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São Paulo
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Palmeira, Leonardo
Manual de psicoeducação para profissionais de saúde mental
que tratam pessoas com esquizofrenia / Leonardo Palmeira. -- São Paulo :
Planmark, 2018.
Bibliografia.
ISBN: 978-85-9525-010-9
CDD-616.8982
17-08941 NLM-WM 202
6
Introdução
A esquizofrenia afeta cerca de 1% da popu- sobrecarregadas e que não recebem o apoio
lação; no Brasil, estima-se que sejam 2 milhões adequado dos serviços e baixo reconheci-
de pessoas. Ela acomete homens e mulheres mento e tratamento dos casos refratários.
jovens, principalmente entre 15 e 35 anos, a O objetivo principal deste manual é trazer as
maioria tem a doença por muitos anos ou dé- informações atuais e baseadas em evidências,
cadas. Segundo a Organização Mundial da esperando que profissionais de saúde mais
Saúde (OMS), é a 11a causa de incapacitação bem informados possam influenciar positiva-
(years lost due to disability – YLD) no mundo mente seus serviços. Outro objetivo do manual
entre todas as doenças.1,2 é apresentar um olhar mais otimista sobre a es-
Apesar de sua relevância na saúde públi- quizofrenia, que traga mais esperança para os
ca, no Brasil 73% das pessoas com esquizo- profissionais de saúde, possibilitando que eles
frenia não recebem tratamento. Dois terços que passem adiante a mensagem para seus pa-
se tratam o fazem no SUS. A esquizofrenia é a cientes e para as famílias, motivando-os para o
doença mental mais estigmatizada e mais in- tratamento e para a recuperação.
compreendida da psiquiatria. Existe uma gran- Esse olhar representa uma mudança de pa-
de falta de informação entre aqueles que dela radigma histórica, que vem ocorrendo nas últi-
padecem e seus familiares, mas também dos mas décadas, reorientando políticas de saúde
profissionais de saúde.3-7 mental de diversos países, serviços de assis-
Este cenário só poderá ser mudado com a tência, tratamentos, iniciativas comunitárias e
união das forças de todos os envolvidos direta- influenciando a própria ciência.8,9
mente com a doença: pacientes, familiares e pro- O conceito de recuperação pessoal (personal
fissionais de saúde mental. O ponto de partida recovery) surgiu do movimento de pacientes
deve ser uma informação sobre a doença que e familiares por uma saúde mental mais repre-
seja uníssona entre todos, capaz de cooptar os sentativa e positiva, centrada no indivíduo e
diferentes agentes desse processo. Comparti- na sua força de superação. Ele é indissociável
lhando uma mesma visão, esforços no sentido de da esperança e de uma visão otimista sobre a
levar a cada paciente e sua família tratamentos doença, passando a mensagem de que todos
baseados nas melhores evidências científicas podem se recuperar da esquizofrenia. Esse
são as melhores armas para alcançarmos melho- movimento possibilitou o desenvolvimento de
res desfechos na esquizofrenia. novas tecnologias de tratamento, como o su-
Muitas pessoas esperam um tratamento re- porte por pares e o suporte ao emprego.10
volucionário, não acreditando que os tratamen- Este manual é dividido em módulos, para que
tos dos quais hoje dispomos possam mudar possa nortear programas de psicoeducação. No
o prognóstico da doença. Um problema que início de cada módulo, listamos os objetivos psi-
reforça esse sentimento é que a maioria dos coeducacionais para os familiares e pacientes.
pacientes não tem acesso a todos os tratamen- Recomendamos que os módulos sejam abor-
tos no tempo em que deveria para se benefi- dados nesta ordem nos seminários informativos,
ciar deles ou não tem um projeto terapêutico pois é fundamental que o familiar e o paciente
personalizado diante de suas necessidades e se familiarizem com o conceito de recuperação
possibilidades individuais. pessoal e com esse olhar mais otimista e espe-
Outro ponto central é o pessimismo que rançoso, que deve ser o fio condutor dos encon-
ronda a doença, influenciado pelo estigma, tros com as famílias. Como se plantássemos uma
mas também por casos de má evolução que semente e a regássemos a cada novo encontro,
permeiam os serviços, muitos deles por ra- na esperança de que o olhar e a postura de cada
zões que precisamos combater: demora em um se modifiquem e, ao final, uma visão mais po-
iniciar o tratamento, baixa adesão, famílias sitiva e uma atitude mais proativa prevaleçam.
7
Módulo I
Um novo paradigma para a esquizofrenia
Objetivos
4. Discutir os fatores que podem estimular ou inibir a recuperação pessoal no âmbito pessoal, familiar, dos serviços de saúde mental e
da comunidade;
8
com uma psicose de boa evolução são então por períodos de alívio sintomático e melhora fun-
impelidos a serem reclassificados com um cional com o tratamento, a ponto de se recupe-
diagnóstico de psicose não esquizofrênica. rarem, passando a desafiar a “ilusão do clínico”.
Isso contribui para perpetuar a ilusão de que a Sua organização em associações de familiares,
esquizofrenia é um transtorno invariavelmente compartilhando os mesmos interesses e pontos de
crônico e deteriorante. 12
vista, fez surgir a partir dos anos 1980-90 um mo-
Outro obstáculo que contribui para a “ilusão vimento liderado por eles que levou a uma aborda-
do clínico” são estudos de follow-up da esqui- gem mais positiva da esquizofrenia: a recuperação
zofrenia, que sofrem de vários problemas meto- pessoal (personal recovery). O campo da psiquia-
dológicos e possuem resultados contraditórios. tria e da saúde mental não parece ainda totalmen-
O primeiro deles é que são poucos os pacientes te preparado para aceitar essa visão mais otimista
incluídos neste tipo de estudo que não tenham sobre as pessoas que sofrem de esquizofrenia.16
utilizado antipsicóticos. Da mesma forma, inter-
venções psicossociais, culturais e religiosas tam-
bém podem representar um viés e não são consi-
Recuperação pessoal
deradas. Os critérios clínicos utilizados (sistemas A definição de recuperação de uma doença
diagnósticos com critérios mais amplos ou mais mental está longe de um consenso. Profissionais
restritos) também são cruciais na seleção dos pa- de saúde mental e pesquisadores tendem a enfa-
cientes, com critérios mais restritos selecionando tizar critérios objetivos e mensuráveis, como me-
pacientes mais graves. A evolução da esquizo- lhora psicopatológica, retorno ao trabalho/estudo e
frenia é, portanto, um construto multidimensional vida independente. Pacientes focam mais em cri-
que requer melhor definição de domínios clínicos térios subjetivos, como sua experiência de adoe-
(sintomas e tratamento) e sociais (p. ex.: condi- cer, como superaram as dificuldades trazidas pela
ções de moradia, relacionamento familiar e social doença, perseguiram seus objetivos, retomaram o
e emprego) e isso dificulta a metodologia dos es- controle sobre suas vidas e alcançaram o bem-es-
tudos de longo prazo. tar, apesar dos sintomas. As dimensões do concei-
Um trabalho de revisão com 320 estudos de to de recuperação derivam de:17
follow-up entre 1985 e 1992 mostrou que a evo- • Vantagens para aqueles que estão apre-
lução era significativamente melhor para os pa- sentando suas definições
cientes diagnosticados com base em sistemas • Critérios objetivos vs. subjetivos identifica-
mais amplos ou por critérios indefinidos (46,5% dos por profissionais e pacientes
e 40,2% estavam recuperados, respectivamen- • Foco na evolução clínica e funcional vs. na
te) se comparados com os critérios mais restritos experiência pessoal e valores
de psicose (27,3% recuperados). Outros estu- A diferença é que a recuperação pessoal é con-
dos de longo prazo por 20 a 40 anos encontra- cebida como um processo em que a pessoa “vai se
ram taxas de recuperação entre 46% e 68%.13-15 recuperando” (in recovery), enquanto na recupera-
Muitas pessoas com esquizofrenia e suas ção clínica ou funcional a pessoa alcançou os crité-
famílias que experimentaram longas interna- rios operacionais para ser considerada “recuperada”
ções, uma vez livres dos hospitais passaram (recovery from).16
9
A recuperação clínica ou funcional não refle- dessa jornada ela adquirir uma visão mais po-
te a realidade da maioria dos pacientes que se sitiva de si mesma e da sua doença, ressaltar
tratam nos serviços de saúde mental e repre- suas qualidades pessoais em detrimento de
senta o pessimismo pós-kraepeliniano, o que é suas fragilidades, ser mais otimista e espe-
refutado por muitos pacientes e familiares. Um rançosa em relação ao presente e ao futuro.
ingrediente considerado fundamental na recu- O trabalho é árduo no sentido de que exige
peração pessoal do paciente é a capacidade capacitação e engajamento da pessoa em seu
de se ter esperança e acreditar na possibilida- tratamento, ela passa a ser sujeito ativo e autora
de de uma vida melhor no futuro e, neste senti- de seu próprio processo de recuperação: ela
do, o conceito de recuperação pessoal parece precisa participar das decisões sobre a ajuda
bem mais adequado. 16
e suporte que recebe, aprender a identificar e
O processo ocorre dentro de um continuum, perseguir os indicadores de melhora, a ma-
com o progresso ponto a ponto marcado por nejar o estresse e zelar por seu bem-estar
desafios, aprendizados, capacitação e desen- e pelos seus relacionamentos (compartilhar
volvimento da resiliência. Com o tempo a pessoa experiências), para que criem o ambiente
pode até alcançar os critérios clínicos operacio- propício para sua melhora. O resultado desse
nais, mas o processo de recuperação pessoal é processo é maior resiliência para exposição
muito mais meio do que fim, e os critérios clínicos a papéis e objetivos mais complexos, o que
não são o objetivo final (Figura 1). 17,18
gera empoderamento à medida que a pessoa
Recuperação pessoal é mais um processo percebe ter condições de reassumir as rédeas
de transformação pessoal impulsionado pela da sua vida. Finalmente, a recuperação almeja-
doença mental que abre uma janela de opor- da envolve ações no campo social, dos relacio-
tunidade para a pessoa enxergar a si própria namentos, da atividade produtiva, da sensação
de outra forma, revendo conceitos, crenças, de pertencimento a uma comunidade, da liber-
sentimentos, hábitos, muitos dos quais possam dade e da independência, sem descuidar-se
ter contribuído para o adoecimento. Faz parte da disciplina e da determinação que a condu-
Esperança e
Empoderamento Autorresponsabilidade Recuperação
otimismo
Tratamento e reabilitação
10
ziram até o ponto em que chegou. A espiritua- sentimentos, objetivos, habilidades e/ou papéis.
lidade também é importante para dar forças à É uma forma de viver uma vida com satisfação,
pessoa num momento difícil. 15-19
esperança e contribuição, ainda que com limi-
Uma definição mais simples de recuperação tações causadas pela doença. Recuperação
pessoal é do SAMHSA (Substance Abuse and envolve o desenvolvimento de um novo sentido
Mental Health Service Administration), órgão
e propósito na sua vida enquanto se cresce e
norte-americano para a saúde mental:20 “Um
amadurece para além dos efeitos catastróficos
processo de mudança através da qual o indiví-
da doença mental.”
duo melhora sua saúde e bem-estar, vive uma
Uma meta-análise, revisando os conceitos
vida autogerida e se esforça para alcançar seu
de recuperação pessoal de 12 estudos, chegou
pleno potencial.”
