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NÓS, OS nÃO-EUROPEUS, O PEnSAMEnTO

nA AMÉRICA LATInA E A nÃO-FIlOSOFIA.


UM POSSÍVEl nOn-RAPPORT?

Danilo Di Manno de Almeida*

RESUMO
Neste artigo se propõe que a premissa mínima para uma crítica à he-
gemonia do logos eurocentrista é um non-rapport com o ser e pensar
europeu por parte de quem se assume como o outro. Em especial
os latino-americanos. Cria-se assim, um novo relatus em que se faz
possível falar-escutar ao ser-outro, o nós, não-europeus: real em sua
própria identidade e pluralidade, especificidade e diversidade. Superar
as interferências modernizadoras de uma racionalidade que busca
europeizar o genuíno diálogo de liberdades é a proposta da “não-
-filosofia” (F. LARRUELLE). O autor assinala que a “não-filosofia”
não é uma negação à Filosofia, e sim um “não” a uma “filosofia” que
não aceita a emergência de outros pensares e suas realidades huma-
nas. A “não-filosofia” e a Filosofia da Libertação convergiram nisto:
ambas são espaços de não dominação para um possível non-rapport
que acrescente a liberdade histórica dos povos.
Palavras-chave: América Latina; Europa; “não-filosofia”, diálogo.

I nTRODUÇÃO 1
Os povos não-europeus afirmam sua identidade apesar da violência
colonialista antiga e do neocolonialismo atual, sobre suas diversas formas.
É com um tal <<fundo>> e não sobre o do <<ser>> que escrevemos aqui.

* Doutorando em Filosofia na Universidade Paris X. Bolsista da CAPES-Brasil. Universidade


Metodista de São Paulo. Seminário Presbiteriano Independente, Brasil.
1
Tradução do português realizada por Judith Rojas-Garcia, com a colaboração de Liliam
Carbajal.

Revista Páginas de Filosofia, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan/dez. 2011


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Sem outra finalidade que a de um <<dizer>> e de um <<viver>> livres,


diremos isso que escutamos, vemos e pensamos a partir de nosso solo
latino-americano.
Interessa-nos pensar a questão da relação entre os europeus e os
não-europeus. Com isso, nos propomos a desbravar novos caminhos do
pensamento: para isso é necessário que nos encontremos sem ter que fazer
concessões, nem comparações, sem relação alguma. Propomos também um
simples <<falar juntos>>.
Por que um <<non-rapport>>? Porque no <<rapport >> o rappor-
tare evoca sempre o levar a (algum lugar), conduzir, abastecer o benefício
do capital, a ganância. O aspecto de acumulação material do rapportare
se ilustra pelo fato de que desde a Idade Moderna adquiriu em francês o
sentido de <<ganância>>, de rendimento de um capital.23
No non-rapport que propomos, existe a ideia de um não permutável,
não benefício, não há nenhuma “mercancia”. Não há nada para trazer ou
ser levado de um ao outro, europeu e não europeu; nenhuma cota (aporte)
e nenhum porto aonde “aportar” mercadorias para serem negociadas.
Para que esse non-rapport não se transforme em um mutismo es-
tranho, aceitaremos, no limite, um relatus. Para que nosso discurso seja
eficaz, começaremos pela narração desse real que somos, todos nós, não-
-europeus e europeus, nós que habitamos um mesmo espaço no universo.
Isso nos convida a todos a pronunciar nossos discursos no plural, de modo
que “falemos juntos”. Isto não significa falar um depois do outro, nem em
lugar de outro e, sobretudo, não significa um dizer <<uni-versal>>. Em
2
Originalmente este artigo foi escrito em francês e, portanto, não havia necessidade de fazer
uma diferença entre <<rapport > e <<relação>>. O francês conservou as duas palavras
originais do latim (“repportare e<<rellatione>>) para significar a <<relação>>. Como
em espanhol não existe a diferença, manteremos as palavras francesas <<rapport >> e
non-rapport e traduziremos <<relation>> por relação. O espanhol conservou do latim o
“aportare”: que em outros significados tem de levar, conduzir; chegar a um porto; dali
transportar. O termo francês rapport indica então igualmente, por sua origem no latim
rapportare, movimento de transporte. O termo <<non-rapport> quer marcar o rechaço
do aporte que implicaria o recebimento do incluso a troca de mercadorias (estrangeiras
em nosso porto). Por << non-rapport>> queremos designar nossa opção pelo <<não
permutar>>, <<não negociar>> em nossas relações. No que se refere à relação do latim
(“relatione”, “relatus”), esta designaria a cessação da dimensão <<reificante>>, ou <<coi-
sificante>> do rapport, inaugurando o relato que pode estabelecer a relação equitativa e
de respeito entre realidades distintas.

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nosso relatus, comporemos versos autênticos, pois o falar de todos, o dizer


se converte num <<verso único>>.3
Nesta exposição, conduziremos nossas reflexões para o non-rapport
com a não-filosofia (obra de François Laruelle). O grande interesse deste
pensamento que se manifesta em solo europeu é sua abertura, podemos
até dizer que a não-filosofia também propõe a seu modo um non-rapport.
De nossa parte, não queremos já nenhum rapport com a filosofia
europeia (em um sentido a esclarecer). Igualmente, não se tratará de es-
tabelecer um rapport com a não-filosofia. Abre-se outra via. Esta não é a
via que transportará um ao outro, pensamento latino-americano e não-
-filosofia, senão a via do <<escutar>> e do << falar>>, sem que por isto se
constitua um <<diálogo>> ou um <<intercâmbio>>. O respeito ao outro
vem do escutá-lo em sua identidade, sem as armadilhas de um pensamento
que quer colocar-se no “lugar” do outro. Aqui a identidade de cada um é
a condição mínima para que este <<falar juntos>> não degenere em um
diálogo de aparência democrática. É através disso que poderemos descobrir,
sem prejuízo, nem submissão, o valor de cada pensamento estrangeiro.

I. O R APPORT SOB A ÉGIDE DO EUROCEnTRISMO


É surpreendente ver a maneira como a maioria dos pensadores euro-
peus tem considerado a América Latina. Isto vai desde as declarações cômi-
cas de alguns até os preconceitos mais grosseiros de outros. Escutemo-los.

H EGEl
Hegel não é o primeiro nem certamente é o último detrator do não
europeu. No entanto, Hegel, como poucos filósofos da História, mostrou
esta exclusão dos povos e das culturas não ocidentais em função da cultura

3
O <<universal>> aqui se torna como procedimento característico do eurocentrismo,
como veremos. O universus (reunido em um todo) não é senão a forma discursiva e
performativa do singularis, que se impõe, a partir do centro de poder, como o modelo
<<único>> para todos os <<outros>>. A globalização ou mundialização segue a mesma
lógica. Com <<verso-único>>, nós queremos enfatizar um movimento outro e não sim-
plesmente contrário ao processo de <<universalização>> eurocentrista ou da economia
globalizante; e, simultaneamente, acentuar a importância de guardar a pluralidade do/no
singular (singularis) que se reúne para compor um <<verso-único>> de libertação, não
universal (único-verso, universalizante do poder centralizador).

