e imutável método cientifico, e a ciência
não é uma espécie de receita infalível (KNELLER, 1995; MOREIRA & OSTER-
MANN, 1993; GIL-PÉREZ et al., 2001; HODSON, 2006).
Gil-Pérez et al. (2001) salientam que a educação para ciência deve recusar um
empirismo que concebe os conhecimentos como resultados da inferência indutiva
a partir de dados puros. Neste contexto, atividades educativas devem esclarecer
o papel atribuído pela investigação ao pensamento divergente e assegurar a com-
preensão do caráter social do desenvolvimento científico (PRAIA, GIL-PÉREZ &
VILCHES, 2007; SABBATINI, 2004).
Para Kneller (1995), é importante reconhecer que a ciência é feita por homens
e mulheres, distintos em gostos, religiões, desejos, pensamentos, maneiras e ob-
jetivos de vida, o que exige compreender os cientistas como pessoas comuns e, a
ciência, como atividade humana sujeita a pressões de variadas ordens, inclusive
aquelas internas ao seu próprio funcionamento, estudadas no âmbito da sociologia
da ciência, tema da próxima seção.

4. Sociologia do conhecimento e educação para


CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 71

ciência

Uma importante contribuição da sociologia do conhecimento para o âmbito


teórico que fundamenta a agenda de pesquisa aqui em foco é a que se refere aos
fatores da organização da própria comunidade científica e suas influências sobre
a produção do saber. Para Bourdieu (2004), entre a investigação científica e o con-
texto social objetivo e verificável na qual ela ocorre, existe um terreno que obede-
ce a leis específicas e relativamente independentes das pressões do mundo social
global, denominado de campo científico. A independência em relação a leis sociais
externas define o grau de autonomia de um determinado campo científico e pode
ser alcançada através de sua capacidade de refratar pressões e demandas externas.
Em um campo científico completamente autônomo, as imposições externas se-
riam refratadas a ponto de se tornarem, até mesmo, irreconhecíveis.
Para Bourdieu (2004), o que define a estrutura do campo científico num dado
momento é a distribuição de capital científico entre os diferentes agentes, que
“consiste no reconhecimento (ou no crédito) atribuído pelo conjunto de pares-
-concorrentes no interior do campo científico” (BOURDIEU, 2004, p. 26) e pode
ser observado em duas espécies: o capital científico “puro”, adquirido com rela-
ção ao reconhecimento das contribuições, as invenções e descobertas do agente;
e o capital científico institucional, que se constrói através de estratégias políticas,
podendo ser medido pela posição hierárquica que um agente possui dentro do
campo. As relações de força e de influências de um determinado agente do campo
seriam proporcionais ao seu capital científico (BOURDIEU, 2004; 1983).
Para Latour (2000), a produção do conhecimento científico está sujeita a fato-
res ligados ao próprio funcionamento interno dos laboratórios de pesquisa. Como
exemplo, pode-se destacar a dependência de recursos financeiros e a consequente
disputa de poder entre laboratórios, poder este que é medido pelas suas condições
internas (aparelhos mais modernos, maior número de experimentos empíricos etc)
e pelo número de atuantes que ele pode mobilizar a seu favor.
Segundo Latour (2000), todo laboratório é, na verdade, um contra-laboratório,
assim como cada artigo científico é um contra-artigo, pois as pesquisas se fun-
damentam na busca de um discordante em derrubar uma determinada alegação.
Deve-se considerar que, sob uma determinada alegação, estão tácitos outros ele-
mentos que o reforçam, como os recursos financeiros envolvidos em uma pesqui-
sa, a extensão dos laboratórios, a possibilidade de instrumentalização dos resulta-
dos pelo número de instituições que usufruem dos dados, a aplicabilidade prática
imediata etc (LATOUR, 2000; LATOUR & WOOLGAR, 1997).
72 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Para que o discordante fundamente uma nova pesquisa, não basta que monte
um laboratório de pesquisa; é necessário que estruture um melhor que seus con-
correntes. A concorrência gera um jogo de poder que pode envolver o aliciamento
de aliados e a autonomização dos chefes de laboratório, forçados a se dedicar à
resolução de questões burocráticas do próprio laboratório. Os empecilhos impos-
tos pelo jogo de poder e as dificuldades na obtenção de recursos tendem tornar a
ciência uma atividade restrita a um pequeno número de pessoas, nações e profis-
sionais que são capazes de custeá-la, tornando-a sujeita a uma rede cada vez mais
poderosa e centralizada (LATOUR, 2000; LATOUR & WOOLGAR, 1997).
Assim, para autores como Bourdieu (2004) e Latour (2000), a visão da socio-
logia da ciência comporta a exigência de compreensão não somente de como o
conhecimento científico é gerado e distribuído pela sociedade, mas também sobre
como sua produção é decidida pelos pares da comunidade científica. Coloca-se
em questão de que forma se estrutura tal comunidade e como se relaciona com os
diversos setores sociais, econômicos e políticos.
Cabe, ao fim deste percurso teórico, apontar que as ações de popularização da
ciência encerram determinadas concepções em torno da produção científica, de-
sencadeando o surgimento de considerações específicas sobre o lugar dos diversos
agentes sociais na formulação das políticas da área.

5. Popularização da ciência e participação política

A popularização da ciência é idealizada atualmente como um processo amplo


e bilateral, pautada na dinâmica troca de informações entre dois polos: remetente e
receptor, interlocutor e público alvo, cientistas e sociedade. Nesse contexto, afasta-
-se da noção de transmissão unidirecional do conhecimento, adotando uma visão
caracterizada pela troca de informações e pela negociação de significados e fatos
através da interação interpessoal (SANDEN & MEIJMAN, 2008).
O diálogo, nesse ponto, pode ser entendido como instrumento do processo de
mútua compreensão entre leigos e cientistas, permitindo a estruturação de uma
plataforma comum de ideias. Sanden e Meijman (2008) utilizam um conceito de
diálogo que supera a noção de vencer ou convencer que uma discussão orienta,
propondo que as metas e temas de um diálogo devem ser definidos durante o diá-
logo de forma compartilhada.
A recuperação da confiança pública na política científica tem sido alvo de pre-
ocupação na União Europeia, em especial após o final da década de 1990, que se
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 73

desdobra na criação de novas abordagens de estimular o engajamento público no


tema. Já em 2001, documentos oficiais sobre governança colocavam a necessidade
de incentivar participação, abertura, troca de informações e responsabilização dos
cientistas perante à sociedade (FELT & WYNNE, 2007)
Neste cenário, a popularização da ciência conferiu ênfase à maior participa-
ção social nos seus aspectos tecnológicos, industriais e comerciais, assim como na
transparência das políticas. Isso ocorreu porque a insegurança e o desconforto pú-
blico na Europa em relação à ciência foram atribuídos em parte aos riscos trazidos
por novas tecnologias. Temeu-se que a desconfiança pudesse desencadear reações
de rejeição às inovações técnico-científicas, o que poderia gerar complicações no
mercado europeu e daria cada vez menos espaço para a ciência como suporte às
decisões políticas nos estados-membros (FELT & WYNNE, 2007).
No percurso, o que ficou cada vez mais claro é que as vontades e os anseios da
sociedade devem ser reconhecidos pelas autoridades científicas e governamentais,
não bastando meramente atribuir a desconfiança pública ao eventual desconheci-
mento de conceitos científicos, como assumia o modelo de déficit.
Muitas novas formas de organizar o engajamento público na ciência têm sido
desenvolvidas e experimentadas. As pesquisas atuais procuram compreender
quais grupos sociais são efetivamente representados, quais questões podem ser
resolvidas e quais as reais contribuições dessas participações na política científica
e tecnológica local (BUCCHI & NERESINI, 2008; HORLICK-JONES, ROWE &
WALLS, 2007).
Além disso, a consideração sobre a pluralidade do público é outro importante
fator na discussão sobre comunicação em ciência na Europa. Reconhece-se que
o público nutre diferentes visões do contexto da ciência, tecnologia e inovação,
gerando consequentes e diferentes expectativas em relação ao posicionamento po-
lítico nessas questões. Em muitos estados-membros, obter engajamento público
e participação já é um requisito legal para a formulação de políticas de C&T em
determinadas áreas, como meio ambiente, na qual a adesão dos diversos agentes é
fundamental, e naquelas que dependem da aceitação dos consumidores. Compre-
ender como tem ocorrido o debate e as ações para a participação pública da ciência
pode indicar caminhos e limitações para o Brasil.
No país, a participação política em instâncias como comitês gestores de bacias
hidrográficas indica que o país já assimila eventualmente as tendências mundiais
da área. No caso das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí,
o diálogo entre experts da área de engenharia da água e solo com os experts con-
tributivos (os agricultores) gerou, após quase dois anos e meio de trabalho, uma
proposta de descontos na taxa pelo uso rural das águas. A participação pública
74 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

permitiu que esta proposta considerasse os impactos econômicos e práticos da co-


brança para os agricultores (PIOLLI & COSTA, 2008).
Este é um exemplo que sugere que o engajamento púbico em debates e decisões
técnico-científicas contribui para a eficiência das políticas, uma vez que o público
tende a reconhecer sua legitimidade e assumir uma postura proativa de envolvimento
para a obtenção dos resultados esperados. As pesquisas têm mostrado que é possível
gerar discussões racionais com um mínimo razoável de informações e conhecimen-
tos suficientes para subsidiar o debate, desde que esses conhecimentos mínimos se-
jam trazidos por participantes que representem os diferentes interesses em jogo.
Conclusivamente, revistos os cinco eixos teóricos enunciados na introdução, a
próxima seção se debruça sobre eles a fim de delinear contribuições para a formu-
lação de uma agenda de pesquisa de ações de popularização da ciência no Brasil.

6. Por uma agenda de pesquisa da SNCT

As ações da SNCT são promovidas aos milhares em todo o Brasil e possuem


alcance e abrangência geográfica muito distintos entre si, o que torna extrema-
mente complexo e quase inviável, do ponto de vista logístico, buscar a constru-
ção empírica de generalizações capazes de abarcar suas variadas características.
A própria multiplicidade dos agentes responsáveis pelas realizações das ações no
âmbito da SNCT contribui para a obtenção de resultados muito diferentes. São
prefeituras, escolas de ensino médio e profissionalizante, universidades, institutos
de pesquisa, museus, zoológicos etc, que investem recursos materiais, financeiros
e humanos das mais diversas magnitudes. Os diferentes níveis de qualificação dos
recursos humanos investidos já suscitam, por si, marcantes distinções em relação
aos propósitos de cada ação, seus pressupostos teóricos e resultados esperados. Ao
passo, por exemplo, que muitas ações ainda são promovidas sob a perspectiva de
uma visão rígida, aproblemática e ahistórica da ciência, outras são eventualmente
desenvolvidas com atenção às relações entre C&T e demandas locais por conheci-
mento e tecnologia, envolvendo um olhar sobre as fontes de recursos para pesqui-
sa, critérios de alocação de recursos, relacionamento entre os agentes responsáveis
pela definição de prioridades etc.
Em função da diversidade que dificulta a pesquisa empírica, a exigência de
viabilidade na construção do objeto impõe investigações sobre realizações locais,
tomando as ações desenvolvidas em regiões ou estados como unidades de análise a
serem verificadas sob questões de pesquisa específicas. Neste sentido, os aspectos
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 75

teóricos aqui revisitados em cinco eixos fundamentam indicações de pesquisa em


torno das ações da Semana Nacional de Ciência e tecnologia em três direções:
1) Ao passo que as democracias contemporâneas têm ampliado os espaços de
engajamento e participação na formulação de políticas de diversas áreas, incluindo
C&T, a SNCT pode ser analisada em contraste com um quadro mais amplo das
ações de popularização da ciência em todo o mundo, em particular no âmbito da
União Europeia. A escolha da UE se justifica em função de seu pioneirismo e es-
tágio relativamente avançado, para alguns setores de política de C&T, dos experi-
mentos de engajamento público e participação política, como conferências, júris de
cidadãos, audiências e consultas públicas. Colocam-se, como questões de pesquisa:
1a) Quais são os princípios, diretrizes e linhas de ação das atividades de populari-
zação do conhecimento científico adotadas atualmente em ações selecionadas da
SNCT e no âmbito da União Europeia, em perspectiva comparativa? 1b) Quais são
as representações da ciência e dos cientistas, subjacentes às ações realizadas?
2) O complexo relacionamento entre agentes sociais, econômicos e políticos
envolvidos na formulação de prioridades de pesquisa e desenvolvimento tem ga-
nhado proeminência no cenário público das democracias contemporâneas. Co-
munidade científica, eleitores e cidadãos tendem a exigir transparência das deci-
sões de mandatários e gestores de C&T. Verifica-se que, cada vez mais, o público
quer saber quais interesses são privilegiados por determinadas frentes de pesquisa
e, principalmente, como a adoção de dadas prioridades pode contribuir para o
enfrentamento de demandas locais, em particular relacionadas à sustentabilidade.
Colocam-se, como questões de pesquisa: 2a) Qual é a contextualização das ações
de popularização da ciência da SNCT em relação às possíveis referências aos im-
pactos sociais e ambientais das aplicações tecnológicas e às condições sociais de
produção do conhecimento científico, como relacionamento entre agentes sociais
(governo, indústria, universidades e agências de fomento) e formulação de priori-
dades de pesquisa? 2b) Quais informações têm sido preferencialmente veiculadas?
3) Em que pese o fato de a própria SNCT ser uma iniciativa relativamente
nova, e portanto houve poucas oportunidades para o acúmulo de conhecimento
sobre suas realizações, nota-se uma profunda ausência de recomendações práticas
para que suas atividades sejam realizadas em sintonia com as mais recentes preo-
cupações das ações de popularização da ciência nas democracias contemporâneas.
Embora isto ainda exija confirmação empírica, a compreensão pública de ciência
e tecnologia como vetor de engajamento cívico e participação política dificilmen-
te parece ser contemplada pelos objetivos das ações desenvolvidas no âmbito da
SNCT. A preocupação com a sustentabilidade, tão característica de sistemas po-
líticos que reconhecem a importância do envolvimento do público para a busca
76 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

compartilhada de metas de preservação ambiental, raramente é vista. Cabem as


seguintes questões de pesquisa: 3a) Quais recomendações práticas podem ser ela-
boradas para a realização de ações na SNCT que contribuam para a compreensão
pública de ciência e tecnologia no contexto de suas condições sociais de produção
e impactos sociais e ambientais? 3b) Que metodologias podem ser implementadas
para a realização de ações de popularização da ciência que contribuam para a for-
mação de posicionamentos e comportamentos adequados em relação às exigências
de sustentabilidade e justiça social no cenário contemporâneo? 3c) Diante das li-
mitações de recursos materiais, financeiros e humanos existentes no Brasil, como
formular, planejar, desenvolver e avaliar ações que problematizem a natureza da
ciência, estejam alinhadas ao modelo de participação pública de comunicação da
ciência e se beneficiem das contribuições do pensamento sistêmico crítico?
Estas sete questões de pesquisa propõe uma agenda muito abrangente e ambi-
ciosa, que pode ser julgada impraticável pelos pesquisadores da área de ensino de
ciências. Mas, a despeito de suas complexidades, as direções de investigação estão
ancoradas no conhecimento científico existente. Uma das contribuições possíveis
para o avanço do conhecimento, neste contexto, deve vir da interdisciplinaridade
entre campos diversos que se debruçam sobre a educação, em uma tendência cada
vez mais presente na academia, o que inspira perspectivas otimistas para o desen-
volvimento daquela agenda.

7. Considerações finais

Este artigo buscou problematizar, como objeto científico de investigação em-


pírica, as ações de popularização da ciência realizadas no âmbito da Semana Na-
cional de Ciência de Tecnologia, iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia
e Inovação que se constituiu ao longo de seus primeiros dez anos de realização
como significativa estratégia de difusão do governo federal, ao transferir para ins-
tituições de ensino e pesquisa a responsabilidade compartilhada pelo campo da
compreensão pública de C&T.
Aspectos teóricos fundamentais foram revisados, em um percurso de elucida-
ção dos referenciais das atividades de popularização da ciência, no contexto dos
crescentes questionamentos acerca do distanciamento das pesquisas e políticas de
C&T em relação às instâncias de escrutínio democrático e às demandas das comu-
nidades em torno do desenvolvimento sustentável.
CAPÍTULO 3 - Por uma agenda de pesquisa para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia | 77

Conhecimentos produzidos no âmbito de convergências interdisciplinares que


situam o ensino de ciências como seu objeto privilegiado foram revistos, em um
raciocínio que resultou na proposição de questões para a construção de uma agenda
de pesquisa em torno das ações da Semana Nacional de Ciência de Tecnologia. A
agenda proposta, apesar de demasiadamente abrangente e ambiciosa, pode contri-
buir para trazer luz ao potencial da SNCT para fundamentar a compreensão pública
de C&T necessária à democratização das instâncias de formulação, execução e ava-
liação de prioridades e políticas de pesquisa, desenvolvimento e sustentabilidade.

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CAPÍTULO 4

Aquisição de conhecimentos relevantes para


a aprendizagem significativa de conceitos de
eletrostática a partir de textos históricos e
experimentos em aulas de física no ensino médio1

Antonio Albérico Oliveira de Andrade2


Sergio Luiz Bragatto Boss3
Moacir Pereira de Souza Filho4
João José Caluzi5

Introdução

Diante das dificuldades de aprendizagem de conceitos físicos de eletricida-


de, entre outras razões, destacam-se as “ideias prévias dos estudantes derivadas
de uma análise ‘superficial’ das experiências sensoriais relativas à eletrostática”
(FURIÓ; GUISASOLA, 1998, p. 131, tradução nossa). Boss (2009, p. 59-60) mostra

1 Este capítulo é fruto de um Trabalho de Conclusão de Curso (ANDRADE, 2012), que


foi, incialmente, apresentado nos eventos ENPEC 2011 (BOSS et al., 2011) e EPEF 2012
(BOSS et al., 2012). O trabalho de 2012 traz elementos do trabalho de 2011 e acrescenta a
discussão sobre a fase final da pesquisa.
2 Licenciando em Física do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia – UFRB/CFP 45300-000 Amargosa, BA, Brasil. Email: alberico-
andrade@gmail.com
3 Professor Adjunto, Centro de Formação de Professores, UFRB, Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, Amargosa, Bahia, Brasil. E-mail: serginhoboss@gmail.com.
4 Professor Assistente Doutor, Departamento de Física, Química e Biologia, Faculdade de
Ciências e Tecnologia e do Mestrado Profissional em Ensino de Física, UNESP, Univer-
sidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, São Paulo, Brasil. Também professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência. E-mail: moacir@fct.unesp.br.
5 Professor Livre Docente em História da Ciência do Departamento de Física, Faculdade
de Ciências, UNESP, Universidade Estadual Paulista, Bauru, São Paulo, Brasil. Também
professor do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência.– E-mail: calu-
zi@fc.unesp.br
82 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

que graduandos em Física, ao iniciarem a disciplina de Física Geral 3 (Eletricidade


e Magnetismo), apresentaram ideias confusas sobre o conceito de carga elétrica,
mesmo tendo passado pela instrução formal sobre a temática em nível médio.
Frente a essas dificuldades, alguns estudos apontam que a História da Física
pode trazer contribuições importantes para o processo de ensino-aprendizagem
de conceitos quando utilizada a partir dos pressupostos da Teoria de Ausubel
(DIAS; SANTOS; SOUZA, 2004; BOSS, 2009). Sendo que, uma possível forma de
se levar os aspectos históricos para a sala de aula é a partir da leitura e discussão
de traduções de fontes primárias6 e da utilização de experimentos históricos7 cons-
truídos com materiais de fácil acesso (DIAS; SANTOS; SOUZA, 2004; MONTE-
NEGRO; 2005; BUENO; PACCA, 2009; MEDEIROS; MONTEIRO JÚNIOR, 2001;
HÖTTECKE, 2000; CHANG, 2011).
No “ensino de ciências, questões sobre leitura, uso e funcionamento de textos
têm sido foco de muitos trabalhos” (ZIMMERMANN; SILVA, 2007, p. 1). Alguns
desses têm discutido o uso das fontes primárias na educação científica, tais como
Zanetic (1998), Assis (1998), Pessoa Jr. (1996), Barth (2000), Montenegro e Almeida
(2004, 2005), Bueno e Pacca (2009), Boss (2009). Outros trabalhos têm apontado
que atividades que aliam o estudo de experimentos históricos ao estudo histórico
podem proporcionar aos aprendizes um melhor entendimento desses textos, dos
experimentos e dos fenômenos descritos (HÖTTECKE, 2000, p. 346; MEDEIROS;
MONTEIRO JR., 2001; METZ; STINNER, 2006; PAULA, 2006; CAVICCHI, 2008;
CHANG, 2011; HEERING; WITTJE, 2011).
A literatura destaca “duas importantes tendências” quanto “às formas como
as reconstruções históricas têm sido utilizadas no ensino da Física”: i) praticada
por um grupo da Universidade de Oldenburg, “se caracteriza pela reprodução fiel
dos mínimos detalhes dos instrumentos”; ii) praticada por um grupo da Bakken
Library and Science Museum, para o qual “os instrumentos não são reproduzi-
dos tão meticulosamente quanto aqueles construídos em Oldenburg. Entretanto,
os artefatos históricos produzidos [...] guardam, ainda assim, os princípios físicos
fundamentais contidos em suas fontes inspiradoras” (MEDEIROS; MONTEIRO
JÚNIOR, 2001). Na perspectiva da segunda vertente, “o principal objetivo é repro-

6 “Fontes primárias (material da época estudada escrito pelos pesquisadores estudados) e


fontes secundárias (estudos historiográficos e obras de apoio (trabalhos de filósofos e bió-
grafos) a respeito do período e dos autores investigados)” (MARTINS, 2005, p. 310). Neste
trabalho consideramos fontes primárias os textos escritos por C. F. C. Du Fay (1698-1739).
7 Neste texto utilizamos a definição dada por Chang (2011, p. 317) para experimentos
históricos: são “experimentos que surgem a partir do estudo da ciência do passado, e
não a partir da ciência atual e na sua preparação pedagógica”.
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
83
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

duzir os fenômenos físicos [...], a fidelidade aos detalhes do experimento original é


de interesse secundário. O desafio [...] não é a verificação da exatidão de repetição,
mas a caracterização do fenômeno a ser replicado” (CHANG, 2011, p. 320, tradu-
ção nossa). Devido às peculiaridades das salas de aula e laboratórios das escolas
públicas brasileiras, optamos por trabalhar a partir da segunda tendência, ou seja,
com experimentos construídos com material de baixo custo ou fácil acesso.
Neste contexto, nosso trabalho consistiu em elaborar e aplicar uma proposta
metodológica que aliou excertos de textos históricos e experimentos, tendo como
subsídio a Teoria de Ausubel. O objetivo era avaliar se a inserção dessa proposta em
sala de aula no Ensino Médio favoreceria a aquisição de conhecimentos relevan-
tes, os quais, posteriormente, poderiam servir como subsídio para a aprendizagem
significativa de conceitos de eletrostática. Entre estes conhecimentos relevantes,
destacamos quatro: i) que a matéria é elétrica; ii) que no processo de eletrização
por contato esta eletricidade é transferida de um corpo para outro; iii) que existem
dois tipos de eletricidade com propriedades intrínsecas diferentes; e iv) que há
interação atrativa ou repulsiva entre corpos. Entendemos que estas ideias podem
ser construídas a partir do estudo dos dois princípios de Du Fay (DU FAY, 1733;
BOSS; CALUZI, 2007).
Selecionamos esses quatro pontos a partir da literatura. Alguns autores cha-
mam a atenção para a importância da ideia de natureza elétrica da matéria para
o entendimento de fenômenos eletrostáticos (FURIÓ; GUISASOLA, 1998, 1999;
FURIÓ; GUISASOLA; ZUBIMENDI, 1998). Por exemplo, explicar o fenômeno de
eletrização de um material isolante por meio de atrito exige “aceitar previamente a
existência de cargas positivas e negativas nos corpos atritados e a transferência de
cargas de um para o outro” (FURIÓ; GUISASOLA; ZUBIMENDI, 1998, p. 166, tra-
dução nossa). Outro trabalho aponta a relevância de dar condições para os alunos
construírem a ideia de interação atrativa/repulsiva entre cargas elétricas como sen-
do um elemento fundamental das cargas, e não uma mera “regrinha” (BOSS, 2009).

1. Referencial Teórico – algumas considerações


sobre a teoria de Ausubel

O referencial teórico deste trabalho é a Teoria da Aprendizagem Significativa,


de David Ausubel. Discutiremos apenas alguns aspectos essenciais desta Teoria
para a análise da atividade realizada. A Teoria de Ausubel está “voltada para a
explicação de como ocorre a aprendizagem de corpus organizados de conheci-
84 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

mento que caracterizam a aprendizagem cognitiva em contexto escolar” (PON-


TES NETO, 2006, p. 118).
A aprendizagem significativa se dá quando “as ideias expressas simbolicamen-
te são relacionadas às informações previamente adquiridas pelo aluno através de
uma relação não arbitrária e substantiva (não literal)” (AUSUBEL et al., 1980, p.
34)8 e, ainda, “que o produto desta interação ativa e integradora é o surgimento de
um novo significado” (AUSUBEL, 2003, p. 71). “Ao falar em ‘aquilo que o aprendiz
já sabe’ Ausubel está se referindo à ‘estrutura cognitiva’, ou seja, ao conteúdo total
e organização das ideias do indivíduo, ou, no contexto da aprendizagem de um de-
terminado assunto, o conteúdo e organização de suas ideias nessa área particular
de conhecimentos” (MOREIRA, 1983b, p. 18). De outra forma, podemos “dizer que
o complexo organizado de subsunçores e suas inter-relações, em um certo campo
de conhecimentos, poderia ser pensado como constituindo a estrutura cognitiva
de um indivíduo nesse campo” (MOREIRA, 2011, p. 18). Já o subsunçor define-se
“como um conhecimento prévio especificamente relevante para uma nova apren-
dizagem, não [sendo] necessariamente um conceito” (MOREIRA, 2011, p. 19).
Por outro lado, Ausubel define como aprendizagem mecânica ou automática
aquela que se dá por meio “de associações puramente arbitrárias, [...] e quando
falta ao aluno o conhecimento prévio relevante necessário para tornar a tarefa
potencialmente significativa, e também (independentemente do potencial signifi-
cativo contido na tarefa) se o aluno adota uma estratégia apenas para internalizá-la
de uma forma arbitrária, literal” (AUSUBEL et al., 1980, p. 23).
“A aprendizagem significativa pressupõe material de aprendizagem poten-
cialmente significativo, a saber, um material que possa ser relacionado à estrutura
cognitiva em bases substantivas e não arbitrárias” (PONTES-NETO, 2006, p. 118,
grifo nosso). O potencial significativo depende de dois fatores:

i) a natureza do assunto a ser aprendido [...], esta deve ser sufi-


cientemente não arbitrária e não aleatória, de modo a permitir o
estabelecimento de uma relação não arbitrária e substantiva com
ideias correspondentemente relevantes localizadas no domínio da
capacidade intelectual humana (ideia correspondentemente rele-
vante que pelo menos alguns seres humanos são capazes de apren-
der se a eles é dada a oportunidade para que tal ocorra) (AUSUBEL
et al., 1980, p. 36);

8 A referência (AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1980) constará neste trabalho como


(AUSUBEL et al., 1980).
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
85
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

ii) a natureza da estrutura cognitiva de cada aluno [...], para que


a aprendizagem significativa ocorra de fato, não é suficiente que
as novas informações sejam simplesmente relacionadas (de forma
não arbitrária e substantiva) a ideias correspondentemente rele-
vantes no sentido abstrato do termo (a ideias correspondentemen-
te relevantes que alguns seres humanos estão aptos a aprender sob
circunstâncias apropriadas); é também necessário que o conteúdo
ideacional relevante esteja disponível na estrutura cognitiva de um
determinado aluno (AUSUBEL et al., 1980, p. 37).

Ausubel propõe três tipos de aprendizagem significativa: i) representacional;


ii) de conceitos; e iii) de proposições (AUSUBEL et al., 1980, p. 39-41; AUSUBEL,
2003, p. 83-5). Propõe, ainda, três formas de aprendizagem significativa: i) subor-
dinativa (derivativa e correlativa); ii) superordenada; e iii) combinatória (AUSU-
BEL et al., 1980, p. 57; AUSUBEL, 2003, p. 111).
“Quando o aprendiz não dispõe de subsunçores adequados que lhe permitam
atribuir significados aos novos conhecimentos”, Ausubel propõe o uso dos organi-
zadores prévios (MOREIRA, 2011, p. 29-30).9 Estes consistem em:

[...] um recurso instrucional apresentado em um nível mais alto de


abstração, generalidade e inclusividade em relação ao material de
aprendizagem. Não é uma visão geral, um sumário ou um resumo
que geralmente estão no mesmo nível de abstração do material a
ser aprendido. Pode ser um enunciado, uma pergunta, uma situ-
ação-problema, uma demonstração, um filme, uma leitura intro-
dutória, uma simulação. Pode ser também uma aula que precede
um conjunto de outras aulas. As possibilidades são muitas, mas a
condição é que preceda a apresentação do material de aprendiza-
gem e que seja mais abrangente, mais geral e inclusivo do que este
(MOREIRA, 2011, p. 30).

Diante do que foi discutido aqui, entendemos que textos históricos (i.e., tra-
duções de fontes primárias) e experimentos, quando trabalhados por meio de pro-

9 Cabe pontuar que neste texto o autor Marco A. Moreira faz uma ressalva: “[...] costuma-
-se pensar que o [referido] problema pode ser resolvido com os chamados organizadores
prévios, solução proposta até mesmo por Ausubel, mas que, na prática, muitas vezes não
funciona” (MOREIRA, 2011, p. 30).
86 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

postas metodológicas apropriadas, podem propiciar a aquisição de conhecimentos


relevantes que possam, futuramente, subsidiar a aprendizagem significativa de
conceitos científicos. A proposta que apresentamos aqui se fundamenta em parte
das características dos organizadores prévios sugeridos por Ausubel, contudo, cabe
enfatizar que ela não se constitui em um organizador prévio legítimo, uma vez
que não possui todos os seus elementos e características essenciais. Cabe destacar
que a atividade foi realizada a partir de uma abordagem diacrônica, portanto, os
textos históricos foram estudados a partir dos elementos conceituais da sua época
(KRAGH, 2001). Nossa proposta é que a discussão e a apreensão de algumas da-
quelas ideias possa subsidiar o entendimento de alguns “conceitos físicos atuais”.
Desta forma, não abordamos diretamente os “conceitos físicos atuais”, mas ideias
que futuramente podem servir de base para a construção deles pelos alunos.

2. Metodologia da Pesquisa e Sequência Didática

Este trabalho segue um delineamento qualitativo (BOGDAN; BIKLEN, 1994;


FLICK, 2004; TOZONI-REIS, 2007). A técnica de pesquisa utilizada foi a observa-
ção direta extensiva (LAKATOS; MARCONI, 2009, p. 203). Como instrumentos
de coleta de dados, utilizamos o caderno de anotações, feito pelos próprios sujeitos
da pesquisa, e o questionário. Para o tratamento e a análise dos dados, utilizamos
a “Análise de Conteúdo” (BARDIN, 1977).
Os sujeitos da pesquisa foram 29 alunos do 2º Ano do Ensino Médio de uma
Escola da Rede Pública Estadual do interior do Estado da Bahia. A escolha do 2º
Ano foi devido aos alunos ainda não terem visto o conteúdo de eletrostática na
escola, o que era importante para a pesquisa. A escolha da turma foi aleatória.

2.1 Sequência Didática Utilizada em Sala de Aula

O trabalho de campo foi organizado em quatro etapas. Na primeira, fizemos


uma avaliação diagnóstica em que mapeamos os conhecimentos prévios dos alu-
nos por meio de dois questionários. Após a sistematização e análise dos dados
obtidos, planejamos a segunda e terceira etapas. Na segunda, fizemos uma con-
textualização histórica, a discussão sobre os conceitos de hipótese e modelo, e dis-
cussão do primeiro princípio de Du Fay para a eletricidade, a partir da leitura da
tradução de um excerto de fonte primária. Na terceira etapa, os alunos realizaram
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
87
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

uma prática experimental investigativa (ARAÚJO; ABIB, 2003) na qual tiveram


que propor hipóteses e um modelo para explicar um fenômeno não previsto e não
explicado pelo primeiro princípio. A quarta etapa constituiu-se de uma síntese ini-
cial, do que fora feito até aquele momento, na discussão sobre o segundo princípio
de Du Fay, feita a partir da leitura de um segundo excerto traduzido de fonte pri-
mária e de um experimento histórico, feito com material de baixo custo, além de
uma síntese final. Essas etapas foram divididas em três momentos (i.e., três dias
diferentes). A etapa 1 faz parte do primeiro momento, as etapas 2 e 3 fazem parte
do segundo momento, e a etapa 4 do terceiro momento.
O instrumento de coleta de dados para a primeira e quarta etapas foi o ques-
tionário. Na avaliação diagnóstica foram utilizados dois questionários: i) apresen-
tava três questões, mas sem fazer qualquer menção a termos relacionados à carga
elétrica ou eletricidade; ii) apresentava nove questões mais específicas, mencio-
nando termos como eletricidade, eletrização, carga elétrica e outros referentes à
eletricidade. Adaptamos a maior parte das questões de questionários aplicados em
outras investigações e publicados na literatura (FURIÓ; GUISASOLA, 1998; 1999;
FURIÓ; GUISASOLA; ZUBIMENDI, 1998). Antes de aplicar os questionários
procedemos à avaliação e validação de conteúdo (MOREIRA; SILVEIRA, 1993,
p. 73; VIANNA, 1978, p. 172). Para isso, enviamos ambos por correio eletrônico,
para dez professores licenciados em Física. Obtivemos seis retornos com críticas
e sugestões.10 Junto à aplicação das questões em sala de aula, foram realizados
alguns experimentos, de forma demonstrativa (BORGES, 2002; ARAÚJO; ABIB,
2003), para ilustrar os fenômenos descritos (FURIÓ; GUISASOLA, 1998, p. 136).
O instrumento de coleta de dados usado na terceira etapa foi um caderno de notas
redigido pelos próprios alunos junto à execução da atividade experimental.
Após a análise da literatura e dos questionários já aplicados, realizamos a se-
gunda e terceira etapas na mesma manhã. Iniciamos a segunda etapa articulando
uma discussão com os alunos, de forma expositiva dialogada11. Neste momento,
foram pontuados e discutidos alguns elementos da História da Eletrostática e do
primeiro princípio de Du Fay. Esta discussão inicial durou aproximadamente 60
minutos e teve como objetivo: i) promover a contextualização da temática; ii) pro-

10 Destes seis professores, três deles lecionavam no Ensino Médio, dois lecionavam conco-
mitantemente no Ensino Médio e no Superior (área de Física), e um lecionava no Ensino
Superior (área de Instrumentação e Estágio Supervisionado para Licenciatura em Física).
11 Utilizamos: computador, projetor multimídia (com slides previamente preparados e
considerando as concepções mapeadas na primeira etapa), demonstração de experi-
mentos e excertos traduzidos para o português a partir de fontes primárias.
88 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

blematizar algumas concepções prévias que os alunos apresentaram na avaliação


diagnóstica; iii) discutir sobre os conceitos de hipótese e modelo; e iv) discutir o
primeiro princípio de Du Fay, a partir da leitura da tradução de excertos de fon-
tes primárias (DU FAY, 1733; BOSS; CALUZI, 2007). Inicialmente, orientamos os
alunos a fazerem anotações sobre a discussão, com o objetivo de construírem um
material de consulta para o restante das atividades, além da própria tradução dos
excertos sobre o primeiro princípio, dos quais cada aluno recebeu uma cópia.
Após esta discussão inicial, procedemos à terceira etapa, a qual teve duração
de aproximadamente três horas. A turma foi dividida em grupos de três ou quatro
alunos, mas cada estudante recebeu um roteiro aberto com orientações e situações
problemas a serem resolvidas, a partir da realização de experimentos históricos
disponibilizados aos grupos. O roteiro tinha espaços para anotações dos fenôme-
nos observados e perguntas para serem respondidas, configurando-se como um
caderno de anotações e instrumento de coleta de dados.
A atividade experimental foi feita com um pêndulo elétrico (ASSIS, 2010, p.
75-80; GASPAR, 2005, p. 225). Não utilizamos o experimento que representaria
aquele que Du Fay realizou, que consiste em um objeto leve (e.g., uma semente de
dente-de-leão, pedacinho de algodão etc.) flutuando sobre um objeto eletrizado12,
porque ele é muito sensível a movimentos do ar e a sala de aula não garantia con-
dições de realização do experimento caso estivesse ventando. Sendo assim, ele foi
realizado na modalidade demonstrativa na primeira e segunda etapa. O pêndulo
elétrico nos permite obter os fenômenos descritos nos textos traduzidos, tal como
defende Chang (2011, p. 320).
Nesta atividade, os alunos deveriam atritar um canudo de refresco com papel e
o aproximar do pêndulo elétrico, o qual seria atraído e após o contato seria repelido
(mecanismo “atração-contato-repulsão” — ACR).13 Em seguida, após descarregar
o pêndulo, o mesmo procedimento deveria ser feito atritando um segundo canudo
com uma borracha dura (e.g., mangueirinha de chuveiro), o que apresentaria o mes-
mo fenômeno. Ambos os experimentos estão de acordo com o primeiro princípio14.

12 O referido experimento está bem detalhado em Assis (2010, p. 106-10).


13 Ver detalhes sobre o mecanismo “atração-contato-repulsão” (ACR) em Assis (2010, p.
87) e Heilbron (1979).
14 De forma resumida: i) primeiro princípio: corpos eletrizados se repelem, e um corpo
eletrizado atrai um corpo não-eletrizado; ii) segundo princípio: sugere a existência de
duas eletricidades (vítrea e resinosa) e afirma que: a interação entre corpos com eletri-
cidade igual é repulsiva; entre corpos com eletricidades diferentes é atrativa; entre um
corpo eletrizado e um corpo não-eletrizado é atrativa. (DU FAY, 1733; BOSS; CALUZI,
2007; ASSIS, 2010; HEILBRON, 1979).
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
89
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

O terceiro passo consistia em atritar um canudinho com papel (canudo “A”) e outro
com borracha dura (canudo “B”), em seguida aproximar um deles (A) do pêndulo
e, após ocorrer a sequência “atração-contato-repulsão”, aproximar o segundo canu-
dinho (B) do pêndulo. Este procedimento revela um fenômeno não previsto pelo
primeiro princípio: a atração entre corpos eletrizados. A partir disso, a atividade
consistia em propor hipóteses e um modelo para explicar aquele novo fenômeno.
Iniciamos a quarta etapa com uma revisão/síntese das etapas anteriores, por
meio de questões que formulamos e utilizamos para fomentar a discussão entre
aluno-aluno e aluno-professor. Neste momento, fizemos a discussão e problemati-
zação dos modelos e hipóteses propostos pelos alunos na atividade anterior. Desta
forma, a turma foi percebendo, em conjunto e de forma dialogada com o auxílio
dos pesquisadores presentes, a “inconsistência” que há no primeiro princípio frente
ao experimento realizado por eles e, a partir disso, os estudantes chegaram a uma
conclusão parecida com o segundo princípio de Du Fay. Então, os pesquisadores
promoveram uma síntese final e uma sistematização de tudo que fora discutido
até aquele momento, objetivando que os alunos organizassem melhor suas ideias
e entendessem como Du Fay resolveu o problema que surgiu a partir dos experi-
mentos que ele fez posteriormente à proposição do primeiro princípio. Em seguida,
cada aluno recebeu um impresso com um trecho traduzido da Quarta Memória
em que Du Fay (1733) descreve seu segundo princípio. Então, foi feita sua leitura
e discussão. Para finalizar a atividade, foi aplicado um questionário, composto de
duas questões bem específicas, que tratava dos dois princípios de Du Fay.
90 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

4. Dados e Resultados15

4.1 Primeira Etapa - Avaliação Diagnóstica

Questionário 1
Pergunta 1 - Encosta-se um canudinho de plástico esfregado com papel em
uma bolinha de cortiça. Depois de alguns instantes observa-se que o canudinho e a
bolinha se distanciam. Como você explica esse distanciamento (chamado de repul-
são) que ocorre entre o canudo e a bolinha.16

Figura 1 – Representação gráfica da distribuição de frequência das categorias referentes à


Pergunta 1, Questionário 1.

O objetivo era verificar se os alunos relacionariam o fenômeno descrito com


a carga elétrica, mais especificamente com o fato de ela existir de duas formas
distintas, que hoje são denominadas de positiva e negativa. O gráfico de frequência
apresenta 7 categorias. Destaque para a maior frequência – energia – aparecendo
9 vezes. Isto pode estar relacionado ao fato de os alunos terem trabalhado na dis-
ciplina de Física, no período da nossa intervenção, com conteúdo de energia em
termodinâmica, que é conteúdo do 2º Ano do Ensino Médio. A segunda categoria

15 Nos dados desta seção, a soma do número de categorias em cada gráfico pode ser maior
do que o total de alunos (i.e., 29 - número total inicial de sujeitos da pesquisa), pois há
respostas que expressam mais de uma categoria. Também pode ser menor do que 29,
devido à ausência de alguns alunos. A categoria “BR” significa “resposta em branco”; a
categoria “N.A.O.” significa “não atingiu o objetivo”, pois são respostas genéricas que
não permitiram a categorização.
16 Adaptada de Furió; Guisasola (1998, p. 145).
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
91
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

que mais apareceu é força, constando nas respostas de 8 alunos. O termo campo
magnético consta na resposta de 5 alunos. A expressão aumento de temperatura ou
o aquecimento foi mencionada por 4 alunos. É interessante observar que alguns
alunos atribuem à explicação do referido fenômeno conceitos físicos que não estão
diretamente relacionados a ele, tais como energia, temperatura e campo magnéti-
co. A expressão carga elétrica apareceu apenas 4 vezes. Destes quatro alunos, dois
deles mencionaram em suas respostas a palavra energia, isto é, ora disseram que o
atrito gerava acúmulo de carga e ora disseram que gerava acúmulo de energia no
corpo. Dois desses quatro alunos disseram que cargas diferentes se repelem e car-
gas iguais se atraem, ou seja, expressaram a propriedade de atração/repulsão entre
cargas de forma equivocada.

Pergunta 2 - Na sua opinião, por que um canudinho de plástico quando é es-


fregado com papel passa a atrair pequenos objetos, tal como pedacinhos de papel?
Procure explicar sua resposta com detalhes e se necessário cite exemplos.17

Figura 2 – Representação gráfica da distribuição de frequência das categorias referentes à


Pergunta 2, Questionário 1.

O objetivo era avaliar as ideias que os alunos tinham a respeito de a matéria ser
elétrica, ou seja, ser constituída de cargas elétricas (FURIÓ; GUISASOLA, 1998, p.
132-3), e sobre o fato destas serem transferidas de um corpo para outro. O gráfico
de frequência apresenta oito categorias extraídas das respostas dos alunos. Somen-
te dois deles mencionaram o termo carga, categorias 5 e 6. Oito alunos disseram
que o atrito aumenta a temperatura do canudo e atribuem à atração este fenômeno,

17 Adaptada de Furió; Guisasola (1998, p. 145).


92 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

categoria 1. Esta ideia talvez seja proveniente do fato de o professor da disciplina


de Física usar o atrito das mãos (i.e., esfregar uma mão na outra) para ilustrar a
ocorrência de aquecimento, além de ser um fenômeno comum no cotidiano dos
alunos. Sete alunos afirmaram que atrito gera uma força de atração no canudo que
passa a atrair, categoria 218. Doze alunos afirmaram que o atrito aumenta, dá ou
gera energia no canudo e esta é a responsável pela atração, categoria 319.
As respostas analisadas evidenciam que os alunos não consideraram a possibi-
lidade de a matéria ser elétrica para explicar os fenômenos em questão. Os sujeitos
da pesquisa não consideraram a possibilidade de o atrito dar ou retirar cargas
elétricas dos materiais, nem mesmo os dois alunos que mencionaram a expressão
carga nas suas respostas. As discussões promovidas posteriormente com os alunos
trataram de problematizar isto e gerar condições para o seu entendimento.

Pergunta 1 - Você já ouviu falar em alguma propriedade das cargas elétricas?


( ) SIM – ( ) NÃO. Procure explicar sua resposta com detalhes e se necessário cite
exemplos.

O objetivo era interrogar de forma direta os alunos sobre as propriedades das


cargas elétricas, já que na Pergunta 1 do Questionário 1 isso foi feito de forma in-
direta. Apenas 4 alunos assinalaram SIM, e todas as justificativas estavam ligadas
à existência de dois tipos de cargas. Dois alunos citaram prótons e elétrons; um
aluno falou em cargas positivas e negativas; e o quarto aluno mencionou a ideia de
atração e repulsão, porém, justificou de forma equivocada, ao afirmar que “cargas
iguais se atraem e cargas diferentes se repelem”. As respostas evidenciam que a
maioria dos nossos sujeitos não tinha conhecimento sobre as propriedades das
cargas elétricas. No entanto, a questão a seguir traz um resultado intrigante, tendo
em vista as respostas a esta Pergunta 1.

Pergunta 220 - a) Um pêndulo elétrico carregado positivamente é atraído por


um canudo de plástico carregado negativamente. Esta afirmação está correta?

18 Quatro alunos disseram, apenas, que o atrito gera uma força de atração, outros três
alunos mencionaram a causa desta força: i) o aquecimento; ii) a gravidade; iii) a energia.
19 Optamos por citar neste comentário os três verbos (i.e., aumentar, dar e gerar) que en-
contramos nas respostas que mencionavam a energia como responsável pela atração
dos papeizinhos pelo canudo.
20 Baseada nos trabalhos Furió; Guisasola (1998; 1999) e Furió; Guisasola; Zubimendi
(1998).
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
93
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

Marque o SIM ou NÃO na Figura abaixo e procure explicar sua resposta com deta-
lhes. Se necessário cite exemplos.
b) Um pêndulo elétrico carregado positivamente é repelido por um canudo de
plástico carregado positivamente. Esta afirmação está correta? Marque o SIM ou
NÃO na Figura abaixo e procure explicar sua resposta com detalhes. Se necessário
cite exemplos.

Figura 3 – Representação gráfica da distribuição de frequência das categorias referentes à


Pergunta 2, Questionário 2.

O objetivo era verificar se diante da situação colocada os alunos apresentariam


alguma ideia diferente daquelas expostas nas questões anteriores sobre as proprie-
dades das cargas elétricas. Dos 29 alunos que responderam o Questionário 2, 12
marcaram SIM na “Pergunta 2.a” e deram justificativas, como podemos verificar
no gráfico da Figura 3: 11 alunos relataram que cargas opostas se atraem e 1 aluno
disse que carga positiva não repele positiva, justificativa equivocada. Na “Pergunta
2.b”, o gráfico da Figura 3 mostra que 10 alunos responderam SIM, sendo que 8
alunos mencionaram que cargas iguais se afastam e os outros 2, que positivo com
positivo não se atrai.
As questões do Questionário 2 mostram um resultado interessante, uma vez
que, ao serem interrogados sobre conhecerem ou não as propriedades das cargas
elétricas, na Pergunta 1, apenas 4 alunos disseram que SIM. No entanto, ao se
depararem com uma situação cuja explicação exigia que lançassem mão de uma
das propriedades, o número de alunos aumenta consideravelmente. Assim, a im-
pressão que temos é que alguns sujeitos desta pesquisa até sabem, talvez de forma
mnemônica, que cargas elétricas diferentes se atraem e que cargas iguais se repe-
lem, mas não associam isto a uma propriedade importante das cargas elétricas, tal
como aponta Boss (2009, p. 95).
94 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Diante da avaliação diagnóstica, ficou evidente que teríamos que problemati-


zar algumas concepções prévias, como por exemplo, aquelas referentes ao aqueci-
mento/temperatura e à energia. Por conta disso, a segunda etapa objetivou, tam-
bém, questionar e problematizar tais concepções. Podemos dizer que a dificuldade
maior ficou por conta da concepção de energia, pois os alunos apresentaram dife-
rentes e variadas visões sobre esse conceito.
É importante ressaltar que não pretendíamos promover uma “mudança con-
ceitual” ou algo do tipo nos alunos, nem mesmo acreditávamos que os alunos pas-
sariam a refutar por completo as suas concepções prévias, pois entendemos que
isso, caso ocorra, se dá de forma paulatina ao longo do processo educacional. Neste
ponto, nosso objetivo era gerar condições para que os alunos entendessem que a
explicação deles para o fenômeno era um modelo e, então, fazê-los perceber que
podem existir outros modelos explicativos para o mesmo fenômeno. Sendo assim,
as problematizações sobre as concepções dos aprendizes buscaram fazê-los iniciar
a percepção de que aqueles modelos propostos por eles poderiam não explicar o
fenômeno em sua plenitude, ou ainda, tais modelos poderiam apresentar algum
problema/equívoco frente ao fenômeno. A aprendizagem é processual, portanto,
este trabalho que desenvolvemos pode ser entendido como um primeiro passo
rumo à aprendizagem dos conceitos científicos de eletrostática.

4.2 Segunda Etapa

Nesta etapa não foi realizada coleta de dados, pois tinha como objetivo contex-
tualizar a temática, iniciar a problematização de algumas concepções prévias dos
alunos e discutir o primeiro princípio.

4.3 Terceira Etapa

Esta etapa consistiu na realização de uma prática experimental e na proposição


de hipóteses e um modelo para um novo fenômeno. O roteiro para esta atividade
tinha três passos. O terceiro deles orientava os grupos a: i) utilizar um canudinho
de refresco atritado com papel para eletrizar o pêndulo elétrico por meio do meca-
nismo “atração-contato-repulsão” (ACR) e, em seguida, verificar a interação desse
pêndulo eletrizado com um canudinho atritado com borracha dura (Pergunta do
Roteiro - PR1); ii) dizer se o fenômeno observado estava de acordo com o primeiro
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
95
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

princípio de Du Fay e explicar a resposta dada (PR2); iii) diante do fenômeno ob-
servado, e caso observassem alguma discordância com o primeiro princípio, deve-
riam propor hipóteses e um modelo para explicar aquele novo fenômeno (PR3).21
Foram tabulados e analisados apenas os dados do terceiro passo, já que os dois
primeiros consistiram em uma preparação para o terceiro. As respostas dos alunos
às perguntas PR1 e PR2 foram analisadas e categorizadas como Satisfatória (S),
Parcialmente Satisfatória (PS), ou Insatisfatória (I). Apenas os alunos que tiveram
respostas satisfatória e/ou parcialmente satisfatória nas perguntas PR1 e PR2 teriam
como fazer a PR3. Pois, de outra forma, não identificariam a inconsistência com o
primeiro princípio e o fenômeno que deveria ser alvo do novo modelo. Dos 20 sujei-
tos que participaram desta etapa, 16 tiveram a PR1 e a PR2 classificadas como S-S;
2 alunos foram classificados como S-PS; e 2 alunos como PS-S, respectivamente.
Estes 20 alunos fizeram os experimentos de “forma correta” e perceberam que
havia uma inconsistência e um fenômeno não explicado pelo primeiro princípio.
Portanto, tinham condições de fazer a PR3 e propor um novo modelo. Destes, 6
alunos deixaram a PR3 em branco, sendo quatro alunos do grupo G6, um do G1 e
um do G7. Dois alunos não propuseram o modelo, apenas comentaram o fenôme-
no observado, sendo um do G7 e um do G1. Um dos alunos (Al9) teve a PR1 e PR2
classificadas como I-I, entretanto, na PR3 ele descreveu e explicou tais perguntas
de forma satisfatória e propôs um modelo, fato que não foi verificado nos outros
membros do seu grupo (G2). Desta forma, houve um total de 13 alunos que pro-
puseram um modelo explicativo de forma satisfatória para o fenômeno observado
no experimento.
Dos 13 alunos que propuseram um modelo, 11 deles (3 do G5; 4 do G4; 3 do
G3; 1 do G2) propuseram modelos com base na ideia de que a atração entre os cor-
pos eletrizados ocorre porque um deles tem uma quantidade menor de eletricidade
do que o outro. Destes, os 4 alunos do G4 atribuíram a diferença na quantidade de
eletricidade ao fato de os canudinhos terem sido atritados com materiais diferen-
tes. Dois alunos do G7 (Al 27; Al 28) propuseram um modelo com base na ideia
de que ao atritar os canudos com materiais diferentes (papel e borracha) ocorre
a aquisição de eletricidades distintas, sendo este o fator responsável pela atração
entre corpos eletrizados.

21 Como já dissemos na Metodologia, o primeiro passo do roteiro instruía os alunos a


realizarem o experimento com um canudinho de refresco atritado com papel, observar
os fenômenos e discuti-los com base no primeiro princípio. O segundo passo tinha o
mesmo objetivo, mas um segundo canudinho era atritado com borracha dura e aproxi-
mado ao pêndulo descarregado.
96 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

4.4 Quarta Etapa

Nesta etapa, foram feitas uma revisão das atividades desenvolvidas nas etapas
anteriores e a discussão e problematização dos modelos e hipóteses propostos pe-
los alunos anteriormente. Em seguida, procedemos à leitura e à discussão de um
trecho traduzido em que Du Fay descreve o seu segundo princípio. Ao final, foi
aplicado um questionário que tinha como objetivo avaliar se houve algum conhe-
cimento adquirido pelos alunos, entre aqueles trabalhados por nós. Os resultados
desse questionário são apresentados no gráfico da Figura 4. Classificamos as res-
postas dos alunos para as duas perguntas nas seguintes categorias: Satisfatória (S),
Parcialmente Satisfatória (PS) e Insatisfatória (I).

Questionário 3
1. Descreva e explique o Primeiro Princípio de Du Fay. Cite exemplos.
2. Descreva e explique o Segundo Princípio de Du Fay. Cite exemplos.

Figura 4 – Representação gráfica da distribuição de frequência das categorias referentes às


Perguntas 1 e 2, Questionário 3.

Na Figura 4 temos as respostas dadas pelos alunos sobre o primeiro e o segun-


do princípio. Cabe lembrar que o segundo princípio de Du Fay vem para explicar
um fenômeno que o primeiro não explicava, isto é, a interação atrativa e repulsiva
entre corpos eletrizados. O primeiro princípio afirmava que a interação entre dois
corpos eletrizados deveria ser sempre repulsiva, o que não foi verificado expe-
rimentalmente, e resultou na proposição das duas eletricidades (DU FAY, 1733;
BOSS; CALUZI, 2007; ASSIS, 2010; HEILBRON, 1979). A partir das discussões
feitas em sala de aula, o aluno deveria compreender o princípio empírico: eletri-
cidades de mesmo tipo se repelem e de tipos diferentes se atraem. O importante
neste trabalho não é o aluno saber uma regra mnemônica, mas entender de que
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
97
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

forma surge o princípio empírico. Entendemos que esta é uma ideia importante
para a aprendizagem significativa do conceito de carga elétrica.
Tendo em vista os dados, relatados na Figura 4, a maioria dos alunos respon-
deu a Q2 de forma Parcialmente Satisfatória (PS). Classificamos como PS as res-
postas que apresentaram elementos importantes do segundo princípio, mas que
não o descreveram de forma completa.