A definição mais citada de recuperação pes- a fatores que apoiam ou inibem a recuperação
soal na literatura é a de Bill Anthony:21 “Recupe- pessoal em diferentes esferas, como pessoal, fa-
ração é profundamente pessoal, um processo miliar, do serviço de saúde mental e da socieda-
único de mudar suas próprias atitudes, valores, de como um todo (Tabela 1).22
Oportunidades de inclusão social e reciprocidade Estigma afetando a busca por ajuda, a autoestima, a
Acesso a alimentação, moradia e vestuário confiança e a inclusão social
Sociedade
Atividades significativas disponíveis na comunidade Obstáculos culturais
Racismo, pobreza e desvantagem social
Adaptado de O’Keeff
Fonte: adaptada e et al.e,
de O’Keeff
23
et al. 2016.22
11
Módulo II
Os sintomas da esquizofrenia
Objetivos
2. Conceituar os sintomas positivos com exemplos práticos e discutir como deve ser a atitude da família diante deles;
3. Conceituar os sintomas negativos, enfatizando sua natureza patológica, e discutir como deve ser a atitude da família diante deles;
4. Conceituar os sintomas cognitivos e como eles podem interferir no funcionamento do paciente, enfatizando sua natureza patológica;
12
considerava que o SNC possuía uma organiza- pacientes. Alucinações olfativas, gustativas,
ção hierárquica e que lesões corticais provoca- táteis ou cenestésicas (referentes a sensações
riam um efeito reverso da evolução, o que ele dos órgãos internos) são menos comuns, mas
chamou de teoria da dissolução. Essa teoria foi também podem ocorrer.25,26
depois confirmada pela neurociência para dife- Delírios e alucinações são vivenciados pelo
rentes sistemas neurais, particularmente o lobo paciente com plena convicção e produzem um
frontal, que possui uma organização hierárqui- sentimento de passividade, ou seja, o pacien-
ca no seu eixo rostrocaudal.24 te aceita essas vivências como parte da reali-
Na psiquiatria, delírios e alucinações são os dade e não consegue fazer um juízo capaz de
principais componentes do domínio dos sinto- relativizar ou extingui-las. Da mesma forma, a
mas positivos, enquanto apatia, desinteresse atitude do familiar de querer confrontar as ex-
e embotamento do afeto representam o grupo periências do paciente com fatos da realidade
dos sintomas negativos.23 ou convencê-lo logicamente da sua natureza
absurda provoca mais sofrimento e desgaste,
distanciando-os e tornando a busca por trata-
Sintomas positivos mento mais difícil.25
Delírios persecutórios são a principal carac- Um sintoma positivo que pode interferir na
terística da síndrome delirante. Com frequência comunicação e no entendimento do discurso
associados a eles estão os delírios de autor- são as alterações formais do pensamento e da
referência, em que o paciente acredita que as linguagem. O discurso do paciente pode pa-
pessoas o estejam observando, rindo ou co- recer sem objetivo, sem encadeamento lógico,
mentando sobre ele, enviando sinais, ou que vago, impreciso ou mesmo incompreensível,
rádio, TV ou jornais estejam se referindo a ele. como uma salada de palavras. Podem ocor-
Geralmente essas ideias envolvem forças ou rer neologismos (palavras inventadas), perse-
personagens hostis, mal-intencionados, que o veração (repetição de uma mesma palavra ou
ameaçam. Também podem ocorrer outros delí- ideia), concretude e ecolalia.25
rios, como místicos-religiosos, de grandeza, de O psicólogo e professor da Universidade de
influência ou possessão, dentre outros.25
Columbia, EUA, Xavier Amador, escreveu um
Alucinações são alterações da sensoper- livro que se tornou uma referência no assunto.
cepção que ocorrem com frequência na esqui- Ele desenvolveu um método de comunicação
zofrenia, sendo as auditivas as mais comuns. com seu irmão, diagnosticado com esquizofre-
O paciente pode ouvir barulhos ou vozes falan- nia, que não aceitava a doença e o tratamento.
do com ele ou sobre ele, também provocando O método LEAP é uma forma de comunicação
medo e tensão. Algumas alucinações são des- que evita o confronto com o paciente e procura
critas como o próprio pensamento tornando-se encontrar pontos em comum para uma parceria.
audível (do alemão, Gedankenlautwerden) ou O primeiro passo desse método é a escuta refle-
como vozes que falam do paciente na terceira xiva (listen) do paciente, evitando reações como
pessoa, como se dialogassem entre si. Alu- comentários, juízo de valor, argumentações
cinações visuais podem ocorrer em 27% dos ou discordâncias. O objetivo é não tensionar
13
a relação e procurar formar uma aliança com o como o paciente percebe (sem dar margens
paciente. Para isso, é necessário criar uma re- a interpretações com base em suas próprias
lação de empatia, compreendendo suas vivên- convicções), rever vantagens e desvantagens
cias e colocando-se no lugar dele. Essa mudan- percebidas pelo paciente e refletir sobre esses
ça de atitude prepara para o próximo passo do tópicos com ênfase nos possíveis benefícios
método, empatizar (empatize). 27
percebidos por ele. Se ainda assim não for
Quando se escuta alguém sem um juízo possível chegar a um consenso, Amador suge-
prévio de valor, interessado em sua história, re que o familiar deva respeitosamente sugerir
já se está estabelecendo uma relação de em- que se possa discordar, sem que isso gere um
patia. A empatia do familiar deve ser também afastamento.27
demonstrada em relação às preocupações do Finalmente, o último passo do método é se-
paciente, como frustrações (p. ex.: objetivos rem parceiros (partner). Antes de tudo é manter
pessoais não alcançados, pressão para tomar um canal aberto com o paciente, fazê-lo com-
remédios), medos (p. ex.: sobre o tratamento, preender que pode contar com alguém num
de ser estigmatizado), desconforto (p. ex.: com momento de estresse. A aplicação do método
os efeitos colaterais dos remédios) e desejos ajuda a melhorar o relacionamento, a reduzir o
(p. ex.: de estudar, trabalhar, formar uma fa- estresse e a solucionar melhor os problemas do
mília). Quando o familiar demonstra sintonia e dia a dia. Ele pode ser utilizado também por ou-
compreensão sobre sentimentos e pontos de tras pessoas do convívio do paciente, inclusive
vista diferentes, o paciente torna-se mais re- profissionais de saúde.27
ceptivo a ouvi-lo e a saber sua opinião.27
O terceiro passo do método LEAP é concor- Sintomas negativos
dar (agree). Ele sugere que mesmo que haja Sintomas negativos incluem esmaecimento/
pontos de discordância (e haverá!), existe uma embotamento afetivo, alogia, apatia e perda
maneira de “concordar em discordar” (agree to da vontade e anedonia. Pacientes exibem com
disagree), sem que isso signifique uma ruptura frequência um esmaecimento ou um embota-
na comunicação e no relacionamento. Este tal- mento das respostas afetivas que as pessoas
vez seja o passo mais difícil do método, porém, normalmente demonstram como sinal de envol-
quando se conhece melhor os desejos, preo- vimento emocional. Isso pode ser evidenciado
cupações e demandas do paciente, quando se no exame do paciente na presença de baixa ou
compartilha de objetivos em comum, fica mais nenhuma mudança na expressão facial, pou-
fácil encontrar pontos de convergência. Xavier cos movimentos espontâneos, gestos expres-
chama esse momento de janela de oportunida- sivos, contato visual ou falta de inflexão da voz
de (window of opportunity), quando o paciente durante o discurso. O afeto pode ser também
está mais aberto a ouvir as observações e opi- impróprio e inadequado para o ambiente social
niões de terceiros. Ele sugere alguns cuidados, ou simplesmente haver uma ausência de res-
como neutralizar a experiência (não mostrar um posta afetiva.28
calor emocional ou uma expectativa pessoal Alogia pode ser revelada pela pobreza do
exagerada), discutir o problema da maneira conteúdo de discurso, aumento do tempo de
14
latência da resposta e pouca fala. Pacientes examinados tinham desempenho cognitivo
podem se tornar apáticos a ponto de intera- dentro da normalidade.31
girem pouco, descuidarem da higiene e da Os achados neuropsicológicos podem ser
aparência, perderem a energia física e aban- encontrados em pacientes antes do primeiro
donarem suas atividades. Muitas vezes os pa- episódio e, inclusive, em alguns familiares não
cientes têm consciência de suas dificuldades e doentes, sugerindo que eles sejam datados das
ressentem-se da falta de interesse e de poucos fases de desenvolvimento do SNC, influencia-
ou nenhum relacionamento social ou afetivo. 29 dos por genes de suscetibilidade que possam
Há evidências de que um ambiente estres- estar presentes também em outros familiares e
sante, seja por excesso de crítica e hostilida- antecedem os sintomas clínicos mais típicos.
