Sunteți pe pagina 1din 18

25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

segunda-feira, novembroINICIO
25, 2019 QUEM SOMOS

Chilenos destemidos diante da repressão ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE  HISTÓRIA 
Últimos:
Breve re exão sobre a Bolívia a partir do golpe de Estado de 10 de novembro de 2019   

El Coyote

Brasil   Brasil   Economia   História   Política  

O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson


 01/05/2019  Mauro Cardoso  história do Brasil, Jair Bolsonaro, Lula, Partido dos Trabalhadores, Perry Anderson

0
SHARES
 Compartilhe  Tuite

tradução do artigo original, de 07/02/2019. Parte II ( nal). (Continuação da Parte I) 


elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 1/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

O Brasil
 deINICIOBolsonaro
QUEM SOMOS – parte
ECONOMIA II: Bolsonaro
GÊNERO/SEXUALIDADE  HISTÓRIA 

Em meados de 2016, a deterioração econômica e a corrupção política haviam afundado o regime


Petista. Mas no nal de 2017, o seu sucessor, o PMDB, havia caído ainda mais nas pesquisas, pelos
mesmos dois motivos. Como o PSDB fazia parte do sistema de apoio de Temer, com proeminentes
membros do partido no governo, também não conseguiu escapar do mau cheiro — Aécio, seu
presidente, também havia sido grampeado exigindo um enorme suborno da JBS e, como Temer, só
evitou um julgamento graças à proteção de um congresso lotado de aliados. Nesta paisagem
arrasada, Lula — ainda em apelando da sentença — permanecia, de longe, o político mais popular do
país, e se nada fosse feito quanto a isso, seria o mais provável vencedor na eleição presidencial que
se aproximava. Com velocidade sem precedentes — o tempo médio para julgar uma apelação foi
reduzido em três quartos para eliminar o perigo — o veredicto não apenas con rmou, mas aumentou
sua sentença em janeiro de 2018. Por dois meses, os advogados de Lula conseguiram adiar sua
prisão, e nesse suspiro, ele deu um conjunto de três longas entrevistas publicadas imediatamente
como um livro: “A verdade vencerá” [4]. O título é enganoso, sugerindo uma refutação das acusações
contra ele que são pouco mencionadas em um autorretrato memorável, muitas vezes comovente, de
um político de excepcional intuição e inteligência realista — o que explica por que seu retorno ao
poder teve tanta resistência nas elites brasileiras.

Como governante, o estilo operacional e os credos políticos de Lula eram um só. Ele foi um
sindicalista que, no início dos anos 80, aprendeu, como ele disse, a “não fazer exigências do tipo 80%
ou nada”. Dessa forma, você acaba sem nada. Ao se tornar presidente de uma enorme e complexa
sociedade em 2003, ele sempre esteve ciente de que “eu nunca poderia tratar o país desejando que
ele fosse como sou.” O que se seguiu foi “governar é negociar”. Na oposição, você pode ter
princípios. Mas uma vez que você vence as eleições, e se você não tem a maioria no parlamento, o
que nenhum presidente brasileiro desfrutou por todos esses anos, “você tem que botar seus
princípios na mesa para torná-los viáveis.” Isso signi cava lidar com os adversários e também com os
aliados, que queriam — quid pro quo — cargos políticos, acima de tudo. Todo predecessor teve que
fazer o mesmo. “Você faz um acordo com quem está lá, no Congresso. Se eles são ladrões, mas têm
votos, então ou você tem a coragem de pedir pra eles ou vai perder.” Por esse raciocínio, Dilma
deveria ter feito um acordo com Cunha. Não havia alternativa viável.

Mas negociação era uma coisa, e conciliação era outra. “Um governo de conciliação é aquele em que
você até pode fazer mais, porém não quer fazer isso. Quando você só pode fazer pouco e acaba
fazendo muito, isso é quase o começo de uma revolução — e foi o que zemos neste país.” Lula fez
essas concessões apenas quando a situação exigia. O PT tinha menos de um quinto do Congresso.
Se tivessem controle dos governos de 23 estados e a maioria na Assembleia Constituinte, como o
PMDB teve em 1988, ele teria concedido menos e realizado muito mais. Mesmo assim, “nós demos
ao povo um padrão de vida que muitas revoluções armadas nunca alcançaram — e em apenas oito
anos”. Ele terminou com os seus índices de pesquisas de opinião nos céus. Mas isso em si não foi
motivo de orgulho. “O que mais me orgulha é de ter mudado a relação do estado com a sociedade e
do governo com a sociedade. O que eu queria alcançar como presidente era que os mais pobres do
país pudessem se imaginar no meu lugar. Foi o que eu z.”


elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 2/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

É uma a rmação que impressiona. A grandeza de mente e o sentimento de Lula, assim como sua
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
agilidade, aparecem de maneira vívida em todos os registros. Já as autocríticas não. Teria ele
HISTÓRIA 

escolhido um sucessor errado? Escolheu Dilma porque era uma chefa rme e e ciente, que lhe deu
paz e tranquilidade no palácio presidencial. Ele sabia que ela era politicamente inexperiente, mas —
sabendo que era mais instruída do que ele — acreditava que ela ainda aprenderia; só mais tarde ele
percebeu que ela não gostava de política. Mas ele não estava errado por tê-la selecionado. O que
passa batido nos depoimentos é a provável suposição de que, precisamente por ser novata, Lula
poderia controlá-la melhor do que qualquer outro quadro experiente do PT. Nem, mais
signi cativamente ainda, há qualquer senso de que os métodos de aquisição de apoio mercenário
no Congresso impuseram não apenas limites sobre o que ele poderia fazer (o que ele admite), mas
também custos para seu partido, que por sua vez foi infectado por eles (o que ele não admite).
Projetado no plano da política nacional, o modelo de negociação econômica que ele trouxe de sua
origem sindical perdeu sua inocência e criou ilusões. Acordos salariais não envolvem subornos aos
patrões. E muito menos, quando o poder está em jogo, se tem garantias de que os adversários não
irão partir para o tudo ou nada.

Em uma nota nal pungente, quando Lula declarou que, se ele voltasse ao poder, faria mais — iria
além — do que havia feito antes, e seus oponentes sabiam disso, ele foi perguntado se ele achava
que um retorno era possível. Isso ocorreu cerca de um mês de começar sua sentença. Esta foi sua
resposta melancólica:

“Eu quero voltar. Isso depende se Deus me vai me dar saúde, me manter vivo; e depende do
entendimento dos membros do judiciário que vão votar, se eles vão ter cuidado para ler os registros
do caso e ver os truques sujos jogados por lá.”

Até o m, Lula acreditou que seria possível um acordo que permitisse que ele voltasse a concorrer:
foi assim que as negociações terminaram. Ele havia fatalmente subestimado seus inimigos. Eles
estavam determinados a eliminá-lo. Em Abril de 2018, um pedido nal de habeas corpus, que o teria
permitido concorrer à presidência, chegou à Suprema Corte. A constituição brasileira declara que
nenhuma condenação criminal pode ser executada até que seja de nitiva — isto é, até que todas as
instâncias de apelação tenham sido esgotadas. O comandande do exército alertou que conceder-
lhe habeas corpusameaçaria a estabilidade do país, e que era o dever institucional das forças
armadas defendê-la. Os juízes cumpriram seu dever com entusiasmo, derrubando o princípio
constitucional por uma votação de seis a cinco para barrar a candidatura de Lula.

