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Transitando entre pícaros, malandros e heróis fracassados: a
resistência às margens. Uma leitura de Luuanda
O título da obra Luuanda traz no nome da capital angolana grafado com dois
“us”, em nossa leitura, já uma provocação. Provocação no sentido de ser
uma pista que enfatiza o contrato ficcional, pois na mesma medida em que
serve de seta para o cenário que seria a cidade, revela que não se trata
daquela mesma Luanda “real” e sim de uma Luanda criada, ou talvez que se
queira resgatar, portanto, se tratando por “Luuanda”. (ANDRADE.p.175)
(VIEIRA.p.6-7)
Vavó Xíxi e Seu Neto Zeca Santos
(...) Zeca, banzado, boca aberta, olhava vavó mas não lhe via mais. Só a boca secava com o
cuspo que queria fugir na barriga, o sangue começava bater perto das orelhas e a tristeza
que chegava dessa mentira de nga Xíxi apagou toda a alegria que tinha-lhe posto o
pensamento de Delfina passando ali na cubata. O olho da chapada doía. No estômago, a
fome calou, deixou de mexer, só mesmo a língua queria crescer na boca seca.
Envergonhado, se arrastou devagar até na porta, segurando as calças que tinha tirado
para dobrar.
Com um peso grande a agarrar-lhe no coração, uma tristeza que enchia todo o corpo e
esses barulhos da vida lá fora faziam mais grande, Zeca voltou dentro e dobrou as calças
muito bem, para aguentar os vincos. Depois, nada mais que ele podia fazer já, encostou a
cabeça no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e dasatou a chorar um choro de grandes
soluços parecia era monandengue, a chorar lágrimas compridas e quentes que
começaram a correr nos riscos teimosos as fomes já tinham posto na cara dele, de criança
ainda.
(VIEIRA.p.31)
Estória do Ladrão e do Papagaio
(...) Começou assim: Entrou meia-noite e meia já passava, o saco tinha ficado no piquete,
os patos lá dentro a mexerem, cuacavam∗, cadavez estavam perceber tinham-lhes
salvado o pescoço. Zuzé dormia nessa hora e sempre ficava raivoso quando lhe
acordavam só para guardar um preso. Foi o que sucedeu. Cheio de sono, os olhos
vermelhos parecia era tinha fumado diamba, deixou as mãos à toa revistarem o homem,
resmungando, xingando só para ele ouvir. Dosreis nem que mexia nada; quieto, os braços
em cima da cabeça, no coração a raiva desse sungaribengo do Garrido
aumentava, crescia, arreganhava. Apostava quem queria, jurava mesmo, sabia, ocoxo
tinha-lhe queixado…
O Lomelino disse: sim, senhor, era o Lomelino dos Reis; pai, não sabia; mãe, Anica; o
mesmo que já tinha falado na patrulha antes de lhe mandarem na esquadra. A casa dele
explicou, mas também desviou e a polícia, com a preguiça, o caso não era de muita
importância, roubo de sete patos, não ligou muito. Só que lhe agarraram no casaco roto e
velho, o chefe queria lhe pôr até chapadas, para ele falar quem eramos outros que
ajudavam-lhe no capiango∗. Mas nada. Dosreis não gostava falar os amigos e só foi
explicando melhor, baralhando as palavras de português, de crioulo, de quimbundo, ele
sozinho é que tinha entrado lá, agarrado os bichos para o saco e udo. Por quê? Ora essa,
mulher e dois filhos, sô chefe, mesmo que os meninos játrabalham e a mulher lava, não
chega, precisa arredondar o orçamento.(VIEIRA.p.32-39)
Estória do Ladrão e do Papagaio
Dizia Xico Futa:Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou,
aonde começou, por quê, pra quê, quem? Saber mesmo o que estava se passar no coração
da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo que
passa na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê
afinal esse mesmo princípio era também o fim doutro princípio e então, se a gente segue
assim, para trás ou para a frente, vê que não pode se partir o fio da vida, mesmo que está
podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança,
curva, pára, esconde, aparece…
Então podemos falar a raiz do caso da prisão do Kam’tuta foi o Jacó, papagaio
mal-educado, mesmo que para trás damos encontro com Inácia, pequena de corpo
redondo que ele gostava, ainda que era camuela∗ de carinhos; e, na frente, com Dosreis e
João Miguel, pessoas que não lhe ligavam muito e riam as manias do coxo.