de ou por superestimulação, pode agravar os Embora admita-se hoje que os perfis cogniti-
sintomas negativos, aumentando o retraimento vos possam ser estáveis ao longo do tempo, há
emocional e social do paciente. Isso pode ser evidências de que pode haver progressão de
visto como uma tentativa do paciente de baixar déficits nos primeiros anos de doença e na falta
as demandas que se encontram além de sua de tratamento.32,33
15
Módulo III
Mudando o prognóstico e a evolução da esquizofrenia
Objetivos
1. Apresentar as possíveis evoluções da esquizofrenia e como podem ser influenciadas pelo tratamento;
2. Explicar a importância da intervenção precoce e da prevenção de recaídas para um melhor prognóstico da esquizofrenia;
4. Explicar a importância do reconhecimento da esquizofrenia refratária para um melhor prognóstico dos pacientes mais graves;
5. Explicar o conceito de emoção expressada e a sobrecarga na família como alvos terapêuticos fundamentais para um melhor prognóstico
e evolução da esquizofrenia;
16
Pródomo
100 Primeiro episódio Remissão
90
80 Resposta parcial
Nível de funcionamento
70
60 Resposta
Recaída crônica
50
40
30
Período
20 crítico
10
0
20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40
Idade (anos)
dem cessar a “tempestade química” da psicose de acordo com revisões sistemáticas e estudos
e permitir um retorno à normalidade dos proces- longitudinais e está associada a maiores níveis
sos de conectividade e plasticidade neuronal.38 de sintomas negativos.41,42
Fatores que podem retardar o diagnóstico Enquanto na psicose afetiva o tempo médio
e/ou o tratamento adequado nesse período são entre o surgimento dos primeiros sintomas psi-
prejudiciais à recuperação e podem contribuir cóticos e o início de tratamento é de 15 dias, na
para um curso mais grave e crônico da esqui- esquizofrenia esse tempo é mais de 10 vezes
zofrenia, entre eles citamos:39,40 superior, 179 dias.43
17
Reduzir o tempo entre o adoecer e o início em vez do diagnóstico categorial. Isso permi-
do tratamento é um dos grandes desafios da te conhecer melhor a progressão da doença
assistência, que tem desenvolvido serviços es- e onde a pessoa se encontra num continuum
pecializados para o tratamento do primeiro epi- evolutivo. É possível desenvolver tratamentos
sódio, também conhecido como intervenção específicos para os diferentes estágios e ava-
precoce. Esses serviços não estão somente liar as intervenções sob uma ótica preventiva
preocupados em reduzir a DUP, mas em garan- (não progressão de estágio ou retorno ao es-
tir o acesso ao tratamento de qualidade desde tágio anterior).46,47
o início da doença.44
Tabela 2. Estadiamento clínico da psicose
Serviços de intervenção precoce têm esta-
0 Grupo de risco assintomático
do em voga nos últimos 20 anos, começando
1a Grupo levemente sintomático (inespecífico)
na Austrália, e depois aparecendo na América
1b Grupo de ultra-alto risco (UHR) com sintomas
do Norte, Europa, Reino Unido e Ásia.44,45
prodrômicos
Eles podem ser citados como uma conse-
2 Transição para psicose
quência da necessidade de reformar a assis-
3 Remissão parcial e recaídas
tência à saúde mental a partir do questionamen-
4 Doença crônica, grave e persistente
to do conceito mais tradicional da esquizofrenia
como doença de evolução desfavorável (teoria Fonte: adaptada de McGorry P, et al., 2006.47
18
transtorno de personalidade esquizotípico Tratamentos psicossociais têm como foco
ou parente de primeiro grau com psicose, estimular a recuperação pessoal, especialmen-
acrescentado de prejuízo significativo do te através de seus aspectos psicoeducacionais
funcionamento no último ano (queda de e vocacionais. Terapia cognitivo-comportamen-
30 pontos ou mais na escala GAF). tal, aconselhamento sobre prevenção de recaí-
das, psicoeducação de família, intervenções em
Tratamentos psicossociais, como terapia grupo focadas no estilo de vida e bem-estar,
cognitivo-comportamental e psicoeducação de manejo do estresse e atividades recreativas, ini-
família, têm melhor efeito do que uso de antip- ciativas de reinserção no trabalho e estudo de-
sicóticos nesse grupo de pacientes. Embora vem ser oferecidos.47
possam ser utilizados em situações específicas, Discute-se o período em que pacientes de-
estudos demonstraram altas taxas de abandono vem ser acompanhados pelos serviços de inter-
de tratamento entre pacientes que fizeram uso venção precoce. Inicialmente havia a previsão
de antipsicóticos. Em caso de ser necessário de acompanhamento por dois a três anos, mas
uso de antipsicóticos, recomenda-se baixa dose existem evidências de que ganhos poderiam
de antipsicóticos atípicos. Outros medicamen- ser perdidos por alguns pacientes que necessi-
tos podem ser utilizados, como antidepressivos tam do tratamento por mais tempo, consideran-
e ansiolíticos, já que sintomas depressivos ou do que um grupo de pacientes pode necessitar
ansiosos são comuns nessas populações. 51,52
do acompanhamento por até cinco anos.57-59
Outro estágio contemplado por serviços de in-
tervenção precoce é o de transição para psicose
ou primeiro episódio psicótico. O tratamento com
Adesão ao medicamento
antipsicótico nessas populações mostra altas ta- A não adesão ao tratamento médico é co-
xas de resposta: 63% apresentam recuperação mum em pacientes no primeiro episódio psicó-
completa nos primeiros 18 meses e 28% atingem tico e é considerada um dos principais fatores
recuperação parcial. Resistência ao tratamento para a recaída. As taxas de não adesão aumen-
é incomum em pacientes de primeiro episódio tam nos primeiros anos, com 25% dos pacien-
(10%).53 Os antipsicóticos atípicos devem ser pre- tes interrompendo a medicação nos primeiros
feridos em relação aos típicos devido ao seu perfil 10 dias de tratamento, 50% no primeiro ano e
de melhor tolerabilidade e de neuroproteção das 75% ao final de dois anos de tratamento.60,61
mudanças da substância cinzenta associadas Um estudo de meta-análise encontrou uma
ao primeiro episódio.54,55
O antipsicótico deve ser taxa média de adesão à medicação na esqui-
mantido como fator de proteção por 1 a 3 anos, zofrenia de apenas 58%. Estudos que incluíram
período em que ocorre a maioria das recaídas, testes de urina e contagem de pílulas na sua me-
principalmente em pacientes que possuírem fa- todologia encontraram taxas de adesão menores
tores de pior prognóstico, como história familiar, do que aqueles que levaram em conta o julga-
família com alta emoção-expressada, idade mais mento do médico e entrevista com o paciente.62
jovem ao adoecer, DUP longa, ou comportamen- Estudos que compararam o julgamento do mé-
tos de risco quando não estão bem. 56
dico e a entrevista com o paciente com métodos
19
mais seguros de avaliação da adesão, como con- Estudos de meta-análise comparando antip-
tagem de pílulas e dispositivo MEMS Cap (frascos sicóticos orais com antipsicóticos injetáveis de
eletrônicos que registram o horário de abertura), longa ação (LAI) mostraram que os pacientes
viram que tanto médicos como pacientes tendem que usam LAI têm significativamente menos re-
a superestimar a adesão ao tratamento. Enquan- caídas e reinternações do que o grupo que usa
to 95% dos pacientes diziam tomar a medicação antipsicótico oral.70,71
e 93% dos médicos acreditavam na adesão de Mesmo considerando as altas taxas de
seus pacientes, o estudo mostrou, através do não adesão no início da doença, os antipsi-
dispositivo MEMS Cap que na realidade somente cóticos de longa ação são pouco utilizados
42% aderiram de fato ao tratamento. 63
na prática clínica e seu uso é relegado a pa-
Portanto, estima-se que apenas 1/3 dos cientes que já tenham tido muitas recaídas e/
pacientes com esquizofrenia seja aderente ao ou hospitalizações e já apresentem um curso
tratamento com medicação oral, 1/3 apresente mais crônico. Uma reflexão necessária é se
adesão parcial e 1/3 não adere ao tratamento antipsicóticos injetáveis de longa ação não
oral. Entre os preditores de não adesão ao tra-
66
deveriam ser oferecidos a pacientes no iní-
tamento estão fatores ligados à própria doen- cio da doença, antes de múltiplas recaídas
ça (gravidade da doença, a falta de insight e e internações, como forma de proteção das
a disfunção cognitiva), ao paciente (abuso de complicações que a não adesão traz.72,73
substâncias, atitude negativa frente à medica- Entre as vantagens do tratamento de lon-
ção, obesidade, tabagismo e crenças religio- ga ação estão a garantia da adesão medica-
sas), ao tratamento (eventos adversos, tipo de mentosa e de níveis séricos mais estáveis do
medicação e esquema de administração) e ao princípio ativo, menor índice de recaídas e
ambiente (falta de psicoeducação, relação mé- hospitalizações e, no caso dos LAI atípicos,
dico-paciente ruim, estigma, custo e falta de melhor tolerabilidade, potencial para prevenir
acesso ao medicamento). 64-66
ou reverter o declínio da substância cinzenta
A não adesão representa um risco 4,89 ve- frontotemporal e oferecer maior neuroproteção
zes maior para a primeira recaída e 4,57 vezes do que os típicos.74
maior para uma segunda recaída, quando com- Um estudo com 83 pacientes no primeiro
parada aos pacientes aderentes à medicação. 67
episódio psicótico, comparando um grupo
Com o surgimento dos antipsicóticos atípi- com risperidona oral e outro com risperidona
cos era esperado que seu perfil de melhor tole- de longa ação, mostrou que a adesão foi três
rabilidade, principalmente com menor ocorrên- vezes maior no grupo com LAI e as chances
cia de sintomas extrapiramidais, favorecesse de recaídas ou exacerbações psicóticas fo-
uma maior adesão ao tratamento por parte dos ram, aproximadamente, seis vezes menores
pacientes. Entretanto, estudos epidemiológicos do que no grupo que usou medicação oral.
têm demonstrado que 30 anos depois a adesão Outro estudo, com 71 pacientes acompanha-
aos antipsicóticos orais de segunda geração dos por 2 anos (1 ano prévio com antipsicótico
não é muito diferente da adesão aos antipsicóti- oral e 1 ano posterior com LAI – palmitato de
cos de primeira geração. 68,69
paliperidona), mostrou redução de 78,8% nas
20
hospitalizações, de 79,1% nos atendimentos que impacta negativamente seu funcionamen-
de urgência e aumento de 53,8% na utiliza- to, integração psicossocial e qualidade de vida
ção de monoterapia, ou seja, a maioria dos serão reconhecidos. Outros fatores devem ser
pacientes ao final do estudo utilizava somente levados em conta na avaliação da refratarieda-
o palmitato de paliperidona. 75,76 de, como ambiente sociofamiliar, funcionamento
psicossocial, funcionamento pré-mórbido, trata-
21
Atualizado em 27-03-2006 Algoritmo de esquizofrenia IPAP
1. Diagnóstico de esquizofrenia ou
transtorno esquizoafetivo
F. abuso de substâncias
4. Dose e Não
G. primeiro episódio ou fase prodrômica duração adequadas, sem
intolerabilidade?
H. catatonia ou síndrome
neuroléptica maligna
Sim
5. A psicose Não
persiste após o ajuste da
dose?
Sim
MONOTERAPIA
6. Segunda tentativa por 4-6 semanas com um segundo antipsicótico
atípico, quando disponível ou segunda tentativa com antipsicótico típico
Não
7. Tratamento
adequado? (ver 4)
Sim
8. Psicose ou
Não
discinesia tardia ou distonia tardia
moderada ou grave após o ajuste da
dose?
Sim
Legenda: Atípicos - AMI = amissulprida; ARIP = aripiprazol; CLOZ = clozapina; OLANZ = olanzapina; QUET = quetiapina;
RISP = risperidona; ZIP = ziprasidona. Típicos - CHLOR = clorpromazina; FLU = flufenazina; HAL = haloperidol;
THIO = tiotixena. Outros - AD = antidepressivo; BZD = benzodiazepínico; ECT = eletroconvulsoterapia; IM = intramuscular;
MS = estabilizador de humor.
22
apontam que fatores relacionados ao julgamen-
to clínico estão entre os principais motivos para
Não negligenciar as
a baixa taxa de prescrição da clozapina.80-82 necessidades da família
O risco de agranulocitose com a clozapina Emoção-expressada (EE) é um preditor ro-
nos EUA é de 0,70:1.000 pacientes-ano após busto e significativo da evolução da esquizofre-
6 meses e 0,39:1.000 pacientes-ano após o nia. Os seus componentes principais são níveis
primeiro ano, e a taxa de fatalidade dos ca- de crítica e de superenvolvimento emocional do
sos de agranulocitose induzida pela clozapi- familiar em relação ao paciente. Pacientes que
na é estimada entre 4,2 e 16%. 83,84
Esse risco residem com famílias com alta emoção-expres-
pode ser minimizado com um controle hema- sada têm maiores chances de recaídas e hos-
23
na esquizofrenia. Outros estudos de longo pra- nove meses de duração, mostrando que boa
zo encontraram associação entre alta EE e rein- adesão medicamentosa é um importante fator
ternações mesmo após 2 a 5 anos da primeira preventivo para recaídas, porém sozinho não
admissão hospitalar, mostrando que esse pode é suficiente para contrabalançar a sobrecarga
ser um fator de risco persistente.
