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DANIEL GIL

O POETA DO GROTESCO,
VINICIUS DE MORAES

Rio de Janeiro
Setembro de 2019
O POETA DO GROTESCO, VINICIUS DE MORAES

Daniel Vasilenskas Gil

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) como parte dos requisitos necessários
à obtenção do Título de Doutor em Letras
Vernáculas — Literatura Brasileira.

Orientador: Prof. Dr. Eucanaã Ferraz

Rio de Janeiro
Setembro de 2019

2
O POETA DO GROTESCO, VINICIUS DE MORAES

Daniel Vasilenskas Gil

Orientador: Professor Doutor Eucanaã de Nazareno Ferraz

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras


Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos
requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas —
Literatura Brasileira.

Rio de Janeiro
Setembro de 2019

3
Gil, Daniel.

O poeta do grotesco, Vinicius de Moraes / Daniel Gil. -- Rio


de Janeiro: UFRJ/ FL, 2019.

176 f.

Orientador: Eucanaã de Nazareno Ferraz

Tese (Doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de


Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2019.

Referências Bibliográficas: f. 121-132.

1. Poesia brasileira. 2. Crítica. 3. Grotesco. 4. Feio. 5.


Vinicius de Moraes. I. Ferraz, Eucanaã. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação.

4
RESUMO

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras


Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos
requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas —
Literatura Brasileira.

GIL, Daniel. O poeta do grotesco, Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 2019. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Muito embora a poesia de Vinicius de Moraes seja celebrada mais especialmente


pelo verso amoroso, ela possui, em mesma medida, um lado estranho, prolífico, e ainda
pouco explorado pelos estudiosos. Uma grande quantidade de poemas tende aos
domínios do feio, do anômalo, do quimérico, e faz do poeta, com a devida atenção, o
maior herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e
Augusto dos Anjos. Essa tendência esbarra igualmente, outras vezes, no riso espontâneo
do nonsense, da glutonaria, do escatológico e da incorreção. A tese de que Vinicius seja
um poeta do grotesco se fundamenta nas numerosas e persistentes ocorrências da
substância grotesca em toda a sua obra poética. Junto à leitura de alguns dos poemas em
que ela ocorre, é possível consultar um rol de teóricos que contribuem de maneira
decisiva para com os conceitos que a circundam. Reflexões estéticas que aproximam e
contrastam textos de Bakhtin, Baudelaire, Hugo, Kayser, Schlegel e outros oferecem a
linha condutora para a análise.

Palavras chave: Poesia brasileira; Crítica; Grotesco; Feio; Vinicius de Moraes.

5
ABSTRACT

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras


Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos
requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas —
Literatura Brasileira.

GIL, Daniel. The poet of the grotesque, Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 2019. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Even though Vinicius de Moraes's poetry is more especially celebrated by his


amorous verses, that poetry has, to the same extent, a strange, prolific side, still largely
understudied by scholars. A great deal of poems tends to the realms of the ugly, the
aberrant, the chimeric, and that makes the poet, with due attention, the most prominent
heir in the twentieth century of the grotesque poetry carried through by Cruz e Sousa
and Augusto dos Anjos. Other times, that tendency comes up in the spontaneous
laughter of nonsense, gluttony, eschatology, and incorrectness. The thesis that Vinicius
is a poet of the grotesque is substantiated by the numerous and persistent occurrences of
the grotesque substance in all of his poetic corpus. Alongside with some of the poems in
which such element occurs, one can go through the thoughts of scholars who have made
a decisive contribution to the encompassing concepts. Aesthetic reflections which
juxtaposes texts by Bakhtin, Baudelaire, Hugo, Kayser, Schlegel, and others constitute
the guiding line for the analysis.

Keywords: Brazilian poetry; Criticism; Grotesque; Ugly; Vinicius de Moraes.

6
A Pedro Rafael, meu filho, que
dividiu minhas atenções com este trabalho
nos primeiros meses de sua vida.

7
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Eucanaã Ferraz, orientador — e companheiro sempre


sem igual nessa jornada viniciana.

Ao Prof. José Carlos Prioste que, em 2002, durante uma aula


sobre Baudelaire, fez com que eu me atentasse às belezas do
grotesco.

À Vanesa — às conversas, à abnegação, ao Amor.

8
SUMÁRIO

I. MOTIVOS 11-18
II. DE ROMA A HOLLYWOOD (W. KAYSER) 19-28
III. ARIADNE E OS SOGNI DEI PITTORI 29-39
IV. ZABUMBAS NAS CAVEIRAS (M. BAKHTIN) 40-52
V. O BANQUETE DO OMNÍVORO 53-62
VI. O FEIO ROMÂNTICO 63-77
VII. BAUDELAIRE NO MIRAMAR 78-88
VIII. É BELA A BOMBA? 89-97
IX. DE GREGÓRIO A VINICIUS 98-120
X. BIBLIOGRAFIA 121-132
ANEXO I (TREZE POEMAS) 133-163
ANEXO II (ICONOGRAFIA) 164-176

9
No bilhar de Van Gogh tudo estava imóvel
Mas de repente entrou o jogador bêbado que eles diziam falido na vida
E se pôs a jogar com tanta perfeição que os modelos adormecidos se levantaram
E vieram ver e ficaram com gestos de aprovação na cabeça e se entreolhavam.
Mas o mais belo foi quando ele deu a tacada seiscentos e sessenta e seis.
A luz se apagou e todas as coisas mesmo cadeiras mesas vieram cumprimentá-lo
E ali mesmo ele foi proclamado Diabo, porque, eles diziam
Só mesmo o Diabo era capaz de jogar assim.

(“O bilhar” In: Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p.517-8.)

10
I. MOTIVOS

(...) É proibido frequentar o cabaré do sublime.


Liberdade é uma libertinagem. Limitar-se é bom, castrar-se é
melhor.
Passai vossa vida a vos conter.
Sobriedade, decência, respeito pela autoridade, toalete
irrepreensível. Não há poesia senão vestida com apuro. Uma savana
que não se penteia, um leão que não faz as unhas, uma torrente não
peneirada, o umbigo do mar que se deixa ver, a nuvem que se
arregaça até mostrar o Aldebarã, é chocante. Em inglês, shocking. A
vaga espuma no recife, a catarata vomita no golfo, Juvenal escarra
no tirano. Ui, que nojo!

Victor Hugo

A ironia de Victor Hugo em sua apologia de Shakespeare1 é um exemplo


saboroso do embate entre duas perspectivas teóricas que atravessam a história das
literaturas e da crítica. Uma delas se concentra na razão, na laboração cerebral e na
expressão dos artifícios; projeta-se, no mais das vezes, com muita austeridade
emocional e imagética. Hugo a denominava — pejorativamente — de “escola sóbria”.2
A outra é mais propensa ao arrebatamento, aos extremos, e arrisca-se não raro a uma
imagética fronteiriça ao mau gosto (ao que pode ser entendido dessa forma); e muito se
inclina às paixões e aos contrastes incisivos, ao belo e ao feio, ao sublime e ao grotesco
— revelando inclusive as afinidades existentes entre elementos opostos. É certo que, em
alguma medida, os maiores escritores estão atentos a todas as possibilidades do fazer; e
se encontram devidamente aparelhados para a execução de procedimentos e imagens

1
HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário, 2000,
p.159.
2
Op. cit., 158-9.

11
oriundos de ambas as perspectivas; o que, de modo geral, não os obsta à filiação
específica a um dos lados e à defesa entusiasmada.
Sem dúvida alguma, Vinicius de Moraes posicionou seu olhar de maneira
contígua ao de criadores como Victor Hugo. Ainda que muito bem operasse aqueles
instrumentos que podem oferecer à poesia um caráter cerebral — a ponto de antecipar,
por exemplo, em “Última elegia”,3 um conjunto de recursos de vanguarda na poesia
brasileira —, essa destreza no emprego de técnicas, na realização diversificada de
formas, esteve sempre submetida a um protagonismo desassombrado de intensas
paixões e perplexidades — como também dos delírios e das fantasias que pudessem
ofertar mais significado aos vãos angustiantes de sua experiência com o real. A mestria
converteu-se com igual relevância no intercâmbio muito característico do poeta entre
componentes contemporâneos e tradicionais, inclusive no que tange à temática, à esfera
semântica, ao plano do imaginário.
A propósito, é preciso dizer que grande parte da melhor poesia brasileira
publicada no século XX não foi exatamente endurecida, contida, antilírica, como faz
parecer uma quantidade considerável de material crítico e teórico produzido ao longo do
período. Bandeira, Cecília, Vinicius são poetas apaixonados, demasiados, melodiosos;
Drummond é também um poeta dos sentimentos, do amor, conquanto sua dicção seja
mais angulosa; restaria em sequência, ainda, o lirismo de um Quintana, de Hilda, de
Adélia. Nem mesmo é cabível afirmar que uma perspectiva “sóbria” tenha sido a
preferida entre os leitores nos círculos intelectuais de amplo espectro.
Acontece que as atenções da teoria e da crítica mais institucionalizada, de fato,
voltaram-se com maior interesse para outros campos de nossa poesia, preferindo a
consciência ostensiva dos artifícios; a experimentação das vanguardas; a apurada
contensão, a concisão de João Cabral; os aspectos mais racionais da poesia de
Drummond. Antonio Candido percebe que o seu tempo “é um tempo que tende à
ruptura, ao triunfo do ritmo e mesmo do ruído sobre a melodia, assim como tende a
suprimir as manifestações de afetividade”; e que “Vinicius é melodioso e não tem medo
de manifestar sentimentos, com uma naturalidade que deve desgostar as poéticas de
choque, geralmente interessadas em suprimir qualquer marca de espontaneidade e em
realçar o cunho de artifício”.4 É necessário registrar que, nesse contexto, as concepções

3
MORAES, Vinicius de. Cinco elegias. Rio de Janeiro: Pongetti, 1943, pp. 37-42.
4
CANDIDO, Antonio. Um poema de Vinicius de Moraes. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e
baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 159-62.

12
do poeta — aquelas que destoavam das tendências teóricas — não tinham origem em
qualquer postura reativa ou reacionária, mas o inverso: elas eram inerentes a uma
natureza oposta aos limites; aberta, múltipla, intercambiável. Bandeira foi quem
primeiro percebeu essa inclinação incorrigível de Vinicius à multiplicidade:

Desde O caminho para a distância, através de Forma e exegese,


Ariana, a mulher, e Novos poemas, a evolução do poeta se vem
processando com uma abundância e variedade que nos deixa a nós,
seus admiradores e amigos, convencidos de estarmos diante de uma
força criadora de natureza sem precedentes em nossa literatura.
Porque ele tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos
simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as
sutilezas barrocas), e finalmente, homem bem do seu tempo, a
liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos.5

Francisco Bosco entende que essa natureza múltipla “foi desconcertante para a
maioria dos críticos, e mesmo decepcionante para quase todo o sistema cultural
brasileiro”.6 O que o ensaísta chama de “sistema cultural” pode ser traduzido pela
tensão entre grupos mais ou menos organizados que concorrem nos espaços de
legitimação. Tanto assim que, em seguida, menciona o apontamento de José Miguel
Wisnik de que as opções estéticas constantemente disruptivas e independentes de
Vinicius conseguiram desagradar católicos, modernistas, defensores da poesia escrita,
músicos etc.; e, nessa trajetória, levaram-no aparentemente a galgar “cada vez um
patamar abaixo do esperado”; no mesmo raciocínio, mais adiante, ele concluiria que,
apesar da importância inegável para a cultura do século XX por engrandecer a poesia, a
arte dramática, a arte de viver, a canção, a erudição e a expressão popular, Vinicius
nunca foi “o cioso administrador de seu capital poético”.7 Essas considerações,
espirituosas, ganham significado ao constatarmos repetidamente, nunca sem algum
espanto, que um dos maiores poetas da língua portuguesa — e um dos mais lidos —
carece ainda hoje de um movimento crítico continuado.

5
BANDEIRA, Manuel. Coisa alóvena, ebaente. In: MORAES, Vinicius de. Obra poética. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1968, pp. 656-8.
6
BOSCO, Francisco. A mulher original. In: MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, pp. 197-204 (grifo do original).
7
WISNIK, José Miguel. A balada do poeta pródigo. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas/
Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 143-50 (grifo do original).

13
Este estudo, em razão do escopo específico, acaba expondo questões como tais
acerca da obra do poeta: o considerável desconcerto com a perspectiva teórica
predominante de seu tempo — o que ajuda a explicar a desatenção das leituras
especializadas a um de seus traços mais profundos; o diálogo com a tradição — que
supera o tão mencionado âmbito formal e, com efeito, passa por um vasto repertório de
elementos do imaginário histórico das literaturas; o caráter múltiplo dessa poética —
inclusive na execução de uma variedade de mecanismos heterogêneos, oriundos de
escolas aparentemente antagônicas. A ideia em desenvolvimento, aqui, é simples na
delimitação, mas pode parecer inesperada: Vinicius de Moraes é um poeta do grotesco.
Veremos que ela não se origina de ocorrências esporádicas do fenômeno estético, mas
do reconhecimento de uma inclinação essencial e profusa do poeta; digamos que seja
“inesperada” uma vez que o enorme êxito de Vinicius com seus poemas amorosos,
junto a um público imensurável, emprestou a ele uma persona literária supostamente
contrária, quanto mais se acrescentarmos aí a consolidação, de tal sorte, de sua poesia
voltada para crianças.8 Entretanto, é necessário dizer que é natural que escritores e
artistas vinculados a uma estética grotesca sejam frequentemente aqueles que muito
exploram as emoções humanas como o amor, a euforia, as paixões, os desequilíbrios —
são os artistas do extremo, como Shakespeare ou Victor Hugo; e também que a
disposição à fantasia e ao nonsense é manancial em comum, seja do grotesco, seja da
imagética romanesca9 ou infantil.
A propensão que têm esses criadores — devotos do abalo afetivo ou moral, da
trepidação dos sentidos, do sentimento — de representarem em suas obras elementos
tanto do sublime quanto do grotesco poderia servir de pista para que os críticos
identificassem o mesmo movimento na poesia de Vinicius de Moraes. No entanto, no
século XX, o que mais se aproximou de uma observação nesse sentido foram estas
linhas abaixo, dispensadas por Ivan Junqueira, reconhecendo que o amor e a morte
figuram ali com igual protagonismo; e que mesmo as substâncias da vida detêm certo
extremo aterrador:

Vinicius de Moraes será sempre, e acima de tudo, o poeta do amor e


da morte. E talvez por isso mesmo seja ele o poeta mais emblemático
de sua época, assim como o foram Baudelaire e Dylan Thomas, aquele

8
Ver estudo (do autor): “Se ‘A casa’ de Vinicius é folclore brasileiro” em Revista 7faces, ano 04, edição 08,
ago-dez, 2013, pp. 147-56 ( https://issuu.com/setefaces/docs/caderno-revista_7faces_8___edi____o/147 ).
9
Fabulosa, utópica, quimérica.

14
que com maior desassombro e autenticidade encarnou o mito de
Orfeu, descendo aos infernos da vida e da morte em busca de sua
Eurídice, que foram muitas e talvez nenhuma.10

Eucanaã Ferraz mencionaria com todas as letras o grotesco em seu ensaio


publicado em 2006 sobre o poeta.11 Ao analisar a “Balada dos mortos dos campos de
concentração”,12 depara-se com uma “estética expressionista, onde o horror, o absurdo e
a morbidez entrelaçam-se com vocabulário, adjetivações e imagens contrastantes”; e
observa nesses contrastes a projeção do insólito, do híbrido, do monstruoso — em
consonância com a herança grotesca transmitida desde os tradicionais ornamentos
pictóricos romanos:

Ao invés de optar por um realismo estrito, o poema constrói imagens


que, sem abrir mão de um minucioso realismo, dão a ver o absurdo da
realidade ao pintá-la em seu aspecto monstruoso, fundindo o horror do
extermínio em massa a “beijos”, “sorrisos de giocondas”, “toalete”.
Estamos, portanto, no âmbito do grotesco, exemplarmente realizado
em poemas como “O poeta Hart Crane suicida-se no mar”, “Balada do
enterrado vivo”, “Balada do Mangue” e “Balada da moça do
Miramar”. Neles, o belo e o mórbido modelam cenas (algumas de
caráter narrativo) estranhas, fantásticas. O natural se torna terrível, a
realidade emerge insólita, a beleza se confunde com o repulsivo.13

Essa inclinação do poeta não é esporádica, é forçoso repetir, mas essencial;


exibe-se em numerosas e persistentes ocorrências ao longo de toda a obra poética. Por
isso precisamos nos debruçar, tentar compreendê-la, averbar os seus modos; ao menos
iniciar esse trabalho. Porque valores fundamentais que não foram explicitamente
reconhecidos, ainda que possam ser experimentados, não estão sob o controle
consciente de leitores e intérpretes — que, diante da tentativa de traduzir a força de uma
obra, concentram-se muitas vezes em questões voltadas ao não-essencial. Vale apontar,
pois, que há uma tendência fragmentadora, geralmente com recortes temporais, na
apreciação da obra de Vinicius em detrimento à busca de possíveis componentes

10
JUNQUEIRA, Ivan. O signo e a sibila. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, pp. 252-75.
11
FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006.
12
Anexo I, pp. 145-7.
13
Op. cit., pp. 24-7.

15
efetivos, essenciais: como as que se restringem à divisão em duas fases, estipulada pelo
próprio poeta em sua “Advertência” à Antologia poética (1954), tão sistematicamente
citada (pensemos, todavia, na variedade de poemas que vieram a público após essa
divisão); as que enxergam a obra com base na separação entre o poeta dos livros e o
letrista das canções populares; as que percebem nos poemas inéditos da Antologia, nos
Novos poemas (II) (1959) e em Para viver um grande amor (1962) uma guinada em
direção aos temas sociais; as que ressaltam a variação de estilo do letrista de acordo
com a alternância de suas parcerias. São observações importantes porque apresentam as
transformações mais patentes ocorridas na obra ao longo do tempo. Em contrapartida,
porém, encontramos às vezes estudos que procuram se aproximar do eixo-motor
criativo, das inquietudes que arrastam desde sempre o poeta à poesia e que funcionam
como agentes de um veio original, único. É o caso de uma tese recente, escrita por
Bruno Cosentino, onde se afirma que Vinicius nunca abandonou certo “sentimento
religioso” a partir da descrença no catolicismo; que esse sentimento foi posteriormente
“embebido por uma intuição ritualística” e passou a buscar, “no reconhecimento de si
no Outro e na fusão com a mulher amada, a restauração de uma unidade primordial
anterior à criação”.14 Cosentino acredita que a vivência católica, pujante, do poeta —
importantíssima na formação de suas concepções estéticas — decorreu-se menos de
uma fé verdadeira que desse sentimento íntimo, particular, externado como atividade
intelectual:

Poderia chamar esse processo pelo qual passa o poeta de


desconversão, mas não, porque não acredito que ele tenha passado
anteriormente por uma real conversão ao cristianismo, isto é, que o
tenha sentido com sinceridade, de corpo e alma, a não ser como um
exercício intelectual vivido contudo intensamente; e também porque o
movimento que se dá a meu ver é em direção não a um rompimento
com a religiosidade, mas ao contrário, em sua direção, no sentido
mundano, pagão, experimentado no amor; por isso, a escolha do termo
oposto: conversão.15

14
COSENTINO, Bruno. O andrógino meigo e violento: amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius
de Moraes (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2019.
15
Nota 80. In: Op. cit., p.35.

16
Essa religiosidade sui generis pode ter sido para Vinicius aquilo que Schlegel
imaginara para os alicerces da poesia de sua época: uma “nova mitologia”. Expoente da
primeira fase do Romantismo germânico, ele avaliou que a grandeza dos poetas da
Antiguidade clássica era resultado de um “centro” do qual podiam se apoiar, o
prodigioso mundo das antigas divindades. E que, para ocupar esse espaço então
desguarnecido, os escritores deveriam agora se atentar, talvez, a algo congênere da
Ideologia, ou àquele produto perceptível na obra dos “modernos mais antigos” — como
Shakespeare — para o qual dá o nome de arabesco. Schlegel o define em sentenças
como “simetria de contradições”, “eterna alternância de entusiasmo e ironia”, “forma
mais antiga e original da fantasia”.16
A dimensão mítica ou religiosa que Vinicius oferece à experiência humana, isto
é, ao amor, à amizade, às mais variadas relações do indivíduo no cotidiano social,
sublinha uma particularidade basilar da perspectiva poética da qual ele se aproxima.
Essa é a primazia dos valores. Do lado oposto, os mais “sóbrios” se preocupariam com
a aproximação que ela pode guardar com o seu parente mais embaraçoso, o moralismo.
No entanto, os valores do poeta, materializados na vida cotidiana ou nas formas
literárias, longe de serem limitantes, reivindicam a exuberância da experiência, a
pluralidade, a intensidade, as contradições — desde que direcionadas ou ainda
submetidas a um reconhecimento de si mesmo por meio do interesse radical pelo Outro.
E são tais os deslimites a serem representados a partir dessa profissão de fé, que sua
poesia precisa conceber e combinar elementos do contraste mais extremo: o bem, o mal,
o belo, o feio, o divino, o infernal, o sublime, o grotesco.
O texto que se inicia opta por não incorporar aquela estrutura mais usual da
exposição de uma tese, que separa os pressupostos teóricos, em uma primeira parte, da
análise do objeto, em outra. No intento de torná-lo menos cansativo para o leitor, a
teoria será entrelaçada à poesia, de modo, também, a privilegiar a argumentação. As
discussões históricas apresentadas a respeito do conceito do grotesco servirão de linha
condutora para a abordagem do fenômeno estético na obra poética de Vinicius de
Moraes. Elas tomam como ponto de partida as pesquisas efetuadas por Wolfgang
Kayser e Mikhail Bakhtin para, logo, estender-se em considerações de outros autores de
grande importância quando tratamos do assunto. Alguns capítulos, na prática, tendem a
imergir-se, ora mais na discussão, ora na análise de poemas. Às vezes, a permanência

16
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 513-36.

17
do discurso nas questões que buscam explicar esse conceito pode parecer demasiada;
porém, devido à dificuldade da conceituação, e as divergências, e o acúmulo dos
debates, ou ainda a natureza fascinante do fenômeno, tem-se o sentimento de que ela é
oportuna. Dessa maneira, torna-se visível o volume de feições com as quais o grotesco é
capaz de se apresentar; e sua natureza diversa está exposta de modo imperioso na poesia
de Vinicius. Por esse próprio fato, seria imprevidente ocupar-se na distinção de todos os
poemas que interessam em algum grau ao enunciado; mas é possível assinalar uma
porção substantiva e representativa, a qual indique especificidades do poeta e dessa
(des)ordem criadora.

18
II. DE ROMA A HOLLYWOOD (W. KAYSER)

Uma espécie de pintura ornamental descoberta nas últimas décadas do século


XV, no decurso das escavações empreendidas primeiramente em Roma e depois em
outras regiões da Itália, consistia em inusitados hibridismos a partir de seres mitológicos
como sereias e centauros, ou de meio-corpos humanos de pouca beleza que emergiam
confusos do reino vegetal; uma série de motivos até então estranhos que tomavam
especialmente as ruínas do Domus Aurea — o palácio de festas que Nero construiu após
o grande incêndio de 64 d.C. Como aponta Wolfgang Kayser (1906-1960), grotesco e
os vocábulos que lhe correspondem em outras línguas são empréstimos tomados da
língua italiana: derivações de grotta (gruta) que remetem, em maior ou menor grau, a
composições semelhantes àquelas. Kayser menciona os escritos de Vitrúvio (I a.C.) em
De Architectura Libri Decem que descrevem aquela arte tão peculiar ainda em sua
própria época de elaboração: “gavinhas que se enroscam e se desenroscam, e de cuja
folhagem brotam por toda parte animais (de modo que pareçam suspensas as diferenças
entre plantas e animais)”. Ele não compreendia por que, aos retratos do mundo real, os
artistas preferiam “pintar monstros nas paredes” e como podia “uma frágil e delicada
trepadeira carregar sobre si uma figura sentada, e como podem nascer de raízes e
trepadeiras seres que são metade flor, metade figura humana”. 17 A maior novidade
residia no fato de estarem anuladas neste mundo as ordens da natureza. Vejamos, a
propósito da descrição vitruviana, excertos do poema “O escravo”, de Forma e Exegese
(1936), para que prossigamos em seguida:

Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido


Fui ficando nodoso e áspero e começou a
[escorrer resina do meu suor
E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.
Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha
17
VITRÚVIO In: KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J.
Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 17-8.

19
E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma
[estranha litania me fascinava.
Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz
Quis avançar sobre os tentáculos das raízes
[que eram meus pés
Mas o vale desceu e eu rolei para o chão (...)
Aqui eu estou parado, preso à terra, escravos dos
[grandes príncipes loucos.
Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu
Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu.
É este o misterioso reino dos ciprestes
Que aprisionaram os cravos lívidos e os
[lírios pálidos dos túmulos
E quietos se reverenciam gravemente como uma
[corte de almas mortas.
Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta
A conversa do meu destino nos gestos lentos dos
[gigantes inconscientes
Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo...18

Como eixo imagético deste poema, tem-se a metamorfose do sujeito lírico em


criatura híbrida, humano-vegetal; ele experimenta a transmutação de si mesmo, da
própria textura, de sua consistência; e tão logo percebe o seu suor, que se constitui em
resina, vê que “as raízes eram tentáculos e eram seus próprios pés”. Também a
subversão da gravidade, ou da fixação da ordem no espaço, é retratada, dado que,
mesmo hirto e enraizado, o poeta se precipita: “o vale desceu e eu rolei para o chão”.
Desse modo, chega ao “misterioso reino dos ciprestes”, onde vê “coisas que mente
humana jamais viu”; são eles representados como figuras monstruosas: “grandes
príncipes loucos”; “gigantes inconscientes”; inclinam-se ao vento, mas, para o poeta,
“se reverenciam gravemente como uma corte de almas mortas”. Estas árvores ou
arbustos coníferos foram, desde muito, símbolos da vida, da morte e da eternidade;
Chevalier e Gheerbrant ensinam que, para gregos e romanos, os ciprestes estavam “em
comunicação com as divindades do inferno”; que são árvores “das regiões
subterrâneas”, associadas por isso mesmo “ao culto de Plutão, deus dos infernos”; e
18
MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 99-104. Obs.: Algumas
pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia poética (1954, 60) e, por isso,
incorporadas nesta citação. MORAES, Vinicius de. O escravo. Antologia poética. Segunda edição revista e
aumentada. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 30-2.

20
costumam a ornar cemitérios”.19 Vinicius elabora imagens que parecem despidas de
qualquer paradigma no intuito de representar o obscuro e o indizível de sua mente; mas
elas, na verdade, derivam de uma tradição longeva — redescoberta naquelas
manifestações pictóricas.
Eram ornamentos que diferiam dos ideais estéticos predominantes, o que não
impediu que um novo estilo neles inspirado se difundisse. Tornou-se mesmo popular,
além de merecer destaque entre as obras mais famosas e curiosas do Renascimento,
como os grotescos de Rafael Sanzio, que cobriram o forro e os pilares das loggie papais,
as gravuras de Agostino Veneziano ou as cinco cabeças de Leonardo da Vinci. A
preservação de lugares como o “Parque dos Monstros”, na região do Lácio, serve-nos
também para exemplificar a grande influência do estilo ao longo de todo o século
posterior às descobertas. Os artistas da maniera, na transição entre a arte renascentista e
a barroca, entusiasmavam-se igualmente pelos grotescos, pelos sogni dei pittori, como
ensina Anatol Rosenfeld. É o caso de Emanuele Tesauro, que sugeria ao artista e ao
poeta que estabelecessem ligações entre os fenômenos mais desencontrados, como
ocorre no sonho e na loucura, antevendo em alguma medida, inclusive, a teórica
surrealista: “um caranguejo, por exemplo, agarrando uma borboleta ou um escorpião
abraçando a lua”.20
Aquela concepção estética, todavia, é mais antiga que o seu nome. Ela já
ocorrera na arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga, ou mesmo em manifestações
poéticas gregas. Constatou-se logo que os grotescos não eram autóctones de Roma, e
que lá chegaram relativamente tarde, por volta da época da transição para o império. A
possibilidade mágica de uma arte que pudesse unir conceitos e imagens antagônicas
servira sobretudo de eixo à cosmologia de muitas religiões primitivas, ao imaginário
medieval e ainda de épocas proximamente posteriores. Por sua vez, a palavra grottesco
para denominar o novo estilo ornamental foi aceita em diversos países a partir do século
XVI, inicialmente como substantivo, ou seja, como designação fixa de obras que
emulavam as manifestações que se haviam revelado naquelas grutas. Pouco a pouco,
surge também o adjetivo, que passa a remeter às misturas do humano com o animalesco,
à representação de uma natureza em desordem e, especialmente, à realização do
monstruoso.

19
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
cores, números. Coord. Carlos Sussekind; trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 23ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2009, p.250.
20
ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1985, pp. 64-5.

21
Ao que se sabe, foi Montaigne quem primeiro utilizou o termo de modo a retirá-
lo das artes plásticas, sua circunscrição original, para introduzi-lo no campo da arte
literária. Ele se referiu ao conjunto de seus próprios Ensaios (1580) como algo sem
muita ordem ou lógica:

Contemplando o trabalho de um pintor que tinha em casa, tive a


vontade de ver como procedia. Escolheu primeiro o melhor lugar no
centro de cada parede para pintar um tema com toda a habilidade de
que era capaz. Em seguida encheu os vazios em volta com arabescos,
pinturas fantasistas que só agradam pela variedade e originalidade. O
mesmo ocorre neste livro, composto unicamente de assuntos
estranhos, fora do que se vê comumente, formado de pedaços juntados
sem caráter definido, sem ordem, sem lógica e que só se adaptam por
acaso uns aos outros [e cita Horácio]: “o corpo de uma bela mulher
com uma cauda de peixe”.21

Kayser descreve como o complexo de significados do termo grotesco foi se


realizando em razão do seu emprego como adjetivo. Ele observa que “os adjetivos são
os grandes perturbadores da ordem nas línguas”; sua inerente função valorativa,
interpretativa, é atualizada de modo contundente. Eles se desprendem muitas vezes de
sua proveniência e perdem por inteiro o vínculo com o objeto concreto: “o
cavalheiresco não morreu com a cavalaria, o pitoresco é algo que ainda não se coloca
diante dos olhos como pintura e a grandeza dantesca pode ser atribuída a uma obra que
não proceda de Dante”.22 O estudioso verifica que a palavra é utilizada por escritores do
século XVII já com um nexo mais amplo, e faz um apanhado de como os dicionários se
lhe referiam à época. As definições flutuavam entre os sinônimos do que fosse ridículo,
bizarro, extravagante; o conceito passava por um processo de esterilização que o

21
MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984,
p.91. Obs.: No texto em francês, o escritor utiliza os seguintes termos: “...sans crotesques et corps
monstrueux, rappiecez de divers membres, sans certaine figure, n’ayants ordre, suite ny proportion que
fortuite”. Um tanto diferente da tradução de Sérgio Milliet, é a de Júlia da Rosa Simões: “...e o vazio em
volta ele o preenche com grutescos, que são pinturas extravagantes que só têm graça por sua variedade e
estranheza. O que são também estes ensaios, na verdade, senão grutescos e corpos monstruosos,
remendados com diversos membros, sem forma nítida, não tendo ordem, sequência nem proporção que
não fortuitas?” (MONTAIGNE, Michel de. Ensaios: Da amizade e outros textos. Porto Alegre: L&PM , 2017,
p.35). O receio dos tradutores em utilizar o vocábulo português “grotesco” parece resultado tanto da
distância entre o sentido extenso que ele adquiriu com o tempo e o sentido mais estrito aplicado por
Montaigne, bem como a utilização de uma grafia de época do francês, crotesques em vez de grotesques.
22
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 25-6.

22
aproximava do burlesco e do cômico. O grotesco chegou a perder qualquer traço de
temibilidade, de acordo com o Dictionnaire français, de Richelet (Amsterdam, 1680):
“Plaisant, qui a quelque chose de plaisamment ridicule”.23 No entanto, é a partir da
citação a Jacques Callot e da commedia dell’arte no Dictionnaire de 1620, de Philibert
Monet, que uma nova determinação do grotesco, significativa para a história do termo,
veio a se prenunciar. Um posterior ensaio de Denis Diderot fazendo menção aos
“grotescos de Callot” foi traduzido por G. E. Lessing. O ensaio estaria no centro das
discussões artísticas em meados do século XVIII.24
Três questões intrínsecas aos primórdios do Romantismo acabariam então por se
confundir e se complementar. A primeira colocava sob suspeita o princípio de que a arte
deveria representar apenas a beleza, o que fez emergir a ideia do característico ou
mesmo da feiura como objeto de uma nova estética. A segunda procurava os contornos
possíveis de uma definição para o conceito de grotesco. A outra levantava o inquietante
problema das caricaturas, que já não podiam ser consideradas uma brincadeira sem
importância, pelo que demonstravam de significativas e altamente substanciosas, como
a série de gravuras em cobre de Hogarth. O poeta e escritor C. M. Wieland dividiu as
caricaturas em gêneros que variavam de acordo com o seu caráter mais real ou mais
fantástico: “as verdadeiras”, onde o pintor reproduz a natureza disforme; “as
exageradas”, em que aumenta a deformação de seu objeto em razão de algum propósito
especial; e “as grotescas”, inteiramente fantásticas, por meio das quais o pintor procura
despertar “gargalhadas, nojo e surpresa pela audácia de suas criações monstruosas”.
Diderot, pelo contrário, baseado nos grotescos de Callot, pretendia constatar que os
primeiros tipos, ainda enraizados na realidade, serviriam de modelo para uma definição
conceitual do grotesco.25
Ao pensarmos em representação caricatural na obra de Vinicius de Moraes,
vêm-nos de imediato dois poemas: “Carta aos ‘Puros’” e “As mulheres ocas”. Apesar de
figurarem no livro mais bem-humorado do poeta, Para viver um grande amor, eles
evocam, quando muito, um estreito riso de concordância. Há em ambos os textos um
hibridismo que não se dá entre seres de reinos distintos, mas entre a figura humana e os
objetos materiais inanimados, sem vida, isto é, composições que rebaixam um tipo
específico de indivíduo à esfera das coisas, caracterizado por seu estilo de vida e suas

23
“Agradável, que tem algo agradavelmente ridículo”. (Tradução do autor.)
24
KAYSER, Wolfgang Johannes. Op. cit., pp. 26-7.
25
Op. cit., p.30.

23
relações sociais. E então, os homens que se dizem “Puros” são constituídos de nylon, de
sangue incolor, de neon, são extraordinariamente rarefeitos; as “mulheres ocas” são
inorgânicas, estátuas de talco, possuem hálito de champagne, pernas de salto alto, pele
fluorescente, rostos de opala, olhos cromados e uma máscara de cal.

