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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura

O sentido dos diálogos entre as mulheres


e o mar nas cantigas de amigo
galego-portuguesas do século XIII

Ana Luiza Mendes1

Os estudos dedicados à literatura medieval têm a peculiaridade


de proporcionar a convergência de diálogos entre diferentes áreas do
conhecimento. Sua característica musical liga-nos, independente de nosso
desejo, a essa área artística, mas dela nada saberíamos se não contássemos
com a transposição das letras das cantigas para o papel, princípio básico da
concepção de literatura que hoje temos.

Segundo Lopes e Saraiva2, o conceito de literatura relacionada


com letra e com o conjunto de obras escritas é extremamente amplo e sua
história não abrangeria os séculos sem a escrita. Além disso, o conceito não
é de todo apropriado, pois, nem tudo o que se escreve tem caráter literário.
Para os autores,

uma obra pode considerar-se literária na medida em que,


para além do pensamento lógico, discursivo, abstratamente
conceitual, adequado a problemas científicos, filosóficos,
ou, em geral, doutrinários, empenhar e reelaborar os
impulsos e os recursos comunicativos menos conscientes,
os gostos, atitudes e valores que se enraizaram através do
aprendizado, decisivamente formativo da língua materna
e de uma dada vida social. 3

A partir dessa concepção, o estudo da literatura medieval torna-


se um tanto mais compreensível, no sentido de intuí-la como uma forma
de comunicação de realidades sociais e valores que são subjetivizados e

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. E-mail


para contato: ana.luiza@ufpr.br.
2 LOPES, Óscar; SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto
Editora, 1955.
3 Idem, p.7-8.b
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expressos não tanto como verdades, mas como atitudes ou apreciações


que lhes são adequadas.

Dessa forma, é necessário ter em mente que a literatura medieval


não é uma literatura como a compreendemos atualmente. Ela reflete uma
característica do período: a oralidade. “A obra medieval, até o século XVI, só
tem existência plena quando sustentada pela voz”, com menciona Zumthor
que levanta alguns pontos que são pertinentes para a compreensão da
complexidade da literatura medieval. Segundo ele, “o simbolismo primordial
integrado ao exercício fônico se manifesta eminentemente no emprego da
linguagem, e é aí que se enraíza toda poesia” 4. O autor faz uma crítica a
concepções que priorizam a escrita em detrimento da oralidade que, via
de regra, é relacionada com uma cultura popular, concepção esta também
extremamente complexa, assim como a da tradição oral.

Considerando a característica extremamente performática e a


de entreter a corte na qual ela foi criada ou cantada, sobre a literatura
medieval também pairava a função pedagógica sobre os costumes daquele
meio social. A literatura medieval se constitui, portanto, como uma retórica
dos sentidos, cujo significado é fundamentado num discurso que fornece
indícios sobre o real, mas nunca o real completo como supõe Spina quando
afirma que as cantigas de amigo e de amor galego-portuguesas são um
retrato completo da vida sentimental portuguesa.

Podemos compreender essa ambição de totalidade de apreender


o sentido dessas cantigas como um retrato cultural e social da vida
portuguesa e galega no século XIII, a partir da sua tentativa de se aproximar
ao máximo da fonte, como também propõe Duby, a fim de extrair ao máximo
o significado que ela sugere. Entretanto, é preciso tomar cuidado com as
propostas de totalidade de sentido e realidade, uma vez que eles nunca
poderão ser recuperados de forma completa. O trabalho histórico sobre tais
fontes nunca será feito de forma objetiva, uma vez que “o pano de fundo
não é neutro” 5, de modo que, de certa forma, o historiador, assim como

4 ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 8.
5 DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 40.
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outros estudiosos que se debruçam sobre as cantigas, assim como sobre a


literatura como um todo, trabalham numa linha tênue entre o real e a ficção,
esta compreendida num sentido de idealização daquele. Esse trabalho se
constitui, portanto, como o do malabarista que se equilibra numa fina linha
suspensa a metros de altura.

Aqui o malabarista é o historiador e demais estudiosos dessa


literatura, que tentam se equilibrar na tênue linha suspensa que é a relação
entre o real e o ideal. Qual é exatamente o limite dessa relação? Acredito que
nenhum desses estudiosos tem a pretensão de encontrar, até porque são
justamente as leituras dessa relação que tornam a pesquisa mais instigante.
“É durante as leituras que entram em jogo mecanismos mais fluídos que o
mais mirabolante dos computadores. Entre eles, os da imaginação, inevitável,
indispensável feiticeira”6 , que não deixa de ser uma ferramenta da qual o
historiador se utiliza para esboçar a figura dessa sociedade, reavivando as
vozes do passado, compartilhando suas emoções.