87
de uma família com alta EE. Portanto, pacientes
Marom e cols. (2005) conduziram um es- que convivem com famílias de alta crítica estão
tudo com 108 pacientes e familiares ao longo sob um maior risco de recaídas, ainda que utili-
de sete anos e viram que a EE no início do zem regularmente a medicação.90
estudo foi associada com o tempo tanto para Uma meta-análise mostrou que programas
a primeira como para a segunda internação
de psicoeducação de família são uma forma
durante os sete anos de acompanhamento.
efetiva de reduzir recaídas e hospitalizações na
Alta crítica prediz o número de internações e
esquizofrenia, inclusive no longo prazo, quando
a duração delas tanto em pacientes crônicos,
as famílias não estão mais em tratamento (es-
como não crônicos, o que confirma a hipóte-
tudos de cinco e oito anos de follow-up). Inter-
se de que alta EE afeta a evolução de longo
venções superiores a três meses, que incluem
prazo da esquizofrenia.88
sessões de psicoeducação e reuniões em gru-
Os altos índices de internação em pacien-
po de famílias para solução de problemas, cos-
tes com famílias de alta crítica, independente
tumam ser mais efetivas do que intervenções
da adesão medicamentosa, e os baixos índices
curtas de caráter meramente informativo.91,92
de internação entre os pacientes com famílias
de baixa crítica e sem adesão à medicação As evidências apontam para a necessida-
tes quanto a adesão à medicação para evo- como parte do pacote básico de interven-
lução da esquizofrenia. Resultado semelhan- ções psicossociais na esquizofrenia para to-
te já havia sido encontrado por um estudo de dos os pacientes.91
24
Módulo IV
Neurobiologia da esquizofrenia
Objetivos
3. Explicar a teoria do neurodesenvolvimento e o modelo de vulnerabilidade ao estresse para o adoecimento e para as recaídas;
de um parente de terceiro grau com esquizo- de outros genes. Por outro lado, existem CNVs
frenia e nove vezes no caso de um parente de que envolvem dezenas de genes sem um fenó-
primeiro grau com a doença.93 tipo conhecido e CNVs que podem não causar
A genética da esquizofrenia parece ser carac- disfunção no indivíduo hoje, mas criar instabilida-
terizada por um conjunto de centenas de genes de genômica em gerações futuras. CNVs também
(alelos) comuns (presentes na população), porém são reconhecidas por contribuírem para a diver-
de baixo efeito, que, portanto, precisam ocorrer sidade e resposta adaptativa da espécie huma-
em conjunto para aumentar o risco da doença, na comparada aos seus ancestrais, colaborando
e também por alguns genes (alelos) raros, po- para uma diversidade permanente e para o po-
rém de alta penetrância. Possivelmente esses tencial de novas mutações, já que CNVs predis-
dois grupos de genes contribuam diferentemente põem a novas mutações, como um efeito cascata
para o risco da doença, porém o papel de cada de aumentar o potencial de variações genéticas.
um deles ainda é desconhecido. 94
Outra característica das CNVs é que elas ocorrem
25
predominantemente em locais com genes que regiões frontais, embora outros fatores de risco
são importantes para a resposta ambiental, como também possam ter influência potencial.94
plasticidade cerebral e sinaptogênese.95,96 Estudos com gêmeos monozigóticos mos-
Um mecanismo comum às CNVs é que elas tram que a taxa de concordância quando um
ocorrem com frequência em células da linha- deles tem esquizofrenia não ultrapassa 50%,
gem germinativa, principalmente masculinas, revelando que outros fatores não genéticos po-
durante o processo de meiose (divisão celular) dem também ter um papel importante.99
para a formação de espermatozoides, causan- Num estudo nacional na Finlândia, o adoeci-
do novas mutações no feto, que não existem mento de filhos adotivos com risco genético para
nas gerações anteriores. Por isso são também esquizofrenia (filhos de mães biológicas com es-
conhecidas como mutações “de novo”. 97
quizofrenia) foi associado a um ambiente familiar
A CNV que se tornou um protótipo da esqui- de criação disfuncional, enquanto essa associação
zofrenia é a deleção do citocromo 22 (22q11.2), não foi constatada entre os filhos adotivos sem his-
que se estima seja responsável por 1% a 2% tória de esquizofrenia na família biológica (grupo
dos casos de esquizofrenia e que 1/3 das pes- controle). Isso sugere que pode haver uma intera-
soas com ela desenvolva a doença (mutação ção gene-ambiente na qual a predisposição gené-
rara, mas de alta penetrância). É também a tica torne o indivíduo mais suscetível a fatores do
única mutação confirmada até hoje a introduzir ambiente que, uma vez ocorrendo, interagem com
casos esporádicos (não familiares) de esquizo- a genética para a eclosão da doença.100
frenia na população.94,98 Conceitualmente, esses achados suportam um
Alguns genes e mutações conhecidas na modelo etiológico da esquizofrenia que se tornou
esquizofrenia controlam diferentes etapas do popular a partir dos anos 1980, conhecido como
neurodesenvolvimento (afetando a conectivida- modelo de estresse-diátese. Nele a esquizofrenia
de neuronal) e da regulação dos sistemas de é vista como um desfecho resultante da genética,
neurotransmissão. Elas podem explicar também que regula a sensibilidade do indivíduo frente aos
algumas alterações anatômicas e funcionais en- fatores ambientais, e do ambiente, que regula a ex-
contradas em cérebros de pessoas com esqui- pressão dos genes que predispõem à doença.101
zofrenia, como aumento dos ventrículos laterais, Ao longo das três últimas décadas muitos
diminuição do volume da substância branca e fatores ambientais de risco foram pesquisados,
cinzenta dos lobos frontais e temporais e prejuí- da concepção até o início da doença. Os prin-
zos cognitivos decorrentes do funcionamento de cipais estão listados na tabela 3.102
26
O modelo apresentado por Andreasen é
Endofenótipo e conceito de análogo ao do câncer, em que a desregulação
neurodesenvolvimento da proliferação celular seria o processo funda-
mental que uniria as diferentes apresentações
O modelo proposto por Nancy Andreasen
(2000) considera que os diferentes sintomas clínicas da oncologia. No caso da esquizofre-
e negativos) refletem, num nível clínico, pro- mação no cérebro seria o metaprocesso mental
cessos cognitivos subjacentes, que também que uniria as diferentes apresentações clínicas,
são múltiplos e distintos (como distúrbios resultado da síndrome de desconexão neuro-
da memória, da atenção, do funcionamento nal proveniente de distúrbios de processos do
executivo, entre outros), que por sua vez são neurodesenvolvimento (desde a concepção ao
fenótipos de um processo cognitivo funda- final da adolescência), desencadeados pela in-
mental (considerado endofenótipo ou meta- teração gene-ambiente (Figura 4).103
processo). Este seria o ponto final de uma via Andreasen sugere quatro hipóteses que
comum que define a doença e suas diferen- podem servir de norte na busca da causa da
tes apresentações.103 esquizofrenia:103
27
• Hipótese 1 – Etiologia múltipla: o fenó- estresse propostos para compreender os epi-
tipo da esquizofrenia é produto da in- sódios agudos da esquizofrenia. Eles partem
fluência de múltiplos fatores que condu- do conceito básico de processamento das in-
zem a uma via final comum no cérebro. formações para descrever processos cogniti-
A maioria dos casos ocorre por múltiplas vos deficitários e sugerir a inter-relação deles
agressões ao cérebro que produzem com domínios psicopatológicos. Os déficits
uma mesma lesão, no caso hipotético, a cognitivos são considerados possíveis indica-
desconectividade neuronal. dores de vulnerabilidade à esquizofrenia do
• Hipótese 2 – A fisiopatologia é uma al- que apenas parte da sintomatologia aguda.104
teração na regulação e expressão do Um episódio psicótico agudo surgiria do
neurodesenvolvimento. Processos de esgotamento dos processos cognitivos
desenvolvimento e maturação cerebral do indivíduo frente ao estresse, levando a dis-
(formação neurítica, sinaptogênese,
túrbio da neurotransmissão, particularmente
poda neuronal, apoptose), que ocorrem
da dopamina, hiper-reatividade autonômica e
entre o segundo trimestre de gestação e
aumento do estado de alerta (tensão), pro-
o final da adolescência, particularmente
gressiva deficiência no processamento dos
aqueles que ocorrem nas fases tardias,
estímulos sociais, resultando finalmente nos
como poda neuronal e plasticidade afe-
sintomas prodrômicos, psicóticos e do fun-
tada por experiências psicológicas, po-
cionamento social e ocupacional. Essa nova
deriam explicar o início da doença.
realidade disfuncional retroalimenta o es-
• Hipótese 3 – Doença da conectividade
tresse, dificulta ainda mais a capacidade de
neuronal: a patologia provavelmente não
resiliência do paciente, perturba o ambiente
é focal ou localizada em uma região, en-
familiar, que passa também a ficar mais so-
volvendo circuitos neurais distribuídos.
brecarregado, fechando um ciclo de progres-
• Hipótese 4 – O fenótipo é determinado
sivo esgotamento da capacidade cognitiva e
por um metaprocesso ou endofenótipo
e não por sintomas clínicos. Quando de disfunção dopaminérgica. A medicação
28
Fatores de vulnerabilidade pessoal
Processamento
Traços de
Disfunção de recursos Hiperatividade
personalidade
dopaminérgica disponíveis autônoma Resultados
esquizotípica
reduzido
Lidar e Medicação
autoeficácia antipsicótica
Hiperativação Sintomas
Interação Sintomas
Protetores ambientais autônoma psicóticos da
prodrômicos
tônica esquizofrenia
Efetiva solução Intervenções
de problemas psicossociais
familiares de suporte
Processamento
Funcionamento
deficiente de
ocupacional
estímulos sociais
Atitudes críticas ou
Eventos
emocionalmente Superestimulação do
estressantes da
superenvolvidas em ambiente social
vida
relação ao paciente
Loop de retorno
V
P
Recuperação
V P
Estável
P
V
Estabilização
P
V
Recaída
Fatores de proteção:
Habilidades sociais e de enfrentamento, trabalho,
apoio familiar, tratamento comunitário,
farmacoterapia otimizada, reabilitação.
Fonte: adaptada de Lieberman RP, 2008.107
Figura 6. Proteção e vulnerabilidade nos diferentes momentos da doença.