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros


E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.26
*
Nós somos as inorgânicas
Frias estátuas de talco
Com hálito de champagne
E pernas de salto alto.
Nossa pele fluorescente
É doce e refrigerada
E em nossa conversa ausente
Tudo não quer dizer nada.27

Kayser observa que, desde a descoberta dos ornamentos em Roma, faz parte da
estrutura do que se chama de grotesco esses processos persistentes de dissolução — a
mistura de domínios que para nós estavam separados, a supressão da estática, a perda da
identidade, a distorção das proporções etc. E afirma que, no entanto, nos deparamos
agora com novas dissoluções — como essas acima —, capazes também de quebrar a
ordem lógica de nossa orientação no mundo: “a suspensão da categoria de coisa, a
destruição do conceito de personalidade”.28
Entre os quarenta e um poemas inéditos lançados em sua Antologia poética,29
Vinicius de Moraes nos apresenta uma peça muito peculiar, composta de maneira a
simular um pequeno roteiro de cinema: “História passional, Hollywood, Califórnia”.30
O poema é composto por uma sequência de quartetos, cenas que reúnem os clichês de
um estilo de vida muito representado nas telas, sobretudo em meados do século XX.
Desse modo, um homem de trinta e poucos anos, casado, dentro de um carro
26
Carta aos “Puros”. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 59-61.
27
As mulheres ocas. Op. cit., pp. 102-4.
28
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p.159.
29
Rio de Janeiro: A Noite, 1954.
30
Op. cit., pp. 246-9.

24
conversível em Hollywood, trai a esposa promovendo todos os caprichos de uma loura
de vinte anos. Tudo regado a cigarros, caríssimos passatempos e alguma angústia que
cresce na medida em que todo o esforço do protagonista se demora a reverter-se em
consumação sexual. Até que, depois de um jantar extravagante e um pedido
desesperado de casamento, ele se vê de frente a mais uma negativa e inicia uma
discussão com palavras desconexas. Algo então se lhe apossa de forma que o desvario é
o único e irreprimível resultado:

Me pedes para te levar a comer uma salada


Mas de súbito me vem uma consciência estranha
Vejo-te como uma cabra pastando sobre mim
E odeio-te de ruminares assim a minha carne.

E então fico possesso, dou-te um murro na cara


Destruo-te a carótida a violentas dentadas
Ordenho-te até o sangue escorrer entre meus dedos
E te possuo assim, morta e desfigurada.

Depois arrependido choro sobre o teu corpo


E te enterro numa vala, minha pobre namorada...
Fujo mas me descobrem por um fio de cabelo
E seis meses depois morro na câmara de gás.

Em uma de suas incursões na tentativa de definir as faces do grotesco, o


estudioso alemão se utiliza de um conceito moritziano de id, um tanto distante do
conceito psicanalítico. “Para Kayser, id representa algo mais existencialista do que
freudiano; id é a força estranha que governa o mundo, os homens, suas vidas e seus
atos”, interpreta Mikhail Bakhtin.31 No caso da demência, o elemento humano
apareceria transformado em algo sinistro, uma vez que um id, “um espírito estranho,
inumano, se houvesse introduzido na alma”; o encontro com a loucura, pois, seria “uma
das percepções primigênias do grotesco que a vida nos impinge”. O fenômeno, por
consequência, acabaria em último caso transportando a questão, da obra em si mesma,
para o que poderíamos chamar de “poética da criação”, uma atitude correspondente ao
artista que, ao lado dos sonhos, disporia da loucura ou da quase-loucura como um

31
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento : o contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.43.

25
instrumento óptico: “o mundo grotesco causava a impressão de ser a imagem do mundo
vista pela loucura”.32
Os primeiros versos de “História passional, Hollywood, Califórnia” podem
induzir o leitor, por um minuto, a acreditar estar à frente de um grande galanteio, de
uma promessa arrebatada — devido à fala diretamente voltada à interlocutora e a uma
utilização copiosa do tempo verbal no futuro. Contudo, partindo de uma descrição
expressiva dos detalhes, até chegarmos ao verso “E há uma cena em que vendes um
maço a George Raft”33, a compreensão dos intentos do poeta, em diálogo permanente
com a arte cinematográfica, faz-se cabal.34 No entanto, é a alternância virtuosa de um
grande número de figuras de linguagem o aspecto formal mais chamativo no poema.
Metonímias de todo o feitio, metáforas, comparações, hipérboles, prosopopeias tornam
sua leitura uma experiência do imprevisível e, muitas vezes, do cômico. É aqui que
reside uma questão de critério da qual não podemos nos eximir quando tratamos do
fenômeno do grotesco especificamente na poesia. Estamos diante de um gênero artístico
de grande teor simbólico, figurativo; o que é dito se refere frequentemente ao que não se
diz, e assim se torna capaz de expressar um campo mais vasto da totalidade do que em
outro nível ou outra modalidade de linguagem. Se considerarmos, pois, toda a figura de
linguagem que ponha paralelo entre o objeto representado e outro de natureza distinta
como uma manifestação do grotesco, estaremos na verdade esgarçando vulgarmente os
limites do conceito em vez de contribuir com ele, bem como obscurecendo os esforços
teóricos já desenvolvidos em seu favor. Não parecem representar estranhos hibridismos
imagens como “tua coxa rija como a madeira”, “teus dois mil dentes de esmalte” ou
“teu seio de arame”, presentes no poema. Tampouco parecem caricaturas, dado que, se
há deformidades, elas transmitem ao leitor mais precisamente a imagem do objeto
original do que a de sua figuração; isto é, transmitem uma constante, sem desordenar
qualquer categoria de seu mundo conhecido. São construções com poder de síntese,
destreza, graça, mas não soam grotescas. Por outro lado, a começar da antepenúltima
estrofe, algum elemento alheio às nossas categorias faz com que a namorada se pareça
uma cabra; toma de assalto o protagonista e o arremessa à loucura. E então um
assassinato se realiza a dentadas e macabros manuseios, de maneira que a vítima

32
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p.159.
33
George Raft (1895-1980) foi um ator americano de grande sucesso; tornou-se um dos astros mais bem
pagos do cinema após o lançamento de Scarface (1932).
34
Destaque-se o profundo envolvimento de Vinicius de Moraes com o cinema.

26
termine desfigurada. Em seguida, o assassino chora arrependido sobre o corpo, ou seja,
a “consciência estranha” já lhe deixa no mundo reconhecível. Sob qualquer aspecto ou
abordagem que se exija, experimentamos aqui a manifestação do grotesco.
Qual seria, portanto, a ideia que nos falta para tentarmos delimitar o fenômeno,
de acordo com os estudos de Kayser? Já mencionamos aqui que o encontro com a
loucura pode transportar a questão: (1) do objeto de arte em si mesmo para (2) o
processo criativo do artista. De mesmo modo, é possível deslocar a questão para a
direção contrária, ou seja, para (3) a recepção deste objeto artístico pelo público. E logo
chegamos aos três domínios para os quais apontariam o grotesco, necessários para uma
noção estética fundamental. É evidente que nuances podem sempre se relativizar em
algum grau, como expõe o próprio teórico:

Quem não está familiarizado com a cultura dos Incas pode tomar por
grotescas certas estátuas desta origem, mas aquilo que nos dá a
impressão de ser uma careta, um demônio sinistro, de uma visão
noturna e, portanto, de ser portador de um conteúdo de horror,
desconcerto e angústia perante o inconcebível, talvez tenha, como
forma familiar, o seu lugar determinado num nexo significativo
perfeitamente compreensível. Mas enquanto nada soubermos a este
respeito, assiste-nos o direito de empregar a palavra “grotesco”.35

O grotesco seria recebido como se nós nos deparássemos com um mundo


alheado, tornado estranho. Como acontece no longa-metragem de Roman Polanski, O
bebê de Rosemary (1968), tanto a personagem de Mia Farrow quanto o espectador do
outro lado sentem que não podem viver naquele mundo desarticulado; “não se trata de
medo da morte, porém de angústia de viver”.36 É preciso, no entanto, que estejamos de
posse do conhecido e do familiar para que sobrevenha a surpresa do estranhamento, do
alheado. O repentino e a surpresa estão em sua essência; o mundo do grotesco “é o
nosso mundo — e não é”; “tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso
mundo, confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a
irrupção de poderes abismais”.37 Em Vinicius, com o poema “História passional,
Hollywood, Califórnia”, bem como em Polanski, é uma atmosfera insuspeita aquela
35
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p.156.
36
Op. cit., p.159.
37
Op. cit., p.40.

27
construída antes que as categorias de nossa orientação comecem a falhar e deixar de nos
servir. Por isso, de acordo com Wolfgang Kayser, os contos de fadas não comporiam
necessariamente um mundo alheado, apesar de representarem universos estranhos e
exóticos: é preciso que se nos revele aquilo que é familiar.
Sua obra O grotesco: configuração na pintura e na literatura (1957) elabora um
panorama extenso em torno das ocorrências do grotesco, tanto na arte como na crítica.
Suas reflexões partem da etimologia do termo e sua ligação com os ornamentos dos
séculos XV e XVI, chegando até a literatura e as artes plásticas contemporâneas,
passando por considerações sobre a pintura de Bosch, Brueghel, as caricaturas de
Callot, a Commedia dell’Arte, o teatro do Sturm und Drang, a ficção romântica e muitos
trabalhos do século XIX e início do século XX. Sua obra tem importância central para a
discussão do conceito. As manifestações reconhecidas pelo teórico apontam para o
aspecto, em algum grau, lúgubre e sinistro. Conquanto sejam cômicas, elas não seriam
observadas com leveza devido à natureza incomum e contraditória; encontra-se nelas
um elemento assustador diante da instabilidade, da falta de fundamento seguro que é
sentida de súbito — o id fantasmal seria uma força manipuladora do homem e do
mundo, uma espécie de titereiro invisível que submete o universo ao desconforto da
desordem.

28
III. ARIADNE E OS SOGNI DEI PITTORI

Dedicado intérprete dos primeiros livros de Vinicius, Octavio de Faria entrevia


em alguns poemas de Forma e exegese (1935) a possibilidade de que o poeta, no futuro,
rompesse de vez seus vínculos com a terra e com os sentimentos humanos, ao
“encaminhar-se para um mundo de essências”. Segundo o escritor, no entanto, o que
estava por vir com Ariana, a mulher (1936) seria “o mais puro e legítimo grito do
humano, do integralmente humano”; Vinicius teria nos dado uma reafirmação de suas
qualidades fundamentais e a “garantia de que jamais as atrações etéreas dos céus mortos
poderiam ser bastante fortes para separá-lo da terra e de suas emoções básicas”.38
Recentemente, Bruno Cosentino apontou que o primeiro e o último verso deste
poema-livro, semelhantes,39 revelam a solidão aguda do poeta, embora a peregrinação
onírica em busca de Ariana tenha ressignificado aquelas palavras: “Trata-se, como
disse, da passagem de uma solidão experimentada na figura do um para uma solidão
experimentada na figura do dois, vivida religiosamente, ainda que fora de instituições e
dogmas”.40 A leitura segue em conformidade com o seu entendimento de que Vinicius
passou por um processo de conversão a uma religiosidade mundana — experimentada
no amor. Nesse sentido, Ariana, a mulher seria emblemático ponto de inflexão na obra
do poeta.
De modo geral, os estudos acerca deste poema registram a ascensão estética da
poesia de Vinicius e, no campo semântico, o prenúncio de uma reorientação — rumo a
um escopo mais conectado com a realidade material; o poeta já ensaiava, ali,
substâncias presentes no lirismo das Cinco elegias (1943). Mas um dado central para a
sua inteira apreciação resta ainda hoje por ser dito explicitamente: “Ariana” é uma das
variantes, em língua portuguesa, do nome da figura mitológica — Ariadne, ou Ariadna;

38
FARIA, Octavio de. A transfiguração da montanha. In: MORAES. Vinicius de. Obra poética. Org. Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, pp. 635-47.
39
Anexo I, pp. 134-7.
40
COSENTINO, Bruno. O andrógino meigo e violento: amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius
de Moraes (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2019, p.47 (grifo nosso).

29
e, no conjunto de imagens que pode evocar, incluem-se, numerosos, os elementos
dionisíacos — em função de determinados mitos que envolvem a presença da filha de
Minos e que guardam uma relação direta com Dioniso. Ariana, aqui, não é somente a
metonímia de um primordial feminino (“a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem-
amada!”); e, absolutamente, não possui qualquer ligação com a “mulher de Áries, do
planeta Marte”;41 mas é a amante assinalada na mitologia — aquela que passou a
carregar todo o complexo de significados de uma mortal-imortal, após ganhar, nos
percursos do amor, os atributos divinos ofertados pelo companheiro. Sem a consciência
desse dado central, a leitura fatalmente se entrelaça, em algum momento, nos embaraços
dos símbolos e de um aparente despropósito de seus componentes grotescos. A
transformação perceptível na obra poética de Vinicius de Moraes, portanto, passou por
aquela que é um ponto de contato entre os céus e a terra.
Esta aventura onírica, vivenciada por um poeta solitário “na sala deserta daquela
casa cheia da montanha em torno”,42 faz lembrar que, no século XVI, grotescos
ornamentais ganharam a alcunha de sogni dei pittori (sonhos dos pintores) — tendo em
vista as formas de invenção livre, como nos sonhos. A licença para que os artistas
fossem além dos padrões conferidos por postulados clássicos, ultrapassando, por meio
da fantasia e da desordenação do mundo, a mimese do verdadeiro, havia fixado o
vínculo substancial entre o grotesco e o onírico, a subversão das leis naturais e a criação
de monstros.

Senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das


[paredes e se plantara aos meus olhos em toda a sua
[fixidez noturna/ (...)
Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua
[deglutição monstruosa mas para mim era como se
[ela estivesse morta
Paralisada e fria, imensamente erguida em sua
[sombra imóvel para o céu alto e sem lua43

41
JAFFE, Noemi. Uma poesia subjuntiva. In: MORAES, Vinicius de. Forma e exegese e Ariana, a mulher. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.114.
42
MORAES, Vinicius de. Ariana, a mulher. Rio de Janeiro: Pongetti, 1936.
43
Op. cit., pp. 5-6. Obs.: Algumas pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia
poética (1954, 60) e, por isso, incorporadas nas citações. MORAES, Vinicius de. Ariana, a mulher. Antologia
poética. Segunda edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 65-71.

30
Antes das considerações mais circunscritas ao poema, cabe aqui levantar
algumas histórias sobre a figura mitológica de Ariadne. Seu pai, o poderoso rei de
Creta, submetia os atenienses a tributarem, todos os anos, sete jovens e sete donzelas
para que fossem devorados pelo Minotauro — uma criatura terrível, com corpo de
homem e cabeça de touro, que se abrigava no complexo labirinto construído por
Dédalo.44 Foi então que Teseu — filho de Egeu, rei de Atenas —, um jovem com
espírito de herói e desejoso de se destacar como Hércules, apresentou-se
voluntariamente para ser uma das vítimas do tributo, com o objetivo improvável de
liquidar a criatura. Ao chegar em Creta, os jovens foram exibidos ao rei Minos; sua
filha, Ariadne, que estava presente, acabou se apaixonando por Teseu. “A jovem deu-
lhe, então, uma espada, para enfrentar o Minotauro, e um novelo de linha, graças ao
qual poderia encontrar o caminho. Teseu foi bem-sucedido, matando Minotauro e
saindo do labirinto”.45
O herói parte com a filha de Minos de volta a Atenas, mas ela não chega com
Teseu ao seu destino. O desaparecimento de Ariadne é controverso se compararmos
algumas das distintas versões que nos servem de referência.
Na Biblioteca de (pseudo-) Apolodoro46 consta que, no caminho, ela teria sido
raptada por Dioniso, que a levou a Lemnos, onde tiveram quatro filhos:

Por la noche llegó a Naxos en compañía de Ariadna y los muchachos


del tributo. Allí Dioniso se enamoró de Ariadna y la raptó y
habiéndosela llevado a Lemnos, se unió con ella y engendró a Toante,
Estáfilo, Enopión y Pepareto.47

A breve menção ao mito na Odisseia de Homero acaba perturbando a cronologia


mais usual, uma vez que sugere um envolvimento antecedente entre Ariadne e Dioniso,
resultando em um fim desventuroso:

44
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2006.
45
Op. cit., p.154.
46
APOLODORO. Biblioteca mitologica. Edición José Calderón Felices. Madrid: Akal, 2013. Obs.: Apolodoro
de Atenas (180a.C.-120a.C.) foi um erudito grego, historiador e gramático. A eminência de seu nome deu
origem a várias imitações ou atribuições errôneas. A Biblioteca era tradicionalmente atribuída a ele, mas
muitos estudiosos contradizem essa autoria.
47
Op. cit., p.114.

31
Vi também Fedra, Prócris e a bela Ariadne, filha do temível Minos;
Teseu levara esta de Creta um dia para o outeiro de Atenas sagrada,
mas não chegou a desfrutar o seu amor, porque Ártemis a matou antes,
em dia em meio às ondas, por denúncia de Dioniso.48

A história compreendida por Thomas Bulfinch foi mesmo a de um abandono


proposital, e remete ao texto de Ovídio (“logo o descendente de Egeu, levando consigo
a filha de Minos,/ dá à vela para Dia49 e, cruel, nessa praia abandona sua companheira./
É Líber50 quem socorre e ampara a abandonada queixosa”).51 Essa é a versão mais
influente e parafraseada até os nossos dias.

Levando, então, Ariadne, ele regressou a Atenas, juntamente com os


companheiros salvos do monstro. Durante a viagem, pararam na Ilha
de Naxos, onde Teseu abandonou Ariadne, deixando-a adormecida.52
A desculpa que deu para tratar com tanta ingratidão sua benfeitora foi
que Minerva lhe apareceu num sonho ordenando-lhe que assim o
fizesse. (...) Despertando e vendo-se sozinha, Ariadne entregou-se ao
desespero. Vênus,53 porém, apiedou-se dela e consolou-a com a
promessa de que teria um amante imortal, em lugar do mortal que
tivera. (...) Enquanto Ariadne lamentava seu destino, Baco encontrou-
a, consolou-a e desposou-a. Como presente de casamento, deu-lhe
uma coroa de ouro, cravejada de pedras preciosas que atirou ao céu
quando Ariadne morreu. À medida que a coroa subia no espaço, as
pedras preciosas foram se tornando mais brilhantes até se
transformarem em estrelas (...).54

O romance entre Ariadne e Dioniso serviu de inspiração a artistas de muitos


gêneros desde a antiguidade, o que se mostra em esculturas ou nas pinturas ornamentais
de vasos e painéis que sobrevivem já sem autoria. Posteriormente, nomes como Tiziano

48
HOMERO. Odisseia. Trad. Jaime Bruna. Clássicos Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2010, p.180.
49
Antigo nome da Ilha de Naxos.
50
Divindade arcaica da Itália central que presidia à cultura da vinha e à fertilidade dos campos. Foi
identificada com Baco: deus equivalente, na mitologia romana, a Dioniso, da mitologia grega.
51
OVÍDIO. Metamorfoses. Ed. bilíngue. Trad., intr., notas Domingos Lucas Dias. Apres. João Angelo Oliva
Neto. São Paulo: Editora 34, 2017, p.427.
52
Uma das mais belas esculturas da Itália, a Ariadne deitada do Vaticano, representa esse episódio. (Nota
de Bulfinch.)
53
Deusa equivalente, na mitologia romana, a Afrodite, da mitologia grega.
54
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2006, pp. 154-66.

32
Vecellio, Sebastiano Ricci, Angelika Kauffmann e Eugène Delacroix perpetuaram a
ideia de um casal exitoso e muito peculiar — dado todo o simbolismo dionisíaco,
aparentemente em oposição diametral ao do casamento cristão. Nietzsche menciona
Ariadne e Dioniso muitas vezes ao longo de sua obra, direta ou indiretamente; 55 e
considera o deus grego, sob vários aspectos, uma espécie de modelo filosófico a ser
alcançado pelo indivíduo; grande parte de seus escritos poéticos são realizados
supostamente na forma dos ditirambos, que eram manifestações situadas nos primórdios
da poesia, executadas por um canto coral liderado por um corifeu, sempre em honra e
culto a Dioniso.
Muitos elementos levam a acreditar que, na viagem onírica em busca de Ariana,
a perspectiva do poeta filia-se mais aos domínios de Dioniso do que àqueles do herói
Teseu. A começar que a divindade havia sido originalmente, antes de incorporar a
extensão de significados que lhe são comuns, “o deus da vegetação”; conectado à seiva
da vida que flui nas plantas, nas flores primaveris, Dioniso representava a energia
natural que leva aos frutos a maturidade plena; por outro lado, poderia ele tomar
igualmente as formas dos “demônios da vegetação”, como a do bode, a do touro
selvagem ou mesmo as das desventuras do inverno. É o que nos ensinam as
investigações de Walter Friedrich Otto.56 Por isso, em nome da divindade, o
esquartejamento e a ingesta desses animais deveria cumprir o objetivo de se apropriar
do jogo da vida: aos homens, oferecer a vitalidade e a potência sexual; às mulheres, a
força e as graças da natureza prolífica, ao mesmo tempo em que elas dedicavam essa
mesma força à terra, à natureza capaz de conceber, de dar à luz.57
No poema, os fenômenos que introduzem o personagem na busca por Ariana
passam por quatro recortes oníricos submergidos nessa esfera semântica dionisíaca: 1) a
entrada invisível de uma Natureza morta-viva através das paredes da sala; 2) a
percepção de que o impulso sexual, inerte pelo medo, poderia trazê-la de volta à vida
plena; 3) a penetração “no ventre quente de uma campina de vegetação úmida” — e a
consequente percepção de que a Natureza estava “profundamente viva” e de que a
morte, na verdade, só residia nele próprio; 4) a impotência e a decorrente rejeição —

55
Ver o ensaio “Mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, de Gilles Deleuze. Trad. Peter Pál Pelbart. In:
Cadernos de Nietzsche. 20, 2016.
56
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965.
57
Op. cit., pp. 130-1.

33
“traição” — por parte da Natureza, que o envelhece eras — ao menos enquanto ele não
souber encontrar a “Amada salva das águas”:

Com Ariana, a essência da mulher dionisíaca se eleva aos


máximos cumes. Ela é a imagem perfeita da beleza que, tocada pelo
amado, confere imortalidade à vida. E, no entanto, essa beleza deve
passar por uma estrada cujos terminais inevitáveis são o lamento e a
morte.
Ela é explicitamente denominada a esposa de Dioniso. E, bem
como Sêmele, mãe do deus grego, apesar de ter nascido mortal, como
bem-amada foi lhe dado compartilhar com ele a imortalidade. Por
amor a Dioniso, disse Hesíodo,58 Zeus concede a ela a vida eterna e a
juventude eterna.59

O poeta parte para a sua longa “peregrinação” e tenta falar com a própria terra,
de joelhos: “Sou eu, Ariana...”. Porém, “eis que um grande pássaro azul” vai até ele e
lhe canta: “Eu sou Ariana!”. Mais que uma procura de algo que vai além das formas
físicas, e que possui um inegável caráter divinal (“Quem és que te devo procurar em
toda a parte e estás em cada uma?”), tratamos de um olhar em busca de algo que ainda
não se conhece, e que, ademais, se entrelaça aos devaneios e delírios do sonho. De
imediato nos ocorre que, ainda nos primeiros anos de sua fase adulta, Dioniso foi
castigado pela rainha dos céus, Hera, que o enlouquece; e fez com que ele passasse a
vagar errante, desvairado e alucinado, por muitas partes do mundo. Filho de uma
relação adúltera entre Zeus e Sêmele, Dioniso havia sido transformado por Zeus em um
cabrito e ofertado às ninfas niseanas, para que ele pudesse se esconder do ciúme furioso
de Hera; mais tarde, ela o reconhece no vinhedo e o acomete com o castigo. 60 Foi
somente na Frígia que a deusa Reia curou a loucura de Dioniso e o instruiu em seus
ritos religiosos; ele então aponta sua peregrinação em direção à Ásia, ensinando os
povos a cultivar a vinha:

58
“Dioniso, o de dourados cabelos, fez da loura Ariadne, filha de Minos, sua florescente esposa. E o filho
de Crono tornou-a imortal e jovem para sempre” (HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Trad. Sueli Maria
de Regino. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2014, p.64).
59
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, p.181. (Tradução do autor.)
60
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2006, pp. 161-2; e BOTELHO, J. F.; HORTA, M.; NOGUEIRA, S. Mitologia: deuses, heróis,
lendas. São Paulo: Ed. Abril, 2012, pp. 96-7.

34
Dioniso fue el que descubrió la vid y, enloquecido por Hera, se
marchó errante por Egipto y Siria. Primero lo acogió Proteo, rey de
los egipcios; después llegó ante Cibeles, de Frigia, y allí, purificado
por Rea, aprendió los misterios, tomó de aquella un vestido y se fue
deprisa contra los indios a través de Tracia.61

O poeta cruza a campina, galga um monte, passa por muitos lugarejos acessos na
noite. E três aspectos distintos presentes na composição vão se entrecortando, se
mesclando, de maneira a ser cada vez mais difícil separá-los: a narrativa poética (“eu
caminhava cheio do castigo e em busca do martírio de Ariana”), a imagem comparativa
(“era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava”) e o grotesco narrado
(“os milharais descendo os braços trituravam as formigas no solo”). O enredamento
desses aspectos — se é dada a licença para assim distingui-los — é de uma profusão
criadora que acaba oferecendo ao leitor a mesma sensação de estranheza, de
vulnerabilidade, do iminente imprevisível daquelas experiências oníricas como a
representada no poema. A respeito desse tipo de composição, Octavio de Faria, ao
comparar os poemas de O caminho para a distância com os de Forma e exegese,
observou que a poesia anterior se limitava a registrar “os sentimentos que o poeta
conseguia isolar e dar nome”; e que, no entanto, nos poemas mais recentes, os
sentimentos eram traduzidos em “novos termos poéticos”, “tão diferentes, tão pouco
comuns” que a impressão era a de que “o poeta está sendo vítima, senão de alucinações,
pelo menos de uma série de visões — estranhas visões que nos levam com ele a um
mundo desconhecido, absolutamente inesperado”.62
Questionados sobre onde Ariana poderia ser encontrada, os pescadores
mostravam o peixe; os ferreiros, o fogo; as mulheres, o sexo. Aqui o simbolismo pode
caminhar para muitas direções, que vão, desde a possibilidade de um profundo
entendimento dos significados por parte daqueles habitantes do caminho, até a completa
ignorância dos termos — de modo a reduzir a linguagem à tentativa de um gesto
satisfatório. Seriam, pois, o peixe, o fogo, o sexo, metonímias do sentido fundamental
da vida para cada um daqueles indivíduos? As repetidas respostas gestuais a uma
pergunta proferida em voz alta e timbre atormentado intensificam a atmosfera quimérica

61
APOLODORO. Biblioteca mitologica. Edición José Calderón Felices. Madrid: Akal, 2013, p.79.
62
FARIA, Octavio de. Dois poetas: Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Ariel,
1935, p.278.

35
da incursão. Porém, respondem bem menos que um só ruído do culto dionisíaco, agora
na savana:

Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e


[guizos batiam
Eu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à
[medida que eu penetrava na savana
No entanto era como se o canto que me chegava
[entoasse — Ariana!

As festas em honra a Dioniso eram comumente celebradas na Beócia e em


Trácia por mulheres, matronas e virgens, que portavam seus tirsos63 e cantavam pelo
regresso da divindade (nas Metamorfoses de Ovídio, ver VI, 587-600). Chegavam a
acreditar que ele se fazia presente por meio das danças frenéticas e do vinho que
tomavam.64 De acordo com Paul Foucart, festejou-se ao deus grego ainda no quinto
século, a cada dois anos. E, conquanto os homens não fossem excluídos, eram as
mulheres que se dedicavam em especial ao culto dionisíaco, no papel das Ménades —
seguidoras e adoradoras de Dioniso. Usavam vestidos longos e coroas de hera, um tirso
em uma das mãos e uma cobra domesticada na outra. À noite subiam a montanha e
davam início a danças e corridas, ambas desordenadas, onde se ouviam címbalos, aulos
e tambores; gritos de “evoé” e apelos apaixonados pela divindade eram sempre
reiterados; os movimentos eram abruptos, especialmente o da cabeça jogada para trás, e
contribuíam para lhes perturbar a razão; insensíveis à dor e à fatiga, o vigor teria sido
multiplicado por dez pelo delírio divino — ora se jogavam no chão, ora disparavam
atrás de Dioniso, cuja voz achavam que podiam ouvir; tomadas de fúria, cortavam em
pedaços os animais que encontravam, e devoravam sua carne cheia de sangue. 65 As
Ménades, segundo algumas histórias mitológicas, eram lideradas por Ariadne que,
inclusive, operava como guia para o seu coro.66
Segundo Maurício Horta, ao contrário do culto a outros deuses gregos, que
sacralizava a ordem da natureza e dos homens — para além da crença religiosa, os

63
Bastões enfeitados com hera e pâmpanos, por vezes dotados de guizos, e rematados em forma de
pinha.
64
HOYO, Javier del. Notas 558-9. In: HIGINO. Fábulas. Trad. Javier del Hoyo, José Miguel García Ruiz.
Madrid: Editorial Gredos, 2009, p.222.
65
FOUCART, Paul. Le culte de Dionysos en Attique. Paris: Imprimerie Nationale, 1904, 23-4.
66
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, pp. 186-7.

36
deuses seriam responsáveis por leis e costumes, bem como legitimavam as instituições e
os aspectos da vida social e política —, as festas dionisíacas atuavam como um tipo
diferente, oposto. Àqueles que estavam à margem da organização institucional da polis,
como as mulheres e os escravos, o culto a Dioniso ofereceria uma libertação radical
dessa ordem:

São derrubadas as barreiras entre homem e deus, natural e


sobrenatural, humano e animal. Não há mais autocontrole valorizado
pelos deuses. Nesse culto impera o delírio, a loucura da possessão, o
êxtase religioso, e uma intimidade com o divino tão intensa que funde
indivíduo e deus.67

Ou seja, em conformidade com o conceito kayseriano do grotesco, dos sogni dei


pittori, o culto dionisíaco é um mundo alheado, do absurdo, da loucura; da fusão do
humano com o vegetal, com o animal, dos hibridismos diversos; sua configuração é a
tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do mundo. 68 Lembremo-nos que,
nessa direção, Walter Otto afirma que Ariana é uma Afrodite mortal; e que pertence à
natureza dionisíaca que a vida e a morte, a mortalidade e a eternidade sejam misturadas
umas às outras de maneira milagrosa naqueles que estão próximos do deus. Ele próprio
é, afinal de contas, filho de uma mãe mortal; e, assim como Dioniso precisa suportar o
sofrimento e a morte, as mulheres com as quais ele está mais intimamente ligado
alcançam somente o estado de glória por meio de terríveis padecimentos.69 Com base
nessa cosmologia, o poeta compreende que “só onde cabia Deus cabia Ariana”. Mas
uma “ordem estranha” (e aqui novamente a desarticulação de uma ordem que se alheia,
como na teoria de Kayser) faz com que ele represente o próprio ente antagônico,
igualmente como a divindade poderia se transmudar, quando lhe aprouvesse, nos
demônios que supliciam os seus domínios:

E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das


[tocas e comiam os ratos

67
BOTELHO, J. F.; HORTA, M.; NOGUEIRA, S. Mitologia: deuses, heróis, lendas. São Paulo: Ed. Abril, 2012,
p.95.
68
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 155-62.
69
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, pp. 185.

37
Os porcos endemoninhados se devoraram, os cisnes
[tombavam cantando nos lagos
E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de
[águias precipitadas
E misteriosamente o joio se separava do trigo nos
[campos desertos
E os milharais descendo os braços trituravam as
[formigas no solo
E envenenadas pela terra decomposta as figueiras se
[tornavam profundamente secas.

Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e


[mulheres desposadas
Umas diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram
[cegas e paralíticas
E os homens me apontavam as plantações estorricadas e
[as vacas magras.
E eu dizia: Eu sou o enviado do Mal! e imediatamente as
[crianças morriam
E os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegos
E as plantações se tornavam pó que o vento carregava e
[sufocava as vacas magras.

Enquanto Deus é a representação do sublime, os demônios e o Diabo se tornam a


do grotesco, expresso na bestialidade, nos apetites e na materialidade. Segundo a
tradição antropomórfica, ele é dotado de traços humanos e animalescos. A bestialização
opera o composto entre opostos, homem versus animal, e revela o arquétipo do Mal e da
“descoberta do êxtase em todo o fenômeno, não importa quão naturalmente
repugnante”.70 Seria bom observar que, no carnaval, o Diabo é festivo, representa a
glutonaria, o riso e a licenciosidade expressos em sua configuração híbrida e em sua
presença constante em farsas como figuras burlescas. Para Charles Baudelaire (1821-
1867), o riso seria uma “ideia satânica” porque viria “da ideia de sua própria
superioridade”; e ainda nos conclama a observar, com base nos manicômios, que “o riso
é uma das expressões mais frequentes e mais numerosas da loucura”.71

70
CROWLEY, Aleister. O livro de Thoth. São Paulo: Editora Madras, Anubis Editores, 2000, p.104.
71
BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Org. e trad. Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2008, pp.
39-41.

38
Cerca de quatro décadas adiante ao lançamento de Ariana, a mulher, Hilda Hilst
apresenta um poema, dividido em uma série de dez partes, cujos eu-lírico e interlocutor
estão em posições trocadas caso façamos o paralelo com os versos de Vinicius: “Ode
descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”, em Júbilo, memória,
noviciado da paixão.72 Tal se introduz do seguinte modo: “É bom que seja assim,
Dionísio, que não venhas./ Voz e vento apenas/ Das coisas do lá fora// E sozinha supor/
Que se estivesses dentro// Essa voz importante e esse vento/ Das ramagens de fora// Eu
jamais ouviria”.73 Por sua vez, a voz no poema de Vinicius de Moraes é cercada de
elementos dionisíacos, embora jamais tenhamos o nome da divindade em letras
explícitas — mesmo porque tratamos da experiência onírica de um poeta em sua “sala
deserta”, o eu-lírico fundamental, quando logo o silêncio faz pulsar uma “ordem de
horror” que dispara a delirante sequência de imagens e símbolos. A figura plenamente
designada, no entanto, é a de Ariana — que, contudo, não se torna suscetível às
delimitações como persona ao longo do texto. Segundo Otto, seu nome vem de uma
variante dialetal de Ariagne, utilizada em ornamentos dos vasos áticos e que se aplica
muitas vezes junto ao predicado ἁγνη, em geral traduzido como “a santíssima”. Mas a
palavra santa pode levar ao erro o leitor imerso na cultura cristã; tampouco é
satisfatório traduzi-la como pura, uma vez que o nosso conceito de pureza dificilmente
pode ser desligado das conotações morais. As palavras intangível e intacta aproximam-
nos mais de seu real significado, mas com elas devemos pensar na intangibilidade de
uma natureza aleijada do homem, tanto de seu aspecto bom como nocivo. O predicado
está próximo do divino e, por isso, o conceito de intacta associa-se também ao que é
digno de veneração.74 A despeito dos significados que lhe acercam, foi a designação, foi
o nome de Ariana que ressoou em alguma medida, ao fim, nos sonhos do poeta — única
substância tangível. E apenas o ressoar de seu nome fez com que a natureza
reestabelecesse a aparência mais propícia às perspectivas e ao contento do poeta; o
mesmo nome que o trouxe de volta à ordem reconhecível, perto dos velhos objetos
amigos.

72
São Paulo: Massao Ohno, 1974.
73
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.256.
74
OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press,
1965, pp. 182-3.

