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Narrativas Midiáticas
Contemporâneas
Sujeitos, Corpos e Lugares
Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.
Apresentação 7
Jorge Pedro de Souza
Prefácio 16
Demétrio de Azeredo Soster
Fabiana Piccinin
APRESENTAÇÃO
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
1 Cf. SOUSA, Jorge Pedro. Uma história breve do jornalismo no Ocidente. In: SOUSA, Jorge Pedro, org. Jor-
nalismo: história, teoria e metodologia da pesquisa. Perspetivas luso-brasileiras. Porto, Edições Universidade
Fernando Pessoa, 2008, p. 12-93.
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corte historiográfico e geográfico, que muito contribuíram para, séculos mais tarde, do-
tarem o jornalismo do seu principal valor – a verdade2.
Heródoto terá sido, na sua obra que ficou simplesmente conhecida por Histórias
de Heródoto, o primeiro autor a narrar o passado com ambição de fidelidade aos factos
e intenção de desvendar as causas dos acontecimentos, na sua história sobre a invasão
persa da Grécia. Embora tenha sido acusado, mesmo por outros historiadores da Anti-
guidade, de ser impreciso, inventivo ou exagerado, possivelmente sempre pretendeu
narrar a verdade do que tinha acontecido. O seu problema – central para o jornalismo
e para a história – foi o de não ter feito uma crítica consequente das fontes a que recor-
reu para construir a sua narrativa histórica3. O seu juízo histórico também nem sempre
foi o mais correto. Por exemplo, Heródoto atribui, inconsistentemente, as causas dos
conflitos entre gregos e persas aos lendários raptos de mulheres de parte a parte e não
à rivalidade entre dois poderes crescentes e expansionistas, o grego e o persa. Também
concede muito peso ao Oráculo de Delfos na decisão do rei Cresos em combater o rei
persa Ciro. Segundo Heródoto, Cresos terá decidido combater Ciro após o Oráculo de
Delfos lhe ter assegurado que um grande império desapareceria na contenda. Cresos
estava confiante de que seria o de Ciro, mas aquele que desapareceria seria o seu. Ora,
provavelmente as palavras de Heródoto são verdadeiras, no sentido de que Cresos terá,
possivelmente, consultado o Oráculo, opção natural para um grego daquela época, mas
Cresos também não teria hipóteses de fugir ao conflito com Ciro, dado o caráter expan-
sionista do império persa. Apesar de tudo, nas Histórias de Heródoto encontram-se pas-
sagens que revelam desejo de fidelidade aos factos e um estilo próximo do atual estilo
jornalístico, como acontece, por exemplo, no relato da batalha das Termópilas. Muito
do que hoje em dia se sabe sobre as guerras entre gregos e persas deve-se, aliás, ao labor
historiográfico de Heródoto.
Outro autor importante para a fixação da narrativa não-ficcional escrita –
maioritariamente, ao tempo, de caráter historiográfico – foi Tucídides. Na sua obra sobre
a guerra do Peloponeso, esse historiador grego da Antiguidade foi o primeiro a descartar-
se totalmente dos deuses para explicar o curso da história, o primeiro a contrastar e
avaliar as fontes com espírito crítico para ponderar a sua credibilidade e ainda o primeiro
a atribuir com clareza os motivos de um acontecimento histórico à ação dos homens,
quando apontou como principal razão para a guerra entre Atenas e Esparta o medo desta
cidade-estado perante o aumento do poderio ateniense e não as razões que os espartanos
e atenienses esgrimiam. A partir de Tucídides, lendas, mitos e religião puderam deixar
de contaminar a historiografia, ou pelo menos a historiografia que enformou as ciências
históricas contemporâneas e que deu ao jornalismo os seus valores e algumas das suas
2 Não se irá discutir aqui o conceito de verdade, mas somente assinalar que tem sido, desde a Modernidade, am-
bição do jornalismo narrar acontecimentos com verdade. A verdade é, para todos os efeitos, uma referência e um
valor jornalístico. Mesmo que seja uma verdade plural, resultante da apresentação dos vários lados com interesses
atendíveis numa questão.
3 O exame crítico das fontes, importado das regras historiográficas, também se converteu num clássico procedi-
mento jornalístico. O jornalismo deve muito à historiografia, nos valores e nos procedimentos.
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NARRAR E RESISTIR
O terceiro livro da Renami, que ora chega às suas mãos, caro leitor, cara leitora,
tem cheiro, forma, cor e anatomia do que, talvez seja a força mais importante desse
confuso tempo. Falamos da resistência, e de como a edição ganhou vida pelas mãos
dos autores e organizadores que entenderam que, quando cansados de tantos disparates,
deviam descansar, mas nunca desistir. Pelo que representa, a narrativa, que não serve
às aplicações práticas cotidianas e, portanto, não “tem utilidade nenhuma”, é que a
entendemos como objeto de pesquisa sempre de estratégica importância, especialmente
pela dificuldade que enfrentamos de enxergar aquilo a que se chama real com algum
apuro em momentos particularmente adversos.
A narrativa é indissociável da experiência de viver. Faz os homens que não se
conhecem, reconhecerem-se como humanos (Harari, 2019), lembrando que vivemos
no mesmo mundo sob, de maneira geral, as mesmas condições e limitações de espécie,
como a finitude, por exemplo. É sempre uma ilusão (necessária) em alguma medida,
mesmo quando tratamos das narrativas midiáticas jornalísticas, responsáveis que são
por ofertar os fatos que acontecem e como acontecem, ao nosso redor. Por isso, nunca
foi tão oportuno entender o papel do narrar e sua capacidade de ofertar empatia nesse
reconhecimento das limitações humanas, para a acolhida do outro num contexto de
excessos e fundamentalismos.
Em razão disso, ou especialmente por isso, para além do discurso sobre a
desimportância das ciências humanas, nosso investimento nas pesquisas acerca
da narrativa e suas repercussões no âmbito do sistema midiático e de seus usuários,
será sempre objeto da nossa observação e análise. Neste caso, numa perspectiva
potencializada, porque o observado acontece em rede. A estrutura rizomática qualifica,
conecta e fortalece as investigações porque reafirma o que se tem em termos do avanço
do estado da arte a respeito, ao mesmo tempo em que desafia pelo que apresenta de novo
e diverso.
Assim, a narrativa exige que não assumamos a postura da ingenuidade, a tomando
por um saber menor como armadilha frequente, mas avançando nas pesquisas sobre o
tema para que nos tornemos mais e melhores no diagnóstico das feições e configurações
das narrativas midiáticas e as interpretações do mundo que oferecem. Sobretudo porque,
como bem aponta nosso prefacista, Jorge Pedro de Sousa, quem controla a narrativa,
controla o mundo. E os jornalistas são narradores fundamentais.
Posto isso, desejamos força e vida longa à RENAMI, sempre. À sua produção
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bibliográfica, lugar de encontro dos textos resultantes das resistentes pesquisas, que
essas narrativas científicas das narrativas midiáticas nos mantenham conectados e em
persistência. As boas histórias, são criadas é justamente nas frestas de luz. E é preciso
saber detectá-las.
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Parte I:
narrativas do outro
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A maneira como representamos o espaço social afeta o modo como vemos e
interpretamos o mundo e como agimos em relação a ele. Dessa maneira, as narrativas
são lugares nos quais as representações não podem ser apartadas da forma como são
mediadas. No campo jornalístico, o esforço é acolher esse espaço de representação a
partir da consciência de qual lugar os jornalistas constroem suas instâncias narrativas.
No caso da reportagem, ela se configura como um tipo de narrativa que possui
características próprias estabelecidas desde o surgimento de sua prática. Além disso,
o jornalismo detém a função de produzir as narrativas para a sociedade, muitas vezes
partindo de produções feitas por grupos compostos de pouca ou nenhuma diversidade.
Os anos de 2014 e 2015 representaram o período de maior entrada de estrangeiros
no Brasil na última década. De acordo com dados da Polícia Federal, em dez anos,
o número de imigrantes aumentou 160%, com um ranking liderado por haitianos,
seguidos por bolivianos e colombianos1.Nesse sentido, muitas reportagens acerca
do tema ocuparam mais tempo no noticiário internacional e local. O estado do Rio
Grande do Sul, por exemplo, foi fortemente marcado por imigrações, desde o início
da colonização europeia em 1824 até a nova onda migratória de africanos, asiáticos e
caribenhos trazidos para cidades da serra gaúcha nos últimos dez anos.
Publicado em 2018 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM),
o relatório World Migration Report2 revelou que, entre 2010 e 2015, a população de
migrantes que vive no Brasil cresceu 20%. São 713 mil estrangeiros residindo no
país, dos quais 207 mil vêm de outros Estados sul-americanos – tendo a presença dos
estrangeiros vindos desse subcontinente também aumentado 20%. Apesar de nosso
país ser fundamentalmente formado por migrantes de diversos lugares, a chegada
desses estrangeiros é, muitas vezes, vista como uma ameaça. Principalmente porque
os processos de migração atuais são de pessoas negras, não brancas e não ocidentais
nos termos pós-colonialistas. Em um Estado-Nação que tem suas bases econômicas e
culturais fundadas no patriarcalismo e no racismo, as espacialidades apreendidas nas
narrativas também serão determinadas por essa condição.
Tendo em vista esse cenário, à luz dos Estudos Culturais, de elementos da teoria
pós-colonial, de argumentos da Geografia crítica e dos estudos da narrativa associados
ao jornalismo, buscamos em nossa pesquisa de mestrado estudar a representação do
espaço do imigrante na narrativa jornalística de Zero Hora, principal periódico do
Rio Grande do Sul, analisando quatro grandes reportagens publicadas entre 2014
e 2015.3 As reportagens analisadas foram: Os Novos Imigrantes (17.08.2014), de
Carlos Rollsing e Humberto Trezzi, que destaca o novo processo migratório que
começa a vingar no Rio Grande do Sul; Inferno na terra prometida (07.06.2015),
de Carlos Rollsing e Mateus Bruxel, que acompanha a viagem dos haitianos que
entram no Brasil pelo estado do Acre; Destino Incerto (04.10.2015), de Carlos
Rollsing, que, após um ano, revisita os novos imigrantes que foram entrevistados na
reportagem de 2014; e Refugiados: Uma História (11.10.2015), de Letícia Duarte,
que traz o caminho percorrido por uma família síria para fugir da guerra. Este
capítulo apresenta parte dos resultados da investigação, detendo-se especificamente
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em uma das grandes reportagens, aquela que se revelou mais polissêmica nos modos
de narrar o espaço do outro.
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deleguem aos profissionais que trabalham nos veículos de comunicação a missão de lhes
narrar/dizer o que é relevante. Ao mesmo tempo em que define para a população quais
fatos são significativos, o campo jornalístico também oferece as interpretações acerca
desses fatos, já que muitas vezes eles são inesperados e as informações são apresentadas
pela primeira vez (HALL et. al., 1999). Ou seja, o jornalismo ocupa um lugar privilegiado
para narrar histórias, e suas narrativas são construídas a partir do espaço social que a
instituição jornalística é integrante.
Em decorrência das práticas jornalísticas terem como paradigma o moderno-
positivista, ocorre até hoje uma histórica negação da existência da subjetividade. Adota-
se a noção de Olho de Deus, típica do cientificismo, e suas estratégias de apagamento
do sujeito cognoscente na leitura da realidade – neste caso, o jornalista (VEIGA, 2015).
A escrita na terceira pessoa, os tipos de fontes e a linguagem adotada são algumas das
estratégias utilizadas que, na busca pela objetividade, acabam delineando os temas de
maneira reducionista e simplista, até mesmo para pautas mais complexas que envolvem
a sociedade.
Por outro lado, as reportagens carregam conquistas, acidentes e conflitos
humanos que tornam os relatos mais dramáticos, com efeitos de sentido que geram
comoção, sentimentos, subjetividades; fazendo com que a característica narrativa seja
possivelmente identificada. A partir de representações mentais próprias, o leitor busca
dar coerência à história que lê, vê ou escuta. O sentido narrativo se estabelece pela
construção feita pelo narrador-jornalista integrada aos conceitos culturais e sociais, bem
como pelo espaço referenciado pelo leitor.
Essas identificações culturais, os chamados mapas de significados, são o que
dão sentido aos acontecimentos noticiados pelos jornalistas. No tipo de sociedade que
estamos inseridos é como se existisse uma única perspectiva cultural, sem qualquer
discrepância nos mapas de significados e nos interesses, fazendo com que a mídia seja
uma instituição cuja prática está amplamente baseada em um consenso, no qual supõe-se
que todos nós entendemos a forma como os acontecimentos são enquadrados e narrados
(HALL et. al., 1999).
Seguindo Wenceslau Oliveira Júnior, que problematiza as geografias do cinema
(2014), os locais narrativos, também no jornalismo, são versões editadas do mundo, um
modo de dizer esse mundo. Cada narrativa não nos mostra um lugar, mas nos remete a
ele, alude ou evoca paisagens, certos sentidos e formas deste lugar. Ou seja, os territórios
são construídos pelos olhares dos personagens, da câmera e do narrador.
Os modos de narrar o espaço do outro nas reportagens
Por meio do método de análise narrativa (CULLER, 1999; MOTTA, 2013),
a pesquisa objetivou responder que estratégias de objetivação e subjetivação são
produzidas pelo jornalismo ao representar as espacialidades físicas e simbólicas nas
reportagens sobre migração, identificar quem fala e quem vê e apontar quais os conflitos
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A começar por esses títulos, percebemos a forte proximidade que o caráter narrativo
dessa reportagem apresenta com o gênero literário, desde a escolha das fontes até como se
dá o desenvolvimento do enredo. A família escolhida é composta por Ghazi, Razan, Tala e
Mohammad: pai, mãe e um casal de filhos. A aproximação com aquilo que é – geralmente
– considerado uma família tradicional, induz o leitor a buscar suas próprias referências e
a identificar-se com os personagens. Além deles, outros sete refugiados compõem o grupo
de peregrinos, com o qual a jornalista se integra para a viagem. O trecho de apresentação
após o primeiro título diz:
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No dia anterior, eu havia estado na praia onde o corpo de Aylan foi encontrado,
na Turquia, e comentei com o pai sobre a história, imaginando que lhe fosse
familiar. Ao ver a imagem, começou a chorar. Para Ghazi, ela não era apenas
um símbolo. Era a encarnação de seus maiores temores (DUARTE, Refugiados:
Uma história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 3).
Então, somos recebidos por esse narrador que se coloca na história, não apenas
como observador dos fatos, mas também como um agente no enredo. Ao acompanhar a
travessia do grupo de sírios, a repórter de ZH opta por se colocar como uma narradora-
personagem. Ao longo de toda a reportagem, encontramos o pronome na primeira
pessoa, “eu”. Nesse início, especificamente, chama a atenção o episódio da história
de Aylan e do choro que dá força à abertura da matéria. Como vimos anteriormente,
exercemos domínio sobre o espaço também para produzir significados. Assim, ao
mostrar a fotografia de Aylan na tela do celular, a narradora cria um contexto no qual
as estratégias de objetivação e subjetivação de comunicação podem contribuir para
a instauração de uma outra espacialidade. Ou seja, a intervenção da jornalista neste
aspecto é direta, de maneira objetiva, mas também subjetiva, não sendo uma mera
relatora dos acontecimentos do espaço social.
Há também neste caso um apelo constante para gerar a sensibilização/comoção do
leitor, relacionando a idade do menino Mohammad com a de Aylan. Relação novamente
encontrada em trechos como: “A família partiu da cidade natal em 4 de setembro, mesmo
dia em que o corpo de Aylan era enterrado, em Kobani”.
No movimento de compreensão do paradigma narrativo proposto por Motta (2013),
observa-se que há nas narrativas um projeto dramático de construção da realidade.
Justo por isso, sendo a reportagem o gênero jornalístico por excelência, identificar os
traços dessa construção mostra-se interessante. Além disso, é necessário destacar que
as narrativas são utilizadas para persuadir e convencer (MOTTA, 2013), logo, qualquer
que seja o produto cultural que se proponha a narrar o Outro, apresentará tanto para o
narrador como para o leitor uma tentativa de acessar o universo da alteridade, seja pela
reflexão ou por um chamado dramático.
Em geral, o texto apresenta um perfil bastante descritivo, e conforme se desenvolve
a narração sobre o ambiente e sobre os personagens, a autora aciona diversas referências
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O pôr do sol colore o céu com tiras alaranjadas quando a família de Ghazi e
seus amigos se dirigem para o porto de Kos [...]. No caminho, Mohammad abre
os braços como se estivesse fazendo aviãozinho, levando nas costas a mochila
azul do Homem Aranha que ganhou de voluntários (DUARTE, Refugiados: Uma
história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 4).
O mesmo recurso também funciona para criar contrastes na narrativa. “São pelo
menos 800 refugiados acampados neste domingo, 20 de setembro, em Kos, destino
turístico de águas cristalinas que viu o tradicional vaivém de barcos e iates luxuosos
suplantado pelo afluxo de botes de borracha”. Ao mesmo tempo, as questões objetivas
que caracterizam o jornalismo logo tomam espaço na matéria, um modo de demarcar o
lugar da fala jornalística, que é apresentar dados, descrições e informações. “Dos 300
mil que já cruzaram o Mediterrâneo rumo à Europa neste ano, o Alto Comissariado da
ONU para Refugiados (Acnur) calcula que 2,5 mil morreram ou desapareceram pelo
caminho”.
É importante destacar que todos os dados e contextualizações estão na fala da
narradora e dos personagens, caracterizando as vozes presentes na narrativa dessa
reportagem. Não há a presença das ditas fontes oficiais. Ao todo, dezenove pessoas
falam durante a história, seja por citações diretas ou indiretas. Desses, dezesseis são
migrantes e três são voluntárias croatas. As falas literais, as chamadas aspas, costumam
apresentar o sentimento e as expectativas dos sujeitos e são, em grande parte, frases
de bastante efeito, como essa de Ghazi: “A Síria está morta. Não há futuro para meus
filhos, não há futuro para ninguém”.
A maioria dos personagens é conjecturada a partir do que faziam e do motivo pelo
qual desejou se arriscar nessa travessia. Após a descrição do chefe de família Ghazi, é
a vez do estudante sírio Musa Amohammed, de 23 anos, que integra o grupo de onze
pessoas que a jornalista acompanha. “Na Síria, Musa era estudante de educação física.
Passou dois meses na Turquia, trabalhando como carpinteiro, mas diz que desistiu de
permanecer lá porque os patrões não pagavam seu salário”. O modelo de apresentação
segue com os demais homens do grupo, como o maratonista Mohamed Ali, o estudante
de medicina Issa e o jovem Abd, que durante um dos trajetos de barco descreve o caso
de um tio que foi decapitado por radicais ao fumar durante o Ramadã, período em
que os muçulmanos realizam um ritual de jejum. “Meu tio não era religioso, então
prenderam ele. Primeiro cortaram os dedos, depois a cabeça.”
Já diante da fronteira entre a Sérvia e a Croácia, a narradora, mais uma vez, de
maneira direta, demonstra a vivência pessoal ao citar sua emoção durante a travessia.
Em um espaço em que diversas televisões estão ali para produzir imagens, Letícia
é amparada pelos migrantes. “Isto não é nada comparado ao que vivemos na Síria.
Lá há sangue por todo lugar, a Síria cheira a morte. Qualquer coisa é melhor do
que aquilo – assegura o fisioterapeuta Harem Alhamad, 31 anos, de Aleppo.” Ao ser
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separada do grupo na Croácia, já que a imprensa não poderia cruzar o mesmo caminho
dos refugiados, a jornalista consegue carona com três voluntárias croatas, que são
as únicas personagens que não são refugiadas, mas que dão a dimensão de um outro
tipo de narração e do possível conflito entre as diferenças. De acordo com uma das
voluntárias, muitas pessoas são contra a vinda dos muçulmanos. “Muita gente diz que
esses muçulmanos vão invadir a Europa com mesquitas, vão destruir nossas igrejas.
Que já temos nossos problemas, nossos necessitados.”
Apesar de uma iraniana que viaja sozinha ser citada e de a repórter conversar
com outra jovem no caminho, chama a atenção que as duas únicas mulheres do grupo
não possuem espaço de voz durante toda a narrativa. A mãe das crianças, Razan, tem
fotos de destaque, mas não é mencionado seu comportamento, nem abordado pela
reportagem o que ela sente. A jovem Rama, também integrante do grupo de onze
migrantes que a repórter acompanha, é citada apenas no momento da entrada no campo
de refugiados de Opatovac.
O irmão da mãe, Adham, 28 anos, e a jovem Rama, 18 anos, que tem um marido a
sua espera na Suécia, apresentam-se como um casal aos policiais. Com o vínculo
familiar, pensam em facilitar a aprovação de sua entrada. Em poucos minutos,
todos têm as cópias de seus passaportes feitas e recebem uma fita para colocar
no pulso que dá acesso ao próximo ônibus (DUARTE, Refugiados: Uma história,
Zero Hora, outubro de 2015, p. 11).
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falar (SPIVAK, 2012). Ainda assim, em grande parte, o que percebemos é que quem fala
e quem vê, do modo como estão dispostos nessa reportagem, apresentam uma variedade
de pontos de vista dos ditos subalternos.
As espacialidades que permeiam essa narrativa dão à migração um tom de superação,
de pessoas em busca de uma vida melhor, ressaltando a sua fé e a sua resiliência. Mas,
sobretudo, o que a diferencia é o espaço maior dado à subjetividade dos personagens e
da própria narradora, que em alguns momentos até surpreende.
O espaço social enquanto espaço de interação é onde os sujeitos se percebem,
se conhecem e se reconhecem. Como lembra Hall (2016), a capacidade de atribuir
significado aos comportamentos individuais integra um processo comunicacional
intrínseco às narrativas. Ao descrever um ex-soldado integrante do grupo, que não
quis se identificar, a repórter relata que para se distrair o jovem lhe dá aulas de árabe.
Tomo notas do que escuto e repito as frases aprendidas “Ana asme Letícia,
Ana mean al Brazil, Ana sahafea” (Meu nome é Letícia. Eu sou do Brasil. Sou
jornalista). Eles riem do meu sotaque árabe, e involuntariamente viro motivo de
diversão para o grupo, enquanto o tempo passa (DUARTE, Refugiados: Uma
história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 5).
Sentado à minha frente, o ex-soldado que intercala suas frases com “fucking”
brinca com Mohammad, sorridente. Depois me conta que ainda tem uma bala
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Considerações
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Notas
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1
Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/em-10-anos-numero-de-imigrantes-
aumenta-160-no-brasil-diz-pf.html . Acesso em: 18 mai. 2017.
2
Fonte: https://www.iom.int/wmr/world-migration-report-2018 . Acesso em: 17 dez.
2018.
3
O período selecionado para análise representa os anos de maior entrada de imigrantes
no Brasil nos últimos dez anos, de acordo com dados da Polícia Federal. O jornal Zero
Hora foi escolhido por ser o principal periódico local e por integrar o grupo dos cinco
jornais de maior circulação no país, segundo a Associação Nacional dos Jornais (ANJ):
média impresso + digital 210.661. Fonte: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-
brasil/ . Acesso em: 25 jul. 2018.
4
Diante das diversas perspectivas relacionais apresentadas pela fundamentação teórica,
definimos alguns procedimentos indicados por Motta (2013), como: compreender os
efeitos do real na narrativa e compreender o paradigma narrativo, já que por meio
das estratégias de objetivação e subjetivação, os fatos culturais e sociais explicitados
pelo jornalismo podem ser observados a partir dos esquemas textuais e expressões do
narrador. Em uma perspectiva mais profunda, o pesquisador pode observar elementos
e recursos de linguagem utilizados de forma consciente ou inconsciente pelo narrador
no plano da expressão para observar os conflitos e aproximações nas espacialidades.
Assim, a performance do narrador no plano da história destacará o enredo apresentado,
além de mostrar se há um exercício de encontro com a diferença. No que se refere ao
enredo, Culler (1999) diz se tratar do material que é apresentado ao público a partir de
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Referências
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possibilidades de encontro com a alteridade. Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Tese de Doutorado, 2015.
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Do povo, pelo povo e para o povo. Se fosse possível expressar mais com menos,
esta poderia ser uma síntese próxima ao ideal utópico da Comunicação popular. Além
disso, distinguir e interpretar, inclusive, divergências entre concepções dos termos
popular, alternativo e comunitário em suas expressões. Em especial quando mediada
pelo jornalismo, sob a premissa que pretende-se abordar neste espaço, se distingue,
mas não se divide, em dois núcleos – a comunicação e o popular, aos quais cabe uma
breve conceituação antes de tratar de seus significados na composição de uma narrativa
traçada por outros sujeitos. Por mãos que, por vezes invisibilizadas, submissas ou presas
a grilhões econômicos, políticos e sociais, não têm vez. Por isso mesmo, suas demandas
são sufocadas: não têm voz. Não se expressam, não podem se fazer ouvir.
Um jornalismo que represente e sirva ao povo pode ser visto como uma utopia.
Neste sentido, a comunicação popular tem se apresentado como alternativa de
retorno às origens da profissão: ao interesse público e à comunicação como um bem
comum. A partir desta premissa, pretende-se abordar a potencialidade de estímulo
ao pensamento crítico empreendido pela comunicação popular na constituição de
mediações culturais manifestas na mídia, exercendo um papel contra-hegemônico.
Por meio da reflexão, vislumbra-se um horizonte mais democrático no sentido de
oferecer voz, vez e espaços de expressão aos sujeitos a partir da ação da comunicação
popular, alternativa, comunitária e da função social do jornalista, criando narrativas
protagonizadas por outras mãos.
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O que faz com que uma comunicação seja popular é sua inserção num contexto
alternativo, de forma a potencializá-lo. Um contexto alternativo caracteriza-se por
sua tendência a romper com a ordem do capital, a integrar aquilo que o capital
fragmenta. Este é o desafio que se apresenta à Comunicação Popular: conceber-se
realmente como elemento de um processo mais amplo e criar, inventar as formas
de inserir-se nele sem pretensões de gerá-lo (MARTINEZ TERRERO, 1982, p. 45).
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Atuando como um meio¸ esta forma de comunicar tem seus resultados na prática,
em seus efeitos. Na contramão do modelo proposto pela mídia hegemônica, seria
“libertadora, conscientizadora, mobilizadora, como uma função que parte da idéia de
‘dar a palavra ao povo’” [sic] (MARTÍNEZ PARDO, 1981 apud GOMES, 1990, p. 43,
grifos do autor). Como um meio porque deixa de ser atividade-fim: não apenas informa e
mobiliza, mas envolve a produção e difusão de mensagens enquanto “processo educativo
e de criação coletiva” (SEQUEIRA; BICUDO, 2007, p. 13).
Por sua vez, a comunicação alternativa, por orientação político-ideológica con-
testatória, em especial representada pela esquerda intelectual de classe média, flores-
ceu entre 1960 e 1980, com pontos de vista à margem da imprensa dita tradicional
alinhada à ditadura militar, com veículos como O Pasquim, em busca de protagonis-
mo (PERUZZO, 2006, p. 7). Contra o poder instituído, é “contracomunicação” num
período de criatividade e efervescência cultural – na onda das revoluções francesas
de 1968, da contracultura e do underground – levada à frente por folhetins, de lingua-
gem coloquial, que usam de ironia, charges e da música popular, mas, sobretudo, em
períodos históricos – como o contemporâneo – de supressão de liberdades formais
(GRINBERG, 1987, p. 19; ROMANCINI; LAGO, 2007, p. 140-141). Portanto, “al-
ternativa indica uma relação com outro, um ‘alter’ que chama a si os que se desviam
de um caminho inicial, no caso, imprensa tradicional” (CAPARELLI, 1986, p. 45
apud GOMES, 1990, p. 58, grifos do autor).
Entende-se, a partir de então, que são necessárias duas condições para que se
concretize uma comunicação verdadeiramente alternativa, de acordo com a posição
adotada por Festa (1984, p. 196): a capacidade de reconhecer as mensagens como
próprias, além de respeitar princípios de igualdade e participação. Elas dispostas, o
meio alternativo pressupõe a existência, a partir de uma noção de sociedade dividida
em classes, que há setores privilegiados, detentores do poder, seja político, econômico
ou cultural; e que a comunicação alternativa é uma opção frente ao discurso dominante,
à comunicação massiva, baseada na ideia da luta por uma sociedade que considere
classes populares como detentoras de direitos além do papel (GRINBERG, 1987).
Isto porque o jornalismo não existe “como fenômeno abstrato, fora de todo contexto
histórico, que não pode compreender-se fora de suas relações com uma sociedade
concreta e da sua estrutura de classe num determinado nível de desenvolvimento”
(GOMES, 1990, p. 49).