5. Discussões dos Resultados

Inicialmente, chamamos a atenção para a dificuldade que encontramos nos


sujeitos da pesquisa em lidar com a prática experimental, o que acabou tornando
a terceira etapa um pouco mais difícil para eles. Isto ficou bastante claro para
dois dos autores deste texto que estavam em sala de aula aplicando a atividade
e auxiliando os alunos. Acreditamos que esta falta de hábito dos aprendizes em
lidar com experimentos tenha relação com o fato de parte deles não ter percebido
que havia um fenômeno não explicado pelo primeiro princípio. Antevendo que os
estudantes poderiam apresentar tal dificuldade, tendo em vista que mapeamos, já
na avaliação diagnóstica, que eles não tinham proximidade com a manipulação de
experimentos, estruturamos a terceira etapa de tal forma que as duas atividades
iniciais do roteiro visavam que os alunos se ambientassem com aquele experimen-
to, mesmo tendo um tempo reduzido. Entretanto, nos fica a impressão de que isso
não bastou para boa parte daqueles alunos.
Cabe destacar, ainda, que o fato de parte dos alunos não ter proposto um mo-
delo na terceira etapa, apesar de terem feito a atividade experimental “correta-
mente” e terem percebido que havia um fenômeno não explicado pelo primeiro
princípio, aponta para uma possível dificuldade de entendimento dos conceitos de
hipótese e modelo.
Esses dois pontos discutidos inicialmente evidenciam: a necessidade do tra-
balho experimental em sala de aula, tal como vários trabalhos têm apontado na
literatura; e a importância de se trabalhar os conceitos de hipótese e modelo no
nível básico.
O modelo proposto pelos alunos na etapa 3, com base na ideia de a atração
ocorrer devido aos corpos terem diferentes quantidades de eletricidade, pode ser
relacionado ao modelo de Franklin do fluido único (FRANKLIN, 1935). Já o mode-
lo baseado na ideia de duas eletricidades pode ser relacionado ao segundo princípio
de Du Fay (DU FAY, 1733). Podemos inferir, a partir desses dados da pesquisa,
98 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

que os alunos começam a adquirir as ideias de que: i) a matéria é elétrica; ii) no


processo de eletrização por contato esta eletricidade é transferida de um corpo para
outro. Pois utilizam como argumento em suas respostas o fato de a eletricidade ser
transmitida de um corpo para outro, ou seja, o material tem eletricidade e ela pode
ser transferida, e não utilizam o argumento de a eletricidade ser criada durante o
processo de atrito, tal como ocorre com alguns sujeitos das pesquisas de Furió e
Guisasola (1998, p. 136) e Furió, Guisasola e Zubimendi (1998, p. 176-7).
Nos dados referentes à terceira etapa, não aparecem as concepções de atra-
ção/repulsão devido ao aquecimento/temperatura ou a energia. Isto pode ser um
reflexo positivo das discussões promovidas na segunda etapa, com o objetivo de
problematizar algumas concepções mapeadas no diagnóstico inicial. Não quere-
mos e nem podemos afirmar que os alunos entenderam por completo tais questões
ou descartaram tais concepções, mas acreditamos que eles podem ter começado
a perceber que suas explicações não contemplam o fenômeno em sua plenitude.
Os alunos foram orientados por nós a utilizarem, durante a atividade, palavras
dos textos base (DU FAY, 1733; BOSS; CALUZI, 2007), evitando utilizar o que de-
nominamos de “termos modernos”. Um exemplo disso é o termo eletricidade, que
optamos por não definir. Posteriormente, o professor de Física poderia partir deste
termo e das concepções que os alunos têm a respeito dele para caminhar com o
processo de ensino-aprendizagem para a construção do conceito de carga elétrica,
pelos estudantes, e de como esta está intrinsecamente relacionada à matéria. E,
com isso, avançar na discussão sobre a matéria ser elétrica do ponto de vista da “Fí-
sica atual”. Sendo que, na perspectiva da Teoria de Ausubel, podemos pensar que
o termo eletricidade é mais geral e que pode ser diferenciado ao longo do processo
educacional (AUSUBEL et al., 1980, p. 159).
Os dados referentes à quarta etapa mostram que parte dos estudantes adqui-
riram algumas ideias sobre o segundo princípio de Du Fay, as quais podem servir
de subsídio para a aprendizagem significativa do conceito de carga elétrica. Des-
tacam-se as ideias de que há dois tipos distintos de eletricidade e sua propriedade
de atração/repulsão. Estas podem servir de esteio para aprendizagem de que há
dois tipos de carga elétrica, das suas propriedades e do processo histórico dessa
construção conceitual. Isto gera condições para o aprendiz compreender que não
estamos falando de uma simples “regrinha mnemônica” que afirma que “cargas
iguais se repelem e cargas diferentes se atraem”, mas sim de uma propriedade im-
portante das cargas elétricas (BOSS, 2009). Também é possível dizer, em termos da
Teoria de Ausubel, que a ideia das duas eletricidades de Du Fay já é uma diferen-
ciação da ideia de que a matéria é elétrica. Diante disso tudo, acreditamos que a
atividade proposta nesta investigação permite ao aluno trilhar pouco a pouco pelo
CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
99
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

caminho da construção conceitual, bem como possibilita ao professor não trivia-


lizar a Física (DIAS, 2001, p. 226) e não tratar de forma simplista “um corpo de
conhecimento que é muito complicado e repleto de sutilezas” (ROBILOTTA, 1988,
p. 9), prezando, assim, pela aprendizagem significativa dos conceitos científicos.
Os dados e a presença de dois dos autores deste trabalho em sala de aula du-
rante as atividades deixaram clara a dificuldade dos alunos em trabalhar em gru-
po. Olhando para os dados referentes à terceira etapa, vemos que não foi incomum
o fato de um ou dois alunos de um dado grupo conseguir realizar uma certa parte
da atividade, ou mesmo a atividade toda, e outros membros do grupo não conse-
guirem. A impressão que nos fica é que o trabalho era em grupo, mas foi realizado
de forma individual. Talvez isso pudesse ser atribuído ao fato de cada aluno ter re-
cebido um roteiro seu, mas, por outro lado, foi bastante destacado pelos pesquisa-
dores, antes e durante a atividade, que isso era apenas para facilitar nossa coleta de
dados, sendo enfatizado constantemente que o trabalho era em grupo. E para que
isso ficasse marcado na atividade, cada grupo recebeu apenas um pêndulo elétrico,
para que os alunos pudessem realizar a atividade juntos e discuti-la em conjunto. É
importante ressaltar que não nos estranha quando em um mesmo grupo os alunos
preenchem suas respostas com opiniões divergentes, isso faz parte do processo.
Mas, nos chama bastante a atenção o fato de um aluno do grupo conseguir fazer
a atividade e outros não conseguirem, a ponto destes entregarem determinadas
questões, ou todas, em branco. Isso evidencia a necessidade de se dar mais ênfase
em trabalhos que sejam de fato feitos em grupo na Educação Básica, ou, pelo me-
nos, com os sujeitos desta pesquisa.
Caminhando para o encerramento do texto, levantamos duas questões bas-
tante pertinentes referentes a esta investigação. Primeira: o número de alunos que
descreveu corretamente o primeiro princípio no Questionário 3 ficou abaixo das
nossas expectativas iniciais. O que pode ter sido influenciado: i) pelo intervalo
entre a terceira e a quarta etapa, que foi de cerca de quatro meses devido às greves e
paralisações; e/ou ii) por tal princípio não ter ficado claro para os alunos na tercei-
ra etapa. Segunda questão: cerca de 50% dos alunos descreveu o segundo princípio
de forma satisfatória ou parcialmente satisfatória. Em nossa opinião, este é um
número que requer atenção, pois o docente deve buscar, sempre, que todos os seus
alunos tenham elementos cognitivos para a aprendizagem significativa. Frente a
tais questões, entendemos que a proposta que aplicamos precisa de ajustes, para
que um número maior de alunos possa adquirir conhecimentos relevantes para
aprendizagem subsequente.
Entre estes ajustes, pode ser feito um trabalho mais pormenorizado sobre o pri-
meiro princípio, pois este é base para o entendimento do segundo. Além disso, ao tra-
100 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

balhar o segundo princípio, na quarta etapa, é interessante que se tenha mais tem-
po, para que os alunos possam realizar novamente o experimento da terceira etapa,
discutindo-o de forma minuciosa com base na proposta de Du Fay e refletindo sobre
as hipóteses e modelos que propuseram na terceira etapa. Isso tudo com o auxílio e
participação do professor. Outras alterações podem e devem ser feitas, deixamos aqui
duas sugestões com base na nossa experiência em aplicar e analisar a proposta.
Discutimos neste trabalho algumas concepções prévias apresentadas pelos sujei-
tos da pesquisa e os modelos que eles propuseram na terceira etapa. Também mostra-
mos os conhecimentos adquiridos pelos estudantes a partir das atividades realizadas.
Concluímos, então, que a intervenção feita em sala de aula possibilitou que parte dos
alunos adquirisse ideias relevantes que podem servir de ancoradouro para a apren-
dizagem significativa de alguns conceitos de eletrostática, mas a proposta deve ser
ajustada para que um número maior de aprendizes adquira tais ideias.

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CAPÍTULO 4 - Aquisição de conhecimentos relevantes para a aprendizagem significativa de conceitos
105
de eletrostática a partir de textos históricos e experimentos em aulas de física no ensino médio

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CAPÍTULO 5

Textos originais traduzidos como recurso para a


contextualização histórica no ensino de ciências:
o caso da velocidade de propagação do som
Shirley Takeco Gobara1
Nádia Cristina Guimarães Errobidart2
Renato da Fonseca Lima3

Introdução

Pesquisas na área de ensino de ciências apontam a utilização de estratégias


metodológicas fundamentadas na História da Ciência como uma forma de pro-
mover uma compreensão diferenciada da natureza da ciência e sua relação com o
contexto sociocultural.
Boss (2011), em seu trabalho de tese, apresenta uma discussão evidenciando
uma tendência crescente nas pesquisas sobre a inserção de abordagem histórica
na educação em ciências com o objetivo de contribuir para a formação do cidadão
crítico. Nesse sentido, o autor apresenta uma discussão a partir dos três desafios
propostos por Freire Jr. (2002, p. 24-26) para que essa abordagem possa atingir
tal objetivo: i) “a eficácia da abordagem contextual no ensino de ciências”; ii) “a
assimetria que existe entre as proposições e as práticas em sala de aula com esta
abordagem”; iii) “qual é a História da Ciência que interessa à educação científica”.
Em relação ao primeiro desafio, Freire Jr. afirma que as propostas de contextua-
lização pautadas apenas na inserção do ensino de História, Filosofia e Sociologia
da ciência não são suficientes e que é preciso relacioná-las com as disciplinas de
conteúdos das ciências. Em relação ao segundo desafio, Freire Jr. argumenta que o

1 Professora Associada da UFMS, Curso de Física, Programa de Pós-graduação Mestrado


em Ensino de Ciências.
2 Professora Associada da UFMS, Curso de Física, Programa de Pós-graduação Mestrado
em Ensino de Ciências.
3 Professor da Aliança Francesa - Campo Grande/MS.
108 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

professor é o elemento chave para romper com essa assimetria. O terceiro desafio
proposto por Freire Jr. (2002, p. 26-27) parte de uma evidência observada: a po-
larização nas pesquisas em História da Ciência, uma que prioriza o caráter social
da ciência e, outra, o caráter conceitual. E a questão que, naturalmente, decorre
desse desafio é qual desses enfoques interessa à educação científica. Entretanto,
a questão a ser discutida para contribuir para o debate, na perspectiva de formar
um cidadão crítico, é se o enfoque permite trazer elementos da História da Ciência
que contribuam para a apropriação e reflexão dos conhecimentos científicos, suas
implicações e consequências no contexto atual.
Para contribuir para com esse debate, Boss (2011, p.19-20) sugere adicionar
um outro elemento: “a preocupação quanto à maneira como os aspectos históricos
têm sido veiculados e divulgados em materiais voltados para o ensino, indepen-
dente do enfoque historiográfico”, pois o autor, ao analisar os trabalhos que suge-
rem o uso da História da Ciência para o ensino de ciências, chama a atenção para
os cuidados que devem ser tomados ao realizar uma abordagem histórica para não
produzir uma visão distorcida do trabalho científico.
A História da Ciência, ao apresentar-se nessa perspectiva, esbarra em muitos
problemas, entre os quais se destaca a visão distorcida da ciência, evidenciada em
materiais didáticos e na compreensão da natureza da ciência concebida pelos pro-
fessores e que é transmitida aos alunos (SILVA e MARTINS, 2003; ROSA e MAR-
TINS, 2007; BOSS e CALUZI, 2009; BOSS, 2011, ERROBIDART e GOBARA, 2011).
Os livros didáticos, um dos principais materiais utilizados por alunos e profes-
sores, muitas vezes, apresentam a história da ciência de forma caricata e anacrôni-
ca, levando a visões distorcidas da natureza da ciência e que em nada contribuem
para a contextualização do ensino de ciências. Os aspectos históricos reforçam
mitos e concepções errôneas, provavelmente porque não são provenientes de estu-
dos acadêmicos e fontes primárias (BOSS, 2011).
Entretanto, há uma carência de recursos didáticos que possibilitem “[...] re-
tomar os contextos originais da criação e evolução de significados dos conceitos
científicos, pela leitura e análise de textos originais [...]” (MATTOS e HAMBUR-
GER, 2004, p. 478). Geralmente nos textos didáticos e/ou paradidáticos, aparecem
informações provenientes de fontes históricas secundárias, realizando o que Mar-
tins (2005) denominou apudismo historiográfico.
Este artigo apresenta uma tradução de um texto histórico que trata da comu-
nicação de Cassini de Thury à Academia Real de Ciências (Académie Royale des
Sciences) da França sobre a determinação da velocidade do som, realizada em 1783.
Para suprir a necessidade de textos históricos originais, realizamos uma pesquisa
bibliográfica sobre a gênese e construção do conceito de velocidade do som, em
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
109
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

particular, sobre a determinação da velocidade de propagação do som no ar, e a


busca por fontes originais para subsidiar a produção de materiais didáticos que
utilizam estratégias metodológicas pautadas na contextualização histórica, para
serem utilizados no ensino de física. O texto histórico selecionado apresenta o
contexto em que a velocidade do som foi medida, evidencia aspectos do processo
evolutivo da ciência e descreve os problemas vivenciados no processo investigativo
realizado e os métodos utilizados para determinação da velocidade do som e su-
gestões de uso desse método para outras áreas.

1. Gênese e determinação da velocidade de propa-


gação do som no ar

O mais antigo relato de que se tem conhecimento sobre a determinação da


velocidade de propagação do som está relacionado às experiências realizadas por
Pierre Gassendi (1592 – 1655), em 1635, para medir a velocidade de propagação de
sons de diferentes frequências (RAYLEIGH, 1877; LINDSAY, 1973). Assumindo
que a velocidade da luz é muito maior que a do som, Gassendi comparou o movi-
mento do som pelo ar produzido por duas armas de diferente porte: um canhão e
um mosquete. Considerando que a arma de grande porte produzia um som grave
e a de pequeno um som agudo, Gassendi comparou o tempo gasto pelos sons pro-
duzidos com disparos simultâneos e concluiu, com o procedimento realizado, que
a velocidade de propagação do som não dependia do valor da frequência com que
era produzido. Deduziu que o tempo decorrido entre a percepção do clarão pro-
duzido pelo disparo e a do som emitido não dependia do porte da arma utilizada
no procedimento, e que, portanto, o som se propagava com a mesma velocidade.
Concluiu que a diferença entre os sons graves e agudos não estava relacionada com
o movimento mais rápido ou mais lento do som, como pensava Aristóteles, mas
sim com a quantidade de vezes que ele repete em um intervalo de tempo.
Mersenne, contemporâneo de Gassendi, aprimorou sua experiência com ar-
mas de fogo, levando em consideração a influência do vento, contra ou a favor
do sentido de propagação do som. Sem controlar as imprecisões nas medidas de
distância e tempo (que também influenciaram os procedimentos de Gassendi), ele
obteve o valor de 1380 pés de Paris para a velocidade de propagação do som no ar,
o que corresponde a 450 m/s. aproximadamente. Ao relatar em Harmonie Univer-
selle, obra dedicada ao estudo da natureza física do som, as experiências realizadas
com o objetivo de estudar a velocidade do eco, durante o dia e a noite, dia chuvoso
110 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

ou seco, Mersenne teceu considerações sobre possíveis influências da temperatura


na velocidade de propagação do som (MERSENNE, 1636).
As experiências realizadas por Gassendi e Mersenne passaram a ser reproduzi-
das por outros cientistas em condições semelhantes. Os resultados mais significati-
vos (RADAU, 1867) são datados de 1738 e atribuídos a uma comissão de cientistas
da Academia Francesa de Ciências, entre eles, Laicaille, Maraldi e Cassini de Thury.
Considerando a importância dessa experiência, apresentamos a tradução da
comunicação de Cassini de Thury à Academia Real de Ciências (Académie Roya-
le des Sciences) da França. Nela, ele apresenta detalhes sobre os procedimentos
realizados, os resultados obtidos em cada dia de experimentação e tece algumas
considerações sobre a experiência de tiros alternados, realizada em 16 de Abril
de 1738, para determinar a velocidade de propagação do som no ar (CASSINI DE
THURY, 1738). Segue a tradução do texto original publicada com o título “Sur La
propagation Du son” .

2. Tradução do artigo “Sobre a velocidade de propa-


gação do som”, de César-François Cassini de Thury

Embora tenhamos sempre percebido que o som demora mais ou menos tempo
para propagar-se até nós, dependendo de estarmos mais ou menos distantes do
lugar onde ele é produzido, não parece que tenhamos determinado com toda pre-
cisão necessária o espaço que ele percorre em um intervalo de tempo dado, e que
tenhamos feito todas as experiências necessárias para comprovar se sua velocidade
é sempre uniforme tanto nas pequenas como nas grandes distâncias, e se ocorrem
variações relacionadas com as diferentes circunstâncias do clima, do dia e da noite,
do tempo calmo ou da chuva, da força e da direção dos ventos.
Entre as observações mais precisas que foram feitas até agora, encontramos
aquelas relatadas nas Memórias da Academia del Cimento de Florença, e nas
Transactions Philosophiques do mês de Janeiro de 1708 pelo Sr. Derham.
Ao considerá-las, parece que ainda não existia consenso sobre o tempo que o
som emprega para percorrer um determinado espaço, uma vez que pelos resulta-
dos das experiências feitas por vários autores, que são relatadas nesses documen-
tos, são encontradas diferenças bastante consideráveis, atribuídas, com razão, ao
fato de que não havíamos, até então, empregado distâncias suficientemente gran-
des para determinar a velocidade do som com a precisão necessária.
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
111
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

De acordo com as observações feitas pela Academia de Ciências e relatadas


pelo Sr. du Hamel, verificou-se que o som leva um segundo para percorrer 180 toi-
ses4 ou 1080 pés de Rei. Esta medida, embora menor do que a maioria daquelas que
já se havia suposto anteriormente, era ainda maior do que aquelas observadas na
Itália e na Inglaterra, sendo assim, era necessário assegurar seu valor com maior
precisão possível.
É o que a Academia considerou executar, e com o que ela nos honrou ao nos
encarregar juntamente com o Sr. Maraldi, o Abade de la Caille, e diversas outras
pessoas experientes em observações científicas.
Para fazê-lo com a maior exatidão que seria possível, convinha empregar dis-
tâncias bem maiores que aquelas de que tínhamos nos servido até o presente, a fim
de que os erros cometidos na medida do tempo, estando distribuídos num intervalo
maior, produzissem apenas erros bem pequenos na medida da velocidade do som.
Nós escolhemos para tal o Observatório, a pirâmide de Montmartre, a torre de
Mont-lehery, Dammartin, e diversos outros lugares visíveis uns em relação aos ou-
tros, dos quais as distâncias eram exatamente conhecidas dadas as observações an-
teriormente realizadas para determinar o meridiano e o paralelo de Paris [Nota 1].
As nossas primeiras tentativas foram realizadas no Observatório, em Mont-
martre e no moinho de Fontenay-aux-Roses, de onde, durante a noite, nós reali-
zamos vários disparos de caixas de culatra 5 sucessivamente. Mas como a direção
do vento estava favorável a um sentido e contrária ao outro, isso fez com que não
escutássemos reciprocamente desses diferentes lugares o barulho dessas caixas de
culatra, julgamos então que era preciso empregar os maiores canhões que pudés-
semos encontrar, o que nos levou a recorrer ao Sr. Prevôt des Marchands, que teve
a gentileza de nos emprestar-nos tudo aquilo que nós precisássemos da Cidade.
O maior [canhão] era de bala de 12 libras, e nós o fizemos conduzir a Mont-
martre perto da pirâmide que foi ali construída por ordem do Rei sobre o meridia-
no do Observatório. O segundo era de bala de oito libras, e o enviamos ao pé da
torre de Mont-lehery, de onde avistamos, da mesma forma que em Montmartre,
um grande número de construções a uma distância muito grande.

4 Unidade de medida em vigor antes do sistema métrico: 1(uma) toise ≈ 1,95 metros.
5 Caixa de culatra é a tradução usada para a palavra boîte, uma espécie de caixa de ferro
ou de fonte (liga de cobre e estanho, podendo conter ainda zinco ou chumbo), que é
carregada com pólvora e um tampão, com a qual se realizam disparos nas festividades.
Fonte: Nouveau Dictionnaire Militaire, publicado em Paris em 1801 e disponível em
versão digitalizada no endereço http://books.google.com.br/books?id=cClEAAAAY
AAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=on
epage&q&f=false Acesso em 12 de fevereiro de 2013
112 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Eis a regra e a ordem que nós nos prescrevemos para fazer essas experiências
e talvez seja útil descrevê-las aqui para que se possa julgar a exatidão esperada.
No primeiro dia, havíamos colocado, em Mont-lehery, em Montmartre, no
Moinho de Fontenay e no Observatório, dois observadores, em cada um desses
lugares, com pêndulos e relógios com precisão de segundos, a fim de marcar o mo-
mento em que seria vista a luz do canhão, e contar o intervalo de tempo decorrido
entre essa luz e o som que deveria sucedê-la, pois para distâncias como estas de-
vemos desprezar o tempo da propagação da luz, tendo calculado que ela gastaria
aproximadamente dois segundos para vir da Lua à Terra.
Às 9 horas e 25 minutos, devíamos fazer do Observatório um disparo de uma
caixa de culatra de uma libra de pólvora para servir de sinal, que devia ser seguido
de dois tiros de canhão disparados em Montmartre: um às 9 horas e 30 minutos e
outro às 9 horas e 50 minutos.
Em seguida devíamos lançar outros dois disparos de canhão em Mont-lehery,
o primeiro às 10 horas e o outro às 10 horas e 20 minutos.
Cada um desses observadores contava separadamente as vibrações do pêndulo
que havia sido colocado num lugar de onde se via o fogo do canhão, à exceção de
Mont-lehery, onde fui obrigado a colocá-lo dentro da torre, onde eu fazia contar
as vibrações escutando-as do lugar de onde eu observava, que estava distante de 4
a 5 toises.
Desde a primeira observação, que foi realizada em 13 de Março, o procedi-
mento executado foi exatamente esse; o vento era norte6 e forte, os dois tiros de
canhão disparados de Montmartre foram escutados em Mont-lehery, o primeiro
1’ 22” ½ e o segundo 1’ 23” após a visualização da luz.
Do Observatório, foram ouvidos 16 segundos após o fogo. O disparo da caixa
de culatra feito do Observatório foi escutado em Fontenay 18” ¾ após a luz, e os
dois tiros de canhão disparados em Montmartre 32” ¼ após o fogo.
No que diz respeito ao canhão que foi disparado em seguida à Mont-lehery, o
fogo foi visto muito claramente, mas não foi possível escutar o barulho de nenhum
dos três outros lugares, por causa do vento que estava contrário à direção do som.
Obtivemos desta observação, por meio do som, as dimensões de um triângu-
lo com vértices no Observatório, em Montmartre e no Moinho de Fontenay-aux-
-Roses, e cujos lados estão na proporção de 16”, 18” ¼ e 32” ¼ muito próximo das
distâncias que nós havíamos determinado entre estes lugares por operações trigo-
nométricas, 3268 toises do Moinho de Fontenay ao Observatório, do Observatório

6 O vento que sopra de Sul para Norte é chamado vento Sul, já aquele que venta de Norte
para Sul é conhecido como vento Norte (CUNHA, 2003)
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
113
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

à Pirâmide de Montmartre, 2931 toises, e de Montmartre à Fontenay-aux-Roses,


5788 toises.
Como o Moinho de Fontenay-aux-Roses estava distante muitos graus da di-
reção de Montmartre a Mont-lehery, e como se desejava fazer as observações em
posições intermediárias, que fossem ao mesmo tempo na direção dos dois lugares
onde os canhões estavam colocados, a fim de avaliar se a soma do tempo que o som
demora para chegar a cada um desses lugares é igual ao tempo que ele [o som] leva
para percorrer de uma extremidade a outra, na manhã seguinte, nós mandamos
procurar um lugar que preenchesse o requisito; e baseado no relato feito de que
desde o Castelo de Lay, podia-se observar Montmartre, o Observatório e Mont-
-lehery, que este lugar estava aproximadamente sobre o meridiano de Paris, e mui-
to cômodo para observações ao abrigo das intempéries, dois observadores foram
posicionados lá, durante a noite, com um pêndulo e um relógio com precisão de
meio segundo.
Ao pôr do sol, o vento estava oeste-nordeste muito fraco, em uma direção
perpendicular aquela de Mont-lehery à Montmartre, ficando, em seguida, quase
completamente calmo, e veio uma chuva que durou quase toda a noite, o que nos
deixou temerosos não somente por não poder escutar o barulho do canhão de
Mont-lehery, mas até mesmo de não poder distinguir a luz.
Às 9h 25’, como no dia anterior, no Observatório, fizemos um disparo, que
devia servir de sinal, que fez um barulho muito forte em comparação com o do dia
anterior, e que repercutiu no ar por vários segundos, embora tenha sido carregado
com a mesma quantidade de pólvora. Esse disparo foi escutado em Montmartre,
17”, e em Lay, 20” depois, que foi visto o fogo. Em Mont-lehery, foi anotado 1’8”
½ entre a luz e o barulho que repercutiu em todo o vale, e ecoou no ar por alguns
segundos.
As 9h 30’, o primeiro tiro de canhão disparado em Montmartre foi escutado
no Observatório 16”; em Lay, 36”; e em Mont-lehery, 1’25” depois do fogo, 2” ¼ a
mais em comparação com o dia anterior em que o vento estava favorável à direção
do som.
O segundo tiro de canhão foi escutado no Observatório, 16” ½, e em Lay, 36”
após a luz. A grande multidão de pessoas alvoroçadas que se juntou às pressas em
Mont-lehery impediu de fazer uma observação exata.
Às 10h0’, o primeiro tiro de canhão disparado em Mont-lehery foi escutado
em Lay, 48” e no Observatório, 1’ 7” ½ depois da luz, mas nós não conseguimos
escutar o barulho em Montmartre, nem o segundo tiro de canhão que foi escutado
em Lay, 48” e no Observatório com um pouco menos de 1’ 8” depois da luz.
114 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

O fogo do canhão apareceu, não obstante a chuva que continuava sempre, com
uma intensidade extraordinária, bem mais forte que no dia anterior, fato que con-
sideramos proveniente da noite extremamente escura.
De acordo com essas observações, determina-se que de Mont-lehery até Lay o
intervalo de tempo entre o som e a luz foi de 48”, de Lay até o Observatório de 20”, e
do Observatório até Montmartre de 16” ½, com os eventuais erros compensando-
-se mutuamente. Considerando-se o conjunto dos tempos, teremos 1’24” ½, de
onde é preciso subtrair aproximadamente ½ segundo, porque esses quatro lugares
não estão exatamente na mesma direção, e teremos, então, o tempo de 1’24” que
o som gastou para percorrer toda essa distância, somente um segundo a menos
do que aquele observado diretamente de uma extremidade a outra, o que poderia
levar a conclusão que a velocidade do som diminui a medida que ele distancia-se
do lugar que o produziu, se pudéssemos assegurar a precisão de um segundo para
as quatro observações.
Essa observação é ainda notável ao considerarmos que escutamos, na mesma
noite, no Observatório e em Mont-lehery, reciprocamente, o barulho que foi pro-
duzido nesses dois lugares, o que ainda não havia sido executado, e que era, no
entanto, necessário para assegurar o valor exato da velocidade do som, pois a mé-
dia entre as duas observações deve dar a medida exata da velocidade do som, haja
vista que as mesmas causas que podem acelerá-la ou retardá-la agiram em sentidos
contrários nas duas direções diferentes, resultando 1’ 8” no espaço de 11.756 toises,
o que corresponde a 173 toises por segundo.
Dois dias depois, 16 de Março, o vento estava fraco, oeste-noroeste, numa di-
reção perpendicular àquela de Montmartre à Mont-lehery, e o céu estava sereno.
As 9h25’, fez-se um disparo do Observatório, que não fez tanto barulho quan-
to no dia anterior: ele foi escutado em Montmartre 16” ½; em Lay, 20”; e em Mont-
-lehery 1’ 8” ½ após a luz.
Os tiros de canhão que foram disparados na sequência de Montmartre foram
ouvidos, todos os dois, no Observatório, 16” ½; em Lay, 36” ½; e em Mont-lehery
1’24” ½, depois da luz.
Às 10 h, o primeiro tiro de canhão disparado de Mont-lehery foi escutado em
Lay 49”; e no Observatório, 1’ 8” após a luz.
O segundo tiro de canhão foi escutado em Lay, 48” ½, após o fogo, mas nós
não conseguimos escutá-lo nem no Observatório nem em Montmartre, fato que
consideramos proveniente de um murmúrio escutado nesse momento em Paris,
causado, principalmente, pelo vento que se refletia contra os edifícios dessa ci-
dade, o que foi confirmado pela observação anterior, durante a qual reinava uma
grande calma depois que o vento tivesse cessado.
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
115
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

Adicionando os resultados, como foi feito na observação de 14 de Março, o


tempo que o som levou para percorrer os espaços entre Montmartre, o Observató-
rio, Lay e Mont-lehery resulta na soma total de 1’ 25” ¼, da qual retirando um meio
segundo, porque esses lugares não estão precisamente na mesma direção, teremos
1’ 24” ¾ como o tempo que o som levou para percorrer esses espaços intermedi-
ários, somente um quarto de segundo a mais do que foi observado diretamente
entre Montmartre e Mont-lehery, em vez do valor obtido na observação preceden-
te, que foi um segundo menor; de onde se conclui que a propagação do som faz-se
em um tempo muito proximamente proporcional às diferentes distâncias que ele
percorre, que era uma das propriedades mais necessárias a ser esclarecida dessa
propagação.
Ao mesmo tempo, tivemos a oportunidade de confirmar a experiência da ve-
locidade do som, observada em uma mesma noite reciprocamente no Observatório
e em Mont-lehery, cujo valor obtido foi de 1’ 8” ¼ nesse intervalo, que é de 11.756
toises, com uma diferença de apenas um quarto de segundo em relação à observa-
ção precedente.
Dividindo 11.756 toises por esse número, teremos a velocidade do som de 172
toises e 1 pé e ½ por segundo7. Dividindo da mesma forma a distância de Mont-
-lehery a Montmartre, que é de 14.636 por 1’24” ½ , tempo que o som levou para
percorrer esse intervalo, teremos a velocidade do som em 1 segundo, de 173 toises,
com uma diferença de 4 pés daquela que resultou da observação feita entre Mont-
-lehery e o Observatório.
É de notar-se que o som, empregando, segundo as nossas observações, 1’25” ou
170 meio-segundos para percorrer de Montmartre a Mont-lehery, esta quantidade
é pouco diferente do número de toises que o som percorre em 1 segundo. Então,
meio-segundo de erro na observação produz somente uma toise de diferença na
medida da velocidade do som. Donde se conclui que, uma vez que todas as obser-
vações foram feitas em um tempo calmo, ou quando o vento estava numa direção
transversal, e não havendo diferença entre elas maior que meio-segundo, podemos
assegurar ter medido a velocidade do som com a precisão de uma toise.
Tomando, então, a média entre todas as observações que nós acabamos de re-
latar, nós teremos a velocidade do som de 173 toises ou 1.038 pés do Rei por segun-
do quando o tempo está calmo, ou quando o vento está numa direção transversal
em relação àquela do lugar onde o som é produzido, e de onde é escutado.
De acordo com as observações feitas na Inglaterra pelo Sr. Derham, a veloci-
dade do som foi determinada em 1.142 pés Ingleses por segundo, conforme o que

7 1 toise = 6 pés
116 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

havia sido determinado pelos Srs. Flamsteed e Halley, e que o Sr. Newton deduziu
em sua obra Princípios, na sua segunda edição, usando as equações que ele julgou
adequadas desde sua primeira edição, onde ele havia suposto um valor de 968 pés
por segundo.
Convertendo essa medida para a nossa, segundo a proporção entre o pé do
Rei e o de Londres, que o Sr. Picard havia suposto, como 144 a 135, mas que pelas
últimas medidas feitas com grande apuro, que nos foram comunicadas pela Socie-
dade Real de Londres, é mais precisamente de 864 a 811, teremos a velocidade do
som observada na Inglaterra de 1072 pés por segundo, que mesmo sendo a menor
de todas as medidas que haviam sido determinadas até o presente, é ainda 34 pés
maior que aquela que resultou das nossas observações, que têm não somente a
vantagem de terem sido feitas em distâncias maiores, mas também de terem sido
executadas reciprocamente de um lugar a outro no mesmo dia, o que ainda não
tinha sido experimentado até o momento.
Essa diferença de 34 pés entre nossas observações e aquelas da Inglaterra teria
produzido uma variação de aproximadamente 3 segundos sobre todo o intervalo
de Mont-lehery a Montmartre, o que não se pode atribuir a erros de observação,
porque em nossas observações jamais foram encontradas diferenças de mais de
meio segundo.
A respeito da velocidade do som em relação às diferentes direções do vento,
parece, pelas observações que acabamos de relatar, que ela é maior quando o vento
está na direção do lugar onde o som é produzido, que quando ela está numa dire-
ção transversal, ou quando o tempo está calmo, porque, na observação de 13 de
Março, o vento estando norte, o barulho do canhão de Montmartre foi escutado
2” antes que nas observações seguintes de 14 e 16 do mesmo mês, o que está de
acordo com as experiências do Sr. Derhan, e, considerando-se que as observações
feitas na França não haviam encontrado nenhuma diferença na velocidade do som,
qualquer que fosse a direção do vento, era ainda mais necessário verificar.
Para melhor esclarecer a questão, foi preciso esperar que o vento estivesse
numa direção oposta àquela do dia 13 de Março, o que nos fez retardar nossas
observações até 19 do mesmo mês, quando o vento virou para direção sul e nós
mandamos disparar o canhão de Mont-lehery.
Começamos pelo sinal ordinário, disparando uma caixa de culatra às 9h 25’
no Observatório, que foi escutada em Montmartre 16” depois de percebido o fogo,
mas em Lay e em Mont-lehery, apenas foi vista a luz.
Às 9h 30’ e às 9h 50’, disparamos o canhão em Montmartre, do qual vimos
o fogo, mas não escutamos o barulho em Mont-lehery, em Lay, e nem mesmo no
Observatório, embora a distância fosse de apenas 2.931 toises, por causa do vento
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
117
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

Sul, que era muito forte, e numa direção contrária aquela do lugar onde o som foi
produzido.
Com relação aos dois disparos de canhão realizados em Mont-lehery, eles fo-
ram escutados muito claramente nos três lugares, obtivemos em Lay, 46’ ½; no
Observatório, 1’ 4” ¾; e em Montmartre, 1’ 20” ¼ entre a luz e o barulho; nos
dias 14 e 15, com um tempo calmo e um vento transversal, havíamos obtido como
diferença entre a luz e o barulho do canhão disparado de Mont-lehery, 48’ ½, em
Lay; e 1’ 8” no Observatório; e escutamos, em Mont-lehery, o canhão de Montmar-
tre, 1’ 24” ½ depois da luz. Assim, é evidente por essa observação, onde se obteve
uma diferença de 4” na propagação do som sobre o intervalo entre Montmartre
e Mont-lehery, que as diferentes direções do vento mudam consideravelmente a
velocidade do som.
Às 10h o termômetro estava 6° acima do ponto de congelação da água, e a
altura do barômetro era de 27 polegadas.
Continuamos as mesmas experiências no dia seguinte para um vento menos
forte, mas na mesma direção que no dia anterior.
O disparo do Observatório foi escutado em Montmartre 16’ ½ depois da luz, e
dessa posição [Montmartre] contamos entre o barulho e o fogo dos canhões dispa-
rados em Mont-lehery, 1’ 21”, na primeira vez, e 1’ 21” ½ , na segunda vez.
No Observatório, os dois tiros de canhão disparados, em Montmartre, foram
escutados 17” ½ depois da luz e anotamos 1’ 6” entre o fogo e os tiros de canhão
disparados de Mont-lehery, cujo barulho era mais forte que aquele que vinha de
Montmartre, que está a uma distância 4 vezes menor.
Em Lay, não escutamos nem a caixa de culatra nem os canhões de nenhum
desses lugares, por causa do barulho causado por um vento muito impetuoso, que,
no Observatório, apresentava-se bastante fraco, o que demonstra que, para asse-
gurar-se da exatidão da medida do som, é necessário escolher um tempo calmo e
que ele esteja presente em toda a extensão do percurso por onde o som transmite-
-se, como nós conseguimos obter na observação do dia 14 de março, ou, o que dá
no mesmo, escutar reciprocamente o som produzido nas duas extremidades, nas
mesmas condições climáticas, e utilizar a média das duas determinações, pois,
dessa forma, a mesma causa que acelera em um sentido deve retardar no sentido
contrário.
Vemos por essa última experiência que o som propagava-se com uma veloci-
dade maior que quando o ar estava calmo, mas que ele tinha ficado mais lento que
no dia precedente, como seria de se esperar, porque o vento, embora na mesma di-
reção, estava menos forte na maior parte dos lugares onde nós havíamos feito essa
observação. Vemos também uma diferença entre a velocidade recíproca do som de
118 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

um segundo completo na distância do Observatório a Montmartre, o vento que


estava favorável num dos sentidos, achando-se contrário no outro.
Esta experiência, combinada com todas as anteriores, é uma evidência de que
as diferentes direções de vento contribuem para acelerar ou retardar a velocida-
de do som, o que podemos explicar facilmente, seja porque a propagação do som
faça-se pela elasticidade do ar, ou pela comunicação de uma matéria própria a sua
transmissão, nesse caso, o ar agindo como o veículo da propagação.
Por exemplo, se supusermos uma mola que enquanto se distende é puxada por
uma força seguindo a mesma direção, é certo que, após ter sido distendida, a ex-
tremidade dessa mola encontrar-se-á mais longe do ponto que ela ocupava quando
estava comprimida, de toda a quantidade de extensão dessa mola mais aquela do
movimento que lhe foi imposto.
Da mesma forma, se o ar for apenas o veículo da matéria que é destinada a
transmitir o som, que podemos considerar como sendo um corpo ou uma bola
que movimentamos num navio que segue o curso do rio, e que entra em choque
sucessivamente e na mesma direção com várias outras bolas, a última dessas bolas
encontrar-se-á a uma distância adicional do ponto de partida do navio, que corres-
ponde à distância que o navio avançou, e que não ocorreria se o mesmo estivesse
em repouso, dado que o movimento imposto a bola segue a mesma direção do cur-
so d’água; e, ao contrário, mais próxima essa mesma quantidade, quando a direção
do movimento da bola for no sentido oposto.
Todas as observações que tínhamos feito até então foram executadas durante a
noite, que é o momento mais apropriado a esses tipos de experiências, não somente
porque se percebe distintamente a luz do canhão ou de outras armas de fogo, mas
porque se escuta mais facilmente o barulho; e havia a expectativa de que a veloci-
dade do som seria a mesma que durante o dia. Entretanto, para não deixar nada a
desejar, em 21 de março, realizamos um disparo com o canhão de Mont-lehery às
6h da tarde, um pouco antes do pôr do sol, o vento estando muito fraco na direção
norte; havia chovido durante quase todo o dia, e o céu estava coberto, de maneira
que, do Observatório, não se podia distinguir a torre de Mont-lehery, em direção
da qual apontamos uma luneta, porque se conhecia a sua posição em relação a
outros pontos que existem nas imediações de Paris.
Às 6h e 0’, vimos aparecer na luneta a luz do canhão disparado de Mont-lehery,
com a mesma grandeza de Júpiter visto por esta luneta, e escutamos o barulho 1’ 8’’
depois do clarão. Esta luz não pode ser percebida a olho nu, mas às 6h30’, o tempo
estando calmo, percebeu-se, ainda que fracamente, sem o uso da luneta, o clarão
do segundo tiro de canhão, e foi marcado 1’ 8’’ e um pouco mais entre o barulho e
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
119
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

a luz, igual ao registro que havia sido determinado na observação de 14 de março,


feita em condições atmosféricas semelhantes.
Nós havíamos percebido, por nossas experiências, que existem lugares bem
mais apropriados que outros para escutar o som, ainda que a uma mesma distân-
cia, o que parecia ser proveniente da topologia do terreno por onde o som pro-
paga-se, e era necessário assegurar se essa topologia não podia contribuir com a
aceleração ou o retardamento da velocidade. No percurso de Montmartre a Mont-
-lehery existe toda a cidade de Paris para atravessar, com o rio Sena e um grande
número de pequenas colinas, ao passo que, de Montmartre a Dammartin existe
apenas uma grande planície, sem outras alturas consideráveis que não sejam as
construções que estão nas duas extremidades; o que me levou a passar alguns dias
fazendo observações sobre esse percurso, ainda mais que a distância até Montmar-
tre, que é de 16.079 toises, excede aquelas que havíamos escolhido até então.
Não mudamos quase nada em relação ao que havia sido feito antes. A boca
do canhão de Montmartre, que antes havia sido direcionada a Mont-lehery, foi
apontada na direção de Dammartin: uma caixa de culatra foi disparada em Mont-
martre para servir de sinal e, ao invés dos dois tiros de canhão que havíamos dis-
parado de Montmartre para Mont-lehery, e vice-versa, foram feitos três para cada
um desses lugares [Montmartre e Dammartin]. Não nos faltava munição, uma vez
que o Ministro e Secretário de Estado da Guerra, Sr. d’Angervilliers, desejando
contribuir para o sucesso de nossas experiências, havia dado as ordens necessárias
para que nos fosse fornecida toda a pólvora requerida.
Em 24 de março, o vento estava norte, relativamente forte, aproximadamente
com a mesma força que no dia 19, mas no sentido contrário, o que nos fez imaginar
que nós não escutaríamos, no Observatório, o canhão de Mont-lehery, entretanto,
escutamos dois tiros muito distintamente, o primeiro a 1’ 10’’ ½, e o segundo 1’ 11’’
após a luz. Esta observação é ainda mais surpreendente, visto que o vento estava
diretamente contrário ao lugar de onde vinha o som, e da mesma intensidade que
aquele do dia 19 de março, que nos havia impedido de escutar do Observatório o
canhão disparado em Montmartre, ainda que a distância fosse apenas um quarto
daquela até Mont-lehery; mas o que foi ainda mais impressionante é que, na mes-
ma noite, o canhão disparado de Montmartre não foi escutado em Mont-lehery,
mesmo que o vento estivesse precisamente nesta direção. Uma observação seme-
lhante havia sido feita no dia 20 de março em Lay, o que nos fez avaliar que isto era
proveniente do barulho causado pelo vento que, ainda que favorável, impedia de
escutar o barulho do canhão.
Comparando essa observação com aquela do dia 19 de março, quando medi-
mos 1’ e próximo de 5’’ entre o barulho e a luz para um vento no sentido contrário,
120 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

consideramos que a velocidade do som foi retardada pela ação do vento em 6’’, que
é aproximadamente um doze avos da velocidade total.
Tomando uma média entre essas diferentes velocidades, teremos a velocidade
do som, no percurso entre o Observatório e Mont-lehery, de 1’7’’ ¾, com uma dife-
rença de um quarto de segundo daquela que foi determinada com um tempo bom.
Em relação a Dammartin, durante os quatros dias que lá permaneci para es-
cutar os disparos dos canhões de Montmartre e de Mont-lehery, o vento que esta-
va quase sempre norte, desviando para noroeste e, por consequência, numa dire-
ção pouco favorável, apenas me permitiu escutar aquele tiro que foi disparado de
Montmartre no dia 25 de março, o vento estando na direção norte, desviando em
direção a leste, mais fraco que no dia anterior, mas numa direção quase contrária
àquela de Dammartin a Montmartre, e diferente daquela do Observatório, onde
ele estava na direção noroeste.
Um turbilhão de vento impediu de escutar o barulho do primeiro tiro de ca-
nhão, mas os dois outros foram escutados claramente, o primeiro a 1’ 34’’, e o
segundo a 1’ 34’’ e um pouco mais depois da luz.
A Mont-lehery, os mesmos tiros de canhão foram escutados 1’ 23’’ depois da
luz; no mesmo intervalo de tempo, escutou-se o barulho do disparo em Montmar-
tre, ainda que ele tenha sido carregado com apenas meia libra de pólvora.
Segundo essas observações, a velocidade do som no percurso entre a Pirâmide
de Montmartre e o sino de Dammartin, que é de 16.079 toises, seria somente de 170
toises por segundo, ao passo que ela foi, nas mesmas condições climáticas, de 176
toises e ½ no percurso entre Mont-lehery e Montmartre, diferença explicada pela
direção do vento, que estava mais favorável num sentido que no outro.
Tomando a média das duas medições, teremos a velocidade média da velocida-
de do som de 173 toises e ¼, aproximadamente a mesma que havíamos encontrado
em um tempo calmo.
Nessas observações, tivemos o cuidado de marcar a altura do termômetro e
do barômetro; a do termômetro esteve sempre entre 4 e 6 graus acima do ponto
de congelamento. Em relação ao barômetro, a sua maior variação foi observada de
8 linhas8 e ¾, o mercúrio estando, em 16 de março, a uma altura de 27 polegadas
e 11 linhas, e no dia 21 de mesmo mês, a 27 polegadas 2 linhas e ¼; e, entretanto,
nas duas observações feitas, a primeira no momento em que o vento estava numa
direção transversal, e a segunda em um tempo calmo, a velocidade do som encon-
trada foi a mesma.

8 Uma linha é igual a uma polegada dividida por 12, sendo que a polegada francesa media
2,707 cm, ligeiramente maior que a inglesa, que era de 2,52 cm.
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
121
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

De todas essas observações, conclui-se:


1. Que a velocidade do som num tempo calmo é de 173 toises por segun-
do, e que ela é aproximadamente a mesma quando o vento está numa
direção perpendicular àquela que liga o lugar em que o som é produzi-
do e o lugar em que o som é escutado.
2. Que o som mais ou menos forte transmite-se com o mesmo valor de
velocidade, uma vez que foi escutado em Mont-lehery o barulho de
uma caixa de culatra carregada de apenas meia libra de pólvora, dis-
parada de Montmartre, no mesmo tempo após a luz dos disparos de
canhão que foram feitos sucessivamente e cuja carga era de aproxima-
damente de seis libras.
3. Que a velocidade do som é a mesma num tempo calmo e num tempo
chuvoso.
4. Que ela é a mesma de dia e de noite.
5. Que a velocidade do som é igual em pequenas e em grandes distân-
cias sem desacelerar-se, pois que fazendo a soma do número de se-
gundos que o som utilizou para fazer o percurso entre Montmartre e
o Observatório, entre o Observatório e Lay, entre Lay e Mont-lehery;
e deduzindo o necessário em relação aos desvios, sua soma é mais ou
menos igual ao tempo que ele utilizou para o percurso direto entre
Montmartre e Mont-lehery.
6. Que a velocidade do som possui o mesmo valor, seja o canhão dirigido
ao lugar de onde se escuta, seja no sentido contrário, pois que, o viran-
do em direção ao norte ou ao sul, foi escutado tanto no Observatório
como em Mont-lehery no mesmo intervalo de tempo após a luz. O
mesmo acontecendo em relação às diferentes inclinações, pois o baru-
lho das caixas, cuja direção é perpendicular ao horizonte, transmitiu-
-se no mesmo intervalo de tempo que o dos canhões.
7. Que a diferença na direção do vento contribui para acelerar ou re-
tardar a velocidade do som de uma quantidade que nós julgamos ser
aproximadamente a mesma do vento que havia em dado momento;
donde se conclui que a velocidade do som é de 173 toises, mais ou me-
nos a velocidade do vento, dependendo da sua direção favorável ou
contrária: dessa forma, conhecendo a velocidade e a direção do vento,
podemos calcular a do som, qualquer que seja a condição meteoroló-
gica, e reciprocamente.
8. Que as diferentes topologias do terreno por onde o som transmite-se
não contribuem para aumentar ou diminuir sensivelmente sua velo-
122 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

cidade; donde se conclui que ele comunica-se em linha reta sem fazer
desvios, como alguns haviam pensado.
9. Que a diferença de densidade do ar não produz nenhuma diferença
sensível na velocidade do som, pois, em 21 de março, o barômetro es-
tando na altura de 27 polegadas 2 linhas e ¼, com um tempo calmo, o
intervalo entre a luz e o barulho do canhão disparado de Mont-lehery
foi registrado no Observatório com o mesmo valor que em 16 do mes-
mo mês, quando o barômetro estava na altura de 27 polegadas e 11
linhas, com um vento transversal, que, como nós já observamos, não
aumenta a velocidade do som.

Eis aí, aproximadamente, a que se reduzem as experiências que podíamos fa-


zer sobre a propagação do som, que parecem não deixar nada a desejar, se não
talvez que sejam executadas em diferentes estações e sob diferentes climas, o que
nós nos propomos a fazer durante a viagem que faremos por ordem do Rei na parte
meridional da França.
Uma vez a velocidade do som estando conhecida, pode-se entendê-la como
uma medida temporária do intervalo entre dois lugares distantes, cuja distância
será conhecida medindo o tempo entre a luz e o barulho. Nós começamos nossas
experiências pelos três vértices de um triângulo, cujas dimensões nós conhecía-
mos e que se mostraram proporcionais aos intervalos observados entre a luz e o
som: nós encontramos pelo mesmo método as distâncias de Lay ao Observatório,
a Montmartre e a Mont-lehery, que nós determinamos, após, por operações tri-
gonométricas, e que nós encontramos proximamente coerentes àquelas que nós
havíamos encontrado pelo som.
No entanto, nós não pretendemos que, por esse método, possam-se conhecer
as distâncias entre diversos lugares com a mesma precisão que por operações tri-
gonométricas feitas com instrumentos de precisão, e registradas em documentos
atuais, pois meio segundo de tempo, que é toda a precisão a qual nós podemos
aspirar, é a medida de 86 toises, mas nós acreditamos poder utilizar o método para
a descrição de países que não necessitem de uma exatidão maior.
Uma montanha elevada, como, por exemplo, Montmartre, donde são vistas
muitas construções em volta, pode servir para a determinação de todos os lugares
de onde ela pode ser avistada; será suficiente observar desta montanha, numa mes-
ma estação do ano, a direção de todos esses objetos, e disparar, em seguida, de seu
cume, alguma caixa de culatra ou canhão. A distância de cada um desses lugares
será sabida contando, desde a luz até o som, as vibrações de um pêndulo, ou de
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
123
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

uma bola suspensa por um fio de 3 pés 8 linhas e ½ de comprimento desde o ponto
de suspensão deste fio até o centro da bola.
Esse método, de maneira muito útil, também poderá ser empregado para de-
terminar a largura de um rio próximo à sua foz, de um lago, de um pântano, e
mesmo a distância entre ilhas e entre elas e a terra firme.
Mesmo com o tempo fechado, fazendo disparos da borda do mar, será possível
salvaguardar navios do naufrágio, que vendo o fogo e escutando o barulho, pode-
rão reconhecer a que distância estão do lugar que querem evitar ou abordar.
Não é nem mesmo necessário que os dois lugares sejam reciprocamente visí-
veis para determinar a distância entre eles, será suficiente fazer um disparo de um
desses lugares, seja de canhão ou de qualquer outra arma de fogo, e alertar que,
no momento em que ele for escutado ou alguns segundos após ele ser percebido,
dispara-se um outro, que será escutado reciprocamente no primeiro lugar de onde
foi disparado, o intervalo entre a luz do primeiro disparo, e o barulho do segundo
é o dobro do tempo que o som empregou para ir ou voltar, logo a metade, por con-
sequência, medirá a distância entre estes dois lugares.
Um observador que se encontrasse num terceiro lugar, do qual veria os dois
primeiros, poderia, mesmo sem escutar os barulhos, estimar suas distâncias con-
tando o intervalo da luz do primeiro disparo e do segundo, onde seria necessário
apenas acender a pólvora ao ar livre, o que demonstra que, em certos casos, pode-
-se determinar as distâncias apenas pelo barulho sem ajuda da luz, e que em outros
temos necessidade apenas da luz sem escutar o barulho.
Nesse momento, não será fora de propósito relatar algumas experiências que
nós realizamos sobre a luz da pólvora, assim que ela é acesa, seja ao ar livre, seja
que a tenhamos encerrado em um canhão ou em uma caixa de culatra.
Esta luz jamais pareceu diminuir na proporção das distâncias e, frequente-
mente, o fogo do canhão disparado de Mont-lehery foi visto no Observatório com
a mesma vivacidade que o de Montmartre, ainda que a distância seja quatro vezes
maior.
Eu vi muito claramente de Dammartin a luz do canhão disparado em Mont-
-lehery a uma distância de 28.500 toises, quase tão grande quanto a de Montmar-
tre, que dista apenas 16.000.
Uma libra de pólvora acendida em Mont-lehery ao ar livre foi também vista
no Observatório muito claramente, e nenhuma diferença sensível foi percebida
quando a quantidade de pólvora foi dobrada.
Os tempos de chuva, durante os quais de dia não podíamos perceber os objetos
distantes, não impediam de distinguir a luz da pólvora e do canhão que era dispa-
124 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

rado nestes lugares, e há dias em que ela foi vista ainda com mais vivacidade que
quando o tempo estava calmo.
Esta observação pode ser de grande utilidade para a segurança de navios
durante a noite, porque o mesmo não ocorre com as lanternas comuns que são
acessas no litoral, elas não são percebidas facilmente em tempo de chuva a uma
distância medíocre, e há muitos exemplos de navios que se perderam por não ter
conseguido percebê-las; a luz produzida por apenas uma libra de pólvora serviria
para fazê-los perceber, e um tiro de canhão seria ainda de maior utilidade para
saber a que distância estão da costa.
Pode-se utilizar o método, também, para determinar a diferença em longitude
entre dois lugares que estão aproximadamente sobre o mesmo paralelo; mas nós
não nos estenderemos mais aqui sobre todas as utilizações que se pode fazer das
experiências que nós acabamos de relatar sobre a luz e o som. O que nós dissemos
é suficiente para provar que não é um destes conhecimentos estéreis e de simples
especulação, mas do qual se pode retirar diversas vantagens, principalmente para
o progresso da geografia e da segurança da navegação.