39
IV. ZABUMBAS NAS CAVEIRAS (M. BAKHTIN)

De acordo com o estudo de Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre as influências


populares nos romances de Rabelais — A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965) —, o verdadeiro significado do
grotesco pode ser compreendido quando retornamos às festas públicas medievais e
renascentistas, aos ritos e cultos cômicos especiais; aos bufões e tolos, gigantes, anões e
monstros, palhaços de diversos estilos e categorias; à vasta e multiforme literatura
paródica etc. Isto é, quando verificamos as formas e manifestações de uma parcela da
cultura cômica popular, especialmente a cultura carnavalesca.
Bakhtin se diz surpreendido ao deparar-se com as definições propostas por
Wolfgang Kayser, devido ao tom profundamente lúgubre, terrível e espantoso do
grotesco; e afirma que o grotesco na Idade Média e no Renascimento era impregnado da
visão carnavalesca do mundo; e, consequentemente, esse mundo se libertava do que
nele pudesse haver de terrível e assustador, tornando-o inofensivo, alegre e luminoso.
Tudo o que, em outro momento, viria a ser motivo de espanto e terror transformava-se,
no mundo carnavalesco, em alegres espantalhos cômicos. O medo seria então a
expressão extrema de uma seriedade unilateral que, no carnaval, seria fatalmente
suplantada pelo riso coletivo — ofertado pela absoluta liberdade que caracteriza o
grotesco.
Para tanto, o que é elevado, espiritual, ideal, abstrato, ou gravemente respeitoso,
ou temível, sofreria o rebaixamento para um plano material e corporal, para os domínios
da terra e do corpo. Ainda que esse processo levasse inevitavelmente o objeto rebaixado
ao ridículo e à zombaria, às degradações, levava-o sempre, também, à aproximação e à
comunhão com a terra, concebido como “um princípio de absorção” e “de nascimento”.
Segundo o teórico russo, essas degradações não continham apenas um valor negativo,
destrutivo, mas também positivo, regenerador: “é ambivalente, ao mesmo tempo
negação e afirmação. Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição
absoluta, mas também para o baixo positivo, no qual se realizam a concepção e o

40
nascimento, e onde tudo cresce profusamente”.75 Bakhtin considera que o expediente
degradante na paródia típica de seus contemporâneos é exclusivamente negativo e
carece dessa ambivalência regeneradora; o riso carnavalesco, por outro lado, seria ao
mesmo tempo burlador e alegre, sarcástico e cheio de alvoroço; é aquele que nega e
afirma, amortalha e ressuscita, simultaneamente; sobretudo, um patrimônio do povo,
universal, capaz de rir de todos e, inclusive, de si mesmo (um riso geral), já que o
mundo inteiro se tornaria cômico, depreendido em seu aspecto jocoso.
Às imagens referentes ao orbe semântico material e corporal, presentes na obra
de Rabelais — herança da cultura cômica popular e de uma concepção estética da vida
prática —, as quais seriam indissociáveis de sua força regeneradora, o teórico dá o
nome de realismo grotesco. Aparentemente um oximoro, a expressão é justificada de
modo complexo por Bakhtin. Em resumo, o termo “realismo” indicaria representações
conotativas dessa constante transformação, desse caráter inacabado, móvel e mutável de
tudo quanto existe, o significante das constantes divisões, interseções e proliferações, do
nascimento e da morte; seria este o arcabouço de todos os grandes escritores que ele
caracteriza como realistas (Stendhal, Balzac, Hugo, Dickens), que teriam sido
influenciados pelas imagens grotescas — diretamente ligadas à cultura carnavalesca —
dos grandes escritores do Renascimento (Rabelais, Cervantes, Sterne); a ausência de
elementos transformadores e regeneradores no realismo teria corrompido o estilo para o
que nomeia pejorativamente de “empirismo naturalista”.76 E, uma vez que o termo
“grotesco” é a designação tardia para um fenômeno estético bem mais antigo do que a
descoberta daqueles motivos ornamentais no século XV, Bakhtin distingue-o desde a
sua presença na mitologia e na arte arcaica de todos os povos, iluminando as superfícies
mais cômicas, e oferta seu intervalo histórico crucial entre manifestações populares da
Idade Média e a literatura do Renascimento:

Na realidade, a função do grotesco é liberar o homem das formas de


necessidade inumana em que se baseiam as ideias dominantes sobre o
mundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter
relativo e ilimitado. A necessidade apresenta-se num determinado
momento como algo sério, incondicional e peremptório. Mas
historicamente as ideias de necessidade são sempre relativas e

75
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.19.
76
Op. cit., p.45.

41
versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base
do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de
significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o
pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para
o desenvolvimento de novas possibilidades.77

Em grande medida, o teórico desenvolve os conceitos de grotesco e de realismo


de maneira que, entre ambos, se determinem interseções fundamentais. A oposição
entre o que chama de estética clássica, ou seja, estética da vida cotidiana preestabelecida
e completa, acima de tudo estática, e um conjunto de imagens que remete à permanente
transformação e ao desenvolvimento do mundo, que passa pela morte, pelo nascimento,
por desagregações e degradações de todo o tipo e pelo poder regenerador desse
movimento, deixa os conceitos num mesmo polo dentre os rumos possíveis da
concepção artística. Nesse lugar, caberia ao grotesco uma alegre relativização de todos
os elementos seriamente peremptórios, estáticos, da gravidade ilusória, mediante a
carnavalização da consciência e o rebaixamento do que é elevado ou temível. Vejamos,
pois, o seguinte trecho do poema “A última viagem de Jayme Ovalle”:

A cada vez que a Morte, a sério


Com cicerônica prestança
Mostrava a Ovalle um cemitério
Ele apontava uma criança.

A Morte, em Londres e Paris


Levou-o à forca e à guilhotina
Porém em Roma, Ovalle quis
Tomar a sua canjebrina.

Mostrou-lhe a Morte as catacumbas


E suas ósseas prateleiras
Mas riu-se muito, tais zabumbas
Fazia Ovalle nas caveiras.78

77
Op. cit., p.43.
78
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 54-5. Obs.:
A grafia de “cangebrina” (aguardente de cana; cachaça), com g, foi retificada (Anexo I, pp. 155-6).

42
Antes de verificarmos o caráter específico do riso ou do espanto em face do
poema, é preciso dispensar ao menos algumas linhas sobre a figura de Jayme Ovalle e
da curiosa atmosfera evocada pelo seu nome. Além de músico, poeta e amigo querido
de artistas e intelectuais da cena cultural e boêmia da primeira metade do século XX,
tornou-se um personagem de atributos míticos devido a sua personalidade muito
peculiar que, a todo instante, parecia estar sempre submersa em poesia. Ovalle é citado
em poemas e vários escritos de Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, e se torna
inclusive personagem do romance O encontro marcado (1956), de Fernando Sabino. O
crítico Davi Arrigucci Jr. reconhece nele “um elemento de cunho literário” e se lhe
refere como uma “entidade paraficcional”; observa que, conquanto pertença ao mundo
verdadeiro, transmuda-se numa figura recorrente do universo imaginário, “tomando
forma nos textos, onde passa a valer sobretudo pela força simbólica com que atinge o
leitor”.79 Ovalle é autor do que chamava de Nova Gnomonia, um conjunto de arquétipos
que categorizavam os indivíduos em “dantas”, “parás”, “mozarlescos”, “kernianos” e
“onésimos”, o que servia como código bem-humorado entre ele, seus amigos e demais
que o cercavam.80
No poema em questão, essa “força simbólica”, vigorosa, permeada de poesia,
imaginação, amizade etc., contrasta com a figura da Morte em sua conformação
antropomórfica. Em casos distintos, ela ressalta entre os temas mais “nobres”, formais,
elevados, transcendentes e, em maior ou menor medida, sérios e temíveis, tanto em
grande parte das interações cotidianas como da produção filosófica e artística. No
entanto, a Morte é rebaixada e se torna um espantalho cômico — precisamente nos
termos bakhtinianos — ao se interessar pelo alegre relativismo, pela sem-cerimônia e
ausência do senso de hierarquias ou superioridade de Jayme Ovalle. Ela mostrava “a
sério” — a seriedade unilateral — e com “cicerônica prestança” — a dicção elevada —
os cemitérios. Mas ele, então, apontava as crianças. Faz-se aqui uma comunhão entre
alguns dos principais elementos que integrariam o real movimento do mundo; o alto e o
baixo, a morte e o nascimento. A ideia dominante, que neste contexto é o significado da
morte, da perda, precisa ser regenerada. Na direção do que afirma Bakhtin, o
“verdadeiro grotesco” se esforçaria em representar em suas imagens o devir, “o

79
ARRIGUCCI JR, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. 2ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, pp. 50-2.
80
Ver a entrevista de Jayme Ovalle dada ao próprio Vinicius, bem como alguns perfis traçados sobre o
paraense por Humberto Werneck e também por Vinicius de Moraes em “O impossível aconteceu a Ovalle”
(Revista Azougue, nº 8. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003, pp. 56-69).

43
crescimento, o inacabamento perpétuo da existência”, “ao mesmo tempo o que parte e o
que está chegando, o que morre e o que nasce”.81 E o riso se espraia uma vez que Ovalle
quer tomar sua aguardente, depois dos passeios em que a Morte o levou “à forca e à
guilhotina”; pouco adiante o poema conta que estão “ambos de porre”. Além de uma
dessacralização ostensiva, executada por intermédio do cômico e do absurdo — de uma
carnavalização da consciência —, a imagem da alegre bebedeira entre os dois explicita
fundamentos importantes da tese do realismo grotesco. “O comer e o beber são uma das
manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco”, expõe o teórico russo. “As
características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado, em interação com
o mundo”. E observa em cada uma das imagens do beber e do comer apresentadas por
Rabelais, a poderosa “tendência à abundância e à universalidade”, “o seu hiperbolismo
positivo, o seu tom triunfal e alegre”; bem como o modo como se ligam à interação, “à
palavra, à conversação sábia, à verdade alegre”. Segundo Bakhtin, desde os seus
primórdios, o homem “triunfava do mundo”, pois, em vez de ser engolido por ele,
engolia-o: “a fronteira entre o homem e o mundo apagava-se num sentido em que lhe
era favorável”.82 Não é difícil perceber como sua teoria, aos poucos, associa o
hibridismo ao coletivismo, e a imagética das grutas, inerentes ao primeiro significado
do grotesco e próprio das artes ornamentais, à imagética da terra e do corpo. Isso é
possível a partir do resgate de uma “visão carnavalesca do mundo”, emergida na
Antiguidade e cultivada generosamente em manifestações populares da Idade Média e
do Renascimento. Essa visão induziria ao riso coletivo, de tudo e de si mesmo, e faz
zabumbas nas caveiras. Ao final do poema, o guardião do campo santo diz que, já
“noite alta”, “ainda se ouvia/ A voz da Morte, um tanto ou quanto/ Que ria, ria, ria,
ria...”.
A morte é um tema central na poesia de Vinicius de Moraes; suas incidências
são abundantes e parelhas com as do tema amoroso; e, frequentemente, os campos
semânticos dos temas se avizinham, se completam, esteja o motivo com um ou com
outro. Sua conformação antropomórfica é memorável em poemas como “A última
viagem de Jayme Ovalle”, “O haver”, “Romance da Amada e da Morte” 83 e “Tanguinho
macabro”. Este último contém um componente que intensifica a natureza, digamos,
bakhtiniana de sua substância grotesca. O poema estava entre aqueles que fariam parte

81
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.46.
82
Op. cit., p. 243-5.
83
(Anexo I, pp. 159-63)

44
do livro Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro,
onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes, que jamais
foi concretizado pelo poeta; e uma das intenções do projeto era a de que marcas da
cultura popular, por vezes folclóricas, fossem deixadas ao longo de todo o livro,
especialmente das manifestações oriundas do Rio de Janeiro e cercanias. O sujeito lírico
no poema confunde a figura da Morte com sua mulher, Maricota — o ambiente é
chuvoso, ela está de capuz e pede para que a luz não seja acesa. “Maricota” é uma
figuração de domínio circense; loura, alta e decorosa, distribui tapas aos atrevidos; foi
incorporada e consagrada pelo folguedo sulista Boi-de-mamão;84 na cultura popular
carioca, o nome assimilou um significado que compreende mulheres bonitas, bem-
arrumadas e educadas; e encarna geralmente a personagem da esposa em autos e danças
populares.85 Aqui, a semântica folclórica é ainda mais realçada quando na forma dos
estribilhos e da redondilha maior:

— Maricota, os teus dois olhos


São poços de escuridão!
— Maricota, os teus dois olhos
São poços de escuridão!
— Não são olhos, são crateras
São crateras de vulcão
Para engolir e et cetera
Os moços que vêm e vão.

— Maricota, o teu nariz


São duas fossas de verdade!
Maricota, o teu nariz
São duas fossas de verdade!
— Não é nariz não, mocinho
É uma grande cavidade
Para sentir o cheirinho
Dessa tua mocidade.

84
RIBEIRO, José. Brasil no folclore. Rio de Janeiro: Aurora, 1970, pp. 337-51.
85
Nos anos de 1970, no Rio de Janeiro, a variante “cocota” foi muito comum, e designava mulheres
elegantes de classe média ou alta; já na virada do século, o termo foi associado a mulheres desinibidas ou
de trajes curtos, talvez pela influência do termo francês “cocotte”, de seu significado informal, invertendo
em grande medida a acepção folclórica.

45
— Maricota, a tua boca
Não tem lábios de beijar!
— Maricota, a tua boca
Não tem lábios de beijar!
— Não é boca, meu tesouro
É um sorriso alveolar
São quatro pivôs de ouro
Presos no maxilar.

(...)
E a morte levou o moço
Para o fatal matrimônio
Deu-lhe seu púbis de osso
Sua tíbia e seu perônio
Diz que o corpo descomposto
De manhã foi encontrado
Mas que sorria o seu rosto
Um sorriso enigmático.86

No corpo grotesco bakhtiniano, os orifícios corporais parecem se aliar


simbolicamente às grutas (à grotta), às cavidades, às crateras, bem como o baixo
corporal e seu interior ao subterrâneo profundo. Os orifícios, as ramificações, as
excrescências têm o valor especial do que “prolonga o corpo, reúne-o aos outros corpos
ou ao mundo não-corporal”; caracterizar-se-iam, pois, “pelo fato de que são o lugar
onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e o mundo, onde se efetuam as
trocas e as orientações recíprocas”.87 E então evidenciamos nitidamente o hibridismo e
o coletivismo dividindo a mesma esfera simbólica e função representativa; esse corpo
aberto e incompleto não estaria delimitado do mundo. Tão logo apresenta sua teoria,
Bakhtin afirma que o corpo no realismo grotesco “está misturado ao mundo, confundido
com os animais e as coisas. É um corpo cósmico e representa o conjunto do mundo
material e corporal, em todos os seus elementos”.88 O rebaixamento com o objetivo de
degradar e, ao mesmo tempo, regenerar funcionaria como expressão metonímica do

86
MORAES, Vinicius de. Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde
nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes. Org. e apres. Daniel Gil; Ilustr.
Juliana Russo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 60-3.
87
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.277.
88
Op. cit., p.24.

46
cotidiano e do caráter cíclico da natureza. O raciocínio remete imediatamente a um
conhecido poema de Vinicius, lançado em 1938: “Soneto de intimidade” — marco de
um retorno e atualização do soneto na poesia brasileira. Amalgamando a forma
tradicional dodecassílaba e o plano semântico do comum, do corriqueiro, o poeta
expressa um movimento remansoso de conciliação com o mundo natural. E, ao
desfrutar os caminhos na tarde da fazenda, é tomado por um ânimo que acaba por
reorientá-lo em meio a tudo quanto o rodeava:

Nas tardes da fazenda há muito azul demais.


Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais


Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume


Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve


Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.89

Um parêntese oportuno: a urina não é um elemento incomum na poesia de


Vinicius. Lembremo-nos de “A mulher na noite” (E cabras cheirando forte urinavam
sobre as minhas pernas); “Balada feroz” (Mija sobre o lugar dos mendigos nas
escadarias sórdidas dos templos/ E escarra sobre todos os que se proclamarem
miseráveis); “Pátria minha” (grande rio secular/ Que bebe nuvem, come terra/ E urina
mar); “Balanço do filho morto” (Da órbita cega os olhos dolorosos/ Fogem, moles, se
arrastam como lesmas/ Empós a doce, inexistente marca/ Do vômito, da queda, da
mijada); “A Estrelinha Polar” (O firmamento lactesceu todo em poluções vibrantes de
astros/ E a Estrelinha Polar fez um pipi de prata no atlântico penico), “A casa”

89
MORAES, Vinicius de. Soneto de intimidade. Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p.15.

47
(Ninguém podia/ Fazer pipi/ Porque penico/ Não tinha ali); e, em seu considerável
espólio de poemas esparsos, “Balada das lavadeiras” (Lava as fezes e a urina/ E o
vômito da bebida/ O sarampo e a escarlatina/ E o rubro plasma da vida); “Estâncias a
minha filha” (Me deixas cheirando a mijo/ Não raro a pior também); “O pranteado”
(Esfreguem extrato/ Por todo o seu corpo/ Porque ele urinou-se/ No último esforço);
“Meu Deus, eu andei com Manuel Bandeira” (E abri na choradeira enquanto depositava
a urina guardada de há muito na latrina branca de minha família feliz).
Numa leitura bastante original, Eucanaã Ferraz considera que “Soneto de
intimidade” é um dos melhores exemplos da transição entre a poesia mais abstrata e
simbolista de Vinicius de Moraes para aquela mais conectada com a realidade material;
seus versos teriam sido retirados do desejo de “abandonar irrestritamente os traços
divinizantes e metafísicos da poesia anterior em favor de um imaginário mais terreno”;
os quais ainda estariam, porém, presentes no soneto, uma vez que o alheamento radical
e a bestialização do humano, em alguma medida, resultariam em “uma atmosfera
idealizada de pureza e isolamento”.90 Eucanaã serve-se de uma datação do poema,
“Campo Belo, 1937” (incluída em 1967, na edição aumentada do Livro de sonetos),
para interpretar o verso “No pijama irreal de há três anos atrás”: o que nos levaria ao
ano intermediário entre os dois primeiros livros do poeta, ou seja, seu momento mais
metafísico. Nessa direção, podemos observar os elementos típicos do realismo grotesco
no “Soneto de intimidade” — a mastigação do capim, o beber e o comer, a deglutição, o
cuspir, a imagem sanguínea, e, finalmente, o estrume e o seu “cheiro”, as “mijadas” (na
variante mais chã), a unidade entre o homem e os animais, que estão “em comum”
representados na mistura dos seus excrementos — e, definidos como instrumentos de
uma ação regeneradora, conectá-los com o movimento de transformação da própria
poética viniciana, em relação metonímica com o poema. Havendo ali, então, uma
substância idealizadora e individualizante, ela é notada porquanto presente em um
processo de rebaixamento e regeneração. De acordo com a teoria bakhtiniana, “a atitude
em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante) indispensável
da imagem grotesca”.91
A tomada de consciência acerca do tempo na perspectiva grotesca teria se
sofisticado desde uma simples justaposição das duas fases do desenvolvimento,

90
FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. Col. Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006, pp. 32-8.
91
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.21-2.

48
“começo e fim: inverno-primavera, morte-nascimento”, até um “poderoso sentimento da
história e da alternância histórica, que surge com excepcional vigor no Renascimento”.
Mas Rabelais teria conjugado essa percepção histórica conservando seu conteúdo e
matéria tradicional: “o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a
desagregação e o despedaçamento corporal, etc.”. Como exemplo de obras que
simbolizam essa concepção grotesca do corpo, Bakhtin nos fala das estatuetas de
terracota de Kertch que caracterizam velhas grávidas. A velhice e a gravidez estariam
ali grotescamente sublinhadas, e, ademais, “essas velhas grávidas riem”. Nesse sentido,
a imagem grotesca do corpo, além de conservar a tendência fundamental dos dois
corpos em um, teria muitas vezes idades fronteiriças ao nascimento ou à morte: “a
primeira infância e a velhice, com ênfase posta na sua proximidade do ventre ou do
túmulo, o seio que lhe deu a vida ou que o sepultou”.92 Dentro dessa atmosfera,
verificamos um poema tão estranho quanto interessante publicado a primeira vez por
Vinicius em sua Antologia poética (1954): “Desert Hot Springs”. O título se reporta a
uma pequena cidade do estado americano da Califórnia, que se destaca por numerosas
fontes naturais, de águas quentes e frias. Até o início do século XX, o lugar desértico
era ocupado somente por um grupo indígena que por lá acampava durante o inverno;
tornou-se um ponto turístico a partir dos anos de 1950 devido aos spas e hotéis-
butiques; vários imóveis foram construídos e adquiridos por aposentados, e a área foi
incorporada como cidade em 1963. De Desert Hot Springs, o poeta detalha com sinistra
poesia a velhice e as suas marcas mais profundas; isso em contraste com a juventude,
especialmente a de um cuidador, na piscina pública, que “Arrasta pelo ladrilho
deformidades insolúveis”. Os que têm a idade mais avançada não deixam de libertar
alguma alegria, mas notemos como Vinicius prefere a palavra “rictos” à palavra “risos”,
evocando um movimento de mais instabilidade se comparado àquele preestabelecido
como ação ou efeito de rir.

As cálidas águas minerais/ (...)


Acariciam aleivosamente seios deflatados
Pernas esquálidas, gótico americano
De onde protuberam dolorosas cariátides patológicas.
Às bordas da piscina
A velhice engruvinhada morcega em posições fetais

92
Op. cit., p.22-3.

49
Enquanto a infância incendida atira-se contra o azul
Estilhaçando gotas luminosas e libertando rictos
De faces mumificadas em sofrimentos e lembranças.93

É justo ressaltar a beleza (ou antibeleza) de uma composição em que visíveis


patologias físicas se tornam “dolorosas cariátides”. O poeta se refere a esculturas
clássicas com forma feminina que servem como elemento arquitetônico, tomando o
lugar de pilares ou colunas; as cariátides mais famosas são as do templo grego
Erecteion, consagrado a Atena e Poseidon. Na imagem de “Desert Hot Springs”, elas se
encontram no que o poeta chama de “gótico americano”, ou seja, aqueles corpos
representados grotescamente no poema, em notória degradação. Além do quê, esses
corpos estão “em posições fetais” — como se retratassem e sintetizassem o incansável
ciclo da vida. O próprio deserto, em epílogo, é expresso incorporando esse movimento
permanente do mundo em que todas as formas se fazem e se desfazem. Ele fora visto
em “Sua dura beleza outramente inabitável” e reaparece como “O grande deserto nu e
só, coberto de calcificações anômalas/ E arbustos ensimesmados; o grande deserto
antigo e áspero/ Testemunha das origens; o grande deserto em luta permanente contra a
morte”.
Mikhail Bakhtin atentou-se a determinadas manifestações da cultura cômica
popular da Idade Média e do Renascimento, sobretudo a cultura carnavalesca, e a
dividiu em três grandes categorias, considerando a multiplicidade de suas formas e de
seus gêneros: os ritos e os espetáculos das praças públicas; as obras cômicas verbais,
inclusive as paródicas, orais e escritas; e o vocabulário familiar e grosseiro encontrado
em insultos, juramentos, blasões populares etc. O teórico russo sustenta que os aspectos
sérios e cômicos da divindade, do mundo e do homem, existentes desde um estágio
anterior à civilização primitiva, foram se remodelando a partir do estabelecimento de
um regime de Estado e de classes sociais até alcançar o intervalo histórico por ele mais
abordado. A cultura cômica, pois, teria adquirido um aspecto não-oficial e se tornado
fundamentalmente popular, como forma de expressão; festejos carnavalescos do mundo
antigo, bem como as saturnais romanas, serviriam como exemplo da distinção frente ao
riso ritual das comunidades primitivas. Por sua vez, o carnaval não era uma forma
artística de espetáculo, de teatro, tampouco representado nos palcos: sua fronteira não
era espacial. Em verdade, seria uma forma provisória mas concreta da própria vida: o

93
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954, pp. 264-5 (Anexo I, pp. 147-8).

50
carnaval era a segunda vida do povo; baseada no princípio do riso, era a sua vida
festiva. A inversão e o rebaixamento existentes nessas ocasiões específicas, reservadas
na vida do povo, dariam margem à ridicularização das instituições austeras e dos
poderosos; o elevado tornava-se comum e o riso substituía o medo. Ou seja, o grotesco
identificado nos festivais de rua da Idade Média e do Renascimento seria marcadamente
alegre, uma forma de dessacralizar os aspectos graves e opressivos por meio do riso
espontâneo.
Em sua exuberante História do riso e do escárnio (2002), o historiador francês
Georges Minois afirma que as conclusões de Bakhtin se deparam com críticas
numerosas desde a sua elaboração, em especial com as do russo Aaron Gourevitch.94
Minois conta como o medievalista contestou a teoria fundamental por trás da tese sobre
Rabelais: ela teria desconsiderado os elos entre o riso, o medo e a raiva; e estendido à
cultura popular deduções extraídas somente de estudos sobre o Carnaval. Bakhtin teria
projetado para a Idade Média a realidade soviética dos anos de 1960, com uma
sociedade de dois níveis: “o oficial, ideológico, e o da vida real, sob a cobertura fictícia
mantida pelo partido”; Gourevitch, enfim, pede para que desconfiemos das
interpretações da cultura popular dada por intelectuais.95 Ainda segundo o levantamento
de Georges Minois, críticas variadas visam à concepção do grotesco que o reporta
exclusivamente às potências prolíficas do riso. De fato, o grotesco teria mesmo outra
face, resultante de uma desestruturação do mundo conhecido, o qual se dissolve,
fragiliza-se e se faz estranho, estrangeiro — como já afirmara Wolfgang Kayser. O
próprio historiador francês nos assegura que, inclusive, “o bestiário monstruoso da
escultura medieval oscila no diabólico angustiante”, a testemunhar “mais de uma visão
cômica, mais de uma visão trágica e, para dizer tudo, satânica, cujo ápice não será
Rabelais, mas Jerônimo Bosch”. A aproximação dos nomes do escritor e do pintor
demonstraria uma visão maniqueísta de Bakhtin. Ele encerra o raciocínio citando uma
assertiva do estudo de Christian W. Thompsen: “o grotesco provém de um
distanciamento em relação ao mundo, que tanto pode ser fonte de riso quanto de
temor”.96

94
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo:
Editora UNESP, 2003, pp. 156-60.
95
GOUREVITCH, Aaron. Bakhtin and his theory of Carnival. A cultural history of humour. Oxford: ed.
J.Bremmer e H. Roodenburg, 1997, pp. 54-60. In: MINOIS, Georges. Op. cit., pp. 160.
96
THOMPSEN, Christian W. Das groteskeim englischen roman des 18. Jahrhunderts. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974. In: MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria
Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, pp. 160.

51
O conceito de grotesco desenvolvido em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais é robusto, fascinante e indispensável
para o manuseio do termo; é capaz de preencher praticamente todas as lacunas que
ainda restavam em seu significado após um debate que já atravessa alguns séculos, entre
intelectuais e artistas da maior grandeza. No entanto, o teórico russo optou por excluir
uma parcela basilar de seu conteúdo, talvez em nome da expressividade que um caráter
radicalmente unilateral pudesse oferecer à disseminação de suas perspectivas. Bakhtin,
ao combater a obra de Kayser, chega a colocar em suposta “contradição insuperável” a
liberdade da fantasia característica do grotesco e a imagem do mundo dominado por um
id fantasmal — como se não houvesse no centro da própria teoria kayseriana um
movimento do fenômeno grotesco pelos seus três domínios: o processo criativo, a obra
e a sua recepção (sendo que o grotesco “só é experimentado na recepção”,97 de acordo
com o estudioso de Berlim). Do mesmo modo, ele interpreta o enunciado “no grotesco
não se trata de medo da morte, porém de angústia de viver”, belíssimo, como se, de
acordo com o grotesco kayseriano, a morte fosse uma “negação da vida”, 98 isto é,
elementos imiscíveis do ponto de vista imagético — quando a própria locução “angústia
de viver” expressa evidentemente o contrário: sentimentos paradoxais de vida e morte,
que se integram e se confundem. Por último, conquanto haja uma distância monumental
entre o homem de hoje e aquele do Renascimento, é inverossímil que o mesmo ser
humano capaz de se amedrontar com as sombras arbóreas projetadas em sua janela
esteja sempre pleno de leveza em frente a deformações ou degradações, ou ainda diante
de determinadas figuras híbridas e monstruosas. Podemos sentenciar, contudo, não
obstante a incisiva oposição entre duas teorias gerais do grotesco e o antagonismo de
suas respostas, que tais obras compõem na prática uma inteireza histórica e conceitual, o
que as impele a uma imprescindível associação quando o que importa é a compreensão
ampla e irrestrita do termo.

97
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p.156.
98
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.43.

52
V. O BANQUETE DO OMNÍVORO

Já discorremos aqui sobre as qualidades especiais do corpo no realismo grotesco:


aberto, inacabado, em interação com o mundo. Seria, pois, no ato de comer que tal
natureza se manifestaria de modo mais tangível, concreto. Ao engolir, devorar,
despedaçar, esse corpo remete o mundo para dentro de si próprio; e se enriquece, e
cresce às suas custas. “O encontro do homem com o mundo que se opera na grande
boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e mais marcantes
do pensamento humano”, assevera Bakhtin.99 No comer e no beber, na deglutição, na
absorção, o homem sentiria o sabor de um mundo que não o devorou, não o comeu; e,
de maneira alegre, vitoriosa, triunfal, faria daquilo que o rodeia uma parte de si mesmo
(imagem bakhtiniana que, sem dúvida alguma, evoca o hibridismo característico dos
grotescos ornamentais).
Objeto principal do teórico, a literatura de François Rabelais produz episódios
copiosos e ridículos de superabundância, hiperbolismo positivo e universalidade
envolvendo a comilança de seus gigantes glutões. Rabelais enfatiza o exagero ilimitado
em suas imagens, sem escusar, inclusive, a cena de nascimento de um dos protagonistas
— inaugurando ali um cerne moral a ser estampado e transportado pelo próprio nome
do recém-nascido:

O simpático Grandgousier, bebendo e se divertindo com os outros,


ouviu o grito horrível que o filho tinha dado ao entrar na luz deste
mundo quando bradava: “Beber, beber, beber!”, e exclamou: “Que
garganta a tua!” Ouvindo isso, os presentes disseram que, realmente,
ele deveria ter o nome de “Gargântua”, pois essa fora a primeira
palavra de seu pai, depois do seu nascimento, à imitação e ao exemplo
dos hebreus. O que foi aceito por aquele e agradou muito à sua mãe.
E, para apaziguá-lo, deram-lhe de beber à farta, e foi levado à pia
99
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.245.

53
batismal, e batizado, como é costume dos bons cristãos. E mandaram
vir dezessete mil novecentas e treze vacas de Paultille e de Brehemon,
para aleitá-lo ordinariamente, pois achar-lhe ama de leite suficiente
não era possível em todo o país, considerando a grande quantidade de
leite necessária para alimentá-lo.100

Na obra do escritor renascentista, as imagens do beber, do comer, da ingestão


não guardariam vínculo com os atos comuns do cotidiano, vitais ao corpo isolado, ao
corpo de cada um dos indivíduos. Além de representar o supérfluo e o exagero em
proporções quiméricas, essas imagens estariam a todo instante ligadas, em certa medida,
ao banquete da festa popular. Seguindo esse raciocínio, Bakhtin recua alguns séculos
até chegar ao conto Coena Cypriani, escrito na Antiguidade Tardia. O texto de autoria
controversa teria sido então nada menos que o inaugurador da tradição grotesca.101 Ali
se reúnem muitos personagens bíblicos num grandioso banquete; e quase todas as
passagens festivas da Bíblia Sagrada são de alguma forma citadas, tendo como base a
parábola do rei que deseja celebrar as núpcias do filho (Mateus, 22:1-14). A
carnavalização dos símbolos e das personalidades, o conteúdo alegre e os principais
argumentos da obra teriam aberto a literatura à tradição medieval dos banquetes. O
teórico afirma que somente num ambiente como aquele, do banquete, Rabelais poderia
expressar a verdade livre e franca, somente “no tom das conversações à mesa”, pois
“esse ambiente e esse tom respondiam à própria essência da verdade tal como ele a
conhecia: uma verdade interiormente livre, alegre e materialista”.102 É curioso lembrar,
a propósito, que Vinicius havia cantado um “materialismo elementar” precisamente em
um de seus poemas dispensados à glutonaria: “Soneto ao caju”. Neste caso, uma
aproximação de reflexão estética e filosofia política, se existe, não é transparente como
na obra bakhtiniana, mas a presença de imagens compatíveis com a ideia do realismo
grotesco é algo a ser verificado:

Amo na vida as coisas que têm sumo


E oferecem matéria onde pegar
Amo a noite, amo a música, amo o mar
Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo.

100
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Júnior. Capa de Cláudio Martins. Col.
Grandes Obras da Cultura Universal, vol. 14. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003, p.48.
101
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 250-3.
102
Op. cit., p.249. Grifo de Bakhtin.

54
Por isso amo o caju, em que resumo
Esse materialismo elementar
Fruto de cica, fruto de manchar
Sempre mordaz, constantemente a prumo.

Amo vê-lo agarrado ao cajueiro


À beira-mar, a copular com o galho
A castanha brutal como que tesa:

O único fruto — não fruta — brasileiro


Que possui consistência de caralho
E carrega um culhão na natureza.103

Restringir o amor àquilo que tem “sumo” e “matéria onde pegar” poderia de fato
ser um materialismo primário, bruto, “elementar”. Mas a adjetivação é ironicamente
realizada em um âmbito cujas substâncias mais díspares se equiparam e se comunicam.
Aqui se tornam matérias palpáveis aquelas que engendram a noite e a música; também
o mar — constituído não apenas do seu tecido fluido e desmesurado, mas também,
simbolicamente, da matéria cósmica que, semelhante à terra, se associa à vida, à
fertilidade e às profundezas. Não há nesse conjunto uma classificação que separe os
elementos quanto à consistência física ou à magnitude: tudo é matéria tátil, matéria de
“pegar”, desde que sejam agentes de comoção ou transição na realidade compreendida
pelo poeta — sobretudo, suponhamos, a mulher. Nessa perspectiva, o caju seria o
alimento síntese, o “resumo” desse constante movimento de contato e de relação entre
as matérias. Antes de tudo, é um fruto “de cica”, “de manchar”, isto é, ele interage,
marca, altera as sensações e a constituição do ambiente que o circunda; seria um objeto
especialmente aberto para com o mundo. A lógica, é claro, depende de um humor
alegre e certo espírito glutão típicos das “conversações à mesa”. Entretanto, a
indubitável atmosfera de simpósio dá-se por meio de uma interação heterogênea, mas
harmoniosa, entre o poeta e tudo aquilo que atravessa o seu “materialismo”. O caju é a
metonímia dessa dinâmica: ele está sempre disposto, “mordaz, constantemente a
prumo”; está à beira-mar (novamente, o mar); e está “agarrado ao cajueiro”, “a copular

103
Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2017, p.547.