Já a comunicação comunitária é voltada às demandas de estratos sociais: bairros,
agrupamentos, coletivos, etc. Há uma série de concepções, especialmente quando se
pontua: o que torna uma comunicação popular é seu conteúdo? Meio de veiculação?
Linguagem? Contexto? (FESTA, 1984, p. 174-175). Uma mescla: a possibilidade de
o povo produzir uma narrativa própria, que circule a partir de si, para si próprio, em
uma ruptura do edifício comunicativo hegemônico – abrindo-se a outras perspectivas,
linguagens e discursos, tendo o povo como gerador e protagonista (KAPLÚN, 1987, p.
7 apud PERUZZO, 2006, p. 3).
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Desta forma, a produção, a circulação e, acima de tudo, o uso que se faz das
mensagens, é elemento preponderante, pois considera a comunicação como “criação
conjunta, diálogo, construção de uma realidade distinta na qual o homem seja sujeito
pleno” (MATA, 1981 apud GOMES, 1990, p. 41). Por isso mesmo, sua eficácia como
elemento emancipador é determinada pela “promoção das classes populares para a
liberdade política e social, respeitando profundamente seu sistema de autodefinição,
sua iniciativa cultural e seu direito a ser diferente” (GIMÉNEZ, 1978 apud Ibidem,
p. 36).
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uma comunidade. Isto significa dizer: produzido pela e para a comunidade” (DE MELO,
2006, p. 126 apud SEQUEIRA; BICUDO, 2007, p. 8).
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mediações é fundamental, uma vez que propõe a ligação entre comunicação e cultura
enquanto campo de batalha política – manifesta num cenário em que a política readquire
seu sentido original e sua “dimensão simbólica”, de reconhecimento e pertencimento.
Em um momento em que a ordem coletiva se corrói, aponta Martín-Barbero (ibidem, loc.
cit.), o mercado é apenas simulacro, pois tudo que gera “se desmancha no ar”. Portanto,
diante de uma “obsolescência acelerada e generalizada” tanto das coisas quanto de suas
instituições, o mercado é incapaz de gerar vínculos entre sujeitos, geradores de sentido.
Para o autor, ele opera anonimamente “mediante lógicas de valor que implicam trocas
puramente formais, associações e promessas evanescentes que somente engendram
satisfações ou frustrações, nunca, porém, sentido”.
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O desafio, para o jornalismo, é deixar-se passar por outras mãos, ser falado por
outras vozes, que não têm a oportunidade de serem ouvidas, estabelecendo uma nova
narrativa da realidade. A comunicação deve partir para a comunidade de maneira
inclusiva, estabelecendo diálogo e incentivando ações a serem desenvolvidas para
o bem das pessoas, através dos representantes da dita sociedade civil: associações,
manifestações de jovens, movimentos sociais, de negros, LGBTs, das pessoas
com deficiência e de tantos outros estratos marginalizados. Que venha das classes
trabalhadoras, dos subalternos, dos oprimidos (GOHN, 2006). Considerando o contexto
social atual, de supressão de liberdades, onde o horizonte das conquistas sociais é
borrado pelo obscurantismo e pelo conservadorismo, pensar nestas perspectivas é
ainda mais relevante. O apagamento das classes populares é uma estratégia tão nefasta
quanto corriqueira.
Assim, cabe à capacidade crítica do jornalista analisar os conflitos da
realidade social: praticando um discurso informativo que signifique; integrando
os aspectos éticos, técnicos e estéticos da profissão; com criatividade para superar
as diferenças sociais, sem aumentá-las ainda mais (VICCHIATTI, 2005). Mais
que isso: compreender de que forma comunicar-se com estratos populares. É de
Giménez (1978, p. 25-26 apud GOMES, 1990, p. 32-33) a concepção de que se
deve considerá-los “enquanto inseridos em determinadas instituições ou aparelhos
direta ou indiretamente ligados à estrutura do poder” – uma vez que fazem parte de
uma estrutura hierárquica que, via de regra, deixa à margem segmentos populares.
É deles que surge o discurso autoritário fundado em posições de poder: políticas,
econômicas, de caráter ideológico, sustentadas pelo status quo (GRINBERG, 1987,
grifos do autor). Contra a corrente e a predisposição sumariamente hegemônica da
comunicação em tempos pós-modernos, repensar ou refundar a função do jornalismo
enquanto atuante socialmente é pontual:
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Sobre isso, Guareschi (2005) quem destaca: não se pode ser cego, surdo e mudo
socialmente falando: todo ator social tem responsabilidades éticas, e, sobretudo o
jornalista, deve considerar que a objetividade, inclusive, precisa ser reavaliada quando
entra em choque com o interesse público, porque “a posição que considera o jornalista
um ser separado da humanidade é uma bobagem. [...] Deve-se, sim, ter opinião, saber
onde ela começa e onde acaba, saber onde ela interfere nas coisas ou não. É preciso ter
consciência (ABRAMO, 2002, p. 109).
Ressalta-se, neste ponto, que o próprio Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros
indica, em seu primeiro artigo (FENAJ, 2014, p. 1-2), que “tem como base o direito
fundamental do cidadão à informação, que abrange seu o direito de informar, de ser
informado e de ter acesso à informação”. Conforme determina, em seu artigo sexto,
no segundo capítulo, sobre a conduta do profissional jornalista, na garantia do Estado
Democrático de Direito, é dever do profissional (Ibidem, loc. cit.): “I - opor-se ao
arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos; II - divulgar os fatos e as informações
de interesse público; III - lutar pela liberdade de pensamento e de expressão”. Mais
que isso, o Código de Ética dos Jornalistas ainda aponta a necessidade de “defender os
direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas,
em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e
das minorias”, no combate a qualquer forma de discriminação (Ibidem, p. 2).
Explicar os limites éticos da informação é um trabalho complexo. Contudo, é
válido considerar a fala de Claudio Abramo, colocando-se de forma veemente. Para ele:
[...]: “A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão, é ruim
para o jornalista” (ABRAMO, 2002, p. 109). Deste ponto de vista, como um elemento
essencial às democracias, portanto, cabe ao jornalista garantir o direito à comunicação,
que significa:
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Para Paulo Freire, dentro desta perspectiva de “educação bancária”, “os meios
de comunicação de massa são propagadores dos mitos, normas e valores das
minorias oligárquicas e, como tais, instrumentos da comunicação vertical e
alienante, encarregados de auxiliar na subjugação dos oprimidos” (BELTRÁN,
1981 apud GOMES, 1990, p. 27, grifos do autor).
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de sua própria história, antes feita por eles, mas manipulada por outras mãos. A partir dos
anseios da população, pela comunicação popular se constrói uma narrativa de igualdade
e justiça dentro de um contexto que abrange muitas particularidades, não retratadas de
maneira imparcial pelas grandes empresas de comunicação.
Assim, ao mesmo tempo em que se retorna à concepção de jornalismo como um
agente político-social, na luta por condições de expressão de grupos marginalizados,
estes meios também juntam-se às inovações tecnológicas e ao valor de uso da informação
– como poder simbólico capaz de promover mudanças sociais. E, ainda que utópicas,
são o que movimenta as vontades de uma parcela considerável de sujeitos com anseios,
necessidades, sonhos: o povo que quer se comunicar. Afinal, vale lembrar o que disse
Galeano (2001, p. 230, tradução nossa), quando difundiu a mensagem de Fernando
Birri: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
Referências
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AFETIVAÇÕES, AMOROSIDADE E
AUTOPOIESE: SINALIZADORES PARA
NARRATIVAS SENSÍVEIS DE DESTINOS
TURÍSTICOS, EM PERSPECTIVA ECOSSISTÊMICA
Maria Luiza Cardinale Baptista
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Trilha 1 – Afetivações, como acionamento de energia-corpo afetivo
Iniciamos, então, pela trilha ‘afetivações’, com uma insubordinação inscriacional, já
que venho tratando o termo como afetiv(ações), o que, para mim, o torna autoexplicativo,
quase óbvio, para o encontro de sinalizadores, como dispositivos interessantes para
narrativas sensíveis de destinos turísticos, em perspectiva ecossistêmica. Assim,
afetiv(ações) são ações que afetam, que tocam os afetos.
Lembro-me, neste momento, de expressão que li associada à ‘narrativa’ e que
sintetiza o que eu penso. Em texto de Muniz Sodré (2006), ele se refere à narrativa como
‘a tradução da experiência vivida’ (2006, p.90). A expressão me parece interessante,
especialmente, para pensar narrativas de viagem, em que se tem a experiência vivida
no movimento de desterritorialização. Assim, a narrativa ‘narra e ativa’, tratando-se,
portanto de ativação de contar, a ação de ativar movimento. Reflito também sobre o
caráter subjacente e entrelaçado ao termo, no contraponto de ‘tradução’ e ‘traição’.
Então, penso que quem narra traduz e trai a experiência vivida, em certo sentido. Traduz
porque representa, cria corpos e materialidades representativas, mas trai, porque vão
existir, sempre, níveis profundos, que se escapam às possibilidades de inscrição do
que foi narrado. Assim, podemos pensar em narrativas que combinam signos estéticos,
elementos representacionais carregados de intensidades. Vale lembrar, contudo, que que
intensidades são derivativas, se escapam, dissipam a partir de ‘nós de confluência e
de passagem’, para lembrar Prigogine (2001). Há algo que se escapa nesse processo
dissipativo das narrativa e que se espera sejam elos que retornam, ritornelos, no dizer
esquizoanalítico. (GUATTARI; DELEUZE, 1995)
Para refletir sobre afetivações, vamos avançar um pouco com Muniz Sodré (2006,
p.90):
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aumentam e diminuem a potência de agir”. Com Deleuze, Sodré salienta a diferença
entre afecção e affectus, destacando, na fala de Deleuze (2002 apud SODRÉ, 2006,
p.28), que este último conceito “[...] implica tanto para o corpo quanto para o espírito
um aumento ou uma diminuição da potência de agir”. Seguimos, um pouco mais, com
Sodré (2006, p.28):
Deste modo, sendo a affectio um estado de corpo afetado por outro presente, e o
affectus, uma passagem de um estado a outro, são diferentes as afecções-imagens
ou ideias dos afetos-sentimentos. O afeto supõe uma imagem ou uma ideia, mas
a ela não se reduz, por ser puramente transitivo e não representativo.
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Sem amor, não há aceitação do outro como outro, também não há narrativas
sensíveis de destinos turísticos. Falo aqui, portanto, do pressuposto amoroso, como
ética da relação. Como exemplo, nesse sentido, costumo dizer que não é possível
visitar a cidade de Salvador, capital do estado da Bahia, no Brasil, imaginando o
município de Gramado, no Sul do País, porque são ecossistemas muito diferentes,
com tramas de traços e energias diferenciadas, que não se comparam. Igualmente, não
se produz narrativas sobre esses destinos turísticos, sem aberturas de sensibilidade
amorosa, que implique em respeito ao ecossistema em questão. Assim, é preciso ‘amar
la trama’ ecossistêmica de cada destino, de cada lugar, mais que o ‘desenlace’ (o que
separa, diferencia, desconecta). Os lugares não se comparam. Eles têm sua própria
alma, sendo que ela também se transforma um tanto, com nossa presença e passa a
ter um pouco de nós. Quando escrevo isso, penso na minha relação com Granada,
Espanha, por exemplo. Todas as vezes que produzo uma narrativa sobre Granada,
sinto e sei que essa narrativa expressa Granada, mas também inscreve um pouco da
alma da Maria Luiza em Granada, como se a cidade fosse transversalizada por mim
e eu por Granada, pela mescla de histórias de uma e outra. Lembro-me, então, Buber,
em seu texto clássico, Eu-Tu, quando fala do encontro com a árvore e diz:
[…] pode acontecer que simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao
observar a árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela já não é mais um ISSO.
A força de sua exclusividade apoderou-se de mim. […] A árvore não é uma impressão,
um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta “em pessoa”
diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a
ver com ela. (BUBER, 1974, p.8-9)
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autopoiese, nos meus textos, mantém a origem em Maturana, dialoga com o conceito
de máquinas autopoiéticas da Esquizoanálise, especialmente em Guattari, para pensar
que a matriz significacional, o grau zero de significação, para mim, está na potência de
autoprodução e reinvenção no sistema, ou seja, em entrelaçamentos. Essa matriz, pelo
que percebo nos meus estudos, pode ser associada a muitos ecossistemas e processos
produtivos, como a produção de narrativas de destinos turísticos.
Assim, o sujeito que produz narrativas sensíveis de destinos turísticos se reinventa,
ao mesmo tempo que reinventa os lugares, ‘re-presenta’, ‘re-apresenta’ esses destinos
em uma produção materializada, em verso, prosa, fotografia, audiovisuais, em tramas
convergentes que podem ser disponibilizadas por diversos territórios maquínicos
midiáticos. É interessante a definição dos autores:
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entrelaça outros sujeitos e, mais que isso, as tramas ecossistêmicas de lugares e sujeitos
(em sentido amplo, não só humano, não só materiais).
Notas
________________________
1
Muitos textos produzidos pelos pesquisadores da UFAM ajudaram a compreender
a perspectiva e a reconhecer a aproximação dos meus estudos. Destaco aqui, apenas
alguns livros: Comunicação Midiatizada na e da Amazônia, organizado por Maria
Ataide Malcher, Netília Silva dos Anjos Seixas, Regina Lúcia Alves de Lima e Ota-
cílio Amaral Filho (2011); Estudos e perspectivas dos ecossistemas comunicacionais,
organizado por Gilson Vieira Monteiro, Maria Emilia de Oliveira Pereira Abbud e
Mirna Feitoza Pereira (2011); Processos Comunicacionais. Tempo, Espaço e Tecno-
logia, organizado por Claudio Manoel de Carvalho Correia, Ítala Clay de Oliveira
Freitas, Maria Emília de Oliveira Pereira Abbud e Maria Sandra Campos (2012); Co-
municação: visualidades e diversidades na Amazônia, organizado por Netília S. dos
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Eliza não foi convincente apenas como uma interlocutora “ao vivo”; ela também
foi notavelmente bem-sucedida em seu papel de terapeuta. Para espanto de
Weizenbaum, um grande número de pessoas, inclusive sua própria secretária,
“solicitaram permissão para falar com o sistema em particular e, depois de
conversar com ele por algum tempo, insistiram, apesar das explicações [de
Weizenbaum], que a máquina realmente os compreendia”. Mesmo usuários
sofisticados, “que sabiam muito bem estarem conversando com uma máquina,
logo se esqueciam disso, assim como os espectadores de teatro, dominados pela
suspensão da descrença logo esquecem que a ação que estão testemunhando
não é ‘real’”. Weizenbaum tinha planejado criar um engenhoso programa de
computador e, involuntariamente, acabou criando um personagem verossímil
(Murray, 2003, p. 77)
Eliza é o primeiro chatbot de que se tem notícia. Nunes (2012, 3) define chatbots
como “programas que simulam uma conversa, como as estabelecidas entre seres humanos,
sendo utilizados para fins educacionais, comerciais ou de entretenimento, como um
amigo virtual”. O autor explica que esses robôs fazem uso de uma área específica dos
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Essa habilidade de contar histórias, defendida por Winston (2011) como a linha
que separa a inteligência humana da de outros primatas – e também dos computadores
– pode ser entendida como um dos grandes objetivos das tecnologias de Inteligência
Artificial. É o que também afirma Maturana (apud Primo, 2011, p. 192) ao dizer que
a história humana “se dá na dinâmica relacional ao viver em conversações como seres
linguajantes”. Murray (2003, p. 9) traduz a narrativa como um dos nossos “mecanis-
mos cognitivos primários para a compreensão do mundo”. Segundo a autora, “nós
nos compreendemos mutuamente através dessas histórias, e muitas vezes vivemos
ou morremos pela força que elas possuem” (idem). Motta (2005, p. 2) reforça que “a
partir dos enunciados narrativos somos capazes de colocar as coisas em relação umas
com as outras em uma ordem e perspectiva, em um desenrolar lógico e cronológico. É
assim que compreendemos a maioria das coisas do mundo”.
As formas narrativas acompanham a evolução dos meios de comunicação e ex-
pressão e o uso que fazemos das novas tecnologias (Murray, 2007). Assim, se a narra-
tiva pode ser entendida, com Medina (2003, p. 47), como uma forma exclusivamente
humana de organizar o caos da natureza num cosmos repleto de significado, essa
necessidade, que vem desde os primórdios da espécie humana, expande suas possibi-
lidades na era digital, em que as narrativas podem combinar características de meios
de distribuição massiva com ferramentas que permitem que a história se adapte a cada
usuário. É importante ressaltar o verbo: expande. Não se trata, portanto, de fazer terra
arrasada do acúmulo de milênios de saberes sobre a arte de contar histórias – desde os
mitos atemporais e as considerações de Aristóteles em sua “Poética” (335~323 BC)
até as produções contemporâneas. Trata-se, antes disso, de entender de que maneiras o
estado da arte da tecnologia e a configuração das sociedades atuais possibilita realizar
de modo mais eficiente a missão original da narrativa: transmitir vivências, organizar
o caos.
Nesse sentido, pretendemos mostrar que a discussão sobre aplicações de
chatbots ao jornalismo (e à comunicação social em geral) não deve ser monopolizada
pelos aspectos puramente tecnológicos da questão. A introdução dessas ferramentas
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Tenha em mente que ninguém gosta de conversar com gente chata. Mesmo que
seu chatbot passe no teste dando um monte de respostas vagas e ‘profundas’,
não fique surpreso se as pessoas enjoarem de conversar com a sua criatura por
mais de dez minutos. Ao criar um chatbot, você não escreve um programa, você
escreve um romance. Você imagina uma vida para seu personagem desde o
início – a começar pela infância dele (ou dela) que vai até o momento presente,
conferindo-lhe características pessoais únicas – opiniões, pensamentos, medos,
manias. Se o seu chatbot se tornar popular e as pessoas se mostrarem dispostas
a falar com ele por horas, dia após dia, talvez você devesse pensar em uma
carreira de escritor, ao invés de ser um programador. (ARAUJO, 2018, p. 3-4)
Procedimentos metodológicos
Considerando que o advento de Narrativas Digitais Interativas (NDI) ainda é
bastante recente, não espanta constatar que há pouca literatura científica sobre o tema.
Nesse universo, em geral as referências vêm de áreas como a psicologia, a narratologia
e o estudo de games, portanto com perspectivas teóricas bastante distintas.
Ao estudar duas narrativas interativas digitais, Roth et al (2011) reconhecem
que, do ponto de vista que os interessa, isto é, o da experiência dos usuários com as
NDI, a modelagem de estudos científicos é “um desafio teórico”. Ao revisar pesquisas
naquelas três vertentes – psicologia, narratologia e ludologia – os autores afirmam que a
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Histórico
Em 19 de fevereiro de 2018, uma parceria entre o Facebook e o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef) apresentou o Projeto Caretas, uma plataforma de
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inteligência artificial que permite que um robô batizado como “Fabi Grossi” converse
com os usuários pelo Messenger, o chat do Facebook. Fabi Grossi se apresenta como
uma jovem de 21 anos que teve um vídeo íntimo divulgado na internet por seu ex-
namorado e, à medida que troca mensagens com o usuário, conta sua história, as
repercussões do vazamento das imagens e sua imensa angústia diante do fato. Nesse
diálogo, o sistema faz uso de textos, hiperlinks, fotos e arquivos de áudio para manter
a narrativa coesa e envolvente. O chatbot pode ser acessado por qualquer usuário
maior de 13 anos – a restrição de idade é a mesma praticada pela rede social Facebook.
Por meio de comunicado, a Unicef esclarece que o projeto foi uma forma de
abordar o tema da segurança e da privacidade nas redes usando ferramentas familiares
ao público jovem, segundo afirma a representante da entidade no Brasil Florence
Bauer: “[O Projeto Caretas] dá a oportunidade de conversar individualmente com cada
adolescente, no ambiente em que ele está presente e na linguagem que ele costuma
usar” (Unicef, 2018, online). Dados da entidade sinalizam que o número de crianças
e jovens que entram em contato com o ambiente digital é crescente a cada dia – mais
de 175 mil deles acessam a internet pela primeira vez diariamente e um em cada três
tem menos de 18 anos (Unicef, 2017, online).
O informativo da Unicef relata também que a empresa responsável pelo
desenvolvimento do robô é a argentina Sherpas, dedicada à criação de soluções de
tecnologia para organizações. Seu cofundador, Gastón Gertner, afirma que, além de
estabelecer um diálogo com os adolescentes, o objetivo da iniciativa é “entender
seus comportamentos [dos jovens], gerando empatia e lhes dando conhecimento para
se proteger. O Caretas é um exemplo de como podemos gerar impacto positivo em
assuntos fundamentais relacionados à adolescência” (Unicef, 2018, online). Em abril
de 2018, entrevistamos por e-mail Nicolás Ferrario (2018), cofundador da empresa
argentina, que informou que o projeto surgiu em 2015, com uma pesquisa inicial sobre
o assunto e o desenvolvimento de um roteiro. Em 2016, iniciou-se o desenvolvimento
da tecnologia; e, em 2017, houve a etapa de teste.
Ainda de acordo com Ferrario (2018), Fabi resulta de “uma mistura de técnicas
e tecnologias – técnicas de storytelling, próprias de roteiro, para gerar maior empatia,
além de tecnologia tipo IA (Machine Learning e Deep Learning) para que compreenda
o que estão falando com ela”. Ele também ressaltou que o projeto é uma “peça de
entretenimento”, em que “o formato do roteiro mantém a mesma estrutura que qualquer
seriado da Netflix. A diferença é que, pela primeira vez, e com ajuda da tecnologia, o
personagem principal fala com você”.
A ação vai ao encontro das novas estratégias do Facebook, que tem atualizado sua
política de privacidade e sinalizado uma maior preocupação em promover segurança
na rede depois de ser envolvida em escândalos envolvendo o vazamento de dados
de seus usuários (Frier, 2018). O comunicado da Unicef (2018, online) reforça tal
posicionamento:
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Repercussão
Até 10 de agosto de 2019, mais de 314 mil pessoas haviam curtido a página de
Fabi Grossi no Facebook. Além disso, a experiência recebera 20 mil avaliações, com
nota média de cinco estrelas, a avaliação máxima disponibilizada pela rede social. Os
posts da página chegam a 20 mil curtidas e 5 mil compartilhamentos.
A história também foi noticiada por grandes veículos de imprensa, publicações
voltadas para o público jovem e blogs, que não só reportaram a iniciativa como
expressaram opiniões sobre a experiência com a interação. Uma dessas matérias foi
veiculada pelo portal da revista “Glamour”, publicação internacional voltada para
mulheres jovens e que, no Brasil, é editada pela Editora Globo. O artigo diz:
Tudo não passa de uma encenação. As fotos são de uma atriz e a história
é fake, claro, mas tudo foi baseado em histórias reais que sabemos muito
bem que acontecem. Em vários momentos, a minha interatividade com Fabi
não foi satisfatória, primeiro porque ela fala demais, do tipo “atropelando”
o assunto e, também, porque muitas das respostas dela às minhas perguntas
não tinham qualquer relação (?!). Mas, tudo bem, o projeto foi lançado na
última quarta-feira, 21.02, e, apesar de ter sido testado antes, agora, com o
acesso total da rede, muitos “bugs” aparecerão e muitas atualizações da Fabi
ainda vão acontecer. No geral, a conversa funciona e a mensagem é recebida.
(Alexandre, 2018)
1 Prática de troca de mensagens de cunho sexual por meio de aplicativos ou serviços de texto, como o SMS.
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
com poucos projetos que carregam a essência das NDI que não estejam relacionados
a serviços de empresas, como companhias aéreas e e-commerce. Dentre os exemplos,
temos a Jessie’s Stary, um bot que também interage pelo Messenger do Facebook em
uma jornada pelos percalços de uma jovem de 20 e poucos anos em Los Angeles,
criada pela equipe da Pullstring, formada por ex-funcionários da Pixar. A avaliação de
MacPherson (2016) resume a interação com o robô.
Conversar com Jessie te puxa para o mundo dela. Ela responde quase como se fosse
uma amiga íntima, pedindo sua opinião sobre como ela deveria passar o dia, se
deveria abandonar um amigo que prometera ajudar a mudar, e atualizá-lo quando
tiver que se afastar para pedir um café. Interagir com Jessie não necessariamente
“faz” algo para você. O produto é puro entretenimento, explorando o potencial
das mensagens e do chat como mecanismo de entrega.
Era tudo sobre empatia. Que perguntas um defensor teria sobre a vida de Sellu?
E quais eram os tipos de histórias que Sellu gostaria de compartilhar? Criamos
uma longa lista de todos os tipos de informações que considerávamos relevantes
para diferentes públicos, que nossa equipe de coleta de conteúdo coletou em
uma viagem à comunidade de Sellu. Depois dessa viagem inicial, mapeamos as
diferentes jornadas que os usuários poderiam percorrer pelo bot, dividindo-as
em seções que achamos que seriam caminhos naturais para o usuário. Sellu e
seus vizinhos foram treinados para usar câmeras, o que criou um fluxo de novos
conteúdos que continuamos a adicionar ao bot, transmitindo aos assinantes para
mantê-los a par dos desenvolvimentos. Criamos um cronograma de atualizações
que progrediria na jornada do inscrito o mais próximo possível do tempo real da
Sellu. (The Bot Platform 2018)
Análise
A partir do primeiro contato feito pelo usuário, Fabi Grossi inicia uma troca de
mensagens, com textos, fotos e arquivos de áudio, em que conta que seu ex-namorado
divulgou um vídeo íntimo do casal na internet e divide, ao longo do diálogo, a
angústia de ver a repercussão sobre as imagens íntimas, de ter de contar aos seus pais
o acontecido e a busca por uma punição ao crime.
A fim de compreender a interatividade do sistema, mapeamos, nos 10 roteiros
de interação coletados, as perguntas que o robô envia ao usuário e de que forma as
respostas a essas questões alteram o curso da narrativa. Contabilizamos um total de
21 perguntas, em que 14 são retóricas, ou seja, em que não há reação do robô a par-
tir da resposta do usuário, e 7 são efetivas, em que a resposta do usuário condiciona
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Diálogos Interativos
Após uma apresentação inicial, Fabi diz ter 21 anos e pergunta a idade do
usuário. Trata-se da primeira pergunta efetiva, que busca restringir a experiência a
maiores de 13 anos – a plataforma interativa segue a política de uso do Facebook.
Quando o usuário diz ser mais novo, Fabi procura confirmar se não se trata de brin-
cadeira, alerta sobre a restrição e só depois de constatar que o usuário é maior de 13
anos segue a conversa.
Nesse ponto notamos também que, em algumas conversas, a robô não reconhece
a informação numérica em respostas completas, conforme transcrição abaixo. É
preciso que o usuário destaque somente a idade para que o sistema reconheça e siga
adiante, o que parece revelar uma falha na usabilidade do sistema, algo que prejudica
a verossimilhança da experiência. No exemplo abaixo, notamos que o robô pergunta
duas vezes a idade, pois não entende os numerais no contexto de uma frase maior
(reproduzimos literalmente a forma como as mensagens foram digitadas pelo usuário
e como foram apresentadas pelo robô, incluindo quebras de linha, gírias e expressões
incompletas. A personagem fictícia Fabi Grossi é sempre identificada como “Chatbot”,
enquanto os usuários estão anonimamente identificados de acordo com um número de
1 a 10).
Em seguida, Fabi avisa que irá compartilhar conosco a situação que está vivendo e alerta:
“Se não tiver afim é só escrever PARA, ta? Não quero incomodar”.
A palavra “PARA” é a senha, que pode ser usada a qualquer momento da interação,
para que a experiência seja definitivamente encerrada.
Depois de contar sobre o vazamento das imagens, Fabi pergunta ao usuário se ele
conhece alguém que tenha passado por uma situação parecida. Neste ponto identificamos
que só há algum nível de interação caso o usuário responda que ele mesmo vivenciou o
vazamento de imagens – se afirma que conhece alguém na mesma situação, a resposta é
ignorada e a robô dá sequência à narrativa, conforme o diálogo abaixo. A linguagem do
robô é sempre casual, repleta de abreviações e gírias.
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Também é interessante notar que, a respeito dessa última pergunta de Fabi Grossi
– “vc acha que eu tenho culpa? –, não há interatividade a partir da resposta do usuário.
Nas conversas coletadas, tivemos respostas positivas e negativas, e Fabi não mudou
a sequência narrativa a partir das falas – ao contrário do que os desenvolvedores
afirmam, pois se trata de um momento em que a ideia de não culpabilizar a vítima
poderia ser reforçada.