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ocidental.4 Para dizer a verdade, no modelo hegeliano não há nem sequer


um rapport. O preconceito atua inclusive antes que o rapport comece. Existe
somente um centro ocupado pelo homem europeu: o sentido, a essência, a
razão, o universal, o histórico. O restante é apenas periferia: não europeu,
não sentido, inessencial, não racional, não histórico. Hegel não figura so-
litário no centro. Pode ser que ele não seja mais que a manifestação de um
espíritu europeu, que persiste através do tempo.
Em Hegel, encontramos algo assim como a formalização do Eurocen-
trismo. Hegel é uma caricatura, inclusive um modelo da suficiência europeia
que funciona, que dá uma forma à suficiência filosófica, a filosofia europeia
como causa sui.
Do centro histórico de uma História que o homem europeu inventou,5
emana a compreensão de outros povos que chegaram muito cedo ou en-
traram muito tarde, em uma história onde o europeu era o único protago-
nista.6 Nesta, se ofuscam o anacronismo dos asiáticos, o futuro incerto dos
norte-americanos e a não história dos africanos. Aquele que dá Lições sobre
a Filosofia da História está convencido da preeminência europeia sobre os
outros povos, para exigir dos europeus: <<detenhamo-nos não somente no
que foi e no que será, mas no que é e que é eterno: a razão. E isso basta>>.7
Ele dá as razões desta superioridade: Ásia, é o passado da Europa – o que
foi. América, país do futuro – o que não é ainda – é vista como <<o anexo
que recolhe o excedente da população da Europa>>. África, por sua vez, é
o continente sem história, <<não faz parte do mundo histórico>>; ademais,
jaz em seu <<estado de inconsciência de si>>. 8 Se é assim, por que não
concluir que <<o único rapport essencial que os negros tenham tido ou te-
nham ainda, com os europeus>> continua Hegel, << é o do escravismo?>>.9
Portanto, segundo Hegel, a África é aquilo que não será jamais.
Somente a Europa segue sendo sempre o que foi, é e será, porque é
ela a Razão do que já não é; não é e não chegará a ser jamais! E isso basta!

4 5 ZEA, Leopoldo. L`Amérique Latine face à l`histore. Trad. Jean A. Mazoyer et Jean Martin
Lierre et Courrier. Paris, 1991. p. 75-76.
5
Ibid., p. 53-80.
6
Ibid., p. 79.
7
Citado por Zea. Ibid., p. 77.
8
Ibidem.
9
Ibid., p. 78.

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Se o pensamento de Hegel chega a ser anacrônico inconcluso na


Europa, faremos bem em seguir os mascaramentos e as metamorfoses do
mesmo espíritu eurocentrista.

M ARX -E nGElS
Não há que se fazer ilusões quanto a Marx e Engels. A depreciação
do não europeu não terminou: <<Assim como para Hegel, os povos só al-
cançarão sua liberdade graças à tomada de consciência dos povos europeus,
para Marx e Engels, os povos da periferia só conseguirão a justiça que porá
fim a sua exploração graças à revolução proletária da Europa, do mundo
ocidental>>.10 A Europa oferece o modelo da libertação: <<o movimento
libertador deverá vir da Europa (...) somente o êxito desta revolução no
plano europeu tornará possível sua realização no resto dos povos da Terra,
inclusive dos povos bárbaros>>.11 Para o restante do mundo, Engels ousa
dizer: <<Alto! Vocês devem ser tão pacientes como o proletariado europeu!
Se este se liberta, vocês serão livres! Mas daqui até lá, nós não toleraremos
que vocês coloquem dificuldades ao proletariado em luta>>.12 Eis o mes-
sianismo eurocentrista. Esta maneira de compreender a América Latina é
chamada por Zea o <<novo eurocentrismo>> de Marx e Engels, é dizer
<<Europa como a possibilidade do socialismo>>.13
Para citar um último exemplo da reação desses teóricos com res-
peito à vitória dos Estados Unidos sobre o México, em 1847: Engels diz
que <<no interesse do seu próprio desenvolvimento, o México estará daqui
para frente sob a tutela dos Estados Unidos>>. 14 Zea mostra também que
<< Frente às críticas que Bakunin dirige aos Estados Unidos depois desta
conquista>>, Engels reage neste termos: <<É verdadeiramente um crime que
a magnífica Califórnia tenha sido arrancada desses preguiçosos mexicanos
que não sabiam o que fazer dela, pelos enérgicos yankes que sabem fazê-la
produzir? Muito ao contrário, essas pequenas nações impotentes deveriam

10
ZEA, Leopoldo. Discours d’outre Barbárie. Trad. del español por Clara Paz. Lierr et Cour-
rier. Paris, 1991. p. 71.
bidem.
11 1

12
ARICO, José. Marx y América Latina. Aliança Editorial, México. 1982. Citado por Zea.
Ibid. p. 72.
ZEA, Leopoldo. Discours d’outre Barbárie. Ed. cit., p. 260-265.
13 1

14
Materiales para la Historia de América Latina. Citado por Zea. Ibid., p. 262.

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dar graças àqueles que, seguindo as exigências da história, os integram a


um grande império, permitindo-lhes assim formar parte do futuro. Aban-
donadas a elas mesmas, cairiam à margem desse futuro>>.15
Todos esses preconceitos que faziam da Europa a única via de acesso
ao novo humanismo e ao socialismo, para um mundo mais justo, testifi-
cam quanto <<administrados pela ótica humanista fundada na experiência
europeia, Marx e Engels não estavam em condição de compreender esses
homens que, em suas realidades diferentes, buscavam outras saídas distintas
das da Europa. Esses povos não podiam esperar que a Europa se libertasse
de seus próprios males para resolver os seus>>.16

H USSERl
Encontramos uma nova variação do mesmo eurocentrismo, aquele
que pôs em evidência o <<privilégio de um sujeito transcendental propria-
mente europeu>>.17
Husserl dissipa seus preconceitos na Krisis... Podemos citar alguns.
Primeiro, o privilégio científico e filosófico da Europa: <<ciência e filosofia
enquanto <<realizações>> teóricas universais, desinteressadas e infinitas,
são greco-europeias e nada mais>>.18 Dali, a prerrogativa da filosofia eu-
ropeia de conservar <<a função de uma reflexão teórica, livre e universal,
que engloba também os ideais e o ideal de tudo>> que deve reger e legislar
sobre os outros povos: <<É verdade, em uma humanidade europeia [sic!],
que a filosofia tenha que exercer sua função como sendo a função arcôntica/
legislativa [poder de legislar] da humanidade inteira>>.19
Frente a esta enorme tarefa da filosofia europeia, o que fazem os
outros povos é totalmente outra coisa que a <<pura Teoria>>, atributo da
ciência greco-europeia. Segundo Husserl, as filosofias orientais – entre aspas
em seu texto –, por exemplo, não superam a maneira <<mítico-prática de

15
Ibidem. Cursivas minhas.
16
Ibid., p. 264.
17
DELEUZE, G et GUATTARI, F. Qu’est-ce que la philosophie? Minuit. París, 1991. p. 94.
18
Cf. Los comentários de Roger Paul Droit. L’oubli de l’nde. Une Amnésie Philosophique.
PUF, Paris. 1984. p. 202-205.
19
HUSSERL, E. La crise dês Sciences Européennes et Phénoménologie Transcendentale. Trad.
de G. Granel. Gillimard, Paris. 1976. p. 370-371. A propósito de lo que Husserl entiende
por Europa, véase sobre todo la página 352.