29
receptores NMDA, razão pela qual teria maior
Distúrbios neuroquímicos eficácia comparada a outros antipsicóticos.108
na esquizofrenia Outro neurotransmissor implicado na esqui-
O neurotransmissor que mais tem sido estu- zofrenia é a acetilcolina. A maior prevalência do
dado e implicado na esquizofrenia é a dopamina. tabagismo entre as pessoas com esquizofrenia
Ela surgiu dos estudos sobre o antagonismo de e achados recentes de que a nicotina pode
receptores D2, através do qual os antipsicóticos melhorar o desempenho dos pacientes em do-
exerciam seus efeitos terapêuticos, e dos efeitos mínios cognitivos reforçam que pode haver na
psicóticos de psicoestimulantes (p. ex.: anfeta- esquizofrenia uma disfunção do sistema nicotí-
minas), que aumentam a concentração de do- nico-colinérgico. Menores níveis de receptores
pamina no cérebro. O aumento de dopamina no muscarínicos e desregulação de receptores ni-
cérebro está associado aos sintomas positivos da cotínicos também já foram reportados em indi-
esquizofrenia, como delírios e alucinações.108 víduos com esquizofrenia. Recentemente, evi-
Um neurotransmissor que tem despertado dências de que agonista de receptores alfa-7
crescente interesse dos pesquisadores é o
nicotínicos pode ter um efeito positivo sobre os
glutamato. A quetamina e a fenciclidina, co-
sintomas cognitivos da esquizofrenia reforçam
nhecidos antagonistas de receptores NMDA
que este seja um potencial alvo terapêutico.108
(do sistema glutamatérgico), induzem sintomas
A serotonina foi implicada na esquizofre-
positivos e negativos da esquizofrenia em indi-
nia depois que se observaram efeitos psicóti-
víduos saudáveis, sugerindo que na esquizo-
cos provocados por drogas serotoninérgicas,
frenia também pode ocorrer hipofunção gluta-
como o LSD, e posteriormente os efeitos te-
matérgica. Agonistas de receptores NMDA vêm
sendo estudados para tratamento da esquizo- rapêuticos dos antipsicóticos atípicos ao blo-
30
Módulo V
Tratamento farmacológico
Objetivos
31
pesquisas foram interrompidas depois que oito parcial, oferecendo benefícios clínicos. Em si-
pessoas morreram devido à agranulocitose (que- tuações em que ocorre baixa concentração de
da de glóbulos brancos). Sua eficácia superior dopamina extracelular (p. ex.: circuitos dopa-
aos antipsicóticos típicos, inclusive para além minérgicos envolvidos na memória de trabalho
dos sintomas positivos, redução do comporta- no córtex dorsolateral pré-frontal), a molécula
mento suicida e agressivo, eficácia nos casos pode ocupar receptores adicionais e provocar
refratários e baixa incidência de efeitos extrapi- ativação parcial de receptores D2.112
ramidais (agudos e crônicos) e de hiperprolacti- O brexpiprazol é uma molécula similar ao
nemia ao tempo em que os efeitos adversos mais aripiprazol, aprovado para o tratamento da es-
graves, como agranulocitose, mostraram-se mais quizofrenia nos EUA em 2015, que também atua
raros do que inicialmente previstos, fizeram com como agonista parcial de receptores D2, porém
que a clozapina voltasse a ser utilizada em 1990 com menor atividade intrínseca no receptor D2
nos EUA e em 1991 no Brasil.78,111 e maior antagonismo no 5-HT2A, causando po-
Nos anos seguintes, esforços para desenvol- tencialmente menos efeitos adversos associa-
ver moléculas com perfil semelhante à clozapina, dos aos agonistas D2, como acatisia, insônia e
que não se associassem ao risco de agranulo- inquietação.113
citose, resultaram no surgimento de novas molé- Os antipsicóticos atípicos, por serem uma
culas, como amissulprida, risperidona, olanzapi- classe heterogênea de antipsicóticos, com
na, entre outras. Esse grupo de antipsicótico foi diferentes mecanismos de ação, possuem di-
chamado de atípico, pois causava menos efeitos ferenças significativas em relação a eventos
extrapiramidais, com doses de ação antipsicótica adversos. Merecem destaque efeitos de longo
bem separadas de doses que pudessem induzir prazo que podem ocorrer com alguns atípicos,
efeitos extrapiramidais. Nem todos possuíam o como obesidade, diabetes tipo 2, síndrome
mesmo mecanismo de ação da clozapina (bai-
metabólica e doenças cardiovasculares.110
xa afinidade D2 e 5-HT2A – p. ex.: ziprasidona e
quetiapina), a maioria possuía alta afinidade de
bloqueio de receptores de serotonina 5-HT2A e Antipsicóticos de longa ação
antagonismo D2, trabalhando como antagonista Antipsicóticos injetáveis de longa ação (LAI)
serotonina-dopamina. 112 devem ser considerados a principal aborda-
Um grupo de antipsicóticos com um meca- gem para o tratamento de pacientes que não
nismo de ação diferente dos atípicos surge a aderem totalmente ou aderem parcialmente ao
partir de 2002 com aripiprazol, o primeiro ago- tratamento medicamentoso.114
nista parcial de receptores D2, tornando-se o Inicialmente os LAI tinham uma base oleo-
primeiro “estabilizador de dopamina”. Em si- sa que era aplicada pela via intramuscular e
tuações em que há alta concentração extrace- ficava depositada no músculo à medida que
lular de dopamina (p. ex.: áreas mesolímbicas vinha sendo absorvida, por isso eram chama-
associadas a sintomas negativos), a proprie- dos de “medicações de depósito” (p. ex.: de-
dade agonista parcial do aripiprazol compe- canoato de haloperidol, enantato de flufenazi-
te com a dopamina e causa um antagonismo na e zuclopentixol depot). Os novos LAI usam
32
formulações hidrossolúveis que procuram ofe- paliperidona. Essa formulação possui a vanta-
recer uma dose equivalente à dose oral com gem de aumentar a área de superfície de ab-
absorção mais uniforme e rápida, de maneira sorção, permitindo a liberação da paliperidona
que o termo “depósito” não é mais apropriado. 115
a partir de um dia da aplicação e mantendo
O primeiro LAI de segunda geração surgiu uma taxa contínua de dissolução que resulta
em 2002, a risperidona de longa ação, microes- em meia-vida de 25 a 49 dias, permitindo a
feras biodegradáveis carregadas com risperi- aplicação mensal. A liberação rápida da pali-
dona suspensas em uma solução salina que, peridona também dispensa a suplementação
aplicada no músculo, libera risperidona no oral com antipsicóticos e torna a medicação
plasma a partir da terceira semana da injeção, eficaz também na fase aguda da doença.116
devendo ser reaplicada a cada duas sema- Outras apresentações de LAI contendo
nas. O estado de equilíbrio é alcançado após olanzapina (pamoato de olanzapina – aprova-
4 doses e é mantido por 4 a 6 semanas após a do pelo FDA em 2009) e aripiprazol (lauroxil
última injeção. A complementação com antipsi- de aripiprazol – aprovado em 2015) não estão
cótico por via oral deve ser realizada durante disponíveis no Brasil. Pamoato de olanzapina
as três primeiras semanas e as ampolas devem foi restringido nos EUA devido a fortes eventos
ser mantidas sob refrigeração. 115
adversos (sedação profunda e delirium após a
O segundo LAI atípico, palmitato de pali- aplicação em alguns pacientes).117-119
peridona, surgiu em 2009 nos EUA e foi dis- A seguir apresentamos três tabelas con-
ponibilizado no Brasil em 2012 (paliperidona tendo informações sobre os antipsicóticos co-
é um metabólito ativo da risperidona, disponi- mercializados no Brasil (Tabela 4), com os prin-
bilizado na forma oral desde 2006). Trata-se cipais efeitos adversos comentados (Tabela 5)
de uma suspensão aquosa com moléculas de e com outros medicamentos utilizados no tra-
nanocristais contendo éster de palmitato de tamento adjuvante da esquizofrenia (Tabela 6).
Tioridazina Melleril® Comp. 25, 50, 100 e 200 mg (oral), líquido 30 mg/mL
com dosador em mg (oral)
33
Nome Apresentações
Classe Substância referência (via de administração)
Trifluoperazina Stelazine ®
Comp. 2 e 5 mg (oral)
Paliperidona Invega ®
Comp. 3, 6 e 9 mg (oral)
Invega Sustenna® LAI - ampola de 50, 75, 100 e 150 mg para uso IM
1x por mês
Lurasidona Latuda ®
Comp 20, 40, 60, 80, 120 mg
Distonia aguda Contração sustentada e involuntária de A distonia pode ocorrer de forma cíclica, com intervalos de normalidade,
um ou mais grupamentos musculares o que pode sugerir simulação por parte do paciente.
(pescoço, boca, língua, braço, coluna, A crise de virar os olhos para cima é a que mais comumente pode
olhos). Exemplos: ser interpretada desta forma. Contudo, as distonias causam intenso
- Virar os olhos para cima desconforto físico e podem deixar o paciente mais agitado. Ansiedade
- Ficar com pescoço torto também pode precipitar uma crise desse tipo, reforçando a impressão
- Ficar com a boca aberta e com a língua de se tratar de simulação. Alguns casos de maior gravidade podem
enrolada ou para fora necessitar de atendimento emergencial.
- Ficar com a coluna envergada
- Ter dificuldade para deglutir e para respirar
34
Efeito colateral Descrição Comentários
Acatisia Movimentos repetitivos e involuntários, A acatisia é frequentemente acompanhada por ansiedade, irritabilidade ou, até
geralmente das pernas, fazendo com mesmo, agitação. O paciente pode ter dificuldade para pegar no sono por não
que o paciente fique andando muito ou conseguir permanecer deitado muito tempo, embora esse sintoma desapareça
marchando parado, tenha dificuldade para enquanto o paciente dorme. O familiar muitas vezes não compreende o caráter
permanecer sentado muito tempo ou fique involuntário desses sintomas e briga com o paciente para que fique parado,
balançando os pés e as pernas sem parar. o que gera mais estresse e piora os sintomas.
Parkinsonismo Caracterizado por um ou mais sintomas Esses sintomas são popularmente conhecidos como efeitos da
do tipo: impregnação do antipsicótico. Os pacientes têm sensibilidade distinta para
- Tremores de repouso em uma ou ambas esses sintomas, sendo mais comuns em idosos, pacientes emagrecidos
as mãos, da cabeça ou dos lábios ou mais fragilizados fisicamente. Eles devem ser reportados ao médico,
- Movimentos lentos pois existem medicações que aliviam esses efeitos. Os antipsicóticos
- Redução ou ausência de expressão também possuem diferenças em relação ao potencial de causar
facial parkinsonismo. Em casos graves, pode se tornar uma emergência médica,
- Dificuldade para iniciar um movimento, podendo levar à desnutrição e desidratação.
desequilíbrio e marcha de pequenos
passos.
- Rigidez muscular
- Excesso de saliva
- Ausência completa de movimentos,
semelhante à catatonia
Discinesia tardia Distonias que aparecem tardiamente em O tipo mais comum é caracterizado por movimentos com a boca e a
pacientes que usam antipsicóticos por língua, dando a impressão de o paciente estar sempre mastigando ou com
um longo período. São caracterizadas a fala embolada. Pode ocorrer também no quadril e na coluna, levando a
por uma contratura persistente de um ou uma postura entortada ou a um andar arrastado, e nas pálpebras, fazendo
mais grupamentos musculares ou por com que ele pisque demais ou tenha dificuldade para abrir os olhos
movimentos repetitivos involuntários. (“pálpebras pesadas”). Se identificada precocemente, pode ser prevenida.