Outra questão relevante ao abordar a literatura medieval é o mosaico


cultural que forma a sociedade desse período, o que torna a relação entre
o real e o ideal ainda mais difícil de identificar, uma vez que estes variam
da mesma forma que variam as cores de um mosaico. Dessa forma, como
aponta Márcia de Medeiros, “não é possível para esse momento encontrar
uma identidade cultural capaz de situar o indivíduo no tempo e no espaço:
o universo que se abre mostra a sua gama de caleidoscópio onde cada um
parece se mover entre diferentes códigos de expressão, os quais se insistem
em analisar de forma separada”7.

Este é, portanto, um dos desafios do estudo da poesia medieval que,


todavia, a transforma em um objeto rico e estimulante na construção de
formular o retrato de um outro tão longínquo e, a princípio, tão diferente de
nós. “Mergulhar na Idade Média, reconhecer na face do outro a nossa própria

6 Idem, p. 53.
7 MEDEIROS, Márcia Maria de. A história cultural e a história da literatura medieval. Algumas
referências à “escritura”do oral e à “oralidade”do escrito. FRONTEIRAS Revista de História, Vol.
10, No 17 (2008), p.98. http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/FRONTEIRAS/article/
viewFile/64/74. Acessado em: 29 de julho de 2010.
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face modificada, trazê-la para o nosso tempo sem deixar de respeitar a sua
alteridade: eis a tarefa para a qual a leitura dos poemas medievais oferece
um convite e um desafio”.8

É, portanto, nessa perspectiva que se desenvolve o estudo


das cantigas de amigo galego-portuguesas. Tais cantigas revelam o
caráter complexo e articulado do período do qual são fruto, uma vez que
revelam diversas fontes de influência, como da religião, fenômeno de
suma importância para a região, devido aos entraves constantes com os
árabes que, de certa forma, impulsionam o desenvolvimento da Península
Ibérica tendo a religião como motor das guerras de combate ao infiel e de
reconquista do território por ele dominado. Entretanto, não só de guerra vive
a religião. Ela move os fiéis para a peregrinação a Compostela, na Galiza,
em prol da reverência ao apóstolo Sant’Iago.

Essas peregrinações se constituíram como um dos focos da


elaboração da poesia trovadoresca que irá se irradiar para as cortes de
Castela e Portugal. Elas também apontam para a mobilidade existente
no medievo. Modalidade esta que também contribuiu para as trocas de
experiências que colaboraram para o enriquecimento das criações culturais,
como é o caso da literatura trovadoresca galego-portuguesa que se apropria
de alguns elementos culturais de outras regiões, como da poesia provençal
e árabe, para criar o seu próprio fazer poético.

O espírito trovadoresco galego-português caracteriza-se pela


expressão de uma realidade social. Como afirma Serrão,

de tendência culta ou inspiração popular, a atividade


poética surge como espelho dos usos e costumes que
marcam os vários escalões da sociedade. Esse domínio
constitui, pois, um excelente meio para indagar os estratos
mentais do português medievo, no quadro histórico do
nascente Reino. 9

8 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia Medieval. São Paulo: Global, 1987, p. 10.
9 SERRÃO.
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Nesse contexto, é importante analisar a significação dos elementos


sociais utilizados como fonte poética. No caso das cantigas de amigo, mais
especificamente as marinhas ou barcarolas, um desses elementos é o mar
(daí essa definição), cuja posição em terras portuguesas contribuiu para a
expansão da região, constituindo-se como uma alternativa de contato com
outras regiões não acessíveis.