3. Considerações Finais

A tradução do relato do trabalho de Cassini de Thury foi motivada, princi-


palmente, porque os aspectos históricos sobre a propagação do som, em geral, são
apresentados nos textos didáticos para o ensino médio de forma episódica e com
pouco rigor histórico (ERROBIDART e GOBARA, 2011). Nesse sentido, o texto
traduzido descreve em detalhes como foram realizadas as experiências para deter-
minar a velocidade do som, apresenta as medidas em unidades da época e aponta
a importância do método utilizado para a determinação de grandes distâncias, e a
contribuição desse estudo para o progresso de outras áreas conforme explicitado
pelo autor. Para o contexto de aproximação da História da Ciência e o Ensino de
Ciências, sugerimos o uso do texto traduzido como um recurso didático na forma
de um organizador prévio, para a introdução do conteúdo sobre som, ou para a dis-
cussão do método utilizado pela ciência, ou para a discussão sobre a influência do
meio para a determinação do som e ou para realizar um estudo comparado entre o
método usado para determinar a velocidade do som com os procedimentos atuais.
CAPÍTULO 5 - Textos originais traduzidos como recurso para a contextualização histórica
125
no ensino de ciências: o caso da velocidade de propagação do som

Nota 1- Localidades usadas para realizar as medidas para determinar a velocidade do som, de
acordo com o mapa da época. Fonte: http://vieux-marcoussis.pagesperso-orange.fr/Chroni-
ques/scientifique_clip_image002.jpg

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CAPÍTULO 6

A descoberta do fenômeno da indução de


correntes elétricas em metais: uma tradução
comentada de dois comunicados feitos por
François Arago à Academia de Ciências de Paris
Moacir Pereira de Souza Filho1
João José Caluzi2
Sérgio Luiz Bragatto Boss3

Introdução

O século XIX foi um período marcado por diversos trabalhos científicos rela-
cionados ao eletromagnetismo. Logo nas primeiras décadas, o cientista dinamar-
quês Hans Christian Ørsted (1777-1851) realizou um experimento mostrando a
interação entre a corrente elétrica, que percorre um fio condutor, e a agulha iman-
tada de uma bússola colocada nas suas proximidades (ØRSTED, 1820)4 .
O cientista francês Dominique François Jean Arago (1786-1853), após assistir,
em Genebra, a realização do experimento feito por Ørsted, comunica à Academia
de Ciências de Paris a “grande descoberta”5 e repete esse experimento, em 11 de

1 Professor Assistente Doutor, Departamento de Física, Química e Biologia, Faculdade de


Ciências e Tecnologia e do Mestrado Profissional em Ensino de Física, UNESP, Univer-
sidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, São Paulo, Brasil. Também professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência. E-mail: moacir@fct.unesp.br.
2 Professor Livre-Docente em História da Ciência, Departamento de Física, Faculdade de Ciên-
cias, UNESP, Universidade Estadual Paulista, Bauru, São Paulo, Brasil. Também professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência. E-mail: caluzi@fc.unesp.br.
3 Professor Adjunto, Centro de Formação de Professores, UFRB, Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, Amargosa, Bahia, Brasil. E-mail: serginho@fc.unesp.br.
4 O experimento de Ørsted é considerado o marco inicial do eletromagnetismo.
5 A palavra descoberta possui uma série de implicações epistemológicas que não serão
discutidas neste trabalho, pois foge ao seu escopo. Nele, utilizaremos o seguinte signi-
ficado: “produção de uma nova síntese de ideias e, especialmente, combinação de novos
meios com vista a um fim” (LALANDE, 1999, p. 597).
130 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

setembro de 1820, perante a uma platéia familiarizada com os fenômenos elétricos


e magnéticos.
Houve uma “efervescência” das ideias na tentativa de explicar o fenômeno, e
os mais renomados cientistas trabalharam teórica e experimentalmente sobre o
tema. Por exemplo, o físico, químico e matemático francês André-Marie Ampère
(1775-1836), visando defender o seu ponto de vista, considerou que a interação
era puramente eletrodinâmica, ou, em outras palavras, que a estrutura interna de
um ímã era composta por correntes elétricas moleculares6 e, para ele, a interação
ocorria entre a corrente elétrica do fio e as correntes microscópicas existentes no
interior do ímã, em planos perpendiculares ao seu eixo (AMPÈRE, 1820, p. 75)7.
Para isso, Ampère enrolou dois fios condutores no formato de espiras planas
e mostrou que realmente ocorre a interação entre ambas, mesmo sem a presença
de um ímã. Ampère mostrou ainda que dois fios condutores paralelos, por onde
circulam correntes elétricas, se atraem ou se repelem como fazem os ímãs comuns,
e a atração ou repulsão depende da intensidade e do sentido da corrente que circula
pelas espiras8 (Ibid, p. 69)9. Contrários a essa ideia, os cientistas Jean Baptiste Biot
(1744-1862) e Felix Savart (1971-1841) defendiam a interação puramente magnética
e acreditavam que a passagem da corrente pelo fio “criava” espécies de “moléculas”
magnéticas que interagia com os pólos magnéticos da agulha10 (BIOT, SAVART;

6 Segundo Ampère, “os fenômenos magnéticos são produzidos unicamente pela eletrici-
dade, e de que não há nenhuma outra diferença entre dois pólos de um ímã, a não ser a
sua posição em relação às correntes que compõem o ímã [...]” (AMPÈRE, 1820, p. 76).
7 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: CHAIB, J. P. M. C.;
ASSIS, A. K. T. Sobre os efeitos das correntes elétricas – Tradução comentada da primei-
ra obra de Ampère sobre eletrodinâmica, Revista da SBHC, v. 5, n. 1, p. 85-102, 2007.
8 “Descobri diferenças mais notáveis ainda dispondo, em direções paralelas, duas partes
retilíneas de dois fios condutores que se ligam à extremidade de duas pilhas voltaicas.
Uma parte era fixa, e a outra, suspensa sobre as pontas e tornada altamente móvel por
um contrapeso, que podia se aproximar ou se afastar [da primeira parte] conservando o
seu paralelismo em relação à primeira parte. Observei, então que, passando ao mesmo
tempo uma corrente elétrica em cada uma destas partes, elas se atraíam mutuamente
quando as duas correntes estavam no mesmo sentido e que se repeliam quando fluíam
em direções opostas” (AMPÈRE, 1820, p. 69).
9 Uma montagem didática deste experimento pode ser obtida em: SOUZA FILHO, M. P.;
CHAIB, J. P. M. C.; CALUZI, J. J.; ASSIS A. K. T. Demonstração didática da interação entre
correntes elétricas, Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 4, n. 29, p. 605-612, 2007.
10 Os Srs. Biot e Savart foram conduzidos ao seguinte resultado que exprime rigorosamen-
te a ação experimentada por uma molécula de magnetismo austral ou boreal colocada a
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 131
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

1820)11. Portanto, eram criados modelos explicativos consistentes para tentar des-
vendar a relação entre esses dois ramos da Física, que, até então, eram considera-
dos distintos.
Em 1820, François Arago publicou nos Anais de Química e Física um trabalho
intitulado “Experiências relativas à imantação do ferro e do aço pela ação da cor-
rente voltaica”, onde ele mostra que um fio enrolado no formato de hélice no qual
passa uma corrente elétrica se comporta semelhantemente a uma barra de ímã co-
mum, atraindo materiais ferromagnéticos. Ele observou que, se fosse introduzido
um núcleo no interior da espira ou solenóide, o efeito se intensificava. O tipo de
polos criados pelas espiras dependia do sentido em que elas eram enroladas e da
posição dos polos da bateria elétrica conectados aos terminais das espiras, ou seja,
do sentido no qual a corrente circulava pelo fio12 (ARAGO, 1820)13.
Na tentativa de explicar o que ocorria nas adjacências dos corpos interagentes,
o cientista inglês Michael Faraday (1791-1867), que era um excelente físico e quími-
co experimental, trouxe diversas contribuições para o eletromagnetismo. Faraday
foi adepto da concepção da existência do chamado “conflito elétrico” proposto por
Ørsted e “visualizou”, no entorno dos corpos, a presença de linhas físicas de for-
ça, o que hoje conhecemos e denominamos por “campo magnético” (FARADAY,
1935)14 . Além disso, o trabalho de Arago que trata da indução de correntes elétricas

uma distância qualquer de um fio cilíndrico muito fino e indefinido, tornado magnético
pela corrente voltaica (BIOT, SAVART; 1820).
11 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: ASSIS, A. K. T.;
CHAIB, J. P. M. C., Nota sobre o Magnetismo da Pilha de Volta – Tradução Comentada
do Primeiro Artigo de Biot e Savart sobre o Eletromagnetismo. Cadernos de História e
Filosofia da Ciência, v. 16, n. 2, p. 303-306, 2006.
12 O fio enrolado em hélice, após ser ligado aos polos de uma bateria voltaica, apresentava
polaridades e produzia os efeitos atrativos e repulsivos. Esta forma de utilizar a corrente
elétrica e utilizar um cilindro de aço como ímã ficou conhecida como solenóide ou ele-
troímã e está presente em uma infinidade de equipamentos modernos (SOUZA FILHO,
2009, p. 86-7).
13 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: SOUZA FILHO, M. P.;
CALUZI, J. J. Sobre as experiências relativas à imantação do ferro e do aço pela ação da
corrente voltaica: uma tradução comentada do atigo escrito por François Arago. Revista
Brasileira de Ensino de Física, v. 31, n. 1, 1603, 2009.
14 Faraday idealizou linhas físicas de força fechadas existentes no interior e no exterior dos
ímãs, que, segundo ele, são “aquelas representadas ao olhar, pelo uso de filas de limalhas
de ferro pulverizadas nas proximidades de um ímã” (FARADAY, 1935, p. 507).
132 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

em metais, e que vamos tratar neste artigo, trouxe a Faraday a compreensão do


princípio da indução eletromagnética (FARADAY, 1981)15.
Para ele, se um ímã e uma espira ou enrolamento de fio (que possui um galva-
nômetro conectado às suas extremidades) estiverem parados, nada acontece. No
entanto, se o ímã se mover, aparece no galvanômetro uma corrente elétrica. Mas
o movimento é relativo, e se o ímã estiver parado e a espira se mover nas proxi-
midades do ímã, também aparece uma corrente induzida. Se substituirmos o ímã
por uma outra espira, em série com um interruptor e uma bateria, o fenômeno da
indução ocorre somente no instante em que se liga ou desliga a chave do circuito,
pois a variação da corrente elétrica no circuito primário é responsável por induzir
uma corrente elétrica no circuito secundário16 (FARADAY, 1935).
Esse breve “recorte” histórico nos propicia um entendimento do contexto da
época para que possamos enfatizar e compreender o experimento denominado e
conhecido no meio científico como “disco de Arago”. Trata-se de um disco de me-
tal que se move (ou gira) nas proximidades de uma barra de ímã comum, fazendo-
-a entrar em movimento.
Um metal pode ser constituído de um material ferromagnético, como o aço e
o próprio ferro e, neste caso, podemos verificar que existe a atração entre ambos.
No entanto, existem metais, como o alumínio ou cobre, que não são atraídos ou in-
fluenciados por um ímã. O fenômeno que iremos tratar neste artigo, e que foi ob-
servado por Arago, diz respeito à interação entre um ímã e um metal, quando há o
movimento relativo entre ambos, pois nada acontece se ambos estiverem parados,
ou seja, o metal pode girar e o ímã permanecer imóvel, ou o ímã pode se mover
enquanto o metal se encontra estático. Com o passar do tempo, ambos passam a se
mover, fenômeno que não aconteceria (ou a ação seria imperceptível) se, ao invés
do metal, tivéssemos materiais como o plástico ou a madeira, por exemplo.
Arago descreve o fenômeno observado sem explicar verdadeiramente sua cau-
sa e, baseado na literatura consultada, o leitor terá no final deste artigo uma ideia
17

geral do que ocorre de fato no metal.

15 Uma tradução comentada deste trabalho pode ser consultada em: FARADAY, M. Pes-
quisas experimentais em Eletricidade. Tradução: A.K.T. Assis e L.F. Harana. Cad. Bras.
Ens. Fís., v. 28, n. 1 p. 152-204, 2011.
16 Como veremos aqui, esses fenômenos descobertos mais tarde por Faraday foram forte-
mente influenciados pelo trabalho de Arago.
17 “Arago observou que certas substâncias metálicas produzem um efeito de amorteci-
mento sobre a agulha imantada. Embora o significado desta observação não tenha ocor-
rido a Arago naquele momento, o relato dessa observação o conduziu, posteriormente,
a receber a medalha de ouro “Copley Gold Medal” da Royal Society em 1825, por essa
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 133
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

1. Uma breve descrição da vida acadêmica de Fran-


çois Arago

Dominique François Jean Arago, físico francês, nasceu em 26 de fevereiro de


1786 em Estagel, um pequeno vilarejo próximo a Perpignan, e morreu em Paris,
em 2 de outubro de 1853.

Figura 1 – François Arago (1786-1853)

Em 1803, ele ingressou na renomada Escola Politécnica com o objetivo de tor-


nar-se engenheiro, mas foi no ramo das ciências que Arago deixaria seu nome
marcado na história. Arago iniciou suas pesquisas em Astronomia no Observa-
tório de Paris. Em 1806, foi nomeado secretário do Bureau de Longitudes e, junto
com Biot, foi para Espanha numa expedição geodésica, mas, devido à guerra entre
França e Espanha, acabou sendo prisioneiro naquele país. Em 1809, Arago suce-
deu a Jérome Lalande (1732-1807) na Academia de Ciências de Paris. Nesta época
também foi nomeado astrônomo do Observatório de Paris e assumiu a cadeira de
geometria analítica da Escola Politécnica.
Em 1825, recebeu uma medalha de honra da Royal Society de Londres pelo
trabalho que estamos tratando neste artigo. Com a morte de Pierre Simon Laplace
(1749-1827), Arago foi eleito secretário permanente da Academia de Ciências. Mais
tarde, viria a se tornar o diretor do Observatório de Paris.

descoberta de que uma agulha magnética poderia ser afetada pela rotação de uma subs-
tância metálica não magnética - “disco de Arago”. Em 1831, Faraday explicou o efeito em
termos de indução” (HOWARD-DUFF, 1986, p. 28).
134 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Os trabalhos de Arago estão relacionados principalmente à Astronomia, à


Óptica (ver HOWARD-DUFF, 1986) e ao Eletromagnetismo (ver SOUZA FILHO;
CALUZI, 2009). Junto com Augustin-Jean Fresnel (1788-1827), realizou vários tra-
balhos relacionados à natureza da luz, que contribuíram para evidenciar o seu
caráter ondulatório. Suas principais contribuições ao eletromagnetismo foram ter
mostrado que “uma espira cilíndrica feita de fio de cobre, por meio da qual flui
uma corrente elétrica, atrai limalhas de ferro, assim como faz um ímã comum,
mas que as limalhas se desprendem assim que a corrente cessa” (SOUZA FILHO;
CALUZI, 2009), e ter evidenciado o princípio da indução entre um disco e uma
agulha imantada, “efeitos que foram explicados por Faraday, como sendo devidos
ao fenômeno da indução de correntes elétricas” (SOUZA FILHO, 2009).

2. O experimento denominado “disco de Arago”

A primeira observação feita por Arago sobre o fenômeno que iremos tratar
parece ter sido em um trabalho relacionado à determinação do Meridiano de Gre-
enwich18 . Uma agulha magnética oscilando próximo a um metal apresenta uma
diminuição no seu arco de vibração e para mais rapidamente do que se ela estives-
se próxima de outro tipo de material qualquer19. Arago percebeu que o movimento
é relativo, pois, se ao invés da agulha oscilar nós tivermos uma placa se moven-
do, como, por exemplo, um disco de cobre girando, ele é capaz de tirar a agulha
magnética do repouso e fazê-la entrar em oscilação. Vamos deixar que o próprio
Arago, por meio dos dois comunicados que ele apresentou à Academia de Ciências
sobre o assunto, e os referenciais utilizados neste artigo, nos conte os detalhes do
fenômeno observado.

18 “Enquanto estava envolvido com o meu amigo Alexander von Humboldt, em 1822, sobre
a inclinação do Meridiano de Greenwich, em deteminar a intensidade da força magné-
tica, eu percebi que a agulha horizontal, depois de posta em movimento, pára muito
mais rapidamente quando colocada em sua caixa, do que quando era suspensa a uma
distância de corpos estranhos” (ARAGO, 1855, p. 290).
19 Veremos que existe uma controvérsia a esse respeito. Porém, Arago afirma que isso
ocorre na presença de qualquer substância, seja ela sólida ou líquida.
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 135
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

3. Tradução do primeiro comunicado

M. Arago20 comunica as experiências relativas às oscilações das agulhas


imantadas21, 22
M. Arago comunica que ele constatou que os anéis de cobre vermelho os quais
circundam comumente as agulhas imantadas nas bússolas de declinação exercem
sobre elas uma ação bastante singular, e que tem por efeito diminuir rapidamente
a amplitude das oscilações sem alterar sensivelmente sua duração.
Assim, quando uma agulha horizontal, suspensa dentro de um anel de ma-
deira por um fio sem torção, estava afastada 45° de sua posição natural, e que a
deixando, em seguida, a ela mesma, fazia 145 oscilações antes que as amplitudes
fossem reduzidas a 10º.
Dentro de um anel de cobre, as amplitudes diminuíam tão rapidamente que
a mesma agulha, afastada também de sua posição natural de 45º, oscilaria tão so-
mente dentro dos arcos de 10º após sua 33ª oscilação.
Dentro de outro anel de cobre, menos pesado, o número de oscilações, entre
45º e 10º de amplitude, seria de 6623.

20 Na época era comum o escritor narrar citando seu próprio nome. Arago utiliza a conju-
gação na terceira pessoa do singular (ele) citando como sujeito o “Sr. Arago” ao se referir
a si próprio.
21 Procés-verbaux dês séances de l’académie tenus depuis La fondation de l’Institut
jusqu’au móis d’août 1835. Publiès conformément à une décission de l’Académie M.M.
les secrétaires perpétuels. Tome VIII, annèes 1824 – 1827. Publication faite avec Le con-
cours de l’Institut de France – Fondations Debrousse ET Gas. Hendaye (Basses-Pyré-
nées). Imprimerie de l’Observatoire d’Abbadia. 1918. p. 158 – 159.
22 “O Sr. Arago comunicou verbalmente os resultados de alguns experimentos que ele fez
sobre a influência que metais, e muitas outras substâncias, exercem sobre a agulha
magnética, o efeito no qual se produz uma rápida diminuição do arco de vibração da
agulha, sem afetar sensivelmente seu tempo de vibração” (ARAGO, 1855, p. 290).
23 Nesta descrição verificamos que Arago relata que as amplitudes das oscilações depen-
dem do tipo de material: cobre vermelho, outro anel de cobre e a madeira. No entanto,
ele revelou ter recebido críticas: “existe uma memória Messrs. Leopold Nobili e Bacelli
de Modena, que contêm vários experimentos em direção oposta a minha, e que tenderia
admitir que não é verdade que todos os corpos na natureza exercem uma ação parti-
cular e muito intensa sobre a agulha magnética em movimento. O mérito do conheci-
mento daqueles cavalheiros, impõe a mim o dever de não deixar suas afirmações sem
respostas. Eu refutei seus experimentos no trigéssimo segundo volume dos “Anais de
Química e Física” (p. 213, 1826)”. Arago reconhece que os cientistas (como ele) devem
estar preparados para as críticas: “aqueles que decobriram um fato novo na ciência da
136 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Dentro da madeira 145 oscilações (45º início 10º)


Anel de cobre 33 (45º)
Outro anel 66 (45º)

A velocidade das oscilações permanece a mesma dentro dos anéis de madeira


e de cobre.
M. Arago fala de algumas outras experiências que ele fez sobre o assunto e
promete uma Memória detalhada sobre o tema.

4. Tradução do segundo comunicado

Relato das seções da Academia real de Ciências. [...] Seção de segunda – fei-
ra, 21 de fevereiro de 182524 .
M. Arago apresenta à Academia um aparelho que mostra uma nova forma de
ação mútua entre os corpos imantados e aqueles que não o são25.
Em suas primeiras experiências (ver caderno de dezembro de 1824, página
363), M. Arago provou que uma placa de cobre (ou de todas outras substâncias
sólidas, ou líquidas), colocada abaixo de uma agulha imantada, exerce sobre ela
uma ação que tem por efeito imediato alterar a amplitude das oscilações, sem al-
terar sensivelmente sua duração. O fenômeno, o qual ele tratou hoje na Academia,
podemos assim dizer, é o inverso do anterior. Já que uma agulha em movimento
é parada por uma placa em repouso, M. Arago pensou daí que uma agulha em re-
pouso seria influenciada por uma placa em movimento. Se fizéssemos girar, efeti-
vamente, uma placa de cobre, por exemplo, com uma determinada velocidade, sob
uma agulha imantada dentro de um vasilhame todo fechado, a agulha não se po-
sicionaria mais em sua posição normal: ela iria para fora do meridiano magnético,

observação deve esperar, em princípio, ter a sua afirmação negada, ou seja, a importân-
cia e utilidade da sua descoberta contestada” (ARAGO, 1855, p. 291).
24 Annales de chimie et de physique, par MM. Gay-Lussac ET Arago. Tome 28, p. 325 – 326.
À Paris, Chez Crochard, Libraire, cloître Saint-Benoît, nº 16, près la rue des Mathurins,
1825.
25 Esse trecho aparece assim em Arago (1855, p. 290): “O Sr. Arago apresentou à Academia
um aparelho que mostra, de um modo completamente novo, a ação mútua que corpos
magnéticos e não magnéticos exercem uns sobre os outros” (ARAGO, 1855, p. 291, tra-
dução nossa).
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 137
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

e iria tanto mais longe deste plano quanto o movimento de rotação da placa seria
mais rápido. Se este movimento de rotação é suficientemente rápido, a agulha, a
toda distância da placa, gira, ela mesma, de uma maneira contínua, em torno do
fio no qual ela está suspensa 26 , 27. Nós retornaremos em breve sobre as leis deste
fenômeno singular.

Figura 2 – Experimento denominado “Disco de Arago”28

26 Esse trecho aparece assim em Arago (1855, p. 290): “Em seus mais recentes experimen-
tos, o Sr. Arago mostrou que uma placa de cobre, ou outra substância qualquer, sólida
ou líquida, colocada embaixo de uma agulha magnética, exerce sobre ela uma ação, cujo
efeito imediato é reduzir o arco de vibração da agulha sem alterar sensivelmente seu
tempo de vibração. O fenômeno que ele noticiou agora à Academia é, por assim dizer, o
inverso do precedente. Desde que uma agulha em movimento é trazida ao repouso por
uma placa que esteja em repouso, o Sr. Arago concluiu, por analogia, que o movimento
de uma placa afetaria uma agulha previamente em repouso. Ele encontrou, que se uma
placa de cobre, for girada, com uma determinada velocidade, debaixo de uma agulha
magnética encapsulada ao seu redor, por todos os lados, a agulha, mantida em sua po-
sição normal por um determinado tempo, adquire uma posição diferente do meridiano
magnético; e será tanto mais rápida [sua oscilação] quanto [mais rápido] for o movi-
mento de rotação. Se este movimento de rotação da placa for suficientemente rápido,
a agulha, embora esteja um pouco distante da placa, também gira continuamente ao
redor do seu ponto ou centro de suspensão”. (Tradução nossa).
27 Como veremos, outros cientistas fizeram experimentos movendo a placa metálica para
verificar sua ação sobre a agulha imantada.
28 Disponível em: www. lngs.infn.it.
138 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

5. A questão da prioridade da descoberta.

Depois que Arago publicou esses comunicados sobre a sua descoberta, ele re-
petiu este experimento a vários físicos ingleses, suíços e italianos, que passaram a
estudar o fenômeno observado por Arago. Segundo ele, a maioria dessas pesquisas
corroborou os seus resultados.
Porém, um problema enfrentado por Arago diz respeito a “prioridade da
descoberta”29, principalmente por algumas memórias apresentadas à Royal Society
de Londres e algumas publicações feitas pelo “Edinburgh Journal”30. Segundo ele,
isto foi gerado pelos trabalhos do Sr. Barlow31 e do Sr. Christie32 apresentados nas
datas de 05 de maio e 12 de maio de 182533, respectivamente. Além disso, o Sr. Bar-

29 Em 22 de novembro de 1824, eu comuniquei à Academia de Ciências o experimento


sobre a influência que corpos metálicos, ou outros tipos de corpos em repouso, exercem
sobre a agulha magnética que vibram a uma pequena distância de sua superfície. Esse
experimento foi publicado na maioria dos periódicos de Paris em 23 e 24 de novembro.
Ele ainda foi relatado, em uma carta publicada em Paris, no próprio número do “Edin-
burgh Journal”, que aparece em 1 de janeiro de 1825. Finalmente, foi comunicado à
Academia, assim como já foi relatado, na segunda feira do dia 7 de março de 1825 (ARA-
GO, 1855, p. 292).
30 Arago (1855, p. 292) relata a seguinte passagem encontrada do Ediburgh Journal su-
gerindo a prioridade a cientistas ingleses: “poucos ramos da ciência moderna deveriam
exercer mais interesse do que aquele que trata da influênca do fenômeno de rotação da
agulha magnética. Estamos orgulhosos de notar que essa descoberta notável foi feita
pela primeira vez em nosso país; e que, com exceção de um pequeno número de experi-
mentos importantes feitos na França, seguem exclusivamente os feitos pelos Membros
da Royal Society”. (Grifo nosso).
31 O Sr. Barlow apresentou sua memória, “Sobre o efeito magnético temporário induzido
nos corpos ferrosos pela rotação” à Royal Society em 14 de abril de 1825, e ela não foi
lida até 5 de maio de 1825 (ARAGO, 1855, p. 293).
32 A memória do Sr. Christie “Sobre o magnetismo do ferro criado pela rotação” foi lida em
12 de maio de 1825 (Ibid.).
33 “Desde então, a data 22 de novembro de 1824 e 7 de março de 1825 são anteriores a 5 e
12 de maio de 1825, eu deixo o leitor julgar que grandes escritores escoceses poderiam
possívelmente ter atribuído gratuitamente a prioridade a seus compatriotas” (ARAGO,
1855, p. 293).
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 139
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

low anunciou ter iniciado seus trabalhos sobre o efeito da rotação em uma esfera
de ferro34 no mês de dezembro de 182435.

6. Outros experimentos feitos na época.

Um produtor de instrumentos francês, Henri-Prudence Gambey (1789-1847),


noticiou que o amortecimento da oscilação da agulha de uma bússola é bem visí-
vel, quando ela é colocada sobre uma lâmina de cobre, confirmando a observação
original de Arago. Ele encontrou também que a rotação de um disco de cobre
abaixo da agulha imantada produz uma deflexão da agulha na mesma direção. Ele
observou que, se a taxa de rotação do disco for suficientemente rápida, a agulha
poderá rodar continuamente. Esse experimento poderá ser executado por meio do
equipamento da Figura 2.

Figura 2– Sistema de polias para tornar o movimento do disco mais rápido

Charles Babbage (1791-1847) e John F. W. Herschel (1792-1871) executaram na


residência de Babbage, em Londres, um aparelho semelhante a um torno mecâni-
co (manivela) para colocar um disco de cobre sob um eixo vertical (ver Figura 3).
Durante o experimento ocorreu a eles a possibilidade de inverter o experimento e

34 “Os curiosos experimentos do Sr. Arago, descritos por Gay Lussac durante sua visita em
Londres, na primavera deste ano, no qual placas de cobre ou outras substâncias coloca-
das em rápida rotação, abaixo de uma agulha magnética, causando nela o desvio em sua
direção, e finalmente arrastando-a com elas, naturalmente excitaram muita atenção e
investigação de suas circunstâncias e suas conexões com os efeitos observados pelo Sr.
Barlow em dezembro, ao produzir a rotação de massas de ferro, e que foi descrito por ele
em um artigo lido à Sociedade, tornou-se um objeto de grande interesse” (BABBAGE;
HERSCHEL, 1825).
35 “O Sr. Barlow disse que ele tinha apenas começado a se ocupar com o fenômeno produ-
zido pela rotação do ferro em Dezembro; este foi um verdadeiro vexame, uma vez que
Novembro foi a data da minha primeira publicação!” Segundo Arago (1855, p. 294) é
certamente uma palavra que ele nunca escreverá no futuro.
140 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

verificar se o disco não entraria em movimento ao mover um ímã no formato de


ferradura abaixo do disco de cobre36 (ver Figura 3).

Figura 3 - Motor de Babbage e Herschel37

Portanto, se um disco de cobre for disposto horizontalmente, acima de um


magneto em formato de ferradura e fizermos rodá-lo, o disco também entra em ro-
tação. Segundo Baily (1879), essa rotação é devida à variação do campo magnético
no qual o disco está imerso. O trabalho de Baily consistiu em mostrar que o disco
podia rodar pela mudança intermitente do campo gerado, por meio de quatro ele-
troímãs cujas correntes variavam sincronizadamente, várias vezes num segundo
(ver Figura 4). Segundo Baily, o efeito melhora se forem introduzidos outros quatro
eletroímãs abaixo do disco.

36 “Ocorreu-nos inverter o experimento, e determinar se discos de cobre ou outras subs-


tâncias não magnéticas (na usual acepção da palavra) não deviam ser colocados em
rotação se fossem livremente suspensos sobre um magneto girante. Para fazer esse ex-
perimento, nós montamos um poderoso ímã no formato de ferradura, capaz de levantar
20 libras (pounds), de maneira a receber uma rápida rotação sobre seu eixo de simetria,
colocado verticalmente na linha que une os polos, estando na horizontal e os polos para
cima” (BABBAGE; HERSCHEL, 1825).
37 Disponível em: www.electroyou.it
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 141
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

Figura 4 - Motor de Baily38

7. As primeiras explicações sobre o fenômeno

Uma das primeiras tentativas de explicar o fenômeno foi feita por Messrs No-
bili e Bacelli. A hipótese desses físicos foi de uma interação puramente magnética,
semelhante à explicação de Biot-Savart para o experimento de Ørsted, a qual ci-
tamos na introdução deste trabalho39. Segundo Arago, sua suposição inicial ou o
seu modelo explicativo para o fenômeno se assemelhou a este, mas ele considerou
irrelevante explicar somente a direção em que a agulha magnética era deslocada,
pois para ele não havia uma explicação satisfatória para o fenômeno que era ob-
servado40.

38 Disponível em: www.electroyou.it


39 “Eles suspeitaram que, a agulha suspensa horizontalmente sobre uma placa metática in-
definida, haveria de formar, em baixo de cada polo da agulha, quero dizer, por exemplo,
abaixo do polo norte, um polo do tipo oposto, ou seja, atrativo, [...]. Quando, em seguida,
esta placa é posta em movimento de rotação, seu polo atrativo é carregado na direção
na qual a placa gira; um polo similar é formado novamente embaixo da agulha, para ser
depois carregado ao redor de seu giro, e assim por diante. Agora, suponha que esses po-
los sejam produzidos quase que instantaneamente, e que eles levem um pequeno tempo
para desaparecer, seguirá que, a agulha irá preceder de uma série de sucessões de polos,
que sendo todos atrativos ao polo da agulha, isso causará nela o desvio de sua posição
usual na direção ao movimento que ocorre na placa” (ARAGO, 1855, p. 297).
40 “Esse modo de explicação também surgiu na minha mente, quando eu comuniquei os
experimentos de rotação à Academia; eu não mencionei isso, contudo, porque uma hi-
pótese que apenas representa a direção na qual a agulha é deslocada, não me parece
repousar sobre uma base sólida. Eu acho que, sobre isso, requer explicarmos que a placa
142 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

De acordo com a teoria de Herschel, Babbage, Nobili, Prevost, o que faria a


agulha a se mover seriam ações combinadas de atração. Arago sugere decompor o
movimento em três componentes41.
Uma particular forma de magnetismo (denominada “magnetismo de rota-
ção”) desenvolvida pelo movimento foi postulada para explicar porque um mate-
rial, normalmente não magnético, poderia ser afetado por um ímã. As explicações
para a rotação do disco de cobre formam um intrigante quebra-cabeças e eram
inerentemente tão complexas que Ross (1915), citando Bauer, diz que é como se
houvesse “uma tela entre a mente dos físicos e a realidade”.
A história estava esperando por um homem capaz de encontrar uma pista
decisiva para solucionar o mistério: este homem foi Ampère. Segundo ele, uma
corrente induzida poderia ser criada num circuito independente pela ação de uma
outra corrente (a corrente que ele imaginava estar presente no interior do ímã).
Ampère e Arago, utilizando os equipamentos pertencentes ao colégio da França e
sendo assistidos por Ajasson Grandsagne, montaram o equipamento, mas, quando
foram fazer as medidas, o equipamento quebrou. Arago teve que partir para os
Pirineus, mas autorizou Ampère a prosseguir com o experimento em sua ausência.
Ampère executou o experimento de Arago com um eletroímã girante e observou
que ele se movia tão logo a placa de cobre era posta em movimento. Em carta da-

é de cobre, quando [ela está] em estado de repouso, dificilmente causa um desvio na


agulha magnética [...], possa tornar capaz, pelo único fato de ser posta em movimento,
sendo que a distância permanece a mesma, desviar a agulha de nove graus para cima
do seu lugar [original]; eu mesmo, francamente, não tenho encontrado uma significante
explicação para isso. Em relação à hipótese para esta questão, eu tenho muitas razões
de ser pessimista, em não prosseguir; um rápido julgamento me mostrou apenas que
isso não é insuficiente, mas que, além disso, é diretamente contrário aos resultados do
experimento” (Ibid).
41 “A primeira vertical, ou perpendicular ao disco; a segunda horizontal e perpendicular
ao plano vertical contendo o raio do disco terminando na projeção do polo da agulha; e a
terceira horizontal e paralelo ao raio. O primeiro é, como temos apenas visto, repulsivo;
o segundo é a força tangencial que não participa do movimento de rotação da agulha ho-
rizontal; as propriedades da terceira componente podem ser estudadas pelo uso de uma
agulha de inclinação, colocada verticarmente, de maneira que seu eixo de rotação esta-
ria situado em um plano perpendicular a um dos raios do disco; nesta posição, a agulha
irá apenas se mover em virtude da componente direcionada para o centro” (ARAGO,
1855, p. 299).
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 143
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

tada de 1 de setembro de 1826, Ampère transmitiu os resultados dos experimentos


em uma carta a Arago42 .
Os efeitos permaneciam misteriosos, porque ninguém suspeitava a presença
de correntes elétricas no disco de cobre.
A explicação de Babbage e Herschel revela que “a eminente introspecção na
natureza do magnetismo, permanente e transiente” não foi de que havia correntes
elétricas, mas que “a virtude magnética exibida pelo cobre nesses experimentos [...]
é, obviamente induzida pela barra magnética [...] sobre suas moléculas”. Para eles,
“na indução do magnetismo, a variável tempo entra como um elemento essencial”
(BABBAGE; HERSCHEL, 1825).
Eles fizeram algumas fendas ou cortes na placa de metal e comunicaram que o
magnetismo era destruído. Segundo eles, isso era notado ao repetir o experimento
entre os polos do ímã e placa metálica numa mesma distância, e ao não verificar
o fenômeno que era observado antes. Se, posteriormente, as fendas fossem preen-
chidas com solda, ou seja, se for feita a comunicação entre as porções ou partículas
adjacentes dos lados opostos de um corte, ocorre a restauração da virtude magné-
tica (BABBAGE; HERSCHEL, 1825). Segundo Faraday (1935), a teoria de Babbage
e Herschel “relaciona o efeito a uma força atrativa e não é aceita pelo descobridor,
Sr. Arago, nem pelo Sr. Ampère, que cita contra ela a ausência de toda atração,
quando o ímã e o metal estão em repouso”.
Faraday (1935) executou um experimento com o disco de cobre e agulhas de
costuras magnetizadas dispostas convenientemente, tudo protegido por um reci-
piente de vidro. Utilizando um galvanômetro (medidor de correntes) rudimentar,
ele podia detectar a presença de correntes elétricas. Sob circunstâncias estáticas,
“tudo ficava quieto e o galvanômetro não exibia qualquer efeito, mas, no instante
em que a placa se movia, o galvanômetro era influenciado e, a placa girava rapida-
mente, a agulha podia ser defletida [...]”. Portanto, segundo ele, “estava demons-
trada a produção de uma corrente permanente de eletricidade a partir de ímãs
comuns”. De acordo com ele, “a agulha do galvanômetro era defletida com uma
potência igual à anterior, mas a deflexão era para o lado oposto”. Faraday (1935)
revela “sua esperança de tornar a experiência do Sr. Arago, como uma nova fonte
de eletricidade” e ser “capaz de construir uma nova máquina elétrica”.

42 Ampère escreve ao amigo Arago: “deveria o sucesso desse experimento, aderir a minha
teoria como a verdadeira explicação para esses fenômenos. Em consideração a esse efei-
to, com todo o resto que eu publiquei, eu não vejo como alguém pode continuar encon-
trando objeções para ele” (ROSS, 1915).
144 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Para Steinle (1994, p. 295), Faraday foi atraído pelo experimento de Arago e
suas hipóteses são claramente dirigidas pela ideia de explicar o efeito por correntes
elétricas induzidas pelo magneto. A origem desta ideia pode ser somente especu-
lada pela teoria das correntes moleculares de Ampère, como causa do magnetis-
mo. Ele derivou desta teoria uma especulação da presença de correntes induzidas
fluindo na forma de vórtices, na mesma direção das supostas correntes molecula-
res amperianas, existentes nos polos magnéticos43.
Segundo Ross (1915), a distribuição das correntes circulares no disco de ro-
tação44 foi elucidada por Leopoldo Nobili (1784-1835), e o próprio experimento se
tornou, nas mãos habilidosas de Faraday, a base do primeiro gerador eletromagné-
tico de corrente contínua.

8. Considerações finais

O fenômeno observado por Arago pode ser demonstrado direta ou indireta-


mente de diversas maneiras, como podemos verificar nos trabalhos de Niesten e
Tan (1989); Guisasola et. al. (2005); Silveira e Rizzato (2007); Silveira e Axt (2003),
entre outros. Chamamos atenção para o fato de que, às vezes, em alguns artigos e
até mesmo em livros didáticos, aparecem os nomes de Foucault, Thomson e ou-
tros. Na maioria das vezes, os nomes de Arago, Ampère e até mesmo Faraday são
“esquecidos” e não são nem ao menos citados.
Esse trabalho buscou resgatar as primeiras observações sobre a interação entre
um ímã e um disco de cobre, ressaltando os primeiros modelos explicativos para
este fenômeno. É obvio que posteriormente outros cientistas tenham utilizado ex-
plicações mais fundamentadas e, provavelmente, até quantificaram os resultados.
Isso, porém, é algo que pode ser investigado num trabalho futuro.
Um estudo histórico é semelhante a um quebra-cabeças. Temos que juntar as
peças para que no final possamos compreender o todo. Neste sentido, buscamos

43 A discussão do trabalho de Faraday foge ao escopo deste trabalho. Sugerimos ao leitor


interessado no experimento de Faraday consultar as seguintes referências: A.K.T. Assis
e L.F. Harana. Cad. Bras. Ens. Fís., v. 28, n. 1 p. 152-204, 2011.; Steinle (1994).
44 “Devemos notar que a rotação do disco é acompanhada pela formação de correntes in-
duzidas, cuja a intensidade depende da velocidade de rotação, e cujo efeito é diminuir
sua rotação. Essas correntes opostas são livres quando o disco é suspenso com numa
balança de torção, e sua deflexão observada, como as correntes, não serão formadas
exceto quando o disco estiver em movimento” (BAILY, 1825).
CAPÍTULO 6 - A descoberta do fenômeno da indução de correntes elétricas em metais: uma tradução 145
comentada de dois comunicados feitos por François Arago à Academia de Ciências de Paris

mostrar que muitos cientistas, além de variar o experimento original de Arago,


buscaram compreendê-lo por meio de modelos explicativos. Com isso, foi possível
ter uma visão geral do experimento do “disco de Arago”.
Neste trabalho, o leitor teve a possibilidade de verificar um exemplo do de-
senvolvimento histórico, em que “as descobertas” não surgem na mente brilhante
de um gênio, mas são fruto de um esforço coletivo e de muito trabalho e reflexão
daqueles que estão envolvidos com o problema.

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CAPÍTULO 7

Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese


Expandida: A importância de discussões
epistemológicas acerca desse conceito para o
Ensino de Biologia
Thais Benetti de Oliveira1
Ana Maria de Andrade Caldeira2

Introdução: Breve panorama histórico sobre a ideia


de evolução

Para os historiadores das Ciências, os trabalhos de Darwin significaram uma


revolução copernicana na medida em que puderam fornecer argumentos para
contrapor um tipo de pensamento, a partir do qual a explicação acerca dos fenô-
menos biológicos estava baseada em justificativas de cunho teológico. O fenômeno
da adaptação foi o cerne da teologia natural do século XVII, interpretado a partir
do argumento do desígnio ou planejamento. De acordo com este argumento, cada
organismo teria sido projetado para um papel definido na economia da natureza,
pela ação criadora inteligente de Deus, uma vez que cada uma de suas estruturas se
encontraria perfeitamente ajustada a sua função (SEPÚLVEDA e EL-HANI, 2007).
Assim, muitos naturalistas propuseram ideias sobre transformações que ocor-
riam nos seres vivos, mas, até que Lamarck explicitasse os pressupostos de sua
teoria, a maioria dos naturalistas acreditava que as espécies eram fixas e que as
variações ambientais poderiam provocar apenas pequenas mudanças, caracteriza-
das por certos limites, as quais poderiam criar variedades. Carl Linné (1707-1778),
por exemplo, durante a maior parte de sua vida considerou que as espécies eram
fixas e se mantinham tal como tinham sido produzidas no início do universo pelo

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação para Ciência- Unesp Bauru.


Email: thabenetti@fc.unesp.br
2 Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Educação para Ciência- Unesp Bauru.
Email: anacaldeira@fc.unesp.br
148 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Criador (MARTINS e BAPTISTA, 2007). Embora o objetivo central de Lamarck


não fosse explicar a evolução orgânica e a origem das espécies, a sua teoria é consi-
derada, pelos historiadores da Biologia, como a primeira explicação sistemática da
evolução dos seres vivos. Ele pode ser considerado o fundador do transformismo.
A crença na possibilidade e necessidade de “transformação” dos seres vivos já era
compartilhada por alguns naturalistas, como Buffon, por exemplo. Entretanto,
Lamarck propôs a noção de que os seres vivos não se extinguiram, pois tal extin-
ção não seria compatível com o poder e a bondade do Criador, mas se transforma-
vam (ALMEIDA E FALCÃO, 2010).
O naturalista francês foi um dos primeiros a propor uma explicação mais
completa para a transmutação das espécies, a qual prescindia da perspectiva ide-
ológica de conteúdo teológico. A teoria proposta por Lamarck se baseava em um
sistema deísta, que excluía qualquer interferência divina direta – Deus teria criado
a natureza e suas leis, e esta por si própria originou todos os seres (MARTINS,
1997; MEYER; EL-HANI, 2001).
Para Lamarck, as formas de vida inferiores surgem continuamente da matéria
inanimada e progridem por meio de uma linearidade, cuja tendência é relacionada
ao aumento da complexidade (FUTUYMA, 2002). Para Martins (1997), Lamarck
recorre, em sua obra, a termos que indicam uma concepção de aperfeiçoamento
e progresso ao fazer referência ao processo evolutivo. Essa concepção é explicada
por meio da existência de uma tendência interna nos organismos (devido ao movi-
mento de fluidos), a qual propicia o aumento de complexidade (MARTINS, 2003).
Quando Darwin estava escrevendo os trabalhos que fundamentariam a bio-
logia evolutiva, duas questões principais norteavam um número cada vez maior de
cientistas e filósofos naturais que lentamente se distanciavam das ideias inspira-
das na religião como o fixismo das espécies e o design inteligente. Essas questões
eram: Como nós explicamos a história e a diversidade da vida na terra? E como
nós explicaríamos a correspondência óbvia entre forma e função nos organismos
biológicos? (PIGLIUCCI, 2007).
Como sabemos, Darwin forneceu respostas balizadas no princípio do uni-
formitarismo de Lyell (1830) e nas observações de Malthus (1798) sobre a relação
entre o crescimento populacional e a disponibilidade de recursos. Essas respostas
representavam os primeiros dois pilares conceituais da teoria evolutiva moderna:
a descendência com modificação é um caminho para explicar a história da vida e
da diversidade, ao passo que a seleção natural é o mecanismo que explica o dilema
da forma e da função, o sentido claro que estruturas complexas como os olhos dos
vertebrados são “para” alguma coisa mesmo que não tenham sido inteligentemente
projetados (PIGLIUCCI, 2007).
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
149
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

Em A origem das espécies, de 1859, Darwin apresenta a ideia da descendência


comum, ou seja, o processo de divergência a partir de ancestrais comuns — a qual
difere da perspectiva de um processo linear proposto por Lamarck — e pode ser
ilustrada como uma árvore da vida. Na abordagem da chamada descendência com
modificação, Darwin usa o modelo da árvore da vida para representar sucessivos
eventos ramificados que simbolizam o surgimento de novas espécies a partir das
preexistentes. As ideias de que as espécies são todas relacionadas e de que isto
está diretamente associado ao fato de que a evolução ocorre por descendência com
modificação está lastreada no trabalho de Darwin em descrever semelhanças e
diferenças entre os seres vivos.
Além de apontar que as transformações ocorrem entre as espécies, Darwin
explicou como isso acontece. Para a teoria darwiniana, a evolução ocorre num
processo cumulativo e gradual, sem saltos, com diferenças que alteram a popula-
ção em uma escala de tempo longa, gerando, ao longo de um tempo ainda maior,
a diversidade de formas existentes (MEYER & EL-HANI, 2005). Hoje se sabe que,
por mais insignificante que seja a mudança em uma série, ela é sempre formada
por pequenos saltos (mutações). Darwin descreve a evolução como lenta, gradual e
intermitente, e afirma que, se pudéssemos ter acesso a todos os fósseis, poderíamos
ver como os efeitos foram lentos e mínimos. Mas é bem provável que em alguns
pontos da evolução, nos momentos de grandes “criações”, o processo não tenha
sido inteiramente lento e gradual. Darwin não conhecia o surgimento súbito de
espécies, como casos de alopoliploidia (FREIRE-MAIA, 1988).
Outra grande constatação feita por Darwin foi a observação de que os seres
vivos não conseguem utilizar todo seu potencial de crescimento populacional, pois
permanecem com populações de número estável. Com base nessa constatação, é
elaborada então uma das ideias centrais da seleção natural: a luta pela sobrevivên-
cia. Esse processo decorre do pensamento de que, por não haver recursos disponí-
veis ou condições apropriadas a todos os seres vivos, muitos morrem (MEYER &
EL-HANI, 2005). Como descrito em Origem das espécies,

Compreenderemos melhor a marcha provável da seleção natural


tomando o caso de uma região que experimente alguma leve mu-
dança física, por exemplo, de clima. Os números proporcionais de
seus habitantes experimentarão quase imediatamente uma mu-
dança, e algumas espécies chegarão provavelmente a extinguir-se
(DARWIN, 1859, p.59).
150 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

A seleção natural parte da ideia de que a sobrevivência de alguns indivíduos e


não de outros não é produto do acaso. Se uma população de organismos apresenta
variabilidade, algumas das variações podem colocar os indivíduos numa posição
privilegiada em relação aos demais, resultando numa maior chance de sobrevi-
vência. Se essa variação que propicia sobrevivência for herdável, será passada aos
descendentes em maior frequência que as variações menos vantajosas, alterando a
proporção de indivíduos ao longo do tempo (MEYER & EL-HANI, 2005).
O ponto relevante em nossa discussão é que a primeira versão da teoria evo-
lutiva começou como uma teoria da forma. Claro que poderia ter sido diferente,
uma vez que a genética ainda não havia se estabelecido como um campo de inves-
tigação, embora Mendel tivesse publicado seu trabalho em 1866. O problema da
hereditariedade, no entanto, foi o cerne das inquietações darwinianas, e o que o
levou a apoiar alternadamente os elementos do lamarckismo e propor sua própria
teoria inviável de herança mista (PIGLIUCCI, 2007).
De fato, o primeiro desafio sério enfrentado pelo darwinismo foi a indagação
relativa a possível retenção de algum tipo de elemento lamarckista em sua teoria da
hereditariedade ou se as fundamentações darwinianas obliteravam completamen-
te com o que havia sido proposto pelo lamarckismo, como sugerido por Wallace e
Weismann. Mais tarde isso culminou na doutrina de separação das linhagens so-
máticas e germinativas, o que impediu qualquer caminho que permitisse a heran-
ça de caracteres adquiridos e o que prenunciou o que, mais tarde, ficou conhecido
como o “dogma central” da biologia molecular. O afastamento do lamarckismo
não ocorreu “tranquilamente” e, a propósito, Romanes cunhou o termos neo-da-
rwinismo para ridicularizar a nova doutrina (como Ernest Mayr frequentemente
lembrou as pessoas, o termo não deve ser usado para fazer referência à Síntese
Moderna (MS), porque eles são conceitualmente distintos e ocorrem em décadas
diferentes) (PIGLIUCCI, 2007).
Embora Weismann tenha rompido com os pressupostos lamarckistas, o pro-
blema da hereditariedade permaneceu, sendo reestabelecido no século 20, com a
redescoberta dos trabalhos de Mendel. A questão emergente dessa redescoberta
era como reconciliar a teoria da evolução gradual com o saltacionismo que muitos
autores viram emergir das pesquisas oriundas na nova disciplina da genética (PI-
GLIUCCI, 2007). A resposta veio de um dos mais importantes artigos já escritos
na biologia evolutiva Fisher (1918): “A correlação entre parentes na suposição da
herança mendeliana”, por meio do qual o autor mostrou convincentemente como
o mendelismo poderia ser reconciliado com o gradualismo, prospectando, as-
sim uma área que, atualmente, chamamos de genética quantitativa (PIGLIUCCI,
2007).
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
151
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

Dessa forma, entre os anos de 1930 e 1940, são acrescidas, ao quadro teórico
da biologia evolutiva, a construção e a fundamentação das ideias de Fisher, Hal-
dane e Wright no âmbito da genética de população, as quais foram cristalizadas
na Síntese Moderna. Embora vários autores e livros sejam usualmente citados em
consonância com a Síntese Moderna, para Pigliucci (2007), as três maiores contri-
buições foram as de Dobzhansky, Mayr e Simpson. O livro do primeiro e a sua fa-
mosa série de artigos “genética de populações naturais” traduziam as novas ideias
da genética de população para uma prática empírica, subjacente à demonstração
da existência de uma ampla variação genética na natureza. O livro de Mayr (1942)
trouxe uma sistematização das novas ideias, principalmente no que concerne ao
conceito biológico de espécie a estruturação de um pensamento evolutivo centrado
na população. Finalmente, Simpson (1944) argumentou que o tempo e o modo
da evolução entendidos na genética de populações eram compatíveis com o que
os paleontologistas chamavam de escala geológica e, assim, eliminavam qualquer
distinção controvérsia entre micro e macro evolução, com conotação saltacionista
(PIGLIUCCI, 2007).
Assim, após a estruturação da síntese evolutiva — o movimento de fusão do
mendelismo e do darwinismo realizado a partir da década de 1920 e concretizado
nos anos 1940,

A seleção natural constitui um mecanismo suficiente para explicar


tanto a micro quanto a macroevolução, sendo necessário apenas o
complemento de mecanismos que expliquem a separação de popu-
lações e a interrupção do fluxo gênico, para dar conta da origem de
novas espécies. Assim, o mesmo mecanismo explicaria: (1) como
as frequências gênicas e distribuições de características mudam ao
longo das muitas gerações de uma população (microevolução); (2) a
origem de adaptações através das mudanças dentro das populações;
(3) a divergência de populações descendentes, que se separaram a
partir de uma população ancestral, dando origem a novas espécies;
e (4) tendo em vista o tempo geológico, toda a diversidade biológica,
conforme expressa nos grandes padrões mostrados na árvore da
vida (macroevolução) (ALMEIDA e EL-HANI, 2010, p.11).

Embora a teoria da seleção natural seja capaz de explicar alguns fenômenos


como a mudança da composição de uma população, a resistência bacteriana a an-
tibióticos, de pragas agrícolas a inseticidas e explica, ainda, a dificuldade no con-
trole de pandemias como a AIDS. No entanto, o programa adaptacionista tem sido
152 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

duramente criticado desde os anos 1970, em consequência de evidências empíricas


e avanços teóricos que expuseram os limites da seleção natural para a explicação
da organização estrutural das formas vivas. Mais especificamente, as descobertas
acerca do papel do acaso nas mudanças evolutivas (deriva gênica) e a ênfase sobre
o papel das restrições históricas (filogenéticas), estruturais e do desenvolvimento
sobre a evolução da forma orgânica, entre outros fatores, mostraram que, não obs-
tante a grande importância do mecanismo da seleção natural na explicação dos
processos evolutivos, é preciso concatená-lo a outros mecanismos para a constru-
ção de modelos explicativos mais consistente de modo que os processos evolutivos
sejam determinados por uma ação sinérgica desses fatores (MEYER e EL-HANI,
2000, 2005).
Uma das principais críticas de evolucionistas da década de 1960 remonta a
explicações sobre a diversidade dos seres, uma vez constatada a incapacidade de
distinguir, sob a abordagem da seleção natural, o que é utilidade corrente e o que
é adaptação. A possibilidade de distinção entre esses dois mecanismos estrutura
a argumentação de que nem toda característica funcional é uma adaptação, uma
vez que um traço morfológico pode ser sub-produto fortuito da seleção natural
ou resultado de um processo de “bricolagem” e reaproveitamento de caracterís-
ticas morfológicas existentes e cooptadas para outra função ao longo do processo
evolutivo. Assim, algumas características morfológicas são moldadas pela seleção
natural para uma função particular, mas foram cooptados para um novo uso, ou
a caracteres originalmente não-funcionais, resultantes de processos não-seletivos,
mas que foram cooptados para um uso corrente. As penas das aves oferecem um
exemplo do primeiro caso. De acordo com os modelos atualmente mais aceitos,
elas foram inicialmente selecionadas para a função de isolamento térmico em di-
nossauros ancestrais das aves e, posteriormente, foram cooptadas para o vôo, o
que terminou por resultar na seleção posterior de mudanças em características das
próprias penas, em características esqueléticas e padrões neuromotores específicos
(MEYER e EL-HANI, 2005, SEPÚLVEDA e EL- HANI, 2008).
Ainda no que se refere aos embates relativos ao quadro conceitual configurado
pela biologia evolutiva da década de 40, a partir da emergência da biologia evoluti-
va do desenvolvimento (evo-devo), tem-se reconhecido cada vez mais a importân-
cia dos conhecimentos acerca de outros processos envolvidos na evolução, como
as restrições estruturais decorrentes de mecanismos de desenvolvimento, a cons-
trução de nichos ecológicos por organismos e o reaproveitamento de estruturas
preexistentes, exaptadas para novas funções, entre outros. É preciso, assim, dirigir
a atenção também para estes conhecimentos, nas investigações sobre o ensino de
evolução (SEPÚLVEDA e EL-HANI, 2008).
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
153
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

O conhecimento sobre a evolução já passou por reconstruções e atualmen-


te é alvo de discussões epistemológicas as quais abrangem uma perspectiva mais
recente de pesquisa e, portanto, caracteriza a dinamicidade por meio da qual o
“fazer ciência” é submetido. Muito do que se pensava há décadas foi acrescido com
dados de pesquisas mais recentes, enquanto algumas ideias basais permaneceram
inalteradas. É importante que reconheçamos que o trabalho de Darwin, por exem-
plo, deixou um legado fundamental para biologia evolutiva no que se concerne as
evidências sobre a transformação das espécies ao longo do tempo, principalmente
em relação ao mecanismo de seleção natural (MEYER e EL-HANI, 2005).
Assim, ao traçar esse breve panorama histórico sobre algumas questões evolu-
tivas, não pretendemos denunciar/revelar uma obsolescência conceitual embutida
no pensamento darwiniano e na Teoria Sintética, mas justificar como a seleção na-
tural passou a ser o eixo principal paradigma da Biologia Evolutiva e como, apesar
de sua participação fundamental na evolução biológica, esse mecanismo começa
a compartilhar o “status” causal-explicativo com outros fatores. Assim, podemos
prospectar alguns delineamentos teóricos que interferem no corpo teórico da Bio-
logia e, como consequência, remodelam as configurações das pesquisas teóricas e
empíricas da Epistemologia da Biologia.

1. As pesquisas atuais e a pluralidade de fatores per-


meando o papel da seleção natural: Por que discutir
sobre uma Síntese Estendida?

Como mencionado, a biologia evolutiva, permeada por avanços teóricos e em-


píricos contemporâneos, está submetida a um cenário de debates e modulações te-
óricas, cujo proponente principal é a estruturação de uma Síntese Estendida (ESS)
embasada na unificação entres teorias de gene e forma. Isto pode ser alcançado por
meio de um enxerto orgânico de novos conceitos para a estrutura fundadora da
Síntese Moderna, particularmente: evolvabilidade, plasticidade fenotípica, heran-
ça epigenética e a teoria da evolução altamente dimensionada para adaptação de
paisagens (PIGLIUCCI, 2007).
Apesar das menções atuais recorrentes na literatura acerca dessa extensão,
pode-se argumentar que a biologia evolutiva nunca passou, de fato, por uma mu-
dança de paradigma, pelo menos não desde Darwin. Em detrimento dessa mudan-
ça, os biólogos evolucionários têm respondido aos vários “colapsos conceituais”
aumentando o quadro preexistente, construindo sobre o que já existe, sem derru-
154 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

bar nenhuma das fundamentações anteriores. Mas muitos autores insistem que,
mudança de paradigma ou não, a Síntese Modera (MS), cujo quadro conceitual
perdura desde 1940, precisa de uma extensão significativa (PIGLIUCCI, 2007).
Para Pigliucci (2007), a teoria evolutiva mudou de uma teoria das formas para
uma teoria de genes e, agora, há necessidade novamente de referências consistentes
relativas à teoria da forma, coerente aos avanços de pesquisas que possibilitaram a
consolidação do campo de estudo da Evo-Devo.

A biologia evolutiva do desenvolvimento pode ter sua origem tra-


çada até a embriologia comparada do século xix (Arthur, 2002).
Ela constitui uma nova abordagem para a compreensão da evolu-
ção da forma orgânica, que enfoca genes que regulam o desenvol-
vimento e os efeitos de mudanças em seus padrões de expressão
sobre a forma dos organismos. Após um período de quase um sé-
culo em que não se aprendeu muito sobre as bases genéticas do
desenvolvimento e, em termos mais gerais, sobre os mecanismos
subjacentes a esse processo, a descoberta dos genes homeóticos,
em meados dos anos 1980 (Scott & Weiner, 1984; McGinnis et al.,
1984), levou a uma explosão de atividade que resultou, na década
seguinte, na construção da evo-devo. Nos últimos vinte anos, o
principal foco de pesquisa nesse campo tem sido o estudo compa-
rativo dos padrões espaço-temporais de expressão de genes regu-
latórios do desenvolvimento (ALMEIDA e EL-HANI, 2010, p. 12).