Síndrome Neuroléptica Reação sistêmica ao antipsicótico, que Trata-se de uma emergência médica, devendo o paciente ser levado
Malígna pode ocorrer independentemente do tempo imediatamente ao médico. Se não tratado, o quadro pode evoluir para
ou da dose de uso da medicação, evoluindo insuficiência renal, arritmias cardíacas, convulsões e coma, com uma taxa
rapidamente, em algumas horas ou dias, de mortalidade de 50%. Alguns casos precisam de internação em CTI para
para um quadro de rigidez muscular cuidados intensivos. Existem medicações capazes de reverter o quadro.
generalizada, febre alta (normalmente acima O familiar deve estar atento à ocorrência de rigidez muscular associado
de 40º C), confusão mental, taquicardia, à febre e procurar logo um hospital de emergência para uma avaliação
sudorese, palidez, aumento ou queda da médica. Ele não pode se esquecer de avisar ao médico sobre os
pressão arterial. É um quadro raro, mas que medicamentos que o paciente está usando.
deve despertar a atenção dos familiares pela
gravidade e possíveis complicações.
Efeitos cardíacos Arritmias cardíacas em pacientes Esse efeito é mais comum entre os antipsicóticos de primeira geração de
com doença cardíaca ou distúrbios de baixa potência, mas podem ocorrer com alguns de alta potência e com os
condução cardíaca (arritmias). de segunda geração. A dose do antipsicótico influencia o risco de arritmia,
sendo mais comum em doses elevadas ou em casos de superdosagem
(pacientes que ingeriram a medicação em excesso). Pacientes idosos e
cardiopatas devem ser avaliados pelo cardiologista e acompanhados por
eletrocardiogramas (ECG) para reduzir o risco de arritmias.
Hipotensão ou queda Redução da pressão, provocando tonteira, O paciente pode sentir-se mal ao levantar rapidamente da posição deitada,
da pressão arterial escurecimento da visão, taquicardia e, o que é conhecido como hipotensão postural, que normalmente melhora
raramente, desmaio. quando o paciente se levanta lentamente e espera um pouco antes de
ficar de pé. Outros fatores podem contribuir para esse efeito, como
desidratação e má alimentação (melhor ingestão de sal). Por isso, os
pacientes devem ingerir líquidos e se alimentar em horários regulares.
Alterações visuais - Visão embaçada, dificultando a leitura Os antipsicóticos de baixa potência e medicações para reduzir os efeitos
para alguns pacientes da impregnação (como biperideno e prometazina) podem dificultar a
- Crise de glaucoma para quem tem a doença visão, mas esse efeito desaparece com a redução ou suspensão do
medicamento. Portadores de glaucoma devem avisar o médico.
Alterações cutâneas - Rash cutâneo (manchas ou pápulas O rash cutâneo pode ocorrer no início do tratamento com qualquer
avermelhadas pelo corpo) antipsicótico, desaparecendo com a suspensão. No caso de
- Hipersensibilidade à luz solar, hipersensibilidade ao sol, deve-se usar protetor solar nas áreas expostas.
provocando o escurecimento da pele ou
queimaduras de sol
35
Efeito colateral Descrição Comentários
Aumento do colesterol - Aumento do colesterol ruim (LDL) Pode ocorrer transitoriamente com alguns antipsicóticos, na maioria das
e das gorduras do - Aumento dos triglicerídeos vezes retornando ao normal após alguns meses. Dieta e medicações para
sangue reduzir o colesterol podem ser necessários.
Ganho de peso e - Aumento do peso corporal e ca O ganho de peso ocorre por múltiplos fatores: aumento do apetite, dietas
obesidade circunferência abdominal hipercalóricas, sedentarismo, pouca adesão a programas alimentares
e de atividades físicas. Ele pode ocorrer com qualquer antipsicótico,
principalmente nos primeiros seis meses de uso. A obesidade está
relacionada a um maior risco de doenças como diabetes, hipertensão e
doenças cardíacas.
Alterações hormonais - Aumento de prolactina A prolactina é um hormônio secretado pela hipófise e que tem como
- Crescimento de seios nos homens função estimular a produção do leite materno em mulheres grávidas e
(ginecomastia) puérperas em fase de amamentação. O seu aumento está associado ao
- Secreção de leite pelo seio da mulher uso de alguns antipsicóticos, particularmente os de primeira geração,
(galactorreia) e pode levar à ginecomastia e impotência sexual nos homens e à
- Supressão das menstruações ou galactorréia e parada na mesntruação em mulheres. Esses efeitos são
irregularidades menstruais revertidos quando a prolactina retorna aos níveis normais.
Efeitos hematológicos - Redução dos glóbulos brancos O risco é muito baixo, inferior a 1%. A clozapina ficou famosa por esse
(leucócitos) do sangue efeito, sendo preconizado que pacientes em uso da subastância sejam
submetidos a hemogramas semanais nas primeiras dezoito semanas
de tratamento e depois mensalmente. Porém, outros antipsicóticos,
principalmente os de primeira geração e de baixa potência, como a
clorpromazina e a tioridazina também podem causar esse efeito. O uso
desses antipsicóticos torna-se bastante seguro quando realizados os
exames seriados. Os benefícios terapêuticos da clozapina são superiores
ao risco, não devendo ser esse um empecilho para o seu uso.
Efeitos hepáticos - Aumento de transaminases (TGO, TGP), Podem ocorrer elevações transitórias das enzimas do fígado, mas que
gama-GT e fosfatase alcalina (enzimas com o decorrer do tratamento retornam aos níveis normais. Na maioria
do fígado) dos casos não é preciso suspender o antipsicótico, apenas acompanhar
- Esteatose hepática os níveis enzimáticos por exames de sangue periódicos. Esteatose
- Hepatite medicamentosa hepática pode ocorrer quando há aumento de colesterol. Hepatite
medicamentosa raramente ocorre.
Efeitos - Náuseas e vômitos Náuseas e vômitos (mais raramente) podem ocorrer no início do
gastrointestinais - Boca seca tratamento, mas depois desaparecem. Boca seca é um efeito mais
- Prisão de ventre duradouro e que provoca mais desconforto. Ele pode ser atenuado através
de um drops (preferencialmente diet para não causar cáries ou ganho de
peso) ou de salivas artificiais vendidas nas farmácias em forma de spray.
Os pacientes tendem a beber muita água para aliviar esse sintoma, mas
essa medida não parece ser muito eficaz no controle desse efeito. A boca
seca também pode diminuir no decorrer do tratamento à medida que o
organismo for se adaptando à medicação. Aliada à falta de higiene bucal
adequada ela é a principal explicação para cáries, gengivites e outros
problemas odontológicos em pacientes esquizofrênicos. Em relação à
prisão de ventre, uma dieta rica em fibra e o uso de laxantes naturais em
momentos de maior dificuldade são geralmente suficientes e normalizam o
trânsito intestinal.
Efeitos urogenitais - Retenção urinária Enquanto a retenção urinária costuma ser uma queixa maior em pacientes
- Impotência sexual (disfunção erétil) idosos e do sexo feminino, a impotência sexual é uma queixa frequente
dos pacientes jovens e do sexo masculino.
36
Tabela 6. Outros medicamentos utilizados no tratamento da esquizofrenia
Medicamentos
Classe Objetivos Principais efeitos colaterais
(substância ativa)
Estabilizadores de Carbonato de lítio Tratar as alterações de humor, como Os efeitos colaterais variam de acordo com a
humor Ácido Valproico euforia, irritabilidade, bem como reduzir o medicação utilizada, sendo comum efeitos como
Oxacarbazepina grau de impulsividade e agressividade. sonolência, náuseas, tonteiras, particularmente
Carbamazepina no início do tratamento.
Lamotrigina
Antidepressivos Amitriptilina Tratar quadros depressivos associados à Os efeitos colaterias variam muito, dependendo
Imipramina esquizofrenia. da medicação utilizada. Em todos os casos
Nortriptilina existe um risco de piora dos sintomas positivos,
Clomipramina como os delírios e alucinações, quando
Fluoxetina antidepressivos são utilizados.
Sertralina
Citalopram
Paroxetina
Fluvoxamina
Escitalopram
Mirtazapina
Venlafaxina
Bupropiona
Duloxetina
Outros
37
Módulo VI
Tratamentos psicossociais
Objetivos
1. Explicar os princípios que devem nortear os serviços de saúde mental diante do paradigma da recuperação pessoal;
3. Explicar os diferentes tratamentos disponíveis para a família, para o paciente e com a participação de pares em recuperação;
5. Conversar sobre estigma e refletir sobre iniciativas que possam combater o preconceito;
A estrada que leva à recuperação é o trata- desempenharem melhor suas habilidades cog-
mento médico e a reabilitação psiquiátrica. Eles nitivas, emocionais, sociais, intelectuais e físi-
são indissociáveis, uma vez que a esquizofrenia cas necessárias para viver, aprender, trabalhar
requer um tratamento mais abrangente e multi- e funcionar na comunidade de maneira mais
disciplinar, para além dos medicamentos. São normal e independente possível, com menor
como se fossem as duas faces de uma mesma interferência dos sintomas (Tabela 7).107
moeda. O objetivo é oferecer aos pacientes a
máxima oportunidade de se recuperarem para Tabela 7. Os 10 “Cs” – princípios fundamentais para a
melhor prática da reabilitação psiquiátrica
uma vida mais normal quanto possível. Isso
implica oferecer acesso a responsabilidades e 1. Compreensivo;
privilégios que qualquer cidadão tem em sua
2. Contínuo;
comunidade, no âmbito social, vocacional e
recreacional. A reabilitação conecta esses ob- 3. Coordenado;
mental. A reabilitação varia na forma, na inten- 7. Competência em usar tratamentos baseados em evidência;
sidade e na duração das intervenções, depen-
8. Conectado às qualidades e habilidade e não aos déficits do
dendo do nível de funcionamento pré-mórbido, paciente;
da velocidade de progresso e das perspectivas
9. Compassivo;
de recuperação de cada paciente, mas todos
irão se beneficiar de alguma forma. Isso porque 10. Cooperativo com os recursos comunitários e com os gestores.
a reabilitação psiquiátrica deve oferecer um le-
que de serviços que permitam aos pacientes Fonte: adaptada de Lieberman RP, 2008.107
38
Portanto, dentro da perspectiva da recupera- seus direitos e a viver uma vida plena,
ção pessoal, é esperado que os serviços ofere- ou seja, criar serviços que apoiem e es-
çam tratamentos personalizados, abrangentes e timulem a independência e a autodeter-
baseados na melhor evidência científica, assegu- minação. Isso inclui enfrentar o estigma
rando acesso ao melhor tratamento possível para e a discriminação e promover o bem-
todos os pacientes. Permitindo que cada pessoa -estar social, produzindo a integração
desenvolva seus valores e objetivos pessoais, os com a comunidade fora do ambiente
pacientes irão se diferenciar na sua progressão dos serviços de saúde mental. A recu-
no continuum entre o desajuste e a recuperação, peração deve ser acompanhada pela
mas todos estarão incluídos na estrada da recu- luta contra o estigma e a discriminação
peração pessoal. 107
e a favor da igualdade de oportunida-
Esses tratamentos devem estar centrados de, liberdade e de acesso à diversão,
nos objetivos pessoais (aspirações, desejos) e assim como os demais cidadãos. Isso
não nos objetivos do tratamento em si (evitar parte da constatação de que usuários
que coisas ruins aconteçam, como hospitaliza- permanecem excluídos de muitos as-
ção e recaída). Eles pregam o inverso de algu- pectos da vida e que é preciso que se
mas suposições tradicionais: “a doença mental organizem em grupos para lutar pelos
é apenas um estado em que a pessoa se en- seus direitos.