Apesar de se tratar de um ponto em que o sistema busca uma resposta retórica, há
a necessidade do recebimento de um retorno para que a narrativa continue. Contudo,
nesse trecho, nota-se mais uma falha de usabilidade. Em algumas conversas, diante de
respostas complexas, Fabi Grossi responde como se não tivesse recebido retorno. É o
caso do diálogo a seguir, da Interação 4 e da Interação 5, em que, diante da resposta
“voce nao tem culpa, voce confiou nele, a vítima nunca tem culpa”, a robô reenvia a
pergunta, demonstrando falha na compreensão.
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No mesmo ponto, em outra interação o robô parece não ter entendido “já” como
sinônimo de “sim” e simplesmente prosseguiu a narrativa:
Ainda sobre as interações efetivas, Fabi envia algumas mensagens pontuais a fim
de confirmar o vínculo com o interlocutor e de dar continuidade à narrativa. São as
perguntas: “ta aí?”, “tô incomodando» e «oi…?», que dependem de o usuário responder
positivamente para que a robô prossiga com o desenrolar da história.
Além das questões efetivamente interativas, mapeamos outros dois momentos em
que, a partir de um input do usuário, Fabi Grossi direciona um output diferente. Em
uma das conversas coletadas, após enviar uma foto sua (ou seja, de uma atriz contratada
para interpretar Fabi Grossi, emprestando-lhe voz em arquivos de áudio e imagem em
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USUÁRIO 7: Bonita
CHATBOT: J obrigada!
Em outro ponto, o usuário pergunta duas vezes de que se trata o vídeo, e Fabi
Grossi retoma a narrativa inicial, de que o ex-namorado divulgou imagens íntimas
do casal. Trata-se de um output um pouco abrangente, que facilmente se adequaria a
qualquer questão a respeito da história.
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CHATBOT: por mais que digam que foi ela que se matou
foi o namorado e os outros que compartilharam o vídeo.
USUÁRIO 2: sim
Mas ela mereceu
Exemplo 3: usuário insiste que vítima estava errada em consentir com a gravação
de cenas íntimas.
Experiência do usuário
Ainda que a experiência Fabi Grossi tenha um rico conteúdo multimídia e consiga,
com uso de gírias e linguajar adolescente, abordar o tema do vazamento de imagens
íntimas – a chamada “pornografia de vingança” –, a interação apresenta falhas que
prejudicam a usabilidade do sistema e a experiência interativa. O resultado dessas falhas
pode diminuir a credibilidade da personagem ao impactar também sua verossimilhança.
Respostas pouco específicas e a falta de reações adequadas às interações,
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Usabilidade X
Correspondência
X
às expectativas
Presença X
Credibilidade dos
X
personagens
Efetividade X
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chatbots, com que finalidade e com quais resultados? Os chatbots são como Fabi Grossi,
ou seja, fortemente narrativos (contadores de histórias), ou, ao contrário, enciclopédicos,
do tipo que busca responder perguntas objetivas (como robôs usados em serviços de
atendimento ao consumidor, por exemplo)?
Por ora, acreditamos ser relevante a constatação de que o argumento dos elevados
investimentos e da necessidade de grandes equipes de profissionais altamente especiali-
zados para a produção de experiências narrativas com chatbots, como forma de justificar
a raridade de experiências do tipo em empresas jornalísticas, não é totalmente válido.
Outros estudos poderão detalhar a questão do processo de produção de chatbots desse
tipo, já que nos concentramos na experiência dos usuários, mas parece lícito antecipar
que experiências de sucesso nesse sentido podem ser promovidas não com base no esta-
do da arte tecnológico, e sim no bom e velho storytelling.
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critura como uma “antiletratura” ou como um “não-jornalismo”. Vida afora, ela escreve
para sabotar o aparelhamento do jornalismo e da literatura, conjurando sem cessar a força
dominadora que por sua vez só existe para controlar o gesto criativo, produzindo linhas re-
tilíneas e hierárquicas que destroem sua potência de metamorfose3: as demarcações de voz
e de autoridade, as classificações de gênero, as escolas literárias, as receitas cronológicas,
as hierarquias gráficas, as filiações de gênero, as segmentações editoriais.
É porque se conecta com outras máquinas abstratas, que produzem não objetos,
mas variadas engenharias de guerra, capitais intelectuais de transformação e insubordi-
nação que a escrita pode ser vista como máquina. “A escrita e a música podem ser má-
quinas de guerra. Um agenciamento está tanto mais próximo da máquina abstrata viva
quanto mais abre e multiplica as conexões”. (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 202).
Esvaziando a narrativa do seu poder sintático e significativo de dominação, o jornalismo
se conecta à sua potência de literatura4 e a outras máquinas com as quais elas se tornam
inseparavelmente “políticas, econômicas, científicas, artísticas, ecológicas, cósmicas —
perceptivas, afetivas, ativas, pensantes, físicas e semióticas”.
As conexões fazem a narrativa forte e incontrolável. Ela se torna ingovernável.
Não é por ser abstrata que uma máquina é irreal, alertam os filósofos: do contrário, quan-
to mais abstrata mais revolucionária. Nesse caso, escreve-se para desvelar uma matéria
não formada do real que passa a tensionar as visões domesticadas e enquadradas da
realidade. O regime das máquinas de guerra passa pelo seu fora, pelo enlouquecimento
das formas e dos sujeitos.
Clarice datilografa para o jornal: “A máquina continua escrevendo. Por exemplo,
ela vai escrever o seguinte: quem atinge um alto nível de abstração está em fronteira
com a loucura. [...] Agora a máquina vai parar. Até sábado próximo.” (LISPECTOR,
2004, p. 158). Assim como a guerra, a loucura é, por caminhos diferentes, tanto uma
medida para a saúde quanto para a doença. Os criadores se realizam com o próprio ato
abstrato da loucura. A obra de arte é, em si, um ato de loucura, “só que germina como
não-loucura e abre caminho” (LISPECTOR, 2004, p. 171).
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manidade, dos próprios animais”. Para superar a forma terá que devir até a poeira, até o
código do silício, ou como continua a carta, “deverá fazer sentir, apalpar, escutar as suas
invenções” (RIMBAUD, 2005, p. 82).
Talvez ninguém melhor do que Celan (1996, p. 51) tenha falado com tanta brevi-
dade e densidade sobre essa magia: “A arte provoca um distanciamento do Eu”. Se o
outro se torna um eu no arrebatamento dos devires onde começa a escrita, ali, na zona
de vizinhança onde vive e respira a poesia, é porque “eu é um outro”. Como na crítica de
Rimbaud (2005) aos esqueletos ensimesmados que se creem autores, vidente é o poeta
que num relâmpago cifrado vê a poesia se vendo outro.
A mudança molecular da sintaxe humana na narrativa sempre está por vir, mas
as experiências clariceanas nos jornais ainda não foram aproveitadas pelo jornalismo,
por exemplo no que se refere à impessoalidade da escrita. Requer colocar intensamen-
te em ação o seu ferramental descentralizador do eu e propor modos frasais não gra-
maticais, correspondentes a ideações menos narcísicas do sujeito humano. Implantar
na língua portuguesa – por apropriação das mais antropofágicas – um pronome neutro
e estrangeiro. Com Água viva, o it tornou-se uma materialização singular do lugar de
enunciação onde a possibilidade/fracasso de funcionamento do inumano na escritura
pode acontecer.
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113). Não é o autor, não é o jornalista, não é o sujeito, não é decididamente o eu quem
escreve o outro. Ele, seja leitor ou iletrado, se expõe animal autobiográfico e dá voz e
narrativa ao escritor. Cada presença no mundo é uma quebra de sintaxe, um método, um
pensamento, um ponto de vista. E é também uma escritura, uma biografia que se conta.
A esta altura podemos dizer: escrever é inumano, é percorrer linhas que escapam
e transbordam para todos os lados. É trazer de volta para a literatura e para o jornalismo
povos que morrem e “Temas que morrem”10 (LISPECTOR, 2004, p. 183-185) para o
jornal, como os da própria morte e do estado de graça que ela discute antes de chegar ao
seu Post Scriptum.
Constituída na pura experimentação do devir, literatura é potencialmente um
lugar onde se pode operar um pensamento, uma estética e uma escrita que devole a
posse da linguagem ao mundo. Não é preciso reconciliar-se com a máquina estatal,
com a máquina antropocêntrica. É preciso “reconciliar-se com o mundo”, dirá Francis
Ponge (1997, p. 69). O escritor se reconcilia com o mundo inumano quando se dispõe
a aprender com ele, a se reconciliar com a natureza muda da escrita.
As linhas da literatura não se separam das linhas da vida, segundo a lição funda-
mental que nos deixou a escrita filosófica do “nós” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).
Ultrapassando até o limite a fratura que separa os viventes, a máquina literária combate
a máquina antropocêntrica. É porque as aproximações ontológicas e estéticas que ela
promove entre as fronteiras são anarquizantes e procuram as revoluções. É porque, en-
fim, a literatura perfaz esse eterno retorno ao mito da indiscernibilidade e da comunica-
bilidade entre os seres, as coisas e o mundo que compõe, em última análise, a sua visão
do escuro e a sua voz do silêncio.
Procurar o pensamento anterior, o ser, e o dizer que estão atrás do olhar, atrás
do pensamento, atrás do sujeito e atrás da escrita. Afastar-se da Lógica para encon-
trar o infinito de lógicas e de sensibilidades. Emperrar, enguiçar a máquina antropo-
cêntrica do Estado. Jogar areia no motor, se não se pode pará-la. Pela máquina da
escrita talvez seja possível chegar ao que importa, à matéria-prima do livre-pensar
tendo-se atingido o livre-escrever.
Notas
________________________
1
Necessário distinguir radicalmente do conceito marxista a noção de Estado que De-
leuze e Guattari (2005, p. 16) elaboram a partir da ideia de sociedade sem Estado de
Clastres. Ele deve ser compreendido não como a superestrutura de uma base econômica
mas, ao contrário, como o grande mecanismo que torna possíveis os processos de pro-
dução, os excedentes, a organização das funções públicas e das forças políticas. Enfim,
o grande aparelho que “torna possível a distinção entre governantes e governados” e
permite o aparecimento do próprio Estado.
2
“A máquina de guerra não tem por si mesma a guerra por objeto, mas passa a tê-la, ne-
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cessariamente, quando se deixa apropriar pelo aparelho de Estado. É nesse ponto muito
preciso que a linha de fuga, e a linha vital abstrata que esta efetua, se transformam em
linha de morte e de destruição.” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 202).
3
“A ‘máquina’ de guerra (daí seu nome) está, pois, muito mais próxima da máquina abstrata
do que, desta está o aparelho de Estado, aparelho que a faz perder sua potência de metamor-
fose.” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 202).
4
O jornalismo é uma paraliteratura de caráter não declaradamente ficcional, conforme
argumenta José Miguel Wisnik. Entre inúmeras outras razões, porque cria uma relação
ficcional com a realidade pela alteração violenta do mero recorte das cenas do cotidiano
para o contexto do jornal (seja meio escrito ou audiovisual), incluindo o próprio efeito
de realidade que essa transposição provoca (sob a força de verdade da palavra ou da
imagem). Como máquina de destruir e construir contextos, que se vale de elementos
extraídos da realidade, o jornal faz bricolagem costurando uma nova plataforma de sig-
nificados a partir de materiais com origens e finalidades diferentes, como a literatura e
o ensaio também são, de outro modo, bricolagem. “Assim, não só quando um texto é
constituído de informações forjadas [...], mas de elementos ‘verídicos’, existe nele uma
tendência ‘ficcional’ embutida nos procedimentos de recorte e montagem. Assim tam-
bém, mesmo quando não é ‘ficção’, ou exatamente por apresentar-se como não sendo, o
efeito de sentido dado pela congruência dos elementos entre si investe-se de uma certa
autonomia em relação ao contexto externo, o que torna o texto, também ele, “mais real
do que o real.” (WISNIK, 1992, p. 335).
5
Expressão usada nas lides campestres do sul do Brasil, Uruguai e Argentina para de-
finir um animal desmamado precocemente, geralmente pela morte da mãe. Segundo o
dicionário-gauchês de Douglas Milani, “animal ou pessoa criado sem mãe ou sem leite
materno” (MILANI, 2010).
6
Crônica integrada mais tarde à antologia A alma encantadora das ruas (2008a).
7
“Da janela espiamos a intimidade doméstica do burguês. Da janela lemos a psicologia
urbana” (RIO, 2008a, p. 14).
8
Desde os estudos pioneiros de Adelmo Genro Filho (1987), compreendemos que o
jornalismo lida com subjetividades objetivadas e objetividades subjetivadas e, ainda,
que há uma negociação entre os aspectos individuais e os dados externos da realidade
objetiva (a cultura, a ideologia, as estruturas de poder e a resistência da própria materia-
lidade) no processo de reportar e interpretar a realidade.
9
O super-homem é, segundo a fórmula de Rimbaud, o homem carregado dos próprios
animais (um código que pode capturar fragmentos de outros códigos, como nos novos
esquemas de evolução lateral ou retrógrada). É o homem carregado das próprias rochas,
ou do inorgânico (lá onde reina o silício) (DELEUZE, 1988, p. 141-2).
10
Título de crônica publicada no Jornal do Brasil.
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
93
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
BIOGRAFIAS DE VIVOS:
RECONFIGURAÇÕES NARRATIVAS
DA ESCRITA BIOGRÁFICA
Rodrigo Bartz
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por James Boswell, com o que Dosse (2009) chama de biografia à moda anglo-
saxônica, (desenvolvendo o enredo da pessoa viva) – porém, hoje ela complexifica-
se, reconfigura-se – a fim de ganhar legitimidade frente a um cenário editorial,
caminho esse que nos propomos a observar, como primeiros passos da pesquisa de
doutoramento, no presente momento em um cenário midiatizado, com o Boom de
escritas de trajetórias de vidas de personagens vivos, atualmente, com um percurso,
de certo modo, “em processo”.
Por fim, elas – as biografias Jornalísticas contemporâneas5 – rompem com
padrões estéticos e conceituais delineando trajetórias de personagens, famosos e
notórios ainda vivos, como, por exemplo, a biografia do escritor e apresentador Jô
Soares (mais vendida nos anos de 2016 e 2017)6 e do Bispo Edir Macedo7 (que mesmo
contando com um apelo religioso, ainda assim faz parte do gênero, biografia essa mais
vendida entre os anos de 2010 a 2017), além da biografia acerca da vida do escritor
Paulo Coelho, escrita pelo biógrafo Fernando Morais – O mago (2008) – que teve
uma tiragem de 100 mil exemplares na semana de lançamento8. Dessa forma, com
uma trajetória desses personagens biografados ainda em andamento, estabelece-se
um novo paradigma, demonstrando-se uma fratura às metodologias pré-estabelecidas
e cristalizadas. Dito isto, demonstraremos, por meio de uma seminal tabela, como
faremos, futuramente, a análise – ou seja, trata-se dos primeiras tentativas de construção
de um possível método – por meio de categorias que, na verdade, servirnos-ão como
formas de abordagem, porém nunca como cristalização, mas sim meios de reorganizar
essas classificações que englobam a biografia e de verificar que há camadas mais
profundas de significação.
95
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Assim, com a mesma velocidade com que produzem vídeos em seus canais,
youtubers amparados por seus inúmeros seguidores e pela “sede” do mercado editorial
no gênero, produzem biografias efêmeras, na ânsia de sanar o apetite de seu público.
Deste modo, para Jameson (1997), o que ocorre é que a produção estética está, nos
dias de hoje, integrada às mercadorias, atrelada à urgência desvairada da economia
em produzir novas séries de produtos que devem ser sempre novidade, valorizando o
efêmero, a utilidade do fato; o utilitarismo.
Ao abordarmos esse certo utilitarismo da sociedade hodierna, chegamos
a pensamentos da escola de Frankfurt. Isso porque, para Adorno e Horkheimer
(1985), o esclarecimento, elemento básico do mito, foi sempre o antropomorfismo,
a projeção do subjetivo na natureza. Assim, os Deuses separam-se dos elementos
materiais, e passamos a uma espécie de distanciamento do mito e uma matematização
do conhecimento, (do utilitarismo a que nos referimos acima): “No trajeto para a
ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela
97
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não ao fim de toda crença no progresso, mas ao surgimento de uma ideia pós-
religiosa do progresso, ou seja, de um porvir indeterminado e problemático –
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Destarte, a narrativa biográfica ganha força nesse cenário. Nesse aspecto, essa
narrativa age como aparato desse saber comprado, que ao ser mastigada e digerida
melhora as performances desses sujeitos sedentos por legitimarem seus discursos.
Ademais, as narrativas biográficas contemporâneas funcionam como uma espécie
de mito moderno, quando traz à baila sujeitos de sucesso com suas singularidades
semelhantes a de qualquer indivíduo, construindo esse futuro super valorizado baseado
em um curto passado de glória e, além disso, exercendo o papel de instrumento
distanciador dessa natureza, elencada por Adorno e Horkheimer anteriormente.
Aqui, então, há o Boom biográfico – biografia propriamente dita e relatos de
experiência13 – que, segundo Leonor Arfuch (2010), são, de certa forma, coletivos,
expressões de uma época, de um grupo, de uma geração, de uma classe, de uma
narrativa comum de identidade, “é essa qualidade coletiva, como marca impressa na
singularidade, que torna relevantes as histórias de vida, tanto nas formas literárias
tradicionais quanto nas midiáticas e nas ciências sociais.” (2010, p. 100). Ainda
segundo a autora, nesse tempo pós-moderno (ou hiper), “é essa busca, essa proteção
em tempos de incerteza, um dos fatores que impulsionam, [...], o desdobramento sem
pausa do biográfico.” (2010, p. 75).
Por conseguinte, corroborando as afirmações anteriores, a massificação da in-
formação, a crise da verdade e das metanarrativas, discutidas por Lyotard (2009) –
respeitando as devidas proporções comparativas relacionadas à época – está na atual
emergência do gênero biográfico. Para Jaguaribe (2007), contemporaneamente, há um
boom das biografias e das escritas do “eu” no meio editorial. Tudo em razão das mui-
tas aparições da vida íntima tanto no circuito audiovisual quanto na internet, as quais
assinalaram novas mesclas entre o público e o privado, o ficcional e o real, confundin-
do esses tempos, como apontado anteriormente.
De acordo com os fatos mencionados, segundo Arfuch (2010, p. 37), percebe-se que
o avanço irrefreável da midiatização ofereceu um cenário privilegiado para a afirmação
dessa tendência, “contribuindo para uma complexa trama de intersubjetividades, em
que a superposição do privado sobre o público, do gossip – e mais recentemente do
reality show – à política, excede todo limite de visibilidade”.
Dessa forma, no momento presente, certa fé foi substituída por uma confiança
mutável, em função do cenário: “Motor da dinâmica dos investimentos e do consumo,
o otimismo em face do futuro se reduziu – mas não está morto. Assim como resto, a
sensação de confiança se desinstitucionalizou, desregulamentou-se, só manifestando-
se na forma de variações extremas.” (LIPOVETSKY, 2004, p.70).
Amparado nas questões exploradas, até aqui, e na abundância de narrativas
99
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Isso acontece porque necessitamos dessas experiências narrativas, visto que so-
mos seres narrativos e consumimos desenfreadamente biografias não pela sua adequa-
ção, ou reprodução de determinado passado, “da captação ‘fiel’ de acontecimentos ou
vivências, nem das transformações ‘na vida’ sofridas pela personagem em questão,
mesmo quando ambos – autor e personagem – compartilharem o mesmo contexto.
Tratar-se-á, simplesmente, de literatura”. (ARFUCH, 2010, p. 55).
De acordo com Lipovetsky (2004, p. 85) ao celebrar, na sua grande maioria,
o aqui e agora, a civilização consumista ajuda a enfraquecer a memória coletiva.
Contrariamente a isso, nossa época “longe de encerrar-se num presente trancado em si
mesmo, é palco tanto de um frenesi histórico-patrimonial e comemorativo quanto de
uma investida das identidades nacionais e regionais, étnicas e religiosas”.
Por isso, a biografia além de ser aparato de constructo narrativo desses narradores
contemporâneos que, vazios, buscam nela elementos legitimadores de seus relatos,
também é uma espécie de preservação desse patrimônio. Para Lipovetsky (2004, p.
87):
100
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Dessa forma, percebemos que há uma relação da narrativa biográfica com o pas-
sado e que são, na verdade, materiais ligados à história ou que interagem com ela,
como as biografias, as quais produzem memória de um período e são reelaborados em
uma nova narrativa com credibilidade frente à era tecnológica. Isso quer dizer que as
biografias contemporâneas são ressignificadas, complexificadas buscando estabelecer
uma identificação com seus leitores ganhando, na forma livro, certa eternidade. Dessa
maneira, biógrafos, mesmo sem perceberem a hibridização de tais produções, tentam
manter a mesma fidelidade a fatos e visões coerentes de mundo em suas produções,
mercantilizando esses passados, transformando as biografias contemporâneas em re-
flexo do tempo em que vivemos, um tempo midiatizado.
101
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Abordagem Excertos
Título
Autor
Categorização
Diferenciação teórica
Notoriedade
Temporalidade
(Predominante)
102
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
havia publicação dos diários íntimos de certas personalidades. Entretanto o que ocorre
hodiernamente, ainda nas palavras do pesquisador, é que esses diários passaram a ser
publicados, “como farsa barata, a serem divulgados mais ou menos em tempo real, via
as mídias on-line por milhares de pessoas comuns”. (2008, p. 29). Ou seja, somos o tem-
po todo estimulados a suportar o presente, que na verdade tem e muito subterfúgios de
futuro. Nesse aspecto, segundo Muniz Sodré (2014, p. 76), o tempo não representa mais
o real, uma vez que o imediatismo acaba banindo-o, já que “com a tecnologia eletrônica
o tempo encurta e o espaço encolhe”.
Com isso, nesse momento, segundo Fausto Neto (2008), os dispositivos deixam de
ser apenas meio e passam a representar um novo estatuto simbólico em uma sociedade
midiatizada, a qual se instaura nas sociedades industriais com a evolução de processos
midiáticos, que chamam atenção para os modos de estruturação e funcionamento
dos meios nas dinâmicas sociais e simbólicas. Dessa forma, há uma outra relação,
complexificada, entre homem, máquinas e as organizações sociais.
Destarte, de acordo com Fausto Neto (2008, p. 92), tais relações levam ao entendi-
mento de que as mídias não são mais somente instrumentos condescendentes da organi-
zação do processo de interação dos demais campos, não obstante “se converteram numa
realidade mais complexa em torno da qual se constituiria uma nova ambiência, novas
formas de vida, e interações sociais atravessadas por novas modalidades do trabalho de
sentido”.
Nesse sentido, com a midiatização há uma reformulação social para conseguir
dar conta da emergente esfera de orientação da realidade, apta a transpor as relações
sociais por meio da mídia. Assim, segundo Fausto Neto (2018, p. 8) “antigos modelos de
transmissão-recepção de sentidos que operavam sob o crivo de instâncias mediacionais,
como os mass media14, saem de cena e dão lugar às novas modalidades de contatos”.
Nesse contexto, o processo comunicacional funciona em aberto, quando, segundo Fausto
Neto (2018), há uma intercambialidade assimétrica, isto é, que não é igual, todavia sim
configurada por feedbacks complexos.
Então, o que temos, segundo José Luis Braga (2006), é a midiatização
como processo interacional15 de referência que passa a “guiar”, de certa forma,
os processos subsumidos que começam a funcionar segundo sua lógica. Dessa
forma, ainda segundo Braga (2006), esses processos não somem, mas se ajustam.
Isso significa que quando um processo se torna interacional de referência, ele se
transforma em organizador principal da sociedade e não anula outros. Já que os
indivíduos constroem a realidade social através de processos interacionais pelos
quais esses mesmos indivíduos, grupos e setores da sociedade se relacionam.
Dessa maneira, a sociedade se constrói conforme processos interacionais a que dá
maior relevância.
Assim, de acordo com Fausto Neto (2008), com a expansão da midiatização como
um ambiente, com tecnologias apontando novas formas de vida, com as interações
afetadas ou reconfiguradas por modos e formas de organização coloca todos, produtores
103
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
e consumidores, em uma mesma realidade, ou seja: “Não se trata mais da ‘era dos
meios’ em si, mas de uma outra estruturada pelas próprias noções de uma realidade de
comunicação midiática” (2008, p. 94). Dessa forma, consoante Braga (2012), os campos
sociais são atravessados por diversos circuitos. Isso, além de reconfigurar todo sistema
social produzem novas gramáticas de reconhecimento: “As referências habituais se
encontram deslocadas ou complementadas por referências menos habituais – fazendo
com que os próprios circuitos em desenvolvimento elaborem e explicitem os contextos
requeridos para atribuição de sentidos aos produtos e falas que circulam.” (2012, p. 49).
O que acontece, por fim, para Fausto Neto (2008), é que, os processos de
referenciação da realidade – estruturados em torno da midiatização – migram para
diversas práticas sociais, não ficam apenas na divisa das próprias práticas midiáticas,
o que afeta todo um sistema, em nosso caso, percebido, por exemplo nas biografias
contemporâneas. Tais processos de referenciação passam, então, a estabelecer uma
condição cujo emprego torna-se obrigatório, de certa forma, para que passem a ser
reconhecidas, legitimadas, isto é, uma nova ambiência narrativa se instala na sociedade
midiatizada, alterando práticas e cambiando lugares.
Considerações interpretativas
Chegamos ao final do presente trabalho com poucas certezas, e isso é ótimo, uma
vez que sabemos que ainda temos um longo e, com certeza, prazeroso percurso até quem
sabe alcançar respostas possíveis.
O que percebemos, como hipótese, é que as teorias postas, canônicas, da teoria
biográfica não dão mais conta; dizendo de outra forma, afirmar contemporaneamente
que “a biografia é a vida de uma pessoa (acima de tudo) narrada como arte por
outra pessoa” (VILAS BOAS, 2008, p. 22) – não abarca mais a possibilidade de
compreender a realidade, tanto pelo boom de biografias de personagens ainda vivos e,
além disso jovens, com trajetórias narrativas inacabadas (caso dos youtubers), quanto
pelas biografias escritas “em parceria com”, como a biografia do ator, apresentador e
escritor Jô Soares.
Outro aspecto interessante é observar que o gênero memória, ou que usa as
memórias dos biografados – outro que nos debruçaremos subsequentemente com
intuito de delinearmos melhor essas divisas – ganha em praticidade em relação às
biografias clássicas (embora não nos agrade essa terminologia) dado que seu tempo
de finalização é muito menor, corroborando a efemeridade contemporânea, em que
necessitamos de novidades o tempo todo. Ainda cabe ressaltar que uma memória,
autobiografia, ou mesmo as biografias escritas pelos seus próprios personagens contam
com certo apelo de verdade e sejam consideradas pelos leitores como menos ficcionais.
Nesse tempo presente, efêmero e utilitário/hipermoderno as narrativas biográficas
surgem, conforme Arfuch (2010), como uma espécie de proteção em tempos incertos.
Vale afirmar, por outras palavras, que, de acordo com Gomes (2016, p.18), a
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Notas
________________________
1
Nosso interesse de pesquisa é a impressa, em formato livro. Deixamos claro esse
posicionamento em função de questionamentos sofridos em congressos anteriores, nos
quais fomos interpelados acerca dessa questão.
2
Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho
biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015.
3
Além dessas passagens, a biografia passou por outros câmbios – como no século XVIII
com James Boswell acompanhando seu biografado, Dr. Samuel Johnson ainda vivo, por
exemplo – mas aqui queremos apenas delinear um pequeno espectro da biografia, para
demonstrar que ela, assim como outros gêneros, também alterou seus modos de fazer.
4
Abordamos esses outros teóricos em outras pesquisas, portanto como não é nosso
escopo de pesquisa, estamos apenas apresentando como caminho de pesquisa já
percorrido, em função do espaço aqui cedido.
5
Em pesquisas anteriores, já aprofundamos tal tema demonstrando que é possível chamá-
las de jornalísticas, por suas inclinações narrativas e de estilos. Com isso, queremos apenas
obter “portas” de entrada para camadas mais profundas de significação, não obstante
nunca o engessamento do gênero. Ver Jornalismo e literatura: as complexificações
narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa
Cruz do Sul: Catarse, 2015.
6
https://www.publishnews.com.br/ranking/anual/13/2017/0/0
7
http://curiosamente.diariodepernambuco.com.br/project/pesquisa-mostra-livros-
mais-vendidos-no-brasil-em-2017-e-nos-ultimos-10-anos/
8
https://oglobo.globo.com/cultura/biografia-de-paulo-coelho-a-primeira-a-ultima-que-
faco-de-uma-pessoa-viva-diz-fernando-3614401.