Com a arena desimpedida, o provável candidato da presidência se tornou o candidato do PSDB,


Geraldo Alckmin, governador de longa data de São Paulo. Uma dessas guras de madeira sem
carisma, que já havia perdido contra Lula em 2006, mas estava menos comprometido com o apoio a
Temer do que com seus rivais no partido e ainda gozava de sólido apoio dos empresários. O PT cou
paralisado, incapaz de entrar no ringue, pois ainda insistia, apesar da evidente impossibilidade, que
Lula ainda era seu candidato. Na largada, um forasteiro liderava com um modesto apoio de 15%: Jair
Bolsonaro, um lobo solitário tão isolado que recebeu apenas quatro votos dos 513, quando
concorreu à vaga de Cunha depois que ele caiu. Essa marginalidade no Congresso não era, no
entanto, necessariamente uma desvantagem na disputa pela presidência. Nunca tendo pertencido a
nenhum dos principais partidos — vagando entre sete outros menores — e nem ocupando nenhum
cargo de governo, Bolsonaro não foi manchado ou culpado pela di culdade econômica ou

elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 3/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

exposições à corrupção, e cou livre para atribuir a culpa da primeira à segunda, atacando assim a
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
toda a classe política por ambas. Mas seus elogios à ditadura de 1964–85 e seus torturadores e
HISTÓRIA 

demais vitupérios em geral apareciam como desvantagens notáveis, de modo que geralmente se
supunha que, uma vez iniciada a campanha, ele seria relegado a apenas mais um dos demais.

Alckmin, em contrapartida, tinha não apenas o PSDB, mas rapidamente todo o chamado centrão, o
pântano partidário de tamanho médio do qual Lula reclamava, e que lhe deu metade de todo o
tempo de TV atribuído a propaganda partidária — que, no passado, foi um bem inestimável. Com
isso, era amplamente esperado que ele superasse Bolsonaro e outros rivais em potencial. Sete
debates na televisão, com todos os candidatos, foram agendados assim que a campanha começou. A
partir de Agosto, eles expuseram a desvantagem de Bolsonaro nessa mídia: mal preparado e pouco
à vontade, ele era ine caz. Quanto mais ele era exposto a ela, mais desidratado ele pareceria. Na
primeira semana de Setembro, no entanto, esse perigo foi repentinamente suspenso. Esfaqueado
por um homem mentalmente doente em um comício regional e levado ao hospital para uma
operação de emergência, ele passou o resto da eleição na segurança da sua cama de recuperação,
protegido não apenas dos debates ou entrevistas, mas da demolição que os diretores de Alckmin
estavam preparando nos seus comerciais de televisão — a simpatia por uma vítima que quase
perdera a vida agora impedia qualquer coisa assim tão insípida.

O PT, por sua vez, já vinha perdendo meses em manifestações fúteis de que Lula ainda seria seu
candidato, sem uma presença sequer simbólica nos primeiros debates. Foi apenas cinco dias após o
esfaqueamento de Bolsonaro que o partido acordou para a realidade e declarou um candidato
capaz de concorrer. Sua escolha foi ditada por Lula. Fernando Haddad foi durante seis anos ministro
da educação e foi amplamente considerado um sucesso, responsável por uma das maiores
conquistas do período do PT, a expansão do sistema universitário e seu acesso pelos pobres. Jovem
e gentil, ele poderia ter sido um sucessor muito melhor e mais lógico em 2010 do que Dilma. Mas
havia três pontos contra ele: ele era de São Paulo, onde pesos pesados mais velhos e poderosos do
PT, protetores de suas precedências, dominavam; ele veio da esquerda do partido; e, em sua origem,
ele era um acadêmico — formado em loso a e economia, ensinando ciência política — entre
sindicalistas que descon avam de professores.

Em 2012, Haddad foi eleito prefeito de São Paulo. Ele logo caiu em desgraça com Dilma, que se
recusou a ouvir seu apelo para elevar os preços da gasolina, em vez de in igir tarifas de ônibus mais
altas na cidade, o que desencadeou os protestos de 2013 que começaram a ruína dela e encerraram
as perspectivas dele de reeleição. Continuou sem nenhuma base signi cativa dentro do PT, cujos
dirigentes descon avam dele. Já em 2003, em um artigo profético escrito à medida que o PT assumia
o poder, ele advertiu sobre o perigo de que, em vez de arrancar o patrimonialismo profundamente
enraizado do Estado brasileiro, o partido pudesse ser engolido por ele. O Brasil não era,
contrariamente às concepções de Cardoso e outros, um cenário em que o capitalismo moderno fez
uso dos arcaísmos da antiga sociedade escravista, mas o contrário: um sistema oligárquico arcaico
que se apropria do capitalismo moderno para preservar o padrão tradicional de poder pela
saturação da autoridade pública com seus interesses privados. Em 2018, em meio ao naufrágio
patrimonial que havia tomado o PT, a perspicácia e a honestidade de Haddad se destacaram e,
sabendo que ele era limpo e imaginativo, Lula o impôs ao partido.

elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 4/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

A campanha que se seguiu foi estranhamente assimétrica. Começando tarde, Haddad estava
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
preocupado com as circunstâncias de sua nomeação. Faltando menos de um mês para o primeiro
HISTÓRIA 

turno da eleição, ele teve que estabelecer um projeto de nação próprio contra as acusações de que
ele era um mero fantoche de Lula, ao mesmo tempo em que desenhava da maneira mais e caz
possível a continuação da popularidade e prestígio de Lula. Rapidamente cou claro que ele e
Bolsonaro se enfrentariam no segundo turno, mas não houve confronto entre os dois. Haddad
percorreu o país, e dirigia-se a multidões, enquanto Bolsonaro estava em casa, twittando. Com duas
semanas restando para o primeiro turno, eles estavam nivelados nas previsões para o segundo.
Então, nos últimos dias, Bolsonaro subiu repentinamente, com uma vantagem que fechou em 46% a
29%. Com uma diferença tão grande assim, a segunda rodada já cava previsível.
O establishmentbrasileiro já fechava com o futuro vencedor. Haddad lutou bravamente, diminuindo
a distância. Mas o resultado nal não deixou dúvidas da escala do triunfo de Bolsonaro. Ganhando
por 55% a 45%, ele tomou todos os estados fora do reduto do PT no nordeste; levou em todas as
grandes cidades do país; todas as classes sociais, com exceção daquela pior, vivendo com renda
inferior a dois salários mínimos; todas as faixas etárias; e ambos os sexos — apenas na coorte entre
18 e 24 ele não conseguiu a maioria dos votos femininos. Em todo o país, a direita jubilava nas ruas.
Mas não houve grande corrida as urnas. O voto é obrigatório no Brasil, mas perto de um terço do
eleitorado — 42 milhões de votantes — optaram por car de fora, a maior proporção em vinte anos. O
número de votos inválidos foi 60% maior do que em 2014. Alguns dias antes, uma pesquisa de
opinião perguntou aos eleitores seu estado de espírito: 72% responderam “desanimados”, 74%
“tristes”, 81% “inseguros”.