contra, ao invés da pessoa resumir-se a uma • Maior envolvimento dos usuários na or-
doença psiquiátrica” e “ter um papel na socie- ganização dos serviços: os serviços não
dade ajuda a melhorar os sintomas e a reduzir se restringem à infraestrutura e à qualida-
hospitalizações, ao invés de precisar aguardar de, mas precisam balancear as tensões
que a pessoa atinja a remissão dos sintomas entre as prioridades dos pacientes e as
para assumir suas responsabilidades”. Os ob- expectativas mais amplas da comunida-
jetivos de recuperação são formulados pelo de. As pessoas com doença mental, seus
indivíduo, enquanto o suporte para que esses familiares e cuidadores são estimulados a
objetivos aconteçam vem dos tratamentos, ao contribuir com o desenvolvimento, a prá-
invés de simplesmente impor os objetivos para tica e a avaliação dos serviços de assis-
o paciente cumprir. 107
tência. Pessoas em recuperação podem
Pesquisadores analisaram 498 textos a par- contribuir compartilhando suas histórias
tir de 30 documentos práticos e de políticas de com outros usuários, servindo de modelo
saúde mental de seis países – EUA, Inglaterra, de empoderamento, responsabilidade e
Escócia, Irlanda, Dinamarca e Nova Zelândia, autodeterminação.
levantados através de uma revisão da literatu- • Serviços que suportem a recuperação
ra. Quatro domínios práticos foram descritos como definida pelo usuário: integrar as
como sendo fundamentais como norteadores experiências subjetivas do adoecer com
dos serviços de saúde mental:120 as práticas baseadas em evidências.
• Promover a cidadania: capacitar as pes- • Relacionamento em parceria: tera-
soas com transtorno mental a exercitar peutas e pacientes devem buscar um
39
relacionamento terapêutico, mas, so- individuais, reduzindo a sensação de iso-
bretudo, verdadeiro e sincero. Os pro- lamento. A facilidade de acesso aos téc-
fissionais devem incorporar esta visão nicos, o retorno às solicitações e ligações
de recuperação na sua concepção de e um contato regular e contínuo ao menos
saúde-doença com uma visão ecológi- com um profissional da equipe são lista-
ca, considerando mais o contexto de dos como possíveis soluções.
vida, o ambiente e os relacionamentos • Valoração da identidade e da experiência
entre as pessoas e seu ambiente no cui- do cuidador: existe uma expectativa por
dado à saúde. Deve-se priorizar a toma- parte do cuidador de que sua experiên-
da de decisão do usuário e apoiar suas cia e seu papel sejam reconhecidos e
escolhas, resguardando o seu direito de valorizados pela equipe de saúde mental.
correr riscos e fracassar. Quando isso não acontece, cuidadores
sentem-se desempoderados e alienados.
40
envolvendo-se mais nas decisões. Isso duas etapas: uma primeira informativa, através
também contribui para reduzir a sensa- de seminários sobre a doença e outra em grupos
ção de isolamento e a sobrecarga. de familiares para identificação e debate sobre
• Informação clara e compreensível: a os principais problemas enfrentados por eles.
informação não é oferecida ou nem Nesta segunda etapa são aplicadas as técni-
sempre vem no momento certo da ne- cas de solução de problema e de facilitação
cessidade do cuidador (p. ex.: primeiro da comunicação entre o cuidador e o paciente,
episódio ou internação). O material im- que capacitam e empoderam as famílias para
presso pode ser útil, porém nem sempre um cuidado mais assertivo, com menor nível de
é claro ou pode ser opressivo para ser estresse e sobrecarga. Os programas podem
lido sozinho pelo familiar. Os cuidadores ser mistos, incluindo os pacientes nas reuniões,
defendem que a informação deve ser ou somente os familiares.
ofertada de forma proativa, preferencial- A psicoeducação ampliada se mostrou mais
mente antes de uma crise ou tão logo eficaz do que a psicoeducação standard, quan-
o tratamento seja iniciado. Antecipar as do somente as informações são oferecidas.
informações é uma forma de reduzir o Outras formas de apoio ao cuidador são grupos
estresse e a sobrecarga, particularmen- de suporte par a par (com ou sem a participa-
te na ocorrência de uma crise. ção de técnicos) e intervenções de autoajuda,
• Acesso aos serviços de saúde: falta de através de material impresso, websites e vídeos
conhecimento da rede de atendimento, de apoio ao cuidador.
a sensação de ser “jogado” de um ser- Entre as recomendações de consenso
viço a outro, a dificuldade em contactar estão:
as pessoas certas e a falta de flexibili- • Oferecer aos cuidadores uma avalia-
dade de horários são apontados pelos ção sobre suas próprias necessidades
cuidadores como fatores que aumentam e discutir com eles seus pontos de vis-
a sensação de desamparo e estresse, ta e sua força para o cuidado com o
por exemplo, por não saberem quem paciente.
procurar numa situação de crise. Eles • Fornecer informação verbal e impressa
apontam para a necessidade de maior sobre a doença numa linguagem aces-
flexibilidade de horários, atendimento sível, oferecendo suporte mais indivi-
próximo à residência e disponibilidade dualizado se necessário.
de grupos de suporte a cuidadores. • Estimular a colaboração entre serviços
de saúde mental, cuidador e paciente,
A intervenção sobre o cuidador e a família respeitando suas necessidades indivi-
com maior nível de evidência é a psicoeducação duais e a interdependência.
ampliada. Além de oferecer informações sobre • Oferecer programa de psicoeducação
a doença, esses programas oferecem suporte que contenha uma mensagem positiva
às famílias através de técnicas de comunicação sobre recuperação pessoal com foco
e solução de problemas. Geralmente possuem no cuidador.
41
(Hearing Voices Network) e Comunidade de
Intervenções providas por Fala, com o objetivo de melhorar a habilidade de
pares (peer-support) manejo da doença e dos sintomas. Programas
como: A Voz dos Usuários,124 Projeto Transver-
Suporte por pares reúne diferentes modelos
sões,125 Grupo de Acolhimento de Portadores126
que têm em comum pacientes mais empodera-
e Programa Entrelaços127 incluem uma mensa-
dos e em processo mais avançado de recupera-
gem positiva sobre a esquizofrenia, procurando
ção pessoal, oferecendo apoio a outros pacientes,
transmitir esperança, municiam o paciente com
servindo a eles de exemplo de recuperação.123
informações sobre a doença (psicoeducação)
A forma mais comum são grupos de pares,
e com estratégias de enfrentamento e habilida-
onde ocorrem relacionamentos recíprocos en-
tre pacientes em diferentes estágios de recu- des para administrar as mudanças de vida.123-130
peração, um apoiando o outro. Essa iniciativa Têm foco na prevenção de recaídas, na decisão
é vista por eles como paradigmática, à medida compartilhada sobre o tratamento, no manejo
que rompe com valores tradicionalmente as- de sintomas psicóticos mais persistentes, nas
sociados aos serviços de saúde mental, como metas e objetivos pessoais para a recuperação
parte dos profissionais e experiências negativas foco no bem-estar, como dieta, exercícios, uso
(p. ex.: internação). O suporte por pares valoriza de drogas, saúde financeira, comunicação, re-
o conhecimento do paciente através de sua ex- lacionamentos, organização e trabalho de casa.
periência sobre o adoecer e como ele vivencia Estudos têm demonstrado que esses programas
seu tratamento, provocando uma mudança na contribuem para redução de sintomas positivos
cultura dos serviços e nas atitudes dos profis- e negativos, do risco de internação e para o em-
sionais. São iniciativas que semeiam esperança, poderamento dos pacientes.122
possuem uma visão mais positiva sobre a doen-
ça e otimista sobre a recuperação e desenvolvem Tratamento comunitário
estratégias mais eficientes de enfrentamento dos
problemas e de recuperação pessoal, centradas assertivo
no empoderamento do indivíduo, no desenvol- Trata-se de atendimento integral com uma
vimento de sua autoeficácia e sendo terapêu- equipe multidisciplinar, que se envolve em to-
tica também para o par que lidera (conceito de das as áreas de cuidado ao paciente, dispo-
“terapeuta ajudante”). Tem sido crescente o nú- nível por 24 horas, 7 dias por semana, para
mero de pacientes empregados por serviços de atuar na comunidade, como na casa do pa-
saúde mental para atuarem como pares e partici- ciente, no local de trabalho, etc. O tratamento
parem ativamente da equipe terapêutica.123 permite o acompanhamento mais próximo do
No Brasil e no Reino Unido, pares vêm utili- paciente e de suas necessidades, aumentan-
zando programas estruturados de recuperação do a adesão e reduzindo as hospitalizações.
pessoal, como o Plano de Ação para Recupe- Prioriza os casos mais graves e mais com-
ração e Bem-Estar (WRAP – Wellness Recovery plexos, por terem uma relação paciente-staff
Action Plan), Rede de Ouvidores de Vozes menor (10:1).122,131
42
Estão incluídas no tratamento comunitário ser utilizada como último recurso, com a necessi-
as alternativas à internação de pacientes agu- dade de explicar ao paciente a decisão tomada.
dos, como hospital-dia, casas que acolhem o A aliança terapêutica deve ser priorizada mes-
paciente em crise como alternativa à hospitali- mo que haja uma recaída, utilizando o princípio
zação e equipes de saúde mental treinadas em da redução de danos, compreendendo a recaí-
resolução de crise que tratam o paciente em da como parte da evolução natural da doença e
sua casa ou em moradia assistida, combinan- não culpabilizando o paciente pela não adesão.