9
https://www.nielsen.com/br/pt/solutions/how-we-measure/nielsen-editorial/
105
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
10
https://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/08/livros-de-youtubers-viraram-grande-
aposta-do-mercado-editorial.html
11
Fonte: Nielsen Bookscan - Relatório TOP 10 mais vendidos na semana. Disponível
em: https://www.nielsen.com/br/pt/top-ten/
12
Destarte, importante salientar que, a razão criticada por Adorno e Horkheimer é o que
chamam de razão técnica, dado que, segundo os pensadores, há ali uma desvalorização
do pensamento, da filosofia, e apenas tem validade a lógica utilitarista. Dessa maneira,
a razão técnica utiliza o número como principal ferramenta, que mantém o pensamento
preso à mera imediatidade, tal como se faziam nas guerras da época e na implantação de
movimentos totalitários como nazi-fascismo.
13
Gênero extremamente interessante, mas que por não ser nosso escopo de pesquisa,
deixaremos para futuros momentos de debate.
14
Conjunto de técnicas de difusão de mensagens (culturais, informativas ou publicitárias)
destinadas ao grande público, tais como a televisão, a rádio, a imprensa, o cartaz; meios
de comunicação social
15
Conhecimento interacional. É o conhecimento sobre as ações verbais, isto é, sobre
as formas de “interação” por meio de linguagem, engloba o conhecimento ilocucional,
comunicacional, metacomunicativo e superestrutural. Na leitura, o sentido já está pré-
estabelecido pelo autor.
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107
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Parte II:
narrativas da resistência
108
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Introdução
Pedidos para que alunos filmem professores com o objetivo de identificar e punir
qualquer tipo de manifestação ideológica de esquerda por parte dos docentes. Punição
com o corte de recursos para universidades que se manifestam contra o governo.
Denúncias de alunos em ouvidorias de instituições públicas federais contra educadores
que publicaram artigos citando o pensador Paulo Freire. Essas são apenas algumas das
tentativas de vigília e punição no campo da educação que aconteceram nos primeiros
seis meses do governo do presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PSL) em 2019.
Essas tentativas de vigília moral e ideológica onipresente e onisciente que deixa o
campo criminal para se estender às outras áreas foi uma das características da reforma
jurídica e penal realizada na França do século XVIII. O suplício, em que praticamente
todos os crimes cometidos até o fim do século XVII tinham como punição a pena de
morte com tortura, é trocado por penas que variam de condenações à morte e prisões
até multas e pequenas humilhações morais (FOUCAULT, 2014). Assim, surge o modelo
do Panóptico proposto pelo filósofo e jurista inglês Bentham e recuperado por Foucault
em Vigiar e Punir (2014). Pelo modelo, retomado mais adiante, uma torre controla tudo
o que ocorre em 360° dentro do espaço a ser vigiado, seja um presídio, um hospício ou
uma escola. Assim, “o Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder”
(FOUCAULT, 2014, p.198).
O presente capítulo faz uma recuperação do conceito de Panóptico e de vigília
intensiva a partir da obra de Foucault (2014) e do romance de Orwell (2009), analisando
como o governo Bolsonaro tenta praticar no universo online contemporâneo as mesmas
técnicas de vigília e punição da França do século XVIII. A partir disso, surge a seguinte
questão: como é possível construir uma narrativa de resistência à essa vigilância
ideológica e moral dentro do jornalismo opinativo? Para tanto, foram selecionados dois
textos escritos por jornalistas e docentes do Jornalismo: Felipe Pena e Juremir Machado
da Silva. Neles foram identificadas narrativas de resistência em um contexto em que o
109
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Ainda conforme Foucault (2013), o discurso passa a ser um jogo regido por
regras (linguísticas, de poderes simbólicos, de técnicas, de expressões e de silêncios)
que inclui uma relação de troca entre atores sociais principalmente no contexto
de disputa pelo poder. Assim, para se analisar algo discursivamente, é necessário
observar alguns princípios. O primeiro é o da inversão, em que além dos papéis
positivos, como o do autor, o da disciplina e o da vontade da verdade, também “é
preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação
do discurso” (FOUCAULT, 2013, p. 49). O segundo é o da descontinuidade, quer
dizer, para além do discurso proferido há um grande discurso ilimitado, “contínuo e
silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado e que nós tivéssemos por missão
descobrir restituindo-se, enfim, a palavra” (FOUCAULT, 2013, p. 49). O terceiro,
muito importante, é o da especificidade, que faz referência a não transformação do
discurso em jogo de significações prévias. Ou seja, é quando o analista se despe de
todos os seus conceitos e pré-conceitos para fazer a análise do discurso. A quarta
regra é a da exterioridade: “a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua
regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar
à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras” (FOUCAULT, 2013,
p. 51).
Todos esses são princípios sugeridos por Foucault (2013), que foram consideradas
ao longo da pesquisa sem, no entanto, ser um limitador da análise, pois optou-se por
procedimentos metodológicos abertos. Além disso, uma metodologia aberta também
faz parte do pensamento foucaultiano: “Em sua tradição de pensamento, Foucault milita
contra discursos tidos como absolutos. O conceito de formação discursiva trabalha com
o jogo constante e imprevisível de interferências” (BORGES, 2013, p. 83).
110
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
111
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de
coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplica” (FOUCAULT, 2014,
p.168). Chega-se, então, ao modelo Panóptico de Bertham, recuperado por Foucault
(2014, p. 192), que apresenta a seguinte definição:
Esse modelo de vigília, aliás, não é exclusivo dos sistemas penais. Foucault (2014)
ressalta que a vigilância disciplinar vai perpassar todas as camadas sociais: as escolas,
os hospitais, os quarteis, as empresas com jornadas de trabalho, etc.
112
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
e suas respectivas janelas, tem-se os perfis com as suas postagens e fotografias. Já o
vigia, que fica na torre central, passa a ser representado pelos discípulos do poder, que
no caso brasileiro, vão desde o presidente da república e sua família pseudo-real até os
seus seguidores. “Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar
um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar” (FOUCAULT, 2014,
p.194). O que antes era feito apenas materialmente agora pode ser feito de maneira
simbólica no mundo digital. “O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que
permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente” (FOUCAULT, 2014, p.194).
E como aquilo que foi pensado arquitetonicamente no século XVIII,
romanticamente no século XX é lançado digitalmente na sociedade do século XXI?
Ora, o exemplo dos primeiros seis meses do governo brasileiro de Jair Bolsonaro em
2019 auxilia a refletir sobre essa necessidade de vigília para a manutenção do poder.
Em um dos casos envolvendo o sistema controle-punição do governo brasileiro a
deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL-SC, mesmo partido do presidente)
divulgou nota solicitando que alunos denunciassem professores que fizessem
manifestações partidárias ou ideológicas filmando e enviando o vídeo para um número
de celular. Mesmo não havendo amparo jurídico para uma punição que pudesse ser
imposta aos docentes, a deputada utiliza o discurso como forma de disputa simbólica
pelo poder visando impor disciplina no sentido convergente ao do adestramento. Aliás,
conforme Foucault (2014) a disciplina é um poder que não se apropria nem retira,
mas sim, adestra, e tal adestramento visa multiplicar as forças, assim como ocorre no
romance 1984, em que o personagem principal e muitos outros secundários aderiam
ao governo do Grande Irmão por puro medo ou comodidade, dando a falsa impressão
de que a maioria o apoiava.
113
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Ela [a disciplina] deve também dominar todas as forças que se formam a partir
da própria constituição de uma multiplicidade organizada; deve neutralizar os
efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que
quer dominá-la: agitações, revoltas, organizações espontâneas, conluios – tudo
o que pode se organizar das conjunções horizontais (FOUCAULT, 2014, p.212).
Tem-se, por esta perspectiva, a disputa pelo poder através dos discursos e de
narrativas. No caso brasileiro, o governo Bolsonaro, principalmente na educação,
tenta construir um apólogo narrativo com personagens bem definidos. Há a clara
representação discursiva de um bem contra o mal. A direita contra a esquerda. As
universidades contra as escolas. Olavo de Carvalho contra Paulo Freire. A partir dessa
narrativa, que sempre tenta lançar uma lição de moral para justificar a ameaça da
punição, chega-se ao surgimento de uma resistência pública. É nesse cenário que
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Temos que debater ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança
chamas no MEC para tirar Paulo Freire de lá1”. Além disso, ele afirmou ser contra o
pensamento crítico: “Eles defendem que ter que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai
ver se eles estão preocupados com pensamento crítico”. O então candidato constrói uma
narrativa de combate ao pensamento crítico, que é potencializada em uma sociedade
midiatizada, com tendências a se tornar facilmente, também, idiotizada. Além disso,
após a eleição, esse discurso é legitimado pelo presidente e passa a ser posta em prática,
então, a vigília e a tentativa de punição. Situação nesse sentido foi registrada logo no
primeiro mês de governo Bolsonaro, quando a professora da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM) Rosana Pinheiro-Machado foi denunciada na ouvidoria da
instituição por citar Paulo Freire em artigos. Mesmo sem haver uma punição para a
atitude, que é condenada moralmente e ideologicamente pelo presidente da República,
se cria um sinal de alerta para que todos saibam que a vigília discursiva está em rigor.
Paulo Freire defendia a educação crítica e libertária, tão atacada pelo governo
Bolsonaro. Critica o viés mercadológico da educação, bem como a educação bancária,
que se resumiria ao ato de “depositar”: os educandos são os depositários, o educador
o depositante, representando a separação entre os “detentores do saber” e aqueles que
nada sabem, sendo este modelo opressor e reprodutor do modo de produção capitalista.
Defende, deste modo, uma educação que não pode estar dissociada do contexto e da
realidade econômica, social, histórica e cultural inserida, sendo esta educação crítica
um mecanismo de resistência e transformação social (FREIRE, 2015). Transformação
que implicaria a consciência e a autonomia dos sujeitos, o que parece não condizer
com o “projeto” capitalista dependente de Bolsonaro.
Chega-se, portanto, às formas de resistência a essa tentativa de criação de um
apólogo narrativo que criminaliza ideologias, opiniões e o pensamento crítico. Uma
dessas possibilidades, agora analisadas, são as colunas de opinião, que anteriormente
ocupavam as páginas das revistas e dos jornais, e que hoje se estendem para o universo
online, seja em versões digitais de veículo jornalísticos, em blogs ou nas redes sociais.
“A coluna corresponde à emergência de um tipo de jornalismo pessoal, intimamente
vinculado à personalidade do seu redator” (MARQUES DE MELO, 1994, p.137).
O primeiro caso é o texto escrito pelo jornalista e professor Juremir Machado da
Silva2, em sua coluna no jornal Correio de Povo. Primeiramente é preciso ressaltar que,
conforme apontado por Ritter (2018), Juremir Machado é um jornalista parresiasta,
ou seja, que faz uso da fala franca no espaço público assumindo riscos por tal atitude.
Além disso, os textos do referido jornalista e professor, bem como os de Felipe Pena,
repercutem. “Os discursos proferidos por eles incomodam aos poderosos e repercutem.
Esse parece ser um dos principais desafios para jornalistas que pretendem fazer uso de
sua parresía” (RITTER, 2018).
O texto escrito por Machado da Silva para a breve análise neste capítulo é
“Educação na Mira” (MACHADO DA SILVA, 2019). Nele, o jornalista apresenta uma
narrativa de resistência à vigilância bolsonarista. “Kant era iluminista. Ele ordenou:
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ousa saber. Jair Bolsonaro é mais ousado. Ele ordena: acabem com a educação. E libera
armas para que o povo se eduque por contra própria” (MACHADO DA SILVA, 2019).
Com ironia, uma das características de quem faz uso da parresía, o autor se dirige
diretamente ao presidente, que aliás já foi entrevistado diversas vezes pelo jornalista
durante a sua trajetória como deputado federal e como candidato. Sabendo da aversão
de Bolsonaro pela intelectualidade, Juremir Machado da Silva começa citando Kant.
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A educação no Brasil corre perigo. Por trás do slogan simplório – ensinar a ler,
escrever, calcular e arranjar um emprego – esconde-se uma proposta belicista:
calar o que pensa diferente. O autoritarismo sempre sonha com um ensino técnico
destituído de ideias. É a sua maior ideologia (MACHADO DA SILVA, 2019).
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Sob ameaças, a filósofa e política Márcia Tiburi, decide sair do país. Como acabou
de terminar um livro sobre as eleições de 2018 e as fake news, cujo prefácio
foi escrito por Lula, a autora optou pelo auto-exílio devido à obrigatoriedade
de andar com seguranças em eventos e necessitar de enorme força-tarefa para
contra-atacar mentiras na internet, além de ter sua vida pessoal virada ao avesso
(PENA, 2019).
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Considerações finais
A normatização das condutas, conforme demonstra Foucault em seus estudos
sobre a formação da sociedade, é algo antigo. Inicialmente, ainda nos impérios grego
e romano, discutem-se os pilares fundadores do viver social que envolve o concreto
e o imaginário: a ética, a moral, o discurso, a democracia, o dizer a verdade, o mito,
o direito, as leis, as punições. Posteriormente, no período consagrado como Depois
de Cristo (D.C.) a religião se torna, por um longo período, o principal norte para
normatizar condutas, sendo ainda o texto religioso o principal na formação de leis
de países com governos ortodoxos. Para evitar e combater comportamentos não
normatizados, a vigília e a punição sempre estiveram presentes.
Em outra obra, Foucault (2008) descreve a necessidade criada pela sociedade
ocidental para identificar e isolar o diferente, chamado então de louco. “A loucura
só existe em cada homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele
demonstra por si mesmo e através das ilusões com que se alimenta” (FOUCAULT,
2008, p.24). Criam-se ao longo dos séculos locais onde essas pessoas, classificadas
de loucas, devem ser colocadas, dando origem aos hospícios. Assim como no caso
dos presídios, criam-se espaços distintos para se colocar criminosos e loucos. “A
loucura tornou-se algo para ser visto: não mais um monstro no fundo de si mesmo,
mas animal de estranhos mecanismos, bestialidade da qual o homem, há muito
tempo, está abolido” (FOUCAULT, 2008, p. 148), comenta o autor, referindo-se,
mais uma vez ao século XVIII.
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Notas
________________________
1
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/04/por-que-o-brasil-
de-olavo-e-bolsonaro-ve-em-paulo-freire-um-inimigo.shtml. Acesso em: 20 de junho
de 2019.
2
O jornalista e professor Juremir Machado da Silva, atualmente trabalha como colunista
do jornal Correio do Povo (Porto Alegre-RS) e do site correiodopovo.com.br, como
apersentador do programa Esfera Pública da Rádio Guaíba (Porto Alegre-RS) e como
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Referências
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BOSI, A. Narrativa e resistência. ITINERÁRIOS N.10 abril 1996. Disponível em:
https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2577/2207. Acesso em: 1° de
julho de 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 59. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2015.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso – aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
FOUCAULT, M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2008.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir – Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.
HADDAD, S. Por que o Brasil de Olavo e Bolsonaro vê em Paulo Freire um inimigo.
São Paulo: Folha de S. Paulo, 14 de abril de 2019. Disponível em: https://www1.folha.
uol.com.br/ilustrissima/2019/04/por-que-o-brasil-de-olavo-e-bolsonaro-ve-em-paulo-
freire-um-inimigo.shtml. Acesso em: 20 de junho de 2019.
MACHADO DA SILVA, J. A educação na mira. Porto Alegre: Correio do Povo, 8 de
maio, 2019. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/
a-educa%C3%A7%C3%A3o-na-mira-1.337525. Acesso em: 29 de junho de 2019.
MALALA, Y. Eu sou Malala. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
KAPUSCINSKI, R. O xá dos xás. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
MARQUES DE MELO, J. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes,
1994.
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2008. Disponível em: https://goo.gl/ExQR1y. Acesso: 01 jun. 2019.
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2013.
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PENA, F. Diário da Bozolândia, 12 de março, 2019. Facebook: Felipe Pena. Disponível
em: https://www.facebook.com/professorfelipepena/posts/10156419629674682.
Acesso em: 30 de junho de 2019.
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de narrar. Jelin (2002) ainda afirma que é preciso que existam sujeitos dispostos a
ouvir, para que as narrativas emergem no campo social.
Outra característica das narrativas que se fazem sobre as memórias são os
esquecimentos. Cada sujeito, de forma não necessariamente premeditada, porém
também não ingênua, delimita suas narrativas em torno daquilo que lhe é mais
confortável lembrar. Falamos aqui de narrativas em torno da dor, da perseguição,
da repressão. Falar de ditaduras é escolher do que lembrar. Tratar da dor é mexer
novamente naquilo que causou o sofrimento. Rememorar as ditaduras, hoje, é
falar de corpos que foram estendidos pelas ruas do país, que foram carregados
nos braços por jovens. Corpos destruídos pelos militares e reconstruídos pelos
movimentos estudantis.
Para mirarmos as formas como retomamos as memórias de 1968, utilizamo-
nos das possibilidades que nos dá Todorov (2000): de maneira literal ou exemplar.
De acordo com a primeira, os acontecimentos são acionados de forma estéril,
recorrendo-se apenas aos fatos que estejam ligados àqueles, sem colocá-los em
interação com outros acontecimentos ou contextos. Já na segunda, mais frutífera, na
visão do autor, é possível se utilizar de outros acontecimentos para construir aquele
que pretendemos rememorar, contribuindo, inclusive, para que haja justiça.
Neste processo, o movimento estudantil tem se mostrado um importante
personagem para o ano de 1968. Neste texto, veremos como foram construídas as
narrativas em torno da memória de dois estudantes mortos pela ditadura em 1968,
Edson Luís e José Guimarães, mirando os elementos narrativos utilizados (MOTTA,
2013) e as formas de utilização da memória narrada (TODOROV, 2000; SARLO,
2007; JELIN, 2002). Estamos diante de dois corpos não inertes no tempo e veremos
como movimentam as memórias da ditadura militar.
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Durante a luta, os dois grupos não foram incomodados pela polícia, que ficou
apenas observando, mas às 15 horas, quando alunos da Faculdade de Filosofia
saíram em passeata, junto com secundaristas, os policiais intervieram depois que
eles incendiaram cinco carros, prendendo 30 pessoas (JORNAL..., 1968, p. 01).
O texto demonstra um papel que não condiz com a imagem criada pelos militares
nos meses anteriores. Em outras ocasiões, registra-se a forte repressão aos estudantes.
Neste caso, no entanto, eles não interferiram. Os carros incendiados eram viaturas, o
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que levou à reação. A polícia não protege o patrimônio da universidade pública, mas
sim aquilo que é atacado pelos estudantes. Da mesma forma, supostamente também não
ataca ou protege estudantes, mas recursos patrimoniais.
Já a Folha de S. Paulo afirma que
O texto afirma que a passeata seria uma forma de protesto pela morte do colega,
marcando o posicionamento dos manifestantes. Ressalta as marcas deixadas na cidade,
de destruição, como já afirmava a manchete. A capa ainda destaca o uso de armas de
fogo, não especificando quem as estaria manuseando, mas aponta que esta informação
foi grifada pelo governador Abreu Sodré, ao salientar as condições da morte de José
Guimarães. A Folha ainda afirma que os estudantes pretendiam adiar o enterro, a fim
de transformá-lo em uma grande manifestação, nos moldes daquela que ocorreu por
ocasião da morte de Edson Luís. Esta intenção, no entanto, não se tornaria real. De
acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV),
[...] a família de José Guimarães teve dificuldades para ter acesso ao corpo,
uma vez que o mesmo ficou sob o controle do DOPS, e só foi liberado do IML
após autorização do órgão. José foi velado em casa e a rua foi interditada pelo
Exército, que apenas permitiu a entrada de pessoas devidamente identificadas. O
enterro ocorreu, sob escolta dos órgãos da repressão, no cemitério do Araçá, em
São Paulo, SP (BRASIL, 2014, p. 250).
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Instituto Médico Legal. A família concordou em que o corpo fosse velado no CRUSP,
para onde seguiu logo após a autopsia” (FOLHA..., 1968, p. 12). Como já verificamos,
esta informação não se confirmou.
Quanto à participação de Guimarães em movimentos políticos, “Sua irmã Ma-
ria Eugenia diz que José Guimarães não participava do movimento estudantil. Essa
afirmação, todavia, é contrariada pelos seus colegas, que afirmam ter ele comparecido
por diversas vezes a Faculdade de Filosofia, participando das reuniões dos estudantes”
(FOLHA..., 1968, p. 12). Assim como Edson Luís, estamos diante de uma figura que
não pertencia aos quadros do movimento estudantil, mas cuja morte, durante manifes-
tações, pode servir ao movimento. Corpos que se aproximam em suas funções repre-
sentadas após a morte. Porém, o contexto as separa, fazendo com que o uso da morte
de José Guimarães não siga o mesmo rumo daquele que se deu após o assassinato de
Edson Luís.
O local do assassinato do segundo estudante também não é fato comum para os
jornais. Segundo a Folha de S. Paulo, o jovem teria sido morto no seguinte cenário:
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e de seus líderes. Cinquenta anos depois, o que nos resta destes dois personagens-corpos
de 1968? Vejamos no próximo tópico.
[...] os que lembram não estão afastados da luta política contemporânea; pelo
contrário, têm fortes e legítimas razões para participar dela e investir no presente
suas opiniões sobre o que aconteceu não faz muito tempo. Não é preciso recorrer
à ideia de manipulação para afirmar que as memórias se colocam deliberadamente
no cenário dos conflitos atuais e pretendem atuar nele (SARLO, 2007, p. 61).
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estudantil, sua imagem está, podendo ser assumido como um personagem político. Seu
acionamento por meio de Marielle mostra isso.
Já no caso da imagem disposta à direita na Figura 3, as duas fotografias da
composição se referem à comoção em torno dos caixões na Cinelândia. Os corpos foram
velados no mesmo edifício, uma vez que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em
1968 é hoje a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, à qual estava ligada a vereadora.
Os manifestantes que demonstram apoio aos dois sujeitos ocupam um mesmo espaço,
símbolo de manifestações de resistência no Rio.
Ao mirarmos a fotografia do enterro do estudante, projetamos nela aquilo que
sabemos sobre o passado: aquele acontecimento foi seguido pela Sexta-Feira Sangrenta,
pela Passeata dos Cem Mil, pela Batalha da Maria Antônia, pela edição do AI-5.
Podemos perceber que “é por via da expectativa que o futuro nelas se infiltra. Procurar
pelo futuro nas fotografias é procurar pelos vestígios da espera” (LISSOVSKY, 2014,
p. 189). Utilizar o futuro que vemos nas fotografias do passado para expectar acerca do
futuro nos acontecimentos do presente é tentar utilizar as fotografias como motores para
a utilização da memória exemplar: estar alerta a situações novas e análogas, na busca
pela justiça (TODOROV, 2000).
Se percebemos que em 2018 Edson Luís continuava a ser acionado como um
personagem capaz de movimentar multidões, de demonstrar a truculência do governo,
um movimento bem diferente é observado em relação a José Guimarães e à Batalha da
Maria Antônia. Em livro de memórias, José Dirceu descreve a participação de Guimarães
nas manifestações:
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Notas
________________________
1
“El paso del tiempo histórico, político y cultural necesariamente implica nuevos
procesos de significación del pasado, con nuevas interpretaciones. Y entonces surgen
revisiones, cambios en las narrativas y nuevos conflictos” (JELIN, 2002, p. 57).
2
Número estimado por Josué Alves Dinis em suas memórias (DINIZ, 1986).
3
Atualmente, após reorganizações institucionais, é chamada Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
4
“La fiebre memorialista del presente tiene otras características, y otros peligros, tema
que remite necesariamente al debate acerca de los «abusos de la memoria», título del
pequeño y provocador libro de Todorov (1998) […] El abuso de memoria que el autor
condena es el que se basa en preservar una memoria «literal», donde las víctimas y los
crímenes son vistos como únicos e irrepetibles” (JELIN, 2002, p. 32).
5
O Jornal da USP publicou, ao longo de 2018, uma sequência de textos especiais sobre
os acontecimentos envolvendo a universidade e seus corpos docente e discente em 1968,
divulgando exposições, livros e palestras, além de defender abertamente uma releitura
dos acontecimentos, aprofundando-se no papel desempenhado por milícias e militares
nos eventos.
Referências
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DINIZ, Josué Alves. Calabouço 1968: O cerco das trevas. Rio de Janeiro: Livraria
Editora Cátedra, 1986.
DIRCEU, José. Zé Dirceu: memórias. São Paulo: Geração Editorial, 2018.
FOLHA DE S. PAULO. São Paulo: Grupo Folha, 1921-.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo Veintiuno de España
Editores, 2002.
JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro: 1891-.
LISSOVSKY, Mauricio. Pausas do destino: teoria, arte e história da fotografia. Rio de
Janeiro: Mauad, 2014.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise Crítica da Narrativa. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2013.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto
História (Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História/Departamento
de História, PUCSP), v. 10, 1993, p. 7-28.
SARLO, Beatriz. Tempos Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad.: Rosa
Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras / Belo Horizonte: UFMG, 2007.
TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000.
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 3. ed. São Paulo: Editora Planeta do
Brasil, 2008.
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Tal como o cidadão comum ordena os dados de seu curriculum vitae de acordo
com seus objetivos, o jornalista possui igualmente liberdade ao modelar o “retra-
to” que constrói de uma pessoa pública. O perfil ou “retrato” jornalístico envolve
uma dimensão de pesquisa e inquérito, mas não é mera reprodução ou reflexo do
“real”, é uma construção que mobiliza a subjetividade do repórter. O seu papel
não se limita a “descrever” pessoas que existem na vida real. A subjetivação pres-
supõe que se apresente a personagem como uma interpretação e uma construção
e não como uma ilusão referencial, destinada a abolir a consciência da mediação
jornalística.
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Jair Bolsonaro é membro ativo e uma das principais vozes dessa parcela da
população que defende a redução da maioridade penal e faz apologia explícita às
armas. Some-se a isso o fato de ter se envolvido em casos de racismo e misoginia
amplamente divulgados pela imprensa. Bolsonaro corrobora a exacerbação de
discursos negativos tão presentes na sociedade contemporânea.
Messias, Mito e Capitão foram alguns dos apelidos – ainda que o primeiro seja
parte do nome real de Bolsonaro – que estamparam seu material de campanha. Tais
“operadores” têm sido decisivos para ofertar uma outra regularidade enunciativa sobre
essa personagem.
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Por quê “outra”? Ora, porquê os fragmentos veiculados pela mídia acerca dele
produziram (até 2016) uma memória esvaziada. Ou melhor, as parcas passagens que
o puseram em evidência no discurso jornalístico retratavam-no como o “homem
mediano”3, como um dia descrevera Eliane Brum. Por vezes, chegou a aparecer como
uma figura até excêntrica, por dizer abertamente o que pensava. Vale lembrar que
as manifestações só ganharam os holofotes pelo teor machista, sexista, homofóbico,
racista e por aí afora. A biografia jornalística – repito, até dado momento histórico –
beirava clichês como a de “bobo da corte”.
Assim, de político ordinário, Bolsonaro foi projetado – graças a um jogo de
forças que é simbólico, e, ao mesmo tempo, definidor de qualquer questão social,
e não por conta de uma suposta mudança real – como a personagem jornalística
“salvadora da pátria”. Há nessa comutação de um “mesmo” uma materialidade
discursiva que se esburaca, que, segundo Pêcheux (1999, p. 53), “perfura-se antes
de desdobrar-se em paráfrase”.
Numa possível releitura de Orlandi (1999), podemos afirmar que o que antes era
falta – e não falha, dada a quase insignificância de Bolsonaro na arena midiática - passa
a ganhar novos sentidos.
Há, assim, “furos”, “buracos” na memória, que são lugares, não em que o
sentido se “cava” mas, ao contrário, em que o sentido “falta” por interdição.
Desaparece. Isso acontece porque toda uma região de sentidos, uma formação
discursiva, é apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento
produzido por eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto impede que
certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. Como a memória é, ela
mesma condição do dizível, esses sentidos não podem ser lidos. (ORLANDI,
1999, p. 65-66, grifos da autora).
É, portanto, entendível que alguém que por quase três décadas praticamente
esteve à margem da produção de uma memória passe a ser narrativizado como uma
espécie de avatar, preparado para exterminar uma das maiores chagas brasileiras: a
corrupção.
Para os veículos pertencentes aos grandes conglomerados (salvo algumas
exceções), ele começou a ser perfilado como o justiceiro. E não foram só as alcunhas
– propícias à consolidação dessa personagem – que abriram caminhos para que
Bolsonaro passasse a ser reduzido jornalisticamente a isso.