Naquela última resposta estava, combinando todas as probabilidades, a chave para a limpa de
Bolsonaro. A recessão certamente foi decisiva no derretimento do apoio ao PT desde 2014, e a
corrupção, que não importava para os pobres quando seus padrões de vida estavam subindo,
importou quando eles estavam em queda. Os dois estavam diretamente conectados nas
representações televisivas noturnas de enormes esgotos de cédulas — no discurso de Lava Jato,
dinheiro roubado de hospitais, escolas e praças públicas. Mas as reações populares subjacentes
eram insegurança física e existencial. Notoriamente, a violência cotidiana — tradicional no nordeste
feudal, moderna desde a chegada do trá co de drogas no Sudeste — levando sessenta mil vidas por
ano, uma taxa de homicídio superior à do México. A polícia é responsável por 20% a 25% dessas
mortes. Menos de 10% dos assassinatos são investigados. No entanto, as prisões estão abarrotadas:
720.000 pessoas aprisionadas. Dois quintos dos presos, sob prisão provisória, aguardando
julgamentos que podem levar dois, três ou mais anos. Quase metade da população do país é branca;
70% dos assassinados e 70% dos presos não são. Com trá co vieram gangues, entre as mais
poderosas do mundo. Em 2006, a maior delas, Primeiro Comando da Capital (PCC), fechou parte de
São Paulo em uma revolta, dirigida a partir das celas de prisões de seus líderes, contra a polícia. Mas
com a disseminação do trá co de drogas, o crime de rua que é artesanal e não organizado também
proliferou. Bem poucas famílias de classe média ainda não tiveram prolemas com isso. Mas eles
ainda estão melhor protegidos: onde os assaltos com armas e facas são mais comuns, são pobres
roubando pobres.


elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 5/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

Nesta selva, a polícia é o mais implacável dos predadores: não há crime grande sem que ela cumpra
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
sua parte. Divididos em ramos “militar” e “civil” distintos, numa proporção de cerca de três para um,
HISTÓRIA 

elas são forças estaduais, não federais. Juntamente com elas, as “milícias” informais são compostas
por ex-policiais que agem como guardas de segurança ou se empenham no trá co de drogas. O
pequeno corpo de polícia federal — um décimo do tamanho da polícia militar à disposição dos
governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro — é reservado em grande parte para o controle de
fronteiras e o crime do colarinho branco. Promoções dependem das taxas de encarceramento,
assistidas por leis que não mais distinguem a venda e o consumo de drogas, nem exigem
testemunhas para apreensões em agrante no local, oferecendo um caminho rápido para a
criminalização da pobreza, como jovens e negros — pardo (‘mestiço’) e preto (‘negro’) com pouca
distinção — são apanhados e destinados às prisões, onde há o dobro de prisioneiros do que vagas.
Como a miscigenação era historicamente tão difundida, impossibilitando a linha divisória ao estilo
“uma única gota”, o padrão do racismo do Brasil difere do americano, mas que não é menos brutal.
Combinado com uma urbanização muito rápida, impulsionada tanto pela expulsão dos camponeses
da terra como pela atração das luzes da cidade, criando ambientes de enorme desigualdade com
pouca ou nenhuma estrutura de recepção, seu efeito foi deslocar o con ito social para a violência
desorganizada. Para os jovens negros, o crime pode ser uma tentativa desesperada de
reconhecimento, uma arma, um passaporte para a dignidade: armas de fogo, alugadas por algumas
horas e apontadas para a cabeça de um motorista ou transeunte torna-se um meio de forçar as
pessoas a olhar , ao invés de evitar, aqueles em geral tratados como invisíveis. Sucessivos
presidentes, dispensados da responsabilidade de segurança pública, uma vez que esta continua a
ser atribuição dos governadores, tiveram pouco incentivo para mudar o que constitui um bom
pretexto para inação. No máximo, podiam declarar um estado de emergência e enviar tropas para
ocupar as favelas, como um temporário exercício de relações públicas, deixando muito pouco rastro.

E na direção das classes populares, sendo esta a intersecção e a combinação de um ambiente de


violência cotidiana, tem sido ventilada uma desintegração das normas de vida costumeira, familiar e
sexual, não apenas pelo trá co de drogas, mas pela mídia — a televisão, seguindo os modelos norte-
americanos, jogando as antigas restrições ao sabor dos ventos. As mulheres são as principais
vítimas. O estupro é tão comum quanto o assassinato no Brasil: mais de sessenta mil por ano, cerca
de 175 ao dia — e o número registrado duplicou nos últimos cinco anos. Em meio a tudo isso, as
ansiedades econômicas são as mais intensas e permanentes — inseguranças nos níveis mais
fundamentais, como por comida e abrigo. Em tais condições, um desejo desesperado por ordem tem
sido cada vez mais atendido pela religião pentecostal, suas Igrejas oferecendo uma estrutura
ontológica para dar sentido às vidas no limite da existência. Sua marca registrada é uma teologia não
de libertação, mas de “prosperidade” como meio de salvação terrena. Com muito trabalho,
autodisciplina, comportamento adequado e apoio comunitário, os crentes podem melhorar a si
mesmos — e pagar dízimos para a organização pastoral que os ajuda. Normalmente, as Igrejas
neoprotestantes também são corporações nanceiras obscuras, que fazem milionários os seus
principais ministros. Em 2014, os rebanhos evangélicos no Brasil somavam cerca de oitenta milhões.
As empreitadas pentecostais já eram um poder nessa terra; um quinto dos deputados no Congresso
achou vantajoso declarar uma a liação a eles. Quatro anos mais tarde, no entanto, as condições em
que seguiam curso foram alteradas. O sucesso da teologia da prosperidade coincidira com os anos
do boom da presidência de Lula, dando credibilidade ao seu otimismo de elevação material. Em 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 6/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

2018, a promessa de melhoria constante desapareceu. Para muitos, tudo agora parecia estar
desmoronando.
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE  HISTÓRIA 

Em nenhum outro lugar essas tensões foram mais intensas do que na segunda cidade do Brasil. O
Rio, com metade da população de São Paulo, tem mais que o dobro da taxa de homicídios. Em
grande parte, isso se deve ao grau incomparável de controle em toda a cidade de São Paulo — uma
cidade construída em um planalto — exercida pela gangue paulista dominante, o PCC. Lá, tem-se a
posição de desencorajar pequenos ataques — que complicam o manejo ordenado do trá co de
drogas de alto valor — com mais armas pesadas à sua disposição. A topogra a do Rio — uma faixa
estreita e sinuosa de terras costeiras segmentadas por montanhas cobertas de orestas que se
projetam para praias, favelas brotando em seus interstícios, muitas vezes coladas com bairros ricos
— di culta esse poder centralizado. Ali, gangues rivais empreendem guerras territoriais ferrenhas,
sem se importar com as baixas de meros espectadores, e em meio a níveis mais altos de pobreza,
um comércio de armas mais denso multiplica o caos aleatório dos assaltos individuais. No início de
2018, para impedir a violência, Temer enviou o exército — e lá ele permaneceu, como no passado,
sem nenhum efeito duradouro. Nesse ambiente, o PT nunca conseguiu criar raiz, ainda menos o
PSDB ou qualquer outra con guração partidária estável. Todos os três últimos governadores do
estado estão presos ou sob custódia por corrupção. O que tomou in uência política, com um
controle mais extenso do que em qualquer outra cidade grande, foram as Igrejas evangélicas.
Cunha, por muito tempo o político dominante do Rio, era um autodenominado pastor ligado à
Assembleia de Deus, a maior denominação pentecostal. Seu atual prefeito é um bispo da rival Igreja
Universal do Reino de Deus e sobrinho de seu chefão, Edir Macedo, a paródia brasileira (muito mais
poderosa) do Reverendo Moon.

Bolsonaro é um produto desta placa de petri. Ele nasceu em 1955 no interior de São Paulo, mas sua
carreira se desenrolou inteiramente no Rio, onde aos 18 anos, na época da ditadura, ele entrou em
uma academia militar próxima à cidade, treinando como paraquedista. Alcançando, dentro de dez
anos, o posto de capitão, em 1986 publicou um artigo queixando-se de baixos salários no exército e
foi preso por indisciplina. Uma vez solto, ele planejou uma série de pequenas explosões em vários
quartéis para instigar descontentamento material nas leiras. Provavelmente, porque ele gozou de
alguma proteção de o ciais superiores em solidariedade com seus objetivos, se não a seus métodos,
uma investigação entendeu que as evidências contra ele — que incluíam mapas desenhados com sua
letra — eram inconclusivas. Mas ele foi forçado a se aposentar com apenas 33 anos. Cinco meses
depois ele foi eleito vereador no Rio de Janeiro. Dentro de outros dois anos, ele saltou para o
Congresso com os votos da Vila Militar, uma área no oeste da cidade construída para soldados e
suas famílias, contendo a maior concentração de tropas na América Latina, e da zona ao redor da
academia militar ao sul da cidade onde ele tinha sido cadete.