do cuidados de saúde e assistência social.132 Afirmações como “eu sabia que você ia recair”
Há evidências de que o tratamento comunitá- ou “eu te avisei” devem ser evitadas para faci-
rio assertivo reduz os sintomas, aumenta a ade- litar o retorno do paciente ao tratamento. Uma
são à medicação, aumenta os dias em moradias forma de normalizar esse processo é descrever
comunitárias e reduz moradias de rua, além de a não adesão como um “experimento” aberto a
trazer maior satisfação com o tratamento por par- novos aprendizados e reflexões. A conversa so-
te do paciente e de seus familiares.131 bre adesão deve ser pautada sob um diálogo de
como alcançar melhores resultados dentro dos
objetivos do paciente e não tratada como sim-
Intervenções para melhorar ples obediência à prescrição médica.133
a adesão
Terapias de adesão são terapias breves, de Arteterapia
quatro a oito sessões, focadas na adesão, na Terapias que utilizam a arte (pintura, teatro,
redução do estigma, na solução de problemas música, dança) para trabalhar a expressão, a
relacionados à medicação, utilizando técnicas comunicação, a autoconsciência e estimular a
de entrevista motivacional.122 conexão social. Estudos têm demonstrado que
Uma aliança terapêutica forte, otimizando a a arteterapia possui moderado a alto nível de
eficácia do tratamento médico ao tempo em que evidência, particularmente em relação à melho-
se minimiza o desgaste causado pelos efeitos ra de sintomas negativos.122
adversos, é um dos aspectos mais importantes
no manejo do paciente para assegurar sua ade-
são. Essa aliança deve se iniciar com o foco nos
Terapia cognitivo-
objetivos em comum entre médico e paciente comportamental
para o tratamento. A discussão sobre adesão A terapia cognitivo-comportamental para
deve ser colocada como desejo do médico para psicose (TCCp) é uma técnica de psicoterapia
alcançar os objetivos em comum e não como individual que visa estabelecer conexões entre
medida de controle ou cerceamento. O médico os pensamentos, sentimentos e ações do pa-
deve tentar sempre manter a discussão sobre ciente, estimulando a reavaliação de suas per-
adesão de maneira positiva e procurar reforçar a cepções e crenças, maior consciência sobre
aliança, mesmo que haja por parte do paciente os sintomas e desenvolvimento de habilidades
discordâncias sobre a necessidade de medica- de enfrentamento e redução do estresse, me-
ção. Caso a coerção seja necessária, ela deve lhorando o nível de resiliência.122
43
O conteúdo da terapia envolve identificar as habilidades sociais e de vida diária. Pode ser
experiências aberrantes e os pensamentos es- realizada individualmente ou em grupo e as
tressantes, compreender como se desenvolve- evidências vêm aumentando substancialmen-
ram e trabalhar para dar um sentido às crenças te, com melhora de funções cognitivas, como
que deles resultam. Compreende desenvolver memória, aprendizado e raciocínio, melhora da
uma capacidade cognitiva de automonitora- capacidade de solução de problemas do coti-
mento para identificar vieses de pensamento, diano e do funcionamento social.122,139
processos emocionais e crenças centrais so-
bre si e sobre os outros e relacionar os pensa-
mentos com o humor e com o comportamento.
Treinamento de
Detalhes sobre a técnica podem ser obtidos habilidades sociais
em manuais sobre TCCp.134-136 Habilidades sociais compreendem um re-
A TCCp tem moderado a alto nível de evi- pertório de habilidades que utilizamos para
dência em relação à redução das hospitaliza- responder adequadamente aos ambientes so-
ções, à melhoria dos sintomas, inclusive os de- ciais, sendo capazes de perceber e analisar o
pressivos e as alucinações, e do funcionamento que cada ambiente oferece em particular como
social. Ela é recomendada pelos principais norma (cultural e situacional) de comportamen-
guidelines de tratamento da esquizofrenia e to. A adaptação ao ambiente social envolve
deve ser oferecida a todos os pacientes. Contu- reforços que cada situação social exerce em
do, ela ainda é pouco priorizada pelos serviços nossa habilidade ao longo da vida, aumentan-
de saúde mental, faltam terapeutas habilitados do o repertório de habilidades e a competência
e existe dificuldade por parte dos profissionais social de cada um (aprendizado de comporta-
de elegerem os pacientes para esse tipo de mentos sociais).140
tratamento.122,131,137 Na esquizofrenia ocorre dificuldade em ha-
bilidades sociais que podem ser decorrentes
44
e um melhor funcionamento em tarefas comu- não estiverem prontos, mas desejarem trabalhar,
nitárias. Há evidência de que pode melhorar oferecer treinamento vocacional.122,131
sintomas negativos.122,131
Intervenções sobre o
Reabilitação vocacional estilo de vida
Existem dois tipos principais de intervenção:
Programas voltados para o bem-estar e
suporte ao emprego e treinamento vocacional.
qualidade de vida, como atividades físicas, ali-
Suporte ao emprego (individual placement
mentação saudável e tratamento do tabagismo
support – IPS) consiste em colocar o pacien-
devem ser oferecidos como parte do progra-
te em vaga de emprego competitivo tão logo
ma de reabilitação. Técnicas comportamentais
ele manifeste o desejo de trabalhar, oferecendo
e motivacionais são utilizadas para estimular o
suporte contínuo enquanto ele estiver empre-
engajamento e a conscientização dos pacien-
gado, por um time multidisciplinar, que inclui
tes e possibilitar mudanças de hábitos e aquisi-
um especialista em saúde mental e um em em-
ção de novas habilidades.122,131
prego. O paciente começa trabalhando poucas
Aos pacientes que estiverem obesos
horas por semana e vai aumentando gradati-
(IMC > 30) ou no sobrepeso (IMC = 25-29) deve
vamente a quantidade de horas trabalhadas,
ser oferecido programa que inclua aconselha-
até 20-25 horas por semana. Alguns chegam a
mento nutricional, informação sobre o gasto
trabalhar em carga horária plena.122,131,139
calórico e o controle da porção de comida, mo-
Há evidências de que essa forma de reabi-
nitoramento do peso, da dieta e dos níveis de
litação para o trabalho seja mais eficaz do que
atividade física diária.131
trabalho protegido, com o paciente permane-
Para os pacientes tabagistas, oferecer pro-
cendo mais tempo no emprego e com maior
gramas que ajudem a reduzir ou abolir o cigar-
quantidade de horas trabalhadas por semana,
ro, considerando uso de terapias de reposição
sem piora dos sintomas.139
de nicotina (adesivos, gomas de mascar, pas-
O treinamento vocacional consiste num grupo
tilhas ou spray) e/ou medicamentos (p. ex.: bu-
de intervenções para preparar o paciente para o
propiona e vareniciclina), associados a suporte
trabalho, incluindo treinamento de habilidades,
psicológico individual ou em grupo.122
remediação cognitiva e terapia cognitivo-com-
portamental. O paciente pode ser depois aloca-
do em um emprego competitivo ou em coopera- Combate ao estigma
tivas de trabalho ou em trabalhos protegidos.122 O combate ao estigma e a advocacia são
A recomendação é que todo paciente que elementos centrais. O estigma desencoraja pa-
deseje trabalhar seja inserido em um programa cientes e familiares a procurarem tratamento,
de reabilitação vocacional. Para aqueles que se os exclui do convívio social e alimenta fal-
julgarem prontos para o retorno ao mercado de sas crenças na sociedade, como violência,
trabalho, oferecer retorno através de um progra- imprevisibilidade e intratabilidade. As pessoas
ma de suporte ao emprego; para aqueles que atingidas pelo estigma experimentam vergonha,
45
rejeição, sentem-se desvalorizadas e têm sua au- Entretanto, este conceito tem sido questiona-
toestima combalida. Lutar pelos seus direitos e do pela comunidade científica como a única
igualdade de oportunidades muitas vezes reside fórmula antiestigma, pois pode passar a im-
mais no campo da advocacia do que da clínica, pressão de que a esquizofrenia é uma doen-
sendo importantes as organizações de familiares ça imutável, que caminha inevitavelmente para
e pacientes para aumentar sua representativida- um estado mais grave e crônico. Isso pode re-
de nos conselhos de saúde, na Defensoria e no forçar alguns preconceitos, como o de que o
Ministério Público e nas Câmaras Legislativas. 141
tratamento em nada adiantará e que a pessoa
Na esperança de reduzir o estigma, se tornará dependente e incapaz, contribuindo
campanhas em vários países vêm reforçando os para um maior distanciamento social e exacer-
aspectos biológicos e genéticos da esquizofrenia, bação da resistência à doença mental.142
promovendo o conceito de que a esquizofrenia Pesquisadores da Universidade de Marburg,
é uma “doença como qualquer outra”. Conceitos Alemanha, publicaram um artigo em que pro-
como “a esquizofrenia é causada por uma põem um programa antiestigma “multifatorial”,
combinação de fatores genéticos e ambientais que inclua, além dos aspectos biológicos e ge-
ao longo do desenvolvimento da pessoa”, néticos, fatores psicológicos e sociais, como
“o cérebro das pessoas com esquizofrenia é eventos da vida da pessoa, estressores do dia
diferente do cérebro de pessoas sem a doença”, a dia, comunicação familiar e traumas, como
“genes que aumentam o risco de esquizofrenia fatores de risco para o adoecimento e recru-
já foram identificados”, “alterações na estrutura descimento da esquizofrenia. Argumentam que
cerebral e em neurotransmissores estão por fatores psicossociais podem ajudar a reduzir
trás da doença”, “a predisposição é herdada, estigmas que não são atingidos pelo modelo
mas existem fatores como complicação durante biológico, como as possibilidades de recupera-
a gestação e o parto e exposição pré-natal ção da pessoa e a importância dos tratamentos
a vírus que podem servir de gatilho” têm sido médico e psicossocial para a mudança do des-
empregados por programas como o “Mudando fecho da doença.142
Mentes” (Changing Minds, Royal College of A disseminação dessas ideias na comuni-
Psychiatrists, Inglaterra), “Abrindo as Portas” dade, através de campanhas na mídia, inser-
(Open the Doors, World PsychiatricAssociation, ções no rádio e TV, cartazes em transportes
EUA), e o programa do NAMI (National Alliance coletivos, divulgação da informação em es-
on Mental Illness, EUA).142 colas e outros espaços comunitários ajuda a
O conceito de doença biológica tem ajuda- combater o estigma ao se apresentar a esqui-
do a reduzir a culpa da família e o sentimento zofrenia sob esse novo olhar. O depoimento
de fracasso do paciente, uma vez que a doen- de pares recuperados, que se tornam exem-
ça é atribuída a fatores fora do seu controle. plos de superação, pode contribuir também
Esta abordagem parece reduzir o estigma na redução do estigma, ao mostrar que uma
e fazer as pessoas encararem a doença de pessoa com esquizofrenia pode levar uma
forma mais positiva, sem culpar o indivíduo. vida normal como qualquer outra.
46
Módulo VII
Situações especiais
Objetivos
47
prejuízos funcionais importantes, sintomas positi- das vezes desesperançosos, dependentes e
vos causando comportamentos de risco ou caó- desengajados pelo medo, incompreensão, de-
tico, humor deprimido e desesperança, abuso de sinformação e passividade que o adoecimen-
substância e estresse social, seja por perda de to provoca. É de responsabilidade dos profis-
suporte social ou por mudanças no ambiente so- sionais e dos serviços elaborar e implementar
cial (p. ex.: perdas na família, rompimentos afeti- seus programas de forma a motiva-los e tornar
vos, mudança de casa). O risco nessas situações regra a participação ativa deles.
aumenta na presença de tentativas de suicídio Quando as famílias são engajadas em pro-
prévias, baixa adesão ao tratamento e impulsivi- gramas de reabilitação que oferecem a elas
dade/agressividade. 147
informação sobre a doença e que praticam
Entre as medidas de tratamento estão: ofe- com elas habilidades de comunicação e solu-
recer um local com supervisão e intervenção ção de problemas, as taxas de recaída caem
de crise (p. ex.: serviços-dia, residência assis- pela metade ou um terço. Porém, quando fa-
tida, hospitalização), suporte e orientação à fa- mílias são negligenciadas pelos serviços ou
mília (p. ex.: limitar acesso a armas potenciais, pelos profissionais, a escalada do estresse
referências para uma situação de emergência), pode inviabilizar a recuperação do paciente.
tratamento para redução de sintomas psicóti- Trocando em miúdos, famílias abastecidas
cos e depressivos e assistência social.147 com o conhecimento, com habilidades de
enfrentamento, comunicação e solução de
Conclusão problemas conferem benefícios protetores à
48
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