A polarização do cenário político - da qual percebemos a mídia como uma das
molas propulsoras - arquitetou-o quase sempre num cotejamento direto com alguma
pessoa ou episódio ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Na prática, isso reverberou
da seguinte maneira: de um lado estava o paladino da ordem e do progresso; de outro,
os corruptos, que diuturnamente estavam às voltas de escândalos como o da Lava
Jato. É em vista disso que o “curriculum vitae” – reproduzindo a analogia de Motta
(2007) – do então presidente foi ganhando qualificações que lhe tiraram o status de
coadjuvante político.
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Na sequência, nos dispomos a dar um passo além nas configurações desse papel,
aí já fazendo a imersão nas narrativas sobre os direitos humanos.
Compete-nos, antes, explicar os porquês da eleição deste corpus. Uma das nossas
atitudes analíticas diz respeito ao espaço temporal: optamos por circunscrevê-lo ao
período anterior à eleição de Bolsonaro para presidente (2017 – 2018). A outra se refere
à maneira com que selecionamos os textos. Rastreamos no Google matérias através
da soma dos termos “Bolsonaro” e “Direitos Humanos”. Das centenas de ocorrências
capturadas, delimitamos nossa escolha a quatro reportagens8 pelos seguintes motivos:
repetição de uma mesma postura jornalística9 ante às declarações e situações envolvendo
Jair Bolsonaro10; diferentes veículos (todos eles na ambiência digital), com distintos
posicionamentos editoriais, mas com reconhecida conduta no que tange à credibilidade;
e, por fim, mas não menos importante, o tamanho disponibilizado para a confecção
deste artigo. Toca esclarecer ainda que nosso objeto – os textos – será analisado na sua
íntegra (título, entretítulo, cartola, legenda).
A reportagem do G1 traz, depois do título que faz alusão direta aos direitos humanos
- Bolsonaro diz que se eleito ‘bandidagem vai morrer’ porque União não repassará
recursos para direitos humanos -, a seguinte afirmação de Bolsonaro: ONGs de direitos
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
[...] a cobertura da política pelo jornalismo não apenas representa os conflitos, ela
amplifica, ativa, e demarca essas disputas. Na medida em que amplifica, coloca
as partes em situações antagônicas, atiça tensões, gera novos enfrentamentos que
vão preencher novas páginas.
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Assim, nessa ambiência virtual, Bolsonaro é arrolado como fonte, uma vez mais,
para desqualificar os direitos humanos. Bolsonaro chegou a mencionar que, se eleito,
deixaria a Organização das Nações Unidas, recuando dias depois e afirmando que
sairia apenas do Conselho de Direitos Humanos da entidade. ‘Não serve para nada
essa instituição’, disse Bolsonaro (SD4).
A narrativa, ao deslocar seu foco para alguém que manifesta preocupação quanto
às posições do, na época presidenciável, tem um tom incriminatório. Alguém aparece
na cena jornalística para pleitear sentidos diferentes para os direitos humanos. Contudo,
a escolha do Estadão por fazer o cotejamento das afirmações de Zeid Al Hussein, alto
comissário da ONU para Direitos Humanos, às de Bolsonaro, faz sobressair o modelo
beligerante. É ele, como valor narrativo, que colocará as duas personagens como se
entrincheirados estivessem. Numa das pontas, àquele que sublinha que O progresso
ocorreu porque estipulamos que todos devem ter direitos iguais (SD5), noutra, o
expoente político que defende as atuações dos militares em casos de tortura e também
a figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (SD6).
Observamos nestes enunciados (e na estrutura do texto como um todo) que a tática
da polarização discursiva não é casuística. Ela esgota-se em si mesma. Ou melhor, nada
mais do que um mero exercício de digladiamento de vozes decorre. A teia semântica –
negativa, criminosa transgressora – para os direitos humanos segue incólume. Acima
de tudo, porque o intérprete recrutado por Bolsonaro – e reprisado pelo jornalismo -
para contrapor as opiniões do representante da ONU – o coronel Ustra – pleiteia uma
memória coletiva recente que se funda à insígnia que marcaria o fim da corrupção no
país (a votação na Câmara dos Deputados que abriu o processo de impeachment de
Dilma Roussef).
Devemos pontuar ainda que, sob um discurso aparentemente imparcial, neutro,
o apelo semântico é a um sofisma moral. Com ele, Bolsonaro é concatenado a sentidos
que o graduam nas aspirações políticas. Afinal, os “bons”, mesmo que façam apologia à
tortura, lutam por valores, pelo futuro da sociedade, contra um “outro” – os defensores
dos direitos humanos - que atrapalha, cuja utilidade é nula. Esses são os implícitos.
No IG São Paulo, o roteiro da intriga é seguido à risca. O entretítulo antecipa:
Candidato afirmou que instituições têm de trabalhar em prol das demandas da sociedade
e defendeu mudanças em ações de defesa dos direitos humanos (SD7). E prossegue:
Somente transformando a cultura da defesa dos direitos humanos que defende somente
o direito de quem não era para ter tal representatividade excessiva é que iniciaremos o
verdadeiro desenvolvimento social e econômico em nosso país (SD8).
O expediente de instalar Bolsonaro como protagonista e os direitos humanos
como antagonista dá-se por uma via que também é tácita. Explicamos: o capitão
reformado do Exército - que, a propósito, tem nome, sobrenome, apelido e é um rosto
conhecido – é posicionado discursivamente como adversário de uma incógnita, resumida
na impessoalidade dos “direitos humanos”. Ou seja, o inimigo de Bolsonaro não tem um
corpo físico, mas ganha materialidade pelo regime de intensões não explícito no texto,
147
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
mas que, impreterivelmente, está a convocar sentidos: de que são sujeitos (os defensores
dos direitos humanos) que precisam mudar suas ações.
Se há essa solicitação, é porque não estão agindo de forma correta ou da
melhor forma possível – primeiro não-dito desclassificatório. O segundo avoluma
a carga de sentidos desabonadores: são sujeitos que resguardam direitos de quem já
possui excessivamente direitos. O excessiva representatividade consorcia aos supostos
detentores dos direitos humanos uma identidade peculiar: eles não são humanos tais
quais a gente, são de outra espécie, esta que atravanca o progresso, impede o verdadeiro
desenvolvimento social e econômico em nosso país.
O Congresso em Foco finda nossa análise. Ele adota a atitude mais ostensiva dos
demais sites. Abre a matéria com a citação de Bolsonaro, que rotula os direitos humanos
de “esterco da vagabundagem” (SD8). Abaixo do título, uma foto – ainda que a mesma
não faça parte dos itens a serem examinados12, julgamos procedente referi-la e reprisá-
la, haja vista que ela dilata os efeitos de sentido fundidos no discurso da notícia.
Como se pode ver, trata-se de um print da rede social Twitter de um dos filhos do
presidente, o vereador Carlos Bolsonaro. Junto à imagem, a matéria reverbera (em dois
parágrafos – são quatro no total) a decisão da presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF), Cármen Lúcia, de permitir que as redações que ferem os direitos humanos no
Exame Nacional do Ensino Médio não sejam zeradas.
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Considerações finais
Jair Bolsonaro, seguramente, é uma personagem de múltiplas possiblidades
analíticas. O percurso que fizemos até aqui demonstra que, há algum tempo, ele é
um dos alvos favoritos da imprensa. E essa predileção não é fortuita, tampouco só se
fundamenta pelos atributos profissionais do – naquele período - aspirante à presidente
da República. Nas narrativas jornalísticas por nós exploradas ele mostrou ser o gatilho
para um jeito específico de aparição da temática direitos humanos.
Ele é posicionado, sobremaneira, com dois desígnios: assegurar um certo espírito
de guerrilha, transformando o jornalismo numa trama – quase que novelesca ou
cinematográfica. Um dia ele ataca, noutro é atacado, noutro promove nova ofensiva e
assim – só assim - a serialidade com que os fatos se tornam acontecimentos midiáticos
são narrativizados.
Outro é que – com a chancela do protagonismo de quem está prestes a ocupar
o mais alto posto político do Brasil - Bolsonaro dificulta o aparecimento de qualquer
arranjo discursivo que desloque a memória dos direitos humanos (e sua defesa) para
uma ação de cunho cidadão, necessária à manutenção de um sistema democrático. O
discurso jornalístico – mesmo que formalmente tente afastar-se de sua responsabilidade
com o uso gráfico das aspas nas afirmações de Bolsonaro – consente a anulação de
alguns humanos, quais sejam, àqueles que defendem os direitos humanos. Eles são
desumanizados, como vimos, pertencem ao universo do grotesco.
A cadeia de sentidos estimula ângulos emocionais e não informacionais. O leitor
(internauta) é convidado a permanecer na sua “zona de conforto”, já que Bolsonaro
149
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
encarna na narrativa o perfil de único sujeito apto a derrotar esse “diferente” – que,
repetimos – é ofertado ao imaginário do interlocutor como um estranho do mau.
Nesse sentido - para concluir - o silêncio conivente que paira sob o discurso jor-
nalístico acerca dos direitos humanos (foi isso que os quatro textos nos indicaram) ou a
sua projeção a partir da figura de Jair Bolsonaro não só criminaliza – como as narrativas
fizeram nos chamados “anos de chumbo”, da Ditadura Militar – mas banaliza a questão.
Ao condicionar o discurso à tal modelagem narrativa, o jornalismo aponta para “solu-
ções mágicas”, míticas – e uma delas que flutua como não-dito é justamente a eleição de
Bolsonaro à presidente da República – e furta-se de um de seus ofícios: ser um dos mais
importantes patrimônios das democracias modernas.
Notas
________________________
1
Detalhes sobre nossas escolhas metodológicas serão dados na sequência do capítulo.
2
O artigo intitulado A construção da identidade do sujeito defensor dos direitos hu-
manos na mídia a partir do assalto à Maria do Rosário: “o bandido” está do lado de cá,
é de autoria de Patrícia Regina Schuster, Vanessa Costa de Oliveira e Lídia Schwantes
Hoss, e está sob avaliação de uma revista científica.
3
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion /1546450311_44
8043.html. Acesso em 24 de junho de 2019.
4
Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2018/
08/23/bolsonaro-diz-que-bandidagem-vai-morrer-em-seu-governo-porque-uniao-nao-
-repassara-recursos-para-direitos-humanos.ghtml.
5
Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,discurso-contra-direi-
tos-humanos-de-bolsonaro-e-perigoso-diz-representante-da-onu,70002478093
6
Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-10-22/propostas-de-
-bolsonaro.html
7
Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/direitos-huma-
nos-e-“esterco-da-vagabundagem”-diz-bolsonaro/.
8
Todas elas estão disponíveis na versão online (os links estão acima) dos veículos su-
pracitados.
9
Entendemos “postura jornalística” como angulação discursiva.
10
Exemplo: o tweet do filho de Jair Bolsonaro, Carlos, sobre a redação do Enem (que
consta no nosso corpus) rendeu reportagens em vários veículos. Nós elegemos somente
um, pelas justificativas dadas acima.
11
A título de melhor identificar as marcas discursivas que exemplificam nossas com-
provações, separamo-las em Sequências Discursivas (SD’s).
12
Compreendemos que nosso aporte teórico não tem potencial para aprofundar a aná-
150
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
lise da fotografia - situação que nos exigiria dialogar com outros conceitos e autores
- no entanto, nosso intento ao reproduzi-la é viabilizar que nosso leitor tenha acesso
imediato a ela.
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TRINDADE, José Damião de Lima. Os direitos humanos na perspectiva de Marx
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151
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152
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
do dia e próximo a um grupo de turistas, deu um tiro na têmpora direita com um revólver
prateado. Era dia de Yom Kippur – o dia do perdão – uma das datas comemorativas mais
importante do judaísmo, e Heisman foi declarado morto no local.
Ao contrário de Chubbuck, Heisman não era uma figura conhecida. Pelo contrário,
era um jovem bastante recluso, formado em psicologia em Albany, uma faculdade estadual
de Nova York, que vivia de uma pequena herança deixada pelo seu pai e trabalhava em
livrarias próximas ao seu apartamento, onde levava uma vida bastante espartana (ABEL,
2010; NEWCOMER; SRIVATSA, 2010). Contudo, o que deixou Heisman famoso não
foi apenas seu suicídio público em uma data tão marcante, mas sua nota de despedida, um
longuíssimo trabalho de 1905 páginas enviado por e-mail para centenas de pessoas, entre
amigos e família, poucas horas após a sua morte.
Nesse ponto, Heisman e Chubbuck se encontram, apesar das insondáveis diferenças
que separam suas trágicas decisões. Ambos elaboraram delicadas performances
para executar com o fim de suas vidas. Seus suicídios não foram impulsivos, mas
cuidadosamente planejados, com o único intuito de deixar, mesmo que de maneira
inapreensível na sua totalidade, uma mensagem que ecoasse após suas mortes. Ainda
que atualmente pouco se fale de Christine Chubbuck e já não se fale sobre Mitchell
Heisman, é importante salientar um detalhe crucial para a compreensão das suas fortunas
na imprensa: suas cartas de despedida.
Se a vida é realmente sem sentido e não há base racional para escolher entre
alternativas fundamentais, então todas as escolhas são iguais e não há base comum
para escolher a vida sobre a morte. Porém, dado que eu não acredito no niilismo,
porque não “testá-lo”? Talvez eu esteja errado, mas se a questão de se há uma
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Aquele que primeiro escreve algo, registra a ideia em seu nome, tornando-se
dela dono e podendo dizer como ela “deve ser, não apenas exibindo o documento, mas
estabelecendo-o” (DERRIDA, 2001, p. 73). Portanto, ao escrever seu longo tratado
sobre o niilismo, Heisman não pretendia apenas provar sua verdade, mas arquivá-la,
mantendo-se dela arconte mesmo após sua morte. Sua Nota de Suicídio, portanto,
torna-se uma verdade, resguardada na ampla discussão teórica que traz.
Deve-se lembrar, no entanto, que essa necessidade de arquivar de Heisman, de
conservar não apenas as suas palavras, mas a de outros, construindo a sua verdade
absoluta sobre o niilismo – a de que ele é falho, pois nada importa – vai no sentido
completamente oposto ao de Nietzsche, que anuncia:
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de Genro Filho é no sentido de que o jornalismo produz uma visão burguesa do mundo,
mas que ele também tem forma própria enquanto conhecimento social e que ultrapassa
a funcionalidade capitalista. Assim, quando o jornalismo adota novas técnicas, mais
do que separar relato e descrição, análise e comentário, temos “uma nova modalidade
de apreensão do real, condicionada pelo advento do capitalismo, mas, sobretudo, pela
universalização das relações humanas que ele produziu, na qual os fatos são percebidos
e analisados subjetivamente e, logo após, reconstruídos no seu aspecto fenomênico”
(GENRO FILHO, 2012, p.41). Dessa perspectiva há diferentes formas, todas jorna-
lísticas, de abordar um mesmo fato e que nenhuma delas pode ser considerada neutra
do aspecto político-ideológico. Os procedimentos institucionalizados servem, portanto,
para aliviar críticas e pressões e manter os profissionais tentando alcançar a objetivida-
de e informar o público para, então, empoderá-lo para se autogovernar, como sugerem
Kovach e Rosenstiel (2003).
Torna-se acessível a aplicação desses princípios à questão do suicídio, na medi-
da em que buscar a objetividade jornalística do tema é circum-navegá-lo, buscando
as informações que estejam na órbita desse grande buraco negro do qual a razão não
consegue entrar, nem escapar. Tal método serve como forma de romper o mito de que o
jornalismo é um dos vetores de contágio3, fugindo do lugar comum da notícia do auto-
-extermínio em si, focando no método ou repercutindo mitos como o de que o suicídio
é uma condição de indivíduos com problemas mentais. Deste modo, os jornalistas não
apenas se lançam no sentido oposto ao risco de “transformar o Jornalismo em uma se-
quência sem fim de negativismo” (SILVA, 2004, p. 202), mas lançam os fatos com uma
velocidade suficiente para que os leitores possam escapar da força gravitacional dessa
irracionalidade.
Foi com essa mesma intenção que a Organização Mundial da Saúde lançou, em
2017, um manual de prevenção ao suicídio voltado para profissionais de comunicação.
Nele, atenta para a “adequada disseminação de informação e aumento de consciência
são elementos essenciais no sucesso da prevenção ao suicídio” (OMS, 2017, p. v). Se-
gundo o trabalho, baseado em extensa pesquisa global:
Deve-se:
Oferecer informação precisa sobre onde buscar ajuda;
Educar o público quanto aos fatos do suicídio e a prevenção ao suicídio, sem
espalhar mitos;
Relatar histórias que tragam maneiras de lidar com gatilhos de pensamentos
suicidas, e como buscar ajuda;
Ter cautela especial ao reportar suicídios de celebridades;
Ter cautela especial ao entrevistar amigos ou família enlutados;
Reconhecer que os profissionais de mídia estão sujeitos a serem afetados por
casos de suicídio.
Não se deve:
Dar visibilidade notória a casos de suicídio e não repeti-los em demasia;
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Percebe-se que cada um desses tópicos propõe novas formas de apresentar uma
realidade diferente do suicídio, tendo claro o oferecimento de ajuda, bem como cuidando
da relevância de alguns temas, ao mesmo tempo em que evita cair na armadilha da
neutralidade dos jornalistas e na necessidade de um pluralismo de opiniões.
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torna-se uma arma poderosa e necessária, como o é para toda atividade que trate direta
e continuamente com a vida humana.
Notas
________________________
1
Monge da Igreja Cristã Ortodoxa Russa no Exterior, fundou um monastério e foi
responsável pela tradução, do russo para o inglês, de várias obras ortodoxas. Sua
concepção do niilismo, no livro As Raízes do Niilismo, são precisamente a de atacá-lo e
derrubá-lo em prol da “Verdade Absoluta”, consubstanciada na fé e no absoluto divino.
2
Estima-se que 800 mil pessoas tirem a vida anualmente em todo mundo e, também,
que ao menos seis pessoas são afetadas por cada suicídio, totalizando mais de 4 milhões
de pessoas (OMS, 2017).
3
“Esse contágio é especialmente comum entre indivíduos cuja constituição os torna
mais abertos à sugestão em geral e, em particular, às ideias de suicídio; eles são inclinados
a reproduzir não apenas tudo o que os impressiona, mas tendem, acima de tudo, a repetir
um ato ao qual já tem certa propensão” (DURKHEIM, 2005, p. 45).
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164
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Parte III:
narrativas diversas
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Da tinta ao pixel
A narrativa sempre esteve presente em todas as sociedades. Como dito por Luiz
Henrique Zart (2017), “desde o princípio, toda a representação do mundo foi transmitida,
seja de maneira oral, através dos tipos móveis ou, com o desenvolvimento da tecnologia,
por jornais, revistas, rádio, televisão e internet”. Tal transmissão, desde as histórias
míticas até os relatos mais mundanos, oferecem ao interlocutor uma narrativa ordenada
de acordo com uma lógica temporal própria, com representações, memórias, elementos
simbólicos, coerência e sentido relacionados à visão de mundo e às experiências de vida
do narrador (QUADROS; MOTTA; NASI, 2017).
Hoje, diversas formas narrativas auxiliam na mediação das vivências no mundo,
como as narrativas fílmicas, literárias, científicas, religiosas ou jornalísticas. São essas
narrativas “que ensinam e orientam o ser humano sobre o mundo, seus valores e modos
de agir”, e compreender esse viés cultural de orientação é necessário para estudar um
texto enquanto narrativa (QUADROS; MOTTA; NASI, 2017).
O objetivo deste artigo é compreender a crítica literária jornalística realizada
pelos booktubers¹ e o papel do corpo e do ambiente em suas narrativas. Para isso, é
preciso entender a narratividade nos textos jornalísticos, nos da crítica literária e nos que
compõem as redes sociais (principalmente no YouTube).
Se pensarmos na crítica literária como uma narrativa, levando em consideração
os critérios estabelecidos acima, o que emerge é um texto que orienta, principalmente,
o gosto estético do interlocutor. A narrativa responde questões como: quais livros são
bons? Quais técnicas de escrita são válidas? Este livro pertence ao cânone de uma
determinada literatura?
Para Candido (2000), a literatura é um sistema triádico composto por autor, obra e
público. Por sua vez, este último, no qual a crítica encontra-se, é formado pela articulação
entre os meios de comunicação, a formação da opinião literária e a diferenciação do
gosto das elites. É o diálogo entre o primeiro elemento, os meios de comunicação, com
os outros dois que forma, quase por reflexo, as definições do campo do público. Em
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Nina (2007, p. 13) também ressalta que “toda resenha crítica, uma vez produzida
para um jornal, precisa obedecer a alguns critérios, digamos, jornalísticos. Clareza,
concisão e objetividade continuam sendo imprescindíveis”. Com a crise na imprensa e,
principalmente, nos jornais impressos, o que ocorreu nos últimos anos foi uma mudança
167
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Nossa vida, nossa identidade, é uma narrativa pessoal. Estamos sempre contando
histórias de nós mesmos, enviando mensagens diversas, por meio de diários,
e-mails, tuítes, mensagens nas redes sociais, em geral, etc. Por meio dessas
168
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Booktubers
Podemos sintetizar o booktuber como alguém que cria um canal no YouTube e
produz vídeos com questões relativas à cultura literária, como resenhas, livros recebidos,
dicas de leitura ou até mesmo um passeio pela estante. Como atuam no espaço digital,
é comum que tenham contas vinculadas em outras redes sociais, principalmente o
Instagram. Alguns booktubers promovem encontros físicos ou encontros com inscritos
de maneira não regular.
São figuras muito próximas do influenciador digital, muito comum em mercados
como o gastronômico, de moda e de turismo – pessoas de perfis com muitos seguidores,
que recebem de empresas para divulgar produtos nas redes sociais. Eles recebem
produtos, de maneira paga ou gratuita, e postam sobre eles na rede em que atuam.
O booktuber tem contato com as editoras, mas, na maioria das vezes, fazem
resenhas de acordo com suas vontades de leitura – ainda que alguns canais ofereçam
publieditoriais, como são chamadas as resenhas pagas – ou a pedido dos inscritos. A
própria criação dos canais surge da paixão pela literatura e da vontade de conversar
sobre livros (MARCHETTO, 2019).
A narrativa traz elementos da (1) crítica literária, já que se debruça sobre a análise e
a leitura de um livro², visto nos vídeos de análise e resenha; da (2) narrativa jornalística,
porque medeia a relação entre o leitor e a literatura com leituras pautadas no cotidiano;
da (3) narrativa das redes sociais, porque traz elementos pessoais para o vídeo e estrutura
uma comunidade, forma identidades.
169
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
O YouTube pode ser entendido de duas formas: como uma empresa de mídia,
atuando enquanto agregador de conteúdo e plataforma de mídia, embora não se
caracterize, de fato, enquanto produtora de conteúdo; ou como um site de cultura
participativa, atuando como uma plataforma de compartilhamento de vídeos
produzidos por seus usuários. É a partir da participação que o YouTube se torna
uma rede social.
A sociedade se organiza em vários mundos, que se unem, uns aos outros, por meio
de alguns atalhos. Deste modo, se a internet uniu a sociedade, agora a sociedade
está se reorganizando novamente em ‘mundos pequenos’, que são percebidos
em redes sociais como aquelas que emergem no YouTube, no qual o vínculo que
promove a constituição do grupo se dá por meio do conteúdo que é consumido e
compartilhado (JEFFMAN, 2017, p.176).
Essa faceta comunitária, seletiva, dá à internet uma dimensão social com práticas
de integração e interação, tanto sociais quanto simbólicas. Visualizamos isso nos
critérios de formação de grupos, as pautas abordadas, no papel que esses elementos têm
na constituição de identidades, ideias, sentimentos.
A formação de um canal voltado para a cultura literária é a apropriação de uma rede
para criar sua comunidade voltada ao “diálogo (...) norteado pelas leituras realizadas,
autores preferidos, eventos literários frequentados, pelas reflexões que o contato com
a literatura oferta, entre outras possibilidades relacionadas ao consumo cultural”, além
de criar vínculos, sociais e afetivos, círculos de pertencimento e regras próprias de
funcionamento (JEFFMAN, 2010, p.187).
Ainda que a leitura seja um ato introspectivo, é também de socialização. A crítica
do booktuber, expressa especificamente em suas resenhas, é uma das narrativas que
guia o interlocutor no mundo do prazer estético da leitura. “O leitor é potencialmente
socializável, mesmo que leia isolado. Pertencer a um grupo e ter a oportunidade de
conversar e partilhar impressões sobre leitura é uma das características essenciais do
‘eu’ leitor” (JEFFMAN, 2017, p. 25):
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é corriqueiro que, ao findar a explanação, os booktubers solicitem a participação
dos seguidores através dos comentários no vídeo (...), estratégia que busca
alimentar o relacionamento com o público. Neste viés, na concepção de Peixoto
(2014, p. 49), mais importante do que pedir likes e compartilhamentos é incentivar
os comentários nos vídeos, convidando os seguidores a participarem do conteúdo
do canal.
No que diz respeito à parte visual do canal, Tauana (2018) identificou um amplo
uso dos recursos do YouTube para formar uma identidade visual e uma personalidade
do canal, através de miniaturas de vídeos, descrições, links para outras redes sociais,
imagens de capa e do perfil do canal. Das impressões que veremos abaixo, os seis
canais selecionados obedecem à mesma lógica dos três que Tauana (2018) escolheu.
A estrutura do vídeo permanece, ainda que o primeiro item seja menos comum. Além
disso, cada canal também estabelece um padrão de miniaturas para apresentar o tema
do vídeo, quais letras e cores usar, como nomear e separar os vídeos de acordo com
sua finalidade – resenhas, dicas, leitura conjunta. As descrições dos vídeos também são
parte importante: é nela que existem links para outras redes, como grupos de WhatsApp
e perfis de Instagram, além de endereço da caixa postal e outras impressões da leitura.
Para apresentar tais conclusões, Tauana (2018, p. 46) montou um esquema de análise
individual dos vídeos estruturado em seis pontos: “Aparência Visual”; “Linguagem
Verbal, Gestual, Corporal”; “Cenário (espacialidades e objetos)”; “Papel constituído”
(relacionado ao papel social do booktuber); “Temporalidades” (periodicidade) e “Uso de
recursos audiovisuais e da plataforma YouTube”. Adaptando essa formulação, retiramos
o ponto de análise do “Papel Constituído” e mantivemos os outros como base de análise.
Para a análise, catalogamos seis meses de vídeo em uma tabela, com média e
total de visualizações e duração de vídeos, categorias das produções e números de
inscritos no canal. De dentro desse recorte, três vídeos de cada canal, pertencentes à
categoria de Resenha3, foram analisados minuciosamente de acordo com as categorias
expostas acima.
a. Aparência Visual
Neste tópico, a análise verifica a construção da fachada do booktuber, envolvendo
exclusivamente os aspectos visuais, como corte de cabelo, roupas e outros acessórios.
A importância surge na visualização da narrativa que o corpo presente no vídeo traz e o
como isso dialoga com o restante dos elementos.
De maneira geral, a vestimenta obedece à etiqueta casual, de acordo com o que
é usado no cotidiano. Como exemplo, as pessoas apresentam-se de camiseta, sem
nenhum penteado específico, maquiagens fortes, uso de joias chamativas ou qualquer
outro elemento de distinção. Isso reflete a construção do YouTube como um espaço de
proximidade, como disse Gisele Eberspächer (apud MARCHETTO, 2019):
173
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
pode fazer parte da nossa vida comum, a gente também pode conversar sobre isso
de outra forma.
O único canal que foi exceção neste levantamento foi o Lar da Agatha. Nesse
caso, apropriando-se de elementos culturais das drag queens, Agatha Christie produz-se
de acordo com a temática do livro resenhado. Por exemplo, no vídeo sobre Coraline,
de Neil Gaiman, ela se apresenta como a “madrasta” da personagem principal vista na
adaptação cinematográfica do livro, com os mesmos olhos de botão e vestido estampado.
No vídeo de Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, Agatha coloca dentes falsos, deixa
sua pele pálida e espalha sangue falso. Por fim, no livro Ensaio sobre a cegueira, de José
Saramago, Agatha aparece com um hábito de freira, óculos escuros e maquiagem que
esconde os olhos.
Na narrativa de Agatha, elementos da cultura literária dialogam com elementos
de outras culturas e, de acordo com o levantamento prévio que verificou o estado das
produções sobre literatura no YouTube, Lar da Agatha é o primeiro canal brasileiro em
que uma drag queen é booktuber – ainda que outras drags youtubers abordem ou falem
de livros em alguns vídeos de seus canais, não são produções exclusivamente voltadas
para a cultura literária.
b. Linguagem Verbal, Gestual e Corporal
Este segundo tópico está ligado às expressões e formas de linguagem que
os booktubers adotam em seus vídeos. No que diz respeito ao aspecto verbal, as
abordagens dos booktubers diferenciam-se bastante. Além do tempo disponível para o
desenvolvimento do texto, a ser aprofundado abaixo, a estratégia do desenvolvimento
também varia – o resultado pode ser um ensaio longo e reflexivo, como pode ser uma
resenha opinativa sucinta ou uma apresentação breve sobre um conceito técnico ligado
ao campo da literatura.