Em Brasília, Bolsonaro estaria logo pedindo um regime de exceção e o fechamento temporário do


Congresso, e no ano seguinte — isso foi em 1994 — declarou que preferiria “viver em um regime
militar do que morrer nessa democracia”. Nas duas décadas seguintes, sua carreira parlamentar
consistiu em grande parte em discursos exaltando a ditadura militar e as forças armadas; pedindo a
pena de morte, uma redução da maioridade penal, acesso mais fácil a armas de fogo; e a atacar
esquerdistas, homossexuais e outros “inimigos da sociedade”. Ele retornou seis vezes, sua base
eleitoral nos quarteis e seus distritos mantinha-se praticamente no mesmo nível — cerca de 100.000 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 7/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

votos — até 2014, quando ela subitamente quadruplicou. O salto, pouco notado na época, foi mais do
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
que um efeito geral da crise econômica, embora claramente levantado por ela. A antipatia pelo PT —
HISTÓRIA 

antipetismo — era uma forte in uência na cultura política brasileira como um contraponto da classe
média à ascensão do PT, intensi cada quando a mídia (sobretudo a Veja, a principal revista de
notícias do país) instigava indignação pela corrupção para impulsionar a campanha do PSDB para a
conquista da presidência. Mas ninguém poderia competir com Bolsonaro pela virulência nessa
frente. Além disso, aprendeu algo com a revolta urbana de 2013 que o PSDB não entendeu. Ali,
jovens ativistas de uma nova direita em São Paulo — muito mais à frente que seus pares mais velhos
ou mesmo da classe política em geral — haviam sido pioneiros no uso das mídias sociais para que as
mobilizações se convertessem em vastas manifestações contra o governo. Eles eram neoliberais
radicais, o que Bolsonaro não era, e havia pouco contato entre eles. Mas ele pôde ver o que haviam
conseguido e também estabelecer sua própria base de operações pessoal no Rio antes de qualquer
concorrente. No nal de 2017, ele já estava muito à frente do resto, com sete milhões de seguidores
no Facebook, número que era o dobro do principal jornal do país.

O sucesso da imagem que ele projetou nesse meio foi um re exo não só da violência de seus
pronunciamentos. A impressão de Bolsonaro dada pela cobertura da imprensa no exterior, de um
fanatismo feroz ininterrupto, é enganosa. Sua personalidade em público é mais ambígua que isso:
grosseira e violenta, certamente, mas com um lado jocoso e brincalhão, capaz de um bom humor
popular, às vezes até autodepreciativo, distante daquele olhar carrancudo de Trump, com quem
agora é muitas vezes comparado. Seu passado era menos penoso do que o de Lula — seu pai, um
dentista sem a devida licença, exercia seu ofício de uma pequena cidade a outra — mas era bastante
plebeia pelos padrões da elite brasileira. Embora ele esteja agora bem de vida (é dono de cinco
propriedades), um toque de homem comum vem naturalmente. Seu carisma ui especialmente
entre os jovens, tanto entre os populares quanto nos mais instruídos.

Casado três vezes, Bolsonaro tem quatro lhos com suas duas primeiras esposas e uma lha (“uma
fraquejada”, na piada dele) com sua terceira, Michelle, voluntária de uma dissidência da Assembleia
de Deus, cujo líder televangelista, o terceiro pastor mais rico do Brasil (fortuna estimada em US$ 150
milhões), celebrou o matrimônio do casal. Depois que ele foi investigado pela polícia federal, ela
entrou para uma outra, “Igreja Batista Atitude”, perto de sua casa. Apesar da origem católica,
Bolsonaro garantiu as melhores credenciais evangélicas, viajando com um pastor para ser batizado
em Israel. A família é sua fortaleza política. Ao contrário da família Trump, os três lhos mais velhos
de Bolsonaro zeram carreiras eleitorais bem-sucedidas: um é agora deputado na Assembleia do
Rio; outro, em São Paulo, o deputado mais votado da história brasileira; o terceiro é vereador no Rio.
Eles estão frequentemente ao redor dele, como uma mistura de assessores e guarda-costas,
enquanto Michelle é sua guardiã do mundo exterior.

Embora fosse um solitário de poucos amigos no Congresso, Bolsonaro compreendeu a necessidade


de ter aliados para alcançar a presidência e mostrou que tinha as habilidades para adquiri-los. Para
ser seu companheiro de chapa, ele escolheu um general de cinco estrelas, Hamilton Mourão, que
acabara de se aposentar depois de ter se exposto demais: atacara abertamente o governo de Dilma;
declarou que, se o Judiciário não conseguisse restaurar a ordem no Brasil, os militares deveriam
intervir para fazê-lo; e fez a orar a ideia de um “autogolpe” por um presidente em exercício, se isso
for necessário. (Em outro comentário ele observou que o país precisava melhorar seu caldo, já que 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 8/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

os índios eram indolentes, os negros eram malandros e os portugueses eram apegados a


 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
privilégios.) Considerando que a base política primária de Bolsonaro sempre foi a militar, a escolha
HISTÓRIA 

de Mourão foi lógica e bem recebida no exército. Mas ele também precisava tranquilizar os
empresários, descon ados dele não apenas como um curinga, mas como um congressista com um
registro consistente de votação “estatista”, um oponente das privatizações e relutante de
investimentos estrangeiros. Assim, com um sorriso de franqueza envolvente, ele se confessou
ignorante da economia, embora capaz de aprender com aqueles que conheciam melhor, e
encontrou em um economista seu futuro mentor.

Paulo Guedes foi treinado em Chicago, ensinou no Chile na época de Pinochet e retornou ao Rio
como um nancista de sucesso. Ele não era bem visto por seus colegas economistas e nunca teve
muito trabalho acadêmico no Brasil, mas havia fundado o maior banco privado de investimentos do
país, o BTG Pactual, e fez fortuna com isso, partindo para outros empreendimentos bem antes que
fosse pego em investigações da Lava Jato. Um neoliberal puro-sangue, seus principais remédios para
os males econômicos do Brasil são a privatização de todas as empresas estatais e bens para pagar a
dívida nacional e a desregulamentação de todas as transações à vista. Com promessas como essas —
mesmo que alguns estivessem céticos de que elas poderiam ser facilmente implementadas — o
Capital tinha pouco a reclamar. Com os mercados nanceiros enquadrados; a segurança e a
economia atendidas: só faltava uma resposta à corrupção. A caminho da vitória após o primeiro
turno da eleição, Bolsonaro despachou Guedes para trazer Moro a bordo. Ele precisou de pouca
persuasão: dentro de alguns dias do segundo turno, Bolsonaro anunciou que Moro aceitara seu
convite para se tornar ministro da Justiça do novo governo. Os magistrados da Mani Pulite, com a
intenção de limpar o sistema político italiano, acabaram com os partidos dominantes da Primeira
República e caram chocados ao descobrir que haviam instaurado Berlusconi. No Brasil, o juiz
estrela da Lava Jato, depois de ter conseguido o mesmo, cou feliz em se juntar a uma infâmia, em
várias medidas, análoga.