Para Caponi (2011), não há necessidade de uma ruptura com as premissas


constituintes da Síntese Moderna, mas uma reflexão epistemológica centrada em
um ajuste teórico, que pode preencher lacunas, agora elucidadas pelo proposto
pela biologia do desenvolvimento. Outra teoria estaria surgindo: Uma segunda
teoria que, sem ser contrária à teoria da seleção natural, mas tampouco sem ser a
sua auxiliar ou subsidiária, viria explicar aquilo que esta, por sua própria nature-
za e não por uma limitação conjuntural, não pôde explicar. E, se isso é assim, se
poderia dizer que Gould (2002) tinha razão ao insistir no fato de que a biologia
evolutiva estaria passando pela maior transformação desde sua fundação em 1859.
Uma transformação, sem dúvida, mais radical do que aquela operada em 1940
quando da constituição da Nova Síntese: ali, a teoria da seleção natural conser-
vava e, inclusive, reforçava o seu lugar de eixo ou pivô central; e é isso que agora
está mudando. Já não se trata somente da admissão de que outros fatores possam
interferir ou limitar a atuação da seleção natural: se trata de reconhecer que uma
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
155
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

explicação plena do fenômeno evolutivo requer coordenadas teóricas que não po-
dem ser definidas em termos da própria teoria da seleção natural.
Dessa forma, faz-se necessário conceder espaço para uma nova categoria de
fatores causais que, ao lado da seleção natural, também estariam pautando o ca-
minho da evolução (CAPONI, 2011).
Para Piglucci (2007), a segunda peça que está faltando parece difícil de ser co-
locada: embora alguns autores têm recentemente proposto o termo eco-evo-devo,
é a perspectiva ecológica. Obviamente, a ecologia estava implícita na SM, mas,
até hoje, há uma desconfiança entre ecologistas e biólogos evolutivos e, as vezes,
dicotomias são estabelecidas, como por exemplo o frequente ditado “escala ecoló-
gica” e “escala evolutiva”. Considerando que a seleção natural (que é o resultado de
fatores ecológicos) afeta a população de uma geração para uma muito próxima, é
difícil sondar o que as pessoas pensam em relação à distinção da escala ecológica e
evolutiva. Talvez, o mais importante, é que a teoria ecológica dificilmente aparece
nos estudos de evolução, a não ser como um pano de fundo.
Considere o exemplo da seleção natural (BELL, 1997): dado que a mesma é o pilar
central da teoria evolutiva desde Darwin, deveríamos ter uma compreensão muito
melhor desse mecanismo do que temos. Ao invés disso, muitos estudos sobre seleção
natural tendem a focar em estatísticas preliminares de uma avaliação da covariância
da característica adaptável, mesmo que isso seja lamentavelmente inadequado pelo
seu próprio padrão interno de replicação e poder estatístico. Estudos sobre seleção
natural incluindo as interações ecológicas são difíceis de encontrar, e nós temos qua-
se nenhum entendimento de como essas interações/relações atuam na evolução das
novidades fenotípicas ou durante as principais transições na evolução.
É preciso explicar, por exemplo, em quais situações ecológicas organismos
muito diferentes da média morfológica de suas populações podem levar vantagem,
relativamente a outros organismos, tendo mais sucesso na obtenção de recursos e,
assim, na sobrevivência e reprodução (ALMEIDA e EL-HANI, 2010). Nesse senti-
do, atribuído o papel do ambiente (com todo arcabouço ecológico) na participação
dos traçados evolutivos dos organismos, Almeida e El-Hani (2010) apontam como
a evo-devo deve evoluir naturalmente para uma eco-evo-devo.
Laland, Odling-Smee e Gilbert (2008) ressaltam essa falta de espaço teórico e
empírico para a área da ecologia na Síntese Moderna, argumentando sobre a exis-
tência de uma lacuna na biologia evolutiva, traçada pela não abordagem do papel
desempenhado pelo ambiente na evolução orgânica. Essa participação do ambien-
te, o qual estabelece uma relação de influência mútua com os organismos, para
muitos autores, pode ser traduzida por meio da “Teoria de Construção do Nicho”.
156 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Segundo a TCN, os organismos modificam o ambiente por meio das ativi-


dades metabólicas e comportamentos próprios (LALAND et al, 2008). Os orga-
nismos constroem buracos, ninhos, teias e tocas; modificam os níveis de gases
na atmosfera; decompõem outros organismos; fixam nutrientes, participando ati-
vamente das determinações seletivas entre organismo e ambiente (BRANDON,
1992). Nesse sentido, o cerne dessa teoria faz referência à base causal das relações
dos organismos e seus ambientes (LALAND et al, 2008).
Assim, essa perspectiva sobre a função ativa exercida pelo ambiente na evolu-
ção acrescenta a noção do mecanismo de herança ecológica. Por meio dessa heran-
ça, os organismos descendentes herdam as caracterizações de seus antepassados,
por meio da modificação efetuada pelos últimos em seu ambiente. Essa herança
ecológica não é um sistema de cópia de modelo, logo não depende de replicadores,
mas do tipo de ação dos organismos, os quais serão responsáveis pelas característi-
cas do ambiente “transmitido” aos seus descendentes (ODLING-SMEE, LALAND
e FELDMAN, 2003; JABLONKA e LAMB, 2010).
A incorporação da concepção de herança ecológica em Biologia evolutiva tem
consequências para a Biologia do desenvolvimento, uma vez que, em cada geração,
a prole herdará um ambiente local seletivo que, de certa forma, já foi modificado
ou escolhido, dada a ação da construção do nicho de seu ancestral. Assim, de for-
ma análoga aos mecanismos evolutivos centrados na herança genética que subsi-
diam a estrutura da Síntese Moderna, por meio dos quais o desenvolvimento dos
organismos começa com a herança de um “kit de partida” de genes, a teoria de
construção de nicho começa com a herança de um “nicho de partida” (LALAND,
ODLING-SMEE e GILBERT, 2008).
Dessa forma, as ações e escolhas dos progenitores determinam as peculiari-
dades do local em que os descendentes serão originados. Por exemplo, os insetos
fitófagos geralmente escolhem plantas hospedeiras específicas para colocar seus
ovos, que, subsequentemente, servem como fonte de alimento para sua prole. Nas
aves e insetos, cujo ovo é um dos principais componentes do “nicho de partida”, a
gema é fornecida para a nutrição embrionária e larval. Além disso, muitos organis-
mos fornecem produtos químicos de proteção no seu “kit de partida” (LALAND,
ODLING-SMEE e GILBERT, 2008).
A terceira lacuna da MS é que a mesma não incorpora discussões sobre as im-
plicações da revolução “-omics”. De verdade, não poderíamos esperar que a síntese
original fosse capaz de mencionar, com riqueza de detalhes, as informações emer-
gidas da “­genomics”, “proteomics” e outras novas ciências “-omics”. No entanto,
a ênfase emergente dada sobre as propriedades de redes de genes ou as indicações
cada vez mais convincentes dos efeitos da herança epignética fundamentam in-
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
157
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

ferências da não compatibilidade com o corpo teórico da Síntese Moderna MS.


Poucos pesquisadores duvidariam dessa compatibilidade (PIGLIUCCI, 2007).
Jablonka e Lamb (2010) enfatizam a abordagem genecentrista da Síntese Mo-
derna e argumentam sobre a revolução a que o pensamento biológico sobre heran-
ça está submetido. “As mudanças conceituais que estão ocorrendo estão baseadas
no conhecimento de quase todos os ramos da biologia, mas o foco deste livro será
sobre a herança. Estaremos argumentando que: há mais coisas na herança do que
genes; algumas variações hereditárias não são aleatórias na origem; alguma infor-
mação adquirida é herdada; a mudança evolutiva pode resultar tanto de instrução
como de seleção” (JABLONKA e LAMB, 2005, Prólogo, p. 1).
Assim, abordam a questão da evolução sob quatro dimensões (genética, epi-
genética, comportamental e simbólica). A segunda dimensão descrita pelas au-
toras é a epigenética. Partindo do conhecimento já estabelecido de que as células
de um metazoário complexo apresentam diferenciação morfológica e funcional
apesar de todas terem idêntico conteúdo de DNA, portanto apresentam diferen-
ças epigenéticas, elas mostram que a controvérsia surge quanto à interpretação do
papel desse fenômeno na evolução, tanto pela transmissão geração após geração,
como do seu papel na evolução adaptativa. A idéia de um sistema epigenético com
grandes repercussões evolutivas é introduzida através de um thought experiment
(experimento de pensamento), como elas referem. Imagine-se um planeta, Jaynus,
onde todos os seus organismos possuam idêntico DNA; surpreendentemente, esse
planeta apresenta uma diversidade extraordinária de formas e modos de vida (JA-
BLONKA e LAMB, 2010).
Para Dawkins, torna-se cada vez mais insustentável atribuir uma interpreta-
ção “genecêntrica” ao processo evolutivo (especialmente ao considerar que novas
descobertas da biologia molecular questionam o verdadeiro significado do termo
gene) e a definição clássica de evolução como uma mudança na frequência gênica
— o que é resultado de uma leitura direta da Síntese Moderna (PIGLIUCCI, 2007).
Finalmente, há vários fenômenos biológicos importantes que são ignorados,
ou minimizados, ou eram simplesmente desconhecidos no momento da formu-
lação da SM. Três exemplos são suficientes para destacar esse ponto: plasticidade
fenotípica, possibilidade de capacidade evolutiva e herança epigenética. Plastici-
dade costumava ser descartada como algo que complicava os estudos evolutivos.
Dentro das duas últimas décadas, a plasticidade adquiriu um papel importante no
cenário evolutivo, com vários livros, dezenas de artigos e incontáveis papers teó-
ricos e empíricos voltados para o entendimento e participação da plasticidade no
processo evolutivo. A ação recíproca entre a plasticidade e a seleção, por exemplo, é
complexa, a plasticidade por si só é uma propriedade de evolvabilidade do sistema
158 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

de desenvolvimento genético dos organismos vivos (que pode ser selecionado e


tornar-se adaptável), ao passo que, em outras vezes, a plasticidade pode tamponar
a ação da seleção, levando a um acúmulo de redundância genética. Plasticidade e
evolvabilidade produzem a possibilidade da capacidade evolutiva, da acumulação
de variedade genética oculta, que pode ser desencadeada sob condição de estresse,
possibilitando a apresentação de caminhos alternativos para a origem de novos
fenótipos (PIGLIUCCI, 2007).
Para El-Hani e Almeida (2010), hoje, a biologia evolutiva é mais pluralista,
recorrendo tanto à seleção natural como a outros mecanismos — já menciona-
dos — para explicar a origem de características e espécies de seres vivos. A partir
da estruturação do campo de estudo da Biologia evolutiva, uma explicação mais
completa e consistente sobre a origem das formas sobre as quais a seleção natural
pode atuar está sendo delineada. Dessa forma, fortalecemos a visão darwinista da
evolução, ao construir uma teoria mais sólida sobre a origem da diversidade das
formas orgânicas (ALMEIDA e EL-HANI, 2010).
Assim, uma vez que a ciência é estabelecida, o quadro conceitual da mesma
tem uma tendência maior a se expandir do que a ser substituído, uma vez que o
novo modelo não é incomensurável com o mais antigo, mas pode ser interpretado
como um caso limitante ou ainda mais amplo do que o antigo (PIGLIUCCI, 2007).

Tais mudanças no modo como os cientistas explicam fenômenos


naturais não devem causar surpresa. Um dos mais importantes le-
gados da filosofia dos últimos 150 anos foi a demonstração de que
seres humanos não podem construir mais do que modelos para a
compreensão do mundo. Esses modelos se mantêm e são úteis por
um período, mas podem sempre ser superados. E a ciência cons-
truiu procedimentos sem precedentes na história da humanidade
tanto para propor modelos eficazes quanto para superar os pró-
prios modelos (EL-HANI E MEYER, 2009, p. 1).

Dessa forma, embora devamos considerar a possibilidade de interferência e


ação desses conceitos — que devem ser tratados como fatores evolutivos e, portan-
to participantes ativos do processo evolutivo — na evolução biológica é importante
ressaltarmos que não estamos pleiteando a construção de um novo paradigma e
nem considerando obsoletos os pressupostos darwinianos. Para Pigliucci (2007),
nada do que foi proposto refuta ou contradiz qualquer princípio da Síntese Moder-
na. No entanto, devemos admitir que esses novos conceitos e resultados empíricos
já descritos na literatura podem, eventualmente, questionar a perspectiva centrada
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
159
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

na genética, prevalente na Síntese Moderna, e propor discussões cujo foco seja a


indagação da origem de novos planos corporais — imanentes a mudanças no pa-
drão de desenvolvimento.

2. As implicações dos estudos sobre Epistemologia


na Didática da Biologia: Por que discutir os desdo-
bramentos atuais da Síntese Moderna com alunos de
um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas?

Smith e Siegel (2004 apud SEPÚLVEDA E EL-HANI, 2007), ao defenderem


que o objetivo do ensino de ciências deve ser o de promover a compreensão apro-
priada dos conceitos, das teorias e dos modelos científicos, propõem quatro cri-
térios para a compreensão: conectividade, atribuição de significado, aplicação e
justificação. De acordo com estes critérios, a compreensão de uma teoria científica
implica que o aluno possa: (1) identificar e relacionar os conceitos envolvidos, de
modo a poder (2) atribuir significado a estes conceitos, com base nas interconexões
entre eles; (3) ser capaz de aplicar a teoria numa variedade de situações, tanto aca-
dêmicas quanto não-acadêmicas; (4) apreciar algumas das razões que a justificam,
que a tornam melhor explicação científica para um dado fenômeno, com base em
sua consistência empírica (e, deve-se adicionar, também com base em sua consis-
tência teórica, ou seja, na natureza de suas relações com outras teorias científicas
largamente aceitas num dado momento histórico).
Assim, buscando uma aproximação entre a pesquisa acadêmica e o espaço de
formação inicial, bem como a de licenciandos com o “fazer científico” (os mean-
dros, debates e consensos a que a construção de conceitos científicos está cons-
tantemente submetida), é necessário arguir de que maneira conceitos como Evo-
-Devo, plasticidade fenotípica, Teoria de Construção de Nicho e epigenética (não
ignorando outros) podem contribuir para uma reestruturação da biologia evolu-
tiva que ultrapasse o arcabouço teórico da Síntese Moderna. E, caso concordemos
que esses mecanismos subsidiam um melhor entendimento do processo evoluti-
vo, por apresentar novos agentes causais na produção da diversidade biológica,
precisamos buscar maneiras de incluir esse conhecimento no ensino da evolução,
inicialmente, na formação de novos biólogos e professores de biologia (ALMEIDA
e EL-HANI, 2010).
Ainda que o pensamento evolutivo não se restrinja ao darwinismo, nem este
último, por sua vez, à teoria da seleção natural, e mesmo tendo em vista as críticas
160 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

a uma visão estritamente adaptacionista da natureza, consideramos que poucos


biólogos e educadores deixariam de considerar a compreensão da teoria da seleção
natural um dos objetivos a serem alcançados pelo ensino de biologia (SEPÚLVE-
DA e EL-HANI, 2007).
A ausência de análise causal e etiológica nas explicações dos alunos acerca
de fenômenos adaptativos tem sugerido que o primeiro passo para abordagem do
conceito darwinista de adaptação consiste em problematizar o próprio fenômeno,
partindo de sua descrição empírica em direção à necessidade da busca de um me-
canismo causal que explique sua existência. A expectativa é de que assim se con-
siga mostrar que características como formas e cores miméticas de alguns insetos
ou as sofisticadas penas das aves pedem respostas a indagações não só do gênero
‘Como são?’, ‘Como funcionam?’, mas também ‘Como ou de onde se originaram?’
ou ‘Por que existem?’ (SEPÚLVEDA e EL-HANI, 2007).
Nesse sentido, nosso objetivo é colaborar com a articulação entre a Epistemo-
logia e a Didática da Biologia, armando-se dos recursos teóricos da primeira para
estruturar estratégias de ensino, cujo escopo esteja em aproximar discussões filo-
sóficas contemporâneas da realidade do aluno licenciando em Ciências Biológicas.
Para tanto, a organização do Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia
(GPEB) preconizou discussões acerca da evolução biológica, sob a perspectiva de
uma pluralidade de processos, com o intuito de investigar as dificuldades epistemo-
lógicas cooptadas das falas dos alunos, buscando inferências teóricas que justifiquem
essas dificuldades. A identificação desses obstáculos pode ser um ponto de partida
para elaboração de textos teóricos, cuja atenção seja atingir a formação inicial.
A problematização e a concomitante relação entre os conteúdos de diversi-
dade de forma orgânica, seleção natural, desenvolvimento, evolução biológica e
organismo adaptado foi uma das dificuldades epistemológicas identificadas du-
rante as reuniões do GPEB. Os alunos discorriam acerca desses conceitos, mas
não identificavam a relação entre os mesmos, uma vez que argumentavam que não
havia limitações fenotípicas no rol de variedades cuja seleção natural submeteria a
uma triagem (coerente à determinada pressão seletiva) e, portanto, um organismo
selecionado naturalmente sempre estaria perfeitamente adaptado ao seu ambiente.
Assim, a interface entre Epistemologia e Didática fica prospectada em objetos de
estudo engendrados a partir de um espaço de formação, cujo objetivo é, também,
inserir debates contemporâneos na formação inicial.
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
161
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

3. A discussão engendrada no GPEB

Com base em toda a literatura descrita e na concepção que os alunos apre-


sentaram sobre seleção natural nas primeiras reuniões (tratavam seleção natural
e evolução quase como sinônimos), um dos questionamentos bem explorados du-
rante as reuniões foi “Um organismo pode estar perfeitamente adaptado ao am-
biente em que está? A seleção natural atua em um ‘rol’ máximo de variedades
fenotípicas?”.
O intuito era investigar se os alunos fariam a relação entre as restrições do
processo de desenvolvimento e as variantes fenotípicas de uma população, nas
quais a seleção fará a triagem; se os mesmos entenderiam que, para um organismo
estar perfeitamente adaptado, ele deveria ser selecionado em uma população em
que todas as formas orgânicas possíveis estivessem disponíveis para subsequente
atuação da seleção natural.
De acordo com Meyer e El-Hani (2005),

as características adaptativas, na história evolutiva de uma espé-


cie, somente permitiram que os organismos que as apresentavam
tivessem mais sucesso, relativamente a outros organismos da mes-
ma população, na sobrevivência e reprodução em um determina-
do ambiente. Elas seriam perfeitas e seus portadores, organismos
ótimos, somente se toda variação possível estivesse presente em
uma dada população, em um dado momento da história evolutiva,
mas isso, é claro, nunca acontece. Assim, as características sele-
cionadas são sempre as mais favoráveis dentro de um espectro de
variações disponíveis numa população, e não características que
se mostram perfeitas diante de desafios que o ambiente apresenta
para os organismos (...) Muitas pessoas pensam que se os organis-
mos estão sendo, continuamente, selecionados de modo a se adap-
tarem as condições ambientais nas quais vivem, a evolução deverá
fazer com que as populações se tornem, com o tempo, cada vez
mais capazes de sobreviver nesse ambientes, alcançando por fim,
uma condição ótima, na qual os organismos e suas características
estariam perfeitamente adaptados à vida nessas condições (p. 69).

Com base nesse questionamento, ficou claro que uma das dificuldades con-
ceituais expostas pelos alunos nas reuniões está centrada na afirmação de que os
162 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

organismos, desde que estejam se reproduzindo e alimentando-se, estão maxi-


mamente adaptados a seus ambientes e, portanto, são resultados de uma seleção
natural que atuou em um rol máximo de variações. Ou seja, dentre todas as pos-
sibilidades possíveis fenotipicamente, a seleção “escolheu” a “melhor”, já que o or-
ganismo é capaz de realizar atividades vitais (fundamentais e suficientes para sua
sobrevivência) e, portanto, está perfeitamente adaptado.
As transcrições evidenciam a relação entre adaptação e nicho ecológico. Os
alunos relacionam o conceito de nicho com a adaptação. Para eles, a visualização
do indivíduo como saudável, realizando atividades fundamentais para sobrevivên-
cia, como alimentar-se, reproduzir-se é um indício de que o mesmo está perfeita-
mente adaptado ao ambiente em questão.
Outra relação bem estabelecida e identificada nas transcrições faz-se entre a
adaptação e a economia da natureza. Para os alunos, é a associação da restrição
morfológica com o gasto energético, remetendo à questão da “economia da nature-
za”. Assim, atribuem à restrição da existência de alguns fenótipos ao gasto energé-
tico que os mesmos proporcionariam ao indivíduo portador, caso fossem viáveis.
Por meio da detecção das dificuldades conceituais cooptadas das transcri-
ções, é possível inferir que os alunos não entendem o processo de desenvolvimento
como um processo que restringe a diversidade de formas orgânicas, as quais se-
riam inviáveis em alguma etapa do desenvolvimento e, portanto, restringe o “rol”
de possibilidades nas quais a seleção natural atua e justifica, portanto os fenótipos
existentes. Se esse “rol” não é infinito, uma vez que o processo de desenvolvimento
não é totalmente plástico, não há como afirmar que um organismo está perfeita-
mente adaptado ao ambiente em questão.
Outro fato que dificulta esse entendimento por parte dos alunos é a falta de
entendimento sobre a relação entre desenvolvimento e evolução biológica, proces-
sos distintos que, no entanto, influenciam-se mutuamente: “a evolução modifica
o desenvolvimento (o desenvolvimento evolui!) e o desenvolvimento influencia o
curso da evolução, na medida em que, no caso dos organismos multicelulares, ele
é o processo responsável pela produção da forma orgânica e, assim, de qualquer
inovação morfológica que observemos em tais organismos” (ALMEIDA e EL-HA-
NI, 2010 p.13). Nesse sentido, percebeu-se nas discussões do GPEB que os alunos
não fazem a relação entre as restrições do desenvolvimento e as formas orgânicas
existentes, não trabalhando com a possibilidade de existência de fenótipos que
poderiam estar mais adaptados e, no entanto, não chegaram a estar entre a diversi-
dade presente para atuação da seleção natural. Em reuniões subsequentes, quando
a pergunta “a seleção natural atua em uma variedade limitada” era associada com
“porque não encontramos outros padrões de formas orgânicas?”, a relação de res-
CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
163
discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

trição do desenvolvimento passou a ficar mais clara para os alunos, e os mesmos


argumentaram que não era mais possível afirmar que um organismo está perfeita-
mente adaptado ao ambiente em questão, no espaço e tempo determinados.
Além disso, a análise das transcrições evidencia, por parte dos alunos, uma
mobilização frequente de argumentos de cunho ecológico — mais especificamen-
te do conceito de nicho ecológico e desmembramentos conceituais imanentes ao
mesmo — o que pode indicar mais uma evidência da necessária abordagem sis-
têmica dos conteúdos biológicos para explicação não só do processo de evolução
biológica, mas de outros conceitos estruturantes da Biologia. Como argumentado
por Pigliucci (2007), há uma lacuna na questão ecológica dentro do quadro con-
ceitual da Síntese Moderna, o que, possivelmente, também ocorre no ensino e,
portanto, a articulação entre fenômenos ecológicos e evolutivos é estabelecida de
forma incompleta ou reduzida.
Como afirmam El-Hani e Almeida (2010), a partir das condições teóricas
atuais ancoradas ao conceito de evolução biológica, há uma tendência para estru-
turação de um campo de estudo denominado Eco-Evo-Devo, por meio do qual
poderemos estabelecer relações entre três grandes áreas das ciências biológicas,
identificando articulações subjacentes ao Ensino e a Didática da Biologia.

4. Considerações finais

A literatura discutida evidencia os percalços aos quais o “fazer ciência” está


submetido. Para muitos autores, a evolução é um eixo estruturante do conheci-
mento biológico e, desde meados de 1940, vem sendo regida pelos conceitos estabe-
lecidos pela Teoria Sintética. Essa teoria é um dos grandes paradigmas da Biologia
e, no entanto, está submetida a modulações e incorporações teóricas decorrentes
de avanços na pesquisa empírica. Os dados de pesquisa ampliam os embasamen-
tos de discussões epistemológicas, as quais apontam para uma releitura de alguns
pressupostos estabelecidos por esse paradigma, uma vez que, da maneira como
estão colocados, dificultam a explicação do surgimento de novos planos corporais,
além de ignorar a intercorrência de outros fatores causais/explicativos participan-
tes do processo de evolução biológica.
Essas “lacunas” discutidas ao longo desse texto são refletidas, obviamente, em
lacunas epistemológicas, as quais, na maioria das vezes, são ignoradas na esfera
do Ensino. A abordagem dessas possíveis (re)configurações do corpo de conheci-
mento de uma ciência possibilita o entendimento da natureza da ciência, a com-
164 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

preensão de que o conhecimento, embora vigente por muitos anos, está sujeito a
embates constantes. É importante ressaltar que esses embates não culminam, ne-
cessariamente, com a obliteração ou abandono de um paradigma, mas com refle-
xões imanentes a uma nova estruturação que, na maioria das vezes, ainda mantém
os “pilares” desse paradigma inalterados. A manutenção desse diálogo deve ser
uma constante entre pesquisadores e professores, uma vez que as pesquisas devem
atingir a formação inicial.
As reuniões do GPEB situam os alunos em um espaço de formação cujo ob-
jetivo vai além das modulações conceituais consensuais e bem estabelecidas nos
currículos ou bem descritas nos materiais didáticos, propondo uma organização
que solidifica a relação entre o fazer científico e o conhecimento engendrado nos
ambientes de formação (no caso, de ensino superior). Assim, discussões contem-
porâneas acerca de configurações conceituais são debatidas com os alunos, de
forma a auxiliá-los a pensar epistemologicamente, expondo dificuldades, as quais
podem ser indicadores de artefatos necessários para subsídios didáticos.
O recorte apresentado aqui faz referência a conceitos discutidos em artigos
publicados atualmente sobre biologia evolutiva e procura investigar qual o posi-
cionamento argumentativo dos alunos perante a essa abordagem atual. Os dados
indicam que os participantes do grupo não têm acesso a leituras ou discussões
dessa natureza nas disciplinas do curso de graduação. Esse contexto reitera a ne-
cessária articulação entre a epistemologia e a didática, uma vez que a consolidação
das abordagens epistemológicas no ensino pode ocorrer por meio de produções
didáticas, sejam elas textos, diagramas ou esquemas.
Assim, nosso intuito foi enfatizar a importância da inserção de discussões
atuais no Ensino de Biologia, bem como configurar direcionamentos construções
de uma Didática da Biologia que seja orientada por pressupostos epistemológicos.

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CAPÍTULO 7 - Evolução Biológica: Do Darwinismo à Síntese Expandida: A importância de
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discussões epistemológicas acerca desse conceito para o Ensino de Biologia

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166 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

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Francisco José de Caldas. 2007.
CAPÍTULO 8

A teoria da seleção de parentesco e os valores


cognitivos: o juízo científico de uma teoria
biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey

Daniele Cristina de Souza1


Antonio Fernandes Nascimento Júnior2

Introdução

No presente trabalho será apresentado um exercício de juízo científico de uma


teoria biológica baseando-se na abordagem de Lacey (1998). Esta análise constitui na
identificação e elaboração de uma lista com os valores cognitivos que possibilitem
demonstrar quais os valores implicaram na consideração da teoria ser adequada pela
comunidade científica. Essa abordagem permite questionar a autonomia e a neutra-
lidade da ciência, porém conflui na sustentação da ideia de imparcialidade científica
presente no momento de aceitação de uma teoria pela comunidade científica.
Hugh Lacey nos propõe em “Valores e Atividades científicas” (1998) uma abor-
dagem alternativa para o juízo científico, se distanciando da utilização das regras
(indutivas, dedutivas, hipotético-dedutivas ou da probabilidade). Nas palavras do
autor:

Esta abordagem analisa a racionalidade em termos de conjuntos


de valores (“valores cognitivos”) [...] e propõe que os juízos cien-
tíficos corretos são feitos por meio do diálogo entre os membros
da comunidade científica acerca do nível de manifestação de tais
valores por uma teoria, ou por teorias rivais (LACEY, 1998, p.61).

1 Doutora em Educação para a Ciência, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita


Filho”, Faculdade de Ciências, campus Bauru. Email: danicatbio@yahoo.com.br
2 Professor Adjunto, Universidade Federal de Lavras, Departamento de Biologia. Caixa Pos-
tal 3037, CEP 37200-000, Lavras, Minas Gerais. Email: toni_nascimento@yahoo.com.br
168 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Os valores cognitivos são critérios que a teoria deve contemplar para que seja
aceita pela comunidade cientifica. Lacey nos apresenta a seguinte lista trazida aqui
de forma resumida, embora ressalta que estes não são os únicos, mas os mais re-
presentativos:
1. Adequação empírica – aspectos que tratam da relação entre a teoria pro-
posta e os dados empíricos a ela relacionada.
2. Consistência – nos argumentos estruturantes da teoria, em sua relação
com outras teorias aceitas e com as concepções dominantes em torno do
objeto de estudo.
3. Simplicidade – da própria teoria (harmonia, clareza conceitual, elegância).
4. Fecundidade – potencial para fomentar a atividade cientifica.
5. Poder explicativo – capacidade de explicação do fenômeno proposto a es-
clarecer, assim como a capacidade em unificar outros fenômenos e teo-
rias, e possibilitar uma argumentação em torno do que é infundado em
teorias anteriores.
6. Verdade; certeza – a veracidade dos argumentos teóricos em relação a
princípios fundamentais e aos dados.

Após listar os valores cognitivos, como justificá-los? De acordo com Lacey


(1998), são quatro tipos de considerações em relação a como justificar que um cri-
tério proposto seja um valor cognitivo, contudo para sua discussão informa que
cabe apenas uma delas, que diz respeito a se o critério serve ou não ao objetivo
da ciência. Neste sentido, assume-se que há um objetivo preponderante da ciência
(embora se argumente sobre objetivos alternativos) e que tal objetivo diz respeito à
ciência que utiliza a estratégia materialista de restrição e seleção, características da
ciência moderna. A restrição diz respeito à estratégia para restringir o tipo de teoria
a ser considerada e, a seleção, ao “tipo de dado empírico a ser procurado para o fim
de testar as várias teorias provisoriamente mantidas” (LACEY, 1998, p. 10), a qual
ocorre na fase 1 da atividade científica como apresentado por Lacey (2003, p. 121):

[...] É útil trabalhar com um modelo das práticas de pesquisa cien-


tífica segundo o qual existem três momentos-chave nos quais é
preciso fazer escolhas, a saber, os momentos de: (i) adotar uma es-
tratégia (ou regras metodológicas), (ii) aceitar teorias e (iii) aplicar
o conhecimento científico. Os valores sociais podem ter papéis le-
gítimos e importantes no primeiro e no terceiro momentos, porém
não no segundo, quando apenas os valores cognitivos e os dados
empíricos disponíveis têm papéis essenciais.
CAPÍTULO 8 - A teoria da seleção de parentesco e os valores cognitivos:
169
o juízo científico de uma teoria biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey

Dessa forma, o autor divide a sua discussão em três níveis: o primeiro é aquele
em que se selecionam as questões, os dados a serem investigados e se restringem
as teorias a serem consideradas (momento em que os valores sociais estão envol-
vidos, portanto é não neutro e não autônomo); outro nível é aquele da aceitação
da teoria no qual somente os valores cognitivos devem ser suficientes (visando a
imparcialidade); e um terceiro nível, que corresponde à apropriação e aplicação
do conhecimento científico (em tecnologia, por exemplo, que envolve também os
valores sociais).
A filosofia do materialismo científico possui uma formulação em torno do
que é a lei, a teoria, como elas se constituem, qual sua estrutura, função, valida-
ção e abrangência explicativa. Assim, de forma simplificada, as leis representam
relações entre quantidades. As teorias, por sua vez, expressam uma imagem das
coisas em termos de leis e quantidades. Nas teorias, os fenômenos são apresentados
abstraindo-se de qualquer relação com as questões relativas a valores sociais, por-
tanto estes últimos são irrelevantes para a representação teórica. Tais teorias são
comprovadas a partir de sua relação com os dados empíricos selecionados, estes que
são submetidos a critérios intersubjetivos de replicabilidade. Neste âmbito, os dados
que possuem maior destaque são os quantitativos, os que descrevem os fenômenos
abstraindo-os de seus contextos de valor, e o mais importante, os dados obtidos por
observação dos fenômenos produzidos pela experimentação (LACEY, 1998).
Neste sentido, “o objetivo da ciência é representar (em teorias racionalmente
aceitáveis), as estruturas, processos e leis subjacentes aos fenômenos e, a partir
disso, descobrir novos fenômenos” (LACEY, 1998, p. 69), ainda de acordo com este
objetivo “a teoria cientifica representa objetos [...] simplesmente em termos de suas
estruturas e seus componentes que interagem entre si segundo leis formuláveis
matematicamente” (LACEY, 1998, p. 70).
Considerando esta caracterização, a teoria escolhida para tal exercício foi a
teoria da seleção de parentesco, entendendo-a como coerente com a filosofia ma-
terialista discutida por Lacey (1998), e sendo fortemente reconhecida dentro da
comunidade científica das ciências biológicas.
Finalizando esta apresentação, ressalta-se que, ao utilizar a abordagem de La-
cey, se exige o conhecimento sobre a história da construção da teoria. O autor
chega a sugerir alguns dos critérios relevantes durante uma reconstrução racional
da aceitação de uma teoria. Segundo o autor:

Na elaboração de valores cognitivos, então, a primeira tarefa é in-


terpretativa e consiste na reconstrução racional de episódios-chave
da escolha de teorias e de controvérsias teóricas, a fim de discernir
170 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

os critérios que podem ser razoavelmente apontados como aqueles


empregados por seus participantes (LACEY, 1998, p. 66).

Sendo assim, é trazida uma síntese da teoria com os pontos considerados mais
relevantes para a identificação dos valores cognitivos envolvidos e, por fim, a lista
de valores cognitivos é elaborada e discutida.

1. Um pouco do contexto da construção da Teoria da


Seleção de Parentesco

A teoria da seleção de parentesco ou fitness inclusivo explica a existência do


comportamento cooperativo altruísta, principalmente a vantagem do altruísmo
como forma de favorecer a seleção dos genes familiares. Isto é, responde a questão
de como o comportamento altruísta pode fornecer uma vantagem adaptativa e,
portanto, seletiva para as populações.
Ao ter como premissa a ideia de seleção natural proposta por Darwin, se apre-
sentaram no cenário até meados do século XX alguns problemas teóricos e empíri-
cos que não eram explicados por aquela teoria. Dizendo de outra forma, não fazia
sentido a existência do comportamento altruísta a partir das premissas existentes
na teoria da seleção natural de Darwin.
Neste contexto, na década de 1960, a proposta de Hamilton de um mecanismo
evolutivo baseado na seleção de parentesco proporcionou a explicação de vários
fatos e abriu espaço para outros questionamentos, gerando, por exemplo, a teoria do
altruísmo recíproco, da qual ele próprio participou na elaboração (Martinez, 2003).
Na Biologia, define-se o altruísmo, de maneira ampla, como o comportamen-
to que beneficia o outro organismo proximamente ou não muito relacionado, em
aparente detrimento do organismo que se comporta altruisticamente, sendo que o
benefício e o detrimento dizem respeito à aptidão biológica de sobrevivência e de
reprodução (transmissão dos genes) (MARTINEZ, 2003).
Dessa forma, a teoria da seleção de parentesco vem esclarecer algumas ques-
tões levantadas pela teoria da evolução de Darwin, assim como possibilitar a expli-
cação da existência e vantagem adaptativa de vários comportamentos sociais ob-
servados em diferentes espécies (inclusive a humana). Contribui para consolidação
da ciência que estuda o comportamento animal, a Etologia (MAIA, s.d; MARTI-
NEZ, 2003) e a Sociobiologia (WILSON e WILSON, 2007), estas duas últimas que
se estruturaram em meados e final do século XX. É considerada uma das maio-
CAPÍTULO 8 - A teoria da seleção de parentesco e os valores cognitivos:
171
o juízo científico de uma teoria biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey

res contribuições teóricas à Biologia depois da teoria da evolução proposta por


Darwin e Wallace (MAIA, 2005). Kerr (2000) também ressalta essa relevância.
Esta teoria está associada a diversas outras teorias (teoria dos jogos, teoria do
altruísmo recíproco, teoria do gene egoísta, teoria da seleção sexual (TRIVERS
e HARE, 1976). Também, com diferentes áreas da biologia, utilizando conheci-
mentos teóricos já existentes para sua estruturação (leis de Mendel, genética de
populações e seleção natural, por exemplo).
Dessa forma, uma vez que a teoria da seleção de parentesco esta fortemente
relacionada à ideia de seleção natural, faz-se necessária uma maior contextualiza-
ção de sua inserção em relação à explicação do fenômeno da evolução das espécies
baseada neste mecanismo evolutivo apresentado por Darwin. O raciocínio enca-
deado na teoria escolhida é baseado em muitos princípios da seleção natural, so-
bretudo na teorização realizada com o neodarwinismo. Assim, compreender um
pouco dessa relação facilita a decisão e a caracterização dos valores cognitivos.
O que Maia (2005, p. 4-5) nos coloca sintetiza o princípio adotado na propo-
sição de Darwin, no qual se considera que o indivíduo é mais adaptado quanto
maior sua capacidade de sobrevivência e reprodução, deixando o maior número
possível de seus genes dentro da população (tal mecanismo não é consciente pelos
indivíduos):

A Teoria da Evolução está baseada na ideia de seleção natural.


Dentro de uma espécie, os indivíduos não são geneticamente idên-
ticos. Portanto, a sobrevivência e a reprodução dependem, em
grande parte, das características herdadas. Isto quer dizer que so-
brevivência e reprodução não ocorrem aleatoriamente. As caracte-
rísticas de um indivíduo poderão ser vantajosas ou não. Se forem,
esse indivíduo deixará mais descendentes do que aqueles que não
as têm e terá um diferencial de reprodução. Um traço somente se
firma na espécie, se apresentar uma vantagem para o seu detentor,
não havendo espaço para caprichos na natureza. Para ir bem na
batalha pela sobrevivência, nada de traços inúteis.

Além disso, afirmava-se que havia a competição entre os indivíduos para que
eles pudessem ter um maior sucesso reprodutivo e, para isso, eles investiam suas
capacidades neles próprios e não em quaisquer outros, buscando maximizar seu
sucesso ecológico (MAIA, 2005). Tais afirmações fazem sentido e explicam vários
fatos na natureza. Contudo, como se explica a organização social das abelhas, em
que apenas uma fêmea (rainha) se reproduz e os demais integrantes da sociedade
172 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

(campeiras, soldados etc) realizam outras atividades, auxiliando a manutenção do


ninho e os cuidados com as crias da rainha (sua mãe)? (DEAG, 1981). Como se
explica o comportamento de diversas espécies de aves e primatas como o macaco-
-prego (Cebus sp.) e saguis (Callithrix sp.) que agem altruisticamente em benefício
reprodutivo de outro em detrimento do seu próprio benefício?
Darwin chegou a afirmar que o altruísmo foi selecionado em benefício da
espécie, porque a seleção natural às vezes age indiretamente sobre o indivíduo.
Contudo, sem o conhecimento da genética, ele mesmo não acreditava em sua afir-
mação (também propôs a teoria da seleção de grupo, a qual tem alguns problemas
empíricos, porém há quem a defenda até hoje). Foi na década de 1960, com o de-
senvolvimento maior da genética, que se conclui que a seleção natural agia sobre os
genes em vez de agir sobre a espécie. Neste contexto, a hipótese de Darwin sobre a
ação indireta da seleção sobre o indivíduo tornou-se compreensível e foi reformu-
lada. Porém, havia alguns problemas que se constituíram mediante a realização de
cálculos matemáticos da genética de população (MAIA, 2005).
Se o altruísmo existe em benefício da espécie, então todos deveriam ser altru-
ístas. E, ainda, se o altruísmo diminui o sucesso reprodutivo (custo para o Fitnees)
do donatário em benefício do sucesso reprodutivo (benefício para o fitnees) do
recebedor, é fácil perceber que os não-altruístas terão maior sucesso reprodutivo
que os altruístas, e portanto os genes dos altruístas não serão transmitidos dentro
da população, tendendo a desaparecer (MAIA, 2005 e MARTINEZ, 2003).
Outra ideia que surgiu na época foi a teoria do gene egoísta proposta por Ge-
orge Willians, mas mais disseminada por Richard Dawkins em 1976, em que há a
ideia de que “a sobrevivência é do gene mais apto”, e que embora a seleção natural
possa ser mais visualizada ao olharmos para o fenótipo do indivíduo, tal fenóti-
po é constituído fortemente por seu genótipo (genes) e, portanto, os genes agem
em beneficio próprio de sua sobrevivência em detrimento do próprio indivíduo.
(MAIA, 2005). Foi neste contexto de teorias e problemas que a teoria da seleção do
parentesco se constituiu.

2. A Teoria da Seleção de Parentesco

William D. Hamilton propôs sua teoria em dois artigos publicados no “Jour-


nal Theoretical Biology” no ano de 1964 intitulados “The genetical evolution social
behaviour I e II” e também em outros importantes artigos (HAMILTON, 1970,
1971a, 1971b e 1972). O seu conceito central é a Aptidão Inclusiva, que vem a ser a
CAPÍTULO 8 - A teoria da seleção de parentesco e os valores cognitivos:
173
o juízo científico de uma teoria biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey

soma da aptidão própria do indivíduo e todos os efeitos que causam às aptidões das
partes relacionadas de todos seus parentes.
No contexto de questionamentos apresentados anteriormente, surgidos prin-
cipalmente por observações empíricas de comportamentos altruístas dos animais
que não eram explicados pelas teorias existentes e estavam em descompasso com a
ideia de seleção natural, questiona-se: como tais comportamentos evoluíram? Em
outros termos, como eles conseguiram se manter nas populações mediante a ação
da seleção natural?
Uma resposta é que os animais comportam-se altruisticamente somente em
relação a seus parentes (irmãos, primos, pais e filhos) que possuem alguns genes
em comuns entre si.

O resultado final de um ato altruístico, portanto, é aumentar, na


população, a frequência relativa dos genes do recipiente [o orga-
nismo é considerado um recipiente dos genes], incluindo os genes
que ele tenha em comum com outros; dessa forma, a aptidão
abrangente do altruísta aumentou. Dessa forma, a seleção favo-
receu animais que ajudam parentes próximos, desde que os bene-
fícios (em termos de genes em comum sendo perpetuados) ultra-
passem perdas diretas de aptidão (por exemplo perda de energia
ou perda da vida pelo altruísta). Segue-se que animais que ajuda-
rem indivíduos não-parentes serão descartados pela seleção, por
estarem perpetuando os genes dos não-parentes, em lugar de seus
próprios (DEAG, 1981, p. 17, grifo do autor.)

A aptidão abrangente é um termo usado por Hamilton (1964) como uma ma-
neira de calcular as condições sob as quais um gene poderia se disseminar numa
população, levando em conta o efeito que portadores deste gene poderiam ter em
diferentes tipos de parentes. A proposição de Hamilton teve muito êxito e se ba-
seou no tipo de reprodução dos hymenoptera (insetos sociais – formigas, vespas,
abelhas), a qual tem um ciclo haplo-diplóide, isto é uma fase do ciclo reproduti-
vo é assexuado (haplóide: n), em que se originam os filhos sem a contribuição do
cromossomo do macho, e outra parte do ciclo é sexuada (diplóide: 2n), em que há
a junção dos cromossomos masculinos e femininos n+n que originam as fêmeas
(DEAG, 1981; SMITH, 1984). Neste sentido, este pesquisador é considerado apa-
rentemente o primeiro a apreciar a síntese da genética mendeliana com a teoria da
seleção natural de Darwin, tendo uma profunda implicação na teoria social (TRI-
VERS e HARE, 1976).
174 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Um das características que fortaleceram a teoria da seleção de parentesco foi


um modelo matemático simples, para um simples problema, mas que teve conse-
quências em várias áreas. Ele propôs um modelo para explicar o comportamen-
to das formigas que acabou por explicar o altruísmo destinado aos parentes que
ocorre em diversas espécies na natureza. Seu modelo explicou como o gene que
codificava para o altruísmo aumentava sua própria frequência dentro do pool gêni-
co (conjunto de alelos de genes que podem ser encontrados no material genético).
Com isso, o fato do altruísmo passou a fazer sentido em relação à ideia de seleção
natural (MAIA, 2005).
O modelo de Hamilton nos coloca o seguinte: c < rb , ou seja, uma caracte-
rística selecionada por parentesco pode aumentar sua frequência se o custo do
caráter ao seu portador em termos de valor adaptativo individual (c) for menor
que o benefício em valor adaptativo dispensado aos parentes (b), ponderado pelo
coeficiente de parentesco (r) entre doador e o beneficiário da ação.
Assim, as fêmeas de uma espécie haplo-diplóide possuem ¾ de seus genes em
comum com suas irmãs, mas somente ½ de seus genes em comum com suas filhas,
já uma espécie diplóide normal teria em comum a metade de seus genes tanto com
suas irmãs como com suas filhas. Dessa forma, uma fêmea hymenoptera contribui
mais na conservação de seus genes se ficar em casa cuidando de suas irmãs do que
se sair para criar sua própria família (SMITH, 1984; DEAG, 1981).
Mas e nas espécies diplo-diplóides em que somente há reprodução sexuada,
como este princípio se aplica? Em termos genéticos, levando em consideração a
proposição de Hamilton, só compensa o sujeito diplo-diplóide arriscar sua vida ao
agir altruisticamente em relação a mais que dois filhos ou mais do que dois de seus
irmãos, ou mais do que oito de seus primos (DEAG, 1981).
Embora os comportamentos de nós, seres humanos (diplo-diplóides), sejam
e possam ser explicadas biologicamente seguindo os mesmos princípios das de-
mais espécies, como é buscado na sociobiologia e no darwinismo social (MAIA,
2005), entende-se também que o raciocínio de Hamilton não se aplica a nós, pois
há vários outros elementos envolvidos, principalmente os culturais (DEAG, 1981).
Para os seres humanos, há outras teorias que explicam o altruísmo, inclusive em
outras áreas, como a sociologia (WAIZBORT, 2008) e psicologia (MARTINEZ,
2003). Exemplificando algumas teorias complementares à explicação da evolu-
ção do comportamento altruísta, temos a teoria dos jogos e a teoria do altruísmo
recíproco. Neste âmbito, há a problemática de que existem espécies (como nós,
humanos) em que há comportamentos altruístas em relação aos não-aparentados
(MAIA, 2005).
CAPÍTULO 8 - A teoria da seleção de parentesco e os valores cognitivos:
175
o juízo científico de uma teoria biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey

3. A lista de valores cognitivos identificados

Para incluir um valor na lista é necessário que o item satisfaça duas condições:
“1) que seja necessário para explicar (mediante reconstrução racional) as escolhas
da teoria efetivamente realizadas pela comunidade científica; e 2) que sua signifi-
cação cognitiva ou racional seja bem sustentada” (LACEY, 1998, p. 65).
A partir da literatura consultada sobre a teoria, percebeu-se que um dos valo-
res mais ressaltados pelos autores foi a consistência necessária dentro da própria
teoria e de sua consonância em relação a outras teorias e leis aceitas (como seleção
natural, genética mendeliana e genética da população).
A adequação empírica é o segundo valor, mas também poderia ser o primeiro,
pois, dentro da estratégia materialista, se não houver uma forte relação entre te-
oria e o fenômeno, a teoria não é aceita. Porém, por ter notado que um dos fortes
pressupostos para a consolidação da teoria foi sua consonância principalmente
com a seleção natural, então é coerente a adequação estar em segundo lugar. To-
davia fica uma dúvida em relação a tal escolha, pois Lacey coloca como aspecto
da adequação empírica a teoria estar de acordo com o conteúdo não refutado das
teorias anteriores. Então, se percebe uma ambiguidade neste aspecto, pois estar de
acordo e estar em consonância com a teoria soam com o mesmo sentido e valem
tanto para um valor quanto para o outro. A adequação empírica diz respeito a
alguns fatos, visto que o modelo matemático de Hamilton demonstrou-se eficaz
ao explicar como a frequência do gene que expressa o comportamento altruísta se
mantém dentro da população e como ele pode fornecer uma vantagem seletiva.
Mas tal explicação diz respeito somente ao altruísmo em relação a parentes, mas
em relação a não-parentados foram necessárias outras teorias para explicar (teoria
dos jogos e teoria do altruísmo recíproco).
O terceiro valor cognitivo valorizado é a simplicidade da teoria: com um mo-
delo simples e explicitando os conceitos, ela é clara e facilmente aplicável.
O poder explicativo (considerado característico de sua adequação empírica,
consistência e simplicidade) encontra-se em quarto lugar, pois forneceu a explica-
ção para a evolução do comportamento altruísta apresentado de diferentes formas
em diferentes espécies.
A fecundidade é o quinto valor, mas não menos importante que os anterio-
res, pois com a resolução do problema em torno da evolução do comportamen-
to altruísta tornaram-se possíveis o esclarecimento em torno do comportamento
social, um fortalecimento da teoria da seleção natural e uma contribuição para a
constituição da etologia e a sociobiologia. Unida a outras teorias como a teoria da
176 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

seleção sexual, possibilitou uma maior compreensão dos mecanismos evolutivos


que atuam sobre as espécies.
Os valores identificados ficam na seguinte ordem, embora sua hierarquização
seja dificultada pela interação dos diferentes valores entre si: 1) Consistência; 2)
Adequação empírica; 3) Simplicidade; 4) Poder Explicativo; 5) Fecundidade.

4. Considerações finais

Esta teoria é bastante reconhecida e aceita dentro da Biologia, pois consolidou


áreas que tratam de comportamentos sociais e de processos evolutivos. A partir de
tal compreensão, a teoria da seleção de parentesco, por estar de acordo com a es-
tratégia materialista, é entendida como a teoria mais adequada — uma teoria rival
considerada não tão consistente e com adequação empírica é a teoria da seleção
grupal (SMITH, 1984). Sua adequação se afirma principalmente em função de sua
maior concordância com o pensamento evolucionista vigente na Biologia, advindo
do mecanismo evolutivo proposto por Darwin (seleção natural), das proposições
da genética mendeliana e da genética das populações. Além disso, ela apresenta um
modelo matemático com um elemento grandemente valorizado que é tido como
responsável pela evolução das espécies: os genes (que pouco antes da proposição
da teoria tinham sido considerados como o local em que a seleção natural atua).
Ao desenvolver tal exercício analítico, foi possível perceber que, para se con-
seguir uma reconstrução racional mais próxima de como foi a aceitação de uma
teoria, é necessário uma maior pesquisa em torno da elaboração e consolidação da
teoria estudada, assim como de sua relação com teorias aceitas no período de seu
desenvolvimento e também de sua relação com teorias que foram derivadas dela,
para que seja possível a identificação dos valores cognitivos importantes.
A partir do exposto sobre a teoria da seleção do parentesco, é possível destacar
os valores cognitivos adotados para sua aceitação, porém há grande dificuldade
em hierarquizá-los, pois tais valores parecem estar muito interconectados. Muitas
vezes, a consideração de um aspecto que caracteriza um valor faz parte da carac-
terização de outro em menor ou maior grau, dificultando a distinção entre eles.
CAPÍTULO 8 - A teoria da seleção de parentesco e os valores cognitivos:
177
o juízo científico de uma teoria biológica a partir da abordagem de Hugh Lacey

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v22n63a19.pdf>. Acesso em 3 de novembro de 2011.
CAPÍTULO 9

A produção de conhecimento científico nas


investigações de Moisés Bertoni: uma reflexão
voltada às relações entre a história da ciência e
o ensino de ciências
Osleane Patrícia Gonçalves Pereira Sobrinho1
Ângela Maria Zanon2

Introdução

Os estudos sobre os processos que levaram à produção do conhecimento cien-


tífico ao longo da história proporcionam uma visão contextualizada dos conhe-
cimentos abordados no Ensino de Ciências, favorecendo a compreensão de que a
elaboração do saber científico faz parte do desenvolvimento cultural e histórico
do ser humano.
A aplicação da História da Ciência pode modificar o aspecto tecnicista de uma
aula em que apenas se apresentariam dados cronológicos, com nomes de pesquisa-
dores (MARTINS, 1990). Informações sobre a vida e obra dos cientistas, desde que
bem fundamentadas, ampliam a visão sobre o ambiente cultural de uma época,
permitindo o conhecimento das concepções que existiam e as dificuldades de acei-
tação de determinadas ideias, possibilitando maior motivação ao estudo e levando
ao entendimento de que a ciência não é algo imutável, ao mesmo tempo em que
não é um produto de uma mera concepção simplista do cientista e sim resultado de
estudos com as evidências da época em que este estava inserido.
Segundo Prestes e Caldeira (2009), houve um crescimento no interesse por
este tipo de abordagem no Ensino de Ciências a partir de 1970, tratando-se de
uma tendência que explora os aspectos históricos, filosóficos, sociais e culturais

1 Mestranda em Ensino de Ciências Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).


Email: patrícia.pereira.sobrinho@hotmail.com
2 Professora Associada e Chefe da Coordenadoria de Educação Aberta e a Distância da
UFMS, Programa de Pós-Graduação Mestrado em Ensino de Ciência.
180 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

da ciência por meio de enfoques e abordagens diversas, a fim de promover uma


formação que ultrapasse os limites entre o ensino dos conteúdos científicos e o de
seus contextos de produção.
Nesse sentido, este trabalho surgiu mediante uma inquietação: uma das autoras
desse trabalho residiu por vinte e dois anos em Foz do Iguaçu (PR), Brasil, muni-
cípio que faz parte da região onde Moisés Bertoni desenvolveu seus estudos, entre-
tanto nunca teve acesso às suas obras. Nem durante os anos de ensino básico, ou ao
decorrer do curso de graduação para o Ensino de Ciências e Biologia lhe foi pro-
porcionado qualquer contato com o trabalho deste estudioso, mais conhecido pelos
turistas, a maior parte estrangeiros, que realizam a visita ao Puerto Moisés Bertoni,
situado às margens do Rio Paraná, no município de Presidente Franco, Paraguai.
No intuito de proporcionar uma reflexão acerca da possibilidade de se discutir,
nas aulas de Ensino de Ciências, a validação e produção dos conhecimentos cien-
tíficos, serão apresentados, sucintamente, os estudos desenvolvidos por Bertoni,
utilizando-se, para tanto, um levantamento de ordem bibliográfica e documental.
Segundo Gil (2008), na pesquisa bibliográfica são analisadas as contribuições de
diversos autores sobre o objeto de estudo, enquanto a pesquisa documental vale-
-se de materiais que ainda não receberam um tratamento analítico. Ao decorrer
da pesquisa, foram analisadas as obras de Moisés Bertoni, hoje parte do acervo
da Biblioteca Nacional do Paraguai. Também foram objeto de análise pesquisas
desenvolvidas a partir de seus estudos. Os textos que estavam em espanhol foram
traduzidos para a língua portuguesa.
Como resultado do trabalho, apresenta-se uma de suas maiores contribuições:
os estudos voltados à botânica, nos quais descreveu a erva-mate (Ilex paraguaien-
ses), utilizada tradicionalmente pela população da região Platina (envolvendo todo
o Sul do Brasil, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, além de Argentina, Paraguai e
Uruguai) na forma de infusão (chás e chimarrão) ou como bebida gelada (tereré),
e a stevia (Stevia rebaudiana bertoni), um poderoso edulcorante, hoje utilizado em
indústrias do setor alimentício.

1. Moisés Bertoni: da origem aos ideais

Mosè Giacomo Bertoni (1857-1929), conhecido popularmente na região da


Tríplice Fronteira como o sábio Bertoni, nasceu em Lottigna, no cantão de Ticino,
região sul da Suíça, onde se tem como língua o italiano.
Filho de Ambrogio Bertoni (advogado e político ticinense) e Giuseppina Tor-
reani (professora), demonstrou, ao longo de sua vida, interesse por biologia geral,
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
181
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências

botânica, meteorologia, agricultura, zoologia, antropologia, mitologia e cultura


nativa, estudando, ainda na Suíça, os antigos habitantes dos Alpes, adotando uma
postura anticlerical e evolucionista. Em 1875, inicia seus estudos em Direito e Ci-
ências Naturais em Genebra; em 1876, deixa o curso e matricula-se na Faculdade
de Ciências em Zurich, onde conhece Eugenia Rossetti, com quem se casa (no mes-
mo ano) e tem ao longo da vida 13 filhos.
Em 1884, decide, com base em ideários anarquistas, sob influência de Peter
Kröpotkin e Élisée Reclus3, sair da Europa, partindo à América do Sul, mais pre-
cisamente a Misiones (Argentina) com o intuito de fundar uma colônia agrícola.
Reclus, que tinha estado na Colômbia, aconselha Moisés Bertoni a viajar para a
América do Sul, sugerindo dois lugares possíveis para a fundação da colônia agrí-
cola: Venezuela e Argentina, no território de Misiones.