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considerar o mundo>>.20 Muito longe da filosofia, estas sempre são somente


<<gentes de ofícios>>.21
Uma segunda faceta do preconceito é, desta vez, cultural. Eis aqui
por que dissemos que o preconceito filosófico vem sempre acompanhado
de um preconceito de origem cultural.
Segundo Husserl, é no seio da Europa onde a humanidade está verda-
deiramente << em sua casa>> Heimat.22 Por causa desta condição, as outras
culturas são incitadas a europeizar-se mais ainda. Evidentemente o contrário
é impossível: <<nós não nos indianizaremos (por exemplo) jamais>>.23
É a infeliz distinção entre Menschenheit y Menschentum, o que tor-
na possível tais comparações. Que significam esses termos? Menschentum
designa o homem da compreensão, o que é capaz de dar sentido, o da hu-
manidade significante, capaz de estar feliz. Menschenheit significa a huma-
nidade numerativa ou em extensão, quantitativa.24 O primeiro é o europeu;
o segundo é o não europeu. Posto que o segundo não seja um sujeito do
sentido <<a humanidade numerativa (ou em extensão) (Menschenheit) se
subordina à humanidade significante (Menschentum)>>.25
No parágrafo 5 da Krisis... Husserl diz que << a razão é a essência
do Menschentum, tanto que ele une o sentido do homem ao sentido do
mundo>>.26 A razão “dá” humanidade ao homem. O homem europeu é o
único que tem uma finalidade (um telos), que é capaz de dar sentido à vida
cultural.27 Porque ele é o único que tem um <<telos inato>>, o chinês e o
índio formam parte do <<simples tipo antropológico empírico>>.28
Não se pode esquecer que o índio, segundo o texto de Husserl, não é
senão um “exemplo” de Menschenheit. Husserl foi muito claro quando disse que
<<nós não nos indianizaremos (por exemplo) jamais>>. No tema do esqueci-
mento do índio, marca-se o esquecimento dos outros povos, não-europeus.

20
Ibid., p. 363-365.
21
Cf. Los comentários de Roger Paul Droit. op. cit., p. 204.
22
“Chez soi”, em la traducción francesa. Cf. Roger Paul Droit. op. cit., p. 203.
23
DROIT, Roger Paul. op. cit., p. 204, HUSSERL E. op. cit., p. 353-354.
24
Vid., RICOUER, P. “Husserl et le sens de l’histoire”. In: A l’ecole de la Phenomenologie.
Vrin, Paris, 1987. p. 39.
25
HUSSERL, E. op. cit., p. 21.
26
RICOUER, P. “Husserl et le sens de l’histoire”, Art. p. 37.
27
Ibid., p. 39-40.
28
DROIT, R-P. op. cit., p. 205. HUSSERL, E. op. cit. p. 21.

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H EIDEGGER
Façamos uma simples referência a Heidegger, deixando de lado as
discussões sobre seu caso. Como minimizar o eurocentrismo de Heidegger
quando ele diz que <<(...) é por isso que temos posto a questão até o ser
em conexão com o destino da Europa, onde encontra-se decidido o destino
do planeta (Erde), e há que considerar ainda que no interior desse destino,
para a Europa, nosso ser-aí histórico se revela como o centro>>.29 Em que
medida o dizer de Heidegger é mais grave que o de Husserl, isso não nos
cabe analisar aqui.30

A EUROPAnÁlISES
No contexto dessa discussão sobre o eurocentrismo, faremos algumas
observações sobre o projeto chamado de europanálises, de Serge Valdino-
ci. O autor de Vers une Méthode de l’europanalyse, no mesmo caminho de
Husserl, quer de novo fundar a filosofia. O que poderia significar expressões
desconcertantes e enigmáticas como: <<A Europa é um a priori cultural>>,
<<Somente a Europa é filosófica>>, a filosofia é o <<móvel europeu>> [res-
sort européen], <<sua infraestrutura>>?31 Existe alguma coisa excludente
ou uma nova proposta de igualdade entre os povos? Contudo, se trata-se
da última possibilidade, por que seguir considerando tais projetos?
Segundo o autor, se a filosofia constitui o <<a priori>> do europeu,
então as <<outras culturas, sobre o planeta, não são filosóficas no sentido
radical.32 Assim, o que resta para os outros povos? As outras culturas têm
seus próprios a priori culturais. Os a priori dessas culturas não se submetem
ao império do <<a priori>> filosófico europeu. Se o imperialismo europeu
29
HEIDEGGER, Martín. Introduction à la Métaphysique. Trad. Gilbert Kahn. Gallimard,
Paris.1967.
30
Um pouco mais adiante (p. 67) Heidegger chega a dizer que a língua alemã – desde o
ponto de vista das possibilidades do pensar – é a mais potente de todas e aquela que pode
expressar mais a língua do espírito. Da filosofia grega passamos ao pensar: o passo de um
ao outro, é fundamental, talvez esse passo não nos conduza a <<caminhos que nos levam
a lugar algum>> mas a <<caminhos que levam sempre ao mesmo lugar>>; caminhos
circulares que nunca abandonarão o <<espíritu>> do centro... ou a posição <<central>>
do <<povo metafísico>>. Cf. Todo o teor da terminología do primeiro capítulo de In-
troduction à la Métaphysique (Ed. cit.) Nós temos aqui uma convicção <<ontológica>>
mordaz.
31
VALDINOCI, Serge. Vers une Méthode de l’europanalyse. Harmattan, Paris. 1995. p. 5.
32
Ibidem.

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Revista Páginas de Filosofia 119

é tão forte como se crê,33 não transforma o a priori das <<outras culturas>>
não europeias.34 Pois essas culturas já têm seus móveis culturais que fazem
o mesmo papel que o da filosofia europeia. Ademais, há uma estruturação
comum que está fora da cultura, que o autor chama de << o real>>.35
Se é assim, por que sustentar que em todas as culturas existe algo
que desempenha o papel da filosofia? Por que reservar para a Europa a
exclusividade do <<filosófico>> e ao mesmo tempo afirmar uma atividade
correspondente a esses outros lugares? Conservando esta atividade, no que
se mantém o privilégio filosófico da Europa? Não faz da filosofia europeia
(pleonasmo!) o modelo que permitirá reconhecer no a priori de outros po-
vos alguma coisa que desempenhe o mesmo papel que é próprio da filosofia
europeia? Se não, como saber se aquilo que se faz em outros lugares não é
completamente diferente <<não-filosófico>>, fora-da-filosofia, porque fora
de todo modelo ou do modelar europeu?
Há outro aspecto mencionado por S. Valdinoci. Este reconhece que o
modelo filosófico europeu tem certa tendência a ser exportado, da mesma
maneira que se faz com as mercadorias e as ideias políticas.36
É curioso que o autor não tenha dito nenhuma palavra sobre a im-
portação do pensamento de outros povos. Temos aqui um problema de
mercadoria. Se os <<títulos>> não-europeus e não dominadores não são
<<vendáveis>> na Europa, é certamente, porque estes estão sempre <<em
baixa>> neste mercado.
Em compensação, para aqueles que querem receber os <<pacotes filo-
sóficos europeus>> , é necessário que saibam que esses embrulhos não lhes
serão entregues na forma de matéria bruta. Os produtos filosóficos europeus
já têm sido submetidos a todas as inovações e benefícios da tecnologia (para
utilizar uma expressão frequente em F. Laruelle) filosófica europeia. Filosofia
prêt-à-porter... em outros continentes: fenômeno único da Europa.
Assim, poderíamos perguntar, depois de tanto <<zigzag>>
metodológico,37 o que ganhamos com relação a Husserl? Evidentemente,
S. Valdinoci não diz o mesmo que Husserl. Sentimos a intencionalidade
33
Vid., infra: Sección III. << Em dirección hacia um no-rapport: La Geofilosofia>>.
34
VALDINOCI, Serge. Vers une Méthode de l’ europanalyse. Ed. cit. p. 6.
35
Ibidem.
36
Ibid., p. 5.
37
Ibid., p. 296 ss.