55
com o galho”. Sua caracterização notabiliza um espraiar-se para fora de seus limites;
seu comportamento é contrário a um recolhimento ensimesmado.
Se conjugadas ao individualismo, “imagens do grande ventre, da boca
escancarada, do falo enorme e a imagem popular positiva do ‘homem saciado’,
aparentadas à imagem do banquete”, ganhariam contradições internas com sua
específica tendência à abundância, observa Bakhtin.104 Mas o contexto retratado por
Vinicius é de uma celebração entre as matérias; e, quanto mais perto chegamos, mais se
nos desnudam as interações e os seus contornos obscenos. Aos poucos, o cenário se
revela; o “sumo”, a “cica” e os termos que remetem ao vigor e à turgidez ganham
dimensão semântica. É então que se tornam precisas as considerações de Georges
Bataille sobre a obscenidade e sua definição a partir de uma quebra do senso de
individualidade que antes parecia estável e seguro: no poema, são expostos justamente
os exercícios da abertura, do pegar (à prova da “consistência”), do experimentar, da
absorção em amplo sentido e, em última instância, da “fusão”.

A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado


fechado, ou seja, ao estado de existência descontínua. É um estado de
comunicação, que revela a busca de uma continuidade possível do ser
para além do fechamento em si mesmo. Os corpos se abrem à
continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento
da obscenidade. A obscenidade significa a perturbação que desordena
um estado dos corpos conforme à posse de si, à posse da
individualidade duradoura e afirmada. Há, ao contrário, despossessão
no jogo dos órgãos que se derramam na renovação da fusão,
semelhante ao vaivém das ondas que se penetram e se perdem umas
nas outras. 105

Por sua vez, o caju seria um tanto mais que um objeto que se inter-relaciona com
o mundo do poeta: o alimento possui um papel ativo em todo o processo, explicitado
pela própria aparência — ele é um falo “brutal”, sempre ereto. Essa simbologia chega
ao ápice no último terceto. De início, o poeta simula jocosamente o tom de uma
observação importantíssima ao distinguir gêneros: “O único fruto — não fruta”. Esse

104
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 254-5.
105
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.41.

56
tom é fabricado com a ajuda de uma síncope na proparoxítona, que dá brevidade às duas
primeiras sílabas e mais força à terceira (o ún| co| fruto), já na palavra a ser destacada.106
Logo, temos em relevo ambos os gêneros, “fruto” e “fruta”, devido à cesura do verso
heroico (o ún| co| fru| to| não| fruta). Esse ritmo será reiterado até o desfecho do poema,
como anapestos que ecoam a distinção entre dois termos. No segundo verso, a
“consistência” remete imediatamente ao “pegar”, isto é, a ação capital do materialismo
viniciano; e, por influxo do ato, ao “sumo”. O fruto possui “consistência de caralho”: o
léxico se rebaixa em relação àquele anteriormente escolhido para o poema; não mais se
ajusta aos moldes do “copular com o galho” ou da castanha “como que tesa”. Nesse
momento, o soneto ganha com o imprevisto e o risível, e acaba demonstrando na prática
a ideia de que as figuras análogas à do banquete, das conversações à mesa, inclinam-se
de modo natural a uma libertação do vocabulário e de uma verdade alegre, dispensada
de observar as distâncias hierárquicas entre coisas e valores. Segundo as investigações
de Bakhtin, tal inclinação pode ser verificada desde as homilias de Zenão até a Coena
Cypriani, bem como se mostra em sátiras e paródias dos séculos XV e XVI: “A
intrusão, na língua dos clérigos e dos escolares, de uma quantidade inaudita de
transformações verbais coloquiais de textos sagrados relacionados com o beber e o
comer, testemunha a grande faculdade que tinham esses últimos de liberar a palavra”. 107
É o que se confirma também no verso final do poema quando o conceito popular de “ter
colhões”, ligado a uma virilidade destemida, se manifesta no desenho muito peculiar,
nas próprias formas específicas do caju. Toda essa nova morfologia botânica,
obviamente, só encontra algum fundamento na comicidade e na liberdade poética e
criativa de Vinicius de Moraes.108
A datação de “Soneto ao caju” indica o mesmo ano de “Não comerei da alface a
verde pétala...”: 1947. Contudo, o primeiro não chegou a ser publicado, e ganhou livro
apenas em edições póstumas; o segundo veio a público em Para viver um grande amor,
de 1962. É possível que a similitude temática, específica, tenha influído na decisão de se

106
No segundo volume da obra A literatura no Brasil, org. Afrânio Coutinho, o poeta e ensaísta Cassiano
Ricardo menciona síncopes desse tipo na poesia de Gonçalves Dias, afirmando que tal praxe “é hoje usual
nos proparoxítonos em meio do decassílabo” (2ª ed. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1969, p.97). Ver
também o artigo “A síncope das vogais postônicas não-finais: variação na fala popular urbana do Rio de
Janeiro”, de Danielle Kely Gomes, na revista científica Diadorim, Vol. 8, 2011.
107
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 258-9.
108
A rigor, o fruto mesmo é apenas o caroço escuro dentro do qual se faz a castanha; a parte amarelada
que mais salienta o caju, e que guarda o seu sumo, é um pedúnculo floral, um pseudofruto. De certa
forma, uma designação mais técnica poderia evocar uma simbologia diametralmente oposta à elaborada
pelo poeta.

57
optar exclusivamente por um deles, o qual se pôs conjuntamente à “Feijoada à minha
moda” — os dois poemas de caráter... alimentar do volume. “Não comerei da alface a
verde pétala...” é um espirituoso soneto dedicado também à glutonaria, e que, por sua
vez, expressa uma recusa àqueles vegetais geralmente presentes em dietas consideradas
leves e saudáveis. O poema acompanha desde a sua primeira edição a seguinte nota de
rodapé: “Iludia-se o poeta. Num tempo em que as coisas andaram meio pretas, ele teve
que se enquadrar direitinho e andou comendo legumes na água e sal como qualquer
outro”. É uma composição formalmente mais sofisticada que o “Soneto ao caju”; muito
de seu humor vem da combinação de uma determinada estética, uma dicção nobre,
elevada e muito tradicional com uma significação bufona que, de outra forma, seria
comum aos modos de um glutão deselegante:

Não comerei da alface a verde pétala


Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas


Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita do cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois


Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati


E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão. 109

Se, por um lado, “Soneto de intimidade” havia ganhado relevo ao executar,


justamente a despeito de sua matéria episódica e grotesca, um andamento que se liga
pela tradição aos temas considerados superiores, por outro, “Não comerei da alface a
verde pétala...” ultrapassa-o nesse contraste e na quantidade de recursos envolvidos. O
aspecto da sua linguagem, que parece altiva, antiga e, paradoxalmente, simpática ao

109
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p.92.

58
leitor contemporâneo, é delineado com a ajuda de hipérbatos, adjetivações, detalhes
lexicais, escolha das imagens etc. E por isso a forma fixa não funciona como único ou
principal meio desse contraste; antes, ela se adequa naturalmente ao que é dito,
conquanto os significados, em última instância, não lhe sejam os mais familiares.
Aquilo que no “Soneto de intimidade” soaria à crítica desatenta como um engano de
forma radicaliza-se, aqui, de modo a atingir praticamente a totalidade dos mecanismos
de expressão. O objetivo de tudo é uma só ironia, mas uma ironia formal: dizer com
decoro e refinamento o que é, por essência do assunto, crasso, deselegante. Em alguma
medida, o soneto joga com o lugar-comum popular que reclama da contradição em um
poeta dizendo tais coisas. Vejamos, a exemplo, como Vinicius constrói uma atmosfera
elevada por meio de um léxico afim à religiosidade — mesmo que, ao final, os
significados sejam típicos de uma ordinária conversação à mesa. Seu elemento mais
visível está, sem disfarce, no terceiro verso, quando “as hóstias desbotadas” servem de
representação para as rodelas da cenoura. Notemos, entretanto, como a negativa que
inicia o soneto, “Não comerei”, alude às formas imperativas negativas dos
mandamentos bíblicos; nessa direção, lembremo-nos também que o pasto (as
“pastagens”) possui um sentido figurado de sustento espiritual, bem como de um estado
de alegria, de regozijo; e que a forma flexionada do verbo aprazer, “aprouver”, ainda
sobrevive, quase somente, na linguagem bacharelesca ou nas traduções do texto bíblico,
como este em Deuteronômio (14:22-9):

... e irás ao lugar que o Senhor teu Deus tiver escolhido; e comprarás
com esse mesmo dinheiro tudo o que te aprouver, ou seja de bois ou
seja de ovelhas, e vinho e licores fermentados, e tudo o que a tua alma
deseja; e comerás diante do Senhor teu Deus, banqueteando-te tu e tua
família;... 110

A transferência ao plano da terra e do corpo daquilo que é elevado, espiritual, ou


seja, a dinâmica do rebaixamento, realiza-se então num caminho contrário ao do
comum. O que acontece, à primeira vista, é uma elevação de tudo o que se liga ao
telúrico e ao baixo corporal no poema, isto é, os alimentos: a folha da alface se converte
em “verde pétala”; as fatias da cenoura se tornam hóstias; e verduras em geral são
pastos com toda a altiva simbologia. No entanto, essas hóstias estão desbotadas, e

110
Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966, p.215.

59
muitos nexos ruins podem ser cogitados com a imagem das manadas (tolice, gente
influenciável etc.), as quais, por seu turno, foram postas entre aqueles que fazem dieta.
A atmosfera elevada se transforma uma vez que aceita se comunicar com os elementos
que vieram de um plano mais baixo, como acontece inclusive, por vezes, nas próprias
escrituras. É preciso registrar, a propósito, que a poesia de Vinicius jamais deixou, ao
menos esteticamente, o imaginário cristão — estivesse ela em qualquer fase. Ao se
distanciar da fé católica, o poeta acaba por reformá-lo: esse imaginário muito se desfoca
do papel moral e passa a se ater no arcabouço estético, incorporando a instalação de
cenários os mais variados. Tal movimento, porém, coincide com o distanciar-se de um
verso longo, de natureza bíblica, o que inclina o elemento religioso mais à esfera
semântica. Textos memoráveis como o “Poema de Natal”, “O dia da criação”, “O filho
do homem”, “O operário em construção”, “São Francisco”, “O haver” e “Sob o trópico
do câncer” são apenas alguns exemplos de presença renovada desse imaginário. Em
“Não comerei da alface a verde pétala...”, essas imagens dialogam com a tradição
literária, satírica e paródica, salientada nos estudos de Bakhtin, que envolve os
banquetes e as escrituras sagradas.
Não era improvável que o caju constasse também nesse contexto. O fruto de cica
aparece eventualmente em alguns poemas da obra, além dos dois já citados, e se
encontra inclusive com total favoritismo em “Autorretrato”: “Minhas frutas prediletas/
Por ordem de preferência:/ Caju, manga e abacaxi”.111 O quinto e o sexto verso do
soneto em questão, que o convocam (“Cajus hei de chupar, mangas-espadas/ Talvez
pouco elegantes para um poeta”), acolhem um sentido malicioso, especialmente quando
postos em proximidade com o “Soneto ao caju”. Inicialmente, consideramos que cajus e
mangas-espadas oferecem uma experiência mais sumarenta e passível de deslizes
protocolares do que a conferida por peras e maçãs, e por isso eles seriam “pouco
elegantes para um poeta”. Se levarmos em conta, entretanto, a perspectiva impressa
naquele poema em homenagem ao fruto, em consonância com as possíveis associações
advindas da variedade específica da manga, temos então um bem-humorado viés fálico
que sacramenta o tom libertário e brincalhão de todo o enunciado. Evidentemente, o
jogo está em dar uma elegância kitsch ao inerente caráter chão dos dizeres, e, quanto

111
MORAES, Vinicius de. Obra poética. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, p.14. Obs.:
“Autorretrato” aparece como preâmbulo desta primeira reunião de sua poesia, com a seguinte nota: “O
poema foi feito, na hora, a pedido de João Condé, para os ‘Arquivos Implacáveis’ de O Cruzeiro, e lançado
no programa do mesmo nome, na TV Tupi, em 1956”. Ele esteve desaparecido das edições de obra
reunida até ser resgatado pela seção “Dispersos” do box Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro
(org. Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p.492-4).

60
mais clássica e suscetível ao gosto mediano for a superfície aparente do grotesco, mais a
brincadeira se sucede — o que Vinicius prepara com notável virtuosismo. Abraham A.
Moles afirma que o kitsch “é a aceitação social do prazer pela comunhão secreta com
um ‘mau gosto’ repousante e moderado”. E se prolonga:

Pitada de bom gosto na falta de gosto, pitada de arte na feiura,


raminho de visco sob o lustre na sala de espera da estação ferroviária,
vidro niquelado no lugar em que se passa, flor artificial perdida em
White Chapel, caixa de costura em pinho de Vosges, Gemütlichkeit112
do ambiente cotidiano, arte adaptada à vida e cuja função adaptativa
ultrapassa a função inovadora (...).113

O comportamento métrico dos tercetos de “Não comerei da alface a verde


pétala...” merece alguma atenção. Até aqui, o ritmo do soneto vinha em ortodoxos
decassílabos heroicos, em conformidade com a dicção nobre, um tanto camoniana, que
precisava ser marcada — inclusive expressa no próprio título, com o tradicionalíssimo
costume de designar o soneto com o seu primeiro verso. (Há também uma reiteração
constante dos primeiros acentos mais fortes, que vai do início ao fim do poema: 1º e 2º
versos, quarta sílaba; 3º e 4º, terceira; 5º, 6º e 7º, segunda; 8º e 9º, terceira; 10º, 11º e
12º, segunda; 13º e 14º versos, quarta sílaba.) Todavia, o verso “Nem como os coelhos,
roedor; nasci”, além de conjugar um sintagma com o início de outro, imprime um
andamento sáfico, o qual pede a sinérese em “coelhos” que, contudo, não se pode
realizar na leitura de “roedor”. Observemos que a leitura mais silabada de “roedor” faz
com que a palavra tenha uma feição métrica parecida com “ruminante”: os dois tipos
majoritariamente herbívoros estão se comunicando tanto por meio da aliteração como
pela cadência. Por sua vez, a classificação do próprio poeta — “Omnívoro” — é
destacada pelo corte do sintagma e principia o verso mais heterodoxo do soneto:
“Omnívoro: deem-me feijão com arroz”. O decassílabo deixa de ter uma cesura
tradicional e faz com que o modo imperativo soe mais estranho e grosseiro, em franca
isomorfia. Mas o ritmo volta ao normal a partir do enjambement, já dando ares de
encerramento ao poema. Os alimentos de origem animal, junto à bebida alcoólica, são

112
Palavra composta que envolve os sentidos de comodidade, conforto, abastança e pachorra. (Nota do
tradutor.)
113
MOLES, Abraham Antoine. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva,
2012, p. 28.

61
reservados então de modo exclusivo à última estrofe, assim realçados, e coordenados
em polissíndeto; “parati”, com a inicial minúscula, é a metonímia da aguardente,
tomando como figura aquela fabricada na cidade de Paraty/RJ — o termo foi utilizado
como sinônimo da bebida destilada até meados do século XX, devido à sua tradicional
produção e qualidade. Tais preferências do poeta resultam numa combinação
tipicamente brasileira, considerando inclusive as frutas salvaguardadas no segundo
quarteto.
Órgãos como boca, dentes, língua, garganta, vinculados às funções inferiores do
corpo humano como a deglutição e a produção de fluidos, são elementos muito
importantes para o realismo grotesco, mormente sob as formas do exagero. Seriam
inclusive profícuos do ponto de vista mítico e telúrico, uma vez que eles remetem ao
ambiente interior, desconhecido, associado ao baixo e ao subterrâneo. Propenso às
cavidades, à analogia entre as aberturas do corpo humano e as grutas que levam às
profundezas, o grotesco tomaria esse universo corporal como representação do universo
total. Logo, os temas mais sérios e elevados, como a morte, são rebaixados para que
possam vir à tona, estranhos e risíveis, um tanto mais diretamente se intrometidos às
ações do comer e do beber. O que é o caso quando morrer “feliz” e morrer “do coração”
aparecem no mesmo verso, sobretudo conjugados pela hipótese da abundância: feliz do
coração. Isso na perspectiva bakhtiniana que faz da ingesta um triunfo vitorioso sobre o
mundo: “Uma refeição não poderia ser triste. Tristeza e comida são incompatíveis
(enquanto que a morte e a comida são perfeitamente compatíveis). O banquete celebra
sempre a vitória, é uma propriedade característica da sua natureza”.114 É importante
notar que o coração se faz aqui como um órgão de dúbio sentido: não somente o lugar-
comum responsável pelos sentimentos abstratos, como a felicidade; mas também a
substância material, a carne oca e perecível, conectada aos padrões alimentares e sujeita
a um infarto fulminante.

114
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.247.

62
VI. O FEIO ROMÂNTICO

O Romantismo ofereceu um novo significado à estética da feiura. Quando


percorremos as páginas de qualquer volume dedicado à história das artes, é muito
perceptível que ali ela reemerge desassombrada. Umberto Eco deu a esse momento
histórico o título de “O resgate romântico do feio”; e parte de uma reflexão de Gotthold
Ephraim Lessing (1729-1781) sobre o grupo estatuário Laocoonte para discorrer sobre o
assunto.115 O escritor saxão afirmava que a arte poética é um gênero mais propenso à
feiura que as artes pictóricas em geral. Seu entendimento era de que a poesia se
manifesta por meio de ações, no decurso do tempo, as quais evocam o imaginário
repugnante sem causar todos os sentimentos desagradáveis que seriam produzidos por
outra expressão — mais precisamente aquelas expressões que fixam a violência
deturpadora de um único instante (escultura, por exemplo), imitando-a como in natura.
Contudo, Lessing não encerra as possibilidades pictóricas, uma vez que reconhece o
ridículo e o terror como “sentimentos mistos” que podem suscitar “um novo grau de
penetração e deleite”.116 Esse raciocínio é apenas uma amostra do teor das discussões
estéticas que atravessavam o período pré-romântico. O deleite suscitado pelo terror já
havia sido apontado pelo filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797), mais radical e
curiosamente, ao tratar o objeto de espanto como um princípio do sublime:

Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de


perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado
a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma
fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção que o espírito é
capaz. (...) Quando o perigo ou a dor se apresentam como uma ameaça
decididamente iminente, não podem proporcionar nenhum deleite e
são meramente terríveis; mas quando são menos prováveis e de certo

115
ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 270-309.
116
LESSING, Gotthold Ephraim. In: Op. cit., p.272.

63
modo atenuadas, podem ser — e são — deliciosas, como nossa
experiência diária nos mostra.117

Em 1797, Friedrich Schlegel (1772-1829) assevera que o belo está longe de ser o
princípio dominante da moderna lírica118 e que “muitas das mais esplêndidas obras
modernas são representações evidentes do feio”.119 No arcabouço estético recomendado
em sua Conversa sobre poesia (1800), constam aquelas obras compostas ao sabor da
imaginação livre, engendradas como forças indômitas da natureza; elas nasceriam do
lúdico, dos contrastes, da ironia e do desarmônico; e, desse modo, aspirariam à
expressão da totalidade e do absoluto. O trabalho constitui “a mais importante
exposição das ideias estéticas do Romantismo inicial”.120 O arabesco seria então a
forma com a qual os artistas conseguem alcançar os elementos românticos, o potencial
definidor da poesia romântica. Conquanto não seja uma forma idealmente bela, é “uma
forma espirituosa, que conquistou sua fantasia, e uma impressão que nos permanece tão
determinada que podemos utilizá-la e configurá-la, seja para o gracejo, seja para a
seriedade”.121 Os arabescos poderiam se apartar das convenções de beleza e dos gêneros
fechados, bem como se manifestar na extravagância e no inverossímil.
Por meio de Ludovico, um dos personagens da Conversa, Schlegel expôs que à
poesia moderna faltava um “centro”, do qual usufruíam os antigos: “nós não temos uma
mitologia”.122 Sentia, entretanto, que uma “nova mitologia” estava se aproximando e
que a colaboração entre os artistas era importante para que fosse instituída. O poeta
percebera que o “Idealismo”, grande fenômeno da época, era indício eloquente de que
algo se engendrava, uma vez que esse fenômeno vinha “da mais íntima profundeza do
ser humano”. Ainda assim, seria apenas uma parte — o efeito de uma luta travada pela
humanidade para encontrar o seu “centro”. Nessa direção, o personagem Antônio
percebe que a poesia antiga “segue integralmente a mitologia e evita até mesmo a
matéria propriamente histórica”; e que, por outro lado, a poesia romântica “se assenta

117
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo.
Trad., apres. e notas Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus; Editora da Universidade de Campinas,
1993, p.48.
118
Os românticos tratavam como arte moderna aquela que vinha desde a ascensão do cristianismo.
119
SCHLEGEL, Friedrich. In: ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2014, pp. 275.
120
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 2009, p.53.
121
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.530.
122
Op. cit., p.514.

64
totalmente sobre o fundamento histórico, muito mais do que se sabe ou se acredita”. Por
isso os “modernos mais antigos”, como Shakespeare, Cervantes, a poesia italiana, a
época dos cavaleiros, do amor e das fábulas, seriam verdadeiros mananciais do
romântico para os poetas que se estabelecem nessas bases: “só isso pode produzir um
contraponto com a poesia da Antiguidade clássica; somente essas flores eternamente
frescas da fantasia são dignas de cingir as antigas imagens dos deuses”.123 Uma das
sugestões de Ludovico, por sua vez, é a de dar vida nova a mitologias diversas já
existentes, com o objetivo de acelerar o nascimento de outra; e, da mesma forma que o
amigo, ele enxerga no humour de Cervantes e de Shakespeare, edificado no todo de
suas obras, um exemplo de como alcançar a altura de uma poesia que se erguera no
emaranhado mitológico:

Com efeito, essa confusão artisticamente ordenada, essa atraente


simetria de contradições, essa maravilhosa e eterna alternância de
entusiasmo e ironia, que vive até nas menores partes do todo, já me
parecem ser uma mitologia indireta. A organização é a mesma, e
certamente o arabesco é a forma mais antiga e original da fantasia
humana. Nem esse chiste, nem uma mitologia podem existir sem algo
primordialmente original e inimitável, que é pura e simplesmente
indissolúvel, que ainda faz transluzir a antiga natureza e força mesmo
depois de todas as metamorfoses, em que a profundidade ingênua faz
transparecer o fulgor do que é ao revés e desatinado, simplório e tolo.
Pois este é o princípio de toda poesia, suprimir o curso e as leis da
razão razoavelmente pensante e nos colocar de novo na bela confusão
da fantasia, no caos original da natureza humana, para o qual não
conheço até agora símbolo mais belo do que a turba confusa dos
deuses antigos.124

Voltemos, pois, para Forma e exegese. A terceira parte é certamente a mais


grotesca daquele conjunto já estranhamente fantástico; e se articula em muitos níveis
com discussões e conclusões dos teóricos do Romantismo, apesar dos inúmeros
aspectos mais contemporâneos e modernizantes. Ali estão os seguintes poemas: “A
Legião dos Úrias”, “A última parábola”, “Alba”, “Uma mulher no meio do mar”, “O

123
Op. cit., pp. 535-6.
124
Op. cit., pp. 519-20.

65
escravo”, “O outro” e “A música das almas”. A principal razão pela qual a poesia de
Vinicius de Moraes dialoga frequentemente com parâmetros variados da estética
romântica é quase sempre desmudada, ou mesmo ignorada, o que pede, quando menos,
uma digressão. Apercebamo-nos, antes, do expressionismo hórrido deste trecho de “A
última parábola”, quando uma “história estranha e desconhecida” começa com um
cordeiro de luz pastando num grande espaço aberto:

Mas eis que um lobo feroz sobe de trás de


[uma montanha longínqua
E avança sobre o animal sagrado que apavorado se
[adelgaça em mulher nua
E escraviza o lobo que já agora é um enforcado que
[balança lentamente ao vento.
A mulher nua baila para um chefe árabe mas este
[corta-lhe a cabeça com uma espada
E atira-a sobre o colo de Jesus entre os pequeninos.
Eu vejo o olhar de piedade sobre a triste oferenda mas nesse
[momento saem da cabeça chifres que lhe ferem o rosto
E eis que é a cabeça de Satã cujo corpo são os pequeninos
E que ergue um braço apontando a Jesus uma luta de
[cavalos enfurecidos
Eu sigo o drama e vejo saírem de todos os
[lados mulheres e homens
Que eram como faunos e sereias e outros que
[eram como centauros
Se misturarem numa impossível confusão de braços e de pernas
E se unirem depois num grande gigante descomposto e
[ébrio de garras abertas125

Seres mitológicos experimentam novas circunstâncias ao se misturarem com


figuras bíblicas, metamorfoses originais, elementos fantásticos; as ações são compostas
de modo pavoroso e monstruoso, com vigor simbólico e violência. Nesta sequência
alucinada, centauros, faunos e sereias — que também são homens e mulheres, que
também se transfazem num gigante singularíssimo — foram abalroados com Jesus, com
Satã — que surge como um cordeiro sagrado —, onde também se encontram cavalos

125
MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 83-9 (Anexo I, p. 133).

66
enfurecidos e um lobo feroz. Aqui, tudo parece não apenas seguir em direção às
sugestões de Ludovico, mas desbordá-las.
A partir de meados século XIX, o sensível desgaste das formas e das ideias do
Romantismo deu origem a uma profusão de movimentos artísticos e vanguardas que
motivaram um sem número de manifestos, experimentalismos formais e disputas entre
os grupos que defendiam esta ou aquela alternativa estética. Tratamos, pois, do ponto de
partida do que chamamos hoje, no mundo da arte, de Modernismo. Nas artes plásticas,
podemos destacar movimentos como o impressionismo, o pós-impressionismo, o
fauvismo e o expressionismo. Nas literárias, o decadentismo, o simbolismo e o realismo
foram influentes e fundamentais para o soerguimento da modernidade. Os caminhos
múltiplos, nesse momento histórico, poderiam apontar tanto para uma reação aos
postulados românticos como para uma radicalização; muitas vezes, foram abertas
trilhas heterogêneas, de aspecto composto e inusitado. Na França, escritores como
Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé e Arthur Rimbaud
revolucionaram a poesia a partir da criação e da absorção de tendências, com grande
foco na originalidade e no experimentalismo; são nomes indissociáveis do simbolismo,
os quais, entre outras marcas, trouxeram em medida extrema a tentativa de apreensão do
infinito, do indizível e do absoluto — o que já era praticado desde os primórdios do
Romantismo, sobretudo o germânico, mas que muito se intensifica mediante uma
confiança ainda maior na figura do gênio e na eloquência do misterioso.
A perspectiva mais realista dos poemas parnasianos na virada do século era
proeminente e muito prestigiada no Brasil. Entretanto, à margem, uma poesia de
expressão simbolista começa a circular e a ganhar alguma atenção nos meios literários.
Dentre os seus maiores representantes, o patamar mais alto foi alcançado certamente por
Cruz e Sousa; o catarinense se muda para o Rio de Janeiro, onde, em 1893, tem os seus
livros Missal e Broquéis publicados pela editora Magalhães & Cia. “Cruz e Sousa, sob o
signo do simbolismo, arrisca um retorno aos ideais românticos em uma época dominada
pelo Zeitgeist realista, radicalizando muitas de suas formas de expressão, como o
grotesco, que recebe uma hipérbole em sua poesia”, observou Silva Santos.126 Já em
1912, o paraibano Augusto dos Anjos, poeta de mesma excelência, publica seu único
livro, Eu, também no Rio de Janeiro; Augusto se apropria tanto da estética simbolista

126
SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na
poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p.13. Obs.: Baseado
na Tese de Doutorado do autor, este livro é provavelmente o trabalho mais robusto entre os que
relacionam literatura brasileira e grotesco.

67
como da realista, que se mesclam em meio a uma sintaxe excêntrica inspirada no
materialismo e no evolucionismo. Nenhum dos dois lograria em vida todo o
reconhecimento merecido; mas, desde logo, uma tradição moderna veio a se
desenvolver, com bases semelhantes, mais constantemente na poesia praticada na
capital brasileira de então. A obra poética de Vinicius de Moraes é uma das legatárias
dos postulados românticos que vieram desse modernismo simbolista, duto pelo qual
melhor se observa e se compreende elementos estéticos que são encontrados em grandes
poetas brasileiros do século XX. Não nos ocupamos, portanto, com uma predileção
suspeita ou extemporânea do poeta; pelo contrário, é possível verificar uma consciência
profunda de Vinicius nas suas escolhas, conectada indubitavelmente com o
contemporâneo. A respeito, Antonio Carlos Secchin faz uma observação muito precisa
no posfácio da reedição de O caminho para a distância:

Aqui, o interesse histórico extrapola a aventura particular de Vinicius


e se projeta no painel mais amplo do conceito de modernismo em
nossa poesia. Como se sabe, a hegemonia da versão paulistana do
movimento acabou minimizando, quando não excluindo, a
consideração das demais vertentes da literatura modernista. Afirmar
que a geração de 22 foi iconoclasta e a geração de 30 representou a
maturidade e a reconstrução poética significa traçar uma
empobrecedora linha reta (quando a literatura é plena de sinuosidades)
que parte de Mário e Oswald de Andrade e desemboca em Drummond
e no Manuel Bandeira de Libertinagem. Para além dessa versão,
houve outras, entre as quais uma que dialogou com a linhagem
simbolista da modernidade (ignorada pelos modernistas de 22), e de
que são exemplos as obras de Cecília Meireles e de Augusto Frederico
Schmidt. Cecília, a bem dizer, só passou a ser reconhecida no Brasil a
partir de Viagem (1939), mas a ressonância da poesia de Schmidt foi
imediata, desde seu primeiro livro, Canto do brasileiro, de 1928. Seria
absurdo pensar na obra desses dois poetas como “amadurecimento”
das propostas dos protagonistas da Semana de Arte de 22, pois, a
rigor, nada devem a ela, do mesmo modo que a “geração de 30”
regionalista se formou na esteira de um diálogo com a literatura
realista do século XIX, e não sob o influxo de narrativas
transgressoras como Macunaíma e Memórias sentimentais de João
Miramar. Cecília e Augusto Frederico tampouco são

68
“antimodernistas”, a menos que o modernismo seja termo de uso
privativo do grupo de 22; são, antes, outros modernistas. É a essa
tendência que se filia o primeiro Vinicius, em 1933, com O caminho
para a distância.127

Quando a “geração de 22” se anuncia na Semana de Arte Moderna, bem como


posteriormente, nas revistas e nos jornais literários articulados com o movimento, as
expressões “modernismo”, “modernistas” ou até “moderno” apontaram para uma
estética oriunda de debates específicos, sob a influência das últimas vanguardas
europeias — especialmente o futurismo. E, por conseguinte, esses termos passam cada
vez mais a encerrar um recorte da literatura moderna, caso a interpretemos do ponto de
vista mais panorâmico. Tal embaraço entre significados acabou contribuindo para que
os argumentos decorrentes ou próximos do pensamento que se estabelecia pudessem
compreender as dessemelhanças como uma antonímia do moderno, isto é, como coisa
antiquada — mesmo que, em verdade, fossem alternativas também absolutamente
modernas. Alguns instrumentos críticos que já pertenciam a um senso mais realista,
antilírico e antirromântico desde a primazia parnasiana se reafirmam envoltos àquele
conjunto de concepções, mais contíguas ao materialismo do que aos valores abstratos;
vestígios de uma visão de mundo romântica, deixados por influxo do simbolismo, foram
logo sendo percebidos com excessiva suspeição mesmo estando presentes na maioria
dos grandes poetas brasileiros. Em 1966, a exemplo, o ensaio assinado por Antonio
Candido e Gilda de Mello e Souza é injustamente duro com os primeiros livros de
Manuel Bandeira.128 Segundo os autores, A cinza das horas, Carnaval e grande parte de
Ritmo dissoluto foram livros comprometidos pelo sentimentalismo que, “às vezes, ronda
os outros, ao modo de ameaça distante”; compunham uma atmosfera difusa “onde a
imprecisão dissolvia as formas e sentimentos na bruma do pós-simbolismo”; em que se
nota “um sentido algo convencional da cena expressiva ou da hora que foge, e que o
poeta tenta prolongar, esfumando-a numa certa elegância impressionista”; no entanto,
Bandeira teria se mostrado maduro em Libertinagem (o livro mais ligado ao
modernismo de Mário e Oswald), despindo-se “dos adornos coloridos e melodiosos que,
nos primeiros livros, dispersavam o impacto sobre o leitor”. Não obstante uma ascensão

127
SECCHIN, Antonio Carlos. Os caminhos de uma estreia. In: MORAES, Vinicius de. O caminho para a
distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 75-6.
128
CANDIDO, Antonio; MELLO E SOUZA, Gilda de. Estrela da vida inteira. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da
vida inteira. Org. André Seffrin. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, pp. 9-25.

69
paulatina no percurso de sua poesia, é surpreendente que mesmo um dos mais lúcidos e
acurados críticos da literatura brasileira desacredite nesses termos parte importante da
obra de um dos poetas mais regulares — constante na excelência — da poesia
brasileira; mais especificamente, o poeta de “Desencanto”, “A Antonio Nobre”, “Cartas
de meu avô”, “A dama branca”, “Madrigal”, dentre outros.
Os versos livres e longos do “primeiro Vinicius”, sobretudo os de Forma e
exegese e Ariana, a mulher, presentes ainda no mesmo feitio em Novos poemas e Cinco
elegias, não lembram aqueles do modernismo paulista; e parecem se aproximar de
versos franceses como o de Paul Claudel ou de uma ascendência que vai da poesia em
prosa de Cruz e Sousa aos versos de Schmidt em Canto da noite (1934).129 Ao se
conciliar, adiante, com uma esfera semântica mais vinculada ao cotidiano e, logo, com
uma linguagem mais aberta ao coloquial — substâncias caras ao movimento de 22 —, o
poeta viria, por outro lado, a exercer e revigorar as formas fixas tradicionais e
modalidades diversas do ritmo regular. Em qualquer desses momentos da obra, certa
inquietação com a ideia da totalidade e do absoluto atravessam a elaboração das
imagens, conquanto ela seja apontada em geral como característica daquela fase mais
submersa no simbolismo. Vejamos, por exemplo, o desfecho da “Balada do enterrado
vivo”, em Poemas, sonetos e baladas (1946):

Raspa, cara enlouquecida


Contra a lenha da prisão
Pesando sobre teus olhos
Há sete palmos de chão!
Corre, mente desvairada
Sem consolo e sem perdão
Que nem a prece te ocorre
À louca imaginação!
Busca o ar que se te finda
Na caverna do pulmão
O pouco que tens ainda
Te há de erguer na convulsão
Que romperá teu sepulcro
E os sete palmos de chão:

129
Sob o heterônimo de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa praticou um verso longo de ritmo
razoavelmente assemelhado nas décadas de 1920 e 1930. Pouco se sabe, porém, de possíveis
aproximações entre o poeta português e os brasileiros (ressalvada conhecida exceção de apreço por
parte de Cecília Meireles).