Figura 1: Moisés Bertoni ao lado de Eugênia Rossetti, 1913

3 Jean Jacques Élisée Reclus (1830-1905) foi um dos fundadores da Geografia Humana.
Refugiou-se na Suíça depois de ser expulso da França, devido à participação na Comuna
de Paris (1871). Na Suíça, em Clarens, Vaud, se encontrou com Bertoni. Ao mesmo tem-
po, Peter Kröpotkin (1842-1921), de volta à Suíça, com Reclus funda o jornal Le Revolte.
Eles convidam Bertoni, que havia abandonado os estudos em Direito, para trabalhar no
jornal, aflorando-se neste, mediante discussões com os colegas, o interesse por criar
uma comunidade agrícola socialista (com base na ideia de ajuda mútua).
182 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Pelo que parece, à primeira vista, Bertoni, sabendo das expedições realizadas
por Humboldt4 , escolhe Misiones, mantendo, além de aspectos visionários polí-
ticos, interesse pelas pesquisas científicas que poderiam ser realizadas nas matas
não exploradas, para ele, um verdadeiro museu a céu aberto (RAZERA, 2003).
Seus estudos, descritos ao longo deste trabalho, diferenciam-se dos desenvolvi-
dos por Humboldt e Darwin5, expedicionários que também tiveram empenho no
âmbito científico, porém, pelo que se conhece, sem os interesses políticos que, de
maneira análoga à ciência, moveram Bertoni.
Em meados do século XIX, a América do Sul passou a ser um grande atrativo
para os europeus que buscavam concretizar suas utopias em contraposição à socie-
dade moderna europeia, onde já não havia muitos atrativos econômicos, políticos
e nem religiosos. A América do Sul amparava os imigrantes europeus que deseja-
vam estabelecer-se no território, com o objetivo de ocupar a grande quantidade de
terras, potencializando a economia, além de, em alguns casos, promover o que se
chamava de “branqueamento da raça” (JARA, 2005-2008).
Neste contexto histórico, Moisés Bertoni chega ao território de Misiones com
sua família e cerca de 40 agricultores que, com ele, tinham o objetivo de fundar
uma colônia agrícola. Na região de Santa Ana, inicia seus trabalhos experimen-
tais nas áreas agrícolas, botânicas, zoológicas, meteorológicas e etnográficas. En-
tretanto, devido a conflitos políticos, decide mudar-se em 1887 para o Paraguai,
fundando em 1891, sobre as margens do rio Paraná, num perímetro de cerca de
12.500 km², a colônia Guillermo Tell, conhecida posteriormente como Puerto Ber-
toni, a moradia definitiva da família Bertoni, onde se dedica, com afinco, às suas
investigações e análises científicas. Devido às adversidades encontradas em fun-
dar a colônia agrícola, conforme Jara (2005-2008), os ideais políticos de Bertoni
são substituídos pelo nacionalismo, sobretudo no estudo dos indígenas da região
como uma “raça superior”, constituindo forte influência para a formação cultural
do Paraguai, assunto tratado adiante.

4 Alexandre Von Humboldt (1769-1859), explorador alemão, trouxe, por meio de suas pesquisas,
importantes contribuições para as áreas da Geografia, Geologia, Climatologia e Oceanografia.
Realizou viagens exploratórias pelas Américas Central e do Sul (1799-1804) e pela Ásia Cen-
tral (1829), que o tornaram mundialmente conhecido ainda antes da sua morte.
5 Charles Robert Darwin (1809-1882) foi co-fundador da teoria da Evolução das Es-
pécies a partir da Seleção Natural, com Alfred Russel Wallace (1823-1912). Em 1848,
realizou uma expedição no Brasil ao lado do entomologista inglês Henry Walter Ba-
tes (1825-1872), conhecendo a região Amazônica. No período de 1854-1862 realizou
uma nova expedição, dessa vez ao Arquipélago Malaio, situado entre o continente
do Sudeste Asiático e a Austrália, entre os oceanos Índico e Pacífico.
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
183
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências

2. Os estudos no Alto Paraná: a imersão no campo


da ciência

Bertoni, em meio à vida na mata, elabora mais de 500 trabalhos, dos quais 107
foram identificados na Suíça, 28 na Argentina e 389 no Paraguai. Polivalente, em
seus estudos se ocupa da agricultura, com estudos sobre práticas agrícolas e dados
meteorológicos voltados ao cultivo das plantas, e à etnologia, com estudos entre
as comunidades Mby’a e Avá Guarani. Monta um laboratório e uma imprensa (Ex
Sylvis), um correio postal, um porto comercial e uma estação agrônoma.

Figura 2: Puerto Bertoni -Visão externa da residência de Bertoni


(Fonte: http://guiaiguassu.blogspot.com.br/)

Figura 3A: Residência de Moisés Bertoni – Parte de suas pesquisas no


laboratório. Fotografado pelo autor OPGPS.
184 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Figura 3B: Residência de Moisés Bertoni – Parte de suas pesquisas no


laboratório. Fotografado pelo autor OPGPS.
Em seus estudos meteorológicos, analisa as frequências das chuvas, aferindo a
umidade, os ventos e a temperatura por quase 50 anos. Com os aspectos climáticos
da região, elabora um Calendário Perpétuo das Chuvas, utilizado pelos agriculto-
res paraguaios e durante as obras de construção da Ponte da Amizade e da Usina
Hidrelétrica de Itaipu (BUTTURA; NIEMEYER, 2012); registra também as épocas
ideais de cultivo, de acordo com os meses do ano, sendo estas verificadas em sua
obra Agenda e Orientações Agrícolas, publicada em 1927.
De todos os seus trabalhos, o mais abrangente foi desenvolvido por meio de
estudos de campo, com a observação minuciosa dos costumes dos povos indígenas
locais. Suas observações encontram-se em sua obra A Civilização Guarani (1922-
1927, trad.), composta por três livros, apresentada sinteticamente a seguir, a fim
de se destacar suas descobertas em meio aos indígenas, com a reflexão sobre seus
interesses em diversas áreas, sendo uma delas a botânica.

3. A Civilização Guarani

Ao longo do primeiro livro da obra, Etnologia (1922), Bertoni aborda o sistema


de organização social Guarani, apontando a sua visão a respeito do conceito de
civilização, colocada como sendo o produto do desenvolvimento da agricultura,
sendo esta a base da vida material (destaca-se aí que a agricultura consistia a base
econômica da época); nela, a moral é a base da vida psíquica, com o respeito e o
prazer pelas artes, e têm-se a liberdade e a democracia como forma de dignidade
pessoal e coletiva (BERTONI, 1992, trad.).
Bertoni considera os povos Guaranis um paradigma de civilização. Atu-
almente, recebe críticas de alguns estudiosos a respeito. Baratti (2003), em suas
análises sobre o pesquisador, argumenta que seus estudos antropológicos foram
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
185
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências

influenciados por aspectos emocionais, trazendo contribuições discutíveis para a


área. Esse autor também faz considerações ao tipo de relação estabelecida com os
indígenas, que passaram a trabalhar em Puerto Bertoni, recebendo influências em
seus aspectos culturais e em sua organização social.
Entretanto, autores como Buttura e Niemeyer (2012) examinam alguns pontos
das pesquisas de Moisés Bertoni que revelam sua busca por referenciais científicos
que comprovassem suas observações de campo sobre os Guaranis. Bertoni encon-
traria na literatura da época vários erros, retratados na Tabela 1.

Afirmações errôneas
presentes na litera- Observações de Moisés Bertoni
tura da época
Guaranis não tinham Os guaranis transformavam suas aldeias em verdadeiros
animais domésticos abrigos, acolhendo as mais diversas espécies de animais.
Guaranis não
Tinham conhecimento de prata, ouro, zinco e ferro.
conheciam os metais
Guaranis viviam na A maioria era monogâmica, apenas um número limitado
poligamia optava pela poligamia.
Guaranis viviam em As crenças do povo Guarani eram fundamentadas princi-
profunda feitiçaria palmente pela ausência de feitiçaria.
Guaranis utilizavam
flechas envenenadas Para os guaranis, o arco e a flecha eram símbolo da paz. Con-
para a produção de sideravam deplorável matar seus semelhantes com flechas.
feridas mortais

Guaranis eram cani- Esse costume não existia nas principais nações guaranis,
bais, principalmente apesar de algumas nações indígenas, em ritual, consumirem
no Brasil a carne dos inimigos após serem mortos.

Tabela 1: Erros comuns sobre a cultura dos guaranis apontados


por Moisés Bertoni (BUTTURA; NIEMEYER, 2012)

Moisés Bertoni, em suas análises, vai além dos estudos sobre as característi-
cas dos povos Guaranis enquanto civilização, diferenciando-os de outros povos
indígenas da América Latina e de outras partes do mundo. Trata de estudos em
linguística, elaborando um glossário comparativo entre os vocábulos guaranis e de
186 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

outros povos indígenas6, traz a religiosidade, incluindo a moral, considerada por


ele como um dos conceitos mais importantes de uma civilização. Em seu segundo
livro da obra A Civilização Guarani, intitulado Religião e Moral (1927), revela as-
pectos religiosos do povo Guarani, colocando-os como monoteístas:

A religião Guarani, tem como base estes princípios:


1º Há um Deus Supremo que criou tudo e governa tudo.
2º Deus é um espírito puro sempre invisível.
3º Deus é a causa de tudo, do mal, assim como do bem.
4º Há vários semideuses; não são espíritos puros; são agentes vigi-
lantes, têm poder sobrenatural, mas não têm poder criador.
5º A alma é imortal.
6º O espírito dos mortos permanecem algum tempo em sua antiga
casa, durante o qual possuem as mesmas necessidades que nesta
vida, e têm grande poder sobre os vivos.
7º Cada um vive sob a proteção de um espírito protetor especial
(p.50, Religião e Moral, trad.).

Entre os estudos sobre os aspectos culturais dos guaranis presentes nas obras
de Moisés Bertoni, são sinalizados em seu segundo livro os primeiros delineamen-
tos sobre informações de caráter botânico, com a menção do uso de plantas como
alternativas medicinais, ou mesmo alucinógenas, em rituais religiosos:

[...] não só os Guarani, mas quase todos os índios, tem o tabaco como
meio para amortecer a sensibilidade e não sentir dor. Também uti-
lizam para provocar visões, mas esta de forma menos eficaz do que
com a kurupá. Externamente eles usam doses pesadas em forma de
emplastos, conseguem um efeito local, mais sensível se o tabaco for
misturado com kurupá (p. 37 do livro Religião e Moral, trad.).

Também pode ser notada, em seu segundo livro, a importância atribuída aos
hábitos de higiene guaranis, relacionando-os à saúde: “A boa higiene, contribui,
sem dúvida, para que os anciãos conservem a memória e o espírito limpos” (p. 222
do livro Religião e Moral, trad.).

6 Moisés Bertoni produz outros materiais envolvendo os estudos sobre a Língua Guarani,
com aspectos gramaticais e ortográficos, sendo dois importantes a Ortografia Guarani
(1927) e La Lengua Guarani (1940, obra póstuma).
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
187
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências

Entretanto, é em seu terceiro livro da obra, Conhecimentos (BERTONI, 1927),


que são trazidos os temas “A Higiene e a Medicina Guarani”, por meio de uma
análise científica e abrangente.
Em relação aos métodos de higiene do povo Guarani, segundo Bertoni, não
eram conhecidos outros mais avançados cientificamente, estando até, em algumas
práticas, à frente da ciência moderna da época, visto que os guaranis se colocaram
a resolver certos problemas que a ciência ainda não havia resolvido. Sobre a impor-
tância dos hábitos de higiene, descreve:

A longevidade extraordinária do Guarani, é certamente o fato que


coloca mais claramente a excelência de sua higiene. Seria possível
pensar que a longevidade fosse em razão de sua raça. No entanto,
não existe tal coisa, pois o Guarani que abandona parcialmente ou
totalmente esses hábitos perde em boa parte ou essência [...] (p. 18,
Religião e Moral, trad.).

Conforme pode ser visto, o pesquisador suíço afirma neste trecho que os indí-
genas que adotavam hábitos de higiene e alimentares adequados atingiam a longe-
vidade. Ao observar a alimentação desses indígenas, ele a relaciona com os estudos
realizados na área da Medicina. Em suas palavras: “Há muito tempo atrás, muitos
médicos higienistas vem alertando que o homem pode viver muito mais tempo,
tendo métodos de alimentação mais racional, ou melhor, mais natural” (BERTO-
NI, 1927, Religião e Moral, trad).
Ainda sobre os hábitos alimentares, Bertoni pondera que os indígenas não se
alimentavam em excesso, nem bebiam ao mesmo tempo, lavando-se várias vezes
ao dia, principalmente ao levantar e antes das refeições, que eram preparadas após
a lavagem dos alimentos, hábitos que os europeus não tinham e que julgava neces-
sários para a manutenção da boa saúde. Nesta linha de raciocínio, cita, ainda, o
cuidado dos indígenas em relação aos excrementos:

Um cuidado tão escrupuloso, que provavelmente não há outro


exemplo no mundo, é a questão relativa aos materiais de excre-
mentos. Geralmente cada um os enterrava. Nunca vi os Guaranis
despejarem-nos perto de suas casas, nem em um lugar visível, ou
que os animais chegassem a eles, como acontece em tantos outros
países (p. 47, Religião e Moral, trad.).
188 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Fica muito evidente o interesse de Bertoni pelos aspectos científicos ligados à


sobrevivência indígena, sendo estes retratados no estudo das doenças que os aco-
metiam, bem como as formas de tratamento, citando entre outras a dengue7, o pa-
ludismo8 e a sífilis9. Em relação ao paludismo ou malária, desenvolve, juntamente
aos indígenas, um método terapêutico preventivo, utilizando o quinino com as
folhas de uma planta da espécie Begonia cucullata.
Em meio aos estudos relativos às enfermidades e curas indígenas, Moisés Ber-
toni dedicou grande parte ao levantamento botânico das espécies empregadas nos
tratamentos, como pode ser visto no trecho abaixo do seu terceiro livro, Conheci-
mentos (1927, trad.), com alguns gêneros e espécies de plantas nativas, usadas na
medicina indígena.

[...] tenho o conhecimento de uma planta que contém um princípio


ativo contra a malária: a Taperyvá. Assim são chamadas algumas
espécies herbáceas do gênero Cassia, que cresce em abundância
em várias partes [...] temos a Cassia occidentalis L., a C. bicapsu-
laris L., a C. Vog pilífera., a C. macrocarpa Mich, a C. corimbosa
Lam., e, algumas mais. Parece que estas espécies, que botanica-
mente possuem pouca diferença, têm aproximadamente as mes-
mas propriedades. Com tudo, seria muito interessante um estudo
comparativo, pois é muito provável que estas tenham diferenças
significativas quanto a ação de seus componentes, (p. 188-189, Co-
nhecimentos, 1927, trad.).

Bertoni dedica dois capítulos deste terceiro livro ao levantamento das espécies
de plantas, tendo como base de estudos botânicos as observações da cultura dos
povos guaranis, elencando o merecimento de maiores análises de suas proprieda-
des terapêuticas, sendo assinaladas para a comunidade científica internacional,
por meio de suas publicações. Entre as espécies mencionadas pelo pesquisador su-

7 A dengue, transmitida por meio da picada da fêmea do mosquito Aedes aegypti, é origi-


nária da África. Acredita-se que tenha aportado no continente americano com os navios
negreiros na época da colonização (século XVI).
8 O paludismo (malária), causado por protozoários Plasmodium, tem como possíveis ve-
tores os mosquitos do gênero Anopheles. Foi a causa mortis de Moisés Bertoni em 19 de
setembro de 1927, no município brasileiro de Foz do Iguaçu – PR.
9 A sífilis, causada pelo agente bacteriano Treponema pallidum, já era conhecida por Ber-
toni, que a cita em sua terra natal. De acordo com dados históricos, a sífilis causou uma
grande epidemia na Europa a partir dos anos finais do século XVI.
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
189
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências

íço, será exemplificada a erva-mate (Ilex paraguarienses), utilizada nos dias atuais
na forma de bebida quente ou fria em alguns países da América do Sul. Em relação
a esta, discorre sobre a necessidade de serem conhecidos os resultados de estudos
científicos e experimentação.
São apontadas as potencialidades econômicas da planta, dedicando-se logo em
sequência um capítulo do livro à apresentação de suas propriedades, com a des-
crição de seus componentes (um deles a mateína), bem como suas prováveis ações
no organismo: “[...] A ação principal é sem dúvida, o despertar geral de forças e
funções vitais”, (p. 469, Conhecimentos, 1927, trad.).
Outro ponto interessante a destacar é que o pesquisador Bertoni revela, em
sua visão científica, em vários pontos de suas obras sobre o povo guarani, a po-
sição em relação às crenças indígenas, ressaltando o caráter da ciência em seus
estudos, como se visualiza neste último trecho a ser mencionado aqui, em relação
à Ilex paraguaienses. Podem também ser observados comparativos em relação ao
preparado da planta, em detrimento do café e chá (este último não especificado).

[...] as propriedades medicinais da erva-mate, em relação a ação


dos ingredientes ativos que já conhecemos e aplicações podem ser
variadas, e os índios buscam um bom uso delas. Mas, como esta
planta tem um valor místico para eles, não é fácil conhecer bem
todas as aplicações. Uma de suas principais é certamente a desin-
fecção e antissepsia, a que aludimos. Esta propriedade é agora re-
conhecida pela ciência, e se constitui superior ao café e ao chá (p,
485, Conhecimentos, 1927, trad.).

Como pode ser visto, Bertoni, ao realizar seus estudos antropológicos sobre
a civilização Guarani, contribui muito com os estudos em botânica. Realiza, em
1899, uma análise e descrição de uma planta mencionada pelos guaranis em 1887:
a ka’a he’e, hoje conhecida como Stevia rebaudiana bertoni, da família das asterá-
ceas, a “erva doce” (hierba dulce), em uma tradução do guarani, muito apreciada
pelos indígenas devido às suas propriedades edulcorantes, utilizada para amenizar
o sabor amargo da erva-mate.
Fato interessante é que somente em 1899 consegue realizar os estudos, devido
ao estreitamento de suas relações com os índios, que, conforme seus registros, for-
necem amostras da planta para suas pesquisas.
Em 1900, realiza, com o apoio de um amigo paraguaio, Ovídio Rebaudi (resi-
dente na época na Argentina), a análise e identificação de dois compostos quími-
190 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

cos na planta sacarífera ka’a he’e, mais adiante chamados de esteviosideo e rebau-
diosideo, estáveis ao calor e que não fermentam (LANDÁZURI; TIGRERO, 2009).
Nomeada a princípio como Rebaudianum eupatorium, em 1905, a planta re-
cebe o nome científico definitivo de Stevia rebaudiana bertoni, sendo referenciada
por Moisés Bertoni ao longo de seu artigo Le kaá he-é: a natureza de suas proprie-
dades (BERTONI, 1905).
Conforme tratam Buttura e Niemeyer (2011, p.54), a Stevia rebaudiana bertoni,
em comparação com as propriedades da sacarose, tem as seguintes características:

1. substância sem efeito tóxico, saudável por longa experiência, se-


gundo estudos do Dr. Rebaudi;
2. substância de grande poder edulcorante, sendo inclusive 150
vezes mais doce que a própria glicose;
3. empregada diretamente como se encontra direto na natureza,
folha “pulverizada”;
4. oferecida a preço mais baixo do que os produtos com sacarina;
5. ferramenta medicinal utilizada em xaropes, licores e na alimen-
tação de diabéticos.

Ao pesquisador suíço é atribuída uma das grandes contribuições aos estudos


de botânica do Paraguai na época, segundo Goerzen et. al. (2011). O interesse pela
indústria mundial foi imediato: a partir de 1900, Bertoni recebe dezenas de pedi-
dos de informação, solicitando amostras de stevia. A planta é considerada símbolo
das pesquisas na área de botânica do naturalista Bertoni, sendo o “açúcar verde”.
Estima-se que, como botânico, Moisés Bertoni tenha catalogado mais de 6000
espécies de plantas em suas coleções, envolvendo não somente o estudo dos povos
guaranis, mas o contigente de biodiversidade em que vivia. Seus estudos resulta-
ram, entre outras publicações, em uma obra com publicação póstuma: Dicionário
Botânico: Introdução as plantas usuais e úteis no Paraguai (1940, trad.), na qual
são traduzidos vocábulos guaranis para o espanhol, relacionando-os aos nomes
referenciados na classificação taxonômica das plantas.

4. Realizando aproximações entre a História da Ci-


ência e o Ensino de Ciências por meio dos estudos
de Moisés Bertoni
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
191
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências

Ao apresentar os estudos como os desenvolvidos por Moisés Bertoni aos edu-


candos, pode-se desmistificar a ideia de que a ciência está nas mãos de poucos
gênios. Torna-se possível aproximar os educandos de uma ciência que faz parte da
realidade, tanto em âmbito global como local, como é o caso dos alunos que vivem
na região da Tríplice Fronteira, que podem ter acesso às obras do pesquisador ao
visitarem o Museu em Puerto Bertoni, com a oportunidade de entender seus es-
tudos no tempo-espaço, constituindo um processo de aprendizagem com vistas à
criticidade mediante o entendimento de como se constrói o saber científico.
Assim como tratam Beltran et al. (2011), o objetivo da abordagem da História
da Ciência não está apenas na apresentação de conceitos e teorias, mas sim na dis-
cussão de como estes conceitos foram elaborados, oportunizando a análise acerca
do processo científico e não uma simples memorização de conceitos em um viés
fragmentado.
Nesse sentido, Martins (2006) aponta que a História da Ciência possibilita
uma visão a respeito da natureza e da pesquisa científica que não é comum em
estudos com livros didáticos que enfatizam resultados científicos. Desta forma,
os estudos envolvendo a História da Ciência podem complementar os estudos em
Ciências, ao mostrar que a produção da ciência não é isolada, mas sofre influências
e influencia o contexto social.

5. Considerações finais

Neste trabalho, procurou-se, por meio de um levantamento bibliográfico e do-


cumental, realizar uma reflexão sobre como se desenvolveram os trabalhos inves-
tigativos de Moisés Bertoni, que contribuíram para estudos na área de botânica,
importantes para o cenário da América Latina, entre o final do século XIX e início
do século XX.
Foi possível perceber como Bertoni procurou produzir e validar conheci-
mentos, a partir de suas observações com o povo Guarani e em meio à vegetação
densa das terras paraguaias, argentinas e em parte do oeste do Paraná, no Bra-
sil, realizando atividades científicas a partir de análises meteorológicas, zoológi-
cas, agronômicas, topográficas, etnológicas, além do levantamento taxonômico
de ínumeras espécies de plantas, algumas delas utilizadas na medicina Guarani e
difundidas por meio de suas descrições, como é o caso da Ilex paraguaienses e da
Stevia rebaudiana bertoni.
192 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Estudos como este são de grande importância para a promoção de uma re-
flexão no campo do Ensino de Ciências, em detrimento da necessidade em espe-
cial que se tem de abranger-se o caráter científico da natureza do conhecimento,
proporcionando aos educandos a desvinculação da visão simplista de saber pre-
viamente elaborado, entendendo-se que a gênese da ciência envolve um processo
histórico, em que há a aceitação, modificação ou mesmo a rejeição de teorias, evi-
denciando assim, a relação existente entre o saber científico e o contexto social em
que se desenvolve.
CAPÍTULO 9 - A produção de conhecimento científico nas investigações de Moisés Bertoni:
193
uma reflexão voltada às relações entre a história da ciência e o ensino de ciências

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CAPÍTULO 10

Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas


como contribuições para o ensino de ciências

Carlos Roberto Senise Júnior1


José Bento Suart Júnior2

Introdução

“Me teletransporte, Scotty”, dizia o Capitão James T. Kirk na série Jornada


nas Estrelas. Automaticamente, e mais do que isso, naturalmente, o comandante
da “Enterprise” aparecia no local desejado em toda sua integridade física. Massa e
natureza eram enviados através do espaço-tempo, mantendo as mesmas caracte-
rísticas do estado inicial. Sabemos, contudo, que as atuais condições tecnológicas
ainda nos impedem de um transporte como o proposto pelo aparato usado na nave
espacial. No entanto, as questões teóricas acerca do tema já muito avançaram e ex-
põem um quadro de integridade matemática e de ricas questões epistemológicas.
Se a existência de uma realidade objetiva, possivelmente descrita pelas funções
matemáticas propostas pela Física, foi o auge dos debates durante a construção da
Teoria Quântica, o que se dizer então do transporte através do espaço-tempo?
Bohr e Einstein travaram debates durante a construção da Teoria Quântica
especialmente pelas questões levantadas pela Complementaridade e pelo Princípio
de Incerteza de Heisenberg. Num mesmo fenômeno, uma descrição no espaço e
no tempo junto às leis de conservação de momento e de energia seria impossível,
justificada essencialmente pelo Princípio de Incerteza de Heisenberg.
Porém, todo este aparato conceitual levantou sérias discussões na comunidade
científica. Em 1927, durante a V Conferência de Solvay, Einstein e Bohr protagoniza-
ram grandes debates acerca das interpretações da nova teoria e de suas conseqüências
filosóficas. Einstein propôs diversos experimentos que evidenciariam inconsistências

1 Universidade Federal de São Paulo – Campus Diadema – Departamento de Ciências


Exatas e da Terra.
2 UTFPR – Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus Apucarana.
196 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

na teoria, entre eles, o famoso Experimento EPR, através do qual denota a incomple-
tude da MQ, ou seja, a necessidade de variáveis ocultas. Para Einstein, objetos quân-
ticos que provêm de uma origem comum, ou seja, que interagiram anteriormente,
deveriam ter independência. Além disso, uma medida interferir em outra espacial-
mente afastada consistiria em um tipo de ação fantasma a distância, que violaria a
relatividade, já que esta interferência seria dada instantaneamente. A exemplo disso,
pode-se citar a medição do spin de dois elétrons que inicialmente interagiram local-
mente. Após sua separação, segundo Einstein, não seria concebível que uma medida
interferisse na outra, de tal forma que os spins tivessem sentidos opostos. A resposta
de Bohr foi de que as condições propostas no experimento eram conflitantes, deter-
minando então a “totalidade” essencial da MQ.
A ideia de estados emaranhados concebendo uma ação fantasma a distância
com velocidade superior à da luz foi o cerne das questões levantadas por Einstein,
Podolsky e Rosen. Assim, questões de quase um século atrás, referentes à natureza
do conhecimento e aos limites da descrição total da realidade, ainda permanecem
atuais. Porém, as concepções de senso comum acerca do teleporte encontram-se
desprovidas tanto de natureza conceitual quanto filosófica. Um esclarecimento
acerca destas questões faz-se necessário, tendo em vista a riqueza do assunto para
abordagens de conceitos físicos, assim como de elementos de Filosofia da Ciência.
Faremos, assim, um breve apanhado3 sobre algumas questões históricas refe-
rentes a alguns aspectos da MQ, em especial o emaranhamento quântico e, através
de uma consequência direta deste conceito – o teleporte quântico – discutir algu-
mas interpretações e implicações filosóficas da MQ.
Mostraremos, ainda, como as questões levantadas pelo paradoxo EPR ao lon-
go da construção da MQ mantêm-se dentro do quadro conceitual do teleporte
e como diferentes interpretações filosóficas nos levam a diferentes ideários em
relação à “busca da Ciência”.

3 Para uma abordagem histórica e filosófica mais completa da MQ, reportamos o leitor a
JAMMER (1974).
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 197

1. A mecânica quântica: os entraves epistemológicos


de uma teoria emergente

1.1 - Elementos introdutórios

A Mecânica Quântica (MQ) é considerada uma das teorias (ou “a” teoria) de
maior sucesso na história das Ciências, tanto do ponto de vista teórico quanto
do ponto de vista experimental. Seu formalismo matemático elegante e profun-
damente sólido permite a previsão teórica qualitativa e quantitativa de efeitos que
vão desde o espectro atômico e taxas de decaimento até a pressão eletrônica em
estrelas de nêutrons e a nucleossíntese primordial em eras remotas do Universo e,
admiravelmente, estas previsões são confirmadas experimentalmente, com uma
precisão espantosa4 . Assim, é notório o sucesso da MQ em descrever e prever fenô-
menos naturais que ocorrem em tubos de televisão, nos laboratórios das Universi-
dades e nas regiões mais distantes do Cosmo.
Isto posto, um raciocínio óbvio que se pode ter com respeito a essa teoria é que,
dado seu enorme sucesso previsivo e seu poderoso aparato matemático, é claro que
ela é completamente entendida, desde seus pressupostos e conceitos mais básicos
até suas consequências mais complexas e intrigantes. Porém, como veremos ao
longo do texto, esta conclusão está muito longe de ser verdade. Desde o princípio
da construção da MQ, no início do século passado, seus conceitos primitivos e suas
consequências, juntamente com o poderoso mas “estranho” formalismo matemá-
tico usado para descrevê-los, vêm sendo alvo de reflexões, consternamento, críti-
cas, estupefação e, até os dias atuais, muitos (para não dizer todos) destes ainda
não são totalmente compreendidos.
Olhando para os dois parágrafos anteriores, que transmitem ideias tão opostas
em relação à MQ, uma pergunta logo vem à tona: “Por que não consegue-se enten-
der uma teoria com tanto sucesso teórico e experimental?”. É neste sentido que faz-
-se importante uma reflexão filosófica mais aprofundada sobre a MQ e seus obje-
tos. A MQ foi (e ainda é) construída através de uma ruptura com a visão de mundo
clássica, determinista, Lagrangiana, onde podia-se interferir com a Natureza sem
afetá-la – pelo menos em princípio. Nesta visão de mundo, a intuição desempenha
um papel fundamental, pois pode-se interagir com a Natureza através dos sentidos
(ou no máximo através de aparatos experimentais com efeitos macroscópios). Ou

4 A previsão teórica para o valor do momento magnético anômalo do elétron é confir-


mada experimentalmente com uma precisão de uma parte em um bilhão (109): a mais
acurada da história da Física (AOYAMA et al, 2008)
198 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

seja, o mundo é “palpável” e as conclusões científicas tornam-se em certo ponto


parte do “senso comum”, sendo este último fortemente ligado à ideia determinista
de mundo. Segundo Karl Popper (POPPER, 1988), o senso comum afirma que
todo evento seria causado por um evento que o procede, de modo que se poderia
predizer ou explicar qualquer evento.
Historicamente, esta visão determinista de mundo foi construída sobre os
fundamentos rígidos do Método Científico e dos dados empíricos, tendo como
seus expoentes máximos Descartes, Galileu e Lagrange. É neste ponto que a MQ
difere completamente da visão clássica de mundo: seus objetos não são mais sensí-
veis; suas previsões e resultados não possuem mais um caráter determinístico, pois
a idéia de probabilidade é um dos pontos centrais do formalismo; suas caracterís-
ticas são totalmente não-intuitivas, pois um objeto ora comporta-se como onda
e ora comporta-se como partícula; não é mais possível seguir a trajetória de uma
partícula (de fato, não se pode nem mesmo definir trajetória); o ato de interferir
(medir) com a natureza muda o estado do fenômeno observado; novas variáveis,
intrinsecamente quânticas, sem análogo clássico algum, devem ser introduzidas
para explicar o comportamento das partículas (por exemplo: o spin do elétron); si-
tuações em que não se pode descrever o estado de uma parte individual do sistema,
apenas do sistema como um todo; e várias outras características “estranhas” que
de forma abrupta (em um curto período, algo em torno de três décadas, entre 1905
e 1935) foram “apresentadas” pela natureza dos fenômenos microscópicos para a
comunidade científica da época. Esta nova Mecânica era tão estranha à ideia de
mundo clássica, que Heisenberg (1987) declarou ser a violenta reação à física mo-
derna passível de entendimento ao se compreender que os fundamentos da física
haviam se movido, causando a sensação de que o solo teria sido retirado da ciência.
Desta forma, não é totalmente surpreendente que algumas das mentes mais
expressivas da história das ciências, como Einstein, Bohr e tantos outros, ficassem
completamente estupefatos e usassem grande parte de suas carreiras científicas
para refletir e discutir sobre as implicações ontológicas e epistemológicas da MQ.
Afinal, como conciliar esta “estranheza” quântica com a visão corrente de mundo
à época: clássica, determinista, intuitiva, passível de testes exatos?

1.2 A Mecânica Quântica como teoria e suas formulações

A construção de um formalismo matemático consistente para a MQ é um


exemplo claro de construção científica coletiva. Aspectos sociais, filosóficos, dog-
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 199

máticos, ou seja, essencialmente humanos, entram em ebulição e direcionam os


diferentes caminhos seguidos pelos cientistas neste empreendimento em busca da
compreensão e previsão dos fenômenos naturais.
Isto fica claro à medida que se observam as diferentes formulações e as con-
sequentes interpretações que delas podem ser derivadas. Não é o escopo deste
trabalho analisar todas as formulações e interpretações e, para uma visão mais
detalhada, reportamos o leitor a JAMMER (1974). Aqui, discutiremos brevemente
algumas formulações e interpretações que utilizaremos na análise posterior do
emaranhamento e teleporte quânticos.
Cronologicamente, a primeira formulação da MQ é a chamada Mecânica Ma-
tricial, desenvolvida principalmente pelo físico alemão Werner Heisenberg, em
conjunto com o físico e matemático polonês Max Born e o físico e matemático
alemão Pascual Jordan (HEISENBERG, 1925; BORN; JORDAN, 1925; BORN;
HEISENBERG; JORDAN, 1926). Como explicitamente indicado pelo nome, esta
formulação faz uso de matrizes (ou operadores), objetos matemáticos distintos dos
familiares números e funções da Mecânica Clássica. Cada observável (posição,
momento, energia, spin) é representado por um operador auto-adjunto em um
espaço vetorial matemático abstrato, o espaço de Hilbert, e são estes observáveis
que evoluem temporalmente. Desta forma, os “objetos” principais na formulação
de Heisenberg são as quantidades observáveis, que evoluem no tempo e podem ser
medidos experimentalmente. O princípio de incerteza, um dos pilares da MQ, foi
deduzido por Heisenberg dois anos depois de sua formulação da MQ (HEISEN-
BERG, 1927) e estabelece que dois observáveis incompatíveis (ou, na linguagem
de operadores, não-comutantes), como posição e momento em uma determinada
direção, não podem ser conhecidos simultaneamente com uma precisão menor ou
igual à constante de Planck h dividida por 2π. Novamente, este é um aspecto da
MQ sem nenhum análogo clássico: na Mecânica Clássica, quaisquer duas variáveis
podem ser conhecidas com uma precisão em princípio infinita, bastando para isso
sermos capazes de medi-las com tal precisão.
A segunda formulação da MQ é a formulação da função de onda, relizada pelo
físico austríaco Erwin Schrödinger (SCHRÖDINGER, 1926). Nesta formulação,
o “objeto” principal na descrição de um sistema quântico é o estado do sistema,
representado pela função de onda ψ complexa (ou pelo vetor no espaço de Hilbert
). É o estado do sistema que evolui temporalmente, e não as quantidades ob-
serváveis (operadores), como na formulação matricial. Assim, o estado de um sis-
tema de N partículas é representado por uma função de onda
no espaço de configuração 3N-dimensional. Ou seja, a função de onda não existe
de fato no espaço “real”, tridimensional, no qual vivemos. Ela deve ser considerada
200 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

como um artifício matemático para calcular resultados de medidas. A formulação


de Schrödinger permite uma análise de certa forma mais compreensível de fenô-
menos quânticos que apresentam comportamento ondulatório, com superposições
e interferências, como o experimento de dupla fenda e o interferômetro de Mach-
-Zehnder. Devido a seu apelo de certa forma mais intuitivo (em relação à “intui-
ção clássica”), pois faz uso do conceito (aqui abstrato) familiar clássico de onda, a
formulação de Schrödinger tornou-se a mais utilizada entre as várias formulações.
Para descrever sistemas quânticos onde o conhecimento é apenas estatísti-
co, como misturas, ou de muitas partículas, a formulação mais adequada é a for-
mulação da matriz densidade ou ensemble estatístico, desenvolvida inicialmente
pelo físico austro-húngaro John von Neumann (VON NEUMANN, 1927). Aqui,
o sistema quântico é caracterizado por uma matriz (operador) densidade ρ, que
descreve o sistema evoluindo no tempo. Através de projeções deste operador nos
subespaços ortogonais, os autovalores (valores dos observáveis) de autoestados es-
pecíficos presentes no ensemble são obtidos. Esta formulação é amplamente utili-
zada em Informação/Computação Quântica e em Mecânica Estatística Quântica
(NIELSEN, CHUANG, 2001).
Na busca de uma formulação que se aproximasse mais dos conceitos clássicos,
o físico francês Louis de Broglie propôs um formalismo no famoso V Congresso de
Solvay, em 1927, posteriormente desenvolvido de maneira mais sólida pelo ameri-
cano David Bohm (BOHM, 1952). Esta formulação foi denominada por formula-
ção da onda piloto. A ideia é que um sistema quântico possui tanto uma trajetória
bem definida no espaço físico tridimensional quanto uma função de onda asso-
ciada no espaço de configuração. A função de onda exerce o papel de uma “onda
piloto”, que, juntamente com o potencial clássico sob o qual a partícula está sub-
metida, fornece a informação necessária para a trajetória. Um conceito adicional,
o potencial quântico, é introduzido, e a força exercida na partícula para que esta
descreva sua trajetória no espaço físico é devida tanto ao potencial clássico quanto
ao potencial quântico.

1.3 - A Mecânica Quântica como teoria e suas interpretações

Como visto na seção anterior, várias formulações da MQ, com diferentes pres-
supostos e “objetos fundamentais”, foram desenvolvidas entre as décadas de 1920
e 1950. A partir delas, e também dos vários experimentos realizados à época com
resultados surpreendentes do ponto vista intuitivo, várias interpretações diferen-
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 201

tes (e muitas vezes conflitantes) a respeito da natureza quântica do mundo surgi-


ram. Por um lado, havia uma parcela de cientistas, de certa forma “ortodoxos”, que
sentia-se incomodada com a nova “teoria quântica” (formalismos à parte) e suas
previsões e resultados altamente não intuitivos, representada basicamente por
Einstein, de Broglie e Schrödinger. Os “ataques” de Einstein à nova teoria quântica
constituem um dos capítulos mais extraordinários da história das Ciências, e seus
“embates” com Bohr foram extremamente prolíficos dos pontos de vista histórico,
científico e filosófico. Uma das citações mais famosas na história das Ciências é o
famoso trecho da carta de Einstein escrita a Max Born, em 4 de dezembro de 1926,
a respeito do postulado de Born sobre as probabilidades quânticas:

A Mecânica Quântica certamente é imponente. Mas uma voz inte-


rior me diz que esta ainda não é a real. A teoria nos diz muito, mas
não nos leva de fato mais próximos dos segredos do “velho”. Eu,
por nenhum preço, estou convencido de que ele não joga dados”
(The Born-Einstein Letters, 1971).

Percebe-se claramente como Einstein admirava a precisão e correção das pre-


visões da MQ com respeito à descrição dos fenômenos microscópicos, mas tam-
bém percebe-se como ele não acreditava na ontologia da MQ, em sua busca pessoal
de Realismo, que seus conceitos nada intuitivos não podiam ser a “verdade última”
da Natureza. A visão de mundo clássica, determinista, havia se perdido com a
MQ, e era a nova visão probabilística de mundo que desagradava tanto a Einstein.
Segundo Heisenberg (1987, p.65):

Foi somente com a teoria quântica que pudemos aprender que uma
ciência exata é possível sem que se aceite o realismo dogmático.
Quando Einstein criticou a teoria quântica, ele o fez com base no
realismo dogmático. Essa é uma atitude natural. Todo cientista
que faça trabalho de pesquisa sente estar procurando por algo que
é objetivamente verdadeiro.

Por outro lado, outra parcela de cientistas maravilhou-se com a nova MQ e


seus “objetos” e resultados, defendendo que ela estava revelando uma nova e bela
maneira de olhar o mundo, totalmente diferente da visão clássica. Este grupo de
cientistas, “revolucionários”, tinham em Bohr, Heisenberg e Pauli seus maiores
expoentes.
202 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Mas o que seria esta nova visão de mundo? De onde ela surgiu? Para responder
a esta questão, devemos olhar para como os vários formalismos da MQ levaram a
diferentes interpretações da Natureza microscópica5. E por que uma mesma teoria
(mesmo que com formulações diferentes) leva a várias interpretações de mundo?
Por que necessita-se “interpretar” os dados que obtemos nos experimentos? Nas
palavras de Rubem Alves (ALVES, 2007):

Quando é que algo necessita ser interpretado? Quando esse algo,


tal como nos é apresentado, é destituído de sentido, (...) no mo-
mento em que deixamos de estar simplesmente interessados em
usar, de maneira prática, essas receitas, e passamos a querer com-
preender, pulamos dos fatos para a interpretação: os fatos não ofe-
recem sua própria iluminação.

Portanto, podemos pensar as várias interpretações como uma forma de com-


preensão dos dados experimentais controversos da MQ. Em uma visão positivista
de mundo, os dados e sua previsão pela teoria bastariam. Porém, os cientistas que
participaram da “construção” da MQ não estavam satisfeitos em apenas prever
os resultados dos experimentos, desejavam também “conhecer as profundezas da
Natureza”.
Com o estabelecimento da teoria da transformação estatística, o formalismo
não relativístico da Mecânica Quântica estava completo em todos os seus pontos
essenciais. Mas um formalismo, ainda que completo e logicamente consistente,
não é uma Teoria Física. Para atingir este status, ou uma correlação epistêmica, al-
guns dos símbolos devem conter uma interpretação operacional (JAMMER, 1966).
No entanto, termos como localização, velocidade e órbita eram importantes
na representação do formalismo, ainda que não pudessem ter seus significados
clássicos. Ou seja, a Mecânica Quântica começava a operar com uma linguagem
própria. Segundo Heisenberg (1981, p. 11):

Não é surpreendente que a nossa língua deva ser incapaz de des-


crever os processos que ocorrem dentro dos átomos, pois, como já
se observou, foi inventada para descrever as experiências da vida
diária, e estas são apenas constituídas por processos que envolvem
excessivamente grandes números de átomos.

5 Para uma análise detalhada das várias interpretações, além do livro de Jammer, já ante-
riormente citado, uma ótima referência é PESSOA JR. (2003).
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 203

Ainda que sustentada pelo desenvolvimento matemático, a apresentação dos


resultados e das interpretações ao mundo não científico recai sobre a utilização
da linguagem cotidiana, a qual é concomitantemente construída com a Ciência e
transformada por esta, quando dentro de seus domínios.

Quaisquer palavras ou conceitos que foram criados no passado,


frutos da interação do homem com o mundo, não são, de fato,
precisamente definidos no que se refere a seu sentido; isso quer
dizer que não sabemos exatamente quão longe palavras e conceitos
nos ajudarão a achar nosso caminho no entendimento do mundo
(HEISENBERG, 1987, p.72).

A Mecânica Quântica revela então as limitações de uma observação crítica, ou


ainda da compreensão intuitiva de uma Descrição Física completa da realidade.

Aqui não se tem, de começo, nenhum critério simples para se cor-


relacionar os símbolos matemáticos aos conceitos da linguagem
quotidiana; e a única coisa que sabemos, como ponto de partida, é
que os conceitos comuns não são aplicáveis ao estudo das estrutu-
ras atômicas (HEISENBERG, 1987, p. 134).

A dualidade onda-partícula, proveniente da observação experimental de que


um sistema quântico comporta-se ora como onda e ora como partícula, levou Bohr
a formular o princípio de complementaridade, que postula que a maneira pela qual
realizamos os experimentos interfere no comportamento do sistema, fazendo com
que este ora exiba aspectos corpusculares e ora exiba aspectos ondulatórios. Po-
rém, o que é detectado nos aparelhos de medida são assinaturas de corpúsculos
(“cliques”) e, de acordo com Bohr, isto se deve ao postulado quântico de Planck,
que determina que todo sistema quântico possui uma descontinuidade essencial,
caracterizada pela constante h. Para Bohr, a MQ não descreve uma realidade ob-
jetiva, independendente do observador; a função de onda, uma entidade “apenas”
matemática, descreve o mundo quântico pelo fato de concordar com as observa-
ções, o que para Bohr não é um problema, pois para ele o objetivo da Física não
se refere a como a Natureza é, e sim ao que podemos dizer sobre a Natureza, o que
evidencia a visão não-realista de Bohr. Heisenberg, na mesma linha filosófica de
Bohr, acreditava que o fato de o observador afetar descontinuamente a função de
onda no processo de medida (colapso da função de onda) significava “uma mudan-
ça descontínua em nosso conhecimento” (HEISENBERG, 1987).
204 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Einstein, por outro lado, concordava com Bohr em que a função de onda não
representava uma realidade objetiva, dando-a uma interpretação apenas epistêmi-
ca. Todavia, Einstein tinha uma postura filosófica realista e acreditava que a MQ
deveria fornecer meios de entendermos a realidade objetiva do mundo microscópi-
co, independentemente do observador. O fato de a função de onda de Schrödinger
(o “objeto” principal na formulação ondulatória da MQ) fornecer apenas um co-
nhecimento probabilístico a respeito de uma realidade mais profunda o incomo-
dava, e isto o levou a concluir que a MQ deveria ser modificada em algum limite
mais fundamental.
Nesta mesma linha que defende uma ideia epistêmica da função de onda
(estado quântico), mas levemente diferente, algumas interpretações baseadas na
formulação dos ensembles estatísticos também surgiram (BALLENTINE, 1970).
Na interpretação estatística, o estado quântico em si representa um conhecimen-
to apenas estatístico, ligado à montagem experimental (preparação). Um estado
quântico representaria então uma média estatística das posições de um grande
conjunto (ensemble) de partículas, evidenciando também uma visão corpuscular -
porém incompleta - dos “objetos” quânticos.
As três interpretações descritas acima possuem em comum o fato de inter-
pretarem a função de onda, ou estado quântico, de maneira epistêmica, ou seja,
a descrição quântica de um sistema forneceria apenas o conhecimento acerca dos
processos quânticos, e não um elemento real objetivo sobre estes. Outras interpre-
tações, que atribuem uma visão realista à função de onda, também foram constru-
ídas no desenvolvimento da MQ.
Em 1957, o físico americano Hugh Everett propôs uma nova e excêntrica in-
terpretação da MQ (EVERETT, 1957), que atualmente é chamada de interpretação
dos muitos mundos (DEWITT, 1973). A função de onda por si só constitui a reali-
dade, porém, não existe colapso de onda ou interferência descontínua do observa-
dor. Para Everett, “a realidade física é a própria função de onda do universo como
um todo”. Quando uma medida é realizada pelo observador, todos os resultados
possíveis de fato ocorrem, cada um em uma “história de mundo” específica, parti-
cular e consistente. O mundo que o observador percebe é apenas um dos “muitos
mundos” possíveis, e todos coexistem em diferentes ramificações do Universo. É
neste sentido que não há colapso da função de onda: esta apenas vai se dividindo
em diferentes ramos (cada medida a divide), e o que chamamos de realidade é ape-
nas um destes ramos, entre uma infinidade de outros ramos (realidades).
Uma interpretação menos excêntrica, mas que também atribui realidade à
função de onda, é a interpretação de variáveis ocultas, desenvolvida por David
Bohm (BOHM, 1952). Esta interpretação é uma consequência direta da formula-
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 205

ção da onda piloto, desenvolvida pelo próprio Bohm. As variáveis ocultas seriam
as posições e momentos das partículas, ou seja, suas trajetórias, que seriam deter-
minísticas (mas desconhecidas). A função de onda seria então a onda piloto, real,
que guiaria as partículas. Assim, a descrição do sistema só seria completa com
estas duas entidades complementares: as variáveis ocultas e a função de onda. Para
Bohm, “a realidade fundamental é a inseparável interconexão quântica de todo o
Universo”.
A interpretação de Bohm, fazendo uso de variáveis ocultas, teve um papel fun-
damental no estudo de estados emaranhados e nas consequentes confirmações ex-
perimentais da correteza da MQ. Como veremos, a busca por variáveis ocultas que
pudessem fornecer uma visão mais intuitiva e determinista da realidade levou a
importantes resultados acerca dos fundamentos conceituais da MQ e, mais adian-
te, da possibilidade de realizar teorética e experimentalmente o teleporte quântico.

1.4 - O emaranhamento quântico e o paradoxo EPR

Na década de 1920, conforme as formulações (e as interpretações) da MQ


eram desenvolvidas, Heisenberg logo percebeu como esta nova teoria tinha dis-
crepâncias essenciais e aparentemente incongruentes com a Mecânica Clássica.
Dizia ele que “o mundo clássico e o mundo quântico, a partir de algum ponto, são
diferentes”.
A MQ permitia a existência de estados quânticos descritos de tal forma que
era impossível identificar cada componente separadamente. Estes estados eram
estados onde as partes do sistema estariam “entrelaçadas”, ou “emaranhadas”. Em
uma definição mais precisa, o emaranhamento quântico é uma propriedade de
estados quânticos de dois ou mais objetos, na qual os estados dos objetos consti-
tuintes estão conectados de tal forma que o estado de um dos objetos não pode ser
descrito separadamente dos estados dos outros objetos, mesmo que estes estejam
espacialmente separados. Esta interconexão produz correlações não-clássicas en-
tre propriedades físicas observáveis do sistema global, chamadas de correlações
não-locais.
Tal propriedade, sem análogo clássico algum (na Mecânica Clássica, mesmo
que dois ou mais objetos estejam relacionados de alguma forma, sempre pode-
-se – em princípio – seguir a trajetória e realizar medidas sobre cada um sepa-
radamente), trouxe grandes conflitos intelectuais e levou a grandes discussões a
respeito dos fundamentos da MQ. No início da década de 1920, von Neumann já
observava que o emaranhamento quântico poderia ser usado para explicar o pro-
206 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

cesso de medida sem o uso de probabilidades, atribuindo-se o colapso da função


de onda ao emaranhamento do aparato de medida com o sistema a ser medido
(superposição de todos os estados possíveis). Baseado nesta ideia, algumas décadas
depois, Everett desenvolveria sua interpretação dos muitos mundos. Schrödinger,
por sua vez, reconhecia no emaranhamento quântico uma clara evidência de que
a Mecânica Clássica não mais se aplicava ao mundo microscópico e que os estados
emaranhados levavam a correlações não-clássicas:

tem-se somente (até que o emaranhamento seja quebrado pela obser-


vação real) uma descrição comum dos dois sistemas. Esta é a razão
pela qual o conhecimento sobre os sistemas individuais pode decair a
zero, enquanto que o conhecimento do sistema como um todo perma-
nece máximo. O melhor conhecimento possível do todo não implica
no conhecimento de suas partes – e é isso que nos assombra.

Na busca de um realismo intrínseco à MQ e de forma a tentar provar que esta


não era uma teoria completa da Natureza, Einstein propôs diversos experimentos
que evidenciariam inconsistências na teoria. Em 1927, durante o V Congresso de
Solvay, Einstein e Bohr protagonizaram grandes de(em)bates acerca destes experi-
mentos, das interpretações da MQ e de suas consequências filosóficas.
Em uma nova tentativa de “ataque” aos fundamentos da MQ, Einstein, Po-
dolsky e Rosen (1935) formularam o famoso paradoxo que leva seus nomes (EPR).
Neste trabalho, os autores tentaram mostrar (usando o conceito de estados ema-
ranhados) que a MQ não seria uma teoria completa da Natureza, pois existem
elementos da realidade não inclusos nela (realismo local)6. Objetos quânticos que
provêm de uma origem comum, ou seja, que interagiram anteriormente, deveriam
ter independência. Além disso, uma medida interferir em outra espacialmente
afastada consistiria em um tipo de ação fantasma a distância, já que esta interfe-
rência seria dada instantaneamente. A exemplo disso, pode-se citar a medição do
spin de dois elétrons que inicialmente interagiram localmente. Após sua separa-
ção, não seria concebível que uma medida interferisse na outra, de tal forma que
os spins tivessem sentidos opostos. EPR argumentam então que esta aparente não-
-localidade (ou ação a distância) é uma manifestação do fato de que a MQ é uma
teoria incompleta.

6 Para uma análise detalhada do paradoxo EPR, tanto da formulação original quanto da
formulação de Bohm considerando partículas com spin, ver PESSOA JR. (2006).
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 207

A resposta de Bohr ao paradoxo EPR (BOHR, 1935) foi de que as condições


propostas no experimento eram conflitantes, determinando então a “totalidade”
essencial da MQ. Pauli também publicou sua resposta (PAULI, 1948), evidencian-
do sua posição filosófica anti-realista, ao afirmar que o estado quântico possui
apenas uma interpretação epistêmica, matemática, e que a não-localidade na redu-
ção do estado emaranhado não violaria a localidade real.
Por outro lado, os testes experimentais realizados até hoje comprovam com
muita precisão as previsões da MQ, e as correlações não locais são de fato obser-
vadas. Uma forma de tentar explicar esta não-localidade observada em estados
emaranhados é a “teoria das variáveis ocultas locais”, na qual parâmetros locais
desconhecidos e compartilhados causariam as correlações. Porém, em 1964, John
Bell (BELL, 1964) derivou um limite superior (S ≤ 2), conhecido como desigualda-
de de Bell, para a intensidade (S) das correlações em qualquer teoria que obedeça
um “realismo local”. O emaranhamento quântico viola este limite (S ≈ 2,83) e os
resultados experimentais de fato comprovam esta violação, em favor da MQ.

2. O teleporte quântico

Em uma primeira análise, observações de estados emaranhados parecem vio-


lar o princípio da relatividade, de que a informação não pode ser transferida mais
rapidamente do que a velocidade da luz. Mesmo que sistemas emaranhados pare-
çam interagir através de largas distâncias espaciais, acredita-se que nenhuma in-
formação possa ser transmitida desta forma e, mesmo que não possa ser transmiti-
da apenas através do emaranhamento, é possível transmitir informação usando-se
um conjunto de estados emaranhados juntamente com um canal de informação
clássica. Este processo é chamado de teleporte quântico (TQ) (BENNETT et al,
1993). O TQ não transporta energia ou matéria, nem permite comunicação de
informação a uma velocidade superluminal, e sua principal característica é a de
transmitir informação presente em uma superposição quântica.
Do ponto de vista de primeiros princípios, o TQ está fundamentado em dois
aspectos básicos da MQ: o emaranhamento quântico e o teorema de não-clonagem
(WOOTTERS, ZUREK, 1982; DIEKS, 1982), que mostra ser impossível realizar um
aparato quântico que tenha como função clonar estados quânticos desconhecidos.
Basicamente, o TQ transfere um estado quântico de um local a outro, através
de um processo que: 1) primeiramente destrói o estado a ser teleportado, extrain-
do-se informação suficiente para recuperá-lo ao final; 2) transmite a informação
208 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

adquirida de um local a outro; 3) reconstrói o estado no local de destino, através


da informação recebida. Desta forma, o estado original é destruído no processo,
respeitando o teorema de não-clonagem, e uma réplica exata deste estado é criada
no local de destino. O que é transmitido de fato no processo é a informação a res-
peito do estado quântico original e não o estado em si, ou seja, não há nenhuma
transmissão de matéria ou de energia.
Este processo é realizado através de um protocolo, resumidamente descri-
to da seguinte forma: deseja-se teleportar o estado desconhecido de um qubit
7
onde e são números complexos, do local A ao
local B. Para isto, Alice, que está no local A, de posse do qubit | , comparti-
lha um estado emaranhado com Bob, que está no local
B. Através de uma medida em uma base especial de estados emaranhados (base
de Bell) em A, que destrói o estado inicial em A, Alice pode obter, com proba-
bilidades iguais de ¼, um dos pares de bits clássicos: . Feita
esta medida, Alice transmite, através de um canal de comunicação clássico, o
par de bits a Bob e, dependendo da informação recebida, este então aplica uma
transformação conveniente ao qubit em sua posse, obtendo assim o estado inicial
. Ou seja, através da destruição do estado inicial em A e
de uma transeferência de informação clássica de A para B, foi possível reconstruir
em B o estado inicial destruído em A, sem qualquer menção à possibilidade de o
estado inicial ter atravessado o espaço entre A e B.
Imediatamente, uma questão interessante se apresenta no processo de TQ:
pelo fato de os coeficientes e em | serem números complexos quais-
quer, uma grande quantidade de informação seria necessária para reproduzir este
estado, porém, como visto acima, apenas dois bits de informação clássica transmi-
tidos de um local a outro são suficientes para fazê-lo.