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120 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

democrática do primeiro. Não obstante, deixa-nos perplexos pela sua in-


tenção de manter juntos, por um lado, um projeto democrático relativo ao
homem e ao pensamento e, por outro, um propósito singular de refunda-
ção da filosofia! O <<homem-real>>,38 as questões relativas ao <<real e ao
pensamento>> e a analética,39 poderiam oferecer outros projetos!

A POSTURA EUROPEIA
Parece que tudo isso que escutamos através destes argumentos tí-
picos, resulta simplesmente de uma postura europeia. Para não emitir um
juízo, deixemos a palavra a um francês, Jean-François Lyotard. Este coloca
o pensamento francês frente ao pensamento norte-americano:

(...) Nos propomos com ele entrar na discussão americana. E talvez na dis-
cussão simplesmente, que se alonga faz duas décadas no seio da comunidade
intelectual ocidental. O ‘pensamento francês’ está presente nesta discussão,
pois estes debates parecem quase totalmente ausentes do pensamento dos
franceses. Seria importante, e é difícil, analisar os motivos da resistência
francesa a discussão internacional. Dir-se-ia que as proposições de pen-
samento que nos vêm de fora parecem (quando elas nos alcançam, quero
dizer: quando a força das traduções e das apresentações, chegam a penetrar
no interior da França), nos parecem já desprovidas de interesse por elas
mesmas, já responder a questões já pensadas por nós, ou insuficientemente
elaboradas, ou, enfim, mal assinaladas. Eu creio que nós pensamos since-
ramente que as verdadeiras questões não estão sujeitas a argumentação, e
que somente a escrita pode acolhê-las.40

Citação bastante extensa, porém necessária para evidenciar uma pos-


tura mais que francesa e propriamente europeia. Uma vez feitas as restrições
necessárias a afirmações tão generalizantes, infelizmente, isto não modifica
muito a postura ou o espírito filosófico europeu. De nosso ponto de vista,
uma postura causa sui, da suficiência filosófica da qual a não-filosofia, é a
versão teórica desta postura cultural.
38
Ibid., p. 260 ss.
39
Ibid., p. 303.
40
LYOTARD, Jean-François. Prefácio “Aller et Retour”. In: Rajchman John ete West Cornel
(Dir). La Pensée Américaine Contemporaine. PUF, Paris, 1991. p. 14.

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A mesma postura daquele que no estrangeiro não é capaz de superar a


atitude do viajante que parte de seu país e se contenta em transportar seu eu.41

A FIlOSOFIA CAUSA SUI – A IGnORÂnCIA DOS OUTROS


Sem contar o exotismo latino-americano (e de outros continentes
não-europeus e não dominadores), portanto, seu aspecto cultural, o que
pode interessar aos europeus, de uma maneira geral? É pouco provável
que mantendo essa postura da qual falam Lyotard e Deleuze, os europeus
podem interessar-se pelo pensamento latino-americano. Este é o momento
em que a suficiência filosófica encontra a cultura. Razão pela qual a filosofia
não é nem o produto (sua superestrutura) nem a geradora (idealismo) da
cultura. Entre elas existem acordos, compromissos: as duas, cultura e filo-
sofia, fizeram uma mesma promessa, a saber, olhar com o mesmo desprezo
o que não é europeu.
Do lado deste olhar desdenhoso e sua amnésia, há a ignorância do
que acontece em outra parte. Como tem observado bem Alain Guy, no
prefácio do Discurs d’outre Barbárie, de L. Zea:

A filosofia ibero-america é ainda pouco conhecida pelo público de língua


francesa, que, sob o efeito de um eurocentrismo mais ou menos subcons-
ciente, até hoje, só se interessou pelo folclore e nos problemas estritamente
econômicos da América Latina, ignorando totalmente a contribuição origi-
nal das diversas correntes de pensamento das vinte repúblicas da América
Central e Meridional (...).42

O não europeu deve ser mantido aleijado. Portugal e Espanha, que


não respeitaram esse princípio, continua A. Guy, <<foram relegados, a
partir do Renascimento e sobretudo de 1648 (ano em que foi consumada
a decadência, a um quase-gueto>>.43 Entre as razões assinaladas por Alain
Guy, existe uma que é muito característica da postura europeia da qual
falamos. França, Inglaterra, Holanda e mais tarde os Estados Unidos, cul-
param Portugal e Espanha. Estes praticaram alegremente a mestiçagem do
Novo Mundo, em vez de conservarem puros de toda contaminação racial,
41
DELEUZE, G. et PARNET, C. Dialogues. Flammarion, Paris. 1996. p. 48.
42
ZEA, L. Discours d’ outre Barbárie. Ed. cit., p. 317.
43
Ibid., p. 323.

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122 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

segundo o exemplo dos Estados Unidos, <<segregacionistas e destruidores


dos índios>>.44

II. A L ATInO -A MERICAnA : O RAPPORT


SITUAÇÃO
COM A E UROPA E SEUS DIFEREnCIAIS InTRAMUROS
O que faltava à postura europeia descrita por Lyotard e Deleuze,
a saber, a abertura a pensamentos estrangeiros, superabunda na postura
latino-americana. Quiçá tal recebimento do diferente seja comum a todos
os países dos continentes menos favorecidos, que se abrem em excesso –
incomodando àqueles que querem um pensamento mais <<situado>>. De
toda forma, a América Latina está marcada por uma postura pluralista e
de abertura. O que lhe permite adotar diversas atitudes em respeito ao
pensamento estrangeiro, sobretudo europeu. Por exemplo, ao lado de uma
efervescente atividade de assimilação e difusão de outros pensamentos, há
aqueles que insistem em afirmar a identidade latino-americana.45 Nos dois
casos, a filosofia europeia tem sido interlocutora privilegiada.46 Quanto a
isso, queremos ressaltar de antemão o seguinte: um juízo prematuro, de
tipo moralista (que separaria o joio do trigo) deixaria de ver na abertura e
pluralidade latino-americana, sua riqueza e possibilidades. Isso ocorre em
adotar, sobretudo, duas atitudes: primeiramente em perceber na difusão
dos pensamentos estrangeiros a pura prática repetitiva da dominação; e, em
segundo lugar, ao identificar as filosofias de libertação com pensamentos
simplesmente <<ideológicos>>. Ademais, existe uma atividade contínua na
América Latina que tenta superar as dificuldades elementares da divulgação
filosófica. Isso foi bem comunicado por Mónica Jaramillo-Mahut em seu
discurso na Unesco, em 17 de dezembro de 1996. O problema de nossas
relações intramuros vai mais além da difusão e da temática da libertação.
Sabemos muito bem que a difusão é fundamental para a própria liberta-
ção. Assim, o ponto decisivo desta questão concerne, de preferência, a um
puritanismo que pode apoderar-se tanto da difusão como da libertação. A
44
Ibid., p. 324.
45
Cf. MARCONDES César, Constança. A Filosofia na América Latina. Paulinas. São Paulo, 1988.
46
É verdade, os EUA também têm sua política de <<exportação>> com a América Latina.
Os EUA não são chamados aqui não-europeus, por duas razões: primeiro porque não
europeu neste texto implica ser não dominador. A segunda razão é porque nos parece
que a diferença na forma da <<atividade exportadora>>, não altera o fundo imperialista
que caracteriza tanto Europa, quanto EUA.