Desde o século XIII, segundo Jaime Cortesão10, os homens do interior


da região portuguesa já enfrentavam o mar de Galiza para dele retirar
uma boa parte da sua alimentação. O mar, portanto, apresenta-se como
uma entidade protetora da própria vida que nele navega. Possibilitando
sua subsistência, também permite a troca de experiências culturais,
contribuindo para a construção da autonomia do homem português perante
o desconhecido do qual o próprio mar é porta-voz. “Criações nacionais, sem
correspondentes em outras literaturas, as barcarolas exprimem com todo o
encanto a experiência de um povo criado à beira-mar”.11

O mar, portanto, além de se constituir como elemento geográfico


e social, também aparece como elemento cultural, que se entrelaça com o
cantar feminino e, sob a visão masculina, esse universo pretende representar,
tal como aparece nessa cantiga de Nuno Fernandes Torneol:

Vi eu, mia madr’, andar


as barcas em o mar,
e moiro-me d’ amor.

Foi eu, madre, veer


as barcas em o les
e moiro-me d’amor.

As barcas em o mar;
e foi-las aguardar,
e moiro-me d’amor.

10 Apud SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Verbo: Lisboa, 1979.


11 SPINA, Segismundo. Era Medieval. Rio de Janeiro: Difel, 2006, p. 17.
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As barcas em o lês;
e foi-las atender,
e moiro-me d’amor.

E foi-las aguardar,
e non o pud’ achar;
e moiro-me d’amor.

E foi-las atender,
e non o pud’ i veer;
e moiro-me d’amor.

E non o achei i,
que eu per meu mal vi;
e moiro-me d’amor. 12

Nessa cantiga a mãe e o mar presenciam a saudade que a amiga


sente do seu amado, que não nomeia a amada, regra básica de discrição,
importada da cantiga de amor provençal, da qual depende a durabilidade
desse sentimento, segundo os preceitos do amor cortês.

Diante desses elementos, é interessante analisar os meios pelos


quais se desenvolve o diálogo entre a mulher que canta a ausência do amigo
(amado, namorado) e a presença do mar, tanto como aquele que levou o
amigo para longe, ou o trará novamente aos braços da amiga ou, ainda,
como confidente da desilusão amorosa.

Na Galiza e em Portugal a mulher aparece representada


principalmente pelas meninas casadouras, que nessas
composições vibram de saudades pelo namorado que foi
para as trincheiras (fossado ou ferido) combater o mouro
invasor. Os cantares d’amigo exprimem, portanto, estes
pequeninos dramas e situações da vida amorosa das

12 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia Medieval. Literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987,
p. 113.
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donzelas, em que a vida do campo (com todas as sugestões


da natureza), a vida burguesa e o ambiente doméstico
(representado sobretudo pelas relações com a mãe e as
irmãs mais velhas) formam a moldura desses singelos
quadros sentimentais e impregnam de original encanto e
doce realismo essa poesia feminina. As árvores, as fontes,
os cervos do monte, os rios e o mar, as despedidas ou
encontro de regresso com o amigo (namorado), a mãe
com sua severa vigilância, o desabafo amoroso com as
amigas, as mil e uma conjecturas sobre o atraso do amado
(que foi para a guerra ou permanece a serviço de el-rei, ou
terá morrido), as reuniões festivas à frente das igrejas, as
romarias, os presentes (dõas) oferecidos pelo namorado,
entram em cheio nessa poesia da terra, que os outros povos
irmãos não conservaram. Um suave saudosismo, com
aquelas notas psicológicas que caracterizam a saudade
galego-portuguesa, impregna os cantares d’amigo de
calor humano, confirmando-lhe uma autenticidade que
nos cantares d’amor é menos evidente. 13

Evidencia-se nesse trecho de Spina, o encantamento provocado


pelas cantigas de amigo, sobretudo se pensarmos, como o próprio Spina
sugere, que essa forma poética pode ser considerada como uma composição
autêntica galego-portuguesa, no tocante à poética do universo feminino e
sua conversação com o mar.

Como já mencionado anteriormente, o mar é um elemento de


extrema importância não só no desenvolvimento do reino português, como
também na construção de identidades. Diante desses fatos, é importante
analisar a relação entre a função real e ficcional do mar, como pode ser
observada numa cantiga de Pai Gomes Charinho, na qual ele faz uma auto-
referência quando a amiga faz a menção ao posto de almirante ocupado
pelo trovador, como sugere essa estrofe:

13 SPINA, Segismundo. Era Medieval. Rio de Janeiro: Difel, 2006, p. 15-16.


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Disseron-m’ hoj’, ai amiga, que non


é meu amig’ almirante do mar;
e meu coraçon já pode folgar,
e dormir já; e por esta razon,
o que do mar meu amigo sacou,
saque-o Deus de coitas qu’ afogou.14

Nessa cantiga a amiga informa sobre a destituição do seu amigo do


cargo de almirante, ou do fato dele não ter se tornado um, de forma que não
precisará mais se preocupar com as aventuras e perigos que ele enfrentava
a cargo dessa profissão.