Da mesma forma, o nível técnico do texto varia. Nicolas Neves, no canal Las hojas
muertas y otras hojas, faz análises extensas, com até uma hora e meia de duração, com
termos científicos específicos da área de literatura, como, por exemplo, a sátira menipeia
no caso do vídeo sobre Bobók, de Dostoievski. A maioria dos termos são explicados
durante a arguição. No caso do canal Literature-se, Mell Ferraz (apud MARCHETTO,
2019) traz resenhas com textos simples e acessíveis, mas também palavras novas, com
a intenção de aumentar o vocabulário dos inscritos.
Vale ressaltar que, assim como veremos abaixo nos termos técnicos de gravação, a
produção não exige uma voz como a de um locutor de rádio, como visto na presença de
um booktuber que tem a língua presa.
Os quesitos corporal e gestual estão bem próximos na narrativa dos booktubers.
O enquadramento dos vídeos é feito majoritariamente em um plano médio (busto) – em
raras ocasiões, em que há convidados, usam plano americano (joelho). Os corpos estão
sentados, relaxados. As mãos gesticulam sempre e, muitas vezes, estão segurando o
livro resenhado ou outros itens – uma presença que se liga ao tópico abaixo.
174
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Quando eu comecei, fazia vídeos de costas para a parede. Eu não via necessidade
nenhuma de fazer vídeos com uma estante atrás de mim, mas aí existe uma questão
que é a adequação ao gênero, né? (...) A resenha de livros feitas para o YouTube
deve ter um tipo de discurso muito próprio. É claro que eu não sigo muito dessas
adequações, eu não me adequo muito a esse gênero como, por exemplo, fazer
vídeo de uma hora. Isso é uma coisa que só se passa na minha cabeça, mas isso
ajuda muito: a imagem que você faz, sabe? Existe toda uma cenografia que você
deve criar e me parece que essa cenografia contribui mais do que a sua formação
para que você tenha público, para que você tenha algum tipo de respaldo popular,
digamos assim.
Essa percepção deixa clara a importância da intimidade e dos livros nas estantes,
muitas vezes já resenhados ou citados nos canais. Além disso, os cenários não
apresentam grandes mudanças entre um vídeo e outro, como a criação de um fundo
temático (nem nos vídeos do canal Lar da Agatha). Muitas vezes, o que ocorre é a
percepção de que alguns livros mudaram de lugar.
d. Uso de recursos audiovisuais e da plataforma YouTube
Esta categoria analisa os conhecimentos e usos técnicos dos booktubers nos
momentos de gravação, edição e divulgação – ou seja, conhecimentos relacionados
à captação e ao uso do YouTube. Nesse caso, no que diz respeito à captação, os
modelos dos vídeos mantêm-se no que foi apresentado no enquadramento e, para
isso, são usados equipamentos em diversos níveis: desde os que captam com câmeras
profissionais, como o Yuri, que tem um colega que faz a captação do material, até os
que gravam com celulares.
Ainda que alguns canais invistam mais na captação do material audiovisual, não
175
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
parece ser uma variável importante. Por exemplo, alguns canais apresentaram problemas
de iluminação, foco ou áudio, mas os vídeos tiveram a mesma média de visualizações
e nenhum dos comentários citava a parte técnica do vídeo.
Tampouco é preciso ter conhecimentos complexos de edição. O que há de mais
produzido, além de alguns cortes nos vídeos, é a produção de vinheta – mais comum
nos canais. De resto, há a inserção de algumas imagens, trechos de filmes ou gerador de
GCs (esses dois últimos são recursos usados exclusivamente no canal Fantasticursos).
O uso da plataforma ocorre em sua completude. Existe a criação de uma imagem
do canal por meio das miniaturas dos vídeos (fonte, cor e diagramação), dos títulos
dos vídeos (tipo de vídeo, qual livro analisado e onde ele se encaixa na produção do
canal), descrição do vídeo (link para outras redes, endereço para caixa postal, meios
de entrar em contato e do que se trata o vídeo) e o uso das TAGs para otimização no
processo de busca no YouTube.
Por fim, a mídia do vídeo é preterida numa perspectiva geral. Os booktubers
afirmam não produzir nenhuma versão escrita da resenha gravada – em alguns casos,
escrevem apenas roteiros de produção, mas em outros é apenas sentar e gravar. São
elementos que estão de acordo com as conclusões de Tauana Jeffman (2018).
e. Temporalidade
No que diz respeito à periodicidade de cada canal, nos seis meses levantados
(1) o canal Lar da Agatha publicou 45 vídeos, (2) o canal Las hojas muertas y otras
hojas publicou 61 vídeos, (3) o canal da Gisele Eberspächer publicou 54 vídeos, (4, 5)
os canais Fantasticursos e Literature-se publicaram 69 vídeos, (6) e o canal Livrada!
publicou 46 vídeos - cerca de 2 ou 3 vídeos publicados por semana.
A duração desses vídeos varia de acordo com o canal e com o tipo de vídeo
produzido. No caso das resenhas, os canais geralmente produzem vídeos entre 7 e
15 minutos. O canal Las hojas muertas y otras hojas é uma exceção, com vídeos
com mais de uma hora. O que há é uma padronização da duração para cada tipo de
conteúdo. Como exemplo, citamos o caso do Livrada!. Em entrevista, Yuri Al’Hanati
(apud MARCHETTO, 2019) comenta que procura manter a faixa de até 15 minutos
para resenhas, até meia hora para entrevistas e até 40 minutos para bookhauls (vídeos
de apresentação dos lançamentos editorais e dos livros recebidos, enviados tanto por
editoras quanto por inscritos). Vale ressaltar que os livros pautados para as resenhas
são, em sua maioria, selecionados de acordo com o gosto literário do booktuber.
Considerações finais
Podemos traçar um caminho que nos aproxima da compreensão da crítica
literária produzida pelos booktubers enquanto narrativa e o papel que o corpo e os
demais elementos materiais têm na construção desse texto. Em primeiro lugar, os
retratos que surgem dessa análise são sempre temporários. Além da fluidez existente
em qualquer texto cultural, o campo do booktube ainda está em construção, permeado
176
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
de reflexões sobre o que é aceitável ou não aceitável dentro de suas fronteiras, como:
podemos cobrar para fazer críticas? Como nos relacionar com autores independentes
ou com editoras?
Nesse contexto, com o que foi apresentado, alguns delineamentos são visíveis. No
que tange à crítica enquanto narrativa, é possível visualizar elementos das narrativas
jornalísticas, pessoais e de crítica literária. A configuração dá-se pela orientação estética
e a mediação do campo literária com os inscritos, seguindo questões cotidianas, mas
também porque configura um espaço de identidade, afeto e contato. Assistir a um
determinado canal define seus gostos enquanto leitor, orienta opiniões de fruição
estética e une booktubers e inscritos em determinadas comunidades, que se expandem
para outros canais.
Os vídeos podem orientar de diversas maneiras: desde vídeos que digam como ler
mais rápido, fichar um texto, passando por orientações sobre lançamentos no mercado
editorial, como os vídeos de bookhaul, até as análises mais aprofundadas, vistas em
vídeos de artigos ou resenhas.
Nessa configuração, o espaço íntimo do booktuber (seu quarto, sala ou biblioteca),
a estante com seus livros e o seu busto enquadrado em primeiro plano surgem como
fatores de identificação e aproximação, adotando ares de uma cenografia necessária para
a estruturação de um tipo de gênero discursivo e sendo o rosto que cria os afetos nos
relacionamentos digitais, tanto entre o booktuber e os inscritos ou dos inscritos entre
si. Desses vínculos, surgem amizades que extrapolam os limites do canal e passam a
ocupar espaços digitais, como grupos do Facebook ou do WhatsApp, e físicos, como
feiras de livros ou palestras.
Notas
________________________
¹ Booktuber é uma variação do termo comumente utilizado para falar do criador de
conteúdo voltado para a plataforma do YouTube, o youtuber. Os booktubers são pessoas
que criam um canal na mesma plataforma, mas abordam exclusivamente questões
relativas à cultura literária.
² A metodologia é variada. Existem booktubers que enveredam por uma análise mais
técnica e outros que fazem uma análise mais impressionista, tomando como base os
sentimentos despertados durante a leitura.
3
Em sua pesquisa, Tauana (2018, p. 44) organizou 12 categorias, que, posteriormente,
atualizei de acordo com os dados que encontrei. São elas: TAG; Resenha; Atualizações;
Gosto; Projetos de leitura; Vídeos de socialização; Vídeos de contemplação; Unboxing;
Vídeos confessionais; Séries, filmes e músicas; Vídeos criativos; Publieditorial;
Cobertura de Eventos; Entrevistas; Leitura Pública; e Artigos.
177
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Referências
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
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SOSTER, Demétrio de Azeredo; PICCININ, Fabiana Quatrin. Santa Cruz do Sul:
Catarse, 2017, p.22-35.
180
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
A superação, neste caso, e ainda no diálogo com Ferreira (2013), se dá, portanto,
por meio da ruptura com os modelos analíticos vigentes, mas, também, considerando que
este movimento a integra em uma nova problemática; não é, portanto, excludente, e sim
complementar. Partindo-se deste pressuposto, uma estratégia possível é considerar, agora
com Fausto Neto (2010), que estamos falando, de um lado, de processos enunciativos,
aqui pensados como a) matéria significante (as pistas discursivas por meio das quais
reconhecemos as narrativas de bicicleta como tal), mas, também, b) como aquela que
organiza procedimentos de práticas enunciativas de caráter midiático, que nos interessa
particularmente:
182
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
2016-a, 2015), podemos dizer que o mesmo se verifica com as narrativas de bicicleta.
Basicamente porque a) as narrativas de bicicletas são estruturas narrativas (SOSTER,
2018) e, como os livros-reportagem, b) não estão presas às lógicas produtivas que exi-
gem, por exemplo, das mesmas, quando pensadas pelo jornalismo, periodicidade para
se constituir como tal, como ocorre com os jornais impressos. Com isso, o segundo nar-
rador passa a ter uma centralidade discursiva, na relação com o modelo de Motta (2013).
O Gráfico 2 nos mostra como isso se dá:
185
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Estruturas discursivas
Desde que o tema “narrativas de bicicleta”; e, nele, sua midiatização, interpuseram-
se em nosso percurso de pesquisa, passamos a observar, com mais atenção, as
estruturas discursivas das primeiras como estratégia para compreendermos, mais
adiante, o que emerge de seus processos de enunciação. Por este viés, identificamos,
por exemplo, que a natureza textual deste modelo narrativo, que classificamos como
fático-descritivo, representa o ponto de vista, ou a fala, de narradores com o objetivo
de narrar uma experiência vivida. As narrativas são fático-descritivas basicamente
porque se propõem a descrever a experiência vivida pelos cicloturistas, o que ajuda a
entender porque, via de regra, são escritas em primeira pessoa. Estas narrativas, por
sua vez, são estruturadas a partir de depoimentos de caráter testemunhal, ou seja, de
pessoas que, ao escreverem, posicionam-se como testemunhas do que aconteceu, seja
na condição de protagonista do vivido, ou não.
A diferença que estamos defendendo neste artigo tem a ver com a forma por meio
da qual as narrativas de bicicleta se estabelecem e sua anatomia. “As experiências de
vida das pessoas são cada vez mais mediadas (grifo nosso), elas tomam cada vez
mais contato com o mundo exterior através de representações virtuais e discursivas
da realidade.” (MOTTA, 2013, p. 28). É dizer, por outras palavras, que são narrativas
que emergem da relação entre pessoas e dispositivos técnicos, e que chegam até nós
por meio de sites, livros etc. Estamos falando de estruturas narrativas que valorizam,
e aqui no diálogo com Sodré (2009, p. 187), “(...) as ‘viagens’ (tanto no sentido estrito
da palavra quanto metafórico, como ação potencializadora da sabedoria individual)
caracterizadas como ‘experiência’ para o escritor”, mas que o fazem, como dito, por
meio do uso de dispositivos de natureza tecnológica.
Na condição de narrativa “midiatizada”, estas narrativas acabam por trazer consigo
características dos narradores que lhes antecederam (PICCININ, 2012). Pensando-se
em Benjamim (2012) e sua concepção do narrador sábio, capaz de dar conselhos, porque
traze consigo a perspectiva da transformação pessoal, o que se dá, como dito, pelo relato
da experiência do vivido, pela noção de “moral” intrínseca à narrativa como perspectiva
de autoconhecimento (GAI, 2018). O caráter testemunhal dos escritos, invariavelmente
em primeira pessoa e descrevendo as coisas que viveu, as pessoas que conheceu no
caminho, contribuem decisivamente para isso. É o mecanismo por meio do qual, e aqui
com Sodré (2000, p. 180) novamente, são transmitidos os conselhos, os ensinamentos,
as lições apreendidas e as práticas de vida; onde o narrador pré-moderno de Benjamim
(2012) tem lugar, enfim.
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Considerações interpretativas
Encaminhamos nossa reflexão afirmando que pensar a midiatização das narrati-
vas; nelas, de seus narradores, implica considerar, quem sabe, a perspectiva por meio
da qual constatamos a emergência de um narrador midiatizado no cenário proposto.
Ou seja, a processualidade da ambiência em que fenômenos dessa natureza têm lugar,
de matizes sócio-técnico-discursivos. Por este viés, e trazendo à discussão o concei-
to de semiose de Verón (1980), veremos que a chave hermenêutica para a referida
metamorfose, ou reconfiguração, seja, quem sabe, compreendê-la como de natureza
relacional.
Semiose significa: “(...) uma ação, ou influência, que é, ou implica, a cooperação
de três sujeitos (subjects), a saber, um signo, seu objeto e seu interpretante, relação
ternária (tri-relative influence) que não pode de modo algum resolver-se em ações en-
tre pares” (VERÓN, 1980. p. 181). Ou seja, de forma econômica, afeita aos sentidos
que emergem quando todos os atores, ou sujeitos, envolvidos nos processos de produ-
ção discursiva relacionam-se entre si.
É o que temos quando os homens, suas tecnologias e técnicas redesenham,
relacionalmente, o mundo em que vivemos por meio de narrativas. Tomando-se como
conceito de fundo as narrativas de viagem; nelas, as cicloturísticas, ou de bicicleta,
e tendo como recorte o projeto “Mochila & Bike” 3, do gaúcho de charqueadas (RS)
Aldo Lammel, que estamos acompanhando desde 20174, encontramos, quem sabe,
algumas pistas por meio das quais possamos ilustrar o que estamos sustentando.
188
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Fonte: https://aldolammel.com/mochilaebike
O ciclista Aldo Lammel, recordemos, inicia sua longa viagem ao redor do mundo
com o objetivo de se aventurar, de descobrir novas gentes. Para isso, deixa emprego,
namorada e segue em direção ao horizonte; ele, sua bicicleta, o equipamento de so-
brevivência (barraca, cozinha etc.) e seus aparelhos eletrônicos – computador, tablet,
câmera fotográfica etc. O projeto foi desenvolvido durante 15 meses, período em que
Lammel cuidou de registrar seus movimentos e publicizá-los à medida que se realiza-
vam, conforme demonstra a imagem 4:
189
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=LkLV6YKOUsE
Um mês depois de ter tomado a decisão de realizar uma cicloviagem pelo mundo,
Lammel grava um vídeo no youtube dizendo que se desligara do emprego; mais adiante,
que terminara seu relacionamento. A Imagem 3 registra todo o roteiro e programa da
cicloviagem:
Fonte: http://mochilaebike.org/roteiro-e-cronograma.php
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Fonte: http://mochilaebike.org/roteiro-e-cronograma.php
À medida que ele captura, por meio de texto, áudio e vídeo o que está vivendo,
e que veicula o narrado, em primeira pessoa, em seu site, transforma a experiência
em fenômeno midiático e, em seguida, lança o mesmo à discursividade midiática,
midiatizando, uma vez mais, a própria experiência. Nas primeiras semanas, meses, na
condição de testemunha de seus próprios atos e decisões, sem maiores pretensões que
não dizer do vivido. Seu texto, aqui, é referencial. Na imagem 5, em La Paz, na Bolívia,
por exemplo, Lammel afirma, aos 5’34 de gravação, que é a primeira vez que fará um
relato de improviso, sem edição.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=qeXII-AalFE
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=I4nXN_P9xKs
Ou neste outro momento, quando passa a oferecer novas formas de acesso aos
que com ele dialogam, quando, em sua página no Facebook14, anuncia a criação de um
aplicativo (APP) para melhorar a comunicação, e com, isso, estreitar relações:
É OFICIAL - AGORA TEMOS NOSSO PRÓPRIO APP! Agora você pode acom-
panhar todos os conteúdos da volta ao mundo de uma forma muito mais rápida pelo
celular: vlog, websérie, diário, manual, roteiro, estatísticas e nossas redes sociais
Vale lembrar que tudo aqui é independente e ainda não colocamos nosso app
na Google Play por ser caro para nós (U$25/anual), mas ainda assim você pode
baixar direto do nosso site e instalar com segurança. Versão para iPhone e iPad,
em breve.
Baixe o App: http://mochilaebike.org15
Tudo o que peço a quem me acompanha desde 2015 quando pus meu apartamento
pra alugar e fui pra estrada e a quem passará a me fazer companhia desde agora,
peço que respeite meu momento de estar quietinho em Praga com a minha
flor antes de termos de dizer adeus um para o outro pra seguirmos sonhos em
192
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
direções opostas por vivermos momentos de vida tão diferentes. A vida não é
preto no branco como regras escritas num manual para amadores, as histórias são
complexas e com infinitas perspectivas. Usufrua de tudo o que compartilho
no Youtube, Facebook e em meus livros gratuitos no Medium (grifo nosso)
que te prometo que vc (sic) encontrará novas possibilidades bem diante dos teus
olhos, sem mágica ou romantismo em excesso.
Observe-se que ele narra sua própria reclusão, colocando-se, neste movimento, em
uma distância respeitosa do narrado, ainda que saiba com muita propriedade e precisão o
que o personagem Lammel está vivendo, o que necessita e o que está por vir daqui para
frente. Cabia-se, no espaço de algumas postagens, da modernidade, e suas variáveis, à
pós-modernidade, o que nos permite categorizá-lo de midiatizado.
193
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Notas
________________________
1
https://aldolammel.com/mochilaebike
2
Em uma tradução livre: “Quando o significado adquire um corpo e entra em relações
históricas, se inicia imediatamente a terceiridade das regras que definem as condições
de acesso ao sentido, isto é, as condições de sua circulação”.
3
https://aldolammel.com/mochilaebike
4
Parte dos exemplos que ilustram nossa reflexão foram apresentados, seminalmente,
na SBPJor de 2017. Trata-se, aqui, de uma atualização, considerando que a cicloviagem
se encerrou. Este mesmo caso é analisado no e-book Narrativas de Viagem (Catarse,
2019)
5
https://www.youtube.com/channel/UCjK_6o4JAwe7Ecx7Rl26kqA
6
https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs
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7
https://medium.com/mochilaebike-fotos/livro-de-fotografias-7c475fd25e36
8
http://mochilaebike.org/sobre.php
9
http://twitter.com/aldolammel
10
http://instagram.com/aldolammel
11
https://www.youtube.com/playlist?list=PLseCxrn4VPolnJ9FLq42peGW5BSBOC6oW
12
https://www.swarmapp.com/
13
Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=I4nXN_P9xKs] Acesso em: [17
de julho de 2017]
14
https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs
15
Disponível em: [https://www.facebook.com/avlammel/posts/1021351443 7518750]
Acesso em: [17 de julho de 2017]
16
https://www.facebook.com/avlammel
17
Disponível em: [https://aldolammel.com/mochilaebike] Acesso em: [02 de junho de
2019]
Referências
BENJAMIN. Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre a literatura e
história da cultura. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 2012.
DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.
FAUSTO, Antonio. As bordas da circulação. In: Mediatización, sociedade y sentido:
diálogos entre Brasil e Argentina. Coloquio del Proyecto “Mediatización, sociedade
y sentido: aproximaciones comparativas de modelos brasileños y argentinos. 2010.
Universidad Nacional de Rosario, Argentina. Anais... Departamento de Ciencias de la
Comunicaón. 2010.
FERREIRA, J. Como a circulação direciona os dispositivos, indivíduos e instituições?
In: BRAGA, J. L.; FERREIRA, J.; FAUSTO NETO, A.; GOMES, P. G. (Org.). Dez
perguntas para a produção de conhecimento em comunicação. 1. ed. São Leopoldo:
Editora Unisinos, 2013.
FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
GAI, Eunice Piazza. Narrativas e conhecimento. Revista do Programa de Pós-
graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 5 – n. 2 – p. 137-144 – jul./
dez. 2009. Disponível em: [http://seer.upf.br/index.php/rd/article/view/1247] Acesso
em: [Outubro de 2018].
GENETTE, Gerárd. Figuras III. Barcelona: Lumen, 1988.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília (DF): Editora UnB,
2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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A MIDIATIZAÇÃO E A RECONFIGURAÇÃO
NARRATIVA DO IMAGINÁRIO
Ricardo Luís Düren
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do próprio ‘Eu penso’ sintetizador; e isso a mente faz através da introdução de uma ideia
que não está contida nos dados e que produz conexões que esses dados, de outro modo,
não teriam” (PEIRCE, 2008, p. 17). Como veremos mais adiante, há muita proximidade
entre o sistema peirceano, no que tem de teoria que evidencia as imbricações entre
inconsciente e racional, e os apontamentos do estudo do imaginário no que toca à
geração de sentidos.
Eliseo Verón, a seu turno, parte da tríade peirceana para observar as complexificações
que se estabelecem, no que tange ao sentido, no âmbito da midiatização. Em uma
visada voltada ao social, Verón (2013) compara a tríade de Peirce à lógica sistêmica
com a qual Luhmann define o ato de comunicação, esse entendido como o mecanismo
que constitui a sociedade como sistema autopoiético – dado que é pela comunicação
que o sistema social se reproduz autopoieticamente. Para Verón (2013), a tríade de
Luhmann (informação, enunciação e compreensão/não compreensão) é isomorfa à de
Peirce. Desta forma, a primeiridade equivale à informação, a secundidade à produção
do ato enunciativo e a terceiridade à compreensão. Equivale a dizer que a sociedade, no
que tem de autopoiética, age como um organismo humano, um ser também dotado de
elementos psicológicos.
E assim, como o sistema de comunicação equipara-se ao sistema individual
de produção de sentido, para Verón (2013) pode-se afirmar que tanto no âmbito da
sociedade quando do individual há sistemas da ordem do social e do psicológico atuando
em ambas as pontas do processo comunicativo, ou seja, tanto na produção do discurso
quanto na sua recepção, no seu reconhecimento. Nessa seara, o viés psicológico – a
subjetividade individual – surge como um elemento gerador de diferenças entre estes
dois polos. Mas não é o único, principalmente quando se trata do sentido materializado,
ou seja, dotado de autonomia e persistência, o que mantém sua materialidade ao longo
do tempo, período onde ocorrem variações entre as condições/gramáticas de produção
e condições/gramáticas de reconhecimento, como observa-se na teoria da circulação.
Por condições de produção (CP) Verón (2005 e 2013) entende as condições
extradiscursivas – econômicas, sociais, políticas, etc. – que possibilitam a elaboração
do discurso no determinado período histórico em questão. Se voltamos o olhar para
a questão do discurso materializado, podemos inferir que o acesso a tecnologias de
midiatização, tais como a escrita, a impressão ou dispositivos digitais é um fator
imbricado às condições de produção. Já as gramáticas de produção (GP) dizem
respeito às regras e lógicas que regem as operações de produção de discurso, não
só no campo linguístico, mas ideológico e social. A mesma lógica conceitual se
aplica à outra ponta do processo, ou seja, ao reconhecimento, o qual se processa
mediante as condições de reconhecimento (CR) disponíveis no ato em questão e as
gramáticas de reconhecimento (GR) vigentes nesse dado momento. Verón (2013)
assinala que, como a semiose é um processo não linear, uma multiplicidade de GR
podem interferir na interpretação do discurso.
Conforme assinalamos acima, a circulação diz respeito à defasagem que se
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estabelece entre estes dois polos envolvidos na semiose, onde, em uma ponta estão
as CP e GP, e, na outra, as CR e a pluralidade de GR. A circulação, portanto, se
estabelece no desvio entre a produção do discurso e seu reconhecimento, tão variável
quanto as diferentes condições/gramáticas de produção e de reconhecimento que
se estabelecem em distintos momentos históricos e sociais. Neste viés, a análise do
processo semiótico sob a visada da circulação é, como ressalta Fausto Neto (2013),
uma opção que afasta a perspectiva veroniana da tradição epistemológica binária de
análise do discurso – e aqui temos, novamente, mostras de que esta epistemologia da
midiatização, descendente da semiótica, foge à lógica binária tão criticada por Durand.
O binarismo, para Fausto Neto (2013), se estabeleceria nas opções de pesquisa focadas
em apenas um dos polos da semiose – ou na produção do discurso, ou na recepção –
isolando a atividade discursiva da perspectiva relacional entre indivíduos que, embora
em polos distantes, interagem.
Porém, o autor ressalta que a noção de circulação, embora remetendo aos desajustes
entre produção e reconhecimento, não deve ser analisada apenas como fator de ruptura,
mas como um processo complexo de negociação de sentidos. Tal constatação fica ainda
mais evidente a partir da atualização do conceito de circulação, hoje entendida, conforme
Fausto Neto (2018), como uma zona de interpenetração, onde o cruzamento de feixes
de sentido diversos, materializados pelo crescente acesso às tecnologias de mídia, se
interpõe entre os polos de produção do discurso inicial e de interpretação, interferindo
em toda a cadeia interpretativa.
Entendemos que a circulação é um elemento preponderante a ser considerado
no âmbito do corpus de pesquisa que nos propomos a analisar, a saber, os registros
jornalísticos – portanto, midiatizados – acerca do Caso Kliemann, termo que compreende
os incidentes que envolveram os assassinatos de Margit Kliemann, em 29 de junho de
1962, em Porto Alegre, e do seu marido, o deputado estadual Euclydes Nicolau Kliemann,
em 31 de agosto de 1963, em Santa Cruz do Sul. Integrarão nosso recorte de análise
tanto jornais que noticiaram os fatos e investigações à época quanto narrativas que, mais
recentemente, recontaram esses eventos em jornal e livro. Há, portanto, uma variação
social e temporal entre produção e reconhecimento destes discursos que certamente
potencializa, no âmbito deste corpus, o fenômeno da circulação. Desta forma, observar
a circulação na esfera dos discursos sobre o Caso Kliemann é diligência necessária a fim
de, em uma visada mais ampla, analisar nesse recorte as reconfigurações do imaginário
emergentes da sua midiatização.
O Caso Kliemann nos parece um corpus pertinente para fins dessa análise por reunir
determinados ingredientes que remetem ao mítico e, consequentemente, ao imaginário
– questão de abordaremos na parte final deste trabalho. Antes, urge compreendermos no
que consiste o imaginário.
O que é o imaginário
Conforme antecipamos, em consonância com Silva (2017) trabalhamos com a
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[...] A fratura humana faz surgir dentro da pessoa um mundo ignoto e abismal:
o mundo da criação imaginária. O objeto, antes de ser conhecido pela razão,
é imaginado. Ele, antes que um conceito ou ideia, é uma imagem por meio
da qual a pessoa significa as coisas. O sentido é sempre criado e não emana
naturalmente das coisas. O objeto, que é uma imagem com sentido, é sempre
um objeto construído pelo imaginário do sujeito e da sociedade. (RUIZ, 2003,
p. 63, grifo no original).
Equivale a dizer que o imaginário “[...] se manifesta como fluir criador que constrói
permanentemente imagens com sentido de um mundo que, por princípio natural,
é insignificante para o resto das espécies animais” (RUIZ, 2003, p. 49). Nota-se, no
excerto, grande proximidade entre os conceitos de imaginário em Ruiz (2003) e Silva
(2017). Em ambos, o imaginário emerge como um processo que atribui sentidos a uma
materialidade ou a fatos que, por si só, não os têm.