Revista Páginas de Filosofia, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan/dez. 2011


Revista Páginas de Filosofia 123

pura difusão esquece o solo latino-americano e condena toda a identidade


latino-americana em benefício de um universalismo abstrato; o puritanismo
na libertação quer, sem importar o preço, antecipar um juízo de natureza
politiqueira. O fundo moralista dessas duas posturas extremistas é muito
mais evidente que suas consequências.

F IlOSOFIA PURA
No pluralismo latino-americano, observamos uma postura filosófica
<<pura>>. Pensamento desinteressado, à medida da Teoria greco-europeia
da qual falava Husserl. Trata-se de uma filosofia universal, que a Europa
tomou emprestada dos gregos, os não-europeus dos europeus e assim su-
cessivamente. Não existe aqui nenhum movimento nômada, ao contrário,
há evidência de um comércio. Postura muito conhecida, por isso, não é
necessário dizer muito sobre ela: os planos, os salários, os recursos financei-
ros, os pressupostos etc. Nos diferentes países ocorre apenas uma variação
local da prática universal. Neste caso, precisamente, S. Valdinoci tem razão
quando diz que se trata de uma filosofia <<prêt-à-porter>>... empregadora
dos infatigáveis <<trabalhadores do texto>>, <<arquivistas>>.47
É necessário fazer uma observação: no lugar de pensar um comércio
favorecido pela fraqueza local que supervaloriza os produtos importados,
seria melhor ver ali rapports muito particulares. Esses rapports resultariam
de um compromisso em escala mundial, estabelecido entre uma cultura de
exploração e um pensamento <<adequando-se>>. Ao invés de modificar o a
priori de outras culturas, esse pensamento estabelece um compromisso antes
que o a priori se transforme em uma questão para o pensamento do filósofo.

A FIlOSOFIA DA lIBERTAÇÃO
Deixando o puritanismo moral-econômico-filosófico, encontramos a
Filosofia da Libertação, dos anos 60-70. Falta a esta <<assepsia, desinfecção
e limpeza>> que distingue o autêntico discurso filosófico.48 Motivo pelo qual
muitos viram na Filosofia da Libertação uma simples reação (no sentido
nietzschiano de ressentimento) à filosofia pura.
LARUELLE, François. “Programa”, in: LARUELLE, François (Dir). Décision Philosophique.
47 4

Osiris n. 1. Paris, 1987. p. 5-43.


48
ZEA, Leopoldo. La Filosofía como Compromiso de Liberación. Biblioteca Ayacucho, Ca-
racas. 1991. p. 384.

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124 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

Segundo Enrique Dussel, << el homo homini lupus é a definição real,


ou seja, política, do ego cogito e de filosofia europeia e contemporânea>>. 49
A filosofia europeia seria a expressão ontológica da ideologia da classe bur-
guesa. Completamente voltada para si mesma, essa filosofia não chegaria a
desembaraçar-se das contaminações ideológicas das classes hegemônicas.50
Na Filosofia da Libertação, este <<da>> significa, primeiramente,
a prioridade dada à temática da práxis de libertação do oprimido. Em
segundo lugar, a libertação filosófica da ingenuidade de sua autonomia
absoluta como teoria.51
A Filosofia da Libertação é a crítica da opressão e o esclarecimento da
práxis de libertação. Tal como ela surgiu na América Latina, não devemos
pensá-la como uma alternativa ao marxismo. Se fosse assim, ela se reduziria a
uma filosofia do populismo e não proporia mais que uma libertação nacional,
submetida a uma burguesia interna.52 O critério de verdade da Filosofia da
Libertação é a libertação do oprimido.53 Essa filosofia não se define como
uma opção teórica, mas prático-política. É por isso que ela permite uma
pluralidade teórico-filosófica a partir de uma pluralidade prática.54
A partir disso, a filosofia que não faz mais que comentar textos clás-
sicos ou temas filosóficos europeus, é filosofia de dominação. Ela o é não
por causa das categorias empregadas, mas, sobretudo, pelo uso que faz dos
mesmos.55 Ela é também filosofia da dominação porque não se ocupa com
os temas que deveria tratar e porque critica aqueles que o fazem.
Frente a esta filosofia puritana da dominação, a Filosofia da Liber-
tação, de Dussel, por exemplo, faz uso do método <<analético>>, através
do qual o fato real humano (todo homem, todo grupo ou povo) se situa
sempre mais além do horizonte da totalidade. Na analética, a teoria não é
suficiente, ainda que, na ciência e no especulativo, a teoria é o constituinte
essencial. Na analética, a práxis é a constituinte primordial.56
49
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação na América Latina. Trad. de Luiz João Gaio,
São Paulo – Piracicaba, Loyola- Unimep. S.d.c.1980. p. 15.
50
Ibid., 140; 246.
51
Ibid., p. 247.
52
Ibid., p. 215; 225-238.
53
Ibid., p. 216.
54
Ibid., p. 217.
55
Ibid., p. 218.
56
Ibid., p.163-164.

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Revista Páginas de Filosofia 125

Assim, afirmar a <<exterioridade>> permitirá realizar o impossível


frente os olhos do sistema: sair da totalidade. Isto é, efetuar o novo, o impre-
visível para a totalidade. Esta é a liberdade incondicionada, revolucionária
e inovadora, que faz possível esse passo <<mais além>>. Compreender,
portanto, o outro em sua cultura analógica, é afirmar a heterogeneidade
deste outro, do <<cara-a-cara>> no ethos da libertação.57 Tal condição do
cara a cara descentra a perspectiva do <<eu-nós>>.
Deste nosso ponto de vista, é preciso acreditar que outras perspecti-
vas foram descentradas também no sentido mais concreto da palavra. Na
Filosofia da Libertação, os velhos termos da filosofia europeia (como utopia,
homem, soberania, justiça) são empregados segundo outros paradigmas
distintos dos utilizados pela última. Este fato é difícil de compreender se
ficarmos limitados a uma diferença no interior da própria Europa. Talvez,
no lugar de uma <<différence>> seria preferível um não. Trata-se de um
<<não>> que não é negativo, nem negador. Ao contrário, o <<não>> diz
outras coisas que não são ditas pela filosofia europeia. É neste caso que o
<<não>> da não filosofia vai ao encontro do <<não>> implícito, quando
não está explícito na Filosofia da Libertação latino-americana.

A S VAnGUARDAS FIlOSÓFICAS
O reconhecimento da necessidade e da urgência de elaborar novas
categorias a partir de uma realidade que não fosse a da filosofia ocidental
europeia é relativamente recente. Durante os três primeiros séculos que segui-
ram o <<descobrimento>>, predomina a escolástica portuguesa e espanhola.
Depois virão notavelmente as influências do iluminismo e positivismo.58
Antes que se inicie uma reflexão mais sistemática a partir (e não
simplesmente sobre) a miséria, o que foi inaugurado como Filosofia da
Libertação, alguns pensadores se levantaram para tentar pensar de maneira
diferente, não europeia. Segundo Dussel, os antecedentes da Filosofia da
Libertação remontam a Bartolomé de las Casas (1484-1556). Las Casas

57
DUSSEL, Enrique. Método para uma Filosofia da libertação. Trad. de Jandir J. Zanotelli.
Loyola, São Paulo, 1986. p. 198.
58
SCHELKSKORN, Hams. “Discurso e libertação: Coordenação Crítica entre dois Projetos
de uma Ética.” Trad. de Amos Nascimento. Simposio. Aste. Vol. 8(2). Ano: XXVIII. n. 38,
julho. São Paulo, 1995. p. 162-176.