Todavia, o interessante nessa cantiga é a possível afirmação de uma


identidade pessoal por parte do almirante-trovador, identidade esta dada a
partir de sua relação com o mar. Ela associa, portanto, o caráter social e
real do mar na vida do almirante, com o seu caráter poético e, portanto,
simbólico, ao permitir o regresso do amado e não mais causar preocupações
à amiga.

Pensar nessa possível afirmação de uma identidade pessoal


é instigante se pararmos para refletir a partir de quais elementos ela
se desenvolve. A amiga se refere ao amado como almirante. Essa é sua
identidade. Identidade relacionada ao serviço prestado ao el-Rei. Ou seja, a
identidade afirmada desenvolve-se por meio da relação perante outros, fato
que nos remete a pensar na sociedade medieval como uma sociedade de
relações, de modo que a existência do indivíduo era determinada a partir do
seu grau de envolvimento nessas relações, públicas, isto é, que deveriam ser
vistas por todos, uma vez que o indivíduo não é interessante no isolamento.
“O enfoque aqui se aproxima muito mais da realidade, no sentido em que o
indivíduo é sempre visto em seu contexto social, como um ser humano em
relação com outros, como um indivíduo numa situação social”.15

14 MACEDO, Helder; RECKERT, Stephen. Do Cancioneiro de Amigo. Lisboa: Assírio e Avim,


s/d, p. 142.
15 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro:
Zahar, 1993, p. 228.
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Nessa perspectiva, as cantigas de amigo também supõem diferentes


espaços para a sociabilidade feminina contrariando a historiografia
tradicional que dita o espaço doméstico como sendo o reservado às
mulheres. Nesse contexto, como afirma Charles de la Roncière, a janela
seria o grande divertimento, a fuga para o ambiente externo, a oportunidade
de verem e serem vistas.

Todavia, as cantigas de amigo demonstram que o contato entre as


mulheres e o mundo não era tão restrito. Os próprios afazeres do mundo
feminino promoviam o seu contato com o mundo, as impeliam para a rua.
“As idas ao mercado, ao moinho, ao poço e, principalmente, às igrejas,
constituem espaços privilegiados para as fugas femininas”16, como sugere
uma cantiga de Martin Codax, na qual a amiga observa o mar da igreja, até
avistar as barcas que voltarão com o seu amado:

A la igreja de Vig´ u é o mar levado;


e verrá i, madre, o meu amado,
e miraremo-las ondas.

A ampliação dos espaços de sociabilidades femininas sugeridas


pelas cantigas vai de encontro com o modelo ambíguo proposto pelo discurso
medieval. Na Idade Média vamos encontrar referências que relacionam
a mulher com três figuras distintas. A primeira delas é a da pecadora
que compartilha a desgraça proporcionada pelas atitudes que levaram
a corrupção do homem, é Eva. A mulher, nessa imagem, é a causadora
dos males destinados ao homem. “O pecado original, pecado de orgulho
intelectual, de desafio intelectual a Deus, é transformado pelo cristianismo
medieval em pecado sexual. O desprezo pelo corpo e pelo sexo toca assim
o seu ponto máximo no corpo feminino”.17

As outras duas imagens, porém, são restauradoras dessa imagem

16 SILVA, Paulo Thiago S. G. – Idade Média, idade das trevas? Uma análise sobre a historiografia
das mulheres medievais. In Labrys, Estudos Feministas, nº 1-2, julho/2002. Disponível em http://
vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/paulo1.html, acessado em 23/07/2011.
17 LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Edições 70: Lisboa, 1983,
p. 57.
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feminina. Uma diz respeito à mulher ideal, cujo pilar é a virgindade,


personificada na figura de Maria, ideal de santidade. A outra imagem é a
de Maria Madalena, pecadora convertida que demonstra que é possível
abandonar uma vida regida pelo pecado e seguir pelo caminho da salvação.