7 Quantum bit, em alusão aos bits clássicos 0 e 1. Note que um qubit representa uma
superposição dos estados quânticos |0 > e |1 >, devido ao princípio de superposição
quântico. Estes estados são autoestados de um sistema quântico no espaço de Hilbert
bidimensional, como uma partícula de spin ½, polarizacões horizontal e vertical de um
fóton, etc. Classicamente, esta superposição não é possível.
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 209

2.1 O Teleporte Quântico segundo algumas interpreta-


ções: o colapso da função de onda e as interpretações
de Everet, Bohm e estatística

Vejamos como as interpretações da MQ apresentadas anteriormente descre-


vem o processo de TQ (TIMPSON, 2006):
1) Colapso da função de onda (DIRAC, 1947; VON NEUMANN, 1955): a me-
dida realizada por Alice em A faz com que o sistema de Bob em B colapse, isto é,
tem-se um efeito não-local (ação a distância), causando uma alteração real das
propriedades físicas do sistema em B. Posteriormente, através da transmissão da
informação clássica de A até B, Bob pode saber qual transformação realizar em seu
qubit, obtendo então o estado inicial | ;
2) Interpretação de Everett (muitos mundos) (EVERETT, 1957): não há ação a
distância, pois não existe colapso da função de onda. A dinâmica ocorre através
de interações unitárias, onde sistema e aparato de medida estão correlacionados.
Assim, a medida realizada por Alice em A seleciona um estado definido em B, re-
lacionado ao resultado da medida em A. O estado do sistema total é um autoestado
do sistema A + B + aparato de medida, que estão emaranhados e, após receber a
mensagem clássica de Alice, Bob desemaranha seu sistema, obtendo então o estado
inicial | que, contudo, só poderá ser observado em B;
3) Interpretação de Bohm (variáveis ocultas) (BOHM, 1952): o estado inicial |
em A possui um vetor de spin que depende dos coeficientes e
. A medida realizada por Alice em A emaranha os sistemas A, B e aparato de
medida e a função de onda total é agora uma superposição de quatro termos, que
são os quatro resultados possíveis da medida em A e, para cada um destes termos,
o sistema B terá um vetor de spin definido . Quando um dos
quatro termos torna-se ativo (pela medida em A), o sistema B instantaneamente
(aspecto não-local) muda para um dos vetores de spin . Após Alice trans-
mitir a mensagem clássica para Bob, este realiza a operação unitária necessária,
desemaranhando seu sistema e obtendo o estado inicial | , com vetor de spin
;
4) Interpretação estatística: o colapso da função de onda não corresponde a
nenhum processo físico real e o formalismo quântico descreve apenas ensembles
(conjuntos de partículas), não fazendo menção a sistemas individuais. Desta for-
ma, Alice precisa teleportar todos os membros de um ensemble no estado | .
Após enviar a mensagem clássica a Bob, o ensemble em B estará no estado | ,
ou seja, a estatística de medidas em B será a mesma das medidas iniciais do en-
semble em A.
210 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Assim, o TQ é um processo quântico importante tanto do ponto de vista de


fundamentos quanto na compreensão da ligação cada vez mais evidente entre a
MQ e o conceito de informação. Algumas interpretações recentes da MQ, basea-
das neste conceito, foram propostas. Uma delas, a interpretação de Zeilinger (ZEI-
LINGER, 1999), vem sendo muita estudada, principalmente pelos instrumenta-
listas, devido ao fato de propor um princípio fundamental para a MQ baseado no
conceito de informação. Nesta interpretação, objetos físicos não existem per si e
são apenas construções das impressões sensoriais, ou seja: “um sistema elementar
representa o valor de verdade de uma proposição”, ou, de uma forma relacionada
com teoria da informação: “um sistema elementar carrega apenas um bit de infor-
mação”. Por proposição Zeilinger entende uma pergunta experimental, ou seja,
pode-se ainda dizer que “o estado de um sistema elementar especifica a resposta
para um único experimento do tipo sim/não”.

3. Algumas contribuições para a reflexão epistemo-


lógica no ensino de ciências

Contra uma visão positivista de Ciência, concebida como verdade absoluta,


pronta e privilegiada, as pesquisas em Ensino de Ciências têm buscado elementos
dentro da Filosofia da Ciência para demonstrar os limites de uma descrição física
total da realidade. Sendo assim, eis aqui um tema rico inicialmente dentro do âm-
bito da Física.
Contudo, o tema em questão ainda pode nos levar a questões epistemológicas
específicas da Química.
A proposição cartesiana de partição do mundo através do argumento do cogito
acabou por impor uma condição lógica necessária à Ciência: com uma separação
entre eu, Deus e mundo, a coisa pensante tem poder de conhecimento acerca da
coisa extensa. Ou seja, é condição tomada pela Ciência de que é possível o estudo
objetivo do mundo, uma vez que o “eu” está separado deste.
A ideia de um holismo, como proposto por Bohr, para a compreensão dos
fenômenos quânticos, associada à correlação intrínseca entre observador e objeto
do ponto de vista experimental, como se pode observar na interpretação episte-
mológica do Princípio de Incerteza, acaba por colocar em xeque esta percepção
cartesiana de mundo.
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 211

Ou seja, ainda que o formalismo matemático estivesse coerentemente cons-


truído, as questões filosóficas reacenderam os debates metafísicos julgados desne-
cessários pela postura positivista.
De que natureza são tais debates? Podemos nos basear em Bachelard (1991,
2000), Kuhn (2011) e Popper (1993) para conceber a riqueza epistemológica deste
debate.
Bachelard, filósofo contemporâneo ao desenvolvimento da teoria Mecânica
Quântica, no entanto não vê (ainda que uma visão carregada de vislumbre e posi-
tividade) um problema nas limitações impostas pelo Princípio de Incerteza, quan-
to menos ao conhecimento científico. A visão de uma epistemologia dialética se
coloca a partir do momento em que, para Bachelard, o que teria sido o problema
histórico fundamental da construção da Ciência, o embate entre realismo e racio-
nalismo, seria na verdade uma dialética que encontra no Novo Espírito Científico
seu apogeu, a partir do momento em que este considera o conhecimento advindo
de novas formas de pensamento introduzidos pelo triplo movimento conceitual
das teorias Não-Euclidiana da Matemática, da Relatividade na Física e da Mecâni-
ca Quântica na Física e na Química.

Quando se compreendeu quanto o pensamento matemático mo-


derno ultrapassa a ciência primitiva das medidas espaciais, quan-
to cresceu a ciência das relações, damo-nos conta de que a Física
matemática oferece eixos cada dia mais numerosos à objetivação
científica. (BACHERLARD, 2000, p.142)

Em seu trabalho “A Estrutura das Revoluções Científicas”, Thomas Kuhn


(2011) estabelece um novo modelo de análise do processo histórico de construção
da Ciência, no qual se encontra uma crítica ao positivismo lógico e à historiografia
convencional.
Neste modelo, a observação é antecedida por teorias, apontando para a in-
separabilidade entre observações e pressupostos teóricos, reconhecendo ainda o
caráter construtivo, inventivo e não definitivo do conhecimento. Segundo Kuhn:

Considero “paradigmas” as realizações científicas universalmente


reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência (p. 13).
212 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Neste ensaio, “ciência normal” significa a pesquisa firmemente


baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas
realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma
comunidade científica específica como proporcionando os funda-
mentos para sua prática posterior (p. 29).

Assim, a grande questão proposta por Kuhn é a sociologia e o movimento da


comunidade científica dentro da ciência normal e das rupturas propostas pelas
revoluções científicas ao estabelecerem novos paradigmas. Contudo, se o sucesso
do empreendimento positivista se deu em detrimento de uma postura operacional
da Ciência, responsável pela legitimação dos dados, nem Kuhn e nem Bachelard
são filósofos preocupados com a questão metodológica da Ciência.
Em Popper (1993), a questão central é a questão metodológica da Ciência. A
lógica operacional do processo científico que investiga a natureza à procura da
essência inatingível, ou seja, o progresso acerca do conhecimento sobre o mundo
tem como motor a busca da verdade, esta porém inacessível. Deste ponto de vista,
Popper defende uma Ciência crítica, cujo modo de operar se dá no falseamento, ou
seja, no ataque aos pressupostos de uma teoria, observando seu poder de resistên-
cia frente a tal questionamento.
Assim, podemos verificar que, enquanto teoria a ser fundamentada como visão
de mundo, a MQ ressuscitou questões metafísicas mortas pelo empreendimento
positivista. A proposta bachelardiana de dialética entre Realismo e Racionalismo
se fundamenta aqui especificamente porque os fenômenos quânticos impuseram
limitações acerca do conhecimento, quer seja por via ontológica ou epistemológica.
Propriedades matemáticas careceram de interpretações físicas e consequentemente
impuseram limitações às duas posições metafísicas. É a partir daqui que Bachelard
enxerga a natureza realizante da matemática no “Novo Espírito Científico”, e a ne-
cessidade de uma dialética entre a ontologia e a epistemologia. A MQ clama então
por um “progresso das categorias filosóficas” e as projeta sobre a ciência, naquilo
que o filósofo admite como sendo o diálogo entre a Ciência e a Filosofia.
Como um empreendimento suscetível de diversas interpretações, em que a
comunidade científica se reúne para estabelecer limites e extensões, em que inte-
grantes de interpretações distintas se embatem, temos um caso clássico (ou melhor
aqui “quântico”) de uma revolução científica, de um período de sedimentação de
um paradigma, assim como de projetos de aceitação e extensão de um novo dogma.
Se levarmos em conta a posição de Einstein em relação às imposições da MQ,
ainda que estas estejam dentro de proposições competentes ao “Novo Espírito Cien-
tífico” e a uma ruptura epistemológica, ou paradigmática, podemos colocá-lo no
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 213

papel de principal falsificacionista da teoria quântica. As proposições experimen-


tais engendradas por Einstein são argumentos contrários a determinadas posi-
ções da teoria quântica que ferem tanto princípios causais assim como a estrutura
das interpretações físicas. Deste modo, a resistência das formulações da MQ aos
ataques emblemáticos de Einstein se dão como uma exemplo da proposta meto-
dológica popperiana. Se considerarmos ainda que ambos se encontram dentro de
uma postura realista (crítica para Popper, e dogmática para Eisntein), o principal
mote das questões einsteinianas seria a deformação da proposta metodológica da
Ciência que a MQ causou. O que foi o embate Bohr x Einstein se não parte daquilo
que podemos configurar como sendo o embate entre uma Ciência crítica e uma
Ciência dogmática?
Para além de uma discussão de questões gerais acerca da Ciência, veremos
que tanto uma Filosofia da Física como uma Filosofia da Química podem impor
questionamentos ao empreendimento da MQ.
Para Rezende Júnior e Souza Cruz (2009), uma teoria física é a coexistência de
dois conjuntos de signos: signos matemáticos e linguísticos, de tal maneira que,
embora o modelo matemático seja carregado de forma implícita, não constitui por
si só uma descrição dos fenômenos, ou seja, seria semanticamente cego. Assim,
para os físicos, os modelos são instrumentos de trabalho, representações simplifi-
cadas de um problema. Na Química, encontra-se um processo bastante diferencia-
do pelo qual a representação pictórica admite um outro nível de complexidade. A
manipulação mental dos modelos é que permite que a realidade química se torne
inteligível.
A Química admitiria ainda uma complexidade multi-conceitual, em que uma
ampla variedade de substâncias e comportamentos físicos e químicos é examinada
nas transformações, o que exige múltiplas interpretações para dar conta de tal di-
nâmica, enquanto na Física existe uma tendência à redução dos fenômenos a entes
ideais de uma realidade simplificada e idealizada.
Outro ponto admitido pelas autoras é que os modelos químicos nem sempre
admitem extensa matematização, reflexo do processo histórico em que a Química
se viu determinada por uma sistemática experimental. Ainda assim, a comple-
xidade epistêmica da Química aceita formas de mecanização dos processos que
admitem a construção de algoritmos de natureza própria, de forma distinta da
matemática usual na Física, o que se pode verificar ao compreender o significado
das sequências reacionais consideradas pelos Químicos.
Diferentemente da Física, a Química admitiria também a coexistência de di-
ferentes modelos, sem que necessariamente um seja mais preditivo do que outro.
214 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Segundo as autoras, essa característica das duas áreas é reflexo de pressupos-


tos filosóficos aceitos em sua estruturação histórica. Enquanto a Física admitiria
uma natureza dinamicista, a Química teria estruturado seu corpo de significado
em pressupostos mecanicistas. Desta forma:

Em resumo, enquanto a Física foi se encaminhando cada vez


mais aos padrões dos dinamicistas, rejeitando a visualização, e
apoiando-se cada vez mais em estruturas matemáticas abstratas
e generalizáveis, a Química manteve, em várias áreas, uma tra-
dição mecanicista, com seus modelos particulares, visualizáveis,
representáveis e objetivamente válidos e verdadeiros da natureza.
É importante assinalar que estes elementos aparecem refletidos
tanto nos livros didáticos usados nas duas disciplinas, quanto nos
programas de estudo (GRECA e SANTOS, 2005, p. 42).

Para ilustrar a separação conceitual entre as duas áreas, Greca e Santos (2005,
p. 43) usam os modelos atômicos:

Um conteúdo interessante de observar essas diferenças entre as


formas de modelar em Química e em Física e as dificuldades que
essas diferentes formas trazem para a compreensão dos estudan-
tes é o que se refere aos modelos atômicos. O que acontece quan-
do os alunos aprendem modelos atômicos que são ensinados sob
um ponto de vista químico e mais tarde devem reinterpretar es-
ses mesmos modelos sob o ponto de vista físico? Sob o ponto de
vista químico eles aprendem o átomo como um sistema material,
concreto, realista, cujos elétrons percorrem clássicas trajetórias
bem definidas. Este modelo não se reduz somente a uma analogia
“didática”, senão que ele serve de base para a compreensão dos
processos de interação entre espécies atômicas e moleculares dife-
rentes. Esse modelo realista permite que o aluno compreenda me-
canismos de reações químicas, ligações entre átomos, etc. Tanto é
assim que muitos alunos ao representar na fórmula de Lewis uma
ligação química entre íons, representam elétrons como partículas
que trocam de átomos, alguns alunos inclusive representam com
símbolos e cores diferentes os elétrons de cada espécie em liga-
ção. Por outra parte, quando o estudante deve estudar o mesmo
assunto na Física deve compreender que não pode associar-se o
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 215

elétron a uma partícula clássica, que pelo princípio da incerteza, o


elétron não possui nem dimensão nem posição definidas, que são
indistinguíveis os elétrons de diferentes átomos, e que a melhor
forma de descrever o comportamento é dado pelo quadrado da
amplitude de onda de uma equação matemática, que é a equação
de Schrödinger. Os alunos também devem apreender que é impos-
sível ter uma representação analógica apropriada para essa abstra-
ção matemática.

Labarca (2005) aponta duas razões pelas quais a Filosofia da Química é tardia
em relação à Filosofia Física: 1) a adoção de um realismo ingênuo segundo o qual
existe uma única ontologia que constitui o objeto de nosso conhecimento; 2) o
pressuposto de que a Química pode ser reduzida à física fundamental. Ou seja,
dois pontos fundamentais que já distinguem as duas ciências como visto.
A segunda razão tem em Dirac (personagem da história da Ciência de grande
influência) um de seus precursores, tendo em vista sua afirmação de que a MQ
teria matematicamente as leis de uma grande parte da Física e de toda a Química.
Uma visão utilitarista da Química ainda tem contribuído para a visão supraci-
tada. No entanto, em se tratando de uma ciência capaz de “manipular as entidades
estruturais da matéria”, a partir da análise proposta aqui, uma Filosofia da Quími-
ca faz-se pertinente para a interpretação de fenômenos aqui estudados.
A ideia de uma identidade molecular traz à tona questões referentes à natu-
reza metafísica das entidades estruturais, objeto de estudo da Química. Seriam
as estruturas moleculares irredutíveis? Ou seja, tendo em vista a teoria quântica,
qual o sentido de uma estrutura molecular? Para a grande maioria dos Químicos,
uma visão epistemológica das entidades moleculares é incrédula, dado que a visão
utilitarista da Química está assentada na natureza ontológica das proposições me-
cânicas das reações químicas. Técnicas como a espectroscopia e a difração de raio
X estão assentadas e corroborariam uma visão ontológica . O que ainda é passível
de crítica, pois aqui tem-se um aspecto “fenomenotécnico”, em que os aparatos
experimentais são projeções carregadas de pressupostos teóricos .
O Realismo das entidades químicas é uma extensão das questões metafísicas
propostas anteriormente.
No entanto, o que parece uma questão um tanto quanto bem resolvida para
o filósofo francês não é aqui a perspectiva de físicos e químicos. Ou seja, como já
anteriormente citado, a existência das entidades de estudo da MQ apresenta natu-
rezas distintas para físicos e químicos.
216 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Labarca (2005), remontando a Vemulapalli e Byerly, nos traz que uma redução
epistemológica da Química à Física é falha, pois as propriedades de um sistema
químico não podem ser explicadas através das propriedades das microentidades
físicas. Para tal, suposições adicionais são requeridas, relacionadas com os fenô-
menos macroscópicos.
A conclusão nos leva a admitir a coexistência de múltiplas ontologias, nas
quais as entidades e regularidades de cada teoria podem ser consideradas legíti-
mas e reais.
As questões acima podem parecer distantes de uma realidade referente ao En-
sino de Química, contudo, para Labarca (2005), a redução da Química à mecânica
quântica tem um grande impacto em relação ao ensino, já que há um uso crescente
de princípios fundamentais da Física para explicar a estrutura atômica e o sistema
periódico dos elementos.
Como tudo isto implica questões filosóficas ao teleporte quântico?
Se realidade tem sua natureza, aqui determinada por duas Ciências, a organi-
zação energética proposta pela Física recairia sobre a realidade natural, Química,
dos compostos que definem o “mundo objetivo”. Deste ponto de vista, é possível
questionar a correlação entre as propostas epistemológica da Física e ontológica da
Química a partir da análise colocada acima. A questão da transmissão de infor-
mação na proposta epistemológica da Física recai sobre uma questão de natureza
ontológica da Química, ou seja:
1) Se, no futuro, pudermos utilizar o TQ para teleportar sistemas macroscópi-
cos ou em escalas “semi-clássicas”, a identidade (ontologia) física/objetiva destes
sistemas será reconstruída com perfeição, dado que o teleporte é a transmissão da
informação epistemológica? A Física transmitida construiria a mesma Química
do estado inicial?
Aqui, percebe-se que, afastadas de início, as duas Ciências se reencontram na-
quilo que é de interesse do conhecimento humano. Poderia a Química ser reduzida
à Física e seria o teleporte quântico a prova cabal deste reducionismo?
Porém, de um ponto de vista da construção de conhecimento como embate
entre as escolas empirista e inatista, o presente problema nos coloca outras duas
questões, sendo uma o aprofundamento da primeira:
2) Caso possamos fazer mais de uma cópia idêntica do sistema original e pos-
samos reconstruir mais de uma cópia de um ser humano, qual será o ser humano
“verdadeiro”?
3) Caso pudermos um dia teleportar um ser humano, todas as suas caracterís-
ticas subjetivas (mentais, morais, etc) serão idênticas após a destruição e recons-
trução?
CAPÍTULO 10 - Teletransporte Quântico: reflexões filosóficas como contribuições para o ensino de ciências | 217

A relação entre as características da consciência e o mundo objetivo, já pro-


blematizada por filósofos empiristas, como Bacon, Hume e Locke, transcende seu
local temporal, e retorna para debater com as perspectivas Transcendental Kan-
tiana e Fenomenológica Husserliana, dentro de um tema específico de Ciência,
retomando a necessidade de uma discussão metafísica acerca do conhecimento
científico, justamente o ponto de crítica à perspectiva positivista de ciência, isto é:
4) Baseado no princípio fundamental de Zeilinger, tudo o que se conhece a
respeito do mundo é apenas uma percepção dos sentidos? Existe uma realidade
absoluta, independente de sentidos?
As questões, ainda que complexas e sem posições conclusivas, revelam a natu-
reza dinâmica e humana do conhecimento advindo da investigação humana acer-
ca do mundo, o que as torna extremamente pertinentes ao longo da discussão do
assunto.

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CAPÍTULO 11

A importância da contribuição de Popper


para o ensino de ciências
Carlos Alberto Rufatto1
Marcelo Carbone Carneiro2

Introdução

Com a intenção de avançar em relação às contribuições da Filosofia da Ciên-


cia para o Ensino de Ciência, Alberto Villani (2001, p.176-179) apresenta questões
interessantes para a reflexão dos que trabalham com estes temas. Como a intenção
deste texto coincide com a proposta de Villani de explorar com mais profundidade
algumas questões e analisar as implicações fundamentais de certos debates da Fi-
losofia da Ciência, serão consideradas algumas das questões por ele apresentadas.
Essas questões serão aqui consideradas não só pela sua relevância, mas tam-
bém como oportunidade para se entender a importância da contribuição de
Popper para o Ensino de Ciências.

1. A questão da possibilidade de avaliação objetiva


das teorias científicas

Na primeira questão, Villani observa que o debate em Filosofia da Ciência


pode ser apresentado como:

[...] um embate entre os que consideram o avanço da ciência, ape-


sar de parcial e provisório, um dado inquestionável, no sentido de

1 Professor Doutor da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.


2 Professor Livre-Docente em Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da FAAC
– Bauru e do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência – UNESP – Bau-
ru. Realizou, de janeiro até agosto de 2012, pesquisa de Pós-Doutorado nos Archives
“Jean Piaget” em Genéve sob a supervisão da Profa. Dra. Silvia Parrat-Dayan (Université
de Genève - Suisse). Bolsista FAPESP (processo 2010/17634-4).
222 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

que as teorias mais recentes são objetivamente melhores do que


as mais antigas (Popper e Lakatos), e os que sustentam que no de-
senvolvimento da ciência há lugar para escolhas, que, geralmente
impedem uma avaliação definitiva (Kuhn e Feyrabend). (VILLA-
NI, 2001, p.176).

A comparação é interessante, mas vale observar que, para Popper e Laka-


tos, as avaliações das teorias não são definitivas (como o próprio Villani observa
ao usar as palavras “parcial” e “provisório”). Mas o contraponto pretendido fica
mais claro na questão que vem a seguir: “i) A evidente melhor adequação entre
as novas teorias e os correspondentes resultados experimentais é um critério su-
ficiente para concluir que as novas teorias são objetivamente melhores do que as
anteriores?”(VILLANI, 2001, p.176). A essa questão, Popper responderia afirmati-
vamente: a melhor adequação de certas teorias aos resultados experimentais cons-
titui-se, na sua visão, no mais importante critério a ser utilizado no momento da
escolha entre explicações concorrentes. E seria um critério objetivo o que permi-
tiria uma escolha racional, sendo este ponto, para Popper, de extrema importân-
cia, pois, segundo ele, se não tivermos critérios objetivos (ainda que questionáveis
posteriormente, ainda que apoiados em uma “base empírica” convencionalmente
aceita como “não problemática” naquele momento histórico), aceitos pela comu-
nidade científica como critérios relevantes para escolha entre teorias em determi-
nado momento histórico, o caráter racional do fazer ciência se perderia, pois as
escolhas seguiriam critérios subjetivos e/ou extra-científicos. A discussão sobre
este ponto levou Mellado-Jiménez a colocar Popper entre os autores que respon-
dem afirmativamente à pergunta sobre a possibilidade de avaliar a mudança de
teorias e a classificar Kuhn como relativista.
Em seguida, a pergunta que Villani propõe é a seguinte: “ii) O sucesso e a
primazia evidente dos modelos científicos na cultura geral da sociedade de nos-
so século são suficientes para torná-los conhecimentos preferenciais?” (VILLANI,
2001, p.177). Se o entendimento da palavra “preferencial” se der no sentido apre-
sentado por Villani (“[...] capaz de garantir mecanismos eficientes de contínuo
aperfeiçoamento objetivo [...]”), a resposta de Popper seria novamente afirmativa,
pois, segundo ele, a existência de critérios objetivos de escolha (na verdade conven-
cionalmente acertados no interior da comunidade científica) abriria espaço para
um debate racional, permitindo para o conhecimento científico características de
maior segurança e aperfeiçoamento que seriam típicas, sem que isso signifique
menosprezo por outras formas de conhecimento.
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 223

2. A possibilidade de avaliação objetiva no Ensino de


Ciências

Quando Villani faz um paralelo entre as posições de Kuhn e Feyerabend a res-


peito do que acontece na passagem entre a teoria velha e a nova (perdas cognitivas)
e o que ocorreria no Ensino de Ciências, teríamos, segundo ele, uma situação em
que seria sempre possível aos alunos defender e valorizar as culturas que trazem
para a escola. Neste sentido, pergunta: “A escola deveria sempre fomentar que os
valores culturais alternativos fossem desenvolvidos e fosse promovida uma adap-
tação entre eles e os que sustentam a ciência?” (VILLANI, 2001, p.177). A posição
de Popper aqui dependeria do que se entende por “adaptação”. Como alguns au-
tores notaram (entre eles, Mellado-Jiménez e o próprio Villani), o posicionamento
de Popper em relação ao tema da mudança conceitual, se tentarmos uma analogia,
estaria mais próximo das estratégias didáticas de conflito cognitivo, pois se estaria
buscando a prevalência de um conceito, supostamente mais adequado dentro de
um quadro comparativo, sendo assim, se buscaria o entendimento, por parte do
aluno, das conceituações vigentes.
Não está no escopo deste texto fazer um estudo detalhado do tema da mudan-
ça conceitual, o que, por si só, já exigiria um trabalho independente e de enverga-
dura. No entanto, pode-se atentar para alguns pontos relevantes, já que o interesse
aqui recai sobre as possíveis repercussões da Filosofia da Ciência de Popper no
Ensino de Ciências.
Ao avaliarem o tema dos conflitos cognitivos, Bastos e colaboradores (BAS-
TOS; NARDI; DINIZ, 2001) observam que recentemente surgiram argumentos
que questionaram a ênfase no conflito cognitivo, afirmando que eles seriam des-
necessários ou que teriam consequências negativas para a aprendizagem.
Citando Mortimer, os autores recuperam o argumento, que se apoia na idéia
de perfil conceitual, que afirma que os alunos não abandonam necessariamente
suas concepções alternativas quando conhecem as concepções científicas. As duas
concepções poderiam coexistir na mente do indivíduo, não havendo necessaria-
mente oposição ou conflito cognitivo para que a pessoa pudesse aprender. Em se-
guida, os autores citam Gil-Pérez e colaboradores3, que observaram que a estraté-
gia de provocar conflitos cognitivos reiteradamente poderia levar a um desgaste e
inibição dos alunos. Os autores relembram ainda outros argumentos de Mortimer,

3 GIL PÉREZ, D. et al. Tiene sentido seguir distinguiendo entre aprendizaje de conceptos,
resolución de problemas de lápiz e papel y realización de prácticas de laboratorio? En-
señanza de las Ciencias, v. 17, n.2, p.311-320, 1999b.
224 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

como o que enfatiza a dificuldade dos alunos em reconhecer e vivenciar conflitos,


sendo, portanto, um equívoco esperar dos alunos um comportamento similar ao
dos cientistas, ou aquele que afirma que a estratégia de conflito cognitivo poderia
levar o aluno a perder sua autoconfiança.
Tendo em conta esses argumentos, os autores questionam se a idéia de conflito
cognitivo deveria ser banida das discussões sobre o Ensino de Ciências.
Os autores observam que seria importante para o aluno perceber suas próprias
ideias e a dos outros como hipóteses de trabalho, e entender que o crescimento pes-
soal e intelectual depende de não estarmos fechados em nossas concepções. Enfati-
zam também que seria um absurdo se imaginar que as concepções dos alunos devam
ser protegidas de todo e qualquer questionamento. Apoiados nas reflexões de Gil-
-Pérez, observam a adequação da mudança de foco da questão da promoção de con-
flitos cognitivos e mudanças conceituais para a resolução de problemas colocados.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que se reconhece a possibilidade de haver conflito
e mudança conceitual, a excessiva ênfase que recaía sobre ela é retirada, dirigindo-se
o foco para a abordagem de situações problemáticas de interesse dos alunos.
Os autores observam a importância da presença de situações problemáticas,
que podem aparecer para os alunos de forma atraente, sendo de muita importância
no processo de aprendizagem:

[...] embora estratégias voltadas para criar conflito cognitivo se-


jam muitas vezes desnecessárias ou inadequadas, é preciso haver
espaço, nos debates e demais atividades realizados em aula, para
que as compreensões ou interpretações equivocadas sejam expli-
citadas, discutidas e retificadas. Isso tudo nos leva a afirmar que
os problemas e questionamentos têm uma importância cru-
cial para o processo de construção de conhecimento na escola”
(BASTOS; NARDI, DINIZ, 2001, p.11-12).

Como os autores observam, essas considerações ratificam as abordagens cons-


trutivistas. Atentos aos últimos desdobramentos do debate sobre mudança conceitu-
al, assimilam as críticas que foram apresentadas às versões tradicionais da mudança
conceitual, mas procuram enfatizar que, independentemente de haver ou não mu-
danças conceituais, a aprendizagem de conteúdos de ciência exigiria a construção e
reconstrução de conhecimentos. Segundo eles, “[...] uma das tarefas importantes a
serem desempenhadas pelo professor é mostrar aos alunos as razões pelas quais os
cientistas acreditam que determinados conhecimentos científicos fazem sentido e
devem ser considerados válidos”. (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.12).
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 225

O que está em jogo, segundo os autores, é se os alunos estão ou não com-


preendendo adequadamente os conteúdos científicos que estão sendo ensinados.
Este processo de compreensão poderia se dar de maneiras variadas: através da
formação de perfis conceituais, pela construção de conhecimentos sem status de
concepção, como resultado inicial ou final de um processo de mudança conceitual;
o fundamental, todavia, seja qual for o processo, seria saber se aquilo que é tido,
pela comunidade científica, como os conhecimentos científicos mais adequados
naquele momento estão sendo compreendidos adequadamente. De acordo com os
autores, “Isso faz com que os questionamentos e desafios assumam uma impor-
tância central dentro do processo de aprendizagem (o aluno dificilmente será ca-
paz de aperfeiçoar seus conhecimentos se não puder questioná-los ou desafiá-los)”
(BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.12-13).
Dessa forma, quando se considera que há um conhecimento científico esta-
belecido (que não deve ser tomado como verdade absoluta, que tem caráter pro-
visório, mas que é tomado pela comunidade científica como o que há de mais
satisfatório em termos explicativos naquele momento), e que as escolas existem
para cumprirem funções sociais específicas (transmissão, mas também questiona-
mento do conhecimento científico e de suas relações com a sociedade), a questão
que se coloca é: está havendo uma compreensão adequada, por parte dos alunos,
disto que é tido pela comunidade científica como o que deve ser aprendido neste
momento?
Portanto, os questionamentos e problematizações são vitais neste processo de
auxiliar os alunos a compreender os conteúdos científicos, que podem, sim, ser
questionados, criticados, mas que para isso precisam ser primeiramente compre-
endidos adequadamente.

3. A ciência e o Ensino de Ciências: um paralelo

3.1 O ponto forte da contribuição de alguns interlocutores


de Popper: a complexidade do processo de fazer ciência

Um dos questionamentos mais importantes que foram apresentados em rela-


ção à Filosofia da Ciência de Karl Popper diz respeito à questão da mudança teó-
rica, ou seja, quais seriam os fatores que conduziriam ao abandono de uma teoria
e à adoção de uma outra.
226 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Em relação a este tema, os posicionamentos de Kuhn (1996) e os questiona-


mentos apresentados por ele às posições de Popper (KUHN,1979) foram funda-
mentais no desenvolvimento do debate, que teve também a participação mais des-
tacada, entre outros, de Imre Lakatos (1983, 1979), que procurou desenvolver as
idéias popperianas à luz das objeções de seus críticos, e de Paul Feyerabend (1979),
com a apresentação de uma visão de ciência bastante diferente daquela apresenta-
da por Popper. Como a polarização mais importante ocorreu com o pensamento
de Kuhn, serão destacados alguns aspectos deste debate, com a finalidade de com-
preender melhor os pontos fortes das críticas das concepções popperianas.
Em relação à questão da mudança teórica, a principal crítica de Kuhn diz res-
peito aos testes, ou experimentos cruciais, que Popper considerava como funda-
mentais no processo de avaliação das teorias científicas. De acordo com Popper,
a ciência continua tendo nos experimentos algo fundamental, mas não, como na
concepção positivista, para confirmar as teorias como verdadeiras, mas sim para
testá-las com o objetivo de comprovar sua qualidade. O número de testes pelo qual
uma teoria passou não seria garantia de sua veracidade, as teorias estariam sempre
sujeitas à refutação. No entanto, um teste decisivo, um experimento crucial pode-
ria conduzir ao abandono da teoria.
O ponto forte da contribuição de Kuhn diz respeito, portanto, ao questiona-
mento da maneira como Popper descreveu o fazer ciência, em especial o papel atri-
buído ao potencial refutador dos experimentos. Segundo Kuhn, os cientistas não
abandonam suas teorias em razão de um experimento potencialmente refutador;
isto seria muito pouco para fazê-los desistir de ideias que prezam muito, que de-
senvolveram durante muito tempo, se habituando a elas. Muitas vezes, o que está
em jogo são financiamentos de pesquisas, grupos e estruturas grandes, a própria
trajetória intelectual do pesquisador ou até cargos importantes. Quando um caso
potencialmente refutador se apresenta, o cientista teria à mão várias alternativas
para preservar as ideias que lhe são tão caras, sendo que isto pode ocorrer não de
maneira refletida e calculada, mas como uma espécie de instinto de sobrevivência,
muitas vezes inconsciente.
Os exemplos pesquisados por Kuhn na história das ciências e os argumentos
por ele utilizados abriram espaço para uma série de pesquisas e debates que le-
varam a um questionamento da visão de ciência apresentada originalmente por
Popper. Ao longo desses debates4 , houve um questionamento do falseacionismo
como uma regra que seria usada com frequência pelos cientistas, ao mesmo tem-

4 Ver, por exemplo, o quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da
Ciência, realizado em Londres em 1965 (LAKATOS; MUSGRAVE, 1979).
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 227

po em que se desenvolvia uma percepção mais adequada dos vários fatores que
estariam presentes e influenciando o processo de mudança teórica. Muitos desses
fatores foram denominados de extra-científicos.
Em relação ao questionamento do falseacionismo a partir de um ponto de
vista intra-científico, Kuhn e Lakatos (LAKATOS, 1979) acabam confluindo para
um posicionamento em que se entende que a mudança teórica, quando ocorre, é
em razão de um certo esgotamento do programa de pesquisa5 vigente. Lakatos fala
em programas de pesquisa regressivos ou mudanças degenerativas de problemas,
para caracterizar situações em que não há um real aumento de conteúdo:

Se apresentarmos uma teoria para resolver uma contradição entre


uma teoria anterior e um exemplo contrário de tal maneira que a
nova teoria, em lugar de oferecer uma explicação (científica) que
aumente o conteúdo, só ofereça uma reinterpretação (lingüística)
que diminui o conteúdo, a contradição se resolverá de modo mera-
mente semântico, não-científico (LAKATOS, 1979).

O falseacionismo sofisticado defendido por Lakatos (segundo ele, já embrio-


nário em Popper) propõe a avaliação de séries de teorias que se constituiriam em
programas de pesquisa. Seriam esses programas de pesquisa que poderiam ser
mais adequadamente avaliados e considerados progressivos, ou seja, promissores
quanto ao seu potencial de apresentação e solução de problemas novos; ou degene-
rativos, que enfrentariam as dificuldades sem apresentação de novos conteúdos ou
descobertas. A esse respeito, Lakatos afirma:

O exemplo clássico de programa de pesquisa bem-sucedido é a te-


oria gravitacional de Newton; talvez seja até o mais bem-sucedido
programa de pesquisa já levado a cabo. Quando foi produzido
pela primeira vez, viu-se submerso num oceano de “anomalias”
(ou, se quiserem, de “contra-exemplos”), e enfrentou a oposição
das teorias observacionais que sustentavam tais anomalias. Os
newtonianos, contudo, transformaram, com tenacidade e engenho
brilhantes, um contra-exemplo depois do outro em exemplos cor-
roborativos, principalmente derrubando as teorias observacionais
originais à cuja luz essa “evidência contrária” foi estabelecida. No
processo, eles mesmos produziram novos contra-exemplos, que

5 Expressão cunhada por Lakatos.


228 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

novamente resolviam. “Converteram cada nova dificuldade numa


nova vitória do seu programa”6 (LAKATOS, 1979, p.163).

Já Thomas Kuhn, quando se consideram os fatores intra-científicos que atu-


ariam no processo de substituição de uma teoria científica por outra, utiliza o
conceito de “tradição de solução de enigmas”, que guarda semelhanças com o con-
ceito lakatosiano de “programa de pesquisa”, pois ambos chamam a atenção sobre
a importância dos problemas na pesquisa científica, sendo o aparecimento deles e
a busca de respostas o fio condutor principal de toda a atividade realizada na ciên-
cia. Neste ponto, Lakatos e Kuhn se aproximam, adotando um ponto de vista em
que as teorias são avaliadas ao longo de todo o processo, não havendo, portanto,
experimentos cruciais que pudessem, isoladamente, refutar uma teoria. Ao invés
disso, as teorias seriam avaliadas pela sua capacidade de gerar problemas novos e
aumentar o seu conteúdo, o que conduziria, inevitavelmente, a uma avaliação de
longo prazo, ou seja, os programas de pesquisa e paradigmas só seriam passíveis de
avaliação e substituição em razão do confronto com outros programas de pesquisa
e paradigmas alternativos, e essa confrontação e a decisão que dela decorreria só
seria possível num espaço de tempo que oferecesse, a essas tradições de pesquisa, a
oportunidade de demonstrarem o seu potencial.
Os pontos de semelhança com o posicionamento de Lakatos ficam mais evi-
dentes ao serem comparados os dois trechos anteriores deste autor com a passagem
em que Kuhn compara a astrologia com a astronomia:

Comparem-se as situações do astrônomo e do astrólogo. Se a pre-


dição de um astrônomo falhasse e seus cálculos conferissem, ele
poderia esperar corrigir a situação. Os dados podiam estar errados:
velhas observações podiam ser reexaminadas e novas mensurações
feitas, tarefas que criavam uma quantidade de quebra-cabeças de
cálculo e instrumentação. Ou talvez a teoria necessitasse de ajusta-
mento, quer pela manipulação de epiciclos, excêntricos, equantes,
etc., quer por reformas mais fundamentais de técnica astronômica.
Por mais de um milênio tais foram os enigmas teóricos e mate-
máticos em torno dos quais, juntamente com suas contrapartidas
instrumentais, se constituiu a tradição da pesquisa astronômica.
O astrólogo, em compensação, não tinha esses quebra-cabeças [...]
Embora a astronomia e a astrologia fossem quase sempre praticadas

6 Laplace, Exposition du Système du Monde, 1796, livro IV, capítulo ii (NOTA DO AUTOR)
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 229

pelas mesmas pessoas, incluindo Ptolomeu, Kleper e Tycho Brahe,


nunca existiu um equivalente astrológico da tradição astronômica
de solução de charadas. E sem charadas, que pudessem primeiro
desafiar e depois atestar o engenho do profissional, a astrologia não
poderia ter-se tornado ciência, ainda que as estrelas controlassem,
de fato, o destino humano (KUHN, 1979, p.15-16).

Pode-se sintetizar que o debate que ocorreu após a publicação da obra A lógica
da pesquisa científica, de Popper, resultou, principalmente pela colaboração de Kuhn,
Lakatos, Feyerabend, Toulmin e Laudan, na percepção de que o que se conhece como
ciência é algo complexo e rico, resultado da ação extremamente variada de inúmeros
cientistas, que concebem suas explicações utilizando um processo criativo pessoal (e
não exclusivamente por observação paciente, detalhada e objetiva como supunham
os positivistas) e que se comportam em relação às suas criações (quando elas são lan-
çadas na arena do debate da comunidade científica) de uma maneira também bastan-
te variada, e não necessariamente como Popper propugnava.
Tudo isso representou um avanço em relação à compreensão do que tem sido
o fazer ciência, e tem sido algo que tem escapado a determinações muito rígidas,
a métodos muito restritivos, a prescrições limitadoras. No entanto, pode-se per-
guntar se restou algo que pudesse dar alguma identidade ao processo, ou seja, o
fazer ciência suporia determinadas condições ou atitudes? Ou seria algo tão diver-
sificado e livre que diluiria seus limites em outras formas de se tentar entender a
realidade? Essas questões serão abordadas, com mais detalhe, adiante; antes disso,
no entanto, seria interessante se traçar um paralelo entre o que foi exposto acima
a respeito de como se tem feito ciência e como se tem ensinado ciência. O Ensino
de Ciências tem sido algo homogêneo, que segue padrões determinados e consen-
suais? Ainda mais, no contato com os conteúdos de Ciências, os alunos reagem e
desenvolvem processos semelhantes?

3.2 O ponto forte dos críticos das abordagens de mudan-


ça conceitual: a complexidade do processo de aprender
Ciências

Os debates sobre o tema da mudança conceitual começaram na década de


1970 e representaram uma continuidade no processo de aprofundamento das con-
cepções construtivistas. A ênfase do construtivismo no aspecto de que o conheci-
230 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

mento dos alunos passaria por um processo de construção, ou seja, seria algo que
se daria ao longo do tempo — e não automaticamente ou por memorização passi-
va, no ato da apresentação de novos conhecimentos — conduziu às reflexões sobre
como isto de fato aconteceria. A partir de então, abriu-se todo um leque de inves-
tigações que tinha por objetivo principal entender esse processo de construção do
conhecimento pelo aluno, não somente a partir da interação de elementos internos
e externos à sua mente (seus conhecimentos e o ambiente a ser conhecido), mas
também a partir das inter-relações entre os conhecimentos que ele já possuía com
aqueles que deveriam ser “transmitidos” em sala de aula.
Com base no trabalho de Osborne & Wittrock, Bastos e colaboradores sin-
tetizam algumas das questões que impulsionavam as pesquisas sobre o tema da
mudança conceitual:

Pesquisas realizadas na década de 1970 mostraram que (a) as


crianças possuem concepções “sobre uma variedade de tópicos em
ciência, desde uma idade precoce e antes da aprendizagem formal
da ciência”; (b) as concepções das crianças “são freqüentemente
diferentes das concepções dos cientistas”; e (c) as concepções das
crianças “podem não ser influenciadas pelo ensino de ciências,
ou ser influenciadas de maneira imprevista”. Além disso, dados
obtidos em diferentes países e por meio de diferentes “metodolo-
gias de investigação” foram similares, o que reforçou ainda mais
o fenômeno da existência, entre crianças e jovens, de concepções
que eram em maior ou menor grau contraditórias com os conhe-
cimentos científicos vigentes (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.1).

Os autores observam que esses resultados evidenciavam que as escolas estavam


falhando em “transmitir” às crianças as concepções científicas que, institucional-
mente, se esperava que transmitissem com sucesso. Além disso, se percebeu que os
alunos, por si mesmos, construíam uma série de ideias e explicações, baseadas em
suas experiências pessoais e informações recebidas fora do ambiente escolar, prin-
cipalmente através da mídia. Percebeu-se, também, que essas concepções tinham
certa resistência a mudanças e podiam constituir obstáculos ao aprendizado esco-
lar. Foram denominadas “concepções, conceitos ou idéias alternativos, ingênuos,
intuitivos, espontâneos ou de senso comum” (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.1).
Ao longo da década de 1980, as investigações se concentraram em descobrir
como essas concepções alternativas poderiam ser mudadas ou eliminadas, abrin-
do espaço para as concepções aceitas pela comunidade científica como as mais
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 231

adequadas naquele momento histórico, e que seriam, por conseqüência, as que


deveriam ser ensinadas em sala de aula. A esse respeito observa Nussbaum:

O conceito de aprendizado e a mudança conceitual se encontram


no centro do aprendizado da ciência, uma vez que os conceitos for-
necem o elemento de organização e os princípios diretivos para
todas as lições, assim como para todos os trabalhos de laboratório
ou de campo. Desta forma, é muito significativo para a pesquisa
da educação em ciências chegar a um entendimento profundo da
dinâmica da mudança conceitual na sala de aula, caminhando das
pré-concepções ingênuas para as desejadas concepções “científi-
cas”. Depois de vencer este desafio, esperamos ser capazes de pla-
nejar estratégias de ensino apropriadas para promover a mudança
conceitual pretendida (NUSSBAUM, 1989, p. 530).

Desde então, os debates sobre mudança conceitual, principalmente em razão


da abordagem de autores como Posner (1982), Nussbaum (1989) e Strike (1992), in-
cluíram uma abordagem que buscou um paralelo entre a mudança conceitual em
sala de aula e a mudança de teorias (ou paradigmas, ou programas de pesquisa) no
âmbito científico. Esse caminho, apesar de a mudança conceitual em sala de aula e
a mudança dos paradigmas científicos possuírem suas especificidades, se mostrou
produtivo e deu origem a uma série de contribuições.
Em um trabalho que se tornou referência para o tema da mudança conceitual,
Posner (1982) buscou inspiração nas idéias de Lakatos e Kuhn para defender a
proposta de conflitos cognitivos. De acordo com Posner, Lakatos e Kuhn teriam
definido as condições em que as mudanças teóricas ocorreriam na ciência. No que
Posner denomina de primeira fase da mudança conceitual em ciência, as concep-
ções centrais que os cientistas utilizam estariam organizadas em programas de
pesquisas (Lakatos) ou paradigmas (Kuhn). Em seguida, afirma:

A segunda fase da mudança conceitual ocorre quando essas con-


cepções centrais requerem modificação. Aqui o cientista fica cara
a cara com um desafio às suas suposições básicas. Se a pesquisa
prosseguir, o cientista deve adquirir novas concepções e uma nova
forma de ver o mundo. Kuhn denomina este tipo de mudança con-
ceitual de “revolução científica”. Para Lakatos isto é uma mudança
de programas de pesquisa (POSNER, 1982, p.212).
232 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Segundo Posner, teríamos exemplos análogos de mudança conceitual na


aprendizagem. O conceito de assimilação é utilizado para descrever a situação em
que os estudantes usam conceitos correntes para tratar um novo fenômeno. Mas,
como as concepções dos estudantes, com frequência, são inadequadas para permi-
tir um entendimento adequado do novo fenômeno, eles precisam substituir ou re-
organizar seus conceitos centrais. Posner utilizou o conceito de acomodação para
descrever essa segunda forma mais radical de mudança conceitual.
O ponto de maior interesse para o desenvolvimento deste item se refere ao
papel que Posner, baseado em suas pesquisas, considerou o mais adequado para o
professor de ciências. Segundo ele, o professor não deveria se limitar ao papel de
esclarecedor de idéias e apresentador de novas informações, mas deveria assumir
dois papéis adicionais: (1) O de adversário, no sentido de tutor socrático: “Neste
papel, o professor confronta os estudantes com o problema surgido a partir de
suas tentativas para assimilar novas concepções” (POSNER, 1982, p.227). O autor
esclarece a necessidade de se entender o confronto de um ponto de vista impessoal,
porquanto sejam concepções que estariam sendo comparadas. (2) O de modelo de
pensamento científico, que incluiria “[...] uma implacável busca por consistência
entre as idéias e entre teoria e evidência empírica, um ceticismo em relação ao
uso excessivo de idéias ad hoc nas teorias e uma postura crítica em relação ao que
seriam ajustes razoáveis nas discrepâncias entre teoria e resultados” (POSNER,
1982, p. 227).
A abordagem de Posner, que tinha como consequência a proposta de conflito
cognitivo para levar à desejada acomodação (reorganização ou substituição de con-
cepções inadequadas dos estudantes), conseguiu influenciar de forma marcante
os debates posteriores e acabou conduzindo, posteriormente, a um processo de
questionamento da validade pedagógica dos conflitos cognitivos.
Como a concepção de conflito cognitivo estava muito associada à abordagem
de mudança conceitual, esta última passou, nos últimos anos, a ser questionada.
Ao mesmo tempo, as propostas construtivistas, que davam o suporte pedagógico
para as abordagens de mudança conceitual, passaram também a receber críticas.
Em artigo já citado, que aponta para questões de grande relevância, Bastos e cola-
boradores (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001) procuram entender o impacto dessas
críticas para a visão construtivista. Ao indagarem se esses questionamentos teriam
atingido os princípios básicos da visão construtivista, declaram:

Acreditamos que não, por uma série de razões: (a) a idéia de que
os conhecimentos (cotidianos, científicos, filosóficos etc.) repre-
sentam construções, produções ou elaborações da mente humana
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 233

(e não cópias da realidade) está firmemente estabelecida em fi-


losofia e psicologia, e não tem como conseqüência necessária
um ensino por mudança conceitual, o que significa que, a rigor,
o questionamento do ensino por mudança conceitual não pode
causar danos a uma visão construtivista do processo de produção
de conhecimentos na ciência ou do processo de aprendizagem no
indivíduo; (b) os argumentos empregados nas discussões volta-
das para a análise crítica do ensino por mudança conceitual nem
sempre são os mais adequados, conforme procuraremos mostrar a
seguir (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.5).

Os autores entendem que as críticas em questão diriam respeito, mais direta-


mente, às propostas de conflito cognitivo e mudança conceitual. No caso de Mor-
timer (2000), a crítica seria que as estratégias de ensino voltadas para a mudan-
ça conceitual seriam pouco efetivas, pois os indivíduos não abandonariam suas
concepções anteriores para construírem concepções novas. Ao invés disso, eles
continuariam utilizando suas concepções alternativas em situações específicas,
formando um perfil conceitual, no qual estariam reunidas, simultaneamente, ver-
sões distintas para um mesmo conceito.
Em relação a Solomon7, os autores observam a defesa da coexistência, na men-
te dos indivíduos, de sistemas de conhecimento com epistemologias diferentes
(como o saber cotidiano e a ciência). A tentativa, por parte do professor, de produ-
zir mudanças conceituais seria encarada como posição de força para a submissão a
novas formas de pensamento e novos conceitos.
Os autores observam ainda as críticas de Cachapuz8 ao ensino por mudança
conceitual, por desvalorizar temas como o das finalidades educacionais, e recor-
dam também os argumentos de Mortimer (2000) e Gil-Pérez e colaboradores9, de
que o ensino por mudança conceitual teria desconsiderado os aspectos afetivos da
aprendizagem, recorrendo a estratégias de conflito cognitivo que gerariam insegu-
rança, inibição e rejeição entre os alunos.

7 SOLOMON, J. The rise and fall of constructivism. Studies in Science Education, v.23,
p.1-19. 1994.
8 CACHAPUZ, A. F. (Org.). Perspectivas de ensino. Porto: Centro de Estudos de Educa-
ção em Ciência, 2000.
9 GIL PÉREZ, D. et al. Puede hablarse de consenso constructivista en la educación cientí-
fica? Enseñanza de las Ciencias, v.17, n.3, p.503-12, 1999a.
234 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Todo o debate dos últimos anos envolvendo o tema da mudança conceitual


contribuiu para se compreender, com mais profundidade e detalhes, o que ocorre
com os indivíduos durante o processo de aprendizagem. As críticas acabaram cha-
mando a atenção sobre alguns aspectos importantes, como os relacionados acima,
e o reconhecimento dessas contribuições, como o texto de Bastos e colaboradores
mostra (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001), pôde colocar o debate em outro patamar.
De fato, eles reconhecem a importância dos argumentos dos críticos da proposta
de mudança conceitual, mas ao mesmo tempo procuram identificar os pontos im-
portantes da proposta que indicariam problemas relevantes a serem explorados:

Note-se porém que a possibilidade da coexistência de saberes dis-


crepantes na mente dos indivíduos não deve servir como argu-
mento para negar o fato evidente de que as pessoas, ao longo da
vida, podem mudar radicalmente suas idéias, valores e atitu-
des. Em outras palavras, tanto a formação de perfis como também
as mudanças de natureza conceitual são processos passíveis de
ocorrer na mente de um indivíduo. Parece pouco plausível que
as pessoas, ao aprender, apenas incorporem novas informações e
idéias, formando perfis, sem que isso tenha qualquer impacto no
restante de seu conteúdo mental (conhecimentos, concepções, va-
lores, crenças etc.) (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.7).

Os autores indicam a possibilidade de ocorrência tanto de casos de mudança


conceitual e de formação de perfil conceitual, como de outros processos, como o
de construção e modificação de conhecimentos, que não possuem o status de con-
cepção (que não fariam parte dos saberes que o indivíduo toma como válidos). No
entanto, após esse reconhecimento do processo de aprendizagem como algo muito
mais rico e complexo do que se supunha no início das abordagens de mudança
conceitual, os autores apresentam uma questão que leva a refletir sobre essa tradi-
ção: “a noção de conflito cognitivo deve ser banida das discussões sobre ensino de
ciências?” (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.10).
Os autores reconhecem que a questão é controvertida, mas observam que
a educação científica não poderia abrir mão dos problemas e questionamentos.
Apoiados em Gil Pérez, argumentam que não se trata de eliminar os conflitos cog-
nitivos, mas de mudar o foco, fazendo os alunos enxergarem suas idéias e as dos
outros como hipóteses de trabalho. A esse respeito, afirmam:
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 235

Além disso, é particularmente importante colocar para os alunos


que nosso crescimento pessoal e intelectual pode ser severamente
obstaculizado se nos fecharmos em nossas concepções e nos negar-
mos a considerar a validade de outras possíveis alternativas da rea-
lidade (a falta de humildade intelectual torna-se então uma atitude
nociva para o indivíduo) (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.10).