(VIEIRA.p.42-45)
Estória do Ladrão e do Papagaio
Dizia Xico Futa:Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou,
aonde começou, por quê, pra quê, quem? Saber mesmo o que estava se passar no coração
da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo que
passa na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê
afinal esse mesmo princípio era também o fim doutro princípio e então, se a gente segue
assim, para trás ou para a frente, vê que não pode se partir o fio da vida, mesmo que está
podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança,
curva, pára, esconde, aparece…
Então podemos falar a raiz do caso da prisão do Kam’tuta foi o Jacó, papagaio
mal-educado, mesmo que para trás damos encontro com Inácia, pequena de corpo
redondo que ele gostava, ainda que era camuela∗ de carinhos; e, na frente, com Dosreis e
João Miguel, pessoas que não lhe ligavam muito e riam as manias do coxo.
(VIEIRA.p.42-45)
Estória do Ladrão e do Papagaio
Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas
juro me contaram assim e não admito ninguém que duvida de Dosreis,
que tem mulher e dois filhos e rouba patos, não lhe autorizam trabalho
honrado; de Garrido Kam’tuta, aleijado de paralisia, feito pouco até por
papagaio; de Inácia Domingas, pequena saliente, que está pensar criado
de branco é branco — “m’bika a mundele, mundeleuê”∗, de Zuzé,
auxiliar, que não tem ordem de ser bom; de João Via-Rápida, fumador de
diamba para esquecer o que sempre está lembrar; de Jacó, coitado
papagaio de musseque, só lhe ensinam as asneiras, e nem tem poleiro
nem nada...E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham
passado.
.
(VIEIRA.p.42-45)
Estória da Galinha e do Ovo
(...)Nga Zefa, as mãos na cintura, estendia o corpo magro, cheio de ossos, os olhos
brilhavam assanhados, para falar:
— Você pensa eu não te conheço, Bina? Pensas? Com essa cara assim, pareces és
uma sonsa, mas a gente sabe!... Ladrona é o que você é!
A vizinha, nova e gorda, esfregava a mão larga na barriga inchada, a cara abria
num sorriso, dizia, calma, nas outras:
— Ai, vejam só! Está-me disparatar ainda! Vieste na minha casa, entraste no meu
quintal, quiseste pelejar mesmo! Sukuama! Não tens respeito, então, assim com a
barriga, nada?!
— Não vem com essas partes, Bina! Escusas! Querias me roubar a Cabíri e o
ovo dela!
(VIEIRA.p.81-83)
Estória da Galinha e do Ovo
— Foi o Beto! Parecia mesmo era galo. Aposto a Cabíri já está na capoeira… Vavó
Bebeca sorriu também. Segurando o ovo na mão dela, seca e cheia de riscos dos
anos, entregou para Bina.
— Posso, Zefa?...
Envergonhada ainda, a mãe de Beto não queria soltar o sorriso que rebentava na
cara dela. Para disfarçar, começou dizer só:
— É, sim, vavó! É a gravidez. Essas fomes, eu sei... E depois o mona na barriga
reclama!...
De ovo na mão, Bina sorria. O vento veio devagar e, cheio de cuidados e amizade,
soprou-lhe o vestido gasto contra o corpo novo. Mergulhando no mar, o sol punha
pequenas escamas vermelhas lá embaixo nas ondas mansas da Baía. Diante de toda
a gente e nos olhos admirados e monandengues de miúdo Xico, a barriga redonda e
rija de nga Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande...
(VIEIRA.p.101)
Minha estória.
Se é bonita, se é feia, vocês é
que sabem. Eu só juro
nãonfalei mentira e estes
casos passaram nesta nossa
terra de Luanda.
Luandino Vieira
Bibliografia
ANDRADE, Joelma Gomes dos Santos Cheng de. O Lugar de Luandino Vieira na Tradição do Conto
Angolano: Universidade Federal do Pernambuco, Recife, 2014.
CANDIDO, Antonio. "Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de
milícias)" in: Revista do Instituto de estudos brasileiros, nº 8, São Paulo, USP, 1970.
BOSI, Alfredo. Narrativa e Resistência. Revista Itinerários, 1996.
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territorios literários. Cotia: Ateliê, 2005.
LABAN, Michel. (Org.) Luandino – José Luandino Vieira e a Sua Obra (estudos, testemunhos e
entrevistas). Lisboa: Edições 70, 1980.
MACÊDO, Tânia. O “Pretoguês” e a literatura de José Luandino Vieira: Atlas, São Paulo, 1992)
MATOS, Domingos Hélder António de. A Enunciação Cultural na Tradução de
N ó s , o s d o M a k u l u s u de Luandino Vieira.Universidade do Minho: 2008, Minho.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. Editora Ática, São Paulo, 1979.