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rio sobre o estilo de jogar” (p. 38). À luz desse breve excerto do autor, podemos inferir
que Seleção Canarinho remete, no âmbito de um imaginário compartilhado na vasta
comunidade dos amantes do futebol, ou mesmo na nação brasileira, não apenas à cor da
camisa, mas a uma forma de jogar alegre, ágil, leve, de lances sutis e dribles desconcer-
tantes. Portanto, enquanto na esfera do real há um time composto por 12 jogadores, mais
treinador e banco de reservas, cada qual com suas características empíricas em termos
de capacidade técnica e rendimento físico, no âmbito do imaginário existe essa alegre
Seleção Canarinho – bem diferente daquela que perdeu por 7 a 1.
Na Seleção Canarinho há uma significação que emerge por meio de um imaginário
compartilhado. No caso, um sentido (futebol alegre, leve) que transborda para além do
time de futebol empírico (aquele formado por 12 jogadores, mais técnico, mais reservas).
A Seleção Canarinho é a de Pelé, Garrincha e Sócrates: mais do que atletas, seres míticos
no panteão dos deuses do futebol. A alusão ao mito não é, aqui, desproposital. Ao longo
da evolução da ciência do imaginário, observou-se que o fenômeno está intrinsecamente
relacionado à tradição mítica do homem. Acreditamos que, sistematizando o processo
evolutivo desta epistemologia, a seguir, facilitaremos a compreensão do fenômeno.
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com o consciente, porém, por conta de seu caráter simbólico, tal comunicação é cifrada,
metafórica. Ainda assim, a ciência do imaginário não teve em Freud sua principal
referência para o estudo do símbolo por entender que, para o psicanalista austríaco,
a formação simbólica do inconsciente se reduz a reflexos dos traumas decorrentes da
repressão, no âmbito familiar e social, às pulsões da libido.
Já a partir das pesquisas do psicanalista Carl Jung (1875-1961) emergiram as
inferências que mais dialogam com a ideia da origem psíquica das imagens simbólicas
que viria a ser aceita pelo estudo do imaginário – particularmente, no que tange ao
conceito do arquétipo. Jung (2008) conceitua o arquétipo como uma tendência natural
do sapiens, herdada biologicamente, que leva os indivíduos a, geralmente, produzirem
inconscientemente as mesmas imagens simbólicas. O psicanalista chegou a essa
hipótese intrigado com a semelhança entre imagens mitológicas (tais como a árvore
do conhecimento, o deus que morre e ressurge, a serpente de chifres, o dragão e outros
demônios) presentes em diferentes culturas, separadas por milhares de quilômetros
ou anos e que nunca tiveram contato entre si. Também lhe intrigava o aparecimento
dessas imagens nos sonhos de pacientes seus, indivíduos tidos como “civilizados” e que
desconheciam tais mitologias de etnias “primitivas”.
Para Jung (2008), o fenômeno inconsciente do arquétipo ocorreria porque o cérebro,
assim como os demais órgãos humanos, foi biologicamente condicionado a realizar as
mesmas operações em todos os indivíduos, independente de sua localização no tempo
ou espaço2. Sem desconsiderar a importância do ambiente social nas operações mentais
que atuam na geração de imagens simbólicas, os estudiosos do imaginário têm na ideia
de arquétipo um conceito basilar para entender o fenômeno. Indício disso é a ideia,
presente em Bachelard (1996), da existência de um “centro de imagens” compartilhado
pelos indivíduos. Apesar de conceber a imaginação como uma força voltada ao futuro,
que impulsiona o homem a querer modificar a realidade, o mestre de Gilbert Durand
acredita que
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autor divide o ambiente social em três níveis psicológicos, aos quais batizou apropriando-
se de conceitos freudianos: isso, ego e superego.
Durand (1998) argumenta que fluxos do imaginário mítico – originalmente
fantásticos, confusos, alógicos, bárbaros e marginais – partem de uma determinada
tópica (que chamou de isso), situada na base do diagrama, e circulam por fatias
psicológico-sociais regradoras, no caso, o ego (que na metáfora de durandiana remete
às estratificações sociais, aos papéis distribuídos conforme classes ou castas, idades e
sexo) e o superego (encarregado de organizar e racionalizar em planos, ideologias e
pedagogias, o ego sociocultural). Neste processo, os fluxos do imaginário vão sendo
tolhidos e regulados, tornando-se racionais, pedagógicos e aceitáveis para a sociedade
em questão, conforme seu status em termos econômicos, geográficos e históricos.
Optamos por transformar em imagem o diagrama social sugerido pelo autor. Nele,
a seta em curva representa a passagem do mito bárbaro – que Durand (1998) também
chama de imaginário em potencial, pelas possibilidades que abre à manifestação
simbólica –, pelas instâncias regradoras, até tornar-se um imaginário atualizado, no qual
se situa o herói bom e honesto, envolvido em uma busca pelo bem.
Para fazer emergir sua significação, a fatia clandestina do imaginário adota como
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Mais uma vez, observa-se a emergência de um imaginário que herda de suas raízes
míticas a pedagogia do culto ao herói e ao semideus. Observamos assim, neste corpus
de análise, elementos que remetem a um transbordamento de sentidos (SILVA, 2017),
que se estabelecem na processualidade mítica, psicológica e social do imaginário. Um
transbordamento que extravasa ainda mais a partir dos eventos trágicos que se abateram
sobre estes semideuses olimpianos que eram Euclydes e Margit, dado que a tragédia
também contém, na imbricação com o imaginário, características que remetem a novos
sentidos.
Há, porém, um outro elemento a ser considerado, qual seja, a midiatização deste
sentido que transborda a partir do Caso Kliemann, fenômeno decorrente da cobertura
jornalística realizada à época e do recontar desse eventos em narrativas posteriores
– como por exemplo a série de reportagens O Caso Kliemann - 45 anos depois,
veiculada pelo jornal Gazeta do Sul em 2008, e a obra de De Grandi (2010). Ao gerar
o fenômeno midiático a partir de narrativas sobre o Caso Kliemann, tais dispositivos
comunicacionais materializaram também o imaginário emergente destes eventos, o
dotando de autonomia e persistência (VERÓN, 2013) – o que nos permite, inclusive,
ter acesso a esse transbordamento de sentidos passados quase 60 anos.
Entretanto, tendo em vista a processualidade da midiatização – caso da
própria circulação, como desvio gerado entre os polos da produção de sentidos e do
reconhecimento (VERÓN, 2005 e 2013), e como interpenetração de outros sentidos
diversos (FAUSTO NETO, 2018) – entendemos que esse imaginário pode não ser
exatamente o mesmo. Por conta do fenômeno midiático e demais processos inerentes à
midiatização, ele possivelmente passou por reconfigurações, fenômeno que, portanto,
nos propomos a analisar.
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Notas
________________________
1
A pesquisa é realizada no âmbito do PPGL-Unisc, sob orientação do professor doutor
Demétrio de Azeredo Soster, com auxílio de bolsa da Capes. Seu título provisório é O
Caso Kliemann e a midiatização do imaginário.
2
Cabe salientar que o arquétipo consiste em uma tendência da mente humana em
criar as mesmas imagens. Como ressalta Ruiz (2003), o processo não se dá apenas no
inconsciente, mas também é influenciado pelo lado racional. Mesma ressalva é feita
por Campbell (2000), para o qual os símbolos da mitologia são, por um lado, fruto da
interferência de produções espontâneas da psique, mas, por outro, são também resultado
de processos que não ocorrem apenas na esfera inconsciente. A criação das alegorias e
metáforas míticas, ressalta, também é fruto de séculos de elaboração racional, consistindo
em um vínculo entre inconsciente e consciente. Os teóricos do estudo do imaginário
evidenciam também a influência do ambiente social no fenômeno, como veremos a
seguir.
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução de Antônio de Pádua Danesi.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BARROS, A. T. M. P.; CONTRERA, M.. Estudos do Imaginário: a iniciação como
método. In.: BARROS, A. T. M. P. et. al. (Org.). Imag(em)inário: imagens e imaginário
na Comunicação. Porto Alegre: Imaginalis, 2018. p. 22-36 Disponível em: <https://
www.ufrgs.br/imaginalis/editora/imageminario/>. Acesso em: 4 jun 2019.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São
Paulo: Pensamento, 2000. 414 p.
DE GRANDI, Celito. Caso Kliemann: a história de uma tragédia. Porto Alegre:
Literaris/Edunisc, 2010. 256 p.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Tradução de Carlos Aboim de Brito.
Lisboa, Edições 70, 1993. 112 p.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
Tradução de Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 1998. 128p.
FAUSTO NETO, Antônio. Como as linguagens afetam e são afetadas na circulação? In.
BRAGA, José Luiz et al. (Org.). Dez perguntas para a produção do conhecimento
em comunicação. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2013. p. 43-64.
FAUSTO NETO, Antônio. Circulação: trajetos conceituais. Rizoma - Midiatização,
Cultura, Narrativas. Santa Cruz do Sul, v. 6, n. 2, p 8-40, dezembro 2018. Disponível
em <https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/13004/7731>. Acesso
em 18 jun 2019.
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como narrativas devido à estrutura no qual são constituídos, bem como à sua abrangência
explicativa e unificadora.
Para a autora a propagação das narrativas econômicas responderia ao imediatismo
imposto pelo capitalismo, regime este que pressiona as organizações a configurarem e
reconfigurarem seus relatos como uma forma de atender a uma temporalidade que se
encolhe, como uma resposta política que reconstrói a história em uma perspectiva de
unificação temporal (D’ALMEIDA, 2006).
A coerência, o sentido, e a cronologia destas narrativas são construídos face às
exigências e aos objetivos da organização, expressos por meio de narrativas recitadas
pela comunicação organizacional que lhe permite dar visibilidade e legitimar seus feitos.
Na proposição de D’Almeida (2001) as narrativas econômicas podem ser
observadas sob duas formas: as narrativas da casa3 e as narrativas de engajamento4. As
primeiras dizem respeito aos relatos produzidos pelas empresas tendo como fundamento
a identidade e os valores organizacionais, com vistas a coligação do público interno. Já as
segundas relacionam-se às narrativas universais da empresa, como forma de legitimação
organizacional através da associação dos valores internos com ideais universais (bem
comum, sustentabilidade, etc.).
Aproximar a abordagem narratológica aos estudos de comunicação organizacional
permite ampliar o horizonte teórico-analítico deste campo para além da perspectiva
funcionalista, ainda bastante expressiva entre as pesquisas francesas e latino-americanas.
A narratologia, por meio de sua vertente estrutural, permite revelar ainda certas
invariantes, e através de sua vertente hermenêutica, nos convida a repensar a visão de mundo
proposta pelas organizações, e o sentido que nutre as representações e comportamentos de
um grupo (D’ALMEIDA, 2006).
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que emergem nas organizações ou que circulam no seu interior- narrativas nas
organizações. Diferentemente da proposta apresentada por Nicole D’Almeida, as
narrativas organizacionais possuem uma abrangência maior, por não restringirem-se
apenas aos relatos de empresas privadas ou com fins econômicos, mas entendendo as
organizações em seu sentido ampliado, como o grupamento de indivíduos organizados
em torno de objetivos comuns – incluindo aí as ONG’s, associações, instituições
públicas, OSCIP’s, sindicatos, coletivos, entre outros.
Destaca-se, nesse sentido, a temática das comunicações produzidas pelas
organizações por meio da utilização de narrativas, pois entende-se que esse tema é
de fundamental importância para a compreensão da dinâmica organizacional que,
mediada pela comunicação, encontra na narratividade um mecanismo para a sua
legitimação.
Graças ao diálogo entre os estudos narrativos, organizacionais e comunicacionais
torna-se possível observar a produção, circulação e apreensão de narrativas no seio das
organizações. Da mesma forma, entende-se que as organizações utilizam diferentes
estratégias narrativas a fim de comunicar-se com os mais variados públicos, isto é,
como forma de transmitir, difundir e legitimar seus objetivos, missão e valores à
sociedade.
Uma pista de investigação recente focaliza o debate em torno das narrativas
institucionais (corporativas) produzidas pelas organizações. Essas narrativas são
discutidas, contestadas, parodiadas, suscitando, por sua vez, a criação de outros
relatos pelos grupos internos ou externos à empresa. Os grupos de trabalho ou os
sindicatos se sentem, então, convidados a produzir suas próprias narrativas, e
atribuir uma significação particular à ação e ao sentido da organização. Narrativas
alternativas podem também emergir de organizações não-governamentais, ou grupos
de contestação. Assim, em meio à polifonia de relatos e discursos que se entrecruzam
e se sobrepõem, as organizações tornam-se objeto de uma guerra de narrativas, na qual
se discutem e se disputam diferentes visões (SANTOS; D’ALMEIDA, 2017).
Outros usos comunicacionais das narrativas podem ser visualizados através da
incorporação de relatos, depoimentos, narrativas de vida, nas campanhas de prevenção
e de sensibilização elaboradas pelas organizações. No estudo realizado junto à
Fondation Cité Internationale Universitaire de Paris (CIUP) foi possível observar
como uma organização sem fins lucrativos elabora estrategicamente narrativas visando
sensibilizar e engajar os diferentes públicos em favor de seus propósitos e valores
organizacionais (SANTOS, 2014a)
As narrativas são também objeto da comunicação interna, onde o relato de vida
tem um papel valorizante (reconhecimento do indivíduo, de sua trajetória) mas também
unificador e integrativo, onde, frequentemente, história pessoal e organizacional
se entrecruzam, formando uma “narrativa híbrida”. No caso específico da empresa
Petrobras, ao analisar a produção de narrativas a partir do Programa Memória
222
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investigação, das aplicações efetivas de tal perspectiva no processo comunicacional, suas
contribuições e limitações assim como as possibilidades de estudo dela provenientes.
Entre as linhas e perspectivas investigativas em curso e cotejadas futuramente
destacam-se: a) Análise da comunicação organizacional sob a ótica narrativa:
Contribuições dos estudos narrativos (FISHER, 1987; RICOEUR, 1986; BRUNER,
1991; CZARNIAWSKA, 2001; GIROUX; MARROQUIN, 2005) à construção de
uma abordagem narrativa da comunicação organizacional; b) A produção de narrativas
das e nas organizações: explorações teóricas e práticas; c) Narrativa como processo
e produto da comunicação organizacional; d) Adaptação e circulação das narrativas
organizacionais aos novos formatos e suportes midiáticos.
A partir da identificação das áreas e linhas de investigação, assim como da
classificação das narrativas (identificação dos tipos, características principais e
práticas recorrentes) pode-se almejar a continuação do estudo a partir de inúmeros
desdobramentos temáticos. Considera-se o desenvolvimento de pesquisa sistemática,
a partir de parâmetros pré-estabelecidos como a definição de uma amostra preliminar,
seleção de casos representativos de diferentes segmentos organizacionais (setor de
atuação, tamanho, região, etc.), por exemplo, ou através da adoção de um tema norteador
(sustentabilidade, memória, valores) para o qual podem ser buscados diferentes exemplos
de narrativas organizacionais.
Finalmente, entende-se que a análise das narrativas produzidas oficialmente pelas
organizações e direcionadas aos seus públicos de interesse, por meio de uma linguagem
própria e com objetivos pré-determinados, constitui, portanto, uma perspectiva de in-
vestigação promissora, a partir da introdução dos fundamentos narratológicos ao campo
organizacional e comunicacional.
Notas
________________________
1
Comunicação que emana das organizações, se dissipa e circula no seu interior e
no seu exterior; comunicação oriunda das diferentes vozes organizacionais; e, ainda,
comunicação a respeito da própria organização.
2
Dentre eles destaca-se Roman Jakobson, Tzvetan Todorov e Vladmir Propp.
3
No original em francês: Récits de la maisonnée.
4
No original em francês: Récits de l’engagement.
5
Programa desenvolvido pela Petrobras em 2004 com o objetivo recuperar a memória
empresarial e contar a história da companhia por meio dos relatos dos trabalhadores.
6
Pesquisa de Doutorado em Sciences de l’Information et de la Communication, realizada
na Université Paris- Sorbonne (Paris IV) em co-tutela com a Universidade de São
Paulo (ECA-USP), defendida em 07 de abril de 2016, sob o título “Communication des
organisations: Stratégies de légitimation au travers des récits historico-organisationnels”.
224
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
7
Observatório da narrativa midiática, criado em 1991 junto à Escola de Jornalismo da
Université Catholique de Louvain (UCL), na Bélgica.
8
Capacidade que as narrativas midiáticas possuem de adaptação e de transição entre
diferentes espaços e dispositivos, suportes midiáticos.
Referências
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e significação. In: KUNSCH, M. M. K. (Org.). A comunicação como fator de
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225
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
226
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
227
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Introdução
A “arte” da titulação – relacionada, de modo específico, à práxis jornalística, com
ênfase no processo de elaboração de narrativas transcriadas – sustenta-se na recorrência
a estratagemas linguísticos, semióticos, culturais, políticos etc. Para além disso, os
“maquinismos” inerentes ao ofício de escolha, decodificação e edição do “conhecimento
do mundo” (discurso do outro), durante as etapas do processo de transcriação de tal
saber em discurso outro (jornalístico), exigem habilidades e responsabilidades ligadas
ao uso de recursos idiomáticos e literários (analogias, metáforas etc.) para representação
e/ou reconfiguração simbólica dos fenômenos acontecimentais.
Na discussão aqui desenvolvida, pretende-se, justamente, a análise de certos
procedimentos de ressignificação jornalística do “mundo da vida”, expressos na
conformação de títulos em reportagens da seção “esquina”, da revista piauí. Recorre-
se, para tal, à problematização da própria ideia de edição, processo de transfiguração
simbólica com vistas ao desenvolvimento de narrativas dialógicas, por meio do emprego
de linguagens e formatos mais próximos à(s) experiência(s) daqueles a quem se destinam
(no caso, os leitores da publicação aqui analisada).
No que tange ao conceito de transcriação – conforme desenvolvido, por mim, em
outras tantas investigações (SILVA JR, 2014; 2016; 2017; 2018) –, trata-se de definição
calcada na noção de “transleitura”, terminologia proposta por José Paulo Paes (1995),
em diálogo com os desafios do procedimento de tradução abordados por Paul Ricoeur
(2011) e com as teorias do escritor Haroldo de Campos.
228
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
229
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
informações – recolhidos junto a fontes (diretas e/ou indiretas) diversas, como
fruto de práticas múltiplas, a exemplo de entrevistas, coletivas de imprensa,
documentações, processos imersivos e/ou de observação, dentre outros –, em
“narrativas dialógicas”, substanciadas por linguagens, ações e/ou formatos
relacionados a experiências recorrentes ao cotidiano (profissional, pessoal,
afetivo) daquele(s) a quem tais discursos se destinam (leitor, ouvinte, espectador,
usuário etc.) (SILVA JR., 2018, p. 253).
O método
Neste tópico, recorre-se a trabalho anterior (SILVA JR., 2018, p. 257), como
forma de, brevemente, revelar as bases do procedimento metodológico para análise de
narrativas jornalísticas transcriadas a ser empregado na presente análise. Em primeiro
lugar, importante frisar que “mecanismos de transfiguração do acontecimento em
notícia nutrem-se da recriação de discursos, para que, então, seja possível expandir a(s)
habilidade(s) de reflexão e autorreflexão do(s) público(s)”.
2 O autor debruça-se sobre a temática em trabalhos como “Da tradução como criação e como crítica”; “Tradução:
fantasia e fingimento”; “Texto literário e tradução”; “Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da
tradução” e “Tradução, ideologia e história”.
230
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
A revista
Idealizada pelo documentarista João Moreira Salles, a revista piauí passou a
circular, mensalmente, no Brasil, em outubro de 2006. Elaborada pela Editora Alvinegra,
e impressa e distribuída pela Editora Abril, a publicação pratica o que muitos chamam
de “jornalismo literário”: pautas experimentais, narrativas delongadas, descrições
pormenorizadas e recursos linguísticos que ultrapassam a lógica “industrial” da maior
parte das construções noticiosas factuais. Na visão de Moreira Salles, porém, “o que a
piauí faz é contar bem uma história”3.
Publicada em formato 26,5 cm X 34,8 cm, a revista é impressa em papel especial,
de alta qualidade, da Companhia Suzano de Papel e Celulose, o mesmo usado em
impressão de livros, e produzido em bobinas exclusivas para sua impressão.
A seção “esquina”
O ambiente editorial “esquina” ocupa cerca de 5 páginas da revista piauí, na qual
é uma das poucas seções fixas, junto a “chegada”, “poesia”, “quadrinhos”, “ficção” e
“despedida”. Trata-se de breves reportagens (entre oito e dez parágrafos) sobre temas
os mais diversos, do esporte à ciência, da política à literatura, do meio ambiente ao
comportamento humano.
Com edição uniforme, capaz de tornar as narrativas bastante próximas, no que
tange ao estilo, os textos de “esquina” equilibram informação jornalística, observação
ativa (por vezes, participante) do repórter, linguagem literária e múltiplas estratégias de
oratória: ironia, humor, drama, suspense etc.
233
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
índices de analogia, metáfora, ironia, sátira, humor etc., é possível que se realize,
por meio dos bigodes, leitura meramente informacional dos episódios descritos e/ou
narrados.
Tal ação permite que os títulos “se libertem” das responsabilidades da enunciação,
para, cada qual a seu modo, estimular, nos públicos leitores/prosumidores, emoções e/
ou olhares críticos acerca da realidade elaborada narrativamente. Que o diga a estrutura
simbólica proposta, na edição 152 de piauí, de maio de 2019, entre o provocativo título
(“Leilão da esquerda”) e o bigode (“Cinquenta fotos para libertar lula”).
A reportagem, de Felipe Bernardino, trata da mobilização de uma série de
simpatizantes do ex-presidente – preso pela Polícia Federal, em 2018, na capital
paranaense –, em prol do levantamento de fundos para sua libertação, por meio da venda
de imagens ligadas a diversos momentos das trajetórias sindical e política de Lula. Neste
sentido, o “fenômeno acontecimental” básico (a comercialização das 50 fotografias)
aparece apenas no bigode. Ao título, de modo provocativo, reserva-se a possibilidade de
generalização dos significados, ao enquadrar a iniciativa no designativo “da esquerda”.
Tal recurso também é empregado, na mesma edição, em reportagem, escrita por
Fabiano Maisonnave, sobre apoiadores de Jair Bolsonaro, que, em março, disseminaram
fotos da apresentação da futura dissertação de mestrado da aluna Cris Guimarães Cirino
– “A bolsonarização da esfera pública: uma análise foulcaultiana sobre a (re)produção
de memes a partir dos discursos de ódio na fala de Bolsonaro” –, como forma de criticar
a temática acadêmica em questão.
O metafórico título usado pelos editores (“No inferno, com Foucault”) dialoga
com o principal “ambiente” teórico articulado pela mestranda – as teorias do filósofo
Michel Foucault (1926-1984) –, além de situar a gravidade da situação vivenciada pela
pesquisadora. Afinal, por meio do vocábulo “inferno”, busca-se representar a onda
de intolerância enfrentada – aguerridamente, posto que, mesmo em meio à complexa
situação, ela permanece “com Foucault” – pela estudante da Universidade Federal do
Amazonas (Ufam).
De outro modo, o bigode da reportagem acaba por cumprir a meta informacional
da abordagem, ao ressaltar: “Bolsonaristas atacam mestranda”. Por meio de tais termos,
agressores e vítima – esta, devidamente categorizada em sua hierarquia acadêmica – são
qualificados e explicitados. Tal iniciativa editorial permite que os públicos leitores se
situem, com propriedade, quanto ao fenômeno acontecimental abordado.
Já na edição 151 de piauí, de abril de 2019, a reportagem escrita por Fabio Victor
é editada segundo a polissemia do humor. Na divertida expressão “Deu a louca nas
galinhas”, concentram-se as próprias maneiras bem-humoradas de Higor Alves de
Aquino, comerciante de 29 anos que vende seus produtos nas ruas de São Paulo, a
gritar: “As galinhas ficaram maluuucas”. Na comezinha rotina do simpático trabalhador
brasileiro, contudo, o que se negocia, afinal? Uma vez mais, o bigode busca garantir a
enunciação jornalística: “A arte de vender ovos”.
234
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Narratividade polissêmica
O fechamento do processo de escolhas editoriais – com ênfase, neste trabalho, na
conformação de títulos e bigodes – revela-se, em piauí, categoricamente polissêmico.
A multiplicidade de significados (linguísticos, estéticos, ideológicos, sociais, políticos,
culturais etc.) integra-se ao próprio pressuposto narrativo da publicação – do uso de
imagens (ilustrações, charges etc.) experimentais e/ou artísticas ao investimento em
textos longos, imersivos (com frequente extrapolação da subjetividade dos repórteres) e
próximos à linguagem literária.
No que se refere, especificamente, aos títulos da seção “esquina”, pode-se dizer
que a polissemia – amparada em metáforas, comparações, analogias, metonímias,
hipérboles, antíteses, paradoxos, alegorias etc. – está na essência do projeto de (trans)
235
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Preocupação ético-social
No que tange à “ampliação das problematizações discursivas e/ou dos fenômenos
acontecimentais apresentados – por meio, principalmente, do estímulo ao debate e à
criticidade dos transleitores” –, a seção “esquina” se fia como espaço caleidoscópico, tanto
do ponto de vista temático quanto estilístico. Trata-se, afinal, de abordagens jornalísticas
não apenas atreladas a excentricidades (personagens, situações e trajetórias repletas de
ousadia, tempero e imprevisto), mas, também, ao que, neste trabalho, compreende-se,
metodologicamente, como a capacidade de o autor da narrativa “apresentar versões da(s)
história(s)” e, ainda, “(re)inventar, criativamente, modos de amplificação/alargamento
do diálogo entre a narrativa transcriada e questões contemporâneas caras à sociedade”.
Em todas as 26 reportagens aqui analisadas, a problematização da realidade
imediata – com finalidades de discussões ético-social – surge como essência de pautas,
angulações e estéticas. Em relação a títulos e bigodes, a própria estrutura de significação
de tal conjunto (veja, também, tópico 5.1 deste artigo) responsabiliza-se por, de antemão,
incitar o debate, sob múltiplas óticas, em torno de nuances políticas, sociais, econômicas,
comportamentais, religiosas etc. do mundo da vida.
Neste sentido, há que se ressaltar algo fundamental à compreensão das preocupações
éticas do processo de titulação na seção “esquina”: trata-se da estreita relação, estimulada
pelo projeto editorial, entre micro e macrorrealidades. Em diversas pautas, com o intuito
de ampliar a discussão acerca de questões caríssimas ao Brasil e a outros países, recorre-
se, propositadamente, a personagens (anônimas e/ou públicas) e situações comezinhas.
Ou seja: a partir da gota, debate-se o oceano.
Destaque, pois, para os seguintes conjuntos de título e bigode, nos quais a
temática central da narrativa (personagem) está a serviço de problematização (política,
econômica, religiosa etc.) bem mais ampla: “O terno Dutrinha– Glória e decadência
236
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
de uma arena” [edição 151, 2019, p. 14]; “Os livros da selva – A melhor livraria sobre
a Amazônia” [edição 151, 2019, p. 15]; “Foice, martelo e peruca – Uma drag queen
comunista” [edição 151, 2019, p. 14]; “No inferno com Foucault – Bolsonaristas atacam
mestranda” [edição 152, 2019, p. 9]; “Rumo ao Guiness – O dicionarista da Baixada”
[edição 152, 2019, p. 10].
Prossigam-se os exemplos: “O lateral de esquerda – Igor Julião defende o
trabalhador” [edição 153, 2019, p. 7]; “Black money – Uma livraria afrocentrada”
[edição 153, 2019, p. 9]; “A rainha dos pés – Noites de fetiche ao lado do Vaticano”
[edição 153, 2019, p. 9]; “O deputado marombado – Um dia na vida atribulada de Daniel
Silveira” [edição 154, 2019, p. 8]; “Depois da chuva dourada – O performer que chocou
Bolsonaro” [edição 154, 2019, p. 9]; “Uma casa para Lala – A arquiteta da favela de
Manguinhos” [edição 154, 2019, p. 11]; “Autotelemensagem – Um serviço amado e
odiado no rio” [edição 154, 2019, p. 12].
Considerações finais
Em primeiro lugar, de modo objetivo, chega-se a importante máxima, norteadora
da pesquisa aqui desenvolvida: a “arte” de titulação, relativa à seção “esquina”, da
revista piauí, obedece, em graus distintos, aos quatro requisitos metodológicos para
configuração da chamada “narrativa jornalística transcriada”.
O projeto e a práxis editorial da publicação centram-se, afinal, conforme expressão
destacada na introdução deste trabalho, no uso, proposital, de “estratagemas linguísticos,
semióticos, culturais, políticos etc.” capazes de se concretizar em textos/textualidades
que, ao mesmo tempo, informam e incitam, crítica e criativamente, problematizações
várias acerca de fenômenos acontecimentais contemporâneos.