Iniciado em Janeiro, o novo governo marca uma ruptura mais radical com a era do PT, além do que
jamais imaginaram os responsáveis pela queda de Dilma, com seus próprios partidos severamente
impopulares nas pesquisas. Um elemento central dessa composição é o retorno das forças armadas
à frente da arena política, trinta anos após o m da ditadura militar. Nenhum ajuste institucional foi
necessário. Na década de 1980, a democracia brasileira não foi arrancada das mãos dos generais
pela revolta popular, tendo a soberania parlamentar sido devolvida pelos próprios generais, quando
estes consideraram cumprida sua missão: erradicar qualquer ameaça à ordem social. Não houve
acerto de contas com os conspiradores e torturadores de 1964–85. Não somente sua imunidade de
qualquer acusação ou absolvição por lei de qualquer coisa que zeram foi assegurada, como
também a derrubada da Segunda República foi sancionada constitucionalmente com a legalização
de seus governantes como presidentes regulares do Brasil e a aceitação da legislação introduzida
por eles como continuidade jurídica normal com o passado. Em todo os casos, as tiranias sul-
americanas das décadas de 1960 e 1970 anistiaram os crimes dos militares com a condição de se
retirarem para os quartéis. Em todos os outros países, essas anistias foram parciais ou
completamente anuladas quando consolidada a democracia. Somente no Brasil não foi assim. Em
todos os outros países, entre um a cinco anos após a redemocratização, uma Comissão foi criada 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 9/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

para examinar o passado. No Brasil, levou 23 anos para uma ser aprovada na Câmara de Deputados
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
e nenhuma ação foi executada contra os criminosos nela identi cados. De fato, em 2010, a Suprema
HISTÓRIA 

Corte declarou que a lei de anistia nada mais é do que um “fundamento da democracia brasileira”.
Oito anos depois, em um discurso comemorativo do trigésimo aniversário da Constituição
promulgada após a saída dos generais, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias To oli — ex-
o ce boy jurídico do PT e provavelmente a gura mais desprezível de todo o atual cenário político —
abençoou formalmente sua tomada do poder, dizendo para seu público: “Hoje não me re ro nem
mais a golpe nem a revolução. Me re ro a movimento de 1964”.

O exército se intrometeu eleitoralmente já no início de 2018. Em abril, o general Eduardo Villas Boas
advertiu contra qualquer concessão de habeas corpus a Lula, em nome, como explicou depois, do
valor mais estimado pelas forças armadas, a estabilidade do país. Com Bolsonaro seguramente
eleito, Villas Boas saudou a vitória do novo presidente como uma bem-vinda liberação de energia
nacional e, em janeiro, o agradeceu pela “libertação das algemas ideológicas que sequestram o livre
pensamento” no Brasil. Discutir 1964 hoje seria ridículo, segundo ele, e a Comissão da Verdade, um
desserviço ao país. Questões de segurança pública também eram questões de segurança nacional.
Villas Boas participou de uma das intervenções militares periódicas para restaurar a ordem nas
favelas do Rio e viu quão inútil que era a incompetência dos civis. Nisso se assemelhavam à
intervenção militar brasileira no Haiti, que havia sido muito curta, segundo Villas Boas, o caos
retornou assim que as tropas partiram. Bolsonaro não perdeu essa lição. Sua primeira designação-
chave foi a do General Augusto Heleno, comandante das forças armadas que havia sido enviado ao
Haiti — para sua vergonha, durante o governo de Lula, para agradar a Washington — para assegurar a
expulsão de Aristide do poder. Heleno foi nomeado chefe de “segurança institucional” — uma espécie
de superchefe de gabinete — no Palácio Presidencial, no qual outro general, Santa Cruz, também
veterano do Haiti, tornou-se responsável pelas relações com o Congresso, ladeado por mais dois
militares como Ministro da Defesa e Ministro da Ciência e Tecnologia. Heleno, o mais poderoso entre
eles, não ocultou suas convicções, expressas na frase “direitos humanos são para humanos direitos”
— para ninguém mais. Seu primeiro pronunciamento no governo foi comparar armas com carros,
como algo que todo cidadão tem o direito de ter.

A ala econômica do governo, que se preocupa muito mais com os mercados nanceiros, é mais
frágil. Guedes reuniu ao seu redor uma equipe formada majoritariamente por neoliberais radicais de
ideias a ns, recebidos com entusiasmo pelo empresariado e capazes de construir em cima da
desregulamentação já deixada por Temer. O ponto principal de sua agenda é o desmantelamento do
sistema de previdência atual. Indefensável em qualquer medida de justiça social, absorvendo um
terço das receitas scais, mais da metade dos pagamentos totais da previdência — que começam
com uma idade média de 55 anos para homens — é para a quinta parte mais rica da população
(juízes, militares e burocratas proeminentes em suas leiras), e menos de 3% é reservada para
aqueles que se encontram na pior situação econômica. Naturalmente, no entanto, desigualdade não
é o motivador dos tradicionais esquemas de reformas previdenciárias, cuja prioridade no Brasil,
como em qualquer outro lugar, não é repará-la, mas reduzir o custo das aposentadorias no
orçamento, enquanto outros cortes cam na espera. As privatizações se anunciam como a forma de
pagar a dívida. Uma centena de empresas estatais de diferentes tipos — principalmente as de
infraestrutura: autoestradas, portos, aeroportos — estão programadas para serem descartadas ou
fechadas, naturalmente, também em nome da e ciência e de um melhor serviço, sob a direção de

elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 10/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

um engenheiro militar, outro veterano do Haiti. Como no governo de FHC, muitas das mais ricas
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
receitas irão, sem dúvida, para os investidores estrangeiros. A reação eufórica do Financial Times
HISTÓRIA 

frente ao pacote econômico que se avizinha é compreensível. Por que se preocupar com alguns
poucos erros políticos? “López Obrador é uma ameaça maior à democracia liberal do que
Bolsonaro”, escreveu seu editor latino-americano.

Essa revisão da economia altamente austera exige, é claro, sua passagem pelo Congresso. Ali, muitos
comentaristas brasileiros esperam resistência, devido à dependência de tantos membros do
Congresso da provisão de fundo federais para seus estados, que a austeridade cortaria. A
privatização também é vista com frequência como em contradição com o nacionalismo estatista dos
militares brasileiros — tendo o próprio Bolsonaro, como deputado, se oposto veementemente a ela
— o que na prática a atenuaria. Em ambos os casos, este ceticismo é justi cável. Sob as presidências
do PT, o legislativo foi uma barreira fundamental para os desejos do executivo, limitando o que
podia ser feito e comprometendo aquilo que era feito, com notórios resultados. Porém, esse foi o
produto previsível entre um partido radical que controla um ramo do sistema de governo e um
grupo de partidos conservadores que controlam outro. Quando não havia tamanha tensão entre o
presidente e o Congresso, como na administração de centro-direita de FHC, o executivo raramente
tinha frustrações — passando, sem problemas, as privatizações, por exemplo. O tipo de
neoliberalismo de Bolsonaro se anuncia signi cativamente mais drástico, mas a demanda popular
de mudança é muito maior e a oposição a ele no Congresso é notadamente mais fraca.

Lá, seu Partido Social Liberal (PSL) de fachada, “remendado” semanas antes das eleições, será a
maior força na Câmara dos Deputados, tão logo seja recheado, e logo será, com deserções da
imensa maioria no pântano dos grupos venais menores. O outrora poderoso PSDB e PMDB foram
reduzidos à sombra do que já foram, sua representação no Congresso caiu pela metade. O debacle
do PSDB e seu patriarca foi especialmente notável. Depois de falhar em persuadir um apresentador
de TV vazio a concorrer à presidência, ver o candidato de seu partido receber menos de 5% dos
votos nacionais e se recusar a apoiar Haddad contra Bolsonaro na segunda rodada, FHC terminou
com o PSDB em São Paulo — e, sem dúvida, em breve, nacionalmente — nas mãos de João Doria,
outro apresentador de TV empresário, astro de um programa baseado em O aprendiz, de Trump.
Essa gura reptiliana assumiu o rótulo “Bolsodoria”, geminando-se descaradamente com o vencedor
da presidência. Justiça poética. No Congresso, o caminhão da política deve correr depressa, com os
deputados subindo a bordo por medo ou ganância para dar ao Executivo, pelo menos para começar,
as maiorias de que precisa. Quanto à resistência militar à privatização ou aquisições estrangeiras, o
primeiro dos generais do Brasil a governar o país depois que eles tomaram o poder em 1964,
Castelo Branco, não era inimigo de nenhuma delas. Seu ministro do Planejamento, mais tarde
embaixador em Londres, foi o célebre campeão do livre mercado e do capital estrangeiro, Roberto
Campos. Bolsonaro acaba de nomear o neto de Campos como chefe do Banco Central. Acreditar que
a venda de bens públicos vai separar Bolsonaro e seus pretorianos poderia ser uma ilusão.