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126 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

condenava a extirpação de outros povos (periféricos) pelos colonizadores eu-


ropeus. E ele o fez antes que a filosofia dos europeus tivesse forma moderna.59
É verdade que os movimentos vanguardistas que apareceram depois
da Escolástica latino-americana sempre tiveram grandes dificuldades para
libertar-se da dominação do eurocentrismo.60
Entretanto, é necessário tomar as tentativas inovadoras em um sentido
preferencialmente positivo. Por exemplo, a <<seleção>> (por oposição à
<<imitação>> da Filosofia europeia),61 proposta pelo argentino Juan Bautista
Alberdi (1810-1884) sugeria o seguinte: selecionar para poder negar aquilo
que, na filosofia europeia, não convém à realidade latino-americana.6263
Podemos citar também o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), que
tentou aplicar à sua maneira o marxismo na América Latina.63
Apesar de suas prováveis imitações e debilidades, a vanguarda filosó-
fica na América Latina teve o mérito de produzir o que podemos chamar
“oficinas de trabalho”. Em relação à tecnologia da Filosofia universal e
universalizante, esses trabalhos resultam de atividades manuais. Por exem-
plo, Zea diz que alguns filósofos operaram uma torção em relação – não
conviria dizer sobre? – às filosofias europeias. 64 Esses esforços do pensa-
mento latino-americano em relação às categorias da filosofia europeia já
designavam uma vontade de libertar-se da violência metafísica da cultura
dominante europeia.
Pode ser completamente justificável criticar as tentativas tímidas,
muito limitadas ou inclusive de ver em Zea, por exemplo, uma ingenuidade
que não questiona a essência do logos dominante. 6566 Contudo, é interes-
59
Cf. MARCONDES, César Constança: A Filosofía na América Latina Ed. Cit., igualmente:
A. Guy: Panorama de la Philosophie Ibéro-américaine. Du Siècle XVI è à nos Jours. Patiño,
Genéve, 1989. Esta obra do Dr. A. Guy aparecerá em breve prefaciada e traduzida ao cas-
telhano (Ediciones LUZ-ULA), pela Dra. Glória M. Comesaña-Santalices da Universidade
em Zulia (Maracaibo-Venezuela).
60
DUSSEL, Enrique. Filosofía da Libertação em América Latina. Ed. cit., p. 15.
61
Cf. DE KOBILA, Esther Díaz. “Philosopher em Argentine: La défense de la vie comme
programme”, in LARUELLE, François (Dir.). Décision Philosophique. Ed. Cit., p. 7-20.
MANSILLA, Hugo Felipe. “Ensayística Latinoamericana e Identidad Colectiva”, Dissens.
Tübingen, n. 2, 1996. p. 1-16.
62
GUY, Alain. op. cit., p. 59-60.
63
ZEA, Leopoldo. La Filosofía como Compromiso de Liberación. Ed. cit., p. 288.
64
GUY, Alain. op. cit., p.183-185.
65
ZEA, Leopoldo. La Filosofía como Compromiso de Liberación. Ed. cit., p. 267.

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Revista Páginas de Filosofia 127

sante acolher essas tentativas no que têm de libertadoras, a saber, o caráter


plástico de suas atividades no que se refere à mercadoria filosófica europeia.
É por aí que podemos avançar, questionando nossa própria posição atual.

C AMInhAnDO PARA UM N On -R APPORT : A G EO -F IlOSOFIA


Felizmente, o eurocentrismo não é a única característica do pensa-
mento europeu. Existe também seus devenires, vir-a-ser, nomadismos. Com
Deleuze e Guatarri, por exemplo, outra perspectiva se abre. A imobilidade
de uma fundação europeia perde sua razão. A atividade imobiliária de ca-
pitalizar, ainda de maneira mais forte o comércio europeu, é deslocada por
uma atividade de desterritorialização, própria do movimento dos nômades.
Os projetos de fundação dão lugar a passeios, a termos médios (desmilieux)
jamais a pontos fixos. Tampouco há historiadores que possam prever os
movimentos dos nômades.
Em Deleuze, podemos falar de filosofia que não é a filosofia europeia,
pois o <<plano de imanência>> democratiza o pensamento: conceito e
plano. Como negá-los: conceito e plano, para aqueles que não são euro-
peus? Os projetos de fundação são superados. A exclusividade do campo
europeu já não é necessária. O reconhecimento do pré-filosófico (que não
é de forma alguma o filosófico) é suficiente para criar conceitos – estes
também filosóficos. A desterritorialização no chegar-a-ser sacode as bases
das suntuosas fundações da filosofia europeia.
O desejo europeu do centro faz do capitalismo seu <<plano de
imanência>>. Este é o plano por excelência do projeto de europeização
do mundo <<uma incitação a europeizar-se sempre mais>>. 66 Frente à
imobilidade do plano de dominação, o chegar-a-ser faz-se mover. Neste
chegar-a-ser, no escapar, para Deleuze, se produz o real, se cria a vida, se
encontra uma arma.67 Aqui podemos encontrar um sinal de Non-Rapport,
o mantenimento do relatus, do falar juntos. Essa referência a Deleuze nos
permite prosseguirmos colocando em relevo outras possibilidades que não
estão sob a égide do eurocentrismo. Guardemos a beleza do pensamento
de Deleuze e suas intuições topológicas e avancemos ainda mais.68
66
MANSILLA, Hugo Felipe. “Ensayística latinoamericana e identidad colectiva”, Art. cit.,
p. 6-7.
67
DELEUZE, G. et GUATTARI, F. Qu’est-ce que la Philosophie. Ed. cit., p. 94.
68
DELEUZE, Giles et PARNET, Claire. Dialogues. Ed. cit., p. 60.

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128 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

A nECESSIDADE DE FIlOSOFIA
Mais este passo em direção a um non-rapport é possível quando
colocamos frente a frente um pensamento de tipo libertador e a <<não-
-filosofia>>. Imediatamente surge o problema do <<não>>. Não temos
necessidade de filosofia na América Latina? Não é verdade que todos aque-
les que defenderam um pensamento libertador na América Latina foram
perseguidos por causa de uma filosofia, esta também libertadora?6970 Du-
rante o período da repressão militar, é a filosofia que foi expulsa de certos
níveis da educação. Por que então, uma <<não-filosofia>>? E, entretanto,
veremos que há muita semelhança entre uma filosofia de tipo libertador e
a <<não-filosofia>>.
Primeiramente, no que respeita à <<caça à filosofia>>, reconhecemos
que não se tratava, neste caso, de rechaço <<da>> filosofia. Já sabemos
como determinada filosofia pode estar comprometida com totalitarismos
e despotismos. Assim, no caso preciso de alguns países da América Latina,
tratava-se de rechaçar e perseguir <<uma>> filosofia que negava, por sua
vez, o filosofar <<dominante>> na educação. Filosofar que reprimia a liber-
dade. Pensar sem as pressões da filosofia dominante era um dos objetivos
e condição para a Filosofia da Libertação.
Sentiu-se por um momento o desejo de rechaçar completamente a
filosofia europeia – atitude bastante europeia, diria F. Laruelle. Pretendeu-
-se até começar do zero.70

A “ nÃO - FIlOSOFIA ”
Vendo as considerações que acabamos de fazer, o <<não>> da <<não-
-filosofia>> pode parecer como algo <<positivo>>. Sobretudo para nós,
não-europeus. O <<papel>> que a não-filosofia desempenha mesmo no in-
terior da Europa dará razão ao que afirmamos. Se colocarmos cara a cara, o
eurocentrismo e a <<não filosofia>>, implicará uma <<des-europeização>>
muito singular – sem cair no movimento nômade de Deleuze.
A não-filosofia é algo distinto do pensamento geográfico do vir-a-ser.
Evidentemente, no que se refere ao eurocentrismo, a não-filosofia deve ser

69
Cf. As obras de Dussel que traçam a história da Filosofia da libertação.
70
ZEA, Leopoldo. La Filosofía como Compromiso de Liberación. Ed. cit., p. 291.