A emancipação intelectual do espectador (o transleitor) é instigada já na
“carpintaria verbal” da revista piauí. Experimentais e esteticamente sofisticados
– devido, principalmente, ao uso de ampla diversidade de figuras de linguagem
(semânticas, sintáticas, sonoras e de pensamento) –, os títulos e bigodes da seção
“esquina” fundamentam-se segundo a tétrade de elementos necessários à conformação
de narrativas jornalísticas transcriadas: contextualização do fenômeno acontecimental;
estímulo ao diálogo crítico com o leitor (no caso, por meio, principalmente, da recorrência
a paradoxos); narratividade polissêmica e preocupação ético-social.
Em outros termos, os pequeninos elementos editoriais aqui analisados transcendem
o território da mera enunciação, ao revelar autonomia semântica, linguística e editorial.
Por isso, mesmo que os públicos leitores não se dediquem ao texto integral das reportagens
publicadas na seção “esquina” – de modo a só “passear” os olhos por títulos e bigodes –,
será possível a (trans)leitura contextualizada de realidades políticas, comportamentais,
religiosas, sociais etc., posto que tais minúsculas estruturas de significação também
obedecem – termo a termo, detalhe a detalhe – aos padrões (informativos e experimentais)
de narrativas jornalísticas transcriadas.
237
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Referências
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238
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
239
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
NARRATIVAS E FOTOJORNALISMO:
MAPEAMENTO DE COMUNICAÇÕES
COORDENADAS NA SBPJOR
Diogo Azoubel
Mapear é preciso
A pesquisa empírica em Comunicação ainda não se apresenta como uma prática
difundida em profundidade no Brasil. A constatação é feita a partir dos esforços
empreendidos pelo Grupo de Pesquisas em Narrativas Midiáticas, da Universidade
de Sorocaba (NAMI-Uniso-CNPq) e da análise de sua produção ao longo dos seis
anos mais recentes (MARTINEZ; AZOUBEL, 2018, p. 297). Estudos realizados por
Azoubel (2019) e em coautoria com Buitoni (2019) sobre o fotojornalismo nacional,
por exemplo, revelam a pouca aderência de pesquisadoras(es) à essa metodologia.
Se considerada a tradição anglo-saxônica, em que a exaustiva revisão de literatura é
uma constante, perceberemos a necessidade de mudança de paradigma no que toca
ao acompanhamento e referenciação, quando for o caso, do que vem sendo produzido
na área por pares temáticos – e não apenas aqueles considerados clássicos.
Justificada também pela possibilidade de alicerçar ponderações outras sobre
a práxis investigativa de parte da comunidade científica nacional, esta reflexão
remete, simultaneamente, ao registro dos rumos que vêm sendo dados à pesquisa e
à problematização de como nos comportamos enquanto cientistas sociais da área de
Comunicação e Informação.
Parto, portanto, do pressuposto de que a revisão sistemática dos estudos que
vêm sendo produzidos fundamenta inovações e abordagens originais ao mesmo
tempo em que evidencia lacunas a serem investigadas e metodologias mais eficazes
para tal. Além, por certo, de alicerçar concreta fundamentação para os debates em/
sobre um determinado hic et nunc. Busco, assim, as palavras de Peruzzo no sentido
de que:
240
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Aos dados
Para buscar pontos de confluência e/ou tensão das duas coordenadas a partir
dos 19 textos analisados, os parâmetros estabelecidos dizem respeito: a) à autoria
das pesquisas; b) filiação institucional; c) palavras-chave escolhidas para sua
categorização; d) referências buscadas e; e) titulação de quem as assina. Já as
hipóteses são, respectivamente: a) em ambas as coordenadas o número de pesquisas
assinadas por mulheres e homens é proporcional; b) as regiões Sudeste e Sul são as
que mais concentram instituições nas quais essas pesquisas foram efetivadas; c) as
palavras-chave mais citadas são “narrativas” (e/ou suas variações) e “fotojornalismo”,
respectivamente, sem qualquer outra predominância dado o tamanho dos corpora;
d) entre as obras mais referenciadas os livros são maioria, bem como autores em
241
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
242
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Martinez# pós-doutorado)
Entre fato e ficção:
Old Mr. Flood de Eduardo Doutor Universidade Municipal
CNI01 Joseph Mitchell, Luiz Correia@ de São Caetano do Sul
personagens compostos (USCS) | Centro Universi-
e jornalismo tário FMU | FIAM-FAAM
Proponente: Monica Martinez
“Parto dos anjos”: narrativa
Doutor* Universidade Federal do
CNI03 e transformações na produção Edgard Patrício#
Ceará (UFC)
do jornalismo impresso
Blindagem Midiática:
Ada Cristina
COORDENADAS NARRATIVAS
Narrativas Fotojornalísticas:
estudo comparativo do
mapeamento dos artigos
CNII02 científicos apresentados nos Diogo Azoubel Mestrando Uniso
congressos nacionais da
Intercom (20102014) e
nente: Marta Maia
SBPJor (2003-2014)
Diante do olhar dos outros:
aspectos sensíveis de uma Thales
CNII03 Doutorando Unicamp
política das narrativas Vilela Lelo
midiáticas
O quarto narrador, a morte Demétrio Universidade de Santa
CNII04 da editora e midiatização de Azeredo Doutor Cruz do Sul (UNISC) |
das narrativas Soster# SBPJor
“Tradução” versus
“Transcriação” Maurício Doutor (pós- Centro Universitário de
CNII05 A narrativa jornalística e a Guilherme -doutorando) Belo Horizonte (UniBH)
(trans)codificação do(s) Silva Jr.@ | Universidade Federal de
discurso(s) da ciência. Minas Gerais (UFMG)
243
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
o evento histórico
Universidade Federal
Sílvio da Costa Pe- Doutorando do Mato Grosso do Sul
Editor de fotografias: uma
CFII02 reira@ (UFMS) | Universidade
função em transformação?
Federal de Santa Catari-
na (UFSC)
Diogo Azoubel@ Doutorando+ Seduc-MA | PUC-SP
Fotojornalismo e
Pinto Serva
244
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
245
Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares
Quadro I. A primeira, a SBPJor, por ser nacional, embora sediada em São Paulo; e a
segunda, a Fapemig, por não referir, necessariamente, a uma filiação, mas a uma li-
nha de fomento daquela Fundação que, se fosse considerada, conduziria novamente
à minuciosa análise de dados cadastrados na Plataforma Lattes por pesquisadoras e
pesquisadores.
Isso posto, dez (71,42%) das 14 vinculações remanescentes estão no Sudeste
brasileiro, sendo seis (42,85%) no estado de São Paulo e quatro (28,57%) no de Mi-
nas Gerais. Na região Sul se concentra 21,42% do total de vinculações, todas três
no estado do Rio Grande do Sul; e na região Nordeste 7,14%, representada por uma
vinculação no estado do Ceará. Já no que toca às Coordenadas sobre Fotojornalismo,
72,22% das 18 vinculações citadas estão no Sudeste brasileiro, sendo 11 (61,11%) das
13 no estado de São Paulo, uma (5,55%) no estado do Rio de Janeiro2 e outra (também
5,55% do total) no de Minas Gerais. As demais advêm das regiões Nordeste e Sul,
duas (11,11%) cada uma, e a restante (5,55%) da Centro-Oeste.
Com esses dados é confirmada a hipótese estabelecida para discussão deste parâme-
tro. Ou seja, as regiões Sudeste e Sul são as que mais concentram instituições nas quais
as pesquisas analisadas foram efetivadas. E “esse fato se coaduna com o que consta no
Documento de Área - Ciências Sociais Aplicadas 1 (Capes, 2016), segundo o qual mais da
metade dos programas de pós-graduação é sediada no Sudeste” (BUITONI; AZOUBEL,
2019, p. 9).
É importante destacar ainda que, nas Narrativas, três Instituições de Ensino Supe-
rior (IES) respondem juntas por 42,85% das vinculações, sendo responsáveis por sediar,
cada uma, duas (14,28%) pesquisas: UFOP, Unicamp e Uniso. Já no Fotojornalismo,
a PUC-SP e a ESPM-SP se destacam com quatro (22,22%) e três (16,66%) pesquisas,
respectivamente. “Isso pode ser parcialmente explicado pelos oportunos vínculos insti-
tucionais dos professores-pesquisadores que encabeçam as Coordenadas” (BUITONI;
AZOUBEL, 2019, p. 9).
Complementarmente, sobre o parâmetro c) palavras-chave, tanto quanto nas
Narrativas, no Fotojornalismo os termos mais recorrentes são os que as designam
ambas como coordenadas, o que confirma hipótese estabelecida. Assim, os termos
“jornalismo” e “política” também são visualmente traduzidos na Imagem I; bem
como “imagens” na Imagem II, ainda que não se repitam com tanta frequência na
lista de palavras-chave transcrita das pesquisas analisadas em um documento no
Microsoft Word - Office 365.
Para fins de compreensão desse processo, basicamente, das primeiras coordenadas
42 palavras-chave3 foram copiadas (51 palavras), ao passo que das segundas foram 46
(70 palavras). Em seguida, todas foram organizadas na ferramenta em linha WordClouds.
com para sua tradução nas imagens que seguem:
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percentual é de 96,21%, sendo cinco ocorrências (3,37%) não efetivamente citadas. Isso
porque “entende-se, fazem parte de um mínimo e justificável desvio que, embora nunca
incentivado, não chega a comprometer a qualidade das leituras bem como a profundidade
das argumentações teóricas em questão” (BUITONI; AZOUBEL, 2019, p. 9-10).
CNI01 33 33 CFI01 25 24
CNI02 37 37 CFI02 09 09
CNI03 06 06 CFI03 17 17
CNI04 20 20 CFI04 08 08
CNII01 22 20 CFI05 20 19
CNII02 66 66 CFII01 11 10
CNII03 19 19 CFII02 16 16
CNII04 20 19 CFII03 10 10
CNII05 20 10 CFII04 18 16
-- -- -- CFII05 14 14
Total 243 230 Total 148 143
Média 27 25,55 Média 14,80 14,30
Fonte: Autoria própria.
Para investigar a hipótese estabelecida, segundo a qual livros assinados por homens
são maioria entre as obras mais referenciadas; ao passo que artigos, outros materiais –
como capítulos em coletâneas – e referências assinadas por mulheres são minoria, os
quadros IV e V contêm a quantidade de citações por cada obra. Por isso, é preciso
considerar que, ainda que uma autoria tenha tido três obras contabilizadas, seu nome
virá depois do das autorias com uma obra listada/citada duplamente. Pois, mais do que a
quantidade de obras por autora ou autor, estão em destaque os totais de citação. Para as
demais ocorrências, como quando de autorias com o mesmo número de citações e obras,
vale a ordem alfabética.
Nas Coordenadas Narrativas, sete (63,63%) das autorias identificadas são de
homens e quatro (36,36%) de mulheres. Igualmente, das 36 obras mais buscadas, dez
(27,77%) são livros contra 26 (72,22%) classificados como outros. Em comparação, nas
Coordenadas sobre Fotojornalismo, apenas duas (20%) das dez das autorias identificadas
são de mulheres. Já das 25 obras mais buscadas, 14 (56%) são livros e 11 (44%) artigos
publicados em periódicos5, anais de eventos e/ou coletâneas científicas, fatos que
confirmam a predominância de livros apenas nesta coordenada. Pois, nas Narrativas, a
predominância é de materiais classificados como outros. Em ambas, porém, destacam-
se as obras assinadas por homens como referências buscadas para os estudos.
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Ainda sobre o desequilíbrio em tais autorias, Beth Brait, Fabiana Aline Alves,
Monica Martinez e Suzana Barbosa, nas Narrativas; e Judith Butler e Marie-José
Mondzain no Fotojornalismo têm nesta oportunidade seus nomes destacados pela
contínua contribuição às Ciências Sociais Aplicadas I, especialmente aos estudos
empreendidos na área de Comunicação e Informação, seja encabeçando reflexões,
orientando ou inspirando-os.
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acionados para tentar traduzir o mundo: a diversidade. Vozes outras, matizes diversos,
metodologias inovadoras precisam encontrar meios para se fazer conhecer e reverberar.
Traduzir nossas reflexões em números é, assim, uma forma de sinalizar a multiplicidade
de outros caminhos a percorrer.
Outro ponto que precisa ser considerado é que a quantidade de mulheres nos grupos
analisados não se alinha proporcionalmente à quantidade de mulheres em nosso País.
Embora elas sejam maioria no Fotojornalismo, são minoria nas Narrativas. Por que isso
acontece? Existem motivos ou obstáculos que as impedem de avançar? Quais são eles e
como se configuram? Tenho algumas hipóteses, de certo, e elas me levam a acreditar que
essa questão precisa ser abordada minuciosamente em oportunidade vindoura.
Finalmente, quero destacar a importância de iniciativas como a da Renami no sentido
de trabalhar em prol do livre acesso ao conhecimento cientificamente estruturado. Em
Pensar é resistir (no prelo) aponto alguns desafios a serem superados para aproximar
ainda mais a academia do público geral. E um deles diz respeito precisamente ao
encolhimento do mercado editorial de obras técnicas, científicas e profissionais em 40%
nos dez anos mais recentes, de acordo com dados constantes em Produção e Vendas
do Setor Editorial Brasileiro, pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas (Fipe).
A despeito dos custos envolvidos na produção, editar e compartilhar gratuitamente
o livro que agora você tem diante dos seus olhos é trabalhar para alargar as vias de
acesso ao que temos feito em nossos laboratórios, escritórios... em nossos lares. É
ainda responder à sociedade com o que sabemos construir de melhor: respostas que se
transmutam em novas perguntas para a expansão do conhecimento. Isso posto, só me
resta agradecer pela sua leitura. Até a próxima!
Notas
________________________
1
Uma professora de pós-graduação no Brasil, por exemplo, precisa minimamente deter
o título de doutora para que possa orientar novas pesquisas de mestrado e/ou doutorado.
2
Que podem ser compostas.
3
Conforme consta na página oficial da Textual Comunicação na Internet.
4
Conforme constatado via leitura “linha a linha”.
5
Corrigindo o equívoco apresentado por Buitoni e Azoubel (2019, p. 11).
6
Além de Muniz Sodré, outras cinco autorias foram identificadas com três citações,
nenhuma com citação dupla, entretanto.
7
Igualmente, além de Antônio Fausto Neto, Beth Brait e Walter Benjamin, outras 18
autorias foram identificadas com duas citações, nenhuma com citação dupla, entretanto.
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Referências
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pelo suporte livro (e o processo produtivo que lhe é específico), garantem condições
a essa valorização de sujeitos e, consequentemente, corpos.
Partindo, portanto, de um lugar de crítica ao paradigma objetivado hegemônico,
mas também à lógica dualista de superação do primado objetivado pelo subjetivado,
propomos, neste ensaio, um olhar para uma terceira via, a partir do conceito de
complexidade (MORIN, 2000, 2007;). Longe de sugerir a mera fusão sujeito-objeto
ou de negá-los, o pensamento complexo aponta para uma leitura multidimensional,
global e multicausal do mundo social. Sob essa perspectiva, perguntamo-nos, então, o
que seria olhar para o corpo de maneira complexa em práticas e produtos jornalísticos,
como o corpo se indicia?
Como ambiente empírico de investigação, escolhemos o caderno especial im-
presso Viúvas do Veneno (produto e processo produtivo), desenvolvido pelo jornalista
Melquíades Júnior (pertencente à editoria de reportagem) e publicado no jornal cea-
rense Diário do Nordeste. Veiculado entre os dias 17 e 20 de abril de 2013, o especial
denuncia o impacto do uso de agrotóxicos no nordeste brasileiro, a partir de pesquisas
científicas e de histórias de indignação e saudades dos que perderam familiares por
envenenamento.
Corpo(s) e jornalismo(s)
Segundo Santaella (2004), o corpo não é apenas portador de cultura e vítima
das transformações culturais, mas é ele mesmo cultural2. Essa percepção se coaduna
com o que Bourdieu (2011) denomina incorporação. Para o autor, o habitus (ou seja:
o conjunto de práticas, estruturadas e estruturantes, produzido e reproduzido pelos
agentes do campo) se manifesta não apenas nas coisas, mas nos corpos: são gestos,
posturas, padrões vocais e de movimento, que tendem, de forma mais segura que todas
as regras formais/explícitas, “a garantir a conformidade das práticas e sua constância”
(p. 90).
Pensando jornalismo como campo, constituem habitus jornalístico as muitas
ações executadas espontaneamente por repórteres, editores, estagiários e demais
profissionais que compõem o campo, não necessariamente impostas por normas
explícitas, mas regularmente reproduzidas, aprendidas e disseminadas (BARROS
FILHO; MARTINO, 2003). Desse modo, se “o habitus profissional é a matriz das
práticas de todos os agentes que vivem e viveram nas mesmas condições sociais de
existência profissional” (BOURDIEU, 2011, p. 111) e, portanto, orienta os modos
de agir e perceber, é possível notar variações na forma como o campo jornalístico
lida com os corpos, a depender do paradigma manifesto nas práticas (mais ou menos
objetivado/subjetivado/complexo).
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coincide com uma abertura interna, ética, moral e emocional” (DINES, 1986, p.27).
Negando tanto o beletrismo quanto o tecnicismo positivista, Dines (1986) defende o
caráter vocacional do jornalismo e propõe que, a partir de um diálogo interdisciplinar
entre jornalismo, psicologia e educação, as habilidades subjetivas e sensoriais dos
jornalistas sejam desenvolvidas “num treinamento que combine as teorias científicas
com atitudes psicológicas fundamentais, como o incorformismo, a disponibilidade e o
dinamismo intelectuais” (DINES, 1986, p.27).
Nesse sentido, Dines (1986) se preocupa principalmente com os aspectos mentais,
psicológicos e emocionais do repórter. Para ele, o jornalista, como “intermediário da
sociedade” (DINES, 1986, p.118), atua, na relação com o leitor, como “um psicanalista
com seu paciente, um marido com sua mulher, o pai com o seu filho” (p.118), daí afirmar
que o treinamento profissional compreenda também “um cuidadoso preparo subjetivo e
sensorial” (p.119), que prepare “‘o lado de dentro’ do futuro jornalista” (p.119).
Por outro lado, além de componente da técnica, a valorização dos sujeitos (em mente
e corpo) passa a ser também estimulada enquanto elemento do produto jornalístico, capaz
de gerar valor agregado ao produto final (ainda segundo a lógica capitalista de produção,
perceba). No âmbito do impresso, a valorização de grandes narrativas jornalísticas e de
histórias sobre o cotidiano marginal dos centros urbanos, difundida em experimentações
como o New Journalism norte-americano e o jornalismo de revista e a crônica no Brasil
(COSTA, 2005; LIMA, 2009), impulsionou movimentos de personificação/humanização
do jornalista e das fontes, como observa Marocco (2018, p.9):
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múltiplas dimensões do ‘bom jornalismo’. Define Barcellos (apud Brum, 2010, p.11):
“reportagem é a arte da escuta”. Para o autor, o maior privilégio dos repórteres é “o de
ver primeiro, o de entrar nas casas, o de ouvir narrativas de vidas, do parto à vivência da
morte” [grifo nosso] (p.11).
Brum (2010, p.14), por sua vez, assim descreve sua prática:
265
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alguns passos de muletas” (p.3), “Ela vê o pai aumentar mais de 20 quilos, ficar careca”
(p.3). E demarca-se ainda na via crucis do corpo, propriamente, assim descrita: “O
caroço aparece na perna, espalha-se para o peito, depois as costas e, por fim, o braço
direito, segundo membro a ser amputado” (p.3).
Além desses trechos, o uso dos verbos no presente também se manifesta quando o
repórter se põe narrador onipresente para tentar traduzir a dor da filha de Luiz:
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sequelas físicas visíveis, que, no caso de Luiz, estão expressas na perna amputada e
na cadeira de rodas. Segundo a pesquisadora, tais mudanças “obrigam o trabalhador
a construir nova representação do próprio corpo” (BORSOI, 1999, p.127) e, muitas
vezes, este trabalhador acaba por construir uma imagem desacreditada de si mesmo.
As frustrações do Luiz-trabalhador, no entanto, não estão centradas nele mesmo. No
subtítulo “Chuva de veneno”, o repórter amplia o corpo do indivíduo ao corpo coletivo
de Capim de Cheiro, adotando uma perspectiva multidimensional (MORIN, 2007). Nes-
se subtítulo, temores e insatisfações de uma comunidade “fornecedora de homens para
trabalhar nos canaviais” (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3), materializados nos
sinais da fauna e da flora (os pássaros mortos depois da passagem do avião da pulveriza-
ção e as plantas que já não florescem) e no testemunho de outros trabalhadores14, ganham
contornos de uma problemática global, narrada a partir do repertório informal das fontes:
“‘Aqui era cheio de passarinho. Nem tem mais. Antes era cheio de beija-flor. Mas cadê as
flores?’”(MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3). Podemos interpretar essa orientação
do texto - que migra da relação de Luiz com o próprio corpo, atravessa a construção identi-
tária/psicológica com o trabalho e chega ao ecossistema da comunidade – como uma visada
complexa do repórter, que percebe Luiz como parte íntegra, mas pertencente a um todo.
Luiz é um ser em relação com – a família, o trabalho, a comunidade.
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Suênia, Sueli) são apresentadas como corpo biológico, psíquico, emocional. E são
ali retratados com liberdade de autoria autorizada pelo encontro repórter-fonte, no
ato da apuração. O corpo do agricultor, que se amplifica na família e na comunidade,
também indicia essa complexidade. Quanto ao corpo do jornalista, ainda que implícito
na materialidade do texto, aparenta afeto e envolvido no processo produtivo, pelo que
as entrevistas nos indicaram.
Por outro lado, analisando o contexto do produto jornalístico, Viúvas do Veneno
ainda se trata de um espaço diferenciado quando comparado a produções diárias do
jornal: com maior tempo de produção, espaço para o conteúdo e orçamento. Acreditamos
poder falar em um habitus da reportagem especial, com condições e, portanto, condutas
específicas. Mas seriam a leitura complexa do corpo e a valorização da presença
corporal do repórter e da fonte práticas restritas a esse habitus da reportagem? Ou é
possível que muitos desses atos de complexidade sejam espontaneamente incorporados
também no cotidiano das notícias diárias? Aliás, que transformações essa visada
complexa ao corpo demandaria, de fato, ao campo jornalístico? Tempo, espaço,
logística, orçamento, cultura? E, na ordem do acontecimento, é possível pensar em
pautas exijam mais essa potência da corporeidade, elencando assim circunstâncias
prioritárias de presença do repórter?
Por enquanto, logo se vê que há, sobre o tema, mais perguntas do que respostas, que
aqui elencamos a guisa de sugerir pesquisas futuras (nossas ou de outros pesquisadores).
Notas
________________________
1
Marocco (2017) afirma que o jornalismo se constitui a partir de mecanismos
objetivados de controle “que dão consistência e limites ao campo discursivo e aos
sujeitos que nele atuam e por ele são afetados”. A crítica a essa lógica, portanto, “afeta
o modo de objetivação jornalística da realidade”. Para a autora, essa resistência (a que
chamamos no texto de exercícios de subjetivação) se manifesta nos livros de repórter.
Também se poderiam enquadrar como exercícios de subjetivação as narrativas da
contemporaneidade, de Medina (2014), ou quaisquer produtos e produções jornalísticas
com presença massiva de indícios de subjetivação (ARAUJO, 2018). Assim os
nomeamos porque, apesar dos movimentos relevantes em função da valorização dos
sujeitos nos produtos e processos jornalísticos, acreditamos não ser possível ainda
falar em paradigma subjetivado (termo que sugere conjunto consolidado/consistente
de visões de mundo).
2
“Diferentemente dos sintomas do século XIX, que se davam no corpo, que marcavam o
corpo, gradativamente esses sintomas foram crescendo até tomar o corpo ele mesmo como
sintoma da cultura” (SANTAELLA, 2004, p.139).
3
Segundo Sodré (1977, p.55), a forma televisiva, situada na cultura de massa, “simula
operacionalmente o mundo ou - talvez seja melhor dizer - os ‘modelos’ atuantes do
mundo”. Assim, “arte, gesto, roupa, informação, livro, comunicação - tudo isso pode
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de Rosália (“O destino cruel de Rosália, Aldo, Maycon, Pedro, Sueli...”), que lavava as
roupas do marido (conhecido como “o Rei do Tomate”), sujas de veneno.
13
Entrevista concedida por MELQUÍADES JÚNIOR, Antônio. Entrevista I. [jan.
2018]. Entrevistadora: Mayara de Araújo. Fortaleza, 2018. 1 arquivo .mp3 (117 min.).
14
“Outro amigo é Hamilton: ‘passei muito mal com o veneno, umas tonturas, chega
o corpo ficava mais pesado. Aí, deixei a empresa. Antes, eu mexia com todo tipo de
veneno, dos mais fortes. Hoje, se eu sentir um cheiro de um ‘fraquinho’, já me dá dor de
cabeça’” (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3).
15
GONZAGUINHA. Guerreiro Menino. São Bernardo do Campo: EMI Odeon: 1983.
LP/CD (41 min).
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subjetivação na grande narrativa impressa “Viúvas do Veneno”. 2019. 200f. Dissertação
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de revelar pelo menos uma parte do todo inimitável que é a realidade que vivenciamos”
(VASCONCELOS FILHO, 2013, p. 10).
6) Cidade aos pedaços: 13 crônicas e três ensaios para narrar uma Curitiba
que se despedaça, 2017, de Bruno Vieira Brixel:
O autor percorre uma viagem pelo cotidiano de uma cidade fraturada – num
desmentido ao city marketing que a forjou. É pelo avesso, mas sem o recurso do
ressentimento ou da crítica fácil, que assume o papel de viajante urbano, o que inclui
olhar de novo a janela do próprio quarto. Não usa apenas os famosos ônibus da capital
modelo (Cidade sobre rodas), mas sobretudo os espaços da memória. Busca com avidez
os pedaços da invariavelmente úmida Curitiba (Sob a chuva, sobre a chuva), tenta
explicá-la pela forma de falar e se alimentar (Província da vina e Sopa eslava). Explora
mitos étnicos e do caráter curitibano (Felis curitibanus), a partir dos seus apartamentos
(Predião). A viagem se dá pelos pedaços da cidade onde o autor nasceu, e sem sair de
seus limites. Mesmo após fazer uma viagem internacional, torna-se um viajante que
tenta, sem sucesso, criar um mosaico, nem feio nem bonito, mas erguido no enigma dos
cacos que formam uma imagem que não é a de um cartão-postal.
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3. Faz sentido para você dizer que a elaboração da reportagem para este livro,
enquanto TCC, constituiu um rito de passagem?
Os seis entrevistados foram unânimes – o livro-reportagem se tornou um rito de
passagem. As afirmações oscilam entre: a) um exercício da totalidade do jornalismo,
confirmando aptidão para ingressar no mercado do trabalho (Kaype, Bruno); b) um
passo para a vida adulta (Bruno, Lilo e Carol); c) um amadurecimento para enfrentar as
incertezas da vida profissional (Júlio); d) uma oportunidade de percepção das próprias
habilidades – muitas ainda desconhecidas (Gabriel); e) o fechamento de um ciclo no
papel de estudante (Lilo e Carolina). “Coloquei em prática tudo o que gostaria de fazer,
mas não sabia por onde começar. Me transformei”, afirma Gabriel Herdina.
Para finalizar
Ainda que as análises realizadas neste capítulo sejam apenas exploratórias,
permitem afirmar que para jornalistas em final de graduação, “viajar é preciso”. Nas
suas diversas acepções – incluindo a espiritual – a viagem aparece como um movimento
sinônimo ao exigido pela reportagem em profundidade, aquela que transforma o que
escreve e o que lê.
O binômio viagem/reportagem também emerge como desejo. Para além de um
produto consumível, passível de uma exploração comercial ingênua e apolítica, é uma
necessidade existencial, cujos contornos tocam as camadas mais sensíveis da cultura,
daí não poder ser estranha às lides da imprensa. Implica envolvimento e reciprocidade;
intensifica a vida, mas evoca a morte, ao desprender o viajante do conforto e da mesmice
(SOLOMON, 2018). Mais: a literatura de viagem, quando expressa com a carpintaria do
jornalismo, ganha caráter de síntese: em alguma medida, traduz a totalidade do que é ser
imprensa. O deslocamento permite olhar em perspectiva, convida à aproximação com a
voz do outro, no território em que o outro transita. Quando o jornalismo e a cartografia
se encontram, realiza-se um destino, nasce uma história.
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Formato: A4
Tipografia: Liberation Serif
Número de Páginas: 296
Ano: 2019
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