Um risco mais sério para o novo regime está no negócio inacabado da Lava Jato. Como o antigo, o
novo Congresso está repleto de corrompidos e corruptores, geradores de fortunas malogradas,
aqueles que passaram vidas inteiras em corrupção assídua — na verdade, tornou-se um santuário
para aqueles que já estão na mira dos policiais, que se elegeram deputados apenas para ganhar
imunidade de processo. O mais proeminente entre eles é Aécio, com várias acusações se 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 11/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

acumulando contra ele. Tampouco Bolsonaro e sua família estão limpos, os investigadores que, após
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
a eleição, não só descobriram transações suspeitas nas contas de seu lho Flávio, mas, ainda mais
HISTÓRIA 

explosivamente, ligam-se a um ex-capitão da polícia militar no Rio de Janeiro, duas vezes relacionado
a acusações de assassinatos no estilo das milícias, que podem estar implicados no assassinato de
Marielle Franco, a vereadora e ativista negra cuja morte no ano passado causou protestos
internacionais. E poderia Moro, como ministro da justiça, passar uma borracha sobre os delitos aos
quais, como magistrado, devia sua reputação de impiedoso? Ele já explicou que as 10 Medidas
contra a Corrupção, sobre a que ele insistiu por anos que tinham que ser aprovadas para que o país
casse limpo, precisavam ser “repensadas”: nem todas elas são mais tão importantes. Ainda assim,
desanuviar de uma vez toda a dinâmica da Lava Jato destruiria sua posição. Se o Congresso tentasse
aprovar uma anistia geral para casos de corrupção, um movimento discutido sob Temer, o palco
seria preparado para um con ito de poderes total — como também seria se, ao contrário, Moro
pressionasse a Suprema Corte para dar imunidade a muitos deputados. É nessa frente que o
potencial de combustão é mais real.

Mantendo estes diversos segmentos do regime juntos está o círculo composto pelo próprio
Bolsonaro, seus lhos e sua entourage imediata. Sua chegada ao ápice do estado marca uma
alteração signi cativa na geogra a do poder no Brasil. Depois que o presidente Getúlio Vargas se
suicidou no Palácio do Catete em 1954, a capital do país por cerca de duzentos anos perdeu sua
posição de centro da política nacional. A construção de Brasília começou em 1956 e foi concluída em
1960. A partir de então, os presidentes vieram de São Paulo (Jânio, Cardoso, Lula), Rio Grande do Sul
(Jango), Minas (Itamar, Dilma) ou do Nordeste (Sarney, Collor). Demovido politicamente, o Rio
declinou — em alguns pontos, diria, apodreceu — economicamente, socialmente e sicamente. Nem o
PT nem o PSDB conseguiram uma boa presença na cidade, por muito tempo uma terra ideológica de
ninguém, com pouca participação na política nacional. Isso começou a mudar com a ascensão de
Cunha ao leme do Congresso, uma gura carioca arquetípica com um bando de deputados
monetarizados à sua disposição. O novo regime consuma a mudança. Depois de seis décadas em
que o Rio foi marginal, o poder retornou. Todos os três cargos mais importantes na administração
são ocupados por seus produtos — Bolsonaro na presidência, Guedes no Ministério da Fazenda e o
trambiqueiro de marca maior Rodrigo Maia na antiga cadeira de Cunha como presidente da Câmara.
No gabinete, que pela primeira vez na história da república não contém um único ministro do norte
ou do nordeste, todos provenientes de apenas seis dos 26 estados brasileiros, o maior contingente
— um quarto — são nativos do Rio. É uma mudança de sinal.

Como, então, Bolsonaro pode ser classi cado? Frequentemente ouvida à esquerda no Brasil e na
imprensa liberal na Europa, é a opinião de que sua ascensão representa uma versão contemporânea
do fascismo. O mesmo, é claro, é uma representação padrão de Trump nos círculos liberais e
esquerdistas da América e do Atlântico Norte em geral, embora seja geralmente acompanhado de
esclarecimentos — ‘muito parecido’, ‘reminiscente de’, ‘próximo a’ — deixando claro que isso é pouco
mais do que preguiçosa invectiva [5]. O rótulo não é mais plausível no Brasil. O Fascismo foi uma
reação ao perigo de revolução social em tempos de ruptura e depressão econômica. Ele se baseava
em quadros dedicados, movimentos de massa organizados e possuídos de uma ideologia articulada.
O Brasil teve sua versão na década de 1930, os Integralistas, que em seu auge somavam mais de um 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 12/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

milhão de membros, com um líder articulado, Plínio Salgado, uma extensa imprensa, programa de
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
publicações e um conjunto de organizações culturais, e que chegou perto de tomar o poder em
HISTÓRIA 

1938, após o fracasso de uma insurreição comunista em 1935. Nada que seja remotamente
comparável em termos de perigo para a ordem estabelecida da esquerda, ou de uma força de massa
disciplinada à direita, que existe hoje no Brasil. Em 1964, ainda havia um grande partido comunista,
com in uência dentro das forças armadas, um movimento sindical militante e crescente agitação no
campo, sob um presidente fraco que defendia reformas radicais. Isso foi o su ciente para provocar
não o fascismo, mas uma ditadura militar convencional. Em 2018, o antigo partido comunista já
havia desaparecido há muito tempo, sindicatos combativos eram um número reduzido, os pobres
passivos e dispersos, o PT um partido levemente reformista, há anos em bons termos com grandes
empresas. Cuspindo fogo, Bolsonaro pôde vencer uma eleição. Mas é ín ma alguma infraestrutura
organizada em torno a ele e não se faz necessária nenhuma repressão de massas, já que não há
oposição de massas a ele.

Bolsonaro pode ser melhor categorizado como populista? O termo agora sofre de tal in ação, como
o espantalho para todos os ns da mídia bem pensante, que sua utilidade declinou. Sem dúvida, sua
postura como valente inimigo do establishment e seu estilo como um homem rude do povo,
pertence ao repertório do que geralmente é visto como populismo. Tomando como modelo o
presidente dos EUA, ele supera Trump ao se enrolar na bandeira nacional e cuspir uma corrente no
Twitter — 70% a mais de tweets do que o segundo em sua primeira semana no cargo. Mas na galeria
dos populistas de direita de hoje, Bolsonaro não se encaixa no esquema padrão em pelo menos dois
aspectos. A imigração não é um problema no Brasil, onde apenas 600.000 de uma população de 204
milhões são nascidos no exterior — 0,3%, comparado com 14% nos EUA e no Reino Unido, ou 15% na
Alemanha. O racismo, é claro, é uma questão à qual tanto Bolsonaro como Trump fez apelos
encobertos, e cuja violência nas práticas da polícia ele encorajará. Mas, ao contrário de Trump, ele
obteve um grande apoio eleitoral na comunidade negra e parda, e isto não tem nenhum risco de
parecer um equivalente à retórica anti-imigrantista do Norte do Atlântico. Um terço de seu partido
no parlamento, na verdade, não é branco — uma porcentagem mais alta do que no muito alardeado
contingente progressista democrata no 116º Congresso dos EUA.