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Revista Páginas de Filosofia 129

considerada como a-topológica. Como tal, permite sua inserção no non-rapport.


Daí sua similaridade com um pensamento de tipo libertador não europeu,
do qual a Filosofia da Libertação será apenas uma manifestação particular.
Que é um pensamento libertador? Sabemos que não é nada fácil
responder a esta pergunta, ainda que os atos de libertação falem por si.
Um pensamento libertador está acompanhado de certos gestos de liber-
tação e se diz a partir de seus atos. Em nossa perspectiva não europeia, é
um pensamento que: a) já não quer manter um rapport com as expressões
mais ou menos dissimuladas do eurocentrismo e do neocolonialismo; b)
procura estabelecer condições mínimas de uma identidade mais radical
que as das nações e povos; c) não se reduz a um comentário da filosofia
europeia; d) toma o homem como ponto de partida, sem repetir com isso
os humanismos europeus e seus vícios; e) por fim, um pensamento que
começa a manifestar-se pouco a pouco nos <<espaços>> não-europeus e
não dominadores.
Assim, não será a partir de um novo rapport entre o pensamento na
América Latina e a não-filosofia que encontraremos todo o valor desta.
Aqui reside o mais importante daquilo que queremos comunicar com este
texto, no que respeita à nossa relação com a não-filosofia. Não há nenhum
rapport entre o pensamento na América Latina e a não-filosofia. Com
isso, desejamos dizer que a não-filosofia não perde sua importância, mas,
o contrário, evidencia ainda mais sua contribuição atual, se e somente se
não se estabelecer nenhum rapport entre ela e o pensamento libertador
latino-americano.
De Kobila já pôs em evidência a importância da não-filosofia. Ela
mostrou com fortes argumentos em que sentido a não-filosofia se une à
<<defesa da vida>> na América Latina.71
Para De Kobila, a não filosofia é importante porque ajuda a pensar
que a questão de um <<pensamento situado>>, como a que caracteriza a
Filosofia da Libertação, provém de um problema mais profundo que o sim-
ples rapport geográfico entre os povos. A não-filosofia sacode a confiança
excessiva da filosofia. Ou seja, o <<pensamento situado>> deveria buscar
as razões da lógica que sustenta todas as empresas filosóficas, superando

71
DE KOBILA, Esther Diáz. “Philosopher em Argentine: La défense de la vie comme pro-
gramme”, Art. Cit.

Revista Páginas de Filosofia, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan/dez. 2011


130 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

as denúncias políticas. Não devemos contentar-nos com uma crítica ao


pensamento europeu a partir de um <<pensamento situado>>, inclusive,
se este denuncia a cumplicidade do pensamento europeu com a domina-
ção imperialista. A filosofia latino-americana não alcançará seus próprios
objetivos até que reconheça <<uma vontade de dominação>> no filosofar,
a saber, <<filosofar é dominar>>.72 Daí a tarefa fundamental levantada ao
pensamento latino-americano que é <<a de redefinir a filosofia, romper seu
aparato categorial, voltar a pôr o filosofar ‘no seu lugar’ tal como o real – os
povos e os indivíduos que os constituem – pode defini-la>>.73
Para realizar a tarefa, De Kobila encontra a não-filosofia. Segundo
ela, é necessário elaborar <<uma leitura atenta dos discursos heréticos
que podem servir de ponto de partida>>.74 A não-filosofia seria, portanto,
<<passo obrigatório – para pensar (...) as multidões solitárias e dispersas
de nosso continente>>. 75 Sem dúvida, continua a altura <<não se trata
exatamente de pôr à prova esses discursos, e outros possíveis, em nossa
realidade, nem de ‘adaptá-los’ a ela. É justamente o contrário, se trata de
adicionar nosso recurso, a partir de nossa realidade e de nossas necessidades
a este movimento de ideias heréticas e libertárias (...)>>.76
Levando um pouco mais adiante os argumentos da filosofia argentina
e o movimento de seu pensamento, determinaremos melhor sua maneira de
pensar a relação com a não-filosofia. Não se trata aqui de uma crítica (para
que nos servem as críticas, se não para repetir de maneira chata o que outros
disseram, desviando-nos do essencial?). Insistindo na questão iniciada por De
Kubila, perguntaremos o seguinte: Esta maneira de ver nossa relação com a
não-filosofia não deixa intervir um restante de rapport? Em outras palavras,
se conseguirmos encontrar uma possibilidade de utilizar a não-filosofia na
América Latina, não se converteria esta em uma nova filosofia? Parece-nos
que com isso, iniciamos de novo um <<rapport >> entre nós.
Desde nosso ponto de vista, seria melhor deixar de pensar sobre
<<o que>> a não-filosofia pode <<dar>> a nós, latino-americanos. Não
seria melhor escutando o que a não-filosofia nos diz na Europa pensar
72
Ibid., p. 13.
73
Ibid., p. 14.
74
Ibid., p. 19. Cursivas minhas.
75
Ibidem.
76
Ibidem.

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Revista Páginas de Filosofia 131

em como encontraríamos os meios para que se manifeste sua importância


para nós, não-europeus?
Que diz a não-filosofia? Não entraremos na questão sobre seus termos
fundamentais. Aqui, nos limitaremos somente a um aspecto decisivo. Dire-
mos que nós, não-europeus, começamos a escutá-la a partir do momento
em que elabora o Princípio da Filosofia Suficiente.
É, sobretudo, na Europa onde a não-filosofia encontra seus piores
adversários, ao fazer aparecer a fé filosófica, que administra desde o in-
terior da filosofia, a pretensão de suficiência filosófica e europeia: <<A
filosofia é suficiente para tudo e para ela mesma, ela é a experiência
absoluta do pensamento>>.77 A característica do Princípio <<sua crença
mais forte e mais ingênua, sua vontade unitária e de autoridade se en-
contra em que: a filosofia se quer e se crê coextensiva ao real (...)>>.78
Este princípio postula: a) O dever de filosofar, b) O poder de filosofar,
c) A suficiência deste poder, d) O círculo da tradição e de chegar-a-ser
filosófico (autojustificação da fé filosófica). 79
Precisamente pela não-filosofia não estar no interior do Princípio da
Filosofia Suficiente, não é uma filosofia nova, mas uma ciência transcen-
dental.80 Tratar de colocar a não-filosofia em rapport com a América Latina
nos parece que é querer submetê-la de novo à condição de filosofia. Um
pensamento (qualquer que seja este) dificilmente poderá servir de <<ponto
de partida>> ou ser um <<passo obrigatório>> para outra realidade, como
o quer De Kobila. Se assim fosse, correríamos o risco de submetermo-nos
uma vez mais à sua dominação, por intermédio de um rapport.
Em quanto denuncia a suficiência filosófica e europeia, a não-filosofia,
por sua parte, fala <<como>> um pensamento libertador. Se existe uma te-
oria própria da não-filosofia, e se ela nasce na Europa, isso não a impede de
unir-se a outros dizeres, como os escutamos através dos pensamentos não-
-europeus. Que não se veja nesta perspectiva uma facilidade terminológica
do <<não>>. Há algo muito mais profundo que está ocorrendo nos dizeres
dos pensamentos não-europeus de tipo libertador e no dizer da não-filosofia.
77
LARUELLE, François. Um tant qu’um. La “non-philosophie” expliquée aux philosophes.
Aubier, Paris. 1991. p. 149 ss.
78
LARUELLE, François. (Dir.) Décision philosophique. Ed. cit., p. 10.
79
Ibid., p. 12-13.
80
LARUELLE, François. Principes de la Non-Philosophie. PUF, Paris. 1996. p. 65-66.