70
Não te restassem por cima
Setecentos de amplidão!130

O túmulo hermético dentro do qual resiste o indivíduo, e, menor e mais


absconso, o caixão que lhe encarcera, e, ainda mais incógnito, a “caverna do pulmão”,
onde há talvez algum oxigênio, são componentes de um contexto poético de nexo
subterrâneo e de agonia extrema — “angústia de viver”, diria Wolfgang Kayser. Essa
agonia, contudo, mostra-se ao mesmo tempo como figura de um juízo existencial que,
de algum modo, seria inerente ao indivíduo (inclusive, a mudança da pessoa verbal no
fim da balada eleva esse juízo ao domínio universal); ou seja, ela se daria também nos
setecentos palmos de amplidão que lhe restam por cima, um sepulcro inescapável,
irrompível.
Se Schlegel via nos “arabescos” um veículo de caldeamento dos heterogêneos
para que a poesia pudesse compreender a totalidade, Vitor Hugo (1802-1885) percebia
nos “grotescos” o polo oposto do sublime, uma vez que a natureza seria profundamente
coesa: “Perguntar-se-á se a razão estreita e relativa do artista deve ter ganho de causa
sobre a razão infinita, absoluta, do criador; se cabe ao homem retificar Deus; se uma
natureza mutilada será mais bela”; “se, enfim, o meio de ser mais harmonioso é ser
incompleto”.131 Foi Hugo quem aproximou decisivamente, por esse ângulo, o conceito
de grotesco às formas da feiura e do horrendo. Tais aspectos seriam assim concebidos,
porém, apenas quando em contradição exata com o sublime: em concurso com o belo, o
sublime dirige nosso olhar para um mundo elevado, sobre-humano; com o feio, o
grotesco nos levaria ao mundo estranho do absurdo e do ridículo, do monstruoso e do
horrível. O longo prefácio que o visionário escritor francês redigiu para sua peça
Cromwell (1827), fundamentando opções estéticas, tornou-se um notável escrito
programático do Romantismo. O texto viria a ser mais famoso que a peça em si própria,
e essencial para entender o impacto que o grotesco exerceu sobre a arte e as teorias
românticas. Victor Hugo expõe ali a teoria das três idades: o gênero humano teria
crescido e se desenvolvido; e alcançou a maturidade como qualquer um de nós. “Foi
criança, foi homem; assistimos-lhe agora a imponente velhice”. Na primeira etapa da
humanidade, “fabulosa” ou “primitiva”, a ode é a manifestação poética: “Eis o primeiro

130
MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta,
1946, pp. 74-6 (Anexo I, pp. 139-41).
131
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Trad. e notas Célia
Berrettini. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.26.

71
homem, eis o primeiro poeta. É jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é
toda sua poesia”. Na Antiguidade, “a família se torna tribo, a tribo se faz nação”. Há
choque de impérios, guerra: “A poesia reflete esses grandes acontecimentos; das ideias
ela passa às coisas. Torna-se épica, gera Homero”.132 Somente a partir do cristianismo,
de acordo com o escritor, a partir do drama, a poesia almejada como verdade e ideal
estético teria sido possível; os temas e as formas da tragédia e da comédia comportariam
a completude do homem, o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o divino e o
terreno. A “musa moderna”, desse modo, com olhar mais elevado e amplo, sentiria “que
o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”. Hugo concede que algo de grotesco e
cômico já se encontrara na literatura da Antiguidade, como Polifemo ou Sileno, como
ciclopes, tritões, sátiros, sereias, fúrias, parcas, harpias; entretanto, seriam sempre
formas com certo grau de engrandecimento ou beleza, ou de timidez, haja vista seu
dissimulado caráter grotesco. Muito distintamente do que teria emergido na terceira
idade do gênero humano:

No pensamento dos Modernos, ao contrário, o grotesco tem um papel


imenso. Aí está por toda a parte; de um lado, cria o disforme e o
horrível; do outro, o cômico e o bufo. Põe ao redor da religião mil
superstições originais, ao redor da poesia, mil imaginações pitorescas.
É ele que semeia, a mancheias, no ar, na água, na terra, no fogo, estas
miríades de seres intermediários que encontramos bem vivos nas
tradições populares da Idade Média; é ele que faz girar na sombra a
ronda pavorosa do sabá, ele ainda que dá a Satã os cornos, os pés de
bode, as asas de morcego. É ele, sempre ele, que ora lança no inferno
cristão estas horrendas figuras que evocará o áspero gênio de Dante e
de Milton, ora o povoa com estas formas ridículas no meio das quais
se divertirá Callot, o Michelangelo burlesco.133

Em “Balada feroz”, de Novos poemas (1938), a feiura e o horrível naturais


mesclam-se à fantasia monstruosa e à representação de arbítrios inferiores; a
criatividade então segue um fluxo livre e grotesco, o qual, apesar da violência da
expressão, anuncia seu propósito de destacar e exaltar a “pureza” e as faculdades do

132
Op. cit., pp. 16-8.
133
Op. cit., p.26-31.

72
poeta, como também de sua poesia tal ferramenta reformadora. Vitor Hugo observa em
seu ensaio sobre Shakespeare que esse espírito que “flui rumo ao terrível” é inexorável:
“O poeta só se limita pelo seu objetivo; só considera o pensamento a realizar; não
reconhece outra soberania e outra necessidade que não seja a ideia; pois, emanando a
arte do absoluto, na arte como no absoluto, o fim justifica os meios”. 134 Aqui, os versos
ainda não se conformam à típica balada viniciana135 e se abrem a uma imaginação
indômita, suntuosa e terrível; são repletos de melodia e assonâncias de toda sorte, que
embalam o leitor em respiração tão mais árdua quanto insalubre:

Canta como um louco enquanto os teus pés vão


[penetrando a massa sequiosa de lesmas// (...)
Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o
[corpo felpudo das aranhas
Ri dos touros selvagens carregando nos chifres virgens nuas
[para o estupro nas montanhas// (...)
E quando a decomposição dos campos de guerra te ferir as
[narinas, lança-te sobre a cidade mortuária
Cava a terra por entre as tumefações e se encontrares um
[velho canhão soterrado, volta
E vem atirar sobre as borboletas cintilando cores que
[comem as fezes verdes das estradas//(...)
Transforma-te por um segundo num mosquito gigante e
[passeia de noite sobre as grandes cidades
Espalhando o terror por onde quer que pousem
[tuas antenas impalpáveis
Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o
[medo, aos avaros o ouro
E para que apodreçam como porcos injeta-os de pureza!

E com todo esse pus, faz um poema puro/ (...)136

134
HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário,
2000, p.152.
135
Destacada por conta de poemas antológicos da lírica brasileira, como “Balada do Mangue” e “Balada
das meninas de bicicleta”, possui como propriedades fundamentais, além do acento musical, o sempre
uso de redondilhas maiores, a presença de rimas dispostas em intervalos variáveis e o espírito de crônica.
136
MORAES, Vinicius de. Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, pp. 25-8. Obs.: Algumas
pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia poética (1954, 60) e, por isso,
incorporadas na citação. MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Segunda edição revista e aumentada. Rio
de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 47-9 (Anexo I, pp. 138-9).

73
ROMANTISMO REALÍSTICO

Segundo Schlegel, cada um de nossos pensamentos é resultado de uma atividade


essencial do espírito, que consiste em “determinar a si próprio, sair de si e retornar a si
em eterna alternância”. O Idealismo seria um fenômeno de reconhecimento de tal
atividade, dessa “legislação sobre si”, como também uma vida nova que assim seria
reduplicada e revelaria sua força na “ilimitada profusão de novas descobertas”, na
“comunicabilidade universal” e na “viva eficácia”. A seu turno, o Idealismo deixaria
também o interior de si mesmo para voltar e “permanecer aquilo que ele é”. Como
produto desse processo, o pensador germânico fala do surgimento possível de um novo
realismo, igualmente ilimitado. E dá como exemplo dessa tendência os últimos
postulados da física, possivelmente se referindo à abstração de cenários ideais que dão
origem a fórmulas que, em contrapartida, se mostram verdadeiras e que funcionam na
realidade natural — “uma visão mitológica da natureza”. Schlegel, entretanto, assevera
que somente na poesia esse novo realismo caberia plenamente, que ele jamais poderia
aparecer na forma da filosofia ou de um sistema: “sendo de origem ideal e tendo, por
assim dizer, de pairar num fundamento e solo ideais, ele aparecerá como poesia que
deve se apoiar sobre a harmonia do ideal e do real”.137
É improvável alcançar de modo exato quais as feições dessa nova poesia realista
conjecturada por Schlegel. Ele próprio deixava claro que não a concebia com todas as
letras até então, apesar de trazê-la consigo. Mas a harmonia do ideal e do real,
viabilizada por meio da evasão e do encontro do idealismo com os elementos não-
ideais, e do seu retorno, e da subsequente expressão realística do poeta — de origens e
de fundamentos ideais —, faz paralelo com um modo de operação muito recorrente da
poesia de Vinicius. Esse modo materializa como poesia uma visão de mundo que
podemos chamar de romantismo realístico; o qual já se faz visível em poemas populares
como, por exemplo, o “Soneto de fidelidade”. Ali, a idealização de um compromisso
que envolve inclusive, de forma absoluta, o pensamento do amante nada consegue fazer
diante da natureza transitória do sentimento — o que resulta na chave-de-ouro que já se
tornou um lugar-comum da cultura brasileira: “Que não seja imortal, posto que é

137
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 516-7.

74
chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”.138 Todavia, as substâncias não-ideais, às
vezes, ultrapassam os limites do senso poético mediano, e podem incomodar as
sensibilidades mais desapercebidas. É o caso de “O amor dos homens”.139 O início
desse poema, que é o mais longo de Para viver um grande amor, faz lembrar a
definição que foi dada ao conteúdo romântico por Antônio, um dos personagens de
Schlegel: “romântico é precisamente o que nos expõe uma matéria sentimental numa
forma fantástica”;140 advertindo em seguida que “sentimental” é palavra a ser disposta
de maneira a aludir à essência de um Petrarca, um Tasso, e nunca pejorativamente,
como na língua comum.

Na árvore em frente
Eu terei mandado instalar um
[alto-falante com que os passarinhos
Amplifiquem seus alegres
[cantos para o teu lânguido despertar.
Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo
Com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios
E me darás a boca em flor; minhas mãos amantes
Te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga
Do fundo do teu ser de sono e plumas
Para me receber; (...)

Mas o ambiente seguro e aprazível se desarticula de súbito com a chegada das


imagens de uma realidade não-ideal — embora a fantasia seja evidente nos
fundamentos da elaboração. O poeta expõe-se aqui ao traçar um retrato violento, visto
que, não raro, a insensibilidade e a incompreensão frente às inúmeras nuances da arte,
historicamente, podem se converter em violência crítica ou ostracismo. Ainda assim, na
direção do que defendera Victor Hugo, Vinicius limita-se somente pelos seus objetivos;
jamais reconhece outra soberania, outra necessidade que não seja suas ideias e seu
compromisso com a obra:

138
MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta,
1946, p.7.
139
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 212-7.
140
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e
notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.533.

75
Silencias. Odeio o teu silêncio
Que não me pertence, que não é
De ninguém: teu silêncio
Povoado de memórias. Esbofeteio-te
E vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue
Flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura
E coses com linha amarela o meu pulso
[abandonado, que é para
Combinar bem as cores; em seguida
Fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta
Transfusão. (...)
Tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza
Corrói minha carne como um ácido! Teu signo
É o da destruição! Nada resta
Depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento
De todo o meu inútil, a causa
De minha intolerável permanência!

Os grandes poetas e escritores, se grandes, vão a fundo no objeto e nas questões


que pretendem representar e abordar, inclusive com perspectivas distintas se
comparadas às de outros grandes artistas. Como grande poeta do Amor, Vinicius é
também poeta das relações amorosas, as quais não se constituem somente do Amor em
seu estado puro, mas de um conjunto de elementos humanos, frequentemente
indesejáveis, como o egoísmo, o sentimento de posse, a raiva circunstancial, as
idiossincrasias etc. Essas relações também se constituem do conflito entre elementos
sexualmente distintivos, de variados tipos, cujas características podem ser às vezes
admiráveis ou moralmente questionáveis. Tais elementos que agregam ou circundam o
Amor em estado puro são intensificados na mesma medida em que os sentimentos mais
nobres também tomam intensidade. Vinicius não é então meramente um ideólogo
daquilo que as relações amorosas deveriam ser. Ainda que seja inegável em sua poética
certo idealismo amoroso, Vinicius é sobretudo um poeta que revela como o Amor, na
sua forma mais intensa, pode acontecer na realidade. Aí se encontra boa parte das cores
que o tornam original e... grande; não fosse desse modo, sua poesia seria apenas um
pastiche daquilo que escritores e poetas românticos já haviam feito no século anterior,
com excelência ou não, em todos os cantos do mundo. Essa mistura entre idealismo e
realismo é configurada em sua poesia com habilidade particular, sob um manuseio de

76
recursos poéticos que dão nova potência à tradição. Se Vinicius de Moraes tivesse dado
ouvidos ao canto da sugestão restritiva, sobretudo daqueles que seguem cegos de
ideologia ou dos que são poeticamente insensíveis, não teria contribuído de maneira
cabal, como contribuiu, com a literatura de língua portuguesa; muito menos penetrado
de igual forma na cultura popular — para onde sua poesia estendeu as mãos inventivas.

77
VII. BAUDELAIRE NO MIRAMAR

O legado baudelairiano na poesia ocidental, desde as últimas décadas do século


XIX até hoje, reincide com tal constância e de tantas formas, que não seria exagero
afirmar que um norte estético, moderno, por vezes inconsciente, foi dado sob a
influência decisiva de Baudelaire. O poeta francês superou um conjunto de recursos já
desgastados do romantismo sem abdicar de grande atenção, no entanto, para com a
totalidade e o sublime, alcançados por meio da interação ativa e desinquieta com o
obsceno, a maldade, o abjeto, o grotesco. Foi precursor do simbolismo, influenciou
realistas, colaborou definitivamente com os contornos da modernidade.
No Brasil, a partir da década de 1870, poetas como Teófilo Dias e Carvalho
Júnior reivindicavam a poesia de Baudelaire e utilizavam-na como uma suposta
evidência favorável à estética realista e à negação do romantismo. Carvalho Júnior
escreve à época o soneto “Profissão de fé”, em que se apropria de imagens de “L’Idéal”
para compor um tributo ao realismo: “Odeio as virgens pálidas, cloróticas/ Belezas de
missal que o romantismo/ Hidrófobo apregoa”, que sugerem à memória “Je laisse à
Garvani, pöete des chloroses,/ Son troupeau gazouillant de beautés d’hôpital”.
Elementos da poesia baudelairiana como o erotismo carnal e a agressividade levariam
então uma parte considerável da crítica a esse entendimento que aproximava o francês
da estética realista.141 Não era o caso de Machado de Assis. Em “A nova geração”, texto
publicado em 1879 na Revista Brasileira, ele afirma que “os termos Baudelaire e
realismo não se correspondem tão inteiramente” e lembra que o próprio poeta havia
repugnado a classificação de realista — “cette grossière épithète”.142 As reservas de
Baudelaire evidenciadas em poemas como “L’Idéal” não apontavam na verdade para
esta ou aquela tendência específica, mas à mediocridade de muitos artistas de seu tempo
que não carregavam na poesia as dimensões da eternidade, encontradas nas grandes

141
SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na
poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 420-30.
142
CAROLLO, Cassiana Lacerda. Decadismo e simbolismo no Brasil: crítica e poética. Vol. 1. Brasília: Livros
Técnicos e Científicos; INL; MEC, 1980, pp. 142-3.

78
obras do passado. Como podemos perceber em sua teoria sobre a modernidade,143
elementos que remetem ao eterno e que se insinuam nas impressões cotidianas seriam
cruciais à beleza moderna.
Nos quartetos de “Une charogne”, Baudelaire apresenta um espetáculo natural
que ultrapassa a mera simpatia pelo horror. A carcaça em putrefação compreende uma
beleza desconfortável e expõe um encadeamento de substâncias comuns à fruição do
sublime. Absortas naquela carniça, as imagens carregam algo novo quanto à
representação do grotesco na literatura, mais precisamente o reconhecimento das
conotações telúricas de ampla abrangência no processo de decomposição: a
transcendência do abjeto à esfera do cósmico; a interação do elevado com o baixo; o
ciclo natural; a finitude da beleza como elemento de transição. Ali, um erotismo
violento atira vigor vital e moral na carne morta:

Les jambes en l’air, comme une femme lubrique,


Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d’une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d’exhalaisons.144

A ação do sol sobre a carcaça, bem como o testemunho do céu, eleva o patamar
imagético do repulsivo, dá-lhe um caráter cósmico e o reorienta como substância de um
ciclo eterno; o sublime e o grotesco, desde logo, se misturam:

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,


Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu’ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe/ (…)145

143
Le Peintre de la vie moderne. Em edição brasileira: BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o
pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
144
“As pernas para cima, qual mulher lasciva,/ A transpirar miasmas e humores,/ Eis que as abria
desleixada e repulsiva,/ O ventre prenhe de livores.” In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. intr.
e notas Ivan Junqueira. Bilíngue. Ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 158-9.
145
“Ardia o sol naquela pútrida torpeza,/ Como a cozê-la em rubra pira/ E para ao cêntuplo volver à
Natureza/ Tudo o que ali ela reunira.// E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça” In: Op. cit., pp. 158-9.

79
Larvas e moscas movimentam em ondas a carniça e, de tal forma, vida e morte
se desapertam nas mesmas imagens — e se confundem. Aqui, a matéria física do objeto
passa por um processo de sublimação: primeiramente se liquefazendo para que depois
se converta em ar ou, ainda, em música. Isso por meio de cenas incisivas como “Tout
cela descendait, montait comme une vague,/ Ou s’elançait en pétillant”, até “Et ce
monde rendait une étrange musique,/ Comme l’eau courante et le vent”.146 O ponto
mais elevado dessa escalada a uma rarefação é tornar-se apenas um sonho, ou, talvez, o
devir de um esboço, cujo artista só poderia enxergá-lo mentalmente. Entretanto, o
poema desce de forma brusca aos pormenores cotidianos ao fazer menção a uma cadela
que aguarda a passagem do casal para retomar seu bocado; a realidade concreta recobra
assim seu espaço. A carniça que, a priori, é objeto repugnante e desprezível comporta
poeticamente, portanto, um cosmo de imenso domínio e tenciona a plenitude.
A apóstrofe do primeiro verso reaparece com toda a relevância nas últimas três
estrofes, quando o poeta não apenas dirige seu discurso mais diretamente, mas compara
o interlocutor, sua amada, com aqueles despojos apodrecidos. E então contrastes
incômodos se alvoroçam: o amor e o asco, o sublime e o grotesco, a linguagem amorosa
e os signos do hediondo e do macabro. A ironia é levada a um extremo de pouca ou
nenhuma precedência ao mesmo tempo em que há gravidade e seriedade nas
considerações sobre a finitude da beleza e do amor.

— Et pourtant vouz serez semblable à cette ordure,


A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
(…)

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine


Qui vous mangera de baisers,
Que j’ai gardé la forme et l’essence divine
De mês amours décomposés!147

146
“E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,/ Ou esguichava a borbulhar”/ (...); “E esse mundo emitia
uma bulha esquisita,/ Como vento ou água corrente” In: Op. cit., pp. 158-61.
147
“— Pois hás de ser como essa coisa apodrecida,/Essa medonha corrupção,/ Estrela de meus olhos, sol
da minha vida,/ Tu, meu anjo e minha paixão!”// (...); “Então, querida, dize à carne que se arruína,/ Ao
verme que te beija o rosto,/ Que eu preservarei a forma e a substância divina/ De meu amor já
decomposto!” In: Op. cit., 160-1.

80
No ensaio “A rainha das faculdades”, Baudelaire questiona se aqueles que
içavam a natureza como o belo ideal e que defendiam sua cópia como um ideal para a
arte estariam seguros de conhecer “toda a natureza, tudo o que lhe está contido”.
Segundo o poeta, o “homem imaginativo” teria razão ao pensar que a natureza é feia; e
preferir os monstros de sua fantasia em vez da “trivialidade positiva”. 148 No “Elogio da
maquilagem”, o francês chega a um entendimento idêntico ao analisar o objetivo e o
resultado do uso cosmético, costumeiro, do “pó-de-arroz”; pergunta se alguém não
percebeu que o propósito é fazer com que desapareçam da tez “todas as manchas que a
natureza nela [na mulher] injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na
textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima
imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino superior”. 149 O
raciocínio de Baudelaire, evidenciado em diversas passagens de sua produção teórico-
filosófica, desvia-se assim de um fundamento marcadamente rousseauniano em que o
natural seria sinonímia do bom e do belo — enxerga ali, em verdade, uma larga
jurisdição da feiura. Aposta, em contrapartida, no artificial, no novo, naquilo que não
existe — na imaginação como conceito específico, menos contíguo da fantasia que de
uma inteligência possível, um tanto visionária, do indivíduo.
Ao criticar o modo como a feiura se estabelece em parte importante da arte
contemporânea, o filósofo Roger Scruton (1944-) argumenta que o rude e o sórdido
caracterizado pela cultura do fin-de-siècle trespassava necessariamente os anseios do
artista pelo belo; uma tradição teria se principiado por Baudelaire, com Fleurs du Mal
(1857) e Flaubert, com Madame Bovary (1857) — culminando nos romances de Émile
Zola, Henry James, nas óperas de Alban Berg e na poesia de T. S. Eliot. “Zola e Berg
nos recordam de que a verdadeira beleza pode ser encontrada até mesmo naquilo que é
rude, doloroso, decadente”, observa o filósofo inglês. Essa concepção resultaria num
tipo de “redenção pela arte”, oriunda de um fecundo paradoxo: uma cultura que
“continuou a acreditar na beleza ao mesmo tempo em que se concentrou em todas as
razões que a levavam a duvidar de que a beleza poderia ser alcançada fora da esfera
artística”. Por outro lado, muitas obras mais recentes teriam se vinculado apenas à feiura
por si só, apoiadas teoricamente na rejeição da beleza em sentido estrito:

148
BAUDELAIRE, Charles. A rainha das faculdades. Caderno de leituras, nº 84. Trad. Lívia Cristina Gomes.
São Paulo: Chão da Feira, dezembro de 2018.
149
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.59.

81
Na tradição de Baudelaire, a arte paira como um anjo sobre o mundo
que se encontra sob sua atenção. Ela não evita o espetáculo da
loucura, da malícia e da decadência humana, mas convida-nos a outra
parte, afirmando que “là tout n’est qu’ordre et beauté:/ Luxe, calme et
volupté”.150 A arte mais recente, por sua vez, cultiva uma postura
transgressora, igualando a feiura daquilo que retrata com uma feiura
própria. A beleza é rebaixada a algo demasiadamente doce e escapista,
distanciando-se demais das realidades para merecer uma atenção
desenganada.151

A composição de imagens por meio do erotismo grotesco, encarnado na


animalização de aspectos humanos e no apelo à violência e ao asqueroso, é contento
extraído mas extremamente avigorado da teoria romântica. Tudo o que Baudelaire
conduz do Romantismo “— e é muito —” se transforma “em uma experiência tão dura
que, em confronto com ele, os românticos parecem amadores”, segundo os termos e a
consideração de Hugo Friedrich.152 O poeta antecipa componentes que viriam a ser
usuais no simbolismo brasileiro, sobretudo em Cruz e Sousa. A abertura do poema ao
léxico de toda a estirpe, à explicitação da feiura, às minúcias materiais e brutais, dentre
outros recursos, facultaria também o surgimento de uma obra extraordinária como a de
Augusto dos Anjos. E os mecanismos diversos da lírica baudelairiana continuariam a
abrir portas para os maiores nomes da poesia brasileira ao longo do século XX. Nesse
contexto, a transcendência simbólica mais importante não é a que escapa da matéria em
busca do infinito, mas a que põe a infinitude em função do mundo material e de seus
mecanismos implacáveis.

BALADA DA MOÇA DO MIRAMAR

Silêncio da madrugada
No Edifício Miramar...
Sentada em frente à janela

150
Na trad. de Ivan Junqueira: “Lá, tudo é paz e rigor,/ Luxo, beleza e langor”. Op. cit., pp. 208-11.
151
SCRUTON, Roger. Beleza. Trad. Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2017, pp. 177-86.
152
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: metade do século XIX a meados do século XX. Trad.
Marise M. Curioni (texto) e Dora F. da Silva (poesias). São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 42.

82
Nua, morta, deslumbrada
Uma moça mira o mar.

Ninguém sabe quem é ela


Nem ninguém há de saber
Deixou a porta trancada
Faz bem uns dois cinco dias
Já começa a apodrecer
Seus ambos joelhos de âmbar
Furam-lhe o branco da pele
E a grande flor do seu corpo
Distila um fétido mel.

Mantém-se extática em face


Da aurora em elaboração
Embora formigas pretas
Que lhe entram pelos ouvidos
Se escapem por umas gretas
Do lado do coração.
Em volta é segredo: e móveis
Imóveis na solidão...
Mas apesar da necrose
Que lhe corrói o nariz
A moça está tão sem pose
Numa ilusão tão serena
Que, certo, morreu feliz.// (...)153

Publicada em 1954, na Antologia poética de Vinicius de Moraes, a “Balada da


moça do Miramar” descreve o cadáver de uma mulher, “nua, morta, deslumbrada”, de
frente a uma janela do Edifício Miramar. Seu corpo apodrece já há alguns dias, mas ela
deixou a porta trancada e ninguém sabe de sua morte. A imagem do deslumbre, que fora
do contexto poderia remeter a uma expressividade carregada de vida, torna-se um
retrato preciso e tétrico no poema, resultado do contraste. O sentido de se deslumbrar,
que é ter a visão abalada pelo excesso de luz, aqui é tê-la abalada pelo seu inverso; ou
então que se entenda a morte como iluminação. A moça está sem “pose”. A extensão de
sentido da palavra também é provocadora e antagônica: assumir atitudes afetadas ou
153
MORAES, Vinicius de. Balada da moça do Miramar. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954, pp.
200-1 (Anexo I, pp. 143-5).

83
imitativas é uma hipótese nula para um cadáver, embora esteja ele perfeitamente parado
como quem está sujeito a uma foto ou pintura — ou à poesia. Necrofilia lunar, violação
solar; os signos mais elevados podem se refletir nessa feroz materialidade; vida e morte
vêm e vão como substâncias imiscíveis ou como mistura homogênea enquanto os ossos
atravessam a pele da moça. “Balada da moça do Miramar” é uma das mais belas baladas
vinicianas e dialoga com uma tradição em que o grotesco sai das margens e se torna
protagonista.
A descrição de uma jovem à janela ou em uma sacada traz consigo relevante
conotação amorosa, herdeira do imaginário histórico das literaturas cuja cena mais
memorável, podemos afirmar, foi aquela de Romeu e Julieta em seu segundo ato. Essa
conotação amplifica o desconforto e o fascínio desempenhados pela imagem daquele
corpo em decomposição. E, portanto, o deslumbrar-se da moça ganha significado mais
uma vez: por hipótese, um episódio de amor pode se encadear aos fatos. A referência a
um “fétido mel” que sai da “flor do seu corpo” corrobora sugestivamente, além de
introduzir um tipo estranho de erotismo que se sucederá ao longo do poema. Tal
dispositivo erótico se disfarça de maneira simbólica e grotesca em algumas passagens,
aproveitando-se das ocorrências que envolvem a putrefação e os seus menores
desdobramentos; sobrevém a partir da interação íntima com o heterogêneo e só se revela
de modo peculiar e macabro: “formigas pretas/ Que lhe entram pelos ouvidos/ Se
escapem por umas gretas/ Do lado do coração”. A respeito de certos bichos, Kayser
menciona algumas espécies preferidas do grotesco: insetos, sevandijas (nome comum a
parasitas e vermes imundos), serpentes, corujas, sapos, aranhas, cigarras, escaravelhos,
mariposas e, especialmente, o morcego.154 Aqui, as formigas ampliam sua dimensão
telúrica; insetos já naturalmente apensos ao subterrâneo e às profundezas, elas ganham
acolhida no interior das grutas e cavidades daquela mulher. As interações heterogêneas
se manifestam igualmente, entretanto, com o reino vegetal: “Seus ambos joelhos de
âmbar/ Furam-lhe o branco da pele” (destaque-se a harmonia ambos- âmbar); isto é, já
com a cor e a luz acrílica da resina fóssil, as pontas agudas de seu esqueleto atravessam
— defloram — o tecido fragilizado da moça do Miramar. A flor de seu corpo, com seu
mel nauseante, colabora de imediato com essa figuração.
A unidade semântica de “móveis/ Imóveis” é caso insólito em que efeitos
concomitantes de antítese e pleonasmo se manifestam no mesmo simples arranjo. O

154
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 157-8.

84
substantivo “móvel” designa, como se sabe, determinadas peças de uma residência que
podem ser movidas, transportadas, e opõe-se ao substantivo “imóvel”, o qual se refere à
residência em si mesma, que, por suposto, não pode se mover; as duas palavras opõem-
se de modo diametral, o que justifica o prefixo distintivo no mesmo signo. A palavra
“imóveis”, por outro lado, aplicada nesse âmbito como adjetivo, aparece à primeira
vista como um adjunto desnecessário, ao se dirigir a objetos inanimados que não podem
se mover (“Madeira, matéria morta”, em outro poema155). Em verdade, o arranjo
expressa em grande medida o motivo essencial da terceira estrofe: a solidão e o silêncio
— sintetizados no signo do “segredo” — estabelecidos em profundidade longínqua,
onde tudo permanece absolutamente parado e alheio ao restante do mundo. E, tão
estática quanto as coisas que a circundam, a moça mantém-se, ademais, “extática” (com
xis) — em êxtase, ou, em outras palavras, “deslumbrada”. Em contraste, somente a
movimentação dos pequeninos seres em seu corpo interessados no apodrecimento; e,
acima, o trabalho celeste naquele fim de madrugada; e a “necrose/ Que lhe corrói o
nariz”. Tal falecimento das células ou do tecido orgânico pode ser encontrada também
em “Balada dos mortos dos campos de concentração” (Cadáveres necrosados/
Amontoados no chão/ Em beijos estupefatos/ Como ascetas siderados/ Em presença da
visão); em “Romance da amada e da morte” (Enche-lhe bem a caveira/ Sai dançando
um rock-and-roll/ Retorcendo-se do cóccix/ E trescalando a necrose); ou em “Sob o
trópico do câncer” (Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo/ Que empesteias as
brancas madrugadas/ Com teu suave mau cheiro de necrose). Aqui, a mazela se dá
concatenada a uma feliz ilusão.
A quarta estrofe possui um léxico iluminado apesar do horrendo sobre o qual o
poema se debruça; e aborda de maneira aberta o belo possível que há em certos aspectos
do cadáver.156 Retornemo-nos, pois, a Baudelaire. O poeta procura estabelecer uma
“teoria racional e histórica do belo” a partir do princípio da dimensão dupla de
impressão única da beleza. Seu elemento absoluto seria apenas uma de suas faces:

155
MORAES, Vinicius de. A porta. A arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970, p.35.
156
Na 2ª ed., revista e aumentada, da Antologia poética (Editora do Autor, 1960), a terceira e a quarta
estrofe aparecem juntas, i.e., perfazem uma só estrofe. Apesar de se tratar de um volume de alto valor
para fixação de texto, visto que foi expressamente revisado, as demais edições nos levam a acreditar que
esse formato não passa de um erro despercebido: na edição de origem (Rio de Janeiro: A Noite, 1954), as
duas partes estão divididas por um salto de página; em Obra poética (Rio de Janeiro: Aguilar, 1968), as
partes reaparecem separadas em duas estrofes distintas; e, nas inúmeras edições da Antologia poética
publicadas posteriormente pela José Olympio, é também desta forma que o poema se repete.

85
O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja
quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento
relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou
combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse
segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante,
aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível,
inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana.
Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que
não contenha esses dois elementos.157

Baudelaire se firma nesse campo variável da beleza ao explorar poeticamente


aquilo que, em outro meio, é somente malconformado ou mesmo repulsivo. Ainda que
seja difícil imaginar, por exemplo, que uma carniça atue como invólucro digerível,
apreciável e adaptado à natureza humana, é preciso pensar no objeto como substância
tangível capaz de evocar circunstancialmente o indizível e o sublime. Aqui, Vinicius
concede um requinte gótico à caveira da moça, à mostra, ao apresentá-la como algo
admirável: “seu cabelo de ouro/ Rebrilha com tanta luz/ Que a sua caveira é bela”. Em
seguida, o poeta inverte o recurso na fotografia do baixo corporal, ou seja, a imagem é
simples, indistinta, embora o elemento circunstancial faça com que ela se torne bizarra e
incômoda: “belo é seu ventre louro/ E seus pelinhos azuis”. O traço relativo e distintivo
da imagem é o fato de expressar uma perspectiva sensual diante de um corpo em
decomposição; a luminosidade dos pelos pubianos se manifesta em concordância com o
tom positivo que é ofertado à estrofe, exercendo interlocuções semânticas com a beleza
e com brilho da lua — embora esta luz já comece a contar também com os raios de uma
aurora possível. Aquelas figuras que são geralmente afins da obscuridade, nestes versos,
são aclaradas ou reanimadas: “A vida que está na morte” é uma impressão solar dos
pequenos seres imundos que se mexem no cadáver, conquanto devorem seus dedos; o
“aro de ouro”, aliança que sobrevive a esse apetite, “a morte em vida lhe deu” —
expressão que arremata o quiasmo. Neste momento, verifica-se uma pista importante
sobre o ocorrido; caso não, um entendimento excepcionalmente adverso quanto ao
compromisso conjugal. A poesia do segredo é só o que se desvenda, por certo, na
balada.

157
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 10-1.

86
O tempo começa a correr acelerado nas últimas estrofes, de modo que se
compreendam os gestos siderais: a interação do elevado com o baixo. A noite logo
retorna ao cenário. E então a lua é quem ama aquela moça: duas figuras de gênero
feminino se unem num conúbio necrofílico e astral cuja “trama” é tecida pelo mar, que
as acompanha. Significados possíveis da palavra exercem efeitos na passagem: “trama”
é sinônimo de enredo, de uma sucessão de acontecimentos — supostamente
engendrados pelo mar; mas também é o conjunto de fios que se tecem — o que faculta à
lembrança tecidos de casamento análogos à espuma marítima. Ainda sobre o termo,
agora em nexo mais negativo: o verbo tramar é fazer maquinação, conspirar; e, sob uma
acepção antiga, o substantivo evoca a peste, o mal contagioso, a doença, a enfermidade.
O cenário se reveza com o “sol violento”. As ações do astro, que estimulam a
putrefação do cadáver, são representadas pela ideia do estupro — esse “violentar”
submergido na contextura sexual. As ações do vento, a seu turno, são indissociáveis
daquelas do sol: o forte movimento do ar é enunciado como um atributo do astro (“O
sol batido de vento”); e percebido sugestivamente nas reverberações (violento- furor
violeta- violentar). Nessa alternância contínua entre a noite e o dia, ícones celestes,
vultosos e sublimes como a lua, o sol, os ventos comunicam-se de maneira íntima com
os elementos mais ínfimos, terrenos e grotescos. Apesar de inerente à evolução e à
manifestação do disforme e do repulsivo, essa dinâmica do tempo não deixa de ser
cantada com modos populares, típicos da balada viniciana: “Muitos dias se passaram/
Muitos dias passarão/ À noite segue-se o dia/ E assim os dias se vão”. Ali, permanecem
“mortas de paixão” a mulher e a lua. Se a última se deleita com a morte, com tal
alegoria, a outra é matéria de um desastre — seu amor era “amor do mundo”,
constituído da vida. Essa matéria se desagrega devagar para que possa viver novamente.
O poeta medita, pois, a respeito de um ciclo natural que alcança não apenas a
concretude desse mundo, mas os sonhos, as paixões, a entrega, o desespero. Sua
consciência a respeito do tempo é o que insere no poema os aspectos mais
desconcertantes, materialistas, que vão ao encontro de definições bakhtinianas do
grotesco: “um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda
incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução”.158 A
dimensão temporal é traduzida também formalmente, por meio de ativos literários
tradicionais em sua construção. Ela se expressa não somente no inconfundível

158
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 21-2.

