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Norberto Bobbio
Por Og F. Leme
OS DIREITOS DO HOMEM
O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes
quanto às suas funções. A noção corrente que representa o primeiro é o Estado de direito; a que
representa o segundo é o Estado mínimo. Pode ocorrer um Estado de direito que não seja mínimo,
como também um Estado mínimo que não seja um Estado de direito. O Estado de direito se opõe
ao Estado absoluto; o Estado mínimo se contrapõe ao Estado máximo.
Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são
regulados por normas gerais e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam. Trata-se da
doutrina da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens.
O Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos às leis, mas
também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos
fundamentais considerados constitucionalmente e, portanto, invioláveis.
Integram o Estado de direito os mecanismos constitucionais que impedem o exercício
arbitrário e ilegítimo do poder, bem como o abuso do poder. Os mais importantes desses
mecanismos são: 1, o controle do Poder Executivo pelo Legislativo; 2, o eventual controle do
parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional, a quem
se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; 3, uma relativa autonomia do governo local
em todas as suas formas e graus, com respeito ao governo central; 4, uma magistratura
independente do poder político.
O ANTAGONISMO É FECUNDO
Humboldt nos explica que a intervenção estatal, além das tarefas que lhe cabem na
preservação da ordem interna e externa, termina por criar na sociedade comportamentos
uniformes que sufocam a natural variedade de caráter e as disposições individuais. A defesa do
indivíduo contra a tentação do Estado de prover seu bem-estar golpeia não apenas a esfera dos
interesses, mas também a esfera moral. A crítica que hoje fazemos ao Welfare State é de tal forma
concentrada nos aspectos econômicos do problema que chegamos a nos esquecer dos danos
morais que decorrem desse tipo de paternalismo estatal.
Ao tema da variedade individual contraposta à uniformidade estatal vincula-se o
outro tema característico e inovador do pensamento liberal: a fecundidade do antagonismo, do
contraste e da competição entre eles. Partindo da concepção geral do homem e sua história, a
liberdade individual, entendida como emancipação dos vínculos que a tradição, o costume, as
autoridades sacras e profanas impuseram aos indivíduos no decorrer dos séculos, torna-se uma
condição necessária para permitir o conflito e, no conflito, o aperfeiçoamento recíproco. No ensaio
Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita (1784), Kant expressou com o
máximo de desprendimento a convicção de que o antagonismo é “o meio de que se serve a
natureza para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições”.
Como teoria do Estado limitado, o liberalismo contrapõe o Estado de direito ao Estado
absoluto e o Estado mínimo ao Estado máximo. Através da teoria do progresso via antagonismo,
entra em campo a composição entre os Estados europeus e o despotismo oriental. A categoria do
despotismo é antiga e sempre teve, além de seu significado analítico, um forte valor polêmico. Com
a expansão do pensamento liberal, a essa categoria se acrescenta uma ulterior conotação
negativa: precisamente em decorrência da submissão geral, os Estados despóticos são
estacionários e imóveis, não estando sujeitos à lei do progresso indefinido que vale apenas para a
Europa civil. Desse ponto de vista, o Estado liberal converte-se, mais que numa categoria política
geral, também num critério de interpretação histórica.
DEMOCRACIA E IGUALDADE
O liberalismo dos modernos e a democracia dos antigos (que não conheciam a doutrina
dos direitos naturais e nem a conveniência da limitação dos poderes estatais) foram
freqüentemente considerados antitéticos. Já a democracia moderna não só não é incompatível
com o liberalismo como pode ser considerada, até certo ponto, seu natural prosseguimento. Com
uma condição: que se tome o termo “democracia” em seu significado jurídico-institucional, e não no
ético.
Historicamente, “democracia” teve dois significados, conforme se ponha em maior
evidência o conjunto de regras que dá à maioria o poder político ou o ideal em que um governo
democrático deveria se inspirar, que é o da igualdade.
Costuma-se distinguir a democracia, como governo do povo, da democracia como
governo para o povo. Dessas duas versões, é a primeira que está historicamente ligada à
formação do Estado liberal. A segunda gera dificuldades nas relações entre liberalismo e
democracia. De fato, esse problema se traduz no difícil relacionamento entre liberdade e igualdade.
Liberdade e igualdade são valores antitéticos: não se pode realizar plenamente um sem
limitar fortemente o outro. Uma sociedade liberal-liberalista é inevitavelmente não-igualitária, assim
como uma sociedade igualitária é inevitavelmente não-liberal. Para o liberal, o fim principal é o
desenvolvimento individual, ao passo que para o igualitário o principal é o desenvolvimento da
comunidade, mesmo que ao custo da diminuição da liberdade. A única forma de igualdade
compatível com a liberdade é a igualdade na liberdade, o que inspirou dois princípios
fundamentais: a) a igualdade perante a lei; b) a igualdade dos direitos. Pelo primeiro, o Estado
liberal se identifica com o Estado de direito. O segundo significa o igual usufruto, por parte dos
cidadãos, de alguns direitos fundamentais garantidos pela Constituição e que são aqueles, e
somente aqueles, que devem ser gozados por todos os cidadãos sem discriminações de classe,
sexo, religião, raça, etc.