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132 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

É necessário prestar atenção à forma que a não-filosofia transtorna,


com seus efeitos, os rapports <<intramuros>> no interior da Europa. É ali
onde reside sua força libertadora. Em função do uso de termos filosóficos
clássicos e através de seus enfoques, que especificam sua teoria em sua
própria realidade, a não-filosofia une-se ao que se está fazendo em outras
partes. Os efeitos desse discurso perturbam as bases de uma cultura de
dominação. Escutamos outros discursos e as <<novas práticas e escritas da
filosofia>>81 em diversos lugares. Só que eles não podem ser decifrados por
aparatos de escuta que compõem o instrumental e a artilharia filosóficas.
O mais importante não reside nas formas desses discursos, mas em seus
efeitos para a <<defesa da vida>>. Uma vida que escapa ao desejo filosófico
de dominar o real.
Somente a partir desta perspectiva podemos dizer que o pensamento
na América Latina não tem nada que <<prover>> a não-filosofia. E a última
não teria nada que <<desembarcar>> (porter) na América Latina. Se fosse
o contrário, por sua vez, a não-filosofia seria recebida também como uma
nova filosofia; e por outra parte, conservaria o mesmo desejo filosófico de
universalizar seu discurso. Nos dois casos, não faríamos mais que estabe-
lecer um novo tipo de rapport de dominação. Somente nos resta um falar
juntos como algo totalmente diferente de um rapport.

U M VERSO ÚnICO : RElATUS E lIBERTAÇÃO


Mas por que insistir em falar de libertação, esse velho termo, quase esgo-
tado pela lógica filosófica europeia? Não estaríamos mesclando a não-filosofia
com algo distinto dela? Por que falamos de libertação, termo talvez superado
na Europa? Simplesmente porque na qualidade de não-europeus, trata-se
de uma realidade viva para nós. Os presunçosos dominadores não utilizam
estas palavras. Esta é a palavra dos <<escravos>>, melhor ainda, a palavra
dos <<resistentes>>, daqueles que à luz da violência persistem na sombra,
cantando a velha canção de libertação. Pode ser que para a Europa, como o
afirma Lyotard, a <<libertação>> forme parte das questões <<já pensadas por
nós>>, que são <<insuficientemente elaboradas>> ou <<mal formalizadas>>.82
81
LARUELLE, François. Philosophie et Non-Philosophie. Pierre Mardaga Ed. Liege-Bruxelles,
1989. p. 11 ss.
82
LYOTARD, Jean-François. “Aller et Retour”, in Rajchman John et West, Cornel (Dir.). La
Pensée Américaine Contemporaine. Ed. cit., p. 14.

Revista Páginas de Filosofia, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan/dez. 2011


Revista Páginas de Filosofia 133

Se superarmos este preconceito grosseiro, podemos dar-nos conta


de um non-rapport possível entre a não-filosofia e outros pensamentos
não-europeus, que ainda entoam o canto da libertação. Neste caso, não
haveria nada que <<aportar>>, <<traer>>: nem da não-filosofia até a Amé-
rica Latina, nem o inverso. As armas estrangeiras não funcionam aqui. As
categorias, muito longe de uma realidade distinta, não dirão nada, o vivido
é muito profundo para que possa ser dito em conceitos evidentes. Nós, os
não-europeus, não temos necessidade de manter um rapport com a Europa.
Já o temos em demasia.
É mediante ao non-rapport, entendido aqui como uma relação livre,
não impositiva, como poderíamos passar ao <<cara a cara>>, sem trazer
coisas, objetos do pensamento. É neste movimento, no qual cada um per-
manece em seu próprio solo, que poderíamos aprender a falar da libertação
que escapa a um pensamento de rapport. A libertação pode ser um dos
efeitos do Real, do Um-a-um, do <<homem ordinário>>, nos termos da
não-filosofia. A libertação pode ser também todas as tentativas de pensar a
partir de uma realidade que escapa às concepções europeias, e transmitidas
por sua filosofia.
Este <<falar a partir>> de seu solo não nos transforma em nômades,
planta nossos pés muito mais profundamente no solo. A liberdade sem o
solo não é mais que um canto de sereia. E nós queremos escutar o canto
de homens, das mulheres e das criaturas de toda a Terra. Os nômades não
correm o risco de libertar-se mais que deles mesmos, através de seus movi-
mentos, ainda que milhões de pessoas lutem para libertar-se dos obstáculos
que as impedem de viver.
A traição – aludindo a Deleuze – quando existe, não é uma traição do
solo. Ninguém pode trair seu solo. Sobre este solo nós <<construímos>>.
Por tanto, são nossos atos, nossos dizeres, nossas palavras as que <<traem>>
nosso solo. Estes são o que des-europeizam, des-africanizam, des-asiatizam,
des-oceanizam os povos.
Se estamos muito ancorados em nosso solo, como podemos escutar
o que os outros povos dizem? Como podemos escutar o que eles cantam e
como lutam? Como permitir que a doçura de seus cantos, a alegria de seus
dizeres poéticos e de suas danças cheguem até nós? Se estamos muito atados
ao nosso solo, não chegaremos a sentir jamais que somos parte de um só

Revista Páginas de Filosofia, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan/dez. 2011


134 Nós, os não-europeus, o pensamento na América Latina...

universo, de um verso único. É através destes versos que a libertação não


concerne apenas ao nosso solo... Mas aponta ao solo do mundo, da Terra.
Libertar nosso solo é libertar o solo do universo.
A libertação de um solo que vem acompanhada dos cantos daqueles
que em outros lugares desfrutam a satisfação da libertação, elevam-nos em
um canto sobre nosso solo, em um verso único! Seu canto é nosso canto.
Assim, nossos pés pisam mais firmes sobre nosso solo. Por isso compre-
endemos que é necessário que cheguemos a ser livres aqui... e comecemos
a falar juntos... um verso único... de libertação.
O non-rapport entre a América Latina e a não-filosofia nos convida
assim a encontros livres dentro de um movimento de libertação. É com
este ruído que nós, da América Latina, escutamos o canto da teoria da
não-filosofia. Que alegria se ela escutasse o nosso canto também!

Revista Páginas de Filosofia, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan/dez. 2011

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