Uma segunda diferença signi cativa está no caráter do nacionalismo de Bolsonaro. O Brasil não é
um país a igido ou ameaçado pela perda de soberania como a UE ou pelo declínio imperial como os
EUA ou o Reino Unido, os dois impulsionadores do populismo de direita no Norte. Sua patriótica
forma de bater no peito é mais super cial. Hoje ele não é inimigo do capital estrangeiro. Seu
nacionalismo, em expressão hiperbólica, toma essencialmente a forma virulenta de anti-socialismo,
anti-feminismo e homofobia, excrescências estranhas para a alma brasileira. Mas não tem nada
contra o livre mercado. Na linguagem local, oferece o paradoxo de um populismo entreguista, um
populismo “indiferente” — pelo menos em princípio, perfeitamente disposto a entregar ativos
nacionais a bancos e corporações globais.

A comparação com Trump, a analogia mais próxima de Bolsonaro como político, indica um conjunto
diferente de pontos fortes e fracos. Embora ele tenha um background muito mais humilde,
Bolsonaro é menos analfabeto. A educação em uma academia militar se ocupou disso: os livros não
são um completo mistério para ele. Consciente de algumas de suas limitações, ele não possui o grau
de egomania de Trump. A con ança arrogante de Trump em si mesmo não vem apenas de um 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 13/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

histórico familiar milionário, mas de uma longa carreira de sucesso na especulação imobiliária e no
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
show business. Bolsonaro, que nunca dirigiu nada em sua vida, não tem essa formação existencial.
HISTÓRIA 

Ele é muito menos seguro. Dado, como Trump, a todo tipo de explosão intempestiva, ao contrário de
Trump, ele recuará rapidamente se as reações se tornarem muito negativas. As primeiras semanas
de sua administração foram uma cacofonia de declarações con itantes e retratações ou negações
delas.

Não é apenas pelo caráter, mas também pelas circunstâncias, que Bolsonaro é uma gura mais
frágil. Tanto ele quanto Trump foram catapultados para o poder praticamente da noite para o dia,
contra todas as expectativas. Trump assumiu a presidência com uma porcentagem muito menor dos
votos — 46% — do que a maioria de 55% de Bolsonaro. Mas seus defensores são fervorosos e
solidamente ideológicos, ao passo que o apoio de Bolsonaro pode ser até mais amplo, mas é mais
super cial, como mostram as pesquisas pós-eleitorais que indicam a rejeição de muitas de suas
políticas propostas. Trump, além disso, chegou ao poder ao apoderar-se de um dos dois grandes
partidos do país, enquanto Bolsonaro conquistou o poder efetivamente pelo que é, sem nenhum
apoio institucional para a eleição. Uma vez eleito, por outro lado, ele não irá, porque não pode,
governar sem levar em conta as instituições em sua volta, como Trump tentou fazer. Isso não
signi ca que ele será menos brutal, já que no Brasil muitas dessas instituições são mais autoritárias
do que nos EUA. Os povos indígenas da Amazônia são vítimas certas: ao contrário dos negros, são
quantidade insigni cante nas urnas, e à medida que os pecuaristas varrem seu habitat (com
consequências de longo prazo que não serão apaziguadas pelos lúgubres gestos do norte global em
direção à mudança climática), eles serão os primeiros a sofrer. Da mesma forma, é fácil imaginar —
especialmente se a economia não se recuperar e ele precisar desviar o foco disso — Bolsonaro
reprimindo violentamente os protestos estudantis; acurralando ativistas do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) ou seu equivalente urbano, o MTST, e banindo suas organizações;
reprimindo greves, quando necessário. Mas, tirando a oresta, essa repressão provavelmente será
no varejo, não no atacado. Fazer mais, no momento, seria um excesso comparado ao que é
necessário.

E o que será do PT? Longe de orescer, mas até agora sobrevivendo. Com 10% dos votos e 11% das
cadeiras na Câmara dos Deputados, evitou a derrocada do PSDB e do PMDB. Com Lula na cadeia, o
que será mais provável de ocorrer? Aqui as opiniões quali cadas se dividem. Para Singer, a realidade
central dos anos do PT era, como os títulos de seus dois livros deixam claro, o lulismo — a pessoa
ofuscando o partido. Para o maior estudioso americano do Brasil contemporâneo, David Samuels, é
o inverso: o fenômeno mais profundo e duradouro foi o petismo — o partido e não a pessoa. Lula,
em sua opinião, não era um líder carismático como Vargas, nem como seus herdeiros do Rio Grande
do Sul, João Goulart ou Leonel Brizola, políticos sem raízes reais em um partido. Mas nem por isso,
diferentemente dessas guras, ele foi um populista. Financeiramente ortodoxo, respeitoso com as
instituições democráticas, ele não criou um sistema político em torno de si, e nem mesmo deu lugar
à retórica maniqueísta in amatória de “eles” e “nós”. Na leitura de Samuels, o lulismo em si nunca foi
mais do que um “leve apego psicológico”, em comparação com a força organizacional do PT e a
sólida implantação na sociedade civil. Singer errou tanto em exagerar a importância de Lula quanto
em atribuir uma perspectiva geralmente conservadora aos pobres, compensada por um
investimento especial nele. Em 2014, Samuels e seu colega brasileiro Cesar Zucco escreveram:

elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 14/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

“Olhando para a nossa bola de cristal, vemos o PT como pilar do sistema partidário do Brasil. Sem
 INICIO
ele, a governabilidade será difícil.” [6]
QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE  HISTÓRIA 

As previsões de Singer envelheceram melhor. Os eventos mostraram que seu senso do pensamento
dos despossuídos, seu medo da desordem e ansioso desejo por estabilidade, eram mais acurados.
Como por clarividência, muitas páginas do seu ‘Os Sentidos do lulismo’ (2012), observando os
precedentes históricos de Collor e Jânio Quadros, se pareceram com um cenário do triunfo de
Bolsonaro nas zonas populares do Brasil seis anos depois. O que isso signi cou para as relações
entre o PT e seu líder desde então? Na véspera de sua prisão, um entrevistador comentou com Lula:
“Há quem diga que o problema no Brasil é que ele nunca conheceu uma guerra, uma ruptura”. Sua
resposta foi: “Eu concordo. É engraçado o jeito que toda vez que o Brasil esteve à beira de uma
ruptura, houve um acordo. Um acordo feito no andar de cima. Quem está por cima nunca quer sair.”
A resposta é reveladora: o que ela exclui é a possibilidade de que aqueles que estão acima possam
querer uma ruptura — uma ruptura pela direita, não pela esquerda. No entanto, foi efetivamente isso
que atingiu o PT em 2016–18, algo com o qual eles ainda precisam digerir melhor. No poder,
enquanto as coisas estavam boas, o PT bene ciou os pobres; mas não os educou nem os mobilizou.
Seus inimigos, enquanto isso, não apenas os mobilizaram, mas os educaram até os mais recentes
padrões pós-modernos. O resultado foi uma guerra de classes unilateral. As grandes manifestações
que terminaram por derrubar Dilma foram o resultado de uma galvanização [instigação — NT] da
classe média como o Brasil nunca havia testemunhado; possibilitada por um domínio das mídias
sociais, transmitida de sua juventude para Bolsonaro, re etindo uma transformação do país que por
pouco não foi uma revolução social. Entre 2014 e 2018, apesar da recessão, o número de
smartphones superou o número de habitantes, e seu uso colocaria qualquer outra implantação
política deles, fosse na Europa ou na América, para trás.