O ENCONTRO ENTRE LIBERALISMO E DEMOCRACIA
INDIVIDUALISMO E ORGANICISMO
As duas alas do liberalismo europeu, a mais conservadora e a mais radical, são bem
representadas por Tocqueville e John Stuart Mill, respectivamente.
Tocqueville foi antes liberal que democrata. Para ele, democracia significava uma forma
de governo em que todos participavam da coisa pública, bem como uma sociedade inspirada no
ideal da igualdade. Segundo Tocqueville, a ameaça que deriva da democracia como forma de
governo é a tirania da maioria: a progressiva realização do ideal igualitário é o nivelamento, cujo
efeito final é o despotismo. Mill igualmente visualizara aquela ameaça.
Tocqueville se revela sempre um escritor liberal e não-democrático. Jamais demonstra a
menor hesitação em antepor a liberdade do indivíduo à igualdade social. Entre os efeitos deletérios
da onipotência da maioria estão a instabilidade do Legislativo, a conduta arbitrária dos
funcionários, o conformismo das opiniões e a redução do número de homens ilustres na política.
Para Tocqueville, o poder é sempre nefasto, não importa se régio ou popular. E o bom governo não
se julga pelo número dos que o detêm, mas pelo número grande ou pequeno das coisas que lhe
compete fazer. Aguda era a sua percepção da inconciliabilidade em última instância entre o ideal
liberal da autonomia individual com o ideal igualitário de uma sociedade de indivíduos semelhantes
nas aspirações, gostos, necessidades e condições. Jamais teve muitas ilusões a respeito da
sobrevivência da liberdade na sociedade democrática.
LIBERALISMO E UTILITARISMO
A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
Tanto quanto Tocqueville, Mill também teme a tirania da maioria e a considera um dos
males a serem evitados. Isso, porém, não o leva a renunciar ao governo democrático. Ao contrário,
ele vê claramente o nexo entre liberalismo e democracia: “A participação de todos nos benefícios
da liberdade é conceito idealmente perfeito do governo livre”. Essa posição de Mill o leva a tornar-
se promotor da extensão do sufrágio, sobre a trilha do radicalismo de origem benthamiana de que
nascera a reforma eleitoral inglesa de 1832. Um dos remédios contra a tirania da maioria está
exatamente no fato de que, para a formação da maioria, participem das eleições tanto as classes
abastadas quanto as populares, desde que paguem um imposto, por menor que seja.
Mill reconhece o valor educativo da participação no processo eleitoral, mas exclui os
analfabetos do direito do voto. Por outro lado, defende o voto feminino.
O segundo remédio contra a tirania da maioria é, para Mill, uma mudança do sistema
eleitoral que levasse do sistema majoritário para o sistema proporcional.
Quase para atenuar o efeito inovador do sufrágio ampliado, Mill propõe o instituto do voto
plural, que caberia não aos mais ricos, mas aos mais instruídos.
O NOVO LIBERALISMO
DEMOCRACIA E INGOVERNABILIDADE
A relação entre liberalismo e democracia foi sempre difícil. Hoje, quando o liberalismo
parece bem ancorado na teoria do Estado mínimo, a relação se tornou ainda mais difícil. Nos
últimos anos o tema principal da polêmica foi o da ingovernabilidade.
O problema da ingovernabilidade pode ser articulado em três pontos:
a) os regimes democráticos se caracterizam por uma desproporção crescente entre o
número de demandas provenientes da sociedade civil e a capacidade de resposta do sistema
político;
b) nos regimes democráticos a possibilidade de conflito social é maior do que nos
regimes autocráticos. E quanto mais aumentam os conflitos, mais aumenta a capacidade de
dominá-los. Os interesses contrapostos são múltiplos, sendo difícil satisfazer um deles sem
ofender a um outro, numa cadeia sem fim;
c) nos regimes democráticos o poder está mais amplamente distribuído do que nos
regimes autocráticos, neles se encontrando, em contraste com o que ocorre nos regimes opostos,
o fenômeno hoje conhecido como poder “difuso”. Uma das características da sociedade
democrática é a de ter mais centros de poder: o poder é tanto mais difuso quanto mais o governo é
regulado por procedimentos que admitem a participação, o dissenso e, portanto, a proliferação dos
lugares em que se tomam decisões coletivas. Surge a possibilidade da fragmentação que cria
concorrência entre os poderes, terminando por criar um conflito entre os próprios sujeitos que
deveriam resolver os conflitos, uma espécie de conflito à segunda potência.
A ingovernabilidade tende a sugerir soluções autoritárias que se movem em duas
direções: reforçar o Poder Executivo, dando preferência a sistemas de tipo presidencialista;
antepor sempre novos limites à esfera das decisões que podem ser tomadas com base na regra da
maioria.
Os remédios para a “sobrecarga” das demandas da sociedade são essencialmente dois:
melhor funcionamento dos órgãos de decisão ou drástica limitação do seu poder.
O contraste contínuo e jamais resolvido entre a exigência dos liberais - um Estado que
governe o menos possível - e a dos democratas - um Estado no qual o governo esteja o mais
possível nas mãos dos cidadãos - reflete o contraste entre dois modos de entender a liberdade,
costumeiramente chamados de liberdade negativa e liberdade positiva.