87
aproveitamento das baladas por Vinicius: como qual no emprego de um cenário
característico do imaginário amoroso, aqui subvertido; no diálogo com a estética
grotesca, especialmente a transfigurada por Baudelaire; no proveito da porção trágica
presente no próprio nome do edifício, depois que Giosuè Carducci escreve sobre o
Castello di Miramare e o fim de Maximiliano do México em Odi Barbare (1877). A
expressão da vida que sempre morre; da morte vivendo nas pequenas palpitações
invertebradas; do renascimento; da perplexidade e do amor humanos em qualquer das
épocas: é a metonímia totalizante nos despojos daquela jovem.

88
VIII. É BELA A BOMBA?

Reflexões sobre o tempo e a morte inspiradas em relógios, ampulhetas, já não


eram desde muito novidade na história da arte. Mas é no século XX que se inicia uma
era definitiva quanto à estética industrial. As máquinas já não precisavam representar
um padrão de beleza alheio a seus mecanismos como aquela de James Watt, que
escondia sua funcionalidade com arremates de linha clássica. A partir de então, foram
possíveis, além de produtos com uma estética atraente por si mesma, outros que traziam
a ideia de uma estética essencial em que “a forma segue a função”, cuja beleza seria
tanto maior quanto mais eles fossem capazes de “exibir a própria eficiência”. 159 É
interessante lembrar que, a respeito do lançamento de um novo citroën, Roland Barthes
ofereceu aos automóveis o status de mito contemporâneo, comparando-os de início às
grandes catedrais góticas: “uma grande criação de época, concebida apaixonadamente
por artistas desconhecidos, consumida por sua imagem”. O novo carro seria o melhor
mensageiro do sobrenatural porque nele haveria “perfeição e ausência de origem” e a
“transformação da vida em matéria”. Barthes observou que outros modelos atinham-se
mais “ao bestiário da potência” enquanto o Citroën D.S.160 foi “da alquimia da
velocidade para a gula do ato de conduzir”.161 O apelo estético dos automóveis
ultrapassara o das antigas obras de arte; ao menos é esta a avaliação de alguns
estudiosos e entusiastas da vanguarda e dos postulados futuristas.

Tendo criado carros enormes, bufantes, velozes e muito mais potentes


que os monstros míticos da Antiguidade, os homens parecem tomados
por um terror sagrado e põem em cena rituais de submissão à máquina

159
ECO, Umberto. História da beleza. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2013, p.394.
160
Com a pronúncia de “D.S.”, no francês , faz-se Déesse (Deusa).
161
BARTHES, ROLAND. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. 4ª ed. Rio
de Janeiro: DIFEL, 2009, pp. 152-4.

89
ou se exercitam em exaltações desmedidas da nova beleza, a beleza da
técnica, a beleza da velocidade e do automóvel!162

Filippo T. Marinetti, em seu manifesto de 1910, “L'uomo moltiplicato e il regno


della macchina”, sensualizou a relação de um maquinista com a sua locomotiva ao
considerar os modos como efetua a limpeza de seu “gran corpo possente”. Seriam “le
tenerezze minuziose e sapienti di un amante che accarezzi la sua donna adorata”. O
futurista italiano parte dessas imagens para explicar por que lhe pareceu absolutamente
natural o fato de os organizadores da grande greve dos ferroviários não conseguirem
induzir um único maquinista a sabotar sua máquina, “che tante volte aveva brillato di
voluttà sotto la sua carezza lubrificante”.163 É muito característico na poesia de Vinicius
de Moraes esse mesmo recurso, que transforma ideias, coisas e lugares em figuras
femininas, tornando-os antropomórficos e prestes a uma interação encarnada,
apaixonada, o que podemos verificar, por exemplo, em “Pátria minha”, “Mensagem à
poesia” ou “O haver”. No caso de “A bomba atômica”,164 o poeta utiliza o que Marinetti
chamava de inútil velharia poética, ou seja, símbolos tradicionais como “estrela
vespertina”, para se reportar entretanto a um objeto desenvolvido no intuito do
extermínio em massa.

Bomba atômica, eu te amo! és pequenina


E branca como a estrela verspertina

Contrastes tão inconcebíveis talvez encontrem paralelo em algumas descrições


de “Na colônia penal”, de Franz Kafka. Enquanto o objeto no poema de Vinicius é um
veículo de genocídio, o do escritor tcheco, no conto, é um instrumento de tortura. As
engrenagens do “rastelo” são por vezes descritas pelo oficial com um capricho muito
particular. Sua admiração pelo aparelho é uma criatura grotesca: “Ele se posiciona
automaticamente de tal forma que toca o corpo apenas com as pontas; quando o contato
se realiza, este cabo de força fica imediatamente rígido”. E continua: “O não iniciado
162
BERARDI, Franco. Depois do futuro. Trad. Regina Silva. São Paulo: Ubu, 2019, p.24.
163
MARINETTI, Filippo Tommaso. Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968, pp. 255-6. “Você
nunca observou um maquinista ao lavar amorosamente o grande corpo possante de sua locomotiva; a
apurada e minuciosa ternura de um amante que acaricia sua mulher amada? (...) Como é que um desses
homens poderia ferir ou matar sua grande amiga fiel e devota, com um coração ardente e disposto; sua
bela máquina de aço, que tantas vezes brilhava de prazer sob sua carícia lubrificante?” (Tradução do
autor.)
164
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: A noite, 1954, pp. 208-12 (Anexo I, pp. 148-
52).

90
não nota por fora nenhuma diferença nas punições. O rastelo parece trabalhar de
maneira uniforme”.165 Por sua vez, o eu-lírico viniciano quer conquistar amorosamente
o objeto de destruição — para que ele não mais se opere:

Vem dormir, vem dormir no meu regaço


Para te proteger eu me encouraço
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? (...)

Nos dois casos, a estranheza se perfaz — não por conta do rebaixamento de um


objeto, mas pela elevação do horrendo em beleza possível.
Ao longo das três partes de “A bomba atômica”, a aparente desordem na
disposição dos significados é extensa, ainda que, ao mesmo tempo, o conjunto seja
expressivo e bem delimitado. Seu arcabouço técnico e imagético passa pelo emprego de
aliterações, assonâncias, rimas, manuseio melódico e rítmico, polissemias,
ambiguidades e referências externas. Eucanaã Ferraz afirma que “o poema desfaz
limites de toda ordem” e discursos de diferentes tons estariam combinados. Seu
vocabulário seria heteróclito: “palavras oriundas de campos científicos vários (física,
química, geometria, matemática, biologia), termos diretamente ligados às artes, e
imagens e artifícios retóricos caros às poesias parnasiana e simbolista”. E observa ali
“operações sutis” que levariam a uma atualização do potencial da língua, “como se vê
nas alterações de pares mínimos que transformam a ‘bomba atômica’ em ‘pomba

165
Essencial Franz Kafka. Sel., intr., e trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics; Companhia
das Letras, 2011, p.74.

91
atônita’”.166 Esse acordo inseparável entre forma e conteúdo trabalha na expressão de
uma heterogeneidade ostensiva. Além de constituir por meio de isomorfias e de recursos
multifacetados uma bela representação do feio, “A bomba atômica” conduz à pergunta
sobre a beleza em si mesma do objeto em questão; se ela poderia dissociar-se
inteiramente da monstruosidade por ele concebida. E são as elaborações heterogêneas e
as manifestações isomórficas que fazem o instrumento de morticínio se apresentar
algumas vezes por meio de formas híbridas. Uma variedade imagética que se refere à
bomba nuclear como estatuária, anjo ou arcanjo, estrela, troço de coluna, flor ou pomba
acaba inevitavelmente em “novas dissoluções”, para utilizar a locução de Wolfgang
Kayser,167 como um dispositivo explosivo descendo pelo espaço com os cabelos ao
vento. Nesse âmbito, um tipo exótico de vegetal-mineral, carnívoro, combina espécies e
pertence a reinos distintos, bem como possui o condão da radioatividade:

Da cor pálida do helium


E odor de radium fatal
Lælia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.

Kayser observa que, se o elemento humano faz-se estranho ao perder a vida, seja
por meio da expressão cadavérica, seja por meio de autômatos, bonecas, marionetes ou
máscaras, “o elemento mecânico se faz estranho ao ganhar vida”. O estudioso alemão
fala de utensílios perigosos, os quais fariam parte dos motivos característicos do
grotesco; e estende seu raciocínio para uma expressividade grotesca mais recente, de
origem técnica, que compreenderia desde o mundo orgânico oculto revelado pelos
microscópios até os maiores produtos da modernidade:

Os objetos pontiagudos de W. Busch são substituídos, na arte


moderna, pelos novos instrumentos da técnica, em especial pelos
ruidosos veículos motorizados. A mistura do mecânico com o
orgânico se oferece com a mesma facilidade que a desproporção: em
gravuras modernas aparecem aviões como libélulas gigantescas — ou
libélulas como aviões, tanques se movem como animais monstruosos.

166
FERRAZ, Eucanaã. Um poeta entre a luz e a sombra. In: Revista Língua Portuguesa, nº 26. São Paulo:
dezembro de 2007, pp. 38-44.
167
KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 2009, p.159.

92
Semelhante enfoque da técnica é tão familiar ao homem de hoje, que
lhe é fácil traçar um grotesco “técnico”. A ferramenta se tornaria,
neste caso, portadora de um impulso diabólico de destruição e senhora
do seu criador.168

É pertinente registrar que os futuristas compreendiam a não-moral explorada


pelos simbolistas — o poder satânico, a maldade, o mórbido, o horrível, o “amor
maléfico” — como algo semelhante, embora do avesso, ao moralismo que os precedia,
como ensina Krystyna Pomorska. Para a vanguarda, “a moral e a não-moral se tornam
completamente irrelevantes na arte e o ‘horrendo’ só adquire valor ‘estético’ quando é
bastante surpreendente para ser observado”. Tal concepção chamou-se de
antiesteticismo, uma vez que “se entende por ‘estético’ uma noção tradicional de
beleza”.169 Vejamos, pois, no que se baseiam algumas das opções formais de “A bomba
atômica”. O primeiro ritmo estabelecido imprime velocidade no salto de versos, a ampla
maioria tetrassílabos, que se dispõem quase sem pontuação, com sintaxe e léxico pouco
previsíveis. A bomba se expõe dessa forma, introdutoriamente, no poema: o aspecto
carrega alguns parâmetros muito caros ao futurismo, ainda que tudo se transforme de
maneira gradativa a partir dos desdobramentos. Aqui, por meio de palavras e imagens
atípicas, o dispositivo é retratado dentre outras figurações como uma mulher que, de tão
pura, “o simples toque” levaria a um grande arrebentamento — maior que a energia
“Que expulsa o feto/ Na hora do parto”; o senso das proporções é ao mesmo tempo
confuso e eloquente ao se empregar o hiperbolismo a favor da expressão:

Fria e corrupta
Do longo sêmen
Da Via Láctea
Deusa impoluta
O sexo abrupto
Cubo de prata
Mulher ao cubo
Caindo aos súcubos
Intemerata
Carne tão rija
168
Op. cit., p.158.
169
POMORSKA, Krystyna. Formalismo e futurismo. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Org. Boris Schnaiderman;
Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.107.

93
De hormônios vivos
Exacerbada
Que o simples toque
Pode rompê-la
Numa explosão
Milhões de vezes
Maior que a força
Contida no ato
Ou que a energia
Que expulsa o feto
Na hora do parto.

Note-se que há nessas imagens uma série de elementos seriamente estimados por
Mikhail Bakhtin, aqueles que se percebem nos alicerces de sua teoria sobre o realismo
grotesco: o plano material e corporal do erotismo, os fluidos corporais, o feto e o parto.
No exercício sexual, o corpo se abre ao mundo exterior deixando de ser criatura isolada,
acabada; o mesmo acontece significativamente com a gravidez e o nascimento, a
revelação dos dois corpos em um — por isso a hiperbolização positiva, na tradição
grotesca, dos órgãos e das partes do corpo que servem de estada ou comunicação com
outros corpos, que atravessam limites individuais ou que se deixam atravessar. O
teórico russo ainda trata da associação entre os abalos cósmicos e os abalos corpóreos: a
ideia de microcosmos muito explorada por Rabelais. O escritor valia-se da propensão
das pessoas a assimilar e sentir em si mesmas “o cosmo material, com seus elementos
naturais, nos atos e funções eminentemente materiais do corpo: alimentação,
excrementos, atos sexuais”. Em vista de tal associação, as imagens relativas ao baixo
corporal teriam adquirido ao longo dos tempos um valor cósmico essencial.170
Obviamente, a explosão de que trata Vinicius não se coloca exatamente entre as
perturbações cósmicas e as calamidades naturais aludidas por Bakhtin, mas guarda
amplitude e efeitos calamitosos inclusive superiores. No campo conceitual, percebe-se
que a analogia entre a reação nuclear da bomba e o clímax sexual vai ao encontro do

170
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 293-5.

94
que Marinetti definiu como uma “psicologia intuitiva da matéria” no manifesto técnico
de 1912.171
O poema se desdobra de maneira que sua estética endurecida, congênere dos
pressupostos futuristas, aos poucos se transforma; seus versos ganham cada vez mais
musicalidade e lirismo; o caráter métrico é primeiramente o aspecto mais visível de uma
íntima conversão. A segunda parte se enuncia no ritmo da redondilha maior, com o
talhe melodioso e popular que lhe é afeito: “A bomba atômica é triste/ Coisa mais triste
não há”. Ali se encontra uma das imagens mais precisas e delicadas já compostas em
concerto com a bomba: “Vem caindo devagar/ Tão devagar vem caindo/ Que dá tempo
a um passarinho/ De pousar nela e voar”. Vida e genocídio, leveza e gravidade, natural
e artificial; variados contrastes e contradições podem ser retirados da mesma cena.
Alguns anos depois, nos instantes finais da película Dr. Strangelove (1964), de Stanley
Kubrick, baseado no livro Two Hours to Doom (1958), de Peter Bryant George, sucede
também um arranjo em que a criatura se acomoda numa bomba nuclear caindo, desta
vez um ser humano. É importante destacar como que o modo vagaroso de cair tem
menos a ver com o tempo real, absoluto, que com o tempo relativo. A apreensão gerada
pelo arremesso de um equipamento de efeitos tão devastadores faz com que se
prolongue aparentemente a duração dessa queda; a demora sugere também a leveza
relativa do objeto frente ao peso, à gravidade, das consequências — e daí muito se
compreende da intensidade simbólica da ave pousada.
Ainda na parte II, a ideia da bomba como um “anjo/ Tutelar” reaparece na
medida em que o dispositivo “também mata a guerra” — “Guarda de uma nova era/
Arcanjo insigne da paz!”. Ela se refere à doutrina de estratégia militar e política
denominada M.A.D. — mutual assured destruction, ou destruição mútua assegurada (a
sigla traduz-se também como “louco”) —, isto é, com base na premissa de que o uso em
larga escala de armas nucleares por dois ou mais lados opostos leva necessariamente à
aniquilação de todos os envolvidos, fabricam-se arsenais capazes de dissuadir as
lideranças adversárias de iniciarem uma ofensiva. A matéria, que perpassa todo o
poema, produz um paradoxo importante na história recente do mundo, o da paz
decorrente da proliferação do mais brutal artefato de guerra. A respeito, o dramaturgo
suíço Friedrich Dürrenmatt chega mesmo a pôr em paralelo a bomba atômica e o
grotesco moderno por conta de tal paradoxo:

171
MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto técnico da literatura futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 6ª ed. revista e ampliada. Petrópolis: Vozes, 1982, pp. 95-9.

95
Nosso mundo levou simultaneamente ao grotesco e à bomba atômica,
do mesmo modo como são igualmente grotescos os quadros
apocalípticos de Hieronymus Bosch. Mas o grotesco é apenas uma
expressão sensível, um paradoxo sensível, ou seja, a figura de uma
não-figura, o rosto de um mundo sem rosto. E tal como o nosso
pensamento parece não prescindir do paradoxo, o mesmo ocorre com
a arte e com o nosso mundo, que só existe porque existe a bomba, isto
é, pelo medo que se tem dela.172

A última parte estampa muitos elementos estéticos tradicionais, regenerados ao


entremear o vocabulário científico disposto desde o começo no poema. Aqui, a
musicalidade alcançada por meio do decassílabo, das rimas, de assonâncias e aliterações
parece posicionar-se contrariamente à possibilidade de rebarbas ruidosas que mais se
adequariam às propriedades e ao propósito primeiro da bomba atômica. O poeta quer
apontar-lhe o caminho distinto do perdão, das primaveras. Nessa investida, ele fala em
primeira pessoa sem qualquer assombro e à bomba se remete na segunda; configura
assim uma intimidade amorosa em que a expressão “eu te amo” se reforça algumas
vezes — provavelmente, a mais desconcertante das expressões passadistas. Lembremo-
nos, pois, da proposta de Marinetti quanto à representação do indivíduo e de suas
perplexidades: “Destruir na literatura o ‘eu’, isto é, toda a psicologia. O homem
completamente avariado pela biblioteca e pelo museu, subjugado a uma lógica e uma
sabedoria apavorante, não oferece absolutamente mais interesse algum”. 173 O italiano
incorpora em seu projeto poético o apagamento da individualidade humana e busca
conciliar os postulados a seu violento ideário político: “Nós queremos glorificar a
guerra — única higiene do mundo — o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor dos
anarquistas, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher”.174 Pelo contrário,
Vinicius elabora uma voz cheia de mansuetude para que reconforte e seduza a sinistra
peça, e que, diante do influxo do amor, da música, da poesia, ela queira desembarcar
das alturas, dormir em paz nos seus braços e jamais prestar-se novamente aos planos de
conflagração. Desde logo, o orbe lexical dos gases, do neutrônio, das radiações

172
DÜRRENMATT, Friedrich. In: KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na
literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.9.
173
MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto técnico da literatura futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 6ª ed. revista e ampliada. Petrópolis: Vozes, 1982, p.97.
174
O futurismo. In: Op. cit., p.92.

96
espaciais harmoniza-se com o céu, o mar, estrelas vespertinas e matutinas, um sorriso
gracioso da própria bomba atômica; o discurso ganha amabilidade com os artifícios
rítmicos e melódicos. Tais variações e isomorfias por que passam os versos no decorrer
de todo o poema contribuem na expressão de um movimento de aproximação do poeta
com essa musa estapafúrdia e temerária; o movimento atravessa a estranheza, a
contemplação, a imaginação e atinge o intimismo. E o poeta permanece como sempre
aberto às experiências semânticas e formais, conquanto nunca abdique das concepções
que o alimentam e que nele despertam o anseio pela palavra.

97
IX. DE GREGÓRIO A VINICIUS

(...) Esses gênios são excessivos.


Isso está relacionado à quantidade de infinito que eles têm
dentro de si.
De fato, eles não são circunscritos.175

Victor Hugo

Quanto mais a sátira se acentua na poesia de GREGÓRIO DE MATOS, mais


podemos encontrar os elementos que por ora nos interessam. Em épocas anteriores
àquela estética romântica que estimularia a desordem em um ambiente misterioso e
amedrontador, era mais fácil que o riso fosse o principal produto do grotesco. O poeta
barroco inverteu a lógica do respeito e das hierarquias para ridicularizar o poder e os
postos mais prestigiosos da sociedade. Valeu-se da cultura cômica popular e compôs
uma obra povoada de personagens como governadores, clerezia, fidalgos, letrados,
administradores etc., bem como pessoas mais simples do povo. Todos carnavalizados
em algum grau, de modo que se misturassem entre palavrões, profanações e caricaturas,
como a que pintou do governador Antônio Luís da Câmara Coutinho.

Nariz de embono
com tal sacada,
que entra na escada
duas horas primeiro
que seu dono.
Nariz que fala
longe do rosto,
pois na Sé posto
175
HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário,
2000, p.76.

98
na Praça manda por
a guarda em ala.
Membro de olfatos,
mas tão quadrado
que um rei coroado
o pode ter por copa
de cem pratos.
Tão temerário
é o tal nariz,
que por um triz
não ficou Cantareira
de um armário.
Você perdoe
Nariz nefando,
que eu vou cortando
e ainda fica nariz
em que se assoe.176

Os entes religiosos, sobretudo frades, eram matéria-prima entre as mais usuais


para o rebaixamento.

Verá na realidade
aquilo, que já se entende
de uma puta que se rende
às porcarias de um Frade:
mas se não vê de verdade
tão lascivo exercício,
é, porque cego no vício
não lhe entre no oculorum
o secula seculorum
de uma puta de ab initio.177

A chamada “poesia pantagruélica” precisa constar também em qualquer rápida


retrospectiva que se faça dos principais nomes do grotesco em nossa lírica. Situada
176
MATOS, Gregório de. Obra poética. Ed. de James Amado, prep. e notas de Emanuel de Araújo. Rio de
Janeiro: Record, 1992, p.183-4.
177
Op. cit., pp. 264-5.

99
entre as décadas de 1840 e 1860, ela pertence a um romantismo paulistano “marcado
pelo satanismo, o humor e a obscenidade”, observa Antonio Candido. O que dela
sobrou é muito pouco, uma vez que seus próprios praticantes não lhe davam
importância e, quando entravam em suas vidas práticas e respeitáveis, os poetas
pantagruélicos “punham de lado as provas de loucura da mocidade e com certeza as
destruíam”.178 O mal que deitava suas sombras sobre Álvares de Azevedo, Aureliano
Lessa e, mais especialmente, BERNARDO GUIMARÃES, ainda não era inspirado por
Baudelaire, mas por Byron, Shelley, Musset e Heine, como ensina Silva Santos.179
Bernardo explorou praticamente todos os gêneros desviantes ou baixos e
modalidades do grotesco romântico em poemas como “A orgia dos duendes”, “O elixir
do pajé”, “Soneto”, “O nariz perante os poetas”, “Origem do mênstruo” ou “Parecer da
Comissão de Estatística a respeito da freguesia de Madre-Deus-do-Angu”. Aquele
primeiro trabalha com um grande número de personagens horríveis que vão desde os
mais amplamente conhecidos, como o lobisomem — aqui, “lobisome” — até criaturas
das lendas populares brasileiras, como a “mula-sem-cabeça”. Combinados amiúde com
o vocabulário e a pronúncia popularescos, típicos, ajudam a compor uma noção
inovadora dentre as expressões nacionalistas da poesia romântica brasileira; seu
satanismo e seu erotismo sádico tampouco encontravam precedentes. Vejamos o trecho
inicial da segunda parte:

Mil duendes dos antros saíram


Batucando e batendo matracas,
E mil bruxas uivando surgiram,
Cavalgando em compridas estacas.

Três diabos vestidos de roxo


Se assentaram aos pés da rainha,
E um deles, que tinha o pé coxo,
Começou a tocar campainha.

Campainha, que toca, é caveira


Com badalo de casco de burro,

178
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, pp. 230-1.
179
SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na
poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p.28.

100
Que no meio da selva agoureira
Vai fazendo medonho sussurro.

Capetinhas, trepados nos galhos


Com o rabo enrolado no pau,
Uns agitam sonoros chocalhos,
Outros põem-se a tocar marimbau.// (...)180

O poeta parodia a virilidade guerreira dos poemas mais célebres de Gonçalves


Dias em “O elixir do pajé”. E, para tanto, pratica uma diversidade rítmica parelha à de
“I- Juca Pirama”, com impressionante mestria. Seu componente obsceno, grosseiro e
hilariante encontrará correspondência na segunda metade do século XX em obras como
as de Hilda Hilst e Glauco Matoso.

Que tens, caralho, que pesar te oprime


que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?

Nessa postura merencória e triste


para trás tanto vergas o focinho,
que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,
teu sórdido vizinho!

Que é feito desses tempos gloriosos


em que erguias as guelras inflamadas,
na barriga me dando de contínuo
tremendas cabeçadas?

Qual hidra furiosa, o colo alçando,


co’a sanguinosa crista açoita os mares/ (...)181

180
GUIMARÃES, Bernardo. Elixir do pajé: poemas de humor, sátira e escatologia. São Paulo: Hedra, 2011,
pp. 81-2.
181
Op. cit., p.63.

101
Na última década do século XIX, CRUZ E SOUSA publicou seus primeiros poemas
e prosas poéticas. Sua literatura filiava-se ao simbolismo, estilo estranho à literatura
nacional e que nem mesmo na França, país de origem do movimento, alcançara inteira
aceitação. O poeta oriundo da província do Desterro assume um caráter cosmogônico,
faz de sua poesia um ambiente análogo a um cosmo encerrado em si mesmo que o
arrasta para o inferno das experiências sensíveis, ao paraíso de suas aspirações
transcendentais, às grutas da angústia íntima e ao infinito das instâncias inteligíveis.
Suas elaborações grotescas flertam com o sublime; o mal aparece como única e
desesperada saída para a concretização das abstrações — sua busca primordial — que
somente se daria com o amálgama entre os opostos. Seus versos são sonoros,
performáticos; contam com elementos românticos, nevroses decadentistas, mundos
invisíveis, abismos e pesadelos, como esses que buscam delinear suas impressões sobre
o “Tédio”:

Vala comum de corpos que apodrecem,


Esverdeada gangrena
Cobrindo vastidões que fosforescem
Sobre a esfera terrena.

Bocejo torvo de desejos turvos,


Languescente bocejo
De velhos diabos de chavelhos curvos
Rugindo de desejo.

Sangue coalhado, congelado, frio,


Espasmado nas veias...
Pesadelo sinistro de algum rio
De sinistras sereias...// (...)

Florescência do Mal, hediondo parto


Tenebroso do crime,
Pandemonium feral de ventre farto
Do Nirvana sublime.

Delírio contorcido, convulsivo


De felinas serpentes,

102
No silamento e no mover lascivo
Das caudas e dos dentes.// (...)182

Em poemas como “Múmia”, de Broquéis (1893), a figuração de mulheres


sedutoras e malévolas é dada por meio de um composto extravagante, monstruoso, de
elementos telúricos e celestes, divinos e diabólicos:

Múmia de sangue e lama e terra e treva,


Podridão feita deusa de granito,
Que surges dos mistérios do Infinito
Amamentada na lascívia de Eva.

Tua boca voraz se farta e ceva


Na carne e espalhas o terror maldito,
O grito humano, o doloroso grito
Que um vento estranho para os limbos leva.

Báratros, criptas, dédalos atrozes


Escancaram-se aos tétricos, ferozes
Uivos tremendos com luxúria e cio...

Ris a punhais de frígidos sarcasmos


E deve dar congélidos espasmos
O teu beijo de pedra horrendo e frio!...183

Mas é em Faróis (1900, obra póstuma), com efeito, que se propagam


substancialmente os elementos horrendos e infernais de sua obra — aqueles que,
associados à esfera semântica baudelairiana, precedem no poeta do Desterro o
expressionismo surpreendente de Augusto dos Anjos; e licenciam na poesia brasileira
muitos aspectos apoéticos segundo os paradigmas que até então predominavam. O
grotesco e o macabro em poemas como “Tédio”, “A caveira”, “Ébrios e cegos” ou “A
ironia dos vermes” abrem largos caminhos no século XX e consolidam Cruz e Sousa
como o primeiro grande poeta moderno brasileiro. Notemos, na estrofe final deste

182
CRUZ E SOUSA. Poesias completas. 2ª ed. reform. Intr. Tasso da Silveira. São Paulo: Ediouro, 2002, pp.
64-7.
183
Op. cit., p.12.

103
último, a menção explícita à ironia, bem como a supressão das hierarquias sociais — a
Danse macabre do folclore europeu medieval — e o seco materialismo:

Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,


Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!184

Enquanto AUGUSTO DOS ANJOS maquinava os estranhos parâmetros de sua


poesia, o simbolismo vinha se estabelecendo ao lado do parnasianismo como tendência
atuante. Alphonsus de Guimarães, notável simbolista cuja temática detém um teor
fúnebre preeminente — muito em consequência do falecimento prematuro de sua noiva
Constança (filha de Bernardo Guimarães) —, alcançava reconhecimento em círculos
intelectuais desde a publicação de seu Kiriale (1902). Ao salientar também a morte e a
finitude, Augusto dos Anjos exercitaria ecleticamente, porém, um simbolismo sui
generis capaz de aproveitar aspectos realistas e parnasianos que pudessem contribuir
com sua expressão, de feitio grotesco e originalíssima. Ali, podemos encontrar inflexões
que reorientam significativamente a poesia brasileira, quando a experiência concreta da
vida e a desmistificação da realidade se impõem, se consolidam; um universo verbal
influenciado pelas doutrinas que derivam do materialismo e do evolucionismo,
fomentado pelo rastro realista e pelas possibilidades poéticas descingidas por
Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud é desenvolvido de forma extremamente inusitada.
Esse léxico muito particular normaliza composições com “antepassados vermiformes”,
“elefantíases”, “encéfalo absconso”, “estados prodrômicos”, “húmus dos monturus”,
“morfogênese”, “noumenalidade”, “órbita elipsoidal”, “óvulo infecundo”,
“protozoários”, “psicogenética” etc. Augusto realiza dentro desse universo exótico uma
obra de grande manuseio formal voltada muitas vezes para as matérias minúsculas ou
microscópicas, para os seres ou objetos repugnantes ou mesmo para as enfermidades.
Retira-se daí a representação impressionante e concertada dos temas mais elevados
como a morte e a existência.

Na bruta dispersão de vítreos cacos,


À dura luz do sol resplandecente,

184
Op. cit., pp. 121-3.

104
Trôpega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.

O cupim negro broca o âmago fino


Do teto. E traça trombas de elefantes
Com as circunvoluções extravagantes
Do seu complicadíssimo intestino

O lodo obscuro trepa-se nas portas.


Amontoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas, dos esconderijos,
Estão olhando aquelas coisas mortas!// (...)185

Sua expressão literária não busca escapar à experiência real, como analisa
Ferreira Gullar: “ao contrário, procura concretizá-la, dar-lhe o peso e a contundência da
vida”; suas ruínas seriam “a imagem do abandono e da morte”. Augusto não exprime o
passar do tempo, a decrepitude e a solidão por meio de “conceitos ou imagens histórico-
literárias”, e sim com os próprios elementos “dessa ruína anônima e vulgar”. E então as
lagartixas nos muros velhos do Nordeste são transformadas em “testemunhas da
história, do trabalho destruidor do tempo”.186 Em “Budismo moderno”, a exemplo dessa
contundência, o poeta opta por falar da eternidade de sua poesia em vez da eternidade
de um espírito possível; e elabora analogamente a irrelevância de seu corpo material
mediante a imagem de uma criptógama desprendida ou de um óvulo infecundo —
sínteses de uma constante basilar em sua obra: a ideia de algo que não vinga, que não
chega a ser.187 Observemos, no quinto verso, um indício de como o exotismo de sua
obra não impediu que ela chegasse a um grande público, uma vez que a frase alcançaria
a condição de dito popular.

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte


Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharada roa
Todo meu coração, depois da morte?!

185
ANJOS, Anjos dos. Gemidos de arte. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp.113.
186
GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina. In: ANJOS, Augusto dos. Op. cit., p.23.
187
A respeito, uma boa explanação é dada por Ivan Cavalcanti Proença em O poeta do eu. (3ª ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1980).

105
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida


Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades


Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!188

A vasta incidência do grotesco na poesia de VINICIUS DE MORAES jamais


encontrou proporções semelhantes entre os demais grandes poetas brasileiros de sua
geração. O grotesco viniciano surge inicialmente em configuração onírica, simbólica,
fantástica ou infernal. São cobras saindo do corpo de uma mulher, “o pálido sangue do
sol”, “flores leprosas”, um “deus amarelo da imunda pomada”, um “mosquito gigante”
que espalha o terror, faunos, sereias, centauros, gigantes, anjos de toda a sorte etc. Num
segundo momento, já entre os versos mais afamados, o grotesco permanece, se não nos
horrores hiper-realistas, exortado no folclore, na glutonaria ou na comicidade. Surgem
cadáveres, mortos-vivos, fantasmas variados, um enterrado-vivo, a própria Morte
personificada, quase todos os tipos de cânceres etc. O materialismo, a escatologia, os
fisiologismos diversos e o baixo palavreado parecem cortar inteiramente todos os
momentos de sua poesia.
O grotesco pode se mostrar inclusive no sarcasmo diante das convenções sociais
mais graves, o que acontece em “O pranteado”. Ali se exibe o tema impensável da
preparação de um cadáver, isto é, da necromaquiagem e da tanatopraxia; e entrevê
ademais o velório e o enterro. Tudo é feito com um humor malévolo, grotesco, como de
alguém que falasse da morte de um grande desafeto:

Lavem bem o morto


Com bastante álcool

188
ANJOS, Anjos dos. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.86.

106
Depois passem creme
Depois passem talco
Esfreguem extrato
Por todo o seu corpo
Porque ele urinou-se
No último esforço.

— Que morto mais chato!


— Que morto mais porco!

Penteiem direito
Os cabelos do morto
E ajeitem-lhe o olho
Que está meio torto
Estiquem-lhe a pele
Com fita colante
Para que ele fique
Mais moço que antes.

— Que morto mais tosco!


— Que morto aberrante!

(...)
E pensem, e cogitem
E matem-se aos poucos
E chorem e se agitem
Até ficar loucos
Que dentro do túmulo
Feito em escuridão
Já se ouvem uns sons ocos
Vindos do caixão

— Que o morto está rindo


Na sua prisão!189

189
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 523-5 (Anexo I, pp. 157-9).