Essa, evidentemente, não foi a única realidade letal que o PT falhou em reconhecer. No governo, ele
rejeitou a mobilização em favor da cooptação; e cooptação — da classe política e econômica
brasileira — signi ca corrupção. E isso esteve em sintonia com sua escolha estratégica para o
Executivo. “Entre o consentimento e a força está a corrupção”, escreveu Gramsci, “o que é
característico de situações em que é difícil o exercício da hegemonia e o uso da força é arriscado
demais.” Renunciando à hegemonia, que exigiria um esforço sustentado de educação popular e
organização coletiva, e recusando a coerção, direção para a qual nunca houve qualquer tentação, o
partido cou com a corrupção. Para seus líderes, qualquer outra coisa parecia muito difícil ou muito
arriscada. A corrupção era o preço de seu “reformismo fraco”, nas palavras de Singer, e dos
benefícios reais que ela possibilitava. Mas uma vez exposto, o partido não encontrou palavras para
rotular ou criticar o que zera. E em vez disso, em um eufemismo extremamente revelador — e
também desastrosamente correto — o PT explicou que precisava “superar sua adaptação ao modus
vivendi da política tradicional brasileira”. Modus vivendi: uma maneira de conviver — apenas isso.

Recorrer a eufemismos não oferece escapatória para um passado para o qual o PT ainda permanece
acorrentado, da maneira mais dolorosa e paralisante possível. A Lava Jato está longe de terminar
com seu astro e vítima maior. A sentença de 12 anos de Lula por suas vistorias em um condomínio à
beira-mar foi apenas o começo. Um segundo julgamento com acusação similar — envolvendo uma
empreiteira que recebeu contratos governamentais enquanto ele estava no exercício para as
melhorias no sítio de um amigo — está quase pronto, com um veredicto similar à vista. Essas 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 15/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

acusações podem até ser, no frigir dos ovos, relativamente triviais, embora as sentenças não sejam.
 INICIO QUEM SOMOS ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE 
Já vem chegando, no entanto, acusações muito mais sérias, e não de desvios privados, mas de mal
HISTÓRIA 

uso de grandes somas de dinheiro público — centenas de milhões de dólares à disposição da


Petrobras quando Lula foi presidente — com base no recompensado testemunho do maior Judas do
partido, seu braço direito na época, o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, atualmente se
vendendo como testemunha em mais casos para ação penal. O governo vai garantir máxima
publicidade para os mega-julgamentos que estão por vir. Ele precisa acabar com Lula de vez.

O PT, e seus simpatizantes, profunda e compreensivelmente irritados com a falta de uma justiça não
seletiva na qual os assuntos pessoais de Lula pudessem ser tratados, provavelmente terão que se
confrontar com evidências, mesmo que manchadas, potencialmente muito mais danosas, naquilo
que ameaça se tornar um processo inde nidamente estendido para desacreditar e con nar, por
toda a vida, o ex-presidente. Como o partido vai reagir? Lula, que não foi diminuído na prisão,
continua sendo, de forma esmagadora, o seu ativo político mais importante; no entanto, agora existe
o perigo de ele se tornar, para muitos, quase igualmente um risco. Assegurar-lhe justiça histórica
parece além de seus poderes. O partido depende dele para uma liderança rme, mas arrisca perder
credibilidade se não se tornar independente dele. Âncora ou albatroz? Se Lula foi totalmente
abduzido da cena, muitos acham que o PT rapidamente se fragmentaria. Em tal impasse, os
militantes podem muito bem ser levados a ter expectativas de que, sob o regime de Bolsonaro, as
condições do Brasil piorem tanto que poucos vão se importar mais com os escândalos perdoáveis do
passado, e seus traços seriam obliterados em alguma convulsão política ainda maior por vir.

Por doze anos, o Brasil foi o único grande país do mundo a desa ar a época, a recusar o
aprofundamento do regime neoliberal do capital e relaxar alguns de seus rigores em favor dos
menos favorecidos. Se a experiência precisava terminar assim é algo imponderável. As massas não
foram chamadas para defender o que haviam ganho. Será que os séculos de escravidão que
separaram o país do resto da América Latina forjaram uma passividade popular insuperável, e
o modus vivendi do PT era o melhor que se pode fazer? Em certas ocasiões, Singer sugeriu algo
assim. Em outras, ele é mais rigoroso. O Brasil, escreveu recentemente, fracassou em conseguir a
inclusão social de todos os seus cidadãos, tarefa que cabia à geração que veio após a ditadura. Mas
na sua ausência, nenhum outro projeto é viável. De forma um pouco mais otimista, outro
observador aguçado, um pouco à direita, Celso Rocha de Barros, observou que o lulismo não vai ser
extinto no Brasil até que algo melhor o substitua. Pode-se até ter a expectativa de que esses
julgamentos sejam válidos. Mas as memórias podem desaparecer e, em outros lugares, a exclusão
social mostrou viabilidade apenas muito cruelmente. A esquerda sempre esteve inclinada a
transformar em previsões as suas próprias preferências. Seria um erro contar com uma derrota que
se autocorrija com o tempo.

[1] ‘Considerações sobre a operação Mani Pulite’ (Revista CEJ 26, July-September 2004).

[2] Companhia das Letras, 392 pp., £11.50, May 2018, 978 8 535 93115 0.

[3] ‘Na prática, ministros do STF agridem a democracia’ (Ilustríssima, 28 January 2018): much the best
portrait of the current court.

[4] Boitempo, 216 pp., £15, March 2018, 978 8 575 59621 0 
elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 16/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

[5] For a comprehensive demolition of the label, and the literature surrounding it, see Dylan Riley,
 INICIO QUEM SOMOS
‘What is Trump?’, New Left Review 114,pp. 5–31.
ECONOMIA GÊNERO/SEXUALIDADE  HISTÓRIA 

[6] ‘Lulismo, Petismo, and the Future of Brazilian Politics’, Journal of Politics in Latin America 3, where
lulismo is contrasted with peronismo. For reiterated dissent from Singer, see their Partisans,
Antipartisans, Nonpartisans: Voting Behaviour in Brazil (Cambridge, 196 pp., £75, May 2018, 978 1
108 42888 0).

Facebook Comments
1 Comment Sort by Top

Add a comment...

Teodoro Gonçalves Silva


O Brasil de Bolsonaro é um retorno ao passado negro.
Like · Reply · 20w

Facebook Comments Plugin

← O Brasil de Bolsonaro I – Perry Anderson

Entrevista: Rojava, Venezuela e América do Sul – Entre o Imperialismo e as Revoluções.


Mauro Cardoso
Médico Epidemiologista e Estatístico, atua na área de saúde pública estudando os
cavaleiros do apocalipse: a peste, a fome e a guerra.

 Você pode gostar também


elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 17/18
25/11/2019 O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson – El Coyote

O que aconteceu
 com os
INICIO DaSOMOS
QUEM Exile à Esquerda
ECONOMIA Igrejas manobram
GÊNERO/SEXUALIDADE  o
HISTÓRIA 
alemães negros durante “Canalha”: A geopolítica congresso e ganham
o nazismo. dos “edgelords”* e o perdão de dívidas
 14/08/2017  Comentários aumento do “nacional bilionárias
desativados bolchevismo” nos Estados  07/10/2017  Comentários

Unidos desativados
 31/03/2019  Comentários
desativados

Um comentário em “O Brasil de Bolsonaro II – Perry Anderson”

Pingback: O Brasil de Bolsonaro I – Perry Anderson – El Coyote

Os comentários estão desativados.

Copyright © 2019 El Coyote. Todos os direitos


reservados.
  
Tema: ColorMag por ThemeGrill. Powered by
WordPress.


elcoyote.org/o-brasil-de-bolsonaro-ii-perry-anderson/ 18/18

S-ar putea să vă placă și