Ou seja, sempre estará aberta a possibilidade de comparações, e seria ingê-


nuo, como os autores observam, supor que as concepções dos alunos devam ser
protegidas de questionamentos, “permanecendo intocadas pelo ensino escolar”.
No entanto, o foco passa a ser a resolução de problemas, ou seja, desloca-se o inte-
resse de uma ênfase excessiva no conflito cognitivo e na mudança conceitual, para
a apresentação de situações problemáticas de interesse dos alunos. Os problemas
passam a estar no centro das atenções e as hipóteses que procuram explicá-los
inevitavelmente acabam sendo comparadas.
Após destacarem vários aspectos sobre a importância dos problemas e ques-
tionamentos na educação científica, inclusive lembrando que as situações proble-
máticas ou desafiadoras em geral são atraentes para os alunos, os autores con-
cluem que “[...] os problemas e questionamentos têm uma importância crucial para
o processo de construção de conhecimentos na escola” (BASTOS; NARDI; DINIZ,
2001, p.12).
Ao voltar a atenção para o entendimento adequado dos conteúdos ensinados,
os autores observam que a compreensão poderia se dar em função de um proces-
so de mudança conceitual, ou pela formação de perfis conceituais, ou ainda pela
construção de conhecimentos sem status de concepção, ou seja, a forma como a
compreensão se dá poderia ser variada, mas o fundamental seria saber se, o que foi
assimilado, o foi de acordo com o que a escola esperava:

Em qualquer uma dessas situações, porém, os significados que fo-


rem sendo construídos precisarão ser continuamente aperfeiçoa-
dos (checados e retificados) para que se tornem coerentes com os
conhecimentos científicos atuais. Isso faz com que os questiona-
mentos e desafios assumam uma importância dentro do processo
de aprendizagem (o aluno dificilmente será capaz de aperfeiçoar
seus conhecimentos se não puder questioná-los ou desafiá-los).
(BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.12-13).
236 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

As contribuições dos críticos das abordagens de mudança conceitual, funda-


mentais para se entender mais adequadamente os vários processos envolvidos na
aprendizagem, conduziram o debate para o seguinte problema: se, de fato, os alu-
nos mantêm concepções alternativas, durante, e mesmo depois de finalizado o
processo de aprendizagem de um conteúdo específico, como o professor deve se
comportar frente a isso?
Em outras palavras: existe um conteúdo — um conjunto de conceitos, idéias e
teorias — que é apresentado, no mínimo, como o melhor conhecimento disponível
naquele momento da história (supondo-se a vigência de uma visão de ciência mais
atualizada, apoiada na contribuição dos principais filósofos da ciência do século
XX). Este conteúdo, em razão da credibilidade alcançada no meio científico, aca-
ba, depois de certo tempo, se incorporando ao conjunto de conhecimentos que a
sociedade avalia como importantes para serem transmitidos pela escola.
Existe, portanto, uma expectativa institucional (da escola) e da sociedade (ou
da parcela da sociedade que se ocupa desses assuntos) de que certos conteúdos
devem ser não só “transmitidos”, mas que se compreenda por que possuem aquele
status, ou seja, existe a expectativa de que os alunos compreendam por que aquelas
teorias, ideias e conceitos adquiriram credibilidade tal que as autorizaram a ser
ensinadas nas escolas. Dito de uma forma mais direta: por que os alunos deveriam
aprender os conteúdos ensinados se já possuem versões próprias?
Essas questões ajudam a compreender os argumentos que enfatizam a impor-
tância dos problemas para o ensino de ciências. Quando um problema é apresen-
tado, ele pode dar origem a vários tipos de explicações. Não seria importante para
o aluno avaliar essas ideias? Mesmo que o aluno não compreenda adequadamente,
em um primeiro momento, todos os detalhes e o alcance da teoria que está sendo
ensinada, mesmo que continue utilizando suas concepções em outros contextos,
não seria interessante que percebesse as diferenças e entendesse por que a comuni-
dade científica avalia aquela forma de explicação como a melhor naquele momen-
to? A ausência de comparações ou a falta de atenção para os pontos de diferença ou
divergência entre as explicações não conduziria a uma situação de acomodação?
As explicações, cada uma aplicada ao seu contexto, se equivalem? Essas questões
podem ser debatidas e aprofundadas, de forma interessante, pela teoria popperia-
na. Antes, no entanto, será necessário esclarecer os pontos fortes da contribuição
de Popper para a discussão do que é a ciência.
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 237

3.3. O ponto forte da contribuição de Popper: a preocu-


pação com o caráter racional e o papel institucional da
ciência

Os interlocutores de Popper, notadamente Kuhn e Lakatos, contribuíram de


forma decisiva para a compreensão de como a ciência tem sido feita. A contribui-
ção de Popper a respeito deste tema foi inegavelmente enriquecida pelo debate que
se seguiu à sua exposição.
A sensação que muitos tiveram, principalmente em razão do debate com
Kuhn, foi a de que a interpretação popperiana sobre o fazer ciência poderia ser
definitivamente sepultada. A apresentação convincente, por parte de Kuhn, dos
fatores extra-científicos que poderiam interferir no processo (como financiamento
de pesquisas e preferências de publicação), somados a uma interpretação correta
da postura da maioria dos cientistas em relação às suas teorias (dificuldade de
assimilar contra-exemplos e, por vezes, defesa intransigente), demonstrou que, na
atividade científica, estavam presentes posturas que transgrediam a racionalidade
identificada por Popper.
No entanto, um ponto de relevância foi frequentemente negligenciado: a ciência
é um projeto humano, seus fundamentos, métodos, procedimentos, técnicas, temas,
problemas, hipóteses, testes, são criados por nós, seres humanos. Não se trata de algo
natural, inalcançável pela capacidade humana de transformação e direcionamento.
Em razão da inexistência de regras rígidas e da diversidade humana, o fazer ciência se
constituiu, como o debate da Filosofia da Ciência nas últimas décadas demonstrou,
em algo muito rico e variado. No entanto, ao observar-se isso, apresenta-se a pergun-
ta: existe algo de comum, uma identidade, neste variado processo de fazer ciência? Ou
ainda: o que deveria ser buscado, ou preservado, para que a ciência possa continuar a
atender às expectativas da sociedade? É exatamente em relação a este tipo de questio-
namento que as ideias de Popper mostram sua relevância.
A valorização do caráter racional da ciência, por parte de Popper, tem relação
não só com o que o autor deseja para a ciência, mas também com o que pretende
para a sociedade. Podemos entender a proposta popperiana mais como um projeto
que busca preservar, para a ciência e para a sociedade, características avaliadas
por ele como essenciais e de longa tradição na história humana. A esse respeito,
afirma:

Um dos ingredientes mais importantes da civilização ocidental é o


que poderia chamar de “tradição racionalista”, que herdamos dos
gregos: a tradição do livre debate – não a discussão por si mesma,
238 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

mas na busca da verdade. A ciência e a filosofia helênicas foram


produtos dessa tradição, do esforço para compreender o mundo
em que vivemos; e a tradição estabelecida por Galileu correspon-
deu ao seu renascimento. Dentro dessa tradição racionalista, a ci-
ência é estimada, reconhecidamente, pelas suas realizações práti-
cas, mais ainda, porém, pelo conteúdo informativo e a capacidade
de livrar nossas mentes de velhas crenças e preconceitos, velhas
certezas, oferecendo-nos em seu lugar novas conjecturas e hipóte-
ses ousadas. A ciência é valorizada pela influência liberalizadora
que exerce – uma das forças mais poderosas que contribuiu para a
liberdade humana (POPPER, 1972, p.129).

A principal característica que Popper procura destacar na ciência seria, por-


tanto, seu caráter racional. E, na concepção popperiana, haveria uma ligação entre
essa racionalidade desejada e outras duas características importantes da ciência: a
busca da verdade e a expansão do conhecimento. No texto denominado “Verdade,
Racionalidade e a Expansão do Conhecimento Científico”, Popper sustenta:

O progresso contínuo é uma parte essencial do caráter racional e


empírico do conhecimento científico; se deixa de progredir, a ci-
ência perde seu caráter. É esse crescimento que a torna racional e
empírica: o modo como os cientistas discriminam entre as teo-
rias disponíveis, escolhendo as melhores ou, se falta uma teoria
satisfatória, a forma como justificam a rejeição de todas as teorias
propostas, sugerindo assim algumas das condições que uma teoria
satisfatória deveria apresentar (POPPER, 1972, p.241).

O autor esclarece, na sequência, que não acredita em uma lei histórica do pro-
gresso, ou seja, esse progresso do conhecimento científico não seria algo pré-deter-
minado, uma necessidade histórica; mas sim algo que tem ocorrido em razão da ati-
tude intelectual das pessoas envolvidas no processo. A respeito desta postura, diz:

Mas a ciência é uma das poucas atividades humanas – talvez a


única – em que os erros são criticados sistematicamente (e com
freqüência corrigidos). Por isso podemos dizer que, no campo da
ciência, aprendemos muitas vezes com nossos erros; por isso pode-
mos falar com clareza e sensatez sobre o progresso científico. Na
maior parte dos outros campos de atividade do homem, ocorrem
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 239

mudanças, mas raramente há progresso – a não ser dentro de uma


perspectiva muito estreita dos nossos objetivos neste mundo. Qua-
se todos os ganhos são neutralizados por alguma perda – e quase
nunca sabemos como avaliar as mudanças (POPPER, 1972, p.242).

Portanto, a racionalidade da ciência, na concepção popperiana, está ligada à


possibilidade de discussão crítica das opções de explicação, que se complementaria
com a atitude de revisão ou mudança de teoria, que deve ocorrer para se preservar
o caráter racional do empreendimento científico, tendo como base critérios defi-
nidos que possam garantir uma comparação e uma escolha.
Sem critérios pré-definidos, não haveria possibilidade de debate e escolha ra-
cional. As escolhas sobre as teorias em competição se dariam com base em prefe-
rências subjetivas ou fatores externos à ciência. No entanto, Popper afirma existir
um critério importante que possibilitaria uma escolha racional, permitindo, as-
sim, se falar em progresso. A esse respeito, avalia:

O referido critério de adequação relativa potencial (relative po-


tential satisfactoriness), que formulei há algum tempo e que,
incidentalmente, nos permite graduar as teorias, é extremamente
simples e intuitivo. Caracteriza como preferível a teoria que nos
diz mais – isto é, a teoria que contém mais informação empírica,
ou conteúdo; que é logicamente mais forte; que tem maior capa-
cidade explicatória e poder de previsão; e que, portanto, pode ser
testada mais rigorosamente, pela comparação dos fatos previstos
com observações. Em resumo, preferimos as teorias interessantes,
ousadas e altamente informativas às que são triviais. Todas essas
propriedades desejadas numa teoria vêm a dar numa só coisa:
um teor maior de conteúdo empírico, uma maior testabilidade
(POPPER, 1972, p.243).

A contribuição de Popper deve ser encarada, portanto, não só como uma


tentativa de descrição fiel de como se faz ciência, mas principalmente como uma
proposta que visa preservar, para a ciência, as características que ele avalia como
fundamentais na tradição do pensamento ocidental. A tentativa de preservar ca-
racterísticas como o debate livre e crítico, a avaliação atenta e cuidadosa das idéias
alheias, a definição de critérios de avaliação, a busca de aperfeiçoamento das idéias
e a possibilidade de escolha racional entre conjecturas disponíveis é um projeto
com repercussões não só na ciência, mas também no plano social. Todas essas
240 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

características têm relação com os receios e expectativas de Popper para a ciência


e a sociedade. Um dos autores que percebeu de forma mais adequada as preocupa-
ções de Popper e suas intenções foi Lakatos, que, avaliando as consequências das
concepções de Popper e Kuhn, afirmou:

O choque entre Popper e Kuhn não se verifica em torno de um


mero ponto técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores
intelectuais centrais, e tem implicações não só para a física teóri-
ca, mas também para as ciências sociais subdesenvolvidas e até
para a filosofia moral e a política. Se nem mesmo na ciência há
outro modo de julgar uma teoria se não calculando o número, a
fé e a energia vocal dos seus apoiadores, isso terá de ocorrer prin-
cipalmente nas ciências sociais: a verdade está no poder. Assim a
posição de Kuhn reivindica, sem dúvida, não-intencionalmente,
o credo político básico dos maníacos religiosos contemporâneos
(“estudantes-revolucionários”) (LAKATOS, 1979, p.112).

O compromisso de Popper com o ideal de liberdade e a forma de governo de-


mocrática se traduziu em substancial produção acadêmica. Além dos mais conhe-
cidos “A Sociedade aberta e seus inimigos” (POPPER, 1974) e “A miséria do histo-
ricismo” (POPPER, 1980), o autor escreveu uma série de textos em que a crítica a
todas as formas de autoritarismo e à violência para a solução de conflitos são uma
constante. Entre eles, destacam-se: “Humanismo e razão”, “Utopia e violência”, “A
história do nosso tempo: uma visão otimista”, “A opinião pública e os princípios
liberais”, “Previsão e profecia nas ciências sociais”, todos reunidos na obra “Con-
jecturas e refutações” (POPPER, 1972), além da obra “Lógica das ciências sociais”
(POPPER, 1978).
Um tratamento adequado das propostas sociais e políticas que derivam desses
compromissos de Popper com a racionalidade, a liberdade e a democracia seria
melhor realizado em trabalho independente. No entanto, esses mesmos compro-
missos levaram a posicionamentos que delinearam a visão de Popper sobre a ci-
ência. E as características da proposta popperiana, abordadas até aqui, podem ser
melhor compreendidas quanto se analisa o que Popper desejava evitar, o que ele
temia. E neste caso, o trecho de Lakatos, logo acima, nos dá uma pista.
A preocupação de Popper em preservar o que poderia restar do conceito de
verdade (não se deve esquecer que ele foi um dos principais responsáveis pelo
questionamento das concepções de origem positivista sobre a verdade das teorias
científicas), ou seja, sua proposta de apresentar a verdade como um farol que ilu-
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 241

mina a busca, um objetivo não atingível, mas que deve ser perseguido, pode ser
entendido como uma tentativa de garantir as condições para uma escolha e um
debate racional na ciência.
O apoio fundamental para Popper continuar se referindo ao conceito de ver-
dade (na forma do conceito de verossimilitude: aproximação da verdade) foram as
idéias de Alfred Tarski, cuja teoria defendia o livre uso da ideia intuitiva da ver-
dade como correspondência com os fatos. Segundo Popper, o caráter “altamente
intuitivo” das idéias de Tarski torna-se mais claro ao se considerar o conceito de
“verdade” como um sinônimo de “correspondência com os fatos”, então, para me-
lhor compreensão, se deixaria o conceito de “verdade” de lado, para se explicar a
ideia de “correspondência com os fatos”:

Vamos considerar assim em primeiro lugar as duas formulações


seguintes, cada uma das quais enuncia muito simplesmente (numa
metalinguagem) as condições necessárias para que uma determi-
nada assertiva (de linguagem objeto) corresponda aos fatos:
A afirmativa “a neve é branca” só corresponde aos fatos se a neve
for, de fato, branca.
A afirmativa “a grama é vermelha” só corresponde aos fatos se a
grama for, de fato, vermelha.
Essas formulações soam, naturalmente, triviais. Mas Tarski des-
cobriu que, a despeito da sua aparente trivialidade, elas continham
a solução para o problema de como explicar a correspondência
com os fatos.
O ponto decisivo é a descoberta de Tarski de que, para falar em
correspondência com fatos, como no caso de 1) e de 2), precisamos
usar uma metalinguagem que possibilite falar sobre duas coisas:
as afirmativas e os fatos às quais elas se referem. (Tarski deno-
mina a metalinguagem desse tipo “semântica” – uma metalingua-
gem em que podemos falar sobre uma linguagem objeto, mas não
sobre os fatos aos quais ele se refere, é chamada “sintática”). Quan-
do conseguimos satisfazer a necessidade de uma metalinguagem
(semântica), tudo se torna claro (POPPER, 1972, p.249).

As afirmativas das teorias podem, segundo Popper, ser comparadas com os


fatos e comparadas entre si. Uma escolha racional seria possível, pois se daria pre-
ferência por teorias com maior conteúdo empírico (com maior testabilidade), sele-
cionando-se, evidentemente, aquelas com um resultado positivo na confrontação
242 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

com os fatos. Desse modo, a escolha racional estaria supondo a preferência pelas
teorias com maior conteúdo corroborado. Dessa forma, a ideia de verdade (mais
precisamente de aproximação da verdade) estaria funcionando como um princípio
regulador, um critério que possibilitaria o debate e a escolha racional, permitindo-
-se falar em progresso do conhecimento. Nas palavras de Popper:

O status da verdade no sentido objetivo, entendida como corres-


pondência com os fatos, e sua função como princípio regulador
podem ser comparados à situação de um pico montanhoso, usual-
mente envolto em nuvens. Um alpinista não só terá dificuldade em
alcançá-lo, mas também não saberá quando o alcançou, pela difi-
culdade em distinquir o pico principal dos subsidiários, no meio
das nuvens. Mas isso não afeta a existência objetiva do pico. Se o
alpinista disser: “tenho dúvida sobre se cheguei ao pico principal”,
estará reconhecendo, por implicação, sua existência objetiva. A
própria idéia do erro, ou da dúvida (no sentido normal e corrente)
implica a idéia de uma verdade objetiva que podemos deixar de
alcançar (POPPER, 1972, p.252).

É importante salientar que essa busca de critérios está, na filosofia da ciência


de Popper, diretamente ligada à preocupação com as possibilidades de escolhas e
debates racionais. Se não há critérios a respeito dos quais se estabeleça uma con-
cordância (mesmo que limitada temporalmente), as definições a respeito de qual
explicação deve ser adotada recaem sobre fatores não objetivos, ou seja, não ha-
vendo critérios previamente acordados, cada um poderia utilizar os critérios que
considerasse mais adequado, o que inviabilizaria qualquer debate racional, pois os
próprios critérios de definição seriam variáveis, sujeitos a preferências de ordem
pessoal: em síntese, critérios subjetivos.
De acordo com Popper, se o fazer ciência perder de vista essas características
de busca de explicações mais satisfatórias, critérios convencionados de escolha e
debate racional, a ciência estaria se distanciando de tudo aquilo que a distingue
das outras formas de conhecimento e estaria colocando em risco sua própria iden-
tidade (evidentemente à luz da interpretação de Popper sobre a ciência).
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 243

4. O ponto forte da contribuição de Popper ao Ensino


de Ciências

O estudo mais detalhado das contribuições de Popper permite perceber que a


interpretação do que é a ciência e, mais do que isso, o que se deseja para ela, tem
repercussões amplas: políticas, sociais e, o que é do interesse deste item, no âmbito
do Ensino de Ciências.
Como se enfatizou no item anterior, a reconstrução que Popper realiza do
fazer ciência procura apresentar certas características como imprescindíveis: um
critério objetivo de escolha entre teorias concorrentes, a possibilidade de debate
racional entre os cientistas, a possibilidade de se falar em progresso do conhe-
cimento científico. Ao mesmo tempo em que a contribuição teórica de Popper
representa uma crítica contundente das concepções de ciência de influência posi-
tivista, procura preservar, por outro lado, aquelas características que o autor de-
bita à “tradição racionalista”, que teríamos herdado dos gregos e que seria um dos
componentes mais importantes da civilização ocidental (POPPER, 1972, p.129).
Desse modo, poder debater racionalmente com alguém no sentido de apre-
sentar ideias e compará-las com as do interlocutor, havendo a possibilidade de
se decidir (não necessariamente pela adoção total de uma ideia e pelo abandono
absoluto da outra) com base em critérios convencionados, passíveis de aceitação
mútua, representa, para Popper, a preservação de algo fundamental na tradição
do pensamento ocidental, representa a própria idéia de racionalidade. O abandono
dessas características significa, para Popper, abrir espaço para a subjetividade, o
relativismo e o irracionalismo.
Uma das principais vantagens do estudo pormenorizado das ideias de Popper
para o Ensino de Ciências seria, portanto, a possibilidade de se refletir com maior
clareza a respeito das consequências que as concepções de ciência podem ter para
esta área. No caso específico de Popper, a valorização do debate racional e não
dogmático.
Se a reflexão se voltar, inicialmente, para o âmbito mais geral das consequ-
ências, na linha de abordagem que inicia este item, se perceberá que a adoção de
uma ou outra concepção de ciência pode ter impactos importantes na postura do
professor frente aos conhecimentos e ao processo de ensino.
Se o professor adotar os pontos de vista de Popper a respeito do fazer ciên-
cia, acabará apresentando aos alunos uma reconstrução da atividade científica que
valoriza os aspectos racionais. A possibilidade de um debate racional, de uma es-
colha entre teorias em disputa com base em critérios definidos, de uma visão de
244 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

progresso científico, passariam a fazer parte da concepção de ciência apresentada


aos alunos.
Mas quais seriam as vantagens de se apresentar a ciência deste modo, quando
as contribuições de outros filósofos da ciência revelaram a influência de fatores
extra-científicos neste processo?
A apresentação exclusiva de uma das interpretações sobre o fazer ciência cor-
responderia a um direcionamento e uma limitação incongruentes com o processo
de ensino. Os alunos poderiam ser esclarecidos a respeito das várias posições pre-
sentes na Filosofia das Ciências, no entanto, a apresentação das ideias de Popper,
ao valorizar os aspectos racionais da ciência, daria ensejo a reflexões a respeito da
importância, ou não, de se buscar um fazer ciência a partir das características que
ele enfatiza.
Deste modo, os alunos seriam informados, ao mesmo tempo, a respeito da
influência de elementos não racionais no âmbito científico (neste aspecto, as con-
tribuições de filósofos da ciência como Kuhn e Feyerabend seriam fundamentais)
e também a respeito da importância em se buscar, de forma consciente, os aspectos
racionais que Popper valoriza e identifica como relevantes para a cultura ocidental
e as formas de governo que prezam a liberdade e a democracia: respeito e avaliação
criteriosa das ideias alheias, procura de critérios objetivos de avaliação de conjec-
turas, debate e escolha racional de teorias.
Em síntese, a riqueza do processo de fazer ciência não seria escamoteado, a
influência de fatores extra-científicos seria reconhecida, mas, simultaneamente,
as características racionais que podem – e, segundo Popper, devem – fazer parte
da ciência estariam presentes, até por uma questão de avaliação crítica dos alunos
a respeito de sua real necessidade ou relevância. Os alunos seriam tratados como
sujeitos ativos do processo ensino-aprendizagem, pois participariam da discussão
e compreensão dos conceitos científicos, sempre tendo como ponto de partida um
problema, que seria o impulsionador de todo o processo, garantindo maior envol-
vimento e participação, sempre com a consciência de que se trata de hipóteses de
trabalho, conjecturas, evitando-se assim que as avaliações e críticas sejam tomadas
no sentido pessoal.
A reflexão a respeito do que seria necessário para a existência de um debate
racional no meio científico seria aberta aos alunos. Isto poderia fazer parte da for-
mação dos estudantes no que diz respeito às regras de debate, de discussão crítica,
de processos argumentativos, em que se espera (segundo a tradição de pensamento
ocidental enfatizada por Popper) uma aproximação da verdade, no sentido de uma
definição pelas ideias com maior poder de convencimento em razão de sua capa-
cidade explicativa.
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 245

Um aprendizado como esse seria de extrema relevância para os alunos, não


só para a sua formação como sujeitos aptos a participarem de debates acadêmicos,
mas, também, para sua formação enquanto cidadãos.
Quais seriam as condições que permitiriam um debate que pudesse conduzir
a esclarecimentos importantes sobre temas de relevância na formação científica do
aluno? Um debate produtivo em busca das melhores explicações poderia ocorrer
se uma das interpretações (ao estilo positivista) é apresentada como “a verdade” a
respeito de determinado assunto? Ou se a decisão a respeito de qual teoria aceitar
se coloca exclusivamente no plano de fatores externos ao debate (número de árdu-
os defensores de uma teoria, influência do professor, de modismos etc)?
Institucionalmente, a escola é pensada por muitos (sob influência da tradição
positivista) como um espaço de ensino de “verdades”. Os debates da Filosofia da
Ciência no século XX podem afirmar este espaço como de busca da verdade (no
sentido popperiano de um farol inalcançável que orienta a navegação), ou como
um espaço sob influência de fatores não racionais. Na verdade, tudo depende das
decisões daqueles que estão envolvidos com o processo educativo. Mas é relevante
notar que a opção por uma ou outra concepção de ciência, quando levada pelo
encadeamento lógico das consequências que se ligam às premissas iniciais, pode
acabar conduzindo a uma concepção de educação que valoriza, ou não, o livre de-
bate, que acredita, ou não, na possibilidade de uma discussão racional, que encara
o processo educativo como busca real das melhores explicações, ou, como mero
processo de convencimento por verdades já estabelecidas pela tradição, ou pelo
maior número de defensores.
O ponto forte da contribuição de Popper para o Ensino de Ciências está jus-
tamente em chamar a atenção para a importância das consequências que derivam
das concepções de ciência que adotamos. Evidentemente, há diferenças signifi-
cativas entre o processo de formulação e definição das teorias científicas e o que
ocorre no âmbito do processo de ensino nas escolas. A literatura na área de Ensino
de Ciência já enfatizou devidamente essas especificidades. No entanto, não se tra-
ta aqui de simples paralelos, mas da compreensão de algumas consequências que
derivam da maneira como entendemos o processo de constituição e aceitação das
teorias que são tidas como as melhores explicações de seu período.
A importância da contribuição de Popper, que enfatiza a relevância dos as-
pectos racionais da troca de ideias entre as pessoas (em todos os âmbitos: cien-
tífico, econômico, político, educacional etc), fica mais evidente com o exercício
de se imaginar como seriam os debates sem as características que ele preza. No
meio científico, as teorias poderiam se consolidar não tanto em função de sua
capacidade explicativa, mas por interesses políticos, econômicos, por pressões de
246 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

grupos identificados com certas ideias. Como Kuhn procurou demonstrar, isto, de
fato, pode ocorrer. Mas seria isso o que se espera da ciência? Foi sob os signos da
imposição de ideias via retórica, recursos de proteção de certas teorias a qualquer
preço, motivados por interesses variados, que a ciência moderna se constituiu? Ao
se aceitar, sem questionamento, a influência de muitos fatores não racionais na
atividade científica, não se estaria, mesmo que involuntariamente, abrindo espaço
para uma modificação extremamente relevante em alguns pontos — procura da
verdade, estabelecimento de critérios mais objetivos de avaliação e debate das te-
orias, consideração crítica de todas as ideias não apoiadas nos fatos e em uma boa
lógica interna — que estavam estabelecidos desde sua origem?
Uma das contribuições mais importantes de Popper consistiu em chamar a
atenção para os riscos que se corria ao não atentarmos para a influência de po-
sicionamentos que ele via como uma ameaça: o subjetivismo, o relativismo e o
irracionalismo. Todos eles se constituindo em obstáculos para uma troca de ideias,
na qual os interlocutores entrariam com suas teorias preferidas e estariam dispos-
tos a ouvir e considerar sinceramente as ideias alheias, assim como a avaliar as
consequências dessa confrontação com isenção, a partir de critérios previamente
estabelecidos.
Mas, no âmbito do Ensino de Ciências, quais seriam os riscos?
Primeiramente, pode-se pensar nas consequências de uma apresentação da
ciência em que os aspectos racionais que Popper preza não são valorizados. Que
tipo de imagem os alunos estariam formando de uma atividade em que o mais
relevante para a consolidação de uma teoria seriam fatores como apoio político
ou econômico, número de defensores dogmatizados e disposição de salvar a teoria
preferida a qualquer custo? Mais uma vez, cabe enfatizar, não se trata de ignorar
a influência desses fatores; eles estão presentes, são relevantes e, muitas vezes, de-
cisivos. No entanto, o fato de que o fazer ciência tenha se tornado algo tão variado
não desobriga aqueles que com ela estão envolvidos em buscar o que seria o mais
adequado para a sua preservação e desenvolvimento; evidentemente, a partir de
certos valores e posicionamentos específicos.
No caso de Popper, esses valores seriam todos aqueles, já abordados aqui, que
guardam relação com o caráter racional da ciência. Por sua vez, eles conduziriam
a um posicionamento em que a liberdade e o regime democrático seriam valori-
zados, pois seriam a garantia para os debates livres, nos quais o predomínio da
racionalidade seria meta principal.
A ciência é fruto da atividade humana consciente (embora alguns aspectos
inconscientes possam, por vezes, prevalecer, como a identificação absoluta de um
cientista com suas ideias, com a consequente postura errônea de encarar as críticas
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 247

como algo pessoal, o que, muitas vezes, conduz a uma postura dogmática), sendo,
portanto, responsabilidade daqueles que a ela se dedicam, a sua caracterização
principal e o delineamento de seus aspectos mais importantes.
E aquilo que Popper propõe como características principais da ciência leva,
aos estudantes, uma imagem de uma atividade intelectual na qual as escolhas entre
as propostas de explicação ocorrem em uma situação de debate racional: todas as
conjecturas são cuidadosamente apreciadas, as hipóteses são avaliadas com base
no seu potencial explicativo, há critérios convencionados de escolha, o objetivo
principal não seria fazer valer a qualquer custo uma teoria preferida, mas buscar,
com o auxilio das avaliações críticas mútuas, a melhor explicação. O efeito positi-
vo desta imagem, na formação dos alunos, não deveria ser menosprezada.
Seria uma oportunidade importante para levar aos alunos reflexões de grande
relevância no que diz respeito às regras de debates produtivos e consequências da
adoção, ou não, de certos valores. Seria interessante, por exemplo, que os alunos
avaliassem, até pela própria experiência, os resultados de um debate sem a preocu-
pação com os aspectos que Popper considera fundamentais em qualquer troca de
ideias. Seria um aprendizado esclarecedor, se tivessem a oportunidade de experi-
mentar as consequências de um debate sem critérios de escolha definidos, em que
o objetivo principal fosse fazer valer uma hipótese a qualquer custo.
Em um segundo momento, seria interessante avaliar as conseqüências de uma
postura como a de Popper para um debate relevante no Ensino de Ciências, como
aquele sobre as mudanças conceituais, mais particularmente, sobre a conveniência,
ou não, dos conflitos cognitivos. Foi observado aqui que alguns autores passaram
a questionar a conveniência de se apostar no conflito cognitivo como estratégia de
aprendizado dos conteúdos de ciência. Observou-se também que Bastos e colabo-
radores (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001), apesar de admitirem a pertinência de
algumas criticas à estratégia didática de conflitos cognitivos, procuraram enfatizar
a importância de se preservar, nas discussões e outras atividades realizadas em
sala de aula, um espaço para a explicitação de compreensões ou interpretações
equivocadas; o que se daria por meio de questionamentos, problematizações e um
debate bem conduzido. Existe a necessidade institucional das escolas em saber
se os alunos estão ou não compreendendo os conteúdos científicos que estão sendo
ensinados — que seriam, segundo a perspectiva popperiana, não teorias verda-
deiras, mas o que a comunidade científica considera como o mais adequado até
aquele momento — dessa forma, Bastos e colaboradores (BASTOS; NARDI; DI-
NIZ, 2001, p. 12-13) afirmam que os questionamentos assumem uma importância
central para a aprendizagem, pois oferecem condições para o aluno elaborar seus
conhecimentos.
248 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Uma questão fundamental, então, coloca-se: esses debates e questionamentos


se dariam com base em quais princípios?
Posicionamentos derivados do positivismo sequer pactuariam com a idéia da
importância de debates, pois haveria um só questionamento: aquele que parte da
teoria “verdadeira” para levar à substituição da concepção trazida pelo aluno. Por
outro lado, concepções que criticaram a conveniência da estratégia pedagógica,
baseada nos conflitos cognitivos, parecem não ver importância nas confrontações e
debates, pois as concepções alternativas continuariam presentes nos alunos.
Posicionamentos como de Gil Pérez e colaboradores (1999) e Bastos e colabo-
radores (2001), que reconhecem a importância dos problemas e questionamentos,
podem encontrar, nas idéias de Popper a respeito da relevância de debates racio-
nais e suas regras, um importante apoio. O confronto entre hipóteses na ciência é,
evidentemente, diferente daquele que pode ocorrer entre a concepção do aluno e
a que vai ser ensinada na escola, no entanto, pode-se defender, sem problemas, a
utilização dos mesmos critérios de debate. Se o objetivo é fazer com que o aluno
compreenda, adequadamente, as teorias aceitas pela comunidade científica naque-
le período, e se ele possui concepções prévias a respeito do que vai ser ensinado,
por que não utilizar os critérios valorizados por Popper como garantidores de um
debate racional na ciência?
Uma forma de levar o aluno a compreender os conceitos e as teorias científicas
seria compará-las com as suas concepções, tendo os critérios do debate racional
(segundo Popper) como referência. Dessa forma, o aluno poderia ser levado a com-
parar a capacidade de explicação, a coerência interna e a resistência às confronta-
ções com os fatos, das explicações que tivesse como alternativa. E isto constante-
mente, como Bastos observou – com base em Gil Pérez e em total consonância com
Popper – fazendo os alunos entenderem suas próprias ideias e as dos outros como
hipóteses de trabalho (BASTOS; NARDI; DINIZ, 2001, p.10).
Este último aspecto é de extrema relevância, pois apresentar as idéias como hi-
póteses de trabalho foi algo fundamental para a concepção popperiana de ciência.
A crítica de Popper à idéia positivista de teorias “verdadeiras” derivadas dos fatos e
sua defesa da avaliação rigorosa de qualquer proposta de explicação conduziram à
compreensão de que, no debate científico, teríamos muito a ganhar se considerás-
semos as teorias como conjecturas, ou seja, como hipóteses de trabalho.
Apresentar o debate nestes termos, no âmbito do Ensino de Ciências, conduz a
resultados interessantes. Em primeiro lugar, leva a uma amenização dos confron-
tos, dessa forma, respondendo às preocupações de todos aqueles que criticavam as
estratégias de conflito conceitual pelo desgaste que representariam para os alunos.
Em segundo lugar, representa uma oportunidade muito importante de amadure-
CAPÍTULO 11 - A importância da contribuição de Popper para o ensino de ciências | 249

cimento intelectual dos alunos, que poderiam experimentar a distinção entre as


suas ideias e a sua própria pessoa, processo fundamental para o exercício do debate
racional e o combate ao dogmatismo.
Dessa forma, os alunos estariam sendo incentivados a terem uma percepção
mais clara do terceiro mundo que, segundo Popper, seria o mundo das idéias no
sentido objetivo, “[...] o mundo das teorias em si mesmas e de suas relações lógi-
cas, dos argumentos em si mesmos, e das situações de problema em si mesmas”
(POPPER, 1975, p.152). Ou seja, os alunos teriam a oportunidade de exercitarem a
separação entre este terceiro mundo e o segundo: o mundo dos estados mentais, das
experiências subjetivas e pessoais.
Segundo Popper, o aprendizado humano se daria, basicamente, pelas intera-
ções entre o segundo e o terceiro mundo. Aprenderíamos, fundamentalmente, a
partir de conhecimento já constituído (terceiro mundo), que deveria ser questio-
nado, avaliado e modificado a partir de nossa postura crítica (segundo mundo).
Sendo assim, não haveria razão em nos vincularmos, de forma dogmática, a
ideias que fazem parte do terceiro mundo, pois tudo que nele está presente é passí-
vel de críticas e modificações; se isso não for feito por nós, com certeza o será por
outros. E tudo isso é próprio de um tipo de funcionamento que é, de certa forma,
esperado no debate científico, ou em qualquer outro que preze as características
racionais de discussão que, segundo Popper, devem estar presentes na ciência.

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CAPÍTULO 12

A crítica do conceito de verdade em Karl Popper

Carlos Alberto Rufatto1


Marcelo Carbone Carneiro2

Introdução

A crítica do conceito de verdade foi desenvolvido, em Popper, tendo como


principais contrapontos as tradições empirista e racionalista, através de dois de
seus principais representantes, Francis Bacon e René Descartes. Outro autor fun-
damental para o desenvolvimento das ideias de Popper sobre o conceito de verdade
foi David Hume. Neste capítulo, faremos, em relação a esses três autores, uma bre-
ve apresentação apenas dos aspectos referentes à verdade que contribuíram mais
diretamente na construção do posicionamento de Karl Popper.

1. A estratégia cartesiana para alcançar verdades

Em relação a Descartes, existem dois pontos cuja análise é interessante para se


perceber com mais clareza as diferenças entre seu posicionamento e o de Popper.
O primeiro deles diz respeito ao caminho a ser seguido na busca da verdade, o
segundo àquilo que seria encontrado ao final desta busca, ou seja, à própria possi-
bilidade de alguma verdade ser alcançada.
No que diz respeito à busca da verdade, pode-se perceber claramente, tanto no
Discurso do Método, quanto nas Meditações, a influência do Ceticismo na forma

1 Professor Doutor da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.


2 Professor Livre-Docente em Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da FAAC
– Bauru e do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência – UNESP – Bau-
ru. Realizou, de janeiro até agosto de 2012, pesquisa de Pós-Doutorado nos Archives
“Jean Piaget” em Genéve sob a supervisão da Profa. Dra. Silvia Parrat-Dayan (Université
de Genève - Suisse). Bolsista FAPESP (processo 2010/17634-4).
256 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

como o texto se desenvolve, não por acaso a estratégia de Descartes é centrada


no indivíduo. Ambas as obras são escritas usando a primeira pessoa do singular,
evidenciando-se, em vários momentos, como se procurará mostrar abaixo, a for-
ma subjetiva do projeto cartesiano de busca da verdade.
No Discurso do Método, por exemplo, Descartes afirma:

[...] não deixo de obter extrema satisfação do progresso que penso


já ter feito na busca da verdade e de conceber tais esperanças para
o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente ho-
mens, há alguma que seja solidamente boa e importante, ouso crer
que é aquela que escolhi [...]. Mas estimaria muito mostrar, neste
discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha
vida como num quadro, para que cada qual possa julgá-la e que,
informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito
dela, seja este um novo meio de me instruir, que juntarei àqueles
de que costumo me utilizar (DESCARTES, 1973, p.42).

Em outra passagem, um pouco à frente, Descartes reafirma o caráter subjetivo


da busca pela verdade, na medida em que o projeto implica numa rigorosa análise
de nossas ideias.

E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência, além daquela


que se poderia achar em mim próprio, ou então no grande livro
do mundo, empreguei o resto de minha mocidade em viajar, em
ver côrtes e exércitos, em freqüentar gente de diversos humores
e condições, em recolher diversas experiências, em provar-me a
mim mesmo nos reencontros que a fortuna me proponha e, por
toda parte, em fazer tal reflexão sobre as coisas que se me apresen-
tavam, que eu pudesse tirar delas algum proveito [...] aprendi a não
crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só
pelo exemplo e pelo costume; e assim, pouco a pouco, livrei-me de
muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar
menos capazes de ouvir a razão (DESCARTES, 1973, p.47).

No entanto, a passagem mais relevante do Discurso do Método, no que diz


respeito a caracterizar a busca da verdade como um projeto subjetivo, é aquela em
que o autor, no início da “Segunda Parte” (DESCARTES, 1973, p.48), afirma que
não haveria tanta perfeição “nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão
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de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou”. Este argumento é


desenvolvido ao longo das páginas seguintes e encontra seu apoio mais importante
no trecho em que Descartes afirma que os raciocínios de um homem de bom senso
estariam mais próximos da verdade do que as ciências dos livros, cujas razões são
apenas prováveis, sem demonstrações, e que teriam tomado corpo com opiniões
de muitas pessoas diferentes (DESCARTES, 1973, p.49).
A individualidade do projeto cartesiano fica ainda mais evidente na “Quarta
Parte” do Discurso do Método, onde o autor indica os questionamentos necessá-
rios para se verificar se haveria alguma verdade que pudesse resistir a um projeto
de crítica ampla e radical.
No que diz respeito àquilo que seria alcançado ao final desta busca pela verda-
de, a “Primeira Parte” do Discurso do Método (DESCARTES, 1973, p.45) revela a
admiração de Descartes pela matemática, em função “[...] da certeza e da evidência
de suas razões[...]” e pelos seus “[...] fundamentos tão firmes e tão sólidos[...].”
O primeiro dos preceitos que Descartes apresenta como orientadores da bus-
ca que se propõe a fazer dá uma ideia das características daquilo que deveria ser
encontrado ao final e estabelece o percurso necessário que consiste em evitar os
conceitos formados antes da idade da razão e os juízos apressados:

O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira


que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar
cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em
meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente
a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em
dúvida (DESCARTES, 1973, p.53).

Na “Terceira Parte” do Discurso do Método, há um trecho que evidencia, me-


taforicamente, as características daquilo que deve ser encontrado ao final da busca:

Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por
duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o
meu intuito tendia tão-somente a me certificar, e remover a terra
movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila (DESCAR-
TES, 1973, p.64).

Para Descartes, o conhecimento verdadeiro, que nos dá a certeza e evidência


sobre as coisas (“Clareza e Distinção”), é produto de um trabalho da razão subjetiva.
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É, sobretudo, nas Meditações que encontramos as passagens mais significa-


tivas a respeito das características daquilo que deveria ser encontrado ao final do
projeto de busca da verdade.
Faremos a análise deste percurso de busca da verdade tal como se apresenta
nas “Meditações Metafísicas”, nos concentrando, sobretudo, na primeira e segun-
da meditações, que já nos permitem perceber como o autor entende e nos apresen-
ta o objetivo final desta busca. É bem conhecida a forte influência do Ceticismo
sobre a Primeira Meditação de Descartes, colocando em dúvida3 tudo aquilo que
apresentar a menor possibilidade de erro ou falsidade (como um método para bem
conduzir a razão e chegar à verdade). O primeiro argumento, construído no 3o
parágrafo, é duvidar (suspender os juízos) sobre todos os conhecimentos e ideias
que tenham fontes nos sentidos, pois experimentamos algumas vezes que esses
sentidos eram enganosos e é muito prudente não confiar em algo que já nos en-
ganou pelo menos uma vez. Citemos alguns exemplos céticos que caracterizam o
erro dos nossos sentidos:
1. Um navio distante parece parado, mas quando se aproxima percebemos
que estava em movimento.
2. Um objeto metade na água e metade fora parece quebrado, no entanto, é
uma ilusão provocada pela luz que incide sobre o objeto.
3. O ambiente se mistura ao objeto e pode alterar sua percepção, por exem-
plo: se estivermos com uma camisa amarela e entramos em um ambiente
que tenha luz amarela a impressão que teremos é que a camisa é branca.
4. Existe uma limitação natural nos nossos sentidos, que nos levam a consi-
derar as coisas segundo sua perspectiva.

Portanto, os sentidos não nos dão a conhecer as coisas e constituem-se em uma


fonte inesgotável de erros e ilusões. Encontramos, neste primeiro grau da dúvida,
uma desqualificação dos sentidos para a formação do conhecimento verdadeiro.
No segundo argumento, que estende e radicaliza a dúvida, Descartes pondera
sobre a limitação do argumento anterior (erro dos sentidos), pois enganar-se com
relação às coisas distantes e pouco sensíveis não lhe dá possibilidade de duvidar de
todas as questões sensíveis, como, por exemplo, “que eu esteja aqui sentado junto
ao fogo e vestido com este chambre”.
Descartes, então, constrói o segundo argumento, que é o do sonho. Há uma
possibilidade de que eu esteja, neste momento em que escrevo, dormindo e tudo

3 Suspendendo os juízos (Epokhé) sobre todas as coisas que apresentarem a menor possi-
bilidade de erro ou falsidade.
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não passe de ilusões produzidas em meus sonhos. Este argumento duvida das cer-
tezas que tenho quando estou em vigília, pois há uma possibilidade de que tudo
aquilo que eu trato como o mais verdadeiro não passe de ilusões produzidas por
eu mesmo em meu sonho e que, portanto, devo suspender os meus juízos sobre a
verdade acerca de todas essas coisas que percebo quando estou acordado.
O argumento do sonho tem a função de estender e radicalizar a dúvida e de le-
var a uma impossibilidade nas afirmações que realizamos sobre todas as questões
sensíveis e aquelas que temos em nossa vivência ordinária.
No entanto, quer eu esteja sonhando quer eu esteja acordado, algumas ver-
dades não são afetadas por esses argumentos, sobretudo as verdades matemáticas
(que dois mais três sejam cinco etc).
Dentro dessa argumentação, será elaborado o terceiro argumento que esten-
de e radicaliza a dúvida, o argumento do Deus Enganador4 . A idéia fundamental
deste argumento é partir de certa opinião de que há um Deus que me criou e que
poderia ter me criado de tal forma que me enganasse sobre tudo o que penso.
Admitindo essa hipótese, chegamos ao argumento de que a minha natureza é tal
que me engana sobre tudo o que penso e, ainda mais, me dá a falsa impressão de
que tudo é verdadeiro. A dúvida torna-se generalizada e radical a partir desse ar-
gumento. Como diz Descartes (1973, p. 124), no começo da Segunda. Meditação:

A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvi-


das, que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las. E,
no entanto, não vejo de que maneira poderia resolvê-las; e, como
se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal
modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem
nadar para me manter à tona.

A dúvida na Primeira Meditação possui essa função de tornar-se radical e


hiperbólica para possibilitar o alcance da verdade que caracteriza-se pela Clareza
e Distinção, isto é, a verdade apresentar-se-á com um grau de certeza e evidência
que nenhuma suposição cética poderá questioná-la.
A Segunda Meditação terá como propósito encontrar a verdade ou um ponto
fixo e seguro que inaugurará as cadeias de verdades ou certezas.

4 Deus Enganador e Gênio Maligno possuem a mesma função, porém, o gênio maligno
possui uma função psicológica, isto é, o engano acontece por que ele produz as ilusões
no exato momento em que penso e a falsa impressão de que são verdadeiras.
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A partir daí, temos o argumento que leva à conquista da primeira verdade.


Neste processo empreendido na Primeira Meditação, será que se colocou em dúvi-
da a própria existência?
Certamente não, a existência estava assegurada no ato do pensar. Eu sou, eu
existo como coisa que pensa (res cogitans). Diz Descartes (1973, p. 125-126):

De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cui-
dadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por cons-
tante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verda-
deira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.

Eu tenho a certeza de que sou uma coisa que pensa, mas o que é uma coisa que
pensa? “É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que
não quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, 1973, p. 130).
É sobre este ponto fixo (que é o pensamento), que Descartes solidificará a
questão do conhecimento e da verdade.
O conhecimento das coisas é elaborado pelo pensamento, e a experiência não
fornece se não dados mutáveis e aparentes.
Na Segunda Meditação, portanto, Descartes revela a esperança de encontrar ao
menos uma coisa que seja “certa e indubitável”. E, ao longo da Meditação, isto é al-
cançado através da certeza do cogito, que é apresentado como uma proposição que “é
necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu
espírito” (DESCARTES, 1973, p.126). Após refletir sobre esta primeira certeza, Des-
cartes, mais à frente, conquista a segunda: a determinação da essência do Eu como
“coisa pensante” (DESCARTES, 1973, p.126-130). O restante da meditação é dedi-
cado a mostrar como essa “coisa pensante” é mais fácil de conhecer do que o corpo.
O caminho seguido na Terceira Meditação, onde são apresentados os argumen-
tos que procuram provar a existência de Deus, confirma a procura cartesiana por
um “porto seguro”, verdades claras e distintas que seriam indubitáveis e poderiam
servir de base sólida e segura para a construção do edifício da ciência. A Prova da
existência de Deus é condição necessária para que o conhecimento possa se referir a
algo, pois sem provar que Deus é bom e veraz não é possível falar em verdades sobre
as coisas – que poderiam ser ilusões causadas por um Deus Enganador.
Nas 4a, 5a e 6a Meditações, são elaboradas verdades claras e distintas que possi-
bilitarão explicar o fundamento do erro, do conhecimento das coisas materiais, da
distinção e união do pensamento com o corpo etc. Portanto, a filosofia de Descar-
tes elabora uma forma de pensar o conhecimento como trabalho subjetivo, pois o
cogito é a evidência e certeza que nenhuma suposição cética pode abalar.
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2. A estratégia baconiana de busca da verdade

No Novum Organum de Francis Bacon, há alguns trechos significativos que


nos ajudam a compreender como este autor encarava a questão da busca da verda-
de. No aforismo LXI da referida obra, o autor afirma:

Ainda que seja de utilidade nula a refutação particular de siste-


mas, diremos algo das seitas e teorias e, a seguir, dos signos ex-
teriores que denotam a sua falsidade; e, por último, das causas de
tão grande infortúnio e tão constante e generalizado consenso no
erro. E isso para que se torne menos difícil o acesso à verdade e
o intelecto humano com mais disposição se purifique e os ídolos
possa derrogar (BACON, 1999, p.48).

Este trecho, que nos fala sobre o acesso à verdade, se refere aos ídolos do
teatro, aqueles que “[...] foram abertamente incutidos e recebidos por meio das
fábulas dos sistemas e das pervertidas leis de demonstração”. Este ídolo, relacio-
nado à influência das teorias, “[...] mas também nos numerosos princípios e axio-
mas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da
negligência”(BACON, 1999, p.41), foi abordado por Bacon principalmente através
da análise do que chamou de três falsas filosofias: a sofística, a empírica e a su-
persticiosa5. Este ídolo seria um dos quatro tipos de obstáculos que bloqueariam
a mente humana.
Como exemplo mais importante do primeiro tipo de filosofia que irá criticar,
Bacon cita Aristóteles, que teria corrompido a filosofia natural com sua dialética,
ao impor distinções arbitrárias e inumeráveis à natureza das coisas, estando mais
preocupado em formular respostas e em apresentar algo de positivo através das
palavras do que em investigar as coisas com maior detalhe.
Neste sentido, Bacon afirma:

Pois Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não consultava de-


vidamente a experiência para estabelecimento de suas resoluções
e axiomas. E tendo, ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a ex-
periência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões
(BACON, 1999, p.50).

5 A esse respeito ver aforismos LXIII a LXV.


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A preferência de Bacon recaía sobre os pré-socráticos (Anaxágoras, Leucipo,


Demócrito, Parmênides, Empédocles, Heráclito), cujo naturalismo se aproximaria
mais de suas propostas.
O representante mais conhecido da escola empírica de filosofia seria Gilbert6 ,
sendo a alquimia também um exemplo deste tipo de postura. As teorias desta es-
cola dariam origem a opiniões “disformes e monstruosas”, pois estariam baseadas
em poucos e obscuros experimentos, onde haveria a predominância da impaciên-
cia e da precipitação do intelecto, que saltaria, ou voaria, às leis gerais e aos princí-
pios das coisas sem o necessário embasamento nas experiências.
A terceira corrupção da filosofia que Bacon analisa seria aquela resultante
da superstição, que apareceria com frequência mesclada à teologia, conduzindo
a interpretações fantasiosas, quase poéticas, inspiradas pela ambição intelectual.
Como exemplo, Bacon cita Pitágoras, cujas ideias teriam aparecido mescladas a
uma “superstição tosca e grosseira”. Mas identifica como mais sutil e perigoso o
exemplo de Platão, criticando o uso, nele e em outras escolas, das “[...] formas abs-
tratas, causas finais, causas primeiras [...].”
Ao comentar a tentativa de seu contemporâneo, o teósofo e rosa-cruz Robert
Fludd, de construir uma filosofia natural com base no primeiro capítulo do Gêne-
sis, Bacon afirma:

É da maior importância coibir-se e frear esta inanidade, tanto


mais que dessa mescla danosa de coisas divinas e humanas não só
surge uma filosofia absurda, como também uma religião herética.
Em vista do que é sobremodo salutar outorgar-se, com sóbrio espí-
rito, à fé o que à fé pertence (BACON,1999, p.51).

Para os objetivos que temos em mente neste artigo, é relevante notarmos que
Bacon se refere a um processo de purificação do intelecto, que levaria à superação
das influências deste tipo de ídolo, possibilitando o acesso à verdade. Trata-se,
portanto, como nos outros ídolos, de um processo em que a verdade é buscada e
alcançada pelo indivíduo, é um projeto subjetivo de busca da verdade, no qual se
pretende alcançar, ao final, algo certo, indubitável e válido para sempre.
Um dos outros ídolos seria o da tribo, que estaria fundado na própria natureza
humana. O exemplo mais claro seriam os obstáculos representados pelas limita-
ções de nossos sentidos. A esse respeito, Bacon afirma:

6 William Gilbert (1540-1603), autor do “De Magnete”.


CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 263

Na verdade, os sentidos, por si mesmos, são algo débil e enganador;


nem mesmo os instrumentos destinados a ampliá-los e aguçá-los
são de grande valia. E toda verdadeira interpretação da natureza se
cumpre com instâncias e experimentos oportunos e adequados[...]
(BACON, 1999, p.44).

No início do aforismo L, Bacon afirma: “Mas os maiores embaraços e extra-


vagâncias do intelecto provêm da obtusidade, da incompetência e das falácias dos
sentidos”. Mas logo abaixo, no aforismo LI, declara que “[...]o intelecto humano,
por sua própria natureza, tende ao abstrato, e aquilo que flui, permanente lhe pa-
rece. Mas é melhor dividir em partes a natureza que traduzi-la em abstrações (BA-
CON, 1999, p.44).
E cita, na sequência, como exemplo deste procedimento adequado, a escola de
Demócrito, que teria, mais do que as outras, penetrado os segredos da natureza.
Isto afirmado, àquela época, revela a perspicácia de Bacon e sua confiança na
adequação do método que propunha. No entanto, as críticas à “incompetência e
falácia dos sentidos” apresentam-se misturadas às considerações sobre o intelec-
to, como revelam o início do aforismo LI e os aforismos XLV a XLIX, onde mais
aparecem as influências que os sentidos recebem do intelecto – mesmo que através
de simples antecipações sem apoio nos fatos (aforismos XLVI e XLVII) ou prefe-
rências (aforismo XLIX) – do que propriamente debilidades dos sentidos em si.
A própria apresentação do que poderia ser entendido como este tipo de ído-
lo parece apresentar coisas que poderiam ser classificadas entre os outros ídolos.
Vejamos:

Tais são os ídolos a que chamamos de ídolos da tribo, que têm ori-
gem na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos
seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou na sua contínua
instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na
incompetência dos sentidos ou no modo de receber impressões
(grifos nossos) (BACON, 1999, p.44).

Fica-se com a impressão de que os trechos em itálico poderiam ser também


classificados, como veremos a seguir, como ídolos da caverna, e o trecho em ne-
grito como ídolo do teatro. Como foge ao objetivo deste artigo uma análise mais
pormenorizada destes aspectos, voltamos a nos concentrar nos ídolos tais quais
Bacon nos apresenta, para refletirmos, a seguir, a respeito da estratégia baconiana
de busca da verdade.
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O outro ídolo seria o da caverna, que seria aquele dos homens enquanto in-
divíduos, “pois cada um – além das aberrações próprias da natureza humana em
geral – tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natu-
reza” (grifo nosso). Esses ídolos teriam sua origem “[...] na peculiar constituição
do corpo e da alma de cada um e também na educação e no hábito ou em eventos
fortuitos” (BACON, 1999, p.40).
No aforismo LIV, Bacon afirma que este tipo de ídolo levaria a distorções e
corrupções daquilo que estaria sendo estudado em favor de fantasias anteriores,
e cita novamente Aristóteles, que teria submetido sua filosofia natural à lógica,
os alquimistas, que teriam elaborado uma filosofia apoiada em alguns poucos ex-
perimentos, e Gilbert, que teria concebido toda uma filosofia de acordo com seus
interesses e se apoiado somente na observação do magneto.
Nos aforismos seguintes (LV a LVII), Bacon aborda a questão das diferenças
entre os engenhos (uns aptos a notar as diferenças das coisas, outros a semelhan-
ça), das diferenças de preferência entre o que é antigo e o que é novo e das diferen-
ças entre os que, no estudo da natureza, se dedicam aos elementos simples e os que
se preocupam só com as estruturas e composições. Em suas considerações, Bacon
se mantém fiel ao princípio aristotélico da justa medida e do caminho do meio.
É interessante se perceber, em relação aos ídolos da caverna, que na medida
em que se fala na influência da educação e do hábito, se teria que considerar, tam-
bém, os ídolos do teatro, pois o que estaria influenciando, através dos hábitos e da
educação, seriam as teorias, ou melhor, na expressão de Bacon, as falsas filosofias.
O quarto ídolo seria o do foro, a respeito do qual Bacon afirma: “com efeito, os
homens se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E
as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o
intelecto” (BACON, 1999, p.41). Bacon classifica esses ídolos em duas espécies: no-
mes de coisas que não existem (fortuna, primeiro móvel, órbitas planetárias [sic],
elemento fogo) e nomes de coisas que existem, mas que foram mal abstraídas das
coisas e por isso se apresentam confusos (como o conceito de “úmido”). Haveria
também palavras deficientes que designariam ação (gerar, corromper, alterar) e as
indicativas de qualidade (pesado, leve, tênue, denso).
De acordo com Bacon, as palavras exerceriam influência sobre o intelecto,
conduzindo a disputas “magnas e solenes” que acabariam em discussões sobre pa-
lavras e nomes, tornando com frequência a Filosofia e a Ciência sofísticas e inati-
vas (BACON, 1999, p.46).
O caminho para combater a influência desses ídolos, segundo Bacon, seria
“restaurar a ordem, começando pelas definições” (BACON, 1999, p.47). Mas logo
a seguir conclui que “palavras engendram palavras”, o que tornaria necessário ir
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 265

aos fatos particulares, “às suas próprias ordens e séries”. Vale notar que o ordena-
mento, segundo Bacon, e em oposição à concepção de Popper e de grande parte
da epistemologia atual, estaria na própria natureza, não sendo, e não devendo
ser, algo elaborado pelo homem.
Segundo Bacon, deveríamos estar atentos à influência desses ídolos: não per-
mitir as suas interferências seria o primeiro passo para se atingir a meta desejada.
E, a respeito desta meta, o autor afirma:

Contudo, se de toda essa multidão alguém se dedica com sinceri-


dade à ciência por si mesma, ver-se-á que se volta mais para a va-
riedade das especulações e das doutrinas que para uma inquirição
severa e rígida da verdade (BACON, 1999, p.64).

E um pouco mais abaixo, no início do aforismo LXXXII, Bacon escreve:

Ademais, o fim e a meta da ciência foram mal postos pelos ho-


mens. Mas, ainda que bem postos, a via escolhida é errônea e im-
pérvia. E é de causar estupefação, a quem quer que de ânimo avi-
sado considere a matéria, constatar que nenhum mortal se tenha
cuidado ou tentado a peito traçar e estender ao intelecto humano
uma via, a partir dos sentidos e da experiência bem fundada, mas
que, ao invés, se tenha tudo abandonado ou às trevas da tradição,
ou ao vórtice e torvelinho dos argumentos ou, ainda, às flutuações
e desvios do acaso e de uma experiência vaga e desregrada. Inda-
gue agora o espírito sóbrio e diligente qual o caminho escolhido e
usado pelos homens para a investigação e descoberta da verdade
(BACON, 1999, p.64).