107
O poema é composto por sete oitavas sempre seguidas de um dístico que serve
de refrão ou coro. Se, de um lado, a voz nas oitavas é de um sarcasmo artificioso, do
outro, nos dísticos, ela possui uma índole aberta, direta e disposta a ajuizar o defunto. O
olho “meio torto” do cadáver, que precisa ser ajeitado, é exemplo da atrapalhação
mórbida, dessa cáustica comicidade elaborada por Vinicius.
Dentre as marcas contínuas reconhecíveis ao longo da obra, é importante
verificar que o poeta concebe um tipo de mitologia pessoal a partir de registros do
cristianismo. O expediente pode atravessar momentos vários de sua poesia, como se
comprova com “A Legião dos Úrias”, poema lançado em 1935 no livro Forma e
Exegese, e “Balada de Santa Luzia”, poema esparso publicado em 1972 no “Suplemento
Literário” do jornal O Estado de São Paulo. Nestes dois casos, o grotesco se faz
presente e possui em comum o horror das mutilações.
Úrias Heteu era um dos guerreiros mais importantes do reino de Davi. De acordo
com o texto bíblico (Segundo livro dos reis, 11 e 12), sua mulher, Betsabéia, comete
adultério com o rei depois que ele a observa, um dia, se banhando no terraço do palácio
real; como consequência, engravida; e manda avisar a Davi. Após tentar sem sucesso
que Úrias deixasse a guerra e voltasse para casa — de modo que o fizesse acreditar,
mais à frente, que o filho fosse dele —, o rei pede que o seu comandante o ponha na
linha de combate mais árdua, e que o desampare. Tal plano é bem sucedido e Urias
morre no enfrentamento; passado os dias de luto, Davi toma sua viúva como esposa. Em
seguida, porém, o Senhor lhe envia o profeta Natan para avisar-lhe de que ainda pagará
um alto preço por todo o ocorrido.190 Dessa história, Vinicius extrai os seus horríveis
“Cavaleiros Úrias”, espectros violentos, castradores das mulheres e de qualquer fêmea
úbere encontrada pelos caminhos. Em noites enluaradas — essas figuras
fantasmagóricas são escravos da Lua, a “grande princesa”, a “louca estéril” (para além,
o nome Úrias tem origem no nome hebraico Uryyah [‫]הירוא‬, a junção dos elementos ur,
luz, e Yah, Senhor, Javé) —, a região amaldiçoada é sadicamente acometida. O astro da
noite revela aqui seus significados mais adversos: é a “luz na intensidade tenebrosa”;191
é a Lua do Arcano XVIII que avisa da exposição ao perigo, do erro, dos motivos
ulteriores, do inimigo desconhecido:

190
Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966, pp.
348-50.
191
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
cores, números. Coord. Carlos Sussekind; trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 23ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2009, pp. 561-6.

108
E desde então nas noites claras eles aparecem
Sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e
[das mães sozinhas
E das éguas e das vacas que dormem afastadas dos
[machos fortes.

Aos olhos das velhas paralíticas murchadas que esperam


[a morte noturna
Eles descobrem solenemente as netas e as filhas deliquescentes
E com garras fortes arrancam do último pano os nervos
[flácidos e abertos
Que em suas unhas agudas vivem ainda longas palpitações
[de sangue.

Depois amontoam a presa sangrenta sob a luz pálida da deusa


E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas
[desconhecidas e fumos
Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes adormecidos
Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e
[convulsões mornas.

E então, após colherem as vibrações de leitos


[fremindo distantes
E os rinchos de animais seminando no solo endurecido
Eles erguem cantos à grande princesa crispada no alto
E voltam silenciosos para as regiões selvagens onde vagam.

Volta a Legião dos Úrias pelos caminhos enluarados


Uns após outros, somente os olhos, negros sobre
[cavalos lívidos
Deles foge o abutre que conhece todas as carniças
E a hiena que já provou de todos os cadáveres.// (...)192

192
MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 77-83.

109
As histórias de milagre que envolvem Santa Luzia, ou Lúcia, são entre si um
pouco distintas. Segundo a Legenda Áurea,193 referência católica, sua mãe, com
hemorragias, é por ela encaminhada ao túmulo de Santa Águeda. Luzia acaba
adormecendo de frente ao túmulo e passa a sonhar com a santa; ao acordar, percebe que
sua mãe está curada. Luzia começa desde então uma trajetória de devoção e beatitude;
oferece muito de seus bens aos pobres, levando seu noivo a denunciá-la e entregá-la ao
governo anticristão de Pascácio; o governador ordena que ela seja conduzida à
perversão, mas seu corpo adquire tal peso, que homens em grande número não são
capazes de demovê-lo; por isso, torturam-na e matam-na ali mesmo. Ainda no livro de
Jacopo de Varazze, Santa Lúcia é a protetora dos olhos já que seu nome remete à luz,
que é fundamento da visão e que remete à via lucis: o caminho reto, imaculável e
propenso a imensas extensões. A tradição oral, contudo, conta que, ao ser torturada,
Luzia teve seus olhos arrancados e, como por dádiva divina, eles se refizeram em sua
face — e por isso ela seria a protetora. Outra história é a de que Luzia teria perguntado a
Pascácio qual o motivo da destemperada paixão de seu noivo e, ao responder-lhe que
era a beleza de seus olhos, Luzia mesma os arranca e os serve em um pequeno prato. É
esta a versão que embasa inúmeros quadros, de incontáveis pintores, como aquele de
Alfredo Volpi, de onde Vinicius retira inspiração para “Balada de Santa Luzia” —
conforme dedicatória no poema; a notabilidade talvez se deva à interação com
passagens bíblicas como a de Mateus (5:29-30) ou a de Marcos (9:42-47): “se o teu olho
te escandaliza, lança-o fora; melhor te é entrar no reino de Deus sem um olho, do que,
tendo dois, ser lançado no fogo do inferno, onde o seu verme não morre, e o fogo não se
apaga”.194 A partir daí, o poeta engendra a sua própria versão: uma história de amor,
trágica e grotesca;195 Luzia faz da paixão pelo Senhor — aqui, paixão também no
sentido de martírio — uma “paixão desfigurada”, uma vez que atenta contra os próprios
olhos e corrompe a sua própria imagem, tornando-a repulsiva, medonha. Sóror Luzia
serve os seus olhos ao jovem que a espiava apaixonado por entre as fendas do muro do
convento, o qual teve de galgar para tentar expor o que sentia: ele se declarava
desesperadamente, como também declarava “O seu intento sombrio/ De ali mesmo

193
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea. Trad., apres., notas e sel. iconográfica de Hilário Franco Júnior.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 77-80.
194
Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966,
p.1231.
195
Estas histórias podem ser encontradas também na análise (do autor) de “Balada de Santa Luzia” em A
poesia esparsa de Vinicius de Moraes: uma leitura de inéditos de (des)conhecidos. São Paulo: Todas as
Musas, 2018, pp. 100-11 ( http://www.posvernaculas.letras.ufrj.br/images/Posvernaculas/10-publicacoes/2018/A-
Poesia-Esparsa/Ebook-A-Poesia-Esparsa-de-Vinicius-de-Daniel-Gil.pdf ).

110
apunhalar-se/ Caso Luzia não desse/ O que ele mais desejava:/ Os olhos que via em
prece”; mas, sem demora, ela se desfaz do que é motivo de escândalo:

E com mão segura e presta


Ao moço tira o punhal
E com dois golpes funestos
Arranca os olhos das caixas:
Seus grandes olhos tão belos
Que deposita na salva
E ao jovem fidalgo entrega
Num gesto lento e hierático.

O cavalheiro recua
Ao ver no rosto da amada
Em vez de seus olhos, duas
Crateras ensanguentadas.

E corre e galga a muralha


Em frenética escalada
Deixando cair do alto
Seu corpo desamparado
Sem saber que ao mesmo tempo
De paixão desfigurada
Ao seu Senhor ciumento
Santa Luzia se dava.196

A fabricação de um imaginário com base no cristianismo, identificável em


diferentes etapas da poesia de Vinicius — partindo primeiramente da fé do jovem poeta
e, depois, a partir do que se manteria do universo cristão em sua concepção estética —,
é procedimento que muito havia servido, na história das artes, de manancial para a
manifestação do grotesco, em virtude da inclinação do fenômeno à dinâmica recíproca
com o sublime. Ao tratarmos agora, especificamente, de um artista da literatura
brasileira, poeta do século XX, o qual se encontra, desde um determinado momento, um
tanto despojado de sua convicção religiosa, podemos perceber um comportamento

196
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 496-9.

111
curiosamente heterodoxo desse tipo de imaginário nas composições. Em “Sob o trópico
do câncer”, observamos um longo poema seriado, polifônico, heterogêneo, onde são
mencionados tipos humanos os mais diversos: atriz, rei, papa, governador, general, pai,
mãe, menino, marido, avó — todos com câncer —, até Deus! Dentre as vozes que
atuam no poema, há aquela do vendedor cheio de “sotaque”, expondo variedades do
câncer e patologias; e, na parte III, surgem as vozes de uma ladainha que, em vez de
invocar a Deus ou pedir a interseção de Maria ou dos santos, opta por clamar às
enfermidades. Vinicius, ali, se aproveita dos nomes científicos dados sempre em latim,
língua empregada tradicionalmente em certas liturgias (ainda hoje nas igrejas mais
ortodoxas), para compor uma prece disparatada:

(...)
Cholera morbus
— Ora pro nobis
Vomitus cruentus
— Ora pro nobis
Empresma carditis
— Ora pro nobis
Fellis suffusio
— Ora pro nobis
Phallorrhoea virulenta
— Ora pro nobis
Gutta serena
— Ora pro nobis
Angina canina
— Ora pro nobis
Lepra leontina
— Ora pro nobis
Lupus vorax
— Ora pro nobis
Tonus trismus
— Ora pro nobis
Angina pectoris
— Ora pro nobis
Et libera nobis omnia Cancer

112
— Amen.197

Antonio Candido se refere à “Balada do Mangue” como “um dos poemas mais
belos da literatura brasileira”. E ressalta a maestria com que Vinicius dominou o verso e
suas técnicas de modo a “atualizar a tradição”; o crítico observa também que o poema é
exemplo de uma modernização que lhe permitia “tratar com um toque de
intemporalidade os temas aparentemente menos poéticos”.198 A balada retrata as
mulheres da mais conhecida zona de prostituição do Rio de Janeiro à época, cortada
pelo Canal do Mangue. “Enclausuradas sem fé”, elas eram muitas vezes vítimas do
aliciamento e da exploração sexual. Por isso, a clausura que, entre outras acepções, é o
mesmo que convento (vida religiosa em retiro religioso), no lugar de traduzir a
recolhida voluntária, espiritualizante, remete à perniciosa condição social, impingida,
objetificante, a qual se pôde definir como um claustro de sujeição e enfermidades. Não
é aleatória, entretanto, a escolha desses signos marcados pela transcendência, uma vez
que, na perspectiva do poeta, o resignado sofrimento dessas mulheres as projeta a
patamares elevados: “Como sofreis, que silêncio/ Não deve gritar em vós/ Esse imenso,
atroz silêncio/ Dos santos e dos heróis”. É invulgar tal aproximação, que aqui parece
muito genuína, entre elementos aparentemente opostos, como prostíbulo e clausura,
santos e prostitutas.
Vinicius inicia a “Balada do Mangue” fazendo uso das proparoxítonas como
recurso de realce às estranhezas. Aliadas a um vocabulário ao mesmo tempo baixo e
biológico, podemos ouvir ecos da poética de Augusto dos Anjos — onde muito se
encontra, igualmente, o mesmo artifício prosódico:

Pobres flores gonocócicas


Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!/ (...)199

Lembremo-nos de que a palavra esdrúxulo, adjetivo que utilizamos no mais das


vezes com o sentido figurado, nominando o estranho ou o ridículo, é um termo

197
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 541-6.
198
CANDIDO, Antonio. Um poema de Vinicius de Moraes. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e
baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 159-62.
199
MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta,
1946, pp. 87-89 (Anexo I, pp. 141-3).

113
gramatical sinônimo de proparoxítono. O poeta lançaria mão do recurso outras vezes,
como em “Sob o trópico do câncer” (“tarântula”, “fétida anêmona”, “homúnculo” etc.).
Mas o principal fator de desconforto ao longo do poema, com efeito, está
associado a algo que é muito presente nos grotescos ornamentais: o hibridismo. Aqui, o
arranjo se dá mais constantemente por meio de imagens florais que representam aquelas
mulheres, isto é, da combinação entre o humano e o vegetal — elas são orquídeas (lælia
tenebrosa, vanda tricolor), dálias, corolas e, indiretamente, lilases e jasmins. Isso não
explica, por si, o estranhamento; o que é mesmo inquietante emerge do fato de tais
“flores” amargarem mazelas peculiares. Afora os estados adversos que se associam
comumente ao ser humano — a pobreza, a fragilidade, a doença —, aquelas mulheres
sofrem a má sorte e os maus aspectos representativos desses vegetais: estão pensas,
murchas, cortadas, descoloridas; são tóxicas, do pólen envenenado, de “venenos
putrefatos” etc. Esse desdobramento imagético, reiterado, faz com que a equiparação
metafórica atinja uma força diferente, capaz de levar o leitor a experimentar figuras
verdadeiramente híbridas, e não meras aproximações. E o poeta complementa o painel
incluindo algumas formas animalescas, em que genitálias à mostra fazem a vez de
presas famintas em meio aos ostensivos apelos do meretrício. Apesar do marcado
expressionismo, é necessário observar a naturalidade e certa suavidade características,
apreciáveis em muito da poesia de Vinicius, que, a seu turno, jamais diminuem a
contundência do que é transmitido:

Ah, jovens putas das tardes


O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas de amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu.../ (...)

114
O poeta procura uma possível razão para a vida dessas jovens, “Vestidas de
carnaval”; e, ao fim, sugere outro tipo de transmutação, uma que pudesse aniquilar a si
mesmas e aqueles que são o motivo de tamanho infortúnio:

Por que não vos trucidais


Ó inimigas; ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

Vê-se o elemento patológico também na “Oração para as pernas de Neruda”,


inusitado soneto acerca da flebite na perna direita que acometeu o poeta chileno por
muitos anos. A “oração” consta de um livro escrito integralmente em homenagem a
Pablo Neruda (ainda pouco ou nada explorado200), em dias subsequentes à sua morte:
História natural de Pablo Neruda — A elegia que vem de longe (1974):

Ó desveladas pernas, que tão longe


Carregastes o poeta em sua fuga
Eu vos mirei, enormes e largadas
E roxas da gangrena subjacente.
Ó não as amputeis, homens de branco
Que rondais essas pernas apreensivos
Enquanto o poeta, pálido e prostrado
Lê Canto General para os amigos.
Que não se verifiquem os maus presságios
Que volte o sangue a circular nas pernas
E o poeta se erga, majestoso e mágico
E beba em meio a alegres mariaches
Cantando alto e bom som canções eternas
Nos caminhos sem fim da liberdade.201

200
Inclusive, incorporou-se pela primeira vez a uma edição de obra reunida muito recentemente, no box
Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro (org. Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2017, pp. 457-76).
201
MORAES, Vinicius de. História natural de Pablo Neruda — A elegia que vem de longe. Xilogravuras de
Calasans Neto. Salvador: Macunaíma, 1974, p.33.

115
A descrição superlativa e o materialismo mórbido (“enormes e largadas/ E roxas
da gangrena subjacente”) se juntam ao signo da mutilação (“Ó não a amputeis, homens
de branco”) e causam uma impressão um tanto incômoda para um poema de caráter
afetuoso — que já no título mostra uma curiosa ambiguidade: a oração não é pelas
pernas, mas “para as pernas de Neruda”, emprestando uma opção de leitura em que os
membros inferiores do poeta de Canto General pudessem desfrutar talvez de algum
atributo divino. Mais à frente, o paralelo implícito entre a circulação sanguínea e o
alegre ato de beber corrobora a maneira insólita de capturar a poesia em meio ao revés
ou, ainda, às enfermidades.
São de tal forma reconhecíveis as áreas de interseção entre o grotesco e o
chamado nonsense, que seria inadvertido não observar aqui este modo de concepção,
um espírito específico tão estimado por Vinicius. Aspectos absurdos, risíveis, lúdicos,
incômodos são recorrentes nas duas esferas e, não raro, elementos mais típicos de uma
estão presentes na outra. O poeta fala sobre esse humour na crônica “O não-senso e a
falta de critério”,202 em que revela a admiração pelo poeta e artista inglês Edward Lear,
destacando a importância de seu Complete book of nonsense, onde reconhece “uma
liberdade poucas vezes encontrável no que é criação do homem”. Vinicius então
apresenta um pequeno exercício feito a quatro mãos com Maria Ethel (filha de Aníbal
Machado), emulando formalmente as composições de Lear:

Era um dia um sujeito maneta


Que não tinha a perna direita
Pois o homem coçava
Com a mão que lhe faltava
As perebas da perna perneta!

Não foi à toa a percepção do poeta de que as crianças “são seres nonsensical, e
tudo o que delas se aproxima”. O poeta empregaria, anos mais tarde, essa graciosa
ilogicidade em poemas como “A casa”: “Era uma casa/ Muito engraçada/ Não tinha
teto/ Não tinha nada/ Ninguém podia/ Entrar nela não/ Porque na casa/ Não tinha chão/
Ninguém podia/ Dormir na rede/ Porque na casa/ Não tinha parede/ (...)”.203 Ou na letra

202
MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos. Org., intr., e notas Carlos Augusto Calil. São Paulo:
Companhia das Letras: Cinemateca Brasileira, 1991, pp. 215-6. Obs.: Segundo o organizador, o texto foi
escrito em outubro de 1945, para o periódico Diretrizes.
203
MORAES, Vinicius de. A arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970, p.74.

116
de “O pintinho”, exclusivamente do cancioneiro: “Pintinho raro/ Pintinho novo/ Tá tudo
caro/ Volta pro ovo/ (...)”.204 Não obstante, é possível verificar a fuga repentina do
senso racional também na poesia de público amplo, como, por exemplo, em “Trecho”
ou no estranhíssimo “Sombra e luz”. Este segundo é tomado de signos tradicionalmente
grotescos: morcegos, ratos; túmulos, caveira; vômito de bile, cocô; “Os mortos mortos
de frio”, “o vampiro Nosferatu etc. E parece partir da face inesperada ou mesmo
perversa do destino, dos acontecimentos; da dinâmica sentenciosa da Fortuna; da
“dança” de Deus, que por vezes é “Dança de horror”; para que então passe a explorar de
alguma forma o turbilhão de indizíveis — incompreensíveis — sensações e percepções
do poeta frente a esse contínuo de luz e sombra. Eucanaã Ferraz apresenta esse poema
como amostra de uma série de estratégias de reinvenção da língua ao longo da obra de
Vinicius, que teria a ver “com uma vasta consciência dos códigos linguísticos e com sua
exploração”. E não deixa de observar seus aspectos mais absurdos:

Nesse mesmo sentido, a estrofe seguinte encadeia um arcaísmo


(“alifante”), uma referência bíblica (“bezerro de ouro”) e dá
continuidade à ambientação do poema, nobre e vetusta (“espada”,
“baile da corte”). A sequência, porém, desemboca num humour que
lança mão do coloquialismo mais vulgar para construir uma imagem
decididamente absurda: “E um gato e um soneto/ No túmulo preto/ E
uma espada nua/ E um bezerro de ouro/ Na boca do lobo/ E um bruto
alifante/ No baile da Corte/ Naquele cantinho/ Cocô de ratinho/
Naquele cantão/ Cocô de ratão”.
Do que trata, afinal, o poema? Que sentido pode ser construído
na articulação de suas imagens? Estas e outras perguntas soam no ar
sem respostas. O título, “Sombra e luz”, parece nos dizer logo na
antecâmara do poema que assistiremos a um espetáculo onde a língua
é tratada como uma matéria lúdica, e o poema, uma espécie de fábula
barroca, surrealista, sobre os (des)limites entre luz e sombra, razão e
delírio, confissão e segredo, metáfora e registro, dito e não-dito.
Todo esse jogo chega a seu ponto culminante no verso que abre
a segunda parte do poema: “Munevada glimou vestasudente”. Trata-se
de uma língua estrangeira? Será um código? Como decifrá-lo? Depois
de relutarmos contra a presença de um conjunto de signos vazios,
204
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 2. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 550-1.

117
resignamo-nos e deixamos de lado nosso impulso racional. A escrita
mergulha na “sombra” absoluta: no “sem-sentido” da linguagem.205

Em outras palavras, a inventividade é exercida em âmbitos múltiplos da


linguagem, em “Sombra e luz”: nas variações rítmicas, no sentido de cada signo como
objeto poético autônomo — “hidromel”, “caveira”; no sentido (ou sem-sentido) dos
signos articulados — “Semeando brasas/ No túmulo de Orfeu”, “E um bezerro de ouro/
Na boca do lobo”; ou, ainda, na manipulação dos próprios signos em si mesmos —
“Munevada glimou vestasudente”. A respeito desse misterioso verso, poderíamos
arriscar alguma decifração a partir de semelhanças sonoras com a língua inglesa.
Teríamos, pois, algo como A lua branca (nevada) brilhou no sudoeste. Apesar de esse
entendimento ser meramente especulativo, é possível articulá-lo com o que vem em
seguida —“Desfazendo-se em lágrimas azuis/ Em mistério nascia a madrugada”.
Ao afirmar naquela crônica que, “Em literatura brasileira, há, infelizmente, a
mais triste falta de nonsense”,206 o poeta não se refere decerto apenas ao gênero
específico, mas a um ânimo que se inclina ao delírio, ao fantástico, muito perturbado
por um modus operandi majoritariamente apoiado na razão e no real.
Entretanto, é possível verificar que Vinicius de Moraes é um dos cinco nomes
que formam a base de uma estética do grotesco da lírica brasileira, incluindo Gregório
de Matos, Bernardo Guimarães, Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos — dado que, a partir
dessa base, se conhece praticamente todas as variantes do que se entende como
grotesco, hoje, em poesia. Esse pentagrama da poesia nacional pode viabilizar uma
leitura histórica baseada em nova perspectiva: uma leitura que atravesse movimentos e
concepções estéticas revelando, por meio da desordem e do anômalo, invenções e
reinvenções de um conjunto plausível e profuso.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO

O interesse pelo grotesco e os debates que envolvem seus possíveis significados


percorrem séculos e contam desde sempre com nomes da maior importância, entre os

205
FERRAZ, Eucanaã. Um poeta entre a luz e a sombra. In: Revista Língua Portuguesa, nº 26. São Paulo:
dezembro de 2007, pp. 38-44.
206
MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos. Org., intr., e notas Carlos Augusto Calil. São Paulo:
Companhia das Letras: Cinemateca Brasileira, 1991, p.215.

118
quais proeminentes artistas, poetas, pensadores e escritores. As poucas considerações
que se seguem, portanto, já não ousam significados originais para o termo; por outro
lado, pretendem distribuir as noções mais consolidadas em duas categorias, ainda
inauditas, que podem contribuir na compreensão das formas com as quais se apresentam
esse fenômeno artístico: 1) a metafísica ou dionisíaca; 2) e a materialista. Nos dois
casos, consideramos que o resultado é o riso ou a repulsa, quando riso e repulsa não
surgem tipicamente combinados.
A categoria metafísica ou dionisíaca é representada sobretudo pelos ornamentos
descobertos no final do século XV (que deram nome ao conceito) e caracteriza-se pelo
viés fantástico, pela imaginação desordenada, pelo hibridismo, pelas forças
desconhecidas. Ela é dionisíaca, tendo em vista o número de elementos que se ligam à
divindade naquelas manifestações pictóricas: Dioniso é o deus da vegetação — expressa
nos arabescos —, da colheita, da vida e da fertilidade na natureza; ao mesmo tempo,
faz-se presente nos demônios da vegetação — não somente no mal tempo, mas no bode
(ou cabra) ou no touro selvagem; para além, o culto dionisíaco remete ao rompimento
dos limites entre o homem e o divino — à possessão, à fusão —, entre o natural e o
sobrenatural, o humano e o animal; como também ao delírio e à loucura.
Como se sabe, sincretismos generosos podem ser identificados entre as figuras
de Dioniso, Cernuno e Lupércio. Georges Minois trata do riso romano das lupercais e
menciona a perplexidade de Plutarco ao buscar uma razão para aqueles estranhos ritos,
comuns a esses festejos:

Há coisas e costumes cuja causa e origem são difíceis de conjeturar:


porque se matam cabras e trazem jovens de famílias nobres que são
tocados, na fronte, com a faca manchada do sangue das cabras
imoladas e, em seguida, enxugam-nos com lã molhada no leite, e os
rapazes devem começar a rir depois que lhes secam a fronte; feito
isso, corta-se o couro das cabras, fazendo correias com ele. Eles
pegam as correias nas mãos, saem correndo pela cidade, nus, exceto
por um pano que lhes cobre as partes íntimas, e batem com essas
correias em todas as pessoas que encontram em seu caminho. Mas as
mulheres jovens não fogem deles, mas ficam felizes por ser surradas,
acreditando que isso as ajuda a engravidar facilmente.207

207
PLUTARCO. In: MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção.
São Paulo: Editora UNESP, 2003, p.99.

119
Nada pode ser mais emblemático do riso perturbador do que esse riso,
engendrado na essência do grotesco. Nesta categoria, metafísica ou dionisíaca,
acomodam-se também as manifestações conectadas com os seres lendários, o
fantasmagórico, o diabólico, o incompreensível; mas aqui se encontram igualmente o
grotesco percebido nas máscaras, na estranha dissimulação, na ilogicidade, na zombaria,
na ironia incômoda ou na linguagem absurda.
A categoria materialista, por sua vez, faz lembrar que o ser humano é um ser
biológico; explicita seu funcionamento, mas, também, os danos físicos, as degradações,
a morte — e a continuidade da matéria transformada; e faz lembrar que ele é um animal
como outros; e que tem funções fisiológicas, necessidades e desejos como esses outros.
Daqui saem muitas vezes composições em contraste com os valores transcendentais, de
modo a amplificar a contundência de sua expressão.
Os grotescos desenvolvidos a partir de feridas abertas, despedaçamentos,
vísceras, esqueletos e caveiras convocam as nossas atenções para o corpo físico,
especialmente para a frágil resistência de sua individualidade bem acabada — o
principal motivo de nosso desconforto; o mesmo acontece na representação das
doenças, dos constituintes patológicos e patologizantes. A explicitação do saudável
funcionamento de nosso aparato biológico, porém, pode causar igualmente certo
incômodo, objeção ou riso, uma vez que exponha de maneira crua a nossa afiliação ao
reino animal: despidos dos disfarces moderadores, culturais, os atos de beber e comer,
as funções digestivas, o sexo, a gravidez, o parto, os líquidos seminais, as excreções etc.
são capazes de compor centralmente imagéticas grotescas — inclusive o baixo
palavreado procedente desses elementos. E, enfim, as formas humanas, por si próprias,
quando representadas no absurdo do hiperbolismo e da caricatura, servem do mesmo
modo ao fenômeno estético. Bakhtin percebeu a existência deste viés materialista nas
manifestações grotescas ao elaborar sua análise sobre a obra de Rabelais. Entretanto, o
materialismo era um conceito demasiadamente caro ao teórico russo — adepto da
filosofia e do ideário marxista; e, por isso, a concepção da ideia de um “realismo
grotesco” acabaria optando por uma perspectiva necessariamente positiva, unilateral,
desse materialismo, o que, por conseguinte, levou-lhe a uma significação também
necessariamente positiva do próprio grotesco.

120
X. BIBLIOGRAFIA

DE VINICIUS DE MORAES

 O caminho para a distância. Rio de Janeiro: Schmidt, 1933.

 Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935.

 Ariana, a mulher. Rio de Janeiro: Pongetti, 1936.


 Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.

 Cinco elegias. Rio de Janeiro: Pongetti, 1943.

 Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta,
1946.
 Pátria minha. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1949.

 Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954.

 Livro de sonetos. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1957.

 Novos poemas (II). Rio de Janeiro: São José, 1959.

 Antologia poética. Segunda edição, revista e aumentada. Rio de Janeiro: Editora do


Autor, 1960.
 Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962.

 Livro de sonetos: segunda edição, aumentada. Rio de Janeiro: Sabiá, 1967.

 Obra poética. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968.

 O mergulhador. Ilustr. de Pedro Moraes. Rio de Janeiro: Atelier de Arte, 1968.

 O poeta apresenta o poeta. Sel. e pref. de Alexandre O’Neill. Col. Cadernos de


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 A arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970.

 História natural de Pablo Neruda — A elegia que vem de longe. Xilogravuras de


Calasans Neto. Salvador: Macunaíma, 1974.

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 A casa. Capa de Carlos Bastos. Salvador: Macunaíma, 1975.

 Breve momento: sonetos. Rio de Janeiro: Lithos Ed. de Arte, 1977.

 O falso mendigo. Sel. Marilda Pedroso, com xilogravuras de Luiz Ventura. Rio de
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 O cinema de meus olhos. Org., intr., e notas Carlos Augusto Calil. São Paulo:
Companhia das Letras: Cinemateca Brasileira, 1991.
 Querido Poeta: correspondência de Vinicius de Moraes. Org. Ruy Castro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
 Vinicius de Moraes — Encontros. Org. Sérgio Cohn e Simone Campos. Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2007.
 Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. (2 vols.) Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
 Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde
nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes. Org. e apres.
Daniel Gil; Ilustr. Juliana Russo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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 CASTELLO, José. A utilidade do inútil. Sábados inquietos. São Paulo: Leya Brasil,
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 _______. Vinicius de Moraes: uma geografia poética. Rio de Janeiro: Relume, 2005.

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 _______. Vinicius de Moraes. Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006.

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 _______. O epílogo das tramas. In: MORAES, Vinicius de. Roteiro lírico e
sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em
trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes. Org. e apres. Daniel Gil; Ilustr.
Juliana Russo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 12-24.

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 GULLAR, Ferreira. Entre irmãos. In: MORAES, Vinicius de. História natural de
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 MARQUES, Ivan. Um claro na treva. In: MORAES, Vinicius de. Novos poemas (II).
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 MARTINS MOREIRA, Thiers. Duas constantes em “Forma e exegese”. In:
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 MILLIET, Sérgio. Outubro, 29. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e
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 MORAES, Laetitia Cruz de. Vinicius, meu irmão. In: MORAES, Vinicius de. Vinicius
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 MOURÃO FERREIRA, David. A descoberta do amor. In: MORAES, Vinicius de.
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 PORTELLA, Eduardo. Do verso solitário ao canto coletivo. In: MORAES, Vinicius
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 SANTA CRUZ, Luiz. O soneto na poesia de Vinicius de Moraes. In: MORAES,
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 SANT’ANNA, Affonso Romano de. Vinicius de Moraes: a fragmentação dionisíaca e
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Rio de Janeiro: Rocco, 1993, pp. 257-303.
 SECCHIN, Antonio Carlos. Os caminhos de uma estreia. In: MORAES, Vinicius de.
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 VILLAÇA, Alcides. Da fidelidade aos sonetos. In: MORAES, Vinicius de. Livro de
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 WENNER, Liana. Vinicius portenho. Trad. Diogo de Hollanda. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra, 2012.
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 APOLODORO. Biblioteca mitologica. Edición José Calderón Felices. Madrid: Akal,


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 ARAÚJO, Gilberto. Literatura brasileira: pontos de fuga. Rio de Janeiro: Verve,
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de Doutorado). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2014.
 ARISTÓTELES. Arte poética e retórica. Pref. Goffredo Telles Júnior. Trad. Antônio
Pinto de Carvalho. Intr. e notas Jean Voilquin e Jean Capelle. Rio de Janeiro: Edições
Ouro, s/d.
 ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. 2ª
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 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no
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 __________. Noções de história das literaturas. 5ª ed. (2 vols.) Rio de Janeiro: Fundo
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 BARTHES, ROLAND. Mitologias. Trad. Rita Buongermino; Pedro de Souza; Rejane
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 BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte:
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 BAUDELAIRE, Charles. A rainha das faculdades. Caderno de leituras, nº 84. Trad.
Lívia Cristina Gomes. São Paulo: Chão da Feira, dezembro de 2018.
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 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone


Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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 MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura
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 MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz
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 MOLES, Abraham Antoine. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sergio Miceli. São
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 MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. São Paulo:
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 MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana: de


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 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo Cesar de Souza. São
Paulo, Companhia das Letras, 2011.
 __________. Ecce homo. Trad. Ines Antonia Lohbauer. São Paulo: Martin Claret,
2015.
 __________. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Trad. Jacó
Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
 OLIVEIRA NETO, Godofredo de. Cruz e Sousa: o poeta alforriado. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010.
 PAES, José Paulo. Uma microscopia do monstruoso. Armazém literário: ensaios. Org.
e apres. Vilma Arêas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
 PAIVA, Raquel; SODRÉ, Muniz. O império do grotesco. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2002.
 PARIS, Jean. Shakespeare. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: José Olympio,
1992.
 POE. Edgar Allan. A filosofia da composição. Pref. Pedro Süssekind. Trad. Léa
Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
 POMORSKA, Krystyna. Formalismo e futurismo. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Org.
Boris Schnaiderman; Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1972.
 PROENÇA, Ivan Cavalcanti. O poeta do eu. 3ª ed. acrescida de uma antologia de
Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
 OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington:
Indiana University Press, 1965.
 OVÍDIO. Metamorfoses. Ed. bilíngue. Trad., intr., notas Domingos Lucas Dias.
Apres. João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2017.
 RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Júnior. Capa de
Cláudio Martins. Col. Grandes Obras da Cultura Universal, vol. 14. Belo Horizonte:
Itatiaia, 2003.
 RAND, Ayn. The Romantic Manifesto: A Philosophy of Literature. Revised Edition.
New York: A Signet Book, 1971.
 RIBEIRO, José. Brasil no folclore. Rio de Janeiro: Aurora, 1970.

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 RICARDO, Cassiano. Gonçalves Dias e o indianismo. In: COUTINHO, Afrânio.
(Org.) A literatura no Brasil. 2ª ed. Vol. 2. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1969.
 ROSA DE ALMEIDA, Joel. A experimentação do grotesco em Clarice Lispector:
ensaios sobre literatura e pintura. São Paulo: Nankin; EdUSP, 2004.
 ROSENFELD, Anatol. A visão grotesca. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva,
1985.
 SCRUTON, Roger. Beleza. Trad. Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2013.

 SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta; Macbeth; Hamlet, príncipe da


Dinamarca; Otelo, o mouro de Veneza. Trad. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros;
Oscar Mendes. Sinopses, dados históricos e notas F. Carlos de Almeida Cunha
Medeiros. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
 _______. As alegres comadres de Windsor; Medida por medida; O sonho de uma
noite de verão; O mercador de Veneza; A megera domada; Sonetos. Trad. F. Carlos de
Almeida Cunha Medeiros; Oscar Mendes; Ivo Barroso. Sinopses, dados históricos e
notas F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
 SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa
sobre poesia. Trad. e notas Constantino Luz de Medeiros; Márcio Suzuki. São Paulo:
Editora UNESP, 2016.
 SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do belo. Trad. apres. e notas Jair Barbosa. São
Paulo: Editora UNESP, 2003.
 SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos
do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2009.
 SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. Trad. Alessandro Zir. São
Leopoldo: Unisinos, 2002.
 SYLVESTER, David. Sobre arte moderna. Trad. Alexandre Morales. São Paulo:
Cosac Naify, 2006.
 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 6ª ed.
revista e ampliada. Petrópolis: Vozes, 1982.
 THOMPSEN, Christian W. Das groteskeim englischen roman des 18. Jahrhunderts.
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974.

131
 VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea. Trad., apres., notas e sel. iconográfica de
Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
 WELLEK, René. Conceitos de crítica. Intr. e org. Stephen G. Nichols Jr. Trad. Oscar
Mendes. São Paulo: Cultrix, s/d.
 WERNECK, Humberto. O santo sujo: a vida de Jayme Ovalle. São Paulo: Cosac
Naify, 2008.
 ZAMPERINI, Alessandra. Les grotesques. Trad. de l’italien par Odile Menegaux.
Paris: Citadelles & Mazenod, 2013.
 Bíblia Sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições
Paulinas, 1966.
 Mestres da pintura. (Col.). São Paulo: Abril Cultural, 1977.

 Revista Azougue, nº 8. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003, pp. 56-69.