À mulher são atribuídos os maiores mistérios da relação entre a vida


e a morte, entre a capacidade de remissão e a causa da queda dos homens,
pois ela encarna tanto a figura de Eva, que significa desgraça, mas também
de vida, implícito no anagrama Eva, o qual se lê Ave, de forma que invocar
Eva é ao mesmo tempo invocar Maria, como atesta Agostinho: “Pela mulher
a morte, pela mulher a vida”. 18

Justamente o período dessa restauração da figura feminina


ocorre no decorrer do século XIII, no qual há um desenvolvimento do culto
a Maria. Esse período é reconhecido, por Jacques Le Goff, como “a bela
Idade Média”, pois é a época em que se atesta um grande desenvolvimento
urbano, contribuindo para uma renovação dos espaços e sentidos da
sociabilidade, influenciados por uma emergência do indivíduo e um novo
ideal de comportamento.

Essas novas condições sociais refletem-se na arte, mais precisamente


no estilo gótico, que intenta transmitir a luminosidade do reino celeste no
plano terreno, sugerindo uma mudança na forma de espiritualidade que,
através de grandes nomes da Igreja, como Tomás de Aquino, na promoção
do culto mariano, o qual é relacionado como uma das influências para o
desenvolvimento da poesia que dá voz às mulheres.

As cantigas, portanto, representam temáticas concernentes à


sensibilidade dos trovadores e seus contemporâneos. No que diz respeito
à presença do eu lírico feminino, todavia, cabem várias questões, tais
como que visão do universo feminino esses homens tinham ou desejariam
transmitir através dessas canções? O interessante nesse aspecto é que a
escrita literária não foge à “regra”, pois, como afirma Duby,

18 DELARUM, J. “Olhares de clérigos”.In: DUBY, G.; PERROT, M. (org). História das mulheres
no ocidete. Vol. 2: A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 39.
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essa Idade Média é resolutamente masculina. Pois todos


os relatos que chegam até mim e me informam vêm dos
homens, convencidos da superioridade do seu sexo. Só as
vozes deles chegam até mim. No entanto, eu os ouço falar
antes de tudo de seu desejo e, conseqüentemente, das
mulheres. Eles têm medo delas e, para se tranqüilizarem,
eles as desprezam.19

Essa “regra” da escrita masculina, como sabemos, encontra


subtefúrgios, quando nos deparamos com a escrita intelectual de Heloísa
que, “de discípula, se faz mestra de seu mestre” 20; a escrita mística de
Hildergard  de Bingen; a escrita autobiográfica de Christine de Pizan; a
escrita lírica de Beatriz de Dia.

Diante dessas informações e da afirmação de Duby, paira ainda


o questionamento de que universo e de que mulheres esses homens se
colocam como porta-vozes. Em que medida eles são conhecedores desse
universo e dessas mulheres para deles se apropriarem.

As informações aqui analisadas demonstram um profícuo trabalho


a ser expandido em torno das cantigas galego-portuguesas, pois elas
demonstram que a literatura medieval não é somente literatura, no sentido
que hoje ela contém. No contexto medieval ela é concebida como uma
variedade de sons e sentidos não só em torno da arte poética, mas também
em relação aos sentimentos e ações dos indivíduos a ela relacionados.

O papel do mar, por exemplo, suscita grandes possibilidades para a


interpretação, atuando como o confidente, ou como símbolo da ausência,
mas cuja função real é inserida em meio aos aspectos simbólicos, como
ocorre na cantiga de Pai Gomes Charinho.

Dialogando com o mar, aparece a mulher e suas confidentes que

19 DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Companhia das
Letras: São Paulo, 1989, p.10.
20 GILSON, Etienne. Heloísa e Abelardo. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 11.
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sugerem indagações acerca do sentido desse universo feminino apresentado


por homens. O choro, o desejo de encontrar o amado, o amor, são colocados
no canto feminino, mas será que conseguem ou querem esconder a voz
masculina que se esconde atrás dele?

Outro ponto que é possível identificar através das cantigas é que


elas transmitem uma série de sociabilidades distintas, concatenando com
a noção de uma Idade Média dinâmica, encerrando diversas possibilidades
de ações, relações e compreensões dessas realidades. Além disso, elas
submetem a experiências humanas coletivas que, todavia, são passíveis
de ser subjetivadas de maneiras totalmente diversas, revelando também
o caráter dinâmico das significações que essas experiências encerravam,
assim como das próprias cantigas que, com a possibilidade de serem
nômades proporcionam a interrelação de diferentes vivências e expressões
da vida social.
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Bibliografia

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______________. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios.


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