O caminho a ser seguido passa pelo uso da experiência, segundo Bacon, não a
experiência pura e simples, assistemática e de uso pelo senso comum, mas uma que
pudesse garantir os resultados almejados. A esse respeito, Bacon afirma:

Os fundamentos da experiência – já que a ela sempre retornamos


– até agora ou foram nulos ou foram muito inseguros. Até agora
não se buscaram nem se recolheram coleções de fatos particula-
res, em número, gênero ou em exatidão, capazes de informar de
algum modo o intelecto. Mas, ao contrário, os doutos, homens
indolentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a
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sua filosofia certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas de


experiências, a que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo
testemunho (BACON, 1999, p.77-78).

Ainda a respeito da experiência, Bacon afirma no aforismo C:

Deve-se buscar não apenas uma quantidade muito maior de expe-


rimentos, como também de gênero diferente dos que até agora nos
têm ocupado. Mas é necessário, ainda, introduzir-se um método
completamente novo, uma ordem diferente e um novo processo,
para continuar e promover a experiência. Pois a experiência vaga,
deixada a si mesma, como antes já se disse, é um mero tateio, e
presta-se mais a confundir os homens que a informá-los. Mas
quando a experiência proceder de acordo com leis seguras e de
forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo de melhor da
ciência (BACON, 1999, p.79).

E é a este detalhamento a respeito da experiência que o autor se dedica nos


aforismos seguintes, inclusive com indicações a respeito da indução e de como este
processo poderia, desde que adequadamente seguido, constituir um dos axiomas
das ciências.
Em relação aos interesses deste artigo, que conduziram a seleção dos trechos
de Bacon, cabe ressaltar que a proposta do autor de depuração dos ídolos é um
projeto centrado no indivíduo. A verdade, a ser alcançada no final da etapa, só
é conseguida nesta jornada subjetiva, que passa por um cuidadoso processo de
afastamento de toda influência nociva dos ídolos e pela adoção da metodologia
baseada na experimentação.
Este caráter subjetivo, individual, de busca da verdade, também presente em
Descartes, como ressaltamos, se opõe à proposta de Popper, onde a busca da ver-
dade (esta apenas um farol, inalcançável, que orienta a busca) se apresenta como
um projeto intersubjetivo, da comunidade dos cientistas, conforme veremos mais
à frente.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 267

3. Popper e o racionalismo e o empirismo

Um dos pontos mais relevantes do debate entre empiristas e racionalistas diz


respeito à questão da verdade e de como ela poderia ser alcançada. Há um tex-
to de Karl Popper, denominado “As origens do conhecimento e da ignorância”
(POPPER, 1972), em que as duas tradições são apresentadas de forma a facilitar
a compreensão do posicionamento do autor, que discorda de ambas as doutrinas,
embora se considere, em certo sentido, um empirista e um racionalista.
A sua principal crítica a essas doutrinas se refere ao que ele considera como
o “otimismo epistemológico” dessas duas tradições, que atribuem à observação
(empirismo) e à razão (racionalismo) o papel de fontes últimas e legítimas do co-
nhecimento. A esse respeito, afirma:

No centro desta nova visão otimista da possibilidade do conheci-


mento está a doutrina de que a verdade é evidente. A verdade pode
encontrar-se velada, mas pode revelar-se. Se não se revelar por si
só, poderemos revelá-la, embora isto nem sempre seja fácil. Mas,
quando a verdade nua se apresenta diante de nós, podemos vê-la,
distingui-la da falsidade e saber que é a verdade.

O nascimento da Ciência e da tecnologia modernas inspirou-


-se nesta epistemologia otimista, cujas figuras mais proeminentes
foram Bacon e Descartes. Esses filósofos ensinavam que não havia
necessidade de apelar para a autoridade em assuntos relacionados
com a busca da verdade porque cada homem traz consigo as fon-
tes do conhecimento: seja na sua capacidade de percepção pelos
sentidos, que pode utilizar ao observar cuidadosamente a natu-
reza, seja no poder de intuição intelectual que empregará para
distinguir a verdade da falsidade, recusando-se a aceitar qualquer
idéia que não seja clara e distintamente percebida pelo intelecto
(POPPER, 1972, p.33)

Sobre o “otimismo epistemológico”, Popper afirma que um de seus pontos


principais seria a “doutrina da verdade evidente”. Esta doutrina defende a visão
otimista de que a verdade pode ser alcançada, de que a percebemos sem dificulda-
de quando nos deparamos com ela. Seria necessário apenas utilizarmos correta-
mente os nossos sentidos e a razão. A esse respeito, afirma Popper:
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Essa doutrina constitui o âmago dos ensinamentos de Descartes


e Bacon. Descartes baseou sua epistemologia otimista na impor-
tante teoria da veracitas Dei: aquilo que distinguimos claramente
como sendo a verdade será de fato verdadeiro; do contrário, Deus
nos estaria enganando. Logo, a autenticidade de Deus forçosamen-
te torna a verdade evidente.

Em Bacon encontramos uma doutrina semelhante, que pode ser


descrita como a doutrina da veracitas naturae: a autenticidade da
natureza. A natureza é um livro aberto, e quem o ler com a mente
pura, não o interpretará erradamente. Só incorrerá em erro quem
tiver a mente deturpada (POPPER, 1972, p.35).

Porém, como observa Popper, a “doutrina da verdade evidente” leva à neces-


sidade de se explicar a falsidade. Se a verdade é evidente, como poderíamos er-
rar? O principal argumento afirma que erramos porque sofremos influência de
preconceitos impostos pela educação e pela tradição (POPPER, 1972, p.35). Tais
influências perverteriam nossas mentes, originalmente puras e aptas para captar a
verdade, levando-nos a cometer erros. Essas influências deturpariam nossa capa-
cidade original de chegarmos à verdade através dos sentidos e da razão.
As epistemologias7 de Descartes e Bacon, afirma Popper, se caracterizam por
um nítido traço antiautoritário e antitradicionalista (POPPER, 1972, p.43). Elas
exigem a “purificação” dos nossos sentidos e da nossa mente através do abandono
de todo preconceito e de todas as crenças que não forem estabelecidas pela autori-
dade da razão e dos sentidos purificados.
Essas epistemologias se colocaram em confronto contra a autoridade e a tradi-
ção; contra a autoridade da igreja, de Aristóteles, das demais escolas da Idade Mé-
dia, e contra a tradição de séculos de cultura. No entanto, no entender de Popper,
Bacon e Descartes não conseguiram libertar da autoridade suas epistemologias.
Sobre isto afirma:

A despeito das suas tendências individualistas, aqueles filósofos


não ousaram fazer apelo a nosso julgamento crítico; possivelmente
porque pensavam que isso levaria ao subjetivismo e à arbitrarie-
dade. Com efeito, quaisquer que tenham sido as razões disso, não

7 O termo pode ser utilizado como Filosofia da Ciência ou certo modo de questionar o
fazer científico. No entanto, utilizamos, nesse momento, como teoria do conhecimento.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 269

foram capazes de deixar de pensar em termos de autoridade, por


mais que pretendessem fazê-lo. A única coisa que conseguiram foi
substituir uma autoridade - Aristóteles, ou a Bíblia - por outra. Um
apelou para a autoridade dos sentidos; o outro para a autoridade
do intelecto (POPPER, 1972, p.43)

De acordo com a concepção de Popper, o problema das epistemologias de Des-


cartes e Bacon (e, por extensão, das tradicionais escolas racionalistas e empiristas)
consiste na insistência com que buscaram uma base sólida e segura para o conhe-
cimento. O problema está em que essas epistemologias julgaram o caráter científi-
co das teorias, e a validade do conhecimento nelas expresso, a partir da avaliação
de seu ponto de partida, ou seja, existiria a necessidade de uma base sólida, segura,
um inquestionável ponto de partida a partir do qual se poderia erigir o edifício da
ciência. Um edifício que, se for construído sobre bases bem sólidas, e se obedecer
a uma construção lógica e metodológica rigorosa, poderia se mostrar inabalável.
No entender de Popper, essas tentativas em erigir a ciência como um edifício
de idéias inatacável e solidamente estruturado constitui um problema: porque o
conhecimento humano, limitado e falível, não se coaduna com a pretensão de tal
objetivo.

4. O problema da indução em David Hume

Na seção “Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento” da obra Inves-


tigação acerca do entendimento humano, ao comparar os objetos da razão humana,
Hume os divide em dois tipos básicos: relações de ideias e relações de fatos. Aos
primeiros, pertenceriam “as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética”,
assim como “toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa”,
como o enunciado “o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois
lados” ou a proposição “três vezes cinco é igual à metade de trinta” (HUME, 1972,
p.29-30). De acordo com Hume, tais proposições não dependeriam de algo existen-
te na realidade e poderiam ser descobertas pela simples operação do pensamento.
Em contrapartida, os objetos da investigação humana concernentes às rela-
ções entre fatos não teriam a mesma evidência de sua verdade:

O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de ja-


mais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma
270 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

facilidade e distinção como se ele estivesse em completo acordo com


a realidade. Que o sol não nascerá amanhã, é tão inteligível e não
implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Po-
demos em vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse
demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e o espírito
nunca poderia concebê-la distintamente (HUME, 1972, p.30).

Um pouco mais à frente deste trecho, após enfatizar a relevância de se inves-


tigar o que nos daria segurança para afirmarmos algo a respeito de fatos que não
estariam ao alcance atual de nossos sentidos, e de observar que esses raciocínios a
respeito dos fatos se fundariam na relação de causa e efeito, Hume afirma:

Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção,


que o conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso,
por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência
quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constante-
mente conjuntados entre si (HUME, 1972, p.31).

O autor observa, na sequência, para enfatizar sua crítica de que as relações de


causa e efeito não se baseiam em raciocínios a priori a respeito das qualidades dos
objetos que nos aparecem aos sentidos, que, mesmo que Adão tivesse, desde o iní-
cio, uma racionalidade perfeita, não poderia concluir, da fluidez e da transparên-
cia da água, que esta o afogaria, ou do calor e da luz do fogo, que este o queimaria.
Para fortalecer seu posicionamento, Hume apresenta, na continuidade, alguns
exemplos de que a análise dos fatos ou objetos, isoladamente e a priori, não nos
permitiria descobrir suas causas ou efeitos. Neste sentido o autor cita o exemplo da
explosão da pólvora, a atração da pedra-ímã e a bola de bilhar que desliza em linha
reta na direção de outra (HUME, 1972, p.36).
No início da segunda parte da seção “Dúvidas céticas sobre as operações do
entendimento”, Hume observa que a resposta a uma pergunta acabou conduzindo
a outra pergunta, gerando uma sequência. Assim, à pergunta “qual é a natureza de
todos os nossos raciocínios sobre os fatos?”, a resposta foi: baseiam-se na relação
de causa e efeito. Em relação a essa resposta, se poderia perguntar: “qual é o funda-
mento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação?”, e a resposta
seria: a experiência. Mas ainda se poderia perguntar: “qual é o fundamento de
todas as conclusões derivadas da experiência?”
A importância desta última pergunta é explicitada na sequência quando
Hume afirma:
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 271

Pode-se admitir que a experiência passada dá somente uma infor-


mação direta e segura sobre determinados objetos em determina-
dos períodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento. Todavia,
é esta a principal questão sobre a qual gostaria de insistir: porque
esta experiência tem de ser estendida a tempos futuros e a outros
objetos que, pelo que sabemos, unicamente são similares em apa-
rência? (HUME, 1972, p.37-38).

A curiosidade de Hume se volta, portanto, para aquilo que faria os homens


considerarem a experiência uma autoridade tão forte e inquestionável.
Será na seção “Solução cética destas dúvidas” que Hume recolocará esse pro-
blema e apresentará uma resposta. O autor observa que ao inferirmos, pela exis-
tência de um objeto, que outro aparecerá, é uma conclusão à qual chegamos sem
conhecermos qualquer “poder oculto mediante o qual um dos objetos produziu o
outro; e não será um processo do raciocínio que o obriga a tirar esta inferência”
(HUME, 1972, p.45-46).
Que princípio então nos levaria a inferir a existência de um objeto pelo apa-
recimento de outro? De acordo com Hume, este princípio seria o costume ou o
hábito, e a esse respeito afirma:

Talvez não podemos levar nossas investigações mais longe e nem


aspiramos dar a causa desta causa; porém, devemos contentar-nos
com que o costume é o último princípio que podemos assinalar
em todas as nossas conclusões derivadas da experiência (HUME,
1972, p.46).

Portanto, para Hume, todas as conclusões baseadas na experiência são efeitos


do costume e não da razão. O costume seria, portanto, o “grande guia da vida
humana” (HUME, 1972, p.47). E esse costume nada mais seria do que a crença,
aquela, por exemplo, de esperar a sensação de frio após o contato com a neve, em
função da experiência de conjunção constante desses eventos anteriormente per-
cebidos. A esse respeito, Hume afirma:

Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sen-


tidos, pela força do costume a imaginação é levada imediatamente
a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta con-
cepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento,
272 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da


crença (HUME,1972, p.49-50).

Ao analisar a ideia de conexão necessária, que estaria associada à ideia de cau-


sa, Hume afirma que, ao considerarmos um objeto isoladamente pensando na ação
de possíveis causas, “não somos jamais capazes, a partir de um único caso, de des-
cobrir algum poder ou conexão necessária, alguma qualidade que ligasse o efeito à
causa e tornasse um a conseqüência infalível do outro” (HUME, 1972, p.62).
Na parte final da seção “Da idéia de conexão necessária”, ao recapitular o con-
teúdo, Hume relembra que não há nada, quando analisamos casos isolados, que
possa produzir a idéia de conexão necessária. No entanto, quando aparecem vários
casos uniformes e um mesmo objeto ou evento é sempre seguido de outro, então
começamos a considerar a idéia de causa e conexão. O autor esclarece então que o
que está em jogo, dando apoio para as ideias de causa e conexão, é o nosso senti-
mento e não a razão:

Nós sentimos então um novo sentimento, ou nova impressão, ou


seja, uma conexão costumeira no pensamento ou na imaginação
entre um objeto e o seu acompanhante habitual; e este sentimento
é a origem da idéia que procuramos” (HUME, 1972, p.74).

E é exatamente esta base no sentimento e na crença que incomoda Popper,


que interpreta a admissão da influência deles como concessões problemáticas aos
ceticismos e irracionalismos.

5. A solução de Popper para o problema da indução


de Hume

A questão da verdade, em Karl Popper, está ligada de forma direta à sua abor-
dagem do problema da indução de David Hume. A apresentação das idéias de Po-
pper por seus comentaristas e aquelas feitas pelo próprio autor, tanto em A Lógica
da Pesquisa Científica (POPPER, 1974), como em Conhecimento Objetivo (PO-
PPER, 1975) e de uma forma um pouco modificada em Conjecturas e Refutações
(POPPER, 1972), são estruturadas a partir da abordagem popperiana do problema
apresentado por Hume. Os questionamentos apresentados por Hume, para aqueles
que se deram ao trabalho de considerá-los, abalaram algumas certezas (mais par-
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 273

ticularmente as dos partidários do empirismo) e abriram espaço para o questiona-


mento do que Popper descreveu como “otimismo epistemológico”.
De acordo com Popper, Hume estaria interessado no conhecimento humano,
em desvendar seus limites e capacidades, em saber se alguma de nossas crenças
“[...] poderia ser justificada por razões suficientes [...]” (POPPER, 1975, p.15). Ou
seja, Hume estava também preocupado com a questão das bases a partir das quais
se ergue o conhecimento humano. Segundo Popper, Hume teria levantado dois
problemas. Um problema lógico (Hl) e um problema psicológico (Hps). A formu-
lação do problema lógico seria a seguinte:

Hl: Somos justificados em raciocinar partindo de exemplos (repe-


tidos), dos quais temos experiência, para outros exemplos (conclu-
sões), dos quais não temos experiência?
A resposta de Hume a Hl é: Não, por maior que seja o número de
repetições (POPPER, 1975, p.15).

A formulação do problema psicológico seria a seguinte:

Hps: Por que, não obstante, todas as pessoas sensatas esperam, e


crêem que exemplos de que não têm experiências conformar-se-ão
com aqueles de que têm experiência? Isto é: Por que temos expec-
tativas em que depositamos grande confiança?
A resposta de Hume a Hps é: Por causa do “costume ou hábito”; isto
é, porque somos condicionados pelas repetições e pelo mecanismo
da associação de idéias, mecanismo sem o qual, diz Hume, dificil-
mente poderíamos sobreviver (POPPER, 1975, p.15).

Segundo Popper, tais resultados levaram Hume, “[...] umas das mentes mais
racionais que já houve [...]”, a transformar-se num cético e, ao mesmo tempo, num
crente em uma epistemologia irracionalista (POPPER, 1975, p.16).
O resultado das conclusões de Hume é que a repetição não pode servir de
argumento para as generalizações. E o fato de que isso ocorra com frequência, ou
seja, que acreditemos que exemplos de que não temos experiência conformar-se-ão
com aqueles de que temos experiência, apenas comprova que nosso conhecimento
é da natureza de uma crença, “[...]mas de crença racionalmente indefensável - de
uma fé irracional” (POPPER, 1975, p.16).
As consequências das idéias de Hume foram encaradas com preocupação por
cientistas, filósofos e intelectuais que julgavam que, no conhecimento humano, a
274 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

razão desempenhava um papel fundamental. Esta preocupação pode ser traduzida


pelas palavras de Bertrand Russel, que são citadas por Popper em Conhecimento
Objetivo:

Assim, é importante descobrir se há alguma resposta a Hume den-


tro de uma filosofia que seja inteira ou principalmente empírica.
Se não houver, não há diferença intelectual entre a sensatez e a
demência. O lunático que acredita ser um ovo escaldado só será
condenado com base em que pertence a uma minoria (POPPER,
1975, p.16).

Segundo Popper, Russel observa ainda que, se a indução for rejeitada, toda
tentativa para se estabelecer leis científicas gerais a partir de observações par-
ticulares será inválida. Portanto, de acordo com Russel, a resposta de Hume ao
problema da indução estaria em choque com a racionalidade, o empirismo e os
procedimentos científicos.
Essas conclusões são igualmente preocupantes para Popper, que apesar de não
se filiar às escolas do empirismo e do racionalismo tradicionais é, a seu modo, um
racionalista e um filósofo que absorveu muitas contribuições do empirismo. As
semelhanças e diferenças das ideias de Popper em relação ao racionalismo e ao
empirismo tradicionais aparecem com mais clareza quando o autor apresenta sua
solução para o problema de indução de Hume. A solução de Popper para este pro-
blema inclui sua reformulação, que teria em vista uma expressão objetiva e lógica
do problema. Popper afirma:

Formulei o problema lógico de indução de Hume do seguinte


modo:
L1: Pode a alegação de que uma teoria explanativa universal é ver-
dadeira ser justificada por “razões empíricas”; isto admitindo a
verdade de certas asserções de teste ou asserções de observação
(que, pode-se dizer, são “baseadas em experiência”)?
Minha resposta ao problema é a mesma de Hume: Não, não pode.
Nenhuma quantidade de asserções de teste verdadeiras justificaria
a alegação de que uma teoria explanativa universal é verdadeira.
Mas há um segundo problema lógico, L2, que é generalização de
L1. Obtém-se de L1 simplesmente substituindo as palavras “é ver-
dadeira” por “é verdadeira, ou é falsa”:
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 275

L2: Pode a alegação de que uma teoria explanativa universal é ver-


dadeira, ou é falsa, ser justificada por “razões empíricas”; isto é,
pode a admissão da verdade de asserções de teste justificar a ale-
gação de que uma teoria universal é verdadeira, ou a alegação de
que é falsa?
A este problema, minha resposta é positiva: Sim, a admissão
da verdade de asserções de teste às vezes nos permite justifi-
car a alegação de que uma teoria explanativa universal é falsa
(POPPER, 1975, p.18).

A importância da resposta afirmativa de Popper a L2 pode ser entendida se


imaginarmos uma situação em que várias teorias explanativas concorrem para
a solução de um problema, sendo que precisamos, ou ao menos desejamos, fazer
uma escolha entre elas. Nestes casos, muito frequentes na ciência, poderíamos ma-
nifestar a preferência por alguma das teorias concorrentes. Como estamos procu-
rando uma teoria verdadeira, escolheremos, evidentemente, aquela cuja falsidade
não foi estabelecida. Deste modo, estaríamos dando preferência a uma teoria por
razões empíricas, mas num sentido que poderíamos denominar de negativo, ou
seja, não escolhemos uma teoria por ela estar empiricamente comprovada (o que
Hume demonstrou ser impossível), mas pelo fato de ela ainda não ter sido refutada.
Um outro aspecto importante da epistemologia de Popper emerge de sua aná-
lise do problema da indução de Hume. Sua resposta negativa a L1 (concordando
com Hume), significa a impossibilidade de se estabelecer, a partir da observação
“imparcial” dos dados empíricos, a base sólida e segura para o conhecimento cien-
tífico, tão procurada pela escola empirista.
Essa resposta negativa representa a não aceitação do pilar central do empiris-
mo. E, como Popper observa, muitos empiristas se sentiram compelidos para o
ceticismo em vista desses resultados (POPPER, 1975, p.16 e 31).
No entanto, a solução de Popper ao problema da indução de Hume (sua res-
posta positiva a L2) mostra que há uma alternativa. Embora tenhamos que admitir
que o campo da ciência não é o solo seguro das certezas inabaláveis, mas uma área
também sujeita a incertezas e reformulações.
A solução de Popper implica no reconhecimento do caráter não definitivo das
teorias, mesmo daquelas que sobreviveram aos testes seletivos. Este fato é uma das
consequências principais da resposta negativa a L1, pois, por mais que uma teoria
seja confirmada por “asserções de teste” ou “asserções de observação” (POPPER,
1975, p.18), ainda assim ela não poderia ser considerada verdadeira. Haveria sem-
pre a possibilidade de ela vir a ser refutada por alguma experiência.
276 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Em relação a este tema da refutação pela experiência, um intenso debate a res-


peito do que aconteceria de fato no decorrer do debate científico seguiu-se às con-
tribuições de Popper. Um dos interlocutores mais importantes foi Thomas Kuhn,
que questionou, entre outras coisas, a ideia de que as teorias científicas pudessem
ser abandonadas mediante a apresentação de refutações por experiências cruciais.
Outros filósofos da ciência, como Imre Lakatos e Paul Feyerabend, contribuíram
com esse debate (LAKATOS, 1979), que foi muito rico e auxiliou de maneira sig-
nificativa a se entender um pouco melhor o que ocorre ao se fazer ciência. Devido
à riqueza e complexidade deste debate, que para ser adequadamente abordado exi-
giria outros artigos, estaremos aqui nos limitando a tentar entender o papel que o
conceito de verdade possui na doutrina de Popper e porque o autor se preocupou
tanto com ele, mesmo que sob a forma do conceito de verossimilhança, já que a
verdade, no sentido de teorias científicas provadas como verdadeiras e, portanto,
definitivas e eternas, não seria algo possível.

6. A Ciência em Karl Popper

Se avaliarmos que Popper conhecia a contribuição teórica do ceticismo, assim


como o problema que Hume levantou e as conclusões que apresentou, uma questão
pode ser levantada: o que teria levado Popper a ainda se apegar ao que teria restado
do conceito de verdade, usando a sua terminologia, ao conceito de verossimilitude?
A preservação deste conceito está relacionado ao que Popper concebia como
ciência, e ao seu funcionamento e desenvolvimento. Um dos aspectos mais rele-
vantes da ciência, segundo Popper, seria sua necessidade de crescer, o que ele de-
nominou de “sua sede de progresso” (POPPER, 1972, p.241).
Para Popper, o progresso constante (no sentido de um contínuo aperfeiçoa-
mento teórico) seria um aspecto essencial do caráter racional e empírico da ciên-
cia. De acordo com ele, se a ciência deixa de progredir, ela perde este seu caráter.
Esse progresso contínuo é o que possibilitaria uma ciência racional e empí-
rica. Poderia-se afirmar que esses dois aspectos são interdependentes. O fato de
haver um progresso contínuo possibilitaria uma ciência racional e empírica, pois
seria a garantia de que frequentes modificações são possíveis e dariam sentido à
realização de testes empíricos e ao processo de discussão e escolha racional das
teorias. Se a ciência se mostrasse refratária às modificações, não haveria sentido
nos esforços de debate e escolha racional das teorias. Tais esforços se mostrariam
inúteis se ocorresse o estabelecimento de uma teoria como a verdade definitiva em
determinada ciência.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 277

Em contrapartida, só se poderia afirmar que houve realmente progresso desde


que tivessem ocorrido discussão e escolha racional de teorias, baseadas em testes
empíricos e norteadas por algo como um “alvo geral” da atividade científica (o cri-
tério de verossimilitude). Seria ao longo do debate, na busca por um lugar ao sol,
que as teorias científicas seriam postas à prova, meticulosamente criticadas em seus
aspectos teóricos e rigidamente observadas nos testes empíricos. E os testes seriam
realizados tendo em vista alguns critérios para a escolha entre teorias concorrentes,
sendo o mais importante deles o de aproximação da verdade. O fato desses critérios
existirem e das teorias poderem ser objetivamente analisadas e comparadas permi-
tiria se falar em um processo de escolha racional entre teorias científicas.

7. O Caráter Provisório do Conhecimento Científico

Podemos discutir o caráter provisório do conhecimento em Popper a partir


de sua leitura sobre como Kant enfrentou o problema da indução apresentado por
Hume.
Segundo Popper, Kant compreendeu que a solução negativa dada por Hume ao
problema da indução entrava em choque com a racionalidade e com o que, à época,
se entendia por procedimento científico. Compreendeu também que a solução de
Hume destruía a racionalidade dos fundamentos da dinâmica de Newton. Mas
Kant não duvidava da veracidade da teoria de Newton; e, como bom racionalista,
procurou uma resposta ao problema da indução de Hume que se harmonizasse
com suas convicções (POPPER, 1975, p.94 e segs.).
Para Kant, Hume não havia considerado a possibilidade de haver um princípio
de causalidade que fosse válido a priori. Se isto fosse possível, se alguém conse-
guisse mostrar a existência de um elo necessário entre causa e efeito, e que isso fos-
se válido a priori, então o problema lógico da indução de Hume estaria resolvido
positivamente. Neste caso, então, estaríamos justificados em raciocinar partindo
de exemplos repetidos, dos quais temos experiência; porque nós saberíamos que
o princípio de causalidade, que opera entre os termos dos eventos de que temos
experiência, é válido a priori (KANT, 1982, p.65 e segs.).
A busca de Kant se concentrou então em encontrar sentenças sintéticas que
fossem válidas a priori. De acordo com Kant, poderíamos colocar, sob essa quali-
ficação, a aritmética, a geometria e o princípio de causalidade (KANT, 1982, p.47,
p.65). Para Kant, isto solucionava o problema de Hume. Mas poderia a verdade do
princípio de causalidade ser estabelecida a priori? A esse respeito, Popper afirma:
278 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Aqui Kant entrou com sua “Revolução de Copérnico”: foi o intelec-


to humano que inventou e impôs suas leis sobre o pântano dos sen-
tidos, criando assim a ordem da natureza. Era uma teoria ousada.
Mas ruiu logo que se verificou que a dinâmica de Newton não era
válida a priori, mas uma hipótese maravilhosa, uma conjectura.
Do ponto de vista do realismo de senso comum, um bom pedaço
da idéia de Kant poderia reter-se. As leis da natureza são invenções
nossa, são de feitura animal e de feitura humana, geneticamente a
priori embora não válidas a priori (POPPER, 1975, p.95)

Não poderíamos, portanto, considerar teoria alguma como definitiva, como a


teoria “verdadeira”. De acordo com Popper, deveríamos encarar “todas as leis ou teo-
rias como hipotéticas ou conjecturais, isto é, como suposições” (POPPER, 1975, p.20)
Segundo esta perspectiva, a idéia de verdade desempenharia a função de uma
“meta ideal” a ser atingida ou um ponto que fixamos como um objetivo ideal a ser
perseguido. Como não sabemos quando atingimos esta “meta ideal” ou mesmo se ela
pode ser atingida, nós a tomamos como um parâmetro do qual devemos nos apro-
ximar ao máximo. Na concepção de Popper, todo nosso esforço deve se concentrar
na busca de uma aproximação cada vez maior dessa “meta ideal” que é a verdade.
Esta postura de Popper, de considerar a verdade como uma “meta ideal” a ser
sempre perseguida, encontra ainda hoje a resistência de vários opositores. Entre
eles, todos aqueles que Popper considera terem uma posição dogmática e autori-
tária sobre a origem e veracidade das teorias científicas. E, sob esta qualificação,
se enquadrariam todos aqueles que sempre buscaram uma base sólida, segura e
inquestionável para a ciência, e que a encararam como um ramo do saber onde a
verdade, em sua forma definitiva e irrefutável, poderia ser estabelecida. Ou seja, de
acordo com a concepção de Popper, os autores identificados com o racionalismo e
empirismo clássico e seus seguidores.
Esta concepção de uma aproximação cada vez maior da verdade sugere a ideia
de que haveria vários níveis ou “degraus” no caminho da busca da teoria verdadei-
ra. E esta imagem realmente capta um aspecto da concepção de Popper a respeito
do método científico. A teoria da “aproximação cada vez maior da verdade” con-
templa a ideia de que nossas teorias científicas estão sujeitas à refutação, ou seja,
elas não são encaradas como definitivas, e podem ser falseadas e superadas por
teorias melhores8.

8 A esse respeito, ver A lógica da pesquisa científica, cap.X, especialmente itens 84 e 85,
e Conhecimento objetivo, primeira parte, especialmente itens 7,8 e 9.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 279

Mas como, afinal, poderíamos julgar qual é a melhor teoria? Este julgamento
depende diretamente da concepção de ciência que se tem em mente ou, mais parti-
cularmente, das regras metodológicas que definem o que seria o método científico.
Em Popper, o critério que define o campo da ciência é a falseabilidade
(POPPER, 1974, p.82). E é em função desse critério que são elaboradas as demais
regras. Essas regras metodológicas seriam convenções que teriam como objetivo
garantir a aplicabilidade do critério de demarcação.
De acordo com sua concepção de ciência, Popper oferece dois exemplos de
regras metodológicas:

(1) O jogo da Ciência é, em princípio, interminável. Quem decida,


um dia, que os enunciados científicos não mais exigem prova, e po-
dem ser vistos como definitivamente verificados, retira-se do jogo.
(2) Uma vez proposta e submetida a prova a hipótese e tendo ela
comprovado suas qualidades, não se pode permitir seu afastamen-
to sem uma “boa razão”. Uma “boa razão” será, por exemplo, sua
substituição por outra hipótese, que resista melhor às provas, ou o
falseamento de uma conseqüência da primeira hipótese (POPPER,
1975, p.56).

Esta ideia de “maior resistência às provas” deve ser examinada com mais de-
talhe para que se entenda de forma mais clara a questão da escolha entre teorias
concorrentes.
De acordo com Popper, as teorias racionais não podem ser verificadas, no sen-
tido de se estabelecer qualquer teoria como definitivamente verdadeira, mas po-
dem ser “corroboradas”. Segundo o autor, a corroboração de uma teoria está ligada
aos testes a que foi submetida. Se uma teoria resiste bem aos vários testes a que é
submetida, pode-se dizer que até aquele momento ela está corroborada (POPPER,
1974, p.302).
A ideia de um “grau de corroboração” maior ou menor está relacionada tanto
à quantidade de testes pelo qual a teoria passou como por sua severidade. Em re-
lação à quantidade de testes, estará melhor corroborada aquela teoria da qual se
pode derivar uma maior quantidade de experimentos que coloquem em questão a
veracidade de seu conteúdo e de suas previsões. Em relação à severidade, Popper
afirma:

A severidade dos testes, por seu turno, depende do grau de testabi-


lidade e, consequentemente, da simplicidade da hipótese: a hipóte-
280 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

se falseável em maior grau ou a hipótese mais simples é, também,


suscetível de corroboração em maior grau. O grau de corroboração
efetivamente alcançado não depende, como é claro, apenas do grau
de falseabilidade: um enunciado pode ser falseável em alto grau e,
ainda assim, estar corroborado de maneira apenas superficial, ou
estar falseado. (POPPER, 1974, p.293).

Desta forma, o grau de corroboração fornece as informações necessárias para


se optar pela melhor teoria. E isto se daria não só no caso em que só reste uma
como não refutada, mas também nos casos em que várias teorias, ainda não false-
adas, são apresentadas como concorrentes.
Ao longo de toda a análise aqui desenvolvida sobre a concepção popperiana de
ciência, uma característica esteve presente desde o início. Esta característica per-
meou todos os aspectos das considerações que se fez às teses de Popper, e revelou
sua importância na estruturação das ideias do autor a respeito do funcionamento
da ciência: trata-se do seu antidogmatismo.
Este é um dos principais traços da concepção popperiana: a não aceitação do
dogmatismo, a recusa em estabelecer uma autoridade incontestável, quer fossem
os sentidos ou o intelecto/razão, como fonte última do conhecimento. Este não-
-dogmatismo de Popper pode ser captado em qualquer das suas obras nas quais ele
procura criticar a busca, por parte de empiristas e racionalistas clássicos, de uma
base sólida e segura para o conhecimento.
As críticas de Popper às “sentenças sintéticas válidas a priori” de Kant e sua
solução do problema da indução de Hume acabaram por levá-lo a uma abordagem
da qual decorre uma postura não-dogmática e não-autoritária sobre a origem e a
veracidade das teorias científicas.
Na concepção de Popper, a questão da origem das teorias não representa um
problema fundamental. Segundo Popper, não existe a tão procurada “base sólida
e segura” do conhecimento, não existe um “porto seguro” do tipo “verdade clara e
distinta”, a partir do qual poderíamos construir, verdade após verdade, o edifício
sólido e inabalável da ciência, tal como aparece em Descartes.
Segundo Popper, não é a origem da teoria que garante a sua validade ou seu
caráter científico. A esse respeito, afirma:

Por isso minha resposta às perguntas “Como sabes? Qual é a fonte


ou a base da tua afirmativa? Que observações te levaram a ela?” se-
ria: “Não sei; minha afirmativa é simplesmente uma opinião. Não
importa sua fonte - ou fontes; há muitas fontes possíveis e posso
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 281

não ter consciência de uma boa parte delas; de qualquer modo,


as origens e os pedigrees têm pouco a ver com a verdade. Mas, se
estás de fato interessado no problema que procurei resolver com
a afirmativa que fiz, podes ajudar-me criticando-a com toda se-
veridade de que fores capaz. Se puderes conceber um teste expe-
rimental para refutar o que disse, terei satisfação em te ajudar a
refutá-lo, o melhor que possa” (POPPER, 1972, p.55).

Para Popper, são estas atitudes de crítica severa, buscas de testes experimentais,
tentativas de refutação e espírito de aprimoramento que caracterizam a ciência.
Com esta postura, Popper procura se colocar em oposição aos autores que ele
qualifica como racionalistas e empiristas clássicos (POPPER, 1972, p.32). Autores
que, segundo ele, procuram definir a validade e o caráter científico das teorias a
partir de seu ponto de partida; e que buscam a tão sonhada “base sólida, segura
e inquestionável” a partir da qual as certezas definitivas da ciência pudessem ser
estabelecidas.
É devido a esta concepção de ciência que Popper julga pouco importan-
te a questão da origem das teorias. Para ele, deve-se avaliar uma teoria não pela
sua origem, mas pelo exame crítico de seu conteúdo. E esta atitude crítica é, para
Popper, uma das principais características da ciência. A esse respeito, o autor afirma:

A Ciência começa, portanto, com os mitos e a crítica dos mitos;


não se origina numa coleção de observações ou na invenção de ex-
perimentos, mas sim na discussão crítica dos mitos, das técnicas
e práticas mágicas. A tradição científica se distingue da tradição
pré-científica por apresentar dois estratos; como esta última, ela
lega suas teorias, mas lega também com elas, uma atitude crítica
com relação e essas teorias. As teorias são transferidas não como
dogmas mas acompanhadas por um desafio para que sejam discu-
tidas e se possível aperfeiçoadas (POPPER, 1972, p.80).

Para Popper, a objetividade da ciência é fruto deste ambiente de crítica aber-


ta, sincera e severa. A objetividade da ciência não dependeria da objetividade do
cientista. Não seria o procedimento individual do cientista que garantiria tal ob-
jetividade, por mais que ele, individualmente, se esforce em ser crítico, isento de
preconceitos e preferências, imparcial e objetivo.
Para Popper, não são esses esforços individuais que garantem a objetividade
da ciência, embora o empenho individual pelo rigor lógico, pelo cuidado na for-
282 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

mulação das teorias e pelo espírito crítico sejam importantes no processo de elabo-
ração teórica. Mesmo porque, para o autor, seria impossível isolarmos a teoria de
qualquer tipo de influência pessoal. A própria escolha de um tema de pesquisa ou
de um problema já supõe preferências e interesses de ordem pessoal.
A objetividade na ciência seria fruto de um esforço coletivo. Ela seria o resul-
tado da discussão intersubjetiva das teorias, seria fruto do debate crítico, aberto
e rigoroso. A objetividade das teorias científicas seria garantida pelo processo de
debate durante o qual elas se estabelecem como teorias merecedoras de atenção.
É neste processo de debate que é forjado o caráter objetivo das teorias, através da
discussão crítica, da apreciação objetiva dos resultados frente aos testes empíricos,
e da avaliação criteriosa dos inúmeros especialistas da área em questão.
A atitude crítica está, em Popper, bastante relacionada com a idéia de racio-
nalidade. Uma das características da atitude racional residiria na disposição de se
chegar a decisões através da reflexão sistemática e da argumentação consistente.
O racionalista se caracterizaria pela disposição em ouvir os argumentos do adver-
sário; e com sinceridade suficiente para aceitar a hipótese de se deixar convencer
(POPPER, 1972, p.388).
A atitude racional se caracterizaria pela ausência de dogmatismo, pelo res-
peito ao diálogo, pela disposição em ouvir e se deixar convencer, pelo exercício da
rigorosa análise crítica dos argumentos.
A respeito da relação entre racionalidade e atitude crítica, Popper afirma:

A tradição racionalista ocidental, que se origina na Grécia antiga,


é uma tradição de discussão crítica - o exame e o teste de propo-
sições ou teorias, na tentativa de refutá-las. Esse processo de críti-
ca racional não deve ser entendido como um método destinado a
provar - quer dizer, dirigido à demonstração da verdade definitiva.
Também não é um método que leve necessariamente a um acordo.
Seu valor está no fato de que os que participam de uma discussão
em certa medida mudarão suas opiniões, tornando-se mais sábios
(POPPER, 1972, p.384).

Em função do tema deste artigo, o interesse na exposição das idéias de


Popper esteve concentrado, sobretudo, no conceito de verdade e no caráter da dis-
cussão teórica que ele afirma ocorrer na ciência. Procurou-se enfocar, em par-
ticular, aquelas características que levaram Popper a afirmar a possibilidade da
discussão e escolha racional das teorias no âmbito da ciência.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 283

8. O progresso do conhecimento científico segundo


Popper

No texto “Verdade, racionalidade e expansão do conhecimento científico”


(POPPER, 1972, p.242), Popper esclarece que suas considerações sobre o progresso
do conhecimento científico poderiam ser aplicadas, sem grandes alterações, para
a expansão do conhecimento em geral. E o método de aprendizado utilizado nos
dois contextos seria basicamente o mesmo: o método de aprendizagem por tenta-
tivas (por erros e acertos).
O fato de Popper considerar o progresso constante um aspecto essencial para
sua concepção de ciência não significa, no entanto, que ele acredite em uma lei
histórica de progresso, no sentido de uma “[...]tendência incondicional ou absolu-
ta, reduzível às leis da natureza humana[...]”, tal qual concebidas por Comte e Mill
(POPPER, 1980, p.122).
O método científico, no entender de Popper, tem aspectos sociais, ou seja, de-
pende de várias instituições sociais, como a linguagem, os meios de comunicação
e as instituições democráticas que garantem a livre divulgação e debate das idéias.
Depende também do fator humano ou pessoal, ou seja, são necessárias pessoas
para operar as instituições. O fato de depender de fatores instáveis como esses tor-
na difícil que se fale em lei histórica de progresso. A esse respeito, Popper afirma:

Como usei a palavra “progresso” várias vezes, será melhor garan-


tir-me de que não serei visto como um crente na lei histórica do
progresso. Na verdade, já tive várias oportunidades de atacar essa
crença, e sustento que mesmo a Ciência não está sujeita a qualquer
coisa parecida (POPPER, 1972, p.242).

Em sua obra A filosofia de Karl Popper, Peluso (1995, p.94) afirma que a com-
preensão das questões epistemológicas mais importantes em Popper seria impos-
sível sem evidenciar suas ligações com a teoria da evolução, e relembra que Popper
argumentou que sua teoria do conhecimento científico não poderia ser dissociada
de uma teoria evolucionista.
No texto “A evolução e a árvore do conhecimento” (POPPER, 1975, p.234-
256), o autor nos apresenta alguns detalhes sobre esta relação. Ao observar que, em
relação à teoria do conhecimento, discorda de quase todos os autores, “[...] exceto
talvez Charles Darwin e Albert Einstein”, Popper afirma que o ponto principal do
debate é a relação entre observação e teoria.
284 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

Para Popper, a teoria, mesmo que rudimentar, mesmo que apenas uma expec-
tativa, sempre vem primeiro. Todas as observações seriam feitas à luz de alguma
teoria ou expectativa. Sendo assim, não haveria “observações puras”, isentas de
qualquer influência, mas sempre observações impregnadas de teorias.
Mas Popper vai além e afirma:

E penso podermos asseverar ainda mais: não há órgão de sentido


em que não se achem incorporados geneticamente teorias anteci-
padoras. O olho de um gato reage de modos distintos a diversas
situações típicas para as quais há mecanismos preparados e em-
butidos em sua estrutura: correspondem estes às situações biolo-
gicamente mais importantes entre as quais ele tem de distinguir.
Assim, a disposição para distinguir entre essas situações é embuti-
da no órgão do sentido e, com ela, a teoria de que essas, e somente
essas, são as situações relevantes para cuja distinção o olho deve
ser usado (POPPER, 1975. p.76).

Na sequência, o autor enfatiza a consequência deste posicionamento, esclare-


cendo que ele conduz à “falência radical da teoria do balde”: Popper se refere ao
que denominou de “teoria do balde mental”, de origem indutivista e empirista,
mais conhecida pelo nome de teoria da tabula rasa da mente, que afirma que tudo
que há em nossa mente (inicialmente uma “lousa vazia”) foi ali gravado por infor-
mações que foram absorvidas pelos sentidos.
Para Popper, seria errôneo tentar rastrear a origem dos nossos conhecimentos
a partir das nossas observações (das informações que nos chegariam pelos sen-
tidos). Com base neste posicionamento, Popper apresenta dois teoremas que re-
velam aspectos importantes da sua concepção de progresso do conhecimento. O
primeiro deles afirma: “Todo conhecimento adquirido, todo aprendizado, consiste
da modificação (possivelmente da rejeição) de alguma forma de conhecimento, ou
disposição, que existia previamente, e em última instância de disposições inatas”.
E o segundo, decorrente do primeiro, afirma: “Todo crescimento de conhecimento
consiste no aprimoramento do conhecimento existente, que é mudado com a espe-
rança de chegar mais perto da verdade” (POPPER, 1975, p.76).
Portanto, de acordo com Popper, nós não partimos de observações e sim de
problemas (de problemas práticos ou de uma teoria que enfrentou dificuldades). O
problema seria a consequência de uma teoria ou expectativa que se viram frustra-
das porque incompatíveis com uma realidade que se apresentou de forma distinta
da esperada.
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 285

Ao se apresentar o problema, logo conjecturamos uma solução, que se mostra


uma primeira tentativa, geralmente fraca, de buscar uma resposta. Mas essa pri-
meira tentativa é fundamental, pois é a partir dela que exercemos nossa crítica e
realizamos os testes experimentais. Segundo Popper, cedo descobrimos que nossas
conjecturas podem ser refutadas, ou que não resolvem nosso problema, ou só o
fazem em parte. E mesmo as teorias que melhor resistem às criticas e aos testes,
posteriormente, dão origem a novas dificuldades, a novos problemas. Dessa forma,
através de conjecturas e refutações, transitando de velhos problemas para novos
problemas, é que se daria o crescimento do conhecimento.
Ao detalhar o processo de conjecturas e refutações, Popper diz que, quando
primeiro encontramos um problema, quer prático ou teórico, não sabemos muito
a seu respeito. Como então poderíamos apresentar uma solução adequada? A res-
posta é óbvia, não podemos. Teremos primeiro que conhecer o problema, e isso
seria feito produzindo uma solução inadequada e criticando-a (POPPER, 1975,
p.237). Dessa forma, estaríamos percebendo mais claramente as dificuldades do
problema, o porquê de ele não ser de fácil solução, seu nível de complexidade e pro-
fundidade. Assim procedendo, estaríamos conhecendo melhor o problema, po-
dendo passar de soluções inadequadas para outras melhores. Segundo Popper, isto
é que significaria “trabalhar um problema”; durante esse processo, após enfrentar
o problema por bastante tempo e com intensidade, passaríamos a compreendê-lo
melhor, identificando a potencialidade das conjecturas.

Em outras palavras, começamos a ver as ramificações do proble-


ma, seus subproblemas e sua conexão com outros problemas. (É
só nesta etapa que uma solução conjecturada dever ser submetida
à crítica de outros e talvez mesmo publicada). Se considerarmos
agora esta análise, veremos que ela se encaixa em nossa fórmula,
que disse que o progresso do conhecimento vem de problemas ve-
lhos para novos problemas, por meio de conjecturas e de tentativas
críticas para refutá-las. Pois mesmo o processo de ficar conhecen-
do um problema cada vez melhor marcha de acordo com esta fór-
mula (POPPER, 1975, p.238).

Após a fase inicial de trabalho com o problema, a etapa seguinte seria de


avaliação crítica e testes da hipótese apresentada para a sua solução, que seriam
realizados primeiramente pelo círculo mais próximo de amigos ou opositores e,
posteriormente, por outros cientistas, num processo mais amplo que abrangeria
286 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

congressos e publicações. Passando por essas fases, após mesmo os mais rigorosos
críticos não obterem êxito em sua refutação, a teoria seria aceita temporariamente
e experimentalmente, se incorporando ao conhecimento científico em vigor.
No sentido de enfatizar as características evolucionárias desse processo,
Popper afirma:

Tudo isto pode ser expresso dizendo que o crescimento de nosso


conhecimento é o resultado de um processo estreitamente seme-
lhante ao que Darwin chamou “seleção natural”; isto é, a seleção
natural de hipóteses: nosso conhecimento consiste, a cada mo-
mento, daquelas hipóteses que mostraram sua aptidão (comparati-
va) para sobreviver até agora em sua luta pela existência, uma luta
de competição que elimina aquelas hipóteses que são incapazes
(POPPER, 1975, p.238).

No entanto, apesar da semelhança, haveria diferenças entre a árvore evolucio-


nária e a árvore do conhecimento. A primeira seria como uma árvore genealógica;
o tronco comum seria a dos nossos ancestrais unicelulares comuns. Já a segunda,
referente ao conhecimento puro, seria formada de várias raízes, que cresceriam no
ar e tenderiam a unir-se em um tronco comum, pois os problemas novos surgem e
se multiplicam, mas no final do processo são integrados por uma teoria explicativa.
De acordo com Popper, um aspecto extremamente relevante neste processo é
que está suposto, o tempo todo, para que ocorra o seu desenrolar, algo fundamen-
tal, uma suposição sem a qual o que foi acima descrito não seria possível. A esse
respeito, Popper afirma:

Os problemas de explicação são resolvidos propondo-se teorias ex-


plicativas; e uma teoria explicativa pode ser criticada mostrando-
-se que é muito incoerente em si mesma, ou incompatível com os
fatos, ou incompatível com algum outro conhecimento. Mas esta
crítica supõe que o que desejamos encontrar são teorias verdadei-
ras – teorias que concordem com os fatos. Esta idéia de verdade
como correspondência com os fatos é, creio eu, o que torna pos-
sível a crítica racional. Juntamente com o fato de que nossa curio-
sidade, nossa paixão de explicar por meio de teorias unificadas, é
universal e ilimitada, nosso alvo de chegar mais perto da verda-
de explica o crescimento integrativo da árvore do conhecimento
(POPPER, 1975, p.241).
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 287

A relevância desta suposição da verdade como correspondência com os fatos


para a concepção de ciência de Popper ficará mais clara no item que se segue.

9. O critério de verossimilitude

Para que haja um contínuo avanço teórico, é necessária a existência de um cri-


tério que defina se houve ou não progresso. E este critério, por sua vez, está ligado
ao reconhecimento da existência de uma espécie de “objetivo comum” da atividade
científica; algo como um “alvo geral”, almejado por todas as teorias. É a partir do
reconhecimento deste “alvo geral” que o critério de definição sobre o progresso
científico ganha maior sentido.
Mas qual seria, afinal, este “alvo geral”? Existiria algo que pudesse ser assim
chamado na ciência?
A resposta de Popper à última pergunta é afirmativa, e há várias passagens
em que o autor define este “alvo geral” ou “meta final” utilizando os conceitos de
“aproximação da verdade” e de “verossimilitude”.
A importância da ideia de verdade, ou melhor, da ideia de aproximação da
verdade como o “alvo geral” das teorias científicas, pode ser avaliada pela seguinte
passagem:

O fato é que também consideramos a Ciência uma busca da verda-


de e, pelo menos desde Tarski, não temos receio de afirmá-lo. É só
em relação a esse objetivo - a descoberta da verdade - que afirma-
mos que, apesar da nossa falibilidade, esperamos aprender com os
erros. Só a idéia da verdade nos permite falar de maneira sensata
sobre os erros e a crítica racional, possibilitando a discussão racio-
nal - isto é, a que procura descobrir os erros com a intenção séria
de eliminá-los ao máximo, para que nos possamos aproximar da
verdade. Portanto, a própria idéia do erro - e da falibilidade - im-
plica uma verdade objetiva, considerada como padrão que pode-
mos não atingir (neste sentido, a idéia de verdade é reguladora)
(POPPER, 1972, p.255).

Como podemos ver por essa citação, a busca da verdade, considerada como
“alvo geral” da atividade científica, desempenha um papel central na garantia de
um processo de discussão racional das teorias; condição fundamental para que
288 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

possamos falar de progresso (avanço teórico, aprimoramento das teorias, escolha


das melhores teorias) no campo da ciência.
A importância da ideia de aproximação da verdade como o “objetivo comum”
da ciência transparece também na seguinte passagem:

Gostaria de poder dizer que a Ciência visa à verdade no sentido


de correspondência com os fatos ou com a realidade; e também
gostaria de dizer (com Einstein e outros cientistas) que a teoria da
relatividade é - ou assim conjecturamos - melhor aproximação da
verdade do que a teoria de Newton, tal como esta última é melhor
aproximação da verdade do que a teoria de Kepler. E gostaria de
poder dizer estas coisas sem temer que o conceito da proximidade
da verdade ou verossimilitude seja logicamente mal concebido, ou
“sem significação”. Em outras palavras, meu alvo é a reabilitação
de uma idéia de senso comum da qual preciso para descrever as
metas da Ciência e a qual, assevero, alicerça como princípio re-
gulador (mesmo que apenas inconsciente e intuitivamente) a ra-
cionalidade de todas as discussões científicas críticas (POPPER,
1975, p.65).

A posição de Popper é de aceitação da ideia de que a verdade é a correspondên-


cia com os fatos, concepção conhecida como teoria do senso comum da verdade e
que foi aprimorada e defendida por Alfred Tarski. A proposta de Tarski se baseia
no uso de uma metalinguagem que possibilitaria falarmos, ao mesmo tempo, so-
bre os fatos e sobre as proposições que fazem afirmações a respeito desses fatos.

Embora fosse necessário o gênio de Tarski para torná-lo claro, ago-


ra se tornou deveras perfeitamente claro que, se queremos falar a
respeito da correspondência de uma asserção com um fato, pre-
cisamos de uma metalinguagem em que possamos asseverar o
fato (ou o fato alegado) a respeito do qual fala a asserção em ques-
tão, e, além disso, podemos também falar a respeito da asserção
em questão (usando certo nome convencional ou descritivo dessa
asserção). E vice-versa: é claro que, desde que possuamos tal me-
talinguagem em que podemos falar a respeito (a) dos fatos des-
critos pelas asserções de alguma linguagem (objeto), pelo simples
método de asseverar esses fatos, e também a respeito (b) das as-
serções dessa linguagem (objeto) usando nomes dessas asserções,
CAPÍTULO 12 - A crítica do conceito de verdade em Karl Popper | 289

então podemos falar também nessa metalinguagem a respeito da


correspondência de asserções com fatos. Uma vez que possamos
asseverar deste modo as condições sob as quais cada asserção da
linguagem L¹ corresponde aos fatos, poderemos definir, de modo
puramente verbal, mas em consonância com o senso comum: uma
asserção é verdadeira se, e apenas se, corresponder aos fatos
(POPPER, 1975, p.53).

Tendo a noção de verdade de Tarski como apoio, Popper se coloca em condi-


ções de esclarecer seu conceito de verossimilitude, que supõe a situação de compa-
ração entre teorias ou hipóteses a respeito de um determinado problema ou tema.

Deste modo, a procura da verossimilitude é um alvo mais nítido e


mais realista do que a procura da verdade. Mas pretendo mostrar
um pouco mais. Pretendo mostrar que, embora possamos nunca
ter argumentos suficientemente bons, nas ciências empíricas, para
alegar que alcançamos de fato a verdade, podemos ter argumentos
fortes e razoavelmente bons para alegar que é possível termos feito
progresso no rumo da verdade; isto é, que a teoria T² é preferível
à sua predecessora T¹, pelo menos à luz de todos os argumentos
racionais conhecidos. Mais ainda, podemos explanar o método da
ciência, e muito da história da ciência, como o processo racional de
chegar mais perto da verdade (POPPER, 1975, p.63).

É de grande importância, na concepção popperiana de ciência, a tese de que


há um “alvo geral” para a discussão racional; que no caso se concretiza com o esta-
belecimento da verossimilitude como objetivo das teorias científicas. A existência
deste “alvo geral” facilita a discussão racional e assegura o aperfeiçoamento das
teorias. Se não houvesse algum objetivo determinado, como ocorre no caso da
concepção popperiana de ciência, a discussão racional seria mais difícil e não seria
possível falar em escolha racional entre as teorias científicas.
Se não há um critério balizador a partir do qual as teorias são julgadas, então se
instaura o caos da indistinção total, e não há como se escolher racionalmente entre
várias teorias concorrentes. Mesmo que o objetivo geral não seja a ideia da verdade
ou a de verossimilitude, para que haja a possibilidade de progresso, deve haver,
necessariamente, algum tipo de critério balizador que fundamente a escolha feita.
290 | História e Filosofia das Ciências e o Ensino de Ciências II

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RUFATTO, C. A. Ciência e Política em Karl Popper. 1991.160 f. Dissertação


(Mestrado em Filosofia da Ciência) – Centro de Lógica e Epistemologia,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1991.
Sobre o livro
Formato 16 x 23 cm
Tipologia Minion Pro (texto)
Helvetica Neue (títulos)
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HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS E O ENSINO DE CIÊNCIAS II


AUTORES FILOSOFIA DAS
Ana Maria de Andrade Caldeira
Andrea Berardi
CIÊNCIAS E O
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Antonio Albérico Oliveira de Andrade
ENSINO DE CIÊNCIAS II
Antonio Fernandes Nascimento Junior Os textos apresentados representam
O livro “História e Filosofia da Ciência e o Ensino de Ciências II” apre-
Carlos Alberto Rufatto um valioso material de pesquisa em En-
Carlos Roberto Senise Júnior
senta múltiplas perspectivas de estudo e pesquisa, valendo-se da variedade
de objetos, métodos e recursos de investigação para o Ensino de Ciências. sino de Ciências, desenvolvidos sobre
Daniele Cristina de Souza
Danilo Rothberg O leitor terá acesso a um conjunto de textos que significa uma con- e através das temáticas da História, da
Felipe Conrado Fiani Felipe de Sousa tribuição para a pluralidade de teorias e práticas de Ensino de Ciências, Sociologia e da Filosofia da Ciência, que
João José Caluzi característica que pode tornar essa área mais capaz de trazer respostas con-
certamente significa uma contribuição
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Marcelo Carbone Carneiro ao enriquecimento de teorias e práticas
Moacir Pereira de Souza Filho
desta área de pesquisa e ensino.
Nádia Cristina Guimarães Errobidart
Osleane Patrícia Gonçalves Pereira Sobrinho
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MARCELO CARBONE CARNEIRO


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DANILO ROTHBERG
(Orgs.)

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