132
ANEXO I (TREZE POEMAS)

A ÚLTIMA PARÁBOLA

No céu um dia eu vi — quando? — era na tarde roxa


As nuvens brancas e ligeiras do levante contarem a história estranha e desconhecida
De um cordeiro de luz que pastava no poente distante num grande espaço aberto.
A visão clara e imóvel fascinava os meus olhos...
Mas eis que um lobo feroz sobe de trás de uma montanha longínqua
E avança sobre o animal sagrado que apavorado se adelgaça em mulher nua
E escraviza o lobo que já agora é um enforcado que balança lentamente ao vento.
A mulher nua baila para um chefe árabe mas este corta-lhe a cabeça com uma espada
E atira-a sobre o colo de Jesus entre os pequeninos.
Eu vejo o olhar de piedade sobre a triste oferenda mas nesse momento saem da
[cabeça chifres que lhe ferem o rosto
E eis que é a cabeça de Satã cujo corpo são os pequeninos
E que ergue um braço apontando a Jesus uma luta de cavalos enfurecidos
Eu sigo o drama e vejo saírem de todos os lados mulheres e homens
Que eram como faunos e sereias e outros que eram como centauros
Se misturarem numa impossível confusão de braços e de pernas
E se unirem depois num grande gigante descomposto e ébrio de garras abertas
O outro braço de Satã se ergue e sustém a queda de uma criança
Que se despenhou do seio da mãe e que se fragmenta na sua mão alçada
Eu olho apavorado a luxúria de todo o céu cheio de corpos enlaçados
E que vai desaparecer na noite mais próxima
Mas eis que Jesus abre os braços e se agiganta numa cruz que se abaixa lentamente
E que absorve todos os seres imobilizados no frio da noite.
Eu chorei e caminhei para a grande cruz pousada no céu
Mas a escuridão veio e — ai de mim! — a primeira estrela fecundou os meus olhos
[de poesia terrena!...

133
ARIANA, A MULHER

Quando, aquela noite, na sala deserta daquela casa cheia da montanha em torno
O tempo convergiu para a morte e houve uma cessação estranha seguida de um
[debruçar do instante para o outro instante
Ante o meu olhar absorto o relógio avançou e foi como se eu tivesse me
[identificado a ele e estivesse batendo soturnamente a Meia-Noite
E na ordem de horror que o silêncio fazia pulsar como um coração dentro do ar despojado
Senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das paredes e se plantara
[aos meus olhos em toda a sua fixidez noturna
E que eu estava no meio dela e à minha volta havia árvores dormindo e flores
[desacordadas pela treva.

Como que a solidão traz a presença invisível de um cadáver — e para mim era como
[se a Natureza estivesse morta
Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua deglutição monstruosa mas
[para mim era como se ela estivesse morta
Paralisada e fria, imensamente erguida em sua sombra imóvel para o céu alto e sem lua
E nenhum grito, nenhum sussurro de água nos rios correndo, nenhum eco nas quebradas ermas
Nenhum desespero nas lianas pendidas, nenhuma fome no muco aflorado das plantas carnívoras
Nenhuma voz, nenhum apelo da terra, nenhuma lamentação de folhas, nada.

Em vão eu atirava os braços para as orquídeas insensíveis junto aos lírios inermes
[como velhos falos
Inutilmente corria cego por entre os troncos cujas parasitas eram como a miséria da
[vaidade senil dos homens
Nada se movia como se o medo tivesse matado em mim a mocidade e gelado o
[sangue capaz de acordá-los
E já o suor corria do meu corpo e as lágrimas dos meus olhos ao contato dos cactos
[esbarrados na alucinação da fuga
E a loucura dos pés parecia galgar lentamente os membros em busca do pensamento
Quando caí no ventre quente de uma campina de vegetação úmida e sobre a qual
[afundei minha carne.

134
Foi então que eu compreendi que só em mim havia morte e que tudo estava profundamente vivo
Só então vi as folhas caindo, os rios correndo, os troncos pulsando, as flores se erguendo
E ouvi os gemidos dos galhos tremendo, dos gineceus se abrindo, das borboletas
[noivas se finando
E tão grande foi a minha dor que angustiosamente abracei a terra como se quisesse fecundá-la
Mas ela me lançou fora como se não houvesse força em mim e como se ela não me desejasse
E eu me vi só, nu e só, e era como se a traição tivesse me envelhecido eras.

Tristemente me brotou da alma o branco nome da Amada e eu murmurei — Ariana!


E sem pensar caminhei trôpego como a visão do Tempo e murmurava — Ariana!
E tudo em mim buscava Ariana e não havia Ariana em nenhuma parte
Mas se Ariana era a floresta, por que não havia de ser Ariana a terra?
Se Ariana era a morte, por que não havia de ser Ariana a vida?
Por quê — se tudo era Ariana e só Ariana havia e nada fora de Ariana?

Baixei à terra de joelhos e a boca colada ao seu seio disse muito docemente — Sou eu, Ariana...
Mas eis que um grande pássaro azul desce e canta aos meus ouvidos — Eu sou Ariana!
E em todo o céu ficou vibrando como um hino o muito amado nome de Ariana.
Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo procurar em toda a parte e
[estás em cada uma?
Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por que não serias uma?
Por que me persegues e me foges e por que me cegas se me dás uma luz e restas longe?

Mas nada me respondeu e eu prossegui na minha peregrinação através da campina


E dizia: Sei que tudo é infinito! — e o pio das aves me trazia o grito dos sertões desaparecidos
E as pedras do caminho me traziam os abismos e a terra seca a sede nas fontes.
No entanto, era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava — Ariana!
E eu caminhava cheio do castigo e em busca do martírio de Ariana
A branca Amada salva das águas e a quem fora prometido o trono do mundo.

E eis que galgando um monte surgiram luzes e após janelas iluminadas e após
[cabanas iluminadas
E após ruas iluminadas e após lugarejos iluminados como fogos no mato noturno
E grandes redes de pescar secavam às portas e se ouvia o bater das forjas.
E perguntei: Pescadores, onde está Ariana? — e eles me mostravam o peixe
Ferreiros, onde está Ariana? — e eles me mostravam o fogo
Mulheres, onde está Ariana? — e elas me mostravam o sexo.

135
Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e guizos batiam
Eu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à medida que eu penetrava na savana
No entanto era como se o canto que me chegava entoasse — Ariana!
E pensei: Talvez eu encontre Ariana na Cidade de Ouro! — por que não seria Ariana
[a mulher perdida?
Por que não seria Ariana a moeda em que o obreiro gravou a efígie de César?
Por que não seria Ariana a mercadoria do Templo ou a púrpura bordada do altar do Templo?

E mergulhei nos subterrâneos e nas torres da Cidade de Ouro mas não encontrei Ariana
Às vezes indagava — e um poderoso fariseu me disse irado: — Cão de Deus, tu és Ariana!
E talvez porque eu fosse realmente o Cão de Deus não compreendi a palavra do homem rico
Mas Ariana não era a mulher, nem a moeda, nem a mercadoria, nem a púrpura
E eu disse comigo: Em todo lugar menos que aqui estará Ariana
E compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana.

Então cantei: Ariana, chicote de Deus castigando Ariana! e disse muitas palavras inexistentes
E imitei a voz dos pássaros e espezinhei sobre a urtiga mas não espezinhei sobre a cicuta santa
Era como se um raio tivesse me ferido e corresse desatinado dentro de minhas entranhas
As mãos em concha, no alto dos morros ou nos vales eu gritava — Ariana!
E muitas vezes o eco ajuntava: Ariana... ana...
E os trovões desdobravam no céu a palavra — Ariana.

E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das tocas e comiam os ratos
Os porcos endemoninhados se devoravam, os cisnes tombavam cantando nos lagos
E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de águias precipitadas
E misteriosamente o joio se separava do trigo nos campos desertos
E os milharais descendo os braços trituravam as formigas no solo
E envenenadas pela terra descomposta as figueiras se tornavam profundamente secas.

Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e mulheres desposadas


Umas me diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram cegas e paralíticas
E os homens me apontavam as plantações estorricadas e as vacas magras.
E eu dizia: Eu sou o enviado do Mal! e imediatamente as crianças morriam
E os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegos
E as plantações se tornavam pó que o vento carregava e que sufocava as vacas magras.

136
Mas como quisessem me correr eu falava olhando a dor e a maceração dos corpos
Não temas, povo escravo! A mim me morreu a alma mais do que o filho e me
[assaltou a indiferença mais do que a lepra
A mim se fez pó a carne mais do que o trigo e se sufocou a poesia mais do que a vaca magra
Mas é preciso! para que surja a Exaltada, a branca e sereníssima Ariana
A que é a lepra e a saúde, o pó e o trigo, a poesia e a vaca magra
Ariana, a mulher — a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem-amada!

E à medida que o nome de Ariana ressoava como um grito de clarim nas faces paradas
As crianças se erguiam, os cegos olhavam, os paralíticos andavam medrosamente
E nos campos dourados ondulando ao vento, as vacas mugiam para o céu claro
E um só clamor saía de todos os peitos e vibrava em todos os lábios — Ariana!
E uma só música se estendia sobre as terras e sobre os rios — Ariana!
E um só entendimento iluminava o pensamento dos poetas — Ariana!

Assim, coberto de bênçãos, cheguei a uma floresta e me sentei às suas bordas — os


[regatos cantavam límpidos
Tive o desejo súbito da sombra, da humildade dos galhos e do repouso das folhas secas
E me aprofundei na espessura funda cheia de ruídos e onde o mistério passava sonhando
E foi como se eu tivesse procurado e sido atendido — vi orquídeas que eram camas
[doces para a fadiga
Vi rosas selvagens cheias de orvalho, de perfume eterno e boas para matar a sede
E vi palmas gigantescas que eram leques para afastar o calor da carne.

Descansei — por um momento senti vertiginosamente o húmus fecundo da terra


A pureza e a ternura da vida nos lírios altivos como falos
A liberdade das lianas prisioneiras, a serenidade das quedas se despenhando.
E mais do que nunca o nome da Amada me veio e eu murmurei o apelo — Eu te amo, Ariana!
E o sono da Amada me desceu aos olhos e eles cerraram a visão de Ariana
E meu coração pôs-se a bater pausadamente doze vezes o sinal cabalístico de Ariana...
.............................................................................................................................................

Depois um gigantesco relógio se precisou na fixidez do sonho, tomou forma e se


[situou na minha frente, parado sobre a Meia-Noite
Vi que estava só e que era eu mesmo e reconheci velhos objetos amigos.
Mas passando sobre o rosto a mão gelada senti que chorava as puríssimas lágrimas de Ariana
E que o meu espírito e o meu coração eram para sempre da branca e sereníssima Ariana
No silêncio profundo daquela casa cheia da montanha em torno.

137
BALADA FEROZ

Canta uma esperança desatinada para que se enfureçam silenciosamente os


[cadáveres dos afogados
Canta para que grasne sarcasticamente o corvo que tens pousado sobre a tua omoplata atlética
Canta como um louco enquanto os teus pés vão penetrando a massa sequiosa de lesmas
Canta! para esse formoso pássaro azul que ainda uma vez sujaria sobre o teu êxtase.

Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o corpo felpudo das aranhas
Ri dos touros selvagens, carregando nos chifres virgens nuas para o estupro nas montanhas
Pula sobre o leito cru dos sádicos, dos histéricos, dos masturbados e dança!
Dança para a lua que está escorrendo lentamente pelo ventre das menstruadas.

Lança o teu poema inocente sobre o rio venéreo engolindo as cidades


Sobre os casebres onde os escorpiões se matam à visão dos amores miseráveis
Deita a tua alma sobre a podridão das latrinas e das fossas
Por onde passou a miséria da condição dos escravos e dos gênios.

Dança, ó desvairado! Dança pelos campos aos rinchos dolorosos das éguas parindo
Mergulha a algidez deste lago onde os nenúfares apodrecem e onde a água floresce em miasmas
Fende o fundo viscoso e espreme com tuas fortes mãos a carne flácida das medusas
E com teu sorriso inexcedível surge como um deus amarelo da imunda pomada.

Amarra-te aos pés das garças e solta-as para que te levem


E quando a decomposição dos campos de guerra te ferir as narinas, lança-te sobre
[a cidade mortuária
Cava a terra por entre as tumefações e se encontrares um velho canhão soterrado, volta
E vem atirar sobre as borboletas cintilando cores que comem as fezes verdes das estradas.

Salta como um fauno puro ou como um sapo de ouro por entre os raios do sol frenético
Faz rugir com o teu calão o eco dos vales e das montanhas
Mija sobre o lugar dos mendigos nas escadarias sórdidas dos templos
E escarra sobre todos os que se proclamarem miseráveis.

138
Canta! canta demais! Nada há como o amor para matar a vida
Amor que é bem o amor da inocência primeira!
Canta! — o coração da Donzela ficará queimando eternamente a cinza morta
Para o horror dos monges, dos cortesãos, das prostitutas e dos pederastas.

Transforma-te por um segundo num mosquito gigante e passeia de noite sobre as


[grandes cidades
Espalhando o terror por onde quer que pousem tuas antenas impalpáveis
Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o medo, aos avaros o ouro
E para que apodreçam como porcos, injeta-os de pureza!

E com todo esse pus, faz um poema puro


E deixa-o ir, armado cavaleiro, pela vida
E ri e canta dos que pasmados o abrigarem
E dos que por medo dele te derem em troca a mulher e o pão.

Canta! canta, porque cantar é a missão do poeta


E dança, porque dançar é o destino da pureza
Faz para os cemitérios e para os lares o teu grande gesto obsceno
Carne morta ou carne viva — toma! Agora falo eu que sou um!

BALADA DO ENTERRADO VIVO

Na mais medonha das trevas


Acabei de despertar
Soterrado sob um túmulo
De nada chego a lembrar
Sinto meu corpo pesar
Como se fosse de chumbo.
Não posso me levantar
Debalde tentei clamar
Aos habitantes do mundo.
Tenho um minuto de vida

139
Em breve estará perdida
Quando eu quiser respirar.

Meu caixão me prende os braços.


Enorme, a tampa fechada
Roça-me quase a cabeça.
Se ao menos a escuridão
Não estivesse tão espessa!
Se eu conseguisse fincar
Os joelhos nessa tampa
E os sete palmos de terra
Do fundo à campa rasgar!
Se um som eu chegasse a ouvir
No oco deste caixão
Que não fosse esse soturno
Bater do meu coração!
Se eu conseguisse esticar
Os braços num repelão
Inda rasgassem-me a carne
Os ossos que restarão!
Se eu pudesse me virar
As omoplatas romper
Na fúria de uma evasão
Ou se eu pudesse sorrir
Ou de ódio me estrangular
E de outra morte morrer!

Mas só me resta esperar


Suster a respiração
Sentindo o sangue subir-me
Como a lava de um vulcão
Enquanto a terra me esmaga
O caixão me oprime os membros
A gravata me asfixia
E um lenço me cerra os dentes!
Não há como me mover
E este lenço desatar

140
Não há como desmanchar
O laço que os pés me prende!

Bate, bate, mão aflita


No fundo deste caixão
Marca a angústia dos segundos
Que sem ar se extinguirão!
Lutai, pés espavoridos
Presos num nó de cordão
Que acima, os homens passando
Não ouvem vossa aflição!
Raspa, cara enlouquecida
Contra a lenha da prisão
Pesando sobre teus olhos
Há sete palmos de chão!
Corre, mente desvairada
Sem consolo e sem perdão
Que nem a prece te ocorre
À louca imaginação!
Busca o ar que se te finda
Na caverna do pulmão
O pouco que tens ainda
Te há de erguer na convulsão
Que romperá teu sepulcro
E os sete palmos de chão:
Não te restassem por cima
Setecentos de amplidão!

BALADA DO MANGUE

Pobres flores gonocócicas


Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor

141
Não sois Lælia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilinguidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé.
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós

142
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto-morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

BALADA DA MOÇA DO MIRAMAR

Silêncio da madrugada
No Edifício Miramar...
Sentada em frente à janela
Nua, morta, deslumbrada
Uma moça mira o mar.

143
Ninguém sabe quem é ela
Nem ninguém há de saber
Deixou a porta trancada
Faz bem uns dois cinco dias
Já começa a apodrecer
Seus ambos joelhos de âmbar
Furam-lhe o branco da pele
E a grande flor do seu corpo
Destila um fétido mel.

Mantém-se extática em face


Da aurora em elaboração
Embora formigas pretas
Que lhe entram pelos ouvidos
Se escapem por umas gretas
Do lado do coração.
Em volta é segredo: e móveis
Imóveis na solidão...
Mas apesar da necrose
Que lhe corrói o nariz
A moça está tão sem pose
Numa ilusão tão serena
Que, certo, morreu feliz.

A vida que está na morte


Os dedos já lhe comeu
Só lhe resta um aro de ouro
Que a morte em vida lhe deu
Mas seu cabelo de ouro
Rebrilha com tanta luz
Que a sua caveira é bela
E belo é seu ventre louro
E seus pelinhos azuis.

De noite é a lua quem ama


A moça do Miramar

144
Enquanto o mar tece a trama
Desse conúbio lunar
Depois é o sol violento
O sol batido de vento
Que vem com furor violeta
A moça violentar.

Muitos dias se passaram


Muitos dias passarão
À noite segue-se o dia
E assim os dias se vão
E enquanto os dias se passam
Trazendo a putrefação
À noite coisas se passam...
A moça e a lua se enlaçam
Ambas mortas de paixão.

Ah, morte do amor do mundo


Ah, vida feita de dar
Ah, sonhos sempre nascendo
Ah, sonhos sempre a acabar
Ah, flores que estão crescendo
Do fundo da podridão
Ah, vermes, morte vivendo
Nas flores ainda em botão
Ah, sonhos, ah, desesperos
Ah, desespero de amar
Ah, vida sempre morrendo
Ah, moça do Miramar!

BALADA DOS MORTOS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO

Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Ocos, flácidos cadáveres

145
Como espantalhos, largados
Na sementeira espectral
Dos ermos campos estéreis
De Buchenwald e Dachau.
Cadáveres necrosados
Amontoados no chão
Esquálidos enlaçados
Em beijos estupefatos
Como ascetas siderados
Em presença da visão.
Cadáveres putrefatos
Os magros braços em cruz
Em vossas faces hediondas
Há sorrisos de giocondas
E em vossos corpos, a luz
Que da treva cria a aurora.
Cadáveres fluorescentes
Desenraizados do pó
Que emoção não dá-me o ver-vos
Em vosso êxtase sem nervos
Em vossa prece tão só
Grandes, góticos cadáveres!
Ah, doces mortos atônitos
Quebrados a torniquete
Vossas louras manicuras
Arrancaram-vos as unhas
No requinte de tortura
Da última toalete...
A vós vos tiraram a casa
A vós vos tiraram o nome
Fostes marcados a brasa
E vos mataram de fome!
Vossa peles afrouxadas
Sobre os esqueletos dão-me
A impressão que éreis tambores —
Os instrumentos do Monstro —
Desfibrados a pancada:

146
Ó mortos de percussão!
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Vós sois o húmus da terra
De onde a árvore do castigo
Dará madeira ao patíbulo
E de onde os frutos da paz
Tombarão no chão da guerra!

DESERT HOT SPRINGS

Na piscina pública de Desert Hot Springs


O homem, meu heroico semelhante
Arrasta pelo ladrilho deformidades insolúveis.
Nesta, como em outras lutas
Sua grandeza reveste-se de uma humilde paciência
E a dor física esconde sua ridícula pantomima
Sob a aparência de unhas feitas, lábios pintados e outros artifícios de vaidade.
Macróbios espetaculares
Espapaçam ao sol as juntas espinhosas como cactos
Enquanto adolescências deletérias passeiam nas águas balsâmicas
Seus corpos, ah, seus corpos incapazes de nunca amar.
As cálidas águas minerais
Com que o deserto impôs às Câmaras de Comércio
Sua dura beleza outramente inabitável
Acariciam aleivosamente seios deflatados
Pernas esquálidas, gótico americano
De onde protuberam dolorosas cariátides patológicas.
Às bordas da piscina
A velhice engruvinhada morcega em posições fetais
Enquanto a infância incendida atira-se contra o azul
Estilhaçando gotas luminosas e libertando rictos
De faces mumificadas em sofrimentos e lembranças.
A Paralisia Infantil, a quem foi poupada um rosto talvez belo
Inveja, de seu líquido nicho, a Asma tensa e esquelética

147
Mas que conseguiu despertar o interesse do Reumatismo Deformante.
Deitado num banco de pedra, a cabeça no colo de sua mãe, o olhar infinitamente ausente
Um blue boy extingue em longas espirais invisíveis
A cera triste de sua matéria inacabada — a culpa hereditária
Transformou a moça numa boneca sem cabimento.
O banhista, atlético e saudável
Recolhe periodicamente nos braços os despojos daquelas vidas
Coloca-os em suas cadeiras de rodas, devolve-os a guardiães expectantes
E lá se vão eles a enfrentar o que resta de mais um dia
E dos abismos da memória, sentados contra o deserto
O grande deserto nu e só, coberto de calcificações anômalas
E arbustos ensimesmados; o grande deserto antigo e áspero
Testemunha das origens; o grande deserto em luta permanente contra a morte
Habitado por plantas e bichos que ninguém sabe como vivem
Varado por ventos que vêm ninguém sabe donde.

A BOMBA ATÔMICA

e = mc2
Einstein

Deusa, visão dos céus que me domina


… tu que és mulher e nada mais!
(“Deusa”, valsa carioca)

I
Dos céus descendo
Meu Deus eu vejo
De paraquedas?
Uma coisa branca
Como uma forma
De estatuária
Talvez a fôrma
Do homem primitivo
A costela branca!

148
Talvez um seio
Despregado à lua
Talvez o anjo
Tutelar cadente
Talvez a Vênus
Nua, de clâmide
Talvez a inversa
Branca pirâmide
Do pensamento
Talvez o troço
De uma coluna
Da eternidade
Apaixonado
Não sei, indago
Dizem-me todos
É a BOMBA ATÔMICA

Vem-me uma angústia

Quisera tanto
Por um momento
Tê-la em meus braços
A coma ao vento
Descendo nua
Pelos espaços
Descendo branca
Branca e serena
Como um espasmo
Fria e corrupta
Do longo sêmen
Da Via Láctea
Deusa impoluta
O sexo abrupto
Cubo de prata
Mulher ao cubo
Caindo aos súcubos
Intemerata

149
Carne tão rija
De hormônios vivos
Exacerbada
Que o simples toque
Pode rompê-la
Em cada átomo
Numa explosão
Milhões de vezes
Maior que a força
Contida no ato
Ou que a energia
Que expulsa o feto
Na hora do parto.

II
A bomba atômica é triste
Coisa mais triste não há
Quando cai, cai sem vontade
Vem caindo devagar
Tão devagar vem caindo
Que dá tempo a um passarinho
De pousar nela e voar...
Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar!

Coitada da bomba atômica


Que não gosta de matar
Mas que ao matar mata tudo
Animal e vegetal
Que mata a vida da terra
E mata a vida do ar
Mas que também mata a guerra...
Bomba atômica que aterra!
Pomba atônita da paz!

Pomba tonta, bomba atômica


Tristeza, consolação

150
Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do helium
E odor de radium fatal
Lælia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.

Nunca mais, oh bomba atômica


Nunca, em tempo algum, jamais
Seja preciso que mates
Onde houve morte demais:
Fique apenas tua imagem
Aterradora miragem
Sobre as grandes catedrais:
Guarda de uma nova era
Arcanjo insigne da paz!

III
Bomba atômica, eu te amo! és pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
— Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! alta e violenta potestade
Serena! Meu amor… desce do espaço
Vem dormir, vem dormir no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço

151
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enérgica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!

BALADA NEGRA

Éramos meu pai e eu


E um negro, negro cavalo
Ele montado na sela
Eu na garupa enganchado.
Quando? eu nem sabia ler
Por quê? saber não me foi dado
Só sei que era o alto da serra
Nas cercanias de Barra.

152
Ao negro corpo paterno
Eu vinha muito abraçado
Enquanto o cavalo lerdo
Negramente caminhava.
Meus olhos escancarados
De medo e negra friagem
Eram buracos na treva
Totalmente impenetrável.
Às vezes sem dizer nada
O grupo equestre estacava
E havia um negro silêncio
Seguido de outros mais vastos.
O animal apavorado
Fremia as ancas molhadas
Do negro orvalho pendente
De negras, negras ramadas.
Eu ausente de mim mesmo
Pelo negrume em que estava
Recitava padre-nossos
Exorcizando os fantasmas.
As mãos da brisa silvestre
Vinham de luto enluvadas
Acarinhar-me os cabelos
Que se me punham eriçados.
As estrelas nessa noite
Dormiam num negro claustro
E a lua morta jazia
Envolta em negra mortalha.
Os pássaros da desgraça
Negros no escuro piavam
E a floresta crepitava
De um negror irremediável.
As vozes que me falavam
Eram vozes sepulcrais
E o corpo a que eu me abraçava
Era o de um morto a cavalo.
O cavalo era um fantasma

153
Condenado a caminhar
No negro bojo da noite
Sem destino e a nunca mais.
Era eu o negro infante
Condenado ao eterno báratro
Para expiar por todo o sempre
Os meus pecados da carne.
Uma coorte de padres
Para a treva me apontava
Murmurando vade-retros
Soletrando breviários.
Ah, que pavor negregado
Ah, que angústia desvairada
Naquele túnel sem termo
Cavalgando sem cavalo!

Foi quando meu pai me disse:


— Vem nascendo a madrugada...
E eu embora não a visse
Pressenti-a nas palavras
De meu pai ressuscitado
Pela luz da realidade.
E assim foi. Logo na mata
O seu rosa imponderável
Aos poucos se insinuava
Revelando coisas mágicas.
A sombra se desfazendo
Em entretons de cinza e opala
Abria um claro na treva
Para o mundo vegetal.
O cavalo pôs-se esperto
Como um cavalo de fato
Trotando de rédea curta
Pela úmida picada.
Ah, que doçura dolente
Naquela aurora raiada
Meu pai montando na frente

154
Eu na garupa enganchado!
Apertei-o fortemente
Cheio de amor e cansaço
Enquanto o bosque se abria
Sobre o luminoso vale...
E assim fui-me ao sono, certo
De que meu pai estava perto
E a manhã se anunciava.

Hoje que conheço a aurora


E sei onde caminhar
Hoje sem medo da treva
Sem medo de não me achar
Hoje que morto meu pai
Não tenho em quem me apoiar
Ah, quantas vezes com ele
Vou no túmulo deitar
E ficamos cara a cara
Na mais doce intimidade
Certos que a morte não leva:
Certos de que toda treva
Tem a sua madrugada.

A ÚLTIMA VIAGEM DE JAYME OVALLE

Ovalle não queria a Morte


Mas era dele tão querida
Que o amor da Morte foi mais forte
Que o amor do Ovalle à vida.

E foi assim que a Morte, um dia


Levou-o em bela carruagem
A viajar — ah, que alegria!
Ovalle sempre adora viagem!

155
Foram por montes e por vales
E tanto a Morte se aprazia
Que fosse o mundo só de Ovalles
E nunca mais ninguém morria.

A cada vez que a Morte, a sério


Com cicerônica prestança
Mostrava a Ovalle um cemitério
Ele apontava uma criança.

A Morte, em Londres e Paris


Levou-o à forca e à guilhotina
Porém em Roma, Ovalle quis
Tomar a sua canjebrina.

Mostrou-lhe a Morte as catacumbas


E suas ósseas prateleiras
Mas riu-se muito, tais zabumbas
Fazia Ovalle nas caveiras.

Mais tarde, Ovalle satisfeito


Declara à Morte, ambos de porre:
— Quero enterrar-me, que é um direito
Inalienável de quem morre!

Custou-lhe esforço sobre-humano


Chegar à última morada
De vez que a Morte, a todo pano
Queria dar uma esticada.

Diz o guardião do campo-santo


Que, noite alta, ainda se ouvia
A voz da Morte, um tanto ou quanto
Que ria, ria, ria, ria...

156
O PRANTEADO

Lavem bem o morto


Com bastante álcool
Depois passem creme
Depois passem talco
Esfreguem extrato
Por todo o seu corpo
Porque ele urinou-se
No último esforço.

— Que morto mais chato!


— Que morto mais porco!

Penteiem direito
Os cabelos do morto
E ajeitem-lhe o olho
Que está meio torto
Estiquem-lhe a pele
Com fita colante
Para que ele fique
Mais moço que antes.

— Que morto mais tosco!


— Que morto aberrante!

Passem o morto a ferro


Porque ele está frio
E façam-lhe a barba
Sem deixar um fio
Depois o maquilem
De um ar bem-disposto
Que o morto está lívido
Nas mãos e no rosto.

157
— Que morto mais brando!
— Que morto mais morto!

E façam-lhe as unhas
Com um tom de bom gosto
Cueca, camisa
E gravata fosca
Enfiem-lhe o colete
E o que de mais resta
E o seu terno escuro
Da última festa.

— Que morto mais duro!


— Que morto grã-fino!

E ponham o morto
Dentro de um caixão
E preguem-no a prego
Pelo sim e pelo não
E desçam o caixão
A uma sepultura
Escavada em sete
Metros de fundura.

— Que coisa cacete!


— Que boa criatura!

E deitem-lhe cal
E joguem-lhe terra
Que morto não fala
Que morto não berra
E ponham depois
Uma pedra em cima
E vão falar quietos
No café da esquina.

158
— Que o morto está quieto!
— Que o morto está firme!

E pensem, e cogitem
E matem-se aos poucos
E chorem e se agitem
Até ficar loucos
Que dentro do túmulo
Feito em escuridão
Já se ouvem uns sons ocos
Vindos do caixão

— Que o morto está rindo


Na sua prisão!

ROMANCE DA AMADA E DA MORTE

A noite apodrece. Exausto


O poeta sem sua Amada
Não tem nada que o conforte.
A lua em seu negro claustro
Corta os pulsos em holocausto
À sua saudade enorme.
Mas o poeta não tem nada
Não tem nada que o conforte.
Fumando o seu LM
O poeta sozinho teme
Pela sua própria sorte.
Seu corpo ausente passeia
Trajando camisa esporte.
Abre um livro: o pensamento
Além do texto o transporta.
Pega um papel: o poema
Recusa-se à folha morta.
Toma um café, bebe um uísque

159
O gosto de tudo é pobre.
Liga o rádio, lava o rosto
Põe um disco na vitrola
Os amigos telefonam
O poeta nem dá bola
O simpatil não o relaxa
O violão não o consola.
O poeta sozinho acha
A vida sem sua Amada
Uma grandíssima bosta.
E é então que de repente
Soa a campainha da porta.
O poeta não compreende
Quem pode ser a essas horas...
E abre; e se surpreende
Ao ver surgir dos batentes
Sua velha amiga, a Morte
Usando um negro trapézio
E sombra verde nas órbitas.
Ao redor das omoplatas
Um colar de quatro voltas
E as falangetas pintadas
Com um esmalte de tom sóbrio.
O poeta acha-a mais mundana
No auge da última moda
Com a maquilagem romana
E os quatro metros de roda.
A Morte lânguida o enlaça
Com todo o amor de seus ossos
Insinuando no poeta
Sua bacia e sua rótula.
Ao poeta, de tão sozinho
Tudo pouco se lhe importa
E por muito delicado
Faz um carinho na Morte.
A Morte gruda-se a ele
Beija-o num louco transporte

160
O poeta serve-lhe um uísque
Muda o disco na vitrola.
A Morte sorri feliz
Como quem canta vitória
Ao ver o poeta tão triste
Tão fraco, tão provisório.
Enche-lhe bem a caveira
Sai dançando um rock-and-roll
Retorcendo-se do cóccix
E trescalando a necrose.
Depois senta-se ao seu lado
Faz-lhe uma porção de histórias...
O poeta deixa, infeliz
Sentindo o seu organismo
Ir aderindo ao da Morte.
Começa a inchar o seu fígado
Seu coração bate forte
Seu ventre tem borborigmos
Sente espasmos pelo cólon.
O poeta fuma que fuma
O poeta sofre que sofre
Sai-lhe o canino do alvéolo
Sua pele se descolore.
A Morte toma-lhe o pulso
Ausculta-o de estetoscópio
Apalpa a sua vesícula
Olha-lhe o branco dos olhos.
Nas suas artérias duras
Há sintomas de esclerose
Seu fígado está perfeito
Para uma boa cirrose.
Quem sabe câncer do sangue
Quem sabe arteriosclerose...
A Morte está satisfeita
Ao lado do poeta deita
E dorme um sono de morte.

161
E é então que de repente
Soa a campainha de fora.
O poeta não compreende
Quem pode ser a essas horas...
A Morte se deixa à espreita
Envolta no seu lençol
Enquanto gira o poeta
A maçaneta da porta.
A Amada entra como o sol
Como a chuva, como o mar
Envolve o poeta em seus braços
Seus belos braços de carne
Beija o poeta com sua boca
Com sua boca de lábios
Olha o poeta com seus olhos
Com seus olhos de luar
Banha-o todo de ternura
De uma ternura de água.
Não veste a Amada trapézio
Nem outra linha qualquer
Não está de cal maquilada
Nem usa sombra sequer.
A Amada é a coisa mais linda
A Amada é a coisa mais forte
A Amada é a coisa mulher.

A Morte, desesperada
Num transporte de ciúme
Atira-se contra a Amada.
A Amada luta com a Morte
Da meia-noite à alvorada
Morde a Morte, mata a Morte
Joga a Morte pela escada
Depois vem e se repousa
Tendo o poeta ao seu lado
E sorri, conta-lhe coisas
Para alegrar seu estado

162
E entreabre seu corpo moço
Para acolher seu amado.
O poeta sente seu sangue
Circular desafogado
Sua pressão baixa a 12
Seu pulso bate normal
De seu fígado a cirrose
Faz a pista apavorada
A matéria esclerosante
Fica desesclerosada
Desaparece a extrassístole
Seu cólon cala os espasmos
Equilibra-se de súbito.
Todo o seu vagossimpático
Corre-lhe o plasma contente
Cheio de rubras hemátias
O dente ajusta-se ao alvéolo
Fica-lhe a pele rosada.
Tudo isso porque o poeta
Não é poeta, não é nada
Quando a sua bem-amada
Larga-o à Morte, se ausente
De sua luz e do seu ar
Por isso que a ausência é a morte
É a morte mais tristemente
É a morte mais devagar.

163
ANEXO II (ICONOGRAFIA)

GROTESCOS DA ANTIGUIDADE

Roma, Domus Aurea

164
Roma, Domus Augusti

165
Roma, Domus Aurea

Roma, Domus transitoria

166
GROTESCOS DA IDADE MÉDIA

Verona, Torre da Abadia de San Zeno

Letra capitular grotesca (iluminura), séc. XIII

167
DOMUS AUREA REDESCOBERTA (SÉC. XV e XVI)

Vaticano, Ateliê de Rafael

168
Parma, Mosteiro de San Paolo (Alessandro Araldi)

169
Catedral de Orvieto, Capela San Brizio (Luca Signorelli)

170
Padova, complexo arquitetônico Loggia e Odeon Cornaro

171
Detalhe do “Tríptico das delícias” (pintura à óleo), de Hieronymus Bosch

Desenho de Jacques Callot

172
GROTESCOS HOJE

Varanda de um sobrado — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ

Restaurante em um shopping — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ

173
Detalhe das esquadrias de uma creche — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ

174
Detalhe das esquadrias

Detalhe de uma das portas

175
Loja de produtos para crianças em um shopping — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ

http://www.danielgil.com.br
e-mail: danielgil@danielgil.com.br

176

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