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1. A narrativa do livro
Resumidamente, o livro de Jó narra a experiência de sofrimento de um homem
justo e temente a Deus. Jó sucessivamente perde bens, filhos e saúde. Seus
amigos o consolam, enquanto Jó, do centro de seu sofrimento, pede a Deus
uma explicação – comportamento esperado e comum a quem está em situação
análoga. Após longos diálogos com seus amigos, estes compreendendo que Jó
sofre por ter pecado, aquele, justificando-se na base de sua conhecida retidão,
Deus responde a Jó fazendo-o olhar para sua soberania sobre o cosmo. A
narrativa termina com a vida anterior de Jó sendo-lhe devolvida.
2. A forma do livro
Parte da compreensão do livro de Jó baseia-se numa sólida compreensão de
sua forma. O livro possui uma abertura (1-2) e um fechamento narrativos (42).
No centro, estão os diálogos de Jó com seus amigos, Elifaz, Bildade e Zofar (3-
27), seguidos de um poema que manifesta a inacessibilidade da sabedoria
(28), o último discurso de Jó (29-31), a intervenção do jovem Elihu (32-37) e os
derradeiros discursos divinos (38-41). A parte central, dos diálogos e discursos
é, essencialmente, poética.
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3. O problema do livro
Não há forma de compreender o problema do livro de Jó sem compreender a
sabedoria tradicional israelita. A sabedoria tradicional postulava, em essência,
que o que sobrevêm ao ser humano é fruto de sua conduta: o que faz o bem é
retribuído com o bem, o que faz o mal, retribuído com o mal. Partindo de
pequenas experiências cotidianas, o livro dos Provérbios apresenta essa
sabedoria que, apesar de verdadeira, não é totalizante – não apresenta o todo
da experiência humana. A totalização dessa forma de pensar, e sua inversão
silogística estão na base do problema de Jó: a quem recai o mal,
necessariamente é por que fez mal. Em essência está em debate a justiça
retributiva de Deus: se ele pune aqui e agora e se todo sofrimento é fruto dessa
punição. Se assim, e só assim for, não há sofrimento do inocente: ou não é
sofrimento ou não é inocente. Essa é a base da discussão do livro, que coloca
o personagem Jó, por um lado, em contato com Deus como juiz, no céu,
retribuindo (ou não) as más ações humanas. Por outro lado, coloca Jó como
interlocutor de seus amigos: sábios, conforme a sabedoria tradicional, que
procuravam dar a Jó uma saída: a confissão de seus pecados.
A questão da justiça retributiva pode ser notada na fala de Bildade:
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Perverteria Deus o direito ou perverteria o Todo-Poderoso a justiça? 4 Se
teus filhos pecaram contra ele, também ele os lançou no poder da sua
transgressão. (Jo 8,3-4)
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Tendo o SENHOR falado estas palavras a Jó, o SENHOR disse também a
Elifaz, o temanita: A minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois
amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. 8
Tomai, pois, sete novilhos e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei
holocaustos por vós. O meu servo Jó orará por vós; porque dele aceitarei a
intercessão, para que eu não vos trate segundo a vossa loucura; porque vós
não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. (Jo 42,7-8)
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Por certo que a levaria sobre o meu ombro, atá-la-ia sobre mim como coroa;
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mostrar-lhe-ia o número dos meus passos; como príncipe me chegaria a ele.
(Jo 31,33-37)
É necessário levar em conta, como desde o início temos afirmado, que Jó não
sabe o que se passou nos céus (1-2). O leitor tem informação privilegiada em
relação a Jó – sabe daquilo que o ser humano não deveria saber. Assim, até a
intervenção divina nos caps. 38-41, Jó não obtém, do céu, resposta alguma. A
resposta divina é bastante interessante: ao invés de dizer a Jó porque
acontecera o que acontecera, Deus conduz Jó a compreender a distância entre
ambos. Deus, aquele que estabeleceu todas as coisas e Jó, mera criatura (Jó
42,2-6). Nesse ponto, o problema do sofrimento é desviado. Ainda que o leitor
saiba, Jó nunca tem a chance de encarar de frente a razão divina para seu
sofrimento. E nesse ponto a interação com o leitor é importante: o leitor
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encontra-se nos céus ou na terra? É ele sabedor das razões para o sofrimento
ou é ele também um Jó, para quem seu sofrimento não encontra justificativa?
Não estaria interditada ao leitor a explicação celestial? A ausência de resposta
divina suspende as razões do sofrimento: Jó, por mais que seja restituído,
jamais saberá porque sofreu.
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Um dos capítulos transcende essas relações, refletindo sobre o sofrimento dos animais.